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[2019]
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Página de título
Créditos
Introdução: Stevenson
1. A Praia de Falesá
2. O Demônio da Garrafa
4. O Apanhador de Corpos
5. Olalla
6. Markheim
7. Janet, a Entortada
8. O Médico e o Monstro
9. Neblinas Marítimas
A Aventura da Tradução
Em literatura, não existe geração espontânea. Os textos mais orgânicos
e fluídos nada têm de aleatório; na verdade, talvez sejam orgânicos e
fluídos exatamente por não serem aleatórios. Mesmo assim, não é inco-
mum que na gênese da obra literária esteja um sonho ou um pesadelo.
Sem pensar muito, podemos citar, na literatura inglesa, a novela O Mé-
dico e o Monstro, aqui publicada; o romance Frankenstein, de Mary
Shelley; o poema inconcluso “Kublai Khan”, de Samuel Taylor Cole-
ridge. Supõe-se, das fabulações sobre essas obras, que elas, como que
por algum sopro angelical, foram inseridos na mente dos seus criadores.
A ideia é perigosa; primeiro, por trazer a impressão de que a veloci-
dade é, em si, um valor — e no mais das vezes ela gera apenas aberra-
ções; segundo, por sugerir que a escrita seja privilégio de iluminados.
Evidentemente, são raros aqueles capazes de produzir obras-primas,
porém isso não se deve ao fato de serem iluminados; exatamente o con-
trário: poucos produzem obras-primas porque a literatura é construção.
Uma criança superdotada poderá pintar retratos com maestria, um
autista será capaz de dominar o violino, mas jamais escreverão um gran-
de romance; em literatura, quando muito, surge um gênio adolescente
— o exemplo imediato é Arthur Rimbaud, arquétipo do enfant terrible
(criança terrível), como os franceses designam talentos precoces e rebel-
des. Evidentemente, a grande ideia, a sagacidade, não é privilégio dos
escritores, e talvez um açougueiro ou um jogador de futebol que jamais
tenha lido um livro profira uma frase que fique na História por sua sa-
gacidade, ou até mesmo tenha ideia para um enredo magnífico; mas eles
jamais sairiam com um grande romance da noite para o dia, gerado por
seus sonhos.
Uma boa ideia não é mais que o primeiro degrau de uma escadaria
interminável. Narra-se com sabor os relatos de produção febril, dos li-
vros de sonho acima mencionados, a epifania de Fernando Pessoa, Jack
Kerouac massacrando a sua máquina de datilografar, O Jogador sendo
escrito em um mês, para Dostoiévski cobrir suas dívidas. No entanto,
na história da criação literária é feito vista grossa para os oito anos de
gestação de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, os dez demorados
anos de Guerra e Paz, de Liev Tolstói, as décadas de Memórias de Adri-
ano, de Marguerite Yourcenar; e mesmo no caso das obras sonhadas, ig-
nora-se todas aquelas horas silenciosas vividas por seus autores, horas
de leitura, de tentativa e erro, de maturação das ideias, de angústia, ho-
ras de trabalho não remunerado, não reconhecido, horas que antecede-
ram o nobre momento da produção concentrada e veloz. Muitas vezes
esse trabalho é apagado pelas intempéries da História, por quem deseja
vender uma narrativa, às vezes pelos próprios escritores, que talvez pre-
firam passar a imagem de únicos e geniais, em detrimento da figura de
reles operários das artes escritas. É importante ressaltar isso aqui, por-
que, do mesmo modo, não existe tradução espontânea.
O primeiro desafio de se traduzir Stevenson é a relação com todas as
suas traduções anteriores. Ainda que não tenham sido necessariamente
consultadas, antecede este projeto a leitura de algumas versões de O
Médico e o Monstro e de vários dos contos aqui presentes, publicadas
em antologias de horror, de mistério, de textos borgianos. O Médico e o
Monstro, por exemplo, faz parte do imaginário coletivo; é inevitável que
se conheça alguma de suas adaptações, homenagens, paródias, ou, ao
menos, seu enredo. O confronto com essas versões já começa no pró-
prio título. The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde é popularmen-
te conhecido no Brasil como O Médico e o Monstro, ainda que existam
traduções mais literais. Por não se anularem, não causar eco e nem se-
rem redundantes, optou-se aqui por manter as duas opções, O Médico e
o Monstro, sua forma consagrada, seguida de um subtítulo, O Estranho
Caso do Dr. Jekyll e o Sr. Hyde, tradução mais próxima do título origi-
nal.
Aprofundando-se mais, talvez o maior desafio desta tradução foi a
tentativa de se apresentar um texto em português que unisse a precisão
e o cálculo com esse sabor romanesco, fluente e popular, tão celebrado
chez Stevenson — a mot juste, a palavra exata, a serviço da rapidez —,
numa prosa que recriasse suas idiossincrasias estilísticas e que não soas-
se demasiado contemporânea. Como nos mostra Borges em “Pierre
Menard, autor do Quixote”, ou Roland Barthes em “Romanos no Ci-
nema”, por mais cuidadoso que seja o criador, seria impossível não dei-
xar pegadas de contemporaneidade nesta tradução. Na pior das hipóte-
ses, muda-se o contexto no qual estas histórias serão lidas. Mesmo as-
sim, é possível manter certo controle.
Embora muitos de seus personagens de outros países basicamente se
comuniquem em seus próprios idiomas, Stevenson é quem conta — em
seu próprio idioma; ou seja, apesar de os diálogos estarem em inglês,
pontuados aqui e ali com estrangeirismos, sabemos que, dentro da his-
tória, Felipe fala em espanhol, Keawe em nativo. Stevenson às vezes su-
gere idiomas, sotaques e dialetos com discretas expressões e alterações
sintáticas inseridas nas falas ou na narração, sem itálico, como “señor” e
“kanaka”, e outras nem tão discretas: o escocês dr. Macfarlane mencio-
na uma “auld lang syne”, e a samoana Uma explica que “God he big
chief, got too much work”; no conto “Janet, a Entortada” (Thrawn Ja-
net), isso é escancarado:
When folk tauld him that Janet was sib to the deil, it was a’ supers-
tition by his way of it; an’ when they cast up the Bible to him an’
the witch of Endor, he wad threep it doun their thrapples that thir
days were a’ gane by, and the deil was mercifully restrained.[5]
Esse conto é a concretização do desejo pessoal de Stevenson de escrever
no dialeto escocês, o que explicita em carta a Henry James datada de 23
de dezembro de 1886: “Estou pensando em um volume de versos, boa
parte deles será cunhado com minha fala natal, aquela linguagem obscu-
ra e oracular: suponho que isso seja uma loucura, mas e aí?”.[6] Por ser
um dos mais famosos contos de horror de Stevenson, ele se fez indis-
pensável a esta antologia.
São várias as abordagens possíveis para a tradução desse conto: uma
delas seria transformá-lo em prosa corrente, em essência, nada diferente
dos outros deste volume; no entanto, nas coleções consultadas para esta
tradução, estava apresentado no original, em scots, acompanhado de
glossário, e tal abordagem foi descartada. Note-se, que essa não seria
uma opção “errada”, e que seria completamente justificável, não fosse o
interesse, como dito antes, de se recriar as idiossincrasias estilísticas, os
“ruídos” linguísticos que Stevenson usa para destacar a diferença.
Restava, portanto, tentar recriá-lo em português com sua devida
oralidade. Abre-se com essa escolha, mais algumas possibilidades: é
possível tentar criar um texto que ecoasse nossa fala, um tanto herméti-
co, à maneira de Macunaíma, de Mário de Andrade, Sargento Getúlio,
de João Ubaldo Ribeiro, de todo o Guimarães Rosa, e ainda de nossas
traduções de James Joyce e Anthony Burgess, algo que talvez requeres-
se um glossário para ser compreendido. Nossa última edição de O Som
e Fúria, de William Faulkner, seguida dos comentários do tradutor Pau-
lo Henriques Britto, serviu de estrela-guia para a transcriação de
“Thrawn Janet”: optou-se por um texto oralizado, com marcações de
diversas regiões, alternando-se palavras inusitadas com corriqueiras, de
acordo com uma lógica sintática própria, mas de modo geral compreen-
sível. Talvez um termo ou outro escape ao leitor, e isso é uma das inten-
ções, mas não precisará de glossário para entender:
Quando as pessoa contaro pra ele que Janet era mancomunada
com o cramunhão, ele deixou isso pra lá como se fosse super’tição;
e quando eles mostraro a Bíblia pr’ele e a bruxa de Endor, ele res-
pondia pra eles que aqueles dia tinha se acabado, e que o cramu-
nhão tinha sido controlado pela fé.
É preciso ainda ressaltar que as notas aqui presentes são instrumento
para o enriquecimento da leitura, não auxílio indispensável para a com-
preensão, e as histórias poderão ser lidas sem sua consulta. Tentou-se
que todas as questões — as blagues, os jogos linguísticos, os sotaques,
as alterações sintáticas, os versos, os trocadilhos, os estrangeirismos, em
suma, tudo o que se apresentasse como um desafio específico, para além
daquele que é verter histórias consagradas, populares, constantemente
retraduzidas, e, de modo geral, para além do desafio que é verter qual-
quer texto literário a outro idioma — que fossem resolvidas no texto
em si.
O Lado Escuro
Este livro inclui um volume de contos em sua forma integral, Entreteni-
mentos das Noites nas Ilhas, a novela O Médico e o Monstro, e mais
quatro contos “soltos”, “O Apanhador de Corpos”, “Markheim”, “Ja-
net, a Entortada” e “Olalla”; todos os contos foram primeiramente pu-
blicados em revistas e periódicos antes de Stevenson reuni-los, com ex-
ceção de “O Apanhador de Corpos”, que só saiu em livro após sua
morte. Os outros três contos soltos entraram no volume The Merry
Men, cuja heterogeneidade é ressaltada por seu próprio criador:
Stevenson sentia que eles formavam um grupo bem “esquisito”.
Sua Nota aos leitores declarava que “os contos aqui presentes
compõem um conjunto um tanto desigual” […] Pouquíssimos lei-
tores compartilhavam de sua alta estima por “Will o’ the Mill”, mas
muitos elogiaram “Janet, a Entortada” e “Markheim”.[7]
Esses três contos, portanto, foram selecionados por representarem pon-
tos altos na literatura clássica de horror.
•••
Sem qualquer dúvida, o texto mais conhecido deste livro é O Médico e
o Monstro; simbólico, metafórico, polifônico, plural, infinito, essa nove-
la mostra a trágica história do Dr. Jekyll, que produz um composto ca-
paz de separar de seu corpo a sua parte má, personificada no Sr. Hyde,
sujeito atarracado que desperta a repulsa em qualquer um que olhe para
ele. O horror em O Médico e o Monstro é potencializado por ser conta-
do a partir de diversos pontos de vista, com trechos em primeira e ter-
ceira pessoa, seja pela jovem que presencia um assassinato, seja pelos
testemunhos legados pelo Dr. Lanyon e pelo próprio Dr. Jekyll em con-
traste com as desventuradas suspeitas do advogado Utterson, que igno-
ra que Jekyll e Hyde são a mesma pessoa. O Médico e o Monstro tem o
seu horror intensificado aos olhos desse advogado, talvez o olhar dos
primeiros leitores da novela (uma vez que essa dualidade é revelada ape-
nas no final), e esse é um exercício possível aos que a lerão pela primeira
vez.
Os “contos soltos” desta coleção estão entre os mais brilhantes
exemplares de ficção de horror do século XIX. “O Apanhador de Cor-
pos” é inspirado no célebre caso de Burke e Hare, serial killers escoce-
ses que matavam para fornecer cadáveres a um professor de anatomia.
Em “Markheim”, conto de horror psicológico, Stevenson evoca alguns
dos grandes assassinatos ingleses do século XIX para narrar o desespero
de um homicida imediatamente após o seu ato. “Janet, a Entortada” é
exploração linguística que, se em primeiro plano conta uma história de
possessão demoníaca, mais a fundo sugere quão terrível pode ser uma
multidão assustada e supersticiosa, mal que afligira a Europa durante a
Inquisição, e atualmente apenas mudou de forma. “Olalla” é o soturno
relato do enfermo que decide passar uma temporada na villa de uma
nobre, porém decadente família espanhola. Se fosse original dos dias de
hoje, talvez seu horror atmosférico e sugestivo pudesse ser classificado
com “pós-terror”.
Abre este volume o livro Entretenimentos das Noites nas Ilhas, cole-
ção de histórias escritas e passadas em ilhas do Pacífico, onde Stevenson
viveu os seus últimos anos. “A Praia de Falesá” é uma novela sobre o
comerciante britânico que desembarca numa ilha e deve enfrentar um
conterrâneo ardiloso e inescrupuloso. “O Demônio da Garrafa” é a re-
visitação da história da lâmpada dos desejos; mas aqui os desejos são ili-
mitados, e aquele em posse da garrafa deve se livrar dela antes da morte,
sob o risco de padecer eternamente no inferno. “A Ilha das Vozes” é a
aventura de Keawe e seu sogro, o feiticeiro Kalamake, em uma ilha on-
de o dinheiro é literalmente catado na praia, como conchas.
Dada a heterogeneidade dos contos e novelas aqui apresentados, o
leitor poderá se perguntar se existe alguma relação entre eles. No mes-
mo volume, estão presentes contos de ambientação urbana, noturna, in-
vernal, como O Médico e o Monstro e “Markheim”, em contraponto
com os solares e marítimos Entretenimentos das Noites nas Ilhas. Alte-
rados os critérios de relação, podemos contrapor contos explicitamente
fantásticos como “A Ilha das Vozes”, “O Demônio da Garrafa” e O
Médico e o Monstro, com “A Praia de Falesá” e “O Apanhador de Cor-
pos”, mais calcados no realismo. Pode-se alternar ainda textos de hor-
ror com os de outros gêneros, os contos britânicos com os de outros
países; os personagens anglófonos com os nativos de outros idiomas; há
sempre um contraste possível. Sendo assim, o que têm em comum essas
histórias aqui apresentadas?
A resposta, de certa forma, está implícita nos comentários à obra fic-
cional de Stevenson. Davi Arrigucci Jr., por exemplo, ao discorrer sobre
a narrativa romanesca ressalta que “um de seus polos permanentes de
atração é o sonho sem fundo das descidas do homem ao inferno da divi-
são e da duplicidade do ser”.[8] Jane Rogers vaticina que “o esnobismo,
a ganância e a crueldade dos brancos, a hipocrisia religiosa e a eventual
destruição das culturas e vidas nativas, tudo é grão para o moinho de
Stevenson”.[9] Barry Menikoff, na introdução do volume que serviu de
base para esta tradução, afirma ser inquestionável que “a natureza do
mal é um dos maiores temas de Stevenson, de suas primeiras obras ficci-
onais aos textos que deixou inacabados”.[10]
Assim, podemos afirmar que esses relatos estão unidos por nos
apresentarem a morte, a influência do acaso, as facetas obscuras do ser
humano — o mal herdado, o mal induzido, o mal inconsciente, o mal
puro. Obviamente, os personagens têm desígnios e motivações que não
nos são completamente explicitados, e não raro, como também é na vi-
da, podem ter mais de uma motivação, podem se contradizer, podem
mentir. De qualquer maneira, não é ilícito afirmar que em “O Apanha-
dor de Corpos”, “Markheim”, “A Praia de Falesá”, “A Ilha das Vozes”,
o princípio-motor do mal é a ganância, a ira, o desprezo; já em “Olalla”
temos o orgulho, a tradição, a ignorância; em “Janet, a Entortada”, a su-
perstição, o medo, o diferente, Satã em pessoa; em O Médico e o Mons-
tro, o vício e a busca pelo prazer; e até mesmo o amor pode desvelar es-
se lado obscuro, em “O Demônio da Garrafa”. As diversas facetas do
mal e as maneiras de se combatê-las — eis, portanto, o que define este
volume.
ENTRETENIMENTOS DAS NOITES NAS ILHAS
A PRAIA
DE FALESÁ
ROBERT LOUIS STEVENSON
1891
CAPÍTULO I
UM CASAMENTO NO MAR DO SUL
Na primeira vez que vi a ilha não era nem noite nem manhã. A lua esta-
va ao oeste, sumia, mas ainda grande e brilhante. A leste, e à direita, a
meia-nau do alvorecer, completamente rosado, a estrela do dia reluzia
como diamante. A brisa terrestre assoprava em nossos rostos e exalava
forte odor de coentrilho e baunilha: além de outras coisas, mas essas
eram as mais evidentes; e o frio me fez espirrar. Devo falar que antes ha-
via passado anos numa ilha baixa próxima da linha do equador, vivia a
maior parte do tempo sozinho entre os nativos. Já aquela era experiên-
cia nova; mesmo com a língua muito diferente para mim; e a vista da-
quelas matas e montanhas, e seu raro odor, renovaram o meu sangue.
O capitão assoprou o lampião da caixa da bússola.
“Ali”, disse, “ali há um pouco de fumaça, sr. Wiltshire, depois da
quebra do recife. É Falesá, onde fica a sua estância, a última povoação
ao leste; ninguém vive a barlavento, não sei por quê. Pegue minha lune-
ta, e poderá ver as casas.”
Peguei a luneta; e a enseada se aproximou de vez, e vi o emaranhado
da mata e a quebra da rebentação, e os tetos amarronzados e os interio-
res negros das casas entrevistas em meio às árvores.
“Você consegue ver um pouco de branco ali ao leste?”, prosseguiu o
capitão. “É a sua casa. Feita de coral, de pé alto, varanda que três podem
andar um ao lado do outro: a melhor estância no Pacífico Sul. Quando
o velho Adams viu, segurou e balançou a minha mão; ‘Eu me deparei
com uma coisa boa aqui’, disse. ‘Você também’, digo, ‘e com tempo
também!’ Pobre Johnny! Nunca o vi novamente, depois daquela vez, e
então mudou o tom — não conseguiu se entender com os nativos, ou os
brancos, ou nada; e na vez seguinte que viemos nessas redondezas, esta-
va morto e enterrado. Peguei e ergui um mastro para ele: ‘John Adams,
óbito em mil oitocentos e sessenta e oito. Vá e faça o mesmo’. Senti falta
daquele homem; nunca via maldade em Johnny.”
“Do que ele morreu?”, indaguei.
“Alguma espécie de doença”, disse o capitão. “Aparentemente o pe-
gou de súbito. Parece que se levantou de noite, se encheu de Anestési-
cos e da Descoberta de Kennedy:[1] sem chances — não podia tomar
Kennedy. Então, tentou abrir a caixa de gim; sem chances também —
não tinha força o bastante. Então, deve ter se virado e corrido na varan-
da, e passado por cima do corrimão. Quando o encontraram no outro
dia, estava completamente louco — repetia o tempo inteiro alguma coi-
sa sobre alguém molhar a copra. Pobre John!”
“Alguém pensou que foi por causa da ilha?”, perguntei.
“Bem, alguém pensou que foi por causa da ilha, ou do problema, ou
alguma coisa”, respondeu. “Nunca ouvi falar outra coisa além de que
era lugar saudável. Nosso último homem, Vigours, não moveu uma pa-
lha. Saiu por causa da praia; alegou temer Black Jack e Case e Whistling
Jimmie, ainda vivo na época, mas se afogou logo depois, bêbado. Quan-
to ao velho capitão Randall, está aqui desde mil oitocentos e quarenta,
quarenta e cinco. Nunca vi maldade em Billy, nem muita mudança. É
como se quisesse viver para ser a velha Kafoozleum.[2] Não, creio que
seja saudável.”
“Mas agora há um barco a caminho”, disse. “Está exatamente na
passagem; parece um baleeiro de cinco metros; dois brancos nas velas da
popa.”
“Esse é o barco que afundou Whistling Jimmie!”, exclamou o capi-
tão. “Passe-me a luneta. Sim: é Case, sem dúvidas, e o escurinho. Têm a
má reputação das galés, mas sabe como a praia é lugar de conversa. Mi-
nha opinião é que Whistling Jimmie era o pior do problema; e alcançou
a glória, vê. Quer apostar que estão atrás de gim? Aposto cinco contra
dois que levam seis caixas.”
Quando esses dois comerciantes subiram a bordo, me agradou de
imediato a sua aparência; ou melhor, a aparência de ambos, e a conversa
de um. Estava louco pela companhia de brancos após quatro anos na li-
nha do equador, que sempre contei como anos de prisão; receber um ta-
bu e se dirigir até a assembleia para ver e retirá-lo; comprar gim, e tirar
folga, e então se arrepender; sentar-se em casa durante a noite com o
lampião de companhia; ou andar na praia e pensar em como era tolo
por me dispor a ficar em tal lugar. Não havia outro branco na ilha; e
quando naveguei até a próxima, a maior parte de minha companhia era
de clientes grosseiros. Então, ver aqueles dois que subiam a bordo era
agradável. Um, na verdade, era um negro; mas os dois estavam bem ar-
rumados em pijamas[3] listrados e chapéus de palha, e Case seria dispen-
sado na inspeção urbana. Era amarelado e baixo; tinha nariz de falcão,
olhos opacos, e a barba aparada à tesoura. Homem algum sabia o seu
país de origem, apenas que era de língua inglesa; e era evidente que vi-
nha de boa família e era esplendidamente educado. Também era talento-
so; tocava acordeão com habilidade; e lhe dê um barbante ou rolha ou
jogo de cartas, e poderia lhe mostrar truques iguais aos de profissional.
Quando quisesse, era capaz de manter conversa adequada para a sala de
estar; e quando quisesse podia proferir blasfêmias piores que as de con-
tramestre ianque e falar obscenidades capazes de repugnar um kanaka.
O seu modo de pensar se adequava ao momento da melhor maneira, es-
se era o perfil de Case; e isso sempre lhe pareceu vir naturalmente, co-
mo se fosse nascido assim. Tinha coragem de leão e sagacidade de rato;
e se hoje não está no Inferno, esse lugar não existe. Mas sei de uma ca-
racterística do homem; gostava da esposa e era gentil com ela. Era mu-
lher de Sāmoa, e pintava o cabelo de vermelho, o estilo de Sāmoa; e
quando ele veio a morrer (o que haverei de narrar), encontraram uma
coisa estranha, que havia feito testamento como cristão e que a viúva fi-
cou com tudo. Tudo o que era dele, disseram, e tudo o de Black Jack, e
a maioria do que era de Billy Randall estava incluído no negócio; pois
era Case que ficava com os livros. E, assim, ela foi para casa na escuna
Manu’a, e até hoje é a senhora de seu próprio lar.
Mas de tudo isso, naquela primeira manhã, não sabia mais que mos-
ca. Case me tratou como cavalheiro e amigo, me deu as boas-vindas a
Falesá, e deixou os seus criados à disposição, o que me era bastante útil
devido a meu desconhecimento do idioma nativo. Por todo o começo
daquele dia, nos conhecemos melhor ao beber na cabine, e nunca ouvi
alguém falar mais certeiramente. Não havia comerciante mais esperto, e
nem mais arisco, nas ilhas. Eu me lembro do breve conselho que deu
aquela manhã, e da história que contou. O breve conselho era o seguin-
te. “Sempre que tiver algum dinheiro em mãos”, disse, “qualquer di-
nheiro cristão, digo — a primeira coisa a fazer é zarpar para Sydney e
colocá-lo no banco. Não passa de tentação para os mercadores de co-
pra; um dia, vai para a galeria com outros comerciantes, e tirará a pró-
pria camisa para comprar copra com ela. E o nome do homem que usa
ouro para comprar copra é Imbecil”, disse. Esse foi o conselho, e esta
foi a história, que poderia ter aberto os meus olhos para o perigo da
companhia daquele homem, caso suspeitasse de qualquer coisa. Apa-
rentemente Case comerciava em algum lugar das Ilhas Ellices. Havia
um homem chamado Miller, holandês por lá, que mantinha os nativos
com mão firme e comandava a massa do que fosse. Então, um belo dia,
uma escuna naufragou na lagoa, e Miller a comprou (à maneira como
geralmente se lida com essas coisas) por pechincha, o que foi a sua ruí-
na. Por ter em mãos muitos negócios que não lhe custavam praticamen-
te nada, o que faz, se não cortar as taxas? Case se aproximou de outros
comerciantes. “Quer abaixar os preços?”, diz Case. “Tudo bem, então.
Haverá de compensar cinco vezes para qualquer um de nós; e se com-
prar com prejuízo é o lance, perderá cinco vezes mais. Mostremos a ele
o fundo do poço; afundemos o⸻!” E assim fizeram, e cinco meses
depois, Miller teve de vender o barco e a estação, e recomeçar em algum
lugar nas Carolinas.
Toda essa conversa me interessava, e minha nova companhia me in-
teressava, e achei que Falesá parecia ser o tipo de lugar ideal; quanto
mais bebia, mais leve ficava o coração. Nosso último comerciante havia
fugido do lugar com aviso prévio de meia hora, adquiriu passagem ao
acaso para o navio de trabalhadores no oeste; o capitão, quando chegou,
havia encontrado a estação fechada, as chaves entregues ao pastor nati-
vo, e a carta do fugitivo confessava que temia bastante pela vida. Desde
então, a firma não estivera representada e evidentemente não tinha car-
gas; além disso, o vento estava favorável, o capitão esperava poder che-
gar no alvorecer do dia seguinte, com boa maré; e a tarefa de desembar-
car minha mercadoria estava um tanto empolgante. Não tinha necessi-
dade de perder tempo com isso, disse-me Case; ninguém tocaria em mi-
nhas coisas, todos eram honestos em Falesá, exceto algumas galinhas,
alguma faca diferente ou maço de tabaco estranho; e o melhor que po-
dia fazer era me sentar calmamente até a embarcação partir, então seguir
diretamente até a sua casa, ver o velho capitão Randall, o patriarca da
praia, participar da refeição coletiva, e voltar para casa dormir quando
escurecesse. Era meio-dia em ponto, e a escuna seguiu o caminho,
quando pus os pés na enseada de Falesá.
Tomei uns dois copos a bordo, acabara longo percurso, e o chão se
movia sob mim como o deque de navio. O mundo parecia recém pinta-
do; meu pé acompanhou a música; Falesá poderia ser Fiddler’s Green,[4]
caso tal lugar exista, e que grande pena se não existir! Foi gostoso pisar
na grama, olhar para as montanhas verdejantes acima, ver os homens
com as grinaldas verdes e as mulheres com os brilhantes vestidos ver-
melhos e azuis. Seguimos em frente, sob o sol forte e a sombra fresca, e
aproveitamos ambos; e todas as crianças da cidade trotaram atrás de nós
com as cabeças raspadas e os corpos morenos, e levantando os queixos
finos à nossa aproximação, como aves a cacarejar.
“Por sinal”, fala Case, “precisamos lhe arranjar uma esposa.”
“É verdade”, disse, “havia me esquecido.”
Havia uma multidão de moças em volta de nós, então me levantei de
vez e olhei para elas como um paxá. Estavam todas arrumadas por oca-
sião da chegada do navio; e as mulheres de Falesá eram muito agradá-
veis de se ver. Se têm algum defeito, são um pouquinho cadeirudas; e
pensava exatamente nisso quando Case tocou em mim.
“Aquela é bonita”, diz.
Vi uma sozinha do outro lado. Pescava; não usava mais que o vesti-
do minúsculo, completamente encharcado. Era jovem e bastante magra
para uma donzela da ilha, com rosto comprido, testa alta e olhar perspi-
caz, estranho e opaco, entre o de gato e o de bebê.
“Quem é ela?”, disse. “Ela serve.”
“Aquela é Uma”, disse Case, então a chamou e conversaram no idi-
oma nativo. Não sei o que ele disse; mas quando estava no meio, ela
olhou para mim rápida e timidamente, como criança que desvia de pan-
cada; então desviou os olhos novamente; e logo sorriu. Possuía boca
larga, os lábios e o queixo entalhados como os de estátua; e o sorriso su-
miu por um momento e desapareceu. Ali ficou com a cabeça curvada e
ouviu Case até o fim; e respondeu na bela voz polinésia, olhou direta-
mente em seu olho; escutei responder de volta; e então começou a sair
em obediência. Vi apenas um pouco de seu cumprimento, mas não tive
outro vislumbre do olho; e não houve mais palavra de sorriso.
“Creio que está tudo certo”, disse Case. “Acho que poderá ficar
com ela. Acertarei com a mãe. Poderá ficar com a sua parte por um blo-
co de tabaco”, completou, com sorriso zombeteiro.
Suponho que foi o sorriso que ficou na lembrança, pois respondi
afiado. “Ela não parece esse tipo”, exclamei.
“Não sei o que ela é”, disse Case. “Acredito que seja certa como o
correio. Fica sozinha, não anda com a choldra, essas coisas. Oh, não,
não me entenda mal — Uma é correta.” Falou ansioso, pensei, e aquilo
me surpreendeu e me agradou. “Na verdade”, prosseguiu, “não estou
tão certo de que ficará com ela, apenas se gostar do corte de sua lança.
Tudo o que precisa fazer é continuar na sombra e me deixar trabalhar
com a mãe ao meu próprio modo; e trarei a garota para se casar na casa
do capitão.”
Não me importava com a palavra casamento, e o mencionei.
“Oh, não há nada de mal no casamento”, disse ele. “Black Jack é o
capelão.”
A essa altura a casa podia ser vista por esses três homens brancos;
pois um negro conta como branco — e um chinês também! Uma ideia
estranha, mas comum nas ilhas. A pousada tinha varanda comprida e
precária. A loja era voltada para a frente, com balcão, balanças e paupér-
rimo mostruário de produtos: uma ou duas caixas de carnes enlatadas;
um barril de pão duro; alguns rolos de produtos de algodão, nada com-
paráveis aos meus; a única coisa bem representada era o contrabando —
armas de fogo e bebida. “Se esses forem os meus únicos rivais”, pensei,
“não terei problemas em Falesá.” Na verdade, ali estava a única maneira
que podiam tocar em mim, e era com as armas e a bebida.
No quarto dos fundos estava o velho capitão Randall, acocorado no
chão ao modo dos nativos, gordo e pálido, nu da cintura para cima, gri-
salho como texugo e olhos pesados pela bebida. Seu corpo era cheio de
pelos grisalhos e estava coberto por moscas; uma estava no canto do
olho — e ele não se dava conta; e os mosquitos zumbiam como abelhas
a sua volta. Qualquer homem de cabeça boa, teria levado a criatura para
fora de uma vez e a enterrado; e vê-lo, e pensar que tinha setenta anos, e
lembrar que chegou a comandar um navio, e a desembarcar em trajes
elegantes, e a se vangloriar em bares e consulados, e a ficar em varandas
de clubes, me deixou enjoado e sóbrio.
Tentou se levantar quando cheguei, mas era impossível; então me es-
tendeu a mão e tropeçou na saudação.
“Papa está bem encharcado hoje”, observou Case. “Tivemos epide-
mia aqui; e o capitão Randall toma gim como profilático — não é, Pa-
pa?”
“Nunca tomei um negócio desses na vida!”, gritou o capitão, indig-
nado. “Tomo gim por causa da saúde, sr. Sei-lá-o-seu-nome. É uma me-
did’e precaução.”
“Tudo bem, Papa”, disse Case. “Mas o senhor terá de melhorar. Ha-
verá casamento, o sr. Wiltshire aqui entrará em união.”
O velho perguntou com quem.
“Com Uma”, disse Case.
“Uma?”, exclamou o capitão. “Pra que é que ele quer Uma? E, por
sinal, veio aqui por causa de minha saúde? Pra que diabos ele quer
Uma?”
“Melhore, Papa”, disse Case. “N’é o senhor quem vai se casar com
ela. Creio que o senhor não seja nem padrinho nem madrinha dela;
acredito que o sr. Wiltshire gostará.”
Com isso, se desculpou comigo por ter de ir cuidar do casamento, e
me deixou sozinho com o pobre miserável do seu parceiro e (para falar
a verdade) seu bobo. Tanto o comércio como a estação pertenciam a
Randall; Case e o negro eram parasitas; rastejavam e se alimentavam de-
le como as moscas, ele igualmente tolo. Na verdade, não tenho nada de
ruim a dizer de Billy Randall, além de que o meu refluxo subia por sua
causa, e que o tempo que passei em sua companhia foi um pesadelo.
O quarto era sufocante e cheio de moscas, pois a casa estava suja e
era baixa e pequena, e ficava em lugar ruim, atrás da vila, nos limites da
mata, e protegida do comércio. As camas dos três homens eram no
chão, e havia bagunça de panelas e louça. Não havia mobília de pé, pois
Randall, enfurecido, a destruíra em pedaços. Ali me sentei, e comi a re-
feição servida pela esposa de Case; e ali fui entretido durante todo o dia
por aquele resquício de homem, sua língua embolada com velhas piadas
sujas e velhas histórias longas, e a própria gargalhada ofegante sempre
pronta, de modo que não tinha nenhuma noção de meu desagrado. Be-
bericou gim o tempo inteiro; às vezes caía no sono e despertava nova-
mente, aos soluções e com tremedeira; volta e meia me perguntava por
que diabos queria casar com Uma. “Meu amigo”, disse a mim mesmo o
dia inteiro, “você não deve se tornar um cavalheiro como esse.”
Talvez fosse quatro da tarde, quando a porta dos fundos se abriu
lentamente, e uma nativa velha e estranha se arrastou para dentro da ca-
sa quase que de barriga. Estava envolta em coisas pretas até os calcanha-
res; o cabelo tinha tufos grisalhos, o rosto era tatuado, o que não era co-
mum naquela ilha; seus olhos eram grandes e brilhantes e insanos. Ela
os fixou em mim com expressão acaçapada que notei ser em parte ence-
nação; não dizia palavra clara, mas estalava e resmungava com os lábios,
cantarolava alto como criança diante do pudim de natal. Atravessou a
casa direto até mim, e assim que chegou ao meu lado, pegou a minha
mão e ronronou e sussurrou nela como um grande gato. Depois, come-
çou uma espécie de canção.
“Quem diabos é ela?”, exclamei, pois aquilo me incomodava.
“É Faavao”, diz Randall, e vi que havia atravessado o aposento para
o recanto mais distante.
“O senhor não tem medo dela!?”, exclamei.
“Eu, medo?”, gritou o capitão. “Meu caro, eu a desafio! Não permi-
to que ponha um pé aqui. Mas acho que hoj’é diferente por conta do ca-
samento. Ela é a mãe d’Uma.”
“Bem, supondo que seja, o que está fazendo?”, perguntei, mais irri-
tado, talvez mais preocupado do que me importei em saber; e o capitão
me contou que fazia alguns versos poéticos em meu louvor porque me
casaria com Uma. “Tudo bem, velha senhora”, disse com certo riso fa-
lho. “O que a senhora quiser. Mas quando terminar com a minha mão,
faça o favor de me avisar.”
Agiu como se entendesse; a canção chegou num grito e parou; a mu-
lher rastejou para fora da casa do mesmo modo que havia entrado, e de-
via ter se enfiado diretamente na moita, pois quando a segui até a porta,
já havia desaparecido.
“Isso é influência do rum”, afirmei.
“É um povo adepto ao rum”, disse o capitão e, para a minha surpre-
sa, persignou o seu peito descoberto.
“Olha só!”, digo, “o senhor é papista?”
Repudiou a ideia com desprezo. “Batistas casca-grossas”, disse.
“Mas, meu caro amigo, os papistas têm boas ideias tam em; e ess’ é uma
das boas deles. Ouça meu conselho, sempre que cruzar com Uma ou
Faavao ou Vigours ou qualquer pessoa desse povo, faça o que digo, e
faça o que faço: entende?”, diz, repetiu o sinal, e piscou com um dos
olhos opacos para mim. “Não, senhor!”, irrompeu novamente, “papista
nenhum aqui!”, e por longo tempo me entreteve com opiniões religio-
sas.
Devia ter tido com Uma desde o começo, ou certamente deveria ter
saído daquela casa e ido ao ar fresco, e o mar limpo, ou algum rio con-
veniente. Apesar de na verdade ter combinado com Case; além disso, ja-
mais poderia andar de cabeça erguida naquela ilha, se fugisse da garota
na noite de meu casamento.
O sol se pôs, o céu inteiro queimava, e em algum momento o lampi-
ão foi aceso, quando Case voltou com Uma e o negro. Ela estava arru-
mada e perfumada; seu saiote era de tapa fina, parecia mais elegante que
as dobras de qualquer seda; seu busto, da cor de mel escuro, estava nu,
exceto por meia dúzia de colares e de sementes e flores; e atrás das ore-
lhas e cabelo, tinha as flores escarlates do hibisco. Demonstrava o me-
lhor porte concebível para a noiva, séria e quieta; e pensei na vergonha
que era ficar com ela naquela casa terrível atrás daquele negro de sorriso
sinistro. Digo que pensei na vergonha, pois o charlatão usava grande
colar de papel, o livro que me fazia acreditar ler era o estranho volume
de um romance, e as palavras do serviço religioso não eram adequadas.
Minha consciência me castigou quando juntamos as mãos; e quando ela
pegou o certificado, fiquei tentado a cancelar a barganha e confessar.
Aqui está o documento: foi Case quem o escreveu, com assinatura e tu-
do, numa folha do livro
Certifica-se com esta que Uma, filha de Favaao da ilha de Falesá de
____, está ilegalmente casada com o sr. John Wiltshire por uma se-
mana, e o Sr. John Wiltshire está liberado para mandá-la ao inferno
na manhã seguinte,
John Blackamoor
Capelão dos Navios.
Extraído do registro
Por William T. Randall
Mestre Marinheiro.
Aquele era um belo documento para se colocar na mão de uma garota e
vê-la esconder como se fosse ouro. Um homem pode facilmente se sen-
tir ordinário por menos, mas essa era a prática naquelas partes, e (como
disse a mim mesmo) longe de ser a menor falta de nós brancos, ou dos
missionários. Caso deixassem os nativos agirem, jamais precisaria dessa
decepção, mas poderia possuir quantas esposas desejasse, e largá-las ao
meu prazer, com a consciência tranquila.
Quanto mais envergonhado ficava, mais tinha pressa de que aquilo
terminasse; e os nossos desejos assim se uniram, fiz mínimo comentário
da mudança dos comerciantes. Case estava bastante interessado em me
manter lá; agora, embora me mantivesse com um propósito, parecia
bastante interessado em que me fosse. Uma, disse, poderia me mostrar a
casa, e os três se despediram de nós lá dentro.
A noite logo chegou; a vila cheirava a árvores, a flores e a mar, e a
cozimento de fruta-pão; ali chegava um belo barulho de mar dos recifes,
e à distância, entre a mata e as casas, muitos belos sons de adultos e cri-
anças. Respirar ar fresco me fez bem; parar de falar com o capitão e ver,
em vez disso, a criatura ao meu lado me fez bem. Senti pelo mundo in-
teiro como se ela fosse a garota em casa no velho país, e me esqueci de
mim naquele minuto, peguei a sua mão para conduzi-la. Seus dedos se
entrelaçaram nos meus; a escutei respirar profunda e rapidamente; e le-
vou minha mão ao seu rosto de vez e o pressionou. “Você bom!”, excla-
mou, correu a minha frente, parou e olhou para trás e sorriu, e voltou a
correr adiante; assim me guiou pelos limites da mata e de maneira quieta
até a minha casa.
A verdade é que Case fizera com estilo a corte para mim; lhe contou
que estava louco para tê-la e não me importava com as consequências; e
a pobre alma, que sabia aquilo que eu ainda ignorava, acreditou em cada
palavra, e teve a mente quase mudada devido à vaidade e à gratidão.
Não fazia ideia de nada disso; era completamente contra qualquer ba-
boseira das mulheres nativas, pois vi tantos brancos devorados pelos pa-
rentes das esposas e feitos de bobo na barganha; e disse a mim mesmo
que deveria aguentar de vez e me comportar de modo adequado. Mas
parecia tão exótica e bela ao fugir e então me esperar, e tudo foi feito de
modo tão parecido como uma criança ou cão manso faria, que o melhor
que podia fazer era simplesmente segui-la onde ela fosse, ou escutar as
pancadas dos pés descalços, e assistir no alvorecer o seu corpo a brilhar.
Então, outro pensamento me veio à cabeça. Ela brincava de gatinha co-
migo agora que estávamos sós, mas na casa se comportou como condes-
sa, orgulhosa e humilde. E que vestido — pois, afinal, havia tão pouco
dele, e aquilo era bastante nativo — e que bela tapa e ótimos perfumes,
e as flores vermelhas e sementes que brilhavam quase como joias, ape-
nas maiores — me ocorreu que ela, na verdade, era uma espécie de con-
dessa, vestida como grandes cantoras no concerto, e nada comparável a
comerciantes como eu.
Ela entrou primeiro na casa, e enquanto ainda estava fora, vi o fós-
foro acender e o lampião reluzir nas janelas. A estância era lugar mara-
vilhoso, feito de corais, varanda bastante espaçosa e o cômodo principal
largo e alto. Meus baús e caixotes estavam empilhados lá dentro, em
grande bagunça; e ali, no meio da confusão, Uma diante da mesa, me es-
perava. Sua sombra subia por trás até o vão do teto de ferro; brilhava de
pé, a luz do lampião iluminou a sua pele. Parei diante da porta, olhou
para mim, sem falar, com olhos ansiosos e apreensivos. Então tocou o
próprio seio.
“Mim — espousa você”, disse. Jamais me sentira assim antes, porém
o desejo por ela me dominou e abalou por completo, como o vento a
barlavento no veleiro.
Não conseguiria falar, se quisesse; e se pudesse, não o faria. Fiquei
envergonhado por me comover tanto por uma nativa, envergonhado
pelo casamento também, e o certificado que ela guardava com cuidado
no saiote; e me virei de lado e fingi revistar as caixas. A primeira coisa
que iluminei foi a caixa de gim, a única que havia levado; e, em parte
por causa da moça, em parte por causa do horror em me lembrar do ve-
lho Randall, tomei súbita resolução. Arranquei a tampa; uma a uma,
abri as garrafas com o saca-rolhas de bolso, e mandei que Uma derra-
masse aquilo na varanda.
Voltou com a última, e olhou para mim atordoada.
“Por quê?”, perguntou.
“Nada bom”, disse, pois agora estava no controle de minha língua.
“Homem bebe, nada bom.”
Concordou com isso, mas continuou a refletir. “Por que traz?”, per-
guntou em seguida. “Não quer beber, não trazer.”
“Você está certa”, disse. “Uma vez, querer muito beber; agora não
querer. Ver, não saber arrumar espousinha. Se beber gim, minha espou-
sinha medo de eu.”
Falar gentilmente com ela era o mínimo que podia fazer; jurei nunca
ceder à fraqueza com nativos; e não tinha nada a fazer, a não ser parar.
Ela me observou com gravidade, sentado com a caixa aberta. “Penso
você homem bom”, disse. E, de repente, ficou ao meu lado no chão “Eu
pensar vocês tudo porco, tudo igual!”, exclamou.
CAPÍTULO II
O BANIMENTO
Vim para a varanda pouco antes de o sol surgir na manhã. Minha casa
era a última a leste; atrás havia o cabo com mata e penhascos que escon-
diam a aurora. A oeste, corria rio veloz e gelado e, para além, estava o
verde da vila, pontilhada por coqueiros e fruta-pão e casas. Algumas ve-
nezianas estavam fechadas e algumas abertas; vi as telas de mosquito
ainda esticadas, com sombras de pessoas que acabavam de acordar, sen-
tadas lá dentro; por todo o verde, outros andavam em silêncio, enrola-
dos nas roupas de dormir multicoloridas, como beduínos em imagens
bíblicas. A quietude era mortal e solene e gélida; e a luz do alvorecer na
lagoa cintilava como fogo.
No entanto, o mais incômodo estava mais perto de mim. Cerca de
uma dúzia de jovens e crianças em semicírculo, flanquearam a minha
casa; o rio os dividia, alguns do lado mais próximo, outros do mais dis-
tante, e um deles no pedregulho em meio à névoa; todos sentados em si-
lêncio, envoltos por lençóis, e me escrutinavam e a minha casa, firmes
como perdigueiros. Ao sair, achei estranho. Quando tomei banho e vol-
tei, e os encontrei todos ali, e mais dois ou três com eles, pensei ser ain-
da mais estranho. O que poderiam ver para se fixar em minha casa, me
perguntei antes de entrar.
Mas o pensamento desses observadores ficou na cabeça, e em segui-
da saí novamente. Agora havia sol, mas ainda estava atrás da mata no
cabo: havia se passado cerca de quinze minutos. O grupo aumentou
substancialmente, o mais distante dos bancos de areia do rio de certo
modo se alinhou; talvez trinta adultos, e duas vezes mais crianças, algu-
mas de pé, outras acocoradas, todos observavam a minha casa. Havia
visto uma casa rodeada do mesmo modo numa vila do Mar do Sul, mas,
naquela ocasião, um comerciante açoitava a esposa, e ela berrava. Aqui,
não havia nada: o fogão com o fogo baixo, a fumaça subia de modo cris-
tão; tudo em ordem, em nada diferente de Bristol. Na verdade, havia o
forasteiro; mas tiveram a chance de ver aquele forasteiro um dia antes e
ficaram bem quietos. O que os incomodava agora? Repousei os braços
no corrimão e encarei de volta. Havia um inferno de gente ali. De vez
em quando, via as crianças trocarem palavras, mas falavam tão baixo
que nem o murmúrio da fala me alcançava. Os outros eram como ima-
gens entalhadas, me encaravam, mudos e melancólicos, com olhos bri-
lhantes; e então me ocorreu que as coisas não seriam tão diferentes se
estivesse na plataforma das galés, e essas pessoas viessem para ver meu
enforcamento.
Senti que era intimidado, e receava olhar para aquilo, o que não fiz.
Fiquei de pé, fingi me alongar, desci as escadas da varanda, e passeei em
direção ao rio. Ali, havia sussurro curto de um e de outro, como o que
se ouve no teatro quando a cortina sobe; e alguns — os mais próximos
— continham espécie de ritmo. Vi uma garota pôr a mão sobre um jo-
vem e gesticular para outro adiante; ao mesmo tempo, disse algo no idi-
oma nativo com voz arfada. Três garotinhos se sentavam ao lado de
meu caminho, onde passaria a um metro deles. Enrolados em lençóis,
com as cabeças raspadas e pequenos topetes, e rostos esquisitos, pareci-
am bonecos na lareira. Se sentavam no chão, solenes como juízes; ergui
o punho, fechei os cinco dedos, como quem quisesse machucá-los; e
pensei ver uma espécie de piscadela e engolida seca nos três rostos. En-
tão um deles saltou (o mais distante) e correu para a sua mamãe. Os ou-
tros dois, tentaram seguir o exemplo, ficaram mal, vieram ao chão ber-
raram juntos, se contorceram para fora dos lençóis — e num momento
os três, dois desprovidos de mãe, corriam pelas vidas e guinchavam co-
mo porcos. Os nativos, que não perderiam a piada sequer no enterro,
gargalharam curto como o latido de um cão e pararam.
Dizem que um homem tem medo de ficar só. Nada disso. O que o
assusta na escuridão ou na mata fechada é não ter certeza, pois pode ha-
ver um exército em seu calcanhar. O que mais o assusta é estar exata-
mente no meio da multidão, e não ter ideia do que ruminam. Então,
quando a gargalhada parou, também parei. Os garotos ainda não havi-
am fugido de fato; ainda estavam em terreno aberto, seguiam pelo único
caminho, quando já estava perto do navio em direção ao outro. Como
um tolo saíra de punho fechado; como um tolo voltava. Deve ter sido
visão hilária; mas, o que me deixou atordoado, dessa vez ninguém riu;
apenas uma velha fez algo como lamento devoto, daqueles ouvidos por
dissidentes nas capelas durante o sermão.
“Jamais vi kanakas tão idiotas quanto vocês daqui”, falei para Uma,
enquanto espiava os observadores pela janela.
“Saber nada”, diz Uma, com certo ar desgostoso em que era boa.
E essa foi toda a conversa sobre o assunto; pois eu estava indignado,
e Uma recebeu aquilo com tanta naturalidade que fiquei levemente en-
vergonhado.
O dia inteiro, de quando em quando, ora menos, ora mais, os tolos
se sentaram do lado oeste de minha casa e do outro lado do rio, espera-
vam uma apresentação, fosse o que fosse — fogo do céu, suponho, que
consumisse meus ossos e coisas. Mas durante a noite, como verdadeiros
ilhéus, se cansaram da atividade; e, em vez disso, foram a uma grande
casa na vila e dançaram; os ouvi cantar e bater palmas até talvez dez da
noite; e no dia seguinte, pareciam ter esquecido que eu existia. Se o fogo
descesse do céu ou se a terra se abrisse e me engolisse, não haveria nin-
guém para ver ou aprender a lição, se é que podemos falar assim. Mas
intuía que eles tampouco haviam me esquecido, e mantive o olho atento
para qualquer fenômeno pelo caminho.
Tive dificuldades nesses dois dias para organizar o meu comércio e
estocar o que Vigours deixara. Era trabalho que irritava bastante, e me
impedia de pensar em qualquer outra coisa. Ben tomou conta do esto-
que na viagem anterior, sabia que podia confiar em Ben; mas estava cla-
ro que alguém havia se aproveitado nesse meio-tempo. Descobri que
faltava o bastante para cobrir facilmente seis meses de salário e lucro;
poderia ter me chutado por toda a ilha por ser um asno tão estúpido, ali
me embriagar com Case em vez de prestar atenção nos negócios e to-
mar conta do estoque.
No entanto, não adiantava chorar sobre o leite derramado. O que
estava feito não podia ser desfeito. Tudo o que podia fazer era pegar o
que restava, e as coisas novas (minha própria escolha) e organizá-las,
procurar os ratos e baratas, e organizar a loja ao modo comum de Syd-
ney. Fiz uma bela apresentação de tudo; e na terceira manhã, quando
acendi o cachimbo e fiquei na frente da porta e olhei lá dentro — e virei
e observei as montanhas ao longe, e vi os cocos balançarem, e calculei
toneladas de copra — e para o verde acima da povoação e vi os fanfar-
rões das ilhas, e reconheci os metros de tecido que queriam para os sai-
otes e vestidos —, senti que estava no lugar ideal para fazer fortuna, e
voltar para minha terra e abrir uma taverna. Ali, sentado na varanda, em
cenário tão belo quanto possível, sol esplêndido, um negócio novo sau-
dável que renovava o sangue do homem como banho de mar; e todo o
negócio estava pronto para mim, e sonhava com a Inglaterra, que afinal
é um buraco nojento, frio e lamacento, sem luz o suficiente para a leitu-
ra — e sonhava com a aparência de minha taverna, à beira de estrada
larga como avenida e placa em árvore verde.
Muitas coisas para a manhã, mas o dia passou sem que qualquer dia-
bo olhasse para mim, e pelo que sabia dos nativos de outras ilhas, achei
estranho. As pessoas riam um pouco de nossa empresa, das belas esta-
ções, e da estação de Falesá em particular; nem toda a copra do distrito
pagaria por isso (ouvi dizerem) em cinquenta anos, o que supus ser exa-
gero. Mas quando o dia passou e não fizemos nenhum negócio, comecei
a desanimar, e por volta das três da tarde fui passear para ver se me ani-
mava. No verde, vi um homem branco vir em minha direção, de batina,
o que me levou a deduzir que era padre. Via-se que se tratava de uma
velha alma de boa natureza, um pouco grisalho, e tão sujo que poderia
ser usado para riscar um pedaço de papel.
“Dia, senhor”, digo.
Ele me respondeu empolgado, no idioma nativo.
“Não fala inglês?”, disse.
“Francês”, diz.
“Bem”, disse, “peço desculpas, mas não posso fazer nada aqui.”
Tentou por um tempo falar comigo em francês, e depois no idioma
nativo novamente, que pensou ser a melhor chance. Deduzi que tentava
mais que passar o tempo comigo, mas tinha algo a comunicar, e escutei
com o máximo de atenção. Ouvi os nomes de Adams e Case e Randall
— o de Randall com mais frequência; e a palavra “veneno” ou algo pa-
recido; e uma palavra nativa que repetiu bastante. Fui para casa falando-
a para mim mesmo.
“O que significa fussy-ocky?”, perguntei a Uma, pois era o mais
próximo que conseguia de pronunciá-la.
“Fazer morrer”, explicou.
“Mas que diabos!”, digo. “Já ouviu a conversa de que Case envene-
nou Johnny Adams?”
“Todos saber isso”, diz Uma, sarcástica. “Dar areia branca — areia
ruim. Ele ter garrafa ainda. Dizer que dá gim você, não pegar.”
Já havia escutado basicamente a mesma história em outras ilhas, e o
mesmo pó branco sempre, o que me fez pensar mal dele. Por tudo isso,
fui até a casa de Randall, ver o que podia descobrir, e encontrei Case,
que limpava a arma, no degrau da porta.
“Deu uns tiros bons?”, digo.
“Um”, disse. “A floresta tem toda a espécie de pássaros. Queria que
tivesse tanta copra assim”, disse e, então, pensei com malícia, “mas pa-
rece que não tem ninguém fazendo isso.”
Podia ver Black Jack na loja atender um cliente.
“Mas me parece que seu negócio está indo mesmo assim”, disse eu.
“É a primeira venda que fazemos em três semanas”, respondeu.
“É verdade?”, digo. “Três semanas? Olha só.”
“Se não acredita em mim”, exclama um pouco esfuziado, “pode ir
ver na loja de copra. Está meio vazia agora mesmo.”
“Isso não serve muito de justificativa, vê”, digo. “Até onde posso
dizer, talvez estivesse completamente vazia ontem.”
“Também”, falou com sorrisinho.
“De qualquer forma”, disse “que tipo de pessoa é aquele padre? Ele
me pareceu bem simpático.”
Com isso Case riu alto. “Ah”, comentou, “agora vejo o que o inco-
moda! Galuchet esteve com você.” Padre Galoshes era o nome que usa-
va na maior parte do tempo, mas Case sempre usava francês com sarcas-
mo, que era outra razão para pensar que não era normal.
“Sim, estive com ele”, disse. “Pelo visto não gosta muito de você ou
do capitão Randall.”
“Não gosta mesmo!”, falou Case. “Foi o problema com o pobre
Adams. No último dia, quando estava morrendo, o jovem Buncombe
estava lá por perto. Já conheceu Buncombe?”
Eu lhe disse que não.
“É um cura, Buncombe!” Case riu. “Bem, Buncombe enfiou na ca-
beça que não havia nenhum outro clérigo nas redondezas, além dos pas-
tores kanaka, e tínhamos a obrigação de chamar o padre Galuchet, e fa-
zer o velho administrar e coordenar o sacramento. Era tudo a mesma
coisa para mim, como pode imaginar; mas disse que achava que Adams
deveria ser consultado. Ele mascava copra molhada e tinha ar estulto.
‘Olha aqui’, falei. ‘Você está muito doente. Quer ver Galoshes?’ Estava
sentado, apoiado no cotovelo. ‘Chama o padre’, diz, ‘chama o padre,
não me deixa morrer aqui como um cachorro.’ Sua fala estava um tanto
ansiosa e febril, mas bem racional; não havia nada a dizer quanto a isso;
então mandamos alguém perguntar a Galuchet se viria. Pode apostar
que sim! Pulou dentro das roupas encardidas de linho assim que pensou
nisso. Mas havíamos presumido isso tudo sem Papa. Ele é um batista
casca-grossa, o Papa; nenhum papista precisa pedir nada; e então tran-
cou a porta. Buncombe lhe chamou de fanático, e pensei que teria um
ataque. ‘Fanático!’, diz, ‘Eu, fanático? Não vivi isso tudo para lidar com
primatas como você!’ Então, avançou até Buncombe, e tive que separar
os dois — e ali estava Adams no meio, delirante novamente, azucrinava
sobre copra como um idiota nato. Foi divertido como uma peça, e perdi
a noção do tempo, de tanto gargalhar, quando, de repente, Adams se
sentou, bateu as mãos no peito, e ficou aterrorizado. Que morte atroz, a
de John Adams”, diz Case com espécie de severidade repentina.
“E o que aconteceu com o padre?”, perguntei.
“O padre?”, diz Case. “Oh, não parou de bater na porta para entrar,
e gritou para os nativos se aproximarem e derrubá-la, e alardeou que
havia uma alma para salvar, essas coisas. Estava numa apreensão dos in-
fernos, o padre. Mas o que você faria? Johnny havia perdido a mão; na-
da de mercado pra Johnny! E o clamor da administração acabou com
aquilo. Em seguida, Randall ouviu falar que o padre rezava no túmulo
de Johnny. Papa estava bem encharcado, e pegou um bastão e disparou
até o local; e ali estava Galoshes ajoelhado, e vários nativos observavam.
Ninguém pensava que Papa se importasse com alguma coisa, a não ser
com a bebida; mas o padre e ele ficaram ali duas horas, xingaram-se no
idioma nativo; e sempre que Galoshes tentava se ajoelhar, Papa ia até ele
com o bastão. Nunca houve cena assim em Falesá. Terminou que o ca-
pitão Randall caiu com algum tipo de crise ou ataque, e o padre enfim
fez o que queria. Mas foi o padre mais enfurecido que já se ouviu falar;
e reclamou com os chefes desse ultraje, como chamou aquilo. De nada
serviu, pois nossos chefes aqui são protestantes; mesmo assim, já tinha
arrumado confusão por causa do tambor da escola matinal, e ficaram
contentes por se livrar dele. Agora, jura que o velho Randall deu a
Adams veneno ou coisa parecida e, quando se encontram, trocam sorri-
sos sarcásticos, como babuínos.”
Contou essa história com a maior naturalidade possível, como quem
apreciasse diversão; agora que penso nisso após tanto tempo, me parece
um relato deveras repugnante. No entanto, Case nunca demonstrou ser
gentil, apenas um quadrado, impetuoso e habilidoso; e, na verdade, me
intrigava completamente.
Fui para casa, e perguntei a Uma se ela era Popey, que havia desco-
berto ser a palavra nativa para católicos.
“E le ai!”, disse — sempre usava o idioma nativo quando queria di-
zer “não” mais forte que o normal e, na verdade, tinha mais. “Nada
bom, popey”, completou.
Então lhe perguntei de Adams e do padre, e me contou o mesmo re-
lato, mas à sua maneira. De modo que não me restou muito por onde
seguir; mas diante do todo, as únicas questões eram a querela por causa
do sacramento, e a conversa sobre envenenamento.
O dia seguinte era domingo, quando não havia negócios a se tratar.
Uma me perguntou se pretendia “rezar” de manhã; lhe respondi que
apostasse que não; e ela mesma parou em casa sem dizer mais. Pensei
que aquilo era incomum a nativos, e uma mulher nativa, que possuía
roupas novas para exibir; no entanto, me era muito conveniente e não
dei muita atenção. O irônico foi que afinal saí em direção à igreja, algo
que sou um tanto predisposto a esquecer. Havia planejado passear,
quando escutei o hino. Sabe como é; você escuta pessoas cantarem, e is-
so parece atraí-lo; e logo já está a caminho da igreja. Era lugar baixo e
pouco comprido, de corais, com ambos os cantos arredondados à ma-
neira de baleeiro, grande teto nativo no topo, janelas sem vidro e corre-
dores sem portas. Enfiei a cabeça na janela, e a visão me era tão nova —
pois as coisas eram muito diferentes nas ilhas que conhecia — que fi-
quei e observei. A congregação se sentava em carpetes no chão, as mu-
lheres de um lado, os homens do outro; todos aparelhados para matar,
as mulheres com vestidos e chapéus de negócios, os homens em jaque-
tas brancas e camisas. O hino acabou; o pastor, kanaka grande e corpu-
lento, diante do púlpito, pregava pela vida; e pelo modo como abanava a
mão, e trabalhava a voz, e argumentava, e parecia discutir com as pesso-
as, deduzi que era uma arma no negócio. Bem, olhou para cima de re-
pente e me encarou; e lhe dou a minha palavra que hesitou no púlpito.
Seus olhos se estufaram para fora da cabeça, a mão se ergueu e apontou
para mim como que contra a vontade, e o sermão parou exatamente
nesse momento.
Não é algo legal de se dizer de si mesmo, mas fugi; e se a mesma es-
pécie de choque me ocorresse amanhã, fugiria novamente. Ver aquele
palavroso kanaka se atordoar simplesmente por me ver, me deu a sensa-
ção de que o fundo do mundo havia desabado. Fui direto para casa, e fi-
quei lá, e não disse nada. Podem pensar que contaria a Uma, mas isso
era contra o meu sistema. Podem pensar que iria me consultar com Ca-
se; mas a verdade é que sentia muita vergonha de falar disso, pensei que
todos riram de mim. Então, segurei a língua e, ademais, pensei. E quan-
to mais pensava, menos gostava daquilo.
Por volta da noite de segunda, ficou claro em minha mente que esta-
va com um tabu. A nova loja aberta por dois dias na vila, e sequer um
homem ou mulher aparece para ver os produtos, estava além da crença.
“Uma”, disse, “creio que estou com um tabu.”
“Poder ser”, respondeu.
Pensei por um momento se devia perguntar mais, mas era má ideia
deixar nativos com qualquer sensação de conhecedor, então fui até Ca-
se. Estava escuro, e estava sentado sozinho, como fazia na maior parte
do tempo, fumava na escada.
“Case”, disse, “eis uma coisa estranha. Estou com um tabu.”
“Oh, impossível!”, falou. “Iss’ n’é comum nestas ilhas.”
“Pode ser que sim, ou que não”, retruquei. “É comum onde estava
antes; pode apostar que sei como é; e digo com certeza: estou com um
tabu.”
“Bem”, disse, “o que você fez?”
“É o que quero descobrir”, respondi.
“Oh, não pode”, falou; “não é possível. Porém lhe contarei o que fa-
rei; descansa, não faça outra coisa, e darei uma volta e certamente desco-
brirei. Você só sai e conversa com Papa.”
“Obrigado”, disse, “é melhor ficar aqui na varanda: sua casa é tão
perto.”
“Então chamarei Papa aqui para fora”, falou.
“Meu caro”, respondi, “acho melhor não. O fato é que não aprecio
o sr. Randall.”
Case riu, pegou a lanterna da loja, e saiu para a vila. Ficou fora por
cerca de quinze minutos; parecia extremamente sério quando voltou.
“Bem”, disse e bateu a lanterna no degrau da varanda, “jamais teria
acreditado. Não sei aonde pode chegar a impudência desses kanakas,
mas parecem ter perdido qualquer noção de respeito pelos brancos. O
que precisamos é de um homem de guerra; um alemão, se pudéssemos
— sabem lidar com kanakas.”
“Então estou mesmo com um tabu?”, exclamei.
“Algo assim”, disse. “É a pior coisa do tipo que já ouvi. Mas ficarei
do seu lado, Wiltshire, de homem para homem. Venha aqui amanhã por
volta das nove e esclareceremos com os chefes. Eles têm medo de mim;
ou tinham, mas andam tão arrogantes agora que não sei o que esperar.
Entenda-me, Wiltshire, não considero isso uma luta sua”, prosseguiu
com muita resolução; “conto como luta de todos nós, conto como Luta
do Homem Branco, e dou minha palavra que passarei por cima de pau e
pedra para enfrentar isso.”
“Você descobriu o motivo?”, perguntei.
“Ainda não”, disse Case. “Mas resolveremos isso amanhã.”
De modo geral, fiquei bastante satisfeito com a atitude, e quase mais
no dia seguinte, quando nos encontramos para ir ter com os chefes, por
vê-lo tão severo e decidido. Os chefes esperavam por nós numa das ca-
sas grandes e ovais, que chamou nossa atenção já a grande distância, de-
vido à multidão em volta dos beirais, talvez uma centena de homens,
mulheres e crianças. Muitos dos homens estavam a caminho do trabalho
e vestiam grinaldas verdes; e isso me fez pensar no Primeiro de Maio em
casa. Essa multidão abriu caminho e zumbiu para nós dois com agitação
súbita e raivosa quando entramos. Cinco chefes estavam lá, quatro ho-
mens imponentes, o quinto velho e enrugado. Sentavam-se em capachos
de saiotes brancos e jaquetas; tinham leques, como moças refinadas; e
dois dos mais jovens usavam medalhas católicas, o que me fez refletir.
Nosso lugar estava arrumado e os capachos colocados para nós contra
essas lideranças no lado da casa mais próximo; o meio, vazio; a multi-
dão, perto de nossas costas, murmurava e se esticava e se acotovelava
para observar, e as sombras se projetavam em nossa frente nas pedri-
nhas limpas no chão. Era apenas um fio de cabelo arrancado pela excita-
ção dos comuns, mas a aparição quieta e civilizada dos chefes me deu
confiança: assim, o porta-voz começou e fez longo discurso em voz bai-
xa, às vezes acenava para Case, às vezes para mim, e às vezes batia com
as falanges no capacho. Uma coisa estava clara: não havia sinal de raiva
nos chefes.
“O que ele falou?”, perguntei, após terminar o discurso.
“Oh, apenas que estão felizes por vê-lo, e entendem por mim que
deseja fazer alguma espécie de reclamação, e que deve falar tudo, e farão
o que é certo.”
“Precisou de um tempo precioso para dizer isso”, comentei.
“Oh, o resto era lisonja e bonjour e essas coisas”, diz Case, “sabe
como são os kanakas!”
“Bem, de mim não recebem muito bonjour”, disse. “Fale quem sou.
Sou branco, e cidadão britânico, além de grande líder em minha terra; e
vim aqui para lhes fazer bem e trazer a civilização; porém mal separei
minhas mercadorias, vêm e me lançam um tabu e ninguém ousa se apro-
ximar da minha loja! Fale que não pretendo contradizer nada legal; e se
o que desejam é um presente, farei o justo. Não culpo qualquer um que
cuide de si, fale para eles, pois é da natureza humana; mas se pensam
que poderão impor a mim uma de suas ideias nativas, estão enganados.
E fale abertamente para eles que desejo conhecer o motivo para esse tra-
tamento, enquanto homem branco e cidadão britânico.”
Foi o que disse. Sei lidar com kanakas; lhes ofereça explicação clara
e negociação razoável e, não posso mentir, sempre colaboram. Não têm
governo verdadeiro ou lei verdadeira, é o que tem que enfiar na cabeça
deles; e mesmo que tivessem, seria uma grande piada se fosse aplicado
ao homem branco. Seria muito estranho se viéssemos até aqui e não
conseguíssemos fazer o que quiséssemos. Só de pensar nisso, fiquei co-
mo bicho, e praguejei por um bom tempo. Então Case, por sua vez, tra-
duziu, ou fingiu fazer isso; e o primeiro chefe respondeu, e então o se-
gundo e o terceiro, todos no mesmo estilo, calmo e gentil, mas no fun-
do solenes. Uma pergunta foi feita a Case, que a respondeu, e todos
(tanto os chefes como as pessoas comuns) gargalharam alto e olharam
para mim. Por último, o velho enrugado e o chefe grande e jovem que
havia falado primeiro fizeram espécie de catecismo com Case. Às vezes,
deduzia o que Case tentava evitar esgrimir, e o encurralavam como cães
de caça, e o suor descia por seu rosto, e que não era visão agradável para
mim; e a algumas das respostas, a multidão resmungava e sussurrava, o
que era o pior de se ouvir. Era a verdade cruel que não sabia nada do
idioma nativo; de modo que (agora acredito) perguntavam a Case de
meu casamento, e ele deve ter tido muito trabalho para tirar seus pés
dali. Mas olhei para Case: tinha cabeça para comandar um parlamento.
“Bem, isso é tudo?”, perguntei, quando houve pausa.
“Vamos”, disse com uma careta. “Eu lhe contarei lá fora.”
“Quer dizer que não vão retirar o tabu?”, exclamei.
“É uma coisa estranha”, respondeu. “Eu lhe contarei lá fora. Melhor
vir logo.”
“Não deixarei isso nas mãos deles”, exclamei. “Não sou esse tipo de
homem. Você não me verá recuar por causa de um punhado de ka-
nakas.”
“Melhor fazer isso”, disse Case.
Olhou para mim com um sinal no olhar; e os cinco chefes olharam
para mim com civilidade, mas um tanto contundentes; e as pessoas
olhavam para mim e se esticavam e se acotovelavam. Eu me lembrei das
pessoas que observaram a minha casa, e de como o pastor saltou do púl-
pito só de me ver; e todo o negócio parecia tão deslocado que me levan-
tei e segui Case. A multidão novamente abriu espaço para passarmos,
porém mais que antes, e as crianças corriam e gritavam; e quando nós
dois brancos saímos, todos ficaram e nos observaram.
“E agora”, disse, “por que tudo isso?”
“A verdade é que não sei dizer bem. Não gostam de você”, respon-
deu Case.
“Colocar um tabu num homem porque não gostam dele!”, gritei.
“Nunca ouvi nada assim.”
“É pior que isso, vê”, disse Case. “Você não está com um tabu, lhe
disse que não podia ser isso. As pessoas simplesmente se recusam a se
aproximar de você, Wiltshire; eis o problema.”
“Se recusam a se aproximar de mim? O que quer dizer com isso?
Por que se recusam a se aproximar de mim?”, exclamei.
Case hesitou. “Parece que estão com medo”, disse em voz baixa.
Parei de vez. “Com medo?”, repeti. “Está louco, Case? Do que es-
tão com medo?”
“Queria poder dizer”, Case respondeu e balançou a cabeça. “Parece
alguma das superstições imbecis que têm. É com isso que não concor-
do”, disse; “é como o negócio a respeito de Vigours.”
“Gostaria de saber o que quer dizer com isso, e insisto que me con-
te”, falei.
“Bem, sabe, Vigours fugiu e deixou todos esperando”, disse. “Era
alguma espécie de assunto supersticioso — nunca entendi bem —, mas
começou a parecer ruim antes mesmo que acabasse.”
“Escutei uma história diferente sobre isso”, disse, “e é melhor lhe
contar. Ouvi dizer que fugiu por sua causa.”
“Oh, bem, suponho que tenha ficado com vergonha de contar a ver-
dade”, diz Case, “imagino que a tenha achado tola. E, de fato, o mandei
embora. ‘O que fará, meu velho?’ falei; ‘Vá’, disse, ‘e não pense duas ve-
zes nisso.’ Fiquei extremamente contente por vê-lo partir. Não é de
meu feitio dar as costas a um camarada quando está em situação com-
plicada; mas havia tanto problema na vila que não podia ver onde aquilo
daria. Fui um imbecil por passar tanto tempo com Vigours. Hoje me
culpam; você não ouviu Maea — é o chefe jovem, o grandalhão — res-
mungou algo sobre ‘Vika’? Estavam atrás dele; de algum modo não
conseguem esquecer.”
“Tudo isso é muito interessante”, disse, “mas não me explica o que
há de errado; não me explica do que têm medo — qual a ideia deles.”
“Bem, gostaria de saber”, disse Case. “Mas não posso afirmar mais
que isso.”
“Poderia ter perguntado, penso”, cutuquei.
“Eu perguntei”, diz, “mas deve ter visto, a não ser que seja cego, que
as perguntas levaram para outro caminho. Vou até onde posso por ou-
tro homem branco; mas quando vejo que eu mesmo estou na roda, pen-
so no meu couro primeiro. Minha ruína é ter a natureza boa demais. E
tomarei a liberdade de lhe dizer: você mostra generosidade muito estra-
nha por alguém que entrou em toda essa confusão ao defender os seus
interesses.”
“Há algo em que estou pensando”, falei. “Você foi tolo por se im-
portar tanto com Vigours. Um conforto, porém, é que não se importou
tanto comigo. Percebo que jamais entrou em minha casa. Confesse,
agora: você sabia disso antes?”
“É um fato que não”, respondeu. “Foi um erro, e me desculpe por
isso, Wiltshire. Mas a respeito do que virá agora, serei bastante sincero.”
“Quer dizer que não tem sido?”, perguntei.
“Mil desculpas, meu velho, mas é o tamanho disso”, diz Case.
“Em suma, está com medo?”, disse.
“Em suma, estou com medo”, confirmou.
“Haverei de continuar com o tabu, ou algo assim?”, perguntei.
“Você não está com um tabu”, disse. “Os kanakas se recusam a se
aproximar de você, isso é tudo. E quem haverá de forçá-los? Nós co-
merciantes temos que ralar muito, devo dizer; obrigamos esses pobres
kanakas a contradizer suas leis, a desfazer seus tabus, e isso, da maneira
que melhor nos aprouver. Esperava uma lei que obrigasse as pessoas a
comprarem em sua loja, querendo elas ou não? Quer me dizer que não
pretendia ralar para isso? E se quisesse, seria algo bizarro a me propor.
Gostaria apenas de mencionar, Wiltshire, que também sou comercian-
te.”
“Se eu fosse você, creio que não falaria de ralar”, disse. “Eis o que
acontece, até onde posso compreender. Nenhuma das pessoas haverá de
negociar comigo, e todas negociarão com você. Você terá a copra, e eu
terei de me chacoalhar com o diabo. Não falo nada do idioma nativo, e
você é o único homem digno de menção aqui que fala inglês, e tem a
impudência de me pedir para ralar e sugerir que minha vida está em pe-
rigo, e tudo o que tem para dizer é que não sabe o motivo?”
“Bem, de fato é o que tenho para lhe dizer”, disse. “Não sei; gostaria
de saber.”
“E assim me dá as costas e me deixa sozinho: essa é a posição?”, fa-
lei.
“Se quiser ver isso desse modo negativo”, respondeu. “Não o diria
assim. Digo simplesmente que vou ficar longe de você, e se não fizer is-
so, trarei perigo para mim.”
“Bem”, disse, “que ótima espécie de branco!”
“Oh, entendo que esteja nervoso”, respondeu. “Também estaria.
Posso me escusar.”
“Tudo bem”, falei, “vá fazer as suas escusas em algum outro lugar.
Aqui está o meu caminho, aí está o seu.”
Com isso nos separamos, e fui diretamente até em casa, mau-humo-
rado, e Uma experimentava um lote de bens de comércio como um be-
bê.
“Agora”, disse, “você para com essa idiotice. Isso aqui está uma ba-
gunça — já estou irritado! E não disse para você arranjar o jantar?”
E então creio que lhe dei um pouco do lado áspero da língua, como
ela merecia. Se levantou de vez, como a sentinela ao seu oficial; pois de-
vo dizer que sempre estava bem apresentável e tinha grande respeito pe-
los brancos.
“E agora”, continuei, “você pertence a este lugar, devia entender is-
so. Por que me puseram um tabu, afinal? Ou, se não estou com um ta-
bu, por que o seu povo tem medo de mim?”
Ela parou e me observou com olhos parecidos com dois pires.
“Você não saber?”, por fim arfou.
“Não”, disse. “Como espera que eu saiba? Não existe essa maluqui-
ce no lugar de onde venho.”
“Ese não contar?”, perguntou novamente.
(Ese era o nome que os nativos usavam para Case; pode significar
forasteiro, ou extraordinário; ou poderia significar abricó; mas certa-
mente era apenas o seu nome entendido mal e soletrado no modo ka-
naka.)
“Não muito!”, respondi.
“Ese desgraçado”, exclamou.
Parece engraçado ouvir essa garota kanaka soltar um grande xinga-
mento. Nem tanto. Não havia xingamento nela; não, nem raiva; ela es-
tava acima da raiva, e via o mundo com simplicidade e seriedade. Ela fi-
cou lá parada ao dizer isso; não posso simplesmente dizer que já vi uma
mulher com sua aparência antes ou depois, e isso me emudeceu. Então
ela fez uma espécie de reverência, mas era do tipo mais orgulhoso, e ar-
regaçou os braços.
“Eu vergonha”, disse. “Eu pensar você esperto. Ese falar mim você
esperto, falar mim não preocupar — falar mim você amar mim muito.
Tabu mim”, disse e se tocou no peito, como fizera na noite do casamen-
to. “Agora eu sair, tabu sair também. Então ganhar muita copra. Você
gostar mais, acho. Tofâ, alii”, disse no idioma nativo: “Adeus, chefe!”
“Espera”, exclamei. “Não tenha tanta pressa.”
Ela me olhou de lado com um sorriso. “Vê, você ganhar copra”, fa-
lou de modo com que se poderia oferecer doces a uma criança.
“Uma”, afirmei, “escute a razão. Não sabia, de verdade; e Case pa-
rece ter feito uma brincadeira terrível com nós dois. Mas agora sei, e
não me importo; amo você bastante. Você não sair, não deixar eu, des-
culpa muito.”
“Você não amar mim!”, gritou, “você dizer coisas ruins!” E se lan-
çou no canto do chão, e chorou.
Bem, não sou um intelectual, mas não nasci ontem, e pensei que o
pior do problema já havia passado. Mas, ali estava ela — as costas vira-
das, o rosto para a parede — tremia e soluçava como criancinha, que
seus pés até balançavam. É estranho como isso atinge um homem quan-
do está apaixonado; porque picotar as coisas não serve para nada; ka-
naka e tudo, estava apaixonado por ela, ou algo semelhante. Tentei pe-
gar sua mão, mas não fazia nada disso. “Uma”, disse, “não faz sentido
agir assim. Quero você para aqui, quero espousinha, eu contar verda-
de.”
“Não contar mim verdade!”, choramingou.
“Tudo bem”, falei, “esperarei até você parar com isso.” E me sentei
ao lado dela no chão, e alisei o seu cabelo com a mão. No começo, se
contorceu quando a toquei; depois, pareceu não me notar mais; então
os soluços diminuíram gradualmente até parar; e notei em seguida que
levantou o rosto até o meu.
“Você me falar verdade? Quer eu parar?”, perguntou.
“Uma”, disse, “prefiro ficar com você que ter todo a copra dos Ma-
res do Sul”, o que era expressão bem grandiosa, e o mais estranho era
que era sincera.
Lançou os braços em minha volta, saltou para perto, e pressionou o
rosto contra o meu, me beijou ao modo da ilha, e fiquei completamente
molhado por suas lágrimas e meu coração lhe foi entregue completa-
mente. Jamais tive algo tão próximo de mim quanto aquela moreninha.
Muitas coisas se juntaram, e todas me ajudaram a virar a cabeça. Era tão
bela que poderia devorá-la; parecia ser a minha única amiga naquele lu-
gar bizarro; senti vergonha por lhe falar com aspereza; e era mulher, e
minha esposa, e uma espécie de criança por quem sentia pena; e o sal
das lágrimas entrou em minha boca. E me esqueci de Case e dos nati-
vos; e me esqueci que não sabia de nada da história, e apenas me lembrei
de banir a lembrança; e me esqueci de que não conseguiria copra nem
um modo de viver; e me esqueci dos empregadores, e do estranho tipo
de serviço que lhes fazia, ao preferir meu devaneio aos negócios; e me
esqueci até que Uma não era minha esposa de verdade, apenas a cama-
reira enganada, e naquele estilo tão esfarrapado. Mas isso é antever mui-
to longe. Irei ao momento seguinte.
Já era tarde quando a gente pensou em fazer o jantar. O fogão apa-
gou e havia esfriado completamente; mas o acendemos após um tempo,
e cada um preparou um prato, ajudou e atrapalhou ao outro, e fizemos
disso diversão, como crianças. Estava tão necessitado de sua proximida-
de que me sentei para jantar com a minha namorada no meu joelho, to-
cava nela com uma mão, e comia com a outra. Ah, mais que isso. Creio
que ela seja a pior cozinheira feita por Deus; as comidas nas quais pu-
nha a mão enojariam um cavalo; e, ainda assim, minha refeição aquele
dia foi a comida de Uma, e desde então nunca comi tão bem.
Não fingi a mim mesmo, e não fingi para ela. Vi que havia termina-
do; e se quisesse me enganar, o faria. E suponho que foi isso que a fez
falar, pois agora tinha certeza de que éramos amigos. Muito me contou,
sentada em meu colo e comeu do meu prato, assim como comia do dela,
de brincadeira: muito sobre ela e a mãe e Case, tudo o que seria muito
tedioso e preencheria folhas inteiras se a deixasse na Praia de Mar, mas
que sugeri em inglês claro — e uma coisa a respeito de mim, que teve
um grande efeito em minhas preocupações, como logo se ouvirá.
Parece que havia nascido numa das ilhas Line; passara apenas dois
ou três anos naquelas partes, onde fora com um homem branco casado
com sua mãe que depois morreu; e apenas aquele ano em Falesá. Antes
disso, haviam passado um bom tempo em movimento, viajavam com o
homem branco, que era uma dessas pedras a rolar que continuavam a
dar voltas após trabalho leve. Fala-se sobre procurar por ouro no fim
do arco-íris; mas se alguém quer emprego para se manter até a morte,
deixe que comece a procura por um trabalho leve. Tem carne e bebida
nele também, e cerveja e jogo de pinos; pois jamais se ouve falar de al-
gum deles passar fome e raramente são vistos sóbrios; e, quanto à ativi-
dade contínua, rinha de galos não está na mesma lista. De qualquer for-
ma, esse mandrião carregava a mulher e a filha por toda a loja, mas, na
maioria das vezes, para longe das ilhas, onde não havia polícia e pensou
que talvez houvesse trabalho leve. Tenho minha própria visão desse ve-
lho sujeito; mas fiquei muito feliz por ele ter mantido Uma longe de
Apia e Papeete e essas cidades depravadas. Ao menos, manteve Fale-alii
na ilha, arranjou alguns negócios Deus sabe como! E estragou tudo
conforme seu hábito, e morreu sem quase nada, além de um pedaço de
terra em Falesá que adquirira ao cobrar uma dívida, o que usou para
convencer a mãe e a filha a viverem lá. Aparentemente, Case as encora-
jou ao máximo, e as ajudou a construir a casa. Era muito gentil naqueles
dias, e fez uma pechincha a Uma, e não há dúvida que punha o olho ne-
la desde o começo. No entanto, mal se assentaram, quando surgiu um
jovem, nativo, e desejava se casar com ela. Era um pequeno chefe, e ti-
nha alguns belos capachos e canções antigas na família, e era “muito bo-
nito”, disse Uma; e de modo geral era um pretendente extraordinário
para a garota sem um centavo, ainda por cima, forasteira.
Com a primeira palavra, fiquei doente de ciúmes.
“E quer dizer que teria se casado com ele!”, exclamei.
“Ioe”, disse. “Gostar demais!”
“Bem!”, respondi. “E pelo visto cheguei logo depois.”
“Gostar mais de você agora”, falou. “Mas supor casar Ioane, eu es-
pousa boa. Eu não kanaka comum: moça boa!”, diz.
Bem, tive de me contentar com aquilo; mas juro que não me impor-
tava nem um pouco com o caso, e gostava do fim daquele relato mais
que do começo. Pois, aparentemente, essa proposta de casamento foi o
princípio de toda a confusão. Parece que, antes disso, Uma e a mãe ha-
viam sido menosprezadas por não terem família e virem de outras ilhas,
mas nada grave; e mesmo quando Ioane foi em frente, no começo não
havia tanto problema. Então, de repente, cerca de seis meses antes de
minha chegada, Ioane partiu e abandonou aquela parte da ilha e desde
esse dia, Uma e a mãe ficaram sozinhas. Ninguém as chamava em casa,
ninguém falava com elas nas estradas. Caso fossem à igreja, as outras
mulheres tiravam os capachos e as deixavam sós em local vazio. Era a
excomunhão usual, como aquelas das quais lemos a respeito da Idade
Média; e a causa ou motivo disso não se podia adivinhar. Era alguma ta-
la pepelo, disse Uma, alguma mentira, alguma calúnia; e tudo o que sa-
bia era que as garotas tiveram inveja de sua sorte com Ioane e repro-
vam-na pela deserção, e lhe gritavam, quando a encontravam só na ma-
ta, que jamais se casaria. “Elas dizer homem nenhum casar comigo. Eles
também muito medo”, contou.
A única alma que interviera por elas após essa deserção foi mestre
Case; até ele estava relutante em se mostrar, e aparecia principalmente à
noite; e logo deu as suas cartas e cortejou Uma. Ainda estava incomoda-
do por causa de Ioane, e quando Case surgiu pela mesma linha, cortei
bruscamente.
“Bem”, disse, escarnecido, “imagino que pensou que Case era ‘mui-
to bonito’ e ‘gostava demais’.”
“Agora falar bobagem”, respondeu. “Homem branco vem aqui, eu
casar mesma coisa kanaka; muito bem, ele casar comigo mesma coisa
mulher branca. Imaginar ele não casar, ele ir embora, ele parar mulher.
Mesma coisa ladrão; mão vazia, coração de Tonga — não poder amar!
Agora você casar comigo; você coração grande — você não vergonha
moça ilha. Motivo eu amar você tanto. Eu orgulho.”
Não sei se já me senti pior em qualquer outro dia da vida. Deitei o
garfo e soltei a “moça da ilha”; tampouco parecia de algum modo ter
qualquer utilidade; e andei para cima e para baixo na casa, e Uma me se-
guia com os olhos, pois estava incomodada, e um pouco surpresa! Mas
incomodada não era palavra para isso; assim desejava, e assim temia, pa-
ra deixar claro como havia sido um pulha.
E nesse momento ressoou a cantoria vinda do mar; surgiu muito
clara e próxima, como se o barco desse a volta no cabo; Uma correu pa-
ra a janela e gritou que era “Misi” que vinha de suas voltas.
Achei estranho ficar contente por ver um missionário; mas se era es-
tranho, não deixava de ser verdade.
“Uma”, disse, “fica aqui neste quarto, e não tira o pé dele até eu vol-
tar.”
CAPÍTULO III
O MISSIONÁRIO
Quando saí para a varanda, o barco da missão ia rapidamente para a
embocadura do rio. Era um grande baleeiro pintado de branco, com es-
pécie de cobertura na popa; um pastor nativo agachado na plataforma
da popa conduzia o timão; vinte e quatro remos brilhavam e batiam na
água, no ritmo da canção do barco; e o missionário sob a cobertura, em
roupas brancas, lia um livro e os animava! Era bonito ver e ouvir; não
há vista mais interessante nas ilhas que barco missionário com boa tri-
pulação e boa fanfarra; e pensei nisso por cerca de meio minuto com
uma pontada de inveja, e, então, caminhei para o rio.
Do lado oposto ia outro homem para o mesmo lugar, mas correu e
chegou lá antes. Era Case; sem dúvida a ideia era me afastar do missio-
nário que poderia ser meu intérprete; mas tinha outras coisas em mente,
e pensei em como havia nos logrado a respeito do casamento, e tentara
pôr as mãos em Uma antes; e ao vê-lo, a raiva fluiu por minhas narinas.
“Saia daí, ladrão miserável. Embusteiro”, gritei.
“O que foi que disse?”, falou.
Eu lhe repeti e acrescentei com um bom insulto. “E se alguma vez o
pegar a dez metros de minha casa”, gritei, “enfiarei uma bala na sua car-
caça asquerosa.”
“Aja como quiser em sua casa”, respondeu, “lugar que, lhe digo, não
me interessa ir. Mas este local é público.”
“É lugar onde tenho um assunto em particular”, disse. “E não quero
um cão como você escutando, e lhe aviso para ficar longe.”
“Não aceito, no entanto”, respondeu Case.
“Então, mostro pra você”, falei.
“Veremos”, retrucou.
Era ágil com as mãos, mas não tinha nem altura nem peso, uma cria-
tura frágil, diante de um homem como eu; e, além disso, eu ardia com
tanta ira que quebraria um cinzel ao meio. Primeiro, lhe desferi um e
então o outro, de modo que pude ouvir sua cabeça chacoalhar e estalar,
e, então, caiu direto.
“Quer mais?”, gritei. Mas apenas olhou para cima, branco e vazio, e
o sangue se espalhou pelo rosto como vinho em guardanapo. “Quer
mais?”, gritei de novo. “Responda, e não fique aí fingindo, ou lhe mos-
trarei os pés!”
Com isso, se sentou e segurou a cabeça — pelo olhar podia-se dizer
que girava — o sangue se derramou na roupa.
“Basta por hoje”, disse antes de se levantar cambaleando e voltar pe-
lo caminho que veio.
O barco estava próximo; vi que o missionário havia posto o livro de
lado, e sorria para mim mesmo. “Pelo menos saberá que sou homem”,
penso.
Era a primeira vez, em todos os meus anos no Pacífico, que trocaria
duas palavras com qualquer missionário; veja lá lhes pedir por um favor.
Não gostava da tarefa, nenhum comerciante gosta; olham com desdém
para você e nem disfarçam; e, além disso, você está em parte ‘kanakea-
do’, e lida com nativos em vez de brancos como eles. Eu vestia um pija-
ma listrado, pois obviamente saíra com decência para ter com os chefes;
mas quando vi o missionário do barco no uniforme comum, roupas de
lona brancas, chapéu de safári, camisa branca e gravata, e botas amare-
las, poderia ter apedrejado ele. Ao se aproximar, me examinou com
muita curiosidade (suponho que por conta da luta), vi que parecia fatal-
mente doente, pois, na verdade, estava febril e acabava de pegar resfria-
do no barco.
“Sr. Tarleton, creio?”, disse, pois sabia o seu nome.
“E o senhor, como suponho, é o novo comerciante?”, respondeu.
“Primeiro, gostaria de contar que não me dou com missões”, pros-
segui, “e que penso que o senhor e seus semelhantes criam imagem de
perigo, alimentam os nativos com arrogância e contos de velhas matro-
nas.”
“O senhor tem todo o direito de emitir sua opinião”, comentou
olhando feio, “mas não preciso ouvi-las.”
“Acontece que o senhor precisa ouvi-las”, disse, “não sou missioná-
rio nem adorador de missionário; não sou kanaka nem defensor de ka-
nakas: sou apenas comerciante, sou apenas um maldito branco ordiná-
rio e baixo e cidadão britânico, do tipo que esfregaria as suas botas. Es-
pero que isso esteja claro.”
“Sim, meu camarada”, falou. “Está mais claro que convincente.
Quando o senhor ficar sóbrio, se arrependerá disso.”
Tentou passar, mas o parei com a mão. Os kanakas rosnaram; creio
que não gostaram de meu tom, pois usei da liberdade para falar com
aquele homem como falaria com vocês.
“Não poderá dizer que o enganei”, disse, “e posso seguir em frente.
Quero um serviço, na verdade quero dois serviços; e o senhor os fará
para mim, e talvez terei em melhor conta o que chama de cristianismo.”
Ficou em silêncio por um momento. Então, sorriu. “O senhor é um
rapaz bem estranho”, falou.
“Sou como Deus me fez”, respondi. “Não sirvo para cavalheiro.”
“Não tenho tanta certeza”, disse. “E como posso lhe ajudar, se-
nhor…?”
“Wiltshire”, falei, “apesar de ser quase sempre chamado de Welsher;
mas Wiltshire é a maneira de se soletrar, se as pessoas na praia conse-
guissem acertar a língua. E o que eu quero? Bem, é a primeira coisa que
lhe contarei. Sou o que se chama de pecador — o que chamo de pulha
— e quero que o senhor me ajude a compensar uma pessoa que enga-
nei.”
Ele se virou e falou com a tripulação no idioma nativo. “Agora, es-
tou a seu serviço”, disse, “mas apenas enquanto a tripulação estiver jan-
tando. Preciso descer a costa antes da madrugada. Estou atrasado, pois
fiquei em Papa-mālūlū até esta manhã, e tenho um compromisso em
Fale-alii amanhã à noite.”
Fui até a minha casa em silêncio e muito satisfeito comigo mesmo
pelo modo como conduzi a conversa, pois gosto de quem mantém o
respeito próprio.
“Uma pena vê-lo brigar”, falou.
“Oh, aquilo é parte da história que gostaria de contar”, disse. “É o
serviço número dois. Após ouvir, quero saber se o senhor achará uma
pena ou não.”
Andamos direto para a loja, e fiquei surpreso por ver que Uma havia
arrumado as coisas do jantar. Era tão incomum em relação aos seus mo-
dos, que vi que fizera isso por gratidão, e apreciei o gesto. Ela e o sr.
Tarleton se chamavam pelo nome, e, aparentemente, era muito gentil
com ela. Mas pensei pouco nisso; sempre é possível encontrar gentileza
num kanaka; são quem nos comandam, brancos. Além disso, não queria
Tarleton somente para aquilo: ainda daria o meu lance.
“Uma”, disse, “nos entregue o certificado de casamento.” Parecia
abatida. “Vamos”, falei. “Confie em mim. Pegue-o.”
Estava com ele, como de costume; creio que pensava ser o passe pa-
ra o paraíso, e que se morresse sem ele na mão iria para o inferno. Não
pude ver onde o colocara a primeira vez, e agora não pude ver de onde
o pegou; ele parecia pular na mão como aquele truque de Blavatsky[5]
dos papéis. Mas é assim com todas as mulheres da ilha, e acredito que
isso lhes é ensinado quando jovens.
“Então”, disse com o certificado na mão, “o negro Black Jack me
casou com essa garota. O certificado foi escrito por Case, e garanto que
é fanfarronice literária. Desde que descobri que neste lugar há um tabu
contra a minha esposa, enquanto estiver com ela, não posso fazer negó-
cios. Agora, o que qualquer um faria em meu lugar, se fosse um ho-
mem?”, perguntei. “A primeira coisa que faria seria isso, penso.” Então
peguei o papel e o despedacei e joguei os pedaços no chão.
“Aué!”, gritou Uma, e bateu as mãos, mas segurei uma delas.
“E a segunda coisa que faria”, falei, “se fosse o que chamo de ho-
mem, e o que o senhor chamaria de homem, sr. Tarleton, seria trazer a
garota até você ou qualquer outro missionário, se levantar e dizer: ‘Me
casei de modo errado com a minha esposa, mas a tenho em alta conta, e
agora quero me casar com ela da maneira correta’. Comece, sr. Tarleton.
E imagino que o fará melhor no idioma nativo; agradará a velha”, disse
e dei a ela o nome próprio de marido local.
Assim, com dois membros da tripulação por testemunha, fomos
unidos em nossa própria casa; o clérigo rezou um pouco, devo dizer,
mas não por tanto tempo como alguns, e apertou as mãos de nós dois.
“Sr. Wiltshire”, falou após pronunciar as linhas e dispensar as teste-
munhas, “devo agradecer-lhe por prazer tão vivaz. Poucas vezes realizei
cerimônia de casamento com emoções tão verdadeiras.”
Foi o que se podia chamar de conversa. Ele continuou a falar mais, e
seguia com água na boca, querendo mais, pois me sentia bem. Mas algo
incomodou Uma no meio do casamento e ela o interrompeu diretamen-
te.
“Como machucar mão?”, perguntou.
“Perguntar cabeça Case, senhora”, disse.
Saltou com alegria e cantarolou.
“Essa daí não é muito cristã para o senhor”, comentei ao sr. Tarle-
ton.
“Não pensamos que era das piores”, falou, “quando estava em Fale-
alii; e se Uma tem malícia, fico tentado a imaginar que tem uma boa
causa.”
“Bem, agora chegamos ao serviço número dois”, disse. “Quero lhe
contar nossa história, e ver se o senhor faz entrar um pouco de luz do
sol aqui.”
“É demorado?”, perguntou.
“Sim”, falei, “é um caso e tanto.”
“Bem, lhe darei todo o tempo que puder”, disse e olhou para o reló-
gio. “Mas devo deixar claro que não como desde as cinco desta manhã;
e a não ser que me consiga algo, não haverei de comer novamente até as
sete ou oito desta noite.”
“Por Deus, lhe daremos jantar!”, exclamei.
Fiquei um pouco receoso pela blasfêmia, logo quando tudo ia bem;
o missionário também, suponho, mas fingiu olhar para a janela e nos
agradeceu.
Então lhe preparamos uma pequena refeição. Estava disposto a dei-
xar a senhora tocar nela, para me exibir; então a ordenei que preparasse
o chá. Não creio que vi aquele chá novamente, afinal. Mas aquilo não
foi o pior, pois pegou o sal, que considerava um toque europeu a mais, e
transformou a minha carne cozida em água do mar. De modo geral, o sr.
Tarleton teve um jantar dos infernos; mas se divertiu bastante por um
lado, durante todo o tempo em que cozinhamos, e depois ao fingir co-
mer, falei sobre mestre Case e a praia de Falesá, e ele perguntou como
quem presta muita atenção.
“Bem”, falou por fim, “receio que seja inimigo perigoso. Afinal, esse
tal de Case é muito esperto e parece realmente temível. Devo lhe dizer
que estive de olho nele há cerca de um ano, e na verdade tive o pior dos
encontros. Na época em que o último representante de sua firma fugiu
de modo tão repentino, recebi carta de Namu, o pastor nativo, e me im-
plorou que viesse a Falesá na primeira oportunidade, já que todo o seu
rebanho ‘adotava práticas católicas’. Confiava bastante em Namu; re-
ceio que isso mostre o quão facilmente somos enganados. Ninguém po-
deria ouvi-lo pregar sem se convencer de que tinha talentos extraordi-
nários. Todos os ilhéus facilmente adquirem espécie de eloquência, e são
capazes de desenrolar e ilustrar sermões de segunda mão com grande vi-
gor e charme; mas os sermões de Namu são dele mesmo, e não posso
negar que os ouvi em estado de graça. Ademais, tinha curiosidade ativa
pelas coisas seculares, não temia o trabalho, era carpinteiro inteligente, e
se fez tão respeitado entre os pastores da vizinhança que o chamamos,
com chiste que em parte é sério, de o Bispo do Oriente. Em suma, sen-
tia orgulho do homem; fiquei muito intrigado com a carta dele e dei um
jeito de vir até aqui. Na manhã anterior à minha chegada, Vigours esti-
vera a bordo do Lion, e Namu estava completamente calmo, aparente-
mente com vergonha da carta, e sem nenhuma vontade de explicá-la. Is-
so não permitiria de modo algum; e acabou por confessar que andava
muito preocupado por encontrar o seu povo persignando-se, mas desde
que encontrou a explicação, a sua mente estava tranquila. Pois Vigours
tinha o Olho Mau, algo comum no país europeu chamado Itália, onde
os homens frequentemente morriam fulminados por espécie de diabo; e
parecia que o sinal da cruz era encanto contra esse poder.
“ ‘E posso explicar isso, Misi’, disse Namu a seu modo. ‘O país na
Europa é papal, e o diabo do Olho Mau talvez seja diabo católico, ou ao
menos acostumado com os modos católicos. Então, assim raciocinei: se
esse sinal da cruz fosse usado ao modo do santo Papa, seria pecamino-
so; mas quando é usado apenas para proteger homens de um diabo, o
que é em si inofensivo, o sinal também haverá de ser inofensivo. Pois o
sinal não é bom ou mau, assim como a garrafa não é boa ou má. Mas se
a garrafa estiver cheia de gim, o gim é mau; e se o sinal é feito por idola-
tria, do mesmo modo, a idolatria é má’. Assim como pastor muito nati-
vo, tinha um texto adequado de como exorcizar diabos.
“ ‘E quem lhe falou do Olho Mau?’, perguntei.
“Admitiu ter sido Case. Agora, receio que me ache muito limitado,
sr. Wiltshire, mas devo lhe contar que me desagradou, e não consigo
aceitar que um comerciante seja de algum modo bom para aconselhar
ou influenciar os meus pastores. E, além disso, circulava na região uma
conversa do velho Adams e seu envenenamento, que não dei muita im-
portância; mas voltou a mim agora.
“ ‘E esse Case é homem de vida santa?’, perguntei.
“Admitiu que não era; pois apesar de não beber, era libertino com as
mulheres e não tinha religião.
“ ‘Então’, disse, ‘creio que quanto menos ficar com ele, melhor.’
“Mas não é fácil dar a última palavra a alguém como Namu; num
momento estava pronto com uma ilustração. ‘Misi’, falou, ‘o senhor me
contou que homens sábios, não pastores, nem mesmo sagrados, conhe-
ciam muitas coisas úteis de serem ensinadas, por exemplo, das árvores, e
animais, e a imprimir livros, e das pedras a queimar para se fazer facas.
Tais homens ensinam em suas faculdades, e o senhor aprende com eles,
mas toma cuidado para não aprender a ser profano. Misi, Case é a mi-
nha faculdade.’
“Não soube o que dizer. O sr. Vigours havia claramente conduzido
para fora de Falesá por causa das maquinações de Case e com algo não
muito diferente dos conluios de meu pastor. Veio à minha mente que
fora Namu que havia me informado sobre Adams e contado o rumor da
má conduta do padre. Então, vi que devia me informar melhor com al-
guma fonte imparcial. Há um chefe que é um velho patife aqui, Faiaso,
que arrisco dizer que o senhor conheceu hoje no conselho; por toda a
vida foi turbulento e astuto, grande fomentador de rebeliões, e espinho
no lado da missão e da ilha. Apesar de tudo isso, é bastante perspicaz e,
exceto quanto à política ou a seus próprios delitos, sempre fala a verda-
de. Fui a sua casa, lhe relatei o que ouvi, e implorei que fosse franco.
Não creio jamais ter tido outra conversa tão desagradável. Talvez o se-
nhor entenderá, sr. Wiltshire, se lhe disser que levo totalmente a sério
esses contos de matronas pelos quais me reprova, e anseio por fazer o
bem nestas ilhas tanto quanto o senhor por agradar e proteger a bela es-
posa. E haverá de se lembrar que eu tinha Namu como exemplo, e sen-
tia orgulho de o homem ser um dos primeiros frutos maduros da mis-
são. E agora sou informado de que tinha certa dependência de Case. O
começo disso não havia sido corrupto; começou sem dúvida no medo e
no respeito produzidos pela trapaça e a afetação; mas fiquei chocado
por descobrir outro elemento acrescentado nos últimos tempos, que
Namu comprava à vontade na loja e acreditava-se que estava afundado
em dívidas com Case. O que quer que o comerciante dissesse, Namu
acreditava tremendo. Não estava sozinho nisso; muitos na vila viviam
sujeição semelhante, porém o caso de Namu era o mais influente; foi
por Namu que Case forjara os maiores males; e com certa influência en-
tre os chefes, e o pastor no bolso, o homem era tão bom quanto o mes-
tre da vila. O senhor sabe algo a respeito de Vigours e Adams; mas tal-
vez nunca tenha ouvido falar do velho Underhill, o predecessor de
Adams. Era velho sujeito quieto e brando, bem me lembro, e nos conta-
ram que havia morrido de repente: brancos morrem de repente em Fa-
lesá. A verdade, conforme agora a escutava, fez o meu sangue gelar. Pa-
rece que foi afligido por paralisia geral, completamente morto, exceto
por um olho, que piscava continuamente. A conversa surgida era que o
velho era um demônio; e que esse sujeito vil, Case, trabalhava com base
nos medos dos nativos, que professava compartilhar, e fingia não ousar
ir para casa sozinho. Por fim um túmulo foi cavado, e o corpo vivo en-
terrado nos limites da vila. Namu, o meu pastor, que havia ajudado a
educar, ofereceu reza nessa cena detestável.
“Eu me senti em posição muito complicada. Talvez também fosse
dever meu denunciar Namu e depô-lo; talvez pense isso agora; mas na
época, não me parecia tão evidente. Tinha grande influência, que podia
se provar maior que a minha. Os nativos eram suscetíveis à superstição;
talvez ao instigá-los, pudesse apenas semear e espalhar essas ideias fan-
tasiosas. E, além disso, Namu, com exceção da influência nova e maldi-
ta, era bom pastor, capaz e de mentalidade espiritual. Onde poderia
procurar por um melhor? Como encontrar um tão bom? Naquele mo-
mento, com o fracasso de Namu fresco em minha visão, o trabalho de
minha vida pareceu chacota; a esperança havia morrido em mim; prefe-
ria consertar as ferramentas que possuía, que sair em busca de outros
que certamente se provariam piores; e o escândalo é, na melhor hipóte-
se, algo a se evitar quando humanamente possível. Certo ou errado, en-
tão, optei pelo silêncio. Por toda a noite, discuti com o pastor em erro e
o censurei; denuncei sua ignorância e desejo de fé; denunciei seu com-
portamento lamentável, deixei claro o lado externo da taça e da travessa,
ajudei com indiferença no assassinato, saltei de excitação de modo in-
fantil por causa de gestos infantis, desnecessários e inconvenientes; e
muito antes do dia nascer, o coloquei de joelhos e banhei em lágrimas o
que parecia arrependimento genuíno. No domingo, fui ao púlpito pela
manhã e preguei com o primeiro livro dos Reis, capítulo décimo nono,
sobre o fogo, o terremoto e a voz: distingui o verdadeiro poder espiri-
tual, e me referi com o máximo de clareza aos recentes eventos em Fale-
sá. O efeito produzido foi grandioso; e aumentou bastante quando Na-
mu se levantou por sua vez, e confessou que estivera em falta quanto à
fé e à conduta, e estava convencido do pecado. Até então, tudo estava
bem; mas houve circunstância desafortunada, pois se aproximava a épo-
ca de nosso ‘maio’ na ilha, quando as contribuições dos nativos para a
missão eram recebidas; caiu em meu dever fazer a notificação do assun-
to; e isso deu chance ao meu inimigo, a qual não tardou em se aprovei-
tar.
“Notícias de todos os procedimentos foram passadas a Case assim
que a missa acabou; e, na mesma tarde, organizou-se para me encontrar
no meio da vila. Veio com tanto ímpeto e animosidade que pressenti ser
perigoso evitá-lo.
“ ‘Então’, falou no idioma nativo, ‘eis o homem santo. Pregou con-
tra mim, mas aquilo não estava no coração. Pregou o amor de Deus,
mas aquilo não estava no coração — aquilo estava entre os dentes. Quer
saber o que estava no coração?’, gritou. ‘Eu vou mostrar.’ Estendeu a
mão na minha cabeça, subitamente fingiu retirar um dólar, e o segurou
no ar.
“Dali surgiu o rumor na multidão de quando os polinésios testemu-
nham um prodígio. Quanto a mim, fiquei impressionado. A coisa era
truque de mágica ordinário, que em minha terra vi uma dezena de ve-
zes; mas como haveria de convencer os habitantes da vila? Desejei ter
estudado prestidigitação em vez de hebraico, e assim poderia pagar o
sujeito com sua própria moeda. Mas ali estava, sem suportar o silêncio,
e o melhor que podia pensar em dizer era fraco.
“ ‘Peço que não coloque as mãos em mim novamente’, disse.
“ ‘Não farei isso’, respondeu, ‘nem o privarei de seu dólar. Aqui es-
tá’, disse e o jogou nos meus pés. Ouvi dizer que ficou por três dias no
lugar que caiu.”
“Devo admitir que foi bem encenado”, falei.
“Oh, é esperto”, disse o sr. Tarleton, “e agora o senhor pode ver por
si mesmo como é perigoso. Fez parte da horrível morte do paralítico; é
acusado de envenenar Adams; levou Vigours a sair do local com menti-
ras que podem ter levado ao assassinato; e não há dúvida de que agora
decidiu se livrar do senhor. Como pretende fazer isso, não temos ideia;
saiba apenas que certamente é algo novo. A sua disposição e invenção
não têm fim.”
“Dá a si mesmo um vislumbre de problema”, digo a ele. “E, afinal,
para quê?”
“Oras, quantas toneladas de copra conseguem produzir neste distri-
to?”, perguntou o missionário.
“Ouso dizer que umas sessenta toneladas”, respondi.
“E qual o lucro para o comerciante local?”, perguntou.
“Pode-se dizer que três libras”, falei.
“Eis então por quanto ele faz isso”, disse o sr. Tarleton. “E a coisa
mais importante é desafiá-lo. Está claro que espalhou alguma história
contra Uma, de modo a isolá-la e satisfazer o desejo doentio por ela; co-
mo falhou e viu novo rival no cenário, a usou de modo diferente. Agora
a primeira questão a descobrir é sobre Namu. Uma, quando as pessoas
evitavam você e sua mãe, o que Namu fazia?”
“Parar igual todos”, respondeu.
“Receio que o cão voltou ao vômito”, disse o sr. Tarleton. “E agora
o que devo fazer por você? Falarei com Namu, o alertarei que é obser-
vado; será estranho se deixar qualquer coisa passar despercebida quan-
do estiver em alerta. Ao mesmo tempo, essa precaução pode falhar, e
então devem ir em outra direção. Vocês têm duas pessoas em mãos a
quem podem acorrer. Antes de todos há o padre, que pode protegê-los
pelo interesse católico; são um pequeno corpo e mirrado, mas contam
com dois chefes. E então há o velho Faiaso. Ah, e se fosse há dois anos,
não precisariam de mais ninguém; mas a influência dele diminuiu mui-
to, e passou para as mãos de Maea, e Maea, receio, é um dos valetes de
Case. Em suma, caso o pior aconteça, devem mandar alguém ou ir pes-
soalmente a Fali-alii, e embora não deva vir a esta parte da ilha por um
mês, verei o que pode ser feito.”
Assim o sr. Tarleton disse adeus; meia hora depois, a tripulação can-
tava e os remos brilhavam no barco missionário.
CAPÍTULO IV
TRABALHO DO DIABO
Quase um mês se passou sem que nada acontecesse. Na mesma noite do
nosso casamento, Galoshes apareceu, se comportou com extrema civili-
dade, e pegou o hábito de sair no escuro e fumar seu cachimbo com a
família. Obviamente conseguia conversar com Uma, e começou a me
ensinar o idioma nativo e francês ao mesmo tempo. Era uma espécie de
velho gentil e bem-humorado, embora sujo demais para qualquer um, e
com suas línguas estrangeiras me deixou mais confuso que a Torre de
Babel.
Essa era a atividade que tínhamos, e me fez sentir menos solitário;
mas não havia lucro nisso; pois apesar do padre vir, se sentar e contar
histórias, ninguém de seu pessoal foi atraído até a minha loja; e se não
fosse pela outra ocupação a que me dediquei, não haveria um quilo de
copra na casa. Eis a ideia: Fa’avao (mãe de Uma) tinha uma dezena de
árvores produtivas. Obviamente, não conseguíamos trabalho, sofríamos
o tabu todos do mesmo modo. Então, as duas mulheres e eu começa-
mos a fazer a copra com as próprias mãos. Era copra para fazer a boca
salivar enquanto era feita — nunca percebi como era enganado pelos
nativos até fazer quatrocentos libras com as próprias mãos — e pesava
tão pouco, que senti ganas de pegar e molhar eu mesmo.
Quando estávamos no trabalho, muitos bons kanakas passavam o
melhor do dia na observação, e uma vez aquele negro apareceu. Ficou
atrás com os nativos, gargalhou, imitou o grande senhor e o cachorri-
nho engraçado, até que me irritei.
“Aqui, você, negro!”, exigi.
“Eu não tô falando com o siô”, disse o negro. “Só falo com cavaie-
ros.”
“Sei”, falei, “mas acontece que falei com você, sr. Black Jack. E tudo
o que quero saber é o seguinte: viu como estava a cabeça de Case há
cerca de uma semana?”
“Não, siô”, disse.
“Tudo bem, então”, respondi; “porque vou lhe mostrar a irmã dela,
mas preta, e em menos de dois minutos.”
E andei na direção dele, bem devagar e com as mãos para baixo; ha-
veria problema à vista, se alguém se desse o trabalho de olhar.
“O siô é sujeito baixo e recarcitrante”, disse.
“Pode apostar!”, respondi.
Naquele momento, percebeu que eu já estava mais perto que o con-
veniente, e disparou, de modo que me agradou observá-lo partir; e foi
tudo o que vi daquela turma preciosa, até o que estou prestes a contar a
vocês.
Era um de meus principais empreendimentos nesses dias caçar nas
matas, pois achava (como Case me dissera) diversão muito interessante.
Já mencionei o cabo, que se limitava com a povoação e o meu local no
leste. Uma trilha saía no fim dela e dava na próxima baía. Um vento for-
te soprava ali diariamente, e como a linha da barreira de recifes termina-
va no fim do cabo, a rebentação pesada batia na enseada da baía. Um
pequeno despenhadeiro, perto da baía, cortava o vale em duas partes;
com a maré alta, o mar se quebrava diretamente em face dele, de modo
que a passagem era interrompida. Montanhas com floresta margeavam
todo o local; a barreira ao leste era particularmente íngreme e cheia de
folhas; as partes mais baixas caíam em profundos desfiladeiros negros
riscados por cinabre; a parte superior ficava grumosa com os topos das
grandes árvores. Algumas das árvores eram de verde brilhante, outras
avermelhadas, e a areia da praia era preta como o sapato de vocês. Mui-
tos pássaros planavam em volta da baía, alguns deles brancos como ne-
ve; e a raposa-voadora (ou vampiro) voava ali em plena luz do dia, ran-
gendo os dentes.
Por muito tempo, fui apenas até lá, atirava, sem ultrapassar esse
ponto. Não havia sinal de trilha além dali; e os coqueiros em frente ao
pé do vale eram os últimos nesse caminho. Todo o “olho” da ilha, como
os nativos chamam o limite a barlavento, ficava deserto. De Falesá até a
região de Papa-mālūlū, não havia nem casa, nem homem, nem árvore
frutífera plantada; e como o recife, em sua maior parte era ausente, e as
enseadas escarpadas, o mar batia diretamente nas falésias, e mal havia al-
gum lugar para desembarcar.
Deveria contar que, após começar a ir para as matas, embora nin-
guém ousasse se aproximar da loja, encontrei pessoas dispostas a passar
o dia em minha companhia, se ninguém as visse. E como começava a
aprender o idioma nativo, e a maioria delas sabia uma ou duas palavras
em inglês, mantive conversas triviais, sem muito propósito, para falar a
verdade, mas que tiraram o pior daquela sensação. Pois é terrível ser
tratado como leproso.
Calhou que um dia, quase no fim do mês, sentado na baía, no limite
da mata, olhava para o leste, com um kanaka. Havia lhe entregue supri-
mento de tabaco, e tentávamos conversar da melhor maneira possível;
na verdade, ele sabia inglês melhor que a maioria dos outros.
Eu lhe perguntei se não havia estrada que dava ao leste.
“Uma vez uma estrada”, disse. “Agora morta.”
“Ninguém ir ali?”, perguntei.
“Não bom”, falou. “Muito diabo parar ali.”
“Oho!”, respondi, “cheia diabo, aquela mata?”
“Homem diabo, mulher diabo: muito diabo”, disse o meu amigo.
“Parar ali tempo inteiro. Homem ir ali, não voltar.”
Pensei que, se aquele sujeito estava tão bem informado dos diabos e
falava deles tão abertamente, o que não é comum, seria melhor pescar
um pouco de informações de Uma e eu.
“Você achar eu diabo?”, perguntei.
“Não achar diabo”, disse com tranquilidade. “Achar tolo igual to-
dos.”
“Uma, ela diabo?”, perguntei novamente.
“Não, não; não diabo; diabo parar mata”, disse o jovem.
Olhava para o outro lado da baía à minha frente, e vi a frente sus-
pensa da mata abrir de repente, e Case avançou, armado, para praia ne-
gra sob o sol. Vestia pijamas claros, quase brancos, a arma brilhava, e
parecia extremamente distinto; e os caranguejos escapuliam de volta pa-
ra os seus buracos.
“Hum, meu amigo”, disse, “você não falar toda verdade. Ese vai, e
volta.”
“Ese não igual; Ese Tiapolo”, diz o meu amigo; então, se despediu e
se enfiou em meio às árvores.
Observei Case em volta da praia, onde a maré estava baixa; e deixei
que passasse por mim a caminho de casa em Falesá. Estava absorto em
pensamentos; e os pássaros pareciam saber disso, passeavam muito per-
to dele na areia ou davam voltas e piavam em seu ouvido. Quando che-
gou o mais perto de mim, pude ver pelo movimento dos lábios que fala-
va consigo mesmo e, o que me agradou imensamente, que ainda levava a
minha marca registrada na sobrancelha. Para dizer toda a verdade, quis
lhe dar um tiro na carranca horrível, mas pensei melhor.
Por todo esse tempo, e por todo o tempo em que segui para casa, re-
peti aquela palavra nativa, que me lembrava por “Polly é o nome de mi-
nha tia”, tia-Polly.
“Uma”, perguntei quando cheguei, “o que significa ‘Tiapolo’?”
“Diabo”, respondeu.
“Pensei que a palavra para isso fosse aitu”, falei.
“Aitu outro diabo”, disse; “parar mata, comer kanaka. Tiapolo gran-
de chefe diabo, parar casa; mesmo diabo cristão.”
“Então”, falei. “Não insistir nisso. Como Case ser Tiapolo?”
“Não mesma coisa”, explicou. “Ese pertence Tiapolo; Tiapolo mui-
to parecido; Ese filho dele. Pensa Ese quer coisa, Tiapolo faz.”
“Isso é conveniente demais para Ese”, disse. “E que coisas lhe faz?”
Bem, dali saiu lenga-lenga com história de tudo quanto é tipo, mui-
tas delas (como o dólar que tirou da cabeça do sr. Tarleton) estavam
muito claras para mim, mas de outras não tinha noção; e o que mais
surpreendia os kanakas era o que menos me surpreendia; saber que po-
dia entrar no deserto entre todos os aitus. Alguns dos mais corajosos,
no entanto, o acompanhavam, e o ouviam falar com os mortos e lhes
dar ordens, e seguros em sua proteção, retornavam incólumes. Alguns
disseram que lá tinha igreja onde adorava o Tiapolo, e o Tiapolo apare-
cia para ele; outros juravam que não havia feitiçaria, que realizava os
milagres com o poder da reza, e que a igreja não era igreja, mas prisão
onde havia confinado os aitu perigosos. Namu havia entrado na mata
com ele uma vez, e retornou glorificando a Deus por aquelas maravi-
lhas. No todo, tive um vislumbre da posição dele, e dos meios com que
a havia adquirido, e embora visse que ele seria noz difícil de se quebrar,
não desanimei de modo algum.
“Muito bem”, afirmei, “eu mesmo darei uma olhada no lugar de
adoração do Mestre Case, e veremos o que há nessa glorificação.”
Nesse momento, Uma sentiu apreensão terrível; se fosse para a mata
alta, talvez jamais voltasse; ninguém podia ir lá sem a proteção do Tia-
polo.
“Arriscarei a de Deus”, falei. “Na medida do possível, Uma, sou boa
pessoa; e creio que Deus me ajudará a passar por isso.”
Ficou em silêncio por um tempo. “Achar”, disse com muita soleni-
dade; e em seguida: “Victorea grande chefe?”.
“Pode apostar”, respondi.
“Gostar muito de você?”, perguntou novamente.
Eu lhe disse com sorriso sarcástico que acreditava que a velha dama
era um tanto parcial para comigo.
“Tudo bem”, respondeu. “Victorea grande chefe, gostar muito você;
não poder ajudar aqui Falesá; não poder, muito longe. Maea chefe pe-
queno; parar aqui; imaginar gostar você, fazer você tudo bem. Mesma
coisa Deus e Tiapolo. Deus grande chefe, trabalho demais. Tiapolo che-
fe pequeno, gostar muito mostrar, trabalhar muito.”
“Terei de mandá-la para o sr. Tarleton”, disse. “Sua teologia está fora
dos limites, Uma.”
Apesar de falarmos desse assunto a noite inteira, e de ela me contar
histórias do deserto e seus perigos, se assustou a ponto de quase ter um
ataque. Claro que não me lembro de um quarto delas, pois não dei mui-
ta atenção; mas duas voltam a mim com certa clareza.
A cerca de dez quilômetros costa acima existe esconderijo protegido
que chamam de Fanga-anaana, “o ancoradouro cheio de cavernas”. Eu
havia visto do mar, tão próximo quanto consegui fazer os meus garotos
se aventurarem até lá; é uma pequena faixa de areia amarela. Penhascos
negros o ladeavam repletos pelas bocas negras das cavernas, e grandes
árvores sobrepunham os penhascos com cipós pendurados, e em local,
próximo ao meio, grande riacho cai na cascata. Bem, havia um barco
por ali com seis jovens de Falesá, “todos muito bonitos”, Uma disse,
que lhes foi a perdição. Ventava forte, e o mar adiante estava tumultuo-
so; e quando ficaram de frente para Fanga-anaana, e viram a cascata
branca e a praia ensombrecida; estavam todos cansados e com sede, pois
a água havia acabado. Um deles propôs desembarcar e beber um pouco;
e, por serem imprudentes, todos pensaram a mesma coisa, exceto o mais
jovem. Seu nome era Lotu; era jovem muito bom e inteligente; e lhes fa-
lou que estavam loucos, avisou que o lugar era dominado por espíritos e
demônios e os mortos, e que não havia vivos a menos de dez quilôme-
tros numa direção e talvez uns vinte na outra. Mas riram de suas pala-
vras; e por ser cinco contra um, continuaram, ancoraram o barco, e de-
sembarcaram. Era lugar maravilhoso, agradável, disse Lotu, e a água ex-
celente. Deram a volta na praia, mas não conseguiam ver nenhum lugar
para escalar o penhasco, o que os acalmou; e por fim se sentaram para
comer o que haviam trazido consigo. Mal se assentaram, quando surgiu
da boca das cavernas negras seis das mulheres mais bonitas que já havi-
am visto; tinham flores nos cabelos, e os seios mais bonitos, e colares de
sementes escarlates; e gracejaram com os jovens cavalheiros, e eles gra-
cejaram de volta, todos menos Lotu. Quanto a Lotu, viu que não pode-
ria haver mulher em local assim, correu, e se lançou no fundo do barco,
cobriu o rosto, e rezou. Por todo o tempo enquanto o evento durou,
Lotu rezou sem parar um segundo; e foi tudo o que soube disso, até os
amigos retornarem, o sentarem, e voltarem ao mar na saída da baía, ago-
ra bem deserta, e nenhuma palavra sobre as seis moças. Porém, o que
mais apavorou Lotu, nenhum dos cinco se lembrava do que havia acon-
tecido, mas todos pareciam bêbados, e cantavam e riam no barco, e pan-
degavam. O vento esfriou e veio a borrasca, o mar subiu a altura extra-
ordinária; era clima que nenhum homem ignoraria, nem fugiria para Fa-
lesá; mas esses cinco enlouquecidos prepararam as velas e levaram o
barco ao mar. Lotu escoava a água; nenhum dos outros pensou em aju-
dá-lo, apenas cantavam e pandegavam e seguiam, e falavam singularida-
des, além da compreensão humana, e gargalhavam alto enquanto as di-
ziam. Então, pelo resto daquele dia, Lotu escoou a água do fundo do
barco por sua vida, completamente encharcado de suor e da água gelada
do mar; e ninguém se importou com ele. Contra todas as expectativas,
chegaram salvos, na assustadora tempestade, a Papa-mālūlū, onde os
coqueiros se agitavam e os cocos voavam como bolas de canhão na gra-
ma da vila; e, na mesma noite, os cinco jovens cavalheiros adoeceram e
nunca mais falaram uma palavra razoável até a morte.
“E quer me dizer que engole uma história como essa?”, perguntei.
Ela me contou que era bem conhecida, e com jovens bonitos sozi-
nhos, até mesmo comum. Mas esse era o único caso onde cinco haviam
sido abatidos no mesmo dia e na companhia do amor de mulheres-de-
mônio; e havia causado grande agitação na ilha; e ela seria louca se duvi-
dasse.
“Então, pelo menos”, disse, “não precisa ficar com medo por minha
causa. Mulheres-demônio não me servem para nada; você é todas as
mulheres que desejo, e todos os demônios também, senhora.”
A isso respondeu que haviam outras espécies, e que tinha visto um
com os próprios olhos. Certo dia, havia ido sozinha à baía ao lado, e
talvez se aproximou demais dos limites do lugar ruim. A sombra dos
galhos da mata alta encobria a beira do penhasco, mas ela estava fora,
em lugar plano, muito pedregoso e com bastantes abricós, entre um me-
tro e um metro e meio de altura. Era dia escuro na estação chuvosa; e
ora vinham rajadas de vento que arrancavam as folhas e as faziam voar,
ora tudo ficava quieto como dentro de casa. Estive nessas quietudes al-
gumas vezes, em que todo um bando de pássaros e raposas-voadoras se
atiravam para fora da mata como criaturas assustadas. Em seguida, o
farfalhar de algo nas proximidades, e viu sair da margem das árvores en-
tre os abricós, um suíno magro, cinzento e velho. Pareceu pensar, en-
quanto ele vinha, que era como pessoa; então de súbito, enquanto o via
se aproximar, notou que aquilo não era suíno, mas homem com os pen-
samentos de homem. Então, correu dele e o porco atrás, guinchava alto
e corria, de modo que o local ressoava com isso.
“Queria estar lá com a arma”, falei. “Aposto que o porco guincharia
de surpresa.”
Mas me disse que a arma era inútil em situações assim, que aqueles
eram os espíritos dos mortos.
Bem, esse tipo de conversa bastou por aquela noite, que foi o me-
lhor disso; mas é claro que não mudava o meu propósito; e no dia se-
guinte, com a arma e boa faca, parti em viagem de descoberta. Cheguei
o mais perto possível do lugar de onde vira Case sair; pois se era verda-
de que possuía algum empreendimento na mata, sabia que encontraria a
trilha. O começo do deserto era marcado por um muro — por assim di-
zer, pois era mais uma grande pilha de pedras; dizem que dá para o ou-
tro lado da ilha, mas como sabem disso é outra questão, pois duvido
que alguém tenha feito essa jornada nos últimos cem anos; os nativos fi-
cam principalmente ao mar e nas pequenas colônias ao longo da costa, e
aquela é a parte alta, fatal, íngreme e repleta de desfiladeiros. Segui pela
direção oeste do paredão, o chão fora limpo, e haviam coqueiros, e abri-
cós, e goiaba, e muitas plantas delicadas. Já do outro lado, a floresta co-
meçava de verdade; mata densa ali: árvores eretas como mastros de na-
vios, e cordas de cipó penduradas como cordames de navio, e orquídeas
desagradáveis cresciam nas forquilhas como fungos. No chão, sem ve-
getação rasteira, parecia haver uma pilha de seixos. Vi muitos pombos-
verdes que conseguiria acertar, caso não estivesse ali com intenção di-
versa; grande número de borboletas subia e descia pelo chão como fo-
lhas mortas; às vezes, escutava um pássaro piar, às vezes, o vento acima,
e sempre o mar ao longo da costa.
Mas a estranheza do lugar é mais difícil de se descrever; a não ser pa-
ra alguém que já esteve sozinho na mata densa. O dia mais brilhante é
sempre opaco lá dentro. Uma pessoa não consegue ver o final de nada;
para onde olhar, a mata estará fechada, um ramo se funde ao outro, co-
mo os dedos da mão; e sempre que tentar escutar, ouvirá algo novo —
conversas, risos infantis, batidas de machado bem ao longe, e, às vezes,
espécie de corrida furtiva e veloz muito próxima, que o fará saltar e che-
car as armas. É muito fácil contar a si mesmo que está sozinho, com ex-
ceção das árvores e dos pássaros; não consegue acreditar nisso: não im-
porta para onde se virar, todo o lugar parece vivo e que o observa. Não
pense que foram as histórias de Uma que me assustaram; não dou qua-
tro vinténs pela história de nativo: isso é algo natural na mata, nada
mais.
Conforme me aproximava do topo da montanha, uma vez que o so-
lo da mata se inclinava e ficava íngreme como escada, o vento soava
mais forte, e as folhas caíam e se abriam para deixar o sol entrar. Isso me
agradava mais; era o mesmo barulho o tempo inteiro, e nada que me as-
sustasse. Bem, encontrei um lugar onde havia a vegetação que chamam
de coqueiro selvagem — extremamente bonito, com frutos avermelha-
dos — quando veio pelo vento espécie de som que não me lembrava de
já haver escutado. Seria muito bom dizer a mim mesmo que eram os ga-
lhos; mas sabia que não eram. Seria muito bom dizer a mim mesmo que
era um pássaro; mas nunca ouvi pássaro cantar daquele modo. Aumen-
tava, e fica alto, e enfraquecia, e alto novamente; ora pensava que era co-
mo choramingo, porém mais belo; ora pensava que era como harpa; e
havia uma coisa da qual tinha certeza, era muito doce para ser natural
naquele lugar. Podem rir se quiserem; mas admito que me recordei das
seis jovens damas que apareceram, com colares escarlates, na caverna
em Fanga-anaana, e me perguntei se cantavam assim. Rimos dos nativos
e suas superstições; mas veja como muitos comerciantes as adotam, ho-
mens brancos esplendidamente educados, guarda-livros (alguns deles) e
escriturários no velho país! Acredito que a superstição cresce como di-
versas espécies de ervas; fiquei ali, escutava aquele lamento e tremia em
meus sapatos.
Podem me chamar de covarde por ter me assustado; percebi que ti-
nha coragem o bastante para seguir em frente. Mas fui com cuidado ex-
tremo, com a arma engatilhada, atento a tudo ao redor como caçador,
com expectativa de ver a jovem bonita sentada em algum lugar na mata,
e completamente determinado (se conseguisse) a testá-la com rajada de
chumbo grosso. E, com certeza, não havia ido longe, quando me depa-
rei com algo esquisito. O vento veio de cima da mata em lufada forte, as
folhas à frente se abriram de vez, e vi por um segundo algo pendurado
na árvore. Desapareceu num piscar de olhos, a lufada bateu e as folhas
se fecharam. Contarei a verdade; estava convicto de ter visto um aitu; se
a coisa se parecesse com porco ou mulher, eu não teria a mesma reação.
O problema era que me parecera um tanto quadrado; e a ideia de algo
quadrado que vivesse e cantasse me deixava nervoso e atordoado. Devo
ter ficado ali um tempo; estava bastante seguro de que foi exatamente da
mesma árvore que vinha a cantoria. Então, refleti um pouco.
“Bem”, digo, “se realmente é isso, se este é onde há coisas quadradas
que cantam, já subi até aqui mesmo. Que se divirta às minhas custas.”
Mas pensei que também seria bom aproveitar a estranha possibilida-
de para rezar; então caí de joelhos e rezei em voz alta; e durante todo o
tempo em que rezava, os sons estranhos vinham da árvore, e subiam e
desciam, e se transformavam, pois o mundo inteiro gosta de música;
apenas não podia ver se era humana — não havia ninguém para quem
assobiar.
Assim que terminei de modo apropriado, abaixei a arma, prendi a
faca entre os dentes, andei direto até a árvore, e a escalei. Meu coração
estava gelado, mas, conforme subia, tive outro vislumbre daquilo, o que
me aliviou, pois achei parecido com uma caixa; e quando o alcancei,
quase caí da árvore de tanto gargalhar. Certamente era caixa, e caixa de
velas, com a marca na lateral; e tinha cordas de banjo esticadas para to-
car quando o vento assoprasse. Acredito que chamam isso de harpa ti-
rolesa, seja lá o que significa.
“Bem, sr. Case”, falei, “me assustou uma vez. Mas o desafio a me as-
sustar novamente”, disse e desci da árvore, e me preparei novamente pa-
ra encontrar a sede do inimigo, que imaginei não estar longe.
O matagal era espesso nesse trecho, não conseguia enxergar além do
meu nariz, e tive de abrir o caminho pela força bruta e empregar a faca
enquanto seguia, fatiava as fibras dos cipós e talhava árvores inteiras
com um golpe só. Chamo de árvores pelo tamanho, mas, na verdade,
não passavam de grandes matos e plantas fáceis de cortar, como cenou-
ra. Devido àquela vegetação de tal espécie e quantidade, pensava exata-
mente que o local poderia ter sido aberto uma vez, quando me deparei
com a pilha de pedras, e vi num momento alguma espécie de trabalho
manual. O Senhor sabe quando havia sido feito ou abandonado, pois tal
parte da ilha estava sem perturbação desde antes de os brancos chega-
rem. Alguns passos depois, encontrei a trilha que procurei o tempo in-
teiro. Era estreita, mas muito usada, e vi que Case tinha muitos discípu-
los. Parece que, na verdade, era amostra de coragem corrente se aventu-
rar ali com o comerciante; e um jovem mal se via como adulto até que
por um lado, ter as nádegas tatuadas, e pelo outro ter visto os demônios
de Case. Isso é muito forte entre os kanakas; mas, se pensarmos direito,
isso é muito forte entre os brancos também.
Um pouco adiante, cheguei em área limpa e tive de esfregar os
olhos. Havia uma parede no caminho, a trilha passava por ela, através
de uma fenda; derrubada e claramente muito antiga, construída com
grandes pedras muito bem colocadas; e naquela ilha não havia nativo vi-
vo que pudesse sonhar com construção daquela qualidade. Ao longo do
topo, havia uma fileira de figuras bizarras, ídolos, ou espantalhos, ou o
que for. Os rostos entalhados e pintados, feios de se ver; olhos e dentes
feitos de conchas; cabelos e roupas coloridas assopravam no vento, e al-
guns deles resistiam ao puxão. Existem ilhas ao oeste, em que ainda hoje
fazem esse tipo de imagem; mas se já foram feitas nesta ilha, a prática e a
lembrança delas estão esquecidas faz muito tempo. E o singular é que
todos esses truques eram recentes como brinquedos de loja.
Então me ocorreu o que Case havia comentado comigo no primeiro
dia, que era bom forjador de curiosidades das ilhas: algo pelo qual mui-
tos comerciantes pagam dinheiro honesto. E, com isso, vi todo o negó-
cio, e como aquele arranjo lhe servia para duplo propósito: primeiro,
fornecer suas curiosidades; depois, assustar aqueles que vinham visitá-
lo.
Mas preciso lhes contar (o que deixava a questão mais inusitada) que
por todo o tempo as harpas eólicas tocavam nas árvores a minha volta, e
mesmo com minha observação, algum pássaro verde e amarelo (supus
que fazia ninho) começou a arrancar o cabelo da cabeça de uma das
imagens.
Um pouco adiante, encontrei a última curiosidade do museu. O que
vi primeiro foi o comprido monte de terra com curva. Cavei a terra com
as mãos, encontrei uma lona revestida por breu esticada em tábuas, de
modo que aquilo claramente era o teto do porão. Ficava no topo da
montanha, e a entrada era do outro lado, entre duas rochas, como entra-
da de caverna. Entrei até a curva, olhei em volta do canto, e vi um rosto
brilhante. Era grande e feio como máscara de pantomima, e o seu brilho
se expandia e diminuía, e às vezes soltava fumaça.
“Oho”, digo, “tinta luminosa.”
E devo admitir que me admirei com o engenho do homem. Com
uma caixa de ferramentas e algumas ideias extremamente simples, havia
logrado fazer um diabo de templo. Qualquer pobre kanaka trazido aqui
no escuro, com o lamento das harpas ao redor, ao olhar para aquele ros-
to fumegante no fundo do buraco, não teria dúvida de que vira e ouvira
demônios demais na vida. É fácil descobrir o que os kanakas pensam.
Simplesmente, volte a si quando tinha entre dez e quinze anos de idade,
e ali está um kanaka médio. Alguns são religiosos, assim como existem
garotos religiosos; e a maioria, mais uma vez como garotos, é razoavel-
mente honesta e ainda pensa em brincar em vez de roubar, e provavel-
mente se assusta com facilidade e não acha isso ruim. Eu me recordei do
rapaz que frequentava a escola comigo em minha terra, cheio de artima-
nhas como as de Case. Não sabia de nada, aquele rapaz; não podia fazer
nada; não tinha tinta luminosa nem harpas tirolesas; apenas afirmava na
coragem que era feiticeiro, e nos dava sustos de gelar a espinha, e amá-
vamos isso. E então me ocorreu como o professor uma vez havia açoita-
do aquele garoto, e a surpresa que todos tivemos ao ver o feiticeiro re-
ceber aquilo e lacrimejar como qualquer outro. Penso: “Preciso encon-
trar um modo de armar algo assim para mestre Case”. E, no momento
seguinte, tive a ideia.
Voltei pelo caminho que, uma vez descoberto, era bem visível e fácil
de percorrer; e quando pisei nas areias negras, quem encontro, se não o
próprio mestre Case? Engatilhei a arma e a mantive em punho; avança-
mos e passamos sem dizer nada, cada um com rabo do olho para o ou-
tro; e mal passamos, nós dois giramos como sujeitos que cavassem um
buraco, e ficamos face a face. Cada um tinha o mesmo pensamento, ve-
ja, de que um haveria de descarregar a arma nas costas do outro.
“Você não atirou em nada”, disse Case.
“Não vim aqui atirar hoje”, respondi.
“Bem, de minha parte, que o diabo siga com você”, falou.
“O mesmo para você”, devolvi.
Mas ficamos exatamente onde estávamos; sem chance de qualquer
um dos dois se mexer.
Case riu. “Podemos ficar aqui parados o dia inteiro, então”, disse.
“Não me deixe detê-lo”, retruquei.
Riu novamente.
“Olha aqui, Wiltshire, pensa que sou idiota?”, perguntou.
“Mais para patife, se quer mesmo saber”, falei.
“Bem, não pense que acho bom atirar em você aqui nesta praia aber-
ta”, afirmou, “porque não acho. As pessoas aparecem para pescar o dia
inteiro. Deve haver uma dezena deles bem agora, fazendo copra; deve
haver meia dúzia na montanha atrás de você, caçando pombos; podem
nos ver agora mesmo, não duvido. Eu lhe dou minha palavra que não
quero atirar. Por que iria querer? Você não me atrapalha nem um pou-
co; não tem uma libra de copra além da que você mesmo fez, como um
escravo negro. Está vegetando, é assim que chamo; e não me importo
onde vegete, nem por quanto tempo. Se me der a palavra de que não vai
atirar em mim, lhe darei vantagem e vou embora.”
“Bem”, respondi, “você é franco e agradável, não é? Serei também.
Não pretendo atirar em você hoje. Por que iria? Esse assunto está no
começo; ainda não terminou, sr. Case. Já lhe dei uma sova, posso ver as
marcas de meus dedos na sua cabeça agora mesmo; e tem mais esperan-
do por você. Não sou paralítico como Underhill; meu nome não é
Adams e nem é Vigours; e pretendo lhe mostrar que encontrou alguém
à altura.”
“Essa é uma maneira imbecil de falar”, disse. “Não é a conversa que
me fará ir adiante.”
“Tudo bem”, falei. “Fique onde está. Não tenho pressa, e sabe disso.
Posso passar o dia nesta praia, não me importo. Não tenho copra com
que me preocupar. Tampouco, tenho alguma tinta luminosa para ver.”
Eu me arrependi de dizer isso, mas saiu antes de me dar conta. Pude
ver que isso tirou o vento de suas velas, e ficou parado, me encarou de
rosto franzido. Então, acho que decidiu checar isso a fundo.
“Acredito em sua palavra”, falou, deu a volta e caminhou direto pa-
ra a mata do diabo.
Claro que o deixei ir, pois havia dado a palavra. Mas o observei en-
quanto estava à vista, e, após sumir, disparei com o máximo de velocida-
de em busca de cobertura, segui o resto do caminho para casa sob a ma-
ta. Pois não confiaria seis vinténs a ele. Uma coisa notei: havia sido es-
túpido o suficiente para lhe dar um aviso; e o que for que pretendesse
fazer, faria logo.
Podem pensar que tive excitação demais para a manhã, mas havia
outra surpresa para mim. Assim que me afastei do cabo o bastante para
ver a minha casa, percebi estranhos por lá; um pouco mais longe, e sem
dúvida, haviam duas sentinelas armadas agachadas na porta. Podia ape-
nas imaginar o problema que Uma devia ter em frente, com a estância
dominada. Só consegui pensar que Uma já havia sido capturada, e esses
homens armados esperavam fazer o mesmo comigo.
Entretanto, conforme me aproximava, o que fiz com o máximo de
velocidade, vi que havia um terceiro nativo sentado na varanda como
convidado, e que Uma falava com ele como anfitriã. Ainda mais perto,
percebi que era o grande jovem chefe Maea, e que sorria e fumava; e o
que ele fumava? — nenhum de seus cigarros europeus adequados para
gato; nem mesmo o artigo nativo, genuíno, de derrubar um bichano,
com o qual um sujeito de fato pode passar o tempo, caso o cachimbo te-
nha quebrado; mas um charuto, e um de meus mexicanos, podia jurar.
Ao ver isso, meu coração se acelerou; minha mente sentiu grande espe-
rança de que o problema houvesse terminado, por causa de Maea.
Uma me apontou para ele, enquanto subia, e ele me encontrou no
topo da escada como um completo cavalheiro.
“Vilivili”, disse, pois esta era a melhor maneira que conseguia pro-
nunciar o meu nome, “eu agradecido.”
Não há dúvida de que quando um chefe ilhéu deseja ser gentil, ele
consegue. Vi como as coisas estavam pelo andar da conversa. Não havia
necessidade de Uma me dizer: “Ele não medo Ese agora; aqui trazer co-
pra”. Afirmo que apertei a mão daquele kanaka como se fosse o melhor
branco da Europa.
O fato era que Case e ele tinham ido atrás da mesma garota, ou Ma-
ea suspeitava disso e decidiu aproveitar a chance e tirar vantagem do co-
merciante. Havia se vestido, arrumou um par de capatazes limpos e ar-
mados para tornar o assunto mais público, e apenas esperava que Case
saísse da vila, foi até lá para me pôr a par da questão. Era rico e podero-
so, suponho que aquele homem produzia cinquenta mil unidades por
ano. Eu lhe passei o preço da praia com desconto de vinte e cinco centa-
vos, e por crédito, teria lhe oferecido como adiantamento o interior da
loja e os acessórios, de tão satisfeito que estava por vê-lo. Devo dizer
que comprou como um cavalheiro: arroz e enlatados e biscoito o sufici-
ente para um banquete de uma semana, além de produtos no carretel.
Além disso, era agradável e muito divertido; e nós trocamos piadas, em
sua maioria com Uma de intérprete, pois seu inglês era mínimo, e o meu
domínio do idioma nativo ainda estava muito desbotado. Uma coisa
descobri: jamais pensaria em fazer mal a Uma; jamais poderia ter real-
mente se assustado, e deve ter fingido por esperteza e por que Case ti-
nha muita influência na vila e poderia ajudá-lo.
Isso me pôs a pensar que tanto eu como ele estávamos em posição
complicada. O que ele fizera foi fugir diante de toda a vila, e isso podia
lhe custar a a autoridade. Mais que isso, após falar com Case na praia,
pensei que podia muito bem me custar a vida. Case teria atirado em
mim exatamente como dissera, caso tivesse copra; haveria de chegar em
casa e descobrir que o melhor negócio da região mudou de mãos; e a
melhor coisa que eu podia fazer era atirar primeiro.
“Vê aqui, Uma”, disse, “fala para ele que sinto por fazê-lo esperar,
mas procurei a casa do Tiapolo de Case na floresta.”
“Ele querer saber você não medo?”, traduziu Uma.
Ri alto. “Não muito!”, respondi. “Diga-lhe que o lugar é uma gran-
de loja de brinquedos! Diga-lhe que na Inglaterra nós damos aquelas
coisas para as crianças brincarem.”
“Querer saber você escutar música diabo?”, perguntou em seguida.
“Veja bem”, falei, “não consigo fazer isso aqui porque não tenho
cordas de banjo; mas da próxima vez que o navio passar, terei uma ge-
ringonça igual àquelas bem aqui na varanda, e poderá ver o quanto de
diabo há nisso. Diga-lhe que assim que conseguir as cordas, farei um
para os pirralhos dele. O nome do objeto referido é harpa eólica; e pode
lhe dizer o que o nome significa na Inglaterra, que ninguém além de im-
becis se importa com isso.”
Dessa vez, ficou tão satisfeito que tentou seu inglês mais uma vez.
“Você falar verdade?”, perguntou.
“Claro!”, respondi. “Falar mesmo com Bíblia. Traga-me a Bíblia,
Uma, se tiver algo assim, e a beijarei. Ou lhe direi algo ainda melhor”,
disse e mexi a cabeça. “Pergunte-lhe se tem medo de ir lá de dia.”
Pareceu não ter; aceitaria se aventurar nisso de dia e acompanhado.
“Eis boa resposta!”, falei. “Diga-lhe que o homem é uma fraude e o
lugar, uma bobagem, e que se subir até lá amanhã, verá o que sobrou
disso. Mas lhe diga isso, Uma, e faça com que compreenda: se falar de-
mais, pode chegar a Case, e serei um homem morto. Jogo com as cartas
dele, diga-lhe, e se falar uma palavra, meu sangue estará em sua porta e
será sua danação aqui e depois.”
Ela lhe repetiu isso, e apertou a minha mão como se fosse cabo de
faca, e disse: “Não falar; subir amaniã. Você meu amigo?”.
“Não, senhor!”, digo. “Sem tais bobagens. Vim aqui a negócios, di-
ga-lhe, e não para fazer amigos. Mas quanto a Case, mandarei aquele
homem para a glória.”
Assim partiu Maea, muito satisfeito, como pude ver.
CAPÍTULO V
NOITE NA FLORESTA
Bem, agora estava comprometido; Tiapolo haveria de ser esmagado an-
tes do dia seguinte; e tive muito trabalho, não apenas com preparos, mas
com argumentos. Minha casa era como sociedade de debate de física
mecânica; Uma estava bastante convencida de que não devia entrar na
mata durante a noite, ou de que se entrasse, jamais voltaria. Vocês co-
nhecem seu estilo de argumentar, algo entre a rainha Vitória e o diabo; e
deixo-lhes que deduzam se me cansei disso antes de escurecer.
Ao fim, tive uma boa ideia; qual a utilidade de jogar as minhas péro-
las para ela? Pensei: um pouco de palha cortada dela tinha mais chances
de fazer o serviço.
“Então, lhe direi o que fazer”, disse. “Pegue a Bíblia, e partirei com
a minha. Assim dará certo.”
Ela jurou que a bíblia era inútil.
“Isso é culpa da sua ignorância kanaka”, falei. “Traga a Bíblia.”
Ela a trouxe, e abri na folha de rosto em que pensei haver um pouco
de inglês, e ali estava. “Aqui!”, exclamei. “Olha isso! ‘Londres: impressa
para os britânicos e a Sociedade Bíblica Estrangeira, Blackfriars’; e a da-
ta, que não consigo ler, porque está nesses X. Não há nenhum diabo no
inferno que seja capaz de se aproximar da Sociedade Bíblica, Blackfri-
ars. Ora, sua bobinha!”, disse, “como acha que lidamos com nossos ai-
tus lá em casa? Tudo com a Sociedade Bíblica!”
“Não achar vocês ter eles lá”, respondeu. “Branco contar vocês não
ter.”
“Parece que sim, não é?”, perguntei. “Por que nestas ilhas existe um
bocado deles, mas nenhum na Europa?”
“Bem, vocês não ter fruta-pão”, disse.
Podia arrancar os meus cabelos. “Agora, olhe aqui, senhora”, falei,
“acabou, pois já me cansei de você. Levarei a Bíblia, o que me deixará
tão seguro quanto o correio; e é a última coisa que tenho a dizer.”
A noite ficou extraordinariamente escura, as nuvens chegaram com
o crepúsculo e se espalharam por toda a região; não apareceu uma estre-
la sequer; havia apenas ponta da lua, e isso não haveria de mudar antes
das primeiras horas da manhã. Ao redor da vila, com luz e fogueira nas
casas abertas e as tochas de muitos pescadores no recife, se manteve ale-
gre como iluminação; mas o mar e as montanhas e as florestas haviam
sumido completamente. Suponho que eram oito horas quando peguei a
estrada, carregado como um burro. Primeiro, aquela Bíblia, livro grande
como uma cabeça, que carregava por estultice minha. Então, havia a ar-
ma e a faca e a lanterna e os fósforos, tudo necessário. E levava na mão a
verdadeira carga para a ocasião: quantidade mortal de pólvora, um par
de bananas de dinamite para pescaria, e dois ou três exemplares de cor-
del para acender, que havia tirado das caixas de latão e dividido da me-
lhor maneira possível; pois o cordel era apenas para comércio, e um ho-
mem seria louco se confiasse nele. No todo, vê, tinha o material para
uma bela explosão. O custo não era nada para mim. Precisava fazer
aquilo o quanto antes.
Enquanto estava no campo aberto, e tinha o lampião de casa para
me guiar, estava bem. Mas assim que entrei na trilha, estava tão escuro
que não conseguia seguir direto, trombava com árvores e proferia injú-
rias, como alguém que procura os fósforos no quarto. Sabia que era ar-
riscado acender a luz; pois a lanterna seria visível dali até o pontal do
cabo; e como ninguém ia ali após escurecer, as pessoas comentariam e
isso chegaria aos ouvidos de Case. Mas o que deveria fazer? Ou desistia
da empreitada e perdia o respeito de Maea, ou acendia, corria o risco, e
enfrentava aquilo da melhor maneira possível.
Enquanto seguia pela trilha, caminhei com esforço; mas quando
cheguei à praia negra, tive de correr. A maré estava quase cheia; e para
atravessar com a pólvora seca entre a rebentação e a subida íngreme, me
lancei a toda velocidade. Como o nível estava alto, bateu em meus joe-
lhos e quase caí numa pedra. Por todo esse tempo, com muita pressa, o
ar livre e o cheiro do mar mantiveram o meu espírito jovial; e uma vez
que cheguei na mata e escalei a trilha, ficou mais fácil. O terror da flo-
resta me ficara um tanto apagado pelas cordas de banjo e as imagens en-
talhadas do mestre Case, mas, ainda assim, achei a caminhada apavoran-
te, e imaginei que quando os discípulos subiam ali, deviam ficar terrivel-
mente assustados. A luz da lanterna batia entre todos aqueles troncos e
galhos enforquilhados, e pontas de cipós torcidas, transformava todo o
lugar, ou tudo o que se podia ver dele, em espécie de jogo de sombras
que se moviam. Vinham encontrá-lo, sólidas e rápidas como gigantes,
então giravam e desapareciam; pairavam sobre sua cabeça como porre-
tes e voavam para dentro na noite como pássaros. O chão da mata relu-
zia com a madeira morta, como a caixa de fósforos brilha quando se
acende o luzeiro. Grandes gotas geladas caíam feito suor em mim, dos
galhos acima da cabeça. Não havia vento digno de menção, apenas pe-
quena lufada de ar na brisa terrena que não balançava nada; e as harpas
em silêncio.
A primeira parada que fiz foi ao atravessar a floresta de coqueiros
selvagens, e minhas vistas alcançaram os bonecos sobre o muro. Pareci-
am extremamente bizarros ao brilho da lanterna, com os rostos pinta-
dos, olhos de concha, roupas e cabelos soltos. Um após o outro, puxei
todos e os empilhei no teto do porão, de modo que pudessem desapare-
cer com o resto. Então, escolhi um lugar atrás de uma das grandes pe-
dras da entrada, enterrei a pólvora e as duas bananas, e arrumei o cordel
ao longo da passagem. Depois, dei uma olhada para a ponta fumegante,
apenas por despedida. Tudo ia bem.
“Anime-se”, disse. “Você tem tempo.”
A minha intenção inicial era acender e partir para casa; pois a escuri-
dão, e o vislumbre da madeira morta, e as sombras da lanterna me dei-
xaram solitário. Mas sabia onde uma das harpas estava; me parecia uma
pena que ela não se fosse com o resto; e, ao mesmo tempo, não conse-
guia evitar me sentir fatalmente cansado do empreendimento, e queria
mais que tudo voltar para casa e fechar a porta. Saí do porão, e discuti
os prós e contras disso comigo mesmo. Havia barulho de mar na costa
abaixo; perto de mim, sequer uma folha se movia; podia ser a única cria-
tura viva naquele lado do cabo Horn. Bem, enquanto ficava ali a pensar,
pareceu que a floresta despertou e se encheu de pequenos ruídos. Pe-
quenos ruídos, nada que machucasse — breve estalo, breve arrastão —
mas o meu fôlego suspendeu e a a garganta secou como biscoito. Não
era Case o que temia, como qualquer um acharia; nem pensei nele; o
que me dominava, forte como cólica, era o conto de velhas matronas, as
mulheres-demônio e os homens-porco. Estava a ponto de correr; mas
me controlei, saí, peguei a lanterna (como um idiota) e olhei em volta.
Na direção da vila e da trilha, não havia nada a ser visto; mas ao me
virar para o lado interno da ilha, foi uma surpresa como não caí. Lá —
do deserto e da pavorosa floresta — lá, com certeza, havia a mulher-de-
mônio, exatamente como imaginei que seria. Vi a luz brilhar em seus
braços descobertos e olhos cintilantes. E dali saiu grito tão alto que
pensei que seria a minha morte.
“Ah! Não gritar!”, falou a mulher-demônio, em espécie de sussurro
alto. “Por que falar voz grande? Apagar luz! Ese vem.”
“Deus do Céu, Uma, é você?”, disse.
“Ioe”, respondeu. “Chegar rápido. Ese aqui logo.”
“Você chegar sozinha?”, perguntei. “Não medo?”
“Ah, medo demais!”, sussurrou e me agarrou. “Achar morrer.”
“Bem”, digo, com espécie de sorriso fraco, “não posso rir de você,
sra. Wiltshire, pois eu mesmo devo ser o homem mais assustado do Pa-
cífico Sul.”
Ela me contou em duas palavras o que a levara até lá. Mal havia saí-
do, parece, Faavao chegou; e a velha havia encontrado Black Jack cor-
rendo o mais rápido possível de nossa casa para a de Case. Uma nem fa-
lou nada ou mesmo parou, mas saiu em disparada para me alertar. Esta-
va tão próxima de meu rastro que a lanterna a havia guiado pela praia, e
depois, pelo brilho nas árvores, achou o caminho montanha acima. Foi
apenas quando estava no topo ou no porão, que andou sem visão algu-
ma — o Senhor sabe por onde! — e perdeu tempo precioso, pois recea-
va me chamar e Case estar perto, e, então, caiu na floresta e ficou ator-
doada e machucada. Deve ter sido assim que foi muito pro sul, e, por
fim, me alcançou no flanco, me assustou de modo que não tenho pala-
vras para descrever.
Bem, qualquer coisa era melhor que mulher-demônio; mas achei a
história preocupante. Black Jack não tinha motivos para estar perto de
minha casa, a não ser que fosse até lá para me espiar; e me pareceu que
minhas palavras idiotas a respeito da tinta e talvez alguma conversa de
Maea tivesse nos metido num ponto sem nó. Uma coisa estava clara:
Uma e eu haveríamos de passar a noite ali; não ousaríamos voltar para
casa antes de amanhecer, e, mesmo nessa hora, seria mais seguro dar a
volta na montanha e entrar pelos fundos da vila, senão podíamos cair
numa emboscada. Também estava claro que a mina deveria ser destruída
imediatamente, ou Case poderia voltar a tempo de salvá-la.
Segui para o túnel, Uma me apertava com força, abri a lanterna e
acendi o cordel. A primeira parte queimou como papel enrolado; fiquei
estupefato, vendo queimar, e pensei que íamos nos livrar do Tiapolo, o
que não estava nas minhas previsões. O segundo foi melhor que o pla-
nejado, embora mais rápido; e com isso recuperei o senso, puxei Uma
para que saísse do caminho, corri para longe e deixei a lanterna cair; e
tateamos nosso caminho na floresta até achar que estávamos seguros e
nos deitarmos ao lado de uma árvore.
“Senhora”, disse. “Não me esquecerei desta noite. Você é boa, e é is-
so o que há de errado com você.”
Ela se arqueou para ficar mais perto de mim. Havia corrido por to-
do esse caminho sem vestir nada além do saiote; ainda estava completa-
mente molhada pelo orvalho e o mar na praia negra, e tremia bastante
de frio e pavor do escuro e dos demônios.
“Ter muito medo”, era tudo o que dizia.
O lado distante da montanha de Case descia quase tão íngreme
quanto o precipício que dava no vale seguinte. Estávamos na extremida-
de, e pude ver a madeira morta brilhar e escutar o mar ressoar lá embai-
xo. Não me importava com a posição, que não me permitia a fuga, mas
tinha medo de mudar. Então, vi que cometera um engano pior com a
lanterna, que deveria ter deixado acesa, de modo a vislumbrar Case
quando cortasse a luz. E mesmo que não tivesse a sagacidade de pensar
nisso, não parecia fazer sentido deixar uma boa lanterna para explodir
com as imagens entalhadas; aquilo me pertencia, afinal, e valia dinheiro,
e poderia ser útil. Se pudesse confiar no cordel, teria corrido até lá e a
apanhado. Mas quem confiaria no cordel? Sabem o que está em jogo; o
objeto era bom o suficiente para os kanakas pescarem, e, de qualquer
forma, precisam ficar animados, e o máximo que arriscam é a ter a mão
estourada; mas para alguém que quisesse causar explosão como a mi-
nha, aquele fósforo era ninharia.
De modo geral, o melhor que podia fazer era me deitar e ficar para-
do, deixar a espingarda em mãos, e esperar a explosão. Mas era tarefa
um tanto solene; e o negrume da noite estava quase sólido; só era possí-
vel ver o brilho vil e funesto da madeira morta, o que não significava
nada mais; quanto aos sons, afinei os ouvidos até acreditar ouvir o cor-
del queimar no túnel, e aquela floresta silenciosa como caixão. Volta e
meia havia um pequeno estalo, mas se estava próximo ou longe, e se era
o tropeço de Case a alguns metros ou árvore que quebrou a quilôme-
tros, tinha a resposta tanto quanto um bebê na barriga da mãe.
Então o Vesúvio estourou. Demorou bastante para acontecer, mas
quando aconteceu (embora diga que não deveria) nenhum homem po-
deria pedir para ver um melhor. No começo, foi apenas uma barulheira
desgraçada, e o esguicho de fogo, e a mata se iluminou de modo que se
poderia até mesmo ser lida. E, então, o problema começou. Uma e eu fi-
camos em parte soterrados por uma leva de terra, e fico contente por
não ter sido pior; pois uma das rochas da entrada do túnel foi disparada
para o ar, e caiu a duas braças de onde deitávamos, desceu para o limite
da montanha, e rolou para o vale ao lado. Percebi que, das duas uma, ou
havia calculado errado a distância, ou exagerado na dinamite e na pól-
vora.
E, em seguida, vi que havia cometido outro deslize. O barulho desa-
parecia, e balançara a ilha; o ofuscamento se acabara; e ainda assim a
noite não recomeçara da maneira que imaginei. Pois toda a mata estava
coberta por brasas vermelhas da explosão; estavam todas em volta de
mim na parte plana, algumas caídas no vale abaixo, e algumas se engan-
chavam e chamejavam nos topos das árvores. Não temia o incêndio,
pois essas florestas eram muito úmidas para queimarem. O problema
foi que o lugar ficou completamente iluminado, não muito brilhante,
mas o bastante para se levar um tiro; e como as brasas haviam se espa-
lhado, estava exatamente da maneira que Case podia se aproveitar tanto
quanto eu. Olhei em volta em busca de seu rosto redondo, obviamente;
mas não havia sinal dele. Quanto a Uma, a vida pareceu arrancada dela
com o estrondo e o brilho daquilo.
Havia um ponto negativo em meu lance. Uma das malditas imagens
entalhadas havia caído completamente em chamas, cabelo e roupas e
corpo, a menos de três metros de mim. Olhei em volta com atenção ex-
trema; ainda nada de Case; então me convenci de que deveria me livrar
daquele pau em chamas antes que chegasse ali, ou seria alvejado como
um cão.
Minha primeira ideia foi rastejar; então, pensei que a velocidade era
muito mais importante, e me abaixei para ir mais rápido. Na mesma ho-
ra, de algum lugar entre mim e o mar, veio o clarão e o ruído, e a bala de
rifle zuniu em meu ouvido. Dei a volta de pé, com a arma. Mas o animal
tinha uma Winchester; e mal pude vê-lo, seu segundo tiro me derrubou
como pino de boliche. Pareci flutuar no ar, então caí de vez e fiquei
atordoado por trinta segundos; então, vi que as minhas mãos estavam
vazias e a arma havia voado por cima da cabeça quando caí. Um homem
fica bastante desperto numa situação como aquela. Mal sabia onde havia
sido atingido, ou se havia sido atingido ou não, mas virei o corpo para
baixo, para me arrastar até a arma. A não ser que tenham tentado se
mover com a perna esmagada, vocês não sabem o que é a dor, e uivei
como boi.
Foi o barulho mais infeliz que já fiz na vida. Até aquele momento,
Uma havia se prendido à árvore como mulher racional, sabia que ape-
nas estaria no caminho. Mas assim que me ouviu gritar, correu para a
frente — a Winchester estalou mais uma vez — e ela caiu.
Havia me levantado, com a perna e tudo, para pará-la; mas quando a
vi tombar, tateei novamente até onde estava, me deitei imóvel, e senti o
cabo de minha faca. Já havia me precipitado e subscrito antes. Nada
mais daquilo para mim; havia acertado a minha garota, e eu haveria de
descontar; e ali fiquei e rangi os dentes, e pesei as probabilidades. A per-
na estava quebrada, a arma sumida, Case ainda tinha dez tiros com a
Winchester, parecia caso perdido. Mas não me desesperei nem pensei
em me desesperar; aquele homem tinha de partir.
Por um bom tempo, nenhum de nós avançou. Então escutei Case se
aproximar na floresta cuidadosamente. O ídolo havia se queimado de
todo; havia apenas algumas brasas aqui e ali; e a mata estava quase que
um breu total, mas havia espécie de luminosidade baixa nela, como fo-
gueira prestes a extinguir. Foi por isso que discerni a cabeça de Case me
procurar em grande ramalhete de samambaias; e, na mesma hora, o ani-
mal me viu e pôs a Winchester no ombro. Fiquei completamente parado
enquanto olhava para o cano; era a minha última chance; mas pensei
que o coração sairia pela boca. Então, atirou. Por sorte não era espin-
garda, pois a bala passou a um centímetro de mim e sujou meus olhos.
Apenas tente ficar deitado imóvel, e deixe um homem tentar atirar
em você e errar por um fio de cabelo! Mas consegui, e também dei sor-
te. Case ficou com a Winchester em posição de ataque por um tempo;
em seguida, deu risadinha para si mesmo, e rodeou as samambaias.
“Ria!”, pensei. “Se tivesse a inteligência de um piolho, rezaria!”
Estava tão tenso quanto cabo de reboque de navio ou mola de reló-
gio; e assim que chegou ao meu alcance, o acertei no tornozelo, atirei
meus pés debaixo dele, o deitei, e subi nele, mesmo com a perna que-
brada, antes que respirasse. A Winchester havia tido o mesmo destino
que minha espingarda; não era nada para mim; agora o desafiei. De
qualquer forma, sou muito forte, mas nunca soube o quanto até domi-
nar Case. Ele perdeu a noção do tempo com a pancada que o derrubou,
e jogou para cima as mãos juntas, mais como mulher assustada, de mo-
do que as agarrei com a esquerda. Isso o despertou, e enfiou os dentes
em meu antebraço como fuinha. Pouco me importei! A perna já me
causava toda a dor que precisava; então puxei a faca, e a coloquei no lu-
gar.
“Agora”, afirmei, “o capturei; é o seu fim, e um bom trabalho tam-
bém. Sente a ponta disso? Esta é por Underhill. E esta é por Adams. E
agora esta é por Uma, e isso haverá de lhe arrancar a alma.”
Com isso, lhe enfiei o aço frio com toda a força. Seu corpo me em-
purrou como sofá de molas; soltou espécie de lamento longo e horripi-
lante, e caiu imóvel.
“Não sei se está morto. Espero que sim”, pensei, pois sentia tontura.
Mas não correria riscos; tinha o seu próprio exemplo perto demais para
isso; tentei retirar a faca para lhe enfiar novamente. O sangue subiu em
minha mão, me lembro bem, quente como chá; e assim desmaiei de vez
e caí com a cabeça na boca do homem.
Quando voltei a mim, estava completamente escuro; as cinzas havi-
am se apagado, e não havia nada a ser visto, exceto o brilho da madeira
morta; e não consegui me lembrar onde estava, nem por que sentia tanta
dor, nem por que estava tão molhado. Então tudo voltou; e a primeira
coisa que tratei de fazer foi lhe enfiar a faca até o cabo mais meia dúzia
de vezes. Creio que já estava morto; mas não lhe faria nenhum mal e me
fez bem.
“Aposto que agora está morto”, disse e então chamei por Uma.
Ninguém respondeu; fiz movimento para tatear até ela, mas senti a
perna quebrada, e desmaiei novamente.
Quando voltei a mim pela segunda vez, todas as nuvens haviam su-
mido, exceto algumas que flutuavam ali, brancas como algodão. A lua
estava à vista, lua tropical. A lua em minha terra natal parece madeira
negra; mas ali mesmo aquela velha bituca mostrava o verde da floresta
como se fosse dia. Os pássaros noturnos — ou talvez fosse algum pássa-
ro do começo da manhã — cantavam notas longas e decrescentes como
rouxinóis. E pude ver o morto no qual ainda descansava, olhando dire-
tamente para o céu com olhos abertos, não mais pálido que quando vi-
vo; e, um pouco adiante, Uma estava tombada de lado. Fui até lá da me-
lhor forma possível; e quando cheguei, estava bem acordada, chorava e
soluçava para si mesma sem fazer mais barulho que insetos. Aparente-
mente, tinha medo de chorar alto por causa do aitus. Não estava muito
machucada, mas inacreditavelmente assustada; havia retomado os senti-
dos muito tempo antes, me chamado, não escutado nada em resposta,
deduzido que estávamos os dois mortos, e ficado lá desde então, com
medo de mover um dedo. A bala havia perfurado o seu ombro; e perde-
ra grande quantidade de sangue; mas logo amarrei aquilo com a ponta
da camisa e cachecol que eu vestia, pus a cabeça no joelho são, as costas
contra um tronco, e repousei para esperar a manhã. Uma estava em
frangalhos; apenas me apertava com força, tremia, chorava; suponho
que jamais alguém ficou tão assustado, e para lhe fazer justiça, havia
passado noite intensa. Quanto a mim, sentia muita dor e febre, mas não
era tão ruim quando ficava parado; e sempre que olhava para Case, fal-
tava cantar e assobiar. Falar de carne e bebida! Ver aquele homem adi-
ante, morto como arenque, me causava júbilo.
Os pássaros noturnos pararam após um tempo; e então a luz mu-
dou, o leste se tornou laranja, toda a floresta zunia em cantoria, como
caixa de música, e o dia começara.
Não esperei Maea por muito tempo; e, na verdade, pensei que havia
chance de que desistisse da ideia e sequer fosse lá. Fiquei muito conten-
te quando, cerca de uma hora após o amanhecer, escutei paus quebra-
rem e muitos kanakas rirem e alardearem a sua coragem. Uma se sentou
bastante ativa com a primeira palavra; e, em seguida, vimos um grupo
aparecer na trilha, Maea na frente e atrás dele um branco com chapéu de
safári. Era o sr. Tarleton que havia chegado em Falesá no fim da noite,
deixou o barco e caminhou o último trecho com a lanterna.
Enterraram Case para o campo da glória, exatamente no buraco on-
de guardava a cabeça fumegante. Esperei até que tudo terminasse; e o sr.
Tarleton rezou, o que pensei ser bobagem, mas estou inclinado a afir-
mar que deu uma olhada bastante enojada para os restos do caro faleci-
do, e parecia ter ideias próprias a respeito do inferno. Conversei com
ele depois, lhe falei que negligenciara o seu dever, e o que deveria ter
feito seria agir como homem e contar aos kanakas abertamente que Ca-
se estava condenado, e boa sorte; mas não consegui que visse isso ao
meu modo. Então, me fizeram uma maca de paus e me carregaram até a
estância. O sr. Tarleton cuidou da minha perna, e fez a sutura missioná-
ria regular, de modo que manco até hoje. Isso feito, pegou meu teste-
munho, o de Uma, e o de Maea, escreveu tudo com clareza, e nos fez
assinar; então, juntou os chefes e caminhou até a casa de Papa Randall
para apreender os documentos de Case.
Tudo o que encontraram foi espécie de diário, mantido por boa
quantidade de anos, sobre o preço da copra e galinhas roubadas e essas
coisas; e os livros do negócio, e o testamento do qual lhes contei no co-
meço, e pelos quais todo o negócio (tudo quanto é coisa) parecia per-
tencer à mulher de Sāmoa. Fui eu quem a trouxe, figura extremamente
razoável, pois tinha pressa para voltar para casa. Quanto a Randall e o
negro, tiveram de fugir a pé; entraram em alguma espécie de estação no
lado Papa-mālūlū; fizeram negócio muito ruim, pois a verdade é que
nenhum dos dois estava preparado para isso; e viveram principalmente
de peixe, o que foi o motivo da morte de Randall. Aparentemente, hou-
ve um belo cardume um dia, e Papa foi atrás deles com dinamite; ou o
pavio queimou rápido demais ou Papa estava embriagado, ou as duas
coisas, mas a banana explodiu (como o normal) antes que a jogasse; e
onde estava a mão do Papa? Bem, não há nada muito grave nisso; norte
acima as ilhas estão cheias de manetas, como os personagens das Mil e
Uma Noites; mas ou Randall estava velho demais ou havia bebido de-
mais, e resultado disso é que morreu. Pouco tempo depois, o negro foi
capturado nas ilhas por roubar de brancos, e fugiu para o oeste, onde
encontrou homens de sua cor, que apreciou, e os homens de sua cor o
comeram em alguma espécie de ritual, e tenho certeza que ele lhes ape-
teceu!
Então, fui deixado sozinho ali, para a minha glória em Falesá; e
quando a escuna aparecia, a enchia e lhe dava carga de deque tão alta
quanto uma casa. Devo dizer que o sr. Tarleton fez a coisa certa conos-
co; mas teve vingança um tanto maldosa.
“Agora, sr. Wiltshire”, disse, “resolvi sua situação com todos aqui.
Não foi difícil com a partida de Case; mas fiz isso, e, além do mais, jurei
que negociaria de modo justo com os nativos. Devo pedir-lhe que man-
tenha a minha palavra.”
Bem, assim o fiz. Costumava me incomodar com o saldo; mas resol-
vi isso dessa maneira. Todos temos balanças estranhas, e todos os nati-
vos sabem disso e molham a copra numa proporção; de modo que seja
justo em todos os lugares. Mas a verdade é que isso me incomodava; e
embora me desse bem em Falesá, ficava bastante contente quando a fir-
ma me mudava para outra estação, onde não estava sob nenhum jura-
mento, e podia alterar as balanças.
Quanto à senhora, vocês a conhecem tão bem quanto eu. Tem ape-
nas uma única falta: caso não mantivessem o olho erguido, daria o teto
da estância. Bem, isso parece natural nos kanakas. Ela se tornou grande
e forçuda agora, e poderia carregar um policial londrino no ombro. Mas
isso também é natural em kanakas; e não há como duvidar que é ótima
esposa.
O sr. Tarleton havia voltado para sua terra, acabada a proeza; foi o
melhor missionário com quem já me deparei, e agora parece pregar nos
arredores de Somerset. Bem, é o melhor para ele; ali não terá kanakas
para enlouquecê-lo.
Minha taverna? Nada dela, nem mesmo algo parecido; estou preso
aqui, imagino; não me agrada deixar as crianças, vê; e falar é inútil — es-
tão melhor aqui do que estariam em qualquer país de branco. Mas Ben
ao crescer foi para Auckland, onde é educado pelos melhores; o que me
preocupa são as garotas. Elas são apenas mestiças, claro; sei disso tão
bem quanto vocês, e não há ninguém que se importe menos com os
mestiços do que eu; mas são minhas, e praticamente tudo o que tenho;
não consigo conceber a ideia de que fiquem com kanakas, e gostaria de
saber, por que para mim, elas são brancas.
ENTRETENIMENTOS DAS NOITES NAS ILHAS
O DEMÔNIO
DA GARRAFA
ROBERT LOUIS STEVENSON
1892
A ILHA
DAS VOZES
ROBERT LOUIS STEVENSON
1893
1884
1885
“Agora”, disse o médico, “a minha parte está feita, e, posso dizer com
alguma vaidade, benfeita. Falta apenas tirar você desta cidade fria e ve-
nenosa e lhe providenciar dois meses de ar puro e consciência tranquila.
Esse último quesito é encargo seu. Quanto ao primeiro, creio que posso
ajudá-lo. Na verdade, é bem esquisito; mas ontem mesmo o Padre veio
do interior; e como somos velhos amigos, apesar das profissões opostas,
ele veio até mim por conta de algo que anda perturbando alguns de seus
párocos. Era uma família — mas você não sabe muito sobre a Espanha,
e mesmo o nome de nossos nobres lhe são pouco conhecidos; basta di-
zer, então, que já foram pessoas importantes, agora decaídos à beira da
miséria. Agora nada mais lhes pertence, além da residência e de certas
léguas de montanha deserta, na maior parte das quais nem mesmo um
bode sobreviveria. Mas a casa é antiga e elegante, e fica a boa altura en-
tre as colinas, e é bastante salubre; e mal escutei o relato de meu amigo,
me lembrei de você. Contei-lhe que tinha um oficial ferido, ferido por
boa causa, que agora podia fazer a mudança; e propus que amigos dele o
hospedassem. O rosto do Padre escureceu no mesmo instante, como eu
maliciosamente previra. Estava fora de questão, ele disse. Então, deixe-
os morrer de fome, eu disse, pois não tenho nenhuma simpatia pelo or-
gulho maltrapilho. Depois disso nos separamos, não muito contentes
um com o outro; mas ontem, para o meu espanto, o Padre retornou e
fez uma proposta: a dificuldade, disse, descoberta após perguntar, era
menor que o esperado; ou, em outras palavras, essas pessoas orgulhosas
tiveram de guardar o orgulho no bolso. Aceitei a oferta; e, sujeito à sua
aprovação, aluguei quartos da residência para você. O ar dessas monta-
nhas renovará o seu sangue; e a tranquilidade com a qual viverá por lá é
equivalente a todos os remédios do mundo.”
“Doutor”, disse eu, “você tem sido o meu anjo da guarda por todo
esse tempo, e seu conselho é uma ordem. Mas, por favor, me conte algo
a respeito da família com quem viverei.”
“Já ia chegar lá”, respondeu o meu amigo; “e, na verdade, há um
problema no caminho. Esses mendicantes são, como disse, de linhagem
muito nobre e enfatuados por vaidades sem qualquer fundamento; vive-
ram por algumas gerações em isolamento crescente, evitando, por um
lado, os ricos que agora se tornaram nobres demais para eles, e os po-
bres, que ainda tinham como muito baixos; e mesmo hoje, quando a po-
breza os força a destrancarem suas portas para um convidado, não con-
seguem fazer isso sem alguma condição extremamente descortês. Você
deverá permanecer, dizem, um forasteiro; lhe darão assistência, mas re-
cusam desde já a menor intimidade que seja.”
Não nego que fiquei curioso, e talvez essa sensação fortaleceu o de-
sejo de ir, pois estava confiante que poderia quebrar a barreira, se dese-
jasse. “Não há nada de ofensivo nessa condição”, falei; “chego até a
simpatizar com o sentimento que a inspirou.”
“É verdade que nunca viram você”, afirmou o médico educadamen-
te; “e se soubessem que é o homem mais bonito e agradável que já sur-
giu na Inglaterra (de onde me dizem que homens bonitos são comuns,
mas agradáveis nem tanto), sem dúvidas lhe receberiam com mais corte-
sia. Mas já que aceita isso tão bem, não importa. A mim, na verdade, pa-
rece deselegante, mas você se mostrará o favorecido, e a família não o
tentará tanto. Uma mãe, um filho, uma filha; uma velha que dizem ser
lenta da cabeça, um tabaréu do campo, uma garota do campo, que se dá
muito bem com o confessor, e, portanto”, o médico riu abafado, “muito
provavelmente sem nenhuma graça; não há muito o que atiçar as fanta-
sias do impetuoso oficial.”
“Mas, ainda assim, você diz que são bem-nascidos”, objetei.
“Bem, quanto a isso, deveria fazer uma distinção”, replicou o médi-
co. “A mãe é; os filhos, nem tanto. A mãe era a última representante da
linhagem de uma princesa, degenerada tanto nos genitores como na for-
tuna. Seu pai não apenas era pobre, ele era louco; e então a garota viveu
sem controle nos arredores da residência até a morte dele. Assim, boa
parte da fortuna morreu com ele, e com a família quase extinta, a garota
ficou mais selvagem que nunca, até que finalmente casou, Deus sabe
com quem; um muleiro, alguns dizem, um contrabandista, de acordo
com outros, enquanto alguns sustentam que sequer houve casamento, e
que Felipe e Olalla são bastardos. A união, seja como for, foi tragica-
mente dissolvida há alguns anos; mas vivem em tal reclusão, e o local
naquela época estava em tamanha desordem, que o modo preciso de co-
mo o homem se foi é conhecido apenas pelo clérigo — se chega a tan-
to.”
“Começo a achar que terei experiências estranhas”, afirmei.
“Eu não romantizaria isso se fosse você”, respondeu o médico; “en-
contrará, acredito, realidade bastante baixa e ordinária. Felipe, por
exemplo, eu vi. E o que deveria dizer? É muito rústico, muito hábil,
muito bruto, e, devo dizer, um inocente; os outros provavelmente de-
vem ser a mesma coisa. Não, não, señor comandante, procure socializa-
ção apropriada com as grandes vistas de nossas montanhas; e com essas,
ao menos, se você for um amante dos trabalhos da natureza, prometo
que não se desapontará.”
No dia seguinte, Felipe veio me buscar em carroça grosseira, levada
por mula; e pouco antes de atingir o meio-dia, após dar adeus ao médi-
co, ao estalajadeiro, e a diversas almas boas que fizeram amizade comi-
go durante minha doença, seguimos para fora da cidade pelo portão les-
te, e subimos a Sierra. Havia ficado preso por tanto tempo, desde que
fora deixado para morrer após a perda do comboio, que o mero cheiro
da terra me fez sorrir. A estrada por onde seguíamos era malfeita e pe-
dregosa, parcialmente coberta por árvores selvagens, ora o sobreiro, ora
o grande castanheiro espanhol, e frequentemente interseccionada pelos
leitos de torrentes das montanhas. O sol estava forte, e o vento sibilava
com alegria; havíamos avançado alguns quilômetros, e a cidade já havia
diminuído até parecer um montinho insignificante na planície atrás de
nós, antes que a minha atenção se dirigisse ao companheiro de viagem.
Ao olhar, parecia mero sujeito do campo, diminuto, rústico, e bem
constituído, assim como o médico havia descrito, extremamente ágil e
ativo, mas desprovido de qualquer cultura; e essa primeira impressão,
para a maioria dos observadores, era definitiva. O que chamou a minha
atenção foi a conversa íntima e tagarela; tão estranhamente diversa dos
termos com que esperava ser recebido; e em parte por conta dessa enun-
ciação imperfeita, em parte por conta da vivaz incoerência do assunto,
foi difícil acompanhá-lo com clareza sem esforço mental. É verdade que
antes já havia conversado com pessoas de constituição mental similar;
pessoas que pareciam viver (como ele) pelos sentidos, tomados e possu-
ídos pelo objeto visual do momento e incapazes de descartarem das
mentes aquela impressão. A sua me pareceu (eu sentado, ouvindo com
distanciamento) espécie de conversa apropriada a condutores, que pas-
sam boa parte do tempo sem utilizar o intelecto, atando as visões de re-
gião familiar. Mas esse não era o caso de Felipe; de acordo com o seu
próprio relato, era caseiro; “queria estar lá agora”, disse; e então, espiou
a árvore na beira do caminho, irrompeu a me contar que certa vez vira
um corvo em seus galhos.
“Corvo?”, repeti, espantado com a ineptidão do comentário, que
acreditei ouvir errado.
Mas, nessa altura, já estava absorto por nova ideia; escutava com
atenção arrebatada, a cabeça de lado, o rosto franzido; e me atingiu com
pancada forte, para que me calasse. Então sorriu e balançou a cabeça.
“Ouviu alguma coisa?”, perguntei.
“Oh, está tudo bem”, disse; e começou a impulsionar a mula com
gritos que ecoaram inumanamente pelos paredões de montanha.
Olhei para ele com mais atenção. Era superlativamente bem consti-
tuído, leve, flexível e forte; era apessoado; os olhos amarelos eram mui-
to grandes, embora, talvez, não muito expressivos; no todo, era sujeito
de aparência agradável, e não encontrei defeito nele, além da coloração
sombria, e certa tendência a ser peludo; duas características que não
gostava. Era a sua mente que me intrigava, até mesmo, me atraía. A fra-
se do médico — um inocente — me voltou à cabeça; e me perguntava se
aquilo era, afinal, descrição verdadeira, quando a estrada desceu em
abismo estreito e vazio de aguaceiro. As águas trovejavam tumultuosa-
mente no fundo; e a ravina era preenchida pelo ruído, o espirro fino, e
as pancadas do vento que acompanhavam a descida. A cena certamente
era impressionante; mas a estrada naquele trecho era bem protegida pe-
los paredões; a mula seguiu em frente sem vacilar; e fiquei atônito ao
perceber a palidez do rosto aterrorizado de minha companhia. A voz
daquele rio selvagem era inconstante, ora enfraquecia como que por
cansaço, ora duplicava os tons roucos; inundações momentâneas pareci-
am aumentar o seu volume, lavavam a garganta, rugiam e batiam-se
contra as paredes da barreira; e observei que era particularmente quan-
do o clamor aumentava que o meu condutor piscava e empalidecia. Pas-
saram pela minha mente o Kelpie dos rios[1] e alguns pensamentos de
superstição escocesa; perguntei-me se porventura algo parecido prevale-
cia naquela parte da Espanha; me virei para Felipe, e tentei retirá-lo da-
quilo.
“Qual o problema?”, perguntei.
“Oh, estou com medo”, respondeu.
“Medo de quê?”, devolvi. “Este parece um dos lugares mais seguros
nesta estrada tão perigosa.”
“Ela faz barulho”, disse com simplicidade de espanto que acalmou
as minhas dúvidas.
Quanto ao intelecto, o rapaz não passava de criança; a mente era co-
mo o corpo, ativo e ágil, mas de desenvolvimento atrofiado; e daquele
momento em diante comecei a sentir certa pena dele, e a escutar primei-
ro com indulgência, e depois até com algum prazer, a sua ladainha de-
sarticulada.
Por volta das quatro da tarde, havíamos cruzado o pico da monta-
nha, dado adeus ao sol poente, e descemos pelo outro lado, na beira do
limite de muitas ravinas e nos movíamos por entre a sombra de florestas
sombrias. Ali se elevava por todos os lados a voz da água que caía, não
condensada e formidável como na garganta do rio, mas dispersa e alegre
e musical de grota a grota. Aqui, também, o espírito de meu condutor
se emendou, e cantou com voz alta de falsete, com singular obtusidade
quanto à percepção musical, nunca encaixando o tom ou a melodia, mas
mudava à vontade, e ainda assim, aquilo de certo modo era natural e
agradável, como o canto dos pássaros. Com a proximidade do crepús-
culo, ficava cada vez mais enfeitiçado por esse gorjeio sem arte, escutava
e esperava por alguma melodia articulada e ainda desapontado; e quan-
do finalmente lhe perguntei o que cantava — “Oh”, exclamou, “só es-
tou cantando!”. Acima de tudo, fui arrebatado por truque que repetia
incansavelmente a mesma nota em pequenos intervalos; não era tão mo-
nótono quanto parece, ou, ao menos, não tão desagradável; e parecia
exalar maravilhoso contentamento em si mesmo, como o que amamos
imaginar na atitude das árvores ou na mansuetude do lago.
A noite havia escurecido antes que chegássemos num lugar plano, e
paramos pouco depois, em certo bloco de negrume intenso que só pude
presumir ser a residência. Aqui, o guia desceu da carroça, uivou e asso-
biou em vão por longo tempo; até que por fim um velho camponês veio
em nossa direção de algum lugar na escuridão que nos rodeava, com
uma vela. Por essa luz consegui perceber grande passagem arqueada, de
estilo mourisco: estava fechada por portões com barras de ferro, em um
dos lados Felipe abriu a portinhola. O camponês levou a carroça para
alguma construção externa; mas o guia e eu passamos pela portinhola,
fechada novamente atrás de nós; e com a luz das velas, atravessamos o
pátio, subimos a escadaria de pedra, percorremos a seção da galeria
aberta, e mais escadas acima, até que finalmente chegamos à porta de
aposento grande e, de certa forma, vazio. Esse cômodo, que entendi ser
o meu, era perfurado por três janelas alinhadas com algumas madeiras
lustrosas envolta de vidros, e tinha o chão coberto por várias peles de
animais selvagens. O fogo reluzia na chaminé, e espalhava fulgor treme-
luzente; próximo ao clarão, a mesa preparada para a ceia; e, no canto
oposto, a cama estava pronta. Apreciei esses preparos, e o mencionei a
Felipe, que então, com a mesma simplicidade de disposição que já havia
percebido nele, repetiu os meus elogios calorosamente. “Um quarto
agradável”, disse, “quarto muito agradável. E fogo, também; fogo é
bom; derrete o prazer nos ossos. E a cama”, continuou e levou a vela
naquela direção — “veja que lençóis agradáveis — que macio, liso, li-
so”; e passava e passava a mão, sentia a textura, e então abaixou a cabeça
e esfregou as bochechas com contentamento repulsivo que de certo mo-
do me incomodou. Tirei a vela de sua mão (pois temia que tacasse fogo
na cama) e voltei até a mesa da ceia, onde, notei um pouco de vinho,
servi uma taça e o chamei para se aproximar e tomar. Saltou de vez e
correu até mim com forte expressão de esperança; mas quando viu o vi-
nho, deu de ombros visivelmente.
“Oh, não”, disse, “isso não; é para você. Eu odeio.”
“Muito bem, señor”, disse, “então beberei à sua boa saúde, e à pros-
peridade de sua casa e família. Falando da qual”, prossegui, após beber,
“não terei o prazer de fazer as minhas saudações em pessoa aos pés da
Señora, a sua mãe?”
No entanto, com essas palavras, a infantilidade desapareceu do rosto
e foi seguida por olhar de indescritível astúcia e sigilo. Ele se afastou de
mim na mesma hora, como se fosse um animal prestes a dar o bote, ou
perigoso sujeito armado, e ele, ao se aproximar da porta, me encarou
carrancudo, com as pupilas contraídas. “Não”, disse por fim, e no mo-
mento seguinte saiu do aposento em silêncio; então ouvi os passos mor-
rerem escada abaixo, leves como a chuva, e a quietude dominou a casa.
Após cear, saí da mesa, me aproximei da cama e me preparei para
descansar; mas com a nova posição da luz, me deparei com a pintura na
parede. Representava mulher, ainda jovem. A julgar pelas roupas e uni-
dade branda que reinava no óleo, havia morrido fazia muito tempo; a
julgar pela vivacidade do porte, olhos e traços, poderia estar diante de
imagem viva no espelho. Seu físico era muito magro e forte, e de pro-
porções justas; madeixas ruivas repousavam como coroa na testa; os
olhos, de castanho muito dourado, dominaram os meus com um olhar;
e o rosto, de forma perfeita, ainda assim era desfigurado por expressão
cruel, taciturna e sensual. Algo tanto na face quanto no corpo, algo for-
midavelmente tangível, como o eco de um eco, sugeria os traços e o
porte de meu guia; assim, fiquei parado um tempo, desagradavelmente
atraído e maravilhado com a estranheza da semelhança. A linhagem co-
mum e carnal daquela raça, que originalmente havia sido o desígnio de
damas nobres como aquela que me observava da tela, fora rebaixada a
usos mais ordinários, de roupas rústicas, sentado no eixo e com as ré-
deas da carroça de mula, para trazer um hóspede para casa. Talvez a li-
gação de fato existisse; talvez algum escrúpulo da carne delicada que
uma vez se cobriu com o cetim e o brocado da dama morta, agora se re-
traía com o rude contato da baeta de Felipe.
A primeira luz da manhã brilhou inteiramente no retrato, e, deitado
desperto, meus olhos continuaram a pousar sobre ele com complacência
cada vez maior; a beleza formigava insidiosamente em meu coração, si-
lenciava meus escrúpulos um após o outro; e por mais que soubesse que
amar tal mulher era o sinal e o selo da própria sentença da degeneração
de alguém, também sabia que, se estivesse viva, a amaria. Dia após dia, o
conhecimento duplo de sua perversidade e de minha fraqueza ficava ca-
da vez mais evidente. Ela se tornou a heroína de muitos de meus deva-
neios, nos quais seus olhos, suficientemente recompensados, induziam
ao crime. Ela projetava sombra escura em minha fantasia; e quando saía
ao ar livre, em exercícios vigorosos para renovar com saúde a minha
corrente sanguínea, geralmente me era pensamento feliz que a minha
feiticeira estava segura no túmulo, a varinha da beleza quebrada, os lá-
bios fechados em silêncio, a poção derramada. Mesmo assim, sentia me-
do, algo hesitante, de que não estivesse morta, no fim das contas, e sim
ressurgida no corpo de algum descendente.
Felipe servia as minhas refeições em meu próprio aposento; e sua se-
melhança com o retrato me assombrava. Às vezes, não era; às vezes, por
alguma mudança de atitude ou relampejo de expressão, isso saltava di-
ante de mim como um fantasma. Era, acima de tudo, no temperamento
malvado que a semelhança triunfava. Certamente gostava de mim; fica-
va orgulhoso quando o notava, o que buscava estimular com muitos ar-
tifícios simples e infantis; adorava sentar-se perto de mim diante da la-
reira, falar de jeito fragmentado ou cantar suas canções esquisitas, inter-
mináveis e sem palavras, e, às vezes, passar a mão em minhas roupas
com modo afetado de acariciar que jamais falhava em me causar incô-
modo do qual me envergonhava. Além disso tudo, era capaz de rom-
pantes de raiva desmotivada e de crises de rabugice emburrada. Vi uma
vez, diante de uma palavra de reprovação, virar o prato que eu estava
prestes a comer, e isso não furtivamente, mas em desafio, e também com
um pouco de inquisição. Não era incomum que eu ficasse curioso, nesse
lugar estranho rodeado por pessoas estranhas; mas à sombra de uma
pergunta, ele se encolhia para trás, sinistro e perigoso. Foi então que,
por fração de segundo, esse rústico rapaz poderia ser o irmão da dama
na moldura. Mas esses humores se passaram rapidamente; e a semelhan-
ça morreu com eles.
Nesses primeiros dias não vi nada ou ninguém além de Felipe, a não
ser que se conte o retrato; e uma vez que o sujeito claramente tinha a
mente fraca, e momentos de furor, pode-se imaginar que suportei essa
perigosa proximidade com equanimidade. Na verdade, por algum tem-
po foi fatigante; mas logo obtive domínio tão completo sobre ele que a
minha inquietude cessou.
Aconteceu deste modo: ele era indolente por natureza, um tanto va-
gabundo, ainda assim ficava nos arredores da casa, e não apenas espera-
va por meus pedidos, mas labutava todos os dias no jardim ou no pe-
queno roçado ao sul da residência. Ali era acompanhado pelo camponês
que vira na noite da chegada, que morava nos limites do terreno, a cerca
de oitocentos metros de distância, em casebre tosco; mas estava claro
para mim que, dos dois, era Felipe quem mais trabalhava; e embora às
vezes o observasse jogar a pá de lado e dormir sobre as próprias plantas
que labutava, sua constância e energia eram em si admiráveis, e ainda
mais desde que tive certeza de que eram estranhas à sua disposição e
frutos de esforço sem gratificação. Mas enquanto admirava, me pergun-
tei o que movia um rapaz de intelecto tão limitado a esse duradouro
senso de dever. Como se mantinha, perguntei-me, e até onde aquilo
prevalecia sobre os instintos? O padre provavelmente era a sua inspira-
ção; mas o padre um dia veio à residência. Eu o observei vir e ir embora
no intervalo de cerca de uma hora, do montículo onde eu desenhava, e
todo esse tempo Felipe trabalhou no jardim sem se perturbar.
Ao fim, em humor bastante indigno, decidi desvirtuar o rapaz das
boas resoluções, o embosquei diante do portão, e facilmente o persuadi
a se juntar a mim num passeio. Era belo dia, e o bosque onde o levei era
verde e agradável e de cheiro doce e vivo com o zumbido dos insetos.
Ali se descobriu no frescor, elevou-se a alturas de jovialidade que me
deixava confuso, e exibiu energia e graça de movimentos agradáveis ao
olhar. Saltava, e corria em minha volta por mero contentamento; parava,
e olhava e escutava, e parecia beber do mundo com sinceridade; então,
de repente, subiu na árvore de uma vez, e se pendurou e dava camba-
lhotas ali como se fosse a sua casa. Por pouco que falasse, isso não im-
porta muito, pois raramente desfrutei de companhia tão ativa; a visão de
seu deleite era festa contínua; a velocidade e precisão de seus movimen-
tos me agradavam de coração; e poderia ser tão impensadamente indeli-
cado para fazer dessas caminhadas hábito, não houvesse o acaso me pre-
parado conclusão deveras grosseira ao meu conforto. Com alguma rapi-
dez ou destreza o rapaz capturou um esquilo no topo de uma árvore.
Ele estava um tanto à frente, mas o vi pular para o chão e rastejar ali,
gritar alto de prazer como criança. O som comoveu as minhas simpati-
as, pois era genuíno e inocente; mas quando apertei o passo para me
aproximar, o guincho do esquilo me atingiu o coração. Já havia visto e
ouvido falar bastante da crueldade dos jovens, sobretudo campônios;
mas o que agora contemplava me pôs em furor de raiva. Empurrei o su-
jeito de lado, arranquei o pobre animal de suas mãos, e num instante o
matei por piedade. Então me virei para o torturador, e falei bastante
com ele, no calor de minha indignação, chamando-o por nomes que pa-
reciam fazê-lo murchar; e ao fim, apontei para a residência, lhe acenei
para que se fosse e me deixasse, pois preferia andar com homens, e não
com vermes. Caiu de joelhos, e, com as palavras mais claras que o nor-
mal, jorrou uma torrente das súplicas mais tocantes, me implorou que o
perdoasse à sua mercê, que me esquecesse do que havia feito, que olhas-
se para o futuro. “Oh, tento tanto”, disse ele. “Oh, comandante, fique
com Felipe desta vez; ele jamais será bruto novamente!” Portanto, mais
afetado do que ousei demonstrar, me deixei persuadir, e, ao fim, aperta-
mos as mãos e fizemos as pazes. Mas o obriguei, como punição, a enter-
rar o esquilo; falei da beleza da pobre criatura, lhe contei como havia
sofrido, e como era vil o abuso de força. “Veja, Felipe”, disse, “você de
fato é forte; mas em minhas mãos está tão perdido quanto aquela criatu-
ra na árvore. Dê-me a mão. Você não consegue soltá-la. Agora imagine-
mos que fosse tão cruel quanto você, e sentisse prazer com a dor. Basta-
me apertar mais forte, e ver como sofre.” Gritou alto, a face empalide-
ceu e ele se cobriu de pontos finos de suor; e quando o soltei, caiu no
chão, cuidou da mão e gemeu como um bebê. Mas entendeu bem a li-
ção; não importa se daquilo, ou do que lhe dissera, ou a noção mais pre-
cisa que agora tinha de minha força física, sua afeição original se tornara
fidelidade adoradora, canina.
Enquanto isso, minha saúde melhorou rapidamente. A residência fi-
cava no cume de platô rochoso; as montanhas a rodeavam por todos os
lados; apenas do teto, onde havia uma guarita, podia ser visto entre dois
picos pequeno trecho plano e azul, a uma distância extrema. O ar nessas
altitudes fluía livre e abundante; grandes nuvens se amontoavam por lá,
divididas pelo vento e espalhadas pelos topos das montanhas; uma re-
verberação grave, porém fraca, das torrentes podia ser ouvida por toda a
parte; e ali era possível estudar as características mais rústicas e priscas
da natureza com um pouco de sua força imaculada. Desde o começo
apreciei o cenário vigoroso e o clima instável; e não menos a mansão an-
tiga e dilapidada onde estava hospedado. Tratava-se de retângulo com-
prido, flanqueado nos cantos opostos por duas projeções como basti-
ões, uma das quais com visão para a porta, enquanto ambas possuíam
furos para mosquetes. O andar de baixo era, além disso, desprovido de
janelas, de forma que a construção, se guarnecida, não podia ser tomada
sem artilharia, pois guardava um pátio aberto com romãzeiras. De lá,
grande escadaria de mármore terminava em galeria aberta, dava a volta e
parava, de frente para o pátio, em pilares finos. Desse ponto, várias es-
cadarias fechadas iam aos andares superiores da casa, que estavam assim
repartidos em divisões distintas. As janelas, tanto por dentro como por
fora, estavam bem trancadas; parte dos trabalhos em pedra na parte de
cima haviam desabado; o teto, num ponto, havia sido arruinado nas
ventanias que eram comuns nessas montanhas; e a casa inteira, sob o sol
forte e arrebatador, em meio a alameda de sobreiros podados, bastante
carregados e descoloridos com a poeira, parecia o palácio do sono da
lenda. O pátio, em particular, era semelhante ao próprio lar da sonolên-
cia. Grave arrulho de pombos ocupava os beirais; os ventos não batiam
ali, mas quando assopravam de fora, montanha de poeira caía lá dentro
como chuva grossa, e escondia o vermelho florescente das romãs; era
rodeado por janelas com venezianas, e as portas fechadas de numerosos
porões, e os arcos vazios da galeria; e durante o dia inteiro, o sol fazia
perfis quebrados nos quatro lados, e projetava a sombra dos pilares no
chão da galeria. No nível mais baixo havia, no entanto, certo recuo dos
pilares, que trazia marcas da presença humana. Apesar de aberta de
frente para o pátio, dispunha de chaminé, onde o fogo de lenha sempre
queimava bem; e o chão de azulejos estava sujo com peles de animais.
Foi nesse lugar em que vi minha anfitriã pela primeira vez. Ela havia
levado para fora uma das peles e se sentado sob o sol, recostada no pilar.
Foi o vestido o que me chamou a atenção primeiro, pois era elegante e
brilhantemente colorido, e se destacava naquele pátio empoeirado com
algo do mesmo alívio causado pelas flores das romãs. Na segunda olha-
da, foi a beleza física que me chamou a atenção. Ao se sentar — me ob-
servava, pensei, embora com olhos invisíveis — usava ao mesmo tempo
expressão de contentamento e de bom humor quase imbecil, mostrou
perfeição de traços e nobreza quieta de comportamento maiores que as
de estátua. Ao passar, tirei o chapéu para ela, e seu rosto franziu de sus-
peita com a mesma rapidez e a leveza com que a poça se enruga na bri-
sa; mas não deu atenção à cortesia. Segui para a minha caminhada habi-
tual um tanto desanimado, assustado com a sua impassibilidade de está-
tua; ao retornar, embora ainda com a mesma postura, me surpreendi
bastante por ver que ela havia se movido até o outro pilar, seguindo o
sol. Desta vez, no entanto, se dirigiu a mim com saudação trivial, civil-
mente concebida, e murmurada ao mesmo modo, do fundo do peito,
porém com tons indistintos e balbuciados, que já haviam atordoado ao
máximo a delicadeza de minha audição com o filho dela. Respondi
principalmente pela aventura; não apenas compreendera mal o que dis-
sera, como a súbita revelação de seus olhos me perturbou. Eram inco-
mumente grandes, a íris dourada como a de Felipe, mas a pupila naque-
le momento se dilatou e pareceu completamente preta; e o que me afe-
tou não era tanto o tamanho quanto (talvez fosse consequência disso) a
singular falta de significado daquelas vistas. Jamais vi olhar tão inex-
pressivamente estúpido. Meus olhos os encararam mesmo enquanto fa-
lava, e segui meu caminho escada acima para o aposento, ao mesmo
tempo atordoado e envergonhado. Ainda assim, cheguei lá e vi o rosto
no retrato, e mais uma vez fui lembrado do milagre da descendência fa-
miliar. Minha anfitriã era, de fato, mais velha e mais plena em pessoa;
seus olhos de cor diferente; seu rosto, além disso, não era desprovido
apenas do significado vil que me incomodava e me atraía na pintura; era
desprovido de bondade ou maldade — vazio moral que literalmente ex-
pressa o nada. Porém ainda havia uma semelhança, não tanto ao se falar
do imanente, não tanto em algum aspecto particular, mas no todo. Pare-
cia, pensei, que quando o mestre assinou aquela grave pintura, não ape-
nas capturou a imagem da mulher sorridente de olho falso, mas carim-
bou a qualidade essencial de uma raça.
Daquele dia em diante, viesse ou fosse, sabia que haveria de encon-
trar a Señora sentada ao sol, recostada no pilar, ou esticada no tapete di-
ante do fogo; apenas às vezes mudava para cima da escadaria de pedra,
onde se deitava com a mesma indiferença, exatamente em meu caminho.
Em todos esses dias, jamais a percebi demonstrar a menor centelha de
energia além da que gastava escovando e escovando novamente o copio-
so cabelo cor de cobre, ou para me balbuciar, com bela e esganiçada
rouquidão da voz, as habituais e ociosas saudações. Esses, penso, eram
os seus dois principais prazeres, além da mera tranquilidade. Sempre
parecia orgulhosa dos comentários, como se fossem frases sagazes; e, na
verdade, embora vazios, como a conversa de muitos respeitáveis, e vol-
tadas à gama de assuntos bastante estreita, jamais eram sem sentido ou
incoerentes; não, tinham certa beleza particular, sustentados, como
eram, por todo o contentamento dela. Ora falava do calor, que (como o
filho) adorava demais; ora falava das flores das romãzeiras, e ora dos
pombos brancos e das andorinhas de asas compridas que planavam so-
bre o pátio. Os pássaros a empolgavam; quando passavam pelos beirais
em voo veloz, ou encostavam nela com a lufada de vento, ela se agitava,
e se sentava um pouco mais para cima, e parecia despertar do torpor de
satisfação. Mas, pelo resto dos dias, se deitava luxuosamente curvada
sobre si mesma e mergulhada no ócio e no lazer. No começo, o seu con-
tentamento invencível me incomodava, mas gradualmente vim a encon-
trar repouso no espetáculo, até que, por fim, criei o hábito de me sentar
ao lado dela quatro vezes ao dia, a cada ida e vinda, e a falar com ela so-
nolenta, mal sabia do quê. Passei a apreciar a sua companhia muda, qua-
se animal; a beleza e a estupidez me acalmavam e divertiam. Notei certo
bom senso transcendental nos comentários, e sua natureza insondavel-
mente boa me comoveu a ponto da admiração e da inveja. O apreço foi
recíproco; apreciava a minha presença semiconsciente, como homem
em profunda meditação é capaz de desfrutar dos sussurros do riacho.
Pouco posso afirmar que se iluminava quando eu vinha, pois a satisfa-
ção estava eternamente escrita em seu rosto, como na estátua do idiota;
mas percebia o seu prazer mais por comunicação íntima que pela visão.
E um dia, ao me sentar perto dela no degrau de mármore, esticou a mão
de vez e afagou a minha. Feito isso, voltou à atitude normal, antes que
minha mente recebesse a informação da carícia; e quando me virei para
encará-la, não recebi qualquer sentimento de resposta. Estava claro que
não vinculava o ato a qualquer momento, e me culpei por minha pró-
pria consciência intranquila.
A visão e (se assim posso chamar) o conhecimento da mãe confir-
mou a impressão que já tinha do filho. O sangue da família havia empo-
brecido, talvez por longa endogamia, que sabia ser erro comum entre os
orgulhosos e exclusivos. Nenhum declínio, na verdade, podia ser traça-
do no corpo, transmitido sem páreo na forma e na força; e os rostos de
então foram cunhados com exatamente o mesmo molde do rosto de
dois séculos de idade que me sorria do retrato. Mas a inteligência (he-
rança mais preciosa) estava degenerada; o tesouro da memória ancestral
era fraco; e foi preciso o cruzamento potente e plebeu com um muleiro
ou contrabandista para trazer, o que na mãe se parecia com letargia, a
ativa bizarrice do filho. Ainda assim, entre os dois, era a mãe quem eu
preferia. De Felipe, vingativo e implacável, cheio de chiliques e vergo-
nhas, inconstante como lebre, conseguia até pensar como criatura possi-
velmente nociva. Da mãe não tinha outros pensamentos além dos gen-
tis. E, na verdade, como espectadores geralmente são ignorantes e aptos
a escolher lados, fui um pouco partidário na inimizade que percebi la-
tente entre eles. De fato, parecia maior da parte da mãe. Às vezes, ela
respirava fundo quando ele se aproximava, e as pupilas dos olhos vazios
se contraíam como que com horror ou medo. Suas emoções, tais como
eram, ficavam na superfície e eram prontamente compartilhadas; e essa
repulsão latente ocupava a minha mente, me trazia a dúvida em qual ba-
se se sustentava, e que o filho certamente era culpado de algo.
Já havia passado quase dez dias na residência, quando começou ven-
tania forte e alta, com nuvens de poeira. Veio das planícies contamina-
das por malária, e de diversas sierras cheias de neve. Os nervos daqueles
sobre quem soprou ficaram atiçados e exasperados; os olhos irritados
com a poeira; as pernas doíam com o peso do corpo; e o toque da mão
sobre a outra tornou-se odioso. O vento, além disso, descia as ravinas
das montanhas e batia na casa com zumbido grande e surdo que era
cansativo ao ouvido e sinistramente depressivo para a mente. Não so-
prava em rajadas, mas como a varredura constante de cachoeira, de mo-
do que não havia redução do desconforto enquanto soprava. Porém nu-
ma parte mais alta da montanha, provavelmente tinha força mais variá-
vel, com acessos de fúria; pois às vezes descia ao ouvido lamento distan-
te, infinitamente melancólico; e às vezes, num dos penhascos altos ou
terraços, começava, e depois se dissolvia, a torre de poeira, como a fu-
maça de explosão.
Mal despertei na cama e percebi tensão nervosa e depressão no cli-
ma, e o feito ficou mais forte conforme o dia avançava. Foi em vão que
resisti; em vão que prossegui na caminhada matinal de costume; a fúria
irracional e constante da tempestade logo derrotou a minha força e ar-
ruinou o ânimo; e voltei à residência, reluzindo com calor sequioso, e
imundo e coberto de poeira. O pátio tinha aspecto desamparado; volta e
meia um feixe de sol escapava até lá; volta e meia o vento atacava as ro-
mãs, e espalhava as flores, e fazia as venezianas das janelas baterem na
parede. No vão, a Señora andava de um lado a outro com o semblante
ruborizado e olhos brilhantes; pensei, também, que falava consigo mes-
ma, como alguém enraivado. Mas então me dirigi a ela com a saudação
de costume, e respondeu com gesto seco e continuou a andar. O clima
irritou até mesmo essa criatura impassível; quando subi as escadas fiquei
menos envergonhado por minha própria descompostura.
O vento continuou o dia inteiro; me sentava no aposento e fazia si-
mulação de leitura, ou andava para cima e para baixo, e escutava o tu-
multo acima da cabeça. A noite caiu, e não tinha sequer uma vela. Ansi-
ei por alguma companhia, e desci até o pátio. Agora estava mergulhado
na melancolia da primeira escuridão; mas o vão era iluminado pela luz
avermelhada do fogo. A madeira formava grande pilha, e foi coroada
por labareda, que o esboço de chaminé brandia para lá e para cá. Nesse
brilho forte e tremeluzente, a Señora continuou a andar de uma parede
a outra com gestos desconectados, apertava as mãos, estirava os braços
para frente, lançava a cabeça para trás como se apelasse aos céus. Nesses
movimentos desordenados, a beleza e a graça da mulher se mostraram
mais claras; mas havia luz no olho que me desagradou quando notei; e
após assistir em silêncio por um tempo, aparentemente sem ser observa-
do, escapuli como havia chegado, e tateei pelo caminho de volta até o
meu quarto.
Quando Felipe me levou a ceia e luzes, minha paciência já estava
completamente esgotada; e, estivesse o rapaz como me acostumei a vê-
lo, o teria mantido (mesmo à força, se necessário fosse) para me aliviar
da desgostosa solidão. Mas em Felipe, também, o vento havia exercido a
influência. Estivera febril o dia inteiro; agora que a noite chegara, havia
irrompido em humor baixo e vacilante que influenciava o meu. A visão
de seu rosto assustado, as crises e palidez, e súbitas audições, me ener-
varam; e quando quebrou o prato por derrubá-lo, dei um pequeno salto
no assento.
“Creio que todos ficamos loucos hoje”, disse e busquei sorrir.
“É o vento negro”, respondeu lúgubre. “Você sente que tem que fa-
zer algo, mas não sabe o quê.”
Percebi a prontidão da descrição; mas, na verdade, Felipe às vezes ti-
nha estranha felicidade ao transformar em palavras as sensações do cor-
po. “E a sua mãe, também”, disse; “parece sentir bastante este clima.
Você não receia que esteja mal?”
Ele me encarou por um instante, então disse “Não”, quase desafia-
dor; e no momento seguinte, levou a mão à testa, gritou lamentavel-
mente a respeito do vento e do barulho que fazia a cabeça girar como a
roda de moinho. “Quem poderá estar bem?”, exclamou; e, na verdade,
podia apenas ecoar a pergunta, pois eu mesmo estava bastante perturba-
do.
Fui para a cama cedo, fatigado pela falta de descanso do dia inteiro;
mas a natureza peçonhenta do vento, e o rugido ímpio e intermitente,
não me permitiam dormir. Fiquei deitado, rolando na cama, meus ner-
vos e sentidos no limite. Às vezes cochilava, tinha um sonho horrível, e
despertava novamente; e esses lapsos de esquecimento me confundiam a
respeito do horário. Mas devia ser tarde da noite, quando fui surpreen-
dido de vez pelo rompante de gritos odiosos e lamentáveis. Saltei da ca-
ma, supondo que havia sonhado; mas os gritos continuaram a preencher
a casa, gritos de dor, pensei, mas certamente também de raiva, e tão sel-
vagens e dissonantes que abalavam o coração. Não era ilusão; algum ser
vivo, algum lunático ou algum animal selvagem, era brutalmente tortu-
rado. A lembrança de Felipe com o esquilo passou por minha mente, e
corri até a porta, mas fora trancada por fora; podia bater o quanto qui-
sesse, não tinha qualquer meio de sair. E os gritos continuavam. Agora,
reduzidos a um gemido que parecia articulado, e nesses momentos tinha
certeza de ser humano; e mais uma vez recomeçaram e encheram a casa
com desvarios dignos do inferno. Fiquei diante da porta e escutei, até fi-
nalmente cessarem. Muito tempo depois, ainda relutava a me mover e
continuava a escutá-los na imaginação, misturados com a tempestade de
vento; e quando finalmente me arrastei até a cama, foi com enfermidade
mortal e a escuridão de horror no coração.
Não é de se espantar que não tenha dormido mais. Por que fora
trancado? O que aconteceu? Quem era o autor daqueles gritos indescri-
tíveis e chocantes? Um ser humano? Era inconcebível. Uma besta? Os
gritos eram um tanto bestiais; mas que animal, além do leão ou o tigre,
conseguia abalar as sólidas paredes da residência daquele modo? E en-
quanto ponderava assim a respeito dos elementos do mistério, me veio à
mente que ainda não havia visto a filha da casa. O que seria mais prová-
vel, além de que a filha da Señora, e a irmã de Felipe, fosse ela mesma
insana? Ou, o que poderia ser mais plausível que essas pessoas ignoran-
tes e de mente limitada a controlar com violência a parente aflita? Aqui
estava a solução: ainda assim, quando me recordava dos gritos (o que ja-
mais fiz sem estremecer com calafrios) parecia no todo insuficiente;
nem mesmo a crueldade poderia arrancar tais gritos da loucura. Mas de
uma coisa tinha certeza: não podia ficar na casa onde algo assim fosse
levemente concebível sem tentar resolver o problema e, se necessário,
interferir.
Chegou o dia seguinte, o vento havia ido embora, e não havia nada
que me lembrasse o ocorrido na noite anterior. Felipe veio à beira de
minha cama com evidente euforia; quando atravessei o pátio, a Señora
tomava sol com a imobilidade costumeira; e quando saí pelo portão, en-
contrei toda a paisagem natural sorrindo austeramente, o céu de azul
frio, semeado por grandes ilhas de nuvens, e os lados de montanha ma-
peados com províncias de luz e sombra. Uma caminhada curta me recu-
perou, e renovou em mim a resolução em explorar esse mistério; e
quando, da vantagem do montículo de terra, vi Felipe passar para os la-
bores no jardim, retornei imediatamente à residência para efetivar o
meu plano. A Señora parecia mergulhada em sono; fiquei parado por
um tempo e prestei atenção nela, mas sequer se mexeu; mesmo que meu
plano fosse indiscreto, não tinha muito o que temer de vigia assim; en-
tão, me virei, subi até a galeria e explorei a casa.
Por toda a manhã, passei de uma porta a outra, e entrava em câmaras
espaçosas e opacas, algumas vedadas grosseiramente, algumas com carga
total da luz do sol, todas vazias e desabitadas. Era casa rica, na qual o
Tempo assoprara a sua mácula e a poeira espalhara a desilusão. A aranha
se pendurava ali; a tarântula empapuçada se esgueirava para as cornijas;
as formigas faziam as estradas tumultuadas no chão de salões de audiên-
cia; a mosca grande e vil, que vive na imundície e frequentemente é a
mensageira da morte, havia se assentado nos móveis de madeira apodre-
cidos, e zumbia alto pelos cômodos. Aqui e ali algumas banquetas, sofá,
cama, e grande cadeira entalhada permaneciam, como ilhotas no piso
vazio, para testemunharem antiga ocupação do homem; e todas as pare-
des estavam ornadas com retratos dos mortos. Pude perceber, por essas
efígies decadentes, quão bela e grandiosa era a estirpe dos donos da casa
onde perambulava. Muitos dos homens tinham o peito condecorado e
ostentavam o porte dos nobres oficiais; todas as mulheres trajadas com
luxo; a maioria das telas era assinada por mãos famosas. Mas não era
tanto essas evidências de grandeza que ocupavam a minha mente, mes-
mo em contraste, tal qual estavam, com o presente despovoamento e
decadência do casarão; e sim, principalmente, a parábola da história fa-
miliar que lia naquela sucessão de rostos belos e corpos de boas propor-
ções. Nunca antes contemplei de tal forma o milagre da linhagem em
sequência, a criação e a recriação, o entrelaçamento e a mudança e a
transmissão dos elementos carnais. Que uma criança pudesse nascer,
crescer e se revestir (não sabemos como) com humanidade, e assumir
aparência herdada, e virar a cabeça da mesma maneira que um ascen-
dente, e oferecer a mão com o mesmo gesto de outra, são dúvidas enfra-
quecidas para nós devido à repetição. Porém na singular unidade da ob-
servação, nos traços e nas posturas em comum de todas essas gerações
pintadas nas paredes da residência, o milagre saltou para fora e me
olhou no rosto. E com a oportuna aparição do espelho antigo em meu
caminho, parei e examinei os meus próprios traços por longo tempo, e
fiz com cada mão as linhas de descendência e os vínculos que me liga-
vam à minha família.
Por fim, no curso dessas investigações, abri a porta da câmara que
dava sinais de habitação. Tinha grandes proporções e estava voltada ao
norte, onde a aparência das montanhas era mais selvagem. As brasas do
fogo ardiam e soltavam fumaça na lareira, perto do qual uma cadeira fo-
ra encostada. E, ainda assim, o aspecto do aposento era ascético ao grau
da severidade; a cadeira sem acolchoamento; o piso e as paredes des-
guarnecidos; e com exceção dos livros espalhados confusamente aqui e
ali, não havia instrumento de trabalho ou de lazer. A visão de livros na
casa de tal família me deixou extremamente impressionado; e comecei
com muita pressa, e com medo momentâneo de ser interrompido, a pas-
sar de um ao outro e inspecionar apressadamente no que consistiam.
Eram variados, devocionais, de história, científicos, mas, na maioria,
muito antigos e em latim. Em alguns podia ver as marcas de estudo
constante; outros haviam sido rasgados ao meio e jogados de lado como
que por petulância ou desaprovação. Por último, ao cruzar aquele apo-
sento vazio, bisbilhotei algumas notas escritas a lápis na mesa próxima à
janela. A curiosidade impensada me levou a pegar uma. Trazia a cópia
de versos mal metrificados no original em espanhol, que poderiam ser
entendidos por algo como:
O prazer sobreveio com a vergonha e a dor,
A tristeza com uma grinalda de lírios chegou.
O prazer apontou para o sol adorável;
Jesu querido, quão doce brilhava!
A tristeza apontou com a mão calejada,
Jesu querido, para ti!
1885
1881
1886
História da Porta
O sr. Utterson, advogado, era homem de aparência severa que jamais se
iluminava com um sorriso; frio, ausente e de conversa envergonhada;
retraído nos sentimentos; esguio, comprido, árido, lúgubre, e, ainda as-
sim, um tanto agradável. Em encontros de amigos e quando o vinho lhe
apetecia, algo de eminentemente humano brilhava no olho; algo que na
verdade jamais se mostrava na conversa, mas que falava não apenas com
aqueles símbolos silenciosos do rosto após o jantar, porém com mais
frequência e clamor com as ações da vida. Austero consigo mesmo, be-
bia gim quando sozinho, para mortificar seu apreço por vinhos finos; e
embora apreciasse o teatro, não cruzava a porta de um fazia vinte anos.
No entanto, se mostrava tolerante para com os outros; às vezes refletia,
quase com inveja, sobre a grande pressão que a bebida exercia nas más
ações deles; e, em casos extremos, ficava mais inclinado a ajudar que a
reprovar. “Curvo-me diante da heresia de Caim”, dizia bizarramente:
“permito que meu irmão vá até o diabo ao seu próprio modo.” Com tal
personalidade, não raro calhava de ser o último conhecido respeitável e
a última boa influência na vida de homens em decadência. E a eles, as-
sim que entravam em seus aposentos, nunca dava a demonstrar qual-
quer sombra de mudança no comportamento.
Sem dúvida, essa proeza era fácil ao sr. Utterson, pois era extrema-
mente discreto, e mesmo as suas amizades pareciam fundadas em seme-
lhante catolicismo da generosidade. É a marca do homem modesto acei-
tar seu círculo de amizades já pronto pela mão da oportunidade, e assim
era o advogado. Seus amigos eram aqueles de seu próprio sangue ou
quem conhecia fazia mais tempo; seus afetos, como hera, cresciam com
os anos, mas não necessariamente por alguma aptidão em si. Eis, sem
dúvida, o elo que o unia ao sr. Richard Enfield, parente distante e bem
conhecido na cidade. Para muitos, era um enigma o que esses dois viam
um no outro, ou que assunto teriam em comum. Relatava-se entre
aqueles que os encontravam nas caminhadas dominicais que ambos iam
em silêncio, pareciam singularmente aborrecidos, e que exclamavam alí-
vio evidente ao surgir algum amigo. Apesar de tudo isso, os dois tinham
enorme consideração por essas excursões, consideravam-nas o tesouro
de cada semana, e por elas não apenas dispensavam ocasiões aprazíveis,
como resistiam até mesmo às chamadas a negócios, para apreciá-las sem
interrupção.
Aconteceu de, por acaso, numa dessas vagueações, passarem por rua
secundária em vizinhança movimentada de Londres. A rua era pequena
e pode-se afirmar que tranquila, mas seu comércio era intenso nos dias
de semana. Todos os habitantes iam bem, parecia, e todos igualmente
esperavam ficar ainda melhor, e despendiam o excesso dos ganhos em
chamarizes; desse modo, as fachadas das lojas ao longo daquela via ti-
nham ar convidativo, com filas de vendedoras sorridentes. Mesmo aos
domingos, quando velava seus charmes mais atraentes e em comparação
ficava vazia, a rua brilhava pelo contraste com a esquálida vizinhança,
como fogo na floresta; e com as venezianas recém-pintadas, bronzes
polidos, a limpeza geral e a notável alacridade, imediatamente capturava
e agradava o olho do passante.
A duas casas da esquina, à esquerda de quem vai para o leste, a reta
era interrompida pela entrada de um pátio, e exatamente naquele ponto,
a construção sinistra exibia seu frontão para a rua. Tinha dois andares;
nenhuma janela à vista, nada mais que uma porta no andar de baixo, e a
fachada discreta com a parede descolorida no de cima; e em qualquer
aspecto trazia as marcas de negligência sórdida e prolongada. A porta,
que não era equipada com sineta ou batedor, estava inchada e descolori-
da. Vagabundos perambulavam pelo vão e acendiam fósforos nos pai-
néis; crianças vendiam objetos nos degraus; um estudante havia testado
a faca no batente; por quase uma geração, ninguém jamais aparecera pa-
ra espantar esses visitantes aleatórios ou consertar as avarias.
O sr. Enfield e o advogado estavam no outro lado da rua, mas quan-
do se aproximaram da frente da entrada, o primeiro levantou a bengala
e apontou.
“Já reparou nessa porta alguma vez?”, perguntou; e quando o acom-
panhante respondeu afirmativamente, “em minha mente está relaciona-
da”, acrescentou, “a história muito estranha.”
“É mesmo?”, disse o sr. Utterson, com leve alteração na voz, “e o
que aconteceu?”
“Bem, foi assim”, respondeu o sr. Enfield: “voltava de algum lugar
no fim do mundo, por volta das três de manhã de inverno escura, e meu
caminho passava por uma parte da cidade em que literalmente não havia
nada para se ver além de lampiões. Rua após rua, com todas as pessoas
dormindo — rua após rua, tudo iluminado como se fosse procissão, e
tudo vazio como igreja —, até que enfim alcancei o estado mental em
que um homem escuta e escuta e começa a ansiar pela presença de um
policial. De repente vi duas pessoas: uma delas era sujeito pequenino,
que seguia ao leste a passos pesados, e a outra era menina de talvez oito
ou dez anos e corria o mais rápido que podia pela rua transversal. Bem,
senhor, os dois inevitavelmente se trombaram na esquina; e então ocor-
reu a parte horrível da coisa; pois o homem pisou calmamente no corpo
da criança e a abandonou, chorando no chão. Falando assim não parece
nada de mais, porém era visão infernal. Não era como um homem; esta-
va mais para um maldito Juggernaut.[1] Gritei espantado, corri, agarrei o
homem pelo colarinho e o trouxe de volta para onde já havia aglomera-
ção considerável por causa da criança que chorava. Ele estava muito
tranquilo e não ofereceu qualquer resistência, mas me deu olhar tão
horroroso que fez o suor descer veloz. As pessoas que estavam ali eram
a família da garota; e em pouco tempo chegou o médico que alguém ha-
via chamado. Bem, a criança não estava tão mal, apenas assustada, de
acordo com o médico; e aqui se poderia imaginar que seria o fim do ca-
so. No entanto, havia circunstância curiosa. Senti asco do cavalheiro à
primeira vista. Assim também a família da criança, o que era natural.
Mas o caso do médico foi o que me deixou impressionado: era farma-
cêutico normal, sem cor ou idade em particular, com forte sotaque de
Edimburgo, e tão emotivo quanto gaita de foles. Bem, senhor, ele reagiu
como todos nós; toda vez que olhava para o prisioneiro, notei que o
médico se irritava e empalidecia, com o instinto de matá-lo. Eu sabia o
que se passava em sua mente, assim como sabia o que se passava na mi-
nha; e com o assassinato fora de cogitação, optamos pela segunda me-
lhor alternativa. Dissemos ao homem que podíamos e faríamos grande
escândalo por causa daquilo, e que sujaríamos seu nome de uma ponta a
outra de Londres. Se tivesse qualquer amigo ou crédito, garantimos que
os perderia. E por todo o tempo em que o empurramos extremamente
irritados, tentamos ao máximo afastar as mulheres dele, pois estavam
furiosas como harpias. Jamais vi grupo com rostos tão cheios de ódio; e
eis um homem no meio, com espécie de frieza soturna e desprezível —
assustado também, pude perceber — mas suportando, senhor, exata-
mente como Satã. ‘Caso o senhor decida receber algum capital com esse
acidente’, falou, ‘naturalmente não tenho outra escolha. Um cavalheiro
não deseja nada além de evitar cena’, afirma. ‘Diga-me o valor.’ Então
lhe sugerimos cem libras para a família da criança; claramente desejava
fugir, porém havia algo em nosso grupo que lhe indicava que teria pro-
blemas, e por fim cedeu. A questão seguinte foi conseguir o dinheiro; e
aonde você acha que nos levou, senão a esse local com essa porta? —
pegou a chave, entrou, e em pouco tempo voltou com a quantia de dez
libras em ouro e cheque de uma conta no Coutt’s, a ser pago ao porta-
dor e assinado com nome que não posso mencionar, embora seja um
dos pontos da história, mas era nome muito bem conhecido e frequente
nos jornais. A figura permaneceu rígida; mas a assinatura era boa para
mais que isso, se fosse no mínimo genuína. Tomei a liberdade de co-
mentar com o cavalheiro que toda aquela transação me parecia falsa, e
que, na vida real, uma pessoa não entra num sótão às quatro da manhã e
sai de lá com cheques de quase cem libras de outro homem. Mas ele es-
tava muito calmo e sarcástico. ‘Pode ficar tranquilo’, diz, ‘fico com o se-
nhor até o banco abrir, e eu mesmo saco o dinheiro.’ Então todos parti-
mos, o médico, o pai da criança, nosso amigo e eu, e passamos o resto
da noite em minha casa; e no dia seguinte, depois do café da manhã, fo-
mos juntos ao banco. Eu mesmo dei o cheque, e falei que tinha tudo pa-
ra acreditar que era falso. Nem um pouco: o cheque era verdadeiro.”
“Tsc-tsc”, disse o sr. Utterson.
“Vejo que você se sente como eu”, disse o sr. Enfield. “Sim, é histó-
ria terrível. Esse sujeito nada tinha a ver com ninguém, era pessoa real-
mente condenável; e quem passou o cheque era o indivíduo mais distin-
to, de boa reputação, e (o que piora tudo) pessoa que sem dúvidas pode
ser chamada de boa. Chantagem, imagino; alguém honesto extorquido
por alguma travessura da juventude. A Casa da Chantagem é como cha-
mo o local daquela porta, por causa disso. Porém mesmo isso, sabe, é
difícil de se explicar”, acrescentou, e com essas palavras caiu na cadeia
de reflexões.
Foi resgatado disso pelo sr. Utterson, que lhe perguntou de repente:
“E não sabe se o portador do cheque mora aí?”.
“Um lugar provável, não?”, respondeu o sr. Enfield. “Mas por acaso
prestei atenção no endereço; ele mora numa praça ou algo assim.”
“E nunca perguntou a ninguém a respeito de — do local com a por-
ta?”, insistiu o sr. Utterson.
“Não, senhor: mantive meus escrúpulos”, foi a resposta. “Tenho
muito receio de perguntar; depende muito de como está o dia do julga-
mento. Você solta a pergunta e é como soltar uma pedra. Aí está senta-
do no topo da montanha; e lá vai a pedra abaixo, que solta outras; e no
presente algum pássaro velho e brando (o último no qual você pensaria)
é atingido na cabeça em seu próprio jardim dos fundos e a família tem
que mudar de nome. Não, senhor, é regra particular que sigo: quanto
mais algo se parece com a Rua Bizarra, menos pergunto.”
“Regra muito boa”, disse o advogado.
“Mas investiguei o lugar por conta própria”, continuou o sr. Enfi-
eld. “E mal se parece com uma casa. Não há outra porta, e ninguém en-
tra ou sai por ela, exceto, com enormes intervalos, o cavalheiro de mi-
nha aventura. Ali há três janelas que dão para o pátio no primeiro an-
dar; nenhuma no de baixo; as janelas estão sempre fechadas, mas são
limpas. Há também chaminé com fumaça constante; então alguém deve
morar lá. E ainda assim, não dá para ter certeza, uma vez que as cons-
truções estão tão amontoadas ao redor do pátio, que é difícil dizer onde
uma termina e a outra começa.”
A dupla voltou a caminhar em silêncio por um tempo; e então, “En-
field”, disse o sr. Utterson, “a sua regra é boa”.
“Sim, acho que sim”, respondeu Enfield.
“Apesar disso”, continuou o advogado, “desejo perguntar algo; gos-
taria de saber o nome do homem que passou por cima da criança.”
“Bem”, disse o sr. Enfield, “acho que não há problema em dizer.
Chamava-se sr. Hyde.”
“Hum”, disse o sr. Utterson. “Na aparência é que espécie de ho-
mem?”
“Ele não é fácil de descrever. Há algo de errado com sua aparência;
algo desagradável, algo claramente detestável. Nunca vi homem me cau-
sar tanta repulsa, e ainda assim, não sei direito o porquê. Deve ter algu-
ma deformação; e passa forte sensação de deformidade, embora não
possa especificar exatamente qual. Tem aparência extraordinária, mas
não consigo apontar nada fora do lugar. Não, senhor; não sou capaz;
não consigo descrevê-lo. E não se trata de falha de memória; pois decla-
ro que posso vê-lo neste momento.”
O sr. Utterson voltou a caminhar em silêncio mais um pouco e ob-
viamente ficou incomodado com o peso das considerações. “Tem certe-
za que usou chave?”, acabou por inquirir.
“Meu caro senhor…”, começou Enfield, surpreso consigo mesmo.
“Sim, eu sei”, disse Utterson. “Sei que pode parecer estranho. O fa-
to é que não lhe pergunto o nome da outra parte, porque já sei qual é.
Veja, Richard, sua história se perdeu. Se foi inexato quanto a qualquer
ponto, é o momento de corrigir isso.”
“Acredito que você poderia ter me avisado antes”, respondeu o ou-
tro com toque de rabugice. “Mas, me entenda, chego a soar enfadonho
de tão preciso que fui. O sujeito possuía a chave: e mais, ainda está com
ela. Eu o vi a usar não faz uma semana.”
O sr. Utterson suspirou profundamente, mas não disse uma palavra;
e o jovem logo continuou. “Acabo de aprender que não se deve conver-
sar demais”, disse. “Sinto vergonha de minha língua comprida. Combi-
nemos de jamais nos referir a isso novamente.”
“De coração”, disse o advogado. “Eu o cumprimento por isso, Ri-
chard.”
Incidente da Carta
Era fim de tarde, quando o sr. Utterson se dirigiu à porta do dr. Jekyll,
onde sem demora Poole o convidou a entrar, e foi conduzido pelos cô-
modos da cozinha e pelo quintal que já havia sido jardim, até o prédio
conhecido como laboratório ou sala de dissecação. O médico havia
comprado a casa dos herdeiros de célebre cirurgião e, mais interessado
em química que em anatomia, a construção nos fundos do jardim teve a
função alterada. Era a primeira vez que o advogado seria recebido na-
quela parte da residência do amigo; examinou com curiosidade a estru-
tura esquálida, desprovida de janelas, e enquanto cruzava o auditório,
olhou em volta com desgostosa inquietação, antes repleto de estudantes
entusiasmados, agora desolado e silencioso, as mesas abarrotadas de
aparatos químicos, o piso coberto por caixotes e sujo com a palha deles,
e a luz recaindo fraca na cúpula enevoada. Num ponto ao longe, a esca-
daria dava na porta coberta por baeta vermelha;[5] e do outro lado, o sr.
Utterson finalmente foi recebido no gabinete do médico. Era um gran-
de aposento, rodeado por estantes de vidro, mobiliada, entre outras coi-
sas, com espelho giratório e mesa de escritório, com vista para o pátio
por três janelas empoeiradas com barras de ferro. O fogo queimava na
grelha; o lampião aceso estava na prateleira da chaminé, pois mesmo
dentro das casas a névoa espessa se assentava; e ali, próximo do calor,
estava o dr. Jekyll, que parecia terrivelmente doente. Não se levantou
para cumprimentar a visita, mas ofereceu a mão gelada e lhe deu boas-
vindas com voz vacilante.
“E então”, disse o sr. Utterson, assim que Poole saiu, “ouviu as no-
tícias?”
O médico deu de ombros. “Gritaram na praça”, disse. “Pude ouvir
da sala de jantar.”
“Uma palavra”, disse o advogado. “Carew era meu cliente, mas você
também é, e quero saber por que estou aqui. Você não cometeu a loucu-
ra de esconder esse sujeito, não é?”
“Utterson, juro por Deus”, clamou o médico, “juro por Deus que
jamais olharei para ele novamente. Juro por minha honra que rompi
com ele neste mundo. Tudo se acabou. E para falar a verdade, ele não
deseja a minha ajuda; não o conhece como eu; ele está seguro, bem se-
guro; anote minhas palavras, ninguém nunca mais ouvirá falar dele.”
O advogado o escutava, sorumbático; não apreciava o comporta-
mento febril do amigo. “Você parece ter muita certeza”, disse, “e para o
seu bem, espero que não esteja enganado. Caso isso venha a julgamento,
seu nome pode aparecer.”
“Tenho muita certeza”, replicou Jekyll; “minha certeza tem funda-
mentos que não posso dividir com ninguém. Mas há uma coisa na qual
você pode me aconselhar. Recebi — recebi uma carta; não sei se deveria
mostrá-la para a polícia. Queria deixá-la em suas mãos, Utterson; pois
tenho certeza que decidirá com sabedoria; confio muito em você.”
“Então teme, imagino, que pode levar à detenção dele?”, perguntou
o advogado.
“Não”, disse o outro. “Não posso dizer o paradeiro de Hyde; rom-
pi completamente com ele. Estava pensando em mim mesmo, que fiquei
exposto por causa desse ato tão odioso.”
Utterson ruminou um pouco; estava surpreso com o egoísmo de seu
amigo, porém também ficava aliviado com isso. “Bem”, por fim afir-
mou, “deixa eu ver a carta.”
A carta estava escrita com letra estranha e perpendicular, e assinada
por “Edward Hyde”: isso significava, em suma, que o benfeitor de
quem a escrevera, o dr. Jekyll, que havia sido pago com injustiça por
seus prolongados e inumeráveis gestos de generosidade, precisava sem
alarme trabalhar por sua segurança, enquanto ele possuía os meios de
escapar dos quais tanto dependia. O advogado apreciou aquela carta;
esclarecia um pouco da intimidade que investigava; então se culpou por
algumas das suspeitas anteriores.
“Você está com o envelope?”, perguntou.
“Eu o queimei”, replicou Jekyll, “antes de pensar no que estava a
ponto de fazer. Mas não tinha nenhuma marca postal, o recado foi en-
tregue pessoalmente.”
“Posso ficar com ela esta noite?”, perguntou Utterson.
“Queria que fizesse análise completa dela”, foi a resposta, “perdi a
confiança em mim mesmo.”
“Bem, pensarei a respeito disso”, respondeu o advogado. “Só mais
uma coisa: foi Hyde quem ditou aqueles termos de testamento que
mencionavam o seu desaparecimento?”
O médico pareceu tomado por sensação de tontura; cerrou a boca
com força e acenou.
“Eu sabia”, disse Utterson. “Pretendia matá-lo e escapou por pou-
co.”
“Recebi muito mais do que esperava”, devolveu o médico com sole-
nidade: “e tive a lição — por Deus, Utterson, que lição recebi!” E assim
cobriu o rosto com as mãos por um momento.
A caminho da saída, o advogado parou e trocou duas palavras com
Poole. “Por acaso”, afirmou, “uma carta foi entregue aqui hoje; sabe me
dizer como era o mensageiro?” Mas Poole tinha certeza de que não ha-
via chegado nada lá, exceto dos correios; “e nada mais que memoran-
dos”, completou.
Essas notícias renovaram os medos do visitante. Era evidente que a
carta havia chegado à porta do laboratório; na verdade, possivelmente
escrita no gabinete; e se assim fosse, deveria ser analisada de modo di-
verso, e manuseada com mais cuidado. Os vendedores de jornais, quan-
do passou, gritavam roucos pelas calçadas. “Extra! Extra! Assassinato
chocante de parlamentar.” Aquela era a oração fúnebre do amigo e cli-
ente; ele não podia evitar a sensação de apreensão, por medo de que o
bom nome de outro deles fosse sugado para o centro do escândalo. Isso
era, ao menos, a decisão melindrosa que haveria de tomar; em geral era
confiante, mas agora ansiava por conselhos. Não deveria recebê-los
imediatamente; mas talvez, pensou, poderia procurar por eles.
Logo depois, se sentou de um lado da lareira, com o sr. Guest, seu
principal funcionário, do outro, e a meio caminho entre eles, a distância
do fogo calculada com minúcia, estava a garrafa de vinho particular-
mente antigo que fazia muito repousava protegida do sol pelas funda-
ções da casa. Naquela vizinhança, a névoa ainda se assentava na cidade
submersa, onde os lampiões reluziam como carbúnculos; e com a pres-
são e o abafamento dessas nuvens caídas, a procissão da vida na cidade
ainda fluía pelas grandes artérias com o ruído de vento poderoso. Mas o
aposento estava alegre com a iluminação da lareira. Na garrafa, os áci-
dos haviam se assentado fazia muito; a coloração imperial se atenuou
com o tempo, como a tintura que fica mais bela em janelas manchadas, e
o brilho das tardes quentes de outono nas vinhas ao pé da montanha es-
tava prestes a libertar e dispersar as névoas londrinas. O advogado desa-
bafou sem perceber. Não havia homem a quem contava mais segredos
que o sr. Guest, e não sabia se lhe contava o bastante. Guest sempre ha-
via trabalhado para o médico; conhecia Poole; dificilmente não saberia
da presença do sr. Hyde naquela casa; poderia tecer conclusões; não po-
deria, portanto, ver a carta que esclarecia o mistério? E, acima de tudo,
Guest, sendo grande estudante e analista de caligrafia, poderia conside-
rar o passo natural e inevitável. O funcionário, além disso, era inteligen-
te; dificilmente leria documento tão estranho sem soltar alguma obser-
vação; e por sua observação o sr. Utterson poderia moldar o curso de
seu futuro.
“Que triste o ocorrido com o sr. Danvers”, disse.
“Sim, de fato, senhor. Causou grande comoção pública”, respondeu
Guest. “O homem, claro, era louco.”
“Gostaria de ouvir sua opinião a respeito disso”, replicou Utterson.
“Tenho aqui um documento com a caligrafia dele; fica entre nós dois,
pois pouco compreendo do que se trata; algo no mínimo terrível. Mas aí
está; bem na sua frente: o autógrafo do assassino.”
Os olhos de Guest brilharam, e se sentou de vez e a examinou com
paixão. “Não, senhor”, disse; “louco, não; mas é uma mão estranha.”
“E em qualquer quesito escritor muito estranho”, acrescentou o ad-
vogado.
Exatamente nesse momento, o criado entrou com mensagem.
“É do dr. Jekyll, senhor?”, inquiriu o funcionário. “Reconheci a le-
tra. Algo em particular, sr. Utterson?”
“Apenas convite para o jantar. Por quê? Quer ver?”
“Um momento. Obrigado, senhor”; e o funcionário colocou as fo-
lhas de papel lado a lado e comparou os conteúdos com diligência.
“Obrigado, senhor”, disse por fim, e as devolveu, “é uma letra bem in-
teressante.”
Houve pausa, durante a qual o sr. Utterson lutou consigo mesmo.
“Por que as comparou, Guest?”, indagou de vez.
“Bem, senhor”, respondeu o funcionário, “há semelhança um tanto
singular; as letras são em muitos pontos idênticas: apenas inclinadas de
modo diferente.”
“Um tanto singular”, disse Utterson.
“É, como o senhor diz, um tanto singular”, respondeu Guest.
“Não comente nada a respeito desta mensagem, tudo bem?”, disse o
patrão.
“Não, senhor”, disse o funcionário. “Compreendo.”
E assim que o sr. Utterson ficou sozinho aquela noite, trancou a
mensagem no cofre, onde repousou a partir de então. “Céus!”, pensou.
“Henry Jekyll forjou a letra de um assassino?” E o sangue gelou em su-
as veias.
A Última Noite
Certa noite, o sr. Utterson estava sentado diante da lareira, após o jan-
tar, quando foi surpreendido pela visita de Poole.
“Por Deus, Poole, o que o traz aqui?”, exclamou; e então, olhou pa-
ra ele mais uma vez, “O que o aflige”, acrescentou, “o médico está do-
ente?”
“Sr. Utterson”, disse o homem, “há algo de errado.”
“Sente-se, tome uma taça de vinho”, disse o advogado. “Não tenha
pressa, conte-me com clareza o que deseja.”
“Você já sabe como o médico é”, respondeu Poole, “como se fecha.
Bem, está trancado no gabinete; e não gosto disso, senhor — queria
morrer, se gostasse disso. Sr. Utterson, meu caro, sinto medo.”
“Agora, meu bom homem”, disse o advogado, “seja mais claro. Do
que está com medo?”
“Sinto medo faz uma semana”, respondeu Poole e desviou da per-
gunta com destreza, “e não aguento mais.”
A aparência do homem confirmava o que dizia; os trejeitos haviam
piorado, e exceto pelo momento em que anunciara seu temor pela pri-
meira vez, não encarou o advogado sequer uma vez. Mesmo agora, se
sentou com a taça de vinho intocada sobre o joelho, e seus olhos mira-
vam um ponto do chão.
“Não aguento mais”, repetiu.
“Vamos”, disse o advogado, “percebo que tem um bom motivo, Po-
ole; percebo que é algo terrivelmente impróprio. Tente me contar o que
é.”
“Acredito que haja alguma transgressão da lei”, disse Poole, com a
voz rouca.
“Transgressão da lei!”, gritou o advogado, um tanto aterrorizado e
ainda mais inclinado a se irritar, por consequência. “Que transgressão
da lei? O que quer dizer com isso?”
“Eu não ousaria explicar, senhor”, foi a resposta; “mas seria possível
vir comigo e ver por si só?”
A única resposta do sr. Utterson foi se levantar e pegar o chapéu e o
sobretudo; mas observou impressionado quão enorme foi o alívio sur-
gido no rosto do mordomo, e talvez igualmente impressionado, que a
taça de vinho permaneceu intacta quando a soltou para sair dali.
Era noite fria, selvagem e oportuna do mês de março, de lua pálida,
deitada de costas como se o vento a houvesse derrubado, e nuvens de
textura diáfana e granulada. O vento dificultava a conversa e pintalgava
o sangue do rosto. Além disso, parecia ter varrido a rua, estranhamente
desprovida de passantes; assim, o sr. Utterson pensou que jamais havia
visto aquela parte de Londres tão deserta. Poderia ter desejado que fos-
se diferente; nunca na vida ficara consciente de desejo tão forte de ver e
tocar os semelhantes; por mais que lutasse, nascera em sua mente a es-
magadora antecipação da calamidade. A praça, quando chegaram lá, es-
tava cheia de vento e poeira, e as árvores finas no jardim açoitavam o
corrimão. Poole, que por todo o caminho se mantivera um ou dois pas-
sos à frente, agora deteve-se no meio da calçada, e apesar do clima cor-
tante, tirou o chapéu e esfregou a testa com o lenço de bolso vermelho.
Mas apesar da pressa de sua ida, não era o orvalho de transpiração o que
secava, mas a umidade de alguma angústia estranguladora, pois a face
estava branca e a voz, quando falava, áspera e esganiçada.
“Bem, senhor”, disse, “aqui estamos, e que Deus ajude para não ha-
ver nada de errado.”
“Amém, Poole”, disse o advogado.
Com isso o criado bateu de maneira bastante recatada; a porta foi
aberta com a corrente; e uma voz perguntou de dentro: “É você, Poo-
le?”.
“Está tudo bem”, disse Poole. “Abra a porta.”
O salão, quando adentraram, estava bastante iluminado; o fogo alto;
e próximo à lareira toda a criadagem, homens e mulheres, reunida como
rebanho de ovelhas. Ao avistar o sr. Utterson, a criada irrompeu em la-
múria histérica; e a cozinheira, gritou “Graças a Deus! É o sr. Utter-
son”, correu até ele como se pretendesse pegá-lo nos braços.
“O quê, o quê? Estão todos aqui?”, disse o advogado com fastio.
“Que incomum, que estranho; seu patrão não deve estar nada conten-
te.”
“Estão todos com medo”, disse Poole.
Um silêncio inexpressivo se seguiu, ninguém protestou; apenas a
criada aumentou a voz e chorou alto.
“Pare com a choradeira!”, falou Poole, com a ferocidade no tom que
denunciava os próprios nervos abalados; e na verdade, quando a garota
levantara sua nota de lamentação tão de repente, todos se viraram em
direção à porta interna com rostos de expectativa assustadora. “E ago-
ra”, continuou o mordomo, para o assistente, “me dê a vela, e vamos li-
dar com isso o quanto antes.” E então solicitou ao sr. Utterson que o
seguisse, e foi na frente até o jardim dos fundos.
“Agora, senhor”, disse, “se aproxime com o máximo de silêncio.
Quero que ouça, mas que não seja ouvido. E veja, senhor, se por acaso
o convidar para entrar, não vá.”
Os nervos do sr. Utterson, com essa recomendação inesperada, es-
tremeceram de modo a quase desequilibrá-lo; mas juntou coragem e se-
guiu o mordomo até a prédio do laboratório e através do auditório da
sala de cirurgias, com caixotes de madeira e garrafas no pé da escada.
Aqui Poole lhe indicou que ficasse num lado e escutasse; enquanto isso,
ele próprio, soltou a vela e se demorou bastante para criar coragem, mas
subiu os degraus e bateu com mão um tanto insegura na baeta vermelha
da porta do gabinete.
“O sr. Utterson pede para vê-lo, senhor”, chamou; e enquanto fazia
isso, mais uma vez assinalou com violência para que o advogado escu-
tasse.
A voz respondeu de dentro: “Diga-lhe que não posso ver ninguém”,
em tom de reclamação.
“Obrigado, senhor”, disse Poole, com tom um tanto triunfal; e er-
gueu a vela, conduziu o sr. Utterson de volta ao quintal e à grande cozi-
nha, onde o fogo estava apagado e os besouros saltavam no chão.
“Senhor”, disse, encarando o sr. Utterson nos olhos, “era a voz de
meu patrão?”
“Ela me parece bem alterada”, replicou o advogado, bastante pálido,
e lhe devolveu o olhar.
“Alterada? Bem, sim, concordo”, disse o mordomo. “Mas será que
fiquei por vinte anos na casa desse homem para me enganar quanto a
sua voz? Não, senhor; o patrão não está aí; não está aí faz oito dias,
quando o escutamos gritar pelo nome de Deus; e quem está lá em vez
dele, e por que fica lá, é algo que compete ao Paraíso, sr. Utterson!”
“É uma história muito estranha, Poole; história muito brutal, meu
amigo”, disse Utterson, mordendo o dedo. “Supondo que seja como
pensa, na hipótese de que o dr. Jekyll foi — bem, assassinado, o que po-
deria induzir o assassino a ficar? Isso não se sustenta; não se aplica à ra-
zão.”
“Bem, sr. Utterson, o senhor é difícil de se convencer, mas o farei”,
disse Poole. “Durante toda a última semana (deve saber) ele, ou quem
quer que esteja naquele gabinete, clamou por algum remédio durante a
noite e o dia inteiro e não consegue tirar isso da cabeça. Às vezes, o que
fazia era — me refiro ao patrão — escrever pedidos em folha de papel e
depois lançá-la escada abaixo. Não havia mais nada nesta última sema-
na; nada além de recados e a porta fechada, e as próprias refeições res-
tantes deveriam ser contrabandeadas quando ninguém estivesse por
perto. Bem, senhor, todos os dias, ah, e duas ou três vezes no mesmo
dia, houve ordens e reclamações, e fui mandado para todos os químicos
atacadistas da cidade. Toda vez que voltava com o produto, haveria ou-
tro recado para que devolvesse, pois não era puro, e outra ordem para ir
a uma loja diferente. Ele quer demais essa droga, senhor, seja ela qual
for.”
“Você tem algum desses recados?”, perguntou o sr. Utterson.
Poole apalpou o bolso e puxou uma anotação amassada, que o advo-
gado, se curvou para se aproximar da vela e examinou com cuidado. O
conteúdo seguia assim: “Dr. Jekyll apresenta seus cumprimentos aos
srs. Maw. Ele se assegura que a última amostra é impura e sem qualquer
utilidade para seu propósito no momento. No ano de 18…, o dr. J.
comprou quantia relativamente grande dos srs. M. Agora lhes suplica
que procurem com cuidado absoluto, e caso haja algo da mesma quali-
dade, que encaminhem o material o quanto antes. Não considerar des-
pesas. A importância disto para o dr. J. mal pode ser exagerada”. Até aí
a carta seguia bem composta, mas aqui com tremor repentino da caneta,
a emoção do escritor se revelou. “Pelo amor de Deus”, acrescentara,
“me encontre um pouco da antiga.”
“É uma anotação estranha”, disse o sr. Utterson; e então com agude-
za, “Por que está aberta?”.
“O homem na loja de Maw ficou bastante irritado, senhor, e a jogou
de volta para mim como se fosse lixo”, respondeu Poole.
“Sem nenhuma dúvida esta é a letra do médico, percebeu?”, conti-
nuou o advogado.
“Também achei parecida”, disse o servidor com alguma rabugice; e
então, com outra voz, “Mas que importa a letra?”, disse. “Consegui vê-
lo!”
“Vê-lo?”, repetiu o sr. Utterson. “Como foi?”
“Isso mesmo!”, disse Poole. “Foi assim: entrei de vez no auditório
vindo do jardim. Parece que ele havia saído para procurar pela droga ou
o que for; pois a porta do gabinete estava aberta, e ali ele no fundo do
aposento, vasculhando os caixotes. Olhou para cima quando entrei, deu
uma espécie de grito, e disparou pela escada, para dentro do gabinete.
Não o vi por mais que um minuto, mas meu cabelo ficou de pé como
penas na cabeça. Senhor, se aquele era meu patrão, porque usava másca-
ra? Se era meu patrão, porque guinchou como rato e depois correu de
mim? Eu o servi por muito tempo. E então…”, o homem parou e pas-
sou a mão no rosto.
“São circunstâncias muito estranhas”, disse o sr. Utterson, “mas
acho que começo a vislumbrar uma luz. Seu patrão, Poole, está clara-
mente tomado por uma daquelas moléstias que torturam e deformam a
vítima; daí, pelo que sei, a alteração na voz; daí a máscara e a reclusão
dos amigos; daí a ansiedade para encontrar essa droga, que ajudaria a
pobre alma à recuperação definitiva — que Deus garanta que não se de-
cepcione! Esta é minha explicação; é muito triste, Poole, ah, e aterrador
pensar nisso; mas é evidente e natural, se sustenta bem, e nos livra des-
ses alarmes exorbitantes.”
“Senhor”, disse o mordomo, que adquiriu espécie de palor sarapin-
tado, “aquela coisa não era meu patrão, eis a verdade. Meu patrão” —
aqui olhou em volta e suspirou — “é homem alto e bem constituído, e
aquele estava mais para anão.” Utterson tentou protestar. “Oh, senhor”,
gritou Poole, “acha mesmo que não sou capaz de reconhecer o meu pa-
trão depois de vinte anos? Acha que não sei por onde sua cabeça passa
na porta do gabinete, onde vi em todas as manhãs de minha vida? Não,
senhor, aquela coisa na máscara jamais foi o dr. Jekyll — Deus sabe o
que era, mas jamais foi o dr. Jekyll; e meu coração acredita que um as-
sassinato aconteceu.”
“Poole”, replicou o advogado, “já que afirma isso, torna-se meu de-
ver investigar. Por mais que deseje poupar os sentimentos de seu patrão,
por perplexo que esteja com esta anotação que parece provar que ainda
vive, considero meu dever arrombar aquela porta.”
“Ah, sr. Utterson, é isso mesmo”, exclamou o mordomo.
“E agora vem a segunda pergunta”, continuou Utterson: “Quem fa-
rá isso?”
“Oras, nós dois, senhor”, foi a intrépida resposta.
“Muito bem”, respondeu o advogado; “e não importa o resultado,
assumo a responsabilidade, para que nada lhe aconteça.”
“Há um machado no auditório”, continuou Poole; “e o senhor pode
pegar o atiçador da cozinha.”
O advogado segurou aquele instrumento rústico, porém pesado, e o
equilibrou. “Tem noção, Poole”, disse, olhando para cima, “de que você
e eu estamos prestes a nos colocar em situação de algum perigo?”
“De fato, talvez seja verdade, senhor”, respondeu o mordomo.
“Então é justo que sejamos francos um com o outro”, disse o outro.
“Nós dois pensamos mais do que dissemos; sejamos francos. Essa figu-
ra mascarada que você viu, por acaso chegou a reconhecê-la?”
“Bem, senhor, foi muito rápido, e a criatura estava tão curvada, que
não poderia jurar por isso”, foi a resposta. “Mas o que quer dizer, se era
o sr. Hyde? — oras, sim, penso que sim! Veja, tinha quase a mesma al-
tura; e tinha o mesmo ar de leveza; além disso, quem mais poderia en-
trar pela porta do laboratório? O senhor se lembra que na época do as-
sassinato ele ainda tinha a chave? Mas não é tudo. Não sei, sr. Utterson,
o senhor já conversou com o sr. Hyde?”
“Sim”, disse o advogado, “uma vez conversei com ele.”
“Então deve saber tão bem quanto os outros que havia algo de insó-
lito naquele cavalheiro — algo que fazia uma pessoa ter calafrios — não
sei bem como explicar, senhor: era algo que podíamos sentir na medula
— algo frio e rarefeito.”
“Reconheço que senti isso que descreve”, disse o sr. Utterson.
“Exatamente, senhor”, respondeu Poole. “Bem, quando aquela coisa
mascarada como macaco pulou do meio dos produtos químicos e dispa-
rou para o gabinete, isso percorreu minha espinha como gelo. Oh, sei
que não é nenhuma evidência, sr. Utterson; sou estudado o bastante pa-
ra isso; mas um homem tem seus instintos, e dou minha palavra sagrada
que era o sr. Hyde!”
“Sim, sim”, disse o advogado. “Meus medos apontam na mesma di-
reção. Receio que o mal tenha originado — o mal com certeza o faria —
essa conexão. Sim, de verdade, acredito em você; acredito que o pobre
Harry esteja morto; e acredito que seu assassino (por qual motivo, so-
mente Deus pode dizer) ainda esteja emboscado no aposento da vítima.
Bem, que nosso nome seja vingança. Chame Bradshaw.”
O criado apareceu aos chamados, muito pálido e nervoso.
“Recomponha-se, Bradshaw”, disse o advogado. “Este suspense, sei,
diz tudo de você; mas agora nossa intenção é acabar de vez com isso.
Poole aqui e eu entraremos à força no gabinete. Se tudo correr bem,
meus ombros são grandes o bastante para suportar a culpa. Enquanto
isso, a não ser que algo dê errado, ou que algum malfeitor tente escapar
pelos fundos, você e o garoto devem dar a volta pelo quarteirão com
um belo par de bastões, e ficar a postos na porta do laboratório. Dare-
mos dez minutos para que cheguem ao seu posto.”
Quando Bradshaw saiu, o advogado olhou para o relógio. “Agora,
Poole, devemos fazer a nossa parte”, falou; e, com o atiçador debaixo
do braço, seguiu na frente até o quintal. As nuvens haviam se amontoa-
do na direção do luar, e agora estava bem escuro. O vento, que somente
batia em correntes e lufadas para aquele profundo poço de construção,
balançava a luz da vela para um lado e para o outro com os passos deles,
até a chegada ao abrigo do auditório, onde se sentaram em silêncio para
esperar. Londres zumbia com solenidade ao redor, mas nas proximida-
des a quietude só era quebrada pelo som de passos para lá e para cá no
chão do gabinete.
“É assim que ele fica andando o dia inteiro, senhor”, sussurrou Poo-
le; “sim, e a maior parte da noite. Somente quando nova amostra chega
do químico há pequena pausa. Ah, fico doente só de pensar que um ca-
nalha como esse seja capaz de descansar! Ah, senhor, há abominável
sangue derramado em cada passo dele! Escute novamente, um pouco
mais de perto — ponha seu coração nos ouvidos, sr. Utterson, e me di-
ga, é o pé do médico?”
Os passos eram leves e estranhos, com certo agito, pois acima de tu-
do iam com muita lentidão; de fato era diferente da maneira pesada e
barulhenta de Henry Jekyll andar. Utterson suspirou. “Alguma vez já
aconteceu outra coisa?”, perguntou.
Poole acenou. “Uma vez”, disse. “Uma vez escutei choro!”
“Choro? Como assim?”, disse o advogado, consciente do frio de
terror repentino.
“Um choro como o de mulher ou o de alma perdida”, disse o mor-
domo. “Voltei com isso em meu coração, de modo que quase chorei
também.”
Mas agora os dez minutos chegavam ao fim. Poole pegou o macha-
do do fardo de palha para empacotamento; a vela ficou na mesa mais
próxima para iluminar o ataque; então se aproximaram com a respiração
suspensa para o passo tranquilo que ainda ia para lá e para cá, para lá e
para cá, na quietude noturna.
“Jekyll”, gritou Utterson, em voz alta, “preciso vê-lo.” Parou por
um momento, mas não houve resposta. “Dou aviso justo, nossas suspei-
tas aumentam, preciso e devo ver você”, continuou; “se não por meios
justos, então por meios desagradáveis — se não por consentimento, en-
tão por força bruta!”
“Utterson”, disse a voz, “pelo amor de Deus, tenha piedade!”
“Ah, esta não é a voz de Jekyll — é a de Hyde!”, exclamou Utter-
son. “Derrubemos a porta, Poole.”
Poole girou o machado no ombro; a pancada balançou o prédio, e a
baeta vermelha da porta saltou para fora da tranca das dobradiças. Um
guincho soturno, como o de mero terror animal, foi emitido no gabine-
te. O machado subiu novamente, e novamente os painéis se racharam e
os batentes tremeram; foram desferidas quatro pancadas, mas a madeira
era resistente e os encaixes de excelente marcenaria; e não foi até a quin-
ta que a tranca estourou em fenda e destroços da porta caíram para den-
tro, sobre o carpete.
Os sitiantes, apavorados pela própria desordem e a quietude que su-
cedera, deram pequeno passo para trás e espiaram lá dentro. Ali estava o
gabinete diante de seus olhos sob a quieta luz do lampião, bom fogo
brilhante e crepitante na lareira, a chaleira emitia o assobio fino, uma ou
duas gavetas abertas, papéis arrumados na mesa de trabalho, e mais per-
to do fogo, coisas postas para o chá: um cômodo dos mais tranquilos,
dir-se-ia, e, se não fosse pelas estantes brilhantes cheias de produtos
químicos, o lugar mais normal naquela noite londrina.
Bem no meio estava um corpo de homem gravemente contorcido e
em convulsão. Eles se aproximaram na ponta dos pés, o viraram de cos-
tas e se depararam com o rosto de Edward Hyde. Vestia roupas grandes
demais, roupas do tamanho das do médico; as linhas do rosto ainda se
moviam como que em sinal de vida, mas a vida se fora; e pelo frasco es-
magado na mão e aquele forte odor de amêndoas que estava no ar, Ut-
terson sabia que olhava para o corpo de alguém que dera fim à própria
vida.
“Chegamos tarde demais”, disse ele, com severidade, “tanto para
salvar como para punir. Hyde se foi por conta própria; e agora nos resta
somente encontrar o corpo de seu patrão.”
A maior parte do prédio estava ocupado pelo auditório, que preen-
chia quase todo o térreo e era iluminado de cima, e pelo gabinete, que
formava o andar superior num lado e tinha vista para o pátio. Um cor-
redor ligava o auditório à porta na ruela; que o gabinete se comunicava
separadamente por segunda escadaria. Além disso, havia armários escu-
ros e um porão espaçoso. Examinaram tudo isso com diligência. Cada
armário não requeria mais que uma olhada, uma vez que estavam todos
completamente vazios, exceto pela poeira nas portas fechadas havia tan-
to tempo. O porão, na verdade, estava cheio de lenha cortada, a maioria
da época do cirurgião que precedera Jekyll, e assim que abriram a porta,
perceberam a inutilidade de busca mais intensa, por causa da queda da
teia de aranha perfeita que por muitos anos havia selado a entrada. Em
lugar algum havia sinal de Henry Jekyll, morto ou vivo.
Poole apontou para o pavimento do corredor. “Deve estar enterrado
aqui”, disse, prestando atenção aos ruídos.
“Ou fugiu”, disse Utterson, e se virou para examinar a porta na rua.
Estava trancada; e jogada ao lado do pavimento, encontraram a chave, já
manchada com ferrugem.
“Não parece útil”, observou o advogado.
“Útil!”, ecoou Poole. “Não vê, senhor, que está quebrada? Como se
houvessem pisado nela.”
“Sim”, continuou Utterson, “e as rachaduras também estão enferru-
jadas.” Os dois homens olharam um para o outro com pavor. “Isto está
além de minha compreensão, Poole”, disse o advogado. “Vamos para o
gabinete.”
Subiram as escadas em silêncio, e ainda com ocasionais olhares de
surpresa para o corpo, avançaram com mais diligência para examinar o
que continha o gabinete. Na mesa, havia traços de trabalhos químicos,
diversos montículos medidos de espécie de sal branco postos em pires
de vidro, como se para experimento que o infeliz preparou.
“Esta é a mesma droga que sempre lhe trazia”, disse Poole; e en-
quanto falava, a chaleira fervia com barulho alarmante.
Isso os conduziu à lareira, até onde a poltrona fora puxada para o
conforto, e o aparato do chá estava posto próximo ao cotovelo de quem
se sentasse ali, e na xícara já tinha açúcar. Havia vários livros na estante;
um aberto ao lado do aparato de chá, e Utterson ficou impressionado
por ser cópia de obra religiosa, pela qual Jekyll várias vezes havia ex-
pressado grande estima, com anotações, em sua própria letra, de blasfê-
mias tenebrosas.
Em seguida, no curso do exame do aposento, os investigadores fo-
ram ao espelho giratório, em cujas profundezas observaram com horror
involuntário. Mas estava virado de modo que não lhes mostrava nada
além do brilho róseo no teto, o fogo crepitante numa centena de repeti-
ções ao longo da frente brilhante das estantes, e as próprias fisionomias
pálidas e assombrosas agachadas para olhar.
“Este espelho viu coisas estranhas, senhor”, murmurou Poole.
“Certamente nada mais estranho que ele mesmo”, repetiu o advoga-
do com a mesma entonação. “Pois o que Jekyll fez” — interrompeu de
vez a frase, para dominar a fraqueza: “qual a intenção de Jekyll com is-
so?”, disse.
“Não tenho ideia!”, disse Poole.
Depois, se viraram para a mesa de trabalho. Sobre a mesa, entre as
fileiras de papel arrumadas, um grande envelope estava por cima, e tra-
zia, na letra do médico, o nome do sr. Utterson. O advogado retirou o
selo e vários anexos caíram no chão. O primeiro era o documento com
os mesmos termos excêntricos que aquele devolvido por ele seis meses
antes, para servir de testamento, em caso de morte, e como a escritura
de doação, em caso de desaparecimento; mas em vez do nome de
Edward Hyde, o advogado, com surpresa indescritível, leu o nome de
Gabriel John Utterson. Olhou para Poole, e de volta ao papel, e por úl-
timo ao malfeitor morto esticado no carpete.
“Minha cabeça está rodando”, disse. “Esteve possesso por todos es-
ses dias, não tinha motivo para gostar de mim, deve ter sentido raiva
por se ver sem lugar, e mesmo assim não destruiu este documento.”
Ele pegou o papel seguinte; era breve nota na letra do médico e com
data no topo. “Oh, Poole!”, exclamou o advogado, “estava vivo aqui e
hoje mesmo. Não pode ter sido desovado em período tão curto, ainda
deve estar vivo, deve ter fugido! Mas então, por que fugir? E como? E
nesse caso, podemos nos arriscar a declarar o suicídio deste aqui? Oh,
devemos ter cuidado. Prevejo que ainda podemos envolver seu patrão
em alguma catástrofe medonha.”
“Por que não a lê, senhor?”, pediu Poole.
“Porque tenho medo”, replicou o advogado com solenidade. “Deus
sabe que não tenho motivo para fazer isso!” E assim levou o papel até
os olhos e leu o que segue.
Meu caro Utterson, — quando esta chegar às suas mãos, terei desa-
parecido, sob quais circunstâncias, não tenho condições de prever;
porém meu instinto e todas as circunstâncias de minha situação
inominável me dizem que o fim é certo e haverá de ser em breve.
Vá então, e primeiro leia a narrativa que Lanyon me avisou que le-
varia às suas mãos; e caso tenha interesse em saber mais, volte à
confissão de
Seu infeliz e desmerecedor amigo,
Henry Jenkyll.
“Havia um terceiro anexo?”, perguntou Utterson.
“Aqui, senhor?”, disse Poole, e entregou-lhe pacote considerável,
selado em vários lugares.
O advogado o colocou no bolso. “Não comentaria nada a respeito
deste pacote. Caso seu patrão tenha fugido ou esteja morto, podemos
ao menos salvar sua reputação. Agora são dez horas; devo ir para casa e
ler estes documentos em silêncio; mas devo voltar antes de meia-noite, e
então chamamos a polícia.”
Saíram, trancaram a porta do auditório atrás deles, e Utterson, mais
uma vez reuniu a criadagem perto da lareira do salão, andou de volta ao
seu escritório para ler as duas narrativas nas quais o mistério estava
prestes a ser explicado.
NEBLINAS
MARÍTIMAS
ROBERT LOUIS STEVENSON
1907
3. “Stevenson, seu Estilo e o Burro”, Gilles Lapouge. In: Robert Louis Stevenson. Viagem com
um Burro pelas Cevenas. São Paulo: Carambaia, 2016, p.118–9.
5. The Complete Stories of Robert Louis Stevenson. Nova York: Modem Library Classics, 2002,
p. 412. Org. Barry Menikoff.
7. “Introduction”, Tom Middleton. In: R.L. Stevenson. Dr. Jekyll and Mr. Hyde with The
Merry Men & Other Stories. Hertfordshire: Wordsworth Classics, 1999, p. XIV-V.
8. “A Poesia da Circunstância”, Davi Arrigucci Jr. In: Robert Louis Stevenson. O Clube do
Suicídio e Outras Histórias. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 27.
9. “Why Robert Louis Stevenson’s South Sea Tales Go Against the Tides”, Jane Rogers. The
Guardian, 9 dez. 2016.
10. “Introduction”, Barry Menikoff. In: Barry Menikoff (org.). The Complete Stories of Robert
Louis Stevenson. Nova York: Modem Library Classics, 2002, p. XLII.
∴
1. Remédios com grande porcentagem de álcool.
∴
1. Lendário monarca e patriarca cristão da Idade Média, a quem se atribui diversas histórias
prodigiosas.
2. Lepra, palavra sem equivalente direto no idioma havaiano.
∴
1. Kamehameha I, o Grande (1758–1819), monarca responsável por unificar o arquipélago
havaiano e estabelecer o Reino do Havaí.
∴
1. Referência ao assassino escocês William Burke (1792–1829), que, em companhia de William
Hare (ca. 1804–1829), vendia corpos para o médico e professor de anatomia Robert Knox
(1793–1862). Não por acaso, o escritor francês Marcei Schwob fecha o livro Vidas Imaginárias
com o conto “Burke e Hare, Assassinos”.
3. Corruptela de “Hodie mihi, cras tibi” (Hoje para mim, amanhã para ti), frase bastante usada
em túmulos.
∴
1. No folclore escocês, o Kelpie é espírito das águas que surge em forma de cavalo, às vezes de
humano.
∴
1. Notórios assassinos, cujas execuções causaram grande comoção na Inglaterra. Elizabeth
Brownrigg (1720–1767) espancou até a morte a aprendiz de criadagem. Frederick (1820–1849) e
Marie Manning (1821–1849) atiraram na cabeça de um convidado e o enterraram na cozinha.
John Thurtell (1794–1824) atirou no rosto de um homem e, como ele sobreviveu ao disparo,
cortou sua garganta com canivete.
∴
1. Em Hamlet ato 1, cena 5, o protagonista faz Horácio e Marcelo jurarem sobre sua espada que
não comentarão com ninguém do fantasma de seu pai.
∴
1. Gigantescos carros-templo hindus que tinham a má-fama de atropelar quem estivesse no
caminho. No inglês moderno, a palavra adquiriu o significado de força destrutiva e
incontrolável.
3. Obrigado a traduzir epigrama 32 do livro do poeta latino Marcial “Non amo te, Sabidi, nec
possum dicere quare / Hoc tantum possum dicere, non amo te” (Não te amo, Sabidius, mas não
posso dizer o porquê / Só posso dizer que não te amo), o então estudante Tom Brown satirizou
o professor John Fell: “I do not like thee, Dr. Fell/The reason why I cannot tell/But this I know,
and know full well / I do not like thee, Dr. Fell” (Não gosto de você, dr. Fell / O motivo não sei
bem dizer / Mas disto tenho certeza / Não gosto de você, dr. Fell); com a popularização da
tradução do epigrama, “Dr. Fell” se tornou o símbolo de aversão inexplicável.
5. “Baize”, no original. Tecido semelhante ao feltro. Entre os séculos XVIII e XIX, era comum
que uma cobertura de baeta verde fosse colocada nas portas que separavam o espaço da
criadagem das outras áreas das mansões. Entre vários significados possíveis, a baeta vermelha
pode simbolizar o isolamento do dr. Jekyll do resto da humanidade.
6. Atos 16, 26: “De repente houve um tão grande terremoto que foram abalados os alicerces do
cárcere, e logo se abriram todas as portas e foram soltos os grilhões de todos”.
7. Daniel 5, 5: “Na mesma hora apareceram uns dedos de mão de homem, e escreviam, defronte
do castiçal, na caiadura da parede do palácio real; e o rei via a parte da mão que estava
escrevendo”.
∴
1. Peças de oito! Peças de oito!
2. O rosto grande como presunto — o olho é mera tachinha neste rosto, mas cintilante como
caco de vidro.
3. Capitão Kidd, pirata real, protagoniza conto de Vidas Imaginárias (1896), do próprio
Schwob; “O Escaravelho de Ouro” é um conto de aventura de Edgar Alan Poe; Alexandre-
Olivier Exquemelin (1645–1707) foi pirata e escritor, e deixou uma obras importante sobre a
pirataria do século XVII; capitão Flint e Ben Gunn são personagens de A Ilha do Tesouro; o
náufrago Tom Ayrton é personagem de dois livros de Jules Verne (1828–1905), e, em um deles, é
resgatado da ilha Tabor pelo capitão Nemo, protagonista de Vinte Mil Léguas Submarinas.
4. Henrique V 2,3, de Shakespeare: “Ele partiu exatamente entre doze e uma hora, bem na hora
da mudança da maré; após vê-lo apalpar os lençóis e brincar com as flores e rir das pontas dos
dedos, sabia que não havia mais o que fazer, pois o nariz estava fino como pena e ele tagarelava
de campos verdejantes…” “Dizem que clamou por xerez” — “Sim, isso ele clamou”.
5. Referência a verso da Ballade des Pendus [Balada dos Enforcados], de Villon: “E o sol nos
secou e escureceu”; de acordo com o folclore europeu, a posse da mão de um enforcado traz
poderes mágicos. Em 1893, Schwob publicou o conto “La Main de Gloire”.
7. Odisseu, também conhecido como Ulisses, personagem de diversas obras da literatura grega
clássica, como Ilíada e Odisseia, de Homero; Robinson Crusoé é personagem de livro
homônimo de Daniel Defoe; A Narrativa de Arthur Gordon Pym foi escrita por Edgar Allan
Poe. Os três são marinheiros.
9. E que eu possa / Com todos os meus piratas dividirmos a tumba / Onde jazem com os seus
feitos.
10. A estrela resplandecente, de coloração maçante, opaca e lânguida, com movimento difícil,
solene e lento.
11. A quantia, me lembro, era cerca de treze xelins, mais alguns pence gastos e umas moedinhas
de latão.
13. Ela examinou a espada, a empunhou… e a enfiou até o cabo no chão congelado.
15. Dom Quixote I, 1: “De fisionomia rígida, seco de carnes, enxuto de rosto”; a descrição do
frei Jean des Entoummeures está em Gargântua (1534), de François Rabelais (1494–1553);
Henrique IV, Parte I, 2, 4: “Por tique horrível no olho e expressão estúpida no lábio inferior”.
16. Tragédia de John Ford, publicada em 1633 e, possivelmente, encenada em 1626, pode ser
traduzida como Que pena que ela é uma prostituta.
18. E, sobre ela, os cumes de alguns pinheiros pretos, como amontoado de plumas.
19. “Disseram que você está nas ilhas dos bem-aventurados” (traduzido do francês).