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esde os 16 anos que leio um ver, três mulheres ficcionais recentes mostrou nobreza, coragem pelo seu

tipo de livros que durante mui- contribuíram para esse novo pico. povo e filhas, fragilidade mas também
tos anos foram associados a O novo filme de Mad Max, Fury uma incrível resistência. O seu destino
rapazes adolescentes. Li muitas obras Road, deu a oportunidade aos fãs da cruel não consegue apagar as emoções
de fantasia e ficção científica escritas trilogia original de um sério upgrade arrasadoras que expôs nesse episódio.
por homens sobre protagonistas mas- ao séc. XXI. George Miller não só atu- Guerra dos Tronos pode bem ser con-
culinos (embora existisse um sidekick aliza o universo de Mad Max, como lhe troverso no seu retrato de mulheres
feminino amoroso). Os grupos de ami- confere toda uma exuberância visual e violentadas por homens, mas também
gos com quem gostava de discutir estes hiper-realismo que fazem o filme des- demonstra que sabe trazê-las para pri-
livros eram dominados por homens. tacar-se pelo seu frenesim. Mas o que meiro plano.
Era o ego masculino que concentrava surpreendeu tudo e todos foi ter dado E, por fim, resta-me falar de Ava no
todos os dilemas nos livros, mesmo a Max um papel secundário quando na filme de ficção científica Ex-Machina
quando as catástrofes englobavam não verdade o centro do filme era a pro- de Alex Garland. Num retrato muito
apenas o homem, mas a Humanidade. tagonista Furiosa (interpretada por mais sofisticado e ambíguo, o andrói-
Nem sempre é fácil apercebermo-nos Charlize Theron). Nos minutos finais de feminino Ava (protagonizada por
do condicionamento, um pouco como do filme, Max sai calmamente de cena Alicia Vikander) é a personificação dos
as crianças em Admirável Mundo Novo enquanto deixa Furiosa erguer-se em poderes de sedução de uma mulher e a
de Aldous Huxley que dormem duran- direção à apoteose. Miller transformou sua capacidade de manipulação, mas ao
te a noite a ouvir frases repetidas pelo dramaticamente o seu universo e con- mesmo tempo transcende os objetivos
governo que lhes vão ensinar o que seguiu fazer a melhor homenagem fe- do seu criador para se tornar em algo
gostar e como se comportarem. Não minista numa obra tão dominada pelo indecifrável e muito mais complexo.
questionamos porque desde crianças olhar masculino. Será Ava um ser capaz de passar o tes-
vivemos num ambiente que não nos Quem assistiu ao episódio 8 da quin- te de Turing? Será Ava capaz de sentir
encoraja a questionar a dominância ta temporada de A Guerra dos Tronos, amor e apaixonar-se? Temos o direito,
masculina. sabe que ocorreu um ponto de vira- como criadores de inteligência artifi-
Quando em anos recentes, começou gem crucial. Os últimos 20 minutos cial, de controlar Ava e submetê-la aos
a lutar-se mais na literatura fantástica descrevem como Jon Snow, com a nossos caprichos e desejos? Não tem
pela igualdade de género e uma maior ajuda de alguns selvagens do Povo Li- direito ela a uma identidade fora da es-
representação de minorias, a nossa vre, vai ao encontro de Larduro para fera do seu criador que é em simultâ-
primeira reação foi a de sentir que o convencer o povo a partir com ele para neo pai, marido, irmão, amigo?
exagero era grande e era tudo um dis- a Muralha. Jon Snow sabe que a ver- Através destas três faces, Furiosa,
parate. Eu própria posso ter sentido dadeira ameaça está a aguardar a hora Karsi e Ava, aprendemos a resistir con-
isso por vezes. Aqui culpo outra vez o certa para libertar uma onda de devas- tra o condicionamento e a não descar-
condicionamento. tação. Nesses incríveis 20 minutos, o tar as vozes de luta e protesto. Ainda
Mas depois me apercebi que essa luta Inverno traz com ele algo pior do que temos um longo caminho a trilhar, mas
pela igualdade e por direitos de repre- a morte e o herói é forçado a assistir é com alegria que descubro que o gé-
sentação digna tornou-se uma necessi- nos últimos minutos arrepiantes o po- nero fantástico, sempre na vanguarda,
dade movida pela consciência de que der inacreditável do seu inimigo. Mas é está a contribuir para mudar as regras
o estado das coisas ainda está longe, a guerreira Karsi que ganha um enor- de um jogo milenar em que os ho-
muito longe, do que devia, e em muitos me protagonismo; nesses minutos, a mens moveram quase sempre as peças.
casos a regredir. Por isso, foi com uma personagem (interpretada pela atriz
sensação de vitória que assisti à fanta- dinamarquesa Birgitte Hjort Sørensen)
sia e ficção científica que gosto tanto a foi líder, guerreira, mãe, mas também
marcar finalmente a diferença e a ins- um ser humano deixado totalmente
pirar milhares com histórias em que as vulnerável perante a imagem angus-
mulheres evidenciam uma profundida- tiante de crianças transformadas em
de e emoção raras vezes vista. A meu zombies. Numa cena tão curta, Karsi

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//// BBANG!
AANNGG!!
iago Pimentel nasceu numa al-
deia perto de Nelas em 1987.
Viveu e trabalhou em Viseu
desde 2006 onde se licenciou em Ar-
tes Plásticas e Multimédia pela ESEV
e desenvolveu projectos experimen-
tais de arte digital baseados em mon-
tagens de radiografias, manipulação
fotográfica, pintura digital, etc. Estes
trabalhos valeram-lhe o 1.º prémio no
concurso de arte digital da ESEV /
IPV em 2008 e uma menção honrosa
em 2007. Em 2010 muda-se para Lis-
boa e inicia o mestrado em História da
Arte. O contacto com outros artistas
e outras propostas artísticas fez com
que abandonasse temporariamente a2 3
arte digital e se dedicasse à pintura e
escultura que passaram a ser os supor-
tes de todo o seu trabalho, servindo
muitas vezes de ponte com o processo
digital. A partir de 2011 começa a ex-
por regularmente em diversas galerias
2 3
nacionais e internacionais. Em 2014
esteve representado na exposição
“Arte Hoje” da Sociedade Nacional
das Belas Artes.
A sua temática desde sempre man-
teve um tendência para a crítica social
e para o moralmente inflamável, o
escabroso e o escatológico, explora-
dos de uma forma onírica e erotizada,
servindo-se muitas vezes de uma ico-
nografia ligada à mitologia clássica ou
à imagética gótica, medieval. No seu
trabalho também é possível denotar
uma forte ligação à alquimia e ao mis-
ticismo. As suas influências mais sóli-
das variam entre o cinema surrealista
de Alejandro Jodorowsky, o trabalho
fotográfico de Joel-Peter Witkin, ou a 4
pintura de Vladimir Velickovic.
O trabalho de Tiago Pimentel po- 5
derá ser encontrado em diversas co-
lecções particulares, no Centro Por-
tuguês de Serigrafia e Artelection, em
booklets e capas de cds, em livros de
literatura infantil e projectos de banda
desenhada, sendo um deles vencedor
de um primeiro prémio da Amadora
BD em 2013. Actualmente vive e tra-
balha em Lisboa.
Outros trabalhos em:
tiagopimentel.pt
www.facebook.com/
tiagopimentelartwork

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4 /// BANG!
Nenhum outro género consegue, como a ficção-científica, Temos fc nas mãos quando pegamos num tablet, num smar-
levantar o véu sobre o amanhã coletivo da humanidade. tphone, quando somos operados por tecnologias não invasi-
Como será o futuro da sociedade? Onde nos levará a tec- vas ou olhamos para as fotos dos Rovers em Marte, quando
nologia? Como evoluirá a família? E os valores morais? A vemos um feto em 3D ou reservamos as férias com meia
ficção-científica responde, e muitas vezes com um grau de dúzia de clicks. A ficção-científica da minha adolescência
fidelidade impressionante. virou realidade e é parte integrante do dia-a-dia.
Mas a fc é um género multimédia. Para além de conquis- Então porque é que a Saída de Emergência não publica
tar o mundo das letras no século passado, posteriormente mais ficção-científica? Simples, porque em Portugal os lei-
invadiu a televisão com franchises que conquistaram legiões tores ainda são um nicho. Um nicho criativo, exigente, culto,
multigeracionais de fãs. E, simultaneamente, chegou às salas informado, crítico, mas um nicho que também lê em inglês e
de cinema onde é responsável pelos maiores recordes de bi- não consome tiragens que cubram as despesas de produção.
lheteiras dos últimos 50 anos (E.T., Alien, Star Wars, Avatar, A boa notícia? Cheira-me que os tempos vão mudar e que
Matrix… podíamos listar dezenas de blockbusters). o boost que a fantasia teve há uma dezena de anos vai passar
Aos olhos de alguém a viver nos maravilhosos anos 80, pela fc. O nicho vai crescer e nós estaremos cá para lhe dar
hoje em dia somos todos personagens de um filme de fc. a melhor fc que conseguirmos.

BANG! /// 5
JUNHO sangue da espécie cassandra sangue:
quando se corta e verte sangue, o seu
de Anne Bishop
sangue prediz o futuro. Parece ser um
Anne Bishop, com a sua nova série Os dom bastante útil, apesar de doloroso.
Outros, da qual já lançou três livros e Mas não há muitas profetisas assim,
No vasto universo criado por George e Meg Corbyn vê-se a braços com a
R. R. Martin, surgem muitas pergun- constante exploração do seu dom por
tas: quão grande é Westeros? Quantas terceiros, sendo manipulada e punida
pessoas habitam em Westeros? Qual é caso não consinta em fazê-lo. No en-
a moeda, e quanto vale? O que aconte- tanto, Meg não é facilmente domada
ceu em Valíria? Que casas rebelaram-se e, depois de se libertar de um prepo-
contra a autoridade dos Targaryen? tente senhor que desejaria usá-la para
Quem foi o maior cavaleiro da Guarda sempre, consegue finalmente pisar o
Real de todos os tempos? Elio M. Gar- seu próprio caminho, liberta de amar-
cia Jr. e Linda Antonsson, os fundado- ras e manipulações. Afinal, a liberdade
res do site westeros.org, ajudam-nos a sempre foi o seu maior desejo. Quan-
obter essas respostas através da enci- do conhece Simon Wolfgard, os dois
clopédia O Mundo de A Guerra dos Tronos unem-se contra os estratagemas tirâni-
— A História Não-Contada de Westeros. cos do Controlador para de novo ob-
Ambos são superfãs que se tornaram ter os talentos de Meg ao seu serviço.
autores bestseller. No início da sua re- Um artigo completo sobre o universo,
lação transatlântica, aliaram-se através bem como uma entrevista exclusiva
de George R. R. Martin e da sua saga à autora, poderá ser lido nas páginas
de romances As Crónicas de Gelo e Fogo. desta revista.
Hoje são autores de um livro bestseller que agora a Saída de Emergência tem o
que escreveram com Martin, numa prazer de inaugurar com Letras Escarla-
história do mundo que o autor criou e tes, surgiu, segundo a autora, por puro
que a HBO reaviva na série Guerra dos bel-prazer.
Tronos. O ofício da escrita para Anne Bishop
Nesta enciclopédia é apresentada resulta sobretudo das vontades e aven-
de David Anthony Durham
pela primeira vez a História ilustrada e turas por enveredar por terrenos des-
mapeada dos Sete Reinos, com descri- conhecidos. A própria autora declara
Um rei assassinado pelo seu mais anti-
ções vívidas das batalhas mais épicas, não fazer quase investigação nem pes-
go inimigo. Um império dominado por
as razões das rivalidades destrutivas e quisa para as suas obras por considerar
um povo austero e intolerante. Qua-
as sementes das rebeliões que conduzi- que a genuinidade da palavra e da ideia
tro príncipes exilados determinados a
ram aos eventos descritos no primeiro se validam melhor desta forma.
cumprir um destino. As forças conjun-
volume da saga. Letras Escarlates é, assim, o primeiro
tas de piratas, deuses lendários, povos
Com a ajuda dos fundadores do «teste» de fantasia urbana da autora.
guerreiros e espíritos de feiticeiros. A
Westeros.org, George R. R. Martin Uma nova série com uma nova trama
reconstrução de um império. Uma rede
molda e estabelece a História e cultu- num novo género literário. Mas para a
ra de Westeros e revela os destinos e autora nada disto parece novo: Anne
ambições dos antepassados dos Stark, Bishop está tão confortável na fantasia
Targaryen, Lannister e muitos outros. urbana que parece que cresceu no meio
Venha descobrir os segredos que sem- do universo que criou.
pre quis saber sobre o mundo de A A obra tem enfoque na persona-
Guerra dos Tronos. gem de Meg Corbyn, uma profetisa de

6 /// BANG!
de intrigas que atravessa gerações. Eis
por fim que é lançado o último volu-
coragem, resistência e redenção estão
presentes, formando um grande arco
AGOSTO
me da saga Acácia de David Anthony de história que traz à luz um mosaico
Durham, uma epopeia narrativa que de culturas e raças inesquecível. Nas
encarna a arte suprema da literatu- páginas desta revista, irão encontrar
ra fantástica, com tudo o que possui um artigo completo sobre o universo, de Claire North
de ação e emoção, estratégia política bem como uma entrevista exclusiva ao
e jogos de traição, descoberta de no- autor. Uma das maiores revelações do ano
vos mundos e novos mitos, persona- 2014 estreia na coleção Bang! em agos-
gens apaixonantes, destemidas e fortes to. Claire North (pseudónimo de Ca-
numa história complexa mas acessível, therine Webb) é uma autora jovem e
que envolve profundamente cada leitor JULHO talentosa que se estreou na ficção cien-
e o marcará para sempre. tífica com As Quinze Vidas de Harry
O Império de Acácia aparenta ser August, livro que recebeu Nomeação de
idílico, mas está longe de ser seguro. Os de Oliver Bowden Melhor Romance do Prémio Arthur C.
alicerces são frágeis e assentam sobre Clarke (2015) e Nomeação de Melhor
sangue, corrupção e exploração de es- União, o próximo volume da saga Romance do Prémio British Science
Assassin’s Creed, decorre em 1789, Fiction Association (2014).
quando a cidade de Paris assiste à al- Nascido no dia de Ano Novo de
vorada da Revolução Francesa. As ruas 1919, filho bastardo de uma criadita
de pedra pintam-se de vermelho, do e do dono de uma propriedade, Har-
sangue daqueles que se erguem contra ry August viverá os anos de brasa do
a aristocracia opressora. Mas a justiça século XX: a Depressão, a II Guerra
revolucionária tem um preço... Numa Mundial, a Guerra Fria. Tudo faria dele
era em que a cisão entre ricos e pobres apenas mais um modesto e quase anó-
é gigantesca e o país se divide interna- nimo inglês que sobreviveu a uma in-
mente, um homem e uma mulher lutam fância pobre e solitária no campo, ao
para vingar tudo aquilo que perderam. Blitz e ao aperto do pós-guerra e mor-
Arno e Élise são depressa arrastados reu algures nos anos 80, não fosse um
para a batalha centenária entre Assassi- pormenor: Harry é um kalachakra, um
nos e Templários — num mundo com ouroboriano, em suma, alguém que,
perigos mais letais do que alguma vez depois de mortes violentas e alguns
teriam imaginado. suicídios, renascerá vezes e vezes sem
O autor e historiador Oliver Bowden conta nesse primeiro dia de 1919, as
é um jogador inveterado e que, como vezes que forem necessárias até per-
tal, é extremamente fiel aos videojo- correr meio mundo e descobrir qual é a
gos na altura de passar para o papel missão que lhe cabe e se esconde atrás
cravos. A responsabilidade de governar todo o envolvimento psicológico das do que, ao início, se lhe afigura como
com sabedoria foi há muito abandona- personagens nos diferentes contextos uma maldição.
da, tornando-se todos reféns de pactos culturais que a saga da Ubisoft ofere- Mas se este acumular de experiên-
com o diabo. Há uma Quota infame de ce. Duas das coisas que distinguem a cias e conhecimento podem fazer dele
crianças que é cedida aos enigmáticos série Assassin’s Creed num universo
Lothar Aklun. de videojogos cada vez mais vasto são
O uso da droga “bruma” como for- a envolvência visual e o detalhe his-
ma de manter a população maleável e tórico. Em Assassin’s Creed vive-se
submissa apenas dá mais poder a uma verdadeiramente a história e a ação,
Liga implacável que fornece essa droga ao mesmo tempo que obtemos valio-
aos Lothar Aklun e detém muito mais sos conhecimentos sobre determinada
influência que a casa imperial. Até a época histórica. Neste novo volume,
crueldade a que foram submetidos o as batalhas da Revolução começaram,
povo dos Mein torna-se difícil de jus- mas há quem tenha uma maior sede de
tificar, estando submetidos a uma mal- vingança…
dição que impede os seus antepassados Com a estreia de um filme dirigido e
de morrerem definitivamente. Muitos protagonizado por Michael Fassbender
males foram cometidos e cabe à última em finais de 2016, muitos novos leito-
geração partir em busca de redenção res e jogadores irão passar a conhecer o
e por uma forma de salvar o coração universo intrigante de Assassin’s Creed.
podre de Acácia. Os temas principais,
de uma dimensão shakespeariana, da
ambição, poder, ganância, mas também

BANG! /// 7
um quase semideus, algo
continua a atormentar de Victoria Aveyard
Harry: qual a origem
do seu dom e será que Chama-se Victoria e escreveu sobre
há mais pessoas como uma rainha... que é uma impossibilida-
ele? A resposta para de e uma contradição em si mesma. A
ambas as perguntas Rainha Vermelha, Red Queen no original
parece chegar aquando da St. Martin’s Press, é o primeiro livro
da sua décima primei- de uma trilogia de Victoria Aveyard,
ra morte, com a visita de uma autora de 24 anos com formação
uma menina que lhe traz umaa em Escrita de Argumentos da Univer-
mensagem: o fim do mundo sidade do Sul da Califórnia que, tendo
aproxima-se. verificado que todas as histórias boas
Esta é a história do que Harry faz a SETEMBRO para filmes já tinham sido usadas, (e as
seguir, do que fez anteriormente, e ain- más também), decidiu ela própria escre-
da como tenta salvar um passado que ver uma. E ei-la: uma distopia pintada
não consegue mudar e um futuro que de Brandon Sanderson de vermelho e prateado que retrata as
não pode deixar que aconteça. desigualdades sociais num novo prisma
Tal como ele, a sua criadora e auto- Após o épico desfecho de O Poço da As- da literatura fantástica, mas que se ba-
ra Claire North parece ter conseguido censão, Brandon Sanderson regressa ao seia na mesma premissa antropológica
o impossível: pegar em premissas ha- mundo de Luthadel. que representa a força motriz das civili-
bituais de romances de FC, história Enquanto que O Império Final era um zações: o poder.
alternativa, horror e espionagem e, de livro sobre um grupo de revolucioná- Mare Barrow, uma jovem de 17 anos, é
um sopro, apresentar-nos algo de com- rios a lutar contra opressão e tirania e uma plebeia. Prova física disso é o facto
pletamente novo e refrescante. Dizer O Poço da Ascensão versava sobre guerra de ter o sangue vermelho. A elite social
que é o melhor livro em, pelo menos, civil e a política complexa e maquiavé- e cultural possui sangue prateado e habi-
três destes géneros que leram ou lerão lica subjacente às decisões dos líderes, lidades e poderes sobrenaturais — e so-
em muito tempo é pouco. Dizer que é O Herói das Eras centra-se na luta pela mente um Silver poderá circular nas altas
um dos melhores livros de sempre so- sobrevivência, nas escolhas que toma- esferas do poder e influenciar o curso
bre essas matérias que nos fascinam e mos enquanto enfrentamos o fim do da nação. Mare conhece mais pessoas
confundem — o tempo, a morte, a en- mundo. que vivem na pobreza do que aquilo
tropia — é justo, mas também redutor. O poder divino escondido no mítico que consegue aguentar, com a agravan-
Enfim, fica apenas um aviso: leiam-no Poço da Ascensão foi libertado após te de a sua família trabalhar para servir
bem e rapidamente, antes de o verem Elend e Vin terem sido ludibriados. As essa mesma elite. Quando um amigo
adaptado numa mais do que certa mi- correntes que aprisionavam essa força é obrigado a alistar-se na força militar,
ni-série televisiva. destrutiva foram quebradas e as bru- ela aposta tudo para o conseguir liber-
mas, agora mais do que nunca, tar dessa coerção, incluindo emparelhar
envolvem o mundo, assassinan- com uma rebelião formada a partir da
do pessoas na escuridão. Cinzas Guarda Escarlate. Mas o destino é iró-
caem constantemente do céu nico, e Mare vê-se no palácio real a de-
e terramotos brutais abalam o monstrar uma habilidade sobrenatural
mundo. O espírito maléfico li- que desconhecia. O mistério adensa-se,
bertado infiltra-se subtilmente pois Mare é plebeia pura, sendo detento-
no exército de Elend e os seus ra de sangue vermelho. O rei apressa-se
oponentes. Cabe à alomante a inclui-la no catálogo de pretendentes
Vin o destino de salvar o mun- para os seus infantes inventando um
do e descobrir uma forma de passado de uma princesa transviada, e a
o destruir. Esta nova aventura rebelião da qual fazia parte corre perigo
encerra a trilogia inicial de Mis- de se extinguir. O tumulto cresce entre
tborn com um clímax brilhante a população e a intriga semeia desleal-
e surpreendente, mantendo um dade e traição em cada canto opulento
formidável leque de persona- do palácio.
gens carismáticas que enfren- Há, portanto, duas visões (semânticas)
tam obstáculos com grande de poder — o poder autocrata enquan-
lealdade, coragem e responsabi- to fundação de um sistema social; e o
lidade. O volume Hero of Ages poder no conceito de habilidade e for-
será dividido em dois, sendo ça sobrenaturais — que exacerbam a
lançada em setembro a primeira identidade da protagonista e causam o
parte. movimento central do romance. Mare
não sabe quem é e ninguém a pode

8 /// BANG!
ajudar — pensava fazer parte do povo
e da rebelião contra o poder ditatorial
estabelecido, quando subitamente é de-
monstrada a contradição em si mesma:
ela possui um poder somente reserva-
do à elite. Daqui em diante não poderá
sua estreia como realizador, Alex
ligar-se à sua família da mesma forma Garland oferece-nos uma brilhan-
nem alinhar na rebelião, já que é preten- te reinvenção de conto de fadas com
dente ao casamento com um dos prín- inteligência artificial que resulta num
cipes. Mas isto levanta também outras filme fascinante e provocador sobre
questões: haverá mais «falsos pratea- identidade e liberdade. Caleb (Dom-
dos»? Será possível existir ligação entre nhall Gleeson) é um programador in-
classes? Ou é um segredo que reside formático que trabalha numa empresa
gigante de Internet e um dia ganha
somente no passado de Mare? Neste a lotaria: a oportunidade de visitar a
sentido lembra um pouco os contornos casa do brilhante e misterioso dono
da empresa (Oscar Isaac). Cedo Caleb
descobre as verdadeiras razões por ter
sido selecionado: Nathan revela-lhe que
criou inteligência artificial na forma de uma bela mulher de nome Ava e quer
que Caleb lhe aplique o teste de Turing. Mas nada é o que parece e o filme
envereda por um crescente suspense com toques sinistros. Com elementos
de Barba Azul, e ligeiramente reminiscente de Stepford Wives de Bryan Forbes,
Ex-Machina prova a existência de um novo realizador muito talentoso de
ficção-científica.

uma das Letras acaba de lançar os primeiros dois volumes da série de mis-
tério, horror e suspense de Blake Crouch, Wayward Pines, que deu origem
à nova série televisiva de sucesso da FOX do mesmo nome. Ethan Burke é
o agente secreto cuja missão é encontrar dois agentes que desapareceram
numa terra bucólica. Mal chega, sofre um acidente violento e acorda num
hospital sem documentação. À medida que tenta obter respostas a perguntas,
as suas suspeitas crescem de que algo de sinistro ocorre na vila. Incapaz de
comunicar com o mundo exterior, começa a duvidar de que alguma vez irá
sair de Wayward Pines... A série televisiva, interpretada por Matt Dillon e
míticos e bíblicos da figura de Moisés, produzida por M. Night Shyamalan, teve críticas largamente positivas, e está
mas ao contrário. Uma rainha que é ple- atualmente em exibição no canal FOX.
beia poderá governar? Ou será somente
uma líder revolucionária? Estas e muitas
outras questões assaltam a autora no seu
blogue por parte de leitores enlouque-
cidos com a expectativa de quererem
saber mais...
Questões biológicas à parte, acrescen- m dos romances mais bem-sucedi-
te-se ainda que Victoria, uma film geek, dos de 2004 no género da fantasia
e que se tornou um best-seller interna-
já declarou abertamente a sua fixação
cional foi o livro de Susanna Clarke de
por O Senhor dos Anéis, Parque Jurássico, nome Jonathan Strange & Mr. Norrell.
Guerra das Estrelas e Dia da Independência, Numa altura em que os ingleses luta-
asseverando que a inspiração para Rai- vam nas Guerras Napoleónicas, Clarke
nha Vermelha veio de X-Men «Sempre constrói um mundo alternativo em que
me senti fascinada pelos X-Men e pela a Inglaterra era um país onde a magia
história da opressão dos mutantes, mas já tinha existido mas inexplicavelmente
desaparecera. Cabe a dois cavalheiros,
daqui a 100 anos serão os mutantes a
Jonathan Strange e Sr. Norrell, recupe-
mandar no espetáculo». Esperemos que rar a prática da magia e com isso lançar
sim, que mandem no espetáculo, e que uma pequena revolução na sociedade e política britânica. Mas os usos de
nos futuros volumes isso se comprove magia trazem consequências perigosas e o povo das fadas, ao ser libertado,
com a riqueza cromática, profundidade fará exigências… Produzida pela BBC, a série televisiva recria esse mundo
e emoção que esta autora nos oferece. alternativo com perícia e o elenco, encabeçado por Bertie Carvel e Eddie
Marsan, é maravilhoso de uma forma como só os britânicos conseguem ser
em reconstituições históricas.

BANG! /// 9
por Eric Novello

A
o longo da vida, um autor escuta quando o King publicou o 1.º livro da série The Dark Tower.
perguntas que se repetem. “Além de Se a minha geração conhece o King como um autor de ter-
escrever, trabalha com alguma coi- ror, para as gerações mais novas seu trabalho de referência
sa?” se tornou a mais clássica delas, provavelmente é esta série que mistura elementos de diver-
já que a comentamos em palestras sos gêneros. Para dificultar ainda mais o carimbo, se me per-
para mostrar o quanto é difícil pagar guntassem quais meus títulos favoritos dele, a resposta não
as contas somente com o dinheiro envolveria nenhum com tramas sobrenaturais.
ganho da venda de livros. No extre- “E esse autor que você tanto gosta escreve livros de quê?”
mo oposto, temos a “Nossa, e você deve ganhar bastante di- Ah, como é fácil falar dos outros. Ainda mais de alguém
nheiro, não?”, vinda de quem acha que todo autor tem a con- com mais de 300 milhões de livros vendidos. O que não me
ta bancária de um Sidney Sheldon ou da E. L. James. Quando impede de seguir pensando: longe dos jornalistas e dos leito-
ouço essa, costumo responder com outra pergunta: “Você lê res, como o King definiria a própria obra?
muito e conhece muita gente que lê?” Se a resposta é não (e O mais fácil é sim-
no Brasil geralmente é), a discussão está encerrada. Nos casos plificar, claro. Eu
em que ouço um sim, emendo logo com um pedido: “Então sou autor. Ponto.
trate de apresentar tais pessoas aos meus livros!”. Esquece esse de quê
É preciso despertar a curiosidade do leitor. Se esta curiosi- que não nos levará a
dade começa com a minha situação financeira ou com a es- lugar algum. Porque
colha da capa do meu livro, a mim não importa. De verdade. é capaz de termos
Dez anos atrás, ficava sem jeito com a interação. Mais tarde que conversar sobre
entendi que ninguém tem obrigação de saber como vive um gêneros fantásticos,
autor, do mesmo modo que não tenho obrigação de saber e essa é uma conver-
qual o salário de um engenheiro mecatrônico ou manobrista sa de horas e não de
de transatlântico. Assim, fui desarmando uma pergunta de cinco minutos. De
cada vez, até que restasse apenas uma delas, uma que insiste quê. Como assim li-
em me assombrar como um fantasma, não importa o que vros de quê? Leia e
eu faça: entenda. Leia todos,
“Você escreve livro de quê?” entenda e depois me
Stephen King deve ter uma frase pronta para isso, uma des- conte. De preferên-
sas que fazem a plateia rir, funcionam nos capítulos do On cia em uma resposta
Writing e conquistam o leitor de imediato. É algo que 40 curta que eu possa
anos de carreira ajudam a construir: respostas sob medida repetir por aí, porque eu mesmo ainda não entendi.
para perguntas impossíveis de se responder. Mas ser deselegante com o leitor está fora de cogitação. Es-
Imagino que em seus primeiros trabalhos publicados a res- queça esse instante de catarse. Nosso fantasma permanece.
posta tenha vindo fácil: escrevo livros de terror. Ou se o ter- Se perguntássemos a José Saramago sobre Ensaio Sobre a
ror estivesse em baixa entre os editores: livros de suspense Cegueira, O Homem Duplicado ou A Jangada de Pedra, algo me
com um elemento sobrenatural. É uma resposta satisfatória, diz que as palavras fantasia, ficção-científica e outros indi-
embora simplista, que funcionou bem até a década de 1980 cativos de gênero ficariam de fora da conversa. É provável

10 /// BANG!
que repetisse seu “Sou um Dragões! Eles, magos, distopias, apocalipses, vampiros, lo-
escritor um tanto atípico. bisomens. Não importa o que tenha dito antes ou depois
Só escrevo porque tenho dessas palavras, são elas que ficarão gravadas nos ouvidos
ideias”, mais uma dessas do leitor.
belas frases que fogem “Ah, então você escreve sobre vampiros!”
com estilo do que nos foi “Mas, mas, mas... e todo o resto?”
questionado. “Vampiros!”
Um exercício curioso para Não é que a literatura de gênero seja sempre um complica-
matar o fantasma é ler o dor. Talvez Anne Rice se saísse melhor nessa conversa do
início das biografias de que eu. E, quem sabe, Philip K. Dick. Podem imaginar sua
autores famosos na Wiki- expressão ao ouvir a fatídica pergunta “Você escreve livro
pedia. Digo na Wikipedia de quê?” e poder responder simplesmente “Ficção científi-
porque autores têm por ca”. Posso até sentir o peso deixando-lhe os ombros numa
hábito manter páginas pes- hora dessas. Nenhuma conversa sobre o despedaçar de uma
soais terríveis, com pouca realidade frágil e manipulável, ou sobre como o divino pode
organização. Talvez, assim estar relacionado à inteligência artificial de um mundo simu-
como eu, também fujam lado por computador.
da pergunta, e coloquem a culpa na falta de dinheiro para Pensando bem, podemos ter tirado o peso dos ombros, mas
contratar um webdesigner. A complexidade das descrições resta certa tristeza ao saber que o leitor não vislumbrou,
na Wikipedia chega a ser um alento, confesso. Mas imagino mesmo que na breve duração da conversa, a mágica que
a expressão de susto de um leitor em seu primeiro contato existe por trás da obra de Dick. Talvez ele se assustasse com
com Ursula LeGuin, ao formular a pergunta “Você escreve a resposta complexa, ou simplesmente perdesse o interesse,
livro de quê?” e ouvir em seguida: “Escrevo romances, livros mas ao menos saberia o que aquele autor representa real-
infantis e contos, quase sempre de fantasia ou ficção-cientí- mente.
fica. De vez em quando escrevo poesias e ensaios, também. Isso sem falar da ficção científica em si, um gênero que
De modo geral, retrato mundos futuristas em que a política, abrange tantas possibilidades diferentes e que tem se meta-
sexo, religião, sexualidade, etnografia e mais esta palavra es- morfoseado como nenhum outro na literatura...
tranha que não sei o significado são fatores importantes.” Eu sei. Não é nenhuma novidade que rótulos são limitado-
Estivesse eu no lugar do leitor, após piscar os olhos, confu- res. Nem novidade que estou fugindo da resposta! A eti-
so, diria apenas: “Uau! Parece interessante. Mas você escre- queta do gênero literário é um diálogo da editora com o
ve livro de quê?” mercado, das livrarias com o consumidor. Aqui em terras
Neste ponto, invejo Thomas Harris. Imagine a felicidade brasileiras a palavra “nerd” anda a facilitar esse jogo. “Livros
de se poder responder à fatídica pergunta com um: “Escre- nerds” e põe-se de tudo lá dentro.
vo livros de suspense com psicopatas. Isso e mais um livro Mas além do reino dos rótulos, existe o diálogo com o pú-
que ninguém ouviu falar.” Em vez de momentos filosóficos blico leitor. Esse que se dá em eventos e palestras ocasio-
de introspecção, uma resposta direta e um sorriso no rosto. nais, e nas redes sociais em tempo integral.
Outro que deve se sair bem é Jeff Lindsay: “Escrevo livros Apavora-me a ideia de precisar vender meu trabalho em 5
de humor negro com psicopatas.” Psicopatas, aliás, parecem minutos. A sensação de termos perdido um leitor porque
facilitar a vida do autor nesse sentido. É uma palavra que erramos um adjetivo ou encurtamos demais uma frase im-
atrai a atenção do leitor. Que é praticamente autoexplica- portante é persistente, terrível.
tiva graças à tradição da literatura policial e das inúmeras Contudo, ainda pior é a pergunta que teimamos em formu-
adaptações ao cinema e à televisão. E caso seu trabalho saia lar para nós mesmos diante do espelho. “Você escreve livro
ligeiramente da curva, basta adicionar um indicativo extra: de quê?”
suspense, humor negro, space opera. Bem, alguém deve ter O que publiquei ano passado trata de magos em uma ver-
publicado uma space opera com psico- são alternativa de São Paulo. Há nele
patas por aí. oníricos, salvaxes, lúdicos. Palavras que
Talvez a confusão seja maior para quem fazem sentido somente para quem o lê,
escreve ficção especulativa, começo a mas que não cabem em uma explicação
perceber. Um autor realista pode brincar casual. Meu próximo livro, um tanto rea-
com as palavras e ser ininteligível, se as- lista, talvez seja mais fácil de descrever à
sim preferir: “Escrevo sobre a podridão trindade editor-livreiro-leitor. Para mim,
da classe média decadente”, “Escrevo contudo, continuará a ecoar a pergunta
sobre a fragilidade da vida que nos con- fantasmagórica.
some”, “Escrevo sobre a impossibilida- Apesar dessa dificuldade, de uns tempos
de dos relacionamentos no mundo capi- para cá tenho adotado uma resposta pa-
talista.” São respostas bonitas, acredito drão. Sempre que me perguntam “Você
que agradariam a jornalistas e arranca- escreve livro de quê?”, falo sem pensar
riam um “Oh, parece importante” dos duas vezes: “De fantasia.” A preposição
leitores. Mas podem imaginar um autor casada reforça a coesão do sentido, mes-
de fantasia na mesma situação? “Escre- mo que “de fantasia” não esclareça coisa
vo sobre a fragilidade da vida diante da alguma. Se tivermos a oportunidade de
impossibilidade dos relacionamentos da continuar conversando, e lá pelas tantas
classe média decadente... com dragões.” o leitor me perguntar “Mas onde está a

BANG! /// 11
fantasia dessa história?”, outra resposta virá no automático: “Se
eu que sou apenas o autor consegui imaginá-la, pense só você,
que é o verdadeiro dono dessa história o que conseguirá enxer-
gar.”
A esta altura do texto, é possível que alguém me diga: “Eis uma
boa resposta. Mas você continua fugindo!” Concordo e dis-
cordo. Pois essa fuga é também um posicionamento. Se tantos
autores de renome evitam a todo custo empregar “fantasia”,
“terror” e “ficção-científica” na descrição de seus livros, apesar
do flerte direto com o pacote de elementos que caracterizam
esses gêneros, não poderia eu, quieto aqui no meu canto, ainda
desconhecido do grande público, fazer justamente o contrário?
Meus livros realistas não ficarão chateados. Eles sabem que, no
fundo no fundo, são tão fantasiosos quanto os demais.
Livros de quê?
Do que isso importa?
Grandes autores como Ursula Le Guin, Neil Gaiman, Muraka-
mi, Anne Rice, se tornaram seu próprio gênero, bom para eles.
Ler Anne Rice não é como ler qualquer outro autor de vampiro

e é isso que importa. Eu, porém, enquanto não chego lá, seja
pelas vendas, pela fama ou pela insistência, continuarei a fugir
da pergunta.
Se estiver diante da Esfinge, que seja, serei devorado. Se for de
um leitor, um destes curiosos de olhos brilhando, loucos para
conhecer meu trabalho, se for um deles a perguntar: “Você es-
creve livros de quê?” A resposta virá na ponta da língua:
“Não sei.”

12 /// BANG!
S
e entrarmos no Google Maps e procurarmos entalhes colossais». E ainda: «Sem sequer saber o que seria
por R’lyeh, descobrimos que a cidade se futurismo, Johansen obteve um efeito semelhante a este ao
encontra na Antártida, perto das coordenadas falar da cidade; pois em vez de descrever uma estrutura ou
47º 9’S, 126º43’O, a meio do Pacífico, algures edifício precisos, alongava-se em impressões vagas de ângulos
entre a Nova Zelândia e o Chile, debaixo do vastos e superfícies de pedra — espaços demasiado amplos
mar. O Street View não permite observar para pertencerem a algo que fosse normal na terra, e cobertos
a arquitetura da cidade, mas os atuais 37 de imagens e hieróglifos horrendos.» Além de: «Rodriguez
comentários dos visitantes asseguram-nos de gritou para assinalar o que tinha descoberto. O resto seguiu-o,
que é uma excelente visita para toda a família, e destacam a sua observando com curiosidade a imensa porta esculpida com o
arquitetura não-euclidiana, as suas torres ciclópicas, e o túmulo entalhe agora familiar do molusco-dragão.»
do Grande Cthulhu. Pelo lado negativo, alguns dos visitantes O infeliz Rodriguez, tal como já aconteceu a muitos dos
realçam o elevado preço das bebidas, algum desapontamento em
comparação com outras obras de arquitetura contemporânea e
episódios recorrentes de insanidade.
R’lyeh, ou Arlyeh, ou Urilia é a mais famosa das cidades
ficcionais descritas pelo escritor Howard P. Lovecraft na sua
obra, e cenário de um dos seus contos mais conhecidos:
“The Call of Cthulhu”. Aí, a cidade é descrita deste modo:
«encontraram uma costa de construções ciclópicas cobertas
de lama, lodo e ervas que não pode ser vista como sendo
menos do que a substância tangível do supremo terror da
terra — a dantesca cidade-cadáver de R’lyeh, construída há
incontáveis éons antes da história conhecida, por formas
vastas e aberrantes descidas das estrelas negras. E aí
repousava o grande Cthulhu e as suas hordas, escondidos
nas suas criptas de cor verde viscosa…»
Segundo o conto, a cidade teria sido encontrada brevemente
pela tripulação da escuna Emma, que se havia perdido no
oceano. Essa descoberta foi testemunhada pelo marinheiro
norueguês Gustaf Johansen, único sobrevivente da tripulação,
da qual também fazia parte um certo marinheiro português
Rodriguez (possivelmente um erro de grafia de Lovecraft).
E que viram Johansen, Rodriguez e companheiros em
R’lyeh? Isto: «o tamanho inacreditável dos blocos de
pedra esverdeada, a altura estonteante do grande monólito
esculpido, e a identidade desorientadora das estátuas e

BBANG!
BA
ANG ////
NG! //// 13
13
seus compatriotas, acabaria por morrer atropelado de T.S. Elliot, opunha-se terminantemente ao
por aquilo que saiu da porta esculpida (mas modernismo literário que fervilhava no seu
neste caso não se tratava de um veículo tempo. E tal rejeição transformava-se,
motorizado). Curiosamente, Rodriguez não neste conto, numa referência humorística
é o primeiro português que se encontra na ao estilo modernista, como sendo
história, pois imediatamente antes, Lovecraft composto de “impressões vagas”
falara de “portugueses de Cabo Verde”, de um tempo e de um espaço tidos
homens “baixos, de sangue mestiço, do como incompreensíveis, que Lovecraft
tipo mentalmente aberrante”, que foram associava apenas à matéria do
encontrados em torno de uma fogueira, pesadelo.
a uivar, rugir e mover-se como uma única Essa rejeição, da arquitetura e da
entidade, ao mesmo tempo que entoavam literatura modernistas, deviam-se
“Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl ao facto de estas tentarem dar conta
fhtagn”, que só posso supor ser a forma da falta de sentido do mundo e da
como os estrangeiros percebem o português forma, numa cultura onde já não havia
europeu. divindades, sentidos teleológicos e
Já voltarei a esta visão de Lovecraft dos portugueses, começava a imperar a máquina.
mas antes gostaria de focar a arquitetura de R’lyeh, E na tentativa de encontrarem a
e a forma como Johansen descreve essa mesma forma de exprimir essa falta de
arquitetura. É óbvio que, escrevendo dentro dos sentido, os modernistas
princípios da literatura pulp do início do século mergulhavam no
XX, Lovecraft procurava obter uma hibridismo das formas,
reação emocional do leitor através combinando o tempo
desta descrição, causando-lhe interno e externo
desconforto, inquietação das personagens, o
ou mesmo medo, mas não clássico e o industrial,
deixa de ser interessante a a deformação do
arquitetura que escolhe para espaço através de
tentar obter esse efeito, formas fantásticas e
uma arquitetura de grandes descomunais.
dimensões, aparentemente E para Lovecraft,
dramática, desorientadora, autor, tal como outros
quebrando com os autores pulp, como
princípios da arquitetura Clark Ashton Smith
clássica, ao mesmo tempo ou Robert E. Howard,
que de alguma forma se proveniente de pequenas
parece assemelhar a ela. É, em tudo, uma arquitetura muito comunidades norte-americanas relativamente homogéneas
próxima da arquitetura futurista, que então dava os primeiros na sua população e no seu urbanismo, o hibridismo — fosse
passos em Itália para inspirar a arquitetura fascista, a arquitetura da arquitetura, fosse da literatura, fosse dos portugueses,
construtivista russa, e mesmo a arquitetura nazi de Albert manifestava-se como aberrante e incompreensível e só
Speer, já para não falar da audácia do norte-americano Frank poderia ser entendido como vindo do espaço, ou habitando
Lloyd Wright. A esta arquitetura maciça, de um neoclassicismo as zonas mais inóspitas ou difusas da Antártida. BANG!
levado à aberração sobrehumana, na perspetiva de Lovecraft,
o escritor da Nova Inglaterra opunha a arquitetura pitoresca e
histórica da sua própria região, que em «The Case of Charles
Dexter Ward» inspirava descrições assim: «do encantador
alpendre clássico da fachada de tijolo de dupla baia, a sua ama
levava-o de carrinho; passavam pela casa de quinta branca e
pequena com duzentos anos que a cidade há muito absorvera,
e até aos colégios majestosos da rua sombreada e imponente
cujas mansões de tijolo quadradas e antigas e as casas mais
pequenas em madeira de alpendres estreitos com pesadas
colunas dóricas tinham sonhos sólidos e exclusivos entre os
pátios e jardins amplos.»
Ou seja, temos, de um lado, a maléfica arquitetura futurista,
fruto de pesadelos e monstros, do outro a arquitetura
tradicional georgiana do nordeste dos EUA, de sonhos
sólidos, que refletem claramente que tipo de arquitetura
Lovecraft preferia.
E nessa preferência reconhece-se também a referência
irónica ao futurismo como sendo a forma estilística da
descrição de Johansen. Pois Lovecraft, escritor de grande
erudição, contemporâneo de James Joyce, de Virginia Woolf,

14 /// BANG!
2. Espectro. 3. Alma do ou-
tro mundo. (Do latim phantasma, do grego φάντασμα). Espectro (subst.
masc.): 1. Imagem fantástica de um morto. (Do latim spectrum, apari-
ção, forma, imagem). Abantesma (subst. 2 gén.) (= Abentesma, Avan-
tesma, Aventesma): Fantasma, espectro, avejão (Do latim phantasma,
do grego φάντασμα). Avejão (subst. masc.) [Figurado]: Fantasma
(in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha])
Outros sinónimos: assombração, espírito, aparição, zumbi

rovavelmente o único ser vivo mundo que conhecemos para um outro – designação algo estranha, já que não se
sobre a Terra a ter consciência incógnito e maravilhoso, onde perdura- trata senão das deste nosso mundo, axio-
da sua própria mortalidade, não riam por toda a eternidade. Daí a imagi- maticamente transmigradas para um pla-
será talvez muito surpreendente nar a possibilidade de que esses espíri- no diferente da sua existência – abundam
que desde a mais remota antiguidade o tos desencarnados pudessem entrar em na literatura popular, pondo em cena uma
Homem se tenha interrogado sobre os contacto com os vivos, vai um pequeno gama de espectros de naturezas muito di-
mistérios da Morte. Provavelmente ca- salto e as histórias de fantasmas, con- ferentes, desde os mais aterradores, por
paz de compreender o desaparecimento tadas durante a noite, talvez em redor vezes movidos por cegos desejos de vin-
do corpo, do suporte vivo do seu ser, de uma fogueira, proliferaram, repetin- gança de ofensas sofridas em vida, até
mas com dificuldade em lhe associar a do-se de geração em geração e assim se aos mais inofensivos, quiçá dispostos até
extinção da personalidade e da consci- preservando e multiplicando na tradição a brincar com as emoções dos vivos. A
ência, postulou a existência de um mun- oral, até que a invenção da escrita permi- possibilidade de contactar com os defun-
do mais além, onde elas sobreviveriam. tiu registá-las sob forma mias duradou- tos levou até à criação dos espiritismo, em
Muitas religiões elaboradas estabelece- ra. A noite é, evidentemente, propícia ao que tantos e tantos acreditam, procuran-
ram mesmo regras precisas, exaradas mistério, já que a ausência de luz obriga do médiuns que os ponham em comuni-
em Livros dos Mortos, como os que são a interpretar barulhos e sensações que cação com entes queridos desaparecidos,
conhecidos nas antigas civilizações egíp- durante o dia adquiririam talvez explica- quer para matar saudades, quer para obter
cia ou tibetana, por exemplo, destinadas ções mais simples e palpáveis. conhecimentos e informações que pos-
a assegurar a passagem das almas deste As histórias de almas do outro mundo sam orientar as suas próprias vidas.

BANG! /// 15
Manifestações res humanos e um fantasma, pela mão muitas ve-
Fantasmagóricas do sacerdote sumério Sîn-lēqi-unninni, zes perse-
no poema épico Gilgamesh. Plínio, o Jo- guindo a sua
s fantasmas manifestam-se pe- vem (c. 61-114 d.C.) deixou-nos uma vítima para
rante os vivos sob diversas for- história curta acerca de uma casa as- onde quer que
mas, desde vagas sensações de sombrada em Atenas e Geoffrey Chau- ela procure fugir.
desconforto, anunciadoras de cer (c. 1343-1400) incluiu nas suas Can- Mas talvez a prin-
invisíveis e misteriosas presenças, até terbury Tales a história do fantasma de cipal característica que
aos mais aterradores barulhos e activi- um homem assassinado que aparece a separa os fantasmas dos
dades telecinéticas, culminando na ma- um amigo para lhe anunciar a sua mor- romances Góticos dos
terialização – real ou aparente – dos seus te. William Shakespeare (1564-1616) que são postos em cena
invólucros físicos de outrora, perante os não enjeitou a inclusão de assombra- pelos escritores subsequen-
olhos aterrados de testemunhas. Nesses ções, por exemplo nos seus famosos tes seja a intangibilidade dos
casos de aparição visual, tornaram-se dramas Macbeth ou Hamlet, e Sir Walter primeiros, confrontada com a
clássicos certos estereótipos, como os Scott (1771-1832) escreveu também al- clara existência física dos segun-
da figura coberta por um lençol – por gumas histórias de fantasmas. dos.
vezes com aberturas para os olhos, des- Por exemplo, Francis Marion Craw-
tacando-se como manchas escuras na ford (1854-1909) escreveu em 1908 a
alvura da mortalha – ou o condenado a Ultrapassar o conto «The Screaming Skull» (O Crâ-
sofrimentos eternos, que arrasta peno- Período Gótico nio Uivante), em cujo epílogo nos é
samente correntes e outros pesos, con- revelado que o narrador, perseguido
substanciação do seu castigo, ou ainda o ão obstante, será preciso ultra- por um misterioso crânio, cuja prove-
degolado que transporta debaixo de um passar o período Gótico clássi- niência se adivinha, é morto com uma
braço a cabeça violentamente separada co, com os seus espectros ge- “dentada na garganta […] que lhe es-
do corpo, num castigo talvez demasiado ralmente etéreos, retornando maga a traqueia”; do mesmo autor, o
pesado para os crimes que possa ter co- do reino dos mortos para – segundo conto «The Upper Berth» (O Beliche
metido em vida. enunciado por Peter Penzoldt [The Su- de Cima), de 1894, trata do não iden-
Perante um tal manancial de lendas, pernatural in Fiction, 1965] – anunciar tificado ocupante fantasmagórico do
de relatos supostamente verdadeiros e catástrofes, assombrar alguma consci- beliche de cima numa cabine de um
de ícones a retirar da tradição popular ência ou suplicar por um enterro con- barco, cuja presença faz fugir espavo-
e do folclore, não é de admirar que no digno, para encontrar histórias centra- ridos todos os que se instalam na mes-
campo literário tenham igualmente sur- das em aparições fantasmagóricas que ma cabine. Em «The Beast with Five
gido histórias de fantasmas. O espectro transcendem as formas arcaicas, reves- Fingers» (O Monstro com Cinco De-
é, sem dúvida, a mais constante figura tindo novos e multifacetados aspectos, dos), publicado em 1928 e da autoria
no panteão das criaturas sobrenaturais propósitos e intenções. Os fantasmas de William F. Harvey, o protagonista é
presentes na literatura. deixam de ser as imagens ou as mate- perseguido pela mão decepada de um
Já na Bíblia podemos encontrar rializações dos defuntos, podendo ago- seu familiar.
fantasmas: em Samuel [28: 3-25], por ra assumir a forma de partes deles – Vemos assim que o fantasma dos con-
exemplo, aparece a figura da bruxa de mãos, pés, caveiras –, de animais (como tos modernos é activo, geralmente malé-
Endor, necromante que é consultada em «The Judge’s House» (A Casa do fico e vingativo, distante dos lânguidos
pelo rei Saul para invocar o espírito de Juíz), 1891, de Bram Stoker, em que espectros da literatura Gótica. Mais
Samuel. Há mesmo quem aponte para toma a forma de um maléfico rato), ou que instrumento do destino, ele é agora
o longínquo ano de até mesmo de coisas inanimadas (como agente poderoso e determinado, abran-
2700 a.C. por exemplo o riquexó fantasmagórico gendo nas suas acções tanto os culpados
a escrita descrito por Rudyard Kipling em «The de que eventualmente procura vingar-se
da mais Phantom Rickshaw», 1888). Mais ain- como vítimas inocentes que se atraves-
antiga da, enquanto o espectro Gótico apare- saram inconscientemente no seu cami-
das his- ce geralmente à meia-noite, num velho nho. Em muitas das obras fundamentais
tórias cemitério, numa masmorra ou num do período em questão os autores pro-
escritas aposento determinado, muitas vezes curavam assim o “espectáculo dos mor-
que se relacionado com as circunstâncias do tos que regressam, ou dos seus agentes,
conhecem seu falecimento, o fantasma de finais e das suas acções”, devendo haver “uma
acerca da do século XIX e princípios do seguin- interacção dramática entre os vivos e os
interacção te tem outra mobilidade, aparecendo mortos, normalmente com a intenção
entre os se- a qualquer hora da noite ou do dia e de assustar ou perturbar o leitor”, para

16 /// BANG!
O Dr. Montague James, toda a literatura ficcional com
reitor do King’s College, em temas sobrenaturais, quer se tra-
Cambridge, entre 1905 e 1918, te de facto de contos que inclu-
depois do Colégio de Eton, até am almas do outro mundo, quer
ao seu falecimento, deixou-nos sejam histórias de vampiros, de
uma obra, no campo da ficção lobisomens, de demónios ou ou-
sobrenatural que, se não é par- tras criaturas similares do reino
usar ticularmente vasta, é no entanto da escuridão. Charles Dickens
a s fundamental pela sua qualidade Vem a propósito observar que
pala- e pela influência que teve nos Histórias Fantasmagóricas foi preci-
vras de trabalhos de outros autores, con- samente o título que Hugo Ro-
Michael temporâneos ou posteriores. Os cha decidiu atribuir à colectânea
Cox e R. A. seus contos, originalmente escri- de contos sobrenaturais que pu-
Gilbert, na tos com o propósito de serem blicou em 1969, numa edição da
Introdução de lidos, à luz de uma vela, a um res- Livraria Civilização. Esta referên-
The Oxford Book trito grupo de amigos e alunos, cia é tanto mais apropriada quan-
of English Ghost nos aposentos de James, foram to essa colectânea surgiu precisa-
Stories (1989). De- publicados em forma de livro em mente por influência dos contos
fendem os mesmo 1904 (Ghost de M. R. James. O caso é que,
autores (na Intro- Stories entre 9 de Dezembro de 1967 e 6 Rhoda Broughton

dução de Victorian of an de Abril de 1968, o jornal Diário


Ghost Stories (1991), Popular publicou no seu suple-
referindo-se à era mento dos sábados, uma dúzia
vitoriana, que “para dos contos de James, traduzidos
uma época progres- por Hugo Rocha, sob o título
siva […], a ideia de genérico “Histórias Misteriosas
um passado vin- e Macabras”. Os contos eram,
gativo continha evidentemente, de primeira
um particular água e a tradução aprimora-
potencial de ter- da, pelo que a sua publicação
ror” e que os alcançou grande êxito junto
Henry James
fantasmas eram dos leitores, animando assim
“fortes imagens o tradutor a preparar também
do passado per- histórias de sua autoria, den-
dido – passados tro do mesmo género, as quais
pecados, passadas foram publicadas inicialmente
promessas, passadas no jornal e mais tarde reunidas
ligações, passados re- no referido livro.
morsos – podendo ser Voltando, porém, à obra de
usados para confrontar e Montague James, muitos têm
exorcizar os demónios da culpa An- sido os estudos de carácter bio-
e do medo”. tiquar y), gráfico e bibliográfico que pro-
Montague James Wilkie Collins
1911 (More curam, entre outros aspectos,
Ghost Stories of an Antiquary), identificar e delimitar as técnicas
Autores 1919 (A Thin Ghost and Others e e características das suas histó-
Relevantes 1925 (A Warning to the Curious and rias, numa tentativa de compre-
Other Ghost Stories). ender melhor os fundamentos
s autores abrangidos por É interessante observar desde do seu reconhecido sucesso.
esta apreciação e enqua- logo que os títulos desses quatro O próprio autor deixou algu-
drados no período em importantes volumes contêm to- mas indicações respeitantes à sua
causa incluem nomes dos a palavra “ghost” (fantasma) maneira de pensar e àquilo que
importantes como os de Joseph e no entanto muitas das histórias entendia serem aspectos impor-
Sheridan le Fanu, Charles Di- que neles se incluem não lidam tantes – fundamentais mesmo –
ckens, Rhoda Broughton, Henry com fantasmas, no sentido es- para a construção de uma histó- Mary Elizabeth Braddon
James, Mary Elizabeth Braddon, trito do termo – acima referido ria sobrenatural. Por exemplo, na
Wilkie Collins, Arthur Conan e analisado – mas sim com uma introdução da antologia Ghosts &
Doyle, W. W. Jacobs ou Bernard grande variedade de seres sobre- Marvels (1924), escreve ele: “Seja-
Capes, para citar apenas alguns. naturais, entre demónios e vam- mos apresentados aos actores de
Mas o autor verdadeiramente piros e outros de classificação forma tranquila; observemo-los
incontornável na evolução do mais problemática. A verdade é no seu dia-a-dia, livres de pres-
conto de fantasmas é, indubita- que a designação “histórias de ságios, satisfeitos com o que os
velmente, Montague Rhodes Ja- fantasmas” ou “histórias fantas- rodeia; e deixemos que neste
mes (1862-1936). magóricas” acabou por abarcar ambiente calmo a coisa horren-

/// 17 Doyle
BANG!Conan
Arthur
da espreite, primeiro discretamente, de seus contos consiste na descoberta de que eles mesmos ou os leitores retiras-
pois de forma mais insistente, até domi- artefactos ou segredos, de que resultam, sem orientações, apenas sucediam ine-
nar tudo”. Recomendava ainda o Dr. Ja- para os incautos descobridores, muitas xoravelmente por uma coincidência de
mes que a história deveria decorrer num vezes movidos tão-somente pela curio- momentos e de espaços.
passado não muito distante, de modo a sidade científica, as mais nefastas con-
que “o leitor vulgar possa julgar por si sequências.
mesmo a sua plausibilidade”. Collocava Uma questão que se coloca com certa Montague Rhodes James:
ainda como condição importante que o frequência, não só a propósito de Mon- Uma Influência
fantasma fosse “malévolo ou odioso”, tague James, mas, na realidade, acerca
acrescentando que, em sua opinião, as da grande generalidade dos autores de influência de um autor da en-
“aparições amigáveis e prestativas ficam histórias sobrenaturais, é a de saber se vergadura de Montague Rho-
muito bem nas histórias de fadas ou nas esses escritores de facto acreditavam des James não poderia deixar
lendas”, não lhes reconhecendo ele uti- – ou acreditam, no caso dos contem- de se fazer sentir, sendo mui-
lidade para uma história de fantasmas. porâneos – que os fantasmas tenham tos os autores que, deliberadamente
A ideia de que o escritor deveria de- uma existência real, transcendendo as ou não, escreveram contos de ficção
senvolver as suas histórias num am- criações da imaginação humana. No sobrenatural numa veia Jamesiana. Em
biente que lhe fosse familiar, por forma caso de James, a sua postura de cientis- 1991, Rosemary Pardoe publicou uma
a potenciar a realidade das suas descri- ta levava-o a manter uma certa abertura lista dos autores e histórias que se en-
ções, fica também claramente espelhada em relação à possibilidade da sua auten- quadravam nessa matriz, num opús-
em toda a obra de James. Na realidade, a ticidade, até que provas num sentido ou culo intitulado The James Gang. Nela se
sua área de especialização era a História noutro pudessem ser apresentadas, mas incluem, entre muitos outros, nomes
medieval, com importante obra publi- admitindo-a perfeitamente, como reve- como os de Arthur Gray (1852-1940),
cada, incluindo, em 1917, uma funda- la, por exemplo, uma frase que incluiu Edmund G. Swain (1861-1938),
mental edição latina das Lives de Saint num texto escrito em 1931: “…se os Edward F. Benson (1867-1940), Ri-
Aethelberht (na English Historical Review fantasmas existirem – coisa em que es- chard H. Malden (1879-1951), Herbert
# 32) e, ao longo dos anos, os catálogos tou preparado para acreditar…” R. Wakefield (1888-1964), Lionel T. C.
de manuscritos de muitas bibliotecas da Independentemente da qualidade da Rolt (1910-1974), Alan N. L. Munby
Universidade de Cambridge, o trabalho sua escrita, os contos de M. R. James (1913-1974), etc.
The Apocalypse in Art, assim como tradu- beneficiam também do cumprimento Vale ainda a pena sublinhar que mes-
ções dos Apócrifos do novo Testamen- estrito daquilo que à partida se pro- mo nos nossos dias vários escritores
to e contribuições para a Encyclopaedia põem. Com eles, não pretende o autor de muito mérito continuam a tradição,
Biblica (1903); muito conhecidos são desenvolver uma especial filosofia nem publicando histórias fantasmagóricas
também os seus livros Abbeys (1925) e analisar o comportamento psicológico de inspiração clássica. Neste domínio,
Suffolk and Norfolk (1930), onde reúne das suas personagens – como era timbre acodem prontamente à lembrança no-
preciosas informações de carácter artís- de alguns outros autores seus contem- mes como os de Steve Duffy, Peter Bell,
tico, arquitectónico, hagiográfico e his- porâneos, como por exemplo Walter de Reggie Oliver, Roger Johnson e muitos
tórico, fruto das suas múltiplas explora- la Mare ou Conrad Aiken. Isso mesmo outros.
ções, ele que foi um viajante incansável, observa Penzoldt (op. cit.): “Os seus con-
dentro e fora da Inglaterra. Deve salien- tos são histórias de terror sobrenatural
tar-se que Montague James desempe- directas, completamente despidas de
nhou também a função de director do qualquer significado ulterior. São aquilo
Museu Fitzwilliam, em Cambridge, en- que as histórias de fantasmas narradas
tre 1893 e 1908, tendo valorizado muito oralmente originalmente eram: histórias
o respectivo acervo, mediante pondera- destinadas a assustar e nada mais”. Em
Nascido em Lisboa em 1951, casado,
das aquisições. particular, diferentemente das narrati-
com duas filhas e três netos. É professor
Não surpreende pois que muitas das vas de um Charles Dickens ou de um
universitário de Matemática e tem múltiplos
suas histórias tenham como pano de Robert Louis Stevenson, os contos de
interesses, entre os quais a Malacologia,
fundo um ambiente de velhas igrejas, James não encerravam quaisquer ensi-
sendo editor da revista electrónica “The
colégios e bibliotecas, ou que os seus namentos ou lições de carácter moral.
Cone Collector” (www.theconecollector.com).
protagonistas sejam frequentemente As atrozes provações de que os seus
Na área da literatura fantástica, especial-
estudiosos, eruditos e antiquários, vis- protagonistas eram muitas vezes alvo,
mente da literatura de terror, para
to ser esse o quadro em que o próprio ao serem confrontados com palpáveis
além de pertencer a diversos
autor se movimentava e que, portanto, entidades diabólicas, não surgiam como ião em:
clubes, é autor de diversos opin
melhor conhecia e podia realisticamen- forma de castigo por pecados anterio- a
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te descrever. Um tema recorrente dos res, nem surgiam como pretexto para
contos publicados em as
revistas. i x e
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18 /// BANG!
recente publicação em Portugal, integrada na colecção Novela Gráfica, de Mort
Cinder, obra maior de Alberto Breccia e Hector Oesterheld, surge como o pre-
texto ideal para dar a conhecer aos leitores da revista Bang! um pouco mais sobre
a vida e obra do maior argumentista de língua espanhola e sobre a forma como
o fantástico, seja através do terror ou da ficção científica, está bem presente nessa obra.

BANG! /// 19
ascido em Buenos aires em 1919, que deu a descobrir naquele país autores a um escritor de BD que, embora nun-
de uma família onde se cruzavam as como Ray Bradbury, ou Isaac Asimov, ca seja nomeado, tudo indica que seja o
ascendências basca e alemã, Hector em traduções de Oesterheld. próprio autor, pois é a casa onde vivia o
German Oesterheld (HGO) formou-se escritor que Solano López desenha apa-
em Geologia, mas isso não diminuiu o
seu interesse pela leitura e pela escrita.
Aos 23 anos, quando já estava a traba-
lhar numa empresa de exploração pe-
trolífera, publica o seu primeiro conto
no suplemento literário dominical do
jornal LA PRENSA, jornal em que co-
meçou a trabalhar como revisor, até ir
trabalhar no laboratório de mineração
do Banco de Crédito Industrial. Nos
anos seguintes, vai tentando conciliar a
escrita com a actividade de geólogo, até
acabar por se dedicar inteiramente à es-
crita, em meados da década de 40, escre-
vendo sobretudo livros de divulgação e
contos infantis.

recendo assim Oesterheld como per-


sonagem da sua própria história, num
m 1951, o dono da Editora Abril exercício de metaficção.
propôs-lhe escrever para Banda De- Tudo começa com a queda de uma
senhada, género que Oesterheld não ara a revista DRAGON BLANCO, estranha neve fluorescente que mata
lia nem apreciava especialmente, mas lançada em 1955, HGO escreve ao contacto com a pele, neve essa que
onde tentou fazer “o melhor que sabia”, cinco séries, duas das quais, Chas abre o caminho para uma invasão extra-
com os resultados que conhecemos… Erikson e Lobo Nuncan, são de FC, tal terrestre comandada pelos Ellos, seres
O primeiro argumento que escreveu foi como acontece com Uma Uma, história que nunca veremos, e executada por
para Ray Kitt, uma série policial ilustra- ilustrada por Solano López, que escreve tropas de assalto compostas por seres
da por Hugo Pratt, o criador de Corto para a revista RAYO ROJO, sobre uma de outros planetas, como os Cascarudos,
Maltese, então radicado na Argentina. ilha do Pacífico invadida por extrater- animais de grande porte parecidos com
Embora as colaborações com Pratt, que restres. O tema desta sua primeira co- escaravelhos gigantes, e os Manos, seme-
disse “aprendi muito com Oesterheld. laboração com Solano López é desen- lhantes aos humanos, com a excepção
Do ponto de vista da técnica narrativa, volvido em outros trabalhos que farão das mãos com imensos dedos, povos
aprendi mais do que com qualquer ou- juntos dois anos depois, a série Rolo, el conquistados pelos Ellos e usados como
tro” sejam em histórias realistas, como Marciano Adoptivo e, sobretudo, El Eter- carne para canhão na invasão ao planeta
Sgt Kirk, um western, ou Ernie Pike, nauta, considerada como a mais impor- Terra.
uma história de guerra, rapidamente o tante BD argentina de todos os tempos, Depois de uma série de peripécias, em
seu nome aparece associado à ficção de tal maneira que o dia 4 de Setembro, torno do combate desigual dos sobre-
científica, estando ligado, como editor, em que chegou às bancas a revista Hora viventes contra os invasores, Juan Salvo
tradutor e autor, à revista MAS ALLÁ, CERO com o primeiro capítulo de El entra acidentalmente numa máquina
publicação pioneira da FC na Argentina, Eternauta, é considerado oficialmente dos invasores que o transporta para
desde 2005 como o Dia Nacional da outras dimensões, para longe da sua fa-
BD (Historieta) na Argentina. mília, transformando-o “num peregrino
Publicada ao
longo de dois
anos na revista
HORA CERO
SEMANAL en-
tre 1957 e 1959,
El Eternauta é
o relato da in-
vasão da cida-
de de Buenos
Aires por for-
ças extraterres-
tres, relato que
é feito por um
dos sobreviven-
tes, Juan Salvo,

20 /// BANG!
através dos séculos, um viajante na eter- neve mortal, ou a forma como é gerida viajar no tempo, história que serviu de
nidade, um ETERNAUTA”. a entrada em cena dos Gurbos, de quem ponto de partida para Mort Cinder, série
Uma dessas muitas viagens pelo espa- vemos primeiro as pegadas e depois o igualmente protagonizada por um per-
ço e pelo tempo trá-lo finalmente de vol- rasto de destruição que causam, antes de sonagem com capacidade de viajar no
ta a Buenos Aires, em 1959, onde encon- os vermos finalmente, esta história de tempo, mas, neste caso, através das me-
tra um escritor a quem conta o que se irá um grupo de indivíduos normais colo- mórias que a descoberta de um objecto
passar anos depois (a acção da história cados numa situação excepcional, tem lhe trazem de vidas passadas.
decorre em 1963) para que este, através momentos de pura poesia, como é o Série em que o fantástico e o terror
da Banda Desenhada, avise os leitores caso da magnífica cena em que um dos convivem com uma visão profunda-
para o que está para acontecer. Manos (seres pacíficos, obrigados a com- mente humana da história, Mort Cinder
Se as histórias de invasões extrater- bater pelos Ellos, que lhes infiltraram é um marco na história da BD mundial,
restres não eram propriamente novi- uma “glândula de terror”, que liberta muito por força do extraordinário traba-
dade, muito menos na obra de HGO, uma substância que os mata caso sintam lho gráfico de Breccia, cuja importância
o que já era novidade, era uma invasão medo) se despede da vida cantando uma Oesterheld reconhece ao referir: “Há so-
que tivesse como cenário a cidade de estranha canção. frimento, tormento em Mort Cinder. Isso
Buenos Aires, onde viviam a maioria Ainda El Eternauta estava em publica- reflecte talvez o meu estado de alma par-
dos leitores de HORA CERO, que re- ção quando o escritor cria para a revista ticular, mas o essencial dessa atmosfera
conheciam com facilidade os cenários EL TONY, da editorial Columba, a série vem de Breccia. Há uma quarta dimen-
desenhados com rigor fotográfico por Star Kenton, uma saga espacial, ilustrada são no seu desenho, uma capacidade de
Solano López e se identificavam com por Walter Casadei e protagonizada por sugestão que o distingue da maioria dos
Juan Salvo e os seus amigos, grupo um cientista e piloto que, depois de sal- desenhadores que conheço. É essa força
heterogéneo na sua composição social var a terra de uma invasão extraterrestre, constantemente aplicada, que dá ao seu
que representava os vários extractos se assume como um vigilante espacial. desenho todo o seu valor e inflama a
da sociedade argentina e que é o ver- imaginação dos argumentistas.”
dadeiro herói da história, como salien- Entre as dezenas de séries que o es-
ta Oesterheld: “O verdadeiro herói de critor cria nos anos seguintes, ressaltam
El Eternauta é um herói colectivo, um dois super-heróis, Bird Man e Future
grupo de homens. Isso reflecte, embo- m 1959, ao mesmo tempo que con- Man. Um advogado americano que de-
ra sem intenção prévia, as minhas con- tinua a desenvolver outras séries, de cide combater o crime depois de encon- em:
vicções: o único herói válido é o herói diversos géneros, com diferentes trar um punhal que lhe dá superpode- o p inião
ua
“em grupo”, nunca o herói individual, desenhadores, HGO inicia a sua colabo- as
res e um cientista e explorador enascido
o herói solitário”. ração com Alberto Breccia em Sherlock x
no século XXV que consegued e iviajar no
Para além da dimensão espectacular Time, uma história policial com toques tempo, que vão ter direito cada um à sua
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da aventura, e de algumas cenas fortís- de ficção científica e de fantástico, pro- própria revista.
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simas, como a sequência inicial com a tagonizada por um detective que podia Em 1969, HGO vai recuperar, ago-
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gostou

BANG! /// 21
ra com arte de Alberto Breccia, El por seu lado, também era outro. Este meio de HGO e também o nome que
Eternauta. Publicada agora na GENTE, Eternauta tinha as suas virtudes e tam- ele usava enquanto militante montonero
uma revista semanal de informação, esta bém os seus defeitos. Por um lado, a na clandestinidade. Ou seja, o persona-
ficção apocalíptica protagonizada por mensagem literária, por outro, a men- gem, tal como o seu criador, abandona
um indivíduo que, tal como Sherlock sagem gráfica. Quanto à mensagem li- uma postura passiva e assume uma op-
Time e Mort Cinder, não está sujeito às terária, apercebi-me, muito mais tarde, ção clara pela acção directa.
leis do tempo, podendo, ao atravessar que me tinham suprimido parágrafos Apesar do traço de Solano López
um portal dimensional, aparecer num inteiros. (…) Em relação à parte gráfica, mostrar uma grande evolução, o carác-
outro local ou época, não teve a aceita- o verdadeiro final foi quando chamaram ter marcadamente panfletário da histó-
ção que merecia e os autores esperavam. o Breccia e lhe explicaram que havia um ria faz com que esta continuação seja
Talvez devido às mudanças na própria desfasamento com o que o público que- bastante menos interessante. Juan Salvo,
história (nesta nova versão, em vez de ria e lhe pediram que suavizasse a coisa. em vez de um homem normal, preocu-
uma invasão global, as grandes potên- Avisaram-no mais duas ou três vezes, pado em recuperar a sua família, surge
cias fazem um acordo com os invaso- mas ele nunca fez caso. Não aceitou fa- aqui como um líder revolucionário im-
res extraterrestres, entregando-lhes a zer modificações e então decidiram aca- placável, disposto a tudo sacrificar à sua
América do Sul) algo perturbador para bar com El Eternauta”. causa.
as consciências ociosas dos leitores da Uma mudança radical no comporta-
revista GENTE, ou ao grafismo de mento do herói que Solano López não
Breccia, a milhas do estilo mais con- aceitou bem, pondo mesmo em causa
vencional de Solano López e demasia- que tivesse sido o próprio Oesterheld a
do abstracto para o gosto do público, escrever toda a história, sugerindo que
que tem dificuldade em reconhecer a e o escritor iria voltar ao tema da o escritor poderá ter utilizado a histó-
cidade de Buenos Aires nas colagens de invasão extraterrestre logo no ria para passar mensagens cifradas à
Breccia, choveram as cartas de protesto ano seguinte com La Guerra de los guerrilha montonera, no meio dos diá-
e o editor decidiu acabar com a série, pe- Antartes, uma história publicada inicial- logos da história. De qualquer modo, o
dindo desculpas aos leitores. Isto permi- mente em 1970 na revista 2001, com caracter panfletário desta continuação é
te perceber o final circular da história (a desenhos de Léon Napoo, que teve di- coerente com a forma como a obra de
melhor maneira que Oesterheld encon- reito a uma nova versão em 1974, com HGO reflecte as suas opções políticas
trou de concluir rapidamente a narrati- desenhos de Gustavo Trigo, no jornal e ideológicas. Conforme refere Carlos
va) e o desequilíbrio dos capítulos finais, NOTICIAS, El Eternauta regressaria Trillo: “não é preciso ser um grande
em que o escritor condensou em quatro numa segunda aventura desenhada por caçador de metáforas para associar os
ou cinco páginas, repletas de texto, uma Solano López, cuja publicação se iniciou Ellos com os militares que tomaram o
acção inicialmente prevista para ocupar em 1976, na revista SKORPIO. Escrita poder”. Impressão que o facto das três
quinze ou vinte páginas. por HGO então já na clandestinidade, versões já referidas do Eternauta terem
De qualquer modo, e apesar deste devido à sua ligação activa ao movi- sido publicadas na sequência de golpes
final inglório, estamos perante um tra- mento Montonero, a história terminou de estado militares, só vem reforçar.
balho graficamente inovador, em que a sua publicação numa altura em que Juan Salvo, o Eternauta, viveria ainda
Breccia, aqui claramente seduzido pela Oesterheld já tinha “desaparecido” às outras aventuras pelas mãos de Solano
arte contemporânea, visível nas inú- mãos da ditadura militar argentina e pro- López. Já a memória de Oesterheld, tal
meras referências à “Op Art” e à “Pop vavelmente já nem estaria vivo, tal como como Juan Salvo, viaja para a eternidade
Art”, começava a utilizar a técnica da as suas quatro filhas, que também eram através de obras como Mort Cinder ou El
colagem, abrindo caminho para o que militantes activas da Eternauta.
iria ser uma guerrilha montone-
característica ra.
marcante da Nesta história,
sua produção passada num fu-
na década se- turo próximo, em
guinte. que a invasão ex-
Conforme traterrestre tinha
refere HGO: João Lameiras é Mestre em História
sido bem-sucedida,
“A versão de da Arte pela Universidade de Coimbra.
Oesterheld não se
El Eternauta Tem desenvolvido uma vasta activi-
limita a escutar as
publicada na dade no campo da Banda Desenhada,
aventuras de Juan
GENTE foi como conselheiro editorial, tradutor,
Salvo, o Eternauta,
um fracasso. argumentista e crítico para diversas
mas participa acti-
E fracassou editoras e publicações e é sócio-
vamente nelas como
porque não gerente da Livraria Dr. Kartoon.
membro da resistên- ião em:
era para essa cia, pois o escritor
Escreve com frequência a opin
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revista. Eu no seu blogue http:// as
que nos episódios i x e
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era outro, não anteriores não tinha
porumpunhadodeim- d e
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podia escre-
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ver o mesmo. com


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E Breccia, German, o nome do


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22 /// BANG!
casa permanecia igual. Um pouco delapi- i- quatro maciças patas de leão, cuja superfície escorregadia de
dada pela passagem dos anos, maltratadaa cerâmica do seu interior constituía uma armadilha inadvertida
pelos elementos, mas ainda assim a mes-- para apanhar aracnídeos. E a cozinha, ampla, de janelas largas
ma casa de que ela se lembrava. Um blocoo a deixar entrar a luz matinal, com armários de madeira poli-
m
irregular de granito de dois andares, com da pela fricção de gerações de industriosas mãos femininas e
uma escadaria exterior de pedra manchadaa um fogão a lenha sob a campânula da chaminé, monstruosa
de líquenes. besta metálica, escura e ameaçadora, de tubagem fumegante
Deixou o olhar percorrer saudosamente a fachada familiar, r, e ventre ígneo em cujas portadas ela queimara as mãos uma
o tijolo enegrecido das velhas telhas, a fileira de janelas en-- vez. Devia ser ainda muito pequena porque se lembrava que
taipadas com a ocasional vidraça partida, como um buraco o avançara num passo inseguro e cambaleante e estendera as
numa dentadura cheia de cáries. Um pedaço de tecido esfar- r- mãos para se apoiar quando perdera o equilíbrio.
rapado, tão fino e escuro de pó acumulado que parecia umaa O robusto portão de bronze esverdeado que evocara na
teia de aranha, pendia inerte de um caixilho podre. Porquee sua fantasia infantil noções de aristocracia empobrecida pa-
seria que todas as casas abandonadas ostentavam cortinadoss recia-lhe agora uma excentricidade pretensiosa dos constru-
esquecidos nas janelas? Seriam propositadamente deixadoss tores originais pois abria-se, não para uma majestosa avenida,
para trás como desleixadas bandeiras de resistência contra a mas para um simples pátio utilitário de uma casa de lavoura.
mudança ou como estandartes conquistados, emblemas dee Havia um enorme tanque de lavagens numa das extremida-
rendição e derrota? des, agora vazio excepto por uma camada de lodo no fundo,
Ali parada no pátio cheio de ervas daninhas, a olhar paraa e edifícios a toda a volta em diversos estados de decadência
a carcaça em que se transformara a sólida habitação da suaa e que outrora tinham albergado animais e alfaias agrícolas.
infância, foi avassalada por memórias que procederam a todo o Sob as sombras poeirentas da arcada formada pelos pilares
um trabalho de rejuvenescimento e remodelação no edifício o de granito do palheiro onde o cereal era guardado e onde
à sua frente. O recuar no tempo limpou a pedra do musgo, o, a roupa era estendida a secar em dias de chuva (e onde ela
colocou vidraças intactas nas janelas e restaurou o telhado. o. passara muitas horas a espiar as actividades que decorriam no
Se subisse as escadas até à entrada principal encontraria um m pátio por entre as ripas de madeira da parede) escondia-se a
átrio que se abria para um corredor central a todo o com-- porta de madeira carcomida da cave sem janelas, escura e fria,
primento, com uma janela ao fundo. Portas de ambos os la- a- que servira de adega e cuja existência ela registara apenas de
dos conduziam a fileiras de quartos e salas com soalhos dee relance. Tinha evitado olhar para a entrada da cave desde que
madeira. A casa de banho, com o chão de ladrilhos pretos e ali chegara.
brancos intercalados, onde se poderia ter jogado uma parti- i- "Ei! Saí cá p'ra fora! Ó assombração, saí cá p'ra fora!"
da de xadrez humano, e uma enorme banheira apoiada em m Sobressaltou-se com o som imaginado. As vozes pareciam

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BANGG! ///
BBANG!
ANNGG! /// 23
// 23
tão reais que se virou, à espe- Então, um movimento repen-
ra de ver o bando de miúdos ttino, fugaz, de sombras que se
com quem costumara brincar, mmoviam como volutas de fumo
alinhados defronte da entrada nna estreita fita de escuridão pro-
a cantarolar o desafio. A maior vvocou uma debandada silenciosa
prova de ousadia consistia em e aterrorizada de todos os miú-
aproximar-se do limite da som- dos excepto ela.
bra da arcada e atirar uma pedra O que é o medo? Quando so-
à pequena janela redonda da mmos crianças, antes de acumular
porta, qual olho vigilante de um experiência e conhecimento, an-
ciclope carcereiro dos monstros ttes de desenvolver escudos de-
sinistros aprisionados nas pro- fensivos e explicações racionais,
fundezas da cave. A crença par- antes de o substituir pelo temor
tilhada em assombrações e pa- do inexplicável, o medo é, so-
pões era fonte de muitos sustos bbretudo, o escuro. Sempre foi o
e dessa maneira as suas mentes escuro, desde os primórdios da
infantis treinavam-se e fortale- hhumanidade, impresso na psique
ciam-se na luta contra o medo como instinto de autopreserva-
que era necessário exorcismar ção. Sem medo dos perigos des-
e vencer. conhecidos que aguardavam na
A convicção provou ter nnoite, de que outro modo teriam
fundamento, como a perse- os nossos antepassados escapado
verança naquele jogo ritual aos predadores e evoluído até se
acabou por demonstrar. Um ttornarem na espécie dominante?
dia, na sequência da rotina MMas que adiantou todo o pro-
diária de gritos e prática ggresso tecnológico se a suprema- 1
de tiro ao alvo, as crianças cia da luz artificial apenas exacer-
receberam como resposta bbou o medo das sombras? Que
um súbito, inesperado e ttem a temer do escuro a criatura
arrepiante rangido de do- que inventou os meios para a ba-
bradiças perras. A porta da nnir para sempre?
cave deslocou-se penosa- Ignorando todos os alarmes
mente alguns centímetros bbiológicos que tinham feito fu-
deixando antever uma fai- ggir os seus colegas com uma
xa de escuridão ainda mais celeridade digna de verdadeiros
profunda pelo contraste sobreviventes, ela foi incapaz de
que fazia com a claridade se mover, hipnotizada pela forma
exterior. Com o primeiro que coalescia perante o seu olhar.
choque de incredulidade, os EEra quase humana, um vulto alto
miúdos calaram-se e ficaram envolto num manto de sombras,
muito quietos a olhar para a con- com a cabeça oculta por um ca-
cretização dos seus temores. Um ppuz. Pairava silenciosamente al-
fascínio mórbido mantinha-os gguns centímetros acima do chão
presos da expectativa em relação mmas aparte esse pormenor sobre-
ao que poderia dali sair. Com ou- nnatural, não parecia particular-
tro solavanco, como se alguém mmente perigoso.
no interior se esforçasse por pu- No primeiro momento, ela
xar a madeira recalcitrante, a por- sentiu a elação do seu próprio
ta alargou o espaço da abertura. ppoder. Evocara uma aparição e
As crianças não se mexeram, ela materializara-se. Estava ali,
à espera do que vinha a seguir. aguardando pacientemente as
Como sempre acontece nessas suas ordens. Depois chegou a
situações, o tempo dilatou-se, llenta consciência de que não
insuportavelmente lento, conver- estava a lidar com um brinque-
tendo momentos em horas. do e um crescente mal estar to-
E nada acontecia. Afinal, pare- mmou conta dela. Reagindo ao seu
cia que a totalidade da ameaça se mmedo incipiente, o vulto esco-
resumia a alguns rangidos sinis- llheu esse momento para erguer
tros e isso não era assustador, era a cabeça e revelar o rosto. Mas
apenas decepcionante. Alguém nnão havia rosto, apenas uma
soltou uma risadinha nervosa, oval esbranquiçada de bruma em
suspeitando de alguma partida constante movimento, como um
dos adultos. espelho a reflectir a passagem de

24 ///
24 ///// BANG!
nuvens velozes. Era hipnótico, sedutor, or, O ar quente exsudava das paredes e esquina da casa. Iam de mãos dadas, a
induzindo uma espécie de transe que a a ligeira diferença de temperatura faziazia rir, despreocupados e excitados com a
atraía para a sombra silenciosa... as madeiras estalar sonoramente. Ela aventura da descoberta. Inquieta, seguiu
O que se passou a seguir permanecia cia gostava de sentir os humores da casa, as as crianças até às traseiras da casa, onde
nebuloso na sua memória. Algo aconte- te- suas variações ao ritmo das estações,, à a horta e o pomar se tinham transfor-
cera. E fora então que o terror tomara ara medida que ela se expandia e retraía em mado numa selva desgovernada. Viu-os
conta dela. Correra, o coração aos pu- u- ras
longas inspirações e exalações. Nas raras desaparecer num maciço de vegetação,
as
los, a bexiga prestes a rebentar, as pernas noites em que não corria um fio de ar, como as crianças perdidas no bosque da
transformadas em geleia, toda ela uma ma em que o próprio o som parecia abafado oe história infantil.
h
massa trémula, chorosa e incoerente. nimais noctur-
não se ouviam animais De repente, sentiu medo.
Nunca fora capaz de explicar o que ue nos, nem um ladrar,rar, nem um Não havia nenhuman expli-
a assustara tanto. Certamente não fora ora umbido, o
piar, nem um zumbido, cação racio
racional para isso.
apenas a estranheza da aparição; fora ora silêncio era tão absoluto Nenhum perigo os
algo que ela lhe transmitira, algo inde-de- cutar o
que ela podia escutar ameaça
ameaçava. Era apenas
finido, obscuro, um conhecimento mis- is- oração
bater do seu coração um ddesejo premen-
terioso. Eventualmente, os seus temores es e o sangue a lateja ar
ar
latejar tte,, iimperativo, de
te
tinham sido acalmados e desvalorizados os nas têmporas. Expe-- man
mantê-los a salvo,
pelos adultos que atribuíram o incidentente rimentava então um segu
seguros, protegi-
às mais variadas razões. momento de irreali-reali- dos
dos. Deu por si a
"Foi alguém disfarçado que te quis as- dade, de dúvida exis- seg
segui-los, quase
sustar." tencial, reforçadoçado a correr, através
"Olha a imaginação da miúda." ário,
pelo som solitário, ddaquela imita-
"Quantas vezes já te disse para não ão fantasmagórico, de çã
ção de bosque
brincares naquela cave velha e suja? Po- o- um veículo motori- ori- en
encantado que
des magoar-te a sério." zado que roncava avaa ag
aguardava sono-
"É bem feito. Sempre a atirar pedras ras na estrada a algunsns len
lentamente que
à porta!" quilómetros de alg
alguém o des-
"Se calhar adormeceste de pé e so- o- distância. Tinha a per
pertasse.
nhaste." sensação surreal al T
Tudo ali tinha
Ela acabara por se convencer de que ue de que era a úni-- uum m ar parado,
efectivamente sonhara. Não obstante, te, ca pessoa acorda-- iimperturbável,
m
ficou irremediavelmente marcada pelo elo da num mundo o a imobilidade
episódio. Perseguiu-a todos os dias da inteiro adormeci-- do
dos locais desa-
sua vida; intrometia-se inesperadamente nte do, a única a ouvirvir bit
bitados, esque-
nos seus pensamentos, ensombrando os aquele som espec- pec- cido
cidos, entregues
seus anos de juventude com presságios os pagava
tral que se propagava aos ciclos
ci sazonais e
de fatalidade, sobretudo nas noites de renatural num
no silêncio sobrenatural ao lento desga
desgaste do tempo.
insónia, no verão, quando o calor não oa prolongado efeito Doppler. Costumava va Possuía, também, a agressividade primi-
deixava dormir e ela ficava deitada sobre re imaginar um motoqueiro que percorria ria tiva dos lugares selvagens que, ressenti-
o lençol a escutar a casa a respirar e a uma estrada infinita, sugando todos os dos com a intromissão indesejada, colo-
cismar no futuro. sons à sua passagem e deixando um ex- cavam toda a espécie de empecilhos no
tenso vazio atrás de si, uma espécie de seu caminho. Ela viu a sua progressão
Morte motorizada com um tubo de vá- através do espesso matagal dificultada
cuo a substituir a tradicional gadanha. E por ramos tão estreitamente cruzados
na-
essa figura idealizada, impassível, eterna- como malha, por espinhos que pren-
mente errante, tinha sempre a aparência cia diam a roupa e rasgavam a pele e por um
da assombração da cave. terreno desigual coberto por uma densa
A evocação daquela recordação em camada de matéria orgânica em decom-
particular deixou-a perturbada, contami-mi- posição, fofa e estaladiça, onde os pés se
nando subitamente o dia soalheiro com om enterravam.
um eclipse. A luminosidade adquiriu riu Uma pequena clareira abriu-se à sua
uma qualidade cerosa, enfermi- mi- frente, com algumas macieiras carrega-
ça, e o céu sem nuvens pareceu eu das de fruto. Feixes de luz filtrada pela
tingido por um azul pálido e cúpula de folhagem traçavam barras
desbotado. Foi dominada mais ais oblíquas e brilhantes na penumbra onde
uma vez por um recorrente nte navegavam frotas de insectos. Maçãs
sentimento de catástrofe imi- mi- vermelhas apodreciam no chão, espa-
nente, um pressentimento fu- lhadas entre as ervas; as que estavam em
nesto de desgraça. melhor estado tinham sido empilhadas
Os seus sobrinhos, a meni- ni- em montículos rubros pelas crianças. Ti-
na de sete e o rapaz de cincoco nham interrompido a actividade quando
anos, passaram por ela a outra coisa atraíra a sua atenção e agora
correr e contornaram a estavam acocoradas junto a um charco a

BBANG!
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BANG
ANG ///
NG! ///
// 25
25
observar os girinos que se contorciam m e o futuro. E eis agora o resultado: de-
e- no chão, alimentadas por poças de água
num espaço cada vez mais reduzido à saparecera tudo no espaço de duas ge- e- das chuvas; formavam estranhas colu-
medida que a água estagnada se eva- a- rações. Naquele jardim bravio ainda se nas frondosas, estalactites e estalagmites
porava. Ela baixou-se junto deles para ra encontravam vestígios dessa disputa, a, de uma gruta vegetal. A ilusão era re-
observar a luta pela sobrevivência das as peças de maquinaria enferrujada dis- s- forçada pela luz difusa, esverdeada, que
pequenas criaturas presas num ambien- n- persas num abandono negligente, len- n- conseguia penetrar através da cortina de
te insuficiente para suportar tamanha ha tamente asfixiadas pela vegetação domi-i- verdura entrelaçada que tapava as enor-
prole. A água estava tingida da ferrugem m nante. A terra desprezada recuperava o mes janelas.
de um grosso parafuso que repousava va do
seu território temporariamente perdido Os velhos teares imobilizados em po-
no fundo lodoso. com toda a pujança de uma merecida e sições artríticas ainda eram visíveis na
As duas crianças estavam sérias, ab- b- justa desforra. penumbra; suspensas das suas estrutu-
sortas no espectáculo da insensível e De repente, arrependeu-se da decisãoão ras desconjuntadas pairavam imensas
cruel indiferença da natureza. A voz oz de acompanhar o irmão até ali. Parece-e- teias de aranha, sugerindo, por momen-
do pai que os chamava tirou-os do de- e- ra-lhe a ocasião ideal para se despedirir tos, os tecidos que outrora tinham sido
vaneio. Ergueram-se com vivacidade e va
da velha casa antes da venda definitiva ali produzidos. Ela teve a impressão de
gritaram uma resposta, novamente ale- e- da propriedade, mas agora apercebia-sese ter entrado num túmulo profanado, sa-
gres, o drama esquecido. Recolheram as que relembrar o passado fora um erro. o. queado, cheio de fantasmas letárgicos.
maçãs amontoadas, guardando-as nos os Nunca fora feliz ali e contudo experi- i- Era triste, sombrio, mas possuidor de
bolsos e em dobras de roupa e afasta- a- mentava a sensação nostálgica de ter er uma espécie de beleza decadente que
ram-se, de regresso à casa, cujo telhadodo regressado a casa. Era um sentimento to advém do envelhecimento das coisas
era visível entre a folhagem. A distância ia estranho, contraditório, ambivalente, o permanentes. Deambulou pelo espaço
que os separava era apenas de alguns ns desejo de emendar os acontecimentos os intocado, silencioso, cheio de ecos, re-
metros mas o crescimento descontrola- a- passados a debater-se com a noção de cordando um tempo em que o ruído en-
do da vegetação criara a ilusão de um m inutilidade e impossibilidade de refa-a- surdecedor dos teares mal deixava ouvir
recanto isolado e longe do mundo. ma
zer toda uma vida. Estava a ser vítima o som da própria voz. E foi então que o
Ela ficou novamente sozinha,, rodeada da de uma emboscada subtil e tentadora, a,, escutou. Um ténue raspar de pedra so-
pelo silêncio ocasionalmente quebrad
quebradodo bre pedra.
b pedr
por um piar ou por um restolhar.ar. Come-
Comee- Ficou petrificada com o choque da
familiarees
çou a reparar em pormenores familiares recorda
recordação, súbita e inesperada. Tinha
na disposição do terreno. Ali estava, o esquec
esquecido aquele som que a desper-
duzido ao
muro que parecera tão alto reduzido ao tara a meio da noite e a deixara ate-
seu verdadeiro tamanho insignifi ificante,, mori
morizada debaixo dos cobertores.
um simples degrau íngreme naa pers- Co
Começara a atormentá-la pouco
onto
pectiva de um adulto. Mas do ponto tem
tempo depois de ter avistado a
de vista de uma criança pequena, na, as
assombração; um rosnar baixo
uma queda de proporções alar- r- e ameaçador que se transmuta-
ri-
mantes, incrivelmente alta e peri- vvaa num lento ribombar, como
gosa. Seria essa a origem daquelala tr
trovoada à distância. Depois
sensação de desiquilíbrio em lo- vi
vinha o arrastar lento, pesado,
cais altos? de alguém que empurra esforço-
omo
Virou-se, encontrando, tal como same
samente um grande bloco de pedra
esperava, a visão da chaminé dee tijo- atravé
através de um chão de laje. Deslizava
lo que ainda se erguia intacta e cober- penos
penosamente, parava alguns segun-
unha-see
ta de hera até meia altura. Impunha-se dos e recomeçava. Mas não saía do
odeavam
em estatura às árvores que a rodeavam m sítio. UUm pára e arranque monótono
mas parecia diminuida, acossadada por to-
to
o- consp
e conspícuo no silêncio nocturno que
dos os lados pela fecundidade vegetal. al. se prolongava por vários minutos sem
O resto do edifício da velha fábrica es- s- sabia-o, mas não resistiu à atração. As nunca se afastar daquele ponto.
tava praticamente oculto sob um monte te memórias puxaram-na inexoravelmente te E que mais ninguém escutava.
artificial de silvado semelhante ao dorso o para a vereda tortuosa que conduzia ao Aquele som peculiar deixara-a inex-
de alguma criatura pré-histórica sub- b- o-
silvado que cobria a antiga fábrica. Pro- plicavelmente assustada. Nunca tivera
mersa na terra; despertaria a qualquer er curou uma abertura, como o príncipe pe coragem para se levantar e ir investigar o
momento da sua longa hibernação e fa- a- que abriu caminho entre os espinhos os fenómeno quando este acontecia. Tivera
ria tremer o solo em lentas ondulações es para ir acordar uma corte inteira mer- r- receio que a realidade fosse mais assus-
dos seus poderosos músculos. gulhada num sono imutável de séculos. s. tadora do que as visões criadas pela sua
As ancestrais raízes agrícolas da sua ua O interior do comprido pavilhão es- s- imaginação pois, como toda a criança
família não tinham desaparecido com- m- tava escuro e poeirento, com o chão ão sabe, ainda há monstros no escuro. De
pletamente com a adesão tardia à era in- n- coberto de detritos, folhas ressequidas e manhã ia verificar o exterior em busca
dustrial. Numa tentativa de conciliação ão quebradiças misturadas com vidros par- r- de marcas mas nunca encontrava nada.
das duas tradições, o espaço da habita- a- tidos das clarabóias foscas de pó. Dos os O caso era ainda mais intrigante porque
ção familiar era contíguo ao do negócio io buracos do tecto pendiam galhos mor- r- sob a janela do seu quarto não existia
familiar, estabelecendo um compromis- s- tos e trepadeiras que desciam ao encon-n- lajedo, só alguns arbustos num pedaço
so confuso e indeciso entre o passado do tro de plantas que irrompiam de rachas as de terra. Com o passar do tempo a sua

26 /// BANG!
mente banalizara a experiência ia ral, sem existência física, faminta,
até a banir dos pensamentos os conhecendo apenas uma ânsia
numa estratégia de autodefesa sa desesperada por atenção que era
contra a insanidade. A reminis- s- quase uma ameaça.
cência voltava agora para lhe re- e- Movida por um estranho
cordar o poder que as sensações es sentimento de tristeza e com-
de outrora ainda exerciam sobre re paixão avançou para a sombra.
ela. Descontente com o domínio io Não pensou, deixou-se ir e
despótico das suas memórias in- n- foi engolfada pela escuridão.
fantis e determinada a investigar ar Sentiu-se elanguescer numa
a origem do som, avançou mais is nuvem morna, aconchegan-
alguns passos. Pôs-se à escuta. a. te e macia como lanugem.
O roçar áspero, lúgubre, provi- i- Era um bom sítio para se
nha da parede do fundo, onde as estar, pacífico, sereno, um
sombras eram mais densas. En- n- ninho confortável, um
frentou a escuridão. A princípio io casulo de mudança indo-
não viu nada, ouvia apenas aque- e- lor. Horas depois julgou
le raspar intermitente de criatu- u- ouvir alguém a chamar o
ra ferida a arrastar-se pelo chão.o. seu nome mas ignorou
Depois, as sombras organiza- a- o som irritante. Decidiu
ram-se em padrões e movimento to ficar ali por mais algum
ar
e ali estava ela, a velha e familiar tempo. Resvalou para o
assombração da cave. doce esquecimento sem
A sua pele arrepiou-se num m ter consciência de estar a
calafrio de reconhecimento. Ela la ser lentamente devorada.
não devia estar ali. Aquele não ão Algum tempo depois foi
era o seu lugar. E porque con- n- novamente importunada
tinuava a persegui-la ao fim de por pancadas surdas, per-
tantos anos? sistentes, na porta do seu
Tinha a mesma forma vaga- a- abrigo escuro. Saiu lenta-
mente humana e encapuzada e mente da letargia sonolen-
pairava alguns centímetros aci- i- ta e ouviu-as, vozes infan-
ma do chão, mas parecia menos os tis a entoar uma cantilena
sólida, ligeiramente translúcida da vagamente familiar.
nas margens, como se também m "Ei! Saí cá p´ra fora! Ó as-
ela estivesse sujeita aos efeitosos sombração, saí cá p'ra fora!"
da passagem do tempo. No lugar ar
do rosto apresentava agora uma ma
oval clara e opaca sugerindo uma
fisionomia em construção, em
busca de uma identidade.
Permaneceram imóveis, enca-
rando-se mutuamente, durante o
que pareceu muito tempo, ou tal-
vez o tempo tivesse ficado sim-
plesmente suspenso numa época
há muito passada. A criança a
enfrentar a aparição e a ver-se a
si mesma no futuro; a adulta a
ver os seus medos materializados
numa figura obscura, imaterial,
tão insubstancial como vapor
tóxico mas igualmente nociva. Já
não a assustava, mas reconhecia
nela um inimigo, a fonte de toda
a sua melancolia. Culpava-a pela
sua infelicidade. em:
A assombração falou com ela, op inião
sua
sem som, uma voz indistinta na ea . com
sua cabeça. Pobre e patética enti- de
ix
b ang
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dade solitária à sua espera todos


go
rti
vis

aqueles anos. Despojada, expul-


ea
.re

sa, perdida num limbo intempo-


dest
www
gostou

BANG! /// 27
ssim se descobria que esse alienígena (nascido no
Chile em 1929 e a viver entre o México e Paris) que
aterrara nas capas dos Incais tinha uma história e que Jean Giraud (que assinava já então como Moebius) e o produ-
essa não fora escrita à conta da banda desenhada tor e distribuidor Michel Seydoux (a quem se devera o facto de
(apesar de uma belas Fábulas Pânicas publicadas no México a Montanha se ter tornado um sucesso em França e em Itália).
entre 1967 e 1973, que ele desenhara e escrevera, e, antes, das É a partir deste ponto no tempo que o documentário de Frank
encenações de dramaturgos do “teatro do absurdo” e dos ha- Pavich arranca: procurando um projeto que unisse os talen-
ppenings de inspiração “pânica”, na esfera do trabalho de Fer- tos dos três, Jodorowsky propõe uma adaptação do romance
nando Arrabal) mas do cinema, e que neste a sua fama fora Duna de Frank Herbert.
considerável indissociável de um título: El Topo, o western O ano de arranque desta aventura não poderia ser mais in-
“espiritual” de 1970, pós-clássico, pós-spaguetti, pós-tudo, teressante: por alturas de 1973 ou 1974, um grande filme de
que Jodorowsky escrevera, realizara e interpretara. Foi o início ficção-científica, com os meios financeiros que uma produção
da febre dos “midnight movies” dos anos 70, filmes de culto como a de Dune requeria, só podia ser feito com o apoio e a
que atraíam um público fiel e eram exibidos nas mesmas salas distribuição de um grande estúdio americano. A Europa – e
durante anos. Quando faz A Montanha Sagrada em 1973, fá-lo esta era uma produção francesa – estava lentamente a perder o
já com uma coterie de novas amizades que a fama de El Topo terreno para a “Nova Hollywood”, e mesmo um grande pro-
atraíra, entre as quais o desenhador e estrela da BD francesa dutor italiano tinha de sair da Cinecittá e ir fazer filmes para

28 /// BANG!
ro, e Douglas Trumbull (o responsável
pelos seus efeitos especiais) é o homem que Jodorowsky procurava: um entusias-
a cuja porta devem bater. Trumbull era mo quase infantil e uma capacidade de
os EUA: se, em 1968, Dino de Laurentiis agora um realizador também (fizera dois criar com poucos meios. Dan O’Bannon,
produzira Barbarella em Roma como um anos antes Silent Running, um cruzamento que, além de interpretar, escrevera e fora
filme francês e italiano, o seu remake de da FC com a nova vaga da ecologia) e tal- o responsável pelos efeitos especiais,
King Kong em 1976 já não seria possível vez tenha sido isso a provocar a relativa tornava-se assim no segundo “guerreiro”
sem a todo-poderosa Paramount. Mas, frieza com que recebeu aquele chileno da saga. Seguiu-se Chris Foss, cujas capas
mesmo na Nova Hollywood, a FC tinha associado aos “midnight movies” e um de paperbacks que ostentavam bizarras na-
ainda um papel secundário: a promessa Jean Giraud que ainda ninguém conhe- ves espaciais Jodorowsky vira. Pedindo a
de 2001 de Kubrick não se materializa- cia em Hollywood. Sentido-se despeitado ambos que se juntassem a ele e a Moe-
ra numa onda de novos filmes cada vez por um mero “técnico”, alguém sem a bius em Paris, Jodorowsky tinha agora a
mais arrojados, e mesmo um dos fil- profundidade “espiritual” de um artista, equipa que iria dar uma imagem ao guião
mes do género mais inovadores saídos Jodorowsky saiu da reunião e, depois de que escrevera a partir do romance. Sem
depois daquele, THX 1138 (1969) de andar um bocado, decidiu entrar com o saber, o realizador chileno tinha ali à
George Lucas, não passara do circuito Giraud numa sala de cinema que exibia mão o núcleo criativo responsável pela
marginal. Em 1974, quando Moebius e um novo filme de FC, a ver se desco- iminente revolução visual no cinema e na
Jodorowsky vão a Hollywood em bus- briam algo. E descobriram: o filme era BD de Ficção-Científica, núcleo que fi-
ca de um “mago” dos efeitos especiais, Dark Star, a primeira longa-metragem de cou completo em breve com a adição do
2001 é ainda, seis anos depois (e apesar um ainda desconhecido John Carpenter, pintor suíço H.R. Giger, recomendado a
de excelentes e recentes filmes como A uma sátira bem escrita ao género e, em Jodorowsky por Salvador Dali.
Ameaça de Andrómeda de Robert Wise), a particular, ao 2001 de Kubrick. Pequeno Salvador Dali? Sim. Escolhida a equipa
referência tecnológica suprema do géne- filme de série B, revelava talvez aquilo “técnica”, o processo de casting foi uma

BANG!! ////
/// 29
montanha russa de acasos e golpes de cintura para conseguir con-
vencer o mestre surrealista a interpretar o “imperador louco da ga-
láxia”. Orson Welles (cujo famoso plano-sequência inicial de Touch
of Evil Jodorowsky queria “suplantar” com um plano-sequência
de dimensões “galácticas”) seria o Barão Harkonnen. Mick Jagger
entraria também. Assegurado estava já David Carradine (envolto
na fama da série televisiva Kung Fu, muito influenciada por El Topo)
para o papel de Duque Leto, e o filho do realizador, Brontis (que,
ainda uma criança, entrara em El Topo), seria a personagem prin-
cipal, Paul Atreides. Para a música, nova montanha russa. A cada
“família” seria atribuída uma banda sonora por um grupo de rock
diferente: os Atreides ficariam entregue aos Pink Floyd e os Ha-
rkonnen aos Magma.
Mas os verdadeiros avanços estavam a ser feitos em Paris. A len- de Hollywood, na busca do financiamento e, sobretu-
dária rapidez de execução de Moebius permitiu a produção de um do, da garantia de uma distribuição mundial. Jean-Paul
storyboard detalhado de todo o filme, acrescido de estudos de guar- Gibon e Seydoux, os produtores que os levaram de es-
da-roupa, e às naves e estruturas arquitetónicas de Foss juntaram-se túdio em estúdio, começaram a perceber, contudo, que
os estudos de Giger para a arquitetura dos Harkonnen. O’Bannon, o desentendimento entre Jodorowsky e Trumbull fora
que vendera tudo o que possuía para ir para Paris, coordenava sob sintomático: todos abriam a boca de espanto ante a qua-
o olhar exigente de Jodorowsky, que todas as manhãs exortava os lidade do guia de produção, mas o nome de Jodorowsky,
seus “guerreiros” ao máximo esforço. O resultado foi um par de apesar do seu inegável talento visual, estava associado a
calhamaços com toda esta planificação gráfica, requintadamente filmes esotéricos, marginais e escandalosos (Fando y Lis
produzidos, que serviriam de apresentação do filme aos estúdios chegara a ser proibido no México), combinação pouco
sedutora para produtores já atrás de sucessos finan-
ceiros que ultrapassassem os Padrinhos ou o Exorcista.
Jodorowsky (a cujos El Topo e A Montanha Sagrada ti-
nha sido negada a distribuição mundial pelo produtor
Allen Klein na sequência de uma disputa legal) sabia
que era o fim: pequenos filmes como aqueles podiam
sobreviver mesmo com uma distribuição limitada,
mas uma superprodução como Dune precisava de mi-
lhares de salas em todo o mundo para amortizar o
investimento.
Se a história que Jodorowsky quisera contar, a de
uma miraculosa génese individual (a de Paul, filho
biológico de um pai castrado) e planetária (a do árido
Dune, transformado num luxuriante oásis pela morte
do messias Muad’Dib), não se materializara em filme,
servira, porém, para dar vida a muitas carreiras, e uma
nova vida à sua: a qualidade do trabalho de Moebius,
Foss e Giger, visível no “calhamaço” de produção, ga-
rantiu a estes uma frutuosa carreira em Hollywood;
O’Bannon, talvez a “personagem” mais interessante
deste documentário e o que mais marcado ficou pelo
fracasso do projeto, curou-se da depressão escreven-
do o argumento original do que será Alien de Ridley
Scott (1979), filme que, além do seu nome, juntará os

3300 ///
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to, o filme de Pavich é preciso e bastante con-
vincente. Seydoux e Gibon são claros quanto
ao efeito que o “calhamaço” de produção teve ve
em m todos os que o viram (e que deverá ter ci cir-
cir-
cula
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la do de mã mão o em e m mão ão p pel
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BANG! /// 31
[BREVE APRESENTAÇÃO DO PROJECTO]
Desde o início dos tempos que o ser humano está refém da
sua própria imaginação. Entre narrativas fantásticas, contos
mirabolantes e relatos de acontecimentos sem explicação,
transmitidos originalmente de boca em boca, a superstição
ganha forma e somos assombrados por imagens aterrorizantes
do desconhecido. Esta exposição procura ilustrar como
muitas destas figuras, algumas centenárias, marcaram
a imaginação dos artistas convidados.

COMISSÁRIO:
PRODUÇÃO: | PARCEIROS:

Como não consegue desenhar um patinho de borracha, mesmo que a sua


vida dependesse disso, mantém a sua participação no mundo da banda de-
senhada como colecionador e, sempre que pode, elabora umas exposições
aqui e ali. Mais recentemente desenvolveu, juntamente com Diogo Campos, a
primeira loja em Portugal de pranchas originais de banda desenhada, a Comic
Heart (www.comicheart.com). Fora isso trabalha como produtor, animador
e realizador no Easylab, o departamento de animação da Take it Easy Films,
parceiro desta exposição.

3 ///
32 /// BAN
BANG!
A G!
G
Depois de ver o Lobijovem com o
Michael J Fox mais de 50 vezes quando
era miúdo, existem duas coisas que
aprendi.
Fazer surf em cima de uma carrinha em
movimento é fixe e ser lobisomem faz
com que o gajo do regresso ao futuro
consiga fazer afundanços. Logo aí já
me tinham vendido a ideia de que
o Lobisomem era e sempre será o
Monstro mais brutal de sempre.
Com o passar dos anos comecei a
aperceber-me das subtilezas da história
clássica, o instinto animal presente
no homem, a dupla personalidade e
a autodestruição. Mas nada disso se
compara á imagem que tenho na cabeça
do lobijovem a fazer breakdance de
óculos escuros no meio do corredor da
escola.

Escolhi esta lenda por porque


sou fascinada por criaturas
antropomórficas como os faunos -
que devem ser uns primos afastados
da Maria Alva.
Ter crescido a ver a National
Geographic, e ser do signo Carneiro,
acentua esse respeito por animais
e universos de fábulas, lobisomens,
mitologia, deuses egípcios... o
Black Sad... assim, quando tenho
oportunidade em geral, seja em
pintura (Fábulas, 2004), em ilustração
(Zootrópole,2007) ou posts (#zoomorphics)
gosto de fazer humanos mais
“animalizados” ilustrar esta história foi
explorar a oportunidade de descobrir
como seria a donzela. Seriam os pés
mesmo de cabra? Ou seriam cotos?
Será que ela é a menina da história
“Os Sapatinhos Vermelhos”? Tem um olhar místico sem dúvida... qualquer coisa
Pré-Rafaelita... os mesmos vestidos medievais, pele clara, cabelo vermelho ou
negro? Teria uns chifres escondidos debaixo do cabelo? E fui desenhado para a
descobrir. Desenhar a figura inteira com cenário foi a primeira hipótese, mas o
desenho perdia escala e força. Demasiados pormenores dispersavam a leitura.
Preferi acentuar a expressão facial e a luz sobrenatural. Deu-me especial gozo
perceber que deixando as pupilas dos olhos horizontais, como nos bodes, tinha a
metáfora necessária para a interpretação em vez de desenhar literalmente
os pés de cabra.

BANG!
BA ///
ANG! //
// 33
33
Escolhi a Medusa por
duas razões: primeiro
queria uma personagem
que fosse um animal
(ou parcialmente
animal), porque é
um tema que me
diverte ilustrar e para
o qual posso sempre
aproveitar o meu gosto
por ilustração cientifica.
Para além disso achei
interessante que a
Medusa nesta colecção de Figuras Clássicas do Terror fosse associada à personagem
que Ray Harryhausen fez para as sequências de stopmotion do filme Clash of the Titans,
isto porque em tempos tive a oportunidade de trabalhar na construção de marionetas
para filmes de stopmotion e assim aproveitei para homenagear dois dos meus grandes
prazeres: ilustração e stopmotion!
Como o sentido de humor é uma das características do meu trabalho, a minha
abordagem foi mais pelo lado cómico... Quis retratar um lado mais emocional da
Medusa, como sendo alguém que vai ao psiquiatra porque não está muito à vontade
na sua pele... Na sua conversa com o doutor, percebemos que ela não terá tido uma
infância fácil e que era vitima de bullying por causa das sua cabeleira de serpentes!
Claro que durante a sessão o psiquiatra terá sido transformado em pedra, mas isso é
outra questão...

Escolhi a Noiva do Frankenstein porque


gostei da força visual da personagem, e
também do seu peso na narrativa. Apesar
das várias versões dos filmes e das
diferentes interpretações, atraíram-me
as questões que foram levantadas, ainda
que em alguns casos de forma subtil, ou
a ausência ou o espaço deixado para as
mesmas.

34 ///
34 /// BBANG!
// ANG!
ANG!
Nunca gostei de filmes de terror.
O terror faz comigo aquilo que é
suposto fazer com toda a gente.
Assusta-me. No entanto aceitar
desafios destes pode dar resultados
interessantes e a ideia de se pôr
ilustradores com linguagens tão
distintas a trabalhar sobre um
tema tão associado a um tipo de
representação, agradou-me muito.
Como não tenho relação com
nenhuma das personagens decidi
optar pela forma, e a múmia vinha
de encontro à minha obsessão por
linhas. A ideia era fazer uma múmia
enrolada em fios e não em tiras de
pano, mais parecida com um novelo
do que outra coisa. O caminho
acabou por se mostrar muito mais
obsessivo, as linhas tornaram-se
secundárias e o foco acabou por ser transferido para os grãos de areia. O
resultado foi uma ilustração sobre uma personagem clássica do terror, com
uma abordagem nada clássica e nada assustadora.

Este convite foi uma oportunidade – e a


desculpa perfeita – para voltar a ilustrar,
algo que já não fazia há algum tempo.
Escolhi a figura mítica do Cthulhu,
criada pelo escritor H. P. Lovecraft,
pela forte ligação que esta criatura tem
com o mar. Quis mesclar a fantasia do
autor com o imaginário Português dos
Descobrimentos do século XVI. Quis
também dar-lhe um aspecto antigo,
quase de gravura.
Abordei este trabalho começando por
imaginar uma estória, algo frequente
no meu processo criativo. Pensei
personagens e situações que não
iriam aparecer na ilustração, mas que
serviriam de mote para a mesma.
Ficcionei que alguém arranjara maneira
de chamar o Cthulhu das profundezas
e um grupo de destemidos heróis que
embarcam numa viagem pelos mares para travar esse chamamento. No entanto, estes
chegam tarde demais, apenas para constatarem que o ente cósmico já fora libertado.
Criei então uma imagem que reflete esse momento climático.
Este é o tipo de desafios que costuma provocar em mim uma vontade de fazer
mais, de acrescentar mais peças que transformem um conceito numa estória mais
elaborada. Quem sabe se isto não será a génese de um projecto futuro...

BBANG!
BA ////
ANGG! //// 35
35
Quando o desafio me foi proposto,
a principal intenção ao escolher foi
a de explorar uma criatura “fresca”,
por modo a desenvolver uma imagem
com alguma novidade. Feita alguma
pesquisa sobre o carácter “vago” da
criatura, criada do barro para servir
um mestre humano, imaginei-a livre
dentro do conceito de um Gigante
Gentil, e assim espero ter transmitido
a ideia.

Apesar de um bom leque de escolhas,


o fantasma da ópera foi aquele que
para mim mais se destacou. A obra
de Gaston Leroux e as respectivas
adaptações cinematográficas
deram-me rapidamente uma imagem
de movimento entre corpos, um amor
sombrio e obsessivo, que sabia que
iria ter gosto em trabalhar.
Trabalhando o movimento entre as
duas personagem principais, decidi
captar aquele que para mim é o
momento mais icónico da história,
refletindo-se nele toda a dramaturgia
da mesma: o momento em que
Christine retira a máscara a Erik (o
fantasma). Com este movimento
consigo trabalhar as duas facetas que
caracterizam o fantasma, tanto o seu
lado mais encantador como o seu
lado monstruoso, expressando também a submissão e vulnerabilidade de Christine
face à obsessão do fantasma. Tentei assim captar, neste meu gosto de movimento,
a essência da obsessão apaixonada no fantasma assim como a rejeição da sua tão
desejada amada face à sua deformação exterior e interior.

36 /// BAN
36 BANG!
A G!
Devido ao escasso leque de
opções, visto que fui dos
últimos a escolher, decidi
escolher este porque era
aquele que mais me agradava
em termos de personagem.
Isto porque os personagens
e criações existentes eram
bastante simples ou sem
interesse, e como tal decidi dar
algo mais do meu estilo nele.

Escolhi o Homem Invisível


pela piadinha “Assim basta-me
mostrar uma folha em
branco” :) Nah!
Porque desde criança
que acho o conceito da
invisibilidade fascinante, e
a sua representação gráfica
torna-se por isso um desafio
interessante. Foi um processo
divertido, onde comecei por
rever o filme e familiarizar-me
de perto com as personagens
e toda aquela ambiência,
que, a meu ver, conjuga o
lado trágico da experiência
ciêntifica com um certo lado
cómico da estupefação das
pessoas que se cruzam com o
Homem Invisível.

N ! //
BANG!
BBA
ANG ///
// 377
Escolhi Cesare por ser um dos
primeiros Monstros do Cinema
do filme O Gabinete do Dr. Caligari
(1919) de Robert Wiene e por ser
fã não só do filme mas de toda
a corrente do expressionismo
alemão. O Gabinete do Dr. Caligari
é um filme bastante criativo a nível
de cenários e caracterização de
personagens e que é até hoje uma
grande referência cinematográfica.

Porque o conceito da
criação da vida é uma
poesia num só acto de
escrita sem parar. Um
verso longo, uma rima
sem fim. Não só a vida
criada por personagem
ficticia como a vida
desses personagens
inventados por seres
reais. Um preto e branco
cheio de nuances, que
nos transporta para
emoções de tristeza sem
fim e alegrias sem sorrir.

388 ///
/// BBANG!
// AANNG!
G!
Através da mais conhecida
rede social, cujo nome não irei
mencionar, dei-me conta que
o ilustre Bruno Caetano estava
envolvido na concepção de uma
exposição de ilustração sob a
temática de filmes clássicos de
Terror. Ora sendo eu fã de filmes
de terror, particularmente dos
clássicos, acabei por lhe perguntar
do que se tratava, e finalmente
que estaria interessado em
participar. Na altura disse-me que
várias figuras clássicas do Terror
já tinham sido seleccionadas, e
deu-me a sugestão de realizar
a ilustração com base no filme
clássico White Zombie.
O que pretendi foi conceber um
poster, que replicasse a ambiência
dos posters da década de 30. Não conhecendo o filme, antes de o visualizar
tinha a ideia de ilustrar diversos zombies, pois por uma razão qualquer a palavra
zombie sugere-me o plural.
Após a visualização, resolvi que seria mais interessante realçar a relação entre
duas das suas personagens, mantendo o mistério, tanto neste texto, como no
próprio poster, do título do filme.

Bruxas más, bruxas boas,


bruxas à volta do caldeirão...
no fundo foi uma desculpa
para desenhar mulheres em
pose sensual.

BANG!
BBA ///
ANGG! ///
// 39
39
Originalmente, quando me foi
feito o convite, alguns dos temas
estavam já escolhidos, mas dos
temas que estavam livres, dois
captaram a minha atenção.
Nomeadamente, “Jekyll & Hyde”
e “Golem”. O tempo passou
até eu conseguir fazer a minha
escolha, e o tema “Golem”
entretanto foi escolhido pelo
Jorge Coelho, que, como sempre,
fez um óptimo trabalho na sua
ilustração.
Por isso, a escolha do tema
“Jekyll & Hyde” acabou por ser
uma espécie de golpe de acaso
planeado.
A minha principal motivação para
abordar este tema foi a hipótese
de trabalhar a dicotomia entre o lado são e o lado insano que Robert Louis
Stevenson extrapolou no seu romance, especialmente o facto de que os dois
lados estão em permanente negociação e nunca se desassociam completamente.
Graficamente, a luz e a sombra invertidas serviram para mostrar a contenção
da “normalidade” do Dr. Jekyll assombrada pela loucura inflamada do seu lado
negro, Edward Hyde. Esse conflito acaba exacerbado por um amarelo febril, que
compõe a imagem no seu todo.

Em geral, a seleção das figuras


para a exposição foi bastante
atraente, sempre fui fanática
por figuras negras e aterradoras,
tendo um carinho especial
pelo autor Edgar Allan Poe.
Descobri-o nas aulas de inglês
quando andava no 6º ano com a
história “The Black Cat”. Nunca
tinha lido algo semelhante até
à data, na perspectiva da minha
memória de criança a sonoridade
da literatura era fascinante, assim
como as sensações que provocava
e o misticismo que envolvia.
Rapidamente li quase tudo o que
havia para ler sendo o The Raven
um favorito. Voltei a reler com
21 anos para realizar a minha
ilustração tendo na expectativa que já não iria ser tão envolvente como quando
o lia antigamente, estava enganada, um bom poema é sempre um bom poema.
Quanto à estética do meu corvo, queria apenas representá-lo como imaginava
- um corvo normal, mas com algo de estranho, paranormal, neste caso ele tem
6 olhos, um bico de osso e o misticismo do poema em redor. Achei necessário
usar tipografia, coloquei-o assim pronunciar a palavra que repete ao longo do
poema, eternizando a sensação que o poema oferece.

40 /// BAN
40 BANG!
A G!
O Nosferatu é uma criatura que, ao contrário dos
celebres Dráculas, me diz qualquer coisa. Foge à
personagem mais Hollywoodesca, trazendo algo
mais cru e macabro. A interpretação do Max
Schreck no filme Nosferatu enche-me as medidas
e revejo nessa personagem influências do
movimento Bauhaus. O desafio de fazer esta peça
a preto e branco também me atraiu, e há qualquer
coisa que remete para o cinema mudo que me
agrada... Tem uma atmosfera que chamaria
“gótico campestre”!

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BANG! /// 41
42 ///
42 /////
// BBANG!
ANNGG!!
primeiro, Howard, foi nunciadas em algumas obras do que
responsável por aquela noutras, que a enformam e definem?
que é provavelmente a O que é que a separa de outros tipos
figura mais conhecida de fantasia?
da E&F, Conan, apesar A primeira pista para responder a
de, ironicamente, a sua popularidade se estas questões encontra-se, como de
dever sobretudo à adaptação cinemato- costume, debaixo dos olhos: para cum-
gráfica – em estilo culturista abrutalhado prir os seus desígnios, os protagonistas
– dos anos 80, muitas vezes criticada e os antagonistas destas histórias ser-
pela interpretação demasiado simplista vem-se, sobretudo, de armas brancas
dos contos originais. Outras personagens (as espadas são preferidas, pela versa-
da sua autoria, como Kull ou Solomon tilidade e pelo estilo, mas não esgotam
Kane, não alcançaram a mesma notorie- as preferências dos nossos heróis) e de
dade. Apesar da curta carreira do escritor, magia. Simples e evidente!
é consensual o estatuto de Howard como Na E&F, os elementos sobrenatu-
fundador da corrente. rais desempenham um papel subtil nas margens e preocupam-se sobretudo
A Fritz Leiber deve-se a própria ex- mas constante. A magia tende a ser com o ganho próprio e com uma forma
pressão Espada & Feitiçaria. Em 1961, imprevisível e, muitas vezes, acarreta temperada de hedonismo. Por vezes,
sugeriu o termo para designar uma uma dose considerável de risco e de decorrem das suas acções resultados
variação marcada mas identificável da perigo, não só para os desgraçados que positivos para outros, mas trata-se quase
ficção secular de Capa e Espada (Cloak lhe servem de alvo mas também para sempre de um efeito secundário, inespe-
& Dagger ou Cloak & Sword). Leiber es- quem a pratica. Aliás, o poder sobre- rado e pouco relevante. Sem nunca caí-
creveu dezenas de contos, mas, para os natural – de origem arcana ou divina, rem no papel de vilões, os nossos heróis
nossos propósitos, os mais notáveis são já que a religião organizada, como as são imunes à moralidade.
os que relatam as peripécias de Fafhrd e demais instituições de autoridade so-
Rateiro Cinzento, dois aventureiros pou- cial, geralmente também não são vistas
co escrupulosos mas com personalidades com bons olhos – ocupa um espaço
notáveis. ambíguo nestas narrativas. A magia,
Michael Moorcock, o mais novo dos na E&F, é uma ferramenta tentadora
três, dedicou-se à criação do anti-herói e eficaz para ultrapassar muitas ad-
Elric de Melniboné. Débil, depressivo e versidades, mas, ao contrário do que
fadado ao sofrimento, Elric é, em muitos acontece noutros tipos de literatura
aspectos, o oposto de Conan. O embate fantástica, tem quase sempre um custo
entre a tese de um e a antítese do outro, (pessoal, moral, físico, etc.) elevado
no plano das representações, fecha com e nunca é banal. Os motivos para a
precisão o panteão de E&F, e, em conse- procurar vão da ganância à estupidez,
quência, sintetiza o género. passando pela sede de poder, mas
Desde a época dourada da Weird Ta- dificilmente incluem a bondade ou a
les, vários autores seguiram o caminho inocência.
da E&F: o tom sombrio e poético de Isto traz-nos a outro aspecto impor-
Clark Ashton Smith; a introdução de tante, o do recurso a enquadramentos
uma protagonista feminina num mundo narrativos cínicos. O retrato humano
predominante masculino, pela mão pio- geral que emerge da E&F é frequen-
neira de C. L. Moore; o registo picares- temente complexo e texturizado, e em
co de Jack Vance na série Dying Earth, nada maniqueísta. Os protagonistas,
povoada por vigaristas desprezíveis, moldados pelos mundos complexos e
pomposos e mesquinhos; Lin Carter; L. ásperos onde vivem, não são benfeito-
Sprague de Camp; Karl Edward Wag- res altruístas apostados em fazer valer
ner; entre muitos outros… uma qualquer superioridade moral
Quais são, então, as características implícita; pelo contrário, encontram-se
recorrentes da E&F, ainda que mais pro- quase sempre, de uma ou outra forma,

BANG!
BANG
BA ////
NGG! //// 43
43
Ainda assim, pode dizer-se que
MESTRES OCULTOS os antepassados directos dos
RPG foram os jogos de guerra,
percurso editorial acidentado e frutuoso,
serviu de base a outros jogos conhe-
em corpo, e a E&F, em espírito. cidos (entre os quais Call of Cthulhu,
rmados com os rudimentos da Pendragon e Basic Roleplaying), mas
E&F na literatura, podemos ago- Ao longo dos últimos 40
anos, a presença da E&F no a sua ligação mais directa com a E&F
ra aventurar-nos na descoberta encontra-se em Stormbringer, que, usando
do seu papel e presença nos jogos universo dos jogos narrativos
sofreu muitas transforma- os mecanismos e princípios de RQ, se
narrativos. A verdade é que, sem entrar
ções, mas a herança nunca foi dedica exclusivamente a aventuras de-
em desconstruções bizantinas sobre as
inteiramente rejeitada. Em corridas no mundo e imaginário criados
minudências de cada sistema de jogo,
jeito de comparação, veja-se por Moorcock. Stormbringer, entretanto
esta pode ser uma tarefa algo ingrata, e
o Appendix E, uma espécie de descontinuado, tem em Magic World o
o motivo para a dificuldade é simples: os
versão actualizada da listagem seu sucessor mais directo.
Role Playing Games (RPG), bem como
original, incluída na 5.ª e mais Na perspectiva da E&F, tanto RQ
uma parte significativa dos pilares fantás-
recente edição de D&D (p. como as suas variantes melnibonéanas
ticos da cultura pop moderna, não exis-
312), onde se acrescentam uma têm especial interesse na medida em que
tiriam sem E&F, pelo menos não como
série de novos autores – quase se centram mais no que as personagens
os conhecemos. Gary Gygax, um dos
todos praticantes de estilos de jogo sabem fazer e menos no que são.
autores do primeiro RPG, Dungeons &
fantásticos distintos da E&F – O mecanismo central do sistema, que
Dragons (D&D), era leitor assíduo deste
mas se mantêm as referências influenciou de modo decisivo o desen-
tipo de ficção e, em certa medida, o seu
anteriores. Homenagem formal volvimento dos RPG que lhe seguiram,
ímpeto criativo alimentou-se da vontade
ou reconhecimento sincero das assenta mais na determinação de habili-
de recriar as aventuras preferidas. Basta
raízes, pouco importa; para dades específicas e adquiridas e menos
passar os olhos pelo Appendix N, uma
todos os efeitos, a E&F é inse- nas características individuais inatas, o
adenda ao primeiro Manual de Mestre
parável dos RPG. que permite aos jogadores desenvolver
de Jogo de Advanced Dungeons & Dragons,
a gosto personagens polivalentes, sem
publicado em 1979, para perceber que a
os condicionamentos formais de outros
E&F domina a lista das suas influências
sistemas (por outras palavras, para os ini-
literárias (p. 224). Se houvesse dúvidas
ciados, sem restrições de classe).
acerca da relação estreita entre ambos,
oje em dia, existem deze- Este factor, talvez à primeira vista se-
basta considerar que praticamente todos
nas de jogos que propõem cundário, aproxima o jogo dos pressu-
os autores de E&F das décadas de 70/80
interpretações distintas postos da E&F, onde os heróis são por
participaram activamente na concepção
do espírito de E&F, per- hábito competentes em diversos campos
ou promoção de RPG; Fritz Leiber, por
mitindo-nos escolher aquela que – desde o combate com aço frio até à
exemplo, escreveu no primeiro número
enfatiza os aspectos que conside- invocação de entidades demoníacas, pas-
da revista Dragon, talvez o periódico de-
rarmos mais interessantes para sando por toda a espécie de feitos acro-
dicado a RPG com maior longevidade e
as nossas aventuras. Seria uma báticos.
impacto.
tarefa ingrata (e aborrecida!) O reverso da medalha, por assim di-
Assim, motes como o ganho pessoal, a
enumerá-los a todos, pelo que, zer, vem com a preocupação encarniça-
natureza menos que perfeita dos heróis,
sem pretensões de ser objectivo da com os detalhes realistas (ou, melhor
o recurso à violência para obtenção dos
ou exaustivo, proponho-me fa- dito, plausíveis). Desde a primeira até à
objectivos, bem como todos os restantes
zer algumas sugestões. mais recente edição, RQ é um jogo as-
que enformam o género da E&F – para
RuneQuest (RQ), um dos sumidamente dirigido a jogadores que
não falar da vertente estética, também ela
jogos mais inovadores da se- apreciam os detalhes e a textura nas suas
decisiva – percorrem os RPG desde o
gunda vaga de RPG, foi publi- campanhas.
primeiro momento e são tão referenciais
cado em 1978. Ao longo de um Um dos suplementos mais recentes
como o dado de vinte lados.
para RQ, Monster Island (2013), pode ser
Isto não quer dizer, entenda-se, que
uma boa opção para quem procurar sel-
a E&F tenha sido a única inspiração
vas cerradas, dinossauros temíveis e hor-
literária dos RPG; alguns dos traços
rores na penumbra. Da mesma família,
fundamentais de D&D, por exemplo,
Stormbringer também seria de interesse
baseiam-se em fontes totalmente dis-
para os amantes de E&F, mas dada a
tintas, como a importância dada aos
provável dificuldade em encontrá-lo,
clérigos e à religião ou a trivialização de
talvez seja mais seguro apostar em Magic
raças semi-humanas (elfos, anões, etc.).
World.

4444 ///
///// BBANG!
AANNG!
G
regras de DCC RPG chega a ser qua-
se descarada, desde a atenção dada a Leiber, respectivamente. De referir
Do outro lado do espectro, no que a patronos sobrenaturais até à natu- ainda a campanha Tales From the Fallen
toca a mecânicas de jogo, Barbarians reza corrupta e indomável da magia, Empire, produzida por uma editora
of Lemuria (BoL) oferece uma aborda- passando pelo sistema de combate independente, que coloca os jogado-
gem estilizada ao imaginário da E&F. que encoraja a audácia e o improviso. res num mundo “pós-apocalíptico de
Ao contrário da maioria dos restantes Mesmo no tom geral, onde incluo as Espada & Feitiçaria”.
RPG mencionados neste texto, BoL magníficas e numerosas ilustrações Por fim, merece ser mencionada
abstrai e simplifica muitos aspectos presentes no livro de regras, o cami- a excelente revista Worlds Without
do jogo, privilegiando a representação nho seguido é o mesmo. Logo no Master, actualmente no 7.º número.
temática das narrativas criadas pelo início do primeiro capítulo pode ler-se Trata-se de uma publicação dedica-
grupo de jogadores, em detrimento da “Não és um herói. És um aventureiro” da à E&F e aos RPG, reunindo as-
simulação pormenorizada. Nesse sen- (p. 14). As personagens criadas pelos sim nas suas páginas tudo o que, de
tido, pode ser agrupado com os jogos jogadores distinguem-se dos restantes momento, nos ocupa. Para além de
normalmente apelidados “indie”, ape- habitantes do seu mundo pelas esco- ficção, ilustrações e banda desenhada
sar de conter ainda muitos elementos lhas que fazem nos seus percursos, originais, oferece ainda uma colecção
ditos tradicionais. não por possuírem qualquer espécie de de interessantes mini-jogos indie, en-
Na senda de outros sistemas seme- super-poderes inatos. tre os quais Swords Without Master e A
lhantes, BoL procura reduzir os elemen- Talvez um dos aspectos mais inte- Scoundrel in the Deep.
tos mecânicos ao mínimo necessário ressantes de DCC RPG seja o facto de, Claro que há muito mais por
para garantir aventuras interessantes como jogo, nunca se levar muito a sé- onde escolher neste bazar narrativo
e fieis às fontes. Desta forma, toda a rio. A ética Do It Yourself, que atravessa de E&F – os jogos que referi estão
informação relativa às personagens o movimento retro de que DCC RPG longe de esgotar a oferta editorial,
encontra-se resumida em meia-dúzia faz parte (a chamada Old School Re- tanto do presente como do passado,
de entradas relevantes (não existe, por naissance), desafia os jogadores a apro- e foram escolhidos apenas por ofe-
exemplo, um registo detalhado das suas veitarem o que quiserem das regras e recerem abordagens diferentes ao
posses), e os métodos de resolução de a descartarem ou a reescreverem o que mesmo imaginário. Se nenhum deles
conflitos – como o combate – pressu- não lhes agradar. O espírito da E&F te despertou a curiosidade mas gos-
põem também um nível relativamente revela-se até nesta atitude iconoclasta! tarias de explorar mais o tema, podes
elevado de abstracção. Quase todo o material que tem vindo encontrar na caixa abaixo (Cábula
De uma perspectiva temática, BoL a ser editado para DCC RPG tem uma de Sugestões) ** outros títulos a
encontra-se em linha com os contos ligação forte com a E&F, mas, ainda as- descobrir. Quem sabe, talvez a tua re-
de Conan: a sugestão do exotismo sim, destacaria dois módulos, The People presentação preferida de E&F esteja
pré-clássico do Próximo Oriente; a of the Pit e The Jeweller That Dealt In Star- escondida nesta listagem!
expectativa de violência quotidiana; a dust, que piscam os olhos a Howard e
desconfiança intrínseca da magia, que
é deixada, quase por inteiro, aos anta-
gonistas dos heróis.
Em certa medida, BoL é uma espécie **
de E&F em versão light, no que toca
às regras, mas particularmente rica e
sumarenta, no que toca ao tema!
Outra via para chegar à E&F nos
jogos narrativos é a de Dungeon Cra-
wl Classics RPG (DCC RPG), que,
confesso, é a minha preferida. Reco-
lhendo e adaptando elementos de vá-
rias edições de D&D, com um acres-
cento generoso de conteúdo original,
propõe-se recuperar a experiência de
jogo dos primórdios do RPG, onde
sobressaíam as sensações de imprevi-
sibilidade, simplicidade e deslumbre
inocente (num crachá promocional
produzido recentemente pela editora
pode ler-se “Adventure like it’s 1974”).
O jogo contém, assim, uma mistura
de sensibilidades antigas e modernas,
concretizadas num sistema
simples e familiar, deixando
aos jogadores o equilíbrio
exacto de estilos, de acordo
com as suas preferências.
A influência directa da E&F nas

BBANG!
BA ///
ANNGG! ///
// 45
4
or uma questão de sim- Nos passados dias 14 e 15 de Março decorreu em
plicidade, e para evitar Oeiras o Encontro Nacional dee Roleplayers 2015,
intermináveis discussões em parceria com a 6.ª edição da LisboaCon
de semântica, neste texto uso as ex- (Encontro Nacional de Jogos de Tabuleiro).
pressões “jogos narrativos” e “RPG” Para além das muitas sessões e demonstrações
como sinónimos. Também poderia de RPG de mesa – dedicadas a jogos
chamar-lhes “jogos de personagem”, tão diferentes como D&D,
mas não calhou. FATE - Odeon, Star Wars, Fiasco,asco,
Microscope, entre outros – tiveram
eram
também lugar uma exposição de
miniaturas e uma elaborada e
concorrida sessão de Live Action ion
Role Playing (LARP), a cargoo do
grupo Olisippo Obscura.
Outra novidade do encontro
editora inglesa Modiphiüs
deste ano foi a organização de
prepara-se para publicar,
em Agosto de 2015, Conan
nadas
três mesas-redondas, subordinadas
– Adventures In An Age Undreamed Of.
aos temas “Jogar com o saber”, ”,
Se a equipa de especialistas literários, “Jogar com a imagem” e “Jogar gar com
artísticos e lúdicos corresponder a imaginação”, a última das quais
às expectativas criadas, esta poderá contou com a participação da Saída de
tornar-se na versão canónica de Conan Emergência, representada pelaa editora
no mundo dos RPG de mesa. Safaa Dib. O nível da discussão ão e do
Para os fãs de Fritz Leiber, as notí- mplamente
interesse gerados justificam amplamente
cias são igualmente prometedoras. Em pita, se não
que a iniciativa se reforce e repita,
Abril foi lançado Lankhmar: City of antes, no próximo ano!
Thieves, um suplemento que inaugura Se gostarias de experimentarr jogar
uma colecção de aventuras e de regras um RPG ou trocar algumas ideias deias sobre
centrada no mundo de Fafhrd e Ratei-
ncontros
o assunto, aparece num dos encontros
ro Cinzento para o sistema universal
Savage Worlds, que, para E&F, contava
organizados pelos grupos locais is de Lisboa
já com Beasts & Barbarians.
(bimensal), Porto (mensal) ou Almada,,
No mesmo sentido, a Goodman Almeirim, Aveiro, Évora e Viana ana do Castelo
Games, editora de DCC RPG, anun- (pontuais).
ciou recentemente que irá desenvolver
uma linha temática semelhante, tendo
sido já posto à venda em convenções
o primeiro título da colecção, Through
Ningauble’s Cave.
Por fim, uma entusiasmante notícia
em primeira mão para os amantes de
RPG e E&F lusófonos: avança a pas-
sos largos a tradução e edição brasilei- :
ião em
ra, em português, de DCC RPG. Ainda opin
sua
não foi feito um anúncio oficial da ea . com
data de lançamento e dos seus porme- de
ix
b ang
ta
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nores, mas espera-se que no final de


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2015 o produto final chegue às lojas.


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des
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gostou

46 ///
46 ///// BBANG!
ANG!
ANG!
por Diana Sousa, representante da Corte do Norte

omo seria o mundo se toda a nossa evolução tecnológica tivesse


acontecido no final do século XIX? Como seria uma sociedade
com regras e modelos vitorianos, mas com dirigíveis a vapor nos
céus, grandes máquinas e rodas dentadas a fomentar todo o seu
dia-a-dia? Como é que uma boa dama vitoriana imaginaria o futuro, se a
sua realidade se baseava em máquinas a vapor, arte nova, chá, e corpetes?
São estas e outras perguntas a que o género steampunk tenta responder,
ora da perspectiva da literatura, ilustração, moda, música, cinema, ora de
outras formas de arte.
Seguem-se algumas viagens pelo steampunk, apenas exemplos que pode-
rão servir como guia para os interessados. Nada disto é um absoluto, e com
certeza outros terão ideias diferentes do que deveria ser uma boa obra de
steampunk, ou de algo que não foi aqui referido. Mas talvez este artigo sirva
como uma introdução, um apontar na direcção de um dos muitos cami-
nhos que levam a Roma. De preferência uma Roma com grandes templos
a sobrevoar a cidade, e gladiadores com fantásticas armas mecânicas.

BANG!
BA
ANG! ///
NGG! ///
// 47
47
Mais recentemente há outros auto- Bryan Talbot é o criador de
res a povoar o género. Em 2001, Philip Grandville (2009), que se-
xistem vários livros Reeve publicou Mortal Engines, passado gue um inspector de Sco-
que agora são consi- num futuro pós-apocalíptico neo-vito- tland Yard que é também
derados como per- riano, onde as cidades se tornaram mó- um texugo; Joe Benitez é
tencentes ao género, mas veis. Scott Westerfeld publicou a série o responsável pela recente
que aquando da sua pu- Leviathan (2009), uma versão alterna- Lady Mechanika (2010), uma
blicação não foram assim tiva da Primeira Guerra onde grandes detective vitoriana com par-
tratados. Há livros de máquinas de guerra são usadas em tes do corpo mecânicas.
História Alternativa, vários combate. A escritora Cherie Priest con-
deles passados durante a época ta também com uma série de História
vitoriana e que exploram outros Alternativa, The Clockwork Century que
tipos de tecnologias, que só ago- começa com Boneshaker (2009), passada
ra são vistos como steampunk. Um durante a Guerra Civil Americana, com
destes exemplos é The Difference Engine mortos-vivos, zepelins, piratas aéreos e
(1990), por William Gibson e Bruce corajosas heroínas. Gail Carriger é co-
Sterling. Passado numa Inglaterra vi- nhecida por várias séries de steampunk
toriana, o livro explora uma sociedade focadas também em heroínas, como
onde grandes avanços tecnológicos se Parasol Protectorate (2009), Finishing Scho-
sucederam depois do inventor Charles ol (2013), e mais recentemente The Cus-
Babbage ter criado, com sucesso, o seu tard Protocol (2015). China Miéville inti-
Engenho Analítico. tula os seus livros de “ficção estranha”
Do criador da palavra “steampunk”, (weird fiction), mas ainda com grandes
Kevin Jeter, temos Infernal Devices influências de steampunk, embora o seu
(1987), sobre um homem que herda a livro Perdido Street Station (2000) conte
loja de relojoaria do pai, e com ela uma também com a presença de magia e
série de outros problemas que envol- criaturas híbridas. Outro exemplo de
vem autómatos e viagens no tempo. steampunk com magia é The Half-Made
Do seu contemporâneo Tim Powers, World (2010) de Felix Gilman, que se
The Anubis Gates (1983) é um clássi- passa no Velho Oeste Americano e
co que também envolve viagens no num mundo deixado inacabado.
tempo, além do poeta Lord Byron, e Existem ainda várias antologias de
influências da cultura egípcia. O livro contos, principalmente publicadas por
de James Blaylock, Homunculus (1986), Jeff e Ann Vendermeer como Steam- alvez a principal – ou, pelo menos,
já se passa nos anos 1870 de Londres, punk (2008), Steampunk Reloaded (2010), a primeira – influência no cinema
e gira à volta de um zepelim coman- e Steampunk Revolution (2012), além da steampunk seja o filme alemão Me-
dado por um piloto morto-vivo. Na sua famosa The Steampunk Bible (2011) tropolis (1927) de Fritz Lang. Um dos
mesma veia e época, O Senhor da Guerra e o mais recente The Steampunk User’s primeiros filmes de ficção-científica,
dos Céus (1971), de Michael Moorcock, Manual (2014). este passa-se numa cidade distópica
imagina como seriam os anos 70 se as com uma imensa separação de classes,
nossas invenções tecnológicas tivessem e muitos dos seus cenários são dentro
acontecido muito antes, e se a Primeira de uma fábrica com grandes máquinas
Guerra Mundial nem sequer se tivesse movidas a vapor. A própria cidade tem
sucedido. steampunk tem um forte aspecto influências do gótico, da arte nova, e
visual, que dá origem a imensas do modernismo, tentando transmitir
possibilidades na área da ilustra- uma ideia futurista muito influenciada
ção. Muitos artistas exploram este visu- pela novidade que era Nova Iorque nos
al durante a sua carreira, mas talvez os anos 20.
mais conhecidos, ou pelo menos aque- Em 1958, o realizador che-
les com um vasto trabalho publicado, coslovaco Karel Zeman jun-
possam ser: tou ilustração, animação e
Alan Moore e Kevin O’Neill, com cinema para dar vida às
a sua banda-desenhada A Liga dos Ca- gravuras dos trabalhos
valheiros Extraordinários (2000 e 2003), de Jules Verne em The
onde um grupo de personagens de Fabulous World of Jules
clássicos da literatura formam um gru- Verne, um filme baseado
po para proteger Inglaterra; Brian Au- nos vários trabalhos do
gustyn e Mike Mignola trouxeram o escritor, e com um estilo
vigilante Batman para o mundo do ste- muito similar ao das ilus-
ampunk com Gotham by Gaslight (1989); trações dos livros. Também
Mike Mignola é também conhecido sobre um escritor, mas desta vez
pela banda-desenhada Hellboy (1994) sobre H. G. Wells, Time After Time
com influências estilísticas do género; (1979) de Nicholas Meyer segue

48 ///
48 /// BBANG!
// AANNG!
o escritor quando este do filme steampunk, Hauru no Ugoku Shi- l’Ile de Nantes, em Nantes, França,
usa uma máquina do ro (2004, Howl’s Moving Castle), baseado é um parque de diversões onde
tempo para descobrir no livro de Diana Wynne Jones com todas as criaturas são inspiradas
a identidade de Jack, o o mesmo nome. O famoso “Castelo em desenhos de Leonardo da
Estripador. Andante” é completamente movido a Vinci e conceitos de Jules
Em 1994, Marc Caro vapor (e uma ligeira ajuda de magia) e Verne.
e Jean-Pierre Jeunet rea- toda a sua estética adopta um ar mais Os jogos também já
lizaram La Cité des Enfants sujo, caótico, e punk, do que aparenta exploraram este mundo –
Perdus (A Cidade das Crianças originalmente nos livros. Suchimuboi entre eles Bioshock Infinite
Perdidas), sobre um cientista que (2004), ou Steamboy, é outro exemplo (2013), Dishonored (2012),
da animação japonesa que explora este Final Fantasy VI (1994), Pro-
estilo, de regresso a uma Inglaterra al- fessor Layton (2007 – 2011), The
ternativa nos finais do século XIX. Order: 1886 (2014), Steam Bandits:
Outpost, Airship Pirates (2011, RPG)
e outros.
A música também não escapa ao
steampunk com bandas como Abney
ma das áreas de maior presença Park (EUA), The Clockwork Quartet
no steampunk é a moda, que se (Reino Unido), além de vários outros
manifesta sobretudo em fatos músicos terem influências do género
para convenções, eventos, ou persona- ora na sua roupa ora nos vídeos de
gens, ou mesmo em roupas adoptadas música, como Voltaire e Panic! At the
para o dia-a-dia. O seu estilo é baseado Disco.
rapta crianças para lhes roubar os so- no da época vitoriana, com influências Para celebrar tudo isto existem even-
nhos e no processo tentar prolongar a da industrialização do século seguinte, tos e convenções, uma maneira dos afi-
sua vida. Muitas das escolhas estilísti- e, por vezes, ainda com uma certa esté- cionados de steampunk se encontrarem
cas podem ser associadas ao steampunk. tica pós-apocalíptica. e de apreciarem todas estas formas de
Wild Wild West (1999) de Barry Son- A corpetes, botas, chapéus, fatos, arte. A EuroSteamCon é uma conven-
nenfeld usa o estilo para várias das suas coletes, monóculos, luvas, e longos ção europeia, e este ano em Portugal
construções e gadgets, numa mistura de vestidos são acrescentados óculos de vai-se realizar a 3ª edição, a 3 e 4 de
paródia e acção no Velho Oeste. Sky aviador, armas das mais variadas for- Outubro no norte do país. A Corte do
Captain and the World of Tomorrow (2004) mas, membros mecânicos, engrena- Norte é o grupo responsável por este
volta a explorar História Alternativa, gens, protecções para os braços, cintos, evento, e esperamos poder contar com
neste caso nos anos 30, misturando entre outros. Embora se veja muita os leitores da Bang! na EuroSteamCon.
a estética do steampunk com modelos roupa dentro de tons de cobre e casta- Até lá, esperamos que aproveitem
mais industriais, como o caso dos ze- nho, não há limites para o que a roupa esta pequena introdução ao steampunk!
pelins e tecnologias avançadas (que o steampunk possa ser. A moda vitoriana é
realizador diz serem influenciadas por apenas uma base, um ponto de partida,
Laputa: Castle in the Sky, 1986, de Hayao e o resto vai até onde a imaginação nos Para mais informação sobre a Corte do Norte
Miyazaki). Aliás, esta estética, em que a levar. e a EuroSteamCon Portugal, podem consul-
tecnologia é mais baseada naquela exis- Muitas das roupas steampunk são pro- tar o nosso site: cortedonorte.pt
tente dos anos 40 e 50 em vez da épo- duzidas manualmente, personalizadas
ca vitoriana, dá origem a outro termo para o objectivo que a pessoa quer. No
punk – o dieselpunk. entanto, existem já lojas com roupas e
acessórios steampunk, como o caso do
A animação também já teve as suas Steampunk Emporium, Steampunk Coutu-
aventuras pelo steampunk. Atlantis: The re, e as lojas portuguesas SkyPirate Crea-
Lost Empire (2001, Disney) é um dos tions e Elfic Wear.
primeiros exemplos, e contou
inclusive com conceitos de
personagens e cenários de
Mike Mignola, autor de
Hellboy. O submarino as o steampunk não pára por aí.
do filme é um clássico Num género tão vasto e visual
exemplo desta estética, há uma miríade de maneiras de
tal como são as máqui- o aproveitar. Vários artistas constroem
nas e criaturas que mais esculturas steampunk – como relógios, in ião em:
a op
tarde aparecem na cida- máquinas, mobília, pequenos animais, as
u
. com
ang
e
de perdida de Atlântida. bijuteria – a partir do mais mundano eix
d b
A Disney volta a explorar o dos materiais. Quem fala de escultura ta
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género, mas desta vez no espaço, fala também de arquitectura, de edifí-


rti
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com Treasure Planet (2002). Hayao cios inteiros, ou de instalações em mu-


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dest

Miyazaki tem também um segun- seus ou outros locais. Les Machines de


www
gostou

BANG! /// 49
50 /// BANG!
endo eu, de Quando entrei para o banco de trás de
um dos três automóveis que me leva-
vores, mas isso poder-me-ia afastar da
tal surpresa, ou então ainda me perdia
todo o grupo, riam ao local da dita surpresa, um dos e isso sim, seria realmente um assusta-
meus amigos vendou-me os olhos, afir- dor incómodo. Assim sendo, caminhei
o que mais mando que não poderia ver o caminho longos minutos, sob a fresca brisa que
interesse tinha que me conduziria lá. Ouvi a sua namo- a recente noite oferecia, e começava
rada soltar um pequeno riso enquanto já a perder a paciência pela festa que
pelo universo ele me colocava a venda nos olhos, o nunca mais alcançava. A minha imagi-
do fantástico que me deu uma certa segurança, pois nação conduzia-me a elaboradas dedu-
conhecendo a sua frágil personalidade, ções quanto àquilo que me esperava e
e do terror, não me deveria preocupar demasiado encontrava-me extremamente curioso
aspecto este com a natureza do presente de aniver-
sário. O ambiente crescia entre mais
e ainda espantado com o esforço a que
se tinham prestado para a celebração
que por ve- risos e eu notava a impaciência que lhes do meu aniversário.
inquietava as mentes, mas mantinha a
zes era até minha figura concentrada e calma. Sa- Novo desafio: a estrada por onde se-
motivo para bia que eles me queriam assustar, mas guia dividia-se agora em duas, pelo que
não lhes iria dar esse prazer. fui obrigado a escolher uma das op-
observações ções, mas a minha confiança era enor-
sarcásticas e Chegados ao dito local, e havendo já
todos saído dos respectivos veículos,
me. Os meus amigos teriam previsto
aquela situação e assim segui pela es-
provocado- foi-me retirada a venda e pude constatar querda, interrogando-me se a surpresa
que nos encontrávamos junto a uma en- da direita não poderia ser melhor, es-
ras, os meus cruzilhada, um desconhecido cruzamen- tando eu a desperdiçá-la com a minha
amigos de- to numa desconhecida floresta, lugar que escolha. Caminhei novamente durante
ganhava um aspecto mais intimidador alguns minutos, quase perdendo a espe-
cidiram que, pelo meu pelo facto de ser quase noite. Pelo tempo rança de encontrar o meu destino, mas
aniversário, me fariam de duração da viagem, que calculei ha-
ver sido cerca de uma hora, deduzi que
decidido a perseverar.

uma surpresa especial, nos tivéssemos afastado ainda uns bons Para minha satisfação, pois estava já a
quilómetros – a não ser que eles tives- ficar cansado, deparei-me com um con-
adequada a essa minha sem andado às voltas para me darem a junto de pequenas casas, semelhante a
faceta. Estavam fartos entender essa ideia. A única informação uma aldeia cercada por uma improvi-
que me deram foi que deveria escolher sada, velha e pequena vedação de ma-
de me ouvir falar em au- uma de entre aquelas quatro estradas e deira já bastante podre e com falta de
que a surpresa seria encontrada. Tentei algumas tábuas. À minha frente, uma
tores, situações e filmes perguntar-lhes se existiriam então quatro entrada, onde teria havido noutros tem-
que lhes eram assusta- surpresas distintas, consoante a estrada pos um portão, dava acesso a um ca-
que eu escolhesse, e se demoraria muito minho principal, o mais largo. Só nessa
dores. Não me atrevi a encontrá-la, mas não obtive qualquer rua mais larga havia dois candeeiros
informação. Deixaram-me sozinho e a óleo, estando o resto às escuras. O
a recusar a estranha e abandonaram o local, rindo da minha silêncio era dominante e o movimento
enigmática ideia que eles expressão confusa. Desta vez, haviam-se nenhum. Notei a ausência dos sons
aplicado, mas eu não os deixaria levar a naturais tão típicos de um bosque, ou
me propuseram, apesar melhor e a minha curiosidade era agora seja, aquele parecia ser um local isolado
incomensurável. de tudo o que é terreno, como uma
de saber, de antemão, aldeia fantasma. Mas nada importava,
que o seu objectivo seria Escolhi a estrada que me pareceu ser pois eu estava estupefacto com aquele
mais sinistra. Não tivesse eu a certeza ambiente e aguardava impaciente pelos
causar-me um medo tal de que me aguardava uma festa e prova- rostos conhecidos.
velmente nunca me aventuraria sozinho
que nunca mais me iria naquela escuridão. A noite começava a Aproximei-me cauteloso, deduzindo
vangloriar de não sofrer envolver-me com o seu negro manto e que a qualquer momento os meus
a ansiedade tomava-me toda a atenção, amigos iam surgir de um daqueles
dos ridículos e infunda- pois eu esperava que sons e criaturas pobres edifícios e gritar parabéns. Ou
medonhas, simuladas pelos meus co- talvez tivessem ainda qualquer truque
mentados temores a que legas, surgissem inesperadamente do escondido. De qualquer forma, o
eles não eram imunes. seio da floresta. Era uma caminhada de medo que me tentaram incutir com
expectativa em que todos os meus sen- a viagem a pé pela floresta, ou aquilo
Queriam dar-me uma li- tidos se encontravam alerta. que ainda pudesse vir, estava frustrado
e eu tinha de lhes confirmar que o seu
ção, mas eu sabia disso e Pensei ainda em abandonar a estrada e plano falhara. Todavia, tinha de aceitar
tinha-o como vantagem. seguir o meu percurso por entre as ár- que o cenário da aldeia era um pouco

BANG! /// 51
inquietante, presumível de haver sido local de episódios de sala revestido a madeira ornamentada. Por mera curiosidade,
terror. e sabendo que também aquele objecto nada tinha a ver com
o contexto do cenário circundante, fui ver se o seu pêndulo
Enquanto assim reflectia e apesar da escassez de luz, reparei dava sinais de marcar o tempo, mas o relógio estava parado.
que pela rua principal da aldeia se encontravam espalhadas Marcava meia-noite, o que, por coincidência ou não, era a
várias lápides e crucifixos de pedra, que se multiplicavam hora precisa do meu aniversário. Esbocei um sorriso e olhei
pelos terrenos em redor, como se a localidade houvesse sido em redor; queria que percebessem o meu alegre estado de
construída sobre um cemitério ou vice-versa. Era, de facto, espírito, e desde que ali chegara tinha a sensação de estar a
um belo cenário, pelo qual tinha de agradecer. ser observado.

Lembrei-me de chamar pelos meus amigos, indicando que Estava agora em frente do edifício rústico que se destacava
já havia chegado, mas calculei que estivessem escondidos e de todos os outros pela sua sinistra aparência, que seria a tal
já me tivessem avistado. Se não me tivessem visto, iria ser eu pensão. A sua fachada era simples e rude, mas o primeiro
a surpreendê-los, invertendo assim as regras do jogo e, para andar mostrava que aquele era também um local de culto.
isso, abandonei a rua principal e decidi seguir para trás de Como é que eles esperavam que eu acreditasse que aquela
uma das velhas casas de pedra que ali se encontravam. pequena casa, grande em relação às restantes, mas demasia-
do pequena para arrendar quartos, fosse realmente uma pen-
Contornei as traseiras sem que nada de anormal acontecesse são? A fraca luz que do interior emanava e a porta entrea-
mas então surgiu inesperadamente da sombra um estranho berta ter-me-iam afastado daquela casa numa qualquer outra
homem, esquelético dentro do seu fato incolor, com óculos situação, mas não me deixei levar por demasiadas reflexões,
redondos e um oleoso cabelo que reflectia o luar, munido de pois o meu estado de espírito estava receptivo e curiosa-
um bloco de notas. mente excitado e não me incomodava se toda a situação ou
aqueles pormenores faziam ou não sentido.
Aproximou-se de mim e começou a fazer-me perguntas,
anotando tudo o que eu dizia. Claro que eu entrei no jogo
e contracenei com este meu enigmático parceiro. Pergun- No entanto, antes de entrar
tou-me se eu vinha responder ao anúncio que pedia alguém
para ocupar o lugar do antigo coveiro, que havia falecido há na pensão e apenas para
cinco minutos, ao que eu respondi, sem conseguir evitar o
riso, que vinha substituir o antigo padre. Ele disse, então, que
esse só morreria pela manhã, pelo que eu deveria esperar, e
participar um pouco mais na
aconselhou-me a ficar na pensão sagrada, apontando com o
dedo para uma habitação que se destacava das outras, com
coisa, entrei no minúsculo
um pequeno sino no topo do telhado, que eu deduzi ser a
pensão, e, simultaneamente, a igreja daquele lugar.
bar que ficava mesmo ao
Eu estava boquiaberto com o trabalho a que os meus amigos
lado, havendo entre ambas as
se haviam dado e, aquele homem, que parecia uma espécie
de jornalista, além de nunca me olhar nos olhos e manter casas não mais de cinquenta
sempre a concentração nos seus apontamentos, devorava
cada uma das folhas que acabava de preencher. Não me dei- centímetros de separação. Uma
xei afectar pelo seu estranho método de trabalho e continuei
a responder às suas questões, até que, sem dizer o que quer voz rouca e baixa, de mulher,
que fosse, se virou e desapareceu no fundo da rua. Fiquei a
vê-lo ir. Era um bom actor. ouvia-se vagamente, revelando
O silêncio continuava a dominar o ambiente. Claro que uma que alguém se encontrava no
verdadeira povoação, por mais pequena que seja, deve ter
sempre alguns ruídos típicos, quer sejam animais ou pessoas interior.
e, neste caso, existia uma pensão, com um pequeno bar ao
lado, o qual só mais tarde descobri, um jornalista e um co- A porta e a única janela estavam fechadas e quando me
veiro, apesar de falecido, e tudo isto evidenciava a presença aproximei reparei que sobre a porta havia uma placa com
activa de pessoas, pelo que não me restavam dúvidas quanto uns dizeres, provavelmente o nome do estabelecimento.
à grandeza do espectáculo que me fora montado. Puxei do isqueiro, para conseguir lê-la mas verifiquei que a
placa parecia haver sido retirada de uma das campas que ali
Imaginei que cada uma das casas tivesse uma personagem floresciam, pois nela estava escrito: “Descansa em paz, N…
diferente para me amedrontar e certamente em alguma iria … …, 1900-1936”. Bastante assustador, mas não o suficien-
encontrar a minha festa. Seguindo o conselho do meu novo te para mim.
amigo, avancei em direcção à pensão na busca da derradeira
resposta e conclusão do enigma. Pelo caminho, de não mais Preparei-me para bater à porta, mas antes de o poder fazer
de cinquenta ou sessenta metros, encontrei, como a marcar o ela abriu-se rapidamente e apareceu um homem pálido, de
centro do povoado, aquilo que de início julguei ser uma está- roupas velhas e desgastadas, aparentemente nada surpreen-
tua ou um pequeno mausoléu. Na verdade, era um relógio de dido com a minha aparição. Desviei-me para lhe ceder pas-

52 /// BANG!
sagem e perguntei-lhe se o bar estava Com dois toques secos dei sinal da
aberto. Ele, sem qualquer expressão minha presença. Uma voz tenebro-
que não fosse de uma lúgubre au- sa, com um sotaque estrangeiro,
sência, respondeu-me que sim, que indicou-me que entrasse. A deco-
agora ele já estava aberto, após o que ração era simples, uma secretária,
saiu apressadamente. A cada cinco duas cadeiras e um velho candeeiro;
passos olhava para trás, em minha numa parede, um velho telefone sem
direcção, e não hesitei em lhe acenar quaisquer fios agarrados. Como é
com a mão a dizer adeus. que esperavam que eu acreditasse
que aquela pensão realmente existia
Entrei no recinto pouco iluminado e funcionava? O dono da pensão,
e mal decorado. O interior era frio, um homem de barba, de idade in-
quase gelado. Uma mesa, um balcão definida, estava sentado atrás da
com um espelho por trás, várias pra- secretária com uma caneta na mão
teleiras com frascos e garrafas e um e o livro de registos à frente. Para
velho piano. Sentada à mesa, a única o experimentar, pedi-lhe que me
ocupante, uma velha mulher de lon- deixasse fazer um telefonema, mas
gos cabelos brancos que embalava ele disse que aquele telefone apenas
um carrinho de bebé e cantava uma funcionava em algumas horas da
indecifrável canção. Dirigi-me a ela, noite e, até chegar a próxima hora
perguntando se era a dona e, paran- de funcionamento, ainda demoraria.
do a cantoria, respondeu-me que Além disso, acrescentou também
não era dona de nada mas que me que eu não teria interesse algum em
servisse à vontade, retomando em usar aquele tipo de telefone, uma vez
seguida a sua lengalenga musical. que era quase meia-noite e, depois
dessa altura, não haveria problema
Não me iria arriscar a beber o conte- algum em comunicar.
údo suspeito daquelas garrafas, por
isso questionei a velhota quanto ao Lembrei-me do relógio que vira
funcionamento da pensão do lado e na praça e que ele estava parado
ela respondeu-me que era habitual na meia-noite. Sem mais demoras,
haver sempre um quarto vago, pelo disse-lhe que vinha para a festa e
que certamente eu poderia lá pernoi- que era escusado perder tempo
tar. Perguntou-me, também, se eu com aquela conversa, ao que ele me
era o novo sacerdote, ao que eu res- respondeu que ainda faltava algum
pondi afirmativamente, calculando tempo, mas que eu poderia esperar
que o jornalista cm quem eu falara no meu quarto. Perguntei-lhe pelos
tivesse já passado a indicação. outros e ele assegurou-me que se
estavam a preparar mas que não tar-
Quando me preparava para sair, tive davam em aparecer. Em tom de gra-
curiosidade de ver o bebé. A velha, cejo, pedi-lhe que me garantisse que
dizendo que ele estava a dormir, era seguro ficar no quarto de cima,
removeu o lenço que cobria o berço onde também era o local de culto.
e fiquei estarrecido! Estava tudo a Ele, com um sorriso aberto sobre
ficar demasiado macabro para mim, dentes putrefactos, garantiu-me que
que até apreciava o género e estava isso era no quarto ao lado do meu
a apreciar a brincadeira. Dentro e só existiam dois quartos, mas pela
do berço encontrava-se um frasco manhã, quando o padre morresse, eu
contendo um feto humano. A velha poderia mudar para o quarto sagra-
acrescentou que não fizesse barulho do, se fosse minha vontade.
para não o acordar e passou a sua
decrépita mão pelo amarelado vidro. Toda aquela conversa de mortes e
cultos começava a assustar-me. De
Saí apressadamente em direcção à súbito, o meu anfitrião saiu de trás
pensão, já sem o entusiasmo que da sua secretária numa cadeira de
anteriormente tinha e ansioso por rodas que rangia e acompanhou-me
que aquela macabra encenação ao início das escadas, sempre com
terminasse. Estava confiante que um sorriso ambíguo. Com uma mão
a minha festa estaria prestes a ser pálida deu-me a chave do quarto
encontrada. da esquerda e acendeu uma vela,

BANG! /// 53
para me guiar nas escadas e no minúsculo Saltei pela janela e caí sobre a estátua de
corredor entre os quartos. Seria aquele um anjo, pertencente a uma campa que se
actor realmente paralítico ou estaria eu a situava precisamente por baixo e magoei
envolver-me numa bizarra situação que um pé.
nada tinha que ver com a minha festa de
aniversário? Tudo me passou pela cabeça Apesar das dores e do susto, o instinto
enquanto subia as escadas. levou-me a coxear o mais rápido possível
para longe daquele lugar maldito. Toda-
Ao chegar junto à porta do meu quarto, via, antes que conseguisse dar mais que
não consegui evitar olhar para a porta do cinco passos, todo o ar circundante foi
outro e de me perguntar o que lá se po- envolvido pelas ensurdecedoras badaladas
deria passar. O meu quarto era realmente do relógio instalado na rua principal. Na
pequeno e o chão queixava-se a cada pas- minha confusão, não consegui contá-las
so. Abri a cortina da única janela, para que rigorosamente, mas julgo ter ouvido doze,
o luar pudesse auxiliar a luz da vela e, para a meia-noite, única hora que ele marcava.
meu espanto, descobri que havia um inter-
ruptor junto da porta. Acendi a lâmpada A aldeia parecia ter ganho uma nova vida
de imediato. Mas por que motivo me havia e inúmeros ruídos cresciam, indicando
ele dado uma vela e usava a luz de um an- actividade naquelas casas anteriormente
tiquado candeeiro a óleo na sua secretária mudas. Continuei a esforçar-me por cor-
quando havia luz eléctrica na casa? Talvez rer e encaminhei-me para a vedação que
fizesse parte do plano para me assustar. circundava a aldeia. Ao olhar para trás
vi que várias pessoas se aglomeravam na
Claro que não pensei em dormir ou sequer rua principal. As dores no meu pé eram
em ficar muito tempo naquele quarto, cada vez mais agudas, mas não podia pa-
mas aproveitei para me deitar um pouco rar. Quanto ao motivo para aquela súbita
sobre a cama a descansar da caminhada. O explosão de gente, não sabia, nem queria
silêncio inquietante era agora bem-vindo. ficar para saber. Estava certo de que aquela
Pouco depois ouvi alguém subir as esca- não poderia ser a aguardada festa e de que
das e aproximar-se dos quartos. Esperei, deveria abandonar aquele lugar maldito.
julgando que era chegado o momento de
me fazerem a surpresa, mas apenas ouvi o Enquanto desbravava o mar de crucifixos,
som da porta do outro quarto a abrir-se. campas e montes de terra, arrastando a
Movido pela curiosidade, aproximei-me minha perna, na ânsia de me embrenhar
da minha porta e abri uma frincha que na floresta e desaparecer, voltei a deparar
me permitiu ver um pouco do interior do com a figura do jornalista, que movi-
outro quarto, através da porta, embora não mentava freneticamente o seu corpo em
conseguisse vislumbrar o seu ocupante. contínuos espasmos e vomitava o que me
Inúmeras velas, de várias cores, criavam pareceu serem pedaços de papel, trans-
um ambiente estranho e foi-me possível formados numa massa cinzenta. Assim
ver um pouco daquilo que me pareceu ser que me viu, o rosto moribundo e aflito,
um altar. Quando percebi que o intruso moveu-se para impedir que eu fugisse.
estava para sair apertei ao máximo a frin- Balbuciava algumas palavras em minha
cha da minha porta mas pude ainda assim direcção, imperceptíveis pela influência do
identificá-lo: era o homem da cadeira de constante papel que aflorava na sua boca.
rodas, o qual, afinal, caminhava, vestido Para minha sorte, a sua indisposição era
de padre e carregando às costas um corpo também reflectida nos seus passos, que se
que eu não reconheci. Fechei instintiva- tornavam tão lentos quanto os meus, ape-
mente a minha porta. Não tinha dúvidas sar da minha lesão. Em breves segundos
de que era mesmo um corpo, e não um alcancei a cerca e tive noção do avanço
manequim trazido para me assustar. que tivera sobre o meu perseguidor. Con-
segui ultrapassá-la, por ser baixa, com
Cheguei junto da janela, em busca de qual- um forte impulso dos braços e a ajuda da
quer via que me permitisse uma rápida perna saudável e saltei para o outro lado,
fuga, e foi então que senti alguém tentar apesar dos movimentos me acentuarem
abrir freneticamente a porta do meu quar- um pouco mais a dor no pé.
to. Era por certo o dono da pensão que
provavelmente havia visto a minha porta a Continuei a correr desenfreadamente,
fechar-se no momento em que ele passava tentando perceber se continuava a ser
com o cadáver e agora voltava para me eli- perseguido apenas pelo mesmo homem
minar. Fosse ou não aquele homem cúm- ou se outros se lhe haviam juntado. A
plice da festa que me tinham preparado, imagem do dono da pensão continuava
eu preferia ficar na dúvida e não arriscar. bem presente no meu medo. Só mais tarde

54 /// BANG!
me consciencializei de que o jornalista se tinha detido junto que me conduziu àquela cena imprevista. Quando me depa-
à cerca, do lado de dentro, aparentemente sem a conseguir rei com a estrada que se dividia em duas direcções, estava já
ultrapassar, como se uma força qualquer o impedisse de tal. perdido dos presumíveis rumos que deveria ter tomado.
Naquele momento, apenas pensava em sair daquele pesadelo
com vida e até ao dia de hoje nunca senti temor tamanho ou A explicação para a minha experiência? Não se encontra
sequer aproximado. nos preceitos da lógica e, como já referi, dificilmente conse-
gui que os meus amigos acreditassem realmente nas minhas
palavras.
Os ramos dos arbustos,
Tempos depois, decidi voltar àquele lugar, acompanhado
que eu não conseguia ver, de um amigo e de um seu familiar, que conhecia bem a
região, mas ao qual nada contámos. Demos realmente com
provocaram-me vários as ruínas de uma aldeia abandonada, a mesma que eu vira,
mas sem vedação alguma, ou relógio, ou qualquer das outras
arranhões, mas continuei estranhas características, e agora em pior estado e completo
abandono. Consegui ver o que restava do edifício onde eu
a minha fuga desorientada, estivera, mas que nunca fora uma pensão, segundo o fami-
liar do meu amigo. Ao ouvir-me falar em cemitério, explicou
perdi a noção do tempo e as que se tivéssemos seguido pela a outra estrada, iríamos
encontrar o recinto onde os habitantes daquela esquecida
minhas forças ameaçavam aldeia eram enterrados.

falhar. Não sabia se estava Tinha de visitar o cemitério, evidentemente, e lá fomos. Ao


chegarmos junto da cerca que o rodeava reconheci de ime-
diato a entrada e a estátua sobre a qual eu caíra, o anjo que
a fugir há um minuto ou há me magoara o pé. Como era bizarro ter estado numa fusão
entre aqueles dois locais, afastados pela distância mas unidos
uma hora. pelas pessoas. O familiar do meu amigo referiu-me que vá-
rias gerações ali estavam enterradas. Segundo ele, constava
De repente, dei com uma estrada e fui imediatamente sur- que os últimos habitantes da aldeia haviam padecido de uma
preendido por dois faróis que se aproximavam. Era um au- estranha doença e que o último acabaria por falecer preci-
tomóvel que vinha na minha direcção. Fiz sinal que parasse samente na noite em que eu nascera, mas nunca consegui
e, para minha sorte, ou talvez por um qualquer desígnio di- confirmar a autenticidade dessa lenda.
vino, no automóvel vinham dois dos meus amigos, extrema-
mente preocupados. Andavam havia horas à minha procura, Naquela noite, um dos meus amigos, dos mais cépticos
percorrendo todas as estradas possíveis. quanto a toda a história, disse que talvez os defuntos ti-
vessem formado uma nova aldeia e lá se reunissem todos
Claro que o meu aspecto lhes chamou a atenção e causou os dias à meia-noite. Dando-me uma palmada nas costas
algum pânico. Implorei-lhes que arrancassem sem hesitação e rindo, continuou: “Bela história! Quase acreditei…
e seguimos nervosamente para junto dos outros, informa- Nós a pensar que te conseguíamos meter medo, mas tu
dos, via telemóvel, do meu aparecimento. Iniciei a minha superaste-nos.”
explicação do sucedido, não a concluindo dentro do carro,
mas repetindo-a e completando-a quando nos encontrámos
com os restantes e preocupados convivas. Com cubos de
gelo trataram de anestesiar o meu pé dorido e limparam as
minhas feridas.

Todos se mostraram espantados com a narrativa, até que


a descrição alcançou os contornos fantásticos, espectrais e
bizarros do meu episódio e percebi que começavam a duvi-
dar de mim. Perguntaram-me se não estava a exagerar ou se
tinha tomado alguma droga alucinogénia. Houve alguns que
julgaram mesmo que eu inventara a história para os assustar,
respondendo ao plano que eles haviam engendrado.

A surpresa que me tinham preparado era muito mais sim-


ples: os meus amigos seguir-me-iam, escondendo-se dos
em:
lados da estrada que eu escolhesse, para me assustar com op inião
sua
ruídos, sinais macabros e outras pueris simulações. Ofere- a . com
ang
cer-me-iam depois uma colecção de filmes clássicos de ter- e
eix
d b
ror e passaríamos a noite acampados na floresta, a celebrar
ta
?
to

o aniversário. Sem saber como e sem ninguém perceber, eu


on
vis
te c

tinha iludido a sua vigilância, indo assim parar à bifurcação


.re
des
www
gostou

BANG! /// 55
P O R E D U A R D A B A R A T A

res, além de Patrick Crowley, produtor dos célebres filmes


Bourne: O Legado de Bourne (2012), Ultimato (2007), Suprema-
cia (2004) e Identidade Desconhecida (2002).
O realizador Justin Kurzel é, porém, quase desconheci-
saga Assassin’s Creed verá a sua adaptação para
do, o que provoca alguns receios nos fãs da saga que temem
filme a 21 de dezembro do próximo ano. A
data foi confirmada em fevereiro. O filme, que um filme longe da qualidade a que a Ubisoft os tem habitu-
se encontra em pré-produção, será baseado no ado, até porque os exemplos de filmes baseados em jogos
primeiro capítulo da história, referente ao pri- não têm, geralmente, corrido conforme o desejado (caso de
meiro jogo Assassin’s Creed e no livro Assassin’s Creed – Renas- Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo). No entanto, Michael
cença. Sabe-se parte da mesma premissa: Desmond Miles é Fassbender declarou numa entrevista à IGN o seu vivo en-
«raptado» pela empresa Abstergo Industries a fim de explo- tusiasmo para que o filme veja a luz do dia na sua máxima
rar a mente e o passado de um dos seus antepassados, Altaïr perfeição técnica e dramática:
Ibn La’Ahad, para conseguir recuperar um antigo artefacto.
Desconhece-se, no entanto, se haverá alguma surpre-
sa ou desvio da história principal, mas, com base
na excelente adaptação e profundidade da intriga
e das personagens que foi feita do jogo para o
livro, o filme promete ser fiel à saga.
A produção está, claro, a cargo da Ubisoft
Motions Pictures e ainda da New Regency
Enterprises; e o elenco, ainda não con-
firmado no seu todo, será composto
por Michael Fassbender, que in-
terpretará o papel de Desmond
Miles, e Marion Cotillard para
um papel ainda não especi-
ficado. Michael Fassebnder
também é um dos produto-

5566 ///
///// BBANG!
AANNG!
NGG!!
vive-se a missão, no livro explica-se a missão. Por
exemplo, em Bandeira Negra, a evolução de Edward
unânime: o melhor é o jogo. Mas com os livros Kenway é notável por aquilo que imprime de matu-
compreende-se melhor. Este é um dos comen- ridade e dúvida, angústia e saudades de casa. Há quem
tários mais comuns que se fazem à adaptação argumente que as lutas perdem vigor no livro, mas são,
da trama do videojogo para os livros, escritos por na verdade, igualmente ágeis, aditivas e tão visualmente
Oliver Bowden, pseudónimo de Anton Gill, um bem descritas que julgamos ficar salpicados de san-
historiador que é um gamer inveterado e que, como gue no final de cada combate. Já no primeiro livro,
tal, é extremamente fiel aos videojogos na altura de Assassin’s Creed – Renascença, Leonardo da Vinci é
passar para o papel todo o envolvimento psicológi- genuinamente retratado, tanto que se torna credível
co das personagens nos diferentes contextos culturais que tenha sido assim realmente, e Ezio Auditore é
que a saga da Ubisoft oferece. Aliás, os livros têm tanto tão carismático como no jogo, além de que a roti-
mérito que cativam inúmeros leitores de ficção histórica na das missões a cumprir é reposta no livro sem o
de ação e aventura que nunca tinha jogado. Claro que a mínimo obstáculo, igualmente fluida e emocionante.
experiência é diferente, mas não deixa de ser fortemente A fluidez e liberdade de movimentos e ações são
visual. Nos livros, a imaginação é a chave. outros fatores que distinguem Assassin’s Creed dos de-
Duas das coisas que distinguem a série Assassin’s Creed mais videojogos e que demonstrou ser o verdadeiro
num universo de videojogos cada vez mais vasto são a en- impulso da nova geração de videojogos. As persegui-
volvência visual e o detalhe histórico. Em Assassin’s Creed ções e emboscadas, os combates e fugas, a naturalidade
vive-se verdadeiramente a história e a ação, ao mesmo tem- do simples ato de beijar a mão a uma dama ou escalar e
po que obtemos valiosos conhecimentos sobre determina- subir ao pico de uma catedral para abraçar o céu com o
da época histórica. A paisagem circundante das persona- olhar, levam a crer que é simples e que «pode ser feito em
gens é extasiante, e não raras vezes, o jogador vê-se parado casa» – tanto que é comum o jogador invejar a posição
no pináculo de um edifício ou catedral a admirar o que o da personagem e desejar estar no lugar dele de facto. Mas
rodeia: desde as cores do céu à textura dos monumentos Oliver Bowden não deixa o crédito por mãos alheias –
e variados edifícios, passando pela vida humana borbu- se é verdade que num videojogo a perceção visual jamais
lhante de vozes e pequenas histórias (podendo ser missões poderá ser comparada à de um livro, na história escrita
secundárias no jogo), jogar Assassin’s Creed é uma viagem essa mesma perceção é conseguida por meio de outros
no tempo e no espaço. Quanto à contextualização histó- artifícios: a descrição e relato dos combates ou fugas são
rica, é sabido que a Ubisoft, para esta saga em específico, igualmente impactantes e emocionantes, permitindo uma
recorreu aos mais variados historiadores e especialistas das maior abertura de «visualização» dado o apelo que é feito
ciências humanas para dotar o jogo da máxima precisão à imaginação do leitor. Não raras vezes, em muitos casos o
factual. Naturalmente que parte do desenvolvimento das livro é melhor do que o filme. Com os livros da saga suce-
personagens em si, como Desmond, ou Edward são fruto de o mesmo, tanto que a autenticidade dotada às persona-
da criatividade da equipa (tanto quanto se sabe), mas Ezio gens, que já aqui foi abordada, apimenta as sequências de
Auditore da Firenze, Leonardo da Vinci, os Bórgia, as ar- ação presentes em quase todos os capítulos. Enquanto no
madas militares de Washington ou as rotas marítimas do videojogo a personagem tem missões a cumprir e, apesar
Caribe, foram retiradas de documentos da época, cartas, de surgirem alguns diálogos com vista à compreensão da
diários, biografias e livros variados; assim como as con- mesma ou como forma de criar a interação de persona-
figurações paisagísticas das cidades e áreas rurais foram gens, o videojogo possui maior linearidade do que o livro.
baseadas na cartografia da época. Isto é, a fuga de Ezio no videojogo torna-nos espetadores,
enquanto no livro conhecemos as suas motivações e pen-
samentos, o que leva a uma maior identificação e conse-
quente temor por ele.
Em suma, são coisas diferentes, sem dúvida. Mas que não
se pense que um é melhor ou pior do que o outro, ambos
omo é que isto se transporta para o livro? Como é são recomendados como complementos. Um pela exube-
que a potência visual de um jogo que oferece tanto de rância visual e exploração das técnicas e armas de combate
rigor e exuberância poderá ser descrito em palavras? (com tudo aquilo que vem associado à verdadeira experiên-
É verdade que, já diz o adágio popular, «uma imagem vale cia de jogar), e outro pelo acesso aos secretos pensamentos
mais do que mil palavras», mas há coisas que o jogo não das personagens, às íntimas revelações do seu passado e a
consegue aprofundar e que se tornam uma mais-valia para todos os elementos que agitam a fértil imaginação dos lei-
quem lê os livros, como complemento do próprio jogo ou tores. O que é uma das melhores sagas de videojogos do
simplesmente pelo prazer da leitura. Uma delas prende-se século XXI, pode bem tornar-se num dos melhores livros
com a densidade e humanidade das personagens. No jogo de aventuras e ação que atravessam o tempo e o espaço.

BANG! /// 57
O autor agarra contextos históricos e injeta-os de vida
através do carisma das personagens, muitas vezes com
um passado enigmático e cheio de histórias e um de-
sejo de vingança premente, sempre opondo as duas
ordens Assassinos e Templários;

A aventura e a ação são inegavelmente aditivas –


desde as missões secretas que requerem discrição e
estratégia aos combates ágeis e sangrentos, os livros
intensificam os níveis de adrenalina com uma história
verdadeiramente galopante;

Os diálogos são fluidos e fornecem autenticidade hu-


mana – sejam as estratégias combinadas entre perso-
nagens, os segredos de paixão e os desabafos íntimos
ou as profundas conversações políticas e filosóficas,
ser um Assassino requer muita «lábia».

O livro oferece maior vitalidade e densidade das per-


sonagens quanto aos seus pensamentos, medos, so-
nhos e desejos;

Complementa o videojogo com chaves para decifrar


melhor o comportamento das personagens e os moti-
vos por trás das suas ações;

A ação e aventura imparáveis não são suavizadas, mui-


to pelo contrário: a componente visual dos combates
e perseguições é potenciada pela capacidade descritiva
cenário e contexto histórico que servirão de base para o jogo
do autor;
é Londres do século XIX, mais concretamente 1868, em plena
era vitoriana (tanto que, inicialmente, estava previsto o título
Os conceitos de rivalidade e inimizade contra os ini-
Victory). Contrariamente aos jogos anteriores, a narrativa deste jogo
migos Templários e apoio moral e cooperação den-
decorrerá em apenas um ano, e não numa década ou mais. À seme-
tro da ordem dos Assassinos são mais evidentes, pois
lhança de Unity (União), este jogo terá também dois protagonistas,
perpassa nos livros uma maior plasticidade emocional
Jacob e Evie Eyre, neste caso dois irmãos gémeos: os Assassinos em
na interação das diferentes personagens.
riste contra a prepotência dos Templários. No entanto, enquanto no
jogo Unity apenas Arno é a personagem com a qual se pode jogar, em
Syndicate, tanto Jacob como Evie podem ser missionários Assassinos
(sendo que Jacob terá uma fatia maior das missões a cumprir e mais
habilidades técnicas; Evie será apenas perita em stealth).
A cidade de Londres será seis vezes maior do que Paris em Unity,
as avenidas serão mais largas e populosas, os protagonistas poderão
conduzir coches e carruagens, e os edifícios serão mais altos, sendo
que haverá a novidade da escalada com corda – tudo isto se justifica
dado o período da Revolução Industrial, que nesta altura já se en-
contra em plena ebulição. No entanto, a desigualdade e a pobreza
crescem tanto como as chaminés das fábricas, e Jacob e Evie unem-se
para criar uma armada que os ajude a libertar Londres do jugo dos
Templários: para isso enveredam pelo crime organizado e, ao mesmo
tempo que o combatem, recrutam aí talentosos futuros Assassinos.
Quanto aos modos de jogo, este será centrado em single-player. Os
jogos competitivos e múltiplos deixam de existir para passar a dar
primazia ao jogo individual.
É uma história que promete ser cativante para os exigentes fãs da
saga. Veremos que segredos estão submersos no rio Tamisa e o que
conseguiremos descobrir com a ajuda dos gémeos Frye.

5588 ///
/// BBANG!
// ANG!
ANG!
Altaïr
A
Al taïrr é a personagem
per
p errsoon que inaugura a saga logo
no primeiro
pri
p rime
ri i o jogo
meeir jogo Assassin’s Creed, reaparecendo
jo
no quarto
quaartto jogo
jo go Assassin’s
ogo A Creed Revelations. O
primeiro
prrim
imeiiror jogo
o o não
jog nã foi adaptado para livro, mas
o quarto
q arrto
qu o sim,
ssim
im,, co
im ccom o título Revelações. Ambicioso
e pe
perfeccionista,
p rffec
ecci
c on
ci nis ta,, Altaïr (nascido em 1165),
ista
dee o
origem
r ge
ri síria,
g m síri a foi membro da Irmandade
riia,
Levantina
L va
Le vant
nt doss A
ntina
nt Assassinos, tendo desempenhado
funções
nções como sseu
funç
nç e mentor de 1191 até à sua
morte
mo
m rte em 1257. Foi o mais jovem Master Assassin
ort
de sempre, tend tendo obtido esse grau aos 25 anos.
As suas descobe
descobertas e invenções contribuíram
grandemente pa para a divulgação do lema e missões
da Ordem na Europa Eu e Médio Oriente, e os seus
Nascido em m 1987, trabalhos de investigação
inv e leituras, bem como
cresceu rodeado
eado as suas viagens, forneceram valiosos guias de
de membross orientação para os futuros Assassinos. Impediu,
da Ordem dos por exemplo, o avanço a de
Assassinos, mas Genghis Khan na n regiãoão árabe
aos 16 anos satura-se e europeia. No qquarto jogo
desse estilo de vida e (terceiro livro) é detentor tor
decide fugir,, chegando de uma biblioteca
bibliotec que
a trabalhar num bar. possui valiosos ssegredos os
É num dia insólito
nsólito por revelar.
raptado pelaa Abstergo A sua personagem,
personag embora
mbora
Industries, uma fictícia, foi inspirada
insp e baseada
organização o Templária em inúmeros factos fa históricos.
istóricos.
que o força a reavivar A frase «Nothing
«Nothin is true, rue,
as memóriass everything is pe permitted.»
ed.»
genéticas dos
os («Nada é verdadverdadeiro, tudo
seus antepassados
ssados é permitido.»), é, crê-se, se,
através de um sistema da autoria de Hassan H i
tecnológico chamado Animus Sabbah, um dos mentores tores
para obter um mapa detalhado de um da verdadeira ordem o dos
valiosíssimoo artefacto chamado Maçã de Éden. Hashshashin (ou (o Assassinos,
assinos,
Acaba infelizmente por passar algum tempo na qual a componentee
com os Templários e criar, contra a sua vontade, filosófica da Ordem dos
o tal mapa. No entanto, cedo os Assassinos o videojogos foi baseada), a),
recuperam e Desmond colabora na continuação um fação de revolta contra ontra
desse trabalho, lutando para conseguir a posse os turcos seljúcidas,
da Maçã de Éden. Aparece em todos os jogos fundada no século XI..
até ao sexto (Black Flag), ou em todos os livros
até ao quinto (Bandeira Negra), sendo que
neste último as suas memórias são reativadas
postumamente. No filme, a estrear em
dezembro de 2015, será interpretado pelo ator
Michael Fassbender.

BANG! /// 59
Ezio aparece no segundo, terceiro e quarto jogos
(Assassin’s Creed II, Assassin’s Creed Brotherhood e Assassin’s
Creed Revelations), o que corresponde aos três primeiros
livros (ou seja, Renascença, Irmandade e Revelações) em
plena era renascentista. No primeiro livro, Ezio é um
aprendiz nas artes e técnicas dos Assassinos, com vista
a tornar-se um deles a fim de conseguir limpar a honra
da família. Tem o privilégio de receber conselhos e ensi-
namentos de Nicolau Maquiavel e de Leonardo da Vinci,
sendo que este último recorre à «loucura» de Ezio para
experimentar as suas invenções inacreditáveis. No tercei-
ro jogo (segundo livro), Ezio confronta os Bórgia, a famí-
lia vil italiana que, no século XV, ameaça corromper o Es-
tado e a Igreja com o seu domínio tirânico da população.
Ezio é um homem romântico que, até aos seus 18 anos,
se ocupava a namoriscar as outras donzelas nobres da
cidade de Florença. No entanto, a sua curiosida-
de era igualmente insaciável – quando desco-
briu, depois do assassinato da família, que
o pai pertencia à Ordem dos Assassinos,
não perdeu tempo e cedo aprendeu a
Arte do Assassino para vingar e restituir
a honra ao nome Auditore. É antepas-
sado de William e Desmond Miles.
Historicamente, embora pou-
co conhecido pelos his-
toriadores e filólogos,
Ezio Auditore da Fi-
renze nasceu em 1459
e morreu em 1524,
tendo sido o mentor
da Irmandade Italiana
dos Assassinos, um
lugar que ocupou
de 1503 a 1513.
IMDB: http://www.imdb.com/
IGN: http://pt.ign.com/
Gamespot: http://www.gamespot.com/
Rubber Chicken: http://rubberchickengames.com/
Assassin’s Creed Wikia: http://assassinscreed.wikia.com/
BGamer: http://bgamer.sapo.pt/

Obra: União
Autor: Oliver Bowden
Género: Literatura Fantástica
Editora: Saída de Emergência ião em:
in
Tradução: João Felix a op
Páginas: 352 as
u
. com
ang
e
eix
PVP: 17,76€ d b
ta
?
go

ISBN: 978-989-637-808-0
rti
vis

Data de Lançamento: 17
ea
.re
dest

de julho de 2015
www
gostou

60 /// BANG!
As portas nunca se abrem por magia, mas lá vamos
aprendendo a como as deitar abaixo.
Estaria a mentir se dissesse que não estou cansado com a A maior vantagem agora é ter de facto um filme feito.
minha própria criação. Ninguém merece viver 6 anos com Sempre senti que não me levavam a sério por só ter
um idiota racista e misógino. trabalhado em televisão e curtas-metragens, mas agora com
Dito isto, o balanço é muito positivo. Aprendi imenso e uma longa-metragem posso finalmente ir a um mercado de
finalmente fiz uma longa-metragem. Acho que só agora cinema e sentir que sou apenas mais um dos outros 5 mil
é que consigo dizer a alguém que sou realizador sem me realizadores de primeiras obras que lá estão.
sentir uma total fraude. E mesmo assim... Isto pode parecer ridículo, mas é um grande upgrade à
minha existência miserável.

Acho que seria tanto sonho como


pesadelo. De momento estou a adorar Ainda é muito cedo para falar
trabalhar noutros projectos porque detalhadamente sobre o projecto, mas
tudo me parece fresco depois de 6 resumidamente vou filmar uma “prova
anos a partir a mesma pedra. de conceito” que funcione também como
Mas talvez um dia faça uma sequela curta-metragem para depois procurar
ao Capitão Falcão, embora isso agora financiamento e co-produtores fora de
só seja possível daqui a 5 ou 10 anos, Portugal. É uma parceria com os ingleses
caso o filme se torne um sucesso de Millennium FX, que felizmente têm um
culto. currículo de Sci-Fi muito superior ao

BANG! /// 61
meu porque trabalharam no Ex-Machina, Gravity, Divergent,
Children of Men e muitos outros filmes incríveis.
Será um tributo ao velho cinema de ficção científica
americano dos anos 40 e já estávamos a construir várias
personagens nos estúdios da Millennium mesmo antes de
filmar o Capitão Falcão.
É um projecto que está a ser preparado há muitos anos e
que espero filmar em 2016. O truque numa coisa destas é
ter muita paciência.

Tive a sorte de ser o irmão mais novo e de crescer a ler


bandas desenhadas e livros do meu irmão mais velho. Não
me lembro sequer de não conviver com esse universo pulp, só em Portugal. É importante considerar os mercados
por isso sempre fez parte da minha vida. internacionais, porque sem eles o género fantástico não
Tenho um especial fascínio com os anos 40, 50 e 60 porque poderá sobreviver em Portugal.
tanto no mundo dos super-heróis como da ficção científica
naquele tempo a nossa imaginação era claramente superior
ao nosso conhecimento científico. Tudo era mais colorido
e divertido.

Sim, é algo que estamos seriamente a considerar. Escrevi


8 episódios com a Nuria Leon Bernardo de uma série
televisiva do Capitão Falcão com vilões que nem sequer
entram no filme.
Brevemente, espero eu. Estou a tentar desenvolver uma série Há ali muito material bom à espera de uma adaptação. A
de animação online que pode ou não estrear antes do meu ver vamos...
próximo filme. Infelizmente também ainda é cedo para a
anunciar como deve de ser, mas posso adiantar que envolve
Portugal e os Descobrimentos. Espero ter um trailer para
lançar ainda este ano pois é algo muito diferente do que já
fiz. Leiam argumentos.
Vejam filmes.
Visitem os mercados internacionais (Berlim/Cannes/
Toronto/etc) e falem com os produtores, vendedores e
programadores. Tentem fazer amigos e comecem a criar
relações de trabalho.
Idealmente, um surto de natalidade como nunca antes visto. Não se isolem porque neste meio só sobrevive o colaborador.
Se chegarmos aos 100 milhões de habitantes então o cinema
e a TV de nicho vão florescer também.
Realisticamente, acho que as condições
não devem ser procuradas

em:
op inião
sua
ea . com
de
ix
b ang
ta
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go
rti
vis
ea
.re
dest
www
gostou

62 /// BANG!
nne Bishop, com a sua nova série Os Outros, da qual já lançou três
livros e que agora a Saída de Emergência tem o prazer de inaugurar
com Letras Escarlates, surgiu, segundo a autora, por puro bel-pra-
zer. O ofício da escrita para Anne Bishop resulta sobretudo das
vontades e aventuras por enveredar por terrenos desconhecidos.
A própria autora declara não fazer quase investigação nem pesquisa para as suas
obras por considerar que a genuinidade da palavra e da ideia se validam melhor
desta forma. Letras Escarlates é, assim, o primeiro «teste» de fantasia urbana da au-
tora. Uma nova série com uma nova trama num novo género literário. Mas para
a autora nada disto parece novo: Anne Bishop está tão confortável na fantasia
urbana que parece que cresceu no meio do universo que criou. E nós aplaudimos.
De pé.
NG!! //
BBANG!
BA NG //// 63
s Outros tem enfoque na personagem de Meg Corbyn,
Jovem profetisa, é uma cassandra sangue cujo poder
uma profetisa de sangue da espécie cassandra sangue:
quando se corta e verte sangue, o seu sangue prediz o futuro. consiste em predizer o futuro através do sangue que
Parece ser um dom bastante útil, apesar de doloroso. Mas escorre de golpes ou cortes na sua pele. No entanto,
não há muitas profetisas assim, e Meg Corbyn vê-se a braços Meg não deixa que seja isso a defini-la: na verdade já
com a constante exploração do seu dom por terceiros, sendo
manipulada e punida caso não consinta em fazê-lo. No viveu demasiado tempo sob a sombra do seu dom.
entanto, Meg não é facilmente domada e, depois de se libertar Quando se consegue finalmente libertar, Meg procura
de um prepotente senhor que desejaria usá-la para sempre, dar azo a outras competências que possua: uma vez
consegue finalmente pisar o seu próprio caminho, liberta
que passou tanto tempo isolada, o seu altruísmo
de amarras e manipulações. Afinal, a liberdade sempre foi o
seu maior desejo. Quando conhece Simon Wolfgard, os dois e generosidade ressaltam, e desde logo conquista
unem-se contra os estratagemas tirânicos do Controlador inúmeros amigos e aliados para as causas das futuras
para de novo obter os talentos de Meg ao seu serviço. batalhas que ainda tem a travar.
Liberdade e desejo de justiça são dois dos temas que
predominam na atmosfera da série. No entanto, Meg Corbyn
é naturalmente bondosa e generosa, procurando criar
bem-estar em seu redor. Assim, apesar de humana, o seu dom Líder do clã de Lakeside (ou seja, líder dos Outros),
não possui «odor a presa» e os supostos predadores não lhe
fica inicialmente desconfiado dada a sua natureza de
tocam e recebem-na como parte do clã. Sim, é verdade: os seres
humanos são presas de um sem-número de outras criaturas metamorfo, mas cedo se rende aos encantos de Meg
com o seu q.b. de malévolo, entre as quais vampiros, o que se embora nutra sempre complexos sentimentos por ela,
torna francamente cativante, (pois já estávamos desabituados entre o carinho e a necessidade de proteção, e negação
de vampiros que gostassem realmente de carne humana). Tal
dos mesmos. Tem uma voz grave e é sedutor, apesar
cria um ponto de conflito interessante na obra e que decerto
irá acompanhar o percurso de Meg Corbyn ao longo de toda de nunca se sentir confortável na sua pele humana.
a série: ela é humana e convive com os predadores da sua Ciente das dificuldades que terá de combater para
espécie, os chamados Outros. Poderá também ser o início de fazer o Controlador beber o amargo licor da justiça,
uma bela amizade: uma possível reconciliação entre ambas as
espécies, a partir da qual presas e predadores tenham de se é um diplomata ao unir todos os clãs pertencentes aos
unir por um bem maior. A heroína é Meg, e o futuro parece Outros e os humanos em nome do bem maior.
estar do seu lado. Ou melhor ainda, dentro das suas veias.

Anónimo e oculto — é o cérebro do sistema político


tirânico que governa o mundo dos Outros. Assim que
Meg Corbyn foge do seu alcance, o Controlador não
incrível, mas é verdade: Anne Bishop não investiga para poupa esforços para a reaver, visto ter sido das mais
os seus livros. Então como consegue obter um universo preciosas profetisas de sangue que possuía. As cassandra
credível e personagens consistentes?
sangue, ou profetisas de sangue, são importantes
É fácil entender porque é que a ideia da investigação é
inerente ao processo da escrita e sopesa a boa reputação instrumentos para permitir a previdência estratégica de
do autor: um autor que escreve sem nada ter investigado teor financeiro e político, daí que o controlador não
arrisca-se a criar a partir de nuvens vagas de conceitos sem abdique delas facilmente.
conseguir descortinar o seu verdadeiro sentido. As ideias e
conceitos fabricados a partir da fonte inesgotável de criação
do autor têm também de possuir coerência e estrutura —
invenção pura sem a mínima orientação não torna sequer a
história apelativa. Porém, há também o risco de sufocar o
texto criativo com factos e torná-lo um relatório explicativo
em vez de uma boa história — e neste sentido, Anne Bishop
explica-nos, quando questionada por Patricia Briggs (nota:
“I” é o epíteto a que Anne Bishop se refere como o «bicho
papão da investigação»):
«Humm. Terei de reconsiderar a palavra “I”. Sempre que

64 ///
//// BBANG!
// ANNG!
alguém me pergunta se faço “I” para os meus livros, eu
digo que não porque a “I” significa encher o teu cérebro de
factos que alguém decidirá que não estão corretos quando
nos aventuramos a usá-los. A palavra “I” tem imensa energia
— criatura mais comum neste mun- negativa para mim, sabes? Então eu não “I”. Salvo que, como
do alternativo. Apesar de possuírem forma animal e tu, sigo fios de raciocínio, divagando um pouco através disto
humana, sentem-se frequentemente desconfortáveis e daquilo. Sigo elos de ligação entre palavras no dicionário e
na sua pele humana e são muito «animalescos» em ter- nas ferramentas de processamento de texto, aprendendo sobre
palavras e em busca de nomes (como Erebus e Tehys —
mos de instinto e comportamento. As diferentes espé- ainda não os conheceste), vendo DVD sobre lobos e corvos
cies distinguem-se pelo sufixo «-gard» no nome. e bisontes, e lendo sobre eles também. Mas isso é apenas
“aprender coisas”, não é “I”. Dito isto, estar apto a aprender
sobre tudo e qualquer coisa é uma das vantagens de ser escritor.»
— sugadores de sangue com a aptidão
de se transformarem em fumo. São similares a vam-
piros — fleumáticos, elegantes e mortais — mas não
tão românticos como na ficção atual. A sua forma em
fumo poderá engolir a presa, podendo retirar sangue
nne Bishop é, acima de tudo, uma escritora de imagens.
com apenas um toque. As suas ideias partem de imagens já criadas que surgem
subitamente na sua mente e que, ao longo do tempo, se vão
multiplicando por diferentes cenários e em diversas eras, até se
— são nomeados a partir dos elemen-
tornar um álbum mental de uma narrativa por desbravar através
tos ou estações do ano que controlam, detendo o po- das palavras. Daí a importância que ela coloca à componente
der de formar — ou destruir — o mundo. Apesar de visual de um universo narrativo, e de todo o campo semântico
os metamorfos e os sanguinati serem o «rosto público» que o rodeia e compõe a atmosfera que envolve as personagens,
sem se centrar tanto na investigação, por receio de poluir as
dos Outros, são os Elementais que têm o verdadeiro imagens. Assim o declara no seu ensaio:
trabalho de sustentação de toda a ordem.
«Errando numa nova direção:
Um ensaio para a webpage Roc,
— as misteriosas cassandra
escrita em fevereiro de 2013
sangue — ou profetisas de sangue — não são bem hu-
manas nem bem parte dos Outros. Estas jovens têm Meg Corbyn e eu temos algo em comum: vemos por
visões do futuro com o seu próprio sangue, cortan- imagens.
Deixem-me mostrar-vos como Os Outros e o seu mundo
do-se na pele. Valiosíssimas, são isoladas como vítimas vieram até nós.
de quarentena hospitalar, sendo os seus gestos, ações Imagem, algures na década passada: um complexo sólido
e pensamentos controlados ininterruptamente. No en- de edifícios numa rua da baixa da cidade. Subitamente há
um lapso e um portão de ferro que revela um pátio relvado.
tanto, este dom poderá também conduzi-las ao verti-
Pensamento: quem vive nestes edifícios, escondido de todas
ginoso abismo da insanidade e até à morte. São, além as pessoas que atravessam aquele portão? Que segredos
disso, conhecidas pela pureza dos seus corações. habitam por trás destas fachadas vulgares?»

Anne Bishop é quase alquimista: a partir de fragmentos


dispersos, como cacos de um espelho partido, vai-os colando
e unindo até formar o reflexo que pretende. Neste sentido,
as palavras tornam-se ferramentas para tornar essas imagens
mais límpidas e mais coesas. E por isso nos parecerá claro
que, sob Letras Escarlates, se ergam castelos (ou neste caso,
edifícios) de imagens num universo fantástico — fantástico
de fantasia e fantástico de incrivelmente bem concebido —
um universo inteiramente à nossa espera.

Ler a entrevista entre Anne Bishop e Patricia Briggs em


http://www.usatoday.com/story/happyeverafter/2015/02/19/patricia-briggs-
anne-bishop-interview-book-tour/23628577/
Ensaio sobre Os Outros em
http://www.annebishop.com/s.written.red.essay.html

BANG! /// 65
Foi assim tão diferente mudar de fantasia para fantasia urbana?
Que variante prefere?
vive em Upstate Para mim não foi realmente uma mudança. Escrevo fantasia da
maneira que sempre escrevi, mas desta vez o mundo que estou a
New York onde gosta de explorar tem filmes e pizas assim como seres sobrenaturais. Uma
passar o tempo das coisas que mais me diverte nesta série é ir a lojas e ver todo o
merchandising através do olhar dos Outros e pensar o que eles achariam
a jardinar, ouvir música dos artigos e o que comprariam.
e a criar mundos
Como surgiu uma ideia e um sistema tão imaginativos para esta série? A dinâmica
de grande imaginação. das personagens, o percurso atribulado de Meg Corbyn... Poderia falar-nos um
É autora de vários pouco sobre o que a inspirou?
Há alguns anos, pensei que seria divertido escrever sobre lobisomens
romances, incluindo a e vampiros, mas não tinha ainda ideia de quem eram ou o mundo em
premiada Saga das que viviam, além do facto de ter de ser contemporâneo. Informações
e ideias começaram a acumular ao longo de alguns anos... Quando
Jóias Negras, bem como o alcancei o ponto de refletir no que aconteceria se os Outros fossem
Mundo Efémera uma espécie inteiramente diferente que tivesse o dom de tomar a
forma de outros predadores, incluindo os humanos, tive então ideia
e Trilogia dos Pilares do lugar em que começaria por formar o mundo chamado Namid.
do Mundo.
Uma das coisas mais interessantes sobre Letras Escarlates é, de facto, essa
— o de realmente conseguir criar um predador consistente e credível para os
humanos, além da complexidade de todo o sistema social em seu redor. Como
fluiu a história — foi de algum modo estranho retratar os humanos sob o topo
da cadeia alimentar? Por outras palavras — qual foi o maior desafio ao escrever
Os Outros?
Quando comecei por encarar Os Outros como os predadores dominantes
do seu mundo, não tive problema nenhum em ver os humanos como
predadores inteligentes e inventivos que estavam em conflito e em
competição com seres que pensavam neles como presas. O meu maior

66 ///
66 ///// BBANG!
AANNGG!!
história e dos lugares. Leio para
aprender e leio por diversão. Ambos
me ensinam sempre alguma coisa. A
minha recomendação para aqueles
que começam agora a escrever? Bem,
pensar sobre a escrita não é o mesmo
que escrever. A única maneira de
aprender como escrever uma história
é ir escrevendo histórias, aprendendo
como se criam personagens e lugares,
aprendendo que diferentes elementos
da escrita dotam a história da sua
forma e da sua profundidade. Ler
sobre estas coisas é uma boa forma de
começar, mas a única forma de ver se
se adequam com a sua forma de narrar
uma história é escrever e escrever e
escrever. E tal como é bom aprender
de livros já publicados, não compare
as suas histórias mais «jovens» com
aquelas que foram publicadas. Foram
criadas por escritores que levaram
anos a aperfeiçoar a sua arte e a fazer
a viagem que ainda agora começa para
outros.

Foi recentemente nomeada para o 2014 RT


(Romantic Times) Reviewer’s Choice Award
na categoria de Construção de Mundos para
desafio foi trabalhar o mapa de Lakeside porque estas coisas são habitualmente o Fantasia Urbana por Murder of Crows,
para que eu soubesse, quando alguém início de um lugar, de uma personagem o segundo livro da série, publicado em março
estivesse num veículo, se deveria virar à ou de uma história. 2015 — parabéns! Qual foi o melhor elogio
esquerda ou à direita numa intersecção. que alguma vez recebeu sobre Os Outros?
Fez algum tipo de investigação? Qual foi uma Que a personagem de Meg Corbyn
Quantos livros tenciona escrever para esta das coisas que mais a maravilhou à medida demonstra às pessoas que se podem
série? que criava o mundo de Os Outros? ter limitações e ainda assim ser-se um
Neste momento há cinco livros (estou Vi inúmeros DVD sobre lobos, corvos, herói.
agora a começar o quinto). Não sei bisontes e outros animais. Não que eu
ainda quantos mais virão, até eu estar considere isso investigação, pois tendo Se fosse anfitriã de um jantar e pudesse
mais envolvida na história que está a a ver programas sobre a Natureza de convidar cinco personagens, vivas ou não, quais
decorrer agora. qualquer forma. Quando preciso de escolheria? E se fossem personagens dos seus
saber algo especificamente, procuro romances?
Quando cria ou pensa numa personagem a resposta a essa pergunta ou verifico Daemon Sadi [Joias Negras], Glorianna
ou sobre o universo do romance, surge-lhe junto de um amigo que trabalha nessa Belladonna [Mundo Efémera], Roarke
naturalmente ou tem alguma espécie de ritual área. Não posso dizer que fiquei [da série Mortal de J. D. Robb], Walt
que lhe permita entrar na atmosfera da maravilhada com a criação do mundo Longmire [da série Longmire de Craig
história? em si, mas fico sempre entusiasmada Johnson] e Armand Gamache [série
Temos de dar à voz criativa um lugar por muitas coisas enquanto escrevo as Inspetor Gamache de Louise Penny].
tranquilo para ela se manifestar. Se histórias.
está sempre a ouvir música ou tem
a televisão ligada atrás de si, estará a Tem alguns hábitos ou rotinas de escrita
distrair-se da possibilidade de criar um que gostaria de partilhar? Qual é a sua
lugar ou uma personagem que seja sua. recomendação para inspirar pessoas que
Quando eu faço algumas tarefas em escrevam?
casa ou faço jardinagem pergunto-me Eu resguardo o meu tempo para a em:
op inião
«E se isto ou aquilo pudesse acontecer? escrita, e nada, exceto uma emergência, sua
ea . com
Como seria? Quem viveria ali? Ou se é permitido interferir com isso.
este tipo de pessoa ou de ser existisse, Passo tempo dentro do meu silêncio de
ix
b ang
ta
?
go

em que mundo viveriam?» Depois para que consiga escutar as vozes


rti
vis
ea

tomo nota do que atrai a minha atenção das personagens e ver a forma da
.re
dest
www
gostou

BANG! /// 67
m jovem é forçado a tes- Balada de Antel passa-se num período Assim como caminha lado a lado com a
temunhar o assassinato do fictício há 12 mil anos. Há um choque entre glória, Antel tem a melancolia e a dor como
homem a quem ele chama civilizações, sendo, de um lado, o Império companheiras. Enquanto promove sua es-
de pai e que o ensinava nas Jatitano, militarista e feudal, e, de outro, o calada social fulminante, terá que lidar com
artes da guerra e liderança. Reino de Senula, organizado e estruturado, intrigas, traições e perdas.
Por obra cruel do destino, enfrenta com eleições regulares e distribuição de po- A riqueza da mitologia criada por
a traição e deslealdade ainda muito der. No meio de tudo isso, há o Poente, de Eric M. Souza e as emoções poderosas
jovem. Desprezado pela sua própria várias nações tribais rivais entre si, algumas que perpassam pela sua obra criam um
mãe e pelos homens que levaram aliadas a Jatitã, outras a Senula e outras vasto mosaico de culturas, religiões e
à queda do seu pai, é entregue ao alheias ao conflito. filosofias que não deixarão nenhum
mundo selvagem dos bosques para Antel é um jovem chefe militar que pas- leitor indiferente.
morrer. sou de um nome desconhecido ao maior te-
Mas o rapaz é acolhido por uma mor dos inimigos do Império Jatitano. Além
A BALADA
tribo que o ensina a sobreviver e a de grande guerreiro, ele conta com a ajuda de
algumas das melhores mentes de seu tempo
DE ANTEL
tornar-se num grande guerreiro que
está destinado a ser um conquistador no campo da estratégia. Jovens ambiciosos
invencível. Nas palavras do autor, A como ele, guiados pelas suas paixões.

A Balada de Antel é o romance vencedor do Prémio Bang!


para Literatura Fantástica. Uma obra que nos apresenta um mundo rico
e personagens complexas, na tradição dos grandes nomes do gênero.

Jatitã e Senula são os maiores impérios do mundo conhecido. Há séculos quee


competem pela supremacia sem nenhum sair vencedor. Até ao dia em que surgee
a figura enigmática de Antel, um senhor da guerra jatitano que não conhece a
o
derrota. O seu nome é murmurado com temor pelos inimigos e até o seu próprio
rei teme a ambição do jovem guerreiro.

Do outro lado do conflito, em Senula, a misteriosa e bela Ajedurala divide seuu


tempo entre a política e os problemas causados pelo filho Hassileu, que só pensaa
em mulheres e em bebedeiras. Quando ela decide enviá-lo para o exército, acredi--
m
ta que seus problemas estão resolvidos. Mas, diante de um conflito violento com
o temido Antel, como se comportará o irresponsável Hassileu?

No jogo entre nações, as peças são movidas por personagens misteriosas. Algu--
mas, sussurrando nos ouvidos de reis no conforto dos palácios, escondem suass
próprias ambições. Outras, vagando pelas estradas perigosas, manipulam os se--
o
nhores da guerra. Antel sonha com a glória eterna, mas conseguirá ser mais do
que apenas uma peça num jogo de vida e morte?

68 ///
68 ///// BBANG!
BAN
ANG!
ANG!
u começo a ilustração com um rascunho bem
solto, usando apenas linhas para definir as formas
e a composição do desenho. Prefiro trabalhar com
linhas ao invéns de valores como muitos usam. Na
minha opinião, as linhas permitem trabalhar mais as
formas e o movimento da imagem. (fig. 1)

ssim que estou satisfeito com o desenho, separo


ele em uma camada no modo “Multiply” e co-
meço a jogar umas cores básicas em uma camada se-
parada. Tento sempre manter os personagens numa
camada separada do fundo para facilitar qualquer
alteração. (fig. 2)

BBANG!
BA ///
ANNGG! ///
// 69
69
om as cores básicas estabeleci- 3
das, eu começo a definir os va-
lores gerais da ilustração. Nesses
primeiros estágios tento mater a
pintura bem solta, sem me prender
a pequenos detalhes, usando pin-
céis grandes. (fig. 3)

uando me sinto confortável


com os valores e a iluminação
geral da cena, eu crio uma camada
por cima de todas as outras e co-
meço a pintar sobre o traço. Nessa
etapa uso pincéis menores para dar
melhor acabamento para as for-
mas. Sempre começo a detalhar os
personagens primeiro, geralmente
pelos rostos, onde costuma ser o
ponto focal do espectador. (fig. 4)

próximo passo, depois de os


personagens já estarem bem
definidos, é começar a estabelecer
e detalhar o plano de fundo. Nessa
ilustração, como queria que o foco
fosse só os dois personagens, optei
por um fundo mais escuro e com
poucos detalhes para criar um con-
traste. (fig. 5)

4 5

700 ///
///// BBAN
BANG!
A G!!
AN
6 omo tinha dito anteriormente, manter os personagens se-
parados em camadas pode facilitar em diversas situações.
Nessa ilustração, eu acabei tendo que mudar o formato da capa
e a proporção dos personagens. Como eles estavam separados,
isso agilizou bastante essa alteração. (fig. 6)

partir daí sigo detalhando e dando acabamento à pintura


como um todo. Às vezes, uso camadas de ajuste para ir mo-
dificando as cores. Uso também camadas no modo “Overlay”
ou “Linear Dodge” para ressaltar a luz e os brilhos metálicos.
Mas no geral sigo pintando toda a ilustração em uma camada
“Normal” fazendo uso de diferentes pincéis. Essa etapa pode
durar dias, e nunca existe uma certeza de que a ilustração está
100% pronta. Mas como temos prazos a cumprir, devemos sa-
ber a hora de parar e assinar a obra. (fig. 7)

or último, a pedido do editor, foram adicionadas as flâmu-


las vermelhas, que completaram perfeitamente a ilustração.
E assim finalizei a capa de “A Balada de Antel”. (fig. 8)

:
ião em
opin
sua
ea . com
de
ix
b ang
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go
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te a
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des
www
gostou

BANG! /// 71
No início, Acácia é um mundo muito
reminiscente de Duna de Frank Herbert.
O mesmo sentido de tragédia iminente paira
sobre as personagens aristocráticas. Em
Duna, é um duque e o seu filho herdeiro. Em
Acácia, tudo está centrado num rei e os seus
quatro filhos, Aliver, Mena, Corinn e Dariel.
72 /// BANG!
U
ma droga é consumida pelos habi-
tantes do Império, a “bruma” que
os aliena da realidade e destrói a sua mitologia que David Anthony Durham criou é, sem
resistência contra tudo e todos. Em dúvida, um dos pontos mais estimulantes e fortes da
troca da droga, o Império sacrifica sua saga. Com fortes ecos das sagas da Antiguidade Clás-
todos os anos um determinado nú- sica e da mitologia nórdica, a magia não podia deixar de
mero de crianças a uma raça miste- estar presente, mas numa forma que se manifesta através
riosa de nome Lothan Aklun. No dos Tunishevre, o coletivo de vozes dos mortos que estão
segundo volume, Presságios de Inverno, Durham rapidamente impedidos de morrer devido a uma maldição, ou os Santo-
encontra o seu próprio pé e desenvolve um mundo feito de th. A linguagem dos Santoth é a fonte de toda a vida e ener-
muitas culturas, raças e tons de cinzento. Não demoramos gia no mundo. Uma lenda antiga conta que um indivíduo
muito a descobrir que Acácia está longe de estar inteiramente de nome O Doador viajou pela terra, despertando-a para
do lado da liberdade, igualdade e fraternidade, mas que re- a vida através de canções. As palavras da sua canção da-
corre a métodos obscuros e questionáveis para manter o seu vam substância ao mundo e seus habitantes. Uma das suas
poder sobre os seus cidadãos. criações humanas, um jovem de nome Elenet, começou a
Para além dos acacianos, conhecemos também outro povo, segui-lo, deslumbrado pela canção. Elenet assim aprendeu
os Mein, banidos há séculos para o Norte gélido, e que foram as palavras do deus e começou a usá-las. Quando o Doador
vítimas de um grande mal perpetrado pelos acacianos. Foram descobriu isso, abandonou o mundo em fúria, mas Elenet
amaldiçoados e os seus mortos nunca morrem realmente, tornou-se o primeiro a falar a língua de um deus e os seus
sendo esse coletivo de vozes dos mortos quem mais exige seguidores tornaram-se os feiticeiros Santoth.
vingança. E assim os Mein enviam um assassino para liquidar
o rei e lançar uma invasão de modo a instaurar uma nova or- O primeiro rei de Acácia, Tinhadin, era um Santoth e
dem mundial. Onde está o bem e o mal? Não é inteiramente baniu todos os feiticeiros porque receava o poder deles.
linear ou fácil de definir. Roubou o Livro de Elenet e abandonou o uso de magia, na
O rei Leodan irá sucumbir a um assassinato perpetrado pe- esperança de que morresse no mundo pois sabia que tinha
los Mein, forçando os filhos a dispersarem-se pelos quatro sido a origem de todo o caos. Quando o primeiro volume
cantos da terra. Cada um irá ser submetido a provas de fogo da saga se inicia, os Santoth não passam de um mito, bem
que irão fortalecer os seus caracteres. Cada um irá assumir o como a língua do deus. Até ao momento em que são reen-
fardo de ser herdeiro de Acácia. Aliver Akaran, o mais velho, contrados, conduzindo a eventos dramáticos.
habita com uma tribo do deserto, os Talay. Mena torna-se a
encarnação de uma deusa numa ilha remota. Dariel é um pi-
rata jovem e impetuoso. E, por fim, Corinn é uma captiva dos
Mein na corte de Acácia e é inegável que há uma química en-
tre ela e o seu captor. Cada um deles irá tentar redimir os er- Mundo Conhecido é dominado por um império milenar
ros dos seus antepassados, fazendo a saga evoluir em direções e por uma família real que atravessa 22 gerações. Nele rei-
inesperadas numa narrativa sofisticada, fluida e eloquente. na o Rei Leodan, uma figura absolutamente consciente da sua

BANG! /// 73
mortalidade e do perigo que o rodeia: Aklun e detém muito mais influência
o Império aparenta ser idílico, mas está que a casa imperial. Até a crueldade
longe de ser seguro e ele sabe que pode a que foram submetidos o povo dos
ditar o seu fim. Leodan sabe que os ali- Mein torna-se difícil de justificar, es-
cerces de Acácia são frágeis e assentam tando submetidos a uma maldição que
sobre sangue, corrupção e exploração impede os seus antepassados de mor-
de escravos. rerem definitivamente. Muitos males
A responsabilidade de governar com foram cometidos e cabe à última gera-
sabedoria foi há muito abandonada, ção partir em busca de redenção e por
tornando-se todos reféns de pactos uma forma de salvar o coração podre
com o diabo. Há uma Quota infame de de Acácia.
crianças que é cedida aos enigmáticos Os grandes tema, de uma dimensão
Lothar Aklun (iremos descobrir mais shakespeariana, da ambição, poder,
sobre eles nos volumes Outras Terras e ganância, mas também coragem, resis-
O Povo das Crianças Divinas). O uso da tência e redenção estão presentes, for-
droga “bruma” como forma de manter mando um magnífico arco de história filho mais
a população maleável e submissa ape- que traz à luz um mosaico de culturas e vvelho do rei Dariel, após o
nas dá mais poder a uma Liga implacá- raças inesquecível. ccolapso do Império acaciano
vel que fornece essa droga aos Lothar mmas mãos dos Mein, Aliver
rrefugia-se no deserto no meio de
uuma tribo que o ensina a ser um
gguerreiro. Nele estão depositadas
ggrandes esperanças.

filha do rei
DDariel, Mena é levada pelos
gguardas do seu pai para uma
ililha onde se torna o avatar de
uuma deusa venerada. Ao lutar
ccontra a águia dourada Maeban,
torna-se uma princesa guerreira.
to

a filha mais
O David Anthony Durham já era estão a fazer é a coisa certa. Isso era velha
v do rei Dariel, Corinn é
um aclamado romancista histórico verdade nas Guerras Púnicas, por isso uma
u refém nas mãos dos Mein
e notamos facilmente como esse certifiquei-me de que era verdade nas na
n antiga corte do seu pai. É
background infiltrou o mundo inventado Guerras Acacianas. Ambos os lados inegável
in a atração mútua entre
de Acácia. Pode descrever-nos os em Acácia sentem que estão a corrigir ela
e e o seu inimigo, Hanish
eventos/períodos históricos que mais velhos erros e a lidar com problemas Mein.
M Corinn é provavelmente
causaram impacto na sua criação de mal resolvidos de gerações anteriores. a figura mais complexa da saga
Acácia? Como integra a pesquisa na e irá ser a arquiteta de um plano
sua escrita? Estudar guerras históricas lança uma de
d vingança e poder que irá
luz em muitas coisas de extrema
mudar
m para sempre Acácia.
O romance que escrevi antes da saga importância que não lidam apenas
Acácia chamava-se Pride of Carthage. com questões no campo de batalha.
Era sobre as Guerras Púnicas entre Caçar comida e água limpa. Viajar o filho mais
Aníbal de Cartago e a República em território hostil. A necessidade de novo do rei Dariel, torna-se um
n
Romana. Isso teve uma influência recruta e obter o apoio de civis. São jovem pirata a vaguear pelas ilhas
jo
direta forte em Acácia. A pesquisa questões criadas pelo território, clima, Distantes.
D
permitiu-me obter um conhecimento condições meteorológicas… Estudar
aprofundado de como e porque é que a guerra de Aníbal ofereceu-me uma o líder do
as guerras acontecem, especialmente na base para tudo isto. Lembrou-me de ppovo dos Mein e o invasor que
sociedade pré-industrial. que era importante mostrar que o cconduziu ao colapso do Império
conflito é complexo e decidido por aacaciano após a morte do rei
Por exemplo, antes de escrever sobre muito mais do que apenas força militar. DDariel. Inteligente e carismático,
os eventos da guerra, precisava Podia continuar sobre as coisas que
nnão olha a meios para atingir
de compreender as circunstâncias a História me ensinou. Gostaria
que levaram a ela e entender o que de mencionar também o poder oos seus fins e vingar os seus
esperava cada lado ganhar, como da inovação e surpresa. Aníbal aantepassados.
justificavam as suas ações. Ambos surpreendia constantemente os
os lados têm de acreditar que aquilo romanos. Uma vez e outra, fazia

74 /// BANG!
coisas que eles nunca se lembrariam. dos detalhes da mitologia surgiram-me Colocou um enorme esforço em
Montou-lhes armadilhas que eram à medida que ia escrevendo e desenvolver personagens vilãs
incrivelmente engenhosas. Mas por conhecendo melhor esse mundo. complexas. O povo Mein é retratado
causa disso, ensinou-lhes também como inimigo dos Acacianos mas
a serem mais supreendentes e muitas vezes a linha entre o bem e o
inovadores. No fim, Aníbal foi Todos os filhos do Rei Leodan passam mal é nublada. Os acacianos não são
derrotado pelo seu maior estudante – o por transformações profundas ao menos capazes de atos malévolos.
romano Scipio Africanus. Ele aprendeu longo da saga. Qual deles constituiu o Quão difícil foi estabelecer a psique
imenso a observar Aníbal a matar mais desafio de escrita? dos Mein?
romanos. Ele pegou no que aprendeu
e virou isso contra Aníbal. Gosto Corinn. Para mim, é a personagem Eu sabia que os Mein tinham sido
de pensar que os Akarans e Mein de mais complexa. No início, não derrotados e castigados no passado e
Acácia estão envolvidos no mesmo tipo aparenta ser mais do que uma jovem tinham sofrido por muitas gerações.
de interação. Eles acreditam que são banal que se interessa principalmente Viam-se a si próprios como vítimas dos
inimigos, mas estão realmente imersos pelos assuntos da corte, a sua beleza Akarans e queriam ambos vingança
numa dança que magoa, reforça e altera e perspetivas de casamento. E no e uma vida melhor para si e os seus
ambos os lados. entanto, nunca achei que se limitasse filhos. Compreendo esses desejos, por
apenas a isso. Ela simplesmente isso nunca pensei no povo deles como
estava a desempenhar o papel que malévolo. Eles acreditam que estão a
O recurso à fantasia dá-lhe maior lhe era exigido. Quando o seu mundo corrigir um grande mal.
liberdade em explorar os temas começa a ruir, tem de descobrir a sua
principais da saga? identidade e como vai funcionar no Além disso, com o elemento fantástico
mundo. E descobre que é uma mulher dos Tunishnevre – a presença que se
Sim. Com a fantasia, posso combiner muito forte capaz de atos muito mantém de gerações de antepassados
coisas que nunca seria capaz de questionáveis, mas isso não deriva de mortos – podia brincar com a ideia
combinar num romance realista. Por ela ser maldosa. Isso seria demasiado de que os mortos em agonia exigiam
exemplo, a saga descreve um negócio simples. Ela faz o melhor que pode ação dos vivos. Os Mein estão a tentar
esclavagista semelhante ao negócio por ela, pela sua família e a sua nação. criar uma nova ordem mundial, mas
Atlântico, uma situação de drogas Ao longo do processo, comete crimes têm de seguir os desejos dos mortos.
inspirada no ópio chinês, e uma horríveis e também faz algumas Considero isso uma ideia interessante e
corporação que facilita tudo, assumindo coisas maravilhosas. Nem sempre aterrorizadora.
todo o poder de uma nação – mas é fácil descrevê-la, mas sinto que a
sem nenhuma da responsabilidade compreendo de uma forma satisfatória
de governar. Além disso, num único – tanto quando comete erros como Em relação ao processo de escrita, a
romance há culturas inspiradas pela quando toma a decisão certa. escrita surgiu-lhe de forma fluida ou
Europa, África, Ásia, Nova Zelândia. teve de gerir bloqueios de escrita e
Não sei como poderia ter misturado criatividade?
todos esses temas num livro realista.
Através da fantasia posso moldar todos Para mim, escrever é trabalho. Por vezes
os temas que me interessam. Sou livre de há explosões de inspiração e criatividade,
usar História, mas não estou preso a ela. mas a maioria das vezes é uma luta. Faço
o que posso e depois desisto ao fim do
dia. E vou para a cama a pensar no que
A mitologia Acaciana é bastante rica e farei no próximo dia. Isto repete-se dia
evocativa. Construiu o mundo primeiro após dia, mês após mês, e ano após ano.
ou ele surgiu durante o processo de Lentamente as coisas acontecem, cenas
escrita à medida que desenvolvia as são escritas, personagens revelam-se, os
personagens? pontos-chave do enredo encaixam…
Até que por fim, descubro que escrevi
Eu tinha a ideia base de que o um novo livro!
Akarans eram um Império longevo
que acreditava no mito da sua própria
benevolência quando na verdade Tem algumas dicas especiais de escrita
mantinham o poder através da que gostasse de partilhar com novos
exploração de escravos e drogas. E eu escritores a tentarem singrar neste
sabia que a Liga era uma organização género da fantasia épica?
obscura que, de muitas formas, detinha
mais poder que os Akarans. Mas Escritores dizem sempre a aspirantes
essas coisas eram apenas o ponto de a escritores para ler, ler e ler. Para
partida. Escrever o romance é uma escritores de fantasia, sugiro que leiam
jornada de descoberta. As personagens da forma mais diversificada possível.
conduziram-me através dela, e eu fui Não leiam apenas os velhos favoritos
aprendendo com elas. A maior parte de quando eram mais novos – ou os

BANG! /// 75
escritores contemporâneos da mesma mistérios da saga. Como escritor, houve
tradição. Há muito mais vozes diversas na coisas que escrevi muito cedo qe só
fantasia hoje em dia, a criarem mundos ganharam significância mais tarde. Por
inspirados por culturas que não sejam isso, para mim, as surpresas do livro
o tradicional reino Tolkien do norte da foram realmente surpresas. Quando
Europa. Por exemplo, Saladin Ahmed, finalmente as compreendi, conseguia
Nnedi Okorafor, N. K. Jemisin, Ken Liu, ver ligações que nem me conseguia
só para mencionar alguns dos autores a aperceber mas que iam ter ao início.
escrever fantasia muito interessante. Estão Espero que o mesmo aconteça com os
nasceu em Nova Iorque no ano de
a dar um novo contributo ao género ao leitores.
1969. Venceu inúmeros prémios com
combinarem um amor pela fantasia a uma
os livros Gabriel’s Story, Walk Through
visão única do mundo. E é importante Quero que os leitores se sintam
Darkness e Pride of Carthage. Com a
que novos escritores façam isso. Não se satisfeitos por terem lido uma história
publicação de Acácia, Durham ganha
limitem a ser mais uma voz no género; completa. Nem tudo termina de
protagonismo e torna-se num autor em
acrescentem também algo de novo. forma linear. Não é exatamente isso
ascensão no mundo literário. Acolheu
que acontece. Mas acredito que cada
as melhores críticas no Publishers
personagem faz o seu melhor para
Weekly, Kirkus Reviews, SciFi Site and
Qual foi o melhor elogio que recebeu terminar a história fiel a si própria e
Fantasy Magazine, The New York Times
sobre Acácia, para além daquele proferido aos seus ideais. Isso é o que espero nos
e Library Journal, sendo considerado
pelo George R. R. Martin? livros que leio, por isso tento também
a grande revelação dos últimos anos
fazer isso nos livros que escrevo.
na Fantasia. A saga Acácia está a ser
O George foi muito simpático, não foi?
publicada em mais de 10 países e
Esse tipo de elogio é muito difícil de ser
encontra-se em desenvolvimento para o
superado! Mas acho que os melhores Tem saudades de escrever no mundo
cinema. Atualmente, Durham vive com
elogios que recebi vieram de pessoas de Acácia? Há alguma possibilidade de
a mulher e os filhos na Califórnia
que me disseram que um livro meu regressar a ele no futuro?
e ensina na Universidade em Fresno.
mudou-lhes a vida. Não acontece muitas
vezes, mas de vez em quando alguém diz Adoraria escrever mais sobre Acácia.
isso. Ou os inspirei a serem escritores, Eu criei o mundo, por isso, bem
ou ajudei-os a ver o mundo de forma que podia passar mais tempo nele.
diferente, ou fi-los interessarem-se O meu próximo romance – que
por um género que nunca teriam lido. entreguei recentemente ao meu editor
Uma vez disseram-me que um livro norte-americano – é sobre a rebelião
meu ajudou-os a tornarem-se leitores – de Spartacus na Roma Antiga. É
deixou-os excitados com a leitura como um romance histórico como Pride of
nunca antes tinham estado. Carthage. Acho que o meu próximo
livro também será histórico. Isso
Quando leio coisas dessas, sinto-me porque as ideias que tenho tido têm-me
humilde e surpreendido. Mas eu também levado por esse caminho. Espero que
me recordo de muitos livros que surja um dia em que imagino outra
mudaram a minha vida. O livro certo, lido história acaciana que tenho MESMO
na altura certa pela pessoa certa pode ser de contar. Quando isso acontecer,
muito importante. Claro que, quando isso regressarei contente a Acácia. Ou então
acontece, não é só por causa do livro. É irei dar a volta ao globo e ver o que há
porque o leitor está envolvido no livro e mais para descobrir…
preparado para a mudança.

em:
Estamos prestes a publicar o último op inião
sua
volume da saga Acácia em Portugal com ea . com
Ob A
Obra: Acácia
á i -VVozes dda P
Profecia
Autor: David Anthony Durham
f i o título Vozes da Profecia. O que podem os de
ix
b ang
nossos leitores esperar no último volume? ta
?
go

Género: Literatura Fantástica


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vis

Editora: Saída de Emergência


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Respostas. Um fim. Espero que os leitores


.re

Tradução: Fernanda Semedo


dest

descubram a explicação para muitos dos


www

Páginas: 320
gostou

PVP: 17,97€
ISBN: 978-989-637-738-0
76 /// BANG!
E se...? — Respostas científicas para perguntas
absurdas de Randall Munroe é um pequeno manual
de ciência e humor que reúne perguntas de pessoas
como nós — perguntas que nos ocorrem pelas
vias imaginativas do raciocínio — respondidas com
aprumo científico e metódico por Randall Munroe,
ex-engenheiro robótico da NASA e que agora se
dedica à sua webcomic XKCD, um blogue que atrai
a atenção dos curiosos e sedentos de conhecimento.
O autor reuniu as perguntas mais impactantes e
divertidas, desenvolveu algumas respostas e
juntou-as num livro extraordinário. Divirta-se com o
trecho que apresentamos nas páginas seguintes.

2060 ou de 2130.
Não há muitos mortos no Facebook.1 O principal motivo é o facto
de o Facebook e os seus utilizadores serem novos. O utilizador mé-
dio do Facebook envelheceu ao longo dos últimos anos, mas o site
continua a ser mais usado pelos jovens do que pelos mais velhos.

B aseando-nos na taxa de crescimento do site e nas idades dos


utilizadores ao longo do tempo2, existirão entre dez e vinte
milhões de pessoas que criaram perfis no Facebook e que faleceram
desde então.

BANG! /// 77
De momento, estas pessoas distribuem-se de forma bas-
tante igualitária pelas várias idades. Os jovens têm uma
taxa de mortalidade muito mais baixa que as pessoas na
casa dos sessenta e setenta anos, mas constituem uma
percentagem substancial dos mortos no Facebook sim-
plesmente porque usam o site em tão grande número.

C erca de duzentos e noventa mil utilizadores do Facebook nos Estados


Unidos terão morrido em 2013. O total mundial para o mesmo ano
rondará vários milhões.3 Em apenas sete anos, esta taxa de mortalidade
duplicará e, nos sete anos seguintes, tornará a duplicar.
Mesmo que o Facebook deixe de aceitar novos registos amanhã, o núme-
ro de mortes por ano continuará a crescer durante muitas décadas, à me-
dida que for envelhecendo a geração que estudava na universidade entre
2000 e 2020.
O fator decisivo na determinação da data em que os mortos superarão
os vivos será a chegada de novos utilizadores vivos (idealmente, utilizado-
res jovens) com rapidez suficiente para que se ultrapasse durante algum
tempo esta tendência de morte.

I sto leva-nos à questão do futuro do Facebook.


Não temos experiência suficiente com redes sociais para
determinar com alguma coisa que se assemelhe a certeza o
tempo que o Facebook sobreviverá. A maioria dos sites ex-
plode e vê diminuir gradualmente a sua popularidade, tor-
nando razoável supor que o Facebook seguirá este padrão.4
Neste cenário, em que o Facebook começa a ver diminuir o
seu mercado no final desta década sem nunca recuperar, a
data de inversão (o momento em que os mortos superarão
os vivos) virá algures em 2065.

Mas talvez não aconteça. Talvez passe a desempenhar


um papel semelhante ao do protocolo TCP, tornando-se
uma parte da infraestrutura sobre a qual outras coisas
são construídas, adquirindo a inércia do consenso.
Se o Facebook subsistir durante gerações, a data de in-
versão poderá ocorrer num ponto tão distante como
meados do século XXII.

Isso parece improvável. Nada dura para sempre e a


mudança rápida foi sempre a norma para qualquer coisa
assente na tecnologia informática. O chão está coberto
com os cadáveres de sites e tecnologias que pareciam ins-
tituições permanentes há dez anos.
É possível que a verdade se situe algures num ponto
intermédio.5 Teremos de esperar para ver.

78 /// BANG!
São estes os assuntos que tentamos esclarecer por ten-
tativa e erro. A morte sempre foi um tema grande, difícil

O Facebook não pode manter todas as nossas pági- e com imensa carga emotiva e todas as sociedades encon-
nas e dados durante tempo indefinido. Os utili- tram formas diferentes de lidar com ela.
zadores vivos gerarão sempre mais dados do que os Os elementos básicos que constituem uma vida huma-
utilizadores mortos6 e as contas de utilizadores ativos na não se alteram. Sempre comemos, aprendemos, cres-
são aquelas que precisarão de ser facilmente acessíveis. cemos, sempre nos apaixonámos, lutámos e morremos.
Mesmo que as contas de utilizadores mortos (ou ina- Em todos os locais, culturas e panoramas tecnológicos,
tivos) passem a constituir a maioria, é provável que desenvolvemos um conjunto de comportamentos dife-
nunca exijam uma parte grande do orçamento geral rentes em torno destas mesmas atividades.
com infraestrutura. Como qualquer grupo que nos antecedeu, aprendemos
As nossas decisões serão ainda mais importantes. a realizar estes mesmos jogos no nosso campo de jogos
Que desejamos para essas páginas? A não ser que exi- particular. Desenvolvemos, por vezes através de tentativa
jamos que o Facebook as apague, continuará presumivel- e erro, um novo conjunto de normas sociais para regular
mente a man- o romance, as discussões, a aprendizagem e o crescimen-
ter cópias de to na internet. Mais cedo ou mais tarde, descobriremos
tudo durante também como lidar com o luto.
tempo inde-
finido. Mes-
mo que não
o faça, outras
empresas de
colheita de da- (1) Quando escrevi isto, pelo menos. Foi antes da maldita revolta
dos fá-lo-ão. dos robôs.
Atualmen- (2) É possível contabilizar os utilizadores de cada escalão etário a
partir da ferramenta de criação de anúncios do Facebook, apesar de
te, os parentes ser aconselhável levar em consideração o facto de os limites etários
próximos po- do site fazerem algumas pessoas mentir acerca da idade.
dem converter o perfil de um utilizador falecido numa (3) Em algumas destas projeções, usei dados de idade/utilização do
página memorial, mas existem muitas questões por Facebook extrapolados da base de utilizadores total porque é mais
responder em termos de palavras-passe e acesso a da- fácil encontrar números dos censos dos Estados Unidos e núme-
ros atuariais do que reunir dados nacionais relativos aos utilizado-
dos privados para as quais ainda não desenvolvemos res do serviço no mundo. Os Estados Unidos não são um modelo
normas sociais. As contas deverão permanecer acessí- perfeito do mundo, mas a dinâmica essencial (a adoção do Facebook
veis? O que deveria passar a ser privado? Os parentes pelos jovens determina o falhanço ou o fracasso do site enquanto
próximos deveriam ter o direito de aceder às contas de o crescimento populacional continua durante algum tempo e acaba
email? As páginas memoriais deverão ter comentários? por estabilizar) não andará muito longe da verdade. Se supusermos
uma rápida saturação do Facebook no mundo em desenvolvimento,
Como lidaremos com os trolls e com o vandalismo? que, atualmente, tem uma população mais jovem e com crescimen-
As pessoas deveriam ser autorizadas a interagir com as to mais rápido, isso alterará muitos dos pontos de referência num
contas de utilizadores mortos? Em que listas de ami- punhado de anos mas não alterará tanto o panorama geral como
gos deverão aparecer? se esperaria.
(4) Parto do princípio, nestes casos, de que nunca se apagarão
quaisquer dados. Até agora, tem sido uma suposição razoável. Se
alguém criou um perfil no Facebook, esses dados continuarão a exis-
tir e a maioria das pessoas que deixa de usar um serviço não se dá
ao trabalho de apagar os seus perfis. Se esse comportamento se al-
terar ou se o Facebook levar a cabo uma limpeza em massa dos seus
arquivos, o equilíbrio poderá mudar de forma rápida e imprevisível.
(5) Claro que, se houver um aumento súbito e rápido na taxa de
mortalidade dos utilizadores do Facebook, possivelmente relaciona-
do com o aumento da mortalidade de todos os humanos, a data de
inversão poderá ocorrer amanhã.
(6) Espero eu.

Obra: E Se...?
Autor: Randall Munroe in ião em:
u a op
Gênero: Não-Ficção e as . com
Editora: Saída de Emergência d eix
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Tradução: Renato Carreira


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rti
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PVP: 17,76 €
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gostou

BANG! /// 79
Através do seu trabalho no site,
contactaram Martin, e a sua cola-
boração culminou em outubro com
lio M. Garcia Jr. e Linda Antonsson a publicação de The World of Ice and Fire: the
são superfãs que se tornaram auto- Untold History of Westeros and the Game of Thrones [que
res bestseller. No início da sua relação em Portugal foi publicado em maio com o título O
transatlântica, aliaram-se através de Mundo de A Guerra dos Tronos – A História não Contada
George R. R. Martin e da sua saga de romances As de Westeros].3
Crónicas de Gelo e Fogo. Hoje são autores de um livro É um livro que é difícil de categorizar — tanto que
bestseller que escreveram com Martin, numa história a Publishers Weekly inicialmente o colocou na lista de
do mundo que Martin criou e que a HBO reaviva bestsellers de não-ficção. The New York Times conside-
na série Guerra dos Tronos. ra-o «miscelâneo». É um livro de história sobre um
Encontrei-me com eles num dia do mês passado lugar que nunca existiu, contado por uma persona-
em Gotemburgo, Suécia, assim que a tarde se tornou gem que vive no seu mundo fictício.
crepúsculo no parque de Slottsskogen, que conve- Mas então, pergunta Antonsson, não é toda a Histó-
nientemente quer dizer «Bosques do Castelo». Entre- ria, pelo menos, parcialmente ficcional? «A História é
tanto, o seu cachorrinho boxer desempenhou o papel escreveres a história sobre o quee aconteceu. Assim há
de um lobo, guiando-os tanto como eles o guiavam.1 sempre um elemento de ficção na História.»
Garcia e Antonsson não pertencem ao estereóti- Essa voz cética e metahistórica ca é evidente desde
po de superfãs: não vieram com um disfarce e não dor principal, Mestre
o início do livro. O seu historiador
incorporaram nenhum ritual no seu casamento no Yandel — da ordem dos mestres es que são investiga-
mês anterior. E no entanto o cenário fantástico de dores, curandeiros e astrónomos os em Westeros — está
Westeros foi parte do seu mundo durante 15 anos, constantemente a injetar avisos e precauções, a alter-
desde que lançaram o seu website de fãs, <westeros. nar teorias com o desconhecido. o. O Mundoo tem 40 000
org>. Trabalham juntos desde sua casa em Nödin- anos de idade ou 500 000 anos ou mais? Os gigantes
ge-Nol, perto de Gotemburgo, e o seu trabalho de ura ou 14 pés?
mais altos tinham 12 pés de altura
equipa é evidente ao longo da entrevista à medida Yandel pergunta, mas depois não responde, a ambas
que intervêm no discurso um do outro para confir- as perguntas, logo na primeira página da História. Este
mar ou acrescentar algo ao que o outro diz.2 inar muitas lições aos
investigador fictício poderia ensinar
historiadores e jornalistas sobre a mutabilidade da
ui também os números
narrativa não-ficcional, que inclui
que parecem emprestar-lhe alguma uma solidez.
ntram-se mais avan-
Os métodos de Yandel encontram-se
rovação que ele tem
çados do que a matéria e comprovação
ogo no início da nossa conversa, An- rande problema do
ao seu dispor, diz Garcia. «O grande
tonsson discorreu sobre o papel que mestre é que eles sabem tanto, que não conhecem.
o trabalho de Martin teve no que toca Sabem que há um sem-número o de coisas que não
à relação pessoal e profissional com Garcia. «É algo conseguem deslindar.»
sobre o qual falamos diariamente», diz Antonsson. Yandel reserva uma parte do veneno para os can-
«Creio que não há nenhum dia que passe...» tores e trovadores: animadores viajantes que colam
Garcia: «Em que lemos ou publicamos algo online...» lendas a canções, e cuja prioridadede não é a precisão
Antonsson: «O que é algo assustador quan- histórica, mas agradar aos nobres.es. «Parece-nos
do pensas nisso.» que um cantor fugiu com uma rapariga
Garcia: «São muitos anos a fazer a mes- qque ggostava ou assim», disse Antonsson.
ntonsson.
ma coisa.»

80 /// BANG!
dois livros, por isso a omnisciência sobre o universo
poderá revelar algo que esteja apenas reservado para
futuros capítulos. O mais importante, porém, é que a
omnisciência não existe propriamente no mundo de
teven Attewell, recém-doutorado em His-
Martin. Nas suas histórias sombrias e negras, ninguém
tória que possui um blogue sobre os livros
está certo sobre nada. «Há algo essencial sobre esse
de Martin, disse numa entrevista por correio
“não saber” que define muito daquilo que o George
eletrónico que ele gostava do livro do Mundo e que lhe
faz,» diz Garcia.
agradou como foi selecionada e sopesada a sustenta-
ção teórica. «Podemos ver os mestres nos bastidores a
tentarem reconstruir a História a partir de sustentação
arqueológica, fontes comparativas de outras culturas,
elementos recolhidos do folclore, etc.,» diz Attewell.
«Ao mesmo tempo, há também uma grande parte de esmo aquilo que os leitores sabem que é
parcialidade envolvida — o desejo de os contadores de verdade é muitas vezes enterrado sob as
histórias tornarem maiores as guerras e o reis do que fo- falsidades dos poderosos que escrevem
ram realmente, as lealdades políticas dos investigadores e reescrevem a História. Por todo o seu compromisso
depois das guerras civis, entre outras.» com a precisão e ceticismo, Yandel está a escrever de
Enquanto filosoficamente sã, a abordagem de Yan- acordo com a vontade do presente rei, de modo que a
del não agradou a todos os leitores. Uma crítica da sua história se torna menos fiável e mais aduladora para
Goodreads, que é, até, favorável, indicava que haveria com o rei, a cada ano que passa.4
a esperança de «uma concordância mais omnisciente É apropriado que este mundo de fantasia não tenha
e enciclopédica.» Outro crítico escreve que «avança e um historiador omnisciente: o seu criador é, em si mes-
avança e faz-nos perder o nosso tempo com um monte mo, não omnisciente. Martin não se lembra sempre do
de civilizações que existiram há centenas de anos, ou que já escreveu, então recorre a Garcia para que o auxi-
não existiram de todo, podem bem ser apenas lendas.» lie a assegurar que o que ele escreve não entra em con-
Mas Yandel é uma personagem muito ao estilo de flito com o seu trabalho já publicado. Garcia devorou os
Martin. Na saga Crónicas de Gelo e Fogo, cada capítulo três primeiros livros de As Crónicas de Gelo e Fogo, depois
é contado através da perspetiva de uma personagem organizou a informação dos livros sobre o seu mundo
diferente, que passa, claro, por ser necessariamente li- fictício dentro de um plano concordante, que ele usou
mitada e pouco fiável. Martin planeia pelo menos mais para manter o mundo internamente coerente.

BBANG!
BANG
BA
ANG ///
NG! ///
// 81
81
J. R. R. Tolkien, autor da trilogia
O Senhor dos Anéis, tinha imaginado
completamente a sua Terra Média
muito antes de publicar a heroi-
ca história de Frodo. Martin não
é Tolkien. Nem é Martin um de-
mógrafo, linguista ou historiador
— algo que Garcia menciona du- Obra: O Mundo de A Guerra
rante a nossa conversa. «Ele não é dos Tronos
nada desse género,» declara Gar- Autor: George R. R. Martin
cia. Quando Garcia e Antonsson Género: Literatura Fantástica
imaginaram primeiro o projeto do Editora: Saída de Emergência
Mundo, esperavam que Martin já Tradução: Jorge Candeias
soubesse toda a história de Weste- Páginas: 326
ros. Não sabe. PVP: 42,20 €
«Ele tem um mundo que é tipo
ISBN: 978-989-637-766-3
de uma milha de largura mas com
a profundidade de uma polegada,»
adiu Garcia.
Garcia vai mais longe. «Tenho
uma cabeça que decora todas as
trivilidades e detalhes e coisas es-
tranhas que se aprendem ao ler os
livros,» diz Garcia. «Não sei por-
quê, não sou habitualmente do
tipo obsessivo-compulsivo, mas
por alguma razão quis... assentar
todos os detalhes num lugar ape-
nas.» 5

ntre as perguntas para


as quais ele procurava
resposta: quão grande é
Westeros? (3 050 641 milhas qua-
dradas [4 909 531 km2], mais de
três quartos da área da Europa, ex-
trapolando a partir do tamanho da
Muralha que separa a maior parte
de Westeros da sua ponta nórdica,
e contando pixels...) Quantas pes-
soas habitam em Westeros? (Cerca
de 40 milhões, baseando em três
métodos, incluindo a soma
do número de solda-

8822 ///
///// BBANG!
ANGG!!
AN
dos mencionados e tentando perceber quão grande teria ouvem, foi assim que funcionou com todos os livros da
de ser o número populacional para que os sustentasse, série As Crónicas de Gelo e Fogo. «É uma daquelas coisas
usando métodos fundados em faixas etárias similares em que George vai sempre trabalhar até ao limite,» de-
àqueles usados pelo historiador e medievalista Bernard clara Antonsson.
Bachrach.) Qual é a moeda, e quanto vale? (Alguns tor- Entretanto, evitaram quaisquer outros compromissos.
neios de justas parecem ter prémios equivalentes a mi- Garcia adiou um doutoramento em Literatura Inglesa
lhões de dólares, que Garcia racionalizou por meio dos na Universidade de Gotemburgo, sob receio de Martin
salários dos jogadores de NFL – futebol americano.) subitamente querer completar o livro. A sua colabora-
Antonsson coescreve, organiza e gere webdesign, man- ção com Martin foi sobretudo eletrónica: cada um deles
tendo o trabalho na ordem. Ela diz que a história de encontrou-se com ele pouco mais do que meia dúzia
Westeros e terras limítrofes não é apenas matéria para de vezes.
os fãs aguerridos que consomem qualquer coisa. É fun- Quando Martin finalmente voltou
damental para a história. Ela expandiu este argumento a sua atenção para a história não
numa dissertação para o seu curso de Literatura na Uni- contada do seu mundo, as palavras
versidade de Gotemburgo, na qual escreveu «O passado começaram a fluir no seu proces-
está sempre a assombrar o presente.» sador de texto preferido, WordS-
Para o livro, Antonsson e Garcia escreveram tudo tar.7 «Algures dentro das gretas
aquilo que encontraram sobre a criação de Martin — glaciares da sua mente, surgiu
dos seus livros e de um arquivo chamado So Spake esta nascente, e é de loucos,»
Martin [Assim Falou Martin] que colige as suas decla- diz Garcia. «Ele poderia ter
rações e discursos em convenções, em entrevistas e na escrito um livro de três vo-
correspondência com os fãs. Depois enviaram para ele. lumes só por si em poucos
E esperaram. meses à velocidade a que
ele escrevia. Ainda bem que
ele decidiu não o fazer.»
a paciência é uma
grande virtude
uitos dos fãs de Martin estão à espera que
ele escreva.6 Outras funções ocupam, po-
rém, o seu tempo: escreveu um episódio
para a série da HBO em cada temporada, colaborou
com os criadores, visitou cenários e bastidores e deu
entrevistas. Martin disse que quer acabar a série porque
tem mais histórias para contar. Mas ele continua sempre
a encontrar histórias que contar em Westeros, incluindo
uma série spin off de novelas.
Garcia e Antonsson não compreendem os fãs que se
viraram contra Martin por este os fazer esperar pelo fi-
nal. «George poderia andar na rua e ser atropelado por
um autocarro, e assim ficamos», diz Garcia. «O facto
de não ter fim não importa. Não retira nem desvaloriza
nenhuma daquelas horas de prazer. «Do tipo, se gostas
assim tanto, quer-se dizer, sê grato por isso existir.»
Ficaram, no entanto, um pouco frustrados por es-
perar que o seu colaborador en-
viasse a contribuição para o
livro, para o qual assinaram
contrato em 2006. «Estáva-
mos basicamente à espera
de George,» Garcia diz, e
acrescenta «Foi um prazo
muito apertado no final.
Mesmo que tivéssemos, tec-
nicamente, anos para o
fazer.» Daquilo que

BANG!
BBA ///
ANNGGG!! ///
// 83
// 83
conflito. «Não sabemos mesmo se poderemos ver toda esta
temporada, porque serem-nos reveladas coisas através da série
quando estamos à espera de ler sobre elas há uma década ou
artin podia voar através da mais, é muito estranho e muito constrangedor,» confessa ela.
escrita porque ele escrevia
com poucas restrições. Com
muita da história do seu mundo ainda des-
conhecida, ele estava livre para preencher
as lacunas — incluindo as partes em que os série é uma grande frustração para Garcia e An-
trovadores erraram. Isso é parte da atração tonsson – não pela razão que esperei. Não fa-
para Attewell, o investigador que escreve no zem caso que a HBO tenha criado um mundo
blogue sobre a obra de Martin. «A realidade alternativo por se desviarem da história de Martin; Garcia e
da história, especialmente a pré-moderna, Antonsson creem que o cânone é o que está nos livros, a não
é que as fontes limitadas que temos são de ser que Martin diga o contrário. As suas objeções a Guerra dos
facto sempre o que tivemos e sempre o que Tronos são estéticas. Garcia apelida a série de «absolutamente,
vamos ter, exceto alguma grande descoberta faço uma vénia, é a maior e mais incrível produção alguma vez
que se conseguiu a partir dos documentos feita.» Mas, «ao mesmo tempo fico triste porque muitas das
preservados», afirma ele. Mas para preen- coisas que adoramos em específico... não parecem dar sinal no
cher a História de Westeros, «Martin pode radar.» Muito do que falta vem da história que eles adoram da
sempre escrever mais coisas.» série, expandida no livro do Mundo, que continuará a ver-se
Um livro envolvido num impulso de «lou- preenchida à medida que os livros vão sendo terminados por
cura», como Garcia confirma. Entre os re- Martin.
toques finais foi inventada uma personagem Mas a série televisiva que deixa Garcia e Antonsson frustra-
chamada Arquimestre Gyldayn cujo manus- dos também provocou um grande impacto. «A série fez mui-
crito anteriormente desconhecido se man- to para trazer pessoas a lerem os livros,» diz Garcia. «Fizeram
teve para as adições de Martin. Os autores imenso para trazer pessoas ao mundo de Westeros e para o
continuaram a ajustar e cinzelar tudo até à no
oss
sso we
nosso w ebs
bsititee.»
website.» .
data final de 19 de junho. Bantam publicou
o livro a 28 de outubro. Apesar da ocasional
queixa sobre o narrador pouco fidedigno, o
livro vendeu bem o suficiente para se tornar
um lifechanger, diz Garcia, graças ao «incri-
velmente generoso» acordo que Martin fez
com eles, de 50/50.8
O próximo projeto de Martin é termi-
nar o livro Winter [título previsto: Winds of
Winter; em português Ventos de Inverno]. De-
clinou a maioria dos pedidos de entrevistas,
incluindo o meu, desde uma breve digressão
para promover o projeto Mundo. Ele pode-
ria achar ser difícil escrever tão rapidamente
como fez para este livro. No presente do seu
mundo, ele ainda tem de solucionar todas as
histórias já postas em ação, com leitores de
olhos de falcão como Garcia a vigiar atenta-
mente para se assegurarem que faça sentido.
«É a pura complexidade dos inúmeros
fios que ele teceu,» Garcia conta de Martin.
«Tanto que ele brinca, “Vou ter de matar um
monte de personagens, tipo simplificar as
coisas.”»
Antonsson intervém, «Não, não. Ele não
está a brincar.»
Eles e outros fãs preocupam-se que, se
Martin não escrever o final – para as suas
personagens e para os seus livros – suficien-
temente rápido, os argumentistas adaptado-
res escrevê-lo-ão por ele. Antonsson é tanto
uma fornecedora de notícias sobre os livros
e a série como uma fã, o que pode criar

8844 ///
///// BBANG!
// BAN
AANNG!
NG!
G!
[1] Antonsson fez um tweett recente de que iriam rebatizar o cão de Stormbringe gr
(O que Traz
T a Tempestade).
T d)
[2] Contei mais de 100 vezes em que um ou outro diz «Yeah» na transcrição da
minha entrevista, sempre enquanto o outro está a falar.
pesar de não parecer para breve a con-
[3] Garcia disse que os editores insistiram em colocar «Guerra dos Tronos»
clusão do próximo livro por Martin, os
— o nome da adaptação da HBO que também era o título do primeiro livro
seus colaboradores começam a pensar da saga (A Guerra dos Tronos) — no título, para que aparecesse nas buscas
na vida depois de Westeros. Já ouviram de uma agên- online quando alguém procurasse o livro. Os autores comprometeram-se a
cia que estaria interessada em publicar histórias de fan- colocarem-no a seguir aos dois pontos e fazê-lo soar como uma brincadeira
tasia que eles gostassem de escrever. Antonsson, de 40 com o Trono de Ferro, não tanto relacionado com o nome da série. «O O que
anos, está a licenciar-se em Literatura, e Garcia, de 36, acontece a seguir aos dois pontos não se discute,» brinca Antonsson.
também. Entretanto criaram uma comunidade sobre [4] Num toque elegante, o espaço reservado à dedicatória no livro do Mundoo
o seu mundo ficcional9, que já deu origem a alguns mostra o nome de dois reis apagados do nome do rei para o qual ele escreve,
casamentos. Não se conheceram devido ao seu amor uma vez que a coroa mudou de cabeças duas vezes durante o processo de
por As Crónicas de Gelo e Fogo10, mas sem dúvida que escrita.
isso os aproximou, primeiro em espírito e depois na [5] Não tem, no entanto, uma memória fotográfica, que Martin clamava que
realidade, quando Garcia se mudou para a Suécia em Garcia tinha numa entrevista há um ano «Receio bem que não! Isso foi de
certeza uma hipérbole de George», diz Garcia.
1999. Casaram-se no dia em que Mundo foi publicado,
[6] Algumas opiniões negativas no Goodreads sobre o livro do «mundo»
16 anos depois de ficarem noivos.
advêm do descontentamento de leitores pelo facto de não se tratar do pró-
ximo livro de As Crónicas de Gelo e Fogo.
[7] Garcia e Antonsson convertem por vezes os documentos de Martin para o
editor. Já tentaram que ele mudasse para Microsoft Word. «Não vai acontecer»,
diz Garcia.
[8] Martin também pediu aos seus colaboradores que os seus nomes fossem
do mesmo tamanho do dele na capa, conta Garcia. Segundo ele, os editores
responderam logo «Isso não vai acontecer.»
[9] É por vezes uma comunidade contenciosa. Alguns fãs já foram banidos
de fóruns, por aquilo que Antonsson define como ataques pessoais contra
ela, Garcia ou Martin; ou por violarem as regras do fórum. Alguns fãs critica-
ram-na a ela e Garcia dada a sua abordagem a gerirem o site, dizendo que as
suas opiniões sobre a série são sexistas ou racistas — acusações com as quais
ela discorda veementemente, indicando antes que refletem a sua interpretaçção
purista dos livros. Chegou a responder combativamente a esse tipo de com menen--
tários nalgumas vezes. «O conselho geral que se dá a quem m quer que sejejaa ad
ad--
moestado ou maltratado na Internet tende para que ignoremos e de desp
sprereze
zemo
mos,s,
mas eu não sobscrevo essa ideia», conta-me. «Se alguém atira porrca cari
riaa na
minha direção, tendo a devolvê-la ao destino.»
[10] Conheceram-se enquanto jogavam ElendorMUSH, H, em
que MUSH significa Multi-User Shared Halluuci cina
natition
on
[Alucinação Partilhada para Vários
Váriios
o Utilizado
Utilizado
dore
ore
res]
s].]

Fonte do Artigo:
http://fivethirtyeight.com/features/these-authors-know-the-
game-of-thrones-backstory-better-than-george-r-r-martin-does/ BANG! /// 85
86 /// BANG!
BANG! /// 87
Donna Tartt –

História Secreta começa ções. Seja na densidade psicoló-


com a confissão de um gica das personagens, na forma
crime. Ao longo das magistral como a literatura clás-
páginas somos arras- sica, a importância da mitologia
tados para a compreensão desse grega, a fatalidade do Destino e o
acto e para a história desse grupo incomensurável poder da Beleza
elitista, intelectual, sociopata, bo- (no humano, na arte, na natureza)
émio a que o narrador pertence. tornaram inevitável a Tragédia.
Por mais que tentemos acerrima- A confissão de Richard
mente condenar os protagonistas no início do livro de forma tão
do caminho perigoso e fatal a que melancólica mas tão lúcida, e sem
rumam, não se consegue deixar sermos capaz de encontrar um
de simpatizar com as suas perso- remorso gritante, é inebriante.
nalidades, com a forma como nos Só nos resta sermos confidentes
apresentam o seu mundo e aquilo desse segredo que o narrador
em que acreditam e (sobre)esti- quer revelar.
mam. O poder hipnótico da es- Uma obra quase perfeita.
crita de Donna Tartt encontra-se
precisamente aí na elegância e
profundidade das suas descri-

os próximos dias 18 e 19 de viagens e intensas batalhas espaciais, esta-


Julho, o Instituto Superior rá também montado o simulador Artemis,
Técnico acolhe o Sci Fi LX simulando a ponte de uma nave, com cada
no seu ano zero. Este é um jogador a interpretar uma posição específica
evento que pretende afir- na cadeia de comando. O simulador não será
mar-se como convenção internacional de o único representante dos jogos eletrónicos,
ficção científica, com atividades que apelem que também contarão com alguns criado-
a todos os fãs do género, expondo conteú- res portugueses a mostrarem as suas obras,
dos e meios clássicos e recentes, populares além de clássicos e novidades internacionais
e eruditos e até promovendo a formação de trazidas pelo Gaming Lounge 1UP. Presente
novos autores e criadores. estará também o retro futurismo da estéti-
Para aqueles cuja maior janela para estas re- ca SteamPunk, trazido pela Liga Steampunk
alidades alternativas são os livros, haverá pa- de Lisboa e Províncias Ultramarinas. Entre
lestras literárias, workshops de escrita criativa; as atividades criativas haverá espaço para o
para os fãs de jogos de mesa e miniaturas, Cosplay (do Inglês Costume Play, atividade
demonstrações permanentes. Já aqueles que de criação e uso de roupa e adereços base-
procuram uma oportunidade de imersão ados em personagens de ficção), pinturas
direta em mundos fantásticos e distantes, faciais e até crochet.
em galáxias longínquas em eras esquecidas, Mas nem só da Ficção vive um evento de
terão a oportunidade de experimentar os Ficção Científica, e sendo assim, também
RPGs (Role Playing Games, Jogos e interpre- a ciência e tecnologia estarão presentes, na
tação de personagens) preparados e ainda forma de palestras e workshops e também
os LARPs (Live Action Roleplay, interpreta- demonstrações e experiencias científicas.
ção de personagens ao vivo).
Para os fãs de todas as séries de longas

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