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edi to ri al

Nr.

32
Por
Luís
Corte
Real

C
Psst... vamos celebrar?
elebrar o quê?, perguntam vocês. Eu respondo: vamos
celebrar a revista que têm nas mãos! Pois é, receio
que alguns dos nossos leitores se tenham habituado
aos dois números anuais da BANG!, devorem os
conteúdos, mas já não tenham bem presente a
vitória que cada revista representa. Com 120 páginas a cores,
um excelente design e artigos de alguns dos mais competentes
nerds do país, este projeto é verdadeiramente único, não só em
Portugal como no resto do mundo. Mais: com distribuição
gratuita e uma tiragem de 9000 exemplares, é talvez a voz mais
poderosa na divulgação da cultura do fantástico em Portugal,
promovendo livros, filmes, séries, jogos de tabuleiro, gaming
e tudo aquilo que constitui a espinha dorsal da cultura pop.
A imagem do fundo apresenta o SEM PAVOR, Nada mau, para um projeto que começou em 2005 como
o vigilante mascarado de uma Lisboa alternativa.
Faz parte de uma antologia original da SDE um fanzine a preto e branco; que a certa altura evoluiu para
que deve chegar ao mercado em breve.

1
o A4, já a cores, mas com metade das páginas deles desenvolvidos em Portugal. A cultura pop
atuais; que pelo meio teve alguns números apenas chegou em força, unindo filhos, pais e avós.
em formato digital; mas que, desde 2010, tem Está, finalmente, na moda ser um nerd, e a
distribuição exclusiva e regular nas lojas FNAC. revista BANG! também quer comemorar isso.
Tem sido uma viagem emocionante, cheia de
vitórias, sempre na companhia dos melhores
leitores e colaboradores do mundo. Merece ou Quem foi que pediu um podcast?
não merece uma celebração?

J
á conheces o BANGCAST? É o podcast
da revista BANG! e, claro, também se
Não é só a BANG! que é fantástica, dedica à divulgação e discussão de tudo
o que tenha a ver com o género do fantástico.
o mundo também
Já recebemos grandes escritores internacionais

É
inegável que, na cultura popular, o género de literatura fantástica, como Richard Morgan
do fantástico suplantou finalmente o (autor de Carbono Alterado, adaptado pela
realismo. Não vamos discutir se isso é Netflix) ou Joe Abercrombie. Já discutimos o
bom ou mau, vamos apenas reconhecer o que cinema de Stanley Kubrick, a obra de Stanisław
nos rodeia: a generalidade dos blockbusters nos Lem, o génio de Ursula Le Guin, o segredo
cinemas têm super‑heróis, naves espaciais e de George R. R. Martin e a importância de
efeitos especiais tão avançados que se confundem J. R. R. Tolkien. Já entrevistámos editores
com a realidade; as séries mais premiadas da nacionais e falámos dos hábitos de leitura, da
televisão têm dragões, magia e orçamentos nunca lei do preço fixo, da chegada da Amazon e da
vistos; as maiores empresas de entretenimento edição de banda desenhada. Até já conversámos
são as de gaming, desenvolvendo jogos imersivos com game designers que desenvolvem jogos de
que são verdadeiras obras‑primas; os jovens tabuleiro que chegaram à China. Contamos
leem cada vez mais banda desenhada, seja ela contigo, de quinze em quinze dias, para
americana, franco‑belga ou japonesa; e até já celebrar o fantástico.
se habituaram aos jogos de tabuleiro, muitos

Visita aqui a
página do áudio #35. STANLEY KUBRICK,
do podcast
COM ADELINO CUNHA

#31. À CONVERSA COM M. G. FERREY,


AUTORA DE AQUOREA
Se gostam da revista BANG! Visita aqui a
página do YouTube
vão gostar do BANGCAST, do podcast
o podcast da revista que
têm nas vossas mãos. Os #28. O LEGADO DE URSULA LE GUIN,
temas têm sempre a ver COM JOANA CAETANO
com tudo o que seja cultura
pop. Confirmem alguns dos
episódios! #29. À CONVERSA
COM ANNE BISHOP

2
3
E já que falamos de podcasts…

O
primeiro detetive do oculto da literatura portuguesa também tem o seu próprio podcast,
intitulado As Aventuras de Benjamim Tormenta. Cada temporada consiste na narração de um
conto, ao longo de episódios semanais de 10 minutos, onde não vão faltar música e efeitos
sonoros para criar o ambiente misterioso da Lisboa oitocentista. A primeira temporada consiste
no conto «O Deus das Moscas tem Fome», com narração de Paulo Antunes e sonoplastia de João
Gonçalves. Estreia dia 7 de novembro no YouTube e em todos os locais onde se podem ouvir
podcasts. Podemos contar contigo? BANG!

Visita aqui a Luís Corte Real


página do YouTube
do podcast Fundou a Saída de Emergência em
2003. As prateleiras de sua casa estão
ocupadas por milhares de livros, jogos
de tabuleiro, action figures, figurinhas
de metal e caixas de Lego. Em casa
também tem quatro aprendizes de nerd.
Mais informações em:
LUISCORTEREAL.NET

4
COLEÇÃO
OUTONO/ célia almeida
Nogueira
Trabalha na SDE

/INVERNO
desde 2017. Os livros
sempre fizeram parte
da sua vida e são uma
paixão que já conseguiu
transmitir à sua
herdeira. A família é o

BANG!
seu melhor projeto.

APRESENTAÇÃO DO CATÁLOGO POR


CÉLIA ALMEIDA NOGUEIRA COORDENADORA EDITORIAL

A
s férias terminaram, e intriga política com um toque de
com o recomeço das aulas fantasia, Sapkowski é o autor a
regressa a rotina que escolher. E para os que procuram
por vezes não nos deixa os clássicos da fantasia, Edgar Rice
respirar. Para escapar, nada Burroughs e a sua personagem Tarzan
melhor do que escolher tem direito a uma edição especial.
um livro e deixar‑se envolver num Se prefere a ficção científica, os
ambiente mítico de druidas e clássicos estão em destaque: Isaac
sacerdotisas (com Marion Zimmer Asimov, e a sua série Fundação, e
Bradley), num mundo exótico e Arthur C. Clarke, com a nova série
sensual (com Anne Bishop), ou num Rama, também têm lugar no nosso
reino de ligações obscuras (com catálogo.
Marjorie Liu e Sana Takeda). Vamos conhecer as novidades para
Para quem prefere história e os próximos meses?
Ilustração de Cátia Sousa
para a antologia do Tarzan 5
/ //setemb ro// / Saetien. Mas a impulsividade faz
parte do ADN desta família, e o
A TORRE DOS LOUCOS confronto de Daemonar com uma
Andrzej Sapkowski jovem eyriena tem consequências
imprevisíveis.
Andrzej Sapkowski já é um nome
incontornável na literatura fantástica.
Os livros da série The Witcher e
os videojogos nela inspirados já
/ / /ja n e i ro/ / /
eram bem conhecidos, mas a série A CASA DA FLORESTA
produzida pela Netflix catapultou‑o, Marion Zimmer Bradley
definitivamente, para o top dos
autores de fantasia a que todos os fãs A Casa da Floresta é um épico
devem estar atentos. fascinante sobre o papel mítico de uma
A Torre dos Loucos, o primeiro mulher num ponto de viragem na
volume da Trilogia Hussita, é o novo História.
livro do autor, e promete, desde as Quatrocentos anos antes de As
páginas iniciais, um enredo cheio Brumas de Avalon, numa Bretanha que
de ação e intriga política e religiosa talentosos artistas nacionais, a que se luta para sobreviver à invasão romana,
baseado nos acontecimentos reais juntam os dois vencedores do con‑ um círculo secreto de sacerdotisas
da Europa no século xv, recheado curso de ilustração lançado pela SDE druidas preserva os antigos rituais de
de sarcasmo e humor negro, bem ao e que teve, mais uma vez, adesão aprendizagem, cura e magia, contra o
estilo que o autor já nos habituou. entusiasta dos fãs. Império Romano. Eilan é a filha de um
Reynevan está em apuros. O Nas páginas seguintes líder guerreiro druida, com o dom da
envolvimento com uma mulher apresentamos as ilustrações que visão e marcada pelo destino para se
casada coloca‑o na mira dos fizeram parte da shortlist do tornar sacerdotisa na Casa da Floresta.
familiares do marido traído. E como concurso, bem como uma breve No entanto, o destino leva igualmente
é conhecido por ser um charlatão, apresentação do trabalho de cada um Eilan a Gaius, um oficial romano, a um
o Santo Ofício está igualmente no dos artistas. amor proibido e a um terrível segredo
seu encalço. O único sítio seguro que a vai assombrar quando finalmente
onde encontrar refúgio é na Torre tiver de assumir o seu destino. Com
dos Loucos. Mas será a Torre, AS ARMAS DA RAINHA inimigos poderosos preparados para
realmente, um abrigo para os loucos Anne Bishop destruir a magia da Casa da Floresta,
ou para aqueles que ousam pensar de Eilan terá de confiar no poder da
Com As Armas da Rainha, Anne Deusa para a guiar através dos
forma diferente e desafiar a ordem
Bishop passa o testemunho a traiçoeiros labirintos do seu destino.
estabelecida?
uma nova geração que assume o
protagonismo na Saga das Joias
Negras. E a missão que estes jovens
TARZAN DOS MACACOS
têm pela frente não será fácil, pois
E OUTRAS HISTÓRIAS
nenhum deles quer viver na sombra
DA SELVA
de Lucivar ou Daemon. O regresso
Org. Luís Corte Real de Feiticeira é perturbador (para
Desde 2017 que as edições especiais alguns), mas necessário para formar e
de capa dura dedicadas a um autor dominar a impulsividade do Príncipe
do fantástico e ilustradas por artistas dos Senhores da Guerra – afinal, ele
nacionais fazem parte do catálogo será uma das armas da Rainha.
da Saída de Emergência. O autor A família continua a ter um papel
escolhido para o projeto de 2022 foi relevante neste livro, com Daemonar,
Edgar Rice Burroughs e a sua mítica o filho de Lucivar, a assumir a
personagem Tarzan. Bruno Caeta‑ proteção da irmã Titian contra
no faz, novamente, a curadoria de uma amiga, e a ser responsável por
ilustrações, e convidou 22 dos mais refrear os impulsos da prima Jaenelle

6
FOUNDATION AND EARTH / / / ma rç o/ / /
Isaac Asimov
RENDEZVOUS
Neste quinto livro da série
WITH RAMA
Fundação, que começa exatamente
após o fim de Limites da Fundação, Arthur C. Clarke
as dúvidas assolam Trevize, antigo Ao lado de Isaac Asimov, Arthur C.
conselheiro da Primeira Fundação. Clarke é o autor de ficção científica
/ / / m a r ç o/ / / A decisão de escolher Gaia, o mais reconhecido, e um dos mais
MONSTRESS 7: superorganismo consciente, para o galardoados na área da ficção científica.
DEVOURER futuro da Humanidade está tomada, Apelidado pela The New Yorker como
Marjorie Liu e Sana mas terá sido uma decisão justa? «uma das figuras proféticas da era
Takeda Mais do que sentir, o ex‑conselheiro espacial», os seus livros revolucionários
precisa de saber que a sua escolha tornaram‑se clássicos que marcaram
As multipremiadas Marjorie
foi a mais correta. O que esteve, uma geração e continuam, ainda hoje,
Liu e Sana Takeda estão de
realmente, na origem dessa decisão? a fascinar leitores.
regresso com um livro intenso
Para Trevize, é necessário regressar Rendezvous with Rama venceu os
e poderoso, de ligações
às origens, ao lendário planeta principais prémios na área da ficção
familiares obscuras e amizades
Terra, pois só aí se encontrarão as científica – Hugo, Nebula, Jupiter
perturbadoras, no qual os
verdadeiras respostas. No entanto, e Campbell – e junta‑se agora aos
fantasmas do passado ganham
como se pode encontrar um planeta restantes livros do autor já publicados
relevância, assumindo a
do qual não existem registos? Será pela SDE: 2001: Odisseia no Espaço
liderança na ação.
este o fim da Fundação? e 2010: Odisseia Dois (os fãs podem
Maika está prisioneira
A cada livro, Asimov consegue ficar descansados: sim, vamos publicar
dos seus demónios, a alma
surpreender com a escolha visionária os restantes livros da série, esta é
perdida para um mundo
que faz para o percurso das suas apenas uma pausa). Com adaptação
onde o passado e o presente
personagens. Neste Foundation and cinematográfica na calha, mas ainda
se debatem pela verdade. A
Earth, Trevize é a personificação da sem data oficial de estreia, espera‑se
Corte do Ocaso aperta o seu
dúvida que assola todos os decisores: mais uma superprodução – realização
cerco, e há aqueles que se
A escolha que fiz foi a mais correta? de Denis Villeneuve e produção de
questionam sobre os meios
E quais serão as suas consequências a Morgan Freeman.
utilizados para fazer cair
longo prazo? Num futuro longínquo, depois
Maika Meiolobo. Porquê
Mais um livro revolucionário do impacto de um enorme meteorito
aceitar a confiança se se pode
daquele que é considerado o melhor que destruiu parte da Europa, os
controlar? Todos reconhecem
autor de ficção científica de todos os líderes mundiais e cientistas reuniram
que os sacrifícios são
tempos. esforços para evitar que este tipo de
necessários – mas a que preço?
catástrofes voltasse a acontecer. Quase
cinquenta anos depois, a Humanidade
acompanha, atónita, a aproximação de
um estranho objeto ao Sistema Solar.
A expedição enviada para investigar
descobre, num misto de surpresa e
apreensão, que Rama é uma sofisticada
construção, um universo silencioso e
sem vida, onde tudo parece altamente
tecnológico e, ainda assim, com
milhões de anos. Mas o que é afinal
Rama? E quem o controla? BANG!

7
i n d í ce

26
Arquiteturas da loucura: o melhor escritor de ficção científica do
mundo jorge palinhos

especial 34
despojadxs: Despojadxs... de futuro?
Joana caetano

40
arquivo do medo: a idade de um vampiro
Andrzej Sapkowski antónio monteiro

65
metais pesados: ritual de iniciação
O autor de The Witcher está de fernando ribeiro
98 regresso com A Torre dos Loucos, uma
84
histórias subterrâneas: italo calvino e o mais revolucionário dos
obra que recua até às perseguições géneros: a literatura fantástica andré canhoto costa
religiosas da Europa do século xv para
98
ler Y criticar: diversidade estilistica na fantasia
nos apresentar um livro repleto de Luís pinto
intriga política e sarcasmo.
100
ida e volta: influências históricas em j. r. r. tolkien
roger lee de jesus

* Não Ficção
Ficção *
09
Ilustrador Convidado

58
Luís Valente a luta pelo balu

18
Amazing Stories: future starts slow edgar rice burroughs

110
adelino cunha Imaginarium: takiyasha, a Feiticeira guerreira

36
biblioterapia: biblioterapia fantástica Mara d’Eleán
madalena neves afonso

45 banda desenhada *
Eu Amo Ciência. E Tu?
saída de emergência

30
De a a bd: 1984 em banda desenhada, cinco versões para um único
53
Edições especiais: dos contos de poe aos macacos de burroughs
Luís Corte Real livro João lameiras

93
a prata da casa: Deuses americanos - sombras
66
enquanto apolo dormia: lendas e fábulas
tiago manuel da hora inês pereira

72
Leituras às direitas: squid game - os jogos sem fronteiras dos
irresponsáveis Jovem Conservador de Direita
jogos de tabuleiro *
80
o deus das moscas tem fome: uma fantasia portuguesa em mosaico

51
rolisboa
bruno anselmi Matangrano
andré ferreira

88
leituras fnac: cinco tendências que estão a mudar a fantasia e a

74
na mesa com a fnac: dez jogos de tabuleiro ideais para viagens
ficção científica fnac
Fnac

90
loading game: The last of us é a esperança dos gamers

94
cala-te e joga: boardgames ? mas isso não é para crianças?
Luís pinto
antónio sousa lara

102
os “deprimentes” anos 90
zombie tv
cinema *
106
O Poder da literatura: o poder da ficção e impacto na nossa

22
empatia m. g. ferrey Nome omitido: crime e cinismo

108
eu queria ser assim: o genro perfeito João Ruy

76
marcelo Lourenço do fundo do poço: saramago vs cinema

112
Pequena Oficina de Técnicas de Escrita João monteiro
Bruno Martins Soares

114
George lucas: De experimental e revolucionário a rei do
merchandising rui azeredo

119 Tudo é teoricamente


So Long, and Thanks for All The Fish
andré barbosa

impossível, até que


* autores
12
crónicas da cidadela: História e fantasia na obra de george r. r.
Martin, A Muralha de adriano e a muralha de gelo paulo m. dias
é feito.
Robert A.
14
haverá trilhos: entre nós
inês botelho
Heinlein

Para mais informações sobre a Coleção Bang! ou a editora Saída de Emergência visite‑nos em sde.pt
Revista BANG! 32 / outubro de 2022 Propriedade: Edições Saída de Emergência. Todos os direitos (e mais alguns) reservados. Direcção editorial e catering: Luís Corte Real Marketing e
publicidade (de borla): Paulo Batista (paulo@saidadeemergencia.com) Designers e escravos das galés: Ana Nascimento Botta, Luís Morcela e Maria do Mar Rodrigues Revisão (de olhos
fechados): André Barbosa Redacção e solário: Taguspark, Rua Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva, Edifício Qualidade – Bloco B3, Piso 0, Porta B, 2740‑296 Porto Salvo, Portugal Impressão
(gralhas incluídas): Cafilesa ‑ Soluções Gráficas, Lda. Tiragem de revirar os olhinhos: 9000 Copyright: Textos e imagens propriedade da editora e/ou dos respectivos autores, etc e tal.
Os artigos presentes nesta edição têm ou não as regras do novo Acordo Ortográfico consoante vontade dos seus autores, pelo que não se encontra uniformizada a sua aplicação.
i lus t r a do r c onv id ad o
Luís Valente

Forest Stone Creature

9
hell’s nest

10xom agathion draconal


L
uís Valente é um ilustrador
que vive e trabalha em
Lisboa. Cresceu entre Lisboa
e Monsanto (Castelo Branco),
onde passava as férias com a
família, e desde cedo demonstrou
interesse pelas artes, levando para
todo o lado um pequeno caderno
e meia dúzia de lápis de cor com
que enchia as páginas brancas
de rabiscos. Influenciado quer pelo
ambiente calmo do campo, quer trabalhando como ilustrador
por figuras de histórias contadas freelancer para editoras de jogos
à noite perto da lareira pelos seus de tabuleiros e de cartas e de
avós, Luís transportava para as jogos digitais para o Facebook e
páginas do seu caderno um reino de dispositivos móveis. Ilustrou mais
fantasia povoado por bruxas, mulas de 15 livros infantis para editoras Website
sem cabeça, vampiros, lobisomens e nacionais e estrangeiras. luis-valente.tumblr.com
outros seres mágicos. Luís tem preferência por usar Social:
Estudou na Faculdade de Belas- óleos, aguarelas e acrílicos, mas www.artstation.com/valart
Artes, onde tirou o curso de Design também utiliza o meio digital para Instagram:
de Comunicação, e começou a dar forma às suas ilustrações. BANG! www.instagram.com/luis_valente_art
sua carreira a trabalhar em ateliers
de design. Passou também por Portefólio:
vários grupos editoriais, na área
da ilustração e do design gráfico,

11
o pi ni ão
CRÓNICAS DA CIDADELA

HISTÓRIA
E FANTASIA NA
OBRA DE GEORGE
R. R. MARTIN:
A MURALHA DE ADRIANO
E A MURALHA DE GELO
POR PAULO M. DIAS

O universo fantástico de As Crónicas de Gelo


e Fogo encontra‑se repleto de acontecimentos
e personagens inspirados por equivalentes reais,
oriundos das páginas da História. George R. R. Martin
é, aliás, o primeiro a reconhecer a existência
de inúmeros paralelismos entre a História real
e o seu mundo de Westeros. Neste artigo, olhamos
para a relação entre a mais impressionante
estrutura imaginada por Martin, a Muralha de Gelo,
e a edificação real que lhe serviu de inspiração,
a Muralha de Adriano.

Muralha de Adriano

paulo m. dias
é historiador e doutorando
em História Medieval
na NOVA FCSH. Autor
de várias publicações
sobre História, é também Muralha de Gelo
cocriador do podcast
Falando de História.

12
© Henry Söderlund
David Nic
Leituras recomendadas
Shotter, Fields,
Roman Hadrian’s
Britain. Wall AD
Londres: 122-410.
Routledge, Botley:
1998. Osprey,
2003.

A Muralha de Adriano A Muralha de Gelo No mundo real, a construção


da Muralha de Adriano empregou

E S
milhares de homens, incluindo
m 122 d.C., o imperador abemos atualmente que foi
15.000 legionários, (mas, tanto
romano Adriano deslocou‑se durante uma visita à Muralha
quanto sabemos, nenhum gigante!).
à província da Britânia de Adriano que George R. R.
O número de fortes reais é menor
(Inglaterra e País de Gales) para Martin pensou pela primeira vez na
(17), e a sua guarnição é bastante
lidar com a instabilidade provocada criação da sua Muralha de Gelo. A
distinta, composta por soldados
pelos ataques dos povos oriundos esta inspiração num monumento real
auxiliares profissionais – homens
da Caledónia (Escócia). A solução adicionou, claro, todos os elementos
oriundos das populações locais que,
encontrada para o problema foi que compõem uma boa história
após 25 anos de serviço militar,
simples: a construção de uma muralha fantástica. Não só a sua construção
recebiam a cidadania romana. Já
que vedasse o norte da província, é feita de gelo, como se estende
a Patrulha da Noite converteu‑se
impedindo a passagem dos povos ao longo de 482 km no Norte de
sobretudo numa colónia penal.
hostis. A construção da Muralha Westeros e alcança uns inacreditáveis
Também os inimigos que ameaçavam
de Adriano começou nesse ano e 213 m de altura! A sua espessura é
cada uma das muralhas eram
prolongou‑se até à década de 130; tal que permitiria a 12 cavaleiros
bastante diferentes. Se os Outros são
o resultado foi uma muralha que se cavalgarem lado a lado no seu topo.
capazes de destruir Westeros, já as
estendia ao longo de uns incríveis Comparativamente, a Muralha de
tribos da Caledónia apenas podiam
117 km entre o mar do Norte e o Adriano é bastante modesta. Não
aspirar a um bocadinho de pilhagem.
mar da Irlanda. O que a tornava tão sabemos sequer se seria possível
Diferentes são também os destinos
imponente não era tanto a sua altura caminhar ao longo do seu topo, mas,
de ambas as muralhas. Enquanto
(4 m‑6 m) ou espessura (2,5 m‑3 m), se tal fosse possível, o espaço disponível
a Muralha de Adriano foi votada
mas a sua extensão e as numerosas apenas permitiria a movimentação
ao abandono quando os Romanos
fortificações e obstáculos, como dois de um ou dois soldados. De acordo
deixaram a Britânia no início do
fossos (um a norte e outro a sul do com o nosso autor, a Muralha de Gelo
século v, não chegando a cumprir
muro), 80 fortes miliários – pequenos foi criada por Bran, o Construtor,
300 anos de serviço, a Muralha de
fortes situados a cada milha romana auxiliado por Gigantes, Crianças
Gelo será inevitavelmente derrubada
(1,48 km), cada um com um portão da Floresta e magia para impedir o
para dar continuidade à história
de acesso ao outro lado da muralha –, regresso dos Outros, o inimigo da
fantástica começada por George
centenas de torres de vigia e, claro, os Humanidade. No lado sul da Muralha
R. R. Martin.
17 grandes fortes onde se aquartelavam foram construídos 19 castelos que,
as tropas que defendiam a fronteira. entregues à Patrulha da Noite, deviam
Resumindo, uma fortificação única, a assegurar a sua defesa, o que sucede há
uma escala nunca antes vista. 8000 anos.

O nome original da muralha Os fortes miliários eram muito Ao longo dos anos, George
romana era Vallum Aelium, o que pequenos (18 m2) e por isso eram R. R. Martin tem demonstrado
significa, precisamente, Muralha de defendidos por apenas alguns soldados, arrependimento em ter feito
Adriano, em honra ao seu fundador. entre 8 e 32, destacados desde os fortes a Muralha de Gelo tão alta.
maiores, local onde residiam normalmente.
13
opi ni ão
haverá trilhos

por Inês Botelho

ENTRE NÓS
Actos violentos com certa visibilidade tendem a desencadear uma vontade de análise
tanto na sociedade em geral como nos meios de comunicação. Os adjectivos abundam
e repetem‑se. Ensaiam‑se teses. Oferecem‑se justificações. Ouve‑se até falar de
encarnações do mal. Lord of the Flies, de William Golding, responde em parte a estes
argumentos. Mas sabe‑se interpretá‑lo?

14
TRÊS PILARES aliás a permitir‑lhes mais e mais liberdades,
INTERLIGADOS anulando‑se enquanto moderador e mesmo
dividindo e incitando antagonismos,
E xiste em cada livro uma miríade de
influências a enraizá‑lo. Algumas
perceptíveis, outras esconsas até para quem
começando a ponderar explorar uma
história onde crianças sozinhas numa ilha
se comportassem de facto como crianças
escreveu, várias quase nada relevantes. Lord
atiradas para uma situação dessas.
of the Flies (1954) formou‑se a partir de uma
A intersecção destas três bases esteia,
tríada importante.
orienta e delimita quer a estrutura, quer
William Golding servira na Marinha
o intento de Lord of the Flies. Sequência a
Real Britânica durante a Segunda Guerra
sequência, Golding dedica‑se a desconstruir
Mundial e regressara quer com um certo
as fantasias pueris de certas obras para a
alicerce moral, quer com a noção clara da
juventude enquanto ilustra uma facilidade
sua própria perversidade e crueldade. De
para a violência presente nas crianças e
facto, na autobiografia não publicada Men,
evidencia ainda a capacidade para o mal
Women & Now, Golding diz ter escrito
existente na Humanidade.
Lord of the Flies «parcialmente devido a
esse triste autoconhecimento» de se saber
Inês Botelho «do mesmo tipo de natureza» dos Nazis.
Licenciou‑se em Biologia,
Por outro lado, após a guerra, Golding
UMA FÁBULA PARA
fazendo depois o
mestrado em Estudos regressara ao trabalho como professor. A A MODERNIDADE

A
Anglo‑Americanos.
profissão não lhe interessava — nem ele se ambiência monta‑se já nas páginas
Escritora, tradutora
para várias áreas, achava sequer competente para o cargo —, iniciais. Desde as primeiras linhas, a
investigadora quando mas deu‑lhe a oportunidade de observar o linguagem movimenta‑se numa contínua
consegue disponibilidade,
tem publicado romances, comportamento dos alunos. Golding passou oscilação entre deslumbre e horror. A
diversos contos e chegada à ilha deu‑se porque a guerra
múltiplos artigos.
dos adultos fez despenhar o avião onde as
crianças viajam. O local oferece alimento
abundante, contudo a fruta causa diarreia. A
fauna e flora mostram‑se luxuriantes, porém
também sufocantes. A geografia que incita à
brincadeira tem sustos e perigos. E os rapazes

Sabia que ...


William Golding começou por chamar ao livro Strangers From Within. Foi com
este título que o submeteu às diversas editoras. Quando a Faber & Faber
mostrou interesse na obra e começou a preparar uma eventual publicação, o
editor Charles Monteith considerou preferível melhorar o título. Após diversas
tentativas de Golding e umas quantas hipóteses avançadas por Monteith, Alan
Pringle — outro editor da Faber — sugeriu usarem Lord of the Flies.

15
enchem‑se de entusiasmo tanto com a chega para resgatar os jovens e se pasma
possibilidade de criarem uma nova sociedade com a destruição, achando que rapazes
como ao imaginarem o que acontecerá a britânicos teriam montado um espectáculo
quem quebrar as regras. melhor, como nos livros de aventuras em
Ralph acredita na essência benigna da ilhas luxuriantes. Ralph chora, ciente da
Humanidade, esforça‑se por manter as regras potencialidade destrutiva da Humanidade. O
e um simulacro de democracia, mas, sem oficial vira‑se, atrapalhado, e olha o pequeno
os adultos a orientá‑lo, hesita, a autoridade veleiro com a metralhadora empoleirada,
foge‑lhe, e a selvajaria dos caçadores liderados emblema da devastação causada pelos
por Jack alicia‑o. Piggy acredita demasiado adultos. Como na abertura, a obra termina a
no poder da ciência e nas maravilhas da misturar opostos, a utopia com a distopia, o
civilização para conceber irracionalidades idílico com o horror.
ou aceitar a fragilidade da situação. Jack A adaptação cinematográfica de Peter
tanto fala em obedecer às regras como as Brook, de 1963, filmada a preto e branco
desrespeita, diz não existir qualquer monstro, num estilo algo documental, conclui‑se
porém afirma que tratarão dele e acaba a igualmente a entrelaçar dualidades. No
declarar que só a caça importa. Para a tribo entanto, fá‑lo com tanta brevidade que o
de caçadores, o monstro oferece uma forma efeito se perde. Em especial se se desconhecer
de controlar ou até de eliminar o mal. Apenas o livro. Ademais, as cenas sucedem‑se num
Simon, com as suas visões do titular Deus exagero episódico, sem suficiente articulação
das Moscas, percebe o monstro não como para criar o efeito cumulativo montado por


um mal externo, mas enquanto projecção da Golding. E a falta geral de subtileza parece
própria natureza humana. associar a perversidade com a selvajaria de
Golding
Quando Simon morre, as diurnas certos indivíduos.
dedica‑se a
criaturas marinhas cheias de ferocidade O filme de Harry Hook, estreado em desconstruir as
passam a embelezar‑lhe o corpo e levam‑no 1990, afinca a ideia do mal como produto de fantasias pueris
para o mar, a um tempo símbolo de vida e comportamentos desviantes por indivíduos de certas obras
morte. As dualidades da natureza espelham não integrados na sociedade civilizada. para a juventude
as contradições humanas e assinalam a Apresenta‑se inclusive Jack como um rapaz enquanto ilustra
sabedoria de Simon. Piggy não recebe problemático, até delinquente. Além de uma facilidade
qualquer dessas honras. se condicionar os rapazes a uma educação para a violência
militar que inibe a narrativa. E Hook, presente nas
apesar de articular melhor as sequências, crianças e
evidencia ainda
PRINCÍPIOS E FINS confunde‑lhes demasiado a ordem,
a capacidade
caminhando para um final que só destaca a
G olding construiu Lord of the Flies
com base em duas imagens de Ralph:
a do seu entusiasmo inicial face à ilha e
destruição.
para o mal...”

a da conclusão da obra, quando o oficial

O crítico Harold Bloom, sempre diligente conservava como aviso útil. Bloom achava também
a oferecer avaliações peremptórias, não que inserir uma única personagem irónica na trama
encontrava qualquer mérito literário demonstraria a falta de plausibilidade dos rapazes
em Lord of the Flies e associava de Golding e da sua história. De algum modo,
a importância do livro não o constante humor e a saudável comédia
a um valor intrínseco negra de Yellowjackets contrariam o
mas à popularidade que argumento de Bloom.

16
A VOZ DOS BLOGUERS
A Dança
dos Dragões
George R. R.
Martin
Saída de Emergência
Agora que
DEUS DAS MOSCAS, Abundam atitudes vastamente regressámos a
DIVINDADE DAS dúbias ou questionáveis, contudo Westeros com a
nova série da HBO,
VESPAS avança‑se a frisar como a
é uma excelente época para voltar
Humanidade não vive nem num

N
à saga original. Neste livro, Martin
otam‑se de imediato duas faz‑nos viajar por Essos em busca
estado de total perversidade, nem
referências na recente série de vinganças e promessas de fama,
de completa bondade, existindo e pelo gelado Norte na procura de
televisiva Yellowjackets (2021):
antes numa mistura de ambos. Uma redenção e justiça, mergulha o leitor
Lost (2004‑10) e Lord of the Flies. na natureza política de uma forma
postura análoga à de Golding e
Há ainda elementos de gente em crua e cínica, revelando o lado mais
uma adaptação mais fiel ao espírito real da literatura fantástica.
situações de canibalismo mas, Luís Mesquita
de Lord of the Flies do que as
malgrado o início com a tribo de Bosque de Palavras
transposições directas filmadas por
raparigas a caçar e comer alguém
Brook e Hook.
do grupo, depressa se progride bem
além da antropofagia ou da vontade
de descobrir a identidade da vítima. A Fome
Outros mistérios surgem. A trama CONTAR MIL VEZES Alma Katsu

G
resolve questões mais depressa do olding via a absoluta Saída de Emergência
O que acontece
que se previa. E focam‑se as várias necessidade de reconhecer o quando se misturam
facetas das personagens. mal inerente à Humanidade sem acontecimentos
reais envoltos
Embora Yellowjackets siga a falácia de o atribuir a diabos,
em mistério e
caminhos próprios, ponderando anarquias ou indivíduos específicos. se adicionam
E sabia também da beleza e utopia elementos de
com cuidado o durante e o após de
terror? Um livro que supera todas as
raparigas adolescentes num contexto da natureza humana. Lord of the Flies expetativas e, acreditem, nada vos
sem as habituais regras e grupos põe esta tese dupla em livro. poderá preparar para o que aí vem...
Em A Fome, Alma Katsu reconta a
sociais, as personagens possuem ecos Apesar das adaptações nem
tragédia Donner, misturando ficção
dos rapazes de Golding. Shauna, sempre a lerem na totalidade, e realidade, numa narrativa onde
algumas entendem‑na e até os elementos sobrenaturais são tão
clara guia do enredo, apresenta um
aterrorizantes como a realidade. 
Ralph bastante mais consciente dos a expandem. Continuamos a Cátia Fonseca
seus aspectos cruéis. Taissa tem tanto precisar do confronto quer com Um Blogue Sobre Livros

a crença de Piggy na racionalidade elas, quer com a obra de Golding.


como a competitividade de Jack. E Para recordarmos que guerras e
Lottie é um Simon a crescer para a horrores advêm, não de demónios
liderança selvagem de Jack à custa da metafóricos, mas do nosso próprio Viúva de
Ferro
sua perceptividade sobre a natureza potencial. BANG! Xiran Jay Zhao
humana. Saída de Emergência
Numa sociedade
distópica e
patriarcal, Wu
Zetian vai fazer de
tudo para romper
com os padrões
estabelecidos que a tentam
diminuir. Com um enredo repleto
de ação e reviravoltas de cortar a
respiração, vamos conhecendo este
mundo com inúmeras referências à
História e tradições chinesas. Uma
obra imperdível para amantes de
distopias e Neon Genesis Evangelion. 
Cátia Marques
Shadow Frozen

17
o pi ni ão
Amazing Stories

por
Adelino
Cunha

O maquinismo da Revolução Industrial criou o sentimento de possibilidade


que inspirou Edgar Allan Poe, Júlio Verne e H. G. Wells a levarem a
Humanidade para fora da Terra, mas a utopia do progresso acabou por
conduzir à desagregação das sociedades, ao esgotamento dos recursos
naturais e às pandemias, criando novas hierarquias baseadas na genética
e na obediência. As distopias matam as palavras, queimam os livros e
neutralizam as emoções. O que diz o futuro sobre nós?
Ilustração: Macrovector/Freepik
18
A pergunta estava mal formulada:
o que importa é especular sobre o
pessimismo com que os ficcionistas olham
para o futuro. O que sabe esta gente do
nosso presente para pintarem distopias que
nos fazem recear o que está por acontecer?

NÃO LEIAS.

S
NÃO PENSES.
e o Big Brother do Não é apenas o controlo tecnológico
partido único sacralizasse absoluto do quotidiano, a negação das
o momento em que o liberdades individuais e a destruição da
camarada da Delegação família e do amor, é também o triunfo do
da Novilíngua suspende totalitarismo por via do não pensamento.
coreograficamente o O mesmo Winston Smith pergunta se
acto de levar a sopa à «a revolução estará completa quando a
boca para se dirigir com língua estiver perfeita?», porque sabe que
dramatismo a Winston a destruição das palavras corresponde à
Smith (John Hurt), estaria a sacralizar a destruição dos conceitos. Não é negar a
frase: «É uma coisa bela, a destruição das liberdade. É destruí‑la por ausência de
palavras.» (1984, Michael Radford, 1984, pensamento. Ninguém luta por aquilo
baseado na obra George Orwell, de 1949) que não sabe existir.
O fato‑macaco de cor cinzenta garante Podemos concordar que a ficção
que todos os operários sentados naquele antecipa o futuro. Não antecipa o
refeitório fabril são indistintamente futuro que vai acontecer, mas o futuro
iguais entre si, mas ainda assim começa que pode acontecer através da projecção
por haver qualquer coisa de expectante das dinâmicas do presente. As distopias
no olhar penetrante daquele camarada totalitárias correspondem ao fracasso
intelectual (a particularidade dos óculos
deve querer dizer alguma coisa) que ouve
a conversa com atenção militante. Mas O ESPÍRITO DOS TEMPOS
não, a expectativa desmorona‑se com o É uma longa viagem
seu sentido elogio à purificação da língua pela história das
Adelino Cunha através do assassinato das palavras. distopias. É, acima
Historiador, professor Porque é que as palavras têm de ser de tudo, uma
associado da reflexão sobre a
Universidade Europeia destruídas? natureza humana
e investigador integrado Porque é que os livros são para desde a ideia
do Instituto de História do apocalipse
Contemporânea da
queimar?
decretado por um
Universidade NOVA Porque devem as emoções ser Deus punitivo, que flui pelos monstros e
de Lisboa. neutralizadas? espíritos da terra incognita e pelos diabos
Perguntado de outra forma, o que da terra cognita, para depois nos deixar
quer o futuro de nós? Que sejamos entre os regimes totalitários do século xx
e a exploração capitalista: «Shall we be
perfeitos? Ou basta que continuemos a monsters, humans, or machines?» (Gregory
consumir para nos deixarem em paz? Claeys. Dystopia – A Natural History,
University Press, Oxford, 2017).

19
das democracias e do conhecimento de
hoje, da mesma forma que o triunfo da
CASA E REPRODUZ‑TE.
eugenia antecipa o triunfo da má ciência Foi esse glorioso maquinismo da
sobre as nossas imperfeições humanas e Revolução Industrial que criou o
as sociedades futuristas irão consolidar sentimento de possibilidade para Edgar
a desumanização destes tempos líquidos Allan Poe (The Unparalleled Adventure
onde flutuamos. of One Hans Pfaall, 1835), Júlio Verne
Quando o capitão John Beatty (De la Terre à la Lune, 1865) e H. G.
(Michael Shannon) e o mestre Guy Wells (The First Men in the Moon, 1901)
Montag (Michael B. Jordan) incineram lançarem a Humanidade para a Lua (e
livros diante de crianças, estão a mais além).
ensinar‑lhes que o conhecimento produz Foi também o maquinismo que
infelicidade e pode até enlouquecê‑los, viabilizou a nossa imensa capacidade de
mas que fiquem descansados: «Quando autodestruição, e pode ter sido algures na
crescerem, já não terá sobrado nenhum angústia da tecnociência que as utopias
livro.» (Fahrenheit 451, Raming Bahrani, foram dando lugar às metamorfoses
2018, baseado no romance de Ray pré‑democráticas de H. G. Wells (The
Sleeper Awakes, 1899) e de Jack London


Bradbury, de 1953) As crianças rebentam
em euforia quando o papel entra em (The Iron Heel, 1908), passando pelas
ignição com os 451º Fahrenheit (233º metáforas totalitaristas de Mikhaíl A discriminação
Celsius) cuspidos pelo lança‑chamas. Bulgákov (Coração de Cão, 1925) e de
George Orwell (Animal Farm, 1945),
ultrapassou
A ficção antecipa futuros
distópicos porque se trata de narrativas até chegarmos às distopias genéticas de os critérios de
protagonizadas por humanos, com Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo, raça, religião
problemas humanos e em contextos de 1932). e género. É a
mudança de sociedades humanas. É isso Seis meses antes de o Muro de Berlim
que receamos: porque não deixamos de cair para iniciar a derrocada da União ciência que
sentir um certo medo de nós próprios. Soviética, arrastando consigo todos os define os puros
As sociedades pós‑apocalípticas ou regimes de carácter totalitário plantados criados em
serão controladas por autocratas ou no jardim exterior da fronteira imperial, o
capitalismo sofreu um surpreendente hip
laboratório e
mergulharão nas trevas da anarquia
climática (Mad Max, 1979, 1981, 1985, attack de Hollywood. Não é que o wrestler destrata os
2015, 2024), da anarquia social (A Purga, canadiano “Rowdy” Roddy Piper (Roddy impuros...”
2013, 2018) ou da anarquia pandémica Piper) tenha lançado directamente as
(Eu sou a Lenda, 1964, 1971). suas nádegas contra a cara de Ronald

COM UMA MENSAGEM MAIS

»
RELEVANTE DO QUE NUNCA,
VENHA DESCOBRIR O CLÁSSICO O enorme impulso e força de uma
imaginação verdadeiramente original
PROFÉTICO DE RAY BRADBURY é estimulante… O talento de Bradbury
SOBRE O PODER DA RESISTÊNCIA é realmente enorme e invulgar.
À TIRANIA POLÍTICA CHRISTOPHER ISHERWOOD, TOMORROW

Um dos autores mais amados deste país…


Um excelente contador de histórias,
por vezes até um criador de mitos,
um verdadeiro clássico americano.
MICHAEL DIRDA, THE WASHINGTON POST

Edição: Saida de Emergência


ISBN: 9789897731068
Páginas: 208
20
Reagan, mas a sua personagem John homem bonito, inteligente, competente
Nada foi utilizada por John Carpenter e saudável, mas não saudável o suficiente
para denunciar o triunfo civilizacional do para ser perfeito.
capitalismo e as dependências criadas pelo A ciência tornara possível seleccionar
hiperconsumo do sonho norte‑americano as marcas genéticas dos embriões para
(They Live, 1988). assim garantir a eficácia darwinista da
A MECANIZAÇÃO Usando uns simples selecção natural das espécies e favorecer
DA MODERNIDADE óculos de sol, torna‑se os mais aptos. Os mais aptos são bonitos,
As visões reconfigurado possível ver a realidade inteligentes, competentes e geneticamente
pessimistas quanto num novo tipo de escondida pelos anúncios perfeitos. Eles são aqueles que podem
às consequências do maquinismo. Estará
progresso da ciência o nosso melhor publicitários, ou seja, sair daqui. A importância narrativa do
encontram‑se na potencial como apelos repetitivos que para onde? reduz‑se ao espaço como um
origem das distopias humanos fora de os alienígenas (os destino difuso porque a jornada dispensa
biopunks por nós próprios? (Lars
capitalistas) usam para o regresso do herói.
representarem tanto o Schmeink, Biopunk
triunfo da tecnologia Dystopias – Genetic controlar os humanos (os A discriminação ultrapassou os
computorizada e engineering, society consumidores): Obedece. critérios de raça, religião e género. É
da genética como a and science fiction, Casa e reproduz‑te. a ciência que define os puros criados
sua superação para Liverpool University
um pós‑humanismo Press, 2016) Trabalha. Consome. em laboratório e destrata os impuros:
Compra. Não penses. aqueles que nasceram humanamente
Mantém‑te sonâmbulo. Vê televisão. de gravidezes espontâneas baseadas no
Por isso mesmo, quando John Nada amor. Vincent tem (por isso) de comprar
olha inadvertidamente para um televisor, material genético para ir avançando
talvez esteja a ouvir o Presidente dos no programa de recrutamento dos que
Estados Unidos, mas o que vê é um vão para o espaço e cria (para isso)
alien: «The feeling is definitely there. It’s uma amizade cúmplice com Jerome
a new morning in America... fresh, vital. Morrow (Jude Law). Um homem bonito,
The old cynicism is gone. We have faith in inteligente, competente e geneticamente
our leaders. We’re optimistic as to what perfeito, mas preso numa cadeira de rodas
becomes of it all. It really boils down to our devido a um acidente.
ability to accept. We don’t need pessimism. Vincent acabou por enganar todo o
There are no limits.» Tudo se resume a esta sistema eugenista e cumpre o seu sonho
nossa ilimitada capacidade de aceitação. de sair daqui (provavelmente) porque
nasceu imperfeitamente humano. BANG!

MAS REPRODUZ‑TE
EM LABORATÓRIO.
Também Vincent Freeman
(Ethan Hawke) parecia ter
aceitado que o seu sonho
estava condenado porque
havia nascido geneticamente
imperfeito: «I belonged to
a new underclass, no longer
determined by social status or
the colour of your skin. No,
we now have discrimination
down to a science.» (Gattaca,
Andrew Niccol, 1997) Um

21
c in em a
nome omitido

CRIME
E CINISMO
POR JOÃO RUY
João Ruy
Entusiasta da cultura
pop que gosta de
a relacionar com
outros temas como
Durante anos, argumentistas e realizadores política, história e,
por vezes, filosofia.
americanos tentaram de todas as formas ressuscitar Colaborou com o site
Bandas Desenhadas
o muito estimado e aclamado film noir . Na década de e experimentou
70 conseguiram, reinventando o género e tomando brevemente o género
vídeo‑ensaio.
proveito de uma atmosfera de cinismo, violência,
crime e desencanto com o sonho americano.

22
* O noir explora
a ambiguidade moral
através de uma
história policial.

Como o escuro se redime e as mulheres representam americana da época – Pickup on


South Street é um bom exemplo
transformou em noir o caos. Não é, portanto, algo que

C
se restringe ao whodunnit como disso.
outras histórias do tipo – o noir O género continuou popular
omo sintetizar o conceito durante a primeira metade da década
é sobre as personagens. É por
de noir? Comecemos de 50, mas por volta de 1956 já
isso que o décor deste tipo de
pela palavra em si – noir, mostrava sinais de desgaste, e o
histórias é quase sempre urbano.
negro em francês. Porquê que era «realista» e «sério» era cada
O que seria este género se não
dar um nome francês a vez mais cliché e anacrónico. O
mostrasse a decadência das cidades
algo associado à cultura derradeiro prego no caixão do film
e a corrupção que impera sobre
americana? A explicação noir ocorreu com o lançamento de À
os arranha‑céus das metrópoles
é simples: os críticos de cinema Bout De Souffle (1960). O noir já não
americanas? O noir é cínico por
americanos não deram um nome se adequava aos anos 60, marcados
natureza.
suficientemente convincente ao pelas diversas turbulências políticas,
género, e por isso a tarefa recaiu
sobre críticos franceses, para quem Noir: ascensão culturais e sociais. Diversos cineastas
desejavam reviver o film noir, mas
estes filmes sombrios se tornaram e queda isso teria de incluir uma renovação
uma obsessão, quando começaram

A
do género.
a vê‑los, em 1945. É claro que já origem do cinismo do noir dos
existiam histórias de detetives – ou anos 40 tem origem em dois
hard‑boiled – muito antes de o eventos cataclísmicos da história
Cineastas
noir ser criado, mas a expressão só do século xx: a Grande Depressão à procura de
surgiu com o cinema, com os filmes e a Segunda Guerra Mundial. um revival
The Maltese Falcon e Stranger on the Porém, por volta dos anos 50, o noir

F
Third Floor. apresentava‑se mais como escape. oi assim que nos anos 60 nasceu
O noir explora a ambiguidade A sociedade ordenada e próspera o neo‑noir. Harper (1966), com
moral através de uma história dos anos 50 era também sufocante. Paul Newman, e Bullitt (1968),
policial. Apresenta um mundo A escuridão inerente ao noir com Steve McQueen, são exemplos
onde os detetives passam da linha, ajudava os argumentistas a explorar desses revivals, que se afastaram
os criminosos têm algo que os as complexidades da sociedade do noir clássico e abraçaram um

23
otimismo e charme próprios da killer à solta pela cidade, Scorpio,
época. Porém, após vários eventos que personifica o mal puro, e o
traumáticos no final da década, essas único com a coragem de lidar com
qualidades saíram de moda. Agora, a ameaça é o detetive durão, Harry
sim, o cinismo voltava em força. A Callahan, um polícia ostracizado
autoridade e a violência também. pelos seus colegas devido ao uso
O terreno estava mais fértil do que excessivo da violência. Mas é

*
nunca para um renascimento do precisamente por Harry ser Dirty que
Jean‑Luc Godard
noir, e o público aderiu totalmente. sentimos a catarse ao ver o filme.
«Tudo o que precisas para
Os filmes de 1971 Dirty Harry, The French Connection é
fazer um filme é uma arma
Get Carter e The French Connection diferente dos outros filmes. Segue
e uma mulher.» Antes de ser
inauguraram uma vaga que revelava a dois polícias, Popeye (Gene
realizador, Godard era crítico
decadência urbana e a criminalidade Hackman) e Cloudy (Roy Scheider),
de cinema para a revista
desenfreada... Estes filmes pareciam e mostra a violência inerente à
Cahiers du Cinéma e foi
dizer que só alguém determinado profissão. Todavia, não glorifica os
um dos críticos franceses
e sem receio de usar a violência agentes, que são retratados como
que ficou deslumbrado
poderia pôr um fim a estas tragédias. pessoas normais, defeituosas até.
com o género noir.
Essa pessoa não precisava de ser Eles não são forças da natureza, mas
um polícia, e muito menos alguém antes indivíduos indistintos que se
«valoroso». O tema do mal menor/ cansam e falham o disparo. O filme é
mal necessário permeia todos estes realista e tão desapontante, que nem
filmes. «Temos de acabar com o nos proporciona um final em que os
crime, custe o que custar», dizia o criminosos são apanhados.
público.
Lei e Ordem
A catarse

M
e o realismo uitos que ficaram
desconfortáveis com a
em oposição glorificação da violência

O
policial (e não só) presente nestes
filme britânico Get Carter retrata
filmes, devido à política de «lei e
uma Newcastle podre não só
pela crise, mas pela estrutural ordem» de Nixon, onde era feita

*
baixa qualidade de vida do norte vista grossa a abusos de autoridade.
Paranoia
de Inglaterra. Nesse cenário, o Serpico e Magnum Force (ambos
Existem outros filmes
que exploram melhor gangster Jack Carter, que procura de 1973) expõem precisamente
esta temática, como The vingar‑se da morte do irmão, surge esse problema. Serpico, realizado
Conversation de Coppola como o «herói», mas só por ficar por Sidney Lumet, conta a
(com Hackman), mas do lado dos mais fracos. O filme história do polícia incorruptível,
principalmente a Trilogia chega a aproximar‑se de um drama solitário, abusado pelo próprio
da Paranoia de Pakula. social, algo que é transversal a estes departamento. E expôs o
Mas, no geral, os neo‑noir filmes. A sujidade que os estúdios gigantesco problema de corrupção
partilham a temática. tinham medo de mostrar tornara‑se nas forças de segurança.
. impossível de ignorar. Magnum Force é similar, mas
Dirty Harry também é sobre mais ficcional. Chega a ser cómico
um anti‑herói, neste caso um polícia até considerar como pode um filme
de São Francisco. A história do reacionário como Dirty Harry ter
filme é já célebre: existe um serial uma sequela tão progressista como

24
Magnum Force. Na sequela do (Charles Bronson) precisa vem do Small e Lalo Schifrin são alguns
clássico com Clint Eastwood, Harry seu desejo de vingança contra todos dos compositores que tornaram
combate uma rede protofascista de os criminosos, principalmente estes filmes ainda mais especiais. A
polícias que sacrificam os valores aqueles que mataram a sua realização distintiva da época, com
mais fundamentais pela tal «lei e mulher. Começa‑se a ver aqui zooms e location shooting, não teria
ordem». uma preferência do público por o mesmo impacto caso a música
anti‑heróis invencíveis. não fosse marcante, mas também
Outros neo‑noir E, por fim, Night Moves (1975), pertinente, ora tendo um papel
de Arthur Penn, um policial que, dramático, ora lírico ou rítmico.

T
he Long Goodbye (1973) e comparado aos outros, é mais Apesar de o realismo e
Chinatown (1974) são também investigativo, e foca‑se muito mais de o cinema de autor terem
idênticos, já que procuram na figura do detetive Harry Moseby, sido importantes, a verdadeira
celebrar o noir. The Long Goodbye é representado por Gene Hackman revolução em Hollywood
adaptação do livro homónimo escrito no auge da sua carreira. É em nos anos 70 foi o início
por Raymond Chandler e procura filmes como este que conseguimos dos blockbusters e a adoção
modernizar a história da obra observar o sentimento de paranoia progressiva do fantástico. Os
emblemática. Chinatown também que se vivia na época, ao rubro, anti‑heróis fortes, porém mortais,
abraça os clássicos com firmeza. principalmente depois de Watergate e como Dirty Harry ou Bullitt,
Tanto, que o filme realizado por dos Pentagon Papers. começaram a ser substituídos
Polanski e protagonizado por Jack por seres imortais, quase sempre
Nicholson se passa em 1937 e segue Conclusão interpretados por Schwarzenegger
à risca todos os truques e fórmulas ou Stallone. Mas isso já sai da

U
do noir. m aspeto importante, comum lente deste texto.
Death Wish (1974) é apenas a todos estes filmes, é a banda
mais um dos filmes que opta pela sonora hipnotizante, seja
catarse e que é abertamente irrealista. durante os (icónicos) créditos iniciais
Toda a força que o protagonista ou no decorrer do filme. Michael

25
l iter atura
arquiteturas da loucura

P OR J ORG E PA L I N H O S
O MELHOR ESCRITOR
DE FICÇÃO CIENTÍFICA DO MUNDO

O
R.A. Lafferty? escritor. Tornei‑me o melhor autor
E st e é u m t e x to f e n o m e n a l nome provavelmente não de ficção curta do mundo. Há 20
s o b r e u m au to r s u r p r e e n d e n t e sugere nada – nenhum livro, anos que digo isso às pessoas, mas elas
d e F i c ção C i e n t í f i ca . A da da nenhuma série de sucesso, recusam‑se a acreditar.»
nenhum spin‑off de produto
a lt u r a , m u da u m ta n to d e
transmedia acompanhado
a s s u n to , c l a r o . O I m p é r i o de merchandising. É normal, Fonte de admiração

A
R o m a n o p o d e r á e sta r pois trata‑se de um daqueles média dos leitores de ficção científica
e n vo lv i d o n e st e t e x to , escritores tidos como escritores de talvez concorde, mas Lafferty conta
c o m o ac o n t e c e e m q ua s e t u d o. escritores – writers’ writer, em inglês, com um número assombroso de fãs
M a s o m a i s i m p o rta n t e é q u e que fica sempre melhor – e que por isso entre outros escritores: Neil Gaiman,
o l e i to r n ão m o r r a d e t é d i o. quase ninguém lê a não ser os outros provavelmente o seu principal paladino,
escritores, evidentemente. mas também Gene Wolfe, Harlan
I sto é , p e lo m e n o s, d i r i a
O seu nome completo era Raphael Ellison, Ursula K. Le Guin, Samuel R.
R a p h a e l A . L a f f e rt y. Aloysius Lafferty e é o escritor Delany, John Scalzi, Jeff VanderMeer,
menos comercializável que se possa entre muitos outros. Tantos que, sempre
imaginar. Politicamente conservador, que sai uma nova antologia da obra de
fervorosamente católico, nascido no Lafferty, a dificuldade é escolher qual
Oklahoma, em 1914, sem nunca ter o autor para apresentar o livro, sendo
sido cowboy, mas antes envergando o ar que algumas delas optaram por colocar
cinzento de um vendedor de xaropes autores a introduzir histórias individuais
para a tosse, embora, na verdade, tenha dentro do livro, para assim satisfazerem a
sido engenheiro eletrotécnico a maior necessidade que tantos têm em exprimir
parte da vida, e escritor desconcertante a a sua admiração por Lafferty.
partir dos quarenta anos até aos setenta, E, por isso, a questão interessante
altura em que problemas de saúde o é, porquê? Porque é que um autor tão
silenciaram até à sua morte, em 2002. admirado e influente junto de outros
Jorge Palinhos Despachada a parte aborrecida, escritores parece estar condenado ao
Escritor e docente
universitário, é autor podemos passar ao fascínio: Lafferty obscurantismo? Porque é que tantos
de numerosas peças é dos escritores mais originais, autores conseguem encontrar o
de teatro, guiões de
cinema, crónicas e prodigiosos e influentes de toda a sucesso, mas aquele que os inspirou,
textos de ficção. ficção científica norte‑americana do orientou, desafiou, não consegue?
século xx, e, também, um dos mais Afinal, a tarefa mais árdua e digna de
ignorados. O próprio o admitiu, no admiração da literatura deveria ser a
seu estilo irreverente: «Aos quarenta e de convencer outros a tornarem‑se eles
cinco anos de idade tentei tornar‑me próprios escritores.

26
«Lemos algumas das
«R. A. Lafferty foi, sem dúvida, suas histórias e temos a
o melhor autor do raio de «R.A. Lafferty era um impressão que ele nos está «É um milagre como uma
literatura que ele inventou. Foi gigante... Um dos mais a reprogramar o cérebro e obra tão séria do ponto de «Lafferty tem um poder que
um génio, um excêntrico, um desconhecidos grandes a abrir novas possibilidades vista especulativo e filosófico larga fogo aos nossos olhos.
louco. As suas histórias são escritores da literatura para aquilo que a ficção, e a possa ser escrita com tanta Tem calor, luz e uma alegria
incomparáveis.» americana.» ficção científica, podem ser.» poesia e alegria..» que nasce da experiência.»
Neil Gaiman Harlan Ellison Andrew Ferguson Judith Merril Roger Zelazny

«…tal como as Viagens «Nenhum autor de ficção «Selvagem, subtil, demoníaco, «Lafferty escreve «Isto é literatura sofisticada,
de Gulliver, quase toda a científica, até agora, teve angelical, hilariante, trágico, redemoinhos de magnífica escrita por um autor
obra de Lafferty pode ser necessidade de expandir as poético, um melodrama energia narrativa.» sofisticado.»
lida como entretenimentos fronteiras do género como trovejante e um vasculhar Jeff VanderMeer Michael Swanwick
encantadores, ou vinhetas Lovecraft. A única exceção das profundezas do espírito
políticas subtis, ou analogia será aquele estranho, muito humano… R.A. Lafferty foi
de filosofia profunda sobre a estranho autor, chamado sempre incomparável.»
natureza e comportamento R.A. Lafferty. Mais do que Poul Anderson
humanos. Ou seja, tal como Ficção Científica, Lafferty
com Swift, descobre-se em por vezes parece criar uma
Lafferty aquilo que somos espécie de ficção filosófica,
capazes de ler nele.» única na forma como a sua
Theodore Sturgeon especulação ontológica tem
um papel mais importante que
todos os dilemas sociológicos,
psicológicos e morais.»
Michel Houellebecq

27
Apesar do grosso da obra Os críticos literários Lafferty afirmou que as
de Lafferty se enquadrar consideram que a suas histórias não eram
dentro da ficção científica, fraseologia de Lafferty é independentes, mas na
escreveu também altamente reconhecível, verdade um romance
romances históricos, pela sua mistura de «muito, muito, muito
como Okla Hannali, sobre lógica e absurdo, como a longo», com personagens
as expulsões dos índios seguinte, que abre o conto e lugares recorrentes, que
americanos do estado «Golden Gate»: «Quando ele nunca seria capaz de
do Oklahoma, e livros de disparamos e matamos terminar em vida. E batizou
história, como The Fall of um homem, estamos de este hipotético romance
Rome. certo modo a ser honestos interminável de A Ghost
em relação àquilo que Story.
pensamos dele.»

A questão talvez esteja na às suas personagens, ou ao seu interesse Charlemagne», em que um robô ajuda
diferença entre quem lê para escrever pela História, tanto europeia como humanos a viajar no tempo, só para
e quem lê para usufruir. Os leitores nativa‑americana, que lhe sugeriram descobrirem que passado, presente
convencionais procuram o conforto muitas peripécias e personagens, e, claro, e futuro estão ligados de formas
de ambientes, personagens e emoções o seu catolicismo, que lhe forneceu as inesperadas; ou «Nine Hundred
que confortem ou entusiasmem ideias e crenças subjacentes a muitos dos Grandmothers» que nos apresenta um
– sejam eles baseados na vida real seus enredos. investigador que viaja para um planeta
ou em lugares‑comuns de géneros Nesse caso, perguntam, onde ninguém morre, para entrevistar
literários. Um escritor lê aquilo que avisadamente: E o que havia de gerações infindáveis de mulheres a fim
não compreende. Aquilo que faz ficção científica nas suas histórias? A de descobrir a origem de tudo. Ou,
perguntar, como Neil Gaiman a resposta é difícil. Na verdade, Lafferty ou, ou.
propósito de Lafferty: «Mas como é parecia pouco interessado em escrever
que ele conseguiu escrever isto?» Esse dentro dos confinamentos de um Linguagem própria

P
tipo de efeito, na literatura, apenas se género ficcional, embora tenha sido ara Neil Gaiman, Lafferty foi o
costuma conseguir ou através de uma nomeado e recebido vários dos mais único verdadeiro autor de Ficção
inventividade desconcertante, em que importantes prémios de literatura de Científica, pois explorava o futuro
aquilo que nos era familiar deixa de FC, como o Hugo e o Nebula, mas, com a linguagem do próprio futuro,
o ser, e por isso nos abre diferentes talvez por isso mesmo, acabou por livre das amarras do seu tempo e do que
vistas para aquilo que nos rodeia, ou expandir os limites do próprio género, o seu tempo achava que o futuro deveria
através de uma brutal sinceridade, em fornecendo figuras, enredos, situações ser. De forma mais simples, talvez se
que nos reconhecemos naquilo que é antes inimagináveis, em história como possa dizer que este é um autor de ficção
escrito, por menos agradável que seja «Past Master», em que um grupo científica pela quantidade inesgotável
essa imagem. de alienígenas vai buscar Thomas de ideias, enredos, personagens e frases
More, autor do livro Utopia, para os surpreendentes que encontramos na sua
ajudar a criar a utopia perfeita, com obra.
Criatividade inesgotável resultados embaraçosos; ou «In Our É que, na sua ficção,

L
afferty é um escritor do primeiro Block», onde tudo pode ser mágico deparamo‑nos com aquele que
tipo, em que nos impressiona num banal bairro americano; ou «The é o alicerce profundo da arte de
principalmente a criatividade Primary Education of the Camiroi», contar histórias – não importa que
inesgotável das suas histórias, que faz onde documentos burocráticos nos estas sejam verosímeis, coerentes,
o leitor largar uma exclamação de apresentam o currículo escolar de socialmente importantes ou bem
espanto a cada 15 segundos. Talvez essa extraterrestres que se preparam para escritas. Aquilo que importa numa
originalidade se deva ao seu ponto de invadir a Terra; ou «Slow Tuesday história é que ela nos prenda e
partida, que não era a ficção científica Night» que satiriza a aceleração surpreenda a cada instante, e alargue
anterior ou sua contemporânea, mas dos tempos modernos; ou «Narrow a nossa imaginação para horizontes
as narrativas orais de matriz irlandesa Valley» que imagina um território que não imaginávamos que pudessem
e nativa‑americana, que passou boa índio afetado por uma estranha existir. Por outras palavras, as histórias
parte da juventude a colecionar. Talvez maldição de encolher, num eco do de Lafferty mudam aquilo que vemos
se deva ao seu fascínio pela linguagem território minguante onde as tribos e pensamos, e por isso mudam‑nos
e etimologia, que o levava a inventar nativo‑americanas foram forçadas também a nós.
palavras ou a dar nomes de matriz grega a viver; ou «Thus We Frustrate

28
29
o pi ni ão
de a a bd

POR JOÃO LAMEIRAS

EM BANDA
DESENHADA
cinco versões para um único livro

Ao cumprirem‑se, em 2020, 70 anos sobre o falecimento de George


Orwell, a obra do famoso escritor entrou no domínio público.
Naturalmente, isso levou a que se tenham multiplicado as reedições
do seu trabalho, mas também as adaptações a banda desenhada do
seu livro mais célebre. Até ao momento, já foram publicadas pelo
menos cinco adaptações diferentes de 1984, três das quais em
Portugal, todas com assinaláveis diferenças em termos gráficos.
João Miguel Lameiras
Trabalha com BD há mais de
30 anos, como crítico, professor,
conselheiro editorial, tradutor,
livreiro, argumentista e editor.
Foi curador de várias exposições
em Portugal e no estrangeiro.

30
O 1984 DE FIDO NESTI
Publicado originalmente em 2020,
também em Portugal, numa edição
da Alfaguara, o 1984 de Nesti contou
com a vantagem de ser a primeira
adaptação à BD a conseguir um
grande sucesso comercial. A escolha do
brasileiro Fido Nesti revelou‑se natural,
tendo em conta a sua experiência em
transpor obras de literatura para a
BD, mas sobretudo, como brasileiro,
Nesti está habituado a ambientes
orwellianos. Como o próprio refere:
«Não é fácil embrenhar‑se no
mundo de 1984 quando se vive sob
GEORGE ORWELL E 1984
o jugo do novo governo brasileiro,
Um dos mais importantes escritores completamente desastroso e totalitário.
do século xx, George Orwell nasceu Isso fez‑me recuar à minha juventude,
como Eric Arthur Blair em 1903, porque descobri o romance em 1984,
na Índia, então uma possessão aos 13 anos, num Brasil que então
britânica. Com uma vida agitada, também vivia uma ditadura militar.»
dividida entre o jornalismo, a escrita Mas um dos aspectos a ter em
e trabalhos menores de carácter conta numa adaptação à banda
meramente alimentar, entre os desenhada de uma obra literária é
quais ser polícia, Orwell combateu que a BD e a literatura são linguagens
na Guerra Civil espanhola do lado diferentes, e que aquilo que as
republicano, assistiu à ascensão do imagens podem contar não necessita
nazismo e viveu a Segunda Guerra ser repetido em texto. A adaptação
Mundial. Mas foi outro totalitarismo, de Fido Nesti parece ter esquecido
o comunismo estalinista, que foi o essa regra, demonstrando um respeito
seu alvo favorito, em obras como O excessivo pelo texto de Orwell. Apesar
Triunfo dos Porcos (Animal Farm, no disso, esta adaptação capta de uma
original) e, sobretudo, 1984 (Nineteen forma muito conseguida o ambiente
Eighty‑Four, no original). O seu opressivo do romance, mergulhando o
romance mais conhecido, 1984, foi leitor no mundo sombrio e degradado
também o último. Escrito em 1948, é de 1984. O traço de Nesti, embora
uma obra de ficção científica distópica, pouco entusiasmante, adequa‑se
infelizmente com cada vez mais pontos perfeitamente à história e a escolha Fido Nesti, 1984.
de contacto com a realidade actual. das cores, dominada pelos tons de
O enorme sucesso do livro levou cinza e pelos laranjas e vermelhos
a que fosse rapidamente adaptado a desmaiados, também é a melhor. Esta
outros media. No entanto, seria preciso é uma adaptação que capta muito bem
esperar que a obra de Orwell entrasse o ambiente opressivo do romance de
no domínio público para que 1984 Orwell apesar do excesso de texto, nem
chegasse à banda desenhada. sempre necessário.

31
Amazing Améziane, 1984.

numa adaptação muito interessante,


sobretudo na edição francesa, que
inclui um espectacular pop‑up no fim
do livro.

O 1984 DE DERRIEN
Xavier Coste, 1984.
E TORREGROSSA
O 1984 DE AMAZING de aproveitamento editorial do livro Inédito em Portugal, o 1984 de
AMÉZIANE ter entrado em domínio público, a Jean‑Christophe Derrien e Rémi
Também disponível em português verdade é que a ligação de Xavier Torregrossa, editado em França pela
numa edição da Elsinore, o 1984 Coste ao romance de Orwell vem de editora Soleil, é o mais tradicional
de Sybille de la Croix e de Amazing muito longe. O resultado de três anos em termos de linguagem de banda
Améziane revela uma aproximação de trabalho, e 80 páginas a mais do desenhada, mas isso não impede
bem mais livre ao texto original, com que tinha sido previsto pelo editor, é que esta adaptação aproveite muito
os autores a mostrarem que aquilo uma versão cheia de personalidade, bem as 120 páginas que a editora
que as imagens podem contar não que joga com a cor, que muda de disponibilizou aos autores, mercê de
necessita de ser repetido no texto. acordo com os acontecimentos do uma planificação bastante dinâmica,
Muito gráfica, com um registo mais livro, de uma forma narrativa e mas de grande legibilidade. Em termos
próximo do cartaz e da publicidade simultaneamente dramática. Outro gráficos, Torregrossa, que trabalha
do que da BD mais tradicional, esta elemento importante nesta adaptação normalmente de forma tradicional,
é uma obra que se lê de um fôlego, é a arquitectura, como confessa o em tinta‑da‑china sobre papel, opta
mas que capta o essencial do romance autor: «Uma vez que percebi que aqui pelo computador, para, como
de Orwell, sem precisar de repetir seria através da arquitectura que confessa, «obter um aspecto mais
todos os seus diálogos e que utiliza a ia conseguir desenvolver o meu frio e estilizado. O cinzento impôs‑se
paginação generosa para uma narração universo, tudo se encaixou e o trabalho para o ambiente austero, com
mais estendida e eficaz, que joga muito tornou‑se mais fácil. A arquitectura alguns apontamentos de cor para os
bem com o impacto da página dupla e é uma personagem de corpo inteiro momentos mais felizes.» E a verdade
das imagens de página inteira. na minha adaptação e eu demorei é que essa opção funciona muito
Se, normalmente, o futuro de tempo a perceber isso.» Todos estes bem, ajudando a acentuar o ambiente
1984 é retratado de uma forma elementos, ao serviço de uma narrativa opressivo do universo distópico
ideologicamente neutra, aqui há bastante fluida e distendida, resultam imaginado por Orwell.
uma colagem óbvia do Grande
Irmão à figura de Estaline (que,
na realidade, inspirou Orwell) e à
estética construtivista dos cartazes de
propaganda soviéticos. Das adaptações
de 1984 que li, esta é a que melhor
explora as potencialidades gráficas e
narrativas da linguagem da BD e do
romance de Orwell.

O 1984 DE XAVIER COSTE


Disponível também em português,
numa edição da Relógio D’Água, o
Xavier Coste, 1984. O pop up que falta na edição portuguesa
1984 de Xavier Coste é o que mais
foge do convencional. Embora o
timing possa fazer pensar que se tratou

32
O 1984 DE FRÉDÉRIC
PONTAROLO
Finalmente, temos a versão do francês
Frédéric Pontarolo publicada em
França pela Michael Lafon e ainda
inédita em Portugal. Provando que
o texto de Orwell permite as mais
diferentes abordagens gráficas, a versão
de Pontarolo, sendo fiel ao registo
habitual do desenhador francês, é
bastante diferente de todas as outras
que vimos até aqui, até nas referências
que o autor vai buscar, porque se a
figura do Big Brother parece inspirada
em Estaline, como na versão de
Améziane, e Goldstein em Trotsky, já
o edifício do Ministério da Verdade
parece um cruzamento entre os
cenários do filme Metropolis de Fritz
Lang, com a pintura A Torre de Babel
Frédéric Pontarolo, 1984.
de Brueghel.
Mas o que faz desta uma versão
distinta de todas as outras são
pormenores, como a aparência de
Winston Smith, o protagonista
do romance de Orwell, que aqui é
retratado como um homem negro e,
principalmente, o final da história,
que se afasta do romance original ao
optar por um desfecho mais optimista,
em que a hipótese de redenção está
Derrien e Torregrosa, 1984. presente. BANG!

MAIS ORWELL EM BANDA DESENHADA


A ligação entre George Portugal pela Relógio
Orwell e a BD não se D’Água, existe também
esgota nestas cinco uma biografia de Orwell
adaptações de 1984. em banda desenhada,
Além da adaptação de assinada por Pierre
A Quinta dos Animais Christin, que conta com
feita pelo brasileiro edição portuguesa pela
Odyr e publicada em Ala dos Livros.

33
liter at u r a
despojadxs
A m i s são d e D e s p o ja dxs :
H o m e n ag e a r L e G u i n e c o n st r u i r
pontes de referência com outros
POR JOANA CAETANO m u n d o s e voz e s, i l u st r a n d o c o m o
a l i t e r at u r a fa n tá st i ca , l i v r e da s

DESPOJADXS...
l i m i taç õ e s da l i t e r at u r a r e a l i sta ,
pode ser transformadora.

DE FUTURO?
As obras de Ursula Change is freedom, change is life companheiros nesta demanda. Poderão
estas vozes e faces ganhar uma força
K . L e G u i n ( 19 2 9 ‑ 2 018 )
uando a apresentou na cerimónia renovada neste mundo de pandemias,
c o n t i n ua m a s e r , Q de entrega da Medalha das Artes guerras, fome, destruição ambiental,
a n o s a p ó s a m o rt e Americanas, Neil Gaiman afirmou a fundamentalismo e anti‑intelectualismo?
da au to r a , tão influência de Le Guin na sua formação Poderemos encontrar esperança e
transformadoras como escritor de literatura fantástica. A coragem na literatura transformadora
forma como descreveu o impacto que a de Le Guin, ou estaremos efetivamente
como criadoras de Despojadxs de Futuro?
leitura de A Mão Esquerda das Trevas teve
s e n t i d o s. N e st e t e x to no seu crescimento pode ilustrar toda
i n au g u r a l , l a n ça m o s a obra de Ursula K. Le Guin: «A ideia
a p e d r a a n g u l a r d e sta de que o género pode ser fluido, de que A Voz: Ah, muitas! E plurais!...
r ú b r i ca , c o m e ça n d o um rei pode estar grávido – abre a nossa
cabeça, desmancha‑a, transforma‑a.» Para partir de um vestígio – uma voz
p o r a p r e s e n ta r a Le Guin, um bom livro é aquele que nos A solitária, perdida num planeta
l i t e r at u r a fa n tá st i ca transforma, que nos deixa um pouco distante, amnésica, exilada, oprimida
transgressora diferentes daquilo que éramos quando ou voluntariamente deslocada –, Le
de Le Guin. começámos aquela viagem por mundos Guin recriava as histórias de
imaginários. Como se ao conhecermos sociedades desconhecidas
um rosto novo, ao trilharmos um que, apesar de estranhas,
caminho diferente, ao virarmos à margem eram constituídas por
em vez de ao centro, descobríssemos seres como nós, que
uma nova fibra no tecido que é nossa partilhavam da mesma
identidade. rede complexa de
As viagens pelos mundos imaginados emoções e ambições.
por Le Guin fazem‑se conhecer através Como uma
de rostos cicatrizados e de vozes etnógrafa

«
transgressoras. Eles serão os nossos de povos

joana caetano
Doutoranda
em Literaturas O Belo Reino [Faërie] contém muitas coisas além
Anglo‑Americanas de elfos, fadas, anões, bruxas, trolls, gigantes ou
na FLUP e utópica
dragões. Contém os oceanos, o Sol, a Lua, o firmamento
feminista por paixão.
Adora literatura e a terra, e todas as coisas que há nela: árvore e
fantástica e, mesmo pássaro, água e pedra, vinho e pão, e nós, os homens
noutros debates,
remata dizendo sempre: mortais, quando estamos encantados.» (J.R.R.
«Todos os caminhos Tolkien, On Fairy‑Stories, 1947)
vão dar a Le Guin.»

34
«
imaginários, Le Guin sentava‑se em A Viagem: Dos Mundos de Le Guin
silêncio ouvindo as histórias que para o Mundo Inteiro
esses povos partilhavam, observando Aqueles que constroem
os muros são prisioneiros
costumes e disfrutando da sua
hospitalidade. Tal como os emissários
E m 2014, Le Guin anunciava
de si próprios. Vou cumprir
a chegada de tempos difíceis,
do Ekumen, Le Guin reportava os em que xs artistas seriam chamadxs a minha função adequada
hábitos mais ou menos estranhos para a frente de batalha, convocadxs no organismo social. Vou
dessas civilizações, tentando não a imaginar alternativas e a abrir destruir muros.»
interferir ou julgar. caminhos à esperança e à liberdade. (Shevek in Os Despojados)
No entanto, o desafio à leitura Nem dez anos passados e aqui estamos
crítica e a ironia acutilante palpitam numa sociedade que, cada vez mais,
nas suas palavras, pois o maior despreza a cultura e a ciência, num «Os seres humanos têm a
legado das suas histórias é, com planeta doente e em guerra. Por isso, capacidade de resistir a
efeito, isso mesmo: destabilizar ideias como fazê‑lo? qualquer forma de poder
pré‑concebidas, derrubar muros, Com aquelas armas que são as humano. A resistência e
desbravar caminhos e ousar viajar para histórias. Escrever histórias, dizia a mudança começam por
terras desconhecidas. Le Guin, é um meio de pensar. vezes, nas artes, e, muitas

»
É uma viagem de descoberta que vezes, na nossa arte – a arte
conduz a um espaço de sentidos das palavras.
novos e, até aí, desconhecidos. A

«
estratégia a que recorria era aquela
que considerava a mais útil que a
Humanidade possui: a imaginação.
E a munição era aquelas «mentiras»
Agora, aqui, no final da
que são símbolos: as metáforas.
minha carreira, não quero
Autora de uma obra literária
ver a literatura americana
vasta e diversificada que desafia
ser vendida rio abaixo. Nós
categorização, Le Guin distingue‑se
que vivemos pela literatura,
por estes três aspetos – imaginação,
escrevendo e publicando,
mestria no uso de linguagens
queremos – e devemos exigir
e subversão de sentidos – que
– a nossa parte justa dos
combinados tornam a sua literatura
lucros. Mas o nome da nossa
fantástica transformadora num meio
bela recompensa não é lucro.
essencial de esperança, mudança
O seu nome é liberdade.»
e resistência na construção de
(Le Guin, Freedom, 2014)
futuros alternativos.

na bang! 33:
P r óx i m o D e st i n o :
P o rt l a n d , O r e g o n , T e r r a 2 0 0 2

P r óx i m o s E m i s sá r i o s :
William Haber & George Orr

35
opin i ão
biblioterapia

P OR MADA L E N A N E V E S A F O N S O

Biblioterapia
Fantástica
Prática milenar,
a Biblioterapia tem
vindo a ganhar relevância
atualmente, com a ficção
a ter um papel fundamental
na resolução de questões
de saúde mental ou de
situações do dia a dia.

O que é a Biblioterapia? a pessoa a ultrapassar, compreender


e/ou aceitar a situação em que se

P raticada desde os tempos


da Grécia Antiga, o termo
«Biblioterapia» surge da junção
encontra.

do termo «biblio» (livro) e Usar a ficção em Biblioterapia


«terapia» (ajudar medicamente). A
Biblioterapia é um método facilitador
do desenvolvimento pessoal e da Q ualquer género literário tem
um papel a desempenhar em
resolução de problemas através da Biblioterapia, já que cada um tem
literatura. Estes problemas podem ser um impacto diferente em cada leitor,
do foro da saúde mental, ou podem sendo que a ficção é mais utilizada,
ser situações comuns da vida de uma porque permite ao leitor usufruir do
pessoa, como o luto, as mudanças de processo de autorreconhecimento, sem
vida, perda de orientação pessoal ou ter de se colocar na primeira pessoa.
profissional, entre outras. Este tipo de Ao longo da leitura, o leitor empatiza
terapia alternativa pode ser aplicada e reconhece‑se na personagem que está
por psicólogos, médicos, psiquiatras, a ler, sem se colocar diretamente na
madalena mas também por professores, pais, situação, tornando‑se assim mais fácil
neves afonso bibliotecários, coaches e líderes identificar e trabalhar a problemática.
Psicóloga clínica
e biblioterapeuta. Com espirituais. A utilização de terror e thriller
uma grande paixão A Biblioterapia pratica‑se através pode servir para trabalhar o luto, a
por livros, descobriu
a Biblioterapia na do estabelecimento de uma relação de ansiedade, a depressão, entre outras
faculdade e achou confiança com o cliente. Conforme patologias. Através destes géneros,
que era a forma ideal
de juntar os seus dois
o contexto, a situação apresentada, a o leitor quer viajar na pele de outra
amores: Psicologia disponibilidade e os gostos literários, pessoa num percurso de dor ou
e Livros. são sugeridos livros que possam ajudar sofrimento, de forma a ver o próprio

36
A VOZ DOS BLOGUERS
O Armazém
Rob Hart
Saída de Emergência
Uma distopia
tecnológica
assustadoramente
sofrimento reconhecido e validado. mudança tem os seus desafios, mas realista onde
Numa situação de trauma, os livros igualmente as suas vantagens. vão encontrar:
complexos de
de policial e terror são excelentes O mesmo sucede com a ficção alojamento onde
para o processamento do mesmo, científica, mas aqui podemos incluir a os funcionários vivem em condições
sub‑humanas, empresas de venda
nomeadamente quando o final vontade de ver algo novo, ou de pensar
online que levam à falência do pequeno
da história inclui a resolução do numa perspetiva diferente. A ficção comércio, subversão das regras
crime. São histórias de resiliência, científica leva ao extremo a questão laborais e, claro, mecanismos de
controlo das pessoas. A combinação
sobrevivência e força interior, que «E se?», levando o leitor a questionar perfeita para uma distopia capaz de
ajudam as pessoas a quererem ser vários aspetos do mundo onde se insere provocar insónias.
Cátia Fonseca
iguais, a ter a mesma força. e de que forma ver as problemáticas
Um Blogue Sobre Livros
O uso da literatura fantástica através de outra perspetiva ajudará a
oferece ao leitor uma forma de enfrentar melhor o problema.
experienciar novos pensamentos,
atitudes e sentimentos, utilizando a O objetivo da Biblioterapia Rainha
imaginação como forma de enfrentar Vermelha

A
Victoria
e de lidar com os seus problemas, través desta prática, pretende‑se Aveyard
encontrando um significado mais não só facilitar a superação de Saída de Emergência
Esta é mesmo
profundo na sua vida e nas suas problemáticas de saúde mental, como
uma obra muito
dificuldades. No entanto, podem motivar para a leitura. Ao ter livros completa, que
existir situações em que o cliente com os quais se consegue identificar, através da ficção,
cenários e trama
tem algum receio de experimentar o cliente tem motivação para ler mais, cria um mundo rico em segundas
algo novo, dar um passo diferente descobrir mais, e trabalhar mais e intenções, segundos significados,
muitas histórias por revelar, muita
na sua vida. Aí, livros sobre novos melhor os seus problemas. Para além
acção por acontecer. Não é perfeita,
desafios, viagens, demandas mágicas disso, o leitor frequente consegue mas foi suficiente para me agarrar à
ou mudanças repentinas de vida influenciar quem está à sua volta, história, às personagens e ao mundo
até ao fim.
por motivo de descoberta de novas através das aprendizagens que adquire, Inês Santos
capacidades, ou mistérios por dos hábitos que desenvolve e das Algodão Doce para Cérebro
desvendar, ajudam a perceber que a emoções que demonstra.

Viúva
de Ferro

Curiosidades
Xiran Jay Zhao
Saída de Emergência
Bastam os dois
primeiros capítulos
O Faraó Ramsés II construiu uma A Biblioterapia pode ser
para não largarmos
sala dedicada aos livros a que praticada individualmente mais este livro.
chamou «A Casa da Cura para a (biblioterapeuta e leitor) Extremamente
Alma» (Bibliotheca historica, de ou em grupo, através de visual e mágico
Diodorus Siculus). um grupo de leitura, com de uma forma tecnológica, Viúva de
o biblioterapeuta como Ferro traz‑nos uma heroína que quebra
mediador. com tradições e concepções sobre as
No início do século xix, os médicos mulheres e que consegue de forma
receitavam livros aos seus pacientes sublime misturar mitologia chinesa com
evolução tecnológica, feminismo e um
para ajudar na cura, nomeadamente A escrita criativa e o book
triângulo amoroso original e moderno.
em instituições psiquiátricas. journaling também podem ser
Completamente viciante!!!
consideradas como uma forma Helena Mota
de Biblioterapia. Book O’Clock e Bookstruck
Até ao início do século xx, os
soldados da Primeira Guerra
Mundial utilizavam a literatura,
principalmente a poesia, para lidar
com o stress pós‑traumático.
37
Esta forma de Terapia pelas Artes SU G E S T Õ E S L I T E R Á R I A S
tem permitido um aumento de
interesse pela literatura e pela escrita,
em países em que a Biblioterapia é POSITIVO
utilizada como ferramenta de trabalho Editora: Chá das Cinco
para estudos sociais, como no Brasil, Ano de Publicação: 2020
nos Estados Unidos, em França e em
Bula Literária: Literatura Jovem Adulto, indicado
Inglaterra.
para quem procura histórias que desconstroem
Nos Estados Unidos e no Brasil,
preconceitos sobre VIH, personagens que
é prática habitual cada sala de aula,
independentemente do ano escolar, assumem o controlo da sua própria vida,
ter uma zona de biblioteca onde problemáticas românticas de adolescentes e
os alunos podem encontrar livros representação LGBTQIA+.
adequados às suas idades, diferentes
gostos e interesses, para além dos livros O PODER
de leitura obrigatória. Isto permite Editora: Saída de Emergência
aos alunos estarem em constante Ano de Publicação: 2018
contacto com literatura, bem como Bula Literária: Literatura Fantástica, indicado
aos professores terem instrumentos para quem procura histórias sobre distopias
diversificados para trabalhar toda e matriarcais que invertem as crenças sobre os
qualquer temática que desejem, em papeis de género, a organização da sociedade
contexto de sala de aula. e a ideia de que um género representa poder e
Em alguns países, hospitais e
força e outro representa fraqueza e medo.
centros de saúde também possuem
bibliotecas ou espaços de leitura, com
livros de diversas temáticas, de ficção
PASSAGEM PARA O OCIDENTE
Editora: Saída de Emergência
e não ficção, porque a leitura é uma
forma de tranquilizar os pacientes. Ano de Publicação: 2018
A Biblioterapia não é uma prática Bula Literária: Literatura Contemporânea,
rígida, podendo ser alterada, adaptada indicado para quem procura histórias sobre amor
e moldada às necessidades de cada em tempos de guerra, esperança, perseverança
pessoa. Mas a base principal é sempre e histórias que nos levam a questionar em que
a mesma: ajudar, através dos livros e da mundo queremos viver.
literatura, as pessoas a ultrapassarem,
aceitarem e compreenderem os seus A BAILARINA DE AUSCHWITZ
problemas. Editora: Desassossego
Ano de Publicação: 2018
Bula Literária: Não‑Ficção Literária – Memórias
Consultório literário e Testemunhos, indicado para quem procura

S
histórias verídicas da Segunda Guerra Mundial e
e tem dúvidas ou quer
o Holocausto, pessoas resilientes que, apesar do
experimentar como funciona
horror que viveram, conseguem ajudar o próximo
a Biblioterapia, envie‑nos uma
mensagem com a sua questão para e curarem‑se a si mesmas através da força da
geral@saidadeemergencia.com, com a própria mente.
referência «Biblioterapia» no assunto.
No próximo número da BANG!, MINHA SOMBRIA VANESSA
daremos resposta a algumas das Editora: Chá das Cinco
questões. Ano de Publicação: 2020
Bula Literária: Literatura Policial e Thriller,
indicado para quem procura histórias
que levantam questões sobre liberdade,
consentimento, relações com diferenças de idade,
abuso e vitimização.

38
39
te rro r
Arquivo do Medo

A
por
António
Monteiro

IDADE
DE UM
VAMPIRO
António Monteiro
Professor de Matemática,
nasceu em Lisboa (1951).
Casado, duas filhas,
cinco netos. Autor de
artigos, editor, membro de
associações dedicadas ao
terror. Co‑organizador do
ciclo Sustos às Sextas.

40
O facto de contarmos usualmente em base
10 leva a que os múltiplos e as potências
desta base em particular se revistam,
frequentemente, de significados especiais.
O ano de 2022 marca alguns aniversários
significativos (em base 10): Varney the
Vampire, de James Malcolm Rymer e Thomas
Varney the Vampire

H
Peckett Prest, foi publicado pela primeira vez,
á algumas dúvidas em livro, em 1847 (depois de ter aparecido nos
quanto à identidade chamados penny dreadfuls a partir de 1845),
dos autores de ou seja, há precisamente 175 anos; a novela
Varney the Vampire, Carmilla, da autoria de Joseph Sheridan
dado que o editor,
Le Fanu, é datada de 1872 (embora tenha
Edward Lloyd, tinha o hábito
também sido publicada em folhetim, iniciado
de não incluir nas suas edições
os nomes dos autores. Ainda
no ano anterior), portanto, há exactamente
assim, a obra é usualmente 150 anos; o seminal romance Dracula, de Bram
atribuída a Rymer e Prest. Stoker, apareceu, por sua vez, há 125 anos,
Trata‑se de uma história típica sendo a data da primeira publicação o dia 26
do estilo gótico vitoriano, de Maio de 1897; finalmente, o famoso filme
consideravelmente longa (perto Nosferatu, realizado por F. W. Murnau, celebra
de 900 páginas) e, admitamos, o seu centenário, tendo sido apresentado
talvez um pouco maçadora, ao público alemão, pela primeira vez, a 4 de
pelos padrões actuais. Março de 1922.
Não obstante, introduz
algumas particularidades qualquer particular alergia a cruzes
referentes às características físicas e ou flores de alho; Varney até ingere
comportamentais do vampiro, que se comida e bebida humanas, embora
tornariam mais ou menos constantes sem grande prazer.
em subsequentes contos de vampiros. Alguns estudiosos exprimiram a
Na realidade, Sir Francis Varney, opinião de que Varney the Vampire
o vampiro da história, é descrito inspirou efectivamente a futura ficção
como tendo dentes afiados, os quais pertencente ao mesmo subgénero,
deixam duas marcas de perfuração incluindo o romance Dracula, de
nos pescoços das suas vítimas, para Bram Stoker.
além de mostrar poderes hipnóticos Deve observar‑se que Sir Francis
e força sobre‑humana. Ao contrário Varney, embora condenado a suportar
de exemplos mais modernos de a sua condição de vampiro, não sente
mortos‑vivos, porém, não tem nisso qualquer prazer; pelo contrário,
dificuldade em passear no exterior aparenta desprezar‑se pelo que é
durante o dia, nem parece sofrer de forçado a fazer.

41
A adaptação não cumprida com muito
autorizada de Nosferatu zelo, o que nos teria
envolveu uma batalha privado de apreciar
judicial que resultou na actualmente uma obra
decisão de que todas as que, sob qualquer ponto
cópias do filme fossem de vista, tem de ser
destruídas. Tal resolução considerada como uma
não foi, felizmente, obra‑prima.

É quase desnecessário recordar o enredo


da novela, que consiste fundamentalmente
em ver a jovem Laura ser atormentada pelo
vampiro feminino do título, que é, na realidade,
a condessa Karstein, até esta ser destruída
pelo processo consagrado de exumar o corpo,
cravar‑lhe uma estaca de madeira no coração,
cortar‑lhe de seguida a cabeça e, por fim,
queimar o cadáver, para garantir que não há
escapatória possível.
A destruição do monstro é levada a cabo pelo
De certo modo, essa atitude prenuncia General Spielsdorf, um amigo do pai de Laura, e
diversos exemplos daquilo que é por vezes pelo Barão Vordenburg, na realidade uma figura
descrito como o «vampiro simpático», uma ao estilo de Van Helsing, um especialista em
característica que se pode encontrar em vampiros (como um dos seus antepassados era
Barnabas Collins (interpretado por Jonathan também).
Frid), da série de televisão americana Dark A mais interessante característica de Carmilla
Shadows, datada de finais da década de 1960, consiste provavelmente no relacionamento
no protagonista de Interview with the Vampire lésbico entre Mircalla Karstein e Laura, que não
(1976), de Anne Rice, ou num bom número de é expressamente reconhecido no texto, mas que
estrelas vampíricas adolescentes, como Angel na está claramente presente, de um modo subtil que
série Buffy the Vampire Slayer, de finais da década evita quaisquer julgamentos de índole moral.
de 1990.
Sir Francis Varney, que atribuía
expressamente a sua condição de vampiro a
más acções que praticara (como denunciar
Nosferatu

N
um monarquista a Oliver Cromwell ou o que se refere a Nosferatu, os pormenores
acidentalmente ter morto o próprio filho), não delicados que rodearam a produção do
morre com uma estaca cravada no coração, nem filme, uma adaptação do romance de
por lhe cortarem a cabeça, métodos típicos para Stoker, não autorizada pela viúva do autor, são
se matar um vampiro, mas sim atirando‑se para bem conhecidos.
as chamas do vulcão do Monte Vesúvio. Há, evidentemente, muitas diferenças entre o
romance Dracula e o filme Nosferatu, a começar
pelo próprio nome do vampiro, que passa de
Conde Drácula para Conde Orlok; o local
Carmilla de grande parte da acção muda igualmente,

E
m 1872, Joseph Sheridan Le Fanu passando de Londres para a cidade alemã
(1814‑1873) viu a sua novela gótica fictícia de Wisborg. Algumas das personagens
Carmilla ser publicada em livro, incluída na secundárias, como Arthur Holmwood e Quincey
sua célebre colecção de contos In a Glass Darkly. Morris, são pura e simplesmente omitidas.

42
É curioso observar que algumas das Algumas dessas características físicas
características que se tornaram habituais (palidez, face aquilina, pouco cabelo…) foram
na ficção vampírica subsequente, como a preservadas na caracterização do Conde Orlok,
circunstância de o vampiro poder ser aniquilado magnificamente interpretado por Max Schreck
pela luz do Sol, se encontram já presentes em (1879‑1936), essencialmente um actor de
Nosferatu — enquanto na história de Stoker teatro, que muitas vezes representou papéis
os raios solares não matam realmente o Conde de personagens bizarras ou mesmo grotescas,
Drácula, apenas o enfraquecem. tendo desenvolvido um especial gosto pela
Esta característica específica permite que o maquilhagem. Outras características — a mais
final do filme seja muito distinto do do romance: conspícua delas o bigode, que, na realidade,
desaparece a fuga do vampiro, de volta à sua estaria ausente da maioria das aparições de
Transilvânia natal, e a perseguição pelo grupo Drácula no cinema, embora não de todas elas —
de caçadores de vampiros; o Conde Orlok é não foram retidas.
destruído pelos raios do Sol nascente, incapaz É curioso examinar um pormenor anatómico
de resistir à atracção de Ellen, mulher de Hutter em particular, a estrutura da dentição do
(casal que é o correspondente a Jonathan e vampiro. Tal como se lê na citação anterior,
Mina Harker, no livro), que deliberadamente o Conde Drácula teria «dentes brancos
se oferece como mártir, para salvar a cidade do peculiarmente aguçados» que se sobrepunham
monstro. aos lábios, uma descrição que raramente
corresponderia ao que os futuros vampiros
cinematográficos mostrariam. Tal característica
As diferentes está certamente ausente do retrato do conde
visões de vampiro montado por Bela Lugosi em 1931, e o formato
específico dos dentes foi depois substituído,

U
ma outra diferença marcante entre as
quase constantemente, pelos longos caninos
concepções de Stoker e de Murnau reside
exibidos por Christopher Lee (o qual, a
na aparência física do conde romeno.
propósito, nasceu no dia 27 de Maio de 1922,
No romance, ao chegar ao castelo de Drácula
e encontrando o conde pela primeira vez,
Jonathan descreve‑o nos seguintes termos: «[…]
um homem velho, alto, de cara rapada, excepto
no que respeita a um longo bigode branco,
As penny
[…] sem um único toque de cor em toda a
dreadfuls eram
sua figura. A cara era forte, muito fortemente
revistas que
aquilina, com a cana do nariz fino proeminente
continham
e narinas invulgarmente arqueadas, testa alta e
histórias
arqueada, o cabelo a rarefazer‑se em redor das
sensacionalistas,
têmporas, mas de resto abundante. […] A boca
impressas em
[…] era fixa e de ar cruel, com dentes brancos
papel de má
peculiarmente aguçados. Estes sobrepunham‑se
qualidade,
aos lábios, cuja notável vermelhidão revelava
mais ou menos
uma espantosa vitalidade num homem daquela
o que entre
idade. De resto, as orelhas eram pálidas e com
nós constituiu a
os topos extremamente pontiagudos. O queixo
«literatura de
era largo e forte e as maçãs‑do‑rosto firmes,
cordel».
embora finas. O aspecto geral era de uma
extraordinária palidez.»

43
portanto, há exactamente 100 anos) e outros Conde Orlok, tal como
intérpretes bem conhecidos dos vampiros. interpretado por Max
Quanto ao Conde Orlok, no Nosferatu Schreck, e a sensação geral
de Murnau, não tem a configuração dentária de disparidade e da posse
imaginada por Stoker, nem os longos caninos de poderes ocultos, têm
de representações subsequentes, mas sim levado alguns a encontrar
dentes incisivos invulgarmente longos e na história ligações ao
pontiagudos (também usados por Klaus anti‑semitismo.
Kinski na nova versão Nosferatu: Phantom
der Nacht, realizada em 1979 por Werner
Herzog, e por Reggie Nalder, na série de A actualidade
televisão Salem’s Lot, do mesmo ano, realizada de Dracula
por Tobe Hooper e adaptada do romance de

O
simples facto de
Stephen King com o mesmo título).
ainda apreciarmos
Esta particularidade associa Orlok mais
actualmente
de perto à imagem de um rato ou outro
obras‑primas como
roedor semelhante e, na verdade, os ratos
Carmilla, Dracula e
(já presentes, com alguma importância, no
Nosferatu, tantos anos após o
livro de Stoker), desempenham na história
seu aparecimento, é uma prova
um papel de relevo, fazendo com que a ideia
clara da sua inultrapassável qualidade.
do vampiro se transforme numa espécie de
O romance de Stoker, em particular,
metáfora para uma epidemia no género da
tem sido examinado — especialmente nos
peste, coisa que é especialmente clara na versão
anos mais recentes — sob todos os ângulos
de Herzog.
imagináveis, não apenas através do estudo
Vem a propósito observar o facto de
do enredo propriamente dito, mas também
Nosferatu aparecer apenas dois anos depois
no que respeita à estrutura textual e até ao
do fim da pandemia de gripe espanhola que
claro esforço do autor para incluir ideias
devastou o Mundo e, particularmente, a
e tecnologias que seriam consideradas
Europa, entre 1918 e 1920, causando dezenas
modernas no seu tempo. A circunstância
de milhões de mortes; na realidade, a temível
de as transfusões de sangue serem feitas
pandemia gripal só foi ultrapassada, em
livremente, sem atenção aos perigos de se
termos de gravidade, pela pandemia de peste
misturarem diferentes tipos sanguíneos, é
bubónica do século xiv. Assim, o público
característica dessa modernidade, ao mesmo
espectador estava pronto e apto para entender
tempo que revela bem alguma intrínseca
as imagens de uma doença espalhada por
ingenuidade.
ratos e as suas ligações ficcionais a um ser
Apesar das muitas histórias de vampiros
sobrenatural que chega à Europa central vindo
mais modernas, Dracula continuará, sem
das regiões mais orientais.
dúvida, para sempre e muito merecidamente,
Estudiosos modernos encontraram
uma obra favorita do público leitor. BANG!
igualmente ligações entre Nosferatu e a história
do Flautista de Hamelin, narrada pelos irmãos
Grimm no início do século xix, uma vez que
o vampiro parece ser capaz de comandar os
ratos, tal como o flautista os atraiu para fora
da cidade, ao som da sua flauta mágica.
Mais ainda, o aspecto físico do

44
c iên cia

OS FACTOS
NÃO DEIXAM
DE EXISTIR
APENAS
PORQUE SÃO
IGNORADOS.
‑ALDOUS HUXLEY

45
EU
AMO
CIÊNCIA.
E TU?
EXCERTO DE O GUIA COMPLETO
SOBRE ABSOLUTAMENTE TUDO

Introdução

F
Obra: O Guia Completo
Sobre Absolutamente Tudo
eche os olhos. Género: Outras Ciências
Editora: Desassossego
Evidentemente, para ler, normalmente é preciso Páginas: 272
ter os olhos abertos. Se tiver uma cópia impressa PVP: 17,70 €

deste livro na mão, daqui a alguns segundos vai


ter mesmo de os abrir, visto que com eles fechados não con‑
seguirá ler o resto do que vamos dizer, obviamente.
Mas, por agora, feche os olhos.
Durante esse pequeno instante de escuridão, pouco mu‑
dou. As palavras continuaram na página; o livro, felizmente,
continua nas suas mãos. Quando abriu os olhos – na verda‑
de, quando os abriu esta manhã, após um sono repousante
–, a luz entrou a jorros, e o leitor reconheceu que tudo estava
basicamente igual a quando os fechou. A realidade persiste,
quer estejamos a prestar‑lhe atenção, ou não. Tudo isto pode
parecer muito óbvio; até mesmo imbecil. No entanto, o fac‑
to é que, em tempos, tivemos de o aprender.
Da próxima vez que estiver a brincar com um bebé, ex‑
perimente pegar num brinquedo e escondê‑lo debaixo de um
cobertor, à sua frente. Se o bebé tiver menos de 6 meses, não
vai tirar o cobertor para recuperar o brinquedo, por muito que
estivesse a gostar de brincar com ele. Isso não significa que não

46
É verdade, amamos ciência. E amamos
a curiosidade, a paixão pelo mistério
e o prazer da descoberta que alimenta
os cientistas. Amar ciência é muito
mais do que respeitar um corpo de
conhecimentos. É abraçar uma forma
de pensar que exige evidências
verificáveis e as analisa com o uso Adam Rutherford
da lógica. E porque Portugal precisa
& Hannah Fry
de mais literacia científica, aqui
estamos nós — livro a livro, queremos Adam Rutherford é um aclamado geneticista,
ajudar os portugueses a serem mais escritor e apresentador. Hannah Fry é professora
céticos, a estarem mais informados associada de Matemática das Cidades e utiliza
diariamente os modelos matemáticos para
e, acima de tudo, mais preparados estudar os padrões de comportamento humano.
para o futuro.

tenha capacidade de agarrar e puxar o tecido; o que acontece tivação de praticamente qualquer organismo que alguma
é que a criança, ao contrário do leitor, simplesmente não tem vez existiu consistiu em não morrer – pelo menos, até ter
noção de que o brinquedo continua a existir. Para a sua mente oportunidade de se reproduzir. A maior parte das formas
minúscula, este simplesmente evaporou‑se da existência, assim de vida terrestres não está minimamente interessada em
que desapareceu. É por isso que os bebés se divertem tanto a saber porque é que as coisas são como são. À noite, os
brincar ao esconde‑esconde. E é por isso que todos os seres hu‑ escaravelhos‑bosteiros usam a Via Láctea para se orienta‑
manos, de todas as culturas e em todo o mundo, fazem essa rem, com pouco interesse nas estruturas das galáxias ou
brincadeira. Ao taparmos o rosto, uma mente muito jovem e no facto de que não há (para já) informação acerca de
imatura presume que a pessoa literalmente desapareceu e pos‑ quase toda a massa que compõe o Universo1. Os minús‑
sivelmente deixou de existir. A alegria de descobrir que a sua culos ácaros que vivem nas nossas sobrancelhas ignoram
existência não foi apagada do Universo é bem visível nas garga‑ o conceito de comensalismo simbiótico, através do qual
lhadas do bebé, quando volta a tirar as mãos. se alimentam inocuamente de nós. Até agora, provavel‑
O esconde‑esconde mostra até que ponto os seres hu‑ mente o leitor também desconhecia completamente a
manos estão mal equipados para compreender o Universo e sua existência, mas eles estão mesmo lá. A pavoa não tem
tudo o que este contém. Não nascemos com uma compreen‑ qualquer interesse em processar as equações complexas
são inata do mundo que nos rodeia. Temos de aprender que que explicam porque é que acha tão sensual aquela cauda
as coisas – incluindo as pessoas – não desaparecem simples‑ ridícula do pavão; simplesmente, gosta dela.
mente, quando não estamos a olhar para elas. Nos bebés, Apenas um animal alguma vez fez estas perguntas: nós.
é um marco importante do desenvolvimento, conhecido A dada altura, nos últimos cem mil anos ou semelhante, uns
como «permanência dos objetos» – algo que muitos outros macacos praticamente carecas começaram a ter curiosidade
animais nunca chegam a dominar totalmente. Um croco‑ em relação a quase tudo. O cérebro destes macacos tinha‑se
dilo pode ser subjugado ao tapar‑se‑lhe os olhos. Algumas tornado maior, ao longo dos últimos milhões de anos, e eles
aves acalmam‑se quando lhes tapamos a gaiola. Não é só por começaram a fazer coisas que nenhum outro animal tinha
considerarem a escuridão reconfortante; não se apercebem
é que os seres humanos que os incomodam e irritam conti‑ 1
Para chegar a esta descoberta, os cientistas puseram chapéus minúscu‑
nuam ali, do outro lado do pano. los em escaravelhos‑bosteiros e observaram‑nos, enquanto estes ficavam
Porque é que os seus cérebros haveriam de se preo‑ completamente desorientados. Na ciência, nem tudo tem de ser com‑
plexo ou de alta tecnologia; às vezes, basta pôr um chapéu num inseto.
cupar com a permanência dos objetos? A principal mo‑
47
feito. Começaram a desenhar, a pintar, a fazer música e a mente plana. No Capítulo 3, vamos explorar o nosso calhau
brincar ao esconde‑esconde. rugoso e determinar que não só não é plano como nem se‑
É importante que não encaremos isto com sentimenta‑ quer é esférico: devido à sua rotação, a Terra é um esferoide
lismo. A vida pré‑histórica continuava a ser bastante mise‑ achatado – essencialmente, uma bola ligeiramente vazia, um
rável, por comparação com a atualidade, e a sobrevivência pouco achatada nos polos e um pouco inchada no centro.
continuava a ser a maior preocupação para todos. No en‑ Da nossa perspetiva, parece que o Sol basicamente gira
tanto, os nossos antepassados tinham‑se afastado do resto da à volta da Terra: todos os dias, nos últimos 4,54 mil milhões
natureza, ao considerarem não só as preocupações imediatas de anos, tem nascido aqui de manhã, atravessado o céu e
de sobrevivência, mas todo o Universo e o seu lugar nele. descido do outro lado. No entanto, na realidade, a Terra gira
Contudo, continuamos a ser macacos – e grande parte do à volta do Sol – e também não o faz num círculo perfeito.
nosso cérebro e corpo continua essencialmente preocupada Tanto quanto nos apercebemos, o Sol fica estático no espa‑
em apenas viver e reproduzir‑se. A nível físico e genético, ço, enquanto nós o contornamos; mas, na realidade, o Sol
não mudámos muito nos últimos duzentos e cinquenta mil e todo o nosso sistema solar estão a acelerar em volta de um
anos. Se pegássemos numa mulher ou homem de África, de ponto no centro da Via Láctea, a uns estonteantes 827.202
há trezentos mil anos, os fizéssemos viajar no tempo, os ar‑ quilómetros por hora, completando uma órbita a cada ano
ranjássemos, lhes cortássemos o cabelo e lhes vestíssemos um galáctico (ou seja, 250 milhões de anos terrestres). Nenhum
belo vestido ou um conjunto desportivo, não conseguiría‑ de nós tem a menor noção disso, enquanto estamos sentados
mos encontrá‑los no meio de uma multidão da atualidade. a ler, numa espreguiçadeira.
Grande parte do nosso material biológico pouco se alterou, A curiosidade pode ter levado a que os seres humanos se
desde os tempos em que ninguém tinha grande interesse nes‑ distinguissem das outras criaturas, mas só por si não é sufi‑
tas ideias pomposas acerca do funcionamento do Universo. ciente. Quando os seres humanos fazem perguntas curiosas
O que tudo isto significa é que os nossos sentidos nos acerca dos mistérios da realidade, não descobrem instanta‑
deixam ficar mal com bastante frequência. Assustamo‑nos neamente as respostas certas; os mitos que inventámos para
com movimentos rápidos e inesperados, apesar de já não explicar a natureza inexplicável da Natureza não têm fim.
termos de nos preocupar diariamente com predadores a Os víquingues decidiram que o som ensurdecedor da tro‑
tentarem comer‑nos. Ansiamos por alimentos doces, salga‑ voada era Thor a atravessar o céu na sua quadriga puxada
dos e gordos – uma estratégia perfeitamente sensata para os por cabras, e o seu assombroso martelo Mjölnir era a origem
caçadores‑recoletores, que nos ajudava a dar prioridade ao dos raios2. O povo gunai, indígena da Austrália, pensava que
consumo de altas calorias quando os alimentos eram escas‑ a Aurora Austral, também conhecida como Aurora Australis,
sos, mas muito menos útil quando há a opção de comer um eram incêndios florestais no mundo dos espíritos.
gelado depois de cada cheeseburger. Milhares de milhões de pessoas, em todos os continen‑
Estes vestígios da evolução ultrapassam os nossos ins‑ tes, ainda acreditam em histórias de deuses, cabras e fantas‑
tintos; também afetam a nossa intuição. Se tivéssemos per‑ mas. Algumas destas histórias podem ser um alvo fácil de
guntado aos nossos antepassados incultos qual o formato da troça, mas a nível intuitivo fazem sentido, e a intuição é algo
Terra, provavelmente teriam respondido que era plana. Faz
2
sentido que seja plana; parece bastante plana e, certamente, Todas as noites, Thor comia os dois bodes, Tanngrisnir e Tanngnjóstr,
e ressuscitava‑os com o martelo, Mjölnir. Evidentemente, isto não era
se não fosse, teríamos caído. No entanto, esta não é minima‑ intuitivo.

já conhece as últimas novidades?

Numa viagem pelo Um olhar Sempre pensámos


tempo desde o princípio provocador que o envelhecimento
do universo, Brian e inspirador é inevitável.
Greene apresenta‑nos sobre o futuro Os novos dados
uma perspetiva da Humanidade científicos revelam
completamente nova e da Ciência. que podemos
do nosso lugar no estar errados.
Universo e do que
48 significa ser humano.
incrivelmente poderoso. Não conseguimos evitar ver o Uni‑ invisíveis que nos saíam dos globos oculares, sondando e
verso através de olhos humanos. No entanto, na verdade, investigando tudo aquilo em que tocavam; por outro lado,
muitas coisas não são o que parecem. Como irá descobrir não possuía as teorias do espectro eletromagnético ou da fo‑
neste livro, um dia não tem 24 horas. Um ano não tem 365 totransdução neuronal. Os primeiros biólogos acreditavam
dias (e um quarto). Quando admiramos a nossa estrela pou‑ que o esperma continha um homúnculo – uma versão mi‑
sada sobre o horizonte, num belo pôr do sol, esta já está, na núscula de uma pessoa – e que a função da mulher era ape‑
verdade, abaixo do horizonte: a atmosfera da Terra dobra a nas atuar como um recipiente para incubar esta pessoa em
luz, para que possamos vê‑la depois de se ter posto. Comer miniatura, até esta se tornar um bebé de tamanho real. Isaac
bolo e doces com açúcar não leva a que os miúdos enlou‑ Newton era um alquimista que se esforçou muito mais por
queçam nas festas3. Todos os anos, morrem mais pessoas tentar transformar o chumbo em ouro do que no seu tra‑
afogadas no banho do que as que são mortas por terroristas balho acerca da mecânica do cosmos. Galileu era astrólogo,
e tubarões, em conjunto, mas nenhum governo instituiu leis além de astrónomo, e fazia horóscopos para clientes quan‑
acerca da política de banhos (para já). do precisava de dinheiro. Van Helmont, o pai da química
Seja qual for a perspetiva, a intuição é um péssimo guia. pneumática, acreditava que os ratos simplesmente passariam
E, a dada altura, nós, como macacos curiosos, aperce‑ a existir se enchêssemos um vaso com algumas sementes de
bemo‑nos disso. Criámos a ciência e a matemática, numa trigo e uma camisa suada e o deixássemos numa cave húmi‑
tentativa de nos afastarmos da nossa perspetiva humana li‑ da, por vinte e um dias.
mitada e vermos o mundo como este objetivamente é, e não Ao longo dos anos, a ciência cometeu muitos erros. Po‑
como o vivenciamos. Reconhecemos os limites dos nossos deríamos argumentar que, na verdade, a função da ciência é
sentidos e encontrámos formas de os expandir, para poder‑ cometer erros, uma vez que é daí que se parte para começar
mos ver além do estreito espectro da nossa visão, ouvir para a errar menos e, ao fim de algumas tentativas, chegar a acer‑
lá do alcance dos nossos ouvidos e medir para lá das distân‑ tar. No geral, o arco da História curva‑se numa direção pro‑
cias que conseguíamos ver, até ao inacreditavelmente grande gressiva. Construímos civilizações gigantescas que duraram
e ao infinitesimalmente pequeno. séculos. Alterámos a natureza e criámos animais e plantações
Desde então, temo‑nos esforçado por aprender como que alimentaram milhares de milhões. Usámos a matemática
é, de facto, a realidade. É isso que é a ciência. Andamos a e a engenharia para erigir edifícios que duram há milénios e
fazê‑lo há centenas, senão milhares, de anos, mas nem sem‑ para construir navios que nos permitiram atravessar o globo
pre com sucesso. Muitas vezes, é fácil troçar das primeiras (e, ao fazê‑lo, afirmar que é mesmo um globo). Criámos na‑
tentativas, que nem sempre andam longe dos deuses e dos ves espaciais que conseguem dominar a dinâmica do sistema
bodes. Platão acreditava que conseguíamos ver graças a raios solar e visitar mundos alienígenas, a milhares de milhões de
quilómetros de distância. Até povoámos um planeta inteiro
3
Os melhores dados de que dispomos sugerem que as crianças enlou‑
com robôs. Num futuro próximo, um de nós irá reconhecer
quecem nas festas, independentemente do que comem. Em testes rea‑ toda a genialidade das pessoas que lhe antecederam e irá pi‑
lizados, quando os cientistas deram alimentos sem açúcar às crianças, sar aquele planeta e tornar‑se o primeiro macaco em Marte.
mas disseram aos pais que os seus bolos e bebidas continham açúcar, os
pais classificaram o comportamento dos filhos como pior, quando, na Tudo isso merece ser celebrado. A ciência e as matemá‑
realidade, este não era diferente. Nesse sentido, os pais têm pior com‑ ticas são uma caixa de ferramentas, uma verdadeira oficina,
portamento em festas do que os filhos, que estão simplesmente a com‑
portar‑se como miúdos em festas.
repleta dos mais brilhantes instrumentos e ideias, dispositi‑

Uma biografia A mais recente Tudo o que


rigorosa e acessível investigação científica ainda ignoramos
da Terra, que sobre as origens sobre o nosso
apresenta a épica humanas que levanta estranho
história de 4,6 mil novas e interessantes e misterioso
milhões de anos possibilidades sobre Universo.
do nosso planeta. a história do ser
humano.
49
vos e engenhocas, para aumentar as nossas capacidades e ex‑ por entre marinheiros em perigo, banqueiros ansiosos, corais
pandir os nossos sentidos, para que possamos observar cada antigos, Einstein e lasers espaciais. No entanto, iremos tam‑
vez mais da realidade. bém contar histórias que explicam porque é que os seres hu‑
Este livro é um guia que demonstra como tentámos re‑ manos são tão dados a cometer erros e como contornamos
primir o nosso cérebro de macaco para ver o Universo como essa tendência. Iremos perceber de que forma a evolução nos
ele realmente é, e não como este nos parece ser. Fala da di‑ equipou com sentidos maravilhosos que podem enganar‑nos
ferença entre aquilo que parece intuitivamente verdadeiro e e de facto o fazem, mas também com um cérebro que nos
aquilo que os cientistas descobriram ser a verdade. Muitas permite deliciarmo‑nos com as maravilhas do Universo e ig‑
vezes, essa verdade é muito mais difícil de acreditar. norar toda esta bagagem que carregamos na mente.
Os seus guias símios, praticamente carecas, vêm de do‑ Este livro contém as nossas histórias favoritas: crónicas
mínios científicos muito diferentes. A Hannah é matemática que explicam como sabemos aquilo que sabemos, relatos dos
e especializa‑se no processamento de quantidades colossais nossos percalços e passos em falso no caminho do conheci‑
de dados para compreender os padrões do comportamento mento sempre em expansão. Os erros, egos, conhecimen‑
humano. O Adam é geneticista e observa de perto o ADN, tos, sabedoria e preconceitos de cientistas e exploradores; o
para ver de que forma se adaptam e sobrevivem os seres vi‑ trabalho árduo, a tragédia, os becos sem saída, a pura sorte
vos, e como evoluiu a vida na Terra, em todo o seu magnífico e algumas decisões mesmo más – tudo isto são peças do que‑
esplendor. Como todos aqueles que trabalham em todos os bra‑cabeças da nossa História, que nos trouxe aonde estamos
domínios da ciência, estamos apenas a tentar perceber como hoje. Este livro celebra o facto de que errar é o caminho para
funcionam as coisas. O erro que as pessoas por vezes come‑ acertar; de que mudar de ideias nem sempre é fácil, mas estar
tem – e, muitas vezes, ensinam – é que a ciência é um banco preparado para o fazer é uma virtude (em geral, mas espe‑
de conhecimento. Afinal, a palavra «ciência» vem do latim cialmente na ciência). É uma viagem pelo tempo e espaço, e
«scire», ou «saber». No entanto, a ciência não se limita ao através do nosso corpo e cérebro, que mostra de que forma
saber; inclui não saber e encontrar uma forma de descobrir. as nossas incrivelmente poderosas emoções afetam a nossa
Aqui, neste livro, há respostas a perguntas que inicial‑ visão da realidade e a nossa mente nos mente. Em conjunto,
mente poderão parecer simples, tontas ou absolutamente estes relatos compõem a maior história de todas: de que for‑
desconcertantes. Qual seria a aparência dos alienígenas? O ma uma espécie de macacos praticamente carecas, com a sua
meu cão gosta mesmo de mim? E o que fará uma seita sui‑ curiosidade única e inata, decidiu não se contentar com as
cida espacial totalmente dedicada a um apocalipse próximo, aparências, mas remexer na essência do Universo e em tudo
quando este não acontecer? o que este contém.
As perguntas em si são bastante diretas (talvez à exceção A realidade não é o que parece. No entanto, se estiver a
da seita suicida espacial); no entanto, ao procurarmos as res‑ postos e com vontade de a procurar, este é o guia ideal para
postas, descobrimos que acidentalmente revelam os verda‑ perceber como as melhores ferramentas alguma vez inventa‑
deiros segredos do Universo, aqueles que só conseguimos ver das nos permitem ver as coisas como realmente são.
quando desligamos o nosso cérebro de macaco e utilizamos
as ferramentas que inventámos para ultrapassar os nossos
bloqueios evolucionistas. São perguntas cujas respostas re‑
velam até que ponto podemos realmente confiar nos nossos
instintos e até onde a ciência nos permitiu aventurarmo‑nos,
para lá de nós mesmos.
Este livro inclui histórias sobre o Universo e como ten‑
támos compreendê‑lo – todos os grandes conceitos, como
tempo, espaço, espaço‑tempo e infinito – e perguntas como:
«Que horas são?» Não no sentido de «Já passa da minha hora
de deitar» ou «Não está na hora de devolveres aquele livro
à biblioteca?». Qual é a medida verdadeira, universal, ine‑
quívoca e absoluta da forma em que o presente, de alguma VENHA CONHECER
A COLEÇÃO AQUI:
maneira, se encaixa entre coisas que já aconteceram e coisas
que vão acontecer? A resposta vai levar‑nos numa viagem

50
even to
ROLISBOA

ROLISBOA por André Ferreira

O mundo dos jogos narrativos (tabletop RPG) está em constante expansão e, no


contexto nacional, há provas claras de um crescimento saudável. A isto se acrescenta
a vontade de criar algo que permita uma maior união e um contexto específico para
partilha entre todos os que dão vida a este hobby. É aqui que entra a Rolisboa.

O QUE É A ROLISBOA?

A
Rolisboa é uma convenção que, em 2018,
nasceu na Biblioteca de Marvila, pelas mãos
de um grupo de amigos que queria celebrar
o hobby dos jogos narrativos.
Nesse ano surgiu a primeira edição da Rolisboa,
que, superou todas as expectativas e deixou claro que
se constituía como um evento com potencial para ser
uma referência a nível nacional.
Em 2019 regressaram as mesas de jogo, bem
como as restantes actividades, das quais se destaca
uma liveplay de Dungeons & Dragons, pelo grupo de
streamers nacionais Rock and Role, composto por per‑
sonalidades queridas de todos os portugueses como
Quimbé e Pedro Fernandes.
Houve lugar para workshops, desde a criação de
aventuras de uma única sessão (one‑shots) a worldbui‑
lding, passando pela criação de miniaturas, com a
mentoria e supervisão da Curious Goblin. E como
em Portugal também se fazem jogos narrativos, vários
game designers tomaram a liberdade de apresentar à
comunidade os seus projectos.

51
UM EVENTO EM PLENA PANDEMIA

E
Os workshops também tiveram o
m 2020, face à ameaça de seu regresso, com particular destaque
COVID‑19, o evento foi para o de pintura de miniaturas, com
moldado para o formato on‑ a orientação de Joana Jesus, aka, The
line, decorrendo no servidor de Dis‑ Almighty GM. A isto se acrescenta‑
cord do grupo RPG Portugal. ram as estreias dos lançamentos, com
À imagem do ano anterior, con‑ O Sacerdote das Trevas, um livro‑jogo
tou com várias mesas de jogo com os da autoria de Luís Dinis e publicado
mais diversos títulos, liveplays, pales‑ pela Editorial Divergência.
tras e apresentações. Destacou‑se a
presença de game designers brasileiros, NO PRESENTE, DE OLHOS
que partilharam as suas perspectivas PARA O FUTURO

C
e experiências sobre o contexto do
hobby e a sua indústria do outro lado om a vontade de continuar
do Atlântico. a crescer, o evento de 2022
procurará ser mais ambicio‑
O REGRESSO AO FORMATO so, com vista a alcançar ainda mais
PRESENCIAL pessoas, tanto já estabelecidas no

E
mundo nos jogos narrativos, como
m 2021, tornou‑se clara a também os mais curiosos.
necessidade de regressar ao A 5.ª edição terá lugar em Outu‑
formato presencial, e, com a bro na Biblioteca de Marvila, e conta‑
forte redução de casos de infectados rá com a paixão e dedicação que tem
por COVID‑19, procurou estabele‑ crescido de ano para ano, para todos
cer‑se um compromisso: garantir as os membros envolvidos e, principal‑
devidas regras de higiene e segurança, mente para a comunidade.
bem como continuar no formato on‑
line, através do Discord da Rolisboa,


de forma a garantir a presença de
quem não se sentisse confortável em
regressar de forma presencial. A Rolisboa
As várias sessões de jogo conta‑
ram não só com Dungeons & Dra‑ é de todos, e é ao
gons, mas também com Alien e Pa‑ alcance de todos
ranoia, entre outros títulos das mais
variadas premissas e universos, onde que quer estar.
se incluem jogos da autoria de game
designers nacionais.
Para além dos já habituais live‑
plays, houve também momentos de
entrevista a personalidades na in‑
dústria dos jogos narrativos, como
é o caso de B. Dave Walters (Vam‑
pire: The Masquerade); Andrew
Gaska (Alien) e Mike Pondsmith
(Cyberpunk).

52
lit eratura
edições especiais

DOS CORVOS DE POE


AOS MACACOS DE
BURROUGHS
por Luís Corte Real

53
em, nas suas mãos, o quarto volume
T de uma coleção muito especial para
mim. O primeiro é dedicado a Edgar
Allan Poe, o segundo a H. P. Lovecraft, o
terceiro a Robert E. Howard, e, este último, é
uma homenagem ao incomparável Edgar Rice
Burroughs. O que une estas obras? Para além
de pertencerem a quatro autores
incontornáveis da literatura fantástica e
popular, são profusamente ilustrados por
alguns dos melhores artistas portugueses.
Mais: as edições são luxuosas, verdadeiras
preciosidades de colecionador, oferecendo
capa dura e um design cuidado – é evidente,
Obra: Tarzan dos Macacos
para todos, que a SDE tem imenso orgulho & Outras Histórias da Selva
em cada um destes livros. Género: Literatura Fantástica
Editora: Saída de Emergência
Páginas: 480
PVP: 26,60 €

LUÍS VALENTE – ilustração página 21 RUI FILIPE – ilustração página 23


é um ilustrador português, de Lisboa, licenciado Nascido em Lisboa em abril de 1975, cedo mostrou aptidões na área da expressão
em Design de Comunicação pela FBAUL, artística. Venceu o concurso de banda desenhada no 1.º Festival Internacional
que tem uma carreira de mais de 20 anos Amadora BD em 1989. Integrou a primeira encarnação do coletivo Fantasia
a ilustrar para a área editorial, livros infantis, Estudio, participando nas revistas Art9 e Crash!. Entre 1999 e 2005 produziu
videojogos e publicidade, tanto em Portugal animação, artes-finais, ilustração e publicidade. Atualmente, divide o tempo entre
como no estrangeiro. a ilustração de capas, design gráfico e a área da programação.
https://luis-valente.tumblr.com https://www.artstation.com/ruifilipe-illustrator

Deus dá as nozes a quem tem dentes!

O
prazer de publicar alguns dos meus autores favoritos nestas edições de
colecionador é um dos grandes prazeres que tiro de ser editor. O outro é ter a
oportunidade de trabalhar com gente tão talentosa. Há pouco tempo, em conversa
com o Bruno Caetano, fizemos as contas e chegámos à conclusão de que, quando sair o
quinto volume, devemos atingir o marco dos cem ilustradores nacionais a colaborar nesta
coleção. Vou repetir: cem (100) ilustradores nacionais! É muita gente, é muito talento, e os
artistas portugueses estão de parabéns. No concurso que fizemos para este volume do
Tarzan recebemos mais de trinta candidaturas. Depois de considerar tema, traço,
anatomia, perspetiva, sombra, força da imagem e tudo o que faz de um desenho uma
obra‑prima, fechámos a shortlist com nove ilustrações. Devia ser simples escolher as duas
finalistas, certo? Errado. Todas nos pareciam boas o suficiente para entrarem na antologia.
Tendo mesmo de escolher dois artistas, os vencedores foram o Luís Valente e o Rui Filipe.
Mas seria injusto não procurar dar visibilidade ao trabalho dos restantes sete ilustradores.
Como tal, com a permissão deles, aqui vão as obras‑primas, acompanhadas de pequenas
biografias. Será um prazer contar com eles em futuros projetos.

54
Como nasceu
este projeto?

E
m 2016, a Safaa Dib,
que era coordenadora
editorial da SDE,
mostrou interesse em organizar
uma antologia do Edgar Allan
Poe. Não fiquei muito
convencido, pois já havia outras
no mercado, bastante completas
e bem traduzidas – de que
serviria publicarmos mais uma?
Mas, então, na revista BANG!
18, saiu um artigo que mostrou
o caminho para satisfazer o
desejo da Safaa em publicar Poe,
e, ao mesmo tempo, garantir
que podíamos oferecer algo
diferente de todas as outras.
O artigo era sobre as Figuras
Clássicas do Terror e consistia
numa série de maravilhosas
ilustrações de artistas nacionais,
tudo sob a curadoria atenta
do Bruno Caetano. Foi então
lançado um desafio ao Bruno:

AUMES RONOY FERNANDO MADEIRA


É um artista (1975) assina sob
autodidata. Nascido pseudónimo Phermad
em França, já laborou e desenvolve os mais
em diversas áreas diversos projetos nas
criativas, entre as quais áreas de ilustração, banda
ilustração publicitária, desenhada, storyboard,
infanto‑juvenil, cartoon, animação, pintura,
banda desenhada design, fotografia e vídeo.
promocional, desenho Vários anos em trilhos
conceptual, pintura criativos, com uma
mural, design gráfico, colaboração editorial diversa,
edição e compositing e trabalhos premiados com
digital, entre outras. distinções em concursos
A sua principal paixão nacionais e internacionais.
artística é a banda Como criativo, gosta
desenhada. A pintura essencialmente de
digital ocupa um esboçar, criar personagens,
lugar especial na sua ambientes, e, sempre
jornada há cerca de que possível, arte‑finalizar
uma década. os seus cozinhados.
Bom proveito!
https://www.instagram.
com/aumes.ronoy.art/ phermad.com

55
escolher 28 ilustradores pergunta que eu tinha na cabeça
portugueses para marcarem era: que autor escolher para o
presença na antologia de Poe segundo volume?
que a SDE pretendia preparar.
O Bruno abraçou o projeto
com paixão, escolheu os artistas Os senhores
certos, e, quando a antologia
chegou ao mercado, em 2017,
que se seguem
foi um sucesso. Depois de a

R
apidamente, tudo se
reimprimirmos várias vezes, a
tornou claro: tinha de ser
H. P. Lovecraft. Havia
algum risco nessa decisão, pois se
HENRIQUE GANDUM Poe era um autor transversal –
Nascido em 1996,
vive no Seixal. Desde admirado conjuntamente por
novo que passa muito leitores académicos e amantes do
tempo a desenhar,
sobretudo pequenas
fantástico –, já Lovecraft era um
histórias. Após ter autor de nicho. Ainda assim,
tirado vários cursos avançámos, o Bruno Caetano
na área do desenho e
audiovisuais, cumpre convidou mais de duas dezenas de
finalmente o sonho artistas, e o segundo volume chegou
de ilustrar e publicar
banda desenhada.
ao mercado em 2018, revelando‑se
Instagram:
um novo sucesso. Encorajado pela
@congo.bd recetividade do mercado, o autor
escolhido para o terceiro volume foi
o criador de Conan. Se Lovecraft já
era um autor arriscado, Robert E.
Howard era‑o muito mais (o
primeiro era autor de nicho, o
segundo era autor de um nicho

JOÃO TIAGO TAVARES MARIA VIEIRA


Nasceu a 2 de agosto É uma ilustradora e
de 1974 e desde pintora com um estilo
cedo foi mordido pelo principalmente realista,
bichinho da ilustração. mas sempre com
Em 1995, vence o um toque mágico ou
concurso Juventude fantástico. A maior parte
e Defesa Nacional dos trabalhos que produz
na modalidade de estão intimamente ligados
Banda Desenhada. com mundos que se
Dois anos depois, encontram para além desta
licencia‑se em Design realidade. Num mundo
de Comunicação na onde tudo é feito numa
Faculdade de Belas fábrica, onde tudo é igual e
Artes de Lisboa. Desde nunca pessoal, quer fazer
então tem trabalhado projetos que transmitam
como designer gráfico um sentimento específico,
e ilustrador. O bichinho exclusivo e, de certa
ainda não o largou. maneira, solitário na sua
existência, pois nenhuma
obra é igual a outra.
https://www.instagram.
com/art.of.mlvieira/

56
dentro do nicho), mas a paixão uma das personagens mais famosas volta. Mas toda esta caminhada
dos ilustradores foi imensa – da literatura mundial. E o só faz sentido se os leitores nos
afinal, todos haviam crescido a ler resultado é aquele que tem nas acompanharem. Por isso, contamos
as bandas desenhadas do Conan. mãos: uma edição apaixonada, consigo para ler e divulgar. E,
Em 2021, a antologia dedicada ao feita por apaixonados e para agora, está na hora da macacada, e
bárbaro mais famoso da literatura apaixonados. eu despeço‑me com votos de boas
fantástica chegou ao mercado. À leituras!
data deste editorial, ainda não
teve direito a reimpressão, mas E agora?
acredito que irá lá chegar. Para o

H
quarto volume, pareceu‑me averá um quinto volume
natural homenagear o criador de nesta coleção? Claro que
Tarzan. Juntamente com sim, o tema está escolhido
Super‑Homem e Zorro, Tarzan é e, em breve, contamos estar de

MATTHIEU PEREIRA PEDRO NASCIMENTO


Nasceu em França Nascido no Porto em
e é um ilustrador de 1986, começou a
banda desenhada que desenhar ainda muito
quer contar histórias jovem, inspirado pelas
através do desenho. obras dos grandes
Está atualmente a viver mestres da ilustração
em Portugal e participou fantástica.
em vários concursos Trabalha como
e fanzines nacionais. artista freelance,
Ficou em segundo predominantemente para
lugar no Amadora o mercado internacional,
BD 2018 e venceu com maior incidência
o concurso de Odemira na área de ilustração de
em 2019. Desde então jogos RPG e de capas
tem prosseguido de livros. Trabalha,
a sua jornada no também, como artista de
ramo da BD, criando banda desenhada e, em
diversos projetos para projectos audiovisuais,
autores portugueses e como artista de
estrangeiros. storyboard.
Instagram: @matth_ https://pedronart.
comicsart wixsite.com/pedronart

57
© João Gordinho
con to

eeka tornara‑se mãe. Tarzan virou‑se de repente a ele. Cravou os dentes na carne do

T
dos Macacos mostrou‑se antebraço antes de o homem‑macaco conseguir retirá‑lo, e
tremendamente interessado, muito ela perseguiu‑o por uma curta distância enquanto ele fugia
mais, na verdade, do que Taug, de imediato por entre as árvores; mas Teeka, transportando
o pai. Tarzan gostava imenso de o seu bebé, não logrou apanhá‑lo. A uma distância segura,
Teeka. Mesmo os cuidados da Tarzan parou e virou‑se para observar a sua antiga parceira
futura maternidade não extinguiram por completo a de brincadeiras com um espanto indisfarçável. O que
fogosidade da juventude e Teeka mantivera‑se uma acontecera para alterar de tal maneira a gentil Teeka? Ela
parceira de brincadeiras animada, mesmo numa cobrira de tal forma a coisa nos seus braços que Tarzan
idade em que as outras fêmeas da tribo de Kerchak ainda nem conseguira reconhecê‑la pelo que era; mas agora,
assumiram a séria dignidade da maturidade. Ela, quando abdicava de o perseguir, ele viu‑o. Por entre a sua
todavia, manteve o prazer infantil das brincadeiras dor e desilusão ele sorriu, pois já antes Tarzan vira jovens
básicas da apanhada e das escondidas que a mente mães símias. Daí a uns dias já não seria tão desconfiada.
fértil de Tarzan desenvolvera. Mas ainda assim Tarzan sentia‑se magoado; não era correto
Brincar à apanhada nas copas das árvores é um que Teeka, de entre todos, o temesse. Ora essa, nunca na
passatempo entusiasmante e inspirador. Tarzan vida ele lhe faria mal, ou ao seu balu, que era a palavra que
comprazia‑se com isso, mas os machos da sua os macacos empregavam para bebé.
infância há muito que tinham abdicado de tais E agora, mais do que a dor no braço ferido e a mágoa
práticas infantis. No entanto, Teeka sempre alinhou no seu orgulho, surgiu um desejo ainda mais forte de
até praticamente à hora de o bebé chegar; mas com o se aproximar e observar o filho recém‑nascido de Taug.
nascimento do seu primogénito até Teeka mudou. Possivelmente estarão a pensar que Tarzan dos Macacos,
As provas da mudança surpreenderam e forte lutador que era, deveria ter‑se afastado perante o
magoaram Tarzan de forma incomensurável. Uma irritado ataque de uma fêmea, ou hesitar em regressar para
manhã, ele viu Teeka agachada sobre um galho satisfazer a sua curiosidade quando com facilidade poderia
baixo segurando algo muito junto do seu peito — ter derrotado a enfraquecida mãe da cria recém‑nascida;
algo pequenino que se contorcia e remexia. Tarzan mas não precisam de puxar pela imaginação. Se fosse um
aproximou‑se, impulsionado pela curiosidade comum símio, saberia que apenas um macho na iminência da
a todas as criaturas dotadas de um cérebro que loucura se voltaria contra uma fêmea com outra intenção
progrediu para lá do estado microscópico. que não fosse ralhar‑lhe gentilmente, com a ocasional
Teeka revirou os olhos na direção dele e puxou exceção do indivíduo que encontramos exemplificado entre
ainda mais para si a criaturinha em contorção. Tarzan a nossa própria espécie e que se deleita em bater na sua
aproximou‑se. Teeka afastou‑se e exibiu as presas. cara‑metade apenas por ser mais pequena e fraca do que ele.
Tarzan ficou perplexo. Em todas as suas vivências Tarzan aproximou‑se de novo da jovem mãe — com
com Teeka, nunca ela lhe arreganhara os dentes a cautela e com uma rota de fuga em aberto. Uma vez mais,
não ser na brincadeira; mas hoje não parecia para Teeka rugiu ferozmente. Tarzan protestou.
brincadeiras. Tarzan passou os seus dedos morenos — Tarzan dos Macacos não faz mal ao balu de Teeka —
pelo espesso cabelo negro, inclinou a cabeça para um disse ele. — Deixa‑me vê‑lo.
lado e ficou a olhar. A seguir aproximou‑se mais um — Vai embora! — ordenou Teeka. — Vai embora ou
pouco, esticando o pescoço para olhar melhor para a mato‑te.
coisa que Teeka aconchegava. — Deixa‑me ver — insistiu Tarzan.
Uma vez mais, Teeka repuxou para trás o lábio — Vai embora — reiterou a símia fêmea. — Vem aí
superior numa rosnadela de aviso. Tarzan estendeu Taug. Ele vai fazer com que vás embora. Taug mata‑te. É o
uma mão, com cautela, para tocar na coisa que balu de Taug.
Teeka segurava, e esta, com uma rosnadela horrível, Um rugido selvagem atrás dele alertou Tarzan para a

59
E dgar R ice B urroughs

proximidade de Taug e para o facto de o brutamontes ter sobre o ramo curvado por baixo dele, Tarzan lançou
ouvido os avisos e ameaças da sua companheira e ter vindo de repente a mão para a frente, com um laço amplo
em seu auxílio. a percorrer velozmente o ar, e deu‑se um puxão
Ora bem, Taug, assim como Teeka, fora parceiro repentino quando assentou sobre Taug, que caiu de
de brincadeiras de Tarzan enquanto o macho ainda era joelhos, um puxão que prendeu com força as pernas
suficientemente jovem para querer brincar. A certa altura peludas do antropoide.
Tarzan salvara a vida de Taug, só que a memória de um Taug, lento a pensar, percebeu demasiado tarde a
símio não é duradoura, nem a gratidão se sobrepõe ao intenção do seu atormentador. Tentou escapar, mas o
instinto paterno. Tarzan e Taug já em tempos tinham homem‑macaco aplicou um forte esticão à corda que
medido forças e Tarzan saíra vitorioso. Esse facto poderia já puxou Taug do seu poleiro e pouco depois, rosnando
não ser recordado por Taug, mas mesmo assim ele poderia de forma terrível, o símio ficou pendurado de cabeça
de imediato arriscar nova derrota pelo seu primogénito — para baixo a uns dez metros do chão.
se calhasse estar com essa disposição. Tarzan prendeu a corda a um galho forte e desceu
Pelos seus rugidos terríveis, que agora se intensificaram até perto de Taug.
em força e volume, pareceu estar com tal disposição. — Taug — disse ele —, és tão estúpido como
Tarzan não sentiu medo de Taug, nem sequer a lei da selva Buto, o rinoceronte. Agora podes ficar aí pendurado
exigia que ele fugisse da luta com qualquer macho, a não até meteres juízo na cabeça. Podes ficar aí pendurado
ser que isso lhe interessasse por meras questões pessoais. enquanto vou falar com Teeka.
Mas Tarzan gostava de Taug. Nada tinha contra ele e a sua Taug vociferou e ameaçou, mas Tarzan limitou‑se
mente humana indicou‑lhe o que a mente de um símio a sorrir‑lhe enquanto descia com leveza para os
nunca deduziria — que o comportamento de Taug de patamares mais baixos. Aqui, voltou a aproximar‑se
maneira alguma revelava ódio. Tratava‑se unicamente da de Teeka para uma vez mais ser recebido com
necessidade de um macho proteger o seu recém‑nascido e a dentes arreganhados e rugidos ameaçadores. Tentou
sua companheira. acalmá‑la; insistiu que as suas intenções eram de
Tarzan não tinha qualquer desejo de lutar com Taug, amizade e esticou o pescoço para espreitar para o balu
nem o sangue dos seus antepassados ingleses ansiava pelo de Teeka; mas a símia não se deixou persuadir de que
desejo de fugir, mas, quando o macho investiu, Tarzan ele não desejava mal ao seu pequenino. O espírito
saltou agilmente para um lado e, assim encorajado, Taug materno era tão recente nela que a razão era ainda
rodopiou e lançou‑se selvaticamente ao ataque. Talvez a subjugada pelo instinto.
memória de uma derrota passada às mãos de Tarzan o tenha Apercebendo‑se da futilidade de tentar apanhar e
espicaçado. Talvez o facto de Teeka estar ali a assistir tenha repreender Tarzan, Teeka tentou escapar‑lhe. Desceu
despertado a vontade de derrotar o homem‑macaco diante até ao chão e arrastou‑se pela pequena clareira na
dos olhos dela, pois no peito de cada macho da selva reside qual se encontravam espalhados os símios da tribo
um grande egoísmo que se expressa no desempenho de em busca de comida, e então Tarzan desistiu de
feitos de ousadia diante de uma plateia do sexo oposto. tentar convencê‑la a autorizar uma observação de
Ao lado do homem‑macaco estava pendurada a sua perto ao balu. O homem‑macaco gostaria de ter
comprida corda de erva — o brinquedo de ontem, a arma pegado na coisinha. Só de o ver despertou no peito
de hoje — e enquanto Taug investia por uma segunda vez, dele uma estranha ânsia. Desejava aconchegar e
Tarzan enfiou as espirais pela cabeça e com destreza sacudiu acarinhar o macaquinho grotesco. Era o balu de
o laço de correr enquanto ele uma vez mais escapava Teeka e Tarzan em tempos dedicara o seu jovem afeto
agilmente à fera desajeitada. Antes de o macaco poder a Teeka.
virar‑se de novo, Tarzan já fugira para longe por entre os Mas agora a voz de Taug chamou‑lhe a atenção.
ramos do patamar superior. As ameaças que encheram a boca do símio
Taug, agora tomado por uma verdadeira e frenética transformaram‑se em súplicas. O laço cingido estava
fúria, seguiu‑o. Teeka espreitou para cima, para eles. Era a impedir a circulação de sangue nas suas pernas
difícil perceber se estaria interessada. Taug não trepava tão — começava a sofrer. Vários macacos instalaram‑se
depressa quanto Tarzan, pelo que este alcançou os níveis junto dele interessados no seu sofrimento. Teceram
mais altos até onde o pesado símio não se atrevia a segui‑lo comentários pouco abonatórios em relação a ele, pois
para não ser batido. Ali ele parou e olhou para baixo, para o todos já tinham sentido a força das mãos poderosas
seu perseguidor, fazendo‑lhe caretas e chamando‑lhe tantos de Taug e a força das suas grandes mandíbulas. Agora
nomes quantos os que ocorriam à mente fértil do homem. desfrutavam da vingança.
Seguidamente, depois de ter levado Taug a espumar de raiva Teeka, vendo que Tarzan voltara para trás na
de tal forma que o grande macho praticamente dançou direção das árvores, parara ao centro da clareira e

60
a luta pelo balu

ali se sentara abraçada ao seu balu, a lançar olhares a Taug as profundezas da sua abissal ignorância, destacando
desconfiados aqui e ali. Com a chegada do balu, como Tarzan do Macacos era mais grandioso e poderoso do
o mundo despreocupado de Teeka de repente que Taug ou qualquer outro símio.
tornara‑se povoado por imensos inimigos. Viu um Acabaria por libertar Taug, mas só depois de este
inimigo implacável em Tarzan, desde sempre o seu reconhecer em absoluto a sua inferioridade. E então
melhor amigo. Até a pobre e velha Mumga, meia cega o macho enlouquecido irrompeu vindo de baixo e de
e quase sem dentes, que procurava pacientemente imediato Tarzan passou de um jovem bem‑intencionado e
larvas debaixo de um tronco caído, representava brincalhão a um animal selvagem rosnador. O seu cabelo
para ela um espírito maligno sedento do sangue de eriçou‑se‑lhe ao longo do escalpe e o lábio superior recuou
pequenos balus. para que as suas presas de luta pudessem ser reveladas e
E apesar de Teeka se proteger desconfiada de estivessem a postos. Não esperou que o macho chegasse
tantos males, aqui onde não havia mal, não reparou junto dele, pois algo na voz do atacante despertou
em dois olhos sinistros verde‑amarelados a fitá‑la dentro do homem‑macaco uma sensação de antagonismo
fixamente desde um aglomerado de arbustos no outro beligerante que não poderia ser negada. Com um grito com
lado da clareira. nada de humano, Tarzan saltou diretamente à garganta do
Completamente esfomeada, Sheeta, a pantera, atacante.
olhou com cobiça para a carne tentadora ali tão à A impetuosidade, o peso e o impulso do seu corpo
mão, mas hesitou ao ver os grandes machos mais à empurraram o macho para trás, dando às mãos numa
frente. tentativa de se agarrar na queda por entre os ramos
Ah, se a símia com o seu balu se aproximasse folhosos da árvore. Os dois caíram de uma altura de cinco
um pouco mais! Um salto rápido e cairia em cima metros, com os dentes de Tarzan cravados na jugular do
deles, fugindo com a sua carne antes que os machos seu adversário, até que um ramo grosso lhes travou a
reagissem. descida. O macho bateu em cheio no galho com o fundo
A ponta da sua cauda fulva moveu‑se de forma das costas, ficou ali suspenso por um momento com o
espasmódica em pequenos movimentos bruscos; homem‑macaco ainda sobre o seu peito e depois tombou
o seu maxilar inferior estava caído, expondo uma em direção ao chão.
língua vermelha e presas amarelecidas. Mas Teeka Tarzan sentiu o relaxamento instantâneo do corpo sob
nada disto viu, nem qualquer dos outros símios que o seu depois do pesado impacto com o ramo, e enquanto
se alimentavam ou repousavam em redor dela. Nem o outro se voltava por completo e encetava de novo a sua
sequer Tarzan dos Macacos nas árvores. queda na direção do solo ele estendeu uma mão e agarrou o
Ouvindo os insultos que os machos dedicavam ramo a tempo de controlar a sua própria descida, enquanto
ao indefeso Taug, Tarzan galgou rapidamente o símio caía desamparado junto à base da árvore.
entre eles. Um aproximava‑se mais e debruçava‑se Tarzan olhou por momentos para baixo, para a forma
num esforço de chegar ao símio dependurado. inerte do seu último antagonista, e depois levantou‑se
Enfurecera‑se imenso ao recordar a última vez por completo, inchou o peito, bateu‑lhe com os punhos
em que Taug o maltratara e agora sentia sede de cerrados e rugiu o extraordinário grito de desafio do símio
vingança. Assim que agarrasse o macaco baloiçante, vitorioso.
depressa o teria ao alcance das mandíbulas. Tarzan Até Sheeta, a pantera, agachada para saltar na orla da
reparou e ficou enfurecido. Gostava de lutas justas, pequena clareira, se remexeu desconfortável quando a voz
e sentiu‑se revoltado com o que aquele símio poderosa fez reverberar o sinistro grito pela floresta. Sheeta,
contemplava fazer. Uma mão peluda já agarrara o nervosa, olhou para a esquerda e para a direita, assegurando
indefeso Taug quando, com um zangado rugido que ainda tinha garantida a rota de fuga.
de protesto, Tarzan saltou para o ramo ao lado do — Sou Tarzan dos Macacos — gabou‑se o
símio agressor e com uma única e forte palmada homem‑macaco —, forte caçador, forte lutador! Não há na
afastou‑o do seu poleiro. selva ninguém tão grandioso como Tarzan.
Surpreendido e enfurecido, o macho tentou Então, regressou na direção de Taug. Teeka assistiu
energicamente agarrar‑se ao tombar para o lado e a ao que aconteceu na árvore. Até pousara o seu precioso
seguir com um movimento ágil logrou projetar‑se balu na erva macia e aproximara‑se um pouco mais para
para outro ramo um pouco mais abaixo. Assim que testemunhar melhor tudo o que se passava nos ramos acima
teve onde se agarrar rapidamente se endireitou e com dela. No fundo do seu coração ainda estimaria Tarzan, de
igual rapidez trepou para se vingar de Tarzan, mas o pele macia? O seu peito selvagem encher‑se‑ia de orgulho
homem‑macaco já estava a tratar de outro assunto e ao testemunhar o seu triunfo sobre o símio? Terão de
não queria ser interrompido. Explicava uma vez mais perguntar a Teeka.

61
E dgar R ice B urroughs

E Sheeta, a pantera, reparou que a fêmea deixara a lado da cria, exibindo as presas e rosnando um ao
sua cria sozinha na erva. Voltou a mover a sua cauda, outro sobre a criaturinha.
como se esta espécie de açoite a que se permitiu pudesse Sheeta temia apanhar o balu, pois dessa forma
estimular a sua coragem momentaneamente desvanecida. facultaria ao homem‑macaco uma abertura para
O grito do vitorioso homem‑macaco ainda a deixava atacar; pelo mesmo motivo Tarzan hesitou em retirar
nervosa, como se por feitiço. Decorreriam uns minutos a presa do caminho da pantera, pois caso se erguesse
até se sentir de novo a postos para atacar à vista dos para o fazer a grande fera lançar‑se‑ia a ele num abrir
grandes antropoides. e fechar de olhos. Assim permaneceram enquanto
E enquanto reunia de novo as suas forças, Tarzan pôs‑se Teeka atravessava a clareira, avançando cada vez mais
ao lado de Taug e a seguir, trepando mais alto até ao ponto devagar à medida que se aproximava da pantera,
onde estava atada a ponta da corda de relva, soltou‑a e pois até o seu amor de mãe mal conseguia suplantar
baixou calmamente o símio, balançando‑o até as mãos se o terror instintivo face a este inimigo natural da sua
agarrarem a um galho. espécie.
Taug depressa se pôs em posição em segurança e Atrás dela surgiu Taug, com cautela, muitas
desfez‑se do laço. No seu coração enlouquecido pela raiva pausas e ainda mais bravata, e ainda atrás dele os
não havia espaço para gratidão face ao homem‑macaco. outros machos, rosnando ferozmente e proferindo
Recordava apenas o facto de Tarzan lhe ter infligido os seus extraordinários gritos de desafio. Os olhos
esta penosa indignidade. Haveria de vingar‑se, mas de verde‑amarelados de Sheeta cintilaram terrivelmente
momento as suas pernas estavam tão entorpecidas e a sua sobre Tarzan e para lá dele espreitaram fugazmente
cabeça tão zonza que teria de satisfazer mais tarde a sua para os símios de Kerchak, que avançavam para ela.
sede de vingança. A razão indicava‑lhe que deveria dar meia‑volta
Tarzan enrolava a sua corda enquanto dava a Taug uma e fugir, mas a fome e a proximidade do apetitoso
lição sobre a futilidade de testar os seus pobres poderes, petisco na erva diante de si incentivaram‑na a ficar.
físicos e intelectuais, face a quem lhe era superior. Teeka Avançou uma pata na direção do balu de Teeka e,
aproximara‑se por baixo da árvore e espreitava para quando o fez, com um grito gutural selvagem Tarzan
cima. Sheeta ziguezagueava furtivamente em frente, com dos Macacos lançou‑se a ela.
a barriga colada ao chão. Daí a um momento sairia da A pantera recuou para enfrentar o ataque do
vegetação rasteira e estaria a postos para a investida veloz homem‑macaco. Tentou uma assustadora varredela
e para a rápida retirada que poria fim à breve existência do com a pata na direção de Tarzan, que se lhe tivesse
balu de Teeka. acertado teria desfeito a cara dele, só que não lhe
Então, calhou Tarzan olhar sobre a clareira. De chegou a tocar, pois Tarzan esquivou‑se para baixo e
pronto extinguiu‑se nele o seu comportamento de depois aproximou‑se, empunhando numa mão forte
gracejos de boa índole e gabarolice pomposa. Silenciosa e a sua longa faca — a faca do seu falecido pai, do pai
agilmente, disparou para baixo na direção do solo. Teeka, que nunca conhecera.
vendo‑o a descer, e achando que ia atrás do seu balu, Sheeta, a pantera, esqueceu instantaneamente o
eriçou‑se e preparou‑se para a luta. Só que Tarzan passou balu. Agora só pensava em despedaçar com as suas
velozmente por ela e enquanto seguia caminho os olhos fortes garras a carne do seu antagonista, em cravar
dela acompanharam‑no e percebeu a causa da sua súbita as suas presas longas e amarelecidas na pele macia
descida e rápida investida pela clareira. Ali, bem à vista, e mole do homem‑macaco, mas Tarzan já antes
encontrava‑se Sheeta, a pantera, a avançar lentamente na lutara com criaturas da selva dotadas de garras. Até
direção do pequeno balu, a remexer‑se, que se encontrava então já combatera monstros com presas, mas nem
pousado na erva a poucos metros de distância. sempre escapara incólume. Sabia que riscos corria,
Teeka largou um grito estridente de terror e de mas Tarzan dos Macacos, acostumado a lidar com
alerta enquanto largava atrás do homem‑macaco. Sheeta o sofrimento e a morte, não se encolhia diante de
apercebeu‑se da chegada de Tarzan. Viu a cria da símia ninguém, pois ninguém temia.
diante dela e achou que o outro estava disposto a furtar‑lhe Assim que se esquivou do golpe de Sheeta,
a sua presa. Com um rugido de fúria, investiu. saltou para a retaguarda do animal e depois pôs‑se
Taug, alertado pelo urro de Teeka, desceu para a completamente em cima do seu dorso fulvo,
apoiar. Diversos outros machos, rosnando e grunhindo, enterrando os seus dentes no pescoço de Sheeta
aproximaram‑se da clareira, mas estavam bem mais longe do e os dedos de uma mão no pelo da garganta,
balu e da pantera do que Tarzan dos Macacos, de tal forma enquanto com a outra apontava a faca à ilharga
que Sheeta e o homem‑macaco chegaram junto do bebé de da pantera.
Teeka quase em simultâneo, e ali se quedaram, um de cada Sheeta rebolou vezes sem conta na erva, rosnando

62
a luta pelo balu

e rugindo, tentando arranhar e morder, num esforço homem‑macaco branco com o seu ancestral inimigo,
louco para se libertar do seu antagonista ou expor Sheeta, a pantera.
alguma parte do corpo dele ao alcance dos seus dedos Numa excitação frenética, Teeka dançou efusivamente
ou garras. sobre o ramo que balançava sob o enorme peso dela
Quando Tarzan saltou para se aproximar da enquanto incentivava os machos do seu povo, e Thaka,
pantera, Teeka correra rapidamente até lá e agarrara Mumga e Kamma, com as outras fêmeas da tribo de
o seu balu. Agora estava instalada num ramo alto, Kerchak, adicionaram os seus gritos estridentes ou
em segurança, a aconchegar a sua coisinha no seu grunhidos ferozes ao pandemónio que agora reinava na
peito peludo, enquanto os seus pequenos olhos selva.
selvagens incidiam nos adversários na clareira, e a Mordida e mordendo, arranhando e sendo arranhada,
sua voz feroz impeliu Taug e os outros machos a Sheeta lutou pela vida; mas tudo estava contra ela. Até
saltarem para a luta. Numa, o leão, teria hesitado em atacar tal quantidade
Isto incentivou os machos a aproximarem‑se de grandes machos da tribo de Kerchak e agora, a uns
mais, redobrando o seu terrível clamor, mas Sheeta oitocentos metros de distância, escutando os sons da
já estava completamente embrenhada — nem terrível batalha, o rei dos animais ergueu‑se desconfortável
sequer os ouvia. A dada altura conseguiu libertar‑se do seu sono do meio‑dia e esgueirou‑se para mais longe na
parcialmente do homem‑macaco nas suas costas, pelo floresta.
que Tarzan balançou por um instante diante daquelas Neste momento, o corpo estraçalhado e
garras terríveis e num breve momento decorrido ensanguentado de Sheeta cessou o seu esforço titânico.
antes de conseguir voltar a agarrar‑se de novo, um Retesou‑se espasmodicamente, contorceu‑se e
golpe de uma pata traseira rasgou‑lhe uma perna da imobilizou‑se, mas os machos continuaram a lacerá‑la
anca ao joelho. até a sua bela pelagem ficar em retalhos. Finalmente
Terá sido, eventualmente, a visão e o cheiro do desistiram por puro cansaço físico e então do
sangue que incentivou os símios em redor; mas foi emaranhado de corpos ensanguentados ergueu‑se um
Taug o verdadeiro responsável pelo que fizeram. gigante carmesim, direito como uma seta.
Taug, ainda um pouco antes sentindo uma Assentou um pé sobre o cadáver da pantera e, erguendo
tremenda raiva por Tarzan dos Macacos, abeirou‑se o seu rosto manchado com sangue para o azul dos céus
do par em luta, com os seus pequenos olhos equatoriais, deu voz ao terrível grito de vitória dos símios
malévolos raiados de sangue e fitando‑o de forma machos.
penetrante. O que se passaria na sua mente selvagem? Um a um, os seus companheiros peludos da tribo de
Será que se comprazia com a posição nada invejável Kerchak seguiram o seu exemplo. As fêmeas desceram dos
daquele que ainda recentemente o atormentara? seus poleiros seguros e açoitaram e insultaram o cadáver de
Ansiaria por ver as longas presas de Sheeta Sheeta. Os jovens símios reencenaram o combate imitando
afundarem‑se na garganta macia do homem‑macaco? os seus progenitores mais fortes.
Ou terá compreendido o altruísmo valente que Teeka estava bastante próxima de Tarzan. Ele voltou‑se
incentivara Tarzan a correr para o salvamento, e viu‑a com o balu bem cingido ao peito peludo e estendeu
expondo a sua vida ao perigo em troca do balu de as mãos para pegar no pequenito, a contar que Teeka lhe
Teeka — do pequeno balu de Taug? Será a gratidão cravasse as presas e se atirasse a ele; mas, em vez disso, ela
um dom apenas do Homem, ou será que as ordens depositou o balu nos braços dele e, aproximando‑se mais,
inferiores também o possuem? lambeu‑lhe as suas medonhas feridas.
Com o sangue de Tarzan a jorrar, Taug E, neste momento, Taug, que escapara apenas com
respondeu a estas perguntas. Com todo o peso do uns meros arranhões, aproximou‑se e agachou‑se ao
seu enorme corpo saltou sobre Sheeta, rosnando de lado de Tarzan e observou‑o enquanto ele brincava com
forma horrenda. As suas longas presas de combate o pequeno balu, até que por fim também se debruçou
cravaram‑se na garganta branca. Os seus braços fortes e ajudou Teeka a limpar e a tratar os ferimentos do
bateram e arranharam o pelo macio até este esvoaçar homem‑macaco. BANG!
na brisa da selva.
E vendo diante deles o exemplo de Taug, os
outros machos investiram, cravando em Sheeta presas
destruidoras e enchendo a floresta com o ruído
selvagem dos seus gritos de combate.
Ah!, mas foi uma visão primorosa e inspiradora,
esta batalha dos símios primevos e do grande

63
64
l iteratu ra
Metais pesados

ritual de
INICIAÇÃO
POR FERNANDO RIBEIRO

M
ichel Houellebecq Neste livro,
(MH) será, talvez, o MH descreve a
maior romancista da sua experiência
atualidade. com o mestre do
De origem terror, revelando
francesa e aspetos e
pouco dado a perspetivas
convencionalismos, gera devoção literária perspicazes
e ódio social com os seus inúmeros e não menos
romances que se destacam pela liberdade apaixonadas que
com que escreve, fundada num profundo nos permitem
autoconhecimento da espécie e da observar o
importância da geografia nos temperamentos. princípio fundador, segundo o autor, da obra
É famosa a polémica com a comunidade de HPL: o medo.
árabe por ocasião do lançamento do seu livro Esse medo alavanca toda a produção do
Submissão (2015), um romance perfumado escritor de Providence, um terror dinâmico
de distopia que simula uma subtil revolução e profundo que serve de base e se mistura
islâmica, aceite pelo manso quotidiano com a vida física e mental de HPL, que, de
gaulês, que leva a linha dura do islamismo ao acordo com MH, é um homem tomado pelo Fernando Ribeiro
poder. pavor dos outros, da paisagem, do progresso, Vocalista e letrista dos
Moonspell. No universo
Assinalemos, no entanto, que os textos da modernidade que mudava a América lovecraftiano, assinou
de MH são profundamente marcantes e contemporânea de Lovecraft. as introduções das
sensórios, porque o autor trabalha a categoria MH tem ainda um outro ensaio, desta antologias Os Melhores
Contos de H. P. Lovecraft
do medo como nenhum outro escritor feita sobre Schopenhauer, En présence e participou nas
contemporâneo – talvez mesmo, somente, de Schopenhauer (também sem tradução antologias As Sombras
Sobre Lisboa e Contos de
Jonathan Littell, autor de, entre outros, Uma ou edição em Portugal), que confere o Terror do Homem‑Peixe.
História Antiga. vértice final de um triângulo inesperado,
Um aspeto menos conhecido de MH é mas que permite explicar de onde Michel
que a sua primeira “novela” (como refere, Houellebecq resgata, ele próprio, o grande
ironicamente, o autor) é um ensaio sobre pilar da sua escrita: o medo de existir. BANG!
um nosso bem conhecido – H. P. Lovecraft
(HPL) –, intitulada Against the World, Against
Life, ainda sem tradução/edição nacional.

65
m ús i c a
enquanto apolo dormia

Figurinos de Kaspar
e Samiel para a
estreia (1821)

Der Freischütz de Weber e o despontar


da ópera romântica alemã

por Tiago Manuel da Hora

66
No dealbar do do fantástico e
revolucionário século do sobrenatural,
xix, surgiu uma nova em permanente
tradição musical: oposição ao mortal,
a ópera romântica humano e terreno.
alemã. Impera um Uma das obras mais
recurso constante a significativas para o
personagens, fábulas desencadear desse
e mitos das lendas género é a ópera Der
nórdicas antigas e Freischütz de Carl
dos contos populares Maria von Weber.
germânicos,
recuperadas
por libretistas e
O despontar do espírito
compositores, que
romântico na ópera

A
trazem para o seu génese da ópera remonta à Itália
do início do século xvii. Apesar de
tempo o domínio desde esse período a ópera italiana
ser o principal modelo cultivado nas
grandes cidades da Europa ocidental,
a pouco e pouco começaram a surgir variantes locais,
designadamente em francês e em inglês. Num período
em que não havia televisão nem cinema, um género
como a ópera, que conjugava arte teatral, dança,
música e um enorme aparato cénico, era o rei da oferta
cultural e de entretenimento.
Se no final do século xviii A Flauta Mágica de
Mozart já era em alemão e evocava as temáticas do
Tiago manuel da hora fantástico (ver BANG! n.º 29), só a partir da primeira
Produtor, musicólogo, geração de compositores «românticos» é que há um
doutorado em Ciências verdadeiro desenvolvimento de um modelo de ópera
Musicais, investigador
do INET‑MD/UNL. alemã, assente em temáticas e abordagem musical
Dedica‑se à história da específicas.
música portuguesa e da
produção discográfica.
Entre os principais impulsionadores contam‑se
Como produtor de música Louis Spohr (1784‑1859), E. T. A. Hoffmann
clássica, tem assinado (1776‑1822), Heinrich Marschner (1795‑1861) —
diversas edições em
etiquetas nacionais e especialmente interessante é a sua ópera Der Vampyr
internacionais. (1828) — e Carl Maria von Weber (1786‑1826),

67
Der Freischütz em gravações:

• Staatskapelle • Berliner • Frankfurt


Dresden, Leipzig Philharmoniker, Radio Symphony,
cuja ópera Der Freischütz (1821) é a Radio Chorus, Chor der MDR Leipzig
principal referência nesta primeira P. Schreier, G. Deutschen Oper Radio Choir,
Janowitz, G. Berlin, R. Schock, L. Davidsen,
geração. Essa tradição será seguida com Paul, T. Adam, E. Grümmer, K. C.
grande expressão por Richard Wagner A. Schager, S.
C. Kleiber Kohn, F. Hoppe,
(dir.), Deutsche J. Keilberth (dir.), Fomina, A. Held,
(cuja tetralogia d’ O Anel do Nibelungo, M. Janowski (dir.),
Grammophon, EMI, 1959.
sua magnum opus, já foi abordada na 1986. Pentatone, 2019.
BANG! n.º 26), acabando este último por
desenvolver novas etapas muito próprias
na produção operática germânica nas ao imaginário dos contos populares
décadas seguintes. germânicos. O libreto é da autoria
de Johann Friedrich Kind.
As sementes de um género A estreia teve lugar em Berlim
a 18 de junho de 1821 e foi
musical fantástico um autêntico triunfo. Os temas

M
itologia nórdica, lendas abordados eram uma novidade
populares, contos e visões no contexto operático, a música
romantizadas a partir de também, apesar de alguns laivos
binómios como bem/mal, sobrenatural/ de influência italiana e francesa
terreno, luz/trevas, e muitos mais, é o ainda se poderem vislumbrar, e as
néctar temático que serve de mote a histórias populares, contadas na
grande parte desse repertório. Por sua língua local e adaptadas ao espírito
vez, os cenários e contextos em que se romântico, traziam um novo
passam os enredos evocam regularmente elemento diferenciador e agregador
o bosque, a floresta ou até outros mundos — um idioma acessível e ao mesmo
além daquele em que vivemos. tempo moderno.
Partindo deste manancial riquíssimo Uma das pessoas que não ficou
de temáticas, para Der Freischütz, que em indiferente a esta obra foi Wagner,
português pode ser traduzido como O cujo incomparável contributo para
Franco Atirador, Carl Maria von Weber a ópera romântica alemã deve também
recorreu ao seu profundo conhecimento uma pequena parcela de estímulo a Der
da tradição do teatro popular alemão Freischütz, uma verdadeira semente
(singspiel), entre outras influências, e foi modelar para esta tradição.
beber inspiração às melodias folclóricas e
Nas mãos do diabo

A permanente. É nesse pano


floresta é um cenário
A cena da toca do lobo («Wolf’s Glen»), onde tem
de fundo que surge Max, um
lugar o acordo em que Max vende a sua alma ao
diabo, é o grande momento de Der Freischütz. Uma
jovem camponês caçador que procura
fantástica cena sobrenatural que se prolonga no final conseguir a mão da sua amada, Agathe,
do segundo ato e conjuga o diálogo falado, canto através da vitória num concurso de tiro.
e interjeições fantásticas do coro e da orquestra, Kaspar, um pretenso amigo de Max,
aos quais Weber dá um conjunto de notas em inspirado por ideias maléficas, convence‑o
glissando que são cantadas rapidamente a espaços, a visitar a toca do lobo, a fim de obter
produzindo um efeito absolutamente maléfico e auxílio sobrenatural e garantir o seu
desconcertante — sobretudo para o que eram as sucesso.
convenções da música da época.

68
Max desce até às profundezas da
floresta, onde se encontra a toca do
Cena de a toca do lobo
lobo, um local terrífico, repleto de de Der Freischutz
assombrações e aparições medonhas,
onde vivem os espíritos do mal que todos
receiam. Max vende a sua alma ao diabo
Da música...

E
(personificado pelo demónio Samiel — o m grande parte, a música
caçador negro) como contrapartida à sua cultivada na ópera alemã deixa
vitória e ao casamento com Agathe. Para cair o ideal do bel canto italiano,
tal, recebe sete balas mágicas que não com as suas árias melodiosas e grandes
falham o alvo. Pelas suas costas, Kaspar linhas vocais que ficavam no ouvido
fez um pacto com Samiel para (hits da época), para dar lugar a uma
"O vorspiel que este viciasse as balas de modo música mais densa e até estética e
que abre Der a acertarem em Agathe. Esse fatal ideologicamente mais profunda.
desfecho irá acontecer no concurso, As aberturas, denominadas de vorspiel
Freischütz, além
quando Max dispara a última das ou de prelúdios, são muito diferentes
de extremamente
balas para o alvo (uma pomba das italianas. Não procuram, como as
bem escrito, é um
branca), mas ela desvia‑se e vai em últimas, apresentar um conjunto de
caso paradigmático
direção à sua amada, que desfalece. temas musicais que serão revisitados ao
dessa nova longo da ópera, mas antes servir como
No entanto, o próprio diabo trai
abordagem e um prólogo que transporta o ouvinte
Kaspar e acaba por ser ele o alvo em
leva‑nos, desde a que o tiro acerta, ficando Agathe para a atmosfera da história, como uma
primeira nota..." apenas desmaiada após o susto. espécie de iniciação para o que aí vem.
A história tem um final feliz O vorspiel que abre Der Freischütz, além
(o que é pouco comum para uma ópera de extremamente bem escrito, é um caso
romântica alemã), com Max e Agathe a paradigmático dessa nova abordagem e
casarem‑se, apesar de ele não ter acertado leva‑nos, desde a primeira nota, para o
no alvo, sob a proteção do eremita ambiente dramático que está a começar.
ancião da floresta, que convence todos os Diálogos falados, cenas recitadas com
presentes de que o amor de dois corações árias e uma instrumentação muito rica,
deve prevalecer ao resultado de um servindo como uma densa camada cénica
concurso de tiro. invisível, são outras das características
mais representativas. Um elemento
particular são os motivos recorrentes, os
leitmotiv — melodia, figuração rítmica
ou um tipo de sonoridade que se associa
a uma situação específica ou a uma
personagem. É isso que podemos, por
exemplo, encontrar na personagem de
Samiel, à qual Weber associa um motivo
próprio com a combinação de clarinete,
trompas, cordas e timbales.
Em suma, uma obra monumental, de
grandíssima qualidade e complexidade
que abriu um novo capítulo na história
da música. BANG!
Gravura da cena
da toca do lobo
Karl Lieber (1822)

69
70
71
o pi ni ão
Leituras às Direitas

OS JOGOS SEM FRONTEIRAS


DOS IRRESPONSÁVEIS
A
Squid Game é a série mais vista série Squid Game é sobre um grupo de
pessoas com dificuldades económicas
de sempre da Netflix. É como o
que é convidada para participar numa
Gangnam Style das séries. Tal como competição de jogos infantis até à morte
o filme Parasitas – outro produto por dinheiro. Um pouco como ir para a fila
da Segurança Social, mas mais divertido para
coreano de sucesso –, Squid Game todos os envolvidos. Se ainda não viram a série
Jovem é uma crítica ao capitalismo. Um dos ou os milhões de TikToks que fizeram sobre ela
Conservador de na altura em que saiu, não continuem a ler.
Direita problemas do capitalismo é este.
É a voz política O jogo mais esquisito é aquele em que
mais importante Enquanto os coreanos de bem estão eles têm de recortar uma figura de dentro de
a emergir no
panorama ocupados a produzir Samsungs uma bolacha. Seria o equivalente a termos um
político português jogo infantil consistia em roer um Bollycao
no pós‑11 de
e Hyundais, os seus familiares drogados
à volta, para que o chocolate ficasse todo
Setembro. Como
única figura
passam o tempo a produzir arte intacto. No caso deste jogo, o protagonista
da direita com anticapitalismo sem supervisão. da série descobre que, se lamber a parte de
credibilidade neste
momento, é a trás da bolacha e a humedecer, émais fácil
grande esperança recortar a figura. Felizmente, optaram por esta
num futuro
forma mais inocente de humedecer bolachas,
pós‑geringonça não
distópico. bastante diferente daquela que é usada noutro

72
A VOZ DOS BLOGUERS
Seca
Neal
Shusterman
& Jarod
Shusterman
Saída de Emergência
E se um dia,
sem pré‑aviso,
abríssemos
jogo pré‑adolescente que envolve tem um velhinho e duas mulheres
a torneira e não saísse nada?
bolachas. Deve ter sido o bom e vai competir contra uma É esse o cenário de Seca, onde
senso dos executivos da Netflix a equipa só de homens. Tem tudo personagens com as quais facilmente
nos identificamos tentam sobreviver
imperar e a garantir que a única para perder. No entanto, é um num mundo em mudança, onde a
forma de dar prazer a bolachas na pretexto para mostrar a força do obtenção da água e a sobrevivência a
todo o custo se tornam nos objetivos
série era através da via oral. individualismo e do mercado livre
principais. Um livro assustadoramente
Apesar de tudo, há um face ao colectivismo totalitário. realista, atual, e de leitura “obrigatória”
lado positivo na série. Uma das A caminho do jogo, o velhinho para os fãs de distopias. 
Cátia Fonseca
personagens fugiu da Coreia ensina uma técnica que lhes Um Blogue Sobre Livros
do Norte. Mais uma vez os permite parecer mais fortes do
executivos da Netflix devem que aquilo que são, derrotando o
ter dito: «A vossa série até pode esforço colectivo da outra equipa, 2001:
defender socialismo. É um que podia ter muitos homens, Odisseia no
produto que vende, porque temos mas não tinha um gestor de Espaço
Arthur C. Clarke
um modelo de negócio baseado excelência com um MBA em Saída de Emergência
em maximizar o tempo não puxar cordas. Uma empresa bem Nesta alegoria do
produtivo que pessoas preguiçosas gerida consegue triunfar, mesmo mundo visto do
espaço, Arthur C.
passam no sofá e, enquanto se com mulheres na equipa. Clarke leva o leitor
revoltam com o capitalismo É preciso dizer que, no a pensar na vida
e na morte, na finitude humana e na
coreano através de uma série, início da série, há concorrentes vastidão do Universo, nos dilemas
pelo menos estão quietas e não que formam alianças e revelam morais da existência, mantendo em
perturbam o capitalismo a sério. atitudes de solidariedade uns aberto o desejo terreno de constante
expansão na busca do seu criador (ou
Mas têm de criticar a Coreia para com os outros. Até ficam algo parecido). Um clássico que, quase
do Norte. É o mínimo. Não tristes quando vêem adversários 60 anos depois, continua a ser um dos
mais preciosos enigmas literários.
queremos ter uma série a criticar a morrer, como se isso não Pedro Miguel Silva
a Coreia boa sem contraditório.» melhorasse as suas hipóteses. Deus me Livro
Ou seja, os participantes são Mas, à medida que o jogo vai
pobres não apenas por causa avançando e eles percebem que só
da exploração do capitalismo, pode haver um vencedor, acabam O Império
mas também por causa do por perceber que a solidariedade é Final
Brandon
comunismo. Pelo menos, o inimiga do sucesso. Sanderson
capitalismo oferece‑lhes uma Para vencer, temos de ignorar Saída de Emergência
hipótese de competir até à morte a empatia e só devemos recorrer N’O Império Final
mesmo entre a
para pagar as suas dívidas. à solidariedade quando isso desesperança,
nos pode ser útil. O altruísmo existe espaço para
só é bom quando serve o várias emoções
crescerem e provarem que é na
ESFORÇO COLETIVO? individualismo. capacidade de amar o próximo e de
Pensando bem, afinal é uma lutar que se pode fazer uma verdadeira
diferença. É essa chama de esperança,
á outra parte da série que série boa. Podem ver. Que twist.
H faz uma excelente defesa da
mesmo no meio de toda a tragédia,
é esse sentimento de lealdade e
liberdade individual. Na prova compromisso com o que encaramos,
que torna esta obra única e estas seis
do jogo da tracção com corda, os centenas de páginas fáceis de ler num
participantes organizam‑se em fôlego.
Sofia Teixeira
equipas e têm de competir entre Bran Morrighan
eles. Os que perdem caem de um
abismo. A equipa do protagonista

73
j o go s de tabul eiro
na mesa com a fnac

SUSHI GO!  al. Perfeito


d e viagens ide
o teu com
pan h e ir o
s, o objetivo
do VEGGIES 
e va i se r to ja p o n ê É dia de merca
Est pra shi o mais
antes deste ação de su
do, por isso, te
ns de
para os am o r c o m b in
es fizeres
preparar a tua
banca com a m
por a melh ombinaçõ aior rapidez
jogo é com uan ta s m a is c
e, no
possível. Fruta
s e legumes fres
a m e n te possível. Q p o n to s c olecionas, ordem do dia, cos estão na
rapid res», mais . e em Veggies c
m a is c a rt as «devora m a is c a rt as de pudim deverá combin ada jogador
e e r ais poder
a quem tiv nsportar, v
ar oito cartas.
G
final, ganh c il d e tr a conseguir cria
r a banca mais
anha quem
rápido e fá iagem. diversificada.
Divertido, qualquer v
Contudo, ten
s de ter atençã
jogá‑lo em o aos ratos e às
caixas vazias. B
s oa sorte!
éd io d e jo g o :: 15 minuto
Tempo m 2a5
ú m er o d e jo gadores: de Tempo médio de jo
go: 15 a 30 min
N os
ín im a r ec o m endada: 8 an Número de jogado utos
Idade m res: de 2 a 4
Idade mínima reco
mendada: 8 anos

DEZ JOGOS Por vezes, viajar pode


ser aborrecido, mas

DE TABULEIRO nós vamos ajudar‑te.

IDEAIS
Dos jogos de memória
aos party games,
trazemos‑te dez

PARA
jogos de tabuleiro
para passares o tempo

VIAGENS
durante as tuas
viagens!

OUCH! 
Este jogo promete prop
orcionar à tua viagem
  momentos divertidos.
WALKIE‑TALKIE ar as tuas viagens. catos do deserto escon
Todos sabemos que os
vai anim dem flores com uma gra
jo g o d e cooperação n ético, os jo
gadores beleza, e, neste jogo, o nde
Este en te fr e
se das objetivo é conseguires
tmo totalm guir livrar‑ apanhar as flores mais
Com um ri e si p a ra co n se belas, mas sem tocar no
operar entr s e cores –, s
terão de co s d e c artas – letra espinhos que cobrem os
catos. Para conseguires
tip o letra
a s cart a s. Com dois re lacion ada com a realizar esta missão quase
su a palav ra impossível, terás ajuda
é dizer um ais criativo
o objetivo , g a n h a q uem for m de víboras e raposas‑do‑d
eserto, e ganha quem
m nicação.
adas. No fi lhor comu
e cor indic e ti v e r m e apanhar mais flores.
qu
e a equipa
utos
io d e jo g o : até 15 min Tempo médio de jogo: 15 m
inutos
Tempo méd a8
m er o d e jo g adores: de 2 Número de jogadores: de 2
a5
Nú dada: 8 ano
s Idade mínima recomendada:
im a r ec o m en 5 anos
Idade mín

74
STIXX  IQ
VELONIMO  Neste jogo
de viagem,
r a corrida teus melho terás de uti
o b je ti vo é ganha res truques lizar os
Aqu i o imais e empilhar
ta s, d isp u tada por an O objetivo
é colocar cin os sticks.
de bicicle a jogador em cima da co pensas h
to d o s o s tipos. Cad tentar s verticais, orizontais
de as, e deverá perfeitamen fazendo‑as
caber
m 1 1 c a rt te. Consegu
começa co ível.
s o m ais rápido poss 120 desafio irás resolve
r os
dela s deste que
desfazer‑se ã o ! Deverás a
penas bra‑cabeças?
s a te n ç
Ma cartas nos
s tu a s melhores Número de jo
utili z a r a lcançar a gadores: 1
s c e rt o s, se queres a Idade mínima
recomendada
momento : 7 anos
vitória.

de jogo: 
Tempo médio ra
utos a 1 ho
de 30 min a5
jo g a dores: de 2 R 
AY PUZZLE
Núm er o d e
: 7 anos L
recomendada P L U G & P
Idade mínima pode
p les, mas
ce r s im O teu
o p o de pare r a ‑ c abeças.
Este jo g qu e b etirar
u m d e safiante o n d e podes r
IQ MINI  tornar‑s
en cubo de ixá‑las.
r t id a é um v o lt a r a enca
e p a
objetivo
é ubo,
ponto d e p o is o c o m p letar o c
8 peças
,ed rmas de r mais d
o que
Este jog
o de lóg a is de 50 fo o n t r a
Existem
m en c fios,
um tam
anho red
ica, emb
ora com q u e c o nsegues a in d a 48 desa
u zido, tem mas ser
á  inclui stas.
que te v
ão entre desafios E s t e  p uzzle 3D t é a o s especiali
Disponív ter a via uma? iantes a
el em cin g e m inteira.
e s d e o s princip
criar os co cores d
, p odes es:: 1
teus pró
prios de o d e jogador s
ao move
r os bloq safios N ú m e r
c o m e n d a da: 6 ano
preench ueadore ima re
er o tabu
le ir
s e ao Idade mín
Desafia‑ o com as p
te a ti m eças.
amigos esmo, o
e familia u aos teu
res, seja s
onde for
!
Número d
Idade mínim e jogadores
a recomen : 1
dada: 6 a
nos

DOBBLE HARRY POTTER 


Dobble é o party game
KO MEMO  r à prova as tuas
 clássico das
viagens e saídas de am
pô igos. O objetivo
que vai cartas é descobrir o símbolo
e é u m jo g o
a ç ã o .  Tem 40 repetido das
Es t r iz or
a d e s d e memo t o ) d iv ididas p cartas postas em cima
da mesa e ganha
capacid m obje ‑te da quem o fizer mais vezes
d a u m a com u o é le mbrares .No entanto,
(c a iv
os, e o o
bjet quarto. nesta versão dedicada
8 quart c a r t a s de cada ao mundo mágico de
a Harry Potter e
ia das
sequênc o desafio acrescido de
Hogwarts, terás
utos
d e j o g o : 25 min o que representa cada
tentar descobrir
dio 1a8
Tempo mé o g a dores: de símbolo do jogo.
d e j anos
Número c o m e ndada: 7
ima r e Tempo médio de jogo: 15 m
Idade mín inutos
Número de jogadores: de
2a8
Idade mínima recomendada:
 6 anos

75
v id a e ho r a
do fundo do poço

Saramago
vs
Cinema
POR JOÃO MONTEIRO

A obra literária de José Saramago é,


sem dúvida, a mais conhecida fora
de portas, estatuto que já ostentava
antes de se tornar no único Nobel da
literatura portuguesa. Daí advém o
facto de ser o escritor português mais
filmado por outras cinematografias.
Parece apropriado que, no ano em
que comemoraria cem anos, nos
debrucemos sobre a evolução das
adaptações saramaguianas.

76
O
NOBEL‑EXPLOITATION
pré‑Nobel português
sempre se mostrou
avesso a adaptações da
sua obra ao cinema.
O francês Georges
Sluizer, radicado
na Holanda, foi o
primeiro a conseguir
quebrar a sua resistência. Sluizer havia lido A
Jangada de Pedra em 1995: «Devorei‑o em dias.
Fui sensível ao tom mágico e senti‑me próximo
das posições políticas de Saramago.» Apesar de a
sua vontade ser anterior à atribuição do Prémio
Nobel, só conseguiu avançar com o projeto em
1997, um ano antes do anúncio. Como seria
óbvio, procurou primeiro financiamento em
Portugal, mas não só o viu negado como foi
inclusivamente acusado de «neocolonialismo» pela
comunidade cinematográfica portuguesa. «Foram
tantos os realizadores e produtores portugueses
que disseram publicamente “Como é que ele se
atreve? Imaginem, a roubar o nosso Nobel!”»,
desabafou Sluizer. Negado financiamento pelo
Estado português, virou‑se para as multinacionais
e o filme seria coproduzido pela Lusomundo
(Portugal), a MGS Films (Holanda) e a
Sogecine (Espanha). Esta última foi a principal
financiadora, razão pela qual o filme acabou falado
em espanhol.
Faltava, contudo, o obstáculo mais resistente:
o próprio José Saramago. O escritor recebeu
o guião no mês em que soube do Nobel e
só aceitou receber a visita do realizador em
Lanzarote após alguma insistência. Seguiu‑se um
cuidadoso casting apostado no mercado ibérico
e sul‑americano, encabeçado pelo veterano ator
argentino Frederico Luppi, pelos portugueses
Diogo Infante e Ana Padrão e pelos espanhóis
Gabino Diego e Icíar Bollaín. As filmagens seriam
João Monteiro divididas entre Portugal e Espanha. O resultado
Nasceu a 17/05/1977. não foi o esperado tendo em conta o talento
Licenciado em História
da Arte. Sócio fundador envolvido. Parece evidente que as falhas do filme
do Cineclube de Terror — os pobres efeitos digitais, a pouca convicção
de Lisboa (CTLX) e
produtor/programador
dos atores, o tom demasiado teatral — são prova
do MOTELX. das dificuldades de Sluizer em criar coesão numa

77
CURIOSIDADE
Para os leigos, o nome de remake em Hollywood com
Sluizer nada diz; para os Kiefer Sutherland, Sandra
cinéfilos, significa apenas um Bullock e Jeff Bridges. O projeto
dos melhores filmes de terror seguinte de Sluizer viria a
europeus de sempre: Spoorloos ser o último do ator principal,
produção fragmentada em
de 1988. Um dos seus maiores River Phoenix. A produção de
três países. Mas, pelo menos,
admiradores era Stanley Kubrik, Dark Blood foi cancelada a
esta Jangada de Pedra não
que o achava superior ao seu meio, quando Phoenix faleceu
envergonhou Saramago, que
The Shining. Teve direito um prematuramente.
foi à Holanda para estreia
mundial, onde afirmou:
«Escrevi um livro, George interessado em adaptar Saramago, pois
não me traiu, porque encontrou a alma acabara de adquirir os direitos de Ensaio
e o sentido.» O realizador acrescentaria: sobre a Cegueira. As filmagens de Blindness
«Mostrou‑se particularmente satisfeito por (título internacional) decorreram sem
eu ter conseguido captar a alma do livro, percalços entre Toronto, São Paulo e
e agradeceu‑me por não ter tornado tudo Montevideu.
numa daquelas aventuras de catástrofe Relativamente ao filme propriamente
que Hollywood gosta de produzir.» Aqui dito, estamos claramente num campeonato
jaz a principal razão pela qual o Nobel diferente de Jangada de Pedra. Aqui,
português nunca quis ver os seus livros em a personalidade artística do brasileiro
filmes. controla todos os aspetos técnicos do
filme, criando no público uma certa

F
CEGUEIRA BRANCA desorientação sensorial «com o intuito
oi com bastante agrado e de colocar o espectador num universo
algum espanto que se recebeu tão novo quanto o mundo da cegueira».
o anúncio, em 2007, de que Este efeito é obtido através de imagens
de que o brasileiro Fernando sobrepostas, desfocadas, imbuídas de uma
Meirelles iria adaptar ao grande ecrã Ensaio luz opressiva que obriga literalmente o
sobre a Cegueira. Apesar de ter associados olhar a trabalhar durante o visionamento
os nomes do mexicano Gael García deste filme. Mas Meirelles insistiu num
Bernal ou dos norte‑americanos Julianne dos erros de Georges Sluizer: não quis
Moore e Mark Ruffallo, a grande vedeta fugir muito do livro, talvez com medo de
da produção era o próprio Meirelles, que insultar os leitores ou o próprio escritor,
gozava à altura o pico da sua popularidade e, consequentemente, tentou passar para a
internacional. Tinha‑se tornado no tela coisas que só funcionam em literatura.
primeiro cineasta brasileiro a ser nomeado
para um Óscar de melhor realizador com NO PORTUGAL

C
Cidade de Deus, e DOS PEQUENINOS
novamente para uriosamente, a terceira
os Globos de adaptação do grande escritor
Ouro com O Fiel português é um produto
Jardineiro. Em nacional, da responsabilidade
2006, o produtor de António Ferreira, cineasta sediado em
canadiano Coimbra, que optou por adaptar o conto
Niv Fichman «Embargo» inserido em Objeto Quase
contacta publicado em 1978 — em vez de um dos
Meirelles seus romances mais famosos. Passado num
no sentido tempo indefinido, «Embargo», tal como
de averiguar o nome indica, apresenta‑nos um país
se estaria durante um embargo de petróleo, onde

78
um personagem fica retido no interior
do seu carro devido a «um pequeno
problema». Apesar de conter a metáfora
política da dependência excessiva de
combustível, «Embargo» é, acima de tudo,
uma comédia romântica sustentada por
um ritmo humorístico bastante fluído e
interpretações sólidas do par de estreantes
fundamentais: uma
Filipe Costa e Cláudia Carvalho.
grande distanciação
da base literária e uma

O
INIMIGOS
clara inserção do filme
produtor canadiano Niv no campo do cinema
Fichman, motivado pela de género.
forma com se havia montado A crítica dividiu‑se
rapidamente uma produção quanto ao significado


para Blindness através da associação dos do filme: uns diziam
nomes Saramago e Meirelles, tentou de tratar‑se de uma parábola da vida O escritor
imediato convencer o escritor a vender‑lhe num Estado totalitário, devido
mais direitos. Saramago encontrava‑se aos seus planos fechados de uma
recebeu o guião
numa posição delicada por já ter aberto teia urbana consolidada com no mês em que
um precedente, e o argumento da inúmeras imagens e referências a soube do Nobel
irredutibilidade do autor já não era aranhas, que outros identificam
aplicável. Saramago, resignado, soltou
e só aceitou
como o medo inconsciente do
um «Qual queres?», a que o produtor professor de História em relação receber a visita
respondeu: «O Homem Duplicado.» ao sexo feminino. Tal como do realizador
Entregou a realização a um jovem talento «Embargo», também nunca em Lanzarote
canadiano desconhecido, Denis Villeneuve saberemos a opinião do escritor
após alguma


(atualmente «o JJ Abraams da sci‑fi de português, mas a sua viúva, Pilar
culto»), mas, por outro lado, conseguiu del Río, numa sessão em Madrid insistência...
associar ao projeto uma grande estrela disse: «Talvez não encontrem o
de Hollywood, Jake Gyllenhaal, cujo livro, mas José Saramago está
nome engradeceu muito uma produção dentro deste filme.» Revelou também que
bem mais modesta que Blindness. O a única condição que o escritor punha a
projeto denominou‑se Enemy e foi o quem quisesse adaptar os seus livros era
mais bem‑sucedido dos quatro, tanto a que o fizessem de maneira totalmente livre.
nível de crítica como de resultados de «Queria que os seus livros suscitassem
bilheteira, e provavelmente por duas razões ideias noutros criadores.» BANG!

(Texto original publicado na revista online Blimunda)

79
o pi ni ão
o deus das moscas tem fome

uma bruno anselmi


matangrano

fantasia
É Mestre e Doutor em
Literatura Portuguesa
e investigador de
literatura fantástica

urbana
(em especial, dos
subgêneros da fantasia)
e da literatura produzida
no fim do século xix .

portuguesa
em mosaico
o deus
das moscas
tem fome
por bruno anselmi matangrano

quase vinte anos depois de ter


criado a saída de emergência,
que se destacou por suas
traduções de bestsellers e
clássicos internacionais, e por
promover a literatura fantástica,
o editor luís corte real enveredou
também pela escrita. foi com
grande expectativa que o público
recebeu seu primeiro livro, o deus
das moscas tem fome, também
por ele ilustrado e editado.

80
p
or meio de um rizoma autor diz, «cada conto lê‑se
de referências, cujo como o episódio de uma série
fio não possibilita de TV, oferecendo uma história
um começo nem completa; mas depois há um arco
um fim, uma vez narrativo mais extenso que liga
que se abre in todos os contos, e é nesse arco
medias res sem revelar todos os que o passado e os segredos do
detalhes do passado e encerra‑se personagem vão sendo revelados.»
de modo aberto com a promessa
de novas aventuras, O Deus das título:
Moscas tem Fome instiga desde o O Deus das Moscas
título a interpretação intertextual. tem Fome
au to r :
Remete, a um só tempo, para O Luís Corte Real
Senhor das Moscas, de William o bruxeiro anti‑herói género:
Mistério e Horror
Golding, o vencedor do Prémio
no tempo dos reis pá g i n a s :

t
Nobel de 1983, e, por tabela, para 432
o demónio bíblico que recebe esse pvp:
ormenta é um protagonista 17,70€
epíteto, Belzebu, presente numa das
complexo, passível de se
narrativas. No texto de Corte Real,
somos apresentados a Benjamim classificar como anti‑herói.
Benjamim Tormenta. Figura
Tormenta, conhecido como «o Mesmo se em muitos momentos
suas ações possam ser lidas como elegante e misteriosa, tanto é
bruxeiro», um detetive particular
heroicas, sua aura dúbia, sua avistada nos salões luxuosos da
que se ocupa de casos sobrenaturais,
similarmente atormentado por ausência de pudores em fazer capital como nas ruelas decadentes
uma voz sussurrante dentro de sua justiça com as próprias mãos, de Alfama, em palacetes de
cabeça: a do demônio Lamashtu, seu vício em ópio ou seu pendor Sintra ou casas de ópio de Macau.
também chamado «a serpente». Ao por ajudar os desajustados Cruzando-se com figuras como o
contrário do que se vê em Golding, da sociedade oitocentista
rei D. Luís, Fontes Pereira de Melo
o tormento do detetive é uma garantem‑lhe uma ambiguidade
criatura sobrenatural bastante real típica das narrativas noir com ou Eça de Queiroz, ele usa as suas
na narrativa. as quais a fantasia urbana tantas habilidades na Lisboa secreta: a
A partir dessa breve vezes dialoga. dos deuses negros convocados por
apresentação, já percebemos Enquanto acompanhamos burgueses ociosos, das aberrações
algumas características do livro suas desventuras por Lisboa, e vindas do outro lado do Cosmos,
de Corte Real: a presença do também por Sintra e Macau, dos livros amaldiçoados e da mais
fantástico, a construção intertextual conhecemos alguns de seus
perigosa sociedade secreta do
com abundantes referências, gostos, de seus amigos, de seus
a estrutura de um gênero em inimigos, de seus desejos, mas império português: a Irmandade
particular – a fantasia urbana – em pouco sabemos de seu passado. da Serpente Verde.
hibridismo com diversos outros, É uma personagem misteriosa O que poucos sabem é que também
como veremos mais adiante. Aliás, por definição: o próprio detetive Tormenta esconde um segredo
sobre a estrutura, vale dizer que, não tem conhecimento de todo tenebroso. Preso no seu corpo pela
embora seja composto por seis o seu passado. Sabe‑se que já vive magia de muitas tatuagens está um
narrativas o livro pode ser lido há muitas e muitas décadas, bem
demónio milenar que se quer soltar
como um romance fragmentado, mais do que sua aparência deixa
composto por histórias mais breves perceber, assim como é sabido que e espalhar a destruição, primeiro
que, juntas, se apresentam como a presença de Lamashtu em suas em Lisboa e depois no mundo.
um todo coeso. Como o próprio entranhas lhe aguça os sentidos

81
e transmite‑lhe força extraordinária. Alex Verus, da série homônima
Sabe‑se ainda que seu corpo é coberto de Benedict Jacka, ou ainda dos
de tatuagens e que estas selam o feitiço brasileiros Tiago Boanerges, o mago de
que aprisiona a serpente, unindo‑a Exorcismos, amores & uma dose de blues
ao corpo mortal. Nada mais nos é (2014), de Eric Novello, e Ísis Rossetti,
contado, e a maior parte dos segredos a protagonista de Porém Bruxa (2019),
conserva‑se na espera de outros de Carol Chiovatto. Não por acaso,
volumes para os desvelar. Tormenta todas essas obras, por mais diferentes
também é dotado de um senso de que possam ser entre si, têm em
humor ácido, que se intensifica pela comum um gênero: a fantasia urbana.
personalidade irreverente, irritadiça Mas afinal, o que define esse gênero
e inconsequente de Lamashtu, o já antes mencionado? Nos termos de
que corrobora a composição da Dean MacDonald, na fantasia urbana
personagem típica do anti‑herói da uma regra é clara: «A magia existe.
fantasia urbana. Ondula sem restrições através dos
elementos invisíveis e subterrâneos
da urbanidade. Essa é a premissa da
fantasia urbana (FU), um gênero que
evoluiu nos últimos quarenta anos
para incluir romances paranormais,
tormenta e a tradição como Crepúsculo, e ficção policial
dos detetives do sobrenatural, como Os Arquivos de
sobrenatural Dresden.»

n
ão obstante isso, o bruxeiro é
uma personalidade carismática,
que, embora seja capaz de
amedrontar com seu duro olhar
cinzento, também seduz e cativa, o portugal de eça
atiçando a curiosidade – e um temor com um toque de poe

m
respeitoso – em todos aqueles com
quem se depara. ais do que a relação com a
A intemporalidade de seus traços narrativa de crime, o cerne da
reforça sua própria desconexão com fantasia urbana, é o cenário
o tempo: ninguém sabe a idade de e a atmosfera que dele se depreende.
Tormenta, o que só intensifica o A cidade revela‑se um elemento
elemento sobrenatural. Essa mistura estruturante, tornando‑se muitas
de características detetivestas, vezes uma personagem, como vemos
anti‑heroicas e sobrenaturais, embora acontecer na Lisboa revisitada por
inovadora no âmbito das letras Corte Real, que a escolheu justamente
portuguesas, retoma protagonistas por ter consciência de sua importância
de outras histórias, como Harry na concepção de uma narrativa desse
Dresden, da série The Dresden Files, de gênero.
Jim Butcher, John Constantine, das Revela igualmente uma grande
histórias em quadrinhos Hellblazer, autoconsciência de suas motivações na

82
escolha de referências, justificando sua – por misturar cenas de horror e característicos da própria fantasia
decisão pela ambientação em Lisboa violência explícita com diálogos urbana, mas sem se configurar numa
a partir do desejo de ressignificar a poéticos, inclusive sobre poesia, o que simples aplicação de métodos e
capital portuguesa no imaginário pop, lhe conferiu uma dimensão artística estruturas ou em pastiche simplista.
como outras produções fizeram com incomum. Suas narrativas são originais na
Nova York e Londres. Em caminho semelhante, Corte medida em que nascem de um diálogo
No caso de O Deus das Moscas Real recriou sua Lisboa tão etérea, intertextual inovador. Por meio de
tem Fome, a simples classificação sinistra, assustadora, cativante e uma narrativa ao mesmo tempo ágil e
como fantasia urbana não parece decadente quanto a Londres de complexa, espelhada numa linguagem
dar conta de todas as suas nuances Logan, e igualmente povoada por erudita e rebuscada, literalmente
temáticas, estruturais e narrativas, personagens fictícias pré‑existentes, entrecortada pela vulgaridade e pelo
pois, além dos evidentes recursos como Fradique Mendes, personagem chulo que saltam aos olhos através
da trama policial e da fantasia em literária recorrente e heterónimo do destaque gráfico, Luís Corte Real
si, alguns dos episódios recorrem a coletivo de diversos autores, dentre cria – com bastante consciência de
traços de outras categorias, como o os quais Antero de Quental e Eça suas escolhas – um universo rico e
romance histórico – e, por tabela, sua de Queiroz, cujos versos satânicos complexo, facilmente expansível em
contraparte especulativa, a história declaradamente inspiravam‑se na obra outros volumes ou adaptável a outras
alternativa, uma vez que se utiliza de Charles Baudelaire, mas também mídias, como desejado por Luís Felipe
de personagens e fatos históricos e históricas, como Dom Luís I, Rei Silva em sua introdução já antes
literários, reimaginados segundo a de Portugal e Algarves, o próprio mencionada.
premissa de sua «Lisboa oculta». Ao Eça, tornado personagem e principal Benjamin Tormenta nasce para
contrário de outras obras de fantasia referência estilística de Corte Real. ser uma espécie de Sherlock Holmes
urbana citadas até aqui, passadas em Reconhecem‑se ainda personalidades português, ou um Hercule Poirot;
realidades contemporâneas, Corte históricas buscadas no chamado mas, com um pé no contemporâneo
Real leva sua trama ao fim do século «Processo dos Távoras», assunto e outro no passado, diferencia‑se: é
xix, mais especificamente para a comum da literatura portuguesa, que uma cria do século xxi, do mundo
década de 1870. confere autenticidade e nacionalidade hiperconectado, rizomático, onde
Outro gênero cujas características ao gênero da fantasia, pouco explorado
múltiplas referências se entrecruzam;
se fazem sentir em alguns contos e em território luso, como antes
é, porém, também uma homenagem
novelas na obra é o horror, através mencionado.
ao Portugal dos oitocentos, numa
de diálogos com autores do século promessa de resgate e redenção que lhe
xix e início do xx, em especial H. P. conferem uma aura pop similar àquela
Lovecraft. com a qual Londres e Paris há décadas
Outra referência, explicitada vêm sendo agraciadas, mas que Lisboa,
pelo autor em sua nota de como demonstra Corte Real, também
«Agradecimento», é a série televisiva uma homenagem que fez por merecer.
Penny Dreadful, de John Logan, lisboa fez por merecer

e
produzida pelo canal Showtime,
na qual o espectador é levado para m suma, O Deus das Moscas
uma Londres povoada por criaturas tem Fome destaca‑se no âmbito
oriundas de obras literárias, como da literatura portuguesa por
Dorian Gray, de Oscar Wilde, o Dr. fazer uso de recursos genealógicos e
Frankenstein e sua criatura, de Mary modais típicos da literatura anglófona,
Shelley, o próprio Conde Drácula, de mas de forma bastante original,
Bram Stoker, dentre muitas outras. aclimatando‑os às referências locais a
A série se destaca – e se popularizou partir da plasticidade e do hibridismo

83
o pi ni ão
Histórias Subterrâneas
André
canhoto costa
Nasceu em Oeiras
em 1978. Doutorou‑se

Italo Calvino
em História Económica
no ISEG. Publicou várias
obras, escreveu para a
revista LER e tem desde
2017 a rúbrica «Crónicas

e o Mais
Portuguesas», na RDP
Internacional. Tem
colaborado na construção
do Quake‑Centro do

Revolucionário
Terramoto de Lisboa,
com abertura projetada
para 2022.

dos Géneros:
A Literatura
Fantástica
Por ANDRÉ CANHOTO COSTA

Italo Calvino, cujo


prestígio literário se
tornou consensual,
disse certa vez uma
frase chocante e pouco
valorizada: «A literatura
revolucionária foi sempre
a literatura fantástica.»
Escândalo. Mas estou
em condições de
assegurar que esta
ideia é corretíssima.

84
Metamorfoses Um Conto de Natal
de Ovídio de Charles Dickens

O que é a Literatura pode ser um rapaz vestido de rapariga,


Fantástica? na verdade uma rapariga (que a nossa
ignorância associou a um rapaz), e aí
ntes de mais, estamos vislumbramos a verdade. Aquela
diante de uma verdade rapariga pertence a uma irmandade de
contraintuitiva. artistas, perseguidas por uma polícia
Embora não pareça, o moral que se veste de gravata, mas que


povo sempre consumiu esconde um desejo de oprimir essa
Literatura Fantástica. As Metamorfoses irmandade secreta, maltratada e
de Ovídio ou Um Conto de Natal de sedenta de justiça. Que estou a dizer?
Segundo Italo
Charles Dickens, para não falar dos Que até os mais contemporâneos dos
Calvino, a Literatura
Evangelhos sobre a vida de Jesus temas são muito melhor tratados pela
Fantástica trata de um
Cristo, são indiscutivelmente Literatura Fantástica. Por uma razão,
problema: a realidade
Literatura Fantástica. Por vezes, é fácil também espantosamente
daquilo que vemos, sejam
surpreender um crítico ou um contemporânea, mas mais do que isso:
coisas extraordinárias,
académico (ou um leitor pedante) a criticamente científica.
sejam alucinações
identificar a relação entre Literatura A primeira reação do leitor
projetadas pela mente,
Fantástica e produto comercial, educado nos livros da moda
sejam ainda coisas
tentando depreciar o consumo desse académica e das revistas culturais e
habituais, «talvez ocultem
género de Literatura. Mas é um tiro na dos Departamentos de Filosofia e
sob a aparência mais
água, como pretendo demonstrar. Literatura, é associar o desvario da
banal uma segunda
mente a uma fuga aos verdadeiros
natureza inquietante,
problemas. Mas quais são os
misteriosa, aterradora».
Em cada esquina, verdadeiros problemas? E aqui há
A Literatura Fantástica
um Visconde quase sempre uma incoerência, pois a
move-se nesse combate
Cortado ao Meio moral dos verdadeiros problemas e dos
angustiante. Mas quanto
assuntos «profundos» ou críticos acaba
mais genial é o escritor,

S
e quisermos ver para lá das quase sempre no mais estéril dos temas
maior é a capacidade de
aparências, toda a jovem – o trabalho da linguagem e o mundo
descrever este conflito entre
rapariga tatuada, de olhos da nossa [risos] linguagem. Ou então,
realidades, deixando sempre
sombrios, vestida de negro, com meias conduzem ao comício. Nada tenho
em aberto a possibilidade
de rede rasgadas e botas de montar, contra o comício, mas para comício
de uma explicação
sentada no banco do metro a ler um prefiro os autores que se apresentam
puramente racional.
livro, é uma herdeira de uma antiga a votos em eleições. No fundo, todos
aristocracia decadente, vencida por um trabalhamos a linguagem, das peixeiras
império tenebroso. Essa rapariga está aos canalizadores, e às vezes muito
prestes a cair nas garras de um mais estes (para quem conhece o
emissário – em geral, um rapaz mundo fantástico da vida real) do que
palerma –, personificação da soberba e os escritores premiados ou académicos.
da força destrutiva de todos os Confiem em mim. O futuro não terá
impérios, normalmente presididos por a mesma opinião dos júris dos festivais
homens. No entanto, o nosso herói e prémios, ou dos professores de

85
O Mercado como
berço da Literatura

C
laro que existe uma objeção.
Questiona o leitor atento:
mas o verdadeiro poder do
nosso tempo é o Mercado, que nos
impinge aquilo que o «povo» gosta,
para reproduzir o lucro. Também
aqui a lição de Italo Calvino é
luminosa: «Os valores autênticos da
Literatura nascem do solo fétido das
exigências práticas.» E diz mais: não
há nada mais propício à Literatura do
que «o Mercado e a produção de
consumo: é daí que nascem as
tragédias de Shakespeare, os folhetins
de Dostoiévski e as comédias de
Chaplin». Já o disse noutro lugar: a
relação entre vendas e qualidade é
muito mais pantanosa do que
aparenta ser. Mas não sejamos
ingénuos. A concentração editorial e
a voragem de sustentar uma máquina


demasiado pesada comporta por
Universidade, pois não há nada mais vezes as suas próprias aventuras
aborrecido do que os sermões pregados tenebrosas.
A Literatura
do púlpito ou a retórica previsível No fundo, o problema não é
Fantástica pode definir‑se
de um deputado a tentar agradar à tanto o Mercado como aqueles que
como a forma de convencer
mesa nacional do seu partido. Essa procuram condicionar o Mercado,
o máximo número de
Literatura, dita séria, é o contrário do criando em geral ídolos com pés de
leitores de que a realidade
que parece ser: aprendemos isto na barro. Pois, muitas vezes, os editores
não é o que parece.
Literatura Fantástica. É a conformação têm dificuldade em fazer aquilo
A Literatura nasce da
a modelos de arte já esgotados. a que se propuseram: encontrar e
luta contra a «realidade».
Modelos voltados para leitores pouco publicar autores capazes de enfeitiçar
Nesse sentido, todo o
dados à imaginação e aos lugares o público. Não estou a dizer que a
realismo eficaz é Literatura
insólitos onde nasce a Literatura: as tarefa é fácil. Muito menos a insinuar
Fantástica, no sentido em
gengivas fedorentas dos Dragões; as que seria capaz de fazer melhor. Nós,
que apenas a Literatura
curvas sedosas das asas das fadas; os os escritores, somos os primeiros
Fantástica consegue dar
narizes verrugosos dos velhos duendes culpados, por nos deixarmos vencer
nota dessa tragédia, o
versados nas línguas já extintas de por dois monstros sedutores: a
choque entre a nossa
povos muito mais sábios do que nós; ganância e a vaidade. Ganância
consciência e o terrível
armaduras movendo‑se sozinhas para os que se deixam escravizar por
mistério do mundo em
por efeito de cavaleiros inexistentes; falsas ideias populares. Vaidade para
que vivemos.
viscondes cortados em duas partes; ou os que embarcam no discurso da
jovens barões rebeldes que subiram às singularidade do génio como muito
árvores para nunca mais descer. difícil e impenetrável.
86
O Fantástico da imaginação. Ou em Gogol, o Também este estúpido argumento
Nobel pináculo da poesia ao serviço de uma realista se agita em questões mais
narrativa simultaneamente crítica e comezinhas como o mérito literário.
eficaz no domínio do entretenimento. Quem atinge o pináculo dos tops

E
m suma, o Mercado foi
sempre o lugar onde se cruza Não por acaso, estes dois grandes de vendas tem o mérito de vender
a verdade crua da nossa mestres da Literatura Fantástica foram mais. Quem ganha prémios, merece
natureza com o poder de imaginação e também dois exímios lutadores contra ganhá‑los. Quem é elogiado pelos
a massiva cultura livresca do grande a esterilidade da burocracia e contra a académicos, detém a chave da
autor. É verdade, já mal existe a praça, falta de imaginação dos ricos e sabedoria, e assim sucessivamente. Se
com o seu cheiro a fruta e a poderosos, revelando como os pobres alguém cravar a sua espada na Hidra
multiplicidade dos seus vendedores, e ignorados se tornam figuras trágicas da Realidade, logo os magistrados,
independentes, sempre a competir no labirinto da existência. Posto isto, ao serviço das leis mundanas, nos
entre si com pregões e combates pergunto: Que foi José Saramago interrogam: Quem és tu? A escrever
satíricos, defendendo cada um os seus senão um escritor de Literatura da cave ignorada dos escritores
produtos. Embora aqui pudesse Fantástica? remediados ou anónimos? Quem te
dizer‑se que o Centro Comercial, com Na verdade, se estivermos atentos, deu o poder de contestar as leis da
as suas mulheres de lingerie em escala veremos como o argumento hoje mais vida? Pois bem, quem me deu esse
colossal, os seus modelos andróginos e destrutivo, mais pernicioso, sobretudo poder foi a Literatura Fantástica. Eis
homens musculados, os bandos de numa era de agigantamento de onde nasce a centelha inextinguível:
adolescentes marginais, as reformadas grandes grupos tecno‑industriais e no coração do artista. É onde nasce
anacronicamente vestidas, todo esse médico‑farmacêuticos, aos quais o a própria Literatura, nunca podendo
fervilhar de desejos e ambições Estado e a Universidade estendem ser outra coisa a não ser Fantástica.
representam o pulsar desse antigo a passadeira, é a ideia de que a A realidade nunca será a última
monstro, o povo à solta no Mercado, «realidade» é a suprema juíza da fronteira. O poder das coisas de
de gosto verdadeiramente livre. moral. Vimos o estúpido argumento serem o que são não pode derrotar a
Contudo, sabemo‑lo desde Adam do realismo a propósito da invasão imaginação humana e a sua infinita
Smith, os grandes monopólios são o da Ucrânia pela Rússia. Quem pode, capacidade para recriar o mundo,
maior inimigo do Mercado. Acabam faz. Quem destrói, por certo tem uma desde que não capitulemos perante
por destruir a galinha dos ovos de razão para o fazer, quanto mais não os limites da realidade. Pois, antes
ouro. seja pelo poder de fazê‑lo. A força da de transformar o mundo, é preciso
destruição e do facto consumado deve imaginar um mundo diferente,
Cientistas do Humano, ser o juiz das nossas ações, dizem‑nos maravilhoso, inesgotável.
observadores do os realistas. Nada mais errado.
invisível

A
Literatura Fantástica, mais do
que qualquer outro género,
«pretende dar a ver», escreveu
Italo Calvino. Sem se deixar hipnotizar
pelas teorias da linguagem, ou o
pensamento abstrato, percebeu que tal
como a ciência, a verdadeira Literatura
(sim, estou consciente do problema)
funda‑se na capacidade de mostrar,
tornar visível. Pensemos em Poe, a
mais completa união entre agudeza do
raciocínio, linguagem cirúrgica e fulgor

87
obra
leituras fnac

CINCO TENDÊNCIAS
QUE ESTÃO A MUDAR
A FANTASIA E A
FICÇÃO CIENTÍFICA
A ficção especulativa, da qual derivam
a fantasia e a ficção científica, existe
desde que há memória, mas nunca FANTASIA ROMÂNTICA
Não é de todo um subgénero novo, mas,
deixou de evoluir e de se reinventar. nos últimos anos, o BookTok tem tido o
Põe-te a par de algumas das principais condão de impulsionar de forma alucinante a
tendências que a caracterizam neste popularidade das histórias de fantasia focadas
em relacionamentos amorosos.
momento.
Como resultado, alguns dos autores
mais vendidos e requisitados do momento
movimentam‑se neste campo, acrescentando
AFROFUTURISMO aos elementos sobrenaturais dos seus mundos
A multiculturalidade está cada vez mais literários uma diversidade cada vez mais
presente na fantasia e na ficção científica, e a alargada de arrebatadoras paixões.
prová‑lo está a ascensão do afrofuturismo, um Quer envolva humanos, seres
movimento cultural centrado na exploração sobrenaturais ou criaturas híbridas, a fantasia
de temas que impactam a diáspora africana, romântica dá um novo sentido à ideia de que
tipicamente através de um contexto científico o amor é uma forma de magia.
ou tecnológico. É um estilo que transcende Se a fantasia romântica te interessa,
a fantasia e a ficção e que tem conquistado experimenta ler:
um destaque cada vez mais relevante dentro CORTE DE ESPINHOS E ROSAS
destes géneros. Sarah J. Maas 
Se o afrofuturismo te interessa, Longe vão os tempos das protagonistas
experimenta ler: indefesas que precisavam que as salvassem. A
QUEM TEME A MORTE  heroína desta história é uma caçadora que se
Nnedi Okorafor  chega à frente para defender a sua realidade
Num futuro pós‑apocalíptico, que deixou dos perigos de um mundo paralelo. Acaba,
devastado o continente africano, nasce uma contudo, por conhecer por lá o misterioso
criança com poderes sobrenaturais que Senhor das Fadas. Tornar‑se‑á ele um inimigo,
poderá ser a principal esperança para acabar um aliado ou algo totalmente diferente?
com o genocídio do seu povo.
Simultaneamente envolvente e chocante, ECOFICÇÃO
o livro venceu o prémio de melhor romance Também conhecida como cli‑fi, a ecoficção é
do ano nos World Fantasy Awards 2011 e será um subgénero literário dedicado à exploração
futuramente adaptado à televisão, com George de temas ambientais (reais ou não) através de
R. R. Martin como produtor executivo. narrativas ficcionais. Tipicamente associado

88
à ficção científica, serve muitas vezes SÉRIES E UNIVERSOS LITERÁRIOS
para chamar a atenção para o impacto Algumas das mais conhecidas histórias
negativo que determinadas ações de fantasia e ficção científica de todos
humanas têm tido ou podem vir a ter os tempos – O Senhor dos Anéis, Harry
na natureza. Potter, Duna, Fundação, As Crónicas de
Com as alterações climáticas cada Gelo e Fogo – encheram não um, mas
vez mais na ordem do dia, é natural vários livros, pelo que o fenómeno das
que muitos autores se voltem para estes séries literárias é tudo menos novo. No
temas nos seus trabalhos, dando‑nos entanto, a tendência tem‑se acentuado
a conhecer futuros pós‑apocalípticos nos últimos anos e, atualmente, são
onde o planeta e os seus sobreviventes cada vez mais os livros publicados já
se debatem com os efeitos de com uma continuação em mente.
devastadoras catástrofes ambientais, Não nos referimos apenas a
entre os quais guerras e doenças. sequelas, mas a prequelas e spin‑offs,
Se a ecoficção te interessa, ao longo dos quais são construídos
experimenta ler: verdadeiros universos literários que,
GUERRA AMERICANA por vezes, se estendem a dezenas de
Omar El Akkad  títulos durante anos a fio.
Num futuro próximo, os Estados Alguns deles são tão complexos
Unidos aprovam uma lei que proíbe a que merecem livros especificamente
utilização de combustíveis fósseis em dedicados a explicá‑los. E isto
território nacional. Em reação a esta influencia, naturalmente, as
lei, cinco estados – Texas, Alabama, possibilidades narrativas, abrindo
Geórgia, Mississípi e Carolina do caminho para aprofundar temas e
Sul – anunciam a secessão do país, personagens e criar uma relação mais
desencadeando no processo uma forte com os leitores.
violenta guerra civil. Se as séries e os universos literários
Esta é, contudo, apenas uma das te interessam, experimenta ler:
preocupações numa região marcada
REMEMBRANCE OF EARTH’S PAST
por instabilidade política, atentados
Liu Cixin
terroristas, invasões territoriais e um
O Problema dos Três Corpos
vírus que provoca apatia.
The Dark Forest
BIZARRO Death’s End
Há muito que o bizarro deixa a CURSED BUNNY É na fantasia que encontramos a maior
sua marca na ficção especulativa, Bora Chung parte das séries literárias, mas elas
rodopiando sem restrições entre a Logo nas primeiras linhas deste livro da também existem na ficção científica.
fantasia, a ficção científica e o terror. sul‑coreana Bora Chung, encontramos A prová‑lo está esta aclamada trilogia
Outrora um estilo exclusivo uma mulher que, acabada de fazer as do chinês Liu Cixin, que envolve
da cena independente, dominado suas necessidades e prestes a puxar o o contacto com uma civilização
por autores como Carlton autoclismo da casa de banho, depara‑se alienígena proveniente de um sistema
Mellick III, Kevin L. Donihe, Cody com uma cabeça dentro da sanita. solar de três estrelas.
Goodfellow e Cameron Pierce, o Mas a situação é ainda pior do O primeiro volume da trilogia foi o
bizarro tem‑se diluído e levado o seu que parece. Porque, para sua surpresa, primeiro romance de origem asiática a
absurdismo para o mainstream, ao a grotesca cabeça endireita‑se na sua conquistar o prémio Hugo, em 2015,
ponto de conquistar (ou pelo menos direção e diz: “Mãe?” e também obteve uma nomeação para
ser nomeado para) prémios literários É apenas a primeira de dez o prémio Nebula. O terceiro venceu o
que, até há pouco tempo, lhe pareciam estranhíssimas histórias, sempre entre prémio Locus, em 2017, e foi finalista
arredados. a fantasia, a ficção científica e o terror, do prémio Hugo.
Se o bizarro te interessa, que completam esta coleção finalista
experimenta ler: do International Booker Prize 2022.

89
j ogo s
loading game

Luís Pinto
Informático de
profissão, passa
os tempos livres
a escrever no seu
blogue Ler y Criticar
e a fazer vídeos no
canal de Youtube
chamado Luís Pinto.

THE LAST OF US
É A ESPERANÇA DOS GAMERS
POR LUÍS PINTO

O mundo do streaming está ao rubro. Chegam‑nos produções


de milhões, desde a prequela de A Guerra dos Tronos ou
de O Senhor dos Anéis, passando por Sandman, A Roda do
Tempo, Fundação, The Witcher, entre muitos outros. O
mundo literário está a ser adaptado à velocidade da luz
para o cinema e streaming, de tal maneira que não é fácil
vermos tudo. Mas pelo meio existe um nome, The Last of Us
(TLoU), uma milionária adaptação de um videojogo. Será
agora o momento em que as massas percebem a mina de ouro
narrativa que está presente neste género de entretenimento?

90
era o que muitos na indústria
tentavam alcançar. Em 2013 chega
2 em 5 A procura pela envolvência The Last of Us – e aqui faço um
rápido disclaimer indicando que

A D
primeira vez que joguei um esde que comecei a trabalhar trabalhei para a Naughty Dog neste
videojogo foi há 33 anos, num em videojogos que sinto que jogo e que tenho um carinho especial
ZX Spectrum. Com quatro anos, a envolvência é onde os jogos irão por ele. Mas, independentemente
fiquei fascinado por tocar em botões progredir nos próximos anos. Quero disso, não exagero ao dizer que, na
e algo acontecer num ecrã. Depois sentir que estou naquele jogo e, apesar minha visão, The Last of Us alcançou
veio a era do Sonic e Super Mario, de a tecnologia ainda ter muito para a perfeição no equilíbrio entre
seguido de muitos outros. Mais de evoluir, a verdade é que existem vários mecânicas e narrativa, mostrando
três décadas depois, centenas de videojogos que, pela forma como ao mundo, quase a cada minuto de
jogos jogados e de ter trabalhado misturam jogabilidade/mecânicas com jogo, pelos seus cenários ou diálogos,
para duas das mais famosas o enredo, tornam toda a experiência as infinitas possibilidades de narrativa
produtoras de videojogos em todo em algo incrível. deste género de entretenimento.
o mundo, alguns jogos ficarão na Era um adolescente quando
minha memória para sempre, mas joguei Metal Gear Solid. A
nunca adaptados com sucesso ou obra‑prima de Hideo Kojima
qualidade para o grande ecrã. misturava, como nenhum outro, A natureza humana
No momento em que escrevo este os conceitos‑base de videojogos e
texto, o top 5 dos videojogos mais
premiados de sempre é composto
por dois jogos da Naughty Dog
cinema. Nos anos seguintes, vários
jogos tentaram imitar a mesma
fórmula, uns com mais sucesso
Q uando em 2012 soube que iria
trabalhar no próximo jogo da
ND, a minha felicidade foi imensa,

(ND). Os dois The Last of Us estão do que outros. Muito do sucesso mas esmoreceu quando me disseram
lá, merecedores desses prémios, ou insucesso destes jogos estava na que era um jogo passado num mundo
marcos incontornáveis deste tipo de capacidade de criar um equilíbrio repleto de zombies. A verdade é que
entretenimento que alcança as mais entre jogabilidade e história. Metal estava farto de zombies. Filmes, jogos,
diversas pessoas, nas mais diferentes Gear Solid, por exemplo, apresentava livros, havia zombies por todo o lado.
idades, origens, géneros, crenças. No cut‑scenes demasiado longas, ao ponto Mas a ND não falhou, percebendo
meio de milhares de jogos já feitos, de parecer mais um filme interativo que um jogo não se deve focar numa
existir uma saga que tem os seus do que um videojogo. Outros tinham característica (ter zombies), mas sim em
dois jogos no top 5 é, no mínimo, mecânicas excelentes, mas falhavam vários fatores desse mundo. TLoU é
impressionante. Percebe‑se que a HBO em inserir bem a história entre os um jogo onde o ser humano continua
tenha apostado nesta série. momentos de jogo. E esse equilíbrio a ser o maior inimigo, sem bosses

91
finais, apenas com a luta diária pela emocional, ao nível dos grandes filmes
sobrevivência. e livros. E é focada nesta possibilidade
Ao focar‑se na natureza humana, dos videojogos que muitas produtoras
ao explorar a nossa fragilidade tentam alcançar a sua vitória: contar
biológica perante o que nos rodeia, uma história.
cada cenário, cada diálogo, cada A maioria das grandes
momento serve a construção narrativa obras‑primas do cinema ou da
do mundo, do seu passado, da sua literatura são, independentemente dos
sociedade, das leis que o regem e mundos onde se passam, humanas.
das personagens que nele vivem. Até É o realismo da natureza humana
onde iremos para sobreviver e onde que nos agarra. Tal como A Guerra
iremos falhar, porque ao ser um dos Tronos é sobre personagens num
enredo sobre nós, humanos, então mundo de fantasia, The Last of Us
é preciso perceber que os humanos é sobre personagens num mundo
falham, por ganância ou egoísmo, por distópico.
incapacidade ou azar. E pelo meio Esta adaptação é a minha
tentamos sobreviver. Não há heróis esperança de mostrar às massas a
neste jogo. qualidade na narrativa de um jogo.
Mostrar a quem diz que jogos é
apenas carregar em botões, que é
muito mais do que isso. TLoU é
O poder narrativo sobre um homem que enfrentou uma
de um jogo perda inimaginável, é sobre o que nos
tornamos se o fim estiver próximo. É

E nquanto trabalhei no jogo,


apenas tive acesso a uma pequena
parte dele. Não sabia como acabava,
sobre sermos o problema e a solução.
É sobre a ganância e a violência que
conseguimos criar, mas também o
nem sequer como começava. O meu amor e esperança que sobrevive no
conhecimento estava limitado a uma nosso interior mais profundo e que
parte do enredo, a uns cenários, e nem sempre sabemos que existe. É
pouco mais. Foi mais tarde, quando sobre o inegável facto de que somos
recebi o jogo cerca de um mês antes o ser vivo que toca os extremos,
de chegar às lojas, que finalmente do ódio e do amor. E, pelo meio,
experimentei como jogador a tentar sobreviver a todo o custo. Se
obra‑prima que a ND tinha criado. E a adaptação estiver ao nível do jogo,
foi aí que tive a prova, que mais tarde então será uma série obrigatória e,
mostraria a todos os que dissessem espero eu, o início de fantásticas
o contrário, de que os jogos podem adaptações que os videojogos
estar, enquanto poder narrativo e merecem.

The Last of Us
Este é um videojogo sobre Adaptações futuras
um adulto, Joel, e uma Agora sabemos que Fallout,
adolescente, Ellie, num Bioshock, entre outras sagas, estão
mundo distópico onde um a preparar o seu caminho para
vírus transforma as pessoas serem adaptadas, mas nenhuma é
numa espécie de zombies. mais aguardada do que The Last
A nossa missão: sobreviver of Us, que chega em 2023 pela
e assegurar a segurança de mão da HBO.
Ellie a todo o custo.

92
opin ião
A Prata da casa

Deuses Americanos – Sombras


Todos os números da BANG!, um colaborador da Saída de Emergência fala‑nos dos seus livros favoritos.

U
Estamos numa espécie de era dourada m dos grandes fenómenos deste ano, não nas salas de
da fantasia e FC. De repente, o mundo cinema, mas nas nossas próprias salas e televisões é Neil
está disposto a receber de braços Gaiman. Conheci o trabalho de Gaiman ainda na minha
abertos os autores e obras do adolescência, quando consegui deitar as mãos a uma edição de
género, e até as grandes salas de The Sandman, e foi amor à primeira vista.
Não será, então, difícil imaginar o entusiasmo que senti
cinema se abriram para um universo
quando recebi a notícia de que íamos publicar a adaptação
que já foi considerado de nicho.
para novela gráfica de outro trabalho icónico do autor –
Deuses Americanos.
Deuses Americanos começou o seu percurso em 2001
como um romance do género fantástico ao bom estilo
americana, onde se explora o conceito de como os deuses
antigos sobreviveriam nuns Estados Unidos da América
frenéticos, tecnológicos, a América das luzes de néon, da
desconexão social, dos valores pervertidos.
Gaiman sempre teve o talento de pintar imagens vívidas
com as suas palavras, e foi sem surpresa que, em 2017, a
Dark Horse Comics decidiu avançar com a adaptação de
Deuses Americanos para uma série de novelas gráficas.
A adaptação contou com P. Craig Russel, que já tinha
uma longa lista de colaborações com Gaiman, como a
adaptação do inquietante Coraline, e com o ilustrador Scott
Hampton conhecido pelas suas participações em novelas
gráficas como Hellboy, Batman, entre outros.
No seu primeiro volume, Deuses Americanos – Sombras
apresenta‑nos Shadow Moon, que após sair da prisão e
descobrir que a sua esposa morreu, recebe a proposta de
Sr. Wednesday para trabalhar como seu guarda‑costas e
motorista.
Assim se inicia uma viagem pelos Estados Unidos, bem
ao género road trip, que nos é tão familiar. Mas esta viagem
cedo mostra que, de normal, não tem nada. Shadow Moon
inês pereira tem pela frente uma série de desafios perigosos, peculiares,
Entusiasta de filmes, e… acima de tudo, divinos.
séries, música, Pelo caminho, vamos percebendo que nada é o que
dormir, sarcasmo,
gatos e unicórnios. parece, e isto aplica‑se especialmente ao Sr. Wednesday.
Adora perder-se em No final deste primeiro volume, somos ainda
mundos que não o
seu, para descansar
presenteados com arte adicional, esboços de personagens
da azáfama do dia e capas de artistas como David Mack, Glenn Fabry, Becky
a dia, e colecionar Cloonan, entre outros.
idas a concertos
e festivais.

93
o pi ni ão
CALA‑TE E JOGA

António Sousa Lara


Nasceu em Lisboa e é
um gigantesco geek 24
horas por dia, 7 dias por
semana. Formou‑se em
Belas‑Artes e trabalha
atualmente como game
designer e videógrafo.

POR
António
Sousa
Lara

boardgames? MAS ISSO NÃO É PARA CRIANÇAS?


Uma das coisas que me põe um sorriso na cara é chegar à secção de boardgames e ver uma
quantidade absurda de jogos. Jogos de todos os géneros, com os mais variados temas e mecanismos.
Aliás, só a própria existência de uma secção dedicada exclusivamente a jogos de tabuleiro é, em si,
uma conquista épica. Olhemos para alguns dos protagonistas desta bela história.

94
anos 70
Nos anos 70, jogos como o famoso Uno e o igualmente famoso
Mastermind são títulos de carácter familiar, acessíveis nas regras e
no preço, e pouco exigentes a nível mental. É devido a esta linha de
jogos familiares que nasce, nesta altura, o prémio Spiel des Jahres
(«Jogo do Ano»), distinguindo como primeiro vencedor Hare
&Tortoise, um simples jogo de corridas com gestão de recursos
e pouca aleatoriedade (uma característica muito apreciada na
Alemanha). De uma linha mais exigente e inspirada por grandes obras
literárias de fantasia e ficção científica nascem Dune e War of the Ring,
dois monstros do controlo de território com elevadíssimo grau de
estratégia e assimetria, que se revelam demasiado avançados para o seu
tempo. Partilhando ascendentes comuns como Risco e Diplomacy, têm
abordagens muito diferentes às dos antecessores, estritamente ligadas
aos temas que representam. Tolkien viria também a ter uma influência
importante na criação de um jogo de miniaturas medieval chamado
Chainmail, cujo autor, mais tarde, viria a criar o primeiro role‑play
game, Dungeons & Dragons (D&D, que originalmente pressupunha o
uso de miniaturas de Chainmail).

anos 80
Os jogos que usam minis ou miniaturas são o que realmente cresce
Mafia/Werewolf já era jogado e ganha presença nos anos 80. Rogue Trader, HeroQuest, Space Hulk,
informalmente muito antes
de ter sido publicado, sendo BattleTech, e o meu querido favorito, Warhammer, são jogos que
considerado como o Pai dos celebram as suas miniaturas, acima de tudo. Algumas destas minis
jogos de dedução social. podem ser montadas e pintadas de formas completamente diferentes,
o que dá um toque de customização nunca visto em jogos anteriores.
Não raras vezes, jogos desta natureza são comprados apenas para
utilizar as miniaturas (em jogos como D&D, por exemplo). Outros
títulos de baixa complexidade são Can’t Stop e Mafia/Werewolf. Neste
tipo de jogos, alguns jogadores são secretamente atribuídos a uma
equipa inimiga com agenda própria, que, normalmente, passa por
matar todos os outros jogadores.

95
anos 90
Nesta década, vou começar pelo que me diz mais: sem sombra
de dúvida, os cardgames! Os jogos de que falo são Legend of the
Five Rings, o divertido Pokémon Trading Card Game e, claro, a
longa lista de jogos publicados por Richard Garfield: Vampire: The
Eternal Struggle, Netrunner (inspirado no livro do William Gibson,
Neuromancer), e o famoso e quase omnipresente, Magic: The
Gathering, o primeiro CCG (Collectible Card Game) e o monstro
que domina, até hoje, a cena dos CCG, de tal maneira que qualquer
outra coisa que apareça tem muito poucas chances de sobrevivência.
Falando de coisas mais universais, é nesta altura que surgem os jogos
que muitos atualmente conhecem e têm em casa, como Settlers of
Catan (ou só Catan, para os amigos), Time’s Up! e Jungle Speed.
Outros dentro desta categoria, mas menos conhecidos, são For Sale,
Lost Cities e Modern Art. As miniaturas continuam em exponencial
crescimento e as novidades mais passiveis de serem consideradas
boardgame são Blood Bowl, Warhammer Quest e o épico Twilight
Imperium. Este tem a ambição de ser uma representação de um
conflito intergaláctico (inspirado em Star Wars e Dune).

de 2000
em diante
Sites como a base de dados BoardGameGeek permitiram a milhares
de utilizadores a entrada, contacto e partilha da sua paixão pelo hobby.
A juntar ao virtual, começam a surgir cada vez mais feiras/convenções
dedicadas exclusivamente aos boardgames, como a GenCon e a Spiel
notas
Essen. Com o desaparecimento da fronteira atlântica, em que de
um lado tínhamos os jogos americanos de conflito bélico com forte
finais
recurso a dados (mais conhecidos como jogos ameritrash) e do outro Os boardgames estão cá e não vão a lado
tínhamos os jogos alemães, pouco temáticos e de baixa interação e nenhum. Não são para crianças, mas sim
alta estratégia, sem recurso a mecanismos aleatórios (mais conhecidos para todos, sem exclusão de idade, género
como jogos euro), chega agora a era de influência mútua. Jogos euro ou qualquer outra coisa. Alguns poderiam
que marcaram os primeiros anos 2000 são Agricola, Puerto Rico, ingenuamente contrapor os jogos sociais
Power Grid, Hansa Teutonica e o intenso Brass. Jogos mais voltados aos videojogos, mas na verdade ambas as
para captar famílias e novos jogadores foram Dixit, que utiliza uma vertentes sempre coexistiram e cresceram
mecânica de dedução social através apenas de ilustrações oníricas lado a lado. De certa forma, muitos dos
em cartas XL, e Pandemic, uma referência na categoria de jogos boardgamers são videogamers e vice‑versa.
cooperativos. Existem cada vez mais e melhores jogos
todos os anos. Um grande catalisador é o
crowdfunding, mas isso é uma conversa para
outro dia. O importante a reter é que nem a
pandemia, nem as várias crises conseguiram
Em Pandemic, todos os jogadores
trabalham em conjunto para impedir este crescimento exponencial, e isso
salvar o mundo de quatro só pode ser uma coisa muito boa daqui para
terríveis pandemias que não
param de alastrar (faz lembrar a frente. BANG!
qualquer coisa, não é?).

96
o pi ni ão
LER Y CRITICAR

Diversidade
Estilística na
Fantasia
POR L U Í S P I N T O

que escreveu a saga


Existem muitos autores The Witcher, um
que são enormemente conjunto de livros de
conhecidos no mundo grande qualidade e
literário, mas quque,
que foram adaptados
por vários motivos,
não conseguem sair desse aos videojogos,
«género artístico». apesar de com
Mesmo grandes fenómenos grandes alterações
literários como Harry
Potter ou O Senhor dos LIVROS V S ADAP TAÇÕ E S na história. O que tornou o nome
Anéis não conseguiram, C INEMATO G RÁF I CAS The Witcher famoso foram os jogos e,
enquanto livros, alcançar mais recentemente, a série da Netflix
a mesma popularidade
(que se guia pelos livros e não pelos
que as adaptações
eixem‑me concretizar esta
cinematográficas D minha ideia. J. K. Rowling é a
jogos), e então os livros lá tiveram um
boost de vendas. Para se perceber o
alcançaram. Esta
tendência é normal autora que mais vendeu no mundo impacto que as adaptações podem ter,
e não será revertida com a saga Harry Potter, mas os na semana em que a série foi lançada
por diversas razões.
Normalmente, só um número
seus restantes livros não tiveram o na Netflix, o jogo The Witcher 3
reduzido de pessoas que mesmo impacto. Tolkien e George (um dos melhores de sempre, mas já
vê a adaptação lê os Martin sofrem do mesmo mal, pelo com alguns anos) foi o mais jogado na
livros, e são raras menos em Portugal. Os leitores
as que saem desse livro famosa plataforma Twitch.
para conhecer as outras portugueses leram os livros de A
obras do autor. Guerra dos Tronos, mas o que dizer do
interesse na restante obra do autor, THE W ITC H E R VS A
mesmo aquela que se passa no mesmo TO R R E D O S LO U CO S
mundo de fantasia? Lembro‑me de,
em 2021, estar na Feira do Livro de é por isso que escrevo este
Lisboa, em frente à banca da Saída de E texto, porque a melhor saga de
Emergência, a ler algumas sinopses e Sapkowski provavelmente nem é The
em poucos minutos vi uma situação Witcher. Mas já lá vamos. Sapkowski
repetir‑se algumas vezes: as pessoas tem em The Witcher um estilo muito
queriam levar os livros todos de A peculiar de apresentar a história, com
Guerra dos Tronos, mas quando os saltos cronológicos e geográficos,
colaboradores da editora sugeriam a explorando e mostrando o mundo
prequela Sangue e Fogo (que está, neste quase de forma indireta durante a
Luís Pinto momento, na HBO com o nome grande maioria dos livros, levando
Informático de profissão, passa House of the Dragon), ninguém queria por vezes a alguma confusão se não os
os tempos livres a escrever no
seu blogue Ler y Criticar e a comprar esses livros. lermos de seguida, principalmente com
fazer vídeos no canal de YouTube Sapkowski é um autor polaco as questões políticas presentes na saga.
chamado Luís Pinto.

98
Mas e outros livros? O estilo tarde, se torna num personagem com
de Tolkien foi sempre o mesmo, A TO R R E D O S LO U CO S grande profundidade e qualidade,
o de George Martin também e até numa narrativa que se torna cada vez
Torre dos Loucos é uma mistura mais negra e que dá espaço a outras
Sanderson (autor que criou duas
das melhores sagas de fantasia de
A de romance histórico com excelentes personagens como Scharley
sempre e que quase ninguém leu) fantasia, e as diferenças em relação a ou Samson. Mas é a personalidade
tem alguns toques na forma de contar The Witcher são grandes, até porque de Reinmar que merece ser lida,
a história que são iguais. Chegou A Torre dos Loucos é baseado na Europa principalmente quando começamos
agora a Portugal um livro intitulado do século xv, com adições de magia e a  perceber o porquê de algumas
monstros. O mundo é muito decisões na segunda metade do livro
menos focado em magia, é e que me deixaram a querer saber mais
mais político, mais maduro e sobre o seu passado, sobre os seus
o personagem é muito menos motivos, medos, desejos, etc…
indicado para ser um herói do Bastante sustentado em religião,
que é Geralt em The Witcher. este é um livro que, apesar dos
Mas o estilo de escrita é muito momentos cómicos, é bastante negro,
semelhante e menos confuso. com momentos de tortura e violência
Sapkowski mantém a parte que transportam o leitor para uma
quase cínica e cómica da sua realidade que não é agradável e que
escrita, a ação está presente e nos choca algumas vezes.
o ritmo é ligeiramente mais O primeiro livro desta trilogia, o
lento, com o mundo e as único que li até agora, é mais fácil de
personagens a serem mais ler do que o primeiro de The Witcher.
detalhadas numa fase inicial. É mais sombrio, mas também mais
Tal como na saga de Geralt, contínuo, o personagem principal
também aqui as personagens mais «divertido» e estou curioso para
secundárias são de elevada perceber o quanto os fãs portugueses
qualidade e têm mais tempo irão abraçar esta trilogia sem ter
de antena. O enredo e o o «empurrão» da adaptação aos ecrãs.
leque de personagens é mais Obviamente que os filmes e
A Torre dos Loucos, o primeiro da saga abrangente porque as semelhanças com streaming chegarão sempre a mais
que Sapkowski diz ser a que mais se os acontecimentos históricos assim o pessoas do que livros, é a realidade
orgulha de ter escrito. Mas quantos fãs permitem. atual e a distância será cada vez maior.
de The Witcher irão mergulhar nestes Reinmar, o personagem principal, Por outro lado, muitos leitores,
três livros? é o grande motor de uma história ao ficarem confinados apenas a
bastante vasta e abrangente. Sem livros que são adaptados, perdem
dar spoilers, Reinmar é um médico experiências literárias de altíssimo
atraente, inteligente e com um ponto nível, principalmente de autores de
fraco: as mulheres. E numa fase que gostam. A Torre dos Loucos é um
inicial esta é a imagem do que, mais desses casos.

São várias as obras adaptadas com A Torre dos Loucos, o primeiro volume
sucesso ao grande ecrã. Blade Runner, da Trilogia Hussita, acompanha o
Clube de Combate, 2001: Odisseia tumulto religioso na Europa durante
no Espaço, O Padrinho, entre muitos o século xv. Distinto de The Witcher,
outros, foram grandes êxitos, mas onde a fantasia é dominante, A Torre
foram poucos os que leram os livros dos Loucos apresenta‑nos uma ação
e exploraram a restante obra dos baseada em factos históricos com o
autores. habitual estilo negro e corrosivo a que
Andrzej Sapkowski já nos habituou.
99
id a e vo l ta
DIGRESSÕES ENTRE A TERRA MÉDIA E O MUNDO REAL
roger lee
de jesus
Historiador e
doutorado em
História Moderna
na Universidade
de Coimbra.
Para além da
investigação na
área, é também
cocriador do
podcast Falando
de História.

POR ROGER LEE DE JESUS

A Terra Média, o “mundo secundário”


criado por J.R.R. Tolkien, é um dos locais
de eleição de qualquer leitor de fantasia.
É, na realidade, o lugar por excelência A MONUMENTALIDADE
por ter sido o primeiro a ser criado E O PESO DA ANTIGUIDADE

A
com uma profundidade que poucos
estreia da nova série televisiva
conseguiram replicar. A obra magna de
baseada na obra de Tolkien
Tolkien, O Senhor dos Anéis, publicada levou o público a conhecer
entre 1954‑1955, continua a dar que falar um pouco da história da Segunda Era
nos dias de hoje; basta ver a nova série da Terra Média (a trama d’O Senhor dos
da Amazon Prime, Os Anéis do Poder. Mas Anéis ocorre no final da Terceira Era),
de Arda até ao mundo real, onde é que e, em particular, da ilha de Númenor.
Quer as descrições, quer a adaptação
podemos encontrar Tolkien?
para o ecrã de Númenor e, nos filmes,
do reino de Gondor (descendente
deste primeiro) remetem‑nos para a
monumentalidade do antigo Egito.
Lembremo‑nos, por exemplo, das
Argonath, e olhemos para os colossos de
A única vez que J.R.R. Tolkien passou Memnon (século xiv a.C.).
por território português (Madeira e Desde a capacidade e o gosto
Lisboa) foi quando tinha três anos e
regressava da África do Sul, em 1895.
por construir obras gigantescas, até à
A vista da cidade de Lisboa, desde o própria importância dada aos locais de
rio Tejo, espraiando‑se dourada nas sepultamento, podemos facilmente criar
colinas ao nascer do Sol, ficou‑lhe
pontes de ligação entre este período
gravada na memória, conforme
recordaria mais tarde. da história e a criação literária. Se
100
olharmos para o mundo romano e para (Jutos, Anglos e Saxões), bem como através do papel, nas muitas obras
a sua vastíssima rede de estradas, que à chegada destes ao Shire, liderados que temos à escolha – lembremos que
ligavam todas as partes do império, por dois irmãos (Marcho e Blanco), O Silmarillion comemorou os seus
também encontramos semelhança tal como dois chefes germânicos 45 anos de publicação em setembro
na grande ligação viária que ligava os chegaram inicialmente àquilo que viria de 2022, e que Christopher Tolkien
reinos númenorianos (do exílio) de a ser Inglaterra (Hengest e Horsa). dedicou grande parte da sua vida a
Gondor e Arnor – o Caminho Verde. Contudo, a semelhança mais fácil de editar os manuscritos do pai. Por cá,
Já a divisão do Império Romano, no encontrar é com os Rohirrim e com os a editora Planeta tem sido responsável
século iii, entre o império do Ocidente anglo‑saxões, nos quais JRRT admitia pela nova edição das obras (com
(que cairia no século v) e do Oriente ter‑se inspirado, mas apenas até um nova tradução, mais fiel ao espírito
(que haveria de perdurar enquanto certo limite: para além da língua, era linguístico do autor).
Império Bizantino, até ao século xv) sobretudo uma ideia mítica que existia
pode ter inspirado a divisão dos ditos desses povos antigos que tinham dado
reinos de Gondor e Arnor pelos filhos origem à matriz inglesa.
de Elendil, Isildur e Anárion. Apesar disso, podemos também
notar a ligação entre o palácio de
Meduseld, em Edoras, e os próprios A primeira edição
d’O Silmarillion,
O MUNDO MEDIEVAL, salões descritos em Beowulf (famoso em 1977, contava
POR DEVER DE OFÍCIO poema em Inglês Antigo, datado ser de 100 mil

E
aproximadamente dos séculos ix‑x), exemplares.
Contudo, a
nquanto filólogo e especialista que Tolkien tão bem conhecia.
demanda foi tão
em Inglês Antigo, o próprio Apesar do lugar cimeiro que já alta antes do
mundo medieval influenciou possuía enquanto pioneira no mundo lançamento que a
a obra de Tolkien. Basta olhar para os da fantasia, a obra de J.R.R. Tolkien primeira tiragem
acabou por
Hobbits e para a sua divisão em três fixou‑se definitivamente na cultura
ascender às 375
grupos (Harfoots, Stoors e Fallohides), popular através dos filmes e da nova mil cópias.
semelhante à das tribos germânicas série. Para lá das adaptações, o melhor
aquando da chegada à Grã‑Bretanha será sempre regressar à Terra Média
101
cr óni c a
os “deprimentes” anos 90

OS
“DEPRIMENTES”
ANOS 90
UMA VIAGEM NO TEMPO TRAZIDA ATÉ VÓS POR
RICARDO TRINDADE, FUNDADOR DA ZOMBI TV,
E A SUA EQUIPA DE NERDS

Vivemos no futuro! Não no futuro idealizado por Isaac Asimov,


mas no que é composto, essencialmente, por uma constante ligação
a um mundo de informação ilimitada, em que tudo é para ontem
e todos têm uma opinião. Talvez seja altura de PARAR, respirar fundo
e relembrar uma década em que a Internet não era para todos, em que
o videoclipe «… Baby One More Time », de Britney Spears, demorava um
mês a “sacar”, em que as filas para entrar na Expo´98 eram maiores
do que a fila para comprar os bilhetes dos Coldplay. Uma década
conhecida como os “deprimentes” anos 90!

102
IR AO CINEMA caminho, falam sobre o filme que Está a ser o filme mais brutal de
NOS ANOS 90 passou de madrugada na TV e que sempre! Melhor que isso, a miúda
(por um gajo que viste na sala às escondidas. Algo sobre pediu para trocar para o teu lado.
realmente passou por lá) um polícia de Los Angeles contra um Amanhã vais passar no clube de vídeo
alien com um focinho todo manhoso. e alugar o primeiro filme para ver em
POR: BRUNO ROSA, ESPECIALISTA EM O filme mais brutal de sempre! casa do teu primo.
CINEMA E TUDO O QUE É ANOS 90/80. Chegaste! Bilheteira única, fila Eras feliz e não sabias.
longa e só pensas em arranjar um bom

É
sexta‑feira depois de jantar e, lugar, o mais para trás possível, e –
como foste inteligente, poupaste muito importante – ao lado da miúda. ACORDAR CEDO É
nos pacotes da Matutano e ainda Azar! Ela ficou no meio da malta e tens MESMO PARA MENINOS
te sobraram 300$00 da semanada um estranho ao teu lado. Esperas que
que os teus cotas te deram para ires não seja daqueles que come pipocas de POR: FÁBIO LUÍS, O ESPECIALISTA EM
ao cinema. boca aberta. Entras na sala, mostras o ANIMAÇÃO E O ÚNICO QUE TRABALHOU
O ponto de encontro com a bilhete ao “pica” e depois sobes para o PARA A MARVEL
malta é sempre na praça central, onde teu lugar.

N
estão expostos os posters dos filmes «E quando o alien arranca a cabeça uma manhã qualquer em 1994,
da semana – Scream 2 é o de hoje. do gajo ainda com a espinha!?», acordo às seis da manhã e vou à
Ninguém sabe muito bem o que é, diz alguém ainda sobre o filme da cozinha preparar a minha taça de
mas se fizeram um segundo é porque TV. «Eu meti o vídeo a gravar, mas cereais. Nesta altura, não havia canais
o primeiro foi bom. Estás com sorte, falhei nas horas e o filme ‘tá sem de desenhos animados, nem a box para
a miúda de quem gostas veio. Para os dez minutos do início e com os gravar ou voltar para trás: ou acordava
queimar tempo, passas no salão de intervalos pelo meio», diz outro. As a horas, ou “perdia o comboio”.
jogos e dás uns tiros no Time Crisis 2, luzes apagam e interrompem‑se as Ligo a TV… e um solo de guitarra
para mostrares à miúda os teus dotes conversas. Os trailers enchem a sala, rasga a todo o vapor! Pelo meio de
de pistoleiro. enquanto uma ou outra pessoa vai chamas e raios, vejo um miúdo com
Meia hora para o filme começar. entrando acompanhada pelo “pica” de um boné vermelho que lhe permite
O melhor é subir as ruelas, não vás lanterna em punho. Alguns segundos abrir portais extradimensionais. Este
perder os trailers e ficar sem saber de escuridão e o filme começa. Vamos foi o meu primeiro contacto com
o que vem daqui a uns meses. Pelo lá ver... Mighty Max, uma série que me marcou

Scream 2: este é um Time Crisis: este era um


slasher estreado em Shoot’em Up de arcade, de
1997, mas que em 1998, que introduziu o modo
Portugal só chegaria cooperativo e uma excelente
nos inícios de 1998 e forma de recarregamento
que é a sequela direta da arma e proteção atrás
de Scream, um grande de objetos através de um
êxito de Wes Craven, pedal que o jogador pisava.
em 1996, responsável Estava dividido por zonas
pelo revivalismo deste que tinham de ser passadas
subgénero do horror. A dentro de um tempo limite,
história segue um grupo de o que tornava o jogo
amigos que, mais uma vez, bastante rápido e viciante,
se veem perseguidos por principalmente no modo
um assassino mascarado. hard.

103
aos quatro anos de idade (devo ser dos REBOBINAR ANTES
poucos, porque quase ninguém fala ou DE ENTREGAR
se lembra dela).
A voz era do grande Carlos POR: ÉDI MIGUEL, FÃ N.º 1 DE JEAN‑CLAUDE
Macedo, a voz de serviço para VAN DAMME E DE FILMES DE “REBENTAR
qualquer protagonista na altura: BRITA”.
Zorro, Samurai X, Inspetor Gadget,

C
Sonic, Homem‑Aranha, para hega sábado, e eu num histerismo
nomear alguns. Só faltou ser o Son digno de levar um bofetão à Steven
Goku! Na versão original (que revi Seagal, e tudo porque era dia de
A série estreou a 1 de setembro recentemente), tínhamos vozes o meu primo dizer: «Puto, vamos
de 1993 e terminou a 2 de lendárias como o Rob Paulsen a fazer ao videoclube.» E lá íamos nós, a
dezembro de 1994, com um de Max e até o Tim Curry, como o entrar pelo videoclube com o cartão
total de 40 episódios. vilão, com o nome extremamente de sócio, plastificado a fita‑cola, na
criativo de Skullmaster (um primo mão. Corríamos aquelas prateleiras
afastado do Skeletor). carregadas de VHS à procura do
A série tinha tudo. Aventuras no filme que nos ia entreter nesse fim de
espaço, lutas com criaturas mitológicas semana.
em cenários de fantasia e muita O primeiro obstáculo não era
“porrada”… mas tinha algo mais. fácil! Não havia grande divulgação
Tinha imensas referências a filmes e à dos filmes, e trailers, só aqueles que
cultura pop, tais como o Alien ou Star apareciam noutras VHS alugadas,
Wars, e até teve um episódio dedicado portanto, a escolha era feita com
Era inspirada na linha de ao The Thing, do John Carpenter! base na capa do VHS ou do ator que
brinquedos com o mesmo Cada episódio era uma publicidade protagonizava o filme. Quanto mais
nome, que era uma versão para glorificada à linha de brinquedos da espetacular fosse a capa, mais fácil era
miúdos da série Polly Pocket. série. Porém, no final de cada episódio, a tarefa! Algumas chegavam a ter um
havia uma componente educativa. design melhor que o próprio filme!
O Max dava‑nos uma espécie de Se a estrela fosse o Van Damme, o
lição sobre as criaturas encontradas Schwarzenegger ou o Stallone, era
e os sítios que tinham sido visitados sinónimo de “chapadas à padrasto”
naquele episódio. Era um segmento e “cabeçadas à cais do Sodré”. O que
onde aprendíamos algo e que ajudava hoje seria facilmente carimbado com o
a criar uma ligação mais próxima com selo de masculinidade tóxica, na altura,
o protagonista, pois ele quebrava a era o verdadeiro “filme de macho”!
quarta parede. O segundo obstáculo resumia‑se
Pode‑se dizer que esta série à sorte de o filme escolhido não ter
animada foi um prelúdio, e pode até a chapinha a dizer “ALUGADO”.
ter sido responsável, pelo meu gosto Tantas eram as vezes que isso acontecia
por certos filmes e géneros que viria a que, quando estava disponível, alugava
adorar na minha adolescência! Com o filme três ou quatro dias para o
tantos remakes e reboots nos últimos vermos até a fita “guinchar” de tanto
A série televisiva também teve
uma série de banda desenhada
anos, acho que Mighty Max também já a rebobinar! Que se lixasse a porcaria
com dez edições, publicada merecia um regresso! dos 50 escudos de multa por cada dia
pela Marvel Comics, e um
videojogo para as consolas.

104
a mais que o filme estivesse em nossa Por muito descabido que pensem
casa... Valia tudo para voltar a ver, que isto seja, a verdade é que todo
vezes sem conta, cenas como aquela em o processo de escolher um filme no
ONDE PODES ENCONTRAR
que o Exterminador rebenta o T‑1000, videoclube, as horas a ver as novidades O CONTEÚDO DA ZOMBI TV:
ou aquela em que o Van Damme para que tinham chegado, os mais alugados, YOUTUBE: /ZOMBI TV
uma tábua a arder com a mão, para, a espreitadela pela secção pornográfica INSTAGRAM: /ZOMBI TV
logo de seguida, rebentar o queixo ou o galar da miúda que estava atrás SPOTIFY: /ZOMBITV
do vilão com o seu tão característico do balcão, era muitas vezes melhor do GOOGLE PODCAST: /ZOMBI TV
pontapé rotativo. que ver o próprio filme. EMAIL: electricdreams@outlook.pt

O primeiro videoclube foi O valor para alugar um Os filmes de Jean‑Claude


aberto por Eckhard Baum filme durante 24 horas, Van Damme foram os
na cidade de Kassel, na normalmente, rondava os filmes mais alugados no
Alemanha, em 1975, com 250 escudos. Caso não mundo inteiro.
fitas de formato Super 8. fosse devolvido nesse
As famosas VHS foram prazo, era aplicada uma
comercializadas em Los “multa” de 50 escudos por
Angeles, EUA, em 1977. cada dia a mais do prazo
Em Portugal, ainda é estipulado. Se a VHS fosse
possível encontrar alguns devolvida sem rebobinar, era
videoclubes como a também cobrado o valor de
Cineteka, em Marvila, 25 escudos, adicionado ao
e a Woogie Boogie, em valor do aluguer.
Odivelas.

105
o pi ni ão
O PODER DA LITERATURA

O PODER DA FICÇÃO
E IMPACTO NA NOSSA EMPATIA
Sabemos que ler é um excelente hábito e oferece
imensos benefícios para a nossa saúde mental. Reduz
os níveis de stress, melhora a concentração e influencia
a criatividade. Mas será que ler fantasia tem o mesmo
efeito do que ler, por exemplo, filosofia?

106
E A FANTASIA?
«Não escolhi escrever fantasia, o género
escolheu‑me a mim.»
Quando comecei a escrever Aquorea, escrevi
a história que queria contar, sem medos, sem
A Importância Da Ficção me preocupar com rótulos ou catalogações.
uestões de comportamento, A verdade é que nem me lembrei disso,
natureza humana, igualdade, simplesmente escrevi a história que viveu,
direitos, preconceito e valores evoluiu e borbulhou na minha cabeça.
podem ser estudadas de Só na altura de começar a enviar o
forma mais analítica através manuscrito finalizado para as editoras é que
da filosofia e da psicologia. percebi que, apesar de nunca ter sido leitora
Contudo, com todo o valor de fantasia, na verdade fui influenciada por
e mérito que estas ciências diversas coisas, desde séries e filmes, outros
têm, a importância da ficção géneros literários e, claro, a minha própria
não deve ser descartada. Porque, quando imaginação.
se trata da tomada de decisões na nossa Quando recebo mensagens dos meus
própria vida, também temos de SENTIR. leitores a chorar com a morte de determinada
E uma das formas de conseguirmos isso é personagem, entusiasmados com uma vitória
construindo empatia com as personagens que parecia inalcançável ou até revoltados
ficcionais. Sim, é isso mesmo: ler dá‑nos a com um final inesperado, sei que fiz um
habilidade de nos colocarmos no lugar do bom trabalho. Ao partilharem comigo estes
outro, de compreender pessoas com desejos/ sentimentos, percebo que estão a vivenciar a
motivações, emoções e crenças diferentes dos história ao máximo. E quando me dizem que
nossos. se identificam (ou não) com determinado
Podemos ver um pouco de nós mesmos comportamento ou atitude, percebo que
nas mais variadas personagens, seja quando criaram a empatia necessária para refletir
traem as suas próprias crenças ou valores, ou acerca disso.
quando tomam decisões erradas por amor. Quem lê ficção certamente já
M. G. Ferrey Desta forma, conseguimos perceber melhor encontrou numa personagem um amigo,
É licenciada em quem somos, o que queremos ou não para ou num mundo fantástico o seu lar. E isto
Psicologia Clínica,
mas o seu sonho sempre
nós e porque fazemos determinadas escolhas, acontece porque, quando lemos algo que
foi escrever. Em 2011, bem como as consequências das mesmas. nos transporta realmente, vivemos essas
frequentou um curso Ao lermos ficção exploramos diferentes experiências como sendo reais.
de pós‑graduação em
Jornalismo na LSJ, em culturas, países, formas de estar e vivemos Ler ficção não tira valor à leitura,
Londres, e, finalmente, aventuras que, de outra forma, poderíamos pelo contrário. Acrescenta! Questões de
pôs mãos à obra.
nunca viver. Somos transportados para outras identidade como «quem sou; o que quero
realidades, mundos e experienciamos esses ser?», relações sociais, valores e senso crítico,
momentos em reinos mágicos com fadas e são apenas algumas das coisas que podem sair
dragões como se estivéssemos realmente lá. beneficiadas. BANG!

Personagens de ficção têm muito para nos ensinar, acerca dos Quando escrevo, quero que o leitor sinta todas as emoções, sejam elas
problemas do quotidiano, que todos nós enfrentamos, ou até dilemas boas ou menos positivas, que se coloque dentro da pele da personagem
mais profundos, e que podem trazer alguma luz às nossas dúvidas. e a compreenda, mesmo que as decisões ou comportamentos dessa
personagem não sejam as que o leitor tomaria.

107
o pi ni ão
eu queria ser assim

o
genro
perfeito
por marcelo lourenço
C
hega uma hora em que um homem precisa
enfrentar o seu maior medo.


E o medo que me consome há quase dezassete
anos é este: um dia, as minhas filhas vão ter
namorados.
E o medo Eu. Um dia, eu, vou ter um genro. Ou pior: dois.
Tenho pensado muito nisso. Talvez porque este momento
que me esteja ali mesmo ao virar de uma esquina de Santos. E,

consome apesar de me preparar para o pior, torço para que o melhor


aconteça.
há quase E esta é uma lista com o melhor: são 20 coisas que o
genro perfeito deveria ter.
dezassete anos
é este: um dia, 1. Saber a diferença entre Star Wars e Star Trek.

as minhas 2. Saber usar um fato e um par de Havaianas (nunca os


dois ao mesmo tempo).
filhas vão ter 3. Ter paciência com bichos, crianças e velhos e que nunca,
namorados...” nunca, nunca maltrate o empregado do restaurante só
porque sim.

108
4. Concordar que os três melhores atores a fazer de James Bond no cinema
são, por esta ordem: Sean Connery, Sean Connery, Sean Connery.
5. Adorar o seu trabalho, o seu clube e a sua mãe.
6. Não ter medo de falar em público, de dançar em público e de chorar em
público.
7. Nunca faltar com a sua palavra.
8. Já ter partido um braço, morado sozinho e saber que um homem só pode
sair de casa depois de arrumar a sua própria cama.
9. Quando perguntado se conhece Neil Gaiman ou a Seleção Brasileira de
‘82 responda com um «Óbvio que sim!».
10. Não ser comunista.
11. Não ser influencer.
12. Ter três grandes amigos: um amigo de infância, um amigo do liceu e um
amigo do trabalho.
13. Saber quem foram Sir Edmund Hillary, Sir Winston Churchill e Sir David
Bowie.
14. Gostar de música brasileira, mas que nunca chame o Chico Buarque de
«o Chico», o Caetano Veloso de «o Caetano» e, Deus me livre e guarde,
o Vinicius de Moraes de «o Poetinha».
15. Quando tiver de dizer algo, ir direto ao assunto.
16. Gostar de carros q.b., de roupas q.b. e de culinária q.b.
17. Perceber que as três expressões mais importantes da vida são: «por
favor», «obrigado» e «Dracarys».
18. Saber que a Millennium Falcon é a nave que fez a Kessel Run em menos
de 12 parsecs e no que consiste o teste Kobayashi Maru (ver o item 1). Marcelo Lourenço
Queria ser pirata, agente
19. Ter sempre tempo para um café com o seu pai ou com o seu sogro. secreto ou capitão da USS
Enterprise, mas acabou mesmo
20. Fazer a minha filha muito feliz.
por ser publicitário e um dos
criativos mais premiados de
E é isso. Convenhamos, nem é pedir muito. Portugal. E tudo bem.

Mesmo porque, se o rapaz cumprir o último item, todo o resto


é negociável. BANG!

109
fo to grafi a
imaginarium

Mara D’Eleán
Com um percurso
e formação ligados
à Arte, Pintura e
Design, apaixonou‑se
pela Fotografia.
Na Fotografia Fine
Art é onde capta a
essência de cada um,
elevando‑a ao seu
mais puro potencial,
através da arte.

Takiyasha
A Feiticeira Guerreira
Fotografia/Edição/Makeup/Styling: Mara D’Eleán
Modelo: Arissa Matsumoto
Agradecimentos especiais: José Neves e Leonardo Pereira
110
T
akiyasha era uma linda e
inteligente jovem, filha
de um importante líder
político. O seu pai tinha
passado a maior parte da vida a
tentar criar uma corte independente
na província onde moravam, em
oposição ao imperador da região.
Tendo o pai sido derrotado numa
missão, a sua cabeça foi cortada e
levada à capital, onde foi exposta
em praça pública. Após a morte
do pai, Takiyasha continuou a
viver no palacete arruinado e
planeava continuar a luta contra
os oponentes do seu pai. Ainda em
luto, um grande feiticeiro cruzou
o seu caminho um certo dia e
ensinou-lhe como usar a arte das
trevas para destruir os seus rivais.
Com a ajuda da magia, a jovem
convocou um exército de espíritos,
planeando manipulá-los contra
todos os que se opunham ao seu
poder.
Meses depois, com a sua técnica
e arte aperfeiçoada, foi visitada
por um jovem samurai no palacete
onde ainda habitava sozinha. O
samurai procurava a ocupação de
rebeldes. Takiyasha, como única
ocupante do local, recebeu o
samurai utilizando magia negra
para derrubar as paredes do palacete
sobre ele e os seus homens. Dos
corpos sem vida, ergueram-se
esqueletos que se tornaram o seu
exército do submundo. A jovem
absorveu da alma do samurai
as habilidades de guerra que a
levaram a invadir o Japão após
este período, durante o governo
do Imperador Suzaku. Destinada
a completar a ambição do pai,
Takiyasha combateu os oponentes
no seu caminho, convertendo almas
à sua causa. Epidemia de peste,
ataques de exércitos do submundo
e uma série de terremotos, são
alguns dos ecos da sua passagem
por Kyoto, a então capital do
Império.

111
cu rs o

Bruno Martins
Soares
Escritor premiado de
literatura realista e
especulativa. O seu
livro A Saga de Alex
9 foi publicado na
colecção BANG!.
É convidado residente
do BANGCAST.

PEQUENA OFICINA
DE TÉCNICAS DE ESCRITA
por Bruno Martins Soares

Verifiquei que não falei ainda sobre ritmo nesta Pequena Oficina. Para mim, isso é
surpreendente, já que o ritmo é talvez o mais importante de tudo aquilo de que vos posso
falar. Normalmente, é das primeiras coisas que menciono e das que mais entusiasmo me dá, já
que sinto que é algo subvalorizado pela maioria dos autores que falam de escrita.
Vou, então, escrever três textos sobre este tema. Nesta primeira parte, vou referir‑me a
algo que chamarei Ritmo Estrutural, ou seja, como é que o ritmo criado pela estrutura tem
impacto na leitura e na interpretação do texto. Vamos lá a isso, então.

RITMO ESTRUTURAL – PARTE 1 fizeram‑me uma pergunta ou um comentário

O
qualquer sobre o ritmo do livro. À medida que
ritmo marca praticamente tudo o que é a respondia, ficou claro na minha mente que todos
escrita: é o que transmite as emoções, seja os romances que escrevi tinham uma estrutura
o medo, a tristeza, a alegria, a surpresa, particular, todas diferentes, estabelecida de forma
a raiva, o prazer, etc. Podemos usar as deliberada para marcar o ritmo que eu pretendia,
palavras mais eruditas, as ideias mais bonitas, a e que isso tinha efeitos óbvios sobre a leitura e a
paixão mais intensa – mas se errarmos no ritmo, construção da narrativa. E atenção, julgo que todos
estragamos tudo. os meus leitores são da opinião de que os meus livros
Há uns meses, no lançamento do meu são rápidos, a tensão está normalmente presente e
último livro Insight, durante o Festival Contacto, lêem‑se com grande velocidade, seja o Insight, de

CALENDÁRIO
FANTÁSTICO
2022/2023
AMADORA BD – 33.º Festival Illustrare – Viagens da Cinanima 22 – 46.º Festival Lisbon & Sintra Film Festival
Internacional de Banda Ilustraçeão Científica em Internacional de Cinema de 22 – 16.ª Edição
Desenhada Portugal Animação Várias localizações
Várias localizações, Amadora MUHNAC – Universidade de Lisboa Espinho em Lisboa e Sintra
112 20 a 30 de outubro, 2022 até 5 de novembro, 2022 7 a 13 de novembro, 2022 9 a 19 de novembro, 2022
150 páginas, A Saga de Alex 9, de 600 páginas, ou
os outros calhamaços de 400 páginas pelo meio.
Storylines,
No entanto, o modo como criei essa velocidade, build‑up e payoff
em particular nas opções de estrutura, é bastante
m Laura e o Rei das Sombras (Laura and the
diferente de livro para livro. Senão, vejamos
E Shadow King), não usei o ritmo de forma
particularmente original. Usei sempre duas
CAPÍTULOS E PARTIÇÕES storylines e fui entrelaçando de forma regular –
um capítulo para uma linha, outro capítulo para
outra, até ao fim. Já explico melhor como uso esta
ecentemente, reli A Saga de Alex 9 e voltei a
R espantar‑me com o ritmo alucinante desse
técnica.
Em Insight, temos um livro construído a
livro. Parece uma cascata ou uma avalanche. É
partir de um guião cinematográfico, e assim, tem
quase impossível de parar. Os capítulos são curtos,
o ritmo de um filme. É rápido e parece que não
parece que nunca fecham, parece que a acção está
pára, mas a estrutura é relativamente clássica: uma
sempre a acontecer de forma alucinante, com
storyline que avança determinada para o final. Na
breves espacinhos para respirar. A partição é quase
verdade, são duas storylines, já que há uma linha
matemática. São 600 páginas, com três volumes
de flashback a desenvolver os alicerces da história.
de mais ou menos 200 páginas cada um, cada
No entanto, há algo importante que dá ritmo à
volume com duas partes de, aproximadamente,
estrutura deste livro: cada cena está desenhada
100 páginas cada uma. Ou seja, cinco pausas para
para cinema, ou seja, cada cena é relativamente
respirar, e é se quiserem.
pequena, acrescenta algo à história, tem
Em A Batalha da Escuridão (The Dark Sea War
princípio‑meio‑e‑fim, e é necessária. A sensação é
Chronicles), desde o início que pretendi criar a
de que nunca se está a perder tempo.
ideia de crónicas de guerra, quase como um livro
E claro, em todos estes livros, há dois conceitos
histórico ou biográfico. Portanto, os capítulos
importantes de que já falei: os conceitos de
representam episódios, basicamente como se
build‑up e payoff. Todas as histórias se desenvolvem
fossem pequenas histórias ou contos compilados
com uma espécie de «tijolos narrativos» que se vão
em alguns volumes. Assim, o ritmo é criado pela
montando e suportando uns aos outros, de forma
estrutura de cada um dos capítulos. Cada capítulo
cada vez mais intensa, até à recompensa final. É
tem três actos e não tenho pressa em resolver a
essencial que os leitores sintam que valeu a pena a
acção. Consigo velocidade neste livro com um
viagem.
truque de espelhos. É como se as pessoas sentissem
que estou sempre a esconder alguma coisa e têm
de avançar para perceberem onde vai terminar a No próximo texto, desenvolverei melhor o que
história. É como se os leitores quisessem galopar e são storylines, plotlines, plot points, cliffhangers e
eu estivesse sempre a puxar as rédeas, a travar. Até flashbacks. Tudo conceitos interessantes para se
deixar de o fazer e a acção ganhar velocidade até ao gerir o ritmo narrativo. Até lá!
fim do capítulo… e depois, desacelera de novo.

Guimarães Jazz Lisboa Games Week – 7.ª Edição Comic Con Portugal Fantasporto 2023 – Festival
Centro Cultural Vila Flor, Feira Internacional de Lisboa, Parque das Nações, Lisboa Internacional de Cinema do Porto
Guimarães Parque das Nações, Lisboa 8 a 11 de dezembro, 2022 – 43.ª Edição
10 a 19 de novembro, 2022 17 a 20 de novembro, 2022 Teatro Rivoli, Porto
24 de fevereiro a 5 de março, 2023 113
biogr afi a
GEORGE LUCAS, UMA VIDA

GEORGE
LUCAS D E E X P E R I M E N TA L
E REVOLUCIONÁRIO A REI
DO MERCHANDISING

114
Rui Azeredo
Cumprido em
O Comércio do
Porto o sonho de ser
jornalista, em 2006
passou a revisor e
tradutor. Responsável
pelo Departamento de
Literatura da Comic Obra: George Lucas, Uma Vida
Con Portugal. Género: Biografia
Editora: Desassossego
Páginas: 528
PVP: 24,40 €

GEORGE LUCAS – UMA VIDA É UM TÍTULO QUE EXPLICA TUDO, MAS


A VERDADE É QUE HÁ ALGO MAIS NAS CERCA DE 500 PÁGINAS DESTA
MINUCIOSA OBRA DE BRIAN JAY JONES. MAIS DO QUE A VIDA DE UM
REALIZADOR E PRODUTOR QUE MARCOU A HISTÓRIA DO CINEMA,
É, SIM, A HISTÓRIA DE UMA ÉPOCA DO CINEMA AMERICANO. NA SUA
CAMINHADA DO CINEMA EXPERIMENTAL A REI DO MERCHANDISING,

Q
LUCAS DEIXOU UM LEGADO INIGUALÁVEL A NÍVEL TECNOLÓGICO.

Não tenho talento


uando a Saída melhor. Mas também se diz que não natural para a escrita.
de Emergência devemos «conhecer» os nossos «heróis» Quando me sento,
para evitarmos desilusões. Descansem, sangro na página, e é
me propôs, há
simplesmente horrível.
uns meses, a não me desiludi, mas não posso dizer
A escrita não flui numa
tradução de categoricamente que não houve coisas
onda criativa.
George Lucas que me deixaram de pé atrás em
– Uma Vida, relação à personalidade de Lucas. Sim,
de Brian Jay é picuinhas e tem grandes dificuldades
Jones, confesso que pensei: «Vão mesmo de relacionamento com as pessoas, e
pagar‑me para traduzir isto?» Sendo fã da a sua falta de empatia gerou muitos
obra de George Lucas (não de primeira atritos. Francis Ford Coppola, que o
hora, confesso, pois só descobri Star Wars ajudou a lançar a carreira e tantas vezes
a partir de O Regresso de Jedi, que vi a trabalhou com ele, que o diga, e disse
dada altura entre 1983 e 1984, quando mesmo, como poderão ler nas páginas
uma fita já gasta e arranhada chegou a da biografia, que recolhe muita da sua
Moscavide), poder trabalhar um livro sobre informação em entrevistas e notícias
a vida deste cineasta revolucionário seria que recuam aos tempos dos pais de
a oportunidade perfeita para o conhecer Lucas, em Modesto.

115
Jean-Luc
Godard foi uma
das primeiras
grandes influências
cinematográficas
de George Lucas.

(Mau) Génio independente. A criação, nada fácil,


do seu Rancho Skywalker, o sonho

H
de uma vida, foi a sua forma de
á biografias oficiais e
conquistar a independência face aos
não‑oficiais, cada uma com as
grandes estúdios.
suas vantagens e desvantagens.
Se uma biografia é oficial, tem o aval

Experimental
do biografado, e isso faculta acesso
a informação «interna». Mas, com
honrosas exceções (sendo o filme vs Comercial:
Rocketman, sobre Elton John, um ganhou o lucro

G
excelente exemplo), é inevitável
que haja autocensura, mesmo que eorge Lucas, entre o seu génio
inconsciente. Entra em cena a e criatividade, é um homem
vantagem da biografia não‑oficial, contraditório. Se, por um
que recolhe livremente informações lado, sempre manifestou o seu apreço
sem procurar o aval do visado. É o por cinema menos comercial e mais
que acontece em Uma Vida, de Brian experimental (o recentemente falecido
Jay Jones, onde relatos de ex‑colegas Jean‑Luc Godard era um dos seus
e ex‑subordinados ajudam a perceber heróis), a verdade é que nem depois de
melhor como deveria ser complicado multimilionário se arriscou a realizar Não queria voltar atrás
lidar com tal (mau) génio. Mas é certo ou produzir uma única obra que se e escrever um daqueles filmes
que se era capaz de exigir o inexigível enquadrasse nesse género. Como se a não ser que dispusesse da
aos seus colaboradores, por outro tecnologia para contar realmente
vê ao longo desta biografia, são várias
o tipo de histórias que estava
lado, ninguém podia apontar‑lhe as alturas em que se lamuria por não
interessado em contar. Eu queria
o dedo em termos de empenho ou ter condições para se dedicar ao que
ser capaz de explorar em todo o
de envolvimento. Além disso, nesta gostava, ao cinema que fez no início seu potencial o mundo que criasse.
biografia torna‑se também evidente da sua carreira, mas, quando pôde, Por isso, esperei até ter os meios
que Lucas não esquece quem o ajudou, não o fez. Na verdade, não surgem tecnológicos para tal.
e enquanto produtor (ou até como explicações para tal, mas a isso não
influencer à moda antiga) muito será alheio o grande apego de Lucas
fez para ajudar outros cineastas a ao dinheiro, pois tal tipo de projeto
concretizarem os seus sonhos, mesmo possivelmente iria dar prejuízo.
quando Hollywood não estava para aí Uma coisa é certa: Lucas
virada. Lucas, aliás, nunca escondeu destacou‑se como cineasta, mas,
a sua aversão a Hollywood (aos seus sem dúvida, que também ocupa um
estúdios), da qual sempre quis ser lugar de mérito entre os grandes

116
Fazer um filme é uma
empresários. O que fez com o Godard (e o seu Alphaville) como uma experiência terrivelmente
universo Star Wars não foi «apenas» das suas primeiras grandes influências penosa. Sou muito mais
realizar e produzir filmes. Passou cinematográficas. Sim, antes de chegar um cineasta do que um
muito também por criar e gerir a Star Wars, passou em 1971 por THX realizador. Quero mesmo
um negócio gigantesco e global de 1138, filme de ficção científica que reformar‑me e fazer imenso
merchandising, onde tudo lhe passava foi o culminar das suas experiências trabalho experimental.
pelas mãos, nomeadamente a criação prévias (e premiadas) desde os tempos
de personagens novas, destinadas a da universidade. Mas a verdade é que
alimentar as lojas com regularidade. a veia comercial e mainstream já corria
Assim «nasceu» Boba Fett, como irão dentro dele, e dois anos depois lançou
perceber ao ler Uma Vida. American Graffiti: Nova Geração,
um retrato de um certo modo de
ser norte‑americano com muito de
Cair na real, depois autobiográfico. Sim, Lucas era um
amante de automóveis desde tenra
A forma de trabalhar
das corridas e do idade e adorava circular no seu carro,
de Lucas é nunca nos dizer
aquilo de que gosta, apenas o
experimentalismo tal como o fazem as personagens que não gosta. O silêncio era

A
de American Graffiti. Aliás, o sonho a sua recompensa. (Lawrence
minha primeira surpresa ao de jovem de Lucas era ser piloto de Kasdan, argumentista de
ler/traduzir esta biografia automóveis, mas um grave acidente O Império Contra‑Ataca e
foi perceber que Lucas (um de carro, à porta de casa, mandou‑o O Regresso de Jedi)
mestre do cinema comercial e criador para o hospital e deixou‑o a pensar se
de alguns dos maiores blockbusters de não seria melhor dar outro rumo à sua
sempre) era, na verdade, um adepto vida. Perdeu‑se um piloto, ganhou‑se
do cinema experimental, surgindo um dos maiores cineastas (comerciais)
o francês «nouvelle vague» Jean‑Luc de todos os tempos.

117
O prazer de a saga, daí nascendo os episódios I a
III, já todos realizados por ele, entre
quisessem passar o seu O Regresso
de Jedi. E o que dizer dos efeitos
trabalhar com 1999 e 2005. especiais, tal como os conhecemos
máquinas Maníaco do controlo é sinónimo hoje em dia? O que é que não

D
de eterno insatisfeito, e as novas nasceu na sua ILM – Industrial
ada a sua dificuldade em tecnologias também lhe permitiram Light and Magic, da Lucasfilm,
lidar com atores e não regressar à primeira trilogia, que começou por o servir nos
só, não é de estranhar acrescentando e alterando cenas e filmes Star Wars, mas alargou a
que Lucas, mais do que realizar planos. Não deixa de ser polémico, sua área de trabalho para centenas
ou produzir filmes, apreciasse a mas Lucas justifica‑se dizendo que só de filmes, como Exterminador
montagem e/ou edição, onde era fez o que não pôde fazer antes. Implacável, E.T., Avatar, as sagas
só ele e a máquina. Mas então, Regresso ao Futuro e Indiana
questionamos, porque é que Jones, sem esquecer a inovação do
não se dedicou a isso e esqueceu
Um inovador que cavaleiro de vitral de O Enigma
moldou o cinema tal
a realização? Entra em cena o da Pirâmide, em 1985, que marca
picuinhas. A história (como é o
como o vemos hoje
o início de uma nova era. Foi a
caso de Star Wars) é dele, e só dele, primeira personagem de sempre

G
e Lucas é um maníaco do controlo. gerada totalmente por computador.
Desgastado com a experiência de eorge Lucas há de ficar para a Também isso devemos em
realizar A Guerra das Estrelas, até história (ou melhor, já ficou) grande parte a Lucas, à sua
passou essa pasta a Irvin Kershner como o criador de Star Wars e imaginação, à sua aposta na
e Richard Marquand para os filmes de heróis (e vilões) como Luke inovação. Quanto mais não seja
seguintes, O Império Contra‑Ataca
Skywalker, Leia Organa, Han por isso, já seria de lhe perdoar ter
e O Regresso de Jedi. Mas fez a vida
Solo, Darth Vader, Yoda dado à luz Jar Jar Binks.
negra aos realizadores, não lhes
dando espaço para um toque mais e toda uma série de criaturas, algumas
pessoal. O desejo de Lucas de tudo verdadeiramente bizarras, que há
controlar transformou‑os numa décadas nos acompanham nesta
espécie de «funcionários públicos». nossa galáxia e noutras muito, muito
A era digital foi, assim, para distantes. Mas há um outro contributo
Lucas, a cereja no topo do bolo. tão (ou mais) importante para o
Criar artificialmente a maioria cinema.
das cenas, sem ter de lidar com Lucas é um verdadeiro inovador, e
os atores, caiu‑lhe do céu. A se hoje desfrutamos de salas de cinema
disponibilidade de recursos digitais com um som de requinte, é graças a
à altura da sua imaginação deu-lhe, ele e ao seu sistema de som (THX),
finalmente, o impulso para retomar que praticamente impôs às salas que

118
obituário

SO LONG, AND THANKS


FOR ALL THE FISH
Ray Liotta Em 1990, Liotta recebe um a vida do cantor icónico. Relutante,
18/12/1954 – 26/05/2022 convite inesperado: Martin Scorsese Liotta recusa o papel diversas vezes.
«Funny how?» está a trabalhar num mobster film, Mas perante a insistência ambiciosa

A
pergunta deu origem a uma das baseado em personalidades reais, tanto de Tina, como de Nancy
mais icónicas cenas do cinema. e pensa que Liotta é o homem Sinatra, acabaria por aceitar retratar os
Tommy DeVito (Joe Pesci) certo para preencher os sapatos de enormes Ole ‘Blue Eyes em The Rat
confronta Henry Hill (Ray Liotta), Henry Hill. O instinto do aclamado Pack (1998).
quando o último o “acusa” de ser um realizador estava certo, e, assim, o Mas não foi só na tela que Liotta
tipo engraçado. O que se seguiu foi mundo é abençoado com o papel se destacou.
um confronto improvisado por Pesci, mais icónico de Ray Liotta, que, Deu voz ao narrador em Inside
ao qual Liotta deu uma resposta à em Goodfellas, retrata fielmente o the Mafia (2005) para o National
altura – provando, assim, o seu valor mafioso Henry Hill. Geographic Channel, e marcou uma
na profissão. Aclamado por conseguir trazer geração inteira de gamers, quando
Ray Liotta é um dos nomes tão vividamente a essência de emprestou o seu sotaque carregado
incontornáveis do cinema gangster. personalidades reais, é contactado a Tommy Vercetti, em Grand Theft
Nascido em Newark, foi abandonado pela filha de Frank Sinatra para Auto: Vice City (2002).
num orfanato à nascença, de onde desempenhar o pai, numa série sobre Ray Liotta faleceu durante o
viria a ser adotado aos seis meses. sono, enquanto descansava de mais
Ambicionando iniciar‑se no um dia de filmagens, deixando
mundo da representação, mudou‑se para trás um legado aclamado por
para Nova Iorque depois de frequentar quem o conhecia profissional e
a universidade, e não tardou a pessoalmente. Porque como colega
encontrar um lugar na telenovela e, sobretudo, como ser humano,
Another World, onde desempenhou era frequentemente destacado pela
a personagem Joey Perrini, entre sua humildade, genuína bondade e
1978 e 1981. Ao fim de três anos, o generosidade.
jovem Liotta queria mais: demitiu‑se
e mudou‑se para Los Angeles, onde
durante cinco anos não fez nada para Nichelle Nichols
além de trabalhar e frequentar aulas de 28/12/1932 – 30/07/2022

Q
representação. uantos de nós podemos dizer que
Aos 30 anos, reuniu coragem e fez somos atores, cantores, dançarinos
uma chamada para Melanie Griffith, e modelos?
que se preparava para gravar uma nova Grace Dell Nichols podia.
longa‑metragem chamada Something Conhecida no mundo como Nichelle
Wild (1986). Melanie sugeriu o nome Nichols, ou, para a maioria, como
de Liotta ao realizador – foi a sua a maravilhosa e leal tenente Nyota
estreia no grande ecrã e valeu‑lhe a sua Uhura, da série televisiva Star Trek.
primeira nomeação para um Globo de A terceira de seis filhos, Nichols
Ouro. nasceu n um subúrbio em Chicago.

119
Não gostava do seu nome e pediu rastilho para uma explosiva mudança uma decisão criativa ousada: Kirk e
aos pais que o alterassem. Cedendo à nos valores sociais, que a sociedade Uhura partilharam o primeiro beijo
vontade da filha, sugeriram Nichelle, americana tanto precisava. inter‑racial da História da televisão.
que lhe garantiram significar «Donzela Apesar de tudo, Nichols preferia O seu trabalho não se ficou pela
Vitoriosa». o palco ao estúdio televisivo, e, no televisão: foi voluntária num extenso
Nichols estudou dança na Chicago final da primeira temporada da trabalho de promoção aos programas
Ballet Academy, desde os 12 anos. A série, foi‑lhe oferecido um papel de recruta da NASA, incentivando
sua carreira profissional teve início na Broadway, que Nichols não a aceitação de mulheres e minorias
como cantora e dançarina, em hesitou em aceitar. Não fosse pelo étnicas para a profissão de astronauta.
Chicago, o que lhe proporcionou o encontro com um «fã mortinho E ainda arranjou tempo para a
ingresso na tour internacional das big por conhecê‑la», e talvez tivéssemos gravação de dois álbuns de música:
bands de Duke Ellington e Lionel perdido a mais emblemática das Down to Earth (1967) e Out of This
Hampton. representações de Uhura. Para World (1991).
A sua estreia como atriz foi numa surpresa de Nichols, o fã que a Por isso, as dúvidas dissipam‑se:
adaptação cinematográfica de Porgy esperava era Martin Luther King poucos de nós podemos dizer que
and Bess, em 1959. Mas foi com (MLK). A atriz contou que MLK somos atores, cantores, dançarinos e
Blues for Mister Charlie (1964), que a saudou com um «Sim, Menina modelos. Mas Nichelle Nichols podia.
Nichols ganhou notoriedade pelo Nichols. Eu sou o seu maior fã», e, E fê‑lo com classe e graciosidade. O
seu desempenho, o que a levou a depois de uma longa e convincente seu legado terá, sem dúvida, uma
conquistar o papel da inconfundível conversa sobre a importância vinda longa e próspera.
tenente Nyota Uhura, em 1966. transcendente à arte que a posição de
Apesar do aparente papel trivial Nichols representava naqueles tempos
numa série banal, Nichols estava a conturbados, Nichols aceitou regressar
fazer História: era uma das primeiras ao programa.
mulheres negras a protagonizar uma E ainda bem. Porque numa
grande série televisiva, durante a América conflituosa e dividida pelas
turbulenta década de 60 americana. questões raciais dos anos 60, Star Trek
O seu papel como oficial de era fonte constante de controvérsia
comunicações a bordo do convés por ter, como uma das personagens andré barbosa
da mítica Starship Enterprise era principais, uma mulher negra. E … ainda tem medo do escuro.
E aprendeu que, se teme os
um acontecimento sem precedentes os criadores, aceitando o “calor” e monstros, mais vale pô-los
e criava a controvérsia já esperada decididos a elevar ainda mais a fasquia no papel. É autor das tiras de
e quebrar, de uma vez por todas, BD To-Sé e do argumento da
pelos produtores, que, ao mesmo
curta‑metragem 2020: Odisseia
tempo, contavam que acendesse o os preconceitos raciais, tomaram no 3.º Esquerdo.

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