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EDITORIAL.......................................................................05
INTRODUÇÃO..................................................................07
REVIEW – A Maldição do Deus
Carmesim............................................................................11
CONTO – A Maldição do Deus
Carmesim............................................................................14
REVIEW – Aqueles que Caminham até o
Valhalla..............................................................................55
CONTO - Aqueles que Caminham até o
Valhalla..............................................................................60
POEMA – “Nunca Além da
Besta”...............................................................................141
POEMA – “Uma Canção das Terras
Despidas”.........................................................................142
APOIADORES................................................................148

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Por Marco Antonio Collares

Os fãs e leitores brasileiros de fantasia, Espada &


Feitiçaria e de Robert Howard vivem perguntando nas redes
sociais, em diferentes grupos ou páginas, sobre quais seriam
os contos do autor texano que foram traduzidos para o
português, além daqueles mais conhecidos que são os ciclos
de Conan, Kull, Solomon Kane ou Bran Mak Morn. Uma
pergunta constante, devemos dizer, e que sempre nos inquieta
aqui no Fórum, Conan o Bárbaro. Ora, temos um blog e uma
sessão específica de downloads com alguns contos originais
traduzidos por nossa equipe, mas realmente o público pede
mais e mais, algo mais palpável, talvez, quem sabe uma nova
publicação de contos, com o devido tratamento sobre as
influências do escritor texano, bem como sobre os aspectos
nodais inscritos em suas narrativas. Pois bem, o leitor terá
diante de si, a partir de agora, uma revista quinzenal, na qual
serão apresentadas duas resenhas para dois contos traduzidos,
fechando com dois poemas escritos por Howard, de
preferência sobre temas próximos aos contos da presente
edição. Para isso, nos utilizaremos de versões originais em
inglês ou traduções em espanhol, com o labor de Marcelo
Alves, um dos membros do Fórum, mais Fernando Neeser de
Aragão, do site “Crônicas da Ciméria”, e com os auxílios do
estudioso acadêmico em Howard, também escriba do Fórum,
Marco Antonio Collares e do incrível escritor e editor de

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fantasia, Jean Gabriel Álamo. Isso sem falar nas ilustrações originais que
pretendemos trazer nas próximas edições, com a participação de artistas
nacionais. Mas que critério será escolhido para os contos a serem traduzidos
e publicados em cada edição dessa revista quinzenal? Em teoria, nenhum.
Não, melhor dizendo, de preferência, os contos daqueles ciclos howardianos
não tão conhecidos ou que, talvez, possam ser (re) pensados a partir de um
olhar mais aprofundado, expressando a grandiosidade das linhas escritas. Na
primeira edição, a escolha recaiu sobre dois personagens interessantíssimos:
James Allison, dos ciclos de “Memórias Raciais” e Kirby O’Donnel, dos
ciclos de aventura e ficção histórica de Howard, o primeiro conto
denominado de “A Maldição do Deus Carmesim”, o segundo, intitulado de
“Caminhantes de Valhalla”. O primeiro, traduzido por Marcelo Alves e o
segundo, por Neeser. Provavelmente o leitor e fã do cimério Conan não
conhece tais contos, conhece pouco ou sequer sabe que Howard era um
escritor prolífico que muito ultrapassou seu mais famoso personagem, sendo
um gênio da escrita pulp de sua época histórica, os anos 1920/1930. Com
essa revista, esperamos então ajudar a divulgar ainda mais esse grande
escritor da contemporaneidade, desvelando outros tantos personagens e
narrativas vibrantes que certamente irão conquistar ainda mais o público
brasileiro. Nossa intenção, podemos afirmar, é apenas essa. Nos damos por
satisfeitos caso o mestre de Cross Plains seja finalmente reconhecido por
seu gênio criativo e visto para além de suas mais famosas criaturas.

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Por Marcelo Souza e Marco Antonio Collares

Depois de uma postagem na página do facebbok da


Confraria do Forum Conan o Bárbaro no dia 21 de agosto de
2020, de um trecho do conto “A Maldição do deus
Carmesim”, de Robert E. Howard, eis que a ideia se tornou
concreta agora com essa nova revista digital do FORUM
CONAN O BÁRBARO destinada à publicação dos melhores
contos de toda a obra de Robert E. Howard.

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O projeto desta revista digital destina-se a todos os fãs da obra de
Robert E. Howard e tem o intuito de trazer a diversidade de contos que o
autor escreveu ao longo de sua breve carreira como escritor. Nessas páginas,
o fã e sedento leitor terá a opotunidade de encontrar histórias (contos,
novelas, poemas, etc.) que são inéditas ou tem a sua circulação restritas aos
circulos de estudiosos da obra de Howard mas que ainda não foram
disponibilizados ao público em geral.

Ao longos dessas edições, que começam aqui com este primeiro


número, pretendemos desbravar essa “seara” inédita e trazer o melhor da
literatura howardiana tanto ao público em geral, quanto aos apoiadores do
Forum Conan o Bárbaro e, quem sabe, um dia essas edições serão impressas.

Bem, nessa primeira edição da revista, traremos "A Maldição do Deus


Carmesim", primeiro conto escrito do personagem Kirby O'Donnell. Mas
quem seria esse personagem, afinal? Ora, trata-se de um aventureiro caça
tesouros no Oriente Próximo a lá Indiana Jones, um "irlandês negro" com
cabelos negros e olhos azuis, dentro do clichê howardiano, que adorava
mimetizar aspectos de si mesmo em seus personagens.

Se El Borak era o caça tesouro pistoleiro rápido com fundamentos


políticos de criar seu império asiático, O'Donnell não, pois era apenas um
espadachim disfarçado que adorava a caça aos tesouros e o senso de
aventuras e de perigo.

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O segundo conto, “Aqueles que Caminham até o Valhalla” – muitas
vezes traduzido como “Caminhantes do Valhalla” (Marchers of Valhalla)
– traz a aparição de outro personagem howardiano para o leitor “desgustar”
na leitura desta revista. Trata-se do personagem chamado James Allison.
Um personagem que, diferente dos bárbaros howardianos, é um homem do
início do século XX e que vive uma vida tediosa no Texas. Aleijado e
amargurado, James Allison carrega uma doença terminal que o consome.
Vive uma vida solitária que só é esquecida quando ele se lembra de suas
vidas passadas antes dessa Era Contemporânea. Aqui temos um tipo de
narrativa que os especialistas na obra de Howard chamaram de “memória
racial”, em que um personagem, viajando no tempo em Eras passadas,
recorda que nasceu, cresceu, guerreou, amou e envelheceu em uma
determinada etnia tribal bárbara de povos proto-europeus, chamados, dentro
do universo mitológico de Howard, de aesires e vanires.

Marchers of Valhalla é o terceiro conto, dito canônico, que o escritor


Robert E. Howard escreveu sobre seu personagem James Allison.
Entretanto, esse conto somente apareceu e foi publicado no ano de 1972 por
Donald Grant, em uma época em que muitos acreditavam que o melhor da
narrativa de Howard estava concentrado unicamente em seu personagem
mais famoso, Conan. A narrativa desse conto veio comprovar o contrário.
Possuindo uma importante carga lírica, esse conto é marcado por batalhas
campais brutais no melhor estilo de Espada & Feitiçaria. Se bem que o teor
FEITIÇARIA não aparece explícito nesta narrativa; ele é mais sutil e está
vinculado mais a um desenvolvimento e intervenções de poderes
sobrenaturais à vontade humana, marcado por deuses e deusas ancestrais

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envolvidos na trama. Mas, já resenhamos muito aqui e deixaremos para o
leitor o melhor, que é a leitura, ou como alguns dizem, “o prazer da leitura”
de um autor como Robert E. Howard. BOA LEITURA!

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A M A LD I ÇÃ O DO DE U S

C A R M E SI M

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A H I ST Ó R I A P O R T R Á S DO C O N T O
Por Marcelo Souza

"A Maldição do Deus Carmesim" (The Curse of the Crimson God),


originalmente intitulada «The Trail of the Bloodstained God» ("A
Trilha do Deus Manchado de Sangue"), nunca foi publicada durante a
vida do autor. Seu manuscrito lhe foi devolvido pela revista Thrilling
Adventures em 8 de outubro de 1935. Howard revisou o texto e o enviou
a seu agente, o colega escritor Otis Adelbert Kline, em 31 de janeiro de
1936. Kline enviou a história para várias publicações, mas todas a
rejeitaram: Dime Adventure (enviada em 4 de fevereiro de 1936 e
retornada em 2 de março), Short Stories (enviada em 3 de março e
retornada em 18 de março), Adventure (enviada em 19 Março, retornando
em 8 de abril) e Argosy (enviada em 9 de abril, retornando em 22 de abril).

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Ilustração da capa do livro de Robert E. Howard, “Kirby O’Donnell, Caçador
de Tesouros”, feita pea PROVIDENCE Press e publicada em fevereiro de 2018
na Itália.

Anos se passariam para que, após a morte do autor, esse conto fosse
finalmente publicado, mas com armadilhas. No início dos anos 50, quando
L. Sprague de Camp levou a cabo o espólio dos papéis e manuscritos de
Robert E. Howard, ele encontrou o manuscrito e o reescreveu como uma
história de Conan, limitando-se a mudar apenas alguns nomes da trama (o
personagem Hassan passou a ser Sassan e assim por diante), rifles foram
substituídos por arcos e flechas e montanhas afegãs por algumas
montanhas remotas da Era Hiboriana (assinando a nova versão da história,
como se ele tivesse feito algo de bom com ela). O resultado, «The Blood-
Stained God» ("O Deus manchado de sangue") foi publicado no

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volume «Tales of Conan» ("Contos de Conan") em 1955. A versão
original teria que esperar quase vinte anos antes de aparecer como ela
realmente foi escrita. Por isso que na maioria das edições publicadas em
outros países, esse conto aparece como a terceira história da saga de Kirby
O’Donnell, o que seria incongruente quando se lê os três romances: no
final de "A Maldição do Deus Carmesim", O'Donnell fará amizade com
Yar Mohammed, que se torna seu irmão de sangue. O guerreiro Waziri
reaparecerá em "As Espadas de Shahrazar", reconhecendo O'Donnell com
alegria ao encontrá-lo novamente.

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A M A LD I ÇÃ O D O

DE U S C A R M E SI m
Tradução e Revisão: Marcelo Souza

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CAPÍTULO 1
No Beco de Satã

E
stava escuro, como a boca de um lobo, aquele fedorento beco
afegão pelo qual Kirby O’Donnell, com seu disfarce de
espadachim curdo, avançava em uma busca tão impenetrável como
a escuridão que lhe rodeava. Foi um agudo uivo de dor que fez com que
mudasse por completo o rumo de sua busca. Os gritos de dor e agonia não
eram um som estranho nos labirínticos becos de Medina el Harami, a Cidade
dos Ladrões, e nenhum homem tímido ou sensato poderia pensar em
interferir em assuntos que não eram de seu interesse. Mas O’Donnell não
era nenhum dos dois, e havia algo arraigado em sua alma irlandesa que não
lhe permitia ouvir um grito de dor sem tentar prestar ajuda.

Obedecendo aos seus instintos, ele se virou para um raio de luz que,
concidentemente ao lado dele, atravessava a escuridão. E no instante
seguinte, estava espiando por uma fenda em uma janela fechada numa

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parede de pedra. O que viram seus olhos despertou uma maré vermelha de
fúria em sua mente, apesar do fato de que sua alma já estivesse endurecida
depois de tantos anos de aventuras nas terras mais cruéis do mundo.

Mas O'Donnell jamais poderia permanecer indiferente ao ver como


torturavam uma pessoa.

Ele olhava para uma ampla sala, com paredes cobertas por cortinas de
veludo e o chão repleto de tapetes e divãs caros. Ao redor de um desses
divãs estava agrupado quase uma dúzia de homens... Sete bravos yusufzai
de pele escura, e mais dois, que eram difíceis de identificar. No divã estava
estendido outro homem, um nativo da tribo Waziri, nu até a cintura. Era
um homem corpulento, mas os rufiões, tão grandes e musculosos como
ele, seguravam seus tornozelos e pulsos. Quatro deles forçaram-no a
permanecer deitado no divã, incapaz de se mover, embora seus músculos
se debatessem, sofrendo violentos espasmos nos membros e na altura dos
ombros. Seus olhos resplandeciam com um brilho avermelhado e seu peito
largo brilhava de suor. Havia uma boa razão para isso. O'Donnell viu um
homem grande, com um turbante de seda vermelha, usando uma pinça de
prata, puxando um pedaço de carvão incandescente dentro de um braseiro,
para trazê-lo ao peito nu do cativo, que mostrava queimaduras de brasas
anteriores.

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Outro homem, ainda mais alto que o de turbante vermelho, resmungou
uma pergunta que O'Donnell não entendeu. O waziri balançou a cabeça
violentamente e cuspiu no interrogador. No instante seguinte o carvão
incandescente caiu em seu peito peludo, arrancando um brado desumano
do homem torturado. E, nesse mesmo momento, O'Donnell se jogou, com
todo o seu peso, contra a janela.

O americano, de ascendência irlandesa, não era um homem alto, mas


seus ossos eram fortes e sua constituição feita de aço. Os cacos de vidro
se estilhaçaram com um estrondo e ele caiu do outro lado da janela em pé,

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com a cimitarra na mão e o kindhjal na outra. Os torturadores se viraram
e olharam perplexos para ele.

E o que viram foi uma figura misteriosa e mascarada, usando o traje


típico de um curdo, com a adição de um kafiyeh ondulante em volta do
rosto. Acima de sua máscara, seus olhos brilhavam como brasas,
paralisando-os. Mas a cena permaneceu congelada e imóvel por apenas
um instante, pois logo se tornou uma maré de um combate furioso.

O homem de turbante vermelho deu uma ordem rápida, e um gigante


peludo avançou para enfrentar o intruso recém-chegado. O yusufzai
empunhava um punhal Khiber de quase um metro de comprimento em
guarda baixa e, dando um passo para frente, levantou a lâmina. Mas a
cimitarra de O’Donnell projetou um golpe vindo de cima para baixo,
atingindo o pulso que empunhava o terrível aço. A mão, ainda segurando
o punhal, voou para longe do pulso com um banho de sangue, e a longa e
estreita lâmina que O'Donnell segurava na mão esquerda deslizou pela
garganta do assassino, causando-lhe um engasgo de agonia.

Enquanto o cadáver ainda se mexia com os últimos espasmos, o


americano saltou sobre ele, na direção do homem de turbante vermelho e
de seu guarda-costas alto. Ele não temia que pudessem atacá-lo com armas
de fogo. Mesmo no beco de Satã, o tiroteio à noite certamente seria
investigado, e nenhum dos habitantes do beco desejava sofrer uma
investigação policial.

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Ele estava certo quanto a isso, pois o homem de turbante vermelho
empunhou uma faca e o homem alto, um sabre.

—Corte o pescoço dele, Jallad! — grasnou o homem de turbante


vermelho, afastando-se do ataque impetuoso do americano. Achmet, me
ajude!

O homem chamado Jallad, que significa Executor, interrompeu a


estocada de O'Donnell e a devolveu. O'Donnell evitou o contra-ataque
com uma agilidade que poderia ter envergonhado uma pantera faminta e,
com o mesmo movimento, aproximou-se do homem de turbante vermelho
novamente, que estendeu a adaga para se defender. O homem de turbante
vermelho uivou e deu um salto para trás, evitando o kindhjal de O’Donnell
por uma margem tão estreita que a lâmina cortou sua roupa de seda,
arranhando a pele abaixo. Ele tropeçou em um divã e perdeu o equilíbrio,
caindo atrás do móvel. Mas antes que O'Donnell pudesse aproveitar sua
vantagem, Jallad lançou-se sobre ele, desferindo uma chuva de estocadas
de seu sabre. Havia tanta força quanto habilidade no braço do homem alto,
e por um instante O'Donnell teve que ficar na defensiva.

Mas, enquanto O’Donnell defendia os relampejantes golpes de espada,


o americano viu um yusufzai - aquele que o homem de turbante vermelho
havia chamado Achmet - avançando em sua direção, pegando um
mosquete antigo pelo cano. Um único golpe de seu pesado cabo de latão
poderia quebrar o crânio de um homem como um ovo. O homem de
turbante vermelho conseguiu se levantar e, em seguida, o americano viu

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os outros três se aproximando pelos lados.

Ele não esperou que o cercassem. Um golpe cintilante de sua cimitarra,


parado no último momento, enviou Jallad cambaleando para trás e
O'Donnell girou como um gato assustado e saltou em direção a Achmet.
O yusufzai uivou, erguendo o mosquete, mas a velocidade ofuscante do
ataque do americano o pegou desprevenido. Antes que ele pudesse dar um
único golpe, já estava caído no chão, assistindo seu sangue e seu interior
vazarem através de um grande golpe em seu abdômen.

Lançado um grito selvagem, Jallad investiu novamente contra


O'Donnell, mas o americano não ficou imóvel para aguardar o ataque.

Não havia mais ninguém entre ele e o waziri no divã. Ele saltou direto
em direção aos quatro homens, que ainda estavam segurando pulsos e pés
do prisioneiro. Soltaram o homem, gritando alarmados, e pegando seus
tulwars. Um deles lançou uma punhalada cruel no waziri, que rolou do
divã para o chão, evitando o ataque. Um segundo depois, O'Donnell ficou
entre o prisioneiro e seus captores. Estes, por sua vez, começaram a
assediar o americano, que recuou, puxando o waziri.

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—Saia daqui! Vá em frente! Rápido!

—Cães! — gritou o homem de turbante vermelho enquanto avançava,


acompanhado por Jallad—. Não o deixe escapar!

—Venha e prove a morte você mesmo, cão! — O'Donnel riu de forma


selvagem em meio ao clamor dos aços. Mas, mesmo envolvido na paixão
do combate, ele lembrou que devia fingir um sotaque curdo.

O waziri, fraco e trêmulo pela tortura que havia sofrido, descobriu uma
trava, abrindo a porta que levava a um pequeno pátio fechado.

—Fuja! —gritou O'Donnell—. Suba o muro enquanto eu os detenho!

O’Donnell ficou entre a porta e o pátio, com suas duas lâminas de aço
afiado e mortal. O Waziri tropeçou no pátio, enquanto os homens de dentro
da casa se lançavam uivando contra o americano. Mas na abertura estreita
da porta, seu próprio número jogava contra eles. O americano riu e xingou,
enquanto defendia estocadas e se esquivava dos golpes. O homem de
turbante vermelho, atrás de seus homens suados, estava empenhado em
incentivá-los, aproveitando para dedicar ao intruso curdo todos os insultos
que conhecia. Jallad estava tentando fazer um bom corte na direção de
O'Donnell, mas seus próprios homens estavam bloqueando seu caminho.
Então, com a velocidade de uma cobra, a cimitarra de O'Donnell deslizou
entre a lâmina de um tulwar, e um yusufzai, depois de sentir o aço frio em
suas entranhas, caiu no chão moribundo. Jallad, que estava investindo

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fundo em uma estocada, tropeçou no homem morto e caiu no chão.
Instantaneamente, a porta foi bloqueada por diferentes atacantes, que
lançavam maldições e xingavam enquanto tentavam se organizar. Mas
antes que pudessem fazê-lo, O'Donnell virou-se e correu pelo pátio em
direção ao muro pelo qual o Waziri havia desaparecido.

O'Donnell deu um salto e agarrou o topo do muro, vislumbrando os


becos escuros e labirínticos do outro lado. Nesse instante, algo colidiu com
sua cabeça. Era um banquinho, jogado por Jallah, enquanto a silhueta de
O'Donnell estava claramente delineada contra as estrelas. Mas O'Donnell
não sabia o que o havia atingido, porque com o impacto, perdeu a
consciência. Sem forças e em silencioso, seu corpo caiu no outro lado do
muro, nas ruas sombrias.

CAPÍTULO 2
26
Os caminhos da suspeita

F
Oi a fraca luminescência de uma lanterna sobre seu rosto que tirou
O'Donnell da inconsciência. Ele sentou-se, piscando e
sobressaltado, tateando em busca de sua espada. Então a luz se
apagou e, na escuridão reinante, uma voz soou:

—Fique tranquilo, Ali el Ghazi. Sou um amigo.

—Quem diabos é você? —Quis saber O'Donnell. Ele encontrou sua


cimitarra, caída no chão perto dele e, com a agilidade de uma pantera,
agachou-se com um salto repentino. Estava na rua, aos pés do muro por
onde caíra, e o outro homem não passava de uma forma difusa pairando
sobre ele sob a sombria luz das estrelas.

—Seu amigo — repetiu o outro. Ele falou com sotaque persa—.


Aquele que sabe o nome pelo qual você se faz passar. Você pode me
chamar de Hassan. É um nome tão bom quanto qualquer outro.

O'Donnell levantou-se, cimitarra na mão, e o persa estendeu algo para


ele. O'Donnell captou o brilho do aço sob a luz estrelada, mas antes que
pudesse atacar, como pretendia, viu que era seu próprio kindhjal, que
Hassan havia apanhado do chão e que agora lhe entregava, oferecendo-o
pela empunhadura do cabo.
—Você é tão desconfiado quanto um lobo faminto, Ali el Ghazi —

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Hassan riu—. Mas é melhor você guardar o aço para seus inimigos.

—Onde estão? —O'Donnell quis saber enquanto recuperava seu kindhjal.

—Eles foram para as montanhas. Em busca do Deus manchado de sangue.

O'Donnell sofreu um violento sobressalto. Ele agarrou o kindhjal da


mão do persa com um aperto de ferro e observou os olhos escuros do
homem, misteriosos e zombadores na penumbra.

—Maldito seja! O que você sabe sobre o Deus manchado de sangue?


—A ponta afiada do seu kindhjal tocou levemente a pele do persa embaixo
das costelas.

—Sei o seguinte —disse Hassan, imperturbável—. Eu sei que você


veio a Medina el Harami seguindo alguns ladrões que roubaram seu mapa
que leva a um tesouro maior que o da horda de Akbar. Eu também vim
aqui procurando por algo. Estava escondido aqui perto, olhando através de
um buraco na parede, quando você invadiu a sala onde o waziri estava
sendo torturado. Como você sabia que foram eles que roubaram seu mapa?

—Não sabia! —O'Donnell murmurou—. Ouvi um homem gritar e


invadi para que parassem de torturá-lo. Se soubesse que aqueles eram os
homens que eu estava caçando... Escute, quanto você sabe sobre o
assunto?

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—É isso que eu sei — disse Hassan—. Nas montanhas, não muito
longe desta cidade, mas escondido em um local quase inacessível, há um
templo antigo em que as pessoas não ousam entrar. A região é proibida
aos Ferengi, mas um certo inglês chamado Pembroke encontrou este
templo por acidente e, ao entrar nele, descobriu um ídolo coberto de jóias
vermelhas, que chamou de Deus manchado de sangue. Embora não
pudesse levá-lo, ele desenhou um mapa, com a intenção de voltar para lá.
Ele conseguiu sair das montanhas sem sofrer um único arranhão, mas foi
esfaqueado em Cabul por um fanático e morreu lá. Mas, antes de morrer,
deu o mapa a um curdo chamado Ali el Ghazi.

—E o que mais? — insistiu O'Donnell com tom sombrio. A casa atrás


dele estava escura e silenciosa. Não se ouvia nenhum outro som na
escuridão da rua, exceto o sussurro do vento e o murmúrio baixo de suas
vozes.

—O mapa foi roubado —disse Hassan—. Por quem, isso é algo que
você já sabe.

—Eu não sabia na época —rosnou O'Donnell—. Mais tarde, soube que
os ladrões eram um inglês chamado Hawklin e um príncipe afegão
deserdado chamado Jehungir Khan. Um servo rebelde estava espionando
Pembroke quando ele estava agonizando, e contou-lhes do mapa. Eu não
conhecia nenhum deles de vista, mas consegui localizá-lo nesta cidade.
Hoje à noite soube que eles estavam escondidos em algum canto do beco
de Satã. Procurava as cegas por alguma pista do possível esconderijo dele

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quando entrei nessa luta.

—Você lutou com eles sem saber que eram os homens que você estava
procurando! — disse Hassan—. O waziri é Yar Mohammed, um espião de
Yakub Khan, o chefe Jowaki proscrito. Eles o reconheceram e o
convenceram a acompanhá-los até essa casa, e estavam queimando-o para
forçá-lo a revelar os caminhos secretos para atravessar as montanhas,
conhecidos apenas pelos espiões de Yakub. Então você apareceu e já sabe
o resto.

—Tudo, exceto o que aconteceu quando eu escalei o muro —disse


O'Donnell.

—Alguém jogou um banquinho em você —respondeu Hassan—.


Quando você caiu do outro lado do muro, eles pararam de prestar atenção
em você, porque pensaram que você tinha morrido ou porque não o
reconheceram por causa da sua máscara. Perseguiram o waziri, mas não
sei se ele conseguiu escapar, ou se o caçaram e o mataram. O que sei é que
eles voltaram depois de um tempo, carregaram seus cavalos às pressas e
partiram para o oeste, deixando os cadáveres onde haviam caído. Cheguei
aqui e descobri seu rosto para ver quem você era e eu o reconheci.

—Então o homem de turbante vermelho era Jehungir Khan —


murmurou O’Donnell—. Mas, onde estava Hawklin?

—Estava disfarçado de afegão ... ele era o homem que chamavam de

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Jallad, o Executor, pois matou muitos homens.

—Nunca me ocorreu que Jallad fosse um ferengi" —rosnou O'Donnell.

—Nem todos os homens são o que parecem ser —disse Hassan


casualmente—. Por exemplo, eu sei que você não é um curdo, longe disso,
mas um americano chamado Kirby O'Donnell.

Por alguns segundos, houve um silêncio tenso, no qual a vida e a morte


dependiam de algo tão fino quanto um fio de cabelo.

—E que? —A voz de O'Donnell era tão suave e mortal quanto o silvo


de uma cobra.

—Nada! Como você, eu também quero esse deus vermelho. É por esse
motivo que segui Hawklin aqui. Mas sozinho não consigo enfrentar com
toda a gangue dele. Nem você. Mas podemos unir forças. Vamos seguir
esses ladrões e tirar o ídolo!

—Muito bem —O'Donnell tomou a decisão rapidamente—. Mas te


matarei se você tentar algum truque, Hassan!

—Confie em mim! —respondeu Hassan—. Venha. Tenho cavalos


selados... muito melhor do que aquele com o qual você entrou nesta cidade
de ladrões.

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O persa o conduziu por becos estreitos e intrincados, repletos de
varandas ornamentadas, e por labirintícos becos fedorentos, finalmente
parando em frente à porta iluminada de um pátio fechado. Depois de bater
com os nós dos dedos, um rosto barbudo apareceu em uma pequena janela
e, depois de murmurar certas palavras, a porta se abriu. Hassan entrou
confiante, mas O'Donnell o fez desconfiado, quase esperando uma
armadilha de algum tipo, pois ele tinha muitos inimigos no Afeganistão, e
Hassan era um estranho. Mas as montarias estavam lá, e uma ordem seca
do guardião do estábulo fez com que servos sonolentos os selassem os
cavalos, enchendo seus alforjes com pacotes de comida. Hassan comprou
um par de rifles de alta potência e cinturões separados cheios de cartuchos.

Pouco tempo depois eles estavam cavalgando juntos, saindo pela porta
oeste da cidade, ignorando os gritos do guarda sonolento. Os homens vão
e vêm nas horas mais inoportunas de Medina el Harami (que, nos mapas,
aparece com outro nome, embora as pessoas jurem que seu primitivo nome
muçulmano se encaixa muito melhor).

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Hassan, o persa, era um homem baixo, mas musculoso, com um rosto
largo e olhos escuros e alertas. Empunhava o rifle com habilidade e levava

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pendurada, do lado dele, uma cimitarra. O'Donnell sabia que, se
necessário, lutaria com astúcia e coragem. E ele também sabia até que
ponto podia confiar em Hassan. O aventureiro persa jogaria limpo desde
que sua aliança fosse lucrativa. Mas se chegasse o momento em que não
visse mais necessário a ajuda de O'Donnell, ele não hesitaria em assassinar
seu parceiro se tivesse a chance, a fim de ficar com todo o tesouro. Homens
do estilo de Hassan são tão implacáveis como uma cobra.

Hawklin também era como uma cobra, mas O'Donnell não estava
preocupado com sua inferioridade numérica... pois ele deveria estar lidando
com cinco homens bem armados e desesperados. Com sua frieza
característica, ele decidiu que se preocuparia com isso quando chegasse a
hora.

O amanhecer os pegou andando por desfiladeiros rochosos, alinhados


com ladeiras íngremes de ambos os lados, e logo depois Hassan diminuiu
a velocidade para observar a trilha. Eles estavam seguindo um caminho de
areia macia, mas agora as pegadas dos cascos viravam bruscamente para
um lado, desaparecendo no chão rochoso de um amplo platô.

—Foi aqui que eles deixaram o caminho —disse Hassan—. Até aqui é
a trilha deixada por Hawklin. Não seremos capazes de segui-lo por essas
rochas. Você estudou o mapa quando estava em sua posse... Para onde
avança a rota a partir daqui?

O'Donnell sacudiu a cabeça, exasperado com a inesperada frustração.

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—Esse mapa era um quebra-cabeça e eu não o tinha comigo o tempo
suficiente para descobrir. A rota principal, localizada em um caminho
antigo que leva ao templo, deve estar em algum lugar por aqui. Mas é
indicado no mapa como "Castelo de Akbar. E nunca ouvi falar de um
castelo assim, ou de ruínas que são chamadas assim ... Nem aqui ou em
qualquer outro lugar.

—Olhe! —Exclamou Hassan, com os olhos brilhantes, quando ele se


ergueu acima dos estribos e apontou na direção de um grande penhasco
que se erguia no horizonte, alguns quilômetros a oeste. Aquele é o castelo
de Akbar! Hoje eles chamam de Rocha das Águias, mas antigamente se
referiam àquela montanha como Castelo de Akbar! Eu li sobre ele em um
manuscrito muito antigo e sombrio! De alguma forma, Pembroke deve ter
conhecido esse nome antigo, e o colocou no mapa para confundir quem
pudesse roubá-lo! Vamos! Jehungir Khan certamente deve saber tudo isso
também. Estamos há apenas uma hora deles e nossos cavalos são melhores
que os seus.

O'Donnell liderou o caminho, tentando forçar sua memória, para


lembrar os detalhes do mapa roubado. Contornando a base da rocha, a
sudoeste, ele desenhou uma linha imaginária do cume para três outros
picos que formavam um triângulo, muito ao sul. Então ele e Hassan
cavalgaram para o oeste, na diagonal. Onde o caminho deles se cruzava
com a linha imaginária, eles descobriram restos de um caminho antigo que
subia as montanhas, fazendo muitos desvios. O mapa não estava mentindo,

35
e a memória de O'Donnell não havia falhado. Os excrementos de cavalos
indicavam que um grupo de cavaleiros havia passado recentemente por
esse caminho quase turvo. Hassan disse que era o grupo Hawklin e
O'Donnell concordou.

—Eles vão direto para o Castelo de Akbar, assim como nós. Estamos
encurtando a distância que nos separa deles. Mas não estamos interessados
em chegar muito perto. Nos superam em número. É do nosso interesse
ficar fora da vista deles até conseguirem o ídolo. Então vamos emboscá-
los e tirá-lo deles.

Os olhos de Hassan brilharam de alegria; tal estratégia era muito


agradável à sua natureza oriental.

—Mas devemos ser cautelosos — disse ele—. Pois a partir deste ponto,
a região pertence a Yakub Khan, que rouba a todos que encontra. Se eles
soubessem os caminhos ocultos, poderiam evitá-lo. Agora, devem confiar
na sorte para não cair em suas mãos. E nós também teremos que estar
alertas! Yakub Khan não é meu amigo e odeia curdos!

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CAPÍTULO 3
Espadas nos penhascos

Ao meio-dia eles ainda estavam seguindo o caminho antigo que


serpenteava incansavelmente ... e, obviamente, era tudo o que restava de
uma estrada velha e esquecida.

—Se esse waziri conseguiu voltar para Yakub Khan —disse Hassan,
enquanto andavam em direção a um desfiladeiro estreito que se abria no
sopé das montanhas que os cercavam— os jowakis estarão obviamente
alertas contra estranhos. Embora Yar Mohammed não suspeitasse da
verdadeira identidade de Hawklin e não descobrisse o que ele estava
procurando, também. Yakub Khan não saberá. Acho que ele sabe onde
fica o templo, mas é supersticioso demais para aproximar-se. Fantasmas o
assustam. Ele não sabe nada sobre o ídolo. Pembroke deve ter sido o único
homem que entrou naquele templo sabe Allah quantos séculos atrás. Em
Peshawar, ouvi a história dos lábios de um criado dele, morrendo de
mordida de uma serpente. Hawklin, Jehungir Khan, você e eu somos os
únicos homens vivos que conhecem a existência desse deus...

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Eles ficaram assustados quando um Pathano magro, com rosto de
falcão, veio cavalgando em direção a eles da boca do desfiladeiro.

—Pare! —Ele chamou imperiosamente, galopando na direção deles


com a mão estendida. Em nome de qual autoridade você entra no território
de Yakub Khan?

—Cuidado —O'Donnell murmurou—. É um jowaki. Pode haver


dezenas de rifles apontados para nós a partir dessas rochas neste exato
momento.

—Vou dar-lhe um dinheiro —disse Hassan entre dentes—. Yakub


Khan reivindica o direito de coletar tributo de todos os que viajam por essa
região. Talvez seja isso que esse cara queira. Tocando seu cinturão, ele se
dirigiu ao homem da tribo.

—Somos apenas dois viajantes pobres, que ficarão encantados em


prestar o tributo tão justamente exigido por seu bravo chefe. Cavalgamos
sozinhos.

—Então quem é esse que vem atrás de vocês? — perguntou o jowaki


bruscamente, balançando a cabeça na direção em que tinham vindo.

Hassan, apesar de toda a cautela, virou a cabeça levemente, as mãos

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tateando as moedas. E, naquele instante, um feroz triunfo ardeu na face
escura do jowaki e, com um movimento tão rápido quanto o de uma cobra,
ele tirou uma adaga do cinto e golpeou o desprevenido persa.

Entretanto, por mais veloz que possa ter sido o jowaki, O'Donnell foi
ainda mais rápido, pois havia sentido a armadilha que estava preparando
para eles. Quando a adaga se aproximou da garganta de Hassan, a cimitarra
de O'Donnell brilhou à luz do sol, e os aços colidiram. A adaga caiu das
mãos do beduíno e, com um zumbido, foi parar na coronha do rifle ao lado
da sela. Mas antes que ele pudesse recuperar sua arma, O'Donnell atacou
novamente, rachando o turbante e o crânio do homem. A montaria do
jowaki empinou, jogando o cadáver para a frente, e O'Donnell retirou a
espada.

—Cavalgue em direção ao desfiladeiro! —Ele uivou—. É uma


emboscada!

A breve escaramuça não durou mais que alguns segundos. Quando o


corpo do jowaki caiu no chão, tiros de espingarda ecoaram pelas rochas
no lado da montanha. O cavalo de Hassan saltou em uma convulsão
repentina, depois galopou como um raio em direção à boca do desfiladeiro,
perdendo sangue a cada passo. O'Donnell sentiu uma bala de chumbo
afundar em sua panturrilha enquanto apertava suas esporas e fugia atrás
do persa, que era incapaz de controlar sua montaria enlouquecida de dor.
Quando se aproximaram da entrada do desfiladeiro, três cavaleiros,
consagrados espadachins do clã Jowaki, saíram, brandindo seus tulwar de

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lâmina larga. A montaria enlouquecida de Hassan o levou direto em suas
garras, e o persa lutou em vão para freá-la. De repente, ele abandonou suas
tentativas e, segurando o rifle, começou a disparar enquanto cavalgava.
Um dos cavalos tropeçou e caiu, derrubando o cavaleiro no chão. Outro
deles levantou os braços para o céu e caiu fulminado. O terceiro jogou em
Hassan umas estocadas selvagens quando seu animal enlouquecido passou
por ele, mas o persa se agachou, esquivando-se da lâmina e escapou para
o desfiladeiro.

Um momento depois, O'Donnell estava de frente para o espadachim,


que o atacou brandindo seu pesado tulwar. O americano levantou a
cimitarra e as lâminas encontraram-se em um estrondo metálico, enquanto
os cavalos galopavam lado a lado. A montaria do homem da tribo recuou
de novo com o impacto, e O'Donnell, levantando-se nos estribos e
golpeando com toda a força, quebrou a lâmina de tulwar, rompendo o
crânio daquele que o empunhava. No momento seguinte, o americano
estava galopando em direção ao desfiladeiro. Ele esperava que estivesse
cheio de guerreiros armados, mas não tinha escolha. Lá fora, balas
choveram ao seu redor, colidindo com pedras e ricocheteando em árvores
secas.

Mas, evidentemente, o homem que havia formulado a armadilha,


considerava que a pontaria dos homens no alto da montanha seria
suficiente, e havia colocado apenas quatro guerreiros no desfiladeiro, pois
quando O'Donnell entrou nele, só viu Hassan à frente. Alguns metros
adiante, o cavalo ferido tropeçou e caiu, e o persa saltou de maneira limpa

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quando sua montaria caiu.

—Monte atrás de mim! —O'Donnell estalou, ajudando-o a subir.

E Hassan, com o rifle na mão, pulou para a traseira da sela. Um toque


de esporas nos flancos do cavalo carregado o forçou a galopar pelo estreito
desfiladeiro. Os gritos selvagens atrás deles indicaram que os homens da
tribo estavam indo para as montarias do lado de fora, sem dúvida
escondidos atrás do primeiro penhasco. Então o caminho da garganta girou
bruscamente, e os sons de perseguição foram abafados. Mas eles sabiam
que os selvagens homens das montanhas logo entrariam no desfiladeiro,
procurando por ele, como lobos seguindo uma trilha.

—Aquele espião waziri deve ter conseguido voltar para Yakub Khan
—ofegou Hassan—. Eles não querem ouro, mas sangue. Você acha que
eles mataram Hawklin?

—Hawklin deve ter passado por esse desfiladeiro antes que os jowakis
chegassem para preparar a emboscada —respondeu O'Donnell. Ou eles o
estavam seguindo quando nos viram chegando, e montaram essa
armadilha para nós. Parece-me que Hawklin está em algum lugar à nossa
frente.

—Não importa — disse Hassan—. Este cavalo não pode nos levar
muito mais longe. Ele se cansa rapidamente. Suas montarias devem estar

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mais descansadas. É melhor encontrarmos um lugar onde possamos dar a
volta para lutar. Se conseguirmos segurá-los até o anoitecer, talvez
possamos fugir mais tarde.

Eles haviam avançado um pouco mais de um quilômetro e já estavam


começando a ouvir fracos sons de perseguição, ainda muito longe deles,
quando, abruptamente, chegaram a um espaço aberto, em forma de tigela,
cercado pelo sopé das montanhas. No meio de sua extensão, uma ladeira
subia gradualmente, estreitando-se como um gargalo, até chegar a um
passo na montanha, a saída daquele anfiteatro natural. Havia algo não
natural naquela clareira, algo que alertou O'Donnell e Hassan, que saltou
do cavalo, lançando um alarido. Um muro baixo de pedra fechava a
entrada estreita da passagem. Um tiro de espingarda ecoou daquela parede,
quando a montaria de O'Donnell ergueu a cabeça, assustada com o brilho
do sol no cano da arma. A bala, destinada ao cavaleiro, colidiu na cabeça
do animal.

A fera entrou em colapso e O'Donnell saltou dela, rolando pelo chão


até um grupo de rochas, atrás das quais Hassan já havia se escondido.
Numerosos lampejos de fogo iluminaram a parede e balas assobiaram ao
redor deles, colidindo com o toco de rochas que serviam de refúgio. Eles
se entreolharam com um sorriso sombrio e irônico.

—Bem, já encontramos o Hawklin! — disse Hassan.

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—E em alguns minutos, Yakub Khan aparecerá atrás de nós, e
estaremos entre a espada e a parede! —O'Donnell riu baixinho, mas a
situação era desesperadora. Com os inimigos bloqueando o caminho das
montanhas, e os outros inimigos avançando pelo desfiladeiro atrás deles,
eles estavam completamente presos.

Os tocos de rocha sob os quais eles se agachavam os protegiam do fogo


vindo da parede, mas não ofereceriam proteção contra os jowakis quando
emergissem do desfiladeiro. Se eles se movessem de lá, seriam expostos
aos homens na frente deles. Se eles não se mexessem, seriam baleados
pelas costas pelos jowakis.

Uma voz ecoou, desafiando-os:

—Saia daí, para levar um tiro, seu canalha! —Hawklin não fez nenhuma
tentativa de esconder que era britânico—. Eu te conheço, Hassan! Quem é
esse curdo que está com você? Pensei que o tivesse quebrado na noite
passada!

—Sim, um curdo! —O'Donnell respondeu—. Um chamado Ali, el


Ghazi!

Após um momento de assombrado silêncio, Hawklin gritou:

—Eu deveria ter adivinhado, cachorro ianque!"Ah, sim, eu sei muito

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bem quem você é! Bem, isso não importa agora! Conseguimos encurralá-
lo e você não pode se mover!

—Você está na mesma situação, Hawklin! —O'Donnell exclamou—.


Não ouviu o tiroteio na entrada do desfiladeiro?

—Claro! Quem está te perseguindo?

—Yakub Khan e cem jowakis! —O'Donnell exagerou—. Quando ele


acabar conosco, você acha que ele deixará você ir tão calmamente? Depois
de torturar um de seus homens para tirar seus segredos?

—É melhor nos deixar juntar a você! —Hassan acrescentou,


reconhecendo, como O'Donnell havia feito antes, que essa era sua única
chance—. Uma grande luta está chegando, e você precisará de toda a ajuda
que puder, se quiser sair vivo dela!

Hawklin fez um sinal por cima do muro com sua cabeça com um
turbante. Evidentemente, confiava no senso de honra dos dois homens que
odiava e não tinha medo de um tiro de traição.

—Isso é certo? —Ele exclamou.

—Você não consegue ouvir os cavalos? — O'Donnell espinhou.


Não havia necessidade de perguntar. A garganta reverberou com um
ruído de cascos de cavalos e uivos selvagens. Hawklin empalideceu. Ele

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sabia que tipo de pena podia esperar de Yakub Khan. E conhecia a perícia
em combate dos dois aventureiros... e sabia até que ponto a ajuda deles
poderia contar em uma luta até a morte.

—Suba até aqui, rápido! —Ele gritou—. Se ainda estivermos vivos


quando a luta terminar, decidiremos quem ficará com o ídolo!

Realmente não era hora de pensar no tesouro, nem mesmo no Deus


Carmesim! Suas próprias vidas estavam em risco. O'Donnell e Hassan se
levantaram, com rifles na mão e correram ladeira abaixo em direção à
parede de pedra. Assim que chegaram, os primeiros cavaleiros invadiram
a entrada do desfiladeiro e começaram a atirar. Agachado atrás do muro,
Hawklin e seus homens devolveram o fogo. Meia dúzia de selas foram
deixadas vazias, e os jowakis, desmoralizados pelo inesperado granizo de
balas, viraram-se e retornaram ao desfiladeiro.

O'Donnell estudou os homens que Destino havia feito seus aliados: os


ladrões que roubaram seu mapa do tesouro e que, quinze minutos antes,
teriam ficado encantados em matá-lo; Hawklin, sombrio e perspicaz, em
sua roupa afegã; Jehungir Khan, de aparência impecável, depois de ter
pilotado três léguas; e três hirsutos brutamontes yusufzai, por nomes tão
diversos quanto Akbar, Suliman e Yusuf, que arreganharam os dentes com
nojo. Aquela era uma aliança entre lobos que duraria apenas enquanto
durasse a ameaça comum.
Os homens atrás do muro começaram a atirar nas figuras vestidas de
branco que se espalhavam entre as rochas e arbustos perto da entrada do

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desfiladeiro. Os jowakis haviam desmontado e estavam rastejando pela
clareira, aproveitando cada pequeno espaço coberto. Os rifles deles
brilhavam por trás de todo toco de pedra e cada arbusto frondoso.

—Eles devem ter nos seguido —resmungou Hawklin, cutucando o


cano de seu rifle—. O'Donnell, você mentiu para nós! Aí for Não pode
haver cem homens!

—De todo modo, ainda é uma quantidade suficiente para cortar nossos
pescoços —disse O'Donnell, apertando o gatilho. Um homem que saltava
em direção a uma pedra foi fulminado e os guerreiros ocultos uivaram de
raiva—. De qualquer forma, nada impede que Yakub Khan envie alguém
para pedir reforços. Sua vila não fica a muitas horas a cavalo daqui.

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A conversa deles seguia o ritmo dos firmes estampidos de seus rifles.
Os Jowakis, bem escondidos, deixaram de sofrer vítimas com o tiroteio.

—Pelo menos temos uma chance atrás desse muro —rosnou


Hawklin—. Não há como saber quantos séculos atrás ele foi construído.
Parece-me que foi erigido pela mesma raça que ergueu o templo do Deus
Carmesim. Essas montanhas estão cheias de ruínas como essas. Maldição!
—Ele gritou para seus homens—: "Não atirem tanto! Estamos ficando sem
munição. Eles estão se aproximando lentamente para nos atacar corpo a
corpo. Reserve seus cartuchos para esse momento. Nós vamos derrubá-los
assim que eles saírem a céu aberto —e um instante depois, ele exclamou:

—Aí vêm eles!

Os jowakis avançavam a pé, correndo de uma pedra para outra, de um


arbusto para o outro, disparando à medida que avançavam. Os defensores
contiveram os disparos friamente, agachando-se e espiando através das
rachaduras na parede. O chumbo esmagou a rocha, causando poeira e
faíscas. Suliman lançou uma série de maldições quando uma bala bateu
em seu ombro. Lá atrás, na foz do desfiladeiro, O'Donnell distinguiu a
barba ruiva de Yakub Khan, mas o chefe se protegeu antes que pudesse
atirar nele. Tão evasivo quanto uma raposa, Yakub não estava disposto a
liderar o ataque pessoalmente.

Mas os homens do seu clã lutaram com ferocidade desenfreada. Talvez

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o silêncio dos defensores os tivesse levado a acreditar que eles estavam
sem munição. Ou talvez a sede de sangue que ardia nas veias os tivesse
deixado de lado a astúcia. De qualquer maneira, trinta e cinco ou quarenta
homens subitamente saíram ao ar livre e se lançaram para cima com um
uivo de uma alcateia de lobos. Eles dispararam seus rifles aleatoriamente,
e logo estavam na barreira com seus punhais de um metro de comprimento.

—Agora! —Hawklin gritou, e um voleio à queima-roupa atingiu a


frente da horda. Em um instante, a encosta se encheu de figuras
despedaçadas. Os homens que estavam abrigados atrás do muro eram
combatentes veteranos; o tipo de homem que nunca pode falhar a essa
distância. O tributo que se cobrou à estrondosa chuva de chumbo foi
impressionante, mas os sobreviventes continuaram avançando, com seus
olhos brilhando, espumando nas barbas e os largos punhais brilhando nos
punhos peludos.

—As balas não vão detê-los! —Hawklin uivou, disparando seu último
cartucho de seu rifle—. Defendam o muro ou seremos homens mortos!

Os defensores esvaziaram suas armas contra a maior parte da massa de


beduínos e depois subiram na muralha, empunhando seus aços e até seus
rifles usando como maça de combate. A estratégia de Hawklin havia
fracassado, e agora era hora de lutar corpo a corpo, golpeando e
esquivando-se, e o diabo levando os infelizes.

Os homens tropeçavam e caíam sob o impacto das últimas balas, mas,

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acima de seus corpos despedaçados, a horda continuou avançando contra
a parede até alcançá-la. Por toda a muralha ressoavam golpes que
quebravam ossos, os tinir de aço atingindo o aço e os gemidos dos
moribundos. O punhado de defensores ainda mantinha a vantagem de uma
posição privilegiada, e a base do muro estava cheia de cadáveres
empilhados antes que os jowakis conseguissem pisar no outro lado da
barricada. Um homem da tribo de olhos selvagens colocou a ponta do cano
de um velho mosquete contra o rosto de Akbar, e a descarga explodiu a
cabeça do yusufzai. Um uivante jowaki deslizou pela abertura estreita
deixada pelo cadáver, subindo a parede antes que O'Donnell pudesse evitá-
lo. O americano recuou com a intenção de carregar o rifle, mas descobriu
que não havia cartuchos no cinto. Só então ele viu o jowaki selvagem
subindo na parede. Ele correu em direção ao homem, segurando o rifle
como um taco, enquanto o beduíno largou o mosquete para brandir uma
faca comprida. Antes que ele pudesse tirá-la da bainha, O'Donnell golpeou
nele com o rifle, esmagando seu crânio.

O'Donnell saltou sobre o cadáver para enfrentar a horda que se


espalhava por toda a parede. Enquanto empunhava o rifle como uma maça,
não teve tempo de assistir à luta ao seu redor. Hawklin praguejava em
inglês, Hassan em persa e alguém gritava, em língua persa, uma agonia
mortal. Ele ouviu sons de batidas, gemidos e xingamentos, mas não podia
se dar ao luxo de olhar para a esquerda ou para a direita. Três homens
tribais, enlouquecidos pela sede de sangue, lutavam como gatos selvagens
para escalar o muro. O'Donnell os golpeou até que seu rifle foi reduzido a
uma pilha de fragmentos, e dois deles caíram de cabeça aberta; mas o

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terceiro, escalando a parede, agarrou o americano com as mãos de gorila
e o abraçou, tão perto que ele foi incapaz de usar seu bastão improvisado.
Meio sufocado por aqueles dedos peludos na garganta, O'Donnell puxou
seu kindhjal e cravou-o cegamente, várias vezes, até que o sangue escorreu
por sua mão e, com um rugido, o jowaki o soltou e precipitou-se pela beira
do muro.

Enquanto recuperava o fôlego, O'Donnell olhou em volta, notando que


a pressão parecia ter enfraquecido. A barricada não estava mais cheia de
rostos selvagens. Os jowakis tropeçavam ladeira abaixo... os poucos que
restaram para escapar. Suas perdas foram terríveis, e não havia um homem
sequer entre os que escaparam que não sangrasse de algum ferimento.

Mas a vitória tinha sido cara. Sulimán estava estendido na parede, com
a cabeça quebrada como um ovo. Akbar estava morto. Yusuf estava
morrendo, com uma facada no abdômen, e seus uivos eram terríveis.
Enquanto O'Donnell o observava, Hawklin implacavelmente terminou sua
agonia com uma bala na cabeça. Então o americano viu Jehungir Khan,
sentado de costas contra a parede, pressionando as mãos contra o corpo,
enquanto o sangue vazava por entre seus dedos. Os lábios do príncipe
estavam azulados, mas ele conseguiu lançar um sorriso sinistro.
—Nasci em um palácio —ele sussurrou — e vou morrer atrás de um
muro de pedra! Não importa ... é o Kismet. Há uma maldição flutuando
neste tesouro... Os homens sempre morrem quando seguem a trilha do
Deus manchado de sangue ... —e ele morreu enquanto falava.

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Hawklin, O'Donnell e Hassan se entreolharam em silêncio. Eles eram
os únicos sobreviventes... três figuras esbeltas, enegrecidas pela fumaça
da pólvora misturada com sangue e com suas roupas esfarrapadas. Os
jowakis, depois de escaparem, desapareceram no interior do penhasco,
deixando a clareira do desfiladeiro vazia, exceto pelos muitos mortos
espalhados por toda a encosta.

—Yakub escapou! —Hawklin resmungou—. Eu o vi deslizar pelo


desfiladeiro quando seus homens começaram a fugir. Agora ele cavalgará
para sua aldeia... E colocará toda a tribo em nossos calcanhares! Vamos!
Nós podemos encontrar o templo. Vamos encarar isso como uma corrida
... podemos correr o risco de tentar se apossar do ídolo e, de alguma forma,
escapar pelas montanhas, antes de sermos capturados. Estamos nessa
situação juntos. Poderíamos esquecer tudo o que aconteceu e unir forças
para o bem comum. Há tesouro suficiente para todos os três.

—Há muita verdade no que você diz — rosnou O'Donnell—. Mas é


melhor você me devolver o mapa para começar.

Hawklin ainda estava segurando uma pistola fumegante na mão, mas


antes que ele pudesse levantá-la, Hassan estava apontando o revólver para
ele.

—Reservei alguns cartuchos para este momento —disse Hassan, e


Hawklin verificou como as pontas azuladas das balas saíam do tambor do
revólver—. Me dê sua arma. Agora dê o mapa para O'Donnell.

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Hawklin encolheu os ombros e puxou o pergaminho amassado.

—Malditos sejam! Se encontrarmos esse tesouro, mereço a terceira


parte! —ele exclamou.

O'Donnell examinou o mapa e colocou-o no cinto.

—Muito bem, não guardo rancor. Você é um porco, mas se jogar limpo
conosco, nós o trataremos como outro parceiro, não é, Hassan?

O persa assentiu, colocando as duas armas no cinto.

—Não há tempo para discutir. Se quisermos sair disso vivos, será


melhor para nós três fazermos o nosso melhor. Hawklin, se os jowakis nos
encontrarem, eu devolvo sua arma. Caso contrário, você não precisará
dela.

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54
CAPÍTULO 4
O Tributo do Deus Carmesim

O
s cavalos estavam amarrados na passagem estreita atrás do
muro. Os três homens montaram os melhores animais,
soltaram os demais e galoparam pelo desfiladeiro que se
estendia além do desfiladeiro. A noite caiu sobre eles, mas eles
continuaram viajando sem ceder ao cansaço. Atrás deles, em algum lugar
— embora não soubessem se estavam muito longe ou muito perto — os
homens da tribo de Yakub Khan cavalgavam, e se o chefe conseguisse

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capturá-los, sua vingança seria terrível. Então eles galoparam pela
escuridão da noite no Himalaia, três homens desesperados em uma busca
enlouquecida, com a morte por trás, perigos desconhecidos à sua frente e
uma sombra de suspeita mútua apertando seus nervos.

O'Donnell observou Hassan como um falcão. Depois de vistoriar todos


os cadáveres na muralha, ele não conseguiu encontrar um único cartucho
não disparado, de modo que as pistolas de Hassan eram as únicas armas
de fogo em todo o grupo. Isso deu ao persa uma vantagem que O'Donnell
não gostou nada. Se chegasse um momento em que Hassan deixasse de
precisar da ajuda de seus companheiros, O'Donnell tinha certeza de que o
persa não teria nenhum escrúpulo em matá-los a sangue frio. Mas Hassan
não se voltaria contra eles enquanto precisasse do apoio deles, e quando
houvesse uma luta ... O'Donnell acariciou suas lâminas afiadas com uma
expressão sombria. Em mais de uma ocasião, ele teve que usá-las contra o
chumbo ardente e ainda estava vivo para contar a história.

Enquanto continuavam seu caminho sob a luz das estrelas, guiados


pelo mapa que indicava a rota de maneira inconfundível - mesmo à noite
- O'Donnell se viu perguntando novamente o que o autor do mapa havia
tentado lhe dizer antes. A morte levou Pembroke mais rápido do que ele
esperava. Quando ele estava imerso na descrição do templo, sua boca se
encheu de sangue e sua cabeça afundou para trás, enquanto se debatia
desesperadamente para sussurrar mais algumas palavras, antes de morrer.
Pareciam algum tipo de aviso... Mas do que?

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Amanhecia quando deixaram um desfiladeiro estreito que terminava
em um amplo vale, cercado por pedras altas. O desfiladeiro por onde
haviam entrado, um caminho estreito entre montanhas escarpadas, era a
única entrada para o vale; sem o mapa, eles nunca poderiam ter
encontrado. Avançaram ao longo de uma borda de rocha que corria pela
extensão do muro que cercava o vale, uma estrada elevada de trinta metros
de altura que, por um lado, era limitada por um muro natural que subia
trinta metros e, por outro Mais de trezentos caíram. Parecia não haver
maneira de descer às profundezas enevoadas do vale, que se estendiam
bem abaixo deles. Mas eles não dedicaram mais do que alguns olhares ao
que estava abaixo, porque o que viram diante deles retirou de suas mentes
toda a fadiga e fome que sentiam. Ali mesmo, na borda, estava o templo,
brilhando ao sol nascente. Foi esculpido na rocha viva da montanha, e seu
grande pórtico esculpido parecia desafiá-los. A borda servia como uma
estrada calçada que levava à sua porta assombrosa.

Que raça ou cultura eles poderiam representar, era algo que O'Donnell
não ousava conjecturar. Mil conquistadores desconhecidos haviam pisado
aquelas montanhas antes do amanhecer cinzento da história. Civilizações
sem nome haviam se levantado e desmoronado antes dos cumes tremerem
com as trombetas de Alexandre, o Grande.

—Como vamos abrir a porta? —O'Donnell se perguntou. O grande


portão de bronze parecia ter sido construído para resistir a uma bateria de
artilharia. Desdobrou o mapa e olhou novamente para as anotações
rabiscadas nas margens. Mas Hassan desceu da sela e correu em frente,

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gritando fora de si. Um estranho frenesi próximo à loucura se originou no
persa ao ver o templo e ao pensamento da riqueza fabulosa que havia
dentro dele.

—Ele é um estúpido! —Hawklin rosnou, desmontando do cavalo—.


Pembroke deixou um aviso por escrito na margem do mapa... "Você pode
entrar no templo, mas precisa ser cuidadoso, porque o deus exige um
tributo."

Hassan tocava e empurrava vários ornamentos e bordas do portal. Eles


o ouviram gritar exultante enquanto alguns deles se moviam sob suas
mãos... Mas então seu grito se transformou em um uivo de terror quando
a porta, uma tonelada de bronze esculpido, se inclinou e caiu com um
estrondo. O persa não teve tempo de evitá-la. Ele foi esmagado como uma
formiga. Seu cadáver preso permaneceu escondido sob a enorme laje de
bronze, sob a qual agora havia uma grande poça carmesim de sangue.

Hawklin encolheu os ombros.

—Eu já te disse que ele era estúpido. Os antigos sabiam guardar um


tesouro. Eu me pergunto como Pembroke conseguiu evitar ser esmagado.

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59
—Obviamente, de alguma forma, conseguiu acionar a porta sem que
ela se soltasse de seus suportes —respondeu O'Donnell—. Foi o que
aconteceu quando Hassan ativou esses mecanismos. Deve ser o que
Pembroke estava tentando me dizer antes de morrer... quais mecanismos
devia acionar e quais evitar.

—Bem, o deus cobrou seu tributo, e nós temos o caminho aberto —


rosnou Hawklin, pisando indiferente à porta avermelhada. O'Donnel
entrou logo atrás. Eles pararam no largo umbral, examinando o interior
sombrio como se espiassem o esconderijo de uma cobra. Mas nenhuma
fatalidade repentina desceu sobre eles, nem a menor ameaça apareceu
diante de seus olhos. Entraram com cautela. O silêncio envolvia o templo
antigo, quebrado apenas pelo suave farfalhar de suas botas.

A escuridão os fez piscar. Além, um clarão carmesim atingiu seus


olhos, como o brilho do crepúsculo. Eles encararam o Deus manchado de
sangue, um objeto de bronze incrustado com pedras flamejantes. Tinha o
formato de um anão e estava de pé sobre um bloco de basalto, de frente
para a porta. À sua esquerda, a poucos metros da base do pedestal, o chão
do templo estava aberto de um lado para o outro por uma grande falha,
com cerca de cinco metros de largura. Em algum momento de sua
existência, um terremoto havia dividido o chão de rocha, e não havia como
saber até onde suas profundidades ressonantes desciam. Muitas Eras atrás,
inúmeras vítimas vociferantes haviam sido lançadas naquele abismo negro
pelas mãos de terríveis sacerdotes, para servir como sacrifício humano ao
Deus Carmesim. As paredes do templo eram altas e tinham uma escultura

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fantástica. O teto estava envolto em sombras enevoadas.

Mas a atenção dos homens estava ansiosamente fixada no ídolo. Sua


aparência era brutal, repulsiva, uma monstruosidade leprosa cujas jóias
vermelhas davam a ele a aparência repulsiva de estar coberto de sangue.
Mas representava uma riqueza que fazia seus cérebros dançarem.

—Deus! —O'Donnell murmurou—. Essas jóias são reais! Elas devem


valer uma fortuna!

—Milhões! —Hawklin ofegou—. Demais para compartilhar com um


ianque condenado!

Foram essas palavras, sussurradas inconscientemente entre os dentes


rangentes do inglês, que salvaram a vida de O'Donnell, paralisado como
estava pela contemplação daquele ídolo ímpio. Ele virou a cabeça, captou
o brilho do sabre de Hawklin e se afastou bem a tempo. A lâmina
sussurrando cortou um pedaço do pano ao lado de sua cabeça.
Amaldiçoando seu descuido, pois deveria esperar tal traição, ele pulou
para trás, desembainhando sua cimitarra.

O grande inglês saltou para ele como uma expiração e O'Donnell o


encarou, deixando sua raiva fluir com um gosto de paixão. Eles lutaram
incansavelmente, movendo-se para frente e para trás, aproximando-se do
ídolo e se afastando dele, os pés deslizando rapidamente sobre a rocha e
as lâminas se chocando, ressoando, lançando faíscas azuladas, enquanto

61
se moviam pelas sombras.

Hawklin era mais alto que O'Donnell, e seus braços eram mais longos,
mas O'Donnell era igualmente forte e ágil. Hawklin temia o kindhjal que
ele empunhava mais do que a cimitarra na mão esquerda, e conseguiu
manter a luta o mais longe possível, para que seu maior alcance pudesse
ser decisivo. Ele também tinha uma adaga na mão esquerda, mas sabia que
não poderia competir com O'Donnell no manuseio do punhal. Mas ele
conhecia um grande número de truques sujos e os praticou com seu aço
comprido. Vez após vez, O'Donnell evitou a morte por uma margem tão
pequena quanto um fio de cabelo e, por enquanto, nem mesmo sua grande
habilidade e velocidade haviam rompido a excelente defesa do inglês.

O'Donnell tentou em vão chegar perto do corpo a corpo.

Em uma ocasião, Hawklin tentou derrubá-lo na beira do abismo, mas


ele ficou ao ponto de quase ser empalado pela cimitarra do americano;
então abandonou a tentativa.

Então, inesperadamente, chegou o fim. O pé de O'Donnell escorregou


levemente no chão polido e sua espada balançou por um instante. Hawklin
mergulhou com toda sua força e velocidade, numa investida que teria feito
o sabre perfurar de forma limpa no corpo de O'Donnell se ele tivesse
conseguido alcançar seu objetivo. Mas o americano não estava tão
desequilibrado quanto Hawklin pensava. Com uma leve contorção de seu
corpo, a lâmina longa passou dentro da cavidade do braço direito, serrando

62
o khalat solto e roçando as costelas. Por um momento, a espada ficou presa
entre os pedaços de tecido solto e Hawklin uivou selvagemente, pegando
sua adaga. Afundo-a profundamente no braço direito de O'Donnell,
enquanto simultaneamente o kindhjal que O'Donnell segurava na mão
esquerda afundava entre as costelas de Hawklin.

O grito do ingles se transformou em um gorgolejo assustador. Ele se


afastou e, quando O'Donnell puxou a lâmina, o sangue jorrou e Hawklin
recuou, morrendo antes de atingir o chão.

O'Donnell deixou cair a arma e se ajoelhou, arrancando um pedaço de


seu khalat para improvisar um curativo. Seu braço ferido estava sangrando
profusamente, mas um exame rápido garantiu que a adaga não havia
cortado nenhum músculo ou veia principal.

Enquanto aplicava a bandagem improvisada, amarrando com o auxílio


dos dedos e os dentes, olhou para o Deus manchado de sangue que parecia
contemplá-lo e ao homem que acabara de matar. Ele havia cobrado um
tributo pesado e seu rosto talhado como uma gárgula parecia sugerir gula.
O'Donnell estremeceu. Certamente devia estar amaldiçoado. Poderia uma
riqueza obtida com essa fonte trazer boa sorte pelo preço simbolizado pelo
cadáver a seus pés? Ele afastou esse pensamento de sua mente. O Deus
Vermelho era dele, e ele o conquistara com suor, sangue e espada. Ele teria
que empacotá-lo e carregá-lo em um cavalo, e sair dali antes que a
vingança de Yakub Khan pudesse alcançá-lo. Não retornaria pelo caminho
que viera. Estaria cheio de jowakis. Ele deveria escapar cegamente,

63
avançando por montanhas desconhecidas, confiando na sorte para chegar
a um lugar seguro.

—Levante as mãos! —Ele ouviu um grito triunfante cujos ecos


subiram ao teto.

Em um único movimento, ele se levantou, virou-se para a porta... e


ficou paralisado.

Dois homens estavam diante dele, e um deles apontou um rifle para


ele, pronto para disparar. Um dos homens era alto e magro, com barba
avermelhada.

—Yakub Khan! — murmurou O'Donnell.

O outro sujeito era um indivíduo forte e poderoso, que lhe era


vagamente familiar.

—Largue suas armas! —o chefe deu uma risada rouca—. Você pensou
que eu tinha ido para minha aldeia, não é? Estúpido! Enviei todos os meus
homens para lá, exceto um, que foi o único que não foi ferido. Eles
avisariam a tribo, enquanto eu te seguiria, acompanhado por este homem.
Eu segui sua trilha a noite toda, e cheguei até aqui enquanto lutava com
aquele ali, estirado no chão. Chegou a sua hora, cão curdo! Para trás! Para
Trás! Para tras!

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Sob a ameaça de um rifle, O'Donnell se moveu lentamente até chegar
perto do abismo negro. Yakub o acompanhou, a uma distância segura de
vários metros, e o rifle não hesitaria.

—Você me levou a um tesouro —Yakub murmurou, abaixando o cano


da arma na penumbra—. Eu não sabia que este templo continha um ídolo!
Se eu soubesse, eu o teria roubado há muito tempo, apesar da superstição
dos meus seguidores. Yar Mohammed, pegue sua espada e punhal.

65
50
Ao ouvir esse nome, a identidade do corpulento companheiro de Yakub
foi esclarecida. O homem se abaixou para pegar a espada e depois
exclamou:

—Alá!

Ele estava olhando para o ornamento de bronze de cabeça de falcão


que coroava o cabo da cimitarra de O'Donnell.

—Espere! —o waziri exclamou—. Esta é a espada de quem me salvou


da tortura, mesmo correndo o risco de sua própria vida! Seu rosto estava
coberto, mas eu me lembro da cabeça de falcão no punho de sua espada!
É esse curdo!

—Silêncio! —o chefe resmungou—. Ele é um ladrão e vai morrer!

—Não! —o waziri estava inflamado com a repentina e apaixonada


lealdade dos homens das montanhas—. Salvou minha vida! Eu, um
estranho! O que você me deu, exceto trabalho duro e salários miseráveis?
Eu renuncio a minha adesão a você, ladrão jowaki!

—Cachorro! —Rugiu o chefe, virando-se contra Yar Mohammed, que


recuou por falta de armas de fogo. Yakub Khan disparou e a bala arrancou
uma mecha de cabelo da barba do waziri. Yar Mohammed uivou uma
maldição e correu para ficar atrás do pedestal do ídolo.

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Assim que o estampido do disparo ressoou, O'Donnell pulou para
derrubar o chefe, mas quando pulou, percebeu que iria falhar. Com um
grunhido, Yakub virou o rifle em sua direção e, naquele momento,
O'Donnell sabia que a morte viria do cano da arma antes que ele pudesse
alcançar o jowaki. O dedo de Yakub começou a puxar o gatilho... e então
Yar Mohammed levantou o ídolo no ar, e seus poderosos músculos
rangeram quando ele o jogou.

Ele colidiu diretamente com o jowaki, derrubando-o para trás... sobre


a beira do abismo! Yakub Khan atirou às cegas quando caiu, e O'Donnell
sentiu o assobio próximo da bala. Um grito frenético subiu ao teto do
templo, enquanto homem e ídolo desapareciam juntos para sempre.

Atordoado, O'Donnell deu um passo à frente e espiou por cima da


borda, examinando as profundezas negras. Ele ficou olhando e ouvindo
por um longo tempo, mas nem sequer conseguiu percebeu o som da queda.
Ele estremeceu com a profundidade horripilante à sua frente e se afastou
rapidamente. Uma mão firme em seu ombro o fez se virar para olhar o
rosto barbudo e sorridente de Yar Mohammed.

—A partir deste momento, você será meu camarada —disse o


Waziri—. Se você realmente é quem se chama Ali, el Ghazi. É verdade,
então, que há um Ferengi escondido sob essa roupa?

O'Donnell assentiu, observando o homem de perto. Yar Mohammed


apenas sorriu ainda mais.

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—Não importa! Eu matei o chefe que seguia, e agora as mãos de sua
tribo se levantarão contra mim. Devo seguir outro chefe... e ouvi muitas
histórias sobre as façanhas de Ali el Ghazi! Então você vai me aceitar
como seu seguidor, sahib?

—Você é o tipo de pessoa que vale a pena ter como amigo —disse
O'Donnell, estendendo a mão à maneira do homem branco.

—Que Allah lhe dê abençoe! —Yar Mohammed exclamou


alegremente, apertando sua mão com força—. E agora, vamos sair daqui
rápido! Os Jowakis chegarão a este lugar antes que passem muitas horas e
não devem nos encontrar aqui! Mas existe um caminho secreto, além deste
templo, que desce ao vale, e conheço caminhos ocultos que podem nos
tirar dele e nos levar muito mais longe, antes que nossos inimigos
apareçam. Vamos lá!

O'Donnell pegou suas armas e seguiu o waziri até a parte externa do


templo. O ídolo estava perdido para sempre, mas esse tinha sido o preço
de sua própria vida. E havia muitos outros tesouros perdidos para desafiar
a habilidade do aventureiro incansável. Sua mente já estava se voltando
para a possível busca de um tesouro mítico oculto mencionado em cem
lendas.

—Alhamdolillah! —Ele disse e riu com uma alegria contagiante de


viver enquanto seguia o waziri até o local onde deixara os cavalos
amarrados.

53
FIM

54
A q u e le s q u e c a m i n h a m a t é

o V a lh a lla

Por Etienne Navarre e Marco Antonio Collares

O autor espanhol Javier Martín Lalanda, em seu fantástico


livro “Cuando cantan las espadas” destacou o quando Robert
E. Howard tinha "uma concepção mítica do mundo”, algo para
além de um viés totalmente realista de escrita, apesar de doses
fortes de realismo em sua épica e até em sua fantasia. O
conhecimento da biblioteca pessoal do texano revela o interesse
do autor pelos ciclos de aventura e pelos livros de história
também, algo mesclado exemplarmente em sua ficção literária.
Howard era sim um leitor assíduo de livros de história e,
segundo algumas os textos de algumas suas cartas, ele tinha
uma verdadeira paixão pela ficção histórica, talvez ainda mais
do que pela fantasia. Ele escreveu em uma carta de 1933 para
HP Lovecraft: "Para mim, não há obra literária tão empolgante,
como reescrever a história em disfarces fictícios ... Um único
parágrafo pode ser saturado com ação e drama suficientes para
preencher todo um volume fictício". O interesse de Howard pela
história, por maior que fosse, não se estendeu, no entanto, aos
povos "civilizados". Vejamos outro enunciado do texano:

55
“Quando uma raça - qualquer que seja - emerge da barbárie, ela
desperta o meu interesse. Tenho a impressão de que entendo e de que posso
escrever em profundidade sobre isso. Mas, à medida que avança em direção
à civilização, ela começa a me escapar, até que no final desaparece
completamente e descubro que seus costumes, modos de pensar e ambições
são completamente estranhos e desconcertantes para mim. Assim, os
primeiros conquistadores mongóis da China inspiram em mim o maior
interesse e a maior apreciação; mas algumas gerações depois, quando
adotaram a civilização de seus súditos, não inspiram o menor interesse em
mim. Meu estudo da história tem sido uma busca constante por novos
bárbaros, de tempos em tempos”.

A esse conceito mítico de que fala Lalanda, Howard mesclava ao


realismo, criando, segundo o estudioso, um conceito da fábula épica
vibrante e incrivelmente verossímil em sua fantasia ou senso de
grandiosidade narrativa. Howard sabia que o verdadeiro épico deveria ser
habitado por toques de lirismo, e ele tinha um senso de poesia capaz de
imaginar situações de extrema beleza que, em princípio, não podiam parecer
menos poéticas. O conceito de civilização que Howard usa como base
dramática essencial da maioria de seus ciclos literários deve muito às teorias
darwinianas na moda de seu contexto histórico. Sabe-se, por exemplo, que
ele leu a famosa obra de Oswald Spengler, “A decadência do Ocidente”,
muito influente na época com seus toques de darwinismo social.
Assim, o escritor texano identificou-se com o conceito cíclico
defendido por esse incrível pensador alemão: uma vez superado o zênite,

56
cada cidade ou reino ou povo iniciaria inevitavelmente um declínio que
levaria ao se ocaso, a sua decadência, até a seu desaparecimento. Esse
desaparecimento poderia ser acelerado pela competição e pela invasão de
outras nações que iniciariam assim um caminho inverso, ou poderiam sofrer
um lento definhamento, o que se traduziria em uma degradação que Howard
comumente associava ao vício sensual e até, em alguns casos, a perversão
sexual.
Todos sabem que ele escreveu em, "Além do Rio Negro" que “a
barbárie é o estado natural da humanidade”. Quanto mais as cidades ou
reinos ou povos permanecessem em estados civilizados, mais as mesmas
estariam se afastando de sua poderosa origem, forjadas pelo elo do homem
com a natureza, tornando-o as mesmas corruptas e decadentes. Como
Xuthal, em Conan ou Neegari em Kane, por exemplo. Nesse sentido,
cidades ou reinos antigos como a poderosa Estígia ou mesmo Zamora eram
notadamente colmeias de escória e vilania, e seus portões se abriam de “par
em par” para os bárbaros que invadiam de tempos em tempos. Quem não
lembra da queda de Acheron pela força primal dos Hiborianos em suas vagas
expansionistas, naquela época ainda bárbaros e selvagens. O mérito de
Howard, e o que torna sua literatura atemporal reside, em parte, na
transcendência que consegue conceder a fusão do espírito épico crepuscular
e do lirismo selvagem, com um dinamismo de tirar o fôlego de qualquer
leitor voraz.
Howard chegou a conceber um ciclo - apelidado por especialistas
como "memória racial ou ancestral" - no qual um indivíduo específico,
James Allison por exemplo, um homem aleijado, recordava suas
encarnações passadas, normalmente de homens em contraste com seu atual

57
estado de impotência, sendo ele no passado comumente algum poderoso
guerreiro selvagem. Em vida, Howard publicou dois contos desse
personagem (deixando alguns outros inéditos), nos quais o ancestral de
Allison era normalmente um guerreiro proto nórdico que vivia em uma era
inconcebivelmente distante no tempo e que realizava várias aventuras no
curso das migrações que seu povo fazia para o sul. Sim, tal passado pode ser
até mesmo a famosa Era Hiboriana do personagem Conan, perfeitamente
reconhecível na narrativa. O contato com outras civilizações, mais
primitivas ou até em declínio, tornou essas tramas dos ciclos de memórias
raciais pontos de entrada ideal para estudar como Howard aplicou o conceito
de auge e decadência civilizacional à sua literatura vibrante.
“Caminhantes do Valhalla” é um desses contos e foi publicado
postumamente. Trata-se de um conto que apoia todos os pontos de Howard
sobre barbárie versus civilização, sendo esta última, uma armadilha
antinatural que poderia enfraquecer os homens e suas respectivas sociedades
históricas. Temos aqui uma narrativa de guerreiros bárbaros, cidades
decadentes e combates sangrentos. Temos ação de início ao fim, com sangue
e espadas, em uma mistura intrigante feita com perfeição pela máquina
insaciável de Howard. "Caminhantes" desvela-se como um sonho de
Allison, como uma rememoração de seu passado, quando ele era o aesir de
nome Hialmar, numa época esquecida da humanidade, vagando pelos ermos
do mundo ao lado de sua raça, ao final daquela era em que viveu um certo
cimério famoso. Muito do poder da história está nas descrições de Howard
dos aesires, os protagonistas da trama. Eles são "gigantes além da
compreensão dos modernos", e hoje “nenhum homem é tão forte quanto o
mais fraco dos irmãos de guerra de Hialmar”.

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No entanto, sua força não é apenas física. Os aesires são "uma raça de
lobos" e anos de peregrinação e luta "incutiram nas suas almas o espírito da
natureza: o poder intangível que treme no lobo cinzento, que ruge ao vento
norte, que dorme no poderoso tumulto dos rios turbulentos, que soa na
fricção do granizo gelado, no bater das asas da águia e se esconde no silêncio
melancólico dos vastos lugares ".
Essa narrativa chega ao cerne do melhor em Howard, que não é
somente contar apenas uma boa trama, mas mostrar como homens ficam na
frente de todos os seus oponentes e da fúria sem sentido da natureza. Howard
sugere que há algo enterrado no fundo da alma dos humanos modernos
(mesmo sem eles compreenderem do que se trata), lembrando uma luta
atemporal pela sobrevivência, na qual suas naturezas foram enterradas por
anos e anos de civilização, esperando emergir do caos e da guerra primal.
Se o leitor quer se surpreender com a luta vigorosa de povos civilizados
contra bárbaros errantes em sua total potência destruidora, representados
aqui pelos aesires e pelo protagonista de nome Hialmar, bem, esse conto é
um dos mais profícuos para gerar tal comoção ante suas linhas escritas.
Trata-se de Howard em toda a sua essência e brutalidade, não perdendo em
nada para as melhores narrativas de seus ciclos mais famosos.

59
60
61
A q u e le s

q u e CAM IN H AN

A T É O V A LH A LLA

Tradução: Fernando Nesser de Aragão

Pós-revisão: Marcelo Souza

62
I

63
O
céu estava lívido, melancólico e repulsivo, como o azul do
aço embaçado, riscado por tiras de pálido carmesim.
Delineadas contra esse fundo marrom avermelhado erguiam-
se as baixas montanhas que coroam as áridas terras altas em uma extensão
macabra de areias movediças e florestas ressecadas, repletas por terrenos
baldios nos quais os agricultores passam suas vidas de uma maneira
assustadora e inútil, amargurados pelo trabalho estéril.

64
Embora coxeando, eu acabava de subir um penhasco que se erguia
acima dos demais, rodeado por ressecados bosques de carvalhos. A
esmagadora melancolia e desolação monótona da paisagem diante de mim
pareceu transformarem minha alma em uma massa de poeira e cinzas.
Depois de deixar-me sentar em um tronco podre, senti como a tristeza
moribunda daquela terra pesava sobre mim.

65
O sol carmesim, quase escondido por nuvens e redemoinhos de poeira,
começava a se ocultar; pendia no horizonte, quase na ponta dos meus
dedos. Embora aquele belo crepúsculo não pudesse glorificar os montes
sombrios, seu brilho escuro acentuava ainda mais a desolação esmagadora
da paisagem.

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Então, de repente, percebi que não estava sozinho. Das profundezas do
bosque de carvalhos emergiu uma mulher que olhava para mim.

Eu a observei em assombroso silêncio. Havia tão pouca beleza em


minha vida que mal conseguia distingui-la, mas sabia que essa mulher

67
tinha uma beleza inconcebível. De estatura média, era esbelta e bem
formada. Esqueci como ela estava vestida, embora me pareça que sua
roupa era modesta, mas elegante. O que lembro é a beleza curiosa de seu
rosto, que se destacava no meio de gloriosos cabelos ondulados escuros.
Seus olhos atraíram os meus como um ímã; não sabia dizer a cor deles,
mas eram escuros e brilhantes, com uma luz que nunca tinha contemplado
antes. Ela falou comigo com um sotaque curioso em sua voz, desconhecido
para mim, mas tão musical como sinos distantes.

—O que te entristece tanto, Hialmar?

—Você certamente está enganada, senhorita — respondi. Meu nome é


James Allison. Você está procurando alguém?

Ela negou muito lentamente com a cabeça.

—Vim para contemplar a terra mais uma vez. Não imaginava encontrá-
lo aqui.

—Não a compreendo — insisti. Nós nunca nos vimos. Você nasceu


neste país? Você não tem sotaque texano.

Voltou a negar com a cabeça.

—Não. Mas conheci esta terra há muito... muito tempo.

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—Você não me parece ser tão velha — disse. Desculpe-me por eu não
levantar. Como vê, só tenho uma perna, e a subida até aqui foi tão longa que
me vejo obrigado a sentar-me para descansar.

—Vejo que a vida tem sido dura contigo — disse ela gentilmente. Eu
mal te reconheci. Seu corpo mudou muito...

—Então você deve ter me conhecido antes que eu perdesse minha


perna —repliquei com uma pitada de amargura, — embora jure que não
me lembro de você. Tinha apenas quatorze anos quando um mustang caiu
sobre mim, esmagando minha perna ao ponto em que tiveram que amputá-
la. Eu gostaria que Deus tivesse quebrado meu pescoço ao invés da perna.

Tais são as palavras que os aleijados trocam com os desconhecidos: sem


implorar sua empatia, mas em um mudo silêncio gritando desesperados pela
tortura insuportável que suas almas sofrem.

—Não fique triste — ela murmurou baixinho. A vida nos tira, mas
também nos dá...

—Ei, não me venha agora com discursos sobre resignação e moral! —


exclamei furiosamente. Se eu pudesse quebrar o pescoço dos otimistas
presunçosos deste mundo...! Por que deveria me alegrar? O que me resta
para fazer, exceto sentar e esperar uma morte que se arrasta lentamente em
minha direção por uma doença incurável? Não tenho lembranças felizes

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para me alegrarem, nem futuro para enfrentar, exceto por mais alguns anos
de sofrimento antes da escuridão do esquecimento total. Nunca houve beleza
em minha vida, nem nessas terras perdidas e inóspitas.

A represa que continha meus sentimentos transbordou e toda a minha


amargura e meus sonhos, há muito reprimidos, veio à tona; e não parecia
estranho para mim abrir minha alma àquela desconhecia que eu nunca
tinha visto antes.

—A terra lembra. – ela disse.

—Se é assim, eu não compartilho dessas lembranças. Eu poderia ter


vivido uma vida plena até aqui, servindo como cowboy nos dias dos
primeiros colonos, que transformaram uma vasta terra desconhecida em um
grupo de fazendas espalhadas. Mesmo nessas terras, minha vida poderia ter
sido plena como caçador de bisão, guerreiro índio ou até mesmo explorador.
Mas eu nasci fora do meu tempo, e até os poucos feitos dessa época
cansativa me foram negados.

—É difícil explicar como é amargo ficar amarrado e indefeso, notando


como seu sangue quente seca em suas veias e seus sonhos de glória
desaparecem em sua mente. Eu venho de uma raça inquieta, errante e
lutadora. Meu tataravô caiu no Álamo, ao lado de Davy Crockett. Meu avô
galopou ao lado de Jack Hayes e Bigfoot Wallace e foi abatido junto com
três quartos da brigada de Hood. Meu irmão mais velho morreu em Vimy

70
Rodge, lutando com os canadenses, e o mais novo caiu em Argonne. Meu
pai também é aleijado e passa o dia cochilando em sua poltrona, embora
seus sonhos sejam repletos de ótimas lembranças, porque a bala que quebrou
sua perna o atingiu durante a investida na colina de San Juan.

—Mas, o que tenho eu para sentir, sonhar ou recordar?

—Você precisa se lembrar —ela sussurrou—. Mesmo que seja na


forma de sonhos que chegam até você, como os ecos de uma música
distante. Eu me recordo! Lembro-me de haver me arrastado de joelhos em
sua direção, e que você me perdoou... sim, e o rugido estrondoso da terra
afundando ... Por acaso você nunca sonhou que está se afogando?

Eu estremeci.

—Como você sabe isso? Sinto constantemente como um turbilhão de


água espumosa sobe ao meu redor como uma montanha esverdeada, antes
de acordar, ofegando e sufocado... mas como você sabe?

—Os corpos mudam, mas a alma permanece inalterada, sonhando —


ela respondeu enigmaticamente—. Até o mundo muda de envelope. Esta
terra deserta, que você diz, tem lembranças muito mais antigas e
maravilhosas do que as do Egito.

Neguei com a cabeça, confuso.

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—Ou você está louca, ou eu estou. O Texas tem recordações gloriosas
de guerras, conquista e tragédias... mas, o que são seus escassos séculos de
história, comparados com a antiguidade do Egito...? Isso sim é antiguidade.

—Então, como se define o Ser como um todo? – perguntou ela.

—Não sei o que você quer dizer —eu disse—. Se estiver falando de
geologia, o que me surpreende é o fato dessa terra nada mais ser uma
sucessão de grandes planaltos ou elevações acima do nível do mar que se
elevam a mais de mil metros de altura, como se fossem degraus de uma
enorme escada, terminando nas florestas da montanha. O último ponto de
aterrissagem seria o Caprock, acima do qual as Grandes Planícies começam.

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—Em uma outra Era, aquelas Grandes Planícies se estendiam até o
Golfo —disse ela—. Há muito tempo, o que hoje conhecemos como o
estado do Texas nada mais era do que um vasto platô que descia suavemente
até a costa, embora sem as encostas íngremes de hoje. Um terrível
cataclismo dividiu o rochedo do Caprock, permitindo que o oceano passasse
rugindo, tornando-o num novo litoral. Depois disso, Era após Era, as águas
gradualmente recuaram, deixando para trás aqueles degraus que você
conhece. Mas, ao recuarem, arrastaram muitas coisas estranhas para as
profundezas do Golfo... Você não se lembra das imensas planícies,

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estendendo-se ao crepúsculo até os penhascos que se erguiam em frente ao
mar resplandecente? Ou a grande cidade construída sobre esses penhascos?

Contemplei-a, perplexo. Ela se inclinou até mim em um gesto


repentino, e me senti rendido à sua estranha e gloriosa beleza. Meus sentidos
vacilaram. Ela colocou as mãos na frente dos meus olhos, em um gesto
estranho.

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—Logo verás! —exclamou agudamente—. Contemple... o que você
vê?

—Vejo dunas de areia e bosques ressecados, escurecendo-se ao pôr do


sol —respondi muito lentamente, como em um transe—. E um sol se pondo
a oeste, no horizonte.

—E as vastas planícies que descem para as falésias resplandecentes?


—Ela exclamou—. Você vê as torres e a cúpula dourada da cidade brilhando
ao pôr do sol? Veja...

Então, como se a noite tivesse caído repentinamente, a escuridão me


invadiu como uma sensação de irrealidade, na qual a única coisa existente
era sua voz, veemente e imperiosa...

Senti o tempo e o espaço desaparecerem... girei sobre abismos


infinitos, com tempestades cósmicas que me arrastavam... e então
vislumbrei algumas nuvens, ilusórias e luminescentes, que se retorciam para
cristalizar-se em uma paisagem curiosa ... que era familiar e estranha para
mim ao mesmo tempo.

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Grandes planícies com montanhas se estendiam para desaparecer no
horizonte enevoado. Ao sul, muito longe, uma cidade negra, de proporções
ciclópicas, erguia suas torres diante do céu do pôr-do-sol e, além, brilhavam
as águas azuis de um mar calmo.

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E, a uma distância menor, uma fila de homens avançou através da
planície. Homens altos, com longos cabelos loiros e frios olhos azuis,
protegidos com cotas-de-malha, capacetes e armados com espadas,
machados e escudos.

77
Um deles era diferente... ele era mais baixo, apesar de ter uma
compleição forte e o cabelo escuro. E quanto ao enorme guerreiro loiro
caminhando ao lado dele... foi aí que, por um momento fugaz, senti uma
clara sensação de dualidade. Eu, James Allison, do século 20, me reconheci
no homem que eu era naquela época remota e naquele estranho lugar. Esse
sentimento desapareceu quase imediatamente, e então eu era Hialmar,
descendente das tribos loiras e sem conhecimento de qualquer outra
existência, seja ela futura ou passada.

Mas, quando eu narrar a história de Hialmar, serei forçado a interpretar


parte do que ele viveu, não como Hialmar, mas como o meu eu moderno.

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Quando assim for, você entenderá. Pois você deve se lembrar que Hialmar
era apenas Hialmar, e não James Allison; ele não tinha consciência do
significado dessas explicações, pois estava limitado por sua própria
experiência de vida. Eu sou James Allison e eu fui Hialmar, mas Hialmar
não era James Allison; um homem pode olhar para trás dez mil anos, mas
ninguém pode vislumbrar as brumas do futuro, nem por um instante.

79
II

Éramos quinhentos homens os quais passaram a encarar as torres


negras que desafiavam o azul do céu e do mar. Marchamos durante todo o
dia, desde que os primeiros raios carmesins do amanhecer as mostraram aos
nossos olhos atônitos. Podíamos vê-las a distância naquelas descobertas
planícies verdes; a princípio, pensávamos que a cidade estava perto, mas,
depois de marchar o dia todo, ainda estávamos a quilômetros dela.

80
81
Temíamos que pudesse ser uma cidade fantasma. Uma daquelas
ilusões que nos atormentaram durante nossa longa marcha pelos desertos
empoeirados do oeste, onde, refletidos no céu escaldante, acreditávamos ver
lagos calmos ladeados por palmeiras, rios e grandes cidades, que
desapareciam quando nos aproximávamos. Mas agora não era uma miragem
causada pelo sol, poeira ou quietude. Pois, contra o céu claro da tarde, os
contrafortes ciclópicos, as enormes torres com ameias e a colossal muralha
foram distinguidas com clareza de detalhes.

Em que Era obscura eu, Hialmar, marchei com os homens da minha


tribo, atravessando as planícies para aquela cidade sem nome? Não sei. Há
muito tempo, meu povo de cabelos loiros ainda morava em Nordheim, e não
eram conhecidos como arianos, mas como loiros Aesires e ruivos Vanirires.
Foi antes das grandes migrações da minha raça povoarem o mundo, embora
algumas menores já tivessem ocorrido. Estávamos vários anos longe de
nossa terra natal do norte, da qual os oceanos nos separavam.

Ah! Quão longa foi aquela jornada! Não houve migração que pudesse
se comparar a ela; nem mesmo as do meu povo, que foram épicas. Tínhamos
atravessado o mundo do norte gelado para as vastas planícies e vales das
montanhas férteis, cultivadas por um povo pacífico e moreno, até as selvas
quentes e sufocantes, que fediam a podridão e fervilhavam de vida através
das terras do leste, que brilhavam com cores vivas sob as graciosas
palmeiras, e nas quais raças muito antigas viviam em cidades de pedra

82
esculpida... e depois voltamos às terras congeladas e cruzamos um estreito
istmo congelado junto ao mar para descer, finalmente, por algumas estepes
nevadas em que os pequenos comedores de gordura de baleia fugiam, entre
gritos, de nossas espadas; descemos para o sul e leste, atravessando colossais
montanhas e florestas enormes, gigantescas e desabitadas como o Éden após
a expulsão do homem ...

E, depois de cruzar as abrasadoras areias do deserto e as planícies


ilimitadas, contemplamos finalmente a silenciosa cidade negra, junto ao
mar. Muitos envelheceram durante a viagem. Eu, Hialmar, me tornei um
homem durante a trajetória. Embora fosse apenas um menino ao dar os
primeiros passos nessa nossa viagem; agora sou um homem, um guerreiro
experiente, com membros poderosos, ombros largos e fortes, um pescoço
poderoso e um coração de aço.

Éramos todos fortes... como colossos que o homem moderno não é


capaz de conceber. Atualmente, não há homem tão forte quanto o mais fraco
em nosso grupo, e nossos tendões robustos eram capazes de uma velocidade
ofuscante que os melhores movimentos dos atletas modernos pareceriam
desajeitados, lentos e pesados em comparação. Nossa força não era apenas
física; nascidos de uma raça lupina, com anos peregrinando pela terra e
lutando contra homens, animais e todos os tipos de elementos, forjaram
nossas almas com o espírito selvagem ... Aquele poder intangível que é
visto no uivo do lobo cinza quando ruge no vento norte, e que subjuga à
força dos rios turbulentos, que ressoa nos açoites do granizo gelado, no bater
das asas da águia e no silêncio dos grandes espaços.

83
Eu já disse que foi uma viagem estranha. Não se tratava da migração
de uma tribo inteira, com homens e mulheres loiras, e seus filhos nus.
Éramos todos homens, aventureiros para quem até as guerras migratórias
eram pacíficas demais. Saímos sozinhos, conquistando, vagando, apenas
levados por uma vontade enlouquecida de viajar além do horizonte.

No começo, éramos mais de mil, mas agora só restavam quinhentos.


Os ossos dos guerreiros que morreram pelo caminho estavam
embranquecidos ao longo da jornada percorrida pelo mundo. Muitos foram
os líderes que nos guiaram e morreram. Agora nosso líder era Asgrimm,
envelhecido por aquela jornada interminável... um guerreiro delgado,
amargo e caolho, semelhante a um lobo e que costumava morder sua barba
acinzentada.

Viemos de inúmeros clãs, mas éramos todos de cabelos dourados,


exceto o homem que marchava ao meu lado. Era Kelka, um Picto que era
meu irmão de sangue. Ele se juntara a nós na selva montanhosa de um país
longínquo, onde sua raça havia migrado para o leste, e onde os tambores de
seu povo batiam incessantemente sob a quente noite estrelada. Ele era baixo,
robusto e mortal como um gato da selva. Os aesires eram bárbaros, mas
Kelka era um selvagem. Ele trazia consigo o caos abismal da selva negra e
violenta que habitou. Sua caminhada cautelosa sugeria a garra do tigre; em
suas mãos de unhas escuras, a presa do gorila e o fogo que arde nos olhos
do leopardo também queimava nos dele.

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Ah, éramos uma hoste brutal e deixamos para trás um rastro de sangue
e cinzas fumegantes em muitas terras! Não me atrevo a contar sobre os
massacres, as carnificinas e as rapinagens que deixamos para trás, pois você
recuaria horrorizado. Você pertence a uma Era mais suave e pacífica, e não
conseguiria entender aqueles tempos selvagens em que um bando de lobos
estripava outro, e a moral e os costumes da vida eram tão diferentes dos de
hoje quanto o comportamento de um lobo cinza letal e o de um cachorro de
colo viscoso que cochila junto à lareira.

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Se por ventura alonguei demais minha explicação, foi para você
entender que tipos de homens atravessaram a planície em direção à cidade e
assimilar o que aconteceu a seguir. Sem esse entendimento, a saga Hialmar
não passaria de caos vociferante, sem ordem ou significado.

A visão da grande cidade não nos intimidou. Muitas outras já


havíamos devastado em outras regiões do outro lado do mar. Tínhamos
aprendido a evitar lutar contra forças superiores, se possível, mas não
tínhamos medo. Estávamos igualmente prontos para a guerra como para um
banquete de amizade, qualquer que fosse a escolha dos moradores da cidade.

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Já haviam nos visto. Estávamos próximos o bastante para distinguir as
fileiras de hortos, campos e vinhedos fora dos muros, e a figuras dos
trabalhadores que fugiam em direção à cidade. Vimos um brilho de lanças
nos edifícios, e ouvimos o rápido retumbar dos tambores de guerra.

—Será guerra, irmão —disse Kelka guturalmente, preparando


firmemente seu escudo no braço esquerdo.

Em seguida pegamos nossos cinturões e agarramos as armas... não de


cobre e bronze, como nosso povo ainda usava na distante Nordheim, mas de
aço afiado, forjado por um povo habilidoso que derrotamos na terra das
palmeiras e elefantes, cujos guerreiros armados com aço não haviam sido
capazes de deter-nos.

Paramos na planície a uma curta distância das grandes muralhas negras


que pareciam ser erguidas com gigantescos blocos de basalto. Asgrimm,
desarmado, surgiu a frente de nossas fileiras levantando as mãos, e as palmas
abertas, porque ele queria negociar. Mas uma flecha traçou uma parábola
das torres, colidindo com o chão ao lado dele, de modo que fez ele voltar às
nossas fileiras.

—Guerra, irmão! – sibilou Kelka, com chamas vermelhas que ardiam


em seus olhos negros.

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E, naquele momento, os enormes portões se abriram e deles surgiram
fileiras de guerreiros, com suas plumas de guerra agitando-se sobre suas
cabeças entre o fulgor das lanças. O sol poente brilhava como fogo entre
seus polidos capacetes de cobre.

Eram homens altos, esbeltos, de pele escura, embora nem pretos nem
pardos, e com firmes traços aquilinos. Suas armaduras eram de cobre e
couro, e seus escudos cobertos de couro fervido. Suas lanças, espadas
delgadas e adagas longas eram de bronze. Avançaram em formação perfeita,
por volta de mil e quinhentos, uma maré de penas em movimento e lanças
brilhantes. Atrás deles, os faróis zumbiam com os espectadores.

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Não houve conversa. Enquanto se aproximavam, o velho Asgrimm
gritou como um lobo na caçada e nos preparamos para enfrentar o ataque.
Não íamos em formação; corremos em direção a eles como lobos, e vimos
o desprezo em seus rostos de falcão, ao nos aproximarmos. Não tínhamos
arcos e nenhuma flecha foi disparada de nossas fileiras que corriam, nem
se arremessou uma lança. Só queríamos chegar ao corpo-a-corpo. Quando
estávamos a um tiro de dardo, enviaram-nos uma chuva de lanças, a
maioria das quais ricocheteavam em nossos escudos e cotas-de-malha, e
depois, com um rugido gutural, nosso ataque lançou-se ao alvo.

Quem disse que a ordenada disciplina de uma civilização degenerada


pode defrontar-se com a pura ferocidade da barbárie? Lutavam para
combater como uma só unidade; nós lutamos como indivíduos, lançando-
nos de cabeça contra suas lanças e talhando como loucos. Toda sua primeira
linha caiu sob nossas espadas sibilantes; as filas posteriores recuaram e
hesitaram, quando seus guerreiros sentiram o impacto brutal de nossa
incrível força.
Se houvessem aguentado, poderiam ter nos cercado com seu número
superior e degolado-nos. Mas não conseguiram resistir. Abrimos nosso
caminho como um arado numa tormenta de golpes martelantes, rompendo
suas linhas e pisoteando seus mortos enquanto prosseguíamos
inexoravelmente adiante. Sua formação de batalha se dissolveu; lutaram
contra nós homem a homem, e a batalha tornou-se uma carnificina. Pois em
força individual e ferocidade, não conseguiam comparar-se a nós.

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Ceifamo-los como milho; colhemos-lhes como sementes maduras!
Ah, quando revivo essa batalha, parece que James Allison cede lugar ao
encouraçado e potente Hialmar, com a loucura da guerra em seu cérebro e o
canto de guerra nos lábios. E estou novamente embriagado pelo canto das
espadas, o derramar do sangue quente e o rugido da matança.

Romperam filas e fugiram, atirando suas lanças. Perseguimos todos,


derrubando-os enquanto corriam, até as próprias portas, através das quais
precipitaram-se os primeiros, fechando-as em nossa cara e na dos infelizes
que eram os últimos na fuga. Sem poderem chegar à área de segurança,
arranharam e golpearam os inflexíveis portões até que lhes esfaqueamos.
Logo, foi a nossa vez de golpear as portas, até que uma chuva de pedras e
toras, vinda de cima, esmagou a cabeça de três ou quatro guerreiros, e
recuamos a uma distância segura. Ouvimos as mulheres berrando nas ruas,
e os homens entraram em formação nas paredes, disparando-nos flechas sem
grande habilidade.

Os corpos dos mortos cobriam a planície, desde o ponto em que as


tropas se defrontaram até a soleira dos portões e, onde havia caído um aesir,
caíra meia-dúzia de guerreiros emplumados.

O sol tinha se posto. Fizemos nosso acampamento diante das portas e,


durante toda a noite, ouvimos prantos e gemidos dentro dos muros, onde o
povo gritava por aqueles cujos corpos imóveis nós recolhemos e
amontoamos a certa distância. Ao amanhecer, pegamos os cadáveres dos
trinta aesires que haviam caído no combate e, deixando arqueiros para vigiar

91
a cidade, levamo-los aos lisos escarpados que desciam 150 metros até a praia
de areia branca. Encontramos caminhos tortuosos que levavam pra baixo e,
com nossa carga, abrimos caminho até a margem da água.

Ali, com barcos de pesca varados na areia, fizemos uma grande


jangada e nela amontoamos madeira. Sobre a pilha, estendemos os
guerreiros mortos, vestidos com seus coletes, suas armas ao lado, e cortamos
o pescoço dos doze prisioneiros que fizéramos, manchando as armas e os
flancos da jangada com seu sangue. Logo ateamos fogo à madeira e
lançamos a jangada ao mar. Afastou-se boiando sobre a superfície da água
azulada, até não ser mais que um brilho vermelho, dissipando-se no
amanhecer.

Depois subimos pelas veredas e nos alinhamos diante da cidade,


entoando nossos cânticos guerreiros. Pegamos nossos arcos que
construímos das árvores que estavam em volta da cidade quando descemos
para velar os nossos mortos, e um homem após outro foi caindo das torres,
atravessados por nossas longas flechas. Das árvores que encontramos,
crescendo nos jardins fora da cidade, também construímos escadas de
assalto e as colocamos contra os muros. Subimos por elas, sob uma chuva
de flechas, lanças e vigas que caía sobre nós. Lançaram-nos chumbo
derretido, e quatro guerreiros arderam como formigas numa labareda. Então,
lançamos novamente nossas setas, até que nenhuma cabeça emplumada
apareceu na muralha.

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Protegidos por nossos arqueiros, colocamos de novo as escadas.
Enquanto nos preparávamos para a subida que nos faria ultrapassar os
muros, numa das torres do muro da cidade, apareceu uma figura que nos
parou de repente. Era uma mulher; uma mulher como não víamos há muitos
anos... cabelo dourado flutuando livremente ao vento, leitosa pele branca
brilhando à luz do sol. Chamou-nos em nossa própria língua, hesitante,
como se não a usasse há muitos anos.

—Esperem! Meus mestres têm algo a dizer-lhes.

—Mestres? – Asgrimm cuspiu a palavra—. A quem uma mulher dos


aesires chama de mestres, a não ser aos homens de seu próprio clã?

Ela pareceu não entender, mas respondeu:

—Esta é a cidade de Khemu, e os mestres de Khemu são os senhores


desta terra. Mandam-me dizer que não podem enfrentar-lhes em batalha,
mas dizem que terão pouco benefício se escalarem estes muros, pois
matarão suas mulheres e crianças com suas próprias mãos, e vão incendiar
os palácios, de modo que vocês só tomarão uma pilha de pedras em ruínas.
Mas, se perdoarem a cidade, lhes mandarão presentes de ouro e joias, ricos
vinhos e raros manjares, e as mulheres mais belas da cidade.

Asgrimm esticou a barba, resistiu em esquecer o saque e o


derramamento de sangue; mas os homens mais jovens rugiram:

93
—Perdoa a cidade, velho urso! Do contrário, matarão as mulheres... e
vagamos durante várias luas sem possuirmos uma mulher sequer.

—Jovens idiotas! —grunhiu Asgrimm—. Os beijos e as palavras de


amor das mulheres se dissipam e murcham, mas a espada canta uma nova
canção a cada golpe. Será o falso atrativo das mulheres ou a brilhante
loucura da matança?

—Mulheres! —rugiram os jovens guerreiros, fazendo entrechocar


suas espadas—. Deixe que nos enviem suas garotas, e perdoaremos sua
maldita cidade.

O velho Asgrimm deu a volta, com uma careta de amargo desprezo, e


se dirigiu à moça de cabeleira dourada na torre.

—Se dependesse de mim, eu arrasaria seus muros e pulverizaria seus


capitéis, e empaparia as cinzas com o sangue de seus mestres. —disse—.
Mas meus jovens são estúpidos! Envia-nos mulheres e comida... e os filhos
dos chefes, como reféns.

—Assim será feito, meu senhor. —respondeu a garota.

Retiramos as escadas de assalto e nos recolhemos ao acampamento.

Logo as portas giraram, abrindo-se de novo, e delas saiu uma procissão


de escravos nus, carregando recipientes dourados que continham manjares

94
e vinhos tais como nós nunca sabíamos existir. Eram guiados por um homem
de rosto aquilino, com um manto de penas coloridas, trazendo na mão uma
vara de marfim e, nas têmporas, um círculo de cobre em forma de serpente
enroscada, com a cabeça levantada na frente. Por seu porte, era evidente que
se tratava de um sacerdote, e pronunciou seu nome, Shakkaru, apontando a
si mesmo. Com ele, chegou meia dúzia de jovens, vestidos com calças de
seda, cinturões com jóias, alegres plumas e tremendo de medo. A jovem de
cabelos amarelos permanecia na torre e nos disse que aqueles eram os filhos
dos príncipes, e Asgrimm fê-los provar o vinho e a comida antes que nós
comêssemos ou bebêssemos.

Para Asgrimm, os escravos trouxeram jarras de âmbar cheias de ouro


em pó, uma capa de flamejante seda escarlate, um cinturão com uma fivela
de ouro e jóias, e um enfeite para a cabeça, feito de cobre polido e adornado
com penas grandes.

O velho guerreiro balançou a cabeça e murmurou:

—O ouro falso e o brilho são pós de vaidade e dissipam-se com o


passar dos anos, mas o fio da matança jamais fica cego, e o odor do sangue
recém-derramado é bom para o olfato de um velho.

Mas, apesar de dizer isso, Asgrimm colocou os adornos, e depois


chegaram as moças – criaturas jovens e esbeltas, flexíveis e de olhos
escuros, escassamente adornadas com sedas brilhantes – e ele escolheu a
mais bela, embora meditabundo, feito um homem que escolhia um fruto

95
amargo.

Haviam se passado muitas luas desde que vimos mulheres, salvo as


rechonchudas criaturas, manchadas de fumaça, dos comedores de gordura
de baleia. Os guerreiros agarraram as aterradas garotas com um apetite
selvagem... mas meu espírito estava deslumbrado pela imagem da moça de
cabelos dourados na torre. Não havia lugar em minha mente para outro
pensamento. Asgrimm me pôs para vigiar os reféns e me deu ordens para
matá-los sem piedade, caso o vinho ou a comida estivessem envenenados,
ou se alguma mulher apunhalasse um guerreiro com uma adaga oculta, ou
se os homens da cidade nos atacassem repentinamente.

Mas os únicos homens que saíram da cidade vieram apenas recolher


os corpos de seus mortos e, com grandes e estranhos rituais, cremaram-nos
num grande promontório de frente para o mar.

Logo outra procissão aproximou-se de nós, mais longa e elaborada que


a primeira. Os chefes dos guerreiros caminhavam aos lados, sem armas, com
seus enfeites e túnicas e capas de seda substituindo suas couraças. Diante
deles marchava Shakkaru, levantando sua vara de marfim, e, entre as filas,
jovens escravos, só com mantos curtos de plumas de ouro, levavam uma
liteira de mogno polido, com dossel e incrustada de joias.

Dentro dela, estava sentado um homem frágil, com uma curiosa coroa
em sua delgada e proeminente cabeça. Junto à liteira, caminhava a moça de
pele branca que havia falado desde a torre. Chegaram diante de nós e os

96
escravos se ajoelharam, ainda segurando a liteira, enquanto os nobres
apartavam-se para cada lado, caindo de joelhos. Somente Shakkaru e a
garota permaneceram em pé.

O velho Asgrimm encarou-os, fraco, hirsuto, desconfiado, seu rosto


cheio de rugas, ensombrecido pelas negras plumas de seu novo elmo que se
agitavam sobre ele. E pensei em quão natural aspecto de rei ele tinha, em pé
entre seus gigantescos guerreiros e de espada na mão, comparado com o
homem que repousava estendido na liteira levada por escravos.

Mas eu só tinha olhos para a garota, que vi cara a cara pela primeira
vez. Vestia apenas uma curta túnica sem mangas e com gola baixa, de seda
azul, que chegava a uma mão acima dos joelhos, e nos pés usava suaves
sandálias de couro verde. Tinha os olhos grandes e tranquilos, a pele mais
clara que o leite mais branco e sua cabeleira capturava o sol num ondulante
brilho dourado. Havia uma suavidade em sua forma esbelta, que jamais eu
tinha visto em mulher alguma dos aesires. Havia uma feroz beleza em nossas
mulheres, mas esta moça era tão formosa e sem essa ferocidade. Não
crescera numa terra desolada, como elas, onde a vida era uma batalha
implacável pela existência, tanto para o homem quanto para a mulher. Mas
não me demorei em tais pensamentos; simplesmente permaneci imóvel,
deslumbrado por sua loira irradiação, enquanto ela traduzia as palavras do
rei e as respostas dos roucos grunhidos de Asgrimm.

—Meu senhor lhe disse, "Escute, eu sou Akkheba, sacerdote de Ishtar

97
e rei de Khemu. Que reine a amizade entre nós. Nós precisamos uns dos
outros, pois vocês são homens que vagam cegamente numa terra desolada,
como disse minha bruxaria, e a cidade de Khemu precisa de espadas afiadas
e braços poderosos, pois vem contra nós um inimigo, vindo do mar, que não
podemos rechaçar sozinhos. Permaneçam nesta terra, emprestem suas
espadas, tomem nossos presentes para o vosso prazer e nossas jovens como
esposas. Nossos escravos trabalharão por vocês, e a cada dia lhes sentarão
diante de mesas que rangerão sob as carnes, os pescados, os cereais, o pão
branco, os vinhos e as frutas. Usarão belas roupas e morarão em palácios de
mármore com leitos de seda e fontes brilhantes”.

Asgrimm compreendeu o discurso, pois havíamos visto as cidades da


terra das palmeiras; mas só ao falar em inimigos e manejo de espadas, seus
frios olhos azuis resplandeceram.

—Ficaremos. —respondeu, e rugimos nosso consentimento—.


Ficaremos e arrancaremos o coração dos inimigos que vierem contra nós.
Mas acamparemos fora dos muros, e os reféns ficarão conosco, noite e dia.

—Está bem. —disse Akkheba, com uma régia inclinação de sua


delgada cabeça.

Os nobres de Khemu ajoelharam-se diante de Asgrimm, e teriam


beijado-lhe as suas sandálias atadas em longas tiras, mas ele insultou-os e

98
recuou, aborrecido e desconfortável, enquanto seus guerreiros rugiam com
áspera alegria. Depois, Akkheba regressou à sua liteira, balançando-se nos
ombros de seus escravos, e nos alojamos para um longo descanso de nossas
andanças. Olhei, um longo tempo, para a intérprete de cabeleira dourada, até
que os portões da cidade se fecharam atrás dela.

Assim, permanecemos fora dos muros e, dia após dia, o povo nos trazia
comida e vinho; e enviaram-nos mais garotas. Os trabalhadores vieram e
trabalharam nos jardins, campos e vinhedos, sem nos temerem, e os barcos
de pesca zarparam... estreitas embarcações com proas curvadas e velas de
seda com desenhos de listras. Finalmente aceitamos o convite do rei, e
fomos numa massa compacta, os reféns no centro com espadas
desembainhadas no pescoço, através das portas gradeadas de ferro, para o
interior da cidade.

Por Ymir, como eram grandes os edifícios de Khemu! Com toda


certeza, os senhores atuais da cidade tinham sido gerado por deuses, pois,
do contrário, quem poderia erguer esses muros de basalto, com 24 metros
de altura e 12 metros de base? Ou construir essa grande cúpula dourada, que
se erguia a mais de 150 metros por cima das ruas pavimentadas de mármore?

Enquanto caminhávamos pela espaçosa rua, ladeada por colunas, até a


grande praça do mercado, de espadas na mão, as portas e janelas estavam
cheias de rostos ansiosos, fascinados e assustados. As conversas da praça do
mercado pararam de repente quando entramos nela e as pessoas afastaram-
se das barracas e pontos, para que passássemos. Estávamos alerta como

99
tigres, e o mais leve incidente bastaria para fazer-nos explodir num
repentino massacre. Mas o povo de Khemu era sábio e não houve
provocação alguma.

Com uma reverência, os sacerdotes chegaram, se inclinaram diante de


nós e conduziram-nos ao grande palácio real, de mármore e pedra negra. Ao
lado do palácio havia um grande pátio aberto, pavimentado com lajes de
mármore, e deste pátio umas escadas de mármore, largas o bastante para
subirem dez homens lado a lado, levavam até um estrado onde o rei subia
ocasionalmente para dirigir-se à multidão. Esta ala era de construção mais
velha que o restante do palácio e tinha um teto inclinado de pedra,
cuidadosamente talhado, abrupto e empinado, que se erguia sobre todos os
outros pináculos da cidade, com exceção da cúpula dourada. A beirada desta
ladeira de tijolos estava apenas alguns pés acima do estrado, e nenhum aesir
jamais viu o que esta ala continha; o povo dizia que era o harém de Akkheba.

Além deste pátio, estavam as misteriosas casas, com frontispícios de


colunas, dos sacerdotes inferiores, aos dois lados de uma larga rua
pavimentada de mármore, e, mais além, a alta cúpula dourada que coroava
o grande templo de Ishtar. Por todos os lados, erguiam-se torres
resplandecentes e capitéis de safira, mas a cúpula brilhava serenamente
sobre todas elas, igual à brilhante glória de Ishtar que, disse-nos Shakkaru,
brilhava sobre as cabeças dos homens. Digo que Shakkaru nos disse; nos
poucos dias que haviam passado entre nós, os jovens príncipes haviam
aprendido muito de nosso idioma rude e simples. E, mediante sua tradução
e através de sinais, os sacerdotes de Khemu conversaram conosco.

1 00
Conduziram-nos às altas portas dos templos, mas, observando através
das fileiras de grandes colunas de mármore o misterioso e escuro interior,
tememos uma cilada e nos recusamos a entrar. Eu procurava ansiosamente,
o tempo todo, a jovem de cabelos dourados, mas não a via em parte alguma.
Não mais necessária como intérprete, o silêncio da cidade havia engolido-a.

Após esta primeira visita, voltamos ao nosso acampamento do lado de


fora dos muros, mas regressamos vez ou outra, primeiro em grupos e depois,
quando nossas suspeitas se acalmaram, em grupos menores ou sozinhos.
Todavia, não dormíamos dentro da cidade, embora Akkheba nos convidasse
a erguermos nossas tendas na grande praça do mercado, se nos
desagradavam os palácios de mármore que nos oferecia. Nenhum de nós
jamais havia morado numa casa de pedra ou atrás de muros altos. Nossa raça
morava em tendas de peles curtidas, ou choças de barro e bambu, e nós, os
da longa viagem, dormíamos sobre o solo nu tão frequentemente quanto os
lobos. Mas, de dia, vagabundeávamos através da cidade, maravilhando-nos
diante de seus prodígios, tomando o que queríamos nas barracas, para
desespero dos mercadores, e entrando nos palácios, com precaução, mas ao
nosso bel-prazer, para sermos atendidos por mulheres que nos temiam, mas
pareciam fascinadas por nós. O povo de Khemu era maravilhosamente bom
para aprender; logo falavam nossa língua tão bem quanto nós, embora sua
pronúncia fosse difícil para nossas bárbaras línguas.

Mas tudo isto levou tempo. No primeiro dia após visitarmos a cidade,
alguns de nós voltamos a ela, e Shakkaru nos guiou ao palácio dos altos

1 01
sacerdotes, que estava unido ao templo de Ishtar. Ao entrar, vi a moça dos
cabelos dourados, polindo um rechonchudo ídolo de cobre com um pedaço
de seda. Asgrimm pôs uma pesada mão no ombro de um dos jovens
príncipes.

— Diga ao sacerdote que desejo esta garota para mim. —grunhiu.

Antes que o sacerdote pudesse responder, uma fúria vermelha invadiu


meu cérebro e caminhei em direção a Asgrimm, como um tigre em direção
a seu rival.

—Se algum de nós tomar essa mulher, será Hialmar —grunhi, e


Asgrimm virou-se como um gato, diante do rouco e denso sussurro
assassino de minha voz.

Encaramo-nos tensamente, com as mãos nos cabos das espadas. Kelka


sorriu como um lobo, e começou a deslizar em direção às costas de
Asgrimm, desembainhando cautelosamente sua longa faca, quando
Akkheba falou através do interprete.

—Não, meus senhores, Aluna não é para nenhum de vocês, nem para
qualquer outro homem. É a donzela da deusa Ishtar. Peçam qualquer outra
mulher da cidade e ela será de vocês, até mesmo a favorita do rei; mas esta
mulher está consagrada à deusa.

Asgrimm grunhiu e não insistiu no assunto. O misterioso incenso do

1 02
templo havia impressionado até mesmo sua alma feroz, e embora os aesires
não temessem os deuses de outros povos, ele não desejava, contudo, tomar
uma moça que havia estado em comunhão tão estreita com a divindade. Mas
minhas superstições eram mais fracas que meu desejo por Aluna. Voltei
novamente, vez ou outra, ao palácio dos sacerdotes e, embora não gostassem
muito de minha visita, não quiseram ou não ousaram me proibir a entrada;
e, com tão pobre fundamento, comecei meu cortejo.

O que direi de minhas habilidades para cortejar? Se fosse qualquer


outra mulher, já a teria arrastado até minha tenda, puxando sua longa
cabeleira, mas mesmo sem a proibição sacerdotal, havia algo em meu
interesse por Aluna que afastava minhas mãos da violência. Cortejei-a como
nós, aesires, fazemos com nossas belezas flexíveis e ferozes... ostentando
proezas e com relatos de rapina e matanças. E é verdade, sem exagero, que
meus relatos de batalha e massacres me atrairiam a mais esquiva das mais
selvagens belezas de Nordheim. Mas Aluna era delicada e amável, e
crescera no templo e no palácio, ao invés da choça de bambu e do campo
gelado! Minhas ferozes fanfarrices assustavam-na; não as entendia. E, por
uma estranha perversidade da Natureza, era esta mesma falta de
compreensão que a tornava mais atraente para mim. Ao mesmo tempo, a
selvageria que ela temia em mim fazia-a me olhar com mais interesse do
que tinha para com os homens suaves de Khemu.

Mas, em minhas conversas com ela, tive conhecimento de sua chegada


a Khemu, e sua saga era tão estranha quanto a de Asgrimm e nossa partida.
Não podia dizer grande coisa de onde vivera sua infância, carecendo de

1 03
conhecimentos geográficos, mas havia sido muito longe ao leste, cruzando
o mar. Lembrava de uma costa desolada, açoitada pelas ondas, míseras
cabanas de lama e bambu, e pessoas de cabeleira loira, como ela. Assim,
cheguei a crer que ela provinha de um ramo dos aesires que indicava a
migração mais ocidental de nossa raça nessa época. Tinha talvez nove ou
dez anos quando fora capturada, numa incursão à aldeia por homens
morenos em galeras... não sabia quem eram, e meu conhecimento dos
tempos não me indica, pois na época, os fenícios ainda não haviam lançado-
se ao mar, nem tampouco os egípcios. Não posso fazer mais do que supor
que eram homens de alguma raça antiga, sobreviventes de outra Era, como
o povo de Khemu... destruídos e esquecidos diante da ascensão de raças
mais jovens.

Levaram-na, e uma tormenta empurrou-lhes em direção ao oeste e sul


durante muitos dias, até que sua galera encalhou nos recifes de uma ilha
estranha, onde homens pintados correram até a praia e mataram os
sobreviventes para seus caldeirões de cozinha. Por algum capricho,
perdoaram a garota de cabelos amarelos e, colocando-a numa grande canoa
com gesticulantes crânios ao longo das bordas, remaram até avistar as águas
de Khemu nos altos escarpados.

Ali, venderam-na aos sacerdotes de Khemu para que se tornasse


donzela da deusa Ishtar. Eu supunha que sua posição era sagrada e
reverenciada, mas descobri que era de outro modo. O verme da suspeita se
agitou em minha alma contra os khemuri, ao dar-me conta, em suas palavras,
do cruel e amargo desprezo que tinham por pessoas de outras raças mais

1 04
jovens.

Sua posição no templo não era honrosa e nem digna e, embora


servissem à deusa, não tinham honras, exceto a de que nenhum homem, com
exceção dos sacerdotes podiam tocá-la. Era, de fato, uma simples criada,
sujeita à fria crueldade dos sacerdotes aquilinos. Para eles, não era bela; para
eles, sua alva pele e sua brilhante cabeleira dourada não eram mais que as
marcas de uma raça inferior. E até eu, que não era muito inclinado a exercitar
meu cérebro, tive a vaga ideia de que, se uma garota loira era tão desprezível
a seus olhos, a traição devia espionar por trás das honras que rendiam a
homens da mesma raça.

Através de Aluna, aprendi um pouco sobre Khemu, e algo mais dos


sacerdotes e príncipes. Como povo eram muito antigos. Proclamavam-se
descendentes dos semilendários lemurianos. No passado, suas cidades
haviam coberto o golfo sobre o qual dominava Khemu. Mas algumas foram
engolidas pelo mar, algumas outras caíram diante dos selvagens pintados
das ilhas e outras foram destruídas por guerras civis, de modo que agora,
durante quase mil anos, Khemu havia reinado em solitária majestade. Seu
único contato havia sido com o errante povo pintado das ilhas, o qual, até
um ano antes, vinha regularmente em suas longas canoas de proa alta para
comerciar com âmbar cinza, cocos, dentes de baleia e o coral obtido de suas
ilhas; e mogno, peles de leopardo, ouro virgem, presas de elefante e minério
de cobre, obtido em algum distante e desconhecido continente tropical ao
sul.

1 05
O povo de Khemu era uma raça agonizante. Embora fossem milhares,
muitos eram escravos, descendentes de mil gerações de escravos. Sua raça
não era mais que uma sombra de sua antiga grandeza. Mais alguns séculos
e eles se extinguiriam, mas no mar, em direção ao sul, invisível além do
horizonte, aguardava uma ameaça que podia aniquilá-los a todos em um só
golpe.

O povo pintado havia deixado de chegar para comercializar em paz.


Haviam chegado em canoas de guerra, com o estrondo das lanças nos
escudos cobertos de pele, e um bárbaro cântico guerreiro. Havia surgido um
rei entre eles, o qual havia unido as tribos rivais, e agora lançava-os contra
Khemu... não seus antigos senhores, pois o velho império do qual Khemu
fizera parte havia desmoronado antes que esse povo chegasse às ilhas, desse
continente distante que era o berço de sua raça. Este rei não era como eles;
era um gigante de pele branca, como nós, com enlouquecidos olhos azuis e
cabelos vermelhos como o sangue.

O povo de Khemu tinha visto-o. À noite, suas canoas de guerra,


repletas de lanceiros pintados, haviam atracado na costa e, ao amanhecer, os
assassinos subiram as passagens do escarpado, matando os pescadores que
dormiam em choças ao longo da praia, massacrando os trabalhadores que se
preparavam para lavrar os campos e atacando os portões. Contudo, os
grandes muros resistiram e os atacantes cansaram-se do assalto e se
retiraram. Mas o rei ruivo permanecera diante dos portões, balançando pelos
longos cabelos a cabeça decepada de uma mulher, e gritou seu sangrento
juramento de regressar com uma pequena frota de canoas de guerra que faria

1 06
o mar enegrecer, e derrubar as torres de Khemu no pó manchado de
vermelho. Ele e seus assassinos eram os inimigos que tínhamos sido pagos
para combater, e aguardávamos sua chegada com selvagem impaciência.

E, enquanto esperávamos, nos acostumamos mais e mais com as coisas


da civilização, tanto quanto uns bárbaros podem acostumar-se em tão pouco
tempo. Ainda acampávamos fora dos muros e, dentro deles, continuávamos
com as espadas nas mãos, mas era mais por precaução instintiva do que por
medo de traição. Até Asgrimm pareceu adormecer com uma sensação de
segurança, especialmente depois que Kelka, enlouquecido pelo vinho que
lhe deram, matou três khemurianos na praça do mercado e não houve
vingança de sangue, nem punição, por isso.

Deixamos de lado nossos temores e permitimos aos sacerdotes guiar-


nos à silenciosa caverna em penumbra de um edifício, que era o templo de
Ishtar. Fomos inclusive ao altar secreto, cujos fogos sagrados queimavam
suavemente nas trevas perfumadas. Ali, uma uivante escrava foi sacrificada
no grande altar negro com veios avermelhados, ao pé das escadarias de
mármore que ascendiam na escuridão, até se perderem de vista. Essas
escadas levavam à morada de Ishtar, nos disseram, e por elas subia o espírito
do sacrifício para servir à deusa. História que acreditei que era realmente de
fato, pois quando o cadáver do altar ficou imóvel e os cânticos de adoração
morreram num murmúrio de gelar o sangue, ouvi sons de pranto bem acima
de nós, e soube que a alma nua da vítima contemplava, aterrorizada, a sua
deusa.

1 07
Perguntei, então, à Aluna se, alguma vez, tinha visto a deusa. Ela
tremeu de medo, dizendo que só o espírito dos mortos via Ishtar. Aluna,
jamais pusera o pé na escadaria de mármore que levava à casa da deusa. Era
chamada a donzela de Ishtar, mas seus deveres eram cumprir os caprichos
dos sacerdotes de rosto aquilino e das mulheres nuas de olhos malignos, que
os serviam e que deslizavam como sombras escuras entre as trevas
purpúreas das colunas.

Mas o descontentamento crescia entre os guerreiros, e cansaram-se da


comodidade, do luxo e até das mulheres de pele escura, pois, na estranha
alma dos aesires, só a sede da batalha escarlate e a vagabundagem
permanecem constantes. Asgrimm conversava diariamente com Shakkaru e
Akkheba sobre os tempos antigos; eu estava acorrentado pelo desejo por
Aluna, e Kelka se embriagava todo dia nas tabernas, até cair inconsciente na
rua. Mas os outros bradavam contra a vida que levávamos, e perguntavam a
Akkheba sobre o inimigo que deveriam aniquilar.

—Tenham paciência. —disse Akkheba—. Eles virão, e com seu rei


ruivo entre eles.

III

1 08
Um novo amanhecer ergueu-se sobre as águas resplandecentes de
Khemu. Os guerreiros haviam começado a passar as noites, assim como os
dias, na cidade. Eu fiquei bebendo com Kelka na noite anterior, e dormi com
ele na rua, até a brisa matutina expulsar o topor do vinho em meu cérebro.
Procurando Aluna, desci a rua pavimentada de mármore e entrei no palácio
de Shakkaru, que estava unido ao templo de Ishtar. Atravessei as grandes
estâncias exteriores, onde mulheres e sacerdotes ainda dormiam, e ouvi
repentinamente, atrás de uma porta fechada, o som de fortes golpes sobre
delicada carne nua. Misturados com eles, havia um pranto lastimoso e uma
voz conhecida que, entre soluços, pedia clemência.
A porta estava bem fortalecida, era de mogno reforçado com prata,
mas arrebentei-a como se fosse uma frágil placa de madeira. Aluna
encolhia-se no chão, com sua curta túnica revolta, diante de um sacerdote
de rosto afilado que, com fria maldade, açoitava-a com um cruel chicote que
deixava vergões vermelhos em sua carne nua. Quando entrei, ele virou-se e

1 09
seu rosto ficou acinzentado. Antes que pudesse mover-se, cerrei o punho e
lhe dei tal golpe que esmagou o crânio como uma casca de ovo, além de
quebrar-lhe o pescoço.

O palácio inteiro parecia palpitar diante de meu avermelhado olhar


assassino. Talvez não fosse nem tanto a dor que o sacerdote causara a Aluna
– pois a dor era a coisa mais comum nessa vida feroz –, mas a maneira como
ele havia lhe infligido a dor... e também saber que os sacerdotes a haviam
possuído... Todos eles, talvez.

Um homem não é melhor nem pior que seus sentimentos para com as
mulheres de seu sangue, o que é a única e autêntica prova de consciência
racial. Um homem se apropriará da mulher do estranho, se sentará com ele
para comer carne sem que sinta incomodar sua consciência de raça. É
somente ao ver um estrangeiro em posse de uma mulher de seu sangue, ou
tentando consegui-la, que percebe a diferença entre raça e laço. Assim, eu,
que apertara em meus braços mulheres de muitas raças, que era irmão de
sangue de um selvagem picto, enlouqueci de fúria diante da visão de um
estranho pondo as mãos sobre uma mulher aesir.

Creio que foi o fato de vê-la, escrava de uma raça estranha, e a lenta
ira que isso causou, o que primeiro me levou em direção a ela. Pois as raízes
do amor se afundam no ódio e na fúria. E sua doçura e amabilidade, tão
pouco familiares para mim, fizeram cristalizar essa primeira e vaga
sensação.

110
Permaneci imóvel, com a testa franzida diante dela, enquanto ela
gemia a meus pés. Não a coloquei de pé, nem limpei suas lágrimas como
teria feito um homem civilizado. Se me ocorresse tal ideia, eu iria rechaçá-
la, enfurecido, como indigna de um homem.

Enquanto permanecia assim, escutei gritarem meu nome de repente, e


Kelka entrou correndo na sala, gritando:

—Eles estão vindo, irmão, como disse o velho! Os vigias dos


penhascos correram à cidade com a notícia de que o mar está enegrecido
pelas canoas de guerra!

Com um olhar para Aluna e uma desajeitada incoerência lutando para


expressar-se, me virei para seguir com o picto, mas a moça se ergueu
cambaleante e correu em minha direção, com as lágrimas rolando por seu
rosto e seus braços estendidos numa súplica.

— Hialmar! —gemeu— Não me abandone! Tenho medo! Tenho


medo!

—Agora não posso levá-la comigo —grunhi—. A guerra e a matança


estão diante de nós. Mas, quando voltar, levarei você comigo… E nem os
sacerdotes de todos os deuses irão me deter!

111
Dei um rápido passo em direção a ela, minhas mãos estendendo-se
com desejo... e me afastei, temendo machucar sua carne terna, deixando
minhas mãos vazias caírem aos meus lados. Permaneci atordoado por um
instante, dilacerado por um desejo feroz, com a fala e a ação congeladas pela
estranheza da emoção que me rasgava a alma. Depois me obriguei a ir
embora e segui o impaciente picto pelas ruas.

O sol se erguia quando os aesires foram aos penhascos de coloração


escarlate, seguidos pelos regimentos de Khemu. Havíamos tirado os alegres
enfeites do corpo e da cabeça, os quais usávamos na cidade. O sol nascente
faiscava em nossos capacetes com chifres, nas couraças desgastadas e
espadas nuas. Esquecidos os meses de ócio e libertinagem, nossas almas
ardiam com a selvagem exultação da matança vindoura. Íamos a ela como a
um banquete e, ao marchar, fazíamos entrechocar a espada e o escudo num
ritmo frenético e trovejante, e cantávamos a canção de morte de Niord, que
comeu o vermelho e fumegante coração de Heimdul. Os guerreiros de
Khemu nos contemplavam, assombrados; e as pessoas que abarrotavam os
muros da cidade, agitavam suas cabeças, perplexas, e intercambiavam
murmúrios.

112
Assim chegamos aos penhascos e vimos, como havia dito Kelka, o mar
negro de canoas de guerra, de proa alta e adornadas com crânios sorridentes.
Dúzias dessas barcas já haviam atracado na praia e outras se balançavam
nas cristas das ondas. Os guerreiros dançavam e gritavam na areia, e seu
clamor chegava até nós. Havia muitos, no mínimo três mil. Os homens de
Khemu empalideceram, mas o velho Asgrimm riu como há muitas luas não
o ouvíamos rir, e os anos caíram dele como se fosse uma capa gasta.

Havia meia dúzia de caminhos que levavam, através dos penhascos até
a praia, e por eles deviam subir os invasores, pois os precipícios dos outros
lados eram impossíveis de escalar. Alinhamo-nos diante desses caminhos e
os homens de Khemu ficaram atrás de nós. Pouco poderiam fazer nessa
batalha, mantendo-se na reserva para uma ajuda que não pedimos.

Os guerreiros pintados subiram, gritando em tumulto pelas passagens,


e finalmente vimos o seu rei dominando suas enormes figuras. O sol da
manhã brilhava em sua cabeleira com uma chama escarlate, e sua risada era
como o sopro do vento marinho. Somente ele usava cota-de-malha e elmo,
e em sua mão, sua grande espada brilhava com um resplendor prateado. Sim,
era um dos vanires errantes, nosso parente ruivo de Nordheim. Nada sei de
sua longa viagem, suas andanças e sua saga selvagem, mas deve ter sido
mais feroz e estranha que a de Aluna ou a nossa. Por qual loucura de sua
alma chegou a ser rei desses ferozes selvagens, não consigo imaginá-lo.
Mas, quando viu que tipos de homens lhe enfrentariam, nova fúria penetrou
em seus gritos e, sob suas ordens, os guerreiros coroaram as passagens como
ondas eriçadas de aço.

113
Pegamos nossos arcos, e as flechas assobiaram em nuvens pelos
desfiladeiros. As filas dianteiras foram desfeitas, as hordas recuaram
vacilantes, logo se agruparam e voltaram novamente. Quebramos um ataque
após outro, e um ataque após outro se lançou pelas passagens com
ferocidade cega. Os atacantes não usavam armadura, e nossas longas setas
penetravam os escudos cobertos de pele como se fossem de pano. Não
sabiam usar arco e flecha. Ao chegarem suficientemente perto de nós,
atiraram suas lanças numa chuva uivante e alguns dos nossos morreram.
Mas poucos deles chegaram a um tiro de lança, e menos ainda chegaram ao
fim das passagens. Lembro de um guerreiro enorme, que chegou arrastando-
se pelo desfiladeiro, feito uma serpente, espuma rubra escorrendo de seus
lábios e as extremidades emplumadas das flechas sobressaindo de seu
ventre, costela, pescoço e membros. Uivava como um cão raivoso e sua
mordida agonizante arrancou o calcanhar de minha sandália, enquanto eu
transformava sua cabeça numa ruína vermelha a pisadas.

Uns poucos conseguiram atravessar a chuva cegante de flechas e


chegaram ao combate corpo-a-corpo, mas ali não lhes foi muito melhor.
Nós, aesires, éramos muito mais fortes homem a homem, e nossas
armaduras desviavam suas lanças, enquanto nossas espadas e machados
trespassavam seus escudos de madeira como se fossem de papel. Mas eram
tantos que, se não fosse por nossa posição vantajosa, todos os aesires teriam
morrido nos penhascos e o sol poente teria iluminado as ruínas fumegantes
de Khemu.

114
Mantivemos a posição nos penhascos durante todo o longo dia de
verão, até que, vazias nossas aljavas e desgastadas as cordas de nossos arcos
com os desfiladeiros cheios de cadáveres pintados, lançamos fora os arcos
e, desembainhando nossas espadas, descemos os desfiladeiros e
enfrentamos os invasores mano a mano, lâmina contra lâmina. Haviam
morrido como moscas nas passagens, embora muitos deles se encontrassem
vivos, com o fogo de sua raiva ardendo com mais ferocidade, devido aos
corpos, emplumados de flechas, que jaziam sob nossos pés.

Uma onda de inimigos se lançou rugindo para cima, golpeando com


lanças e com maças de guerra. Os enfrentamos num redemoinho de aço,
fendendo crânios, afundando peitos, e ceifando membros de seus corpos e
de seus ombros, até os desfiladeiros se tornarem uma confusão onde os
homens, a duras penas, conseguiam conservar o equilíbrio nos caminhos
inundados de sangue e abarrotados de cadáveres.

Quando cheguei, finalmente ao rei dos atacantes, o sol poente lançava


longas sombras através das praias escurecidas dos penhascos. O rei se
encontrava num terreno plano, onde a ladeira inclinada corria horizontal
num curto trecho antes de lançar-se novamente para cima. As flechas
haviam-no ferido e as espadas, cortado-o, mas a enlouquecida labareda de
seus olhos não havia se apagado, e sua voz de trovão continuava ameaçando
seus ofegantes, cansados e cambaleantes guerreiros a seguirem adiante. Mas
agora, embora a batalha continuasse raivosamente em outros desfiladeiros,
ele se erguia entre um exército de mortos e só havia, junto a ele, dois
enormes guerreiros, com as lanças cheias de sangue e miolos.

115
Kelka estava bem atrás de mim, quando me lancei em direção ao vanir.
Os dois guerreiros pintados saltaram para me fechar o caminho, mas Kelka
os enfrentou. Saltaram sobre ele pelos lados, com suas lanças assobiando.
Mas, como um lobo que evita um golpe, ele se retorceu além das lâminas
ensanguentadas e, por um instante, as três figuras pareceram dançar juntas;
logo um guerreiro caiu, com o ventre aberto, e o outro caiu sobre ele, com a
cabeça meio separada do corpo.

Enquanto eu saltava em direção ao rei ruivo, nós dois golpeamos ao


mesmo tempo. Minha espada arrancou-lhe o elmo da cabeça e, sob seu
tremendo golpe, sua espada e meu escudo se despedaçaram. Antes que eu
pudesse golpear de novo, ele largou o cabo quebrado e me agarrou como o
faria um urso. Soltei minha espada, inútil a tão curta distância e, abraçados,
lutamos no alto do penhasco.

Estávamos igualados em força, mas a sua fluía dele com o sangue de


vinte ferimentos. Lutando e ofegando devido ao esforço, nos balançamos
fortemente agarrados. Senti minhas têmporas latejarem e vi grandes veias
inchando nas suas. De repente, ele cedeu e caímos de cabeça, rolando pelo
desfiladeiro. Nessa luta inexorável, ninguém ousou tentar desembainhar
uma adaga. Mas, enquanto rolávamos, senti que seus poderosos membros
deixavam de ser tão férreos e, com uma vulcânica erupção de esforço, me
coloquei em cima dele e cravei profundamente meus dedos em sua garganta
nodosa. O suor e o sangue nublavam minha vista, minha respiração ofegava,
mas afundei cada vez mais os dedos. Suas mãos começaram a tatear às cegas

116
e, finalmente, com um dilacerante ofego de esforço, saquei minha adaga e
afundei-a uma vez após outra, até que o gigante jazeu imóvel sob mim.

Quando me ergui, cambaleante, meio cego e tremendo pela


desesperada contenda, Kelka ia cortar a cabeça do rei, mas eu o impedi.

Um grito gemente se ergueu vindo dos invasores e, pela primeira vez,


fraquejaram. Seu rei havia sido o fogo que lhes unia, como uma sentença a
seu destino, durante o dia inteiro. Desfizeram repentinamente suas fileiras e
fugiram pelos desfiladeiros, e derrubamos-nos enquanto fugiam. Seguimos-
nos até a praia, matando-os como se fossem gado e, enquanto corriam para
suas canoas e punham-nas para flutuar, entramos na água até que esta nos
cobriu os ombros, saciando nossa fúria louca. Quando os últimos
sobreviventes, remando como loucos, ficaram a salvo, a praia estava cheia
de formas imóveis, e corpos flutuantes bailavam sobre as ondas.

Só haviam cadáveres pintados na praia e nas águas, mas nos


desfiladeiros, onde o combate fora mais feroz, jaziam setenta aesires mortos.
Do restante de nós, poucos eram os que não tinham nenhuma marca ou
ferimento.

Que matança, por Ymir! O sol descia no horizonte, quando


regressamos dos penhascos, cansados, empoeirados e ensanguentados, com
pouco fôlego para cantar, mas com o coração alegre por causa de nossas
vermelhas façanhas. O povo de Khemu cantou por nós. Saíram da cidade
com grande gritaria, aclamando-nos, e colocando, aos nossos pés, tapetes de

117
seda cobertos de rosas e pó de ouro. Carregamos nossos feridos em liteiras.
Mas, primeiro levamos nossos mortos à praia e quebramos canoas de guerra
para fazer uma grande jangada, a carregamos e ateamos fogo nelas. E
levamos o rei ruivo dos invasores, estendendo-o em sua grande canoa de
guerra, com os cadáveres de seus chefes mais valentes a seu redor para
servirem-no na terra das sombras, e lhe rendemos as mesmas honras que a
nossos próprios homens.

Procurei ansiosamente por Aluna entre a multidão, mas não a vi.


Erguemos tendas na praça do mercado, e ali colocamos nossos feridos, e
curandeiros khemurianos foram até eles e curaram os ferimentos do restante
de nós. Akkheba havia preparado um grande banquete de vitória para nós,
em seu grande salão, e lá fomos, manchados de poeira e sangue. Até o velho
Asgrimm sorria como um lobo faminto, enquanto limpava o sangue seco de
suas mãos nodosas e colocava as vestimentas que lhe foram dadas.

Busquei um espaço entre as tendas onde jaziam os que estavam feridos


demais para caminharem ou serem levados ao banquete, esperando que
Aluna viesse me procurar. Mas não veio, e fui ao grande salão do rei, dentro
do qual permaneciam firmes os guerreiros de Khemu... trezentos, para
render mais honras aos aliados, disse Akkheba.

O salão tinha mais de noventa metros de comprimento, e a metade de


largura. O chão era de mogno polido, coberto com espessos tapetes e peles
de leopardo. Os muros eram de pedra lavrada, com muitas portas arcadas
com placas de mogno, erguendo-se até um alto teto abobadado cobertos com

118
tapeçarias de veludo. Akkheba estava sentado num trono no final do salão,
contemplando a festividade num estrado com um dossel e com fileiras de
lanceiros emplumados a cada lado. Os aesires sentaram na grande mesa que
percorria ao longo de todo o salão, com suas roupas e couraças rasgadas,
manchadas e empoeiradas; muitos com bandagens ensanguentadas,
bebendo, rugindo e se empanturrando, servidos por escravos – tanto homens
quanto mulheres – que faziam reverência.

Chefes, nobres e guerreiros da cidade, com suas armaduras polidas,


estavam sentados entre seus aliados e, para cada aesir, me pareceu que havia
pelo menos três ou quatro garotas, rindo, brincando e submetendo-se às suas
toscas carícias. Suas gargalhadas erguiam-se agudas e estridentes sobre o
clamor. Havia certa irrealidade na cena... uma leve tensão, uma alegria
forçada. Mas não vi Aluna. Assim que dei a volta, entrei por uma das portas
arcadas de mogno, cruzei uma câmara e entrei na outra. Estava tenuemente
iluminada e quase esbarrei no velho Shakkaru. Recuou e pareceu muito
incomodado por me encontrar, por algum motivo. Notei que sua mão
agarrava sua túnica, a qual, segundo Akkheba, todos os sacerdotes usavam
essa noite em nossa honra.

Ocorreu-me uma ideia e expressei-a em voz alta.

—Quero falar com Aluna. — disse — Onde ela está?

—Ela está ocupada com suas tarefas, então agora ela não pode vê-lo,
disse ele. — Vá ao templo amanhã...

119
Ele afastou-se de mim e, numa vaga palidez que detectei sob sua
compleição robusta, e num certo tremor oculto em sua voz, percebi que me
tinha um medo mortal e desejava livrar-se de mim. A desconfiança do
bárbaro se acendeu em meu interior. Num instante, agarrei-lhe o pescoço,
arrancando de sua mão a longa lâmina de aspecto perverso que ele sacara da
túnica.

—Onde está ela, chacal? — rugi — Diga-me, ou...

Pendia de minha mão feito um boneco, seus pés agitando-se longe do


chão, sua cabeça jogada para trás até quase quebrar o pescoço. Com o medo
da morte em seus olhos arregalados, sacudiu violentamente a cabeça, e eu
afrouxei um pouco minha mão.

— Está no altar de Ishtar. — Ofegou — Vão sacrificá-la à deusa...


perdoe minha vida... eu lhe direi tudo... todo o segredo e o plano.

Já ouvira o bastante. Agarrando-lhe pelo cinturão e joelho, girei-o no


ar e arrebentei sua cabeça contra uma coluna. Saltando em direção a uma
porta exterior, corri entre filas de enormes pilares até chegar à rua.

Um silêncio tenso reinava sobre todo o lugar. Não havia multidões na


noite, como havia pensado, celebrando a destruição de seus inimigos. As
portas estavam fechadas e as janelas trancadas. Mal se reluzia alguma luz, e
nem sequer vi uma sentinela. Tudo era estranho e irreal; a cidade, silenciosa

1 20
e fantasmagórica, na qual o único som era a estridente e antinatural festa que
surgia do grande salão de banquetes. Eu podia ver o brilho das tochas na
praça do mercado, onde jaziam nossos feridos.

Lembrava de ter visto o velho Asgrimm sentado na cabeceira da mesa,


com suas mãos manchadas de sangue, e sua cota-de-malha rota e
empoeirada aparecendo sob o manto de seda que usava; suas débeis feições
estavam sombreadas pelas grandes plumas negras que ondulavam sobre sua
cabeça. Ao longo de toda a mesa, as moças abraçavam e beijavam os aesires
meio bêbados, tirando-lhes os pesados capacetes e despindo-lhes as cotas-
de-malha, à medida que o vinho os aquecia.

Próximo ao fim da mesa, Kelka roía um grande osso de boi como um


lobo faminto. Algumas garotas sorridentes importunavam-no, pedindo-lhe
com mimos que lhes desse a espada, até que, repentinamente enfurecido pela
festa e pelos incômodos, deu, à importunadora mais próxima, tamanho golpe
com o osso, que esta caiu ao chão, morta ou inconsciente. Mas as risadas
agudas e a selvagem diversão não diminuíram. De repente, me pareceram
vampiros e esqueletos, rindo sobre um banquete de poeira e cinzas.

Avancei, apressado, pela rua silenciosa, cruzando o pátio e


atravessando as casas dos sacerdotes, que pareciam desertas salvo pelos
escravos. Entrei correndo no pórtico de altos pilares do templo... atravessei
correndo, as trevas profundas, tateando no escuro... irrompi na luz tênue do
altar secreto... e parei, gelado. Sacerdotes menores e mulheres nuas
cercavam o altar em posição de adoração, entoando o cântico do sacrifício,

1 21
segurando taças de ouro para recolher o sangue que fluía pelos sulcos
manchados na pedra. E nesse altar, gemendo em voz baixa, como um cervo
agonizante, estava Aluna.

Sombria era a fumaça de incenso que escurecia o altar; senti meus


olhos se nublando com aquela nuvem vermelha como o fogo do inferno.
Com um alarido inumano que ressoou horrivelmente na abóbada do teto,
atirei-me para frente e os crânios se partiram sob os golpes enlouquecidos
de minha espada. Minhas lembranças desse massacre são caóticas e cheias
de fúria. Lembro-me de gritos frenéticos, o redemoinho de aço, o ruído dos
cortes, o choque dos golpes assassinos, o estalar dos ossos, o respingar do
sangue e a fuga atropelada de figuras, que arrancavam os cabelos e gritavam
por seus deuses, enquanto fugiam... e eu entre eles, possuído por uma fúria
silenciosa e letal, como um lobo, louco por sangue, no meio de cordeiros.
Poucos conseguiram escapar.

Eu lembro, delineada claramente contra um confuso fundo


avermelhado de loucura, uma esbelta mulher nua que estava próxima ao
altar, imobilizada de terror. Uma taça nos lábios, seus olhos relampejantes,
peguei-a com a mão esquerda e estatelei-a contra as escadas de mármore,
com uma fúria que deve ter despedaçado todos os ossos de seu corpo. O
resto, não me lembro bem. Houve uma breve e louca explosão vociferante
de ferocidade, que semeou o altar de corpos mutilados. Depois me ergui
solitário entre os mortos, num altar que era uma confusão total, com poças,
manchas e regos de sangue, e fragmentos humanos espalhados horrível e
obscenamente pelo escuro chão polido.

1 22
Minha espada era arrastada por uma mão repentinamente sem forças,
quando me aproximei do altar com passos vacilantes. As pálpebras de Aluna
se abriram trêmulas, quando a olhei. Minhas mãos pendendo frouxamente
e todo o meu corpo parecia flácido e indefeso.

—Hialmar! – murmurou ela.

Depois, suas pálpebras caíram, os longos cílios sombreando as jovens


faces, e, com um leve suspiro, moveu sua cabeleira loira e inclinou-se como
uma menina que se dispõe a dormir.

Toda minha alma agonizante gritava em meu interior, mas meus lábios
permaneciam mudos com a falta de articulação do bárbaro. Caí de joelhos,
junto ao altar, e, tocando vacilante sua forma delgada com meus braços,
beijei lento e vacilante – como faria um jovem inexperiente – seus lábios
moribundos. Esse ato – esse único e vacilante beijo – foi o único traço de
ternura em toda a dura vida de Hialmar dos aesires.

Toda minha alma agonizante gritava em meu interior, mas meus lábios
permaneciam mudos com a pouca expressividade de um bárbaro. Caí de
joelhos, junto ao altar, e, tocando vacilante sua forma delgada com meus
braços, beijei lento e vacilante – como faria um jovem inexperiente – seus
lábios moribundos. Esse ato – esse único e vacilante beijo – foi o único traço
de ternura em toda a dura vida de Hialmar dos aesires.

1 23
Levantei-me lentamente e permaneci próximo à garota morta, e, com
igual lentidão, recolhi mecanicamente a minha espada. Ao contato familiar
com o cabo, a fúria vermelha de minha raça brotou novamente em meu
cérebro.

Dando um grito terrível, saltei para as escadarias de mármore. Ishtar!


Haviam enviado seu espírito trêmulo à deusa e, seguindo esse espírito de
perto, chegaria o vingador! Só a deusa sangrenta poderia pagar por Aluna.
Meu culto eram os rituais simples do bárbaro. Os sacerdotes haviam me dito
que Ishtar morava nas alturas e que os degraus levavam à sua residência. Eu
supunha vagamente que subiam através de reinos nebulosos de estrelas e
sombras. Mas subi até uma altura que fazia a mente vacilar, até o altar
debaixo de mim tornar-se um vago jogo de tênues luzes e sombras, e a
escuridão me envolveu completamente.

Então, cheguei repentinamente, não a algum vasto domínio estrelado


de divindades, mas a uma grade dourada e, atrás dela, ouvi uma mulher

1 24
soluçar. Mas não era a alma nua de Aluna que gemia diante de algum trono
divino, pois, morta ou viva, eu conhecia seu pranto.

Louco de fúria, agarrei as barras que se torceram e partiram-se em


minhas mãos. Afastei-as como fibras de palha e cruzei-as de um salto, com
meu grito de matança tremendo na garganta. Na tênue luz, vinda de uma
tocha num nicho alto, vi que eu estava numa câmara circular com uma
cúpula, cujos muros e teto pareciam ser de ouro. Havia ali leitos de veludo
e almofadas de seda, e entre eles jazia uma mulher nua, chorando. Vi as
marcas de um chicote em seu corpo alvo e parei, assombrado. Onde estava
a deusa Ishtar?

Devo ter falado em voz alta no meu khemuriano bárbaro, pois ela
levantou a cabeça e olhou pra mim com olhos escuros e brilhantes,
inundados de lágrimas. Havia nela uma estranha beleza, algo exótico e
distante, além da minha compreensão.

—Sou Ishtar —ela me respondeu, e sua voz era como o som de


distantes sinos dourados, ainda que quebrada pelo pranto.

- Você... – ofeguei – Você é Ishtar... a deusa de Khemu?

— Sim! —ela disse, ao mesmo tempo em que se ajoelhou, retorcendo


suas mãos brancas—. Oh, homem... quem quer que você seja... conceda-
me um pouco de clemência, se ainda resta clemência no mundo! Corte
minha cabeça e acabe com esta longa agonia!

1 25
Mas eu recuei e abaixei a espada.

—Vim aqui para matar uma deusa ensanguentada. —grunhi—. E não


para degolar uma escrava soluçante. Se você é Ishtar... quem... onde... em
nome de Ymir, que loucura é esta?

—Escute, e eu lhe falarei! – Clamou, arrastando-se de joelhos em


minha direção e agarrando minha couraça – Limite-se a ouvir, e depois me
conceda o pouco que peço... o golpe de sua espada!

"Sou Ishtar, filha do rei da obscura Lemúria, aquela que o mar engoliu
há muito tempo. Quando menina, me casaram com Poseidon, deus do mar,
e, na pavorosa e enigmática noite nupcial, quando jazia flutuando e sem
dano algum sobre o seio do oceano, o deus concedeu-me o dom da vida
eterna, que chegou a tornar-se maldição nos longos séculos de meu
cativeiro.

"Mas vivi na purpúrea Lemúria, jovem e bela, enquanto minhas


criadas cresciam e envelheciam ao meu redor. Logo Poseidon se cansou da
Lemúria e da Atlântida. Ergueu-se e sacudiu sua cabeleira espumante, e seus
brancos corcéis correram sobre os muros, os pináculos e as torres escarlates.
Mas me levantou suavemente sobre seu seio e me levou intacta a uma terra
distante, onde vivi durante muitos séculos entre uma raça estranha e
benevolente.

1 26
"Então, num dia infeliz, subi a bordo de uma galera da distante Khitai
que, durante um furacão, afundou diante desta costa maldita. Mas, como
antes, fui levada à costa sobre as ondas de meu senhor, Poseidon, e os
sacerdotes me encontraram na praia. O povo de Khemu se diz descendente
da Lemúria, mas era uma raça de súditos, falando uma língua mestiça.
Quando falei com eles em Lemuriano puro, disseram ao povo que Poseidon
havia lhes enviado uma deusa, e o povo caiu de joelhos e me adorou. Mas
os sacerdotes de então eram tão diabólicos quanto os de agora, necromantes
e adoradores do mal, não tendo deus algum, exceto os demônios dos
Abismos Exteriores. Me trancaram nesta cúpula dourada e, usando da
crueldade, arrancaram meu segredo.

"Durante mais de mil anos, fui adorada pelo povo, a quem às vezes
permitiam ver-me de longe, de pé na escadaria de mármore, meio oculta
pela fumaça do sacrifício, ou lhes permitiam ouvir minha voz, falando numa
língua estranha como um oráculo. Mas os sacerdotes... oh, deuses de Mu,
como tenho sofrido em suas mãos! Deusa do povo... escrava dos
sacerdotes!".

— Por que não os destruiu com sua bruxaria? – perguntei.

— Não sou uma bruxa – ela respondeu –, embora pudesse acreditar


que sou uma se eu lhe contasse os mistérios que as Eras me revelaram. Mas
há um feitiço que eu poderia invocar... uma maldição terrível e
esmagadora... se eu pudesse escapar desta prisão... se eu pudesse me erguer
nua, sob o amanhecer e invocar Poseidon. Nas noites tranquilas, eu ouço-o

1 27
rugindo além dos penhascos, mas ele dorme e não ouve minhas chamadas.
Mas, se eu pudesse estar diante da sua presença e chamá-lo, ele poderia
ouvir-me e atender-me. Os sacerdotes são astutos... me afastaram de seus
olhos e de seus ouvidos... durante mais de mil anos, não contemplei o grande
monstro azul...

De repente, nos sobressaltamos os dois. Da cidade, bem abaixo de nós,


erguia-se um clamor estranho e selvagem.

—Traição! – exclamou – Estão matando sua gente nas ruas! Vocês


destruíram os inimigos que temiam... agora, voltam-se contra vocês!

Lançando uma maldição, desci correndo as escadarias, dei um último


olhar angustiado à alva forma imóvel no altar e saí correndo do templo. Da
rua, além das casas dos sacerdotes, erguia-se o entrechocar do aço, uivos de
morte, gritos de fora e os trovejantes gritos de guerra dos aesires. Não
morriam sozinhos. Os gritos de ódio e triunfo dos khemurianos mesclavam-
se a outros, de medo e dor. Diante de mim, a rua, já não silenciosa e
abandonada, fervia de homens combatendo. Das entradas das tendas,
casebres e palácios, surgiam iguais enxames de uivantes habitantes da
cidade, armados, para ajudarem seus soldados, que travavam uma louca
batalha contra os estrangeiros de cabelos amarelos. Chamas de uma centena
de fogueiras iluminavam a cena frenética, como se fossem a luz do dia.

Enquanto me aproximava do pátio, que estava ao lado do palácio do


rei, ao longo das ruas onde corriam homens berrando, um guerreiro aesir

1 28
aproximou-se de mim, cambaleante, longe da tormenta da batalha que se
agitava à distância. Vinha sem armadura, quase encurvado, e, embora
sobressaísse uma flecha de suas costas, era o próprio ventre que ele apertava
com as mãos vazias.

—O vinho estava envenenado. – grunhiu – Fomos traídos e


condenados. Bebemos muito e, com nossas taças, as mulheres nos
seduziram para nos livrarmos de nossas espadas e armaduras. Só Asgrimm
e o picto não as entregaram. Então, as mulheres fugiram repentinamente,
aquele velho abutre do Akkheba abandonou o salão do banquete... e as dores
nos atacaram! Oh, Ymir, minhas entranhas se retorcem como uma corda
cheia de nós! Então as portas se abriram de repente e enxames de arqueiros
lançaram suas flechas sobre nós... os guerreiros de Khemu desembainharam
suas espadas e caíram sobre nós... os sacerdotes que enchiam o salão
sacaram lâminas ocultas de suas túnicas. Escute a gritaria na praça do
mercado, onde cortam as gargantas dos feridos! Ymir, um homem pode rir
do aço frio, mas isto...isto... oh, Ymir!

Caiu sobre o piso, curvado como um arco, a espuma escorrendo de


seus lábios e seus membros retorcendo-se em horríveis convulsões. Corri ao
pátio. Na extremidade mais afastada, diante da rua em frente ao palácio,
havia uma massa de figuras que lutavam.

Multidões de homens de pele escura com armaduras lutavam contra


gigantes seminus de cabelos amarelos, que golpeavam e dilaceravam como
leões feridos, embora suas únicas armas fossem bancos quebrados, armas

1 29
arrebatadas de inimigos agonizantes ou suas mãos nuas, e cujos lábios
estavam manchados com a espuma da agonia que inundavam suas
entranhas. Juro por Ymir que não morreram sós; seus pés pisavam corpos
mutilados, e eram como bestas selvagens cuja ferocidade não é satisfeita até
extinguir-se a última e diminuta faísca de vida.

1 30
IV

1 31
O grande salão do banquete ardia. À sua luz, vi sobre o estrado que se
erguia acima do combate, o velho Akkheba estremecendo-se de terror ante
sua própria traição, com dois guardas robustos nos degraus sob ele. A luta
havia se espalhado por todo o pátio e eu vi Kelka. Estava bêbado, mas isso
não mudava suas qualidades mortíferas. Era o centro de um nó convulso de
figuras que lutavam e cortavam, e sua longa faca se movia velozmente à luz
do fogo, enquanto destroçava gargantas e ventres, derramando sangue e
vísceras sobre o piso de mármore.

Com um rugido rouco e repentino, avancei sobre eles e, num instante,


nos erguemos sozinhos, cercados por um anel de cadáveres.

Sorriu como um lobo, seus dentes rangendo espasmodicamente.

— Havia um demônio no vinho, Hialmar! Arranha minhas entranhas


como um gato selvagem... venha, vamos matar mais alguns antes de morrer.
Veja... o Velho luta seu último combate!

Dei uma rápida olhada no lugar onde, bem na frente do incendiado


salão de banquetes, a frágil figura de Asgrimm se erguia sobre a matilha
revolta. Vi o relâmpago de sua espada e os homens que caíam a seu redor.
Por um instante, suas plumas balançaram-se sobre a horda... logo se
desvaneceram e, sobre o lugar onde estava, fluiu a horda escura.

No momento seguinte, eu estava saltando em direção às escadarias de


mármore, com Kelka atrás de mim. Ceifamos a fila de guerreiros nos

1 32
degraus inferiores e atravessamos. Apareceram atrás de nós para nos fazer
descer, mas Kelka se virou e sua longa lâmina investiu mortalmente contra
eles. Caíram sobre ele, de todas as direções, e ali morreu ele como vivera:
apunhalando e matando em silencioso frenesi, sem pedir nem dar trégua.

Subi os degraus aos saltos, e o velho Akkheba berrou diante da minha


chegada. Havia deixado minha espada quebrada enfiada no peitoral de um
guarda. Com as mãos nuas, avancei sobre os dois guardas nos degraus
superiores. Saltaram para me enfrentarem, dando navalhadas. Agarrei a
lança de um e lancei-o de cabeça pelas escadarias, para que seus miolos se
arrebentassem ao final delas. A lança do outro atravessou minha cota e o
sangue escorreu sobre a haste. Antes que pudesse soltá-la para um segundo
golpe, agarrei-lhe o pescoço e quebrei-o com meus dedos. Retorcendo, em
seguida, a lança e atirando-a para um lado, corri na direção de Akkheba, que
gritou e ergueu-se de um salto, agarrando a beirada lavrada do curvo teto de
pedra atrás do estrado. A loucura do terror deu forças e qualidade ao velho.
Trepou pela inclinação feito um macaco, agarrando-se, com mãos e pés, aos
adornos esculpidos e uivando o tempo todo, feito um cão espancado.

E eu lhe segui. Minha vida escapava pelo ferimento sob minha cota-
de-malha. Estava empapado de sangue, mas minha vitalidade de fera
selvagem não havia diminuído. Mais e mais para cima, subiu gritando e,
cada vez mais pra cima, nos erguemos sobre a cidade, até balançarmos
precariamente sobre o telhado, mais cento e cinquenta metros acima das ruas
uivantes. E então ficamos imóveis, caça e caçador.
Um grito estranho e fantasmagórico soou acima do tumulto infernal,

1 33
que se exaltava sob nós, e acima dos gritos frenéticos de Akkheba. Sobre a
grande cúpula dourada, bem acima de todas as outras torres, erguia-se uma
figura nua, o cabelo voando ao vento do amanhecer, delineada pelo brilho
vermelho da aurora. Era Ishtar, agitando os braços e gritando uma frenética
invocação numa língua estranha. Nos chegou muito debilmente. Havia
escapado da prisão dourada que eu quebrara. Agora erguia-se sobre a
cúpula, chamando o deus de seus pais, Poseidon!

1 34
Mas eu tinha minha própria vingança para consumar. Preparei-me para

1 35
o salto que levaria a nós dois numa queda de cento e cinqüenta metros, para
nos esborracharmos na morte... e, sob meus pés, a sólida construção se
moveu. Um novo frenesi soou nos gritos de Akkheba. Com um estrondo de
trovões, os distantes penhascos caíram ao mar. Houve um longo e
cataclísmico choque, como se o mundo se despedaçasse, e, diante dos meus
olhos assombrados, toda a vasta planície ondulou, cedeu e afundou em
direção ao sul.

Grandes abismos se abriram na planície que se inclinava e,


repentinamente, com um ruído indescritível, um ranger de trovões, e um
estrondo de muros que caíam e torres que se inclinavam, toda a cidade de
Khemu se moveu! Deslizava-se, numa vasta e caótica ruína, para o mar que
se erguia e inchava-se para acolhê-la! Nesse horror deslizante, uma torre
chocava com outra, dobrando-se e desmoronando, reduzindo insetos
humanos que gritavam a pó vermelho, esmagando-os com pedras que caíam.
Onde eu havia contemplado uma cidade arrumada, com muros, tetos e
pináculos, tudo era um louco, retorcido, dobrado e quebradiço caos de pedra
trovejante, onde os capitéis balançavam loucamente sobre as ruínas e caíam
entre estrondos.

1 36
A cúpula ainda cavalgava sobre a catástrofe, sobre ela a figura alva
continuava gritando e gesticulando. Logo, com um rugido espantoso, o mar
se deslocou e se ergueu, e grandes tentáculos de espuma verde se curvaram,
altos como montanhas, e caíram rugindo sobre as ruínas que deslizavam,
subindo cada vez mais alto, até que todo o lado sul da cidade esmagada foi
escondido pelas águas verdes que se revolviam.

Por um instante, o velho telhado que agarrávamos ergueu-se sobre as


ruínas, mantendo sua posição. E, nesse momento, saltei e agarrei o velho
Akkheba. Seu grito de morte ressoou em meus ouvidos enquanto, sob meus
dedos de ferro, senti sua carne ser esmagada como polpa apodrecida, seus
tendões saltarem-lhe dos ossos e os próprios se estilhaçarem.

1 37
Os estrondos do mundo que se quebrava ressoavam em meus ouvidos,
as agitadas águas esverdeadas estavam a meus pés, mas, enquanto a terra
inteira parecia desmoronar e quebrar-se, enquanto a construção se desfazia
sob meus pés e as trovejantes marés verdes me submergiam, afogando-me
em indizíveis profundidades cintilantes, meu último pensamento foi que
Akkheba morrera sob minhas mãos, antes que uma só onda o tocasse. Então,
as ondas engoliram a cidade!

Levantei-me, com um grito, as mãos estendidas como que para afastar


as ondas trovejantes. Hesitei, atordoado pela surpresa. Khemu e o passado
haviam se desvanecido. Eu estava na colina coberta de carvalhos e o sol
pendia à altura de uma mão sobre os carvalhais ressecados. Só se passaram
segundos desde que a mulher fizera aquele gesto diante dos meus olhos.

1 38
Agora continuava me olhando com esse enigmático sorriso, que tinha menos
de zombaria que de compaixão.

—O que aconteceu? – Exclamei aturdido – Eu era Hialmar... Agora


sou James Allison... o mar era aquele Golfo... as Grandes Planícies corriam
então até a costa, e na costa se erguia a cidade maldita de Khemu. Não! Não
posso crer-lhe! Não consigo crer em minha própria razão. Você me
hipnotizou... me fez sonhar...

Ela negou com a cabeça.

— Tudo passou há muito, muito tempo, Hialmar.

— Então, o que foi feito de Khemu? – exclamei.

—Suas destroçadas ruínas dormem nas profundas águas azuis do


Golfo, onde foram submersas nas longas Eras que passaram depois da terra
abrir-se, antes que as águas recuassem e deixassem estas longas estepes
ondulantes.

1 39
—Mas, o que aconteceu com aquela mulher, Ishtar, sua deusa?

— Não era acaso a noiva de Poseidon, que ouviu seu grito e destruiu
a maligna cidade? Ele levou-a, sem dano algum, sobre seu seio. Não podia
morrer, era eterna. Vagou por muitas terras e viveu entre muitos povos, mas
havia aprendido sua lição e ela, que havia sido escrava dos sacerdotes,
transformou-se em sua senhora. Ela que havia sido uma deusa de aparência
cruel, transformou-se em deusa por direito próprio, por força de sua antiga
sabedoria.

"Se transformou em Ishtar dos assírios e Ashtoreth dos fenícios; foi


Militta e Belit dos babilônios, e Derketa dos filisteus. Sim, e ela foi Ísis dos
egípcios e Astarté de Cartago; foi Freya dos saxões, Afrodite dos gregos e
Vênus dos romanos. As raças chamam-na com muitos nomes e adoram-na
de muitos modos, mas é uma só e os fogos de seus altares não se apagaram".

1 40
Enquanto ela falava, ergueu seus límpidos e luminosos olhos escuros
em minha direção; o último e pálido brilho do crepúsculo se refletiu na
glória ondulante de sua cabeleira, negra como a noite, emoldurando a
estranha beleza de seu rosto, distante e exótico além do meu entendimento.
E um grito brotou de meus lábios.

—Você! Você é Ishtar! Então é verdade! E você é imortal... é a Mulher


Eterna... a raiz e o broto da Criação... o símbolo da vida imperecível! E
eu... eu era Hialmar, e conheci o orgulho, a batalha e terras distantes, e a
brilhante glória da guerra...

—Tão certo quanto voltarás a conhecê-la, oh, meu fatigado amigo –


ela disse suavemente –, quando, dentro em pouco, abandonares esta máscara
torta de carne quebrada e vestires um novo adorno, brilhante e esplendoroso
como a armadura de Hialmar!

Então a noite caiu, e não sei pra onde ela foi, mas eu me sentei solitário
na espessura da colina e o vento noturno subiu sussurrando das dunas
arenosas e dos pequenos bosques ressecados, e murmurou entre os galhos
tristes dos carvalhos murchos.

1 41
FIM

1 42
Segundo Rusty Burke, editor e estudioso em Robert
Howard, o poema que se segue seria “das melhores
expressões da crença de Howard de que somos, por natureza,
bestas. Podemos construir civilizações, mas ainda somos
apenas macacos”.

N U N C A A LÉ M D A B E S T A

Tradução de Marco Antonio Collares

Suba até o topo da escada


Onde os fantasmas dos planetas se banqueteiam
Fora do alcance da víbora
Nunca além da Besta.
Ele está lá, na ninhada do abismo,
Onde caem os fogos negros sem nome;
Ele está lá, nas estrelas, se intrometendo,
Onde o sol é uma bola prateada.

1 43
Além de todo o choro ou alegria,
Ele se esconde na nuvem e na grama;
Ele agarra as portas do diabo
E o ferrolho nas portas de Deus.
Construir e se empenhar é comum
Mas você nunca poderá escapar
Diante da paixão selvagem e cega
Da luxúria do macaco primal.

O poema, a seguir, nas considerações do mesmo


Rusty Burke, trata dos ciclos das civilizações, ascendendo
e decaindo, sendo substituídas pelas vagas e hordas
bárbaras que então constroem uma nova civilização. Ela
novamente surge e então declina e cai novamente perante
novos bárbaros, num ciclo ininterrupto de civilização e
barbárie.

UMA CANÇÃO DAS TERRAS

DESPIDAS
Tradução de Marco Antonio Collares

Você relaxou em jardins aonde a brisa soprava


O fragmento trêmulo da flor;

1 44
Mas nós fomos criados em uma terra
Onde a vida era muito difícil.
Você estuprou as uvas de sua alma roxa
Para suas taças de vinho cheias de água;
Descemos até os restos do buraco lamacento
E isso era amargo com álcali.
E você ficou flácido e com os membros redondos,
Lhe falta de coragem e respiração;
Mas nos tornamos robustos, magros e sombrios
Em nossas garras nuas com a Morte.
A seda era muito dura para sua pele delicada,
O vinho tinto era muito pobre para a sua seca;
Nós caçamos em buracos onde a chuva ficava,
E despimos o lobo sob nossa influência.
Redondas eram suas barrigas, macias suas mãos,
Macios com a gordura da terra;
Tua era a riqueza de uma terra sorridente,
Nossa era a escassez do deserto.
Você cantou debaixo da árvore de gafanhoto,
Esquecido da fome e do ódio:
Sempre foi, sempre será!
Mesmo assim, estávamos no seu portão.
Você relaxou perto da fonte e do salão dourado
Até aquela manhã frenética
Quando estouramos os portões e rompemos a parede
Para cortá-lo como milho.

1 45
Colhemos o rendimento e aramos os campos;
Com partes vermelhas pingando,
E você não poderia lutar e correr,
Só poderia morrer como lebres.
Grim iria trocar, vermelha troca,
Com espadas pingando para as moedas conquistar,
E suas mulheres gritarem na areia pisoteada
Com lombos machucados e sangrando.
Hábil era o cérebro e habilidosa era a mão
Moldada na pedra teimosa,
Mas o cérebro derramou na areia sangrenta
Quando o ferro rachou o osso.
A mão que traçou o friso dourado,
Rolou na página escrita,
Não poderia virar o aço acionado,
Apoiado pela raiva primitiva.
De que valem a harpa e o alaúde,
Cinto com gemas e capa roxa,
Quando o machado pingando estava atingindo a casa
Na chama e na fumaça ofuscante?
O sangue manchava seu cetim, seda e renda.
Você ouviu seus filhos gemer,
E seus anciões uivaram no mercado
Onde retiramos a pele do osso.
E onde seus juízes barbudos sentaram
Ordenando aos homens que vivessem ou morressem,

1 46
Um assassino nu rugiu e acenou
Um couro cabeludo ensanguentado no alto.
Sobre as ruínas arqueadas e espiraladas
As ondas ondulantes da nuvem de fumaça;
E você que viveu quando a espada estava cansada,
Você vive tal como nossos escravos.
Nossas mãos duras agarram suas taças de ouro,
Nossos pés ásperos esmagam suas flores;
Nós colocamos nossos cavalos em estábulos em seus corredores,
E toda a sua riqueza é nossa.
Nós trocamos nossos troncos de pele de lobo por sedas,
Nós os usamos desajeitadamente,
Nossos olhos estão sombrios, nossas barbas não aparadas,
Nossos bloqueios emaranhados fluem livremente.
Mas nossos filhos vão aparar suas barbas e cabelos,
Usarão capas de tom carmesim;
Eles vão levar suas filhas para suas camas,
Até que fiquem macios como você.
Eles vão trocar sua liberdade por harpas e alaúdes,
Descartar o arco e o dardo;
Eles vão construir uma prisão de cetim e ouro,
E chamá-las de Cultura e Arte.
Eles vão deitar no colo de uma terra sorridente,
Até que sua ferrugem desfaça e apodreça,
E eles desprezarão seu sangue e a mão calejada,
E os pais que os geraram.

1 47
Mas nossos irmãos ainda vivem no deserto escaldado pelo sol
E seus filhos são duros e magros;
Eles vão caçar a matilha dos lobos que perseguimos,
E beber a água que bebemos.
As fomes que sabíamos, eles também saberão,
As cicatrizes de presas e sarças;
Nas rochas onde eles se agacham
Quando as tempestades de areia sopram
Eles encontrarão as marcas de nossos fogos.
Eles conhecerão as fomes que uma vez tivemos,
Enquanto corre o fluxo dos séculos,
Até que eles explodirão no deserto, loucos de fome,
Para massacrar nossos filhos preguiçosos.

1 48
1 49
Adeson Moraes
Afrânio Willian Tegão
Alexsandre de Lira Silva
Corwin Gothcrom
Edgar Rupel
Endeusa Marius
Eliezer Martins
Emerson Silva
Fabio Moreira de Melo
Fernando Donizetti
Gustavo Henrique Lemos
Henry Bernardo
Jonatas Faria Rossetti
João Dinardi de Castro
Karolyne da Rocha Bastos
Leonardo Franco Miranda
Leone Lúcio
Luiz Alfredo Bexiga
Marco Antonio Collares
Marcos Flávio Rodrigues
Mariana Bernardes
Mateus Martinbianco Bauer
Pedro Henrique Gonçalves Ferreira
Robilam Corrêa Júnior
Rodrigo Chiesa
Ronan Barros
Sebastião Alves
Valter F. Viana

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