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EMMANUEL LE ROY LADURIE

MONTAILLOU
Título origin;ll:
Mmrtaillou, vil/agl? occiran ele /194 a IJ 24
CÁTAROS E CATÓLICOS
� Étlitions Gallímanl. 1'>7S NUMA ALDEIA OCCITANA
c 191! 2 par.t a edição revista c corrigida
1291-1()21
Tradução: Nuno Garcia Lopes
c Pedro Bernardo

CapadcFBA

lll.:pósito Legal n" 27')112�1)11

Acabamento:
GRAACA llE ÜIIMIIK,\
para
EDIÇÕES 70, LDA.
Julhode 20011

ISBN dc:;ta ediç-.io: '>71!-'l72-44-1454-n


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de pwccdimcnto ju,Jidal.
PREFÁCIO
À 1." EDIÇÃO PORTUGUESA

A apresentação deste livro aos leitores de llngua portuguesa põe


alguns problemas que procurarei tratar com·· a maior brevidade posslvel,
no quadro muito limitado deste prefácio.
E, em primeiro lugar, o que é Montaillou? Porquê Montaillou,
cátaros e católicos numa aldeia francesa (/294- /JU)? A resposta
pormenorizada a estas duas perguntas encontra-se evidentemente no
conjunto do livro. Aqui farei apenas um breve apanhado: Montaillou é
uma pequena aldeia, hoje francesa, situada no Sul pirenaico do actual
departamento de Ariege, muito perto da fronteira franco-espanhola. O
departamento de Ariege corresponde ao território da diocese de Pamiers
e ao antigo condado medieval de Foix, que constitula um principado
pirenaico, outrora independente; a partir dos séculos XIII e XIV, este
principado, governado pela importante famflia dos condes de Foix,
tomara-se satélite do poderoso reino de França; as possessões francesas,
por seu turno, inclufam já a grande provlncia de Languedoc, limltrofe
de Ariege.
Aldeia de camponeses e de pastores, situada a 1300 m de altitude,
•. a comunidade de Montaillou não teria interesse particular se não tivesse
sido objecto, entre 1318 e 1325, de um inquérito monumental,
extraordinariamente minucioso e exaustivo: de repente, esta modesta
localidade tomou-se a aldeia europeia e mesmo mundial mais conhecida
de toda a Idade Média! Este velho inquérito é obra de Jacques Foumier,
futuro papa de Avinhão; em 1320 ele é bispo de Pamiers e inquisidor
lO
!
ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR PREFÁCIO À 1.8 EDIÇÃO PORTUGUESA ll

local. Jacques Fournier, de modo geral, é menos cruel que os seus (do nome da cidade de Albi, na qual vivia e onde era assinalado um
confrades na repressllo anti-herética. Mas a sua inteligência, a sua certo número destes heréticos).
paciência e a sua atenção ao pormenor fazem dele, segundo o historiador O catarismo ou o albigismo é uma heresia cristã; sobre este
inglês Hilton, um dos grandes inquisidores de todos os tempos. (Para ponto nilo existe qualquer dúvida! Com efeito, os seus sequazes
mais pormenores sobre Fournier, ver a Introdução que se segue). consideram-se e proclamam-se «Verdadeiros cristãos», <<bons cristãos>>,
Temos conhecimento da acçilo de Fournier graças aos processos e por oposição à Igreja católica oficial que, segundo eles, traiu a autêntica
ao inquérito escrito e pormenorizado que os seus secretários deixaram; doutrina dos apóstolos. Mas, ao mesmo tempo, o catarismo situa-se a
este Registo de Inquisição de Jacques Foumier, em lfngua latina, contém, uma considerável distilncia da doutrina cristll tradicional, que se
entre outras coisas, os longos depoimentos de vinte e cinco pessoas pretende, como é sabido, monote(sta. De facto, admite a existência (de
originárias de Montaillou e arredores. Conservado em manuscrito na tipo ccmaniqueista») de dois principies opostos, ou mesmo de dois deuses:
Biblioteca Vaticana, foi publicado em três grossos volumes latinos, por um do Bem, outro do Mal. Um, Deus; o outro, Satil. Ou ainda: luz e
Jean Duvernoy, cm Toulouse, cm 1965. Todas as referências numeradas, sombra. Mundo espiritual, bom, e mundo terreno, carnal, corpoml,
entre parênteses, no texto do meu livro, remetem para um volume e corrompido. É, aliás, esta exigência essencialmente espiritual de pureza,
para uma página desta publicação de Toulouse: por exemplo, «li, 103)) em relação à nossa Terra totalmente diabólica e má que suscitou
quer dizer página 103 do segundo volume da edição Duvemoy do registo posteriormente a etimologia, sem dúvida falsa, da palavra <<cátaro))
latino de Jacques Foumier. (Ver referência completa desta edição na (pretendeu-se que esta derivava da palavra grega que quer dizer puro;
bibliografia, no fim deste livro, entrada Fournier J.). na realidade, «CátarO)) vem de um termo alemão cujo sentido nada tem
Historicamente, Montaillou é a última aldeia que sustentou que ver com <<pureza>>). lndependenteménte desta etimologia inexacta,
activamente, enquanto tal, a heresia «cátara)) ou «albigense)). De facto, o dualismo Bem/Mal ou Deus/Satã, subdivide-se em duas correntes, ou
esta desaparecerá totalmente do território francês, depois de ter sido, tendências, segundo as regiões: temos, por um lado, o dualismo absoluto,
em 1318-1324, definitivamente extirpada de Montaillou, graças aos caracteristico do catarismo languedoquiano do século XIII (que proclama
«bons oficias)) de Jacques Foumier. Esta aldeia é portanto a <<ave rara» a oposição eterna dos dois principias, bom e mau). E, por outro, o
que os historiadores de bom grado procuram e que, em geral, só muito dualismo mitigado camcteristico da heresia italiana: Deus ocupa nele
raramente encontram! Ela é o último testemunho vivo, e bem vivo em um lugar mais eminente e mais «eterno>) do que o Diabo.
1320, de uma formação cultural e religiosa votada a partir de dentro ao O catarismo baseia-se na distinção entre um escol de <<puros», que
mais completo desaparecimento! silo os perfeitos, homens-bons, ou heréticos; e, por outro lado, a massa
A <<heresia câtara» merece por si mesma algumas explicações. Nilo dos simples «crentes», ou credentes. Os perfeitos obtêm o seu t(tulo
é o tema central deste livro, que trata essencialmente da aldeia e das prestigioso depois de ter recebido, no final de uma iniciaçilo, o
biografias muitas vezes apaixonantes dos seus habitantes. Mas esta sacramento albigense do baptismo pelo livro e pelas palavras (e ntto
heresia será, em todo o caso, objecto de numerosas alusões. no nosso pela ãgua). Este sacramento chama-se, em linguagem citara, o
texto: e o leitor de Ungua portuguesa que nao esteja muito familiarizado I
',I consolamentum (consolaçllo). O comum das pessoas chama a Isso
com o catarismo tem, pois, necessidad� de esclarecimentos particulares simplesmente ((heretizaçl!o», ou «heretizar» alguém. Uma vez
a este respeito. Digamos que o catarismo é uma das principais heresias ttheretizado», o perfeito deve permanecer puro abstendo-se de carne e
medievais: manifestou-se nos séculos XII e XIII no Languedoc (actual de mulheres. (Trata-se, como se vê, de uma heresia muito pouco
sul de França), no norte de Itália, e sob formas um pouco diferentes nos feminista, embora não totalmente antifeminina). O perfeito tem o poder
Balcãs. Convém nlo confundir o catarismo com o valdismo ou heresia de benzer o pão e de receber o melioramentum ou adoraçlo-saudaçlo
valdense (lionesa), de resto pouco importante em Ariêge. O catarismo ritual, que lhe é dirigida pelos simples crentes. Dá-lhes a sua bênç!o e
formou-se talvez a partir de longlnquas influências orientais, ' .
o seu beijo de paz (caretas). Os simples crentes, por seu turno, apenas
ccmanique(stas>> nomeadamente... Mas sobre este ponto nadamos ainda recebem o consolamentum ou (theretização» nas vésperas do seu
em hipóteses ... q
falecimento, quan o este se apresenta como inteiramente provâvel na
Em· contuqWttida; coubece--se bastante bem a doutrina e os ritos previslo de uma indubitável agonia. Esta ((regularizaçlo» tardia permite
do catarismo do Languedoc e do norte de Jtãlia. Na França meridional, aos crentes, duranté a sua vida, levar uma existência bastante agradável
ainda se chamava a/bigense.s, ou par.tidãrios do alblglsmo, aos cátaros e nlo demasiado estrita do ponto de vista moral. Mas, em contrapartida,
12 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR PREFÁCIO À l,D EDIÇÃO PORTUGUESA 13

uma vez <<heretizadOS)) o caso toma-se sério! Devem pOr-se (pelo menos
no catarismo tardio dos anos 1300) em estado de jejum tot�l e suicida
Este livro está ligado, por outro lado, como o tltulo indica, ao
problema occitânico. A Occiulnia corresponde aos actuais territórios
ou endura. Isso permite-lhes perder a vida, mas salvar de certeza a franceses situados grosso modo a sul de uma linha Bordéus-Limoges­
alma, dado que, desse modo, ntlo tocarão mais em mulher nem em ·Clermont Ferrand-Valence. Trata-se de uma etnia ou de um conjunto
carne até que sobrevenha para eles, rápida e seguramente, a morte pela de etnias originais: Ariegenses de Leste, Languedoquianos, Provençais,
agonia natural ou pelo suicfdio-endura.
o catarismo tinha contaminado parcialmente, por volta de 1200,
. etc. Têm em comum o que resta de uma Ungua popular dita de oc, com
regiões bastante vastas do Langued�, provlncia que, no i?lcio do sécu�o
múltiplos dialectos (essa Ungua é o provençal, também chamado
occitânico: a língua de oc, da palavra oc, que quer dizer «Sim)) em
XIII, não pertencia ainda ao remo de França. Aqutlo não podaa provençal, cobre, de resto, um território muito mais vasto do que o
continuar! Em 1209, uma cruzada anti-albigense, conduzida por barões Languedoc, uma simples parte do conjunto occitãnico). As etnias
originários do norte da França, pOe-se em marcha em direcção ao Sul, occitãnicas têm ainda em comum uma tradição de latinidade; uma
para esmagar a heresia, de acordo com o apelo do papa. Apesar da literatura antiga e prestigiosa (os trovadores); um temperamento
morte, em 1218, de Simmon de Montfort, chefe brutal dessas cruzadas
extrovertido, uma propensão herética (catarismo c valdismo da Idade
setentrionais, o Rei de França alarga progressivamente o seu domlnio Média, e protestantismo após 1520). A Occitânia teria podido tomar-se
sobre o Sul, e aproveita-se deste pretexto anti-herético para anexar de uma grande nação mediterrânica, como são hoje a Espanha ou a Itália.
facto o Languedoc em 1279 (tratado de Meaux). Esta anexação deixará, Teria podido ser, é uma outra hipótese, a parte ((provençalófoniD) de
no que vai tomar-se futuramente eco sul da Françro), marcas duradouras uma França realmente bilingue (como a Sulça). A história decidiu de
de ressentimento. Estas serão avivadas no século XX pelo renascer do outro modo. Hoje o problema occitânico não tem cm relação à França a
regionalismo occitânico. Em 1224, é tomada Montségur (Arit�ge), última acuidade de que se reveste, por exemplo, a questão escocesa c,
fortaleza herética; os albigenses obstinados que ocupavam aquela praça a fort/ori, a questão da Irlanda do Norte em relação à Grã-Bretanha.
são enviados em massa para a fogueira, em Montségur, ou em Bram.
O problema continua, no entanto, a manter-se suficientemente actual
Contudo, o cadáver do catarismo ainda mexe após 1250. Nas
para suscitar também a atenção ((Comparativa)) do público de Ungua
montanhas da alta Ariêge, esta heresia conhece mesmo, entre 1300 e portuguesa: deste ponto de vista. a aldeia medieval de Montaillou é
1313, uma modesta reanimação, de que um dos centros é justamente a uma amostra extremamente representativa do campesinato occitãnico
aldeia de Montaillou. Esta reanimação é devida, entre outras causas, à de outrora, no que ele tinha de mais vivo e de mais truculento.
acção enérgica e militante dos irmãos Authié, notários de Ariege que se
E. Le Roy Ladurie
tornaram missionários do albigismo. Instalada em Carcassonne
(Languedoc) e sobretudo em Pamiers (Ari�ge), a Inquisição de Foumier
e dos seus colegas consegue finalmente desalojar este último ninho de
resistência. graças a uma investigação minuciosa seguida de condenações
à fogueira e sobretudo, à prisão e às cruzes amarelas (tal como os judeus
medievais, os heréticos reconhecidos como tais são, de facto, condenados
a trazer nas costas grandes cruzes de pano amarelas, cosidas no
vestuário). O catarismo não se voltará a erguer após este último golpe
de 1320. Tragicamente, os acusados de Montaillou silo, de facto, os
últimos dos últimos Cátaros, tal como, a um nlvel fictlcio e cómico,
Astérix e os seus companheiros, na sua comunidade cercada por todos
os lados pelo poderio romano, representam a última aldeia gaulesa. No
entant9, ainda ntlo se pode pOr um ponto final na questllo. Porque o
combate corajoso dos camponeses de Ariêge para manterem, depois de
1300, os restos das suas crenças marginais, anuncia de uma certa maneira
e num estilo inteiramente diferente, a arremetida protestante, dois séculos
mais tarde. Essa outra heresia...
Para Madeleine

Do mesmo modo que, meu rapaz, por


uma única bola de argila se conhece tudo o
q u e é feito de argila e que qualquer
modificação é apenas um nome que tem a
palavra por suporte, enquanto que só o que
se chama <Cargila>> é real;
do mesmo modo que, meu rapaz, por um
pedaço de cobre se conhece tudo o que é
feito de cobre e que qualquer modificação
é apenas um nome que tem a palavra por
suporte, enquanto que só o que se chama
«cobre,> é real;
do mesmo modo que, meu rapaz, por um
único corta-unhas se conhece tudo o que é
feito de ferro e que qualquer modificação é
apenas um nome que tem a palavra por
suporte, enquanto que o ·que se chama
«ferro)> é reaJ,
assim é isto de que te falo...

Xandogla Upanixada
INTRODUÇÃO 17

DA INQUISIÇÃO Á ETNOGRAFIA

Para quem quiser conhecer o camponês das sociedades antigas e


muito antigas, não faltam as grandes sfnteses - regionais, nacionais,
ocidentais: penso nos trabalhos de Goubert, Poitrineau, Fourquin,
Fossier, Duby, Bloch {1) O que falta, por vezes, é o olhar directo: o
•••

testémunho, sem intermediário, que o camponês dâ de si próprio. Esse


olhar, para o perfodo posterior a I SOO, fui buscâ-Jo a memoristas que
safram, um, da nobreza campesina mais depauperada; outro, da camada
mais alfabetizada dos lavradores ricos: o senhor de Gouberville, por
volta de ISSO, e Nicolas Rétif de La Bretonne, dois séculos mais tarde,
convidaram-me a observar de perto, na sua companhia, <<esse mundo
que nós perdemos», onde viviam os camponeses dos chamados bons
velhos tempos(:!). Era para mim tentador aprofundar a investigação e
procurar outros processos deste tipo, mais preciosos e ainda mais
introspectivos, sobre os camponeses de carne e osso. Por sorte para nós,
e azar para eles, um homem, no século XIV do surto demográfico, deu
vpz aos aldeões, e mesmo a toda uma aldeia como tal. Trata-se, neste
caso, de uma localidade da Occitânia do Sul; mas é bem sabido, dado
que esta investigaçlo é de história agrária francesa, que a Occitânia,
quer queira quer nlo, fará parte do hexágono, e muito rapidamente •..

O homem em questlo é Jacques Foumier, bispo de Pamiers de 13 17 a


1326. Este prelado lúcido, devorado por um zelo inquisitorial, pertence
às novas elites occitânicas, que vlo dominar o papado de Avinhlo. Seri
papa em Comtat, mais tarde, com o nome de Bento XII. Nilo é apenas
célebre pelos seus vigorosos contributos para a teoria da visão beatifica.
Etnógrafo e esbirro, soube ouvir durante o seu episcopado os camponeses
do condado de Foix, e sobretudo da alta Ariêge; fazia-os engolir o pio
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da dor e a água das tribulaçOes; mas torturava-os pouco; interrogava-os felicitações pelo êxito dos seus esforços na caça aos heréticos,na regilo
com minúcia e durante largo tempo,a fim de detectar entre eles a heresia de Pamiers, acompanhadas por uma série de indulgências. A acção de
eátara ou, simplesmente,um desvio em relação ao catolicismo oficial. Foumier, na sua diocese, nllo se limitou às perseguições contra as
Esta escuta chegou até nós no volumoso manuscrito latino que Jean tendências heterodoxas. Ele soube, também, tomar mais pesados os
Duvemoy (l) publicou recentemente em edição integral. Assim foi posto dlzimos agrfcolas; impôs dlzimos sobre a produçlo dos queijos, dos
à disposição dos historiadores e do público l'tinista, este testemunho rábanos e dos nabos, que até então estavam dispensados.
da terra occitânica sobre si própria; testemunho que ultrapassa em muito Mas outros destinos esperavam o nosso homem. Em 1326, é
o estrito domlnio das perseguições por heresia, dentro do qual Jacques nomeado bispo de Mirepoix, a leste de Pamiers. Um biógrafo poderá
Fournier teria podido normalmente confinar-se,se se tivesse limitado a perguntar-se se não estaremos perante um caso de desfavor. Jacques
seguir a sua vocação de inquisidor. Para além das perseguições anti­ Foumier tomou-se, de facto, odioso na sua anterior diocese,por causa
cátaras, os três volumes publicados por J. Duvemoy interessam, com das suas investidas obsessivas, manlacas e eficazes,contra todo o género
efeito,às questões da vida material,da sociedade,da famllia e da cultura de suspeitos. Mas Mirepoix possui um número de paróquias maior do
camponesa. Encontramos nos textos assim recolhidos uma dose de que Pamiers: mais do que um desfavor, trata-se, ao que parece, de uma
pormenores e de aspectos da vida corrente que se procuraria em vão promoção relativamente brilhante. É seguida de algumas outras, essas
nos forais ou mesmo na documentação notarial. sim ofuscantes: em 1327, Jacques Foumier toma-se cardeal. Em 1334,
Qualquer estudo histórico deve ou deveria começar por uma critica é eleito papa de Avinhão,sob o nome de Bento XII. Elegestes um burro,
das fontes. O nosso livro nlo transgredirá essa regra. Primeiro, silo teria ele dito, com a sua modéstia habitual, aos grandes eleitores. No
indispensáveis algumas palavras para apresentar o ccauton•, Jacques entanto, este homem modesto, sob a tiara, mostra rapidamente as suas
Fournier. O autor... ou, pelo menos, a personagem responsável pelas capacidades, que não são escassas(�). Reage contra o nepotismo. Monge
nossas fontes documentais. Foumier nasceu, ao que parece, durante a ascético, tenta moralizar as abadias. Intelectual desajeitado e rude,
década de 1280, sem que se conheça a data precisa, em Saverdun, no consegue pouco em politica estrangeira. Mas, no campo do dogma,
norte do condado de Foix (Ariêge actual). Era filho de camponês, de sente-se à vontade. Retoma as fantasias teológicas do seu antecessor
padeiro, ou de moleiro? As profissões deste género que os seus biógrafos João XXII, relativas à visão beatifica após a morte. Quanto à Virgem,
atribuirão a seu pai talvez nilo sejam mais do que o fruto de uma mostra-se maculista, por outras palavras, hostil à teoria (que mais tarde
imaginação sugestionada pelo apelido <<Foumien•. Uma certeza, triunfará) da imaculada conceição de Maria. As suas variadas
contudo: o nosso homem nllo é «filho de prfncipe••· É de origem bastante intervenções em matéria de dogma coroam uma longa carreira
humilde. A ponto de, tendo-se tomado papa, mas consciente da intelectual: ao longo da existência, polemizou fortemente e nlo sem
mediocridade da sua linhagem, se recusar, diz-se, a dar a sobrinha em confonnismo, contra os mais diversos pensadores, desde que lhe
casamento a um brilhante aristocrata que a queria para esposa: esta parecesse que se afastavam da ortodoxia romana. Contra Joachim de
sela, dirá ele em occitânico familiar,não é digna de tal cavalo. A famllia Fiore, contra Maitre Eckart, contra Occam... Construtor, Jacques
tem, no entanto, mesmo antes de Jacques Foumier, alguns episódios FÔumier inaugura na capital do condado Venaissin a construção do
mercantes de ascenslo social: um dos tios, Amaud Novel, é abade do palácio dos papas; para a execução dos frescos,convida o pintor Simone
mosteiro cisterciense de Fontfroide. Encorajado por este ccmodelo••· o Martini.

jovem Foumier toma-se, também ele, monge cistersiense. «Sobe>>
durante algum tempo até ao Norte: encontramo-lo como estudante,
depois doutor, da Universidade de Paris. Mas voltemos a tempos mais antigos. Na vida do futuro Bento
Em 1311 sucede ao seu parente: é escolhido para abade de XII, é o perfodo de Pamiers que nos interessa. Mais precisamente, é a
Fontfroide. Em 1317,j4 conhecido pela sua erudiçlo e pelo seu rigor,é actividade de Jacques Foumier como animador diocesano de um
nomeado bispo de Pamiers; distingue-se, nesta nova funçlo, pelas suas formidâvel tribunal de inquisição. A própria existência desse tribunal,
investidas inquisitoriais contra os heréticos e outros esplritos divergentes. entre 1318 e 1326, não é de modo algum um facto evidente. É verdade
Na sua cidade episcopal, mantém relações cordiais com os agentes do que o condado de Foix, em cuja parte meridional se desenrola a ccacçlo»
conde de Foix e do rei de França {é, até esta altura da sua vida, pró­ deste livro, tinha sido, durante mais de cem anos, a <<terra prometida do
-francês entre os Occitinicos). Em 1326, o papa Iolo XXII envia-lhe erro)). Os heréticos albigenses fervilhavam por14 desde o século XIII.
20 MONTAILLOU: UMA ALDEIA OCCITANA DA INQUISIÇÃO À ETNOGRAFIA 21

A inquisição já ai tinha feito a sua acção, por volta de 1240-1250, após À cabeça do <(oficio» está, evidentemente, o próprio Jacques
a retumbante queda de Montségur, último bastião dos cccátaros» (1244). Foumier. lnacesslvel quer às súplicas quer às gratificações. Hábil em
Os inquisidores tinham-se de novo na região ccfuxiamm (=de Foix) por fazer aparecer a verdade. Em fazer sair os cordeiros, como dizem as
volta de 1265 e, depois, em 1272•1273. ceNa planlcie de Pamiers, a suas vitimas. Capaz de distinguir em alguns minutos um herege de um
repressão tinha entilo esquadrinhado todos os recantos, verificado todas católico cccorrecto». Verdadeiro demónio inquisitorial, afirmam os
as crenças e punido todas as defecções.>>(') . arguidos cujos corações ele sonda. Espécie de Maigret obsessivo e
Mais tarde, a heresia persiste em pulular aqui e ali: em 1295, o compulsivo, instaura o processo, e obtém êxito, graças essencialmente
papa Bonifácio VIII cria a diocese de Pamiers, que inclui o alto e o à·habilidade tenaz e demonlaca que emprega nos seus
baixo condado de Foix (Sul e Norte); esta criação administrativa visa interrogatórios; só muito raramente recorre às torturas. Manlaco
possibilitar um controlo mais cómodo do desvio. Após uma relativa do pormenor, assiste em pessoa a todas- ou quase todas- as sessões do
calma (que durava hâ um quarto de século), manifestam-se duas novas seu tribunal. Quer fazer tudo ou, pelo menos, ser ele próprio a dirigir
ofensivas inquisitoriais em 1298-1300 e em 1308-1309. Em 1308, tudo. Recusa delegar as responsabilidades nos seus subordinados, nos
Geoffroy d'Ablis, inquisidor de Carcassonne, põe em estado de detenção, seus escrivlles ou nos seus notários, como o fazem, variadlssimas vezes,
na aldeia de Montaillou, toda a população, à excepção das crianças. os outros inquisidores, demasiado negligentes. Todo o Registo de
Estas investidas anti-heréticas são da responsabilidade do tribunal inquisição de Pnmiers levará, pois, a marca, ou a chancela, da sua
dominicano de Carcassonne, que não pertence à nova diocese de Pamiers intervenção pennanente. Dai, entre outras razões, a extraordinária
nem ao tradicional condado de Foix. Os bispos de Pamiers, por seu qualidade do documento.
lado, apesar da missão que lhes é, em principio, atribulda, persistem A seu lado frei Gaillard de Pomi�s. O. P. (6), desempenha o papel
durante largo tempo em manter-se sossegados; não dizem uma palavra de assistente. d� vigârio ou de lugar-tenente. É relegado para segundo
contra a heresia das suas ovelhas: o prelado Pelfort de Rabastens plano, devido à proeminência local e à forte personalidade do bispo da
(I 312-1317) está demasiado ocupado em questionar com os seus região. Alguns inquisidores de alta catego�ia exteriores à diocese, como
cónegos; não tem tempo de vetar pela ortodoxia de pensamento na sua Bernard Qui, Jean de Beaune e o nonnando Jean Duprat, vêm igualmente
diocese. Com Jacques Foum ier, seu sucessor a partir de 1317, as coisas honrar com a sua presença. uma vez por outra. as sessões mais pesadas
vão mudar. o novo bispo tira partido de uma decisão .do concrtio de do oficio de Pamiers. Encontra-se também, entre os assessores, com
Viena (13 12). Esta estipula que, doravante, no tribunal da Inquisição, função ora decorativa ora activa, todo um sortido local e regional:
os poderes do bispo local se unam, tendo em vista uma proveitosa cónegos, monges de todas as regras e hábitos, juizes e juristas radicados
colaboração, aos do responsâvel dominicano, que até então era o único na sede da diocese. A um nlvel inferior, encarregado das tarefas de
a ocupar-se da actividade repressiva. Em 1318, Jacques Foumier pode, redacção (mas nunca das de decisflo), agita-se o esquadrão dos notários
pois, constituir o seu próprio ccotlcio» de Inquisição: dirigi-to-á em e dos escrivães: cerca de uma quinzena de indivlduos. À sua cabeça,
estreita associação com frei Gaillard de Pomi�s. designado por Jean de destaca-se o tabelião-cura Guillaume Barthe; e depois Jean Strabaud, e
Beaune, responsável pela Inquisição de Carcassoooe. Tanto Pomi�s como o' senhor Bataille de la Penne; e vários escribas do condado de Foix.
Beaune são dominicanos. Finalmente, no escalão mais baixo, está o pessoal menor ajuramenta do.
.
O novo tribunal de Pamiers mostra-se muito activo durante toda a Compreende meirinhos classificad os de «servidore s»; mensage1 ros,
vigência do poder local do seu fundador. Quando, em 1326, Jacques carcereiros, acompanhados das suas inevitáveis esposas que desen:-­
Foumier for nomeado para a sede episcopal de Mirepoix, o «oficio» de penham o papel de carccreiras; encontramos também, neste buHc1o
Pamiers não desaparecerá logo. Mas, em virtude da máxima Nada de subalterno, denunciantes que silo por vezes de alto cotumo, como
zelo implicitamente preconizada pelos preguiçosos continuadores do Amaud Sicre.
nosso bispo, a instituição repressiva perderá o fôlego no plano local. As c(estatfsticas» relativas à actividade do oficio foram compiladas
Doravante, ela deixará em paz as populações do condado de Foix. Tanto • depois publicadas, em 1910, numa obra notável de J. M. Vidal (').Eis
melhor para estas! alguns elementos que nos elucidam sobre as condições em que foi
É só durante o episcopado de Foumier que o tribunal produz, para elaborado o nosso processo. O tribunal inquisitorial de Pamiers trabalha
nós, as documentações mais palpáveis. Em que condições e sob que durante 370 dias, de 1318 a 132S. Estes 370 dias dilo lugar a 573
direcção se processam estas meticulosas actuações? interrogatórios. Estes desdobram-se em 418 comparências de arguidos
DA INQUISIÇÃO À ETNOGRAFIA 23
'! 22 MONTAILLOU: UMA ALDEIA OCCITANA

e 160 de testemunhas. Estas centenas de sessões referem-se ao todo a obrigado a residir dentro dos limites da sua paróquia ou da su a diocese.
_
98 causas ou processos. O recorde de trabalho registou-se em 1320 (106 Em caso contrârio, o s meios de pressão mais variados vêm,
dias); comparando, verifica-se que houve 93 dias de trabalho em 1321, eventualmente, agravar a detenção preventiva, quando ela existe: visam
SS em 1323, 43 em 1327, 42 em 1323, 42 em 1324, 22 em 1325. Na levar o acusado a confessar. Ao que parece, tais meios nllo se manifestam
maior parte do tempo teve a sua sede em Pamiers; por vezes numa ou �
p la tortura mas sim pela excomunhão do acusado, pelo �eu
noutra localidade do condado de Foix, ao sabor: das deslocações do bispo. encarceramento em regime rigoroso ou muito rigoroso (cela estretta,
Os 98 processos inquietaram ou puseram em causa 114 pessoas, grilhões nos pés, alimentação a pão escuro e âgua). Num único caso,
em cujo número predominam, em maioria, os heréticos de tendência que se refere ao processo falso que os agentes franceses o obrigarão a
albigense. Entre estas 114 pessoas, 94 compareceram efectivamente. instaurar aos leprosos, Jacques Foumier mandam torturar as suas
No conjunto do grupo «inquietado)) contam-se alguns nobres, alguns vitimas, a fim de obter delas confissões delirantes, absurdas:
sacerdotes, alguns notários; e sobretudo, uma massa esmagadora de envenenamento das fontes com pó de sapo, etc. Em todos os outros
pessoas humildes, camponeses, artlfices, pequenos comerciantes. Dentre casos que forneceram a substância do nosso livro, o bispo limita-se a
os 114 individuas arguidos ou inquietados, contam-se 48 mulheres. procurar detectar o desvio real (e que, muitas vezes se revela fnfimo, do
A grande maioria, homens ou mulheres, é originária da região alta de nosso ponto de vista). As confissões silo apoiadas, suportadas, pelas
Foix, ou Sabarthês, trabalhada pela propaganda dos irmilos Authié (que descrições que os arguidos fazem sobre o seu «modo de vivem quotidiano
foram missionários cátaros e cidadãos da pequena cidade de Ax-les­ e subslancial. Corroboram-se mu1uamente; quando se contradizem,
-Thermes); esta maioria sabarthesiana compõe-se de 92 pessoas, homens Jacques Fournier esforça-se por reduzir tais diferenças; pede precisões
e mulheres. Entre elas, a nossa aldeia de Montaillou em Sabarthês aos diversos acusados. O que anima o nosso prelado é o ideal de uma
fornece por si só 75 acusados; delega, além disso, algumas testemunhas procuro (odiosa, nesle caso) da verdade dos factos. Trota-se de detectar
à teia do tribunal! Acresce que três arguidos provêm da aldeia de Prodes os comportamentos faltosos; trata-se seguidamente, na sua óptica, de
limltrofe da anterior. No total 28 pessoas, cada uma das quais fornece � salvar as almas. Para atingir estes objectivos diversos, o bispo mostro­
um testemunho substancial e por vezes muito pormenorizado, silo -se «meticuloso como um escolástico>>; não hesita cm levar por diante
oriun � da minúscula região de Aillon (Prades + Montaillou), na qual intermináveis discussões. Gasta quinze dias do seu precioso tempo a
se radtca a nossa monografia. . convencer o judeu Baruch, apresentado em juizo perante o seu tribunal,
O processo canónico contra este ou aquele arguido, de Montaillou do mistério da Santlssima Trindade; oito dias para lhe fazer admitir a
ou de outro lugar é, em geral, provocado por uma ou várias denúncias. dupla natureza de Cristo; quanto à vinda do Messias, requer três semanas
Estas são seguidas de uma intimaçilo judicial para comparência perante de comentários, administrados a Baruch, que não precisava de tanto.
o tribunal de Pamiers, intimação que é comunicada ao suspeito (no seu No final dos processos são infligidas aos réus diversas penas (prisão
domicilio ou na homilia), pelo pároco do lugar de residência. No caso mais ou menos rigorosa, uso de cruzes amarelas, peregrinações,
de o individuo assim convocado nilo se dirigir voluntariamente a confiscação dos bens). «Apenas» cinco acabam a sua vida na fogueira:
Pamiers, o bailio local (oficial do conde ou do senhor) serve de braço entre eles, quatro valdenses de Pamiers e o relapso albigense Guiltaume
secular. Persuade o arguido; escolta-o, se necessário, até à sede da dio­ Fort, de Montaillou (').
Os processos e interrogatórios de Jacques Foumier assim realizados
�ese. A comparência diante do tribunal do bispo começa por um
Juramento, que o acusado faz sobre o livro dos Evangelhos. Prossegue foram transcritos em vários volumes. Destes, dois estilo actualmente
sob a forma de um diálogo desigual. Jacques Foumier faz sucessivas perdidos; um deles continha as sentenças finais; por sorte, conh� cemo­
perguntas e manda precisar este ou aquele ponto ou «pormenor». ·las graças à compilaçilo de Limborch. Subsiste, em contrapartida, um
O acusado responde e fala de improviso. Um depoimento pode com volumoso registo in-fólio, em pergaminho. Este documento, aquando

fac lidade ocupar dez a vinte grandes folhas do nosso Registo, ou mesmo da sua confecção original, passou por três estádios. Primeiro, no próprio
mats. A , uestilo segue os seus trâmites sem que o estado de prisilo seja momento do interrogatório e do depoimento, um escrivao redigia à pressa
necessanamente duradouro para o acusado. Este pode ser encarcerado. o protocolo ou rascunho. Este escrivilo era nem mais nem menos do
. . que Guillaume Barthe, notário episcopal, ocasionalmente substitufdo,
entre os mterrogatónos, numa das prisOes episcopais de Pamiers. Mas
�e também gozar, durante o mesmo intervalo de tempo, de perfodos no caso de se encontrar ausente, por um dos seus colegas. Guillaume
mats ou menos longos de liberdade provisória, durante os quais é apenas Barthe, também se encarregava em seguida de redigir, a partir daqueles
24 MONTAILLOU: UMA AL DEIA OCCITANA DA INQUISIÇÃO À ET NOGRAFIA 25

notas rapidamente tomadas, a minuta, e<num registo em papeb) ... e<Era para as regiões do Aude ou em direcção à alta montanha pirenaica. Há
apresentada ao acusado, qu� podia modificar certos termos».(') ainda, para as devotas do culto mariano- e elas são numerosas -uma
Finalmente, vários escribas recopiavam com calma, em pergaminho, peregrinação à Virgem.
os textos assim minutados ( 10). Fixemo-nos, primeiramente, nesse problema crucial que é a heresia
O volume que possufmos só foi inteiramente redigido, a limpo, -os burgos e pequenas cidades da regillo baixa, com Pamiers à cabeça,
após a nomeação de Jacques Fournier para a sede episcopal de Mirepoix, estavam, na época focada neste livro, quase inteiramente reconquistados
em 1326, o que mostra até que ponto o prelado tinha a preocupação de pela ortodoxia; a propaganda das ordens mendicantes e as incursões
conservar este testemunho sobre o seu trabalho de inquisição em Pamiers. policiais tinham saneado, ou quase, o abcesso cátaro ou valdense. Jacques
Este registo acompanhou depois Jacques Foumier, que se tomou Bento Fournier, na sede da sua diocese, podia doravante permitir-se «o
XII, até à sua residência em Avinhão. Daf passou para a Biblioteca esmero)): reprimia um quarteto de homossexuais; acossava mesmo, à
Vaticana, onde ainda permanece, entre os manuscritos latinos, com o sombra da sua catedral, o folclore das almas do outro mundo.
número 4030. Completamente diferente era a situação de Montaillou, aldeia à qual é
Desde há um século, vários eruditos ou historiadores tomaram preciso acrescentar neste caso a zona circunvizinha da região de Aillon
conhecimento do grande documento de Pamiers. Entre eles, figuram o e a região alta adjacente de Sabarthês (11). Longe das policias de toda a
alemão Dollinger, que se tomou célebre pelos seus conflitos com o espécie, a nossa aldeia oferecera, a partir de 1300, um terreno fértil e de
papado romano e pelos seus belos estudos sobre a heresia medieval, e inicio sem grande perigo para a acção militante dos irmãos Authié,
também vários eruditos franceses, muitas vezes de origem meridional: missionários da reconquista cátara. As coisas, no entanto, tinham-se
Charles Molinier, Mons. Douais, J. M. Vidal, desde o inicio do século deteriorado rapidamente. Depois de algumas devastadoras incursões
XX... ; e muitos outros, em seguida. Os trabalhos mais eruditos e mais dos inquisidores de Carcassonne, efectuadas como vingança (u), Jacques
extensos sobre o próprio manuscrito vêm de J. M. Vidal. A publicação Foumier, por sua vez, reagiu duramente perante a situação, para ele
integral do registo deve-se a J. Duvemoy ( 1965). Não deixa de ter os intolerável, que os Authié tinham criado, e se mantinha para além da
seus defeitos, vigorosamente denunciados pelo Padre Dondaine, mas sua morte. De 13 1 9 a 1324, multiplica as convocatórias e os
tem, no entanto, o imenso mérito de existir, não dispensando em todo o interrogatórios aplicados aos habitantes da aldeia culpada. Põe a claro
caso o recurso ao original (11). toda uma série local de actividades heterodoxas que se escalonam desde
• a década de 1290. Manlaco do pormenor, põe a nu, para além das crenças
e dos desvios, a própria vida da comunidade. Eis, pois, Montaillou, em
O acaso das investigações de Fournier e a distribuição muito si e por si, ao compasso das investigações de Jacques Fournier;
desigual da heresia determinaram que 28 acusados, conhecidos pelo limitei-me a reagrupá-las e reorganizá-las, no esplrito da �onografia
Registo, sejam originários de Montaillou e de Prades; e, dentre eles, 25 aldeã.
sao mesmo de Montaillou. Esta circunstância foi uma catástrofe para
os aldeões desta terra. Em contrapartida, o ferece ao historiador
inestimáveis possibilidades. É de facto sabido, desde os trabalhos de
Redfield, de Wylie e de alguns outros, que a vislo terra a terra, à flor do (1) Ver lnfra, bibliognÜJL
(1) E. Lc Roy Laduric, 1972, c Histolre de lo France nua/e, dirigida por G. Duby,
solo, da sociedade camponesa, se concilia per feitamente com a vol. 11 (Scuil).
monografia aldeã. A nossa pesquisa nllo será excepção a essa regra de (') J. Duvemoy, 1965 e 1966. Nilo utilizei olnlduç4o,llli6s excelente, que J. Duvemoy
opn:scntou de certos textos do registo, no sw obro de 1966. Todos os textos reproduzidos
ouro: a aldeia posta em causa e que o acaso dos documentos escolheu
seguidamente neste livro silo traduzidos por mim, directamente do original lotino.
para nós, é Montailtou, a 1300 m de altitude, perto das nascentes do (') Y. Renolllll'd, Les Papes d'Avlgnon, P111ls, 1954. cd. 1969, p. JG-34; G. Mollllt,
Hers; a Leste do alto vale de Ariêge e nilo longe dele. Fixada no seu Lu Papes d"Avlgnon (IJOS-1378), P111is, ed. 1949, p. 68-83; B. Ouillemain, Lo Colll'

(') J. M. Vichll, Le TribunaL


planalto, Montaillou desempenhou, por volta de 1290-1320,na época a Pontf/lcale d'Avlgnon, Paris, 1962, P. 134-136.

e> «0. P.»: da Ordem dos P regadores (• dominicano).


.•

que se referem os interrogatórios de Jacques Fournier, diversas funções:


a comunidade serviu de refúgio à heresia giróvaga que, destrufda nas (') J. M. Vidal, Le Tribunal ••.

regiões baixas, travou um «combate de honm) na alta Ariêge. A criação r> Nilo conto IICSlc niamero Ouillaume tuliboste, capturado na scq�ncia de uma
denúncia Viria a ser condenado c queimado rona da nossa diocc:sc.
de gado local proporcionou apoio à transumância: para a Catalunha, r> Tudo isto scgw1do J. M. Vidlll. Le Tribunal •••
26 MONTAILLOU: UMA ALDEIA OCCITANA

(u') A pn:p11n1ç4o do texto final do Regl3to Fournler. cm 1Blim (tal como se encontra
no manuscrito lntino n°4030 da Biblioteca Vnticana), efcçtuou-sc atrav6s das etllpld que
acabo de descrever; coloca diversos problemas de traduçilo. Os acusados exprimiam­
se geralmente cm occitlhtico (ou cntllo, cm alguns � provavelmente pouco numerosos,
cm gasc4o). Os escribas traduziam, ponanto, as p��lavras dos arguidos, numa cena aii.Unl,
para latim. Eslll opcrnçllo tinha lu;ur quer no próprio momento de tomar as now (primeiro
cstâdio), cm «traduç&> simultlhtCII»; quer, o mais tardar, aquando da n:dllcç4o da minuta
(segundo cstAdio). Esta� de fmo, grouo modo, conforme ao texto fmal (terceiro cstAdio)
que, por seu lado, aparece efectivamente redigido cm latim. Uma traduçao cm sentido
inverso, puramente oral, acontecia na altura cm que se dava a conhecer aos acusados,
cm llngua vulgar (occitano), o texto da minuta. li fim de que eles pudessem eventualmente

(11) Sobre Jncqucs Foumicr c o seu Regl3to, ver K. Jacob, 1910, OOIIingc:r, 1890,
introduzir nesta algumas modificaçOcs.

Oouais, 1900, V. Molinicr, Étude3 ., 1887; J. M. Vidal (l.e Tribunal... ) c J. M. Vida!,


..

1909, 1913 (buiArio), 1913 (Cnnas .. . ), 1929, 1932. Ver tnm�m a N11r CQthollc
Eneyclopedy, 1967, c o Dlctlonnaire J'Histolreet tk Géographie EcclúitUtlqw3, dirigido
por A. Baudrillart. 193S, no artigo ((Bcnolt XII,; 11 cxposiç&J preliminar que aab3 de
ler-se deve muitlssimo IIOS grandes c belos trabalhos de J. M. Vidal c de J. Duvc:rnoy.
(1 1) O Sllbarthts, ou seja, a alta Ari�gc, a sul do desfiladeiro de la Barre.
(11) III, 97 (c r. p. 28, notll de rodapé): foi no dia da Assunçllo ( 15 de Agosto) de
1308 que terA tido lugar a prist!u Primeira Parte

ECOLOGIA DE MONTAILLOU:
A CASA E O PASTOR

'\
Capítulo I

AMBIENTE E PODERES

Em primeiro lugar, duas palavras a propósito da demografia da


aldeia, sobre a qual serei breve, reservando-me a oportunidade para ai
voltar, quanto às componentes, num capitulo posterior. Montaillou não
é 'uma grande paróquia. Na altura dos acontecimentos que motivaram a
investigação de Foumier, a população local contava entre 200 e 250
habitantes. No fim do século XIV, passada a peste negra.e os primeiros
efeitos, directos ou indirectos, das guerras :inglesas, as listas de fogos c
os livros foreiros do condado de Foix: não enumeram na mesma
comunidade mais do que· uma centena de almas, distribuldas por 23
fogos ('). Ou seja, a habitual quebra, de mais de metade da população,
que se regista um pouco por toda a parte no Sul de França, sob a acção
das catástrofes da segunda metade do século XIV. Mas, na altura da
repressão anti-cãtara, ainda falta um pouco para isso...
«Nas nascentes do Hers, a região de Aillon é um belo planalto
rodeado de pastagens e de florestas» (1). A aldeia de Montaillou, que
domina este planalto, forma ela própria uma construção em socalcos:
no alto da colina, à qual se agarra em 1320 a comunidade, domina o
castelo que hoje não é mais de que uma imponente rufna. Por baixo
dispõem-se as casas, muitas vezes contfguas, separadas outras vezes
umas das outras por pequenos quintais onde passeiam ilegalmente os
porcos, por pátios e por eiras. A aglomeração em si não é fortificada
(é sempre possfvel, em caso de perigo, encontrar refúgio mais acima,
por trás das muralhas da fortaleza). Entre\Mto, as casas do .nlvel infe­
rior comprimem-se suficientemente umas•contra as outras para que o
seu rebordo exterior, do lado de baixo, forme uma defesa natural, aberta
por uma entrada a que se chama «portal». De resto, na época modema
e contemporânea, a aldeia abandonará as proximidades do castelo; e
instalar-se-á um pouco mais abaixo, no flanco da encosta.
1 30 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR AMBIENTE E PODERES 31

A rua sinuosa, tanto no século XIV como actualmente, desce em espadelar e cardar no Inverno (I, 337 ). Quanto ao linho, a sua presença,
direcção à igreja paroquial, situada abaixo do casario. A um nível ainda mesmo a esta altitude, parece pelo menos provável, a dar crédito à
inferior, encontra-se a capela da Virgem: está ligada a um culto folclórico, toponlmia da época. O gado inclui, além dos animais de tiro e de carga,
procedente de rochedos à flor do solo. O cemitério rodeia este baixo já mencionados (bois, vacas, burros, mulas), porcos domésticos, aves
santuário, dedicado à Mile de Deus. Os dois lugares de culto são, pelo de capoeira (galinhas e gansos) e, evidentemente, centenas de carneiros;
menos em parte, de estilo românico e anteriores a 1300. isto sem contar os milhares de ovelhas que os habitantes de Montaillou
Os arredores imediatos de Montaillou formam, na época que dos anos 13 I O, grandes pastores de transumância, guiam em bons e
estamos a tratar, um xadrez de parcelas grosso modo rectangulares; em maus anos para as pastagens de Inverno do Lauragais e da Catalunha.
todo o caso, atarracadas. Estas cobrem os calcários secundários do Há que acrescentar, para voltar aos equinos ou aos bovinos, que a aldeia
planalto e sobem com certo esforço os terrenos primários da montanha ignora a roda como instrumento de tracção e de transporte: há arados,
próxima (l). Cada uma delas contém apenas uma fracção de hectare (da mas nt'lo charruas nem carroças. Estas só rolam nas regiões baixas ou
ordem dos 20 a 30 ares). As explorações agrlcolas do local possuem, no vale de Ariege.
respectivamente, um certo número destas parcelas - campos ou prados Os prados e as pastagens da região são postos em defeso pelo
- dispersas pelo terreno. Silo cultivadas com arados, puxados por bois, messier, encarregado municipal que o senhorio ou os habitantes
vacas, mulas ou burros. «Cortinas>) de terra, acentuadas fortemente pelos designam para esse efeito segundo modalidades que desconhecemos.
nevões na estação fria, separam estes retalhos de terra uns dos outros. O pousio é por vezes trienal, dado que a esta altitude os cereais de
Quando o solo é inclinado, ou seja, quase sempre, estas <<cortinas)) tomam Primavera coexistem com os do Inverno, os quais ocupam o solo du­
a disposição - clássica na região mediterrânica - de escadaria em rante um ano completo, de Setembro a Setembro. Mas este pousio é
socalcos. No limite, distinguem-se as versaine.s (culturas mais ou menos com maior frequência bienal; ou, então, nos terrenos maus, pode
permanentes, com pousio nilo interminável), e as bouzigue.s, parcelas estender-se por vários anos sucessivos. Nilo é hábito, ao que parece,
de exploração temporária, desbravadas ou queimadas de tempos a tem­ dividir a supcrtlcie cultivada em dois ou três grandes alqueives (s).
pos nos baldios (4). A divisão do trabalho segundo a idade e o sexo pennite a. execuçilo
Todas as referências sem nome de autor nem de obra que se dos trabalhos: o homem lavra, ceifa, colhe os rábanos (I, 340); vai à
encontrarem nas nossas notas nos finais de capitulo ou inseridos no caça e também à pesca, porque as torrentes estão cheias de trutas; as
texto entre parentesis (por exemplo: I, 1 28 ; 11, S I , etc.) remetem para florestas fervilham de esquilos e de galos silvestres. A criança mais
Registre d 'inqui.silion de Jacques Fournier (3 vols.), texto latino, editado crescida já guarda o rebanho paterno. A mulher encarrega-se da ág1,1a,
por Jean Duvemoy. Assinalo também que empregarei, de acordo com do lume, do quintal, da lenha e da cozinha. Apanha as couves, monda
as minhas fontes, ocasionalmente, o termo «herético)) para designar os os cereais, ata as gavetas, conserta o crivo, lava as panelas na fonte,
adeptos da crença cdtara albigense; empregarei sistematicamente, e parte para as ceifas com um pio à cabeça, em companhia dos migrantes.
sempre de acordo com o vocabulário das ditas fontes (ver, por exemplo: Ela é, sobretudo na sua juventude, duramente tratada.
II, 513 ... ), os termos «católico>> e «romano)) para designar o que se A exploração agr(cola está centrada na casa, uma parte da qual,
refere à Igreja oficial no lugar. separada por uma divisória, é reservada à acomodação dos animais:
O território de Montaillou, demasiado elevado, demasiado frio, carneiros nllo transumantes, bois, porcos, mulas, amontoam-se af no
nilo conhece a vinha, no tempo de Jacques Foumier, tal como ainda Inverno entre quatro paredes, junto aos quartos e à cozinha dos donos.
hoje. Cultiva-se os cereais: aveia e trigo candial, de preferência a cevada Hã, por vezes, em casa dos ricos, uma construção especializada, curral
e centeio; apenas o bastante - por causa dos rigores do clima - para a ou estábulo - isolada, por um pátio, da habitação humana - disposta à
subsistência dos paroquianos; e há ainda que contar com os anos parte para esta função. Em contrapartida, excluindo algumas cabanas
deficitários. Os agricultores dos anos 1300 cultivam também n\banos de pastores, de que falaremos de novo, não encontro construção de
com toda a inocência, m uito antes de os agrónomos ingleses o� exploraçd,o em campo aberto, nos arredores de Montalllou, fora do
reintroduzirem no Continente no século XVIII... com o nome de turneps. aglomerado habitacional.
Há talvez forragens; por outras palavras, cereais destinados a serem A Este, a Oeste, a Su.l e a Norte, a clareira montailunesa é
cortados em verde, para alimento dos animais. Hã, certamente cânhamo flanqueada por florestas, esconderijo dos perfeitos ('), onde, de tempos
cultivado nas preciosas canaveiras. As mulheres encarreg�-se de � a tempos, se ouvem os golpes dos machados e o ressoar das serras. AI se
32 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR AMBIENTE E PODERES 33

leva o gado a pastar, ai se faz as ripas que cobririlo os telhados das que, na categoria da loja feminina, deparamos em Montaillou com uma
casas. Sobretudo no sul e na alta montanha, as pastagens de altitude taberneira, Fabrisse Rives: os clientes nllo vêm a casa dela beber um
constituem o mundo dos pastores, governados pelas suas leis próprias: copo ou tagarelar. Limita-se a vender ao domicilio o vinho que as mulas
as ideias, os homens, os rebanhos, a moeda circulam, de cabana em trouxeram das terras baixas. Pouco eficiente, anda regularmente
cabana, por grandes distâncias, em vivo contraste com a economia desprovida de medidas de vinho ('). Acrescentemos que a distinção
rudimentar que reina na aldeia. Esta últi�a baseia-se na troca, no artesllo/camponês ou artesão/burguês, ou mesmo artesão/nobre nllo tem
empréstimo, na dádiva mútua. Sem grande circulação local de dinheiro, um can\cter absoluto. Nesta região, toda a gente trabalha com as mtlos,
empresta-se o trigo, entre vizinhos, e a erva, o feno, a lenha, o lume, a por vezes mesmo com grande perfcia. Um notário pode tomar-se alfaiate;
mula, o machado, as panelas, as couves, os nabos. O «ricO)) ou tido por o filho de um notário, sapateiro; o filho de um agricultor, pastor, ou
tal empresta ao pobre e dá-lhe, eventualmente, a esmola do pilo no dia fabricante de pentes de cardar. Só o oficio de bufarinheiro, que exige o
de Todos os Santos. A mlle empresta objectos ou um animal de transporte de cargas pesadas, é dincil para os ombros delicados de um
trabalho à filha quando esta, depois de crescida, casada ou viúva, vive homem respeitável da aldeia, cuja vida, outrora fácil, não lhe tenha
numa casa mais indigente do que a domus materna que a viu nascer. dado a indispensável resistência.
Encontram-se igualmente entre os nossos aldeões diversas formas de Jo\ chamámos a atenção para a ausência de carroças. Encontramo­
crédito, incluindo penhora de objectos, cessões de créditos, etc .. -las, mas um pouco mais longe: nas terras baixas, e perto das cidades;
A penúria de dinheiro é crónica. O meu marido Arnaud Vital era quer na realidade; quer de forma fantasmagórica, nas histórias de almas
sapateiro em Montail/ou, conta Raymonde Vital; tinha de esperar que do outro mundo povoadas pela carroça dos mortos. As relações sociais
as clientes vendessem a criação no Pentecostes para que lhe p11dessem são relativamente intensas em Montaillou: devido aos rebanhos e
pagar os consertos de sapatos que tinha efectuado para os maridos pastores, grandes devoradores de espaço, hostis ao esplrito de bairrismo.
(1, 346). Se pusermos de parte o deslocamento dessas mercadorias de quatro
Apesar da presença deste sapateiro, na nossa aldeia o artesanato é patas. que são as ovelhas, somos obrigados a admitir que os volumes
subdesenvolvido (') {em relaçllo aos pequenos burgos das regiões baixas). materiais postos em movimento pelo comércio ou pelo simples transporte
As mulh�:res, naturalmente, fiam ao serão, nas casas delas ou nas das
são mlnimos. As mulheres acarretam água. Trazem-na numa bilha à
outras; ou mesmo na prislo quando o inquisidor as prende. Mas a cabeça. Os homens transportam muitas coisas às costas. Os viajantes
tecelagem local é man i festamente destinada a vestir apenas os carregam as suas trouxas de roupas ao ombro, na ponla de um pau
autóctones: em Montaillou encontramos um tecelão, Raymond Maury. {1, 3 1 2); os lenhadores levam o machado ao pescoço, juntamente com
Exerce a sua profiSSão (que, sem dúvida, exige um mfnimo de humidade), um gigantesco feixe de lenha. O cabaz ou o alforge também são utilizados
numa cave circular semi-subterrânea, câmara profunda revestida de {I, 308). Os bufarinheiros fazem chegar à aldeia o cominho e as agulhas;
madeira, preparada para esse efeito em sua casa. Mas é igualmente asseguram a <<exportação)) de peles de cordeiro e de esquilo. Toda esta
criador de ovelhas: os filhos tomar-se-lo pastores. Para encontrarmos economia se situa mais na margem do que é transportável do que na
um tecelão abastado, precisamos de sair de Montaillou e dirigir-nos à fronteira dos solos cultiváveis.
O raças aos burros e às mulas, animais de carga, importa-se o vinho
aldeia vizinha de Prades d' Aillon: mais populosa, esta paróquia
apresenta um mercado têxtil mais rentável. O tecelllo Prades Tavemier, de Tarascon e Pam iers; o sal marinho; e o azeite, do Russilhí'io; reservado
ataviado com um nome toponlmico, ganha razoavelmente bem; a venda para as refeições de domingo entre amigos. Os raros utensllios de ferro
dos seus apetrechos <<pennitir-lhe-â mesmo financiar uma piedosa fuga são objecto de empréstimo, e mesmo de aluguer, entre as famllias; vêm
até à Catalunha)) em que será acompanhado por uma nobre dama herética do vizinho vale de Vicdessos. Não há ferreiro em Moncaillou. Nem
{I, 335-336; e Pierry, p. 48). moinho. (Só será construido um na idade modema). Ao mesmo tempo
A profissão de alfaiate, enfim, só é exercida em Montaillou por que as galinhas e os ovos, destinados à venda cujo produto constitui o
perfeitos de passagef�!: bons cátaros, ganham a vida e o céu remendando pequeno mealheiro feminino, transporta-se o trigo para ser reduzido a
túnicas e fabricando luvas; quando os heréticos exercem as funções de farinha no moinho condal de Ax-les-Thermes. Operaçllo dispendiosa,
grandes ou pequenos costureiros, as mulheres da paróquia vêm vê-los: pouco lucrativa! Nos maus anos, importa-se cereais, sempre carregados
aparentemente, para os ajudar a remendar uma camisa; na verdade, por mulas, de Pamiers. Em compensaçlo, Moncaillou, o alto Hers e a
para dois dedos de conversa na sua companhia {I, 373). Notemos ainda alta Ariêgc exportam madeira (mais para aquecimento do que para a
34 ECOLOGlA DE MONTA lLLOU: A CASA E O PASTOR AMBI ENTE E PODERES 35

construçllo) por mulas e por água, para as terras baixas. As feiras e os na nossa aldeia, uma pobre mulher chamada Brune Pourcel, bastarda,
mercados mais próximos sllo em Ax-les-Thennes (onde os viajantes ex-criada e agora viúva: utiliza as facilidades de cozedura (cu/sande)
veneram de passagem as prostitutas do bassin des Ladres). E depois em que lhe oferece Alazais Rives. Acrescentemos que o fomo de pão do
Tarascon-sur-Ariêge, em Pamiers, em Laroque d'Oimes: mercados de agricultor abastado de Montaillou é multifuncional. Quando nlto está
sementes e feiras de carneiros. aceso, é utilizado como despensa - nada mais fresco! - para a reserva
Certos alimentos são importados, em· pequenas doses. Outros, de peixe ou para a colheita de caracóis.
maioritários, são produzidos no local. É a nfvel da alimentnçlto que O pão é acompanhado, por vezes, por carneiro e, mais
conhecemos melhor o meio biológico dos aldeões, quer sejam de frequentemente, por porco salgado - ou, sobretudo, fumado. Os artffices
Montaillou, da região de Aillon ou do Sabarthês (9). A escassez de da Occitânia do Sul exilados na Catalunha e que vivem em pequenas
alimentos era rara no século XIII. Toma-se presente, �esmo frequente, cidades, compram carne duas vezes por semana. Mesmo em Montaillou,
no in(cio do século XIV: porque os homens, na Occitânia, se o consumo de carne de porco parece normal, sem que o historiador
aglomeraram até ao absurdo (10), tão numerosos como no século XIX, possa ser mais preciso a este respeito. A fumagem do toucinho, após a
em que, contudo, as facilidades de acesso aos meios de subsistência e ao matança de porcos no Inverno, é objecto de auxflio mútuo entre vizinhos.
trabalho serllo mais consideráveis do que nos tempos de Filipe o Belo. Detenninada famnia tem uma lareira mais espaçosa ou um lume mais
A população de Montaillou propriamente dita ficou-se por limites farto, o que permite «tratam melhor a carne; acolhe, então, na sua
numéricos racionais (11); encontra-se, no entanto, em competição fornalha os quartos de um porco abatido por outra famrtia mais indigente.
desvantajosa Gá que episodicamente há falta de trigo), com a procura llci cerca de quinze anos, conta, em 1323, Raymonde Belot,' (que, por
que predomina entre os famintos habitantes das regiões baixas. As volta de 1 308, não era bafejada pela fortuna) (u), na altura da quaresma,
punções de homens, efectuadas pela emigração, não são o suficiente pe_la tardinha, levei doisflancos de porco salgado a casa de Ouillaume
para aliviar de fonna duradoura as tensões recorrentes. Pela primeira Bevet, de Montai/lou, para os põr a secar aojz1mo. Estava lá Guil/emetle
vez após um longo perfodo, registam-se, deste modo, crises de Benet (mulher de Ouil/aume) a aquecer-se ao canto da lareira, e outra
subsistência na região de Montaillou, em 1 3 1 O, 1 320 (11). . (Na França
. mulher: deixei as carnes salgadas na cozinha, e sai.
setentrional, a grande fome intervém numa data diferente, por volta de Outras protelnas provêm do leite, que, oferecido por um parente,
1316; porque o clima do trigo não é o mesmo no norte e no sul: na se bebe em boa camaradagem; do queijo, principalmente, produzido
região parisiense, o perigo para o cereal provém dos excessos de chuva, pelos pastores nas pastagens de altitude. Dum modo geral, nesta
que fazem apodrecer as espigas. No sul, a secura e a estiagem são mais montanha de pastagens e de queijo, não há falta de alimentos azo�ados,
de temer. Além disso, nestes climas tão divergentes, as próprias datas mesmo que a alimentação normal seja mediocre. As crises de viveres e
das agressões meteorológicas contra as searas são completamente de pilo não levantam, pois, problemas insolúveis em Montaillou; como
discordantes). acontece nos campos parisienses, quase totalmente cerealfferos, no século
Uma época de carestia, no entanto, é apenas uma etapa diflcil a XIV e no século XVI I.
vencer. Em tempos nonnais, come-se mais ou menos correctamente. A sopa da região leva toucinho e pão; como era costume naquela
O pio de trigo, e algumas vezes de milho, constitui, na aldeia, a base da época, é feita igualmente com uma verdura de repolho e alho-porro.
alimentaçilo «vegetal)). Jâ vimos que os cereais descem para a moagem Os hortelilos do velho Montaillou, devido à sua altitude montanhosa e
condal de Ax-les-Thennes, em cima de burros ou de mulas. Depois, falta de sofisticação, não dispõem ainda dos presentes dos Árabes e das
subindo a montanha em sentido inverso, a farinha é trazida para a peneira Cruzadas, que se começa a cultivar no século XIV, na Catalunha e no
doméstica. O pilo é cozido em casa, pelas mulheres: porque a senhoria Comtat. Os nossos aldeões ignoram, assim, a alcachofra, o meUlo e o
sabarthesiana nilo se ajusta aos modelos «clássicos)) da lle-de-France. pêssego, ou só os conhecem de nome. As favas e os rábanos, cultivados
(E por que diabo se havia de ajustar?) O fomo senhorial ou comum nllo nos campos, completam, juntamente com as couves e os alhos-porros, a
é, portanto, obrigatório. O que nllo quer dizer, por outro lado, que cada lista das hortaliças usadas.\ A colheita de nozes, de avelãs, de cogumelos
casa montailunesa disponha de um fomo particular. A posse de um e a apanha de caracóis fornecem úteis suplementos, na maioria oferecidos
fomo na domus é um sinal interior de riqueza. Quando níto se tem um generosamente pela Natureza. Consome-se também (além de caça) trutas
em casa, vai-se com a massa (que provavelmente se amassou no das torrentes e talvez um pouco de peixe salgado do litoral, trazido de
domicilio) a casa de uma vizinha-amiga mais afortunada. É o que faz, mula. O vinho nilo é abundante pois nilo há vinhas. É bebido nas grandes
36 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR A MBIENTE E PODERES 37

ocasiões, quando os copos circulam ao serão. De qualquer maneira, Fazendo-me sociólogo do velho Montaillou, tentarei, pois, apreciar,
nesta época, aliás como sempre, a embriaguez nllo 6 o forte dos agora e em primeiro lugar, a distribuiçllo do poder que afecta a nossa
Meridionais. Em terra occitana os b�bados nllo têm sorte. O açúcar, localidade. Examinarei, para começar, o impacto dos poderes exteriores;
enfim, 6 Infinitamente raro: quando se tem «meios», envia-se, de vez em principio, estes silo decisivos. Emanam da sociedade englobante,
em quando, à Dama amada, um fragmento importado do mundo que investe e controla Montaillou a partir dos centros de direcção. Estes,
islâmico. com ou sem razão, tendem a considerar-se centros de decisão verdadeira.
Tabus alimentares? Teoricamente a ética cátara está em voga em Situam-se nas cidades e, geralmente, mais a norte.
Montaillou. Tolera que se coma peixe; mas prolbe o toucinho e a carne No primeiro plano, destacam-se, evidentemente, os poderes
de talho: consumir animais é, na óptica albigense, lesar a imensa politicas e senhoriais. Estes detêm os controlos essenciais em principio.
..•

circulaçAo de almas que se estabelece normalmente entre os pâssaros, Reúnem-se, quanto aos montailuneses, numa única mão, de resto nobre
os mamiferos e os homens, graças ao principio da metempsicose. e um tanto long(nqua: a do conde de Foi:<. O conde é soberano do
O comportamento abstencionista dos heréticos em relação à fauna é conjunto do principado dos Pirenéus, que se chama precisamente
muito mais positivo do que o nosso, tão destrutivo para o ambiente. condado de Foix e que inclui Montaillou. Além do seu poder sobre o
Mas, na realidade, esta atitude de recusa da carne não é levada a sério principado como um todo, o conde é senhor particular da nossa aldeia
pelos ct\taros ou pretensos cátaros de Montaillou: os simples cccrentes» (já que existem, noutras paróquias não afastadas, certos senhores, cuja
do dogma heterodoxo deixam à minúscula élite dos <<perfeitos>> o cuidado pessoa tlsica não se confunde de modo nenhum com a do conde).
ou o privilégio de recusar a carne dos animais de quatro e duas patas, A casa de Foix, no exercicio do seu direito, faz-se representar no local
dos carneiros e dos faisões... por duas personagens: o castelão e o bailio (1�). Nomeado pelo conde a
Sabemos pouco sobre outros aspectos da vida «biológica» do título puramente vitallcio ou mesmo temporário, o castelão é o agente
habitante médio de Montaillou. Doenças como a tuberculose (com da «repressãO)) eventual, é uma personagem militar. presta assistência
expectoração de sangue), a epilepsia, males dos olhos, silo mencionadas à j ustiça do bailio, quando este se lança em perseguição de um
ou subentendidas variadas vezes. Mas sem que se possa elaborar um delinquente, real ou suposto, por montes c bosques. Exerce igualmente
quadro e frequência, nem avaliar a mortalidade, de que apenas se pode a . função de carcereiro-che fe, na qualidade de responsável pelas
dizer que era elevada, nomeadamente a infantil, e. frequentemente masmorras do castelo; responsável igualmente pelas pessoas que
epidémica. As pessoas da aldeia transportavam com elas, com a maior encarcera, de grilhetas nos pés (I, 406). Nos finais da década de 1290,
naturalidade do mundo, toda uma fauna de pulgas e piolhos. Coçavam­ o castelão, que reside na alta fortaleza de Montaillou, tem o nome de
-se, catavam os piolhos uns aos outros (como ainda hoje fazem com Béranger de Roquefort. Nilo sabemos grande coisa a seu respeito, a não
afecto os antropóides) de um extremo ao outro da escala social, amical ser que a mulher era nova e bonita e que tinham um administrador,
e familiar. O que há nisso de surpreendente numa civilizaçllo occitana Raymond Roussel: Raymond ocupava-se provavelmente de algumas
em que o polegar se chamava precisamente mata-piolhos? A amante terras da reserva senhorial pertencente ao castelo. Esta não devia exceder,
catava os piolhos do amado. A criada, os do patrão. A filha, os da mãe. em campos e prados (excluídas as florestas), uma trintena de hectares;
Era uma ocasião de tagarelices infinitas, em que se falava de tudo e de talvez a sua supertlcie fosse até muito inferior a estes números. Depois
nada, de mulheres, de teologia ou do comportamento dos perfeitos na da morte de Béranger, sucedeu-lhe um ccvice-castelilo», personagem
fogueira. Havia anos de pulgas, de moscas, de piolhos, de mosquitos, muito apagada, sem relações de parentesco com o seu antecessor (visto
em que estas actividades tinham um ritmo infernal. Pelo contrário, outros que o cargo era apenas vitalfcio, na melhor das hipóteses). Este vice­
perfodos eram mais calmos. Pensava-se menos, entlo, nos ectoparasitas -castelilo parece não ter encontrado nada de mais conveniente para fazer
e mais nos perigos da Inquisição. Voltarei, nos cap(tulos ulteriores, aos do que pôr-se de vez em quando às ordens dos camponeses ricos da
aspectos propriamente «vitais>> da existência montailunesa. região, quando estes estavam nas boas graças do bispo de Pamiers
. \ (1, 406).
Quanto ao bailio, situa-se no quadro estrito da senhoria dominial.
Depois destas breves notas sobre a vida material e o ambiente Segundo a definição de M. Bonnassie ("), o bailio é «o agente dominial
biológico, que se incarnava na flora e na fauna, segue-se, muito encarregado de vigiar pelo pagamento regular dos foros ou direitos
naturalmente, o estudo social e sociopolitico da aldeia. senhoriais devidos pelos rendeiros,( ... ) o fiscal e recebedor dos impostos;
38 ECOLOGIA DE MONTA ILLOU: A CASA E O PASTOR AMBIENTE E PODERES 39

exerce, em nome do conde, a justiça e mesmo a alta justiça>). Esta sinodal. De resto, o bispo Foumier não se arvora unicamente em hábil
separação de poderes entre um «guardião do castelo)), com prerrogativas defensor da ortodoxia romana. Interessa-se também pelos bens deste
militares, e um funcionário senhorial especializado na justiça ( 16), teria mundo e procura impor aos aldeões da alta Ariêge o pagamento dos
encantado Monstesquieu. Mas não exageremos o significado desta dlzimos dos cordeiros, fonte recorrente de conflitos rústicos. O velho
divisão! De facto, ao nfvel da nossa documentaçllo, são as funções do conde de Foix, Roger-Bemard, protector dos seus subditos, tinha du­
bailio, judiciais decerto mas também rep�ssivas e <<protectoras)), que rante muito tempo servido de obstáculo a esta ofensiva decimal. Morto
aparecem com mais força (bai lio, d iz M. Bonnassie, signi fica Roger-Bemard, ( 1302 ), esta pode1'á ter livre curso, no começo da década
originariamente tutela e protecção (1 ') ; os bailios de aldeia, que de 131 O e, mais tarde, a partir de 13 17, no tempo do episcopado de
conhecemos graças aos processos Fourn ier, encarregam-se Fournier. Assistido por Frei Oaillard de Pomies, emissário de
eventualmente da prisão dos heréticos; na companhia do pessoal do Carcassone, o tribunal da Inquisição do bispo de Pamiers pai� como
castelo, perseguem toda a espécie de delinquentes na montanha; tentam uma sombra negra, sobre Montaillou, entre 1 320 e 1 32 4. Em conjunto,
readquirir os objectos roubados; cobram os foros e mesmo os dfzimos! Carcassone e Pamiers exercem sobre a nossa aldeia um condomlnio
Recebem as queixas de um pastor, vitima de uma calúnia. Um bailio inquisitorial que não deixa de ser acompanhado de frequentes rivalidades
nem sempre é capaz de solucionar os conflitos apresentados ao seu a nfvel de cupulas.
i
modesto «tribunah) instalado na praça da aldeia; um árbitro semi-ofcial Quarto poder, longlnquo, mas dotado de uma força superior de
pode ainda resolver melhor a questão: Enquanto trabalhava como pas­ dissuasllo: o reino de França. O conde de Foix encontra-se, perante esta
tor para Jean Baragnon, de Merens, conta Ouillaume Baille de grande potência, numa real situaçllo de dependência, submetido a
Monta illou, a mulher dele, Brune Baragnon, chamava:me pressões de intensidade variável. Um exército, recrutado pelo soberano
frequentemente «herética». Um dia, napastagem, ofilho do meu patrão de Paris, pode eventualmente vir em socorro da ccreligillo verdadeira».
Jean Baragnon, também me chamou «herético». Queixei-me ao bailio O grande reino do Norte é, portanto, odiado, tal como a sua força, por
local. Mais tarde, Pons Malet, oriundo de Ax-les-Thermes, conseguiu muitos montanheses que, no entanto, nunca encontraram um homem
que eu e o dito Jean Baragnonjúniorfizéssemos as pazes. (11) de ol1 em carne e osso. Achas que podes lutar contra a Igreja e o senhor
rei de França? grita o pai do pároco da aldeia ao proscrito Ouillaume

Maurs, ex-camponês de Montaillou e agora pastor (li, 171 ) Bélibaste,
.

O segundo poder é teoricamente estranho à d�pla senhor-bailio; o perfeito, ultrapassa muito esta apóstrofe; de um traço, desenha a
provém da Inquisição dominicana de Carcassone (11, 268); esta tem os constelação dos poderes que velam mais ou menos «paternalmente»
seus denunciadores, os seus policias oficiosos, os seus gorilas e os seus por Montaillou (11, 78-7 9 ). Há, diz ele, quatro grandes diabos que
monstros: modestamente denominados «servos)), aplicam ou recebem governam o mundo: o senhor papa, o diabo maior; dou-lhe o nome de
um ocasional murro no nariz quando vem entregar mandatos de Satã,· o senhor rei de França é o segundo diabo; o bispo de Pamiers, o
comparência (11, 172 ) aos aldeões da região de Alllon. A Inquisição terceiro: e o senhor inquisidor de Carcassonne, o quarto.
tem t��bém os seus notários-carcereiros, os seus guardas de prisão, Ora, por volta de 1 32 0, verifica-se em Montalllou uma situação
que d1ngem as rusgas e as batidas contra Montaillou cátaro, nos fmais original: em perfodo «nonnal)) encontrava-se nesta aldeia uma micro­
do Verao de 13 08. Possui ainda agentes no clero secular, tal como Jean sociedade montanhesa, bastante pobre, em que as pessoas ·possulam
Strab�ud, simultaneamente pároco de aldeia. notário da Inquisição e geralmente pouco d inheiro, pouco prestfgio e pouco poder. Em
.
notário púbhco (III, 88); e também Pierre Clergue, pároco de Montaillou contrapartida (vantagem compensadora), podiam deslizar sem grandes
innilo do bailio, e agente duplo, que mencionarei frequentemente. Po; problemas por entre os interstfcios e as falhas dos diferentes poderes
outr� lado, a Inquisição carcassonense nomeou, para junto do bispo de exteriores ou circundantes; porém, no tempo dos inquéritos Foumier,
Pam1ers, uma poderosa e sinistra personagem, Frei Oaillard de Pomies os quatro poderes acima citados constituem um bloco, embora com
O. p.: participa conscientemente em todos os inquéritos e repress � pequenas fissuras. É verdade que as guerru privadas entre senhores
ordenados por Jacques Foumier. feudais continuam a assotar a vertente sul dos Pirenéus, frequentada
Terceiro poder: o bispo de Pamiers; em teoria controlado pela transumincia dos montailuneses (III, t 95); todavia. a vertente norte
superionnente pelo papado, dirige por sua vez a «hierarquia)) local de assiste à coligação das forças politicas e clericais: o pequeno conde de
Montaillou: o pároco e às vezes o vigário, enquadrados pela organização Foix, e as grandes damas que dominam na sua Corte baixam-se diante

L
40 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR AMBIENTE E PODERES 41

dos agentes do rei de França e da Inquisição ("), ao contrário do antigo Montaillou, procura libertar o pároco seu irmão, detido na prislo epis·
conde que encorajava os camponeses a rec usar os dlzimos e fazia todos copa!, intercede junto de várias personagens das quais tinha motivos
os esforços para resistir às usurpações da Igreja e do Reino. A lnquisiçlo para pensar que poderiam influenciar as decisões de Jacques Foumier:
de Carcassonne e o bispo de Pamiers, por seu lado, andam de mio dada Bernard unta, portanto, as mllos do senhor temporal de Mirepoix. Custo:
com a França de or/: esta, por sua vez, saberá recompensar os clérigos 300 libras. A Madame Constance, dama de Mirepoix, oferece uma mula
occitanos pela sua colaboração; apoiado por Paris, o papado de Avinhi'lo e uma grossa soma de dinheiro a Loup de Foix, bastardo dos amores de
será ilustrado por Jacques Fournier, sob o nôme de Bento XII, em 1334 ; Louve e Raymond-Roger. O preboste da aldeia de Rabat, representante
o papado tomar-se-â, para os padres originários da l lngua d'oc, uma local da abadia de Lagrasse, e o arcediago de Pamiers, Germain de
fonte de inumeráveis prelaturas e sinecuras. Castelnau, <<fam il iar do bispo», sllo igualmente grati ficados com
Desta unidade de acção dos poderes, resulta, para os camponeses avultadas gorjetas. No total, diz Bernard Clergue, gastei 14 000 soldos,
de Montaillou, a opressão; esta faz-se sentir a partir do momento em num ano (quantia enorme, mesmo para a fam llia mais rica de
que os camponeses contestam a religião, enquanto heréticos; ou o dfzimo, Montaillou) para a libertação do meu irmão (11, 282). A intercessão,
enquanto devedores. Acontece frequentemente, nesta época, e nesta neste caso, não resultou: Pierre Clergue continuará na prisão, onde
região, que as pessoas se deslocam durante a noite, porque se sentem acabará por falecer; Jacques Fournier mostra-se incorruptivel. Mas a
perseguidas; tem-se cuidado com o que se diz; tanto na cidade como na existência de uma tal zona de intercessão é um facto real; desempenha
aldeia, hã o receio de se ter a llngua demasiado comprida, de se ser um papel intermediário, ou de recurso sempre poss(vel, entre as opressões
apanhado pela garganta, capi gula. Anda-se de espada na mão; assobia· exercidas pelas forças dominantes e a necessidade de segurança dos
-se baixinho para chamar um <<conhecido». Atira-se uma pedra ao dominados.

telhado ou aos taipais da janela da casa de um amigo, para que abram a
porta. O aparelho do poder global não é policial no sentido moderno do Se passarmos das questões do poder e do domínio para os
termo. Mas, no fim de contas, por muito pouco que alguém se desvie da problemas, localmente conexos, da socied51de das ordens e do sistema
linha ortodoxa, vê-se envolvido no mundo kafkiano de suspeita e senhorial, um primeiro tema se impõe: no quadro da comunidade, as
denuncia. Mesmo na montanha, último reduto da liberdade de expressão, clivagens significativas não parecem estabelecer-se entre uma nobreza
a cada passo se é encostado à parede por uma palavra imprudente: pelo de sangue azul e a plebe ruraL Primeiro, e muito simplesmente, devido
pároco, o bailio, o v igário, o vizinho ou a comadre. Uma palavra à própria exiguidade do grupo humano em estudo. Os «três estados)) -
indi�creta e é a prisão; ou, então, o uso de cruzes duplas amarelas (2°). eclesiásticos, nobres, e comunidades das cidades e das aldeias - existem
Situação anormal, artiticial, devido à implantação de um catarismo lo­ d� facto a nlvel do conjunto da alta Ari�ge, ou Sabarthês, considerado
cal, envolto na cápsula das realidades montanhesas - que provoca, da como um todo (1 1 ). O efectivo dos habitantes de Montail lou, pelo
parte da Igreja, as reacções clássicas de rejeição. Esta conjuntura de contrário, é demasiado reduzido para que esta divisão temâria se possa
excepção é trágica para os aldeões; por outro lado, apresenta, aos olhos estabelecer apenas nos limites da paróquia. O pâroco que, de resto, na
do monstro frio que é o historiador, a <Cvantagem» de acentuar - à nossa época, é um autóctone de extracção rústica, é o único representante
maneira de uma preparação histológica que tortura e mata o seu objecto local da ordem do <<clero)). Quanto aos grupos rústicos locais, que são
- certos traços da sociedade montailunesa que em tempo normal se substanc iais, silo praticamente desprovidos de uma casta nobre,
distinguiriam pouco, permitindo, desse modo, uma análise social que susceptlvel, ou não, de os <<olhar do alto)). Só uma famllia nobre viveu
desce ao nfvel da estrutura celular e intra-celular. em Montaillou durante o nosso período, e apenas episodicamente; é a
Dito isto e para rematarmos a questão referente aos problemas do famflia constitufda pelo castelão condal Bérenger de Roquefort, e a sua
poder, atenuarei a brutalidade das apreciações precedentes. Porque a esposa, Béatrice de Planissoles. De Bérenger, que morreu cedo,
relação dos camponeses de Montaillou com as forças do poder nilo é ignoramos praticamente tudo. Mas a mulher é nossa velha conhecida:
tecida somente de rudeza pura, nem de opresslo imP.osta por estas, pertence à nobreza por nascimento e pelos dois casamentos: tal como
sofrida por aqueles. Existe também entre os dois n lveis, entre os muitos outros, o seu exemplo lembra-nos que é precisamente ao nlvel
dom inadores e os dom inados. um estádio de intercessão e de do casamento que se opera, entre nobres e não-nobres, a discriminação
intermediários. preenchido por senhores, por nobres bem colocados, mais frequente - se bem que de forma alguma obrigatória. Mas, por
por pessoas ricas e i nfluentes. Quando Bernard Clergue, bailio de outro lado - e estes «outro» abrange um vasto campo de interesses e

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42 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PAS'fOR AMB I ENTE E PODERES 43

actividades - Béatrice integra-se sem dúvida - se bem que de fonna Com a melhor das intenções, ao que parece, Stéphanie tece com este
meramente esporádica - na aldeia (trocá-:la-â por Prades d' Aillon, tecelão a perfeita heresia e a não menos perfeita amizade espiritual
localidade vizinha; depois, pelas terras baixas, alguns anos após a morte {I, 223). Castelã de Montalllou, Béatrice de Ptanissoles só se casa com
do primeiro m arido). Integra-se pelos seus amores, os seus homens de sangue azul, como nós diríamos. Mas esteve prestes a con­
conhecimentos, os seus contactos sociais diârios e as suas devoções. De ceder os seus favores ao seu administrador e, depois, toma-se amante
uma fonna mais geral, e que transcende o caso particular de Montaillou, de um bastardo e de dois padres, nilo-nobres. Ela inventa, decerto, no
as distinções rfgidas que existem entre nobres e nilo-nobres em diversas momento dos preliminares, mil razões para nilo se entregar ao primeiro
regiões do reino de França, nllo são aparentes - ou, pelo menos, são-no dos seus clérigos; entre as quais nunca figura a condição plebeia deste
em menor grau - no nosso pobre condado pirenaico. O fonnidável último. É verdade que, com ele, estava em comunhão de ideias
antagonismo, quase racial, de nilo-nobre e nobre, que veremos catarisantes; a heresia, afinal, pode criar estranhos companheiros de
manifestar-se na região de Paris por ocasião dajacquerie de 1358, não leito, transpostas alegremente todas as barreiras de casta. Mas o segundo
atinge o mesmo grau de pertinência na alta Ariêge: aqui, os conflitos padre não tinha a desculpa de ser um herético. O seu baixo nascimento
mais fortes são os que opõem a Igreja ao campesinato e à nobreza, mais não o impede de possuir Béatrice nem mesmo de viver amancebado
ou menos coligados contra o clero. Muitos nobres desta pequena região com ela. Passando para um tipo de relação ainda mais quotidiana e
pirenaica são pobres e não são mais orgulhosos por isso, como pelo vulgar, verificamos que senhoras feudais ou castelãs e camponesas não
contrário serão, no fim do Antigo Regime, os nobres depauperados e, hesitam em tagarelar longamente quando se encontram; em tal
no entanto, cheios de soberba que encontraremos na Bretanha e em circunstância, a nobre e a não-nobre abraçam-se c beijam-se com
Puisayc(l=). No condado de foix, nobreza sem dinheiro confere pouco
prestigio: sou geralmente tlesprezado devido à minha pobreza, declara
afectuosidade. Não introduzamos nestes gestos efectuados com toda a
simplicidade as nossas ideias modernas, nem os acusemos de não sei
sem emoção especial o nobre Arnaud de Bédeilhac, da aldeia de que paternalismo ou antes maternalismo hipócrita que tingisse abolir,
Bédei lhac. Fam flias nobres como os de Luzenac, em Luzenac, aos olhos do público, o fosso intransponivel que, segundo a nossa óptica,
contentam-se com uma alimentação de pastores, à base de pão, vinho divide as castas ou mesmo as classes. Na realidade, é a impressão
azedo, leite, queijo. O filho, Pierre, frequenta, para viver, os estudos imediata que está certa: esse fosso não existe, pelo menos no plano das
jurídicos em Toulouse; acaba como advogado miserável, encarregado relações sociais, que se distinguem, na ocorrência, por uma ausência
dos serviços sujos da Inquisição (ll). A este miserabilismo «extra-casta>, simpática de espirito de casta e de distinção respectiva.
de uma certa nobreza montanhesa, acrescenta-se o facto de que existe Outra prova desta ausência de distânc ia, é o facto de no
uma distância muito pequena entre, por um lado, os nobres e, por outro, ponnenorizadlssimo diário de Jacques Foumier, os antagonismos entre
os homens de leis, advogados ou notârios. Dum modo geral, a fronteira nobreza e não-nobreza não desempenharem um papel essencial. Existem,
entre nobres e nilo-nobres é fluida. Um texto de 13 1 1 , a respeito de certamente, e podem mesmo ser graves. Dois nobres, pelo menos, o
dizimas da alta Ariêge, fala de nobres, de ignóbeis, e de aqueles que se castelão de Junac (que teme uma denúncia anti-cátara) e o pagem
fazem ou se fizeram passar por nobres: este terceiro grupo é
expressamente mencionado, a fim de garantir á sua inclusão no acordo
Raymond de Planissoles, cometem assass ínios contra camponeses da
sua vizinhança, em Junac e em Caussou f4), respectivamente. Por outro
decimal de 1 3 1 1 (lll, 338). Haveria, pois, um grupo, plenamente aceite, lado, a cobrança de derramas (para beneficio da Igreja?) suscita em
de falsos nobres, considerados como tais, proprietários de casas e terras, 1 332, na mesma paróquia de Caussou, uma tentativa de Guillaume de
eventualmente reverenciados? A nlvel da vida quotidiana e das relações Planissoles: utiliza a sua qualidade de nobre para alegar um hipotético
entre homens, entre mulheres sobretudo, entre homens e mulheres privilégio fiscal que o dispensaria de pagar pessoalmente as ditas
tamWm, as relações de nobreza e nilo-nobreza silo, nestas condições, derramas provocando assim os munnúrios da plebe (III, 35 1)...
frequentemente agradâveis, e geralmente descontrafdas. Marcadas, como · Em Montaillou, propriamente, nilo encontro nenhum conflito deste
é evidente, por um1 mfnimo de deferência mas sem, na verdade, tipo; os antagonismos (indubitâveis) entre a famflia camponesa dos
levantarem problemàs. O espfrito de casta só actua entre os nobres Clergue (de que um dos membros é bailio senhorial) e uma parte dos
(e nem sempre) a nível da aliança conjugal. Stéphanie de Chateauverdun habitantes, não silo, e nlo podiam ser, baseados na contestação anti­
tinha desposado um cavaleiro nobre; mas, mais tarde, foge para a ·nobreza. Duma maneira geral, nesta época e nesta região, a luta dos nilo­
Catalunha com um tecelão cátaro, innlo de uma guardadora de gansos. nobres contra os nobres nllo passa de um fenómeno episódico, senão
44 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR AMBIENTE E PODERES 45

mesmo epidérmico. Devemos classificá-la entre muitas outras lutas, t!o pobreza da nobreza serrana: estamos muito longe, na alta Ariege, das
ou mais importantes; levantam um certo segmento da população contra extensões territoriais dos nobres parisienses e bordeleses, com as suas
esta ou aquela categoria de adversários, reais ou m (ticos, que podem ser vastas reservas senhoriais, as suas vinhas, que valem ouro. Tanto quanto
tanto os leprosos, como os judeus, como os cátaros ..., ou os usurários, sabemos, a «reserva» mal chega a ultrapassar as propriedades rurais
os padres, os prelados, os frades menores, os Franceses, os inquisidores, dos camponeses ricos locais. E o intendente do castelo comporta-se
as mulheres, os ricos... para não falar de outros. Não hã, pois, motivos sobretudo como factotum da casa, ocupando-se eventualmente dos
para sobrevalorizar, no que respeita aos nossos aldeões, a acrimónia trabalhos do dom(nio e fazendo a corte à patroa; não desempenha o
contra os nobres. Não é essencial, como factor de tensão social. Esta papel de um grande capitão de lavoura, como encontramos nos domlnios
não-beligerância do campesinato em relação à nobreza pode explicar-se de Béziers e Beauvais. É como se o afastamento das grandes cidades -
por muitos motivos, derivados, segundo me parece, do can\cter original únicas capazes de manter artificialmente as reservas senhoriais
da civilização occitana, nos seus aspectos económicos, sociais, culturais... importantes, apoiadas no mercado urbano - tivesse contribuldo para
Penso, por exemplo, na relativa insignificância das reservas senhoriais, desanuviar a situação e impedir o conflito que poderia ter surgido entre
geralmente detidas pela nobreza; penso também nos aspectos positivos os nobres e os camponeses da região de Aillon. Os primeiros são
reais, de que se vangloria e encarrega a nobreza do Sul, mais atraente do demasiado pobres e desprovidos de recursos; os segundos, vigorosos
que repulsiva. Mas este género de explicações muito gerais, de que direi criadores de gado, demasiado bem instalados nos seus modestos dom(nios
apesar de tudo duas palavras, ultrapassa largamente o quadro acanhado e nas suas domus, para que se possa estabelecer, entre uns e outros, a
de uma monografia aldeã. Apenas acessoriamente são da competência �amosa diferença de potencial que a longo prazo provocaria a luta aberta.
do nosso estudo. As (relativamente) boas relações entre nobres e E afinal, nas regiões agrlcolas comercialmente mais activas e mais
«ignóbeis» constituem, do meu ponto de vista, um dado. Um dado tanto afastadas - penso na região de Paris, no Beauvaisis do Sul, na Flandres
mais capital, de resto, quanto a nobreza e os nobres intervêm de forma -; que se produz ou se produzirá o clash, entre uma nobreza provida de
por vezes brilhante, mas, por assim dizer, ocasional, na vida normal ou dinheiro pelos mercados que rentabilizam os seus domlnios e os
anormal dos habitantes de Montaillou. (O mesmo não se aplica a outra camponeses que partilhariam de bom grado algo mais do que as migalhas
aldeia em que a residência de tal senhor e de tal nobre é um facto que caem da sua mesa.
permanente, e não apenas fulgurante e passageiro). Por último convém acrescentar que esta relativa ausência de luta
Tem-se, por momentos, a impressão de que a luta entre nobres e de classes não se explica por uma carência pura e simples da parte dos
não-nobres, neste canto recôndito dos Pirenéus, é quase tão insignificante nobres. Se a nobreza das montanhas occitanas se dá bem, se mantém
como poderia ser nos nossos dias u m eventual con flito entre relações afáveis com os camponeses (em cuja companhia se sociabiliza
condecorados e não condecorados com a Legião de Honra. Por anacrónica geralmente matando-os, por vezes), não é unicamente por ser pobre e
indigente. Pobre, é-o certamente, mas não em todos os aspectos nem
..•

e excessiva que seja, esta comparação não parece ter apenas um valor
sugestivo: com efeito a qualidade de nobre, não era, em última análise, em todos os planos, materiais e espirituais. De facto, depois das
mais do que uma espécie de condecoração ou de medalha que as famUias Cruzadas, depois da introdução do Catarismo, que em boa parte se lhes
abastadas ou que o tinham sido antigamente transmitiam de geração deve, e depois dos trovadores, a pequena nobreza occitana desempenhou
em geração (25), praticando frequentemente a endogamia dos um papel positivo de instigação cultural,... e de sedução feminina; esta
condecorados. Será necessário acrescentar que a 1300 m de altitude, última muito apreciada por poetas e por amantes de todas as categorias
em aldeias em que os nobres eram quase tão miseráveis como os ignóbeis, socioprofissionais . Esta função dirigente, tanto no dom lnio da
se tratava mais ou menos de uma medalha de chocolate? Trincava-se sociabilidade como das mundanidades aldeãs, era aceite de bom grado
com deUcia (26); mas a posse desta inslgnia modesta não engendrava por uma população que não tinha motivo de maior para se queixar de
intensa inveja social. Que diferença dos campos do vale do Sena: uma direcção deste género. A nobreza da alta Ariêge não era cara; não
quarenta anos mais tarde, o conflito contra a nobreza adquirirá foros de oprimia m u ito os camponeses, numa região em que não existia
uma guerra de raças... praticamente servidão; só estava presente, mesmo em Moniaillou, du­
Esta ausência de demarcações fortes entre grupos, que, contudo, rante breves temporadas, em ocasiões que podiam ser agradáveis;
não exclui a diferença nem a deferência (1'1), explica-se pela relativa d j fundia modelos de civilização acesslveis e um grande número. Em
pobreza da nobreza serrana: estamos muito longe, na alta Ariêge, das suma, sabia agradar a baixo preço.
46 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR . AMBIENTE E PODERES 47

• peso (l1); mais do que em 1 672, depois da erosão inflacionista. Apesar


Outros problemas, relacionados com os precedentes: os do sistema desta posslvel importância, o sistema senhorial dos anos 1 300 não
senhorial. E, no «quadro>> senhorial, os do regime das terras e da situaçlo corresponde, ou deixou de corresponder, a um verdadeiro -estado de
jurídica dos homens, eventualmente dependentes. Enfim, o problema servidão das populações m ontailunesas. Estas podem i rritar-se,
das tensões e atritos que este regime e esta posslvel dependência podem, justamente, com os delitos escandalosos e injustos que, impelida
ou nllo, provocar. sobretudo pela Inquisição, comete a famllia do bailio ou juiz senhorial.
Como jâ referi, os nossos documentos falam-nos, sobretudo, em No entanto, estas populações nllo silo servas, nem mesmo estilo reduzidas
relaçllo a esta matéria, da autoridade publica e da senhoria local, ambas n umn estrita dependência em relação ao senhor temporal; de qualquer
pertencentes ao conde de Foix, e bem assim dos seus representantes forma, servas já não são em 1 300; se é que, o que é muito posslvel (mas
locais: o castelão militar; e o bailio, judicial (em principio). Por outro disso nada sabemos) alguma vez tenham estado submetidas a
lado, a mesma documentação, habitualmente loquaz, emudece em formas de dependência estrita num perfodo anterior (nos séculos XI e
relação aos direitos senhoriais em Montaillou. Cumpre-nos suprir esta XII?) (ll). Por volta de 1 300- 1320, as fam IIias camponesas de Montaillou
carência; e , para isso, consultar um ou outro documento da época tardia. possuem, legam e vendem livremente a sua terra (estas vendas, bem
Um excelente inquérito de 1672 (li) indica que o rei de França é senhor entendido, são raras, pois o mercado da terra, nesta região afastada,
de Montaittou, na qualidade de sucessor legitimo dos direitos dos antigos nilo é muito activo). Os habitantes desfrutam - perante o senhor e os
condes de Foix. Este senhor exerce ou faz exercer por um representante seus agentes locais, bailio e castelão - de uma grande liberdade de
(continuador longlnquo do bailio) a alta, a média e a baixa justiça; movimentos, geograficamente falando. /psofacto, esta liberdade implica
cobra os lods e ventes (direitos de sucessão e de transmissão) sobre o em relação ao senhor uma dependência pessoal quase nula (ainda que
valor dos bens, à razão de 8,5% do dito valor; recebe também um direito certos direitos senhoriais, anteriormente evocados, sejam restos
de pâturage e de fores/age (um total de 16 a 20 libras tomesas em plauslveis de uma antiga dependência deste tipo). Esta não-dependência
1672): graças ao pagamento deste direito, os habitantes podem enviar faz-se, apesar de tudo, acompanhar de obrigações não desprezáveis (ver
livremente os seus rebanhos para os 250 hectares de florestas e para os supra) e de uma deferência respeitosa para com o longlnquo senhor­
450 hectares de baldios e charnecas; estas florestas, baldios, charnecas, -conde e os seus agentes locais. As verdadeiras opressões desta época
pertencem nominalmente ao senhor; mediante compensação, coloca-as não emanam da senhoria do conde, à qual os camponeses se chegam a
à disposição dos camponeses (2:9). Encontramos também um direito de afeiçoar de uma forma sentimental e quase comovente. As forças
quê/e ccque o senhor cobra anualmente a todos os chefes de famflia de opressoras surgem de outros pontos do horizonte, e, nomeadamente, da
Montaillou)) (rendimento anual médio: 40 libras em 1672). O direito l
actividade inquisitorial: os inquisidores não fazem cerimónia em utilizar
de intestorie (resgatado peta taxa global e irrisória de S libras anuais, i contra os aldeões ... o próprio agente do senhor temporal, isto é, o bailio.
1
em 1 672) permitia outrora ao senhor receber a sucessão dos que morriam 1 •
sem herdeiros directos ou indirectos. Finalmente, hã um albergue ou
direito de asilo e um foro em aveia. Um e outro se destinavam ao
i Desse modo, e continuando a referir-nos aos cctrês estados)), a
alojamento e A cavalaria do conde ou do castello: pelo menos, era esse contestaçlo global, em Montaillou e em Sabarthês, vai manifestar-se
o motivo, mais tarde pretexto, para a sua extorslo. Estes diversos direitos mais contra a primeira ordem (o clero) do que contra a segunda (a
silo muito antigos: correspondem exactamente aos que existiam nos nobreza, senhorial ou nllo). A alta Ariêge rural volta-se principalmente
Pirenéus cataliles, tt'lo próximos dos nossos, ao longo dos dois ou três contra os ricos da Igreja e n!o contra os nobres laicos. Sabe-se que o
séculos que precederam e que se seguiram ao ano mil (lO). Numa época clero, na Occitânia, desde os Alpes aos Pirenéus, se comporta, nos séculos
indeterminada, provavelmente posterior à que é estudada neste livro, a XIII-XIV, como uma força da terra �). Mas, deste ponto de vista,
maioria dos foros em questt'lo tomar-se-.' pagâvel em moeda. Serlo desse precisamente, a principal zona de atrito diz respeito aos dlzimos. No
modo vitimas da eutanâsia monetârl a. Os 200 ou 300 hectares de fim do ano de 1 303, a Inquisição de Carcassonne manda prender todos
tetDS.(l�) que o campesinato montailunês cultivará, por volta de 1 672, os habitantes de Montaillou, homens e mulheres, com mais de doze ou
em campos e em prados, haver-se-lo, portanto, sem grande dificuldade, treze anos. Esta rusga inclui também os pastores que desceram ou
com o conjunto de rendas propriamente senhoriais. Por outro lado, no voltaram a descer especialmente das suas pastagens de altitude, por
inic io do século XIV, estas terlo ainda provavelmente um certo ocasit'lo das festividades e do fim da transumância estival. A captura,
48 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR AMBIENTE E PODERES 49

levada a cabo pelo Inquisidor, inaugura a restauração, pelos bispos de monetário, que teve lugar na alta Ariége e noutras regiões, ao longo da
Pamiers, entre 1 3 1 1 e 1 323, de todos os dfzimos sobre o gado das regiões grande fase do crescimento medieval, criou possibilidades de tributação,
de montanha, que não tinham sido cobrados com grande rigor (") até atentamente vigiadas pelo clero da região revigorado pelo lmpeto anti­
entllo. Jacques Fournier, cujo antecessor tinha interditado os cátaro. Esta ofensiva dos padres da Occitânia do Sul insere-se na politica
recalcitrantes (16), exigirá doravante estas taxas, muito pesadas, com a geral dos clérigos em relação aos dizimas, na Idade Média e nos tem­
mesma branda c cruel obstinação com que· perseguia os heréticos. O pos modernos. Muito antes da psicanálise e dos grandes restaurantes, a
acordo de 1 3 1 1 , renovado e completado em 1323, estipula, para todas Igreja compreendeu que o seu prestigio seria tanto maior quanto mais
as comunidades do «arcebispo de Sabarthés», compreendendo caros fizesse pagar, sob a forma de tributação decimal, os serviços
Montaillou, Ax, Tarascon e Foix, a cobrança de dizimes em dinheiro e prestados nos seus fiéis.
em géneros sobre os produtos extra Idos do gado; e uma tributação deci­ Mas muitas pessoas, tanto da região de Aillon como de outros
mal sobre os cereais à razão de um oitavo. Esta taxa exorbitante (11) lados, não vêem as coisas deste modo. Em Montaillou, em Varilhes, em
provoca gritos de furor, porque, no principio do século XIV, os padres Dallou, os gracejos contra a riqueza açambarcada pelos clérigos silo
começam a exigi-la deveras. As pessoas acabarão por se habituar, mas sempre ensejo para uma gargalhada ao serao... Que o dizimo, no que
não sem resmungar: ainda no século XVIII, o carácter abusivo, e no respeita a agravos anticlericais de ordem material, é o alvo favorito dos
entanto habitual, do imposto decimal nos Pirenéus, impressionará os contestatários montanheses, provam-no sobejamente os processos
observadores (l'). À razão de um oitavo dos grãos recolhidos, os dizimas dirigidos por Jacques Foumier. Dos 89 processos reunidos por este bispo
do Sabarthês, em 1 3 1 1 - 1 323, quase se assemelham ao ccchampart>> {19). e que abrangem todas as formas possíveis de alergia ao poder e à
Não admira pois, que sejam contestados. ortodoxia católicos, pelo menos 6 põem em causa a recusa do dízimo,
E são, de facto, contestados; mesmo na região de Aillon, onde se como artigo de acusação principal ou subordinado; os acusados
exprimem-se em termos muito enérgicos, nomeadamente a propósito
situa o objecto do nosso estudo. O tecelão Prades Tavemier, natural de J
, do dízimo de carne/ages, tributado sobre os rebanhos de ovinos e que
Pradcs d' Aillon, durante uma longa marcha na montanha em companhia 1
de Guillaume Escaunier (de Arques), enuncia como um artigo de fé o desagrada quer aos criadores quer aos pastores.
seu ódio contra os dlzimos, à mistura com outras proposições heréticas: As frustrações deste tipo revelam-se especialmente vivas contra os
os padres e os clérigos, exclama ele, porque são maus, dedicam-se a monges mendicantes, estabelecidos nas cidades: apesar da ética de
extorquir e receber do povo as primlcias e os dizimos de produtos em pobreza a que teoricamente estilo vinculados, estas personagens tornam­
relação aos quais não fl=eram o mínimo esforço de trabalho {11, 1 6). -se c(&mplices do bispo e da sua politica de reforço dos impostos. Proibem
Prades Tavernier põe os dlzimos no mesmo saco de infãmia que o a entrada nas suas igrejas aos camponeses que foram excomungados
baptismo, a eucaristia, a missa, o casamento e o jejum da sexta-feira. por causa da greve de dfzimos (11, 3 1 7, 32 1 ).
Mesmo em Montaillou, os innilos Clergue, bailio e pároco, encar­ . Deste ponto de vista, é revelador o caso de Guillaume Austatz,
regam-se de cobrar, para si próprios e para as instâncias superiores, a bailio de Omolac, em Sabarthês, e representante qualificado de uma
tributação decimal. certa élite aldeã, infectada de catarismo (ver as curiosas teorias que ele
Como mais tarde nos tempos da Refonna, por volta de I 560, a exprime, a respeito da demografia das almas dos mortos (I, 1 9 1 ...).
heresia do dizimo em Sabarthês, cerca de 1320, mal se distingue por O dito bailio é anticlerical. Os meus únicos inimigos em Ornolac, declara
vezes da heresia religiosa. Em virtude de uma irrefutável lógica, o ele, são o pároco e o vigário: não conheço outros (I, 200). Protestando
endurecimento da Igreja em relação ao dizimo segue os mesmos moldes diante dos aldeões contra a condenação à fogueira de um adepto do
da admoestação espiritual. O longfnquo rei de or/ tenta, no entanto, em valdelsmo, declara: em vez deste Valdense, era o bispo de Pamiers que
1 3 1 3- 1 3 14 moderar neste aspecto os apetites dos padres de Foix: deveria ter sido queimado. Porque este bispo exige de nós os dlzimos
excitando a população, estes podem pôr em perigo a ordem p(&blica e a das camelages e nos obriga apagar grandes somas pelos nossos bens. . .
presença francesa ou aquilo que a representa (40). Mas estas reprimendas, Os (Uzimos exigidos pelo bispo talvez estejam de acordo com a lei, mas
vindas de Paris, mal se fazem ouvir; não têm grande poder contra a os habitantes do Sabarthés têm motivos para não os aceitar porque são
rapacidade de uma Igreja local, que a conjuntura encoraja. A impunidade contrários aos seus costumes (I, 209). A diatribe do bailio Austatz é
de dizimes desfrutada nas montanhas, mesmo parcial e relativa, não reveladora: às investidas abusivas do poder clerical que incarna o
podia continuar eternamente; o surto demográfico, de pastagens, imperialismo da sociedade englobante e dominante, cujo centro é, neste
50 ECOLOGIA DE M ONTA I LLOU : A CASA E O PASTOR SI
AMBIENTE E PODERES
caso, Pamiers, opõe-se a vontade indómita da autonomia montanhesa, (1") Acerca da história politica c circunstancial do condado de Foix, que cstâ fora do meu
hostil aos impostos não habituais. Os criadores de gado e os pastores 4mbito, ver os historiadores regionais do �cu lo XIX (como A. Garrigou): c tambbn a slntcsc
de Ocvic c Vaisscttc, 1 886, tlinto mais meritória quanto a sua Histoire tk IAnguedoc apenas
constituem um mundo à parte, que n ão se deixa levar. Em termos mais
dedicava uma atcnçilo marginal aos principados pin:nairos: no decurso dos anos que nos
gerais, a sua resistência insere-se num longo movimento anticlerical e interessam, os agentes do rei de França no 1.4ngucdoquc revelam-se de uma cxtraordindria
antidecimal do Languedoc pirenaico, mediterrânico e também cevenense. brutalidade cm relnçilo ao rondado vizinho de Foix, que 6 por eles reduzido à categoria de
satélite, pelo menos defacto. O Condado s6 recupei'IU'â a sua liberdade de acçllo num perlodo
posterior do século XI V.
Na interminável h istória das heresias occitanas, dos séculos XII a XV I I,
o con flito dos dfzimos é subjacente, recorrente; corre como um tio (lO) Simples ou duplas, as cruzes de pano IUI\arelo, cosidas às vestes, constituem uma
vermelho através das contestações camponesas; const itui, do Catarismo pena infamantc (miiS menos grave do que a pris4o), infligida pelos inquisidores nos hcrc!ticos.
ao Calvinismo, um denominador comum, mais evidente do que a (2 1) Ver o notâvel tc.'ttO referente ao imposto da décima de 1 3 1 1 , cm que estes três

reproduzido por J. Duvcrnoy, cm Le Registre... , vol. III, p. 337-34 1 , nota S09; ver
«panidOSII estilo representados enquanto tais. Este texto, cxtraldo do Canulârio de Foix, l!
continu idade dogmática que nem sempre se verifica: esta só faz se sent ir,

(21) Rétifde la Bretonnc, cd. 1970.


de facto, em alguns pontos, apaixonantes mas isolados. especialmente as pAginas 337, 338 c 339 desta nota. Sobre Sabarth�. ver lnfta, cap. XVIII.
Em todo o caso, a opressão externa sobre os cam poneses de
• ( 2') JII, S7 (Bédcilhac); c Duvcrnoy, l 96 l , p. I 8 (Luzcnac).

Montaillou, da região de Aillon e do Sabarthês, não provém tanto da (:') III, 276·277; c III, 347. Acrescentemos que cm Tignac, Simon Darrn, castelilo de
Ax-lcs·Thcrmes, mandou afogar o seu bailio local (I, 28 I).
(u) A nobreza desta época é antes de mais uma «sociedade de herdeiros11 (0. Duby, in
soc iedade laica nem da nobreza, pouco pesada e aberta. Esta opressão
result � essenc ialmente das a mb ições de uma Igreja totalitária,
Anna/es, 1 972, P. 8 1 1 e 822: J. Heers, Le Clan. . . , p. 23).
exterm madora das d iferenças de opin ilio, que pretende impor à montanha (l") lnjra. cap. IX.
e à comun idade um pesado d íz imo, qual novo champart. A alienação (l') Ver as saudações do pastor Pierre M:aury a um senhor impononte (rctribuldas)...
(l") Arquivo departamental de Ari�ge, J 79; ver também Barri�o�Fiavy, 1889.
consequente é simu ltaneamente espiritua l e temporal.
(19) Estas florestas, baldios c charnecas que, mais tarde, foram parar às môlos do n:i c das
É esta mesma comun idade, este núcleo sólido, sobre o qual o peso comunas, correspondc:r;lo, segundo o cadastro de 1927. conscrvad9 na nctunl cllmara mu­
nicipal de Montaillou, aos 225 hectares llorcstais dos Serviços de Aguas c Florestas; c aos
430 hcctan:s da (<COmUIUJ)I. A antiga reserva senhorial cm c:unpos c prados (excluindo llon:stas,
em questão exerce a sua força até a um ponto de fractura, que gostaria,
agora, de o lhar de perto: Montaillou, na sua especificidade. que jA descontei em cima), rorrcspondcr.\ à propriedade de 37 hectares de M. Gély, cuja
família, em 1 827, ter.\ herdado, por comprae sucessilo, a dita resem�. Emcomparaçllo, noiCmOS
que os domlnios dos poucos habitantes de Montaillou (uma dezena) classiliQI!as, cm 1 82?.
de <<proprictários>l (residentes c geralmente exploradores das próprias tCTTas), entre os quaiS
figuram os Clerguc c os Baille, vão de 8 a 12 hectares cada um; os dos «agricultoresll, 2
h�o'1:tarcs; c os dos ((trabolhadorcs braçais11, um hectare ou menos. Em 1827, estes <(agricultoi'CSII
(1) Dufnu de Mnluqucr, 1 898.
constituem a maioria da populaçllo, enquanto os <drabnlhndores braçais11 silo uma importante
(:) A regido de Aillon rompac-sc das aldeias rontlgUDS de Montaillou
(1) M. Chevalier, La vie humaltre. .. , p. 104, tábua VI.
(10) Bonnassie, Thêse.
c de Pradcs. minoria.

(') 11, 3 1 1 . (11) Refcr�ncias à nota 28 (supra)


(') Scbn: a ausência dos alqueives nos Pirenéus Cldallcs, muito
próximos' ver BoMassic' (11) Infelizmente, é-me imposslvcl, por falta de documentos, estabch:ccr o valor dos
(6) Osperfoitw ou homens-bons formavam a �litc dos puros nas comunidades albigcnscs.
t/Wse, l. ll, p. 289.
(") E o que se depreende, por infetencia de história comparada. dos lnlbnlhos de Bonnassic,
impostos pagos pela populaçao de Montaillou, entre 1300 c 1 320.

(f) Compurarrom a aldcia provençal (análoga. neste ponto) estudada


ou mesmo de scrvidilo, cm diversas localidades do rondado de Foix: a este respeito, ver os
,. porN. Coulct, cm op. c/1. Porouuo llldo, porvolta de 1300.1320, h hinda algunsrcstosdc dcpe�neia pcssoal,
�Juáes l'lll'ale.r, Julho de 1 973.

r> 'kr ln.fra. llll bibliografia, o artigo de J. Duvcmoy sobre a alimcntaçlo no alto condado
<-> Sobre Fabrissc Rivcs, ver I, 325-326. trabalhos de F�lix Pasquicr, infra. na bibliografia. Os Piren�us ronstitulrarn uma das zonas

f/lstolre Social... )
elàssicas da scrvidilo medieval, cm perfodos anteriores à q,oca a que nos referimos (Fossier,
de folx,llll c!poca a que nos rercrimos.
(10) Vc� as densidades espectaculares dctcctadiiS,
• (l� I, 209 (nota 8 1 , redigida por J. Duvcmoy).
neste perfodo, por M. Orarnain (1972; (14) Duby, 1958.
c tese, •ntdua).
(11) Supra. (U) J. Poux, 1 90 1 , p. 6.
(1 1) Duvcmoy, arJ. cit. (l") III, 337 (textos reproduzidos na nota S09, e cxtraldos do Cartulalre de Folx).
(IJ) I I I, 67 (sobre os inrortúnios c os casamentos pobres de Raymondc, mulher de Oclot,
cf. lfl/ra: o seu nome romum à relativamente rica (ccasa dos Bclot» nilo nos deve induzir
('') A. Snrramon, Le.r Parolsses du Dlocise de Commlnges em 1 78d, recolha de
cm documentos inéditos sobre a história cron6mica da Rcvoluçilo Francesa, Paris, B. N., 1968,

'
erro).
ic, t IV. p. 688 c paulm. (19) Direito feudal sobre as searas. (N. do T.)
1 p. 1 8 cpaulm.
(14)Sobre csta dualidade do ca.rte/8o c do bai/lo, vcr Bonnass
( " ) BollllSSic, l i V, p. 688-690.
(oiii) Sobre o papel moderador de Filipe o Belo, cm 1313·1314, crn relaçllo aos dlzimos
_<'") Acerca do papel fimdarncntal dajustiça, no sistema de poderes
dos Pircnáls do Leste, do Sabarth� ver Joseph Poux, ((Lcttrcs dc Philippe lc Bcl pourle Sabanh� .. 1 3 13-131411,
partt�ularmcntc para as questões de terra e de gado, ver Bonassic,
( 1) BollllSS IC, I. V, p. 822.
. op. cil., L 11, p. 235-237. Boullelln historlque et philologique, 1 900.
(11) 11, 380. Ver também 11, 276 (dlzimos, etc.): III, 160 (praça da aldeia).
Capitulo D

A CASA-FAMÍLIA: DOMUS, OSTAL

Amigáveis ou opressivos, a nobreza, os senhores, a Igreja, vivem,


regra geral, fora de Montaillou, fora da aldeia. Se exceptuarmos o caso
de Béarrice de Planissoles, e do vice-castelão, pouco conhecido, que
substituiu o defunto marido daquela no comando da fortaleza local,
todos os habitantes da aldeia, incluindo o p�roco, pertencem às famflias
camponesas da terra. Mesmo os poucos artesãos da paróquia mantêm
ligações com a agricultura através de actividades e parentescos. Quanto
à distinção agricultores-jornaleiros que, nos campos do norte de França,
col)fere à aldeia a sua segmentação característica, assume aqui formas
particulares (1). No pequeno grupo pirenaico estudado neste livro, a
proeminência de duas ou três famllias - primeiro os Clergue, depois os
Belot, os Benet... - não impede que vários factores diminuam um pouco
a desigualdade de condições; os rapazes pobres que, na bacia parisiense,
ingressariam em massa num proletariado ou semi-proletariado de
jornaleiros são, pelo contrário, em Montaillou, expulsos, por assim dizer,
da estrutura social da aldeia; tomam-se pastores na vizinha montanha
ou na Catalunha longlnqua.
Deste modo, e para uma melhor compreensilo, 6 preferfvel
abandonarmos provisoriamente os problemas de estratificaçilo social
no interior da aldeia e passarmos imediatamente para o mais simples,
para a célula base que, reproduzida em algumas dezenas de exemplares,
constitui Montaillou. Esta célula de base é a famllia camponesa,
incarnada tanto quarito possfvel na perenidade de uma casa e na vida
quotidiana de um grupo doméstico de pessoas residentes sob o mesmo
tectó; a esta unidade dá-se o nome de ostat, na Ungua da regilo (1); e
hospicium e mais frequentemente domus, no latim dos arquivos da
Inquisição. Note-se que os tennos ostal, domus, hospicium significam

"' --o----
l.
54 ECOLOGIA DE MONTAI LLOU : A CASA E O PASTOR A CASA-FAMI LIA: DOMUS, OSTAL 55

indiferente e inextricavelmente famflia e casa. O termo famllia não é pretende dizer que ele, simples camponês de Montaillou, reside no
praticamente utilizado nos nossos registos; nunca vem aos lábios dos paJâcio episcopal de Pamiers..., afirma muito simplesmente que é parente
montailunescs para quem famflia de carne c casa de madeira, de pedra mais ou menos afastado do prelado Foumier.
ou de barro amassado com palha, são a mesma coisa. A distinç!o entre
estes dois conceitos, familiar e domiciliário, t!o natural nos nossos tem­

pos, ainda nlo está presente na mental idade dos personagens
interrogados por Foumier (').
Numerosos textos falam claramente do papel capital - afectivo, Nada mostra mais a importância da domus, como conceito
económico, de linhagem - que desempenha a casa-famllia nos cuidados unificador da vida social, familiar e cultural da aldeia, do que o papel
do habitante médio da região de Aillon. Não há nada mais esclarecedor de pedra angular que ela desempenha na alta Ariêge e em Montaillou,
a este respeito do que o diálogo que, por ocasião de um episódio in­ na construção ou reconstrução do catarismo. Certo dia, conta Mengarde
quisitorial, opõe Gauzia Clergue a Pierre Azéma, de Montaillou: Gauzia, Buscailh, de Prades d' Aillon (aldeia adjacente a Montaillou), encontrei
esposa de Bemnrd Clergue segundo, tenciona confessar ao bispo Foumier o meu cunhado Guillaume Buscai/h quando ia a caminho da Igreja da
certos factos heréticos de que foi testemunha ou mesmo cúmplice e). . . minha paróquia (I, 499).
Pierre Azéma, em resposta, previne-a: Sua grande tola. Se confessas - Onde vais? - perguntou-me Guillaume.
essas coisas, perrlerás todos os teus bens e apagarás o lume da tua - Vou à igreja.
casa. Os teus filhos, cheios de ressentimento, irão pedir esmola. .. Não - Ah. bem! - retorquiu Guillaume. - Que excelente «eclesiástica»
acordes a lebre que dorme porque ela te ferirá as mãos com os seus me saíste! Mais valia que re:asses a Deus na tua casa do que ir à
pés. Yai antes por um caminho afastado para não a acordar. E Pierre Igreja rerar-lhe.
Azéma conclui, continuando a dirigir-se a Gauzia, cuja domus é, no Respondi-lhe que a igreja era um lugar mais conveniente para
entanto, de importância menor (mais uma razilo . ): vejo um melhor
. . rezar a Deus do que a minha casa.
meio para manteros a tua casa de pé. Porque eu, enquanto viver o Então, ele murmurou-me simplesmente:
senhor bispo (Jacques Foumier), serei sempre da sua casa; e poderei - Não és da fé.
fa:er muito bem,· e poderei dar a minhafilha por esposa a um dos teus Assim, para Guillaume Buscailh, simpatizante fervoroso das ideias
filhos: assim, a nossa casa será bem sucedida, isto é, ficará intacta e câtaras (nlo quis ele um dia que a sua cunhada, então lactante, fizesse
mais abastada (I, 367). Se no entanto confessares que te imiscuíste na a greve do seio, a fim de deixar morrer em endura um bebé herético!)
heresia, tu, a tua casa e os teusfilhos serão dest111ldos. (I, 4 9 9 ), a fé albigense é algo que se vive e se pratica cm casa, por
Estas palavras, acrescenta Gauzia Clergue, foram trocadas sem oposiç!o ao dogma romano, que prefere o santuârio paroquial. Esta
testemunhas entre mim e Pierre Azéma. E por Isso renunciei a confessar 1
.
ideia, de resto, é geral: quando a heresia se instala numa domus, declara
.
o que quer que fosse (à Inquisição). um camponês a Jacques Foumier, é como a lepra; incrusta-se lá du­
Está tudo dito neste texto, que coloca como valor supremo a rante quatro gerações ou para sempre (11, 1 1 0). Aude Fauré, de Merviel,
prosperidade das casas, eventualmente aliadas pelo casamento. Os seus neurótica, perde a fé na Eucaristia; confessa as suas dúvidas à sua vizinha
interesses exigem, evidentemente, que seja observada a lei do silêncio. e parente, Ermengarde Garaudy. Esta, horrorizada, previne a incrédula
Conceito essencial, a domus ou grupo doméstico de co-residentes, dama das consequências nefastas que tal cepticismo pode ter para a
organiza, na sua dependência, diversos elementos, anexos ou centrais: casa que ela habita e para a aldeia onde reside: Traidora, diz a Oaraudy
a l�ira da cozinha, .os bens e as terras, os filhos, as alianças"conjugais. a Aude, esta aldeia e este osta/ (casa)foram sempre puros de todo o mal
Reahdade frágil, é ameaçada e, por vezes, destrulda em cada geração e de toda a heresia. Yeja lá se não nos traz o mal de outros lado3 nem
�r epidemias, mortes, segundos casamentos que desfazem e refazem faz com que a nossa aldeia seja amaldiçoada (11, 87). Na opinillo da
casais; e também pelos Inquisidores. No horizonte do montailunes médio, Garaudy, as · vias da heresia são, portanto, perfeitamente claras: basta o
a domus constitui, contudo, o ideal de referência. erro de uma única casa para que toda a aldeia se perca. Inversamente, a
Ainda no mesmo texto, formulado por Pierre Azéma, nota-se um violência inquisitorial é considerada, acima de tudo, pelas suas vitimas
sentido derivado, um pouco abusivo, que toma, por vezes, o termo domus: como uma agressão contra a domus herética e só depois como um ataque
o de parentela. Quando Azéma declara: sou da casa do bispo, não à liberdade ou à vida deste ou daquele individuo: esses dois traidores

I __ ,
56 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR A CASA·FAMfLIA: DOMUS, OSTAL S1

trowceram a desgraça à nossa casa e ao meu irmão pároco, declara Benet, seu filho Raymond, e Guillemette a mulher de Guillaume.
Bernard Clergue, invocando a detenc;lo' do reitor de Montaillou (Chamamos a atenc;llo para a precedência regular dos homens, velhos
denunciado por dois espiões (II, 28 1 ). ou novos, em relac;llo às mulheres, mesmo velhas, nestas enumerac;aes
Do mesmo modo, a conversão à heresia faz·se por blocos sucessivos, de Alazars Azéma). De modo semelhante, Raymonde Lizier, que virâ a
casa após casa e nilo necessariamente individuo após individuo. Pierre ser mais tarde Raymonde Belot em virtude do segundo casamento, e
Authié, missionário câtaro do Sabarthês, é da opinilo que a converslo que acaban\ na prisllo por heresia, tinha uma grande familiaridade com
à sua fé se opera muito mais de casa a casa, de famflia a famflia, do que Guillemette Belot e com Raymond, Bernard e Amaud Belot; frequentava
de consciência individual a consciência individual: Deus quis que eu a casa e falava muito em segredo com eles (6); em relação a Montaillou
viesse a vossa casa, diz ele à famflia reunida de Raymond Pierre, para e a outras aldeias, poderiamos citar indefmidamente casos que sublinham
salvar as almas da gente desta casa (II, 406). Para Pierre Authié, as a sociabilidade especifica, conquistadora e secreta, que se estabelecia
casas silo pacotes de almas que aderem em bloco a este ou àquele credo. entre as casas (').
Pierre Maury, de Montaillou, cita, com efeito, o caso de uma domus de A rede, ao mesmo tempo comunicante e hermética, existente entre
Arques que se converteu cccomo um só homem))! creio, narra ele, que as casas, serve de suporte loglstico à clandestinidade cátara. Mas este
Gaillarde, irmã de Guil/aume Escaunier e mulher de Michel Leth, e papel deriva de uma sociabilidade das domus, que é anterior e especifica:
Esclarmonde, a outra irmã de Guillaume, que poderia ter então doze utiliza-a sem a ter criado. Uma prova: certas domus, precisamente por
anos, eram crentes dos heréticos; e, na minha opinião, o mesmo se não serem câtaras, servem de exutório estruturado à sociabilidade de
poderia dizer de Arnaud, irmão de Guillaume. Esta gente tinha·se algumas personagens que são boas católicas (mais ou menos vacilantes),
convertido em bloco, toda a casa ao mesmo tempo, juntamente com que encontramos em Montaillou; Jean Pellissier, pastor da aldeia, afirma
Gaillarde, a méJe de Guil/aume Escaunier, e Marquise, sua irmã (III, que, pelo menos na sua juventude, não era herético. Frequentava,
1 43). Em Montaillou, a acc;ilo m issionária dos Authié apoia·se na acrescenta ele, em apoio dos seus protestos de ortodoxia, quatro casas
estrutura celular de certas casas crentes: No tempo em que eu habitava de Montaillou, das quais nenhuma era herética (I II, 75).
em Montaillou e em Prades d'Aillon ('), relata Béatrice de Planissoles, Em Montaillou, o organismo propriamente colectivo, por outras
corria entre os crentes da heresia o boato de que os heréticos (e palavras, a assembleia de chefes de famllia, não é talvez inexistente;
nomeadamente os Authié) frequentavam as casas dos Irmãos Raymond mas esta assembleia, se é que realmente funciona, parece dotada de
e Bernard Belot, que nesta época moravam juntos: assim como a casa uma vida algo fantasmagórica: é, sem dúvida, paralisada pela divisão
de A lazafs Rives, irmO do herético Prades Tavernier,· e a casa de interna da aldeia em facções religiosas e em clãs antagonistas. Quanto
Guillaume Benet, irmão de Arnaud Benet, de Ax (por sua vez sogro de às confrarias, às associações penitentes e outros ingredientes da sociedade
Guillaume Authié): as pessoas destas casas eram todas de Montaillou. occitinica, estio ausentes senllo da época em geral, pelo menos das
Béatrice era demasiado esperta para nllo compreender um dos segredos nossas colectividades montanhesas em particular (1).
do êxito da heresia na sua aldeia: bairrismo, fraternalismo, cccaseirismO)) Nestas condic;aes, Montaillou faz-me sobretudo lembrar um
ou domiciliaçlo favorecem o progresso de ideias perigosas; estas passam, arquipélago de domus, em que cada uma delas é marcada de forma
em saltos de pulga. de domus para domus, e de grupo doméstico para positiva ou negativa em relac;io às correntes heterodoxas.
grupo doméstico. Uma vez implantada a heresia, a domus actua como Os camponeses e os pastores de Montaillou têm consciência desta
uma �ie de conservatório: molécula fechada sobre si própria, limita, situaçlo: para Guillaume Belot, agricultor, e para os irmllos Pierre e
tanto quanto posslvel, os contactos comprometedores com as casas nlo Guillaume Maury, pastores, que, durante um passeio, fazem um
heréticas. O segredo da nova fé é preservado ao mâximo, quando é recenseamento informal da sua aldeia, esta divide-se em certo nl1mero
segredado por baixo da porta da domus (11, lO); ou, o que é preferivel, de casas crentes e nlo crentes - a cccrenc;m> em questlo é, bem entendido,
quando fica encerrado na atmosfera pesada e húmida das quatro paredes a heres ia. Entre aquelas que os dois G u i l laume c l assi ficam
do ostal: mesmo em Montaillou, Alazals Azéma só lata da heresia na expressamente de cccrenteS)), figuram a casa Maurs, a casa Ouilhabert,
sua própria casa, com o seu filho Raymond (1, 3 1 9). Mas também fala a casa Benet, a casa de Bernard Rives, a de Raymond Rives, as casas
dela. com os membros da casa Belot (neste caso, com os três irmlos Maury, Ferrier, Bayle, Marlty, Fauré, Belot ('). As onze casas cccrenteS))
Belot, Raymond, Bernard e Guillaume, e a sua mlle Guillemette) e correspondem frequentemente a famnias nucleares, cada uma delas
também com os membros da casa Benet, aliada da anterior: Guillaume formada por um casal de pais e os seus filhos; uma das onze domus
58 ECOLOGIA DE MONTAlLLOU: A CASA E O PASTOR A CASA·FAMiLlA: DOMUS, OSTAL 59

heréticas afasta-se, no entanto, deste «modelo» nuclear, visto que em 1300- 1 3 1 O, Montaillou contava provavelmente mais de duzentos
«contém» uma velha mlle (Guillemette ccBellote,) e os seus quatro filhos habitantes, ou seja, fazendo um cálculo por baixo, cerca de quarenta
crescidos, entlo ainda solteiros. A populaçlo das onze casas crentes casas. Mas, destas quarenta casas, a maior parte, num momento ou
totaliza, segundo aquela enumeraçllo, 36 pessoas heréticas; este total noutro, tinha tido fraquezas a favor da heresia; no total, segundo duas
deve, no entanto, ser considerado incompleto: em relação a muitas das testemunhas bem infonnadas, Guillaume Malhei e Pons Rives, havia
famflias enumeradas no quadro desta ou daquela casa crente, Belot e os somente em Montail/ou duas casas que não estavam contaminadas pela
�aury mencionam simplesmente os nomes do marido e da mulher; heresia (I, 292). Quanto a Guillaume Aulhié, missionário cátaro, também
omitem os nomes dos filhos, que silo provavelmente considerados pelas ele louco por Montaillou, pelo pároco Clergue e pela casa dos Clergue
nossas três testemunhas uma quantidade desprezfvel (10). (Não, diz ele, não lenho nada a temer da parte do abade Clergue nem
Que a domus nem sempre é co-extensiva às opiniões dos seus da casa dos CIergue. Ah/ se todos os párocos do mundofossem como o
elementos, prova-o o resto da enumeraçllo. Maury e os dois Belot de Montaillou... ), confinna, de uma outra maneira, a ideia fonnulada
mencionam, com efeito, em Montalllou, um certo número de heréticos por Malhei e por Rives a respeito de «duas ítnicas casas anticátaras)),
«vagabundos>>; estes «isolados, nllo estilo ligados a uma domus que se pois exclama: em Montaillou só há dois homens de que nos devemos
possa considerar «crente». Os heréticos <<sem casa>> (III, 1 62) silo em acautelar (U),
número de nove: entre eles, há dois casais (os Vital e os Fort) que, Duas casas anticátaras, dizem Rives e Mathei; isto é, duas
provavelmente, vivem em casas pertencentes a outrém; duas mulheres personagens anticátaras, uma por casa, como declara por seu lado
casadas (que têm talvez opiniões divergentes das do marido); por último, Guillaume Authié.
uma bastarda e dois filhos de famllia mencionados isoladamente. Todos os nossos montanheses sublinham em coro de modo
Outras casas de Montaillou nilo silo consideradas <<crentes>>; mas convincente a força mfstico-religiosa da domus como provável matriz
praticam, em bloco, uma atitude de neutralidade indulgente em relação das opiniões do individuo. E, reciproçamente: como um porco atacado
ao catarismo: é o que se passa, por exemplo, com a domus dos Lizier pela peste contamina toda a pocilga, o individuo vitima de desvio
(III, 1 62; 490), de onde nilo hâ nada a temer, dizem Maury e os Belot, dogmático em breve contamina toda a sua domus. As nossas testemunhas
desde o assassinato de Amaud Lizier (este, sim, anticátaro): de facto, poderiam apropriar·se da fórmula latina, que alinhavei para a
depois do desaparecimento de Amaud, a casa Lizier.entra na esfera de circunstAncia: cujus domus, ejus re/lgio. Diz-me qual é a tua casa,
influência dos Clergue e mesmo no serralho pessoal do abade: Grazide diNe-ei qual é a tua fé. Há excepções, decerto; mas estas confinnam a
Lizier toma-se amante de Pierre Clergue. regularidade do fenómeno. Será preciso que intervenham as grandes
Em Montalllou, o catolicismo avança também por «casas»: Jean ondas de represslo Inquisitorial, a partir de 1 308, para que se rompa
Pellissier, criado agrlcola e pastor, menciona a existência de cinco casas finalmente a rede unida das domus cátaras de Montaillou e a aldeia se
nllo heréticas na aldeia. Ou seja, a própria casa Pellissier, provavelmente transfonne num trágico vespeiro, em que cada um contribui para a perda
«nilo nuclear» visto conter cinco innlos dos quais pelo menos alguns do vizinho, pensando, assim, erradamente, evitar a sua.
chegaram à idade adulta (11); a casa de Na Carminagua, literalmente •
<<Madame>> Carminagua, mlle dos irmllos Azéma (estes de facto
manifestaram por vezes mais do que reticências em relaçlo à Mas, seja qual for o desenlace dramático, é um facto indiscutfvel
heresia (1 2); e ainda a casa de Julien Pelllssier, a de Pierre Ferrier que, para as pessoas de Montaillou, a casa (o ostal) oçupa uma posiçllo
(que mais tarde, segundo Maury e Belot, oscila para as simpatias estratégica na posse dos bens deste mundo. Ouçamos a este propósito
albigenses); e, finalmente, a de uma mulher chamada Na Longua, mlle Jacques Authié quando adapta para os pastores de Arques e de
de Gauzia Clergue, ligada aos CIergue pelo casamento, mas nlo herética Montaillou, que o escutam, o mito cátaro da queda: Satã entrou no
como eles. Reino do Pai e disse aos Espíritos deste reino que ele, o diabo, possula
I
Portanto, no total, e a nfvel de casas recenseadas, onze domus um paraúo multo melhor. .. Espírito.!, conduzir-vos-e/ ao meu\ mundo,
heréticas, cinco domus católicas, algumas casas que mudam de campo acrucenlou Satil, e dar-vos-ei bois, vacas, riqueza.J, uma esposa por
(por exemplo, a dos Clergue) e também algumas casas mistas, neutras, companheira, tereis os vossos próprios ostals, e tereis filhos... e
divididas contra elas próprias ou contendo pessoas de coraç!ofendido, regozijar-vos-eis mais com um filho, ·quando tiverdes um, do que com
versáteis e prontas a trair (11, 223). A lista é incompleta, uma vez que, todo o repouso de que gozais aqui no Paralso (III, 130; II, 25). Assim,
60 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR A CASA-FAMfLIA: DOMUS, OSTAL 61

na hierarquia dos bens essenciais, o ostal vem depois da vaca e da mãos e dos pés, ele não leva consigo o astro ou boa sorte da casa
mulher, mas antes do filho. (1, 3 1 3-3 14). Uma outra mulher de Montaillou, Fabrisse Rives, dá, a
De um ponto de vista etnográfico, o significado juridico-mágico respeito do mesmo episódio, alguns esclarecimentos suplementares: Por
do bem como da casa andorrina, é maior do que a
ostal ariegense, ocasião do falecimento de Pons Clergue, pai do abade, vieram muitas
soma de indivíduos perecfveis que compõem a famUia correspondente. pessoas da região de Aillon a casa deste. O cadáverfoi posto naquela
A casa pirenaica é uma entidade moral, de bens indivisfveis (H), e «casa dentro da casa», que se chama a «foganha» (a cozinha),· ainda
detentora de um certo número de direitos. Estes traduzem-se na posse não estava envolto num sudário: o abade mandou, então, sair toda a
de uma terra, nos direitos de uso das florestas e das pastagens comuns gente de casa, à excepção de Alazat"s Azéma e de Brune Pourcel, filha
da montanha, as solanes ou soulanes da paróquia. O ostal ou casa é, bastarda de Prades Tavernier,· estas mulheres ficaram sozinhas com o
portanto, uma entidade: «continua a pessoa do seu dono d�funto)); é morto e o pároco,· as mulheres e o pároco tiraram as madeixas de
considerada a «verdadeira senhora de todos os bens que constituem o cabelos e os fragmentos de unhas do cadáver... Mais tarde correu o
património» {u). Tanto mais que, na nossa aldeia, os camponeses, boato de que o pároco fez o mesmo ao cadáver da mãe (I, 328). Estes
pequenos ou grandes, silo possuidores sólidos; pode mesmo dizer-se relatos sublinham as precauções tomadas pelos herdeiros para que o
que são proprietários defacto dos seus campos e dos seus prados; os morto não leve com ele a sorte da domus: expulsam-se os numerosos
quais, excluldas as florestas e as pastagens, constituem a maior parte visitantes que vieram expressar os seus pêsames; fecha-se a porta;
da terra cultivada (16). trancam-se na cozinha, que é a casa dentro da casa: nllo lavam o corpo,
receando que se percam, devido à água da lavagem, a lgumas
• particularidades preciosas adstritas à pele e à sua suj idade. Estas
precauções são comparáveis às mencionadas por Pierre Bourdieu, a
Em Montaillou, a casa tem o seu astro, a sua boa sorte, «na qual propósito da casa cabila: af também se tomam todas as medidas posslveis
os defuntos ainda participam>> (1, 3 1 3-3 1 4). Salvaguarda-se este astro e para.�ue o morto, no momento da lavagem e, depois, à partida para o
esta sorte conservando em casa fragmentos de unhas e de cabelos do túmulo, não leve com ele a baraka da casa ( 1 ').
defunto chefe de fam llia: na medida em que continuam a crescer depois Sem irmos tão longe, e para nos mantermos dentro da zona
da morte, os cabelos e as unhas silo portadores de uma energia vital ccibérica» das civilizações pirenaicas, podemos verificar que também os
especialmente intensa. Graças à prática deste rito, a casa c<imbui-se de Bascos estabelecem um elo directo e permanente entre os mortos e a
certas qual idades mágicas da pessoa>> e é capaz de as transm itir, casa: «em vez de pertencerem aos seus descendentes, os mortos
posteriormente, a outras pessoas da l inhagem. Quando Pons Clergue, continuam a pertencer à casa e separam-se dos seus descendentes sempre
o pai do pároco de Montaillou, morreu, conta-nos Alazais Azéma que estes saem de casa», escreve Colas na sua obra La Tombe Bosque.
(I, 3 1 3-3 14), Mengarde Clergue, sua esposa, pediu-me a mim e a Brune Este autor indica igualmente que a casa conserva a posse ou propriedade
dos túmulos familiares no cemitério {11). Voltando aos habitantes de
Pourcel que cortássemos ao cadáver as madeixas de cabelo que tinha
à volta da testa, assim comofragmentos de todas as unhas das mãos e Montaillou, eles têm consciência da existência de um elo muito forte
dos pés; isto para que a sorte continuasse a proteger a casa do defonto: que subsiste entre o morto e a sua domus, sendo a palavra domus
fechámos, pois, a porta da casa dos Clergue onde jazia o· corpo do entendida aqui no duplo e indissolúvel sentido de domicilio e de famllia.
morto; cortámos-lhe os cabelos e as unhas; e demo-las a Guillemette, Alazais Fauré, de Montaillou, transportando um saco vazio à cabeça,
a criada da casa, que por sua vez, as"deu a Mengarde Clergue. &ta encontra-se, certo dia, perto do castelo, com Bernard Benet, que, tal
«dbcisão» dos cabelos e das unhas foi realizada depois de termos como ela, é montailunês (1, 404); Bernard quer denunciar ao inquisidor
deitado água sobre o rosto do morto (porque em Montaillou nllo se de Carcassonne a «heretizaçilo» a que (antes de morrer) fora outrora
lava todo o cadáver). submetido o defunto Guillaume Guilhabert, irmão de AlazaTs. Esta fica
Na origem destas práticas encontramos u m a camponesa de aterrada; afirma-se imediatamente disposta a tudo para proteger a
Montaillou, Brune Vital; foi ela que recomendou a Mengarde Clergue, memória do irmão; esta memória é, com efeito, ameaçada, do mesmo
viúva do notável Pons, que respeitasse este costume folclórico:
Ma­ modo que a sua domus, por efeito retroactivo: disse a Bernard Benet,
dame, d issera Brune a Mengarde, ouvi dizer que se retirarem a um conta AlazaTs, que lhe daria meia dúzia de carneiros, uma dúzia de
cadáver algumas madeixas de cabelos e fragmentos das unhas das carneiros, ou o que quer que ele quisesse, para evitar essa maldição,
A CASA-FAMfL IA: DOMUS, OSTAL 63
62 ECOLOG IA DE MONTA ILLOU: A CASA E O PASTOR

atingida por uma doença incurável, volta para morrer: Esclarmonde,


que acabaria por trazer dano e maldição ao meu falecido irmão e à
filha de Bernard Clergue (o filho de Amaud e de Gauzia Clergue) tinha­
sua domus.
-se casado com um homem de Comus (ll) ; atingida por uma doença
O uso de pedaços do corpo h u m ano, a fim de preservar
mortal, é trazida para a casa do pai, onde ficou três anos entrevada
simultaneamente a continuidade da l inhagem e a da casa, relaciona-se
antes de morrer.A hora da morte, o outro Bernard Clergue - o irmllo do
com outros ritos mágicos do mesmo tipo pertencentes ao folclore
pároco - levou àquela casa o herético que heretisou Esclarmonde
occitânico. Béatrice de Planissoles conservá o primeiro sangue mens­
(1, 4 1 6). A casa paterna ê, enfim, a célula eventualmente infectada
trual da tilha como filtro de amor destinado a enfeitiçar um futuro genro,
e os cordões umbilicais dos netos, como talism!ts para ganhar os seus

suspeita de ter inoculado a heresia à pobre rapariga que dela tinha safd
ao casar-se: a testemunha sabe dizer se o os tal paterno da mulher Fauré,
processos. Em ambos os casos, os fragmentos orgânicos sfto <lotados de
em Lafage, foi outrora desonrado pela heresia?, pergunta Jacques
fecundidade, tal como as unhas e os cabelos de Pons Clergue: destinam­
Foumier a um denunciador (ll) . Quanto ao ostal matemo, é de grande
-se à manutenção da prosperidade de linhagem (amor do genro pela
importânc ia na região basca; na montanha ariegense, devido a questões
fÜha) e da prosperidade proprietária (ganhar os processos). Numa época .
de tr:msmJssão de heranças, também pode vir a desempenhar um papel
ainda recente, as raparigas languedoquianas punham uma gota de sangue .l
considerável: é para recuperar o seu ostal matemo, confiscado pelas
ou uma apara de unha num bolo ou numa bebida, a fim de fazer com
autoridades de Foix devido às práticas heréticas da sua mãe, por elas
que um rapaz se apaixonasse por elas (1,.
mandada queimar, que Amaud Sicre inicia uma longa carreira de
A um n fvel mais geral, as unhas e os cabelos extrafdos do corpo de
denunciante (11, 2 1 ). O osta/ matemo cria, quando existe como tal,
um chefe de famllia de Montaillou mantêm com a domus em que são . .
estruturas matnarcats: o filho que o herda para ai residir tende a tomar
conservados uma relação análoga à que existe entre as rellquias de um
o nome da mãe ligado à casa em questão, e não o do pai (1�). E o genro
santo e o santuário que as contém: «onde está uma parcela do seu corpo,
que vem residir na casa da sua jovem mulher toma, muitas vezes, o
o santo está sempre presente» (1°). As teorias sobre o corpo incorruptrvel
nome da esposa, em vez de ser ela a adoptar o seu .
dos reis (-'), corpo esse ligado à continuidade da casa real, aplicam-se
igualmente ao cadáver do chefe de fam llia de Montaillou, sendo •
suficientes alguns fragmentos para assegurar a permanência carnal da
Quer tenha vindo da mãe ou - como era mais frequente - do pai, a
l inhagem e do fogo sagrado da domus: Pons Clergue 'morreu. Vivam os
casa de Montaillou, como toda a domus pirenaica que se preze, tem um
Clergue! As duas concepções, a real e a rural, a aristocrática e a plebeia,
chefe: cap de casa na zona andorrina, dominus domus no latim dos
devem ter germinado numa época por nós ignorada, num mesmo subsolo I

de mentalidade mágica. 4 escribas que se interessam pela alta Ariêge. O dominus domus tem
jurisdição sobre a mulher e sobre os filhos, mas também, eventualmente,
Última observação: segundo o testemunho de Fabrisse Rives, o
sobre a mãe. AlazaTs Azéma dá-nos um claro exemplo desse facto: o
pároco Pierre Clergue conservou as madeixas de cabelos e as aparas de
unhas do pai e, depois, da mãe. (O seu afecto por esta levá-lo-â a
meu filho Raymond, diz ela, levava antes vitualhas aos homens-bons
mandá-la enterrar sob o altar da Virgem, na igreja de Montaillou).
(aos perfeitos) num alforge ou num cabaz: e nunca me pedia autorização
para Isso, porque era ele o chefe da minha casa (1') •

• Nno é por isso que Alazars se considera maltratada pelo filho: ela
também simpatiza com os perfeitos. Mas, por vezes, acontece, tanto
A preocupação da domus não é, portanto, «patrilocab) ou <<matrilo­
entre o carnpesinato como entre a nobreza, que o chefe de casa tiraniza
cal», mas ambivalente. Na verdade, os cidadãos de Montaillou e de
a mile: Estou arruinada, vendi os meus bens e empenhei quem dependia
outros lugares falam com emoção do ostal paterno ou da domus
paterna. Seria melhor, declara o abade Clergue (pensando expressamente
de mim, vivo humilde e miseravelmente na casa do meufilho; ni!o ouso
na casa do seu pai), o irmão casar com p irmã do que receber uma
fazer um movimento, diz Stéphanie de Chateauverdun, atirando-se ao
esposa estranha e, do mesmo modo, que à irmã casasse com o irmão, pescoço do seu velho amigo, o herético Raymond Pierre, criador de

em vez de sair da casa paterna, levando como dote uma grande quantia gado (11. 4 1 7-4 18).
de dinheiro, a fim de se casar com um marido estranho: devido a este A opressilo do chefe da domus pode exercer-se, ao mesmo tempo,
sobre a esposa e sobre o velho pai: Pons Rives, de Montaillou, é um
sistema a casa paterna é praticamente destrufa (1, 255). É também à
chefe de osta/ autoritário (I, 339-34 1); expulsou a mulher, Fabrisse,
casa paterna que uma rapariga de Montaillou, casada fora e depois
A CASA-FAMfLIA: DOMUS, OSTAL 6S
64 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR
doisfilhos e um destesfilhos era simpatizante da heresia. Opai deixou­
-lhe uma grande parte dos bens e deu-o em casamento à filha de
pois, como ele diz, foi o diabo que a trouxe: desde que ela está naquela
Bertrand M�ier porque a mãe dela era herética (11, 427). Os cos­
casa, é impossível receber perfeitos! Quanto a Bernard Rives, o velho
pai de Pons, vive encolhido na casa em que sempre residiu mas que é
tumes ariegenses e andorrinos baseiam-se na liberdade testamentária
agora governada pelo filho: um dia, a filha, Guillemette, mulher do
do chefe de famllia: preservam, nas melhores condiçOes possfveis, a
domus do desmembramento. Mas nem por isso deixam de ter de se
outro Pierre Clergue (ntlo confundir com o pároco) veio pedir-lhe uma
mula emprestada para ir buscar trigo (de · que precisava) a Tarascon.
con�ntar com o Irritante problema dos filhos supranumerários, nao
Bernard Rives só lhe pôde dizer: não posso fazer nada sem o
destmad� a suceder ao chefe da famflia no quadro da domus e que
consentimento do meufilho. Volta amanhã que ele empresta-te a mula.
levam samplesmente, ao sair da casa fam i l iar um dote ou uma
«legitima>). O dote é eminentemente pessoaJ: é pro;eniente da domus da
Quanto a AlazaYs Rives, mulher de Bernard e mãe de Pons, vive
igualmente aterrorizada com a chefia do filho, verdadeiro tirano
rapariga, que o recebe ao casar-se, mas nao desaparece, de modo nenhum
na massa de bens indivisos do novo lar, que se destina a subvencionar:
doméstico (16), mas resigna-se.
A subm issão ao chefe da casa - desde que este tenha uma
E� caso de falecimen�o anterior do marido, pennanece propriedade da
personalidade suficientemente forte, atraente, e diabólica - pode tomar­
vauva e não dos herdcaros de um ou do outro. Opároco Pierre Clergue,
-se culto da personalidade, admiração e adoração, Na prisão, Bernard . de Planissoles depois da sua primeira viuvez, enviou-me
conta Béatrice
Clerguc toma conhecimento da morte do irmão, o pároco, que se tinha
por um mensageiro uma acta relativa ao meu primeiro casamento, acta
convertido (desde antes do falecimento do velho Pons Clergue) no
que continha a consignação do meu dote: tinha outrora depositado
verdadeiro chefe da casa fraterna. Bernard, aniquilado, sucumbe, diante
este documento na casa do pároco. Pouco me importava que ele mo
de quatro testemunhas, gemendo: morreu o meu Deus. Morreu o meu
restituísse ou nao, uma vez que já tinha deixado (subentendido:
governador. Os traidores Pierre A:éma c Picrro de Gaillac mataram o
trazendo o meu dote comigo) os herdeiros do meu primeiro marido!
me11 DeliS (11, 285). Pierre Clergue tinha, portanto, sido divinizado em
(1,233).
vida pelo irmão.
O problema do dote é capital numa sociedade pobre; a relativa
Observemos , no en tanto, que, apesar desta incontestáve l
estagnação económica faz de cada casamento de rapariga um drama
prepotência mascul ina, as donas de casa de Montaillou, desde que o
para a domus: esta é ameaçada por uma perda de substância, por causa
seu ostal tenha alguma importância, têm direito no titulo de «Madame»
da POrçao de haveres que a noiva leva na trouxa. Pierre Clergue passa
(domina): AlazaTs Azéma, simples camponesa, é tratada por madame _ em branco, ele que deseja a intocabilidade do ostal, ao ponto de
noates
' por uma vendedora de queijos; é certo que a comerciante espera, dessa
chegar, como vimos, a justificar o incesto: Olha, declara o padre à sua
forma, vender-lhe a sua mercadoria: Madame, quer comprar-me
bela amante, num momento de abandono afectivo e de fennentaçao
queijos? Mengarde Clergue, mulher dum camponês rico e mesmo
ideológica, nós somos quatro irmãos (I, 225). (Eu, sou padre, e não
notável, também é designada por madame pelas mulherzinhas da aldeia
quero esposa.) Se os meus Irmãos Guil/aume e Bernard se tivessem
(1, 3 1 2-3 14).
casado com as nossas Irmãs Esclarmonde e Guillemene, a nossa casa
Dirigentes peredveis de uma entidade tanto quanto posslvel imortal,
não teria ficado arruinada, por causa do capital (averium) que elas
os chefes de famllia sucessivos de uma casa determinada sllo investidos
·-, levaram como dote: o nosso ostal teria ficado absolutamente
do direito de nomear o seu sucessor, desfavorecendo os outros :�
Intacto e apenas ter/amos de trazer uma mulher para o nosso irmão
descendentes ou legítimos interessados. As tradições occitano-romanas
Bernard, (21), ter/amos bastantes mulheres (sic) e o nosso ostal seria
do preclpuo e da faculdade de favorecer parecem desempenhar aqui um
agora mais rico.
..
certo papel. Neste campo, o poder dos pais de famllia ou chefes de casa
arlegenses é incontestável; opõe-se às tradições igualitárias dos cos­
.
Esta estranha apologia do incestojustifica igualmente, por extensão,
o celibato (nao casto) dos eclesiásticos, assi m como o concubinato
frequente em Montail lou. Tem origem no medo que toda a domu;
tumes normandos e angevinos, conhecidas pela sua insistência feroz na
divisão equitativa do património entre todos os irmãos ou mesmo entre • I
conscaente e organizada sente perante a ideia de perder as suas
«aderências separáveis»: entre as quais figuram nlo apenas os dotes
irmilos e irmãs (caso de Anjou) (l'). Na alta Ariêge é provável que
prevaleçam as supremas vontades do pai, emissário das decisões da
levados pelas raparigas mas também a parte fraterna oufratrisia devida
linhagem e da injustiça sucessória: Havia em Tarascon dois irmãos
ao filho que, por ntlo ser o mais velho ou por qualquer outro motivo,
chamados Anima ou Niaux e um deles era amigo dos heréticos. Teve
66 ECOLOGIA DE MONTA I LLOU: A CASA E O PASTOR A CASA-FAM I LIA: DOMUS, OSTA L 67

não vem a ser chefe de casa; este encontra-se portanto deserdado do da região de Aillon, despedaça, destrói, queima ou arrasa as casas dos
essencial, excepto destafratrisia que lhe é concedida peta domus ou heréticos. Basta que uma comadre de llngua demasiado comprida tenha
.
pelo chefe de domus a Utulo de compensação: perdi a parte fraterna avistado, pela frincha de uma porta, Pierre Authié a heretizar um doente
(fratrisia) que tinha em Montaillou e tive medo {por causa da Inquisição) em determinada casa, para que a domus paterna ou materna, em Prades
d� voltar à aldeia para a recuperar, declara Pierre Maury, na Catalunha, d' Aillon, tique sujeita a ser demolida pela lnquisiç!o (I, 278). Por isso
numa conversa com Arnaud Sicre (II, 30). mesmo, em Montaillou, reina, tanto quanto possfvel, a lei do silêncio:
Gcorges Platon, que realizou um estudo folclórico-jurfdico do direito se não queres que te derrubem as paredes da casa, fecha a boca, dizem
andorrino, nos séculos XVl l l e X IX, descreveu algumas das em unlssono Raymond Roques e a velha Guillemette «Belote)) (1, 3 1 0)
consequências, na época moderna, desta primazia da domus ou às mulheres demasiado faladoras. Ostal protegido é nilo dar com a lfngua
casa (:19): segundo este estudo, na sucessão ab lntestat, a consangui­ nos dentes. A casa de um herético convicto pode nlo ser reduzida a
nidade é mais importante do que a afinidade (podemos relacionar isto cinzas mas é confiscada pelas autoridades do condado de Foix, de ora
com o facto de Béatrice de Planissoles não ter tido nenhuma parte na em diante ao serviço de todas as vontades da lnquisiçllo (u).
herança do marido: segundo o costume parisiense e sobretudo valão,
ela teria beneficiado da comunidade de bens) (3°). O jurista andorrino •
menciona também, entre os efeitos da pregnância da domus, a autoridade
despótica do chefe de famflia sobre os fragmentos de sucessão, Vamos agora descrever essa casa, frágil e friável, apesar da sua
« legitimas», que deveriam caber aos filhos excluldos da sucessão perenidade conceptual. A parte central, essencial, da domus, é a cozinha
domiciliária e o reconhecimento oficial da majestade da primogenitura, oufoganha, de traves carregadas de presuntos fora do alcance dos dentes
para impedir o esboroamento das terras afectas ao ostal: os segundos e dos gatos; os vizinhos, incluindo uma boa mulher como A Jazais Azéma,
terceiros filhos são reduzidos ao desempenho dos papéis sucessórias de muito simplória apesar do seu titulo de madame, vem aqui pedir lume
menor importância. emprestado, esse lume precioso que, à noite, se cobre para evitar um
Ignoramos se estas disposições andorrinas de época tardia se acidente que reduziria a cinzas o ostal (1, 307; 3 1 7). O fogo é vigiado
aplicavam à casa ariegense do tempo de Jacques Foumier. A primazia pela dona de casa ou focaria, a «mulher do lan>, como se denominam
da domus era, em todo o caso, altamente caracterlstica da liberdade as concubinas do padre na diocese de Palhars (H) . Contudo, o homem
occitânica e montanhesa. Durante o século X l ll, ao longo do qual não atribui às mulheres toda a responsabilidade por cuidar do lume: é
subsistem ainda nas regiões de llngua d'oc alguns vestlgios de servidão, ele que se encarrega de partir as cavacas, frangere teza. A lareira é
em Mas d' Azil - como certamente em muitas outras <<quintas)) -, os rodeada por um trem de cozinha à base de panelas de barro, sertlls,
colonos tomavam-se automaticamente livres, a partir do momento em caldeirões, cântaros, escudelas por vezes decoradas. Nunca há
que construlssem uma casa própria (11). demasiados utensllios, especialmente de metal, mas essa falta remedeia­
Por muito importante que seja na cultura da alta Ariêge, a domus se facilmente pelo método, clâssico em Montaillou, de ir pedir
distingue-se mais pelos investimentos reais ou afectivos que provoca, emprestado à vizinha (l'). Uma mesa, bancos para a refeição e para o
do que pelo seu valor monetário: uma casa de aldeia ou de pequeno serilo, silo colocados perto da lareira: em redor destes móveis organiza­
burgo vale 40 libras tornesas ('2), ou seja, apenas duas vezes o preço de se frequentemente, mas nem sempre, uma segregaçllo bastante rigorosa
uma blblia completa, duas vezes mais do que o sah\rio de uma equipa dos sexos e das idades, como a que existia, ainda hã bem pouco tempo,
de assassinos a soldo e quase vinte vezes menos do que a soma despendida no baixo Languedoc e na Córsega. O pastor Jean Maury, filho de um
por Bernard Clergue para libertar o seu irmlo abade das garras da
camponês de Montaillou, descreve a refeição da noite nafoganha pa­
Inquisição. Ao nfvel dos sentimentos dos homens da linhagem a que terna, refeição decerto um tanto distinta, pois estava convidado o perfeito
ela pertence, a casa tem uma grande importância mas, para a venda, o
seu valor nlo atinge proporções impressionantes. Os dotes � as partes
Philippe d'Alayrac: Era Inverno. Montaillou estava coberta por uma
fraternais que dela se desligam, por muito fracas que sejam e apesar das
espessa camada de neve. O meu pai, Raymond Maury. o meu irmão
Guillaume, o herético Philippe d'Aiayrac e Guillaume Belot (convidado
compensações dotais recebidas em sentido inverso, ameaçam sempre como vizinho) jantaram à mesa. Eu, os meus outros irmãos, a minha
empobrecê-la ou mesmo arruinâ-la completamente. Por outro lado, a mãe e as minhas irmãs, comemos junto do lume (11, 47 1). A cozinha,
repressão, que compreendeu perfeitamente as estruturas ebtográticas como dizem os nossos textos, é a casa dentro da casa, a domus dentro
68 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR
A CASA-FAMfLIA: DOMUS, OSTAL 69
do ostal, onde se come, onde se morre, onde se heretiza, onde se dizem
os segredos da fé e os mexericos da aldeia (I, 268-269). Nesse tempo, velha Ouillemette «Belote», mlle e viúva, em casa dos Belot. Do mesmo
m odo, o abade Clergue tem um quarto à parte na sua grande casa fami­
�onta Raymonde Arsen, criada da casa Belot, Bernard Clergue (o bailio,
annllo do pároco) vinha a casa de Raymond Belot e falava com a sua liar, suficientemente vasta para conter também uma antecâmara no
sogra Guillemelle Belot na casa chamada cozinha (in domo voc:ata la primeiro andar. Estes quartos têm janelas, sem vidros, mas fechadas
foganha) e mandavam-me sair por uns momentos (para ni!o ouvir a por taipais de madeira. A noite, alguém que queira chamar discretamente
conversa) ( l , 3 72).
·
a atençllo dos residentes atira um seixo a essas portadas. Personagens
A casa mais Intima, chamadafoganha, insere-se, portanto, na casa mais importantes e mais intelectuais, como os notários e os médicos -
mais vasta, chamada ostal, como uma boneca russa dentro de outra. que n!lo há em Montaillou - possuem, além disso, em casa um escritório
Pode donnir-se na cozinha. Mas é mais frequente donnir-se em (scrlptorium), onde donnem.
várias camas, nos quartos que rodeiam a cozinha ou que se situam no De um modo geral, possuir um so/ier (primeiro andar por cima da
primeiro andar (so/ier). A casa de Montaillou será espaçosa, ali, na cozinha, que comunica com o rés-do-chão por uma escada) é um sinal
amplidão das montanhas? Parece ser, em todo o caso, um pouco mais exterior de riqueza: a construção de um solier, como aquele que o
vasta do que a sua homóloga borgonhesa, tão exfgua, estudada por Pesez sapateiro Arnaud Vital edifica em sua casa (11), é indicadora de uma
e Piponnier ('6). promoção social; ou, pelo menos, significa a vontade - talvez falaciosa
Seria, ao que parece, bastante fácil reconstituir por meio de neste caso - de ascensão e de ostentação sociais. Tanto quanto sabemos,
escavaçOes ad hoc o plano das casas medievais de Montaillou, cujos só os Clergue, os Vital (de resto, não tão ricoscomo isso) e os Belot
restos se adivinham ainda ao pé do castelo. Até lá. alguns textos elucidar­ possuem, em Montaillou, uma casa com solier. Afoganha, coração da
·nos-ão sobre a disposição dos compartimentos. Em Prades d' Aillon domus, é em alvenaria; o solier e as dependências situadas no rés-do­
(aldeia absolutamente idêntica a Montaillou, devido à contiguidade das -chão são de uma construção mais tosca. de madeira e adobe.
terras e à semelhança de géneros de vida), a casa de Pierre Michel é Cozinha, solier, quartos, cave, mas ainda nl'lo é tudo. Os agricultores
descrita por sua filha Raymonde: na cave da nossa casa, havia duas de Montaillou reservam uma parte da casa aos animais. Há dezoito
camas, uma na qual dormiam o meu pai e a minha mãe e a outra para anos, conta Alazars Azéma, ao sair da minha casa com os porcos,
algum herético que estivesse de passagem. A cave pegava com a encontrei na praça do castelo Raymond Belot apoiado a um cajado e
co:inha, com a qual comunicava por uma porta. No andar por cima da que me disse:
cave não dormia ninguém. Eu e os metiS irmãos dormíamos num quarto - Vem a minha casa.
do outro lado da cozinha (que ficava desse modo entre o quarto dos Respondi-lhe:
filhos c a cave cm que donniam os pais). A cave dava, por uma porta, - Não, deixei a porta aberta.
para a eira (l'1). De acordo com este texto, os homens e os porcos vivem na mesma
Foi numa «cave>> deste género (sotulum) que continha ao mesmo casa; e talvez pela mesma porta saem os homens e o esterco. Da mesma
tempo tonéis e camas, que Béatrice de Planissoles, que ent!lo residia em maneira, Pons Rives, filho de Bernard Rives, guarda a mula ou o burro
casa do seu segundo marido, Othon de Lagleize, fez amor pela última em sua casa. Guillemette Benet, ao cair da noite, fecha em sua casa os
vez com o abade Clergue de Montaillou, que ali viera sob uma bois quando regressam da lavoura. Guillaume Bélibaste tenciona criar
identidade falsa, enquanto a criada, Sybille Teisseire, também de um cordeiro em sua casa, in domo sua. Todas as manh!ls, Jean Pelissier,
Montaillou, conterrânea e c6mplice da patroa, montava guarda à porta pequeno pastor de Montaillou, tira as suas ovelhas de casa. Alguns
da cave, onde Béatrlce, entre duas barricas, se unia carnalmente ao homens, mesmo doentes, donnem com os animais (talvez para beneficiar
padre. do calor animal, emitido por estes «radiadores naturaiS>)?). Guillaume
Muitos textos conrarmam, assim, a existência de uma cave ao lado Belot, conta Bernard Benet. levou o herético Guillaume Authlé ao
da qozinha; e também de quartos que podem ser fechados à chave lugar onde estava deitado, doente, o meu pai, puillaume Benet: isto­
PI'!JVidos de camas e de bancos; cada um deles destina-se a uma o� passava-se na parte da nossa casa onde dormia o gado ('').
várias pessoas, que donnlam na mesma cama ou em camas separadas. A casa possui também diversas dependências, começando por um
Na casa dos Maury, simples camponeses-tecelões-pastores' o innao mais pátio adjacente em que se pode apanhar sol na companhia das galinhas.
velho, Guillaume, tem um quarto só para ele; o mesmo se pode dizer da Este pátio é, geralmente, decorado por um monte de esterco para o qual
trepa alguma criada curiosa que pode espiar assim, ao nlvel do solier, o
70 ECOLOGIA DE MONTAlLLOU: A CASA E O PASTOR A CASA-FAMILIA: DOMUS, OSTAL 71

que os patrões e os perfeitos dizem uns aos outros. O pátio prolonga-se de Guillemette Maurs, casados. Ignora-se o salário que recebia. Habita
p�la eira. As quintas maiores - como as dos Marty em Junac, e algumas também nesta domus dos Maurs - além de Jean Pellissier, seu irmilo
outras - têm pátio e jardim, boa/ (estábulo de bois), pombal, pocilga Bernard, que não é pastor mas moço de lavoura (labarator v�/
próximo do jardim, celeiros ou bordes, para a palha, do outro lado do arator) (4l). Encontramos ainda em casa de Bernard Maurs os seus do1s
pátio ou junto de uma fonte; curral ou corta/ de carneiros contigue à filhos e sua mãe, Guillemette Maurs, a velha viúva (III, 1 6 1 ). No total
domus ou afastado. Mas estas grandes quintas nllo silo tfpicas de estamos, pois, em presença de uma famllia nilo estritamente «nuclean•:
Montaillou. Do lado da rua, há muitas vezes, tal como hoje, um banco compreende um casal, dois filhos, uma ascendente e dois criados.
ou uma mesa de pedra ao ar livre, ao lado da porta da casa, para as A estrutura mista de domesticidade, de famllia e de vizinhos, nllo fica
pessoas se aquecerem ao sol, ou para falarem com os vizinhos ('10). Os por aqui: pegada à casa de Bernard Maurs, encontra-se a de seu irmilo
problemas relacionados com a inviolabilidade das casas nem sempre Pierre Maurs, também ela catarizante e em guerra declarada com o
estilo satisfatoriamente resolvidos: quando só há rés-do-chão (o que é reitor Clergue (à mulher de Pierre, Mengarde Maurs, será, um dia,
muitas vezes o caso), pode-se soerguer com a cabeça o rebordo do telhado cortada a lingua por ter dito mal do seu pároco). Estas duas casas Maurs,
de ripas, e olhar indiscretamente para o que se passa na cozinha ao mesmo tempo fraternais e vizinhas, formam uma unidade de convlvio
(11, 366). (O telhado-terraço é chato, ou quase; desse modo, pode servir e de sociabilidade: na época em que residia em casa de Bernard Ma11rs,
para depósito de feixes de trigo ou de tribuna para as comadres diz o pastor-criado Jean Pelissier,frequentava bastante a casa de Pie"e
discursarem: somente a partir do séc. XVI adquirirá, nos Pirenéus Maurs (lll, 76).
catalães, a sua inflexão actual e•). Para entrar em casa basta, por vezes, Além do casal, dos filhos, dos outros descendentes, ascendentes
afastar uma prancha ou uma ripa. Os tabiques silo tão tinos que se ouve ou colaterais, e dos criados do sexo masculino, a casa pode também
tudo de um compartimento para o outro, incluindo as conversas heréticas albergar uma criada ou várias; algumas dessas criadas são muito
de uma dama com o seu amante (I, 277). Qualquer buraco permite a simplesmente fi l h as naturais, como as que estão regu larmente
passagem entre duas casas conllguas de Montaillou. Oui/leme/te Benet empregadas na domus Clergue: é o caso de Brune Pourcel, bastarda, foi
d(!Ve saber muitas coisas sobre heréticos, revela Raymonde Testaniêre, gerada por Prades Tavemier, tecelão herético, que depois se tomou
num momento de humor denunciante, pois no tempo em que as pessoas perfeito (que não se importava de, de vez em quando, se deixar adorar
de Montaillouforam levadas na nuga pela Inquisição de Carcassonne, pela filha, segundo o rito câtaro). Depois do seu tempo de serviço na
havia um buraco entre a casa de Bernard Rives (onde os heréticos casa dos Clergue, de que refere alguns picantes pormenores à Inquisição,
tinham o seu oratório) e a casa de Gui/laume Benet. Por esse buraco, Brune Pourcel casa-se, depois enviuva; ex-criada pobre, habita entilo
os ditos heréticos passavam de uma casa para a outra. Deste ponto de no seu muito indigente ostal; passa o tempo a mendigar, a pedinchar, a
vista Montaillou é uma verdadeira termiteira: fora aberta outra passagem roubar ou a pedir emprestado feno, lenha, râbanos e a peneira da farinha.
directa, que permitia que os perfeitos passassem, sem ser vistos, da casa Brune Pourcel está crivada de superstições: em casa dos C lergue, tirava
de Bernard Rives, jâ mencionada, para a de Raymond Belot (41). os cabelos e as unhas dos cadâveres dos patrões; tem medo das corujas
e das aves nocturnas, que silo diabos que vêm pelo telhado ou por cima
• da casa para levar a alma de Na Roqua (« Madame>> Roques)
recentemente falecida. (Mas é justo reconhecer que estas supers­
Para além das aparências materiais, nem sempre lisonjeadoras, é tições não caracterizam apenas a condição de criada-bastarda de
o conteúdo de homens ou o conteúdo de almas do ostal que me interessa Brune; ela professa-as em comum com muitos outros habitantes da
aqui fundamentalmente: a demografia da domus ultrapassa, com aldeia {44).
frequência, e de diversas formas, o quadro estrito da « fam Uia» Mais uma criada, igualmente marcada por uma origem ilegftima:
propriamente dita, isto é, o casal parental e os filhos. Este facto Mengarde. É y lha natural de Bernard Clergue. No domicilio do pai,
deve-se, em primeiro lugar, à presença de criados no lar: Jean Pelissier, onde reside, está encarregada da cozedura do pio; lava no ribeiro as
pastor, originário de Montaillou, fez diversos estágios, em casa deste e camisas de linho dos perfeitos, de um linho mais tino do que o usado
daquele, fora da sua aldeia, para se formar ou para se confirmar na sua pelos simples camponeses de Montaillou (1, 4 16-41 7). Casar-se-â mais
protissllo. Depois volta à sua terra mas, em vez de residir na sua casa tarde com um agricultor.
natal, habita durante três anos, a titulo de pastor, na casa de Bernard e Conhecemos melhor as criadas {nilo bastardas) que trabalham na

1..
72 ECOLOGIA DE MONTA ILLOU: A CASA E O PASTOR A CASA-FAMfLIA: DOMUS, OSTAL 73

ca,sa dos Belot do que as da domus Clergue (4'): um bom exemplo é Em casa dos Belot, contrata-se, pois, uma criada (Raymonde Arsen)
Raymonde Arsen, que, em 1 324, será condenada às cruzes duplas para compensar a salda de uma irmã (Raymonde Belot): as funções
amarelas, devido às suas relações heréticas. Originária de Prades desta irmã, na domus fraterna, deviam, antes dessa partida, assemelhar­
d' Aillon, a pequena Raymonde vem de um ostal pobre, mas não -se bastante às de uma criada para todo o serviço. Digamos que o contrato
miserável; é irmil de Amaud Vital, sapateiro remendão de Montaillou, de Raymonde Arsen se situa num ponto especial do ciclo familiar (safda
que é também guarda comunal das colheitas (guarda campestre). Na de uma irmil); enquanto o contrato de um moço de lavoura e de um
sua primeira juventude, cerca de 1 306, foi como criada para casa de pastor (Jean Pelissier) na casa dos Maurs se inseria num outro ponto
Bonet de !a Coste em Pamiers (l, 379 ss). Em casa deste senhor, encontra caracterlstico do ciclo familiar (um momento em que os filhos de um
um dia Raymond Belot (de Montaillou), de que é prima direita (l, 458) casal de jovens agricultores, que reside com a mãe do marido, silo ainda
e que veio ao mercado comprar um carregamento de trigo. Raymond demasiado novos para servir de mão de obra na exploração).
sugere, então, a Raymonde que venha para casa dele trabalhar como A proposta formulada por Raymond Belot a Raymonde Arsen, no
criada. A casa de Belot, considerada muito rica (l, 389) compreende o domicilio de Bonet de la Coste, em Pamiers, situa-se, portanto, na
próprio Raymond (l, 3 1 7), seu irmão Guillaume, a irmã Raymonde e o intersecção de diversas estratégias: estratégias de famrlia, de aliança,
outro irmão Bernard, que está prestes a casar com Guillemette, Benet de negócio. A esta proposta, a pequena criada Raymonde Arsen re­
de nascimento (esta Guillemette é a filha de Guillaume Benet, cuja casa sponde de uma maneira evasiva: De momento, não posso aceitar essa
fica a alguns metros da dos Belot - uma vez mais, os laços de vizinhança, oferta, diz ela a Raymond, porque tenho contrato com o meu patrão
de aliança, de parentesco e de domesticidade se reforçam mutuamente). Bonat atê ao S.João (24 de Junho) e ainda estamos na Páscoa. ,· por
..
· '

No lar dos Belot vive igualmente a mãe de Raymond, chamada altura do S. João decidirei se vou ou não vou para sua casa
Guil lemette, viúva. Haverá, portanto, naquela casa, e no total, um (I, 370).
casal, os filhos, os irmãos e a irmã adultos e solteiros do marido, a Este pequeno diálogo, de época pascal, ilustra a modernidade de
velha mãe viúva e6) e uma criada. E ainda mais alguns, de que falarei um vinculo contratual na alta Ariege: nesta região, a servidão é nula
a seguir. ou, de qualquer modo, insignificante, e a dependência senhorial pouco
Raymonde Arsen explica a Jacques Foumier por que motivo os penosa. No fim de Junho, Raymonde Arsen decide-se: despede-se do
Belot a contrataram para criada: Raymond e os irmãos, diz ela, queriam patrão Bonet; vai buscar sua filha (natural), que tem o nome próprio de
dar em casamento sua irmã Raymonde a Bernard Clergue, irmão do Alazais, que tinha posto numa ama em Saint-Victor. Depois, trouxa ao
abide (l, 370). Aliar os irmãos Belot aos irmãos Clergue, graças ao ombro ou à cabeça e bebé nos braços, sobe para as montanhas que
dom de uma irmã atirada, como uma Oecha, de uns para os outros, é dominam Pamiers, na direcção do sul. Ao chegar a Prades Gunto de
ligar duas das mais influentes.fratrias de Montaillou, até então distintas. Montaillou), contia a filha a outra ama também chamada Alazais: esta
É completar o eixo Belot-Benet já m encionado (mas que só será irá tomar conta da criança para a aldeia de Aston (Ariege actual).
concretizado pelo casamento um pouco depois da contratação de Raymonde Arsen descerá, em seguida, até ao actual departamento de
Raymonde Arsen) por uma trfplice aliança, Benet-Belot-Ciergue. Aude, a fim de fazer a ceifa no vale de Arques (�. Depois, regressa a
É justapor aos velhos laços da amizade os laços mais fortes do casamento. Prades d' Aillon, terra situada a grande altitude, onde a colheita do ce­
Mengarde Clergue (mãe de Bernard) e Guillemette Belot, mãe de real, por necessidade climática, é mais tardia. Raymonde Arsen viveu
Raymonde, jâ eram, com efeito, duas velhas amigas, muito antes de os assim, durante um curto Verão, fora de casa, uma vida de mãe solteira
filhos se casarem (1, 393). Enfim, uma vez mais, como no caso do itinerante, ceifeira e marginal; só abandonará essa existência errante
((binómio» Belot-Benet, as bodas procedem da vizinhança: a casa Belot para se fixar como criada na casa «de Raymond B elot e dos
só está separada da casa Clergue pela largura da rua da aldeia (1, 372; irmãos (4'))); casa donde Raymonde Belot acaba de sair, como previsto,
392). Apesar destas ptemissas favoráveis e desta combinação de antes das ceifas, para se casar com Bernard Clergue. 1
vizinhança, casamento, 'apadrinhamento e amizade, a tripla aliança dos Nesta famflia dos Belot, onde fica um ano (duração canónica do
Belot, dos Benet e dos Clergue (que era também uma quâdrupla aliança... contrato de emprego), é relegada para fora da «casa)) no sentido rigoroso
com a heresia, já que os Benet estavam ligados aos Authié) não da expressão: a sua «cama>>, que prepara à noite, é feita na palha do
conseguirá resistir às invectivas da Inquisição (4'). É indicadora, no pequeno celeiro ao fundo do pátio, e esse pequeno celeiro (borda)
entanto, de uma certa filosofia local do casamento. constitui o seu rústico quartinho. O trabalho diurno de Raymonde
74 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR A CASA-FAMÍ L IA: DOMUS, OSTAL 15

consiste, nomeadamente, em ocupar-se do pilo no fomo da casa e em afrieza compreenslvel, senão durável, entre Bernard Belot e Guillaume
proceder à lavagem da roupa. É verdade qu·e Guillemette «Belote)), a Authié.
velha mlle, se encarrega de uma parte destas lides caseiras; coze com as Raymonde Testaniêre, a Vuissane, não teve, por certo, muita sorte
suas próprias mt'los o pilo delicado para os perfeitos de passagem; fá-lo com o seu amante, hospedeiro e patrão, Bernard Belot. Deu-lhe filhos,
em honra de Guillaume Authié ( frequentador fiel da casa Belot), que matou-se literalmente a trabalhar para as pessoas da casa, na esperança
passa longas temporadas no solier desta dontus, vestido de azul e verde de ser desposada pelo chefe. Mas Bernard apenas se queria casar com
escuro (1, 458). uma herética da aldeia, como a menina Benet, em quem poderia confiar.
A presença de Guillaume Authié no ostal dos Belot merece da E Vuissane, infelizmente para ela, nilo tinha então tendências cátaras ...
nossa parte, por ocasião de um casamento, uma verdadeira «foto de Será necessário acrescentar que os Testaniêre são bastante mais pobres
fam l l ia)): Raymonde Arsen, n a qual idade de membro do grupo do que os Benet?
doméstico, é parte integrante. Esta reunião realiza-se quando do Além dos criados de ambos os sexos, podemos encontrar também
casamento de Bernard Belot e Guillemette Benet (1, 37 1 ) - casamento numa ou noutra casa {se posslvel rica) de Montaillou, um hóspede,
que, como v imos, acaba por cristalizar toda uma rede de relações geralmente não casado: é assim que a casa dos Belot, decididamente
anteriores já que Guillaume Benet, pai da noiva e vizinho de Belot, era, vasta e populosa, alberga, em dado momento, Amaud Vital: este remenda
há muito tempo, padrinho de Guillaume Belot, irmão do noivo (1, 389). calçado em Montaillou e é irmão da criada Raymonde Arsen (atrás
No momento do « instantâneo» da festa famil iar, organizada por ocasião mencionada). Herético e vestindo nessa ocasião uma «sobretúnicru> de
do casamento, Guillaume Authié desce do seu so/ier-poleiro para a cor azul, Arnaud costuma guiar os perfeitos na montanha (51). Ocupa
cozinha, onde todos estão reunidos. Os irmãos Belot estão sentados em casa dos Bclot, mediante o pagamento de uma renda ou a prestação
num banco. As mulheres da domus, segregadas, sentam-se noutro de alguns serviços, um quarto ou muito simplesmente uma cama que
banquinho mais baixo. Quanto à nossa Raymonde Arsen, mantém-se partilha com não se sabe quem. A sua oficina de sapateiro situa-se noutra
um pouco retirada, junto do lume, segurando nos braços o bebé da jovem casa da freguesia. Tal, como mu itos da sua profissão, Amaud é um Don
AlazaYs (AlazaYs é outra irmã de Raymond Belot, que tinha casndo fora Juan da aldeia. Foi amante de Alazars Fauré, que o amava e que ele
mas estava presente nesse dia para a cerimónia (I, 370-37 1). instruiu na fé dos heréticos; AlazaYs empreendeu de seguida a conversão
Passado algum tempo, Raymonde Arsen deixará'a casa dos Belot e do pai e do irmão. Na casa dos Belot onde, como vimos, estava
casar-se-á com Prades den Arsen (adoptando o apelido pelo qual a hospedado, Amaud Vital fez um dia a Vuissane Testaniere o «truque da
conhecemos): fechando o circulo e voltando, por meio desta união, à galinha»: deu-lhe uma galinha para ela matar (acto que, do ponto de
sua aldeia natal, Raymonde Arsen intalar-se-à em Prades d' Aillon, na vista cátaro-metempsicótico constitula um crime). Vuissane tentou torcer
casa de seu marido (1, 3 70-377). Convém notar que o facto de ter dado o pescoço ao animal mas não foi capaz de o matar. Tendo desse modo
à luz, numa fase anterior da sua vida, um bebé natural, de forma alguma firmado o seu prestigio, Amaud tentou violar Vuissane na própria casa
a impedirá de encontrar um cônjuge. dos Belot. Esta fez gorar facilmente a empresa, objectando-lhe o carácter
Embora Raymonde Arsen tenha partido, não ficamos livres de todo incestuoso da relação: Não /em vergonha? diz ela a Vital, com
das criadas da casa dos Belot: encontramos ai o rasto de uma outra arrogdncia. Esquece-se que sou amante do seu primo direito (e
criada, que desempenha igualmente as funções de concubina. Raymonde hospedeiro) Bernard Belot, de quem tenhofilhos (I, 457-458). Vencido
Testaniêre, conhecida por Yuissane, de Montaillou, ficou três anos, de por esta dialéctica, Amaud renunciou à sua tentativa de estupro.
1 304 a 1 307, n a casa dos Belot (1, 455-470). Amante do patrão, Continuou, no entanto, a viver sob o tecto de Belot; virá mesmo a casar­
Bernard Belot, teve dele pelo menos dois filhos, um dos quais chamado se com outra criada da casa, chamada Raymonde. Casamento infeliz.
Bernard; não parece que esta l igação ancilar, oficializada pela cc­ :�
Arnaud, na boa tradição de certos m aridos p i renaicos, serâ
residência, tenha chocado quem quer que fosse - mãe, irmão, irmã, ou
cunhada - na domus ou na aldeia; Bernard Belot, enquanto amante de :_� estranhamente taciturno para c �m a sua jovem esposa; sempre activo,
passará noites inteiras fora de C:asa em visitas a novas amantes, como

·..,

Vuissane, era, aliás, muito empreendedor: não tinha ele tentado violar -·.; Raymonde Rives e A lazaYs Gavela ...(u). Pelo menos, este casamento
.,

a esposa do seu concidadão Guillaume Authié? Dai o encarceramento marcará o fim da cc-residência de Amaud, enquanto pensionista ou
da indelicada personagem (1, 4 1 1 ), que só saiu da prisao depois de ter locatário dos Belot. Dois meses depois das bodas, o novo casal Vital
pago 20 libras de multa (lO), ao pessoal do conde de Foix; dai, sobretudo, deixará a casa dos Belot e irá fixar-se na sua própria domus que, de
A CASA-FAMILIA: DOMUS, OSTAL 77
76 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR
um estatuto de viúva-matriarca, respeitada; vive meio retirada (no
resto, seri próspera. Com efeito, uma das regras nllo escritas do ostal quarto que para isso lhe foi reservado), mas mantém um certo poder
de Montaillou é que pode conter todo o género de adultos. Porém, a sobre a famllia; um dos seus filhos crescidos acede ao posto de chefe
longo prazo, só ai vive geralmente um único casal de esposos (»). de ostal.
Com esta única restrição, o ostal dos Belot é a casa de toda a gente: Em seguida, a fam llia toma-se de novo «alargada» (modera­
criados, hóspedes e perfeitos vivem lado � lado com a fam llia; uns
. damente): um dos innãos Vidal, Bernard, casa-se; o novo casal
fornicam ou mesmo violam; outros heretizam à porfia, do cele1ro à co-residc durante algum tempo com os outros innllos e com a velha
cozinha, e da cave ao sótão. É uma domus rica e complexa. À semelhança mãe, sempre presente. Finalmente, a domus volta a ficar nuclear: a
de outras domus importantes de Montaillou, entre as quais a dos Maury,
velha Ouillemette morre; os irmãos Vida!, excepto Bernard, deixam
distingue-se por um sentido geral de hospitalidade que implica deveres definitivamente a casa familiar; procuram construir noutro lado o seu
nos dois sentidos. Proferir ameaç3S.sob o tecto de quem nos hospeda é próprio ostal ou, então, (especialmente por casamento) entram numa
considerado um comportamento grosseiro: Atreves-te a ameaçar-me outra casa; farão desse modo domus à parte; poderão ainda tomar-se
na minha própria casa?, exclama Guillemette Maury, dirigindo-se ao pastores ... ou cativos da Inquisição. Bernard Vida I, a mulher e os fi lhos,
seu jovem primo (de Montaillou) Jean Maury: hospedado por ela, este, que no conjunto, formam um núcleo, simples e completo, stlo, assim,
depois de algumas disputas, tinha ameaçado fazer com que fosse presa os únicos a pennanecer a bordo.
(11, 484-485). Guillemette, aliás, pro� urava vi�g�r-se desta falta de Como facilmente se compreende, os fenómenos de contratação e
.
cortesia envenenando o primo com sa1s de mercuno: tentativa gorada. despedimento, relativos aos criados e às criadas, coincidem com pontos
• especiais e com fases caracterlsticas do ciclo familiar. Estes <<pontos» e
estas <<fases» correspondem, por exemplo, à inflncia dos filhos, à sua
Os problem3S das dimensões da domus não se relacionam apenas
passagem a trabalhadores; à partida de uma filha para fonnar um lar
com a presença de criados, criadas, convidados ou pensionistas. Podem�s fora da domus, etc.
igualmente perguntar qual é a disposi ão predo inante. Famfha Em certos casos, extremamente minoritários, pode haver uma
� �
alargada ou fam llia nuclear (com um nucleo constltuldo pelo casal
famflia plenamente alargada. Esta é multigeracional: impl ica a
A_
geralmente com filhos pequenos)? s indi ações já apresen � das
� � co-residencia do pai e da mãe, com o casal constituldo pelo filho-sucessor
orientam a resposta: existem em Montaallou nucleos truncados (v1uv� e a esposa (em Montaitlou, somente a famllia Rives, que compreende
,que vivem sós ou com um filho), casais ccnucleares» co fi lhos, casaas
� duas gerações de esposos, quatro pessoas, corresponde a esta detiniçlio:
que têm a seu cargo vários filhos e um ascendente (avô vaúvo, ou o que uma briga interna virá a dar cabo desta quadriga e a nora acabará por
é mais frequente, avó viúva); fratrias, umas vezes acompanhadas por ser expulsa, por incompatibilidade de humor).
uma velha mie e outras por dois ascendentes, nas quais apenas um dos
Na segunda modalidade, a famflia p lenamente alargada é
irmllos co-residentes é casado (os outros innãos e innlls, mesmo adultos,
multifraternal: é uma «innandade». Conta, então, com dois innlos ou
permanecem solteiros durante o tempo, deste modo limitado, em que
um innílo e uma inna, com os seus respectivos cônjuges. Co-residem a
vivem em regime de co-residência ("')). Em todo o caso, o modelo
quatro, acompanhados pelos fi lhos (nenhum caso deste género é
puramente nuclear mantém-se mais ou menos maioritário; nllo
.
�� e conhecido em Montaillou propriamente dito; encontrei, no entanto,
está longe de haver, um monopólio local das «estruturas co-restdenclaiS>>. algumas verdadeiras «irmandades» fora da minha aldeia de referência,
Na verdade, a disposição em questão é cronológica ("). A mesma noutras localidades da alta Ariêge, na época a que nos reportamos).
famllia é sucessivamente alargada, depois nuclear, depois alargada, e
De um modo geral, estas formas supremas de <<alargamento»
assim sucessivamente: consideremos o caso imaginário de uma famllia familiar (multigeracionais ou multifratemais) slo conceptualmente
a que chamaremos Vida!: este exemplo é o mais próximo posslvel do posslveis, mas não muito frequentes. A mortalidade dizima demasiado
dos Clergue, Belot, Benet, Rives, e outll-S casas montailunesas nossas
cedo os adultos idosos (sobretudo os homens): estes nllo têm tempo de
conhecidas. À partida há um sistema nuêlear: os pais Vida! e os filhos
formar <<quadriga>> com o jovem casal, co-residente, constitufdo pelo
co-residem, como é natural; depois, com o falecimento do pai de famllia,
filho ou pela filha. Por outro lado, nem os costumes nem o sistema um
aparece um ccnúcleo truncado»; este transfonna-se rapidamente em
tanto exlguo da exploração agrícola pennitem facilmente as grandes
fratria por apagamento relativo do ascendente que sobrevive - por out':" innandades. Estas, na verdade, virJo um dia a ser numerosas. Mas
palavras, o pai Vida! morre: sua mulher G uillemette em breve adqutre
78 A CASA-FAM Í LIA: DOMUS, OSfAL 79
ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PA STOR
próximas ou longlnquas. Um dia, o pastor Pierre Maury, de Montaillou,
mais tarde, nos domfnios meridionais do século XV, aumentados pelo
rapta a sua irmã Guillemene com o consentimento desta porque o marido
despovoamento e também nos vastos arrendamentos comuns da Toscãnia
lhe bate desalmadamente e, o que é mais grave, nilo é herético (III, 149,
e do Bourbonnais, desde o inicio do Renascimento.
1 53). Depois de consumado o rapto, Pierre Maury pergunta-se
• imediatamente com angústia: E se alguns dos parentes do marido nos
seguissem para levar Guillemeue de volta, o que jarlamos ? (S7)
A domus, enfim, nllo se concebe sem os laços genealógicos: estes
Em resumo, a domus estâ no centro de uma encruzilhada de elos
ligam-na a outros domus parentes e vivas, através da consanguinidade
de importância variável: esses elos incluem a parentela mas também a
ou parentela. Prolongam-na também paro o passado, sob os auspicias
aliança, realizada entre duas domus, por intermédio de um casamento.
do gema ou da linhagem, isto é, da domus, considerada no pano de
Incluem ainda a amizade, nascida de inimizades comuns, materializada,
fundo de um século e no espaço de quatro gerações, no máximo.
eventualmente, na concessão de um estatuto de compadre ou de comadre.
A linhagem é tida, por vezes, como um dos valores essenciais das
Incluem ainda, last but not least, a vizinhança.
sociedades antigas. É-o de facto para a nobreza. Mas, no que respeita a
Montaillou, o sentido da continuidade de linhagem corresponde a um
valor local e rural, de segunda ou de terceira ordem; subordina-se ao •

valor essencial que é incarnado pela domus; esta define-se, no caso, e


Tudo isso traz consigo cortejos de solidariedade. A da vizinhança
em sentido restrito, como grupo doméstico e familiar de pessoas vivas,
pode contribuir, precisamente, paro a perda dum vizinho, contra o qual
que residem sob o mesmo tecto. Duma forma geral, na nossa paróquia
se coligaram todos os outros: quatro vizinhos meus, entre os quais uma
e em Ariege, a consciência do genus é bastante viva, e só isso: os
mulher e um padre, conluiaram-se contra mim para mefazer perder os
camponeses falam desta ou daquela pessoa que vem de uma raça de
padres, de uma raça de mentirosos, de uma raça ele heréticos, de meus bens e para me denunciar como herético à /nquislçao, declara
malvados ou de leprosos. (Emprego aqui o termo popular «raça de .. .n Arnnud de Sav ignan, estucador de Tarascon { I I I, 432). Mas a
solidariedade de fam llia, muitas vezes inseparavelmente ligada às
para traduzir gem1s de uma forma cómoda; seria mais correcto e
estruturas de vizinhança, parece-me assumir uma importância particu­
cientifico traduzir esta palavra latina por expressões como linhagem de
lar. Pesam ameaças de denúncia sobre os missionários câtaros Pierre e
padres, etc.). A lepra, transmitindo-se por contágio de pais paro filhos,
Guillaume Authié, que Pierre Casal acusa do roubo de uma vaca? Então'
constitui para os habitantes do condado de Foix, o exemplo, crêem eles,
todo o clll dos Belot c dos Benet, ligados entre si e aos Authié por
da continuidade genética ou da «linhagem)• por quatro gerações. (Na
casamento, se inflama, a ponto de ameaçar de morte os denunciadores
verdade e c ienti ficamente, trata-se de uma continuidade pseudo­
genética, uma vez que a lepra se transmite por infecção; mas os nossos e as denunciadoras passiveis, entre as quais figura AlazaTs Azéma, de
aldeões desconhecem este pormenor...) A consciência da continuidade Montaillou. Acautela-te. Se denuncias, morres, diz Guillaume Benet a
AlazaTs. Raymond Bclot é ainda mais categórico: Um destes dias, diz
de linhagem nilo é inexistente entre os mais humildes. O pastor Pierre
Maury, de Montaillou, dâ a entender implicitamente que uma linhagem ele à mesma mulher, serâs encontrada com a cabeça separada do
ou é toda boa ou toda mâ - ou toda câtara, ou toda denunciante;· mas o corpo (").
notãvel e perfe ito Raymond lssaura, de Larnat, responde-lhe Um exemplo tlpico destas solidariedades familiares é a vingança
filosoficamente, referindo-se ao genus Baille-Sicre, produtor de um de Guillaume Maurs, filho de uma domus de Montalllou, que os Clergue
arruinaram. Ouillaume Maurs, o pai e o irmilo foram presos pela
denunciante de alta categoria: em qualquer linhagem, há gente boa e
gente má. Inquisiçao em Agosto de 1 308, juntamente com «todo o Montaillou)).
De uma maneira geral, o genus (ou, como os nossos aldeões por Esta prisao resultou de denúncias de que o abade Clergue, alterando
vezes definem, a domus, tomada no «sentido amplo)) de continuidade absolutamente o seu comportamento e renegando as suas amizades
de linhagem) tem o nome de famnia, transmitido por linha paterna ou, citaras, se fez cúmplice. Guillaume é em segui<b\ libertado da prislo
na ausência desta. materna ('4). onde continuam os dois outros membros da sua famllia; perto de
Mais presente ou de maior peso do que o genus-linhagem é a paren­ Montaillou, encontra-se de chofre com o pároco e aproveita a ocasilo
tela ou consanguinidade, constitufda por primos e parentes de todo o para censurar veementemente a sua conduta (II, 1 7 1 ). Pierre Clergue,
género que habitam noutras domus, na própria aldeia, ou em localidades que compreende perfeitamente o valor da coesão doméstica, replica-lhe
80 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR A CASA-FAMILIA: DOMUS, OSTAL 81

no mesmo tom : farel com que todos os Maurs apodreçam na pris6o ele A vencletla Maurs é um caso extremo. Mas a solidariedade famil­
Carcassonne, tu, o teu pai, o teu irmão e todos os ela tua domus. iar também desempenha um papel em casos mais prosaicos: um parente
Pierre Clergue n!o se ficará pela ameaça: graças ao seu irmllo por aliança intercede junto das autoridades do condado de Foix e faz
bailio, mandará cortar a Ungua a Mengarde Maurs, mie de Ouillaume, com que redes de amigos actuem a favor de um dos seus parentes,
por « falso testemunhO)). Em companhia dos outros Cle � ue, acusado de estupro (I, 280): righl or wrong. my family. Pierre Maury,
transformados em beleguins, andará por montes e vales em perseguaçlo para comprar cem carneiros que não tenciona pagar imediatamente,
de Guillaume Maurs (II, 1 76; 1 78). Levará a cabo contra todo o ostal propõe oferecer o seu próprio irmão como cauçllo e como garantia
dos Maurs uma vencletta: esta 6 mais «domiciliária)) do que será mais (II, 1 85). E assim sucessivamente.
tarde a verdadeira vencletta corsa, que se mostrarA altamente A clomus, eventualmente assistida pela sua parentela, sabe reunir
<<consangulnea)). todas as suas forças paro combater uma pessoa, uma causa ou outra
Regressemos ao final do acima citado diâlogo, Maurs-Clergue; este clomus; mas pode conhecer igualmente conflitos internos e tensões
final apresenta-se, simetricamente, como uma dec:laraçlo de ventfetta, interiores. Estas sa:o especialmente graves quando a barreira da heresia
em represália, da parte de Guillaume Maurs. Hei-ele vingar-me, daz ele separa a mãe do filho ou a mãe da filha ... Arnaud Baille-Sicre, por
ao abade, tem cuiclaclo comigo e com todos os meus particlári�s. exemplo, nllo bendiz a memória da sua mãe Sybille: foi devido à heresia
Separaram-se com estas palavras; Guillaume irâ pedir ajuda à suafratrra, de Sybille Baille que o ostal matemo foi confiscado pela Inquisição.
aos amigos e aos aliados dos amigos. Quanto à irmã (herética) de Guillemette Maury, Emersende, mandaria
Em 1 309, Guillaume Maurs refugia-se, com efeito, em Ax-les- com gosto para o diabo a filha Jeanne Befayt, boa católica. Emersende
-Thermes. Seu irmão Raymond Maurs e Jean Benet, de uma outra clomus chega mesmo a juntar-se a uma conspiração nos termos da qual amigos
lesada pelos Clergue (embora aliada conjugalmente a aliados destes), dedicados matariam a sua filha Jeanne. atirando-a do alto da ponte
juntam-se a ele. Os três juram uns aos outros, sobre o pão e sobre o escarpada de Mala Molher (11, 64-65).
vinho, vingar-se: matarão o padre, porão os seus magros haveres em Estes dois casos de dissociação da clomus resultam da desintegração
comum para que nilo lhes faltem meios para levar. a cab? a tarefa familiar derivada do êxodo dos heréticos para a Catalunha. Na alta
(II, 1 7 1 ). Trata-se de um verdadeiro pacto de fraternadade (juramento Ariêge, antes da grand epartida para o sul, Jeanne Befayt portava-se
sobre o p!o e o vinho; comunhão de haveres). De 1309 a 13 1 7, os bem; praticava o catarismo juntamente com o pai e a mãe como filha
conjurados farlo por si próprios, ou através de sicários a soldo, virias obediente que era. Em Montailtou, a Inquisição pode conseguir, de
tentativas de assass inato de Pierre Clergue. Guillaume Maurs, pastor qualquer forma, erguer uma clomus contra outra clomus, ainda que sejam
proscrito, estâ tio desejoso de se vingar que os padres que o confessam aliadas por uma série de casamentos intercalares: Jacques Fournier
se recusam a dar-lhe a comunhão devido ao ódio que ele alimenta no consegue semear a discórdia e ntre os C lergue e os Benet.
seu coração contra Pierre Clergue (II, 1 73). Tem a vingança estampada A consanguinidade, porém, resiste mais do que a aliança: os poderes de
no rosto. Mesmo que dela se esquecesse, os seus amigos e camaradas Carcassonne e de Pamiers nllo conseguirão a cisão suprema, que voltaria
pastores encarregar-se-iam de lha lembrar. Um dia em que Guillaume os membros de uma mesma clomus uns contra os outros, numa luta
discute com Pierre Maury, este, que não tem papas na Ungua, lembra­ fratricida. Os meios rurais da regiilo de Ail lon são familiarmente
lhe a sua vocaç!o especifica de vingador: combate contra o padre ele demasiado integrados para que tal tentativa possa ter êxito.
Montai/lou e nélo contra nós, diz Pierre a Guillaume (11, 178), que ele O desmembramento da clomus montaitunesa não passa de uma hipótese
te dará alho e agraço (por outras palavras. na nossa linguagem, âgua de escola, inveroslmit, que Pierre Clergue se diverte simplesmente a
pela barba). desenvolver para prazer e edificação da sua amante: no começo elo
Só a falta de entusiasmo de um dos cúmplices (Pierre Maurs) e a mundo, diz o abade numa das suas conversas ao canto do lume com
falta de boas oportunidades condenarão ao malogro a última tentat va ! Béatrice de Planissoles, os irmllos conheciam carnalmente as irmlls,
de assassinato de Pierre Clergue. I niciativas n!o faltaram: por ocasaão mas quando muitos irmllos tinham uma ou cluas irmlls bonitas, cada
desta última tentativa, Guillaume Maurs tinha recrutado dois assassinos irmOo queria ti-la ou tê-las. Dai aclvinham muitos crimes. Por Isso,
profissionais catalães, que mandara vir expressamente de Gerona, conclui sentenciosamente o Jean-Jacques Rousseau de Montaillou, dando
mediante a soma de SOO soldos, tudo incluldo, em caso de êxito a sua versão pessoal do contrato primitivo, foi preciso proibir o acto
(11, 190)... .sexual entre irmOo e Irmã ('9). Pierre Clergue pode efectivamente dormir
82 ECOLOGIA DE MONTA I LLOU : A CASA E O PASTOR A CASA-FAM ILIA: DOMUS, OSTAL 83

ameaçadas ou c tcrrcal, ver Boutruche, Selgneurle etflodaflt4, vol . l , p. 8 1 ; e sobretudo BonnBSsie, 1. li , p.


sem cuidados: as domus de Monta illou podem ser 294: este autor (lbld, 1. 11, p. 304) insiste no carActer de perenidade do matU• (casa çom
destruldas pelas actividades do bispo Foumier, mas
n!o correm o perigo jlltdim e terrenos adjacentes) ccrdane,. adepcnd!ncia feudal familiar de can\cter quase
dentro, apesar das
(•) III, 366, 367. Nlo confundir este Bernard Clcrgue, filho c!c Amaud Clersuc. <:am
de se dissociar nem de se desconjun tar a partir de imul4veiD.
que lhes slo infligid as pela Inquisiçlo; apesar também
graves provaçOes
(,) I, 233: ver tam�m III, 161. A heresia foi introduzida cm Montaitlou (ou antes,
Bernard Clcrguc, filho de Pons Clcrgue, c bailio de Montaillou.
e, relativ a ao incesto primiti vo, formul ada pelo
da estranha hipótes
·
reintroduzida, pois jd ld estava presente em dose modesta, ftOS anos de 1290, segundo o
depoimento de Btmricc de Planissolcs sobre Raymond Rousscl, em I 219) pelos Authl� cm
padre.
1300, na c:asa de Oui llaumc 8enct. O facto de Ouillaumc: Bcnet ser u:m11o de AmllUd Bater,
ais e das
No fi m de contas , ao nfvel das realidades materi
representações colectivas, a domus ariegense ou montail
unesa poderá de Ax. c este último sogro de Ouill4umc Au� fiiiCilitou evidentemente os <:antactos entre a
alistas a
r> 11, 223. Am:1ud Bclot � de resto o ftltwo marido de Raymondc Lizler.
justificar anâlise s como as que foram feitas pelos mediev cidade c " aldeia; e de uma domJU çom outratlonuu aparentada.
propuseram
propósito do odal escandinavo ou que Vemant e Bourdieu (') Por exemplo, I, 416: Mengarde (mulher de Raymond Aymcric, de Pmdcs).,Wqwntava
multo Mquele� tempt» a CtUtJ de Raymond /klot (. ) efa:la pilo para OJ hentlt:OJ (. ..) e
das casas gregas, cabilas, beamesa s? Estou tentado a crer que
a respeito .•

sim. O odal escandin avo estâ decerto muito afastado da nossa ârea ibero­ /IWJIIQfarinha para a dita ca.ro.
odal, que funde pura e simples mente (') NBS aldeias lioncsas, cm conlr.lportida, na� que consideramos, e segundo M. T.
a.
pirenaic E a própria noção de
Lon:in, llS confrarillS s4o bllStante numerosas.
(") III, 161. Esta lista � incom pleta: Maury c Bclot n!o mencionam a grande CIISII dos
quanto a
l inhagem e terra fam iliar, despreza o conceito de casa que,
brilhante s
(1") Enconlnlr-sc·d maiJ adiante (cap. XIII) uma lista de aianças, mais completa.
mim, permane ce central em Montail lou. Nlo insistire i nas Clcrguc.

(1 1) I II , 75. A famlli11 nuclear� fonnada unicamente pelo casal e pelos filhos pequenos.
as a propósit o do odal pelo medieva lista soviétic o
teorias formulad
(60)
Gurevic. Em contrapartida, as análises publicadas por Bordieu No caso de haver outros adultos ou outras pessoas consangulncas ou parentes por afinidade
es, a titulo compara tivo, para
quanto à casa cabila parecem -me pertinent que vivem com 11 famllia, csta tomll-Se alargada ou nao nuclear.
Não é (11) I, 279.
uma comparação entre dados magrebinos e dados pirenaicos. (1 1) I, 279. Trata-se de Piem: Azémn; e de um outro n!o nomeado.
uma certa unidade arcaica das civilizaç ões agrárias e
absurdo postular (,.) O. PIIIIOn, 1902-1903, p. 1 6, 49, c paulm.
A casa cabila, tal como a casa (") lbid, p. 16. O. Platon n:lo toma cm considcraçllo apiTlCilridad• das domll3.
(16) Apcsor de alcuns direitos senhoriais 11quccsl&l sujeitos, os camponeses de Montaillou
montanhesas do Mediter râneo ocidenta l.
os
ariegense de outrora, transcende os destinos particulares dos indivCdu
famllia sllo proprictârios defacto dos seus campos c dos seus pmdos (ver Bo nnassic, L t i, p. 248·
que a compõe m. Tem a sua baraka que o cadáver do chef e de
·264). O facto de o mercado da terra ser pouco activo, praticamente inexistente, vem dar mais
dos
ameaça levar consigo. Situa-se de forma decisiva· na intersecção
reserva senhorial (uns trinta hectares?). bem <:amo as Oorcstas c os tcmnos incultos <:antrolados,
força n esta <:anstntnç4o. Devemos, evidentemente, excluir destas «propriedades» rurais a
e feminino s na linhagem e na aldeia. Estas razOes militam
masculinos
nas squndo moldes que nos escapam, pelo senhor-bnilio-c:astclio c por aquilo que 6 considerado
a favor dum estudo comparado das representações das domus,
(11) P. Bourdicu. Esquisu d"une théorle th la praJique, Ocnebm, Droz. 1972.
comunidade (ver supra, Cap. l).
arcaico, que floresce m nas duas vertente s
(1") Colas, La Tombe Basqw, Bnyonne, 1923, vol. I, p. 46, citando Di Bildos em G�n
culturas campone sas de fundo

Herrla, Dez. 1921, « Psycftologic eles BasqUCS».


ocidenta l. Esses estudos, compara tivos, não são do
do Mediterrilneo
âmbito deste livro que pretende ser uma mono- grafia de aldeia No (") Costume citado por Henri de Saint-Bianquat. La Yie de� HomtM�. HDCI!cte,
entanto, nllo slo por isso menos legftimos. 1972, p.42.
(l') lmbort de 1.11 Tour, Lu Parolssu Rura/u tlu IYau XI �licl•, p.47.
� {t1) Kantotowic:z, TM King:; /Ivo bodlu...

(',) 11, 92; Lafage � umll localidlldc da Audc actual.


(1)A distinçllo aaricultcresljomaleirosc:cm:sponde (com asdevidasdif'erenças da q,oca} (U) Comus � Ulllll localldadc próxima de Montllillou.
àquilo que � ac:tualmcnle. na aaricultura. o contrasto agricultorlassalariad.o
(1) Esta entidade nmo� scnllo a unidade de habitat de base, ou unidadeecológica de base; ('") lnfra.
(U) I, 308. A respeito da submissllo da esposa, que sublinha a rcspons!Abilldllde csscnclltl
c masculina do chefe de CI1SII, ver o dldlogo de Sybillc Piem c do cunhado (11, 421 ). Sobre
sabe-se que o tenno •cologla vem nomeadamente do grego ollm que quer dizçr casa,
habitat.
(') Sobre a equlval�ncia entre domtu, termo tadno c:an6nlco, c lmplclum, que b'llduz uma instituiçlo catald andloga, no Kc.. XI, ver Bcnassic, IV, p. 626. Tom!Xm R. Boutruchc
literalmente em latim o tenno tanguccloquianoOJta/, ver, cm I, 226, as afirmaçOes c!c Piem meneieM o c:ap d'Ostau cm Bordai�.
Cleque. O tcnno propriamente dito c!c «casa» (man.rlo) encontra-se de fonna meramente (16) Em III, 134, cn<:antrar-sc-4 umn outra menç«o de dwfe de cwa camponesa, fom de
exccpçional no nosso documcntoc somcnto na boca de uln
(I, 1 21). O �famUia � rarfssimo (1, 276: afamU/a dos heréticos). Diz-se scmpte,
homcmorigiMriocb regi&) lioncsa Montllitlou.

(li) I, 225. Chllmn-se 11 11tençlo para o tempo averhlm, /raver, que sublinh11 o catdctcr
('') Yver, 1966.

por outro lado, ptll'entela (c algumas vezes por exccpçlo domJU, mas nunca hOJplclum).
indiscriminadamcniC, hOJp/c/umoudomJU(c:asaegrupo domâdcoque al CXHCSidc);diz-se,
mobiliário do dote.
quando se quer evocar os laços familillrcs de um dctcnnlnlldo Individuo çom os seus parentes
I ulncos, que vivem sob outros tectos, fom da co-residencla. Sobre o papel fundamen­
(") O. Platon, op. clt.
coiiSIIIg ("') J. Yvcr, 1966.
tal da c:asa espec ialmente nos Pirenéus Este, como centro slmultanc::uncnte camal, residencial (l1) Aiicc Wcmyss, l961.
84 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR Capítulo III

(lZ) 11, 430. De acordo com J. M. Vidal, 1 909, t. 11, p. 22, o pre� de �m.a Blblia n� a IIII UMA CASA DOMINANTE: OS CLERGUE
Ari�gc cm de 20 libras tornCSIIS nos anos 1 300 (J. M. Vidal cita Ms. lat., Btbhoteca Nactonal

('I) Sucedeu com a casll de Sybillc Baillc, rn4c de A. Sicre(ll: 21).


Fl'llllCCSII, 4269, r. 64) .
.
(,.) I, 2Sl. O fogo, segundo parccc, nao � colocado numacbunun� miiS num 1ocal a me10
do compartimento denominado /are. Haveria um buraco no telhado?
(") III, IS6; J. Duvcrnoy, Lo Noun-iture. .. , par.\srafo VIl; I, 317.
('") J. M. Pcscz.. etc., Archéologle du vil/age deserté...
(") 11, 401. As casiiS mais ricas, como 11 dos Clerguc, e 1111vez a dos llclot, 14m um ou dots
.
quartos no prim.:iro andar ou mlier.
('I) Sobn: tudo o que precede, da cave aomlier, ver. I, 239(cave); 1,403, 111, 127, 128,
142, I S7 (quartos. chavcs, tolll! is); III, 173 (camiiS); I, 37S, 327, 11, 471, (quartos 6 parte);
ibid., c 11, 209 (janela, taipal, escritórios); 11, 222; UI, 178 (solier).
('") Ver ainlln hoje os ootiquissimas casns de Alei (século XV?) com o seu solte; cm
madcime adobe; I, 311 (AZI!ma-Bclot); I, 340 (Rivcs): I, 478 (bois); III, 199 e 86 (carneiros);
I, 401 (doença mortal de G. llenet, em 130S-1306); I, 337 (porta para salda comum das
pessons e do esterco).
("') I, 198- 199; 383, 402, 403, 4S8; 11, 40S; I I I, 277 c 260-280, passlm, cor/ai �e
ove lhos, longe da dumus: ver infra, cap. v a VIII (P. Mnury); comparar com Bonnass1e,
11, p. 289, sobn: a casa, o p;\tio, e o celeiro, nos Pirenéus catnhlcs; ver l:lmbém I II, 287: mesa

( ") I , 3 1 7; OdTonl:lincs, L 'homme e/ sa maison. .. , p. 81.


exterior.
.
(':) I , 463; I , 311; concluindo estes aspectos matcriais,acrcsccntemos t1UC nllo cxJStem
casas de banho: as pcssons urinam na rua, defc:c;un nos rochedos. Em Montaillou existe uma estratificação socioeconómica das
( ") 11. 76. Ver também o caso de Piem: Aces. boieiro-criado rcsillindo cm casa de seu
p:llr.lo Piem: llcrnard, cm Gooac (I II, 462). domus. Encontram-se casas relativamente abastadas ou mesmo ricas
(") Sobn: llrune Pourccl, ver I, 382 sgs. . . (os Benet, os Belot, os Clergue), e casas pobres ou com fama de tal (os
(�') Sobn: ns cstruturos<<:tnelllrCSl• de outras aldeias. ver também I. I 53: uma rnp:sngumha Maury, os Baille, os Testaniêre, os Pelissier, certos Marty). Os segundos
pobn:, provavelmente uma criada, vive cm CIISõl de um pAroco.
("') Os nossos dlx.-u�m.'lltos sobre a estruturo d.: famílias «mais do que nucle� fal�
fonnam provavelmente uma importante minoria na aldeia. Na ausência
-nos sobretudo de vcli111S l1lõlcs viúviiS que coabitam com os lilhos; mas nos casos{mmonlários)
de liliaçllo «mntriiUCIIh), uma sogra pode viver com o genro (I, 260, c ptUSim).
de cadastros, a estatrstica é dificil; diversos textos sugerem, no entanto,
. . que entre os magros haveres dum homem pobre, e o ostal (não nobre)
('') Recordo que foi pela domus de Guillaumc Bcnel que, cerca d� 1330, a hcrcs1a f�1
.reintroduzida cm Montnillou pelos Authié, no seu regresso da Lombard1a (I, 47 1); os Auth1é mais opulento da paróquia (o dos irmãos Clergue), a diferença de

('I) I, 370-371. Arques c Montaillou-Pradcs silo complementares no trabalho de cc1f11


e os llenct estllo cslrcitnmcntc ligados por laços de casamento {I, 233). . fortunas pode ir de um a cinquenta. Os abastados (tudo é relativo!)
podem possuir 8 a 10 hectares de terras e prados por domus; os pobres,
(-ri) Outra exprcssllo: «n at�n de Bernard Belot c dos irmllos•• (I, 458). A chefia é portooto
dos searas, na tmnsuml\ncia dos carneiros c na troca de ideias cntariiS.
••.

um ou dois hectares ou até menos. Estas diferenças não impedem a

(� Soma cquivnh:nle ao valor de 40 ovelhas, ou de meia-casa.


difusa ou partilhada entre os dois irmllos, Raymond e Bcrnnrd. intercomunicação social, dum pólo a outro; mas tornam-na, por vezes,
um pouco acldula. Mesmo na ausência interna de verdadeiras lutas de
(�Z) 11, 221, 222, 223, 225; III, 506: Raymondc, mais wdc v1uvn
(") Sobn: Arnaud Vil:ll, ver III, 84 a 87; I, 392, 4S6 c 4S8. . .
. de Arn�ud V1 tal, classes.
casar-se-à com Bernard Guilhou (11, 221; III, S06); ve-ta-emos a catar. os p1ol�o� de As diferenças locais de riqueza exprimem-se por lndices variados:
Mc:ngardc Clergue c do seu filho Pierre, e mesmo como amante tcmporána deste ultimo posse de dinheiro liquido- pouco, muito ou nada. Mas, sobretudo, posse
(11) Esta regra geral, mas nilo absoluta, deriva da estrutura cronológica do c1clo
(11, 223-22S). • •
de terras; carneiros (algumas dezenas de cabeças de ovinos são sinal de
fnmilinr. uma certa abastança; a um nfvel inferior, contudo, quase todas as
(, É o caso dos Bclol Ver lllmbém cm A.'·les-Thcrmes uma famllia do mesmo tipo
famllias, excepto as das viúvas mais pobres, possuem pelo menos
('') L. Bcrkncr, 1972.
(11, 334).

56) ctGenus de padres», de «leprosos», etc., por quatro geraçOcs, etc.: ver 11, 1 1O; III , S9,
• algumas ovelhas: estas conferem segurança ao lar e uma dignidade
mfnima à domus). Outros critérios decisivos: a presença de bois no
3S7, etc. Sobn: a transmissllo do nome por linha materna: 11, 129. 1
('') III, 149- I S I; III, 164; e UI, 58: noçilo de parentesco próximo. estábulo; ou de mulas e burros, pelo menos um exemplar, para a lavoura
('I) I, 3 18; 11, 64: o parentesco de Maury com os Maurs � (cm principio) a garantia da e para o transporte; a presença de criados e de criadas em casa; os filhos
(59) I, 22S. Note-se que o pl\roco se contradi2: ooteriormcntc. tinllll afirmadoque o incesto
pn:scrvaçdo do segredo comum. não estarem fora de casa a aprender para pastores ou para criados; a
poderia forti licnr a domus. construção de um solier no primeiro andar da casa; a posse de um trem
(toei) Vl:r Bourdieu, Esq11iss..., 1972, primeira parte. E tambt!m Gurcvic, 1972. de cozinha mais importante; a posse de reservas à base de feno, cereais,
86 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR UMA CASA DOMINANTE: OS CLERGUE 87

utensUios. A ausência ou a fraca importância destes critérios, num ostal, o perfeito Ouillaume Authié, que af se <<escondia)), - sem se dissimular
é sinal de nilo-riqueza. Os filhos ni'lo sucesSores e os bastardos, tanto excessivamente, para dizer a verdade.
uns como os outros relegados para um estatuto de criado ou de pastor, Com a sua aula, o seu solier, o seu portique (III, 58), os seus
têm possibilidades de se vir a encontrar, em seguida, após um processo quartos individuais, a casa Clergue é uma das mais espaçosas da aldeia.
de mobilidade social descendente, à cabeça de uma domus pobre. Os Rica de terras: o bailio Bernard Clergue, irmão do abade e membro co­
critérios de riqueza e de não-riqueza silO', de qualquer modo, mais residente da domus (1, 327), explora as suas parcelas agrfcolas e aquelas
complexos e globais do que, no norte de França, a oposição entre que o conde de Foix confisca aos camponeses heréticos de Montaillou;
lavradores e pequenos agricultores; a qual se caracterizará pela posse, são postas, ipso facto, nas mãos do bailio, que as explora em proveito
ou não, de cavalos de lavoura. Esta diferença geográfica quanto à próprio. Bernard ama apaixonadamente este domlnio ou terra de Aillon,
complexidade dos indicadores deve-se a duas razões muito simples: em que administra por conta do conde - é a ((SUa>> terra; ainda olhar.\ para
Montaillou, o grande arrendamento não existe como tal; e, entre as ela com saudade, de longe, ao aquecer-se ao sol na torre dos Alemães,
explorações agrfcolas, a lavoura não é mais importante do que a criação em Pamiers, onde a Inquisição o mandou encarcerar ( I , 279). Por sua
de gado ovino. Devemos igualmente recordar que esta lavoura não é vez, o pároco Clergue vai olhando por todas as terras dos seus parentes:
efectuada por meio de cavalos fortes, mas sim por bois, mulas e burros, é ele que serve de procurador à sobrinha, quando o marido desta, Ber­
que, de qualquer maneira, são caracterlsticos de explorações bastante nard Malet, de Prades, compra uma terra que pertencia anteriormente a
modestas. Raymond Malet, genro de Raymond Pierre (III, 77). A domus Clergue
• possui certamente varas de porcos e rebanhos de carneiros: Bernard
No topo desta estratificação e no centro do sistema das domus, Clergue protege os jardins dos estragos causados pelos seus porcos;
situa-se, como uma aranha no meio da sua teia, o ostal dirigente dos uma ve: detido, dá quatro tosões de la a Carnot, sargento da prisão,·
Clergue. Demograficamente, as casas Clergue dominam a aldeia. depois disto, o sargento fa: lUdo o que Bernard quer na prisão:
Segundo as estatlsticas, certamente incompletas, que se podem extrair e Honors, a mulher do sargento, confia a Bernard as chaves dos quar­
dos registos de Jacques Foumier, contam-se pelo menos 22 pessoas com tos dos prisioneiros (III, 289; 274). Enfim, os Clergue têm dinheiro e
este nome em Montaillou; «muito longe dos Clergue, vêm os Maurs crédito: para soltar da cadeia o seu irmão Pierre, que tanto ama, o bailio
(treze), os Marty (onze,) os Baille (onze), os Belot, os Benet, os Azéma não hesita em gastar 14 mil soldos a subornar pessoas de grande pres­
e os Maury (dez), os Pelissier (oito), os Rives e os Argelliers (sete), os tigio (1), ou seja, 28 vezes o salário de uma equipa de assassinos
Authié e os Fort (seis), os Bar e os Vital (quatro))) (1). Mas, como é profissionais; 7 vezes a fortuna de um pastor como Pierre Maury, que se
evidente, esta demografia simplista por si só não significa nada. O que considera rico ao ganhar 2 000 soldos; 36 vezes o preço de uma casa;
interessa para estabelecer a prepotência de uma domus são as riquezas, ou o equivalente a I 400 ovelhas.
a influência, os laços de patroclnio e de «amizade)). Ora estes trunfos, O dinheiro nllo é tudo. No caso dos Clergue, embora camponeses,
tem-nos a domus dos Clergue todos na mão (l)... faz-se acompanhar por u m certo poder e também por bons
Gostariamos primeiro de visitar esta domus para melhor a conhecer: conhecimentos: Bernard Clergue conhece pessoas importantes na Corte
enquanto esperamos por h ipotéticas escavações em Montaillou, do conde de Foix, às quais unta regularmente as milos {II, 232).
contentar-nos-emos em passar uma breve vista de olhos pela referida O poder da famflia é triplo: na corte do conde; na Igreja regional; e,
c�a, em companhia de Fabrisse Rives, taberneira da aldeia. Não finalmente, na aldeia e na pequena região circundante. O abade C/ergue
dispondo de medidas para medir o vinho, decide ir pedir uma emprestada é multo influente: tem muito poder na Corte do conde de Foix e na
aos vizinhos Clergue. Chegando à soleira do ostal, encontra primeiro Igreja, diz Guillaume Maurs; um dia destes pode mandar-nos prender
três velhas matronas da terra, sólidos pilares do Catarismo, a apanhar e destruir-nos,· foi por isso que deixei o reino de França e fui para
sol junto à porta: trata-se de Mengarde Clergue, a mãe do pá"fo, e das Puigcerda (11, 1 7 1- 1 72). Para além das fronteiras do condado de Foix,
suas amigas Guillemette Belot e Na Roqua {I, 327). Fabrisst entra e satélite do reino de França, o poder dos Clergue dá-lhes uma influência
sobe para a aula ou antecimara do solier (primeiro andar), que se situa que se estende até Carcassonne, onde a Inquisição os utiliza, e por vezes
por cima de um pequeno alpendre meio subterrâneo chamado sotulum os escuta: se fores confessar ao inquisidor de Carcassonne os delitos
(cave). Na aula, a taberneira cruza-se com Pierre Clergue; descobre no (imaginários) que te insinuei, diz Bernard Clergue a Bernard Benet,
quarto deste a famosa medida de vinho em cima de uma mesa. .. e também pagar-te-ei as despesas da viagem e obterei do inquisidor a amtlação
88 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR UMA CASA DOMINANTE: OS CLERGUE 89

do uso de cruzes amarelas a que foste outrora condenado (I, 404). - Tenho os homens de Montaillo u absolutamente em meu poder,
A 'influência regional é acompanhada de uin poder local: no auge do graças à Inquisição.
seu poder, Pierre Clergue é cognominado de pequeno bispo de Aillon Então retorqui-lhe:
(III, 1 82). Os Clergue são muito ricos e têm um grande poder na região - Como se explica que persigais os bons cristãos (os heréticos)
de Alllon, declara Pierre Maury (III, 1 93). De facto, o pâroco foi du­ que outrora tanto amáveis.
rante muito tempo um honesto intermediário entre Carcassonne e - Não mudei, respondeu-me o abade. Continuo a gostar dos bons
Montaillou; e usou as suas relações «lá de baixo)) para proteger os seus cristãos. Mas quero vingar-me dos camponeses de Montaillou, que me
clientes «lá de cima)), Pôde, assim, fortalecer e consolidar o seu poder faeram mal, e vingar-me-e/ de todas as maneiras posslveis. Depois,
nas duas direcções: há uns doze anos atrás, conta Guillemette Benet saberei entender-me com Deus (I, 239).
em 1 37 1, Arnaud Clergue, filho bastardo de Guillaume Clergue, irmão O termo camponês ou rústico (rustice) é considerado um insulto
do abade e>. veio ler comigo a minha casa e disse-me: em Montaillou; e, no entanto, a aldeia é constitufda por agricultores e
- Amanhã, o abade vem a tua casa di:er-te quefoste convocada pastores. Um moribundo da região de Aillon, para insultar um padre
para Carcassonne, onde o Inquisidor te informará da tua sentença de que lhe traz a Eucaristia, apostrofa-o precisamente deste modo: rústico
prisão. O abade manda di:er que deves arranjar uma desculpa para fétido e vil (I, 23 1 ). Tratando por rústicos, numa conversa com Béatrice,
não ires a Carcassonne: portanto, amanhã mete-te na cama e finge os seus concidadãos de Montaillou, o pároco pretende, ao mesmo tempo,
que estás doente; di: que caíste da escada da tua casa: finge que tens ofendê-los e diferenciá-los da sua famflia. ..
fracturas por todo o lado. De outra maneira, és presa. Vã tentativa! A domus dos C lergue está ligada, de todas as
Com efeito, no outro dia, quando o abade veio com as testemunhas, maneiras, pela carne da sua carne, às outras domus da paróquia. Os
eu estava de cama e disse-lhe: Clergue estilo intimamente ligados por casamento ou por parentesco,
- Caí da escada. Estou toda partida! ou por ambas as coisas, aos Benet, aos Belot, aos Rives, aos Marty, aos
Foi assim que ele me arranjou uma desculpa! Lizier, aos Fort. E nllo esqueçamos as numerosas <<Conj unções
Estas gentilezas de Pierre Clerguc não impedirão que Guillemette passageiras)) proporcionadas pelos muito activos membros masculinos
Benet seja condenada, muito mais tarde, à prisão perpétua, a ferros, a da famllia Clergue, entre os quais figura, à cabeça, neste sector como
p�o e água {I, 534). De momento, contudo, valem a esta mulher, aliada em todos os outros, o abade Pierre. Da mendiga à castelíl, todas por lá
dos Belot, que são aliados dos Clergue, anos de liberdade; o pároco passaram em Montail lou: ai amaram, cataram, adm iraram os
comete, assim, de vez em quando, em proveito de uma ou de outra C lergue (6). Estes laços de sangue, de núpcias ou de concubinagem
famllia de paroquianos, um desvio à legalidade inquisitorial, de que ele forneceram à famflia, nos tempos do seu esplendor, e depois no decUnio,
é, no entanto, o representante na aldeia. Não será melhor para ele ser as indispensáveis solidariedades ou cumplicidades. Mas nilo excluem,
protector e preservar o seu poder? O pastor Pierre Maury, há muito mais tarde, as inimizades violentas ou os conflitos com certas domus
proscrito e perseguido por todas as polfcias, é categórico a este como a dos Benet, apesar de tudo indirectamente ligada aos Clergue,
respeito ('): se o padre de Montaillou me tivesse querido apanhar. há através de uma cadeia de casamentos.
muito que o teriafeito! Um dia em que ele tinha vindo à casa do meu Cumplicidade essencial, igualmente: a heresia. Antes das suas
pai receber os dízimos, viu-me, falou-me e, contudo, não me mandou traições finais, baseadas na vingança, e não numa viragem ideológica,
prender: Pierre Clergue era um sólido pilar das ideias cátaras, às quais aderira,
Outrora comprometidos com o catarismo, os CIergue são uma dessas n a companhia dos homens das outras casas influentes. Ah, se todos os
domus de «mulas gordas» (11, 58) e grande fortuna, que souberam, párocos do mundo fossem como o de Montai/lo ui, suspira, em 1 30 1 ,
durante anos, livrar-se de embaraços, a si, e aos amigos; neste jogo Guillaume Authié (I, 279), acrescentando que se pode ter plena confiança
perigoso, acabarão, todavia, por se perder. em todas as pessoas da dqmus dos Clergue. Com efeito, na sua
O poder local da casa Clergue implica, para com os camponeses tempestuosa j uventude, Pi'erre e Bernard Clergue deram provas
da terra, uma relação complexa, ambivnlente: por um lado, pretende-se indiscutfveis de fidelidade herética; a este respeito, os depoimentos de
nitidamente superior às domus rústicas. Aliás. acaba por se virar contra Guillaume Maurs são formais: Foi Guillaume Maury que me contou
elas. Quando estava doente em Varilhes, conta Béatrice de Planissoles, isto: certa noite, em Montaillou, enquanto queimaram (a Inquisição) a
o pároco veio visitar-me e disse: casa de Arna11d Fort, o pároco tinha feito sair da casa dos Belot dois
90 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR UMA CASA DOMINANTE: OS CLEROUE 91

heréticos que ai se encontravam e providenciara para que elesfugissem dai ou mesmo da castelania para os seus fins pessoais. Raymond Clergue
para a mata (barta) conhecida pelo nome de A la Cot (11, 1 73). Outra faz-se acompanhar pelo vice-castelão de Montaillou, Jacques Alsen, a
vez, a acreditannos nas declarações de A1azaTs fauré, Pierre C1ergue fim de perseguir nos Pirenéus de Puymorens, no desfiladeiro de Pedorres,
estava de atalaia no lugar designado por Paredeta, para evitar que Guillaume Maurs, inimigo pessoal, transformado em inimigo familiar
acontecesse alguma coisa desagradável, enquanto Prades Tavemier, (11, 176). Os dois homens falham nesta missão. Em Pedorres, e como
disfarçado de vendedor ambulante de cburo e de til, procedia à ún ica presa, encontram apenas o pastor proscrito Pierre Maury;
«heretizaçiO)) dum moribundo de Montaillou (1, 4 1 5-4 1 6). Por sua vez, gentilmente, deixam-no escapar, depois de lhe terem pedido
AlazaTs Azéma denuncia as antigas cumplicidades de Bernard Clergue «emprestadas)) algumas provisões. Do mesmo modo, quando da grande
(I, 3 1 7). Bernard, diz ela, tinha andado a recolher trigo para os dízimos. rusga da Inquisição, em Agosto de 1308, Pierre Clergue contribui para
7inha posto uma certa quantidade desse trigo em cima do telhado da encerrar no castelo de Montaillou todos os seus paroquianos com mais
casa de Raymond Belot, que é baixo. E disse a Raymond Belot para de doze ou treze anos, alguns dos quais deixa sair em seguida, por um
dar esse trigo aos heréticos. Riqueza, laços familiares, heresia, poder: processo de libertação selectiva (III, 82): Pierre é, na sua paróquia, o
as quatro colunas de influência dos Clergue em Montaillou. O seu poder homem do castelo, do castelo que utiliza para os seus fins pessoais e
local é institucional: Pierre Clergue é pároco da aldeia; o desempenho astuciosos; até que, por uma justa reciprocidade, a castelã, ou antes a
dos seus deveres é extremamente limitado, devido às suas constantes ex-castclll, se toma por sua vez, a mulher de Pierre durante o breve
-

actividades extra-curriculares. Amantes cronófagas monopolizaram uma perfodo em que dura a sua relação illcita.
parte do tempo e dos cuidados que Pierre deveria ter consagrado A senhoria, o bailiado e a castelania locais são util izados,
normalmente à edificação do seu rebanho. o que não impede que, alternadamente, no meio camponês, pelos Clergue e pelos seus rivais
superficialmente falando, Pierre seja um padre bastante consciencioso: da aldeia. Uns e outros procuram controlar estas instituições para
confessa; diz, mesmo em estado de pecado mortal, a missa aos domingos alcançar os seus fins. Quando, depois de 1320, a estrela dos Clergue
e nas grandes festas; assiste aos slnodos diocesanos, recebe os dízimos ... começa a declinar, os seus inimigos, entre os quais Pierre Azéma (de
Enfim, é um dos raros letrados da aldeia ou pouco lhe falta para isso; Montaillou), primo do bispo Foumier, Raymond Trihl, vigário de
um dos raros detentores de livros - ni'lo possui o calendário folclorico­ Montaillou e de Prades, e Bernard Marty, cônsul de Montaillou,
liturgico-cátaro que lhe emprestaram os irmãos Authié (1, 3 1 5) ? Por manipulam por seu lado, contra os Clergue e contra os seus amigos ou
vezes exen:e as funções de notário: é fiel depositário de importantes clientes, o braço secular da castelania local {1, 496). (Note-se que é a
pergaminhos como o que diz respeito ao dote da sua amiga Béatrice. É, única vez que as nossas fontes falam de um consulado em Montaillou:
além disso, representante oficial da Inquisição de Carcassonne; serve­ o consulado, que emanava, em principio, da assembleia «municipab)
se desta posição para o melhor e para o pior, para proteger e para oprimir. dos chefes de famflia, não era inexistente na nossa aldeia, mas só ai
A sua «cotação» local está longe de ser inteiramente negativa: Béatrice apareceu tardiamente, desempenhando um papel muito apagado).
conservará dele, passados muitos anos, a recordação de um homem bom Vê-se, entflo, Pierre Azéma, simples camponês, ordenar ao lugar-tenente
e competente e (durante muito tempo} tido como tal na região (I, 253). do castelão do Conde que atire para as masmorras do castelo Bernard
Em Montaillou, os dois Clergue principais - Pierre e Bernard - Benet, cúmplice involuntário e momentâneo dos Clergue.
conseguiram apoderar-se dos dois glâdios, espiritual e temporal. Pierre O lugar-tenente do castelão comporta-se, nessa circunstância, como
é o p4roco, Bernard, o bailio. Bernard trabalha, nesta qualidade, em uma personagem fraca; arrogantemente, Pierre Azéma dâ-lhe ordens
colaboraçao com o seu irmão Pierre (ambos se encarregam em diversas formais, nem lhe pede autorizaçio se apoderar do gado de Benet das
ocasl�es de recolher os dlzimos); como bailio, Bernard exerce funções mãos do conde (1, 395-396).
de juiz e de cobrador das rendas do condado (na medida. em que o Estes pormenores ilustram melhor do que qualquer documento
conde de foix, detentor do poder poUtico, é também senhor da aldeia). teórico certos aspectos da «luta de classes)) ou, para sermos mais exactos,
Se Pierre é de facto o meirinho da Inquisição, Bernard é juiz de paz e da «luta de grupos)) em Montaillou. Para estes diversos cUis rosticos,
comissário de poUcia em nome do conde: deita a unha aos culposos; se entre os quais figura a domus Clergue, o problema não consiste tanto
necessário, apreende-lhes o gado. Escusado será dizer que aos irmãos em lutar contra a opressão da senhoria e da castelania, enquanto tais.
Clergue - Pierre, Bernard e também Raymond - não fallam ocasiões, O problema reside, acima de tudo, na apropriação (por vezes em
neste domlnio, para se entreajudnrcm: os três servem-se do poder feu- alternância de papéis) dos poderes locais da senhoria-bailio e da

••
92 ECOLOGIA DE MONTA ILLOU: A CASA E O PASTOR UMA CASA DOMINANTE: OS CLERGUE 93

castelania, a fim de esmagar o clã rival na sociedade atde!. N estas e Alaznrs Rives - digam (1, 3 14), ao regressar da inumação de Mengarde,
I, ci�cunstâncias, o poder senhorial-condal desempenha menos o papel que esta pariu uma ruim ninhada de cachorros e que só gerou filhos
de opressor do que de prémio das lutas: interesses rivais procuram maus, Pierre não se importa. A minha mãe, declara ele a Béatrice, era
controlá-lo no plano local, a fim de fazer triunfar o seu grupo. uma mulher boa. A sua alma está no céu. Porque e/afazia multo bem
aos «bons cristãos» e enviava pacotes de comida aos heréticos de
• Montail/ou jéchados na prisão, como, por exemplo, à velha Na Roqua
Descrevi a casa Clergue; situei-a no «sistema das domus» de e ao seu filho Raymond Roques (I, 229). Esta devoçl'lo ou recordação
Montaillou; falta-me agora explicitar em algumas palavras o seu cátara da mãe não impede o cura de jogar em dois campos, e de enterrar
«conteúdo humano». Em primeiro lugar, existe um problema de titulo Mengarde ao pé do altar mariano da Virgem, em Nossa-Senhora de
e de chefia: Alaznrs Azéma chama à domus dos Clergue, depois da Camesses, capela de peregrinação de Montaillou (III, 1 82). Isto, sem
morte do patriarca Pons, a casa dos filhos de Pons Clergue (1, 3 1 S). dúvida, para que a alma de Mengarde possa ser a primeira a recolher a
Fabrisse Rives, taberneira, fala de a casa do abade e dos irmaos torrente de graças que jorra ininterruptamente daquele altar. É uma
(1, 327). AlazaTs Fauré, innã do herético Guilhabert, diz: a casa de vergonha que aquela mulher esteja enterrada ali, declara Pierre Maury,
Bernard Clergue (l, 4 1 3). Raymonde Arsen, criada dos Belot, é uma que se refere, com simpatia, ao passado de Mengarde; Emersende Marty,
das nossas melhores informadoras; emprega indiscriminadamente as outra herética de Montai llou, reforça paradoxalmente: Se o bispo de
duas expressões: a casa de Bernard Clergue e dos irmaos ou a gente da Pamiers soubesse do passado (herético) ela digna mae do abade
casa do abade. A direcção da domus dos Clergue é, portanto, bicéfala; mandaria exumar o seu cadáver e atirá-la-ia parafora ela igreja onde
Pierre e Bernard, irmãos, são teoricamente iguais como chefes; mas um está ente"acla (III, 1 82). Pierre C Iergue é bom fi lho e mau padre; está,
deles, se me é permitida a expressão, é um pouco mais «iguah) do que o antes de mais, preocupado com o prestígio mariano da sepultura de sua
outro. Uma prova: quando Pierre Clergue morre, seu innão Bernard, mãe; não se preocupa com contradições teol ógicas. Sente-se,
que o amava e reconhecia naturalmente a sua superioridade, chama­ naturalmente, orgulhoso por ter inumado Mengarde junto do altar da
-lhe: meu Deus, meu governador. meu capelador (11, 289). Virgem ; mas, simultaneamente, declara a Béatrice: Maria não é a mãe
A forte cocsllo mútua dos membros da casa Clergue não implica de Deus; é o receptticttlo ele carne em que tomou forma Jesus Cristo
que tenha havido sempre entre eles unidade de pensamento ou, mesmo, ( I, 230).
de �onfiança. O próprio patriarca Pons Clergue, velho beato cátaro, Aliás, Pierre levará muito longe a sua fidelidade à memória da
acaba por se alarmar com a depravação e as espionagens do seu tilho mãe; chegando ao ponto de tomar por confidente, despiolhadora regu­
Pierre: o pároco tinha sugerido a Raymond Maury que devia chamar de lar e amante ocasional Raymonde Quilhou que, em vida de Mengarde,
volta a Montaillou o seu filho Pierre Maury, de há muito proscrito por a despiolhava e fora por ela convertida ao catarismo.
actividades heréticas, e outros «crimes». Ao saber disto, o velho teve Em boas relações com o pai e a mãe, apesar de um ou outro arrufo
um ataque de cólera e acautelou Raymond Maury: nao confies ocasional, os irmãos Clergue, entre si, estarJo unidos <<como os dedos
absolutamente nada nas palavras desse padre traidor. declara ele em da mãO))? Sinais de tensão superficial aparecem, por vezes, nafratria.
termos pouco lisonjeiros para a sua prole; e diz simplesmente a Pierre Quando quer dar trigo aos heréticos, Bernard Clergue esconde-se dos
Maury: se estás no desfiladeiro dos sete irmilos (perto de Montaillou� irmllos ou, pelo menos, de alguns deles (conta-se um total de quatro
. foge para o desfiladeiro de Marmara: se estás no desfiladeiro de irmãos Clergue, filhos do velho Pons (I, 375))- Mas isto nllo passa de
um episódio, nllo é nada que possa comprometer a unidade fundamen­
Marmara. foge para o desfiladeiro de Puymorens, onde acaba a dio­
cese de Pamiers; e nilofiques ai, foge para mais longe! (II, 285, 289). tal da domus, mantida pelos seus homens, e por alguns fiéis membros
Pierre Clergue teria sabido desta cena do pai? Se sim, nllo mostrou o da sua linhagem, entre os quais se distingue Bernard Gary, de Laroque
menoljressentimento e continuou a considerar o cadáver paternal como d'Oimes; este sobrinho dedicado, Integro, sabe ajudar os C lergue nas
o receptáculo da fortuna da sua domus, uma vez que, como v imos, circunstâncias dificeis que rodeiam a sua queda (l, 396).
mandou tirar-lhe alguns cabelos e unhas a fim de conservar no domicilio •
o «astro ou boa sorte da domUS>>. Pierre Clergue conservou sempre uma
tema afeiçl'lo, simultaneamente cátara e católica, por sua mlle, Mengarde. Esta queda dá-se após um longo perlodo de poder. No inicio, por
Embora as comadres da aldeia - AlazaJs Azéma, Guillemette <<Belote)) volta de 1 300, Pierre e Bernard Clergue estilo solidamente instalados
94 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR UMA CASA DOMlNANTE: OS CLERGUE 95

nas suas funções de pároco e de bailio. Correspondentes locais dos innilos seus encontros no lugar conhecido por La Caim: os da raça do abade e
Authié, silo, juntamente com outros dois innilos que se mantêm em o próprio abade fazem com que o senhor inquisidor de Carcassonne
segundo plano, os protectores locais de uma aldeia gangrenada pela notifique muitas pessoas de Montaillou. Já é tempo de essa gente ser
heresia. Mais ou menos heréticos, mas em boas relações com a Igreja atirada para calabouços tão fundos (como ex-heréticos ) como os
...

católica das terras baixas, os dois innãos jogam, com mestria, com um dos outros habitantes de Montai/Jou (1, 375). De facto, Clergue, antigo
pau de dois bicos. Bernard recolhe os dizimes da Igreja de Roma e dtaro que, no entanto, pennanece meio albigense no fundo do coração,
devolve uma parte aos cátaros: a sua mão direita ignora o que faz a mão não poupou os seus paroquianos: os membros da casa Maurs, inimiga
esquerda. Quanto a Pierre, excelentemente estabelecido na igreja dos Clergue, foram, pelos bons oficies do abade, deixados a apodrecer
paroquial e nas domus heréticas, detém uma boa posição mundana na na prisão ou proscritos para a Catalunha {II, 1 7 1 )... A este respeito,
aldeia devido à sua ligação com a ex-castelã (ver infira) O seu prestigio Pons Clergue tenta justificar a atitude do filho com os imperativos
intelectual é garantido pelos contactos eruditos com os Authié e pela inevitáveis da colaboração com a França {li, 1 7 1 ): com efeito, Pierre
presença a seu lado de um estudante, ao qual passa por dar l ições Clergue actua, na verdadeira acepção da palavra, como colaborador
(I, 243; 279). Este rapaz, chamado Jean, mostra uma certa simpatia amaldiçoado por uma parte dos seus; com ou sem razao, crê limitar os
pelo catarismo. Clergue utiliza-o como portador de bilhetes e, de certo prejuizos pondo os seus amigos e clientes ao abrigo dos golpes, quer
modo, como alcoviteiro, quando dos seus encontros com Béatricc de directos quer indirectos, da potência colonizadora e da Inquisição de
Planissoles. Carcassonne.
Mas esta posição de segurança, dominante, acaba por se revelar É neste cenário que se perfila e se dá a tragédia de Agosto de 1 308;
insustentável. A Inquisição de Carcassonne tem o olho em Montaillou; Clergue, cúmplice, vê os esbirros da Inquisição engaiolar as suas ovelhas
a casa dos C Iergue, na aparência e mesmo na realidade, tem de se decidir (1, 373, nota 1 58). Todos os habitantes de Montail lou, homens e
a divorciar-se da heresia ou a perecer com ela. Pierre e Bernard vilo, mulheres, com mais de doze ou treze anos (idade aproximada), são
pois, trair as opiniões albigenses em que talvez acreditem apenas a presos. A coisa teria sido preparada com base nas confissões de Gaillarde
meias (nesses casos, é-se sempre renegado para as pessoas da seita, Authié, mulher do herético Gu illaume Authié, interrogada pela
enquanto, para si próprio, se deixa somente de ser tolo). De resto, é Inquisição na Quaresma de 1 308. Mais decisivas a esse respeito foram
posslvel que, por volta de 1 300, Pierre Clergue tivesse já contraido o as denúncias feitas pelos sobrinhos de Pierre Authié: «Esses sobrinhos,
detestável hábito de espiar. Quando do falecimento da sua mãe, ante­ de nome Rodês, eram naturais de Tarascon. Um deles era dominicano
rior ao fim da sua aventura com Béatrice, as comadres cãtaras de em Pamiers.>> A rusga foi extremamente dramática: o temível Poloniac
Montaillou, de llngua bem afiada, jã acusavam o padre de «destruir dirigia os agentes da Inquisição de Carcassonne; não teve qualquer
toda a regiãon. Em todo o caso, no decurso do decénio de 1300, a dificuldade em apanhar «por heresia» todos os habitantes de Montaillou,
comunidade rural e herética de Montaillou apercebe-se de que acalentou de idade superior à requerida (III, 1 62-1 63): estes estavam reunidos em
u!"a vlbora no seio. Vai revelar-se um novo Clergue. O impressionante massa, por ocasião de uma festa da Virgem, que gozava de grande
retrato que dele nos dão os escrivães de Pamiers, restitui-nos, com a popularidade na freguesia: venerava-se simultaneamente, sem receio
mãxima exactidão, o seu rosto de homem maduro, inchado de orgulho, de contradição, a Virgem Maria e o Deus dos cátaros. Tendo chegado o
de lubricidade, de vingança e com a truculência Upica da sua terra fim do Estio, a maior parte dos pastores da terra tinha descido a
natal. Montaillou. Felizmente, Pierre Maury tinha ficado no desfiladeiro de
Sobre a grande traição do abade Pierre Clergue, possuimos duas Quériu: um homem que transportava farinha anunciou-lhe que a aldeia
versões: a do próprio P ierre, que será evocada mais adiante; e a das estava agora aferrolhada (ibid.). Algumas mulheres de Montaillou
pessoas por ele traldas, que também são seus parentes por aliança, e das conseguiram escapar, com um pão à cabeça, fazendo-se passar por
quais algumas foram, durante muito tempo, suas amigas. Refiro-me migrantes agr(colas, originárias de outros lugares.
aos Maury, aos Benet, aos Belot e mesmo aos Maurs. Os sobreviventes Os afortu�ados e os fugitivos foram fixar-se em Espanha, nas
dessas orgulhosas casas montanhesas aniquiladas pela repressão acusam margens catallls ou sarracenas. A aldeia tomou-se, momentaneamente,
unanimemente o abade e toda a sua domus de ter virado a casaca e se uma república de crianças e d� ovelhas. Os adultos e os adolescentes de
ter tomado um instrumento fanático dos inquisidores (I, 405). Guillaume Montaillou, de inicio prisioneiros no castelo, foram levados para a prisão
Belot disse um dia, sem rodeios, a Raymonde Arsen, quando de um dos de Carcassonne; alguns foram queimados nas fogueiras; outros
96 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR UMA CASA DOMINANTE: OS CLERGUE 97

pennaneceram muito tempo nas celas comuns, masculina ou feminina, Em 1 308, Clergue era, mais do que nunca, um agente duplo. Mas tinha
da prisão, com possib i l idade de receber encomendas de comida pennanecido herético de coração.
da parte da fam llia.
(victualia) Heterodoxo, para si e contra si, Pierre pretende ser, como sempre,
Os restantes prisioneiros foram Iibertados bastante rapidamente; o lfder e patrilo da rede de clientes, na sua aldeia e na sua região. Também
Inquisidor pennitiu-lhes regressar a Montaillou, para af viveram de a esse respeito, e apesar das incongruências inevitáveis derivadas da
futuro sob a autoridade ao mesmo tempo. protectora e ameaçadora do dureza dos tempos, a sua atitude pennaneceu a mesma antes e depois
clã dos Clergue. A aldeia, ou o que dela restava, deu consigo consolidada, de 1 308. Gratuitamente ou por dinheiro, consoante os casos, Pierre
a bem ou a mal, à volta do seu pároco, que envelhecia no estupro e na exerce as funções de protector de certas pessoas da terra contra os poderes
delação. Montaillou muti lado não era mais do que uma paróquia de de Carcassonne. Um dia em que o pároco se aquece ao sol à porta da
cruzes amarelas - essas famosas cruzes de pano que, de af em diante, os sua igreja, Fabrisse Rives vem anunciar-lhe ou denunciar-lhe, a
heréticos eram obrigados a usar, tal como os judeus usariam a estrela. heretização recente de que beneficiou AlazaTs Benet, à hora da morte
Pierre Clergue aproveitou as circunstâncias para ajustar algumas velhas (I, 324).
contas com os seus inimigos, os Maurs, vitimas da rusga. Mengarde Pierre reagiu prontamente: Cala-te, cala-te, diz ele a Fabrisse,
Maurs insinuou, então, que o passado do padre não estava absolutamente nao sabes o que di:es,· não há heréticos na regiao e, se os houvesse,
isento de heresia: já sabemos o que lhe aconteceu. achar-se-iam facilmente.
Visto por ele próprio, c nito pelas suas vitimas, Pierre Clergue Confundida, Fabrisse (a acreditar nela) vai confessar-se a um frade
projecta evidentemente uma sombra um pouco menos funesta. Não se menor que, por sua vez, finge estar admirado e não compreender:
considera um renegado. Vê-se mais como um vingador ou como um - E o quefaz o vosso pároco?, pergunta ele a Fabrisse.
justiceiro compensado na defesa da sua própria causa. Em 1 308, Imediatamente os frades menores intervêm junto de Pierre: Todo o
precisamente quando Béatrice, duns vezes viúva, está gravemente doente vosso distrito está cheio de heréticos, dizem-lhe.
em Varilhes (I, 234, 239), Pierre, a caminho dum sinodo diocesano, -Não conheço nenhum- responde o pároco com ar sério, no preciso
vem visitar, pela última vez, a sua ex-amante: elaé ainda uma amiga momento em que um certo perfeito, conhecido de toda a gente, se
muito querida. Senta-se na cama dela, pergunta-lhe pela sua saúde (má) pavoneia por Montaillou!
e pelo estado do seu coração; pega-lhe na mílo e apalpa-lhe o braço. O assunto fica por af - a Inquisição de Carcassonne é manipulada
Béatrice fala-lhe dos receios que a assediam, relativamente aos diálogos por Pierre Clergue, que só lhe denuncia os inimigos pessoais do seu clã;
heréticos que ambos tinham tido no passado. Confessa que, por medo, é mantida na ignorância; nunca lhe passou pela ideia convocar
nunca tinha ousado confessar a um padre esses diálogos dos bons velhos Fabrisse Rives.
tempos. Depois enche-se de coragem; pergunta ao abade por que motivo Depois da rusga de 1 308, toma-se diflcil para Pierre C lergue
persegue os seus a n t i gos a m i gos heréticos. Ele responde-lhe persistir no seu papel de protector ou de salvador dos seus amigos,
substancialmente o seguinte (ver supra, em pormenor, no texto): clientes, ou amigos de amigos, envolvidos em actividades heréticas. E,
«Não tenho qualquer má-vontade contra os bons-cristaos (heréticos), contudo, não renuncia inteiramente à sua função salvadora e protectora.
apenas me quero vingar dos camponeses de Montaillou que me fizeram Por duas vezes, como vimos, Pierre Clergue e os homens da sua domus
mal.>> deixam fugir o proscrito Pierre Maury; chegam mesmo a conceder-lhe
E, para melhor manifestar a persistência da sua fé câtara, a que as empréstimos! (') Ainda em 1 320, a poucos passos da sua queda, Pierre
denúncias a Carcassonne nl'lo causaram qualquer dano, Pierre repete retira as cruzes amarelas a Guillaume Mondon, de Ax (') , mediante
então a Béatrice uma das teorias que jâ professava na época dos seus cem tomesas de prata.
amores (1, 234, 239; I , 226). S6 Deus, diz ele à jovem mulher, pode Mas a Inquisição devora os seus próprios filhos, mesmo e sobretudo
absolver os pecadores e não tens necessidade de te confessar. quando têm o coração duplo, tal como C lergue. Em 1 320, Jacques

Oito anos antes - uando ainda era um câtaro não excessivamente Foumier desfere a sua última cajadada. Desta vez, até os mais antig�
envolvido na delação -, tinha declarado à mesma pessoa com um pouco heréticos de Montail lou, disfarçados de defensores da Igreja, silo
mais de pormenor: única confissão válida é aquela que se faz a
A desalojados dos seus recônditos covis. O bando Clergue conhece a sorte
Deus: Ele conhece o pecado antes de ser cometido; e pode absolvê-lo. daqueles que antes tinha denunciado, nos tempos em que procurava
A oito anos de distância, a comparação destes dois textos é decisiva. encobrir os seus amigos e proteger os seus interesses. Na agonia, dois
98 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR UMA CASA DOMINANTE: OS CLERGUE 99

clãs se despedaçam mutuamente e partilham entre si Montaillou: o clll 0 bailio (na qualidade de representante do senhor conde) aos humildes
Azéma-Guilhabert (representado por AlazaJs Fauré, Guilhabert de . súbditos deste; e também as que se tecem entre o pároco como tal e os
, ·_

nascimento) esforça-se por destruir o clã Clergue: AlazaTs acusa seus paroquianos. Mas estes diversos elos, senhoriais e clericais, teriam
Esclannonde, mulher de Raymond Clergue, de ter assistido à heretizaçilo pouca importância, se nao fossem submetidos pelas relações de amizade,
de Guillaume Guilhabert. Por sua vez, os Clergue envidam todos os de clientela e de parentesco que, por sua vez, se fazem acompanhar
seus esforços: do fundo da prisllo para onde foi finalmente atirado por pelos elos (antinómicos) da vendetta e da inimizade. A domus Clergue
Jacques Foumier, o pároco Clergue tenta utilizar a sua incontestável situa-se na encruzilhada de toda esta rede: sem serem nobres nem
influência junto da lnquisiçllo de Carcassonne. Manipula, através dos senhores, os homens desta casa acumulam as funçOes de bailio e de
seus parentes que ficaram na aldeia, o infeliz Bernard Benet, a fim de pároco; simultaneamente, assumem os papéis de amigo, de amante, de
obter deste um falso testemunho contra os Guilhabert-Azéma. Presta patrllo , de compadre e de parente influente, em relação a um grande
um falso testemunho ou serás queimado. Presta um testemunho falso número de habitantes da aldeia; e também os papéis de opressores e de
ou serás levado atado de pés e mãos para Carcassonne, dizem os inim igos perante uma fracção da população. Bernard Clergue e,
Clergue a Bernard Benet, sobre o qual Azéma exerce igualmente pressões sobretudo, Pierre Clergue reinarão em Montaillou durante um longo
eficazes em sentido contrário. Ao longo deste último episódio, a divisa perfodo, graças às domus que silo suas aliadas por sangue ou por
da famflia do pâroco mantém-se: Tudo pela domus e a donrus por todos... casamento; graças aos seus fiéis e àqueles que lhes são dedicados. Mas,
; mais vale o mal dos outros do que o nosso ( 9). Vãos esforços: chegou em Montaillou perseguido, o poder desgasta-se na medida em que se
a vez de os innilos Clergue apodrecerem e morrerem na prisão. Pelo corrompe. Os inimigos locais do clã. derrotados durante muito tempo,
menos Pierre Clergue, por razões que desconhecemos, guardou silêncio acabarão por se vingar dos Clergue. Contudo, durante o seu grande
até ao fim. Este homem que sabia muito, que sabia mesmo demais, reinado, o padre criou na sua paróquia - e inclusivamente em toda a
morreu sem falar ... ou sem que tenha sido redigido pelos escrivães região de Aillon e no Sabarthes - uma verdadeira maffia de amigos,
aquilo que ele tinha declarado ao bispo. Injustamente ou ni'lo, gostarlamos parentes e compadres e amantes (1 0). Pierre Clergue mostra-se prestável;
de acreditar que ele não tivesse sido torturado, como tantas outras protege as pessoas da região da Inquisição de Carcassonne de que é o
infelizes vitimas da Inquisição. agente; aliás, estes «serviços)) podem ser puramente negativos: em alguns
A queda deste impudente tfder montanhês, que o seu temperamento casos, Pierre Clergue limita-se a não denunciar certas pessoas à
lutador tomava tão diferente de um wlgar delator é, semelhante à queda Inquisição. Nilo fazer nada nessa conjuntura pode ser tão precioso como
de uma grande árvore na floresta. Lenhador diligente da Inquisição, um favor verdadeiramente positivo. Por um pote de vinho, o pároco
Jacques Foumier, que acabará por ser papa, tinha encontrado neste pa­ pode mandar retirar as cruzes amarelas a um antigo herético. Ou então
dre de aldeia um adversário digno de si. No fim de contas, não muito diz a uma mulher: ou donnes comigo ou denuncio-te à Inquisição de
mais imoral. Carcassonne (I, 279; III, 39 1 ).

Pierre Clergue, secundado pela sua domus, está na situação de
desonesto intermediário, na intersecção de dois sistemas. De um lado,
No final lógico de uma exposição sobre o sistema das domus, ·� o sistema da autoridade politica e espiritual, baseado nos poderes
colocamos a descrição das actividades da casa e do clil Clergue; estas --l
senhorial e feudal, eclesiástico, condal, etc. Já vimos que caracteriza a
conduzem-nos a certas reflexões de ordem mais geral sobre a natureza -; sociedade englobante, com as suas hierarquias regionais; sistema
e sobre o exerclcio do poder em Montaillou. Conceitos como os de policêntrico, implica o conde de Foix, a Inquisiçlo de Carcasso nne, os
feudalismo e de sistema senhorial conservam um certo valor neste agentes do rei de França... e finalmente (para desdita dos Clergue que
domlnio, uma vez que os homens e a aldeia estão inseridos numa rede se entendiam muito bem com estas três potências) o bispo de Pamiers ­
de obrigações senhoriais, decimais ou condais que envolve globalmente Jacques Foumier mostrar-se-â irredutfvel perante as manigdncias do
o seu microcosmos. No entanto, à escala da aldeia e da vida nonnal dos pároco. Este sistema hierárquico e Vertical tem as suas sanções, as suas
seus habitantes, estes conceitos apresentam um carácter bastante vago: forças de opressão. Montaillou corre o risco de ser extenninado. Depois,
a região senslvel em que o poder, em Montaillou, se exerce e se transmite face a este primeiro conjunto, estende-se, mais <<horizontah) do que
à <ebase)), passa, se assim se pode dizer, por baixo das estruturas feudais <<vertical>), o sistema de parentesco, de consanguinidade, de fraternidade,
e senhoriais. Há, de facto, as relações oficiais e hierárquicas que ligam de amizade-inimizade ou de amor-ódio que, em Montaillou, reagrupa
1 00 ECOLOGIA DE MONTA ILLOU: A CASA E O PASTOR UMA CASA DOMINANTE: OS CLEROUE 101

as domus da aldeia e dirige as suas relações mútuas. Entre os dois sistemas, de uma pequena nobreza rural dos Bocages, radicada nas terras do Oeste
local e regional, as comunicações, sempre precárias e perigosas, são francês, onde desempenha importantes funções comunitárias. Mas parece
estabelecidas através dos C Iergue, chefiados pelo pároco: o ostal C Iergue ser talvez mais frequente, ou estar mais generalizado (ainda que a este
conquistou, nesta conjuntura, uma posição estratégica que lhe concede respeito nos faltem os dados estatfsticos do âmbito da h istória
vantagens, riqueza, prestlgio e poderes; mas que implica um equillbrio quantitativa (u), as funções de /eadership, de apadrinhamento e de
instável, a expõe a perigos permanentes. patronato locais serem exercidas por mediadores que se situam a um
Mediadores entre a sociedade aldeã e a sociedade englobante, os nrvel imediatamente inCra-nobiliárquico e inCra-senhorial. O meio dos
Clergue têm, por sua vez. necessidade de mediadores e de protectores párocos de aldeia, que nem sempre têm a truculência de um Pierre
melhor situados do que eles e que tenham acesso aos poderes supremos Clergue, e o grupo dos funcionários senhoriais (prebostes no Norte de
da sociedade regional, subsumida na corte condal, o bispado, a França, e bailios no Sul), forneceu, como é evidente, muitos trderes
Inquisição. Só conhecemos alguns destes intermediários de mais alta aldeões e pequenos patronos do género dos que acabo de invocar.
categoria: a maior parte das vezes, embora nem sempre, trata-se de As revoltas camponesas do século XVII (e, por exemplo, as dos Néo­
nobres locais ou de padres, bem como de juizes e de prebostes senhoriais; -Croquants em 1 663 ou dos Nus-pieds em 1 639) dar-se-ilo precisamente
é uma cadeia de altas protecções deste género que Bernard Clergue - quando estes Jeaders locais, consc i e n tes das suas responsa­
aliás em vão - tenta pôr em funcionamento, untando mãos, por altura bilidades, romperem com a sociedade englobante: passari'lo com armas
do encarceramento do pároco (1 1 )... Um pouco por toda a parte, na Occitãnia e bagagens, juntamente com as suas clientelas rurais, para o campo dos
pirenaica ou pré-pirenaica, maffias de párocos, de bailios, de pequenos revoltados.
senhores locais, de grandes agricultores e de amigos de amigos, tentam, Voltando ao caso concreto de Montaillou, a nobreza enquanto tal
e por vezes conseguem, fazer frente às iniciativas da Inquisição e às não está verdadeiramente comprometida nos papéis indispensáveis de
opressões franco-eclesiásticas. O êxito, contudo, só em parte é obtido: mediador e de dirigente montanhês. Quando muito, a castelã serve de
entre o sistema de amizade-parentesco-clientela que reina na aldeia de prémio disputado das lutas locais; a ex-c�telã funciona como objecto
Montaillou, e o sistema, também ((Clientelista», baseado na autoridade de consumo ostentador dos desejos de um pároco-lfder que dela retira
polftica e na opressão eclesiástica, que emana da sociedade englobante prazer e prest(gio; os outros nobres da região, estilo demasiado afastados,
{11}, as relações são extremamente tensas. Tal é a divergência de valores são demasiado indiferentes ou demasiado insignificantes para servir de
(valores cátaro-camponeses contra valores católico-urbanos). Tão grande guia à comunidade na fronteira perigosa que a defronta com a sociedade
importância adquire, do mero ponto de vista geográfico, a proximidade englobante ('�).
dos antagonismos (Carcassonne e Pamiers, contra Montaillou e o Na situação tensa de Montaillou, as lutas entre domus pela conquista
Sabarthês). Esta proximidade toma ainda mais imediatos os perigos de das funções de Uder e de mediador, implicam {por parte dos candidatos
conflagração. Montaillou, que está longe de ser u m bloco sem fissuras, a esse posto) atitudes extremamente competitivas, «técnicas de agressão
deve, pois, rodear-se de todos os recursos do segredo e da ficção, abertas ou encobertas», <<a formação e a rápida desagregação de blocos
desfraldados sob a égide do clã confabulador e trapaceiro dos Clergue, de riqueza e de poder» (").
a fim de aparar os golpes vindos do exterior: por fim, o sistema, ou A resistlvel ascensão e a derrocada final, ou pseudo-final, da casa
melhor a junçllo dos dois sistemas, desmorona-se. Mas o historiador Clergue ilustram perfeitamente os comportamentos deste tipo. A luta
das sociedades camponesas pode facilmente diagnosticar noutros lugares, pelo poder, ou pelas chaves do poder em Montaillou, nllo passa
e noutros tempos, conjunturas mais calmas: u m certo mediador poderá, evidentemente pelos valores burgueses da poupança e da ascese do
ao longo da sua vida, regular sem grande dificuldade as relações com a trabalho; nem por uma economia m iserabilista, obcecada com a
aldeia de que é chefe, por u m lado; e, por outro, com os poderes da acumulação de tostões; implica, pelo contrário, capacidade de agredir,
sociedade englobante (sendo estes representados, j unto de um mediador trair, derrubar alianças; em Montaillou o poder concede àquele que
h
rural como Edme Rétif, em 1 750, pela i tcndência, pela comendadoria dele se apodera gratificações deliciosas, mas precárias e sujeitas a ser
do templo e pelo clero jesu(ta ou jansenista). revistas. Vale mais, sem dúvida, dominar na aldeia do que ocupar uma
Em certas situações, o mediador entre comunidades aldeils e posição subalterna numa cidade ou numa povoação importante. Mais
potências externas pode ser u m senhor nobre: é o caso do Sire de vale ser o primeiro em Montaillou do que· o segundo em Pamiers ou o
Gouberville, na Normandia; este senhor é provavelmente representante terceiro em Tarascon-sur·Aricge. Mas nesta pequena freguesia da região
102 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR Capítulo IV

de Aillon, mais do que em qualquer outro lado, o Capitólio fica perto da OS PEQUENOS PASTORES
Rocha Tarpeia; e o poder há-de, em breve, em 1 32 1 , passar para outras
mãos. Pelo menos momentaneamente.

(l) Ver n este respeito Pierre Mnury (lll, 193).


(1) Segundo F. Oiraud, op. clt.

(') III, 288. Ver 11 fortuna, compativel, de um padre rico (11, 484).

(5) 11, 1 87. � verdade que Pierre Maury tem Pierre Clergue «seguro» por umaposslvel
(') I, 476. Ouillnumc 6 o irmllo do abade,

chantagem, rcspeitontc às suas antigas c comuns relações câtaras: (11, 69).


(') lnfra, cap. IX.
(') 11, 176 c 1 8�1 87.
(') I, 1 79. Sobre os cruzes amorciiiS (atiradas para os silvados), ver tam�m 11, 177;
1; 453.
{') I, 399. Ver tam� cm 11, 283·284, o «quem câ ficar que se governe» de Bcmard
Clcrguc (que nllo teve filhos).
(1'? Por vezes M uma acumulaç&> de �is. Béatricc de Planissolcs I! simulllUICamCntc
O conjunto das domus que examinamos até aqui situa-se em grande
(11) 11, 282. Ver também a absolviçllo de P. Maury, obtida por uma cadeia de protecções
amante c comadre de Pierre Clerguc (I, 253).
parte num mundo clássico de agricultores enraizados. Mas o nosso estudo
anAioga (í'lfra, cap. IV c V).
(1l) Ver Pitt-Rivers, Peop/e ofthe Sie"a, p. 213. não se pode cingir ao estudo desta sociedade agrrcola que, só por si, não
(1') Muito dependeria, n este respeito, do facto de o senhor residir ou nilo na terra. contém toda a verdade de Montaillou. A aldeia pirenaica inclui
(1") Em Junac (alta Ari�c), onde residem os senhores de Junac (que formam urna fmnllin igualmente lenhadores, que levam uma vida de cão: também estes são
(15) E. Wolf. Petuants. . , p. 8�88; A. O. Hirschmann, p. I 5 c passim.
de Cltõtelõcsc de senhores residentes), asitunçllo é diferente.
. agricultores, ou mesmo pastores, nos intervalos; mas este grupo,
enquanto tal, não é praticamente contagiado pela heresia, pelo que não
atrai muito a atenção da Inquisição. Deste modo, sabemos pouco a seu
respeito.
Em contrapartida. conhecemos bem os pastores. Silo (relativamente)
numerosos na aldeia - encontramos uma dezena de pastores,
nomeadamente designados como tais, em pelo menos oito famllias de
Montaillou. Citarei, entre eles, Guillaume Pellissier, Guillaume Belot,
Guillaume Guilhabert, Jean Marty, Pierre e Guillaume Baille, Pierre e
Jean Maury, Guillaume Maurs e um dos Benet (1}. Entre as ocupações
nllo <eagricolas» no sentido estrito do termo, a profissi'lo de pastor é a
mais frequentemente mencionada em Montaillou (2).
O termo ccpastor>>, em si, é ambfguo. Nas aldeias da alta Ariêge,
como Montaillou ou Omolac, todos, em certo sentido, silo pastores,
porque todos são mais ou menos criadores de gado. Falando diante dos
homens da sua comunidade, reunidos sob o ulmeiro do largo, o bailio
de Omolac, Guillaume Austatz, tem plena consciencia desse facto: em
vez de queimar os heréticos, exclama ele, dever-se-(a antes queimar o
bispo Fournier, que exige de nós os dízimos dos cordéiros, ou carnelages
(I, 208-209). Ao pronunciar estas palavras sacrflegas, Guillaume Austatz
transforma-se no porta-voz de uma colectividade de agricultores­
-criadores de gado, possuidores do solo e das domus, mas também
proprietários de rebanhos: estes homens funcionam muitas vezes como
1 04 ECOLOGIA DE MONTA ILLOU: A CASA E O PASTOR OS PEQUENOS PASTORES l OS

proprietários de rebanhos: estes homens funcionam muitas vezes como fiquei com essa Brunissende e as suas ovelhas durante quatro anos e
pastores por conta própria; são ajudados n esta actividade pelos fi lhos. dois meses e meio . {11, 476). Gui llaume Bélibaste, da mesma forma,
..

Contudo, o que me interessa neste capitulo nlo é a sociedade de «tomou a draille>> depois de um pugilato levado demasiado longe. O
criadores de gado em gera l: jA tivemos oportunidade de os conhecer, já culpado era e le: na zaragata tinha morto um pastor. Abandonou, pois, a
visitamos as suas domus. Interessa-me aqui o gru po dos pastores sua rica exp loração rural e a sua domus paterna de Cubiêres. Tomou-se
itinerantes, que atravessam o mundo em· equipas volantes ('); estes pastor {6), depois perfeito... Só mais tarde se fixará, como profeta de
formam um semi-proletariado rural e nómada, sem eira nem b eira; têm, uma pequena colónia albigense, na Catalunha; trocará ai o seu mister
no entanto, as suas tradições próprias, o seu orgulho, as suas concepções de pastor pelo de fabricante de pentes de cardar.
particulares da liberdade montanhesa e do destino. Fazem parte, a t itulo De uma maneira um pouco diferente, Bernard Benet é outra vitima
provisório e definitivo, da vasta emigração pirenaica, que a pouco e de um processo social de mobi lidade descendente {'). Vem de uma boa
pQuco reflui para as terras baixa $, sobretudo em direcção ao território casa de agricultores-criadores de gado, abastada, em Montaillou. Mas
espanhol e>. esta famllia foi arruinada pela Inquisição; as terras da domus Benet
Evoluem no quadro dos poderes existentes; nas suas caminhadas foram con fiscadas e entregues ao c on d e de Foix; silo, na realidade,
de a ldeia em aldeia situam-se entre as redes das domus, junto das quais administradas pelo bailio Bernard Clcrgue. O resultado mais evidente
en c ontram cump licidades f a vorá veis : Pi err e M aury, p a stor d e d esta operação foi o aumento de bens da casa C lergue em d etrimento da
Montai llou, percorre a Aude (actua l) ou a Catalunha; conserva, todavia, casa Benet (outrora aliada. indirectamente, da anterior). Quanto a Ber­
certas re lações, e mesmo a segura protecção do clã dos C lergue nard Benet, viu-se imediatamente relegado para o proletariado dos
(11. 1 76). In versamente, a vi d a d os pastores d e a lta montanha é pastores. A sua situação material e moral é pouco brilhante: na época
d i ficu ltada pelas guerras privadas dos senhores locai s da vertente em que os inquisidores de Pamiers se interessam pela sua pessoa, vive
espanhola; estes pequenos abutres nobi l iários e pirenaicos estão sempre apenas da criação de gado lan igero ; e, em Montai llou, enc ontra-se
prontos a despedaçar-se com unhas e dentes, como nos tempos áureos entalado entre dois clãs: o c lã dos C lergue quer obrigar o in feliz Benet
da .época feuda l. Não ha veria mal d e maior nesses conflitos entre a pro ferir diante da Inquisição de Carcassonne um fa lso testemunho; e
poderosos, se os pastores em transumância não tivessem de so frer as o clã Azéma, inimigo dos C lergue, quer coa gi-lo a retractar esse
consequências. Basta surgir uma guerra p rivad a deste género, entre depoimento. Bernard Clergue, que neste assunto segue as instruções do
Gui llaume d ' Entensa, senhor d e Casteldans, e um outro senhor de quem seu irmão pároco, promete a Bernard Benet devolver-lhe um dos seus '·'
não sabemos nada a não ser que se chamava Nartês ou En Artes ... para prados con fiscados : espera obter a sua cooperação. Por sua vez, Pierre
que os irmãos Maury sejam obrigados a fugir com os seus rebanhos do Azéma utiliza mais a violência do que o suborno: confisca a Bernard
território de Casteldans (11, 479; III, 1 95). Benet os seus preciosos carneiros, que são a sua última riqueza, a fim
Muitos destes pastores errantes são originários de M ontaillou: de o influenciar em sentido contrário. Por fim, Bernard Benet é preso.
conhecemos a lguns. Silo, p or vezes, suspeitos ou simplesmente instáveis; Evade-se em s eguida do burgo de Mas-Saint-An t onin, onde s e
tomaram a estrada, a draille (') ou mesmo o bosque, em consequência encontrava sob residência vigiada {I, 408). Depois de uma volta p or
de uma rixa ou de uma discórdia: um d eles, Jean Maury, envolveu-se Cerdagne, é apanhado de novo em Ax-les-Thermes: com e feito, Pierre
numa zaragata com outros pastor es e explica com toda a simplicidade Roussel, de Ax-les-Thermes, e a sua esposa A lissende, tinham-no
como este incidente o confirmou no seu amor in veterado pela vida denunciado. Esta A lissende é a irmã de Gai llarde Benet, mulher d e
errante: envolvi-me, conta e le, numa rixa com pastores de Razes. Fiquei Pierre Benet, por sua vez irmão do nosso Bernard . Bernard foi, p ortanto,
forido. Um certo Yézian, que estava nesse tempo em casa de Raymond denunciado pela irmã da cunhada. Não foi uma acção muito simpática. ..
Lizier, de Montaii/ou, tomara o meu partido nessa querela. Fui fazer mas é explicável: A lissende e Gai llarde tinham sido ambas , em épocas
queixa, a propósito dos meus ferimentos, a Bernard Clergue, que era diferentes, amantes do pároco Pierre Clergue; trarram as suas ligações
então bailio de Montaillou pelo senhor conde de Foix: \queixei-me legitimas à casa dos Benet, para se trans formarem, nos diversos sentidos
também ao castelão de Montaillou. Este não me quis fa::er justiça da da expressllo, em executoras das ordens dos C Iergue; de amantes, tinham
injúria que tinha sofrido da parte desses pastores do Razes. Por essa passado a delatoras. O harém de Pierre C lergue contribu la, assim, para
injustiça que me era feita, deixei Montaillou, fui a Puigcerda e a prosperidade da sua domus. Quanto a Bernard Benet, tinha dado uma
assalariei-me como pastor em casa da senhora Brunissende de Cervello; queda irremediável: este filho-fam ilia, destinado à partida a um futuro
1 06 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR OS PEQUENOS PASTORES 107

de proprietário-agricultor, vê-se afinal um simples pastor, à mercê dos Existem, no entanto, pastores por vocação; alojam-se sem
diversos clls da sua paróquia. Nestas condições, pode considerar-se complexos (porque filhos mais novos ou membros de famflias pobres)
feliz por sair ileso das garras pesadas dos inquisidores <->· no estrato inferior da sociedade rural; estao relativamente adaptados à
sua sorte; podem mesmo, em alguns casos exemplares e bem conhecidos,
ser felizes e orgulhosos de ser pastores ... Entre eles, conhecemos

especialmente bem Jean Pelissier; e melhor ainda Pierre Maury.
Outro pastor, outro que desceu de classe, à imagem de Bernard Jean Pelissier, filho de Bernard Pelissier, de Montaillou, toma-se
Benet, mas que caiu mais baixo: Ouillaume Maurs. Também ele provém guardador de rebanhos, profissional, aos doze ou catorze anos.
de uma digna domus de agricultores de Montaillou arruinada pela (Efectivamente, era a partir dos doze anos que os pequenos camponeses
Inquisição, graças, como é habitual, aos bons oflcios da casa Clergue. de outrora começavam a ser responsáveis pelas ovelhas: estamos em
O pai e os irmãos de Guillaume Maurs silo presos. A mãe, Mengarde, presença de uma cclonga» educação da criança rural.) Para os seus
tinha a língua demasiado comprida em relação aos Clergue, cuja modestos primeiros passos na profissão, os pais do jovem Pelissier
juventude herética r>. imprudentemente, evocava: estes cortaram-lha. puseram o filho como aprendiz, longe de casa, em Tournon (1 1 ): a
no sentido literal do termo. Ouillaume Maurs, por seu lado, consegue primeira patroa do pastor-aprendiz é uma mulher, chamada Thomassia
evitar a prisão e os supHcios. Fugitivo, vagueia de desfiladeiro em e, provavelmente, viúva.
desfiladeiro e de montanha em montanha. do condado de Foix para a Nos primeiros tempos da sua vida, o jovem Pelissier não parece
Catalunha e vice-versa; alimenta mais a vingança no seu coração do ser dotado de uma inteligência particularmente brilhante; não faz grande
que a heresia na alma. (A sua ausência de zelo cátaro é ilustrada pela figura, ao lado do seu companheiro, o pastor Pierre Maury, de esplrito
declaração pouco simpática que faz ao perfeito Ouillaume Bélibaste: muito vivo. De qualquer modo situa-se no Antigo Regime intelectual
1
prefiro comer tripas a andar com vocês (11, 1 87). Não hâ nada de das classes inferiores - ignora o apelido da primeira patroa ( 1) de quem
estranho nisto: o errante Ouillaume Maurs quer matar os Clergue, que sabe apenas o nome próprio, Thomassia; é incapaz de citar a idade
arruinaram a sua domus; pouco se importa, no fundo, com os destinos exacta com que entrou para este primeiro emprego; é igualmente
do albigismo, por causa do qual, contudo, a Inquisição prendeu a sua impreciso quando lhe perguntam quanto tempo durou esse emprego:
famllia.) Pastor e descontente pelo facto de o ser, Guillaume Maurs estive cinco ou seis anos em casa de Thomassia, responde.
relembra constantemente os esplendores passados da sua I inhagem; estes Com a idade de dezoito anos, Jean Pelissier, então jâ pastor
foram bastante modestos, na verdade, mas a distância embeleza-os, confirmado, regressa à casa familiar, onde vive, durante um perfodo
envolvendo-os em névoa. A vida transumante dâ a Guillaume Maurs indeterminado, em companhia da m!'le Alazais e dos irmãos Raymond,
ocasião de frequentar diversas comunidades queijeiras de pastores de Guillaume, Bernard e Pierre. Frequenta então, além da sua própria
montanha. Esta vida terminará mal para ele: acabará por se deixar domus, quatro casas vizinhas ou parentes.Nunca encontrei nessas casas
apanhar em Puigcerda. Dai, o vigário do rei de Maiorca transferi-lo-à nenhum estranho ou herético, declara, sublinhando o carácter um pouco
para as prisões do bispo Fournier (111). fechado dessa sociabilidade.
Embora o cln:ulo de relações do jovem pastor seja reduzido, a sua
• <<err4nci31> é, em contrapartida, ilimitada. Abandonando de novo a casa
materna, Jean Pelissier emprega-se como pastor em Niort (ll), em casa
Os pastores Bélibaste, Maurs, Benet representam casos de de Guillaume Castellan, durante dois anos; depois trabalha em Mompret,
despromoçlo social; acontece que estes casos têm um valor mais do que para Raymond Jean, um ano (III, 1S sg.). A duração dos contratos é
individual ou puramente local: vejamos a este respeito, e fora de curta: na Occitinia rural, patrões e assalariados parecem chegar
facilmente a um acordo e depois desfazê-lo passado pouco tempo (14).
I
Montaillou, a longa, apl\ixonante e m iserável biografia do pastor
Bernard Marty, de Junac (III, 2S3-29S); nascido no seio de uma rica Neste domlnio, está-se bem longe das relações de servidão.
famllia de ferreiros, que será levada à falência pela Inquisição e pelos Depois de ter terminado o seu contrato com Raymond Jean, Jean
seus esbirros, Bernard Marty ver-se-á reduzido a guardar carneiros em Pelissier (toma-se um hábito!) volta outra vez a Montaillou; emprega­
casa de uns e de outros, em bolandas daqui para ali, a maior parte das -se - desta vez em casa de outrém - como pastor na casa de Bernard
vezes desempregado. Maurs (III, 75, 76). Estes Maurs ainda são seus parentes, uma vez que
OS PEQUENOS PASTORES 1 09
108 ECOLOGIA OE MONTAILLO U: A CASA E O PASTO R
casou com uma sobrinha do pároco Pierre Clergue, que imediatamente
foi a propaganda feita pela sua tia Maurs que converteu por um momento
Jean Pelissier às ideias: entre o agricultor e o seu pastor assalariado, a
se arvorou em protector do jovem casal (III, 77). Na região de Aillon,
. todas as estradas, mesmo as da migração dos pastores em busca de
distância social, ou familiar, é, por vezes, reduzida.
emprego, vão dar mais cedo ou mais tarde ao pároco Clergue...
Os raios da Inquisição, entretanto, abatem-se sobre a casa Maurs,
Finalmente, depois de muitos anos de vagabundagem, Jean Pelissier
para grande terror do pastor que a serve: o meu patrão Bernard Mours
acaba por regressar definitivamente a Montaillou, sua aldeia natal.
e a sua mãe Gui/lemette. conta Jean PeliSSier ("). foram presos por
Integrado desde então na vida da sua comunidade, possui a sua própria
heresia nessa época. Pierre Maurs, seu irmão e vizinho, e outro Pierre
casa familiar. Podemos vislumbrá-lo de vez em quando, deitado em
Maurs (filho deste) estiveram detidos dJtrante algum tempo na prisão
frente da porta, quando, por acaso, uma doença ai o retém (III, 79).
em Carcassonne, Os outrosfilhos de Pierre Maurs - a saber, Bernard e
Apanha sol, estirado, numa sesta enfermiça.
Gui/laume (16) - também/oram para a prisão de Carcassonepor heresia.
Mas, a maior pane do tempo, anda normalmente de pé, quer na
Um outro Pierre Mours, filho de Bernard Maurs, fugiu de Montaillou .
Pnmavera, antes do defeso dos prados; quer no Verão, depois da ceifa
(cm 1308) depois da rusga da lnquisiçJo contra os heréticos locais e
(III, 84). Pastor «abastadO)), possui agora as suas próprias ovelhas. Mas
faou-se na Catalunha. Voltou a Montaillou há dois anos (em 132 1 ) a
- e eis o que põe imediatamente limites ao seu modestissimo êxito - é
fim de casar com uma das filhas de Gr�illaume Authié, de Montaillou
nas pastagens alheias que ele apascenta o seu rebanho pessoal. Uma
(o qual está agora preso por heresia em Carcassonne). Antes de voltar
pequena cena desse género, tipicamente montailunesa - que testemunha
para a Catalunha. o quefez recentemente, Pierre Maurs viveu na a/eleia
até czo inicio deste Inverno e eu evitei cJlidaclosamentefez/ar-lhe. Estas a favor da acuidade visual do pastor, tão marcada quanto era vaga a sua
alma cronológica - situa Jean Pelissier no meio dos prados. Começa
prisões e actos de opressão (a que se deveria acrescentar a abcisão -já
pelas habituais imprecisões temporais (II I, 84): Seria no ano (I 308) em
mencionada - da Hngua de Mengardc Maurs) derrubam a família Maurs
c reduzem os seus membros à prisão, ao cxllio, à despromoção social ou
que todos os homens de Montaillou foram levados na rusga da
ao. desespero: o testemunho de Pelissier, pastor dos Maurs, dispensa
lnquisiçao de Carcassonne, ou no ano anterior? Já nilo me lembro
comentários sobre a tragédia, cada vez mais dolorosa e silenciosa, que
muito bem. Seria no VerJo, depois do corte dosfonos ou na Primavera,
envolve a existência em Montaillou, entre 1 305 e 1 320. Jean Pclissier
antes do defeso dos prados? Também já não me lembro muito bem.
vê à sua volta os golpes da Inquisiçtlo dizimarem os parentes dos seus
Esiava com as minhas ovelhas, num lugar conhecido por Combe de/
patrões. Decide então - seguindo a sua vocação natural de pastor -
Gaze/, no prado de Guillaume For/ e dos irmãos. (Guillaume Fon será
queimado como relapso, em 1 32 1 (17)). Eu estava do lado esquerdo
fazer-se ao largo. Vai assentar arraiais erri Prades d' Aillon, aldeia que,
a uma légua de distância, está quase tão coiuaminada pela heresia como
desse pradoj�nto do caminho que vai ter às pastagens de montanha de
Montai llou: depois de ter deixado o serviço de Bernard Maurs,
Montaillou. A direita do dito caminho, estava Pierre Baille, filho de
Raymond Baille, de Montaillou: Pierre Baille apascentava as suas
empreguei-me, na aldeia de Prades d'Aillon, em casa de Bernard Malet
e dos seus filhos, Bernard, Raymond e André (III, 76). Outro azar: ovelhas no prado de Bernard Marty (o que tem a alcunha de «Cabra»):
estava eu há cerca de dois meses na casa de Bernard Malet pai, quando estava lá também Jean Marty, de Montail/ou: cujas ovelhas pastavam
estefoi citado pela lnquisiçao de Carcassone, que, em seguida, o meteu no prado que lhe pertence e que pega com o de Raymond Marty. Ai por
na prisão, onde acabaria por morrer. Desta nova catâstrofe, que mais volta do meio-dia, apareceram no dito caminho, vindos de Montaillou,
uma vez ati nge os seus patrões (os Malet, depois dos Maurs), Jean
Arnaud Vital, de Montaillou, com uma sobreves/e azul por cima da
Pelissier consola-se o melhor que pode, dizendo a Jacques Foumier
túnica, e um machado ao pescoço, graças ao qual mantinha em
que, de qualquer forma, nenhum dos ditos filhos de Bernard Malet foi equilíbrio um grande feixe de lenha que também trazia ao pescoço:
alguma vez perseguido por heresia. .
com ele vinham dois homens, que traziam ambos uma capa, com capuz
Pequena compensação! Ao trocar Montai llou por Prades d'Aillon, sobre um trajo azul ou verde: também eles traziam um machado ao
Jean Pel issi er nllo tinha verdadeiramente saldo da rede fami liar e ombro. Arnaud e os companheiros aproximaram-se atravessando o
catarizante dos M aurs, dos Clergue, dos Malet ... Nllo obstante as prado dos Belot. Ao chegarem aí, descobriram-nos, a mim e aos meus
dissensões internas, esta rede tecia, de aldeia em aldeia, uma teia de camaradas, Pierre Baille e Jean Marty. Arnoud aproximou-se de Pierre
cumplicidades heréticas e famil iares: Bernard Malet júnior, de Prades, Bail/e, cumprimentou-o o este devolveu-lhe o cumprimento.. . como,
E
filho de Bernard Malet sénior (patrlo encarcerado de Jean Pelissicr), naquela altura, Arnaud era guarda campestre de Montaillou,
1 1 0 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR OS PEQUENOS PASTORES III

Pierre Maury, o bom pastor


repreendeu Pierre Baille e Jean Martypor deixarem as ovelhas divagar
pelos campos semeados. Gracejando, Jean disse a Arnaud:«Aqueles
Pierre Maury, nascido por volta de 1 282-1283, é filho de Raymond
dois lenhadores serão de Lave/anel... ?» A cena é excelentemente
Maury, tecelão de Montaillou, e de sua esposa Alazars. A casa Maury
descrita pela testemunha, que também é actor. Revela-nos o pequeno
era uma domus clássica, como algumas outras que havia na aldeia. •
mundo dos pastores de Montaillou, no século XIV: exploram os seus
Raymond e A lazars tinham gerado seis filhos, com os nomes de
respectivos prados, dedicados à ceifa e à ·pastagem, que se dividem
Guillaume, Pierre , Jean, Amaud, Raymond, Bernard, aos quais se devem
entre o infield semeado da paróquia, c o longfnquo outfield das altas
acrescentar pelo menos duas filhas: Guillemette, que fará um mau
pastagens. Esboça-se uma estratificação social entre (A) pastores que
casamento com o carpinteiro Bertrand Piquier, de Laroque d'Oimes.
apascentam as suas ovelhas (e as dos outros), no prado de outrém; e (B)
pastores-agricultores-proprietários, que guardam os carneiros no prado
E Rnymonde, que casará com Guillaume Marty, de Montaillou. Ambas
contrairão casamento com dezoito anos ou menos.
familiar que possuem de pleno direito (11). Mas estas diferenças, mais
Em Montaillou, como noutros lados, os nossos textos praticam o
ou menos subtis, não impedem a criação de equipas ou de cooperativas
chauvinismo mascu lino ... e adulto; não mencionam, portanto, a
informais entre pastores associados (socii), originários de diversas
existência de certas raparigas, a presença de bebés ou a morte de crianças
camadas d a referida estrat i ficação. Para além destes pequenos
muito pequenas. Assim, o total de oito nascimentos, na famma Maury,
agrupamentos de base, o texto evoca as servidões colectivas, respeitantes
deve ser considerado um número m lnimo. Apesar da profissão,
à aldeia na sua globalidade: a pastagem é regulamentada pelo defeso
teoricamente não-agrfcola, que o tecelão Raymond Maury exercia, a
dos prados de ceifa; as sementeiras são guardadas por um guarda
famrti praticava um género de vida misto, à base de criação de gado,
comunal a meio-tempo, que também repara calçado e corre atrás das �
de agrtcultura e de artesanato. Ao chegar aos dezoito anos de idade,
raparigas ( 1 9). O tempo deste universo alde1lo decorre numa cronologia
Pierre Maury ainda é só um pequeno pastor de Montaillou. G uillaume
vacilante, desenhada na incerteza, ao ritmo das catástrofes inquisitoriais
Maury, seu irmão, trabalha como lenhador: Há vinte e três anos, conta
ou dos trabalhos relacionados com as pastagens: rusga de 1 308, defeso
Pierre Maury no seu depoimento de 1 324, guardava as ovelhas de
do feno e ceifa dos campos constituem as referências temporais, aliás
pouco seguras, do pastor Jean Pelissier (-0). Aparece também por um
Arnaud Fauréde Momaillou e de Raymond Mallen, d'Arques, nas terras
instante, no campo de visão do pastor, o mundo para nós pouco conhecido
de Montail/ou. Guil/aume Maury. meu irmão. e Guil/aume Be/ot. de
dos lenhadores, de machado e feixe ao ombro. Mas a partir da( é tudo Montaillou, que já morreram, iam ao bosque de A usa apanhar
falso. Porque os dois lenhadores que Pelissier menciona não são madeira (-!). Nesta época, Pierre Maury estabelece os primeiros
verdadeiros homens dos bosques: são Perfeitos! Quando da sua passagem contactos com a heresia, através precisamente do seu irmão, Guillaume,
e do clã dos Belot, sempre decisivo no que respeita à difusão do catarismo
instantânea pelo nosso texto, vão a caminho da protecção da floresta,
depois de uma breve estadia clandestina em casa dos Belot: um deles é na aldeia. Estes contactos assumem a forma de uma pregação - semi­
Prades Tavernier, frequentemente encontrado nos meandros dos -evangélica, semi-kantiana avant la lettre - feita a Pierre pelos dois
lenhadores: Guil/aume Belot e Guil/aume Maury. prossegue Pierre,
caminhos da região de Aillon; o outro é Guillaume Authié, o célebre e
corajoso notário de Ax-les-Thermes, que um elo conjugal e de aliança vieram ao meu encontro e disseram-me:
liga directamente a Montaillou. Sua mulher, Gaillarde, é, com efeito,
- Os bons cristãos vieram a esta terra; seguem pela via de
filha de Arnaud Benet, de Montaillou, importante membro do ela S. Pedro, S. Paulo e dos outros apóstolos: seguem o Senhor; não mentem;
dos Benet. não fazem aos outros o que não gostariam que os outros lhes
fuessem a eles.
A carreira do pequeno pastor Jean Pelissier está assim ligada e Neste tempo, Pierre Maury, que recebe este discurso herético em
religada às diversas famrtias da sua aldeia A do pastor Pierre Maury,
pleno rosto, ainda é apenas um jovem, que pratica devotamente o culto
pelo contrário, está totalmente aberta às grandes viagens; disponfvel
, dos santos. Fazendo um exame de consciência, rememora o seu passado
para as aventuras, os amores passageiros e, sobretudo, a amizade. Merece próximo: acabava de tosquiar as minhas ovelhas, já tinha dado um
alguns pormenores: efectivamente, a biografia desta personagem tosão de lã a Santo António e outro à V'ugem Maria de Montaillou.
identifica-se com a grande transumãncia, base da economia pirenaica Sobrava·me ainda um pouco de lã parafa=er umas roupas para mim.
desse tempo (-1). O meu irmão e Guillaume Belot disseram-me então:
1 12 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR
OS PEQUENOS PASTORES 1 13
convidados de Raymond Pierre nesse dia descobrimos, com efeito,
Raymond Maulen, primo e primeiro patrão de Pierre Maury em Ar�ues; de pilo, peixes e vinho. Ao saber da chegada do pastor, manda-lhe dizer
Bernard Vital, habitante do vale de Arques, mas natural de Monta1llou que entre, levanta-se em sua honra e depois volta a sentar-se; oferece­
(primo de Amaud Vital, sapateiro-guarda campestre, sedutor de lhe um pedaço de pllo, abençoado pelas suas mãos. Para Pierre Maury,
. cuja colecção de fragmentos de pão benzido por diferentes perfeitos
raparigas e câtaro notório). Descobrimos também Guillaume Escaumer,
criador de gado de Ax-les-Thennes, trazido a Ar�ues por �uestões será, em breve, célebre em todos os Pirenéus (U), é uma verdadeira
. fortuna. Em seguida, conta Maury,
despedi·me e voltei aos meus
relacionadas com a transumância, e também Marqu1se Escaum�r, 1rmã
de Guillaume. O irmão e innil Escaunier eram amigos dos Auth1é: fora carneiros, munido da minha provisão de pão, o bento e o não bento.
em casa de Marquise que, outrora, Guillaume tivera ocasião de conhecer Oito dias mais tarde, Pierre Maury que, entretanto, tinha subido
Pierre Authié, nesse dia ocupado a fritar peixes (11, 12, 1 3). para as suas pastagens, desce de novo a Arques para buscar, uma vez
Pierre Maury é convidado sem cerimónia para o jantar de Raymond mais, a sua provisilo de pilo (estes pastores são grandes devoradores de
Pierre. Para dizer a verdade, o seu estatuto de criado-pastor faz com pão). Em casa do patrao, o nosso pastor encontra Guillaume Bélibaste,
que ele nem sequer precise de ser convidado, visto que é membro absoluto rico proprietário agricultor de Cubiêres; é o pai de Guillaume Bélibaste
da famllia. De tal modo, de resto, faz parte da famllia, como t�os os júnior, perfeito ou pseudo-perfeito, por quem, mais tarde, Maury terá
criados de lavoura dessa época, que, tendo ensejo disso, nã� �es·� em uma tão viva e constante afeição (III, 1 94). Guillaume Bélibaste pai e o
insultar a patroa, fazendo coro com o patrão: má mãe, demomo, gntará nosso pastor deixam, então, a casa de Raymond Pierre para se dirigirem
à de Raymond Maulen. AI encontmm·se com Prades Tavernier que,
ele ocasionalmente a Sybille Pierre (11, 4 1 5).
Em suma, nesse grande jantar, numa cozinha de domus .
da reg1ão naquela semana, se escondia em casa dos Maulen, por trás dos tonéis
de Aude, participavam (além de Pierre Maury) os membros de qua�ro da cave. Os diversos diálogos relativos a este encontro, ao longo dos
grandes linhagens heréticas e camponesas, do v�le de Arques e d� reg1ão quais G u i llaume Bél ibaste tem oportunidade de fazer o seu
de Aillon; a saber, os Vital, os Maulen, os P1erre, os E� caumer. �o melioramentum a Prades Tavemier, são pretexto para uma descrição
compartimento do lado (no quarto ao lczdo da cozinha) P1erre Aut� lé,
•.
viva dos cantos e costumes da clomus, de Raymond Maulen, que, como
0 «senhor» dos heréticos, e dois homens {heréticos) de L1moux com1am
se devem recordar, foi o primeiro patrão de Pierre Maury, após a sua
peixes, passando, de vez em quando, alguns bons bocados � Ra� mond partida de Montaillou (111, 128, 129 e supra).
Pierre, na suafoganha. Durante a noite, Pierre Maury fo1 vluma do O encontro único mas decisivo com Pierre Authié, o notário
e:xcelente <<ambiente)) que reinava. Gostara, contudo, da pregação herético, queimado pouco depois - encontro que tinha orientado o nosso
católica dos frades menores, de que tinha ouvido um bom exemplar na bom pastor para o Catarismo - foi seguida dum encontro, também
. importante, com Jaques Authié, filho de Pierre Authié. Estava·se em
igreja de Arques alguns dias antes (111, 123). Porém, infiuenc1�do pelo
calor comunicativo dos banquetes, Pierre Maury sente nessa no1te a s�a Maio. Tudo florira há muito. Maury encontrava·se com as suas ovelhas
fé romana vacilar; e é feito <<crente dos heréticos)) por Pierre �uth1é: nas pastagens de Arques quando Raymond Pierre mandou uma criança
nesta ocasião, Authié trata Maury por tu, enquant? este contmua a pobre chamá-lo. Obedecendo a essa ordem, Pierre Maury dirige-se, uma
dirigir-se por vós ao missionário câtaro. O jantar termma com um alegre vez mais, àdomus de Raymond Pierre; encontra ai, a aquecerem-se ao
beberete, durante o qual se celebra, ao canto da lareira, a adesão de um lume, dois heréticos conhecidos: Jacques Authié e Pierre Montanié, de
novo membro. Coustaussa (Aude actual); com eles, estilo sentados Raymond Pierre, a
. •

Pierre Maury não voltará a ver Pierre Authié. Mas, de 01to em o1to mulher e a sogra.
dias, desce das pastagens locais onde guarda as suas ovelhas e as do Passados alguns momentos junto da lareira, Pierre Maury, Jacques
patrão; vem reconstituir a sua provisão de ptlo em casa de Raymond Authié e Pierre Montanié saem e põem-se a caminho, para chegarem
Pierre, em Arques. Nessa altura, encontra frequentemente, e� casa deste, de noite à aldeia de Rieux-en-Val ('-'). O notável Authié faz o trajecto de
um ou outro herético. Certo dia, encontrando-se na cozmha onde a mula, ao passo pue os dois companheiros vão a pé. Foi o sempre prestável
sogra do patrllo lhe preparava ovos fritos em toucinho, descobre que, no Raymond Pien'e quem emprestou e aparelhou a mula para o pregador.
compartimento do lado, prudentemente fechado à chave, se e�contra Jacques Authié é, de resto, um pregador no sentido pleno do termo uma
Prades Tavemier, ex-tecelão herético, ubiquista e m� ito conhectdo, da vez que, durante toda a viagem, prega do cimo da mula, enquanto Pierre
região de Aillon; Tavemier toma, também, a sua refetçi'lo cátara, à base Maury faz as vezes de ouvinte ou de incentivador e Pierre Montainé de
figurante mudo. Esta prédica «equestre>> de Jacques Authié constitui
. A
-
1 14 ECOLOGIA DE MONTAILLO U: A CASA E O PASTO R OS PEQUENOS PASTORES 115

ia com o clã Bélibaste. Tendo subido à cabana no momento em que se


um bom exemplo do tipo de sennilo de estil.o folclórico, mas de teolog
do, para uso da popula ção fabricavam queijos, Raymond Bélibaste, crente dos heréticos, e Amélien
cátara impecável, especia lmente prepara
pastoril, pelos militantes albigenses (2'): Voltaremos, noutro :n��
' . p o, de Perles, perfeito, receberam de Pierre Maury carnes cozidas e
pelo pregador, CUJO pulp1to lacticfnios. O perfeito, vegetariano como era devido, recusou a carne.
aos mitos câtaros difundidos nestas cond1çOes
era uma mula. Mas os dois homens chamaram Pierre Maury à parte, levaram-no para
Chegado ao seu destino , no fim do lor'Ígo caminho que ia de Arques trás da cabana e pediram-lhe um presente. Pierre deu um tomês de
a Meux-en-Val, mestre Jacques Authié cessou de pregar, Pierre Maury, prata a Amélien de Perles. Este, reconhecido, disse-lhe exactamente
submer so pelas ondas daquel a e l oquênc ia itinera nte, parecia aquilo que Pierre esperava dele em paga da sua boa acção:
dedutivamente convertido nos dogmas do albigismo. Este pastor astuto - Rezarei por ti (III, 1 36).
e ingénuo, contudo, só até certo ponto se pode considerar plenamente •
convertido pois, ao longo de toda a sua vida, não deixará de jogar com
um pau de dois bicos, um cátaro e outro católico. De regresso a Arques, No fim do ano, Pierre Maury, acompanhado por seu primo
depois de se ter separado de Jacques Authié, Pierre Maury encontrará Raymond Marty, irrnilo (ou meio innilo?) de Raymond Maulen, levou,
cm casa de Raymond Pierre três homens de Limoux que tinham vindo como sempre, as suas ovelhas para o vale de Arques (embora para outras
cumprim entar aquele perfe ito, fi lho do notário. Tendo chegado pastagens a fim de ar passarem o Inverno). Um domingo, Pierre e
demasiado tarde, já nilo o apanharam em casa; desapontados, donniram Raymond - fiéis, apesar da sua heterodoxia, à rotina do culto católico ­
cm casa de Raymond Pierre que, por seu lado, teve a amabilidade de foram à missa a Arques. À sarda, dirigiram-se a casa de Raymond
lhes oferecer algumas compensações; coroou a sua hospitalidade de Maulen. Na cave ou ccl/ier encontraram o herético Prades Tavemier
dono de uma boa casa rural e burguesa mandando-lhes servir, de que, uma vez mais, se dissimulava, com toda a dignidade, por detrás de
manhãzinha, ovos fritos com toucinho. Em seguida, regressaram a um tonel. Maury cumprimentou o perfeito, depois subiu ao solier à
Limoux. Quanto a mim, conclui filosoficamente Pierre Maury, regressei procura de pilo (nesta casa típica de vinhateiro-criador de gado, a cozinha
aos meus carneiros (111, 1 35). ficava no so/ier ou primeiro andar, por cima da cave, por sua vez,
contrgua ao curral: a planta era, pois, bastante diferente da das domus

da região de Aillon, com a cozinha no rés-do-chão). No solier, o pastor
No decurso desse mesmo Verão memorável, Pierre Maury esteve encontrou vários individuas sentados a comer, perto do lume. Entre
com as suas ovelhas no lugar conhecido por La Rabassole, no território eles, estava um homem de pequena estatura e olhos glaucos; este
de Arques (III, 1 35). Com ele, encontravam-se outros sete pastores, estranho, vestido de castanho, era um aldeão, natural de Coustaussa ou
entre os quais dois parentes - innão e sogro -do seu ex-patrão Raymond de Cassagnes (li). Exercia as funções de guia de Prades Tavemier. Ao
Maulen; dois membros da famflia Garaudy, dos arredores de Arques; e lado deste guia e igualmente sentado junto do fogo, encontrava-se o
três outros pastores, também originários de Arques, mas que, tanto dono da casa, Raymond Maulen, ladeado pela sogra e pela mulher,
quanto sabemos, nilo tinham qualquer parentesco quer com as famllias Bérengere e Églantine. No total eram. pois, cinco os convivas. Munido
precedentes quer entre si. Este grupo de pastores, todos reunidos, formava do seu pilo, Pierre Maury voltou a descer à cave, onde reencontrou
uma cabana, ao mesmo tempo uma colectividade cooperativa e um Marty e Tavemier (III, 1 36- 1 37). Os três colocaram, sem cerimónia,
habitat temporário - exercia as funções, declara Pierre Maury a este uma <<mesa» atrás dos tonéis (na realidade, uma tábua em cima de
pi'Opósito, de chefe de cabana ou «cabaneiro»: tinha a meu cargo o cavaletes). Depois tomaram a sua refeição; no menu, para Maury e
fabrico do queijo... dava carne cozida, queijo, leite e pão aos crentes Marty, toucinho ou carne, fornecida pela casa Maulen; para Prades
da heresia que estavam de passagem (-'). O ccpapel dirigente» de Pierre Tavernier - não carnívoro - lentilhas, azeite, vinho e nozes. As duas
Maury, cujas qualidades profissionais eram reconhecidas pontodos (29), mesas, a da cave e a do solier, dispensavam-se mutuamente pequenas
não tem nada de surpreendente. Sobre a cabana, instituição fundamen­ atenções: a um dado momento, Maury foi encarregado de levar, aos
tal que é, no universo dos pastores, o que a domus é no mundo dos cinco convivas que se encontravam no primeiro andar, um pedaço de
sedentários, terei ocasião de me exprimir com mais delongas (lO). Noto pão ou de biscoito, expressamente benzido pelo herético Tavemier. Por
simplesmente, a propósito desta fase cede cabana)) da biografia do nosso sua vez, Raymond Maulen não quis ficar atrás. Levou, pois, aos seus
pastor, que é nesta época que ele rentn relações, num encontro decisivo, três hóspedes que comiam na cave, um pedaço de toucinho. Mas não
1 1 6 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR OS PEQUENOS PASTORES 117

tinha contado com a heterodoxia vegetariana de Prades Tavemier, que Cubiêres, uma domus, onde residia, em famflia alargada, com os seus
interpretou mal o doador: Tira-me daqui essa carne selvagem, diz Prades · três filhos e as esposas e filhos de dois deles. Uma dessas esposas
a Pierre, utilizando na ocasião um «tU)) autoritário e distante. E depois, chamava-se Estelle. A famllia em questão possufa também um celeiro
inspirado por este incidente da «carne selvagem», Pmdes Tavemier, para palha, edificio independente da casa principal, e um curral, situado
pondo de parte o seu mau-humor, começou a pregar. Lançou-se de novo em pleno campo.
e com ardor num desses actos de empachórramento mitológico, em que A noite que Pierre Maury passou em casa de Bélibaste conformou­
os perfeitos, bons oradores, eram useiros e vezeiros. Sem livros ou se ao <<modelo» frequente das actividades sociais do nosso pastor:
manuscritos para ler ao campónio, de qualquer forma iletrado, os dividiu-se em duas partes - a refeiçllo reunia Pierre Maury, Guillaume
homens-bons tinham o costume, como já vimos, de pregar em diversas Bélibaste e os seus três filhos, assim como as duas noras (aproveito
circunstâncias, a pé, a cavalo, em cima de uma mula ou enquanto comiam para referir que os Bélibaste parecem ter sido uma famllia muito unida:
as suas refeições. Semelhantes a Cristo, que falava ao sabor da ocasião, uniam-nos os laços de cc-residência e de convlvio, o trabalho em
do cimo da burra. ou diante da mesa da Ceia, discursavam sem parar. associação na terra familiar e, enfim, a heresia, comum aos homens e
Prades iniciou, pois, o seu sermão da cave com algumas variações sobre mulheres da domus). A hora do jantar, os filhos dos dois casais estavam,
o tema da abstinência da carne. Citou a esse respeito algumas máximas segundo parece, deitados; não participavam, portanto, na recepção.
que, com razão ou sem ela (a maior parte das vezes sem ela ! ) atribula O convidado de honra era Pierre G irard, procurador do arcebispo de
ao próprio Jesus Cristo. Meus filhos, teria dito o Messias nesta versão Narbonne. Girard tinha suficiente prestigio para que a sua participação
Tavernier do Evangelho apócrifo do perfeito cátaro), meus filhinhos, conferisse a esta sociedade um certo brilho; mas a distância social, numa
niio comais nenhuma espécie de carne, nem a dos homens, nem a dos Occitânia pouco cerimoniosa, era demasiado reduzida para que a
animais mas somente a dos peixes que silo criados na água pois ela é a presença deste hóspede importante na casa dum rico criador de gado
única que niio está corrompida ( I I I , 1 37). Percebia-se, ao longo do como Guillaume Bélibaste tivesse alguma coisa de insólito. Apesar das
discurso de Prades Tavernier, um apelo mal disfarçado ao porta-moedas suas funções, que o colocavam, em teoria, do lado da Igreja estabelecida,
dos seus auditores, apelo que, no que diz respeito a Pierre Maury, não Girard sentia - talvez - uma vaga simpatia pelas ideias ou amizades
haveria de cair em orelhas moucas. Enfim, Prades, arrebatado pelo seu cátaras. Ou talvez fosse simplesmente tolerante. De qualquer maneira,
tema, contou o mito metempsicótico do cavalo. Voltarei a falar dele no sabia fechar os olhos àquilo que as pessoas prefeririam que ele visse:
capitulo respeitante ao folclore dos nossos aldeões. durante o jantar, que se efectuava em casa, fez menção de ignorar as
Depois desta prova de oratória, só restava ao nosso bom pastor idas e vindas das personagens suspeitas cujo quartel-general se situava
retirar-se deste encontro a três: Pierre despediu-se de Prades. Nunca no celeiro vizinho. (Algum tempo depois esta indulgência de Pierre
mais o voltaria a ver. Mas, para lhe agradecer esta edificante homilia, G irard revelar-se-á preciosa para Pierre Maury, quando este for acusado
fez chegar às suas mãos, algum tempo depois, por intermédio de seu e julgado, em Fenouillêdes, por cumplicidade com a heresia.) A ceia,
irmão Guillaume Maury, um gros tornais, um óbolo de prata e quatro apesar da riqueza do dono da casa e do prestrgio de um dos convidados,
denários de prata. Prades T�vemier, de quem temos motivos para nos foi de uma sobriedade digna da antiguidade: carne, leite, queijo. Uma
perguntarmos se até então andaria descalço, pôde assim comprar um refeiçllo de pastores de Virgllio. Ingerida a comida, Pierre Qirard foi
par de sapatos. para a cama; quanto a Pierre Maury, acompanhado por alguns membros
do clil Bélibaste, dirigiu-se, de mansinho, ao celeiro vizinho, a fim de
• cumprimentar, como Raymond Pierre lhe tinha recomendado, todos os
amigos, isto é, os heréticos que Guillaume Bélibaste albergava nessa
Na Pdscoa seguinte, Raymond Pierre encarregou o seu pastor Pierre noite entre as reservas de palha. Em seguida, o pastor foi-se deitar. No
Maury - missão de confiança - de ir a casa de Guillaume Bélibaste dia seguinte, voltou para Arques.
sénior, rico agricultor-proprietário de Cubiàres (32). Pierre Maury devia

trazer ao patrilo uma soma de dinheiro que o velho Guillaume restitula
(ou emprestava?} a Raymond Pierre.
Bélibaste sénior era um chefe de fam rtia, detentor de boas Alguns meses mais tarde, em Agosto, no pino do Verão, Pierre
instalações agrfcolas e de brilhantes relações sociais. Possula, em Maury guardava as ovelhas de Raymond Pierre num lugar conhecido
1 1 8 ECOLOGIA DE MONTA ILLOU: A CASA E O PASTOR OS PEQUENOS PASTORES 1 19

por Pars Sors, perto de Arques. Com ele, na qualidade de pastores· que se chamava Arnaud Baille sénior (III, 148). Outros laços ligavam
-ajudantes, encontravam-se personagens tlpicas da sua velha equipa de Barthélemy Borrei a Montaillou uma vez que a sua criada Mondinette
Aude e do Sabarthês: Jean Maulen, irmão (ou cunhado?) do seu e o seu pastor Maul}' eram também naturais dessa aldeia ..•

ex-patrão Rnymond Maulen; e os dois Guillaume Marty, pai e filho,


homónimos, originários de Montaillou. Certa noite, à hora do primeiro
sono, dois homens vieram visitar o nosso herói às suas pastagens: eram (') Oiraud, p. 64.
(') lbid.
Raymond Bélibaste (o tilho de Guillaume Bélibaste sénior) e o perfeito (I) Devido ao êxodo dos jovens, muitos dos qUIIi sdeixam o aldcioplltll sc tomar pastores
Philippe d' Alayrac (natural de Coustaussa) que vinham de Limoux cclibalários o longo tenno, � é de excluir o possibilidade de que houvesse cm Montaillou.
(III, 140-142). Pierre Maul}', como vimos, conhecia Raymond Bélibaste entre os rcsidcntc:s restantes, W11l1 maioria de mulhc:rcs. A prcpondcnlnàa nwnérica de viúvas,
devido oo falecimento prioritário dos homens, só podia acentuar essa tendência.
(4) Bonnossie, t. 11, p. l i S sg.
de longa data; ofereceu uma refeição aos dois homens, sob a forma de
produtos do rebanho e da terra: carne, leite de cabra, queijo, pilo e vinho. (') Drallle: caminho de uunsum4ncia.
Raymond comeu (I I I, 1 4 1 ). Mas Philippe d' Alayrac, como perfeito que (6) Sobre �libostc, pastor dotado, ver 11, 1 77.

asanJente; esta n:prcscnta, com efeito, para o individuo que dela bcnelicia, wna asccnsllo
(') Os documentos do Antigo Regime falam-nos principolmcntc da mobilidade social
era, recusou a carne e só quis beber vinho pelo seu próprio copo; recusou
os copos do pastor, aos quais era alérgico, pois tratavam-se de recipientes até ao mundo das élites, igualmente privilegiadns nos arquivos. Dai o extraordinário valor
manchados pelo contacto com a boca, por sua vez manchada pela carne que para nós adquirem os n:gistos de Jacques Foumicr, na medida cm que tratam, o que é
rlli'O, da mobilidade social desCI!ndente.
(1) I. p. 39S ss. c I, 405-106. 1. 408 (denúncia pelos Roussc:l).
dos pastores da regiilo. Depois desta ccrefeição>>, o bom pastor, a pedido
dos seus hóspedes, conduziu.as através da noite cerrada por sendas r> li, 222; esta <<abc� da JinguaJ• fomentada pelos Clcrgue tinha sido «legalmente»
íngremes e perigosas, ao longo de quinze quilómetros, até ao courra/ possível grnças nos podcrcs do bailio {quccxen:e as funçôcs dejustiça como n:prescnt:mtedo
conde de rot't).
que os Bélibaste possulam cm Cubiéres, a alguma distância da casa
('") 11, 1 70, 1 7 1 , 1 73, 1 7S, 1 77; c 1 78 a 1 90; 1 1 . 223; I. 4 1 8; III, 87 c 11, 173
familiar. Philippe tropeçava e cala pelo caminho, devido à rudeza do
(11) Toumon, conhecido pela dcsignaç4o de Castclreng(Audc actual), segundo III. S22.
(cumplicidades de Clcrgue).
piso ou às passagens em que era necessário escalar; perdeu mesmo a
(11) Comparar com o caso, W1:\logo. dos recrutas dc Crcuze cm 1830 (Lc Roy Ladurie c
vontade de pregar. Limitava-se a exclamar, a cada trambolhilo: va/lra­
Dwnont, cm J. P. Aron, 1972).
·me o Divino Espírito Santo. (1 1) Audc: IICiual.
Depois destes diversos episódios e de fazer e receber estas visitas, (14) 0. de Scrres, Thédtm.. .. 1600.
{") III, 76; n4o confundir esta Guillcmcue M:surs, m4c de Bernard, com Guillc:mettc
Maurs, esposa do mesmo Bernard.
Pierre Maul}' nilo iria tardar a romper com Arques e com os seus
habitantes. Com efeito, Jacques Authié tinha sido apanhado pela (1&) Sobre Guillaumc Maurs, c( supra, p. 1 1 I ss.
Inquisição em 1 305. Os heréticos de Arques, que inclulam numerosas (1') Limborch, p. 1 87, citado por Duvemoy, lnquisition... . p. 132.
famllias da localidade, ganharam medo; dirigiram-se, com grandes (11') Ver, igualmente: I, 4 I O; Guiltawnc Guilh:lbcrt, gravemente doente, com cc:n:a de
despesas, ao papa, para confessar e abjurar a sua heterodoxia e os seus quinze 111105 de idade, «anteriormente tinha sido pastor e gunrdndo os n:banhos do seu pai»:
este inten:ss1111 tc texto opn:sc:nta-nos o caso de wn outro pastor-agricultor de Montaillou c
erros. Receando gastar todos os seus bens na viagem, ou por qualquer tamWm o wo de uma aprcndizngem da prorass4o de pastor, 11 plll'lir da idade de doze ou
outro motivo, Pierre Maul}' não quisera acompanhar estes peregrinos Clllorze anos.
contritos. Prestara-lhes simplesmente o serviço de guardar, durante (19) cr. supra, cap. 11.
(!V) Repare-se no vivo contraste, neste teltto c no mentalidade de Jean Pclissic:r, entn: a
algum tempo, o seu gado, enquanto estiveram ausentes. Quando exactid4o espacial c 11 impn:cisllo cronológica. Sobre estes prublcmiiS, ver l1úra, cap. XVIII.
regressaram, decidiu fazer-se ao largo. Receava, na verdade, que a sua (11) Esta grande llansum4ncio crcdua-se com grandes n:banhos (v6rins centenas de
complacência para com os Authié, não resgatada pela absolvição pa· cabc:ças de pdo, fazendo wn c4lculo por baixo); ass im se: diferencia. por um lado, a crii!Çllo
de: gado IIII como é praticada pelos cmpn:Wios pin:naicos {de Ax c de outros lados) que
pai, lhe viesse a custar caro. Pegou, pois, na sua reserva de trigo, no contratam os pastores transumontes de Montaillou; e, por outro, o produç4o animal em
tecido que mandara fabricar com a sua lã a um tecelllo chamado Catala, estruturas parcelares, biiSCllda nos pequenos n:banhos, tal como pode ser encontrada cm
Monlllilloue nas n:g� de polkulhncl4ssica{vc:r ac:stc:n:spc:ito M T. Lcn:in, Cmnpognes
/yomtaiJts... I 974, p. 30). Mmc Gnunain (segundo a lntroduçllo da sua tese:) v� nesta cxpansllo
e partiu. No Natal de 1 305, estava em Montaillou: festejou a solenidade
em companhia do pai e dos irmãos n a casa familiar. Mas o solo da terra
natal queimava-lhe igualmente os pés. Era de tal modo suspeito que os
da diaç4o de gado, quer sejll de tipo «cmpn:sariaiP, quer plln:elar, umll resposta à
supc:rpopuii!Çllo languc:doquiana c, dwn modo mais geral. occitmica, da primcir:l mc:tndc: do
seus próprios conterrâneos o evitavam. Decidiu, então, empregar-se século XIV; esta resposta visa, neste caso, enconlr:lr n:cursos suplcmc:ntan:s, gr.IÇ3S à produçilo

aos paston:s c: almoen:ves, ver 11, 42. Sobre os fund:Jmc:ntos cconomico-soci:tis da �


animal. Sobn: as IIOportunidadcsP que, deste ponto de vista, as pastagens cata14s orc:n:ccm
como pastor na casa de um tal Barthélemy Borrei, criador de gado de
Ax-les-Thermcs. Este, aliás, era cunhado de outro homem de Montaillou, par:1 Esp:uth:l. que constituem as <<pr1Xondiçc1csll da actividade de hollll."nS como Picne M:rury.
1 20 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR Capftulo V
·

(U) III, 120. H4. IIUIIIi fcstamentc, entre os filhos Maury, e desde a juventude, um
vcro rccentecstudodc Rcyne PastordcTogncri. I97J,p. IJs-17 1 . AS GRANDES TRANSUMÂNC�

I
proriSSionalismo davida de pastor. Entmllnto, a misáia e a conftscoçllo dos bens parmtais
I peta lnquisiçlo contribu:m tmnbán p11r11 fazer com que alguns deles, nomelldomente Jean
Mawy, lldoptcm este pro de exist!ncia pastoril (11, 444).
(U) Ver, som o saloriiiCW r��milior, P. Bourdieu, Sociologle de i 'Aig4tle... (o tambãn P.
·

Bourdicu, L1 DUenclr#ntement Ju monde, Poris, C.S.E., 1966). O que Piem Bourdieu diz
do salllrilldo f11111ilior do Maghrcb aplica-se a muitos mados de Montaillou, porontes dos seus
patrOcs. Mas tam�m se encontra frequentemente, entre os nossos pastores, um solariado n4o
p81Cntal (ver lnjta).
(14) Ver tamMm, mais tarde, c no mesmo sentido, O. de Serres, 1 600.
(l') 11, 7S: certas migalhas desta ucolccçlo�> scr1o conservadas por Pierre Maury
durante vinte c dois anosI A mie de OuliiiUlmc Austalz, de Ornoh:ac, possui uma colccçllo
anAioga de Cl)dcas bentas, num bun= de sua casa (I, 204).
(lO) Esta III deia fica situada na Audc =tulll.

(l') III, 130-132. 'kr tamb.!m uma outra prcgaçlo, ambulante, por um hmtico giróvago

(li) Recorde-se que os crentes que nao sao perfeitos podem comer carne.
c falador. III, 186.

(.IV) 11.387: uOuillaume Maurs apreciava muito Pierre M:uuy c queria que ele dominasse . .. Mal tinha entrado para o serviço de Barthélemy Borrei, Pierre
Maury teve de voltar a partir. Os negócios de Barthélemy Borrei tinham­
(� lnfra, cap. VI.
os outros pastores».
(11) Localidades da Audc actual.
-no levado a interessar-se pela transumância, desta vez meridional e
ei)Cub=cs: Audc actulll.
transpirenaica: as ovelhas desta personagem encontravam-se, nesse
tempo, nas pastagens de Tortose, na Catalunha; deste modo, Pierre
Maury foi enviado pelo seu patrão para o território deste rebanho catalão.
Pela primeira vez na vida, o pastor teve de ultrapassar a linha onde
divergem as neves e atravessar as montanhas para o Sul: a partir daf os
Pirenéus deixarl'lo de ser um obstáculo para ele. Durante o resto da
vida, andará de cá para lá entre a Espanha, o reino de França e o condado
de Foix.
Um outro ariegense, chamado Guillaume Cortilh, de Merens,
acompanhava o nosso herói como co-pastor nesta viagem inicial da
série: os dois homens nunca tiveram oportunidade de falar de heresia.
Integraram-se simplesmente, sem conversas supérfluas, na onda dos
migrantes, pastores, desempregados e gavaches que o nuxo e por vezes
refluxo da «transumância de homens>> empurravam para as regiões
ibéricas (11, SS, 29 1 ). No Pentecostes de 1 306, Pierre, envergando agora
as botas de sete léguas, estava de regresso à zona do Sabarthês:
preparava-se para, durante o Estio, levar para a vertente <<francesa>), ou
melhor, fuxiana, dos Pirenéus, as ovelhas de Barthélemy Borrei, que
tinham anteriormente passado o Inverno na Catalunha. Por esta ocasilo,
Pierre renovou por um ano, em virtude de um rito frequente, o contrato
de pastor que tinha efectuado com Barthélemy. De resto, este era um
patrilo de toda a confiança; com ele e com os filhos nDo se podia ter
cónversas heréticas. Maury passa, entllo, a ter uma vida bastante di ferente
da apaixonante, mas perigosa, que levara em casa de Raymond Pierre.
Sobre a existência do nosso pastor em casa de Barthélemy, as folhas
256 e 257 do manuscrito de Jacques Foumier sugerem alguns
pormenores; parece que, na grande casa dos Borrei, Pierre Maury teria
1 22 ECOLOG IA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR AS GRANDES TRANSUMÂNCIAS 1 23

desempenhado nilo só o papel de pastor mas também o de homem para acabou por gerar atritos que precipitaram a ruptura entre o patrtlo e o
todo o serviço; rachava a lenha; ajudava a organizar as recepções do empregado, depois da grande feira de Junho, em Laroque d'Oimes.
dono da domus; namoriscava, além disso, com a criada, que, aliás, era

sua conterrânea: Mondinette (Raymonde), filha de Bernard lsarn, de
Montaillou. Uma cena, descrita em duas palavras, mostra-nos Pierre Laroque d'Oimes, a jusante de Montaillou, é um burgo produtor
Maury levando uma noite Mondinette à· taberna; depois, a criada de panos; na feira local que, no século XIV, se efectua em 1 6 de Junho,
acompanha-o pela rua a cantar atn\s dele em altos berros. Entretanto, vendem-se os panos fabricados na terra; e também madeira, peixe,
Pierre, por muito «demolidon> que pudesse ser noutras ocasiões, estava carneiros, louças, bem como cobertores vindos de Couserans (1). As
nessa noite de humor casto. Nilo terminou a noite junto com Mondinette; feiras slo um ponto de encontro cómodo para os heréticos e os perfeitos
desta vez, dormiu em companhia de Bernard Baille, filho de Sybille afluem a elas de bom grado (III, I 53). Nesse ano, Pierre Maury desce às
Baille (de Ax-les-Thermes). Jâ sabemos que o costume local e a raridade feiras de Laroque, a 1 6 e 1 7 de Junho, para comprar ovelhas. Fica em
das camas obrigavam os homens a dormirem respeitavelmente na casa do seu cunhado Bertrand Piquier, marido da sua irmã Guillemette.
mesma(lll, I 57). Bertrand, que hospeda, por uma noite, o pastor em sua casa, éfustier
Precisamente por essa altura, Pierre visitava com frequência a casa (carpinteiro) em Laroque d'Oimes. Que noite agitada! Enquanto Pierre
de Sybille Baille; esta criadora de gado de Ax, separada de um marido repousa na casa dofustier, este aproveita a circunstância para dar uma
notário, tinha confiado uma das suas ovelhas à guarda de Maury. sova na sua mulher Guillemette, irmil do visitante. (Guillemette, moçoila
A domus Baille era um grande ostal de Ax, com cozinha no primeiro de dezoito anos, já tinha ,algum tempo antes, levado a cabo uma breve
andar. Imóvel com numerosos quartos, por sua vez cheios de gente, fuga do domicilio conjugal; entendia-se muito mal com o marido
com camas a abarrotar de hóspedes, amigos, criados, filhos da casa e { I I I , 1 4 8). Por muito acostumado que estivesse aos maridos
perfeitos de passagem. Casa tilo boa, na verdade, que Amaud, filho de mediterrânicos, este comportamento brutal de Bertrand Piquier indispõe
Syblile, chegará ao ponto de se tomar delator da lnquislç!o a fim de o nosso pastor. Na manhã seguinte, vagueando como uma alma penada
recuperar este ostal, confiscado pelas autoridades, que queriam exercer e consternado com a sorte de Guillemette, encontni no campo da feira
represálias contra o Catarismo da sua mãe que, de qualquer forma, dois velhos conhecimentos: o perfeito Philippe d'Alayrac e o herético
acabará por ser condenada à fogueira. Bernard Bélibaste. No decurso de um longo passeio ao longo do rio,
O trabalho de Pierre e a sua convivência com os Borrei e os Baille confia-lhes as suas preocupações familiares. O veredicto dos dois Cátaros
não preenchiam inteiramente a sua existência. Sempre que necessário, é formal: Pierre tem de raptar a irmã e subtrai-la, assim, aos maus
o pastor sabia mostrar-se um bom guia, e até - como o mostrará a tratos que lhe inflige o marido, esposo violento e, para cúmulo, católico
continuação da sua biografia - um bom imbecil. Escoltava, portanto, os incurável. Mas é preciso evitar, a todo o custo, acrescenta Philippe
<<homens-bons» a Montaillou, os quais, para dizer a verdade, não d' Alayrac, que Guillemette, uma vez libertada da tirania do marido, se
chegavam a ter coragem de pregar pelo cam inho: a subida torne uma puta vadia. Os três cúmplices, Pierre, Philippe e Bernard,
escarpadlssima, que vai de Ax-Jes-Thermes à regillo de Aillon, era capaz combinam então colocar Guillemette ao serviço de algum piedoso
de cortar o fôlego ao perfeito mais loquaz. Pelo caminho, comia-se, herético. Meu dito, meu feito. Pierre trata do que tem a tratar na feira.
apesar de tudo, um mata-bicho - nem sempre muito litúrgico - entre os Depois de uma visita-relâmpago a Montaillou (para pedir conselho na
homens-bons e o pastor: gelatinas de trutas, carne, pio, vinho, queijo. sua domus?), regressa a Laroque, rapta a irmã, leva-a para Rabastens,
Punham-se de parte as cautelas, numa época em que a Inquisição ainda onde a confia aos irmãos Bélibaste, jâ fugitivos por heresia e que se
não tinha estendido os seus tentáculos a I 300 metros de altitude. tomaram seus grandes camaradas. E Jogo depois, volte/ para os meus
Chegado a Montaillou, Pierre abraçava o pai, a velha mile e os cinco carneiros... porque a época de fa:er os queijos se aproximava. Pierre
irmãos que o recebiam de braços abertos. Dormia em casa e voltava a não tomará a ver a sua irmll Guillemette, que o amava muito: será
partir de manhã, depois de se dirigir à cama do homem-bom que tinha dentro em breve capturada pela Inquisição.
escoltado na véspera e de lhe dar um beij o à laia de despedida. De •
regresso a Ax-Jes-Thermes, ia ter com o seu patrão Barthélemy que,
De volta a casa do patrão, depois da feira, Pierre encontra o seu
entretanto, tivera de ficar a guardar o rebanho, devido à ausência do lugar ocupado: o seu absentismo irritara Barthélemy Borrei que, perante
assalariado a quem ele pagava para fazer esse serviço. Esta situação
isso, lhe arranjou um sucessor. Pouco importa. Pastor competente, Pierre
1 24 ECOLOGIA DE MONTAJLLOU: A CASA E O PASTOR AS GRANDES TRANSUMÂNCIAS 12S

Maury nllo tem dificuldade em obter outro emprego. Assalaria-se como com o seu irmão Guillaume Maury e com Guillaume Belot, de
pastor em casa de Pierre André, criador de carneiros do Fenoulllêdes Montaillou, uma apaixonante discussllo sobre o destino ('). Depois, vai
(III, I S9); depois, em casa dum parente deste, Guillaume André. Em para o desfiladeiro de Quié (-1), onde, juntamente com outros cinco
casa de Guillaume, Pierre Maury fonna equipa com oito ou dez pastores pastores, guarda as ovelhas dos seus patrões, os André; Bernard Tort,
(os efectivos engrossam no Verilo), entre os quais os dois filhos do seu que vem trazer farinha à equipa, é o primeiro a informar Pierre Maury
patrilo c diversos grupos de innilos, natunds da região de Foix e da da rusga maciça e eficaz que a Inquisição de Carcassonne acaba de
Cerdagne. Em casa de Guillaume André, Pierre vive três anos tranquilos. efectuar em Montaillou. Pierre, no Intimo, pode felicitar-se. Uma vez
Estes passam-se em transumâncias: Aude no Inverno, alta Ariêge no mais, o destino salvou-o. Mas sabe que mais dia menos dia chegará a
Verilo; e assim sucessivamente. Este perfodo de três anos é, para Maury, sua vez. O que não lhe tira o sono.
equivalente a um longo pousio ideológico: anos calmos, um ponto

enfadonhos, desprovidos daquela m i l itânci a albigense que,
anteriormente, o tomara activista, e quase o expusera à fogueira, Seguem-se, de novo, alguns anos « apoliticos>> ou, mais
em Montaillou, Arques e, por vezes, mesmo em Ax-les-Thennes exactamente, c<a-heréticos». No infcio de 1 309, manifesta, uma vez mais,
(III, 159- 160). a indomável independência de espírito que caracteriza a sua corporação:
Apesar deste «pousio)), a Inquisição, ou pelo menos a Igreja despede-se do seu patri'lo Guillaume André e emprega-se, como pastor,
estabelecida, continua a ter debaixo de olho o nosso pastor. Certo dia, ao serviço de Pierre Constant, de Rasiguicres ('). Passa o VerJo nas
quase no fim da sua estadia em casa de Guillaume André, Pierre Girard, altas pastagens de Mérens (a sul de Ax-les-Thermes). Acom ­
procurador do arcebispo de Narbonne, convoca-o para a grande praça panham-no cinco pastores: dois deles silo naturais de Mérens. Um deles,
de Saint-Paul-de-Fenouilledes e acusa-o - incitado por quem? - de se que tem o nome ou apelido de Guillot, é filho bastardo do pároco de
ter encontrado com dois heréticos, um dos quais era um certo Bélibaste. Mérens. Entre a equipa de pastores, Guitlot especializou-se em guardar
A acusação tem o seu quê de picante: Pierre G irard tinha sido o comensal um rebanho de cabras, que pertence a Madame Ferriola (Na Fcrriola)
de honra de um primeiro jantar durante o qual Pierre Maury se tinha de Mérens (III, 163).
efectivamente encontrado com Bélibaste! A quem servir a carapuça que No dia de Silo M iguel de 1309, Pierre Maury, num novo acesso de
a enterre. Pierre Girard é tanto cúmplice como acusador, pelo que nilo liberdade montanhesa, despede-se do seu patrilo Pierre Constant: a partir
pretende valer-se da sua situação de superioridade. Além disso, e dai, é como se fosse o trabalhador a despedir o patrão e não o inverso
felizmente para ele, Pierre Maury tem amigos dentro do próprio tribu­ (ibitl.). Emprega-se então, possu(do de verdadeiro bicho-carpinteiro,
nal: o senhor de Saint-Paul, Othon de Corbolh, nutre grande simpatia num novo patrão, o cerdanês Raymond Boursier, de Puigcerda. Este
pelo nosso pastor. O bailio local é, nem mais nem menos, um com­ novo emprego dura dois anos ( I 3 1 0- I 3 1 1 ). A equipa de pastores
padre de Maury. Ver-se-â mais adiante que o bom pastor, se nllo fosse compreende o próprio Raymond Boursier, Pierre Maury, o seu irmão
analfabeto, teria podido escrever um l ivro de sucesso, que se teria Amaud, e ainda um outro cerdanês: Albert de Bena. Exceptuando
intitulado A arte de arranjar compadres. Assim, nlo tem a menor Amaud Maury, é impensável falar de heresia com algum destes homens.
di ficuldade em forjar um alibi; resumindo, decl ara aos j uizes Ao cabo de dois anos (finais de 1 3 1 I ?}, os innilos Maury deixam
substancialmente: no momento em que, segundo dizem, eu eslava com esta equipa: Amaud volta para Montaillou (ibid.). Pierre dirige-se para
Bélibaste, encontrava-me defacto a léguas dai: eslava a cavar as vinhas o Sul, para a Catalunha. Esta vai tomar-se a sua segunda pátria. Em
da /aml/ia André (l). O tribunal, que nllo tem a consciência tranquila, Baga, perto de Barcelona, emprega-se como pastor num patrão catalão,
engole esta patranha, sem abrir o bico. Pierre Maury é posto em Barthélemy Companho. A equipa de Companho compreende oito
li�erdade. Trata-se, na verdade, de um belo exemplo dessas redes de pastores, seis catalães e dois ariegenses.
chentes, de amizade, de cumplicidade, de compadrio, que podem No primeiro ano ( 1 3 1 1 ou 1 3 12), nenhum herético no horizonte.
frequentemente paralisar a repressão inquisitorial em terra occitana. Mas, no ano seguinte ( 1 3 1 2 ou 1 3 1 3), na casa amiga de um pastor
muçulmano chamado Moferret, Pierre contacta (graças aos bons otlcios

dum catalão) com um vendedor ambulante de cominho e agulhas, que
Em 1 308, Pierre Maury toma a subir para a alta Ariege: passa por não é outro senão o câtaro Raymond de Toulouse (III, 1 64). Na quaresma
Ax-les-Thennes: nesta povoação, junto do Bassin des Ladres, trava, seguinte ( 1 3 1 3?), Pierre é apresentado à pequena colónia albigense de
126 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR A S GRANDES TRANSUMÂNCIAS 1 27

San Mateo e de More lia (região de Tarragona): um pequeno número de Maury, é um pobre de Deus. é um padre basco que vagabundeia com a
heréticos, originários de Montaillou e de outras partes, reúnem-se à sua concubina ... (III, 1 66, 1 86 e passim). Incarna uma certa emigração
volta de Guillaume Bélibaste júnior que assentou arraiais nesse lugar. ariegense, cátara ou não: sem qualquer nostalgia das montanhas natais,
Este é agora, para contento da comunidade, um pequeno profeta, emancipada, depressa adaptada às liberdades urbanas e ibéricas, esta
identificado com Cristo ou com o Espírito Santo. Mas é um profeta emigração dá às mulheres um papel mais eminente, e aos jovens uma
autocéfalo, ou perto disso; só é reconhecido por ele próprio, e pelos maior liberdade de casamento do que tanto umas como os outros
happyfew (6) ••• Por necessidade de dinheiro ou por qualquer outra razão, possufam, à partida. na sua alta e severa comunidade da região de Aillon.
Guillaume Bélibaste presta, ocasionalmente, uma pequena ajuda à equipa

de pastores que Maury dirige: a esta juntam-se igualmente outros pastores
fugitivos de Montaillou, os Maurs. Todo este reatar de relações se vai As relações de Pierre e da sua parente Guillemette Maury serão
operar a partir de 1 3 1 5. envenenadas durante algum tempo por uma sórdida questão de
arrendamento de gado a meias. Nas vésperas da sua partida como

assalariado transumante, P ierre deixa as suas ovelhas pessoais
É, na verdade, durante o Inverno de 1 3 1 5- t 3 1 6, que P ierre Maury arrendadas a Guillemette: o contrato, puramente oral, segundo parece,
estabelece o primeiro contacto, além-Pirenéus, com outros membros da é válido por cinco anos, com ganhos e perdas partilhados a meias
sua famflia que fazem parte da diáspora catalã de Montaillou. Por uma (III, 1 69). Os encargos são equitativamente, se bem que unilateralmente,
mulher de Tortosa, que lhe vende farinha, Pierre sabe que uma parente repartidos: Pierre fornece o gado; Guillemette encarrega-se das despesas
sua procura entrar em contacto com ele. Quem sai aos seus não degenera: correntes. O acordo é sensato, desde que Guillcmette não roube Pierre,
a ideia de reatar um laço com uma consagufnea põe o nosso pastor, condição que, infelizmente, não é preenchida... A nova agricultora de
homem de domus e de linhagem, no caminho da busca. Em Orta, aldeia San Mateo aproveita-se, na verdade, da ausência do seu sócio; priva-o
da região de Tortosa, Pierre Maury encontra a sua patricia, Guillemette dos lucros que nonnalmente lhe deveriam caber, da pele e da lã de
Maury; mulher de cabeça e de coração, mas um tanto manhosa, não cento e cinquenta ovelhas mortas. Pele c lll que Guillemette - pelo menos
hesitará, algum tempo depois, em enrolar o seu amável primo nos é o que ela diz - apenas utilizou para prover às necessidades do lar e
·

negócios, para comemorar o reencontro. para se vestir, a ela, aos filhos e aos amigos (I I I. 1 84). Instada por
Viúva recente de Bernard Marty, de Montaillou, Guillemette Maury Pierre Maury, que esta má nova apanha totalmente desprevenido aquando
residia em Orta, onde recebeu Pierre num belo domingo. Pouco depois, de um seu regresso de Cerdagne. Guillemette é obrigada a confessar
acompanhada pelos seus dois filhos, Jean e Arnaud, muda para San que dera uma parte dos ricos despojos das famosas cento e cinquenta
Mateo: esta aldeia oferece, à exilada de Montaillou, a inestimável ovelhas ao santo homem Bélibaste, como presente ... Pierre ficará tão
vantagem de estar situada mais perto de Morella, onde vive Bélibaste. furioso com aquela roubalheira que, um dia, se despedirá de Bélibastc
A lém disso, segundo consta, San Mateo é mais lucrativo do que chamando-lhe minudier (avarento) e sem lhe fazer a saudação ritual
Orla ('). Ganha-se lá melhor a vida: Guillemette e a sua fam flia de (III, 1 69. 1 72, 1 73 e
passim). A vida dos pastores - sobretudo quando
rudes montanheses, agarrados ao trabalho, silo sensfveis a esse intervêm personagens pouco escrupulosas como Bélibaste, que se vale
argumento. De facto, a exilada, a quem Pierre, que não é rancoroso, da sua qualidade de «perfeito» para transfonnar uma divida em presente
fará, até ao fim, frequentes visitas, «vence)) em San Mateo: compra, - é fértil em incidentes do mesmo género: um dia, Pierre Maury e
nessa pequena cidade, a chamada «casa dos cerdaneses>>. na rua dos Guillaume Bélibaste compram seis ovelhas a meias (til, 1 67). O primeiro
Laboureurs, num bairro segregado, reservado aos camponeses. Esta casa que, de qualquer forma, paga a sua parte, adianta dinheiro para cobrir
possui um pátio e várias divisões. A fortuna de Guillemette provém a parte do segundo. a quem, além disso, empresta a principesca soma
igualmente do facto de dispor, graças à sua famllia. d� três trabalhadores de S soldos. Ora Bélibaste, indiferente a esta dupla dfvida, decide, de
na sua exploração. Tornando-se pequena agricultora, possui ainda uma súbito, retirar as suas três ovelhas do lote comum. Que te importa, diz
vinha, uma burra e um rebanho. Funde ainda na sua casa uma oficina ele a Pierre, visto que não me emprestaste mas me deste esse dinheiro,
de cardagem de lã. Para equilibrar o orçamento. e juntamente com os por amor de Deus? Maury era a bondade em pessoa. Mas, apesar de
filhos, trabalha, a titulo temporário, para fora, nas ceifas e nas vindimas. ingénuo. não era parvo. Insurgiu-se contra o seu camarada e durante,
Hospitaleira, tem sempre viandantes ou amigos em sua casa - é Pierre alguns dias, tratou-o com frieza.
AS GRANDES TRANSUMÂNCJAS 129
128 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR
• Pierre Clergue; este é agora vulgarmente tratado por bispozinho do
Sabarthes, devido ao poder que exerce: provoca, diz-se, a destruição
da região, àforça da suo cumplicidade com a Inquisição. Estes homens
Limitar-me-ei a fazer um breve resumo do per(odo um pouco
nao sabem, evidentemente, que muitos deles, tal como o próprio Pierre
monótono e repetitivo da carreira posterior de Pierre Maury. Na Páscoa
,· i
Clergue, vao, em breve, cair nas garras do bispo de Pamiers.
de 1 3 1 5 ou 1 3 1 6 é contratado como pastor por Amaud Fauré de
Quem sai aos seus nílo degenera: no dia de S. João desse mesmo
Puigcerda por cinco ou seis semanas. É uma oportunidade de se dirigir
ano, Pierre sucumbe uma vez mais aos seus velhos e lucrativos hábitos
novamente para o norte, para a Catalunha russilhonesa: conduz as
de instabil idade salarial. Despede-se do seu patrão de momento, o
ovelhas do seu novo patrão, acompanhadas possivelmente pelas suas,
cerdanês Raymond de Barri e coloca-se de novo ao serviço da sua
para a Cerdagne.
estimada patroa, Brunissende de Cervello, que passaremos a encontrar
De volta aos seus queridos Pirenéus, Pierre deixa (provisoriamente)
a cada curva das suas andanças (III, 1 8 1 ). Nos restantes meses desse
a companhia de Arnaud Fauré, para quem acabava de realizar diversos
Verão, Pierre, de novo como patrão, vai com o rebanho que tem a seu
trabalhos relacionados com a transumãncia; volta a colocar-se ao serviço
cargo para La Cavalerie e Fontaine-argent, a pouca distância do
da sua antiga patroa, a senhora Brunissende de Cervello. Esta grande
Hospitalet. O seu grupo de pastores, que compreende também o seu
criadora de gado, catalã e titular, mantém uma sociedade com o inevitável
irmito Jean Maury, é cerdanês, catalão, andorrano e ainda ariegense de
Raymond Boursier de Puigcerda, outro velho conhecimento do nosso
Montségur e de Montaillou.
pastor. Com efeito, uns anos atrás, Pierre tinha passado dois anos como
Esse VcrJo decorre sem heréticos. No entanto, Pierre prefere não
pastor de Raymond Doursicr, em Cerdagne. Pastor conhecido c
trocar o seu poleiro pircnaico pelos planaltos do baixo Sabarthes, que
competente, Pierre pode, dar em diante, escolher os seus patrões na
podem ser perigosos. O próprio alto Sabarthes parece eventualmente
rede patronal posta à sua disposiçilo, ao sabor das suas deslocações,
insalubre a este homem sedento de liberdade. Chega o Inverno de I 3 19-
1 320, Pierre não hesita: volta a partir para sul, em transumância invernal,
pela Catalunha do Sul e do Norte, a Cerdagne e a alta Ariege. Nesse
Verão, precisamente, Pierre conduz as ovelhas da senhora Brunissende
para as regiões de Tarragona, perto de Carol e do mosteiro de Santa
para a montanha ariegense: a sua equipa de homens compreende -
Cruz (III, 1 8 1 , 1 82). De futuro, os seus destinos confundem-se com os
além dele próprio e do seu irmão Jean - o habitual «quarteto)) de
dos amigos de Bélibaste; e, como se verá, a sua prisão seguirá de perto
Pirenaicos (três cerdancses e um andorrano); e ainda um aragonês, natu­
a deles.
ral da região de Terucl. Decorrido o Veli'lo, Pierre, que acaba de se •
desobrigar do trabalho que devia prestar à nobre senhora Brunissende
decide, sem mais nem quê, passar, uma vez mais, o Inverno na Catalunh � Foi por ocasião de uma visita a casa de Guillaume Bélibaste,
provavelmente em 1 3 I 9, por altura da Páscoa, que Piem: Maury teve
do Sul, para onde o chama a sua viva afeiçílo de sempre por Bélibaste.
de enfrentar seriamente a perspectiva de um casam ento (III, 1 85). Depois
de alguns circunlóquios, relativos às ausências demasiado longas de
Regressa, portanto, ao serviço de A rnaud Fauré, que abandonara na
Primavera precedente; volta a descer, com os carneiros do dito Arnaud,
Pierre e à impossibilidade moral em que se encontraria Cristo se
para as pastagens de Inverno de Plana de Cenia, nílo longe de Tarragona,
fica. assim, a pouca distância de Morena e de San Mateo, residências
estivesse realmente presente na Eucaristia, de transitar pelas p �es
vergonhosas do corpo humano, Bélibnste ataca a questão crucial: casar
permanentes da pequena colónia belibastiana (III, 1 72). Ao longo dos
Pierre Maury. O santo homem utiliza primeiro uma dialéctica bajuladora
anos seguintes, Pierre Maury, absorvido pelas suas querelas mais ou
que começa com umas criticas amigáveis: voltou a andar com
menos amigáveis com o clã Bélibaste, mostra-se um pouco mais estável.
prostitutas, Pierre. Manteve durante dois anos uma amante nas
Mas, no Estio de 1 3 19, volta a singrar rumo ao norte - encontramo-lo
pastagens ('). E prossegue com o mesmo tema: Pien-e, você dispersa­
se, devia de�m; de transumar de pastagem para pastagem, de amante
no desfiladeiro de Puymaurens (Hospitalet), com a sua velha equipa de
pastores de Montaillou, que inclui, nomeadamente, os irmãos Maurs,
em amante. E tempo de assentar. Como Pierre rejeitasse violentamente
um pastor de Prades d' Aillon, aldeia vizinha da nossa, e um cerdanês
este argumento, Bélibaste modifica, ou melhor, explicita a sua estratégia:
(III, 1 8 1 ). Durante esse VerJo, o bispo Jacques Fournier é muito evocado
nas conversas da equipa à volta da fogueira. Os pastores costumam
uma ve= que não se quer abster de mulheres, diz ele ao pastor, faço
dizer que ele faz levantar as cordeiras, por outrns palavras, trazer à luz
questão de lhe arranjar uma que sirva. Terá o entendimento do bem
(será herética). Velará pelos seus bens. Além disso. lerá eventualmente
a verdade, quando interroga os suspeitos; fala-se também do pároco
1 30 ECOLOG I A DE MO'NTAILLOU: A CASA E O PASTOR AS GRANDES TRANSUM ÂNCIAS 131

filhos que o ajudarão e o servirão na velhice. Em todo o caso, seria - Não quero uma mulher - diz ele. - Ter de me sustentar a mim
mais honesto da sua parte ter uma rínica mulher do que frequentar próprio já me dá bastante que fazer.
uma data de raparigas, que lhe arrancam o couro e o cabelo. Bélibaste vê-se obrigado a mostrar o seu jogo:
Pierre Maury riposta energicamente. - Tenho uma esposa para si. A Raymonde, aquela mulher que
- Não quero esposa. Não tenho com que a sustentar: Não posso mora comigo. Convém-lhe perjéitamente.
ftxar-me par motivos de segurança (por medo da Inquisição). - Mas o marido dela, Piquier, talvez ainda esteja vivo - objecta
A primeira ofensiva de Bélibaste para levar Pierre a casar-se imediatamente Pierre Maury.
salda-se, portanto, num fracasso. A finória Guillemette Maury, que - Não - responde o santo homem -, não creio que ele ainda
conhece bem o seu conterrâneo, em breve diagnostica a causa do pertença a este mundo. E depois, vivo ou morto, não há grande perigo
insucesso: Pierre, você tem bicho-carpinteiro (III, 1 86- 1 87). Não é de o vir incomodar neste pais. Entretanto, Raymonde e você poderão
preciso ir mais longe. Formulando um juizo do mesmo tipo, o outro fazer o que têm afazer, se conseguirem chegar a acordo (ibid.).
Pierre Maury (irmão de Guillemettc) declara ao nosso pastor: Pierre, Perturbado, talvez seduzido, Pierre recua um pouco. Adopta, então,
você está com saudades. Deseja ardentemente regressar à sua ruim e uma posição de expectativa, já não desfavorável:
perigosa pátria (na alta Ariege� Um dia destes, ainda se deLTa apanhar. - Raymonele não mulher para mim - diz ele a Guillaume (com
é
Perante a constante obstinação do pastor cm regressar ao Sabarthês, efeito, ela é filha de um forjador, ou ferreiro abastado; a sua condição
onde, no entanto, é persona non grata, só resta a Bélibaste, em acordo social é mais elevada do que a de um pastor de Montaillou, como Pierre
com o irmão de Guillemette, erguer os braços ao céu: Pois bem. que se M aury). - Se quiser, fale a Raymonele do assunto. Não tenho nada a
vá embora, já que assim o quer! Por mais que lhe diga ele não quer objectar: Não elevo ser eu a abordar o problema com ela.
ficar. A palavra final (provisória) pertence, naturalmente, a Pierre Maury, Entretanto, os dois homens chegam a San Mateo, a casa de
que sai vitorioso das tentativas de sedução e de sedentarização de que é Guillemette Maury. A casa desta hospitaleira mulher está, como sempre,
objecto. cheia de gente; além de Guillemette, encontra-se lã o enfermo Amaud
E, de facto, voltei às ovelhas ele Brrmissenele! (III, 1 87). Este Maury, filho da patroa; o irmão desta; uma mulher de fora, contratada
regresso ao rebanho desenrola-se da maneira clássica. Inverno, e depois para cardar lã; e um pobre, que Guillemette convida para comer «por
o Estio com catalães, cerdaneses, ariegenses, aragoneses, na zona amor de Deus)) (III, 1 88- 1 89). Tomam uma refeição ligeira. Depois
pirenaica e na Catalunha. No ano seguinte, Pierre, fiel aos tropismos jantam. Entretanto, Pierre Maury - após ter oscilado, como um cata­
da sua própria transumância ideológica, está de novo com a colónia vento - entre o casamento e o não casamento -, decide-se, ao cabo de
belibastiana. Em Morella, numa noite de Novembro, partilha a cama grandes esforços, a fazer suas as sugestões de Bélibaste a favor do
com Guillaume Bélibaste (III, 1 88). No dia seguinte, os dois homens m atrimónio.
partem a pé para San Mateo; param , no caminho, no albergue de Dame - Se acha bem que eu me case com Raymonde - diz ele ao santo
Gargaille (no Na Gargalha). Depois da refeição, retomam a viagem; hom em -fale com ela. E, se ela aceitar, eu também aceito. Fale também,
deixando-se de subterfúgios, Bélibaste, decorrido mais de um ano, volta amanhã, enquanto cá está, com o meu tio Pie"e Maury (irmão de
a falar de casamento ao amigo. Mas, desta vez, tem um preciso nome Guillemette, homónimo do nosso herói).
de mulher a propor-lhe: Há uma coisa que lhe quero dizer, declara ele Devemos dizer, para explicar o enfraquecimento da fidelidade de
a Pierre (ibid.). Não pode passar a vida a saltar de um lado para o Pierre ao celibato, que o bom pastor é atacado por todos os lados. Os
outro. Era de opinião que aceitasse uma esposa. Que fosse do assaltantes conseguem, finalmente, fazer oscilar as frágeis barreiras
entendimento do bem (herética). E que ficasse com ela. Servi-lo-ia na que até ali opusera com êxito a todas as diligências matrimoniais. Depois
velhice. Dar-lhe-/a eventualmentefilhos efilhas que lhe dariam prazer. do jantar, ao serão, cabe a vez à patroa de importunar Maury: Senhor ­
E assisti-lo-ia nas enfermidades. E você nas dela. E da qual (ao contrário exclama ela -, que problemas nos dá este Pierre. Não conseguimos
do que acontece com as amantes) não teria necessidade de se defendt!r. segurá-lo. Quando nos deixa (para transumar), não sabemos se o
A ideia de ter uma «cara metade)) para tratar dos seus reumatismos voltaremos a ver, pois vaipara as regiões onde estão os nossos Inimigos
senis nilo parece, contudo, galvanizante a Maury. Responde, pois, ao (para a alta A riêge). Se alguma vez o reconhecem, capturam-no: e. ao
discurso de Bélibastc invocando, como habitualmente, a sua (pretensa?) mesmo tempo. todos nós seremos destruídos (').
debilidade económica. Hipócrita, Bélibaste, que já sabe que Pierre acaba de morder o
1 32 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR AS GRANDES TRANSUMÂNCIAS 1 33

anzol, finge-se fatigado daquela discussão, que aparenta considerar semana de penitência - ou quase - o santo homem chama Pierre Maury
inútil: à parte ... e bruscamente propõe-lhe a dissolução daquela recente uniilo.
- NOo há nada a fazer - diz ele a Guillemette. - Pierre nOo vai Pierre nilo sabe recusar nada ao amigo. Talvez tivesse motivos para o
alterar o seu comportamento. Já sefalou demais no assunto {lll, 1 89). seu procedimento. Aquiesce ao b izarro pedido do pequeno profeta. Meu
Mas Ouillemette não dâ o braço a torcer: dito, meu feito. Uma palavra de Bélibaste a Raymonde e Pierre encontra­
- Quero casar Pierre, e o meu filho Jean. Conheço mulheres que -se de novo solteiro, depois de ter sido casado durante uma curta semana.
lhes conviriam. E já houve quem me falasse no assunto. Esses Algum tempo depois regressa aos seus carneiros, enquanto Raymonde
casamentos Irar-nos-iam riquezas e amigos. dâ à luz uma criança. ••

- De acordo - responde-lhe Bélibaste. - Mas quero que essas De quem é esta criança? De Pierre? ou de Ouillaume? Do pastor?
futuras esposas tenham o entendimento do bem (como podemos calcular, ou do santo homem? Diflcil de dizer. Mas a segunda hipótese é mais
o santo homem ao dizer isto tem uma ideia na cabeça: pensa provável. Guillaume Bélibaste habitava há muito com Raymonde em
expressamente na sua Raymonde, que ele acaba de propor a Pierre a Morella; afirmava a quem o quisesse ouvir que nunca tocava numa
caminho de San Mateo, e cujas convicções cátaras são capazes de resistir mulher de carne nua. É certo que lhe acontecia dormir oficialmente
a tudo). com Raymonde na mesma cama, sobretudo durante as viagens e nos
Com estas palavras, mais coisa menos coisa, termina o serão. Há albergues. Mas vangloriava-se, junto dos seus disclpulos, que era só
falta de espaço em casa de Guillemette: os dois Pierre Maury (o irmão fogo de vista, a fim de ludibriar os homens da Igreja romana, a fim de
de Ouillemette e o nosso pastor), Guillaume Bélibaste, e Amaud Maury, que pensassem que ele era casado e não «perfeito)). Para desculpar
vão os quatro deitar-se na mesma cama. O recorde de amontoamento é aquelas proximidades, afirmava, aliás, que tinha o cuidado de, antes de
batido: um banho de multidão. se meter na cama com a governanta, não tirar as roupas interiores.
Mas isso não tem importância. Para Bélibaste, a questão está ganha. Estes piedosos subterfúgios jâ não conseguiam enganar ninguém.
No dia seguinte, de manhã, de regresso a Morella, Guillaume e Pierre Guillaume era de facto, desde há muito, amante de Raymonde. Só à
fazem escala, como compete, no albergue de Dame Gargaille. E ai, o ingenuidade de Pierre Maury isso podia passar despercebido. Ou, o que
bom pastor diz ao santo homem, diante do qual capitula definitivamente: é mais provável, à sua generosidade, à sua amizade fraternal por
já que deseja tanto que eu case com Raymonde, far-lhe-ei a vontade. Guillaume, tão ardente e calorosa como a que unia Bernard Clergue ao
Nessa mesma noite, os dois homens estilo em Morella. Bélibaste, seu irmão Pierre, o pároco. Amizade masculina, que quase passará por
simplesmente, pergunta a Raymonde Piquier, sua cc-residente: equivoca... De qualquer maneira, perante a Inquisição e perante os seus
- Aceitas ser a mulher de Pierre Maury ? pais, decidirâ abafar os desregramentos do perfeito; fingir-se-â, senão
- Sim, aceito responde ela.
-
com boa fé, pelo menos com toda a fé, ignorante. Ele mesmo explicou,
Perante estas palavras, Bélibaste começa a rir, querendo com isso em presença do seu irmão Jean Maury (que lhe censurava o seu
exprimir uma Intima satisfação que em breve veremos ser absolutamente «casamentO)) ridlculo) as motivações profundas da sua conduta: não
compreenslvel. Ou talvez esse riso seja apenas uma forma de dizer podia proceder de outro modo, diz ele, porque goslava muito de
implicitamente ao novo casal: declaro-vos unidos pelo casamento. Guillaumme Bélibasre (111). Pierre Maury era tão afectuoso que se prestava
Depois desta cerimónia, o trio - não ousamos dizer o triângulo - ceia a engolir sem pestanejar as patranhas engendradas por Bélibaste.
oujanta uma abundante refeição de congro e pão benzido por Bélibaste. Mas os amigos de Pierre não têm razões tão fortes como ele para
E, na noite seguinte, a fazer fé no relato seco e simples de Pierre Maury guardar silêncio. Emersende Marty (de Montaillou) e Blanche Marty
à Inquisição: (de Junac), irmil de Raymonde Piquier, ambas refugiadas em zona
- Dormimos junt03 carnalmente, eu e Raymonde (lll, 190). ibérica, reprovam aquela história, e contam cruamente a Pierre Maury,
• um pouco mais tarde, o seu infqrtúnio: não gostei muito da conduta do
senhor Béliba.ste para con.sigoJ diz Emersende a Pierre; casou-o com
Depois de ter sido longamente preparado, este casamento é Raymonde; depois separou-vos um do outro,· e suscitou tamanho
rapidamente desfeito. No dia seguinte, Bélibaste, de temperamento rebuliço naquela casa depois desse casamento, que o obrigou a sair a
habitualmente alegre, mostra-se deprimido (ibid.). Chega ao ponto de meio de um lnverno rigoroso. Ao ponto de você quase ler morrido ele
se pôr três dias e três noites cm jejum (endura). Ao cabo desta meia frio num desfiladeiro ela montanha (III, 1 98).
1 34 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR AS G RANDES TRANSUMANCIAS 1 35

Por sua vez, B lanche Marty reforça as palavras da comadre; diz (') Sobre o que precede: III, 1 69. Sobre o àitomaterial de certos emigrados aricgcnscs
na Catalunha. c nomeadamente dos artlliccs qualilic:ados, sapateiros, fcm:iros, etc., que ali
umas quantas verdades ao bom do pastor por conta da tal Raymonde
que foi sua esposa por três dias: Outrora, revela Blanche, habitávamos
ganluun bem uua vida. ver. III, 171. MIIS as viúvas emigradas no sul dos Pin:m!u:s-qWII'Ido
nllo t�m lilhos adultos para !IS sustcnlllr -envelhecem frequentemente 113 mistri:a.
juntos, eu, Guillaume Bélibaste e Raymonde, na aldeia de Prades (11 ). (') III, 18S. Nada mais sallcmos llCCrc:a desta misteriosa amante. o que � pena. É verdade
que hã uma pc1Juntll ou al11511o indiscn:tn de Ouillaumc Bélibaslc que poderia. neste contexto,
Um certo dia, entrei subitamente no quarto onde dormiam Guillaume fazer pensar que c:ssn misteriosn amnntc nllo era outra senilo Brunissendc de Ccrvcllol MIIS
e Raymonde. Encontrei-os na cama. Guil/aume estava dejoelhos como hã razOes pam nos mnntc:nnos cépticos. Por muior que fosse a ciiiSticidade diiS mulheres
se se estivesse a preparar para conhecer carnalmente Raymonde ou nobres cm relnçllo 6 posiçl\o dos seus amantes, a distância socinl entre cst:IS duiiS personagens
era muito grande pelo que é diOcil acreditar que, apesar da sua relativa riqueza c da sua
como se tivesse precisamente acabado de o fazer. Quando Guillaume, esperteza. o nosso piiStor tenha podido tnmspor tamanha distância. de uma fonna tifo total.
apanhado em flagrante, me descobriu, gritou: Eis, cm todo o caso, o didlogo: Bélibastc, depois de tc:rccnslltlldo a Pierre a sua ligaçllo de
- Sua bastarda, veio perturbar a acção da Santa Igreja (III, 198). dois anos com umn lll1ltll c, nas paslllgcns, declara-lhe, no prosseguimento do texto: Piem. a
srta lntençJo 11 voltar para a senhonJ Brunluende de Cerwllo?
E Blanche conclui, como mulher que nilo se deixa levar: ou os - É - n:spondc Piem:.
meus olhos me enganaram ou Guillaume estava a fa::er aquilo que o - Entilo - replica BélibllSte -.já que ni!o qwrolnter-se de mulheNs. a"anjar- lha-el
senhor sabe com Raymonde. Estas revelações, para o pastor enganado uma que sejo boa, etc. (segundo III, 1 86).
(') III, 189. Ouill.:mette considero, c:cm efeito, que, se Piem: Maury for apnnhndo pela
- voluntariamente enganado, talvez por fidelidade fraternal -, eram lnquisi�. falará. É o que fazem, cm todo o caso, muito nonnalmcntc, procedendo de acordo
claras: Guil laume tinha engravidado a amante; para salvar a sua honra com o seu horror pela mcntim, scnllo os simples «cn:ntes», pelo menos os perfeitos ou homens­
-bons, que a Igreja romana mc:m:cra.
( 11') III, 194. Inversamente, o santo homem, no fundo, � pensava senllo cm explorar a
de perfeito, tinha casado esta por alguns dias com o pastor, a quem
seria atribulda a paternidade da criança. À sua maneira, o santo homem amizade, � rctribulda. que lhe dedicava o pastor, tal c:cmo cm explorar também a
era um tartufo. Mas façamo-lhe justiça: é um tartu fo que se deixará gcncrosidllde linanceimdeste. Uma boa alma de Montaillou dirá um dia. à queima-roupa. a
queimar. Compreende-se que Orgon, desta vez, lhe seja fiel. Piem: Maury, depois do «breve: encontro)) e separaçllo dele com Raymonde: Guillcrumme
Bélibaste e Raymond ni!o desejam que continue o v�r com el�s em MoiVIw polf(ue o
• santo homem, nesse ctJSO. viveria alormentaJo com a ideia de que voc.J quisesse donnir
com Raymonde. O que intell!ssa a Raymonde e Belibaslt. no que lhe di: 11!speito. i
Amigo generoso, o pastor de Montaillou decide passar uma esponja extolf{uir-11111 os seus be11s; ni!o tem goslo em ve-lo, nem em lê-lo co111 eles (III, 19S). Sobre

( 11 ) III, 198. Pmdcs, perto de TliJTllgona. N4o c:cnfundircom Pr.ulc:s, narcgi4ode Aillon.
a avidez de: BélibiiStC:, ver também: 11, 442, 111, 1 7 1 .
sobre o assunto. Apesar das suas núpcias defraudadas, permanece
dedicado a Bélibaste, que persiste cm viver à sua custa. Participa mesmo
na longa marcha do santo homem e dos seus para norte, provocada pelo
espião Amaud Sacre. Este tinha-se infiltrado, tal como verme num fruto,
na colónia belibastiana, para a destruir. Pouco depois da captura de
Guillaume, Pierre, no fim de algumas peregrinações sem interesse,
deixnr-se-á, por sua vez, apanhar pelo Inquisidor. Condenado à prisão
em 1324, desaparecerá, a partir de então, do horizonte dos nossos
arquivos.

( 1 ) III, 148 ss. c III, I SJ; cf. tam�m Ph. Woltr, Commera , carta 4, lnfine; M.
•••

Chevalier, p. 603-604 c n. S.
(1) III, 160. No vcrdadc, n mao-dc-olmldc piiStO� c de migrantes, incluindo homens­
-bons. abandonava eventualmente durante algumas semanas os cuidados itinerantes dos
c:amc:iros; cntn:gando-sc cndo 110 trabalho luc:rutivo de cavar as vinhas (III, 165).
(1) lnfnJ, c:ap. VIl.
(4) Ariqc actual.
(') Localidade dos actuais «Pin:náls Orimtnis1•.
(&) III, 166. Bélibastc gostava de se complll:lt 110 Filho de Deus (11, 78). Os li�isdo seu
pequeno grupo diziam dele: Ele é o Espirita Samo (li, 49).
Capitulo VI

ETNOGRAFIA DOS PIRENÉUS PASTORÍCIOS

As biografias de Pierre e Jean Maury, de Pelissier, de Benet, de


Maurs e de tantos outros, às quais se vêm juntar uma quantidade de
pequenos factos referentes à vida dos pastores, dispersos no registo
Fournier, serão suficientes para servir de base a uma etnografia dos
Pirenéus pastorfcios do primeiro quartel do século XIV? Estaria tentado
a crê-lo, tal é o número de dados relativos à transumãncia e à pastorfcia
ovinas que pululam nesses processos inquisitoriais.
Etnografia económica, em primeiro lugar, os pastores e as pastoras
são homens de negócios e mulheres de negócios, de borias(l), por vezes
coriáceos. Borias são borias; como Pierre Maury aprende à sua custa
nos negócios de lãs, cordeiros e peles com a sua parenta Guillemette
Maury. O movimento comercial na alta montanha é efectuado através
de moeda (como não podia deixar de ser), mas não a ponto de suprimir
a troca e penhora de géneros sempre que se faz sentir uma carência
momentânea de dinheiro liquido. Pierre Mawy não tinha dinheiro e
empenhou a Raymond Barry trinta carneiros, que constituíam a sua
única fortUIUI, como parte do preço que ele normalmente deveria ter
pago ao comprar cem ovelhas a este mesmo Raymond Barry (III, 1 i86).
A falta de dinheiro, pago com carneiros; este raciocfnio, ou esta prática,
parece estar bastante generalizada. AlazaTs Fauré, de Montaillou, propõe
a oferta de meia dúzia de ovelhas ou mesmo uma dúzia a Bernard Benet,
da mesma paróquia, se este aceitar esconder dos inquisidores a
heretização de Guillaume Guilhabert, innão de AlazaTs (1, 404). E de
um modo geral, quer se trate de seduzir um porteiro de prisão ou de ser
bem v isto pelos homens-bons, a palavra de ordem é sempre a mesma:
ofereça Iii; não há melhor prenda para conservar as amizades ou para
as fazer nascer. A importância de troca não impede que exista e que
funcione uma economia monetária, provavelmente mais activa na

'· .
1 3 8 ECOLOGIA D E MONTAILLOU: A CASA F. O PASTOR ETNOGRAFlA DOS PIRIN É US PASTOR IC IOS 139

montanha das pastagens do que na terra baixa cereallfera (1). O dinheiro ariegense estabelece relações, como assalariado ou como concorrente,
intercala-se entre as vendas de lã e as compras de cordeiros: Pierre figura, por exemplo, a senhora Brunissende de Cervello (11, 1 85 e
Maury pediu a Guillemette o dinheiro que esta tinha ganho com a passim); ou o Asilo de S . Joao de Jerusalém, na regiao de San
venda das lãs produzidas pelo rebanho que lhe confiara no ano ante­ Mateo (4). Ta l como o senhorio clerical, nobiliário e hospitalário, a
rior. Ela respondeu-lhe: comunidade rural ou citadina possui o direito de controlo sobre o gado;
- Com esse dinheiro comprei cordeiros_. (III, 1 72). este direito está mais relacionado com os terrenos de percurso do que
As dec:larações de Guillemette, simpática e mentirosa, nem sempre com os rebanhos em si. Pierre Maury, conta Guillaume Maurs, durante
devem ser acolh idas com a máxima con fiança. Mas é um facto dois verões, apascentou as suas ovelhas no desfiladeiro de Pai, nos
indiscutfvel que a lã, com o seu elevado poder de compra, permitia a limites do território de Baga, e... noulro verilo, no desfiladeiro de Cadi,
obtenção de somas de d inhe iro consideráve is, posteriormente nos limites do território de Josa ('). A alusão aos limites territoriais
metamorfoseadas cm carneiros, no decurso do ciclo económico: o parece indicar que as comunidades catalãs de Baga e de Josa controlavam
herético Arnaud Marty. de Junac, tinha grande necessidade de dinheiro: as peregrinações da transumância pirenaica nas suas pastagens
vendeu vinle ovelhas por ck>: libras lornesas,· e a lã dessas ovelhas, comunais. Os limites exteriores destas pastagens coincidiam com os
seis libras lornesas. A lil, por si só, vale, portanto, mais de um terço do limites do território da comuna. Os limites interiores eram marcados
preço global de um rebanho (seis libras por dezasseis l ibras (1). Não pelas hortas e culturas arbustivas, dispostas directamente em volta do
admira que os pastores tenham, por vezes, a impressão de se terem habitai paroquial e onde eram proibidas as pastagens: Jeanne Befayt
tomado ricos; ou, pelo menos, relativamente ricos, a ponto de terem os (de Montaillou) q11e residia em Beceite, aj11dou Piem! e Arnaud Maurs
olhos maiores do que a bolsa - foi por ter querido, de uma só vez, ., a levar o rebanho para fora da aldeia (de Beceite) velando por que
comprar cem ovelhas, por mil soldos de Barcelona, que Pierre Maury este rebanho não irrompesse pelas hortas e vinhas da dita aldeia
se endividou até ao pescoço (I II , 1 77; 1 1, 1 86). (11, 390). Outra delimitação notória: a que separa os pastos, comunais
Conhecemos a organização, no espaço, desta economia pastoril, ou não, e as sementeiras: o grande problema dos guardas campestres da
directamente, através de alguns textos da época e, indirectamente, graças paróquia que, ern Montaillou e noutros lados, estão encarregados de
à h istória «regressivm>, pelos trabalhos mais recentes de M. Chevalier policiar as estremas, é impedir que os rebanhos espezinhem a seara
relativos à criação de gado nos Pirenéus. madura (11, 505). O risco é sempre grande porque, perto das povoações,
Segundo estes trabalhos, a criação de gado transumante entra em das searas e das vinhas, há zonas, pelo menos em certas regiões, onde
connito tanto com os direitos das grandes comunidades aldeãs, como os animais ferozes se não aventuram a entrar, o que permitia que os
com os dos senhores que conseguiram afirmar o seu domfnio sobre esta pastores tivessem um momento de folga. .. abandonassem as ovelhas,
ou aquela porção de pastagens de altitude, em zona ibérica ou pirenaica. arriscando-se a deixá-las sair das pastagens e espezinhar as searas:
Este dualismo de poderes, comunitário e senhorial, já existia no tempo Guil/aume Bélibaste e Pierre Maury. quando guardavam os carneiros,
das deambulações dos nossos pastores de Montaillou. podiam ir onde queriam: porque nos prados (limltrofes das terras
Pierre Maury, por exemplo, no desfiladeiro de Flix (região de semeadas) onde se enconlravam não havia perigo de lobos: o único
Tarragona) põe o seu rebanho a pastar numa vasta pastagem controlada perigo reside em pisarem as searas: assim, de noite, estes pastores
e declarada em defeso pelo bispo de Lérida(III, 1 70). Furiosos com esta podem deixar os rebanhos a pastar e ir onde quiserem até ao nascer do
violação, doze agentes do bispo vem expressamente de Bisbal de Falset, dia (li, 1 82).
a fim de pignorer (confiscar) os carneiros de Pierre. Este, para se livrar Uma parte dos prados, os mais próximos do terreno ou os mais
de embaraços, manda cozinhar um enorme empadão que partilha, num férteis, passara a pertencer às propriedades particulares dos criadores
grande jantar, com os doze esbirros episcopais, aos quais se juntam locais de gado, por exemplo em Montaillou. Outras partes eram comunais
para a circunstância os antigos cerdaneses, catalães e ariegenses do (muitas vezes sob «propriedade eminente» de um senhor). Quais os
pastor. O embargo senhorial pode, de resto, operar-se a dois nfveis: a critérios utilizadd$ para as atribuir aos pastores transumantes? Neste
n fvel da terra de pastagens, como é evidente; e também a nfvel dos ponto, só podemos fazer conjecturas - o sorteio das porções pastorais
próprios ovinos, que podem muito bem ser propriedade de poderosas pode, de qualquer modo, ter desempenhado um papel importante,
personagens nobiliârias, senhoriais, eclesiásticas ou hospitalárias. nomeadamente para os pastores de Montaillou que v inham apascentar
Entre estes grandes proprietários de carneiros com os quais o pastor os seus rebanhos e os dos outros no território de Arques, em zona audense
ETNOGRAFIA DOS PIRJNÉUS PASTOR1CIOS 141
1 40 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR
montanha chamada Gavarsel, perto de Ascou; e, quando vi que a neve
(III, 140). começava a cair, levei a minha bezerra parajunto da monada de vac�
Noutras regiões, na vertente catai!, as condições lmp�stas
aos nossos pastores ariege nses eram' ainda mais drásticas.
comunais da aldeia de Ascou, e eu próprio regressei a essa a/dera
A transumância era praticamente proibida: era preciso residir no local,
(11, 362).
através do casamento com uma rapariga da terra, para ter o direito a
apascentar o rebanho de ovinos no território comunal. Foi assim, após •

o papel da comunidade aldea, no que diz respeito à vida dos


uma primeira tentativa infrutífera, que se n!alizou o casamento de Je�
Maury, de Montaillou, sem que, por isso, os imperativos da transumâncta
.
acabassem por impedir, antes pelo contrário, um pequeno trtunfo do

pastores, é, assim, real embora limitado. De facto, a verda eira cé lula
.
de sociabilidade dos guardadores de gado, independente dos tmperauvos
amor. Enquanto Jean Moury habitou em Casteldons, os bailios do região
da aldeia, é a cabane. Vimos como, desde os tempos da sua juventude,
intimaram-no o arranjar mulher no local ou então o abandoná-/o.
no território de Arques, no lugar conhecido por La Rabassole, Pierre
E Jean Moury não conseguiu desencantar uma mulher que aceitasse Maury desempenhou a função de chefe de cobane durante o Ve o: �
ser suo esposa. Então, deslocou-se para... Juncoso (6) e ai se alojou em
estava encarregado do fabrico do queijo e era responsável por uma equtpa
case� de Esperte Cervel e de Mathena, sua filha. Por intermédio do
de oito pastores (1). Os processos de Foumier contêm outros textos
padre de Juncoso, negociou o seu casamento com esta Mothena, que
relativos a este sistema de cobanes no qual participam regularmente os
lhe tinha agraciado.
pastores originários de Montaillou. Guillaurne Baille, por exemplo,
• aponta a existência de uma cabane de guardadores de gado no colo
.
pirenaico de Riucaut, situado entre Andorra e o Hospttalet (trata-se
Guardadora zelosa dos territórios de pastagem, a comunidade
talvez, do actual porto de Envalira, perto do desfiladeiro de Mérens
aldeã, em contrapartida, parece apenas desempenhar um papel bastante
(III, S 19). Naquele Verao, conta Guillaume Baille, dois pastores de
reduzido no que respeita à própria organização dos agrupamentos de
Cerclagne, ajudados por Guillaume Maurs de Montaillou,jizeram uma
ovinos. No século XIX, os rebanhos comunais e intercomunais de ovelhas
cabane (') no colo de Riucaut. Arnaud Maurs. irmao de Guilloume
- os ramados - estilo em pleno crescimento na alta Ariêge. Nilo era
Maurs, era cabanier (chefe de cabane) efabricava os queijos ( l i , 38 1 ).
assim no século XI'V. Naquela região e entre os pastores transumantes
Depois da cabone de Verilo (na pastagem pirenaica de altitude), a
dai originários só se encontram organizações individualistas; ou, para
cabane de Inverno (na Catalunha): no Inverno seguinte, conta Guillaurne
sermos exactos, associações entre particulares, que, nos tempos
Maurs, ia na companhia do meu irmão e dos nossos rebanhos, na
modernos, se chamarllo orrys. Longe de ser uma sobrevivência de não
direcção da planície de Peniscola... Ejá tínhamos tantas ovelhas que
sei que pré-história, o esplrito comunal desenvolveu-se muito na alta
pudemosfa::er a nosso própria cabane (11, 1 86). Convém notar que a
Ariêge, entre os séculos X I V e X V l l l ,juntamente com o crescente papel
cobane de Inverno ou de quaresma possui um rnfnimo de conforto;
da comunidade da aldeia, como interlocutora válida do Estado e como
encontra-se ai um canto para a cozinha, um canto para arrumar a roupa
É, com efe� t�, nesta
célula da sociabilidade fiscal e poHtica.
(II, 1 8 1 ) e para dormir. AI se recebem os amigos.
Em Montaillou, na regiilo de A illon, no Sabarthês, o comunalismo
cabane de Peniscola que Pierre Maury e seu primo Amaud vtsttam os
dos rebanhos, por volta de 1300- 1 325, é ainda inexistente nos sectores
irmãos Maurs: os quatro homens falam, com um certo deleite, da recente
ovinos. Em compensaçilo, manifesta-se num domlnio próximo, o da
captura do padre Pierre Clergue por Jacques Foumier. A cabane é o
criação de vacas; será muito importante até ao século XIX (ver, por
local de fabrico dos derivados do leite; por detrás dessa fachada que o
volta de I SSO, as grandes vacarias comunais e intercomunais, ou
queijo constitui é também, no caso dos Maurs, dos Maury e dos seus
bocados, na região de Tarascon e de Montségur... ). Em Montaillou,
homólogos, o ponto de intersecção das deslocaçOes de uns e de outros e
a Bourse (') das noticias longlnquas da aldeia natal (II, 477). Antes de
mesmo os bovinos, excepto o efectivo limitado de gado de tracção, não
tc!m a menor importância em 1 320 e o problema de um bocado comunal
1 « fazer cabone>> na Catalunha, os Maurs tinham passado as estaç�es
não se põe sequer. Mas, um pouco mais ao sul, na aldeia de Ascou, que
seni, até ao século XX, uma das praças mais fortes da vacaria colectivista,
precedentes na alta Ariege e em Aragão. Quanto a Pierre Maury, as
peregrinaçOes dos dois anos anteriores inclufam Aragilo, a Cerdagne o
tudo indica que a tradição do comunalismo remonta ao século XIV, :
condado de Foix e a Catalunha meridional. E de que falariam à laretra
talvez até ao XIII: Um certo domingo. em Maio ( 1 322), conta Raymond
da cabone, estes homens que não podiam ser acusados de espírito tacanho
Sicre, de Ascou, conduzia uma bezerra que me pertencia para o
I •
.
1 42 ECOLOGIA DE MONTA ILLOU: A CASA E O PASTOR ETNOG RAFIA DOS PIRINÉUS PASTORfCIOS 1 43

nem de provincianismo? Depois de cada um ter percorrido quatro regiões um telheiro para o fabrico do queijo. É assim que é descrito o habitat
diferentes, falava-se simplesmente da aldeia, da terra, de Montaillou, pirenaico dos pastores de passagem de acordo com a investigação de
que estava longe da vista mas perto do coração. Soulié. Habitat pouco di ferente, sem dúvida, daquilo que já era no século
Outra cabane ainda - aquela que reunia por pouco tempo o pastor, XIV, durante a grande época das investigações Foumier. Mais acima,
talvez sarraceno, Guillaume Gargaleth, e o seu sócio Guillaume na montanha, nas zonas desarborizadas, onde seria muito diflcil tentar
Bélibaste, contratado por uma quinzena como guardador de gado por arranjar vigamentos, as cabanes são pura e simplesmente construções
Pierre de Capdeville (III, 1 65, 1 66). Esta cabane fica situada nas de pedra solta, representativas de uma arquitectura arcaica que se
pastagens de Primavera e de Verão do monte Vézian, perto de Flix encontra um pouco por todo o lado nas regiões do Mediterrâneo
(Catalunha). Garga/eth e Bélibaste apascentavam as ovelhas durante ocidental, na Sardenha, em Vaucluse, no condado de Foix, na Catalunha.
esses quinze dias até à Páscoa: viviam sozinhos na cabane; aifa::iam o Quanto ao curral ou corta/, trata-se simplesmente de uma drea
seu próprio lume separado dos outros. Nilo longe deste habitat com o mlnimo de abrigo de telhado; com pavimento de terra batida ou
temporário, frequentado por Bélibaste, encontram-se também currais de esterco calcado, é cercada de ramagens ou de pedras para proteger
momentâneos para guardadores transumantes, chamados cortais: ai se dos lobos, dos ursos e dos linces. A extrem idade desta cerca tem a forma
construíram cercas; sob o cajado de Pierre Maury, promovido a de uma entrada alongada que deixa passar uma só ovelha de cada vez.
cozinheiro, faz-se a comida, a galeote e o ai/lo/i; encontram-se lá No século XIV, tal como no século XIX, a vedação é um elemento
pastores católicos, cátaros e sarracenos, que convivem fraternalmente essencial do cortai. Pierre Maury, que tanto no corta/ como na domus
sem se preocuparem com as opiniões (III, 165). Voltarei a este assunto. pratica uma hospitalidade generosa para os com migrantes sazonais ou
Assim, a cabane é para o pastor migrante de Montalliou aquilo heréticos (II I, 1 65, I 99 e pas:r;im), não esquece, no entanto, as cercas
que ficou na terra. Trata-se de uma verdadeira instituição: pode nas suas orações: no principio da quaresma, conta o bom pastor, Pierre
encontrar-se cabanes designadas como tal, com a sua carga de relações Bélibaste. o herético Raymond de Toulouse e o crente dos heréticos
humanas, desde os Pirenéus ariegcnses e ccrdãos até à zona catalã c Raymond lssczura, de Jaurant, vieram ao meu cortai nas pastagens de
mourisca. A área das cabanes estende-se muito para sul até à baixa Fli'C; eu estava afazer pão: ordenei a um dos pastores, um sarraceno
Andaluzia meridional, que permaneceu, durante muito tempo, sob o que trabalhava comigo, que desse de comer aos heréticos. Quanto a
domlnio sarraceno: no sistema da cabailera andaluza, com efeito, os estes, disse-lhes para fa:erem as cercas, o que eles fizeram durante
pastores empregados na sierra e alojados em cabane recebem do seu todo o dia... Eu sai com as minhas ovelhas .. À noite, comemos, no
.

patrão um magro salário em dinheiro, o qual é, no entanto, acrescido cortai, um prato de alho, pão e vinho. Um dos heréticos benze_u
de uma determinada dose de alimentos estipulada pelo contrato. Cabane secretamente o pão à maneira herética. (Passámos a noite no cortai).
ou cabailera representam, assim, instituições bem definidas: pertencem No dia seguinte, fiZ duas grandes galettes, uma para os ditos heréticos
à comunidade de cultura mourisca-andaluza-catalã-occitana, em que e outra para mim e para os meus camaradas. Os heréticos partiram em
se insere, em tantos nrveis, a civilização local ou transumante das gen­ seguida para Lérida, onde conheciam Bernard Cerve/, ferreiro
tes de Montailtou. tarasconês que tinha a mesma crença do que eles: tencionavam
O sistema das cabanes nos Pirenéus audenses e ariegenses foi empregar-se para cavar as vinhas na região de Lérida (III, 1 65).
perfeitamente descrito pelos etnógrafos e geógrafos do século XIX e Pequeno texto que ilustra bem as funções do cortai, anexo e substituto
começo do século XX. Encontramos nesses textos recentes a distinçllo da cabane. Uma mão-de-obra de passagem (que se encontra, neste caso
que os processos Foumier já faziam entre a cabane para os homens e o particular de Pierre Maury, polarizada pelas amizades heréticas) constrói
}as (10), courra/ ou corta/, cercado de vedação, onde os animais «sllo ai a indispensável vedaçllo contra as feras, antes de voltar a descer para
ordenhados, se juntam e pernoitam». A cabane pode ter uma estrutura a região baixa para realizar trabalhos sazonais, neste caso vinlcolas.
semelhante à de uma tenda primitiva composta por uma pequena parede O corta/ funciona como curral, mas também como cozinha e como
de pedras soltas, sobre a qual se apoia uma vigota, a pai, que tem a padaria, para a mão-de-obra variável que nele se encontra reunida. Por
outra ponta metida na terra. O vigamento é formado por bocados de fim, representa, ao nfvel das classes inferiores, uma encruzilhada de
madeira que, apoiados na vigota, sustêm um telhado feito de placas de influências culturais: no caso que nos interessa silo heterodoxas, porque
relva. Uma abertura feita no murete serve de entrada e também de es­ cátaras e muçulmanas. Vindas de longe, cruzam-se em todos os sentidos.
cape do fumo do lar ou laré. Contfguo à cabane fica, eventualmente, A organização do trabalho nas cabanes e nos cortais no tempo de
1 44 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR ETNOGRAFIA DOS PIRINÉUS PASTORÍCIOS 145

Pierre Maury não parece muito diferente daquilo que sen\ meio milénio opOe·se à domus do Sabarthês ou de Montaillou, tal como o universo
mais tarde. Cada cabane alberga uma equipa de seis a dez pastores, que masculino contrasta com o ((masculino-feminino••· Na domus, apesar
só ali passa uma estada sazonal ou provisória: será substitulda por uma de uma certa divisão de tarefas que confere ao homem os trabalhos do
outra equipa equivalente em número mas totalmente diferente no que exterior e à mulher os do interior, os papéis masculinos e femininos
se refere às origens geográficas ou, pelo menos, às identidades dos interferem uns nos outros. Pelo contrário, a cabane é estritamente adulta
indivlduos que a compõem. Hâ também pequenas cabanes c�ja e masculina (11 ). Nos quadros de Adoração dos pastores do século XV, a
populaçllo humana não excede os dois ou três pastores. De uma mane1ra presença de uma Virgem e de uma criança no curral das pastagens
geral, a cabane é uma estalagem espanhola, mas desprovida de constituirá o elemento inesperado, logo insólito e maravilhoso. Sociedade
estalajadeiro permanente. de homens, recrutada por cooperação e nllo por geração, a cabane não
Quanto ao efectivo ovino de uma cabane, tal como indicam os deixa, por isso, de ser a escola das mais antigas tradições, lunares e
inspectores agrícolas do século XIX, permanece também dentro das mentais, dos criadores de ovinos, que exen::em uma das profissões mais
normas medievais. 200 a 300 cabeças. Por vezes, apenas entre SO a antigas do mundo: essas tradições manifestar-se-ao, um pouco mais
1 00. A formação desse rebanho é feita com base naquilo que M. Cheva­ tarde, já sob a forma escrita, nos calendários dos pastores. As cabanes
lier designa por associação <esemi-individualistru>. (Os agrupamentos montanhesas de Vcrlo são, assim, depositárias de resquicios culturais:
de ovinos com base no comunalismo das aldeias, igualmente descritos desempenham igualmente este papel de depositárias em relação aos
por M. Chevalier, nllo se aplicam às nossas cabanes dos anos 1 300 rescaldos do Catarismo, que preservarão protegidos dos poHcias da região
porque, no tempo de Jacques Foumier, o comunalismo em questão só baixa durante o máximo de tempo possfvel, por transmissão oral dos
se verifica, como vimos, em relação a manadas de vacas). velhos pastores aos jovens. Não era o que restava desta transmissão
Duas ou três centenas de ovelhas, então, para uma cabane, e para montanhesa que encontraria ainda, no final do século XVI, na região
um rebanho de associação sem i-individualista. Elas são fornecidas por alta albigense, o santo bispo de quem fala La Rochc-Flavin, autor do
vários pastores associados. Cada um deles conduz, frequentemente, os único texto conhecido que trata com autenticidade de uma possivel
seus próprios animais e, quase sempre, aqueles que o patrão lhe confiou. sobrevivência cátara, pelo menos a titulo folclórico, para além dos
Pierre Maury, por exemplo, pode possuir pessoalmente 30 a SO cabeças principies do Renascimento: Um santo bispo, diz La Roche Flavin,
de gado no meio do rebanho muito maior cuja responsabilidade assume indo para Roma a fim de aí receber as ordens de Cardeal, encontrou,
quer como pastor-chefe, quer como cabanier, queijeiro, ou capata:. perto das montanha de Albi, um velho camponês que lhe disse: que
É, ao mesmo tempo, trabalhador associado, assalariado e contramestre havia uma multidão de infolizes, cobertos de sacos cheios de cinza,
de outros camaradas assalariados que estão sob as suas ordens; voltarei, vivendo de raizes nos desertos destas montanhas, como animais
posteriormente, a focar estes papéis. selvagens, aos quais chamavam Albigenses; e que a guerra contínua
Conhecemos a vida quotidiana ou, melhor, mensal, dos nossos que lhes fora movida e já durava cinquenta a sessenta anos e o
pastores durante a pastagem de Inverno e a de Verão, através de assassinato de mais de cinquenta mil homens só tinham servido de
documentos antigos ou retrospectivos. A época das crias e a ordenha semente para os fa:er crescer e aumentar, e que não havia maneira de
marcam o seu ritmo. Os cordeiros nascem pelo Natal, de acordo com a osfazer sair deste erro, a não serpor meio da pregação de uma excelente
m itologia do presépio, jâ tílo popular na iconografia dos séculos XIV e personagem. (11)
XV. No começo de Maio, é o desmame. A partir de Maio, começa a •
ordenhar-se as ovelhas. Terminam as associações de pastores e,
eventualmente, de patrões. Em Junho, sobe-se até às cabanes. Armado Até aqui, situamo-nos no domfnio da longa duração, trans-histórica,
de uma grande colher e de recipientes de madeira, o majoraJ ou pastor­ durante a qual, do século XIV ao XIX dos pastores, a cabane existe
chefe dedica-se então ao fabrico do queijo, RUeijo esse que, nas lojas de imóvel, como uma instituição viva.
Ax-les-Termes, sen\ vendido a todos os aIde� das redondezas, incluindo Subjacente a estas estruturas de criação de gado, também estão
os de Montaillou. registadas nos nossos textos as grandes caminhadas da transumância,
Inteiramente masculina, apenas «perturbada>>, de tempos a tem- tao conhecidas dos pastores de Montaillou. Sobre as condições gerais
pos, pela passagem de alguma cortesã ou amante que se vem divertir em que esta se efectua, o artigo de Pierre Coste (u) deu algumas ideias
com um pastor mais rico ou mais sedutor, a cabane pirenaica ou ibérica de conjunto, válidas não apenas para a Provença estudada por este autor,
I
I 1 46 ECOLOGIA DE MONTA ILLOU: A CASA E O PASTOR ETNOGRAFIA DOS PIRINÉUS PASTORfCIOS 1 47

normal consiste, de seguida, em descer para passar o Inverno na direcção


mas também, como demonstram os nossos textos, para os Pirenéus .·•
ariegenses. dos pré-Pirenéus orientais do vale de Agly, para os lados de Rasiguieres,
1° P. Coste começa por salientar o predomlnio da transumância Planêze, Arques; em direcção a Razês, Fenouillêdes e Maury, limltrofes
«inversa»: da montanha para a planlcie, das regiões altas para as baixas, do Russilh!lo setentrional do extremo sul do actual departamento de
Aude. O que era, afinal, a indefectfvel amizade que unia Pierre Maury
do Estio para o Inverno. A transumância «directa)), pelo contn\rio, é
uma minoria, pouco importante: as gentes da planfcie são mais caseiras, a Guillaume Bélibaste senão o fortfssimo nó que liga de homem a homem
mais amigas de estar em casa, que as da montanha. As nossas grandes um pastor estival da alta Ariege (Maury) e um filho de criador de gado
equipas de pastores, no eixo Pirenéus-Catalunha tal como na Provença, de Inverno de Fenouilledes (Bél ibaste)? A sequência desta amizade
são antes de mais recrutadas na montanha, seja na alta Ariege e resignar-se-à, mais tarde, às linhas de força, meridionais doravante, da
especialmente em Montaillou, seja na Cerdagne. «A transumância transumância pirenaico-ibérica, Pierre Maury permanecendo o elemento
inversa tem com ela a lei, e sem dúvida os séculos>> (P. Coste). móbil vindo da alta Ariege, e Bélibaste tomando-se o sedentário de
2° Somos também surpreendidos pela importância numérica desta Morella, muito perto das pastagens de Inverno do sul do Ebro.
transumância, podendo a centena de m ilhares de carneiros, no que se As peregrinações russilhonesas, na verdade, não terão muito tempo:
re fere à vigararia de Draguignan e aos bailios provençais de Luc e a Inquisição irá rapidamente, depois de 1 305- 1 038, cortar o caminho
Freinet ('�) constituir uma aproximação razoável. Vale a mesma ordem cátaro do nordeste, que através do profundo vale de Aude ligava os
de grandeza, sem dúvida, para a transumância baseada nos territórios transumantes da Ariêge meridional às suas pastagens de Inverno de
do condado de Foix; mas não temos de momento meios de o julgar com Agly. Ao realizar este corte, os inquisidores não exterm inaram as
precisão. transumâncias. Limitaram-se a incliná-las para sul, em direcção da
3° A transumância exige uma certa organização dos contactos: Catalunha invernal; onde possulam, há muito tempo, pontos de apoio.
não necessita exactamente, é verdade, de uma estrutura estatista Ao deslizar do norte para o sul, a transumância das gentes de Montaillou
unificada, que concentre, por hipótese, todo o espaço, invernal como não fez mais que mudar de Catalunha: passou do mais fronteiriço
estival, que une nas suas caminhadas; mas prec isa das fe iras, dos Russilhão para as terras barcelonesas e mesmo ultra-tarragonesas. Nos
mercados, pois tllo consideráveis deslocações não se podem justificar dois casos, russilhonês e «ibérico», o desnfvel de altitude entre VerJo e
pelas simples necessidades de uma econom ia de subsistência. Por Inverno é da mesma ordem: mas o horizonte catalão-meridional é muito
exemplo, o papel das regiões pirenaicas e sub-pirenaicas é fundamental mais vasto em relação ao espaço acanhado que implicava a transumância
no abastecimento de carne de borrego a Toulouse (u). Precisando mais, russilhonesa.
os Clergue e os Maury, criadores ou pastores de Montaillou, frequentam Este alargamento opera-se, primeiro, ao n lvel da estiva
as feiras de gado de Ax-les-Thermes e sobretudo de Laroque d'Olmes, propriamente dita: as bases pirenaicas, a partir das quais os nossos
onde negoceiam lãs e gado {III, 1 54) pastores de Montaillou e arredores se vão lançar em direcç!lo às
invemagens da Catalunha, silo extremamente variáveis, consoante os

contratos e os anos. Desenvolvem-se ao longo da cadeia axial, numa
frente de cerca de duzentos quilómetros entre Venasque, a oeste, e o
Geograficamente, as correntes de transumância cujas cabeças de
desfiladeiro de Pai, a leste. através de bosques e de prados, incluem
percurso se encontram na alta Ariêge situam-se longe daquelas que
localidades clássicas da alta Ariege como Prades d' Aillon, Mérens, Orlu;
têm a ver com o interior montanhoso da região de Toulouse. A passagem
mas também outras terras, no nordeste do Aragão, em Cerdagne, na
do Inverno nesta região é acompa nhada, de facto, de uma estiva
Catalunha pirenaica e sub-pirenaica (Baga, Josa, La Losa). Quanto ás
localizada claramente a oeste da nossa zona, e que interessa sobretudo
zonas de transumância invernal que são frequentadas pelos Maury , os
ao Béam e à regiiio de Palhars. Pelo contrário, os Pirenéus ariegenses e
orient�s fazem a transumâ ncia de preferência, no Inverno, para o Aude
Maurs e tulli quanti, na Penfnsula Ibérica, incorporam quatro regiões
diferentes, das quais três catalãs ou quase catalãs, e lama situada já na
(a nordeste) e a Catalunha (a sul). Os pastores de Montaillou, a começar
pelos M aurs e pelos Maury, fixam a transum ância de Verão nas regia� valenciana, ao sul do Ebro. Estas quatro entidades são: primeiro,
a regtão de Carol e as pastagens do mosteiro de Santa Cruz, a 900
localidades de altitude situadas na alta Ariege e no Sabarthcs; ficam
metros de altitude, ao norte de Tarragona; em segundo lugar, a zona de
próximas da sua pequena pátria de origem: trata-se de Ax-les-Thermes,
de Orlu, de Mérens e das pastagens que unem estes territórios. O reflexo Casteldans-Fiix-Asco-Camposines, a cavalo no Ebro, a sul da
148 ECOLOGIA DE MONTA ILLOU: A CASA E O PASTOR ETNOGRAFIA DOS PIRINÉUS PASTORfCIOS 149

confluência deste rio e do Sêgre, cerca de 400 metros de altitude; em acentuou-se. Eu, Guillaume Bai/le, continuava a guardar os
terceiro, o cantllo de Cenia, perto de Tortose, à beira do mar, na foz do carneiros «propriamente ditos» (castrados). Perto dali, Pierre Maury
Ebro; rmalmente, a sul deste rio, o triângulo sagrado de San Mateo­ ocupava-se de um grupo de cordeiros e de «marranes», ou seja,
-Péniscota-Morella, que constitui uma espécie de Meca belibastiana dos cordeiros do presente ano e do ano passado. Eu e Maury ficámos,
pastores cátaros. No total, desde a estiva mais longfnqua, nos Pirenéus então, separados pelo trabalho de dia e de noite,· mas almoçávamos
aragoneses, até à invemagem mais val-enciana, estende-se numa (prandium) e jantávamos (cena) juntos, na companhia de Raymond
distância de duas boas centenas de qu ilómetros . Baralher, que nos trazia provisões. Quanto aos outros membros da
equipa, Guillaume Maurs, Jacques d'Antelo, Guillaume de Via e Arnaud

Moyshard, tinham-se instalado a alguma distância na aldeia de Calig:
Uma visito concreta dos ponnenorcs da vida transumante, durante e ai, desde o principio, tomaram conta de ovelhas ainda prenhes. Nesta
o decénio de 1 3 1 0, é a que nós é dada por Guillaume Bai l le, pastor de equ ipa, assim dividida quanto às tarefas, as relaçOes de amizade não
Montaillou: naquele ano, conta, em suma, Guillaume (II, 38 1-382), coincidiam forçosamente com as re laçõe s de trabalho e de sub-equipa:
tínhamos feito cabane de Verão. na companhia dos irmãos Maurs e de Naquele tempo, Pierre Maury tinha uma maior familiaridade com
dois cerdãos, no porto de Riucaut (perto do desfiladeiro de Mérens na Guillaume Maurs e Raymond Baralher que com os outros companheiros
alta Ariêge). Pelo S.Miguel, em Setembro, Baille, os Maurs e os dois de trabalho (11, 382). Uma sociabilidade de ordem ccextem:l)) ligava,
cerdilos, aos quais se juntou Pierre Maury, desceram ern direcção ao sul por outro lado, os homens da equipa às gentes da povoação e das aldeias
juntamente com as suas ovelhas, percorrendo quase trinta léguas, o que espanholas mais próximas da pastagem, como Calig e San Mateo (aliás
os fez atravessar toda a Catalunha. Fomos passar o Inverno com os estas localidades eram povoadas por emigrantes narboneses e cerdãos
nossos carneiros nas pastagens de Peniscola e naplanície de San Mateo, (II, 1 88, 382). Iam até lá. a pé ou de burro, para buscar provisões. Na
nos primeiros territórios (ultra-setentrionais) do reino de Valência. taberna, encontravam-se pastores que trabalhavam na mesma região
P i e rre Maury foi até Tortose, onde recruto u dois pastores mas que estavam ao serviço de criadores de gado d i ferentes; estes
e:ctraorclinários. Dois occitanos. Um deles, Raymond Baralher era encontros constitulam, como sempre, a oportunidade de contactar com
audense, o outro era originário de Méners. Depois de a equipa estar este ou aquele herético de passagem. Naquele Inverno, conta Pierre
completa e junto dos carneiros, a ocupação do tempo de invernia na Maury, voltei para as pastagens de Inverno de Camposines, no
planicie de pastagem toma-se canónica: até ao Natal, toda a equipa território de Asco (região de Tarragona). A i, encontrei, por alturas da
ficou relativamente agrupada. Tomávamos juntos as duas refeições do festa do Natal, dois camaradas: Raymond, que morava com Pierre
dia, prandium e cena (prandium a principio ou a meio do dia, cena ou Marie (provavelmente um criador de gado ariegense), e Pierre, que
jantar, à no ite). Após cada refeição, separávamo-nos, tanto de noite morava com Nartelleu, de Vil/efranche-de-Conflent (Roussillon);
como ele dia, para apascentar-mos as nossas ovelhas (divididas em entrámos os tris na taberna ele Camposines, quando, de repente, vi
vários rebanhos ou « su b-reban hOS )) ). Note-se que esta divisão em ccsub­ chegarjunto a mim Raymond de Toulouse, o herético, com o seufardo
·rebanhosn é um facto constante da vida pastori l daquele tempo, como de mercadorias para vender. Fui ao seu encontro para lhe falar,
de resto ainda hoje: Raymond, de Gebet:, e Gui/laume Bé/ibaste (então enquanto os meus dois camaradas coziam a carne o os ovos que tinham
associados a Pierre Maury para guardar o mesmo rebanho) poderiam trazido (III, 1 7 1 ).
facilmente, declara G u i l laume M aurs, falar um com o outro, Outros encontros de Inverno operam-se em volta do mundo dos
inclusivamente de assuntos heréticos, nas pastagens de Tortose, porque pastores: Pierre Maury, por exemplo, ausenta-se das pastagens
as ovelhas que cada um deles tinha a seu cargo andavam perto das do frequentemente, em grande mistério; era, dizia, para ir a San Mateo
outro (II, 1 88). para ai comprar essência de genebra no boticário. Na verdade, Pierre
Para a equipa de Guillaume Baille, as coisas compl i caram-se no deslocava-se a More lia para ai visitar Bélibaste. Estas ausências de um
final de Dezembro, pelo Natal, na altura do nascimento do� cordeiros, técnico qualificado desagradavam bastante aos colegas de Maury: de
explicitamente associado pela nossn testemunha às Festas da Natividade repente, deviam desempenhar, durante a sua ausência, a tarefa
(apreende-se aq u i, uma vez mais, a importância da data do Natal como nonnalmente entregue ao vadio.
acontecimento ao mesmo tempo solsticial e p as tor i l ). Assim, no Sobre os trabalhos especlticos da pastagem de Verão, que como já
Natal, a divisão das tarefas e do espaço entre os homens da equipa vimos, é geralmente pirenaica ou parapircnaica, dispomos d e ponnenores
f
L.
I�
I I SO ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR ETNOG RAFIA DOS PIRINÉUS PASTORÍCIOS I5I

menos ricos do que os relativos à do ln vemo. A cronologia do contrato


estival é, no entanto, esclarecida por um testemunho de Pierre Maury Em Maio, a tosquia. Em Junho-Julho, o fabrico dos queijos; que
( I I I, 1 63). Depois de me ter despedido do meu anterior patrão, era feito na pastagem de Verão, na cabane de altitude. Chegou o
Guillaume André, conta o bom pastor, empreguei-me como pastor de momento de te deixar, declara, pela época de S.Jolo, Pierre Maury à
Pierre Constant, de Rasiguieres, no Fenoui/ledes. Estive com ele desde sua irmã Guittemette, que tinha acabado de arrancar das garras do
a festa da Páscoa até ao S. Miguel de Setembro do mesmo ano, e marido católico, porque tenho de ir tomar conta das ovelhas do patrão
trabalhei nos desfiladeiros de Lauze e de Mérens (na alta Ariege). Tinha com quem resido: e depois, acima de tudo, a estação do fabrico dos
comigo... cinco pastores. Naquele Verão, não vi herético nem crente queijos está iminente (III, 155). Quer se trate das pastagens de Verão
dos heréticos. E depois, por volta do S. Miguel, despedi-me de Pierre quer das de Inverno é grande o contraste entre a sociabilidade interna
Constant e empreguei-me como pastor de Raymond Boursier de própria das equipas dos pastores, necessariamente inter-regionais
Puigcerda, com quem fiquei dois anos. (ariegenses, cerdãs, catalãs) e a sociabilidade, em nome da qual o errante
Temos ainda algumas indicações dispersas sobre diversos episódios guardador de gado se esforça, tanto quanto pode, por encontrar nas
da pastagem de Verão e, nomeadamente, sobre a tosquia das ovelhas aldeias do êxodo, fora da equipa, amizades da terriola e da diáspora,
que era feita em Maio, no desfiladeiro, após a chegada às montanhas: cátara ou não, do velho Montaillou. Levava, diz Pierre Maury, as minhas
partimos de San Mateo em direcção à montanha e ao colo de Rincaut, ovelhas da pastagem de Inverno (catalã) para a de Verão (pirenaica),·
conta Guillaumc Maurs. Chegados a esse colo, perto do desfiladeiro os pastores da minha equipa, salvo os irmãos Maurs de Montaillou, e
de Mérens, tosquiámos as nossas ovelhas (11, 1 85). A tosquia era a Charles Rouch, de Prades de Aillon, eram todos homens de Cerdagne... :
altura de pagar, graças às vendas de lã que imediatamente se lhe seguiam, ao parar na aldeia de Juncoso, situada na diocese de Lérida, encontrei
algumas dívidas gritantes (ibid). Permitia também o desenvolvimento Emersende, a mulher de Pierre Maurty de Montaillou, Guillemette
de uma sociabilidade, muito do agrado dos guardadores de gado, entre Maury, mulher de Bernard Marty, o se marido Bernard Marty e o seu
pessoas de Montaillou e de fora: eu estava com o meu irmão Pierre filho Arnaud, todos de Montaillou, todos crentes dos heréticos, excepto
Maury no desfiladeiro de La/ata (na Cerdagne), conta Jean Maury; Bernard Marty (I I I, 168). Onde se juntavam sete pessoas de Montaillou,
tosquiávamos as nossas ovelhas. Pierre Maurs veio ver-nos e trazia era Montaittou ... Pastores e emigrados, quando podiam, recriavam um
..
'
uma mula. Comemos todosjuntos, isto é, eu, o meu irmão Pierre Maury, Montaillou global, às dimensões da Catalunha e dos Pirenéus.
os três irmãos Pierre, Guillaume e Arnaud Maurs, um primo deles,
Pierre Maurs, e Guil/aume Baille (todos de Montaillou). Comiam
também connosco tosquiadores, cujos nomes esqueci. Havia borrego e Englobado na ecologia e na cronologia da transumância, o mundo
porco. E em seguida, Pierre Maurs carregou de lã a mula de Arnaud dos pastores enquadra-se, por outro lado, nos laços do salariado e da
Maurs para a levar a Puigcerda (11, SOS). Esta sociabilidade de tosquia associação (mas nunca é inserido, enquanto tal, nas cadeias de uma
podia ser uma altura de «maus encontros>> com a heresia montanhesa. dependência senhorial, afortiori nas da servidão: o pastor ariegense ou
fá f. dezasseis anos, ou à volta disso (conta, em 1 320, Arnaud Cogul, de cerdão do século XIV é livre como o ar montanhês que respira, quer em
Lordat, I, 3 80) - enfim, não me lembro exactamente do número - tinha Montaillou quer fora dela. Livre, pelo menos, relativamente à senhoria.
subido a Prades de Aillon para tosquiar as minhas ovelhas, que Pierre Porque no que se refere à Inquisição, o caso muda de figura).
Jean, de Prades, tinha por minha conta. E, quando cheguei, passei lá Excluamos os verdes anos, em que o futuro guardador de gado
a noite, durante a qual fiquei grave e dolorosamente doente. No dia aprende aquilo que irá tomar-se a ocupação da sua vida (quando os
seguinte, levantei-me e Gaillarde, a mulher de Pierre Jean, disse-me: heréticos vieram a minha casa, conta Jean Maury (16), que, depois se
- Quereis/alar com os homens-bons? converteu num dos melhores pastores profissionais de Montaillou, eu
E eu respondi-lhe : não estava lá; encontrava-mefora, a guardar as ovelhas do meu pai.
E devia ter doze anos ou à volta disso). Fundamentalmente, o pastor I
\
- Ide p 'ró diabo mais os vossos homens-bons!
Tinha compreendido muito bem que os homens-bons em questão adulto é um empregado, um assalariado. Ele ocupa, numa região de
eram heréticos e que Gaillarde pretendia mandar-me heretizar por eles, criação de gado, um lugar homólogo ao do jornaleiro na região dos
no caso de a doença me ter morto! cereais; mas tem, comparado com este, maiores possibilidades de
enriquecer e de progredir, acompanhadas em contrapartida de riscos de
1 52 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR ETNOGRAFIA DOS PIRINÉUS PASTORÍCIOS 1 53
acidentes profissionais; que, na J;DOntanha, não são de desprezar. A da grande transumância, como os Maurs ou os Maury, do que aos
biografia do guardador de animais é marcada pela instabilidade; esta é pastores mais calmos ligados a patrões relativamente sedentários, como
caracterfstica em relação ao conjunto do assalariado rural da Occitânia, é o ·caso, por exemplo, de Jean Pellissier.
como Olivier de Serres mostrará (17): mudai de criados todos os anos. Feita esta observação, é necessário sublinhar o carácter estreito e
Os seguintes trabalharão muito melhor. Esta instabilidade não é descontrolado, porque próximo, das relações patrão-pastor. O patrão
encarada pelas nossas personagens como uma opressão, ou como uma pode ser um parente do assalariado ou o parente de um dos seus amigos,
alienação, antes pelo contrário; o pastor da transumância muda de patrJo de um concidadão da aldeia. De qualquer maneira, o empregado não
mais vezes do que de camisa. Pierre Maury, que nisso é representativo hesita, mesmo nada, em falar abertamente à mulher do patrão.
da sua corporação, acha normal ser despedido por um patrão, mas Esta franqueza de linguagem é acompanhada, muitas vezes, de uma
também despediNe (dimittere) do seguinte e alugar-se (se conducere) co-residência com o patrão: quer seja na casa deste, aos domingos, dias
a um terceiro. o facto de tal como a um senhor (também denominado de festa ou nos dias da descida da pastagem nas montanhas; quer seja
dominus) se chamar mestre (dominus) a um patrão da criação de gado; nas próprias pastagens, onde o citado patrão passa algumas semanas ou
não dá qualquer estabilidade suplementar ao lado contratual que une o alguns meses na companhia dos seus assalariados: fui contratado por
proprietário de ovinos ao seu guardador de ovelhas. A contratação pode Pierre Constant de Rasiguiêres, diz Pierre Maury, e fiquei com ele
ser sazonal e decalcada, como se viu, da própria estrutura da desde a Páscoa até ao S. Miguel de Setembro, na pastagem de Verão,
transumância: na Páscoa (encontrando-me na Catalunha tarragonesa), no desfiladeiro de Mérens (III, 1 63). O mesmo Pierre Maury, noutras
trabalhei como pastor, conta Pierre Maury (III, l 72)para Arnaud Fauré ocasiões, declara que reside com o seu patrão Barthélemy Borrei, de Ax
de Puigcerda e estive com ele cerca de cinco a sete semanas; conduzi (III, 1 55, 1 56); ou que reside com a senhora Brunissende de Cervello,
as s11as ovelhas até Puigcerda (pastagem de VerJo). Uma ve: chegado cujas ovelhas guarda nos pastos, etc. (11) Há assim, pelo menos
/â acima, trabalhei como pastor para a senhora Bnmissende de Cervello esporadicamente, co-residência durante a pastagem nas montanhas ou
e para Raymond Boursier de Puigcerda; e, durante o Verão, fiquei no domiciliária entre aquele (ou aquela) que emprega e o empregado.
desfiladeiro de Quériu, no território de Mérens (Ariege). E depois, O guardador de gado é, com efeito, um assalariado: uma parte dos
passado o Verão, no fim da pastagem estival ao serviço da dama seus ganhos (<<salário» ou <Csolda», I I , 1 8 1 ; III, 148) é em géneros, em
Brunissende e de Boursier. trabalhei de novo para Arnaud Fauré de comida; quando fica em Arques, Pierre Maury deixa regularmente o
Puigcerda! E desci com as ovelhas para passar o Inverno na planície seu rebanho para ir a casa do seu patrão arranjar pão: uma manhã desci
de Cénia (Catalunha Meridional). Neste caso, face a Pierre Maury, das pastagens para ir buscar a minha provisão de pão a casa de
Amaud Fauré é pois, em duas etapas sucessivas, o patrão do Inverno, Raymond Pierre (III, 127). Em contrapartida, na região de Tarragona,
mais exactamente do trajecto pastagem de Inverno - pastagem de Verão onde o empregador reside longe dos empregados. é o próprio Pierre
(ou vice-versa). A senhora Brunissende é a patroa da pastagem de Verão Maury que faz de padeiro; coze o pão no fomo da cabane ou do corta/;
propriamente dita. essas pessoas vieram ver·me ao corta/ onde então me encontrava. nas
Alguns textos falam-nos de contratação de pastor, especificamente pastagens de Fleys. Estava eu afazer pão (III, 1 65).
por um ano, após uma experiência probatória; possfvel graças à A o utra porção do salário é em dinheiro, uma módica soma,
intervenção de uma terceira pessoa amiga, parente ou concidadã do eventualmente paga ao mês. Quando Pierre Maury e Guillaume
patrão e do assalariado. Amaud Baitle, o velho, de Montaillou, genro Bélibaste estavam ao serviço de Pierre Castel de Baga (diocese de Urge!)
de Barthélemy Borrei de Ax-les-Thermes, disse-me: conta Guillaume Maurs, Pierre Maury recebia o salário que Guillaume
- Se queres trabalhar como pastor do meu sogro, farei com que tinha acordado com Pierre Castel receber por mês; e com aquela
ele te dê um bom salário. soma, comprava ervilhas c alhos porros para o citado Guillaume
Aceitei esta sugestão. O meu novo patrão mandou-me passar o (II, 1 76, 1 8 1 ).
Inverno com os seus animais para Tortose (Catalunha). Quando \ Enfim, além do salário, o contrato que liga o patrão ao pastor prevê
regressei ao Sabarthes (no VerJo), o citado Barthélemy contratou-me frequentemente uma partilha das crias e do queijo, até mesmo da lã.
ao ano como pastor (III, 148, P. Maury). A fronteira que separa o assalariado puro do arrendamento de gado é
Mas atenção: aquilo que acabamos de dizer sobre a instabilidade muitas vezes fluida. Quem diz assalariado diz factótum, encarregado
do emprego dos guardadores de gado aplica-se mais aos especialistas das missões mais diversas. Padeiro, mas também carteiro ... Num mundo

--....-
... �-------- - - --- - - - .
1 54 ECOLOGIA DE MONTAILLOU : A CASA E O PASTOR ETNOG RAFIA DOS PIRlNÉUS PASTORfC IOS 1 55

iletrado e desprovido de uma rede postal, o pastor assalariado ... com as de gado. E la requer da parte dos guardadores de gado (que, mesmo
suas botas das sete léguas - pode funcionar como mensageiro; é quando salarlndos, possuem, muitas vezes, o seu próprio grupúsculo de
e ncarregado de transmitir miss ivas orais, por conta do patrão, ovelhas), relações «horizontais>>, ou seja, formas de associação com os
relativamente a este ou aquele assunto, ovino... ou câtaro e ultra-secreto. confrades ou com os patrOes de outros guardadores de gado e de outras
Pierre Maury, diz Guillaume Maurs (1"),ficou com Barthélemy Borrei, ovelhas. Eu próprio e os meus companheiros, Guillaume, Pierre e
de Ax como guardador de gado e mensageiro, durante um ano; e foi Arnaud Maurs, conta Guillaume Bai/le, fomos passar o Inverno nas
com as ovelhas desse Borrei para Tortose: em seguida, levou-as para o pastagens de Ca/ig (perto de Tamgona). Tínhamos poucas ovelhas:
condado de Foix. Durante o tempo que esteve com Borre/, levava por isso,juntámo-nos a um grupo depastores e de ovelhas que dependia
diversas mensagens a diversos lugares mas, no entanto, nunca revelou de Pierre Jlila, de Pulgcerda; este grupo compreendia quatro pastores
aquilo que tinha sido Incumbido de anunciar nem a que pessoas. e um almocreve, todos cerdàos (III, 390). Numa outra ocasillo, Pierre
Durante certas fases, o pastor antes assalariado pode, por outro Maury, os irmãos Maurs e o patrão comum (que, na época, nllo era
lado, tomar-se, de maneira definitiva ou provisória, empresário sen!lo o catalão Pierre Castel, de Baga) associam-se, em determinado
independente. É o caso de Pierre Maury, quando se encontra, o que momento, aos cerdãos: no Verão seguinte, conta o bom pastor,
geralmente dura pouco, em boa situação financeira. Ouçamos, de novo, recondu:imos as nossas ovelhas ao desfiladeiro do Pai, (actuais Pirenéus
sobre este ponto, Guillaume Maurs: eu e o meu irmão Arnaud éramos, orientais) e associámo-nos aos pastores e às ovelhas de Arnaud Fauré
então, pastores de Raymond Barry. de Puigcerda; passámos o Inverno (de Pu igcerda); Ioda a equipa pastoril era de origem cereJa
com as ovelhas dele na planície de Peniscola. Naquele Inverno, Pierre (III, 1 67).
Mauryficou connosco na dita planície; mas ele era independente, não Pierre Maury consegue, por vezes, nalgumas estações, quando é
tinha patrão; porque tinha comprado cem ovelhas a Raymond Barry, bafejado pela sorte e recompensado pelo suor, tomar-se o seu próprio
ao passo que eu e o meu irmc1o éramos pastores de Raymond Barry; na patrão. Usa, neste caso, técnicas diversas, tais como a entreajuda frater­
verdade Pierre Maury vivia connosco, mas à sua custa (11, 1 83). nal, a contratação de guardadores de gado assalariados e, em seguida, a
Por fim, uma última eventual idade: o guardador de gado fica associação com um outro patrJo... de quem ele próprio se toma, de
assalariado; não acede, nem sequer de maneira momentânea, a um facto, empregad o! Estas combinaç ões variadas produzem -se
estatuto de empresário independente; mas, no entanto, toma-se patrão nomeadamente quando a situação montanhesa se toma diffcil em

I
dum pastor subalterno que ele, por assim dizer, sub-emprega. É verdade consequêncaa de uma guerra entre abutres feudais; naquele Verão, conta
que no único caso conhecido em que esta situação se produziu, o o pastor, Jui ao desfiladeiro (pirenaico) de lsavena, perto de Yenasque.
paradoxal «assalariado-patrão>) apresenta-se, de facto, como uma Fiquei aí durante a pastagem de Verão com o meu irmão Jean: eu e
entidade colectiva, ou seja, como uma equipa de guardadores de gado, Jean tínhamos, então, contratado Bernard de Baiuls para nos ajudar a
inteiramente originária de Montaillou e fortemente soldada e mesmo guardar as ovelhas... em seguida, no São Miguel, descemos ao
sÓbredetenninada devido a laços fami liares: empreguei-me como pas­ desfiladeiro e viemos a Lérida,· tivemos que evitar o território de
tor, conta Pierre Maury, de Pierre Castel, de Baga. Fiquei com ele Casteldans por causa da guerra que ai grassava, entre Nortes e
dois anos, durante o Inverno, nas pastagens de Tortose. Eram pastores Guillaume den Tensa. Juntámos, então, as nossas ovelhas com as de
comigo Gui/laume Maurs e Pierre Maurs (este Pierre Maurs é primo Macharom e de Guillaume Mourler, dois criadores de gado de
direito de Guil/aume e filho de Raymond Maurs de Montai/lou). U/ldecono (20>. Com as ovelhas destes dois criadores (subentendido:
No primeiro ano, por altura da quaresma, Gui/laume Bélibaste relativ�mcnte aos quais nos tomámos, desde ent!o, associados­
veio ter connosco às pastagens; a/ficou durante três meses porque o ·assalartados)fomos apascentar o gado para as pastagens de San Mateo,
contratámos como pastor (UI, 1 66). Outros contratos ou sub-contrates eu, o meu irmão e dois pastores, um cerdão e outro de Yénasque
efectuados pelo patrão (ou pelos pastores) são puramente sazonais; dizem (III: 195). Estas associações, de tipo variado, desfazem-se quase tio
respeito, por exemplo, à mão-de-obra adicional dos\ tosquiadores que é facilmente como se formam: Pierre Maury, conta Guillaume Maurs,
chamada como reforço nos finais da Primavera. decidiu separar as ovelhas que ele próprio possuía, das do seu palrão
A vida do pastor não implica unicamente laços «verticais» de de então, Pierre Castel. Parti11 com o gado e, no regresso, afirmou q11e
subordinação salarial, comparáveis, numa certa medida, àqueles que o tinha vendido o gado a um negociante de San Mateo {II, 1 82).
existem ainda hoje entre patrões e operários, na agricultura e na criação Além do salariado e daquilo a que se poderia chamar a ((Simples
' I'

1 56 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR ETNOGRAFIA DOS PIRINÉUS PASTORfCIOS 157

(•) III, 1 79. Ver twnbc!m o caso da abadia de Boulbonnc, que possui um rebanho de duas
i' l
I
associaçllo» (21), que se acabam de evocar, existe também uma categoria
mil unidades de gado IWllgc:ro nas montMhas do Vicdcssos, cerca de 1310-131 S (A. Garrigou,
de contratos de «parceria pecuária>>: diversos autores os estudaram já, a Études historlques , 1 846). R. Pastor do Togncri, 1973, p. 1 SO-l S4, sublinhou o papel dos
.•.

propósito dos gasai/les de Toulousain, dos mégeries da Provença e dos mosteiros e dDS ordens religiosas na organizaçllo das lnlnsum6ncias ibc!ricas c subpin:naicas,
!
e> 11, 183. Trata-se de zonas montanhosas c de localidades situadas nas rcgiOc:s de
baux à cheptel um pouco por todo o lado (22). Entre as gentes originárias a partir da Reconquista.

de Montaillou, quer estejam radicadas no local quer sejam emigradas, Barcelona c de Gcrona.
este arrendamento de gado tomou a forma de parsaria: o contrato que (") Juncosa - localidade da regUlo de T���T�o�g na.
C> III, IJS, Acerca da cobone pin:naica, ver tamb�m Tucos.Chala, p. 233. Pode
liga Pierre Maury 1 69) à criadora de gado Guillemette Maury, sua
(111, considerar-se que, na n:gii1o de Montaillou-Pradcs, onde ni1o existem quintas isoladas, as
consangulnea e conterrânea, que encontrou perto de Tarragona, é uma cobanes, àsua maneira, ocupam o lug:vdchobltatdisperso (mas tcmpor4rio);sobn: algumas
variante original do contrato de gasaille: coloquei as ovelhas que ucobanes de animais11 de Pradcs de Aillon, que pertencem a dois criadures-cxploradores eh>
local, ver 11, 1 72
possuía, em <<parsaria)) com Guil/emette, conta Pierre; devíamos
(") <<Fazer uma cobamm ou u fazcr cobane» nllo significn construir um habitat, mas
partilhar a meias os ganhos e as perdas, de maneira que as despesas ocupar wna cabane disponlvc� com uma cquipn de residência momenlllnca.
ficaram a cargo de Guillemetle (para a manutenção dos pastores e do (') Bourse - local onde se efectua a n:unii1o de pessoas (N. eh> T).
rebanho (11, 1 65)). Esta associação do pastor com a criadora de gado ( "') Jas - do latimjacim, ulugar onde se estâ dcil:ldo» - curral nos Alpes c no Sul de
(11) Neste livro, tenho a oportunidade de dizer que a profwllo de pastor é essencialmente
França. (N. T.)
terá uma vida penosa, apesar das disputas bastante azedas entre os dois
parceiros. Guillemette, algum tempo depois, investirá, além do dinheiro, masculina c que nllo hã. por nssim dizer, «Jonna d 'Arc)) nem «pequena pnstol'lll• ela alta
vinte ovelhas suplementares, na sua associação de parsaria com o bom n:giilo oriegensc. De tempos a tempos, uma mulher, cspccialmcntc: uma viúva, c:onduz o sc:u
g311o às pastagens. Ver a este propósito os casos de: Guillcmcttc •• Bcncte11 c de Raymondc:
pastor. No dia seguinte de manhã, conta este, recebi vinte ovelhas de
('l) Ln Roche·Fiavin, Trei=e livres des Parlements de France, p. 1 0-20. citado por
Bc:lot (III. 70). texto ambiguo.
Guillemette e voltei com elas para as pastagens de Calig (ll l, 1 3 1 ,
Louis de Santi c Augustc Vida!, Dl!wc livres de rauon, ( I S I 7-I SSO), volume especial dos
texto amblguo).
( 1 1) P. Cosh:. nLa vic pastoral<: en Provcncc au XIVc sicclc1•, Élutles rurales,
Arr:hil'I!J historiques Je I"Aibigeois. fase. 4, P:vis, Champion; Toulouse. Privat, 1896.
O arrendamento à parsaria existe também no próprio quadro do
(1 0) lbicl p. 70.
território de Montaillou: Guillemette Benet, cujo marido Guillaume Abril-Junho 1972.
Benct goza, na aldeia, de um estatuto de lavrador-criador de gado, uma ( ") P. WoiO: Comml!tr:l! et marr:hands tk Toulouse, 19S4, p. 197-198.
.•

vez que possui bois de arado que à noite, após o trabalho, é necessário (16) 11, 4 70. Outros tcxtos, llllálogos para
fechar (I, 4 78), cerca de 1303 confiou as suas ovelhas em parsaria às (1') O. de Serres. TltJmn: d"agricu/ture, liv. l, cap. VI.
Pierre Maury, Jean Pc:lissier, etc.

gentes da grande casa dos Bclot, que parece ter-se especializado na ('") 111, 1 86. c: II, I 8J (mais wnblguo). Vcr também itifra.
('�) 11, 1 75. O próprio mundo dos pastores constitui por si s6 um vasto sistema de
criação Cle gado ovino: há de:oito anos ou à volta disso, conta informação. Em geral, os guardadores de gado c os montMhcsc:s comunicnm entre si
Guillemette Benet, em 1 32 1 , eu e o meu marido tínhamos ovelhas em por grandes sinais de gritos intensos, de grande alennce (I, 403), de encosta para encosta.

(1') Ver t.1mbém a associaçllo Délibastc-Maury, com seis ovelhas (s11pra cup. V).
«parsaria)) com a casa dos Belot. Era à noite, à hora do pôr-do-sol, (10) Rcgiilo de Tarrngona.

durante a pastagem de Verão. Eu levava pão a casa dos Belot para que (l1) P. WoiiT, Commerr:e p. lOS sg. c curta VI; P. Costc, art. cil., in Etudes rura/es,
I .:
...•

os desta casa o pudessem enviar a Guillaume Belot bem como a 1972 (Provcnce); c:tc.
I ;
Raymond Benet, meu filho, que guardavam as ovelhas (I, 477). Em
virtude de um contrato que provavelmente foi apenas verbal, sem
intervenção de um notário, os Benet forneceram aos Belot, nos tennos
do acordo da parsaria, uma fracção do gado, assim como uma parte da
' :
mão-de-obra e do pão caseiro destinado à equipa dos pastores.


( 1) Borla (celeiro ou negócio): 11, 1 84.
(Z) Ver a este respeito Poitrineou e Frcchc, sobre DS zonas montanhosas da Auvcrgnc e do
Langucdoc.
(') III, 287. Em Cambrésis, no final da ldadc Médi11. a rclaçllo entre o valor da Iii c o da
receita do n:bllllho (sendo esl:l considerada qu1111to ao valor mercantil dos animais enquanto
tais) parece ninda mais elevada: da ordem de um (a Iii) para dois (o rebanho), contra wn para
três cm Sablll"tMs (segundo 1 1. Ncvcux. Les Grains du Cambrésu, tese m1111uscrita. vol. ll.
p. S48).
Capítulo VII

MENTALIDADES PASTORIS

É preciso ir além destas descrições dos laços económ icos e


profissionais; é preciso decifrar, através da personalidade extremamente
interessante de Pierre Maury, qual é a posição social e a mentalidade
de um pastor transumante de Montaillou, nos primeiros decénios do
século X I V.
À primeira vista, Pierre Maury e os seus semelhantes parecem
situar-se no último degrau de uma certa escala social: a sua situação �
homóloga, mas não análoga. à dos trabalhadores do Norte da França
nos últimos séculos do Antigo Regime. A sua vida é feita de desconfortos
e até de grandes perigos profissionais: fostes forçado a deixar a casa de
Bélibaste durante um longo Inverno; ficastes num desfiladeiro onde
quase íeis morrendo de frio, di: Emersende Marty a Pierre Maury.
num dia cm que evoca, na frente do bom pastor, a maneira e"ada de
pt:rJcedcr do santo homem em relação a ele e a dureza da sua profusão
(III, 1 98). Por sua vez. Bélibaste chama a atenção do seu camarada
para a vida durfssima que ele leva como pastor: Pierre, a tua vida é
feita de más noites e maus dias (li, 1 77). Deste ponto de vista, o ramerrão
quotidiano, especialmente invernal, de um pustor como Pierre Maury é
quase tão duro, e por vezes tão perigoso, como aquele que leva um
lenhador como Bernard Befayt, vitima - e desta vez no verdadeiro sentido
da palavra! - de um acidente de trabalho: Bernard Befayt (marido de
Jeanne Marty de Montaillou) morreu na floresta de Benifaxa (em
Espanha). Estava a a"ancar a cepa e as raí:e.s de uma árvore, quando
as raizes e os pedregulhos que estavam por cima caíram sobre ele.
Morreu imediatamente (11, 190).
Apesar das fases passageiras de prosperidade, Pierre Maury
considera-se pobre e inapto, por aquele facto, a fundar famflia. Quando
vai para a cama, em geral já ai se encontram três ou quatro homens. Eis
MENTALIDADES PASTORIS 161
1 60 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR
giróvago é, neste aspecto, bem diferente da dos homens caseiros da
um testemunho de Pierre Maury: nessa noite, dormimos os três juntos
aldeia. abastados ou não, que vivem encerrados na sua domus e nas
numa cama: eu. o herético Bélibaste e Arilaud Sicre.
terras de Montaillou, esperando que a Inquisiçao venha apanhá-los.
• É fâcil adivinhar uma das razões deste pauperismo dos guardadores
, a pobreza de gado, que res�alta dos factos, assumida também, sem complexos,
Realidade frequente e companheira aceite de bom grado por aqueles que atmge. Essa razllo é o nomadismo. Os pastores possuem,
a ·um ideal e a um sistema de
corresponde também para Pierre Maury .�.· de tempos a tempos, uma mula. conduzida por um almocreve: faz o vai
é veicu lado de todas as maneiras ...
valores. Evidentemente, este ideal e vem da lã e do abastecimento. Mas, fundamentalmente, a mula ou o
os da pobre za volun tária e outros
pela cultura neo-evangélica que os adept macho são poucas vezes utilizados; o pastor traz a sua fortuna às costas.
gam em diver sas zonas da
homens bons ... ou franc iscan os, propa A sua força tisica e resistência são tais que o fardo assim transportado
muito s pasto res cátaro s de
Occitãnia. Mas encontra em Pierre e em
pasto r é democ rata até às vfsceras , Pod� ser algumas vezes considerável: Pierre Maury atravessou a pé uma
Montaillou ouvintes receptivos. O bom .
nbe1ra levando aos ombros, sucessivamente, Amaud Sicre e Bélibaste;
Apen as tem ódio e despr ezo �
tanto quanto se podia ser no século XIV. c é mutto bem capaz de levar às costas, dos Pirenéus à Catalunha, a sua
o estes emanam
pelo luxo da mesa e dos ornamentos, pelo menos quand bagagem. Estas capacidades individuais atingem, apesar de tudo um
ente, se bem que acerbo, na
da Igreja (em contrapartida, é mais indulg limite. O saco da roupa, o machado, uma vez carregados, não de lxam
es que vivem dos rendimentos,
ocasião, em relação aos comilões ou àquel sen�o um espaço limitado para outros impedimento.
idade para com os frndes
que não são clérigos). Exprime a sua hostil Seria necessário que o guardador de gado possuísse uma domus
m, contra todas as regras,
menores, por ele acusados de se banqueteare para que, a exemplo do que acontece com os residentes permanentes de
depois de terem enterrado esta ou aquela pesso a; estas patus cadas e
r, Montaillou, pudesse acumular alguma riqueza. Mas não é o caso: os
: incJS, critica, em tom grave, o bom pasto são pre judic iais à
come:a
(11, 30). Sobre este pastores, na pastagem de Verão e sobretudo na invernal . residem . a
alma do morto e impedem-na de alcançar o Paraís o .
Mateus, «acerca ma1or pane do tempo, em casa de outrém: na do patrão, na do amigo,
ponto, Pierre retoma os próprios termos do texto de São na do compadre, na de um proprietário, que os obriga a pagar a renda a
nos banqu etesn: provam
dos fariseus que gostam dos melhores locais titulo de locatários efémeros, que passam a maior parte do tempo na
adqui rida atrnvés dos
uma relativa cultura evangélica da sua parte,
apesa r das graçolas pastagem. Na verdade, uma casa de pastor montada sobre rodas
homens-bons ou dos monges pregadores que ouve, resolveria o assunto, na falta de melhor: mas não encontrei alojamento
com que os ataca. Se Pierre gosta dos perfeitos é, entre outra s razões,
sa) que os frades móvel deste género nos pastores pirenaicos do século XIV, cujas
porque eles praticam um ideal de pobreza {peno montanhas, sem estradas, são alérgicas à roda, bem como à carroça.
mendicantes pregam mas renegam. Durante os séculos seguintes, a casa do pastor será mais difundida na
outro lado,
Passando dos clérigos aos laicos, Pierre estigmatiza, por França do Norte do que na Occitânia.
na sua linguagem
aqueles a quem se poderia chamar artolas oufigurões; Sem domus própria, excepto nos momentos das breves visitas aos
de guardador de gado de Montaillou, chama-lhes caval
eiros de mulas
iências que fingem pais i�osos na casa de famflia, o pastor transumante originário de
gordas e de gordos machos (li, 58). São falsas consc
sad herético. Os seus poderosos conhe cimen tos, após Montadlou tem da riqueza uma ideia muito diferente da dos sedentários
esquecer o seu paso encasulados. Este pastor pode ser relativamente rico em termos de
uma meia-negação, protegem-nos da prisão: conhe
ço muito s, no
mach os: não os rebanhos e mesmo de dinheiro mas é inevitavelmente pobre em objectos,
Sabarthes, que montam mulas gordas e em gordos vestimentas, loiça, mobiliário, colheitas, etc.
romet idos com a
incomodam: são intocáveis: e, no entanto, estão comp Daf, mas não somente daf, vem, sem dúvida o extremo
de um parals o
heresia. A esta injustiça terrestre, Pierre opõe o ideal desprendimento dos bens deste mundo, como mostra Pierre Maury
bem e vivem
cátaro e democrático, onde os grnndes e os pequenos se dão quand� come�a a abordar os problemas da riqueza. Gosta da riqueza,
juntos sem problemas {11, 1 79). 1 para t�rar parttdo dela; mas em nenhum momento fica agarrado a ela.
dade de
Este ideal igualitário coloca-nos a cem léguas da rapaci Um d1a, em Espanha, o tec �lito Amaud Sicre, delator ainda disfarçado,
o custo,
um Pierre Clergue ou de um Amaud Sicre, que querem, a todo .
lastima-se, perante a colónta emigrada de Montaittou, como se tomou
dade:
promover ou recuperar a sua domus. Pierre Maury ri-se desta rapaci pobre devido às heresias da sua mãe, queimada pela Inquisição, após o
em toda a
porque justamente o bom pastor é um pé descalço que morn sequestro dos bens e da domus. Replicando, Pierre Maury disse-lhe:
de pastor
parte, desligado dos bens deste mundo; a sua mentalidade
OR M ENTA L IDA DES PASTORIS 1 63
162 ECOLOG IA DE MONTA ILLO U: A CASA E O PAST
fácil de curar de terá descanso, pois este mundo baixo não é estável,· e tudo o que Satanás
nao te queixes da wa pobreza... Nao há doença mais
Três vezes fiquei arn1in ado e, no entanto, produz se esvai e é destruido (III, 1 30- 1 3 1 ). Estas ásperas palavras
que essa! Repara no meu caso.
tinha sido. A prime ira vez estava na Vale aplicavam-se bastante bem aos homens da terra, mesmo aos cátaros -
agora sou rico como nunca
de Arques, quando Raymo nd Maule n e muitos outros f oram mostrar o
.
cheios de obsessões ou de frustrações relacionadas com a domus (penso
seu arrependimento {do anterio r cataris mo) ao Papa; e eu, que devta em Pierre Clergue e em Amaud Sicre); Pierre Maury não era abrangido
possuir perto de 2000 soldos, perdi tudo. Em seguida, perdi
a minha por este discurso.
parte da herança fraterna ou «fratris ia» que possuí a em Monta illou, E, no entanto, pondo de lado o problema dos objectos materiais e
porque nao ousei {com medo da I nquisi ção) ir Já buscá- /a. No imobiliários - indesejáveis porque intransportáveis ao longo de uma
como pastor de umas pessoas de Ax e vida errante -, Pierre Maury é rico, pelo menos ao nfvel das satisfações
seguimento disto, empreguei-me
de Puigcerda. Ganhei 300 soldos, · con fiei-os a um dos meus compa dres que tem acidentalmente e provocam nele um prazer que não dissimula.
do lugar de Urge/,· e depois ele recusou-se a devolver-mos: e, no
entanto, Os seus rebanhos alimentam-se em locais ainda não esgotados por
agora estou rico porque a nossa prática , ordena da por Deus, éa pastagem excessiva (1 ), manda fazer ou que lhe tragam a sua roupa
seguinte: quando tivermo s um só óbolo, devem os partilh á-/o com os feita da lã das suas ovelhas, e de que necessita (2). Do ponto de vista
Ao afirma r esta ideia de caridad e sociocconómico, situa-se, tal como os seus colegas da transum4ncia,
nossos irmaos indigentes {II, 30).
te
activa, Pierre Maury subentende uma certa ideia de riqueza evanesce� quase totalmente fora do domfnio da opressão senhorial ou feudal. De
c, no entanto, real, do pastor que alcança êxito por tentativ as. Em vártas tempos a tempos, tem de pagar um tributo a um senhor pela passagem
u
ocasiões, Pierre possuiu cem ovelhas, burros {11, 57) e uma vez cheg? por um desfiladeiro ou pelos pastos. Mas, no gemi, as C<relações de
a ter cerca de 300 soldos. Uma outra vez perto de 2000 soldos, ou seJa, produção» nas quais se encontra inserido, são de natureza contratual e
tor
uma soma considerável. Mas, todavia, muito inferior à de um agricul móvel, salarial ou cooperativa. Sem que por isso seja necessário revoltar­
de gema, como é Bernard Clergu e, que chega a gastar 14 mil soldos nos contra a modernidade (não esqueçamos que este mundo pastoril
para arrancar o seu irmão das garras da Inquisição (11, 282-283). De saiu dos do Neolítico ('), os seus principies de base remontam a tempos
a
qualquer modo, mesmo quando Pierre Maury se diz ccrico», te� anteriores ao século XIV), verificamos que o nosso pastor e os seus
consciência de que isso é relativo. O verdatfeiro rico nilo é um assala nado semelhantes se situam fora da economia de subsistência quase pura:
como ele; é o proprietário explorador, suficientemente abastado para não devido ao destino final dos rebanhos, Maury participa na economia do
ter de trabalhar a terra com as suas mãos e para utilizar para o efeito as mercado, transumante e transpirenaico. Para isso, não é submetido ao
dos outros (III, 1 22). Por outro lado, Pierre sabe bem - e di-lo diversas cruel horãrio de uma organização capitalista, que nada tem que ver
vezes a Bélibaste -, que, não obstante a sua pretensa riqueza, é muito com as normas, pouco exigentes, quanto a este ponto de vista, do perlodo
pobre - financeiramente, materialmente e pelo facto de não ter casa - anterior à peste. Os autores que estudaram a vida quotidiana das gentes
para poder, como deve ser, sustentar uma esposa e os filhos que esta de Montaillou, indigenas ou emigradas, ficam, na realidade, bastante
lhe der. Casar-me-ia se tivesse uma casa para ai fazer viver uma impressionados {�) com o carácter descontraido, cheio de furos e de
mulher e as nossas crianças, diz um personagem libertino, posto em pausas, do ritmo dos trabalhos, quer estes sejam pastoris, quer agr(colas
cena pelo dominicano John Bromyard no séc. XIV. Pierre Maury, ou artesanais... Pierre Maury, tal como os seus confrades, usufrui de
manifestamente, nllo faz parte desta elite que se pode elevar até ao nlvel tempos livres. Habitua-se a ser substituido pelos seus camaradas, que
da gente da casa individual e familiar. Nlo tem, por conseguinte, guardam as ovelhas em vez dele, enquanto desce até ao burgo, para
qualquer problema em menosprezar a riqueza, c nlo é seguramente desses levar ou trazer dinheiro {III, 1 66), Ou então, ausenta-se, sem problemas
que, à imagem doa zeladores, antigos ou modernos, da sociedade de de ponto ou de controlo, e sem ser por uma razão profissional, para ir,
consumo, laicos ou da Igreja, C<erguem um templo ao inacesslvel»; nilo longe dos rebanhos, visitar os amigos, as amantes (salvo se estas vêm
proclama a sua devoçlo à entidade que, pela sua própria definição, se vê-lo à cabane), os compadres; compadres que ele arranjou há já algum
r�vela imposs fvel de abraçar, e que se chama «infi nidade de tempo; ou compadres que ele faz de tempos a lempos, como veremos,
necessidades>>. Acerca deste assunto, o bom pastor continua fiel ao por ocasião das festas dos baptismos. De forma alguma arreigado à sua
ensinamento do seu mestre Jacques Authié, no vale de Arques: das aldeia ou à sua região, Pierre Maury, da mesma maneira que os Maurs
riquezas que Satanás dará, jamais estareis satisfeito, por maiores que e que os outros pastores cerdilos e ariegenses, situa-se num dos nós da
elas sejam. Aquele que possui desejará cada ve.: mais e mais. E não rede policêntrica de informações que circulam de desfiladeiro cm
1 64 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR MENTALIDADES PASTORIS 1 65
desfiladeiro, de montanha em montanha: é graças a elas que sabe o que silo para ele valores essenciais e fontes de fidelidade. Nilo é em vi'lo que
se passa na Catalunha, nos Pirenéus, na terra natal; de resto, vai até lá se é de Montaillou! Esta fidelidade estende-se ao domfnio ideológico:
apesar dos perigos da Inquisição ('). três vezes a casa dos meus pais foi destruída por heresia, diz Pierre
Assalariado, nllo alienado, infonnado, infonnal e sociável, Pierre Maury a Ouillaume Maurs (II, 1 74); e eu não posso corrigir-me da
Maury tem o sentido da festa, da alegria e muito simplesmente da refeição heresia porque devo conservar a fé de meu pai. Pequeno texto, mas
de carne e da amizade. Nonnalmente, a sua alimentação não é das mais que, conjugado com outros, mostra bem que, em Montaillou, a
brilhantes; mas tem também sólidos repastes azotados de carne, de figado heresia não é origem de conflitos entre pais e filhos ou entre velhos e
de bode, de porto, de carneiro, ovos, peixe, queijo e leite, em famllia, novos.
na taberna ou ao ar livre, na companhia dos innllos, dos parentes, de Mais do que bom filho, Pierre, é, no entanto, em primeiro lugar e
amigos, de camaradas, de inimigos ou de esbirros que mandavam antes de tudo, bom innllo. O seu sentido de amizade, muito desenvolvido,
confiscar-lhe o rebanho e que ele tinha previamente conquistado exprime simplesmente, como adiante se verá, uma fraternidade não
confeccionando para eles um grande pão que devoravam todos consangulnea. A capacidade de apego fraternal é previslvel num sistema
juntos (6). Pierre Maury era um dos «pilares» do salão-sala de jantar­ de forte estrutura de linhagem, tal como o que prevalece em Montaillou.
cozinha de Guillemette Maury, a pequena lavradora exi lada de Pierre demonstrou-o, ainda jovem, em relaçilo a sua irmil, quando, com
Montaillou, que se radicara com a famllia em San Mateo, na rua dos o consentimento desta, a libertou do poder de um marido que lhe
lavradores. As pessoas - e Maury era o primeiro - pelavam-se pelos batia C). Quanto à afeição de Pierre Maury para com o seu innão Jean,
almoços ou os jantares daquela patroa. que brilhavam sempre mais pela pastor como ele c companheiro de trabalho, nunca foi desmentida., não
quantidade de conversas e pela vivacidade dos assuntos, do que pela obstante desavenças passageiras, como a que su�giu entre eles, numa
qualidade da refeição. Eu vi, no época pascal, diz Guillaume Maurs, pastagem de Verão, no desfiladeiro de lsavena (III, 1 95), durante a qual
em casa de Gui/lemette Maury. em San Mateo, Pierre Maury. o própria Jean atacou verbalmente o seu irmão Pierre:
Guillemetle Maury, os seus filhos Jean e Arnaud e seu irmão, também ..,. Seu grane/e herético!
chamado Pie"e Maury. e Arnoud Sicre de Ax (o delator) e muitos outros. Perante isso, conta Pierre, respondi a Jean:
Ai umas do:e ou quin=e pessoas. E almoç011am todos juntos naquela - Tu próprio não estás assim tão longe da hei'C!Sia!
casa. Comiam peixe. E eu não gosto de peixe. E depois também não Esta disputa não tem nada de grave. Pierre terá, mais tarde,
era a época dos peixes. Assim achei isso surpreendente. Então, mandei oportunidade de demonstrar até que ponto está ligado a Jean: num dia
um dos filhos de Gui/lemelte comprar um figado de bode. E comi-o,· · em que este se encontra doente e que no delirio ameaça, diz-se, mandar
e dei também aos outros convivas que est011am à mesa connosco naquele capturar todos os heréticos, a cuja crença ele nunca tinha aderido a cem
dia (II, 1 83-1 84). Mesmo nos tempos de fome ou de penúria ( 1 3 1 0), por cento, Guillemettc Maury, que trata dele, perde a cabeça: é preciso
Pierre Maury sabe desenvencilhar-se para arranjar farinha suficiente matá-lo, diz ela, falando do doente. Se se curar; fará com que vamos
para alimentar (além dele próprio) os da sua equipa, bem como o seu todos para o prisão e para a fogueira (III, 206).
amigo Bélibaste: à razão de um quarto de quintal de farinha por semana Perante o projecto de homicldio do irmão, a reacção de Pierre é
e por pessoa (II, 176). Em tempos de festa, subsidia generosamente, na imediata e passional:
medida dos seus modestos recursos, com a ajuda do seu amigo-inimigo - Se mandardes matar o meu irmão, diz o bom pastor a Guillcmctte,
Amaud Sicre, as festividades de Ouillaume Bélibaste e de Raymonde, devorar-vos-ei crua com os meus dentes, no falto de outra vingança.
concubina do santo personagem. Eu e Pierre Maury, conta Arnaud Sicre, Guil/emette mudou imediatamente de assunto!
concordámos em pagar a meias as despesas dafesta do Natal (despesas O amor de innilo por irmão pode ser depurado ou melhorar, através
das refeições, etc.): eu devia pagar por mim e por Béllbaste,· Pierre de uma metamorfose em amizade profunda, para com um homem ao
Maury, por ele e por Raymonde (II, 69). qual na:o se está ligado pelo sangue e que recebe o titulo de amigo
1
Haja festa ou não, Pierre Maury não possui, a tftulo pennanente, carnal. Pierre sentiu bem, no caso da sua amizade unilateral com
nem muitos «imóveis» nem muitos objectos pessoais. Mas tem muitos Guillaume Bélibaste, as possibilidades que oferece esta transferência:
amigos. E isso é que conta. Amizades concebidas, para começar, à Gosto muito mais de Guilloume, diz Pierre, do que de qualquer dos
imagem das relações familiares. O bom pastor não tem casa que lhe meus, apesar de ler quatro imu1os carnais. Porque aqueles que são da
pertença pessoalmente. Mas a domus paternal, a parentela e a linhagem /d - ou seja, os heréticos - pratic:am a c:om.:órdicz em muitas coisas; seio
1 66 ECOLOG IA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR MENTALIDADES PASTORIS 1 67

muito mais irmãos do que os irmãos nascidos de um mesmo pai e da ou costeiras do Mediterrâneo ocidental. John Pitt-Rivers, por exemplo,
mesma mãe: estes irmãos muitas vezes discutem uns com os outros/ investigou os povos de montanha (cf. John Pitt-Rivers, People of the
E, depois, desabafa Pierre, nuncafaltarei a Guillaume, porque tudo o Sierra); encontrou esta concepçao tal e qual, religiosamente conservada,
que possuímos pômo-lo em comum, metade metade ( I I , 1 82). entre os camponeses e os citadinos da Andaluzia: em casa destes, bem
Pierre Maury tinha, sem dúvida, ilusões, ou entilo nilo queria ver a como em casa dos seus antigos homólogos de Montaillou e da Catalunha,
verdade no que tocava aos bons sentimentos de Bélibaste a seu respeito. o parentesco artificial, compatcrnal, vem enriquecer a conexão da
Entre eles, ofifty-fifty era em sentido único. Era Pierre que gostava de I inhagem. Os pequenos presentes encarregam-se, melhor do que o fariam
Guillaume e não o inverso. Mas esta amizade sem contrapartida nilo as longas efusões, de conservar a amizade.
resultava apenas de um bom coração, inseria-se na essência geral da A análise comparativa, mesmo no quadro pirenaico-ibérico, não é
cultura occitana e de parentesco artificial. A fraternidade total de amigos o meu objectivo principal. Chega-me, de momento, mostrar até que
não parentes, que tudo dividiam, a meias, sem regatear, estava ponto o compadrio é essencial para uma definição da amizade
institucionalizada nas formas rituais de affrerement, comprovado como montailunesa. O caso de Pierre Maury, eloquente deste ponto de vista,
tal, desde o começo do século XIV. tem múltiplos efeitos: é a um compadre, cujo nome nilo sabemos, que
O ajJrimm1ent era uma forma de parentesco artificial, mas podem Pierre Maury confia o dinheiro que conseguiu com a venda das ovelhas,
surgir outras formas no que diz respeito aos pastores pirenaicos dos numa época em que, temendo os inquisidores, se desfez de todo o gado
anos 1300: penso nos laços que uniam - homem a homem, homem a (11, 1 75). O compadre, como se pode ver por este episódio e por alguns
mulher, mulher a mulher - os compadres e as comadres. Estes laços outros, tem um papel de depositário de confiança. Nem sempre digno
são oficializados pela instituição do baptismo: este dâ aos padrinhos, dela: numa certa altura, conta Pierre, tinha ganho JOO soldos como
madrinhas e pais deste ou daquele bébé baptizado, compadres e comadres pastor cm casa dos patrões de A:c-lcs- Thcrmcs e de Puigcerda. Confiei
depois desse neto, a corresponsabilidade da educaçilo c do futuro da a dita soma a um dos meus ,·ompadrcs que vivia na região de Urge/.
dita criança. A amizade pura que Pierre Maury e aqueles que ele estima Ele nunca me restituiu esse depósito em tlinheiro. (li, 30). Além da
e que o estimam praticam, não é simplesmente um tipo de afectividade moeda, pode também colocar-se em depósito, em casa de um compadre,
vivida por si própria, como aconteceria hoje. N uma interessante uma pessoa, por exemplo, uma mulher, aliada ou de quem se espera
passagem, Bélibaste reprova Maury: vós fazeis muitos compadres e preservar a virtude ou a segurança; pode igualmente utilizar-se este
comadres, uma ve.: que (enquanto padrinho) participais no baptismo compadre (sobretudo se tem uma casa grande} como simples locador. O
das crianças: gastais todos os vossos bens neste género defestividades: que é importante é saber escolher bem a personagem. Naquele Inverno,
e, no entanto, estes baptismos, compadrios ou compaternidades não diz Pierre, (11, 1 94- 195}, eu e o meu irmilo Jean Maury fizemos a
valem nada, senão para edificar amizades entre os homens ('). Picado pastagem de Inverno em Casteldans. Tlnhamos os dois residência na
por estas observações, Pierre reage vivamente; aproveita a réplica para casa do notário Bérenger de Sagria, que era compadre de Jean Maury...
desenvolver uma filosofia da amizade: eu ganho o meu dinheiro e a Mais tarde, conduzi Blanche Marty a Casteldans, e instalei-a na casa
minhofortuna; gasto o dinheiro como me apetece: não é por vós nem deste Bérenger. (Blanche Marty é, com efeito, uma protegida de Pierre
por nenhum outro que renunciarei a isso,já que desta maneira (fazendo Maury; as suas relações são bastante estreitas, uma vez que se trata da
compadres e comadres) conquisto a amizade de um conjunto de pessoas. i rmã de Raymonde Piquier, concubina de Bélibaste e mulher
Esta teoria da amizade compatemal é subentendida por Pierre Maury momentânea do bom pastor).
como uma filosofia do bem fazer: se eu procuro assim obter tanuu Enfim, como já vimos, o testemunho de um compadre, forjador de
amizades, é porque penso que devo jazer bem a toda a gente: se este alibi, pode vir a ser precioso. Pode precisar-se dele no caso de um
homem é bom (quer dizer, herético e crente) serei recompensado,· se processo da Inquisição, em virtude do qual se corre o risco de apodrecer
este homem é mQU (nllo herético) devolver-me-á os beneflcios que na prisão.
A vida transumante dá a Pierre muitas ocasiões de ser cohvidado
'
receber de mim.
A tripla concepção, indissolúvel, da amizade, do compadrio e dos para baptismos e de se tomar padrinho; em determinadas circunstâncias,
benetlcios recebidos e devolvidos, formulada em diversas ocasiões pelo pode ter vários compadres na mesma paróquia; esta pluralidade
bom pastor, continuará bem viva nos tempos seguintes; demonstram­ compatemal constitui para ele, nas pastagens de VerJo c de Inverno,
no hoje os etnólogos do mundo ibérico e das civilizações montanhesas um motivo de absentismo ... sobretudo quando Bélibaste reside nas
1 68 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR MENTALIDADES PASTORIS 1 69

proximidades; Pierre pode,..desta maneira, visitar o seu amigo sob Montaillou), Bernard Laufre (de Tignac) e Raymond Botai/ler (de
pretexto de ir ver os compadres: eu, Pierre MCIUI's e outros sete pastores Gebetz); tinham jurado mutuamente fidelidade e dirigiam-se a
passámos o Inverno, conta Guillaume Maurs, com as ovelhas de Pierre Montblanch para ganhar a vida (III, 1 68).
castel nas pastageM de Tortose. E. na véspera da Quaresma (talvez Estas formas de sociabilidade são filhas da montanha ariegense·
por altura das festividades do Carnaval?) Pierre Maury despediu-se de mas são reforçadas pelas necessidades do exflio e da emigração, qu;
mim e das ovelhas dizendo: implicam ou impõem uma solidariedade entre giróvagos; encontram­
- Quero Ir ver um dos meus compadres, chamado Eyssalda. na -se mesmo fora do mundo dos pastores, no das mulheres desenraizadas
aldeia de Flix (perto de Tarragona). Aliás, é uma aldeia onde tenho - viúvas ou separadas dos maridos - que o êxodo rejeitou, desde a alta
muitos outros compadres, um dos quais se chama Pierre loyer. Ariege até à Catalunha: 8/anche Marty (de uma famflia de grandes
E, de facto, Pierre Maury ausentou-se durante Ires semanas ou ferreiros de Junac) associara-se, conta Pierre Maury, com a velha Esperte
perto disso. Quando voltou às pastagens de Tortose trou:-ce coMigo o Cervel (originária de Montaillou c viúva de um ferreiro tarasconês)
herético Guil/aume Bélibaste, que conseguiu que Pierre Costel viviam as duas juntas na companhia de Mathena, filha de Esperte :
contratasse durante um més. (li 1 77). numa cosa situada perto do topo da ponte em Lérida (I II, 197). Em
Conhecemos bem os compadres de Pierre e Jean Maury, c de alguns suma, a associação em Montaillou, como no Sabarthes, pode prefaciar
outros. Vimos, aliás, que mesmo em Montaillou a instituição do uma das formas da vendetta; os homens da fam ilia Maurs são veteranos
compadrio era florescente; ela tecia entre os habitantes da aldeia redes das associações na base da fidelidade, para o melhor (ganhar a vida
de cumplicidade suplementar que se vinham juntar ás da heresia, da conj untamente) ou para o pior (vingança em famil ia). Vimos
aliança e do amor. anteriormente como fora montada contra Pierre Clergue a cabala que
Para além dos laços específicos de amizade que se prendem com devia exterminá-lo: três homens de Montaillou (dos quais dois i rmi!os
paternidade-filiação e, mais frequentemente, com fraternidade ou com Maurs, guardadores de gado) tinham formado, jurando sobre 0 pcio e
a com a compaternidade, Piçrre Maury e os seus semelhantes praticam, sobre Q vinho, uma associação de affrerement comunitário, com um
por outro lado, a associação, cm que o elemento prático é dificilmente fim: assassinar o padre.
separável do af�o:ctivo. Quando da sua estadia em Fenouillcdes, durante Amizades filiais, fraternais, compaternais, associativas, combinam­ . i
,.

o Verão, no desfiladeiro pirenaico de Orlu, Pierre Maury, acompanhado -se com as simples amizades e com as cumplicidades heréticas ou anti­
/
pela sua equipa de pastores, colocou-se ao serviço do criador de gado ·heréticas para formar o circulo dos amigos de cada habitante, de cada
Pierre André, originário de Planezes (III, I 59- 1 60). A situação é jã domus, de cada pastor, círculo simbolizado pela expressão c<todos os
razoavelmente complexa, uma vez que, entre a equipa dos pastores acima amigoS)): vós fa:eis amigos com as vossasfestividades de baptismos e
citada, figuram nomeadamente os dois filhos do dito Pierre André, Ber­ de compadrios, diz Bélibaste a Pierre Maury. Saúda todos os amigos
nard e Guillot. A equipa dos pastores de Pierre André, de que Pierre lembra, por seu lado, Raymond Pierre a Pierre Maury antes de se despedi ;
Maury é figura de proa, associa-se, por outro lado, sem consultar deste (III, 1 29). Vai-te embora! Por tua causa poderia acontecer alguma
expressamente o patrilo, com uma outra equipa de pastores, assalariada desgraça a todos os amigos, declara em Montaillou, Guillaume Belot a
por um criador de gado de Saint-Paul-de-Fenouilledes, que se chama Pierre Maury, da parte de Amaud Fauré, que é tio (inteiramente cobarde)
Maitre Roquefeuil. Durante, pelo menos, dois verões e um inverno todos do bom pastor (II, 1 74). Pierre Maury desata a chorar quando ouve esta
os pastores da equipa de André e todos os da equipa de Roquefeuil, silo última frase; ele compreende que, com medo da Inquisição, os Belot e
associados ou camaradas (socil) uns dos outros, sem que esta associação os Fauré que são, apesar de tudo, seus concidadãos e seus parentes 0
ponha em causa os seus patrões considerados como tais. Estas associações riscaram da lista dos seus amigos: recusam-se, assim, a prestar-lh; 11
informais de trabalhadores podem ir até à prestação mútua de um sagrada hospitalidade; suplicam-lhe que siga o seu caminho, lançando­
juramento de fidelidade de tipo medieval; também aqui se distinguem -lhe, se for preciso, um naco de pão a fim de comprar a sua partida.
mal as aspirações do coração e as necessidades de trabalho. Veja-se o Mesmo quando as suas leis são violadas, a amizade entre os pastores de
caso destes três pastores emigrantes, vindos da vertente norte dos Audc e de Montaillou de outrora, tal como a dos Corsos edos Andaluzes
Pirenéus, que Bélibaste evoca numa conversa com Pierre Maury: na dos nossos dias, é uma relnçilo fundamental; é mais activa do que nas
estrada que vai ele Serviim! a Montblanclr, conta o santo homem ao sociedades individualistas do nosso novo mundo industrial.
bom p;tstor, cru:ei m e com três personagens, Raymond Maurs (de
-
1 70 ECOLOG IA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR M ENTALIDADES PASTORIS 171

• que se trate de alguém que mal conheça e de quem, no entanto, tem


A amizade ni'lo implica necessariamente, como reverso, a inimizad�:. boas razões para desconfiar, fá-lo com um riso aberto. Amaud Sicre, o
Baseados nas noções tradicionais, relativas ao conflito entre cultivadores delator mascarado, beneficia disso como todos os outros:quando en/rei
e pastores, teremos talvez tendência a representar o mundo dos pastores em casa de Gui/lemelte Maury, Pierre Maury, q11e eslava senlado
diz ele,
como essencialmente zaragateiro, mesmo antagónico. Ora, se me refiro n11m banco, levanlou-se, mostrando uma cara sorridenle e saudou-nos
ao exemplo dos guardadores de gado de Montaillou e arredores, não é da maneira habi111al (II, 28).
esse o caso. Há rixas, mas opõem sobretudo uns pastores a outros Aliás, Pierre Maury concebe as suas relações com Sicre e com os
pastores; ou então a qualquer ladrJo. Enquanto grupo, relativamente à outros membros da colónia bélibastiana como uma alegre convivência:
sociedade englobante, o conjunto dos pastores não me parece colocar­ falaremos lodos, diz o bom pastor, evocando uma reunião am igável
-se de forma contraditória. Apresenta-se, na verdade, como um grupo, que terá lugar brevemente na casa de Guillemette Maury, e alegrar­
enquanto unidade socio-económica original, com as suas leis próprias ·nos-emos, porque enlre nós devemos sempre alegrarmo-nos.
e as suas mentalidades. Mas o seu recrutamento, sobretudo externo, Maury inspira a alegria societária aos seus amigos. Quando nos
faz-se entre os filhos dos agricultores; impede-os, no essencial, de se n.>vemos, diz Guillaume Bélibaste a Pierre, num dia de Verão, em que
conceberem sob os ausplcios do antagonismo aos sedentários. este voltou das pastagens da montanha, sentimos alegria e receio, ao


mesmo Jempo. Alegria, porque havia bastanle lempo que não nos
viamos. Receio, porque tínhamos medo de que a lnq11isição vos tivesse
Os pastores permanecem , regra geral, ce l ibatários e sem capt11rado lá em cima, vos livesse obrigado a confessar t11do e vos
descendência, porque, com ou sem razão, consideram-se, na sua própria tivesse mandado voltar para junto de nós como espic7o, afim de me
óptica, demasiado pobres para arranjar mulher. As excepções a esta mandar prender.
regra anticonjugal silo suficientemente raras para que os nossos textos Neste caso, Bélibaste enganava-se no espião mas não no processo;
as mencionem com todo o cuidado, quando se verifica esse caso o homem que ia mandar prendê-lo, exactamente como tinha previsto,
extraordinário. «Eu e Guillaume Ratfre, de Ax, qlle linha arranjado não era Pierre Maury mas Amaud Sicre. Este erro só toma mais autêntico
mulher em Caudies, éramos pastores», diz um dia, não sem algum o sentimento de alegria partilhada que Pierre Maury suscita entre os
espanto, Pierre Maury C). Exceptuando Guillaume Ratfre e alguns amigos que fazem parte do seu grupo.
outros, os guardadores de gado profissionais raramente se casam; e o O riso de Pierre é francamente cordial. O sorriso, em contrapartida.
recurso ao recrutamento externo é necessário ao grupo, sem o qual este é repleto de humor. Assim, Pierre Maury limita-se a pôr um leve sorriso
acabaria por estiolar e até desaparecer. perante as long(nquas ameaças de tortura que Guillaume Maurs, nas
Em relação ao mundo exterior, a atitude dos guardadores de gado pastagens, lhe faz de que um dia a Inquisição tratará dele sem
tem um carácter positivo muitas vezes amigável. Se Guillaume Maurs deferências:
planeia uma cruel e justa vingança, que de resto abortou, contra os - Serás revelado, denunciado, caplurado, assim como Bélibasle,
Clergue, é porque estes perseguiram e extirparam a sua famllia. De diz Guillaume a Pierre (II,181).
qualquer maneira, a nossa amostra de pastores, que não é pequena, não Depois de me ter ouvido falar deste modo, prossegue Guillnume
apresentou nenhuma personagem que seja um <<patife» cnracterlstieo, Mnurs, no relato, Pierre Maury pôs-se a sorrir.
no sentido sartriano ou até apenas no sentido vulgar do termo. Patifes O mesmo sorriso, ao mesmo tempo condescendente e humorlstico,
como se encontram, pelo contrário, sem dificuldade, no mundo amoral para Guillaume Maurs, uma vez mais, num d ia em que este reprova
dos não-pastores (refiro-me a Pierre Clergue, a Amaud Clergue, a Pierre pelos seus conhecimentos heterodoxos:
Amaud Sicre; ou mesmo a Bélibaste, pastor por acaso mas sedentário - Pierre, diz Guillaume,fazes m11ilos peditórios para causas
por vocação, que explorou ao mãximo a amipde que Pierre Maury lhe erradas e convives muilo com homens maus; não há diabo nenhum no
1
dedicava). mundo que tu não conheças.
No seio desta sociedade de guardadores de gado, no seu conjunto Peranle eslas palavras, Pierre esboçou um sorriso e não disse
mais simpática do que o grupo estável dos enraizados das dom11s,
Pierre 11ma única palavra (11, 185).
Maury representa o herói positivo por excelência, campeão de uma certa Este «pequeno sorriso» não é privi légio de Pierre Maury:
alegre abertura ao mundo e aos outros. Quando saúda alguém, ainda encontramo-lo também em Béatríce de Planissoles, cujo comportamento
1 72 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR MENTALIDADES PASTORIS 1 73

neste ponto 6 bastante semelhante ao do bom pastor. Durante as para a transumância estival podem levar-nos a cair nas mãos da
frequentes desavenças entre a envelhecida Béatrice e o seu jovem amante Inquisição; uma vez longe de nós, temo que um acidente cause a vossa
Barthélemy Amilhac, este ameaça, com efeito, denunciA-la à Inquisição. perda e não tenhais possibilidade de serdes heretizado, recebido ou
E eu disse a Béalrice, conta Barthélemy, que se me encontrasse no consolado na véspera da vossa morte (III, 1 83)... Ora a resposta de
episcopado de Pamiers ou noutro lugar não desprovido de Inquisidor, Pierre sobre este ponto é categórica: deixa entender, em primeiro lugar,
mandaria prendê-la; e então ela sorriu, dizendo-me: os padres que não tem nada de galinha de capoeira e que o modo de vida
que são da seita dos bons cristãos (dos heréticos) slJo melhores do transumante que lhe foi legado desde a inBncia lhe dá alegria e o dever
que tu. de respirar, pelo menos uma vez por ano, o ar dos cumes, em
peregrinação para a pastagem estival: não posso viver duma maneira

diferente daquela que me ensinaram. Se residisse permanentemente
Mas deixemos la Clergue e Béatrice; voltemos ao nosso assunto, em More/la (lugar canónico da pastagem invernal espanhola), morreria
aos pastores em geral e a Pierre Maury em particular. Os dados em tempo de pastagem estival (ibid.). E depois, caindo no seu habitual
psicológicos e acerca da sua mentalidade que podemos rebuscar um estado filosófico, o bom pastor conclui: devo seguir o meu destino. Se
pouco por todo lado são necessariamente fragmentários. O importante, me for permitida a herelização na véspera da minha morte, serei
nestas condições, seria poder ter uma ideia de como estes homens heretizado. De outro modo, seguirei a via que me está prometida. Noutra
encaram o significado da sua vida; e que consciência têm eles da sua ocasião, Pierre Maury, em termos muito simples, desenvolve de novo a
identidade. A resposta a esta interrogação, que é de lilosolia pastoril, mesma ideia, dirigindo-se a Guillaume Maurs (que critica a sua vida de
ou muito simplesmente de filosofia de Montaillou, é bastante clara. herético forçado): não posso agir de outra maneira. Sempre vivi assim.
É-nos fornecida diversas vezcs, pelo próprio Maury. E continuarei a viver nos tempos futuros (11, 1 84).
Uma primeira discussão sobre este assunto tem lugar nos arredores Onde é que Maury pôde aprofundar esta ideia de destino que o
de Ax-les-Thermcs. Pierre Maury desloca-se àquele burgo depois de ter � fecta. profundamente? Com os seus amigos cátaros? Sim e nilo.
deixado a sua residência, então habitual, de Fenouitt�des. Veio para E verdade que eles acreditam firmemente na necessidade. ..(10) Por vezes,
escoltar uma mula carregada de sal, vinda do Roussillon. Em Ax-les­ contradizem-se! Bélibaste, que não é nada ambfguo, evoca, de tempos a
·Thermes, perto dos banhos locais (destinados nomeadamente aos tempos, ao pastor, o velho tema anti-destino do livre arbítrio que se
leprosos) encontra duas outras personagens de Montailtou, a saber, poderia resumir na fórmula popular: ccDcus ajuda a quem trabalha»: o
Guillaume Belot e o seu próprio irmão Guillaume Maury. Os três homens homem pode muito bem ajudar-se a sipróprio, diz Bélibaste, a alcançar
aproveitam a oportunidade para dar um passeio, durante o qual litosofam. um fim, quer seja bom ou mau (li, 1 83).
A conversa não é desprovida de ansiedade. Nessa época, correu o boato De facto, pondo (parcialmente) de lado a influência albigense, é
que uma grande rusga estava a ser organizada contra os heréticos, fácil confrontar esta noção de destino tão cara a Pierre Maury com
numerosos em Montaillou e no SabartMs. Os dois montailuneses, que outros conceitos análogos que são populares nas diversas culturas do
são peritos na matéria, interrogam então Pierre Maury: Como ousas Mediterrâneo ocidental. Os magrebinos e os muçulmanos de Á frica e
viver em Fenouilledes se és procurado por heresia? (III, 161). de Espanha têm também o sentido do destino: os inúmeros contactos
A resposta de Pierre: Mais vale continuar a viver em Fenouil/edes que Pierre Maury estabeleceu, em diversas ocasiões, com os pastores
no Sabarthes, porque ninguém me pode afastar do meu destino (fatum). sarracenos, só contribulram para reforçar, ou até mesmo provocar a
E tanto aqui como ali, tenho de carregar o meu próprio destino. reflexão sobre este problema (1 1). Sem ir tão longe, o cristianismo me­
Destino: a palavra que se encontra frequentemente nas conversas dieval (influenciado nisso por um magrebino pré-islâmico que responde
familiares de Pierre Maury, quer sejam à mesa, nas pastagens ou quando pelo nome de Santo Agostinho ...) possui uma teoria muito completa da
bebe com os amigos. Graça: nas suas versões mais grosseiras, pode ser igualmente vivida
Esta noção de irremissfvel destino perseguirá Maury nas futuras sob os auspldios e sob as aparências de um verdadeiro destino. Por último,
caminhadas até Espanha. Defende ardentemente este conceito num dia lembremos que Pierre Maury é um guardador de gado montanhês: e
em que Bélibastc tenta arranjar-lhe uma mulher e o censura pela sua são precisamente «os grandes pastores da alta montanha>, ( 1l) que, ainda
vida errante: vós afastais-vos de nós, Pierre, diz. em suma, o S:J.nto antes do Renascimento, darão, no seu calendário, a mais completa versão
homem ao bom pastor; as \'assas idtL'� periódicas ao condado ela Foi.-c das ligações forçadas que unem o macrocosmos ao microcosmos: :t

L
1 74 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR MENTALIDADES PASTORIS 1 75

astrologia, através dos doze signos do zodfaco, ditará, com efeito, as saber ocupar o seu lugar e nilo sair da sua condição nem da sua profissão.
suas leis neste calendário aos doze meses do ano e aos doze perfodos - Profissão vivida. de resto, como fonte de interesse, como fonte de energia
compondo, no total, setenta e dois anos - cm que a vida do homem está vital. E não como causa de mal-estar e de alienação. Guillaume Maurs,
dividida. Pierre Maury e Guillaume Bélibaste têm, sobre este assunto, uma
Notemos também que o sentimento de destino do nosso bom pas­ discussão muito reveladora, num dia em que os três guardam juntos as
tor em nada se liga a superstições absurdas. Pelo contrário, Maury suas ovelhas, nos pastos de Tortose. Pierre, diz o santo homem ao bom
recusa-se a acreditar nos presságios emanados do voo dos pássaros e pastor, larga essa vida de cão: vende as tuas ovelhas, gastaremos o
outras patacoadas, que considera histórias de mulherzinhas. Um dia, dinheiro obtido graças ao teu gado. Quanto a mim, fabricarei pentes.
Guillaume Bélibaste, muito ansioso, inteJTOgava-se {nilo sem razão, pois, Assim, poderemos subsistir os dois,
para ele, a fogueira nilo estava longe) sobre a passagem de uma pega Pierre responde logo:
que três vezes atravessara a estrada sob o seu olhar; Pierre ri-se dele: - Não, não quero vender as minhas ovelhas. Pastor fui, pastor
Guillaume, não deis importância aos sinais dos pássaros e outros serei enquanto viver.
augúrios do mesmo género. Isso é bom para as velhas (I I I, 2 1 0). O destino, subjacente nesta frase como em tantas outras, é assim
O sentido do destino de Pierre Maury não é assim vulgarmente assumido como uma vontade expressa de pastor; e a liberdade
mágico mas sim altamente filosófico. Não se tratará muito simplesmente, montanhesa é a alegre contrapartida do seu destino montanhês. Mesmo
no caso dele e de outros, de uma velha ideia camponesa nonnal nas que se tenha de donnir debaixo das árvores, quase morrer de frio
sociedades sem crescimento, onde, literalmente, não se pode escolher. durante os Invernos e molhar-se até aos ossos durante as chuvadas de
Como vimos, o padre Clergue não hesitou em conservar os cabelos e os Outono... (I, 1 78, I I, I S). Este destino é inseparável da educação
fragmentos das unhas de seu pai Pons, a fim de salvaguardar o astro ou precedente do jovem. Um dia em Beceite, região de Teruel, Emersende
boa fortuna (erifortunium) da casa familiar. Encontramos o tenno de Befayt, originária de Montaillou, ataca Pierre Maury a propósito das
�? I
fortuna, mas no sentido inverso, numa discursata pastoril dirigida por suas longas caminhadas em direcção ás montanhas ariegenses: fala-lhe
. -; . � das inquietações mortais que originou, desse modo, a todos os amigos,
Gui l laume M aurs a Pierre M aury, a propósito dos seus maus
conhecimentos e negócios: Pierre.ja:es maus negócios (borias); e todos aos crentes e ao Perfeito. Resposta de Pierre:
vós sofrereis o irifortúnio (infortunium); e um dia o diabo tudo levará - Não posso agir de outro modo, porque não posso levar uma
(11, 1 84). A esta arremetida, que cristianiza ou sataniza mal a antiga vida diferente daquela para que fui criado (I�) (Nutritus: esta palavra
palavra fortuna. Pierre responde como deve ser, invocando de maneira implica, ao mesmo tempo, em relação às lembranças da juventude
explicita o seu próprio destino de m igrante e de homem de parte incerta: daquele que a pronuncia. os conceitos de alimentação e de educação).
nada posso, não posso agir de outra maneira. porque assim vivi aJé Por detrás da ideia banal - que pretende que o homem seja o prisioneiro
aqui e assim viverei no futuro (ibid.). da criança e o produto da educação recebida durante a tenra idade -
Pierre Clergue e Pierre Maury têm em comum uma certa concepção perfila-se, neste discurso de Maury, a noção mais completa de um laço
do destino, como boa ou mâ fortuna. tecida pelas estrelas; esta simples carnal com o pão que construiu o corpo; e, para além do pilo, com a
aproximação entre as ideias de dois homens igualmente representativos terra criadora que produziu os cereais, de que foi feito o homem, e à
da sua aldeia parece provar que o fatalismo rural faz parte integrante da qual voltará um dia: a alma do homem é pão, diz um materialista
filosofia de Montaillou (13). A notar, no entanto, uma diferença entre as camponês da alta Ariêge, cujos propósitos heréticos chamaram, um dia.
concepções do padre e as do pastor. Para Pierre Clergue, homem da a atenção de Jacques Foumier. Aquilo que se amassou deve-se cozer,
domus, a fortuna astral está ligada, antes de mais, ao destino comunitário declara, por sua vez, um camarada de Pierre Maury; quer assim justificar
da l inhagem e da gente de casa. A divisa de Pierre Maury, em a continuação de uma vida em comum entre Emersende Befayt e a filha
contrapartida. é nem casa nem lugar; ele é o que mora em toda a parte Jeanne, apesar das constantes agressões desta contra a mie (III, 174).
dos Pirenéus: destino e fortuna são, para ele, entidades acima de tudo Também Guillaume Fon de Montaillou lembra que, apesar de todas as
individuais, que afectam a biografia de uma pessoa singular, muito mais doutrinas sobre a ressurreição, aquilo que veio da terra deve voltar
do que o futuro de um ostal. integralmente à terra {1, 447). Depois da morte, diz, o corpo humano
A consciência do fatum, em Pierre Maury, é também sentido desfia-se e transforma-se em terra. Este laço tisico liga o destino das
profundo de uma continuidade socioprofissional. Viver um destino é pessoas à sua terra natal. Pierre Maury sentiu-o bem, num din em que
1 76 ECOLOG IA DE MONTA ILLOU: A CASA E O PASTOR MENTALIDADES PASTORIS 1 77

Emersende Marty reprovava afectuosamente as suas constantes viagens Contenta-se com esta liberdade montanhesa que consiste, quando o
da transumãncia aos Pirenéus donde era originário: coração o pede, em deitar para os matagais das altas encostas as cruzes
Filho, vão dever/tu voltar lá a bai:co, Fica aqui connosco. De
qualquer modo, não tens filho nem filha, nem ninguém a I� cargo,
_
amarelas com que vos tinha enfarpelado a Inquisição (II, 177). Pierre
Maury tem momentos de lazer, que se concretizam nas suas frequentes
excepto tu próprio. Poderitu viver aqui .sem te cansares mutto. Se te ausências; mau grado as doenças, o frio, as marchas extenuantes, que
prendem lá em baixo, estás P.erdido. ·. . • nos levam a não desejar a sua porca de vida, arranja sempre de comer
Pierre Maury ripostou, hgando de mane1ra explicita o seu própno para os seus rebanhos, para si mesmo e para os seus camaradas. Leite,
destino às visitas à sua terra: carne ou queijo, não lhe faltam as protelnas.
- Não, né1o me poderiaftxar definitivamente aqui (na Catalunh�);
O que toma possfvel o equillbrio de conjunto desta vida é sem
e de qualquer maneira ninguém me pode arrebatar ao meu destmo
dúvida o malthusianismo mais feroz: tem amantes, é verdade. Mas nilo
(III, 1 83). tem esposa, e principalmente, não tem filhos! (Ver o episódio
• significativo do seu casamento falhado.) É também, no mesmo sentido,
a renúncia final aos capitais lixos: em vez da dom11s apenas uma cabane
Voltemos do subjectivo (a ideia de destino defendida por Maury) transitória. Maury tem poucos bens, mas não é miserável. E, quando
ao objectivo (o sistema de produção pastoril: digamos que, no fim de perde esse pouco, é com um sorriso: porque sabe que, no exercício das
contas, o mundo dos guardadores de gado no mei� dos quai.s evolu� o suas funções, poderá reavê-lo facilmente. Calçado, o único luxo que
bom pastor inclui-se ele próprio em categorias soc1oeconóm1cas mu1to pennite a si próprio, com um par de sapatos de couro de Córdova, que
claras("). Maury e os seus pares, grandes viajantes, não têm nem m.u�h�r, facilitam as longas viagens (1, 20), desligado dos bens deste mundo,
nem filhos nem familiares. Apesar do seu relativo desafogo mob1háno despreocupado perante uma detenção futura e quase inevitável por parte
(dinheiro, ;ebanhos, ... ) (16), não lhes é posslvel acumular muitos valores
em objectos devido às suas constantes deslocações, que lhes prolbem o
da Inquisição, levando uma vida apaixonante e apaixonada, Pierre Maury
acesso às po�sessões embaraçosas de que os sedentários se �deiam. Em
é um pastor feliz. Graças a ele, ao desfolhar os velhos textos de Jacques
Foumier, encontrei no meio popular a imagem frágil de uma certa
vez de acumular muitos objectos, Maury opta por deseJar pouco e felicidade do Antigo Regime.
transferir os seus desejos ou «propensões)) para outros tipos de <<riquezas>>
que, simultaneamente, ocupam o lugar da famllia: l�gações passageiras �
cõm as amantes das pastagens ou da taberna; urna nca rede de rel.ações (1) P. Coste, ÉtuJes l'lll'lll e.s, Abril l 972.
humanas na base da fraternidade artificial ou natural, de compaternidade, (1) III, 146.
( 1) Ver os lrabalhos de Escalon de Fonton, I 968, que mostram que na Provença c no sul
de amizade pura ou de associação. Este estilo de vida - �a bas� do mc:dilcmlnico, a lrllrlSumAncia ovina pn:ccdeu cm v6rios milhares de anos a ado� da
destino assumido em plena liberdade, mas não é esta a própna defi�1ção ngricullura de produção de ccn:ais.
de graça? - agrada ao bom pastor. O camei�o, pa� ele, é a liber­ (') B. \\lurzay, infine, p. 82.
dade (''). Pierre não a trocaria pelo prato de lent1lhas riJas corno pe�, (') 11, 186, 187 c pa.uim.

(1) III, 148, 1 5 I , I S4, I SS. Supl'tl c:ap. IV.


(6) 11, I S8, 184, 111, 139, 140, 148, I S I .
que lhe estendem por diversas vezes os amigos, patrões ou paras1�,
(') III, 1 85. Vcr lambém III, 209.
quando lhe propõem casâ-lo, fixâ-lo, fazê-lo adoptar por urna famlha
M III, 1 59 -Vcr tam�m o caso de Jean Maury, quc linhaiiiTiljndo ll mulhcrnumaotdcia
rica. O meu destino, responde, em suma, Pierre Maury, ao� seus c:atal4, a fim de ter din:ito às p11Sillgcns. Neste caso, era meio caminho 1111dll00 pllnl a
interlocutores que, com mais ou menos boa fé, o querem enra1�, é scdenlllfÍZilÇllo.
andar por montes e vales, é ter compadres por todo o lado e amtgo.s ( 11) A primeira mcnç;lo da idcin de dcscino, di111 por Pierre Maury, � posterior à sua
(111) lnjl'tl, cnp. XIX.
transitórios. . primeira vi11gcm a Espanha.
O pastor tem o sentimento - por si mesmo expres�o - de �<possutr (1=) G. Boll�mc. Le.s Almanoçlu populaires ma XY/Ie el XYII/e .siicles, Paris - La
a abastança sem a abundância>> (11). As riquezas rnatenats senam �
. H ayc, l969, p. l 6, 4 1 , 42 cpas.rínl..
(1-') \\lltarei a esta questilo ( i'lfra, c:ap. Xl X).
ele um verdadeiro fardo, no sentido mais concreto do termo: senarn ( 1'} III, 1 82. Ver t:unbénuupra um texto anàlogo, com Bélibaslc.
dificeis de deslocar nas viagens sem tréguas que o levavam .da (u) Ver a este propósito M. Sahlins, uA primcirn sociedade da abunddnciiiJI, Les Temp.s
Tarragonesa aos Pirenéus. As fórmulas propostas por Marshal S�hhns moJerne.s, Ou cubro 1968; nrtiGo rcprodlUido em Stonc Age Economics (do mesmo autor).

aplicam-se com felicidade ao nosso pastor: ccnJo é pobre, mas hvre)). ('•) Che Ga a acontecer tliiC l*lib:l'itc, 'Iuc é mMtido por PK."'TC Maury, declare de romm
inh:n:sscir:t que este ccé rico11 (11, -12).
1 78 ECOLOGIA DE MONTAILLOU: A CASA E O PASTOR

(•') Vera intcrcssantlssimas obscrvaçilcs do etnólogo Paul RlCS11U111 sobre a tiansum4ncla


perd como fonte de alegria c como «qulnta-cssencia da cxpcrienciapeu/ da vicllD>; do mesmo
modo que uasclva como fonte da liberdade humtlllll» (Paul RicsmDn, Socleld el liherld che:
/eJ PeuL de HQIIIe-f&lla. EutJI d't1111hropologte ln�tDSpectiw, Paris. La Hayc. Mouton,

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••

1974, p. 1 55 e 243.
(11) Sehlins, op. cll.
Númcro dc fogos em 1390

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J.F.
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Monllllllou e o po\IOtlnfento 11M regi&J de e/nada e midia altitude do amtlt:do de Foà..


nDfim do lkuJo XIY

Os cfrculos slo proporcionais 110 povolmCnfO


Fonte: A. Dufan de Mmluqucr (ver Bibliograf111). O povoamento de 1390 � inferior. em ccn:a
de metade. ao ele 1320, mas adiscribuiç;1o dcmognifa �sensivelmente amcsma inicio do
cb
Kculo (mapa de J. Fleld �urat).
nc � CGIIII'úmO
Tl'tiii.J1Im4la
Este mapa. que resulta de v6rios mapas de B. Voumy (ver Bibliografia) executados sob a
dim:çlo de Ocorps Duby, moslra as rotas c:rfticas c a miJI'IIÇ4o da gente de Montaillou para
o norte c o sul dos Plri!IM Oricnlais.

Segunda Parte

ARQUEOLOG IA DE MONTAILLOU:
DO G ESTO AO MITO

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Capítulo VIII

O GESTO E O SEXO

Os gestos, em primeiro lugar. O meu inventário da actividade


Na primeira parte de Montaillou, aldeia occitana, levei a cabo,
gestual em Montaillou, no quadro mais vasto da cultura ariegense, será
sem mais, uma acçilo de exploração, a partir de algumas grandes clareiras
breve e incompleto. Limitar-me-ei a evocar alguns gestos, na medida
em que a documentação mo permita. uns naturais ou aparentemente
de arroteamento: a visão de conjunto da aldeia, do seu território e da
sua sociedade; o problema fundamental das domus, entre as quais
naturais, outros já mais evidentemente culturais e prefabricados pelo
individualizámos a casa preponderante, a dos Clergue, ela própria
dominada pela personalidade do pároco. A partir daf, subimos até às
grupo. Alguns destes gestos chegaram intactos até à nossa época e
continuam a ser praticados: a sua permanência testemunha a
pastagens de altitude e de transumância que desenham a rede
longa duração dos comportamentos. Outros desapareceram ou
internacional de relações da comunidade: o mundo «encabanado» dos
pastores revelou-nos a simpática figura de Pierre Maury, antitético da modificaram-se.
de Pierre Clergue.
O choro e a alegria
O nosso inquérito, daqui para a frente, vai mudar de estratégia.
Tomar-se-à mais estatigráfico, mais m inucioso, e talvez - mas nem
sempre - menos personalizado. Em vez de percorrer alguns grandes
Ao nfvel das emoções mais simples: choro, alegria... já evoquei, a
sectores, quase todos geográficos - o mundo das domus e o mundo das
cabanes -. dedicar-nos-emos a uma investigaçlo em profundidade. Na propósito de Pierre Maury, a questão do riso e do sorriso. Assim, insistirei
aqui nas lágrimas. As gentes de Montaillou choram nos momentos
mais baixa camada geológica examinaremos, tanto quanto possfvel, o
mundo pontilhoso dos gestos de que é tecida a vida quotidiana. devidos. Talvez tenham mesmo a lágrima mais fácil do que nos nossos
Os problemas da vida amorosa, sexual, conjugal, familiar e demográfica dias, em caso de felicidade ou de desgraça. Chora-se, é certo, na
perspectiva ou na existência de uma desgraça; e pela morte de um ente
vão reter seguidamente a nossa atençilo. Abordaremos francamente,
enfun, o grande processo da cultura e da sociabilidade aldeãs, campestres, querido, particularmente pela de uma criança, mesmo extremamente
nova (1). Quer se seja homem ou mulher, fica-se pálido, treme-se, chora­
populares; com a palavra «cultura)) a ser tomada, bem entendido, na
acepção global que lhe dilo os antropólogos. se, quando se teme ser vftima, uma vez mais, de um acto de espionagem
da Inquisição (11, 227, 279, III, 357). Soluça-se também - segundo a
escala lodl de valores observada entre os pastores-nos casos de traição
de uma amizade ou de uma solidariedade, sobretudo quando estes dois
�o� �ilo acom panhados de ameaças, que fazem prever a detenção pelos
mqu1s1dores. P1crrc Maury, em Montaillou, chora quando, temendo a
repressão, o seu tio Amaud Fauré e o seu concidadão Guillaume Bclot,
1 84 ARQUEOLOGIA DE MONTAILLOU: DO GESTO AO MITO O GESTO E O SEXO 1 85

recusam recebê-lo (sob pretexto de não comprometerem os amigos) e para mostrar o respeito devido a Guillaume Authié, que acaba de descer
quando faltam aos deveres mais sagrados da hospitalidade, do do sótão por uma escada. Pierre Maury levanta-se para saudar os
parentesco, da comunidade (11, 1 74). heréticos que estilo de passagem e oferecer-lhes pilo e leite. No sentido
Guillaume Bélibaste tem a mesma reacção, que é mais wlnerável inverso, Prades 1àvemier, «perfeito» de um certo prestigio, levanta-se
do que se imaginaria, apesar de uma vida agitada - homicldio, amante, para saudar o simples pastor que é Pierre Maury e>. depois senta-se.
migração - que faz dele tudo menos menino de coro. O santo homem Entre iguais, o ccsoerguer-se» é naturaHssimo: uma vez mais Pierre
chora sob o choque, quando Jean Maury (o irmão de Pierre) lhe recusa Maury, sentado num banco, levanta-se com um belo riso, para desejar
uma genuflexão e ameaça mandá-lo prender pela Inquisição: as boas-vindas ao sapateiro Amaud Sicre (11, 28). Levantar-se-iam do
- Se me pedires outra vez parafa:er uma genujlexão, diz Jean a lugar para saudar uma mulher que chegasse? É posslvel, mas não é
Guillaume, mando-te prender (11, 483). certo, sobretudo quando se recorda o forte <<masculinismo» da sociedade
A estas palavras, conta Jean no seguimento da sua narração, o montailunesa. De facto, os ún icos textos que falam de um
herético deixou-me a chorar. .. «soerguimento» deste tipo evocam um perfeito, que se levanta a fim de
Inversamente, uma mulher ariegense chora de alegria ao encontrar fugir de uma mulher, receoso da impureza; ou ainda dois homens bons
um pastor da sua terra, que lhe dá noticias dos entes queridos: que recuam precipitadamente para não roçar os seios de uma camponesa
Encontrei Blanche Marty em Prades (1), conta Pierre Maury, na da nossa aldeia ('). Estamos longe, nestas montanhas, da boa velha
praça da aldeia. Saudei-a e transmiti-lhe as saudações da sua irmã galanteria francesa, ainda por nascer; e mesmo da pura e simples
Raymonde e do «senhor» Bélibaste. Ao ouvir estas palavras, 8/anche <<cortesia» (no sentido em que a entendemos, pelo menos, uma vez que
ficou muito alegre e contente, chorou de alegria e abraçou-me. estes rurais do condado de Foix têm as suas ideias próprias sobre o que
deve ser a cortesia, à moda montailunesa).


Alegrias do encontro; quanto às alegrias da vingança, são
acompanhadas de gesticulações, de acção de graças, os dois braços Ainda sobre a delicadeza: as gentes de Montaillou não têm como
erguidos ao céu, este gesto que tem um significado diferente do que lhe nós o costume de dar um aperto de mão para se saudarem. Após uma
damos na nossa época, quando efectivamente «erguemos os braços ao separação mais ou menos longa, o retomar contacto é assinalado com
céu». Ao passar em Beceile com o gado, conta Guillaume Maurs, simplicidade, pegando na mão: quando subia para os desfiladeiros com
encontrei na rua Emersende Befayt, que me pediu notícias de as ovelhas, afim de ir para a pastagem de Verão, conta Pierre Maury,
Montail/ou. Informei-a de que o pároco Pierre Clergue tinha sido detido encontrei perto de La Palma o herético Flaymond de Toulouse,
por heresia. Ao ouvir isto, Emersende ergueu os braços ao céu, di:endo acompanhado de uma mulher. Estava a orar, segundo o modo herético,
«Deo gratias». Bernard Clergue adopta uma postura análoga, quando entre dois caminhos, atrás de uma pedra. Viu-me e chamou-me.
o informam da detenção dos dois denunciadores do seu innão (1). Quando Dirigi-me logo a ele; saudei-o, como era hábito, pegando-lhe na mão
soube da captura destes dois homens, Bernard Clergue estendeu as (6). o texto de Pierre Maury é claro; indica que o facto de pegar na m!lo
mãos em direcção ao céu, caiu dejoelhos e disse: de alguém para o saudar constitui um uso geralmente aceite; o que
- Estoufelicíssimo: esses dois estão agora atrás das grades. difere, como tal, especificamente dos usos heréticos, como os que dizem
respeito à oraçllo ou à saudação entre os cátaros.
Dellcadeta e saudaçiJes Pega-se na mito de alguém em saudação. Na vida quotidiana,
anda-se familiarmente de braço dado, entre comadres, uma apertando o
Os documentos de Montaillou indicam que certas atitudes de braço da outra, a fim de advertir dos perigos encobertos nos propósitos
delicadeza, ainda hoje praticadas, são muito antigas e que são, por assim de uma terceira pessoa (').
dizer, de orig�m camponesa: as pessoas de Montaillou e os seus
semelhantes têm o hábito de erguer o capuz e de se levantarem, de uma Catamento de piolllos e gestos de lligiene
maneira ainda mais automática do que a actual, para saudar um amigo
ou um simples conhecido, um inferior ou um superior. Toda a t:'U11 ma Dos gestos da sociabilidade e da delicadeza passemos aos da limpeza
I3elot, reunida cm volta do lume, por ocasião de um casamento, se levanta c da higiene, totuhncntc sociável: cm Montaillou, as pessoas pouco se
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1 86 ARQUEOLOGIA DE MONTAlLLOU: DO GESTO AO MITO O GESTO E O SEXO
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1 87
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barbeiam e lavam-se muito pouco; não tomam banho, nem râpida nem , ...
.- . em contrapartida, silo ultra-sumárias, até mesmo inexistentes.
demoradamente; em contrapartida, catam-se muito, o catamento faz · ·' .

Atravessam-se com grande perigo os cursos de âgua, a pé, de barco ou

··f$1�!=-(
parte da boa amizade, herética ou simplesmente agradável e mundana. ,. numa tábua; as pessoas afogam-se, mas não tomam banho, nem nadam.
. .,
Pierre Clergue é catado pelas suas amantes, como Béatrice de Planissoles Pavoneiam-se perto dos banhos de Ax-les-Thermes. Mas é para vender
e Raymonde Quilhou; a operação desenrola-se na cama, ou então ao os carneiros ou para venerar as prostitutas. As termas são, acima de
lume, à janela ou na bancada de um sapateiro ('). O padre aproveita a tudo, reservadas aos leprosos e aos tinhosos.
circunstância para administrar às suas belas amigas lições doutorais Tanto quanto se sabe, a toilette propriamente dita pertence aos
sobre a sua própria maneira de conceber o catarismo e o donjuanismo.
Raymonde Quilhou, catadora oficial da domus Clergue, exerce os seus
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-:::.:.....·.;"i.��.
perfeitos ou pseudo-perfeitos: consideram-na como uma técnica que
utilizam para recuperar a pureza ritual. Quando Guil/aume Bélibaste
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talentos junto do filho e na mlle; cata o padre Clergue, mas também a tocou na carne com as mãos lavou-as três vezes antes de come,. e de
mulher do velho Pons Ctergue, à vista de todos, no solar da porta do
.,.,
bebe,. (li, 3 1 ; I, 325). O grande problema, para Bélibaste, não é tanto a
ostal e, ao mesmo tempo que combate os insectos parasitas, conta os
últimos mexericos da comunidade (11, 223). Os Clergue, notáveis da
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;-_·.:_,
limpeza das mãos, mas o asseio da cara e sobretudo da boca, órgão
abençoador, órgão também de introdução das comidas polufdas no
aldeia, nilo têm dificuldade em recrutar esta ou aquela mulher corpo (11). Não é tanto o exterior do corpo que é necessário ter limpo,
susceptivel, devido a uma perfcia idónea, de os desembaraçar da sua mas o interior; menos a pele do que as entranhas. Será assim tilo absurdo?
; fauna. Bernard Clergue recorreu aos serviços da velha Quillemette Ainda no século XVIII, muitas pessoas julgarão que o facto de espalhar
I
I ccBelote)), Ao sol, na soleira da porta, procura os piolhos na cabeça de
I
à volta de si um forte odor a corpo mal lavado representa, no fim de
Bernard, recomendando-lhe que dê trigo aos perfeitos. Como Bernard contas, (pelo menos nos machos e por definição) um sinal de virilidade
I é um louco apaixonado de Raymonde, a filha de Quillemette, apressa­
j se a obedecer às ordens da sua caladora (II, 276). Em último caso, o
pessoal.
A limpeza em Montaillou, quando existe, ignora as zonas anais ou
I
!
catamento montailunês tem lugar na última sala onde se conversa; para
tal instalam-se ao sol, nos telhados rasos das casas baixas, que são
genitais; lim ita-se às partes do corpo que benzem, manipulam ou
engolem a comida: milos, cara, boca. Dar água para as mãos de uma
l
i
contiguas ou fronteiras. No tempo em que os heréticos dominavam em
Montaillou, conta Vuissane Testani�re, Guillemette «Benete» e Alazars
pessoa é um sinal de delicadeza e de amizade. Aquilo que vale para os
vivos vale para os mortos. Em Montail/ou, diz Alazais Azéma (11), não
, .
Rivesfaziam-se catar ao sol pelas suasfilhas Alazafs Benet e Raymonde
j Rives; estavam as quatro no telhado das suas casas. Eu passava por lá
se lava o corpo dos falecidos, mas espalha-se simplesmente água pela
j: e ouvia-as falar. Guillemelle «Benete» perguntava a Alazai's:
cal'a. Efectuada a limpeza, coloca-se um pano no rosto de defunto
(sempre para afastar a possfvet impureza). Falando, desta vez, de
l - Como se pode chegar a suportar ser dolorosamente queimada
1 abluçõcs de vivos convém ainda notar que apenas os perfeitos usam um
na fogueira? tecido fino para limpar a cara. O vulgum pecus de Montaillou utiliza,
Ao que Alazafs respondeu: na melhor das hipóteses, um pano grosseiro (I, 4 I 6-4 1 7).
Sua grande ignorante! Mas é evidente que é Deus que toma a A inda no capitulo da higiene: as pessoas de Montaittou e da zona
do,. a seu CtugO (I, 462, 463).
-

ariegense ou audense, despem-se para se deitar. Exemplo: Jeanne Befayt,


Notar-se-à que o casamento dos piolhos é sempre executado por numa beta manhã, ameaça gravemente Bélibaste, que sai da cama; deseja
uma mulher, sem que esta seja necessariamente servente de baixo estatuto que o lume da fogueil'a o atravesse pelas costelas. Nada menos que
(Béatrice de Planissoles, pessoa nobre, nilo hesita em dedicar-se a esta isso! (III, 1 75). O santo homem fica apavorado com estes propósitos da
actividade na cabeça de um padre querido). megcra;foge através dos campos, sem sapatos, percorrendo duas léguas
O catamento consolida ou marca os laços de famllia e de ternura; de distância, deixou uma pal'le das vestimentas na cama onde tinha
parece implicar relações de parentesco, ou de aliança, mesmo itegftima. passado a noite. Portaqto, Bélibaste, antes de se enfiar na cama, tinha
A amante cata o amante, assim como a mãe dele. A futura sogra cata o tido o cuidado de se despir: tinha deixado a camisa assim como as
genro prospectivo. A filha liberta a mile dos piolhos. cuecas curtas (II, 33).
É diflcil para nós captarmos hoje o papel afectivo que tinha, nas Porém, quando andava em viagem e era forçado, na estalagem, a
relações humanas, esta fauna parasita que perdemos r>. Digamos que o dormir na mesma cama da sua concubina, Bétibaste dormia todo vestido:
catamento é intenso, feminino c sobrcdctcrminado (10). As lavagens, assim evitava tocar cm Raymondc em carne nua: desta maneira,
1 88 ARQUEOLOGIA DE MONTAILLOU: DO GESTO AO MITO O GESTO E O SEXO 1 89

;• enganava melhor os seus seguidores sobre a sua falsa união. Mas os Um gesto obsceno que também atravessou os séculos. Consiste em
simples pastores ou artesãos não tinham estes motivos nem estes esfregar uma mão na outra (ou uma mão contra o punho) a fim de
escrúpulos hipócritas; é fácil imaginar que dormiam muitas vezes nus. simbolizar o acto sexual. Vejamos este gesto no seu contexto, tal como
Amaud Sicre conta, com efeito, que numa noite, em San Mateo, dormiu é relatado no decurso de uma conversa entre dois camponeses de lignac
na mesma cama com Bélibaste. O santo homem, relata o delator, tinha (vale de Ariêge). A cena é descrita por Raymond Segui, um dos
tirado a camisa, as ceroulas é que não. Este aparte leva·nos a pensar protagonistas do episódio:
que Amaud se tinha mostrado menos pudico, tenOO.se pois despido por - Sabes como é que Deus foi foito, perguntei eu a Raymond de
completo. I 'A ire, de Tignac.
Os habitantes de Montaillou, à noite, tiravam a roupa. De tempos - Deusfoifeito afornicar e a defocar, respondeu-me Raymond de
a tempos mudavam-na. /'A ire, e ao dizer estas palavras, esfregava uma mão na outra.
Pierre Maury, em intervalos muito espaçados, pedia para lhe - As tuas palavras são más, retorqui-lhe. Deveriam matar-te por
enviarem às pastagem, pelo seu irmão Amaud, uma muda de camisa: o proferires tais coisas (H, 1 20).
facto de ter uma camisa nova parece ser suficientemente notável para
que Pierre o anote no seu depoimento (III, 34, t 8 1). Não se sabe a Da emotivitlade ao amor
frequência dos actos da muda e da lavagem de roupa. Raymonde Arsen,
criada em casa dos Belot, faz a barreta das roupas deste ou daquele Subjacente aos gestos, às lágrimas, aos sorrisos, às posturas irónicas
perfeito delicado e talvez também das dos patrões (u). ou obscenas: a emoção. Sobre os problemas da afectividade, mais
precisamente sobre a vida amorosa, sexual e por conseguinte conjugal,
�-.
Gesto obsceno e gesto sagrado
·-
os registos de Pamiers não são avaros em dados. . .·_

O celibato e as «ligações passageiras» caracterizam os guardadores


Os pastores Pierre Maury e Guillaumc Maurs, apesar das suas de gado, ·que apenas ocasionalmente têm uma amiga, por vezes com
simpatias heréticas, fazem regularmente o sinal da cruz sobre a comida fama de puta, nas pastagens e nos burgos. Em Montaillou, colectividade
antes de a ingerir (o mesmo farJo ainda no século XX numerosos de agricultores, a vida dos casais, esfrangalhada algumas vezes pela
camponeses franceses que, com a ponta da faca, «assinalamo a bucha» delinquência sexual, revela-se normalmente complexa; oferece, como
antes de a comer). O gesto da benção do pilo que praticam os homens de era de esperar, todas as variedades de casamento e de concubinato:
Montaillou, não é, no entanto; unânime: Bernard Clergue, bailio da grandes paixões quase trovadorescas; uniões conjugais com ou sem amor;
aldeia, fortemente influenciado pela heresia, recusa-se a fazer o sinal ligações de espera, de venalidade, de hãbito ou por afeição. É somente
da cruz sobre as suas «vitualhas>>. A mesma abstenção, evidentemente, ao nível da cidade que os rapazes de boas familias vindos dos campos
no caso de Guillaume Bélibaste, que pretende ser perfeito: recusa os para estudarem «nas escolas», correm o risco de se ligarem, fora das
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gestos cristãos anteriores à refeição, tilo habituais nos outros rústicos. domus, a algumas redes de homossexualidade que podem funcionar
No entanto, é tal a importância dos gestos da mão que abençoam o nesta época. Essas redes silo mais urbanas do que rurais e mais clericais
alimento que se vai ingerir entre os simples camponeses e pastores, que do que laicas. Sobre este ponto preciso, relativo à homossexualidade
Bélibastc, um bom cátaro, faz um gesto circular por cima do pão, em não aldeã, o registo de Jacques Foumier alarga-se, mais uma vez, à
substituição do sinal da cruz tradicional (1�). biografia psicológica. Vai além de uma simples e seca nota,
As pessoas persignam-se antes de ir para a cama; é preciso ser-se desembocando num verdadeiro estudo de personalidade. Permite, neste
descrente, ou melhor, herético, como Bernard Clergue, para se recusar, caso, a elaboração de um processo homossexual. Permitir-me-ão, nesta
salvo sob constrangimento, a este simples gesto (U, 283). conjuntura especial, sair da minha aldeia de referência: os campos só
No domlnio dos gestos de tro�a anotemos agora, de passagem, o podem ser compreendidos em relação à cidade que os domina; o amor
gesto do ousado pensador Arnaud de Savignan, canteiro: para troçar em Montaillou só se pode descrever se o compararmos com o amor em
das subtilidades de uma profecia apocallptica, proferida sobre a ponte Pamiers, cujas variedades são muito mais diversas. Face à muito relativa
de Tarascon, Arnaud, com um brusco torcer de pulso, tal como ainda inocência campestre, Pamiers é já a Cidade, a grande Babilónia.
hoje o fazemos, revirou a mão =ombcteiramcnte (u) .. . o que lhe valeu, É Sodoma ou mesmo Gomorra.
entre outros motivos, uma incriminação por heresia.
1 96 ARQUEOLOGIA DE MONTAILLOU: DO GESTO AO MITO O GESTO E O SEXO 1 97 :I
facto de eu terfilhos de Bernard Belot, seu primo direito. Impedi, pois, oneroso (o homem paga, a mulher recebe o dinheiro). E, em segundo
Arnaud de atingir os seusfins, apesar de ele não parar de repetir que lugar, o acto em questão deve <<agradar>> aos dois parceiros.
eu não cometia nenhum pecado sefosse para a cama com ele (I, 408). P ierre Vidal é de origem camponesa e de baixa condição.
Esta violação falhada da amante de um primo constitula um ataque aos É almocreve de cereais; os seus diversos interlocutores - padres, mestre
princlpios da proibição do incesto no interior dos ramos da linhagem da escola - tratam-no imediatamente por tu, quer o conheçam quer
mais próximos, embrenhados de alianças concubinárias. Raymonde não, mas o inverso não acontece. Nos diálogos que se estabeleceram
Testanicre ficou traumatizada psicologicamente. Ao ponto de renunciar entre eles, a doutrina oficial da Igreja emana de um grupo de homens
às suas crenças cátaras! Acreditei nos erros dos heréticos, declara, até relativamente cultos, mesmo bem colocados na vida; ao passo que aquilo
que Arnaud J'ital (também cátaro) me tentou violar. Mas, por caiiSa que o condutor de mulas profere (afirmando a inocência do acto sexual
deste incesto, deixei de aderir a esses erros (I, 469). venal e mutuamente consentido), deriva directamente de um velho sa­
Na ausência de violação, procedimento extremo, recorre-se às ber popular e camponês. Também eu experimentei esse «pecado»!,
prostitutas. c certo que de modo algum se pode dizer que abundem declara ironicamente Pierre Vidal. Em Montaillou, as opiniões de Vidal
numa aldeia como Montai llou; tidas como tal não existem. Em são corroboradas pela inocência das respostas da camponesa Grazide
contrapartida, tais oportunidades surgem nas c idades, onde os Lizier, nascida de um ramo bastardo da família Clerguc - quando a
camponeses vão de tempos a tempos, na altura das feiras (:o) ou para interrogam sobre a passada ligação feliz com o padre. Nesse tempo, diz
negócios. Forniquei com prostitutas públicas, roubeifruta. feno e erva ela. (-1), agradava-me assim como ao padre, conhecer-me carnalmente
e ser conhecido por mim; eu niio acreditava que estava a pecar e ele
,

dos prados, revela na confissão um dos penitentes do falso padre Amaud


de Vemiolles. E um outro penitente faz uma declaração um pouco também não. M'u agora. com ele, isso já não me agrada. Portanto,
análoga : forniquei com prostitutas públicas fi= propostas desonestas a
,
daqui para a frente, se ele me conhecesse carnalmetrte, eu acreditaria
mulheres casadas e mesmo a virgens! Andei bêbado algumas ve=es. que estava a pecar.
Menti. Roubei fruta. Uma única personagem, das três cujas confissões Está-se bem longe dos rigores ainda muito prospectivas de uma
Amaud de Vemiolles nos relatou, não se acusa de ter frequentado as Contra-Reforma, que não se irá dar nos tempos mais próximos. No
mulheres venais: roubeifruta e colheitas. Pronunciei pal,rvriJes, atinna interior dos campos, cm Montaillou como cm Lassur, persiste uma certa
este terceiro homem (III, 35, 36, 38). dose de inocência: na opinião de um bom número de pessoas, o prazer
A visita às prostitutas está longe de deparar sempre com fortes não é, por si só, um pecado; se é agradável aos casais, também não é
objecções morais. Pierre Vida!, habitante de Ax-les-Thermes, é de origem desagradável a Deus. Quanto à ideia de que quando se tem prazer,
camponesa (nasceu na aldeia de Pradiêres no actual departamento de pagando, não existe pecado, ela será durante muito tempo difundida na
Ariêge). Ora, a sua tolerância no que diz respeito a venalidade dos área ibérica, da qual Montaillou quase faz parte durante a nossa época.
amores é marcante: Ontem, conta ele, ia de Tarascon a Ax-lcs-Thcrmes Bartholomé Bcnnassar encontrará esta mesma ideia cm numerosos
e condu=ia duas mulas carregadas de trigo. Encontrei um clérigo que camponeses de Espanha, segundo os registos detalhados da Inquisição,
eu não conhecia e caminhámos juntos. Na descida da encosta depois na Idade Modema. A etnologia, muito pouco feminista no que se refere
da aldeia de l.assur, começámos a falar de prostitutas: a este ponto, habituou-nos à ideia de que as mulheres são seres que se
- Se encontrasses uma prostituta, diz-me o clérigo, se troca, da mesma maneira que as palavras ou os signos. Não será então
estabelecesses um preço com ela e em seguidafosses para a cama com ainda «normal» pensar, como o almocreve de Lassur, que o acto sexual
ela, acreditas que cometerias um pecado mortal?... também tem valor de troca, pagável em amor e em prazer, em dinheiro
Respondi-lhe: e em géneros? De qualquer modo, Jacques Foumicr não foi muito
- Não, não acredito. severo relativamente às teorias de Pierre Vidal: o almocreve só passou
Das diversas discussões do mesmo género que Pierre Vidal teve um ano na prisão e foi condenado apenas ao uso das cruzes simples
com outras testemunhas, ressalta que esta personagem está persuadida amarelas.
da inocência de um acto sexual praticado com uma prostituta ou mesmo �
com qualquer outra mulher ( I I I, 296; 11, 246), desde que preencha duas (') 11, 289 (choro de Dcm:lrd Clcrguc pcl3 morte: de seu inmo); 1 1 . 28: choro de: Ull\3
mulher insullnd:l.. 1ra1:11b por c:onc:s:l: 11. 279: lâgrim:JS de mc:do 11:1 prisólll; 11. 280: 1:\grim:�S
de: tk."SSiaç;lo. ibicl. 0.: um modo geral. a ulilil.ó1\:lo de c:upidci� nos liutcr.Jis (ver infrrl, C'lf>.
condições.
Em primeiro lugar, é preciso que o acto seja praticado a titulo XIV) pan:cc: indic:nr ')IIC c:sla civili;r.aç:ll• tem l;igrima.� l:íccis. provavchncnte n1:1is •JUe hoje.
MONTAlLLO
U: 00 G EST
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A LiBIDO DOS CLERGUE 20 I
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Pi=éus• rocfela o concubinato dos clérlgos. A 1 300 metros de altitud
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alimentos ao ponês Bernard
Ay meric, de ão raparigas que passam no caminho da aldeaa. . «A sua vocação
com o cam feição e de paix .
tarde casará enta nto, u m ser cheio de a de é a caça» fl)
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e é, no ardente amiza
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por vezes concretizadas• pe las mnãs ou cu hadas; amante narclsico d �
rm llo lhe r,
osta do seu i á a sua mu . � .
românticas. G aquela que ser
� ':;:�
am en te (1) llou , sua próprta domus tal como Bernard é da uomus da s her; anap':"
a apaixonad em Montai
, como estamOS sfenndo os seus desejos parn nu
.
fraternal. Am ille me tte. E g a; para o casament . e lhlge•

lot. a filha de Gu us da rapari
p.aymonde Be bre toda a dom

i:'bé";�.��:
ediatamente so conquistas; Pie

rgue represenla um caso de don rural.


blemas aos
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este sentiment co raçã o mode lam-se
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Só conheço um lnsu oroso �e Pierre. Tratou-se ' l

impulsos do ilio de Montai/l


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as cas as: eu e aentativa de seduçl d o de uma mediadora, q ue ' �. .


estratégia d ade, e por causa a
imperativos da adora ingenuid
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a m inha m ulher. am ava tudo o que P"'tou ao jogo do cura. E
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l ent. de Gtbett ('� Esta . . '
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à minha sogra
so g ra trnha <(esposada Pi
meai";;: que me esta sobrim,;,_ ! era'; :
ostal da min ha ou
dizia respeito ao pud ess e desagradar ell""a com. ela. E pelo JU ·: :

o� essa razilo. a minha sobrw:/, "á


que ser

_ queria viver com o marido :.


se di:ia à boca cheia na
uma coisa rio sofrer ou
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ostal. Teria p fe
re rido eu próp
IVIa co'!'igo. Um certo dia, dirigi·�e
se u ""' prejuizo do
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causar algum que ser testem
unha
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meus b""' s, Bernard reite
prej udicado nos
sogra (1 1 , 26 9}. E m div ersas passagen
o mesmo te mp o, ao castelo de Montaillou. E a/encontrer, por acaso, o cura· manuou-, J
ostal da m inha
con jug al p or Raym onde ... A an te
'
-me sentar perto dele e dlSSe·me·
lação interess
fi -.ºue pouerei eufazer, se t
do seu amor

a afirmação com o se po de ver, uma re m ãe J d�:es uma única palavra em meu


juga\ implica, ostal da
_ .

este amor con ei a gostar do


ma m ulher, vir
::::. eu a possuir, o mari<h ..:::;:::;;;'.,'',;;:,�:'{'a cornalmenle
avor � tua sobrinha Raymonde; :;:
eu possuir.
e g ost o de u ·
. a
S
com a domus.
la (tendo o pai falecido).
de
·

ao E eu, continua A l azaTs Fauré, respondi a plerre
como sedutor,
que não
ntu do, u m a fraca figura, a o faria nada:
Bernard Clerg
ue, é, co por excelênci
o c ura de Montaillou é um - Arranjai-vos com a mmha .
sobrinha se ela .
ico, Pierre é
rmão Pierre:
ir,
lado do seu i é um romtlnt ��
ergue. Bern ard
Cl ta personagem
, disse·lhe eu. Mas a j á sat feito terd::;:;. �:;:
mulheres d. mlnha'i'!l"i:: :.:::.";.�� Raymonde? Para que�
mulherengo
da ca sa
r a ubiquidade
des � m8 ;,.,
ara de sc re ve tin ha
palav ras p influência
devasso. Faltam rtina. A sua que proclsal� ainda de ter "a . rm�a?... ( ) '
cit ara, d elatora e libe ão do albigism
o
. . A mmha sobrinha conc IUI Alazars, assaltada pelas desonestas
te
simultaneamen de no m o mento da difus .
viu , muito gran as ou três. fo­
sido, como se
u: as as casas de Monta
illou. salvo du
re, orque o padre
propostas do padre' deix�u Mcontaillou e voltou para casa do poi em
em Montaillo ond Vayssi�
tod p
con ta Ray m a
os à3 pessoas
(l, 292). Mas
Géber:.
la heres ia,
ram infestadas pe h eré tic sm o. Estranho pedido verbal·. com a sua habitual malandrice p·lerre
os prose\ iti
reav �dica, como um direito• a v ugmdade de Raymonde Faun!, que o
leu o\ livro d •

Pierre Clergue esta obra de . . . .


Pie rre n ão se limitou a ta im parcialidade
influência de banho , com tan .
�;
seus desejos pelo seu re uma m arido ainda nllo �anha possuldo. Serú qu�. ann ando-se em s en h r · !.
m trota. como
Distribuindo os
va a benção , Pie rre so ube suscitar, e
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local o padre se atnbu la. nessas .
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como quando da a parte dos se o ""''" e paterno. que exerc ia q o a ocasli.lo se apresentava? Est; I
I

a bo
os fav ores de um geral que, nos
chuva de rosas, nf o rtad o p ela tole rânci a
se ntia-se co
nosso ho m em

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