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C. LÉVI-STRAU
TRISTES TRÓPICOS
TR A D U gA O D E
WILSON MARTINS
revista pelo autor
SAO PAULO
1957
I»
Para
L aurent
L u c b é c io ,
De Rerum Nature, III, 969.
PRIMEIRA PARTE
PARTIDA
A BORDO
I
I
y T R IS T E S TRÓPICOS 1T
corpos úmidos nem mesmo descia até à pele. Nos dois casos,
tinha-se pressa de acabar e de sair, porque essas barracas
sem aeração eram feitas de tãbuas de pinho fresco e resinoso
que, impregnadas de água suja, de urina e de ar marinho,
se puseram a fermentar sob o sol, exalando um perfume
morno, açucarado e nauseante, que, junto a outros cheiros,
logo se tornava insuportável, sobretudo quando havia marulho.
Quando, ao fim de um mês de travessia, se avistou no
meio da noite o farol de Fort-de-France, não foi a esperança
duma refeição enfim comível, de um leito com lençóis, duma
noite tranquila, que inundou o coração dos passageiros. Todas
essas pessoas que, até ao embarque, tinham gozado do que os
inglêses chamam pitorescamenfe as “amenidades” da civili
zação, mais que de fome, de fadiga, de insônia, de promiscui
dade e de desprêzo, haviam sofrido com a sujeira forçada,
ainda agravada pelo calor, em que acabavam de passar essas
quatro semanas. Havia a bordo mulheres jovens e bonitas;
namoros se esboçaram, aproximações se produziram. Para elas,
mostrar-se, antes da separação, sob um aspecto enfim favorá
vel era mais do que uma preocupação de faceiriee: uma pro
missória a pagar, uma divida a saldar, a prova lealmente
devida de que elas não eram substancialmente indignas das
atenções de que, com uma tocante delicadeza, consideravam
se lhes havia feito apenas crédito. Havia, pois, não sòmente
um lado bufo, mas também uma dose discreta de patético no
grito que subia de todos os peitos, substituindo^ o “terra t
terra!” das narrativas tradicionais de navegação: “Um banho!
enfim um banho! amanhã um banho!”, ouvia-se de todos os
lados, ao mesmo tempo em que se procedia ao inventário fe
bril do último pedaço de sabão, da toalha ainda limpa, da
blusa guardada para essa ocasião.
Além de implicar êsse sonho hidroterápico uma visão
exageradamente otimista da obra civilizadora que se pode
esperar de quatro séculos de colonização (pois os banheiros
são raros em Fort-de-France), os passageiros não tardariam
em saber que o seu navio imundo e abarrotado era ainda um
local idílico, comparado ã acolhida que lhes reservava, mal
tinham ancorado, uma soldadesca prêsa de uma forma coletiva
de desarranjo cerebral, que mereceria reter a atenção do etnó
logo se êste não estivesse ocupado em utilizar todos os seus
recursos intelectuais para a finalidade única de escapar às
suas desagradáveis conseqüências.
T B IS T E S T E Ó P IC 03 21
ARTILHAS
A PROCURA DO PODER
turas não tem mais fim. Quando teria sido bom ver a Índia,
em que época o estudo dos selvagens brasileiros podia propor
cionar a satisfação mais pura, fazê-los conhecer sob a sua
forma menos alterada? Teria valido mais chegar ao Rio no
século XVIII com Bougainville, ou no século XVI, com Léry
e Thevet? Cada lustro para trás me permite salvar um cos
tume, ganhar uma festa, partilhar de uma crença suplementar.
Mas, conheço demasiado os textos para ignorar que, privándo
me dum século, renuncio por isso mesmo a informações e
curiosidades próprias a enriquecer a minha reflexão. Bis,
pois, à minha frente, o círculo intransponível: quanto menos
as culturas humanas podiam comunicar-se entre si e, por con
sequência, corromper-se pelo contacto, menos também os seus
respectivos emissários eram capazes de perceber a riqueza e
a significação dessa diversidade. No fim das contas, sou pri
sioneiro de uma alternativa: ora viajante antigo, confrontado
com um prodigioso espetáculo de que tudo ou quase lhe esca
paria — pior ainda, lhe inspiraria escárneo e asco; ora viajante
moderno, correndo atrás dos vestígios duma realidade desapa
recida. Nesses dois tabuleiros eu perco, e mais do que parece:
pois eu, que me lamento diante de sombras, não serei imper
meável ao verdadeiro espetáculo que toma forma neste instante,
mas para cuja observação meu grau de humanidade não possui
ainda o sentido apropriado? Em algumas centenas de anos,
neste mesmo lugar, outro viajante, tão desesperado quanto eu,
chorará o desaparecimento do que eu teria podido ver e que
me escapou. Vítima duma dupla enfermidade, tudo o que
percebo me fere e eu me censuro sem cessar por não olhar
suficientemente.
Longaraente paralizado por êsse dilema, parece-me, porém,
que o líquido turvo começa a depositar-se. Formas evanes
centes se precisam, a confusão lentamente se dissipa. Que se
passou afinal, senão a fuga dos anos? Rolando minhas recor
dações no seu fluxo, o esquecimento fez mais do que gastá-las
e sepultá-las. O profundo edifício que êle construiu dêsses
fragmentos propõe a meus passos um equilíbrio mais estável,
um desenho mais claro à minha vista. Uma ordem foi subs
tituída por outra. Entre êsses dois penhascos, mantendo à
distância meu olhar e o seu objeto, os anos que os arruinam
começaram a amontoar os destroços. As arestas diminuem,
pedaços inteiros desmoronam; os tempos e os lugares chocam-
se, justapõem-se ou invertem-se, como os sedimentos deslo
cados pelos tremores duma crosta envelhecida. Tal pormenor,
t b is t e s TRÓPICOS
39
CADERNO DE VIAGEM
V
OLHANDO O PASSADO
fação intelectual: como história que toca por suas duas extre
midades a do mundo e a minha própria, ela desvenda ao
mesmo tempo sua razão comum. Propondo-me estudar o ho
mem, ela me liberta da dúvida porque nêle considera essas
diferenças e essas modificações que têm um sentido para todos
os homens, excluídos os que, próprios duma única civilização, se
dissolveriam se escolhêssemos permanecer de fora. Enfim, ela
tranqüiliza êsse apetite inquieto e destruidor de que falei,
garantindo à minha reflexão uma matéria pràticamente ines
gotável, fornecida pela diversidade dos costumes, dos hábitos
e das instituições. Ela reconcilia o meu caráter e a minha
vida.
Depois disso, pode parecer estranho que eu tenha ficado
tanto tempo surdo a uma mensagem que, entretanto, desde as
aulas de filosofia, me era transmitida pela obra dos mestres
da escola sociológica francesa. Na verdade, a revelação só
me veio por volta de 1933 ou 34, com a leitura de um livro
encontrado por acaso e já antigo: Primitive Soeiology, de
Bobert H. Lowie. Mas é que, em lugar de noções tiradas
dos livros e imediatamente metamorfoseadas em conceitos filo
sóficos, eu me confrontava com uma experiência viva das
sociedades indígenas e cuja significação tinha sido preservada
pela participação do observador. Meu espírito escapava a
essa sudação em vaso fechado a que a reduzia a prática da
reflexão filosófica. Conduzido para fora, êle se sentia refres
cado por um sôpro novo. Como um citadino largado nas
montanhas, eu me embriagava de espaço enquanto meu olhar
maravilhado media a riqueza e a variedade dos objetos.
Assim começou essa longa intimidade com a etnologia an
glo-americana, ligada à distância pela leitura e mais tarde
mantida por meio de contactos pessoais, que devia originar tão
graves mal-entendidos. Antes de mais nada no Brasil, onde
os patrões da Universidade esperavam de mim que contri
buísse para o ensino de uma sociologia durkheimiana para
a qual tinham sido orientados pela tradição positivista, tão
viva na América do Sul, e pela preocupação de dar uma base
filosófica ao liberalismo moderado, que ê a arma ideológica
habitual das oligarquias contra o poder pessoal. Eu chegava
em estado de insurreição aberta contra Durtheim e contra
todas as tentativas de utilizar a sociologia para fins metafí
sicos. Não seria certamente no momento em que procurava
com todas as fôrças alargar meu horizonte que iria ajudar a
reerguer as velhas muralhas. Censuraram-me frequentemente
58 O. UÊVI-STBAUSS
O PÔ E DO SO L
ESCRITO NO N A V I O ,
00 C. LÉVI-STRA TJSS
O NOVO MUNDO
VIII
O «CALDEIRÃO”
GUANABARA
PASSAGEM DO TRÓPICO
SÃO PAULO
de soa « * * * £ «
outra*1catedral d o século X III, eu me regozijo de me adaptar
a um sistema sem dimensão temporal, para ^ n*erPrf arQ
forma diferente de civilização. Mas é oo erro í d *
caio- já que essas cidades sao novas, e tiram dessa noyiüaae
seu sêr e sua justificação, mal lhes perdoo nao continuarem
a sê-lo. Para as cidades européias, a passagem os
constitui uma promoção; para as americanas, a dos anos é
Porque elas não são apenas
das- são construídas para se renovar com a mesma rapidez
com que fodm erguias, isto é, mal. No momento em que
se levantam os novos bairros, quase nao sao elementos urba
nos: brilhantes demais, demasiadamente novos, exagerada
mente alegres para isso. Lembrariam artof ses ¿ew is
exposição internacional, edificada para alguns meses. Depois
T R IS T E S TRÓPICOS 97
A TERRA E OS HOMENS
XII
CIDADES E CAMPOS
O TAPETE VOADOR
quarto com pensão custava por dia mais do que uma operária
recebia por mês; dessa forma, amortizava-se em 9 meses o
custo de construção de um hotel de luxo. Era, pois, neces
sário andar depressa e os contramestres não se preocupavam
muito com o perfeito ajustamento dos blocos. Nada havia
mudado, sem dúvida, depois que os sátrapas obrigavam os
escravos a esparramar o barro e a empilhar os tijolos para
edificar palácios capengas, ornados de frisos para os quais o
desfile das carregadoras de cestas, recortando-se contra o céu
no alto dos andaimes, poderia servir ainda de modêlo.
Afastada da vida indígena (ela própria, nesse deserto,
criação artificial da colonização) por alguns quilômetros tor
nados intransponíveis pela insuportável umidade de uma mon
ção sempre abortada, e mais ainda pelo mêdo da desinteria
— Karachi tumrny, como diziam os Inglêses — uma clientela
de comerciantes, de Industriais, de diplomatas, morria de
calor e de tédio, nessas cubas de cimento nu que lhes servia
de quarto, como se, mais ainda do que por desejo de economia,
tivesse presidido ao seu plano a preocupação de efetuar-se fácil
mente a desinfecção cada vez que mudava o espécime humano
que ali se imobilizara por algumas semanas ou alguns meses. E
minha lembrança atravessa imediatamente 3.000 quilômetros,
para justapor a essa imagem uma outra, recolhida no templo
,da deusa Kali, o mais antigo e venerado santuário de Calcutá.
Lá, junto a um pântano estagnado e nessa atmosfera de páteo
dos milagres e de sórdida exploração comercial em que se
desenvolve a vida religiosa popular na índia, perto dos baza
res repletos de cromolitografías piedosas e de divindades em
gêsso pintado, eleva-se o moderno caravançarai construído
pelos empresários do culto para alojar os peregrinos: é a rest
Jwuse, longo mercado de cimento, dividido em dois corpos,
um para os homens e outro para as mulheres, ao longo dos
quais se estendem os entablamentos, também em cimento nu,
destinados a servir de leito; fazem-me admirar as valetas de
despejo e as bicas de água: assim que o carregamento,humano
acorda e é mandado prosternar-se, implorando a cura de seus
cânceres e de suas úlceras, de suas purulências e de suas pere
bas, lava-se tudo abundantemente, com esguichos, e êsses bal
cões de açougue refrescados estão prontos para receber uma
nova remessa; jamais sem dúvida — salvo nos campos de
concentração — confundiram-se a tal ponto os homens com a
carne de gado.
!
T R IS T E S TRÓPICOS 131
no teto por seu fio, oh! Mil e Uma Noites, comi com os meus
dedos um jantar pleno de suculências ancestrais: primeiro, o
khichuri, arroz e pequenas lentilhas chamadas em inglês pulse,
cujos sacos se vêem no mercado, repletos de variedades multi-
coloridas. Depois, o nimkorma, guisado de ave; o chingri cari,
ensopado gorduroso enfeitado de camarões gigantes, e o
de ovos duros que se chama dimer tak, acompanhado de um
môlho de pepinos, shosha; enfim, a sobremesa, firni, arroz doce.
Eu era convidado de um jovem professor; lá estavam o
seu cunhado, que fazia as vêzes de mordomo; uma empregada
e uma criancinha de peito; enfim, a sua espôsa, que se eman
cipava do parâah: silenciosa e assustada gazela, enquanto o
marido, para afirmar a sua liberação recente, crivava-a de
sarcasmos cuja grosseria me fazia sofrer tanto quanto ela;
obrigando-a, já que eu era etnógrafo, a tirar a sua roupa
branca de um armário de aluna interna para que eu o pu
desse inventariar. Mais um pouco e êle a teria despido, tal
a sua ânsia de oferecer garantias a êsse Ocidente que ignorava.
Assim via eu prefigurar-se aos meus olhos uma Ásia de
cidades operárias e de H. B. M. que será a de amanhã, repudian
do todo exotismo e alcançando, depois de um eclipse de 5.000
anos, êsse estilo de vida triste e eficaz que ela talvez tivesse in
ventado no terceiro milênio e que depois se deslocou na face da
terra, imobilizando-se provisoriamente no Novo Mundo na
época contemporânea ao ponto de, aos nossos olhos, estar
ainda identificada com a América, mas que, desde 1850, reto
mou a sua marcha para oeste, ganhando o Japão e chegando
em nossos dias ao seu lugar de origem, depois de ter com
pletado a volta ao mundo.
No vale do Indo, errei entre êsses austeros vestígios que
os séculos, a areia, as inundações, a pólvora e as invasões
arianas deixaram subsistir da mais antiga cultura do Oriente:
Mohenjo-Daro, Harappa, excrescências endurecidas de tijolos
e de cacos. Que desconcertante espetáculo o dessas antigas
vilas operárias! Ruas traçadas a cordel e perpendiculares
entre si; bairros operários de casas iguais; oficinas indus
triais para a moagem das farinhas, a fundição e o cinzela-
mento dos metais e a fabricação dêsses copos de argila cujos
fragmentos cobrem o solo; depósitos municipais ocupando
(dir-se-ia fácilmente, transpondo no tempo e no espaço) diver
sos 'quarteirões; banhos públicos, canalizações e esgotos; bair
ros residenciais de um confôrto sólido e sem graça. Nenhum
monumento, nenhuma grande escultura, mas, jazendo a 10
T B IS T E S TBÓPICOS 133
XV
MULTIDÕES
MERCADOS
C A D U V E O
r
XVII
PARANÁ
PANTANAL
PALIQUE
r
T R IS T E S TRÓPICOS
201
SEXTA PARTE
B O R O R O
I
XXI
O OURO E OS DIAMANTES
“VAPOR GUAPORÉ”
Para melhor servir os Senhores Passageiros, a Em-
prêsa acaba de reformar o esplêndido vapor GUAPORÉ,
deslocando a sala de jantar para cima, idéia que dá ao
vapor uma magnífica Sala ãe Jantar e ura grande espaço
para a locomoção dos distintos passageiros.
O Soldado...
O Oferece
O Sargento que era um homem pertinente
Pegõ na pena, escreveu pro seu Tenente
0 Tenente que era homem muito bão
Pegô na pena, escreveu pro Capitão.
O Capitão que era homem dos melhor
Pegô na pena, escreveu pro Major
O Major que era homem como é
Pegô na pena, escreveu pro Coroné
O Coroné que era homem sem igual
Pegô na pena, escreveu pro General
O General que era homem superior
Pegô na pena, escreveu pro Imperador
0 Imperador...
Pegô na pena, escreveu pro Jesu Cristo
Jesu Cristo que é filho do Padre Eterno
Pegô na pena e mandô tudo pros inferno.
BONS SELVAGENS
OS VIVOS E OS M. O R T O S
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1
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it ÊiÊitíftf if í t e f 1'1
t| M f .lU lf tit, A .
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Fio. 40 — Pintura bororo, representando objetos de culto religioso.
SÉTIMA PARTE
NHAMBIQUARA
í
XXIV
O MUNDO PERDIDO
W, K* Moorehead,
F ig. 50 — Hopewell, este dos Estados Vnidos (segundo Anthropol.
“The Hopewell m o u n d ...”, Field Museum, Chicago, Series,
vol* VI, it1
*9 3>, lv&z/*
T F JS T E S TRÓPICOS 273
NO SERTÃO
jVA LIJÍHA
EM FAMÍLIA
LIÇÃO DE ESCRITA
saibam 1er para que éste último possa dizer: ninguém se es
cusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.
Do plano nacional, o empreendimento passou para o plano
internacional, graças à cumplicidade que se ligou entre jovens
estados — postos diante de problemas que foram os nossos
há um ou dois séculos — e uma sociedade internacional de
possuidores, inquieta com a ameaça que representam para a
sua estabilidade as reações de povos mal capacitados pela
palavra escrita a pensar em fórmulas modificáveis à vontade
e a fornecer base para os esforços de edificação. Acedendo
ao saber acumulado nas bibliotecas, êsses povos se tornam
vulneráveis às mentiras que os documentos impressos propagam
em proporção ainda maior. Sem dúvida, os dados estão lan
çados. Mas na minha aldeia nhambiquara, os caracteres for
tes eram, apesar de tudo, os mais prudentes. Os que se desso-
lidarizaram de seu chefe depois que êle tentou jogar a cartada
da civilização (após a minha visita êle foi abandonado pela
maior parte dos seus) compreendiam confusamente que a es
crita e a perfídia penetravam ao mesmo tempo entre êles.
Refugiados num mato mais longínquo, resolveram conceder-se
um prazo. O gênio de seu chefe, percebendo imediatamente
o auxílio que a escrita podia trazer ao seu domínio e alcan
çando, assim, o fundamento da instituição sem possuir-lhe
o uso, inspirava contudo admiração. Ao mesmo tempo, o epi
sódio chamava a minha atenção para um novo aspecto da vida
nhambiquara: quero dizer, as relações políticas entre as pes
soas e os grupos. Eu ia, dentro em pouco, poder observá-los
de maneira mais direta.
Enquanto nos encontrávamos ainda em Utiariti, uma epi
demia de oftalmía purulenta manifestou-se entre os indígenas.
Essa infecção de origem gonocócica espalhava-se por todos
êles, provocando dores terríveis e uma cegueira que podia
ser definitiva. Durante muitos dias, o bando ficou comple
tamente paralisado. Os indígenas medicavam-se com água em
que maceravam a casca de certa árvore, instilada no ôlho por
meio de uma fôlha enrolada em cartucho. A enfermidade
estendeu-se ao nosso grupo: em primeiro lugar, minha mulher,
que participara de tôdas as expedições anteriores, e a quem
cabia o estudo da cultura material; ficou tão gravemente
atacada que foi preciso mandá-la de volta definitivamente;
depois, a maior parte dos homens de tropa e meu companheiro
brasileiro. Logo já não havia meio de avançar; pus em re
pouso o grosso do efetivo, com o nosso médico, para propor-
320 O. L É V I-STH A U SS
tem o poder, mas deve ser generoso. Tem deveres, mas pode
obter diversas mulheres. Entre êle e o grupo estabelece-se
um equilíbrio perpètuamente renovado de prestações e de
privilégios, de serviços e de obrigações.
Mas, no caso do casamento, passa-se alguma coisa além
disso. Concedendo o privilégio poligâmico a seu chefe, o grupo
troca os elementos individuais de segurança, garantidos pela
regra monogâmica, por uma segurança coletiva, esperada da
autoridade. Cada homem recebe sua mulher de outro homem,
mas o chefe recebe diversas mulheres do grupo. Em com
pensação, oferece uma garantia contra a necessidade e o
perigo, não aos indivíduos com cujas irmãs ou filhas, êle se casa,
nem mesmo aos que se virem privados de mulheres em conse-
qüência do direito poligâmico; mas ao grupo considerado como
um todo, porque é o grupo considerado como um todo que
sustou em seu proveito o direito comum. Essas reflexões
podem apresentar interêsse para um estudo teórico da poli
gamia; mas, sobretudo, lembram que a concepção do estado
como um sistema de garantias, renovada pelas discussões sôbre
um regime nacional de seguro (tal como o Plano Beveridge
e outros), não é um desenvolvimento puramente moderno. É
um retorno à natureza fundamental da organização social e
política.
Tal é o ponto de vista do grupo sôbre o poder. Qual é,
agora, a atitude do próprio chefe diante da sua função? Que
móveis o levam a aceitar um encargo que nem sempre é
agradável? O chefe nhambiquara vê impor-se-lhe um papel
difícil; êle não deve poupar-se para manter a sua posição.
Mais ainda, se não a melhora constantemente, corre o risco
de perder o que levou meses ou anos para conquistar. Assim
se explica que muitos homens se furtem ao poder. Mas, por
que outros o aceitam e até o procuram? É sempre difícil
julgar os móveis psicológicos, e a tarefa se torna quase im
possível em presença de uma cultura muito diferente da nossa.
Entretanto, pode-se dizer que o privilégio poligâmico, qualquer
que seja o seu atrativo do ponto de vista sexual, sentimental
ou social, seria insuficiente para inspirar uma vocação. O
casamento poligâmico é uma condição técnica do poder; êle
não pode ter, sob o ângulo das satisfações íntimas, senão um
significado acessório. Deve haver qualquer outra coisa; quan
do tentamos rememorar os traços morais e psicológicos dos
diversos chefes nhambiquara e quando procuramos igualmente
surpreender os matizes fugitivos de sua personalidade (que
t r is t e s t r ó p ic o s 337
:orporaçâ
tória do rr
!omo a crii
:ado davo,
>de recebt
d as corren
¡rnidade o
into inspii
stume que
idade pas:
is aspecto:
ção da ins
insanidac
is de insar,
mento cei
, De iato, i
ença meni
)e grande
:a mental,
qualquer Y S í V AVO — IdílX
>ecial, eml
ida em to.
>ta como u aXHYá TATUO
aliar a qua
u alcance.
pana.”18
) propositi
staurar a s.
nentos nei
I
i
XXX
DE PIROGA
História de E m í d i o .
Um viúvo tinha um único filho, adolescente. Um dia
chamarO, explica-lhe que já é tempo de se casar. “Que è pre
ciso fazer para casar?” pergunta o filho. “Ê muito simples,
diz-lhe o pai, você só tem que visitar os vizinhos e tratar de
agradar d filha deles”. “Mas eu não sei como se agrada a
uma moça!” “Ora, toque violão, seja alegre, ria, cante!” O
filho segue o conselho, chega no nwmento em que o pai da moça
acaba de morrer; sua atitude ê considerada indecente, tocam-
no a pedradas. Me volta para junto do pai e queixa-se; o
pai lhe explica a conduta a seguir em casos semelhantes. O
T R IS T E S TRÓPICOS 345
ROBINSON
NA FLORESTA
'X c\
X '“X
X X X III
A FARSA DO JAPIM
AMAZÔNIA
SERINGAL
O REGRESSO
X X X VI I
A APOTEOSE DE AUGUSTO
UM CÁLICE DE RUM
TAXILA
T R IS T E S TRÓPICOS 425
t
4 26 O. LÉ TI-S T E A T IS S
façais como os outros povos, que comem com uma faca”, ins
pirada pelo mesmo cuidado, inconsciente sem dúvida, de infan-
tilização sistemática, de imposição homossexual da comuni
dade pela promiscuidade, que se depreende dos rituais de lim
peza depois das refeições em que todo o mundo lava as mãos,
gargareja, arrota e escarra no mesmo recipiente, pondo em
comum, numa indiferença terrivelmente autista, o mesmo te
mor da impureza associado ao mesmo exibicionismo, A von
tade de se confundir é, de resto, acompanhada pela necessi
dade de se singularizar como grupo, tal a instituição do purdah:
"Que vossas mulheres sejam veladas, para que se distingam das
outras!”
A fraternidade islâmica repousa numa base cultural e
religiosa. Não tem nenhum caráter econômico ou social. Já
que temos o mesmo deus, o bom muçulmano será o que parti
lhar o seu hooka com o varredor. O mendigo é meu irmão,
com efeito: neste sentido, sobretudo, que partilhamos frater
nalmente a mesma aprovação da desigualdade que nos separa;
donde estas duas espécies sociológicamente tão notáveis: o
muçulmano germanófilo e o alemão islamizado; se um corpo
de guarda pudesse ser religioso, o Islam pareceria sua reli
gião ideal: estrita observância do regulamento (orações cinco
vêzes por dia, cada uma comportando 50 genuflexões); revistas
de pormenor e cuidados de limpeza (as abluções rituais);
promiscuidade masculina na vida espiritual como na satis
fação das funções orgânicas; e nada de mulheres.
Êsses ansiosos são também homens de ação. Presos entre
sentimentos incompatíveis, compensam a inferioridade que
sentem com formas tradicionais de sublimação que sempre se
associaram à alma árabe: ciúme, orgulho, heroísmo. Mas,
essa vontade de estar entre si, êsse espírito de campanário
aliado a um desenraízamento crônico (o urdu é uma língua
bem denominada: “do acampamento”) que estão na origem
da formação do Paquistão, explicam-se muito imperfeitamente
por uma comunidade de fé religiosa e por uma tradição his
tórica. É um fato social de hoje e que como tal deve ser
interpretado: drama de consciência coletivo que obrigou mi
lhões de indivíduos a uma escolha irrevogável, ao abandono das
suas terras, de sua fortuna freqüentemente, algumas vêzes
de seus parentes, de sua profissão, de seus projetos de futuro,
do solo de seus avós e de seus túmulos, para ficar entre mu
çulmanos, e porque não se sentem à vontade senão entre
muçulmanos.
432 O. L É V I-S T B A U SS
VISITA AO KIOIG
CADUVEO
1 — Floresta virgem ão Paraná.
2 — O Pantanal.
3 — Nalike, capital da nação caãuveo.
4 - 5 — Mulheres caãuveo ãe cara pintada.
6 — Uma beleza caãuveo em 1895 (segundo Boggiani).
7 — Pintura ãe rosto• desenho original ãe uma mulher ca
ãuveo.
8 — Outra pintura; desenho indígena.
9 — Outra pintura; desenho indígena.
10 — Adolescente caãuveo, preparada para a sua festa ãe
puberdade.
BORORO
Nâ NBIKWARA
19 — Nanbikwaras em viagem...
20 — e descansando.
21 — Um abrigo de folhagem na estação sêca.
22 — A menina e o macaquinho.
23 — Construção da cabana para a estação das chuvas.
24 — Dois homens nanbikwara (note-se o cigarro enrolado
numa fôlha no bracelete do biceps).
25 — O feiticeiro Sabané.
26 — O chefe Wakletoçú.
27 — A preparação do curare.
28 — Posição nanbikwara da mão direita para atirar a flecha
(conhecida como posição secundária. Comparar com a
figura 52).
29 — Acampamento nanbikwara em pleno trabalho: escolha de
missangas, fiação e tecelagem (no fundo).
30 — Mulher nanbikwara perfurando brincos de nacar fluvial.
31 — Uma famüia polígama.
32 — Mulher amamentando na posição indígena.
33 — Intimidade.
34 — A sesta.
35 — Brincadeira conjugal.
36 — Pugilato carinhoso...
37 — e lutas cordiais.
38 — Catando piolho.
39 — A mocinha e o macaquinho.
40 — Mulher grávida descansando.
41 — Maneira de carregar criança.
42 — A fiandeira interrompida.
43 — .4.? duas jovens mulheres do feiticeiro conversando.
44 — Rapazinho nanbikwara com um botoque e uma fibra
rígida atravessando o lábio,
45 — A sonhadora.
46 — Sorriso nanbikwara.
TUPI-KAWAHIB