;

1 história') de fantasmas

QUE

Tradução
CHICO LOPES

Editora Penalux
Guaratinguetá, 2016
 EDITORA PENALUX
Rua Marechal Floriano, 39 - Centro
Cuaratinguetl, SP 1 CEP: 12500-260

penalux@editorapcnalux.com.br
www.editorapenalux.com.br

EDIÇÃO
França & Gorj

REVISÃO
Claudia Manzolillo
Francisco Carlos L.

CONCEPÇÃO GRÁFICA E PREPARAÇÃO

Dáblio Jotla

SUPERVISÃO E NOTAS
Cleber Pacheco

ILUSTRAÇÃO DA CAPA
Arte sobre pintura de Caspar David Friedrich ( 1774 - 1840)

FINALIZAÇÃO E DIAGRAMAÇÃO
Ricardo A. O. Paixão

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) -

R691A RHODf~JAMES, M=txu:. 1862- 1936.

- ASSOVIE QUE VIREI/ M.R. )AMES. -TRADUÇÃO E SELEÇÃO:
CHICO LoPES.
CUARATINCUETÁ, SP: PENALUX, 2016.

144 P.: 21 CM.

TRAOUÇÃO F. $F.1.F.ÇÃO OE: THF. Cm.1.F.CTF.D GHO.<;T STORJEÇ

ISBN 978-85-5833-087-9

1. LITERATURA INCLESA 2.CONTOS 3.TERROR, HISTÓRIA

DE F.~NTASMAS 1. LOPES. CHICO li. TíTULO

CDD.: B813 .93

Índices para catálogo sistemático:

1. Literatura Inglesa

Todos os direitos reservados.

A rcproduçik> de cpalquer parte desta obra só é pennitida
rnec,ailtc autorizac1o expressa do autor e da Edtora Penalux..
 pendurado o cadáver de Stanley Judkins. Ele o havia tirado
do galho em que o encontrara enforcado, balançando para
lá e para cá. Não havia uma gota de sangue em seu corpo.
No dia seguinte, Mr. Hope Jones partiu brusca-
mente com um machado e a intenção clara de cortar to-
das as árvores do bosque e de queimar todos os arbustos
do campo. Ele retornou com um corte feio em sua perna
e com o machado trazendo o cabo quebrado. Nem uma
faísca de fogo ele conseguiu atear e em nenhuma árvore
ele conseguiu fazer o menor entalhe.
Fiquei sabendo que a atual população do Poço dos
Gemidos consiste de três mulheres, um homem e um ga-
roto.
O choque experimentado por Algernon de Mont-
morency e Wilfred Pipsqueak foi sério. Ambos deixaram
o acampamento imediatamente, e o acorttecimento, sem
dúvida alguma, lançou uma sombra - ainda que passagei-
ra - naqueles que permaneceram. Um dos primeiros are-
cobrar seu ânimo foi Judkins mais jovem.
Esta é, senhores, a história da carreira de Stanley
Judkins e de uma parte da carreira de Arthur Wilcox. Acre-
dito que nunca tenha sido contada. Se ela possui alguma
moral, espero que se perceba claramente; se não lhes pare-
cer óbvia, não sei o que fazer para remediar.
..
1
l O poço dos gem idos
-.Lssovrn QYE VIREI
partirá agora, já que o ano
- SUPONHO QUE G SENHOR
letivo terminou - disse uma pessoa de fora da história ao
Professor de Ontografia19 logo após eles se sentarem perto
um do outro no ~ospitaleiro ~alã~~-9 Colégio St. James.
O professor era jovem, elegante e preciso em sua fala.
- Sim, - ele disse - meus amigos estão me fazendo
aprender um pouco de golfe neste ano e eu quero ir para
a Costa Leste - mais precisamente a Burnstow (ouso di-
~er que você a conhece)_por uma semana ou dez dias, para
melhorar meu jogo. Espero partir amanhã.
- Oh, Parkins,-- disse seu vizinho no outro lado -
se vai a Burnstow, eu gostaria que fosse ao sítio da precep-
toria dos Templários 2 º, e me informasse se seria de algum
proveito dar uma escavada lá no verão .
19. Parte da Geografia que estuda a relação dos seres com seu am biente.
20. Uma das primeiras ordens mi litares da Europa C ristã, fundada em 1 11 8, no período
das C ruzadas.
107
 Foi, como vocês devem supor, uma pessoa com ati-
vidades de antiquário que disse isso, mas já que simples-
mente aparece neste prólogo não é necessário dar seus
créditos.
- Certamente, - disse Parkins, o professor, - se me
descrever perto de onde está a preceptoria, me esforça-
rei ao máximo para lhe dar uma ideia da posição da terra
quando eu voltar, ou eu poderia lhe escrever sobre ela, se
me disser onde você se encontrará por esses dias.
- Obrigado; não precisa se incomodar com isso. Só
estou pensando em levar minha família para aqueles la-
dos no futuro e me-ocorreu que, como muito poucas das
preceptorias inglesas jamais foram apropriadamente pla-
nejadas, eu poderia ter uma oportunidade de fazer algu-
ma coisa útil nos dias de férias.
O professor fungou levemente à ideia de que pla-
nejar uma preceptoria pudesse ser descrita como útil. Seu
vizinho prosseguiu: - O sítio (duvido que haja algo indica-
tivo sobre o chão) deve ter se rebaixado até muito perto da
praia. agora. O mar avançou tremendamente, corrio sabe,
por todo aquele trecho costeiro. "Eu deduziria, pelo mapa,
que d~ve estél;r a três quartos de milha da Hospedaria Glo-
be, no extremo norte da cidade. Onde o senhor ficará?
- Bem, exatamente na Hospedaria Globe, para falar
a verdade. - disse Parkins - Eu reservei um quarto lá. Não
poderia ficar em nenhum outro lugar; a maior parte das
casas de aluguel está fechada no inverno, ao que parece,
Assovie que virei
e, sendo assim, eles me disseram que ·O único quarto de
algumas dimensões que posso obter é realmente um de
duas camas, e que não possuem um só canto no qual guar-
dar a outra cama, e assim por diante. Mas eu preciso ter
um quarto bem amplo, pois estou levando comigo alguns
livros e tenho a intenção de trabalhar um pouco e, embora
não goste da ideia de ter uma cama vazia - para não falar
de duas - no que então eu chamarei de meu estúdio, terei
de aguentar e me conformar em ficar sem conforto pelo
curto tempo em que eu estiver lá.
-Ter uma cama extra em seu quarto, chama isso de
ficar sem conforto, Parkins? - disse um sujeito franco do
lado oposto. - Olhe aqui, eu irei junto e a ocuparei por uns
tempos; assim lhe faço companhia.
O professor estremeceu, mas conseguiu rir de uma
maneira cortês.
- De modo algum, Rogers; não há nada que eu não
apreciasse tanto. Mas temo que você ache um tanto mo-
. nótono lá; você não joga golfe, joga?
a
- Não, gr-a-ças Deus! - disse o rude Mr. Rogers.
- Bem, então veja, quando eu não estiver escreven-
do estarei muito provavelmente no campo de golfe, e isso,
como disse, seria um tanto monótono para você, temo eu.
- Oh, eu não sei! É certeza de que haverá alguém
que eu conheça no lugar; mas, certamente, e se você não
quer que eu vá, pode falar, Parkins; eu não me sentirei ofen-
dido. A verdade, como você sempre diz, nunca é ofensiva.
M .R. James
 Parkins era, de fato, escrupulosamente polido e es-
tritamente verdadeiro. É de se temer que Mr. Rogers, às
vezes, se aproveitasse de seu conhecimento dessas carac-
terísticas. No íntimo de Parkins, se desenrolava agora um
conflito, o que, por um ou dois momentos, não lhe perm~­
tiu responder. Encerrado o intervalo, ele disse: - Bem, se
você quer a verdade exata, Rogers, eu estava ponderando
se o quarto de que falei seria amplo o suficiente para aco-
modar-nos os dois confortavelmente; e também se (veja,
eu teria dito isso se você não houvesse me pressionado)
você não se tornaria algo assim como um obstáculo ao
meu trabalho.
Rogers riu ruidosamente.
- Muito bem, Parkins! - ele disse. - Está tudo certo.
Eu prometo não interromper seu trabalho; não se pertur-
be por isso. Não, eu não irei se você não quer; mas acho
que eu seria muito bom para afastar os fantasmas. -Aqui
ele deve ter sido visto a dar uma piscadela e uma cutucada
em seu vizinho. Parkins também deve ter sido visto se ru- .
borizando. - Peço desculpas,-Parkins. - Rogers continuou
- E~ não deveria ter dito isso. Eu me esqueci que você não .
gosta de leviandade nesses assuntos.
- Bem, - Parkins disse - já que você mencionou o
assunto, eu reconheço livremente que não gosto de conver-
sas descuidadas sobre o que você chama de fantasmas. Um
homem em minha posição, - ele prosseguiu, elevando um
pouco a voz - não pode, eu acho, ser descuidoso demais em
parecer sancionar as crenças correntes sobre tais assun-
tos. Como sabe, Rogers, ou como deve saber; pois acho que
nunca ocultei meus pontos de vista...
- Não, v.ocê certamente nunca os ocultou, meu ve-
lho - interferiu Rogers a meia-voz.
- Sustento que qualquer semelhança, qualquer
aparência de concessão à visão de que tais coisas possam
existir é equivalente a uma renúncia a tudo que susten-
to ser mais sagrado. Mas temo que não tenha conseguido
prender sua atenção.
- Sua indivisa atenção, como bem disse o Dr. Blim-
ber21, Rogers -interrompeu, com toda aparência de um
sério desejo de precisão. - Mas peço desculpas, Parkins:
estou cortando sua palavra.
- Não, não totalmente. - disse Parkins. - Eu não
me lembro de Blimber22; talvez tenha sido antes do meu
tempo. Mas eu não preciso prosseguir. Tenho certeza de
que você sabe o que quero dizer.
- Sim, sim, - disse Rogers, um tanto impaciente-
mente - é bem assim. Vamos investigar isso completa-
mente em Burnstow ou em algum lugar.
ão repetir o diálogo acima, eu tentei dar a impres-
são que ele me causou, isto é, de que Parkins tinha o cará-
ter de uma mulher velha: era um tanto suscetível em suas
coisas e carecia totalmente de senso de humor; porém, era
2 1. Noca do autor: Mr. Rogers estava errado; vide Dombey & Filho , cap. XI I (romance de
C h arles Dickens).
22. Dr. Blimber é um dos personagens do referido romance.
M .R. Jam es .J
destemido e sincero em suas convicções e digno de maior
respeito. Se o leitor captou isso ou não, essa era a persona-
lidade de Parkins.
No dia seguinte, Parkins, de fato, como esperava,
teve sucesso em partir do colégio e em chegar a Burns-
tow. Ele foi bem acolhido na Hospedaria Globe, insta-
lado com segurança no amplo quarto de dois leitos dos
quais ouvimos falar, e pôde, antes de se recolher para o
repouso, arrumar seus materiais de trabalho em ordem
exemplar sobre uma mesa cômoda que ocupava a ponta
externa do quarto e era cercada pelos três lados por jane-
la~ que davam para o mar; ou seja, a janela central dava
diretamente para o mar, e as que ficavam à esquerda e à
direita descortinavam as perspectivas ao longo da praia
ao norte e ao sul, respectivamente. Ao sul, via-se a aldeia
de Burnstow. Ao norte, não havia casas, mas apenas a
praia e o rochedo baixo que a apoiava. Bem em frente,
havia uma faixa - não muito grande - de grama espessa,
pontilhada por velhas âncoras, cabrestantes e assim por
diante; a seguir, via-se uma trilha ampla; depois, vinha a
praia. Qualquer que tenh-a si~o a distância original entre
a Hospedaria Globe e o mar, não mais que sessenta jar-
das os separavam agora.
O resto da população da hospedaria era, natural-
mente, voltado ao golfe e incluía alguns elementos quepe-
dem uma descrição especial. A figura mais proeminente
era, talvez, a de um antigo militar, secretário de um clube
A ssovie que virei
de Londres, possuidor de uma voz de incrível força e de
opiniões marcadamente protestantes, as quais puderam
encontrar vazão depois que ele se tornou frequente nos
ofícios celebrados pelo Vigário, um homem de personali-
dade respeitável, em que pese suas inclinações em tornar
pitorescas as cerimônias religiosas, coisa contra a qual se
opunha o tal militar por considerar que isso se afastava da
dignidade da tradição anglicana.
O Professor Parkins, que tinha como uma das
principais características a resolução, passou a maior par-
te dos dias depois de sua chegada a Burnstow no que ele
chamava de melhoria de seu jogo, em companhia desse
Coronel Wilson; e durante a tarde - não estou certo se o
processo de melhoria era ou não responsável por isso - o
comportamento do Coronel assumia um colorido tão lú-
gubre que mesmo Parkins relutava à ideia de acompanhá
-lo até em casa ao saírem do campo de golfe. Ele decidiu,
depois de uma curta e furtiva olhada para aquele bigode
eriçado e aquelas feições escarlates~ que seria mais sens__a-
to deixar que as influências do chá e do tabaco fizessem o
que pudessem com o Coronel antes que a hora do jantar
resultasse num inevitável encontro.
- Eu poderia caminhar ao longo da _praia hoje à
noite - ele refletiu- sim, e dar uma olhada (haverá luz su-
ficiente para isso) nas ruínas das quais Disney falou. Eu
não sei exatamente onde ficam, aliás, mas acho que difi-
cilmente deixarei de tropeçar nelas.
M_R _James A
 Foi o que ele fez, posso dizer, no sentido mais lite-
ral, pois, ao procurar seu caminho do campo de golfe à praia
coberta de seixos, seu pé trombou em parte numa raiz de
urze e, em parte, numa pedra de bom tamanho - e ele des-
pencou. Quando se levantou e inspecionou seus arredores,
descobriu-se num trecho de um terreno um tanto irregular,
coberto com pequenas depressões e montículos. Esses se
provaram mais tarde, quando ele veio a examiná-los, sim-
ples mílssas de sílex impregnadas de argamassa e recobertas
pela relva. Ele devia estar, concluiu corretamente, no sítio da
preceptoria em que havia prometido dar uma olhada. O lu-
ga~ não parecia incapaz de recompensar a pá do explorador;
parte suficiente das fundações havia sido provavelmente dei-
xada a não grande profundidade para que se lançasse uma
boa quantidade de luz sobre o plano geral. Ele lembrou-se va-
gamente que os Templários, a quem este sítio havia perten-
cido, tinham o hábito de construir igrejas redondas, e julgou
que uma série particular das corcovas ou montículos perto
dele pareciam realmente ter sido arranjados em algo como
uma for~a circular. Poucas pessoas podem resistir à tenta-
ção de av~nturar-se em um pouco de pesquisa amadora num
departamento totalmente alheio ao seu, por nada além da
satisfação de mostrar como seriam bem-sucedidas tendo-o
apenas tomado com seriedade. Nosso professor, contudo, se
sentia algo desse desejo mesquinho, também estava ansioso
por satisfazer Mr. Disney. Portanto, andou com cuidado pela
área circular que havia notado e registrou suas dimensões
L
A ssovie que virei
desiguais em seu caderno de bolso. Depois, pôs-se a exami-
nar uma elevação oblonga, a leste do centro do círculo, que
parecia, a seu ver, provavelmente, a base de uma plataforma
ou altar. Numa ponta dela, a extremo norte, um trecho da
relva desaparecera - removida por algum garoto ou outra
criatura, provavelmente um animal selvagem. Isso bem po-
dia, pensou, provar que o solo continha evidências de alvena-
ria, e ele puxou sua faca e começou a raspar a terra. E, então,
se seguiu outra descoberta: uma porção de solo caiu para
dentro quando ele raspava e revelou uma pequena cavidade.
Ele acendeu um fósforo atrás do outro para ajudar a ver de
que natureza o buraco era, mas o vento era forte demais para
que ficassem acesos. Tampando e raspando as laterais com
sua faca, contudo, ele conseguiu discernir que devia ser um
buraco artificial em alvenaria. Era retangular, e as laterais, o
topo e a base, embora não realmente rebocados, eram lisos e
regulares. Aparentava estar vazio, mas assim que ele retirou
a faca, ouvíu um tilintar metálico e, quando enfiou a mão,
percebeu um objeto cilíndrico estendido no chão do buraco-.
Naturalmente, ele o apanhou e, quando o trouxe à finda luz
do dia, pôde ver que -era, também, um artefato humano -um
-tubo de metal de cerca de quatro polegadas de comprimento
e que, evidentemente, possuía idade considerável.
Quando Parkins se certificou de que não havia nada
mais neste estranho receptáculo, era tarde e escuro demais
para ele pensar em empreender qualquer pesquisa adicio-
nal. O achado era tão inesperadamente interessante que
M .R Jame s
 decidiu sacrificar um pouco mais da luz do dia seguinte à
arqueologia. Estava seguro de que o objeto que agora trazia
em seu bolso deveria ter, ao menos, algum ligeiro valor, ele
tinha certeza.
Sombrio e solene foi o panorama para o qual lançou
um último olhar antes de partir para casa. Uma débil luz
amarela a oeste revelava as dunas de golfe sobre as quais
algumas figuras se movendo para a sede do clube ainda
eram visíveis, a atarracada torre de armas, as luzes da al-
deia de Aldsey, a pálida faixa de areias interseccionada a
intervalos por negros quebra-mares de madeira, o escuro
e mur murante mar. O vento vinha cortante do norte, mas
batia em suas costas quando ele partiu para a Hospedaria
Globe. Ele passou rápido e ruidosamente sobre a cober-
tura de seixos e ganhou a areia, sobre a qual, exceto pelos
quebra-mares que tinham que ser pulados a um dado nú-
mero de jardas, a ida foi ao mesmo tempo boa e tranqui-
la. Um último olhar para trás, para avaliar a distância que
_ h_a via percorrido desde que deixara a arruinada igreja dos
-Templários~ revelou-lhe uma perspectiva de companhia
em suã caminhada, na forma de um personagem um tan-
to indistinto que parecia_estar fazendo grandes esforços
para alcançá-lo, mas avançara pouco, se é que avançara
alguma coisa. Quero dizer que havia uma espécie de cor-
rida em seus movimentos, mas que a distância entre ele
e Parkins não parecia diminuir efetivamente. Ao menos
isso foi o que lhe pareceu, e convencido como estava de
A ssovie que virei
que não o conhecia, Parkins considerou não fazer senti-
do esperá-lo até que conseguisse se aproximar. Por tudo
aquilo, uma companhia - pôs-se a pensar - seria realmen-
te bem-vinda naquela praia solitária, se você pudesse es-
colher uma. Em seus dias menos luminosos, ele havia lido
sobre encontros em tais lugares nos quais, mesmo agora,
ele mal suportaria pensar. Contudo, não conseguiu afas-
tá-los de sua imaginação enquanto prosseguia até chegar
à hospedaria; e pensou particularmente num encontro
que costuma impressionar a maioria das pessoas em de-
terminada etapa de sua infância. ''Vi num sonho meu que
um cristão havia caminhado um curto trecho quando-viu
um demônio horrível vindo pelo campo a seu encontro."
"O que eu faria agora", ele pensou, "se olhasse para trás e
desse com uma figura negra nitidamente definida contra
o céu amarelo, e visse que ela tinha chifres e asas? Eu me
pergunto se ficaria parado ou fugiria. Felizmente, o cava-
lheiro lá atrás não é desse tipo, e ele parece estar tão dis-
tante agora quanto estavª quando o vi pela pri_rnei~~ _v~-~~ -_- ~
Bem, neste ritmo,-ele não chegará para seu jantar tão logo
quanto eu; e, minha nossa! será daqui a quinze minutos.
Preciso correr!"
Parkins teve, de fato, pouquíssimo tempo para
trocar de roupa. Quando encontrou o Coronel no jantar,
a paz - ou o tanto dela que aquele cavalheiro conseguia
obter - reinava mais uma vez no íntimo do militar; nem
ela fora posta a correr nas horas do bridge que se seguiram
M_R_Jame s
ao jantar, pois Parkins era um jogador mais que respeitá-
vel. Quando, portanto, ele se retirou perto das doze horas,
sentiu que havia passado sua noite de um modo inteira-
mente satisfatório e que, mesmo pelo tempo de uma quin-
zena ou três semanas, a vida na Globe seria suportável sob
condições semelhantes - "especialmente", ele pensou, "se
eu for melhorando meu jogo".
Ao caminhar pelos corredores, ele encontrou o
carregador da hospedaria, que parou e disse: - Peço des-
culpas, senhor, mas eu estava escovando seu casaco nes-
te momento quando alguma coisa caiu de seu bolso. Eu
a ~aloquei na cômoda do seu quarto, senhor; um pedaço
de tubo ou alguma coisa do gênero. Obrigado, senhor. Em
cima de sua cômoda o encontrará; sim, senhor. Boa noite,
senhor.
A fala serviu para fazer Parkins lembrar-se de sua
pequena descoberta daquela tarde. Foi com uma conside-
rável curiosidade que ele a revirou à luz de suas velas. Era
de bronze, ele via agora, e era fabricada muito à manei=-
ra do apito de cachorro moderno; na verdade, era - sim,
certamente era - realmente nada mais que um apito. Ele
o colocou em seus lábios, mas estava totalmente cheio de
uma fina camada de areia ou terra que não cedeu a uma
batida, mas teve que ser raspada com uma faca. Asseado
como sempre em seus hábitos, Parkins limpou a terra
num pedaço de papel e levou-o até a janela para esvaziá-lo.
A noite era clara e luminosa, como ele viu quando abriu o
caixilho, e parou um instante para olhar o mar e notar um
caminhante tardio posicionado na praia em frente à hos-
pedaria. Depois, fechou a janela, um pouco surpreso com
as horas tardias que as pessoas seguiam em Burnstow, e
colocou seu apito sob a luz novamente. Ora, certamente
havia marcas nele e não simplesmente marcas, mas le-
tras! Uma pequena esfregada tornou a inscrição profun-
damente entalhada completamente legível, mas o profes-
sor teve que confessar, depois de uma séria reflexão, que o
significado dela era tão obscuro para ele quanto a profecia
inscrita na parede para Belshazzar 23 • Havia legendas tanto
-na frente quanto verso do apito.
A primeira dizia assim:
jfla.
jfur 16ís
jflc
_ _:. ---~-~- _ A segunda:
~ ~uís cst ístc quí ucnít ~
"Devo ser capaz de decifrar isso - ele pensou -,
mas suponho que esteja um pouco enferrujado em meu
Latim. Quando me ponho a pensar nisso, não creio que
23. Príncipe da Bab ilônia em cujo palácio houve na parede wna inscrição profetizando seu fim.
M .R . James
 saiba sequer a palavra para um apito. A legenda longa pa-
rece realmente bem simples. Deve significar "Quem é esse
que vem aí?". Berri, a melhor maneira de descobrir é evi-
dentemente assoviar para que ele venha".
Ele soprou hesitantemente e parou de repente, as-
sustado, porém satisfeito pela nota que havia feito sair.
Ela trazia uma qualidade de distân5ia infinita em si, e, su-
ave como era, ele de algum modo sentiu que deveria ser
audível por milhas ao redor. Era um som, também, que
parecia ter ó poder (que muitos cheiros possuem) de for-
mar imagens na mente. Ele teve, por um momento, a vi-
são muito clara de uma ampla, escura extensão à noite, na
qual soprava um vento fresco e, no meio dela, havia uma
figura solitária - que função ela tinha, ele não conseguiu
discernir. Talvez tivesse visto mais se a imagem não hou-
vesse sido quebrada pela súbita ondulação de uma rajada
de vento contra seu caixilho, tão repentina que o fez olhar
-para o alto, bem a tempo de ver a branca cintilação da asa
de uma ave marinha em algum ponto no lado de fora das
vidraças escu~as.
------- -- G SOI)1 do apito o fascinara tanto que ele não con-
seguiu deixar de tentá-lo outra vez, porém com mais ou-
sadia. A nota foi curta, se tanto, mais alta que antes, e a
repetição quebrou a ilusão - nenhuma imagem se seguiu,
como ele havia esperado que fosse possível. "Mas, o que
é isso? Deus do céu! Que força o vento pode ganhar em
alguns minutos! Que tremenda rajada! Veja só! Eu sabia
l A ssovie que viroi
que prender a janela não adiantaria! Ah! Bem que eu pre-
via isso - as duas velas apagadas. Esse vento é suficiente
para revirar todo o quarto."
Primeiramente, foi tratar de fechar a janela. Antes
que se pudesse contar vinte, Parkins estava lutando com o
pequeno caixilho e sentia quase como se estivesse sendo pu-
xado por um robusto ladrão, tão forte era a pressão. Ele se
afrouxou de repente, e a janela deu uma batida e se fechou.
Então, ele se pôs a reacender as velas e ver quais danos, se
algum houvera, tinham sido causados. Não, nada parecia
errado; nenhum vidro fora quebrado no caixilho tampouco.
Mas o ruído havia despertado, ao menos, um -membro da
casa: ouvia-se o Coronel andar de meias no andar de cima }
de um lado para o outro, resmungando impropérios.
Tão rapig.amen!e quanto se erguera, o vento não
cessou de repente. Ele prosseguiu, gemendo e investindo
sobre a hospedaria, de vez em quando, se elevando a um
brado tão desolador que, como Parkins disse desinteres-
sadamente, poderia ter levado pessoas fantasiosas a se
- - --- - ~-~~
- sentirem muito incomodadas, mesmo as -nao imaginati-
vas, ele pen~ou depois de uns quinze minutos, poderiam -
sentir-se mais felizes sem ele.
Fosse o vento ou fosse a empolgação do golfe, ou
das pesquisas na preceptoria, . o que o manteve acordado,
Parkins não teve certeza. Acordado ele permaneceu, em
todo caso, por tempo suficiente para imaginar (como temo
que eu mesmo fizesse sob tais condições) que era vítima de
MR. James ~
desordens fatais de todas as maneiras: ficou deitado con-
tando as batidas de seu coração, convencido de que pudes-
se parar de bater a qualquer momento, e tecendo graves
desconfianças de seus pulmões, cérebro, fígado, etc. - des-
confianças que ele tinha certeza seriam dissipadas pelo re-
torno da luz do dia, mas que até lá ele se recusava a pôr de
lado. Encontrou certo consolo na ideia de que havia mais
gente no mesmo barco. Um vizinho próximo (na escuridão,
não era fácil distinguir sua direção) estava se remexendo e
rufiando em sua cama também.
O estágio seguinte foi que Parkins fechou seus
olhos e decidiu dar todas as chances ao sono. Então, mais
uma vez, a excitação excessiva se afirmou de outro modo
- o de formar imagens. Palavra de entendedor, imagens
realmente surgem para os olhos fechados de alguém que
tenta dormir e são geralmente tão desprezíveis ao seu
gosto que ele deve abrir seus olhos e dispersá-las.
A experiência de Parkins, nessa ocasião, foi muito
angustiante. Descobriu que a imagem que se apre_sentara
------ - -- ansiedade. - ---- -- ---
a ele era contínua. Quando abriu seus olhos, naturalmen-
te, ela se foi, mas, quando os fechou novamente, ela se
reapresentou em seu frescor e se desenrolou novamente,
nem mais rápida ou mais lenta que anteriormente. O que
ele viu foi o seguinte:
Um longo trecho de praia - os seixos cercados pela
areia e interseccionados a curtos intervalos por negros quebra
-mares que corriam para a água - um cenário, na verdade, tão
Assovie que virei
parecido com aquele de seu passeio na tarde que, na ausência
de qualquer marco terrestre, não podia ser distinguido do ou-
tro. A luz era fraca, transmitindo uma impressão de tempes-
tade iminente, noite alta de inverno e ligeira chuva fria. Nesse
cenário desolado, a princípio nenhum ator era visível. Depois,
ao longe, um objeto negro trêmulo apareceu: um momento
mais, e era um homem correndo, pulando, escalando os que-
bra-mares e, a cada segundo, olhando ansiosamente para trás.
Quanto mais perto chegava, mais óbvio ficava que não estava
apenas ansioso, mas sim terrivelmente assustado, embora seu
rosto não pudesse ser distinguido. Ele estava, além disso, no
limite de suas forças. E se aproximava mais; cada obstáculo
sucessivo parecia lhe causar mais dificuldade que o anterior.
"Será que ele vai passar pelo próximo?", pensava Parkins, "pa-
rece um pouco mais alto que os outros." Sim, meio escalando,
meio se arremetendo, ele ultrapassou e desabou como um far-
do do outro lado (o lado próximo ao espectador). Ali, como se
fosse incapaz de levantar outra vez, ele permaneceu curvado
sob<:> quebra-mar, olhando para o alto numa atitude de penosa
- A~é aí nenhuma causa para o temor do corredor apa-
recera; mas agora começava a ser visto, ao longe na praia, um
pequeno bruxuleio de alguma coisa de cor viva se movendo
para lá e para cá com grande velocidade e irregularidade.
Crescendo rapidamente, a coisa se revelou uma figura em
panos pálidos e agitados, mal definida. Havia alguma coisa
em seu movimento que fez Parkins nada desejoso de vê-la de
M .R. James ,J
 muito perto. Ela parou, ergueu os braços, curvou-se em dire-
ção à areia, depois, correu abaixada pela praia até a borda do
mar e voltou; e, depois, erguendo-se completamente, mais
uma vez, continuou seu trajeto para frente numa velocida-
de que era assustadora e aterrorizante. Veio um momento
em que o perseguidor estava flutuando da esquerda para à
direita a apenas algumas jardas além do quebra-mar onde o
corredor se escondia. Depois de dois ou três cálculos aqui e
acolá, a figura parou, se aprumou, com os braços erguidos, e,
depois, disparou diretamente para o quebra-mar.
Foi nessa altura que Parkins fracassou, como sem-
pre, na resolução de manter seus olhos fechados. Com
muitos receios pela incipiente falha de visão, pelo cérebro
superestafado, o fumo excessivo e assim por diante, ele
finalmente se resignou a acender sua vela, apanhar um li-
vro e passar a noite acordado, ao invés de ser atormentado
por este panorama persistente, que ele via com suficiente
clareza que deveria ser apenas um mórbido reflexo de sua
=- caminhada e de seus pensamentos no dia anterio~.
- --------
ºraspar dà caixa de fósforo e o clarão de luz deviam
-ter assustado algumas criaturas da noite - ratos ou algo as-
sim - que corriam através do piso do lado de sua cama com
muito alvoroço. Valha-me, Deus! O fósforo apagou! Que es-
tupidez! Mas o segundo queimou melhor, e uma vela e um
livro foram devidamente alcançados, e sobre eles Parkins
voltou sua atenção até que um sono de uma espécie salu-
tar sobreveio, e isso com não muita demora. Pela primeira
Assovie que virei
vez em sua vida organizada e prudente, ele se esqueceu de
apagar a vela e, quando foi chamado na manhã seguinte às
oito horas, havia ainda um bruxuleio no soquete e urna feia
mistura de parafina gotejada no topo da pequena mesa.
Depois do café, ele estava em seu quarto, dando
os toques finais ao seu traje de golfe, - a sorte havia de
novo designado o Coronel corno parceiro para ele - quan-
do urna das criadas entrou.
- Oh, diga, por favor, - ela se prontificou - gostaria
de alguns cobertores extras em sua carna, senhor?
- Ah! Obrigado. - disse Parkins. - Sim, acho que
gostaria de mais um. Parece que vai e-3friar um pouco mais.
Num tempo muito curto, a criada voltava com o
cobertor.
- Em qual das camas devo colocá-lo, senhor? - ela
perguntou.
- O quê? Ora, esta aqui - esta em que dormi na
noite passada - ~l~ disse, apontando para ela.
- Oh, sim! Peço desculpas,-~enhor_,_ mas o senhor
parece ter experimentado as duas; ao menos, 1:ivernos que
arrumar as duas nesta manhã.
- Verdade? Que granqe abs-urdo! - disse Parkin~.
- Com toda certeza, nem toquei na outra, exceto para
colocar algumas co-isas sobre ela. Ela parece realmente
ter tido alguém dormindo?
- Oh, sim, senhor! - disse a criada. - Ora, todas as
coisas foram desarrumadas e jogadas de todos os modos
M.R James J
- se me perdoe falar, senhor - como se alguém não tivesse
passado uma noite tranquila.
- Valha-me, Deus! - disse Parkins. - Bem, eu devo
tê-la desarrumado mais do que pensei quando tirei minhas
coisas da mala. Lamento muito ter-lhe dado trabalho extra,
por certo. Aliás, espero um amigo meu para logo - um cava-
lheiro de Cambridge-que virá e a ocupará por uma ou duas
noites. Isso será conveniente, suponho, não será?
- Oh, sim, com certeza, senhor. Obrigada, senhor.
Sem problemas~ tenho certeza. - disse a criada, e partiu
p~ra se unir alegremente às suas colegas.
Parkins saiu, com uma séria determinação de me-
lhorar seu jogo.
Fico feliz em poder relatar que ele se saiu tão bem
em sua empreitada que o Coronel, que havia ficado um
tanto amofinado à perspectiva de um segundo dia de jogo
em sua companhia, ficou muito tagarela à medida que a
manhã foi avançando, e sua voz reboou pelas planícies, -
certame~te como disse um de nossos m~nores poetas, "à
maneira de um bordão numa torre de mosteiro".
- Vento fora do comum, aquele que tivemos ontem
à noite. - ele disse. - Em minha terra natal, teríamos dito
que alguém teria assoviado para chamá-lo.
- Verdade? - disse Parkins. - Há uma superstição
desse tipo ainda reinando em sua parte do país?
- Não sei nada sobre superstições - disse o Coronel.
- Eles acreditam nisso por toda Dinamarca e Noruega, bem
~orno na costa de Yorkshire, e minha experiência é que,
pense bem nisso, geralmente, existe alguma coisa no fim-
do do que esse povo da terra sustenta e sustentou por ge-
rações. Mas agora é sua vez (ou o que quer que tenha dito;
o leitor entendedor de golfe terá que imaginar digressões
apropriadas nos próprios intervalos).
Quando a conversa foi retomada, Parkins disse,
com uma ligeira hesitação: - A propósito do que vinha di-
zendo agora mesmo, Coronel, eu acho que devo lhe contar
que meus pontos de vista sobre este assunto são muito
decisivos. Eu sou, de fato, um convicto descrente daquilo
que é chamado de "sobrenatural".
- O quê! - disse o Coronel-você quer mesmo dizer
que não acredita em clarividência, ou fantasmas, ou qual-
quer coisa desse tipo?
- Em absolutamente nada desse tipo - respondeu
Parkins firmemente.
- Bem, - disse o Coronel- mas me parece que, nes-
se aspecto, você deverá ser algo assim como um saduceu24 •
Parkiils esteve a ponto de responder que, em sua
opinião, os saduceus eram as pessoas mais sensatas que
-ele jamais lera no Velho Testamento, mas, sentindo uma
ponta de dúvida ein relação à presença marcante desses
personagens na referida obra, ele preferiu repelir a acusa-
ção com uma risada.
- ·/>
1 24. Cada wn dos membros de wna seita ou panido religioso do judaísmo posterior ao séc. Ili a.C.,
recrutados entre as famílias sacerdotais, os quais, apresentando viva tendência a assimilar culturas
estranhas, como a helênica e, posteriormente, a romana, discordavam dos outros israelitas quanto
aos rituais de purificação, à crença na ressurreição dos mortos, nos anjos e na providência divina.
M .R. J ames
 - Talvez eu seja - ele disse - mas ... (aqui, dê-me
meu bastão, garoto!) Com licença por um momento, Co-
ronel. - Um curto intervalo. - Agora, quanto a assoviar
para ch_amar o vento, deixe-me expor-lhe minha teoria
sobre isso. As leis que governam o vento não são todas
perfeitamente conhecidas -do povo de pescadores e con-
gêneres, naturalmente, são totalmente desconhecidas.
Um homem ou mulher de hábitos excêntricos talvez
' '
ou um desconhecido, é visto repetidamente na praia em
alguma hora incomum, e se ouve que ele assovia. Logo
a~ós um vento violento se ergue; um homem que pudes-
se ler o céu perfeitamente ou que possuísse um barô-
metro poderia ter previsto que isso aconteceria. O povo
simples de uma aldeia de pescadores não possui barô-
-metros e tem apenas algumas regras rudimentares para
prever o tempo. O que é mais natural que o personagem
excêntrico que postulei seja considerado o invocador do
vento, ou que ele ou ela deva ficar ligado instintivamente
à reputação de ser capaz disso? Ora, vamos considerar
o vento ~da- rioite passada: na verdade, eu mesmo estava
· assoviando. Eu soprei um apito duas vezes, e o vento pa-
_receu surgir. como resposta absoluta ao meu chamado.
Se alguém houvesse me visto ...
A audiência pareceu um pouco impaciente diante
dessa arenga, e Parkins tinha, eu temo, recaído um pouco
no tom de um palestrante; mas, ao ouvir a última senten-
ça, o Coronel parou.
A ssovie que virei
- Assoviando, você estava? - ele disse. - E que tipo
de apito você usou? Dê esta tacada primeiro. .
Novo intervalo.
- Quanto a esse apito sobre que perguntou, Coro-
nel. Ele é um tanto curio-so. Eu o tenho em meu ... Não; vejo
que o deixei em meu quarto. Na verdade, eu o achei ontem.
E então Parkins narrou a maneira pela qual desco-
brira o apito, depois do que o Coronel grunhiu e opinou
que, no lugar de Parkins, ele devia ter cuidado ao usar
uma coisa que havia pertencido a um grupo de papistas 25,
do qual, falando genericamente, poderia ser afirmado que
nunca se sabia do que seria c:.~paz. Nesse tópico, ele diver-
gia dos excessos do Vigário, que informara no domingo
anterior que, na sexta-feira, seria a Festa do Apóstolo São
Tomé e <jUe haveria 0fíci0 até onze horas na igreja. Esses
e outros procedimentos similares constituíam, ao ver do
Coronel, uma forte presunção de que o Vigário era um
papista dissimulado~ _s_~ _não jo ~~e um jesuíta; e Parkins,
que não podia prontament_e seguir o Coronel nesta região,
· não discor_do_u ~dele :: Na_verdade., .eles ficaram tão bem jun-
tos na manhã que não_hpuye. _cQJ?Versa c!.e nenhuma das
duas partes quanto a se separarem depois do -almoço.
-Ambos continuaram ~jogar bem durante a tarde,
ou, pelo menos, bem o bastante para que esquecessem
.., tudo mais até que a luz começou a lhes faltar. Foi só aí que
Parkins realmente se lembrou de que havia tido a intenção
25 . Termo depreciativo usad o pelos p rotestantes ingleses para designa r os católicos.
M.R. James J
 de fazer um pouco mais de investigações na preceptoria;
mas isso não era de grande importância, ele refletiu. Um
dia era tão bom quanto o·outro; ele podia muito bem ir jun-
to com o Coronel para casa.
Assim que dobraram a esquina da casa, o Coronel
quase foi derrubado por um garoto que correu para cima
dele no máximo de sua velocidade, e, depois, ao invés de
fugir, permaneceu agarrado a ele, ofegante. As primeiras
palavras do militar foram naturalmente de reprovação e
censura, mas ele muito rapidamente notou que o garoto
estava quase sem fala de medo. Perguntas foram inúteis a
princípio. Quando o garoto recuperou a respiração, come--
çou a gritar e continuou ainda agarrado às pernas do Co-
ronel. Ele, por fim, se desprendeu, mas continuou a gritar.
- Que diabos é o seu problema? O que você andou
fazendo? O que foi que viu? - disseram os dois homens.
-Oh, eu vi a coisa fazendo um sinal'para mim lá da
janela - gemeu o garoto, e eu não gosto disso.
- Qual janela? - disse o irritado Coronel. - Vam~
controle.,se, garoto. - - --
-A janela da frente do hotel, foi sim - disse o garo~o.·
A essa altura, Parkins estava propenso a mandar 0
garoto para casa, mas o Coronel recusou; ele queria chegar
ao âmago do assunto, disse; era muitíssimo perigoso dar tal
susto no garoto como este que ele tivera, e se fosse revelado
que havia pessoas fazendo brincadeiras, elas deveriam ser pu-
nidas por isso de algum modo. E, por uma série de perguntas,
Assovie que virei
ele extraiu esta história: o garoto estava brincando ao redor
no gramado da hospedaria Globe com alguns outros; depois,
foram para casa tomar seus chás, e ele estava bem a caminho
quando calhou de erguer o olhar para a janela da frente e ver
uma coisa acenando para ele. A coisa parecia ser alguma espé-
cie de figura, vestida de branco até onde ele percebeu, - não
pôde ver seu rosto, mas ela acenou para ele, e não era uma
coisa normal -para não dizer uma pessoa normal. Havia uma
luz no quarto? Não, ele não pensou em olhar se havia lá uma
luz. Qual era a janela? Era a mais alta ou a segunda? Era a se-
gunda - a grande janela que tinha duas pequenas outras nas
laterais.
- Muito bem, meu garoto. - disse o Coronel, depois
de mais algumas perguntas. -Vá para casa correndo agora.
Eu acho que era alguma pessoa tentando lhe dar um sus-
to. Em outra ocasião, como um corajoso garoto inglês, é só
você atirar uma pedra. - Bem, não, não isso exatamente,
mas vá falar ao camareiro ou a Mr. Simpson, o proprietário,
e - sim - diga que eu o aconselhei a fazer isso.
-=- -- . - o rosto do garoto expressou um pouco da dúvida
que ele sentia quanto à probabilidade de Mr. Simpson
oferecer um ouvido favorável à sua queixa, mas o Coronel
não pareceu perceber isso e prosseguiu: - E aqui está uma
moeda de seis pence - não, vejo que é um xelim - e vá para
., casa já e não pense mais nisso.
O pequeno saiu correndo com um agradecimento
alvoroçado, e o Coronel e Parkins circundaram a frente da
M.R. James " '
 Globe e fizeram o reconhecimento. Havia apenas uma ja-
nela que correspondia à descrição que tinham ouvido.
- Bem, isso é curioso, -disse Parkins -é evidentemen-
te à minha janela que o garoto estava se referindo. O senhor
subiria comigo por um momento, Coronel Wilson? Devemos
ver se alguém está tomando liberdades em meu quarto.
Logo estavam no corredor, e Parkins fez menção
de abrir a porta. Depois, parou e apalpou seus bolsos.
- Isso é mais sério do que eu pensava - foi sua ob-
servação a seguir. - Eu lembro agora que, antes de come-
çar esta manhã, tranquei a porta. Está trancada agora, e,
mais ainda, aqui está a chave. - E ele ergueu-a. - Agora
- ele prosseguiu- se os serviçais têm o hábito de entrar no
quarto dos hóspedes durante o dia quando eles se ausen-
tam, eu posso dizer apenas que - bem, que não aprovo isso
de modo algum. - Cônscio de um clímax um tanto fraco,
ele se ocupou com abrir a porta (que estava de fato tranca-
da) e com acender as velas. - Não, - ele disse - nada parece
fora do lugar.
- Exceto sua cama - interferiu o Coronel.
-Perdão, aquela não é minha cama-disse Parkins.
- Eu não uso aquela. Mas realmente parece que alguém
esteve pregando uma peça com ela.
Parecia com certeza: as roupas estavam amontoadas e
reviradas na mais tortuosa das confusões. Parkins ponderou.
- Deve ser isso - ele disse por fim: - Eu desorga-
nizei as roupas ao abrir a mala ontem à noite, e elas não
' Assov;e que vfre;
foram arrumadas desde então. Talvez tenham vindo para
isso, e aquele garoto os tenha visto pela janela, e então fo-
ram chamados para baixo e fecharam a porta atrás deles.
Sim, acho que deve ser isso.
- Bem, toque a campainha e pergunte - disse o Co-
ronel, e isso pareceu prático a Parkins.
A criada apareceu, e, para resumir uma longa histó-
ria, depôs que havia arrumado a cama na manhã quando o
cavalheiro estava no quarto e, desde então, não fora mais
lá. Não, ela não tinha nenhuma outra chave. Mr. Simpson
guardava as chaves; ele poderia dizer ao cavalheiro se al-
guém havia entradõ.
Era um enigma. A investigação revelou que nada de
valor havia sido levado, e Parkins lembrou-se da disposição
dos pequenos objetos nas mesas e assim por diante, bem o
bastante para ter total certeza de que nenhuma travessura
havia sido feita com eles. Mr. e Mrs. Simpson, além do mais,
concordaram que nenhum deles havia dado a duplicata da
chave -dc,-quart~-rquaiqueqressÇ>~ sob nenhuma hipótese
-aurânte o füâ. Nem pôde Parkins, homem justo co-mo era,
detectar qualquer coisa na éondtita d-0 patrão, da patroa ou
da criada que indicasse culpa. Ele--estava muito mais incli-
-nado-a pensar-que o-garoto havia enganado o Coronel.
O Coronel esteve anormalmente silencioso e pensa-
tivo no jantar e durante toda a noite. Quando deu boa noite
a Parkins, murmurou num tom velado mal-humorado: -
Você sabe onde estou se precisar de mim durante a noite.
M.R. James
l
 - Ora, sim, obrigado, Coronel Wilson, eu acho que
sim; mas não há muita possibilidade de eu perturbá-lo, es-
pero. A propósito, - ele acrescentou- eu lhe mostrei aque-
le velho apito de que falei? Bem, aqui está ele.
O Coronel o revirou cautelosamente à luz da vela.
- O senhor pode entender algo da inscrição?-per-
guntou Parkins, ao pegá-lo de volta.
- Não, não, nesta luz. O que você pretende fazer
com ele?
- Oh, bem, quando eu voltar para Cambridge, vou
submetê-lo a alguns dos arqueólogos de lá e ver o que pen-
sam dele e, muito provavelmente, se eles conside!:arem-
no digno de posse, posso presenteá-lo a um dos museus.
- Hum! - disse o Coronel. - Bem, você deve estar
certo. Tudo que sei é que, se fosse meu, eu o arremessaria
diretamente no mar. Não adianta falar estou bem cons-
'
ciente, mas espero que você seja um caso de viver e apren-
der. Eu espero que sim, por certo, e lhe desejo uma boa
noite~
Ele se virou para ir, deixando Parkins prestes a fa- - -
lar na base da escada, e logo cada um deles estava em seu ·
próprio quarto.
Por algum acidente infeliz, não havia persianas
nem cortinas nas janelas do quarto·do professor. Na noite
anterior, ele pensara pouco nisso, mas, na noite de hoje,
havia toda perspectiva de uma lua clara se erguendo para
brilhar diretamente sobre sua cama e, provavelmente,
~ Asso>fle que vü-,,;
acordá-lo mais tarde. Quando notou isso, ele ficou muito
irritado, mas, com uma engenhosidade que eu posso ape-
nas invejar, foi bem sucedido em armar às pressas, com a
ajuda de um tapete de passageiro de trem, alguns alfine-
tes de segurança e uma vara de guarda-chuva, um painel
que, se conseguisse apenas se manter ajuntado, iria bar-
rar completamente a luz do luar. E, em breve, ele estava
confortavelmente instalado naquela cama. Quando havia
lido uma obra sólida longa o bastante para produzir um
decisivo desejo de dormir, lançou uma olhada sonolenta
ao redor do quarto, apagou a vela e se recostou sobre o
travesseiro.
Ele devia ter dormido profundamente por uma hora
ou mais quando um tropel súbito o sacudiu e despertou da
maneira mais desagradável. Num momento, ele percebeu o
que acontecera: seu painel cuidadosamente construído ha-
via cedido, e uma lua muito clara e gelada estava brilhando
diretamente sobre seu rosto. Isso era altamente irritante.
Ele poderia se levantar e recop.struir o painel? Ou ele pode-
- ·ria dar um jeito de dormir se não o fizesse?
Por alguns minutos, ele ficou deitado e ponderou
sobre as, possibilidades; depois, se virou abruptamente, e,
com todos os seus olhos abertos, ficou ouvindo sem respi-
rar. Houvera um movimento, ele tinha certeza, na cama
vazia no lado oposto do quarto. Amanhã ele iria querer
que fosse removida, pois devia haver ratos ou alguma coi-
sa se remexendo em cima dela. Estava silencioso agora.
M.R . James
 Não! A agitação recomeçou. Houve um sussurro e um tre-
mor: certamente mais que qualquer rato poderia causar.
Eu posso imaginar por mim mesmo um pouco da
perplexidade e do horror do professor, pois, num sono de
trinta anos atrás, eu vi a mesma coisa acontecer, mas o lei-
tor terá dificuldade de imaginar, talvez, quão pavoroso foi
para ele ver uma figura subitamente sentada sobre o que
ele sabia ser uma cama vazia. Ele saiu de sua cama num só
pulo e se arremeteu em direção à janela, onde estava sua
única arma, a vara com que ele havia apoiado seu painel.
Isso foi, como se provou, a pior coisa que poderia ter feito,
p~rque o personagem na cama vaúa, com um súbito mo-
vimento suave, deslizou da cama e assumiu uma posição,
com os braços totalmente abertos, entre as duas camas, e
em frente à porta. Parkins ficou-observando isso com hor-
renda perplexidade. De algum modo, a ideia de passar por
ele e escapar pela porta lhe era intolerável; ele não teria
suportacio - não sabia por que - tocá-lo e, quanto ao per-
sonagem tocá-lo, ele preferiria se jogar pela janela a que .
_____ isso ac_qrrtecer. O personagem se_ergueu por um mo_m ento
- .
numa faixa de sombra escura, e ele não vira como era seu
rosto. Então, começou a se ~overnuma postura abaixada,
e, de repente oespectador percebeu, com algum horror e
um pouco de alívio, que devia ser cego, porque parecia ta-
tear ao redor com seus braços cobertos de um modo in-
certo e aleatório. Virando-se pela metade à distância, tor-
nou-se subitamente consciente da cama de onde acabara
l Assovie que viroi
de sair e arremeteu em sua direção e se curvou e apalpou
os travesseiros de um modo que fez Parkins estremecer
como nunca em sua vida julgara possível. Em pouquíssi-
mos momentos, ele pareceu notar que a cama estava vazia
e, depois, movendo-se para frente para dentro da área de
luz e encarando a janela, mostrou pela primeira vez que
espécie de coisa era.
Parkins, a quem desagrada ser interrogado sobre
isso, uma vez descreveu algo dele, segundo ouvi dizer, e
eu deduzi que o que ele lembra principalmente é uma hor-
rível, intensamente horrível, face de linho amarrotado. Que
expressão leu nela ele não pôde nem quis revelar, mas que
o terror que sentiu quase o enlouqueceu isso é certeza.
Mas não teve descanso para observá-lo por mui-
to tempo. Com formidável rapidez, a coisa se moveu no
meio do quarto e, enquanto apalpava e acenava, uma pon-
ta de seus envoltórios de pano bateu no rosto de Parkins.
Ele não pôde - embora soubesse quão perigoso um som
era - conter u_m grito de repugnância, e issô deu ao perse-:.
-g uidor uma indicação imeâiata. Ele saltou sobre Parkins
no mesmo instante e, no momento seguinte, ele estava a
meio caminho da janela dos fundos,- emitindo grito após
grito no volume máximo da voz, e a face de linho estava
arremessada para bem perto da sua. Neste ponto culmi-
nante, como já terão adivinhado, surgiu a salvação: o Co-
ronel arrombou a porta e chegou bem a tempo de ver os
dois à janela. Quando alcançou as figuras, apenas uma
M.R. James
 delas restava. Parkins despencou para frente do quarto de uma ocorrência não muito diferente na Índia, era de
num desmaio e, diante dele, no piso se estendia uma pilha opinião que, se Parkins houvesse se atracado com ela, ela
desordenada de roupas de cama. poderia ter feito realmente muito pouco, e que seu úni-
O Coronel Wilson não fez nenhuma pergunta, co poder era aquele de aterrorizar. A coisa toda, ele disse,
mas se ocupou em manter todos fora do quarto e em fa- servia para confirmar sua opinião sobre a Igreja de Roma.
zer Parkins voltar à sua cama; e ele mesmo, envolto num Não há realmente nada mais a contar, mas, como
cobertor, ocupou a outra cama pelo resto da noite. No vocês podem imaginar, as opiniões do professor sobre
dia seguinte bem cedo, Rogers chegou, mais bem-vindo certas questões são menos categóricas do que costuma-
do que seria um dia atrás, e os três mantiveram um con- vam ser. Seus nervos, também, sofreram um abalo: ele
selho muito longo no quarto do professor. No fim dele, o não pode agora sequer ver uma sobrepeliz sobre uma
Coronel deixou o prédio carregando um objeto entre seu porta completamente imóvel, e a visão de um espantalho
indicador e polegar, que lançou no mar tã8 longe quanto num campo em alguns crepúsculos de inverno lhe valeu
um braço muito musculoso poderia lançá-lo. Mais tarde, mais que uma noite de sono perdido.
a fumaça de uma fogueira se ergueu por detrás do prédio
da hospedaria Globe.
Qual foi a exata explicação que se improvisou para
a equipe e os visitantes da hospedaria, devo confessar que
não me recordo. O professor foi, de algum modo, liberta-
do_da pronta suspeição de delirium tremens, e a hospedaria
da reputação de uma casa mal-assombrada.
_N ão há muita dúvida quanto ao que teria aconteei-
do a Parkins se o Coronel não houvesse intervindo. Ou ele
teria caído da janela ou então perdido o juízo. Mas não -é
tão evidente o que mais a criatura que viera em resposta ao
assovio poderia fazer além de aterrorizar. Parece que não
se tratava de um ser material, à parte as roupas de cama
que davam forma a seu corpo. O Coronel, que se lembrou

~ Assov;e que vfre; M .R James .l