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Robert E. Howard

Edição #03 – Especial Detetive


(Março de 2021)

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Robert E. Howard,

Tradução dos contos desta edição: Marcelo Souza

Edição: Marcelo Souza


Revisão Final: Marco Antonio Collares

Colaboradores nesta edição: Dierk Guenther


Marco Antonio Collares
Rodrigo Martins

Títulos originais: The Silver Heel


Black Moon
Lord of the Dead
The Miystery of Tannernoe Lodge
Names in the Black Book

Design da capa baseado na arte de Cayman Moreira.

Ilustrações interiores: Autores desconhecidos.

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Vol. I, n0 03 Março, 2021

EDITORIAL......................................................................................06
ARTIGO – Os detetives de Robert E. Howard..................................13
RESENHA – O Salto de Prata...........................................................25
CONTO – O Salto de Prata................................................................27
RESENHA – Lua Negra..................................................................106
CONTO – Lua Negra.......................................................................108
RESENHA – O Senhor da Morte....................................................134
CONTO – O Senhor da Morte.........................................................137
RESENHA – O Mistério da Mansão Tannernoe.............................205
CONTO - O Mistério da Mansão Tannernoe..................................207
RESENHA – Os Nomes na Lista do Livro Negro...........................262
CONTO – Os Nomes na Lista do Livro Negro...............................264
ARTIGO – Sapatos, Pistolas, Garotas: Robert E. Howard, Detetives e
Histórias Criminais..........................................................................335
APOIADORES................................................................................364

OS MUNDOS FANTÁSTICOS DE ROBERT E. HOWARD é uma publicação


digital gratuita com periodicidade, agora bimestral, vinculada ao FORUM
CONAN O BÁRBARO, 2021.

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Por Marco Antonio Collares e Marcelo Souza

A AVEC Editora iniciou agora em fevereiro, uma pré-


venda de “Ratos De Cemitério e Outros Casos Estranhos Do
Detetive Steve Harrison”, compilando quatro contos deste
personagem, criado por Robert Ervin Howard. São eles: “Os
Nomes no Livro Negro”, “Presas de Ouro”, “Ratos de
Cemitério” e “O Segredo da Tumba”. Editado por Artur Vecchi e
organizado por Cesar Alcázar, o livro concede ao leitor algumas
das tramas mais interessantes e brutais de um dos detetives durões
de Howard, mas deixando outros contos do respectivo personagem
ainda para serem publicados.
Pensando nos leitores e de modo a agregar valor à essa
fantástica publicação da AVEC, o Fórum, Conan o Bárbaro
decidiu então publicar outros contos do mesmo personagem,
deixando os compradores do livro a par de suas características
estilísticas e narrativas, além de evidenciar a todos como se
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organizam as tramas de Harrison. Temos aqui então mais um
número de “Os Mundos Fantásticos de Robert E. Howard”, com
a fantástica introdução e traduções a cargo de nosso editor,
Marcelo Souza, as resenhas do colaborador, Rodrigo Martins, e,
para finalizar, um artigo de Dierk Guenther, doutor em Howard.
Além da linda arte de capa de Cayman Moreira.

Marco Antonio Collares

Mais uma edição de OS MUNDOS FANTÁSTICOS DE


ROBERT E. HOWARD em mãos. Seguindo a proposta de trazer
material inédito, essa edição será dedicada aos contos de detetives,
mais precisamente sobre o detetive Steve Harrison. Entretanto, os
contos que aparecem aqui são apenas introdutórios, pois existem
mais material sobre este personagem e também sobre outros
detetives que daria para publicarmos, pelo menos mais três
coletâneas sobre essa temática de tramas policiais e de detetives.
Steve Harrison é um dos poucos personagens detetives que
Robert E. Howard criou para tentar entrar no rentável gênero pulp
de histórias policiais no início da década dos anos de 1930. Além
de Steve Harrison, Robert Howard criou mais outros três
personagens detetives: Butch Gorman, Brent Kirby e Butch
Cronin.

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Em um outro editorial escrito por mim, mencionei sobre esse
detetive howardiano, Steve Harrison, comentando que, até mesmo
os contos de detetives, escritos por Howard, diferem das histórias
convencionais a esse gênero de tramas policiais no sentido mais
clássico, tal como os mestres desse gênero escreveriam (incluindo
autores do porte de Dashiell Hammett), tanto antes de
contemporâneos aos anos de 1930 como posteriores aos anos de
1940, com nomes como John Dickson Carr, Mickey Spillane,
Amelia Reynolds, entre outros escritores que, desde os anos 20,
começaram a escrever histórias policiais nos pulps. Entre eles
havia a lendária Black Mask, passando pelos anos 30, e
continuando pelos anos 40 e 50, como um dos gêneros
consagrados entre os pulps magazines.
Podemos ver claramente essa diferença na abordagem das
tramas policiais (ou de detetives) de Howard daqueles clássicos do
gênero, o que fica evidente quando lemos a coletânea “O Segredo
da Tumba e outros casos de Steve Harrison” (outra coletânea
inédita de contos de detetives howardianos em língua portuguesa),
nos quais Robert E. Howard ambienta suas histórias do detetive
Steve Harrison em uma atmosfera de tumbas profanadas, com
cadáveres mutilados, vorazes ratos demoníacos, vozes
fantasmagóricas que incitam ao assassinato, sacrifícios humanos e
rituais vodu.

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Mas, em se tratando do Steve Harrison desta edição
especifica aqui, veremos o nosso detetive Harrison envolto nas
tramas de “perigo amarelo” (uma espécie de abordagem literária
inaugurada pelo escritor Sax Rolmer ao criar o seu vilão asiático
Fu Manchu, como uma ameaça mundial ao reminiscente império
britânico e ao mundo ocidental em geral) no qual vemos o detetive
de Robert E. Howard envolvido com as intrigas policiais de um
bairro encravado dentro dos Estados Unidos, em que seus
moradores são asiáticos, com suas gangues de assassinos
lançadores de machadinhas e até mesmo um vilão ao estilo de Fu
Manchu.
No primeiro e segundo contos que abrem essa edição
(respectivamente “O Salto de Prata” e “Lua Negra”) temos duas
histórias em que são explorados os elementos clássicos das tramas
policiais em que ocorre um assassinato e o detetive entra em ação
para solucionar o crime através das pistas deixadas na cena do
homicídio.
Já no terceiro, quarto e quinto contos temos uma mini saga
em que aparece o arquivilão asiático, Erlik Khan como o chefão
do crime organizado em River Street. Na história “O Senhor da
Morte”, Erlik Khan, que até então era tido com um nome, “um
fantasma, uma palavra sussurrada em que seu significado era
conhecido por poucos” aparece pronunciado com terror e medo na

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boca dos criminosos do submundo do bairro Oriental. E não é para
menos que o nome de Erlik Khan soasse entre terror e medo nos
ouvidos da comunidade chinesa, no submundo, nas ruas, e nos
becos escuros de River Street. Pois esse vilão apreciava os
métodos mais cruéis e maléficos de torturas contra seus inimigos
utilizando-se de: insetos letais; drogas exóticas que deixava suas
vítimas em estado cataléptico; hipnose para que suas vítimas
confessassem seus crimes em sinistros santuários subterrâneos
construídos embaixo das ruas de River Street e no interior de
edifícios aparentemente abandonados e em ruínas com câmaras de
torturas e túneis subterrâneos para sua fuga.
Erlik Khan aparece em carne e osso para comandar seus atos
maléficos até ser eliminado, aparentemente, pelo detetive Steve
Harrison.
Na estória “O Mistério da Mansão Tannernoe”, novamente
Erlik Khan é mencionado, sugerindo que ele não foi eliminado,
mas está escondido nas sombras, recuperando suas forças para
atacar seus inimigos e trazer-lhes uma morte horrível. E é o que
veremos na trama da história “Os Nomes na Lista do Livro
Negro” na qual os inimigos de Erlik Khan vão sendo assassinados
misteriosamente, um a um, até ser revelado que o próximo da lista
é o detetive Steve Harrison. E, a partir do final dessa história, a
mini-saga sobre o vilão (ao estilo de Fu Manchu) Erlik Khan é

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encerrada, fazendo com que o nosso detetive Steve Harrison se
veja envolvido em outros tipos de investigações criminais e tramas
ao estilo dos contos chamados WEIRD MENACE.
Mas, antes de irmos para a leitura dessa edição, gostaríamos
de fazer duas observações. A primeira, referente ao conto “O
Mistério da Mansão Tannernoe”, que originalmente foi, durante
anos, um fragmento inacabado escrito por Robert E. Howard e que
foi completado pelo escritor Fred Blosser e publicado em 1981 no
livro de Donald M. Grant. A segunda observação consiste em
explicar, em breve palavras, o que seria WEIRD MENACE? Foi o
nome dado a um subgênero de ficção de terror e ficção policial
que era muito popular nas revistas pulps dos anos 30 e inicio dos
anos 40 que apresentava histórias recheadas de grupos variados de
seitas secretas ou ocultistas assassinos, assassinato, tortura,
monstruosidades desfiguradas e uma certa esfera de sobrenatural
para ser desvendado no final com uma explicação racional dos
acontecimentos que envolvem a trama.
E, para finalizar esta edição, teremos o artigo de Dierk
Guenter, doutor em Howard. Por enquanto é isso que temos para
apresentar para vocês, leitores da obra de Robert E. Howard.

Marcelo Souza

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Por Marcelo Souza

Os detetives de Robert E. Howard

Bem, vamos lá. Iremos introduzir um novo personagem


howardiano com a seguinte sequência compilada do conto
The Mystery of Tannernoe Lodge:

“Algo próximo ao pânico tomou conta dele. Puxando


sua pistola calibre 45 debaixo do travesseiro, ele apertou o
gatilho, mas só conseguiu ouvir um leve clique. Com uma
imprecação, pulou da cama, com os músculos tensos para lutar

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até a morte... e ao fazê-lo, ouviu um impacto suave, como uma
faca em um bife. Um grunhido e um suspiro sibilante
acompanharam o impacto. A misteriosa figura desabou de
cabeça, como um boneco, e ficou com os braços estendidos. Um
raio de luar caiu em suas mãos, que se contraíram
convulsivamente. Além, Harrison pensou ter visto uma sombra se
movimentando na escuridão e na parede, mas não tinha certeza”.

A presente sequência foi publicada somente em 1981 na


coletânea The Lord of Death (por Donald M. Grant, 1981). É
interessante analisarmos a trajetória desse novo personagem de
Robert Howard, porque, a primeira vista, ele foge daquele estilo
clássico de bárbaro tão famoso que o projetou como uma
unanimidade no estilo Espada & Feitiçaria.
O personagem em questão é o detetive Steve Harrison. Mas
por que Robert E. Howard se aventuraria a entrar no mercado pulp
de histórias de detetives? Bem, foram vários fatores que o levaram
a isso, entre eles o financeiro, haja vista que, a partir dos inicios da
década de 1930 em diante, essas histórias de detetives eram bem
populares e tinham um público enorme e cativo que lia esse
material.
E, ao longo dos anos de 30, esse gênero de histórias policiais
foi se proliferando em uma quantidade imensa de pulps que se

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dedicavam a publicar histórias e mais histórias de detetives,
mistérios e aventuras policiais. E é nesse contexto que Robert E.
Howard sente a necessidade de ampliar seu mercado literário
devido a alguns fatores, como os seguidos atrasos nos pagamentos
que ele deveria receber pelos seus contos publicados na Weird
Tales. Com vemos, a necessidade financeira estava batendo as
portas, pois como sabemos, durante esse período, nos Estados
Unidos, tivemos a histórica crise econômica mundial com a
Quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929.
E, como sabemos também, Robert E. Howard não se limitou a
escrever apenas contos e histórias de Espada & Feitiçaria. E
também não escrevia somente para a Weird Tales, mas enviava
seus contos, através de seu agente literário Otis Albert Kline, para
serem vendidos para outras editoras de pulps. Muitos desses
contos eram rejeitados, e o texano os arquivava em seu baú, ou até
mesmo os revisava e mudava os seus títulos e os personagens para
tentar novamente vendê-los. Afinal, Howard era um escritor
profissional, e escrever era a sua profissão numa época em que os
pulps eram a mais popular das distrações do cidadão comum
estadunidense. E a mais barata e acessível para tantas pessoas,
diga-se de passagem.
Pois bem, as estórias de detetives eram um mercado promissor.
E por que Howard não tentaria entrar nesse meio? Ele entrou, mas

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não estava muito satisfeito com ele, pois esse mercado tinha um
certo padrão a ser seguido na hora de se escrever uma trama
policial. E era algo que Howard não conseguiria se encaixar muito
bem. “Não obstante, ainda que o autor estivesse satisfeito com
alguns dos novos campos que explorava, como o da aventura, não
estava igualmente satisfeito com suas estórias de detetives”.
(BARCO, 2014, p.7). Fato esse que Howard viria mencionar numa
carta o seu descontentamento ao escrever essas histórias de
detetive:
“Já hei abandonado de forma quase definitiva o campo das
estórias de detetives, no qual até agora não consegui publicar
nada, e que representa um tipo de estória que, na realidade,
detesto. Resulta-me difícil, inclusive, ler os contos desse gênero, e
também digo, escrevê-los”. (BARCO, apub., 2014, p.7).
Entretanto, ele as escreveu e criou quatro personagens
detetives para protagonizar as suas tramas: Steve Harrison, Butch
Gorman, Brent Kirby e Butch Cronin. Além de criar personagens
secundários para as suas histórias.

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A primeira história de
detetive que Howard
conseguiu vender e ser
publicada foi “Black Talons”
(Garras Negras), na revista
pulp Strange Detective
Stories do mês de dezembro
de 1933 e, por conscidência,
ou não, não é o personagem
Steve Harrison seu
protagonista. E também a
história não segue aquele
padrão clássico das tramas de
detetives, muito mais se enquadrando no gênero “weird menace”
do que uma trama policial clássica (algo do tipo de “ameaça
estranha”, muito parecido com o “perigo amarelo” onde a trama se
desenvolve sob um clima de uma sociedade secreta de assassinos,
cultos estranhos, torturas e assassinatos praticados sempre por
pessoas de um grupo étnico oriental e de outra parte da Ásia ou
Oriente Médio).
Logo em seguida, após o êxito da publicação dessa primeira
história (Garras Negras) na Strange Detective Stories em
dezembro de 1933, Howard, que já tinha enviado para seu agente

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literário Otis A. Kline uma segunda história desde o mês de agosto
de 1933 (“Lord of the Dead”), conseguiu a promessa de que a
mesma seria publicada em março de 1934. A ironia é que, com o
anúncio da publicação dessa história sendo feito na edição do mês
de fevereiro, alterando o título da mesma para o nome de “Dead
Man’s Doom” (uma exigência do editor), ela não foi publicada
simplesmente porque a revista encerrou a sua públicaçao na
edição do mês de fevereiro. E o manuscrito original voltou para
Robert Howard que guardou-a no seu baú, não sendo publicada
em vida do autor. Vindo a ser publicada bem mais tarde, e bote
mais tarde nisso: em 1978 foi que essa história veio a público na
coletânea de Skull-Face.
De agosto a dezembro de 1933,
Howard havia escrito três histórias
de detetives, o que tudo indica:
Black Talons (Garras Negras), que
ele conseguiu vender; Lord of Dead
(O Senhor da Morte), que voltou por
causa do encerramento da revista; e
“Names in the Black Book” (Nomes
no Livro Negro) que é a sequência
imediata de Lord of Dead que o
agente literário de Howard (recebeu

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das mãos do texano em janeiro de 1934) e conseguiu vendê-la
para a Super Detective Stories somente em maio de 1934, sendo,
enfim publicada naquele mês.
A “aventura” de Howard nesse campo de histórias de detetive
duraria não mais que dois anos, quando, no ano de 1935, ele
abandonaria por completo a incursão da escrita de suas histórias
para esse gênero. Entretanto, esses dois anos em que o autor
escreveu histórias de detetives foram bastante proveitosos, se
assim podemos dizer, para o amadurecimento do texano como
escritor, pois ele, além de ter escrito dez histórias e um fragmento
com o seu personagem, o detetive Steve Harrison, também
escreveu outros contos (ao total nove) com outros detetives (Butch
Gorman, Brent Kirby e Butch Cronin) ambientando-os em tramas
com os mais exóticos lugares, personagens e vilões que iam desde
seitas diabólicas, sociedades secretas de assassinos hindus, árabes
e chineses; passando por canibais e descrições de torturas mais
cruéis, perigos cada vez mais difíceis de uma pessoa escapar e os
combates mais desesperados que só mesmo na obra de Robert E.
Howard poderíamos ver. Mas, vamos falar agora sobre o seu
detetive Steve Harrison, personagem central dessa edição, bem
como os vilões que cercam esse personagem. Vejamos essa
narração de uma aventura desse detetive:

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“Na delegacia, Hoolihan, o chefe de polícia, desejava também
uma testemunha para o caso, tendo reconhecido alguns detalhes
peculiares no mesmo, revistando a loja de antiguidades, estando
ansioso por ouvir um relatório direto do próprio Harrison. Mas o
detetive havia desaparecido da face da terra; a misteriosa River
Street parecia tê-lo engolido, como havia feito em ocasiões
anteriores. Críptico, reservado, obcecado em trabalhar
completamente sozinho, Harrison tinha o hábito de desaparecer
após os crimes sem dizer uma palavra a ninguém e depois
reaparecer várias horas, dias ou semanas depois, acompanhado
pelo culpado... vivo ou morto... e um relatório lacônico. Hoolihan,
apesar de reconhecer seus méritos como caçador de homens
naquele distrito diabólico, costumava insultá-lo em voz alta e
fervorosamente”.
Robert E. Howard, in “The Black Moon”.

Como vocês leram acima, uma breve descrição do detetive


Steve Harrison feita pelo seu criador, Robert E. Howard.
“Críptico, reservado, obcecado em trabalhar completamente
sozinho...”, quase um “vigilante noturno” que não descansa para
combater o crime. Assim poderíamos definir o personagem Steve
Harrison. Criado quando os anos 30 iniciava uma época de crises

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que abalariam o mundo, especialmente na economia, Steve
Harrison encarnaria “a iconografia popular do personagem que
cortava o mal pela raiz sem se preocupar com a legalidade”
(BARCO, 2014, p.9).
Robert E. Howard havia idealizado seu personagem Steve
Harrison como um típico “irlandês negro”, ou seja, “um sujeito
corpulento, com ombros largos, cabelo negro e olhos azuis”,
ambientando suas aventuras no exótico bairro chinês de São
Francisco, mais precisamente no Distrito Oriental, enfrentando, ou
melhor dizendo, solucionando casos em que, nesse primeiro
momento da narrativa com o detetive Steve Harrison, estaria
enfrentando vilões chineses e seus sectários.
É claro e notório aqui que Howard recebeu a influência de Sax
Rohmer e seu principal vilão chinês – Fu Manchu - quando leu,
em algum momento, a obra desse autor. Veremos isso quando
lermos o conto “O Salto de Prata” (The Silver Heel) e “O Senhor
dos Mortos” (The Lord of the Dead), duas típicas histórias que
podem ser enquadradas na temática yellow peril “perigo amarelo”
(uma paranoia surgida no final do século XIX e inicio do XX que
começou a ser propagada no imaginário ocidental afirmando que
as potências ocidentais estavam ameaçadas por um plano secreto
dos asiáticos para conquistar o mundo. Na literatura, esse termo
ganhou notoriedade com a obra de Sax Rohmer e seu vilão

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asiático Fu Manchu).
Vejamos dois paragrafos para comparar tal afirmativa da
influência de Rohmer em Howard na concepção dessas primeiras
histórias do detetive Steve Harrison ao criar o seu vilão asiático:

“Erlik Khan”. Era como ver materializado um terrível


pesadelo; como ver confirmada uma lenda malévola. Durante
mais de um ano, haviam circulado rumores pelos negros becos e
portais em escombros que falavam que o POVO AMARELO se
movia de forma tão inescrutável como se fossem fantasmas. Não
eram apenas rumores. Aquele era um termo demasiado concreto e
definido para poder aplicar-se aos murmúrios dos fumadores de
ópio, os balbucios dos loucos, os estertores dos homens
agonizantes e os sussurros desavisados que se perdiam na brisa
noturna. Mas, dentre esses murmúrios desconexos, se impunha um
temido nome, repetido com pavor, em sussurros estremecidos:
“Erlik Khan”. Era uma frase sempre associada a acontecimentos
escuros, como um vento negro que ululava através das arvores à
meia-noite; um lampejo, um suspiro, um mito que nenhum homem
podia confirmar ou negar. Ninguém sabia se era o nome de um
homem, de um culto, de um plano de ação, de uma maldição ou de
um sonho. Um nome que sempre estava associado a tudo aquilo
que significasse uma ameaça: um sussurro de águas negras que

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batia os podres pilares das docas abandonadas; o sangue
gotejando sobre pedras escorregadias; estertores de agonia em
cantos escuros; pés sigilosos deslizando-se à meia-noite para
destinos incertos. (Robert E. HOWARD. The Lord of Dead)

"Mas Smith, isso é quase inacreditável!" Quem é o gênio do


mal que controla aquele movimento secreto horrível? "Imagine
uma pessoa felina alta, magra, com ombros largos, sobrancelhas
shakespearianas e um rosto de demônio, um crânio raspado e
longos olhos magnéticos verdes como os de um gato." Dê-lhe toda
a astúcia cruel da RAÇA ORIENTAL mas concentrada em uma
única inteligência gigantesca, com todos os recursos da ciência
antiga e atual, com todos os recursos, também, de um governo
poderoso que, no entanto, sempre negou até ter conhecimento de
sua existência. Imagine aquele ser monstruoso e você terá o
retrato mental do Dr. Fu-Manchu, o PERIGO AMARELO
encarnado em uma única pessoa”. (ROHMER, Sax. The Mystery
of Doctor Fu Manchu).

Além do vilão muito parecido com a personalidade de Fu


Manchu, Robert Howard, ao escrever suas primeiras histórias de
detetive nessa premissa do “perigo amarelo”, povoou o cenário
das primeiras aventuras de Steve Harrison no bairro chinês com

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alguns personagens secundários importantes para o desenrolar da
trama. Nesse sentido, vemos o chinês Wang Yun, dono de um
antiquário, como amigo e informante de Harrison; Ti Woon, um
chinês que lidera o tong mais importante de River Street, em dado
momento da história “O Senhor da Morte”, auxilia Harrison na
perseguição a um assassino do bairro chinês.
Enfim. Paramos por aqui nossas considerações sobre essa
trajetória em que Howard criou e ambientou seu personagem
detetive, bem como deu vida a personagens secundários tão
importantes para que Steve Harrisson protagonizasse suas
aventuras no bairro chinês de River Street. Agora passaremos
para as resenhas feitas pelo colaborador Rodrigo Martins.

BOA LEITURA!

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Resenhas de Rodrigo Martins

“O SALTO DE PRATA”
Ler as histórias do detetive Steve Harrison é sempre uma
surpresa, por esperar o tão aguardado momento em que o
fantástico descortina a realidade e se mostra com todas as suas
cores, na forma mais brutal que a mente humana pode
compreender. Essa é uma das principais características do escritor
texano, tanto que as vemos nas histórias de Conan, Kull, ou os
relatos sombrios de James Allison. No entanto, apesar da
ansiedade pela erupção do fantástico, ela não acontece.
A aposta de Howard para Steve Harrison é o mistério, o
caminho que o leitor percorre junto com o autor pelas linhas
investigativas, que podem levar a sendas concretas ou não. É o
recolhimento de provas, os interrogatórios a suspeitos, o contato
com testemunhas.
Se por um lado sentimos falta do elemento fantástico, Howard
sabe compensar bem a ausência do elemento carregando de tensão
a trama. Não faltam momentos em que as cenas se tornam densas,
nervosas. Vale até mesmo questionar o sangue frio do detetive,
que não cede à fúria ou ao desespero.
O salto de prata conta a história de uma sequência de
assassinatos que ocorrem ao redor de Steve Harrison. Primeiro o
detetive quase presencia um assassinato em River Street, no
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chamado Bairro Oriental, a Chinatown howardiana. As provas
recolhidas apontam para a Tong, um braço das sempre envoltas
em mistério e lendárias tríades chinesas.
Aqui é importante marcar como Howard é certeiro em apontar
a Tong, e não as tríades como um todo. E também revelam um
pouco do panorama histórico do mundo no qual o autor viveu.
Tecido o pano de fundo, vem o desfile imagético que o texano
sabe mostrar como ninguém. Nos deparamos com vários retratos
das chinatowns ao redor do mundo emuladas pela literatura,
cinema, ou mesmo o imaginário popular. Entre a visão
estereotipada e o fascínio por uma cultura milenar e tão distante de
sua realidade, Howard nos transporta para a década de 1930. Com
ele, através do detetive Steve Harrison, percorremos vielas,
percebemos as ligações ocultas e paralelas à sociedade, os tons
sombrios de relações de poder inimagináveis. Tudo isso bem
diante de nossos olhos. Tal é a forma como Howard substitui o
fantástico pelo mistério.
E é também uma grande oportunidade de conhecermos esse
outro lado daquele rapaz de Cross Plain que nos deixou tantas
histórias, recheadas de aventuras, magia e mistérios indissolúveis.

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O SALTO DE PRATA
The Silver Heel

De Robert E. Howard

Tradução, revisão: MARCELO SOUZA.

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Capítulo 1

Steve Harrison enfiou as mãos o mais profundamente nos


bolsos de seu casaco e maldisse a profissão que o obrigava a vagar
pelas ruas desertas naquelas horas intempestivas. Uma tênue
neblina se levantava do rio, na qual, desde aquele lugar, não era
visível. River Street parecia estar deserta, com exceção da solitária
figura de um homem que passava a meio quarteirão adiante dele.
Durante três quarteirões, Harrison não havia visto nenhuma outra
pessoa, exceto aquela figura que caminhava adiante dele, com o
capuz do casaco cobrindo-lhe a cabeça para proteger-lhe da
intempérie e as mãos metidas nos bolsos.
Harrison consultou seu relógio embaixo da luz que caia sobre
seu ombro, projetada por um poste de luz.
—Doze em ponto, quase um segundo— sussurrou para si
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mesmo. Se esse aviso era um ardil...
—Socorro! Socorro! Ahhhhhh... —era um grito de terror e
agonia que vinha de algum lugar naquela rua, e que foi
interrompido com um espantoso engasgo.
Antes que o som terminasse, Harrison correu rua acima,
movendo-se com uma velocidade surpreendente para alguém do
seu tamanho. O homem que estava adiante dele, na calçada, havia
ficado sobressaltado ao escutar o grito, e agora, depois de um
instante de indecisão, seguiu o detetive rua acima.
O grito havia vindo de trás de uma alta cerca de madeira que,
segundo Harrison sabia, fechava a entrada de um largo beco
desativado. Sem perder tempo em escalar a cerca, usou seu
robusto ombro como se fosse um aríete contra as tábuas podres
que se romperam com o impacto. Passou através delas, sem frear
sua investida quase animal.
A luz de um poste exterior banhava os arredores da cerca
revelando uma figura estendida no solo. O beco se distanciava da
rua em um ângulo reto e, poucos metros mais acima, voltava a
girar para um lado. Harrison se lançou até a esquina interior do
beco, empunhando sua pistola. Estava muito escuro, porém, frente
a ele, vislumbrou um tênue resplendor que sinalava o ponto em
que o beco desembocava em Levant Street. Correu até ali,
examinando as portas fechadas e as janelas trancadas que havia

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em cada lado. A única maneira de sair daquele beco, que era
conhecido como “o beco chinês”, era por um outro extremo. Sem
duvida, um homem veloz poderia ter escapado até Levant Street
enquanto Harrison saia naquela rua por outra entrada.
O outro lado que saia na rua Levant também estava fechado
por outra cerca, mas uma tábua solta deixava uma brecha aberta
pela qual poderia passar um homem. Harrison se lançou ao outro
lado. Ali pôde comprovar que, ao olhar em ambas as direções,
Levant Street parecia completamente vazia e desnuda debaixo do
resplendor vermelho da luz que precedia a neblina. Entretanto,
havia uma dezena de lugares nos quais um homem poderia se
esconder... portas e becos nos quais um fugitivo poderia refugiar-
se para não ficar a vista. Harrison retornou pelo beco, enquanto
resmungava entre os dentes.
O homem que o havia seguido pela rua estava agachado junto
à figura no solo, mirando-a com mórbida fascinação. Levantou a
vista ao aproximar-se Harrison... era um jovem de cabelo ruivo e
corpo atlético.
—Feriram esse aí! —exclamou. Há sangue no chão.
—Espero que não tenha tocado em nada —grunhiu Harrison.
—É claro que não. Não sou tão descuidado. Mas, quem é
você...?
—Sou detetive —respondeu Harrison. Acendeu uma lanterna

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elétrica e a focou sobre o corpo inerte.
—Ferido nada! Este homem está morto!
O cadáver pertencia a um sujeito de meia idade, estatura
média, cabelo negro e compleição delgada. Estava de lado, com
um braço estendido e os dedos cravados na terra. De suas costas
sobressaia a empunhadura de uma adaga curiosamente decorada.
—Quem é? —perguntou o jovem com ansiedade—. Você o
conhecia?
Harrison grunhiu ao ser incomodado. Estava acostumado a
trabalhar sozinho, e nunca estava disposto a dar informação a
respeito de um crime. Mas, depois de tudo, não custava nada
divulgar a identidade daquele homem.
—Jelner Kratz. Advogado do bufete Kratz & Lepstein de
River Street.
—É um homem branco? Não tem a aparência de um...
—Me parece que nasceu em Shangai. Devia ter algo de
sangue mestiço.
Harrison não acrescentou que o advogado estava infiltrado –
ou isso suspeitava –, em muitas das transações que eram
características de River Street, uma rua que era o coração do
bairro oriental. Kratz havia servido como uma espécie de sinistro
enlace entre brancos e amarelos, estando como estava em uma
vaga fronteira entre ambas as raças.

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Não havia dúvidas de que aquele homem estava morto, mas
Harrison examinou o corpo com mão de um especialista. Deteve-
se um instante, enquanto seus olhos piscavam de um modo
peculiar. Logo, sem fazer comentários, extraiu um par de luvas de
seu bolso e os colocou, e retirou a adaga.
—Acredita que haverá pistas digitais? —perguntou o
jovem—. Achava que os criminosos de hoje eram
demasiadamente astutos para não deixá-las.
—Nem todos os assassinos de River Street estão a par dos
métodos modernos de se fazer um crime —respondeu Harrison—
. Alguns deles são recém-chegados do oriente.
—Acredita que quem o matou seja um oriental?
—Está adaga é chinesa —Harrison mostrou a arma antes de
envolvê-la em um pano e guardá-la no bolso de seu casaco. Tinha
a lâmina delgada e pontiaguda, uma guarda arredondada que
lembrava uma moeda, e uma empunhadura curiosamente lavrada
que podia ser demasiadamente pequena para a mão de um homem
branco. A dita empunhadura mostrava um dragão talhado, com a
cabeça na sua extremidade.
O detetive começou a revistar os bolsos do defunto, com
mãos velozes e experientes, enquanto o jovem que estava ao lado
observava tudo com grande interesse.
—O relógio está em seu lugar —sussurrou Harrison, falando

33
para si—. O anel de diamantes no dedo da mão esquerda... não foi
tocado. Então não se trata de um assalto.
Harrison abriu a carteira do cadáver e passou a gema do dedo
pelo maço de dinheiro que continha. Havia mais de cem dólares.
Em um dos compartimentos descobriu um pedaço de papel
dobrado. Harrison o desdobrou, e examinou-o em seguida debaixo
da luz de sua lanterna de bolso. Tratava-se de um desvalido
recorte de um jornal de Shangai, com data de uns três meses
atrás... uma breve resenha que relatava a morte de um tal Wu
Shun, o filho mais velho do mandarim Tang, de Shangai.
—Me pergunto por que conservaria essa notícia —assinalou
o jovem que, segundo notou Harrison com assombro, olhava por
cima de seu ombro—. Harrison voltou a dobrar o recorte e o
colocou em seu lugar enquanto ficava de pé.
—Não há como saber. Ele nasceu e se criou em Shangai. Não
é estranho que receba notícias de lá. É possível que esse tal Wu
Shun fosse amigo dele.
—O que é isso no chão? —assinalou o jovem enquanto
Harrison recolheu o objeto... uma antiquada cigarreira de prata,
aberta e vazia, a menos de um metro do cadáver—. Harrison a
colocou no bolso, junto com a adaga. Caminhou até a maltratada
cerca, se lançou até o exterior e fez soar um agudo silvo de um
apito de polícia. O policial mais próximo, O’Rourke, não dava pra

34
vê-lo, mas com certeza ouvira aquele sinal.
Quando Harrison voltou o olhar para o beco, o jovem
perguntou:
—O que acha de tudo isso?
—Não acho nada —replicou Harrison, meio perplexo—. Meu
trabalho consiste em descobrir o que aconteceu. E quanto a você, é
melhor que vá. Por que ainda não foi embora?
—E aonde irei? —contradisse o garoto—. Gastei as lajotas
das calçadas desde que saiu o sol, tentando encontrar trabalho.
Estou quase arruinado. Juraria que lhe conheço. Você é Steve
Harrison. Você é um mito em River Street. Você é uma
combinação de detetive, juiz extraoficial, delegado, milícia do
estado e o que quer que seja necessário. Bem... veja... eu sou
jornalista. Pelo menos quando tenho trabalho. Vim de São
Francisco até aqui a procura de um emprego. Mas estes editores
não querem nem ouvir falar de mim. Chamo-me Jack Bissett. Dê-
me uma oportunidade. Fará isso?
—O que quer dizer?
—Deixe-me caminhar por aí com você e meter-me de cheio
neste trabalho! Daqui posso escrever uma boa história e isso
poderia significar conseguir um trabalho. Já sei que lhe dão
repulsa os repórteres, mas seja um pouco humano uma vez em sua
vida!

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—Não gosto de publicidade —grunhiu Harrison—. Pode
interferir em meu trabalho. Defender a lei do homem branco em
River Street já é, por si só, um trabalho bastante duro.
—Eu sei... e você a faz com nobreza. O público jamais chega
a saber – apenas superficialmente – o que realmente acontece no
bairro oriental. Os jornais nunca contam com detalhes como você
soluciona tantos crimes. Porém há uma exceção comigo, homem...
preciso de um trabalho!
—Está bem... está bem! —grunhiu Harrison—. De todo
modo, não creio que este assunto seja demasiadamente importante.
Mas, mantenha-se atrás de mim, entendido? E não espere muito
dos editores, ainda que consiga fazer uma luva virar notícia. Os
assassinatos são algo rotineiro em River Street.
—Sim, eu sei! Mas um artigo sobre como Steve Harrison
consegue capturar um assassino não é muito rotineiro.
—Todavia, ainda não o capturei.
—Já posso ver as manchetes – prosseguiu Bissett com
teimosia. Investigador solitário segue a pista de misterioso
assassino! Harrison rompe seu largo silencio para revelar seus
métodos...
—Tranquilo! Vamos? – bramou Harrison. Não se deu conta
de que aqui há um cadáver?
Enquanto falava, seguiu focando cuidadosamente a lanterna

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sobre o solo. A terra endurecida e o pavimento cheio de fendas
que assoalhavam parte do beco não revelavam nenhuma pegada.
Escutaram passos na calçada e um policial de ronda se aproximou
pela brecha da cerca.
—O que aconteceu, Harrison?
—Um assassinato. Jelner Kratz. Chame o delegado e volte
logo aqui.
Harrison percorreu a parede de ladrilhos que dobrava em
ângulo agudo no interior do beco. Quando o feixe de sua lanterna
percorreu o solo, algo brilhou no pavimento: um objeto que havia
ficado preso em uma fenda do solado. Agachou-se , liberou o
pequeno objeto e o ergueu, focando a lanterna sobre ele. No
instante seguinte, Bisset estava junto a ele, exclamando
emocionado:
—O que é isso? Que encontrou? É uma pista?
Harrison o mirou, irritado; logo encolheu os ombros e lhe
mostrou sua descoberta.
—Mas isso é o salto de um sapato de uma mulher... e parece
de prata!
—É de prata. E ficou preso nessa fenda e se rompeu. E não
faz muito tempo, aliás. O metal não teve tempo de perder o lustre.
A mulher que o calçava devia estar com muita presa, se não teria
parado para recolher um salto tão caro.

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—Uma mulher no caso! – falou violentamente Bisset. Abriu
os olhos desmesuradamente e estendeu a mão para recolher o salto
sem dar-se conta quando Harrison o apartou de seu alcance. –Uma
dama da alta sociedade! Oh, garoto! Essa vai ser uma história
magnifica! Qual a sua opinião? Vamos... você se comprometeu em
me informar quando avançávamos no caso.
—Não me recordo de haver-me comprometido de nenhuma
maldita coisa – espetou Harrison. Mas vou atendê-lo. Qual minha
opinião? Com que base conto para formar uma opinião tão rápida?
No entanto, devido à casualidade de que sei que o único
estabelecimento da cidade onde vende sapatos com saltos de prata
é a Tenda Francesa e tão rápido quanto volte O’Rourke, penso
estar em contato com o proprietário do estabelecimento para
seguir a pista da dona desse sapato.
—E eu seguirei a pista ao seu lado! – anunciou Bissett – Oh,
garoto! Isso é uma possibilidade: “Jovenzinha Descuidada
Assassina um Advogado de River Street”. Companheiro, isto
pode chegar a alcançar as mais altas esferas da cidade!
—Por que pensa que é uma dama da alta sociedade que
calçava o sapato com salto de prata? – quis saber Harrison.
—E quem mais seria?
—Aqui, em River Street, há um monte de bailarinas que
fazem uso desse estilo de sapato – grunhiu Harrison. Ganham

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bastante dinheiro e só pegam para gastá-lo em coisas caras. E
algumas delas são muito entendidas em certas práticas orientais
que fazem com que rapazes brancos se tornem mais generosos
quando chega a hora de gastar seus dinheiros. Pelos fogos do
inferno! Será que vou ter que ficar aqui falando contigo a noite
inteira? É você, O’Rourke?
O patrulheiro entrou pela brecha da cerca.
—Hoolihan mandará um furgão – anunciou.
—Muito bem. Fique aqui e vigie o cadáver. E, enquanto faz
isso, pode dar uma volta pelo beco e ver se encontra algo. Vou
telefonar para o dono da Tenda Francesa. Diga a Hoolihan que irei
logo na delegacia, com um par de pistas para que os garotos do
Departamento de Pistas comecem a trabalhar.
—Vamos, Bissett. Se quer vir, tenho um carro estacionado a
poucos quarteirões, rua abaixo.

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Capítulo 2

O gerente da Tenda Francesa, o comércio mais caro e


exclusivo da cidade, não era francês, nem possuía um aspecto
exótico. Era um homem baixo, robusto, e sua aparência era tudo,
menos artística como o antiquado pijama que vestia quando,
depois de muito protestar, aceitou deixar de dormir. Bocejou de
forma prodigiosa e piscou quando Harrison, sem o menor
preambulo, colocou o quadrado salto de prata debaixo de seu
rubicundo nariz.
—Saiu um sapato como este de sua tenda?
—Como vou saber? Por mais que se pareça com o tipo de
sapato que vendemos, como vou saber?
—Quantas mulheres na cidade possuem sapatos com saltos
de prata como esse aí?
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—Como demônios queres que eu saiba? Também se vendem
em outras cidades. Aqui, que eu saiba, só vendemos sapatos como
esse para três mulheres. É a última moda; só recebemos esses
modelos faz poucos dias.
—Tem uma lista com o nome dessas mulheres?
—Não preciso ter nenhuma lista! Sei muito bem quem são
elas: a senhorita Elizabeth Richards, de South Park Boulevard, n0
171; a senhorita J.J. Gottschenger, de Oíd Ridgely Place; e a
senhorita Zaida Lopez, de River Street.
—Quem é Zaida Lopez? – quis saber Bissett.
—Uma bailarina euroasiática – respondeu Harrison. Trabalha
na Capela do Prazer de Yun Wi... uma espécie de clube noturno
chinês. Juraria que este salto deve ser seu. Inclusive se uma
diletante ou uma dama da alta sociedade entrarem em um beco
escuro de River Street, o normal é que levem um calçado mais
adequado do que um par de sapatos com salto de prata. Zaida é o
único tipo de mulher que os levaria em uma ocasião assim.
—Bom – bocejou o gerente – não sei do que estão falando,
mas a senhorita Gottschenger foi embora de Nova York faz uns
três dias e, por acaso, ouvir dizer que a senhorita Richards deu um
baile a noite na mansão de seu velho.
—Bom, isso descarta a ambas – Harrison se pôs em pé.
Vamos Bisset.

41
Já na rua, Harrison disse:
—Tenho que colocar um limite em alguma parte. Essa gente
de River Street já é bastante dura para falar em privado. Vou
passar na casa de Zaida para ter uma conversa com ela, e isso, por
si só, já é bastante arriscado. Se vou acompanhado de um
estranho, se torna ainda mais difícil.
—E isso o que significa?
—Significa que não posso deixar que me acompanhe para ver
Zaida.
—Mas, você me prometeu...
—Eu sei, mas assim é esse negocio. Logo contarei os
detalhes.
—De acordo. Suponho que terei em me contentar com isso.
Pensa em ir diretamente lá?
—Não. Pararei na delegacia para que os especialistas em
pistas analisem a adaga e a cigarreira. Logo irei ver a Zaida.
—É melhor ficar na esquina enquanto vou à delegacia.
—Se não quer ficar na esquina, já pode ir embora. Mas
juraria que não fará isso.
—Acredita que foi ela quem matou Kratz?
—Isso parece.
—Maldição! – se queixou Bisset. Que azar não poder assistir
a entrevista! Aproveitarei para voltar ao meu quarto e escrever o

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que ocorreu até agora. Então, me porá a par de tudo amanhã, na
delegacia?
—Sim, pode estar seguro. Não lhe prometi?
Harrison subiu no seu automóvel e o conduziu rua abaixo
sem olhar para trás. A rua onde morava o gerente da Tenda
Francesa não estava muito longe da entrada do Distrito Oriental. A
Delegacia de Polícia estava um pouco mais distante. A parada de
Harrison foi breve.
—O que tem desta vez? – perguntou o chefe Hoolihan ao ver
entrar Harrison—. O detetive de River Street era um enigma e um
mistério, inclusive para seus próprios companheiros de polícia.
Sempre trabalhava só e, nem seus métodos, nem suas teorias
costumavam estar abertas à inspeção pública. Seu modo de
trabalhar era muito pessoal e, com frequência, irregular e pouco
ortodoxo, mas obtinha resultados. Tal e como Bisset havia dito,
praticamente toda a responsabilidade da defesa da lei no Bairro
Oriental recaia sobre os largos ombros de Harrison.
—Trago trabalho para os rapazes do departamento de pistas –
falou Harrison, colocando sobre a mesa do escritório o punhal e a
cigarreira.
—Acredita que podem ser pistas?
—Podem ser. Ainda não estou seguro.
—Seria uma pequena casualidade que estivesse passeando

43
pela rua justo quando se cometiam um assassinato?
—As casualidades não ocorrem desse modo – grunhiu
Harrison. E eu não estava passeando.
—Quer dizer que sabia que ia acontecer algo?
—Olhe isto – Harrison estendeu a Hoolihan um fragmento de
papel, sobre o qual estava escrito umas linhas, com letra feminina:
“Detetive Harrison: Esta noite, em River Street, vai acontecer
um assassinato, em algum lugar entre as ruas Ormond e Bridge,
perto da meia-noite”.
O bilhete não estava assinado.
—Recebi isto pela manhã. Foi enviado desde algum lugar do
centro da cidade. Sempre estou recebendo informações que não
conduzem a nenhuma parte, mas não deixo passar nenhum, a não
ser que seja de todo descabelada. Deixei o carro na esquina entre
Ormond e River Street uns minutos antes das doze e desci
caminhando por River Street... e, justo as doze em ponto, escutei
um grito e encontrei Jelner Kratz no beco chinês com uma faca
cravada nas costas, e este salto enganchado no pavimento. Parece
como se a mulher que o usava houvesse apunhalado Kratz, saísse
correndo, ficasse parada, obstruída por alguma coisa, quebrando o
salto que levava devido ao pânico.
—E quem poderia ser essa mulher?
—Poderia ser Zaida Lopez. Vou falar com ela... se puder

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encontrá-la.
Poucos minutos depois, o carro descapotável de Harrison
aparecia em River Street, e não demorou em estacionar em frente
a casa de apartamentos na qual vivia a bailarina euroasiática. Um
porteiro sonolento bocejava na entrada... um japonês, ou filipino.
Aquele era o Barrio Oriental, onde se mesclavam o sangue de uma
centena de raças exóticas.
—A senhorita Lopez está em seu apartamento? – perguntou
Harrison.
—Sim, senhor.
—Quando chegou?
—Poucos minutos depois da meia-noite, senhor – consultou o
relógio que mostrava ser uma e cinco da madrugada.
O porteiro não perguntou se o detetive queria ser anunciado.
Sua atitude era educada e indiferente, mas seus olhos lançavam
faíscas. Toda River Street conhecia Harrison, o incompreensível
homem branco que defendia as inexplicáveis leis de sua raça em
um distrito habitado por estrangeiros.
O elevador não funcionava àquelas horas. Enquanto Harrison
subia pela escada até o último andar, onde sabia que devia estar o
apartamento de Zaida, refletiu que a bailarina podia ter escapado
com facilidade, sem que o porteiro se apercebesse disso. Duas
tramas de escadas conduziam a caminhos de entradas laterais a

45
ambos os lados do edifício. Qualquer um podia entrar e sair sem
passar pela portaria.
Chegou até o andar superior e chamou na porta que, segundo
sabia, conduzia ao apartamento de Zaida. Não houve resposta. A
claraboia que havia em cima da porta não mostrava o menor rastro
de iluminação no interior. Chamou mais forte e se anunciou em
voz alta. Ninguém respondeu. Impaciente, tateou a fechadura. A
porta estava fechada; mas sua visão treinada captou algo que o fez
agachar-se e examinar tanto a fechadura como o marco da porta
adjacente a ela. Havia débeis marcas de arranhões, que mostravam
algo inconfundível... alguém – e esse alguém não era muito
esperto – havia usado, ou tentado usar recentemente uma chave de
fenda nesta fechadura. Levantou-se ao escutar uns passos
sigilosos. Pareciam vir de dentro do apartamento.
Harrison recordava que o dormitório de Zaida era no sótão e
tinha uma janela no telhado. Correu pelo vestíbulo, girou
bruscamente pelo corredor e chegou até uma porta de molduras de
vidro, que conduzia ao terraço, e que, geralmente, não estava
fechada com chave. Por sorte, estava aberta. Saiu a uma cobertura
plana onde havia umas cadeiras e umas palmeiras, que parecia ser
uma espécie de terraço ajardinado para bailar. Somente uma
habitação dava para aquele terraço, e Harrison sabia que era o
dormitório de Zaida. A porta estava aberta. Não se via luz em seu

46
interior.
Harrison recordou aqueles passos sigilosos. Avançou pelo
terraço com a visão em alerta; estava uma penumbra, iluminada
somente pela luz das estrelas. Mas se alguém estivesse espreitando
por trás das palmeiras, ele já teria visto. O umbral as escuras que
conduzia ao quarto de Zaida apresentava um aspecto sinistro.
Harrison empunhou sua pistola e avançou com cautela. As
palmeiras davam um aspecto de selva em miniatura a ambos os
lados da porta, mas um exame atento revelou que não havia
ninguém escondido atrás delas. Harrison não tinha a intenção de
permitir que sua corpulenta silhueta se perfilasse frente à porta
aberta, de modo que avançou colado à parede até que pudesse
passar o braço debaixo do batente da entrada, e tateou em busca
do interruptor de luz que, segundo sabia, estava junto à porta. Ele
já havia estado ali, no apartamento de Zaida. Seus dedos
encontraram o interruptor e, no instante seguinte, o quarto se
iluminou. Harrison permaneceu imóvel, escutando o interior do
apartamento.
No meio do dormitório, mobiliado com o bizarro gosto de
uma bailarina mestiça, encontrava-se o segundo corpo que o
detetive encontrara esta noite. Era Zaida Lopez, e estava morta.
Havia sinais de luta. A bailarina havia sido tão ágil e forte como
uma pantera, e Harrison pôde imaginar seu último e desesperado

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combate pela vida. O homem que a derrotara devia ser um sujeito
poderoso. O vestido da mulher estava rasgado, revelando seu
busto e, entre seus seios, jovens e firmes, aparecia a empunhadura
de bronze de um punhal com um dragão talhado, cuja cabeça
formava o cabo.

Harrison se aproximou dela. Não estava morta há muito


tempo. O corpo ainda estava quente. Calçava umas sandálias de
boudoir e, junto da cômoda, deixados ali com descuido, havia um
par de sapatos de baile que brilhavam debaixo da tênue luz da

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alcova. Um deles mostrava um esbelto salto de prata; o outro
faltava o salto, e Harrison não se preocupou em comprovar se
encaixava com aquele que levava em seu bolso.
—Onde diabos estará Zelda, sua secretária?
A cama de Zaida estava ainda desarrumada. O quarto ao lado,
pelo que recordava, era o dormitório da sua secretária. Entrou nele
e acendeu a luz. Logo olhou na sala de estar, mas não encontrou
nenhuma figura se aproximando.
Se, verdadeiramente, os passos que havia escutado vinham do
interior do apartamento, o intruso devia ter escapado antes que o
detetive entrasse. Harrison se lembrou da escada de incêndios que
descia desde o terraço.
A cama da secretária de Zaida estava desarrumada. A
almofada mostrava ainda o peso de uma cabeça humana que
esteve deitado ali, mas a secretária havia desaparecido. Um rápido
registro lhe provou que todas as portas – exceto a que saia para o
terraço – estavam fechadas com chave, e todas as janelas seguras
com ferrolhos. Na parede esquerda, havia uma janela que dava
para o terraço e a porta que conduzia até ele não havia sido
forçada. Ainda tinha a chave em seu interior.
—Seguramente foi ela mesma que abriu a porta – sussurrou
Harrison para si, enquanto se agachava de novo sobre o cadáver e
examinava umas marcas azuladas na delicada garganta. O homem

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que a matou era alguém a quem ela conhecia... ou que estava
esperando. Estrangulou-a... obviamente, para evitar que gritasse.
Devia ser um tipo muito forte. Teve que entrar por uma das
entradas laterais, ou diretamente pela escada de incêndio.
Harrison se aproximou da porta e voltou novamente ao
terraço iluminado pelas estrelas. E, de repente, estremeceu. A luz
do interior do quarto se projetava sobre as palmeiras que se
agrupavam junto à porta. Observou que algo sobressaia por trás de
um dos grandes vasos... um pé humano. Num instante, Harrison
se lançou sobre o homem e grunhiu suavemente ao reconhecê-lo.
Era um árabe, a quem Harrison conhecia como Ahmed, um
vendedor de almofadas. Era um sujeito jovem, de constituição
régia e musculosa, na qual Harrison sempre havia pensado que,
em outro tempo, aquele jovem devia ter sido um lutador de luta
livre. Um homem assim poderia impor-se com facilidade,
inclusive, frente a uma ágil tigresa como Zaida Lopez. Entretanto,
agora aquele jovem estava com os olhos fechados e jazia imóvel.
Junto a ele havia um gorro redondo, de cor carmesim, decorado
com um filigrana de fio de ouro. De uma maneira experiente,
Harrison passou os dedos pela cabeça do árabe e franziu a testa,
desconcertado, ao não encontrar nenhuma ferida, arranhão ou
contusão. Recolheu o gorro, mas a peça não lhe dizia nada. Um
golpe na cabeça não romperia a peça, como faria com um chapéu.

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Não sabia o que pensar.
—Estaria drogado? – se perguntou Harrison.
Justo nesse instante, Ahmed grunhiu, se moveu e sussurrou
incoerências. Abriu os olhos e observou Harrison com o olhar
perdido.
—Wallah!, que aconteceu?
—Isso eu gostaria de saber – respondeu o detetive—. Que
está fazendo aqui? Que se passou?
O árabe se recuperou com esforço, levantando as mãos para
frente.
—Alguém me golpeou... – sacudiu a cabeça, com uma careta
de dor. Logo, de repente, levantou a cabeça e seu olhar ficou
nítido—. O homem, que estava atrás das palmeiras, onde está?
—Aqui não há mais ninguém – Harrison não se deu ao
trabalho de voltar a olhar para os vasos. Tinha o olhar cravado no
árabe, que se levantou, cambaleando.
—Estava aqui. Saiu de trás das palmeiras e me atingiu...
justo quando Zaida abria a porta...
—Então foi para você que Zaida abriu a porta?
—Sim, claro. Eu... – o árabe começou a se inclinar para fora
da janela, olhando por cima do ombro de Harrison, quando seu
olhar se dilatou, enquanto sua tez se tornava cinzenta.
—Zaida! Está morta!

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—Sim – disse suavemente Harrison, vigiando-o como um
falcão. O árabe passou junto a ele e entrou no quarto de dormir de
Zaida para contemplar, com os olhos arregalados, o cadáver da
bailarina.
—O homem atrás das palmeiras! —sussurrou—. Ele fez isso!
Alá!
—Por que a mataste? – perguntou Harrison bruscamente.
—Eu? Matar a Zaida Lopez? Está louco, sahib? Zaida era
minha amiga. Vim aqui para protegê-la.
—De quem?
—Não sei. Sua secretária me trouxe um bilhete...
—Onde está?
—O destruí.
—Que dizia?
Ahmed se apoiou com as mãos.
—Não posso recordar com exatidão. Quando tento pensar,
minha mente fica nublada. O bilhete dizia que estava assustada...
que necessitava de um homem para protegê-la. Havia visto algo
que a assustara muito. Faz muito tempo que somos amigos, por
isso vim em seu auxílio.
—Quem lhe levou o bilhete?
—Sua secretária, Zelda.
—Onde está ela?

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—Não sei. Não cheguei a vê-la. Entregou o bilhete ao
porteiro do hotel onde moro. Ele a fez subir até o meu
apartamento. Mas, quando fui atender a porta, ela já não se
encontrava mais.
—Quando o recebesse?
—Mais ou menos à meia-noite e meia. Não sei com exatidão.
—E depois?
—Vim imediatamente para cá. Deixei meu carro estacionado
na calçada, entrei por uma porta lateral e subi pelas escadas até
este local. Não entrei pela porta principal. Quando cheguei ao
corredor, vi um homem que se agachava junto a fechadura da
porta de Zaida...
—Que aspecto tinha o homem?
—Estava de costas para mim. O vi apenas de lado e logo saiu
em disparada até o fundo do corredor. Corri atrás dele, e vi que a
porta do terraço estava aberta, mas quando subi ao terraço não
havia ninguém. Pensei que devia ter fugido pela escada de
incêndio, mas, na realidade, devia estar escondido no terraço.
Antes que tivesse tempo de procurá-lo, Zaida me chamou do seu
quarto de dormir, para saber se era eu e, quando reconheceu minha
voz, abriu a porta. Quando me aproximei para entrar, ela gritou e
eu dei a volta justo quando um homem saltava contra mim vindo
das palmeiras. Arremessou algo contra minha cabeça nesse

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mesmo instante. A partir daí não me lembro de mais nada.
—Que aspecto tinha o homem?
Ahmed sacudiu a cabeça, indefeso.
—Não me lembro. Meu cérebro fica nebuloso quando tento
pensar nele. Não consigo recordar nada sobre ele. Era só uma
figura nas sombras que saltou até mim desde as palmeiras.
Harrison recuou quando alguém chamou na porta do salão,
que se abria no corredor exterior.
—Quem está aí?
—Sou eu, Bissett! Deixe-me entrar!
—Sente-se no divã, Ahmed, e fique aí – ordenou Harrison, e
o árabe se deixou cair na poltrona, segurando a cabeça entre as
mãos.
Harrison se dirigiu até a porta, vigiando o árabe pelo canto do
olho com a pistola pronta... se Ahmed tentasse escapar, isso seria
uma clara confissão de culpa, e Harrison já havia agido como
verdugo em uma outra ocasião. Mas, a abatida figura permanecia
sentada, imóvel. Harrison girou a chave e abriu a porta. O ansioso
rosto de Bissett se perfilhava pela fenda.
—Que demônios está fazendo aqui? Disse pra você evaporar!
—Não parei de pensar no que ia acontecer! —proclamou
Bissett—. Minha consciência não permitia ficar à margem dos
acontecimentos! Vamos... seja bonzinho e deixe-me entrar! Já

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aplicou o terceiro grau da lei à jovem dama? Ela já confessou?
Para dar-lhe a resposta, Harrison abriu toda a porta e apontou
para a porta do quarto de dormir da bailarina, onde estava o
cadáver. Os olhos de Bissett quase saíram de suas orbitas.
—Quem é essa?
—Zaida Lopez!
Bisset avançou e baixou o olhar para a jovem morta.
—Está morta! Veja isso, Harrison! – gritou, apontando para
baixo – é o mesmo tipo de faca que matou a esse tal de... como se
chamava?... Kratzie?
—Não acredito que não percebi isso – disse Harrison.
—Bissett se virou e olhou para Ahmed.
—Foi esse que a matou?
—Parece que sim.
—Eu não matei ela —sussurrou Ahmed—. Apenas uma vez,
em Istambul, matei um turco... estrangulei-lhe a garganta com
uma chave de luta livre. Mas nunca matei uma mulher em minha
vida.
—Tua história não soa verdadeira, Ahmed —disse
Harrison—. Se alguém te deixou inconsciente com um golpe, por
que não tens nenhum galo na cabeça? Deve ter sido uma porrada
incrível para derrubar um homem tão forte como tu. Mas, não
havia sinais de contusão alguma em tua cabeça. Teu boné, ou o

55
que quer seja esse gorro, nem sequer estava amassado.
Ahmed sacudiu a cabeça, indefeso.
—Não sei. Só sei que não matei Zaida Lopez.
—Sinto-me forçado a acreditar que se não foi tu que fizeste –
disse Harrison – alguém usou uma chave de fenda na porta que dá
acesso ao corredor exterior. Creio que, primeiramente, tentou
forçar a entrada, mas então, de algum modo, a persuadiu para que
abrisse a porta. Depois a estrangulou para que não gritasse e a
apunhalou com esse punhal. Estavas no apartamento quando a
chamei na porta principal. Ouvi como tentava escapar. Suponho
que cheguei ao terraço antes que pudesse escapar, de modo que te
escondeste atrás das palmeiras, até que tivesse uma oportunidade
para fugir. Mas eu descobri você e então inventasse toda essa
história fantástica.
Ahmed se limitou a negar com a cabeça, sem pronunciar uma
só palavra.
—Mantenha-o vigiado, Bissett —ordenou Harrison—. Vou
revistar os outros cômodos do apartamento.
Bissett lançou um olhar de dúvida diante das musculosas
proporções do árabe, mas se plantou entre a poltrona e a porta que
dava para o terraço e, fechando um punho de considerável
tamanho, soprou sobre os dedos de maneira desafiante. Ahmed
não deu mostras de haver reparado sequer a presença do jornalista.

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Uma breve, porém consciente olhada no quarto de dormir não
revelou nada de importância. Em seguida revistou-o; depois foi
direto ao escritório e, detendo-se nele, abriu uma caixa após outra.
No fundo da ultima caixa encontrou, cuidadosamente dobrado,
uma folha de papel. Abriu e leu, escrito com a letra de Zaida, o
seguinte:

“Kratz: Devo vê-lo. Fui tão longe quanto podia. Encontre-


me atrás da tenda do Gato Púrpura, as onze em ponto, se dá valor
a tua miserável vida”.

O bilhete não estava assinado. Em seguida, Harrison escolheu


um fragmento de papel escrito pela bailarina que continha uma
lista de artigos e o meteu em seu bolso junto com o bilhete. O
Gato Púrpura era um cabaré de classe baixa situado em Levant
Street, a poucos quarteirões da entrada do Beco Chinês.
Harrison se aproximou do telefone e chamou na portaria do
hotel onde morava Ahmed. O porteiro atendeu.
—Aqui quem fala é o detetive Steve Harrison – esse nome
obtinha logo respostas, ainda que elas fossem mentiras—. Há
quanto tempo está de serviço aí na portaria?
—Desde as dez da noite, senhor.
—A que horas saiu do hotel o árabe Ahmed?

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—As doze e trinta e cinco, senhor Harrison.
—Alguma mulher levou até ele um bilhete?
—Sim, senhor Harrison. A secretaria de Zaida Lopez me
entregou o bilhete e se foi. Eu mesmo a atendi.
—O árabe ficou a noite toda em seu quarto?
—A verdade é que não sei, senhor. Muita gente entra e sai, e
ele, geralmente, costuma levar as suas chaves.
—Está bem. Obrigado.
Pendurou o fone e voltou para esclarecer o ansioso olhar de
Ahmed.
—Parece que ele dizia a verdade quando me disse que a
secretaria havia lhe trazido um bilhete —disse Harrison—. Sabe se
Kratz estava chantageando Zaida?
O rosto de Ahmed mostrou uma expressão obstinada, e não
contestou.
—Bem, creio que sim. Em diversas ocasiões, tenho a
sensação de que a metade de River Street está chantageando a
outra metade. É possível que estivesse chantageando a ti
também...
—Que importa isso?
—No caso de que não o saiba – disse Harrison em tom
sarcástico – Kratz foi assassinado esta noite, no beco chinês, com
um punhal idêntico a que usaram em Zaida. Já que penso que a

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mataste, é lógico que vou pensar que matasse a ele também. Por
alguma razão, ela estava naquele beco e viu como mataram Kratz.
Mas tu não a viste, de forma que se a tivesse visto, a teria matado
ali mesmo. Mas ela foi bastante estúpida ao mandar-lhe um bilhete
pedindo que viesse até aqui... não sei muito bem ainda por que, a
menos que ela pretendesse chantageá-lo...
—Está louco, cão infiel! – o temperamento de Ahmed se
impulsionou um instante, saindo de seu estoicismo. Harrison não
se mostrou surpreendido pelo termo depreciativo. Já o haviam
chamado de coisas piores que essa.
—Ela jogava com fogo e, no final, acabou se queimando. Tu
a mataste, assim como matasse Kratz. Por que matasse Kratz? Ele
estava te chantageando também?
Ahmed não contestou. Ou bem estava destroçado pelas
acusações, ou havia novamente se refugiado em seu estóico
fatalismo oriental, uma característica que Harrison havia
encontrado antes em muitas ocasiões ao tratar com os habitantes
de River Street.
—Não vai falar, hein? Muito bem! – os métodos de
interrogação em terceiro grau não agradavam Harrison; aliás,
sabia que seria impossível derrubar essa muralha de silêncio.
Harrison voltou para revistar a sala de estar. Fixou-se em uma
mancha de tinta na mão esquerda de Zaida e recordou que a jovem

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era canhota. Havia um escritório na sala, muito mais elaborado do
que aquele que tinha no quarto de dormir da bailarina, e havia uma
pluma a vista, em cuja ponta a tinta não tinha secado ainda. Junto
a ela havia um tinteiro aberto. Começou a revistar o conteúdo da
papelada e descobriu papel amassado no alto da pilha. O pegou.
Tratava-se uma folha perfumada, similar à outra em que havia
escrito o primeiro bilhete. Na folha, com a mesma caligrafia, se
podia ler o seguinte:

“Ahmed: venha rápido. Estou terrivelmente assustada. Kratz


está morto e vi Joseph Lepstein mata...”

A frase estava interrompida pela metade. Por alguma razão,


Zaida havia começado a escrever o bilhete na folha e logo o
deixou de lado, amassando-o e atirando-o na lixeira. Ahmed
jurava que o bilhete que havia recebido não mencionava nomes. A
bailarina havia pensado que mencionar nomes resultaria
demasiadamente indiscreto?
Harrison encolheu os ombros. Aquilo dava ao caso uma visão
completamente nova. Voltou novamente ao outro quarto com a
folha de papel na mão.
—Que encontrou? – perguntou Bissett, completamente alerta.
—Algo que me faz pensar que, depois de tudo, Ahmed

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poderia ter dito a verdade —disse o detetive—. Uma prova que
lança nova luz sobre o caso. Ahmed, pode se lembrar de alguma
coisa sobre o cara que, segundo diz, saltou sobre você desde as
palmeiras?
—Não consigo pensar com clareza —murmurou o árabe,
massageando a cabeça—. As vezes sinto que posso recordar que
aparência tinha... mas logo a imagem se evapora. Se voltar a vê-
lo, saberei. Talvez não. Só Alá tem todo o conhecimento.
—Bom – começou Harrison quando, de repente, sentiu uns
olhos cravados em suas costas. Virou-se e exclamou: Diabos!
Um rosto aparecia pela janela que se abria desde o terraço...
um rosto quadrado, amarelo, com uns resplandecentes olhos
negros e rasgados.
—Alto! – gritou o detetive, saltando até a janela...
entretanto, se deu conta de seu erro e recuou até a porta aberta.
Mas, enquanto mudava de atitude, o quarto ficou totalmente
na escuridão. Alguém gritou, e então uma mão de ferro segurou
seu pulso e sentiu que o bilhete era tirado de seus dedos. Lançou-
se para frente, colidiu com uma figura na escuridão e se agarrou a
ela... somente para cair de joelhos depois de receber um demolidor
impacto na cabeça. Enquanto caia, notou mover-se o ar devido a
um segundo golpe que passou junto à sua orelha e, sacando sua
arma automática calibre 45, disparou as cegas três vezes, pois

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sentia que o assassino flutuava na escuridão, ao seu redor. Escutou
algo que caia como um estrondo. No silêncio que seguiu aos
disparos, sacudiu a cabeça, atordoado. Tinha sangue descendo-lhe
sob o rosto. Em alguma parte, um homem grunhia e praguejava e
alguém mais se agitava de forma convulsiva, fazendo o mesmo
ruído de um frango decapitado.
Harrison tateou em busca de sua lanterna, mas havia caído ao
solo e não logrou encontra-la. Levantou-se com cautela e avançou
tateando até a parede, com a pistola apontada para frente. Seus
olhos não haviam se acostumado ainda com a súbita escuridão e a
sua cabeça dava voltas como consequência do golpe, mas pela
janela penetrava um débil indício de luz que começou a guiar seus
passos. Segundos depois, sua mão chegou até o interruptor. Estava
apagado, e a porta que havia junto a ele estava fechada. Deu a
volta e colocou as costas contra a parede; levantou sua pistola e
acendeu a luz.
A luz que inundou o apartamento lhe fez piscar. Diante dele
não se achava nenhuma figura ameaçadora, pois ele era o único
homem em pé. No lugar de uma, havia agora três figuras estiradas
no solo. Ahmed jazia no divã em que estivera sentado, e Bisset
estava estendido com a boca no chão. O árabe permanecia
completamente imóvel, mas o jornalista começava a se mexer.
Quando levantou a cabeça, um jorro de sangue emanava até seu

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rosto.
Então, um ruído – crash! – vindo do painel da janela fazendo-
a em pedaços foi o que fez Harrison ficar novamente em alerta.
Abaixou-se de forma instintiva e alguma coisa passou por cima de
sua orelha, cravando-se na parede. Não disparou às cegas em
direção da janela. Depois de abrir, devagarinho, a porta do terraço,
saiu empunhando a arma, demasiadamente furioso para perceber
que sua silhueta ficava de perfil com a claridade que iluminava o
umbral. Girou pelo quarto de dormir da bailarina, justo no
momento de observar como algo vago e sombrio desaparecia pela
borda do terraço. Lançou-se até ele, tropeçando contra um vaso
vazio, caindo de cabeça.
Depois de levantar-se, Harrison saltou até a mureta que
bordeava o terraço. A escada de incêndio partia desde esse local, e
sua torpe queda havia dado ao fugitivo tempo suficiente para
escapar. A escada metálica baixava até um beco e, justo quando
olhava, descobriu que a extremidade inferior da escada, que devia
estar levantada, estava descendo. Enquanto forçava a vista, três
línguas de fogo foram projetadas contra ele vindo da escuridão do
beco. Saltou para trás e a bala passou junto a sua orelha,
chocando-se contra a parede de ladrilho. Recuou. Seria suicídio
tentar descer pela escada com três atiradores lá embaixo. Disparou
uma vez e se refugiou atrás da mureta do terraço. Quando voltou a

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levantar a cabeça, não escutou o menor som vindo do beco.
Harrison se levantou e regressou ao quarto de dormir de
Zaida. Bissett havia conseguido levantar-se, porém cambaleava
como bêbado, enquanto tentava estancar o sangue que tinha no
rosto.
—Que demônios aconteceu? —perguntou confuso—. As
luzes se apagaram... e alguém começou a disparar... e me
acertaram! Tenho sangue na cabeça!
Harrison examinou a ferida, no lado direito, justo na linha da
cabeça, havia um pequeno corte.
—Isso não é uma ferida de bala – grunhiu o detetive.
—Então alguém me golpeou com alguma coisa!
—Evidente.
—Mas por que me acertaram? —clamou o jornalista—. Eu
não estava fazendo nada! Sou apenas um espectador inocente...
—Estava entre mim e a porta —assinalou Harrison—. Esse
tipo queria o papel que eu havia encontrado. Conseguiu pegá-lo de
mim.
—O que aconteceu com Ahmed? – perguntou Bisset,
visivelmente incomodado.
Harrison se abaixou e examinou.
—Acertaram-no bem no coração.
De repente o telefone tocou. Harrison levantou o fone. A

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balbuciante voz do porteiro japonês perguntou timidamente se
estava tudo bem.
—Tudo está bem —lhe assegurou Harrison—. Se alguma
pessoa do edifício te perguntar o que está se passando, diga que
Steve Harrison está aqui em cima.
Pendurou o telefone e assinalou:
—Essa é a diferença entre as pessoas brancas e os orientais:
em um edifício de apartamentos ocidental, todo esse tiroteio
haveria provocado, a essa altura, uma curiosidade nas pessoas,
fazendo com que o corredor e o terraço estivessem cheios de
gente. Os orientais preferem fechar com chave suas portas e
ficarem atentos, até estarem seguros para depois saberem o que
está acontecendo.
Harrison voltou a ajoelhar-se para ver Ahmed, notando que a
lapela do casaco do árabe estava chamuscada pelo fogo da arma
que o havia matado.
—Deve ter sido o mesmo que disparou contra mim —
sussurrou o detetive—. Você estava vigiando Ahmed. Foi ele que
apagou a luz?
—Não sei. Quando você gritou e se lançou até a janela, eu
também fiz o mesmo. O seguinte que lembro é que alguém apagou
a luz e me deu um golpe que me fez ver um milhão de estrelas.
—Ahmed podia chegar ao interruptor da luz sem precisar se

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levantar —disse Harrison—. Se foi ele quem pegou o bilhete,
ainda deveria estar em sua mão.
Mas, depois de uma revista mais cuidadosa, o bilhete não
apareceu e Harrison percebeu algo mais... um roxo azulado na
mandíbula do árabe que não havia antes.
—Diabo! Golpeou-o na escuridão, Bissett?
—Eu não! Cai ao solo antes de dar-me conta de que me
haviam golpeado!
Harrison coçou a cabeça, incomodado.
—Alguém poderia ter entrado aqui vindo do terraço para
depois apagar a luz, golpear a ti, a Ahmed e a mim, um depois do
outro, e em seguida arrancar o bilhete de minha mão... mas, se foi
assim, como uma bala minha atingiu Ahmed? Disparei alto. Se ele
estava no chão, a bala deveria ter passado por cima dele. Deve ter
sido Ahmed que me atacou... mas, onde está o bilhete? Como
conseguiu entrar aqui esse chinês para levá-lo? Se foi assim, como
fez para voltar até a janela...?
Lembrando-se de algo, Harrison deu a volta e caminhou até a
parede oposta da janela. Arrancou alguma coisa do muro e o
colocou na palma da mão.
—De que chinês está afalando? —quis saber Bissett—. De
onde veio essa faca?
—Atiraram-me da janela —respondeu Harrison—. Não viu

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aparecer um chinês justo antes de apagarem a luz?
—Não. Não deu tempo de ver nada. Esta outra faca, é chinesa
também?
Harrison confirmou que sim, depositando a arma sobre a
mesa do escritório. Tratava-se de um punhal pesado, com uma
lâmina reta de duplo fio e uma empunhadura bem equilibrada.
—A única coisa que me ocorre —disse Harrison— é que
Ahmed apagou a luz, te golpeou, arrancou o bilhete de minha
mão, me golpeou, e então alguém... pode ter sido o chinês...
entrou aqui, protegido pela escuridão, tomando-lhe o bilhete. Mas
isso não tem pé nem cabeça. Se foi assim, como diabos recebeu
esse golpe na mandíbula? Pois Ahmed recebeu o disparo antes que
o desconhecido roubasse o bilhete. E nem os chineses podem
enxergar na escuridão.
—O que estava escrito no bilhete? – perguntou Bissett.
—Evidentemente, era o primeiro bilhete que Zaida pensava
enviar para Ahmed, mas logo mudou de opinião e escreveu outro
mais breve. Esse primeiro bilhete citava Joe Lepstein – disse
Harrison.
—Quem demônios é esse?
—O sócio de Kratz – tirou o telefone do gancho e discou o
número do apartamento da senhora De Kosa – e explicou: tanto
Kratz como Lepstein moram ali.

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—Você parece saber tudo sobre os habitantes de River Street,
não é? – assinalou Bissett com curiosidade.
—Nem por vestígio. Mas, digamos que tento manter-me
informado de todos os movimentos superficiais.
“É a senhora De Kosa? Bem. Sou Steve Harrison. Queria
falar com... Sim! Sim! Sei que é uma hora imprópria para tirar
uma mulher honesta da cama, mas não havia outro remédio.
Queria falar com Joe Lepstein. Como? Ah, não está aí, hein?
Quando o viu pela última vez? E Kratz, quando o viu pela última
vez? Bem, de acordo”.
Pendurou o telefone.
—Ela disse que não viu Lepstein desde o jantar; disse
também que Kratz saiu pouco antes do jantar e que, pouco depois,
Lepstein saiu atrás dele.
—O que deduz disso?
—Não sei. Tenho que certificar-me desses fatos: Kratz, Zaida
e um terceiro sujeito estavam no beco chinês. Kratz foi
assassinado e Zaida viu o crime.
—Acredita que Zaida o fez?
—Não. não acredito. O mesmo assassino que matou Kratz,
matou também ela.
—Mas, eu acreditava que Ahmed...
—Ahmed poderia ter matado os dois. Mas Zaida não o

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chamaria para pedir ajuda se ele fosse o assassino. Maldição!
Sinto-me inclinado a acreditar na história de Ahmed a não ser por
uma única coisa: ele mentia quando disse que o haviam deixado
inconsciente. Portanto, deve ter sido ele quem me atacou. Mas
como recebeu esse disparo? A única coisa que me ocorre é que ele
e Lepstein – ou quem quer que tenha matado Kratz – trabalharam
juntos, e que ele matou Zaida para silenciá-la.
—Ou talvez tenha sido Zaida que matou Kratz e Lepstein
assassinou-a como vingança – disse Bissett.
Harrison riu.
—Zaida não conhecia Kratz. Ele e Lepstein eram sujeitos da
mesma laia e trabalhavam juntos, mas não tinham nenhum carinho
um pelo outro. Bem, prefiro reservar meu julgamento quando tiver
mais evidências.
—O que pensa fazer agora?
—Chamarei o delegado. Três cadáveres em uma noite é
muito, inclusive para River Street. Logo, irei eu mesmo até a
delegacia para ver o que descobriram os rapazes da Equipe de
Pistas sobre o assassinato de Kratz. Depois, farei uma visita no
escritório de Kratz e Lepstein.
—Pois penso em ir fazer um curativo para esta ferida e logo
beberei um litro e meio de café —anunciou Bissett—. Seguir seus
passos é uma tarefa muito perigosa. Ouça, você nunca dorme?

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—Às vezes... quando consigo algum tempo. Podem fazer um
curativo nesse seu ferimento na Delegacia.
—Não posso esperar tanto. Sei que há um hospital a poucos
quarteirões rua abaixo. Vi o letreiro a pouco. Você também
recebeu um bom golpe na cabeça, mas suponho que não se
incomode por pouca coisa...
—Já me deram golpes piores – grunhiu Harrison, marcando
um número de telefone.
—Estou indo —disse Bissett, recolhendo seu chapéu—.
Passarei na delegacia quando estiver um pouco melhor e verei
você lá.

Capítulo 3

Depois que os passos de Bissett se distanciaram pelo corredor


exterior, Harrison começou a examinar o punhal que haviam
atirado contra ele desde a janela. Já tinha vistos punhais como
esses cravados em numerosos cadáveres encontrados debaixo das
docas e em sinuosos becos. A arma proclamava a natureza de seu
proprietário: um assassino das tríades chinesas havia-lhe
arremessado esse punhal.
Harrison observou a ornamentada adaga que havia retirado
do peito de Zaida e colocado em cima da mesa do escritório.

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Recordou o rosto quadrado e amarelo que havia visto na janela.
Pressentia que, atrás daquele mistério, havia uma mão amarela... a
mão sombria e misteriosa dos crípticos celestes. Mas quem extraiu
do bolso interior o bilhete dirigido a Kratz e voltou a lê-lo.
De repente, abaixou a mão e, quando voltou a levantá-la,
empunhava sua pistola. Permaneceu completamente imóvel, quase
sem respirar. Não estava seguro do que havia ouvido; nem sequer
estava seguro de ter ouvido algo. Mas, um caçador de homens,
como qualquer outro animal predador, desenvolve certos instintos
que, no homem comum, se encontra em estado latente. E esses
misteriosos instintos lhe avisavam que o perigo se aproximava
sobre ele, arrastando-se cada vez mais perto com passos sigilosos.
A porta do terraço estava trancada. Retrocedeu velozmente para
afastar-se da janela quebrada, colocando-se de tal forma que
pudesse vigiar a porta da sala que dava para o corredor exterior.
Então, escutou uns passos silenciosos no terraço. Harrison se
agachou com a arma brilhando em seu enorme punho. Um
sufocado uivo ressoou do outro lado da porta e logo se ouviu o
som de um pesado corpo caindo. Alguma coisa se arrastou e logo
começou uma espécie de respiração estrangulada. Harrison
caminhou rápido até a porta, apagou a luz e entreabriu uma fenda.
Enquanto seus olhos se acostumavam com a luz das estrelas,
vislumbrou uma volumosa figura que jazia estendida em frente à

71
porta. Gradualmente, a figura foi assumindo o contorno de um
homem que jazia com a boca aberta. Harrison distinguiu que os
braços estavam jogados para trás, como se estivessem ficados em
meio de uma convulsão, enquanto a cabeça estava torcida para
trás, em um ângulo antinatural.
—Que demônios...? – sussurrou.
Os acontecimentos daquela noite estavam se convertendo em
um pesado. Examinou os vasos das palmeiras. Eles se perfilhavam
contra a luz das estrelas e, se havia alguém atrás deles, devia estar
deitado de bruços. Com súbita resolução, acendeu sua lanterna e
projetou seu feixe luminoso através da fenda da porta, enquanto se
afastava para um lado a fim de evitar um possível disparo. O
disparo não foi produzido. Naquele circulo de luz, comprovou que
o homem prostrado era um chinês. Ele tinha a cabeça lançada para
trás, com a barbicha levantada; as orbitas dos olhos estavam
giradas de maneira que só se podia ver a parte branca. A luz se
movia por entre as palmeiras, sem descobrir nada. Harrison se
aproximou da janela quebrada e focou a lanterna ao redor dela.
Essa parte do terraço estava deserta. Então retrocedeu até a porta,
apagou a lanterna e saiu até o terraço com a arma em punho. Só
vislumbrou a figura estendida sobre o terraço.
—E esse, quem demônios o matou? – perguntando-se a si
mesmo, voltando a acender a luz e inclinando sobre a figura

72
inerte... de repente, nem o súbito giro de seus olhos, nem a chama
que ardia neles foram capazes de avisá-lo a tempo, pois, de forma
simultânea, lhe arrancaram com um golpe a arma de sua mão e,
antes que pudesse mover-se, dez dedos de ferro se fecharam sobre
sua garganta com uma força inumana.
Os olhos de Harrison pareciam haverem sidos cegados por
uma luz estranha. As estrelas, que via cada vez que girava pelo
solo, pareciam tão vermelhas como sangue. Aqueles dedos de aço,
os dedos do estrangulador chinês, estavam a ponto de matá-lo
desde o primeiro momento, e Harrison só pode, desde o início,
arranhar as cegas aqueles enormes pulsos grossos e com músculos
como cabos de aço. O que o salvou, tão somente foram os
poderosos músculos de seu pescoço. E então, beirando já a
inconsciência, soltou os pulsos e agarrou os dedos mindinhos das
mãos do chinês. Os dedos do estrangulador estavam
profundamente enterrados em seu pescoço, mas conseguiu soltar
os dedos mindinhos e os tirou com força, forçando-os para trás.
Era como tentar arrancar as garras de um urso cravadas em uma
árvore. Lentamente e com dificuldade foram cedendo... e então
Harrison conseguiu se livrar e o ar voltou a entrar em sua dolorida
garganta enquanto inspirava profundamente.
Girou sobre suas costas, enquanto o estrangulador tentava
voltar a agarra-lo, mas Harrison projetou as suas pernas contra

73
aquela imponente massa peitoral. Seus calcanhares se enterraram
em um peito tão amplo como um barril fazendo o chinês
retrocedeu uns passos. Harrison, tentando levantar-se, conseguiu
ficar de joelhos, enquanto o chinês voltava a atacar. O detetive viu
como o gigantesco bruto se lançava sobre ele, com os olhos e os
dentes brilhando a luz das estrelas e os braços estendidos até ele...
Harrison se lançou contra aqueles braços, projetando seu pesado
punho com toda a força de seus musculosos antebraço, bíceps e
ombro, enquanto apoiava no chão todo o seu peso. O grande
punho de Harrison foi arremessado contra a mandíbula do chinês
em um golpe que derrubaria um boi. O gigante foi arremessado do
solo, caindo a dois metros de distancia, com um impacto que
parecia sacudir todo o edifício.
O próprio Harrison voltou a cair de joelhos por causa da força
do golpe que acabava de dar. Diante de seu assombro, o chinês
voltou a pôr-se em pé, cambaleando. A mandíbula estava
quebrada, enquanto saia espuma de seus lábios. O chinês se movia
como um bêbado.
—Pelos fogos do inferno! – jurou Harrison. Essa besta não é
humana!
Harrison se pôs em pé com esforço, pois seus membros
pesavam como se fossem de chumbo. O sangue escorria pelo seu
peito, vindo de sua garganta arranhada.

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—Com mais um golpe poderia acabar com este trabalho –
sussurrou Harrison – enquanto avançava até seu antagonista com a
cabeça baixa e os punhos crispados, assumindo de forma
inconsciente a postura de um boxeador.
Com um grito incoerente, o chinês retrocedeu, dando a volta,
se dirigindo até a escada de incêndio. Harrison saltou atrás dele,
mas a pancada que havia recebido o deixou pior do que pensava.
Antes que pudesse chegar à varanda, o chinês descia pela escada
e, quando Harrison olhou para baixo, o viu saltar de um platô a
outro como se fosse um grande símio, aterrissando a três metros
do beco, perdendo-se de vista. Em algum lugar, soava a sirene da
policia.
Harrison girou, dirigindo-se até a alcova. Acendeu a luz e,
quando esta se projetou até o terraço, encontrou sua pistola e a
lanterna. Instantes depois, escutou uns passos subindo pelas
escadas, e Hoolihan começou a bater na porta principal.
—Harrison, está aí dentro? Harrison... – parou de falar
quando a porta se abriu e Harrison apareceu diante dele, sem
casaco e chapéu, com o rosto coberto de sangue seco e sangrando
ainda por causa dos cortes no pescoço produzidos por aqueles
dedos que pareciam garras. Depois, o policial contemplou os
cadáveres de Zaida e Ahmed.
Hoolihan bufou.

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—Por todos os santos, quando alguém nos chama desde
River Street, sempre sabemos que vamos encontrar algo sangrento
e arrepiante. E só uma pessoa em River Street poderia estar em
uma situação como essa. O que aconteceu? O porteiro lá embaixo
disse que temia por sua vida. Jura que esteve a noite toda aqui,
lutando, disparando e matando todo mundo.
—Não é para tanto —disse Harrison com reticência—. Estou
metido até o pescoço em um mistério sem pé, nem cabeça... mas
isso não é nada novo.
Durante o trajeto até a delegacia – que fez em seu próprio
automóvel –, Harrison falou pouco com Hoolihan, que permanecia
sentado ao seu lado. Ainda o perturbava recordar como havia
caído com tanta facilidade no velho truque dos assassinos das
tríades.
—Que encontraram os rapazes do departamento de pistas? –
pergunto pouco depois.
—Não havia nenhuma na empunhadura do punhal.
Evidentemente, o assassino estava de luvas. Entretanto,
encontraram pistas digitais apenas na cigarreira. Comparamos com
todas as digitais que nos foram proporcionadas por você dos
personagens de River Street... como diabos faz para conseguir
todas essas pistas de pessoas que não tem ficha policial?
—Ficaria surpreso em sabê-lo —foi a críptica resposta de

76
Harrison—. E eles... descobriram alguma coisa?
—Sim. As digitais na cigarreira eram de Joseph Lepstein, o
sócio de Jelner Kratz.
Bissett se reuniu com eles na delegacia e observou com
assombro o aspecto de Harrison.
—Que demônios aconteceu com você?
—Um de nossos amigos chineses voltou depois que você
partiu. Há quanto tempo está aqui?
—Apenas a alguns instantes. Fazer com que me curassem a
ferida levou mais tempo do que pensava. Que pensa fazer agora?
—Ir para casa, trocar de roupa e, dormir um pouco. Se quiser
seguir com isto, nos veremos pela manhã no escritório de Kratz &
Lepstein... demônios, já está quase amanhecendo. Bom, então nos
veremos às nove da manhã.

77
Capítulo 4

Quando Harrison se reuniu com Bissett na hora combinada, o


jornalista tentou induzi-lo a revelar-lhe uma informação:
—Antes que subamos, diga-me: quem você acha que matou

78
Kratz?
—Sei que não foi Ahmed —replicou Harrison—. Pelo
menos Ahmed não matou Zaida. E tão pouco eu matei Ahmed. A
autopsia demonstrou que o golpearam com um cassetete recheado
de areia, que não provoca feridas externas, mas sim contusões no
cérebro. E a bala que tinha no coração era de um calibre 44. E eu
uso calibre 45. Voltei esta manhã ao apartamento de Zaida e
descobri na parede os buracos das três balas que disparei. Alegra-
me não ter sido eu que tenha matado Ahmed, agora que sei que ele
estava dizendo a verdade o tempo todo.
Os olhos do jornalista brilharam de interesse.
—Bem, vejamos: o chefe de polícia me disse que as digitais
de Lepstein estavam na cigarreira. E Zaida, segundo disse você,
mencionava Lepstein em seu bilhete. Então isso prova que
Lepstein cometeu o assassinato, não?
—Isso parece —admitiu Harrison—. Mas os chineses estão
metidos de alguma forma nisso.
—Ouça, escute-me! —exclamou Bissett—. É possível que
Lepstein tenha contrato os chineses. Pois foi um chinês que
cometeu o assassinato – usando luvas nas mãos – e Lepstein
pegou a cigarreira – Deus sabe porquê – deixando nela as suas
impressões digitais. De algum modo, descobriu que Zaida havia
presenciado o assassinato e enviou um chinês para que acabasse

79
com ela... ou talvez ele mesmo o fez! É como disse Ahmed:
estavam escondidos perto do quarto, e quando você encontrou o
bilhete que mencionava Lepstein... e ouviram falar dele...
deslizaram até a porta, enquanto olhávamos a janela... apagaram
as luzes... me golpearam... dispararam em Ahmed... pegaram de
você o bilhete... e se foram.
—Isso soa razoável —admitiu Harrison—. Mas, por que
voltou um deles para tentar me matar?
—A não ser que no apartamento ainda tivesse algo que eles
queriam.
—Não acredito. Recebi isso pelo correio de manhã —
mostrou um retângulo de papel antigo, com um curioso símbolo
gravado no centro. E sobre ele tinha selo de River Street.
—Que significa esse símbolo?
—É a Flor da Morte. Utilizam-na a maioria dos tong, de
modo que não há uma forma de rastrear sua origem, nem mesmo
um tong em particular. Significa que certo grupo de chineses me
juraram de morte.
—Que demônios disse? —o rosto de Bisset empalideceu e
seus olhos arregalaram-se—. Isso sim é uma boa história, caso
consiga sobreviver para escrevê-la: “Investigador é ameaçado por
uma sociedade criminosa de chineses, intitulada de os celestiais,
enquanto segue a pista de um triplo assassinato”. O que pensa

80
fazer agora?
—Iremos fazer uma visita ao escritório dos senhores Kratz e
Lepstein – replicou Harrison.
A jovem secretaria que havia atrás da recepção da “Kratz &
Lepstein Advogados” mirou Harrison com apreensão. A mera
visão do detetive bastava para produzir incômodas especulações
nas consciências dos moradores de River Street.
—Não, senhor Harrison, o senhor Lepstein ainda não veio.
Não o vi; tão pouco vi ao senhor Kratz desde que fechamos a
agência, as seis, como todos os dias. Geralmente eles chegam um
pouco mais tarde.
—O senhor Kratz não vai vim mais —disse Harrison—.
Alguém o apunhalou na noite passada no beco chinês. E também
acho que o senhor Lepstein tão pouco virá. Vamos ter que revistar
as salas deles, senhorita Pulisky.
—Não que eu esteja me negando, senhor Harrison, a deixar
fazer o seu trabalho – a expressão de nervosismo da senhorita
Pulisky se deixava notar devido mais à sua preocupação –, mas eu
não tenho as chaves da sala deles.
—Já me encarreguei disso.
Harrison entrou no escritório interior que servia de despacho
para os trabalhos de Kratz e Lepstein. Havia ali duas enormes
mesas, uma para sócio, em cada extremidade do lugar, e um cofre

81
na parede. Senhorita Pulisky deixou escapar um grito,
sobressaltada.
—Fomos roubados! —gritou—. Veja os arquivos... estão
todos espalhados pelo chão.
O cofre estava aberto e as gavetas também. O solo estava
coberto de papéis e fragmentos de folhas, e um deles estava todo
chamuscado.
—Chamem a polícia —disse senhorita Pulisky, fora de si—.
Eu acabei de chegar! Acabava de colocar meu chapéu quando
vocês vieram... não tive tempo de entrar aí...
—Qual é a sala de Lepstein? – quis saber Harrison.
Quando a senhorita Pulisky apontou uma delas, Harrison se
aproximou e examinou a fechadura com mão de um especialista;
depois caminhou até a outra sala e repetiu o mesmo procedimento.
—Alguém mais tinha as chaves destas salas além de Kratz e
Lepstein?
—Não, senhor Harrison. Cada um deles tinha a chave de sua
própria sala. E acreditou que não havia mais chaves.
—A sala de Lepstein não estava trancada, enquanto que a de
Kratz havia sido forçada.
Harrison realizou uma rápida revista, examinando portas e
janelas, enquanto a senhorita Pulisky permanecia nervosa no meio
do escritório e o jornalista revirava sem interesse os papéis no

82
chão. Em poucos instantes, Harrison regressou junto a eles e disse:
—Não forçaram nenhum parafuso. Saquearam o cofre. Tudo
aponta que quem tenha feito isso seja o Lepstein. Quem quer que
tenha feito tudo isso tinha uma chave da agência, e uma outra para
abrir a sala de Lepstein e a combinação para abrir o cofre, mas se
viu obrigado a forçar a porta do escritório de Kratz. Quem poderia
ter feito isso, senão Lepstein?
—Mas, por que? – perguntou Bissett.
—Suponhamos que tenha feito algo pelo qual desejaria
desaparecer do mapa... suponhamos que tenha vindo aqui e...
havia muito dinheiro no cofre, senhorita Pulisky?
—Só guardavam nele um par de cem dólares... quando os
tinham – replicou a agitada secretária.
—Lepstein poderia ter voltado aqui para destruir todos os
documentos incriminadores que pudesse encontrar...
—O que quer dizer com incriminadores?
—Bem, a menos que esteja equivocado em minhas
conjecturas, os dois estavam metidos até o pescoço em assuntos de
chantagem.
—Bem, se Lepstein deu fim em Kratz...
—Oh! – palpitou a senhorita Pulisky. Então perdi meu
emprego!
Harrison se voltou para ela e a observou atentamente.

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—Se davam bem Lepstein e Kratz?
—Como um cão e um gato. Estavam sempre discutindo... as
vezes com tamanhos gritos que era difícil não escutá-los...
— ...e com a orelha encostada na fechadura —disse
Harrison—. O que discutiam?
—De tudo em geral. Mas, nos últimos dias, discutiram muito
sobre o rubi.
—Hein? Que rubi?
Bissett aguçou o ouvido, deixou de remexer os papéis no
chão e se uniu ao conclave.
—Bem, Lepstein acusava Kratz de haver se apoderado do
rubi. Não sei nada sobre isso, mas, assim mesmo, o senhor Kratz
explodiu: “não sei do que esta falando. Eu não sei nada, pedaço
de...” sou uma senhorita muito educada para repetir o que o
senhor Kratz chamou para o senhor Lepstein. Então Lepstein
respondeu alto, no mesmo tom: “És um mentiroso! Sei
perfeitamente que has sacado esse rubi, e agora não quer me dar
minha parte. Somos sócios ou não?” e o senhor Kratz disse:
“Estás louco... e deixe já de gritar como uma hiena... ou queres
que toda River Street fiquem sabendo de nossos assuntos?” E foi
isso tudo que pude ouvir, porque, a partir de então, baixaram a
voz.
—Hmmmm! – Harrison voltou para a confusão de papéis que

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inundava o solo.
—Eu não estou envolvida em nenhum assunto, senhor
Harrison —estremeceu a senhorita Pulisky—. Só trabalho por um
salário...
—Não fique nervosa, senhorita Pulisky —a tranquilizou
Harrison—. Não estou atrás de você. Não fez nada... nada que
possamos provar.
—Obrigada, senhor Harrison – respondeu ela, mais tranquila.
Harrison se abaixou junto à papelada e começou a remexê-la.
—Deviam estar chantageando a metade de River Street —
disse Harrison, enquanto rebuscava entre os papéis—. Aqui não há
nada particularmente incriminador, mas são mencionados muitos
nomes para tratar-se de um negócio honesto. Mas aqui há algo!
—Harrison acabava de encontrar um bilhete no meio da
papelada, no qual estava escrito “KRATZ”. Bissett leu por cima
do ombro de Harrison:

“Kratz: devo vê-lo. Fui tão longe o quanto pude. Encontre-se


comigo no beco chinês, esta noite, as onze e meia, se dá valor à
sua miserável vida”.

—E mataram a Kratz as doze horas. O primeiro bilhete dizia


“no Gato Purpura as onze”, não é mesmo Harrison? Por que Zaida

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mudaria a hora e o local do encontro?
Harrison voltou a olhar o bilhete sem fazer mais comentários.
—Vou fazer uma visita ao Gato Purpura.
Foram até ali no automóvel de Harrison. Chegando lá, o
detetive teve uma conversa com o proprietário... um inteligente
mediterrâneo.
—Tony, Zaida Lopez esteve aqui à noite passada?
—Claro, senhor Harrison. Chegou poucos minutos antes das
onze, e esteve sentada uma meia hora no bar. Disse-me que havia
marcado com Jelner Kratz. Quando ela estava aqui há quase meia
hora, vi Kratz passar pela rua, mas não entrou. Passou direto.
Então entrei no bar e falei para Zaida e ela também se foi.
Acreditou que o seguiu. Desde então, não vi mais nenhum dos
dois.
—Muito bem – disse Harrison, saindo para a rua.
Enquanto caminhavam pela calçada, Bissett perguntou:
—O que conclui de tudo isso?
—Bem, segundo as evidencias, tudo aponta o seguinte: Zaida
escreveu um bilhete para Kratz, dizendo-lhe para se encontrar com
ela no beco chinês. Ele chegou ali antes dela. Alguém...
aparentemente Lepstein, estava já ali e o matou. Zaida presenciou
o assassinato e fugiu rapidamente em pânico. Logo Lepstein
voltou ao seu escritório e levou, ou destruiu todos aqueles papéis

86
que não queria que fossem encontrados, apanhou o dinheiro do
cofre e partiu.
—Mas, por que Zaida ficou sentada durante meia hora no
Gato Púrpura e disse a Tony que ia se encontrar ali com Kratz, se
o encontrou era no beco chinês?
—Há cabos soltos em toda essa história, é certo – admitiu
Harrison. Agora, o mais importante é encontrar a secretária de
Zaida e Lepstein.
—Como pensa conseguir?
—Esse é um dos segredos que não posso compartilhar
contigo... por agora – disse Harrison.
—Okay – aceitou Bissett. Verei se consigo encontrá-los
primeiro.
Enquanto retornava para a delegacia, Harrison se deteve em
certo pequeno estabelecimento onde se vendiam artigos antigos.
Aproximou-se do imperturbável celeste que havia atrás do balcão
e disse:
—Weng, acreditou que Joe Lepstein se esconde em algum
lugar de River Street. Encontre-o.
O chinês concordou com a cabeça. Harrison se aproximou de
um telefone e ligou para a delegacia.
—Alguma novidade?
A voz do chefe Hoolihan lhe respondeu do outro lado da

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linha o seguinte:
—Sim. Acabamos de encontrar Zelda Méndez, boiando
embaixo da doca do rio. Apunhalaram-na.

Capítulo 5

Em seu apartamento, Harrison estendeu os três bilhetes diante


de si e, com a ajuda de uma lupa de aumento, verificou-os
minuciosamente. Não havia dúvida. Um dos bilhetes era genuíno.
Dos outros dois, um era, sem dúvida, uma falsificação e,
consequentemente, o outro também o era. O bilhete encontrado no
escritório de Zelda, o que designava o Gato Púrpura como local do
encontro, era o verdadeiro. O nome “Kratz” escrito sobre o bilhete
que citava o beco chinês, era, sem dúvida, obra da mão de Zaida
López. Mas a mensagem que havia dentro dele era uma

88
falsificação... astuta, mas fácil de ser detectada por um olhar
treinado. Harrison refletiu que, para uma pessoa destra, resultaria
quase impossível imitar os traços de uma canhota. Examinou o
bilhete que haviam mandado para ele, avisando-o que ia acontecer
um crime. Com uma simples olhada, a caligrafia que continha
nesse bilhete não se parecia com a do bilhete falso. Porém, com
um exame mais detalhado, mostrava pontos em comum.
Não mais do que uma explicação para todo aquele assunto.
Zaida, provavelmente levada pelo desespero diante das insaciáveis
chantagens de Kratz, havia combinado se encontrar com ele, e
havia se convertido em cúmplice inocente da armadilha em que ia
cair o chantagista. Alguém havia roubado o bilhete verdadeiro e
trocado pelo falsificado. Quem poderia ter sido senão a secretária
de Zaida? Porém, se foi isso, por que escreveu o bilhete avisando
Harrison? Perguntou-se se Zelda não havia sido outra das vitimas
de Kratz. Não especulou acerca dos motivos de Kratz para
chantagear Zaida. Era lógico que uma mulher como ela tivesse
pontos em seu passado que haviam sidos bastantes sombrios.
Harrison se reclinou em sua poltrona e acendeu um cigarro.
Talvez, envolto pela fumaça, poderia chegar a vislumbrar esse
assassino sutil que se refugiava na escuridão das sombras,
deixando um rastro de cadáveres. Súbito, chamaram na porta com
dois discretos baques.

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Harrison deu meia volta e empunhou seu revólver.
—Adiante!
A porta se abriu e Weng fez uma suave reverência com as
mãos escondidas debaixo de suas amplas mangas.
—Teve sorte, Weng?
—Lepstein se esconde em uma casa que fica no Beco dos
Morcegos. Posso leva-lo ali imediatamente, se assim o desejar.
—Bem! – Harrison ficou de pé e colocou seu casado e, de
maneira instintiva, guardou sua pesada pistola calibre 45. Logo,
colocou seu chapéu e disse: Vamos lá!
Weng não era um informante, nem tão pouco formava parte
de alguma agência secreta da lei. Mas ele e seus associados
haviam ajudado Harrison em mais de uma ocasião.
Estava perto da meia-noite quando saíram de River Street,
penetrando em um estreito beco que serpenteava em direção ao
rio. Harrison avançava impassível, guiado por Weng. Atrás deles,
um poste lançava um circulo de luz até vários metros adiante
deles. Logo, a ruela girava abruptamente, até uma escuridão
absoluta. Em frente a ele, Harrison escutou o som das águas
batendo contra os pilares apodrecidos pela umidade. O beco
terminava em uma confusão de docas abandonadas.
—Onde está a casa, Weng? – perguntou Harrison.
Não ouve resposta. Harrison se adiantou em busca de seu

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informante, mas sua mão tocou o vazio. Alguma coisa se apertou
ligeiramente contra ele desde um lugar inesperado. De repente,
seus instintos primitivos lhe avisaram que estava em perigo.
Retrocedeu com um grunhido e sentiu como a escuridão ganhava
vida ao seu redor. Quando se dispôs a sacar a arma, seu pulso
ficou imobilizado por uma presa de ferro. Vários corpos se
apertaram contra ele, e dezenas de dedos agarravam-se em seus
membros. Golpeou as cegas com a mão esquerda e notou como o
golpe alcançou um homem, que caia para trás devido ao impacto.
Enterrou o joelho em um peito, e outro mais caiu. Mas eram
muitos e lhe sobrecarregavam com seu número. Voltou a golpear e
falhou, ficando a ponto de deslocar o ombro por causa da
violência do murro falido. Baixou a cabeça e projetou-a contra um
homem; o indivíduo caiu para trás com um gemido de dor.
Harrison se debateu selvagemente para libertar sua mão que estava
com a arma, ou então passar a pistola para a mão esquerda. Mas a
tenacidade e o número de seus atacantes resistiram às forças
combinadas de seu antebraço e enorme bíceps. Com o punho
esquerdo, golpeou de forma implacável ao homem que segurava
seu braço direito e, debaixo de seus demolidores golpes, notou
como a presa se debilitava. Mas, antes que pudesse libertar-se,
uma rede de forte fio inquebrável caiu sobre seus ombros,
inutilizando seu braço esquerdo.

91
Em um instante, meia dezena de mãos agarraram cada um
dos braços de Harrison, obrigando-o a leva-los para trás. Alguns
dedos revistaram seus bolsos, pegando suas algemas. Praguejou
furioso quando a usaram contra seus próprios pulsos. Pegaram sua
arma. Alguém lhe pôs uma cama-de-gato e outra pessoa o puxou,
de modo que acabou caindo ao chão. Ataram seus tornozelos.
Uma venda e uma mordaça se uniram as suas outras ligaduras.
Sentiu como lhe arrastaram até o que parecia uma liteira de
bambu. Levantaram-na no ar, e logo não houve mais do que um
escuro silêncio, quebrado somente pelas silenciosas pisadas de pés
calçados com sandálias.
Em um momento, Harrison perdeu o sentido de orientação.
Mas, a julgar pelos débeis sons, e pelo movimento de sua liteira –
que, em algumas ocasiões subia e em outras baixava, e na maior
parte se mantinha em uma linha horizontal –, pareceu que estavam
levando-o por uma sucessão de becos, sótãos e pátios escuros.
Escutou abrir-se uma porta e notou uma luz através da venda que
lhe cobria os olhos. Logo, as sandálias de seus captores pisaram
sobre o que bem podiam ser grossos tapetes, e outra porta se abriu.
Quando esta segunda porta foi trancada atrás dele, os carregadores
pararam. Harrison foi baixado da liteira, porém caindo de pé em
contraste com os seus tornozelos estarem amarrados, o sentaram
em uma poltrona. Logo, lhe arrancaram a venda dos olhos.

92
Estava em uma casa cujas paredes estavam cobertas por
tapetes de veludo negro com dragões bordados de ouro. Umas
lanternas, em forma de pagodes chineses arrojavam um suave
resplendor sobre as almofadas que cobriam o solo. Junto a um
enorme Buda de prata, a fumaça azulada do incenso subia até o
teto em densas espirais. Mas o olhar de Harrison estava fixo na
figura que permanecia diante dele, sentada com as pernas cruzadas
sobre um divã de seda. Uma figura ataviada com uma túnica de
seda negra, bordada com dragões escarlates. Um homem de
grande tamanho, com o rosto quadrado e imóvel, como se fosse
uma antiga máscara de guerra chinesa. Junto a ele se alçava um
gigante semidesnudo, em cujo enorme torso e descomunais braços
seus músculos se inchavam como cabos. Permanecia imóvel,
como uma estatua de bronze, e uma de suas mãos empunhava uma
grande espada curva que desembocava sobre um de seus
gigantescos ombros. Um verdugo da antiga China! Mas, não
necessário surpreender-se, pois aquele era River Street, um reino
de horror, fascinação e mistério, um fragmento do oriente mais
incrível transplantado até um assentamento ocidental, no qual se
encontrava separado por muralhas de inescrutável silêncio.
Harrison sabia que se encontrava em terra oriental, igual como se
estivesse em algum templo secreto, pagode ou um palácio de
Pequin, Calcutá ou Teerã.

93
O homem do divã vestia a abotoadura habitual de um
mandarim manchu, e isso foi que permitiu ao detetive identificá-
lo. Harrison o conhecia... mas o tinha por um personagem quase
mítico, que se movia como um colosso nas sombras, quase sem se
deixar ver, porém, tendo controle sobre as cordas estendidas que
faziam se mover os asiáticos como se fosse marionetes... cordas
que se estendiam desde River Street até os lugares mais estranhos,
alguns deles do outro lado do oceano. Era aquele homem um ser
que vivia como um senhor feudal, defendendo suas próprias leis,
firmando seus próprios julgamentos e condenações, rodeado por
um mistério que nem mesmo Harrison havia sido capaz de
penetrar.
—Ti Woon! – disse lentamente o detetive.
O sujeito confirmou.
—Sou Ti Woon, diabólico detetive estrangeiro – disse. Na
sua voz não se percebia mais que um leve toque do florido sotaque
celeste em seu perfeito inglês. Falava sem nenhum rastro de
sotaque. Os homens diziam que ele havia estudado em grandes
universidades da Europa e América.
—Foi você que me enviou a Flor da Morte?
—Obviamente.
—E Weng me traiu. Confiava nele.
—A Weng lhe deram ordens, e obedeceu, tal como estava

94
obrigado a fazer — replicou o mandarim—. Igualmente como
muitos outros que servem em segredo a Ti Woon.
—Mas, por que tudo isso? —quis saber Harrison—. Você e
eu nunca tivemos conflitos.
—Sangue deve ser pago com sangue.
—O que quer dizer?
—Mataste o lutador árabe, Ahmed. Uma vez, já faz tempo,
ele me salvou a vida. Ele estava debaixo da proteção do tong de Ti
Woon. Tu o mataste. Meus servos viram como aconteceu.
—Então, aqueles que estavam no terraço eram teus homens?
—Ahmed me enviou um recado dizendo que saia a toda presa
para proteger uma amiga que havia pedido sua ajuda. Desejava
que eu o ajudasse. Enviei três lançadores de machados ao lugar
combinado... o apartamento da mulher chamada Zaida López.
Subiram até o terraço pela escada de incêndio. Quando espiaram
pela janela, apagaram as luzes e soaram disparos. Quando as luzes
voltaram a acenderem-se, você estava junto do cadáver de Ahmed,
com uma arma ainda fumegante nas mãos. Meus servos lançaram
uma faca em você e logo vieram correndo me avisar o que havia
acontecido. Mas um deles voltou para matá-lo pessoalmente. Isso
foi uma estupidez, pois era um homem de pouca inteligência.
Você quebrou a mandíbula dele. Mas eu condenei você a morte e,
como sinal da sentença, lhe enviei a Flor da Morte, segundo ditam

95
as antigas tradições de meu povo.
—Mas, eu não matei Ahmed! —disse Harrison—. Foi outra
pessoa, ainda que eu não saiba quem. Todos os seus homens
estavam no terraço, junto a janela lateral. Um homem poderia
permanecer escondido do outro lado do terraço, deslizar pela porta
e ter apagado a luz. Seus homens viram quem apagou a luz?
—Não, mas escutaram os disparos e viram você se levantar
com a arma ainda fumegante.
—Foi outra pessoa que matou Ahmed. Alguém disparou
contra ele na escuridão, enquanto eu apertava o gatilho as cegas.
Alguém o derrubou ao solo enquanto eram apagadas as luzes e
logo apertaram o canhão de uma arma contra seu peito e abriram
fogo. Ahmed havia visto o homem que matou Zaida López. Tinha
acabado de recordar o aspecto do homem que havia lhe dado uma
pancada na cabeça. Mataram Ahmed com uma bala calibre 44.
Toda River Street sabe que uso uma pistola calibre 45.
Ti Woon golpeou um gongo e um jovem de aspecto erudito,
com armação de óculos de concha, entrou na sala e realizou uma
profunda reverência com uma atitude que resultava incongruente
com seu aspecto ocidental. Para Harrison aquela pessoa parecia
familiar, mas não conseguia lembrar quem era.
—Vá telefonar para o chefe Hoolihan —ordenou Ti Woon—.
Pergunte-lhe de que calibre era a arma que matou Ahmed.

96
O inescrutável individuo voltou a inclinar-se, e Harrison
desejou ferventemente que Hoolihan não se mostrasse
intransigente e não se negasse a responder a misteriosa pergunta.
—Meu servo é um jornalista de O Sol Celeste, um jornal
chinês que é publicado em River Street —disse Ti Woon—. O
chefe Hoolihan o conhece em seu trabalho oficial. Hoolihan
responderá a sua pergunta.
—Assim espero —grunhiu Harrison—. Ainda que o
houvesse reconhecido, não conseguia me lembrar dele. Você tem
um monte de servos em muitos lugares diferentes, não é Ti Woon?
—Nossa sociedade é muito extensa – replicou Ti Woon.
Harrison permaneceu sentado, mirando com fascinação o
resplendor azulado da enorme lâmina nas mãos do executor.
Fixou-se em algo mais... um grande bloco de madeira, talhado em
negro e de forma curiosa, colocado ao solo perto ao verdugo, com
um receptáculo em forma de cesta em sua parte inferior. O
detetive sabia que em breve, no interior dessa cesta, estaria sua
cabeça decapitada se Hoolihan não desse ao chinês a resposta
adequada.
O imperturbável jornalista regressou, por fim, fazendo uma
nova reverência.
—O demônio branco Hoolihan disse que Ahmed foi
assassinado com uma bala calibre 44.

97
—Mande chamar os homens que estavam no terraço.
O jornalista pegou uma pequena vareta e golpeou o gongo
que encontrava-se mais perto de sua mão. Pouco depois, três
figuras entraram na câmara e formaram uma fila, inclinando-se
como servos obedientes. Um deles, o mais grande, tinha a
mandíbula enfaixada.
Ti Woon colocou o Colt 45 de Harrison junto a ele, no divã.
—Olhem bem e não cometam erro. Esta é a arma que
empunhava o detetive quando se agachou junto ao árabe?
—Si, honorável mestre – disseram em coro as duas figuras,
enquanto que o terceiro, sem voz, confirmou com ênfase com a
cabeça.
—Tens permissão para irem – e as três figuras saíram da sala,
enquanto Ti Woon falou parcamente ao jornalista: desamarrem-
no.
Em poucos segundos, o detetive estava de pé, massageando
os membros para restabelecer a circulação. Recolheu sua arma e a
guardou no coldre. O carrasco havia ido, levando consigo a espada
e o bloco de madeira.
—Permita-me oferecer minhas mais profundas desculpas,
senhor Harrison – disse Ti Woon.
—Esqueça – disse Harrison, demasiadamente acostumado
com as maneiras de River Street para mostrar o menor

98
ressentimento. Se de verdade queres compensar-me, poderia
ajudar-me a localizar Joe Lepstein.
—Acredita que foi ele que matou Kratz?
—Assim parece.
—Eu tive acordos com Kratz – revelou Ti Woon. Tinha certa
informação que desejava vender-me.
—Isso explica os contatos com os chineses que mencionou a
senhorita Pulisky – disse Harrison.
—Eu desejava comprar-lhe essa informação. Faz três meses
que o filho de meu irmão, Wu Shun, foi assassinado em Shanghai
– Harrison levantou o olhar com repentino interesse, lembrando-
se do recorte do jornal que havia encontrado na estante de Kratz.
Seu assassino roubou uma grande jóia, anteriormente propriedade
dos imperadores Ming, e cujo nome é “O Coração do Dragão”.
Meu irmão, o mandarim Tang, buscou em vão o assassino.
“Faz uma semana, Kratz veio até mim. Disse que sabia quem
era esse homem. Disse que o assassino havia vindo para a
América, e que, em troca de um preço, poderia dizer-me quem era.
Disse-lhe para dar-me o seu preço, porém ele estava cego pela
cobiça. Acredito que tinha medo de pedir pouco, mencionando um
preço que fosse mais baixo que o máximo que eu estava disposto a
pagar. Queria que fosse eu quem lhe oferecer-se o valor, para
depois pedir mais”.

99
—De qualquer forma, estava sugando o assassino até a última
gota, antes de vendê-lo para você —disse Harrison—. Esse era o
estilo de Kratz.
—Pode ser. Jurou que não sabia nada do Coração do Dragão.
Somente conhecia o nome do assassino.
—Era Lepstein esse assassino?
—Possivelmente. Faz três meses que saiu da cidade durante
várias semanas. Onde foi, é algo que não sei. Ele disse que foi a
Nova York, mas poderia estar mentindo.
“Encontraremos Lepstein se ainda estiver na cidade –
assegurou Ti Woon com ar sombrio. Fique em minha casa por um
tempo, senhor Harrison. Antes que amanheça, meus homens o
terão localizado – prosseguiu Ti Woon dando ordens, enviando
uma centena de homens para que busquem na cidade”.
Antes do amanhecer, um chinês se apresentou a Ti Woon,
com uma profunda reverência.
—Honorável mestre, encontramos Joseph Lepstein. Está
escondido em um sótão de um armazém abandonado, junto ao rio.
Cercamos a casa.
—Muito bem. O senhor Harrison os liderará. Que nenhum
homem tome a lei por conta própria.
Aproximaram-se da casa envolvidos em uma brumosa
penumbra que antecede ao amanhecer, alçando-se sinistra desde as

100
sombrias profundezas do negro rio. Os homens de Ti Woon que
estavam vigiando o armazém disseram que um homem havia
entrado, mas que nenhum havia saído. Uma janela havia sido
forçada, e Harrison entrou sigilosamente, seguido por uma dezena
de lançadores de machados. Avançou por várias salas vazias e
desceu pelas escadas. Escutou uns passos que corriam e um som
de um forte golpe. Uma voz gritava, presa de uma súbita agonia.
Harrison irrompeu na casa justo no momento para divisar uma
figura sombria que saia por outra porta na qual dava para a escada
da outra ala do armazém. Dando uma olhada, descobriu uma
pequena cama de acampamento junto a parede; descobriu uma
poltrona, uma mesa dobrável e certo número de latas de conservas.
Uma lâmpada de azeite iluminava a casa. Evidentemente, se
tratava de um esconderijo preparado a certo tempo. Havia uma
figura estendida no solo, empapada em seu próprio sangue.
Tratava-se de Lepstein, o haviam apunhalado pelas costas.
Os chineses formaram um circulo ao redor de Lepstein,
enquanto Harrison se agachava junto a ele.
—Quem o apunhalou, Lepstein?
A vítima era um sujeito frágil e delgado.
—Não sei! —ofegou—. Apunhalaram-me pelas costas. O
rubi! O Coração do Dragão! Kratz o tinha... escondido em um
cigarro de sua cigarreira. Eu o segui essa noite... veja debaixo da

101
parte direita da cama.
Harrison levantou a cama de acampamento, descobrindo uma
pequena cavidade em algo que brilhava resplandecente.
—O Coração do Dragão! —boqueou Lepstein—. Kratz o
conseguiu de um homem que estava chantageando... eu... teria
conseguido... haveria sido capaz de matar Kratz se alguém não
tivesse se adiantado. Tinha pensado em escapar numa lancha...
está noite.
E, depois de disser isso, morreu.
Um lançador de machado de grande estatura tocou com muito
respeito o ombro de Harrison.
—O homem que o matou... ainda deve estar no edifício.
—Vão buscá-lo!
—Vai ficar aí sozinho... com o rubi?
—Sim. Prossigam.
Silenciosos como fantasmas, os assassinos tong subiram
pelas escadas enquanto Harrison verificava a jóia na palma de sua
mão.
Escutou os passos de um homem descendo pela escada e,
subitamente Bissett irrompeu no armazém abandonado.
—Assim, depois de tudo, encontraste-o antes de mim! –
exclamou sem alento. Quem diabos é esse... é Lepstein?
—Alguém o encontrou antes de mim —disse Harrison—.

102
Queria uma história. Muito bem. Pois vou contar-lhe a história:
“Um homem matou a Wu Shun em Shangai e lhe roubou o
Coração do Dragão. Conseguiu escapar dos lançadores de
machados de Tang e veio para a América. Mas estava marcado, e
não se atrevia a vender o Coração do Dragão a um joalheiro
legítimo. Era uma jóia muito conhecida. De modo que pediu ajuda
a Kratz, deixando-a em suas mãos como penhor. Kratz, entretanto,
tinha contatos em Shangai, de modo que ficou sabendo do
assassinato de Wu Shun, reconheceu a pedra e começou a
chantagear o assassino. Kratz também entrou em negociação com
Ti Woon, com a intenção de vender a ele o assassino de seu irmão,
mas, entretanto, chantageava também o próprio assassino, fazendo
com que lhe devolvesse o dinheiro adiantado pela gema, enquanto
planejava como conseguir fazer com que os assassinos tong
matassem ao ladrão sem que soubessem que ele estava, agora,
com a posse da pedra”.
“Entretanto, o assassino estava tentando planejar uma forma
de enganar e matar Kratz. Havia conhecido a Zelda Mendéz,
seguramente em algum lugar do Oriente; seja como for, fez um
acordo com ela. Provavelmente a convenceu para que sua chefa,
Zaida, combinasse um encontro com Kratz em alguma parte.
Zaida propôs um encontro, com hora e local marcados, mas o
assassino substituiu o bilhete dela por um outro falso, designando

103
uma hora e um lugar diferente. Por casualidade, Zaida seguiu
Kratz. Mas Lepstein também seguia Kratz, sabendo que ele tinha
em seu poder a valiosa jóia”.
“O assassino se encontrou com Kratz no Beco Chinês e o
matou. logo, escapou, sem saber que Kratz levava a jóia. Lepstein
chegou ao cenário do crime poucos minutos depois, ou talvez
segundos, e retirou o cigarro especial da cigarreira, sabendo que a
jóia estaria lá. Foi visto por Zaida, a qual pensou que era ele quem
tinha matado Kratz. Ela escapou e chamou Ahmed. E quanto a
Lepstein, nervoso por que havia acontecido, regressou a toda presa
para o seu escritório, recolheu o dinheiro do cofre, destruiu certa
quantidade de papéis e, em seguida, foi se esconder”.
“Aparentemente a secretária, depois de ter entregado o
bilhete para Ahmed, regressou ao apartamento do assassino e o
esperou ali, possivelmente aterrorizada pelo que havia acontecido.
O assassino, ao saber que Zaida havia visto o crime, e sem saber
que ela o atribuía a Lepstein, se apressou a ir ao apartamento de
Zaida, golpeou Ahmed e matou a bailarina. Ainda estava ali
quando cheguei... provavelmente se esgueirou até o terraço,
escondendo-se quando cheguei. Estava ali quando encontrei o
fragmento do papel que mencionava Lepstein. Pensou que o que
eu havia encontrado poderia denunciar... seu verdadeiro nome. De
forma que apagou as luzes, nocauteou Ahmed, roubou o papel de

104
minha mão e, logo que comecei a disparar como um estupido,
voltou junto a Ahmed e o matou. temia que o árabe pudesse
chegar a reconhecê-lo”.
“Então, logo voltou ao seu apartamento, encontrou ali a
secretária Zelda Martinéz e a matou. Tentou seguir o rastro de
Lepstein para achar o rubi. Conseguiu encontrá-lo essa mesma
noite. Entrou aqui e o matou, mas não chegou a encontrar a pedra.
Eu a tenho”.
Quando Harrison falou esta última palavra, rugiu uma voz
atrás do detetive: Mãos ao alto!
Harrison não se virou. A pistola, calibre 45, que empunhava
na mão deteve o repentino e seco movimento que Bissett
começava fazer com a adaga oriental para apunhalar Harrison.
—Fique quieto, Bissett – avisou o detetive. Ou seja lá como
te chame.
—Maldito! Já sabias! – grasnou Bissett.
—Já havia tempo que vinha suspeitando – admitiu Harrison.
Inclusive quando vi essa ferida em tua cabeça no apartamento de
Zaida. Não era um golpe ou uma contusão. Era um arranhão
produzido pelo olho-mágico de uma porta, apertada com força
contra a carne para provocar a ferida. Fizeste para fazer com que
tua história parecesse real. Mas já vi muitas feridas para me
enganar tão facilmente com algo assim.

105
—Mas eu estava na rua, em frente a você quando Kratz foi
assassinado – disse Bissett.
—Isso era o que me intrigava —respondeu Harrison—. Mas
a mesma pessoa que me escreveu esse bilhete foi a que matou
Kratz. E tu eras o único no qual essa cartada iria beneficiar. Além
do mais, Kratz não foi assassinado às doze horas. Quando toquei o
cadáver, supus que estava morto pelo menos a meia hora. Foste tu
mesmo que lançou aquele grito. Por isso, essa noite, queria lhe dar
uma ocasião para me mostrar esse truque tão velho que os
ventríloquos fazem soar uma voz a vários metros do local que é
emitido. E por isso te esperei aqui, com o Coração do Dragão!

FIM

106
107
Resenhas de Rodrigo Martins

LUA NEGRA
Lua Negra traz em si um pouco de ousadia. Neste conto vemos
um Howard que experimenta elementos ainda não testados nos
anteriores. Então esse trabalho encerra algo totalmente diferente
dos padrões howardianos, um marco único em toda sua literatura?
Definitivamente não.
O que ocorre em Lua Negra é uma busca de Howard por
experimentar nas histórias policialescas elementos já consolidados
em histórias de outros personagens. Uma chance válida de ganhar
de vez os leitores do gênero.
E é aí que vemos como o texano trança sua trama envolta de
mistério, tradições, suspense e até um pouco de História, em
cenários repletos de objetos exóticos. Afinal, quem entrou na loja
de Wang Yun viu, bem no canto, o gigantesco Buda verde,
encoberto por sombras distorcidas. Viu, e se horrorizou com a
sinistra cobra naja criada como animal de estimação pelo chinês. E
as pequeninas esferas negras, de aspecto tão macabro quanto
desconhecido?
O conto abre com o detetive numa incomum visita ao amigo
Wang Yun. Incomum porque se trata de River Street, o distrito
oriental que segue regras próprias, nas entrelinhas da lei. E bem no
108
momento em que um crime é planejado para ocorrer. Como
testemunha e investigador, Steve Harrison jura que desvendará o
mistério que cerca o crime.
E essa foi a principal aposta de Howard: estruturar seu
enredo no desmonte de peças que ocultam o principal operador de
um mistério intrincado. Todo o quebra-cabeças é arquitetado de
maneira que só o entendimento correto de uma pista levará o
detetive à peça seguinte.
Nada muito diferente que Howard já tenha feito em Conan,
ou em histórias de outros personagens, como em Rosto de Caveira
ou mesmo Cabeça de Lobo. No entanto, aqui ele investe em seu
lado mais racional. Com uma trama totalmente cerebral, Howard
aposta nos pontos de conexão, e prova que Steve Harrison não é
apenas um brutamontes, mas que também soluciona os crimes em
River Street sem descer a lenha nos antagonistas.
Mas não tem ação? Tem. Ela só não se desenvolve em trocas
de socos ou tiros, mas através de palavras trocadas e pistas
colhidas. É o tipo de literatura na qual podemos ver que o autor
suprime propositalmente suas melhores características para o
desenvolvimento de outras.
É como Tchekhov sem as impressões da realidade ou
Dostoievski sem o mergulho psicológico. Howard arriscou, e tem
seu mérito reconhecido por isso.

109
LUA NEGRA
Tradução, revisão: MARCELO SOUZA

110
I.

—E essa é a lenda do Espírito da Raposa Branca, meu


honorável amigo — entoou o velho Wang Yun enquanto cruzava
as mãos de esqueleto sob o manto de seda bordado—, e assim
disseram os Filhos de Han. Agora, devo alimentar o meu antigo
parceiro.
Corpulento e sombrio, Steve Harrison estava incongruente
diante das porcelanas e a delicada fragilidade dos jades orientais
empilhados na pequena loja, apoiou a mandíbula robusta no punho
que se assemelhava a um de martelo. Ele observou seu anfitrião
com fascinação pessoal, enquanto o velho chinês se arrastava em
direção a uma gaiola de bambu. A amassada caixa estava no alto
de um enorme Buda verde, encostado na parede, entre inúmeros
vasos Ming e tapetes do leste do Turquestão. Wang Yun estreitou
os olhos inclinados e entoou um zumbido estranho, enquanto
pegava uma garrafa de leite e uma pequena travessa de jade de
algum nicho indeterminado. Sem querer, Harrison estremeceu.
—Vi os animais de estimação mais bizarros que você pode
imaginar em algumas esquinas da River Street —disse o detetive.
Chow-chows, gatos persas, galos de luta, pavões brancos e
crocodilos bebês ... mas me enforque se eu já vi um homem cujo

111
animal de estimação era uma cobra de verdade!
—Pan Chau é muito velho e muito sábio —Wang Yun sorriu.
Recebeu o nome de um grande guerreiro que teria destruído o
Império Romano, se ele tivesse vivido por mais um ano. Tirei as
presas do meu velho amigo para evitar que ele me machuque, dada
a cegueira e a idade avançada.
—Você é um homem muito estranho, Wang Yun — grunhiu
Harrison.
—A vida é uma soma de circunstâncias peculiares —
respondeu o chinês ancião, abrindo sem pressionar uma elaborada
fechadura dourada que fechava a porta da gaiola. Dentro dela, um
sussurro ecoou que arrepiou Harrison—. Cerca de uma hora atrás,
antes de você parar na minha loja para conversar comigo, uma
coisa estranha aconteceu comigo. Meu telefone, que raramente
toca — ele apontou para uma cortina nos fundos da loja —
começou a fazer isso insistentemente. Quando eu respondi, uma
voz desconhecida me pediu para ficar ouvindo... porque alguém
queria falar comigo. Esperei pacientemente, vários minutos ...
sem sucesso. Ninguém falou comigo.
—Quem poderia querer fazer uma brincadeira com Wang
Yun? Além disso, é muito possível que tenha perdido uma venda.
É certo; e enquanto esperava colado ao telefone, ouvi alguém abrir
a porta da loja. Não sei quem poderia ser esse cliente em

112
potencial; de onde o telefone está localizado, não consigo ver
dentro da loja. Gritei-lhe que estaria com ele em um momento;
pouco tempo depois, ouvi como ele estava saindo. Desliguei o
telefone e corri atrás dele, mas não havia mais ninguém à vista.
—Alguma coisa esta faltando? — perguntou ao detetive.
—Em efeito; a primeira coisa que pensei foi em assalto —
reconheceu Wang Yun, deslizando a mão dentro da gaiola — mas,
depois de verificar minha mercadoria, observei que nenhum objeto
havia desaparecido e ...
De repente, ele se calou, soltou um uivo selvagem e
inarticulado e caiu para trás, retirando abruptamente a mão de
dentro da gaiola. Havia algo pendurado em seu pulso ... um horror
cintilante, que retorcia e sibilava no ar ...
O velho chinês caiu no chão, com um terrível estertor de
morte. Enquanto amaldiçoava horrorizado, Harrison esmagou a
abominável cabeça do réptil com suas botas pesadas, antes que o
réptil pudesse abrir as dobras superiores para morder novamente.
Chutando a cobra, que torceu e tremeu convulsivamente, para o
lado, o detetive examinou Wang Yun. O velho chinês ainda não
estava morto, mas seus olhos tinham uma expressão vítrea. Uma
mão que se assemelhava a uma garra agarrou o pulso de Harrison
como um gancho de aço. Havia um olhar terrivelmente
significativo em seus olhos arregalados.

113
—Não... é a minha! —Seus lábios trêmulos conseguiram
emitir um sussurro espasmódico—. Outra... bola de ébano ... a
sétima ... sétima ...
Uma mistura de sangue e bile brotu horrivelmente de seus
lábios, enquanto um espasmo horrível estalou em suas veias
internas. Então, o corpo se contraiu, permanecendo inerte nas
mãos de Harrison.
—Inferno! — murmurou o detetive, bastante agitado —. Ele
não sabia que uma picada de cobra poderia matar tão rapidamente.
Mas Wang Yun era velho e seu coração estava quebrado. As
presas desse demônio devem ter crescido de novo...
Ele ficou em silêncio, enquanto olhava para o réptil
abominável, deitado no chão, retorcido.
—Não é minha! — Ele repetiu—. De fato, por mil trovões,
isso aqui não é Pan Chau. Eu o vi em mais de uma ocasião,
enquanto o velho o alimentava. Sua cobra era cega e suas escamas
eram praticamente brancas, devido à sua idade avançada.
O corpo do réptil no chão era iridescente, mesmo na morte, e
era espesso e imponentemente letal na aparência.
—Este demônio deve ter escapado de um zoológico, e então
arrastou-se até aqui e substituiu Pan Chau em sua jaula ... —
divagou o detetive.
Cerrando os dentes, ele cautelosamente tateou dentro da gaiola

114
de bambu. Estava vazio. Uma sombra apareceu no rosto de
Harrison, tornando-o ainda mais escuro e mais duro do que o
normal.
—Eu realmente não sei quem você era, ou o que você fez antes
de vir aqui —murmurou, franzindo a testa enquanto olhava para o
cadáver do chinês— mas você sempre se comportou como um
homem honesto e era meu amigo. Este assunto não terminará
assim.
Ele caminhou até os fundos da loja e abriu a cortina, revelando
um pequeno corredor, cheio de lixo, que dava para um beco
estreito e escuro. O velho Wang Yun morava sozinho em um
pequeno apartamento, localizado acima de seu armazém. Mas a
escada que levava àquele apartamento não descia para o corredor.
Ela ia diretamente para a loja e, do mesmo modo, estava
escondida por uma cortina, ladeada de cada lado por um ídolo de
grotesco rito. Harrison encontrou o telefone, alojado em um
pequeno nicho onde ele teve que entrar, apertando seus ombros
largos.
—Alô, Hoolihan —disse ele—. Harrison para o dispositivo.
Ouça: O velho Wang Yun acaba de ir para o outro bairro ... Eu sei
que você não o conhecia! Mas isso não me importa. Envie um dos
rapazes aqui ... ah, você sabe se alguma cobra escapou do
zoológico? Wang Yun foi mordido por uma cobra, e sinto que

115
colocaram ali de propósito ... Esses animais não crescem das
árvores!
—Tudo bem —respondeu o outro no final da linha— um cara,
morador da Rua Levant, montou um verdadeiro circo esta manhã,
e disse que um réptil de grande valor foi roubado ... ele jura isso!
Dou-lhe o endereço dele: William D. Feodor, rua Levant, 481 ...
Acho que ele é um cientista, ou algo assim. Ele tem um
laboratório lá; disse que estava conduzindo experimentos com o
objetivo de encontrar um antídoto para o veneno de cobras.
—Perfeitamente —Harrison disse secamente, desligando o
fone novamente.
Depois de voltar para a loja, ele olhou por cima dos vasos e
estatuetas nas prateleiras. Então seu olhar se fixou em uma fileira
de pequenos objetos, quase ocultos por um pedaço de seda da
Manchúria.
—Bolas de ébano! — murmurou o detetive—. Ele queria me
dizer alguma coisa... "a sétima"...
Contou as pequenas esferas, perfeitamente polidas. Eram um
total de treze. Pegando a do meio, ele a girou, intrigado, na palma
da mão. Pareceu-lhe nada mais do que uma pequena bola de ébano
brilhante, cujo possível uso era inteiramente desconhecido por ele.
Poderia muito bem ser algum tipo de brinquedo chinês. Depois de
enfiá-lo no bolso, ele foi até a porta do armazém e apitou alto.

116
Harrison notou um ar sombrio na maneira como numerosos
transeuntes se aproximavam, olhares furtivos e como outros
apressavam o passo e seguiam furtivamente. Ele estava na River
Street, o misterioso bairro oriental onde tudo poderia acontecer, e
cujos habitantes não se importavam muito com a lei... com a lei
do homem branco, pelo menos, já que eles tinham seu próprio
código de conduta estranho e muitas vezes assustador .
Um grande policial atendeu ao chamado. Harrison apontou
com o polegar para a figura prostrada no chão.
—Fique aqui vigiando até os rapazes chegarem; não deixe
ninguém entrar no armazém. Então feche todas as portas e sele
este lugar. Aqui estão as chaves.
—Um assassinato? —Perguntou o policial.
—Pode ser.

II.
A natureza reservada de Harrison o deixou cauteloso em seus
palpites. Ele poupava em palavras e trabalhava sozinho por tanto
tempo que ser taciturno se tornara algo de segunda natureza.
Pegando cuidadosamente a forma inerte da cobra, com a ajuda
de alguns palitos de dente adornados com pedras preciosas, ele a
colocou em uma caixa de papelão; então, carregando-o debaixo do
braço, ele saiu do armazém, amaldiçoando a imaginação que o fez

117
vislumbrar uma imagem fantasmagórica da cobra, ressuscitando e
perfurando com seu veneno corrosivo a tampa de papelão ...
Ele encontrou facilmente a Rua Levant, 481; subiu três lances
de escada e se aproximou de uma porta que emitia um odor
químico desagradável. Um rosnado irritado ecoou dentro, seguido
por passos rápidos. A porta se abriu brutalmente, revelando uma
silhueta alta e ereta... um homem de meia idade com cabelos
desgrenhados, usando óculos com armação de concha; suas roupas
estavam manchadas e enrugadas, e ele estava claramente furioso,
como se tivesse sido interrompido no meio de seu trabalho – ou o
que quer que fosse - que causava odores tão horríveis e, portanto,
considerou que estava forçando-o a perder seu tempo inutilmente.
—Já vai, já vai! —Ele disse rudemente, antes que Harrison
pudesse abrir a boca. O que você quer?
—Você é William D. Feodor? —perguntou o detetive.
—Sim. Por que quer saber?
—Você perdeu uma cobra?
O homem se sobressaltou ligeiramente e pareceu mostrar um
pouco mais de interesse pelo visitante.
—Sim. Você não teria ...?
—Essa aqui?
Harrison levantou a tampa da caixa de papelão.
A reação de Feodor foi instantânea e sonora:

118
—Deus bendito! Quem poderia ter sido tão estúpido em
esmagar a cabeça de um espécime tão cara de cobra de capello,
reduzindo-o a esse estado ...? Agora é inútil do ponto de vista
científico. Onde eu vou encontrar outra? Eu procurei por essa em
todo o mundo. Minhas experiências! Elas estavam quase
terminadas! Oh, que imbecil... veja como destruíram a cabeça
dela ... que inconsciente ...
— Ei, um momento! —Harrison protestou, irritado com a
reação—. Se você quer saber, fui eu quem matou esse demônio.
Você não deveria ter se atrevido a ter um réptil assim, se não
fosse responsável o suficiente para mantê-lo trancado em uma
gaiola. Quando eu esmaguei a cabeça dela, ela tinha acabado de
morder o pobre Wang Yun ...
—Como? —O homem o interrompeu abruptamente, olhando o
detetive por cima das lentes dos óculos—. Você está se referindo
ao velho chinês que administra uma loja de antiguidades na River
Street?
—Que administrava —grunhiu Harrison. Sua maldita cobra o
matou.
—Meu Deus, é terrível! —Feodor exclamou, cuja atitude
começou a mudar—. E você, senhor, você é..?
—Harrison —o detetive mostrou seu distintivo.
—Sr. Harrison —acrescentou o outro, abrindo completamente

119
a porta—. Peço desculpas pelo meu desaforo. Meus nervos estão
no limite ... ultimamente tenho trabalhado muito.
Harrison entrou em um grande corredor que conduzia a um
laboratório. Ele viu um pequeno frasco, com vários líquidos
coloridos, um queimador Bunsen, tubos de ensaio e réplicas,
garrafas cheias de substâncias venenosas e, em um canto, um
coelho branco que ocupava um pequeno compartimento em uma
gaiola de arame, que, em outras células, também continha um
porquinho da Índia, uma tarântula peluda e uma cobra grande de
raça inofensiva.
—Eu tinha a cobra em uma gaiola isolada —disse Feodor,
seguindo o olhar do detetive—. Quando entrei no laboratório hoje
de manhã ... pois durmo em uma sala do outro lado do corredor ...
tanto a gaiola como a cobra haviam desaparecido. Lembro-me
perfeitamente de ter trancado com chave na noite passada.
—Isso não impediria um ladrão —grunhiu Harrison—. As
fechaduras desse prédio parecem uma piada. Eu mesmo poderia
abri-los em quinze segundos com a ponta de uma navalha ou um
pedaço de arame. Ou alguém poderia ter entrado pela janela. Vi
que há uma escada de incêndio lá fora. E as travas das janelas não
são melhores que as fechaduras das portas. Sr. Feodor, você tem
alguma idéia de quem roubou aquela serpente?
—Hesito em acusar alguém —disse Feodor lentamente—.

120
Conheço muito poucas pessoas na cidade e só estou aqui há
pouco tempo. Recebo poucos convidados e sempre para negócios.
Mas antes de ontem eu tive um visitante que queria comprar essa
mesma serpente.
—Sim? Como era esse cara?
—Ele era chinês —disse Feodor.
Harrison se inclinou para frente, com seus olhos brilhando.
—Poderia descrevê-lo?
—Somente de forma geral —confessou Feodor—. Ele era alto
e muito encurvado ... quase corcunda; estava vestido de maneira
muito mais oriental do que a maioria dos chineses hoje ... uma
jaqueta de seda justa, um chapéu de veludo e um rabo de cavalo.
Eu olhei especialmente para o rabo de cavalo como uma
característica rara.
“Ele insistiu muito que eu lhe vendesse a cobra ... disse que
isso lhe traria boa sorte ou algo assim. Mas ele foi muito educado
e, quando descobriu que não podia me convencer, abaixou a
cabeça, colocou as mãos nas mangas e saiu com uma reverência”.
—Hum! — Harrison murmurou—. E suponhamos que esse
chinês ... ou quem roubou sua serpente ... desejasse movê-la de
uma gaiola para outra. Como diabos poderia impedi-la de lhe
morder?
—Poderia drogá-la —sugeriu o cientista—. Ou ele poderia ter

121
colocado um capuz sobre a cabeça dela, com duas pequenas
fendas para respirar. Ou poderia colocá-lo e tirá-lo como sempre
faço, com pinças de arame.
—E teria retirado o capuz assim que estivesse confinado na
outra gaiola —refletiu o detetive—. Cego, ele poderia até leva-la
sob a roupa, sem a gaiola original. Você conhecia Wang Yun
bem?
—Bastante bem. Às vezes, costumava parar em sua loja para
conversar. Eu gostava daquele velho.
—Eu também. Você já viu alguma vez o chinês que tentou
comprar a sua serpente rondando a loja Wang Yun ?
—Não que eu me lembre. No entanto, estou tão ocupado que
não passei na loja de Wang Yun há pelo menos três semanas. Mas
você não me contou como a serpente chegou morder o pobre
diabo.
—Alguém a colocou na gaiola de Pan Chau —grunhiu
Harrison—. Você viu a velha Pan Chau?
—A serpente que Wang Yun tinha em uma gaiola ao lado da
base do Buda verde? Sim. Eu a notei de uma maneira especial,
devido às minhas experiências com cobras. O velho Wang uma
vez a tirou da gaiola e mostrou para mim. Ela devia ter pelo menos
cem anos de idade.
—Sim —Harrison levantou-se, depois de alguns minutos de

122
reflexão silenciosa—. Provavelmente vou precisa-lo como
testemunha, se tiver êxito em uma coisa que vou tentar ...
encontrar aquele corcunda chinês. O encontrarei aqui, Sr. Feodor?
—Dia e noite —disse o cientista—. Aqui está o meu número
de telefone — escreveu brevemente em um pedaço de papel e
entregou ao detetive.
—Obrigado —Harrison colocou o número do telefone no
bolso—. Espero poder vê-lo em breve.
—Eu também —foi a resposta fervorosa, e o detetive deixou o
apartamento e desceu as escadas.
Na delegacia, Hoolihan, o chefe de polícia, desejava também
uma testemunha para o caso. E tendo reconhecido alguns detalhes
peculiares nesse caso, revistando a loja de antiguidades, estava
ansioso por ouvir um relatório direto do próprio Harrison. Mas o
detetive havia desaparecido da face da terra; a misteriosa River
Street parecia tê-lo engolido, como havia feito em ocasiões
anteriores. Críptico, reservado, obcecado em trabalhar
completamente sozinho, Harrison tinha o hábito de desaparecer
após os crimes sem dizer uma palavra a ninguém e depois
reaparecer várias horas, dias ou semanas depois, acompanhado
pelo culpado... vivo ou morto ... e um relatório lacônico .
Hoolihan, apesar de reconhecer seus méritos como caçador de
homens naquele distrito diabólico, costumava insultá-lo em voz

123
alta e fervorosamente.
Mas desta vez seu desaparecimento não foi longo. À primeira
luz do amanhecer, ele apareceu diante do policial cuja ronda
incluía a loja de antiguidades e perguntou se havia alguma notícia.
—Alguém tentou forçar a entrada da loja de Wang Yun esta
noite —disse o policial—. De fato, alguém conseguiu fazer isso.
Parei aqui por volta das doze, na minha rodada habitual, e captei a
luz de uma lanterna lá dentro, passando pelas prateleiras. Eu tinha
uma chave, então entrei ... E o intruso fugiu!
—Quem era?
—Como vou saber? Ele saiu pelos fundos, aquele de frente
para o beco, enquanto eu jogava um pouco de chumbo nele e
gritava para ele parar. Ele parecia saber onde estavam todos os
cantos escuros daquele maldito beco. Eu não. É tudo o que
consegui ver. Devia ser chinês. Eu pude ver as roupas dele e um
rabo de cavalo.
—Hummm! —Harrison sinalizou com os lábios.
—Não sei se ele pegou alguma coisa ou não —continuou o
policial—. Tudo o que pude ver foi que ele forçou a fechadura da
porta que se abre para o beco. Você quer entrar e dar uma olhada?
Você sabe o que costumava estar na loja, e ...
—Não é necessário —grunhiu Harrison. Eu sei o que ele
estava procurando.

124
Pouco tempo depois, ele estava subindo novamente as escadas
rangentes do Levant Sreet 481.
Feodor, ocupado com suas infinitas réplicas e frascos, estava,
no entanto, muito disposto a dar-lhe as boas-vindas rapidamente.
—Na noite passada, alguém tentou assaltar a loja de Wang
Yun —disse o detetive, sem exagerar—. Aparentemente, foi o
mesmo chinês que roubou sua serpente.
—Então você o encontrou? —Feodor exclamou.
—Ainda não — Harrison grunhiu—. Mas tive a sorte de
rastrear a ligação que fizeram ao velho. Veio de um telefone
público em uma farmácia, que fica na mesma rua, muito perto da
loja de antiguidades. Wang Yun havia me falado sobre essa
ligação, então sabia a hora aproximada em que ocorrera.
“A garota no balcão lembrava-se vagamente de um chinês com
ombros encurvados que entrou na farmácia naquele horário
aproximado ... mas, como a maioria das testemunhas oculares, ela
não consegue se lembrar se ele usou o telefone público, se foi
ontem ou antes de ontem, ou se realmente era chinês, ou japonês.
A visão e as memórias são algo em que não se pode confiar”.
“Mas eu esqueci; você não sabe do que estou falando. Trata-se
de um telefonema que o velho Wang Yun recebeu cerca de uma
hora antes de seu assassinato, e obviamente relacionado ao crime.
O caso é apresentado da seguinte forma: esse chinês roubou a

125
serpente de você, drogou ou cobriu a cabeça para que pudesse
carregá-la com segurança; a gaiola teria atraído muita atenção,
mesmo na River Street. Ele entrou na farmácia que estava na
calçada em frente à loja de antiguidades, telefonou para Wang
Yun e pediu que ele ouvisse. Obviamente, sabia que Wang não
podia ver o interior da loja de onde seu telefone está localizado.
Então atravessou a rua e trocou as cobras, pegando a de Wang
Yun. Provavelmente, ele jogou o pobre Pan Chau em uma pia.
Tudo isso ele pôde fazer em apenas cinco minutos. Tudo indicava
que as pessoas pensariam que Wang havia sido mordido por seu
próprio animal ... Se eu não estivesse presente.
—Mas que motivos ele poderia ter? —Feodor se perguntou.
—Ele queria algo naquela loja —Harrison enfiou a mão no
bolso do casaco—. O velho Wang Yun tentou me dizer algo antes
de morrer. Ele reconheceu que a serpente que o havia mordido não
era a sua. Então ele percebeu que alguém havia feito-lhe uma
armadilha, e sabia por que ... ou talvez estivesse apenas tentando
me fazer compartilhar seu segredo ... eu não sei. De qualquer
maneira, ele murmurou algo sobre uma bola de ébano.
”A verdade é que eu a encontrei e ontem à noite consegui abri-
la; Passei muitas horas tentando descobrir o que havia encontrado.
No final, eu descobri, graças a um certo amigo chinês, que é um
erudito e um cavalheiro.

126
Tirando a mão do bolso, Harrison mostrou um objeto que
brilhava como um poço de escuridão na palma da mão.
—Uma pérola! —Feodor exclamou.
—É mais do que apenas uma pérola! —Harrison respondeu—.
É a pérola. A maior e mais perfeita pérola negra do mundo!
Encontrada pela imperatriz Wu-hou em 684 a.C, foi uma das jóias
da coroa da China até o início do século XIII, quando os mongóis
conquistaram a China e a levaram, juntamente com o restante dos
despojos, à sua realeza, a cidade de Karakorum. Com o tempo, foi
enviado para um templo taoísta na Coréia, do qual foi roubado por
soldados japoneses durante os combates em 1894. Depois
desapareceu, desvanecendo-se completamente. Os boatos diziam
que um soldado chinês a havia descoberto na posse de um
prisioneiro japonês e que ele havia matado o cativo, para depois
desertar, levando a pérola.
“Acho que essa história é verdadeira, e que o velho Wang Yun
era aquele soldado chinês. Seu amor por coisas belas era quase
uma obsessão. Ele seria capaz de morrer de fome, com um tesouro
na mão, e não pensaria em vendê-lo. "Como uma gema cortada da
tigela que reflete as cores do arco-iris da noite, brilhando como
estrelas negras, que pulsam como se houvesse um coração dentro"
... é assim que os chineses a descrevem. Eles chamam de Lua
Negra”.

127
“O velho Wang Yun não se importava com o dinheiro. Ele
lucrava com suas antiguidades, mas o que mais gostava era ver
coisas bonitas. Foi capaz de matar para obter a Lua Negra”.
“Mas tenho a sensação de que o cara que a procura agora não
se importa muito com a beleza dela. Isso vale uma fortuna. Claro,
eu não sei como ele descobriu isso. Talvez estivesse espionando o
velho Wang. É improvável que o velho a guardasse o tempo todo
dentro da bola de ébano. Ele pegava-a e suspirava enquanto a
olhava; acariciava-a e escrevia poemas para elogiar sua beleza ...
Já o vi fazer a mesma coisa cem vezes com objetos menos bonitos
que este.
“Bem, o cara que matou o ancião Wang não sabe que eu
encontrei a pérola. Ele também não podia saber onde Wang a
guardava, ou ele a teria levado tão facilmente quando trocava as
cobras. Ele precisava ter tempo para procurá-la; foi por isso que
matou o velho Wang ... para tirá-lo do caminho para que tivesse
tempo de sobra para procurar a joia”.
“E pretendo usá-lo como isca. O assassino esteve lá ontem à
noite, e ele pode não querer arriscar voltar hoje à noite, embora eu
ache que ele o fará. Acho que ele planeja continuar indo até a loja
para revistá-la até encontrar a pérola. Estarei lá hoje à noite e
esperarei por você”.
—Você vai correr um grande risco —objetou Feodor.

128
—Não tanto. O único lugar em que se pode entrar é pelo beco.
Ele nunca ousaria entrar pela porta da frente. Ele deslizará pelo
beco e forçará a trava traseira. Estarei esperando no escuro, do
outro lado da cortina que cobre a saída para o corredor. Esse
corredor está escuro demais para ver quando entro. Além disso, se
passar pela janela principal primeiro e olhar para dentro, não
poderá me ver, pois estarei escondido do outro lado da cortina.
“A razão pela qual eu vim aqui foi pedir que você olhe a rua e
esteja pronto para quando eu o chamar. Pedirei para que passe por
ali para identificar o homem ... ou o cadáver. E, ouça, você se
importaria de guardar esta pérola para mim?
—Desculpe-me! —Exclamou o cientista, recuando—. Vou
ajudá-lo com qualquer coisa que você me pedir, mas não com
isso! Essa jóia é maligna! Eu não a tocaria por todo o ouro do
mundo. Pérolas como essa causam mais assassinatos do que
mulheres.
—Ok, de acordo —Harrison colocou-a de volta no bolso—.
Então eu a levarei comigo, e a guardarei até que este caso seja
resolvido. Eu não confio nos cofres. Até logo. Fique atento à
minha ligação.
—Estarei —disse Feodor, observando a corpulenta e áspera
figura que descia pelas escadas.
Nenhum dos curiosos relógios esculpidos na loja de

129
antiguidades de Wang Yun estava funcionando, mas no andar de
cima de seu quarto, outro relógio bateu doze horas com uma clara
nota de gongo. E, após o eco desse som, outro foi ouvido, tão
fraco que parecia mais o rangido dos alicerces da casa ou o suave
passo de um rato. Não havia luz dentro da loja. Somente as
lâmpadas da rua lançavam certa claridade pela janela, criando um
conjunto de sombras fantásticas nas quais apenas as
características do Buda verde eram claramente percebidas.
Mas a cortina na escada tremulou. Moveu-se. Uma mão...
amarela e com unhas compridas, embora não houvesse luz
suficiente para percebê-la... fechou a cortina, e um rosto sombrio
apareceu do lado. Os olhos que ardiam nele estavam fixos na outra
cortina, que, escondendo o corredor que levava ao beco, pendia
um pouco mais baixo e em um ângulo mais reto do que a cortina
da escada. Estava escuro, mas não tão escuro que aqueles olhos
não conseguissem distinguir um caroço do outro lado da cortina.
Seus lábios se apertaram em um sorriso impiedoso.
A figura deslizou silenciosamente para longe da cortina na
escada... era uma figura alta e curvada, vestida com uma jaqueta
apertada e um chapéu de veludo com um rabo de cavalo saindo.
Uma de suas mãos levantou uma clava, enquanto o sujeito descia
cautelosamente até a loja, passando pelos ídolos esculpidos que
sorriam de ambos os lados e se inclinavam sobre a cortina que

130
dava para o corredor.
Suspirou silenciosamente, ergueu o cassetete e ... de forma
brusca de um destino fatídico, uma forma volumosa saiu de trás de
um dos ídolos, logo atrás dele, e o estrondo devastador de um
golpe selvagem foi ouvido.
Um instante depois, o clique de um botão foi ouvido e a loja se
encheu de luz.
—Golpeie primeiro e investigue depois —rosnou Steve
Harrison, agachando-se sobre a figura inerte no chão— e, além
disso, a coronha de uma pistola 45 é muito melhor do que
qualquer taco.
O chapéu de veludo não caíra, mesmo depois do impacto da
pistola de Harrison. Estava amarrado sob o queixo com barbante.
Harrison pegou o chapéu oriental e o puxou. Os cabelos pretos e o
rabo de cavalo caíam junto com o chapéu, revelando uma mecha
de cabelos avermelhados.
—Que diabos de chinês coisa nenhuma —disse Harrison—.
Pele tingida ... hummm! Deve ser uma substância que possa ser
lavada com facilidade e rapidez. A única coisa autêntica são as
unhas compridas.
A vítima se mexeu, confusa, e sentou-se, xingando
incoerentemente.
—Bem, Sr. William D. Feodor —disse Harrison— voltamos

131
a nos encontrar novamente ... exatamente como eu pensava!
Grotescamente sob a tinta amarela, o rosto do prisioneiro
refletia seu espanto.
—Maldito gorila! —murmurou em um tom que não era típico
de um cientista eminente—. Eu pensei que você estava por trás
dessa cortina...
—Isso era o que queria que você acreditasse —Harrison
sorriu—. Então, eu tive o trabalho de ir vê-lo para dizer onde eu
estaria. Aquela silhueta não era eu, mas uma pilha de tapetes.
Estive esperando a noite toda atrás daquele ídolo infernal,
esperando você descer aquelas escadas. O problema com os
criminosos é que pensam que todos os policiais são burros. Sabia
que você podia acessar os quartos pelo andar de cima, escalando a
escada de incêndio do prédio ao lado e pulando do telhado para o
peitoril da janela. Tentei fazer isso sozinho. E sabendo - ou
acreditando saber - que eu estava guardando a porta do beco, esse
era o único lugar por onde você poderia entrar. E eu sabia que
você viria. Por que mais ia lhe dizer que estava pensando em estar
aqui, sozinho, com a pérola?
“Você foi muito esperto ao se recusar a cuidar da pérola ...
mas era óbvio. Você queria que os chinês misterioso fosse o
culpado ... não William D. Feodor, que era conhecido demais para
escapar com ela”.

132
“A única coisa que gostaria de saber é: como você sabia que o
ancião Wang Yun era o dono dessa pérola?”
Feodor fez um gesto abatido.
—De acordo. Você me pegou. Um homem negro que
costumava fazer pequenos trabalhos para Wang Yun uma vez o
viu brincar com a pérola. Agora ele está cumprindo uma sentença
por roubo. Eu estive na cela dele por um tempo, cumprindo uma
breve condenação. O negro era viciado em drogas e me vendeu as
informações em troca de ópio. Ele não tinha escrúpulos para
matar o próprio Wang, mas não sabia onde a pérola estava
escondida. Só sabia que o chinês tinha. E, claro, ele não sabia nada
sobre a história da pérola ... ele sabia que devia valer um montão
de pasta.
“Eu já usei essa disfarce de cientista antes. Roubei a cobra de
um zoológico de Chicago. O homem negro tinha me falado sobre
a serpente de Wang Yun. O resto foi costurado e cantado”.
“O que eu gostaria de saber é: como você sabia que era eu?”
—Essa história sobre os chines cheirava muito mal para mim
—disse o detetive—. Não conseguia entender por que um homem
tentaria abertamente comprar algo com o qual pretendia cometer
um assassinato. Mas os chineses às vezes se comportam de
maneira estranha, pelo menos de acordo com nossa maneira de
pensar. O que o denunciou foi quando você falou sobre a gaiola

133
da cobra, mencionando que ficava ao lado do Buda verde.
—Bem, não é verde? —Feodor queria saber.
—Agora sim. Mas, até a manhã do seu assassinato, Wang Yun
sempre teve um Buda azul lá. Ele vendeu a estátua azul naquela
manhã e colocou a verde em seu lugar. Você disse que não está
na loja há pelo menos três semanas. Mas, apesar disso, você sabia
que a gaiola foi colocada ao lado de um Buda verde. Era óbvio
que você estava mentindo quando disse que não tinha estado na
loja recentemente. Você estava aqui na manhã do assassinato, caso
contrário não saberia que o Buda colocado agora era verde. Havia
apenas uma razão para mentir sobre isso. Suspeitei que aquele
chinês curvado era seu parceiro ou era você disfarçado. A
conclusão foi óbvia.
—Mas, que droga! —Feodor exclamou—. Aquele Buda era
verde! Sempre foi verde! Nunca houve um Buda azul nesta loja
desde que eu a frequento!
Harrison olhou para ele atentamente por um momento, depois
mostrou-lhe um jarro brilhante de vinho de porcelana azul.
—Que cor é esta? —perguntou.
—Bem, claro que é verde —foi a resposta rápida.
Harrison balançou a cabeça com espanto.
—Maldito seja! Você é daltônico! Você nem percebeu que os
Budas haviam mudado. Todos pareciam verdes para você! Se o

134
verde parecesse azul para você, em vez de o azul parecer verde, eu
ainda estaria em busca de um imaginário chinês corcunda!
—Então você não é tão inteligente, afinal! —O outro zombou.
—Eu nunca disse que era —Harrison respondeu calmamente.
Vou deixar isso para os caras inteligentes como você! —E sorriu
quando fechou as algemas nos pulsos do prisioneiro.

FIM

135
136
Por Rodrigo Martin

“O SENHOR DA MORTE”

Antes de iniciar a leitura, detive alguns minutos da minha


atenção observando a capa da Black Book Detective, de agosto de
1934. Talvez o inconsciente buscasse uma conexão com o
repertório das histórias de Robert Howard e o que a imagem da
capa revelava. Não foi difícil remeter a histórias, lidas ou
assistidas, sobre “bairros orientais”, localidades de imigrantes
chineses, sindicatos do crime, cultos asiáticos secretos e profanos.
Me lembrei logo de Os aventureiros do bairro proibido, a cena
clássica de Kurt Russel atirando para cima, nos subterrâneos de
San Francisco. Recordei também a imagem do temível vilão Fu
Manchu, através de outras obras.
Todas essas histórias, com suas figuras típicas e cenários
exóticos, formam um arcabouço do “já lido”, do “já assistido”,
que nos prepara para o que encontraremos ao virar essas páginas.
São imagens mentais do que vimos em outras ocasiões, e as
classificamos como um tipo próprio de narrativa: histórias
“policiais sobre a China”, histórias de “gangues chinesas”,
histórias “de Chinatown”.
A surpresa é descobrir que Howard também as escreveu, e
mais que isso: ajudou a construir uma linguagem narrativa acerca
137
de tais histórias. E é exatamente essa a posição que O Senhor da
Morte ocupa na literatura howardiana. Ela mostra a desenvoltura
do texano em tecer lugares que se tornaram comuns em histórias
do tipo. Estão lá os prédios de arquitetura oriental, sugerindo uma
antiguidade, as câmaras e antecâmaras esfumaçadas, de incenso ou
ópio, semivisíveis além de cortinas coloridas, as vestimentas
exóticas que apontam uma visão romântica e estereotipada sobre o
Oriente.
O detetive Steve Harrison não começa essa história muito
bem, é literalmente moído na porrada num dos escuros becos do
Bairro Oriental. Esse foi apenas o preâmbulo para seguir uma
pista que revelará muito mais que o esperado. E nessa conexão de
pistas, nosso detetive se vê diante de um submundo paralelo à
sociedade como conhecida: um mundo de ramificações
criminosas, trocas de favores escusos e dominação pela força.
Enfim, um mundo regido por leis próprias, que nem as autoridades
legais são capazes de rastrear.
No entanto Steve Harrison é um personagem howardiano, que
não se contenta em meramente cumprir com suas atribuições. Não,
o detetive desmancha o fio do tecido oriental até que todas as
tramas fiquem claras ao leitor. E Howard constrói a narrativa com
habilidade ímpar, seja dosando cenas de combates tensos a
diálogos reveladores, seja pavimentando uma trilha de mistério e

138
suspense que beiram à fantasia, mas que se revelam num
extraordinariamente possível.
Só o que posso dizer é: leiam O Senhor da Morte.

139
O SENHOR DA MORTE
De Robert E. Howard
Tradução e revisão: Marcelo Souza

140
I

A carnificina resultou tão inesperada como uma cobra invisível.


Um segundo atrás, Steve Harrison caminhava entediado pelo beco
escuro... e, no seguinte, lutava desesperado por sua vida contra
uma fúria que rugia e babava com garras e presas que haviam
caído sobre ele. Aquela coisa era, obviamente, um homem, ainda
que durante os primeiros e vertiginosos segundos de luta, Harrison
chegou a duvidar disso. O estilo de luta do atacante era
aparentemente cruel e bestial até mesmo para Harrison, que estava
acostumado com os truques sujos que eram empregados nas ruas
baixas.
O detetive sentiu como os dentes de seu atacante se
afundavam em sua carne, lançando, assim, um alarido de dor.
Mas, além disso, o atacante empunhava um punhal que rasgou seu
casado e camisa, fazendo brotar sangue e, somente a cega
141
casualidade o fez fechar os dedos ao redor de um pulso grosso,
mantendo a afiada ponta longe de seus órgãos vitais. Estava tão
escuro como a porta do Erebus. E Harrison percebia seu atacante
somente como uma mancha negra na escuridão que o envolvia. Os
músculos que aferravam seus dedos eram como tirantes de aço,
iguais às cordas de piano, e havia uma terrorífica robustez no
corpo que enfrentava o seu, levando pânico a ele. Raras vezes o
grande detetive havia encontrado um homem que pudesse se
igualar a ele em força; mas este ser que apareceu da escuridão, não
só era tão forte como ele, mas também muito mais ágil... e mais
veloz e mais selvagem do que poderia ser um homem civilizado.
Rolaram sobre os dejetos do beco, mordendo-se,
golpeando-se, debatendo-se e, ainda que o invisível inimigo
grunhisse cada vez que os pétreos punhos de Harrison o
acertavam, não mostrava o menor sinal de debilidade. Seu pulso
era como uma massa de cabos de aço que ameaçavam romper de
um momento para o outro a mão de Harrison. Sua carne
estremeceu de pavor diante do frio aço e o detetive agarrou aquele
pulso com as duas mãos, tentando detê-lo. Um grito sedento de
sangue indicou a futilidade de seu intento, e uma voz que, até
então havia sido pronunciada em um idioma desconhecido,
sussurrou no ouvido de Harrison:
—Cão! Morrerás no lixo como eu morri na areia! Tu

142
deixaste meu cadáver aos abutres! E eu deixarei o teu a mercê dos
ratos do beco! Wallah!
Um dedo imundo tateava o rosto de Harrison em busca de
seu olho e, rendido pelo desespero, o detetive lançou seu corpo
para trás e projetou para frente seus pés com uma força capaz de
destroçar os ossos. O desconhecido atacante voou e rolou longe
dele com a agilidade de um gato. Harrison se pôs em pé,
cambaleando-se, perdeu o equilíbrio e se apoiou contra a parede.
Seu inimigo, depois de lançar um grito, voltou a atacar. Harrison
escutou silvar a lâmina de um punhal que se cravou no muro atrás
dele, e, lançando-se às cegas com o empurrão de seus poderosos
ombros, chocou-se contra algo sólido. Notou como sua vítima
tropeçava, caindo para trás e escutou como se esborrachava contra
o lixo que cobria o solo. Então, pela primeira vez em sua vida,
Steve Harrison deu as costas a um inimigo e correu cambaleante,
porém com passos rápidos, até a saída do beco.
Respirava com dificuldade e seus pés tropeçavam nas poças
e montes de lixos. Esperava receber uma punhalada nas costas de
um momento para outro.
—Hogan! – gritou desesperado. Por trás dele soavam as
velozes pisadas de seu letal oponente.
Jogou-se para fora da entrada do escuro beco, chocando-se
contra o patrulheiro Hogan que havia escutado seu urgente

143
bramido, acudindo-o as presas. O patrulheiro ficou sem alento,
lançando um suspiro agoniado, e os dois homens se jogaram sobre
a rua.
Harrison não perdeu tempo em levantar-se. Agarrando o
Colt especial, calibre 38 do cinturão de Hogan, disparou contra a
sombra que, por um instante, se projetou até o exterior da entrada
do beco. Depois de colocar-se em pé, se aproximou da escura
entrada, empunhando ainda a arma fumegante. Não se ouvia
nenhum som desde aquela abertura estigia.
—Dê-me sua lanterna – pediu. E Hogan se pôs em pé, com
uma mão em sua ampla barriga e lhe estendeu o objeto solicitado.
O feixe de luz branca não mostrou nenhum corpo na lama do
beco. Fugiu – sussurrou Harrison.
—Quem? —quis saber Hogan, ainda espantado—. Além do
mais, o que significa tudo isso? Ouvi gritar “Hogan” como se o
demônio estivesse sentado em teus calcanhares e, no momento
seguinte, te lançaste contra mim, investindo como se fosse um
touro. O quê...
—Cale-se, e exploraremos este beco —espetou Harrisson—
. Não pretendia lançar-me contra ti. Alguém saltou sobre mim...
—Alguém ou algo? – o patrulheiro examinou seu
companheiro embaixo da incerta luz do distante poste da esquina.
O casaco de Harrison estava pendurado feito pedacinhos; sua

144
camisa estava pendurada feito retalhos, revelando seu peito, amplo
e veludo, que se agitava com sua respiração. O suor descia pelo
seu pescoço grosso, como o de um touro, misturando-se com o
sangue dos aranhões dos braços, ombros e peito. Tinha o cabelo
manchado de imundície e suas roupas fediam a lixo. Deve ter
topado com um bando todo de ladrões – disse Hogan.
—Era só um homem —disse Harrison—. Um homem ou um
gorila; mas falava. Vê?
—Creio que não. O que quer fosse aquilo, já se foi. Voltou a
focar no beco. Consegue vê-lo? Nada a vista. Não tem sentido
fazermos uma ronda para ver se o encontramos. Será melhor que
vá cuidar desses cortes. Já lhe avisei antes sobre o perigo que é
andar por esses becos escuros. Há muitos homens que tem contas
pendentes contigo.
—Irei à casa de Richard Brent —disse Harrison—. Ele
cuidará desses cortes. Vem comigo?
—Claro, mas será melhor que me deixe...
—O que quer que pretenda fazer, é melhor não! —disse
Harrison, furioso pelos cortes e suas várias feridas—, e escute,
Hogan... não fale sobre isso por aí, certo? Quero resolver esse
assunto sozinho. Não parece um caso corriqueiro.
—Não parece que seja... quando alguém consegue espancar
assim o “homem de ferro” Harrison – foi o mordaz comentário de

145
Hogan.
Harrison sussurrou uma praga entre os dentes.
A residência de Richard Brent ficava justo no final do
caminho habitual de Hogan... um bloco solitário e respeitável em
meio a maré de detritos que engolia a vizinhança, mas que Brent,
absorto sempre em seus estudos, não era consciente disso.
Brent se encontrava no seu estúdio lotado de relíquias,
rodeado sobre os escuros volumes que eram, por sua vez, sua
vocação e paixão. Sua aparência erudita contrastava vivamente
com a de seus visitantes. Mas fazia pouco caso da situação sem
alterar sua rotina em absoluto, aplicando seus estudos de
medicina.
Hogan, depois de assegurar-se que as feridas de Harrison
eram pouco mais que meros arranhões, regressou à sua ronda e,
pouco depois, o grande detetive tomava assento em frente ao seu
anfitrião com um grande vaso de whisky em sua descomunal mão.
A altura de Steve Harrison estava acima da média, mas ele
parecia ser muito mais baixo devido a largura de seus ombros e
amplitude de seu peito. Seus fortes braços estavam pendurados de
forma esguia e sua cabeça se inclinava para frente, de forma
agressiva. Sua frente, ampla e baixa, coroada por uma mata de
selvagem cabelo negro, sugeria mais a um homem de ação do que
um pensador, mas seus frios olhos azuis refletiam uma

146
profundidade mental inesperada.
— “...como eu morri na areia” —estava dizendo— . Isso foi
o que ele disse. Estava como se fosse um urso... o que
demônios...?
Brent sacudiu a cabeça, observando as paredes com ar
ausente, como se buscasse inspiração nas armas, antigas e
modernas, que as adornavam.
—E não pôde entender o idioma no qual ele havia falado
antes?
—Nem uma palavra. Tudo o que sei é que não era inglês,
nem tão pouco chinês. Nem sequer sei se esse tipo era mais aço do
que osso. Lutar com ele era como se estivesse lutando com um
bando de gatos selvagens. A partir de agora vou levar sempre uma
arma carregada. Joguei a minha fora porque as coisas estavam
muito tranquilas. Sempre confiei que, com os punhos poderia ser
um bom rival contra qualquer ser humano normal. Mas esse
demônio não era um ser humano normal; se parecia mais com um
animal selvagem.
Tragou seu whisky de forma sonora, limpou a boca com o
canto da mão e se inclinou até Brent com um brilho de curiosidade
nos olhos.
—Nunca diria isso a ninguém que não fosse você – disse
com uma estranha atitude de dúvida. Pode pensar que estou

147
louco... mas... bem, já me deparei com muitos homens ao longo de
minha vida que acreditavam em... por exemplo, os chineses
acreditam em vampiros, os gules nos mortos que caminham... e
tudo isso que ele disse sobre eu estar morto e que o havia
matado... imagino que...
—Besteiras! —exclamou Brent com uma risada incrédula—.
Quando um homem está morto, está morto. Não pode regressar.
—É isso que sempre acreditei —sussurrou Harrison—.
Mas, que diabos se referia quando disse que eu havia deixado ele
para os abutres?
—Eu lhe direi – ressoou uma voz tão dura e sem piedade
como o fio de uma faca, interrompendo a conversação.
Harrison e Brent se viraram sobressaltados. Brent quase caiu
da poltrona. No outro extremo da casa, numa das altas janelas que
estava aberta para entrar o ar, se alçava um homem alto e fibroso
cuja vestimenta, feita em retalhos, não podia ocultar a perigosa
robustez de seus membros nem a largura de seus régios ombros.
Sua roupa barata, comida pelas traças e manchada de sangue,
parecia incongruente junto ao feroz e escuro rosto de falcão, e a
chama que ardia em seus escuros olhos. Harrison grunhiu de
forma explosiva ao perceber a concentrada ferocidade em seu
olhar.
—Escapaste de mim na escuridão —sussurrou o estranho,

148
apoiando o peso de seu corpo sobre a parte anterior de seus pés,
tencionando-se como um felino, enquanto uma adaga curva
brilhava em sua mão—. Estúpido! Por acaso achava que não ia te
seguir? Aqui há luz. Não voltará a escapar!
—Quem diabos é você? – quis saber Harrison,
posicionando-se em uma inconsciente posição defensiva com os
braços flexionados e os punhos cerrados.
—És um sujeito de poucos culhões e memória débil! —
burlou-se o outro—. Não te recordas de Amir Amin Izzedin, a
quem mataste no Vale dos Abutres faz trinta anos? Pois eu me
lembro! Desde o berço! Desde antes que soubesse falar ou
caminhar, sabia que eu era Amir Amin e me recordava do Vale
dos Abutres. Mas só depois de uma profunda desonra e um largo
vagar, foi-me revelado esse pleno conhecimento de quem eu era.
Desejei vê-lo na fumaça de Shaitan! Mas mudaste teu recipiente
de carne, Ahmed Pasha, cão beduíno, mas não poderá escapar de
mim! Pelo Bezerro de Ouro!
O estranho correu até ele com um uivo de felino,
empunhando a adaga para cima. Harrison saltou para o lado com
uma agilidade surpreendente para um homem do seu tamanho,
tirando uma lança antiga da parede. Com um grito que mais
parecia um grito de guerra, se lançou para frente, agarrando a
lança com ambas as mãos, como se fosse um fúsil com a baioneta

149
empunhada. Amir Amin se esquivou deslizando-se para o lado e,
contorcionando seu corpo de pantera, evitou a afiada ponta.
Quando Harrison se deu conta de seu erro, já era demasiado
tarde... sabia que receberia uma punhalada tão logo passasse de
lado ao escorregadiço guerreiro oriental. Mas não podia deter o
ímpeto de sua estocada. Então, o pé de Amir Amin resvalou em
uma almofada solta. A ponta da lança atravessou seu casaco
comido pelas traças, enterrando-se em suas costelas, fazendo
brotar um jato de sangue. Ferido e desequilibrado apunhalou as
cegas e, então, o descomunal ombro de Harrison derrubou ambos
ao solo.
Amir Amin foi o primeiro a levantar-se, porém sem sua
faca. Enquanto Amir passeava uma mirada selvagem ao seu redor
procurando Harrison, Brent, temporariamente paralisado diante
daquela violência inusitada, entrou em ação. O erudito agarrou
uma arma de fogo da parede e seus olhos mostraram uma sombria
determinação. Ao apontar a pistola, Amir Amin emitiu um alarido
e se lançou como uma besta pela janela mais próxima. O
estampido do vidro sendo feito em pedaços se misturou com
estrondeante rugido da arma de fogo. Ao aproximar-se da janela,
Brent, ainda ofegante por causa da fumaça da pólvora, vislumbrou
uma forma escura que corria pela avenida, nas sombras, embaixo
das árvores, até desaparecer de vista. Deu a volta e contemplou

150
Harrison, que se levantava, enquanto praguejava profundamente.
—Duas vezes em uma noite é muito! Aliás, quem é esse
enlouquecido? Ainda não havia visto em minha vida!
—É um druso! —explicou Brent—. Seu sotaque... sua
menção ao Bezerro Dourado... sua aparência de falcão... estou
seguro que é um druso.
—Que demônios é um druso? – bramou Harrison com um
espasmo de irritação. Seus curativos se rasgaram e suas feridas
voltaram a sangrar.
—Vivem em uma área montanhosa da Síria —respondeu
Brent—. É uma tribo de ferozes guerreiros...
—Nisso estou de acordo —disse Harrison—. Jamais esperei
encontrar alguém que pudesse se igualar em um combate corpo a
corpo comigo, mas esse demônio me colocou contra a parede. De
todo modo, é um alivio saber que é humano. Não tenho por
costume tomar precauções e não começarei agora. Pensava ficar
aqui está noite, se você tiver um quarto que possa fechar com
chave as portas e janelas. Amanhã irei ver Woon Sun.

151
II

Poucos homens chegavam a entrar na modesta Tenda de


Antiguidades1 que dava para a caótica River Street, e muito menos

1
Na verdade, uma tenda, que aqui o texto se refere, não é aquele espaço coberto por uma lona para abrigar

152
ainda passavam através das crípticas cortinas da porta dos fundos
para certificar-se do que havia atrás dela: um luxo absoluto em
forma de tapetes de veludo costurados a mão; divãs forrados de
seda; taças de porcelana pintada e pequenas mesas de jogos de
ébano lascado. Tudo iluminado pelo suave resplendor de lâmpadas
elétricas escondidas no interior de lanternas chinesas de papel.
Os amplos ombros de Steve Harrison resultavam tão
incongruentes entre todos aqueles objetos exóticos, da mesma
forma que Woon Sun – um individuo de baixa estatura, delgado e
ataviado com uma túnica de seda negra – parecia adaptar-se a
todos eles.
O chinês sorriu, porém, era como se houvesse ferro
temperado por trás da máscara de suavidade.
—De modo que... - sugeriu com cortesia.
—De modo que quero que me ajude —disse Harrison de
forma brusca. Sua natureza não era a de um sútil estoque, que
fintara ou parara, aguardando uma oportunidade, mas sim de um
martelo que golpeava diretamente seu objetivo.
—Sei que conhece todos os orientais da cidade. Já te
descrevi esse sujeito. Brent disse que é um druso. É impossível
que não saibas nada sobre ele. Ele se destacaria em meio de
qualquer multidão. Não pertence à classe de ratos de rua habituais
de River Street. Diria que está mais para um lobo.
alguém, mas sim uma loja que vende diversos artigos antigos. Um relicário. (NOTA DO TRADUTOR)

153
—De fato, é um lobo —murmurou Woon Sun—. Resultaria
de todo inútil tentar ocultar o fato de que conheço esse jovem
bárbaro. Chama-se Ali Ibn Suleyman.
—Ele se fazia chamar por outro nome —contradisse
Harrison.
—Talvez. Mas, para seus amigos, ele chama-se Ali Ibn
Suleyman. É um druso, como muito bem disse seu amigo. Sua
tribo vive em cidades de pedra, nas montanhas da Síria... mas
exatamente nas montanhas conhecidas como as Druas de Djebel.
—Maometanos, hein? —disse Harrison—. Árabes?
—Não. É como se fosse uma raça separada. Adoram um
bezerro talhado em ouro. Creem na reencarnação e praticam
ímpios rituais perseguidos pelos mulçumanos. Primeiro foram os
turcos, depois os franceses que tentaram dobrá-los, mas, na
realidade, jamais foram conquistados.
—Não acredito que nunca foram derrotados —sussurrou
Harrison—. Mas, por ele me chamou de Ahmed Pasha? O que ele
pode ter contra mim?
Woon Sun mostrou as palmas das mãos em uma atitude de
desconhecimento.
—Bem, de qualquer maneira – grunhiu Harrison – , já estou
acostumado em cuidar-me daqueles que tentam me apunhalar nos
becos escuros. Quero que faça os contatos para eu possa achá-lo.

154
Ou melhor, se encontrar tempo suficiente, pode descobrir algo que
tenha sentido. Talvez possa conversar com ele e dissuadi-lo dessa
ideia que tem em matar-me, seja qual for o motivo que ele tenha
para isso. Ele se parece mais com um fanático do que com um
criminoso. De todo modo, tenho que descobrir tudo isso.
—E o que posso fazer para ajudá-lo? – murmurou Woon
Sun, colocando as mãos em sua grande barriga, enquanto
maliciosamente olhava por trás de suas pálpebras rasgadas. E
inclusive poderia ir mais longe e perguntar-lhe: porque deveria
ajudá-lo?
—Sei que tens se mantido do lado da lei desde que chegaste
aqui – disse Harrison. Sei também que está tenda de antiguidades
é somente uma fachada. Não se pode fazer negócios com isso.
Mas sei, também, que não estais metido em atividades criminais.
Mas já tiveste um passado turvo – muito turvo – antes de vir para
cá, mas isso não é assunto meu.
“Porém, Woon Sun – Harrison se inclinou para frente e
baixou a voz –, você se lembra do jovem euroasiático chamado
Josef La Tour? Fui eu o primeiro homem que encontrou o cadáver
dele na noite em que o mataram no garito de jogos de Osman
Pasha. Encontrei um caderno de notas em sua jaqueta, e ainda o
tenho. Woon Sun, seu nome está neste caderno!”
Um silêncio eletrizante percorreu a atmosfera. Os suaves

155
rasgos amarelos de Woon Sun permaneceram impassíveis, porém
uns pontos vermelhos resplandeceram em seus olhos negros.
—La Tour devia estar tentando chantageá-lo —disse
Harrison—. Copiou um monte de dados interessantes. Ao ler esse
caderno de anotações, descobri que seu nome nem sempre foi
Woon Sun, e também fiquei sabendo de onde procede todo o seu
dinheiro.
Os pontos vermelhos haviam desaparecido dos olhos de
Woon Sun, cujo olhar agora parecia nublado. Uma palidez verde
se sobrepôs ao amarelo de seu rosto.
—Te escondesse muito bem, Woon Sun —sussurrou o
detetive—. Mas trair a sua sociedade e fugir com todo o seu
dinheiro é uma coisa muito grave. Se alguma vez conseguirem te
encontrar, te darão de comer aos ratos. Ainda não estou muito
seguro se devo escrever uma carta a um certo mandarim de Cantão
chamado...
—Basta! – a voz do chinês parecia irreconhecível—. Não
fale nada, por amor ao Buda! Farei o que me disse. Desfruto da
confiança desse druso e posso encontrá-lo facilmente. Agora já
está escurecendo. Vá à meia-noite ao Beco de River Street que os
chineses conhecem como “Beco do Silêncio”. Sabe a qual me
refiro? Bem. Aguarde no edifício que forma as paredes em um
ângulo, perto do final do beco, e Ali ibn Suleyman não demorará

156
em passar por ali, ignorando sua presença. Logo, se te atreve a
tentar prendê-lo, isso já é coisa sua.
—Desta vez levarei uma arma —disse Harrison—. Se
fizeres isso por mim, me esquecerei do caderno de anotações de
La Tour. Mas não tente me trair, ou...
—Você tem a minha vida em suas mãos —respondeu Woon
Sun—. Como poderia traí-lo?
Harrison grunhiu cético, mas se levantou sem fazer mais
comentários, cruzou a cortina da entrada da Tenda e saiu para a
rua. Woon Sun observou, inescrutável, os largos ombros que
abriam caminho por entre a multidão de atarefados orientais, tanto
homens como mulheres, que perambulavam por River Street a
todo momento. Logo fechou a porta da tenda e se apresou a cruzar
de novo a cortina até a ornamentada câmara que ficava atrás do
estabelecimento. Uma vez ali, se deteve e olhou ao seu redor.
Uma azulada espiral de fumaça se elevava desde um divã de
cetim, e, sobre ele estava uma jovem... uma criatura esbelta, de
sombria sutileza, cujos cabelos – negros como a noite –, lábios –
vermelhos e plenos –, e olhos almendrados sugeriam uma
descendência muito mais exótica do que apresentava sua luxuosa
vestimenta. Seus lábios vermelhos se curvavam em um sorriso de
burla maliciosa, mas o brilho de seus negros olhos mitigavam
qualquer sensação de humor, ainda que fora satírico, e de igual

157
modo sua vitalidade contradizia a aparente languidez da mão que
segurava uma cigarrilha.
—Joan! – os olhos do chinês converteram-se em meras
ranhuras que ardiam de suspeita. Como conseguisse entrar aqui?
—Através dessa porta aí atrás, que se abre em um corredor e
que, por sua vez se abre no beco que discorre por trás do edifício.
Ambas as portas estavam fechadas.... mas faz muito tempo que
aprendi a abrir portas fechadas.
—Por que...?
—Observei que o valente detetive entrava aqui. Estou a
algum tempo vigiando-o... ainda que ele não saiba. Os vitais
olhos da garota se tornaram ainda mais rasgados durante um
instante.
—Estava escutando do outro lado da porta? – quis saber
Woon Sun, cuja tez se tornava grisalha por um momento.
—Não sou nenhuma curiosa. Não necessito escutar. Supus
que ele viria aqui... e você... irá ajudá-lo?
—Não sei do que está falando – replicou Woon Sun com um
secreto suspiro de alivio.
—Mentes! – a jovem se tencionou no divã, enquanto seus
dedos destroçavam o cigarrilho de forma convulsiva e seu rosto se
crispava momentaneamente. Logo recuperou a compostura com
uma fria determinação, muito mais perigosa que qualquer estalido

158
de raiva. Woon Sun - disse com calma, extraindo uma pistola
automática do interior de sue bolso – , poderia matá-lo facilmente
e sem pestanejar... aí mesmo... onde estais... mas não desejo
fazê-lo. Devemos seguir sendo amigos. Veja, já estou guardando a
arma... mas não me tentes, meu amigo. Não tentes jogar ou usar a
violência comigo. Venha até aqui, sente-se e fume um cigarrinho.
Falaremos com calma sobre todo esse assunto.
—Não sei do que deseja falar – disse Woon Sun, deitando-se
em um divã e tomando o cigarrinho que lhe oferecia com um gesto
mecânico, como se estivesse hipnotizado pelo resplendor dos
magnéticos olhos negros de sua visitante... e pelo conhecimento
dela ter uma pistola, que agora estava escondida. Toda sua calma
oriental não podia ocultar o fato de que temia essa jovem pantera...
ainda mais do que temia Harrison.
—O detetive veio aqui tão somente para fazer-me uma visita
amistosa – disse. Tenho muitos amigos na polícia. Se me
encontrarem assassinado tomarão muitas providências para
encontrar a pessoa culpada.
—Quem falou em matá-lo? – protestou Joan, acendendo
uma cigarrilha com a ponta de uma unha pintada de hena,
estendendo a diminuta chama até o cigarro de Woon Sun. No
instante do contato, seus rostos ficaram muito próximos e o chinês
retrocedeu sobressaltado, evitando a intensidade que ardia em seus

159
olhos escuros. Nervoso, aproximou o cigarro até sua boca e inalou
profundamente.
—Tenho sido seu amigo – disse. Não deveria vir aqui e
ameaçar-me com uma pistola. Sou um homem importante em
River Street. É possível que não esteja à salva como acredita estar.
Pode ser que chegue um tempo que precise de um amigo como
eu...
De repente Woon Sun ficou consciente de que a jovem não
respondia e que nem se quer se molestava em escutar suas
palavras. O cigarro da garota ardia entre seus dedos sem haver
sido aspirado uma única vez e, através da nuvem de fumaça, seus
olhos chamejantes o observavam com o terrível olhar de uma
besta predadora. Com um sobressalto, Woon Sun retirou o cigarro
de seus lábios e o aproximou do nariz.
—Demônia! – emitiu um alarido de puro terror. Lançando
longe o esfumaçante cilindro, se pôs em pé e, meio mareado,
balançando-se sobre suas pernas, agora lácias e amortecidas, seus
dedos se estenderam até a jovem como se pretendesse estrangulá-
la. Veneno... ópio... lótus negra...
A mulher se colocou de pé, lançou a mão aberta contra o
peito coberto de seda do mercador e o empurrou de volta ao divã.
O homem caiu tombando e ficando imóvel, com os olhos abertos e
o olhar fixo e vazio. A mulher se inclinou sobre ele, tensa e

160
estremecida pela intensidade das emoções.
—És meu escravo —sussurrou, do mesmo modo que um
hipnotizador implanta sugestões em sua vitima—. Já não tens mais
vontade própria e obedecerás a minha. Tua mente consciente está
dormindo, mas tua língua está livre para dizer a verdade. Tão
somente a verdade que está em teu drogado cérebro. Por que veio
aqui o detetive Harrison?
—Veio perguntando por Ali ibn Suleyman, o druso –
sussurrou Woon Sun, com uma curiosa voz, cartante e carente de
vida.
—Prometeste trair o druso para que ele o agarre?
—Prometi, mas menti —continuou a monótona voz—. O
detetive irá, à meia-noite, ao Beco do Silêncio, que é a antessala
da morada do Amo. Muitos cadáveres passam por essa porta. É o
melhor lugar para desfazer-se de um corpo. Direi ao Amo que
Harrison veio espiar e, assim, ganharei as honras, além de me
desfazer de um inimigo. O bárbaro branco estará escondido em
um canto entre as paredes, aguardando o druso, tal como eu lhe
disse. Ele não sabe que há uma porta que pode abrir-se desde a
parede de trás, e uma mão determinada poderá matá-lo com um
machado. Meu segredo morrerá com ele.
Aparentemente, para Joan o segredo a que ele se referia era
uma coisa indiferente, já que não fez mais perguntas ao drogado

161
comerciante. Porém a expressão de seu formoso rosto não era
prazerosa.
—Não, meu amigo amarelo —murmurou a jovem—.
Deixemos que o branco vá ao Beco do Silêncio... sim, mas não
será um chinês amarelo quem o atacará na escuridão.
Concederemos o seu desejo. Ele se encontrará com Ali ibn
Suleyman... e depois dele, com os vermes que o comeram na
escuridão de sua tumba!
Depois de tirar um pequeno frasco de entre seus seios,
derramou um pouco de vinho de uma jarra de porcelana em um
cálice de âmbar e verteu na bebida o conteúdo do frasco. Logo
aproximou o cálice até os lácios dedos de Woon Sun e, com uma
voz cortante, ordenou que bebesse, guiando o recipiente até seus
lábios. O mercador tragou o vinho de maneira mecânica e, de
imediato, caiu de lado no divã, ficando inerte.
—Essa noite não empunhará machado algum —sussurrou
ela—. Quando acordares, dentro de muitas horas, meus desejos
serão cumpridos... e, aliás, já não terás mais que voltar a se
preocupar com Harrison... seja lá o que ele tenha contra ti.
Parecia preocupada por um repentino pensamento, detendo-
se quando estava a ponto de sair pela porta que dava para o
corredor posterior.
—O que ele quis dizer com não estou tão a salva como

162
penso estar? — murmurou, quase em voz alta—. O que queria
dizer com isso? – uma sombra, de apreensão cruzou seu rosto e ela
encolheu seus ombros—. Agora já é muito tarde para que ele me
conte. Não importa. O Amo não suspeita de nada... e se soubesse?
Não é meu Amo. Já perdi muito tempo aqui.
Saiu ao corredor, fechando a porta atrás dela. Então, ao dar a
volta, se deteve em seco. Diante dela se alçavam três figuras
sombrias, altas, desgarradas e com túnicas negras; suas cabeças,
enfeitadas como a dos abutres, assistiam sinistramente embaixo da
tênue luz do corredor.
Nesse instante, paralisada por uma espantosa certeza, se
esqueceu de sua pistola escondida. Abriu a boca para lançar um
grito, que se tornou um gorgoteio quando uma mão ossuda se
fechou entre seus lábios.

163
III

O beco, de nome desconhecido para os brancos, porém conhecido


pelas incontáveis hordas de River Street como o Beco do Silêncio,
era tão opaco e misterioso como as características da raça que o
frequentava. Não seguia em linha reta, mas fazia um caminho

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tortuoso, como o de uma serpente, afastando-se de River Street e
abrindo caminho através de um labirinto de altos edifícios que, no
escuro, pareciam armazéns abandonados e esquecidas casas
decrepíticas, ocupadas somente por ratos, e cujas janelas estavam
tampadas por tábuas.
Assim como River Street era o coração do Bairro Oriental, o
Beco do Silêncio era o coração de River Street, ainda que,
aparentemente estivesse vazio e deserto. Ao menos era essa a ideia
de Steve Harrison, ainda que não conseguisse encontrar nenhuma
razão concreta para que desse tanta importancia para esse beco
escuro, sujo e fedorento que parecia conduzir a lugar nenhum. Os
homens da Delegacia zombaram dele, dizendo que havia
trabalhado tanto tempo entre os intricados labirintos atormentados
por ratos de River Street, que seu cérebro estava começando a
tornar-se tão retorcido como o dos chineses.
Pensou nisso, enquanto se agachava com impaciencia em
um canto formado pelas paredes finais do insalubre beco. Depois
de uma cautelosa olhada para os ponteiros luminosas de seu
relógio, descobriu que eram mais de doze horas. Somente os
passos dos ratos rompiam o silêncio. Estava bem escondido
naquele ângulo formado por duas paredes que se cruzavam sem
tocarem-se, e cujos planos formavam uma sorte de triangulos
abertos que se mostravam no beco. A arquitetura daquele lugar era

165
tão absurda como algumas das histórias que se contavam sobre sua
profunda escuridão. A uns poucos passos dali, o beco terminava
abruptamente diante da negrura inescalável de uma parede quase
lisa que não tinha janelas, somente uma porta de metal.
Tudo isso Harrison sabia graças a vaga luminiscência cinza
que se filtrava no beco desde a parte superior dos edíficios. As
sombras espreitavam nas esquinas mais escuras que os abismos
estígios, e a porta de metal não era mais que uma vaga mancha na
superfície da parede. Harrison supôs que devia tratar-se de um
aramazém vazio, abandonado e meio destruído pelos anos.
Proavavelmente sua fachada principal daria para a orelha do rio,
flanqueada por umas docas decrepíticas, esquecidas e sem serem
usadas a anos, já que o comércio e toda sua atividade haviam se
transladado para uma parte nova da cidade.
Perguntou-se se haviam visto deslizar pelo beco. Não havia
entrado diretamente desde River Street, cheia sempre de figuras
furtivas que a percorriam em silêncio durante quase toda a noite.
Havia vindo por uma rua lateral, avançando por entre as tapias e
as paredes lascadas até sair no escuro e labiríntico beco. Harrison
havia passado muito tempo no Bairro Oriental, aprendendo a
adotar a cautela e o sigilo de seus habitantes.
Porém, passava da meia-noite e não havia nem rastro do
homem que estava caçando. De repente, ficou tenso. Alguém

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vinha pelo beco. Mas os passos eram suaves, e não pareciam estar
associados a um homem com a corpulência de Ali ibn Suleyman.
Uma figura alta e encurvada se perfilou vagamente na penumbra e
passou junto ao esconderijo do detetive. Seu olhar treinado,
inclusive na escuridão, revelou a Harrison que aquele não era o
homem que buscava.
O desconhecido caminhou direto até a porta metálica e
chamou três vezes com um largo intervalo entra as chamadas. De
forma abrupta, na porta brilhou um círculo vermelho.
Sussurraram-se palavras em chinês. O homem em frente à porta
replicou na mesma língua, e suas palavras chegaram claras até o
ouvido atento do detetive: Erlik Khan!
Então, de um modo inesperado, a porta se abriu do lado de
dentro e o estranho entrou, ficando iluminado brevemente pela luz
avermelhada que saia pela entrada. Logo, depois de fechar a porta,
a escuridão regressou e o silêncio voltou a reinar no beco.
Porém, agachado em seu escuro rincão, Harrison sentiu
como o coração parecia a ponto de sair de suas costelas. Havia
reconhecido o sujeito que entrara pela porta como o assassino
chinês Fang Yim, cuja cabeça estava a prêmio por um bom preço.
Mas não era isso que havia feito o sangue do detetive gelar em
suas veias. Era a senha sussurrada pelo mal-encarado visitante:
“Erlik Khan”. Era como ver materializado um terrível pesadelo;

167
como ver confirmada uma lenda malévola.
Durante mais de um ano, haviam circulado rumores pelos
negros becos e portais em escombros que falavam que o povo
amarelo se movia de forma tão inescrutável como se fossem
fantasmas. Não eram apenas rumores. Aquele era um termo
demasiado concreto e definido para poder aplicar-se aos
murmúrios dos fumadores de ópio, os balbucios dos loucos, os
estertores dos homens agonizantes e os sussurros desavisados que
se perdiam na brisa noturna. Mas, dentre esses murmúrios
desconexos, se impunha um temido nome, repetido com pavor, em
sussurros estremecidos: “Erlik Khan”.
Era uma frase sempre associada a acontecimentos escuros,
como um vento negro que ululava através das arvores à meia-
noite; um lampejo, um suspiro, um mito que nenhum homem
podia confirmar ou negar. Ninguém sabia se era o nome de um
homem, de um culto, de um plano de ação, de uma maldição ou de
um sonho. Um nome que sempre estava associado a tudo aquilo
que significasse uma ameaça: um sussurro de águas negras que
batia os podres pilares das docas abandonadas; o sangue gotejando
sobre pedras escorregadias; estertores de agonia em cantos
escuros; pés sigilosos deslizando-se à meia-noite para destinos
incertos.
Os homens da delegacia riram de Harrison quando este

168
jurava que havia uma conexão entre vários crimes que não
pareciam estarem conectados. Diziam, como sempre, que estava
muito tempo trabalhando entre os labirintos do Distrito Oriental.
Mas, precisamente este fato havia o feito voltar a ter uma
sensibilidade maior que seus companheiros para as impressões
sutis e furtivas. E, em certas ocasiões, quase parecia sentir uma
forma vaga e monstruosa que se movia atrás de uma teia-de-
aranha de ilusões.
E agora, como o silvo de uma serpente na escuridão, havia
conseguido encontrar algo concreto ao escutar aquelas palavras
sussurradas: “Erlik Khan”.
Harrison saiu de seu esconderijo e caminhou a passos vivos
para a porta de metal. Sua disputa com Ali ibn Suleyman
momentaneamente foi deixada de lado. O detetive aproveitava as
oportunidades que se apresentavam. Quando era assim, agia
primeiro e planejava depois. E seu instinto lhe dizia que estava no
limite de algo muito grande.
Um zumbindo lento, quase imperceptível, havia começado a
soar. No alto, por cima das altas paredes negras, captou o
vislumbre de densas nuvens cinzas, tão baixas que quase pareciam
fundir-se no terraço, refletindo debilmente a miríada de luzes da
cidade. O murmúrio do tráfico distante chegou aos seus ouvidos,
tênue e distorcido. Quando o rodeava, parecia curiosamente

169
estranho e distante. O mesmo poderia estar na penumbra de
Cantão, ou na proibida Pequin... ou na Babilônia, ou até mesmo
na egípcia Menfis.
Detendo-se diante da porta, percorreu a superfície metálica
com as mãos, e tateou as planchas que, aparentemente a
condenavam. Descobriu que algumas delas eram falsas. Tratava-se
de um truque ingênuo para fazer a porta parecer inacessível a um
olhar casual.
Assegurando de que seus pés estivessem pisando no solo,
com a sensação de estar pisando as cegas na escuridão, Harrison
chamou três vezes, igual como fizera o assassino Fang Yim.
Quase instantaneamente, uma pequena janela redonda abriu uma
abertura na porta, na altura de seu rosto, deixando escapar um
resplendor vermelho no qual distinguiu um semblante amarelo
mongoloide. Escutou um sibiloso sussurro em chinês.
A aba do chapéu de Harrison caiu sobre seus olhos, e a
solapa de seu casaco, levantada para protegê-lo da intempérie,
ocultava parte de suas feições. Porém o disfarce não era
necessário. O homem que estava atrás da porta não se parecia com
alguém que conhecera Harrison.
—Erlik Khan! – sussurrou o detetive.
O homem de olhos rasgados não mostrou o menor vestígio
de suspeita. Evidentemente, por essa porta já haviam passado

170
antes outros homens brancos. Abriu-a de dentro, e Harrison entrou
com os ombros encurvados e as mãos nos bolsos do casaco: a viva
imagem de um meliante das docas. Escutou como a porta se
fechava atrás de si, encontrando-se em uma pequena câmara
quadrada no final de um estreito corredor. Notou que a porta
estava reforçada com uma grande barra de aço que o chinês estava
colocando em seu lugar sobre grossas travas de ferro, pregadas em
ambos os lados da porta; e o buraco do centro ficou coberto por
um disco de aço que girou sobre um pivô. Aparte de um
desproporcionado assento para o porteiro, o lugar não tinha
móveis.
O olhar treinado de Harrison captou tudo isso em uma
rápida olhada, enquanto avançava pela câmara. Sentia que, se
desejasse passar por um dos membros do que quer fosse aquele
lugar, não poderia permanecer muito tempo naquela entrada. Uma
pequena lanterna vermelha, colocada no teto, iluminava aquele
lugar, mas o corredor não tinha iluminação, exceto pelo reflexo
daquela citada lanterna.
Harrison atravessou o corredor em sombras, sem mostrar
evidencia da tensão em seus nervos. Ao mirar de lado, se fixou na
solidez das paredes que pareciam novas. Obviamente, havia sido
feito uma grande obra de reabilitação no interior daquele edifício
que parecia deserto.

171
Igual ao beco exterior, o corredor não ia em linha reta.
Girava em frente a um tramo que desfrutava de uma suave
corrente de luz e, mais além dessa esquina, Harrison escutou
aproximarem-se umas débeis passadas. Lançou-se sobre a porta
mais próxima, que se abriu em silêncio ao empurrá-la e voltou a
fechar-se atrás dele com o mesmo sigilo. Desceu uma escada na
mais absoluta escuridão; tropeçou a ponto de cair, mas se agarrou
na parede enquanto praguejava pelo ruído que estava fazendo.
Escutou que os suaves passos se detinham lá fora, frente à porta;
logo, uma mão a empurrou para dentro. Porém, Harrison tinha o
cotovelo e o antebraço pressionado contra o painel de madeira.
Tateando com os dedos encontrou uma barra que caiu, enquanto
voltava a praguejar – desta vez mentalmente –, pelo tênue chirrido
que provocava. Uma voz sussurrou algo em chinês, mas Harrison
não respondeu. Deu a volta e voltou a descer com cuidado pela
escada.
Seus pés não demoraram em chegar ao solo e, no instante
seguinte, encontrou outra porta. Tinha uma lanterna no bolso, mas
não se atrevia a usá-la. Tateou a porta e descobriu que não estava
fechada. O marco, a lâmina e as batentes pareciam estarem
isoladas, a prova de ruídos. Seus sensíveis dedos percorreram as
paredes, descobrindo que elas também foram projetadas
especialmente para esta mesma finalidade. Com um calafrio, se

172
perguntou que gritos e que sons espantosos estavam destinados a
serem silenciados por aquela porta e paredes.
Ao abrir totalmente a porta, piscou ao perceber uma tênue
luz vermelha e, levado pelo pânico, sacou sua pistola. Mas não foi
recebido por gritos nem disparos e, conforme seus olhos foram se
acostumando com a luz, descobriu que se encontrava no interior
de um grande sótão vazio, exceto por três caixas embaladas. Havia
portas em ambos os lados da sala, porém todas elas estavam
fechadas. Evidentemente, ele estava a certa distância abaixo do
solo.
Aproximou-se das caixas que, aparentemente, haviam sido
abertas recentemente e seus conteúdos ainda não tinham sido
extraídos. As tampas estavam no chão, junto a elas, acompanhadas
de restos de embalagem.
—Bebida? —sussurrou para si—. Ópio? Contrabando?
Franziu a testa ao abaixar os olhos até o interior da caixa
mais próxima. Uma simples capa de embalar cobria o conteúdo e,
não podendo evitar de ficar perplexo diante do contorno que ela
desenhava, agarrou a embalagem e a jogou de lado... para depois
retroceder um passo, tremendo de horror. Um rosto amarelo,
gélido e imóvel olhava para cima, sem ver, em direção à lâmpada
vermelha. Uma outra capa havia por baixo, parecendo terem mais
três corpos.

173
Suando e arfando, Harrison levou a cabo a arrepiante tarefa
de verificar o que continha aquela caixa. E, uma vez concluída,
limpou a frente de seu rosto cheio de suor.
—Três caixas cheias de chineses mortos! —sussurrou
estremecido—. Dezoito presuntos amarelos! Pelo gato sagrado!
Parece que revendem cadáveres assassinados! E eu que pensava
que já havia visto tantas coisas infernais e que nada podia afetar-
me. Mas isso é demasiadamente macabro!
Foi o sigiloso som de uma porta abrindo-se que o retirou de
suas mórbidas meditações. Girou-se tenso. Diante dele estava uma
forma monstruosa e brutal, como uma criatura saída de um
pesadelo. O detetive captou o espreitar descomunal de um homem
com dorso meio desnudo, um crâneo raspado em forma de bala,
fendido por um sorriso brutal... e logo a besta caiu sobre ele.
Harrison não era um pistoleiro; todos os seus instintos o
impeliam a combater com seus fortes braços. Em lugar de usar sua
pistola, lançou seu punho direito em direção àquele repulsivo
sorriso e foi recompensado com um jato de sangue. A cabeça da
criatura caiu para trás em um ângulo impossível, mas seus dedos
ossudos haviam se agarrado no casaco do detetive. Harrison
enterrou seu punho esquerdo o mais profundo no diafragma de seu
atacante, verificando que seu rosto de cobre adotara um tom
esverdeado, mas o oriental aguentou e, rapidamente colocou o

174
casaco de Harrison atrás de seus ombros. Reconhecendo a
armadilha para imobilizar-lhe os braços, Harrison não resistiu ao
movimento, ao contrário, facilitou, projetando para frente seu
próprio corpo, lançando uma cabeçada contra o nariz do chinês,
liberando os braços de suas mangas.
O gigante retrocedeu, cambaleando, arfando para respirar,
enquanto levantava o inútil casaco como se fosse um escudo para
se proteger. Harrison, inexorável em seu ataque, o enviou até a
parede somente com a força de suas mãos e, com uma força
demolidora, golpeou a mandíbula do chinês com ambas as mãos.
O gigante cambaleou para trás, com o olhar fixo e a cabeça
chocando-se contra a parede, fazendo jorrar uma torrente de
sangue, caindo de bruços ao solo onde permaneceu imóvel, com
sua cabeça rodeada por um charco de sangue.
—Um estrangulador mongol! —disse Harrison, baixando o
olhar até ele—. Em que tipo de pesadelo me meti?
Foi justo nesse momento que um porrete, empunhado pelas
suas costas, acertou sua cabeça; as luzes se apagaram.

175
IV

Algum tipo de conexão, fora do lugar com a presente situação, fez


com que Steve Harrison sofresse um desagradável sonho sobre a
Inquisição espanhola justo antes de recobrar a consciência.
Provavelmente se tratava do tilintar das correntes. Regressando de
um mundo de sonhos forçados, sua primeira sensação foi uma
espantosa dor de cabeça, que o fez tocar seu crânio com suavidade
e praguejar amargamente.
Estava estendido sobre um solo de concreto. Uma corrente
de aço aprisionava sua cintura até aos rins, estando fechada com
um cadeado de aço. Em cada lado da corrente havia um cadeado,

176
presos em um anel em cada extremidade da parede. Uma pequena
lâmpada de papel, suspendida no teto, iluminava o lugar que
parecia ter apenas uma porta e nenhuma janela. A porta estava
fechada.
Harrison notou que havia outros objetos no lugar e,
enquanto piscava, vislumbrando os contornos definitivos de cada
um, foi vítima de uma gélida premonição, demasiado fantástica e
monstruosa para dar-lhe o menor crédito. Ainda assim, os objetos
que estava mirando eram incríveis.
Havia um aparato com discos, cadeias e alavancas. Uma
cadeia pendurada no teto, assim como vários objetos que pareciam
serem de ferro atiçados ao fogo. E, em um canto havia um enorme
bloco escuro, junto a um enorme machado de duas lâminas. O
detetive estremeceu, perguntando-se se não estaria imerso em um
maldito sonho medieval. Não podia duvidar do significado de tais
objetos. Havia vistos vários deles expostos em alguns museus.
Ao dar-se conta de que a porta havia sido aberta, levantou os
olhos e observou a figura que, cuja silhueta, se perfilava no
umbral... uma forma alta e sombria, vestido com uma túnica
negra como a noite. A figura entrou na câmara como se fosse o
espectro da condenação e fechou a porta. Desde a sombra de seu
capuz, dois olhos gélidos brilhavam tenebrosos, rodeados por um
rosto vago, amarelo e ovalado.

177
Durante um instante, reinou o silêncio, quebrado
subitamente pelo irado bramido do detetive.
—Que demônios é isto? Quem é você? Retire-me essas
cadeias!
A única resposta foi um silêncio zombeteiro e, debaixo do
perfurador escrutínio daqueles olhos fantasmagóricos, Harrison
sentiu um suor frio no rosto e embaixo das palmas das mãos.
—Néscio! —Harrison se sobressaltou, nervoso, diante
daquele particular vazio daquela voz—. Enfrente a sua perdição!
—Quem é você? – quis saber o detetive.
—Os homens me chamam de Erlik Khan, que significa
“Senhor da Morte” – respondeu o outro. Uma torrente de gelo
desceu pela coluna de Steve Harrison; não chegava a ser medo,
mas um calafrio ao dar-se conta de que, ao final, se achava cara a
cara com a materialização de suas suspeitas.
—Então, depois de tudo, Erlik Khan não é mais que um
homem —grunhiu o detetive—. Já estava começando a acreditar
que era o nome de uma sociedade secreta chinesa.
—Eu não sou chinês —replicou Erlik Khan—. Sou
mongol... descendente direto de Genghis Khan, o grande
conquistador, na qual se prostrou a Ásia inteira.
—Por que me conta isso? – grunhiu Harrison, ocultando seu
interesse em escutar mais.

178
—Por que não demorarás em morrer – foi a tranquila
resposta – , e não gostaria que pensasse que vais morrer pelas
mãos de um gangster, ou esse tipo de lixo meliante que estais
acostumado a prender.
“Eu fui o líder de uma confraria nas montanhas do interior
da Mongólia e, se não tivessem contido minha ambição, poderia
ter reconstruído um império perdido... sim, o antigo império de
Genghis Khan. Mas alguns néscios se opuseram a mim e, por
pouco não escapei com vida”.
“Vim à América e, uma vez aqui, um novo propósito nasceu
em meu interior: reunir todas as sociedades secretas orientais em
uma única e poderosa organização que eu controlasse a vontade,
estendendo meus tentáculos invisíveis ao outro lado do mar, até as
terras mais recônditas. Aqui, a salvo de toda suspeita por parte de
tolos como você, construí minha fortaleza. E já consegui o
bastante. Aqueles que se opõem a mim morrem de forma
repentina ou... já viu esses estúpidos nas caixas do sótão. São
membros do Yat Soy que tinham pensado em desafiar-me”.
—Por Judas! – sussurrou Harrison. Um tong2 inteiro
massacrado!
—Não estão mortos – corrigiu Erlik Khan. Tão somente
estão em um estado cataléptico, induzido por certas drogas que
2 Os Tong são sociedades secretas chinesas que se instalaram nos Estados Unidos por ocasião da imigração
chinesa para esse país. Eles controlam o tráfico de drogas e a prostituição. O equivalente dos tong nos Estados
Unidos são as tríades chinesas nas colônias inglesas.

179
foram vertidas em seus licores por servos de minha confiança.
Foram trazidos até aqui para que eu pudesse convencê-los da
loucura que cometeram ao tentarem oporem-se a mim. Disponho
de um grande número de criptas subterrâneas como esta, nas quais
tenho instalados toda classe de instrumentos e máquinas
projetadas para fazer mudar de opinião até mesmo os mais
teimosos.
—Câmaras de tortura embaixo de River Street! —murmurou
o detetive—. Que me condenem se isto não é um pesadelo!
—Por acaso você, que tem andando tanto tempo nos
labirintos de River Street, se surpreende agora pelos mistérios que
espreitam dentro de outros mistérios? —sussurrou Erlik Khan—.
Na verdade, o que você fez foi apenas arranhar a superfície de tais
segredos. Muitos homens obedecem a minha vontade... chineses,
sírios, mongóis, hindus, árabes, turcos, egípcios...
—Por quê? —quis saber Harrison—. Por que haveriam de
servi-lo esses homens tão dispares e de religiões tão hostis entre
si?
—Por cima de toda diferença de religião ou crença – disse
Erlik Khan – existe a eterna Unidade que é a essência e a raiz vital
do Oriente. Antes de existirem Maomé, Confúcio ou Guatama,
havia uma série de símbolos e sinais mais antigos, além de toda
crença, mas comuns a todos os filhos do Oriente. Existem cultos

180
mais fortes e antigos que o Islã ou o Budismo. Cultos cujas raízes
se perderam na escuridão das Eras e do amanhecer do homem
antes que existisse a Babilônia e, inclusive, antes que a Atlântida
afundasse.
“Para um adepto, todas essas novas religiões e crenças não
são mais que meras vestimentas que escondem a realidade que há
muito mais além. Ainda que, nem sequer a um morto possa ser
revelado mais, bastará saber que eu, a quem os homens chamam
de Erlik Khan, tenho um poder que está acima dos poderes de
Buda ou do Islã”.
Harrison permaneceu em silêncio, meditando sobre as
palavras do mongol que, pouco depois, prosseguiu:
—Não deves culpar a si mesmo, mas à tua má sorte. Estou
convencido de que não entrou aqui está noite para espionar-me...
pobre ignorante, bárbaro tolo que nem sequer suspeitava da minha
existência. Estou sabendo que, ao seu rude modo, vieste aqui
esperando capturar um de meus servos, o druso Ali ibn Suleyman.
—Enviaste-o para me matar – grunhiu Harrison.
Um riso zombeteiro lhe fez ranger os dentes, irritado.
—De verdade acredita que és tão importante a ponto de
mandar matá-lo? Não moveria um só dedo para esmagar a um
verme cego. Foi outra pessoa que pôs o druso no teu encalço...
uma pessoa miserável e egoísta que, nesse momento, está pagando

181
o preço por sua estupidez.
“Ali ibn Suleyman é, como muitos de meus sicários, um
exilado de seu povo, e sua vida está ameaçada. De todas as
virtudes que os drusos estimam mais, e a mais elemental, é a
coragem física. Quando um druso mostra o menor sinal de
covardia, ninguém lhe diz nada, mas quando os guerreiros se
reúnem para beber café, um deles cospe na aba da camisa. Isso
equivale e uma sentença de morte. Na primeira oportunidade, o
guerreiro é obrigado a ir buscar a morte do modo mais heróico
possível”.
“Ali ibn Suleyman fracassou em uma missão na qual o êxito
era impossível. Por ser jovem, não se deu conta de que sua
fanática tribo lhe tacharia de covarde por ter falhado e não ter se
deixado morrer. Mas o copo da vergonha foi derramado sobre sua
túnica. Ali era jovem, não sentia desejo de morrer. Rompeu um
costume milenar; fugiu do Djebel druso e se converteu em um
vagabundo errante”.
“Com o passar dos anos, se uniu aos meus seguidores, e eu
pessoalmente lhe dei as boas vindas a sua desesperada coragem e
a sua terrível habilidade para o combate. Mas, recentemente, essa
pessoa estupida ao qual mencionei, decidiu usá-lo para resolver
um assunto particular que, de nenhum modo estava conectado com
os meus. Isso foi algo nada sábio. Meus seguidores vivem somente

182
para servir-me, sabendo ou não disso”.
“Ali frequenta uma certa casa para fumar ópio, e essa pessoa
conseguiu drogá-lo com o pó da lótus negra, que produz um
estado hipnótico. Durante esse tempo, o sujeito é permeável a
sugestões, as quais, se lhe são repetidas de forma contínua,
acabam se impondo em horas de vigília da vitima”.
“Os drusos acreditam que quando um druso morre, sua alma
se reencarna no mesmo instante em um bêbe. O grande herói
druso, Amir Amin Izzedin, foi assassinado pelo árabe Shaykh
Ahmed Pasha, na mesma noite em que nasceu Ali ibn Suleman.
Ali sempre acreditou que era a reencarnação da alma de Amir
Amin, e se queixava porque não ia poder vingar seu antigo eu,
matando Ahmed Pasha, pois este, por sua vez, morreu poucos dias
depois de matar o chefe druso”.
“Tudo isso era bem conhecido pela pessoa de quem falo e,
por meio da lótus negra, conhecido também como a fumaça de
Shaitan, convenceu o druso de que você, detetive Harrison, era a
reencarnação de seu velho inimigo Shaykh Ahmed Pasha. Foram
necessários muito tempo e muita astúcia, inclusive estando Ali
drogado, para convencê-lo de que um Shaykh árabe pudesse
reencarnar em um detetive americano. Porém, a pessoa era muita
astuta, de modo que, por fim, Ali se deu por convencido.
Desobedeceu minhas ordens... que se referem a não molestar a

183
policia, a menos que se ponham em meu caminho, e, ainda nesse
caso, seguindo somente minhas instruções. Pois não desejo
publicidade. Também ele receberá uma punição”.
“Agora devo ir. Já passei muito tempo contigo. Em breve
verá alguém que o libertará de teus pesares terrenais. Console-se
pensando que a estúpida pessoa que o meteu nessa armadilha vai
expiar seu crime do mesmo modo que tu. De fato, o que a separa
de você é apenas essa parede acolchoada. Escute”!
De algum lugar próximo se levantou uma voz feminina,
incoerente, porém compreensível.
—Essa estúpida agora se dá conta de seu erro —sorriu com
benevolência Erlik Khan—. Ainda assim, essas paredes deixam
escutar seus lamentos. Bom, não é a primeira pessoa que lamenta
suas ações estúpidas nessas criptas. Agora devo ir. Esses tolos Yat
Soys não demoraram em acordar.
—Espere, demônio! – rugiu Harrison, forçando suas
correntes. O quê...?
—Basta! Já basta! —havia um tom de impaciência no tom
do mongol—. Está me enfastiando. Leve a cabo suas últimas
meditações, pois o tempo que te sobra é breve. Adeus, detetive
Harrison... no au revoir.
A porta se fechou em silêncio e o detetive ficou a sós com
seus pensamentos, que estavam longe de serem prazerosos.

184
Amaldiçoou a si mesmo por cair naquela armadilha; maldisse a
sua peculiar obsessão de trabalhar sempre sozinho. Ninguém sabia
da pista que havia tentado seguir. Não havia comunicado seus
planos a ninguém.
Do outro lado da parede, continuaram os soluços
enfraquecidos. O suor começou a escorrer pelo rosto de Harrison.
Seus nervos, indiferentes ao seu próprio destino, começaram a
sentir simpatia diante daquela voz aterrorizada.
Então a porta voltou a abrir-se e Harrison, ao se virar, supôs,
com absoluta certeza, que estava mirando ao seu verdugo. Era um
mongol alto e sem elegância, vestido somente com uma espécie de
saiote de seda amarela preso por um cinturão que tinha vários
molhos de chaves e calçado com umas sandálias. Levava uma
grande bacia de bronze e alguns outros objetos que lembravam
varinhas de incenso. Colocou estes últimos no solo, perto de
Harrison e, espalhando-os fora do alcance do prisioneiro, começou
a colocar em ordem as fedorentas varinhas em uma pirâmide no
interior da bacia. Harrison, ao mirar, recordou de repente de um
horror meio esquecido, entre a miríada de nebulosos terrores
próprios de River Street. Havia encontrado um cadáver em uma
casa fechada na qual uma acre fumaça subia ainda sobre uma
chamuscada bacia de bronze... o cadáver era de um hindu e
encontrava-se consumido e enrugado como se fosse um couro

185
velho... mumificado por uma fumaça letal que matava sua vítima,
consumindo-a como um rato envenenado.
Desde a outra cela lhe chegou um alarido tão agudo e
aterrador que Harrison deu um coice e praguejou em voz alta. O
mongol fez uma pausa em sua tarefa com um palito na mão. Seu
semblante amarelado emitiu um grunhido, abrindo a boca e
revelando que ele não tinha língua. O homem era mudo.
Os gritos ao lado aumentaram sua intensidade,
aparentemente mais pelo medo do que pela dor, ainda que certo
elemento de dor parecesse evidente. O mudo, com um olhar de
êxtase, se pôs em pé, inclinando-se junto à parede, colocando o
ouvido para não perder nem um só dos gemidos de agonia
procedentes da cela ao lado. Um respingo de baba caia desde a
extremidade de sua boca entreaberta; conteve o alento, ansioso,
enquanto, de forma inconsciente, se aproximava ainda mais da
parede. De repente, o pé de Harrison saltou disparado para frente,
golpeando firmemente com os tornozelos. O mongol estendeu os
braços e caiu de bruços pra frente sobre os expectantes braços do
detetive.
A chave com que Harrison rompeu o pescoço do verdugo
mongol não tinha fundamentos científicos. Sua fúria contida o fez
esquecer-se de tudo, exceto de uma loucura berserk, que o
obrigava a pegar, cortar e quebrar com uma paixão primitiva.

186
Abraçou-se ao verdugo como se fosse um urso cinza e sentiu
como as vértebras se quebravam como bambu podre.
Mareado ainda por seu arranque de fúria, Harrison se
recompôs, abraçado ainda à figura inerte, enquanto boqueava
incoerentes blasfêmias. Seus dedos se fecharam sobre as chaves
penduradas no cinturão do homem morto e, depois de tirá-las,
lançou selvagemente o cadáver ao solo em um paroxismo de
excesso de ferocidade. A figura caiu e permaneceu inerte com o
olhar vidrado e um sorriso de gelar o sangue lançado por cima do
ombro amarelo.
De maneira mecânica, Harrison tomou as chaves da argola
da cintura do mongol. No instante seguinte, livre das correntes,
cambaleou até o centro da cela sobrecarregado ainda pelo
indômito estalo de emoções... esperança, exaltação e sensação de
liberdade. Empunhou o machado de duas lâminas que descansava
junto ao bloco de madeira manchado de uma cor escura, estando a
ponto de uivar com uma alegria sedenta de sangue, quando notou
o perfeito equilíbrio da pesada arma e comprovou o fio de suas
lâminas.
Dedicou um mero instante ao abrir a porta com a chave.
Saiu a um estreito corredor, vagamente iluminado, flanqueado por
portas fechadas. Desde a mais próxima se escutavam ainda os
estremecedores gritos, enfraquecidos pela porta acolchoada e as

187
paredes especialmente trabalhadas.
Imerso como estava em sua ira berserk, não perdeu tempo
em verificar as chaves com aquela porta. Levantando o
descomunal machado com ambas as mãos, arremessou contra a
maçaneta, sem dar atenção contra o ruído que produziu,
consciente apenas de sua ânsia frenética de ação violenta. A porta
se destroçou debaixo da ação de seus demolidores golpes,
passando entre os restos dela com os olhos ardentes e os lábios
contraídos em uma fúria assassina.
Entrou em uma cela muito parecida com a que acabava de
deixar. Havia uma roda de madeira... uma autêntica máquina do
demônio dos tempos da idade média... e sobre sua cruel superfície
se agitava uma figura branca e patética... uma mulher vestida
somente com uma pequena camisa. Um enorme mongol se
inclinava sobre a roda, girando-a lentamente. Outro se encarregava
de esquentar um ferro sobre um pequeno braseiro.
Tudo isso Harrison viu na primeira olhada, enquanto a
jovem voltava a cabeça até ele, gritando de agonia. Então, o
mongol com o atiçador de ferro quente correu até ele em silêncio,
manejando como uma lança o resplandecente aço incandescente.
Apesar da vermelha fúria que o possuía, Harrison não perdeu a
cabeça. Um sorriso de lobo saiu de seus lábios, ele se afastou para
o lado e rachou a cabeça do torturador como se fosse um melão.

188
Logo, enquanto o corpo caia, derramando sangue e cérebro pelo
solo, Harrison girou como um felino para fazer frente ao ataque do
outro homem.
O ataque deste foi tão silencioso como o do primeiro.
Ambos eram mudos. Não se lançou desesperadamente como fizera
seu companheiro, porém sua cautela pouco lhe serviu quando
Harrison voltou a talhar com seu machado gotejante. Enquanto o
mongol alçava o braço esquerdo, o fio curvo do machado se
incrustou entre os músculos e os ossos, deixando o membro quase
amputado, pendurado tão somente por uma breve tira de carne. O
torturador saltou até ele como se fosse uma pantera moribunda,
afundando sua faca com a fúria do desespero, enquanto o
ensanguentado machado voltava a descer. A ponta da faca rasgou
a camisa de Harrison, arranhando a carne do peito. E, enquanto
retrocedia de forma involuntária, fez girar o machado e, com um
golpe plano, quebrou o crânio do mongol como se fosse uma casca
de ovo.
Lançando impropérios como um pirata, o detetive avançou
uns passos, enquanto mirava ao redor em busca de novos
atacantes. Então se lembrou da garota na roda de madeira e, ao
aproximar-se dela, reconheceu-a finalmente.
—Joan de La Tour! Que demônios...?
—Solte-me! – implorou ela. Oh! Por Deus, me tire daqui!

189
O mecanismo daquela máquina diabólica parecia desafiá-lo.
Porém, se preocupou em como libertar a garota que estava atada
com fortes cordas grossas nos pulsos e nos tornozelos, de modo
que, depois de cortá-las, conseguiu libertá-la. Harrison rangeu os
dentes ao pensar nas roturas, deslocamentos e terríveis feridas
internas que a jovem podia ter sofrido, porém, era evidente que a
tortura não havia avançado o bastante para causar-lhe um dano
permanente. A jovem não parecia estar de todo mal fisicamente,
mas, devido ao que passou, estava a beira da histeria. Ao
contemplar sua desvalida figura soluçante, estremecendo-se
embaixo de sua curta roupa e recordando a autossuficiência e
sofisticada beleza que costumava ser-lhe habitual, Harrison
sacudiu a cabeça, assombrado. Era verdade que Erlik Khan sabia
como dobrar suas vítimas com sua despótica vontade.
—Vamos sair daqui —rogou ela entre soluços—. Virão
mais... devem ter escutado o combate.
—Certo – grunhiu Harrison. Mas, onde diabos estamos?
—Não sei —confessou a jovem—. Em algum lugar da casa
de Erlik Khan. Estes mongóis mudos me trouxeram até aqui na
primeira hora da noite, através de passagens e túneis que
conectavam várias partes da cidade com este lugar.
—Bom, então vamos —disse ele—. Também nós podemos
ir a algum lugar através dessas passagens.

190
Tomando sua mão, atravessaram o corredor e, depois de
olhar ao seu redor de maneira incerta, observou uma estreita
escada ascendente. Subiram por ela até deterem-se frente a uma
porta acolchoada que não estava fechada com chave. Harrison a
fechou depois de atravessá-la, experimentando as chaves que tinha
sobre a fechadura. Não teve êxito. Nenhuma das chaves encaixava
na fechadura daquela porta.
—Não sei se nos ouviram ou não —disse –, é possível que
não, a menos que houvesse alguém perto. Este edifício foi
projetado para abafar os sons. Acredito que estamos em algum
lugar do sótão.
—Jamais sairemos vivos daqui —gemeu a garota—. Você
está ferido... vi sangue em sua camisa.
—É apenas um aranhão – disse grunhindo o grande detetive,
examinando com cuidado o feio corte que ia desde o peito até o
abdômen, molhando-o de sangue. Agora que sua fúria começava a
acalmar, começou a sentir dor.
Abandonando a porta, seguiu subindo, envolto em uma
densa escuridão, guiando a jovem, cuja presença sentia somente
por meio do contato de uma suave mão com a sua. Então a escutou
chorar de forma convulsiva.
—Tudo isso é culpa minha! Eu o meti em tudo isso! O druso
Ali ibn Suleyman...

191
—Eu sei —grunhiu ele—. Erlik Khan me contou. Mas
nunca suspeitei que fosse você que o induziu a essa loucura para
apunhalar-me. Por acaso estava mentindo Erlik Khan?
—Não! —gemeu ela—. Meu irmão, Josef.... até essa mesma
noite, pensava que fosse tu que o havia matado.
Harrison se sobressaltou.
—Eu? Mas eu não lhe disse? Não sei quem o matou.
Alguém disparou por cima de meu ombro... apontando para mim,
isso reconheço, durante a batida policial na casa de jogos
clandestina de Osman Pasha.
—Isso eu sei agora —sussurrou ela—. Mas sempre acreditei
que mentia para mim sobre o assunto. Pensava que quem o tinha
matado fosse tu mesmo. Muita gente acredita nisso, sabe? Queria
vingança. Julguei o que eu pensava ser um plano seguro. O druso
não me conhece. Jamais havia me visto quando estava acordado.
Subornei o dono do estabelecimento que vendia ópio, no qual
frequentava Ali ibn Suleman, para poder droga-lo com a lótus
negra. Logo, comecei a trabalhar a mente dele. Essa técnica é
muito parecida com a hipnose.
“De todo modo, o dono da casa de ópio deve ter falado.
Erlik Khan soube de como Ali ibn Suleyman estava me servindo e
decidiu castigar-me. Pois Erlik Khan temia que o druso houvesse
falado demasiadamente enquanto estivesse drogado”.

192
“Também eu sei muita coisa para alguém que não jurou
obediência a Erlik Khan. Tenho sangue oriental em minhas veias e
me vi obrigada a me meter nas manobras de River Street até o
assunto ser concluído. Josef também havia jogado com fogo, igual
como eu estou fazendo. Custou-lhe a vida. Erlik Khan me disse
esta noite quem foi o verdadeiro assassino de meu irmão. Foi
Osman Pasha. Não apontou você como aquele que queria matar
Josef”.
“Fui uma estúpida —disse com um suspiro—. Agora minha
vida está perdida. Erlik Khan é o rei de River Street”.
—Não será por muito tempo —grunhiu o detetive—. Vamos
sair daqui de algum modo e logo voltarei com um esquadrão de
policiais para limpar esta condenada ratoeira. Ensinarei a Erlik
Khan que isto é a América, não a Mongólia. Quando voltar a me
encontrar com ele...
Interrompeu de repente a frase quando os dedos de Joan se
fecharam sobre sua mão de forma convulsiva. De algum lugar
acima deles, soou um murmúrio confuso. O que podia ter encima
deles, era algo que não podiam saber, mas os pelos se irizavam ao
pensar o que poderia voltar a prendê-los naquela escura e intricada
escada. Seguiu subindo, puxando a garota, quase arrastando-a, até
que chegaram diante de uma porta aberta.
Ao chegar ali, uma luz brilhou embaixo deles e um agudo

193
alarido cobriu os fugitivos. Muito embaixo deles, Harrison pode
distinguir um conjunto de olhos que brilhavam embranquecidos e
inúmeros aços lançavam um clarão.
Atravessaram a porta e a fecharam atrás deles. Durante um
frenético instante, Harrison buscou uma chave que pudesse
encaixar na fechadura. Quando não a encontrou, agarrou o pulso
de Joan e correu por um corredor que discorria por entre negros
tecidos de veludo pendurados. Aonde conduzia, não podia sabê-lo.
Porém sabia que a morte, sombria e implacável, lhes pisava os
calcanhares.
Atrás deles, uma aterrorizante matilha se estendeu pelo
corredor: homens amarelos com jaquetas de seda e calças largas,
armados com facas. Frente a eles se erguia uma entrada tapada por
uma cortina. Colocando de lado as cortinas, abriu a porta e
atravessou o umbral, levando a garota. A porta se fechou atrás
deles e se detiveram bruscamente, como dois cadáveres inertes.
Um gélido desespero oprimiu o coração de Harrison.

194
V

Encontravam-se em um vasto salão semelhante a uma câmara,


como jamais haviam podido sonhar que existissem embaixo dos
prosaicos terraços de uma cidade ocidental. Exóticas lanternas
com fantásticos dragões talhados estavam pendurados no altíssimo
teto, arrojando um lustre nas cortinas de veludo que ocultavam as

195
paredes. Em suas negras superfícies se viam dragões, cujos
contornos haviam sidos costurados em fios de prata, ouro e
escarlate. Em uma alcova próxima à porta descansava um ídolo
achatado, volumoso, muito mais alto que um homem, e meio
escondido por uma pesada tela lacrada: uma obscena e brutal
zombaria da natureza que somente uma mente mongol poderia
haver concebido. Junto a ele se alçava um altar do qual subia uma
espiral de fumaça de incenso.
Harrison prestou pouca atenção ao ídolo nesse momento.
Parecia-lhe mais importante a figura com capa e capuz que
permanecia sentada com as pernas cruzadas sobre um divã de
veludo no outro extremo do salão. Haviam se metido direto na
boca do lobo. Ao redor de Erlik Khan, em atitude submissa, se
sentava um grupo de orientais: chineses; sírios e turcos.
A inércia da surpresa que havia contido a ambos os grupos –
Harrison e garota e os soldados de Erlik Khan – foi quebrada por
um grito particularmente ameaçador, proferido por Erlik Khan que
tinha se colocado de pé e levando as mãos à cintura. Os homens se
alçaram repentinamente, uivando e buscando as armas. Atrás
deles, Harrison escutava o clamor de seus perseguidores do outro
lado da porta. Naquele instante, reconheceu e aceitou a única e
desesperada alternativa a uma captura imediata. Saltou até o ídolo,
arrojando a garota no pequeno nicho que havia atrás da parede,

196
entrando nele. Logo, girou até a entrada. Era a última aposta... e o
final do caminho.
Não tinha esperanças de poder escapar. Suas motivações
eram tão somente de um lobo ferido e encurralado que se arrastava
até um rincão, o qual seus inimigos teriam de enfrentá-lo frente a
frente.
A enorme massa de pedra jade do ídolo bloqueava a entrada
do nicho, exceto uma lateral, na qual havia um estreito espaço
entre sua deformada coxa, o ombro e a esquina da parede. O
espaço do outro lado era demasiadamente estreito até mesmo para
um gato deslizar por ele e, além do mais, estava tapado por uma
tela. Olhando através dos interstícios da tela, Harrison pôde
visualizar toda a sala na qual seus perseguidores acabavam de
irromper. O detetive reconheceu seu líder como Fang Yin, o
lançador de machados.
Alçou-se um furioso murmúrio, dominado pela voz de Erlik
Khan que falava em inglês, a única língua em comum diante toda
aquela mescla de raças.
—Escondem-se atrás do deus de jade. Retire-os daí.
—Melhor disparar uma saraivada —protestou um homem de
pele escura e constituição robusta, a quem Harrison reconheceu
como Ak Boga, um turco cuja tez contrastava com seu acento
ocidental—. Arriscaremos nossas vidas se sairmos daqui e

197
ficarmos na sua mira; poderia disparar desde a tela.
—Néscio! —a voz do mongol irradiava ira—. Se tivesse
uma arma de fogo, já haveria disparado. Que nenhum homem
aperte o gatilho. Poderiam refugiar-se atrás do ídolo e
precisaríamos efetuar muitos disparos para acabar com eles. Uma
refega de disparos provocaria um ruído desnecessário. Pode ser
que apenas um disparo seja escutado nas ruas, mas esse único
disparo seria suficiente para atiçar a curiosidade daqueles que
vivem lá em cima. Ele tem só um machado. Dobrem-no e cortem-
no em pedaços!
Sem hesitar, Ak Boga correu até eles, seguido pelos outros.
Harrison segurou fortemente o machado. Só podia entrar um
homem de cada vez...
Ak Boga estava na estreita abertura entre o ídolo e a parede
antes que Harrison pudesse mover-se por trás do enorme bloco
verde. O turco uivou como uma fera triunfante e se lançou para
frente, alçando seu punhal. Seu enorme corpo bloqueava a entrada
e os outros homens que vinham atrás só podiam espiar um vestígio
– por cima de seu ombro – do sombrio rosto de Harrison e seu
enfurecido olhar.
Harrison enterrou o cabo do machado o mais profundamente
no rosto de Ak Boga, quebrando nariz, boca e dentes. O turco
retrocedeu cuspindo sangue. Meio cego, contra-atacou com a

198
selvageria de uma pantera moribunda. O fio cortante de seu
punhal arranhou o rosto de Harrison desde a testa até a barbicha e,
então, a lâmina do machado se chocou contra o peito de Ak Boga,
enviando-lhe para trás, onde caiu moribundo.
Os homens atrás retrocederam espantados. Harrison,
sangrando como um porco ferido, voltou a refugiar-se atrás do
ídolo. Os atacantes não podiam ver o gigante branco espreitando
na entrada debaixo da sombra do ídolo, mas podiam ver somente
Ak Boga engasgando-se no chão, enquanto a vida lhe escapava
pela ferida no peito. Tudo aquilo se parecia mais como uma
espécie de sangrento sacrifício, e essa visão quebrava até mesmo
os nervos daqueles que eram mais ferrenhos.
E então, quando o assunto parecia estar em um beco sem
saída, e o próprio Senhor da Morte parecia indeciso, um novo
fator apareceu por sua própria conta naquele tenso drama. Abriu-
se uma porta e uma figura fantástica apareceu através dela.
Harrison escutou a jovem, atrás dele, engolindo saliva, incrédula.
Era Ali ibn Suleyman quem entrou naquele grande salão
como se caminhasse por seu castelo no misterioso Djebel druso.
Havia deixado de vestir-se com as roupas próprias da civilização
ocidental. Sobre a cabeça, levava um kafiyeh fixado na frente com
uma ampla pedra brilhante; embaixo de sua luminosa aba
mostrava umas botas ornamentadas e recobertas de prata. Suas

199
pálpebras estavam pintadas com Kohl, fazendo com que seus
olhos parecessem possuir uma mirada ainda mais letal que a
habitual. Levava na mão uma grande cimitarra curva.
Harrison enxugou o sangue da cara e encolheu os ombros.
Nada no salão de Erlik Khan podia já surpreendê-lo, nem sequer
aquela primorosa figura que parecia haver saído de algum sonho
produzido pelo ópio do oriente.
A tensão toda ficou centralizada no druso que avançava pelo
centro do salão, com um aspecto mais alto e formidável, trajando
sua roupa nativa, que ele não tinha com as roupas ocidentais. Não
mostrou mais a mesma submissão que antes tinha para com o
Senhor da Morte. Deteve-se diretamente em frente de Erlik Khan
e falou sem medo:
—Por que não me disse que meu inimigo era prisioneiro
nesta casa? – falou em inglês, a única língua que tinha em comum
com o mongol.
—Você não estava aqui? – replicou bruscamente Erlik
Khan, incomodado com as altivas maneiras do druso.
—Não, mas acabei de chegar e me inteirei de que o cão que
uma vez foi Ahmed Pasha se esconde em um nicho dessa câmara.
Vesti-me do modo adequado para a ocasião – disse e, dando as
costas para o Senhor da Morte, caminhou até o ídolo com grandes
passadas.

200
—Oh! Infiel! – chamou – saia daí e enfrente meu aço. Em
lugar da morte de um cão que te espera, ofereço-lhe uma batalha
honrada... teu machado contra minha espada. Saia daí ou terei que
entrar e retirá-lo puxando-o pelas barbas!
—Jamais tive barba! – grunhiu o detetive – entre aqui e me
capture!
—Não —se queixou Ali ibn Suleyman—. Quando era
Ahmed Pasha, ao menos tinha a coragem de um homem. Saia para
que tenhamos espaço para brandir nossas armas. Se me matar,
estarás livre! Juro pelo Bezerro de Ouro!
—Posso arriscar-me em confiar em ti? – sussurrou Harrison.
—Um druso sempre mantém sua palavra – sussurrou Joan.
Mas Erlik Khan...
—Quem é você para fazer promessas? —gritou Harrison—.
O amo aqui é Erlik Khan.
—Não em meus assuntos particulares! —foi a arrogante
resposta—. Juro pela minha honra que nenhuma mão será
levantada contra você, e que, se me matar, poderá ir livre. Não é
assim, Erlik Khan?
—Que seja como desejares! – respondeu o mongol, alçando
a mão em um gesto de resignação.
Joan agarrou de forma convulsiva o braço de Harrison,
sussurrando com urgência:

201
—Não confie nele! Não manterá sua palavra! Trairá tanto a
ti como a Ali! Nunca se conformará com que o druso te mate... o
modo de castigar Ali será fazer com que outro acabe contigo!
Não... não...
—De todo modo, esse é o final —murmurou Harrison,
enxugando o sangue e o suor de seus olhos—. Acredito que posso
assumir esse risco. Caso contrário, voltaram a atacar e estou
sangrando tanto que, dentro de pouco tempo estarei muito
debilitado para lutar. Espere o momento certo, garota, e tente fugir
enquanto todo mundo estiver com o olhar fixo no combate entre
Ali e eu.
Em seguida, Harrison acrescentou em voz alta: —Há uma
mulher aqui comigo, Ali. Deixe que vá antes de começarmos a
lutar.
—Para que chame a polícia e venha em teu resgate —
respondeu Ali—. Não! Ela ficará aqui e, se caíres, ela também
cairá. Então, não vai sair?
—Já sairei – anunciou Harrison. Agarrando com força o
machado, saiu da alcova, parecendo uma figura sombria e
espantosa com o sangue escorrendo por seu rosto e a roupa
retalhada. Viu Ali ibn Suleyman se aproximando até ele, com sua
descomunal cimitarra brilhando com uma luz azulada.
Harrison levantou o machado, debatendo-se contra uma

202
repentina sensação de debilidade... escutou um som apagado e,
nesse mesmo instante, sentiu um paralisador impacto contra sua
cabeça. Não estava consciente de haver caído, mas se deu conta de
que jazia no solo, ainda desperto, mas incapaz de falar ou mover-
se.
Um alarido selvagem chegou até seus ouvidos e Joan La
Tour, uma fugaz figura branca, se estendeu ao seu lado, enquanto
uns dedos percorriam freneticamente sua cabeça.
—Vocês são uns cães... uns cães! —soluçava a jovem de
maneira histérica—. Mataram-no! – a garota levantou a cabeça e
gritou – Onde está agora tua honra Ali ibn Suleyman?
No local onde estava, Harrison pôde ver Ali, que permanecia
junto a ele, empunhando ainda sua cimitarra, com o olhar em
chamas e a boca aberta, como a encarnação do horror e da
surpresa. E, mais além do druso, o detetive viu o silencioso grupo
que se apinhava em torno de Erlik Khan, e também Fang Yim que
empunhava uma pistola automática com um canhão estranhamente
alargado... um silenciador. Um disparo com silenciador não seria
escutado na rua.
Um alarido feroz e frenético saiu da garganta de Ali ibn
Suleyman.
—Aie! Minha honra! Minha palavra empenhada! Meu
juramento ao Bezerro de Ouro! Haveis quebrado! Envergonhou-

203
me diante de um infiel! Roubaste, de uma só vez, minha vingança
e honra! Sou por acaso um cão para que me trate dessa maneira?
Ya Maurf!
Sua voz se converteu em um rugido felino e, lançando-se
para frente, avançou como um cegante raio de luz. O grito de Fang
Yim se tornou um aterrorizante gorgolejo e a cimitarra cortou o ar
como uma chama azul. A cabeça do chinês voou de seus ombros
com um abundante jorro de sangue, caindo ao solo com um sorriso
sinistro embaixo da luz dourada. Com um uivo de terrível
exaltação, Ali ibn Suleyman saltou direto contra a figura
encapuçada sentada no divã. Numerosas figuras com turbantes
ficaram em seu caminho. Os aços ressoaram, fazendo saltar
fagulhas. O sangue foi derramado e os homens gritaram. Harrison
viu como a cimitarra do druso resplandecia azulada sobre a cabeça
encapuçada de Erlik Khan. O capuz caiu, partido em duas
metades, e o Senhor da Morte caiu contra o solo, enquanto seus
dedos se abriam e fechavam de forma convulsiva.
Os demais se desprenderam ao redor do enlouquecido druso,
instigando-o para retroceder. A figura com uma ampla aba estava
cercada por uma dezena de lâminas afiadas e de um grupo
ofegante e basfemante de corpos endurecidos. E ainda assim, a
gotejante cimitarra resplandecia cortando o ar, abrindo caminho
através de carne, ossos e tendões, enquanto os pés dos vivos

204
tropeçavam com os cadáveres mutilados. Embaixo dos corpos que
combatiam, o altar caiu ao solo, e o fumeante incenso se espalhou
pelos tapetes. E no instante seguinte as chamas começaram a subir
pelas paredes. Com um crescente rugido, o fogo envolveu toda a
lateral do grande salão, mas os combatentes não pareciam notá-lo.
Harrison tomou consciência de que alguém o arrastava pelos
braços. Alguém que gemia e soluçava, porém que não enfraquecia
em seus esforços. Um par de mãos esbeltas se aferrava em sua
camisa feita em pedaços, enquanto o arrastava com força através
de uma densa fumaceira que a cegava a ponto de se asfixiar. As
mãos que o agarravam pareciam perder força, mas não o soltava,
ao contrário, fez uso de todas as suas forças combinadas. Então, de
repente, o detetive sentiu uma refega de ar limpo e ficou
consciente de que seus ombros se achavam sobre um solo de
cimento em vez de um chão de madeira forrada com tapetes.
Jazia sobre a calçada de uma rua, enquanto que por cima
dele uma parede se iluminava com um resplendor vermelho. No
outro lado se percebiam as destroçadas docas e, mais além, o
luxurioso resplendor que se refletia sobre a água. Escutou os uivos
das sirenes dos bombeiros e notou os murmúrios e os gritos das
pessoas que começavam a rodeá-lo.
A vida e o movimento foram regressando pouco a pouco às
suas entumecidas veias. Levantou a cabeça, dolorida, e viu Joan

205
La Tour, agachada ao seu lado, indiferente a chuva que caia.
Quando o viu mover-se, começaram a escorrer lágrimas por suas
bochechas, exclamando:
—Oh, não está morto... parecia-me que sobrava muito
pouca vida em seu interior, mas não quis que eles suspeitassem...
—Feriram-me embaixo do couro cabeludo – murmurou ele,
com voz tremulante – e me nocautearam durante alguns minutos...
mas pude ver o que estava se passando, antes que... você me
tirasse dali...
—Enquanto lutavam, aproveitei para escapar. Pensava que
jamais encontraria uma porta que desse para o exterior... Aí vem
os bombeiros! Finalmente! – disse La Tour.
—Os Yat Soys —recordou Harrison de repente, tentando
levantar-se—. Há dezoito chineses nesse sótão... Meu Deus, vão
se queimar!
—Não podemos ajuda-los! —ofegou Joan La Tour—.
Tivemos muita sorte de nos salvarmos. Oh!
A multidão retrocedeu, gritando quando o telhado começou
a cair em uma chuva de destroços. E, através de seus intactos
muros, como por obra de um milagre, apareceu uma terrível
figura... Ali ibn Suleyman. Suas roupas, penduras em retalhos
ensanguentados, revelavam as espantosas feridas que haviam por
baixo de sua camisa. O turbante de sua cabeça havia desaparecido,

206
seu cabelo estava coberto de sangue. Sua cimitarra tinha
desaparecido e o sangue emanava de seu braço até os dedos que,
agora, seguravam uma adaga gotejante.
—Aie! —gritou com um espantoso grasnido—. Vejo você,
Ahmed Pasha, através da fumaça e do fogo! Ainda vive, apesar da
traição do mongol! Isso é bom! Pois somente a mão de Ali ibn
Suleyman, aquele que foi Amir Amin Izzedin, poderá matá-lo!
Lavarei minha honra com sangue e tudo estará resolvido. Sou um
filho de Maruf, das montanhas do Abrigo. Quando minha espada
estiver oxidada, farei ela voltar a brilhar com o sangue de meus
inimigos!
E, avançando, lançou sua cabeça ao vazio, mirando os olhos
de Harrison enquanto caia; logo, depois de cair, ficou imóvel,
mirando sem ver em direção aos céus iluminado pelo resplendor
das chamas.
FIM

207
208
Resenhas de Rodrigo Martins

O MISTÉRIO DA MANSÃO TANNERNOE


Este é talvez, dos contos de detetive, ou mesmo de todos que
Howard escreveu, que mais se aproxime de A queda da Casa de
Usher, de Edgar Alan Poe. E por que digo isso? Porque toda a
narrativa é permeada por meios-tons de cores escuras, o mistério
indissolúvel se desdobra em si mesmo a cada página, a cada linha.
E claro, não podia faltar uma mansão tão antiga quanto sinistra
como palco de uma trama amarrada e que beira o fantástico.
O mistério da Mansão Tannernoe abre com uma bela
conjectura do próprio Howard. O leitor mais familiarizado com a
escrita do texano concordará comigo que a frase inicial “Os
problemas que perturbam os homens nas horas de vigília, em
certas ocasiões, são introduzidos nos sonhos” vai além do
narrador e até refletir em grande parte o homem Robert Howard.
E o que se segue é um suspense de tirar o fôlego, com o
detetive Steve Harrison recolhendo os indícios de um crime que
acabou de acontecer! Lembra quando você jogava vídeo game e
ao solucionar um mistério, ele fornecia pistas para outro? Pois é
isso por que passa o detetive de River Street.
Apesar de ainda haver ligações com o perigoso vilão Erlik Khan,
nosso herói se vê às voltas com uma vingança promovida por

209
árabes contra um nada inocente Absolom Tannernoe, o
proprietário da mansão. E por tornar a falar nela, o descortinar das
imagens é simplesmente fantástico, seja nas cenas da mais bruta
ação, seja nas da mais angustiante tensão. O homem de Cross
Plain não só sabe o que está fazendo como tem pleno domínio.
Se eu fosse você correria logo para ler.

210
O MISTÉRIO DA MANSÃO TANNERNOE
THE MYSTERY OF TANNERNOE LODGE
De Robert E. Howard
Tradução e revisão: Marcelo Souza

I.

Os problemas que perturbam os homens nas horas de vigília,


em certas ocasiões, são introduzidos nos sonhos. Pouco antes de
despertar-se, os sonhos de Steve Harrison concerniam no
misterioso diagrama que vinha estudando a semanas: a imagem, a
carta que a acompanhava e as enigmáticas palavras na parte
inferior, rabiscadas pelas mãos de um homem morto. Em seu
sonho, uma débil familiaridade estava começando a se tornar
evidente; ele parecia estar prestes a descobrir algum tipo de
conexão que sussurrava por trás de sua consciência...
Então, o caos se seguiu como o colapso de um castelo de

211
cartas, e ele acordou. Sentou-se na cama, olhando em volta,
enquanto seus instintos treinados iam imediatamente ao trabalho
para lhe dizer onde estava e o que estava fazendo ali. O luar
atravessava as janelas abarrotadas, manchando de prata o piso
cheio de carpetes, mas os cantos do quarto estavam emoldurados
por densas sombras ao longo das paredes de painéis de carvalho,
com seus tapetes de veludo preto, espaçados regularmente. E, no
canto mais escuro da sala, algo se moveu.
—Quem está aí? — perguntou Harrison com voz rouca.
Não houve resposta da figura sombria que parecia quase se
misturar com a escuridão. Mas foi tangível. O detetive pensou ter
vislumbrado um oval muito pálido que poderia ser um rosto.
Algo próximo ao pânico tomou conta dele. Puxando sua
pistola 45 debaixo do travesseiro, ele apertou o gatilho, mas só
conseguiu ouvir um leve clique.
Com uma imprecação, ele pulou da cama com os músculos
tensos para lutar até a morte... e ao fazê-lo, ouviu um impacto
suave, como uma faca em um bife. Um grunhido e um suspiro
sibilante o acompanharam. A misteriosa figura desabou de
cabeça, como um boneco, ficando com os braços estendidos. Um
raio de luar caiu em suas mãos, que se contraíram
convulsivamente.
Mais adiante, Harrison pensou ter visto uma sombra se

212
movimentando na penumbra da parede, porém não tinha certeza.
Xingando baixinho, ele se lançou sobre o interruptor de luz.
Um clique inútil foi sua única recompensa. Não havia
eletricidade. Ele se lembrou da lanterna em sua maleta e logo a
retirou. O feixe de luz revelou uma sala aparentemente vazia,
exceto por ele próprio e a figura deitada de barriga para baixo e
inerte perto da parede oposta, envolta em uma poça crescente de
sangue.
Antes de se aproximar da porta, Harrison focou a lanterna
sobre as paredes, formada por painéis de carvalho escurecidos
pelo tempo e tapetes de veludo. Ele grunhiu. Ainda estava
trancada com o trinco antigo que havia colocado antes de ir
dormir. Evidentemente, o visitante não havia entrado por aí.
Caminhou até a janela e olhou para fora. Ao baixar a mirada,
observou uma parede nua de quinze metros de altura, sem
encaixes ou ornamentos. A mansão Tannernoe foi construída
como um castelo medieval, ou, pelo menos, de acordo com a
concepção de um castelo que o construtor tinha.
—Ninguém pode ter alcançado essa janela lá de baixo —,
murmurou o detetive —. Não, a menos que ele tivesse asas ou
tivesse uma escada...
De repente ele ficou em silêncio. Ao longe, os pinheiros que
ladeavam a grande casa agitavam-se silenciosamente ao luar.

213
Suas sombras traçavam padrões de ébano sobre o estreito jardim,
e Harrison, olhando naquela direção, pensou poder distinguir um
vislumbrar de movimento na escuridão. Uma procissão de
formas silenciosas... talvez meia dúzia deles ... emergiu de entre
os pinheiros, indo em direção à mansão.
Harrison piscou e as formas desapareceram. Ele praguejou
baixinho e continuou a observar, mas não detectou mais
movimento. Na verdade, ele chegou a se perguntar se realmente
havia visto algo pela primeira vez, pois sabia que o luar
costumava enganar os olhos.
Mas agora não havia tempo para se preocupar com isso.
Virando-se para o interior da sala, ele se ajoelhou ao lado da
figura prostrada do intruso. Era um homem plano com uma
constituição robusta. Calçava sandálias estranhamente
pontiagudas e usava uma espécie de jaqueta de seda preta, agora
inundada de sangue. Um corte largo rasgou a peça entre os dois
ombros, revelando uma ferida que provocou um grunhido do
detetive.
Depois de levantar a cabeça do homem, ele grunhiu
novamente. Havia um ferimento menor no peito e, além disso,
reconheceu o rosto que olhava para ele sem vê-lo. Era um servo
do dono da Mansão Tannernoe.
—É Gutchluk Khan, o Chakhar! —Harrison murmurou—. O

214
que diabos ele estava fazendo aqui?" Eh ... o que é isso?
Ele se abaixou para pegar algo: um cordão de seda, redondo e
de toque particularmente afiado. Um arrepio gelado percorreu
sua espinha.
— A corda de um estrangulador! —sussurrou — Ele veio
aqui para me matar. Mas porque? Ele é a ameaça oculta? É seu
próprio criado a quem tem medo Absolom Tannernoe?
Ele hesitou por um momento, enquanto a incerteza rastejava
em sua mente. A descoberta da identidade do homem morto
provocou uma inquietação que o fez duvidar de advertir seu
anfitrião, algo que ele teria feito se as circunstâncias tivessem
sido diferentes. Quando Absolom Tannernoe entrou em contato
com o robusto detetive e pediu-lhe para ficar alguns dias na casa
grande para protege-lo de determinada ameaça intangível, ele
apontou que seu criado, Gutchluk Khan, entre todos, era a única
pessoa em quem confiava.
Com uma sensação de desconforto, Harrison examinou a
parede em frente da qual o Chakhar estivera pouco antes de cair
fulminado. Ele tinha certeza de que, em algum lugar daquela
parede, devia haver um painel secreto pelo qual Gutchluk e seu
assassino haviam entrado e pelo qual o último escapara.
Voltando de novo sua atenção para o cadáver, Harrison
encolheu ombros enquanto examinava a ferida. Obviamente, a

215
arma usada era uma faca de tamanho incomum, manipulada com
uma força quase incrível... tanto que perfurou com a lâmina de
aço não apenas a carne e os músculos, mas também os ossos. A
ferida nas costas dele era tão larga quanto a mão de um homem;
as costelas e a espinha haviam sido seccionadas; e, à frente, o
peito havia sido perfurado. A morte deve ter sido instantânea.
Que homem da mansão Tannernoe seria capaz de aplicar tal
golpe? Certamente não foi Absolom Tannernoe. E desde a sua
chegada na manhã anterior, o detetive só havia visto o dono da
casa e o criado Chakhar.
Tannernoe insistira muito que algum perigo o ameaçava, mas
ele tinha sido vago ao explicar sua natureza. A ideia de Harrison
atuando como guarda-costas era limitada a permanecer em
guarda durante a noite, e ter seu revólver 45 pronto, bem
carregado. Tannernoe, no entanto, insistira que Harrison
ocupasse o quarto da torre, preparado para ele. Hiavia sido muito
insistente, na verdade, e sustentou que a mera presença do
detetive na casa já era proteção suficiente.
Uma suspeita começou a crescer na mente de Harrison,
rejeitada apenas porque era muito infundada e irracional.
Então ele se lembrou de outra coisa.

Abrindo o revólver ao meio, removeu o tambor e examinou os

216
cartuchos. Um deles mostrou a marca do martelo. Usando os
dentes e uma unha, ele removeu a bala e despejou o conteúdo da
cápsula do cartucho em sua mão. As pequenas partículas
brilhavam na luz fraca.
—Limalhas de latão! — Ele exclamou suavemente. São balas
de festim ... recheados com metal em pó para ter o peso certo!
Alguém mudou a munição ... Mas quem ...?
Ele se sentou em silêncio, examinando com atenção os
cartuchos inúteis em sua mão, enquanto uma expressão sombria
se apoderava de seu rosto. Steve Harrison era, por natureza e por
escolha, um lutador de braços fortes. Raramente carregava armas
de fogo; geralmente as mantinha em uma mala. Aqueles
cartuchos falsos haviam sido colocados em seu revólver depois
que ele entrou na casa dos Tannernoe, e a menos que a casa
abrigasse pessoas desconhecidas, apenas um homem poderia ter
tido a chance de fazer a troca. Ele não perdeu de vista a bolsa na
qual levava o revólver durante a viagem, exceto quando o tirou e
colocou no coldre... por alguns minutos.
O enigmático Gutchluk guiara-o brevemente pelos terrenos
exteriores à casa, depois que havia decidido levar consigo o
revólver. Durante esse tempo, apenas Absolom Tannernoe estava
na casa.
—Ele trocou meus cartuchos — ponderou Harrison. Mas

217
porque? Então, quem matou Gutchluk? Alguém se escondeu
nesta casa... alguém de quem o velho Tannernoe não sabe nada?
Mas, se é assim ... por que Gutchluk entrou para me matar?
Suas conjecturas foram interrompidas por uma batida suave
na porta. Ele se levantou e pegou o revólver como se fosse uma
arma contundente e ouviu um leve sussurro...
Era a voz de Absolom Tannernoe.
—Gutchluk! Por que você está atrasado? —A voz era como o
silvo de uma serpente— Está morto? Por que não me responde?
Eu estive lá embaixo, esperando por você para me trazer o
caderno de notas. O tem? Você escondeu? Eu sei que leva ele
contigo ... Ahhhhhhhhhh!
A voz foi interrompida, tornando-se um suspiro abafado,
como se uma mão tivesse tapado a boca daquele que falava.
Escutou-se o som de algo sendo arrastado, misturado com
agudos gemidos. Alguém... presumivelmente Tannernoe ...
estava sendo arrastado à força para o corredor abaixo, e,
descendo as escadas, seus pés esbarravam sobre o tapete dos
degraus.
Com um grande passo, o detetive alcançou a porta e
destrancou o trinco. Olhou para a escuridão absoluta, da qual não
se atreveu a acender sua lanterna. Havia alguém abaixo dele...
certamente pela intrincada escada no final do corredor... e ele

218
ouviu ruídos abafados, que soavam como um murmúrio de
vozes.
Seguiu esses sons, andando tão suavemente quanto uma
pantera, apesar de seu peso. Enquanto avançava, reviu em sua
memória as palavras que Absolom Tannernoe havia sussurrado.
A evidência de uma armadilha era inconfundível e,
obviamente, a razão clara era o caderno de anotações.
Instintivamente, Harrison tocou em um pequeno pacote achatado
que tinha dentro de sua camisa... ele tinha ido para a cama
totalmente vestido, exceto pelos sapatos. Aquele pacote plano
era o único caderno de qualquer importância que ele já possuíra.
Ele havia tirado do cadáver de um certo personagem obscuro,
conhecido como Josef La Tour, um famoso chantagista, suspeito
de fraude e roubo internacional. Nas páginas de seu caderno
apareceram muitos nomes, bem como uma série de fatos
notáveis relacionados a esses nomes... Um verdadeiro Diário do
Demônio! Mas o nome de Absolom Tannernoe não apareceu
nessas páginas. Por que o excêntrico viajante quer tanto pegar
esse livro... a ponto de cometer um assassinato para garantir sua
posse?
Chegou à escada da torre e começou a descer furtivamente,
tateando seu caminho e agarrando sua pistola de cano 45 como
se fosse um porrete. De algum lugar, abaixo, como o alarido de

219
um demônio, lhe chegou um grito estridente de dor. Xingando
baixinho, o detetive desceu o resto da escada o mais rápido que
se atreveu... e, quase no fundo, colidiu na escuridão com alguém
vindo de baixo!
A reação de Harrison foi tão instintiva quanto imediata; ele
deu um passo para trás, exatamente quando a ponta de uma faca
invisível se estendia em direção ao seu peito em uma punhalada
assassina. A lâmina perfurou sua camisa, ficando presa por um
momento, e então se soltou com um som de roupa rasgada.
O sangue do detetive congelou ao pensar em aço frio
deslizando através de suas entranhas. Puxando a lanterna, ele
conseguiu fechar a mão em torno de uma garganta peluda que se
materializou na escuridão, e então cruelmente atacou com a arma
que carregava na outra mão. A pesada culatra da pistola bateu
contra algo sólido, provocando um gemido agudo de dor. A faca
invisível caiu na escada acarpetada e Harrison a chutou para
longe.
Então começou uma disputa feroz, quando o oponente do
detetive atacou como se fosse um touro furioso, agarrando o
pulso da mão de Harrison que segurava a arma e parando o
próximo golpe do revólver. Dedos, que mais pareciam garras,
cravaram-se em sua garganta e Harrison, desesperado, abaixou a
mandíbula para proteger sua laringe. A luta fez com que

220
avançassem e recuassem em silêncio, exceto pelos suspiros, a
respiração e os passos dos pés no carpete.
O oponente de Harrison parecia ser tão corpulento quanto o
próprio detetive.... uma robusta massa muscular, tensa como
cabos de aço. O homem da lei lutou para recuperar o equilíbrio,
mas sabia que uma queda naquelas escadas poderia atrair a
atenção do resto da casa; e essa era uma situação que desejava
evitar.
Enquanto lutavam corpo a corpo, Harrison notou uma barba
emaranhada ao lado do queixo. O estranho ofegou insultos em
um dialeto estrangeiro... sírio ou algo assim, de acordo com o
detetive. Ele conhecia um pouco de sírio, porque havia seguido
vários suspeitos até o pequeno bairro sírio de River Street em
mais de uma ocasião.
Com um estalo de dor, o quadril de Harrison recebeu uma
forte joelhada que tinha sido destinada para sua garganta.
Frustrado em sua tentativa de conseguir uma presa letal sobre a
garganta de Harrison, o estranho de repente soltou o pescoço de
Steve e tentou arranhar-lhe os olhos. O detetive jogou a cabeça
para trás e seu rosto queimou onde foram cravadas as unhas de
seu oponente.
Esse ataque brutal estimulou Harrison a entrar em ação. Com
um tremendo impulso de seus ombros, soltou seu pulso direito

221
da garra do estranho. Uma careta espasmódica contorceu o rosto
na escuridão enquanto ele brandia descontroladamente o
revólver 45, tentando usá-lo para acertar a cabeça de seu
oponente. Sua primeira tentativa bateu em um ombro musculoso,
e outra roçou a orelha do estranho, arrancando um grito abafado
dele. A próxima, de alguma forma mais precisa, aterrissou no
crânio do homem.
Harrison sentiu o estranho se afastar... ele já havia soltado a
garganta dele, para que pudesse se apoiar na parede. O homem
barbado começou a descer a escada, para se afastar da ameaça do
porrete improvisado do detetive. Empregado com toda a força
que Harrison era capaz de reunir, o revólver era uma arma de
contato tão letal quanto uma maça medieval.
Harrison deixou o revolver descer de novo, e de novo, e o
segundo golpe se enterrou de maneira desagradável nas
profundezas de um osso. O detetive tinha certeza de que havia
acertado o outro no crânio. Ele bateu novamente, sentindo a
culatra do revólver quebrando os ossos novamente, e Harrison
ouviu seu oponente dar um gemido baixo e desmoronar no
patamar da escada.
Ofegando como um cachorro moribundo, o detetive encostou-
se na parede. Ele estendeu um pé cautelosamente e chutou seu
agressor nas costelas, mas não houve resposta. O homem

222
respirou irregularmente. Não estava morto. Mas Harrison supôs
que ele tinha recebido punição suficiente para, pelo menos,
mantê-lo quieto por um longo tempo.
O detetive passou a mão pelo rosto. Algumas gotas de sangue
fluíram do local onde as unhas do homem barbudo tinham
cravado em sua pele. Apesar disso, não parecia que tivesse
sofrido qualquer outro dano.
Tateando cegamente, Harrison encontrou sua lanterna, que
ainda funcionava. Não conseguiu encontrar a faca do oponente e
não se sentiu inclinado a perder mais tempo tentando recuperá-
la. Por um longo tempo, o detetive permaneceu imóvel, enquanto
seus músculos paravam de tremer devido ao combate feroz.
Então, respirando fundo, passou pela figura inerte do homem de
barba e continuou a descida.

II.

223
Quando chegou ao grande salão no andar de baixo, viu um
brilho luminoso através das cortinas que encobriam a entrada do
salão de Absolom Tannernoe. Depois de deslizar até ali, olhou
para o outro lado.
224
Uma pequena lâmpada de gás queimava ao lado da grande
lareira vazia, iluminando um grupo de figuras tensas. Em uma
grande cadeira de balanço, se encolhia uma forma que o detetive
reconheceu como Tannernoe, vestido apenas de calças e camisa,
com as mãos amarradas às costas.
Era um homem esguio e magro, de meia-idade, com cabelos
lisos e sem cor que pendiam de uma testa estreita e feições
afiladas. Havia algo especialmente predatório em seu grande
nariz arqueado e queixo pontudo. Agora, sua pele tinha um tom
acinzentado, como se devido a dor ou medo, e ele estava coberto
de suor.
Cinco figuras se agrupavam em torno dele. Cinco rostos
barbudos o ameaçavam no círculo de luz. Seus rostos pareciam
sombrios, irreais, mas ainda tão tangíveis quanto uma ameaça de
morte. Os estranhos usavam kafiyehs soltos, sugerindo sua
origem exótica, mas a língua em que falavam era o inglês.
—Depois de todos esses anos –disse um suavemente, e seu
sotaque não ocultou seu tom cruel de zombaria – pode ser que
nosso idioma seja ininteligível para você. Então eu falarei em
inglês... para que você, então, não possa nos interpretar mal.
“Devo avisá-lo que você deve considerar sua resposta com
muito cuidado. Mostramos como você se sente quando
colocamos um cigarro aceso no seu pé descalço. Nós temos a

225
noite toda pela frente. Ninguém vai nos incomodar. Ouvimos
suas afirmações para aquele cão da Mongólia, Gutchluk Khan,
pouco antes de pegarmos você, então deduzimos que ele havia
estrangulado o detetive americano que veio aqui hoje. Muito
bem. Deixamos Ahmed na escada e ele cuidará do Chakhar
quando chegar a hora”.
“Você certamente pensou que tinha se escondido tão bem que
nós, o povo do Líbano, nunca te encontraríamos. Um maronita
nunca esquece! Você deveria saber. Descobrimos o seu
esconderijo há uma semana e, desde então, estávamos te
espreitando. Mas você se escondeu tão bem que não
encontramos a oportunidade de entrar em sua casa, até esta
mesma noite”.
“Por que você mandou seus servos irem embora? Eu posso
imaginar. Eles teriam protegido você contra seus inimigos, mas
eles não matariam para você um homem dormindo. Você
reservou esta tarefa para Gutchluk Khan. E assim, enquanto a
casa ficava sem vigilância, entramos. Quem morreu esta noite na
sala da torre, é algo que eu não sei, mas nos fez um bom serviço.
E agora você vai nos dizer o que queremos saber”.
Harrison encolheu os ombros. O assunto estava ficando mais e
mais estranho.
—Eu não posso te dar o que você quer" — disse Tannernoe.

226
Foi roubado.
Eles responderam com uma risada brutal.
—Que ladrão poderia te superar? —perguntou o líder
cinicamente—Esqueceu que eu estava com você quando nós
roubamos isso naquele lugar que você conhece. Mas a paciência
começa a acabar. Alí, o cigarro...
—Espere! —A pele de Tannernoe ficou pálida—. Eu vejo que
você me deixou preso. Me deixe sair. Eu vou dar a você.
—Solte as mãos, Ali" — disse o Líder—. E fique ao seu lado com
o punhal pronto. Se ele tentar escapar, envie sua alma para
encontrar o diabo ao qual ele serve.
Um robusto maronita estava atrás de Tannernoe, com uma
adaga curva na mão e, a pedido de Tannernoe, uma vela foi
acesa. Por que Tannernoe ou os maronitas haviam desligado a
luz elétrica, Harrison não entendia.
Tannernoe apontou para um canto da sala:
—Vá lá e aperte esse painel ... olhe a sala do canto. Espere,
eu vou ...
—Não, você não vai"—respondeu o líder, a quem os outros
chamavam de Akbar. Você vai ficar aqui no comando do Ali. Eu
descobrirei o lugar onde a gema Maronita está escondida.
Cuidadosamente, Akbar começou a percorrer o painel com a
mão, enquanto os outros três, impacientes, se juntaram e

227
começaram a ajudar. E, com uma rapidez ofuscante, uma parte
do terreno cedeu, abrindo um grande buraco escuro através do
qual os quatro homens caíram.
Paralisado por este desastre, o homem chamado Alí deu um
grasnido selvagem. Então ele avançou, esquecendo seu
prisioneiro. Rápido e feroz como um gato da selva, Absolom
Tannernoe saltou até ele e tirou-lhe a adaga da mão. Harrison
observou o brilho de aço à luz da lâmpada quando se aproximou
da barba preta de Ali.
—Shaitan...! —o grito foi interrompido pelo corte da faca. O
Maronita desmoronou em uma chuva de sangue, enquanto seus
olhos dançavam loucamente e ele levou as mãos à barba tingida
de vermelho.
—Aí está você! —Tannernoe ficou ao lado dele, com a faca
na mão, ofegante e se transformando-se em uma imagem
desoladora de ira vingativa—. Você achou que ia me pegar
depois de todos esses anos? Ha! Eu ainda sou o mesmo homem
que enganou toda a sua tribo, nas montanhas do Líbano, dez
anos atrás.
"Há vida suficiente em você para observar, Ali, estúpido.
Você notará que a armadilha retornou ao seu lugar e que parece
ser uma parte sólida do solo. Eu tinha colocado quando eu tinha
a casa construída. Tannernoe Lodge tem uma infinidade de

228
segredos. A armadilha é ativada puxando aquele nó grosso de
veludo que parece fazer parte da tapeçaria; ou, quando peso
suficiente é colocado no alçapão, ele é ativado automaticamente.
“Seus amigos estão a esta hora dentro de uma masmorra sólida
localizada debaixo da casa, esperando o fim que não demorará
muito para alcançá-los. Então, se Gutchluk ainda não pegou
Ahmed na escada, eu mesmo o farei”.
Naquele momento, Harrison saiu de trás das cortinas com a
arma na mão.
Aquele assunto, o que quer que isso significasse, já tinha ido
longe demais.
—Tannernoe! — Ele exclamou.
O homem virou-se bruscamente e seu rosto ficou pálido,
como se tivesse visto um fantasma. Com um grito estrangulado,
ele se virou e correu em direção à parede dedilhando-a quando a
alcançou. O que ele fez no painel, Harrison não o viu, mas de
repente uma abertura preta se abriu e Absolom Tannernoe a
penetrou. Mas quando Harrison saltou para lá, seu olhar
atordoado não olhou além dos painéis da parede.
Jurando entre os dentes, ele parou, perplexo. Ele bateu na
parede com o ombro, mas os painéis estavam firmes. Outra
tentativa, feita com todas as suas forças, não obteve maior
sucesso. Obviamente, a única maneira de atravessar o muro era

229
encontrar o mecanismo oculto que Tannernoe havia acionado.
Harrison teve que fazer um esforço para controlar sua
impaciência enquanto seus dedos exploravam os painéis de
carvalho esculpidos. Ele sabia que o homem chamado Ali estava
estendido atrás dele, e que o sangue de sua jugular seccionada
formava uma poça assustadora no tapete, mas esse conhecimento
não o incomodava. Ali estava morto e, portanto, não
representava uma ameaça. Mas Ali ainda estava vivo, e os
cabelos de Harrison se arrepiaram ao pensar que o libanês
poderia deslizar atrás dele, empunhando uma adaga.
O detetive não desistiu um só momento para examinar os
painéis e, de repente, uma trava escondida se abriu, e ele notou
como uma parte da parede cedia sob suas mãos. Uma lufada de
ar frio e viciado atingiu seu rosto, enquanto uma seção do painel
girava para dentro, como se fosse conduzida com um contrapeso.
Um flash de agradecimento brilhou nos olhos azuis de aço de
Harrison.Ele começou a atravessar a abertura à sua frente e parou
depois de pensar nisso.
Depois de colocar a lanterna no bolso, ele mexeu na camisa
rasgada até encontrar um pequeno pacote achatado, encadernado
em papel marrom. Era o caderno que encontrara no cadáver de
Josef La Tour, na noite em que o jovem eurasiano foi morto a
tiros no teatro de Osman Pasha, na River Street. Harrison – que

230
por pura coincidência liderava uma batida policial na época –
fora o primeiro a se aproximar do corpo; embora Osman e seu
gigantesco guarda-costas mudo, o checheno Hadji Murad,
haviam estado junto a ele.
Ciente do negócio de chantagem que o falecido estava
aprontando, o detetive confiscou o caderno, pensando que ele
poderia fornecer algumas pistas sobre a identidade do assassino.
De fato, o eurasiano havia marcado uma seção específica, que
continha uma fotografia, um diagrama esquemático e duas ou
três frases misteriosas.
A fotografia – antiga, borrada e mal tirada – mostrava uma
grande estrutura de pedra com torres, alojada no alto de um rio.
Um homem com uma barba frondosa, mas bem cuidada, vestido
com as roupas do Oriente Médio, posava ao lado do prédio. A
distância era grande demais para discernir claramente seus
traços, mas havia algo naquele homem que, ultimamente,
começara a despertar uma vaga lembrança na mente de Harrison.
O diagrama que acompanhava a foto poderia ser interpretado
como o plano esquemático do prédio que mostrava a fotografia,
como Harrison pensava. Mas as frases que La Tour escreve
tinham pouco sentido: «O tesouro de Orontes, roubado em
outubro. 1924 », disse um deles. E: «Adam Garfield, chegou.
Nova York, setembro 1925 ». E o último: «A.G. visto no rio St.

231
Abril de 1934 ».
Quem poderia ser Adam Garfield? Harrison não foi capaz de
determinar isso. No entanto, mais tarde, o detetive soube de
Joan, irmã de La Tour, que Josef havia sido morto por Osman
Pasha, o turco que era o dono da casa de apostas. Joan descobrira
essas informações do sinistro arqui-criminoso Erlik Khan, em
cuja fortaleza oculta na River Street, ela e Harrison quase
perderam a vida.
Osman desapareceu assim que se deu a ordem para procurá-
lo, e ele ainda estava sendo perseguido pela polícia. Enquanto
isso, Harrison ficou intrigado com as anotações do chantagista
sobre "Adam Garfield". E se perguntou se Garfield não seria a
vítima da última chantagem de La Tour e, em caso afirmativo, se
teria ajudado Osman a cometer o assassinato.
Ao chegar ao Casarão Tannernoe, a pedido de Absolom
Tannernoe, Harrison trouxe o caderno na esperança de conseguir
reunir mais informações sobre Garfield. Até agora, sua busca
havia sido em vão.
Obviamente, Tannernoe tinha seus próprios planos para o
caderno, e ocorreu a Harrison que seria bom esconder o diário
em um local seguro, como prevenção para o que poderia
acontecer. Se ele o carregasse enquanto caçava Tannernoe, havia
uma chance de perdê-lo... ou era possível ser roubado, se o velho

232
Tannernoe o emboscasse.
Depois de olhar rapidamente ao redor do estúdio, o detetive
notou uma armadura repousando na parede, que estava ao
alcance de seu braço. Era uma armadura completa, lindamente
executada, mas enferrujada e danificada pela idade. O visor
inferior do capacete parecia observar o detetive com os olhos
inclinados.
Harrison levantou o visor, tateou o interior do capacete com a
mão e depois jogou o caderno na cavidade escura. A viseira
chiou sobre as dobradiças enferrujadas quando se fechou
novamente.
A passagem escura parecia bocejar diante dele e, sempre
alerta, penetrou pela abertura.

233
III.

O painel foi pesado com um contrapeso, por isso se fechava


automaticamente, a menos que eles o impedissem. Lembrando de
234
um lenço no bolso da calça, Harrison tirou-o e rapidamente o
colocou entre o batente e o lençol, assim que a porta se fechou.
Ele achou que seria uma boa ideia marcar a abertura, para o caso
de Tannernoe conseguir iludi-lo e ser forçado a voltar após seus
passos.
Quando o painel se fechou, Harrison esperava que uma
escuridão completa, como a de uma tumba egípcia, pairasse
sobre ele. Em vez disso, ele se viu cercado por uma estranha luz
azulada ... um brilho arrepiante que não parecia vir de nenhuma
fonte em particular, pelo menos nenhuma que Harrison pudesse
determinar.
Ele estava em uma passagem estreita com um teto baixo, que
parecia seguir o contorno da sala que acabara de sair. Correu
direto por vários metros e, em cada extremidade, girou noventa
graus, exatamente no ponto em que uma sala se encontrava na
seguinte. O teto era tão baixo que quase tocava sua cabeça, e as
paredes estavam tão juntas que ele mal podia passar por elas com
os seus ombros largos.
Tirando a lanterna do bolso, Harrison apertou o botão e
xingou em silêncio ao ver que não havia luz.
—Quebrada —, ele murmurou — deve ter quebrado quando
caiu pela escada. Embora pareça que não vou precisar, a menos
que Tannernoe desligue as luzes.

235
Observando a passagem, o corpulento detetive teve uma idéia
da rede de corredores que invadia as paredes do Casarão
Tannernoe, acessível apenas através de certas portas secretas.
Sem dúvida, uma parte deles devia levar à sala da torre;
Gutchluk Khan o usara de madrugada, exatamente como o
homem que o matara.
A lanterna voltou ao bolso de Harrison, enquanto ele olhava
para a esquerda e para a direita, tentando decidir a direção a
seguir. Ele ouviu um som fraco de passos distantes... pés
descalços correndo ... e parecia que o som vinha da direita. Ele
saiu nessa direção, com o revólver na mão direita.
Os nervos de Harrison estavam mais tensos do que os fios de
um garrote. Um frio congelante reinava na passagem, que
lembrava um necrotério, arrancando o calor de seu corpo. A
proximidade das paredes e do teto era opressiva. Ele parecia
estar em um caixão.
Ainda assim, o detetive se permitiu um sorriso de diversão ao
se lembrar da maneira como Tannernoe o olhava quando entrou
no estúdio. Ele supôs que Tannernoe o havia tomado por um
fantasma, já que ele devia acreditar que seu servo mongol o
havia matado no andar de cima.
Harrison chegou ao local onde a passagem girava
bruscamente e, naquele momento, um leve lampejo de luz

236
cintilou do outro lado da esquina, como o reflexo de um farol
distante. Piscou três vezes e, acompanhando-o, ouviu-se o som
de numerosos disparos, com o estrondo ampliado pelas pequenas
dimensões da passagem.
Quando o eco do tiroteio evaporou à distância, Harrison se
jogou na esquina da passagem. Ele chegou à próxima passagem
a toda velocidade, ainda, sabendo que estava se arriscando a
receber uma bala, mas era impossível para ele ficar de fora
enquanto tais eventos aconteciam. Ou Tannernoe ou outra pessoa
tinha uma arma de fogo, e Harrison amaldiçoou a armadilha que
havia deixado com o tambor do seu revólver cheio de cartuchos
vazios.
Mesmo quando esses pensamentos passaram por sua mente,
Harrison viu algo levantar-se do chão à sua frente, bloqueando
seu caminho. O detetive teve a impressão confusa de uma grande
massa de ombros e peito, coroada por um rosto barbudo e
selvagem. Uma adaga longa brilhou na luz azul fantasmagórica
do corredor.
O detetive parou abruptamente quando a aparição avançou
contra ele com um rugido inarticulado. Observou um brilho
mortal de aço e, em seguida, o impacto tilintante de uma lâmina
de metal contra a parede de pedra da passagem, a apenas um
centímetro da garganta de Harrison.

237
Por um momento, o detetive pensou que seu oponente
anterior, Ahmed, devia ter recuperado a consciência e procurado
por ele. Ele levantou o revólver , pronto para entrar em uma luta
berserk, mas, ao fazer isso, uma mudança estranha aconteceu no
outro homem. A faca longa tremeu sobre a cabeça cabeluda do
sujeito e depois caiu entre os dedos, que pareciam ter perdido
toda a força. O fogo da raiva que ardia em seus profundos olhos
foi extinto, sendo substituído por um olhar vidrado e perplexo.
Um grito gutural veio das profundezas do peito do estranho.
Ele deu um passo incerto para a frente e depois caiu de cabeça.
Preso nos estreitos limites da passagem, Harrison não pôde evitar
seu fardo cego. A enorme forma do estranho o derrubou ao solo,
e sua cabeça atingiu o chão com um aturdido impacto.
Por um momento, a passagem escureceu e ficou embaçada;
então, teimosamente, o grande detetive se forçou a voltar à
consciência. O estranho estava deitado sobre ele, como um peso
morto. Com alguma dificuldade, Harrison se livrou da enorme
figura acima dele e se levantou, tremendo.
Com a coronha da arma pronta, o detetive se inclinou para
estudar o rosto do outro. Os dentes do homem pareciam uma
careta de animal e seus olhos pareciam estreitados, reduzidos a
fendas estreitas nas quais apenas a parte branca aparecia.
—Morto — murmurou o detetive—. Mais morto que Judas

238
Iscariotes! Como, em nome de ...?
A exclamação abafada tornou-se um sibilo fraco quando
Harrison se inclinou para frente e descobriu o enorme ponto
escuro que cobria o torso do homem. O gigante caído foi
atingido três vezes no estômago, e devem ter feito isso bem de
perto. O sangue das feridas se misturou com a seda chamuscada
do manto de seda que ele usava.
Olhando rapidamente ao redor, Harrison notou uma abertura
estreita na parede interna da passagem. Havia um lance de
escadas que descia a um poço negro de esquecimento. Tannernoe
deve ter chegado a esse ponto e encontrou o gigante que
empunhava a faca e se aproximava pelas escadas ou pelo outro
lado do corredor. Em algum lugar ao longo do caminho,
Tannernoe havia procurado uma arma de fogo e, com ela,
disparou a curta distância, detendo o gigante por tempo
suficiente para escapar.
De alguma forma, o gigante ferido conseguiu manter a vida
por tempo suficiente para atingir cegamente o próximo homem
que passava pela passagem ... juntamente o detetive Harrison.
O detetive investigou a identidade do cadáver. Embora grande
e barbudo, aquele homem não era o libanês com quem lutara nas
escadas. Embora Ahmed parecesse muito grande, ele teria sido
considerado um peso pena, comparado a este titã. Além disso,

239
Harrison reconheceu seu rosto, após a confusão inicial. Muitas
vezes o vira na River Street, cercado pela eterna fumaça de
cigarros que envolvia a casa de jogos de Osman Pasha.
—Hadji Murad! — Ele ofegou.
A faca do guarda-costas, reta e com uma lâmina afiada, estava
perto de sua mão estendida. Harrison tinha visto uma semelhante
na coleção de seu amigo Richard Brent. Era um kindjal, a
terrível faca que tinha os companheiros da tribo Hadji nas
montanhas do Cáucaso. O detetive observou que aquela lâmina
em particular estava coberta de sangue seco.
—Bem — ele murmurou, agachando-se ao lado do cadáver—
isso resolve o mistério de quem matou Gutchluk. Mas de onde
Hadji veio? E por que ele matou o mongol e não a mim?
Ele estreitou os olhos, perplexo... e depois mudou para uma
expressão de surpresa e arrependimento quando o cano frio de
uma arma se inclinou contra seu pescoço.
—Levante as mãos, Harrison — ordenou tranquilamente uma
voz com um leve sotaque estrangeiro. Devagar! E não se levante
até eu ordenar.
Amaldiçoando sua negligência em silêncio, o detetive
levantou as mãos. Ele tirou o revólver dos seus dedos. Por um
momento, ele pensou em lutar... esquivar-se e se envolver em um
combate corpo-a-corpo com o recém-chegado ... mas conseguiu

240
controlar seu temperamento. A proximidade das paredes
impediria qualquer movimento que ele quisesse fazer e, além
disso, a arma que estava apoiada em seu pescoço tinha que ser
levada em consideração. Uma bala disparada naquele momento
faria em pedaços sua coluna.
A voz disse:
—Pode se levantar. Mas eu aviso: não faça movimentos
bruscos.
O detetive ficou em pé enquanto o cano de uma arma de fogo
se movia na frente de seu rosto. Ele se virou com cuidado, com
as mãos abertas e longe do corpo.
Um homem magro permaneceu na luz espectral azulada,
segurando uma pistola automática. Tinha cabelos escuros, rosto
delicado e bigode bem delineado. Seus olhos eram gélidos e
brilhantes. Ele era de estatura mediana e usava um traje de seda,
cujo corte elegante parecia mais europeu do que americano.
—Olá, Osman — saudou Harrison—. Eu deveria ter
imaginado que você estaria por aqui.
Em vez de responder, o homenzinho esbelto olhou para a
forma inerte de Hadji.
—Garfield fez isso ... então se consuma sua alma —disse ele
amargamente.
A tentação de entrar em ação voltou ao detetive robusto.

241
Inconscientemente, seus ombros pesados ficaram tensos e ele
começou a flexionar as mãos. Osman Pasha olhou para cima e
gesticulou com a arma que era obviamente ameaçadora.
—Para trás, Harrison! Não tenho vontade de atirar ... ainda.
Mas farei se você me obrigar.
—Maldito seja, Osman — o homem da lei rosnou—. Por que
você está procurando mais problemas? Você já foi poupado
antes de acusações piores. Provavelmente, você pode fazer o
mesmo com a questão do La Tour. Mas se matar um policial, e
eles certamente o enforcarão.
—Nesse momento isso não me preocupa muito agora —
respondeu Osman. Eu vim aqui em busca do caderno que você
confiscou do cadáver de La Tour. Me dê por favor.
Harrison balançou a cabeça, agradecendo por ter o cuidado de
esconder o caderno.
— Não o tenho.
—O quê? Impossível!
Harrison sorriu sem humor.
—Reviste-me se quiser.
—Isso não será necessário — disse o trapaceiro lentamente,
com uma expressão de espanto. Você não mentiria tão
calmamente. Mas onde está o caderno?
—Tannernoe o tem — disse Harrison, pensando rapidamente.

242
Em poucas palavras, ele contou como os maronitas haviam
capturado Tannernoe e como ele se apressou em mudar a
situação—. Naquele momento, eu apareci no estúdio, mas o
velho Absolom me golpeou na mão e bateu na minha cabeça e
pegou o caderno. Admito que poderia ter morrido naquele exato
momento, mas consegui me recuperar e apontei para ele com
minha pistola de seis tiros. Ele entrou em pânico e escapou.
»Ouça, Osman ... estamos perdendo tempo. Temos que pegar
Tannernoe antes que ele saia da casa. O tratamento que os
maronitas aplicaram ao seu pé pode desacelerá-lo um pouco, mas
ele ainda está bem adiantado.
—Acredito que posso controlar a situação muito bem —
respondeu o outro. A arma que ele segurava deu à sua declaração
um caráter sinistro.
—Pode ser ... mas não se esqueça dos quatro libaneses que
ainda estão em algum lugar; cinco, se Ahmed se recuperou do
golpe que eu lhe dei. Eles não são amigos de ninguém. Tendo-
me ao seu lado, suas chances aumentam.
—Isso é verdade — murmurou o turco—. Então,
trabalharemos juntos por enquanto. No entanto, seu revólver fica
comigo.
Harrison encolheu os ombros.
—O homem que você conhece como Tannernoe escapou por

243
essa escada depois de atirar em Hadji — disse Osman—. Eu
poderia ter perseguido ele ... e até atirado nele ... se você não
tivesse aparecido. Bem, isso não pode mais ser mudado. Agora
vamos descer juntos. Por favor, Harrison, desça primeiro. Você é
um cara muito ágil, apesar da aparência de gorila, e eu prefiro
não ter você nas minhas costas.

244
IV.

A escada era estreita e íngreme e Harrison desceu com cautela.


A carne entre as suas omoplatas tremia à espera de uma bala,
245
apesar da convicção de que Osman Pasha não se voltaria contra
ele até que todo o perigo passasse com os maronitas e Tannernoe.
Ainda assim, ele estava ciente da reputação de Osman de
degolador na River Street, e esse conhecimento não era
inteiramente confortável para ele.
A escada era mais negra que os abismos mais profundos do
submundo; mas uma vez baixado, o brilho azulado
fantasmagórico retornou, parecendo vir de todos os lados e de
nenhum lugar em particular. Harrison fez um comentário sobre o
fenômeno.
—Os antigos sacerdotes de Tebas possuíam grande
conhecimento, a maioria dos quais não chegou ao homem
moderno — disse Osman. Um de seus segredos era um processo
pelo qual certos tipos de materiais podiam ser transformados em
uma espécie de baterias de armazenamento natural... coletando
calor e gradualmente liberando-o na forma de ondas de luz.
Nosso anfitrião aprendeu os detalhes desse processo com uma
certa Irmandade que ainda existe ao longo do Nilo. Essas
paredes foram tratadas de acordo com essa fórmula.
»A verdade é que se pode descobrir inúmeras maravilhas no
Casarão Tannernoe; qualquer uma delas poderia ter
transformado o dono da casa em um homem famoso há muito
tempo, se não tivesse tanto medo de publicidade. Uma palavra de

246
advertência: Dizem que muitas dessas maravilhas existem na
forma de armadilhas; portanto, caminhe com cuidado.
Recordando o destino dos libaneses, Harrison resmungou seu
consentimento.
—Você parece saber bastantes coisas sobre Tannernoe —
observou ele.
—Fomos parceiros durante um tempo — disse o turco—.
Veja bem, foi a pedido dele que eu atirei a bala fatal na pessoa
de Josef La Tour. Ou melhor, eu me deixei convencer pela
grande quantia de dinheiro que ele me ofereceu em troca de tal
assassinato.
Um grunhido de surpresa escapou do detetive.
—Na época, aceitei o acerto de contas. Imaginei que La Tour
tivesse alguma informação comprometedora sobre você naquele
maldito caderno dele — ele ficou em silêncio por um momento,
depois perguntou: Que acordo ele tinha com os libaneses? Como
eles se encaixam com Tannernoe?
A voz de Osman assumiu um tom reflexivo quando ele
respondeu:
—Há dez anos, um aventureiro chamado Adam Garfield
entrou em Beirute em um bote de Port Said; Ele estava
disfarçado de comerciante circassiano. Depois de viajar sozinho
para as montanhas do norte do Líbano, fez contato com uma

247
tribo de bandidos que moravam perto da vila de Apamea, ao
longo do rio Orontes. Garfield descobrira - a partir de relatos
antigos consultados em Alexandria - que um rubi de imenso
valor era mantido em um mosteiro maronita nos arredores de
Apamea; ele pretendia roubar essa gema e queria que os
bandidos o ajudassem na empreitada.
—Maronitas ... — murmurou Harrison. O termo lhe parecera
desconhecido na primeira vez que o ouviu; e ainda assim, uma
lembrança nebulosa começou a sussurrar no fundo de sua mente,
o vislumbre de uma imagem que ele não conseguia esclarecer.
—Os maronitas — continuou Osman — são uma seita cristã
antiga do Oriente Médio; um ramo da igreja síria que foi
estabelecida no Líbano no século V. A jóia maronita é sua
relíquia mais preciosa ... um rubi que Paulo de Tarso trouxe para
a Síria logo após a morte de Cristo, como presente de um rico
convertido de origem grega. Mas, mesmo antes de tudo isso ...
Eras atrás ... diz-se que a gema coroou o cetro de Rammon, que
foi o maior de todos os feiticeiros, exceto, talvez, por outro que
vivia na pré-histórica Estígia.
»De qualquer forma, Garfield havia decifrado um diagrama
secular do mosteiro, mostrando como um homem podia penetrar
lá dentro para roubar a gema. Graças aos bandidos, ele obteve
uma conduta segura para atravessar as montanhas. Em troca, ele

248
ofereceu uma parte dos lucros que o rubi poderia trazer,
vendendo-o para um certo colecionador do Egito.
»Surpreendentemente, o plano foi bem-sucedido. Garfield e o
líder dos bandidos conseguiram acessar o mosteiro através de um
viaduto esquecido e escaparam com o rubi. O roubo, no entanto,
foi logo descoberto. Garfield foi salvo, traindo seus parceiros às
autoridades. Quando a polícia libanesa descobriu que os
bandidos não possuíam a jóia, Garfield já estava longe de
Beirute, a caminho da Europa.
»Os bandidos foram presos. Eles permaneceram presos por
uma década, enquanto seu desejo de vingança aumentava dia
após dia, até que uma maneira de escapar lhes fosse apresentada.
Uma vez livres, eles partiram em busca de Garfield e da Jóia
Maronita. Você não vê aonde essa história leva, Harrison? Havia
seis bandidos e eram liderados por um homem chamado Akbar.
Eles eram os mesmos libaneses que você viu esta noite...
—E Adam Garfield é Absolom Tannernoe — deduziu o
detetive.
—Exato! Garfield acabou chegando nos Estados Unidos,
onde adotou o nome Tannernoe. Durante anos, ele viveu em paz
e confortavelmente, tendo feito uma fortuna com a venda de
todos os artefatos que estava coletando. A gema maronita, no
entanto, permaneceu em sua posse. Talvez fosse porque ele tinha

249
medo de se livrar dela, atraindo assim uma atenção
desconfortável para si; ou, talvez, porque a jóia tivesse espalhado
uma teia de encantamentos ao seu redor. Não sei.
“A pista de Garfield esfriou ao longo dos anos. Ainda assim,
pegando pistas com muita paciência, Akbar e seus homens
conseguiram rastrear sua fuga. Eles foram para a Europa e de lá
viajaram para a América do Norte. Finalmente chegaram à nossa
cidade e, nesse ponto, a trilha evaporou. Akbar tinha certeza de
que Garfield morava nessa área, mas, sem saber o nome que
adotara, era impossível localizá-lo com precisão”.
“Nesse ponto, os maronitas souberam da existência de Josef
La Tour e de sua reputação como um homem que" sabia das
coisas ". Eles se aproximaram de La Tour, pedindo-lhe ajuda
para localizar Garfield. Fascinado pela história do rubi, Josef
concordou em colaborar com eles. Algumas anotações sobre o
assalto e a fuga de Garfield foram parar em seu caderno de
anotações ... bem como um diagrama do mosteiro e uma
fotografia antiga de Garfield com o prédio ao fundo. O
aventureiro se permitiu ser fotografado em um momento de
vanglória, e de alguma maneira uma cópia acabou nas mãos de
Akbar”.
“Usando suas fontes dentro e fora da cidade, La Tour
concluiu a busca e descobriu a conexão entre Adam Garfield e

250
Absolom Tannernoe. Embora, em vez de voltar para Akbar,
Josef dirigiu-se até Garfield - ou Tannernoe - mostrando as
informações que havia coletado . Por vinte mil dólares, ele
estava disposto a não informar aos maronitas que havia
encontrado o homem que procuravam: essa foi a proposta que
ele fez a Tannernoe.
—Mas extorsão não era algo que o velho Absolom estava
disposto a permitir — especulou Harrison. Sabendo que La Tour
frequentava sua sala de jogos e que você era bom em disparar
com uma pistola, ele foi até você. Ele contratou você para
mandar uma bala em La Tour, antes que o eurasiano pudesse
divulgar as informações aos libaneses.
—Correto
"E o caderno de Josef?" Você não tinha ouvido falar dele?
—Não. Pelo menos, ele nunca mencionou isso.
—Suponho que ele soube de sua existência após a morte de La
Tour, quando os jornais publicaram uma boa história, dizendo que
eu havia encontrado o cadáver — sussurrou Harrison.
Provavelmente, ele imaginou que La Tour escreveria algo sobre
seu crime... algo que o colocaria em problemas com os maronitas
ou com a Lei. Então, ele inventou uma história, dizendo que
estava em perigo, para me atrair para a casa grande.
—Eu não sabia que os libaneses viriam para cá hoje à noite

251
— disse Osman. Obviamente, La Tour teve que contatá-los
pouco antes de sua morte, dando-lhes algumas das informações
que havia descoberto. Provavelmente, mesmo se tivesse
conseguido tirar dinheiro de Tannernoe, ele teria ido para Akbar
de qualquer maneira.
"O que eu sabia era que você estava aqui e deveria ter seu
caderno de notas. Acompanhado por Hadji, sai da ratoeira perto
do rio, onde me escondia há várias semanas ... desde que a
polícia emitiu a ordem de busca e captura. Eu havia conseguido
apenas parte do dinheiro que Tannernoe havia me prometido; e
tudo se foi, quando paguei a pessoa que me havia escondido da
Lei. Não podia nem chegar perto da minha conta bancária. Tive
que conseguir aquele caderno. Com ele – e com o dinheiro que
seu conteúdo poderia me dar - eu poderia sair de River Street e
começar uma nova vida em qualquer lugar.
—Como você descobriu essas passagens?"
—Um dos servos de Tannernoe sabia sobre elas. Encontrei-me
com ele e o convenci a compartilhar seus conhecimentos. Suponho
que você estava na sala da torre e, por pura sorte, saímos da sala
no momento em que Gutchluk entrava pelo painel secreto. Ao
meu comando, Hadji perfurou o coração do mongol com sua
lâmina.
—Por que ele não acabou comigo depois disso?"

252
—Ele viu que o barulho o acordou e que você tinha uma arma.
Hesitou em correr o risco de ser baleado e decidiu esperar por
uma ocasião mais auspiciosa para executar seus planos.
Harrison começou a xingar em um tom baixo, mas
determinado.
—Essa fotografia deveria ter esclarecido o assunto para mim
— ele grunhiu—. Penso que, inconscientemente, reconheci o
homem na foto como Tannernoe ... e a nota sobre o "tesouro de
Orontes" me lembrou um artigo de jornal de domingo que li anos
atrás, sobre o roubo da gema maronita. Mas só lembrava desse
detalhe.
“No começo da noite, meu subconsciente tentou conectar
Tannernoe ao caderno, mas não consegui conectar as diferentes
pistas que possuía. O nome "Adam Garfield" estava me
confundindo”!
Nesse momento, o detetive parou subitamente. Sua ação foi
tão abrupta que Osman Pasha quase tropeçou nele. À frente
deles, de algum lugar além da passagem iluminada pela névoa
azul, um coro de gritos e gemidos se ergueu. O clamor se
transformou em gritos de horror e, acima deles, uma terrível
explosão de risadas.
—Em nome de Deus! — disse Osman, impressionado — "O
que é isso?"

253
A pele do detetive sentiu um calafrio de repulsa. Os gritos
fizeram seus nervos tremerem. Isso continuou por alguns
momentos, depois desapareceu quando, uma após a outra, as
vozes se calaram. Por fim, apenas as risadas continuaram, até
que esse som também desapareceu na escuridão sinistra.
Esquecendo a arma apontada para suas costas, Harrison saltou
para frente. A passagem atravessava outro corredor mais estreito
que corria perpendicularmente a ela e, seguindo um palpite,
Harrison entrou. Ele avançou a um bom ritmo, mas com cautela,
roçando o ombro direito contra a parede; o caminho era tão
estreito que dificilmente cabia.
Um momento depois, ele chegou a um muro de pedra no qual
uma enorme porta reforçada de ferro havia sido encaixada. A
porta parecia sólida o suficiente para suportar o fardo de um
elefante. Mostrava uma pequena abertura quadrada na parte
superior da lâmina, reforçada com barras de ferro delgadas, mas
resistentes.
Olhando pela abertura, Harrison viu uma cela em ruínas, de teto
baixo, cheia de uma névoa curiosa, de aparência sombria à luz
azulada. No meio da cabine estavam quatro homens, totalmente
imóveis, e o detetive os reconheceu como os maronitas que haviam
caído pela armadilha no escritório de Tannernoe. O líder deles,
Akbar, estava deitado com os ombros contra a parede. Seu rosto,

254
voltado para a porta, estava contraído em uma máscara de agonia,
com olhos vidrados que olhavam sem ver.
—Bom Deus! — sussurrou Osman, olhando através das
grades. Eles estão todos mortos! Mas como? Não vejo marcas nos
corpos ...
A resposta veio como uma marreta para o homem da lei, e ele se
afastou da porta, forçando Osman a se afastar também.
—Essa névoa deve ser um gás venenoso... a desgraça que
Tannernoe mencionou que haveria de cair sobre os maronitas.
—Este Garfield tem os recursos do próprio diabo —
murmurou o turco com respeito.
Os dois homens ficaram assustados quando uma nova
explosão de risadas loucas ecoou pelo corredor; a voz de
Absolom Tannernoe - áspera e metálica - reverberou nas paredes
estreitas:
—Tolos! Vocês achavam que eu escaparia como um coelho
assustado? Ha! Eu vou cuidar de vocês, assim como eu cuidei
daqueles cães maronitas!
Harrison percebeu que Tannernoe devia ter deixado aquele
labirinto de passagens secretas, e agora ele deve estar
acompanhando o progresso deles através de algum aparato
científico. Devia ter um alto-falante em algum lugar - nas
paredes ou no teto - e a voz do louco soou através dele.

255
Osman se assustou e deu um passo involuntário para o lado;
ao fazê-lo, houve um estalo de eletricidade e houve uma
explosão de faíscas terríveis no local em que a pistola automática
atingiu a parede. O criminoso deu um breve grito sem palavras e
depois caiu no chão. Seus olhos, na luz misteriosa do corredor,
possuíam a qualidade esbranquiçada de um cadáver.
Olhando para a parede, Harrison detectou uma pequena placa
metálica entre as juntas de pedra. Ele supôs que essa placa
estivesse conectada a um gerador elétrico e que a corrente
transmitida fosse suficientemente poderosa para tirar a vida do
turco em segundos.
O detetive começou a tentar recuperar a arma de Osman, mas
pensou melhor. Era possível que a corrente tivesse danificado o
mecanismo do gatilho, tornando-o uma arma perigosa para
disparar.
Um estranho som sibilante foi introduzido entre os
pensamentos do detetive. Por um momento, pensou aterrorizado
que pudesse haver escondido um ninho de cobras venenosas no
recesso da cela; então ele viu fios de névoa escura começarem a
inundar o corredor de pequenos buracos no topo das paredes. O
som foi produzido pelo ar comprimido que impulsionou o gás.
—O vapor que você vê, senhor Harrison, é um gás mortal
cuja fórmula eu descobri graças a certos cientistas europeus —

256
exclamou a voz de Absolom Tannernoe — Mata rapidamente...
conforme Akbar e seus homens tiveram a oportunidade de
comprovar... e logo se decompõem para formar um composto
gasoso inofensivo. Lamento dizer que você tem apenas alguns
segundos para viver.
Uma onda de fúria impotente tomou conta do detetive
corpulento. Em algum lugar daquela passagem havia a porta pela
qual Tannernoe havia retornado à área principal da casa; mas
encontrar esse portal oculto era uma tarefa impossível, dado o
pouco tempo que dispunha. Sua única chance era voltar por onde
tinha vindo e sair pelo painel do estúdio.
O detetive deu meia-volta e correu pelo corredor até a ampla
passagem que levava à escada. Seus pés descalços pisaram
silenciosamente nas lajes frias de pedra do chão. Gás estava
começando a sair dessa passagem também, e Harrison decidiu
que ele deveria respirar fundo e prender a respiração pelo resto
da corrida.
Morrer entre aquelas paredes, como um rato preso, era um
destino que provocou um calafrio escuro de pavor na alma de
Harrison.
Harrison subiu as escadas correndo, a névoa subindo atrás
dele em rolos fantasmagóricos. A escuridão mais profunda o
cercou inteiramente, como a escuridão insondável de um

257
mausoléu, e então a luz azul reinou novamente quando ele
alcançou o nível superior. Seus pulmões estavam prestes a
explodir, exigindo oxigênio, mas o detetive teimosamente
prendeu a respiração.
O gás formou uma névoa palpável no corredor acima. O
corpo de Hadji Murad bloqueava o caminho, mas Harrison
evitou-o com um salto cego. Seus pulmões pareciam queimar, e
o sangue rugia em sua cabeça; pontos de luz desfilaram diante de
seus olhos. Ele sabia muito bem que, em um momento mais,
seus reflexos prevaleceriam. Seus pulmões exigiriam ar dele, e
ele seria forçado a inalar o gás venenoso.
Ele chegou à esquina e virou-a com dificuldade.
Cambaleando como um bêbado, viu o corredor que se estendia
diante dele no brilho azulado, e além dele, como se estivesse
saltando da parede, um fragmento solitário de tecido branco ...
Seu lenço!
Chegando a esse ponto tão esperado, ele caiu contra a parede
e começou a empurrar o painel escondido. Após um momento de
batidas frenéticas, Harrison ouviu um clique suave em algum
lugar do painel. Uma abertura estreita apareceu diante dele, e ele
jogou os dedos avidamente naquele pequeno espaço.
Empurrando, a porta se abriu sob seu peso.
Harrison cruzou o limiar e caiu de mãos e joelhos na sala que

258
havia do outro lado.
O ar entrou pelos dentes do detetive, ofegando como um leão
exausto. Ele se arrastou por alguns metros, enquanto o escritório
girava em torno de seus olhos, e a porta pesada se fechou
novamente contra a morte fantasmagórica que o perseguia.

V.

Seus ouvidos ouviram um rosnado baixo, que gelou o sangue.


De onde estava deitado junto à parede, Harrison observou se
agitarem as cortinas que ocultavam a entrada para o corredor, e
depois deslizarem para o lado para dar lugar a uma figura
sangrenta e agredida. De quatro, com lentidão agonizante, a
figura se arrastou para dentro da sala, e um rosto magro e
contorcido de dor encarou o detetive. Era Absolom Tannernoe
quem se arrastava assim, com as costas da camisa ensopadas de
sangue.
.O rosto do homem havia perdido toda a cor e naquela máscara
branca os olhos ardiam estranhamente. Os tendões do seu pescoço

259
de abutre se projetavam claramente acima da gola da camisa
—Ele ... estava me esperando — disse o dono do Casarão
Tannernoe em um sussurro rouco—. Me esfaqueou ... enquanto
eu subia ... do porão.
Os braços de Tannernoe perderam força e sua forma esbelta
desmoronou. Sua mão esquerda apertada relaxou, e dela rolou
algo que brilhava tão vermelho como a luz da lâmpada de um
acampamento como o sangue escorrendo do ferimento em suas
costas. Dando um passo à frente, Harrison viu que era um rubi
brilhante, quase do tamanho de um punho de homem.
—Então esta é a jóia dos maronitas — murmurou Harrison.
Ele se aproximou de Tannernoe, vigilante contra qualquer
movimento ameaçador que ele pudesse realizar. A culatra
robusta de um revólver se projetava do cinto do aventureiro, mas
Harrison sentiu que havia pouco a temer do homem. Tannernoe
já havia jogado todos os seus trunfos. Suas mãos em forma de
garra se contraíram em espasmos fracos, e sua respiração
lembrava os estertores de um moribundo.
Quando o detetive se levantou, enfraquecido e se aproximou
dele, as cortinas tremeram novamente. Um homem barbudo e
musculoso entrou no escritório, segurando uma adaga sangrenta
em uma mão. Este, até onde Harrison sabia, era o último
maronita, Ahmed, e ele mostrava um rosto castigado pelo

260
espancamento que Harrison lhe dera nas escadas: ele tinha uma
orelha partida, reduzida a uma polpa repugnante.
“Deus”, —pensou o detetive—, que cena de pesadelo! —
Tannernoe estava deitado no chão, morto e ao lado dele, Ahmed
se ergueu acima deles, com a cabeça ensanguentada. A escuridão
que cobria os cantos da sala lembrava a sombra de um demônio à
espreita.
—Então a longa busca termina aqui — disse o libanês em
inglês confuso—. Este rato do Garfield foi encontrar seu mestre
no inferno... mas não antes de tirar a vida dos meus pobres
camaradas! Bem, talvez seja melhor assim.
—Melhor? — Harrison repetiu. Havia uma curiosa inflexão na
voz de Ahmed que ele não conseguiu identificar.
—Sim! Agora a jóia é minha. Não teria compartilhado com
Akbar e os outros. Garfield - ou Tannernoe - me salvou do dilema
de ter que acabar com eles mais tarde, por posse da pedra. Eu
poderia até ter que matá-los eu mesmo!
—Então você planejou traí-los — grunhi Harrison. Você
queria a fortuna que conseguiria com o rubi e queria tudo para si
mesmo ...
Com um gesto endurecido, Ahmed empurrou a forma
sangrenta de Tannernoe para o lado quando se aproximava de
Harrison.

261
—Não apenas para mim — disse ele. Akbar e os outros
cobiçaram a gema pelo ouro que ela poderia proporcionar-lhes, é
verdade. Mas meu propósito era servir a alguém mais poderoso
do que a minha pessoa ... era fazer uma oferenda a alguém para
quem o ouro não passasse de pó da vaidade humana.
—Quem…?
—Bem, eu sirvo aquele que é conhecido como o Senhor da
Morte e o Dono do Livro Negro... O herdeiro das glórias passadas
do Império Mongol! — Ahmed disse com profundo êxtase em sua
voz—. Meu mestre é Erlik Khan!
—Erlik Khan! — exclamou o detetive. Mas homem, Erlik
Khan está morto ... ele foi morto por um druso louco semanas
atrás. Ele cortou a cabeça dele com uma espada curva no
esconderijo de Erlik Khan na River Street. Eu vi com meus
próprios olhos.
—Por acaso o Senhor da Morte também não pode dominar
seu próprio jogo?" Não, Erlik Khan vive; ele apareceu para mim
apenas alguns dias atrás e ordenou que eu comprasse a gema
maronita para seus propósitos. Existem certos cultos no Oriente
Médio mais antigos que os maronitas e ainda mais antigos que a
Suméria ou a Babilônia nos quais a gema tem um significado
místico. Se ele conseguisse a posse dessa gema, Erlik Khan
lideraria a congregação imortal de tais cultos. E, com a ajuda

262
deles, Erlik se tornaria o Mestre da Ásia Menor!
O cérebro de Harrison girou com a importância das palavras
de Ahmed. Ele então lembrou como, menos de um mês atrás, ele
havia entrado em conflito com o fanático Ali ibn Suleyman, que
estava convencido de que ele e Harrison haviam sido inimigos
mortais em suas encarnações anteriores. Ali serviu Erlik Khan,
mas se voltou contra ele no último momento, quando o cérebro
criminoso ameaçou interromper sua vingança louca contra
Harrison. Ele claramente se lembrou da espada do druso,
lançando faíscas como um raio azulado, partindo o capuz que
escondia o rosto de Erlik Khan em dois. Lembrou-se do
misterioso arqui-criminoso que havia desmoronado após o golpe
... e depois do incêndio que consumiu o quartel-geral do mongol.
—Quando eu estava sozinho, em uma casa de ópio na River
Street, imerso nos sonhos produzidos pelo cachimbo de haxixe,
fui abordado por Erlik Khan — disse Ahmed, como se estivesse
carregado por um devaneio. Ele descobrira nossa busca por
circunstâncias estranhas e misteriosas. Como se fosse um Djinn
no escuro, ele ordenou que eu me submetesse à sua vontade.
Como eu poderia resistir a ele? Prometeu-me uma alta posição
em sua organização... e um êxtase além da minha imaginação ...
—Não sei que sonhos de ópio você teve naquela noite —
interrompeu o detetive — mas não acho que você tenha

263
realmente falado com Erlik Khan. A essas alturas, ele está morto
há várias semanas. Largue essa faca e cuidarei para que a lei não
seja muito dura com você.
—Agora estou além das tuas leis — respondeu o maronita.
Você é um homem americano corajoso e não lhe desejo mal, mas
não posso deixá-lo vivo. Ninguém deve saber que a joia foi parar
nas mãos de Erlik Khan.
Ele pulou para frente com a faca levantada, e Harrison se
preparou para lutar contra ele. Tinha suas dúvidas sobre o
resultado de tal ação... pois a obsessão deu a Ahmed um novo
fluxo de energia renovada ... mas o detetive não estava disposto a
ser abatido como uma ovelha no matadouro.
Atrás de Ahmed, houve um gemido repentino e arrepiante.
Era o tipo de som que o detetive podia imaginar em um gul, e ele
teve a visão de Ali morto, levantando-se, o rosto branco
pendurado no pescoço cortado ... voltando dos mortos para punir
Ahmed por sua traição.
Mas foi Absolom Tannernoe quem gemeu dessa maneira.
Com um esforço aterrador, ele conseguiu se erguer sobre um
cotovelo e segurou a pistola que trazia no cinto. Seu olhar febril
se estreitou em uma concentração feroz quando ele levantou a
arma.
Três tiros soaram, e Ahmed gritou quando as balas de

264
Tannernoe perfuraram seu corpo. Ele tentou se virar, como se
estivesse enfrentando seu inimigo, e agora desmaiou, estendendo
a mão até a gema maronita com suas últimas forças.
—Erlik Khan ... mestre ... — ele ofegou — Eu entrego o rubi
... faça com a minha alma o que você quiser ... — um rito
involuntário contraiu seus lábios, e ele morreu.
A pistola caiu da mão de Tannernoe com um golpe abafado.
Harrison foi até o local onde o homem estava deitado e verificou
seu pulso. Não tinha. Os olhos de Absolom haviam perdido a
luz e uma expressão vingativa de triunfo havia sido gravada em
seu rosto.
Resplandecendo com um brilho vermelho na luz da lanterna,
o rubi parecia atrair Harrison. Ele levantou a gema e notou que
seu toque era quente ... como se tivesse absorvido parte do
sangue derramado naquela noite na Casa Tannernoe.
Ele olhou para a jóia, fascinado por sua beleza e ainda
repelido pela aura de morte e violência que os eventos daquela
noite pareciam conferir a ela.
—Ninguém além de mim sabe que esta jóia está aqui —
Harrison ponderou. Eu admito que poderia mantê-la, mas por
algum motivo, acho melhor ficar longe dela. Vou entregá-la ao
chefe e providenciar para que seja devolvida ao Líbano — Uma
sombra sombria cruzou seu rosto—. Quanto mais cedo isso

265
voltar ao seu mosteiro, melhor o mundo será ... embora eu ainda
não possa dar crédito a todos aqueles comentários de Ahmed
sobre Erlik Khan. E esse caderno de Josef La Tour irá para um
arquivo com a etiqueta "Caso Encerrado". Indiscutivelmente, o
mistério de Adam Garfield se resolveu por si só.

FIM

266
267
Resenhas de Rodrigo Martins

OS NOMES NA LISTA DO LIVRO NEGRO

Sequência direta de O mistério da Mansão Tannernoe, Os


nomes na lista do livro negro trata do espetacular retorno do vilão
Erlik Khan, e fecha seu ciclo nas histórias de detetive. O mongol
nada mais é que o líder de um verdadeiro império do submundo,
com ligações em várias partes do planeta, em plena River Street.
E quem melhor que um personagem howardiano para
detonar um império, seja ele moderno, pré-histórico, ou
hiboriano? Esta tarefa cabe ao detetive Steve Harrison, que agora
conta com a preciosa ajuda de uma mulher de ascendência
oriental, Joan La Tour, e seu amigo e protetor afegão, Khoda
Khan. E por que faço questão de mencioná-los? Porque aqui
Howard faz algo pouco comum em suas obras: ele abre espaço
para que outros personagens atuem sozinhos em cenas importantes
sem a presença do protagonista.
Uma reinvenção de si? Não tenho dúvidas. Quem é rei
nunca perde a majestade!
E o texano está impecável nas sequências de ações que tanto
Khoda Khan quanto Steve Harrison executam. Perder o fôlego é
fácil ao acompanhar como dois homens embrutecidos por suas

268
sociedades enfrentam sozinhos o poderio de antigas organizações,
tão criminosas quanto secretas.
Uma a uma, pessoas ligadas a Erlik Khan são mortas por
causas aleatórias, sem quaisquer relações com o mongol. É Joan
quem descobre uma lista de nomes contendo os que já se foram...
e os que em breve irão!
A sequência disso já podemos imaginar. Duvida? Então
proponha a leitura de Os nomes na lista do livro negro para
fecharmos com chave de ouro o ciclo de Erlik Khan nas histórias
do detetive Steve Harrison.

269
OS NOMES NA LISTA DO LIVRO NEGRO
NAMES IN THE BLACK BOOK
De Robert E. Howard
Tradução e revisão: Marcelo Souza

270
I.

271
—TRÊS assassinatos não resolvidos em uma semana não são
tão incomuns... tratando-se de River Street —resmungou Steve
Harrison, agitando sua massa muscular inquieta em sua cadeira.
Sua acompanhante acendeu um cigarro e Harrison observou
que a esbelta mão da mulher não parecia muito firme. Ela era uma
mulher de uma beleza exótica, uma figura sombria e sutil, com as
ricas cores das noites púrpuras do Oriente e o amanhecer
carmesim em seus cabelos negro azulado e lábios vermelhos. Mas
em seus olhos escuros Harrison vislumbrou a sombra do
medo. Apenas uma vez antes ele vira medo naqueles olhos
maravilhosos, e a lembrança o deixava vagamente desconfortável.
— Seu trabalho é resolver assassinatos — disse ela.
—Dê-me um pouco de tempo. Você não pode apressar as
coisas quando está lidando com as pessoas do bairro oriental.
—Você tem menos tempo do que pensa —respondeu ela
enigmaticamente—. Se você não me ouvir, nunca resolverá esses
assassinatos.
—Estou ouvindo.
—Mas você não vai acreditar. Você dirá que sou histérica...
que vejo fantasmas e me assusto com as sombras.
—Escute, Joan" — ele exclamou, impaciente—. Vá direto ao
ponto. Me fez vir ao seu apartamento e eu vim porque disse que
estava em perigo mortal. Mas agora você está falando de enigmas

272
sobre três homens que foram mortos na semana passada. Fale
claro, sim?
—"Você se lembra de Erlik Khan?" — ela perguntou
abruptamente.
Involuntariamente, sua mão procurou seu rosto, onde uma fina
cicatriz corria da têmpora até a mandíbula.
—Duvido muito que chegue a esquecê-lo alguma vez — disse
ele—. Um mongol que se chamava Senhor da Morte. Seu projeto
era combinar todas as sociedades criminosas orientais da América
em uma grande organização, com ele mesmo à frente na liderança.
Ele poderia ter feito isso também, se seus próprios homens não
tivessem se virado contra ele.
—Erlik Khan voltou —disse ela.
—O que! — Ele levantou a cabeça e a encarou incrédulo—
. Do que você está falando? Eu o vi morrer, e você também!
—Vi o capuz dele cair quando Ali ibn Suleyman atacou com
sua cimitarra afiada— respondeu Joan. Vi como o seu corpo caiu
no chão e ficou inerte. E então a casa pegou fogo e o telhado caiu,
e apenas ossos carbonizados foram encontrados entre as cinzas.
No entanto, Erlik Khan voltou.
Harrison não respondeu, mas ficou esperando por mais pistas
que, com certeza, viriam indiretamente de sua parceira. Joan La
Tour era meio oriental e compartilhava de muitas das

273
características sutis de seus parentes.
—Como esses três homens morreram? —ela perguntou,
embora Harrison estivesse ciente de que ela sabia a resposta tanto
quanto ele.
—Li-chin, o comerciante chinês, caiu de seu próprio telhado
—ele resmungou—. As pessoas na rua o ouviram gritar e depois o
viram cair. Pode ter sido um acidente... mas os comerciantes
chineses de meia-idade não tem o costume de subir nos telhados à
meia-noite.
“Ibrahim ibn Achmet, o negociante sírio de antiguidades, foi
mordido por uma cobra. Isso também poderia ter sido um
acidente, só que eu sei que alguém jogou a serpente sobre ele pela
claraboia”.
"Jacob Kossova, o exportador Levantino, simplesmente foi
apunhalado em um beco. Todos eles se ocupavam de trabalhos a
margem da legalidade, mas, aparentemente não existiam motivos
para assassiná-los. Mas os motivos sempre estão profundamente
escondidos em River Street. Quando encontrar os culpados, vou
descobrir os motivos ".
—E esses assassinatos não sugerem nada para você? —
exclamou a garota, muito tensa contendo a emoção—. Não vê o
elo que os conecta? Não encontrou o ponto que todos eles têm em
comum? Escute... todos esses homens estavam anteriormente

274
associados, de uma maneira ou de outra, a Erlik Khan!
—E o quê? — Ele quis saber—. Isso não significa que o
fantasma de Khan está por trás dessas mortes! Encontramos
muitos ossos nas cinzas da casa, mas havia membros de sua
gangue em outras partes da cidade. Sua organização gigantesca se
desfez, depois de sua morte, por falta de líder, mas os
sobreviventes nunca foram descobertos. Alguns deles podem estar
saldando velhas dívidas.
—Então por que eles esperaram tanto tempo para atacar? Já se
passou um ano desde que vimos Erlik Khan morrer. Eu digo a
você, o próprio Senhor da Morte, vivo ou morto, voltou e está
atacando esses homens por uma razão ou outra. Talvez eles se
negaram a cumprir suas ordens mais uma vez. Cinco foram
marcados para morrer e, desses, três já caíram.
—Como você sabe disso? —Perguntou Harrison.
—Veja! —a garota retirou algo debaixo das almofadas do
divã em que estava sentada, e, levantando-se, se inclinou ao lado
dele enquanto a desenrolava.
Era um pedaço quadrado de um pergaminho, ou uma
substância parecida, de cor preta e textura irregular. Sobre a folha
estavam escritos cinco nomes, um abaixo do outro, em uma
caligrafia fluida e arrojada... e em uma cor vermelha, como se
fosse sangue derramado em vez de tinta. Os três primeiros nomes

275
haviam sidos sublinhados com uma linha carmesim. Eram os
nomes de Li-chin, Ibrahim ibn Achmet e Jacob Kossova. Harrison
resmungou explosivamente. Os dois últimos nomes, ainda não
marcados, eram os de Joan La Tour e Stephen Harrison.
—Onde você conseguiu isso? —ele quis saber.
—Colocaram debaixo da minha porta na noite passada,
enquanto eu dormia. Se todas as portas e janelas não estivessem
trancadas, a polícia o teria encontrado preso ao meu cadáver
esfaqueado esta manhã.
—Mas ainda não vejo que conexão...
—É uma página do Livro Negro de Erlik Khan! —ela
exclamou—. O livro dos mortos! Cheguei a vê-lo, quando estava
ao serviço dele nos velhos tempos. É ali que ele anota os nomes de
seus inimigos, vivos e mortos. Eu vi esse livro, aberto, no mesmo
dia em que Ali ibn Suleyman o matou— um grande livro com
capa de ébano com dobradiças de jade e páginas de pergaminho
preto e lustroso. Esses nomes não estavam na época; foram
escritos desde que Erlik Khan morreu - e essa é a letra de Erlik
Khan!
Se Harrison ficou impressionado, ele não demonstrou.
—Ele escreve seus livros em inglês?
—Não! Ele escreve em letra mongol. Isso é para que
possamos ver nossos nomes. E eu sei que estamos

276
irremediavelmente condenados, sem a menor esperança. Erlik
Khan nunca avisou suas vítimas, a menos que tivesse certeza de
poder matá-las.
—Pode ser uma falsificação — resmungou o detetive.
—Não! Ninguém poderia imitar a mão de Erlik Khan. Ele
mesmo escreveu esses nomes. Ele voltou dos mortos! O inferno
não podia segurar um diabo tão negro quanto ele! —Joan estava
perdendo parte de sua compostura devido ao terror e à
emoção. Apagou o cigarro meio consumido e abriu um novo
maço. Ela pegou um novo cigarro e jogou o pacote sobre a
mesa. Harrison pegou distraidamente um cigarro para si.
—Nossos nomes estão no Livro Negro! É uma sentença de
morte da qual não há apelo! — Ela acendeu um palito de fosforo e
o estava levando ao cigarro em seus lábios, quando Harrison o
tomou dela com um grunhido de sobresalto. Ela caiu no divã,
perplexa com a violência de sua ação, e ele pegou o maço e
começou a remover cuidadosamente todo o seu conteúdo.
—Onde você compra esses cigarros?
—Como? Bem, na farmácia da esquina, eu acho — ela
gaguejou—. É ali onde, geralmente…
—Não. Esses cigarros não são dali — ele resmungou—. Esses
cigarros foram especialmente feitos. Não sei o que é, mas já vi um
homem cair morto como pedra com uma baforada só desses

277
cigarros. Deve ser algum tipo de droga oriental misturada com o
tabaco. Você saiu de seu apartamento quando me telefonou?
—Eu estava com medo de que meu telefone estivesse
grampeado — respondeu ela—. Eu fui a uma cabine telefônica
rua abaixo.
—E é meu palpite que alguém entrou no seu apartamento
enquanto você estava fora e trocou os seus cigarros. Eu só senti
um leve cheiro quando comecei a colocar esse cigarro na minha
boca, mas é inconfundível. Cheire você mesma. Não tenha medo.
Só é mortal quando é acesso.
Ela obedeceu e seu rosto empalideceu.
—Eu te disse! Nós fomos a causa direta da queda de Erlik
Khan! Se não tivesse sentido o cheiro dessa droga, nós dois
estaríamos mortos agora, como ele pretendia!
—Bem —ele resmungou—. Na verdade essa armadilha era
dirigida somente para você. Eu ainda digo que não pode ser Erlik
Khan, porque ninguém poderia viver depois do golpe na cabeça
que vi Ali ibn Suleyman dar-lhe, e eu não acredito em fantasmas.
Mas você precisa de proteção até que eu descubra quem conseguiu
implantar esses cigarros envenenados no seu apartamento.
—E você? Seu nome também está no livro dele.
—Não se preocupe comigo —Harrison rosnou com desdém—
. Acho que posso me cuidar—. E isso parecia, com aqueles seus

278
frios olhos azuis e os músculos inchados em seu casaco e os
ombros como de um touro selvagem.
—Essa ala está praticamente isolada do resto do edifício —
disse ele—. E tem o terceiro andar só para você?
—Não é apenas o terceiro andar da ala — ela respondeu—
. Neste momento não há mais ninguém no terceiro andar em
nenhum lugar do prédio.
—Isso não é bom! —ele exclamou irritado—. Alguém poderia
entrar furtivamente e cortar sua garganta sem incomodar ninguém.
É o que eles tentarão também, quando perceberem que os cigarros
não acabaram com você. É melhor você se mudar para um hotel.
—Isso não faria nenhuma diferença —respondeu ela,
tremendo—. Seus nervos obviamente estavam abalados—. Erlik
Khan me encontraria em qualquer lugar. Em um hotel, com
pessoas indo e vindo o tempo todo, e as fechaduras enferrujadas
que têm nas portas, com corredores, escadas de incêndio e tudo
mais, seria muito mais fácil para ele chegar até mim.
—Bem, então, colocarei um monte de policiais por aqui.
—Isso também não adiantaria. Erlik Khan já matou várias
vezes, na cara da polícia. Eles não desvendam seus métodos.
—Isso é verdade —ele murmurou desconfortavelmente,
convencido de que colocar os policiais da delegacia ali não
serviria de grande coisa e, certamente, assinaria a sentença de

279
morte desses homens.
Era absurdo supor que o demônio mongol morto estivesse
por trás de todos esses ataques assassinos, e, ainda assim...
Harrison sentiu um calafrio por sua espinha ao lembrar dos
últimos acontecimentos que ocorreram em River Street...
Acontecimentos que ele nunca havia relatado, porque não
desejava passar por mentiroso ou um louco. Os mortos não
retornam... mas o que parece absurdo no Trigésimo Nono
Boulevard assume um aspecto diferente entre os labirintos
assombrados do bairro oriental.
—Fique comigo! —os olhos de Joan estavam dilatados e ela
agarrou o braço de Harrison com as mãos que tremiam
violentamente—. Podemos defender esses aposentos! Enquanto
um dorme, o outro pode vigiar! Não chame a polícia; seus
uniformes nos entregariam. Você trabalha há quinze anos no
bairro oriental e vale mais do que toda a força policial. Os
instintos misteriosos que fazem parte da minha herança oriental
estão alertas ao perigo. Sinto perigo por nós dois, próximos,
rastejando para perto, deslizando ao nosso redor como serpentes
na escuridão!
—Mas eu não posso ficar aqui —ele se queixou,
preocupado—. Não podemos nos entrincheirar e esperar que eles
nos matem de fome. Tenho que revidar... descobrir quem está por

280
trás de tudo isso. A melhor defesa é um bom ataque. Mas também
não posso deixar você aqui desprotegida. Maldição! —ele apertou
os punhos grandes e balançou a cabeça como um touro confuso
em sua perplexidade.
—Há um homem na cidade além de você em quem posso
confiar —disse ela de repente—. Um que vale mais do que toda a
polícia. Com ele me protegendo, eu poderia dormir em segurança.
—Quem é ele?
—Khoda Khan.
—Aquele sujeito? Pensei que ele tivesse sido preso meses
atrás.
—Não. Ele está escondido em Levant Street.
—Mas ele próprio é um assassino sem escrúpulos!
—Não, ele não é. Ao menos de acordo com seus padrões, o
que significa tanto para ele quanto os seus para você. Ele é um
afegão que foi criado em um código de disputa de sangue e
vingança. É tão honrado de acordo com seu credo de que vida
como você ou eu. E ele é meu amigo. Seria capaz de morrer por
mim.
—Suponho que isso significa que você o escondeu da lei —
disse Harrison com um olhar perspicaz que ela não procurou
fugir. Ele não fez mais comentários. River Street não é Park
Avenue. Os métodos de Harrison nem sempre eram ortodoxos,

281
mas geralmente obtinham resultados. —Você pode encontrá-lo?
—ele perguntou abruptamente. Ela assentiu—. Tudo bem. Ligue
para ele e diga para vir aqui. Diga que não será molestado pela
polícia, e depois que tudo isso terminar, ele pode voltar a se
esconder. Mas depois disso, se eu o encontrar, o prenderei. Use
seu telefone. O fio pode estar grampeado, mas teremos que
arriscar. Vou descer e usar o telefone da portaria. Tranque a porta
e não a abra a ninguém até eu voltar.
Quando as fechaduras da porta se estalaram atrás dele,
Harrison virou o corredor em direção às escadas. O prédio não
tinha elevador. Ele observou todos os lados cautelosamente
enquanto caminhava. Uma peculiaridade da arquitetura
praticamente isolou aquela ala. A parede em frente à porta de Joan
estava vazia. A única maneira de alcançar as outras suítes naquele
andar era descer a escada e subir por outra do lado oposto do
edifício.
Ao chegar à escada, ele xingou baixinho; com a sola de seu
sapato acabava de pisar em um pequeno frasco de cristal no
primeiro degrau. Com alguma vaga suspeita de que poderia ser
uma armadilha de veneno plantada, ele se abaixou e investigou
cuidadosamente os pedaços lascados e o conteúdo
derramado. Havia uma pequena poça de líquido incolor que emitia
um odor acre e picante, mas não parecia haver nada de letal nisso.

282
—Suponho que deva ser algum desses perfumes orientais
malditos que Joan deixou cair — ele falou.
Ele desceu a escada giratória sem mais demoras e não
demorou em chegar no escritório da portaria que dava para a rua.
Um porteiro sonolento cochilava atrás da mesa.
Harrison telefonou para o chefe de polícia e começou a falar
abruptamente:
—Ouça, Hoolihan, você se lembra daquele afegão, Khoda
Khan, que matou um chinês há cerca de três meses atrás? Sim,
esse mesmo. Bem, escute: eu estou usando ele em um trabalho
por um tempo, então diga aos seus homens para não o prenderem
quando o virem. Sim, eu sei que é uma coisa irregular, mas é o
assunto em que eu estou metido. E nesse caso, tive que escolher
entre usar os serviços de um fugitivo ou deixar que assassinem
uma cidadã respeitável. Não me pergunte do que se trata. Este é
o meu trabalho, e eu tenho que lidar com isso do meu jeito. Tudo
bem; obrigado.
Ele desligou o fone, pensou vigorosamente por alguns minutos
e depois discou outro número que definitivamente não estava
relacionado à delegacia. No lugar da voz estrondosa do chefe,
soou na outra extremidade do fio um grito espalhafatoso
emoldurado na linguagem do submundo.
—Escute, Johnny —disse Harrison com sua habitual

283
brusquidão—, você me disse que tinha uma pista do assassinato de
Kossova. O que conteceu com ele?
—Não era mentira, chefe! —A voz do outro lado tremia—
. Tenho uma pista, e ela é grande... grande! Não posso falar pelo
telefone e não ouso me arriscar saindo daqui. Mas se você me
encontrar na lanchonete de Shan Yang, eu darei a você a
informação. Vai deixar você assombrado, acredite em mim!
—Estarei lá em uma hora —prometeu o detetive. Ele saiu da
cabine e olhou brevemente para a rua. Era uma noite enevoada,
como tantas noites na River Street. O tráfego era apenas um eco
fraco de algum ponto distante e mais movimentado. A neblina
flutuante obscurecia as luzes da rua, encobrindo as formas de
passantes ocasionais. O palco perfeito montado para um
assassinato. Apenas faltavam os atores para começar esse drama
sombrio.
Harrison subiu as escadas novamente. Elas saiam do escritório
e subiam diretamente na ala do terceiro andar, sem passar pelo
segundo andar. A arquitetura, como grande parte dela no Bairro
oriental ou nas proximidades, era bastante incomum. As pessoas
do bairro gostavam notoriamente de privacidade e até prédios de
apartamentos foram construídos com essa paixão em mente. Seus
pés não fizeram barulho nas escadas densamente alcatifadas,
embora uma leve trituração no degrau mais alto o lembrasse

284
momentaneamente do frasco quebrado. Ele pisara nas lascas. Ele
bateu na porta trancada, respondeu as tensas perguntas de Joan e
foi admitido. Comprovou que a garota havia novamente
recuperado a calma.
—Conversei com Khoda Khan. Ele está a caminho daqui
agora. Eu o avisei que o fio poderia ser grampeado... e que nossos
inimigos pudessem saber assim que eu o chamasse e tentar
impedi-lo no caminho para cá.
—Bom —resmungou o detetive—. Enquanto esperamos por
ele, darei uma olhada na sua suíte.
Havia quatro quartos. O principal era a sala de estar na frente,
com um quarto grande atrás; e atrás desses, havia dois quartos
menores, o da empregada e o banheiro. A empregada não estava
lá, porque Joan a mandara embora na primeira suspeita de que
estava em perigo de morte. O corredor corria paralelo à suíte, e a
sala de estar, o quarto grande e o banheiro davam diretamente
nele. Isso supunha três portas a vigiar. A sala de visitas tinha uma
grande janela leste, com vista para a rua, e uma no sul. O quarto
grande tinha uma janela sul e o quarto da empregada, uma janela
que se projetava para o sul e uma a oeste. O banheiro tinha uma
janela, uma pequena na parede oeste, com vista para uma pequena
quadra delimitada por um emaranhado de becos e quintais
cercados de tábuas.

285
—Três portas externas e seis janelas a serem vigiadas, isso é o
melhor que podemos fazer —murmurou o detetive—. Eu ainda
acho que deveria trazer alguns policiais aqui —mas ele falou sem
convicção.
Ele estava investigando o banheiro quando Joan o chamou
cautelosamente da sala de estar, dizendo que achava que ouvira
um leve arranhão do lado de fora da porta. Com a pistola na mão,
ele abriu a porta do banheiro e espiou pelo corredor. Estava
vazio. Nenhuma forma de horror estava diante da porta da sala de
estar. Ele fechou a porta, chamou tranquilizadoramente a garota e
completou sua inspeção, grunhindo aprovação. Joan La Tour era
filha do bairro oriental. Há muito tempo ela havia se previnido
contra inimigos secretos, ao menos no que se refere a trancas e
ferrolhos especiais. As janelas estavam fechadas com pesadas
trancas de ferro,
—Parece que você está preparada para um cerco —ele
comentou.
—Estou. Tenho armazenado víveres para durar várias
semanas. Com Khoda Khan, posso defender o forte
indefinidamente. Se as coisas ficarem muito quentes para você, é
melhor você voltar aqui... se tiver oportunidade. É mais seguro do
que a delegacia de polícia... a menos que queimem toda a casa.

286
Uma batida suave na porta trouxe os dois ao redor.
—Quem é? —disse Joan cautelosamente.
—Sou eu, Khoda Khan, sahiba —foi a resposta em uma voz
baixa, mas forte e ressonante.
Joan suspirou profundamente e abriu a porta. Uma figura alta
curvou-se com um gesto imponente e entrou.
Khoda Khan era mais alto que Harrison e, apesar de não ter a
maior parte da massa muscular do corpo do americano, seus
ombros eram igualmente largos e suas roupas não podiam ocultar
as linhas duras de seus membros nem a flexibilidade felina de
seus movimentos. Sua vestimenta era uma curiosa combinação de
roupas, comum em River Street. Ele usava um turbante que bem
destacava o nariz de falcão e a barba negra, e um longo casaco de
seda pendia quase até os joelhos. Suas calças eram convencionais,
mas uma faixa de seda cingia sua cintura magra, e seus pés
estavam calçados com sandálias turcas.

287
De qualquer maneira, seria igualmente evidente que havia algo
selvagem e indomável naquele homem. Seus olhos brilhavam de
um modo que não se viam em nenhum homem civilizado, e seus
288
músculos pareciam como cabos tensos sob sua túnica. Harrison
sentiu-se como se tivesse deixado uma pantera entrar no
apartamento, uma fera tranquila por um momento, mas pronta
para, a qualquer instante, saltar com garras vermelhas e olhos
flamejantes numa ação vertiginosa.
—Pensei que você tivesse deixado o país —disse ele.
O afegão sorriu, mostrando um brilho branco em meio ao
emaranhado escuro de sua barba.
—Não, sahib. Aquele filho de um cachorro que eu apunhalei
não morreu.
—Você tem sorte dele não ter morrido —comentou
Harrison—. Se o tivesse matado, você seria enforcado, com
certeza.
—Inshallah —concordou Khoda Khan alegremente—. Mas era
uma questão de izzat... de honra . O cachorro me alimentou com
carne de porco. Mas não importa. A memsahib me ligou e eu vim.
—Muito bem. Enquanto ela precisar da sua proteção, a polícia
não irá prendê-lo. Mas quando o assunto terminar, as coisas
permanecerão como estavam. Vou dar um tempo para você se
esconder novamente, se desejar, e depois tentarei pegá-lo como já
fiz no passado. Ou se você quiser se render e ser julgado, prometo
o máximo de clemência possível.

289
—Você fala de maneira justa —respondeu Khoda Khan—
. Protegerei a memsahib e , quando nossos inimigos estiverem
mortos, você e eu voltaremos a ser inimigos novamente.
—Você sabe alguma coisa sobre esses assassinatos?
—Não sahib. A memsahib me ligou, dizendo que os cães
mongóis a ameaçavam. Vim rapidamente sobre os telhados, para
que não me emboscassem. Ninguém me molestou. Mas aqui está
uma coisa que encontrei do lado de fora da porta.
Ele abriu a mão e exibiu um pedaço de seda, evidentemente
arrancada se sua túnica. Nele havia um objeto esmagado que
Harrison não reconheceu. Mas Joan exclamou com voz baixa.
—Deus! Um escorpião preto de Assam!
—Sim, cuja picada é a morte. Vi-o correndo de um lado para o
outro diante da porta, buscando a entrada. Outro homem poderia
ter pisado nele sem vê-lo, mas eu estava em guarda, pois cheirei a
Flor da Morte quando subi as escadas. Vi a coisa na porta e a
esmaguei antes que pudesse me picar.
—O que você quer dizer com a Flor da Morte? —quis saber
Harrison.
—Cresce nas selvas onde esses vermes habitam. Seu perfume
os atrai como o vinho atrai um bêbado. De alguma maneira havia
uma trilha de seu extrato que chegava até nessa porta. Se a porta
tivesse sido aberta antes de eu matá-lo, ele teria entrado e picado

290
quem quer que estivesse no seu caminho.
Harrison xingou baixinho, lembrando-se do leve ruído que
Joan ouvira do lado de fora da porta.
—Entendi agora! Colocaram um frasco de extrato na escada
onde certamente seria pisado. Eu pisei nele, quebrei e coloquei o
líquido no meu sapato. Então desci as escadas, deixando o
perfume onde quer que eu fosse. Voltei a subir as escadas,
tropeçando novamente no frasco e levando o rastro até a porta.
Então alguém lá embaixo soltou aquele escorpião... Diabos! Isso
significa que eles estão neste prédio desde que eu estava lá
embaixo! Podem estar escondido em algum lugar aqui agora! Mas
alguém teve que entrar no escritório para colocar o escorpião atrás
do meu rastro... vou perguntar ao porteiro.
—Ele dorme como se estivesse morto —disse Khoda
Khan. Não acordou nem quando entrei e subi as escadas. O que
importa se o prédio estiver cheio de mongóis? Essas portas são
fortes e estou alerta! Por baixo do casaco, ele puxou a terrível
faca Khyber... de um metro de comprimento, e com um fio como
uma navalha—. Eu matei homens com isso —ele anunciou,
sorrindo como um demônio da montanha barbudo. Pathans, hindus
e um russo, ou algo assim. Esses mongóis são cães com quem o
bom aço se envergonharia.

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—Bem —resmungou Harrison—. Eu tenho um compromisso
que está atrasado agora. Eu me sinto estranho saindo e deixando
vocês dois para lutar contra esses demônios sozinhos. Mas não
haverá segurança para nós até que eu tenha esmagado essa gangue
em sua raiz, e é isso que eu estou pronto para fazer.
—Eles vão te matar quando você sair do prédio —disse Joan
com convicção.
—Bem, eu tenho que arriscar. Se vocês forem atacados, ligue
para a polícia de qualquer maneira e me ligue no posto de Shan
Yang. Voltarei aqui pouco antes do amanhecer. Mas espero que a
dica que vou obter permita ir diretamente em quem está atrás de
nós.
Ele desceu o corredor com uma sensação estranha de ser
vigiado e examinou as escadas como se esperasse vê-lo repleto de
escorpiões negros, e evitou o vidro quebrado no degrau. Apesar de
desconfiado, ele teve uma desconfortável sensação de estar
descumprindo seu dever, embora soubesse que seus dois
companheiros não queriam a polícia e que, ao lidar com o Oriente,
é melhor manter-se apartado dos ocidentais.
O porteiro ainda estava caído atrás de sua mesa. Harrison o
sacudiu sem sucesso. O homem não estava dormindo; ele foi
drogado. Mas seu batimento cardíaco era regular e o detetive
acreditava que ele não estava em perigo. Enfim, Harrison não

292
tinha mais tempo a perder. Se ele mantivesse Johnny Kleck
esperando por muito tempo, o sujeito poderia ficar em pânico e
fugir para se esconder em alguma ratoeira por semanas.
Harrison saiu para a rua, onde as luzes brilhavam furtivamente
através da névoa flutuante do rio, meio que esperando uma faca
ser lançada contra ele ou encontrar uma cobra enrolada no banco
do automóvel. Mas não encontrou nada que sua suspeita
antecipasse, mesmo que tenha levantado o capô e o assento para
ver se havia uma bomba plantada. Por fim, satisfeito, entrou e
tomou assento atrás do volante e a garota que o observava através
das fendas de uma persiana do terceiro andar suspirou aliviada ao
vê-lo ir sem ser molestado.
Khoda Khan havia examinado os aposentos, assentindo com
aprovação as fechaduras, e, depois de apagar as luzes das outras
câmaras, voltou à sala de estar, onde apagou todas as luzes, exceto
uma pequena luminária de mesa, onde lançava uma pequena fresta
de luz no centro da sala, deixando o resto em uma escura
penumbra.
—A escuridão desorienta os bandidos igual aos homens
honestos —disse ele com segurança —, e eu vejo como um gato
no escuro.
Ele sentou de pernas cruzadas perto da porta que dava para o
quarto, que deixou parcialmente aberto. Fundiu-se com as sombras

293
para que tudo o que Joan pudesse distinguir fosse seu turbante e o
brilho de seus olhos quando virou a cabeça.
—Vamos permanecer neste quarto, sahiba —disse ele—
. Havendo falhado com veneno e réptil, é certo que os homens
serão enviados a seguir. Deite-se no divã e durma, se puder. Vou
vigiar.
Joan obedeceu, mas ela não dormiu. Seus nervos pareciam
estar a ponto de estalar com a tensão. O silêncio da casa a oprimia
e os poucos barulhos da rua a faziam se sobressaltar.
Khoda Khan ficou imóvel como uma estátua, imbuído da
paciência selvagem e da imobilidade das colinas nas quais foi
criado. Crescido até a idade adulta na fronteira bárbara do mundo,
onde a sobrevivência dependia da capacidade pessoal, seus
sentidos eram aguçados mais do que é possível para os homens
civilizados. Até as faculdades treinadas de Harrison pareciam
medíocres em comparação. Khoda Khan ainda podia cheirar o
leve aroma da Flor da Morte, misturado com o odor acre do
escorpião esmagado. Ouvia e identificava todos os sons dentro ou
fora da casa... sabia quais eram naturais e quais não.
Ele ouviu os sons no telhado muito antes de seu sussuro de
advertência colocar Joan de pé no divã. Os olhos do afegão
brilhavam como fósforo nas sombras e seus dentes brilhavam
vagamente em um sorriso selvagem. Joan olhou para ele

294
interrogativamente. Seus ouvidos civilizados não ouviram
nada. Mas ele ouviu e com os ouvidos seguiu os sons com
precisão e localizou o local onde haviam se originado. Joan ouviu
algo então, um leve arranhão em algum lugar do prédio, mas ela
não o identificou – como Khoda Khan - como o forçar as grades
da janela do banheiro.
Com um rápido gesto tranquilizador para ela, Khoda Khan se
levantou e como um leopardo se misturou na escuridão do
quarto. A jovem empunhou uma volumosa pistola automática, e,
sem grande convicção de acertar algum disparo, tateou a mesa a
procura de uma garrafa de vinho na mesa, sentindo uma intensa
necessidade de estimulantes. Ela tremia em todos os membros e o
suor frio se acumulava em sua carne. Lembrou-se dos cigarros,
mas o selo intacto da garrafa a tranquilizou. Até os mais sábios
têm momentos impensados. Não foi até ela começar a beber que o
sabor peculiar a fez perceber que o homem que trocara os cigarros
poderia facilmente pegar uma garrafa de vinho e deixar outra em
seu lugar com um selo aparentemente intacto. Ela caiu para trás no
divã, engasgando.
Khoda Khan não perdeu tempo, pois ouviu outros sons, no
corredor. Seus ouvidos lhe disseram, enquanto ele se agachava
perto da porta do banheiro, que as barras haviam sido serradas...
feitas quase em silêncio, um trabalho que um homem branco faria

295
parecer soar como uma explosão em uma fundição de ferro... e
agora a janela estava sendo arrombada. Então ele ouviu algo
furtivo e volumoso cair na sala. Foi então que ele abriu a porta e
entrou como um tufão, com a faca comprida em guarda baixa.
Luz suficiente filtrava a sala de fora para formar uma figura
poderosa e agachada, com feições amareladas e turvas. O intruso
uivou explosivamente e iniciou um movimento... e então a longa
faca Khyber, brandida por um braço forjado pela fúria do
Himalaia, rasgou-o da garganta ao ventre.
Khoda Khan não parou. Ele sabia que havia apenas um
homem na sala, mas através da janela aberta viu uma corda
grossa pendendo de cima. Ele saltou para frente, agarrou-a com
as duas mãos e a puxou para trás como um touro. Os homens no
telhado que seguravam a corda soltaram-na para não serem
empurrados de cabeça para o vazio, enquanto Khoda Khan
retrocedia, esquivando-se sobre o cadáver, soltando a corda de
suas mãos. Ele uivou exultante, depois levantou-se e deslizou
para a porta que dava para o corredor. A menos que tivessem
outra corda, o que era improvável, os homens no telhado
estavam temporariamente fora da luta.
Ele abriu a porta que conduzia ao corredor e retrocedeu um
passo. Um pequeno machado voador cortou uma grande lasca do
batente, e ele, depois saltou sobre um corpo escorregadio no

296
corredor, enquanto sacava uma grande pistola escondida na sua
bainha.
A luz brilhante do corredor não o cegou. Ele viu um segundo
lançador de machado agachado na porta do quarto, e um homem
com túnica de seda de um mandarim trabalhando na fechadura da
porta da sala de estar. O afegão estava entre eles e as
escadas. Quando eles se aproximaram, disparou no peito do
atirador de machado. E na mão do mandarim apareceu uma pistola
automática, enquanto que Khoda Khan sentiu o vento da bala
passar junto à sua cabeça. No instante seguinte, sua própria arma
rugiu novamente e o manchu cambaleou, enquanto a pistola
voava de uma mão que de repente se tornou uma polpa vermelha
de sangue. Então, com a mão esquerda o chinês tirou uma faca
comprida de sua túnica e avançou pelo corredor como um furacão,
com seus olhos brilhando e suas roupas de seda chicoteando sobre
ele.
Khoda Khan lhe deu um tiro na cabeça e o mandarim caiu tão
perto de seus pés que a longa faca se cravou no chão e roçou
alguns centímetros do chinelo do afegão.
Mas Khoda Khan fez uma pausa apenas o tempo suficiente
para degolar o lançador de machado que ele atirara no peito...
pois sua ética de luta era a das montanhas selvagens... e então ele
se virou e correu de volta para o banheiro. Disparou pela janela,

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caso os homens no telhado pensassem em continuar tentando, e
depois correu pelo quarto, acendendo as luzes enquanto avançava.
—Eu matei os cachorros, sahiba ! —ele exclamou—. Por Alá,
eles provaram chumbo e aço! Outros estão no telhado, mas estão
indefesos no momento. Mas os homens virão para investigar os
tiros, que são de costume dos sahibs, por isso é urgente que
decidamos o que vamos fazer em seguida, e o mais lógico é... Por
Allah!
Joan La Tour estava em pé, segurando a parte de trás do
divã. O rosto dela era da cor de mármore e a expressão também
era rígida, como uma máscara de horror esculpida em pedra. Seus
olhos dilatados ardiam como fogo negro estranho.
—Que Allah nos proteja contra Shaitan, o Maldito! —cuspiu
Khoda Khan, fazendo um sinal com os dedos que antecedeu o Islã
por alguns milhares de anos. O que aconteceu com você, sahiba?
Ele se moveu em direção a ela, para ser recebido por um grito
que o fez recuar, envolto em um suor frio.
—Mantenha-se afastado! —ela gritou com uma voz
irreconhecível—. Você é um demônio! Vocês são todos
demônios! Eu vejo você! Eu ouço seus pés fechados estilhaçando
à noite! Eu vejo seus olhos brilhando nas sombras! Afaste de mim
essas suas garras! Aie! —espuma salpicou de seus lábios enquanto
ela gritava blasfêmias em inglês e árabe que faziam os cabelos de

298
Khoda Khan ficarem em pé.
—Sahiba! —ele implorou, tremendo como uma folha—. Eu
não sou um demônio! Eu sou Khoda Khan! Eu... —estendeu a
mão e a tocou e, com um grito terrível, ela se virou e correu para a
porta, abrindo os ferrolhos. O afegão saltou para detê-la, mas em
seu frenesi ela foi ainda mais rápida que ele. Ela abriu a porta,
esquivando-se da mão dele e correu pelo corredor, lançando
gritos angustiados.

II.

Quando Harrison saiu da casa de Joan, ele foi direto ao


restaurante de Shan Yang, que, no coração de River Street,
ocultava um bar clandestino. Era tarde. Apenas alguns bêbados se
amontoaram no bar, e ele notou que o barman era um chinês que
nunca tinha visto antes. Ele olhou impassível para Harrison, mas
apontou o polegar para a porta dos fundos, mascarado por cortinas
sujas, quando o detetive perguntou abruptamente: "Johnny Kleck
está aqui?"
Harrison passou pela porta, atravessou um pequeno corredor
mal iluminado e bateu com autoridade na porta do outro lado. No
silêncio, ele ouviu ratos correndo. Um disco de aço no centro da
porta se mexeu e um olho rasgado negro brilhou na abertura.

299
—Abra a porta, Shan Yang —ordenou Harrison, impaciente, e
o olhar foi desviado, acompanhado pelo barulho de trincos e
correntes.
Ele empurrou a porta e entrou na sala cuja iluminação era
pouco melhor do que a do corredor. Era um armazém grande,
sombrio e monótono, cheio de divãs empilhados. Fogos
crepitavam em inúmeros braseiros, e Shan Yang estava
caminhando para seu assento habitual atrás de um balcão baixo
perto da parede. Harrison passou apenas um único olhar casual
para a figura familiar, e para a bem conhecida jaqueta de seda
bordada com dragões dourados. Então ele atravessou a sala até
uma porta na parede oposta ao balcão para o qual Shan Yang
estava caminhando. Aquele lugar era um fumador de ópio e
Harrison sabia disso... sabia que aquelas figuras nos divãs eram
chineses dormindo o sono da fumaça. Por que ele não a invadiu,
como invadiu e destruiu outras casas de ópio, apenas Harrison
poderia dizer. Mas a aplicação da lei na River Street não é a rotina
ortodoxa da Baskerville Avenue, por exemplo. As razões de
Harrison eram de conveniência e necessidade. Às vezes, certas
convenções precisam ser sacrificadas em prol de ganhos mais
importantes - especialmente quando a aplicação da lei de um
distrito inteiro (e no bairro oriental) repousa sobre os ombros de
uma única pessoa.

300
Um odor característico invadia a densa atmosfera por cima do
cheiro de ópio e de corpos sujos... o odor úmido do rio que paira
sobre as docas de River Street e mergulha ou brota do chão como
o espírito negro e intangível do bairro em si. O restaurante de
Shan Yang, como muitos outros, foi construído na margem do
rio. A sala dos fundos projetava-se sobre a água em vigas
apodrecidas, nas quais o rio negro batia de forma incansável.
Harrison abriu a porta, entrou e a fechou atrás de si, enquanto
seus lábios começavam a dizer uma saudação que não chegou a
ser proferida. Ele ficou imóvel, observando ao seu redor.
Ele estava em uma pequena sala suja, sem móveis, exceto por
uma mesa rústica e algumas cadeiras. Uma lâmpada de óleo sobre
a mesa lançava uma luz esfumaçada. E nessa luz ele viu Johnny
Kleck. O homem estava de pé contra a parede oposta, os braços
abertos como um crucifixo, rígido, os olhos vidrados e fixos, e as
suas feições com características de rato, retorcidas em um sorriso
congelado. Ele não falou, e o olhar de Harrison, percorrendo a
figura, parou com um choque. Os pés de Johnny não tocavam o
chão por várias polegadas...
Harrison instantaneamente sacou sua enorme pistola de aço
azulado. Johnny Kleck estava morto, aquele sorriso era uma
contorção de horror e agonia. Ele foi crucificado na parede por

301
lâminas de punhal em forma de espeto nos pulsos e tornozelos, e
as orelhas cravadas na parede para manter a cabeça ereta. Mas não
foi isso que o matou. O peito da camisa de Johnny estava
carbonizado e havia um buraco redondo e enegrecido.
Sentindo tontura repentinamente, o detetive retrocedeu, abriu a
porta e voltou para a sala maior. A luz parecia mais fraca, a
fumaça mais espessa do que nunca. Nenhum murmúrio veio dos
divãs; os fogos nos braseiros ardiam em azul, com estranhas
chamas. Shan Yang seguia sentado atrás do balcão. Seus ombros
se moviam como se estivesse contando contas em um ábaco.
—Shan Yang! —a voz do detetive ressoou duramente em meio
àquele silêncio sombrio—. Quem entrou naquela sala hoje à noite,
além de Johnny Kleck?
O homem atrás do balcão se endireitou e olhou para ele, e
Harrison sentiu sua pele arrepiar. Acima da jaqueta dourada, um
rosto desconhecido retornou seu olhar. Aquele não era Shan
Yang; era um homem que ele nunca tinha visto... era um
mongol. Harrison se sobressaltou e olhou ao redor enquanto os
homens nos divãs se levantavam com facilidade. Não eram
chineses; eram mongóis até o último deles, e seus olhos negros e
puxados não estavam nublados pelas drogas.
Com uma maldição, Harrison saltou em direção à porta
externa e, como se fosse um suspiro, estavam sobre ele. Sua arma

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disparou e um homem cambaleou no meio do caminho. Então as
luzes se apagaram, os braseiros foram derrubados e, na escuridão
estígia, corpos endurecidos se chocaram contra o detetive. Dedos
de unhas compridas cravaram-se em sua garganta, braços grossos
aprisionaram suas pernas e cintura. Em algum lugar uma voz
sibilante sussurava ordens.
A demolidora mão esquerda de Harrison atacava como um
pistão hidráulico, esmagando carne e quebrando ossos; e a sua
mão direita empunhava o cano da arma como um taco. Ele
avançou cegamente para a porta que não conseguia ver, arrastando
seus agressores com sua força bruta. Ele parecia chocar-se contra
uma massa sólida, como se a escuridão se transformasse em ossos
e músculos ao seu redor. Uma faca rasgou seu casaco, arranhando
sua pele, e então ele ofegou quando um cordão de seda enrolou em
seu pescoço, cortando o ar enquanto afundava cada vez mais em
sua garganta. Cegamente, ele encostou o cano de sua pistola
contra o corpo mais próximo e apertou o gatilho. Na metade
daquela confusão alguém caiu ao solo, e a agonia do
estrangulamento diminuiu. Ofegando, tateou e arrancou a corda...
então ele foi derrubado por uma onda de corpos pesados e algo
estalou violentamente em sua cabeça. A escuridão explodiu em
uma chuva de faíscas que instantaneamente se transformou em
uma escuridão estígia.

303
III.

O cheiro do rio estava nas narinas de Steve Harrison quando


ele recuperou seus sentidos confusos, o cheiro do rio misturado
com o odor de sangue derramado. O sangue —ele percebeu,
quando tinha senso suficiente para perceber alguma coisa—,
estava coagulado em seu próprio couro cabeludo. Sua cabeça
girou e ele tentou levantar a mão, descobrindo que estava
amarrado de pés e mãos com cordões que cortavam a carne. Uma
vela estava ofuscando seus olhos, e por um tempo ele não pôde
ver mais nada. Então as coisas começaram a assumir suas
proporções apropriadas, e os objetos surgiram do nada e se
tornaram identificáveis.
Ele estava deitado no chão nu de madeira nova, sem pintura,
em uma grande câmara quadrada, cujas paredes eram de pedra,
sem tinta ou gesso. O teto era igualmente de pedra, com vigas
pesadas e nuas, e havia um alçapão aberto quase diretamente
acima dele, através do qual, apesar da vela, ele vislumbrava as
estrelas. O ar fresco fluía através desse alçapão, levando o cheiro
do rio mais forte do que nunca. A câmara estava sem móveis e a
vela presa em um nicho na parede. Harrison xingou, imaginando
se estava delirando. Aquela experiência parecia um sonho, algo

304
irreal e distorcido.
Tentou se sentar, mas isso fez sua cabeça girar, de modo que
ele se recostou e xingou fervorosamente. Gritou com raiva, e um
rosto olhou para ele através do alçapão - um rosto quadrado e
amarelo com olhos puxados. Ele amaldiçoou o homem e esse
zombou dele, desaparecendo. O barulho da porta se abrindo
suavemente interrompeu a torrente de insultos de Harrison e ele
se virou para encarar o recém chegado.
E ele olhou em silêncio, sentindo uma pontada gelada na
espinha. Estava deitado, amarrado e impotente, olhando para uma
figura alta, vestida de preto, cujos olhos amarelos brilhavam da
sombra de um capuz escuro. Mas aquele homem estava morto.
Harrison o viu ser decapitado pela cimitarra de um druso
enlouquecido.
—Erlik Khan! —as palavras sairam forçadas. Ele lambeu os
lábios de repente secos.
—Sim —Era a mesma voz fantasmagórica e vazia que,
naquele momento, lhe provocava calafrios—. Erlik Khan, o
Senhor dos Mortos.
—Você é um homem ou um fantasma? —quis saber
Harrison.
—Eu vivo.

305
—Mas vi Ali ibn Suleyman te matar! —exclamou o detetive—
. Ele te cortou a cabeça com uma espada pesada e afiada como
uma navalha. Era um homem mais forte do que eu. Ele atacou
com todo o poder de seu braço. Seu capuz caiu em dois pedaços…
—E eu caí como um homem morto no meu próprio sangue—,
finalizou Erlik Khan—. Mas o chapéu de aço que eu usava —
como eu uso agora —debaixo do capuz, salvou minha vida como
já fez mais de uma vez. Aquele terrível golpe conseguiu atravessá-
lo e cortou meu couro cabeludo, fraturando meu crânio e causando
uma contusão em meu cérebro. Mas eu sobrevivi, e alguns dos
meus fiéis seguidores, que escaparam da espada do Druso, me
carregaram pelos túneis subterrâneos que saíam da minha casa, e
então eu escapei do prédio em chamas. Mas fiquei deitado como
um homem morto por semanas. e não foi somente quando um
homem muito sábio foi trazido da Mongólia que eu recuperei
meus sentidos e sanidade.
“Mas agora estou pronto para retomar meu trabalho de onde
parei, embora deva reconstruir muito. Muitos de meus ex-
seguidores haviam esquecido minha autoridade. Alguns
precisavam ser ensinados de novo quem era o mestre”.
—E você os ensinou —resmungou Harrison, recuperando sua
compostura desafiante.

306
—Verdade. Alguns exemplos tiveram que ser feitos. Um
homem caiu de um telhado, uma cobra mordeu outro, e outro
encontrou facas em um beco escuro. Depois, faltava uma outra
questão. Joan La Tour me traiu nos velhos tempos. Ela sabe
muitos dos meus segredos. Ela teria que morrer. E, para que
pudesse sentir agonia antecipada, enviei a ela uma página do
meu livro dos mortos.
—Teus demônios mataram Kleck —acusou Harrison.
—É claro. Todas as linhas que conduzem ao prédio da garota
estão grampeadas. Eu mesmo ouvi sua conversa com Kleck. Foi
por isso que você não foi atacado quando saiu do prédio. Fiz com
que visse cair diretamente em minhas mãos. Enviei meus homens
para tomar posse da casa de ópio de Shan Yang. Ele já não tinha
mais utilidade para mim, atualmente, então, usei alguém para
enganá-lo. Kleck de alguma forma soube do meu retorno; alguns
desses peões são bastante astutos. Mas ele teve tempo de se
arrepender ao morrer com uma ponta de ferro incandescente no
peito.
Harrison não disse nada e, pouco depois, o mongol continuou.
—Escrevi seu nome em meu livro porque o reconheci como
meu oponente mais perigoso. Foi por sua causa que Ali ibn
Suleyman se voltou contra mim.

307
“Estou reconstruindo meu império novamente, mas de uma
forma mais sólida. Primeiro, consolidarei a River Street e criarei
uma máquina política para governar a cidade. Os homens nos altos
cargos agora não suspeitam da minha existência. Se todos
morressem, não seria difícil encontrar outras pessoas para ocupar
seus postos... homens que não são indiferentes ao tilintar do
ouro”.
—Você é louco —rosnou Harrison—. Controlar um governo
inteiro da cidade a partir de River Street?
—Já está feito —respondeu o mongol tranquilamente—.
Atacarei como uma cobra no escuro. Somente os homens que
obedecem ao meu agente viverão. Ele será um homem branco, um
fantoche a quem os homens acharão que tem o poder real,
enquanto permanecerei invisível, nas sombras. Poderia ter sido
você, se tivesse sido um pouco mais inteligente.
Ele pegou um objeto volumoso debaixo do braço, um livro
grosso com capas pretas brilhantes... de ébano com dobradiças de
jade verde. Harrison vasculhou as páginas coloridas e viu que
estavam cobertas com caracteres carmesins.
—Meu livro dos mortos —disse Erlik Khan—. Muitos nomes
foram riscados. E muitos outros foram adicionados desde que
recuperei minha sanidade. Alguns deles lhe interessariam; incluem
nomes do prefeito, do chefe de polícia, do promotor público e de

308
vários vereadores.
—Esse golpe deve ter perturbado seu cérebro
permanentemente —rosnou Harrison—. Você acha que pode
substituir um governo da cidade inteiro e se safar?"
—Eu posso e farei. Esses homens morrerão de várias
maneiras, e os homens de minha própria escolha os sucederão no
cargo. Dentro de um ano, segurarei esta cidade na palma da minha
mão, e não haverá ninguém para interferir em meus planos.
Enquanto estava deitado, preso, olhando para a figura bizarra,
cujas feições eram, como sempre, obscurecidas e irreconhecíveis
pelo capuz, a carne de Harrison se arrepiou com a convicção de
que o mongol estava realmente louco. Seus sonhos carmesins,
sempre medonhos, eram muito grotescos e incríveis para as visões
de um homem totalmente são. No entanto, ele era perigoso como
uma cobra enlouquecida. Sua trama monstruosa devia fracassar
por completo, mas ele tinha a vida de muitos homens em suas
mãos. E Harrison, em quem a cidade confiava para se proteger de
qualquer ameaça que o bairro oriental pudesse gerar, jazia
amarrado e desamparado diante dessa ameaça. O detetive
amaldiçoou em fúria.
—Como sempre um homem de violência —zombou Erlik
Khan, com a sugestão de desprezo em sua voz—. Um Bárbaro!
Um homem que confia em pistolas e lâminas, e que seria capaz de

309
enfrentar o poder imperial com golpes de punhos nus! Um braço
sem cérebro golpeando golpes cegos! Bem, você lutou pela última
vez. Pode sentir o cheiro do rio úmido que se arrasta através do
teto? Logo o envolverá completamente e seus sonhos e aspirações
se fundirão com a névoa do rio.
—Onde estamos? —Quis saberHarrison.
—Em uma ilha abaixo da cidade, onde os pântanos começam.
Uma vez havia armazéns aqui e uma fábrica, mas eles foram
abandonados enquanto a cidade crescia na outra direção e
estavam em ruínas por vinte anos. Comprei toda a ilha através de
um de meus agentes, e estou reconstruindo, para atender a meus
próprios propósitos, uma antiga mansão de pedra que estava aqui
antes da construção da fábrica. Ninguém sabe, porque meus
próprios capangas são operários, e ninguém jamais vem a esta
ilha pantanosa. A casa fica invisível além do rio, escondida como
está entre o emaranhado de velhas docas apodrecidas. Você
chegou aqui em uma lancha ancorada sob os cais apodrecidos
atrás da casa de ópio de Shan Yang. Outro barco irá buscar meus
homens que foram enviados para eliminar Joan La Tour.
—Isso não vai ser tão fácil —comentou o detetive.
—Não tema. Sei que ela chamou esse lobo peludo, Khoda
Khan, para ajudá-la, e é verdade que meus homens fracassam em
matá-la antes que ele se reunisse com ela. Mas suponho que foi

310
um falso senso de confiança no afegão que lhe fez não faltar com
seu encontro com Kleck. Eu esperava que você ficasse com a
garota tola e tentasse protegê-la do seu jeito.
Em algum lugar abaixo deles, um gongo soou. Erlik Khan não
se sobressaltou, mas houve uma surpresa no modo de levantar a
cabeça. Ele fechou o livro preto.
—Eu perdi tempo suficiente com você —disse ele—. Uma
vez, em outra ocasião te disse adeus em uma de minhas
masmorras. Então o fanatismo de um Druso louco salvou você.
Desta vez não haverá nada que atrapalhe meus planos. Os únicos
homens nesta casa são mongóis, que não conhecem outra lei senão
a minha vontade. Eu vou, mas você não estará sozinho. Logo,
alguém fará companhia para você.
E com uma risada baixa e arrepiante, a figura fantasmagórica
passou pela porta e desapareceu. Do lado de fora, o som de uma
fechadura sendo fechada foi ouvida e depois houve silêncio.
O silêncio foi quebrado de repente por um grito abafado. Veio
de algum lugar abaixo e foi repetido meia dúzia de vezes. Harrison
estremeceu. Ninguém que já visitou um manicômio poderia deixar
de reconhecer esse som. Foi o grito de uma mulher louca. Depois
desses gritos, o silêncio parecia ainda mais sufocante e ameaçador.
Harrison maldisse em voz alta para acalmar seus sentimentos, e
novamente a cabeça encoberta do mongol olhou para ele através

311
do alçapão.
—Sorria, seu asqueroso macaco amarelo! —rugiu Harrison,
puxando suas cordas até que as veias se destacaram em suas
têmporas—. Se eu pudesse quebrar essas malditas cordas, faria
você engolir esse sorriso... e começou a falar detalhes minuciosos
dos antepassados do mongol, concentrando-se longamente nas
fases mais escandalosas deles e no meio de seu discurso
barulhento, viu o olhar malicioso mudar repentinamente para um
rosnado assustado. A cabeça desapareceu do alçapão e houve um
som como o golpe de um cutelo de açougueiro.
Então outro rosto apareceu no alçapão... um rosto selvagem e
barbudo, com olhos ardentes e injetados em sangue, cobertos por
um turbante meio desfeito.
—Sahib! —sussurrou a aparição.
—Khoda Khan! —falou o detetive, perplexo—. O que
demônios você está fazendo aqui?
—Silêncio — murmurou o afegão—. Que não nos ouçam
esses demônios. Ele jogou a ponta solta de uma escada de corda
através do alçapão e desceu até que seus pés descalços chegaram
ao chão sem fazer o menor ruído. Segurava a faca comprida entre
os dentes e o sangue escorria da ponta.
Agachado ao lado do detetive, ele o libertou cortando suas
ligaduras com cortes limpos que ameaçavam também cortar sua

312
carne, além das cordas. O afegão tremia com uma fúria defícil de
controlar. Seus dentes brilhavam como dentes de lobo em meio
ao emaranhado de sua barba.
Harrison sentou-se, esfregando os pulsos inchados.
—Onde está Joan? Rápido, homem, onde ela está?
—Aqui! Nesta cova maldita!
—Mas…
—Era ela que estava gritando há alguns minutos —
interrompeu o afegão, e a carne de Harrison se estremeceu com
uma vaga e monstruosa premonição.
—Mas esse grito era de uma mulher louca! —sussurrou.
—A sahiba está louca —disse Khoda Khan sombriamente—
. Escute, sahib, e então julgue se a culpa é minha.
“Depois que você saiu, os amaldiçoados deixaram cair um
homem do telhado por uma corda. Esse eu apunhalei e matei mais
três que procuravam forçar as portas. Mas quando voltei para
a sahiba, ela não me conhecia. Ela fugiu de mim para a rua, e
outros demônios deviam estar à espreita por perto, porque
enquanto ela corria gritando pela calçada, um grande automóvel
apareceu no meio da neblina e um mongol esticou um braço e a
arrastou para dentro do carro, debaixo de mim. Vi seu rosto
amaldiçoado e amarelado à luz de um poste de luz”.

313
“Sabendo que ela estaria melhor morta por uma bala do que
nas mãos dessa gente, esvaziei minha pistola atrás do carro, mas
ela fugiu como Shaitan, o Maldito, da face de Allah, e se eu
acertei alguém, não sei. Então, como eu rasguei minhas roupas e
amaldiçoei o dia do meu nascimento - pois não podia persegui-
los a pé – os desígnios de Allah quiseram que outro automóvel
aparecesse, dirigido por um jovem em roupas de noite,
retornando de uma festa, sem dúvida, e sendo amaldiçoado com
curiosidade, ele diminuiu a velocidade perto do meio-fio para
observar minha desgraça”.
“Então, louvando a Alá, pulei ao lado dele e, com a faca
apontada contra suas costelas, ordenei que a acertasse, e ele
obedeceu com muito medo. O carro dos condenados estava fora de
vista, mas, no momento, o vislumbrei novamente e exortei o
jovem a aumentar a velocidade, de modo que a máquina parecia
voar como o corcel do Profeta. Então, vi o carro parar na margem
do rio. Eu fiz o jovem parar da mesma forma, e ele saltou e fugiu
na outra direção em terror”.
“Corri pela escuridão, ávido pelo sangue daqueles malditos,
mas antes que pudesse chegar à margem do rio, vi quatro mongóis
deixarem o carro, carregando a memsahib que estava amarrada e
amordaçada, e eles entraram em uma lancha e seguiram para o rio
em direção a uma ilha que jazia no meio da água como uma

314
nuvem negra”.
“Subi e desci pela margem do rio como um louco, e estava
prestes a pular e nadar, embora a distância fosse grande, quando
me deparei com um barco acorrentado a um poste, mas dirigido
por remos. Dei graças a Allah e cortei a corrente com a minha faca
— vê o entalhe na ponta? — e remei atrás dos amaldiçoados o
mais rápido que pude”.
“Eles estavam muito à minha frente, mas Allah desejou que o
motor deles engasgasse e parasse quando quase chegassem à ilha.
Então, eu fiquei animado e recobrei minhas forças ao ouvi-los
xingar em sua língua pagã e esperava deslizar ao lado de sua
lancha e degolá-los a todos antes que pudessem notar minha
presença. Eles não podiam me ver na escuridão, nem ouviram
meus remos por causa de seus próprios gritos, mas antes que eu
pudesse alcançá-los, o maldito motor voltou a funcionar. Então,
chegaram ao um cais na costa pantanosa à minha frente, mas eles
demoraram para acelerar o barco, então eu não fiquei muito atrás
deles quando carregaram a memsahib através das sombras das
docas em ruínas que estavam por toda parte”.
“Então, nesse momento, eu estava furioso e com vontade de
lançar-me sobre eles para matá-los, mas antes que eu pudesse
alcançá-los, chegaram à porta de uma grande casa de pedra —
essa aqui, sahib — situada em um emaranhado de prédios

315
apodrecidos, cercada por uma cerca de aço, com arame farpado no
topo, mas... por Allah, que não poderia resistir à lâmina
um cegador de Khyber! Passei por cima dela sem rasgar minhas
roupas. No interior havia uma segundo muro de pedra, mas estava
em ruínas”.
“Agachei-me nas sombras perto da casa e vi que as janelas
estavam pesadamente trancadas e as portas eram fortes. Além
disso, a parte inferior da casa está cheia de homens armados.
Então, subi em um canto da parede e, não foi fácil, mas cheguei ao
telhado que, naquela parte, é plano, com um parapeito. Esperava
encontrar um vigia, e havia, mas ele estava muito ocupado
provocando seu cativo para me ver ou me ouvir até que minha
faca o mandasse para o inferno. Aqui está a adaga dele; ele não
usava pistola”.
Harrison pegou mecanicamente o punhal de lâmina estreita.
—Mas o que fez Joan enlouquecer?
—Sahib, havia uma garrafa de vinho quebrada no chão e um
cálice. Não tive tempo de investigar, mas sei que o vinho deve ter
sido envenenado com o suco da fruta chamada romã negra. Ela
não deve ter bebido muito, ou ela teria morrido espumando e
chamuscando como um cachorro louco. Mas basta apenas uma
pequena quantidade para roubar a sanidade. Cresce nas selvas da
Indochina, e os homens brancos dizem que não existe. Mas não sei

316
que existe pois vi três vezes homens morrerem depois de beberem
seu suco, e mais de uma vez vi homens e mulheres também
enlouquecerem por causa dela. Viajei pelo país infernal onde ela
cresce.
—Deus! —as forças de Harrison foram abaladas por
náuseas. Então suas mãos grandes se fecharam como se fossem
punhos de ferro e um terrível fogo brilhou em seus selvagens
olhos azuis. A fraqueza do horror e da repulsa deu lugar a uma
fúria fria, tão perigosa como a sede de sangue de um lobo
faminto—. Ela pode já estar morta —ele murmurou—. Mas viva
ou morta, enviaremos Erlik Khan para o inferno. Tente aquela
porta.
Era de madeira de teca pesada, reforçada com tranças de
bronze.
—Está trancada —murmurou o afegão—. Vamos arrombá-la.
Ele estava prestes a lançar o ombro contra ela quando parou, e
sacou a longa faca Khyber em seu punho como um raio de luz.
—Alguém se aproxima! —ele sussurrou, e um segundo depois
os ouvidos de Harrison (mais civilizados e, portanto, menos
agudos) captaram um passo felino. Instantaneamente ele agiu. Ele
empurrou o afegão para trás da porta e sentou-se rapidamente no
centro da sala, enrolou um pedaço de corda nos tornozelos e
depois ficou de corpo inteiro, os braços atrás e embaixo dele. Ele

317
estava deitado sobre os outros pedaços de cordão cortado,
escondendo-os, e, ao olhar casual, parecia um homem deitado de
mãos e pés amarrados. O afegão entendeu e sorriu enormemente.
Harrison trabalhou com a celeridade da mente e dos músculos
treinados que elimina a demora e os erros. Alcançou seu objetivo
em questão de segundos e sem fazer o menor ruído. Uma chave
rangeu na fechadura quando ele terminou, e então a porta se
abriu. Um mongol gigante ficou parado na abertura. Sua cabeça
estava raspada, sua aparência quadrada sem emoção como o rosto
de um ídolo de cobre. De um lado, ele carregava um bloco de
ébano de formato curioso; por outro, uma maça que era carregada
pelos cavaleiros de Ghengis Khan - um cacete de ferro de cabo
reto com uma cabeça redonda coberta com pontas de aço e uma
maçaneta de couro na outra extremidade para evitar que
escorregasse da mão.
Ele não viu Khoda Khan porque, quando abriu a porta, o
afegão estava escondido atrás dela. Khoda Khan não o esfaqueou
ao entrar porque o afegão não podia ver o corredor externo e não
tinha como saber quantos homens seguiam o primeiro. Mas o
mongol estava sozinho e ele não se incomodou em fechar a
porta. Ele foi direto para o homem deitado no chão, franzindo a
testa um pouco ao ver a escada de corda pendurada na escotilha,
como se não fosse usual deixá-la assim, mas não demonstrou

318
nenhuma suspeita ou chamou o homem do lado de fora da
cobertura. Não examinou as cordas em que Harrison estava
amarrado. O detetive apresentava a aparência que o mongol
esperava, e esse fato turvou sua percepção, como costuma
acontecer com coisas que consideramos certas. Agachando-se,
Harrison viu, por sobre seu ombro, Khoda Khan deslizar-se
silencioso como uma pantera por trás da porta.
Apoiando a maça na perna, espetando o cabo no chão, o
mongol agarrou o peito da camisa de Harrison com uma mão,
ergueu a cabeça e os ombros do chão, enquanto enfiava o bloco
embaixo do pescoço. Como cobras gêmeas, as mãos do detetive
projetaram-se para frente e travaram na garganta de touro do
mongol.
Não houve grito; instantaneamente os olhos puxados do
mongol se distenderam e seus lábios se abriram em um sorriso de
estrangulamento. Com um tremor terrível, ele se levantou,
arrastando Harrison com ele, mas sem se soltar, e o peso do
grande americano derrubou os dois novamente. As duas mãos
amarelas rasgaram freneticamente os pulsos de ferro de
Harrison; então o gigante endureceu convulsivamente e uma breve
agonia avermelhou seus olhos negros. Khoda Khan enfiou a faca
entre os ombros do mongol, atravessando a seda que cobria o peito
do homem.

319
Harrison alcançou a maça, grunhindo com satisfação
selvagem. Era uma arma mais adequada ao seu temperamento do
que a adaga que Khoda Khan lhe dera. Não há necessidade de
explicar sua função; se ele estivesse amarrado e sozinho quando o
carrasco entrasse, seus cérebros estariam agora esparramados pelo
chão, e os restos partidos de seu crânio estariam sobre a bola
espetada da maça e o bloco de ébano que, com tanta facilidade
esmagava uma cabeça humana. As execuções de Erlik Khan
variavam em vários aspectos, desde o requintadamente sutil até as
mais cruéis e bestiais.
—A porta está aberta — disse Harrison—. Vamos!
Não havia chaves no corpo. Harrison duvidava que a chave da
porta se encaixasse em outra no edifício, mas trancou a porta e
guardou a chave no bolso, esperando que isso impedisse que o
corpo fosse descoberto em breve.
Eles emergiram em um corredor pouco iluminado, que
apresentava a mesma aparência inacabada da sala que acabavam
de sair. No outro extremo, as escadas desciam na penumbra
sombria, e eles desceram cautelosamente, Harrison se vi obrigado
a tatear ao longo da parede para guiar seus passos. Khoda Khan
parecia ver como um gato no escuro; desceu em silêncio e com
segurança. Mas foi Harrison quem descobriu a porta. Sua mão,
movendo-se ao longo da superfície convexa, sentiu a pedra lisa

320
dar lugar à madeira. Um pequeno painel estreito, através do qual
os olhos de um homem poderia simplesmente passar
despercebido. Quando a parede estivesse coberta de tapeçaria –
como ele sabia que seria quando Erlik Khan terminasse essa casa
– seria uma entrada secreta suficientemente bem escondida.
Khoda Khan, atrás dele, estava ficando impaciente com o
atraso, quando em algum lugar abaixo dos dois ouviram um
barulho simultaneamente. Poderia ser um homem subindo as
escadas sinuosas e talvez não, mas Harrison agiu
instintivamente. Empurrou e a porta se abriu para dentro de molas
bem engraxadas a óleo e silenciosas. Um pé tateando descobriu
degraus estreitos dentro. Com uma palavra sussurrada para o
afegão, ele entrou e Khoda Khan o seguiu. Fechou a porta
novamente e eles ficaram em total escuridão com uma parede
curva em ambos os lados. Harrison acendeu um palito e uma
escada estreita foi revelada, descendo.
—Este lugar deve ter sido construído como um castelo —
murmurou Harrison, imaginando a espessura das paredes. O palito
se apagou e eles continuaram descendo na escuridão, que era
muito espessa que até mesmo para os olhos do afegão
penetrarem. E de repente, ambos pararam. Harrison calculou que
haviam atingido o nível do segundo andar, e através da parede
interna veio o murmúrio de vozes. Harrison procurou outra porta,

321
ou um buraco ou uma fresta para espionar, mas não encontrou
nada disso. Mas colocando o ouvido perto da pedra, começou a
entender o que estava sendo dito além do muro, e um silvo
prolongado entre os dentes cerrados ao seu lado lhe disse que
Khoda Khan também estava escutando o que diziam.
A primeira voz que escutou foi de Erlik Khan; não havia como
confundir essa reverberância oca. Foi respondida por um gemido
piedoso e incoerente que subitamente suou a carne de Harrison.
—Não, —dizia o mongol—. Voltei, não do Inferno, como
sugerem suas superstições bárbaras, mas de um refúgio
desconhecido para sua polícia estúpida. Fui salvo da morte pelo
capacete de aço que sempre uso sob o capuz. Você sabe por veio
parar aqui?
—Eu não entendo! —Era a voz de Joan La Tour, meio
histérica, mas inegavelmente sã—. Lembro-me de abrir uma
garrafa de vinho e, assim que bebi, soube que estava drogada.
Então tudo desapareceu... Não me lembro de mais nada, exceto
grandes paredes negras e formas horríveis escondidas na
escuridão. Corri por gigantescos salões sombrios durante o tempo
que me parecia mil anos...
—Eram alucinações, causadas pela loucura do suco da romã
negra — respondeu Erlik Khan. Khoda Khan estava
resmungando blasfêmias até Harrison o admoestar a silenciar

322
com uma cotovelada—. Se você tivesse bebido mais, teria
morrido como uma cadela raivosa. Ao beber pouco, ficou louca.
Mas eu conheço o antídoto... e possuía a droga que restauria sua
sanidade.
—Por quê? —perguntou a garota, desconcertada.
—Porque eu não queria que você morresse como uma vela
soprada no escuro, minha linda orquídea branca. Desejo que você
esteja totalmente sã para poder apreciar a vingança final e a agonia
da tua morte, sutil e prolongada. Para a requintada, uma morte
requintada. Para os animais, a morte de um boi, como decretei
para seu amigo Harrison.
—Isso será mais facilmente decretado do que executado — ela
respondeu com um lampejo de orgulho.
—Já está quase realizado —afirmou o mongol
imperturbável—. O carrasco foi até ele e, a essa altura, a cabeça
do Sr. Harrison se assemelha a um ovo esmagado.
—Oh Deus! —ao escutar a dor e o pesar naquele gemido,
Harrison estremeceu e lutou contra um desejo frenético de gritar
para tranquilizá-la. Então ela se lembrou de outra coisa que a
torturava—. Khoda Khan! O que você fez com Khoda Khan?
Ao escutar seu nome, os dedos do afegão apertaram como
ferro no braço de Harrison.
—Quando meus homens te trouxeram aqui, não tiveram tempo

323
de lidar com ele —respondeu o mongol—. Eles não esperavam
capturá-la com vida, e quando o destino a lançou em suas mãos,
vieram até aqui às pressas. O afegão pouco importa. É verdade
que ele matou quatro dos meus melhores homens, mas isso foi
apenas a ação de um lobo. Ele não tem cérebro. Ele e o detetive
são muito parecidos... meras massas de músculos, sem cérebro,
indefesos contra o intelecto como o meu. Não demorarei em matá-
lo. Seu cadáver será jogado em um monte de esterco com um
porco morto.
—Alá! — Harrison sentiu Khoda Khan tremendo de fúria—
. Mentiroso! Vou dar seus testículos amarelos aos ratos para que o
comam!
Só a força de Harrison segurando em seu braço impediu o
muçulmano enlouquecido de atacar o muro de pedra, em um
esforço para chegar até seu inimigo. O detetive usou a outra mão
para percorrer a superfície da parede, procurando uma porta, mas
apenas uma pedra em branco o recompensou. Erlik Khan não teve
tempo de fornecer à sua casa inacabada tantos segredos quanto
podiam ter as suas ratoeiras.
Eles ouviram o mongol bater palmas com autoridade, e
sentiram a entrada de homens na sala. Foi ouvido o ritmo do som
das ordens do mongol, seguido de um grito agudo de dor ou
medo, e então o silêncio seguiu o fechamento suave de uma

324
porta. Embora não pudessem ver, os dois homens sabiam
instintivamente que a câmara do outro lado da parede estava
vazia. Harrison estava tomado por um pânico de uma ira
impotente. Ele estava preso nessas paredes infernais e Joan La
Tour estava sendo levada para algum destino abominável.
—Wallah! —o afegão estava irado—. Eles a levaram para
matá-la! Sua vida e nosso izzat estão em jogo! Pela barba do
profeta e pelos meus pés! Vou queimar esta maldita casa!
Alimentarei o fogo com sangue mongol! Em nome de
Allah, sahib, vamos fazer alguma coisa!
—Vamos! —rosnou Harrison—. Deve haver outra porta em
algum lugar!
Completamente desesperados, eles desceram a escada sinuosa
e, quando chegaram ao primeiro andar, a mão tateando de
Harrison sentiu uma porta. Mesmo quando encontrou o trinco, este
se moveu sob seus dedos. O barulho deve ter sido ouvido através
da parede, pois o painel se abriu e uma cabeça raspada espiou de
dentro, projetado pelo reflexo de luz. O mongol piscou na
escuridão e Harrison enterrou a maça sobre a cabeça dele,
experimentando uma satisfação vingativa ao sentir o crânio ceder
sob as pontas de ferro. O homem caiu de bruços na abertura
estreita e Harrison saltou sobre seu corpo para a sala externa antes
de ter tempo para descobrir se havia outros. Mas a câmara estava

325
deserta. O solo estava coberto por um tapete espesso, as paredes
estavam escondidas com tapeçarias de veludo preto. As portas
eram de teca maciça reforçadas com trancas em bronze, com arcos
dourados. Khoda Khan era um contraste incongruente diante
daquela suntuosidade, de pé descalço, turbante desgrenhado e
empunhando uma faca longa e manchada de sangue.
Mas Harrison não parou para filosofar. Como não sabia a
planta da casa, um caminho era tão bom quanto qualquer
outro. Ele escolheu uma porta ao acaso e a abriu, revelando um
amplo corredor com carpete e coberto de tapeçaria como a
câmara. Do outro lado, através de amplas cortinas de cetim que
pendiam do teto ao chão, uma fila de homens acaba de passar...
mongóis altos, vestidos de seda preta, cabeças raspadas
sombriamente, como se fossem uma procissão de fantasmas
sombrios. Eles não olharam para trás.
—Siga-os! —retrucou Harrison—. Eles devem estar indo para
a execução. Khoda Khan já estava correndo pelo salão como um
turbilhão vingativo. O tapete grosso amortecia seus passos, e até
os sapatos grandes de Harrison não faziam barulho. Havia um
sentimento distinto de irrealidade, correndo silenciosamente por
aquele salão fantástico... era como um sonho no qual as leis
naturais são suspensas. Mesmo naquele momento, Harrison teve
tempo de refletir que aquela noite inteira fora como um pesadelo,

326
possível apenas no bairro oriental, sua violência e derramamento
de sangue como um sonho maligno. Erlik Khan havia afrouxado
as forças do caos e da insanidade; o assassinato havia se
convertido em algo insano e seu frenesi havia influenciado em
todas as ações de homens apanhados em seu turbilhão.
Khoda Khan havia irrompido diretamente através das cortinas
- ele já estava respirando fundo para lançar um grito enquanto
levantava sua faca - se Harrison não o tivesse agarrado. Os
tendões do afegão eram como cordas tensas sob as mãos do
detetive, e Harrison duvidava de sua própria capacidade de contê-
lo à força, mas um vestígio de sanidade permanecia naquele
homem das montanhas.
Fazendo-o retroceder, Harrison olhou entre as cortinas. Havia
uma grande porta com válvulas duplas ali, mas estava
parcialmente aberta, e ele olhou para a sala do outro lado. A barba
de Khoda Khan apertou com força em seu pescoço quando o
afegão olhou por cima do ombro.
Era uma grande câmara, coberta como as outras de veludo
preto, sobre as quais dragões dourados foram bordados. Havia
tapetes grossos e lanternas de papel penduradas no teto de marfim
lançavam um brilho vermelho que incrementava um efeito de
ilusão. Homens de túnica preta, empilhados ao longo da parede,
poderiam ter sido meras sombras, exceto pelos olhos brilhantes.

327
Em uma cadeira de ébano, semelhante a um trono, estava uma
figura sombria, imóvel como uma imagem, exceto quando sua
túnica se agitava levemente no ar em movimento. Harrison sentiu
os pêlos de sua nuca se arrepiarem, assim como ocorrem com os
cães de luta quando veem um inimigo. Khoda Khan murmurou
alguma blasfêmia incoerente.

IV.

O trono do mongol estava encostado a uma parede lateral. Não


havia ninguém perto dele enquanto ele se sentava em

328
magnificência solitária, como um ídolo meditando na destruição
humana. No centro da sala estava o que parecia
desconfortavelmente ser um altar de sacrifício - um bloco de pedra
curiosamente esculpido que poderia ter saído do coração de
Gobi. Naquela pedra estava Joan La Tour, branca como uma
estátua de mármore, com os braços estendidos como um crucifixo,
as mãos e os pés estendendo-se sobre as bordas do bloco. Seus
olhos dilatados olhavam para cima, como se perdesse a esperança,
consciente de sua destruição e ansiosa apenas pela morte para
acabar com a agonia. A tortura física ainda não havia começado,
mas um descomunal homem seminu permanecia sobre na
extremidade final do altar, esquentando a ponta de uma haste de
bronze em um braseiro cheio de carvões brilhantes.
—Maldição! — Era uma mistura de maldição e fúria saindo
dos lábios de Harrison. Então ele foi empurrado de lado e Khoda
Khan entrou na sala como um dervixe voador, com a barba
esvoaçando, olhos ardentes, e a faca levantada. Erlik Khan se
ergueu com uma perplexa exclamação gutural, assustado quando o
afegão desceu pela sala como um furacão de destruição.
O torturador se virou bem a tempo de encontrar a faca de um
metro de comprimento, que já descia sobre ele, partindo-lhe o
crânio até os dentes.

329
—Aie! — Era um uivo de várias gargantas mongóis.
—Allaho akabar! —gritou Khoda Khan, girando a faca
vermelha em volta da cabeça. Ele se jogou no altar, cortando os
laços de Joan com um frenesi que ameaçava desmembrar a garota.
Então, de todos os lados, apareceram mais figuras vestidas de
preto, sem perceber na confusão que o afegão havia sido seguido
por outra figura sombria que avançava com menos alarme, mas
com igual ferocidade.
Só reconheceram Harrison quando ele deu uma varredura
prodigiosa de sua maça, a direita e esquerda, derrubando homens
como se fossem bolas, alcançando o altar através da abertura feita
na multidão confusa. Khoda Khan havia libertado a garota e ele
girou, bufando como um gato, seus dentes arreganhados brilhando
e cada pêlo de sua barba rigidamente eriçados.
—Alá! —ele gritou… e cuspiu nos rostos dos mongóis que se
aproximavam... agachou-se como se quisesse saltar no meio
deles... então deu a volta e se lançou direto no trono de ébano.
A velocidade e o inesperado movimento foram
impressionantes. Com um grito abafado, Erlik Khan disparou e
errou à queima-roupa... e então Khoda Khan deixou escapar a
respiração em um ensurdecedor grito, quando sua faca mergulhou
no peito do mongol até a ponta sair mais de um palmo do outro
lado da túnica de seda negra.

330
Com o ímpeto de sua investida descontrolada, Khoda Khan
agarrou a figura que desabava, colidindo de volta com o trono de
ébano que se fragmentou sob o impacto dos dois corpos
pesados. Levantando-se e arrancando sua faca pingando sangue,
Khoda Khan levantou-a ao ar e uivou como um lobo.
—Ya Allah! Portador do capacete de aço! Leve o gosto da
minha faca em suas entranhas quando chegar ao inferno!
Houve um longo suspiro enquanto os mongóis miravam com
olhos arregalados para a figura vestida de preto e manchada de
sangue caída entre as ruínas do trono quebrado; e no instante em
que estavam paralisados pelo horror e decepção, Harrison pegou
Joan e correu para a porta mais próxima, berrando: Khoda Khan!
Por aqui! Rápido!
Com um uivo e um lampejo de lâminas, os mongóis estavam
atrás dele. O medo de receber uma punhalada nas costas deu asas
aos pés de Harrison, e Khoda Khan correu em diagonal pela sala
para encontrá-los na porta.
—Apresse-se, sahib! Corra para o salão! Eu vou cobrir a
retirada!
—Não! Pegue a Joan e corra! — Harrison literalmente a jogou
nos braços do afegão e voltou para a porta, erguendo a maça. A
sua própria maneira, havia uma fúria berserk em Harrison como
havia em Khoda Khan, frenético com a loucura que às vezes

331
inspirava os homens no meio do combate.
Os mongóis chegaram como se também estivessem
enlouquecidos pela sede de sangue. Bloquearam a porta com seus
corpos largos vestidos de seda antes que ele pudesse fechá-la com
força. As facas o ameaçavam e, agarrando a maça com as duas
mãos, ele a empunhou como um martelo, causando terríveis
estragos entre as formas que se amontoavam na porta,
pressionadas pela pressão daqueles que empurravam por trás. As
luzes, os rostos rugindo dissolvendo em uma ruína carmesim sob
seus golpes, todos eles se fundiram em uma névoa vermelha. Ele
não estava ciente de sua identidade individual. Era apenas um
homem com uma maça de guerra, transportado cinquenta mil anos
atrás... Um homem primitivo de peito peludo e olhos vermelhos,
totalmente possuído pelo instinto carmesim do massacre.
Ele sentiu vontade de uivar, levado por uma exultação a cada
golpe de sua maça que esmagava crânios e espirrava sangue em
seu rosto. Não sentiu as punhaladas que o atacavam, nem se deu
conta quando seus oponentes retrocediam, assustados com o caos
que ele estava causando. Ele não fechou a porta; estava bloqueada
por uma massa horrível de carne esmagada e pingando sangue.
Logo, estava correndo pelo corredor, respirando
profundamente, seguindo algum nublado instinto de sobrevivência
ou de realização do dever que lhe obrigava a afastar-se do

332
vermelho desejo de agarrar seus inimigos e golpear, golpear,
golpear... até que ele próprio fosse envolvido nas ondas vermelhas
da morte. Nesses momentos, a paixão de morrer lutando podia se
igualar à vontade de viver.
Atordoado, cambaleando, esbarrando nas paredes e saindo
delas, ele alcançou o outro extremo do corredor onde Khoda Khan
tentava arrombar uma fechadura. Joan estava de pé agora, apesar
de cambalear e parecer estar à beira de um colapso. A multidão
estava descendo o longo corredor lançando um grito de fúria atrás
deles. enjoado, Harrison empurrou Khoda Khan para o lado e
girou a maça suja de sangue em torno de sua cabeça, e deu um
golpe estupendo que quebrou a fechadura, arrancou os parafusos
dos soquetes e cedeu nos painéis pesados como se fossem
papelão. No instante seguinte, eles passaram e Khoda Khan bateu
as ruínas da porta que cedeu nas dobradiças, mas de alguma forma
se manteve unida. Havia suportes de metal pesado em cada
batente, e Khoda Khan encontrou e largou uma barra de ferro no
lugar no momento em que a multidão avançava contra ela.
Através dos painéis quebrados, eles uivavam e lançavam suas
facas, mas Harrison sabia que, até que eles não tivessem arrancado
madeira suficiente para permitir que alcançassem a barra do outro
lado que bloqueava a porta e a removessem com as mãos, ela os
seguraria por um instante. Recuperando um pouco de suas forças,

333
apesar de sentir-se enfraquecido, ele conduziu seus companheiros
à sua frente com pressa desesperada. Ele notou, brevemente, que
foi esfaqueado na panturrilha, coxa, braço e ombro. O sangue
encharcou sua camisa listrada e escorreu pelos membros,
pingando. Os mongóis estavam batendo na porta, rosnando como
chacais sobre a carniça.
As frestas estavam aumentando, e através delas ele viu outros
mongóis correndo pelo corredor com rifles; justo quando se
perguntou por que eles não dispararam pela porta, então viu o
motivo. Eles estavam em uma câmara que havia sido convertida
em um depósito. As caixas dos cartuchos estavam empilhadas no
alto da parede e havia pelo menos uma caixa de dinamite. Mas
procurou em vão por rifles ou pistolas. Evidentemente, elas foram
armazenadas em outra parte do edifício.
Khoda Khan estava empurrando trancas no lado oposto da
porta, mas ele parou para olhar e exclamou:
—Allah! —ele pulou em uma caixa aberta, pegou algo -
rodou, gritou uma maldição e jogou o braço para trás, mas
Harrison agarrou seu pulso.
—Não jogue isso, seu idiota! Você vai explodir todos nós no
inferno! Eles têm medo de atirar nesta sala, mas derrubarão essa
porta em questão de segundos e nos matarão com suas facas.
Ajude Joan!

334
Era uma granada de mão que Khoda Khan encontrara - a única
que havia em um caixa vazia, conforme viu Harrison. O detetive
abriu a porta e fechou-a com força quando mergulharam na luz
das estrelas, Joan cambaleando, meio carregada pelo afegão. Eles
pareciam ter surgido nos fundos da casa. Atravessaram um espaço
aberto, correndo como criaturas caçadas procurando um
refúgio. Havia um muro de pedra em ruínas, quase até o peito de
um homem, e eles atravessaram uma grande abertura nele, apenas
para parar. Harrison deixou escapar um grunhido de fúria dos
lábios. Trinta passos atrás do muro arruinado, erguia-se, uma
cerca de aço de que Khoda Khan falara, uma barreira de três
metros de altura, coroadas por pontas de espinhos. A porta se
abriu atrás deles e uma arma começou a disparar. Eles estavam
encurralados em uma armadilha. Se tentassem escalar a cerca, os
mongóis precisariam apenas atirar neles como macacos em um
balanço.
—Para trás do muro! —rosnou Harrison, obrigando Joan a
refugiar-se atrás de uma seção desmoronada da barreira de
pedra—. Antes que nos peguem, nós os faremos pagar por isso!
A porta estava cheia de rostos cruéis, agora olhando em
triunfo. Havia rifles nas mãos de uma dúzia. Eles sabiam que suas
vítimas não tinham armas de fogo e não podiam escapar, e eles
mesmos podiam usar rifles sem medo. As balas começaram a

335
respingar na pedra, depois com um grito prolongado, Khoda Khan
saltou para o topo do muro, arrancando com os dentes o pino da
granada de mão.
—La illaha illulah; Muhammad rassoul ullah! — ele gritou e
jogou a bomba... não no grupo que uivava e avançava, mas por
cima de suas cabeças, dentro da sala com pólvora!
No instante seguinte, um estrondo estridente rasgou as
entranhas da noite e labaredas ofegantes rasgaram a
escuridão. Naquele brilho, Harrison vislumbrou Khoda Khan,
entre as chamas, lançando-se para trás, com os braços estendidos...
então houve uma escuridão absoluta na qual rugiu o estampido da
queda da casa de Erlik Khan quando os muros destroçados vieram
abaixo, vigas se partiam, o telhado caia e as vigas desabavam, uma
após a outra, sobre as fundações amassadas.
Harrison nunca soube quanto tempo ficou ali, estendido como
morto, cego, ensurdecido, paralisado e coberto por escombros
caindo. Sua primeira percepção foi de que havia algo macio
embaixo dele, algo que se contorcia e choramingava. Ele tinha um
vago pressentimento de que não devia machucar aquela coisa
macia, então começou a empurrar as pedras quebradas e a
argamassa. Um de seus braços parecia estar insensível, mas
eventualmente ele conseguiu escavar pouco a pouco e se pôs de
pé, cambaleante, parecendo um espantalho em seus trapos. Tateou

336
entre os escombros, agarrou a garota e a puxou para cima.
—Joan! —sua própria voz parecia chegar a ele de uma grande
distância. Ele teve que gritar para fazê-la ouvi-lo. Seus tímpanos
estavam quase partidos pela explosão. Você está ferida? —ele
percorreu a mão sobre o corpo dela para ter certeza se ela estava
ferida.
—Eu acho que não —ela vacilou atordoada. O que...
aconteceu?
—A bomba de Khoda Khan explodiu a dinamite. A casa caiu
sobre os mongóis. Estávamos protegidos por esse muro. Isso foi o
que nos salvou.
A parede era uma pilha destroçada de pedra quebrada, meio
coberta por escombros... um desperdício de alvenaria quebrada
com vigas destruídas e fragmentos de paredes se inclinando como
bêbados. Harrison tocou o braço quebrado e tentou pensar,
enquanto a sua cabeça girava.
—Onde está Khoda Khan? —exclamou Joan, parecendo
finalmente recuperar-se do transe.
—Eu vou procurá-lo —Harrison temia o que esperava
encontrar—. Ele foi arrancado da parede como uma folha ao
vento.
Revirando em pedras quebradas e pedaços de madeira,
encontrou o afegão amontoado grotescamente contra a cerca de

337
aço. Seus dedos trêmulos lhe falaram sobre ossos quebrados... mas
o homem ainda estava respirando. Joan veio tropeçando na direção
dele, caindo ao lado de Khoda Khan e agitando os dedos rápidos
sobre ele, soluçando histericamente.
—Ele não é como um homem civilizado! —ela exclamou com
lágrimas escorrendo pelo rosto manchado e arranhado—. Os
afegãos são mais duros de se matar do que os gatos. Se
conseguirmos assistência médica, ele viverá. Escute! —ela pegou
o braço de Harrison com dedos crispados; mas ele também
ouviu... o barulho de um motor que provavelmente era uma lancha
policial, vindo investigar a explosão.
Joan estava rasgando suas roupas escassas em pedaços para
estancar o sangue que escorria das feridas do afegão, quando
milagrosamente os lábios retorcidos de Khoda Khan se
moveram. Harrison, aproximando-se, captou fragmentos de
palavras: A maldição de Allah... cão chinês... carne de porco...
meu izzat.
—Você não precisa se preocupar com seu izzat —resmungou
Harrison, olhando para as ruínas que escondiam as figuras
mutiladas que haviam sido terroristas mongóis—. Depois do
trabalho desta noite, você não irá para a cadeia... nem que mates
todos os chineses de River Street.
FIM

338
Por Dierk Guenther

Sapatos, pistolas e garotas: Robert E. Howard, Detetives e


Histórias Criminais.

(Gumshoes, Gats e Gals: Robert E. Howard, Detective and Crime Stories)

Um artigo de Dierk Guenther

Como bem sabemos, HP. Lovecraft apelidou Robert


Howard de “Bob Two Guns”. Ele pode ter sido, talvez o
escritor pulp mais visceral de sua época e aquele que melhor
poderia definir a essência do tipo de literatura que
costumava escrever. Sua morte foi deveras prematura, mas
ele nos legou uma vasta obra que desvela sua extrema
capacidade literária nos mais variados gêneros. Seus muitos
personagens são irretocáveis, mas muitos lembram por sua mais
famosa criatura, Conan o cimério.
O texto que apresentamos a seguir reverbera uma questão
deveras curiosa sobre Howard: por que ele escreveu histórias de
detetive se não era algo comum a ele e que veio a detestar, tal
como confessou em cartas? Tais contos são realmente ruins o
suficiente para serem negados ou criticados?
O estudioso, Dierk Guenther, Professor Universitário no

339
Japão, investiga estes pontos, apresentando suas descobertas em
um artigo irretocável, trazendo no título um trocadilho típico de
crimes e histórias de detetive. Esse tipo de trama, como bem diz o
professor é caracterizada por uma linguagem, uma gíria própria
conhecida como “Hardboiled Slang”, e que nem sempre é fácil de
traduzir para línguas que não o inglês. A tradução poderia ser
algo deveras específica: Detetives (Gumshoes), garotas (garotas)
e metralhadoras (armas), o que sintetiza muito os temas
encontrados nesses tipos de narrativas. Sem mais delongas,
vejamos o respectivo artigo de Dierk Guenter.

Marco Antonio Collares

Entre dezembro de 1933 e junho de 1936, algumas das


histórias mais incomuns e bizarras de Robert E. Howard foram
publicadas em revistas pulp (histórias de crime e ficção policial).
Revistas especializadas bem conhecidas dentro do gênero, como
Strange Detective Stories, Super Detective Stories e Thrilling
Mystery. Essas histórias, que certamente não estão entre as mais
conhecidas do autor, são: “Talons in the Dark” (1933), “The
Tomb's Secret” (1934), “People of the Serpent” (1934), “Names
in the Black Book” (1934), “Graveyard Rats” (1936) e “Black

340
Wind Blowing” (1936).
Estas histórias, dirigidas a um determinado mercado e muito
procuradas, ocupam, sem dúvida, um lugar especial na obra de
Howard, ainda mais se tivermos em conta a opinião pessoal que o
próprio autor tinha sobre o assunto em questão, ao qual não era
muito inclinado. Em maio de 1936, em uma de suas cartas a seu
colega e amigo. HP Lovecraft, ele escreveu o seguinte:

“Abandono definitivamente o género de detetive,


onde não só nunca tive sucesso, mas também pelo
tipo de história que representa, detesto-o
activamente. Se mal consigo ler algo sobre isso,
dificilmente conseguiria escrever sobre isso”.
(Means to Freedom Vol. 2, p. 953).

Tais declarações levantam uma série de questões mais do que


interessantes: por que Howard escreveria sobre um gênero que ele
odiava, como ele veio a confessar, e para o qual ele nem mesmo se
sentia preparado? Podemos considerar as histórias de crime e a
ficção policial de Howard como tais, por sua própria definição? Se
não, quais seriam as diferenças? E, finalmente, essas histórias são
tão ruins quanto Howard supõe?
Para Howard, que queria ganhar a vida como escritor, a

341
decisão de tentar a sorte em outros gêneros fora de seus interesses
era uma questão, acima de tudo, de necessidade; isto é, ganhar
dinheiro. O mercado de celulose era muito volátil em um ambiente
fortemente influenciado pela Era da Grande Depressão, e esse
setor não era particularmente bem pago. Cerca de meio centavo a
palavra, até cinco centavos a palavra; a parte inferior da escala é a
mais comum. Portanto, a chave para ganhar a vida e ganhar
dinheiro era “quantidade”. Quanto mais você escreve, mais você
ganha.
Sem dúvida, que ele era versátil o suficiente e tinha a
habilidade de escrever qualquer coisa além de fantasia e terror.
Basta dar uma olhada em seu trabalho, que abrange todos os tipos
de gêneros, como histórias históricas sobre os cruzados, histórias
de faroeste, tanto esquisitas quanto engraçadas, de boxe, e até
picantes, para percebermos que Howard era capaz de funcionar
perfeitamente em todos os tipos de cenários.
Quando Howard começou a escrever histórias de crime e de
detetive, ele encontrou uma dificuldade adicional: o mercado era
claramente dominado por grandes nomes como Dashiell Hammett
e Carroll John Daly. As histórias de crimes estavam vendendo
muito bem e as revistas especializadas já contavam com um bom
sortimento de autores que conheciam perfeitamente os gostos e as
necessidades dos leitores. Os recém-chegados tinham muito o que

342
mostrar, e Howard era um deles.
Para se destacar na multidão, Howard tinha uma estratégia:
explorar o que ele fazia de melhor: misturar gêneros diferentes em
um específico. Considerando que fantasia e terror eram suas
especialidades, ele não hesitou em usá-los, mas logo encontrou um
novo obstáculo. Sua mistura, embora a priori fosse muito
interessante, sua conquista o levaria a uma espécie de “detetive
sobrenatural”, e este era um terreno que ele já possuía. Naquela
época, Seabury Quinn e seu detetive Jules de Grandin estavam
encantando os leitores.
Há uma possibilidade considerável de que Otis Adelbert
Kline, o agente literário de Howard, tenha sido o responsável
direto pelo autor abordar o crime e as histórias de detetive. Em
uma carta a Lovecraft datada de setembro de 1933, Howard
menciona que, “Kline me ajudou muito a aprender as técnicas de
escrever histórias de detetive” (A Means to Freedom. Vol. 2, p.
634). Embora isso não seja uma evidência conclusiva, mostra que
Kline teve algo a ver com isso.
Outra possibilidade pela qual Howard decidiu se aventurar no
gênero policial poderia ter sido sua devoção às histórias de Fu
Manchu, obra de Sax Rohmer. De acordo com o inventário
pessoal da biblioteca de Howard, ele tinha oito livros de Sax
Rohmer. Além disso, Howard também escreveu paródias de Fu

343
Manchu ("Few Menchu" ou "Fooey Mancucu") (Collected Letters
1, 53-55, 139-142, 113-119), que enviou a seu amigo, Tevis Clyde
Smith (março 1925/outubro 1927/fevereiro de 1929). Isso nos
indica claramente que Howard tinha amplo conhecimento das
histórias que tratavam de vilões de origem chinesa. A influência
das histórias de Fu Manchu sobre Howard era tão notável que
algumas de suas histórias de detetive apresentam um supervilão
chamado Erlik Khan, que obviamente foi baseado no personagem
de Sax Rohmer, Fu Manchu.
No “Dicionário de Termos Literários e Teoria Literária”, o
termo “ficção policial” é definido como “prática e detecção de
crimes, com os motivos, ações, acusação, julgamento e punição de
um criminoso como um dos maiores paradigmas da narrativa.
Roubo textualizado, assalto, estupro e assassinato começam como
os primeiros épicos e são centrais para a tragédia clássica e
muitas subsequentes”. (p, 192).
Embora seja geralmente assumido que a publicação de Edgar
Allan Poe, “Murder in the Rue Morgue” (1841) como a origem do
gênero policial (ficção policial), na realidade não foi esse o caso.
Pela definição acima, a primeira história de “ficção policial”, ou
pelo menos aquela que deveria receber o crédito como tal, é um
romance intitulado de “Caleb Williams” (“Things as they are” ou
“The Adventures of Caleb Williams”, de 1794), escrito no final do

344
século XVIII pelo autor britânico, William Godwin. Este novo
gênero culmina, em sua primeira fase, com a publicação, em 1887
das histórias de Sherlock Holmes, obra de Sir Arthur Conan
Doyle. Esse fato, ademais, mostra que o conto será a forma
predominante dentro do gênero; formato este que Howard
costumava usar.
O “Dicionário de Termos Literários e Teoria Literária”
coloca o termo dessa era dos primeiros detetives como a
“Primeira Idade de Ouro da Ficção Policial”, por volta do ano de
1914. Um segundo período, ou seja, “Uma Segunda Idade de
Ouro” começa no final dos anos 1920, quando escritores como
Agatha Christie praticam o gênero com notável sucesso, além de
estendê-lo a formatos superiores, como o romance. De acordo com
Ron Gourlart, a “ficção policial tornou-se um dos gêneros mais
populares graças à indústria da celulose, e foi no início dos anos
1920 que o conceito de detetive particular nasceu, florescendo
anos depois, bem no período entre guerras, graças a escritores
como Dashiell Hammett e Raymond Chandler, entre os mais
proeminentes” (Cheap Thrills, 89). No entanto, embora o gênero
fosse amplamente aceito pelo público, há um certo contraste entre
os romances policiais da corrente britânica e o estilo
eminentemente americano duro. A ficção policial de Agatha
Christie é descrita assim:

345
“Os romances clássicos de género confinam o
enredo a cenários isolados, como uma casa de
campo, onde os acontecimentos decorrem de
forma sistemática; primeiro com o aparecimento
de um cadáver, uma série de pistas falsas, a
apresentação de possíveis suspeitos e o resultado,
com o detetive responsável que responde a todas
as incógnitas. Isso é conhecido como 'whodunit’
(quem o fez?)” (Dicionário, p. 194).

Esses tipos de romances britânicos, com seus detetives


amadores, foram muito criticados, pois omitiram todos os
processos de investigação policial, tornando-os surreais e
artificiais. Ao contrário, e de forma reativa, um estilo “noir”
inconfundível surgiu nos Estados Unidos, onde as histórias de
crime eram muito mais violentas, mais sombrias e tendiam a
ocorrer em ambientes urbanos, sujos e encardidos. Além disso, a
figura do policial ou detetive era muito mais profissional, mas
também de moral confusa, a ponto de policiais e criminosos
estarem fora da lei.
A capacidade de Howard de escrever histórias de detetive
pode ser observada, talvez, onde menos teríamos imaginado. Suas

346
primeiras histórias de Conan, o Cimério, contêm muitos dos
elementos típicos de uma história de crimes e mistérios, até
mesmo alguns dos clichês que caracterizam o estilo também estão
presentes. Histórias como "O Deus na Tigela" e "A Torre do
Elefante" podem servir de exemplo.
“The God in the Bowl”, cronologicamente a terceira história
da série Conan, tem todos os ingredientes de uma história de
detetive no estilo whodunit: um mistério de assassinato em um
cenário isolado, vários suspeitos, um protótipo policial da “Era
Hiboriana”, e uma moral ambígua dos protagonistas. “A Torre do
Elefante”, por sua vez, começa com a história de dois ladrões que
tentam roubar uma torre misteriosa que nenhum outro ladrão
jamais conseguiu antes.
É difícil imaginar que Robert E. Howard, cujas histórias são
caracterizadas por um ritmo de ação vertiginoso, pudesse ter
escrito contos de ficção policial no mais puro estilo britânico,
apresentando-nos personagens e descrições mais descontraídas e
refinadas, com detetives chegando à resolução de seus casos
graças à observação sistemática e à soma de evidências, com
paciência. Quando se trata de escrever sobre crimes, o estilo
americano duro, com sua violência, ação e personagens sem
princípios morais, pode nos parecer um estilo muito mais alinhado
com o de Howard.

347
Um olhar sobre os contos policiais escritos por Howard,
mostra que o autor priorizou a ação e as emoções intensas sobre os
detalhes e descrições que caracterizam o método de investigação
policial; estratégias que, ao contrário, podemos encontrar em obras
como a série “Op Continental”, de Dashiell Hammett.
Em “Talons in the Dark” (intitulado de “Black Talons” em
sua primeira aparição nas pulps); um culto africano busca
vingança por ter sido despojado de seu ouro. Aqui, temos um
esboço completo do estilo “whodunit”. No entanto, a trama não
avança por meio da busca de provas ou da eliminação de
suspeitos, mas sim por meio de eventos, como sequestros ou
assassinatos. Além disso, outra das características que
encontramos aqui é uma atmosfera intensa, juntamente com uma
descrição gráfica detalhada das mortes e ameaças de tortura. Para
detalhes como esses, a história pode ser classificada como terror.
“People of the Serpent"” (intitulado de “Fangs of Gold” em
sua primeira publicação) nos apresenta um detetive chamado
Steve Harrison, um sujeito que caça um criminoso chinês
escondido nos pântanos. Esses tipos de cenários, ao contrário dos
urbanos, não são usuais. Além disso, a perseguição culmina em
um confronto com um líder de uma seita oculta Voodoo. Mais uma
vez, a história deixa de lado os processos de investigação,
deixando-os como pretexto para dar origem à ação pura e simples.

348
Em “Teeth of Doom” (publicado como “The Tomb's Secret”
em sua primeira aparição), como também em “Names in the Black
Book”, Howard desenvolve uma abordagem diferente, destacando
as influências mais do que possíveis das histórias de Fu Manchu,
de Sax Rohmer. Na verdade, desta vez, os vilões não são cultos
africanos, mas sim uma sociedade secreta mongol conhecida como
“Filhos de Erlik”.
Outra tram de “Teeth of Doom” destaca-se pela qualidade da
construção de todos os seus elementos, proporcionando-nos um
ambiente tenso e um bom desenvolvimento da ação, que se passa
numa solitária casa fora da cidade. Aqui, o detetive não está
investigando o caso, mas aponta certas evidências, sendo um
terceiro sujeito que realmente manipula o protagonista da história.
À luz das revelações finais em “Teeth of Doom”, este conto é sem
dúvida mais um thriller de agente secreto do que uma típica
história de detetive.
O conto, “Nomes no Livro Negro” foi a sequência de
“Senhor dos Mortos”, uma história de Steve Harrison, que, no
entanto, foi publicada antes. “Lord of the Dead” não seria
publicado até o ano de 1981. Esta história apresenta claramente as
influências de Fu Manchu no personagem do vilão, Erlik Khan,
que, supostamente, havia sido derrotado em “Senhor dos Mortos”.
Embora essa história mantenha os clichês de um detetive

349
particular e de ambientes urbanos, neste caso, uma “Chinatown”
ficcional (River Street), dificilmente poderíamos considerá-la uma
história de detetive. Em qualquer caso, seria mais apropriado
defini-lo como uma história de ação em que os sobreviventes de
“Senhor dos mortos” tentam evitar a vingança de Erlik Khan.
O que torna esta história interessante é a cena de ação em que
os personagens se barricam em um prédio cercado pelos lacaios
sem rosto de Erlik Khan. Este é um cenário que, de certa forma,
antecipa o filme de sucesso de John Carpenter, “Assault on
District 13”, de 1976, onde um grupo de pessoas se fortalece em
uma delegacia, tentando evitar que os bandidos os levem e acabem
com todos.
“Graveyard Rats” e também “Black Wind Blowing” são
duas histórias que foram publicadas na revista pulp, “Thrilling
Mystery Magazine”, em 1936. Uma delas apresenta um louco, a
outra, desvela um culto satânico realizando sacrifícios humanos.
Em ambos os casos, o enredo aponta mais para o terror do que
para a ficção policial e, por essa razão, eles podem não ser de
muito interesse, a não ser pela maneira como são contextualizados
em torno do Texas rural no início do século XX. Em mais de uma
ocasião, Howard escreveu várias histórias estranhas de faroeste,
nas quais refletia o contexto nativo do Texas que conhecia tão
bem e gostava tanto, como afirmou em suas cartas a HP Lovecraft

350
e a August Derleth, confessando que considerou abandonar o
gênero de fantasia em favor dos faroestes. Dessa forma,
“Graveyard Rats” e “Black Wind Blowing” poderiam ser
considerados como um tipo de experimento em que Howard
estudaria como usar sua região nativa para moldar suas histórias
de crime.
Quando comparamos as postagens de Howard e outras
histórias de crime não convencionais com aquelas que foram
rejeitadas (“The Silver Heel”, “Black Moon”, “The Voice of
Death” e “House of Suspicion”), vemos um fato interessante:
todos essas rejeições se enquadram na definição de ficção
criminal, discutida acima. Essas narrativas seguem a estrutura e as
formulações do gênero, iniciando-se com a apresentação do caso
(crime ou mistério), seguindo-se os possíveis suspeitos e, por fim,
a resolução do mesmo, acompanhada da respectiva explicação.
O problema com essas histórias é a solução parece artificial
demais para ter credibilidade; por exemplo: um toca-discos oculto
que deixa uma pessoa louca em “A Voz da Morte”. Parece que a
inação dessas histórias não ajudou seus construtos a serem tão
interessantes quanto deveriam ser. Isso nos leva a outra questão
essencial nas histórias de crime de Howard: detetives particulares
e como eles agiram.
Os personagens principais das histórias de Howard nunca

351
foram passivos, muito pelo contrário: eles são fortes, poderosos e
ativos por natureza. Enquanto outros personagens populares do
gênero, como Miss Marple ou Hercules Poirot, costumavam
coletar evidências com muita paciência, encurralando o suspeito
de tal forma que, mesmo sem saber, ele confessava seu crime, os
detetives de Howard usaram a força bruta, ou seja, eles enfrentam
diretamente os vilões até chegarem ao chefe final, que enfrentarão
igualmente em combate.
Isso não significa que os detetives criados por Howard não
fossem capazes de resolver um mistério com o intelecto. Essa
estratégia não foi contemplada nas histórias que foram rejeitadas
pelas revistas “Strange Detective Stories”, “Super Detective
Stories” e “Thrilling Mystery Magazine”.
Os detetives típicos do estilo Hard-Boyled de Chandler ou
Hammett são homens durões dados ao fumo e à bebida, que não
hesitam em usar a violência e que têm predisposição para as
curvas das mulheres. As cidades onde trabalham são seus
territórios, uma selva urbana que eles conhecem perfeitamente. Os
detetives de Hammett em sua série “Continental Op” sabem como
distinguir os bons policiais dos maus policiais, bem como os
bandidos perigosos daqueles que podem ser úteis como
confidentes na solução de um caso. Há uma diferença crucial dos
detetives de Howard.

352
Os detetives criados por Howard: Buckley, Steve Harrison e
Brock Rollins (Brock Rollins, na verdade nunca existiu, sendo o
nome que os editores usaram no lugar de Steve Harrison quando
publicaram dois casos na mesma edição), embora trabalhassem em
cidades - a expressão da civilização - eles estão, ao contrário,
longe de serem considerados produtos da civilização, mas sim
verdadeiros bárbaros com roupas do século XX. “Brock Rollins”,
o protagonista de “O Segredo da Tumba” é descrito da seguinte
forma:

Brock Rollins (Steve Harrison) ganhou peso na


sala escura dos fundos designada para a reunião.
Seus ombros maciços e corpo grosso diminuíam
sua altura. Seus frios olhos azuis contrastavam
com os grossos cabelos negros que coroavam sua
testa baixa e larga, e suas vestes civilizadas não
conseguiam esconder a musculatura quase
selvagem de seu corpo rígido (Nota do tradutor:
com certeza a tradução dessa passagem poderia ser
melhorada. Em suma, o que ele está dizendo é que
era uma besta marrom que não deveria ser
irritada).

353
Dashiell Hammett, por outro lado, descreve seu personagem
mais famoso, Sam Spade, de uma maneira muito diferente. Apesar
de sugerir sua força física, sua aparência não é tão intimidante
quanto a que Howard nos oferece com seu detetive. Vejamos:

Samuel Spade tinha uma mandíbula inferior longa


e ossuda, e seu queixo era um V protuberante sob
o V mais flexível de sua boca. As narinas se
curvaram para trás para formar um V menor. Os
olhos horizontais eram de um cinza amarelado. O
tema do V foi captado pela sobrancelha
protuberante que se destacava no meio de uma
dobra dupla acima do nariz adunco, e o cabelo
castanho claro começava nas têmporas altas e
achatadas até terminar em um pico na testa.
Spade tinha a aparência amigável de um Satã
loiro.
Spade se levantou, curvou-se e apontou com a
mão de dedos grossos para a cadeira de carvalho
perto da mesa. Ele era alto, pelo menos um metro
e oitenta. A inclinação acentuada e arredondada
dos ombros fazia seu corpo parecer quase cônico -
não mais largo que gordo, e impedia que a

354
jaqueta recém passada caísse nele. (O Falcão
Maltês).

O conceito de "bárbaro" aplicado aos detetives de Howard é


evidente na história, "O Senhor dos Mortos". Aqui, o detetive
Steve Harrison persegue um suspeito até o submundo de uma
fictícia Chinatown, onde ele se despoja de sua "civilização" do
século XX, transformando-se em um bárbaro selvagem. No clímax
da cena, que poderia muito bem ter sido escrita para um conto de
Kull ou de Conan, Steve Harrison confronta os capangas do mal,
Erlik Khan, ensanguentado, em roupas esfarrapadas e, com uma
parede atrás dele.
Este detetive do século XX vai furioso, enfrentando seus
inimigos com uma machadinha. “Lord of the Dead” é superior à
maioria das histórias de detetive que foram publicadas de Howard,
com um enredo envolvente, uma atmosfera misteriosa e um
cenário urbano.
A força física é uma característica que Howard destaca na
descrição de seus três detetives. No entanto, essa força é pouco
relevante em investigações, para solucionar crimes. Como já
observamos, as histórias de detetive de Howard são repletas de
ação, mas a maior parte das lutas geralmente são tiroteios e não
confrontos físicos, seja com punhos ou armas improvisadas. A

355
força desses detetives é usada sobretudo para intimidar o suspeito,
motivar suas confissões, e não tanto para o combate corpo a corpo.
Outro ponto notável sobre Howard e suas histórias de crimes
e detetives é que, quando o ponto decisivo para a resolução do
caso é alcançado, esses detetives geralmente não são os
responsáveis diretos, mas simplesmente transeuntes que passaram
por ali. Em “The Tomb`s Secret” (“Teeth of Doom”), o detetive
Brock Rollins percebe que, na realidade, foram os serviços
secretos chineses que o ajudaram a frustrar os planos do malvado
Mongol.
O detetive Buckley em “Talons in the Dark” não só admite
estar errado sobre o suspeito, mas até confessa ter capturado o
verdadeiro culpado apenas por estar por perto quando ele se gaba
de seu crime. Em “People of the Serpent”, não é Steve Harrison,
tentando impedir uma revolta de nativos africanos em um pântano,
mas uma mulher, que Harrison havia resgatado durante sua
primeira missão, caçando um criminoso chinês. É importante notar
também que Harrison não consegue nem mesmo tirar vivo o
prisioneiro dos pântanos, que, inexplicavelmente, é libertado de
suas amarras e, não surpreendentemente, tenta escapar. É quando
Harrison atira nele.
Um possível motivo pelo qual Howard acreditava que não era
capaz de escrever boas histórias de crimes duros estava em seu

356
ambiente rural e em suas circunstâncias pessoais. Isso dificultou,
ou mesmo condicionou, ao realizar descrições de configurações
urbanas. Talvez tenha sido por isso que mais tarde ele tentou
contextualizar essas histórias de crime em um tipo de ambiente
que ele conhecia muito bem, como o seu Texas rural.
Howard não era um “caipira”, tampouco uma pessoa que
nunca tinha visto uma cidade grande, mas infelizmente, suas
experiências na cidade grande não foram lucrativas o suficiente
para descrevê-las com precisão. Embora ele tenha viajado várias
vezes a San Antonio, sua herança cultural, claramente texana,
tinha pouco a ver com selvas urbanas como Los Angeles,
Hollywood, Nova York ou San Francisco, amplamente detalhadas
nas histórias de Raymond Chandler ou Dashiell Hammett.
O único período significativo de tempo que Howard passou
em uma grande cidade foi no início de 1919, quando sua família
teve que ficar por sete semanas em Nova Orleans, onde o Dr.
Howard (seu pai) frequentou um curso de treinamento para suas
práticas de medicina (Finn, p. 49). Além de seu primeiro encontro
com os pictos, esta estada em Nova Orleans foi memorável para
Howard, aos 13 anos de idade. Durante este tempo, uma série de
assassinatos horríveis ocorreram, perpetrados por um assassino
que a imprensa local apelidou com base na arma usada: “The
Axman” (FINN, 2012, p. 49).

357
Todos esses assassinatos múltiplos, assim como o método
usado, impressionaram profundamente um jovem Howard que,
algum tempo depois, voltaria, usando repetidamente assassinos de
machado para suas histórias de terror. É o caso, por exemplo, da
famosa história “Pombos do Inferno”.
Howard não vendeu nenhuma história de detetive em 1935,
no entanto, Otis Kline vendeu duas para a revista Thrilling
Mystery em 1936: “Graveyard Rats”, escrita em 1935; e “Black
Wind Blowing”, escrita entre janeiro e abril de 1936. Isso ajudou a
compensar o prejuízo financeiro causado pela Weird Tales, ao
deixar de pagar o texano: não sendo pago por seu mercado
primário. Embora Howard não estivesse inicialmente preocupado
com atrasos nos pagamentos, isso mudou drasticamente quando a
saúde de sua mãe começou a piorar. As despesas médicas
dispararam e, em uma carta comovente que escreveu em maio de
1935, Howard literalmente implorou ao editor Farnsworth Wright,
da Weid Tales para pagar-lhe pelo menos parte da quantia de $
800 devida a ele.
Tudo isso nos leva a uma pergunta final: os crimes e as
histórias de detetive que Howard escreveu são tão ruins quanto ele
mesmo critica? Do ponto de vista dos negócios, é difícil dizer que
as próprias afirmações de Howard sobre seu fracasso estavam
corretas: se considerarmos as histórias de detetive autênticas,

358
como são definidas dentro do gênero, então encontramos um saldo
de vendas de 6 entre 9 histórias escritas, que não é um resultado
ruim.
Por outro lado, se olharmos para um sentido mais amplo do
gênero policial, dentro do que é chamado de “ameaça estranha”,
ou seja, histórias de crime e mistério que incluem elementos
sobrenaturais ou de fantasia, então poderíamos listar um total de
21 histórias. Aqui, o resultado é muito diferente. Destas 21
histórias de Howard, apenas 6 foram publicadas em sua vida.
Considerando o esforço e a dedicação que teria sido necessário
para escrevê-los, uma relação de vendas tão baixa justificaria um
nível tão severo de autocrítica.
Então, o que podemos dizer sobre a capacidade de Howard de
escrever histórias de crime? Todos aqueles leitores que esperavam
encontrar histórias no estilo clássico mais puro e durão, como os
romances de Dashiell Hammett e seu personagem Sam Spade, ou
sua série “Continental Op”, certamente ficariam desapontados. O
mesmo poderíamos dizer daqueles outros leitores ligados ao estilo
britânico, com histórias de detetive estreladas por personagens
como Miss. Marple, Hercules Poirot ou Sherlock Holmes.
Na verdade, Howard não reinventou o conceito, nem o
redefiniu, nem acrescentou nada de novo às histórias de detetive,
mas ele deixou sua marca, de forma inequívoca. As histórias de

359
Howard diferem consideravelmente do estilo “whodunit”, uma
fórmula muito popular dentro do gênero. Embora em uma história
de detetive comum, tanto o mistério quanto o próprio crime se
tornem o catalisador da história, e a resolução seja o fator-chave,
nas histórias de Howard, ao contrário, eles se constituem como o
ponto de partida para uma série de cenas de ação, sempre dentro
de um contexto e atmosfera tensos, mais típicos de uma história de
terror.
Embora as histórias de detetive de Howard não estejam no
nível artístico de algumas das grandes obras pelas quais ele se
tornou famoso, isso não significa que sejam de baixa qualidade.
Devemos considerá-los como a tentativa de um jovem escritor que
tentou abrir um nicho no mercado, experimentando um gênero que
não lhe era familiar.
Os resultados são, em sua maioria, relatos confiáveis e bem
escritos, histórias de crime divertidas e com um toque pessoal
inconfundível do autor. Esse “toque” é a razão exata pela qual
suas histórias de detetive não se encaixaram nos parâmetros que
definiram o gênero. E, para ser honesto, é exatamente isso que
você esperaria de nosso escritor favorito de Cross Plains, Texas,
cujo trabalho tanto amamos.

Robert E. Howard - Histórias de Crime - Detetives particulares

360
As histórias de detetive, tanto em sua versão britânica, a elegante e
refinada “whodonit”, quanto na americana, “hard-boiled”, mais
suja, violenta e urbana, tiveram grande aceitação nas Golden Age
Pulp. Nesse meio tempo, detetives sobrenaturais, como Jules de
Grandin, também atuavam na literatura pulp.

Fonte: http://www.rehtwogunraconteur.com:
Referências bibliográficas: consulte a fonte original do artigo.

Dierk Guenther: Graduado pela Albert-Ludwigs University


(Freiburg/Alemanha), vive e trabalha no Japão desde 1995, como
professor associado da Tokushima University (Instituto de Artes e
Ciências Liberais), ensinando Inglês e Literatura Americana. Fã da
literatura pulp, realizou diversos estudos sobre o assunto, além de
publicações acadêmicas no Japão e nos Estados Unidos sobre Pulp
Fiction/Pop Culture e, principalmente, Robert E. Howard.
Personagem sobre quem deu palestras (PCA: Popular Culture
Association), sendo também um membro destacado do comitê
Howard Days, realizado em Cross Plains, no Texas. Outros
objetos de estudo com os quais trabalhou são a história dos
prisioneiros alemães no Japão durante a Primeira Guerra Mundial.

361
A equipe do Forúm Conan agradece a todos que tem
colaborado para que o nosso trabalho continue forte e
constante e cheio de novas ideias para que novos
projetos sejam realizados com o intuito de divulgar cada
vez mais a obra literária de Robert E. Howard que, em
sua grande maioria, continua ainda inédita aqui no Brasil
e na língua portuguesa.

362
Adeson Moraes
Afrânio Willian Tegão
Alexsandre de Lira Silva
Corwin Gothcrom
Edgar Rupel
Endeusa Marius
Eliezer Martins
Emerson Silva
Fabio Moreira de Melo
Fernando Donizetti
Gustavo Henrique Lemos
Henry Bernardo
Jonatas Faria Rossetti
João Dinardi de Castro
Karolyne da Rocha Bastos
Leonardo Franco Miranda
Leone Lúcio
Luiz Alfredo Bexiga
Marco Antonio Collares
Marcos Flávio Rodrigues
Mariana Bernardes
Mateus Martinbianco Bauer
Pedro Henrique Gonçalves Ferreira
Robilam Corrêa Júnior
Rodrigo Chiesa
Ronan Barros
Sebastião Alves
Valter F. Viana

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