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O MÉDICO E O MONSTRO E OUTROS EXPERIMENTOS

Tradução para a língua portuguesa


© Paulo Raviere. 2019
Ilustrações de Capa e Miolo
© Alcimar Frazão, 2019
Diretor Editorial
Christiano Menezes
Diretor Comercial
Chico de Assis
Gerente Comercial
Giselle Leitão
Gerente de Marketing Digital
Mike Ribera
Editores
Bruno Dorigatti
Raquel Moritz
Editores Assistentes
Lielson Zeni
Nilsen Silva
Capa e Projeto Gráfico
Retina 78
Designers Assistentes
Arthur Moraes
Guilherme Costa
Finalização
Sandro Tagliamento
Revisão
Cecília Floresta
Ana Kronemberger
Impressão e acabamento
Gráfica Geográfica
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Stevenson, Robert Louis
O médico e o monstro e outros experimentos/ Robert Louis
Stevenson ; ilus. de Alcimar Frazão ; tradução de Paulo Raviere.
— Rio de Janeiro : DarkSide Books. 2019.
352 p.: il.
ISBN: 978-85-9454-171-0
1. Ficção escocesa 2. Contos escoceses I. Título II. Frazão. Alcimar
III. Raviere, Paulo
19-1940 | CDD E823
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção escocesa

[2019]
Todos os direitos desta edição reservados à
DarkSide® Entretenimento LTDA.
Rua Alcântara Machado, 36, sala 601, Centro
20081-010 — Rio de janeiro — RJ — Brasil
www.darksidebooks.com

eBook: Argon | Design: Hyperion | Versão: v1.0.0


Sumário

Página de título
Créditos
Introdução: Stevenson

1. A Praia de Falesá

2. O Demônio da Garrafa

3. A Ilha das Vozes

4. O Apanhador de Corpos

5. Olalla

6. Markheim

7. Janet, a Entortada

8. O Médico e o Monstro

9. Neblinas Marítimas

Robert Louis Stevenson


Cronologia
Fontes
Sobre o autor
STEVENSON:
PRÍNCIPE
NARRADOR
POPULAR E REFINADO

POR PAULO RAVIERE

Era 7 de setembro de 1887, e o sol batia em Nova York com persistên-


cia rigorosa e implacável. O vento às vezes atacava os chapéus dos tran-
seuntes e os carregava em vórtices voadores; às vezes havia uma calma-
ria, e os dias eram silenciosos, sinuosos, intermináveis. Mas não no New
York City Harbour, com mais de uma dezena de jornalistas causando
certa comoção, à espera do navio de onde desembarcaria uma celebrida-
de — e é aqui que os séculos se distanciam: um escritor.
Pálido, magro, adoentado, Robert Louis Stevenson, um escocês de
36 anos de idade, olhou com desconfiança para o aglomerado de curio-
sos que esperavam por seu desembarque. Os cabelos escorridos para
trás e o grande bigode preto se destacavam naquele rosto mofino e fati-
gado, pois não era nada fácil cruzar o oceano. “Se fosse a chegada de Je-
sus Cristo, não fariam tamanha balbúrdia”, afirmou à esposa.
Viajara até os Estados Unidos para fugir do gélido clima europeu,
que por toda a vida lhe causara problemas de saúde. O sucesso, naque-
las proporções, era novidade, e tamanho entusiasmo se devia à publica-
ção, em janeiro do ano anterior, da novela O Médico e o Monstro, que
nos primeiros seis meses havia vendido 40 mil exemplares nas Ilhas Bri-
tânicas e, nos Estados Unidos, estima-se que 250 mil cópias piratas —
tampouco privilégio contemporâneo.
Stevenson gostava de ser lido, é bem verdade; porém também neces-
sitava de pão, de boas estantes, de uma cama confortável, de um bom
casaco, de um pouco de gim para ajudá-lo a suportar as noites frias; em
suma, como qualquer padeiro, soldado ou comerciante, Stevenson tam-
bém precisava de dinheiro. O sucesso internacional, no entanto, não foi
imediatamente traduzido em conforto financeiro.
Em prestígio, talvez; o “Príncipe dos narradores” gozava do apreço
e da amizade de algumas personalidades de seu tempo: Rodin o invejava
por ter “a pena a serviço de seus pensamentos”; é notória a sua corres-
pondência com Henry James; Mark Twain nos legou a calorosa lem-
brança de um encontro entre eles naquela mesma cidade, Marcel
Schwob, Rudyard Kipling e Arthur Conan Doyle desejaram “peregri-
nar” até Samoa — cenário das últimas obras e horas do escocês, que lá
era conhecido como tusitala — o contador de histórias.
Seu prestígio apenas aumentaria com o passar dos anos, e sua obra
arrancaria aplausos dos escritores mais díspares entre si. Virginia Woolf
afirmou que ele “combinava a mais estranha psicologia de um garoto
com a extrema sofisticação de um artista”;[1] Jorge Luis Borges, que sua
descoberta era “duradoura felicidade”; Vladimir Nabokov dava aulas
sobre O Médico e o Monstro; G.K. Chesterton lhe dedicou todo um vo-
lume.
Talvez isso se deva à disparidade de sua própria obra. “É justamente
por não ter uma especialidade, que o sr. Stevenson é um caso particu-
lar”, percebeu Henry James. “Cada um de seus livros é um esforço in-
dependente — uma janela que dá para uma vista diferente.”[2] Isso salta
aos olhos quando pensamos na variedade de gêneros literários que ele
escreveu. Mais conhecido por seus romances, novelas e contos, Steven-
son também nos legou notáveis volumes de ensaios, de poesia, de cor-
respondência, relatos de viagem, artigos jornalísticos, e chegou a produ-
zir algumas peças de teatro sem muito sucesso.
Mas tal disparidade também pode descrever o conteúdo de sua obra.
Neste volume, por exemplo, há histórias de terror (O Médico e o Mons-
tro, “Markheim”, “O Apanhador de Corpos”, “Olalla”, “Janet, a En-
tortada”), mistério e aventura (“A Praia de Falesá”), fantasia (“O De-
mônio da Garrafa”, “A Ilha das Vozes”), sendo que nenhuma dessas
narrativas pode ser resumida a um gênero e enquadrada em apenas uma
categoria. Não há um molde.
Assim, diante de um artista que, feito raro mesmo entre os autores
clássicos, entrou para o imaginário da sua época e foi ao mesmo tempo
um sucesso de público e da crítica especializada, entre seus contemporâ-
neos e pela posteridade, Gilles Lapouge faz a pergunta de um milhão de
dólares:
Ao lê-lo, admiramos um escritor natural, um pintor naïf, um ho-
mem que escreve como cantam os pássaros. Ora, Stevenson, na
verdade é um artista bastante obstinado, que se interrogou apaixo-
nadamente sobre os meios de sua arte, sobre o estatuto, os limites,
e as funções da literatura. Se há maravilha, em Stevenson, ela se ilu-
mina com esta questão: como um artista tão lúcido, tão reflexivo,
pôde preservar a inocência de sua escrita?[3]
Talvez o próprio Stevenson tenha respondido, naquele verão de 1887.
Devidamente alojado em Nova York, recebeu propostas tentadoras pa-
ra colaborar com publicações americanas. Na primeira, receberia 60 li-
bras para escrever um artigo por mês durante um ano na Scribner’s Ma-
gazine; na segunda, receberia 2 mil libras para escrever um artigo por
semana na New York World. Aceitou apenas a primeira, pois a segunda
“em menos de três semanas levaria até mesmo um homem honesto a se
transformar num mero caçador de lucros”.[4]

A Aventura da Tradução
Em literatura, não existe geração espontânea. Os textos mais orgânicos
e fluídos nada têm de aleatório; na verdade, talvez sejam orgânicos e
fluídos exatamente por não serem aleatórios. Mesmo assim, não é inco-
mum que na gênese da obra literária esteja um sonho ou um pesadelo.
Sem pensar muito, podemos citar, na literatura inglesa, a novela O Mé-
dico e o Monstro, aqui publicada; o romance Frankenstein, de Mary
Shelley; o poema inconcluso “Kublai Khan”, de Samuel Taylor Cole-
ridge. Supõe-se, das fabulações sobre essas obras, que elas, como que
por algum sopro angelical, foram inseridos na mente dos seus criadores.
A ideia é perigosa; primeiro, por trazer a impressão de que a veloci-
dade é, em si, um valor — e no mais das vezes ela gera apenas aberra-
ções; segundo, por sugerir que a escrita seja privilégio de iluminados.
Evidentemente, são raros aqueles capazes de produzir obras-primas,
porém isso não se deve ao fato de serem iluminados; exatamente o con-
trário: poucos produzem obras-primas porque a literatura é construção.
Uma criança superdotada poderá pintar retratos com maestria, um
autista será capaz de dominar o violino, mas jamais escreverão um gran-
de romance; em literatura, quando muito, surge um gênio adolescente
— o exemplo imediato é Arthur Rimbaud, arquétipo do enfant terrible
(criança terrível), como os franceses designam talentos precoces e rebel-
des. Evidentemente, a grande ideia, a sagacidade, não é privilégio dos
escritores, e talvez um açougueiro ou um jogador de futebol que jamais
tenha lido um livro profira uma frase que fique na História por sua sa-
gacidade, ou até mesmo tenha ideia para um enredo magnífico; mas eles
jamais sairiam com um grande romance da noite para o dia, gerado por
seus sonhos.
Uma boa ideia não é mais que o primeiro degrau de uma escadaria
interminável. Narra-se com sabor os relatos de produção febril, dos li-
vros de sonho acima mencionados, a epifania de Fernando Pessoa, Jack
Kerouac massacrando a sua máquina de datilografar, O Jogador sendo
escrito em um mês, para Dostoiévski cobrir suas dívidas. No entanto,
na história da criação literária é feito vista grossa para os oito anos de
gestação de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, os dez demorados
anos de Guerra e Paz, de Liev Tolstói, as décadas de Memórias de Adri-
ano, de Marguerite Yourcenar; e mesmo no caso das obras sonhadas, ig-
nora-se todas aquelas horas silenciosas vividas por seus autores, horas
de leitura, de tentativa e erro, de maturação das ideias, de angústia, ho-
ras de trabalho não remunerado, não reconhecido, horas que antecede-
ram o nobre momento da produção concentrada e veloz. Muitas vezes
esse trabalho é apagado pelas intempéries da História, por quem deseja
vender uma narrativa, às vezes pelos próprios escritores, que talvez pre-
firam passar a imagem de únicos e geniais, em detrimento da figura de
reles operários das artes escritas. É importante ressaltar isso aqui, por-
que, do mesmo modo, não existe tradução espontânea.
O primeiro desafio de se traduzir Stevenson é a relação com todas as
suas traduções anteriores. Ainda que não tenham sido necessariamente
consultadas, antecede este projeto a leitura de algumas versões de O
Médico e o Monstro e de vários dos contos aqui presentes, publicadas
em antologias de horror, de mistério, de textos borgianos. O Médico e o
Monstro, por exemplo, faz parte do imaginário coletivo; é inevitável que
se conheça alguma de suas adaptações, homenagens, paródias, ou, ao
menos, seu enredo. O confronto com essas versões já começa no pró-
prio título. The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde é popularmen-
te conhecido no Brasil como O Médico e o Monstro, ainda que existam
traduções mais literais. Por não se anularem, não causar eco e nem se-
rem redundantes, optou-se aqui por manter as duas opções, O Médico e
o Monstro, sua forma consagrada, seguida de um subtítulo, O Estranho
Caso do Dr. Jekyll e o Sr. Hyde, tradução mais próxima do título origi-
nal.
Aprofundando-se mais, talvez o maior desafio desta tradução foi a
tentativa de se apresentar um texto em português que unisse a precisão
e o cálculo com esse sabor romanesco, fluente e popular, tão celebrado
chez Stevenson — a mot juste, a palavra exata, a serviço da rapidez —,
numa prosa que recriasse suas idiossincrasias estilísticas e que não soas-
se demasiado contemporânea. Como nos mostra Borges em “Pierre
Menard, autor do Quixote”, ou Roland Barthes em “Romanos no Ci-
nema”, por mais cuidadoso que seja o criador, seria impossível não dei-
xar pegadas de contemporaneidade nesta tradução. Na pior das hipóte-
ses, muda-se o contexto no qual estas histórias serão lidas. Mesmo as-
sim, é possível manter certo controle.
Embora muitos de seus personagens de outros países basicamente se
comuniquem em seus próprios idiomas, Stevenson é quem conta — em
seu próprio idioma; ou seja, apesar de os diálogos estarem em inglês,
pontuados aqui e ali com estrangeirismos, sabemos que, dentro da his-
tória, Felipe fala em espanhol, Keawe em nativo. Stevenson às vezes su-
gere idiomas, sotaques e dialetos com discretas expressões e alterações
sintáticas inseridas nas falas ou na narração, sem itálico, como “señor” e
“kanaka”, e outras nem tão discretas: o escocês dr. Macfarlane mencio-
na uma “auld lang syne”, e a samoana Uma explica que “God he big
chief, got too much work”; no conto “Janet, a Entortada” (Thrawn Ja-
net), isso é escancarado:
When folk tauld him that Janet was sib to the deil, it was a’ supers-
tition by his way of it; an’ when they cast up the Bible to him an’
the witch of Endor, he wad threep it doun their thrapples that thir
days were a’ gane by, and the deil was mercifully restrained.[5]
Esse conto é a concretização do desejo pessoal de Stevenson de escrever
no dialeto escocês, o que explicita em carta a Henry James datada de 23
de dezembro de 1886: “Estou pensando em um volume de versos, boa
parte deles será cunhado com minha fala natal, aquela linguagem obscu-
ra e oracular: suponho que isso seja uma loucura, mas e aí?”.[6] Por ser
um dos mais famosos contos de horror de Stevenson, ele se fez indis-
pensável a esta antologia.
São várias as abordagens possíveis para a tradução desse conto: uma
delas seria transformá-lo em prosa corrente, em essência, nada diferente
dos outros deste volume; no entanto, nas coleções consultadas para esta
tradução, estava apresentado no original, em scots, acompanhado de
glossário, e tal abordagem foi descartada. Note-se, que essa não seria
uma opção “errada”, e que seria completamente justificável, não fosse o
interesse, como dito antes, de se recriar as idiossincrasias estilísticas, os
“ruídos” linguísticos que Stevenson usa para destacar a diferença.
Restava, portanto, tentar recriá-lo em português com sua devida
oralidade. Abre-se com essa escolha, mais algumas possibilidades: é
possível tentar criar um texto que ecoasse nossa fala, um tanto herméti-
co, à maneira de Macunaíma, de Mário de Andrade, Sargento Getúlio,
de João Ubaldo Ribeiro, de todo o Guimarães Rosa, e ainda de nossas
traduções de James Joyce e Anthony Burgess, algo que talvez requeres-
se um glossário para ser compreendido. Nossa última edição de O Som
e Fúria, de William Faulkner, seguida dos comentários do tradutor Pau-
lo Henriques Britto, serviu de estrela-guia para a transcriação de
“Thrawn Janet”: optou-se por um texto oralizado, com marcações de
diversas regiões, alternando-se palavras inusitadas com corriqueiras, de
acordo com uma lógica sintática própria, mas de modo geral compreen-
sível. Talvez um termo ou outro escape ao leitor, e isso é uma das inten-
ções, mas não precisará de glossário para entender:
Quando as pessoa contaro pra ele que Janet era mancomunada
com o cramunhão, ele deixou isso pra lá como se fosse super’tição;
e quando eles mostraro a Bíblia pr’ele e a bruxa de Endor, ele res-
pondia pra eles que aqueles dia tinha se acabado, e que o cramu-
nhão tinha sido controlado pela fé.
É preciso ainda ressaltar que as notas aqui presentes são instrumento
para o enriquecimento da leitura, não auxílio indispensável para a com-
preensão, e as histórias poderão ser lidas sem sua consulta. Tentou-se
que todas as questões — as blagues, os jogos linguísticos, os sotaques,
as alterações sintáticas, os versos, os trocadilhos, os estrangeirismos, em
suma, tudo o que se apresentasse como um desafio específico, para além
daquele que é verter histórias consagradas, populares, constantemente
retraduzidas, e, de modo geral, para além do desafio que é verter qual-
quer texto literário a outro idioma — que fossem resolvidas no texto
em si.

O Lado Escuro
Este livro inclui um volume de contos em sua forma integral, Entreteni-
mentos das Noites nas Ilhas, a novela O Médico e o Monstro, e mais
quatro contos “soltos”, “O Apanhador de Corpos”, “Markheim”, “Ja-
net, a Entortada” e “Olalla”; todos os contos foram primeiramente pu-
blicados em revistas e periódicos antes de Stevenson reuni-los, com ex-
ceção de “O Apanhador de Corpos”, que só saiu em livro após sua
morte. Os outros três contos soltos entraram no volume The Merry
Men, cuja heterogeneidade é ressaltada por seu próprio criador:
Stevenson sentia que eles formavam um grupo bem “esquisito”.
Sua Nota aos leitores declarava que “os contos aqui presentes
compõem um conjunto um tanto desigual” […] Pouquíssimos lei-
tores compartilhavam de sua alta estima por “Will o’ the Mill”, mas
muitos elogiaram “Janet, a Entortada” e “Markheim”.[7]
Esses três contos, portanto, foram selecionados por representarem pon-
tos altos na literatura clássica de horror.
•••
Sem qualquer dúvida, o texto mais conhecido deste livro é O Médico e
o Monstro; simbólico, metafórico, polifônico, plural, infinito, essa nove-
la mostra a trágica história do Dr. Jekyll, que produz um composto ca-
paz de separar de seu corpo a sua parte má, personificada no Sr. Hyde,
sujeito atarracado que desperta a repulsa em qualquer um que olhe para
ele. O horror em O Médico e o Monstro é potencializado por ser conta-
do a partir de diversos pontos de vista, com trechos em primeira e ter-
ceira pessoa, seja pela jovem que presencia um assassinato, seja pelos
testemunhos legados pelo Dr. Lanyon e pelo próprio Dr. Jekyll em con-
traste com as desventuradas suspeitas do advogado Utterson, que igno-
ra que Jekyll e Hyde são a mesma pessoa. O Médico e o Monstro tem o
seu horror intensificado aos olhos desse advogado, talvez o olhar dos
primeiros leitores da novela (uma vez que essa dualidade é revelada ape-
nas no final), e esse é um exercício possível aos que a lerão pela primeira
vez.
Os “contos soltos” desta coleção estão entre os mais brilhantes
exemplares de ficção de horror do século XIX. “O Apanhador de Cor-
pos” é inspirado no célebre caso de Burke e Hare, serial killers escoce-
ses que matavam para fornecer cadáveres a um professor de anatomia.
Em “Markheim”, conto de horror psicológico, Stevenson evoca alguns
dos grandes assassinatos ingleses do século XIX para narrar o desespero
de um homicida imediatamente após o seu ato. “Janet, a Entortada” é
exploração linguística que, se em primeiro plano conta uma história de
possessão demoníaca, mais a fundo sugere quão terrível pode ser uma
multidão assustada e supersticiosa, mal que afligira a Europa durante a
Inquisição, e atualmente apenas mudou de forma. “Olalla” é o soturno
relato do enfermo que decide passar uma temporada na villa de uma
nobre, porém decadente família espanhola. Se fosse original dos dias de
hoje, talvez seu horror atmosférico e sugestivo pudesse ser classificado
com “pós-terror”.
Abre este volume o livro Entretenimentos das Noites nas Ilhas, cole-
ção de histórias escritas e passadas em ilhas do Pacífico, onde Stevenson
viveu os seus últimos anos. “A Praia de Falesá” é uma novela sobre o
comerciante britânico que desembarca numa ilha e deve enfrentar um
conterrâneo ardiloso e inescrupuloso. “O Demônio da Garrafa” é a re-
visitação da história da lâmpada dos desejos; mas aqui os desejos são ili-
mitados, e aquele em posse da garrafa deve se livrar dela antes da morte,
sob o risco de padecer eternamente no inferno. “A Ilha das Vozes” é a
aventura de Keawe e seu sogro, o feiticeiro Kalamake, em uma ilha on-
de o dinheiro é literalmente catado na praia, como conchas.
Dada a heterogeneidade dos contos e novelas aqui apresentados, o
leitor poderá se perguntar se existe alguma relação entre eles. No mes-
mo volume, estão presentes contos de ambientação urbana, noturna, in-
vernal, como O Médico e o Monstro e “Markheim”, em contraponto
com os solares e marítimos Entretenimentos das Noites nas Ilhas. Alte-
rados os critérios de relação, podemos contrapor contos explicitamente
fantásticos como “A Ilha das Vozes”, “O Demônio da Garrafa” e O
Médico e o Monstro, com “A Praia de Falesá” e “O Apanhador de Cor-
pos”, mais calcados no realismo. Pode-se alternar ainda textos de hor-
ror com os de outros gêneros, os contos britânicos com os de outros
países; os personagens anglófonos com os nativos de outros idiomas; há
sempre um contraste possível. Sendo assim, o que têm em comum essas
histórias aqui apresentadas?
A resposta, de certa forma, está implícita nos comentários à obra fic-
cional de Stevenson. Davi Arrigucci Jr., por exemplo, ao discorrer sobre
a narrativa romanesca ressalta que “um de seus polos permanentes de
atração é o sonho sem fundo das descidas do homem ao inferno da divi-
são e da duplicidade do ser”.[8] Jane Rogers vaticina que “o esnobismo,
a ganância e a crueldade dos brancos, a hipocrisia religiosa e a eventual
destruição das culturas e vidas nativas, tudo é grão para o moinho de
Stevenson”.[9] Barry Menikoff, na introdução do volume que serviu de
base para esta tradução, afirma ser inquestionável que “a natureza do
mal é um dos maiores temas de Stevenson, de suas primeiras obras ficci-
onais aos textos que deixou inacabados”.[10]
Assim, podemos afirmar que esses relatos estão unidos por nos
apresentarem a morte, a influência do acaso, as facetas obscuras do ser
humano — o mal herdado, o mal induzido, o mal inconsciente, o mal
puro. Obviamente, os personagens têm desígnios e motivações que não
nos são completamente explicitados, e não raro, como também é na vi-
da, podem ter mais de uma motivação, podem se contradizer, podem
mentir. De qualquer maneira, não é ilícito afirmar que em “O Apanha-
dor de Corpos”, “Markheim”, “A Praia de Falesá”, “A Ilha das Vozes”,
o princípio-motor do mal é a ganância, a ira, o desprezo; já em “Olalla”
temos o orgulho, a tradição, a ignorância; em “Janet, a Entortada”, a su-
perstição, o medo, o diferente, Satã em pessoa; em O Médico e o Mons-
tro, o vício e a busca pelo prazer; e até mesmo o amor pode desvelar es-
se lado obscuro, em “O Demônio da Garrafa”. As diversas facetas do
mal e as maneiras de se combatê-las — eis, portanto, o que define este
volume.
ENTRETENIMENTOS DAS NOITES NAS ILHAS

A PRAIA
DE FALESÁ
ROBERT LOUIS STEVENSON
1891

Para três velhos marinheiros das ilhas


Harry Henderson, Ben Hird e Jack Buckland
Seu amigo R.L.S.

CAPÍTULO I
UM CASAMENTO NO MAR DO SUL
Na primeira vez que vi a ilha não era nem noite nem manhã. A lua esta-
va ao oeste, sumia, mas ainda grande e brilhante. A leste, e à direita, a
meia-nau do alvorecer, completamente rosado, a estrela do dia reluzia
como diamante. A brisa terrestre assoprava em nossos rostos e exalava
forte odor de coentrilho e baunilha: além de outras coisas, mas essas
eram as mais evidentes; e o frio me fez espirrar. Devo falar que antes ha-
via passado anos numa ilha baixa próxima da linha do equador, vivia a
maior parte do tempo sozinho entre os nativos. Já aquela era experiên-
cia nova; mesmo com a língua muito diferente para mim; e a vista da-
quelas matas e montanhas, e seu raro odor, renovaram o meu sangue.
O capitão assoprou o lampião da caixa da bússola.
“Ali”, disse, “ali há um pouco de fumaça, sr. Wiltshire, depois da
quebra do recife. É Falesá, onde fica a sua estância, a última povoação
ao leste; ninguém vive a barlavento, não sei por quê. Pegue minha lune-
ta, e poderá ver as casas.”
Peguei a luneta; e a enseada se aproximou de vez, e vi o emaranhado
da mata e a quebra da rebentação, e os tetos amarronzados e os interio-
res negros das casas entrevistas em meio às árvores.
“Você consegue ver um pouco de branco ali ao leste?”, prosseguiu o
capitão. “É a sua casa. Feita de coral, de pé alto, varanda que três podem
andar um ao lado do outro: a melhor estância no Pacífico Sul. Quando
o velho Adams viu, segurou e balançou a minha mão; ‘Eu me deparei
com uma coisa boa aqui’, disse. ‘Você também’, digo, ‘e com tempo
também!’ Pobre Johnny! Nunca o vi novamente, depois daquela vez, e
então mudou o tom — não conseguiu se entender com os nativos, ou os
brancos, ou nada; e na vez seguinte que viemos nessas redondezas, esta-
va morto e enterrado. Peguei e ergui um mastro para ele: ‘John Adams,
óbito em mil oitocentos e sessenta e oito. Vá e faça o mesmo’. Senti falta
daquele homem; nunca via maldade em Johnny.”
“Do que ele morreu?”, indaguei.
“Alguma espécie de doença”, disse o capitão. “Aparentemente o pe-
gou de súbito. Parece que se levantou de noite, se encheu de Anestési-
cos e da Descoberta de Kennedy:[1] sem chances — não podia tomar
Kennedy. Então, tentou abrir a caixa de gim; sem chances também —
não tinha força o bastante. Então, deve ter se virado e corrido na varan-
da, e passado por cima do corrimão. Quando o encontraram no outro
dia, estava completamente louco — repetia o tempo inteiro alguma coi-
sa sobre alguém molhar a copra. Pobre John!”
“Alguém pensou que foi por causa da ilha?”, perguntei.
“Bem, alguém pensou que foi por causa da ilha, ou do problema, ou
alguma coisa”, respondeu. “Nunca ouvi falar outra coisa além de que
era lugar saudável. Nosso último homem, Vigours, não moveu uma pa-
lha. Saiu por causa da praia; alegou temer Black Jack e Case e Whistling
Jimmie, ainda vivo na época, mas se afogou logo depois, bêbado. Quan-
to ao velho capitão Randall, está aqui desde mil oitocentos e quarenta,
quarenta e cinco. Nunca vi maldade em Billy, nem muita mudança. É
como se quisesse viver para ser a velha Kafoozleum.[2] Não, creio que
seja saudável.”
“Mas agora há um barco a caminho”, disse. “Está exatamente na
passagem; parece um baleeiro de cinco metros; dois brancos nas velas da
popa.”
“Esse é o barco que afundou Whistling Jimmie!”, exclamou o capi-
tão. “Passe-me a luneta. Sim: é Case, sem dúvidas, e o escurinho. Têm a
má reputação das galés, mas sabe como a praia é lugar de conversa. Mi-
nha opinião é que Whistling Jimmie era o pior do problema; e alcançou
a glória, vê. Quer apostar que estão atrás de gim? Aposto cinco contra
dois que levam seis caixas.”
Quando esses dois comerciantes subiram a bordo, me agradou de
imediato a sua aparência; ou melhor, a aparência de ambos, e a conversa
de um. Estava louco pela companhia de brancos após quatro anos na li-
nha do equador, que sempre contei como anos de prisão; receber um ta-
bu e se dirigir até a assembleia para ver e retirá-lo; comprar gim, e tirar
folga, e então se arrepender; sentar-se em casa durante a noite com o
lampião de companhia; ou andar na praia e pensar em como era tolo
por me dispor a ficar em tal lugar. Não havia outro branco na ilha; e
quando naveguei até a próxima, a maior parte de minha companhia era
de clientes grosseiros. Então, ver aqueles dois que subiam a bordo era
agradável. Um, na verdade, era um negro; mas os dois estavam bem ar-
rumados em pijamas[3] listrados e chapéus de palha, e Case seria dispen-
sado na inspeção urbana. Era amarelado e baixo; tinha nariz de falcão,
olhos opacos, e a barba aparada à tesoura. Homem algum sabia o seu
país de origem, apenas que era de língua inglesa; e era evidente que vi-
nha de boa família e era esplendidamente educado. Também era talento-
so; tocava acordeão com habilidade; e lhe dê um barbante ou rolha ou
jogo de cartas, e poderia lhe mostrar truques iguais aos de profissional.
Quando quisesse, era capaz de manter conversa adequada para a sala de
estar; e quando quisesse podia proferir blasfêmias piores que as de con-
tramestre ianque e falar obscenidades capazes de repugnar um kanaka.
O seu modo de pensar se adequava ao momento da melhor maneira, es-
se era o perfil de Case; e isso sempre lhe pareceu vir naturalmente, co-
mo se fosse nascido assim. Tinha coragem de leão e sagacidade de rato;
e se hoje não está no Inferno, esse lugar não existe. Mas sei de uma ca-
racterística do homem; gostava da esposa e era gentil com ela. Era mu-
lher de Sāmoa, e pintava o cabelo de vermelho, o estilo de Sāmoa; e
quando ele veio a morrer (o que haverei de narrar), encontraram uma
coisa estranha, que havia feito testamento como cristão e que a viúva fi-
cou com tudo. Tudo o que era dele, disseram, e tudo o de Black Jack, e
a maioria do que era de Billy Randall estava incluído no negócio; pois
era Case que ficava com os livros. E, assim, ela foi para casa na escuna
Manu’a, e até hoje é a senhora de seu próprio lar.
Mas de tudo isso, naquela primeira manhã, não sabia mais que mos-
ca. Case me tratou como cavalheiro e amigo, me deu as boas-vindas a
Falesá, e deixou os seus criados à disposição, o que me era bastante útil
devido a meu desconhecimento do idioma nativo. Por todo o começo
daquele dia, nos conhecemos melhor ao beber na cabine, e nunca ouvi
alguém falar mais certeiramente. Não havia comerciante mais esperto, e
nem mais arisco, nas ilhas. Eu me lembro do breve conselho que deu
aquela manhã, e da história que contou. O breve conselho era o seguin-
te. “Sempre que tiver algum dinheiro em mãos”, disse, “qualquer di-
nheiro cristão, digo — a primeira coisa a fazer é zarpar para Sydney e
colocá-lo no banco. Não passa de tentação para os mercadores de co-
pra; um dia, vai para a galeria com outros comerciantes, e tirará a pró-
pria camisa para comprar copra com ela. E o nome do homem que usa
ouro para comprar copra é Imbecil”, disse. Esse foi o conselho, e esta
foi a história, que poderia ter aberto os meus olhos para o perigo da
companhia daquele homem, caso suspeitasse de qualquer coisa. Apa-
rentemente Case comerciava em algum lugar das Ilhas Ellices. Havia
um homem chamado Miller, holandês por lá, que mantinha os nativos
com mão firme e comandava a massa do que fosse. Então, um belo dia,
uma escuna naufragou na lagoa, e Miller a comprou (à maneira como
geralmente se lida com essas coisas) por pechincha, o que foi a sua ruí-
na. Por ter em mãos muitos negócios que não lhe custavam praticamen-
te nada, o que faz, se não cortar as taxas? Case se aproximou de outros
comerciantes. “Quer abaixar os preços?”, diz Case. “Tudo bem, então.
Haverá de compensar cinco vezes para qualquer um de nós; e se com-
prar com prejuízo é o lance, perderá cinco vezes mais. Mostremos a ele
o fundo do poço; afundemos o⸻!” E assim fizeram, e cinco meses
depois, Miller teve de vender o barco e a estação, e recomeçar em algum
lugar nas Carolinas.
Toda essa conversa me interessava, e minha nova companhia me in-
teressava, e achei que Falesá parecia ser o tipo de lugar ideal; quanto
mais bebia, mais leve ficava o coração. Nosso último comerciante havia
fugido do lugar com aviso prévio de meia hora, adquiriu passagem ao
acaso para o navio de trabalhadores no oeste; o capitão, quando chegou,
havia encontrado a estação fechada, as chaves entregues ao pastor nati-
vo, e a carta do fugitivo confessava que temia bastante pela vida. Desde
então, a firma não estivera representada e evidentemente não tinha car-
gas; além disso, o vento estava favorável, o capitão esperava poder che-
gar no alvorecer do dia seguinte, com boa maré; e a tarefa de desembar-
car minha mercadoria estava um tanto empolgante. Não tinha necessi-
dade de perder tempo com isso, disse-me Case; ninguém tocaria em mi-
nhas coisas, todos eram honestos em Falesá, exceto algumas galinhas,
alguma faca diferente ou maço de tabaco estranho; e o melhor que po-
dia fazer era me sentar calmamente até a embarcação partir, então seguir
diretamente até a sua casa, ver o velho capitão Randall, o patriarca da
praia, participar da refeição coletiva, e voltar para casa dormir quando
escurecesse. Era meio-dia em ponto, e a escuna seguiu o caminho,
quando pus os pés na enseada de Falesá.
Tomei uns dois copos a bordo, acabara longo percurso, e o chão se
movia sob mim como o deque de navio. O mundo parecia recém pinta-
do; meu pé acompanhou a música; Falesá poderia ser Fiddler’s Green,[4]
caso tal lugar exista, e que grande pena se não existir! Foi gostoso pisar
na grama, olhar para as montanhas verdejantes acima, ver os homens
com as grinaldas verdes e as mulheres com os brilhantes vestidos ver-
melhos e azuis. Seguimos em frente, sob o sol forte e a sombra fresca, e
aproveitamos ambos; e todas as crianças da cidade trotaram atrás de nós
com as cabeças raspadas e os corpos morenos, e levantando os queixos
finos à nossa aproximação, como aves a cacarejar.
“Por sinal”, fala Case, “precisamos lhe arranjar uma esposa.”
“É verdade”, disse, “havia me esquecido.”
Havia uma multidão de moças em volta de nós, então me levantei de
vez e olhei para elas como um paxá. Estavam todas arrumadas por oca-
sião da chegada do navio; e as mulheres de Falesá eram muito agradá-
veis de se ver. Se têm algum defeito, são um pouquinho cadeirudas; e
pensava exatamente nisso quando Case tocou em mim.
“Aquela é bonita”, diz.
Vi uma sozinha do outro lado. Pescava; não usava mais que o vesti-
do minúsculo, completamente encharcado. Era jovem e bastante magra
para uma donzela da ilha, com rosto comprido, testa alta e olhar perspi-
caz, estranho e opaco, entre o de gato e o de bebê.
“Quem é ela?”, disse. “Ela serve.”
“Aquela é Uma”, disse Case, então a chamou e conversaram no idi-
oma nativo. Não sei o que ele disse; mas quando estava no meio, ela
olhou para mim rápida e timidamente, como criança que desvia de pan-
cada; então desviou os olhos novamente; e logo sorriu. Possuía boca
larga, os lábios e o queixo entalhados como os de estátua; e o sorriso su-
miu por um momento e desapareceu. Ali ficou com a cabeça curvada e
ouviu Case até o fim; e respondeu na bela voz polinésia, olhou direta-
mente em seu olho; escutei responder de volta; e então começou a sair
em obediência. Vi apenas um pouco de seu cumprimento, mas não tive
outro vislumbre do olho; e não houve mais palavra de sorriso.
“Creio que está tudo certo”, disse Case. “Acho que poderá ficar
com ela. Acertarei com a mãe. Poderá ficar com a sua parte por um blo-
co de tabaco”, completou, com sorriso zombeteiro.
Suponho que foi o sorriso que ficou na lembrança, pois respondi
afiado. “Ela não parece esse tipo”, exclamei.
“Não sei o que ela é”, disse Case. “Acredito que seja certa como o
correio. Fica sozinha, não anda com a choldra, essas coisas. Oh, não,
não me entenda mal — Uma é correta.” Falou ansioso, pensei, e aquilo
me surpreendeu e me agradou. “Na verdade”, prosseguiu, “não estou
tão certo de que ficará com ela, apenas se gostar do corte de sua lança.
Tudo o que precisa fazer é continuar na sombra e me deixar trabalhar
com a mãe ao meu próprio modo; e trarei a garota para se casar na casa
do capitão.”
Não me importava com a palavra casamento, e o mencionei.
“Oh, não há nada de mal no casamento”, disse ele. “Black Jack é o
capelão.”
A essa altura a casa podia ser vista por esses três homens brancos;
pois um negro conta como branco — e um chinês também! Uma ideia
estranha, mas comum nas ilhas. A pousada tinha varanda comprida e
precária. A loja era voltada para a frente, com balcão, balanças e paupér-
rimo mostruário de produtos: uma ou duas caixas de carnes enlatadas;
um barril de pão duro; alguns rolos de produtos de algodão, nada com-
paráveis aos meus; a única coisa bem representada era o contrabando —
armas de fogo e bebida. “Se esses forem os meus únicos rivais”, pensei,
“não terei problemas em Falesá.” Na verdade, ali estava a única maneira
que podiam tocar em mim, e era com as armas e a bebida.
No quarto dos fundos estava o velho capitão Randall, acocorado no
chão ao modo dos nativos, gordo e pálido, nu da cintura para cima, gri-
salho como texugo e olhos pesados pela bebida. Seu corpo era cheio de
pelos grisalhos e estava coberto por moscas; uma estava no canto do
olho — e ele não se dava conta; e os mosquitos zumbiam como abelhas
a sua volta. Qualquer homem de cabeça boa, teria levado a criatura para
fora de uma vez e a enterrado; e vê-lo, e pensar que tinha setenta anos, e
lembrar que chegou a comandar um navio, e a desembarcar em trajes
elegantes, e a se vangloriar em bares e consulados, e a ficar em varandas
de clubes, me deixou enjoado e sóbrio.
Tentou se levantar quando cheguei, mas era impossível; então me es-
tendeu a mão e tropeçou na saudação.
“Papa está bem encharcado hoje”, observou Case. “Tivemos epide-
mia aqui; e o capitão Randall toma gim como profilático — não é, Pa-
pa?”
“Nunca tomei um negócio desses na vida!”, gritou o capitão, indig-
nado. “Tomo gim por causa da saúde, sr. Sei-lá-o-seu-nome. É uma me-
did’e precaução.”
“Tudo bem, Papa”, disse Case. “Mas o senhor terá de melhorar. Ha-
verá casamento, o sr. Wiltshire aqui entrará em união.”
O velho perguntou com quem.
“Com Uma”, disse Case.
“Uma?”, exclamou o capitão. “Pra que é que ele quer Uma? E, por
sinal, veio aqui por causa de minha saúde? Pra que diabos ele quer
Uma?”
“Melhore, Papa”, disse Case. “N’é o senhor quem vai se casar com
ela. Creio que o senhor não seja nem padrinho nem madrinha dela;
acredito que o sr. Wiltshire gostará.”
Com isso, se desculpou comigo por ter de ir cuidar do casamento, e
me deixou sozinho com o pobre miserável do seu parceiro e (para falar
a verdade) seu bobo. Tanto o comércio como a estação pertenciam a
Randall; Case e o negro eram parasitas; rastejavam e se alimentavam de-
le como as moscas, ele igualmente tolo. Na verdade, não tenho nada de
ruim a dizer de Billy Randall, além de que o meu refluxo subia por sua
causa, e que o tempo que passei em sua companhia foi um pesadelo.
O quarto era sufocante e cheio de moscas, pois a casa estava suja e
era baixa e pequena, e ficava em lugar ruim, atrás da vila, nos limites da
mata, e protegida do comércio. As camas dos três homens eram no
chão, e havia bagunça de panelas e louça. Não havia mobília de pé, pois
Randall, enfurecido, a destruíra em pedaços. Ali me sentei, e comi a re-
feição servida pela esposa de Case; e ali fui entretido durante todo o dia
por aquele resquício de homem, sua língua embolada com velhas piadas
sujas e velhas histórias longas, e a própria gargalhada ofegante sempre
pronta, de modo que não tinha nenhuma noção de meu desagrado. Be-
bericou gim o tempo inteiro; às vezes caía no sono e despertava nova-
mente, aos soluções e com tremedeira; volta e meia me perguntava por
que diabos queria casar com Uma. “Meu amigo”, disse a mim mesmo o
dia inteiro, “você não deve se tornar um cavalheiro como esse.”
Talvez fosse quatro da tarde, quando a porta dos fundos se abriu
lentamente, e uma nativa velha e estranha se arrastou para dentro da ca-
sa quase que de barriga. Estava envolta em coisas pretas até os calcanha-
res; o cabelo tinha tufos grisalhos, o rosto era tatuado, o que não era co-
mum naquela ilha; seus olhos eram grandes e brilhantes e insanos. Ela
os fixou em mim com expressão acaçapada que notei ser em parte ence-
nação; não dizia palavra clara, mas estalava e resmungava com os lábios,
cantarolava alto como criança diante do pudim de natal. Atravessou a
casa direto até mim, e assim que chegou ao meu lado, pegou a minha
mão e ronronou e sussurrou nela como um grande gato. Depois, come-
çou uma espécie de canção.
“Quem diabos é ela?”, exclamei, pois aquilo me incomodava.
“É Faavao”, diz Randall, e vi que havia atravessado o aposento para
o recanto mais distante.
“O senhor não tem medo dela!?”, exclamei.
“Eu, medo?”, gritou o capitão. “Meu caro, eu a desafio! Não permi-
to que ponha um pé aqui. Mas acho que hoj’é diferente por conta do ca-
samento. Ela é a mãe d’Uma.”
“Bem, supondo que seja, o que está fazendo?”, perguntei, mais irri-
tado, talvez mais preocupado do que me importei em saber; e o capitão
me contou que fazia alguns versos poéticos em meu louvor porque me
casaria com Uma. “Tudo bem, velha senhora”, disse com certo riso fa-
lho. “O que a senhora quiser. Mas quando terminar com a minha mão,
faça o favor de me avisar.”
Agiu como se entendesse; a canção chegou num grito e parou; a mu-
lher rastejou para fora da casa do mesmo modo que havia entrado, e de-
via ter se enfiado diretamente na moita, pois quando a segui até a porta,
já havia desaparecido.
“Isso é influência do rum”, afirmei.
“É um povo adepto ao rum”, disse o capitão e, para a minha surpre-
sa, persignou o seu peito descoberto.
“Olha só!”, digo, “o senhor é papista?”
Repudiou a ideia com desprezo. “Batistas casca-grossas”, disse.
“Mas, meu caro amigo, os papistas têm boas ideias tam em; e ess’ é uma
das boas deles. Ouça meu conselho, sempre que cruzar com Uma ou
Faavao ou Vigours ou qualquer pessoa desse povo, faça o que digo, e
faça o que faço: entende?”, diz, repetiu o sinal, e piscou com um dos
olhos opacos para mim. “Não, senhor!”, irrompeu novamente, “papista
nenhum aqui!”, e por longo tempo me entreteve com opiniões religio-
sas.
Devia ter tido com Uma desde o começo, ou certamente deveria ter
saído daquela casa e ido ao ar fresco, e o mar limpo, ou algum rio con-
veniente. Apesar de na verdade ter combinado com Case; além disso, ja-
mais poderia andar de cabeça erguida naquela ilha, se fugisse da garota
na noite de meu casamento.
O sol se pôs, o céu inteiro queimava, e em algum momento o lampi-
ão foi aceso, quando Case voltou com Uma e o negro. Ela estava arru-
mada e perfumada; seu saiote era de tapa fina, parecia mais elegante que
as dobras de qualquer seda; seu busto, da cor de mel escuro, estava nu,
exceto por meia dúzia de colares e de sementes e flores; e atrás das ore-
lhas e cabelo, tinha as flores escarlates do hibisco. Demonstrava o me-
lhor porte concebível para a noiva, séria e quieta; e pensei na vergonha
que era ficar com ela naquela casa terrível atrás daquele negro de sorriso
sinistro. Digo que pensei na vergonha, pois o charlatão usava grande
colar de papel, o livro que me fazia acreditar ler era o estranho volume
de um romance, e as palavras do serviço religioso não eram adequadas.
Minha consciência me castigou quando juntamos as mãos; e quando ela
pegou o certificado, fiquei tentado a cancelar a barganha e confessar.
Aqui está o documento: foi Case quem o escreveu, com assinatura e tu-
do, numa folha do livro
Certifica-se com esta que Uma, filha de Favaao da ilha de Falesá de
____, está ilegalmente casada com o sr. John Wiltshire por uma se-
mana, e o Sr. John Wiltshire está liberado para mandá-la ao inferno
na manhã seguinte,
John Blackamoor
Capelão dos Navios.
Extraído do registro
Por William T. Randall
Mestre Marinheiro.
Aquele era um belo documento para se colocar na mão de uma garota e
vê-la esconder como se fosse ouro. Um homem pode facilmente se sen-
tir ordinário por menos, mas essa era a prática naquelas partes, e (como
disse a mim mesmo) longe de ser a menor falta de nós brancos, ou dos
missionários. Caso deixassem os nativos agirem, jamais precisaria dessa
decepção, mas poderia possuir quantas esposas desejasse, e largá-las ao
meu prazer, com a consciência tranquila.
Quanto mais envergonhado ficava, mais tinha pressa de que aquilo
terminasse; e os nossos desejos assim se uniram, fiz mínimo comentário
da mudança dos comerciantes. Case estava bastante interessado em me
manter lá; agora, embora me mantivesse com um propósito, parecia
bastante interessado em que me fosse. Uma, disse, poderia me mostrar a
casa, e os três se despediram de nós lá dentro.
A noite logo chegou; a vila cheirava a árvores, a flores e a mar, e a
cozimento de fruta-pão; ali chegava um belo barulho de mar dos recifes,
e à distância, entre a mata e as casas, muitos belos sons de adultos e cri-
anças. Respirar ar fresco me fez bem; parar de falar com o capitão e ver,
em vez disso, a criatura ao meu lado me fez bem. Senti pelo mundo in-
teiro como se ela fosse a garota em casa no velho país, e me esqueci de
mim naquele minuto, peguei a sua mão para conduzi-la. Seus dedos se
entrelaçaram nos meus; a escutei respirar profunda e rapidamente; e le-
vou minha mão ao seu rosto de vez e o pressionou. “Você bom!”, excla-
mou, correu a minha frente, parou e olhou para trás e sorriu, e voltou a
correr adiante; assim me guiou pelos limites da mata e de maneira quieta
até a minha casa.
A verdade é que Case fizera com estilo a corte para mim; lhe contou
que estava louco para tê-la e não me importava com as consequências; e
a pobre alma, que sabia aquilo que eu ainda ignorava, acreditou em cada
palavra, e teve a mente quase mudada devido à vaidade e à gratidão.
Não fazia ideia de nada disso; era completamente contra qualquer ba-
boseira das mulheres nativas, pois vi tantos brancos devorados pelos pa-
rentes das esposas e feitos de bobo na barganha; e disse a mim mesmo
que deveria aguentar de vez e me comportar de modo adequado. Mas
parecia tão exótica e bela ao fugir e então me esperar, e tudo foi feito de
modo tão parecido como uma criança ou cão manso faria, que o melhor
que podia fazer era simplesmente segui-la onde ela fosse, ou escutar as
pancadas dos pés descalços, e assistir no alvorecer o seu corpo a brilhar.
Então, outro pensamento me veio à cabeça. Ela brincava de gatinha co-
migo agora que estávamos sós, mas na casa se comportou como condes-
sa, orgulhosa e humilde. E que vestido — pois, afinal, havia tão pouco
dele, e aquilo era bastante nativo — e que bela tapa e ótimos perfumes,
e as flores vermelhas e sementes que brilhavam quase como joias, ape-
nas maiores — me ocorreu que ela, na verdade, era uma espécie de con-
dessa, vestida como grandes cantoras no concerto, e nada comparável a
comerciantes como eu.
Ela entrou primeiro na casa, e enquanto ainda estava fora, vi o fós-
foro acender e o lampião reluzir nas janelas. A estância era lugar mara-
vilhoso, feito de corais, varanda bastante espaçosa e o cômodo principal
largo e alto. Meus baús e caixotes estavam empilhados lá dentro, em
grande bagunça; e ali, no meio da confusão, Uma diante da mesa, me es-
perava. Sua sombra subia por trás até o vão do teto de ferro; brilhava de
pé, a luz do lampião iluminou a sua pele. Parei diante da porta, olhou
para mim, sem falar, com olhos ansiosos e apreensivos. Então tocou o
próprio seio.
“Mim — espousa você”, disse. Jamais me sentira assim antes, porém
o desejo por ela me dominou e abalou por completo, como o vento a
barlavento no veleiro.
Não conseguiria falar, se quisesse; e se pudesse, não o faria. Fiquei
envergonhado por me comover tanto por uma nativa, envergonhado
pelo casamento também, e o certificado que ela guardava com cuidado
no saiote; e me virei de lado e fingi revistar as caixas. A primeira coisa
que iluminei foi a caixa de gim, a única que havia levado; e, em parte
por causa da moça, em parte por causa do horror em me lembrar do ve-
lho Randall, tomei súbita resolução. Arranquei a tampa; uma a uma,
abri as garrafas com o saca-rolhas de bolso, e mandei que Uma derra-
masse aquilo na varanda.
Voltou com a última, e olhou para mim atordoada.
“Por quê?”, perguntou.
“Nada bom”, disse, pois agora estava no controle de minha língua.
“Homem bebe, nada bom.”
Concordou com isso, mas continuou a refletir. “Por que traz?”, per-
guntou em seguida. “Não quer beber, não trazer.”
“Você está certa”, disse. “Uma vez, querer muito beber; agora não
querer. Ver, não saber arrumar espousinha. Se beber gim, minha espou-
sinha medo de eu.”
Falar gentilmente com ela era o mínimo que podia fazer; jurei nunca
ceder à fraqueza com nativos; e não tinha nada a fazer, a não ser parar.
Ela me observou com gravidade, sentado com a caixa aberta. “Penso
você homem bom”, disse. E, de repente, ficou ao meu lado no chão “Eu
pensar vocês tudo porco, tudo igual!”, exclamou.

CAPÍTULO II
O BANIMENTO
Vim para a varanda pouco antes de o sol surgir na manhã. Minha casa
era a última a leste; atrás havia o cabo com mata e penhascos que escon-
diam a aurora. A oeste, corria rio veloz e gelado e, para além, estava o
verde da vila, pontilhada por coqueiros e fruta-pão e casas. Algumas ve-
nezianas estavam fechadas e algumas abertas; vi as telas de mosquito
ainda esticadas, com sombras de pessoas que acabavam de acordar, sen-
tadas lá dentro; por todo o verde, outros andavam em silêncio, enrola-
dos nas roupas de dormir multicoloridas, como beduínos em imagens
bíblicas. A quietude era mortal e solene e gélida; e a luz do alvorecer na
lagoa cintilava como fogo.
No entanto, o mais incômodo estava mais perto de mim. Cerca de
uma dúzia de jovens e crianças em semicírculo, flanquearam a minha
casa; o rio os dividia, alguns do lado mais próximo, outros do mais dis-
tante, e um deles no pedregulho em meio à névoa; todos sentados em si-
lêncio, envoltos por lençóis, e me escrutinavam e a minha casa, firmes
como perdigueiros. Ao sair, achei estranho. Quando tomei banho e vol-
tei, e os encontrei todos ali, e mais dois ou três com eles, pensei ser ain-
da mais estranho. O que poderiam ver para se fixar em minha casa, me
perguntei antes de entrar.
Mas o pensamento desses observadores ficou na cabeça, e em segui-
da saí novamente. Agora havia sol, mas ainda estava atrás da mata no
cabo: havia se passado cerca de quinze minutos. O grupo aumentou
substancialmente, o mais distante dos bancos de areia do rio de certo
modo se alinhou; talvez trinta adultos, e duas vezes mais crianças, algu-
mas de pé, outras acocoradas, todos observavam a minha casa. Havia
visto uma casa rodeada do mesmo modo numa vila do Mar do Sul, mas,
naquela ocasião, um comerciante açoitava a esposa, e ela berrava. Aqui,
não havia nada: o fogão com o fogo baixo, a fumaça subia de modo cris-
tão; tudo em ordem, em nada diferente de Bristol. Na verdade, havia o
forasteiro; mas tiveram a chance de ver aquele forasteiro um dia antes e
ficaram bem quietos. O que os incomodava agora? Repousei os braços
no corrimão e encarei de volta. Havia um inferno de gente ali. De vez
em quando, via as crianças trocarem palavras, mas falavam tão baixo
que nem o murmúrio da fala me alcançava. Os outros eram como ima-
gens entalhadas, me encaravam, mudos e melancólicos, com olhos bri-
lhantes; e então me ocorreu que as coisas não seriam tão diferentes se
estivesse na plataforma das galés, e essas pessoas viessem para ver meu
enforcamento.
Senti que era intimidado, e receava olhar para aquilo, o que não fiz.
Fiquei de pé, fingi me alongar, desci as escadas da varanda, e passeei em
direção ao rio. Ali, havia sussurro curto de um e de outro, como o que
se ouve no teatro quando a cortina sobe; e alguns — os mais próximos
— continham espécie de ritmo. Vi uma garota pôr a mão sobre um jo-
vem e gesticular para outro adiante; ao mesmo tempo, disse algo no idi-
oma nativo com voz arfada. Três garotinhos se sentavam ao lado de
meu caminho, onde passaria a um metro deles. Enrolados em lençóis,
com as cabeças raspadas e pequenos topetes, e rostos esquisitos, pareci-
am bonecos na lareira. Se sentavam no chão, solenes como juízes; ergui
o punho, fechei os cinco dedos, como quem quisesse machucá-los; e
pensei ver uma espécie de piscadela e engolida seca nos três rostos. En-
tão um deles saltou (o mais distante) e correu para a sua mamãe. Os ou-
tros dois, tentaram seguir o exemplo, ficaram mal, vieram ao chão ber-
raram juntos, se contorceram para fora dos lençóis — e num momento
os três, dois desprovidos de mãe, corriam pelas vidas e guinchavam co-
mo porcos. Os nativos, que não perderiam a piada sequer no enterro,
gargalharam curto como o latido de um cão e pararam.
Dizem que um homem tem medo de ficar só. Nada disso. O que o
assusta na escuridão ou na mata fechada é não ter certeza, pois pode ha-
ver um exército em seu calcanhar. O que mais o assusta é estar exata-
mente no meio da multidão, e não ter ideia do que ruminam. Então,
quando a gargalhada parou, também parei. Os garotos ainda não havi-
am fugido de fato; ainda estavam em terreno aberto, seguiam pelo único
caminho, quando já estava perto do navio em direção ao outro. Como
um tolo saíra de punho fechado; como um tolo voltava. Deve ter sido
visão hilária; mas, o que me deixou atordoado, dessa vez ninguém riu;
apenas uma velha fez algo como lamento devoto, daqueles ouvidos por
dissidentes nas capelas durante o sermão.
“Jamais vi kanakas tão idiotas quanto vocês daqui”, falei para Uma,
enquanto espiava os observadores pela janela.
“Saber nada”, diz Uma, com certo ar desgostoso em que era boa.
E essa foi toda a conversa sobre o assunto; pois eu estava indignado,
e Uma recebeu aquilo com tanta naturalidade que fiquei levemente en-
vergonhado.
O dia inteiro, de quando em quando, ora menos, ora mais, os tolos
se sentaram do lado oeste de minha casa e do outro lado do rio, espera-
vam uma apresentação, fosse o que fosse — fogo do céu, suponho, que
consumisse meus ossos e coisas. Mas durante a noite, como verdadeiros
ilhéus, se cansaram da atividade; e, em vez disso, foram a uma grande
casa na vila e dançaram; os ouvi cantar e bater palmas até talvez dez da
noite; e no dia seguinte, pareciam ter esquecido que eu existia. Se o fogo
descesse do céu ou se a terra se abrisse e me engolisse, não haveria nin-
guém para ver ou aprender a lição, se é que podemos falar assim. Mas
intuía que eles tampouco haviam me esquecido, e mantive o olho atento
para qualquer fenômeno pelo caminho.
Tive dificuldades nesses dois dias para organizar o meu comércio e
estocar o que Vigours deixara. Era trabalho que irritava bastante, e me
impedia de pensar em qualquer outra coisa. Ben tomou conta do esto-
que na viagem anterior, sabia que podia confiar em Ben; mas estava cla-
ro que alguém havia se aproveitado nesse meio-tempo. Descobri que
faltava o bastante para cobrir facilmente seis meses de salário e lucro;
poderia ter me chutado por toda a ilha por ser um asno tão estúpido, ali
me embriagar com Case em vez de prestar atenção nos negócios e to-
mar conta do estoque.
No entanto, não adiantava chorar sobre o leite derramado. O que
estava feito não podia ser desfeito. Tudo o que podia fazer era pegar o
que restava, e as coisas novas (minha própria escolha) e organizá-las,
procurar os ratos e baratas, e organizar a loja ao modo comum de Syd-
ney. Fiz uma bela apresentação de tudo; e na terceira manhã, quando
acendi o cachimbo e fiquei na frente da porta e olhei lá dentro — e virei
e observei as montanhas ao longe, e vi os cocos balançarem, e calculei
toneladas de copra — e para o verde acima da povoação e vi os fanfar-
rões das ilhas, e reconheci os metros de tecido que queriam para os sai-
otes e vestidos —, senti que estava no lugar ideal para fazer fortuna, e
voltar para minha terra e abrir uma taverna. Ali, sentado na varanda, em
cenário tão belo quanto possível, sol esplêndido, um negócio novo sau-
dável que renovava o sangue do homem como banho de mar; e todo o
negócio estava pronto para mim, e sonhava com a Inglaterra, que afinal
é um buraco nojento, frio e lamacento, sem luz o suficiente para a leitu-
ra — e sonhava com a aparência de minha taverna, à beira de estrada
larga como avenida e placa em árvore verde.
Muitas coisas para a manhã, mas o dia passou sem que qualquer dia-
bo olhasse para mim, e pelo que sabia dos nativos de outras ilhas, achei
estranho. As pessoas riam um pouco de nossa empresa, das belas esta-
ções, e da estação de Falesá em particular; nem toda a copra do distrito
pagaria por isso (ouvi dizerem) em cinquenta anos, o que supus ser exa-
gero. Mas quando o dia passou e não fizemos nenhum negócio, comecei
a desanimar, e por volta das três da tarde fui passear para ver se me ani-
mava. No verde, vi um homem branco vir em minha direção, de batina,
o que me levou a deduzir que era padre. Via-se que se tratava de uma
velha alma de boa natureza, um pouco grisalho, e tão sujo que poderia
ser usado para riscar um pedaço de papel.
“Dia, senhor”, digo.
Ele me respondeu empolgado, no idioma nativo.
“Não fala inglês?”, disse.
“Francês”, diz.
“Bem”, disse, “peço desculpas, mas não posso fazer nada aqui.”
Tentou por um tempo falar comigo em francês, e depois no idioma
nativo novamente, que pensou ser a melhor chance. Deduzi que tentava
mais que passar o tempo comigo, mas tinha algo a comunicar, e escutei
com o máximo de atenção. Ouvi os nomes de Adams e Case e Randall
— o de Randall com mais frequência; e a palavra “veneno” ou algo pa-
recido; e uma palavra nativa que repetiu bastante. Fui para casa falando-
a para mim mesmo.
“O que significa fussy-ocky?”, perguntei a Uma, pois era o mais
próximo que conseguia de pronunciá-la.
“Fazer morrer”, explicou.
“Mas que diabos!”, digo. “Já ouviu a conversa de que Case envene-
nou Johnny Adams?”
“Todos saber isso”, diz Uma, sarcástica. “Dar areia branca — areia
ruim. Ele ter garrafa ainda. Dizer que dá gim você, não pegar.”
Já havia escutado basicamente a mesma história em outras ilhas, e o
mesmo pó branco sempre, o que me fez pensar mal dele. Por tudo isso,
fui até a casa de Randall, ver o que podia descobrir, e encontrei Case,
que limpava a arma, no degrau da porta.
“Deu uns tiros bons?”, digo.
“Um”, disse. “A floresta tem toda a espécie de pássaros. Queria que
tivesse tanta copra assim”, disse e, então, pensei com malícia, “mas pa-
rece que não tem ninguém fazendo isso.”
Podia ver Black Jack na loja atender um cliente.
“Mas me parece que seu negócio está indo mesmo assim”, disse eu.
“É a primeira venda que fazemos em três semanas”, respondeu.
“É verdade?”, digo. “Três semanas? Olha só.”
“Se não acredita em mim”, exclama um pouco esfuziado, “pode ir
ver na loja de copra. Está meio vazia agora mesmo.”
“Isso não serve muito de justificativa, vê”, digo. “Até onde posso
dizer, talvez estivesse completamente vazia ontem.”
“Também”, falou com sorrisinho.
“De qualquer forma”, disse “que tipo de pessoa é aquele padre? Ele
me pareceu bem simpático.”
Com isso Case riu alto. “Ah”, comentou, “agora vejo o que o inco-
moda! Galuchet esteve com você.” Padre Galoshes era o nome que usa-
va na maior parte do tempo, mas Case sempre usava francês com sarcas-
mo, que era outra razão para pensar que não era normal.
“Sim, estive com ele”, disse. “Pelo visto não gosta muito de você ou
do capitão Randall.”
“Não gosta mesmo!”, falou Case. “Foi o problema com o pobre
Adams. No último dia, quando estava morrendo, o jovem Buncombe
estava lá por perto. Já conheceu Buncombe?”
Eu lhe disse que não.
“É um cura, Buncombe!” Case riu. “Bem, Buncombe enfiou na ca-
beça que não havia nenhum outro clérigo nas redondezas, além dos pas-
tores kanaka, e tínhamos a obrigação de chamar o padre Galuchet, e fa-
zer o velho administrar e coordenar o sacramento. Era tudo a mesma
coisa para mim, como pode imaginar; mas disse que achava que Adams
deveria ser consultado. Ele mascava copra molhada e tinha ar estulto.
‘Olha aqui’, falei. ‘Você está muito doente. Quer ver Galoshes?’ Estava
sentado, apoiado no cotovelo. ‘Chama o padre’, diz, ‘chama o padre,
não me deixa morrer aqui como um cachorro.’ Sua fala estava um tanto
ansiosa e febril, mas bem racional; não havia nada a dizer quanto a isso;
então mandamos alguém perguntar a Galuchet se viria. Pode apostar
que sim! Pulou dentro das roupas encardidas de linho assim que pensou
nisso. Mas havíamos presumido isso tudo sem Papa. Ele é um batista
casca-grossa, o Papa; nenhum papista precisa pedir nada; e então tran-
cou a porta. Buncombe lhe chamou de fanático, e pensei que teria um
ataque. ‘Fanático!’, diz, ‘Eu, fanático? Não vivi isso tudo para lidar com
primatas como você!’ Então, avançou até Buncombe, e tive que separar
os dois — e ali estava Adams no meio, delirante novamente, azucrinava
sobre copra como um idiota nato. Foi divertido como uma peça, e perdi
a noção do tempo, de tanto gargalhar, quando, de repente, Adams se
sentou, bateu as mãos no peito, e ficou aterrorizado. Que morte atroz, a
de John Adams”, diz Case com espécie de severidade repentina.
“E o que aconteceu com o padre?”, perguntei.
“O padre?”, diz Case. “Oh, não parou de bater na porta para entrar,
e gritou para os nativos se aproximarem e derrubá-la, e alardeou que
havia uma alma para salvar, essas coisas. Estava numa apreensão dos in-
fernos, o padre. Mas o que você faria? Johnny havia perdido a mão; na-
da de mercado pra Johnny! E o clamor da administração acabou com
aquilo. Em seguida, Randall ouviu falar que o padre rezava no túmulo
de Johnny. Papa estava bem encharcado, e pegou um bastão e disparou
até o local; e ali estava Galoshes ajoelhado, e vários nativos observavam.
Ninguém pensava que Papa se importasse com alguma coisa, a não ser
com a bebida; mas o padre e ele ficaram ali duas horas, xingaram-se no
idioma nativo; e sempre que Galoshes tentava se ajoelhar, Papa ia até ele
com o bastão. Nunca houve cena assim em Falesá. Terminou que o ca-
pitão Randall caiu com algum tipo de crise ou ataque, e o padre enfim
fez o que queria. Mas foi o padre mais enfurecido que já se ouviu falar;
e reclamou com os chefes desse ultraje, como chamou aquilo. De nada
serviu, pois nossos chefes aqui são protestantes; mesmo assim, já tinha
arrumado confusão por causa do tambor da escola matinal, e ficaram
contentes por se livrar dele. Agora, jura que o velho Randall deu a
Adams veneno ou coisa parecida e, quando se encontram, trocam sorri-
sos sarcásticos, como babuínos.”
Contou essa história com a maior naturalidade possível, como quem
apreciasse diversão; agora que penso nisso após tanto tempo, me parece
um relato deveras repugnante. No entanto, Case nunca demonstrou ser
gentil, apenas um quadrado, impetuoso e habilidoso; e, na verdade, me
intrigava completamente.
Fui para casa, e perguntei a Uma se ela era Popey, que havia desco-
berto ser a palavra nativa para católicos.
“E le ai!”, disse — sempre usava o idioma nativo quando queria di-
zer “não” mais forte que o normal e, na verdade, tinha mais. “Nada
bom, popey”, completou.
Então lhe perguntei de Adams e do padre, e me contou o mesmo re-
lato, mas à sua maneira. De modo que não me restou muito por onde
seguir; mas diante do todo, as únicas questões eram a querela por causa
do sacramento, e a conversa sobre envenenamento.
O dia seguinte era domingo, quando não havia negócios a se tratar.
Uma me perguntou se pretendia “rezar” de manhã; lhe respondi que
apostasse que não; e ela mesma parou em casa sem dizer mais. Pensei
que aquilo era incomum a nativos, e uma mulher nativa, que possuía
roupas novas para exibir; no entanto, me era muito conveniente e não
dei muita atenção. O irônico foi que afinal saí em direção à igreja, algo
que sou um tanto predisposto a esquecer. Havia planejado passear,
quando escutei o hino. Sabe como é; você escuta pessoas cantarem, e is-
so parece atraí-lo; e logo já está a caminho da igreja. Era lugar baixo e
pouco comprido, de corais, com ambos os cantos arredondados à ma-
neira de baleeiro, grande teto nativo no topo, janelas sem vidro e corre-
dores sem portas. Enfiei a cabeça na janela, e a visão me era tão nova —
pois as coisas eram muito diferentes nas ilhas que conhecia — que fi-
quei e observei. A congregação se sentava em carpetes no chão, as mu-
lheres de um lado, os homens do outro; todos aparelhados para matar,
as mulheres com vestidos e chapéus de negócios, os homens em jaque-
tas brancas e camisas. O hino acabou; o pastor, kanaka grande e corpu-
lento, diante do púlpito, pregava pela vida; e pelo modo como abanava a
mão, e trabalhava a voz, e argumentava, e parecia discutir com as pesso-
as, deduzi que era uma arma no negócio. Bem, olhou para cima de re-
pente e me encarou; e lhe dou a minha palavra que hesitou no púlpito.
Seus olhos se estufaram para fora da cabeça, a mão se ergueu e apontou
para mim como que contra a vontade, e o sermão parou exatamente
nesse momento.
Não é algo legal de se dizer de si mesmo, mas fugi; e se a mesma es-
pécie de choque me ocorresse amanhã, fugiria novamente. Ver aquele
palavroso kanaka se atordoar simplesmente por me ver, me deu a sensa-
ção de que o fundo do mundo havia desabado. Fui direto para casa, e fi-
quei lá, e não disse nada. Podem pensar que contaria a Uma, mas isso
era contra o meu sistema. Podem pensar que iria me consultar com Ca-
se; mas a verdade é que sentia muita vergonha de falar disso, pensei que
todos riram de mim. Então, segurei a língua e, ademais, pensei. E quan-
to mais pensava, menos gostava daquilo.
Por volta da noite de segunda, ficou claro em minha mente que esta-
va com um tabu. A nova loja aberta por dois dias na vila, e sequer um
homem ou mulher aparece para ver os produtos, estava além da crença.
“Uma”, disse, “creio que estou com um tabu.”
“Poder ser”, respondeu.
Pensei por um momento se devia perguntar mais, mas era má ideia
deixar nativos com qualquer sensação de conhecedor, então fui até Ca-
se. Estava escuro, e estava sentado sozinho, como fazia na maior parte
do tempo, fumava na escada.
“Case”, disse, “eis uma coisa estranha. Estou com um tabu.”
“Oh, impossível!”, falou. “Iss’ n’é comum nestas ilhas.”
“Pode ser que sim, ou que não”, retruquei. “É comum onde estava
antes; pode apostar que sei como é; e digo com certeza: estou com um
tabu.”
“Bem”, disse, “o que você fez?”
“É o que quero descobrir”, respondi.
“Oh, não pode”, falou; “não é possível. Porém lhe contarei o que fa-
rei; descansa, não faça outra coisa, e darei uma volta e certamente desco-
brirei. Você só sai e conversa com Papa.”
“Obrigado”, disse, “é melhor ficar aqui na varanda: sua casa é tão
perto.”
“Então chamarei Papa aqui para fora”, falou.
“Meu caro”, respondi, “acho melhor não. O fato é que não aprecio
o sr. Randall.”
Case riu, pegou a lanterna da loja, e saiu para a vila. Ficou fora por
cerca de quinze minutos; parecia extremamente sério quando voltou.
“Bem”, disse e bateu a lanterna no degrau da varanda, “jamais teria
acreditado. Não sei aonde pode chegar a impudência desses kanakas,
mas parecem ter perdido qualquer noção de respeito pelos brancos. O
que precisamos é de um homem de guerra; um alemão, se pudéssemos
— sabem lidar com kanakas.”
“Então estou mesmo com um tabu?”, exclamei.
“Algo assim”, disse. “É a pior coisa do tipo que já ouvi. Mas ficarei
do seu lado, Wiltshire, de homem para homem. Venha aqui amanhã por
volta das nove e esclareceremos com os chefes. Eles têm medo de mim;
ou tinham, mas andam tão arrogantes agora que não sei o que esperar.
Entenda-me, Wiltshire, não considero isso uma luta sua”, prosseguiu
com muita resolução; “conto como luta de todos nós, conto como Luta
do Homem Branco, e dou minha palavra que passarei por cima de pau e
pedra para enfrentar isso.”
“Você descobriu o motivo?”, perguntei.
“Ainda não”, disse Case. “Mas resolveremos isso amanhã.”
De modo geral, fiquei bastante satisfeito com a atitude, e quase mais
no dia seguinte, quando nos encontramos para ir ter com os chefes, por
vê-lo tão severo e decidido. Os chefes esperavam por nós numa das ca-
sas grandes e ovais, que chamou nossa atenção já a grande distância, de-
vido à multidão em volta dos beirais, talvez uma centena de homens,
mulheres e crianças. Muitos dos homens estavam a caminho do trabalho
e vestiam grinaldas verdes; e isso me fez pensar no Primeiro de Maio em
casa. Essa multidão abriu caminho e zumbiu para nós dois com agitação
súbita e raivosa quando entramos. Cinco chefes estavam lá, quatro ho-
mens imponentes, o quinto velho e enrugado. Sentavam-se em capachos
de saiotes brancos e jaquetas; tinham leques, como moças refinadas; e
dois dos mais jovens usavam medalhas católicas, o que me fez refletir.
Nosso lugar estava arrumado e os capachos colocados para nós contra
essas lideranças no lado da casa mais próximo; o meio, vazio; a multi-
dão, perto de nossas costas, murmurava e se esticava e se acotovelava
para observar, e as sombras se projetavam em nossa frente nas pedri-
nhas limpas no chão. Era apenas um fio de cabelo arrancado pela excita-
ção dos comuns, mas a aparição quieta e civilizada dos chefes me deu
confiança: assim, o porta-voz começou e fez longo discurso em voz bai-
xa, às vezes acenava para Case, às vezes para mim, e às vezes batia com
as falanges no capacho. Uma coisa estava clara: não havia sinal de raiva
nos chefes.
“O que ele falou?”, perguntei, após terminar o discurso.
“Oh, apenas que estão felizes por vê-lo, e entendem por mim que
deseja fazer alguma espécie de reclamação, e que deve falar tudo, e farão
o que é certo.”
“Precisou de um tempo precioso para dizer isso”, comentei.
“Oh, o resto era lisonja e bonjour e essas coisas”, diz Case, “sabe
como são os kanakas!”
“Bem, de mim não recebem muito bonjour”, disse. “Fale quem sou.
Sou branco, e cidadão britânico, além de grande líder em minha terra; e
vim aqui para lhes fazer bem e trazer a civilização; porém mal separei
minhas mercadorias, vêm e me lançam um tabu e ninguém ousa se apro-
ximar da minha loja! Fale que não pretendo contradizer nada legal; e se
o que desejam é um presente, farei o justo. Não culpo qualquer um que
cuide de si, fale para eles, pois é da natureza humana; mas se pensam
que poderão impor a mim uma de suas ideias nativas, estão enganados.
E fale abertamente para eles que desejo conhecer o motivo para esse tra-
tamento, enquanto homem branco e cidadão britânico.”
Foi o que disse. Sei lidar com kanakas; lhes ofereça explicação clara
e negociação razoável e, não posso mentir, sempre colaboram. Não têm
governo verdadeiro ou lei verdadeira, é o que tem que enfiar na cabeça
deles; e mesmo que tivessem, seria uma grande piada se fosse aplicado
ao homem branco. Seria muito estranho se viéssemos até aqui e não
conseguíssemos fazer o que quiséssemos. Só de pensar nisso, fiquei co-
mo bicho, e praguejei por um bom tempo. Então Case, por sua vez, tra-
duziu, ou fingiu fazer isso; e o primeiro chefe respondeu, e então o se-
gundo e o terceiro, todos no mesmo estilo, calmo e gentil, mas no fun-
do solenes. Uma pergunta foi feita a Case, que a respondeu, e todos
(tanto os chefes como as pessoas comuns) gargalharam alto e olharam
para mim. Por último, o velho enrugado e o chefe grande e jovem que
havia falado primeiro fizeram espécie de catecismo com Case. Às vezes,
deduzia o que Case tentava evitar esgrimir, e o encurralavam como cães
de caça, e o suor descia por seu rosto, e que não era visão agradável para
mim; e a algumas das respostas, a multidão resmungava e sussurrava, o
que era o pior de se ouvir. Era a verdade cruel que não sabia nada do
idioma nativo; de modo que (agora acredito) perguntavam a Case de
meu casamento, e ele deve ter tido muito trabalho para tirar seus pés
dali. Mas olhei para Case: tinha cabeça para comandar um parlamento.
“Bem, isso é tudo?”, perguntei, quando houve pausa.
“Vamos”, disse com uma careta. “Eu lhe contarei lá fora.”
“Quer dizer que não vão retirar o tabu?”, exclamei.
“É uma coisa estranha”, respondeu. “Eu lhe contarei lá fora. Melhor
vir logo.”
“Não deixarei isso nas mãos deles”, exclamei. “Não sou esse tipo de
homem. Você não me verá recuar por causa de um punhado de ka-
nakas.”
“Melhor fazer isso”, disse Case.
Olhou para mim com um sinal no olhar; e os cinco chefes olharam
para mim com civilidade, mas um tanto contundentes; e as pessoas
olhavam para mim e se esticavam e se acotovelavam. Eu me lembrei das
pessoas que observaram a minha casa, e de como o pastor saltou do púl-
pito só de me ver; e todo o negócio parecia tão deslocado que me levan-
tei e segui Case. A multidão novamente abriu espaço para passarmos,
porém mais que antes, e as crianças corriam e gritavam; e quando nós
dois brancos saímos, todos ficaram e nos observaram.
“E agora”, disse, “por que tudo isso?”
“A verdade é que não sei dizer bem. Não gostam de você”, respon-
deu Case.
“Colocar um tabu num homem porque não gostam dele!”, gritei.
“Nunca ouvi nada assim.”
“É pior que isso, vê”, disse Case. “Você não está com um tabu, lhe
disse que não podia ser isso. As pessoas simplesmente se recusam a se
aproximar de você, Wiltshire; eis o problema.”
“Se recusam a se aproximar de mim? O que quer dizer com isso?
Por que se recusam a se aproximar de mim?”, exclamei.
Case hesitou. “Parece que estão com medo”, disse em voz baixa.
Parei de vez. “Com medo?”, repeti. “Está louco, Case? Do que es-
tão com medo?”
“Queria poder dizer”, Case respondeu e balançou a cabeça. “Parece
alguma das superstições imbecis que têm. É com isso que não concor-
do”, disse; “é como o negócio a respeito de Vigours.”
“Gostaria de saber o que quer dizer com isso, e insisto que me con-
te”, falei.
“Bem, sabe, Vigours fugiu e deixou todos esperando”, disse. “Era
alguma espécie de assunto supersticioso — nunca entendi bem —, mas
começou a parecer ruim antes mesmo que acabasse.”
“Escutei uma história diferente sobre isso”, disse, “e é melhor lhe
contar. Ouvi dizer que fugiu por sua causa.”
“Oh, bem, suponho que tenha ficado com vergonha de contar a ver-
dade”, diz Case, “imagino que a tenha achado tola. E, de fato, o mandei
embora. ‘O que fará, meu velho?’ falei; ‘Vá’, disse, ‘e não pense duas ve-
zes nisso.’ Fiquei extremamente contente por vê-lo partir. Não é de
meu feitio dar as costas a um camarada quando está em situação com-
plicada; mas havia tanto problema na vila que não podia ver onde aquilo
daria. Fui um imbecil por passar tanto tempo com Vigours. Hoje me
culpam; você não ouviu Maea — é o chefe jovem, o grandalhão — res-
mungou algo sobre ‘Vika’? Estavam atrás dele; de algum modo não
conseguem esquecer.”
“Tudo isso é muito interessante”, disse, “mas não me explica o que
há de errado; não me explica do que têm medo — qual a ideia deles.”
“Bem, gostaria de saber”, disse Case. “Mas não posso afirmar mais
que isso.”
“Poderia ter perguntado, penso”, cutuquei.
“Eu perguntei”, diz, “mas deve ter visto, a não ser que seja cego, que
as perguntas levaram para outro caminho. Vou até onde posso por ou-
tro homem branco; mas quando vejo que eu mesmo estou na roda, pen-
so no meu couro primeiro. Minha ruína é ter a natureza boa demais. E
tomarei a liberdade de lhe dizer: você mostra generosidade muito estra-
nha por alguém que entrou em toda essa confusão ao defender os seus
interesses.”
“Há algo em que estou pensando”, falei. “Você foi tolo por se im-
portar tanto com Vigours. Um conforto, porém, é que não se importou
tanto comigo. Percebo que jamais entrou em minha casa. Confesse,
agora: você sabia disso antes?”
“É um fato que não”, respondeu. “Foi um erro, e me desculpe por
isso, Wiltshire. Mas a respeito do que virá agora, serei bastante sincero.”
“Quer dizer que não tem sido?”, perguntei.
“Mil desculpas, meu velho, mas é o tamanho disso”, diz Case.
“Em suma, está com medo?”, disse.
“Em suma, estou com medo”, confirmou.
“Haverei de continuar com o tabu, ou algo assim?”, perguntei.
“Você não está com um tabu”, disse. “Os kanakas se recusam a se
aproximar de você, isso é tudo. E quem haverá de forçá-los? Nós co-
merciantes temos que ralar muito, devo dizer; obrigamos esses pobres
kanakas a contradizer suas leis, a desfazer seus tabus, e isso, da maneira
que melhor nos aprouver. Esperava uma lei que obrigasse as pessoas a
comprarem em sua loja, querendo elas ou não? Quer me dizer que não
pretendia ralar para isso? E se quisesse, seria algo bizarro a me propor.
Gostaria apenas de mencionar, Wiltshire, que também sou comercian-
te.”
“Se eu fosse você, creio que não falaria de ralar”, disse. “Eis o que
acontece, até onde posso compreender. Nenhuma das pessoas haverá de
negociar comigo, e todas negociarão com você. Você terá a copra, e eu
terei de me chacoalhar com o diabo. Não falo nada do idioma nativo, e
você é o único homem digno de menção aqui que fala inglês, e tem a
impudência de me pedir para ralar e sugerir que minha vida está em pe-
rigo, e tudo o que tem para dizer é que não sabe o motivo?”
“Bem, de fato é o que tenho para lhe dizer”, disse. “Não sei; gostaria
de saber.”
“E assim me dá as costas e me deixa sozinho: essa é a posição?”, fa-
lei.
“Se quiser ver isso desse modo negativo”, respondeu. “Não o diria
assim. Digo simplesmente que vou ficar longe de você, e se não fizer is-
so, trarei perigo para mim.”
“Bem”, disse, “que ótima espécie de branco!”
“Oh, entendo que esteja nervoso”, respondeu. “Também estaria.
Posso me escusar.”
“Tudo bem”, falei, “vá fazer as suas escusas em algum outro lugar.
Aqui está o meu caminho, aí está o seu.”
Com isso nos separamos, e fui diretamente até em casa, mau-humo-
rado, e Uma experimentava um lote de bens de comércio como um be-
bê.
“Agora”, disse, “você para com essa idiotice. Isso aqui está uma ba-
gunça — já estou irritado! E não disse para você arranjar o jantar?”
E então creio que lhe dei um pouco do lado áspero da língua, como
ela merecia. Se levantou de vez, como a sentinela ao seu oficial; pois de-
vo dizer que sempre estava bem apresentável e tinha grande respeito pe-
los brancos.
“E agora”, continuei, “você pertence a este lugar, devia entender is-
so. Por que me puseram um tabu, afinal? Ou, se não estou com um ta-
bu, por que o seu povo tem medo de mim?”
Ela parou e me observou com olhos parecidos com dois pires.
“Você não saber?”, por fim arfou.
“Não”, disse. “Como espera que eu saiba? Não existe essa maluqui-
ce no lugar de onde venho.”
“Ese não contar?”, perguntou novamente.
(Ese era o nome que os nativos usavam para Case; pode significar
forasteiro, ou extraordinário; ou poderia significar abricó; mas certa-
mente era apenas o seu nome entendido mal e soletrado no modo ka-
naka.)
“Não muito!”, respondi.
“Ese desgraçado”, exclamou.
Parece engraçado ouvir essa garota kanaka soltar um grande xinga-
mento. Nem tanto. Não havia xingamento nela; não, nem raiva; ela es-
tava acima da raiva, e via o mundo com simplicidade e seriedade. Ela fi-
cou lá parada ao dizer isso; não posso simplesmente dizer que já vi uma
mulher com sua aparência antes ou depois, e isso me emudeceu. Então
ela fez uma espécie de reverência, mas era do tipo mais orgulhoso, e ar-
regaçou os braços.
“Eu vergonha”, disse. “Eu pensar você esperto. Ese falar mim você
esperto, falar mim não preocupar — falar mim você amar mim muito.
Tabu mim”, disse e se tocou no peito, como fizera na noite do casamen-
to. “Agora eu sair, tabu sair também. Então ganhar muita copra. Você
gostar mais, acho. Tofâ, alii”, disse no idioma nativo: “Adeus, chefe!”
“Espera”, exclamei. “Não tenha tanta pressa.”
Ela me olhou de lado com um sorriso. “Vê, você ganhar copra”, fa-
lou de modo com que se poderia oferecer doces a uma criança.
“Uma”, afirmei, “escute a razão. Não sabia, de verdade; e Case pa-
rece ter feito uma brincadeira terrível com nós dois. Mas agora sei, e
não me importo; amo você bastante. Você não sair, não deixar eu, des-
culpa muito.”
“Você não amar mim!”, gritou, “você dizer coisas ruins!” E se lan-
çou no canto do chão, e chorou.
Bem, não sou um intelectual, mas não nasci ontem, e pensei que o
pior do problema já havia passado. Mas, ali estava ela — as costas vira-
das, o rosto para a parede — tremia e soluçava como criancinha, que
seus pés até balançavam. É estranho como isso atinge um homem quan-
do está apaixonado; porque picotar as coisas não serve para nada; ka-
naka e tudo, estava apaixonado por ela, ou algo semelhante. Tentei pe-
gar sua mão, mas não fazia nada disso. “Uma”, disse, “não faz sentido
agir assim. Quero você para aqui, quero espousinha, eu contar verda-
de.”
“Não contar mim verdade!”, choramingou.
“Tudo bem”, falei, “esperarei até você parar com isso.” E me sentei
ao lado dela no chão, e alisei o seu cabelo com a mão. No começo, se
contorceu quando a toquei; depois, pareceu não me notar mais; então
os soluços diminuíram gradualmente até parar; e notei em seguida que
levantou o rosto até o meu.
“Você me falar verdade? Quer eu parar?”, perguntou.
“Uma”, disse, “prefiro ficar com você que ter todo a copra dos Ma-
res do Sul”, o que era expressão bem grandiosa, e o mais estranho era
que era sincera.
Lançou os braços em minha volta, saltou para perto, e pressionou o
rosto contra o meu, me beijou ao modo da ilha, e fiquei completamente
molhado por suas lágrimas e meu coração lhe foi entregue completa-
mente. Jamais tive algo tão próximo de mim quanto aquela moreninha.
Muitas coisas se juntaram, e todas me ajudaram a virar a cabeça. Era tão
bela que poderia devorá-la; parecia ser a minha única amiga naquele lu-
gar bizarro; senti vergonha por lhe falar com aspereza; e era mulher, e
minha esposa, e uma espécie de criança por quem sentia pena; e o sal
das lágrimas entrou em minha boca. E me esqueci de Case e dos nati-
vos; e me esqueci que não sabia de nada da história, e apenas me lembrei
de banir a lembrança; e me esqueci de que não conseguiria copra nem
um modo de viver; e me esqueci dos empregadores, e do estranho tipo
de serviço que lhes fazia, ao preferir meu devaneio aos negócios; e me
esqueci até que Uma não era minha esposa de verdade, apenas a cama-
reira enganada, e naquele estilo tão esfarrapado. Mas isso é antever mui-
to longe. Irei ao momento seguinte.
Já era tarde quando a gente pensou em fazer o jantar. O fogão apa-
gou e havia esfriado completamente; mas o acendemos após um tempo,
e cada um preparou um prato, ajudou e atrapalhou ao outro, e fizemos
disso diversão, como crianças. Estava tão necessitado de sua proximida-
de que me sentei para jantar com a minha namorada no meu joelho, to-
cava nela com uma mão, e comia com a outra. Ah, mais que isso. Creio
que ela seja a pior cozinheira feita por Deus; as comidas nas quais pu-
nha a mão enojariam um cavalo; e, ainda assim, minha refeição aquele
dia foi a comida de Uma, e desde então nunca comi tão bem.
Não fingi a mim mesmo, e não fingi para ela. Vi que havia termina-
do; e se quisesse me enganar, o faria. E suponho que foi isso que a fez
falar, pois agora tinha certeza de que éramos amigos. Muito me contou,
sentada em meu colo e comeu do meu prato, assim como comia do dela,
de brincadeira: muito sobre ela e a mãe e Case, tudo o que seria muito
tedioso e preencheria folhas inteiras se a deixasse na Praia de Mar, mas
que sugeri em inglês claro — e uma coisa a respeito de mim, que teve
um grande efeito em minhas preocupações, como logo se ouvirá.
Parece que havia nascido numa das ilhas Line; passara apenas dois
ou três anos naquelas partes, onde fora com um homem branco casado
com sua mãe que depois morreu; e apenas aquele ano em Falesá. Antes
disso, haviam passado um bom tempo em movimento, viajavam com o
homem branco, que era uma dessas pedras a rolar que continuavam a
dar voltas após trabalho leve. Fala-se sobre procurar por ouro no fim
do arco-íris; mas se alguém quer emprego para se manter até a morte,
deixe que comece a procura por um trabalho leve. Tem carne e bebida
nele também, e cerveja e jogo de pinos; pois jamais se ouve falar de al-
gum deles passar fome e raramente são vistos sóbrios; e, quanto à ativi-
dade contínua, rinha de galos não está na mesma lista. De qualquer for-
ma, esse mandrião carregava a mulher e a filha por toda a loja, mas, na
maioria das vezes, para longe das ilhas, onde não havia polícia e pensou
que talvez houvesse trabalho leve. Tenho minha própria visão desse ve-
lho sujeito; mas fiquei muito feliz por ele ter mantido Uma longe de
Apia e Papeete e essas cidades depravadas. Ao menos, manteve Fale-alii
na ilha, arranjou alguns negócios Deus sabe como! E estragou tudo
conforme seu hábito, e morreu sem quase nada, além de um pedaço de
terra em Falesá que adquirira ao cobrar uma dívida, o que usou para
convencer a mãe e a filha a viverem lá. Aparentemente, Case as encora-
jou ao máximo, e as ajudou a construir a casa. Era muito gentil naqueles
dias, e fez uma pechincha a Uma, e não há dúvida que punha o olho ne-
la desde o começo. No entanto, mal se assentaram, quando surgiu um
jovem, nativo, e desejava se casar com ela. Era um pequeno chefe, e ti-
nha alguns belos capachos e canções antigas na família, e era “muito bo-
nito”, disse Uma; e de modo geral era um pretendente extraordinário
para a garota sem um centavo, ainda por cima, forasteira.
Com a primeira palavra, fiquei doente de ciúmes.
“E quer dizer que teria se casado com ele!”, exclamei.
“Ioe”, disse. “Gostar demais!”
“Bem!”, respondi. “E pelo visto cheguei logo depois.”
“Gostar mais de você agora”, falou. “Mas supor casar Ioane, eu es-
pousa boa. Eu não kanaka comum: moça boa!”, diz.
Bem, tive de me contentar com aquilo; mas juro que não me impor-
tava nem um pouco com o caso, e gostava do fim daquele relato mais
que do começo. Pois, aparentemente, essa proposta de casamento foi o
princípio de toda a confusão. Parece que, antes disso, Uma e a mãe ha-
viam sido menosprezadas por não terem família e virem de outras ilhas,
mas nada grave; e mesmo quando Ioane foi em frente, no começo não
havia tanto problema. Então, de repente, cerca de seis meses antes de
minha chegada, Ioane partiu e abandonou aquela parte da ilha e desde
esse dia, Uma e a mãe ficaram sozinhas. Ninguém as chamava em casa,
ninguém falava com elas nas estradas. Caso fossem à igreja, as outras
mulheres tiravam os capachos e as deixavam sós em local vazio. Era a
excomunhão usual, como aquelas das quais lemos a respeito da Idade
Média; e a causa ou motivo disso não se podia adivinhar. Era alguma ta-
la pepelo, disse Uma, alguma mentira, alguma calúnia; e tudo o que sa-
bia era que as garotas tiveram inveja de sua sorte com Ioane e repro-
vam-na pela deserção, e lhe gritavam, quando a encontravam só na ma-
ta, que jamais se casaria. “Elas dizer homem nenhum casar comigo. Eles
também muito medo”, contou.
A única alma que interviera por elas após essa deserção foi mestre
Case; até ele estava relutante em se mostrar, e aparecia principalmente à
noite; e logo deu as suas cartas e cortejou Uma. Ainda estava incomoda-
do por causa de Ioane, e quando Case surgiu pela mesma linha, cortei
bruscamente.
“Bem”, disse, escarnecido, “imagino que pensou que Case era ‘mui-
to bonito’ e ‘gostava demais’.”
“Agora falar bobagem”, respondeu. “Homem branco vem aqui, eu
casar mesma coisa kanaka; muito bem, ele casar comigo mesma coisa
mulher branca. Imaginar ele não casar, ele ir embora, ele parar mulher.
Mesma coisa ladrão; mão vazia, coração de Tonga — não poder amar!
Agora você casar comigo; você coração grande — você não vergonha
moça ilha. Motivo eu amar você tanto. Eu orgulho.”
Não sei se já me senti pior em qualquer outro dia da vida. Deitei o
garfo e soltei a “moça da ilha”; tampouco parecia de algum modo ter
qualquer utilidade; e andei para cima e para baixo na casa, e Uma me se-
guia com os olhos, pois estava incomodada, e um pouco surpresa! Mas
incomodada não era palavra para isso; assim desejava, e assim temia, pa-
ra deixar claro como havia sido um pulha.
E nesse momento ressoou a cantoria vinda do mar; surgiu muito
clara e próxima, como se o barco desse a volta no cabo; Uma correu pa-
ra a janela e gritou que era “Misi” que vinha de suas voltas.
Achei estranho ficar contente por ver um missionário; mas se era es-
tranho, não deixava de ser verdade.
“Uma”, disse, “fica aqui neste quarto, e não tira o pé dele até eu vol-
tar.”

CAPÍTULO III
O MISSIONÁRIO
Quando saí para a varanda, o barco da missão ia rapidamente para a
embocadura do rio. Era um grande baleeiro pintado de branco, com es-
pécie de cobertura na popa; um pastor nativo agachado na plataforma
da popa conduzia o timão; vinte e quatro remos brilhavam e batiam na
água, no ritmo da canção do barco; e o missionário sob a cobertura, em
roupas brancas, lia um livro e os animava! Era bonito ver e ouvir; não
há vista mais interessante nas ilhas que barco missionário com boa tri-
pulação e boa fanfarra; e pensei nisso por cerca de meio minuto com
uma pontada de inveja, e, então, caminhei para o rio.
Do lado oposto ia outro homem para o mesmo lugar, mas correu e
chegou lá antes. Era Case; sem dúvida a ideia era me afastar do missio-
nário que poderia ser meu intérprete; mas tinha outras coisas em mente,
e pensei em como havia nos logrado a respeito do casamento, e tentara
pôr as mãos em Uma antes; e ao vê-lo, a raiva fluiu por minhas narinas.
“Saia daí, ladrão miserável. Embusteiro”, gritei.
“O que foi que disse?”, falou.
Eu lhe repeti e acrescentei com um bom insulto. “E se alguma vez o
pegar a dez metros de minha casa”, gritei, “enfiarei uma bala na sua car-
caça asquerosa.”
“Aja como quiser em sua casa”, respondeu, “lugar que, lhe digo, não
me interessa ir. Mas este local é público.”
“É lugar onde tenho um assunto em particular”, disse. “E não quero
um cão como você escutando, e lhe aviso para ficar longe.”
“Não aceito, no entanto”, respondeu Case.
“Então, mostro pra você”, falei.
“Veremos”, retrucou.
Era ágil com as mãos, mas não tinha nem altura nem peso, uma cria-
tura frágil, diante de um homem como eu; e, além disso, eu ardia com
tanta ira que quebraria um cinzel ao meio. Primeiro, lhe desferi um e
então o outro, de modo que pude ouvir sua cabeça chacoalhar e estalar,
e, então, caiu direto.
“Quer mais?”, gritei. Mas apenas olhou para cima, branco e vazio, e
o sangue se espalhou pelo rosto como vinho em guardanapo. “Quer
mais?”, gritei de novo. “Responda, e não fique aí fingindo, ou lhe mos-
trarei os pés!”
Com isso, se sentou e segurou a cabeça — pelo olhar podia-se dizer
que girava — o sangue se derramou na roupa.
“Basta por hoje”, disse antes de se levantar cambaleando e voltar pe-
lo caminho que veio.
O barco estava próximo; vi que o missionário havia posto o livro de
lado, e sorria para mim mesmo. “Pelo menos saberá que sou homem”,
penso.
Era a primeira vez, em todos os meus anos no Pacífico, que trocaria
duas palavras com qualquer missionário; veja lá lhes pedir por um favor.
Não gostava da tarefa, nenhum comerciante gosta; olham com desdém
para você e nem disfarçam; e, além disso, você está em parte ‘kanakea-
do’, e lida com nativos em vez de brancos como eles. Eu vestia um pija-
ma listrado, pois obviamente saíra com decência para ter com os chefes;
mas quando vi o missionário do barco no uniforme comum, roupas de
lona brancas, chapéu de safári, camisa branca e gravata, e botas amare-
las, poderia ter apedrejado ele. Ao se aproximar, me examinou com
muita curiosidade (suponho que por conta da luta), vi que parecia fatal-
mente doente, pois, na verdade, estava febril e acabava de pegar resfria-
do no barco.
“Sr. Tarleton, creio?”, disse, pois sabia o seu nome.
“E o senhor, como suponho, é o novo comerciante?”, respondeu.
“Primeiro, gostaria de contar que não me dou com missões”, pros-
segui, “e que penso que o senhor e seus semelhantes criam imagem de
perigo, alimentam os nativos com arrogância e contos de velhas matro-
nas.”
“O senhor tem todo o direito de emitir sua opinião”, comentou
olhando feio, “mas não preciso ouvi-las.”
“Acontece que o senhor precisa ouvi-las”, disse, “não sou missioná-
rio nem adorador de missionário; não sou kanaka nem defensor de ka-
nakas: sou apenas comerciante, sou apenas um maldito branco ordiná-
rio e baixo e cidadão britânico, do tipo que esfregaria as suas botas. Es-
pero que isso esteja claro.”
“Sim, meu camarada”, falou. “Está mais claro que convincente.
Quando o senhor ficar sóbrio, se arrependerá disso.”
Tentou passar, mas o parei com a mão. Os kanakas rosnaram; creio
que não gostaram de meu tom, pois usei da liberdade para falar com
aquele homem como falaria com vocês.
“Não poderá dizer que o enganei”, disse, “e posso seguir em frente.
Quero um serviço, na verdade quero dois serviços; e o senhor os fará
para mim, e talvez terei em melhor conta o que chama de cristianismo.”
Ficou em silêncio por um momento. Então, sorriu. “O senhor é um
rapaz bem estranho”, falou.
“Sou como Deus me fez”, respondi. “Não sirvo para cavalheiro.”
“Não tenho tanta certeza”, disse. “E como posso lhe ajudar, se-
nhor…?”
“Wiltshire”, falei, “apesar de ser quase sempre chamado de Welsher;
mas Wiltshire é a maneira de se soletrar, se as pessoas na praia conse-
guissem acertar a língua. E o que eu quero? Bem, é a primeira coisa que
lhe contarei. Sou o que se chama de pecador — o que chamo de pulha
— e quero que o senhor me ajude a compensar uma pessoa que enga-
nei.”
Ele se virou e falou com a tripulação no idioma nativo. “Agora, es-
tou a seu serviço”, disse, “mas apenas enquanto a tripulação estiver jan-
tando. Preciso descer a costa antes da madrugada. Estou atrasado, pois
fiquei em Papa-mālūlū até esta manhã, e tenho um compromisso em
Fale-alii amanhã à noite.”
Fui até a minha casa em silêncio e muito satisfeito comigo mesmo
pelo modo como conduzi a conversa, pois gosto de quem mantém o
respeito próprio.
“Uma pena vê-lo brigar”, falou.
“Oh, aquilo é parte da história que gostaria de contar”, disse. “É o
serviço número dois. Após ouvir, quero saber se o senhor achará uma
pena ou não.”
Andamos direto para a loja, e fiquei surpreso por ver que Uma havia
arrumado as coisas do jantar. Era tão incomum em relação aos seus mo-
dos, que vi que fizera isso por gratidão, e apreciei o gesto. Ela e o sr.
Tarleton se chamavam pelo nome, e, aparentemente, era muito gentil
com ela. Mas pensei pouco nisso; sempre é possível encontrar gentileza
num kanaka; são quem nos comandam, brancos. Além disso, não queria
Tarleton somente para aquilo: ainda daria o meu lance.
“Uma”, disse, “nos entregue o certificado de casamento.” Parecia
abatida. “Vamos”, falei. “Confie em mim. Pegue-o.”
Estava com ele, como de costume; creio que pensava ser o passe pa-
ra o paraíso, e que se morresse sem ele na mão iria para o inferno. Não
pude ver onde o colocara a primeira vez, e agora não pude ver de onde
o pegou; ele parecia pular na mão como aquele truque de Blavatsky[5]
dos papéis. Mas é assim com todas as mulheres da ilha, e acredito que
isso lhes é ensinado quando jovens.
“Então”, disse com o certificado na mão, “o negro Black Jack me
casou com essa garota. O certificado foi escrito por Case, e garanto que
é fanfarronice literária. Desde que descobri que neste lugar há um tabu
contra a minha esposa, enquanto estiver com ela, não posso fazer negó-
cios. Agora, o que qualquer um faria em meu lugar, se fosse um ho-
mem?”, perguntei. “A primeira coisa que faria seria isso, penso.” Então
peguei o papel e o despedacei e joguei os pedaços no chão.
“Aué!”, gritou Uma, e bateu as mãos, mas segurei uma delas.
“E a segunda coisa que faria”, falei, “se fosse o que chamo de ho-
mem, e o que o senhor chamaria de homem, sr. Tarleton, seria trazer a
garota até você ou qualquer outro missionário, se levantar e dizer: ‘Me
casei de modo errado com a minha esposa, mas a tenho em alta conta, e
agora quero me casar com ela da maneira correta’. Comece, sr. Tarleton.
E imagino que o fará melhor no idioma nativo; agradará a velha”, disse
e dei a ela o nome próprio de marido local.
Assim, com dois membros da tripulação por testemunha, fomos
unidos em nossa própria casa; o clérigo rezou um pouco, devo dizer,
mas não por tanto tempo como alguns, e apertou as mãos de nós dois.
“Sr. Wiltshire”, falou após pronunciar as linhas e dispensar as teste-
munhas, “devo agradecer-lhe por prazer tão vivaz. Poucas vezes realizei
cerimônia de casamento com emoções tão verdadeiras.”
Foi o que se podia chamar de conversa. Ele continuou a falar mais, e
seguia com água na boca, querendo mais, pois me sentia bem. Mas algo
incomodou Uma no meio do casamento e ela o interrompeu diretamen-
te.
“Como machucar mão?”, perguntou.
“Perguntar cabeça Case, senhora”, disse.
Saltou com alegria e cantarolou.
“Essa daí não é muito cristã para o senhor”, comentei ao sr. Tarle-
ton.
“Não pensamos que era das piores”, falou, “quando estava em Fale-
alii; e se Uma tem malícia, fico tentado a imaginar que tem uma boa
causa.”
“Bem, agora chegamos ao serviço número dois”, disse. “Quero lhe
contar nossa história, e ver se o senhor faz entrar um pouco de luz do
sol aqui.”
“É demorado?”, perguntou.
“Sim”, falei, “é um caso e tanto.”
“Bem, lhe darei todo o tempo que puder”, disse e olhou para o reló-
gio. “Mas devo deixar claro que não como desde as cinco desta manhã;
e a não ser que me consiga algo, não haverei de comer novamente até as
sete ou oito desta noite.”
“Por Deus, lhe daremos jantar!”, exclamei.
Fiquei um pouco receoso pela blasfêmia, logo quando tudo ia bem;
o missionário também, suponho, mas fingiu olhar para a janela e nos
agradeceu.
Então lhe preparamos uma pequena refeição. Estava disposto a dei-
xar a senhora tocar nela, para me exibir; então a ordenei que preparasse
o chá. Não creio que vi aquele chá novamente, afinal. Mas aquilo não
foi o pior, pois pegou o sal, que considerava um toque europeu a mais, e
transformou a minha carne cozida em água do mar. De modo geral, o sr.
Tarleton teve um jantar dos infernos; mas se divertiu bastante por um
lado, durante todo o tempo em que cozinhamos, e depois ao fingir co-
mer, falei sobre mestre Case e a praia de Falesá, e ele perguntou como
quem presta muita atenção.
“Bem”, falou por fim, “receio que seja inimigo perigoso. Afinal, esse
tal de Case é muito esperto e parece realmente temível. Devo lhe dizer
que estive de olho nele há cerca de um ano, e na verdade tive o pior dos
encontros. Na época em que o último representante de sua firma fugiu
de modo tão repentino, recebi carta de Namu, o pastor nativo, e me im-
plorou que viesse a Falesá na primeira oportunidade, já que todo o seu
rebanho ‘adotava práticas católicas’. Confiava bastante em Namu; re-
ceio que isso mostre o quão facilmente somos enganados. Ninguém po-
deria ouvi-lo pregar sem se convencer de que tinha talentos extraordi-
nários. Todos os ilhéus facilmente adquirem espécie de eloquência, e são
capazes de desenrolar e ilustrar sermões de segunda mão com grande vi-
gor e charme; mas os sermões de Namu são dele mesmo, e não posso
negar que os ouvi em estado de graça. Ademais, tinha curiosidade ativa
pelas coisas seculares, não temia o trabalho, era carpinteiro inteligente, e
se fez tão respeitado entre os pastores da vizinhança que o chamamos,
com chiste que em parte é sério, de o Bispo do Oriente. Em suma, sen-
tia orgulho do homem; fiquei muito intrigado com a carta dele e dei um
jeito de vir até aqui. Na manhã anterior à minha chegada, Vigours esti-
vera a bordo do Lion, e Namu estava completamente calmo, aparente-
mente com vergonha da carta, e sem nenhuma vontade de explicá-la. Is-
so não permitiria de modo algum; e acabou por confessar que andava
muito preocupado por encontrar o seu povo persignando-se, mas desde
que encontrou a explicação, a sua mente estava tranquila. Pois Vigours
tinha o Olho Mau, algo comum no país europeu chamado Itália, onde
os homens frequentemente morriam fulminados por espécie de diabo; e
parecia que o sinal da cruz era encanto contra esse poder.
“ ‘E posso explicar isso, Misi’, disse Namu a seu modo. ‘O país na
Europa é papal, e o diabo do Olho Mau talvez seja diabo católico, ou ao
menos acostumado com os modos católicos. Então, assim raciocinei: se
esse sinal da cruz fosse usado ao modo do santo Papa, seria pecamino-
so; mas quando é usado apenas para proteger homens de um diabo, o
que é em si inofensivo, o sinal também haverá de ser inofensivo. Pois o
sinal não é bom ou mau, assim como a garrafa não é boa ou má. Mas se
a garrafa estiver cheia de gim, o gim é mau; e se o sinal é feito por idola-
tria, do mesmo modo, a idolatria é má’. Assim como pastor muito nati-
vo, tinha um texto adequado de como exorcizar diabos.
“ ‘E quem lhe falou do Olho Mau?’, perguntei.
“Admitiu ter sido Case. Agora, receio que me ache muito limitado,
sr. Wiltshire, mas devo lhe contar que me desagradou, e não consigo
aceitar que um comerciante seja de algum modo bom para aconselhar
ou influenciar os meus pastores. E, além disso, circulava na região uma
conversa do velho Adams e seu envenenamento, que não dei muita im-
portância; mas voltou a mim agora.
“ ‘E esse Case é homem de vida santa?’, perguntei.
“Admitiu que não era; pois apesar de não beber, era libertino com as
mulheres e não tinha religião.
“ ‘Então’, disse, ‘creio que quanto menos ficar com ele, melhor.’
“Mas não é fácil dar a última palavra a alguém como Namu; num
momento estava pronto com uma ilustração. ‘Misi’, falou, ‘o senhor me
contou que homens sábios, não pastores, nem mesmo sagrados, conhe-
ciam muitas coisas úteis de serem ensinadas, por exemplo, das árvores, e
animais, e a imprimir livros, e das pedras a queimar para se fazer facas.
Tais homens ensinam em suas faculdades, e o senhor aprende com eles,
mas toma cuidado para não aprender a ser profano. Misi, Case é a mi-
nha faculdade.’
“Não soube o que dizer. O sr. Vigours havia claramente conduzido
para fora de Falesá por causa das maquinações de Case e com algo não
muito diferente dos conluios de meu pastor. Veio à minha mente que
fora Namu que havia me informado sobre Adams e contado o rumor da
má conduta do padre. Então, vi que devia me informar melhor com al-
guma fonte imparcial. Há um chefe que é um velho patife aqui, Faiaso,
que arrisco dizer que o senhor conheceu hoje no conselho; por toda a
vida foi turbulento e astuto, grande fomentador de rebeliões, e espinho
no lado da missão e da ilha. Apesar de tudo isso, é bastante perspicaz e,
exceto quanto à política ou a seus próprios delitos, sempre fala a verda-
de. Fui a sua casa, lhe relatei o que ouvi, e implorei que fosse franco.
Não creio jamais ter tido outra conversa tão desagradável. Talvez o se-
nhor entenderá, sr. Wiltshire, se lhe disser que levo totalmente a sério
esses contos de matronas pelos quais me reprova, e anseio por fazer o
bem nestas ilhas tanto quanto o senhor por agradar e proteger a bela es-
posa. E haverá de se lembrar que eu tinha Namu como exemplo, e sen-
tia orgulho de o homem ser um dos primeiros frutos maduros da mis-
são. E agora sou informado de que tinha certa dependência de Case. O
começo disso não havia sido corrupto; começou sem dúvida no medo e
no respeito produzidos pela trapaça e a afetação; mas fiquei chocado
por descobrir outro elemento acrescentado nos últimos tempos, que
Namu comprava à vontade na loja e acreditava-se que estava afundado
em dívidas com Case. O que quer que o comerciante dissesse, Namu
acreditava tremendo. Não estava sozinho nisso; muitos na vila viviam
sujeição semelhante, porém o caso de Namu era o mais influente; foi
por Namu que Case forjara os maiores males; e com certa influência en-
tre os chefes, e o pastor no bolso, o homem era tão bom quanto o mes-
tre da vila. O senhor sabe algo a respeito de Vigours e Adams; mas tal-
vez nunca tenha ouvido falar do velho Underhill, o predecessor de
Adams. Era velho sujeito quieto e brando, bem me lembro, e nos conta-
ram que havia morrido de repente: brancos morrem de repente em Fa-
lesá. A verdade, conforme agora a escutava, fez o meu sangue gelar. Pa-
rece que foi afligido por paralisia geral, completamente morto, exceto
por um olho, que piscava continuamente. A conversa surgida era que o
velho era um demônio; e que esse sujeito vil, Case, trabalhava com base
nos medos dos nativos, que professava compartilhar, e fingia não ousar
ir para casa sozinho. Por fim um túmulo foi cavado, e o corpo vivo en-
terrado nos limites da vila. Namu, o meu pastor, que havia ajudado a
educar, ofereceu reza nessa cena detestável.
“Eu me senti em posição muito complicada. Talvez também fosse
dever meu denunciar Namu e depô-lo; talvez pense isso agora; mas na
época, não me parecia tão evidente. Tinha grande influência, que podia
se provar maior que a minha. Os nativos eram suscetíveis à superstição;
talvez ao instigá-los, pudesse apenas semear e espalhar essas ideias fan-
tasiosas. E, além disso, Namu, com exceção da influência nova e maldi-
ta, era bom pastor, capaz e de mentalidade espiritual. Onde poderia
procurar por um melhor? Como encontrar um tão bom? Naquele mo-
mento, com o fracasso de Namu fresco em minha visão, o trabalho de
minha vida pareceu chacota; a esperança havia morrido em mim; prefe-
ria consertar as ferramentas que possuía, que sair em busca de outros
que certamente se provariam piores; e o escândalo é, na melhor hipóte-
se, algo a se evitar quando humanamente possível. Certo ou errado, en-
tão, optei pelo silêncio. Por toda a noite, discuti com o pastor em erro e
o censurei; denuncei sua ignorância e desejo de fé; denunciei seu com-
portamento lamentável, deixei claro o lado externo da taça e da travessa,
ajudei com indiferença no assassinato, saltei de excitação de modo in-
fantil por causa de gestos infantis, desnecessários e inconvenientes; e
muito antes do dia nascer, o coloquei de joelhos e banhei em lágrimas o
que parecia arrependimento genuíno. No domingo, fui ao púlpito pela
manhã e preguei com o primeiro livro dos Reis, capítulo décimo nono,
sobre o fogo, o terremoto e a voz: distingui o verdadeiro poder espiri-
tual, e me referi com o máximo de clareza aos recentes eventos em Fale-
sá. O efeito produzido foi grandioso; e aumentou bastante quando Na-
mu se levantou por sua vez, e confessou que estivera em falta quanto à
fé e à conduta, e estava convencido do pecado. Até então, tudo estava
bem; mas houve circunstância desafortunada, pois se aproximava a épo-
ca de nosso ‘maio’ na ilha, quando as contribuições dos nativos para a
missão eram recebidas; caiu em meu dever fazer a notificação do assun-
to; e isso deu chance ao meu inimigo, a qual não tardou em se aprovei-
tar.
“Notícias de todos os procedimentos foram passadas a Case assim
que a missa acabou; e, na mesma tarde, organizou-se para me encontrar
no meio da vila. Veio com tanto ímpeto e animosidade que pressenti ser
perigoso evitá-lo.
“ ‘Então’, falou no idioma nativo, ‘eis o homem santo. Pregou con-
tra mim, mas aquilo não estava no coração. Pregou o amor de Deus,
mas aquilo não estava no coração — aquilo estava entre os dentes. Quer
saber o que estava no coração?’, gritou. ‘Eu vou mostrar.’ Estendeu a
mão na minha cabeça, subitamente fingiu retirar um dólar, e o segurou
no ar.
“Dali surgiu o rumor na multidão de quando os polinésios testemu-
nham um prodígio. Quanto a mim, fiquei impressionado. A coisa era
truque de mágica ordinário, que em minha terra vi uma dezena de ve-
zes; mas como haveria de convencer os habitantes da vila? Desejei ter
estudado prestidigitação em vez de hebraico, e assim poderia pagar o
sujeito com sua própria moeda. Mas ali estava, sem suportar o silêncio,
e o melhor que podia pensar em dizer era fraco.
“ ‘Peço que não coloque as mãos em mim novamente’, disse.
“ ‘Não farei isso’, respondeu, ‘nem o privarei de seu dólar. Aqui es-
tá’, disse e o jogou nos meus pés. Ouvi dizer que ficou por três dias no
lugar que caiu.”
“Devo admitir que foi bem encenado”, falei.
“Oh, é esperto”, disse o sr. Tarleton, “e agora o senhor pode ver por
si mesmo como é perigoso. Fez parte da horrível morte do paralítico; é
acusado de envenenar Adams; levou Vigours a sair do local com menti-
ras que podem ter levado ao assassinato; e não há dúvida de que agora
decidiu se livrar do senhor. Como pretende fazer isso, não temos ideia;
saiba apenas que certamente é algo novo. A sua disposição e invenção
não têm fim.”
“Dá a si mesmo um vislumbre de problema”, digo a ele. “E, afinal,
para quê?”
“Oras, quantas toneladas de copra conseguem produzir neste distri-
to?”, perguntou o missionário.
“Ouso dizer que umas sessenta toneladas”, respondi.
“E qual o lucro para o comerciante local?”, perguntou.
“Pode-se dizer que três libras”, falei.
“Eis então por quanto ele faz isso”, disse o sr. Tarleton. “E a coisa
mais importante é desafiá-lo. Está claro que espalhou alguma história
contra Uma, de modo a isolá-la e satisfazer o desejo doentio por ela; co-
mo falhou e viu novo rival no cenário, a usou de modo diferente. Agora
a primeira questão a descobrir é sobre Namu. Uma, quando as pessoas
evitavam você e sua mãe, o que Namu fazia?”
“Parar igual todos”, respondeu.
“Receio que o cão voltou ao vômito”, disse o sr. Tarleton. “E agora
o que devo fazer por você? Falarei com Namu, o alertarei que é obser-
vado; será estranho se deixar qualquer coisa passar despercebida quan-
do estiver em alerta. Ao mesmo tempo, essa precaução pode falhar, e
então devem ir em outra direção. Vocês têm duas pessoas em mãos a
quem podem acorrer. Antes de todos há o padre, que pode protegê-los
pelo interesse católico; são um pequeno corpo e mirrado, mas contam
com dois chefes. E então há o velho Faiaso. Ah, e se fosse há dois anos,
não precisariam de mais ninguém; mas a influência dele diminuiu mui-
to, e passou para as mãos de Maea, e Maea, receio, é um dos valetes de
Case. Em suma, caso o pior aconteça, devem mandar alguém ou ir pes-
soalmente a Fali-alii, e embora não deva vir a esta parte da ilha por um
mês, verei o que pode ser feito.”
Assim o sr. Tarleton disse adeus; meia hora depois, a tripulação can-
tava e os remos brilhavam no barco missionário.

CAPÍTULO IV
TRABALHO DO DIABO
Quase um mês se passou sem que nada acontecesse. Na mesma noite do
nosso casamento, Galoshes apareceu, se comportou com extrema civili-
dade, e pegou o hábito de sair no escuro e fumar seu cachimbo com a
família. Obviamente conseguia conversar com Uma, e começou a me
ensinar o idioma nativo e francês ao mesmo tempo. Era uma espécie de
velho gentil e bem-humorado, embora sujo demais para qualquer um, e
com suas línguas estrangeiras me deixou mais confuso que a Torre de
Babel.
Essa era a atividade que tínhamos, e me fez sentir menos solitário;
mas não havia lucro nisso; pois apesar do padre vir, se sentar e contar
histórias, ninguém de seu pessoal foi atraído até a minha loja; e se não
fosse pela outra ocupação a que me dediquei, não haveria um quilo de
copra na casa. Eis a ideia: Fa’avao (mãe de Uma) tinha uma dezena de
árvores produtivas. Obviamente, não conseguíamos trabalho, sofríamos
o tabu todos do mesmo modo. Então, as duas mulheres e eu começa-
mos a fazer a copra com as próprias mãos. Era copra para fazer a boca
salivar enquanto era feita — nunca percebi como era enganado pelos
nativos até fazer quatrocentos libras com as próprias mãos — e pesava
tão pouco, que senti ganas de pegar e molhar eu mesmo.
Quando estávamos no trabalho, muitos bons kanakas passavam o
melhor do dia na observação, e uma vez aquele negro apareceu. Ficou
atrás com os nativos, gargalhou, imitou o grande senhor e o cachorri-
nho engraçado, até que me irritei.
“Aqui, você, negro!”, exigi.
“Eu não tô falando com o siô”, disse o negro. “Só falo com cavaie-
ros.”
“Sei”, falei, “mas acontece que falei com você, sr. Black Jack. E tudo
o que quero saber é o seguinte: viu como estava a cabeça de Case há
cerca de uma semana?”
“Não, siô”, disse.
“Tudo bem, então”, respondi; “porque vou lhe mostrar a irmã dela,
mas preta, e em menos de dois minutos.”
E andei na direção dele, bem devagar e com as mãos para baixo; ha-
veria problema à vista, se alguém se desse o trabalho de olhar.
“O siô é sujeito baixo e recarcitrante”, disse.
“Pode apostar!”, respondi.
Naquele momento, percebeu que eu já estava mais perto que o con-
veniente, e disparou, de modo que me agradou observá-lo partir; e foi
tudo o que vi daquela turma preciosa, até o que estou prestes a contar a
vocês.
Era um de meus principais empreendimentos nesses dias caçar nas
matas, pois achava (como Case me dissera) diversão muito interessante.
Já mencionei o cabo, que se limitava com a povoação e o meu local no
leste. Uma trilha saía no fim dela e dava na próxima baía. Um vento for-
te soprava ali diariamente, e como a linha da barreira de recifes termina-
va no fim do cabo, a rebentação pesada batia na enseada da baía. Um
pequeno despenhadeiro, perto da baía, cortava o vale em duas partes;
com a maré alta, o mar se quebrava diretamente em face dele, de modo
que a passagem era interrompida. Montanhas com floresta margeavam
todo o local; a barreira ao leste era particularmente íngreme e cheia de
folhas; as partes mais baixas caíam em profundos desfiladeiros negros
riscados por cinabre; a parte superior ficava grumosa com os topos das
grandes árvores. Algumas das árvores eram de verde brilhante, outras
avermelhadas, e a areia da praia era preta como o sapato de vocês. Mui-
tos pássaros planavam em volta da baía, alguns deles brancos como ne-
ve; e a raposa-voadora (ou vampiro) voava ali em plena luz do dia, ran-
gendo os dentes.
Por muito tempo, fui apenas até lá, atirava, sem ultrapassar esse
ponto. Não havia sinal de trilha além dali; e os coqueiros em frente ao
pé do vale eram os últimos nesse caminho. Todo o “olho” da ilha, como
os nativos chamam o limite a barlavento, ficava deserto. De Falesá até a
região de Papa-mālūlū, não havia nem casa, nem homem, nem árvore
frutífera plantada; e como o recife, em sua maior parte era ausente, e as
enseadas escarpadas, o mar batia diretamente nas falésias, e mal havia al-
gum lugar para desembarcar.
Deveria contar que, após começar a ir para as matas, embora nin-
guém ousasse se aproximar da loja, encontrei pessoas dispostas a passar
o dia em minha companhia, se ninguém as visse. E como começava a
aprender o idioma nativo, e a maioria delas sabia uma ou duas palavras
em inglês, mantive conversas triviais, sem muito propósito, para falar a
verdade, mas que tiraram o pior daquela sensação. Pois é terrível ser
tratado como leproso.
Calhou que um dia, quase no fim do mês, sentado na baía, no limite
da mata, olhava para o leste, com um kanaka. Havia lhe entregue supri-
mento de tabaco, e tentávamos conversar da melhor maneira possível;
na verdade, ele sabia inglês melhor que a maioria dos outros.
Eu lhe perguntei se não havia estrada que dava ao leste.
“Uma vez uma estrada”, disse. “Agora morta.”
“Ninguém ir ali?”, perguntei.
“Não bom”, falou. “Muito diabo parar ali.”
“Oho!”, respondi, “cheia diabo, aquela mata?”
“Homem diabo, mulher diabo: muito diabo”, disse o meu amigo.
“Parar ali tempo inteiro. Homem ir ali, não voltar.”
Pensei que, se aquele sujeito estava tão bem informado dos diabos e
falava deles tão abertamente, o que não é comum, seria melhor pescar
um pouco de informações de Uma e eu.
“Você achar eu diabo?”, perguntei.
“Não achar diabo”, disse com tranquilidade. “Achar tolo igual to-
dos.”
“Uma, ela diabo?”, perguntei novamente.
“Não, não; não diabo; diabo parar mata”, disse o jovem.
Olhava para o outro lado da baía à minha frente, e vi a frente sus-
pensa da mata abrir de repente, e Case avançou, armado, para praia ne-
gra sob o sol. Vestia pijamas claros, quase brancos, a arma brilhava, e
parecia extremamente distinto; e os caranguejos escapuliam de volta pa-
ra os seus buracos.
“Hum, meu amigo”, disse, “você não falar toda verdade. Ese vai, e
volta.”
“Ese não igual; Ese Tiapolo”, diz o meu amigo; então, se despediu e
se enfiou em meio às árvores.
Observei Case em volta da praia, onde a maré estava baixa; e deixei
que passasse por mim a caminho de casa em Falesá. Estava absorto em
pensamentos; e os pássaros pareciam saber disso, passeavam muito per-
to dele na areia ou davam voltas e piavam em seu ouvido. Quando che-
gou o mais perto de mim, pude ver pelo movimento dos lábios que fala-
va consigo mesmo e, o que me agradou imensamente, que ainda levava a
minha marca registrada na sobrancelha. Para dizer toda a verdade, quis
lhe dar um tiro na carranca horrível, mas pensei melhor.
Por todo esse tempo, e por todo o tempo em que segui para casa, re-
peti aquela palavra nativa, que me lembrava por “Polly é o nome de mi-
nha tia”, tia-Polly.
“Uma”, perguntei quando cheguei, “o que significa ‘Tiapolo’?”
“Diabo”, respondeu.
“Pensei que a palavra para isso fosse aitu”, falei.
“Aitu outro diabo”, disse; “parar mata, comer kanaka. Tiapolo gran-
de chefe diabo, parar casa; mesmo diabo cristão.”
“Então”, falei. “Não insistir nisso. Como Case ser Tiapolo?”
“Não mesma coisa”, explicou. “Ese pertence Tiapolo; Tiapolo mui-
to parecido; Ese filho dele. Pensa Ese quer coisa, Tiapolo faz.”
“Isso é conveniente demais para Ese”, disse. “E que coisas lhe faz?”
Bem, dali saiu lenga-lenga com história de tudo quanto é tipo, mui-
tas delas (como o dólar que tirou da cabeça do sr. Tarleton) estavam
muito claras para mim, mas de outras não tinha noção; e o que mais
surpreendia os kanakas era o que menos me surpreendia; saber que po-
dia entrar no deserto entre todos os aitus. Alguns dos mais corajosos,
no entanto, o acompanhavam, e o ouviam falar com os mortos e lhes
dar ordens, e seguros em sua proteção, retornavam incólumes. Alguns
disseram que lá tinha igreja onde adorava o Tiapolo, e o Tiapolo apare-
cia para ele; outros juravam que não havia feitiçaria, que realizava os
milagres com o poder da reza, e que a igreja não era igreja, mas prisão
onde havia confinado os aitu perigosos. Namu havia entrado na mata
com ele uma vez, e retornou glorificando a Deus por aquelas maravi-
lhas. No todo, tive um vislumbre da posição dele, e dos meios com que
a havia adquirido, e embora visse que ele seria noz difícil de se quebrar,
não desanimei de modo algum.
“Muito bem”, afirmei, “eu mesmo darei uma olhada no lugar de
adoração do Mestre Case, e veremos o que há nessa glorificação.”
Nesse momento, Uma sentiu apreensão terrível; se fosse para a mata
alta, talvez jamais voltasse; ninguém podia ir lá sem a proteção do Tia-
polo.
“Arriscarei a de Deus”, falei. “Na medida do possível, Uma, sou boa
pessoa; e creio que Deus me ajudará a passar por isso.”
Ficou em silêncio por um tempo. “Achar”, disse com muita soleni-
dade; e em seguida: “Victorea grande chefe?”.
“Pode apostar”, respondi.
“Gostar muito de você?”, perguntou novamente.
Eu lhe disse com sorriso sarcástico que acreditava que a velha dama
era um tanto parcial para comigo.
“Tudo bem”, respondeu. “Victorea grande chefe, gostar muito você;
não poder ajudar aqui Falesá; não poder, muito longe. Maea chefe pe-
queno; parar aqui; imaginar gostar você, fazer você tudo bem. Mesma
coisa Deus e Tiapolo. Deus grande chefe, trabalho demais. Tiapolo che-
fe pequeno, gostar muito mostrar, trabalhar muito.”
“Terei de mandá-la para o sr. Tarleton”, disse. “Sua teologia está fora
dos limites, Uma.”
Apesar de falarmos desse assunto a noite inteira, e de ela me contar
histórias do deserto e seus perigos, se assustou a ponto de quase ter um
ataque. Claro que não me lembro de um quarto delas, pois não dei mui-
ta atenção; mas duas voltam a mim com certa clareza.
A cerca de dez quilômetros costa acima existe esconderijo protegido
que chamam de Fanga-anaana, “o ancoradouro cheio de cavernas”. Eu
havia visto do mar, tão próximo quanto consegui fazer os meus garotos
se aventurarem até lá; é uma pequena faixa de areia amarela. Penhascos
negros o ladeavam repletos pelas bocas negras das cavernas, e grandes
árvores sobrepunham os penhascos com cipós pendurados, e em local,
próximo ao meio, grande riacho cai na cascata. Bem, havia um barco
por ali com seis jovens de Falesá, “todos muito bonitos”, Uma disse,
que lhes foi a perdição. Ventava forte, e o mar adiante estava tumultuo-
so; e quando ficaram de frente para Fanga-anaana, e viram a cascata
branca e a praia ensombrecida; estavam todos cansados e com sede, pois
a água havia acabado. Um deles propôs desembarcar e beber um pouco;
e, por serem imprudentes, todos pensaram a mesma coisa, exceto o mais
jovem. Seu nome era Lotu; era jovem muito bom e inteligente; e lhes fa-
lou que estavam loucos, avisou que o lugar era dominado por espíritos e
demônios e os mortos, e que não havia vivos a menos de dez quilôme-
tros numa direção e talvez uns vinte na outra. Mas riram de suas pala-
vras; e por ser cinco contra um, continuaram, ancoraram o barco, e de-
sembarcaram. Era lugar maravilhoso, agradável, disse Lotu, e a água ex-
celente. Deram a volta na praia, mas não conseguiam ver nenhum lugar
para escalar o penhasco, o que os acalmou; e por fim se sentaram para
comer o que haviam trazido consigo. Mal se assentaram, quando surgiu
da boca das cavernas negras seis das mulheres mais bonitas que já havi-
am visto; tinham flores nos cabelos, e os seios mais bonitos, e colares de
sementes escarlates; e gracejaram com os jovens cavalheiros, e eles gra-
cejaram de volta, todos menos Lotu. Quanto a Lotu, viu que não pode-
ria haver mulher em local assim, correu, e se lançou no fundo do barco,
cobriu o rosto, e rezou. Por todo o tempo enquanto o evento durou,
Lotu rezou sem parar um segundo; e foi tudo o que soube disso, até os
amigos retornarem, o sentarem, e voltarem ao mar na saída da baía, ago-
ra bem deserta, e nenhuma palavra sobre as seis moças. Porém, o que
mais apavorou Lotu, nenhum dos cinco se lembrava do que havia acon-
tecido, mas todos pareciam bêbados, e cantavam e riam no barco, e pan-
degavam. O vento esfriou e veio a borrasca, o mar subiu a altura extra-
ordinária; era clima que nenhum homem ignoraria, nem fugiria para Fa-
lesá; mas esses cinco enlouquecidos prepararam as velas e levaram o
barco ao mar. Lotu escoava a água; nenhum dos outros pensou em aju-
dá-lo, apenas cantavam e pandegavam e seguiam, e falavam singularida-
des, além da compreensão humana, e gargalhavam alto enquanto as di-
ziam. Então, pelo resto daquele dia, Lotu escoou a água do fundo do
barco por sua vida, completamente encharcado de suor e da água gelada
do mar; e ninguém se importou com ele. Contra todas as expectativas,
chegaram salvos, na assustadora tempestade, a Papa-mālūlū, onde os
coqueiros se agitavam e os cocos voavam como bolas de canhão na gra-
ma da vila; e, na mesma noite, os cinco jovens cavalheiros adoeceram e
nunca mais falaram uma palavra razoável até a morte.
“E quer me dizer que engole uma história como essa?”, perguntei.
Ela me contou que era bem conhecida, e com jovens bonitos sozi-
nhos, até mesmo comum. Mas esse era o único caso onde cinco haviam
sido abatidos no mesmo dia e na companhia do amor de mulheres-de-
mônio; e havia causado grande agitação na ilha; e ela seria louca se duvi-
dasse.
“Então, pelo menos”, disse, “não precisa ficar com medo por minha
causa. Mulheres-demônio não me servem para nada; você é todas as
mulheres que desejo, e todos os demônios também, senhora.”
A isso respondeu que haviam outras espécies, e que tinha visto um
com os próprios olhos. Certo dia, havia ido sozinha à baía ao lado, e
talvez se aproximou demais dos limites do lugar ruim. A sombra dos
galhos da mata alta encobria a beira do penhasco, mas ela estava fora,
em lugar plano, muito pedregoso e com bastantes abricós, entre um me-
tro e um metro e meio de altura. Era dia escuro na estação chuvosa; e
ora vinham rajadas de vento que arrancavam as folhas e as faziam voar,
ora tudo ficava quieto como dentro de casa. Estive nessas quietudes al-
gumas vezes, em que todo um bando de pássaros e raposas-voadoras se
atiravam para fora da mata como criaturas assustadas. Em seguida, o
farfalhar de algo nas proximidades, e viu sair da margem das árvores en-
tre os abricós, um suíno magro, cinzento e velho. Pareceu pensar, en-
quanto ele vinha, que era como pessoa; então de súbito, enquanto o via
se aproximar, notou que aquilo não era suíno, mas homem com os pen-
samentos de homem. Então, correu dele e o porco atrás, guinchava alto
e corria, de modo que o local ressoava com isso.
“Queria estar lá com a arma”, falei. “Aposto que o porco guincharia
de surpresa.”
Mas me disse que a arma era inútil em situações assim, que aqueles
eram os espíritos dos mortos.
Bem, esse tipo de conversa bastou por aquela noite, que foi o me-
lhor disso; mas é claro que não mudava o meu propósito; e no dia se-
guinte, com a arma e boa faca, parti em viagem de descoberta. Cheguei
o mais perto possível do lugar de onde vira Case sair; pois se era verda-
de que possuía algum empreendimento na mata, sabia que encontraria a
trilha. O começo do deserto era marcado por um muro — por assim di-
zer, pois era mais uma grande pilha de pedras; dizem que dá para o ou-
tro lado da ilha, mas como sabem disso é outra questão, pois duvido
que alguém tenha feito essa jornada nos últimos cem anos; os nativos fi-
cam principalmente ao mar e nas pequenas colônias ao longo da costa, e
aquela é a parte alta, fatal, íngreme e repleta de desfiladeiros. Segui pela
direção oeste do paredão, o chão fora limpo, e haviam coqueiros, e abri-
cós, e goiaba, e muitas plantas delicadas. Já do outro lado, a floresta co-
meçava de verdade; mata densa ali: árvores eretas como mastros de na-
vios, e cordas de cipó penduradas como cordames de navio, e orquídeas
desagradáveis cresciam nas forquilhas como fungos. No chão, sem ve-
getação rasteira, parecia haver uma pilha de seixos. Vi muitos pombos-
verdes que conseguiria acertar, caso não estivesse ali com intenção di-
versa; grande número de borboletas subia e descia pelo chão como fo-
lhas mortas; às vezes, escutava um pássaro piar, às vezes, o vento acima,
e sempre o mar ao longo da costa.
Mas a estranheza do lugar é mais difícil de se descrever; a não ser pa-
ra alguém que já esteve sozinho na mata densa. O dia mais brilhante é
sempre opaco lá dentro. Uma pessoa não consegue ver o final de nada;
para onde olhar, a mata estará fechada, um ramo se funde ao outro, co-
mo os dedos da mão; e sempre que tentar escutar, ouvirá algo novo —
conversas, risos infantis, batidas de machado bem ao longe, e, às vezes,
espécie de corrida furtiva e veloz muito próxima, que o fará saltar e che-
car as armas. É muito fácil contar a si mesmo que está sozinho, com ex-
ceção das árvores e dos pássaros; não consegue acreditar nisso: não im-
porta para onde se virar, todo o lugar parece vivo e que o observa. Não
pense que foram as histórias de Uma que me assustaram; não dou qua-
tro vinténs pela história de nativo: isso é algo natural na mata, nada
mais.
Conforme me aproximava do topo da montanha, uma vez que o so-
lo da mata se inclinava e ficava íngreme como escada, o vento soava
mais forte, e as folhas caíam e se abriam para deixar o sol entrar. Isso me
agradava mais; era o mesmo barulho o tempo inteiro, e nada que me as-
sustasse. Bem, encontrei um lugar onde havia a vegetação que chamam
de coqueiro selvagem — extremamente bonito, com frutos avermelha-
dos — quando veio pelo vento espécie de som que não me lembrava de
já haver escutado. Seria muito bom dizer a mim mesmo que eram os ga-
lhos; mas sabia que não eram. Seria muito bom dizer a mim mesmo que
era um pássaro; mas nunca ouvi pássaro cantar daquele modo. Aumen-
tava, e fica alto, e enfraquecia, e alto novamente; ora pensava que era co-
mo choramingo, porém mais belo; ora pensava que era como harpa; e
havia uma coisa da qual tinha certeza, era muito doce para ser natural
naquele lugar. Podem rir se quiserem; mas admito que me recordei das
seis jovens damas que apareceram, com colares escarlates, na caverna
em Fanga-anaana, e me perguntei se cantavam assim. Rimos dos nativos
e suas superstições; mas veja como muitos comerciantes as adotam, ho-
mens brancos esplendidamente educados, guarda-livros (alguns deles) e
escriturários no velho país! Acredito que a superstição cresce como di-
versas espécies de ervas; fiquei ali, escutava aquele lamento e tremia em
meus sapatos.
Podem me chamar de covarde por ter me assustado; percebi que ti-
nha coragem o bastante para seguir em frente. Mas fui com cuidado ex-
tremo, com a arma engatilhada, atento a tudo ao redor como caçador,
com expectativa de ver a jovem bonita sentada em algum lugar na mata,
e completamente determinado (se conseguisse) a testá-la com rajada de
chumbo grosso. E, com certeza, não havia ido longe, quando me depa-
rei com algo esquisito. O vento veio de cima da mata em lufada forte, as
folhas à frente se abriram de vez, e vi por um segundo algo pendurado
na árvore. Desapareceu num piscar de olhos, a lufada bateu e as folhas
se fecharam. Contarei a verdade; estava convicto de ter visto um aitu; se
a coisa se parecesse com porco ou mulher, eu não teria a mesma reação.
O problema era que me parecera um tanto quadrado; e a ideia de algo
quadrado que vivesse e cantasse me deixava nervoso e atordoado. Devo
ter ficado ali um tempo; estava bastante seguro de que foi exatamente da
mesma árvore que vinha a cantoria. Então, refleti um pouco.
“Bem”, digo, “se realmente é isso, se este é onde há coisas quadradas
que cantam, já subi até aqui mesmo. Que se divirta às minhas custas.”
Mas pensei que também seria bom aproveitar a estranha possibilida-
de para rezar; então caí de joelhos e rezei em voz alta; e durante todo o
tempo em que rezava, os sons estranhos vinham da árvore, e subiam e
desciam, e se transformavam, pois o mundo inteiro gosta de música;
apenas não podia ver se era humana — não havia ninguém para quem
assobiar.
Assim que terminei de modo apropriado, abaixei a arma, prendi a
faca entre os dentes, andei direto até a árvore, e a escalei. Meu coração
estava gelado, mas, conforme subia, tive outro vislumbre daquilo, o que
me aliviou, pois achei parecido com uma caixa; e quando o alcancei,
quase caí da árvore de tanto gargalhar. Certamente era caixa, e caixa de
velas, com a marca na lateral; e tinha cordas de banjo esticadas para to-
car quando o vento assoprasse. Acredito que chamam isso de harpa ti-
rolesa, seja lá o que significa.
“Bem, sr. Case”, falei, “me assustou uma vez. Mas o desafio a me as-
sustar novamente”, disse e desci da árvore, e me preparei novamente pa-
ra encontrar a sede do inimigo, que imaginei não estar longe.
O matagal era espesso nesse trecho, não conseguia enxergar além do
meu nariz, e tive de abrir o caminho pela força bruta e empregar a faca
enquanto seguia, fatiava as fibras dos cipós e talhava árvores inteiras
com um golpe só. Chamo de árvores pelo tamanho, mas, na verdade,
não passavam de grandes matos e plantas fáceis de cortar, como cenou-
ra. Devido àquela vegetação de tal espécie e quantidade, pensava exata-
mente que o local poderia ter sido aberto uma vez, quando me deparei
com a pilha de pedras, e vi num momento alguma espécie de trabalho
manual. O Senhor sabe quando havia sido feito ou abandonado, pois tal
parte da ilha estava sem perturbação desde antes de os brancos chega-
rem. Alguns passos depois, encontrei a trilha que procurei o tempo in-
teiro. Era estreita, mas muito usada, e vi que Case tinha muitos discípu-
los. Parece que, na verdade, era amostra de coragem corrente se aventu-
rar ali com o comerciante; e um jovem mal se via como adulto até que
por um lado, ter as nádegas tatuadas, e pelo outro ter visto os demônios
de Case. Isso é muito forte entre os kanakas; mas, se pensarmos direito,
isso é muito forte entre os brancos também.
Um pouco adiante, cheguei em área limpa e tive de esfregar os
olhos. Havia uma parede no caminho, a trilha passava por ela, através
de uma fenda; derrubada e claramente muito antiga, construída com
grandes pedras muito bem colocadas; e naquela ilha não havia nativo vi-
vo que pudesse sonhar com construção daquela qualidade. Ao longo do
topo, havia uma fileira de figuras bizarras, ídolos, ou espantalhos, ou o
que for. Os rostos entalhados e pintados, feios de se ver; olhos e dentes
feitos de conchas; cabelos e roupas coloridas assopravam no vento, e al-
guns deles resistiam ao puxão. Existem ilhas ao oeste, em que ainda hoje
fazem esse tipo de imagem; mas se já foram feitas nesta ilha, a prática e a
lembrança delas estão esquecidas faz muito tempo. E o singular é que
todos esses truques eram recentes como brinquedos de loja.
Então me ocorreu o que Case havia comentado comigo no primeiro
dia, que era bom forjador de curiosidades das ilhas: algo pelo qual mui-
tos comerciantes pagam dinheiro honesto. E, com isso, vi todo o negó-
cio, e como aquele arranjo lhe servia para duplo propósito: primeiro,
fornecer suas curiosidades; depois, assustar aqueles que vinham visitá-
lo.
Mas preciso lhes contar (o que deixava a questão mais inusitada) que
por todo o tempo as harpas eólicas tocavam nas árvores a minha volta, e
mesmo com minha observação, algum pássaro verde e amarelo (supus
que fazia ninho) começou a arrancar o cabelo da cabeça de uma das
imagens.
Um pouco adiante, encontrei a última curiosidade do museu. O que
vi primeiro foi o comprido monte de terra com curva. Cavei a terra com
as mãos, encontrei uma lona revestida por breu esticada em tábuas, de
modo que aquilo claramente era o teto do porão. Ficava no topo da
montanha, e a entrada era do outro lado, entre duas rochas, como entra-
da de caverna. Entrei até a curva, olhei em volta do canto, e vi um rosto
brilhante. Era grande e feio como máscara de pantomima, e o seu brilho
se expandia e diminuía, e às vezes soltava fumaça.
“Oho”, digo, “tinta luminosa.”
E devo admitir que me admirei com o engenho do homem. Com
uma caixa de ferramentas e algumas ideias extremamente simples, havia
logrado fazer um diabo de templo. Qualquer pobre kanaka trazido aqui
no escuro, com o lamento das harpas ao redor, ao olhar para aquele ros-
to fumegante no fundo do buraco, não teria dúvida de que vira e ouvira
demônios demais na vida. É fácil descobrir o que os kanakas pensam.
Simplesmente, volte a si quando tinha entre dez e quinze anos de idade,
e ali está um kanaka médio. Alguns são religiosos, assim como existem
garotos religiosos; e a maioria, mais uma vez como garotos, é razoavel-
mente honesta e ainda pensa em brincar em vez de roubar, e provavel-
mente se assusta com facilidade e não acha isso ruim. Eu me recordei do
rapaz que frequentava a escola comigo em minha terra, cheio de artima-
nhas como as de Case. Não sabia de nada, aquele rapaz; não podia fazer
nada; não tinha tinta luminosa nem harpas tirolesas; apenas afirmava na
coragem que era feiticeiro, e nos dava sustos de gelar a espinha, e amá-
vamos isso. E então me ocorreu como o professor uma vez havia açoita-
do aquele garoto, e a surpresa que todos tivemos ao ver o feiticeiro re-
ceber aquilo e lacrimejar como qualquer outro. Penso: “Preciso encon-
trar um modo de armar algo assim para mestre Case”. E, no momento
seguinte, tive a ideia.
Voltei pelo caminho que, uma vez descoberto, era bem visível e fácil
de percorrer; e quando pisei nas areias negras, quem encontro, se não o
próprio mestre Case? Engatilhei a arma e a mantive em punho; avança-
mos e passamos sem dizer nada, cada um com rabo do olho para o ou-
tro; e mal passamos, nós dois giramos como sujeitos que cavassem um
buraco, e ficamos face a face. Cada um tinha o mesmo pensamento, ve-
ja, de que um haveria de descarregar a arma nas costas do outro.
“Você não atirou em nada”, disse Case.
“Não vim aqui atirar hoje”, respondi.
“Bem, de minha parte, que o diabo siga com você”, falou.
“O mesmo para você”, devolvi.
Mas ficamos exatamente onde estávamos; sem chance de qualquer
um dos dois se mexer.
Case riu. “Podemos ficar aqui parados o dia inteiro, então”, disse.
“Não me deixe detê-lo”, retruquei.
Riu novamente.
“Olha aqui, Wiltshire, pensa que sou idiota?”, perguntou.
“Mais para patife, se quer mesmo saber”, falei.
“Bem, não pense que acho bom atirar em você aqui nesta praia aber-
ta”, afirmou, “porque não acho. As pessoas aparecem para pescar o dia
inteiro. Deve haver uma dezena deles bem agora, fazendo copra; deve
haver meia dúzia na montanha atrás de você, caçando pombos; podem
nos ver agora mesmo, não duvido. Eu lhe dou minha palavra que não
quero atirar. Por que iria querer? Você não me atrapalha nem um pou-
co; não tem uma libra de copra além da que você mesmo fez, como um
escravo negro. Está vegetando, é assim que chamo; e não me importo
onde vegete, nem por quanto tempo. Se me der a palavra de que não vai
atirar em mim, lhe darei vantagem e vou embora.”
“Bem”, respondi, “você é franco e agradável, não é? Serei também.
Não pretendo atirar em você hoje. Por que iria? Esse assunto está no
começo; ainda não terminou, sr. Case. Já lhe dei uma sova, posso ver as
marcas de meus dedos na sua cabeça agora mesmo; e tem mais esperan-
do por você. Não sou paralítico como Underhill; meu nome não é
Adams e nem é Vigours; e pretendo lhe mostrar que encontrou alguém
à altura.”
“Essa é uma maneira imbecil de falar”, disse. “Não é a conversa que
me fará ir adiante.”
“Tudo bem”, falei. “Fique onde está. Não tenho pressa, e sabe disso.
Posso passar o dia nesta praia, não me importo. Não tenho copra com
que me preocupar. Tampouco, tenho alguma tinta luminosa para ver.”
Eu me arrependi de dizer isso, mas saiu antes de me dar conta. Pude
ver que isso tirou o vento de suas velas, e ficou parado, me encarou de
rosto franzido. Então, acho que decidiu checar isso a fundo.
“Acredito em sua palavra”, falou, deu a volta e caminhou direto pa-
ra a mata do diabo.
Claro que o deixei ir, pois havia dado a palavra. Mas o observei en-
quanto estava à vista, e, após sumir, disparei com o máximo de velocida-
de em busca de cobertura, segui o resto do caminho para casa sob a ma-
ta. Pois não confiaria seis vinténs a ele. Uma coisa notei: havia sido es-
túpido o suficiente para lhe dar um aviso; e o que for que pretendesse
fazer, faria logo.
Podem pensar que tive excitação demais para a manhã, mas havia
outra surpresa para mim. Assim que me afastei do cabo o bastante para
ver a minha casa, percebi estranhos por lá; um pouco mais longe, e sem
dúvida, haviam duas sentinelas armadas agachadas na porta. Podia ape-
nas imaginar o problema que Uma devia ter em frente, com a estância
dominada. Só consegui pensar que Uma já havia sido capturada, e esses
homens armados esperavam fazer o mesmo comigo.
Entretanto, conforme me aproximava, o que fiz com o máximo de
velocidade, vi que havia um terceiro nativo sentado na varanda como
convidado, e que Uma falava com ele como anfitriã. Ainda mais perto,
percebi que era o grande jovem chefe Maea, e que sorria e fumava; e o
que ele fumava? — nenhum de seus cigarros europeus adequados para
gato; nem mesmo o artigo nativo, genuíno, de derrubar um bichano,
com o qual um sujeito de fato pode passar o tempo, caso o cachimbo te-
nha quebrado; mas um charuto, e um de meus mexicanos, podia jurar.
Ao ver isso, meu coração se acelerou; minha mente sentiu grande espe-
rança de que o problema houvesse terminado, por causa de Maea.
Uma me apontou para ele, enquanto subia, e ele me encontrou no
topo da escada como um completo cavalheiro.
“Vilivili”, disse, pois esta era a melhor maneira que conseguia pro-
nunciar o meu nome, “eu agradecido.”
Não há dúvida de que quando um chefe ilhéu deseja ser gentil, ele
consegue. Vi como as coisas estavam pelo andar da conversa. Não havia
necessidade de Uma me dizer: “Ele não medo Ese agora; aqui trazer co-
pra”. Afirmo que apertei a mão daquele kanaka como se fosse o melhor
branco da Europa.
O fato era que Case e ele tinham ido atrás da mesma garota, ou Ma-
ea suspeitava disso e decidiu aproveitar a chance e tirar vantagem do co-
merciante. Havia se vestido, arrumou um par de capatazes limpos e ar-
mados para tornar o assunto mais público, e apenas esperava que Case
saísse da vila, foi até lá para me pôr a par da questão. Era rico e podero-
so, suponho que aquele homem produzia cinquenta mil unidades por
ano. Eu lhe passei o preço da praia com desconto de vinte e cinco centa-
vos, e por crédito, teria lhe oferecido como adiantamento o interior da
loja e os acessórios, de tão satisfeito que estava por vê-lo. Devo dizer
que comprou como um cavalheiro: arroz e enlatados e biscoito o sufici-
ente para um banquete de uma semana, além de produtos no carretel.
Além disso, era agradável e muito divertido; e nós trocamos piadas, em
sua maioria com Uma de intérprete, pois seu inglês era mínimo, e o meu
domínio do idioma nativo ainda estava muito desbotado. Uma coisa
descobri: jamais pensaria em fazer mal a Uma; jamais poderia ter real-
mente se assustado, e deve ter fingido por esperteza e por que Case ti-
nha muita influência na vila e poderia ajudá-lo.
Isso me pôs a pensar que tanto eu como ele estávamos em posição
complicada. O que ele fizera foi fugir diante de toda a vila, e isso podia
lhe custar a a autoridade. Mais que isso, após falar com Case na praia,
pensei que podia muito bem me custar a vida. Case teria atirado em
mim exatamente como dissera, caso tivesse copra; haveria de chegar em
casa e descobrir que o melhor negócio da região mudou de mãos; e a
melhor coisa que eu podia fazer era atirar primeiro.
“Vê aqui, Uma”, disse, “fala para ele que sinto por fazê-lo esperar,
mas procurei a casa do Tiapolo de Case na floresta.”
“Ele querer saber você não medo?”, traduziu Uma.
Ri alto. “Não muito!”, respondi. “Diga-lhe que o lugar é uma gran-
de loja de brinquedos! Diga-lhe que na Inglaterra nós damos aquelas
coisas para as crianças brincarem.”
“Querer saber você escutar música diabo?”, perguntou em seguida.
“Veja bem”, falei, “não consigo fazer isso aqui porque não tenho
cordas de banjo; mas da próxima vez que o navio passar, terei uma ge-
ringonça igual àquelas bem aqui na varanda, e poderá ver o quanto de
diabo há nisso. Diga-lhe que assim que conseguir as cordas, farei um
para os pirralhos dele. O nome do objeto referido é harpa eólica; e pode
lhe dizer o que o nome significa na Inglaterra, que ninguém além de im-
becis se importa com isso.”
Dessa vez, ficou tão satisfeito que tentou seu inglês mais uma vez.
“Você falar verdade?”, perguntou.
“Claro!”, respondi. “Falar mesmo com Bíblia. Traga-me a Bíblia,
Uma, se tiver algo assim, e a beijarei. Ou lhe direi algo ainda melhor”,
disse e mexi a cabeça. “Pergunte-lhe se tem medo de ir lá de dia.”
Pareceu não ter; aceitaria se aventurar nisso de dia e acompanhado.
“Eis boa resposta!”, falei. “Diga-lhe que o homem é uma fraude e o
lugar, uma bobagem, e que se subir até lá amanhã, verá o que sobrou
disso. Mas lhe diga isso, Uma, e faça com que compreenda: se falar de-
mais, pode chegar a Case, e serei um homem morto. Jogo com as cartas
dele, diga-lhe, e se falar uma palavra, meu sangue estará em sua porta e
será sua danação aqui e depois.”
Ela lhe repetiu isso, e apertou a minha mão como se fosse cabo de
faca, e disse: “Não falar; subir amaniã. Você meu amigo?”.
“Não, senhor!”, digo. “Sem tais bobagens. Vim aqui a negócios, di-
ga-lhe, e não para fazer amigos. Mas quanto a Case, mandarei aquele
homem para a glória.”
Assim partiu Maea, muito satisfeito, como pude ver.

CAPÍTULO V
NOITE NA FLORESTA
Bem, agora estava comprometido; Tiapolo haveria de ser esmagado an-
tes do dia seguinte; e tive muito trabalho, não apenas com preparos, mas
com argumentos. Minha casa era como sociedade de debate de física
mecânica; Uma estava bastante convencida de que não devia entrar na
mata durante a noite, ou de que se entrasse, jamais voltaria. Vocês co-
nhecem seu estilo de argumentar, algo entre a rainha Vitória e o diabo; e
deixo-lhes que deduzam se me cansei disso antes de escurecer.
Ao fim, tive uma boa ideia; qual a utilidade de jogar as minhas péro-
las para ela? Pensei: um pouco de palha cortada dela tinha mais chances
de fazer o serviço.
“Então, lhe direi o que fazer”, disse. “Pegue a Bíblia, e partirei com
a minha. Assim dará certo.”
Ela jurou que a bíblia era inútil.
“Isso é culpa da sua ignorância kanaka”, falei. “Traga a Bíblia.”
Ela a trouxe, e abri na folha de rosto em que pensei haver um pouco
de inglês, e ali estava. “Aqui!”, exclamei. “Olha isso! ‘Londres: impressa
para os britânicos e a Sociedade Bíblica Estrangeira, Blackfriars’; e a da-
ta, que não consigo ler, porque está nesses X. Não há nenhum diabo no
inferno que seja capaz de se aproximar da Sociedade Bíblica, Blackfri-
ars. Ora, sua bobinha!”, disse, “como acha que lidamos com nossos ai-
tus lá em casa? Tudo com a Sociedade Bíblica!”
“Não achar vocês ter eles lá”, respondeu. “Branco contar vocês não
ter.”
“Parece que sim, não é?”, perguntei. “Por que nestas ilhas existe um
bocado deles, mas nenhum na Europa?”
“Bem, vocês não ter fruta-pão”, disse.
Podia arrancar os meus cabelos. “Agora, olhe aqui, senhora”, falei,
“acabou, pois já me cansei de você. Levarei a Bíblia, o que me deixará
tão seguro quanto o correio; e é a última coisa que tenho a dizer.”
A noite ficou extraordinariamente escura, as nuvens chegaram com
o crepúsculo e se espalharam por toda a região; não apareceu uma estre-
la sequer; havia apenas ponta da lua, e isso não haveria de mudar antes
das primeiras horas da manhã. Ao redor da vila, com luz e fogueira nas
casas abertas e as tochas de muitos pescadores no recife, se manteve ale-
gre como iluminação; mas o mar e as montanhas e as florestas haviam
sumido completamente. Suponho que eram oito horas quando peguei a
estrada, carregado como um burro. Primeiro, aquela Bíblia, livro grande
como uma cabeça, que carregava por estultice minha. Então, havia a ar-
ma e a faca e a lanterna e os fósforos, tudo necessário. E levava na mão a
verdadeira carga para a ocasião: quantidade mortal de pólvora, um par
de bananas de dinamite para pescaria, e dois ou três exemplares de cor-
del para acender, que havia tirado das caixas de latão e dividido da me-
lhor maneira possível; pois o cordel era apenas para comércio, e um ho-
mem seria louco se confiasse nele. No todo, vê, tinha o material para
uma bela explosão. O custo não era nada para mim. Precisava fazer
aquilo o quanto antes.
Enquanto estava no campo aberto, e tinha o lampião de casa para
me guiar, estava bem. Mas assim que entrei na trilha, estava tão escuro
que não conseguia seguir direto, trombava com árvores e proferia injú-
rias, como alguém que procura os fósforos no quarto. Sabia que era ar-
riscado acender a luz; pois a lanterna seria visível dali até o pontal do
cabo; e como ninguém ia ali após escurecer, as pessoas comentariam e
isso chegaria aos ouvidos de Case. Mas o que deveria fazer? Ou desistia
da empreitada e perdia o respeito de Maea, ou acendia, corria o risco, e
enfrentava aquilo da melhor maneira possível.
Enquanto seguia pela trilha, caminhei com esforço; mas quando
cheguei à praia negra, tive de correr. A maré estava quase cheia; e para
atravessar com a pólvora seca entre a rebentação e a subida íngreme, me
lancei a toda velocidade. Como o nível estava alto, bateu em meus joe-
lhos e quase caí numa pedra. Por todo esse tempo, com muita pressa, o
ar livre e o cheiro do mar mantiveram o meu espírito jovial; e uma vez
que cheguei na mata e escalei a trilha, ficou mais fácil. O terror da flo-
resta me ficara um tanto apagado pelas cordas de banjo e as imagens en-
talhadas do mestre Case, mas, ainda assim, achei a caminhada apavoran-
te, e imaginei que quando os discípulos subiam ali, deviam ficar terrivel-
mente assustados. A luz da lanterna batia entre todos aqueles troncos e
galhos enforquilhados, e pontas de cipós torcidas, transformava todo o
lugar, ou tudo o que se podia ver dele, em espécie de jogo de sombras
que se moviam. Vinham encontrá-lo, sólidas e rápidas como gigantes,
então giravam e desapareciam; pairavam sobre sua cabeça como porre-
tes e voavam para dentro na noite como pássaros. O chão da mata relu-
zia com a madeira morta, como a caixa de fósforos brilha quando se
acende o luzeiro. Grandes gotas geladas caíam feito suor em mim, dos
galhos acima da cabeça. Não havia vento digno de menção, apenas pe-
quena lufada de ar na brisa terrena que não balançava nada; e as harpas
em silêncio.
A primeira parada que fiz foi ao atravessar a floresta de coqueiros
selvagens, e minhas vistas alcançaram os bonecos sobre o muro. Pareci-
am extremamente bizarros ao brilho da lanterna, com os rostos pinta-
dos, olhos de concha, roupas e cabelos soltos. Um após o outro, puxei
todos e os empilhei no teto do porão, de modo que pudessem desapare-
cer com o resto. Então, escolhi um lugar atrás de uma das grandes pe-
dras da entrada, enterrei a pólvora e as duas bananas, e arrumei o cordel
ao longo da passagem. Depois, dei uma olhada para a ponta fumegante,
apenas por despedida. Tudo ia bem.
“Anime-se”, disse. “Você tem tempo.”
A minha intenção inicial era acender e partir para casa; pois a escuri-
dão, e o vislumbre da madeira morta, e as sombras da lanterna me dei-
xaram solitário. Mas sabia onde uma das harpas estava; me parecia uma
pena que ela não se fosse com o resto; e, ao mesmo tempo, não conse-
guia evitar me sentir fatalmente cansado do empreendimento, e queria
mais que tudo voltar para casa e fechar a porta. Saí do porão, e discuti
os prós e contras disso comigo mesmo. Havia barulho de mar na costa
abaixo; perto de mim, sequer uma folha se movia; podia ser a única cria-
tura viva naquele lado do cabo Horn. Bem, enquanto ficava ali a pensar,
pareceu que a floresta despertou e se encheu de pequenos ruídos. Pe-
quenos ruídos, nada que machucasse — breve estalo, breve arrastão —
mas o meu fôlego suspendeu e a a garganta secou como biscoito. Não
era Case o que temia, como qualquer um acharia; nem pensei nele; o
que me dominava, forte como cólica, era o conto de velhas matronas, as
mulheres-demônio e os homens-porco. Estava a ponto de correr; mas
me controlei, saí, peguei a lanterna (como um idiota) e olhei em volta.
Na direção da vila e da trilha, não havia nada a ser visto; mas ao me
virar para o lado interno da ilha, foi uma surpresa como não caí. Lá —
do deserto e da pavorosa floresta — lá, com certeza, havia a mulher-de-
mônio, exatamente como imaginei que seria. Vi a luz brilhar em seus
braços descobertos e olhos cintilantes. E dali saiu grito tão alto que
pensei que seria a minha morte.
“Ah! Não gritar!”, falou a mulher-demônio, em espécie de sussurro
alto. “Por que falar voz grande? Apagar luz! Ese vem.”
“Deus do Céu, Uma, é você?”, disse.
“Ioe”, respondeu. “Chegar rápido. Ese aqui logo.”
“Você chegar sozinha?”, perguntei. “Não medo?”
“Ah, medo demais!”, sussurrou e me agarrou. “Achar morrer.”
“Bem”, digo, com espécie de sorriso fraco, “não posso rir de você,
sra. Wiltshire, pois eu mesmo devo ser o homem mais assustado do Pa-
cífico Sul.”
Ela me contou em duas palavras o que a levara até lá. Mal havia saí-
do, parece, Faavao chegou; e a velha havia encontrado Black Jack cor-
rendo o mais rápido possível de nossa casa para a de Case. Uma nem fa-
lou nada ou mesmo parou, mas saiu em disparada para me alertar. Esta-
va tão próxima de meu rastro que a lanterna a havia guiado pela praia, e
depois, pelo brilho nas árvores, achou o caminho montanha acima. Foi
apenas quando estava no topo ou no porão, que andou sem visão algu-
ma — o Senhor sabe por onde! — e perdeu tempo precioso, pois recea-
va me chamar e Case estar perto, e, então, caiu na floresta e ficou ator-
doada e machucada. Deve ter sido assim que foi muito pro sul, e, por
fim, me alcançou no flanco, me assustou de modo que não tenho pala-
vras para descrever.
Bem, qualquer coisa era melhor que mulher-demônio; mas achei a
história preocupante. Black Jack não tinha motivos para estar perto de
minha casa, a não ser que fosse até lá para me espiar; e me pareceu que
minhas palavras idiotas a respeito da tinta e talvez alguma conversa de
Maea tivesse nos metido num ponto sem nó. Uma coisa estava clara:
Uma e eu haveríamos de passar a noite ali; não ousaríamos voltar para
casa antes de amanhecer, e, mesmo nessa hora, seria mais seguro dar a
volta na montanha e entrar pelos fundos da vila, senão podíamos cair
numa emboscada. Também estava claro que a mina deveria ser destruída
imediatamente, ou Case poderia voltar a tempo de salvá-la.
Segui para o túnel, Uma me apertava com força, abri a lanterna e
acendi o cordel. A primeira parte queimou como papel enrolado; fiquei
estupefato, vendo queimar, e pensei que íamos nos livrar do Tiapolo, o
que não estava nas minhas previsões. O segundo foi melhor que o pla-
nejado, embora mais rápido; e com isso recuperei o senso, puxei Uma
para que saísse do caminho, corri para longe e deixei a lanterna cair; e
tateamos nosso caminho na floresta até achar que estávamos seguros e
nos deitarmos ao lado de uma árvore.
“Senhora”, disse. “Não me esquecerei desta noite. Você é boa, e é is-
so o que há de errado com você.”
Ela se arqueou para ficar mais perto de mim. Havia corrido por to-
do esse caminho sem vestir nada além do saiote; ainda estava completa-
mente molhada pelo orvalho e o mar na praia negra, e tremia bastante
de frio e pavor do escuro e dos demônios.
“Ter muito medo”, era tudo o que dizia.
O lado distante da montanha de Case descia quase tão íngreme
quanto o precipício que dava no vale seguinte. Estávamos na extremida-
de, e pude ver a madeira morta brilhar e escutar o mar ressoar lá embai-
xo. Não me importava com a posição, que não me permitia a fuga, mas
tinha medo de mudar. Então, vi que cometera um engano pior com a
lanterna, que deveria ter deixado acesa, de modo a vislumbrar Case
quando cortasse a luz. E mesmo que não tivesse a sagacidade de pensar
nisso, não parecia fazer sentido deixar uma boa lanterna para explodir
com as imagens entalhadas; aquilo me pertencia, afinal, e valia dinheiro,
e poderia ser útil. Se pudesse confiar no cordel, teria corrido até lá e a
apanhado. Mas quem confiaria no cordel? Sabem o que está em jogo; o
objeto era bom o suficiente para os kanakas pescarem, e, de qualquer
forma, precisam ficar animados, e o máximo que arriscam é a ter a mão
estourada; mas para alguém que quisesse causar explosão como a mi-
nha, aquele fósforo era ninharia.
De modo geral, o melhor que podia fazer era me deitar e ficar para-
do, deixar a espingarda em mãos, e esperar a explosão. Mas era tarefa
um tanto solene; e o negrume da noite estava quase sólido; só era possí-
vel ver o brilho vil e funesto da madeira morta, o que não significava
nada mais; quanto aos sons, afinei os ouvidos até acreditar ouvir o cor-
del queimar no túnel, e aquela floresta silenciosa como caixão. Volta e
meia havia um pequeno estalo, mas se estava próximo ou longe, e se era
o tropeço de Case a alguns metros ou árvore que quebrou a quilôme-
tros, tinha a resposta tanto quanto um bebê na barriga da mãe.
Então o Vesúvio estourou. Demorou bastante para acontecer, mas
quando aconteceu (embora diga que não deveria) nenhum homem po-
deria pedir para ver um melhor. No começo, foi apenas uma barulheira
desgraçada, e o esguicho de fogo, e a mata se iluminou de modo que se
poderia até mesmo ser lida. E, então, o problema começou. Uma e eu fi-
camos em parte soterrados por uma leva de terra, e fico contente por
não ter sido pior; pois uma das rochas da entrada do túnel foi disparada
para o ar, e caiu a duas braças de onde deitávamos, desceu para o limite
da montanha, e rolou para o vale ao lado. Percebi que, das duas uma, ou
havia calculado errado a distância, ou exagerado na dinamite e na pól-
vora.
E, em seguida, vi que havia cometido outro deslize. O barulho desa-
parecia, e balançara a ilha; o ofuscamento se acabara; e ainda assim a
noite não recomeçara da maneira que imaginei. Pois toda a mata estava
coberta por brasas vermelhas da explosão; estavam todas em volta de
mim na parte plana, algumas caídas no vale abaixo, e algumas se engan-
chavam e chamejavam nos topos das árvores. Não temia o incêndio,
pois essas florestas eram muito úmidas para queimarem. O problema
foi que o lugar ficou completamente iluminado, não muito brilhante,
mas o bastante para se levar um tiro; e como as brasas haviam se espa-
lhado, estava exatamente da maneira que Case podia se aproveitar tanto
quanto eu. Olhei em volta em busca de seu rosto redondo, obviamente;
mas não havia sinal dele. Quanto a Uma, a vida pareceu arrancada dela
com o estrondo e o brilho daquilo.
Havia um ponto negativo em meu lance. Uma das malditas imagens
entalhadas havia caído completamente em chamas, cabelo e roupas e
corpo, a menos de três metros de mim. Olhei em volta com atenção ex-
trema; ainda nada de Case; então me convenci de que deveria me livrar
daquele pau em chamas antes que chegasse ali, ou seria alvejado como
um cão.
Minha primeira ideia foi rastejar; então, pensei que a velocidade era
muito mais importante, e me abaixei para ir mais rápido. Na mesma ho-
ra, de algum lugar entre mim e o mar, veio o clarão e o ruído, e a bala de
rifle zuniu em meu ouvido. Dei a volta de pé, com a arma. Mas o animal
tinha uma Winchester; e mal pude vê-lo, seu segundo tiro me derrubou
como pino de boliche. Pareci flutuar no ar, então caí de vez e fiquei
atordoado por trinta segundos; então, vi que as minhas mãos estavam
vazias e a arma havia voado por cima da cabeça quando caí. Um homem
fica bastante desperto numa situação como aquela. Mal sabia onde havia
sido atingido, ou se havia sido atingido ou não, mas virei o corpo para
baixo, para me arrastar até a arma. A não ser que tenham tentado se
mover com a perna esmagada, vocês não sabem o que é a dor, e uivei
como boi.
Foi o barulho mais infeliz que já fiz na vida. Até aquele momento,
Uma havia se prendido à árvore como mulher racional, sabia que ape-
nas estaria no caminho. Mas assim que me ouviu gritar, correu para a
frente — a Winchester estalou mais uma vez — e ela caiu.
Havia me levantado, com a perna e tudo, para pará-la; mas quando a
vi tombar, tateei novamente até onde estava, me deitei imóvel, e senti o
cabo de minha faca. Já havia me precipitado e subscrito antes. Nada
mais daquilo para mim; havia acertado a minha garota, e eu haveria de
descontar; e ali fiquei e rangi os dentes, e pesei as probabilidades. A per-
na estava quebrada, a arma sumida, Case ainda tinha dez tiros com a
Winchester, parecia caso perdido. Mas não me desesperei nem pensei
em me desesperar; aquele homem tinha de partir.
Por um bom tempo, nenhum de nós avançou. Então escutei Case se
aproximar na floresta cuidadosamente. O ídolo havia se queimado de
todo; havia apenas algumas brasas aqui e ali; e a mata estava quase que
um breu total, mas havia espécie de luminosidade baixa nela, como fo-
gueira prestes a extinguir. Foi por isso que discerni a cabeça de Case me
procurar em grande ramalhete de samambaias; e, na mesma hora, o ani-
mal me viu e pôs a Winchester no ombro. Fiquei completamente parado
enquanto olhava para o cano; era a minha última chance; mas pensei
que o coração sairia pela boca. Então, atirou. Por sorte não era espin-
garda, pois a bala passou a um centímetro de mim e sujou meus olhos.
Apenas tente ficar deitado imóvel, e deixe um homem tentar atirar
em você e errar por um fio de cabelo! Mas consegui, e também dei sor-
te. Case ficou com a Winchester em posição de ataque por um tempo;
em seguida, deu risadinha para si mesmo, e rodeou as samambaias.
“Ria!”, pensei. “Se tivesse a inteligência de um piolho, rezaria!”
Estava tão tenso quanto cabo de reboque de navio ou mola de reló-
gio; e assim que chegou ao meu alcance, o acertei no tornozelo, atirei
meus pés debaixo dele, o deitei, e subi nele, mesmo com a perna que-
brada, antes que respirasse. A Winchester havia tido o mesmo destino
que minha espingarda; não era nada para mim; agora o desafiei. De
qualquer forma, sou muito forte, mas nunca soube o quanto até domi-
nar Case. Ele perdeu a noção do tempo com a pancada que o derrubou,
e jogou para cima as mãos juntas, mais como mulher assustada, de mo-
do que as agarrei com a esquerda. Isso o despertou, e enfiou os dentes
em meu antebraço como fuinha. Pouco me importei! A perna já me
causava toda a dor que precisava; então puxei a faca, e a coloquei no lu-
gar.
“Agora”, afirmei, “o capturei; é o seu fim, e um bom trabalho tam-
bém. Sente a ponta disso? Esta é por Underhill. E esta é por Adams. E
agora esta é por Uma, e isso haverá de lhe arrancar a alma.”
Com isso, lhe enfiei o aço frio com toda a força. Seu corpo me em-
purrou como sofá de molas; soltou espécie de lamento longo e horripi-
lante, e caiu imóvel.
“Não sei se está morto. Espero que sim”, pensei, pois sentia tontura.
Mas não correria riscos; tinha o seu próprio exemplo perto demais para
isso; tentei retirar a faca para lhe enfiar novamente. O sangue subiu em
minha mão, me lembro bem, quente como chá; e assim desmaiei de vez
e caí com a cabeça na boca do homem.
Quando voltei a mim, estava completamente escuro; as cinzas havi-
am se apagado, e não havia nada a ser visto, exceto o brilho da madeira
morta; e não consegui me lembrar onde estava, nem por que sentia tanta
dor, nem por que estava tão molhado. Então tudo voltou; e a primeira
coisa que tratei de fazer foi lhe enfiar a faca até o cabo mais meia dúzia
de vezes. Creio que já estava morto; mas não lhe faria nenhum mal e me
fez bem.
“Aposto que agora está morto”, disse e então chamei por Uma.
Ninguém respondeu; fiz movimento para tatear até ela, mas senti a
perna quebrada, e desmaiei novamente.
Quando voltei a mim pela segunda vez, todas as nuvens haviam su-
mido, exceto algumas que flutuavam ali, brancas como algodão. A lua
estava à vista, lua tropical. A lua em minha terra natal parece madeira
negra; mas ali mesmo aquela velha bituca mostrava o verde da floresta
como se fosse dia. Os pássaros noturnos — ou talvez fosse algum pássa-
ro do começo da manhã — cantavam notas longas e decrescentes como
rouxinóis. E pude ver o morto no qual ainda descansava, olhando dire-
tamente para o céu com olhos abertos, não mais pálido que quando vi-
vo; e, um pouco adiante, Uma estava tombada de lado. Fui até lá da me-
lhor forma possível; e quando cheguei, estava bem acordada, chorava e
soluçava para si mesma sem fazer mais barulho que insetos. Aparente-
mente, tinha medo de chorar alto por causa do aitus. Não estava muito
machucada, mas inacreditavelmente assustada; havia retomado os senti-
dos muito tempo antes, me chamado, não escutado nada em resposta,
deduzido que estávamos os dois mortos, e ficado lá desde então, com
medo de mover um dedo. A bala havia perfurado o seu ombro; e perde-
ra grande quantidade de sangue; mas logo amarrei aquilo com a ponta
da camisa e cachecol que eu vestia, pus a cabeça no joelho são, as costas
contra um tronco, e repousei para esperar a manhã. Uma estava em
frangalhos; apenas me apertava com força, tremia, chorava; suponho
que jamais alguém ficou tão assustado, e para lhe fazer justiça, havia
passado noite intensa. Quanto a mim, sentia muita dor e febre, mas não
era tão ruim quando ficava parado; e sempre que olhava para Case, fal-
tava cantar e assobiar. Falar de carne e bebida! Ver aquele homem adi-
ante, morto como arenque, me causava júbilo.
Os pássaros noturnos pararam após um tempo; e então a luz mu-
dou, o leste se tornou laranja, toda a floresta zunia em cantoria, como
caixa de música, e o dia começara.
Não esperei Maea por muito tempo; e, na verdade, pensei que havia
chance de que desistisse da ideia e sequer fosse lá. Fiquei muito conten-
te quando, cerca de uma hora após o amanhecer, escutei paus quebra-
rem e muitos kanakas rirem e alardearem a sua coragem. Uma se sentou
bastante ativa com a primeira palavra; e, em seguida, vimos um grupo
aparecer na trilha, Maea na frente e atrás dele um branco com chapéu de
safári. Era o sr. Tarleton que havia chegado em Falesá no fim da noite,
deixou o barco e caminhou o último trecho com a lanterna.
Enterraram Case para o campo da glória, exatamente no buraco on-
de guardava a cabeça fumegante. Esperei até que tudo terminasse; e o sr.
Tarleton rezou, o que pensei ser bobagem, mas estou inclinado a afir-
mar que deu uma olhada bastante enojada para os restos do caro faleci-
do, e parecia ter ideias próprias a respeito do inferno. Conversei com
ele depois, lhe falei que negligenciara o seu dever, e o que deveria ter
feito seria agir como homem e contar aos kanakas abertamente que Ca-
se estava condenado, e boa sorte; mas não consegui que visse isso ao
meu modo. Então, me fizeram uma maca de paus e me carregaram até a
estância. O sr. Tarleton cuidou da minha perna, e fez a sutura missioná-
ria regular, de modo que manco até hoje. Isso feito, pegou meu teste-
munho, o de Uma, e o de Maea, escreveu tudo com clareza, e nos fez
assinar; então, juntou os chefes e caminhou até a casa de Papa Randall
para apreender os documentos de Case.
Tudo o que encontraram foi espécie de diário, mantido por boa
quantidade de anos, sobre o preço da copra e galinhas roubadas e essas
coisas; e os livros do negócio, e o testamento do qual lhes contei no co-
meço, e pelos quais todo o negócio (tudo quanto é coisa) parecia per-
tencer à mulher de Sāmoa. Fui eu quem a trouxe, figura extremamente
razoável, pois tinha pressa para voltar para casa. Quanto a Randall e o
negro, tiveram de fugir a pé; entraram em alguma espécie de estação no
lado Papa-mālūlū; fizeram negócio muito ruim, pois a verdade é que
nenhum dos dois estava preparado para isso; e viveram principalmente
de peixe, o que foi o motivo da morte de Randall. Aparentemente, hou-
ve um belo cardume um dia, e Papa foi atrás deles com dinamite; ou o
pavio queimou rápido demais ou Papa estava embriagado, ou as duas
coisas, mas a banana explodiu (como o normal) antes que a jogasse; e
onde estava a mão do Papa? Bem, não há nada muito grave nisso; norte
acima as ilhas estão cheias de manetas, como os personagens das Mil e
Uma Noites; mas ou Randall estava velho demais ou havia bebido de-
mais, e resultado disso é que morreu. Pouco tempo depois, o negro foi
capturado nas ilhas por roubar de brancos, e fugiu para o oeste, onde
encontrou homens de sua cor, que apreciou, e os homens de sua cor o
comeram em alguma espécie de ritual, e tenho certeza que ele lhes ape-
teceu!
Então, fui deixado sozinho ali, para a minha glória em Falesá; e
quando a escuna aparecia, a enchia e lhe dava carga de deque tão alta
quanto uma casa. Devo dizer que o sr. Tarleton fez a coisa certa conos-
co; mas teve vingança um tanto maldosa.
“Agora, sr. Wiltshire”, disse, “resolvi sua situação com todos aqui.
Não foi difícil com a partida de Case; mas fiz isso, e, além do mais, jurei
que negociaria de modo justo com os nativos. Devo pedir-lhe que man-
tenha a minha palavra.”
Bem, assim o fiz. Costumava me incomodar com o saldo; mas resol-
vi isso dessa maneira. Todos temos balanças estranhas, e todos os nati-
vos sabem disso e molham a copra numa proporção; de modo que seja
justo em todos os lugares. Mas a verdade é que isso me incomodava; e
embora me desse bem em Falesá, ficava bastante contente quando a fir-
ma me mudava para outra estação, onde não estava sob nenhum jura-
mento, e podia alterar as balanças.
Quanto à senhora, vocês a conhecem tão bem quanto eu. Tem ape-
nas uma única falta: caso não mantivessem o olho erguido, daria o teto
da estância. Bem, isso parece natural nos kanakas. Ela se tornou grande
e forçuda agora, e poderia carregar um policial londrino no ombro. Mas
isso também é natural em kanakas; e não há como duvidar que é ótima
esposa.
O sr. Tarleton havia voltado para sua terra, acabada a proeza; foi o
melhor missionário com quem já me deparei, e agora parece pregar nos
arredores de Somerset. Bem, é o melhor para ele; ali não terá kanakas
para enlouquecê-lo.
Minha taverna? Nada dela, nem mesmo algo parecido; estou preso
aqui, imagino; não me agrada deixar as crianças, vê; e falar é inútil — es-
tão melhor aqui do que estariam em qualquer país de branco. Mas Ben
ao crescer foi para Auckland, onde é educado pelos melhores; o que me
preocupa são as garotas. Elas são apenas mestiças, claro; sei disso tão
bem quanto vocês, e não há ninguém que se importe menos com os
mestiços do que eu; mas são minhas, e praticamente tudo o que tenho;
não consigo conceber a ideia de que fiquem com kanakas, e gostaria de
saber, por que para mim, elas são brancas.
ENTRETENIMENTOS DAS NOITES NAS ILHAS

O DEMÔNIO
DA GARRAFA
ROBERT LOUIS STEVENSON
1892

NOTA — Qualquer estudioso desse produto tão iletrado, o teatro in-


glês do começo do século, reconhecerá o nome e a ideia seminal da
obra do formidável O. Smith que fizera certo sucesso. A ideia semi-
nal está ali e é idêntica, e ainda assim espero ter criado algo novo. E
o fato de o conto ter sido planejado e escrito para público polinésio
pode lhe trazer algum interesse exótico mais perto de minha terra
natal. — R.L.S.
Havia um homem na ilha do Havaí, que chamarei de Keawe, pois a ver-
dade é que ainda vive, e seu nome deve permanecer em segredo; mas o
local de seu nascimento não era longe de Honaunau, onde os ossos de
Keawe, o Grande, jazem escondidos numa caverna. Esse homem era
pobre, corajoso e ativo; sabia ler e escrever como professor de escola;
ademais, era marinheiro de primeira categoria, navegara por um tempo
nos barcos a vapor da ilha, conduziu um baleeiro na costa Hamakua.
Por fim, Keawe decidiu conhecer o grande mundo e as cidades estran-
geiras, e entrou numa embarcação com destino a San Francisco.
Eis uma bela cidade, com belo porto e inúmeros ricos; e há uma la-
deira em particular repleta de palácios. Certo dia, Keawe passeava por
essa ladeira com o bolso cheio de dinheiro, e observava com deleite as
grandes casas de cada lado. “Que belas casas! Como devem ser felizes as
pessoas que moram ali, e que não precisam se preocupar com o dia se-
guinte!”, pensava assim quando se deparou com casa menor que algu-
mas das outras, porém retocada e embelezada como brinquedo; os de-
graus da casa brilhavam como prata, e os limites do jardim floresciam
como guirlandas, e as janelas brilhavam como diamantes; e Keawe pa-
rou e admirou a excelência de tudo o que via. Ao parar, deu-se conta de
que um homem o observava detrás de janela tão transparente que Ke-
awe podia vê-lo como via um peixe na poça do recife. Era um idoso, ca-
reca e de barba negra; o rosto pesado e melancólico, e suspirava com
amargor. E a verdade é que quando Keawe olhou para ele, e o homem
olhou para Keawe, um sentiu inveja do outro.
De repente, o homem sorriu e acenou, e indicou a Keawe que en-
trasse e o encontrasse na porta da casa.
“Minha casa é bem bonita”, disse e suspirou com amargor. “O se-
nhor gostaria de visitar os cômodos?”
Então Keawe conheceu toda a casa, do porão ao teto, e nela não ha-
via nada que não fosse perfeito, e Keawe ficou impressionado.
“Realmente”, falou Keawe, “esta é uma casa bem bonita; se vivesse
num lugar assim, riria o dia inteiro. Por que, então, o senhor não para
de suspirar?”
“Não há motivo”, respondeu, “para que o senhor não tenha casa pa-
recida com esta em todos os aspectos, e até melhor, se desejar. Deve ter
algum dinheiro, suponho.”
“Tenho cinquenta dólares”, disse Keawe; “mas casas como esta cus-
tam mais que cinquenta dólares.”
O homem fez a conta. “É uma pena não ter mais, pois isso pode lhe
arrumar problemas no futuro; mas pode ser sua por cinquenta dólares.”
“A casa?”, perguntou Keawe.
“Não, não a casa”, afirmou o homem; “mas a garrafa. Pois, devo lhe
contar, embora lhe pareça tão rico e afortunado, toda a minha fortuna,
inclusive esta casa e o jardim, veio de uma garrafa de pouco mais de
meio litro. É isso.”
Então, abriu um local trancado a chave, e retirou de lá a garrafa de
pescoço comprido e corpo arredondado; o vidro era branco feito leite,
com as cores do arco-íris alternadas na superfície. Do lado de dentro,
algo se movia obscuramente, como sombra e fogo.
“Eis a garrafa”, disse o homem; e, quando Keawe riu, “Não acredita
em mim?”, acrescentou. “O senhor pode tentar, então. Veja se consegue
quebrá-la”.
Assim, Keawe levantou a garrafa e bateu com ela no chão até se can-
sar; mas ela pulava no chão como bola de criança, e não sofria nada.
“Que estranho”, disse Keawe. “Pois pelo toque e pela aparência, a
garrafa parecia vidro.”
“De vidro é”, respondeu o homem e suspirou mais alto que nunca;
“mas este vidro é temperado com as chamas do inferno. Um demônio
vive nela, ele é essa sombra que vemos se mover lá dentro: ou assim su-
ponho. Se qualquer um compra esta garrafa, o demônio fica sob seu co-
mando; tudo o que desejar — amor, fama, dinheiro, casas como esta, ah,
ou uma cidade como esta — tudo é seu com uma palavra proferida. Na-
poleão tinha esta garrafa e, por causa dela, se tornou o rei do mundo;
mas no fim, a vendeu, e decaiu. O capitão Cook tinha esta garrafa e, por
causa dela, encontrou o caminho para tantas ilhas; mas também a ven-
deu, e foi assassinado no Havaí. Pois, assim que é vendida, o poder e a
proteção se vão; e a não ser que alguém permaneça contente com o que
tem, o mal recairá sobre ele.”
“Ainda assim, o senhor fala em vendê-la”, disse Keawe.
“Tenho tudo o que desejo, estou idoso”, respondeu o homem. “Há
uma coisa que o demônio não consegue fazer — não consegue prolon-
gar a vida; e, não seria justo esconder isso do senhor, há a contrapartida
da garrafa; se alguém morre antes de vendê-la, haverá de queimar no in-
ferno para sempre.”
“Isso certamente é contrapartida que não deixa dúvidas”, exclamou
Keawe. “Não me meteria com isso. Posso passar sem a casa, graças a
Deus; mas há uma coisa que não saberia lidar nem um pouco, que é ser
condenado.”
“Meu caro, não deveria fugir das coisas”, afirmou o homem. “Tudo
o que deve fazer é usar o poder do demônio com moderação, e então
vendê-lo a outra pessoa, como lhe faço, e terminar a vida no conforto.”
“Bem, posso observar duas coisas”, disse Keawe. “O tempo inteiro
o senhor suspira como donzela apaixonada, eis uma delas; a outra é que
o senhor vende a garrafa por preço muito baixo.”
“Já lhe falei porque suspiro”, respondeu o homem. “É porque re-
ceio que minha saúde enfraquece; e, como dito pelo senhor, morrer e ir
para o demônio é problema para qualquer um. Quanto a vender tão ba-
rato, devo explicar que há uma peculiaridade a respeito da garrafa. Há
muito tempo, logo quando o demônio a trouxe para a terra, era extre-
mamente cara, e primeiro foi vendida ao preste João[1] por muitos mi-
lhões de dólares; mas não poderá ser vendida sem que haja algum preju-
ízo. Caso alguém a venda pelo preço que pagou, retorna até ele como
pombo-correio. Daí que o preço sempre diminuiu com o passar dos sé-
culos, e a garrafa agora está notavelmente barata. Eu mesmo a comprei
de um de meus grandes vizinhos nesta montanha, e o preço que paguei
foi apenas noventa dólares. Eu poderia vendê-la por até oitenta e nove
dólares e noventa e nove centavos, mas nenhum a menos, ou a coisa re-
torna para mim. Agora, há dois percalços quanto a isso. Primeiro, quan-
do oferta uma garrafa tão singular por oitenta dólares, as pessoas
supõem que esteja de brincadeira. E segundo — mas não há pressa
quanto a isso — e nem preciso entrar em detalhes. Lembre-se apenas
que deve ser vendida por dinheiro cunhado.”
“Como poderei saber se tudo isso é verdade?”, perguntou Keawe.
“Algumas coisas o senhor poderá testar agora mesmo”, respondeu.
“Dê-me os cinquenta dólares, pegue a garrafa, e deseje os cinquenta dó-
lares de volta em seu bolso. Caso isso não aconteça, juro por minha
honra que cancelarei a barganha e devolverei o dinheiro.”
“Não está me enganando?”, perguntou Keawe.
O homem se curvou com muita reverência.
“Bem, arriscarei até esse ponto”, disse Keawe, “porque isso não po-
de causar mal.” Então, pagou o dinheiro ao homem, e o homem lhe
passou a garrafa.
“Demônio da garrafa”, disse Keawe, “desejo os meus cinquenta dó-
lares de volta.” Mal falou, e teve certeza de que o bolso pesava como
antes.
“Certamente é uma garrafa maravilhosa”, disse Keawe.
“Agora, bom dia para você, bom camarada, e que o demônio o
acompanhe por mim!”, disse o homem.
“Espera um pouco”, disse Keawe, “Não desejo mais essa diversão.
Aqui, tome a garrafa de volta.”
“O senhor a comprou por menos do que paguei”, respondeu o ho-
mem, e esfregou as mãos. “Agora é sua; e, de minha parte, só quero ver
as suas costas.” E, com isso, chamou o criado chinês, e mostrou a saída
da casa a Keawe.
Assim, quando Keawe foi para a rua com a garrafa sob o braço, pen-
sou. “Se tudo é verdade a respeito desta garrafa, talvez tenha saído per-
dendo com a troca. Mas, talvez, o homem esteja apenas brincando co-
migo.” A primeira coisa que fez foi contar o dinheiro; a soma estava
exata — quarenta e nove dólares em dinheiro americano e uma moeda
chilena. “Parece ser verdade”, disse Keawe. “Agora, tentarei outra coi-
sa.”
As ruas naquela parte da cidade eram limpas como deque de navio e,
apesar de ser meio-dia, não havia nenhum transeunte. Keawe pôs a gar-
rafa na sarjeta e saiu. Olhou para trás duas vezes, e lá estava a leitosa
garrafa de corpo arredondado onde a deixou. Na terceira vez, olhou pa-
ra trás e dobrou a esquina; porém, mal fizera isso, quando algo bateu no
ombro, e eis que lá estava o gargalo comprido para cima, e o corpo arre-
dondado enfiado no bolso de seu casaco de marinheiro.
“Parece que é verdade”, disse Keawe.
A próxima atitude foi comprar um saca-rolhas na loja e se isolar em
lugar afastado. E lá tentou retirar a rolha, porém, por mais que enfiasse
o parafuso, ele saía novamente, e a rolha permanecia intacta.
“Este é um novo tipo de rolha”, disse Keawe e tremeu e suou, pois
tinha medo daquela garrafa.
Em seu retorno à área do porto, viu a loja que vendia conchas e bas-
tões das ilhas selvagens, antigas deidades pagãs, moedas antigas, ima-
gens da China e do Japão, toda sorte de objetos que os marinheiros tra-
ziam de baús de viagem. E ali teve uma ideia. Então entrou e tentou
vender a garrafa por cem dólares. O homem da loja primeiramente riu
dele, e lhe ofereceu cinco; mas, de fato, era garrafa curiosa — aquele vi-
dro não poderia ter sido forjado em vidraria humana, as cores reluziam
com muita beleza sob o branco leitoso, e a sombra pairava no meio de
modo muito estranho; assim, após discutirem por um tempo que espé-
cie de garrafa era aquela, o lojista deu a Keawe sessenta dólares de prata
pelo negócio, e a colocou na estante no meio da janela.
“Agora”, disse Keawe, “vendi por sessenta o que comprei por cin-
quenta — ou, para dizer a verdade, por um pouco menos, já que um de
meus dólares era do Chile. Agora haverei de saber a verdade a respeito
da outra questão.”
Então, subiu a bordo do navio novamente e quando abriu o baú lá
estava a garrafa, que conseguiu chegar antes que ele. Keawe tinha um
amigo a bordo de nome Lopaka.
“O que incomoda você?”, disse Lopaka, “por que fica olhando para
o baú?”
Estavam sozinhos no castelo de proa do navio, então Keawe lhe pe-
diu segredo, e contou tudo.
“É uma história muito estranha”, disse Lopaka; “e temo que arrume
problemas por causa dessa garrafa. Mas há um ponto muito claro —
que você sabe do problema, então, é melhor desfrutar do lucro na bar-
ganha. Decida o que deseja com isso; faça o pedido, e caso seja realizado
conforme desejou, eu mesmo comprarei a garrafa, pois tenho a intenção
de adquirir uma escuna e fazer comércio nas ilhas.”
“Não é a minha intenção”, disse Keawe; “em vez disso, desejo uma
bela casa e um jardim em Kona Coast, onde nasci, com o sol brilhante
na porta, flores no jardim, vidro nas janelas, pinturas nas paredes, e
brinquedos e tapetes finos nas mesas, exatamente como a casa em que
estive hoje — porém, com um andar a mais, e com varandas iguais ao
palácio do rei; e viver lá, sem preocupações, e ser feliz com meus amigos
e parentes.”
“Bem”, disse Lopaka, “devemos levá-la conosco até o Havaí; e se
tudo acontecer como pensa, comprarei a garrafa, já disse, e pedirei a es-
cuna.”
Acordaram isso, e não tardou até o navio retornar a Honolulu, com
Keawe e Lopaka e a garrafa. Mal pisaram na enseada, encontraram um
amigo na praia, que consolou Keawe de repente.
“Não sei por que preciso ser consolado”, estranhou Keawe.
“Será possível que não soube”, falou o amigo, “que o seu tio —
aquele velho generoso — está morto, e o seu primo — aquele belo ra-
paz — se afogou no mar?”
Keawe ficou pesaroso, chorou e se lamentou, e esqueceu da garrafa.
Mas Lopaka refletia, e em seguida, quando a aflição de Keawe se ameni-
zou um pouco, “estive pensado”, disse. “O seu tio não tinha terras no
Havaí, no distrito de Kaü?”
“Não”, disse Keawe, “não em Kaü: são do lado da montanha — um
pouco ao sul de Hookena.”
“Essas terras agora serão suas?”, perguntou Lopaka.
“Agora serão”, respondeu Keawe, e recomeçou a lamentar seus pa-
rentes.
“Não”, disse Lopaka, “não lamente neste momento. Tenho algo em
mente. E se isso foi causado pela garrafa? Pois aí está um lugar pronto
para a sua casa.”
“Se for isso”, exclamou Keawe, “matar meus parentes é maneira
muito ruim de me servir. Mas, de fato, pode ser verdade; pois foi num
lugar como esse que imaginei a minha casa.”
“A casa, no entanto, ainda não foi construída”, falou Lopaka.
“Não, nem deve ser”, disse Keawe, “pois apesar de meu tio ter café
e goiaba e banana, isso me permitirá apenas viver em conforto; e o resto
daquela terra é lava negra.”
“Vamos ao advogado”, disse Lopaka; “tenho outra ideia.”
Agora, quando chegaram na casa do advogado, parecia que o tio de
Keawe ficara extremamente rico nos últimos dias, e havia fundo mone-
tário.
“Eis então o dinheiro para a casa!”, gritou Lopaka.
“Se pensa em casa nova”, disse o advogado, “aqui tenho o cartão de
um novo arquiteto, de quem me contam coisas grandiosas.”
“Cada vez melhor!”, gritou Lopaka. “Aqui, tudo se esclarece. Deve-
mos obedecer às ordens.”
Então, foram ao arquiteto, e ele tinha desenhos de casas na mesa.
“O senhor quer algo diferente”, disse o arquiteto. “O que acha dis-
to?”, e entregou um desenho a Keawe.
Quando Keawe pôs os olhos nele, gritou alto, pois era exatamente a
imagem que visualizara.
“Ficarei com a casa”, pensou. “Por mais que não goste do modo co-
mo a adquiri, ficarei com ela agora, e também poderei unir o bem com o
mal.”
Então, explicou ao arquiteto tudo o que desejava, como gostaria que
a casa fosse mobiliada, e as pinturas da parede e os adereços das mesas; e
perguntou abertamente quanto cobraria para fazer tudo.
O arquiteto fez muitas perguntas, pegou a pena e calculou; quando
acabou, mostrou a mesma soma que Keawe havia herdado.
Lopaka e Keawe olharam um para o outro e acenaram.
“Está muito claro”, pensou Keawe, “que terei esta casa, ou não. Ela
vem do demônio, e temo que não conseguirei muitas coisas boas com
isso; mas de uma coisa estou certo, não farei mais pedidos enquanto
possuir esta garrafa. Mas com a casa está selado, e posso também apro-
veitar o bem com o mal.”
Então, combinou com o arquiteto e assinaram contrato; e Keawe e
Lopaka embarcaram novamente e viajaram para a Austrália; haviam de-
cidido não interferir de modo algum, para que o arquiteto e o demônio
da garrafa construíssem e adornassem a casa a seu bel-prazer.
A viagem foi boa, mas durante todo o período Keawe estava com o
fôlego suspenso, pois jurou não proferir mais desejos nem receber mais
favores do demônio. O prazo havia se acabado quando voltaram. O ar-
quiteto contou que a casa estava pronta, Keawe e Lopaka passaram pelo
Hall, desceram a estrada de Kona para ver a casa, e conferir se tudo es-
tava conforme o pensamento de Keawe.
A casa ficava na lateral da montanha, visível dos navios. Acima, a
floresta seguia até as nuvens de chuva; abaixo, a lava negra dos penhas-
cos, onde os reis antigos jaziam enterrados. O jardim florescia ao redor
da casa, com flores de todos os tons; e havia o pomar de mamão num la-
do e o pomar de fruta-pão no outro, e bem na frente, na direção do mar,
um mastro de navio havia sido erguido e portava bandeira. Quanto à
casa, tinha três andares, com grandes aposentos e varandas espaçosas em
cada um deles. As janelas eram de vidro, tão luxuosas e claras como
água e brilhantes como o dia. Toda classe de mobília adornava os apo-
sentos. Nas paredes, pinturas em molduras douradas; pinturas de navi-
os, e de lutas de homens, e das mulheres mais bonitas, e de lugares sin-
gulares; em nenhum lugar do mundo havia pinturas de cores tão vibran-
tes quanto as que Keawe encontrou penduradas em casa. Quanto aos
adornos, eram extraordinariamente finos; pêndulos e caixas de música,
homenzinhos de cabeça curvada, livros cheios de ilustração, custosas ar-
mas de todos os recantos do mundo, e elegantes quebra-cabeças para
entreter um solitário. E como ninguém se importaria em viver naqueles
aposentos, só de percorrê-los e olhá-los, as varandas eram tão espaçosas
que a cidade inteira poderia viver nelas com deleite; e Keawe não sabia
o que preferir, se a sacada dos fundos, onde havia a brisa terrestre e se
via os pomares e as flores, ou a varanda da frente, onde era possível sor-
ver o vento marítimo e observar o íngreme paredão da montanha e
olhar o Hall passar cerca de uma vez por semana entre Hookena e as
colinas de Pele, ou as escunas percorrerem a costa por madeira e kava e
bananas.
Depois de verem tudo, Keawe e Lopaka se sentaram na sacada.
“Bem”, disse Lopaka, “é do jeito que imaginou?”
“As palavras não servem para descrever”, respondeu Keawe. “É me-
lhor do que sonhei, e estou zonzo de satisfação.”
“Há apenas uma coisa a pensar”, disse Lopaka; “tudo isso pode ser
natural, e o demônio da garrafa não ter qualquer coisa a ver. Se com-
prasse a garrafa e, no final das contas, não conseguisse a escuna, teria
colocado a mão no fogo por nada. Dei-lhe a minha palavra, sei disso;
mas ainda assim creio que não se ressentiria em me dar mais uma pro-
va.”
“Jurei que não pediria mais favores”, falou Keawe. “Já fui longe de-
mais.”
“Não é em favores que penso”, respondeu Lopaka. “É apenas para
ver o próprio demônio. Não há nada a se ganhar com isso, então não há
nada do que se envergonhar; e ainda assim, se o visse uma vez, confir-
maria tudo. Então, me ceda até aí, e me permita ver o demônio; e, após
isso, aqui está, em minha mão, o dinheiro para comprá-la.”
“Há apenas uma coisa que temo”, falou Keawe. “O demônio pode
ser visão horrível; depois que o ver, pode perder o desejo pela garrafa.”
“Sou homem de palavra”, confirmou Lopaka. “E aqui está o dinhei-
ro.”
“Muito bem”, respondeu Keawe. “Também tenho essa curiosidade.
Então venha, deixe-nos dar uma olhada em você, sr. Demônio.”
Tão logo isso foi dito, o demônio saiu da garrafa e retornou para
dentro, rápido como lagarto; Keawe e Lopaka ficaram duros como pe-
dra. A noite chegou antes que qualquer um dos dois pensasse algo ou
tivesse voz para mencioná-lo; então, Lopaka empurrou o dinheiro e pe-
gou a garrafa.
“Sou homem de palavra”, disse, “e tinha que ser assim, ou não toca-
ria nesta garrafa nem com o pé. Bem, haverei de conseguir a minha es-
cuna e uns dois dólares no bolso; e então me livrarei deste demônio o
mais rápido possível. Porque, para dizer a verdade crua, o olhar dele me
entristeceu.”
“Lopaka”, falou Keawe, “tente ao máximo não pensar mal de mim;
sei que é noite, e as estradas são ruins, e a passagem pelas tumbas é lugar
horrível para se ir tão tarde, mas declaro que desde que vi aquele rosti-
nho, não consigo comer ou dormir ou rezar até que fique longe de mim.
Eu lhe darei lanterna e cesto para guardar a garrafa, e qualquer pintura
ou objeto agradável da minha casa; mas vá embora de vez, e durma em
Hookena com Nahinu.”
“Keawe”, disse Lopaka, “muitos homens pensariam mal disso; so-
bretudo quando lhe faço oferta tão amigável, como manter a palavra e
comprar a garrafa; e quanto a isso, a noite e a escuridão, e o caminho
pelas tumbas, devem ser dez vezes mais perigosos a um homem que tal
pecado em sua consciência, e tal garrafa sob o seu braço. Mas, de minha
parte, eu mesmo estou extremamente assustado, e não tenho coragem
de culpá-lo. Então, me vou; rogo a Deus para que seja feliz em sua casa,
e que eu dê sorte com a escuna, e ambos cheguemos ao paraíso apesar
do demônio e da garrafa.”
Então, Lopaka desceu a montanha; e Keawe ficou na varanda da
frente, e escutou o tilintar das ferraduras do cavalo, e observou a lanter-
na brilhar caminho abaixo, e ao longo do penhasco de cavernas onde os
mortos antigos estavam enterrados; e, por todo o tempo, tremeu e fe-
chou as mãos com força, e rezou por seu amigo, e deu glória a Deus por
ele mesmo ter escapado do problema.
Mas o dia seguinte começou resplandecente, e a nova casa era tão
agradável que se esqueceu dos terrores. Um dia se seguiu ao outro, e
Keawe morava ali em alegria perpétua. Tinha seu lugar na sacada dos
fundos; ali comia e vivia, lia as matérias nos jornais de Honolulu; e, de
vez em quando, alguém passava, entrava e olhava os aposentos e as pin-
turas. E a fama da casa se espalhou para longe; era chamada Ka-Hale
Nui — a Grande Casa — em toda Kona; e, às vezes, a Casa Brilhante,
pois Keawe mantinha um chinês para lustrar e tirar pó o dia todo; e o
vidro, e o ouro, e os objetos finos, e as pinturas, tudo brilhava com a
resplandecência da manhã. Quanto ao próprio Keawe, não conseguia
andar pelos aposentos sem cantar, tão grande estava o coração; e quan-
do os navios passavam pelo mar, subia as suas cores no mastro.
Então o tempo passou, até que um dia Keawe foi até Kailua visitar
certo amigo. Ali festejou bastante; e partiu assim que pôde na manhã se-
guinte, cavalgou com esforço, pois estava impaciente para voltar à sua
bela casa; e, além disso, a noite que começava era a noite na qual os
mortos dos velhos dias saem na região de Kona; e por já ter se imiscuí-
do com o demônio, tinha muita prudência para não se deparar com os
mortos. Um pouco depois de Honaunau, olhou ao longe em frente,
percebeu uma mulher se banhar na beira do mar; parecia garota cresci-
da, e não pensou mais nisso. Então, viu seu vestido branco flutuar
quando o vestia, e o holoku vermelho; e, na hora que se aproximou, já
vestida, saíra do mar, e estava diante da trilha no holoku vermelho, e
sentia-se refrescada com o banho, e seus olhos brilharam e eram gentis.
Keawe a contemplou e puxou as rédeas.
“Pensei que conhecia todos neste lugar”, disse. “Como é possível
que não a conheça?”
“Sou Kokua, filha de Kiano”, respondeu a garota, “e acabei de re-
tornar de Oahu. Quem é o senhor?”
“Logo lhe direi”, falou Keawe, e apeou do cavalo, “mas não agora.
Pois pensei aqui, e se soubesse quem sou, pode ter ouvido falar de mim,
e não me daria uma resposta honesta. Mas conte-me, antes de tudo, uma
coisa: é casada?”
E Kokua riu alto com isso. “É o senhor quem faz as perguntas”, dis-
se. “Mas e o senhor, é casado?”
“Na verdade, Kokua, não sou”, respondeu Keawe, “e jamais havia
pensado nisso até este momento. Mas eis a verdade nua. Eu a encontrei
aqui na beira da estrada, e vi os seus olhos, que são como estrelas, e meu
coração se acelerou como pássaro por sua causa. Então agora, se não
quiser nada comigo, diga, e irei ao meu lugar; mas se não me acha pior
que qualquer outro jovem, diga, também, e esta noite mudarei minha
rota para a casa de seu pai, e amanhã falaremos com o bom homem.”
Kokua não disse palavra, mas olhava para o mar e sorria.
“Kokua”, insistiu Keawe, “caso não diga nada, entenderei como res-
posta favorável; então andemos até a porta de seu pai.”
Ela foi na frente, ainda sem falar; e às vezes olhava para trás e espia-
va novamente, e mantinha os fios do chapéu na boca.
Assim, quando chegaram a porta, Kiano saiu da varanda, e gritou e
cumprimentou Keawe pelo nome. E com isso a garota o examinou, pois
a fama do casarão havia chegado aos seus ouvidos; e, para falar a verda-
de, era grande tentação. Tiveram noite bem divertida; e a garota era fir-
me como bronze sob os olhos dos pais, e gracejou com Keawe, pois ti-
nha o pensamento rápido. No dia seguinte, ele conversou com Kiano, e
encontrou a garota sozinha.
“Kokua”, disse, “gracejou comigo a noite inteira, e ainda há tempo
para me ordenar que me vá. Não lhe contei quem era, pois tenho casa
muito elegante, e temi que tivesse em alta conta a casa e em baixa o ho-
mem que a ama. Agora, que sabe de tudo, se não quiser me ver mais, me
diga de uma vez.”
“Não”, falou Kokua; mas dessa vez não riu, nem Keawe pediu mais
nada.
Esse foi o cortejo de Keawe; as coisas aconteceram velozmente; mas
assim como a flecha vai, a bala de rifle vai mais rápido, e ambos podem
atingir o alvo. As coisas aconteceram rapidamente, mas também foram
longe, e o pensamento de Keawe alcançou a cabeça da donzela; ela escu-
tou a sua voz na quebra da rebentação na lava, e por esse jovem que não
vira mais que duas vezes, deixaria pai e mãe e a ilha nativa. Quanto ao
próprio Keawe, seu cavalo disparou na trilha nas montanhas sob o pe-
nhasco das tumbas, e o som dos cascos, e o som de Keawe cantando de
prazer para si mesmo, ecoou nas cavernas dos mortos. Chegou na Casa
Brilhante, e ainda cantava. Ele se sentou e comeu na sacada espaçosa, e
o chinês perguntou ao amo como conseguia cantar de boca cheia. O sol
desceu no mar, e a noite chegou; e Keawe andava pelas sacadas com a
luz do lampião, no alto das montanhas, e a voz da cantoria chamava a
atenção dos homens nos navios.
“Agora estou no ponto mais alto”, disse a si mesmo. “A vida não
pode melhorar; este é o topo da montanha; e todas as estantes a minha
volta antecipam o pior. Pela primeira vez acenderei todos os aposentos,
e me banharei no luxuoso banheiro com água quente e fria, e dormirei
sozinho na cama do quarto nupcial.”
Assim o chinês ouviu, e teve de se levantar do sono e acender as for-
nalhas; enquanto labutava lá embaixo, ao lado das caldeiras, escutou o
amo cantar e encher de alegria os aposentos iluminados. Quando a água
esquentou o chinês gritou para o amo, e Keawe entrou no banheiro; e o
chinês o ouviu cantar ao ocupar a bacia de mármore; e o ouviu cantar, e
a cantoria continuava enquanto se despia; até que cessou de repente. O
chinês escutava e escutava; e gritou acima perguntando para Keawe se
tudo estava bem, e Keawe lhe respondeu “Sim”, e lhe ordenou que fos-
se para a cama, mas não houve mais cantoria na Casa Brilhante; e por
toda a noite, o chinês ouviu os pés do amo darem voltas e mais voltas
nas varandas sem repouso.
Eis a verdade: ao se despir para o banho, Keawe entreviu na pele
mancha como mancha de líquen na rocha, e foi então que parou de can-
tar. Pois conhecia aquela mancha, e sabia que era vítima do Mal Chinês.
[2]
Então, é bem triste para qualquer homem adoecer. E seria triste para
qualquer um deixar casa tão bonita e confortável, e abandonar todos os
amigos e partir para a costa norte de Molokai, entre o penhasco profun-
do e os quebra-mares. Mas no caso do homem Keawe, que conhecera
apenas um dia antes o amor de sua vida, e a conquistara apenas naquela
manhã, e agora via todas as expectativas se estilhaçarem, num momento,
como vidro?
Assim, estava sentado na beira da tina; saltou, gritou e correu para
fora; de um lado para o outro, de um lado para o outro, ao longo da va-
randa, como alguém desesperado.
“De bom grado poderia abandonar o Havaí, terra de meus pais”,
Keawe pensava. “Com muita calma poderia abandonar a casa, localiza-
da no alto, com muitas janelas, aqui nas montanhas. Com muita cora-
gem poderia ir para Molokai, para os penhascos de Kalaupapa, viver
com os aflitos e dormir lá, longe dos pais. Porém, que mal cometi, que
pecado habita a minha alma, para encontrar Kokua se refrescando na
água do mar a tardinha? Kokua, a enredadora de almas! Kokua, a luz de
minha vida! Com ela jamais me casarei, para ela não poderei mais olhar,
não mais tocarei com minha mão amorosa; e é por isso, é por você, ó,
Kokua!, que despejo os meus lamentos!”
E é preciso observar que espécie de homem era Keawe, pois poderia
ter morado na Casa Brilhante por anos, e ninguém descobriria sua do-
ença; no entanto, não aceitaria isso ao custo de Kokua. Poderia ter se
casado com Kokua mesmo em sua situação; e assim muitos teriam agi-
do, pois têm almas de porcos; mas Keawe amava a donzela bravamente,
e não lhe machucaria ou lhe traria perigo.
Pouco depois do meio da noite, veio-lhe a recordação da garrafa.
Deu a volta para a sacada dos fundos, e relembrou do dia em que o de-
mônio o observou; e com o pensamento, o gelo percorreu as suas veias.
“Pavorosa é a garrafa”, pensou Keawe, “e pavoroso é o diabo, e pa-
voroso é se arriscar às chamas do inferno. Mas que outra chance tenho
de cura da doença ou de me casar com Kokua? Qual?”, pensou, “en-
frentei o diabo uma vez, apenas para ganhar a casa, mas não o encararia
novamente para conseguir Kokua?”
Em seguida, se lembrou que era no dia seguinte que Hall passaria de
retorno a Honolulu. “Devo ir para lá antes”, pensou, “e ver Lopaka.
Pois a melhor chance que tenho é encontrar essa garrafa da qual fui
muito grato por me livrar.”
Não conseguia sequer fechar os olhos; a comida entalava na gargan-
ta; mas mandou carta a Kiano, em que perguntou o horário em que o
vapor chegaria e passaria ao lado do penhasco das tumbas. Chovia; o
cavalo seguia com dificuldade; olhou para as bocas escuras das cavernas
acima, e invejou os mortos que moravam ali e não tinham mais proble-
mas; e relembrou como havia galopado no dia anterior, e ficou espanta-
do. Então, desceu até Hookena, e ali estavam todas as pessoas do local
reunidas por causa do barco, como era o hábito. No barraco em frente à
loja, se sentavam e contavam piadas e espalhavam as notícias; mas Ke-
awe não tinha nada para falar, então sentou-se em meio a eles e olhou a
chuva cair sobre as casas lá fora, e as vagas chocarem-se contra as ro-
chas, e os suspiros que subiam pela garganta.
“Keawe da Casa Brilhante está sem ânimo”, dizia um ao outro. E de
fato estava, e um pouco pensativo.
Então, Hall chegou, e o baleeiro o levou a bordo. A parte dianteira
da embarcação estava cheio de haoles que visitaram o vulcão, como é de
costume; e o meio estava abarrotado de kanakas, e a parte traseira com
touros selvagens de Hilo e cavalos de Kaü; mas Keawe sentou-se sepa-
rado de todos em sua melancolia, e observou pela casa de Kiano. Ali es-
tava ela, um pouco sobre a enseada nas rochas pretas, sob a sombra dos
coqueiros, e perto da porta havia um holoku vermelho, não maior que
uma mosca, indo de um lado a outro como mosca; “Ah, rainha de meu
coração”, exclamou, “arriscarei a minha alma querida para tê-la”.
Logo depois, a escuridão caiu, e as cabines se iluminaram, e os hao-
les se sentaram, jogaram cartas e beberam uísque conforme seu costu-
me; mas Keawe caminhou pelo deque a noite inteira; e no dia seguinte,
enquanto navegavam a sotavento de Maui ou Molokai, ainda dava pas-
sos para um lado e para o outro como animal selvagem enjaulado.
À tardinha, passaram por Diamond Head, e chegaram no píer de
Honolulu. Keawe saiu por entre a multidão e perguntou por Lopaka.
Parecia que se tornara proprietário de escuna — a melhor das ilhas — e
saíra em aventura distante para Pola-Pola ou Kahiki; assim não podia
esperar nenhuma ajuda de Lopaka. Keawe se lembrou de amigo seu, ad-
vogado na cidade (não devo falar o nome), e perguntou por ele. Disse-
ram que enriqueceu de repente, e tinha casa nova e bonita na praia de
Waikiki; e isso deu uma ideia a Keawe, alugou um coche e conduziu até
a casa do advogado.
A casa era nova em folha, e as árvores no jardim não eram maiores
que cajados, e o advogado, ao chegar, aparentava estar muito contente.
“O que posso fazer para servi-lo?”, disse o advogado.
“O senhor é amigo de Lopaka”, respondeu Keawe, “e Lopaka com-
prou de mim certo bem. Penso que o senhor poderia me ajudar a ras-
treá-lo.”
O rosto do advogado ficou muito sombrio. “Não declaro entendê-
lo mal, sr. Keawe”, falou, “apesar de este ser assunto arriscado para se
cutucar. Pode estar certo de que nada sei, mas ainda assim suspeito, e se
procurar em certo local, creio que descobrirá algo.”
E deu o nome de um homem, que, mais uma vez, faço melhor em
não repetir. E assim foi por dias, e Keawe passou de um a outro, encon-
trava em todos os lugares novas roupas e carruagens, e belas casas no-
vas, e em todos os lugares homens em grande contentamento, embora,
na verdade, quando mencionava seu negócio, os rostos se ensombreci-
am.
“Sem dúvida, estou no rastro”, pensou Keawe. “Todas as roupas e
carruagens novas são presentes do diabrete, e os rostos alegres são ros-
tos de quem ganhou os presentes e se livrou do objeto maldito em segu-
rança. Quando vir bochechas pálidas ou ouvir suspiros, saberei que es-
tou perto da garrafa.”
Então, finalmente sucedeu de ser recomendado ao haole na Berita-
nia Street. Quando chegou à porta, perto da hora da refeição noturna,
havia as marcas usuais da casa nova, e o jovem jardim, e a luz elétrica
nas janelas; mas quando o dono apareceu, um choque de medo e espe-
rança perpassou Keawe; pois ali estava um jovem, pálido como cadáver,
preto em volta dos olhos, o cabelo derramado da cabeça, e aquele sem-
blante que um homem tem quando espera as galés.
“Está aqui, com certeza”, pensou Keawe, e assim, com esse homem,
falou diretamente porque estava lá. “Vim comprar a garrafa”, disse.
Com a frase, o jovem haole da Beritania Street titubeou contra a pa-
rede.
“A garrafa!”, gaguejou. “Comprar a garrafa!” Então pareceu engas-
gar, e segurou o braço de Keawe, o levou a uma sala e serviu vinho em
duas taças.
“Presto meus respeitos” disse Keawe, que àquela altura havia passa-
do tempo depois com haoles. “Sim”, prosseguiu, “vim comprar a garra-
fa. Qual o preço agora?”
Com essa fala o jovem deixou a garrafa escorregar de seus dedos, e
olhou para Keawe como fantasma.
“O preço”, falou; “o preço! Então não sabe o preço?”
“É por isso que pergunto”, afirmou Keawe. “Mas por que está tão
preocupado? Há algo de errado com o preço?”
“Ela perdeu bastante valor desde o seu tempo, sr. Keawe”, gaguejou
o jovem.
“Bem, bem, então haverei de pagar menos por isso”, disse Keawe.
“Quanto lhe custou?”
O homem ficou branco como folha de papel. “Dois centavos”, dis-
se.
“O quê?”, exclamou Keawe, “dois centavos? Ora, então o senhor só
pode vender por um. E aquele que comprar…” As palavras morreram
na língua de Keawe; aquele que a comprou jamais haveria de revendê-la,
a garrafa e o diabo da garrafa devem ficar com ele até a morte, quando
morresse haveria de ser levado ao final escarlate do inferno.
O jovem de Beritania Street caiu de joelhos. “Pelo amor de Deus,
compre ela!”, berrou. “Pode ficar com toda a minha fortuna em troca.
Estava louco quando a comprei por esse preço. Havia desviado dinheiro
da loja; estaria perdido de outro modo; teria ido preso.”
“Pobre criatura”, disse Keawe, “arriscou a alma por aventura assim
desesperada, e para evitar a punição adequada à própria desgraça; e pen-
sa que hesitaria com o amor em minha frente. Entregue-me a garrafa, e
o troco que certamente já tem. Aqui está uma moeda de cinco centa-
vos.”
Foi como Keawe supunha; o jovem já estava com o troco pronto na
gaveta; e a garrafa trocou de mãos, e mal os dedos de Keawe se fecha-
ram no gargalo já havia assoprado o desejo de ser homem são. E, com
certeza, quando entrou no quarto em casa, e se despiu diante do espe-
lho, a pele estava íntegra como a de criança. E aqui aconteceu uma coisa
estranha: mal vira o milagre, seus pensamentos mudaram, e não se preo-
cupava nem um pouco com o Mal Chinês, e igualmente com Kokua;
não tinha mais que um pensamento, que estava preso ao demônio pela
vida e eternidade, e não tinha outra esperança além de incinerar para
sempre nas chamas do inferno. Bem à sua frente, as visualizou reluzir, e
sua alma encolheu, e a escuridão soterrou a luz.
Quando Keawe voltou a si um pouco, se deu conta de que era noite
quando a banda tocou no hotel. Foi até lá, porque temia ficar sozinho; e
ali, entre rostos felizes, caminhou de um lado a outro, e escutou as no-
tas aumentarem e diminuírem, e viu Berger tocar no ritmo, e enquanto
isso as chamas crepitavam, e viu o fogo escarlate queimar num poço
sem fundo. De repente, a banda tocou Hiki-ao-ao; era a canção que
cantara com Kokua, e com a tensão a coragem voltou a ele.
“Agora está feito”, pensou, “e mais uma vez preciso me safar do
mal.”
Então aconteceu de retornar ao Havaí na primeira embarcação, e ar-
ranjar de se casar com Kokua o mais rápido possível, e levá-la para a
Casa Brilhante na lateral da montanha.
Agora era assim com os dois, quando estavam juntos; o coração de
Keawe estava aliviado; porém, mal ficava sozinho se afundava em hor-
ror meditativo, e ouvia as chamas crepitarem, e via o fogo escarlate
queimar no poço sem fundo. A garota, na verdade, se entregara comple-
tamente a ele; seu coração palpitava com a mera visão dele, a mão se
prendia à dele; e andava tão embelezada do cabelo às unhas do pé que
ninguém poderia vê-la sem alegria. Tinha natureza agradável, sempre
dizia a coisa certa. Era cheia de música, e andava de um lado a outro na
Casa Brilhante, a coisa mais brilhante nos três andares, cantarolando
como os pássaros. Ele a observava e a escutava com deleite, e então se
encolhia, e choramingava e lamentava ao pensar no preço que pagara
por ela; e então secava os olhos, e lavava o rosto, e ia lá se sentar com ela
nas espaçosas varandas, se juntava a ela nas canções, e, com espírito do-
ente, correspondia aos seus sorrisos.
Chegou um dia em que os pés dela começaram a pesar e as canções a
rarear; e agora não era apenas Keawe que chorava escondido, mas am-
bos se separavam um do outro e se sentavam em varandas opostas com
toda a amplitude da casa entre eles. Keawe estava tão mergulhado no
desespero que mal percebeu a mudança, e ficava contente apenas quan-
do tinha mais horas para se sentar sozinho e meditar a respeito de seu
destino, e não era tão frequentemente condenado a forçar o sorriso com
o coração doente. Mas um dia, atravessava a casa com suavidade, ouviu
o barulho de criança prantear, e ali estava Kokua rolando o rosto no
chão da varanda, chorava como os perdidos.
“Faz bem em chorar nesta casa, Kokua”, disse. “E, ainda assim, tira-
ria a cabeça do corpo para que (ao menos) você pudesse ser feliz.”
“Feliz!”, gritou. “Keawe, quando vivia sozinho na Casa Brilhante,
todos na ilha diziam que era feliz; que o riso e a música estavam em sua
boca, e que seu rosto brilhava como a aurora. Então se casou com a po-
bre Kokua; e o bom Deus sabe o que falta nela — mas desde esse dia
você não sorriu. Oh!”, gritou, “o que me aflige? Pensei que era bonita, e
sabia que o amava. O que me aflige, para que lance essa sombra sobre o
meu marido?”
“Pobre Kokua”, disse Keawe. Se sentou ao lado dela, e buscou segu-
rar a sua mão; mas ela a retirou. “Pobre Kokua”, disse novamente. “Mi-
nha pobre garota — minha linda. E pensei que a poupava todo esse
tempo! Bem, haverá de saber de tudo. Então, ao menos, terá piedade do
pobre Keawe; entenderá o quanto ele a amou no passado — que desafi-
ou o inferno para ficar com ela — e como ainda a ama (o pobre conde-
nado), que ainda pode sorrir quando a observa.”
Com isso, contou-lhe tudo, desde o começo.
“Fez tudo isso por mim?”, exclamou. “Ah, bem, então por que me
preocupar com isso?” E o agarrou e chorou sobre ele.
“Ah, criança!”, disse Keawe, “mesmo quando penso no fogo do in-
ferno, sei que fiz bom negócio!”
“Não me fale isso”, retrucou; “homem nenhum pode se perder por
ter amado Kokua, sem nenhuma outra falta. Falo para você, Keawe, ou
haverei de salvá-lo com estas mãos, ou perecerei em sua companhia. O
quê! Você me amou e me deu a sua alma, e acha que não morrerei para
salvá-lo em troca?”
“Ah, minha querida, você poderá morrer cem vezes, e que diferença
faria?”, clamou, “exceto me deixar sozinho até que chegue a danação?”
“Você não sabe de nada”, falou. “Fui educada numa escola de Ho-
nolulu; não sou uma garota qualquer. E lhe digo, haverei de salvar o
meu amor. O que é isso que diz sobre um centavo? Mas nem todo o
mundo é americano. Na Inglaterra, eles têm uma moeda chamada far-
thing, que vale cerca de meio centavo. Ah! O lamento!”, exclamou, “is-
so não melhora muito, pois o comprador terá de estar perdido, e não
haveremos de encontrar um tão corajoso quanto o meu Keawe! Mas,
então, tem a França; eles têm uma moedinha que chamam de cêntimo, e
é preciso umas cinco delas para completar um centavo. Não podemos
fazer melhor. Vamos, Keawe, vamos para as ilhas francesas; vamos para
o Taiti, o mais rápido que os navios puderem nos levar, ali teremos qua-
tro cêntimos, três cêntimos, dois cêntimos, um cêntimo; o máximo de
vendas possíveis para ir e vir; e dois de nós para barganhar. Vamos, meu
Keawe! Beije-me, e pare de se preocupar. Kokua o defenderá.”
“Um presente de Deus!”, exclamou. “Não consigo pensar que Deus
me punirá por não desejar nada além do bem! Mas que seja conforme a
sua vontade; leve-me para onde quiser: ponho minha vida e salvação em
suas mãos.”
Cedo no dia seguinte, Kokua realizou os preparos. Pegou o baú de
viagem de Keawe; primeiro, colocou a garrafa no canto; depois, a en-
cheu com as roupas mais luxuosas e os adornos mais elegantes da casa.
“Pois”, disse, “devemos parecer ricos, ou quem acreditará na garrafa?”
Durante todo o preparo, estava alegre como pássaro; apenas quando
olhava para Keawe as lágrimas jorravam de seu olho, e precisava correr
e beijá-lo. Quanto a Keawe, a alma estava livre de um peso; agora que
havia compartilhado o segredo, e tinha alguma esperança diante de si,
pareceu novo homem, os pés passavam com leveza pelo chão, e a respi-
ração lhe pareceu boa novamente. Mas o terror ainda o espreitava; e
volta e meia, como o vento apaga a vela, a esperança morria nele, e via
as chamas se agitarem e o fogo vermelho queimar no inferno.
Espalhou-se pela região que iam a lazer aos Estados Unidos, o que
muitos acharam estranho, porém não tanto quanto achariam a verdade,
se a soubessem. Então, foram para Honolulu no Hall, e daí no Umatilla
para San Francisco com uma multidão de haoles, e em San Francisco
compraram passagem para o bergantim dos correios, o Tropic Bird, para
Papeete, o principal ponto dos franceses nas ilhas do sul. Chegaram lá,
após viagem agradável, num belo dia de ventos alísios, e viram as ondas
se quebrarem nos recifes, e Motuiti com suas palmeiras, e a escuna en-
trando, e as casas brancas da cidade, ao longo da costa, entre árvores
verdes, e acima as montanhas e as nuvens do Taiti, a ilha sábia.
Julgaram ser mais inteligente alugar casa, e concordaram por uma
vizinha ao consulado britânico, para ostentar a fortuna, além de eles
próprios se exibirem com carruagens e cavalos. Isso era muito fácil de
fazer, enquanto tinham posse da garrafa; pois Kokua era mais corajosa
que Keawe, e, sempre que pensava em algo, pedia ao diabo vinte ou cem
dólares. A essa altura, logo ficaram conhecidos na cidade; e os forastei-
ros do Havaí, a montaria e a condução, os belos holokus e o exuberante
laço de Kokua, tornaram-se motivo de muitas conversas.
Logo se acostumaram com o idioma taitiano, que na verdade é bem
parecido com o havaiano, com mudança em certas letras; e assim que
conseguiram falar livremente, começaram a carregar a garrafa. Imagina-
se que não era assunto fácil de trazer à tona; não era fácil persuadir as
pessoas que falavam a sério, quando lhes oferecia por quatro cêntimos a
fonte de riquezas e saúde inesgotáveis. Além disso, era necessário expli-
car os perigos da garrafa; assim, ou as pessoas não davam crédito a tudo
aquilo e gargalhavam, ou focavam na parte mais terrível, e se recolhiam
com gravidade, e se afastavam de Keawe e Kokua por negociarem com
o demônio. Longe de ganhar simpatia, os dois perceberam que eram
evitados na cidade; as crianças fugiam deles aos gritos, algo intolerável a
Kokua; os católicos persignavam-se quando passavam; e todas as pesso-
as fizeram um acordo para impedir os seus avanços.
A depressão recaiu em seus espíritos. À noite, ficavam sentados na
nova casa, após o cansaço de um dia, e não trocavam palavra, ou o silên-
cio era rompido pelas lamúrias repentinas de Kokua. Às vezes, rezavam
juntos; às vezes, colocavam a garrafa no chão, e observavam por toda a
noite como ele flutuava no meio. Nesses momentos, sentiam medo de
descansar. Demorava até que o sono chegasse, e, se um dos dois cochi-
lasse, era para depois despertar e encontrar o outro chorando silenciosa-
mente no escuro, ou, talvez, despertar sozinho, pois o outro saiu da ca-
sa e da proximidade da garrafa, para passear debaixo das bananeiras no
jardim, ou caminhar na praia ao luar.
Numa noite como essa Kokua despertou. Keawe havia saído. Pas-
sou a mão na cama e o lugar estava frio. Foi tomada pelo medo, então se
sentou na cama. Uma fresta de luar escapava pelas venezianas. O quarto
estava iluminado, e podia entrever a garrafa no chão. Lá fora brilhava,
as grandes árvores da avenida gritavam alto, e as folhas caídas farfalha-
vam na varanda. Em meio a isso, Kokua percebeu outro som; se de ani-
mal ou homem, não pode discernir, mas era triste como a morte, e fati-
ou a sua alma. Se levantou suavemente, deixou a porta entreaberta, e
olhou para o quintal iluminado pela lua. Ali, debaixo das bananeiras, es-
tava Keawe, a boca na terra, ele gemia deitado.
O primeiro pensamento de Kokua foi consolá-lo; o segundo a segu-
rou com força; Keawe nascera para a esposa como um homem corajoso;
não devia se intrometer em sua vergonha na hora da fraqueza. Com esse
pensamento, retornou para dentro da casa.
“Céus!”, pensou, “como fui descuidada — e fraca! É ele, e não eu,
que está nesse perigo eterno; foi ele, e não eu, que trouxe a maldição pa-
ra a alma. É por minha causa, e pelo amor a criatura tão pouco valorosa
e de tão pouca utilidade, que agora contempla tão perto de si as chamas
do inferno — ai, e já sente o cheiro da fumaça, ali deitado ao vento e ao
luar. E sou tão desprovida de espírito que nunca, até este momento, ha-
via constatado o que fazer, ou teria percebido antes e o deixado de lado?
Mas agora, ao menos, elevo a minha alma com ambas as mãos de meu
afeto; agora digo adeus aos degraus brancos do paraíso e as faces impa-
cientes dos amigos. Um amor por um amor, e que o meu se iguale ao de
Keawe! Uma alma por uma alma, e que seja a minha a perecer!”
Era mulher hábil com as mãos, e logo se vestiu. Pegou os trocados
— os preciosos cêntimos que sempre deixaram ao seu lado; pois essa
moeda é pouco usada, e haviam angariado algumas de um escritório do
governo. Quando saiu para a avenida, nuvens vieram com o vento e o
luar escureceu. A cidade dormia, e não sabia para onde correr até escu-
tar alguém tossir nas sombras das árvores.
“Velho senhor”, disse Kokua, “o que faz ao léu, em noite fria como
esta?”
O velho mal podia se expressar de tanto que tossia, mas ela percebeu
que era pobre e decadente, um forasteiro na ilha.
“O senhor me faria um favor?”, disse Kokua. “De um forasteiro pa-
ra outro, e de um velho para uma jovem, o senhor ajudaria uma filha do
Havaí?”
“Ah”, disse o velho. “Eis a bruxa das oito ilhas, busca enredar até
mesmo a minha alma. Mas ouvi falar da senhora, e desafio a sua perver-
sidade.”
“Sente-se aqui”, propôs Kokua, “pois desejo lhe contar uma histó-
ria.” E lhe contou a história de Keawe do começo ao fim.
“E agora”, falou, “sou a esposa que ele conseguiu ao custo da alma.
E o que deveria fazer? Se fosse diretamente até ele e me oferecesse para
comprá-la, recusaria. Mas se for o senhor, a venderá com ansiedade; es-
perarei aqui; compre-a por quatro cêntimos, e a comprarei novamente
por três. E o Senhor fortalece uma pobre garota!”
“Se estiver mentindo”, disse o velho, “creio que Deus a fulminaria.”
“Ele o faria!”, exclamou Kokua. “Certamente o faria. Não seria tão
maliciosa — Deus não sofreria esse desgosto.”
“Entregue-me os quatro cêntimos e espere aqui”, disse o velho.
Agora, quando Kokua ficou sozinha na rua, seu espírito esmoreceu.
O vento rugia nas árvores, e a ela pareceu investida das chamas do in-
ferno; as sombras criadas pela luz do poste lhe pareceram as mãos es-
tendidas dos maus. Se tivesse a força, teria corrido para longe, e se tives-
se o fôlego, teria gritado alto; mas, na verdade, não podia fazer nada dis-
so, e apenas ficou e tremeu na avenida, como criança assombrada.
Viu o velho retornar com a garrafa na mão.
“Fiz o combinado”, falou, “deixei o seu marido chorando como cri-
ança; esta noite, ele dorme bem.” Passou a garrafa para frente.
“Antes de me devolvê-la”, tartamudeou Kokua, “extraia o bem do
mal — peça para se livrar da tosse.”
“Sou um velho”, respondeu o outro, “e próximo demais do portão
do túmulo para pedir favores ao diabo. Mas o que foi? Por que não pe-
ga a garrafa? Hesita?”
“Não hesito!”, gritou Kokua. “Apenas sou fraca. Preciso de um mo-
mento. É a a mão que resiste, a carne é repelida do objeto maldito. Ape-
nas um momento!”
O velho olhou para Kokua com gentileza. “Pobre criança!”, disse,
“tem medo; sua alma lhe inspira apreensões. Bem, deixe-me ficar com
ela. Sou velho, e não posso mais ser feliz neste mundo, e quanto ao ou-
tro…”
“Entregue-me!”, gaguejou Kokua. “Aqui está o dinheiro. Acha que
sou assim tão leviana? Entregue-me a garrafa.”
“Que Deus a abençoe, criança”, disse o velho.
Kokua escondeu a garrafa debaixo do holoku, deu adeus ao velho e
seguiu pela avenida, não se importava para onde. Pois todas as estradas
lhe eram agora a mesma coisa, e levavam ao inferno do mesmo modo.
Às vezes, caminhava, e às vezes, corria; às vezes, gritava alto noite aden-
tro e, às vezes, ficava sobre a terra na beirada e chorava. Tudo o que ou-
vira sobre o inferno voltava para ela; viu as chamas arderem, sentiu o
cheiro do enxofre, e a pele secou com as brasas.
Quase na aurora, voltou a si, e retornou para a casa. Foi exatamente
como o velho dissera — Keawe dormia como criança. Kokua ficou pa-
rada e examinou o rosto. “Agora, marido”, disse, “é sua vez de dormir.
Quando acordar será sua vez de cantar e sorrir. Mas quanto à pobre
Kokua, oh, que nunca desejou mal a ninguém — para a pobre Kokua
nada de sono, nada de cantoria, nada de prazeres, seja na terra ou no
céu.”
Com isso, se deitou ao seu lado na cama, e o sofrimento foi tão ex-
tremo que instantaneamente caiu em sono profundo.
Bem tarde naquela manhã, o marido a despertou e lhe deu as boas
notícias. Parecia que estava bobo de alegria, e não deu atenção à angús-
tia dela, ainda que disfarçasse mal. As palavras se enganchavam na boca,
não importava; apenas Keawe falava. Ela não deu sequer uma mordida
na comida, mas quem haveria de observar isso? Pois Keawe lavou a lou-
ça. Kokua o via e o ouvia, como algo estranho num sonho; havia vezes
em que se esquecia ou duvidava, punha a mão na testa; saber-se conde-
nada e escutar o marido tagarelar lhe parecia monstruoso.
Por todo o tempo, Keawe comia e falava, e planejava a hora do re-
torno, e a agradecia por salvá-lo, e a afagava, e chamava de a verdadeira
ajudante no final das contas. Ria do velho que era idiota o bastante para
comprar aquela garrafa.
“Ele me pareceu um velho valoroso”, disse Keawe. “Mas ninguém
pode julgar pelas aparências. Por que o velho réprobo adquiriu a garra-
fa?”
“Marido”, disse Kokua, humildemente, “seu propósito pode ter si-
do bom.”
Keawe gargalhou como homem enfurecido.
“Baboseira!”, exclamou Keawe. “Um velho escroque, reafirmo; e
ademais um velho asno. Pois a garrafa já era bem difícil de se vender por
quatro cêntimos; e a três será praticamente impossível. A margem de di-
ferença não é ampla o suficiente, e o objeto começa a cheirar a brasa —
brr!”, disse e deu de ombros. “É verdade que eu mesmo a comprei por
um centavo, quando sabia não haver moedas menores. Estava atordoa-
do com as minhas dores; nunca mais se encontrará outro: e quem hou-
ver comprado aquela garrafa a levará para o poço.”
“Oh, marido”, disse Kokua. “Não é coisa terrível se salvar às custas
da ruína eterna de outro? Acho que não sou capaz de rir disso. Não me
animaria com isso. Seria tomada pela melancolia. Rezaria pelo pobre
proprietário.”
Então Keawe, ao sentir a verdade do que ela disse, ficou ainda mais
enfurecido. “Que bobagem!”, gritou. “Pode se sentir melancólica se
quiser, mas não é a cabeça da boa esposa. Se alguma vez pensou em
mim, deveria sentir vergonha.”
E, com isso, saiu de casa e Kokua ficou sozinha.
Que chance teria de vender a garrafa por dois cêntimos? Nenhuma,
percebia. E se tinha alguma, aqui estava o seu marido, que queria voltar
logo a um país onde não havia nada mais barato que um centavo. E aqui
— no dia seguinte ao seu sacrifício — seu marido a deixava e a culpava.
Ela sequer tentaria aproveitar o tempo que lhe restava, mas ficava
em casa, e ora tirava a garrafa e a observava com medo impronunciável,
e ora a escondia das vistas com desprezo.
Após um tempo, Keawe voltou e ouviu ela se explicar.
“Marido, estou doente”, disse. “Estou no limite. Desculpe-me, não
consigo sentir prazer.”
Então, Keawe ficou mais irado que nunca. Com ela, pois pensou
que ruminava o caso do velho; e consigo próprio, pois pensava que ela
estava certa, e sentia vergonha por estar tão feliz.
“É a sua verdade”, exclamou, “e o seu afeto! Seu marido acaba de
ser salvo da ruína eterna, que encontrou por amor a você — e não con-
segue se alegrar! Kokua, o seu coração é desleal.”
E, mais uma vez, saiu furioso, e perambulou pela cidade o dia intei-
ro. Encontrou amigos, e bebeu com eles; alugaram carruagem e foram
para o interior, e ali beberam mais. O tempo inteiro Keawe se sentia
desconfortável, pois ali passava o tempo, enquanto a esposa estava infe-
liz, e porque no íntimo sabia que estava mais certa que ele; e saber disso
o fazia beber mais ainda.
Um haole velho e grosseiro bebia em sua companhia, e já havia sido
contramestre em baleeiro, fugitivo, escavador de minas de ouro, conde-
nado a prisões. Tinha mente vil e boca imunda; amava beber e ver os
outros bêbados; toda hora passava o copo para Keawe. Em pouco tem-
po, nenhum deles tinha mais dinheiro.
“Aqui, você!”, diz o contramestre, “você é rico, sempre disse isso.
Que tem uma garrafa ou alguma bobagem dessas.”
“Sim”, diz Keawe, “sou rico; voltarei para pegar dinheiro com a mi-
nha esposa, que cuida dele.”
“É má ideia, amigo”, disse o contramestre, “Jamais confie numa
anágua com dólares. São todas falsas como água; fique de olho nela.”
Essa fala ficou na cabeça de Keawe; pois estava confuso com a bebi-
da.
“Não devia pensar isso, mas, de fato, ela foi desleal”, pensou. “Por
que outro motivo ficaria tão desanimada com a minha libertação? Mas
lhe mostrarei que ninguém pode me enganar. Eu a pegarei no flagra.”
Por conseguinte, quando estavam de volta à cidade, Keawe ordenou
ao contramestre que esperasse por ele na esquina, diante do velho cala-
bouço, e prosseguiu sozinho pela rua, até a porta de casa. A noite já ha-
via chegado mais uma vez; havia luz lá dentro, mas nenhum som; e Ke-
awe rastejou até a porta, abriu a porta suavemente, e olhou.
Ali estava Kokua no chão, o lampião ao lado; atrás dela a garrafa
branca, leitosa, com corpo arredondado e gargalo comprido; e quando
olhava para ela, Kokua retorcia as mãos.
Keawe ficou e observou pela porta por muito tempo. Primeiro, es-
tupefato; então, recaiu sobre ele o medo da barganha ter sido imprópria,
e que a garrafa houvesse voltado até ele como acontecera em San Fran-
cisco; e com isso os joelhos se enfraqueceram, e os vapores do vinho
emanaram da cabeça como as névoas de rio pela manhã. Então pensou
outra coisa; e era algo estranho, que fez as bochechas arderem.
“Preciso confirmar isso”, pensou.
Assim, fechou a porta e voltou à esquina com passos leves e, em se-
guida, entrou fazendo barulho, como se apenas agora houvesse retorna-
do. E, oh, quando abriu a porta, a garrafa podia ser vista; e Kokua se
sentou na cadeira e agiu como alguém que acabou de despertar.
“Bebi e me diverti o dia inteiro”, disse Keawe. “Estive em boas
companhias, e agora volto para pegar mais dinheiro, para recomeçar a
beber e cantar com eles.”
Tanto o rosto como a voz estavam severos como num julgamento,
mas Kokua estava perturbada demais para perceber.
“Você faz bem em desfrutar do dinheiro que é seu, marido”, falou,
mas suas palavras tremiam.
“Oh, faço muito bem”, disse Keawe, e foi direto até o baú e pegou
dinheiro. Mas olhou para o lugar onde guardavam a garrafa atrás dele, e
não havia garrafa alguma ali.
Com isso, o baú foi descido ao chão como vaga no mar, e a casa gi-
rou em sua volta como espiral de fumaça, pois via que agora estava per-
dido, e que não havia escapatória. “É o que temia”, pensou. “Está com
ela.”
Então, voltou um pouco a si e se levantou; mas o suor jorrava do
rosto, espesso como a chuva e frio como a água do poço.
“Kokua”, disse, “hoje falei sobre como estava infeliz. Agora, volto a
farrear com os meus companheiros animados”, e com isso sorriu pouco,
silenciosamente. “Peço desculpas, mas retornarei aos prazeres do co-
po.”
Ela apertou os joelhos por um momento; os beijou esguichando lá-
grimas.
“Oh”, exclamou, “queria apenas ouvir algo gentil!”
“Não pensemos mal um do outro”, disse Keawe, e então saiu de ca-
sa.
O dinheiro que Keawe pegara era apenas daquele estoque de cênti-
mos que haviam posto ali na chegada. Não tinha intenção alguma de be-
ber. Sua esposa lhe dera a alma, agora haveria de dar a sua pela dela; não
pensava em mais nada no mundo.
Na esquina, diante do velho calabouço, o contramestre esperava.
“Minha esposa está com a garrafa”, disse Keawe, “e, a não ser que
me ajude a recuperá-la, esta noite não haverá mais dinheiro nem bebi-
da.”
“Não está querendo me dizer que fala dessa garrafa com serieda-
de?”, bradou o contramestre.
“Aqui há um lampião”, disse Keawe. “Pareço estar brincando?”
“É verdade”, disse o contramestre. “Parece sério como um fantas-
ma.”
“Bem, então”, disse Keawe, “aqui estão dois cêntimos; você deverá
se dirigir até a minha esposa em casa, e oferecê-los pela garrafa, que (a
não ser que esteja enganado), lhe dará instantaneamente. Traga-a para
mim aqui, e a comprarei de volta por um; pois essa é a regra com essa
garrafa, que deve sempre ser vendida por soma menor. Mas não importa
o que faça, jamais deixe escapar qualquer palavra de que foi por minha
causa.”
“Camarada, não está tentando me fazer de imbecil?”, perguntou o
contramestre.
“Se estiver, não lhe causarei mal algum”, respondeu Keawe.
“É verdade, meu camarada”, disse o contramestre.
“E se duvida de mim”, completou Keawe, “é só fazer o teste. Assim
que ficar longe da casa, deseje encher o bolso de dinheiro, ou garrafa do
melhor rum, ou o que quiser, e verá a virtude do objeto.”
“Muito bem, kanaka”, disse o contramestre. “Tentarei; mas se esti-
ver de troça comigo, farei troça de você com cavilha de navio.”
Então, o contramestre subiu a avenida; e Keawe ficou e esperou. Es-
tava perto do mesmo local onde Kokua havia esperado uma noite antes;
mas Keawe estava mais resoluto, e não hesitou em seu propósito; ape-
nas a alma estava amarga de desespero.
Pareceu esperar por tempo demais até escutar a voz cantante se
aproximar na escuridão da avenida. Conheceu a voz do contramestre;
mas era estranho como soava bêbada de repente.
Em seguida, o próprio homem surgiu tropeçando sob a luz do lam-
pião. Estava com a garrafa do diabo abotoada no casaco; outra garrafa
na mão; e ao se aproximar, a erguia a até a boca e bebia.
“Posso ver”, disse Keawe, “que está com você.”
“Tire a mão!”, gritou o contramestre e saltou para trás. “Encoste em
mim, e esbagaço a sua boca. Pensou que podia me engabelar, não foi?”
“Do que está falando?”, perguntou Keawe.
“Falando?”, gritou o contramestre. “Esta garrafa é muito boa, ela é;
é disso que estou falando. Como é que comprei ela por dois cêntimos,
não tenho a mínima ideia; mas tenho certeza que não a comprará por
um.”
“Quer dizer que não pretende vendê-la?”, indagou Keawe.
“Não, senhor!”, vociferou o contramestre. “Mas posso lhe oferecer
um gole no rum, se quiser.”
“Estou avisando”, disse Keawe, “o homem que possui essa garrafa
vai para o inferno.”
“Eu sei que vou de um jeito ou de outro”, respondeu o marinheiro;
“e esta garrafa é a melhor coisa que já me aconteceu. Não, senhor!”, gri-
tou novamente, “Esta garrafa é minha agora, e pode tentar enganar ou-
tro.”
“Será verdade?”, exclamou Keawe. “Em seu favor, imploro, venda-a
para mim!”
“Não me importa a sua conversa”, retrucou o contramestre. “Pen-
sou que eu era estúpido; agora pode ver que não; e é o fim. Se não quer
dar um gole no rum, eu mesmo dou. Pela sua saúde, e boa noite para
você!”
Assim, desceu a avenida da cidade, e assim a garrafa se foi dessa his-
tória.
E assim Keawe correu até Kokua leve como o vento; e grande foi a
sua alegria aquela noite; e grande, desde então, tem sido a paz de todos
os dias na Casa Brilhante.
ENTRETENIMENTOS DAS NOITES NAS ILHAS

A ILHA
DAS VOZES
ROBERT LOUIS STEVENSON
1893

Keola era casado com Lehua, filha de Kalamake, o sábio de Molokai, e


morava com o pai da esposa. Não havia homem mais astuto que aquele
profeta; lia as estrelas, fazia previsões por meio de cadáveres e animais
selvagens; subia sozinho até o topo das montanhas, até a região das bes-
tas, e ali deixava armadilhas para capturar espíritos dos antigos. Por is-
so, nenhum homem era mais consultado em todo o Reino do Havaí; as
pessoas prudentes compravam e vendiam e se casavam e organizavam as
vidas de acordo com seus conselhos; e o rei o mandara duas vezes a Ko-
na em busca dos tesouros de Kamehameha.[1] Tampouco havia alguém
mais temido: dos seus inimigos, alguns adoeceram por seus encantos,
outros desapareceram completamente, tanto a vida como o barro, de
modo que as pessoas procuraram em vão por um osso que fosse de seus
corpos. Dizia-se que ele tinha a arte ou o talento dos velhos heróis; vi-
ram-no sobre as montanhas, pular de um penhasco a outro; viram-no
andar pela floresta, a cabeça e o ombro acima das árvores. Esse Kala-
make era estranho de observar; provinha do melhor sangue dos Mo-
lokai e dos Maui, de descendência pura; e, mesmo assim, parecia mais
branco que qualquer estrangeiro, o cabelo de cor da grama seca, e os
olhos vermelhos e muito cegos; de modo que “Cego como Kalamake,
que pode ver o amanhã” era provérbio nas ilhas.
De todos os feitos do sogro, Keola sabia um pouco, por conta da re-
putação dele entre as pessoas; suspeitava de mais alguns; e o resto, igno-
rava. Mas havia algo que o incomodava. Kalamake não economizava
para nada, fosse para comer ou beber ou para se vestir; e tudo ele paga-
va com dólares novos e reluzentes. “Reluzente como os dólares de Ka-
lamake” era outro ditado nas Oito Ilhas. Mesmo assim, não comerciava,
não plantava, não prestava serviços — apenas de vez em quando, com
suas feitiçarias — não havia fonte concebível para tantas moedas de pra-
ta.
Calhou de um dia a esposa de Keola sair em visita a Kaunakakai a
sotavento da ilha, e os homens para pesca no mar. Mas Keola era cão in-
dolente, e ficava deitado na varanda, observava a rebentação bater na
costa e os pássaros voarem pelo penhasco. Em geral, sempre pensava
numa coisa: nos dólares reluzentes. Ao se deitar para dormir, pergunta-
va-se por que eram tantos; ao se levantar de manhã, perguntava-se por
que eram todos novos; e o assunto nunca saía de sua mente. E, entre os
dias, estava confiante de que havia descoberto algo. Aparentemente, ob-
servou o lugar onde Kalamake guardava o tesouro, uma escrivaninha fe-
chada a chave, encostada na parede da sala de estar, sob o retrato de Ka-
mehameha, o Quinto, e a fotografia da rainha Vitória coroada; mas eis
que, exatamente na noite anterior, encontrou a ocasião para verificar
dentro da mesa, e, olha só, a bolsa estava vazia. Era o dia da chegada do
vapor, e podia ver a fumaça sair de Kalaupapa, que logo chegaria com as
mercadorias do mês, salmão enlatado e gim e luxos de toda categoria,
para Kalamake.
“Se hoje ele pagar pelas mercadorias”, pensou Keola, “confirmarei
que é um bruxo, e que os dólares vêm do bolso do diabo.”
Enquanto pensava isso, lá estava o sogro, atrás dele, de aspecto
aborrecido.
“É o vapor?”, perguntou.
“Sim”, disse Keola. “Deve parar ainda em Pelekunu, antes de vir pa-
ra cá.”
“Então, não há solução”, respondeu Kalamake, “e, na falta de al-
guém melhor, terei de confiar em você, Keola. Entre aqui na casa.”
E, assim, entraram juntos na sala de estar, que era um belo aposento,
revestido de papel de parede e com imagens penduradas, e mobiliado
com cadeira de balanço e mesa e sofá no estilo europeu; além disso, ha-
via a estante de livros, e a Bíblia familiar no meio da mesa, e a escrivani-
nha fechada a chave recostada na parede; então, qualquer um podia ver
que se tratava de um homem de posses.
Kalamake mandou Keola fechar as persianas das janelas, enquanto
ele mesmo trancava todas as portas e abria o tampo da escrivaninha. Re-
tirou dali um par de colares de amuletos e conchas, um feixe de ervas
secas e de folhas secas, e outro ramo verde de palmeira.
“O que estou prestes a fazer”, disse, “está além da imaginação. Os
homens de antigamente eram sábios e forjavam maravilhas diante dos
outros; mas isso ocorria à noite, no escuro, com as estrelas adequadas, e
no deserto. Farei o mesmo, aqui em minha própria casa, e sob o olho
claro do dia.”
Falando isso, pôs a Bíblia debaixo da almofada do sofá, de modo
que ficasse completamente encoberta, retirou dali capacho de textura fi-
na e magnífica, e socou as ervas e folhas na areia dentro duma panela de
latão. Então, ele e Keola puseram os colares, e ficaram de pé em lados
opostos do capacho.
“É chegada a hora”, disse o bruxo. “Não tenha medo.”
Em seguida, tacou fogo nas ervas, e balbuciou e sacudiu o ramo de
palmeira. No começo, a luz estava fraca devido às persianas fechadas;
mas as ervas geraram labareda, e as chamas iam mais alto que Keola, e a
sala brilhava com a queima; em seguida, a fumaça subiu e fez sua cabeça
rodar, os olhos escurecerem, e o som dos murmúrios de Kalameke per-
correu os seus ouvidos. De repente, no capacho em que estavam houve
um puxão ou espasmo que pareceu mais rápido que o trovão. No mes-
mo piscar de olhos, o quarto desapareceu, e a casa e a respiração fugi-
ram completamente do corpo de Keola. Intensos raios solares rolavam
por seus olhos e cabeça; e foi transportado para a praia, sob sol forte,
com o rugir de grande rebentação: o bruxo e ele estavam lá no mesmo
capacho, sem fala, resfolegavam e se seguravam um no outro, e passa-
vam as mãos nos olhos.
“O que foi isso?”, exclamou Keola, o primeiro a voltar a si, por ser
mais jovem. “Achei que ia morrer de tanta agonia!”
“Não importa”, arfou Kalamake. “Agora, já passou.”
“Mas, pelo amor de Deus, onde estamos?”, exclamou Keola.
“Não é a questão”, replicou o feiticeiro. “Aqui, temos uma tarefa na
mão, e é a isso que devemos atentar. Enquanto recupero o fôlego, vá até
a beira da mata e me traga as folhas de tal e tal erva, e de tal e tal árvore,
que vai achar em abundância por lá; três punhados de cada. E rápido.
Devemos voltar para casa antes que o vapor chegue; seria estranho se
estivéssemos desaparecidos.” Então, se sentou na areia e tomou ar.
Keola foi para a praia, que era de areia brilhante e corais, com con-
chas singulares espalhadas; e pensou: “Como não conheço esta praia?
Voltarei aqui para juntar conchas”. A sua frente, uma fileira de palmei-
ras a céu aberto, não as palmeiras das Oito Ilhas, mas altas e novas e be-
las, cheias de folhas ressecadas, como ouro sobre o verde; e pensou: “É
estranho nunca ter visto estas árvores. Voltarei aqui, quando estiver
quente, para dormir”. E pensou: “Como esquentou de vez!”, porque
era inverno no Havaí e antes o dia estava frio. E também pensou: “On-
de estão as montanhas cinzentas? E onde está o penhasco com a floresta
e os pássaros dando voltas?.” E quanto mais pensava, menos entendia
em que local das ilhas estava.
Nos limites do arvoredo, onde se encontrava com a praia, a erva
crescia, mas as árvores estavam mais longe. Assim, quando Keola ia até
a árvore, notou uma jovem que não vestia nada, além do cinto de folhas.
“Bem”, pensou Keola, “não são muito reservados com as roupas nessa
parte do país.” Então parou, pois supôs que a jovem fugiria ao vê-lo; ao
notar que ainda olhava em sua direção, se levantou e gritou alto. Ela se
levantou de vez com o barulho; a face pálida; olhou para um lado e para
o outro, e a boca se escancarou com o horror da alma. Mas foi estranho
que os olhos não pararam em Keola.
“Bom dia”, disse. “Não precisa se assustar, não a devorarei.”
Mal abriu a boca, a jovem fugiu para dentro da mata.
“Que modos estranhos”, considerou Keola e, sem pensar no que fa-
zia, correu atrás dela.
Enquanto corria, a garota gritava em idioma que não era falado no
Havaí; mas algumas das palavras eram as mesmas, e sabia que ela cha-
mava e alertava outras pessoas. Logo, viu mais gente correr, umas com
as outras, homens, mulheres e crianças, todos corriam e gritavam, como
se estivessem num incêndio. E, com isso, ele mesmo ficou assustado, e
voltou para Kalamake, com as folhas. Então, lhe contou o que viu.
“Não preste atenção nisso”, disse Kalamake. “Tudo isto é como so-
nho e sombras: desaparecerá e será esquecido.”
“Parecia que ninguém conseguia me ver”, contou Keola.
“Ninguém consegue mesmo”, respondeu o feiticeiro. “Mesmo com
este sol, estamos invisíveis por causa dos encantos. Mas podem nos es-
cutar; e por isso é bom falar em voz baixa, como eu.”
Depois disso, fez um círculo com pedras em volta do capacho, e sol-
tou as folhas no meio. “O seu dever”, falou, “consiste em manter as fo-
lhas acesas e alimentar o fogo aos poucos. Enquanto brilharem (o que
não passará de um instante) farei a minha parte; e antes que as cinzas se
empreteçam, o mesmo poder que nos trouxe, nos levará de volta. Ago-
ra, fique preparado com o fósforo; e me chame antes que fogo se apague
e eu fique para trás.” Assim que as folhas queimaram, o feiticeiro pulou
como um cervo para fora do círculo, e correu pela praia como cão per-
digueiro que tomou banho; enquanto corria, se abaixava para catar con-
chas; e pareceu a Keola que reluziam quando ele as pegava. As folhas
brilhavam com a chama clara que as consumia rapidamente; e logo Keo-
la não tinha mais que um punhado, e o feiticeiro distante, corria e se
abaixava.
“Volta!”, gritou Keola. “Volta! As folhas estão quase no fim.”
Com isso, Kalamake se virou e, se antes corria, agora voava. Mas
por mais que corresse rápido, as folhas se queimavam ainda mais rápi-
do. A chama estava prestes a se apagar, quando alcançou o capacho com
grande salto; o sopro feito pelo salto o apagou; e com isso sumiram a
praia, o sol, e o mar; retornaram à escuridão da sala de estar trancada,
mais uma vez atordoados e cegos; e sobre o capacho entre os dois havia
uma pilha de dólares brilhantes. Keola correu até as persianas; e lá esta-
va o vapor, se aproximava, cada vez maior.
Na mesma noite Kalamake chamou de lado o genro, e pôs em sua
mão cinco dólares. “Keola”, disse, “se for sábio (o que tenho minhas
dúvidas), pensará que esta tarde dormiu na varanda, e sonhou enquanto
dormia. Sou de poucas palavras, e tenho como ajudantes pessoas de me-
mória curta.”
Kalamake nunca mais disse qualquer palavra, nem se referiu àquele
assunto novamente. Porém, ele não saía da cabeça de Keola, que, se an-
tes já era preguiçoso, agora não fazia mais nada.
“Por que trabalhar”, pensava, “quando meu sogro cria dólares com
conchas?”
Logo, gastou a sua parte, toda ela com roupas finas. E depois se ar-
rependeu. “Pois”, pensou, “seria melhor se tivesse comprado um acor-
deão, pois poderia me divertir o dia inteiro.” E então ficou cada vez
mais aborrecido com Kalamake.
“Esse homem tem a alma de cachorro” pensava. “Pode juntar dóla-
res na praia sempre que lhe dá vontade, e me deixa definhar por causa
do acordeão! Ele que se cuide; não sou criança, sou tão esperto quanto
ele, e sei o seu segredo.” Assim, falou com a esposa, Lehua, e reclamou
dos modos de seu pai.
“É melhor deixar o meu pai quieto”, disse Lehua. “É perigoso de
enfrentar.”
“Veja o quanto me importo com ele!”, exclamou Keola, e estalou os
dedos. “Eu o tenho em rédea curta, posso obrigá-lo a fazer o que qui-
ser.” Então, contou a história a Lehua.
Mas ela balançou a cabeça.
“Faça o que quiser”, falou. “Mas se contrariar o meu pai, com certe-
za ninguém nunca mais ouvirá falar de você. Pense nessa ou naquela
pessoa; pense em Hua, que era nobre da Casa dos Representantes e ia
para Honolulu todos os anos; e não encontraram sequer um osso ou fio
de cabelo dele. Lembre-se de Kanau, e de como definhou até se tornar
um barbante, e que sua mulher o suspendia com uma mão só. Keola,
você não passa de um bebê nas mãos de meu pai; ele o pegará com um
polegar e um dedo, e o comerá como camarão.”
Assim, Keola passou a realmente temer Kalamake, mas também sen-
tia despeito; e as palavras da esposa o incendiaram.
“Muito bem”, disse. “Se é o que pensa de mim, vou lhe mostrar co-
mo está enganada.” E foi direto até onde o seu sogro estava sentado na
sala de estar.
“Kalamake”, falou. “Desejo um acordeão.”
“Quer dizer que você deseja?”, respondeu Kalamake.
“Sim”, disse, “e lhe digo face a face que pretendo conseguir um. Um
homem que cata dólares na praia com certeza poderá pagar por um
acordeão.”
“Não esperava que fosse tão corajoso”, replicou o feiticeiro. “Pensei
que fosse rapaz acanhado e inútil, e não consigo descrever como me
agrada descobrir que estava enganado. Agora, começo a achar que en-
contrei um assistente ou sucessor em minha árdua atividade. Um acor-
deão? Você possuirá o melhor de Honolulu. E esta noite, assim que es-
curecer, procuraremos o dinheiro.”
“Voltaremos para aquela praia?”, perguntou Keola.
“Não, não”, replicou Kalamake; “precisa saber mais de meus segre-
dos. Da última vez, lhe ensinei a catar conchas; desta vez lhe ensinarei a
pegar peixes. Você tem força o bastante para empurrar o barco de Pili?”
“Acho que sim”, respondeu Keola. “Mas por que não pegamos o
seu, que já está na água?”
“Tenho um motivo, que entenderá plenamente antes de amanhã”,
explicou Kalamake. “O barco de Pili é mais adequado para o meu pro-
pósito. Então, por favor, nos encontramos aqui assim que escurecer.
Enquanto isso, deixemos este colóquio entre nós, pois não há motivo
para envolver a família em nossos assuntos.”
O mel não é mais doce do que era a voz de Kalamake; e Keola mal
podia conter a satisfação.
“Poderia ter meu acordeão há semanas”, pensou, “não há nada mais
útil no mundo que um pouco de coragem.” Logo depois, espiou Lehua
chorar e lhe passou pela cabeça contar-lhe tudo. “Melhor não”, ponde-
rou. “Devo esperar até conseguir o acordeão; veremos o que a fedelha
dirá depois disso. Talvez no futuro acredite que o marido tem alguma
inteligência.”
Assim que escureceu, sogro e genro empurraram o barco de Pili e
soltaram a vela. Havia grande mar, e ventava muito a sotavento; mas o
barco ia ligeiro e leve e seco, e cortava as ondas. O mago tinha lanterna,
que acendia e segurava com o dedo, pela argola; e os dois se sentaram na
popa, fumaram cigarros, já que Kalamake sempre tinha provisão, e con-
versaram como amigos sobre mágica, e grandes somas de dinheiro que
poderiam conseguir com aquele exercício, e o que deveriam comprar
primeiro e em seguida. E Kalamake falava como um pai.
Depois, olhou em volta, e para as estrelas acima, e de volta para a
ilha, que já estava três quartos debaixo d’água; e parecia analisar a con-
dição com maturidade.
“Olha!”, diz. “Ali atrás está Molokai, já bem longe, e Maui, como
nuvem; e pela posição dessas três estrelas posso ir aonde desejar. Esta
parte do mar é chamada de Mar dos Mortos. Este lugar é extraordinari-
amente fundo, e todo o chão é coberto por ossos de homens, e os bura-
cos nesta parte são habitados por deuses e duendes. O fluxo do mar é
para o norte, mais forte que o nado de tubarão; e leva embora qualquer
homem, se por acaso cair do navio neste local, o oceano imperturbável
o carrega como cavalo selvagem. Logo, cansa e desce para o fundo, e os
ossos se espalham com o resto, e os deuses devoram o seu espírito.”
Keola sentiu medo com essas palavras; então, observou, e à luz das
estrelas e da lanterna, o bruxo pareceu se transformar.
“Algo o incomoda?”, exclamou Keola, rápido e incisivo.
“Nada aqui me incomoda”, disse o mago, “mas alguém está muito
doente.”
Então, mudou a maneira de segurar a lanterna e observou o dedo se
enganchar e a argola se arrebentar enquanto tirava o dedo dela; e a mão
cresceu até ter o tamanho de uma árvore.
Com essa visão, Keola gritou e cobriu o rosto.
Mas Kalamake segurou a lanterna. “É melhor olhar para o meu ros-
to!”, falou. A cabeça estava enorme como barril; e, ainda assim, crescia e
crescia, como a nuvem cresce sobre a montanha, e Keola se sentou dian-
te dele e gritou, e o barco seguia com velocidade nos grandes mares.
“E agora”, disse o mago, “o que acha daquele acordeão? Tem certe-
za que não prefere uma flauta? Não? Muito bem, porque não desejo
que minha família se torne volúvel. Mas começo a achar melhor sair
deste barco miserável, pois, estou crescendo num grau muito incomum,
e se não tomarmos cuidado, logo ele inunda.”
Assim, jogou as pernas para o lado. Exatamente enquanto fazia isso,
o seu tamanho aumentou trinta vezes, quarenta vezes, tão rápido quan-
to um piscar de olhos ou pensamento; de modo que ficou nos mares
profundos até o sovaco, e a cabeça e os ombros se elevavam como gran-
de ilha, e as ondas batiam e atingiam o peito assim como batem e se
quebram contra o desfiladeiro. O barco continuava a ir para o norte,
mas esticou a mão, o pegou pelas laterais com o indicador e o polegar, e
quebrou um lado como se fosse biscoito, e Keola foi lançado ao mar. E
os pedaços do barco, o feiticeiro os esmagou com a palma da mão e os
lançou a quilômetros de distância, na escuridão.
“Desculpa por pegar a lanterna”, disse; “mas tenho longa caminhada
pela frente, e a terra está longe, e o fundo do mar é desigual, e sinto os
ossos nos dedos do pé.”
Assim, se virou e andou com passos gigantes; Keola afundava no
bojo e não conseguia mais vê-lo; e quando se segurava no casco, lá ia
ele, andava e encolhia, e com o lampião bem acima da cabeça, e as ondas
brancas se quebravam nele conforme passava.
Desde quando as ilhas foram pescadas do mar pela primeira vez,
nunca um homem se assustou tanto quanto o tal do Keola. E assim na-
dou, mas nadou como filhotes de cães nadam em naufrágio, prestes a se
afogar, e não sabia para onde. Não podia pensar em outra coisa além da
enormidade do passo do bruxo, naquele rosto grande como montanha,
nos ombros largos como ilha, e no mar que batia nele em vão. Também
pensou no acordeão, e foi tomado pela vergonha; e nos ossos dos mor-
tos, e o medo o abalou.
De repente, percebeu que algo escuro balançava contra as estrelas, e
uma luz debaixo disso, e um brilho no mar dividido; e escutou a con-
versa de homens. Gritou alto e uma voz respondeu; e num instante a
proa de um navio passou sobre as ondas como objeto que se equilibra, e
desceu de vez. Segurou as correntes da embarcação com as duas mãos,
depois afundou no mar bravio, e em seguida foi levado a bordo por ma-
rinheiros.
Eles lhe deram gim, biscoitos e roupas secas; lhe perguntaram como
chegara naquele local, e se a luz que viram era o farol, Lae o Ka Laau.
Mas Keola sabia que os brancos eram como crianças e acreditavam ape-
nas nas próprias histórias; então contou de si somente o que quis, e
quanto à luz (que era a lanterna de Kalamake), declarou que não a havia
visto.
O navio era uma escuna com destino a Honolulu, e depois seguiria
para as ilhas baixas; e, para a grande sorte de Keola, havia perdido um
homem do gurupés do navio na tempestade. Falar era inútil, Keola não
ousaria ficar nas Oito Ilhas. A palavra viaja com facilidade, e os homens
apreciam tanto falar e levar notícias, que se ele se escondesse na ponta
norte de Kauai ou na ponta sul de Kaü, o mago ouviria o rumor em me-
nos de um mês, e o destruiria. Então, fez o que lhe pareceu mais pru-
dente, e se alistou como marinheiro no lugar do homem afogado.
De certo modo, o navio era um bom lugar. A comida extraordinari-
amente saborosa e abundante, biscoito e rosbife todos os dias, sopa de
ervilha e pudins de farinha e sebo duas vezes por semana, de modo que
Keola engordou. O capitão também era bom, e a tripulação não era pior
que outros brancos. O problema era o imediato, o homem mais difícil
de agradar que Keola já conheceu, e batia nele e o xingava diariamente
pelo que fazia e pelo que não fazia. As pancadas que suportava eram
muito pesadas, por ser forte; e as palavras que usava eram intragáveis, já
que Keola vinha de boa família e estava acostumado ao respeito. E, o pi-
or de tudo, sempre que Keola encontrava chance de dormir, lá estava o
imediato desperto, e o acertava com a corda preparada para punir mari-
nheiros, como se fosse chibata. Keola viu que aquilo nunca daria certo;
e decidiu fugir.
Estavam a cerca de um mês de Honolulu quando alcançaram a terra.
Era bela noite estrelada, o mar estava calmo assim como o céu limpo,
ele assoprava em rota estável; e havia a ilha a barlavento, a faixa de pal-
meiras enfileiradas ao longo da costa. O capitão e o imediato a observa-
ram com a luneta noturna, disseram seu nome, e falaram dela, ao lado
do timão que Keola conduzia. Parecia ser ilha que os comerciantes ja-
mais haviam visitado. De acordo com o capitão, era ilha em que não
morava ninguém; mas o imediato discordava.
“Não dou um centavo pelo Diretório de Navegação”, disse. “Passei
por aqui uma noite na escuna Eugénie; era noite igual a esta; eles pesca-
vam com tochas, e a praia estava repleta de luzes, como uma cidade.”
“Bem, bem”, falou o capitão, “é íngreme, eis a grande questão; e de
acordo com a carta de navegação não há perigo; então, apenas fiquemos
a sotavento dela. Não falei para acelerar o barco!?”, gritou para Keola,
que ouvia com tanta atenção que esqueceu de conduzir.
E o imediato o xingou, e exclamou que kanaka não servia para nada
neste mundo, e que se fosse atrás dele com a cavilha, seria um dia des-
graçado para Keola.
Em seguida, o capitão e o imediato desceram juntos para a casa, e
Keola foi deixado só. “Esta ilha vai me servir”, pensou. “Se nenhum na-
vio mercante para aqui, o imediato nunca virá. E quanto a Kalamake,
não é possível que venha tão longe.” Com isso, aproximou a escuna aos
poucos. Teve que fazer isso silenciosamente, pois o problema com esses
brancos, e acima de tudo com o imediato, é que nunca se pode ter certe-
za; poderiam estar todos em sono pesado ou fingirem, e se uma vela ba-
lançasse, poderiam se levantar e pular nele com a corda. Então, Keola se
aproximou, pouco a pouco, e fez todos se aproximarem. Logo, a terra
estava próxima da nave, e o barulho do mar nas laterais aumentou.
Com isso, o imediato foi até acima da casa de repente. “O que está
fazendo?”, rugiu. “Está levando o navio para a praia!”
Avançou contra Keola, que saltou por cima da balaustrada e mergu-
lhou no mar estrelado. Quando emergiu de volta, a escuna havia retor-
nado ao curso verdadeiro, e o próprio imediato conduzia o timão, e Ke-
ola o escutou proferir injúrias. O mar estava calmo a sotavento da ilha;
além disso, quente; e Keola estava com a faca de marinheiro, então não
temia tubarões. Pouco adiante dele, as árvores acabavam; havia quebra
na linha da terra, como a boca de cais; e a maré, que fluía naquele mo-
mento, o levantou e levou. Num minuto estava fora; no outro dentro, e
flutuou na água brilhante, rasa e ampla com dez mil estrelas; perto dele,
a baía — com a fileira de palmeiras. Ele ficou encantado, pois aquele era
o tipo de ilha que jamais havia ouvido falar.
O tempo de Keola naquela ilha teve dois períodos: o período em
que estava sozinho, e o período em que viveu com a tribo. No começo,
procurou por todos os lados e não encontrou ninguém; apenas algumas
casas numa aldeia e as marcas de fogueiras. Mas as cinzas das fogueiras
estavam frias e as chuvas as tinham lavado; os ventos haviam soprado, e
algumas das cabanas caíram. Foi nesse local que fez morada; cavou bu-
raco para o fogo, e gancho de conchas, e pescava e assava o peixe, e su-
bia para pegar cocos verdes, cuja água bebia, pois não havia água em lu-
gar algum da ilha. Os dias eram longos, e as noites, assustadoras. Fez
um lampião com casca de coco, tirou óleo dos coquinhos, preparou pa-
vio com o talo; e quando a noite chegava, fechava a cabana, acendia o
lampião, se deitava e tremia até a manhã. Muitas vezes, pensou que esta-
ria melhor no fundo do mar, os ossos rolando com os outros.
Por todo esse tempo, permaneceu no interior da ilha, uma vez que
as cabanas eram na beira da lagoa, onde as palmeiras cresciam mais, e na
própria lagoa abundavam bons peixes. Foi apenas uma vez do outro la-
do, e observou apenas uma vez a praia diante do oceano, e voltou tre-
mendo. Pela aparência, pela areia brilhante, e as conchas espalhadas, o
sol forte e a rebentação, se irritou com suas suspeitas.
“Não pode ser”, pensou, “mas se parece demais. E como poderia sa-
ber? Esses brancos, apesar de fingirem saber para onde navegam, devem
tentar a sorte como os outros. Pois, no final das contas, navegamos em
círculo, e devo estar muito perto de Molokai, e esta deve ser exatamente
a mesma praia em que meu sogro cata seus dólares.” Então, depois dis-
so ficou prudente, e se manteve no interior da ilha.
Cerca de um mês depois, as pessoas do lugar chegaram, lotavam seis
grandes barcos. Eram uma bela raça e falavam língua que soava muito
diferente da língua do Havaí, mas muitas das palavras eram iguais, en-
tão, não era difícil compreender. Além disso, os homens eram bastante
corteses, e as mulheres muito dispostas: e deixaram Keola confortável,
lhe construíram a casa, e lhe deram uma esposa; e, o que o surpreendeu
mais, nunca era mandado para trabalhar com os mais jovens.
E, assim, Keola teve três períodos. Primeiro, um de muita tristeza,
depois um período bem alegre. Por último, o terceiro, em que era o ho-
mem mais assustado dos quatro oceanos.
A causa do primeiro período foi a garota que desposou. Tinha dúvi-
das a respeito da ilha; e pode ter tido dúvidas a respeito da língua, que
ouvira tão pouco quando fora ali com o mago no capacho. Mas sobre a
esposa não havia engano concebível, pois era a mesma mulher que cor-
rera dele, aos gritos, na mata. Então, navegara tudo aquilo e poderia
apenas ter ficado em Molokai; deixara a casa e a esposa e todos os ami-
gos, por nenhum outro motivo além de escapar do inimigo; e o lugar
para onde fora era o local assombrado pelo mago, e o lugar onde havia
andado invisível. Nesse período, se manteve mais próximo da lagoa, e
até onde ousava, ficava na cobertura da cabana.
A causa do segundo período foi a conversa que escutou entre sua es-
posa e o chefe dos ilhéus. Keola mesmo falava pouco; nunca sabia muita
coisa de seus novos amigos, pois se julgava civilizado demais para se in-
tegrar; e desde que conhecera melhor o sogro, ficara mais cauteloso.
Não lhes contou nada de si mesmo; além do nome e linhagem, e que vi-
nha das Oito Ilhas, e como essas ilhas eram agradáveis, e sobre o palácio
do rei em Honolulu, e como era grande amigo do rei e de seus missio-
nários. Mas fez muitas perguntas, e aprendeu bastante. A ilha onde esta-
va se chamava Ilha das Vozes; pertencia à tribo, mas estabeleceram resi-
dência a três horas de barco ao sul. Ali viviam e tinham casas permanen-
tes, e era ilha rica, onde havia ovos e galinhas e porcos, e navios iam ne-
gociar com rum e tabaco. Foi até ali que a escuna seguira após Keola de-
sertar; ali também o imediato havia morrido, como o branco estúpido
que era. Parece que, quando o navio chegou, era o começo da tempora-
da de doenças naquela ilha, quando os peixes da lagoa ficam venenosos,
e todo aquele que os come incha e morre. O imediato foi informado
disso; viu o preparo dos barcos, porque naquela estação as pessoas dei-
xam a ilha e vão à Ilha das Vozes. Mas era um branco estúpido, e não
acreditava em nenhuma história além das suas; então pescou um desses
peixes, o cozinhou, o comeu, e inchou e morreu: o que era boa notícia
para Keola. Quanto à Ilha das Vozes, ficava vazia a maior parte do ano;
apenas de vez em quando uma tripulação aparecia de barco em busca de
copra; e na má estação, quando os peixes na ilha principal ficam vene-
nosos, toda a tribo se movia para lá. Seu nome vinha duma maravilha.
Porque parecia que a costa era ocupada por demônios invisíveis; dia e
noite era possível escutá-los conversarem uns com os outros em línguas
estranhas; dia e noite pequenas fogueiras se acendiam e se apagavam na
praia; e o que causava essas ocorrências homem algum podia explicar.
Keola perguntou a eles se também era assim na ilha onde ficavam, e lhe
disseram que não, ali não; nem em nenhuma das centenas de ilhas em
volta deles naquele mar; mas era algo específico à Ilha das Vozes. Eles
lhe contaram que as fogueiras e vozes só ficavam na costa e na beira da
mata do lado do mar; e que se podia morar na lagoa por dois mil anos
(caso vivesse tanto) e jamais ser incomodado por isso. E, mesmo na cos-
ta, os demônios não faziam mal a ninguém, caso fossem deixados em
paz. Apenas uma vez um chefe jogou a lança nas vozes e, na mesma
noite, caiu do coqueiro e morreu.
Keola pensou bastante. Viu que ficaria bem quando a tribo retornas-
se à ilha principal; se ficasse exatamente onde estava, se permanecesse ao
lado da lagoa; ainda assim pretendia acertar as coisas, se possível. Então,
disse ao líder que uma vez estivera em ilha empesteada da mesma ma-
neira, e o povo encontrou o meio de curar o problema. “Havia uma ár-
vore que crescia num arbusto lá”, falou, “e parece que esses demônios
surgiam para catar as folhas dela. Então, as pessoas da ilha arrancavam a
árvore onde quer que houvesse uma, e os demônios pararam de ir.” Per-
guntaram que espécie de árvore era, e lhes mostrou a árvore da qual Ka-
lamake queimava as folhas. Acharam difícil acreditar nisso, mas ainda
assim ficaram empolgados com a ideia. Noite após noite, os velhos de-
batiam o tema em seus conselhos; mas o líder (embora corajoso) estava
com medo, e lhes lembrava diariamente do chefe que havia jogado a
lança contra as vozes e morreu: e pensar naquilo deixou todos num im-
passe.
Embora ainda não os houvesse convencido a destruir as árvores, Ke-
ola ficou bem satisfeito, e prestou atenção a sua volta, e a aproveitar os
dias. Entre outras coisas, ficou mais gentil com a esposa, de modo que a
garota passou a amá-lo fortemente. Um dia, foi até a cabana, e ela se la-
mentava deitada no chão.
“O que foi?”, disse Keola, “o que há de errado?”
Ela disse que não era nada.
Na mesma noite, ela o acordou. O lampião queimava muito baixo,
mas viu no rosto que ela sofria.
“Keola”, falou, “ponha o ouvido em minha boca porque preciso fa-
lar baixo, para que ninguém escute. Dois dias antes de os barcos se pre-
pararem, vá para o lado do mar da ilha e se deite no mato. Devemos es-
colher esse lugar antes, você e eu, e esconder comida, e todas as noites
me aproximarei com um chamado. Então, quando chegar a noite em
que não me ouvir, saberá que partimos da ilha, e poderá circular em se-
gurança novamente.”
A alma de Keola morreu dentro dele. “O que é isso?”, exclamou.
“Não posso viver entre demônios. Não serei deixado nesta ilha. Estou
ansioso para sair dela.”
“Você jamais conseguiria sair daqui vivo, meu pobre Keola”, disse a
garota. “Porque, para lhe dizer a verdade, meu povo se alimenta de ho-
mens; mas mantém isso em segredo. E o motivo pelo qual o matarão
antes de partirmos é que em nossa ilha param navios, e Donat-Kimaran
vem e fala pelos franceses, e há um negociante branco aqui com varan-
da, e um catequista. Oh, de fato é um ótimo lugar! O negociante tem
barris cheios de farinha; e o navio de guerra francês uma vez veio até a
lagoa e deu vinho e biscoitos para todos. Ah, meu pobre Keola, queria
levar você lá, porque meu amor é grande, e é o melhor lugar nos mares,
com exceção de Papeete.”
Então, agora Keola era o homem mais assustado nos quatro ocea-
nos. Tinha ouvido falar dos comedores de humanos das ilhas do sul e o
assunto sempre lhe fora aterrador; e ali batiam a sua porta. Além disso,
havia escutado, por viajantes, algo sobre suas práticas, e que quando de-
sejam comer um homem, o acolhem e mimam como a mãe faz com o fi-
lho favorito. E viu que aquele era seu caso, e, por isso, haviam lhe dado
casa, comida e esposa, e o liberado de todo o trabalho, e porque os ve-
lhos e os chefes dialogavam com ele como se fosse pessoa de influência.
Então, se deitou na cama e queixou-se do destino, e sua carne congelou
sobre os ossos.
No dia seguinte, as pessoas da tribo estavam gentis como sempre.
Eram oradores elegantes, faziam belos poemas, e durante as refeições
contavam piadas para matar de rir um missionário. Mas Keola pouco se
preocupava com os belos modos; tudo o que via era os dentes brancos
brilharem nas bocas, e seu refluxo subiu com a visão; e quando acaba-
ram de comer, foi até a mata e se deitou como morto. No dia seguinte, a
mesma coisa e, então, sua esposa começou a segui-lo.
“Keola”, disse, “se você não comer, digo francamente que será mor-
to e cozido amanhã. Alguns dos velhos chefes já estão comentando.
Acham que você adoeceu e começará a perder carne.”
Com isso, Keola se levantou e a raiva queimou nele.
“Pouco me importo, mesmo assim”, falou. “Estou entre o diabo e o
mar profundo. Já que devo morrer, deixe-me morrer do modo mais rá-
pido; e já que, na melhor das hipóteses, vou ser comido, melhor ser co-
mido por bestas que por homens. Adeus”, disse, a deixou, e andou até a
costa da ilha.
Tudo estava vazio sob o sol forte; nem sinal de pessoas, a não ser pe-
las pegadas na praia; e conforme seguia, as vozes ao redor falavam e sus-
surravam, e as pequenas fogueiras surgiam e se apagavam. Todas as lín-
guas da terra eram faladas ali, francês, holandês, russo, tâmil, chinês. De
qualquer terra que conhecesse a feitiçaria, havia algum sussurro no ou-
vido de Keola. A praia estava lotada como feira ruidosa, mas ninguém
era visto; e conforme andava, via as conchas sumirem diante dele, mas
ninguém as pegava. Creio que o diabo sentiria medo de ficar sozinho
em tal companhia; mas Keola superara o medo e cortejava a morte.
Quando os fogos surgiam, os perseguia como touro; vozes sem corpo
chamavam aqui e ali, mãos invisíveis derramavam areia nos fogos, e su-
miam da praia antes que os alcançasse.
“Certamente Kalamake não está aqui”, pensou, “ou eu já estaria
morto há muito tempo.”
Com isso, sentou-se na beira da mata porque se cansara, e pôs o
queixo na mão. A atividade ante os olhos continuava; as vozes balbucia-
vam na praia, os fogos apareciam e sumiam, as conchas desapareciam e
reapareciam mesmo se ele olhasse.
“Era dia comum da outra vez em que estive aqui”, pensou. “Pois
não era nada assim.” E ficou atordoado com a ideia desses milhões e
milhões de dólares, e essas centenas e centenas de pessoas os coletarem
na praia e voarem mais alto e velozes que águias.
“E pensar em como me enganaram com toda aquela conversa da ca-
sa de moedas”, falou, “que o dinheiro era feito lá! Quando está claro
que todas as novas moedas do mundo são catadas nestas areias! Mas es-
tarei mais bem informado na próxima vez.”
Então, por fim, não sabia muito bem como ou quando, o sono re-
caiu sobre Keola e se esqueceu da ilha e de todos os pesares.
No começo do dia seguinte, antes que o sol surgisse, uma balbúrdia
o despertou. Acordou assustado, pois pensou que a tribo o pegara no
sono; mas não era nada disso. Apenas, na praia a sua frente, as vozes
sem corpo chamavam e gritavam umas às outras, e parecia que todas
passavam ao seu lado como vultos rápidos, à costa da ilha.
“O que está acontecendo?”, pensa Keola; e lhe estava claro que era
algo fora do comum, já que os fogos não estavam acesos nem as con-
chas eram recolhidas, mas as vozes sem corpo continuavam a surgir na
praia e a chamar, se enfraquecer, e outras as seguiam, e pelo som, os ma-
gos deviam estar furiosos.
“Não é de mim que sentem raiva”, pensou Keola, “pois passam di-
reto.”
Como cães na matilha, ou cavalos na corrida, ou pessoas ao saber de
incêndio que se juntam e vão lá ver: também foi assim com Keola; não
sabia o quê, nem por quê fazia aquilo, mas lá estava, olha só, corria jun-
to das vozes!
Ao se virar em certo ponto da ilha, lhe veio rápido vislumbre, então,
se lembrou das árvores mágicas que cresciam às dezenas na mata. Na-
quele local, chegava burburinho indescritível de choro de homens; e pe-
lo som, aqueles que corriam com ele iam ao mesmo local. Um pouco
mais perto, aquilo se misturou ao alarido das pancadas de vários macha-
dos. E, com isso, um pensamento finalmente lhe veio em mente, o de
que o líder havia consentido, e os homens da tribo começaram a derru-
bada das árvores, e que a notícia chegou aos feiticeiros, e todos se junta-
ram para defender as árvores. Ele sentiu desejo por coisas estranhas. Pa-
rou para ouvir as vozes, cruzou a praia e foi aos limites da mata, e ficou
atônito. Uma árvore havia sido derrubada, outras talhadas em parte. Ali
se reunira a tribo. Estavam um de costas para o outro, e corpos jaziam e
sangue fluía por entre seus pés. O aspecto temeroso perpassava cada um
dos rostos; as vozes subiam para o céu tão estridentes quanto o guincho
da fuinha. Já viu uma criança completamente só com espada de madeira,
que luta, pula e ataca o ar vazio? Do mesmo modo, os comedores de
homens se juntaram um de costas para o outro, e levantavam os macha-
dos e os abaixavam, e gritavam conforme faziam, e eis que não havia ne-
nhum homem para lutar contra eles! Apenas aqui e ali Keola via um
machado se balançar contra eles, sem mãos; e volta e meia um homem
da tribo caía, dividido em dois ou despedaçado, e sua alma escapava
num uivo.
Por um tempo, Keola observou esse prodígio como um daqueles so-
nhos, e então o medo o dominou com a força da morte, por assistir a
tais ocorrências. No mesmo instante, o líder do clã o notou ali de pé, e
apontou para ele e o chamou pelo nome; com isso a tribo inteira tam-
bém o viu, e seus olhos brilhavam e seus dentes rangeram.
“Tempo demais aqui”, pensou Keola; e correu para a mata, pela
praia, sem se importar para onde.
“Keola”, disse voz próxima, na areia vazia.
“Lehua! É você?”, exclamou e arfou, e procurou-a em vão; pelo que
via, estava completamente sozinho.
“Vi você passar antes”, respondeu a voz. “Mas não me escutou. Rá-
pido, pega as folhas e ervas, precisamos fugir daqui.”
“Você veio com o capacho?”, perguntou.
“Aqui, ao seu lado”, disse e ele sentiu seus braços ao seu redor. “Rá-
pido! As folhas e as ervas, antes que meu pai volte!”
Então Keola correu para salvar a vida, e buscou o combustível do
mago; Lehua o guiou de volta, e pôs os pés sobre o capacho e fez o fo-
go. Durante todo o período de queima, o som da batalha preenchia o la-
do de fora da mata; a luta difícil entre magos e comedores de homens;
os magos, invisíveis, rugiam alto como touros na montanha, e os ho-
mens da tribo respondiam com gritos estridentes e selvagens saídos do
terror de suas almas. E durante toda a queima Keola ficou ali, e escutou,
e tremeu, e observou como as mãos invisíveis de Lehua soltavam as fo-
lhas. Ela as soltou com pressa, e a chama queimou até o alto, e chamus-
cou as coxas de Keola; ela se adiantou e assoprou o fogo com fôlego. A
última folha foi devorada, a chama se apagou, seguida pelo choque e, ali
estavam, Keola e Lehua na sala de casa.
Agora que Keola finalmente podia ver a esposa, ficou extremamente
satisfeito. E ficou extremamente satisfeito por voltar à casa em Molokai,
e por se sentar diante da tigela de poi — pois não preparavam poi a bor-
do de navios e não havia na Ilha das Vozes —, e sentia muito alívio por
escapar ileso das mãos dos comedores de homens. Mas havia outro as-
sunto não tão claro, e Lehua e Keola falaram disso a noite inteira, e es-
tavam em apuros. Kalamake havia sido deixado na ilha; se, pelas graças
de Deus, lá ficasse preso, tudo bem; mas caso escapasse e voltasse para
Molokai, seria dia terrível para a filha e seu marido. Falaram do poder
de crescimento, e se poderia caminhar nos mares por aquela distância.
Mas, àquela altura, Keola já sabia onde era a ilha, ou seja, que ficava no
Arquipélago Baixo e Perigoso; então, pegaram o atlas e checaram a dis-
tância, fizeram os cálculos, e parecia distância muito grande para um ve-
lho percorrer caminhando. Ainda assim, não era bom confiar tanto,
com um bruxo como Kalamake, e, por fim, decidiram receber conselho
do missionário branco.
Ao primeiro que apareceu, Keola contou tudo. E o missionário foi
duro com ele por arranjar segunda esposa na ilha baixa; quanto ao resto,
declarou não entender patavinas.
“No entanto”, disse, “se pensa que o dinheiro de seu pai é sujo, meu
conselho seria que doasse parte aos leprosos, e parte aos fundos dos
missionários; e quanto a essa asneira extraordinária, melhor deixar isso
entre vocês.”
Mas alertou à polícia de Honolulu que, até onde podia perceber, Ka-
lamake e Keola cunhavam dinheiro falso, e não seria de todo inútil ob-
servá-los.
Keola e Lehua seguiram o seu conselho, e doaram muitos dólares
para os leprosos e para os fundos. E, sem dúvida, foi um bom conselho,
pois daquele dia em diante, jamais se ouviu falar novamente em Kala-
make. E se foi morto na batalha pelas árvores, ou se ainda batia perna
na Ilha das Vozes, quem poderia dizer?
O APANHADOR
DE CORPOS
ROBERT LOUIS STEVENSON

1884

Todas as noites do ano, nós quatro nos sentávamos no pequeno salão


do George, em Debenham — o agente funerário, o senhorio, Fettes, e
eu. Às vezes havia mais; mas a qualquer custo, fizesse chuva, neve, ou
geada, nós quatro estaríamos lá, cada um sentado em sua poltrona. Fet-
tes era um velho beberrão escocês, obviamente homem educado, e de
posses, já que vivia no ócio. Chegara a Debenham alguns anos antes,
quando ainda era jovem, e meramente pela convivência contínua se tor-
nou cidadão por opção. Seu casaco de chamalote azul era relíquia local,
como o pináculo da igreja. Seu lugar no salão do George, ausência da
igreja, vícios antigos, disparatados e impudicos, eram aspectos da rotina
de Debenham. Tinha algumas vagas opiniões radicais e algumas fugazes
infidelidades, volta e meia demonstradas por tapas vacilantes na mesa.
Bebia rum — exatamente cinco copos todas as noites; e durante a maior
parte de sua visita noturna ao George, ficava sentado, com o copo na di-
reita, em melancólico estado de saturação etílica. Nós o chamávamos de
Doutor, pois supunha-se ter conhecimento especial de medicina, e ser
conhecido por tratar fraturas ou cuidar de deslocamentos urgentes; mas
além dessas pequenas particularidades, não sabíamos nada de seu cará-
ter e antecedentes.
Em escura noite de inverno — havia soado nove horas pouco antes
de o senhorio se juntar a nós — havia uma pessoa doente no George: o
grande proprietário das vizinhanças de repente teve ataque de apoplexia
a caminho do Parlamento; e o médico de Londres, ainda mais grandioso
que o grande homem, enviou-lhe telegrama em seu leito. Era a primeira
vez que algo assim acontecia em Debenham, porque não fazia muito
tempo que a estrada de ferro fora aberta, e todos ficamos proporcional-
mente comovidos com o ocorrido.
“Ele chegou”, disse o senhorio, após encher e acender o seu cachim-
bo.
“Ele?”, disse. “Quem — o médico?”
“Ele mesmo”, respondeu nosso anfitrião.
“Qual o nome dele?”
“Dr. Macfarlane”, disse o senhorio.
Fettes já estava no terceiro copo, estupidamente embriagado, e ora
assentia, ora observava confuso ao redor; mas com a última palavra pa-
receu despertar, e repetiu duas vezes o nome “Macfarlane”, com calma
na primeira vez, e com emoção repentina na segunda.
“Sim”, disse o senhorio, “é o nome dele, dr. Wolfe Macfarlane.”
Fettes ficou sóbrio na hora; seus olhos despertaram, a voz clareou,
alta, e firme, a linguagem enérgica e fervorosa. Todos nos estarrecemos
com a transformação, como alguém se levantasse dos mortos.
“Desculpe-me”, disse. “Receio não prestar muita atenção à conver-
sa. Quem é esse Wolfe Macfarlane?”, e então, após ouvir o senhorio,
“não pode ser, não pode ser”, acrescentou; “mas ainda quero vê-lo cara
a cara.”
“Você o conhece, Doutor?”, perguntou o agente funerário, com en-
gasgo.
“Deus ajude que não!”, foi a resposta. “Mas ainda assim é nome in-
comum; seria demais imaginar que houvessem dois. Diga-me, senhor,
ele é velho?”
“Bem”, disse o anfitrião, “não é um rapaz, com certeza, e seu cabelo
é branco; mas parece mais novo que você.”
“Entretanto é mais velho; anos mais velho. Mas”, estapeou a mesa,
“é o rum que vocês veem em meu rosto — o rum e o pecado. Esse ho-
mem talvez tenha consciência tranquila e boa digestão. Consciência!
Escute o que tenho a falar. Talvez pensem que eu era um cristão bom,
velho e decente, não é? Mas não, eu não; nunca fui hipócrita. Voltaire
talvez fosse hipócrita em meu lugar; mas minha mente” — soltou rui-
doso piparote em sua cabeça careca — “a minha mente era boa e ativa, e
vi, mas não fiz suposições.”
“Se conhece esse médico”, me aventurei a observar, após pausa um
tanto terrível, “devo imaginar que não compartilha da boa opinião do
senhorio.”
Fettes não me deu atenção.
“Sim”, disse com súbita decisão, “preciso vê-lo cara a cara.”
Houve outra pausa, e então a porta bateu com força no primeiro an-
dar, e um passo foi ouvido na escadaria.
“É o médico”, exclamou o senhorio. “Olhe com atenção, e poderá
vê-lo.”
Não era preciso mais que dois passos para ir do pequeno salão até a
porta da velha estalagem de George; a larga escadaria de carvalho dava
quase para a rua; ali havia espaço para apenas um tapete turco entre o li-
miar da porta e o último degrau; mas este pequeno espaço todas as noi-
tes era bem iluminado, não apenas pela luz da escada acima e da grande
luz sinalizadora abaixo da placa, mas pela claridade aquecida da janela
do bar. Assim, o George se anunciava com esplendor aos passantes na
rua fria. Fettes andou em linha reta até o ponto, e nós, atrás, observa-
mos os dois homens se encontrarem, como um deles havia sentenciado,
cara a cara. O dr. Macfarlane era alerta e vigoroso. O cabelo branco re-
alçava sua fisionomia pálida e plácida, embora enérgica. Com opulência,
vestia tecido mais fino e linho mais branco, grande relógio de ouro pre-
so por corrente, e botões e óculos do mesmo material precioso. Usava
gravata bem enlaçada, branca e salpicada de lilás, e carregava no braço
confortável casaco de pele de viagem. Não havia dúvidas que passara os
anos, e exalava, como mostrado, riqueza e consideração; e era contraste
surpreendente ver o beberrão do salão — careca, sujo, pustulento, e pa-
ramentado no velho casaco de chamalote — confrontá-lo no fim da es-
cada.
“Macfarlane!”, disse um pouco alto, mais como arauto que amigo.
O grande médico deu passo curto no quarto degrau, como se a fa-
miliaridade da evocação o surpreendesse, e de algum modo o desrespei-
tasse.
“Toddy Macfarlane”, repetiu Fettes.
O londrino quase cambaleou. Encarou por rapidíssimo segundo o
homem diante de si, olhou para trás um tanto assustado, e então alar-
mado, “Fettes”, sussurou, “você!”.
“Sim”, disse o outro, “eu mesmo! Pensou que também estava mor-
to? Não é tão fácil esquecer um conhecido.”
“Shh”, exclamou o médico. “Shh! Shh! Este encontro é muito ines-
perado — vejo que está abatido. Confesso que mal o reconheci de pri-
meira; mas fico radiante — radiante pela oportunidade. Porque agora
deve ser tudo-bem e até-mais de uma vez só, já que meu cabriolé me es-
pera, e não posso perder o trem; mas você deveria — deixe-me ver —
sim — deveria me passar seu endereço, e logo contará com notícias mi-
nhas. Devemos fazer algo por você, Fettes. Receio que esteja na miséria;
mas devemos ver isso em nome dos bons tempos, como cantávamos nas
ceias.”
“Dinheiro!”, gritou Fettes; “Dinheiro seu! O dinheiro que recebi de
você está lá onde larguei, na chuva.”
O dr. Macfarlane havia falado, em alguma medida, com superiorida-
de e confiança, mas a energia incomum daquela recusa o devolveu à
confusão inicial.
O olhar horrível e temeroso perpassou sua fisionomia quase venerá-
vel. “Meu caro amigo”, disse, “seja como você quiser; jamais quis ofen-
dê-lo. Não me intrometerei em nada. Deixarei meu endereço, pelo
men…”
“Não desejo — não desejo descobrir que teto o abriga”, interrom-
peu o outro. “Ouvi seu nome; temi que fosse você; desejei saber se, afi-
nal, existia Deus; agora sei que não existe. Vá embora daqui!”
Ele estacou no meio do tapete entre a escada e a porta; e o grande
médico de Londres, para escapar, seria forçado a dar um passo para o
lado. Ficou evidente que hesitava, ao pensar nessa humilhação. Branco
como estava, havia brilho perigoso no óculos; mas enquanto ficava ali,
parado, indeciso, percebeu que o motorista do cabriolé observava da
rua tal cena incomum, e ao mesmo tempo espiou nosso pequeno grupo
de testemunhas no salão, amontoados no canto do bar. A presença de
tantas testemunhas fez com que decidisse sair de uma vez por todas. Ele
se agachou, se esfregando no lambril, e saltou como serpente, mirando a
porta. Mas sua tribulação não acabou por completo, pois quando passa-
va, Fettes o agarrou pelo braço e estas palavras vieram em sussurro do-
lorosamente nítido, “Você viu aquilo novamente?”
O médico de Londres, rico e famoso, gritou agudo e sufocado; em-
purrou o inquiridor pelo espaço aberto e, com as mãos na cabeça, fugiu
pela porta como ladrão reconhecido. Antes de qualquer um de nós pen-
sar em fazer algo, o cabriolé já chacoalhava rumo à estação. A cena foi
como sonho, mas o sonho deixara traços e provas de sua passagem. Um
dia depois, o criado encontrou os belos óculos de ouro quebrados no li-
miar da porta, e na mesma noite ficamos, sem fôlego, diante da janela
do bar, e Fettes ao nosso lado, sóbrio, pálido e de olhar resoluto.
“Que Deus nos proteja, sr. Fettes!”, disse o senhorio, o primeiro a
voltar aos sentidos normais. “O que diabos foi isso? Isso que nos diz é
muito estranho.”
Fettes se virou para nós e observou cada rosto, um a um. “Tentem
manter a boca fechada”, disse. “Não é seguro cruzar com esse tal de
Macfarlane; aqueles que fizeram isso se arrependeram tarde demais.”
E então, sem sequer terminar o terceiro copo, longe de esperar pelos
outros dois, disse adeus e seguiu, sob o lampião do hotel, para dentro
da noite escura.
Nós três nos viramos para nossos lugares no salão, com o grande fo-
go vermelho e quatro velas acesas; e conforme recapitulávamos o que
havia acontecido, o primeiro calafrio de surpresa logo se transformou
em fagulha de curiosidade. Estava tarde; que saiba foi a reunião mais
tardia no velho George. Cada homem, antes de partir, tinha sua teoria e
queria prová-la; e nenhum de nós tinha outro dever no mundo além de
traçar o passado de nossa desafortunada companhia, e descobrir o se-
gredo que compartilhava com o grande médico londrino. Não é grande
vanglória, mas creio ter mais talento para desenrolar uma história que
meus amigos no George; e talvez agora não haja nenhum outro homem
vivo que pudesse narrar os eventos abomináveis e anormais a seguir.
Nos dias de juventude, Fettes estudou medicina nas escolas de
Edimburgo. Tinha certo talento, o talento de quem capta rapidamente o
que escuta e logo o retém para si. Estudava pouco em casa; mas era cor-
tês, atento, e inteligente na presença dos mestres. Logo o identificaram
como quem ouvia com atenção e se lembrava bem; ou melhor, por es-
tranho que parecesse quando ouvi isso pela primeira vez, naqueles dias
era favorecido e bajulado pela aparência. Havia, nessa época, certo pro-
fessor de anatomia de extensão universitária, que devo designar pela le-
tra K — seu nome, portanto, era muito conhecido. O homem que o le-
vava se esgueirava disfarçado pelas ruas de Edimburgo, quando a multi-
dão que aplaudia a execução de Burke clamava pelo sangue de seu pa-
trão.[1] Mas o sr. K⸻ nessa época estava no auge da fama; gozava de
popularidade, em parte devido ao próprio talento e habilidade, em parte
à incapacidade do rival, professor da universidade. Os estudantes, ao
menos, juravam por ele, e o próprio Fettes acreditava, e os outros acre-
ditavam, que alcançaria o sucesso quando conseguisse a proteção desse
homem de fama meteórica. O sr. K⸻ era tanto bon vivant como pro-
fessor bem-sucedido; gostava tanto da alusão astuta quanto do preparo
cuidadoso. Em ambas as habilidades, Fettes desfrutava e merecia sua
atenção, e no segundo ano de aulas conseguiu a posição semirregular de
segundo monitor ou subsecretário das aulas.
Nessa posição, o encargo do auditório e da sala de palestras em par-
ticular ficaram sobre seus ombros: era responsável pela limpeza das de-
pendências e conduta dos outros estudantes, e era parte de seu dever su-
prir, receber, e separar os diversos indivíduos. Foi com o objetivo desse
último — na época muito delicado — assunto que ficou alojado com o
sr. K⸻ na mesma viela, e por fim no mesmo prédio, na sala de disse-
cação. Aqui, após uma noite de prazeres turbulentos, a mão ainda vaci-
lante, as vistas ainda embaçadas e confusas, foi chamado para fora da ca-
ma de madrugada, antes da aurora invernal, pelos negocistas sujos e de-
sesperados que supriam a mesa. Abria a porta para eles, de má-fama em
toda a região. Ele os ajudava com o trágico fardo, lhes pagava o sórdido
valor, e ficava sozinho, após partirem, com aquelas relíquias hostis da
humanidade. De tal cena, saía para tirar mais umas duas horas de cochi-
lo, recuperar-se dos exageros da noite, e renovar-se para os labores do
dia.
Poucos sujeitos poderiam ser mais insensíveis às impressões da vida
assim passada entre os emblemas da mortalidade. Sua mente estava fe-
chada para todas as considerações gerais. Escravo dos próprios desejos e
ambições baixas, era incapaz de sentir interesse pelo destino e fortuna
do próximo. Frio, leve, e egoísta ao máximo, tinha aquela quantidade
módica de prudência, confundida com moralidade, que mantém alguém
longe da embriaguez inconveniente ou do roubo punível. Cobiçava,
além disso, a consideração de mestres e colegas, e não desejava cometer
erros espalhafatosos na vida pública. Assim, se esforçava para conseguir
alguma distinção nos estudos, e dia após dia prestava serviços impecá-
veis aos olhos de seu patrão, o sr. K⸻. Compensava o dia de trabalho
com noites de prazer selvagens e depravadas, e quando a balança se que-
brava, o órgão que chamava de consciência se declarava satisfeito.
O suprimento de indivíduos era problema contínuo tanto para ele
quanto para seu mestre. Naquela classe grande e ocupada, o material
bruto dos anatomistas esgotava sempre; e questão fundamental como
essa não era desagradável apenas em si, mas ameaçava ter consequências
perigosas para todos os interessados. Era a política do sr. K⸻ não fa-
zer nenhuma pergunta nas negociações. “Eles trazem o corpo, e nós pa-
gamos o valor”, dizia apoiado pela aliteração — “quid pro quo”.[2] E,
mais uma vez, de modo um tanto profano, “Não pergunte”, dizia aos
assistentes, “em nome de sua consciência”. Não subentendia-se que os
indivíduos eram providenciados com o crime do assassínio. Fosse aque-
la ideia articulada em palavras, ele teria se encolhido de horror; mas a le-
veza de seu discurso sobre assunto tão grave era, em si mesma, ofensa
contra as boas maneiras, e tentação para os homens com quem lidava.
Fettes, por exemplo, frequentemente atentava para o singular frescor
daqueles corpos. Por várias vezes ficara chocado com o aspecto decrépi-
to e abominável dos rufiões que iam até ele antes do amanhecer; e ao
juntar as peças com clareza em seu pensamento, talvez atribuísse signifi-
cado demasiado imoral e categórico aos conselhos aleatórios do mestre.
Entendia que seu dever, em resumo, tinha três ramificações: receber o
que lhe era levado, pagar o valor e evitar perceber qualquer evidência de
crime.
Certa manhã de novembro, essa política do silêncio foi severamente
testada. Ele passara a noite inteira acordado devido a dor de dente ex-
cruciante — andava pelo quarto como besta enjaulada e se jogava com
fúria na cama — e por fim caiu naquele sono profundo e inquieto que
tão frequentemente segue a noite de dor, quando foi despertado pela
terceira ou quarta repetição enraivecida da batida combinada. Havia lu-
ar fino e brilhante; fazia frio terrível, com vento e geada; a cidade ainda
não havia despertado, mas a agitação indefinível já prenunciava o baru-
lho e o comércio do dia. Os saqueadores haviam chegado mais tarde
que o normal, e pareciam mais ansiosos para sair que o comum. Fettes,
morrendo de sono, iluminou o caminho da escada para eles, e ouviu su-
as vozes irlandesas resmungarem em sonho; e conforme arrancavam do
saco a sua triste mercadoria, ele cochilava, inclinado, com o ombro es-
corado na parede; teve de se chacoalhar para encontrar o dinheiro dos
homens. Ao fazê-lo, os olhos se encontraram com o rosto morto. So-
bressaltou-se e aproximou-se dois passos com a vela levantada.
“Deus do Céu!”, gritou. “Essa é Jane Galbraith!”
Os homens não responderam nada, mas se mexeram perto da porta.
“Eu a conheço, é o que estou dizendo”, continuou. “Estava viva e
saudável ainda ontem. Não é possível que tenha morrido; não é possível
que tenham conseguido este corpo de maneira honesta.”
“Não há dúvidas de que o senhor está completamente enganado”,
disse um deles.
Mas o outro olhou nos olhos de Fettes de modo sombrio, e pediu o
dinheiro na hora.
Era impossível entender mal a ameaça ou exagerar o perigo. O cora-
ção do rapaz falhou; gaguejou algumas desculpas, contou a soma, e viu
os odiosos visitantes partirem. Mal saíram e imediatamente foi tirar as
suas dúvidas. Por uma dúzia de indícios inquestionáveis, identificou a
garota com quem gracejara no dia anterior. Viu, com horror, marcas no
corpo que podiam indicar violência. Foi tomado por certo pânico e se
refugiou no quarto. Ali, refletiu bastante da descoberta que fizera; pen-
sou sobriamente na consistência das instruções do sr. K⸻ e no perigo
a si próprio de interferir em assunto tão sério, e por fim, com perplexi-
dade pesarosa, decidiu esperar pela recomendação do superior imediato,
o assistente da classe.
Tratava-se de jovem médico, Wolfe Macfarlane, muito querido entre
todos os estudantes desleixados, esperto, prolixo, e inescrupuloso ao
máximo. Havia viajado e estudado fora, seus modos eram agradáveis e
um pouco avançados, era autoridade em público, habilidoso no gelo ou
na terra com os patins ou o taco de golfe. Vestia-se com muita audácia,
e, para pôr o último toque em sua glória, possuía cavalo para trotar e
cabriolé. Era íntimo de Fettes; na verdade, as tarefas relacionadas faziam
com que convivessem; e quando faltavam indivíduos, os dois iam bas-
tante ao campo, no cabriolé de Macfarlane, para visitar e profanar al-
gum cemitério solitário, e antes do amanhecer retornavam com a pilha-
gem à porta do salão de dissecação.
Naquela manhã em particular, Macfarlane chegou um pouco mais
cedo que o habitual. Fettes o ouviu, o encontrou na escada, contou a
história, e lhe mostrou o motivo do alarme. Macfarlane examinou as
marcas no corpo.
“Sim”, disse com aceno, “parece suspeito.”
“Bem, o que devo fazer?”, perguntou Fettes.
“Fazer?”, repetiu o outro. “Você quer fazer alguma coisa? Quem
pouco fala, muito faz, devo dizer.”
“Alguém mais pode reconhecê-la”, objetou Fettes. “Era tão conhe-
cida quanto Castle Rock.”
“Esperemos que não”, disse Macfarlane, “e que se alguém reconhe-
cer — bem, você não reconheceu, não vê, e acabou. O fato é, isso vem
acontecendo há muito tempo. Fuce na lama, e colocará K⸻ na maior
desgraça; você mesmo acabará num caixão horripilante. Eu também,
por sinal. Gostaria de saber como ficaria o estado de qualquer um de
nós, ou o que diabos contaríamos para nós mesmos em qualquer teste-
munho cristão. Para mim, você sabe que uma coisa é certa — que, falan-
do de modo prático, todos os nossos indivíduos foram assassinados.”
“Macfarlane!”, gritou Fettes.
“O que é isso!”, zombou o outro. “Como se você nunca houvesse
suspeitado!”
“Suspeitar é uma coisa…”
“E provar é outra. Sim, eu sei; e lamento tanto quanto você que te-
nha chegado a este ponto”, e deu pancadinha no corpo com a bengala.
“A melhor coisa para mim é não o reconhecer; e”, acrescentou com fri-
eza, “não o reconheço. Você pode, se quiser. Não ordenarei isso, mas
acho que um homem do mundo deve agir como eu; e, posso acrescen-
tar, imagino que seja isso o que K⸻ procuraria em nossas mãos. A
pergunta é, por que escolheu nós dois como assistentes? Eu respondo:
porque não queria velhas matronas.”
Entre todos, era justamente esse o tom que afetava a mente de um
sujeito como Fettes. Concordou em imitar Macfarlane: o corpo da infe-
liz garota foi devidamente dissecado, e ninguém comentou ou pareceu
reconhecê-la.
Certa tarde, quando a jornada de trabalho havia se acabado, Fettes
entrou numa taverna popular e encontrou Macfarlane com um estra-
nho, que era pequeno, muito pálido e sombrio, olhos negros como car-
vão. As linhas de seus traços prometiam intelecto e refinamento, não
exatamente apresentado por seus modos, pois se mostrou, após maior
aproximação, rude, vulgar e estúpido. Exercia, no entanto, memorável
controle sobre Macfarlane; proferia ordens como o Grande Paxá; infla-
mava-se com a menor discussão ou atraso, e tecia comentários grossei-
ros a respeito do servilismo com que era obedecido. Essa pessoa tão
agressiva gostou de Fettes de imediato, o encheu de bebida, e o honrou
com confidências incomuns de sua carreira regressa. Se um décimo do
que confessou fosse verdade, era poltrão bastante desprezível; e a vaida-
de do rapaz era atiçada pela atenção de alguém tão experiente.
“Sou mesmo sujeito muito ruim”, observou o estranho, “mas Mac-
farlane é o maior — Toddy Macfarlane, o chamo. Toddy, peça outra be-
bida para seu amigo.” Ou talvez, “Toddy, levante-se e feche a porta.”
“Toddy me odeia”, disse novamente. “Oh, sim, Toddy, odeia sim!”
“Não me chame com esse nome ridículo”, grunhiu Macfarlane.
“Escuta isso! Você já viu os rapazes brincarem com a faca? Ele tem
vontade de fazer isso com o meu corpo inteiro”, observou o estranho.
“Nós médicos temos maneira melhor de fazer isso”, disse Fettes.
“Quando não gostamos de um camarada, o dissecamos.”
Macfarlane fitou-o com olhar incisivo, embora mal tivesse pensado
na piada.
A tarde passou. Gray, o nome do estranho, convidou Fettes a se
juntar a eles para jantar, pediu um banquete tão suntuoso que a taverna
entrou em comoção, e quando tudo acabou, mandou que Macfarlane
acertasse as contas. Era tarde quando se separaram; o tal do Gray caía
de bêbado. Macfarlane, sóbrio de fúria, mastigou o maço de dinheiro
que foi forçado a desperdiçar e o desrespeito que foi obrigado a engolir.
Fettes, com a cantoria de diversas bebidas na cabeça, voltou para casa
com passos tortuosos e a mente inteiramente em suspensão. No outro
dia, Macfarlane não foi à aula, e Fettes sorriu para si mesmo ao imaginá-
lo ainda escoltando de taverna a taverna o insuportável do Gray. Assim
que soou a hora de sair, passou de um lugar ao outro em busca das
companhias da noite anterior. No entanto, não conseguiu encontrar
ninguém em lugar algum; então voltou logo ao dormitório, deitou-se
cedo, e dormiu o sono dos justos.
Às quatro da manhã, foi despertado pela conhecidíssima batida.
Desceu até a porta e foi dominado pelo espanto ao encontrar Macfarla-
ne com o cabriolé, que continha um daqueles pacotes compridos e pa-
vorosos que conhecia tão bem.
“O quê?”, gritou. “Você foi sozinho? Como conseguiu?”
Mas Macfarlane o silenciou com aspereza e ordenou que trabalhas-
se. Quando subiram as escadas com o corpo e o puseram na mesa, Mac-
farlane primeiro indicou que sairia. Então parou e pareceu hesitar; e: “É
melhor você olhar o rosto”, disse, em tom algo constrangido. “É me-
lhor”, repetiu, pois Fettes apenas o encarou com surpresa.
“Mas onde, e como, e quando o encontrou?”, exclamou o outro.
“Olhe o rosto”, foi a única resposta.
Fettes ficou estupefato; dúvidas estranhas o assaltaram. Olhou do
jovem médico para o corpo, e mais uma vez para Macfarlane. Por fim,
com sobressalto, obedeceu. Meio que esperava a imagem que se encon-
trou com seus olhos, e ainda assim o choque foi cruel. Ver, fixado na ri-
gidez da morte e nu naquela camada ordinária de aniagem, o homem
que deixara bem-vestido e cheio de carne e de pecado na porta da taver-
na, despertou, mesmo no distraído Fettes, alguns dos terrores da cons-
ciência. Era cras tibi[3] que ecoava mais uma vez em sua alma, que dois
conhecidos dele jazessem naquelas gélidas mesas. Ainda assim, aqueles
eram apenas pensamentos secundários. A primeira preocupação era
com Wolfe. Despreparado para desafio tão importante, não sabia como
olhar para o rosto de seu camarada. Evitou seus olhos, e não tinha nem
palavras nem voz em seu comando.
Foi o próprio Macfarlane quem agiu primeiro: chegou calmamente
por trás e gentil, porém com firme, pousou a mão no ombro do outro.
“Richardson”, disse, “poderá ficar com a cabeça.”
Richardson era o estudante que há tempos ansiava por dissecar
aquela parte do corpo humano. Não houve resposta, e o assassino con-
tinuou: “Por falar em negócios, você me deve; pague suas contas, vê,
elas devem bater”.
Fettes encontrou uma voz, fantasma de sua própria: “Pagá-lo!”, ex-
clamou. “Pagá-lo por isso?”
“Ora, sim, claro que deve. De todo modo e afinal de contas, deve
sim”, respondeu o outro. “Não ouso deixá-lo por nada, você não ousa
pegá-lo por nada; isso comprometeria nós dois. É outro caso como o de
Jane Galbraith. Quanto mais as coisas estiverem erradas, mais agimos
como se estivessem certas. Onde o velho K⸻ guarda o dinheiro?”
“Ali”, respondeu Fettes com a voz rouca, apontando para o armário
no canto.
“Então me dê a chave”, disse o outro, calmamente, segurando sua
mão.
Houve um instante de hesitação, e o molde fundiu. Macfarlane não
pôde deixar de sentir o espasmo nervoso, sinal infinitesimal de alívio
imenso, ao toque da chave entre os dedos. Abriu o armário, tirou caneta
e tinta e o caderno de notas que ficava em um compartimento, e sepa-
rou dos fundos da gaveta a soma adequada à ocasião.
“Agora, olha aqui”, disse, “ali está o pagamento feito — a primeira
prova de sua boa-fé: o primeiro passo para a sua segurança. Agora tem
que confirmá-la por uma segunda. Dê entrada do pagamento no livro, e
então por sua parte pode desafiar o diabo.”
Os poucos segundos que se seguiram foram uma agonia para Fettes;
mas ao balancear os medos, foi o mais imediato que triunfou. Qualquer
dificuldade futura parecia quase bem-vinda, se pudesse evitar disputa
com Macfarlane naquele momento. Baixou a vela que segurava por todo
aquele tempo, e com mão firme deu entrada na data, natureza, e quantia
da transação.
“E agora”, disse Macfarlane, “nada mais justo que embolse o lucro.
Já peguei a minha parte. Por sinal, quando um homem do mundo trom-
ba com um pouco de sorte, e tem uns xelins a mais no bolso — sinto
vergonha em afirmá-lo, mas há regra de conduta para a ocasião. Nada
de festejar, nada de comprar livros escolares caros, nada de quitar dívi-
das antigas; pegue emprestado, não empreste.”
“Macfarlane”, começou Fettes, ainda um pouco rouco, “pus a corda
em meu pescoço para favorecê-lo.”
“Para me favorecer?!”, exclamou Wolfe. “Ah, o que é isso? Você fez,
até onde posso ver, exatamente o que precisava para se proteger. Diga-
mos que arrumasse problemas, onde estaria? Essa segunda bagatela de-
riva claramente da primeira. O sr. Gray é a continuação da srta. Gal-
braith. Você não pode começar e depois parar. Se começa, deve seguir
começando; eis a verdade. Sem descanso para os malvados.”
Uma horrível sensação de escuridão e perfídia do destino assaltou a
alma do infeliz estudante.
“Meu Deus!”, gritou, “mas o que eu fiz? E quando comecei? Tor-
nar-se assistente da classe — em nome da razão, qual o mal nisso? O
Serviço precisava da posição; o Serviço poderia ter conseguido. Estaria
ele onde eu estou agora?”
“Meu caro amigo”, disse Macfarlane, “não seja infantil! Qual foi o
seu prejuízo? Qual prejuízo que poderá lhe acometer, caso segure a lín-
gua? Ora, homem, sabe o que é a vida? Existem dois esquadrões entre
nós — os leões e os cordeiros. Se você é cordeiro, haverá de se deitar
nessas mesas, tal qual Gray ou Jane Galbraith; se é leão, viverá e condu-
zirá o cavalo, que nem eu, que nem K⸻, que nem todos no mundo
com alguma inteligência ou coragem. No começo, gaguejou. Mas olhe
para K⸻! Meu caro amigo, você é esperto, tem espírito. Gosto de vo-
cê, e K⸻ gosta de você. Nasceu para liderar a caça; e lhe conto, por
minha honra e experiência de vida, daqui a três dias você rirá desses es-
pantalhos como um colegial de uma farsa.”
E com isso Macfarlane partiu e conduziu até o beco o cabriolé para
chegar a um teto antes da luz do dia. Assim, Fettes foi abandonado com
seus remorsos. Viu o perigo miserável em que estava envolvido. Viu,
com desânimo inexprimível, que não havia limites para a sua fraqueza, e
que, de concessão a concessão, fora de árbitro do destino de Macfarlane
a cúmplice pago e desamparado. Daria o mundo para ser mais corajoso
na hora, mas não lhe ocorreu que ainda poderia ser corajoso. O segredo
de Jane Galbraith e o maldito registro no livro fecharam sua boca.
Horas se passaram; a classe começou a chegar; os membros do des-
graçado Gray passaram de uma mão a outra, e foram recebidos sem
atenção. Richardson ficou feliz com a cabeça; e antes de tocar a hora pa-
ra saírem, Fettes tremeu de exultação ao perceber como já haviam se
distanciado em segurança.
Por dois dias, observou, com alegria crescente, o horripilante pro-
cesso de disfarce.
No terceiro dia Macfarlane apareceu. Estivera doente, disse; mas
compensou o tempo perdido com a energia que se dirigiu aos estudan-
tes. Para Richardson em particular, fornecera assistência e conselho vali-
osíssimos, e o estudante, encorajado pelo elogio do monitor, ardeu com
ambições e esperanças, e vislumbrou de antemão a medalha em seu pal-
mo.
Antes de a semana terminar, a profecia de Macfarlane fora concreti-
zada. Fettes superou os temores e esquecera a humilhação. Começou a
se vangloriar de sua coragem, de modo que organizou uma história em
sua mente para que pudesse retomar esses eventos com um orgulho in-
salubre. De seu cúmplice, viu apenas um pouco. Eles se encontraram,
obviamente, por causa da classe; juntos recebiam as ordens do sr. K⸻.
Às vezes trocavam uma ou duas palavras em particular, e Macfarlane era
da primeira à última especialmente gentil e jovial. Mas estava claro que
evitava qualquer referência ao segredo comum; e mesmo quando Fettes
lhe sussurrava que se juntara ao seu destino de leão e que repudiava os
cordeiros, apenas sinalizava sorridente para ficar em paz.
Com o tempo, surgiu a ocasião para aproximar a dupla mais uma
vez. O sr. K⸻ estava com poucos indivíduos novamente; os alunos
estavam ansiosos, e era parte das pretensões do professor estar sempre
bem suprido. Ao mesmo tempo, chegou a notícia de enterro no rústico
cemitério de Glencorse. O tempo pouco alterou o lugar. Naquela época
ficava, como agora, numa encruzilhada, longe da atenção das habitações
humanas, e coberto por braças das folhas de seis cedros. Os berros das
ovelhas nas montanhas vizinhas, os regatos em cada lado, um que chia
alto entre seixos, o outro goteja furtivo de lago a lago, a agitação do
vento em velhos castanheiros em flor sobre a montanha, e uma vez em
sete dias a voz do sino e as velhas cantigas do corifeu, eram os únicos
sons que perturbavam o silêncio em volta da igreja rural. O Homem da
Ressurreição — para usar apelido da época — não devia ser intimidado
por qualquer uma das santidades da devoção costumeira. Era parte de
seu trabalho ignorar e profanar os arabescos e os laudatórios de túmu-
los antigos, os caminhos abertos pelos pés de adoradores e enlutados, e
as oferendas e inscrições de afeição desolada. As rústicas vizinhanças,
onde o amor é mais tenaz que o comum, e onde alguns laços de sangue
ou camaradagem unem toda a sociedade da paróquia, o apanhador de
corpos, longe de ser repelido por respeito natural, era atraído pela facili-
dade e segurança da tarefa. Aos corpos postos sob a terra, na alegre ex-
pectativa de despertar bem diferente, lhes vinha aquela ressurreição pela
pá e a picareta, apressada, assombrada e iluminada por lampiões. O cai-
xão era forçado, a mortalha rasgada, as tristes relíquias, revestidas por
aniagem, após chacoalhadas por horas em pequenas estradas sem lua,
eram por fim expostas a indignidades extremas diante da classe de garo-
tos boquiabertos.
Assim como dois abutres podem atacar um cordeiro prestes a mor-
rer, Fettes e Macfarlane avançavam sobre o túmulo naquele lugar de
descanso verde e tranquilo. A esposa de um fazendeiro, mulher que vi-
vera por sessenta anos, e não fora conhecida por nada além da boa man-
teiga e a conversa divina, era arrancada de seu túmulo à meia-noite e
carregada, morta e nua, para aquela distante cidade que sempre havia
honrado com a melhor roupa de domingo; o lugar ao lado de sua famí-
lia ficaria vazio até o despontar do julgamento; seus membros inocentes
e quase veneráveis eram expostos à última curiosidade dos anatomistas.
No fim de uma tarde, os dois pegaram a estrada, bem agasalhados
em capotes e abastecidos com uma garrafa das boas. Chovia sem trégua
— a chuva fria e densa os chicoteava. Volta e meia assoprava lufadas de
vento, mas essas camadas de água desciam direto. Mesmo com a garrafa,
era viagem triste e silenciosa até Penicuik, onde passariam o começo da
noite. Pararam uma vez, para esconder as ferramentas em arbusto não
muito distante do pátio da igreja, e mais uma vez se dirigiram até o
Fisher’s Tryst, para brindar diante do fogo da cozinha e alternar as do-
ses de uísque com um copo de ale. Quando finalmente chegaram, esta-
cionaram o cabriolé, alimentaram o cavalo e puseram o animal para des-
cansar, e os dois jovens médicos se sentaram em cômodo privado para o
melhor jantar e o melhor vinho da casa. As luzes, o fogo, a chuva na ja-
nela, o trabalho frio e absurdo ia diante deles, acrescentavam sabor à re-
feição. A cada copo, a cordialidade aumentava. Logo, Macfarlane entre-
gou pequena pilha de ouro ao companheiro.
“Um cumprimento”, disse. “Entre amigos essas acomodações pe-
quenas de m⸻a devem passar como o brilho de cachimbo.”
Fettes embolsou o dinheiro, e aplaudiu o sentimento até ecoar. “Vo-
cê é um filósofo”, exclamou. “Eu era um asno até conhecê-lo. Você e K
⸻, pelo lorde Harry! Serei homem por causa de vocês.”
“Claro”, aplaudiu Macfarlane. “Homem? Digo a você, foi preciso
um homem para me ajudar na manhã de ontem. Existem covardes gran-
des e brigões de quarenta anos que ficariam enjoados só de ver esses m
⸻s; mas você não, você manteve a cabeça firme. Eu percebi.”
“Bem, e por que não?”, Fettes se gabou. “Não era de minha conta.
Por um lado, não havia nada a ganhar além de perturbação, e pelo ou-
tro, podia contar com sua gratidão, não vê?” E estapeou o bolso até as
moedas de ouro tilintarem.
Macfarlane de algum modo se alarmou um pouco com essas pala-
vras desagradáveis. Talvez se arrependesse por ensinar tão bem o jovem
companheiro, mas não tinha tempo para interferir, porque o outro rui-
dosamente continuou a fanfarronice:
“O grande segredo é não ter medo de nada. Agora, entre mim e vo-
cê, não desejo ser enforcado — é questão prática; mas de todos os defei-
tos, Macfarlane, nasci com o desprezo. Inferno, Deus, Diabo, certo, er-
rado, pecado, crime, toda a velha galeria de curiosidades — essas coisas
podem assustar garotos, mas homens do mundo, como você e eu, as
desprezam. Este é em memória a Gray!”
Nesse momento, já estava um pouco tarde. O cabriolé, de acordo
com a ordem, foi levado para perto da porta com ambos os lampiões
bem acesos, e os jovens tiveram de pagar a conta e pegar a estrada.
Anunciaram que se dirigiam a Peebles, e seguiram nessa direção até es-
tar longe das últimas casas da cidadezinha; então, apagaram os lampiões,
voltaram à rota, e seguiram por estradinha paralela em direção a Glen-
course. Não havia som além daquele da própria passagem, e da inces-
sante e estridente queda da chuva. Estava completamente escuro; aqui e
ali um portão branco ou pedra branca na parede os guiavam pela noite
por espaço curto; mas na maior parte era no ritmo de pedestres, e quase
tateando, que seguiram a estrada na escuridão ressonante até seu destino
solene e isolado. Na mata inundada que atravessava a vizinhança da ne-
crópole, o último vislumbre se apagou, e se tornou necessário acender
fósforo e iluminar novamente uma das lanternas do cabriolé. Assim,
sob as árvores gotejantes, e envoltos por sombras gigantescas em movi-
mento, chegaram ao cenário de seus labores profanos.
Ambos eram acostumados àquele trabalho, e fortes com a pá; apenas
vinte minutos após começarem, foram recompensados com a pancada
surda na tampa do caixão. No mesmo momento, Macfarlane, que ma-
chucou a mão na pedra, a jogou com cuidado por cima da cabeça. A
tumba, em que agora estavam quase até os ombros, era próxima dos li-
mites do platô do cemitério; o lampião do cabriolé estava escorado, para
iluminar melhor o trabalho, contra uma árvore, exatamente na beira do
íngreme barranco de areia que dava para o regato. Por acaso, a mira
com a pedra fora certeira. Então soou o ruído de vidro quebrado; a noi-
te os engoliu; sons alternados surdos e estridentes anunciaram que a
lanterna descia o barranco de areia, até a eminente colisão com as árvo-
res. Uma ou duas pedras, que deslocadas com a descida, bateram no fim
do vale; e então o silêncio, como a noite, continuou seu ritmo; poderi-
am tentar escutar ao máximo, mas não havia nada para ouvir além da
chuva, ora deslocada com o vento, ora caindo direto, por quilômetros
de terra aberta.
Estavam tão perto de terminar essa tarefa abominável, que julgaram
ser mais inteligente completá-la no escuro. O caixão foi exumado e ar-
rombado; o corpo inserido no saco gotejante e carregado até o cabriolé;
um subiu para ajustá-lo no lugar, e o outro puxou o cavalo pela boca,
tateou pelo muro e arbusto até alcançar a estrada principal, ao lado da
Fisher’s Tryst. Ali havia resplendor fraco e difuso, que saudaram como
a luz do dia; com isso conduziram o cavalo até a um ritmo bom e cha-
coalharam alegres em direção à cidade.
Ambos se encharcaram durante a operação, e agora, conforme o ca-
briolé pulava entre os profundos sulcos da estrada, a coisa escorada en-
tre eles ora caía sobre um, ora sobre o outro. Sempre que aquele contato
horrendo se repetia, cada um instintivamente o repelia depressa; e o
processo, embora natural, começou a enervar os companheiros. Macfar-
lane fez piada obscena a respeito da esposa do fazendeiro, mas saiu va-
zia de seus lábios, e tudo ficou em silêncio. Assim, aquele fardo anormal
batia de um lado a outro; e ora a cabeça caía, como em confidência so-
bre seus ombros, ora o saco encharcado os acertava no rosto, e os esfri-
ava. Um frio horripilante possuiu a alma de Fettes. Espiou o embrulho,
e, de algum modo, aquilo lhe pareceu maior que antes. Por todo o inte-
rior, e de todas as distâncias, os cães de fazenda acompanhavam sua pas-
sagem com ululações trágicas; e cresceu cada vez mais em sua mente a
noção de que algum milagre sobrenatural havia acontecido, que alguma
mudança inominável havia recaído no corpo morto, e que era por medo
da carga profana que os cães uivavam.
“Pelo amor de Deus”, disse, em grande esforço para começar a falar,
“pelo amor de Deus, precisamos acender a luz!”
Pelo visto Macfarlane estava igualmente afetado, pois, embora não
respondesse, parou o cavalo, passou as rédeas ao companheiro, desceu,
e acendeu o outro lampião. Àquela altura não haviam passado do cruza-
mento que dava em Auchenclinny. A chuva ainda caía como se o dilú-
vio recomeçasse, e não era fácil acender fogo naquele mundo de umida-
de e escuridão. Quando a oscilante chama azul finalmente foi transferi-
da ao pavio, expandiu e clareou, e verteu grande círculo de brilho ene-
voado em volta do cabriolé, foi possível aos dois jovens observarem um
ao outro e a carga que levavam. A chuva havia modelado na rústica sa-
caria os contornos do corpo ali dentro; a cabeça distinta do tronco, a
forma dos ombros bastante evidente; algo ao mesmo tempo espectral e
humano fixou os olhos sobre seu pavoroso companheiro de viagem.
Por algum tempo Macfarlane ficou imóvel, o lampião na mão. Um
horror sem nome envolvia, como lençol molhado, o corpo, e esticava a
pele branca diante do rosto de Fettes; um medo inexplicável, pavor do
que não podia existir, continuou a subir à cabeça. Outra batida no reló-
gio, e teria falado. Mas seu camarada o comunicou.
“Isso não é mulher”, disse Macfarlane em voz baixa.
“Era mulher quando a colocamos aqui dentro”, sussurrou Fettes.
“Segure o lampião”, disse o outro. “Preciso ver o rosto.”
Após Fettes pegar o lampião, o companheiro desamarrou as travas
do saco e abaixou a cobertura da cabeça. A luz caiu com muita clareza
nos traços escuros e bem formados, e as bochechas barbeadas de fisio-
nomia demasiado familiar, vista com frequência nos sonhos de ambos
os homens. Um grito selvagem ressoou na noite; cada um saltou de seu
lado para a estrada; o lampião caiu, se quebrou, e apagou; e o cavalo, as-
sustado com a comoção incomum, disparou e seguiu até Edimburgo a
galope, e levou consigo o único ocupante do cabriolé, o corpo dissecado
há tempos do finado Gray.
OLALLA
ROBERT LOUIS STEVENSON

1885

“Agora”, disse o médico, “a minha parte está feita, e, posso dizer com
alguma vaidade, benfeita. Falta apenas tirar você desta cidade fria e ve-
nenosa e lhe providenciar dois meses de ar puro e consciência tranquila.
Esse último quesito é encargo seu. Quanto ao primeiro, creio que posso
ajudá-lo. Na verdade, é bem esquisito; mas ontem mesmo o Padre veio
do interior; e como somos velhos amigos, apesar das profissões opostas,
ele veio até mim por conta de algo que anda perturbando alguns de seus
párocos. Era uma família — mas você não sabe muito sobre a Espanha,
e mesmo o nome de nossos nobres lhe são pouco conhecidos; basta di-
zer, então, que já foram pessoas importantes, agora decaídos à beira da
miséria. Agora nada mais lhes pertence, além da residência e de certas
léguas de montanha deserta, na maior parte das quais nem mesmo um
bode sobreviveria. Mas a casa é antiga e elegante, e fica a boa altura en-
tre as colinas, e é bastante salubre; e mal escutei o relato de meu amigo,
me lembrei de você. Contei-lhe que tinha um oficial ferido, ferido por
boa causa, que agora podia fazer a mudança; e propus que amigos dele o
hospedassem. O rosto do Padre escureceu no mesmo instante, como eu
maliciosamente previra. Estava fora de questão, ele disse. Então, deixe-
os morrer de fome, eu disse, pois não tenho nenhuma simpatia pelo or-
gulho maltrapilho. Depois disso nos separamos, não muito contentes
um com o outro; mas ontem, para o meu espanto, o Padre retornou e
fez uma proposta: a dificuldade, disse, descoberta após perguntar, era
menor que o esperado; ou, em outras palavras, essas pessoas orgulhosas
tiveram de guardar o orgulho no bolso. Aceitei a oferta; e, sujeito à sua
aprovação, aluguei quartos da residência para você. O ar dessas monta-
nhas renovará o seu sangue; e a tranquilidade com a qual viverá por lá é
equivalente a todos os remédios do mundo.”
“Doutor”, disse eu, “você tem sido o meu anjo da guarda por todo
esse tempo, e seu conselho é uma ordem. Mas, por favor, me conte algo
a respeito da família com quem viverei.”
“Já ia chegar lá”, respondeu o meu amigo; “e, na verdade, há um
problema no caminho. Esses mendicantes são, como disse, de linhagem
muito nobre e enfatuados por vaidades sem qualquer fundamento; vive-
ram por algumas gerações em isolamento crescente, evitando, por um
lado, os ricos que agora se tornaram nobres demais para eles, e os po-
bres, que ainda tinham como muito baixos; e mesmo hoje, quando a po-
breza os força a destrancarem suas portas para um convidado, não con-
seguem fazer isso sem alguma condição extremamente descortês. Você
deverá permanecer, dizem, um forasteiro; lhe darão assistência, mas re-
cusam desde já a menor intimidade que seja.”
Não nego que fiquei curioso, e talvez essa sensação fortaleceu o de-
sejo de ir, pois estava confiante que poderia quebrar a barreira, se dese-
jasse. “Não há nada de ofensivo nessa condição”, falei; “chego até a
simpatizar com o sentimento que a inspirou.”
“É verdade que nunca viram você”, afirmou o médico educadamen-
te; “e se soubessem que é o homem mais bonito e agradável que já sur-
giu na Inglaterra (de onde me dizem que homens bonitos são comuns,
mas agradáveis nem tanto), sem dúvidas lhe receberiam com mais corte-
sia. Mas já que aceita isso tão bem, não importa. A mim, na verdade, pa-
rece deselegante, mas você se mostrará o favorecido, e a família não o
tentará tanto. Uma mãe, um filho, uma filha; uma velha que dizem ser
lenta da cabeça, um tabaréu do campo, uma garota do campo, que se dá
muito bem com o confessor, e, portanto”, o médico riu abafado, “muito
provavelmente sem nenhuma graça; não há muito o que atiçar as fanta-
sias do impetuoso oficial.”
“Mas, ainda assim, você diz que são bem-nascidos”, objetei.
“Bem, quanto a isso, deveria fazer uma distinção”, replicou o médi-
co. “A mãe é; os filhos, nem tanto. A mãe era a última representante da
linhagem de uma princesa, degenerada tanto nos genitores como na for-
tuna. Seu pai não apenas era pobre, ele era louco; e então a garota viveu
sem controle nos arredores da residência até a morte dele. Assim, boa
parte da fortuna morreu com ele, e com a família quase extinta, a garota
ficou mais selvagem que nunca, até que finalmente casou, Deus sabe
com quem; um muleiro, alguns dizem, um contrabandista, de acordo
com outros, enquanto alguns sustentam que sequer houve casamento, e
que Felipe e Olalla são bastardos. A união, seja como for, foi tragica-
mente dissolvida há alguns anos; mas vivem em tal reclusão, e o local
naquela época estava em tamanha desordem, que o modo preciso de co-
mo o homem se foi é conhecido apenas pelo clérigo — se chega a tan-
to.”
“Começo a achar que terei experiências estranhas”, afirmei.
“Eu não romantizaria isso se fosse você”, respondeu o médico; “en-
contrará, acredito, realidade bastante baixa e ordinária. Felipe, por
exemplo, eu vi. E o que deveria dizer? É muito rústico, muito hábil,
muito bruto, e, devo dizer, um inocente; os outros provavelmente de-
vem ser a mesma coisa. Não, não, señor comandante, procure socializa-
ção apropriada com as grandes vistas de nossas montanhas; e com essas,
ao menos, se você for um amante dos trabalhos da natureza, prometo
que não se desapontará.”
No dia seguinte, Felipe veio me buscar em carroça grosseira, levada
por mula; e pouco antes de atingir o meio-dia, após dar adeus ao médi-
co, ao estalajadeiro, e a diversas almas boas que fizeram amizade comi-
go durante minha doença, seguimos para fora da cidade pelo portão les-
te, e subimos a Sierra. Havia ficado preso por tanto tempo, desde que
fora deixado para morrer após a perda do comboio, que o mero cheiro
da terra me fez sorrir. A estrada por onde seguíamos era malfeita e pe-
dregosa, parcialmente coberta por árvores selvagens, ora o sobreiro, ora
o grande castanheiro espanhol, e frequentemente interseccionada pelos
leitos de torrentes das montanhas. O sol estava forte, e o vento sibilava
com alegria; havíamos avançado alguns quilômetros, e a cidade já havia
diminuído até parecer um montinho insignificante na planície atrás de
nós, antes que a minha atenção se dirigisse ao companheiro de viagem.
Ao olhar, parecia mero sujeito do campo, diminuto, rústico, e bem
constituído, assim como o médico havia descrito, extremamente ágil e
ativo, mas desprovido de qualquer cultura; e essa primeira impressão,
para a maioria dos observadores, era definitiva. O que chamou a minha
atenção foi a conversa íntima e tagarela; tão estranhamente diversa dos
termos com que esperava ser recebido; e em parte por conta dessa enun-
ciação imperfeita, em parte por conta da vivaz incoerência do assunto,
foi difícil acompanhá-lo com clareza sem esforço mental. É verdade que
antes já havia conversado com pessoas de constituição mental similar;
pessoas que pareciam viver (como ele) pelos sentidos, tomados e possu-
ídos pelo objeto visual do momento e incapazes de descartarem das
mentes aquela impressão. A sua me pareceu (eu sentado, ouvindo com
distanciamento) espécie de conversa apropriada a condutores, que pas-
sam boa parte do tempo sem utilizar o intelecto, atando as visões de re-
gião familiar. Mas esse não era o caso de Felipe; de acordo com o seu
próprio relato, era caseiro; “queria estar lá agora”, disse; e então, espiou
a árvore na beira do caminho, irrompeu a me contar que certa vez vira
um corvo em seus galhos.
“Corvo?”, repeti, espantado com a ineptidão do comentário, que
acreditei ouvir errado.
Mas, nessa altura, já estava absorto por nova ideia; escutava com
atenção arrebatada, a cabeça de lado, o rosto franzido; e me atingiu com
pancada forte, para que me calasse. Então sorriu e balançou a cabeça.
“Ouviu alguma coisa?”, perguntei.
“Oh, está tudo bem”, disse; e começou a impulsionar a mula com
gritos que ecoaram inumanamente pelos paredões de montanha.
Olhei para ele com mais atenção. Era superlativamente bem consti-
tuído, leve, flexível e forte; era apessoado; os olhos amarelos eram mui-
to grandes, embora, talvez, não muito expressivos; no todo, era sujeito
de aparência agradável, e não encontrei defeito nele, além da coloração
sombria, e certa tendência a ser peludo; duas características que não
gostava. Era a sua mente que me intrigava, até mesmo, me atraía. A fra-
se do médico — um inocente — me voltou à cabeça; e me perguntava se
aquilo era, afinal, descrição verdadeira, quando a estrada desceu em
abismo estreito e vazio de aguaceiro. As águas trovejavam tumultuosa-
mente no fundo; e a ravina era preenchida pelo ruído, o espirro fino, e
as pancadas do vento que acompanhavam a descida. A cena certamente
era impressionante; mas a estrada naquele trecho era bem protegida pe-
los paredões; a mula seguiu em frente sem vacilar; e fiquei atônito ao
perceber a palidez do rosto aterrorizado de minha companhia. A voz
daquele rio selvagem era inconstante, ora enfraquecia como que por
cansaço, ora duplicava os tons roucos; inundações momentâneas pareci-
am aumentar o seu volume, lavavam a garganta, rugiam e batiam-se
contra as paredes da barreira; e observei que era particularmente quan-
do o clamor aumentava que o meu condutor piscava e empalidecia. Pas-
saram pela minha mente o Kelpie dos rios[1] e alguns pensamentos de
superstição escocesa; perguntei-me se porventura algo parecido prevale-
cia naquela parte da Espanha; me virei para Felipe, e tentei retirá-lo da-
quilo.
“Qual o problema?”, perguntei.
“Oh, estou com medo”, respondeu.
“Medo de quê?”, devolvi. “Este parece um dos lugares mais seguros
nesta estrada tão perigosa.”
“Ela faz barulho”, disse com simplicidade de espanto que acalmou
as minhas dúvidas.
Quanto ao intelecto, o rapaz não passava de criança; a mente era co-
mo o corpo, ativo e ágil, mas de desenvolvimento atrofiado; e daquele
momento em diante comecei a sentir certa pena dele, e a escutar primei-
ro com indulgência, e depois até com algum prazer, a sua ladainha de-
sarticulada.
Por volta das quatro da tarde, havíamos cruzado o pico da monta-
nha, dado adeus ao sol poente, e descemos pelo outro lado, na beira do
limite de muitas ravinas e nos movíamos por entre a sombra de florestas
sombrias. Ali se elevava por todos os lados a voz da água que caía, não
condensada e formidável como na garganta do rio, mas dispersa e alegre
e musical de grota a grota. Aqui, também, o espírito de meu condutor
se emendou, e cantou com voz alta de falsete, com singular obtusidade
quanto à percepção musical, nunca encaixando o tom ou a melodia, mas
mudava à vontade, e ainda assim, aquilo de certo modo era natural e
agradável, como o canto dos pássaros. Com a proximidade do crepús-
culo, ficava cada vez mais enfeitiçado por esse gorjeio sem arte, escutava
e esperava por alguma melodia articulada e ainda desapontado; e quan-
do finalmente lhe perguntei o que cantava — “Oh”, exclamou, “só es-
tou cantando!”. Acima de tudo, fui arrebatado por truque que repetia
incansavelmente a mesma nota em pequenos intervalos; não era tão mo-
nótono quanto parece, ou, ao menos, não tão desagradável; e parecia
exalar maravilhoso contentamento em si mesmo, como o que amamos
imaginar na atitude das árvores ou na mansuetude do lago.
A noite havia escurecido antes que chegássemos num lugar plano, e
paramos pouco depois, em certo bloco de negrume intenso que só pude
presumir ser a residência. Aqui, o guia desceu da carroça, uivou e asso-
biou em vão por longo tempo; até que por fim um velho camponês veio
em nossa direção de algum lugar na escuridão que nos rodeava, com
uma vela. Por essa luz consegui perceber grande passagem arqueada, de
estilo mourisco: estava fechada por portões com barras de ferro, em um
dos lados Felipe abriu a portinhola. O camponês levou a carroça para
alguma construção externa; mas o guia e eu passamos pela portinhola,
fechada novamente atrás de nós; e com a luz das velas, atravessamos o
pátio, subimos a escadaria de pedra, percorremos a seção da galeria
aberta, e mais escadas acima, até que finalmente chegamos à porta de
aposento grande e, de certa forma, vazio. Esse cômodo, que entendi ser
o meu, era perfurado por três janelas alinhadas com algumas madeiras
lustrosas envolta de vidros, e tinha o chão coberto por várias peles de
animais selvagens. O fogo reluzia na chaminé, e espalhava fulgor treme-
luzente; próximo ao clarão, a mesa preparada para a ceia; e, no canto
oposto, a cama estava pronta. Apreciei esses preparos, e o mencionei a
Felipe, que então, com a mesma simplicidade de disposição que já havia
percebido nele, repetiu os meus elogios calorosamente. “Um quarto
agradável”, disse, “quarto muito agradável. E fogo, também; fogo é
bom; derrete o prazer nos ossos. E a cama”, continuou e levou a vela
naquela direção — “veja que lençóis agradáveis — que macio, liso, li-
so”; e passava e passava a mão, sentia a textura, e então abaixou a cabeça
e esfregou as bochechas com contentamento repulsivo que de certo mo-
do me incomodou. Tirei a vela de sua mão (pois temia que tacasse fogo
na cama) e voltei até a mesa da ceia, onde, notei um pouco de vinho,
servi uma taça e o chamei para se aproximar e tomar. Saltou de vez e
correu até mim com forte expressão de esperança; mas quando viu o vi-
nho, deu de ombros visivelmente.
“Oh, não”, disse, “isso não; é para você. Eu odeio.”
“Muito bem, señor”, disse, “então beberei à sua boa saúde, e à pros-
peridade de sua casa e família. Falando da qual”, prossegui, após beber,
“não terei o prazer de fazer as minhas saudações em pessoa aos pés da
Señora, a sua mãe?”
No entanto, com essas palavras, a infantilidade desapareceu do rosto
e foi seguida por olhar de indescritível astúcia e sigilo. Ele se afastou de
mim na mesma hora, como se fosse um animal prestes a dar o bote, ou
perigoso sujeito armado, e ele, ao se aproximar da porta, me encarou
carrancudo, com as pupilas contraídas. “Não”, disse por fim, e no mo-
mento seguinte saiu do aposento em silêncio; então ouvi os passos mor-
rerem escada abaixo, leves como a chuva, e a quietude dominou a casa.
Após cear, saí da mesa, me aproximei da cama e me preparei para
descansar; mas com a nova posição da luz, me deparei com a pintura na
parede. Representava mulher, ainda jovem. A julgar pelas roupas e uni-
dade branda que reinava no óleo, havia morrido fazia muito tempo; a
julgar pela vivacidade do porte, olhos e traços, poderia estar diante de
imagem viva no espelho. Seu físico era muito magro e forte, e de pro-
porções justas; madeixas ruivas repousavam como coroa na testa; os
olhos, de castanho muito dourado, dominaram os meus com um olhar;
e o rosto, de forma perfeita, ainda assim era desfigurado por expressão
cruel, taciturna e sensual. Algo tanto na face quanto no corpo, algo for-
midavelmente tangível, como o eco de um eco, sugeria os traços e o
porte de meu guia; assim, fiquei parado um tempo, desagradavelmente
atraído e maravilhado com a estranheza da semelhança. A linhagem co-
mum e carnal daquela raça, que originalmente havia sido o desígnio de
damas nobres como aquela que me observava da tela, fora rebaixada a
usos mais ordinários, de roupas rústicas, sentado no eixo e com as ré-
deas da carroça de mula, para trazer um hóspede para casa. Talvez a li-
gação de fato existisse; talvez algum escrúpulo da carne delicada que
uma vez se cobriu com o cetim e o brocado da dama morta, agora se re-
traía com o rude contato da baeta de Felipe.
A primeira luz da manhã brilhou inteiramente no retrato, e, deitado
desperto, meus olhos continuaram a pousar sobre ele com complacência
cada vez maior; a beleza formigava insidiosamente em meu coração, si-
lenciava meus escrúpulos um após o outro; e por mais que soubesse que
amar tal mulher era o sinal e o selo da própria sentença da degeneração
de alguém, também sabia que, se estivesse viva, a amaria. Dia após dia, o
conhecimento duplo de sua perversidade e de minha fraqueza ficava ca-
da vez mais evidente. Ela se tornou a heroína de muitos de meus deva-
neios, nos quais seus olhos, suficientemente recompensados, induziam
ao crime. Ela projetava sombra escura em minha fantasia; e quando saía
ao ar livre, em exercícios vigorosos para renovar com saúde a minha
corrente sanguínea, geralmente me era pensamento feliz que a minha
feiticeira estava segura no túmulo, a varinha da beleza quebrada, os lá-
bios fechados em silêncio, a poção derramada. Mesmo assim, sentia me-
do, algo hesitante, de que não estivesse morta, no fim das contas, e sim
ressurgida no corpo de algum descendente.
Felipe servia as minhas refeições em meu próprio aposento; e sua se-
melhança com o retrato me assombrava. Às vezes, não era; às vezes, por
alguma mudança de atitude ou relampejo de expressão, isso saltava di-
ante de mim como um fantasma. Era, acima de tudo, no temperamento
malvado que a semelhança triunfava. Certamente gostava de mim; fica-
va orgulhoso quando o notava, o que buscava estimular com muitos ar-
tifícios simples e infantis; adorava sentar-se perto de mim diante da la-
reira, falar de jeito fragmentado ou cantar suas canções esquisitas, inter-
mináveis e sem palavras, e, às vezes, passar a mão em minhas roupas
com modo afetado de acariciar que jamais falhava em me causar incô-
modo do qual me envergonhava. Além disso tudo, era capaz de rom-
pantes de raiva desmotivada e de crises de rabugice emburrada. Vi uma
vez, diante de uma palavra de reprovação, virar o prato que eu estava
prestes a comer, e isso não furtivamente, mas em desafio, e também com
um pouco de inquisição. Não era incomum que eu ficasse curioso, nesse
lugar estranho rodeado por pessoas estranhas; mas à sombra de uma
pergunta, ele se encolhia para trás, sinistro e perigoso. Foi então que,
por fração de segundo, esse rústico rapaz poderia ser o irmão da dama
na moldura. Mas esses humores se passaram rapidamente; e a semelhan-
ça morreu com eles.
Nesses primeiros dias não vi nada ou ninguém além de Felipe, a não
ser que se conte o retrato; e uma vez que o sujeito claramente tinha a
mente fraca, e momentos de furor, pode-se imaginar que suportei essa
perigosa proximidade com equanimidade. Na verdade, por algum tem-
po foi fatigante; mas logo obtive domínio tão completo sobre ele que a
minha inquietude cessou.
Aconteceu deste modo: ele era indolente por natureza, um tanto va-
gabundo, ainda assim ficava nos arredores da casa, e não apenas espera-
va por meus pedidos, mas labutava todos os dias no jardim ou no pe-
queno roçado ao sul da residência. Ali era acompanhado pelo camponês
que vira na noite da chegada, que morava nos limites do terreno, a cerca
de oitocentos metros de distância, em casebre tosco; mas estava claro
para mim que, dos dois, era Felipe quem mais trabalhava; e embora às
vezes o observasse jogar a pá de lado e dormir sobre as próprias plantas
que labutava, sua constância e energia eram em si admiráveis, e ainda
mais desde que tive certeza de que eram estranhas à sua disposição e
frutos de esforço sem gratificação. Mas enquanto admirava, me pergun-
tei o que movia um rapaz de intelecto tão limitado a esse duradouro
senso de dever. Como se mantinha, perguntei-me, e até onde aquilo
prevalecia sobre os instintos? O padre provavelmente era a sua inspira-
ção; mas o padre um dia veio à residência. Eu o observei vir e ir embora
no intervalo de cerca de uma hora, do montículo onde eu desenhava, e
todo esse tempo Felipe trabalhou no jardim sem se perturbar.
Ao fim, em humor bastante indigno, decidi desvirtuar o rapaz das
boas resoluções, o embosquei diante do portão, e facilmente o persuadi
a se juntar a mim num passeio. Era belo dia, e o bosque onde o levei era
verde e agradável e de cheiro doce e vivo com o zumbido dos insetos.
Ali se descobriu no frescor, elevou-se a alturas de jovialidade que me
deixava confuso, e exibiu energia e graça de movimentos agradáveis ao
olhar. Saltava, e corria em minha volta por mero contentamento; parava,
e olhava e escutava, e parecia beber do mundo com sinceridade; então,
de repente, subiu na árvore de uma vez, e se pendurou e dava camba-
lhotas ali como se fosse a sua casa. Por pouco que falasse, isso não im-
porta muito, pois raramente desfrutei de companhia tão ativa; a visão de
seu deleite era festa contínua; a velocidade e precisão de seus movimen-
tos me agradavam de coração; e poderia ser tão impensadamente indeli-
cado para fazer dessas caminhadas hábito, não houvesse o acaso me pre-
parado conclusão deveras grosseira ao meu conforto. Com alguma rapi-
dez ou destreza o rapaz capturou um esquilo no topo de uma árvore.
Ele estava um tanto à frente, mas o vi pular para o chão e rastejar ali,
gritar alto de prazer como criança. O som comoveu as minhas simpati-
as, pois era genuíno e inocente; mas quando apertei o passo para me
aproximar, o guincho do esquilo me atingiu o coração. Já havia visto e
ouvido falar bastante da crueldade dos jovens, sobretudo campônios;
mas o que agora contemplava me pôs em furor de raiva. Empurrei o su-
jeito de lado, arranquei o pobre animal de suas mãos, e num instante o
matei por piedade. Então me virei para o torturador, e falei bastante
com ele, no calor de minha indignação, chamando-o por nomes que pa-
reciam fazê-lo murchar; e ao fim, apontei para a residência, lhe acenei
para que se fosse e me deixasse, pois preferia andar com homens, e não
com vermes. Caiu de joelhos, e, com as palavras mais claras que o nor-
mal, jorrou uma torrente das súplicas mais tocantes, me implorou que o
perdoasse à sua mercê, que me esquecesse do que havia feito, que olhas-
se para o futuro. “Oh, tento tanto”, disse ele. “Oh, comandante, fique
com Felipe desta vez; ele jamais será bruto novamente!” Portanto, mais
afetado do que ousei demonstrar, me deixei persuadir, e, ao fim, aperta-
mos as mãos e fizemos as pazes. Mas o obriguei, como punição, a enter-
rar o esquilo; falei da beleza da pobre criatura, lhe contei como havia
sofrido, e como era vil o abuso de força. “Veja, Felipe”, disse, “você de
fato é forte; mas em minhas mãos está tão perdido quanto aquela criatu-
ra na árvore. Dê-me a mão. Você não consegue soltá-la. Agora imagine-
mos que fosse tão cruel quanto você, e sentisse prazer com a dor. Basta-
me apertar mais forte, e ver como sofre.” Gritou alto, a face empalide-
ceu e ele se cobriu de pontos finos de suor; e quando o soltei, caiu no
chão, cuidou da mão e gemeu como um bebê. Mas entendeu bem a li-
ção; não importa se daquilo, ou do que lhe dissera, ou a noção mais pre-
cisa que agora tinha de minha força física, sua afeição original se tornara
fidelidade adoradora, canina.
Enquanto isso, minha saúde melhorou rapidamente. A residência fi-
cava no cume de platô rochoso; as montanhas a rodeavam por todos os
lados; apenas do teto, onde havia uma guarita, podia ser visto entre dois
picos pequeno trecho plano e azul, a uma distância extrema. O ar nessas
altitudes fluía livre e abundante; grandes nuvens se amontoavam por lá,
divididas pelo vento e espalhadas pelos topos das montanhas; uma re-
verberação grave, porém fraca, das torrentes podia ser ouvida por toda a
parte; e ali era possível estudar as características mais rústicas e priscas
da natureza com um pouco de sua força imaculada. Desde o começo
apreciei o cenário vigoroso e o clima instável; e não menos a mansão an-
tiga e dilapidada onde estava hospedado. Tratava-se de retângulo com-
prido, flanqueado nos cantos opostos por duas projeções como basti-
ões, uma das quais com visão para a porta, enquanto ambas possuíam
furos para mosquetes. O andar de baixo era, além disso, desprovido de
janelas, de forma que a construção, se guarnecida, não podia ser tomada
sem artilharia, pois guardava um pátio aberto com romãzeiras. De lá,
grande escadaria de mármore terminava em galeria aberta, dava a volta e
parava, de frente para o pátio, em pilares finos. Desse ponto, várias es-
cadarias fechadas iam aos andares superiores da casa, que estavam assim
repartidos em divisões distintas. As janelas, tanto por dentro como por
fora, estavam bem trancadas; parte dos trabalhos em pedra na parte de
cima haviam desabado; o teto, num ponto, havia sido arruinado nas
ventanias que eram comuns nessas montanhas; e a casa inteira, sob o sol
forte e arrebatador, em meio a alameda de sobreiros podados, bastante
carregados e descoloridos com a poeira, parecia o palácio do sono da
lenda. O pátio, em particular, era semelhante ao próprio lar da sonolên-
cia. Grave arrulho de pombos ocupava os beirais; os ventos não batiam
ali, mas quando assopravam de fora, montanha de poeira caía lá dentro
como chuva grossa, e escondia o vermelho florescente das romãs; era
rodeado por janelas com venezianas, e as portas fechadas de numerosos
porões, e os arcos vazios da galeria; e durante o dia inteiro, o sol fazia
perfis quebrados nos quatro lados, e projetava a sombra dos pilares no
chão da galeria. No nível mais baixo havia, no entanto, certo recuo dos
pilares, que trazia marcas da presença humana. Apesar de aberta de
frente para o pátio, dispunha de chaminé, onde o fogo de lenha sempre
queimava bem; e o chão de azulejos estava sujo com peles de animais.
Foi nesse lugar em que vi minha anfitriã pela primeira vez. Ela havia
levado para fora uma das peles e se sentado sob o sol, recostada no pilar.
Foi o vestido o que me chamou a atenção primeiro, pois era elegante e
brilhantemente colorido, e se destacava naquele pátio empoeirado com
algo do mesmo alívio causado pelas flores das romãs. Na segunda olha-
da, foi a beleza física que me chamou a atenção. Ao se sentar — me ob-
servava, pensei, embora com olhos invisíveis — usava ao mesmo tempo
expressão de contentamento e de bom humor quase imbecil, mostrou
perfeição de traços e nobreza quieta de comportamento maiores que as
de estátua. Ao passar, tirei o chapéu para ela, e seu rosto franziu de sus-
peita com a mesma rapidez e a leveza com que a poça se enruga na bri-
sa; mas não deu atenção à cortesia. Segui para a minha caminhada habi-
tual um tanto desanimado, assustado com a sua impassibilidade de está-
tua; ao retornar, embora ainda com a mesma postura, me surpreendi
bastante por ver que ela havia se movido até o outro pilar, seguindo o
sol. Desta vez, no entanto, se dirigiu a mim com saudação trivial, civil-
mente concebida, e murmurada ao mesmo modo, do fundo do peito,
porém com tons indistintos e balbuciados, que já haviam atordoado ao
máximo a delicadeza de minha audição com o filho dela. Respondi
principalmente pela aventura; não apenas compreendera mal o que dis-
sera, como a súbita revelação de seus olhos me perturbou. Eram inco-
mumente grandes, a íris dourada como a de Felipe, mas a pupila naque-
le momento se dilatou e pareceu completamente preta; e o que me afe-
tou não era tanto o tamanho quanto (talvez fosse consequência disso) a
singular falta de significado daquelas vistas. Jamais vi olhar tão inex-
pressivamente estúpido. Meus olhos os encararam mesmo enquanto fa-
lava, e segui meu caminho escada acima para o aposento, ao mesmo
tempo atordoado e envergonhado. Ainda assim, cheguei lá e vi o rosto
no retrato, e mais uma vez fui lembrado do milagre da descendência fa-
miliar. Minha anfitriã era, de fato, mais velha e mais plena em pessoa;
seus olhos de cor diferente; seu rosto, além disso, não era desprovido
apenas do significado vil que me incomodava e me atraía na pintura; era
desprovido de bondade ou maldade — vazio moral que literalmente ex-
pressa o nada. Porém ainda havia uma semelhança, não tanto ao se falar
do imanente, não tanto em algum aspecto particular, mas no todo. Pare-
cia, pensei, que quando o mestre assinou aquela grave pintura, não ape-
nas capturou a imagem da mulher sorridente de olho falso, mas carim-
bou a qualidade essencial de uma raça.
Daquele dia em diante, viesse ou fosse, sabia que haveria de encon-
trar a Señora sentada ao sol, recostada no pilar, ou esticada no tapete di-
ante do fogo; apenas às vezes mudava para cima da escadaria de pedra,
onde se deitava com a mesma indiferença, exatamente em meu caminho.
Em todos esses dias, jamais a percebi demonstrar a menor centelha de
energia além da que gastava escovando e escovando novamente o copio-
so cabelo cor de cobre, ou para me balbuciar, com bela e esganiçada
rouquidão da voz, as habituais e ociosas saudações. Esses, penso, eram
os seus dois principais prazeres, além da mera tranquilidade. Sempre
parecia orgulhosa dos comentários, como se fossem frases sagazes; e, na
verdade, embora vazios, como a conversa de muitos respeitáveis, e vol-
tadas à gama de assuntos bastante estreita, jamais eram sem sentido ou
incoerentes; não, tinham certa beleza particular, sustentados, como
eram, por todo o contentamento dela. Ora falava do calor, que (como o
filho) adorava demais; ora falava das flores das romãzeiras, e ora dos
pombos brancos e das andorinhas de asas compridas que planavam so-
bre o pátio. Os pássaros a empolgavam; quando passavam pelos beirais
em voo veloz, ou encostavam nela com a lufada de vento, ela se agitava,
e se sentava um pouco mais para cima, e parecia despertar do torpor de
satisfação. Mas, pelo resto dos dias, se deitava luxuosamente curvada
sobre si mesma e mergulhada no ócio e no lazer. No começo, o seu con-
tentamento invencível me incomodava, mas gradualmente vim a encon-
trar repouso no espetáculo, até que, por fim, criei o hábito de me sentar
ao lado dela quatro vezes ao dia, a cada ida e vinda, e a falar com ela so-
nolenta, mal sabia do quê. Passei a apreciar a sua companhia muda, qua-
se animal; a beleza e a estupidez me acalmavam e divertiam. Notei certo
bom senso transcendental nos comentários, e sua natureza insondavel-
mente boa me comoveu a ponto da admiração e da inveja. O apreço foi
recíproco; apreciava a minha presença semiconsciente, como homem
em profunda meditação é capaz de desfrutar dos sussurros do riacho.
Pouco posso afirmar que se iluminava quando eu vinha, pois a satisfa-
ção estava eternamente escrita em seu rosto, como na estátua do idiota;
mas percebia o seu prazer mais por comunicação íntima que pela visão.
E um dia, ao me sentar perto dela no degrau de mármore, esticou a mão
de vez e afagou a minha. Feito isso, voltou à atitude normal, antes que
minha mente recebesse a informação da carícia; e quando me virei para
encará-la, não recebi qualquer sentimento de resposta. Estava claro que
não vinculava o ato a qualquer momento, e me culpei por minha pró-
pria consciência intranquila.
A visão e (se assim posso chamar) o conhecimento da mãe confir-
mou a impressão que já tinha do filho. O sangue da família havia empo-
brecido, talvez por longa endogamia, que sabia ser erro comum entre os
orgulhosos e exclusivos. Nenhum declínio, na verdade, podia ser traça-
do no corpo, transmitido sem páreo na forma e na força; e os rostos de
então foram cunhados com exatamente o mesmo molde do rosto de
dois séculos de idade que me sorria do retrato. Mas a inteligência (he-
rança mais preciosa) estava degenerada; o tesouro da memória ancestral
era fraco; e foi preciso o cruzamento potente e plebeu com um muleiro
ou contrabandista para trazer, o que na mãe se parecia com letargia, a
ativa bizarrice do filho. Ainda assim, entre os dois, era a mãe quem eu
preferia. De Felipe, vingativo e implacável, cheio de chiliques e vergo-
nhas, inconstante como lebre, conseguia até pensar como criatura possi-
velmente nociva. Da mãe não tinha outros pensamentos além dos gen-
tis. E, na verdade, como espectadores geralmente são ignorantes e aptos
a escolher lados, fui um pouco partidário na inimizade que percebi la-
tente entre eles. De fato, parecia maior da parte da mãe. Às vezes, ela
respirava fundo quando ele se aproximava, e as pupilas dos olhos vazios
se contraíam como que com horror ou medo. Suas emoções, tais como
eram, ficavam na superfície e eram prontamente compartilhadas; e essa
repulsão latente ocupava a minha mente, me trazia a dúvida em qual ba-
se se sustentava, e que o filho certamente era culpado de algo.
Já havia passado quase dez dias na residência, quando começou ven-
tania forte e alta, com nuvens de poeira. Veio das planícies contamina-
das por malária, e de diversas sierras cheias de neve. Os nervos daqueles
sobre quem soprou ficaram atiçados e exasperados; os olhos irritados
com a poeira; as pernas doíam com o peso do corpo; e o toque da mão
sobre a outra tornou-se odioso. O vento, além disso, descia as ravinas
das montanhas e batia na casa com zumbido grande e surdo que era
cansativo ao ouvido e sinistramente depressivo para a mente. Não so-
prava em rajadas, mas como a varredura constante de cachoeira, de mo-
do que não havia redução do desconforto enquanto soprava. Porém nu-
ma parte mais alta da montanha, provavelmente tinha força mais variá-
vel, com acessos de fúria; pois às vezes descia ao ouvido lamento distan-
te, infinitamente melancólico; e às vezes, num dos penhascos altos ou
terraços, começava, e depois se dissolvia, a torre de poeira, como a fu-
maça de explosão.
Mal despertei na cama e percebi tensão nervosa e depressão no cli-
ma, e o feito ficou mais forte conforme o dia avançava. Foi em vão que
resisti; em vão que prossegui na caminhada matinal de costume; a fúria
irracional e constante da tempestade logo derrotou a minha força e ar-
ruinou o ânimo; e voltei à residência, reluzindo com calor sequioso, e
imundo e coberto de poeira. O pátio tinha aspecto desamparado; volta e
meia um feixe de sol escapava até lá; volta e meia o vento atacava as ro-
mãs, e espalhava as flores, e fazia as venezianas das janelas baterem na
parede. No vão, a Señora andava de um lado a outro com o semblante
ruborizado e olhos brilhantes; pensei, também, que falava consigo mes-
ma, como alguém enraivado. Mas então me dirigi a ela com a saudação
de costume, e respondeu com gesto seco e continuou a andar. O clima
irritou até mesmo essa criatura impassível; quando subi as escadas fiquei
menos envergonhado por minha própria descompostura.
O vento continuou o dia inteiro; me sentava no aposento e fazia si-
mulação de leitura, ou andava para cima e para baixo, e escutava o tu-
multo acima da cabeça. A noite caiu, e não tinha sequer uma vela. Ansi-
ei por alguma companhia, e desci até o pátio. Agora estava mergulhado
na melancolia da primeira escuridão; mas o vão era iluminado pela luz
avermelhada do fogo. A madeira formava grande pilha, e foi coroada
por labareda, que o esboço de chaminé brandia para lá e para cá. Nesse
brilho forte e tremeluzente, a Señora continuou a andar de uma parede
a outra com gestos desconectados, apertava as mãos, estirava os braços
para frente, lançava a cabeça para trás como se apelasse aos céus. Nesses
movimentos desordenados, a beleza e a graça da mulher se mostraram
mais claras; mas havia luz no olho que me desagradou quando notei; e
após assistir em silêncio por um tempo, aparentemente sem ser observa-
do, escapuli como havia chegado, e tateei pelo caminho de volta até o
meu quarto.
Quando Felipe me levou a ceia e luzes, minha paciência já estava
completamente esgotada; e, estivesse o rapaz como me acostumei a vê-
lo, o teria mantido (mesmo à força, se necessário fosse) para me aliviar
da desgostosa solidão. Mas em Felipe, também, o vento havia exercido a
influência. Estivera febril o dia inteiro; agora que a noite chegara, havia
irrompido em humor baixo e vacilante que influenciava o meu. A visão
de seu rosto assustado, as crises e palidez, e súbitas audições, me ener-
varam; e quando quebrou o prato por derrubá-lo, dei um pequeno salto
no assento.
“Creio que todos ficamos loucos hoje”, disse e busquei sorrir.
“É o vento negro”, respondeu lúgubre. “Você sente que tem que fa-
zer algo, mas não sabe o quê.”
Percebi a prontidão da descrição; mas, na verdade, Felipe às vezes ti-
nha estranha felicidade ao transformar em palavras as sensações do cor-
po. “E a sua mãe, também”, disse; “parece sentir bastante este clima.
Você não receia que esteja mal?”
Ele me encarou por um instante, então disse “Não”, quase desafia-
dor; e no momento seguinte, levou a mão à testa, gritou lamentavel-
mente a respeito do vento e do barulho que fazia a cabeça girar como a
roda de moinho. “Quem poderá estar bem?”, exclamou; e, na verdade,
podia apenas ecoar a pergunta, pois eu mesmo estava bastante perturba-
do.
Fui para a cama cedo, fatigado pela falta de descanso do dia inteiro;
mas a natureza peçonhenta do vento, e o rugido ímpio e intermitente,
não me permitiam dormir. Fiquei deitado, rolando na cama, meus ner-
vos e sentidos no limite. Às vezes cochilava, tinha um sonho horrível, e
despertava novamente; e esses lapsos de esquecimento me confundiam a
respeito do horário. Mas devia ser tarde da noite, quando fui surpreen-
dido de vez pelo rompante de gritos odiosos e lamentáveis. Saltei da ca-
ma, supondo que havia sonhado; mas os gritos continuaram a preencher
a casa, gritos de dor, pensei, mas certamente também de raiva, e tão sel-
vagens e dissonantes que abalavam o coração. Não era ilusão; algum ser
vivo, algum lunático ou algum animal selvagem, era brutalmente tortu-
rado. A lembrança de Felipe com o esquilo passou por minha mente, e
corri até a porta, mas fora trancada por fora; podia bater o quanto qui-
sesse, não tinha qualquer meio de sair. E os gritos continuavam. Agora,
reduzidos a um gemido que parecia articulado, e nesses momentos tinha
certeza de ser humano; e mais uma vez recomeçaram e encheram a casa
com desvarios dignos do inferno. Fiquei diante da porta e escutei, até fi-
nalmente cessarem. Muito tempo depois, ainda relutava a me mover e
continuava a escutá-los na imaginação, misturados com a tempestade de
vento; e quando finalmente me arrastei até a cama, foi com enfermidade
mortal e a escuridão de horror no coração.
Não é de se espantar que não tenha dormido mais. Por que fora
trancado? O que aconteceu? Quem era o autor daqueles gritos indescri-
tíveis e chocantes? Um ser humano? Era inconcebível. Uma besta? Os
gritos eram um tanto bestiais; mas que animal, além do leão ou o tigre,
conseguia abalar as sólidas paredes da residência daquele modo? E en-
quanto ponderava assim a respeito dos elementos do mistério, me veio à
mente que ainda não havia visto a filha da casa. O que seria mais prová-
vel, além de que a filha da Señora, e a irmã de Felipe, fosse ela mesma
insana? Ou, o que poderia ser mais plausível que essas pessoas ignoran-
tes e de mente limitada a controlar com violência a parente aflita? Aqui
estava a solução: ainda assim, quando me recordava dos gritos (o que ja-
mais fiz sem estremecer com calafrios) parecia no todo insuficiente;
nem mesmo a crueldade poderia arrancar tais gritos da loucura. Mas de
uma coisa tinha certeza: não podia ficar na casa onde algo assim fosse
levemente concebível sem tentar resolver o problema e, se necessário,
interferir.
Chegou o dia seguinte, o vento havia ido embora, e não havia nada
que me lembrasse o ocorrido na noite anterior. Felipe veio à beira de
minha cama com evidente euforia; quando atravessei o pátio, a Señora
tomava sol com a imobilidade costumeira; e quando saí pelo portão, en-
contrei toda a paisagem natural sorrindo austeramente, o céu de azul
frio, semeado por grandes ilhas de nuvens, e os lados de montanha ma-
peados com províncias de luz e sombra. Uma caminhada curta me recu-
perou, e renovou em mim a resolução em explorar esse mistério; e
quando, da vantagem do montículo de terra, vi Felipe passar para os la-
bores no jardim, retornei imediatamente à residência para efetivar o
meu plano. A Señora parecia mergulhada em sono; fiquei parado por
um tempo e prestei atenção nela, mas sequer se mexeu; mesmo que meu
plano fosse indiscreto, não tinha muito o que temer de vigia assim; en-
tão, me virei, subi até a galeria e explorei a casa.
Por toda a manhã, passei de uma porta a outra, e entrava em câmaras
espaçosas e opacas, algumas vedadas grosseiramente, algumas com carga
total da luz do sol, todas vazias e desabitadas. Era casa rica, na qual o
Tempo assoprara a sua mácula e a poeira espalhara a desilusão. A aranha
se pendurava ali; a tarântula empapuçada se esgueirava para as cornijas;
as formigas faziam as estradas tumultuadas no chão de salões de audiên-
cia; a mosca grande e vil, que vive na imundície e frequentemente é a
mensageira da morte, havia se assentado nos móveis de madeira apodre-
cidos, e zumbia alto pelos cômodos. Aqui e ali algumas banquetas, sofá,
cama, e grande cadeira entalhada permaneciam, como ilhotas no piso
vazio, para testemunharem antiga ocupação do homem; e todas as pare-
des estavam ornadas com retratos dos mortos. Pude perceber, por essas
efígies decadentes, quão bela e grandiosa era a estirpe dos donos da casa
onde perambulava. Muitos dos homens tinham o peito condecorado e
ostentavam o porte dos nobres oficiais; todas as mulheres trajadas com
luxo; a maioria das telas era assinada por mãos famosas. Mas não era
tanto essas evidências de grandeza que ocupavam a minha mente, mes-
mo em contraste, tal qual estavam, com o presente despovoamento e
decadência do casarão; e sim, principalmente, a parábola da história fa-
miliar que lia naquela sucessão de rostos belos e corpos de boas propor-
ções. Nunca antes contemplei de tal forma o milagre da linhagem em
sequência, a criação e a recriação, o entrelaçamento e a mudança e a
transmissão dos elementos carnais. Que uma criança pudesse nascer,
crescer e se revestir (não sabemos como) com humanidade, e assumir
aparência herdada, e virar a cabeça da mesma maneira que um ascen-
dente, e oferecer a mão com o mesmo gesto de outra, são dúvidas enfra-
quecidas para nós devido à repetição. Porém na singular unidade da ob-
servação, nos traços e nas posturas em comum de todas essas gerações
pintadas nas paredes da residência, o milagre saltou para fora e me
olhou no rosto. E com a oportuna aparição do espelho antigo em meu
caminho, parei e examinei os meus próprios traços por longo tempo, e
fiz com cada mão as linhas de descendência e os vínculos que me liga-
vam à minha família.
Por fim, no curso dessas investigações, abri a porta da câmara que
dava sinais de habitação. Tinha grandes proporções e estava voltada ao
norte, onde a aparência das montanhas era mais selvagem. As brasas do
fogo ardiam e soltavam fumaça na lareira, perto do qual uma cadeira fo-
ra encostada. E, ainda assim, o aspecto do aposento era ascético ao grau
da severidade; a cadeira sem acolchoamento; o piso e as paredes des-
guarnecidos; e com exceção dos livros espalhados confusamente aqui e
ali, não havia instrumento de trabalho ou de lazer. A visão de livros na
casa de tal família me deixou extremamente impressionado; e comecei
com muita pressa, e com medo momentâneo de ser interrompido, a pas-
sar de um ao outro e inspecionar apressadamente no que consistiam.
Eram variados, devocionais, de história, científicos, mas, na maioria,
muito antigos e em latim. Em alguns podia ver as marcas de estudo
constante; outros haviam sido rasgados ao meio e jogados de lado como
que por petulância ou desaprovação. Por último, ao cruzar aquele apo-
sento vazio, bisbilhotei algumas notas escritas a lápis na mesa próxima à
janela. A curiosidade impensada me levou a pegar uma. Trazia a cópia
de versos mal metrificados no original em espanhol, que poderiam ser
entendidos por algo como:
O prazer sobreveio com a vergonha e a dor,
A tristeza com uma grinalda de lírios chegou.
O prazer apontou para o sol adorável;
Jesu querido, quão doce brilhava!
A tristeza apontou com a mão calejada,
Jesu querido, para ti!

A vergonha e a confusão se apossaram de mim de vez; soltei o papel e


imediatamente bati em retirada do aposento. Nem Felipe nem sua mãe
poderiam ter lido os livros ou escrito aqueles versos rudimentares, po-
rém sensíveis. Estava claro que havia topado com pés sacrílegos no
quarto da filha da casa. Deus sabe, meu próprio coração me puniu rispi-
damente por minha indiscrição. A ideia que tive assim me impulsionou
secretamente a invadir as confidências de jovem em posição tão estra-
nha, e o medo de que ela, de algum modo, pudesse saber disso, me opri-
miu como acusação. Também me culpei pelas suspeitas da noite anteri-
or; pensei que não devia atribuir aqueles gritos chocantes a alguém que
agora pensava ser a santa, de aspecto espectral, devastada com a mortifi-
cação, presa às práticas da devoção mecânica, que vivia em grande isola-
mento de alma com seus parentes incompatíveis; e conforme me incli-
nava na balaustrada da galeria e olhava para o brilho próximo das romãs
abaixo e a mulher sonolenta vestida com alegria, que no mesmo mo-
mento se esticou e delicadamente lambeu os lábios na sensualidade par-
ticular da preguiça, minha mente rapidamente comparou o cenário com
o gélido aposento ao norte com vista para as montanhas, onde a filha fi-
cava.
Na mesma tarde, sentado sobre o montículo, vi o Padre entrar pelos
portões da residência. A revelação da personalidade da filha invadiu mi-
nha imaginação, de modo a quase apagar os horrores da noite anterior;
mas com a visão daquele homem valoroso, as memórias foram revivi-
das. Desci, portanto, do montículo, e dei a volta pelo bosque, me postei
na beira do caminho para esperar por sua passagem. Assim que surgiu,
dei um passo para a frente e me apresentei como o hóspede da residên-
cia. Aparentava ser muito forte e honesto, e era fácil de se ler as emo-
ções misturadas com que me via, como forasteiro, herege, e ainda al-
guém ferido pela boa causa. Da família da residência falava com reser-
vas, porém com respeito. Mencionei que ainda não tinha visto a filha,
em seguida comentou que deveria ser assim, e me observou com um
pouco de desconfiança. Por fim, reuni coragem para mencionar os gri-
tos que haviam me perturbado na noite anterior. Ele me escutou em si-
lêncio, e então parou e se virou um pouco, como que para não deixar
dúvidas de que me dispensava.
“Aceita um pouco de rapé?”, disse e me ofereceu a tabaqueira; e en-
tão, após a minha recusa, “estou velho”, prosseguiu, “e talvez esteja au-
torizado lembrar-lhe que é um hóspede.”
“Tenho, então, a sua autorização”, respondi, com firmeza, embora
houvesse ruborizado com a reprovação implícita, “para permitir que as
coisas sigam o seu curso, sem interferir?”
Ele disse “sim”, e com saudação bastante desconfortável deu a volta
e me deixou onde estava. Porém, havia feito duas coisas: tranquilizado
minha consciência, e despertado minha delicadeza. Fiz grande esforço,
mais uma vez dispensei as recordações da noite, e recomecei a meditar a
respeito da santa poeta. Ao mesmo tempo, não pude esquecer comple-
tamente que havia sido trancado lá dentro, quando Felipe trouxe a ceia
aquela noite, o ataquei com cautela em ambas as questões de interesse.
“Nunca vejo a sua irmã”, falei casualmente.
“Oh, não”, disse; “é uma moça muito, muito boa”, e sua mente ins-
tantaneamente desviou para outra coisa.
“Sua irmã é devota, suponho”, comentei na pausa seguinte.
“Oh!”, exclamou e juntou as mãos com extremo fervor, “uma santa;
é ela quem me mantém de pé.”
“Você tem muita sorte”, disse, “porque a maioria de nós, receio, e
me incluo na conta, temos mais chances de decair.”
“Señor”, disse Felipe com gravidade, “não falaria uma coisa dessas.
Você não deve tentar o seu anjo. Se alguém decai, onde está ele para pa-
rar?”
“Ora, Felipe”, disse, “não podia adivinhar que você era pregador, e
me atrevo a afirmar que dos bons; mas isso é, como imagino, obra de
sua irmã?”
Acenou com os olhos redondos.
“Bem, então”, continuei, “ela, sem dúvida, o reprovou por seu peca-
do da crueldade.”
“Vinte vezes!”, exclamou; pois esta era a frase que a estranha criatu-
ra usava para expressar a noção de frequência. “E falei com ela que você
fez isso — eu lembrei”, acrescentou com orgulho — “e ela ficou feliz.”
“Então, Felipe”, disse, “o que foram aqueles gritos que escutei on-
tem à noite? Pois com certeza eram gritos de sofrimento de alguma cri-
atura.”
“O vento”, respondeu Felipe e olhou para o fogo.
Peguei a sua mão, no que, penso ser uma carícia, ele sorriu com bri-
lho de prazer que quase me fez desistir da intenção. Mas esmaguei essa
fraqueza. “O vento”, repeti; “pois acho que foi esta mão”, a segurei,
“que me trancou aqui.” O rapaz, visivelmente abalado, não disse ne-
nhuma palavra em resposta. “Bem”, disse, “sou forasteiro e hóspede.
Não é dever meu me intrometer ou julgar os assuntos de vocês; nisso
concordo com o conselho de sua irmã, de cuja excelência não duvido.
Mas no que me diz respeito, não serei prisioneiro de homem nenhum, e
peço a chave.” Meia hora mais tarde, a minha porta foi aberta de repen-
te, e a chave tiniu ao ser jogada no chão.
Uns dois dias depois, voltava de um passeio um pouco depois de
meio-dia. A Señora cochilava recostada no limiar do vão; os pombos
cochilavam abaixo dos beirais como neve acumulada; a casa estava sob
profundo feitiço de quietude vespertina; apenas o vento sem rumo e
calmo da montanha circulava em volta das galerias, farfalhava entre as
romãs, e prazerosamente balançava suas sombras. Algo naquela tran-
quilidade me estimulou à imitação, e atravessei o pátio com leveza até a
escadaria de mármore. Meu pé estava na última volta, quando uma por-
ta se abriu, e me vi face a face com Olalla. A surpresa me sufocou; sua
amabilidade me atingiu o coração; ela brilhava na sombra profunda da
galeria, a gema de cor; seus olhos encararam os meus e ficaram lá, e nos
juntou como se déssemos as mãos; e no momento em que assim ficamos
face a face, um sorveu o outro, era sacramental e o casamento de almas.
Não sei quanto tempo se passou até que despertasse do transe profun-
do, e, acenei com pressa, passei até o degrau seguinte. Ela não se moveu,
mas me seguiu com os olhos grandes e sedentos; e quando saí da visão
me pareceu que ela empalidecia e esvanecia.
Em meu quarto, abri a janela e olhei para fora, e não podia imaginar
que mudança se estabelecera naquela austera cadeia de montanhas, que
assim cantava e brilhava sob o céu majestoso. Eu a vira — Olalla! E os
rochedos respondiam, Olalla! E o azul-celeste insondável e mudo res-
pondia, Olalla! A santa pálida de meus sonhos havia desaparecido para
sempre; e em seu lugar contemplava essa donzela na qual Deus havia es-
banjado as cores mais vibrantes e as energias vitais mais exuberantes,
que fizera ativa como o veado, esguia como junco, e naqueles grandes
olhos iluminara as tochas da alma. A emoção de sua juventude, extrema
como a de animal selvagem, se infiltrara em mim; e a força da alma que
olhava para fora por seus olhos e conquistava os meus, encobria o meu
coração e fluía pelos meus lábios em cantoria. Ela passou por minhas
veias: comigo, era única.
Não direi que esse entusiasmo diminuiu; antes que a minha alma re-
duziu o êxtase como se estivesse em forte castelo, e lá foi sitiada por
pensamentos frios e melancólicos. Não tinha dúvidas de que passei a
amá-la à primeira vista, e já com ardor palpitante que era estranho à mi-
nha experiência. O que aconteceria em seguida? Era a criança de casa
aflita, a filha da Señora, a irmã de Felipe; ela tinha essa marca mesmo em
sua beleza. Possuía a leveza e a rapidez dele, rápida como flecha, leve
como o orvalho; como a outra, cintilava com o brilho das flores, sobre a
pálida paisagem do mundo. Eu não poderia chamar pelo nome de irmão
aquele rapaz desmiolado, nem pelo nome de mãe aquela coisa de carne
imóvel e amável, cujos olhos tolos e o perpétuo sorriso agora voltavam
à minha mente como algo odioso. E se não pudesse me casar, o que en-
tão? Ela estava fatalmente desprotegida; os olhos, naquele único e longo
olhar que foi toda a nossa relação, confessavam fraqueza igual à minha;
mas em meu coração a conhecia como a estudante do frio aposento vi-
rado para o norte, e escritora dos versos tristes; era a informação para
desarmar um bruto. Fugir era mais do que poderia me encorajar a fazer;
então efetivei voto de insone circunspecção.
Conforme me virava na janela, meus olhos se alinharam com o re-
trato. Ele se apagara, como vela após a aurora; me seguia com olhos de
tinta. Sabia como ele era, e fiquei maravilhado com a tenacidade do es-
pécime, naquela estirpe em declínio; mas a semelhança era engolida na
diferença. Lembrei-me de como me parecia algo inacessível na vida, a
criatura mais real na habilidade do pintor que na modéstia da natureza,
e me admirei com a ideia, e exultei ante a imagem de Olalla. Beleza vira
antes, e não fiquei encantado, e com frequência era levado a mulheres
belas apenas para mim; no entanto, em Olalla se reunia tudo o que dese-
java e não ousara imaginar.
Não a vi no dia seguinte, e meu coração doeu, e meus olhos ansia-
ram por ela, como homens anseiam pela manhã. Mas um dia depois,
quando retornei, por volta da hora habitual, estava na galeria novamen-
te, e nossos olhares novamente se encontraram e se entrelaçaram. Teria
falado algo, teria me aproximado dela; porém por mais que puxasse com
força o meu coração, me atraía como ímã, algo ainda mais imperioso me
segurava; e pude apenas acenar e passar adiante, e ela, sem responder à
minha saudação, apenas me seguiu com os nobres olhos.
Agora tinha a sua imagem por hábito, e conforme repetia seus traços
na memória, me parecia ler o seu próprio coração. Ela se vestia com al-
go da coqueteria da mãe, e o amor por cores alegres. O manto, que de-
duzi ter sido feito por suas próprias mãos, a encobria com destra graça.
De acordo com a moda daquele país, além disso, seu corpete ficava
aberto no meio, em longa incisão, e aqui, apesar da pobreza da casa,
uma moeda de ouro, pendurada por fita, sobre o tronco moreno. Essas
eram provas, caso fossem necessárias, de seu apreço nato pela vida e de
sua própria solidão. Por outro lado, em seus olhos que fitavam os meus,
podia ler profundas camadas sobrepostas de paixão e tristeza, luzes de
poesia e esperança, escuridão e desespero, e pensamentos que estavam
acima da terra. Era um corpo adorável, mas o inquilino, a alma, era mais
que digno daquele alojamento. Haveria eu de deixar essa flor incompa-
rável secar despercebida naquelas rudes montanhas? Haveria de despre-
zar o grande presente que me foi oferecido no silêncio eloquente daque-
les olhos? Eis uma alma enclausurada; haveria de evitar destruir a sua
prisão? Toda espécie de consideração me perpassou; fosse a filha de He-
rodes, juraria torná-la minha; e exatamente naquela noite me preparei,
com senso misturado de trapaça e desonra, a cativar o irmão. Talvez o
visse com olhos mais favoráveis, talvez pensar na irmã reunisse as me-
lhores qualidades daquela alma imperfeita; mas jamais me vira tão ami-
gável, e seu próprio apreço por Olalla, ao tempo em que me incomoda-
va, me deixava mais gentil.
Um terceiro dia se passou em vão — vazio deserto de horas. Não
perderia uma chance, e perambulei durante toda a tarde no pátio onde
(para dar a mim mesmo uma fisionomia) conversei com a Señora por
mais tempo que o normal. Deus sabe que era com interesse mais terno e
sincero que agora a examinava; mesmo quanto a Felipe, e agora a mãe,
percebia crescente tolerância. Ainda assim, pensava nisso. Mesmo quan-
do falava com ela, cabeceava num pequeno cochilo, e logo despertava
novamente, sem qualquer vergonha; e esse comportamento me impres-
sionava. E mais uma vez, notei que fazia mudanças infinitesimais na
postura, saboreava e se demorava com o prazer corporal do movimen-
to, fui levado a refletir sobre a profundidade da sensualidade passiva.
Ela vivia em seu corpo; e a consciência estava completamente mergulha-
da e disseminada nos membros, onde vivia luxuosamente. Ao final, não
me acostumei com os olhos. A cada vez que apontava para mim aqueles
orbes belos e vazios, arreganhados ao dia, mas cerrados para o inquérito
humano — a cada vez que tinha a oportunidade de observar as vivazes
mudanças das pupilas que se dilatavam e se contraíam num fôlego —
não sei o que se passava comigo, não consigo encontrar palavra para a
sensação mista de desapontamento, irritação e desgosto que abalava os
meus nervos. Eu a testei em uma variedade de assuntos, igualmente em
vão; e por fim conduzi o assunto da conversa para a filha. Mas, mesmo a
isso, se mostrou indiferente; disse que era bonita, o que (como criança)
era sua palavra enaltecedora mais elaborada, porém era claramente inca-
paz de qualquer pensamento mais rebuscado; e quando comentei que
Olalla parecia silenciosa, simplesmente bocejou em meu rosto e respon-
deu que a fala não era de muita utilidade quando se não tinha o que di-
zer. “As pessoas falam demais, demais”, completou e olhou para mim
com as pupilas dilatadas; e mais uma vez bocejou, e mais uma vez me
mostrou a boca delicada como brinquedo. Dessa vez, fisguei a sugestão,
deixa-a repousar, me levantei e fui até o meu quarto me sentar diante da
janela aberta, olhar para as colinas sem vê-las, mergulhado em sonhos
profundos e lustrosos, e escutar na imaginação o tom da voz que jamais
escutara.
Na quinta manhã acordei com o brilho de antecipação que parecia
desafiar o destino. Estava confiante, de pés e coração leves, e decidido a
revelar o meu amor o quanto antes. Não me deitaria mais sob os entra-
ves do silêncio, uma coisa muda, vivendo apenas pelo olho, como o
amor das bestas; agora haveria de colocar o espírito, e entrar nas alegrias
da intimidade humana integral. Pensava nisso com esperanças ferozes,
como o viajante do El Dorado; rumo a tal desconhecido e adorável país
da alma, não mais tremia diante da aventura. Porém quando efetiva-
mente a encontrei, a mesma força apaixonada mergulhou em mim, e
submergiu de vez a mente; a fala pareceu fugir de mim como hábito in-
fantil; então apenas me aproximei dela feito o homem frívolo que se
aproxima da margem do golfo. Ela se afastou um pouco quando che-
guei mais perto; porém os olhos não se distanciaram dos meus, e isso
me estimulou a seguir. Por fim, quando estava ao seu alcance, parei. As
palavras me foram negadas; caso avançasse, poderia apenas prendê-la ao
meu coração em silêncio; e tudo isso era saudável em mim, tudo aquilo
permanecia inconquistado, revoltado contra o pensamento de tal sauda-
ção. Então paramos por um segundo, toda a nossa vida nos olhos, tro-
cávamos bombardeios de atração e ainda assim resistíamos; e assim,
com grande força de vontade e, ao mesmo tempo, consciente da súbita
amargura do desapontamento, virei-me e saí com o mesmo silêncio.
Que poder me dominava a ponto de não conseguir falar? E ela, por
que também ficava em silêncio? Por que se afastava de mim, muda, com
olhos fascinados? Seria o amor? Ou era apenas atração animal, impensa-
da e inevitável, como aquele do ímã pelo aço? Jamais havíamos nos fala-
do, éramos completos estranhos; porém uma influência, forte como o
aperto de gigante, nos aproximava silenciosamente. De minha parte, me
deixava impaciente; mas ainda assim sabia que ela valia a pena; vira os
seus livros, lera os seus versos, e assim, de certo modo, descobrira a al-
ma de minha senhorita. Mas de sua parte, me atingia quase com frieza.
De mim, não sabia nada, com exceção de minha constituição corporal;
era impelida a mim como pedras à terra; as leis que geriam a Terra a
conduziam, sem consentimento, aos meus braços; recuei ao pensar em
tal noiva, e comecei a sentir ciúmes de mim mesmo. Não era assim que
desejava ser amado. E então comecei a sentir muita pena da própria ga-
rota. Pensei em como devia ser intensa a sua mortificação, que ela, a es-
tudante, a reclusa, a santa monitora de Felipe, devia, portanto, ter con-
fessado a fraqueza enfatuada por um homem com quem jamais havia
trocado uma palavra. E com a vinda da piedade, todos os outros pensa-
mentos foram devorados; e ansiei apenas por encontrar e consolar e
tranquilizá-la; e por lhe contar como era integral a correspondência de
meu amor por ela, e como a sua escolha, ainda que feita às cegas, não
era gratuita.
No dia seguinte, estava um clima glorioso; camadas e camadas de
azul profundo envolviam as montanhas; o sol brilhava forte; e o vento
nas árvores e nas diversas torrentes de água nas montanhas enchia o ar
com música delicada e constante. Mesmo assim, estava prostrado com a
tristeza. Meu coração chorava com a visão de Olalla, como a criança
chora pela mãe. Sentei-me num pedregulho à beira dos penhascos pe-
quenos que delimitam o platô ao norte. De lá observava o vale florestal
num riacho, onde nenhum pé passava. No humor que estava, chegava a
ser tocante contemplar o lugar inabitado; faltava Olalla; e pensei no de-
leite e na glória de uma vida inteira passada com ela naquele ar forte, e
entre aquele entorno acidentado e adorável, primeiro com sentimento
lamurioso, depois com aquela alegria inflamada que parecia crescer em
largura e estatura, como Sansão.
De repente, percebi que Olalla se aproximava. Surgiu do aglomera-
do de sobreiros, e veio diretamente até mim; me levantei e esperei. Ao
caminhar, parecia criatura com tal vida e fogo e leveza que me estontea-
va; e apenas vinha quieta e vagarosamente. Sua energia estava na lenti-
dão; porém quanto à sua força inimitável, senti que poderia correr, que
poderia voar até mim. Ainda assim, conforme se aproximava, mantinha
os olhos voltados para o chão; e quando se aproximou bastante, foi sem
um único olhar que se dirigiu a mim. Com a primeira nota da voz, me
sobressaltei. Era por aquilo que esperava; o último teste de meu amor. E
eis que sua pronúncia era precisa e clara, não balbuciada e incompleta
como a da família; e a voz, embora mais grossa que o normal em mulhe-
res, era juvenil e feminina. Falava em belo acorde, fortes notas de con-
tralto dourados misturadas com rouquidão, e os fios vermelhos se mes-
clavam com o moreno entre as tranças. Não era apenas a voz que falava
direto ao meu coração; mas falava dela para mim. Porém, as palavras
imediatamente me devolveram o desespero.
“O senhor irá embora”, disse, “hoje.”
Sua sentença destruiu as conexões de meu discurso; senti como se
me livrasse de um peso, como se a maldição houvesse sido desfeita. Não
sei com quais palavras respondi; mas ali, ao lado dela e diante do pe-
nhasco, despejei todo o ardor de meu amor, lhe contei que vivia para
pensar nela, dormia apenas para sonhar com sua solidão, e repudiaria
contente o meu país, meu idioma, e meus amigos, para viver ao seu lado
para sempre. E então, me controlei fortemente e mudei de tom; a con-
fortei e a tranquilizei; lhe contei que previ nela espírito piedoso e heroi-
co, com o qual me dignava a simpatizar, e que ansiava em compartilhar
e iluminar. “A natureza”, lhe falei, “era a voz de Deus, que os homens
desobedecem no perigo; e se nos encontramos assim tão próximos, ah,
mesmo por milagre do amor, isso deve apenas sugerir a combinação di-
vina em nossas almas; haveremos de ser feitos”, disse — “feitos um para
o outro. De sermos loucos rebelados”, exclamei, — “loucos rebelados
contra Deus, se não obedecermos esta propensão.”
Ela balançou a cabeça. “O senhor irá hoje”, repetiu, em então com
gesto e tom repentino e agudo: “não, hoje não”, exclamou, “amanhã!”
Com esse sinal de abrandamento, o poder me acometeu numa maré.
Estiquei os braços e chamei por seu nome; ela saltou em minha direção
e se agarrou a mim. O penhasco balançou em nossa volta; a terra tre-
meu; o choque como o de pancada me atravessou e me cegou e tonteou.
E, no momento seguinte, ela me soltou, rudemente livre de meus bra-
ços, e fugiu por entre os sobreiros com a velocidade do veado.
Fiquei e gritei para as montanhas; dei a volta e retornei para a resi-
dência, caminhando no ar. Ela me dispensara, e não podia fazer nada
além de chamar o seu nome, e ela voltou para mim. Nada mais que a
fraqueza das garotas, e mesmo ela, a mais estranha de seu sexo, não es-
tava exclusa. Ir? Não eu, Olalla — oh, não eu, Olalla, minha Olalla!
Um pássaro cantou perto de mim; e naquela estação os pássaros eram
raros. Ele me deixou de bom humor, e mais uma vez todo o aspecto da
natureza, das montanhas preponderantes e estáveis à folha mais leve e à
menor mosca dardejava na sombra das árvores, começaram a se agitar
diante de mim, e a pôr as feições de vida e a vestir rosto de alegria terrí-
vel. O sol brilhava nas colinas, forte como o martelo na bigorna, e as
colinas tremiam; a terra, sob vigorosa insolação, exalava perfumes ine-
briantes; os bosques ardiam naquele esplendor. Senti a emoção da labu-
ta e o deleite correrem sobre a terra. Algo elementar, algo rústico, vio-
lento e selvagem, no amor que cantava em meu coração, como chave
para os segredos da natureza; e as próprias pedras que ao se estalar sob
os meus pés pareciam vivas e amigáveis. Olalla! Seu toque havia me des-
pertado, e me renovado e me levado para o velho timbre do concerto
com a terra acidentada, para o crescimento das almas que os homens
aprendem a esquecer nas polidas companhias. O amor queimava em
mim como fúria; a ternura crescia com ardor; a odiava, adorava, deplo-
rava, a reverenciava com êxtase. Parecia ser o vínculo às coisas mortas
por um lado, e com o Deus puro e piedoso pelo outro; algo brutal e di-
vino, e, ao mesmo tempo, semelhante à inocência e às forças desenfrea-
das da Terra.
Com a cabeça girando, fui até o pátio da residência, e a visão da mãe
me atingiu como revelação. Estava sentada ali, em absoluta preguiça e
contentamento, piscava sob o sol forte, marcada por desfrute passivo,
criatura bem isolada, por quem o meu ardor se esvaiu como motivo de
vergonha. Parei por um momento, controlei ao máximo o meu abalo,
lhe disse uma ou duas palavras. Olhou para mim com gentileza inson-
dável; sua voz em resposta soou vagamente no reino da paz em que co-
chilava, e ali me veio, pela primeira vez, um senso de respeito por al-
guém tão uniformemente inocente e feliz, e passei a ter certo deslum-
bramento por mim mesmo, por estar tão inquieto.
Em minha mesa havia um pedaço do mesmo papel amarelo que vira
no quarto do norte; escrito a lápis pela mesma letra, a letra de Olalla, e
o peguei com alarme repentino, e li, “Caso tenha qualquer sentimento
por Olalla, caso tenha qualquer cavalheirismo por criatura forjada com
tanta amargura, vá embora daqui hoje; por pena, honra, em nome Da-
quele que morreu por nós, suplico que vá”. Estudei aquilo por um tem-
po, simplesmente estupefato, em seguida despertei para um cansaço e
horror à vida; o sol lá fora escureceu nas colinas nuas, e tremi aterrori-
zado. O espaço assim aberto em minha vida me abatia como vazio físi-
co. Não era o meu coração, não era a minha felicidade, era a própria vi-
da que assim estava envolta. Não poderia perdê-la. Disse isso, e perma-
neci a repeti-lo. E então, como alguém em sonho, me movi até a janela,
pus a mão para a frente para abrir o caixilho, e a enfiei no vidro. O san-
gue jorrou do pulso, e com autocontrole e tranquilidade instantânea,
pressionei o polegar na pequena fonte, e pensei no que fazer. Naquele
quarto vazio não havia nada que me servisse; senti, além disso, que pre-
cisava de ajuda. Surgiu-me em disparada a ideia de que a própria Olalla
pudesse ser a ajudante, então dei a volta e desci a escadaria, com o pole-
gar sobre o ferimento.
Não havia sinal nem de Olalla nem de Felipe, e me dirigi ao vão, de
onde a Señora agora havia recuado bastante e cochilava sentada perto
do fogo, pois nenhum grau de calor lhe parecia demais.
“Peço perdão”, disse, “se a perturbo, mas preciso de ajuda.”
Ela me olhou sonolenta e me perguntou o que era, e com exatamen-
te essas palavras pensei que havia prendido o fôlego com alargamento
das narinas e pareceu tornar-se completamente viva de súbito.
“Eu me cortei”, disse, “muito. Veja!” E pus para frente as duas
mãos, de onde o sangue escorria e pingava.
Seus grandes olhos se arregalaram, as pupilas se transformaram em
pontos; um véu parecia ter caído do rosto e o deixado extremamente ex-
pressivo e mesmo inescrutável. E ainda fiquei parado, um tanto atordo-
ado por sua perturbação, veio rapidamente até mim, e se agachou e se-
gurou a minha mão; e, no momento seguinte, a minha mão estava em
sua boca, e havia me mordido até o osso. O espasmo de dor, e súbito
jorro de sangue, e o monstruoso horror pelo ato, me percorreu de uma
vez, e bati em suas costas; e ela saltou sobre mim outra vez e mais uma
vez, com gritos bestiais, gritos que reconhecia, aqueles gritos que me
haviam acordado na noite da ventania. Sua força era como a da loucura,
enquanto a minha baixava rapidamente com a perda do sangue; além
disso, a minha mente girava com a abominável estranheza da violência,
e já era forçado contra a parede, quando Olalla correu para nos separar,
e Felipe, em sequência, com um golpe, prendeu a mãe no chão.
Senti fraqueza semelhante a transe; via, ouvia, e sentia, mas era inca-
paz de me movimentar. Ouvi a luta acontecer de um lado a outro no
chão, os gritos daquela tigresa alcançavam o céu ao se empenhar em me
alcançar. Senti Olalla me segurar nos braços, seu cabelo caído em meu
rosto, e, com a força de um homem, me erguer, e em parte me arrastar,
em parte me carregar escada acima para o meu quarto, onde me colocou
na cama. Então a vi correr até a porta e trancá-la, e ficar por um instante
a escutar os gritos selvagens que estremeciam a residência. Em seguida,
rápida e leve como o pensamento, estava ao meu lado novamente, segu-
rava minha mão contra seu tronco, se lamentava e choramingava por ela
como o som parecido com o de pomba. Não eram palavras que lhe vi-
nham, eram sons mais belos que a fala, infinitamente tocantes, infinita-
mente ternos; e enquanto eu ficava lá deitado, um pensamento atingiu o
meu coração, pensamento que me feriu como espada, pensamento, co-
mo lagarta na flor, profanava a sacralidade de meu amor. Sim, eram be-
los sons, e inspirados pela ternura humana; mas a beleza deles era hu-
mana?
Fiquei ali deitado o dia inteiro. Por um longo tempo, os gritos da-
quela coisa feminina sem nome, enquanto lutava contra o filhote desmi-
olado, ressoaram pela casa, e me perfuravam com tristeza e desgosto de-
sesperadores. Era o grito de morte de meu amor; meu amor havia sido
assassinado; não estava apenas morto, mas me era ofensivo; e ainda, por
mais que pensasse, ainda crescia em mim como tempestade de doçura, e
meu coração se derretia com sua imagem e toque. Esse horror que havia
emergido, essa dúvida em relação a Olalla, essa tensão selvagem e bestial
que perpassava não apenas todo o comportamento da família, mas en-
contrava lugar na própria fundação e na história de nosso amor — que
embora fosse horripilante, embora me chocasse e enojasse, não tinha
força o suficiente para romper o nó de minha paixão.
Quando os gritos cessaram, houve arranhões na porta, e assim sou-
be que Felipe estava lá fora; Olalla foi até lá e conversou com ele — não
sei sobre o quê. Com exceção desse instante, ela ficou perto de mim, ora
ajoelhada diante da cama, rezando com fervor, ora sentada com os olhos
nos meus. Então, por essas seis horas bebi de sua beleza, e em silêncio
examinei a história em seu rosto. Vi a moeda de ouro flutuar com sua
respiração; vi seus olhos se escurecerem e se iluminarem, e ainda assim
não falar em outra linguagem que não a da gentileza insondável; vi o
rosto imaculado, e, pela manta, as linhas do corpo imaculado. A noite
chegou por fim, e na escuridão crescente do aposento, a imagem dela
desapareceu lentamente; mas mesmo o toque de sua mão macia se de-
morava na minha e dialogava comigo. Ficar deitado com essa fraqueza
mortal e beber nos traços da amada é despertar novamente o amor, não
importa o choque ou a desilusão. Refleti; e fechei os olhos para os hor-
rores, e mais uma vez estava bastante firme para aceitar o pior. O que
importava, se aquele sentimento imperioso sobrevivesse; se os olhos
ainda gesticulavam e me prendiam; se agora, como antes, cada fibra de
meu corpo ansiava e se virava para ela? Mais tarde naquela noite, recu-
perei um pouco da força, e falei:
“Olalla” disse, “nada importa; não peço nada; estou contente; eu te
amo.”
Enquanto isso, ela se ajoelhou e rezou, e devotamente respeitei a sua
devoção. A lua começou a brilhar no lado de cada uma das três janelas,
e a trazer claridade enevoada no quarto, de modo que a vi indistinta-
mente. Quando se levantou novamente, fez o sinal da cruz.
“Sou eu quem devo falar”, disse, “e você, escutar. Eu sei; pode ape-
nas imaginar. Rezei, como rezei para que deixasse este lugar. Implorei, e
sei que teria me assegurado disso; ou, se não, oh, o que pensar!”
“Eu te amo”, falei.
“Sendo que conhece o mundo”, disse ela; e após pausa, “e é inteli-
gente; não passo de uma criança. Perdoe-me, se pareço ensinar, eu que
sou ignorante como as árvores da montanha; mas aqueles que estudam
demais não mais que arranham a face da sabedoria; dominam as leis,
imaginam a dignidade do desígnio — o horror do fato vivo desaparece
de suas memórias. Somos nós, os que sentamos com o mal em casa que
nos lembramos, creio, e que somos alertados e dignos de pena. Vá, em
vez disso, vá agora, e me guarde na mente. Assim terei uma vida nos lu-
gares queridos de sua memória: vida como a minha, como a que levo
neste corpo.”
“Eu te amo”, proferi outra vez; e com a mão fraca, peguei a dela, a
levei aos lábios, e beijei. Não resistiu, mas estremeceu um pouco; pude
ver que me observava e franzia o rosto, não sem gentileza, apenas triste
e perplexa. E então pareceu resoluta; agarrou a minha mão, ao mesmo
tempo se inclinou para frente, e a pôs a sentir a batida de seu coração.
“Aqui”, exclamou, “sente o próprio compasso de minha vida. Ele se
move apenas por sua causa; é sua. Mas ao menos será minha? Na verda-
de, é minha para lhe oferecer, assim como poderia tirar a medalha de
meu pescoço, poderia quebrar o galho vivo de uma árvore, e lhe ofere-
cer. E ainda assim não é minha! Resido, ou penso residir (se é que existo
mesmo), em algum lugar à parte, prisioneira impotente, levada e ensur-
decida por gente que desprezo. Esta cápsula, conforme lateja contra o
lado dos animais, conhece você pelo toque de seu mestre, ah, e o ama!
Mas a minha alma, ela ama? Creio que não; não sei, temo perguntar. Po-
rém, quando me falou isso as suas palavras eram da alma; é da alma que
me pergunta — e é apenas pela alma que me terá.”
“Olalla”, disse, “a alma e o corpo são uma coisa só, ainda mais no
amor. O que o corpo escolhe, a alma ama; onde o corpo se dependura, a
alma se divide; corpo por corpo, alma por alma, se juntam com um sinal
de Deus; e a parte mais baixa (se podemos chamar algo de baixo) é ape-
nas o pedestal e a fundação da mais elevada.”
“Chegou a ver”, disse, “os retratos de meus ancestrais na casa?
Olhou para a minha mãe e Felipe? Seus olhos nunca pararam diante
dessa pintura ao lado de sua cama? Quem posou para ela morreu há
eras; e cometeu o mal durante a vida. Mas olhe novamente: ali está a mi-
nha mão em cada linha, ali estão os meus olhos e meu cabelo. O que é
meu, então, e o que sou eu? Não há uma curva sequer neste pobre cor-
po meu (que você ama, e motivo pelo qual sonha divinamente que me
ama), sequer um gesto que possa enquadrar, sequer um tom de voz, se-
quer qualquer olhar meu, não, nem mesmo agora que lhe declaro o meu
amor, que antes não pertenceu a outras? Outras, mortas há eras, corteja-
ram outros homens com os meus olhos; outros homens ouviram o jura-
mento pela mesma voz que agora ressoa em seus ouvidos. As mãos dos
mortos estão em meu tronco; elas me movem, me seguram, me guiam;
sou uma boneca sob seus comandos; e apenas reafirmo os traços e atri-
butos que há muito tempo, além do mal, têm sido postos na quietude
do túmulo. Sou eu quem você ama, amigo? Ou a estirpe que me criou?
A garota que não sabe e não é capaz de responder pela menor parcela de
si mesma? Ou o riacho de que é redemoinho transitório, a árvore de
que é a fruta passageira? A linhagem existe; é antiga, jamais é jovem,
carrega o destino em seu seio; sobre ela, como ondas sobre o mar, o in-
divíduo sucede o indivíduo, escarnecido com a aparência de autocon-
trole, mas não são nada. Falamos da alma, mas a alma está na linhagem.
“Você se irrita contra a lei natural”, afirmei. “Se rebela contra a voz
de Deus, que fez tão vitorioso no convencimento, tão imperioso ao co-
mando. Escute, e verá como fala conosco! Sua mão se agarra à minha,
seu coração acelera ao meu toque, os elementos desconhecidos do qual
somos compostos despertam e correm juntos com um olhar; o barro da
terra se recorda de sua vida independente e anseia por se juntar a nós;
nos juntamos como as estrelas estão distribuídas no espaço, ou como a
maré sobe e baixa, por motivos mais velhos e maiores que nós.”
“Ah!”, falou, “o que posso lhe dizer? Os meus ancestrais, há oito-
centos anos, mandavam em toda esta província: eram sábios, grandes,
sagazes e cruéis; eram seleta raça de espanhóis; suas bandeiras comanda-
vam na guerra; o rei os chamava de primos; as pessoas, quando a forca
já estava armada para elas, ou quando retornavam e encontravam as ca-
banas fumegantes, blasfemavam os seus nomes. Logo, a mudança come-
çou. O homem se ergueu; caso houvesse surgido dos brutos, poderia
descer ao mesmo nível novamente. O fôlego da fadiga assoprou em sua
humanidade e os laços se folgaram; começaram a decair; suas mentes
tombavam durante o sono, sua fúria despertava em turbilhão, inebrian-
tes e sem sentido como o vento nas valas das montanhas; a beleza ainda
era transmitida, porém, não mais o bom senso ou o coração humano; a
semente passou; foi envolta por carne, a carne cobria os ossos, mas eram
a carne e os ossos de brutos, e a mente era a das moscas. Ouso lhe falar;
mas viu por si só como a roda girou para trás em minha condenada li-
nhagem. Fico, por assim dizer, sobre chão inclinado nesta descida de-
sesperada, e vejo atrás e antes, o que perdemos e que estamos fadados a
seguir abaixo. E haverei de — eu que moro separada na casa dos mor-
tos, meu corpo, despreza esses modos — haverei de repetir a maldição?
Haverei de aprisionar outro espírito, relutante como o meu, nesse terre-
no tempestuoso e amaldiçoado em que agora sofro? Haverei de passar
adiante esse amaldiçoado recipiente da humanidade, enchê-lo com a no-
va vida assim como com o novo veneno, e salpicá-lo, como fogo, nas fa-
ces da posteridade? Mas o meu voto foi dado; minha linhagem haverá
de desaparecer da Terra. Agora, meu irmão se prepara; seu pé logo ha-
verá de pisar a escadaria; e você irá com ele e sumirá de minha visão pa-
ra sempre. Às vezes, pense em mim como alguém cuja lição de vida foi
ensinada de maneira muito dura, mas que a escutou com coragem; co-
mo alguém que de fato amou, mas que odiava a si mesma tão profunda-
mente que seu amor foi odioso a si própria; como alguém que lhe man-
dou embora mesmo que desejasse ficar com você para sempre; que não
possuía esperança mais cara que esquecê-lo, e nenhum medo maior que
o de ser esquecida.”
Se aproximou da porta conforme falava, a bela voz soava mais suave
e distante; e com a última palavra se foi, e fiquei sozinho no aposento
iluminado pela lua. O que poderia ter feito caso não estivesse preso de-
vido a minha extrema fraqueza, eu não sei; mas enquanto estava ali, fui
tomado por desespero grande e vazio. Não demorou a brilhar na porta
a claridade rósea da lanterna, e à aparição de Felipe, que me colocou no
ombro sem uma palavra, e me carregou até o grande portão, onde a car-
roça nos esperava. As colinas se destacavam vivamente ao luar, como se
fossem papelão; na vista brilhante do platô, e em meio as árvores baixas
que balançavam juntas e brilhavam no vento, o grande cubo negro da
residência se destacava solidamente, sua massa apenas cortada por três
janelas com luz fraca na frente norte, acima do portão. Eram as janelas
de Olalla, e conforme a carroça sacudia em frente, mantive os olhos fi-
xos nelas, até que, onde a estrada afundava no vale, desaparecessem de
minha visão para sempre. Felipe andou em silêncio entre as hastes, mas
volta e meia checava a mula e parecia olhar para mim; e, por fim, se
aproximou e pôs a mão na minha cabeça. Havia tal gentileza no toque, e
tal simplicidade, como a dos brutos, que as lágrimas jorraram de mim
como rompimento de artéria.
“Felipe”, disse, “leve-me aonde não me farão nenhuma pergunta.”
Ele não disse uma palavra, mas deu a volta com a mula, mudou
completamente de lado, passou novamente por parte do caminho que
havíamos percorrido, entrou noutra estrada, me conduziu até a vila na
montanha, que era, como dizemos na Escócia, a “paróquia” daquele
distrito parcamente povoado. Tenho alguns fragmentos de memória do
dia nascer na planície, da carroça parar, de braços que me ajudaram a
descer, do quarto vazio onde me levaram, e do desmaio que caiu sobre
mim como sono.
No dia seguinte e nos próximos, o velho padre frequentemente fi-
cou ao meu lado com sua tabaqueira e seu livro de orações, e após um
tempo, quando ganhei alguma força, me disse que agora me recuperava
bem, e devia adiantar a minha partida o mais rápido possível; com o
que, sem dar qualquer motivo específico, cheirou o rapé e olhou para
mim de lado. Não fingi ignorar o que disse; sabia que havia visto Olalla.
“O senhor”, falei, “sabe que não pergunto por devassidão. O que acon-
tece com aquela família?”
Ele me respondeu que eram muito desafortunados; que parecia li-
nhagem em declínio, e que eram muito pobres, abandonados fazia mui-
to.
“Mas ela não”, disse. “Graças, sem dúvidas, ao senhor, é instruída e
mais inteligente que a maioria das mulheres.”
“Sim”, disse; “a Señorita é bem informada. Mas a família foi aban-
donada.”
“A mãe?”, indaguei.
“Sim, a mãe também”, disse o Padre e cheirou. “Mas Felipe é rapaz
bem intencionado.”
“A mãe é peculiar?”, perguntei.
“Muito peculiar”, respondeu o clérigo.
“Creio, senhor, que seja algo sensível”, disse. “O senhor provavel-
mente sabe mais do assunto do que se permite falar. Mas haverá de en-
tender que minha curiosidade pode ser fundamentada em muitas bases.
Não poderia ser franco comigo?”
“Filho”, disse o velho cavalheiro, “serei bastante franco com você
em relação aos assuntos de minha competência; naqueles dos quais nada
sei não precisarei de discrição para ficar em silêncio. Não nos enfrente-
mos, pois entendo perfeitamente o que fala; e o que posso dizer, além
de que estamos todos nas mãos de Deus, que os Seus desígnios não são
os nossos desígnios? Cheguei até a me aconselhar com os meus superio-
res na Igreja, mas eles também ficaram perdidos. É um grande misté-
rio.”
“Ela é louca?”, perguntei.
“Responderei de acordo com o que acredito. Ela não é”, respondeu
o Padre, “ou não era. Quando jovem — que Deus me ajude, temo haver
abandonado aquela ovelha selvagem — certamente era sã; mesmo assim,
embora não chegasse a tanto, a mesma deformação já era notável; antes
já havia sido assim com o pai dela, ah, e antes dele, e isso me impeliu,
talvez, a não pensar muito no assunto. Mas essas coisas crescem, não
apenas no indivíduo, mas na linhagem.”
“Na juventude”, comecei, e minha voz falhou por um momento, e
foi apenas por grande esforço que consegui completar, “ela era como
Olalla?”
“Deus me livre!”, exclamou o Padre. “Deus me livre que qualquer
homem possa pensar de modo tão leviano a respeito de minha penitente
favorita. Não, não; a Señorita (a não ser pela beleza, que desejo honesta-
mente que tivesse menos) não tinha um fio de cabelo semelhante ao da
mãe com a mesma idade. Não posso suportar que pense algo assim; em-
bora, Deus sabe, seria melhor, talvez, que pensasse.”
Com isso, me levantei da cama, e abri o coração ao velho; lhe contei
de nosso amor e da decisão dela, dominei os meus próprios temores,
minhas próprias fantasias passageiras, mas lhe contei que isso estava no
fim; e com algo mais que uma submissão puramente formal, apelei ao
seu juízo.
Ele me ouvia com muita paciência e sem surpresa; e quando termi-
nei, permaneceu sentado em silêncio por um tempo. Então começou:
“A Igreja”, e instantaneamente cortou para se desculpar. “Havia esque-
cido, minha criança, que você não é cristão”, disse. “E na verdade,
quanto a questão tão incomum, mesmo a Igreja mal pode dizer que tem
uma decisão. Mas quer a minha opinião? A Señorita é, em tal assunto, a
melhor juíza; aceitaria a decisão dela.”
Com isso, foi embora e, desde então, não foi tão assíduo nas visitas;
na verdade, mesmo quando comecei a sair novamente, claramente temia
e evitava a minha companhia, não por desgosto, mas como alguém dis-
posto a fugir da enigmática esfinge. Os habitantes também me evitavam;
não desejavam ser meus guias para subir a montanha. Notei que me
olhavam com desconfiança, e tinha certeza de que os mais supersticio-
sos persignavam-se quando me aproximava. Primeiro pensei que isso se
devia às minhas opiniões heréticas; mas enfim entendi que se era assim
motivo de dúvida, foi por ter ficado na residência. Todos os homens
desprezam as ideias selvagens daquele campesinato; e, ainda assim, esta-
va consciente da sombra gelada que parecia cair e residir em meu amor.
Não dominei, mas não posso negar que isso restringia o meu ardor.
A alguns quilômetros ao oeste da vila havia espaço na sierra, de on-
de o olho fincava diretamente na residência; e, desde então, se me tor-
nou um hábito diário ir lá. O bosque ocupava o cume; e exatamente on-
de a trilha saía de seus limites, era ocupado por considerável penhasco
de pedra, que, por sua vez, sustentava crucifixo do tamanho da vida e de
desenho mais doloroso que o normal. Esse era o meu recanto; assim, dia
após dia, observava o platô abaixo, e a casa grande e antiga, e podia ver
Felipe, pequeno como mosca, de um lado a outro no jardim. Às vezes, a
névoa atrapalhava a vista até ser quebrada pelos ventos montanheses; às
vezes, a planície cochilava abaixo de mim sob o sol inclemente; às vezes,
tudo era embaçado pela chuva. Esse local distante, essas visões inter-
rompidas do lugar onde a minha vida havia mudado de modo tão estra-
nho, combinavam com a indecisão de meu humor. Passei dias inteiros
ali, debatia comigo mesmo a respeito dos variados elementos de nossa
posição; ora inclinava-me às sugestões do amor, ora dava ouvidos à pru-
dência e, por fim, permaneci irresoluto entre os dois.
Certo dia, estava sentado em minha pedra, e ali chegou um campo-
nês algo magricela envolto em manta. Era forasteiro, e claramente não
me conhecia sequer por reputação, pois, em vez de ficar do outro lado,
se aproximou e se sentou ao meu lado, e puxou conversa. Entre outras
coisas, me disse que havia sido muleiro, e que há tempo frequentou bas-
tante aquelas montanhas; depois seguira o exército com as mulas, reali-
zara façanha, e agora vivia aposentado com a família.
“O senhor conhece aquela casa?”, indaguei, por fim, e apontei para
a residência, pois qualquer conversa que me distanciasse do pensamento
de Olalla logo me cansava.
Ele me observou obscuramente e fez o sinal da cruz.
“Bem demais”, afirmou, “foi onde um dos meus camaradas se ven-
deu para Satã; a Virgem nos protegeu das tentações! Ele pagou o preço;
agora está pagando no lugar mais vermelho do Inferno!”
Certo medo me sobrepôs; não pude responder nada; então logo de-
pois o homem continuou, como que para si mesmo: “Sim”, disse, “oh,
sim, eu sei. Eu passei por aquelas portas. Havia neve na passagem, o
vento a levava; certamente haveria a morte nas montanhas aquela noite,
mas havia algo pior do lado da soleira. Eu o peguei pelo braço, Señor, e
o puxei até o portão; implorei a ele, por tudo o que amava e respeitava,
que seguisse comigo; fiquei de joelhos diante dele na neve; e pude ver
que ficara comovido com a cena. E, nesse momento, ela saiu da galeria,
e o chamou pelo nome; ele se virou, e ali ela segurava o lampião na mão,
sorria para que voltasse. Gritei alto para Deus, lancei meus braços a sua
volta, que me pôs de lado e me deixou sozinho. Foi a sua escolha; que
Deus nos ajude. Rezaria por ele, mas para quê? Existem pecados que
nem mesmo o Papa pode absolver”.
“E seu amigo”, perguntei, “o que aconteceu com ele?”
“Ah, Deus sabe”, disse o muleiro. “Se for verdade tudo o que ouvi-
mos, o fim foi como o seu pecado, algo de levantar os cabelos.”
“Quer dizer que foi assassinado?”, perguntei.
“Com certeza foi assassinado”, respondeu o homem. “Mas como?
Ah, como? Mas é pecado sequer mencionar essas coisas.”
“As pessoas daquela casa…”, comecei.
Mas me interrompeu com irrupção selvagem. “As pessoas?”, gritou.
“Que pessoas? Não há homem ou mulher naquela casa de Satã! O quê?
Você viveu aqui por tanto tempo e nunca ouviu falar?” Então pôs a bo-
ca em meu ouvido e cochichou, e se mesmo as aves da montanha pudes-
sem ouvir, endureceriam de horror.
O que me contou não era verdade, não era sequer original; na verda-
de, apenas nova edição, novamente ventilada pela ignorância provincia-
na e a superstição, de histórias quase tão velhas como a raça humana.
Foi antes a aplicação o que me aterrorizou. Nos velhos tempos, disse, a
Igreja queimaria aquele ninho de basiliscos; mas o braço da Igreja agora
havia encurtado; seu amigo Miguel não havia sido punido pelas mãos
dos homens, e fora deixado ao julgamento mais terrível de Deus ofendi-
do. Isso era errado; mas não haveria de acontecer mais. O Padre se
afundara na idade; ele mesmo havia sido enfeitiçado; mas os olhos de
seu grupo agora haviam se aberto para o problema; e algum dia — ah,
não tarda — a fumaça daquela casa vai aos céus.
Ele me deixou tomado pelo horror e o medo. Para qual caminho se-
guir, não sabia; se ia primeiro alertar o Padre, ou levar minhas más notí-
cias diretamente aos ameaçados habitantes da residência. O destino ha-
veria de decidir para mim; pois, enquanto ainda hesitava, percebi a figu-
ra de uma mulher de véu se aproximar pela trilha. Véu algum poderia
enganar a minha percepção; em cada traço e movimento reconhecia
Olalla; e permaneci escondido no canto da rocha, esperei que alcançasse
o topo. Então, avancei. Ela me reconheceu e parou, mas não falou; tam-
bém permaneci em silêncio; e, por um tempo, continuamos a encarar
um ao outro com tristeza apaixonada.
“Pensei que havia ido embora”, disse ela, por fim. “Isso é tudo o
que pode fazer por mim — ir. Foi tudo o que lhe pedi. E aqui permane-
ce. Mas sabe que todos os dias se acumula o perigo de morte, não ape-
nas em sua cabeça, mas na nossa? Um relato tem atravessado a monta-
nha; pensam que me ama, e as pessoas não se importarão com isso.”
Vi que já estava informada a respeito do perigo, e senti prazer com
isso. “Olalla”, falei, “estou pronto para ir embora hoje, agora mesmo,
mas não sozinho.”
Ela deu um passo para o lado e se ajoelhou diante do crucifixo para
rezar; fiquei parado e olhava ora para ela, ora para o objeto de adoração,
ora para a figura viva do penitente, e ora para o aspecto borrado e me-
donho, os ferimentos pintados, e as costelas protuberantes na imagem.
O silêncio só foi quebrado pelos lamentos de alguns grandes pássaros
que circulavam, como se surpresos ou alarmados, em volta do cume das
colinas. Logo depois, Olalla se levantou novamente, se voltou para
mim, ergueu o véu, se apoiou com uma das mãos na haste do crucifixo,
e olhou para mim com semblante pálido e penoso.
“Pus a minha mão na cruz”, disse. “O Padre diz que você não é cris-
tão; mas olhe nos meus olhos por um momento, e contemple o rosto do
Homem das Tristezas. Somos todos como Ele — herdeiros do pecado;
devemos suportar e expiar um passado que não era nosso; existe em to-
dos nós — ah, mesmo em mim — uma fagulha do divino. Como Ele,
devemos resistir um pouco, até que a manhã recomece e traga a paz.
Permita-me que siga o meu caminho sozinha; assim, ao menos, não me
sentirei tão solitária, ao contar Ele como amigo, que é amigo de todos
que padecem; assim me sentirei mais feliz, me despedi da alegria terre-
na, e voluntariamente aceito a minha porção de infelicidade.”
Olhei para a frente do crucifixo, e, embora não fosse amigo de ima-
gens, e desprezasse a arte imitativa e barata que aquela ali era exemplo
grosseiro, algum senso do que a coisa implicava entrou em minha inteli-
gência. A frente me olhou de volta com contração dolorosa e fatal; mas
os raios da glória a circulavam, e me lembrei que o sacrifício era volun-
tário. Fiquei ali, rodeei o topo da rocha, enquanto ela ainda permanece
em tantas beiras de estradas, prega em vão aos passantes, emblema das
verdades tristes e nobres; que o prazer não é o fim, mas acidente; que a
dor é a escolha dos magnânimos; que é melhor sofrer todas as dores e
agir corretamente. Eu me virei e desci a montanha em silêncio; e, ao
olhar para trás a última vez, antes de a mata fechar o caminho, vi Olalla
ainda curvada diante do crucifixo.
MARKHEIM
ROBERT LOUIS STEVENSON

1885

“Sim”, disse o antiquário, “nossas heranças são de diversas categorias.


Alguns clientes são ignorantes, então recebo dividendos pelo meu co-
nhecimento superior. Alguns são desonestos”, e aqui suspendeu a vela,
para que a luz recaísse com intensidade no visitante, “e nesse caso”,
continuou, “lucro por minha virtude.”
Markheim acabara de sair das ruas iluminadas pelo dia e entrar lá, e
seus olhos ainda não haviam se acostumado com a mistura de brilho e
escuridão da loja. Com aquelas palavras mordazes, e diante da proximi-
dade das chamas, piscou dolorosamente e olhou para o lado.
O antiquário riu abafado. “O senhor me vem no dia do Natal”,
prosseguiu, “quando sabe que estou sozinho em casa, fecho as venezia-
nas, e me convenço a recusar negociações. Bem, deverá me pagar por is-
so; deverá me pagar pelo meu tempo perdido, pois podia estar no fecha-
mento dos livros; e deverá pagar, além disso, pelo modo como hoje con-
verso tão francamente. Sou a essência da discrição, e não faço nenhuma
pergunta inconveniente; mas quando o cliente não é capaz de me olhar
no olho, deve pagar por isso.” O antiquário deu mais um riso abafado; e
então, mudou para a voz de negócios normal, apesar de ainda manter
laivos de ironia, “O senhor poderia me fazer, que nem sempre, relato
claro de como adquiriu o objeto?”, continuou. “Ainda o gabinete do
tio? Um notável colecionador, senhor!”
E o pequeno negociante, pálido e de ombros arredondados, ficou
quase na ponta dos pés, olhou por cima dos óculos de ouro, moveu a
cabeça em sinal de descrença. Markheim devolveu seu olhar com um de
compaixão infinita, e pontada de horror.
“Desta vez”, afirmou, “o senhor está errado. Não vim vender, mas
comprar. Não tenho raridades para me desfazer; o gabinete de meu tio
já foi rapinado; mesmo que estivesse intacto, me dei bem na bolsa de va-
lores, e prefiro acrescentar algo a ele que o contrário, meu interesse hoje
é por algo muito simples. Busco presente de Natal para uma dama”,
continuou e aumentava sua fluidez conforme se mantinha no discurso
preparado; “e certamente lhe devo todas as desculpas por assim pertur-
bá-lo devido a motivo tão irrelevante. Mas o assunto foi ignorado on-
tem; devo produzir meu breve cumprimento no jantar; e, como o se-
nhor bem sabe, um casamento rico não é algo a se ignorar.”
Seguiu-se pausa, durante a qual o antiquário pareceu pesar a senten-
ça incredulamente. Os tique-taques de diversos relógios entre as rarida-
des de madeira na loja e o fraco ruído dos cabriolés na avenida próxima
preencheram o intervalo de silêncio.
“Bem”, disse o antiquário, “que seja. Antes de tudo o senhor é velho
cliente; e se, como diz, tem a chance de arrumar bom casamento, longe
de mim ser obstáculo. Agora veja algo bom para uma dama”, seguiu,
“este espelho de mão — século XV, garantido; vem de boa coleção, tam-
bém; mas não menciono o nome por interesse do cliente, que do mesmo
modo, meu caro senhor, era o sobrinho e único herdeiro de notável co-
lecionador.”
O antiquário, enquanto assim seguia com voz seca e perfurante, ha-
via se abaixado para pegar o objeto; ao fazê-lo, um choque perpassou
Markheim, sobressalto tanto na mão como no pé, elevação repentina de
diversas paixões tumultuosas até o seu rosto. Passou com a velocidade
que chegou, e não deixou rastro, a não ser certa tremedeira na mão que
agora recebia o espelho.
“Espelho”, disse roucamente, então pausou, e repetiu com mais cla-
reza. “Um espelho? De natal? Será?”
“E por que não?”, gritou o negociante. “Por que não um espelho?”
Markheim olhava para ele com expressão indefinida. “O senhor me
pergunta por que não?”, disse. “Ora, olhe aqui, — olhe dentro — olhe
para si mesmo. Gosta do que vê? Não! Nem eu — nem homem algum.”
O homenzinho havia recuado quando Markheim o confrontou tão
repentinamente com o espelho; mas agora, ao perceber que não havia
nada de pior nas mãos dele, sorriu. “Sua futura mulher, senhor, deve ser
bem difícil de agradar”, disse.
“Não”, disse Markheim, com grande convicção. “Mas olha o se-
nhor”, disse Markheim, “peço um presente de Natal, e recebo isto —
maldito lembrete dos anos, e pecados e loucuras — esta consciência de
mão! Foi de propósito? Planejava algo? Fale. Será melhor se disser. Va-
mos, me fale de si mesmo. Por acaso acabo de descobrir que em segredo
o senhor é bastante caridoso?”
O antiquário olhou atentamente para o outro; era muito estranho,
Markheim não parecia rir; havia algo na face semelhante a ansiosa fagu-
lha de esperança, mas nenhum júbilo.
“Onde quer chegar?”, perguntou o antiquário.
“Nada caridoso?”, replicou o outro soturnamente. “Nada caridoso;
nada pio; nada escrupuloso; sem amar, sem amor; a mão para agarrar di-
nheiro, o cofre para guardá-lo. Isso é tudo? Meu Deus, homem, isso é
tudo?”
“Eu lhe direi o que é”, começou o antiquário, com um pouco de
malícia, e outra vez soltou, sorriu. “Porém vejo que tem casamento por
amor, e bebeu à saúde da dama.”
“Ah!”, exclamou Markheim, com estranha curiosidade. “Ah, o se-
nhor já se apaixonou? Conte-me sobre isso.”
“Eu”, gritou o antiquário. “Eu, apaixonado! Nunca tive tempo an-
tes, nem tenho hoje, para essas baboseiras. Vai levar o espelho?”
“Por que a pressa?”, respondeu Markheim. “É muito agradável ficar
aqui e conversar; a vida é tão curta e incerta que não fugiria de nenhum
prazer — não, nem de um tão moderado quanto este. Devemos nos
agarrar, agarrar ao pouco que conseguimos, como o homem à beira do
precipício. Cada segundo é um precipício, quando pensamos no assunto
— precipício de um quilômetro de altura — alto demais, se cairmos, pa-
ra sairmos de cada partícula da humanidade. Portanto é melhor conver-
sar com prazer. Conversemos um sobre o outro: por que usar máscaras?
Sejamos confidentes. Quem sabe não nos tornemos amigos?”
“Tenho apenas uma palavra para lhe dizer”, disse o antiquário. “Ou
compre ou saia de minha loja!”
“Verdade, verdade”, disse Markheim. “Chega de tolices. Aos negó-
cios. Mostre-me outra coisa.”
O antiquário se abaixou mais uma vez, agora para recolocar o espe-
lho na estante, seu fino cabelo loiro sobre os olhos. Markheim se apro-
ximou um pouco, com a mão no bolso do sobretudo; se recompôs e en-
cheu os pulmões; ao mesmo tempo muitas emoções diferentes eram
apresentadas em sua face — terror, pavor, e resolução, fascinação e re-
pulsa física; e por desfigurada subida de seu lábio superior, seus dentes
apareceram.
“Este talvez agrade”, observou o antiquário: e em seguida, enquanto
se reerguia, Markheim saltou por detrás da vítima. A adaga comprida
como espada brilhou e desceu. O antiquário se debateu como galinha,
acertou a têmpora na estante, então desabou no chão com estrondo.
O tempo possuía uma dezena de pequenas vozes naquela loja, algu-
mas imponentes e lentas, como se atingissem a velhice; outras loquazes
e apressadas. Tudo isso anunciava os segundos em intricado coro de ti-
ques. Então a passagem dos pés de um rapaz que corria com passos pe-
sados no pavimento, irrompeu sobre aquelas vozes menores e desper-
tou a consciência de Markheim para os arredores. Olhou em volta de
modo terrível. A vela ficou no balcão, a chama balançou solenemente na
corrente de ar; e devido àquele movimento ínfimo, todo o aposento se
preencheu com balbúrdia silenciosa e se agitou como mar; as grandes
sombras acenaram, as grosseiras manchas de escuridão se dilataram e
encolheram como a respiração, as faces nos retratos e os deuses nas por-
celanas mudaram e ondularam como imagens na água. A porta interna
permaneceu entreaberta, e espreitava aquele conjunto de sombras com
comprida fenda de luz do dia, como dedo a apontar.
Depois desse vaguear movido pelo medo, os olhos de Markheim se
voltaram ao corpo da vítima, que jazia arqueado e estatelado, incrivel-
mente pequeno e, estranhamente, ainda mais miserável que em vida.
Nessas roupas pobres e esfarrapadas, naquela atitude desprovida de gra-
ça, o antiquário parecia bastante com serragem. Markheim temera olhar
para isso, e oh, não era nada. Ainda assim, quando observou aquele
amontoado de roupas velhas e a poça de sangue, vozes eloquentes sur-
giram. Ali deveriam ficar; não havia nada a fazer com as ardilosas do-
bradiças ou direcionar o milagre da locomoção — ali deveria ficar até
alguém encontrá-lo. Encontrá-lo? Ah, e então? Então aquela carne
morta daria o grito que ecoaria por toda a Inglaterra, e preencheria o
mundo com os ecos da perseguição. Ah, morto ou não, esse ainda era o
inimigo. “O tempo cessou quando o cérebro se apagou”, pensou; e a
frase ficou gravada na mente. O tempo, agora que o feito estava realiza-
do — o tempo, que acabara para a vítima, se tornara urgente e momen-
tâneo para o assassino.
O pensamento ainda estava na mente, quando, primeiro um depois
o outro, com muita diferença no ritmo e no tom, um, profundo como o
sino da torre de catedral, o outro, emitiu notas agudas do prelúdio da
valsa — os relógios bateram as três da tarde.
A repentina erupção de tantas línguas naquela câmara surda o ator-
doou. Agitou-se, foi para um lado e para o outro com a vela, sitiado por
sombras em movimento, e assustado até a alma por reflexões casuais.
Em vários espelhos custosos, alguns de desenho doméstico, alguns de
Veneza e de Amsterdã, viu sua face repetida, e repetida, como se tratasse
de exército de espiões; seus próprios olhos o encontraram e o detecta-
ram; e o som de seus passos, ainda que leves, acabavam com a quietude
em volta. Mesmo assim, enquanto continuava a encher os bolsos, a
mente o acusou com repetição doentia das mil culpas de seu desígnio.
Deveria ter escolhido hora mais quieta; deveria ter preparado um álibi;
não deveria ter usado a faca; deveria ter sido mais cuidadoso e apenas se
aproximado e estrangulado o antiquário, e não o matado; deveria ter si-
do mais corajoso e matado o ajudante também; deveria ter feito todas
aquelas coisas em vez disso; arrependimentos pungentes, labor mental
exaustivo e incessante para mudar o imutável, para planejar o que agora
era inútil, para arquitetar o passado irrevogável. Enquanto isso, por trás
de toda essa atividade, terrores brutais, como ratos que invadem sótão
deserto, preenchiam com tumulto os cômodos mais remotos de seu cé-
rebro; a mão do policial cairia pesada em seu ombro, e os nervos treme-
riam como peixe fisgado; ou contemplaria, em descida galopante, as do-
cas, a prisão, as galés, e o sinistro caixão.
O pavor das pessoas na rua se assentou diante de sua mente como
exército a sitiá-la. Era impossível, pensou, mas algum ruído da luta de-
via ter alcançado os ouvidos e despertado a sua curiosidade; e agora, em
todas as casas da vizinhança, devaneava com elas sentadas imóveis, de
ouvido atento: pessoas solitárias, condenadas a passar o Natal sustenta-
das sozinhas com memórias do passado, e agora relembrava com espan-
to desse terno exercício; felizes, festas de famílias em silêncio ao redor
da mesa, a mãe com o dedo ainda levantado: cada gradação e idade e hu-
mor, mas todos, diante das lareiras, à espreita e na escuta e com a corda
que haveria de enforcá-lo na mão. Às vezes parecia que não poderia se
mover com suavidade; o tilintar de grandes cálices boêmios soou tão al-
to quanto um sino; e alarmado com a altura do tinido, ficou tentado a
parar os relógios. E mais uma vez, com rápida transição entre os terro-
res, o próprio silêncio do lugar lhe pareceu fonte de perigo, algo a fazer
o transeunte se incomodar e parar; então criou mais coragem, e fez
grande alvoroço entre os objetos da loja e imitou, com bravata elabora-
da, os movimentos do homem ocupado indo calmamente à sua casa.
Mas agora estava tão abalado pelos variados alarmes que, enquanto
uma porção de sua mente ainda estava alerta e desperta, outra estreme-
cia à beira da loucura. Uma alucinação em particular dominou sua cre-
dulidade. O vizinho que escuta com a face pálida ao lado da janela, o
passante tomado por suspeita horrível no pavimento — e na pior hipó-
tese poderia suspeitar, mas não poderia saber, embora os sons pudessem
apenas penetrar as paredes de tijolos e as janelas cerradas. Mas ali, den-
tro da casa, estava sozinho? Sabia que estava; espiara a criada sair com o
coração leve, roupas belas e simples, “fico fora o dia inteiro” escrito em
cada fita e sorriso. Sim, obviamente estava sozinho; e ainda assim, no
volume da casa vazia sobre ele, podia sem dúvidas escutar movimento
de pés delicados — certamente consciente, inexplicavelmente consciente
de alguma presença. Ah, certamente; a imaginação a seguiu em cada cô-
modo e recanto da casa; e agora ainda era coisa sem face, e mesmo assim
possuía olhos para vê-lo; e mais uma vez isso era sombra de si mesma; e
novamente contemplou a figura do negociante morto, inspirou nova-
mente a astúcia e o ódio.
Às vezes, com esforço tremendo, entrevia a porta aberta que parecia
continuar a repelir os seus olhos. A casa era alta, a claraboia pequena e
suja, o dia escondido pela névoa; e a luz filtrada até o andar de baixo es-
tava excessivamente borrada, e mostrava fracamente os limites da loja. E
ainda assim, naquela faixa de luminosidade duvidosa, não havia uma
sombra ondulante?
De repente, vindo da rua lá fora, um cavalheiro bastante jovial bateu
com bastão na porta da loja, suas pancadas acompanhadas de gritos e
gracejos nos quais o antiquário era repetidamente chamado pelo nome.
Markheim, congelado, vislumbrou o morto. Mas não; continuava para-
do; fugira para onde as batidas e os gritos não eram ouvidos; afundara-
se nos mares de silêncio; e seu nome, que chamaria a sua atenção em
meio ao rugido da tempestade, transformara-se em som vazio. Então o
jovial cavalheiro desistiu de bater e foi embora.
Ali estava a grande sugestão para que se apressasse no que faltava fa-
zer, fugir daquela vizinhança acusadora, mergulhar na enxurrada das
multidões de Londres, e alcançar, no outro lado do dia, aquele porto de
segurança e aparente inocência — sua cama. Um visitante aparecera: a
qualquer momento poderia surgir outro mais obstinado. Cometer o
ato, e ainda assim não colher o lucro, seria fracasso por demais repug-
nante. O dinheiro, agora essa era a preocupação de Markheim; e como
meio para isso, as chaves.
Entreviu a porta aberta por sobre seu ombro, onde a sombra ainda
tremeluzia e balançava; e sem qualquer asco consciente, mas com tre-
mor no estômago, se aproximou do corpo da vítima. A característica
humana havia desaparecido completamente; como um saco preenchido
por farelos até a metade, os membros jaziam esparramados, o tronco
dobrado, sob o chão; e a coisa ainda o repelia. Embora tão sinistra e de-
sagradável às vistas, temeu que ao toque pudesse significar mais. Pegou
o corpo pelos ombros e o virou de costas. Era estranhamente leve e fle-
xível, e os membros, como se quebrados, caíam em posições estranhas.
A face estava desprovida de qualquer expressão; mas continuava pálida
como cera, e com chocante mancha de sangue próximo à têmpora.
Aquilo era, para Markheim, circunstância desagradável. Isso o transpor-
tou, no mesmo instante, para certa feira numa vila de pescadores: dia
cinzento, vento sibilante, multidão nas ruas, fulgor das brasas, estrondo
de percussões, voz nasalizada de cantor de baladas; e um garoto indo
para um lado e para o outro, enterrado na multidão até a cabeça e divi-
dido entre o interesse e o medo, até sair do principal espaço do átrio,
contemplou a cabine e a grande tela com imagens desenhadas de modo
sombrio, de colorido ostensivo: Brownrigg com a aprendiz; os Man-
ning com o convidado assassinado; Weare no golpe fatal em Thurtell;[1]
e mais uma dezena de crimes famosos. Aquilo lhe era tão claro quanto
ilusão; mais uma vez se tornava aquele garotinho; mais uma vez obser-
vava, com o mesmo senso de revolta física, tais imagens vis; ainda ator-
doado pelas batidas das percussões. Partes da música daquele dia retor-
naram à memória; e, com isso, pela primeira vez, foi acometido por cer-
ta apreensão, fôlego nauseado, súbita fraqueza nas articulações, que na
mesma hora teve de suportar e dominar.
Julgou mais prudente confrontar que fugir dessas considerações;
olhou com o máximo de firmeza para o rosto morto, contorceu a mente
para perceber a natureza e a grandeza de seu crime. Havia tão pouco
tempo aquele rosto se movia a cada mudança de sentimento, aquela pá-
lida boca conversava, aquele corpo inteiro queimava com energias go-
vernáveis; e agora, e devido a esse ato, aquele espécime de vida fora de-
tido, como o relojoeiro, com o dedo em riste, detém a batida do relógio.
Então raciocinou em vão; não era capaz de sentir remorso consciente; o
mesmo coração que antes estremecia diante das efígies pintadas do cri-
me, observava apático a sua realidade. Na melhor hipótese, sentiu vis-
lumbre de piedade por alguém que empreendera em vão todas essas fa-
culdades que podem transformar o mundo num jardim encantado, al-
guém que jamais vivera e agora estava morto. Mas por penitência, não,
nem um tremor.
Com isso, se livrou dessas considerações, encontrou as chaves e
avançou em direção à porta aberta da loja. Lá fora, chovia forte; e o ba-
rulho da água no teto acabou com o silêncio. Como na caverna a gote-
jar, os cômodos do quarto estavam assombrados por ecos fracos e in-
cessantes, que preenchiam a audição e se mesclavam com o tique-taque
dos relógios. E, conforme Markheim se aproximava da porta, pareceu
escutar, em resposta à própria pisada precavida, os passos de outro pé
subiam a escada. A sombra ainda palpitava livremente no limiar. Levou
uma tonelada de resolução aos músculos e voltou à porta.
A luz diurna enevoada e branda brilhava com opacidade sobre a es-
cadaria e o chão vazio; sobre o brilhante lance de armadura montado,
com alabarda em mãos, em cima do patamar; e sobre as figuras esculpi-
das em madeira e nas pinturas emolduradas penduradas contra os pai-
néis amarelos do lambril. A batida da chuva pela casa era tão alta que,
aos ouvidos de Markheim, começou a se dividir em muitos sons dife-
rentes. Passos e suspiros, o andar de regimentos marchando à distância,
o tilintar de dinheiro na contagem, e o ranger de portas discretamente
semiabertas, pareciam se misturar com a batida das gotas na cúpula e o
gorgolejar da água nos canos. A sensação de que não estava sozinho
chegava à beira da loucura. Em cada lado era assombrado e perscrutado
por presenças. Escutou-as se moverem nos cômodos de cima; da loja,
escutou o morto se levantar; e fez grande esforço para subir a escadaria,
pés fugiam quietamente da frente e continuavam atrás com discrição. Se
ao menos fosse surdo, pensou, quão tranquila sua alma estaria! E, mais
uma vez, escutou com atenção renovada, se abençoou por aquele senti-
do incansável que segurava os postos e permanecia confiável sentinela
em sua vida. A cabeça se virava continuamente no pescoço; os olhos,
que pareciam saltar das órbitas, vigiavam todos os lados, e em cada lado
havia uma meia-ocorrência como a ponta de algo sem nome que desva-
necia. Os vinte e quatro passos até o primeiro andar foram vinte e qua-
tro agonias.
No primeiro andar as portas estavam entreabertas, três delas como
três emboscadas, e fizeram seus nervos estremecerem tal qual cano de
canhão. Jamais novamente, sentiu, poderia se fechar e se proteger o bas-
tante dos olhos escrutinadores dos homens; a única alegria pela qual an-
siava era estar em casa, envolto por paredes, enterrado na roupa de ca-
ma, invisível para todos, além de Deus. Ele se apegou um pouco a essa
ideia, relembrou contos de outros assassinos e o medo que alegadamen-
te tinham de atiçar os vingadores celestiais. Não era, ao menos, o seu
caso. Temia que as leis da natureza, em seu procedimento insensível e
imutável, preservassem alguma evidência condenatória do crime. Temia
dez vezes mais, com horror abjeto e supersticioso, alguma cisão da con-
tinuidade da experiência humana, alguma ilegalidade voluntária da na-
tureza. Disputava jogo de habilidade, a depender das regras, calculava a
consequência a partir da causa; e se a natureza, como o tirano derrotado
que jogava para cima o tabuleiro de xadrez, resolvesse quebrar molde
de sua sucessão? Os semelhantes haviam derrubado Napoleão (assim
disseram os escritores) quando o inverno mudou a forma de sua chega-
da. Os semelhantes poderiam derrubar Markheim; as paredes sólidas
podem se tornar transparentes e revelar seus feitos como abelhas em
colmeia de vidro; as tábuas fortes poderiam ceder sob seus pés como
areia movediça e detê-lo preso; ah, e haviam acidentes mais ordinários
que poderiam destruí-lo; se, por exemplo, a casa caísse e o prendesse lá
com o corpo da vítima; ou se a casa vizinha se incendiasse, e os bombei-
ros o invadissem por todos os lados. Essas coisas temia; e, de certo mo-
do, essas coisas poderiam ser chamadas de ação da mão de Deus contra
o pecado. Mas quanto a Deus em Si, estava tranquilo; seu ato sem dúvi-
da era excepcional, mas também as justificativas eram, e Deus as conhe-
cia; era lá, e não entre homens, que tinha certeza da justiça.
Quando chegou em segurança à sala de estar e fechou a porta atrás
de si, estava ciente do intervalo em seus alarmes. O cômodo era deveras
desguarnecido, além de carecer de carpete, e repleto de caixas de emba-
lar e mobília inadequada; diversos tremós enormes, nos quais se con-
templou em vários ângulos, como um ator no palco; muitas pinturas,
com e sem moldura, de pé, voltadas para a parede; a bela mesinha de
Sheraton, a cômoda de marchetaria, e a cama grande e velha, com ador-
nos de tapeçaria. As janelas davam para o piso; mas, por muita sorte, a
parte baixa das venezianas estava fechada, e isso o ocultava dos vizi-
nhos. Aqui, então, Markheim aproximou a caixa de embalar da gaveta e
procurou pelas chaves. Era trabalho demorado, porque havia muitas, e
além disso enfadonho, uma vez que, afinal, poderia não haver nada na
gaveta, e o tempo voava. Mas a proximidade da ocupação o deixara só-
brio. Com o rabo do olho viu a porta — volta e meia chegava a encará-
la diretamente, como militar sitiado, satisfeito ao se assegurar do bom
estado de suas defesas. Mas de fato estava em paz. A chuva caia na rua
natural e prazerosa. Em seguida, do outro lado, notas de piano surgiram
para a música de hino, e as vozes de muitas crianças tomaram o ar e as
palavras. Que imponentes, que melodia agradável! Que vozes joviais, as
dos jovens! Markheim lhes deu ouvidos, sorridente, enquanto procura-
va a chave correta; sua mente estava repleta de imagens e ideias passíveis
de resposta; crianças que iam à igreja e o repique do grande órgão; cri-
anças em campo, banhistas à beira do riacho, viandantes diante da amo-
reira na rua, pipas no céu cheio de vento e nuvens; e então, outra cadên-
cia do hino, de volta à igreja, e à sonolência dos domingos de verão, e a
voz aguda e gentil do pastor (de quem sorria um pouco ao se lembrar),
e as tumbas jacobinas pintadas, e o letreiro fosco dos Dez Mandamen-
tos na capela-mor.
E assim sentado, ao mesmo tempo ocupado e ausente, se espantou
completamente. Um lampejo de gelo, lampejo de fogo, jato repentino
de sangue, subiu seu corpo, e então ficou petrificado e emocionado. Um
passo subiu o degrau lentamente com firmeza, e em seguida a mão foi
colocada na maçaneta, e a tranca deu clique, e a porta se abriu. O medo,
como tornilho, prendeu Markheim; o que esperar, ele não sabia, se o
morto a caminhar, ou os representantes oficiais da justiça humana, ou
alguma testemunha ocasional o conduzindo cegamente às galés. Mas
quando um rosto se introduziu pela abertura, examinou em volta do
quarto, olhou para ele, acenou e sorriu com espécie de reconhecimento
amigável, e então recuou novamente, e a porta se fechou atrás — seu
medo fugiu de controle em grito rouco. Devido a esse barulho o visi-
tante retornou.
“Você me chamou?”, perguntou com prazer, e com isso entrou no
quarto e fechou a porta.
Markheim estacou e lhe observou com atenção. Talvez houvesse um
véu na visão, mas os contornos do visitante pareciam mudar e ondular
como o daqueles ídolos diante da luz da vela da loja; às vezes pensava
que o conhecia; e às vezes pensava que carregava alguma semelhança
consigo próprio; e sempre, com massa de terror vívido, havia no peito a
convicção de que aquela coisa não era da Terra nem de Deus.
Mesmo assim a criatura possuía aparência comum, enquanto obser-
vava Markheim e sorria; e quando acrescentou: “procura pelo dinheiro,
certo?”, foi com os tons da polidez cotidiana.
Markheim não respondeu.
“Devo lhe avisar”, continuou, “que a criada deixou seu namorado
mais cedo que o normal e logo estará aqui. Caso o sr. Markheim seja
encontrado nesta casa, nem preciso lhe descrever as consequências.”
“O senhor me conhece?”, gritou o assassino.
O visitante sorriu. “Por muito tempo você tem sido um de meus fa-
voritos”, disse; “por isso, lhe observo e o ajudo com frequência.”
“O que é o senhor?”, exclamou Markheim: “o Diabo?”
“O que eu for”, replicou, “não pode afetar o serviço que lhe propo-
nho.”
“Pode”, gritou Markheim; “afeta! Ser ajudado pela sua pessoa? Não,
nunca; não pela sua pessoa! Ainda não me conhece; graças a Deus, não
me conhece!”
“Conhecer você?”, replicou o visitante, com alguma espécie de seve-
ridade ou talvez firmeza. “Conheço até a sua alma.”
“Conhece-me!”, exclamou Markheim. “Quem é capaz disso? Minha
vida não passa de uma farsa e calúnia comigo mesmo. Vivi para difamar
a minha própria natureza. Todos os homens o fazem; todos os homens
são melhores que esse disfarce que cresce a sua volta e os asfixia. É pos-
sível ver cada um deles drenados pela vida, como alguém capturado por
bandidos e sufocado com capa. Tivessem controle de si — se fosse pos-
sível ver os rostos, de modo geral seriam todos diferentes, ofuscariam os
santos e heróis! Sou pior que a maioria; sou mais velado; minha justifi-
cativa é conhecida por mim e por Deus. Mas, se tivesse tempo o bastan-
te, poderia me revelar.”
“A mim?”, inquiriu o visitante.
“Ao senhor, acima de todos”, replicou o assassino. “Pensei que fosse
inteligente. Supunha — uma vez que existe de fato — que o senhor se
mostraria leitor do coração. Mas propõe me julgar pelos meus atos —
pense nisso — os meus atos! Nasci e vivi em terra de gigantes; gigantes
me levaram nos braços desde que nasci — os gigantes da circunstância.
E o senhor me julgaria pelos meus atos! Não é capaz de olhar nas pro-
fundezas? Não pode compreender que o mal me é odioso? Não pode
ver dentro de mim a escrita clara da consciência, jamais embaçada por
algum sofisma premeditado, embora frequentemente desconsiderado?
Não poderia deixar de me ler como coisa tão comum quanto a humani-
dade — o pecador involuntário?”
“Tudo isso foi expresso com sinceridade”, foi a resposta, “mas não
me interessa. Esses argumentos casuísticos estão além de minha provín-
cia, e não me importo nem um pouco com a compulsão que pode ter
lhe impelido, mesmo que com isso tenha sido levado para a direção cor-
reta. Mas o tempo voa; a criada se atrasa, observa os rostos da multidão
e as imagens nos painéis, mas continua a se aproximar; e lembre-se, é
como se as próprias galés caminhassem em sua direção pelas ruas no
Natal! Permita-me que o ajude; eu, que tudo sei? Permita-me que lhe
conte onde encontrar o dinheiro?”
“Por qual preço?”, perguntou Markheim.
“Eu lhe ofereço o serviço em troca de presente de Natal”, respon-
deu o outro.
Markheim não poderia evitar sorrir com espécie de triunfo amargu-
rado. “Não”, falou, “não receberei nada de suas mãos; se estivesse mor-
to de sede, e fosse a sua mão que colocasse o cântaro em meus lábios,
encontraria a coragem para recusar. Pode soar incoerente, mas não farei
nada para compactuar com o mal.”
“Não tenho nenhuma objeção contra arrependimento no leito de
morte”, observou o visitante.
“Porque não crê na eficácia!”, gritou Markheim.
“Não afirmo que sim”, respondeu o outro; “mas vejo tais coisas por
ângulo diferente, e quando a vida termina, o meu interesse se acaba. O
homem viveu para me servir, para disseminar olhares negros sobre as
cores da religião, ou para lavrar joio no trigal, como você, em jornada
de fraca submissão ao desejo. Agora que se aproxima tanto de sua reali-
zação, não pode adicionar mais que um ato de serviço — se arrepender,
morrer sorrindo, e assim reforçar a confiança e a esperança do mais re-
ceoso dos poderes de sobrevivência dos meus seguidores. Não sou mes-
tre tão severo. Teste-me. Aceite a minha ajuda. Desfrute da vida como
tem feito até então; desfrute de si mesmo mais abertamente, espalhe os
cotovelos na mesa; e quando a noite cair e as cortinas forem fechadas,
afirmo, para seu maior conforto, que lhe será mais fácil ajustar a luta
com a consciência, e sujeitar-se a fazer as pazes com Deus. Acabo de vir
de um leito de morte tal, e o aposento estava cheio de enlutados since-
ros, que escutavam as últimas palavras do homem; e quando olhei den-
tro daquele rosto, arranjado como pedra contra a piedade, o encontrei a
sorrir com esperança.”
“Então supõe que seja criatura como essa?”, perguntou Markheim.
“Acha que não possuo aspirações mais generosas que pecar e pecar e
pecar, e no final escapulir para dentro do paraíso? Meu coração se acele-
ra com essa ideia. É essa, então, sua experiência com a humanidade? Ou
é por me encontrar com as mãos vermelhas que presume essas infâmias?
E o crime de assassinato é assim mesmo tão ímpio a ponto de secar as
próprias fontes do bem?”
“O assassinato para mim não é nenhuma categoria especial”, res-
pondeu o outro. “Todos os pecados são assassinato, assim como toda a
vida é guerra. Contemplo sua raça, como marinheiros famintos na ca-
noa, e arrancam lascas das mãos devido à fome e se alimentam das vidas
alheias. Persigo os pecados além dos momentos em que são cometidos;
penso que em todos a última consequência é a morte; e, para meus
olhos, a bela criada que contraria a mãe com tanta graça por causa de
um baile, respinga sangue humano derramado não menos visível que o
de um assassino como você. Digo que persigo pecados? Persigo tam-
bém virtudes; não diferem da espessura da unha, ambos são foices do
anjo exterminador da morte. O mal, pelo qual vivo, consiste não na
ação, mas no caráter; o homem mau me é querido, não a má ação, cujos
frutos, se pudéssemos segui-los ao longo da incessante catarata dos
anos, talvez pudessem ser tidos como mais abençoados que aqueles das
mais raras virtudes. E não é porque matou o antiquário, mas por ser
Markheim, que lhe ofereço uma saída.”
“Abrirei o meu coração para o senhor”, respondeu Markheim. “Este
crime no qual me encontra é meu último. Ao cometê-lo aprendi diver-
sas lições; ele próprio é lição, uma lição momentânea. Assim fui levado
a me revoltar com o que não faria; era escravo ligado à pobreza, incita-
do e flagelado. Existem virtudes robustas que suportam tais tentações; a
minha não era delas: sentia sede de prazer. Mas hoje, e fora deste ato,
colho avisos e riquezas — e o poder e a nova resolução em ser eu mes-
mo. Entre todas as coisas, me torno ator livre no mundo; começo a ver
a mim mesmo completamente transformado, estas mãos agentes do
bem, este coração em paz. Algo do passado me sobrepõe; algo que so-
nhei em noites de sabá ao som do órgão da igreja, o que previ ao derra-
mar lágrimas sobre nobres livros, ou que falei, ainda criança inocente,
com a minha mãe. Ali jaz a minha vida; vaguei por alguns anos, mas
agora vejo um pouco mais de minha cidade de destino.”
“Você deve usar este dinheiro na bolsa de valores, certo?”, observou
o visitante; “e lá, salvo engano, já perdeu alguns milhares?”
“Ah”, disse Markheim, “mas desta vez tenho algo certo.”
“Desta vez, novamente, você perderá”, replicou o visitante em voz
baixa.
“Ah, mas segurarei a metade!”, gritou Markheim.
“Que também perderá”, disse o outro.
O suor surgiu na testa de Markheim. “Bem, então, que importa?”,
exclamou. “Digamos que perca, digamos que afunde de volta na pobre-
za, uma parte de mim, sendo a pior, haverá de continuar até o fim para
se sobrepor à melhor? O mal e o bem têm força em mim, saudam-me de
ambos os lados. Não amo apenas um deles, amo ambos. Sou capaz de
conceber grandes feitos, renúncias, martírios; e embora seja inclinado a
um crime como o assassinato, a piedade não é estranha aos meus pensa-
mentos. Sinto pena dos pobres — quem conhece seus percalços melhor
que eu? Sinto pena e os ajudo; valorizo o amor, amo a risada honesta;
não há nada de bom ou verdadeiro na Terra, mas a amo de coração. E
meus vícios são apenas para dirigir minha vida, e minhas virtudes jazem
sem efeito, como pedaço de lenha da mente? Nem tanto; o bem, tam-
bém, é fonte de atos.”
Mas o visitante ergueu o dedo. “Pelos trinta e seis anos nos quais es-
teve neste mundo”, disse, “através de diversas mudanças da fortuna e
variedades de humor, eu o observei cair com frequência. Há quinze
anos, se espantaria com roubo. Há três anos, recuaria à menção ao as-
sassinato. Existe algum crime, existe alguma crueldade ou malvadeza da
qual ainda recua? Daqui a cinco anos haverei de encontrá-lo no ato! Pa-
ra baixo, para baixo, eis seu caminho; nada além da morte poderá detê-
lo.”
“É verdade”, disse Markheim roucamente, “em algum grau compac-
tuei com o mal. Mas assim se dá com todos; os próprios santos, no me-
ro exercício de viver, perdem a fragilidade e alteram o tom de seus arre-
dores.”
“Quero lhe propor uma simples questão”, disse o outro, “e confor-
me a resposta, lerei seu horóscopo moral. Você se tornou cada vez mais
lasso em muitas coisas; possivelmente acerta em agir assim; e de qual-
quer forma, o mesmo ocorre com todos os homens. Mas ao seguir com
isso, está em situação particular, embora trivial, mais difícil de agradar a
si mesmo com a própria conduta, ou encara todas as coisas com rédea
mais folgada?”
“Em situação particular?”, repetiu Markheim, com angústia reflexi-
va. “Não”, acrescentou, com desespero, “em nenhuma! Afundei em to-
das!”
“Então”, disse o visitante, “contente-se com o que é, pois você ja-
mais mudará; e as palavras de seu papel na peça estão irrevogavelmente
escritas.”
Markheim permaneceu quieto por longo tempo, e na verdade foi o
visitante quem quebrou o silêncio. “Assim”, disse, “devo lhe mostrar o
dinheiro?”
“E a graça?”, gritou Markheim.
“Você não já tentou?”, respondeu o outro. “Dois ou três anos atrás,
não o vi no patamar dos encontros da renovação, e não era a sua voz a
mais alta no hino?”
“Verdade”, disse Markheim; “e vejo claramente o que me resta de
deveres. Obrigado por estas lições sobre minha alma; meus olhos estão
abertos, finalmente me contemplo pelo que sou.”
Neste momento a nota aguda da campainha soou pela casa; e o visi-
tante, embora fosse esse o sinal pelo qual esperava, se levantou de vez.
“A criada!”, gritou. “Ela voltou, como lhe alertei, e agora diante de
você há a passagem mais difícil. Diga que o patrão dela está doente; dei-
xe-a entrar, com fisionomia firme e séria — nada de sorrir, de agir de-
mais, e lhe prometo o sucesso! Assim que a garota estiver dentro, a por-
ta fechada, a mesma destreza que já o impeliu a se livrar do antiquário o
aliviará deste último perigo no caminho. Depois disso, terá a tardinha
inteira — a noite inteira, se preciso for — para saquear os tesouros da
casa e garantir sua segurança. Esta ajuda lhe vem com a máscara do pe-
rigo. Avante!”, gritou, “avante, meu amigo; sua vida treme pendurada
na balança: avante, aja!”
Markheim encarou com firmeza seu conselheiro. “Caso seja conde-
nado por atos maus”, disse, “ainda há porta de liberdade aberta — pos-
so evitar a ação. Se minha vida é algo doentio, posso acabar com ela.
Embora esteja, como o senhor afirma com verdade, à mercê de cada mí-
nima tentação, ainda posso, por gesto decisivo, me posicionar além do
alcance de todos. Meu amor pelo bem está condenado à esterilidade;
pode, e deve existir! Mais ainda possuo meu ódio pelo mal; e disso, para
seu terrível desapontamento, verá que posso demonstrar possuir tanto a
energia quanto a coragem.”
A fisionomia do visitante começou a desaparecer em mudança agra-
dável e maravilhosa; brilhava e se abrandava com triunfo terno, e, mes-
mo ao brilhar, se apagava e desvanecia. Mas Markheim não parou para
assistir ou compreender a transformação. Abriu a porta e desceu a esca-
da lentamente, pensativo. Seu passado lhe perpassou sobriamente; o
contemplou tal como era, feio e estrênuo como um sonho, aleatório co-
mo engano casual; cena de desafio. A vida, na maneira como a revia, não
o tentava mais; mas à distância vislumbrou refúgio tranquilo para a pele.
Parou na passagem e olhou para a loja, onde a vela ainda queimava
sobre o corpo morto. Estava estranhamente silencioso. Pensamentos
sobre o antiquário fervilhavam em sua mente enquanto observava. En-
tão o sino mais uma vez irrompeu em clamor impaciente.
Confrontou a criada no limiar da porta com algo semelhante a sorri-
so.
“Melhor você chamar a polícia”, disse: “matei o seu patrão.”
JANET,
A ENTORTADA
ROBERT LOUIS STEVENSON

1881

O reverendo Murdoch Soulis era pastor da paróquia na charneca de


Balweary, no vale do Dule. Velho severo, rosto soturno, apavorante aos
ouvintes, passava os últimos anos de sua vida, sem parente ou criado ou
qualquer companhia humana, no pequeno e solitário presbitério sob o
Hanging Shaw. Em contraste com a postura de ferro da aparência, o
olhar era selvagem, medonho e incerto; e quando focava, em suas ad-
moestações privadas, no futuro do impenitente, era como se o olho per-
furasse as tempestades do tempo e visse os terrores da eternidade. Di-
versos jovens a se preparar para o período da Sagrada Comunhão fica-
vam terrivelmente afetados por sua conversa. Dava sermão sobre a Pri-
meira Epístola de Pedro, capítulo 5, versículo 8, “O diabo enquanto um
leão a rugir”, no primeiro domingo após cada data 17 de agosto, e cos-
tumava se exceder com aquele texto, tanto pela natureza horripilante do
tema, quanto pelo terror de seu comportamento no púlpito. As crianças
se assustavam a ponto de terem ataques, e o velho soava mais profético
que o habitual, cheio, pelo dia inteiro, daquelas alusões que Hamlet de-
saprovava.[1] O próprio presbitério, estando à beira da água do Dule,
entre árvores grossas, num lado o bosque, Hanging Shaw, e no outro
muitas colinas geladas e pantanosas apontando aos céus, logo no come-
ço do período do sr. Soulis como pastor, o lugar passara a ser evitado
nas horas do crepúsculo, por todos aqueles prudentes o bastante para se
protegerem; e bons cidadãos sentados na taverna do vilarejo, juntos ba-
lançavam a cabeça à ideia de passar muito tarde pela sinistra vizinhança.
Havia local, para ser mais específico, visto com temor especial. O pres-
bitério ficava entre a estrada e as águas do Dule, com um frontão para
cada; seus fundos davam para a cidadela de Balweary, a cerca de meio
quilômetro de distância; à frente, humilde jardim, protegido por espi-
nhos, ocupava o terreno entre o rio e a estrada. A casa tinha dois anda-
res, com dois cômodos espaçosos em cada um. A porta não dava direta-
mente para o jardim, mas numa trilha, ou passagem pavimentada, que
terminava na estrada, numa direção, e fechada na outra pelos grandes
salgueiros e sabugueiros que margeavam o regato. E era essa faixa de
pavimento que desfrutava de tão infame reputação entre os jovens paro-
quianos. O pastor com frequência caminhava por lá após escurecer, às
vezes resmungava em voz alta, na urgência de seus sermões não proferi-
dos; e quando ia para fora de casa, e a porta do presbitério ficava fecha-
da, os estudantes mais ousados se aventuravam, com o coração acelera-
do, a “seguir o líder” pelo lendário local.
Essa atmosfera de terror rodeava, como acontecia, um homem de
Deus de caráter e ortodoxia impecáveis, era motivo usual para a dúvida,
e sujeito a questionamento entre os poucos forasteiros que, devido ao
acaso ou aos negócios, eram levados àquela região remota e misteriosa.
Porém, muitas pessoas da própria paróquia ignoravam os estranhos
eventos que marcaram o primeiro ano de sacerdócio do sr. Soulis; e en-
tre aqueles mais bem informados, alguns eram naturalmente reticentes,
e outros acanhados quanto a esse tópico em particular. Volta e meia, so-
mente, alguém entre os mais velhos criava coragem após o terceiro co-
po, e relatava a causa da vida solitária e das estranhas feições do pastor.
•••
Faz cinquenta ano, bem quando o seu Soulis chegô ne Ba’weary pela
primera vez, ele ’inda era um jove’ — um mancebo, disse o pessoal —
chei’ de sabedoria dos livro e bom pr’explicá as coisa, mas, o que num
era normal ne alguém tão jove, ele num tinha ninhuma exp’riença de vi-
da cum religião. Os mais jove’ ficaro muito foi animado co’ talento dele
e c’o jeito dele de falá; mas os véio, aperreado, os home e muliér sério
chegaro até memo a rezá pro jove’, que eles acharo que ele ia se aperreá,
pro mó de que a paróquia era um bocado desarranjada. Era antes dos
tempo dos Moderado — cansativo pra eles; mas as coisa rúim são que
nem as boa — as duas vêm de pouco a pouco, um bocadinho por vez; e
existia gente que chegava a dizê que o Senhor tinha deixado os profes-
sor da faculdade com os assunto deles lá, e os rapaz que fosse estudá
cum eles era melhor sentá numa turfeira, que nem os antecedente da
perseguição, c’uma Bíblia debaixo do sobaco e um esp’rito de reza no
coração. Num havia dúvida, de qua’quer jeito, mas aquele seu Soulis ti-
nha ficado tempo demais na faculdade. Tomava cuidado demais e ficava
aperreado cum muita coisa além da única necessária. Andava c’uma ru-
ma de livro cum ele — muitos mais do que qua’quer um já tinha visto
na paróquia toda; e um trabai’ da moléstia pra carregá aquilo, porque
parecia que eles tinha esmagado o gado do Cão no mei’ entre lá e Kil-
mackerlie. Era tudo livro de divindades, na verdade, pelo menos era as-
sim que se falava deles; só que os sério era de palpite de que num tinha
precisão de tantos, já que a Palavra de Deus todinha dava pra cabê nu-
ma dobra dum casaco xadrez. Então ele ficava sentado metade do dia e
metade da noite tam em, o que era num era muito direito — escrevi-
nhando, só isso; e primeiro eles ficaro cum medo que ele lesse os ser-
mão; mas depois que viro que ele memo estava era escrevinhando um li-
vro, o que cum certeza num era trato nem pra ninguém cum a idade
nem cum a pouca experiência dele.
De qua’quer jeito, ele ficou de arranjá uma matrona direita e véia
pra arrumá o presbitério pra ele e cozinhá a janta; e recomendaro pra
ele uma véia descarada — Janet M’Clour, chamava ela — e daí deixaro
pra ele escolhê se queria ficá ou não. Muitos dissero pra ele que era me-
lhor não, que os melhor cidadão de Ba’weary suspeitava de Janet. Uns
anos antes ela tinha parido um dragãozinho; que ela num fazia a comu-
nhão tinha uns trinta ano; e os moleque tinha visto ela resmungá coisa
sozinha lá ne Key Loan no vale escuro numa hora suspeita pr’uma mulé
temente a Deus. De qua’quer jeito, foi o próprio juiz que contô primei-
ro de Janet pro pastor; e naqueles dia ele fazia qua’quer coisa, até o que
num gostasse, pr’agradá o juiz. Quando as pessoa contaro pra ele que
Janet era mancomunada com o cramunhão, ele deixou isso pra lá como
se fosse super’tição; e quando mostraro a Bíblia pr’ele e a bruxa de En-
dor, ele dizia pra eles que aqueles dia tinha acabado, e que o cramunhão
tava controlado pela fé.
Bem, quando chegou a notícia no povoado de que Janet M’Clour ia
de sê a empregada do presbitério, o povo ficou bem doido co’ela e ele,
de os dois junto; e algumas das dona num tinha nada de melhor pra fazê
que encostá nos batente da porta dela e acusá ela de tudo quanto era
coisa que elas sabia, do filho de fora cum soldado até as duas vaca de
John Tamson. Ela num era boa pra falá; o povo deixava ela normal no
rumo dela, ela deixava eles no rumo deles, sem nem um “bas noite”
educado, nem um “bundia” educado; mas quando ela abriu, ela tinha
uma língua de deixá um moleiro assombrado. Ela se levantou, e naquele
dia num tinha nenhuma véia história em Ba’weary que ela num forçasse
alguém a escutá; eles num podia dizê coisa ninhuma pra ela num tê duas
resposta; até que, no fim do dia, as dona se ajuntaro e pegaro ela, e tira-
ro o casaco das costa dela, e carregaro ela pela vila até a água do Dule,
pra vê se ela era bruxa ou não — se ela nadava ou afogava. A bruaca véia
esperneou de um jeito que você podia escutá ela até no Hangin’ Shaw, e
ela brigou que nem umas dez; teve muitas boas dona che’a de machuca-
do no outro dia, e muitas por mais tempo ainda, e bem na hora que a
briga tava pegando fogo, quem chega (por seus pecado) se não o pastor
novo?
“Mulheres”, disse (e tinha voz poderosa), “ordeno em nome de
Deus que a deixem.”
Janet correu pra ele — tava completamente doida de medo — e se
pendurou nele, e implorou pra que ele, em nome de Cristo, que ele sal-
vasse ela das cachorra; e elas, do lado delas, contou pra ele tudo o que
elas sabia, e talvez mais.
“Mulher”, disse pra Janet, “isso é verdade?”
“Que nem o Senhor vê eu”, diz ela, “é que nem o Senhor fez eu,
nem uma palavra. A num sê pelo bebê”, seguiu, “eu fui muié direita a
vida toda.”
“Em nome de Deus”, diz o seu Soulis, “e diante de mim, Seu humil-
de pastor, a senhora renunciará ao demônio e seus trabalhos?”
Então, pareceu que, quando ele disse aquilo, ela fez uma careta que
assombrou todo mundo que olhava pra ela, e eles podia escutá os dente
dela rangendo dentro das bochecha; mas num tinha mais nada o que di-
zê de um jeito ou de outro; e Janet levantou a mão e renunciou o diabo
na frente deles tudo.
“E agora”, diz o seu Soulis para as dona, “vocês vão pra casa, cada
uma, e rezem pelo perdão de Deus.”
E ele deu o braço pra Janet, memo tano Janet só de vestido, e levou
ela pra vila pra sua própria porta como dona de verdade, e era um es-
cândalo escutá ela guinchando e dando umas gaitada.
Tinha muita gente enfunada ocupada rezando aquela noite; mas na
hora que a manhã chegou tava um medo em Ba’weary que os fedei’ tu-
do se escondero, e memo os homes adulto ficaro e espiaro pelas porta
deles. Porque ali tava Janet descendo o povoado — ela ou alguém pare-
cida cum ela, ninguém sabia dizê — o pescoço entortado, e a cabeça de-
la prum lado que nem corpo enforcado e um sorriso na cara que nem a
de um cadávre enforcado. Cum tempo eles se acostumaro com isso, e
até perguntaro pra ela o que é que tava errado; mas daquele dia em di-
ante ela num podia conversá que nem uma cristã, mas babava e rangia
os dente que nem duas tosquia; e daquele dia em diante o nome de Deus
nunca mais saiu pela boca dela. Por mais que tentava, num saía nada.
Aqueles que sabia melhor falava menos; mas eles nunca dero pr’aquela
Coisa o nome de Janet M’Clour; porque a véia Janet, pelo jeito, tava no
mei do inferno naquele dia. Mas o pastor é que num ia se segurá e se
controlá; ele num falou de mais nada a num sê da crueldade do povo
que tinha feito ela tê ataque de paralisia; ele deu uma surra de cinto nos
fedei que atormentaro ela; e levou ela pro presbitério na merma noite, e
ficou lá na rua com ela debaixo do Hangin’ Shaw.
Então, o tempo passou; e os mais preguiçoso começaro a pensá com
mais calma naquele negócio horroroso. O pastor tava muito bem visto;
andava sempre escrevendo — as pessoa via a vela dele acesa lá no rio
Dule depois de escurecê; e ele parecia muito satisfeito e parado de novo,
mas ninguém podia dizê que ele tava abatido. Já Janet ela vinha e ela ia;
se ela já num falava muito antes, tinha muito menos motivo pra falá de-
pois; ela num incomodava ninguém; mas ela era uma coisa esquisita de
se vê, e ninguém maltratava ela em Ba’weary toda.
Quase no final de julho vei’ um clima esquisito, do tipo que nunca
tinha aparecido por ali na região; tava quente e sem nuvem e implacável;
o gado num conseguia subi pra Black Hill, a fedeiada ficava cansada de-
mais pra pinotá; mas tinha ventania também, cum o vento quente baten-
do nos vale, e um chuvisco que num molhava nada. A gente sempre
pensô que era trovão da manhã; mas chegou a manhã, e outra manhã, e
sempre aquele clima dos inferno; incomodando os home e os bicho do
memo jeito. De tudo o que tinha de ruim ali, ninguém sofria mais que o
seu Soulis; ele num conseguia nem dormi nem comê, disse pros mais
véio; e quando num tava escrevinhando no livro véi chato dele, ficava
rodando pra lá e pra cá no vale todo, que nem um possuído, quando
ninguém podia ficá mais feliz que quietinho den’de casa.
Em cima de Hangin’ Shaw, no abrigo do Black Hill, tinha um terre-
no pequeno fechado cum portão de ferro; parece que antigamente ali
era o cemitério de Ba’weary, e era consagrado pelos papista antes da luz
abençoada brilhá no reino. De qua’quer jeito, lá era o lugar preferido do
seu Soulis; ele ficava ali sentado pensando nos sermão, e é memo um lu-
gar gostoso. Então, um dia ele tava passando ao oeste do Black Hill e
primeiro viu dois, e depois quatro, e depois sete corvo asqueroso dando
volta e mais volta em cima do antigo cemitério. Eles voava alto e baixo e
dava uns guincho um pro outro quando passava; e ficou claro pro seu
Soulis que alguma coisa tinha chamado a atenção dos bicho. Ele num fi-
cava assustado cum qua’quer coisa, e foi direto pro muro; e o que ele
podia achá ali se não um home, ou algo parecido c’um home, sentado
em cima dum túmulo. Ele era muito alto, e preto que nem o inferno, e
os olho era extraordinário. O seu Soulis já tinha ouvido falá muito de
homes pretos; mas nesse home preto tinha alguma coisa esquisita que
assustou ele. Memo com calor, sentiu um esfriamento no miolo do espi-
nhaço; mas falou memo assim, e disse: “Meu amigo, você é de fora
aqui?” O home preto num disse nadinha. Ele levantou, e se arrastou
pr’um muro lá do outro lado; mas sempre olhando pro pastor; e o pas-
tor parado olhando de volta pra ele; aí numa piscada de olho, o home
preto tava em cima do muro correndo pra debaixo das arv’re. Seu Soulis
num sabia nem por que direito, mas correu atrás dele; mas tava muito
cansado c’a caminhada e c’o calor insuportável; e podia corrê e corrê,
mas só conseguiu dá uma olhada no home preto entre as bétula, até que
deu a volta pro pé da montanha, e ali viu ele mais uma vez, saltá, dá um
passo, e pulá o rio Dule na direção do presbitério.
Seu Soulis num gostô muito que um vagabundo esquisito desses co-
nhecesse assim o presbitério de Ba’weary, então ele correu mais, de sa-
pato molhado, pelo córrego, e pela passagem; mas nada daquele diabo
de home preto por lá. Foi pra estrada, mas num tinha ninguém lá; ele
rodô o jardim todinho, mas não, nenhum home preto. Na saída dos
fundo — e um pouquinho assustado, normal — ele arribô o ferrolho e
entrô no presbitério; e lá estava Janet M’Clour na sua frente, cum a goe-
la entortada, sem gostá muito de ver ele. Depois disso, ele sempre lem-
bra que na primeira vez que botou o zóio nela, ele sentiu um tremelique
gelado e ruim.
“Janet”, diz, “você viu um homem preto?”
“Um home preto?”, respondeu, “Cr’em Deus pai! Tá doido, pastor.
Num tem nenhum home preto ne Ba’weary toda.”
Mas ela num falô cum clareza, você entende; ela ficô ruminano que
nem um burro c’a boca che’a de paia.
“Bem”, diz ele, “Janet, se num tinha home preto, então eu falei com
o Querelante dos Santos.”
E ele sentô que nem febrento, com os dente rangeno na cara.
“Diacho”, diz ela, “toma vergonha na cara, pastor”; e deu uma gola-
da no aguardente que tava sempre cum ela.
Depois disso, seu Soulis foi pra sala dele onde ficava os livro. Era
um quarto comprido, baixo e sinistro, um frio da peste no inverno, e
não muito seco nem memo no mei’ do verão, já que o presbitério fica
perto do córrego. Então, ele sentô e começô a pensá ne tudo o que tinha
acontecido desde que ele tinha vino pra Ba’weary, e ne sua cidade natal,
e nos dia que ele era moleque e corria alegre em cima das montanha; e
que aquele home preto sempre ficava na cabeça dele como se fosse re-
frão de música. Quanto mais ele pensava, mais ele pensava no home
preto. Ele tentô fazer a Oração do Pai-nosso, e as palavra num vinha
pra ele; e ele tentô, diz-se, escrevinhá o livro, mas num conseguia pensá
em nada. Teve uma hora que ele pensô que o home preto tava ne coto-
velo dele, e ele começô a suá frio que nem água de poço; e teve outras
vez que ele se dava conta de que tinha sido batizado quando era bebê e
num se incomodava cum nada.
O que sucedeu foi que ele foi até a janela e ficô encarano o rio Dule
enraivado. A arv’re tava grossa dum jeito estranho, e a água funda e es-
cura debaixo da cúria; e ali tava Janet lavano as roupa com o manto dela
preso que nem um saiote. Ela tava de costa pro pastor, nem sabia que
ele tava curiando. Então ela girou e mostrou a cara; seu Soulis deu o
memo tremelique gelado que já tinha dado antes aquele dia, e então ele
lembrô o que as pessoa dissero: que fazia muito tempo que Janet tinha
morrido, e que aquilo era um fantasma que andava na carne gelada que
nem barro dela. Ele deu um passinho pra trás e ficou olhano ela cum
atenção. Ela tava num bate-bate nas roupa e cantano baixinho; então,
oh, que Deus nos perdoe, mas era uma cara horrorosa. E logo ela come-
çô a cantá mais alto, e num tinha home fi’ duma muié que sabia dizer
uma palavra da música dela; e o tempo todo ela olhano pra baixo, de la-
do, e num tinha nada pra olhá lá. Então veio um desgosto de náusea na
carne debaixo dos osso dele; e aquilo era o aviso do céu. Mas seu Soulis
botou a culpa só nele memo, disse que tava pensano mal duma véinha
pobre, acabada e aflita, que num tinha no mundo mais nenhum amigo
além dele; e orou um pouco por ele e por ela, e bebeu um pouco de
água fresca — memo sofrendo de azia — e foi pra cama sem nada quan-
do escureceu.
Aquela foi uma noite que nunca foi esquecida em Ba’weary, a noite
de 17 de agosto de 1712. Tava quente antes, que nem eu disse, mas
aquela noite tava mais quente que nunca. O sol tinha se posto dumas
nuvem esquisita; tava escuro que nem o diabo; sem uma estrela, sem
uma lufada de vento; num dava pra ver a mão na frente da cara, e até o
pessoal mais véio tirô as coberta das cama e deitou tentando respirar.
Cum tudo que tava passano na cabeça dele, era difícil o seu Soulis dor-
mi. Ele ficava deitado rebolano pr’um lado e pro outro; a cama boa e
fria que ele tinha deitado esquentava até os osso dele; de vez em quando
ele cochilava, de vez em quando ele acordava; de vez em quando ele es-
cutava o tempo da noite, de vez em quando um cachorro uivano no
brejo, como se alguém tivesse morto; de vez em quando ele pensava que
tava ouvino fantasma ne seu ouvido, e de vez em quando via umas luz
assombrada no quarto. Ele achô que com certeza tinha ficado doente; e
doente ele tava memo — mas num desconfiava o motivo da doença.
C’o passar da noite, a mente foi clareano, então ele sentô do lado da
cama de roupa de dormir, e começô a pensá de novo no home preto e
em Janet. Ele num podia explicá muito bem — talvez fosse o arrepio no
pé — mas chegô pra ele de repente que nem uma enxurrada que tinha
alguma ligação entre os dois, e que cada um ou os dois era espectro.
Bem naquela hora, no quarto de Janet, que era colado no dele, teve uma
pancada de pé pareceno que tinha uns home lutando, e então uma pan-
cada alta; e então um vento assoprano pelos quatro canto da casa; e en-
tão tudo ficou quieto que nem túmulo de novo.
Seu Soulis num tinha medo nem de home nem do Cão. Ele pegô a
caixa de madeira dele, e acendeu uma vela, e com trêis pulo já tava na
porta de Janet. Tava destrancada, e ele empurrô ela e espiou cum cora-
gem lá dentro. Era um quarto grande, grande que nem o próprio quarto
do pastor, e mobiliado cum uns móvel antigo e forte, porque ele num ti-
nha mais nada. Tinha uma cama de quatro dossel, com tapeçaria antiga;
e um belo armário de carvaio, que tava chef dos livro religioso do pas-
tor, colocado ali pra num ficar no mei’ do caminho; e alguns dos traje
de Janet tava jogado lá e no chão. Janet memo o seu Soulis num achô,
nem sinal de luta. Ele entrô (e são poucos os que teria a corage’ dele), e
olhô em volta e escutô. Mas num tinha nada pra escutá den’do presbité-
rio nem na paróquia de Ba’weary todinha, e nada pra ver a num ser pe-
las sombra dando volta na vela. Então, de repente, o coração do seu
Soulis bateu muito forte e ele ficô travado, e um vento gelado assoprô
os cabelo da cabeça dele. Que visão horrorosa pro coitado! Porque ali
tava Janet pendurada numa cavilha do lado do antigo armário de car-
vaio; a cabeça pra cima do ombro, o zóio pocado pra fora, a língua sal-
tano pra fora da boca, e os calcanhar a trinta centímetro pra cima do
chão.
“Que Deus nos perdoe!”, pensô o seu Soulis, “A coitada da Janet
está morta.”
Ele deu um passo na direção do corpo; então o coração dele acelerô
no peito. Porque — aquela engenhoca não tinha como um homem en-
tendê — ela tava pendurada só por um prego e só um fio de lã de re-
mendá meia.
É uma coisa rúim demais ficar só de noite com essas assombração
do escuro; mas o seu Soulis tinha muita fé no Senhor. Ele deu a volta e
saiu do quarto, e trancô a porta detrás dele; e cum passo atrás do outro,
ele desceu as escada, passado que nem chumbo; e botô a vela no pé da
escada. Ele num conseguia rezá, num conseguia pensá, tava pingano
suor frio, e nada num podia escutá a num ser o dum-dum-dum do cora-
ção dele. Ele pode tê ficado ali uma hora, ou talvez duas, não importava
muito; então, de repente, ele ouviu uma zoada esquisita lá em cima; um
pé ia de um lado pro outro onde o corpo tava pendurado; então abriro a
porta memo ele sabeno muito bem que tinha trancado ela; e então um
passo pra escada, e pareceu pra ele que o corpo tava olhano pra onde ele
tava de lá de cima pelo corrimão.
Ele pegou a vela de novo (pois ele num ’guentava ficá sem luz), e, do
jeito mais devagar que ele conseguia, saiu do presbitério e foi pro final
do passeio. Lá fora ainda tava escuro que nem o inferno; o fogo da vela,
quando ele colocou ela no chão, queimou firme e clara pareceno que ta-
va num quarto; num mexia nada, a num ser pelo rio Dule correno e der-
ramano pelo vale, e por aquelas passada satânica que descia bateno de-
vagar as escada lá den’do presbitério. Ele conhecia muito bem aqueles
pé, por que era de Janet; a cada vez que o passo chegava mais perto, o
sangue dele ficava mais gelado. Ele confiô a alma pra Ele que tinha feito
e cuidado dele; “e, Ó, Senhor”, disse, “dai-me forças para enfrentar os
poderes do mal esta noite”.
Nessa hora os passo já tava chegano perto da passagem da porta; ele
podia escutá uma mão passano na parede, como se a coisa assombrada
tivesse sentino o caminho. Os salgueiro balançava e zoava junto, uma
latunia demorada descia a colina, o fogo da vela apagô; e ali tava o cadá-
ver de Janet, a Entortada, com seu vestido de gorgrão e a touca preta na
cabeça ainda em cima do ombro, e ainda com a risada horríve — viva,
você podia pensar —, mas morta, o seu Soulis sabia bem — na porta do
presbitério.
É uma coisa estranha que a alma do home teje amarrada no corpo
perecivo dele; mas o seu Soulis viu isso, e seu coração num estourô.
Ela num ficô ali muito tempo; começou a andá de novo, e agora bem
devagar pra cima do seu Soulis, onde ele tava debaixo do salgueiro. A
vida toda pelo corpo dele, toda a força do espírito, brilhava no zóio de-
le. Parecia que ele ia falá, mas num tinha palavra, e fez um sinal cum a
mão esquerda. Então vei’ uma rajada de vento, como o chiado dum ga-
to; apago de vez a vela, os salgueiro gritava que nem pessoa viva e o seu
Soulis sabia que, morreno ou viveno, aquilo ’cabava ali.
“Bruxa, megera, diabo!”, gritou, “eu lhe rogo o poder de Deus, vá
embora; caso morta, para o túmulo; caso condenada, para o inferno.”
E naquela hora a própria mão do Senhor saída do Céu exterminô o
horror onde ele tava; o cadávre véi’ morto e profanado da bruxa véia,
por tanto tempo longe do túmulo e pastoreado pelos demonho, chame-
jô que nem fogo de enxofre e caiu no chão transformado em cinza; em
seguida um trovão, estrondo em cima de estrondo, a chuva zoadenta
pro cima de tudo; e o seu Soulis pulou a cerca viva do jardim e correu,
um grito atrás do outro, pelo povoado.
Na mema manhã John Christie viu o home preto passá pela Grande
Tumba logo antes das seis; antes das oito, ele seguiu pela estalagem ne
Knockdow, e não muito depois, Sandy McLellan viu ele descê com
pressa as montanha de Kilmackerlie. Não há muita dúvida de que era
ele que tinha morado tanto tempo no corpo de Janet; mas, finalmente,
ele tava longe; e desde então o Cão nunca mais atormentou a gente em
Ba’waery.
Mas a dispensa custô caro pro pastor, que ficou delirano na cama
muito, muito tempo; e daquele momento até agora, ele é esse home que
hoje você conheceu.
O MÉDICO
E O MONSTRO
O ESTRANHO CASO DO
DR. JEKYLL E O SR. HYDE
ROBERT LOUIS STEVENSON

1886

para KATHARINE DE MATTOS

Não convém cortar os laços no divino atados


Mas do vento e urzal somos filhos adorados
É a mim e a ti, ainda quando longe de casa
Que as giestas gentis, ao norte do país agraça.

História da Porta
O sr. Utterson, advogado, era homem de aparência severa que jamais se
iluminava com um sorriso; frio, ausente e de conversa envergonhada;
retraído nos sentimentos; esguio, comprido, árido, lúgubre, e, ainda as-
sim, um tanto agradável. Em encontros de amigos e quando o vinho lhe
apetecia, algo de eminentemente humano brilhava no olho; algo que na
verdade jamais se mostrava na conversa, mas que falava não apenas com
aqueles símbolos silenciosos do rosto após o jantar, porém com mais
frequência e clamor com as ações da vida. Austero consigo mesmo, be-
bia gim quando sozinho, para mortificar seu apreço por vinhos finos; e
embora apreciasse o teatro, não cruzava a porta de um fazia vinte anos.
No entanto, se mostrava tolerante para com os outros; às vezes refletia,
quase com inveja, sobre a grande pressão que a bebida exercia nas más
ações deles; e, em casos extremos, ficava mais inclinado a ajudar que a
reprovar. “Curvo-me diante da heresia de Caim”, dizia bizarramente:
“permito que meu irmão vá até o diabo ao seu próprio modo.” Com tal
personalidade, não raro calhava de ser o último conhecido respeitável e
a última boa influência na vida de homens em decadência. E a eles, as-
sim que entravam em seus aposentos, nunca dava a demonstrar qual-
quer sombra de mudança no comportamento.
Sem dúvida, essa proeza era fácil ao sr. Utterson, pois era extrema-
mente discreto, e mesmo as suas amizades pareciam fundadas em seme-
lhante catolicismo da generosidade. É a marca do homem modesto acei-
tar seu círculo de amizades já pronto pela mão da oportunidade, e assim
era o advogado. Seus amigos eram aqueles de seu próprio sangue ou
quem conhecia fazia mais tempo; seus afetos, como hera, cresciam com
os anos, mas não necessariamente por alguma aptidão em si. Eis, sem
dúvida, o elo que o unia ao sr. Richard Enfield, parente distante e bem
conhecido na cidade. Para muitos, era um enigma o que esses dois viam
um no outro, ou que assunto teriam em comum. Relatava-se entre
aqueles que os encontravam nas caminhadas dominicais que ambos iam
em silêncio, pareciam singularmente aborrecidos, e que exclamavam alí-
vio evidente ao surgir algum amigo. Apesar de tudo isso, os dois tinham
enorme consideração por essas excursões, consideravam-nas o tesouro
de cada semana, e por elas não apenas dispensavam ocasiões aprazíveis,
como resistiam até mesmo às chamadas a negócios, para apreciá-las sem
interrupção.
Aconteceu de, por acaso, numa dessas vagueações, passarem por rua
secundária em vizinhança movimentada de Londres. A rua era pequena
e pode-se afirmar que tranquila, mas seu comércio era intenso nos dias
de semana. Todos os habitantes iam bem, parecia, e todos igualmente
esperavam ficar ainda melhor, e despendiam o excesso dos ganhos em
chamarizes; desse modo, as fachadas das lojas ao longo daquela via ti-
nham ar convidativo, com filas de vendedoras sorridentes. Mesmo aos
domingos, quando velava seus charmes mais atraentes e em comparação
ficava vazia, a rua brilhava pelo contraste com a esquálida vizinhança,
como fogo na floresta; e com as venezianas recém-pintadas, bronzes
polidos, a limpeza geral e a notável alacridade, imediatamente capturava
e agradava o olho do passante.
A duas casas da esquina, à esquerda de quem vai para o leste, a reta
era interrompida pela entrada de um pátio, e exatamente naquele ponto,
a construção sinistra exibia seu frontão para a rua. Tinha dois andares;
nenhuma janela à vista, nada mais que uma porta no andar de baixo, e a
fachada discreta com a parede descolorida no de cima; e em qualquer
aspecto trazia as marcas de negligência sórdida e prolongada. A porta,
que não era equipada com sineta ou batedor, estava inchada e descolori-
da. Vagabundos perambulavam pelo vão e acendiam fósforos nos pai-
néis; crianças vendiam objetos nos degraus; um estudante havia testado
a faca no batente; por quase uma geração, ninguém jamais aparecera pa-
ra espantar esses visitantes aleatórios ou consertar as avarias.
O sr. Enfield e o advogado estavam no outro lado da rua, mas quan-
do se aproximaram da frente da entrada, o primeiro levantou a bengala
e apontou.
“Já reparou nessa porta alguma vez?”, perguntou; e quando o acom-
panhante respondeu afirmativamente, “em minha mente está relaciona-
da”, acrescentou, “a história muito estranha.”
“É mesmo?”, disse o sr. Utterson, com leve alteração na voz, “e o
que aconteceu?”
“Bem, foi assim”, respondeu o sr. Enfield: “voltava de algum lugar
no fim do mundo, por volta das três de manhã de inverno escura, e meu
caminho passava por uma parte da cidade em que literalmente não havia
nada para se ver além de lampiões. Rua após rua, com todas as pessoas
dormindo — rua após rua, tudo iluminado como se fosse procissão, e
tudo vazio como igreja —, até que enfim alcancei o estado mental em
que um homem escuta e escuta e começa a ansiar pela presença de um
policial. De repente vi duas pessoas: uma delas era sujeito pequenino,
que seguia ao leste a passos pesados, e a outra era menina de talvez oito
ou dez anos e corria o mais rápido que podia pela rua transversal. Bem,
senhor, os dois inevitavelmente se trombaram na esquina; e então ocor-
reu a parte horrível da coisa; pois o homem pisou calmamente no corpo
da criança e a abandonou, chorando no chão. Falando assim não parece
nada de mais, porém era visão infernal. Não era como um homem; esta-
va mais para um maldito Juggernaut.[1] Gritei espantado, corri, agarrei o
homem pelo colarinho e o trouxe de volta para onde já havia aglomera-
ção considerável por causa da criança que chorava. Ele estava muito
tranquilo e não ofereceu qualquer resistência, mas me deu olhar tão
horroroso que fez o suor descer veloz. As pessoas que estavam ali eram
a família da garota; e em pouco tempo chegou o médico que alguém ha-
via chamado. Bem, a criança não estava tão mal, apenas assustada, de
acordo com o médico; e aqui se poderia imaginar que seria o fim do ca-
so. No entanto, havia circunstância curiosa. Senti asco do cavalheiro à
primeira vista. Assim também a família da criança, o que era natural.
Mas o caso do médico foi o que me deixou impressionado: era farma-
cêutico normal, sem cor ou idade em particular, com forte sotaque de
Edimburgo, e tão emotivo quanto gaita de foles. Bem, senhor, ele reagiu
como todos nós; toda vez que olhava para o prisioneiro, notei que o
médico se irritava e empalidecia, com o instinto de matá-lo. Eu sabia o
que se passava em sua mente, assim como sabia o que se passava na mi-
nha; e com o assassinato fora de cogitação, optamos pela segunda me-
lhor alternativa. Dissemos ao homem que podíamos e faríamos grande
escândalo por causa daquilo, e que sujaríamos seu nome de uma ponta a
outra de Londres. Se tivesse qualquer amigo ou crédito, garantimos que
os perderia. E por todo o tempo em que o empurramos extremamente
irritados, tentamos ao máximo afastar as mulheres dele, pois estavam
furiosas como harpias. Jamais vi grupo com rostos tão cheios de ódio; e
eis um homem no meio, com espécie de frieza soturna e desprezível —
assustado também, pude perceber — mas suportando, senhor, exata-
mente como Satã. ‘Caso o senhor decida receber algum capital com esse
acidente’, falou, ‘naturalmente não tenho outra escolha. Um cavalheiro
não deseja nada além de evitar cena’, afirma. ‘Diga-me o valor.’ Então
lhe sugerimos cem libras para a família da criança; claramente desejava
fugir, porém havia algo em nosso grupo que lhe indicava que teria pro-
blemas, e por fim cedeu. A questão seguinte foi conseguir o dinheiro; e
aonde você acha que nos levou, senão a esse local com essa porta? —
pegou a chave, entrou, e em pouco tempo voltou com a quantia de dez
libras em ouro e cheque de uma conta no Coutt’s, a ser pago ao porta-
dor e assinado com nome que não posso mencionar, embora seja um
dos pontos da história, mas era nome muito bem conhecido e frequente
nos jornais. A figura permaneceu rígida; mas a assinatura era boa para
mais que isso, se fosse no mínimo genuína. Tomei a liberdade de co-
mentar com o cavalheiro que toda aquela transação me parecia falsa, e
que, na vida real, uma pessoa não entra num sótão às quatro da manhã e
sai de lá com cheques de quase cem libras de outro homem. Mas ele es-
tava muito calmo e sarcástico. ‘Pode ficar tranquilo’, diz, ‘fico com o se-
nhor até o banco abrir, e eu mesmo saco o dinheiro.’ Então todos parti-
mos, o médico, o pai da criança, nosso amigo e eu, e passamos o resto
da noite em minha casa; e no dia seguinte, depois do café da manhã, fo-
mos juntos ao banco. Eu mesmo dei o cheque, e falei que tinha tudo pa-
ra acreditar que era falso. Nem um pouco: o cheque era verdadeiro.”
“Tsc-tsc”, disse o sr. Utterson.
“Vejo que você se sente como eu”, disse o sr. Enfield. “Sim, é histó-
ria terrível. Esse sujeito nada tinha a ver com ninguém, era pessoa real-
mente condenável; e quem passou o cheque era o indivíduo mais distin-
to, de boa reputação, e (o que piora tudo) pessoa que sem dúvidas pode
ser chamada de boa. Chantagem, imagino; alguém honesto extorquido
por alguma travessura da juventude. A Casa da Chantagem é como cha-
mo o local daquela porta, por causa disso. Porém mesmo isso, sabe, é
difícil de se explicar”, acrescentou, e com essas palavras caiu na cadeia
de reflexões.
Foi resgatado disso pelo sr. Utterson, que lhe perguntou de repente:
“E não sabe se o portador do cheque mora aí?”.
“Um lugar provável, não?”, respondeu o sr. Enfield. “Mas por acaso
prestei atenção no endereço; ele mora numa praça ou algo assim.”
“E nunca perguntou a ninguém a respeito de — do local com a por-
ta?”, insistiu o sr. Utterson.
“Não, senhor: mantive meus escrúpulos”, foi a resposta. “Tenho
muito receio de perguntar; depende muito de como está o dia do julga-
mento. Você solta a pergunta e é como soltar uma pedra. Aí está senta-
do no topo da montanha; e lá vai a pedra abaixo, que solta outras; e no
presente algum pássaro velho e brando (o último no qual você pensaria)
é atingido na cabeça em seu próprio jardim dos fundos e a família tem
que mudar de nome. Não, senhor, é regra particular que sigo: quanto
mais algo se parece com a Rua Bizarra, menos pergunto.”
“Regra muito boa”, disse o advogado.
“Mas investiguei o lugar por conta própria”, continuou o sr. Enfi-
eld. “E mal se parece com uma casa. Não há outra porta, e ninguém en-
tra ou sai por ela, exceto, com enormes intervalos, o cavalheiro de mi-
nha aventura. Ali há três janelas que dão para o pátio no primeiro an-
dar; nenhuma no de baixo; as janelas estão sempre fechadas, mas são
limpas. Há também chaminé com fumaça constante; então alguém deve
morar lá. E ainda assim, não dá para ter certeza, uma vez que as cons-
truções estão tão amontoadas ao redor do pátio, que é difícil dizer onde
uma termina e a outra começa.”
A dupla voltou a caminhar em silêncio por um tempo; e então, “En-
field”, disse o sr. Utterson, “a sua regra é boa”.
“Sim, acho que sim”, respondeu Enfield.
“Apesar disso”, continuou o advogado, “desejo perguntar algo; gos-
taria de saber o nome do homem que passou por cima da criança.”
“Bem”, disse o sr. Enfield, “acho que não há problema em dizer.
Chamava-se sr. Hyde.”
“Hum”, disse o sr. Utterson. “Na aparência é que espécie de ho-
mem?”
“Ele não é fácil de descrever. Há algo de errado com sua aparência;
algo desagradável, algo claramente detestável. Nunca vi homem me cau-
sar tanta repulsa, e ainda assim, não sei direito o porquê. Deve ter algu-
ma deformação; e passa forte sensação de deformidade, embora não
possa especificar exatamente qual. Tem aparência extraordinária, mas
não consigo apontar nada fora do lugar. Não, senhor; não sou capaz;
não consigo descrevê-lo. E não se trata de falha de memória; pois decla-
ro que posso vê-lo neste momento.”
O sr. Utterson voltou a caminhar em silêncio mais um pouco e ob-
viamente ficou incomodado com o peso das considerações. “Tem certe-
za que usou chave?”, acabou por inquirir.
“Meu caro senhor…”, começou Enfield, surpreso consigo mesmo.
“Sim, eu sei”, disse Utterson. “Sei que pode parecer estranho. O fa-
to é que não lhe pergunto o nome da outra parte, porque já sei qual é.
Veja, Richard, sua história se perdeu. Se foi inexato quanto a qualquer
ponto, é o momento de corrigir isso.”
“Acredito que você poderia ter me avisado antes”, respondeu o ou-
tro com toque de rabugice. “Mas, me entenda, chego a soar enfadonho
de tão preciso que fui. O sujeito possuía a chave: e mais, ainda está com
ela. Eu o vi a usar não faz uma semana.”
O sr. Utterson suspirou profundamente, mas não disse uma palavra;
e o jovem logo continuou. “Acabo de aprender que não se deve conver-
sar demais”, disse. “Sinto vergonha de minha língua comprida. Combi-
nemos de jamais nos referir a isso novamente.”
“De coração”, disse o advogado. “Eu o cumprimento por isso, Ri-
chard.”

A Busca Pelo Sr. Hyde


Naquela noite, o sr. Utterson voltou com espírito melancólico para sua
casa de solteiro e sentou-se para jantar sem apetite. Aos domingos, após
a refeição, tinha o hábito de passar um tempo diante da lareira com o
volume de alguma divindade sequiosa sobre a mesa de leitura, até que o
relógio da igreja da vizinhança batesse doze horas, quando se deitava
com sobriedade e gratidão. Nessa noite, no entanto, assim que a mesa
foi desguarnecida, pegou a vela e foi para o escritório. Ali abriu o cofre,
retirou de lugar bastante discreto um documento assinado no envelope
como o Testamento do Dr. Jekyll, e se sentou com o rosto ensombreci-
do para examinar o conteúdo. O testamento era manuscrito, pois em-
bora o sr. Utterson tomasse conta dele agora que estava pronto, se recu-
sara a oferecer a menor assistência durante a elaboração; providenciava
não apenas aquilo, mas, em caso de morte de Henry Jekyll, Doutor em
Medicina, Doutor na Lei Civil, Doutor em Leis, Membro da Real Soci-
edade &c., todas as suas posses deveriam ir para as mãos do seu “amigo
e benfeitor Edward Hyde”, e no caso do “desaparecimento ou ausência
inexplicável por qualquer período excedente a três meses de calendário”
do dr. Jekyll, o mencionado Edward Hyde deveria tomar o lugar do
mencionado Henry Jekyll sem mais delongas e livre de quaisquer en-
cargos ou obrigações, além do pagamento de pequenas somas para os
servidores da casa de Jekyll. Por bastante tempo esse documento causou
ojeriza aos olhos do advogado, que o ofendia tanto como advogado
quanto como apreciador dos elementos saudáveis e convencionais da vi-
da, a quem o exagero era falta de modéstia. Então, foi o seu desconheci-
mento do sr. Hyde que recebera a sua indignação; agora, em movimen-
to repentino, era de seu conhecimento. Já lhe era ruim o bastante quan-
do o nome não passava de um do qual nada sabia; piorou quando come-
çava a ser envolto por atributos detestáveis; e além das mudanças, névo-
as sem substância que por tanto tempo confundiram sua visão, agora vi-
nha a tona de repente um delineado pressentimento que tinha um rival.
“Eu pensava que era loucura”, disse, ao guardar no cofre o repulsivo
documento, “e agora começo a temer que seja desgraça.”
Com isso, assoprou a vela, pôs o sobretudo e saiu em direção a Ca-
vendish Square, a cidadela da medicina, onde seu amigo, o grande dr.
Lanyon, morava e atendia multidão de pacientes. “Se alguém sabe de al-
go, é o dr. Lanyon”, pensava.
O solene mordomo o reconheceu e o cumprimentou; sem demora
foi conduzido diretamente à porta da sala de jantar, onde o dr. Lanyon
tomava vinho sozinho. Era cavalheiro caloroso, saudável, asseado, de
rosto rubro, com cabeleira precocemente branca e comportamento
enérgico e decidido. Ao ver o sr. Utterson, pulou da cadeira e o cumpri-
mentou com as duas mãos. Sua disposição, pelo comportamento do ho-
mem, parecia deveras teatral, mas repousava em sentimento genuíno. Is-
so porque ambos eram velhos amigos, velhos colegas tanto na escola
quanto na universidade, ambos tinham profundo respeito mútuo e por
si mesmos, o que nem sempre ocorre, e ambos eram pessoas que, de fa-
to, apreciavam a companhia um do outro.
Após divagarem um pouco, o advogado entrou no assunto que ocu-
pava a sua mente de modo tão desagradável.
“Imagino, Lanyon”, afirmou, “que você e eu sejamos os dois amigos
mais velhos de Henry Jekyll.”
“Quem me dera fôssemos os amigos mais jovens”, gracejou o dr.
Lanyon. “Mas suponho que sim. O que tem? Nos últimos tempos, não
tenho o visto muito.”
“Verdade?”, disse Utterson. “Pensei que mantinham contato pelo
interesse em comum.”
“Mantínhamos”, foi a resposta. “Porém faz mais de dez anos que
Henry Jekyll ficou volúvel demais para meu gosto. Seguiu por caminho
errado, muito errado; assim, apesar de, obviamente, continuar a me in-
teressar por ele, em nome dos velhos tempos, como dizem, não nos en-
contramos muito. Tagarelice tão refutável como a dele”, acrescentou o
doutor, arroxeando-se de repente, “teria separado Damão e Pítias.”[2]
Esse breve esguicho de sinceridade causou espécie de alívio no sr.
Utterson. “Divergem apenas em alguma questão científica”, pensou; e
sendo homem sem qualquer paixão científica (exceto as relacionadas a
transporte) afirmou: “Não há nada pior que isso!”. Deu ao amigo um
segundo para se recompor, então soltou a pergunta que fora até lá fazer.
“Alguma vez já se encontrou com um protegido dele — o tal de
Hyde?”, perguntou.
“Hyde?”, repetiu Lanyon. “Não. Nunca ouvi falar. Nem na minha
época.”
Foi apenas essa a informação que o advogado carregou consigo, de
volta à cama grande e escura na qual rolava de um lado para o outro, até
que crescessem as pequenas horas da manhã. Foi noite de pouca sereni-
dade para sua mente laboriosa, que labutou na escuridão simples e sitia-
da por dúvidas.
As seis horas ressoaram nos sinos da igreja, convenientemente, mui-
to próxima da moradia do sr. Utterson, e ele continuava a escavar o
problema. Antes disso, tocava apenas o lado intelectual; mas agora a
imaginação também estava engajada, quiçá cativa; e conforme rolava de
um lado a outro, deitado na espessa escuridão noturna do quarto acorti-
nado, o relato do sr. Enfield cruzava a sua mente numa sequência de
imagens luminosas. Tomou ciência do grande número de lampiões da
cidade noturna; então a figura do caminhante em velocidade; depois a
da criança correndo da casa do médico; e, em seguida, eles trombam um
com o outro, e o Juggernaut humano pisoteia a criança e prossegue in-
diferente aos seus gritos. Ou então visualizava o aposento da mansão,
onde seu amigo dormia, sonhava, e sorria em seus sonhos; e em seguida
a porta do cômodo era aberta, as cortinas da cama puxadas, o dormente
chamado e eis que diante dele estava a figura que o controlava, e mesmo
àquela hora perdida, devia se levantar e obedecer aos seus comandos. A
figura nessas duas fases assombrou o advogado por toda a noite; e se em
algum momento cochilou, foi apenas para flutuar com mais certeza pe-
las casas de repouso, ou para se mover cada vez mais rápido, e mais rá-
pido, até ficar tonto, pelos vastos labirintos da cidade iluminada por
lampiões, e a cada esquina esmagar a criança e abandoná-la chorando. E
ainda assim a figura não tinha rosto para que pudesse reconhecê-la;
mesmo em sonho não tinha rosto, ou tinha um que o confundia e derre-
tia diante de seus olhos; foi então que surgiu e cresceu na mente do ad-
vogado curiosidade estranhamente intensa, quase excêntrica, pela chan-
ce de contemplar a fisionomia real do sr. Hyde. Se ao menos pudesse
observá-lo, acreditava que o mistério se iluminaria e mesmo se resolve-
ria, como acontece com as coisas misteriosas quando bem examinadas.
Poderia encontrar algum motivo para a estranha preferência ou cativei-
ro (chame como quiser) do amigo, e mesmo para as espantosas cláusulas
do testamento. E no mínimo seria um rosto que valeria a pena ver; o
rosto de um homem sem qualquer entranha de piedade; rosto que pre-
cisou de apenas um vislumbre para despertar o duradouro espírito de
ódio no imperturbável Enfield.
Desde então, o sr. Utterson ficou obcecado com a porta na rua co-
mercial. Pela manhã, antes do horário de trabalho, ao meio-dia, quando
o comércio estava cheio e o tempo era escasso, à noite, encarando o luar
enevoado da cidade, em todas as luzes e nas horas mais vazias ou nas tu-
multuosas, o advogado podia ser encontrado naquele local.
“Se o sr. ‘Hyde’ é de esconde-esconde”, pensou, “serei o sr. Pique
que vai pegá-lo.”
E sua paciência foi por fim recompensada. Era noite seca e agradá-
vel; geada no ar; as ruas limpas como o piso de salão de dança; os lampi-
ões não bruxuleavam com o vento, o que criava padrão regular de luz e
sombra. Por volta das dez horas, quando as lojas se fechavam, a rua es-
tava bastante solitária e, apesar do grunhido de Londres ao redor, bas-
tante silenciosa. Ouvia-se rumores baixos ao longe; rumores domésticos
das casas eram ouvidos com clareza em ambos os lados da rua; e o ruído
da aproximação de qualquer passante o precedia por tempo razoável. O
sr. Utterson estava ali havia alguns minutos, quando percebeu passo le-
ve e esquisito se aproximar. No curso das patrulhas noturnas, fazia mui-
to tempo que se acostumara com o efeito pitoresco de como as batidas
dos pés de uma pessoa sozinha, com longo caminho ainda a percorrer,
subitamente soavam distintas do zumbido e da algazarra da cidade.
Ainda assim, sua atenção jamais fora mais penetrante e detida, e de mo-
do tão decisivo; e foi com previsão de sucesso forte e supersticiosa que
recuou para a entrada da rua.
Os passos se aproximavam rapidamente, e de súbito ficaram mais al-
tos, ao virarem a esquina. O advogado observava da entrada, e logo foi
capaz de examinar a postura do homem com quem haveria de lidar. Era
pequeno, se vestia de modo bastante ordinário, e de certo modo, a sua
aparência, mesmo àquela distância, afrontava com intensidade o obser-
vador. Mas foi direto para a porta, após cruzar a rua para ganhar tempo;
e ao chegar, tirou a chave do bolso como alguém que chegava em casa.
O sr. Utterson deu um passo e tocou em seu ombro quando passa-
va. “Imagino que seja o sr. Hyde.”
O sr. Hyde se encolheu, sibilante ao respirar. Mas seu medo era ape-
nas momentâneo; e embora não tivesse olhado para o rosto do advoga-
do, respondeu com bastante tranquilidade: “É o meu nome. O que o se-
nhor deseja?”.
“Vejo que vai entrar”, respondeu o advogado, “sou velho amigo do
dr. Jekyll — sr. Utterson, da Gaunt Street —, o senhor deve ter escuta-
do o meu nome; e, como encontrei o senhor em momento tão conveni-
ente, pensei que talvez pudesse me deixar entrar.”
“O senhor não encontrará o dr. Jekyll aqui; pois está longe de casa”,
replicou o sr. Hyde, enquanto punha a chave. Então, de repente, mas
ainda sem olhar para cima, perguntou, “Mas como é mesmo que o se-
nhor sabe quem sou eu?”.
“De sua parte”, disse o sr. Utterson, “o senhor poderia me fazer um
favor?”
“Com prazer”, replicou o outro. “O que seria?”
“Poderia me permitir ver o seu rosto?”, pediu o advogado.
O sr. Hyde pareceu hesitar, e então, como se por algum pensamento
repentino, o afrontou com ar de desafio, e os dois se encararam por al-
guns segundos. “Agora serei capaz de reconhecê-lo na próxima vez”,
disse o sr. Utterson. “Poderá ser útil.”
“Sim”, respondeu o sr. Hyde, “prazer em conhecê-lo; à propos, ano-
te o meu endereço.” E lhe passou o número de uma rua no Soho.
“Meu Deus!”, pensou o sr. Utterson, “Será que também está de olho
no testamento?” Porém guardou tais sentimentos para si e apenas mur-
murou ao ser informado do endereço.
“Agora me diga”, disse o outro, “como me reconheceu?”
“Pelas descrições” foi a resposta.
“Descrições de quem?”
“Temos amigos em comum”, disse o sr. Utterson.
“Amigos em comum?”, ecoou o sr. Hyde, um pouco rouco.
“Quem?”
“Jekyll, por exemplo”, disse o advogado.
“Não foi ele quem lhe falou de mim”, gritou o sr. Hyde, ruborizado
de raiva. “Não pensei que o senhor mentiria.”
“Calma”, disse o sr. Utterson, “essa não é uma linguagem apropria-
da.”
O outro rosnou alto com gargalhada selvagem; e no momento se-
guinte, com rapidez extraordinária, destrancou a porta e desapareceu
dentro da casa.
O advogado ficou parado por um tempo após o sr. Hyde deixá-lo, a
imagem da inquietude. Depois, subiu a rua lentamente; parava a cada
um ou dois passos e colocava a mão no rosto, indicando perplexidade.
O problema que ruminava ao caminhar era daqueles que raramente se
resolvem. O sr. Hyde era pálido e algo anão, passava a impressão de de-
formidade sem qualquer deformação visível, tinha sorriso desagradável,
que surgiu ao advogado com a mistura assassina de recato e audácia, e a
voz rouca, sussurrada e algo esganiçada; todos esses pontos lhe eram
desfavoráveis, mas mesmo juntos ainda explicavam aquele misterioso
asco, desprezo e pavor que o sr. Utterson lhe dispensava. “Deve existir
algo mais”, disse o perplexo cavalheiro. “Existe algo mais, caso encontre
um nome para tal. Deus me perdoe, o sujeito mal parece humano! Algo
de troglodita, talvez? Ou será aquela velha história do dr. Fell?[3] Quem
sabe o mero esplendor de alma sórdida que transpira através de seu re-
cipiente de barro e, desse modo, o transforma? Acho que a última su-
gestão; pois, veja, meu caríssimo Harry Jekyll, se um dia já vi a assina-
tura de Satã no rosto de alguém, foi no desse seu novo amigo.”
Perto da esquina da rua havia a praça com casas antigas e elegantes,
agora em grande parte desprovidas do alto prestígio, transformadas em
apartamentos e alcovas para pessoas de todos os tipos e condições: car-
tógrafos, arquitetos, advogados suspeitos e agentes de empreendimen-
tos obscuros. Uma casa, no entanto, a segunda depois da esquina, ainda
era ocupada por inteiro; e na porta, que transmitia grande impressão de
riqueza e conforto, embora agora mergulhada na escuridão, exceto pela
luz do basculante, o sr. Utterson parou e bateu. Um criado idoso bem
trajado abriu a porta.
“O dr. Jekyll está em casa, Poole?”, perguntou o advogado.
“Verei, sr. Utterson”, disse Poole, e convidou o visitante, enquanto
falava, para o salão de teto baixo espaçoso e confortável, ornado com
bandeiras, aquecido (ao modo de casa de campo) por lareira aberta e
cintilante, e mobiliado com custosos armários de carvalho. “Poderia es-
perar diante do fogo, senhor? Ou prefere que lhe traga uma luz da sala
de jantar?”
“Fico aqui mesmo, muito obrigado”, disse o advogado, antes de se
aproximar e se curvar diante do grande guarda-fogo. Esse salão, no qual
agora estava sozinho, era capricho caro ao amigo médico; e o próprio
Utterson estava acostumado a falar dele como o cômodo mais agradável
de Londres. Mas naquela noite tinha tremor no sangue; o rosto de Hy-
de pesava na memória; sentia (o que lhe era raro) náuseas e desgosto pe-
la vida; e, à sombra de seu espírito, pareceu ler ameaça na luz que recaía
da lareira sobre os armários polidos e o inquieto movimento da sombra
no teto. Sentiu vergonha de seu alívio, quando Poole em seguida retor-
nou para anunciar que o dr. Jekyll estava ausente.
“Vi o sr. Hyde entrar pela porta da velha sala de dissecação, Poole”,
disse. “Isso é normal, quando o dr. Jekyll não está em casa?”
“Bem normal, sr. Utterson”, respondeu o criado. “O sr. Hyde tem a
chave.”
“Seu patrão parece depositar muita confiança naquele jovem, Poo-
le”, continuou o outro, meditativo.
“Sim, senhor, de fato”, disse Poole. “Todos temos ordens para obe-
decê-lo.”
“Acho que nunca fui apresentado ao sr. Hyde”, comentou Utterson.
“Penso que não, senhor. Nunca janta aqui”, replicou o mordomo.
“Na verdade, pouco o vemos neste lado da casa; praticamente, só fica
pelo laboratório.”
“Bem, boa noite, Poole.”
“Boa noite, sr. Utterson.”
E o advogado voltou da casa com o coração pesado. “Pobre Harry
Jekyll”, pensou, “algo me diz que mergulhou em águas profundas! Ele
era terrível na juventude; faz muito tempo, com certeza; mas na lei de
Deus, não há estatuto de limitações. Ah, deve ser isso; o fantasma de al-
gum velho pecado, o câncer de alguma desgraça dissimulada; a punição
vinda, pede claudo,[4] anos depois de a memória esquecer e o amor-pró-
prio perdoar a falta.” E o advogado, assustado com o pensamento, ru-
minou um pouco o próprio passado, e tateou por todos os recantos da
memória, receando a caixa-surpresa de alguma antiga iniquidade que
por acaso viesse à luz de repente. Seu passado era deveras irrepreensível;
poucos homens podiam ler os pergaminhos da vida com menos apreen-
são; ainda assim, morria de vergonha por algumas maldades que havia
cometido, e se levantou em gratidão sóbria e temerosa pelas que apenas
chegara perto de realizar, mas que haviam sido evitadas. Assim, ao re-
tornar para a outra questão, sentiu fagulha de esperança. “Esse senhor
Hyde, se investigado”, pensou, “deve ter os próprios segredos; segredos
tenebrosos, dada a aparência; segredos que fariam parecer raios solares
as piores faltas do coitado do Jekyll. As coisas não podem continuar as-
sim. Sinto calafrios só de pensar em tal criatura, furtiva como ladrão, ao
lado da cama de Harry; pobre Harry, que despertar! E que perigo; pois
se esse tal de Hyde suspeitar da existência do testamento, talvez queira
adiantar a entrega da herança. Ah, preciso ajudá-lo — se Jekyll me per-
mitir”, acrescentou, “se ao menos Jekyll me permitir.” E mais uma vez,
observou na sua imaginação, claras como água, as estranhas cláusulas do
testamento.

O Dr. Jekyll Estava Bem Tranquilo


Duas semanas depois, por sorte tremenda, o médico deu um de seus
agradáveis jantares para cinco ou seis velhos amigos íntimos, todos ho-
mens inteligentes e de boa reputação, e apreciadores de bons vinhos; ar-
guto, o sr. Utterson permaneceu após a partida dos outros. Não era
ocorrência nova, mas algo que já havia acontecido dezenas de vezes.
Onde o sr. Utterson era apreciado, era bem apreciado. Os anfitriões
adoravam deter o grave advogado quando os homens levianos e de lín-
gua solta já cruzavam a porta; gostavam de se sentar diante de sua co-
medida companhia, praticar a solidão, clarear as mentes no eloquente
silêncio daquele homem após o esbanjamento e a euforia acentuada. A
essa regra o dr. Jekyll não era exceção; e enquanto se sentava do outro
lado da lareira — homem de cinquenta anos largo e bem-apessoado,
rosto liso, talvez com fisionomia um tanto marota, porém com tudo o
que indicava capacidade e gentileza — pelos seus modos era perceptível
que nutria afeição calorosa e sincera pelo sr. Utterson.
“Quero falar com você, Jekyll”, começou o outro. “Sabe aquele seu
testamento?”
Um observador atento poderia entender que o tópico seria mal rece-
bido, porém o médico reagiu com bom-humor. “Meu pobre Utterson”,
disse, “este cliente não lhe traz sorte. Jamais vi alguém tão incomodado
como você por meu testamento; a exceção é aquele retrógrado pedante,
Lanyon, pelo que chamou de ‘minhas heresias científicas’. Oh, sei que é
boa pessoa — não precisa fazer careta — pessoa excelente, e sempre
quis conhecê-lo melhor; mas é um retrógrado pedante por isso tudo;
pedante fanfarrão e ignorante. Nunca fiquei tão desapontado com al-
guém como fiquei com Lanyon.”
“Você sabe que nunca o aprovei”, insistiu Utterson, e ignorou im-
placavelmente o último assunto.
“Meu testamento? Sim, de fato, sei”, disse o médico, um pouco cor-
tante. “Você me falou.”
“Bem, falarei novamente”, continuou o advogado. “Conheci melhor
o jovem Hyde.”
O rosto largo e belo do dr. Jekyll se empalideceu até os lábios, e lo-
go a região dos olhos ficou sombria. “Não pretendo ouvir mais nada”,
disse. “Combinamos de evitar esse assunto.”
“O que ouvi dele é abominável”, disse Utterson.
“Não pode ser alterado. Você não entende a minha posição”, res-
pondeu o médico, com certa incoerência nos modos. “Estou embrenha-
do nisso de maneira dolorosa, Utterson: minha posição é bem estranha
— estranha até demais. Não é desses casos que podem ser resolvidos
com conversas.”
“Jekyll”, disse Utterson, “você me conhece: sou confiável. Fale co-
migo com sinceridade, e sem dúvidas poderei ajudá-lo.”
“Meu caro Utterson”, disse o médico, “isso é muito generoso de sua
parte, é extremamente generoso, e não consigo encontrar palavras para
agradecer a você o suficiente. Acredito em você, de verdade; confiaria
mais em você que em qualquer outra pessoa viva, ah, até mais que em
mim mesmo, se pudesse escolher; mas na verdade, isso não é como pen-
sa, e nem é tão ruim assim; apenas fique tranquilo, e lhe direi algo: pos-
so me livrar do sr. Hyde quando quiser. Posso jurar por isso; e agradeço
de coração; só devo acrescentar uma palavra, Utterson, e tenho certeza
de que a aceitará: isso é um assunto particular, e lhe suplico que o deixe
de lado.”
Utterson refletiu um pouco enquanto olhava o fogo.
“Certamente não há nenhum problema”, disse por fim, e se levan-
tou.
“Bem, uma vez que entramos nesse assunto, e espero que pela últi-
ma vez”, continuou o médico, “há um ponto que gostaria que entendes-
se. De fato, estou muito interessado no pobre do Hyde. Sei que o en-
controu; ele me disse, e receio que tenha agido com grosseria. Mas estou
mesmo bastante interessado naquele jovem; e se desaparecer, Utterson,
desejo que me prometa que ficará do lado dele e que defenderá os seus
direitos. Acho que o faria, se soubesse de tudo, e tiraria um peso de mi-
nha mente se pudesse me prometer isso.”
“Não sou capaz de fingir que um dia gostarei dele”, disse o advoga-
do.
“Não pedi isso”, suplicou Jekyll e repousou a mão no braço do ou-
tro; “peço apenas a justiça; peço apenas que o ajude, por minha causa,
quando não estiver mais aqui.”
Utterson suspirou irreprimivelmente. “Bem”, falou, “eu prometo.”

O Caso do Assassinato de Carew


Quase um ano depois, no mês de outubro de 18…, Londres foi sur-
preendida por crime de ferocidade singular, que se tornou ainda mais
notório por conta da elevada posição social da vítima. Os detalhes eram
escassos e espantosos. Uma criada que morava sozinha em casa não
muito distante do rio havia subido para o quarto por volta das onze ho-
ras. Embora na calada da noite a cidade estivesse encoberta por névoa,
mais cedo não havia nuvens, e a rua, que podia ser vista da janela da cri-
ada, bastante iluminada pela lua cheia. Aparentemente, era romântica,
uma vez que se sentou na caixa, exatamente diante da janela, e sonhou
acordada. Jamais (dizia, lágrimas escorrendo, quando narrou a expe-
riência), jamais se sentira tão tranquila em relação a toda a humanidade,
jamais sentira tanta ternura pelo mundo. E assim que se sentou, perce-
beu o belo cavalheiro de idade, cabelos brancos, que se aproximava pela
rua; a seu encontro ia outro cavalheiro bem pequeno, a quem num pri-
meiro momento não prestou muita atenção. Quando conversaram (o
que ocorreu bem diante dos olhos da criada) o homem mais velho se
curvou e saudou o outro com muita gentileza.
Não pensou que o receptor do gesto fosse de grande importância; na
verdade, conforme relatou, lhe pareceu que apenas perguntava o cami-
nho; mas a lua iluminou o rosto enquanto falava, e a garota ficou encan-
tada ao vê-lo, pois parecia exalar inocência e disposição cavalheiresca do
velho-mundo, ao mesmo tempo em que mantinha algo de elevado, co-
mo que de sólido contentamento consigo próprio. Em seguida, o olho
dela foi até o outro, e se surpreendeu por reconhecer nele certo sr. Hy-
de, que uma vez havia visitado seu patrão e por quem nutria alguma re-
pugnância. Segurava pesada bengala e brincava com ela; mas não res-
pondeu a nenhuma palavra, e parecia escutar com impaciência incontro-
lável. De repente, irrompeu em labareda de fúria, batia o pé com força,
brandia a bengala, e agia (conforme descrição da criada) à maneira de
um louco. O velho cavalheiro deu um passo para trás, com a impressão
de estar bastante surpreso e um pouco desapontado; depois disso, o sr.
Hyde saiu dos limites e o derrubou no chão com o bastão. No momen-
to seguinte, com raiva primata, esmagou a vítima com o pé, e desferiu
uma tempestade de pancadas, que audivelmente quebraram os ossos, e
então, o corpo foi lançado na rua. Aterrorizada com esses sons e visões,
a criada desmaiou.
Eram duas da manhã quando ela voltou a si e chamou a polícia. O
assassino fugira fazia muito tempo, mas ali estava a vítima, incrivelmen-
te destroçada, no meio da pista. O bastão que havia consumado o fato,
apesar de madeira rara bem pesada e resistente, havia sido quebrado ao
meio com a tensão dessa crueldade irracional; uma metade lascada havia
rolado para bueiro nas proximidades — a outra, sem dúvida, havia sido
carregada pelo assassino. Uma bolsa e relógio de ouro haviam sido en-
contrados com a vítima; mas nenhum cartão ou papel, exceto o envelo-
pe selado e carimbado, que provavelmente levava ao correio e que trazia
o nome e o endereço do sr. Utterson.
Isso foi mostrado ao advogado na manhã seguinte, antes de sair da
cama; mal olhou para aquilo e as circunstâncias lhe foram contadas, gri-
tou com murmúrio solene. “Não direi nada até ver o corpo”, afirmou;
“isso pode ser muito sério. Tenha a gentileza de esperar que me vista.”
E com o mesmo semblante grave, tomou o desjejum com pressa e se di-
rigiu até a estação de polícia, para onde o corpo havia sido levado. As-
sim que entrou na unidade, acenou.
“Sim”, falou, “eu o reconheço. Sinto informar que este é o honorá-
vel Danvers Carew.”
“Bom Deus, senhor”, exclamou o oficial, “será possível?” E no mo-
mento seguinte os olhos brilharam com ambição profissional. “Isso
causará uma balbúrdia”, afirmou. “E talvez o senhor possa nos ajudar a
encontrar o homem.” Então narrou brevemente o que a criada assistira
e lhe mostrou a bengala quebrada.
O sr. Utterson já havia titubeado com o nome de Hyde; porém,
quando puseram o bastão na sua frente, não podia mais duvidar: mesmo
quebrado e estraçalhado, o reconheceu como o presente que ele mesmo
dera a Henry Jekyll muitos anos antes.
“Esse sr. Hyde, por acaso, é de baixa estatura?”, indagou.
“Particularmente pequeno e de aparência particularmente sinistra, é
o que a criada afirma sobre ele”, respondeu o oficial.
O sr. Utterson refletiu um pouco; em seguida, ergueu a cabeça, “ca-
so o senhor me acompanhe no coche”, disse, “acho que posso levá-lo à
casa dele”.
Já eram quase nove da manhã, no dia da primeira névoa da tempora-
da. Grande mortalha cor de chocolate descia do céu, mas o vento não
parava de levar e conduzir esses resistentes vapores; assim, enquanto o
coche se arrastava de rua em rua, o sr. Utterson contemplava o maravi-
lhoso número de gradações e tonalidades do crepúsculo, pois estava es-
curo como no fim da tarde, e havia brilho de marrom belo e lúgubre,
como luz de estranha conflagração; e ali, por um momento, a névoa se
dispersava um pouco, e o combalido feixe de sol surgia entre as volutas
ondulantes. O soturno quarteirão do Soho, sob a ótica de tais vislum-
bres alternados, com as vias lamacentas e os passantes desmazelados, e
os lampiões, que para combater a retomada matinal da escuridão não
haviam se apagado ou mesmo diminuído, parecia, aos olhos do advoga-
do, como o distrito de uma cidade de pesadelo. Os pensamentos na ca-
beça, além disso, tinham coloração deveras obscura; ao vislumbrar o
companheiro de viagem, sentiu a fisgada daquele medo da lei e dos ofi-
ciais da lei que às vezes assaltam os mais honestos.
Quando o coche se aproximou do endereço indicado, a névoa subiu
um pouco e exibiu a rua pavorosa, a tasca de gim, o restaurante francês,
a loja que vendia publicações de um vintém e saladas de dois, várias cri-
anças esfarrapadas se amontoadas nas portas, e diversas mulheres de di-
ferentes nacionalidades passavam por elas, chaves em mãos, para tomar
a dose matinal; e no momento seguinte a névoa desceu novamente sobre
a região, marrom como ocre, e os separou de afrontosos arredores. Eis
o lar do protegido de Henry Jekyll; de alguém que haveria de herdar
duzentos e cinquenta mil libras esterlinas.
Uma velha de cabelos grisalhos e rosto de marfim abriu a porta. Ti-
nha o semblante feio, suavizado pela hipocrisia, mas os modos eram ex-
celentes. Sim, disse, era a casa do sr. Hyde, entretanto ele não estava; ha-
via chegado muito tarde naquela noite, porém saíra fazia uma hora; na-
da de estranho naquilo; seus hábitos eram bem irregulares, e se ausenta-
va com frequência; por exemplo, antes do dia anterior, fazia quase dois
meses que não o via.
“Tudo bem, agora desejamos ver os cômodos da casa”, disse o advo-
gado; e quando a mulher declarou que era impossível, “é melhor expli-
car quem é este aqui”, acrescentou. “Este é o inspetor Newcomen, da
Scotland Yard.”
Um lampejo de contentamento odioso surgiu no rosto da mulher.
“Ah!”, disse, “ele está em apuros! O que ele fez?”
O sr. Utterson e o inspetor trocaram olhares. “Não parece um sujei-
to muito popular”, observou o último. “Agora, minha boa senhora,
apenas permita que este cavalheiro e eu demos uma olhada.”
Em toda a extensão da casa, que com exceção da velha, ficava vazia,
o sr. Hyde usava apenas dois cômodos; mobiliados com luxo e bom
gosto. Um armário cheio de vinho; os utensílios de prata, os tecidos ele-
gantes; bela pintura pendurada na parede, um presente (supôs Utterson)
de Henry Jekyll, grande conhecedor; e o carpete tinha várias camadas e
cor agradável. Porém, naquele momento os cômodos traziam todos os
indícios de terem sido saqueados apressadamente fazia pouco tempo;
roupas no chão, os bolsos do avesso; gavetas de chave arregaçadas, e na
lareira havia pilha de cinzas, como se muitos papéis tivessem sido quei-
mados. Das brasas o inspetor desenterrou a ponta de talão de cheque
verde, que resistira à ação do fogo; a outra metade do bastão foi encon-
trada atrás da porta; e como isso confirmou as suspeitas, o oficial se de-
clarou agraciado. Uma visita ao banco, onde milhares de libras foram
descobertas em crédito ao assassino, completou a satisfação.
“Pode acreditar nisso, senhor”, falou para o sr. Utterson: “ele está
em minhas mãos. Deve ter perdido a cabeça, senão jamais deixaria o
bastão ou, acima de tudo, queimaria o talão de cheque. Oras, o dinheiro
é a vida para o homem. Não precisamos fazer mais nada, apenas esperar
que entre no banco para sacar.”
Esse último, no entanto, não seria fácil de conseguir, pois o sr. Hyde
tinha pouquíssimos conhecidos — mesmo o chefe da criada só ficara em
sua presença duas vezes; a família não pôde ser rastreada em lugar al-
gum; jamais havia sido fotografado; e os poucos que poderiam descre-
vê-lo diferiam bastante entre si, como observadores comuns o fazem.
Apenas em um ponto concordavam: e era na assombrosa sensação de
deformidade não expressa que o fugitivo imprimia em quem olhava pa-
ra ele.

Incidente da Carta
Era fim de tarde, quando o sr. Utterson se dirigiu à porta do dr. Jekyll,
onde sem demora Poole o convidou a entrar, e foi conduzido pelos cô-
modos da cozinha e pelo quintal que já havia sido jardim, até o prédio
conhecido como laboratório ou sala de dissecação. O médico havia
comprado a casa dos herdeiros de célebre cirurgião e, mais interessado
em química que em anatomia, a construção nos fundos do jardim teve a
função alterada. Era a primeira vez que o advogado seria recebido na-
quela parte da residência do amigo; examinou com curiosidade a estru-
tura esquálida, desprovida de janelas, e enquanto cruzava o auditório,
olhou em volta com desgostosa inquietação, antes repleto de estudantes
entusiasmados, agora desolado e silencioso, as mesas abarrotadas de
aparatos químicos, o piso coberto por caixotes e sujo com a palha deles,
e a luz recaindo fraca na cúpula enevoada. Num ponto ao longe, a esca-
daria dava na porta coberta por baeta vermelha;[5] e do outro lado, o sr.
Utterson finalmente foi recebido no gabinete do médico. Era um gran-
de aposento, rodeado por estantes de vidro, mobiliada, entre outras coi-
sas, com espelho giratório e mesa de escritório, com vista para o pátio
por três janelas empoeiradas com barras de ferro. O fogo queimava na
grelha; o lampião aceso estava na prateleira da chaminé, pois mesmo
dentro das casas a névoa espessa se assentava; e ali, próximo do calor,
estava o dr. Jekyll, que parecia terrivelmente doente. Não se levantou
para cumprimentar a visita, mas ofereceu a mão gelada e lhe deu boas-
vindas com voz vacilante.
“E então”, disse o sr. Utterson, assim que Poole saiu, “ouviu as no-
tícias?”
O médico deu de ombros. “Gritaram na praça”, disse. “Pude ouvir
da sala de jantar.”
“Uma palavra”, disse o advogado. “Carew era meu cliente, mas você
também é, e quero saber por que estou aqui. Você não cometeu a loucu-
ra de esconder esse sujeito, não é?”
“Utterson, juro por Deus”, clamou o médico, “juro por Deus que
jamais olharei para ele novamente. Juro por minha honra que rompi
com ele neste mundo. Tudo se acabou. E para falar a verdade, ele não
deseja a minha ajuda; não o conhece como eu; ele está seguro, bem se-
guro; anote minhas palavras, ninguém nunca mais ouvirá falar dele.”
O advogado o escutava, sorumbático; não apreciava o comporta-
mento febril do amigo. “Você parece ter muita certeza”, disse, “e para o
seu bem, espero que não esteja enganado. Caso isso venha a julgamento,
seu nome pode aparecer.”
“Tenho muita certeza”, replicou Jekyll; “minha certeza tem funda-
mentos que não posso dividir com ninguém. Mas há uma coisa na qual
você pode me aconselhar. Recebi — recebi uma carta; não sei se deveria
mostrá-la para a polícia. Queria deixá-la em suas mãos, Utterson; pois
tenho certeza que decidirá com sabedoria; confio muito em você.”
“Então teme, imagino, que pode levar à detenção dele?”, perguntou
o advogado.
“Não”, disse o outro. “Não posso dizer o paradeiro de Hyde; rom-
pi completamente com ele. Estava pensando em mim mesmo, que fiquei
exposto por causa desse ato tão odioso.”
Utterson ruminou um pouco; estava surpreso com o egoísmo de seu
amigo, porém também ficava aliviado com isso. “Bem”, por fim afir-
mou, “deixa eu ver a carta.”
A carta estava escrita com letra estranha e perpendicular, e assinada
por “Edward Hyde”: isso significava, em suma, que o benfeitor de
quem a escrevera, o dr. Jekyll, que havia sido pago com injustiça por
seus prolongados e inumeráveis gestos de generosidade, precisava sem
alarme trabalhar por sua segurança, enquanto ele possuía os meios de
escapar dos quais tanto dependia. O advogado apreciou aquela carta;
esclarecia um pouco da intimidade que investigava; então se culpou por
algumas das suspeitas anteriores.
“Você está com o envelope?”, perguntou.
“Eu o queimei”, replicou Jekyll, “antes de pensar no que estava a
ponto de fazer. Mas não tinha nenhuma marca postal, o recado foi en-
tregue pessoalmente.”
“Posso ficar com ela esta noite?”, perguntou Utterson.
“Queria que fizesse análise completa dela”, foi a resposta, “perdi a
confiança em mim mesmo.”
“Bem, pensarei a respeito disso”, respondeu o advogado. “Só mais
uma coisa: foi Hyde quem ditou aqueles termos de testamento que
mencionavam o seu desaparecimento?”
O médico pareceu tomado por sensação de tontura; cerrou a boca
com força e acenou.
“Eu sabia”, disse Utterson. “Pretendia matá-lo e escapou por pou-
co.”
“Recebi muito mais do que esperava”, devolveu o médico com sole-
nidade: “e tive a lição — por Deus, Utterson, que lição recebi!” E assim
cobriu o rosto com as mãos por um momento.
A caminho da saída, o advogado parou e trocou duas palavras com
Poole. “Por acaso”, afirmou, “uma carta foi entregue aqui hoje; sabe me
dizer como era o mensageiro?” Mas Poole tinha certeza de que não ha-
via chegado nada lá, exceto dos correios; “e nada mais que memoran-
dos”, completou.
Essas notícias renovaram os medos do visitante. Era evidente que a
carta havia chegado à porta do laboratório; na verdade, possivelmente
escrita no gabinete; e se assim fosse, deveria ser analisada de modo di-
verso, e manuseada com mais cuidado. Os vendedores de jornais, quan-
do passou, gritavam roucos pelas calçadas. “Extra! Extra! Assassinato
chocante de parlamentar.” Aquela era a oração fúnebre do amigo e cli-
ente; ele não podia evitar a sensação de apreensão, por medo de que o
bom nome de outro deles fosse sugado para o centro do escândalo. Isso
era, ao menos, a decisão melindrosa que haveria de tomar; em geral era
confiante, mas agora ansiava por conselhos. Não deveria recebê-los
imediatamente; mas talvez, pensou, poderia procurar por eles.
Logo depois, se sentou de um lado da lareira, com o sr. Guest, seu
principal funcionário, do outro, e a meio caminho entre eles, a distância
do fogo calculada com minúcia, estava a garrafa de vinho particular-
mente antigo que fazia muito repousava protegida do sol pelas funda-
ções da casa. Naquela vizinhança, a névoa ainda se assentava na cidade
submersa, onde os lampiões reluziam como carbúnculos; e com a pres-
são e o abafamento dessas nuvens caídas, a procissão da vida na cidade
ainda fluía pelas grandes artérias com o ruído de vento poderoso. Mas o
aposento estava alegre com a iluminação da lareira. Na garrafa, os áci-
dos haviam se assentado fazia muito; a coloração imperial se atenuou
com o tempo, como a tintura que fica mais bela em janelas manchadas, e
o brilho das tardes quentes de outono nas vinhas ao pé da montanha es-
tava prestes a libertar e dispersar as névoas londrinas. O advogado desa-
bafou sem perceber. Não havia homem a quem contava mais segredos
que o sr. Guest, e não sabia se lhe contava o bastante. Guest sempre ha-
via trabalhado para o médico; conhecia Poole; dificilmente não saberia
da presença do sr. Hyde naquela casa; poderia tecer conclusões; não po-
deria, portanto, ver a carta que esclarecia o mistério? E, acima de tudo,
Guest, sendo grande estudante e analista de caligrafia, poderia conside-
rar o passo natural e inevitável. O funcionário, além disso, era inteligen-
te; dificilmente leria documento tão estranho sem soltar alguma obser-
vação; e por sua observação o sr. Utterson poderia moldar o curso de
seu futuro.
“Que triste o ocorrido com o sr. Danvers”, disse.
“Sim, de fato, senhor. Causou grande comoção pública”, respondeu
Guest. “O homem, claro, era louco.”
“Gostaria de ouvir sua opinião a respeito disso”, replicou Utterson.
“Tenho aqui um documento com a caligrafia dele; fica entre nós dois,
pois pouco compreendo do que se trata; algo no mínimo terrível. Mas aí
está; bem na sua frente: o autógrafo do assassino.”
Os olhos de Guest brilharam, e se sentou de vez e a examinou com
paixão. “Não, senhor”, disse; “louco, não; mas é uma mão estranha.”
“E em qualquer quesito escritor muito estranho”, acrescentou o ad-
vogado.
Exatamente nesse momento, o criado entrou com mensagem.
“É do dr. Jekyll, senhor?”, inquiriu o funcionário. “Reconheci a le-
tra. Algo em particular, sr. Utterson?”
“Apenas convite para o jantar. Por quê? Quer ver?”
“Um momento. Obrigado, senhor”; e o funcionário colocou as fo-
lhas de papel lado a lado e comparou os conteúdos com diligência.
“Obrigado, senhor”, disse por fim, e as devolveu, “é uma letra bem in-
teressante.”
Houve pausa, durante a qual o sr. Utterson lutou consigo mesmo.
“Por que as comparou, Guest?”, indagou de vez.
“Bem, senhor”, respondeu o funcionário, “há semelhança um tanto
singular; as letras são em muitos pontos idênticas: apenas inclinadas de
modo diferente.”
“Um tanto singular”, disse Utterson.
“É, como o senhor diz, um tanto singular”, respondeu Guest.
“Não comente nada a respeito desta mensagem, tudo bem?”, disse o
patrão.
“Não, senhor”, disse o funcionário. “Compreendo.”
E assim que o sr. Utterson ficou sozinho aquela noite, trancou a
mensagem no cofre, onde repousou a partir de então. “Céus!”, pensou.
“Henry Jekyll forjou a letra de um assassino?” E o sangue gelou em su-
as veias.

O Memorável Incidente do Dr. Lanyon


O tempo passou; milhares de libras foram oferecidas como recompensa,
pois a morte do sr. Danvers foi sentida como ofensa pública; mas o sr.
Hyde havia desaparecido das vistas da polícia como se jamais houvesse
existido. Muito do seu passado foi desenterrado, na verdade, com todos
os indecorosos relatos da crueldade do homem, ao mesmo tempo tão
insensível e violento, de sua vida vil, os bizarros companheiros, o ódio
que parecia permear sua trajetória; mas de seu paradeiro, sequer um
sussurro. Desde a hora em que havia saído de casa no Soho, na manhã
do assassinato, simplesmente desapareceu; e gradualmente, com o pas-
sar do tempo, o sr. Utterson se recuperou do calor de seu alarme e a se
acalmou. A morte do sr. Danvers foi, ao seu modo de pensar, mais que
paga com a desaparição do sr. Hyde. Agora que a influência maléfica
havia saído de cena, nova vida começava para o dr. Jekyll. Saiu da reclu-
são, renovou relações com os amigos, se tornou novamente o convida-
do divertido de antes; e ao passo em que sempre fora conhecido pela ca-
ridade, agora não era menos distinto pela devoção. Se ocupava, saía
mais ao ar livre, e estava bem; o rosto parecia se abrir e brilhar, como se
conscientizasse do que fazer, e por mais de dois meses o médico ficou
em paz.
Em 8 de janeiro, Utterson jantou com o médico e um grupo peque-
no; Lanyon estivera presente; e o anfitrião olhou de um para o outro
como nos velhos tempos, em que formavam trio de amigos insepará-
veis. No dia 12, e novamente no 14, a porta estava fechada para o advo-
gado. “O médico se trancou em casa”, dizia Poole, “e não recebe nin-
guém.” No dia 15, tentou mais uma vez, e mais uma vez foi recusado;
acostumado aos últimos dois meses a ver o amigo quase todos os dias,
aquele retorno à solidão era um peso na alma. Na quinta noite, convi-
dou Guest para jantar com ele; e na sexta se dirigiu para a casa do dr.
Lanyon.
Ali ao menos não lhe foi negada a admissão; porém quando entrou,
ficou chocado com a mudança na aparência do médico. Possuía o ates-
tado de óbito legivelmente escrito na face. O homem rosado se tornara
pálido; a carne despencara; estava visivelmente mais careca e mais velho;
e mesmo assim não foram esses traços de rápida decadência física o que
mais chamou a atenção do advogado, mas o olhar profundo e algo nos
modos que pareciam testemunhar o horror inexorável. Era improvável
que o médico temesse a morte; e ainda assim era o que Utterson estava
tentado a suspeitar. “Sim”, pensou; “é médico, deve reconhecer o pró-
prio estado e saber que os dias estão contados; e essa informação é mai-
or que o suportável para ele.” Ainda assim, quando Utterson comentou
da má aparência, Lanyon se declarou condenado com bastante firmeza.
“Tive um choque”, disse, “do qual nunca vou me recuperar. É ques-
tão de semanas. Bem, minha vida foi prazerosa; gostei dela; sim, senhor,
gostei dela. Às vezes penso que se soubéssemos de tudo, ficaríamos
mais contentes em partir.”
“Jekyll está doente, também”, observou Utterson. “Tem visto ele?”
Mas o rosto de Lanyon se alterou, e ergueu a mão vacilante. “Não
gostaria de ver ou ouvir mais nada sobre o dr. Jekyll”, disse em voz alta
e instável. “Não aguento mais esse sujeito; e lhe imploro que evite qual-
quer alusão a alguém que tomo por morto.”
“Tsc-tsc”, disse o sr. Utterson; e depois, após pausa considerável,
“Não posso fazer nada?”, inquiriu. “Somos três velhos amigos, Lanyon;
provavelmente não faremos outros em vida.”
“Nada pode ser feito”, devolveu Lanyon; “pergunte a ele.”
“Ele se recusa a me ver”, disse o advogado.
“Não fico surpreso com isso”, foi a resposta. “Um dia, Utterson,
após a minha morte, talvez você descubra o que está correto e errado a
respeito disso, não posso falar nada. E enquanto isso, se quiser se sentar
e conversar comigo de outros assuntos, pelo amor de Deus, fique e faça
isso; mas se não for capaz de ficar longe desse maldito assunto, então,
em nome de Deus, vá, pois não posso suportar.”
Assim que chegou em casa, Utterson se sentou e escreveu a Jekyll, e
reclamou de sua exclusão da casa dele e lhe perguntou a causa do infeliz
rompimento com Lanyon; e o dia seguinte lhe trouxe longa resposta,
expressa de modo bastante patético, e em certos momentos com impul-
so sombrio e misterioso. A desavença com Lanyon era sem solução.
“Não culpo o nosso velho amigo”, escreveu Jekyll, “mas compartilho
da ideia de que não devemos nos encontrar nunca mais. A partir de ago-
ra, pretendo levar vida de reclusão extrema; não fique surpreso, nem
duvide de nossa amizade, ainda que minha porta esteja fechada até mes-
mo a você. Peço-lhe que aceite esta partida tão lamentável. Trouxe a
mim mesmo a punição para o perigo que sou incapaz de nomear. Se sou
o maior dos pecadores, sou também o maior dos sofredores. Não podia
imaginar que na Terra havia sofrimentos e horrores execráveis como os
meus; e há apenas uma coisa que pode fazer, Utterson, para iluminar o
meu destino, e é respeitar meu silêncio.” Utterson ficou estupefato; a
influência sombria do sr. Hyde havia saído de cena, o médico havia vol-
tado a suas velhas tarefas e amizades; uma semana antes, seu futuro sor-
ria com diversas promessas de idade disposta e honrada; e agora, num
momento, a amizade, a tranquilidade e todo o sentido da vida estavam
arruinados. Mudança tão grande e repentina apontava para a loucura,
mas em vista das palavras e modos de Lanyon, devia se assentar em al-
gum terreno mais profundo.
Uma semana depois, o dr. Lanyon ficou de cama, e em pouco menos
de quinze dias, morreu. Na noite após o funeral, pelo qual ficou bastan-
te afetado, Utterson trancou a porta do escritório e, sentado ali diante
da luz da vela melancólica, se afastou e colocou diante de si o envelope
sobrescrito à mão e com o selo do amigo morto. “PRIVADO: para posse
de J.G. Utterson SOMENTE, e em caso de seu falecimento prévio, a ser
destruído sem ser lida”, estava redigido com ênfase; e o advogado teve
medo de contemplar o conteúdo. “Enterrei um amigo hoje”, pensou; “e
se isto me custar outro?” E então condenou o medo como deslealdade,
e quebrou o selo. Dentro havia outro fechamento, igualmente selado, e
marcado na capa como “não deve ser aberta até a morte ou desapareci-
mento de Henry Jekyll”. Utterson não acreditava em seus olhos. Sim, a
palavra mais uma vez era desaparecimento, como no bizarro testamento
que muito antes devolvera ao seu autor; mais uma vez a ideia de desapa-
recimento estava associada ao nome de Henry Jekyll. Mas na escritura,
aquela ideia surgira da sugestão sinistra de Hyde, e estava lá com pro-
posta muito clara e terrível. Escrita pela mão de Lanyon, o que poderia
significar? Uma grande curiosidade tomou o depositário, que cogitou
desconsiderar a proibição e mergulhar de vez nas profundezas desses
mistérios; porém a honra profissional e a fé no amigo morto eram obri-
gações absolutas, e o envelope repousou no fundo de seu cofre particu-
lar.
Uma coisa é amortecer a curiosidade, outra dominá-la; e, a partir
daquele dia, é improvável que Utterson tenha desejado a companhia do
amigo sobrevivente com a mesma ansiedade. Pensava nele com carinho,
mas seus pensamentos eram inquietos e temerosos. Na verdade, tentou
visitá-lo, mas talvez tenha ficado aliviado por ter o ingresso negado; tal-
vez, no íntimo, preferisse conversar com Poole diante da porta, rodeado
pelo ar e pelos sons da cidade aberta, que receber admissão naquela casa
de servidão voluntária e se sentar e conversar com o recluso inescrutá-
vel. Poole tinha, na verdade, notícias que não eram muito agradáveis de
comunicar. O médico, parecia, agora cada vez mais enfurnado no gabi-
nete no laboratório, onde às vezes chegava até a dormir; perdera a alma,
havia ficado bastante quieto, não lia; parecia ter algo na mente. Utterson
ficou tão acostumado ao teor invariável desses relatos, que pouco a
pouco diminuiu a frequência das visitas.

Incidente Diante da Janela


Por acaso, num domingo, quando o sr. Utterson fazia a habitual cami-
nhada com o sr. Enfield, seu caminho mais uma vez os conduziu àquela
rua; e quando passaram em frente à porta, ambos pararam para observá-
la.
“Bem”, disse Enfield, “finalmente aquela história acabou. Jamais ve-
remos novamente o sr. Hyde.”
“Espero que não”, disse Utterson. “Já lhe contei que certa vez o vi e
compartilhei da mesma sensação de repulsa que você?”
“Era impossível uma coisa sem a outra”, respondeu Enfield. “Por si-
nal, você deve ter me tomado por um asno, por ignorar que aqui dava
para os fundos da casa de Henry Jekyll! Foi em parte por sua causa que
descobri, ainda que tardiamente.”
“Então você descobriu, não é?”, disse Utterson. “Mas, sendo assim,
deveríamos entrar no pátio e espiar pelas janelas. Para dizer a verdade,
ando preocupado com o pobre Jekyll; e mesmo de fora, sinto que a pre-
sença de um amigo pode lhe fazer bem.”
O pátio estava muito frio e um pouco úmido, e preenchido pelo cre-
púsculo prematuro, embora o céu, no alto sobre suas cabeças, ainda bri-
lhasse com o pôr do sol. A janela do meio, entre três, estava semiaberta;
e sentado exatamente detrás dela, inspirando, o semblante de infinita
tristeza, como prisioneiro inconsolável, Utterson viu o dr. Jekyll.
“O quê! Jekyll!”, exclamou. “Espero que esteja melhor.”
“Estou muito abatido, Utterson”, replicou o médico sinistramente,
“muito abatido. Não durará muito, graças a Deus.”
“Você passa muito tempo confinado”, disse o advogado. “Deveria
sair, ativar a circulação, como o sr. Enfield e eu. (Este é meu primo — sr.
Enfield — dr. Jekyll.) Vamos; pegue o chapéu e passeie conosco.”
“É muita gentileza”, suspirou o outro. “Certamente me agradaria;
mas não, não, não, é impossível; não me atrevo. Mas de fato, Utterson,
estou muito contente por encontrá-lo; é mesmo um grande prazer; po-
deria convidá-lo para subir com o sr. Enfield, mas este lugar realmente
não está adequado.”
“Sendo assim”, disse o advogado, com bom humor, “a melhor coisa
que podemos fazer é ficar aqui embaixo e conversar com você de onde
estamos.”
“Exatamente o que estava prestes a propor”, devolveu o médico e
sorriu. Porém mal foram proferidas as palavras, o sorriso foi arrancado
do rosto e sucedido por abjeta expressão de terror e desespero que con-
gelou o sangue dos dois cavalheiros abaixo. Não o viram por mais que
um segundo, uma vez que a janela no mesmo instante foi batida; mas
aquele segundo foi o suficiente, e se viraram e deixaram o pátio sem fa-
lar nada. Em silêncio, também, atravessaram a rua; e não foi antes de
chegarem na avenida das vizinhanças, onde mesmo no domingo havia
vislumbres de vida, que o sr. Utterson finalmente se virou e olhou para
seu companheiro. Ambos estavam pálidos; havia horror replicante nos
olhos.
“Deus nos perdoe, Deus nos perdoe”, disse o sr. Utterson.
Mas o sr. Enfield apenas acenou com a cabeça, bastante sério, e vol-
tou a caminhar em silêncio.

A Última Noite
Certa noite, o sr. Utterson estava sentado diante da lareira, após o jan-
tar, quando foi surpreendido pela visita de Poole.
“Por Deus, Poole, o que o traz aqui?”, exclamou; e então, olhou pa-
ra ele mais uma vez, “O que o aflige”, acrescentou, “o médico está do-
ente?”
“Sr. Utterson”, disse o homem, “há algo de errado.”
“Sente-se, tome uma taça de vinho”, disse o advogado. “Não tenha
pressa, conte-me com clareza o que deseja.”
“Você já sabe como o médico é”, respondeu Poole, “como se fecha.
Bem, está trancado no gabinete; e não gosto disso, senhor — queria
morrer, se gostasse disso. Sr. Utterson, meu caro, sinto medo.”
“Agora, meu bom homem”, disse o advogado, “seja mais claro. Do
que está com medo?”
“Sinto medo faz uma semana”, respondeu Poole e desviou da per-
gunta com destreza, “e não aguento mais.”
A aparência do homem confirmava o que dizia; os trejeitos haviam
piorado, e exceto pelo momento em que anunciara seu temor pela pri-
meira vez, não encarou o advogado sequer uma vez. Mesmo agora, se
sentou com a taça de vinho intocada sobre o joelho, e seus olhos mira-
vam um ponto do chão.
“Não aguento mais”, repetiu.
“Vamos”, disse o advogado, “percebo que tem um bom motivo, Po-
ole; percebo que é algo terrivelmente impróprio. Tente me contar o que
é.”
“Acredito que haja alguma transgressão da lei”, disse Poole, com a
voz rouca.
“Transgressão da lei!”, gritou o advogado, um tanto aterrorizado e
ainda mais inclinado a se irritar, por consequência. “Que transgressão
da lei? O que quer dizer com isso?”
“Eu não ousaria explicar, senhor”, foi a resposta; “mas seria possível
vir comigo e ver por si só?”
A única resposta do sr. Utterson foi se levantar e pegar o chapéu e o
sobretudo; mas observou impressionado quão enorme foi o alívio sur-
gido no rosto do mordomo, e talvez igualmente impressionado, que a
taça de vinho permaneceu intacta quando a soltou para sair dali.
Era noite fria, selvagem e oportuna do mês de março, de lua pálida,
deitada de costas como se o vento a houvesse derrubado, e nuvens de
textura diáfana e granulada. O vento dificultava a conversa e pintalgava
o sangue do rosto. Além disso, parecia ter varrido a rua, estranhamente
desprovida de passantes; assim, o sr. Utterson pensou que jamais havia
visto aquela parte de Londres tão deserta. Poderia ter desejado que fos-
se diferente; nunca na vida ficara consciente de desejo tão forte de ver e
tocar os semelhantes; por mais que lutasse, nascera em sua mente a es-
magadora antecipação da calamidade. A praça, quando chegaram lá, es-
tava cheia de vento e poeira, e as árvores finas no jardim açoitavam o
corrimão. Poole, que por todo o caminho se mantivera um ou dois pas-
sos à frente, agora deteve-se no meio da calçada, e apesar do clima cor-
tante, tirou o chapéu e esfregou a testa com o lenço de bolso vermelho.
Mas apesar da pressa de sua ida, não era o orvalho de transpiração o que
secava, mas a umidade de alguma angústia estranguladora, pois a face
estava branca e a voz, quando falava, áspera e esganiçada.
“Bem, senhor”, disse, “aqui estamos, e que Deus ajude para não ha-
ver nada de errado.”
“Amém, Poole”, disse o advogado.
Com isso o criado bateu de maneira bastante recatada; a porta foi
aberta com a corrente; e uma voz perguntou de dentro: “É você, Poo-
le?”.
“Está tudo bem”, disse Poole. “Abra a porta.”
O salão, quando adentraram, estava bastante iluminado; o fogo alto;
e próximo à lareira toda a criadagem, homens e mulheres, reunida como
rebanho de ovelhas. Ao avistar o sr. Utterson, a criada irrompeu em la-
múria histérica; e a cozinheira, gritou “Graças a Deus! É o sr. Utter-
son”, correu até ele como se pretendesse pegá-lo nos braços.
“O quê, o quê? Estão todos aqui?”, disse o advogado com fastio.
“Que incomum, que estranho; seu patrão não deve estar nada conten-
te.”
“Estão todos com medo”, disse Poole.
Um silêncio inexpressivo se seguiu, ninguém protestou; apenas a
criada aumentou a voz e chorou alto.
“Pare com a choradeira!”, falou Poole, com a ferocidade no tom que
denunciava os próprios nervos abalados; e na verdade, quando a garota
levantara sua nota de lamentação tão de repente, todos se viraram em
direção à porta interna com rostos de expectativa assustadora. “E ago-
ra”, continuou o mordomo, para o assistente, “me dê a vela, e vamos li-
dar com isso o quanto antes.” E então solicitou ao sr. Utterson que o
seguisse, e foi na frente até o jardim dos fundos.
“Agora, senhor”, disse, “se aproxime com o máximo de silêncio.
Quero que ouça, mas que não seja ouvido. E veja, senhor, se por acaso
o convidar para entrar, não vá.”
Os nervos do sr. Utterson, com essa recomendação inesperada, es-
tremeceram de modo a quase desequilibrá-lo; mas juntou coragem e se-
guiu o mordomo até a prédio do laboratório e através do auditório da
sala de cirurgias, com caixotes de madeira e garrafas no pé da escada.
Aqui Poole lhe indicou que ficasse num lado e escutasse; enquanto isso,
ele próprio, soltou a vela e se demorou bastante para criar coragem, mas
subiu os degraus e bateu com mão um tanto insegura na baeta vermelha
da porta do gabinete.
“O sr. Utterson pede para vê-lo, senhor”, chamou; e enquanto fazia
isso, mais uma vez assinalou com violência para que o advogado escu-
tasse.
A voz respondeu de dentro: “Diga-lhe que não posso ver ninguém”,
em tom de reclamação.
“Obrigado, senhor”, disse Poole, com tom um tanto triunfal; e er-
gueu a vela, conduziu o sr. Utterson de volta ao quintal e à grande cozi-
nha, onde o fogo estava apagado e os besouros saltavam no chão.
“Senhor”, disse, encarando o sr. Utterson nos olhos, “era a voz de
meu patrão?”
“Ela me parece bem alterada”, replicou o advogado, bastante pálido,
e lhe devolveu o olhar.
“Alterada? Bem, sim, concordo”, disse o mordomo. “Mas será que
fiquei por vinte anos na casa desse homem para me enganar quanto a
sua voz? Não, senhor; o patrão não está aí; não está aí faz oito dias,
quando o escutamos gritar pelo nome de Deus; e quem está lá em vez
dele, e por que fica lá, é algo que compete ao Paraíso, sr. Utterson!”
“É uma história muito estranha, Poole; história muito brutal, meu
amigo”, disse Utterson, mordendo o dedo. “Supondo que seja como
pensa, na hipótese de que o dr. Jekyll foi — bem, assassinado, o que po-
deria induzir o assassino a ficar? Isso não se sustenta; não se aplica à ra-
zão.”
“Bem, sr. Utterson, o senhor é difícil de se convencer, mas o farei”,
disse Poole. “Durante toda a última semana (deve saber) ele, ou quem
quer que esteja naquele gabinete, clamou por algum remédio durante a
noite e o dia inteiro e não consegue tirar isso da cabeça. Às vezes, o que
fazia era — me refiro ao patrão — escrever pedidos em folha de papel e
depois lançá-la escada abaixo. Não havia mais nada nesta última sema-
na; nada além de recados e a porta fechada, e as próprias refeições res-
tantes deveriam ser contrabandeadas quando ninguém estivesse por
perto. Bem, senhor, todos os dias, ah, e duas ou três vezes no mesmo
dia, houve ordens e reclamações, e fui mandado para todos os químicos
atacadistas da cidade. Toda vez que voltava com o produto, haveria ou-
tro recado para que devolvesse, pois não era puro, e outra ordem para ir
a uma loja diferente. Ele quer demais essa droga, senhor, seja ela qual
for.”
“Você tem algum desses recados?”, perguntou o sr. Utterson.
Poole apalpou o bolso e puxou uma anotação amassada, que o advo-
gado, se curvou para se aproximar da vela e examinou com cuidado. O
conteúdo seguia assim: “Dr. Jekyll apresenta seus cumprimentos aos
srs. Maw. Ele se assegura que a última amostra é impura e sem qualquer
utilidade para seu propósito no momento. No ano de 18…, o dr. J.
comprou quantia relativamente grande dos srs. M. Agora lhes suplica
que procurem com cuidado absoluto, e caso haja algo da mesma quali-
dade, que encaminhem o material o quanto antes. Não considerar des-
pesas. A importância disto para o dr. J. mal pode ser exagerada”. Até aí
a carta seguia bem composta, mas aqui com tremor repentino da caneta,
a emoção do escritor se revelou. “Pelo amor de Deus”, acrescentara,
“me encontre um pouco da antiga.”
“É uma anotação estranha”, disse o sr. Utterson; e então com agude-
za, “Por que está aberta?”.
“O homem na loja de Maw ficou bastante irritado, senhor, e a jogou
de volta para mim como se fosse lixo”, respondeu Poole.
“Sem nenhuma dúvida esta é a letra do médico, percebeu?”, conti-
nuou o advogado.
“Também achei parecida”, disse o servidor com alguma rabugice; e
então, com outra voz, “Mas que importa a letra?”, disse. “Consegui vê-
lo!”
“Vê-lo?”, repetiu o sr. Utterson. “Como foi?”
“Isso mesmo!”, disse Poole. “Foi assim: entrei de vez no auditório
vindo do jardim. Parece que ele havia saído para procurar pela droga ou
o que for; pois a porta do gabinete estava aberta, e ali ele no fundo do
aposento, vasculhando os caixotes. Olhou para cima quando entrei, deu
uma espécie de grito, e disparou pela escada, para dentro do gabinete.
Não o vi por mais que um minuto, mas meu cabelo ficou de pé como
penas na cabeça. Senhor, se aquele era meu patrão, porque usava másca-
ra? Se era meu patrão, porque guinchou como rato e depois correu de
mim? Eu o servi por muito tempo. E então…”, o homem parou e pas-
sou a mão no rosto.
“São circunstâncias muito estranhas”, disse o sr. Utterson, “mas
acho que começo a vislumbrar uma luz. Seu patrão, Poole, está clara-
mente tomado por uma daquelas moléstias que torturam e deformam a
vítima; daí, pelo que sei, a alteração na voz; daí a máscara e a reclusão
dos amigos; daí a ansiedade para encontrar essa droga, que ajudaria a
pobre alma à recuperação definitiva — que Deus garanta que não se de-
cepcione! Esta é minha explicação; é muito triste, Poole, ah, e aterrador
pensar nisso; mas é evidente e natural, se sustenta bem, e nos livra des-
ses alarmes exorbitantes.”
“Senhor”, disse o mordomo, que adquiriu espécie de palor sarapin-
tado, “aquela coisa não era meu patrão, eis a verdade. Meu patrão” —
aqui olhou em volta e suspirou — “é homem alto e bem constituído, e
aquele estava mais para anão.” Utterson tentou protestar. “Oh, senhor”,
gritou Poole, “acha mesmo que não sou capaz de reconhecer o meu pa-
trão depois de vinte anos? Acha que não sei por onde sua cabeça passa
na porta do gabinete, onde vi em todas as manhãs de minha vida? Não,
senhor, aquela coisa na máscara jamais foi o dr. Jekyll — Deus sabe o
que era, mas jamais foi o dr. Jekyll; e meu coração acredita que um as-
sassinato aconteceu.”
“Poole”, replicou o advogado, “já que afirma isso, torna-se meu de-
ver investigar. Por mais que deseje poupar os sentimentos de seu patrão,
por perplexo que esteja com esta anotação que parece provar que ainda
vive, considero meu dever arrombar aquela porta.”
“Ah, sr. Utterson, é isso mesmo”, exclamou o mordomo.
“E agora vem a segunda pergunta”, continuou Utterson: “Quem fa-
rá isso?”
“Oras, nós dois, senhor”, foi a intrépida resposta.
“Muito bem”, respondeu o advogado; “e não importa o resultado,
assumo a responsabilidade, para que nada lhe aconteça.”
“Há um machado no auditório”, continuou Poole; “e o senhor pode
pegar o atiçador da cozinha.”
O advogado segurou aquele instrumento rústico, porém pesado, e o
equilibrou. “Tem noção, Poole”, disse, olhando para cima, “de que você
e eu estamos prestes a nos colocar em situação de algum perigo?”
“De fato, talvez seja verdade, senhor”, respondeu o mordomo.
“Então é justo que sejamos francos um com o outro”, disse o outro.
“Nós dois pensamos mais do que dissemos; sejamos francos. Essa figu-
ra mascarada que você viu, por acaso chegou a reconhecê-la?”
“Bem, senhor, foi muito rápido, e a criatura estava tão curvada, que
não poderia jurar por isso”, foi a resposta. “Mas o que quer dizer, se era
o sr. Hyde? — oras, sim, penso que sim! Veja, tinha quase a mesma al-
tura; e tinha o mesmo ar de leveza; além disso, quem mais poderia en-
trar pela porta do laboratório? O senhor se lembra que na época do as-
sassinato ele ainda tinha a chave? Mas não é tudo. Não sei, sr. Utterson,
o senhor já conversou com o sr. Hyde?”
“Sim”, disse o advogado, “uma vez conversei com ele.”
“Então deve saber tão bem quanto os outros que havia algo de insó-
lito naquele cavalheiro — algo que fazia uma pessoa ter calafrios — não
sei bem como explicar, senhor: era algo que podíamos sentir na medula
— algo frio e rarefeito.”
“Reconheço que senti isso que descreve”, disse o sr. Utterson.
“Exatamente, senhor”, respondeu Poole. “Bem, quando aquela coisa
mascarada como macaco pulou do meio dos produtos químicos e dispa-
rou para o gabinete, isso percorreu minha espinha como gelo. Oh, sei
que não é nenhuma evidência, sr. Utterson; sou estudado o bastante pa-
ra isso; mas um homem tem seus instintos, e dou minha palavra sagrada
que era o sr. Hyde!”
“Sim, sim”, disse o advogado. “Meus medos apontam na mesma di-
reção. Receio que o mal tenha originado — o mal com certeza o faria —
essa conexão. Sim, de verdade, acredito em você; acredito que o pobre
Harry esteja morto; e acredito que seu assassino (por qual motivo, so-
mente Deus pode dizer) ainda esteja emboscado no aposento da vítima.
Bem, que nosso nome seja vingança. Chame Bradshaw.”
O criado apareceu aos chamados, muito pálido e nervoso.
“Recomponha-se, Bradshaw”, disse o advogado. “Este suspense, sei,
diz tudo de você; mas agora nossa intenção é acabar de vez com isso.
Poole aqui e eu entraremos à força no gabinete. Se tudo correr bem,
meus ombros são grandes o bastante para suportar a culpa. Enquanto
isso, a não ser que algo dê errado, ou que algum malfeitor tente escapar
pelos fundos, você e o garoto devem dar a volta pelo quarteirão com
um belo par de bastões, e ficar a postos na porta do laboratório. Dare-
mos dez minutos para que cheguem ao seu posto.”
Quando Bradshaw saiu, o advogado olhou para o relógio. “Agora,
Poole, devemos fazer a nossa parte”, falou; e, com o atiçador debaixo
do braço, seguiu na frente até o quintal. As nuvens haviam se amontoa-
do na direção do luar, e agora estava bem escuro. O vento, que somente
batia em correntes e lufadas para aquele profundo poço de construção,
balançava a luz da vela para um lado e para o outro com os passos deles,
até a chegada ao abrigo do auditório, onde se sentaram em silêncio para
esperar. Londres zumbia com solenidade ao redor, mas nas proximida-
des a quietude só era quebrada pelo som de passos para lá e para cá no
chão do gabinete.
“É assim que ele fica andando o dia inteiro, senhor”, sussurrou Poo-
le; “sim, e a maior parte da noite. Somente quando nova amostra chega
do químico há pequena pausa. Ah, fico doente só de pensar que um ca-
nalha como esse seja capaz de descansar! Ah, senhor, há abominável
sangue derramado em cada passo dele! Escute novamente, um pouco
mais de perto — ponha seu coração nos ouvidos, sr. Utterson, e me di-
ga, é o pé do médico?”
Os passos eram leves e estranhos, com certo agito, pois acima de tu-
do iam com muita lentidão; de fato era diferente da maneira pesada e
barulhenta de Henry Jekyll andar. Utterson suspirou. “Alguma vez já
aconteceu outra coisa?”, perguntou.
Poole acenou. “Uma vez”, disse. “Uma vez escutei choro!”
“Choro? Como assim?”, disse o advogado, consciente do frio de
terror repentino.
“Um choro como o de mulher ou o de alma perdida”, disse o mor-
domo. “Voltei com isso em meu coração, de modo que quase chorei
também.”
Mas agora os dez minutos chegavam ao fim. Poole pegou o macha-
do do fardo de palha para empacotamento; a vela ficou na mesa mais
próxima para iluminar o ataque; então se aproximaram com a respiração
suspensa para o passo tranquilo que ainda ia para lá e para cá, para lá e
para cá, na quietude noturna.
“Jekyll”, gritou Utterson, em voz alta, “preciso vê-lo.” Parou por
um momento, mas não houve resposta. “Dou aviso justo, nossas suspei-
tas aumentam, preciso e devo ver você”, continuou; “se não por meios
justos, então por meios desagradáveis — se não por consentimento, en-
tão por força bruta!”
“Utterson”, disse a voz, “pelo amor de Deus, tenha piedade!”
“Ah, esta não é a voz de Jekyll — é a de Hyde!”, exclamou Utter-
son. “Derrubemos a porta, Poole.”
Poole girou o machado no ombro; a pancada balançou o prédio, e a
baeta vermelha da porta saltou para fora da tranca das dobradiças. Um
guincho soturno, como o de mero terror animal, foi emitido no gabine-
te. O machado subiu novamente, e novamente os painéis se racharam e
os batentes tremeram; foram desferidas quatro pancadas, mas a madeira
era resistente e os encaixes de excelente marcenaria; e não foi até a quin-
ta que a tranca estourou em fenda e destroços da porta caíram para den-
tro, sobre o carpete.
Os sitiantes, apavorados pela própria desordem e a quietude que su-
cedera, deram pequeno passo para trás e espiaram lá dentro. Ali estava o
gabinete diante de seus olhos sob a quieta luz do lampião, bom fogo
brilhante e crepitante na lareira, a chaleira emitia o assobio fino, uma ou
duas gavetas abertas, papéis arrumados na mesa de trabalho, e mais per-
to do fogo, coisas postas para o chá: um cômodo dos mais tranquilos,
dir-se-ia, e, se não fosse pelas estantes brilhantes cheias de produtos
químicos, o lugar mais normal naquela noite londrina.
Bem no meio estava um corpo de homem gravemente contorcido e
em convulsão. Eles se aproximaram na ponta dos pés, o viraram de cos-
tas e se depararam com o rosto de Edward Hyde. Vestia roupas grandes
demais, roupas do tamanho das do médico; as linhas do rosto ainda se
moviam como que em sinal de vida, mas a vida se fora; e pelo frasco es-
magado na mão e aquele forte odor de amêndoas que estava no ar, Ut-
terson sabia que olhava para o corpo de alguém que dera fim à própria
vida.
“Chegamos tarde demais”, disse ele, com severidade, “tanto para
salvar como para punir. Hyde se foi por conta própria; e agora nos resta
somente encontrar o corpo de seu patrão.”
A maior parte do prédio estava ocupado pelo auditório, que preen-
chia quase todo o térreo e era iluminado de cima, e pelo gabinete, que
formava o andar superior num lado e tinha vista para o pátio. Um cor-
redor ligava o auditório à porta na ruela; que o gabinete se comunicava
separadamente por segunda escadaria. Além disso, havia armários escu-
ros e um porão espaçoso. Examinaram tudo isso com diligência. Cada
armário não requeria mais que uma olhada, uma vez que estavam todos
completamente vazios, exceto pela poeira nas portas fechadas havia tan-
to tempo. O porão, na verdade, estava cheio de lenha cortada, a maioria
da época do cirurgião que precedera Jekyll, e assim que abriram a porta,
perceberam a inutilidade de busca mais intensa, por causa da queda da
teia de aranha perfeita que por muitos anos havia selado a entrada. Em
lugar algum havia sinal de Henry Jekyll, morto ou vivo.
Poole apontou para o pavimento do corredor. “Deve estar enterrado
aqui”, disse, prestando atenção aos ruídos.
“Ou fugiu”, disse Utterson, e se virou para examinar a porta na rua.
Estava trancada; e jogada ao lado do pavimento, encontraram a chave, já
manchada com ferrugem.
“Não parece útil”, observou o advogado.
“Útil!”, ecoou Poole. “Não vê, senhor, que está quebrada? Como se
houvessem pisado nela.”
“Sim”, continuou Utterson, “e as rachaduras também estão enferru-
jadas.” Os dois homens olharam um para o outro com pavor. “Isto está
além de minha compreensão, Poole”, disse o advogado. “Vamos para o
gabinete.”
Subiram as escadas em silêncio, e ainda com ocasionais olhares de
surpresa para o corpo, avançaram com mais diligência para examinar o
que continha o gabinete. Na mesa, havia traços de trabalhos químicos,
diversos montículos medidos de espécie de sal branco postos em pires
de vidro, como se para experimento que o infeliz preparou.
“Esta é a mesma droga que sempre lhe trazia”, disse Poole; e en-
quanto falava, a chaleira fervia com barulho alarmante.
Isso os conduziu à lareira, até onde a poltrona fora puxada para o
conforto, e o aparato do chá estava posto próximo ao cotovelo de quem
se sentasse ali, e na xícara já tinha açúcar. Havia vários livros na estante;
um aberto ao lado do aparato de chá, e Utterson ficou impressionado
por ser cópia de obra religiosa, pela qual Jekyll várias vezes havia ex-
pressado grande estima, com anotações, em sua própria letra, de blasfê-
mias tenebrosas.
Em seguida, no curso do exame do aposento, os investigadores fo-
ram ao espelho giratório, em cujas profundezas observaram com horror
involuntário. Mas estava virado de modo que não lhes mostrava nada
além do brilho róseo no teto, o fogo crepitante numa centena de repeti-
ções ao longo da frente brilhante das estantes, e as próprias fisionomias
pálidas e assombrosas agachadas para olhar.
“Este espelho viu coisas estranhas, senhor”, murmurou Poole.
“Certamente nada mais estranho que ele mesmo”, repetiu o advoga-
do com a mesma entonação. “Pois o que Jekyll fez” — interrompeu de
vez a frase, para dominar a fraqueza: “qual a intenção de Jekyll com is-
so?”, disse.
“Não tenho ideia!”, disse Poole.
Depois, se viraram para a mesa de trabalho. Sobre a mesa, entre as
fileiras de papel arrumadas, um grande envelope estava por cima, e tra-
zia, na letra do médico, o nome do sr. Utterson. O advogado retirou o
selo e vários anexos caíram no chão. O primeiro era o documento com
os mesmos termos excêntricos que aquele devolvido por ele seis meses
antes, para servir de testamento, em caso de morte, e como a escritura
de doação, em caso de desaparecimento; mas em vez do nome de
Edward Hyde, o advogado, com surpresa indescritível, leu o nome de
Gabriel John Utterson. Olhou para Poole, e de volta ao papel, e por úl-
timo ao malfeitor morto esticado no carpete.
“Minha cabeça está rodando”, disse. “Esteve possesso por todos es-
ses dias, não tinha motivo para gostar de mim, deve ter sentido raiva
por se ver sem lugar, e mesmo assim não destruiu este documento.”
Ele pegou o papel seguinte; era breve nota na letra do médico e com
data no topo. “Oh, Poole!”, exclamou o advogado, “estava vivo aqui e
hoje mesmo. Não pode ter sido desovado em período tão curto, ainda
deve estar vivo, deve ter fugido! Mas então, por que fugir? E como? E
nesse caso, podemos nos arriscar a declarar o suicídio deste aqui? Oh,
devemos ter cuidado. Prevejo que ainda podemos envolver seu patrão
em alguma catástrofe medonha.”
“Por que não a lê, senhor?”, pediu Poole.
“Porque tenho medo”, replicou o advogado com solenidade. “Deus
sabe que não tenho motivo para fazer isso!” E assim levou o papel até
os olhos e leu o que segue.
Meu caro Utterson, — quando esta chegar às suas mãos, terei desa-
parecido, sob quais circunstâncias, não tenho condições de prever;
porém meu instinto e todas as circunstâncias de minha situação
inominável me dizem que o fim é certo e haverá de ser em breve.
Vá então, e primeiro leia a narrativa que Lanyon me avisou que le-
varia às suas mãos; e caso tenha interesse em saber mais, volte à
confissão de
Seu infeliz e desmerecedor amigo,
Henry Jenkyll.
“Havia um terceiro anexo?”, perguntou Utterson.
“Aqui, senhor?”, disse Poole, e entregou-lhe pacote considerável,
selado em vários lugares.
O advogado o colocou no bolso. “Não comentaria nada a respeito
deste pacote. Caso seu patrão tenha fugido ou esteja morto, podemos
ao menos salvar sua reputação. Agora são dez horas; devo ir para casa e
ler estes documentos em silêncio; mas devo voltar antes de meia-noite, e
então chamamos a polícia.”
Saíram, trancaram a porta do auditório atrás deles, e Utterson, mais
uma vez reuniu a criadagem perto da lareira do salão, andou de volta ao
seu escritório para ler as duas narrativas nas quais o mistério estava
prestes a ser explicado.

Relato do Dr. Lanyon


Em 9 de janeiro, agora há quatro dias, recebi pela remessa noturna en-
velope registrado, com endereço escrito à mão por meu colega e antigo
companheiro de escola, Henry Jekyll. Fiquei um bocado surpreso com
ela, uma vez que não tínhamos o hábito de nos corresponder de modo
algum; eu me encontrara com ele, na verdade, havíamos jantado juntos,
na noite anterior; e não podia imaginar nada em nossa relação que justi-
ficasse a formalidade do registro. O conteúdo aumentou a minha dúvi-
da, uma vez que assim a carta seguia:
10 de dezembro de 18…
Caro Lanyon, — você é um de meus amigos mais antigos; e embo-
ra discordemos em questões científicas algumas vezes, não consigo
me lembrar, ao menos de minha parte, de qualquer ruptura em
nossa afeição. Jamais houve um dia em que, se me dissesse “Jekyll,
minha vida, minha honra e minha razão dependem de você”, que
não teria sacrificado a fortuna ou a mão esquerda para lhe ajudar.
Lanyon, minha vida, minha honra, minha razão, estão todas à sua
mercê; caso falhe comigo hoje, estou perdido. Pode supor, após es-
te prefácio, que lhe pedirei algo desonroso de se conceder. Julgue
por si.
Quero que adie todos os compromissos desta noite — ah, mes-
mo que fosse chamado para a cabeceira do imperador; e pegue um
coche, a não ser que sua carruagem esteja justamente à porta; e,
com esta carta na mão para consulta, venha direto para a minha ca-
sa. Poole, meu mordomo, já recebeu as ordens; você o encontrará
com o chaveiro, e esperam sua chegada. A porta de meu gabinete
então deve ser forçada; deve entrar sozinho; abrir a estante de vidro
(letra E) no lado esquerdo, quebrar a tranca se estiver fechada; e re-
tirar, com tudo dentro, da maneira que estiver lá, a quarta gaveta de
cima para baixo, ou (o que é a mesma coisa) a terceira de baixo para
cima. Em minha extrema fadiga mental, tenho medo mórbido de
dar indicações erradas; mas mesmo que esteja errado, é possível re-
conhecer a gaveta correta pelo conteúdo: alguns pós, um frasco e
um livro de notas. Imploro que carregue essa gaveta para a Caven-
dish Square exatamente como está.
Essa é a primeira parte da tarefa: agora, a segunda. Você prova-
velmente voltará, caso cumpra de uma vez a primeira recomenda-
ção, muito antes da meia-noite; mas deixarei essa margem, não ape-
nas por medo daqueles obstáculos que não podem ser prevenidos
ou previstos, mas também porque o restante é preferível que seja
feito em hora que os seus criados estejam dormindo. À meia-noite,
então, peço-lhe que fique sozinho na sala de consulta, e que, pesso-
almente, receba em casa o homem que se apresentará com o meu
nome, e lhe entregue a gaveta que trouxe do meu gabinete. Então
terá cumprido a sua parte e ganhado minha gratidão total. Cinco
minutos depois, caso insista em explicação, entenderá que esses ar-
ranjos são de suma importância; e que, pela negligência de algum
deles, por fantástico que pareça, poderá levar à sua consciência o
peso de minha morte ou o naufrágio de minha razão.
Confiante de que não menosprezará este apelo, meu coração
afunda e minha mão treme ao mero pensamento de tal possibilida-
de. Pense em mim agora, num lugar estranho, trabalhando sob a
escuridão de fadiga impossível de se exagerar, e ainda assim com-
pletamente ciente de que, se me ajudar em cada ponto específico,
meus problemas se dissiparão como uma história contada. Ajude-
me, meu caro Lanyon, e salve
Seu amigo,
H.J.
P.S.: Eu já havia selado esta quando novo terror recaiu sobre minha
alma. É possível que o correio não funcione, e esta carta não che-
gue em suas mãos até amanhã de manhã. Nesse caso, meu caro
Lanyon, realize minha incumbência quando lhe for mais conveni-
ente no curso de um dia; e mais uma vez espere por meu mensagei-
ro à meia-noite. Até lá pode ser tarde demais; e se essa noite passar
sem nenhum acontecimento, saberá que foi a última vez que ouviu
falar de Henry Jekyll.
Ao terminar de ler a carta, tive certeza de que meu colega estava
louco; mas até que isso se provasse longe da possibilidade da dúvida, me
senti obrigado a agir conforme o pedido. Quanto menos entendia da-
quela barafunda, menos estava em posição de julgar a sua importância; e
um apelo tão palavroso não poderia ser deixado de lado sem grave res-
ponsabilidade. Portanto me levantei da mesa, entrei num coche de alu-
guel e fui direto à casa de Jekyll. O mordomo esperava por minha che-
gada; havia recebido pelo mesmo correio que eu carta registrada com
instruções, e rapidamente havia mandado alguém em busca de chaveiro
e carpinteiro. Os profissionais apareceram enquanto ainda conversáva-
mos; e seguimos juntos para o auditório cirúrgico do velho dr. Denman,
por onde (como certamente já sabe) é mais conveniente entrar no gabi-
nete privado de Jekyll. A porta era muito firme, a tranca, excelente; o
carpinteiro declarou que seria muito difícil e faria um estrago se fosse
preciso usar força; e o chaveiro estava à beira do desespero. Mas era su-
jeito habilidoso, e após duas horas de trabalho, abriu a porta. A estante
com a letra E foi destrancada; peguei a gaveta, a enchi de palha, a cobri
com pano, e a trouxe até a Cavendish Square.
Aqui, examinei o conteúdo. Os pós estavam bem compostos e orga-
nizados, mas não a ponto de se dispensar um químico; então estava cla-
ro que eram produzidos pelo próprio Jekyll; e quando abri um dos in-
vólucros, descobri o que me pareceu sal simples e cristalino de cor
branca. O frasco, para o qual virei minha atenção, devia estar até a me-
tade cheio com bebida vermelho-sangue, de cheiro muito forte, e pare-
cia conter fósforo e algum éter volátil. Quanto aos outros ingredientes,
não fazia ideia do que eram. O livro era um caderno de exercícios ordi-
nário e continha pouco mais que uma série de datas. Cobriam muitos
anos, mas notei que as anotações cessavam abruptamente há cerca de
um ano. Aqui e ali, breves observações eram adicionadas a alguma data,
geralmente não mais que uma única palavra: “duplo” ocorrendo cerca
de seis vezes em centenas de observações; e uma delas no começo da lis-
ta era seguida por diversos sinais de exclamação, “falha total!!!”. Tudo
isso, embora aguçasse a curiosidade, me trazia poucas confirmações.
Aqui havia um frasco de composto, papelote de algum sal, e o registro
de série de experimentos que não haviam levado (como muitíssimas das
investigações de Jekyll) a qualquer fim prático. Como a presença desses
artigos em casa poderia afetar a honra, a sanidade, ou a vida de meu vo-
lúvel colega? Se o seu mensageiro podia ir a um lugar, por que não ir a
outro? E mesmo que garantisse algum impedimento, por que era esse
cavalheiro que deveria receber em segredo? Quanto mais refletia, mais
me convencia de que lidava com caso de doença mental; e apesar de ha-
ver dispensado meus criados para dormir, carreguei um velho revólver
que pensei ser útil para me defender.
Mal as doze horas irromperam sobre Londres, uma batida muito
baixa soou na porta. Eu mesmo atendi ao chamado, e encontrei um su-
jeito pequeno agachado nos pilares do pórtico.
“Vem da parte do dr. Jekyll?”, perguntei.
Ele me respondeu “sim” com gesto constrangido; e quando o convi-
dei a entrar, não obedeceu sem antes olhar para trás com suspeita, em
direção à escuridão da praça. Havia um policial não muito distante, que
avançava com a lanterna aberta; e, com a visão, achei que minha visita
entrou com muita pressa.
Essas particularidades, confesso, me incomodaram; e enquanto o se-
gui até o brilho da luz da sala de consultas, deixei a mão sobre a arma.
Aqui, ao menos, tinha a chance de vê-lo com clareza. Jamais havia posto
os olhos nele antes, isso era certo. Era pequeno, como falei; além disso
estava impressionado pela expressão chocante em seu rosto, com a mar-
cante combinação de grande atividade muscular, a aparente debilidade
na constituição, e — não menos importante — a perturbação estranha e
inexplicável causada por sua proximidade. Isso era bem semelhante a si-
sudez incipiente, acompanhada por marcante queda na pressão. Na ho-
ra, me causou desgosto idiossincrático e pessoal, apenas pela agudeza
dos sintomas; mas desde então tive motivos para crer que a causa está
entranhada nas profundezas da natureza humana, que aciona algo mais
nobre que o princípio do ódio.
Essa pessoa (que desde o momento da entrada me incomodou com
que posso chamar de curiosidade enojada) vestia-se de modo que faria
qualquer um rir: as roupas, deve ser dito, embora de tecido bom e só-
brio, eram enormes em cada aspecto — as calças desciam das pernas e se
embolavam no chão, a cintura do casaco estava abaixo dos quadris, e o
colarinho se escarrapachava pelos ombros. Estranho de se relatar, esse
encontro burlesco estava longe de me fazer rir. Em vez disso, era como
se houvesse algo de anormal e ilegítimo na própria essência da criatura
que agora me encarava — algo de apreensivo, surpreendente e revoltan-
te — essa nova disparidade que simplesmente parecia se encaixar e re-
forçá-la; de modo que ao meu interesse na natureza e na personalidade
do sujeito foi acrescida a curiosidade quanto a sua origem, vida, sorte e
estado no mundo.
Estas observações, embora tenham requerido tanto tempo para se-
rem proferidas, foram resultado de alguns poucos segundos. Meu visi-
tante, na verdade, ardia com empolgação sinistra.
“Está com ela?”, exclamou. “Está com ela?” E tão vívida era a sua
impaciência que chegou a pôr a mão em meu braço e me sacudir.
Eu o afastei, consciente que seu toque causava gélida pontada no
sangue. “Calma”, falei. “O senhor se esquece que ainda não tive o pra-
zer de conhecê-lo. Sente-se, por favor.” Então lhe dei o exemplo, e eu
mesmo me sentei no lugar habitual em bela imitação de meus costumes
com um paciente, pois por ser tão tarde da noite, pela natureza de meus
desassossegos, e pelo asco que sentia por minha visita, assim me senti
compelido a agir.
“Peço desculpas, dr. Lanyon”, replicou com bastante civilidade. “O
que diz faz muito sentido, e minha impaciência mostrou os calcanhares
para a minha polidez. Venho da parte de meu colega, o dr. Henry Jekyll,
em nome de negócio momentâneo; e entendi que…” parou e colocou a
mão na garganta, e pude notar, apesar da posição recolhida, que lutava
contra um ataque de histeria — “entendi, a gaveta…”
Então senti pena da ansiedade de meu visitante, e talvez tenha cedi-
do à minha própria curiosidade, cada vez maior.
“Aqui está, senhor”, falei e apontei para a gaveta, no chão atrás da
mesa, ainda coberta por lençol.
Ele saltou até lá, em seguida parou e pôs a mão no coração; podia
escutar seus dentes rangerem com a ação convulsiva da mandíbula; e o
aspecto do rosto estava tão lôbrego que me alarmei tanto por sua vida
como por sua razão.
“Componha-se”, falei.
Ele me deu sorriso aterrador, e com decisão desesperada, arrancou o
lençol. Ao ver o conteúdo, soltou alto suspiro de alívio, tão imenso que
petrifiquei. E no momento seguinte, com voz já relativamente controla-
da, “O senhor tem uma proveta?”, perguntou.
Levantei-me com algum esforço e lhe entreguei o que me pediu.
Ele me agradeceu com aceno sorridente, mediu algumas gotículas do
composto vermelho e acrescentou um dos pós. A mistura, que no co-
meço tinha tom avermelhado, começou, à medida que os cristais derre-
tiam, a adquirir coloração mais brilhante, a fervilhar sonoramente, e a
lançar pequenos feixes de vapor. De repente, na mesma hora, a ebulição
cessou e o composto mudou para roxo escuro, que se enfraqueceu mais
lentamente para verde aguado. Meu visitante, que observara essas meta-
morfoses com entusiasmo, sorriu, colocou a proveta na mesa, então se
virou para mim e me observou com ar de escrutínio.
“Agora”, disse, “devo ajustar o que falta. O senhor é inteligente?
Possui bom senso? Entregaria em minhas mãos esta proveta e sairia de
casa sem confabulações posteriores? Ou a ganância e a curiosidade o
dominam além da conta? Pense antes de responder, pois isso deverá ser
feito conforme sua decisão. Enquanto decide, saiba que isso haverá de
deixá-lo como antes, nem mais rico, nem mais inteligente, a não ser que
o senso de dever cumprido a alguém em angústia mortal possa ser con-
tado como riqueza espiritual. Ou, caso prefira escolher, uma nova pro-
víncia da sabedoria e novas avenidas da fama e do poder haverão de se
abrir ao senhor, aqui, nesta sala, num instante; e a visão haverá de teste-
munhar prodígio capaz de fazer gaguejar os descrentes de Satã.”
“O senhor”, disse e fingi tranquilidade que estava longe de realmen-
te possuir, “fala por enigmas, e talvez imagine que o escuto sem acredi-
tar muito na veracidade. Mas já fui longe demais no caminho das ajudas
inexplicáveis, para parar antes de ver o final disso tudo.”
“Tudo bem”, respondeu meu visitante. “Lanyon, lembre-se de sua
promessa: o que seguirá aqui está no selo de sua profissão. E agora, o
senhor, que por tanto tempo esteve preso às visões mais estreitas e ma-
teriais, o senhor, que negou a validade da medicina transcendental, o se-
nhor, que escarneceu de seus superiores — contemple!”
Colocou o copo nos lábios e o bebeu de um gole só. Em seguida,
gritou; então cambaleou, gaguejou, agarrou-se à mesa e se segurou, en-
carou-me com olhos injetados, engasgou com a boca aberta; e enquanto
observava, começou, pensei, a mudança — se sacudiu — o rosto escure-
ceu de repente e seus traços pareciam derreter e se transformar — e, no
momento seguinte, me levantei de súbito e recuei contra a parede, o
braço levantado para me proteger daquele prodígio, minha mente sub-
mersa em terror.
“Oh, Deus!”, berrei, e “Oh, Deus!” outra vez, e o repeti mais uma
vez, pois diante de meus olhos — pálido e fraco, quase desmaiado, tate-
ava a si mesmo, como homem renascido da morte — estava Henry
Jekyll!
O que me contou na hora seguinte, não sou capaz de trazer à me-
mória para colocar no papel. Vi o que vi, ouvi o que ouvi, e minha alma
se adoentou com isso; e mesmo agora, que a imagem em meus olhos se
enfraqueceu, me pergunto se ainda acredito nisso, e não sou capaz de
responder. Minha vida foi abalada em suas fundações; o sono me aban-
donou; o terror mortal se senta em minha companhia todas as horas do
dia e da noite; sinto que meus dias estão contados e que devo morrer; e
ainda assim, morrer incrédulo. Quanto à torpeza moral que o homem
me desvelou, mesmo com lágrimas penitentes, não consigo, mesmo em
memória, me demorar nisso sem sobressalto de horror. Direi apenas
uma coisa, Utterson, e isso (caso consiga me dar algum crédito) mais
que bastará. A criatura que se arrastou até a minha casa aquela noite era,
na confissão de Jekyll, conhecida pelo nome de Hyde, procurado em
cada recanto das redondezas pelo assassinato de Carew.
HASTIE LANYON
Relato Completo do Caso Bob Henry Jekyll
Nasci no ano de 18… com grande fortuna, além de dotado de qualida-
des excelentes, inclinado por natureza à indústria, amigo do respeito
dos sábios e dos bons entre os meus camaradas, e assim, como pode se
deduzir, com todas as garantias de um futuro honrado e distinto. Na
verdade, a pior de minhas falhas era certa disposição aos lazeres urgen-
tes, o que poderia fazer a felicidade de muitos, mas achei difícil de con-
ciliar isso com o meu imperioso desejo de elevar a mente às alturas e
mostrar às pessoas fisionomia mais circunspecta que o comum. Então
chegou o momento em que comecei a ocultar os meus prazeres; e quan-
do alcancei a idade da reflexão e comecei a olhar em volta e a registrar o
meu progresso e posição no mundo, já estava comprometido a profun-
da duplicidade na vida. Muitos homens chegaram a ressaltar tais irregu-
laridades das quais era culpado; mas do ângulo elevado em que me pus,
os encarava e os ocultava com sensação de vergonha quase mórbida.
Assim, foi acima de tudo a natureza exigente de minhas aspirações —
mais que qualquer degradação particular dos defeitos que constituíam o
meu ser, com trincheira ainda mais profunda que na maioria dos ho-
mens — o que me impeliu a me dividir naquelas províncias do bem e do
mal que separam e compõem a natureza dual do homem. Nesse caso,
fui compelido a refletir profunda e inveteradamente a respeito daquela
áspera lei da vida, que está na raiz da religião e é uma das mais plenas
fontes de cansaço. Embora profundamente dissimulado, não era em ne-
nhum sentido hipócrita; meus dois lados eram fatalmente sinceros; não
me sentia mais pleno quando deixava de lado as restrições e mergulhava
na vergonha, que quando trabalhava, sob o olho do dia, no auxílio do
conhecimento ou no alívio do infortúnio e do sofrimento. E calhou de a
direção de meus estudos científicos, que no todo perpassavam o místico
e o transcendental, responder e lançar luz forte nessa consciência da
guerra perene entre meus membros. A cada dia, e de ambos os lados de
minha inteligência, a moral e a intelectual, me aproximava continua-
mente dessa verdade, cuja descoberta parcial me condenava a naufrágio
horripilante: que o homem não é na verdade um, e sim dois. Digo dois,
porque o estado de meu próprio conhecimento não vai além desse pon-
to. Outros me seguirão; outros me ultrapassarão nos mesmos trilhos; e
me atrevo a prever que o homem um dia será conhecido como o reles
agrupamento de habitantes multifacetados, incongruentes e indepen-
dentes. De minha parte, a partir da natureza de minha vida, avancei in-
falivelmente em uma direção e uma direção somente. Foi no lado moral,
e em minha própria personalidade, que aprendi a reconhecer a dualida-
de primitiva e completa do homem; vi que, das duas naturezas que bata-
lhavam no campo da consciência, mesmo que pudesse de pronto afir-
mar ser uma ou outra, era apenas por ser radicalmente ambas; e desde
cedo, mesmo antes do curso de minhas descobertas científicas começa-
rem a sugerir a possibilidade mais despida de tal milagre, aprendi a me
demorar com prazer, como adorado sonho lúcido, na ideia da separação
desses elementos. Se cada um, dizia a mim mesmo, pudesse simples-
mente ser alojado em identidades separadas, a vida ficaria livre de tudo
o que fosse insuportável; os injustos poderiam ir por um lado, livre das
aspirações e do remorso do irmão mais correto; e os justos poderiam
andar com firmeza e segurança na trilha ascendente, com as boas ações
que lhe davam prazer, e não mais expostos à desgraça e penitência das
mãos desse mal exterior. A maldição da humanidade era que esses ra-
mos antagônicos ficassem enroscados dessa maneira — que no útero
agonizante da consciência, tais gêmeos opostos pelejassem sem parar.
Como, então, separá-los?
Cheguei num ponto de minhas reflexões em que, como disse antes, a
luz lateral começou a brilhar sobre o assunto na mesa de laboratório.
Percebi com a maior profundidade até então observada, a imaterialidade
balouçante, a transigência enevoada que veste esse corpo aparentemente
tão sólido com o qual andamos. Descobri certos agentes que tinham o
poder de mover e puxar de volta essa vestimenta de carne, mesmo que o
vento pudesse puxar as cortinas do pavilhão. Por duas boas razões, não
me aprofundarei nesse ramo científico de minha confissão. Primeiro,
porque me vi obrigado a aprender que o destino e o fardo de nossas vi-
das estão presos para sempre aos ombros do homem, e quando é feita a
tentativa de dividi-los, apenas se voltará para nós com pressão ainda
mais bizarra e aterradora. Segundo, porque, como esta narrativa haverá
de esclarecer, as minhas descobertas foram incompletas. Fez-se preciso,
então, não apenas que reconhecesse o meu corpo como simples aura e
esplendor de alguns dos poderes que moldaram o meu espírito, como
também que conseguisse compor a droga que fizesse com que esses po-
deres fossem destronados de supremacia, e uma segunda forma e fisio-
nomia os substituísse, um tanto natural para mim porque eles eram a
expressão, e carregavam o selo dos elementos mais baixos de minha al-
ma.
Hesitei por muito tempo antes de levar essa teoria aos testes práti-
cos. Sabia bem que corria o risco de morrer, pois qualquer droga que
controlava e abalava a própria fortaleza da identidade com tanta potên-
cia poderia, pelo menor escrúpulo da overdose ou na menor oportuni-
dade do momento da exibição, apagar completamente aquele tabernácu-
lo imaterial que buscava alterar. Mas a tentação de descoberta tão singu-
lar e profunda por fim se sobrepôs às sugestões de alarme. Fazia muito
tempo que havia preparado meu composto; comprei de uma vez, de fir-
ma de atacado de químicos, grande quantidade de um sal em particular
que sabia, a partir de minhas experiências, ser o último ingrediente ne-
cessário; avançado na noite infausta, compus os elementos, os observei
ferverem e esfumaçarem juntos dentro da proveta, e quando a ebulição
havia baixado, em grande arroubo de coragem, ingeri a poção.
Espasmos excruciantes se sucederam; certo esmerilhamento nos os-
sos, náusea mortal, terror no espírito que não pode ser excedido na hora
do nascimento ou da morte. Então, essas agonias rapidamente diminuí-
ram, e voltei a mim mesmo como se houvesse me curado de grave doen-
ça. Havia algo de estranho em minhas sensações, algo indescritivelmen-
te novo e, provinha dessa própria novidade, incrivelmente doce. Eu me
senti mais jovem, leve, e fisicamente feliz; por dentro estava consciente
da imprudência inebriante, a corrente de imagens sensuais desordenadas
percorriam a minha mente como corrente de água por um moinho, a
solução para os vínculos da obrigação, a liberdade da alma desconheci-
da, mas não inocente. Descobri que, no primeiro fôlego desta nova vida,
estava mais perverso, dez vezes mais perverso, vendido como escravo
ao meu mal original; e o pensamento, naquele momento, me enlaçava e
me aprazia como o vinho. Estiquei as mãos, exultante com o frescor
dessas sensações; e no ato, notei de vez que havia perdido estatura.
Não havia espelho, naquela época, na sala; esse que está ao meu lado
enquanto escrevo foi trazido depois, exatamente por causa das transfor-
mações. A noite, no entanto, já havia se transformado em madrugada
fazia muito tempo — esta madrugada, negra como estava, já havia ama-
durecido quase a ponto de ser possível chamá-la de dia — os moradores
de minha casa estavam trancados nas horas mais rigorosas do sono; en-
tão decidi, ruborizado pela esperança e o triunfo, a me aventurar em
minha nova forma somente até meu quarto. Cruzei o jardim, por onde
as constelações me observavam, e pensei, maravilhado, que era a primei-
ra criatura daquela espécie jamais exposta à incansável vigilância; pe-
rambulei pelos corredores, um estranho em minha própria casa; e ao
chegar a meu quarto tive o primeiro vislumbre da aparência de Edward
Hyde.
Devo falar somente em teoria, afirmar não o que sei, mas o que su-
ponho ser mais provável. O lado mal de minha natureza, para o qual
agora havia transferido minha marcante eficácia, era menos robusto e
menos desenvolvido que o bom, recém deposto. Mais uma vez, no cur-
so de minha vida, que havia sido, afinal, em nove décimos vida de esfor-
ço, virtude e controle, ele fora bem menos exercitado e bem menos
exaurido. Logo, ao pensar nisso, me ocorreu como Edward Hyde era
menor, mais leve e mais jovem que Henry Jekyll. Ainda que o bem bri-
lhasse sobre o semblante de um, o mal estava escrito claramente de lado
a lado no rosto do outro. Além disso, o mal (que ainda reconheço como
o lado letal do homem) deixara naquele corpo marca de deformidade e
decadência. No entanto, ao examinar no espelho aquele ídolo horrível,
não reconheci nenhuma repugnância, mas um acolhimento galopante.
Aquele também era eu. Pareceu-me natural e humano. Aos meus olhos,
portava imagem mais vívida do espírito, aparentemente mais expressiva
e singular que o semblante imperfeito e dividido que me acostumei a
chamar de meu. E até então não tinha dúvidas de que estava certo. Des-
cobri que com a aparência de Edward Hyde ninguém conseguia se
aproximar de mim sem antes sentir visível apreensão carnal. Isso, con-
forme entendo, era porque todos os seres humanos, quando os conhe-
cemos, estão imbuídos do bem do mal; e Edward Hyde, único nas cate-
gorias da humanidade, era puro mal.
Eu me demorei por um momento diante do espelho: o segundo e
conclusivo experimento ainda deveria ser tentado, porém antes precisa-
va descobrir se havia perdido para sempre a minha identidade, e se antes
da aurora deveria fugir da casa que não mais me pertencia; voltei com
pressa ao gabinete, mais uma vez preparei e bebi o composto, mais uma
vez sofri os espasmos da dissolução, e mais uma vez voltei a mim mes-
mo com o caráter, a estatura e o rosto de Henry Jekyll.
Aquela noite cheguei a uma encruzilhada fatal. Houvesse abordado
minha descoberta com estado de espírito mais nobre, houvesse realiza-
do o experimento motivado por aspirações mais pias ou generosas, tudo
teria sido diferente, e dessas agonias da morte e do nascimento, teria
emergido o anjo em vez do demônio. A droga não tinha ação discrimi-
natória; não era nem diabólica nem divina, mas apenas chacoalhava as
portas da prisão de minha disposição; assim como os cativos de Filipos,
[6] que estavam presos e fugiram. Naquela época a minha virtude cochi-
lava; meu mal, despertado pela ambição, ficou alerta e com rapidez se
aproveitou da ocasião; e a coisa projetada foi Edward Hyde. Logo, em-
bora agora tivesse duas personalidades, assim como duas aparências,
uma era completamente má, outra ainda era o velho Henry Jekyll,
aquele heterogêneo composto cuja melhora e reformulação já havia
aprendido a alterar. O movimento, portanto, era unicamente em direção
ao pior.
Mesmo naquela época, ainda não havia dominado minha aversão pe-
la secura da vida de estudos. Ainda me divertia de vez em quando; co-
mo os meus prazeres eram (para dizer o mínimo) indignos, e era muito
conhecido e tido em alta consideração, além de que logo estaria entre os
velhos, essa incoerência em minha vida a cada dia ficava mais indesejá-
vel. Foi nesse sentido que meu novo poder me tentou até me tornar seu
escravo. Bastava apenas beber do composto e despir de vez o corpo do
notório professor, e vestir, como grosso casaco, o de Edward Hyde. Eu
ria desse pensamento; me parecia engraçado na época; fazia meus prepa-
ros com meticulosidade. Adquiri e mobiliei aquela casa no Soho onde
Hyde foi rastreado pela polícia, e arranjei como caseiro a criatura que
conhecia por ser silenciosa e inescrupulosa. Por outro lado, anunciei aos
meus criados que certo sr. Hyde (que descrevi) deveria ter total liberda-
de e poder em minha casa na praça; e para evitar incômodos, comecei a
aparecer por lá e a fazer de mim mesmo objeto familiar, em minha se-
gunda personalidade. Depois elaborei o testamento que tanto objetou;
assim, se algo acontecesse comigo sob o nome de Doutor Jekyll, pode-
ria aparecer com o de Edward Hyde sem qualquer perda pecuniária. E
assim fortificado, como supus, em todos os lados, comecei a gozar das
estranhas imunidades de minha posição.
Os homens antes contratavam bandidos para levar a cabo os crimes,
enquanto sua própria pessoa e reputação ficavam protegidos no abrigo.
Fui o primeiro a fazer isso por prazer, fui o primeiro assim capaz de
passar diante dos olhos do público com enorme carga de respeitabilida-
de, e num instante, como estudante, arrancar os adereços e saltar de ca-
beça no mar da liberdade. Apenas para mim, em minha manta impene-
trável, a segurança era completa. Pense nisso — sequer existia! Apenas
espere que eu suma pela porta do laboratório, me dê um ou dois segun-
dos para misturar e engolir a dose que sempre tinha pronta; e não im-
porta o que fizesse, Edward Hyde sumiria como a mancha do hálito
contra o espelho; e ali parado, quieto, em casa, com o lampião da meia-
noite no estúdio, se havia um homem que podia sorrir de qualquer sus-
peita, era Henry Jekyll.
Os prazeres que logo busquei em meu disfarce eram, como disse, in-
dignos; não poderia utilizar qualquer termo mais severo. Porém nas
mãos de Edward Hyde, começaram a se tornar monstruosos. Quando
voltava desses passeios, geralmente ficava estupefato com minha vicária
depravação. Esse parente que evocava de dentro de minha própria alma
e soltava sozinho ao seu bom prazer, era inerentemente maligno e vil;
cada ato e pensamento que tinha era centrado em si mesmo; sorvia o
prazer com avidez bestial, de uma tortura a outra; era implacável como
homem de pedra. Henry Jekyll às vezes se espantava ante os atos de
Edward Hyde; mas a situação estava separada das leis comuns, e insidi-
osamente folgava o aperto da consciência. Era Hyde, afinal, e Hyde so-
mente, culpado. Jekyll não era pior, despertava novamente para as boas
qualidades aparentemente sem par; chegava a se dedicar, na medida do
possível, a desfazer o mal praticado por Hyde. E assim sua consciência
relaxava.
Não pretendo entrar nos detalhes da infâmia com a qual fui coni-
vente (uma vez que, mesmo agora, mal posso garantir que fui eu que a
cometi), mas apenas mostrar as advertências e a sequência de etapas que
levaram à minha penitência. Deparei-me com acidente que, como não
teve consequências, devo apenas mencionar. Um ato de crueldade con-
tra criança me alertou para a ira de um passante, que reconheci no outro
dia como seu primo; o médico e a família da criança se juntaram a ele;
houve momentos em que temi por minha vida; por fim, de modo a paci-
ficar seu tão justo ressentimento, Edward Hyde teve de trazê-los à sua
porta e pagá-los com cheque em nome de Henry Jekyll. Mas no futuro
este perigo foi eliminado com facilidade, ao abrir conta em outro banco,
em nome do próprio Edward Hyde; e quando inclinei a minha própria
mão para trás, preparei assinatura para meu duplo, pensei ter me senta-
do diante de um ramo do destino.
Uns dois meses antes do assassinato do sr. Danvers, havia saído nu-
ma de minhas aventuras e voltado tarde; no outro dia acordei com sen-
sação estranha. Foi em vão que olhei ao redor; em vão vi a mobília de-
cente e as grandes proporções de meu quarto na praça; em vão reconhe-
ci os padrões das cortinas da cama e o desenho do batente de mogno; al-
go ainda continuava a insistir que não estava onde estava, que não havia
despertado onde parecia estar, mas no quartinho no Soho onde acostu-
mei a dormir no corpo de Edward Hyde. Sorri para mim mesmo, e, em
meu modo psicológico, comecei a investigar com preguiça os elementos
dessa ilusão, ocasionalmente, enquanto isso, caí para trás em confortá-
vel cochilo matinal. Ainda estava engajado nisso quando, num de meus
momentos mais vigilantes, olhei para a mão. A mão de Henry Jekyll
(como você tanto observou) tinha o tamanho e o formato da de um
profissional de seu ofício: grande, firme, branca e graciosa. Mas a mão
que via com bastante clareza, na luz amarelada da manhã londrina, en-
coberta até a metade pelos lençóis da cama, era magra, com as veias sal-
tadas, com as juntas protuberantes, de palidez soturna e densamente en-
sombrecida por obscuro crescimento de pelos. Era a mão de Edward
Hyde.
Devo tê-la encarado por cerca de meio minuto, mergulhado como
estava na mera estupidez da estupefação, até que o terror despertasse de
repente no peito, espantoso como a batida de címbalos; pulei da cama,
corri até o espelho. À vista do que meus olhos se depararam, o meu san-
gue se transformou em algo surpreendentemente fino e gelado. Sim, me
deitei Henry Jekyll e despertei Edward Hyde. Como isso poderia ser
explicado, perguntei-me; e então, com outro salto de terror — como
poderia ser remediado? A manhã já se avançava; os criados já haviam se
levantado; todas as minhas drogas estavam no gabinete — a longa jor-
nada, pela passagem dos fundos, através do pátio aberto e pelo auditó-
rio de anatomia, de lá de onde estava, estático, tomado pelo terror. Po-
deria ser possível cobrir o rosto; mas de que serviria, quando me era im-
possível ocultar a alteração na estatura? E então com a doçura de alívio
poderoso, me veio à mente que os criados já estavam habituados às idas
e vindas de meu segundo eu. Logo me vesti, tão bem quanto possível,
com roupas de meu próprio tamanho: pouco depois atravessei a casa,
onde Bradshaw me encarou e recuou ao ver o sr. Hyde em tal hora e em
vestes tão estranhas; e dez minutos depois, o dr. Jekyll retornara à pró-
pria forma e se sentava, com rosto escurecido, para fingir que tomava o
café da manhã.
Pequeno de fato, era meu apetite. Este inexplicável incidente, essa
reversão de minha experiência prévia, me pareceu, como o dedo babilô-
nio no muro,[7] soletrar as letras de meu julgamento; e comecei a refletir
com seriedade até então ausente a respeito dos problemas e possibilida-
des da dupla existência. Aquela parte de mim que tive o poder de proje-
tar, nos últimos tempos havia sido muito exercitada e nutrida; me pare-
ceu que embora o corpo de Edward Hyde houvesse crescido tardia-
mente em estatura, que embora (quando assumia aquela forma) estives-
se consciente do fluxo sanguíneo mais generoso; comecei a investigar o
perigo que, caso fosse muito prolongado, o equilíbrio de minha nature-
za poderia ser derrotado para sempre, o poder da alteração voluntária
ser aniquilado, e a pessoa de Edward Hyde me dominar de maneira ir-
revogável. A potência da droga nem sempre se apresentava do mesmo
modo. Uma vez, bem no começo dessa trajetória, não teve nenhum
efeito; desde então fui obrigado em mais de uma ocasião a dobrar, e
uma vez, com infinito risco de morte, a triplicar a quantidade; e essas
raras incertezas assim projetaram a única sombra em meu contentamen-
to. Daí que, à luz do acidente daquela manhã, fui levado a pensar que se
no começo a dificuldade era sair do corpo de Henry Jekyll, depois, aos
poucos, porém seguramente, ela havia sido transferida para o outro la-
do. Logo, todas as coisas pareciam apontar para isso: que lentamente
perdia o controle de meu eu original e melhor, e lentamente me incor-
porava ao segundo e pior.
Entre os dois, agora sentia que deveria escolher. Minhas duas natu-
rezas tinham a memória em comum, mas todas as outras faculdades es-
tavam divididas entre si de modo bastante desigual. Jekyll (que era múl-
tiplo) ora com as apreensões mais sensíveis, ora com prazer ganancioso,
projetado e dividido entre os prazeres e as aventuras de Hyde; no en-
tanto Hyde era indiferente a Jekyll, ou se lembrava dele apenas como o
bandido da montanha se lembra da caverna em que se esconde da perse-
guição. Jekyll tinha mais que interesse paternal; Hyde tinha mais que a
indiferença de filho. Permanecer com Jekyll seria morrer para esses ape-
tites por muito tempo saciados em segredo, e que tardiamente começa-
ram a me enfastiar. Permanecer com Hyde seria morrer para mil inte-
resses e aspirações, e, num lance sem retorno, se tornar menosprezado e
solitário. A barganha pode parecer desigual; mas ainda havia outra con-
sideração na balança; enquanto Jekyll sofreria agudamente os fogos da
abstinência, Hyde sequer tinha consciência de tudo o que perderia.
Apesar da situação ser estranha, os termos deste debate eram tão velhos
e ordinários como o homem; grosso modo, os mesmos estímulos e alar-
mes forjavam o molde para qualquer pecador tentado e vacilante; e
aconteceu comigo, como calha de acontecer com a grande maioria de
meus amigos, de escolher o lado do bem e me desejar a força para conti-
nuar.
Sim, preferi o médico idoso e descontente, rodeado por amigos e
nutrindo esperanças sinceras; e fiz despedida honesta da liberdade, da
comparável juventude, o passo leve, as pulsações galopantes e os praze-
res secretos que havia desfrutado sob o disfarce de Hyde. Fiz a escolha
talvez com reserva inconsciente, pois não me desfiz da casa no Soho e
tampouco destruí as roupas de Edward Hyde, que ainda estavam no ga-
binete. Por dois meses, entretanto, permaneci fiel à decisão; por dois
meses, levei vida de profunda severidade, como nunca antes havia con-
seguido, e aproveitei as compensações da consciência aprovadora. Mas
o tempo finalmente começou a obliterar o frescor de meu alarme; os
louvores da consciência começaram a se transformar em algo habitual;
comecei a ser torturado por agonias e anseios, como se Hyde lutasse
por liberdade; e por fim, em instante de fraqueza moral, mais uma vez
preparei e engoli o composto transformador.
Não suponho que, quando um bêbado raciocina sobre o vício, é se-
quer uma vez em quinhentas afetado pelos perigos que corre pela insen-
sibilidade brutal e física; eu, ao refletir a minha posição, tampouco raci-
ocinei o suficiente a respeito da completa insensibilidade moral e a
prontidão insensata do mal, que eram as principais características de
Edward Hyde. E foi exatamente por elas que recebi a punição. Meu de-
mônio enjaulado por tanto tempo escapou aos rugidos. Estava consci-
ente, mesmo ao tomar o composto, da propensão ao mal mais furiosa e
desenfreada. Deve ter sido isso, suponho, que balançou em minha alma
a tempestade de impaciência com a qual escutei as civilidades de minha
pobre vítima; ao menos declaro, ante Deus, que nenhum homem moral-
mente são poderia ser culpado daquele crime com provocação tão digna
de pena; e que fiquei num espírito não mais razoável que o da criança
doente que quebra o brinquedo. E voluntariamente me despi de todos
aqueles instintos equilibrados, pelos quais mesmo o pior entre nós con-
tinua a caminhar com algum grau de prontidão entre as tentações; e no
meu caso, ser tentado, mesmo que levemente, era a queda.
Instantaneamente o espírito infernal emergiu em mim e se enfure-
ceu. Com uma súbita sensação de contentamento, espanquei o corpo
sem resistência, saboreando com deleite cada pancada; e não foi até co-
meçar a ser tomado pela fadiga, que de repente, em meu mais grave delí-
rio, fui atingido no coração por gélido espasmo de horror. Uma névoa
se dispersou; observei a minha vida ser dominada, e fugi da cena de tais
excessos, ao mesmo tempo extasiado e apavorado, minha lascívia pelo
mal saciada e estimulada, meu amor pela vida preso à última estaca.
Corri para a casa no Soho, e (para ter completa certeza) destruí os meus
papéis; depois disso saí pelas ruas iluminadas por lampiões, com o mes-
mo êxtase mental dividido, me regozijando com meu crime, e pensava
com leveza em outros para o futuro, mas também com pressa e ainda
ouvia à espreita os passos do vingador. Hyde tinha nos lábios uma can-
ção ao preparar o composto, e enquanto bebia, insultava o morto. As
agonias da transformação não o dilaceraram, e em vez disso Henry
Jekyll, com jorro de lágrimas de gratidão e remorso, caiu de joelhos e
levantou as mãos para Deus. O véu da autoindulgência estava rasgado
da cabeça aos pés, assisti a minha vida por inteiro: segui a partir dos dias
da infância, quando caminhava levado pela mão por meu pai, pelos la-
bores de minha vida profissional que se anulavam, até chegar várias e
várias vezes, com a mesma sensação de irrealidade, aos terríveis horro-
res daquela noite. Poderia ter gritado alto; procurei com lágrimas e re-
zas extinguir o turbilhão de imagens e sons que fervilhavam contra mim
em minha memória; ainda assim, entre as petições, a horrível face de ini-
quidade encarava a minha alma. A agudeza desse remorso começou a
morrer, e foi sucedida pela alegria. O problema de minha conduta esta-
va resolvido. Hyde, portanto, era impossível; quisesse ou não, agora es-
tava confinado à parte boa de minha existência; e, oh, como me alegrei
ao pensar nisso! Com qual humildade desejosa abracei as novas restri-
ções da vida natural! Com qual renúncia sincera tranquei a porta que
tanto fui e vim, e enterrei a chave abaixo do calcanhar!
No dia seguinte, surgiu a notícia de que o assassinato havia sido tes-
temunhado, que a culpa de Hyde era patente ao mundo, e que a vítima
era pessoa de alta estima pública. Não era apenas crime, era trágico ato
de loucura. Creio que fiquei contente por saber disso; creio que fiquei
contente por ter meus bons impulsos assim mantidos e protegidos pelo
medo do cadafalso. Jekyll agora era a minha cidade de refúgio; deixasse
Hyde bisbilhotar apenas por um instante, e as mãos de todos os homens
se ergueriam para capturá-lo e massacrá-lo.
Resolvi em minha conduta futura redimir o passado; e posso dizer
com honestidade que minha decisão produziu algo de bom. Você mes-
mo sabe como trabalhei com diligência nos últimos meses do ano ante-
rior, como trabalhei para apaziguar o sofrimento das pessoas; sabe que
muito foi feito pelos outros, e que os dias se passavam quietamente,
quase felizes para mim. Nem posso dizer com sinceridade que me can-
sei da vida inocente e beneficente; mas ainda estava amaldiçoado com a
dualidade de propósitos; e quando a primeira ponta de minha penitên-
cia se partiu, o meu lado baixo, saciado por tanto tempo, acorrentado
fazia tão pouco, começou a rugir para vir à tona. Não que sonhasse em
ressuscitar Hyde; a mera ideia me horripilava; não, era a minha própria
personalidade, que mais de uma vez estive tentado a gracejar com a
consciência; e foi como um pecador secreto qualquer que finalmente caí
nos ataques da tentação.
Todas as coisas têm um fim; chega o dia em que a mais espaçosa me-
dida é preenchida; e essa breve condescendência de meu mal enfim des-
truiu o equilíbrio da alma. E ainda assim não fiquei alarmado; a queda
me pareceu natural, como retorno aos velhos dias antes da descoberta.
Era dia de janeiro agradável e claro, molhado sob o pé onde o gelo havia
se derretido, mas sem nuvens acima; e o Regent’s Park estava tomado
pelos chilreares de inverno e pela doçura dos odores da primavera. Sen-
tei-me num banco ao sol; o animal dentro de mim lambia lascas da me-
mória; o lado espiritual dormitava um pouco, prometia penitência sub-
sequente, mas ainda sem se mexer para começar. No final das contas,
pensei ser como meus vizinhos; e então sorri, me comparei a outros ho-
mens, comparei minha ativa generosidade com a preguiçosa crueldade
da negligência. E exatamente no momento desse pensamento vanglorio-
so, a sensação de enjoo me atingiu, a náusea horrenda e a convulsão
mortal. Isso passou, e me deixou tonto; e então foi como se a tontura
diminuísse, comecei a perceber a mudança no teor dos pensamentos,
maior coragem, desprezo pelo perigo, solução contra as amarras da
obrigação. Olhei para baixo, minhas roupas estavam penduradas sem
forma em meus membros encolhidos; a mão no joelho estava com as
veias saltadas e peluda. Mais uma vez, eu era Edward Hyde. Um mo-
mento antes, possuía todo o respeito, riqueza e amor dos homens — a
toalha posta para mim na sala de jantar de casa; e agora era a presa co-
mum da humanidade, caçado, sem-teto, conhecido assassino, escravo
das galés.
Minha razão oscilou, mas não falhou completamente. Mais de uma
vez observei que, na segunda personalidade, as minhas faculdades pare-
ciam aguçadas até certo ponto e meu espírito mais tensamente flexível;
assim veio à tona que, onde Jekyll talvez houvesse sucumbido, Hyde
emergira para a importância do momento. Minhas drogas estavam nu-
ma das estantes do gabinete; como poderia alcançá-las? Eis o problema
que eu (apertava as têmporas com as mãos) me dispus a resolver. Havia
fechado a porta do laboratório. Se fosse entrar pela casa, meus próprios
criados me entregariam para as galés. Vi que deveria empregar outra
mão, e pensei em Lanyon. Como poderia ser contatado? E persuadido?
Mesmo que escapasse de ser capturado nas ruas, como me apresentar a
ele? E como eu, um visitante desconhecido e desagradável, deveria
triunfar contra o famoso médico e saquear o estúdio do colega, o dr.
Jekyll? Então lembrei que de minha personalidade original, parte per-
manecia em mim: podia escrever com minha própria letra; e de uma vez
concebera aquela centelha luminosa, o modo como haveria de agir se
iluminou de uma ponta a outra.
Assim, ajeitei minhas roupas da melhor maneira possível, e chamei o
coche que passava por perto; me dirigi até o hotel na Portland Street,
cujo nome por acaso me lembro. Com minha aparição (que de fato era
bastante cômica, apesar do destino trágico que esses vestuários encobri-
am) o condutor não foi capaz de esconder sua graça. Rangi os dentes
com rompante de fúria diabólica; e o sorriso dele se secou — para a sua
felicidade — e mais ainda para a minha, pois mais um pouco e certa-
mente o teria arrancado de onde estava. Na hospedaria, ao entrar, olhei
em volta com careta tão sinistra que fez os atendentes tremerem; não
trocaram sequer um olhar em minha presença; mas obedeceram às or-
dens obsequiosamente, me levaram a um quarto particular e trouxeram
meios para escrever. Hyde em risco de vida era criatura nova para mim:
abalado com raiva desordenada, atado à fuga pelo assassinato, louco pa-
ra infligir dor. Ainda assim a criatura era astuta; controlou a fúria com
grande força de vontade; escreveu duas cartas importantes, uma para
Lanyon e outra para Poole; e para se assegurar que fossem efetivamente
postadas, as enviou com ordens de que tivessem registro.
Depois disso, sentou-se por todo o dia diante do fogo no quarto
particular, roendo as unhas; ali jantou, sozinho com seus medos, o gar-
çom recuava visivelmente ante seu olhar; e logo, quando a noite termi-
nara de cair, ele se dirigiu ao canto de um coche fechado e foi conduzi-
do de um lado e para o outro pelas ruas da cidade. Digo “ele” — não
posso dizer “eu”. Aquela criança do Inferno não possuía nada de huma-
no; nada vivia nele a não ser medo e ódio. E quando finalmente, perce-
beu que o condutor começava a criar suspeitas, dispensou o coche e se
aventurou a andar a pé, com roupas desajustadas, era sujeito que cha-
mava a atenção, no meio dos passantes noturnos, essas duas paixões bá-
sicas rugiam dentro dele como tempestade. Andou velozmente, caçado
por seus medos, tagarelou sozinho, perambulou pelas avenidas menos
frequentadas, contou os minutos que ainda o separavam da meia-noite.
Certa vez, uma mulher falou com ele, e lhe ofereceu, creio, uma caixa de
fósforos. Ele a acertou no rosto, e ela fugiu.
Quando voltei a mim mesmo na casa de Lanyon, o horror de meu
velho amigo talvez tenha me afetado de alguma forma: não sei; ao me-
nos não passava de uma gota no oceano de repugnância que enfrentava
naquele momento. Uma mudança me sobrepôs. Não era mais o medo
das galés, era o horror de voltar a ser Hyde que me atormentava. Recebi
parte da condenação de Lanyon no sonho; era em parte sonho no qual
vinha para minha própria casa e deitava na cama. Dormia depois da
prostração do dia, com sono pesado e profundo que nem mesmo os pe-
sadelos que me torturavam poderiam interromper. Acordei de manhã,
abalado, enfraquecido, porém renovado. Ainda odiava e temia pensar
no bruto adormecido em mim, e com certeza não havia me esquecido
dos perigos aterradores do dia anterior, porém mais uma vez estava em
casa, em minha própria casa e próximo das drogas; e a gratidão por mi-
nha fuga brilhou com tanta intensidade na alma que era quase compará-
vel ao brilho da esperança.
Passeava alegremente pelo pátio, depois do café da manhã, tragava o
frio matinal com prazer, quando voltei a ser dominado pelas sensações
indescritíveis que prenunciavam a mudança; tive tempo apenas de con-
seguir o abrigo de meu gabinete, antes de rugir e congelar com as pai-
xões de Hyde novamente. Nessa ocasião precisei de dose dupla para re-
tornar a mim mesmo; e eis que, seis horas depois, ao me sentar para ob-
servar com tristeza o fogo, os espasmos voltaram, e a droga teve de ser
administrada mais uma vez. Em suma, a partir daquele dia parecia ser
somente por grande esforço, como o de exercícios, ou apenas sob o estí-
mulo imediato da droga, que era capaz de vestir a aparência de Jekyll.
Em todas as horas do dia e da noite, era dominado pelo tremor premo-
nitório; acima de tudo, se dormisse, ou mesmo se cochilasse por um ins-
tante na cadeira, era sempre Hyde que acordava. Sob a tensão desse des-
tino continuamente retardante, ou pela insônia ao qual agora estava
condenado, ah, e mesmo além do que pensava ser possível ao homem,
me tornei, em minha própria pessoa, criatura devorada e esvaziada pela
febre, languidamente fraca tanto no corpo como na mente, e unicamen-
te ocupada por um pensamento: o horror a meu outro eu. E quando
dormia, ou quando o efeito do remédio acabava, passava quase sem
transição (uma vez que as agonias da transformação a cada dia ficavam
mais discretas) a ver a incessante sequência de imagens pavorosas, a al-
ma fervilhante com ódios gratuitos, e corpo que não parecia forte o bas-
tante para conter as energias raivosas da vida. Os poderes de Hyde pa-
reciam se desenvolver com a doença de Jekyll. E certamente o ódio que
agora os dividia era igual em cada lado. Com Jekyll, era algo do instinto
vital. Agora tinha visto a deformidade total daquela criatura com quem
dividia parte da consciência, com quem habitaria até a morte: além dessa
união, que em si mesma era a causa mais pungente do cansaço, pensou
que, em Hyde, toda a energia vital era não apenas diabólica, mas tam-
bém inorgânica. Era isso que o chocava; que o lodo do poço parecia
emitir gritos e vozes; que a poeira amorfa gesticulava e pecava; que
aquilo que estava morto e não tinha forma podia usurpar os trabalhos
da vida. E ainda que tal horror insurgente estava atado a ele com mais
proximidade que uma esposa, mais próximo que o olho; estava enjaula-
do em sua carne, onde era possível escutar os sussurros e sentir que lu-
tava para escapar; e a cada momento de fraqueza, e na confiança do so-
no, o sobrepunha e o afastava da vida. O ódio de Hyde por Jekyll era
de ordem diferente. Seu pavor das galés continuamente o fazia cometer
suicídio temporário, e voltar ao estado subordinado de uma parte, em
vez de uma pessoa; mas desprezava a necessidade, desprezava a prostra-
ção na qual Jekyll havia caído, e ressentia o desgosto com o qual ele
próprio era visto. E assim, os truques primatas que agora fazia comigo,
rabiscava, com minha própria letra, blasfêmias nos livros, queimava as
cartas e destruiu o retrato de meu pai; e se não fosse o medo da morte,
já teria há muito tempo arruinado a si mesmo para me envolver na ruí-
na. Mas seu amor pela vida era maravilhoso; vou mais longe: eu, que
adoecia e gelava simplesmente por pensar nele, quando me lembro de
sua abjeção e da paixão desse apego, e quando sei o quanto teme meu
poder de fulminá-lo pelo suicídio, encontro no coração certa pena dele.
É inútil, e o tempo me desaponta terrivelmente, para que prolongue
este relato; ninguém jamais sofreu tais tormentos, é o que basta; e mes-
mo a eles o hábito trouxe — não, não alívio — mas certa indiferença pe-
la alma, certa submissão ao desespero; e minha punição poderia conti-
nuar por anos, exceto pela última calamidade que agora chega ao fim, e
que finalmente destruiu o meu próprio rosto e minha natureza. Minha
provisão do sal, que jamais havia sido renovada, desde a data da primei-
ra experiência, escasseou. Mandei alguém atrás de novo suprimento, e
preparei o composto; a ebulição ocorreu, e a primeira mudança de cor,
mas não a segunda; bebi, mas não houve efeito. Poole lhe contará como
vasculhei toda a cidade de Londres; foi em vão, e agora estou convenci-
do de que meu primeiro suprimento era impuro, e que era a impureza
desconhecida o efeito do composto.
Cerca de uma semana se passou, e agora termino este relato sob a
influência do último dos pós antigos. Esta, portanto, é a última vez, ex-
ceto por milagre, que Henry Jekyll poderá pensar por si ou olhar para o
próprio rosto (agora tristemente alterado!) no espelho. Não adiarei por
muito tempo o fim desta história, pois caso minha narrativa porventura
escape da destruição, terá sido por combinação de grande prudência
com sorte enorme. Se as agonias da transformação tivessem me afligido
durante o ato de escrevê-la, Hyde a teria rasgado em pedaços; mas se al-
gum tempo houver passado após tê-la guardado, seu incrível egoísmo e
circunscrição ao instante provavelmente a salvará das ações de seu ape-
tite primitivo. Na verdade, o destino que se fecha sobre nós dois já a al-
terou e a esmagou. Meia hora a partir de agora, quando haverei de evo-
car aquela odiada personalidade novamente, agora para sempre, sei que
me sentarei na cadeira trêmulo e lacrimoso, ou continuarei a andar para
cima e para baixo neste aposento (meu último refúgio terreno) e, com o
tenso e temeroso êxtase da audição, me atentarei a cada ruído ameaça-
dor. Hyde morrerá no cadafalso, ou encontrará a coragem para se liber-
tar no último momento? Deus sabe; não me importo; este é o verdadei-
ro momento de minha morte, e o que ocorrer depois interessa a qual-
quer outra pessoa, mas não a mim. Portanto, aqui deito a minha pena,
selo a minha confissão e ponho fim à vida do desgraçado Henry Jekyll.
[CONTO EXTRA]

NEBLINAS
MARÍTIMAS
ROBERT LOUIS STEVENSON
1907

Uma mudança na coloração da luz era o que me despertava nas manhãs.


Em dada hora, as longas frestas verticais no lado esquerdo de nosso te-
lhado, onde as telhas haviam encolhido e se separado, piscavam repenti-
namente em meus olhos como listras de um azul cintilante e, ao mesmo
tempo, tão escuro e belo que eu me perguntava como tais características
se misturavam. Mais cedo, os céus daquele lugar ainda tinham cores
mais discretas, mas a encosta da montanha que termina no cânion já re-
fletia a luz do sol em uma harmonia maravilhosa de dourado, rosa e
verde. Essa luz também piscava, mesmo que com menos intensidade,
assim como tons do arco-íris nas fendas de nosso telhado desajeitado.
Se eu estivesse dormindo profundamente, os tons de azul me desperta-
vam, se não, as luzes mais fracas o faziam.
Numa manhã de domingo, pelas cinco horas, o primeiro brilho ma-
tutino me chamou. Eu me levantei e virei para a direita, não por vonta-
de própria, mas para conseguir respirar. A noite foi calma. A pequena
ventania privada que soprava todas as noites em nosso cânion por dez
ou quinze minutos cessou nas horas seguintes. Nenhum sopro do vento
agitou a copa das árvores e nossa cabana, apesar de todas as fendas, esta-
va menos fresca do que de costume naquela manhã. Mas assim que che-
guei à janela, a vista me fez esquecer de todo o resto. Ajeitei minhas
roupas sem muito cuidado e desci pela tábua desajeitada até a platafor-
ma.
O sol ainda se escondia por trás das colinas do outro lado, apesar de
seu brilho já iluminar um pouco a encosta de nossa montanha. Mas o
cenário, tirando algumas características do local, havia mudado comple-
tamente. O Vale de Napa desapareceu, as encostas mais baixas e o sopé
arborizado da cordilheira também se foram, tudo. Em seu lugar, não
mais que centenas de metros abaixo de mim, surgiu um grande oceano.
Era como se eu tivesse ido para a cama na noite anterior em um lugar
cercado de montanhas interioranas e acordado numa baía litorânea. Eu
já havia testemunhado essas inundações de baixo delas. Em Calistoga,
despertei e saí no início da manhã tossindo e espirrando sob quilôme-
tros e quilômetros de um mar cinza de vapor, como um céu nublado —
uma visão monótona para um artista e dolorosa aos inválidos. Mas sen-
tar-se no alto, sozinho, no ar puro, sob a cúpula limpa do céu e olhar
depois a depressão do vale, proporcionava uma sensação estranha, dife-
rente e até mesmo agradável aos olhos. Ao longe, os topos das colinas
pareciam pequenas ilhas. Mais perto, uma onda de fumaça tocava a base
dos precipícios e se derramava nas enseadas das montanhas ásperas. A
cor daquele mar de neblina era algo que nunca será esquecido. Por um
instante, pouco antes do pôr do sol, vi algo entre as Hébridas que já vira
no próprio mar. Mas o branco não era tão opaco; nem aparecia; o que,
surpreendentemente aumentava o efeito, aquele brilho cristalino tran-
quilo acima de tudo. Mesmo nos dias de maior calmaria, o mar salgado
sussurra entre as algas ou chia na areia, mas aquele vasto mar de neblina
estava em um transe silencioso, nem o ar suave da manhã emitia sons.
Ainda sentado no vazio, comecei a ver que esse mar não era tão cal-
mo quanto parecia à primeira vista. Ao longe, no extremo sul, uma pe-
quena elevação de neblina surgiu em direção ao céu sobre a superfície
daquele mar e, como o sol já havia a tocado, ela brilhou no horizonte
como as velas de um imponente navio. Havia ondas enormes, estagna-
das, parecendo ondas num mar congelado. Ainda assim, quando olhava
outra vez, não tive certeza, mas, no fim, elas se moviam em um passo
lento e sublime. Enquanto eu ainda estava em dúvida, uma elevação das
colinas que ficava a cerca de seis ou oito quilômetros de distância e se
destacava por um buquê de pinheiros altos, foi dominada e engolida em
questão de instantes. Ela reapareceu rapidamente, com seus pinheiros,
parecendo uma ilhota, somente para desaparecer outra vez e para sem-
pre. Isso me fez olhar mais de perto, e vi que em todas as enseadas ao
longo da fileira de montanhas a neblina subia mais e mais alto, como se
por obra de um vento inaudível para mim. Eu conseguia observar seu
avanço. Primeiro um pinheiro ficava nebuloso e depois desaparecia, as
vezes não havia esse crescimento sorrateiro, mas todo o oceano opaco
branco avançava e engolia uma parte da montanha de uma vez só. Foi
para fugir dessa neblina venenosa que deixei a plataforma e escalei as
mais altas montanhas. E agora, pasme, vinha a neblina a me cercar na al-
titude em que escolhi, ainda assim, vinha tão bela que meu primeiro
pensamento foi dar a ela as boas-vindas.
O sol estava muito mais alto agora e por todas as brechas das colinas
ele lançava longas barras de ouro sobre o oceano branco. Uma águia, ou
algum outro tipo de grande pássaro das montanhas, começou a sobre-
voar os pinheiros mais próximos e pousou imponente e um pouco incli-
nada, como se olhasse além daquela desolação incomum procurando,
talvez com medo, os olhos de seus companheiros. Então, com um longo
guincho, ela desapareceu novamente em direção ao Condado de Lake a
procura de ares mais limpos. Pareceu-me que, finalmente, a inundação
começava a diminuir. Os antigos marcos, com cujos desaparecimentos
medi o avanço da neblina, uma rocha aqui, um belo pinheiro ali, agora
começaram, na ordem inversa, a reaparecer sob a luz do dia. Julguei que
todo o perigo do nevoeiro havia acabado. Não era como o dilúvio de
Noé, era apenas um pequeno manancial que agora retornava ao mar de
onde vinha. Muito aliviado e muito animado com aquela vista, voltei à
casa para acender a lareira.
Suponho que eram quase sete horas quando mais uma vez subi na
plataforma para olhar o exterior. O oceano de neblina havia sofrido um
aumento enorme desde a última vez que o vi. Algumas centenas de me-
tros sob mim, no profundo abismo onde fica o pedágio na estrada que
leva ao Condado de Lake, a névoa já havia dominado a encosta e derra-
mava sobre o outro lado como fumaça. O vento havia seguido a neblina
e, apesar de eu ainda estar em ares calmos, podia ver árvores balançando
sob mim e ouvia seus suspiros longos e estridentes de onde estava.
Depois de meia hora, a neblina havia engolido toda a cordilheira do
lado oposto do abismo, apesar de a encosta da montanha ainda a afastar
de nosso cânion. O Vale de Napa e os montes vizinhos estavam agora
completamente invisíveis. A neblina, brilhante sob a luz do sol, estava
caindo sobre o Condado de Lake em forma de uma enorme e agitada
catarata, se atirando sobre copas de árvores que apareciam e desapareci-
am em meio a névoa. O ar, de repente, veio frio e me deixou tossindo.
Tinha um cheiro forte da neblina, como o cheiro de uma sauna, mas
com uma leve nota de sal.
Se não fosse por duas coisas — um esporão que funcionou como um
dique e um grande vale no outro lado que engolfava rapidamente tudo
pela frente — nossa pequena plataforma no cânion já teria sido enterra-
da por centenas de metros sob o ar salgado e venenoso. Naquele instan-
te, o interesse na cena ocupava totalmente as nossas mentes. Nós estáva-
mos fora do alcance do vento e um pouco acima da neblina. Podíamos
ouvir a voz do outro como música no palco, podíamos mergulhar os
olhos um no outro como um riacho fluindo sobre o parapeito de uma
ponte, mas observamos a estranha, impetuosa, silenciosa e mutável exi-
bição dos poderes da natureza, e víamos a paisagem familiar mudar a
cada segundo como num sonho.
Com isso, percebi que a imaginação gosta de brincar com o irreal. Se
esse fosse de fato o dilúvio, eu teria sentido emoções mais fortes, mas de
um tipo similar. Eu brinquei com essa ideia como as crianças correm de
medo das criações de sua fantasia. A aparência que aquilo tinha contri-
buiu para essa sensação. E quando eu finalmente comecei a subir a
montanha, foi realmente, em parte, para escapar do ar frio que me fazia
tossir, mas era também parte da brincadeira.
Enquanto subia a encosta a montanha, voltei a contemplar a superfí-
cie do nevoeiro, mas ela tinha uma aparência diferente da que observei
ao amanhecer, pois antes, o sol caía sobre a superfície fazendo-a brilhar
e ondulava como os campos do norte cobertos pela neve matinal intoca-
da. Depois, a superfície devia estar trezentos metros mais alta que antes,
de forma que apenas cinco ou seis pontos do país esquecido ainda apa-
reciam. O Vale de Napa agora se juntara a Sonoma ao oeste. No outro
lado, apenas uma ponta fina e dispersa de penhascos estava descoberta e
por todas as frestas a neblina se derramava como um oceano no céu en-
solarado ao leste. E logo aquilo estava perdido, pois a neblina caiu ins-
tantaneamente no fundo dos vales e no leito dos rios, nos topos das co-
linas e no lugar onde que ainda brilhava sobre o céu no leste.
Através do vão do pedágio, próximo a cordilheira oposta, o dilúvio
era imenso. Um fraco jato de vapor foi lançado acima dela, subindo e
descendo, formando as mais fantásticas formas. A velocidade de seu
curso era como a de uma avalanche. Aqui e ali, algumas copas de árvo-
res apareciam e eram engolidas novamente e, por um segundo, o galho
de um pinheiro morto acenou para fora do jato como o braço de um
homem se afogando. Mas minha imaginação ainda estava insatisfeita e
os ouvidos estavam atentos por algo mais. Se fosse, de fato, água (como
parecia aos olhos), um trovão reverberante estaria acompanhando seu
curso, destroçando as montanhas e esmagando os pinheiros. Ainda as-
sim era água e água do mar, aquelas ondas pacíficas e um pouco rarefei-
tas, rolando no ar entre as colinas.
Subi ainda mais alto, entre as pedras vermelhas e a grama curta do
Monte Santa Helena, até que consegui ver Silverado e admirar o canto
privilegiado em que se encontrava. A planície ensolarada de neblina es-
tava várias centenas de metros mais alta, atrás de um gigante acúmulo de
um vapor algodoado ameaçando, a cada segundo, soprar e engolir nossa
propriedade. Mas o vórtice que passava pelo pedágio era forte demais e
lá estava nossa pequena plataforma, nos braços do dilúvio, mas ainda
aproveitando sua luz solar ininterrupta. No entanto, por volta das onze,
o jato fino veio flutuando sobre os pilares amigáveis, e comecei a pensar
que a neblina finalmente encontrara seu alvo. Mas era seu último esfor-
ço. O vento soprava enquanto jantávamos e começou a soprar levemen-
te do topo da montanha e às uma e meia, todo o mundo das neblinas
marítimas foi derrotado, voando para o sul em pequenos farrapos de
nuvens. E ao invés de uma praia deserta, nos encontramos outra vez ha-
bitando a encosta de uma alta montanha, o campo verde muito abaixo
de nós e a leve fumaça de Calistoga soprando no ar.
Esse foi o grande espetáculo daquela temporada. De vez em quando,
no início da manhã, um pequeno lago de neblina era visto no fundo do
Vale de Napa, mas as alturas não foram tomadas novamente e o mundo
circundante não mais foi separado de Silverado.
ROBERT LOUIS STEVENSON

Lembro-me claramente da espécie de inquietude da imaginação que me


lançou o primeiro livro que li de Stevenson. Tratava-se de A Ilha do Te-
souro. Eu o levara comigo para longa viagem até o sul. A leitura come-
çou sob a luz tremeluzente da lanterna do trem. Os vidros do vagão ti-
nham o vermelho da aurora meridional quando despertei do sonho de
meu livro, como Jim Hawkins, com os alaridos do periquito: “Pieces of
eight! Pieces of eight!”.[1]
Tinha, diante de meus olhos, John Silver, with a face as big as ham
— his eye a mere pinpoint in his big face, but gleaming like a crumb of
glass.[2] Eu via o semblante azulado de Flint, exasperado, ébrio de rum,
em Savannah, num dia quente, a janela aberta: o pedacinho de papel re-
dondo, recortado da Bíblia, escurecido com cinzas, na palma da mão de
Long John; a figura cor de vela do homem a quem faltavam dois dedos;
a mecha de cabelos loiros agitado pela brisa marinha no crânio de Al-
lardyce. Escutava os dois grunhidos de Silver ao enfiar a faca nas costas
da primeira vítima; o canto vibrante da lâmina de Israel Hands fixar no
mastro o ombro do pequeno Jim; o tinido das correntes dos enforcados
sobre a Execution Dock; e a voz fina, alta, vacilante, aérea e doce se ele-
var entre as árvores da ilha ao cantar langorosamente: “Darby M’Graw!
Darby M’Graw!”
Então, percebi que havia sentido o poder de um novo criador de li-
teratura, e que meu espírito seria doravante assombrado por imagens de
coloração desconhecida e por sons jamais ouvidos. E, nesse ínterim, tal
tesouro era tão atraente quanto os baús de ouro do capitão Kidd, co-
nhecia a caveira presa na árvore em “O Escaravelho de Ouro”; já tinha
visto Blackbeard beber rum, como o capitão Flint, no relato de Exque-
melin; reencontrava em Ben Gunn, transformado em selvagem, Ayrton
na ilha Tabor;[3] me recordava da morte de Falstaff, em agonia como o
velho pirata, e das palavras de Mrs. Quickly:
“ ‘A parted even just between twelve and one, e’en at the turning o’
the tide; for after I saw him fumble with the sheets, and play with
flowers, and smile upon his finger’s ends. I knew there was but one
way; for his nose was as sharp as a pen and’ a babbled of green fi-
elds”… “They say, he cried out of sack.” — “Ay, that’ a did”.[4]
Escutei o mesmo balanço dos enforcados queimados de sol, na balada
de François Villon; e o ataque à casa solitária, no meio da noite, me lem-
brava do conto popular, “The Hand of Glory”.[5] “Tudo foi dito, há seis
mil anos que os homens existem e pensam.” Mas tudo isso foi dito com
sotaque diferente. Por que, e qual era a essência desse poder mágico?
Eis o que gostaria de tentar mostrar nestas poucas páginas.
Poderíamos caracterizar a diferença entre o regime antigo na litera-
tura e nossos tempos modernos pelo movimento inverso do estilo e da
ortografia. Parece-nos que todos os escritores do século XV e do XVI
usavam língua admirável, uma vez que escreviam cada palavra à sua
própria maneira, sem a preocupação com a forma. Hoje em dia, com as
palavras fixas e rígidas, vestidas com todas as suas letras, corretas e poli-
das, em ortografia imutável, como convidadas de gala, perderam o indi-
vidualismo de cor. As pessoas se vestiam com tecidos de cores diferen-
tes: agora as palavras, como as pessoas, usam preto. Já não as distingui-
mos tão bem, apesar de serem grafadas corretamente. As línguas, como
as pessoas, provêm de organização social refinada em que banimos as
mixórdias indecentes. Não é diferente nas histórias ou nos romances. A
ortografia de nossos contos é perfeitamente regular: os produzimos se-
guindo modelos exatos.
The actors are, it seems, the usual three[6]

diz George Meredith. Há uma maneira de contar e de escrever. A hu-


manidade literária segue voluntária às rotas traçadas pelos primeiros
descobridores de que a comédia não mudou muito desde a “maquete”
fabricada por Menandro, nem os romances de aventura desde o esboço
que Petrônio desenhou. O escritor que rompe com a ortografia tradici-
onal prova verdadeiramente a sua força criativa. Mas precisa se render:
não pode jamais alterar a ortografia das frases e a direção das linhas.
Ideias e feitos bastam em si mesmos, como o papel e a tinta. O que glo-
rifica Hans Holbein no desenho da família de Thomas More são as cur-
vas que imaginou ao descrever com a pena. A matéria da Beleza perma-
neceu idêntica desde o Caos. O poeta e o pintor são inventores de for-
mas: se servem de ideias comuns e de faces de todo o mundo.
Agora, pegue o livro de Robert Louis Stevenson. O que é? Uma
ilha, um tesouro, piratas. Quem conta? A criança a quem a aventura
chegou. Odisseu, Robinson Crusoé, Arthur Gordon Pym[7], não seriam
apresentados de outra maneira. Mas aqui há entrecruzamento de rela-
tos. As mesmas ações são expostas por dois narradores — Jim Hawkins
e o doutor Livesey. Robert Browning já havia imaginado algo seme-
lhante em seu [longo poema narrativo] The Ring and the Book. Steven-
son encena o drama pelos narradores simultâneos; e em vez de deixá-lo
pesado com os mesmos detalhes captados por outras pessoas, não nos
apresenta mais que dois ou três pontos de vista diferentes. O obscuro é
o plano de fundo, para nos oferecer a incerteza do mistério. Não sabe-
mos exatamente o que fez Billy Bones. Dois ou três toques de Silver
bastam para nos inspirar o tremendo arrependimento por ignorar para
sempre a vida do capitão Flint e seus companheiros de fortuna. Quem
era a negra de Long John, e em qual estalagem de qual cidade do Orien-
te nos encontraremos, com avental de cozinheiro, the seafaring man wi-
th one leg?[8] A arte, aqui, consiste em pouco dizer. Tive triste decepção
no dia em que li em Charles Johnson a vida do capitão Kidd: preferia
nunca ler. Estou certo de que jamais lerei sobre a vida do capitão Flint
ou de Long John. Elas repousam, inalteradas, no túmulo de Monte Pala,
na ilha de Apia.
And may I
And all my pirates share the grave
Where these and their creations lie![9]

Stevenson soube empregar essas espécies de silêncios no relato, que tal-


vez sejam o que há de mais apaixonante nos fragmentos do Satíricon,
com maestria extraordinária. O que não nos conta da vida de Allan
Breck, de Secundra Dass, de Olalla, de Attwater, nos atrai mais que
aquilo que nos contou. Ele sabe fazer com que personagens surjam das
trevas criadas a seu redor.
Mas por que a própria narrativa, além da forma e dos cortes de si-
lêncio dispensados, possui essa intensidade particular que não permite
soltar um livro de Stevenson após começá-lo? Imagino que o segredo
desse poder foi transmitido de Daniel Defoe a Edgar Alan Poe e então a
Stevenson, e que Charles Dickens vislumbrou em Two Ghost Stories. É
essencialmente a aplicação dos meios mais simples e mais reais aos as-
suntos mais complicados e inexistentes. A narração minuciosa da apari-
ção de Mrs. Veal, o relatório escrupuloso do caso do senhor Valdemar, a
análise paciente da faculdade monstruosa do dr. Jekyll são os exemplos
mais impressionantes desse procedimento literário. A ilusão da realida-
de requer que os objetos apresentados a nós sejam aqueles que vemos
todos os dias, a que estamos bem acostumados; a pungência da impres-
são, que as relações entre esses objetos familiares sejam subitamente
modificadas. Faça alguém cruzar o indicador sob o dedo médio e colo-
que uma esfera entre as extremidades dos dedos cruzados: ele sentirá
duas, e a surpresa será muito maior que quando o sr. Robert Houdin
faz surgir uma omelete ou cinquenta metros de fita do chapéu prepara-
do de antemão. É porque esse homem conhece perfeitamente os dois
dedos e a esfera: portanto, não duvida de maneira alguma da realidade
que experimenta. Mas as relações das sensações mudaram: e, assim, é to-
cado pelo extraordinário. O que há de mais apreensivo no Diário do
Ano da Peste [de Defoe] não são nem as covas prodigiosas nos cemité-
rios, nem as pilhas de cadáveres, nem as portas marcadas por cruz ver-
melha, nem o tinido dos sinos dos coveiros, nem os tormentos solitários
dos fugitivos, nem mesmo the blazing star, of a faint, dull, languid co-
lour, and its motion very heavy, solemn, and slow.[10] Mas o pavoroso é
extremo na narrativa: o curtidor, em meio ao profundo silêncio das ru-
as, entra no pátio do prédio dos correios. Um homem está no canto;
outro diante da janela; outro na porta do escritório. Todos os três ob-
servam, no centro do pátio, a pequena bolsa de couro com duas chaves
penduradas; ninguém ousa tocá-la. Por fim, um deles se decide, pega a
bolsa com tenazes vermelhas de fogo, e após queimá-la, deixa o conteú-
do cair no balde cheio de água. The money, as I remember, diz Defoe,
was about thirteen shillings, and some smooth groats and brass far-
things.[11] Eis uma pobre aventura das ruas — a bolsa abandonada —,
porém todas as condições de ação estão modificadas, e assim o horror
da peste nos ronda. Dois dos incidentes mais aterradores da literatura
são a descoberta por Robinson da pegada desconhecida na areia da ilha,
e o estupor de dr. Jekyll ao reconhecer, após despertar, que a própria
mão, estendida no lençol da cama, se transformou na mão peluda do sr.
Hyde. O sentimento do mistério nesses dois eventos é insuperável. En-
tretanto, nenhuma força física parece intervir nelas: a ilha de Robinson é
desabitada — não deveria existir pegadas além das dele; o dr. Jekyll não
deveria ter, pela ordem natural das coisas, a mão peluda do sr. Hyde.
São simples oposições de fatos.
Agora, gostaria de explicar o que essa propriedade tem de especial
na obra de Stevenson. Salvo engano, é mais arrebatadora e mais mágica
em sua obra que na de todos os outros. A razão, me parece, está no ro-
mantismo de seu realismo. Assim, seria possível dizer que o realismo de
Stevenson é perfeitamente irreal, e, por isso, tão poderoso. Stevenson
nunca viu as coisas a não ser com a imaginação. Homem algum tem o
rosto parecido com presunto; o cintilar dos botões prateados de Alan
Breck, enquanto salta sobre o navio de David Balfour, é pouco provável
de acontecer; a rigidez da linha de luz e da fumaça das chamas das velas
no duelo do Morgado de Ballantrae não poderia acontecer em laborató-
rio; nunca a lepra se pareceu com a mancha de líquen que Keawe desco-
bre na carne; será que alguém acredita que Cassilis, em “O Pavilhão nas
Dunas”, pode ver o brilho nas pupilas de um homem ao luar, though he
was a good many yards distant?[12] Não falo exatamente do erro que o
próprio Stevenson reconheceu, e pelo qual faz Alison realizar algo im-
praticável: She spied the sword, picked it up… and thrust it to the hilt
into the frozen ground.[13]
Mas, na verdade, esses não são erros: são imagens mais fortes que as
imagens reais. Encontramos boa quantidade de escritores capazes de re-
alçar a realidade com a cor das palavras; não sei onde encontraríamos
alhures imagens que, sem a ajuda das palavras, são mais violentas que as
imagens reais. Essas são imagens românticas, uma vez que destinadas a
aumentar o brilho da ação pelo decoro; essas são imagens irreais, pois
nenhum olho humano saberia enxergá-las no mundo que conhecemos.
Não obstante, são, propriamente falando, a quintessência da realidade.
Na verdade, o que permanece em nós de Alan Breck, de Keawe, de
Thevenin Pensete, de John Silver, é o casaco com botões de prata, a irre-
gular mancha de líquen, estigma da lepra, a cabeça careca com duas me-
chas de cabelo ruivo, esse rosto grande como presunto, com os olhos
cintilantes como caco de vidro. Não é isso o que os marca na memória?
Isso o que lhes fornece a vida fictícia que têm os seres literários, essa vi-
da que de tal maneira ultrapassa em energia a vida, que percebemos com
os olhos do corpo o que move as pessoas em nossa volta? Pois o agrado
e o interesse com que percebemos os outros é excitado, na maior parte
do tempo, por seu grau de semelhança com seres literários, pela tinta
romântica que as cobre. Nossos contemporâneos existem com muito
mais individualidade quando os vinculamos mais inteiramente a cria-
ções irreais de tempos antigos. Esse suspiro literário faz florir todas as
nossas afeições pela beleza. Raramente vivemos a nossa própria vida
com prazer. Tentamos quase sempre morrer outra morte que não a nos-
sa. É uma espécie de convenção heroica que dá brilho a nossas ações.
Quando Hamlet salta sobre o túmulo de Ofélia, sonha a própria saga, e
grita:
This is I, Hamlet the Dane.[14]

E quantos se orgulharam de viver a vida de Hamlet, que desejava viver a


vida de Hamlet, o dinamarquês. Recordemo-nos de Peer Gynt, que não
pôde viver a própria vida, e que retornou ao seu país, velho e desconhe-
cido, e viu no leilão os acessórios da própria lenda serem vendidos. De-
veríamos ser gratos a Stevenson por aumentar nosso círculo desses ami-
gos do irreal. Aqueles que nos foram dados são tão vivamente estigma-
tizados pelo realismo romântico, que é grande o risco de jamais os en-
contrarmos por aqui. Frequentemente, vimos Dom Quixote, de com-
plexion recia, seco de carnes, enjuto de rostro; ou o frei Jean des En-
toummeures, alto, magro, de boca escancarada e nariz avantajado; ou o
príncipe Hal, com a villainous trick of his eye and a foolish hanging of
his nether-lip:[15] todos eles traços de visão e corpo que a natureza reser-
vou a nós, e que sempre nos mostrará. O valor imaginativo resulta da
escolha e da cor das palavras, da cesura da frase, da adequação ao perso-
nagem que descreve; e essa combinação artística é tão miraculosa que os
traços comuns e frequentes eternizam Dom Quixote, frei Jean, o prínci-
pe Hal: lhes pertencem, são a eles que precisamos pedir autorização.
Nada se equipara com aqueles criados por Stevenson. Não podemos
modelar ninguém à sua imagem, pois cada um é demasiado vivo e sin-
gular, ou está ligado a um traje, a um jogo de luz, a um acessório teatral,
poderíamos dizer. Eu me lembro de quando encenamos aqui a peça de
John Ford, ‘T is pity she’s a whore,[16] decidimos que era preciso espetar
no punhal de Giovanni um coração ensanguentado de verdade. No en-
saio, o ator brandiu um coração de carneiro fresco na ponta da adaga.
Ficamos estupefatos. Lá no palco, em cena, em meio ao cenário, nada
parecia menos com o coração que um coração de verdade. Esse pedaço
de carne se assemelhava a peça de açougue, de toda púrpura. Não era de
modo algum o coração ensanguentado da bela Annabella. Assim pensa-
mos que se em cena um coração de verdade parece falso, um coração
falso deverá parecer verdadeiro. Fizemos o coração de Annabella com
pedaço de flanela vermelha, recortada de acordo com a forma que vi-
mos nas imagens santas. O vermelho era de brilho incomparável, bas-
tante diferente da cor do sangue. Quando o vimos surgir a segunda vez
com a adaga, sentimos pequeno frêmito de angústia, pois ali estava, sem
sombra de dúvida, o coração ensanguentado da bela Annabella. Parece-
me que os personagens de Stevenson possuem justamente essa espécie
de realismo irreal. A enorme figura reluzente de Long John, a palidez
da cabeça de Thevenin Pensete se fixa na memória de nossos olhos em
virtude da própria realidade. São fantasmas da verdade, alucinantes co-
mo verdadeiros fantasmas. Notem de passagem que Jim Hawkins aluci-
na com os traços de Long John Silver, e que François Villon é atormen-
tado pelo aspecto de Thevenin Pensete.
Tentei mostrar até aqui como a pungência de Stevenson e de alguns
outros resulta do contraste entre o ordinário dos meios e o extraordiná-
rio do que significam; como o realismo dos meios na obra de Stevenson
possui vivacidade especial; como essa vivacidade nasce da irrealidade do
realismo de Stevenson. Mas gostaria de ir ainda um. pouco mais longe.
Essas imagens irreais de Stevenson são a essência de seus livros. Como o
fundidor de cera derrama o bronze no “núcleo” de argila, Stevenson
derrama sua história ao redor da imagem que criou. Isso é bastante visí-
vel em “A Porta do Senhor de Malétroit”. O conto não passa de tentati-
va de explicar a seguinte visão: uma grande porta de carvalho, que pare-
ce embutida na parede, cede ao peso das costas de alguém que se escora
ali, gira silenciosamente sobre as dobradiças untadas de óleo e se fecha
automaticamente em trevas desconhecidas. É ainda uma porta que pri-
meiro assombra a imaginação de Stevenson no começo de O Médico e o
Monstro. Em “O Pavilhão nas Dunas”, o único interesse do relato é o
mistério do pavilhão fechado, solitário em meio às dunas, com luzes er-
rantes detrás das janelas cerradas. As Novas Mil e Uma Noites são cons-
truídas ao redor da figura do jovem que entra num bar com bandeja de
tortas de creme. As três partes de “Will o’ the Mill” são essencialmente
realizadas com o cardume de peixes prateados que desce a corrente do
rio, a janela iluminada na noite azul (one little oblong patch of orange)
[17] e o perfil da carroça, and above that a few black pine tops, like so
many plumes.[18] O risco de tal procedimento de composição é que o
relato não possua a intensidade da imagem. Em “A Porta do Senhor de
Malétroit”, a explicação está muito abaixo da visão. Quanto às tortas de
creme de “O Clube do Suicídio”, Stevenson renunciou a dizer por que
estavam lá. As três partes de “Will o’ the Mill” são exatamente à altura
das imagens, que assim parecem ser símbolos verdadeiros. Por fim, nos
romances, Sequestrado, A Ilha do Tesouro, O Morgado de Ballantrae
etc., o relato é incontestavelmente superior à imagem, ainda que tenha
sido o ponto de partida.
Agora, o criador de tantas visões repousa na afortunada ilha dos ma-
res austrais.
en nêsois makarôn se phasin einai.[19]
Ah! Não veremos mais nada com his mind’s eye. Todas as belas fantas-
magorias que ainda poderia criar jazem na estreita tumba polinésia, não
muito longe da esplendorosa franja de espuma: a última imaginação, tal-
vez também irreal, de vida doce e trágica. “I do not see much chance of
our meeting in the flesh”,[20] me escreveu. Foi uma triste verdade. Para
mim, ele descansa rodeado pela auréola de sonho. E estas poucas pági-
nas não são mais que a tentativa de explicar que tive sonhos inspirados
pelas imagens de A Ilha do Tesouro em radiante noite de verão.
CRONOLOGIA

1850 { Nasce em Edimburgo, Escócia.


1876 { Temporada em Londres. Conhece a americana Fanny Osbourne,
sua futura esposa.
1877 { Publicação original de “Uma Hospedagem para a Noite”.
1878 { Publicação original de “A Porta do Senhor de Malétroit”, “O
Clube do Suicídio”, “O Diamante do Rajá” e “A Providência e
seu Violão”.
1880 { Publicação original de “O Pavilhão nas Dunas”.
1881 { Publicação original de “Janet, a Entortada” e do volume de en-
saios Virginibus Puerisque.
1882 { Publicação de As Novas Mil e uma Noites.
1883 { Publicação do romance A Ilha do Tesouro.
1884 { Publicação de “O Apanhador de Corpos”.
1885 { Publicação original de “Markheim” e “Olalla”.
1886 { Publicação de O Médico e o Monstro.
1887 { Publicação do volume de contos The Merry Men, que reúne, en-
tre outros, “Markheim”, “Janet, a Entortada” e “Olalla”.
1891 { Publicação original de “A Praia de Falesá”.
1892 { Publicação original de “O Demônio da Garrafa”.
1893 { Publicação original de “A Ilha das Vozes” e de Entretenimentos
das Noites nas Ilhas.
1894 { Morte por crise de apoplexia nas Ilhas Samoanas.
FONTES

Textos traduzidos a partir de The Complete Stories of Robert Louis Ste-


venson, org. Barry Menikoff. Nova York: Modern Library Classics,
2002; e de Dr. Jekyll and Mr. Hyde with The Merry Men & Other Sto-
ries, R.L. Stevenson. Hertfordshire: Wordsworth Classics, 1999.
O conto “Janet, a Entortada” foi traduzido com a consulta de “Thrawn
Janet or Twisted Janet” (trad. M. Grant Kellermeyer), disponível em
https://www.oldstyletales.com/single-post/2015/03/20/Robert-Louis-
Stevensons-Thrawn-Janet-An-Original-English-Translation-from-the-
Scots, acessado em setembro de 2019.
O ensaio “Robert Louis Stevenson” foi traduzido de “Robert Louis
Stevenson vu par Marcel Schwob”, disponível em: https://www.larevu-
edesressources.org/robert-louis-stevenson-vu-par-marcel-
schwob,013.html, acessado em setembro de 2019; e de Spicilège, Marcei
Schwob. Paris: Société du Mercure de France, 1896, p. 94–115, disponí-
vel em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k24i2779.pdf, acessado em
setembro de 2019.
As citações bíblicas foram traduzidas por João Ferreira Almeida, dispo-
nível em http://biblia.com.br/joao-ferreira-almeida-atualizada/ e aces-
sada em setembro de 2019.
Dados factuais presentes na biografia, introdução e cronologia foram
consultados em http://robert-louis-stevenson.org entre dezembro de
2017 e setembro de 2019.
ROBERT LOUIS STEVENSON nasceu em Edimburgo, na Escócia,
em 1850. Proveniente de tradicional família de construtores de faróis, o
escritor seguiu, por sua vez, prolífica carreira literária que legaria ro-
mances, novelas, contos, ensaios, poemas, peças teatrais, relatos de via-
gem, e ao menos dois clássicos da literatura universal: A Ilha do Tesouro
e O Médico e o Monstro. Apesar de considerado por muitos como autor
infanto-juvenil, Stevenson foi celebrado por um heterogêneo rol de es-
critores, tais como Jorge Luis Borges, Vladimir Nabokov, Virginia Wo-
olf, G.K. Chesterton, Arthur Conan Doyle, Marcel Schwob e Henry
James. Até hoje sua obra inspira incontáveis traduções, adaptações, in-
terpretações e homenagens. Debilitado, por conta do clima europeu, em
1887 sai do continente em busca de ares mais amenos, e após alguns me-
ses de viagens, passa por fim a viver nas Ilhas Samoanas, onde permane-
ceria até o fim da vida e seria conhecido como tusitala, o contador de
histórias.

PAULO RAVIERE nasceu em Irecê, Bahia, em 1986. Tem mestrado em


tradução pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e atualmente cursa
o doutorado na FFLCH/USP. Colaborou com o Blog do IMS e as revistas
Pesquisa FAPESP, Barril e Piauí. Saiba mais em raviere.wordpress.com.

ALCIMAR FRAZÃO é quadrinista e ilustrador, formado em Artes Visuais


pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo
(USP). Integrou o coletivo de quadrinhos O Contínuo (2005–2010), on-
de publicou sete edições e dois álbuns especiais. É autor dos romances
gráficos Ronda Noturna (Zarabatana, 2014), O Diabo e Eu (Mino,
2016) e Cadafalso (Mino, 2018), este último álbum, vencedor do ProAC
HQ de 2016. Seu trabalho é publicado no Brasil, Portugal e Espanha e
pode ser acompanhado em zeppelin82.tumblr.com.

As ilustrações para este volume foram imaginadas como releituras dos


arcanos maiores do clássico Tarô de Marselha, o mais tradicional dos ta-
rôs e padrão a partir do qual todos os demais derivam, provavelmente
concebido no século XV na região norte da Itália, e introduzido no sul
da França, quando os franceses conquistaram Milão e Piemonte em
1499. Nele existem duas cartas que se distinguem das outras: o Louco,
cuja carta não é numerada, e a carta XIII, que não é nomeada.
Notas
1. A Leitora Incomum, Virginia Woolf. Curitiba: Arte e Letra, 2007, p. 66. Trad. Emanuela
Siqueira.

2. A Aventura do Estilo: ensaios e correspondência de Henry James e Robert Louis Stevenson.


Rio de Janeiro: Rocco, 2017, p. 215.Org. e trad. Marina Bedran.

3. “Stevenson, seu Estilo e o Burro”, Gilles Lapouge. In: Robert Louis Stevenson. Viagem com
um Burro pelas Cevenas. São Paulo: Carambaia, 2016, p.118–9.

4. A Aventura do Estilo, p. 107.

5. The Complete Stories of Robert Louis Stevenson. Nova York: Modem Library Classics, 2002,
p. 412. Org. Barry Menikoff.

6. A Aventura do Estilo, p. 95.

7. “Introduction”, Tom Middleton. In: R.L. Stevenson. Dr. Jekyll and Mr. Hyde with The
Merry Men & Other Stories. Hertfordshire: Wordsworth Classics, 1999, p. XIV-V.

8. “A Poesia da Circunstância”, Davi Arrigucci Jr. In: Robert Louis Stevenson. O Clube do
Suicídio e Outras Histórias. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 27.

9. “Why Robert Louis Stevenson’s South Sea Tales Go Against the Tides”, Jane Rogers. The
Guardian, 9 dez. 2016.

10. “Introduction”, Barry Menikoff. In: Barry Menikoff (org.). The Complete Stories of Robert
Louis Stevenson. Nova York: Modem Library Classics, 2002, p. XLII.


1. Remédios com grande porcentagem de álcool.

2. Nome de personagem de várias canções e peças da época. De acordo com o poema


mencionado por Rudyard Kipling, Ka-Foozle-Um é a filha de um baba de Jerusalém.

3. Calças largas e leves usadas em algumas regiões da índia.

4. Espécie de paraíso dos marinheiros, onde sempre toca um violino ou rabeca.

5. Helena Blavatsky (1831–1891), fundadora da teosofia.


1. Lendário monarca e patriarca cristão da Idade Média, a quem se atribui diversas histórias
prodigiosas.
2. Lepra, palavra sem equivalente direto no idioma havaiano.


1. Kamehameha I, o Grande (1758–1819), monarca responsável por unificar o arquipélago
havaiano e estabelecer o Reino do Havaí.


1. Referência ao assassino escocês William Burke (1792–1829), que, em companhia de William
Hare (ca. 1804–1829), vendia corpos para o médico e professor de anatomia Robert Knox
(1793–1862). Não por acaso, o escritor francês Marcei Schwob fecha o livro Vidas Imaginárias
com o conto “Burke e Hare, Assassinos”.

2. Uma coisa pela outra.

3. Corruptela de “Hodie mihi, cras tibi” (Hoje para mim, amanhã para ti), frase bastante usada
em túmulos.


1. No folclore escocês, o Kelpie é espírito das águas que surge em forma de cavalo, às vezes de
humano.


1. Notórios assassinos, cujas execuções causaram grande comoção na Inglaterra. Elizabeth
Brownrigg (1720–1767) espancou até a morte a aprendiz de criadagem. Frederick (1820–1849) e
Marie Manning (1821–1849) atiraram na cabeça de um convidado e o enterraram na cozinha.
John Thurtell (1794–1824) atirou no rosto de um homem e, como ele sobreviveu ao disparo,
cortou sua garganta com canivete.


1. Em Hamlet ato 1, cena 5, o protagonista faz Horácio e Marcelo jurarem sobre sua espada que
não comentarão com ninguém do fantasma de seu pai.


1. Gigantescos carros-templo hindus que tinham a má-fama de atropelar quem estivesse no
caminho. No inglês moderno, a palavra adquiriu o significado de força destrutiva e
incontrolável.

2. Personagens históricos gregos, símbolos da amizade inquebrantável.

3. Obrigado a traduzir epigrama 32 do livro do poeta latino Marcial “Non amo te, Sabidi, nec
possum dicere quare / Hoc tantum possum dicere, non amo te” (Não te amo, Sabidius, mas não
posso dizer o porquê / Só posso dizer que não te amo), o então estudante Tom Brown satirizou
o professor John Fell: “I do not like thee, Dr. Fell/The reason why I cannot tell/But this I know,
and know full well / I do not like thee, Dr. Fell” (Não gosto de você, dr. Fell / O motivo não sei
bem dizer / Mas disto tenho certeza / Não gosto de você, dr. Fell); com a popularização da
tradução do epigrama, “Dr. Fell” se tornou o símbolo de aversão inexplicável.

4. Expressão jurídica derivada de verso de Horácio. O castigo claudica — nem sempre é


imediato ao crime.

5. “Baize”, no original. Tecido semelhante ao feltro. Entre os séculos XVIII e XIX, era comum
que uma cobertura de baeta verde fosse colocada nas portas que separavam o espaço da
criadagem das outras áreas das mansões. Entre vários significados possíveis, a baeta vermelha
pode simbolizar o isolamento do dr. Jekyll do resto da humanidade.

6. Atos 16, 26: “De repente houve um tão grande terremoto que foram abalados os alicerces do
cárcere, e logo se abriram todas as portas e foram soltos os grilhões de todos”.

7. Daniel 5, 5: “Na mesma hora apareceram uns dedos de mão de homem, e escreviam, defronte
do castiçal, na caiadura da parede do palácio real; e o rei via a parte da mão que estava
escrevendo”.


1. Peças de oito! Peças de oito!

2. O rosto grande como presunto — o olho é mera tachinha neste rosto, mas cintilante como
caco de vidro.

3. Capitão Kidd, pirata real, protagoniza conto de Vidas Imaginárias (1896), do próprio
Schwob; “O Escaravelho de Ouro” é um conto de aventura de Edgar Alan Poe; Alexandre-
Olivier Exquemelin (1645–1707) foi pirata e escritor, e deixou uma obras importante sobre a
pirataria do século XVII; capitão Flint e Ben Gunn são personagens de A Ilha do Tesouro; o
náufrago Tom Ayrton é personagem de dois livros de Jules Verne (1828–1905), e, em um deles, é
resgatado da ilha Tabor pelo capitão Nemo, protagonista de Vinte Mil Léguas Submarinas.

4. Henrique V 2,3, de Shakespeare: “Ele partiu exatamente entre doze e uma hora, bem na hora
da mudança da maré; após vê-lo apalpar os lençóis e brincar com as flores e rir das pontas dos
dedos, sabia que não havia mais o que fazer, pois o nariz estava fino como pena e ele tagarelava
de campos verdejantes…” “Dizem que clamou por xerez” — “Sim, isso ele clamou”.

5. Referência a verso da Ballade des Pendus [Balada dos Enforcados], de Villon: “E o sol nos
secou e escureceu”; de acordo com o folclore europeu, a posse da mão de um enforcado traz
poderes mágicos. Em 1893, Schwob publicou o conto “La Main de Gloire”.

6. Os atores, aparentemente, são sempre três.

7. Odisseu, também conhecido como Ulisses, personagem de diversas obras da literatura grega
clássica, como Ilíada e Odisseia, de Homero; Robinson Crusoé é personagem de livro
homônimo de Daniel Defoe; A Narrativa de Arthur Gordon Pym foi escrita por Edgar Allan
Poe. Os três são marinheiros.

8. O navegante de uma perna só.

9. E que eu possa / Com todos os meus piratas dividirmos a tumba / Onde jazem com os seus
feitos.

10. A estrela resplandecente, de coloração maçante, opaca e lânguida, com movimento difícil,
solene e lento.

11. A quantia, me lembro, era cerca de treze xelins, mais alguns pence gastos e umas moedinhas
de latão.

12. Embora estivesse a vários metros de distância.

13. Ela examinou a espada, a empunhou… e a enfiou até o cabo no chão congelado.

14. Hamlet 5, I: “Sou eu, Hamlet, o dinamarquês”.

15. Dom Quixote I, 1: “De fisionomia rígida, seco de carnes, enxuto de rosto”; a descrição do
frei Jean des Entoummeures está em Gargântua (1534), de François Rabelais (1494–1553);
Henrique IV, Parte I, 2, 4: “Por tique horrível no olho e expressão estúpida no lábio inferior”.

16. Tragédia de John Ford, publicada em 1633 e, possivelmente, encenada em 1626, pode ser
traduzida como Que pena que ela é uma prostituta.

17. Pequeno e comprido pedaço laranja.

18. E, sobre ela, os cumes de alguns pinheiros pretos, como amontoado de plumas.

19. “Disseram que você está nas ilhas dos bem-aventurados” (traduzido do francês).

20. Não vejo muita chance de nos encontrarmos pessoalmente.

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