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EDITORIAL.......................................................................05
INTRODUÇÃO..................................................................07
REVIEW – A Maldição do Deus
Carmesim............................................................................11
CONTO – A Maldição do Deus
Carmesim............................................................................14
REVIEW – Aqueles que Caminham até o
Valhalla..............................................................................55
CONTO - Aqueles que Caminham até o
Valhalla..............................................................................60
POEMA – “Nunca Além da
Besta”...............................................................................141
POEMA – “Uma Canção das Terras
Despidas”.........................................................................142
APOIADORES................................................................148
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4
Por Marco Antonio Collares
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fantasia, Jean Gabriel Álamo. Isso sem falar nas ilustrações originais que
pretendemos trazer nas próximas edições, com a participação de artistas
nacionais. Mas que critério será escolhido para os contos a serem traduzidos
e publicados em cada edição dessa revista quinzenal? Em teoria, nenhum.
Não, melhor dizendo, de preferência, os contos daqueles ciclos howardianos
não tão conhecidos ou que, talvez, possam ser (re) pensados a partir de um
olhar mais aprofundado, expressando a grandiosidade das linhas escritas. Na
primeira edição, a escolha recaiu sobre dois personagens interessantíssimos:
James Allison, dos ciclos de “Memórias Raciais” e Kirby O’Donnel, dos
ciclos de aventura e ficção histórica de Howard, o primeiro conto
denominado de “A Maldição do Deus Carmesim”, o segundo, intitulado de
“Caminhantes de Valhalla”. O primeiro, traduzido por Marcelo Alves e o
segundo, por Neeser. Provavelmente o leitor e fã do cimério Conan não
conhece tais contos, conhece pouco ou sequer sabe que Howard era um
escritor prolífico que muito ultrapassou seu mais famoso personagem, sendo
um gênio da escrita pulp de sua época histórica, os anos 1920/1930. Com
essa revista, esperamos então ajudar a divulgar ainda mais esse grande
escritor da contemporaneidade, desvelando outros tantos personagens e
narrativas vibrantes que certamente irão conquistar ainda mais o público
brasileiro. Nossa intenção, podemos afirmar, é apenas essa. Nos damos por
satisfeitos caso o mestre de Cross Plains seja finalmente reconhecido por
seu gênio criativo e visto para além de suas mais famosas criaturas.
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Por Marcelo Souza e Marco Antonio Collares
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O projeto desta revista digital destina-se a todos os fãs da obra de
Robert E. Howard e tem o intuito de trazer a diversidade de contos que o
autor escreveu ao longo de sua breve carreira como escritor. Nessas páginas,
o fã e sedento leitor terá a opotunidade de encontrar histórias (contos,
novelas, poemas, etc.) que são inéditas ou tem a sua circulação restritas aos
circulos de estudiosos da obra de Howard mas que ainda não foram
disponibilizados ao público em geral.
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O segundo conto, “Aqueles que Caminham até o Valhalla” – muitas
vezes traduzido como “Caminhantes do Valhalla” (Marchers of Valhalla)
– traz a aparição de outro personagem howardiano para o leitor “desgustar”
na leitura desta revista. Trata-se do personagem chamado James Allison.
Um personagem que, diferente dos bárbaros howardianos, é um homem do
início do século XX e que vive uma vida tediosa no Texas. Aleijado e
amargurado, James Allison carrega uma doença terminal que o consome.
Vive uma vida solitária que só é esquecida quando ele se lembra de suas
vidas passadas antes dessa Era Contemporânea. Aqui temos um tipo de
narrativa que os especialistas na obra de Howard chamaram de “memória
racial”, em que um personagem, viajando no tempo em Eras passadas,
recorda que nasceu, cresceu, guerreou, amou e envelheceu em uma
determinada etnia tribal bárbara de povos proto-europeus, chamados, dentro
do universo mitológico de Howard, de aesires e vanires.
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envolvidos na trama. Mas, já resenhamos muito aqui e deixaremos para o
leitor o melhor, que é a leitura, ou como alguns dizem, “o prazer da leitura”
de um autor como Robert E. Howard. BOA LEITURA!
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A M A LD I ÇÃ O DO DE U S
C A R M E SI M
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A H I ST Ó R I A P O R T R Á S DO C O N T O
Por Marcelo Souza
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Ilustração da capa do livro de Robert E. Howard, “Kirby O’Donnell, Caçador
de Tesouros”, feita pea PROVIDENCE Press e publicada em fevereiro de 2018
na Itália.
Anos se passariam para que, após a morte do autor, esse conto fosse
finalmente publicado, mas com armadilhas. No início dos anos 50, quando
L. Sprague de Camp levou a cabo o espólio dos papéis e manuscritos de
Robert E. Howard, ele encontrou o manuscrito e o reescreveu como uma
história de Conan, limitando-se a mudar apenas alguns nomes da trama (o
personagem Hassan passou a ser Sassan e assim por diante), rifles foram
substituídos por arcos e flechas e montanhas afegãs por algumas
montanhas remotas da Era Hiboriana (assinando a nova versão da história,
como se ele tivesse feito algo de bom com ela). O resultado, «The Blood-
Stained God» ("O Deus manchado de sangue") foi publicado no
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volume «Tales of Conan» ("Contos de Conan") em 1955. A versão
original teria que esperar quase vinte anos antes de aparecer como ela
realmente foi escrita. Por isso que na maioria das edições publicadas em
outros países, esse conto aparece como a terceira história da saga de Kirby
O’Donnell, o que seria incongruente quando se lê os três romances: no
final de "A Maldição do Deus Carmesim", O'Donnell fará amizade com
Yar Mohammed, que se torna seu irmão de sangue. O guerreiro Waziri
reaparecerá em "As Espadas de Shahrazar", reconhecendo O'Donnell com
alegria ao encontrá-lo novamente.
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A M A LD I ÇÃ O D O
DE U S C A R M E SI m
Tradução e Revisão: Marcelo Souza
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CAPÍTULO 1
No Beco de Satã
E
stava escuro, como a boca de um lobo, aquele fedorento beco
afegão pelo qual Kirby O’Donnell, com seu disfarce de
espadachim curdo, avançava em uma busca tão impenetrável como
a escuridão que lhe rodeava. Foi um agudo uivo de dor que fez com que
mudasse por completo o rumo de sua busca. Os gritos de dor e agonia não
eram um som estranho nos labirínticos becos de Medina el Harami, a Cidade
dos Ladrões, e nenhum homem tímido ou sensato poderia pensar em
interferir em assuntos que não eram de seu interesse. Mas O’Donnell não
era nenhum dos dois, e havia algo arraigado em sua alma irlandesa que não
lhe permitia ouvir um grito de dor sem tentar prestar ajuda.
Obedecendo aos seus instintos, ele se virou para um raio de luz que,
concidentemente ao lado dele, atravessava a escuridão. E no instante
seguinte, estava espiando por uma fenda em uma janela fechada numa
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parede de pedra. O que viram seus olhos despertou uma maré vermelha de
fúria em sua mente, apesar do fato de que sua alma já estivesse endurecida
depois de tantos anos de aventuras nas terras mais cruéis do mundo.
Ele olhava para uma ampla sala, com paredes cobertas por cortinas de
veludo e o chão repleto de tapetes e divãs caros. Ao redor de um desses
divãs estava agrupado quase uma dúzia de homens... Sete bravos yusufzai
de pele escura, e mais dois, que eram difíceis de identificar. No divã estava
estendido outro homem, um nativo da tribo Waziri, nu até a cintura. Era
um homem corpulento, mas os rufiões, tão grandes e musculosos como
ele, seguravam seus tornozelos e pulsos. Quatro deles forçaram-no a
permanecer deitado no divã, incapaz de se mover, embora seus músculos
se debatessem, sofrendo violentos espasmos nos membros e na altura dos
ombros. Seus olhos resplandeciam com um brilho avermelhado e seu peito
largo brilhava de suor. Havia uma boa razão para isso. O'Donnell viu um
homem grande, com um turbante de seda vermelha, usando uma pinça de
prata, puxando um pedaço de carvão incandescente dentro de um braseiro,
para trazê-lo ao peito nu do cativo, que mostrava queimaduras de brasas
anteriores.
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Outro homem, ainda mais alto que o de turbante vermelho, resmungou
uma pergunta que O'Donnell não entendeu. O waziri balançou a cabeça
violentamente e cuspiu no interrogador. No instante seguinte o carvão
incandescente caiu em seu peito peludo, arrancando um brado desumano
do homem torturado. E, nesse mesmo momento, O'Donnell se jogou, com
todo o seu peso, contra a janela.
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com a cimitarra na mão e o kindhjal na outra. Os torturadores se viraram
e olharam perplexos para ele.
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Ele estava certo quanto a isso, pois o homem de turbante vermelho
empunhou uma faca e o homem alto, um sabre.
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os outros três se aproximando pelos lados.
Não havia mais ninguém entre ele e o waziri no divã. Ele saltou direto
em direção aos quatro homens, que ainda estavam segurando pulsos e pés
do prisioneiro. Soltaram o homem, gritando alarmados, e pegando seus
tulwars. Um deles lançou uma punhalada cruel no waziri, que rolou do
divã para o chão, evitando o ataque. Um segundo depois, O'Donnell ficou
entre o prisioneiro e seus captores. Estes, por sua vez, começaram a
assediar o americano, que recuou, puxando o waziri.
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—Saia daqui! Vá em frente! Rápido!
O waziri, fraco e trêmulo pela tortura que havia sofrido, descobriu uma
trava, abrindo a porta que levava a um pequeno pátio fechado.
O’Donnell ficou entre a porta e o pátio, com suas duas lâminas de aço
afiado e mortal. O Waziri tropeçou no pátio, enquanto os homens de dentro
da casa se lançavam uivando contra o americano. Mas na abertura estreita
da porta, seu próprio número jogava contra eles. O americano riu e xingou,
enquanto defendia estocadas e se esquivava dos golpes. O homem de
turbante vermelho, atrás de seus homens suados, estava empenhado em
incentivá-los, aproveitando para dedicar ao intruso curdo todos os insultos
que conhecia. Jallad estava tentando fazer um bom corte na direção de
O'Donnell, mas seus próprios homens estavam bloqueando seu caminho.
Então, com a velocidade de uma cobra, a cimitarra de O'Donnell deslizou
entre a lâmina de um tulwar, e um yusufzai, depois de sentir o aço frio em
suas entranhas, caiu no chão moribundo. Jallad, que estava investindo
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fundo em uma estocada, tropeçou no homem morto e caiu no chão.
Instantaneamente, a porta foi bloqueada por diferentes atacantes, que
lançavam maldições e xingavam enquanto tentavam se organizar. Mas
antes que pudessem fazê-lo, O'Donnell virou-se e correu pelo pátio em
direção ao muro pelo qual o Waziri havia desaparecido.
CAPÍTULO 2
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Os caminhos da suspeita
F
Oi a fraca luminescência de uma lanterna sobre seu rosto que tirou
O'Donnell da inconsciência. Ele sentou-se, piscando e
sobressaltado, tateando em busca de sua espada. Então a luz se
apagou e, na escuridão reinante, uma voz soou:
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Hassan riu—. Mas é melhor você guardar o aço para seus inimigos.
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—É isso que eu sei — disse Hassan—. Nas montanhas, não muito
longe desta cidade, mas escondido em um local quase inacessível, há um
templo antigo em que as pessoas não ousam entrar. A região é proibida
aos Ferengi, mas um certo inglês chamado Pembroke encontrou este
templo por acidente e, ao entrar nele, descobriu um ídolo coberto de jóias
vermelhas, que chamou de Deus manchado de sangue. Embora não
pudesse levá-lo, ele desenhou um mapa, com a intenção de voltar para lá.
Ele conseguiu sair das montanhas sem sofrer um único arranhão, mas foi
esfaqueado em Cabul por um fanático e morreu lá. Mas, antes de morrer,
deu o mapa a um curdo chamado Ali el Ghazi.
—O mapa foi roubado —disse Hassan—. Por quem, isso é algo que
você já sabe.
—Eu não sabia na época —rosnou O'Donnell—. Mais tarde, soube que
os ladrões eram um inglês chamado Hawklin e um príncipe afegão
deserdado chamado Jehungir Khan. Um servo rebelde estava espionando
Pembroke quando ele estava agonizando, e contou-lhes do mapa. Eu não
conhecia nenhum deles de vista, mas consegui localizá-lo nesta cidade.
Hoje à noite soube que eles estavam escondidos em algum canto do beco
de Satã. Procurava as cegas por alguma pista do possível esconderijo dele
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quando entrei nessa luta.
—Você lutou com eles sem saber que eram os homens que você estava
procurando! — disse Hassan—. O waziri é Yar Mohammed, um espião de
Yakub Khan, o chefe Jowaki proscrito. Eles o reconheceram e o
convenceram a acompanhá-los até essa casa, e estavam queimando-o para
forçá-lo a revelar os caminhos secretos para atravessar as montanhas,
conhecidos apenas pelos espiões de Yakub. Então você apareceu e já sabe
o resto.
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Jallad, o Executor, pois matou muitos homens.
—Nada! Como você, eu também quero esse deus vermelho. É por esse
motivo que segui Hawklin aqui. Mas sozinho não consigo enfrentar com
toda a gangue dele. Nem você. Mas podemos unir forças. Vamos seguir
esses ladrões e tirar o ídolo!
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O persa o conduziu por becos estreitos e intrincados, repletos de
varandas ornamentadas, e por labirintícos becos fedorentos, finalmente
parando em frente à porta iluminada de um pátio fechado. Depois de bater
com os nós dos dedos, um rosto barbudo apareceu em uma pequena janela
e, depois de murmurar certas palavras, a porta se abriu. Hassan entrou
confiante, mas O'Donnell o fez desconfiado, quase esperando uma
armadilha de algum tipo, pois ele tinha muitos inimigos no Afeganistão, e
Hassan era um estranho. Mas as montarias estavam lá, e uma ordem seca
do guardião do estábulo fez com que servos sonolentos os selassem os
cavalos, enchendo seus alforjes com pacotes de comida. Hassan comprou
um par de rifles de alta potência e cinturões separados cheios de cartuchos.
Pouco tempo depois eles estavam cavalgando juntos, saindo pela porta
oeste da cidade, ignorando os gritos do guarda sonolento. Os homens vão
e vêm nas horas mais inoportunas de Medina el Harami (que, nos mapas,
aparece com outro nome, embora as pessoas jurem que seu primitivo nome
muçulmano se encaixa muito melhor).
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Hassan, o persa, era um homem baixo, mas musculoso, com um rosto
largo e olhos escuros e alertas. Empunhava o rifle com habilidade e levava
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pendurada, do lado dele, uma cimitarra. O'Donnell sabia que, se
necessário, lutaria com astúcia e coragem. E ele também sabia até que
ponto podia confiar em Hassan. O aventureiro persa jogaria limpo desde
que sua aliança fosse lucrativa. Mas se chegasse o momento em que não
visse mais necessário a ajuda de O'Donnell, ele não hesitaria em assassinar
seu parceiro se tivesse a chance, a fim de ficar com todo o tesouro. Homens
do estilo de Hassan são tão implacáveis como uma cobra.
Hawklin também era como uma cobra, mas O'Donnell não estava
preocupado com sua inferioridade numérica... pois ele deveria estar lidando
com cinco homens bem armados e desesperados. Com sua frieza
característica, ele decidiu que se preocuparia com isso quando chegasse a
hora.
—Foi aqui que eles deixaram o caminho —disse Hassan—. Até aqui é
a trilha deixada por Hawklin. Não seremos capazes de segui-lo por essas
rochas. Você estudou o mapa quando estava em sua posse... Para onde
avança a rota a partir daqui?
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—Esse mapa era um quebra-cabeça e eu não o tinha comigo o tempo
suficiente para descobrir. A rota principal, localizada em um caminho
antigo que leva ao templo, deve estar em algum lugar por aqui. Mas é
indicado no mapa como "Castelo de Akbar. E nunca ouvi falar de um
castelo assim, ou de ruínas que são chamadas assim ... Nem aqui ou em
qualquer outro lugar.
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e a memória de O'Donnell não havia falhado. Os excrementos de cavalos
indicavam que um grupo de cavaleiros havia passado recentemente por
esse caminho quase turvo. Hassan disse que era o grupo Hawklin e
O'Donnell concordou.
—Eles vão direto para o Castelo de Akbar, assim como nós. Estamos
encurtando a distância que nos separa deles. Mas não estamos interessados
em chegar muito perto. Nos superam em número. É do nosso interesse
ficar fora da vista deles até conseguirem o ídolo. Então vamos emboscá-
los e tirá-lo deles.
—Mas devemos ser cautelosos — disse ele—. Pois a partir deste ponto,
a região pertence a Yakub Khan, que rouba a todos que encontra. Se eles
soubessem os caminhos ocultos, poderiam evitá-lo. Agora, devem confiar
na sorte para não cair em suas mãos. E nós também teremos que estar
alertas! Yakub Khan não é meu amigo e odeia curdos!
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CAPÍTULO 3
Espadas nos penhascos
—Se esse waziri conseguiu voltar para Yakub Khan —disse Hassan,
enquanto andavam em direção a um desfiladeiro estreito que se abria no
sopé das montanhas que os cercavam— os jowakis estarão obviamente
alertas contra estranhos. Embora Yar Mohammed não suspeitasse da
verdadeira identidade de Hawklin e não descobrisse o que ele estava
procurando, também. Yakub Khan não saberá. Acho que ele sabe onde
fica o templo, mas é supersticioso demais para aproximar-se. Fantasmas o
assustam. Ele não sabe nada sobre o ídolo. Pembroke deve ter sido o único
homem que entrou naquele templo sabe Allah quantos séculos atrás. Em
Peshawar, ouvi a história dos lábios de um criado dele, morrendo de
mordida de uma serpente. Hawklin, Jehungir Khan, você e eu somos os
únicos homens vivos que conhecem a existência desse deus...
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Eles ficaram assustados quando um Pathano magro, com rosto de
falcão, veio cavalgando em direção a eles da boca do desfiladeiro.
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tateando as moedas. E, naquele instante, um feroz triunfo ardeu na face
escura do jowaki e, com um movimento tão rápido quanto o de uma cobra,
ele tirou uma adaga do cinto e golpeou o desprevenido persa.
Entretanto, por mais veloz que possa ter sido o jowaki, O'Donnell foi
ainda mais rápido, pois havia sentido a armadilha que estava preparando
para eles. Quando a adaga se aproximou da garganta de Hassan, a cimitarra
de O'Donnell brilhou à luz do sol, e os aços colidiram. A adaga caiu das
mãos do beduíno e, com um zumbido, foi parar na coronha do rifle ao lado
da sela. Mas antes que ele pudesse recuperar sua arma, O'Donnell atacou
novamente, rachando o turbante e o crânio do homem. A montaria do
jowaki empinou, jogando o cadáver para a frente, e O'Donnell retirou a
espada.
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lâmina larga. A montaria enlouquecida de Hassan o levou direto em suas
garras, e o persa lutou em vão para freá-la. De repente, ele abandonou suas
tentativas e, segurando o rifle, começou a disparar enquanto cavalgava.
Um dos cavalos tropeçou e caiu, derrubando o cavaleiro no chão. Outro
deles levantou os braços para o céu e caiu fulminado. O terceiro jogou em
Hassan umas estocadas selvagens quando seu animal enlouquecido passou
por ele, mas o persa se agachou, esquivando-se da lâmina e escapou para
o desfiladeiro.
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quando sua montaria caiu.
—Aquele espião waziri deve ter conseguido voltar para Yakub Khan
—ofegou Hassan—. Eles não querem ouro, mas sangue. Você acha que
eles mataram Hawklin?
—Hawklin deve ter passado por esse desfiladeiro antes que os jowakis
chegassem para preparar a emboscada —respondeu O'Donnell. Ou eles o
estavam seguindo quando nos viram chegando, e montaram essa
armadilha para nós. Parece-me que Hawklin está em algum lugar à nossa
frente.
—Não importa — disse Hassan—. Este cavalo não pode nos levar
muito mais longe. Ele se cansa rapidamente. Suas montarias devem estar
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mais descansadas. É melhor encontrarmos um lugar onde possamos dar a
volta para lutar. Se conseguirmos segurá-los até o anoitecer, talvez
possamos fugir mais tarde.
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—E em alguns minutos, Yakub Khan aparecerá atrás de nós, e
estaremos entre a espada e a parede! —O'Donnell riu baixinho, mas a
situação era desesperadora. Com os inimigos bloqueando o caminho das
montanhas, e os outros inimigos avançando pelo desfiladeiro atrás deles,
eles estavam completamente presos.
—Saia daí, para levar um tiro, seu canalha! —Hawklin não fez nenhuma
tentativa de esconder que era britânico—. Eu te conheço, Hassan! Quem é
esse curdo que está com você? Pensei que o tivesse quebrado na noite
passada!
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bem quem você é! Bem, isso não importa agora! Conseguimos encurralá-
lo e você não pode se mover!
Hawklin fez um sinal por cima do muro com sua cabeça com um
turbante. Evidentemente, confiava no senso de honra dos dois homens que
odiava e não tinha medo de um tiro de traição.
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sabia que tipo de pena podia esperar de Yakub Khan. E conhecia a perícia
em combate dos dois aventureiros... e sabia até que ponto a ajuda deles
poderia contar em uma luta até a morte.
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desfiladeiro. Os jowakis haviam desmontado e estavam rastejando pela
clareira, aproveitando cada pequeno espaço coberto. Os rifles deles
brilhavam por trás de todo toco de pedra e cada arbusto frondoso.
—De todo modo, ainda é uma quantidade suficiente para cortar nossos
pescoços —disse O'Donnell, apertando o gatilho. Um homem que saltava
em direção a uma pedra foi fulminado e os guerreiros ocultos uivaram de
raiva—. De qualquer forma, nada impede que Yakub Khan envie alguém
para pedir reforços. Sua vila não fica a muitas horas a cavalo daqui.
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A conversa deles seguia o ritmo dos firmes estampidos de seus rifles.
Os Jowakis, bem escondidos, deixaram de sofrer vítimas com o tiroteio.
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o silêncio dos defensores os tivesse levado a acreditar que eles estavam
sem munição. Ou talvez a sede de sangue que ardia nas veias os tivesse
deixado de lado a astúcia. De qualquer maneira, trinta e cinco ou quarenta
homens subitamente saíram ao ar livre e se lançaram para cima com um
uivo de uma alcateia de lobos. Eles dispararam seus rifles aleatoriamente,
e logo estavam na barreira com seus punhais de um metro de comprimento.
—As balas não vão detê-los! —Hawklin uivou, disparando seu último
cartucho de seu rifle—. Defendam o muro ou seremos homens mortos!
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acima de seus corpos despedaçados, a horda continuou avançando contra
a parede até alcançá-la. Por toda a muralha ressoavam golpes que
quebravam ossos, os tinir de aço atingindo o aço e os gemidos dos
moribundos. O punhado de defensores ainda mantinha a vantagem de uma
posição privilegiada, e a base do muro estava cheia de cadáveres
empilhados antes que os jowakis conseguissem pisar no outro lado da
barricada. Um homem da tribo de olhos selvagens colocou a ponta do cano
de um velho mosquete contra o rosto de Akbar, e a descarga explodiu a
cabeça do yusufzai. Um uivante jowaki deslizou pela abertura estreita
deixada pelo cadáver, subindo a parede antes que O'Donnell pudesse evitá-
lo. O americano recuou com a intenção de carregar o rifle, mas descobriu
que não havia cartuchos no cinto. Só então ele viu o jowaki selvagem
subindo na parede. Ele correu em direção ao homem, segurando o rifle
como um taco, enquanto o beduíno largou o mosquete para brandir uma
faca comprida. Antes que ele pudesse tirá-la da bainha, O'Donnell golpeou
nele com o rifle, esmagando seu crânio.
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terceiro, escalando a parede, agarrou o americano com as mãos de gorila
e o abraçou, tão perto que ele foi incapaz de usar seu bastão improvisado.
Meio sufocado por aqueles dedos peludos na garganta, O'Donnell puxou
seu kindhjal e cravou-o cegamente, várias vezes, até que o sangue escorreu
por sua mão e, com um rugido, o jowaki o soltou e precipitou-se pela beira
do muro.
Mas a vitória tinha sido cara. Sulimán estava estendido na parede, com
a cabeça quebrada como um ovo. Akbar estava morto. Yusuf estava
morrendo, com uma facada no abdômen, e seus uivos eram terríveis.
Enquanto O'Donnell o observava, Hawklin implacavelmente terminou sua
agonia com uma bala na cabeça. Então o americano viu Jehungir Khan,
sentado de costas contra a parede, pressionando as mãos contra o corpo,
enquanto o sangue vazava por entre seus dedos. Os lábios do príncipe
estavam azulados, mas ele conseguiu lançar um sorriso sinistro.
—Nasci em um palácio —ele sussurrou — e vou morrer atrás de um
muro de pedra! Não importa ... é o Kismet. Há uma maldição flutuando
neste tesouro... Os homens sempre morrem quando seguem a trilha do
Deus manchado de sangue ... —e ele morreu enquanto falava.
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Hawklin, O'Donnell e Hassan se entreolharam em silêncio. Eles eram
os únicos sobreviventes... três figuras esbeltas, enegrecidas pela fumaça
da pólvora misturada com sangue e com suas roupas esfarrapadas. Os
jowakis, depois de escaparem, desapareceram no interior do penhasco,
deixando a clareira do desfiladeiro vazia, exceto pelos muitos mortos
espalhados por toda a encosta.
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Hawklin encolheu os ombros e puxou o pergaminho amassado.
—Muito bem, não guardo rancor. Você é um porco, mas se jogar limpo
conosco, nós o trataremos como outro parceiro, não é, Hassan?
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CAPÍTULO 4
O Tributo do Deus Carmesim
O
s cavalos estavam amarrados na passagem estreita atrás do
muro. Os três homens montaram os melhores animais,
soltaram os demais e galoparam pelo desfiladeiro que se
estendia além do desfiladeiro. A noite caiu sobre eles, mas eles
continuaram viajando sem ceder ao cansaço. Atrás deles, em algum lugar
— embora não soubessem se estavam muito longe ou muito perto — os
homens da tribo de Yakub Khan cavalgavam, e se o chefe conseguisse
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capturá-los, sua vingança seria terrível. Então eles galoparam pela
escuridão da noite no Himalaia, três homens desesperados em uma busca
enlouquecida, com a morte por trás, perigos desconhecidos à sua frente e
uma sombra de suspeita mútua apertando seus nervos.
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Amanhecia quando deixaram um desfiladeiro estreito que terminava
em um amplo vale, cercado por pedras altas. O desfiladeiro por onde
haviam entrado, um caminho estreito entre montanhas escarpadas, era a
única entrada para o vale; sem o mapa, eles nunca poderiam ter
encontrado. Avançaram ao longo de uma borda de rocha que corria pela
extensão do muro que cercava o vale, uma estrada elevada de trinta metros
de altura que, por um lado, era limitada por um muro natural que subia
trinta metros e, por outro Mais de trezentos caíram. Parecia não haver
maneira de descer às profundezas enevoadas do vale, que se estendiam
bem abaixo deles. Mas eles não dedicaram mais do que alguns olhares ao
que estava abaixo, porque o que viram diante deles retirou de suas mentes
toda a fadiga e fome que sentiam. Ali mesmo, na borda, estava o templo,
brilhando ao sol nascente. Foi esculpido na rocha viva da montanha, e seu
grande pórtico esculpido parecia desafiá-los. A borda servia como uma
estrada calçada que levava à sua porta assombrosa.
Que raça ou cultura eles poderiam representar, era algo que O'Donnell
não ousava conjecturar. Mil conquistadores desconhecidos haviam pisado
aquelas montanhas antes do amanhecer cinzento da história. Civilizações
sem nome haviam se levantado e desmoronado antes dos cumes tremerem
com as trombetas de Alexandre, o Grande.
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gritando fora de si. Um estranho frenesi próximo à loucura se originou no
persa ao ver o templo e ao pensamento da riqueza fabulosa que havia
dentro dele.
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—Obviamente, de alguma forma, conseguiu acionar a porta sem que
ela se soltasse de seus suportes —respondeu O'Donnell—. Foi o que
aconteceu quando Hassan ativou esses mecanismos. Deve ser o que
Pembroke estava tentando me dizer antes de morrer... quais mecanismos
devia acionar e quais evitar.
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fantástica. O teto estava envolto em sombras enevoadas.
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se moviam pelas sombras.
Hawklin era mais alto que O'Donnell, e seus braços eram mais longos,
mas O'Donnell era igualmente forte e ágil. Hawklin temia o kindhjal que
ele empunhava mais do que a cimitarra na mão esquerda, e conseguiu
manter a luta o mais longe possível, para que seu maior alcance pudesse
ser decisivo. Ele também tinha uma adaga na mão esquerda, mas sabia que
não poderia competir com O'Donnell no manuseio do punhal. Mas ele
conhecia um grande número de truques sujos e os praticou com seu aço
comprido. Vez após vez, O'Donnell evitou a morte por uma margem tão
pequena quanto um fio de cabelo e, por enquanto, nem mesmo sua grande
habilidade e velocidade haviam rompido a excelente defesa do inglês.
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o khalat solto e roçando as costelas. Por um momento, a espada ficou presa
entre os pedaços de tecido solto e Hawklin uivou selvagemente, pegando
sua adaga. Afundo-a profundamente no braço direito de O'Donnell,
enquanto simultaneamente o kindhjal que O'Donnell segurava na mão
esquerda afundava entre as costelas de Hawklin.
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avançando por montanhas desconhecidas, confiando na sorte para chegar
a um lugar seguro.
—Largue suas armas! —o chefe deu uma risada rouca—. Você pensou
que eu tinha ido para minha aldeia, não é? Estúpido! Enviei todos os meus
homens para lá, exceto um, que foi o único que não foi ferido. Eles
avisariam a tribo, enquanto eu te seguiria, acompanhado por este homem.
Eu segui sua trilha a noite toda, e cheguei até aqui enquanto lutava com
aquele ali, estirado no chão. Chegou a sua hora, cão curdo! Para trás! Para
Trás! Para tras!
64
Sob a ameaça de um rifle, O'Donnell se moveu lentamente até chegar
perto do abismo negro. Yakub o acompanhou, a uma distância segura de
vários metros, e o rifle não hesitaria.
65
50
Ao ouvir esse nome, a identidade do corpulento companheiro de Yakub
foi esclarecida. O homem se abaixou para pegar a espada e depois
exclamou:
—Alá!
51
Assim que o estampido do disparo ressoou, O'Donnell pulou para
derrubar o chefe, mas quando pulou, percebeu que iria falhar. Com um
grunhido, Yakub virou o rifle em sua direção e, naquele momento,
O'Donnell sabia que a morte viria do cano da arma antes que ele pudesse
alcançar o jowaki. O dedo de Yakub começou a puxar o gatilho... e então
Yar Mohammed levantou o ídolo no ar, e seus poderosos músculos
rangeram quando ele o jogou.
52
—Não importa! Eu matei o chefe que seguia, e agora as mãos de sua
tribo se levantarão contra mim. Devo seguir outro chefe... e ouvi muitas
histórias sobre as façanhas de Ali el Ghazi! Então você vai me aceitar
como seu seguidor, sahib?
—Você é o tipo de pessoa que vale a pena ter como amigo —disse
O'Donnell, estendendo a mão à maneira do homem branco.
53
FIM
54
A q u e le s q u e c a m i n h a m a t é
o V a lh a lla
55
“Quando uma raça - qualquer que seja - emerge da barbárie, ela
desperta o meu interesse. Tenho a impressão de que entendo e de que posso
escrever em profundidade sobre isso. Mas, à medida que avança em direção
à civilização, ela começa a me escapar, até que no final desaparece
completamente e descubro que seus costumes, modos de pensar e ambições
são completamente estranhos e desconcertantes para mim. Assim, os
primeiros conquistadores mongóis da China inspiram em mim o maior
interesse e a maior apreciação; mas algumas gerações depois, quando
adotaram a civilização de seus súditos, não inspiram o menor interesse em
mim. Meu estudo da história tem sido uma busca constante por novos
bárbaros, de tempos em tempos”.
56
cada cidade ou reino ou povo iniciaria inevitavelmente um declínio que
levaria ao se ocaso, a sua decadência, até a seu desaparecimento. Esse
desaparecimento poderia ser acelerado pela competição e pela invasão de
outras nações que iniciariam assim um caminho inverso, ou poderiam sofrer
um lento definhamento, o que se traduziria em uma degradação que Howard
comumente associava ao vício sensual e até, em alguns casos, a perversão
sexual.
Todos sabem que ele escreveu em, "Além do Rio Negro" que “a
barbárie é o estado natural da humanidade”. Quanto mais as cidades ou
reinos ou povos permanecessem em estados civilizados, mais as mesmas
estariam se afastando de sua poderosa origem, forjadas pelo elo do homem
com a natureza, tornando-o as mesmas corruptas e decadentes. Como
Xuthal, em Conan ou Neegari em Kane, por exemplo. Nesse sentido,
cidades ou reinos antigos como a poderosa Estígia ou mesmo Zamora eram
notadamente colmeias de escória e vilania, e seus portões se abriam de “par
em par” para os bárbaros que invadiam de tempos em tempos. Quem não
lembra da queda de Acheron pela força primal dos Hiborianos em suas vagas
expansionistas, naquela época ainda bárbaros e selvagens. O mérito de
Howard, e o que torna sua literatura atemporal reside, em parte, na
transcendência que consegue conceder a fusão do espírito épico crepuscular
e do lirismo selvagem, com um dinamismo de tirar o fôlego de qualquer
leitor voraz.
Howard chegou a conceber um ciclo - apelidado por especialistas
como "memória racial ou ancestral" - no qual um indivíduo específico,
James Allison por exemplo, um homem aleijado, recordava suas
encarnações passadas, normalmente de homens em contraste com seu atual
57
estado de impotência, sendo ele no passado comumente algum poderoso
guerreiro selvagem. Em vida, Howard publicou dois contos desse
personagem (deixando alguns outros inéditos), nos quais o ancestral de
Allison era normalmente um guerreiro proto nórdico que vivia em uma era
inconcebivelmente distante no tempo e que realizava várias aventuras no
curso das migrações que seu povo fazia para o sul. Sim, tal passado pode ser
até mesmo a famosa Era Hiboriana do personagem Conan, perfeitamente
reconhecível na narrativa. O contato com outras civilizações, mais
primitivas ou até em declínio, tornou essas tramas dos ciclos de memórias
raciais pontos de entrada ideal para estudar como Howard aplicou o conceito
de auge e decadência civilizacional à sua literatura vibrante.
“Caminhantes do Valhalla” é um desses contos e foi publicado
postumamente. Trata-se de um conto que apoia todos os pontos de Howard
sobre barbárie versus civilização, sendo esta última, uma armadilha
antinatural que poderia enfraquecer os homens e suas respectivas sociedades
históricas. Temos aqui uma narrativa de guerreiros bárbaros, cidades
decadentes e combates sangrentos. Temos ação de início ao fim, com sangue
e espadas, em uma mistura intrigante feita com perfeição pela máquina
insaciável de Howard. "Caminhantes" desvela-se como um sonho de
Allison, como uma rememoração de seu passado, quando ele era o aesir de
nome Hialmar, numa época esquecida da humanidade, vagando pelos ermos
do mundo ao lado de sua raça, ao final daquela era em que viveu um certo
cimério famoso. Muito do poder da história está nas descrições de Howard
dos aesires, os protagonistas da trama. Eles são "gigantes além da
compreensão dos modernos", e hoje “nenhum homem é tão forte quanto o
mais fraco dos irmãos de guerra de Hialmar”.
58
No entanto, sua força não é apenas física. Os aesires são "uma raça de
lobos" e anos de peregrinação e luta "incutiram nas suas almas o espírito da
natureza: o poder intangível que treme no lobo cinzento, que ruge ao vento
norte, que dorme no poderoso tumulto dos rios turbulentos, que soa na
fricção do granizo gelado, no bater das asas da águia e se esconde no silêncio
melancólico dos vastos lugares ".
Essa narrativa chega ao cerne do melhor em Howard, que não é
somente contar apenas uma boa trama, mas mostrar como homens ficam na
frente de todos os seus oponentes e da fúria sem sentido da natureza. Howard
sugere que há algo enterrado no fundo da alma dos humanos modernos
(mesmo sem eles compreenderem do que se trata), lembrando uma luta
atemporal pela sobrevivência, na qual suas naturezas foram enterradas por
anos e anos de civilização, esperando emergir do caos e da guerra primal.
Se o leitor quer se surpreender com a luta vigorosa de povos civilizados
contra bárbaros errantes em sua total potência destruidora, representados
aqui pelos aesires e pelo protagonista de nome Hialmar, bem, esse conto é
um dos mais profícuos para gerar tal comoção ante suas linhas escritas.
Trata-se de Howard em toda a sua essência e brutalidade, não perdendo em
nada para as melhores narrativas de seus ciclos mais famosos.
59
60
61
A q u e le s
q u e CAM IN H AN
A T É O V A LH A LLA
62
I
63
O
céu estava lívido, melancólico e repulsivo, como o azul do
aço embaçado, riscado por tiras de pálido carmesim.
Delineadas contra esse fundo marrom avermelhado erguiam-
se as baixas montanhas que coroam as áridas terras altas em uma extensão
macabra de areias movediças e florestas ressecadas, repletas por terrenos
baldios nos quais os agricultores passam suas vidas de uma maneira
assustadora e inútil, amargurados pelo trabalho estéril.
64
Embora coxeando, eu acabava de subir um penhasco que se erguia
acima dos demais, rodeado por ressecados bosques de carvalhos. A
esmagadora melancolia e desolação monótona da paisagem diante de mim
pareceu transformarem minha alma em uma massa de poeira e cinzas.
Depois de deixar-me sentar em um tronco podre, senti como a tristeza
moribunda daquela terra pesava sobre mim.
65
O sol carmesim, quase escondido por nuvens e redemoinhos de poeira,
começava a se ocultar; pendia no horizonte, quase na ponta dos meus
dedos. Embora aquele belo crepúsculo não pudesse glorificar os montes
sombrios, seu brilho escuro acentuava ainda mais a desolação esmagadora
da paisagem.
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Então, de repente, percebi que não estava sozinho. Das profundezas do
bosque de carvalhos emergiu uma mulher que olhava para mim.
67
tinha uma beleza inconcebível. De estatura média, era esbelta e bem
formada. Esqueci como ela estava vestida, embora me pareça que sua
roupa era modesta, mas elegante. O que lembro é a beleza curiosa de seu
rosto, que se destacava no meio de gloriosos cabelos ondulados escuros.
Seus olhos atraíram os meus como um ímã; não sabia dizer a cor deles,
mas eram escuros e brilhantes, com uma luz que nunca tinha contemplado
antes. Ela falou comigo com um sotaque curioso em sua voz, desconhecido
para mim, mas tão musical como sinos distantes.
—Vim para contemplar a terra mais uma vez. Não imaginava encontrá-
lo aqui.
68
—Você não me parece ser tão velha — disse. Desculpe-me por eu não
levantar. Como vê, só tenho uma perna, e a subida até aqui foi tão longa que
me vejo obrigado a sentar-me para descansar.
—Vejo que a vida tem sido dura contigo — disse ela gentilmente. Eu
mal te reconheci. Seu corpo mudou muito...
—Não fique triste — ela murmurou baixinho. A vida nos tira, mas
também nos dá...
69
para me alegrarem, nem futuro para enfrentar, exceto por mais alguns anos
de sofrimento antes da escuridão do esquecimento total. Nunca houve beleza
em minha vida, nem nessas terras perdidas e inóspitas.
70
Rodge, lutando com os canadenses, e o mais novo caiu em Argonne. Meu
pai também é aleijado e passa o dia cochilando em sua poltrona, embora
seus sonhos sejam repletos de ótimas lembranças, porque a bala que quebrou
sua perna o atingiu durante a investida na colina de San Juan.
Eu estremeci.
71
—Ou você está louca, ou eu estou. O Texas tem recordações gloriosas
de guerras, conquista e tragédias... mas, o que são seus escassos séculos de
história, comparados com a antiguidade do Egito...? Isso sim é antiguidade.
—Não sei o que você quer dizer —eu disse—. Se estiver falando de
geologia, o que me surpreende é o fato dessa terra nada mais ser uma
sucessão de grandes planaltos ou elevações acima do nível do mar que se
elevam a mais de mil metros de altura, como se fossem degraus de uma
enorme escada, terminando nas florestas da montanha. O último ponto de
aterrissagem seria o Caprock, acima do qual as Grandes Planícies começam.
72
—Em uma outra Era, aquelas Grandes Planícies se estendiam até o
Golfo —disse ela—. Há muito tempo, o que hoje conhecemos como o
estado do Texas nada mais era do que um vasto platô que descia suavemente
até a costa, embora sem as encostas íngremes de hoje. Um terrível
cataclismo dividiu o rochedo do Caprock, permitindo que o oceano passasse
rugindo, tornando-o num novo litoral. Depois disso, Era após Era, as águas
gradualmente recuaram, deixando para trás aqueles degraus que você
conhece. Mas, ao recuarem, arrastaram muitas coisas estranhas para as
profundezas do Golfo... Você não se lembra das imensas planícies,
73
estendendo-se ao crepúsculo até os penhascos que se erguiam em frente ao
mar resplandecente? Ou a grande cidade construída sobre esses penhascos?
74
—Logo verás! —exclamou agudamente—. Contemple... o que você
vê?
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Grandes planícies com montanhas se estendiam para desaparecer no
horizonte enevoado. Ao sul, muito longe, uma cidade negra, de proporções
ciclópicas, erguia suas torres diante do céu do pôr-do-sol e, além, brilhavam
as águas azuis de um mar calmo.
76
E, a uma distância menor, uma fila de homens avançou através da
planície. Homens altos, com longos cabelos loiros e frios olhos azuis,
protegidos com cotas-de-malha, capacetes e armados com espadas,
machados e escudos.
77
Um deles era diferente... ele era mais baixo, apesar de ter uma
compleição forte e o cabelo escuro. E quanto ao enorme guerreiro loiro
caminhando ao lado dele... foi aí que, por um momento fugaz, senti uma
clara sensação de dualidade. Eu, James Allison, do século 20, me reconheci
no homem que eu era naquela época remota e naquele estranho lugar. Esse
sentimento desapareceu quase imediatamente, e então eu era Hialmar,
descendente das tribos loiras e sem conhecimento de qualquer outra
existência, seja ela futura ou passada.
78
Quando assim for, você entenderá. Pois você deve se lembrar que Hialmar
era apenas Hialmar, e não James Allison; ele não tinha consciência do
significado dessas explicações, pois estava limitado por sua própria
experiência de vida. Eu sou James Allison e eu fui Hialmar, mas Hialmar
não era James Allison; um homem pode olhar para trás dez mil anos, mas
ninguém pode vislumbrar as brumas do futuro, nem por um instante.
79
II
80
81
Temíamos que pudesse ser uma cidade fantasma. Uma daquelas
ilusões que nos atormentaram durante nossa longa marcha pelos desertos
empoeirados do oeste, onde, refletidos no céu escaldante, acreditávamos ver
lagos calmos ladeados por palmeiras, rios e grandes cidades, que
desapareciam quando nos aproximávamos. Mas agora não era uma miragem
causada pelo sol, poeira ou quietude. Pois, contra o céu claro da tarde, os
contrafortes ciclópicos, as enormes torres com ameias e a colossal muralha
foram distinguidas com clareza de detalhes.
Ah! Quão longa foi aquela jornada! Não houve migração que pudesse
se comparar a ela; nem mesmo as do meu povo, que foram épicas. Tínhamos
atravessado o mundo do norte gelado para as vastas planícies e vales das
montanhas férteis, cultivadas por um povo pacífico e moreno, até as selvas
quentes e sufocantes, que fediam a podridão e fervilhavam de vida através
das terras do leste, que brilhavam com cores vivas sob as graciosas
palmeiras, e nas quais raças muito antigas viviam em cidades de pedra
82
esculpida... e depois voltamos às terras congeladas e cruzamos um estreito
istmo congelado junto ao mar para descer, finalmente, por algumas estepes
nevadas em que os pequenos comedores de gordura de baleia fugiam, entre
gritos, de nossas espadas; descemos para o sul e leste, atravessando colossais
montanhas e florestas enormes, gigantescas e desabitadas como o Éden após
a expulsão do homem ...
83
Eu já disse que foi uma viagem estranha. Não se tratava da migração
de uma tribo inteira, com homens e mulheres loiras, e seus filhos nus.
Éramos todos homens, aventureiros para quem até as guerras migratórias
eram pacíficas demais. Saímos sozinhos, conquistando, vagando, apenas
levados por uma vontade enlouquecida de viajar além do horizonte.
84
Ah, éramos uma hoste brutal e deixamos para trás um rastro de sangue
e cinzas fumegantes em muitas terras! Não me atrevo a contar sobre os
massacres, as carnificinas e as rapinagens que deixamos para trás, pois você
recuaria horrorizado. Você pertence a uma Era mais suave e pacífica, e não
conseguiria entender aqueles tempos selvagens em que um bando de lobos
estripava outro, e a moral e os costumes da vida eram tão diferentes dos de
hoje quanto o comportamento de um lobo cinza letal e o de um cachorro de
colo viscoso que cochila junto à lareira.
85
Se por ventura alonguei demais minha explicação, foi para você
entender que tipos de homens atravessaram a planície em direção à cidade e
assimilar o que aconteceu a seguir. Sem esse entendimento, a saga Hialmar
não passaria de caos vociferante, sem ordem ou significado.
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Já haviam nos visto. Estávamos próximos o bastante para distinguir as
fileiras de hortos, campos e vinhedos fora dos muros, e a figuras dos
trabalhadores que fugiam em direção à cidade. Vimos um brilho de lanças
nos edifícios, e ouvimos o rápido retumbar dos tambores de guerra.
87
E, naquele momento, os enormes portões se abriram e deles surgiram
fileiras de guerreiros, com suas plumas de guerra agitando-se sobre suas
cabeças entre o fulgor das lanças. O sol poente brilhava como fogo entre
seus polidos capacetes de cobre.
Eram homens altos, esbeltos, de pele escura, embora nem pretos nem
pardos, e com firmes traços aquilinos. Suas armaduras eram de cobre e
couro, e seus escudos cobertos de couro fervido. Suas lanças, espadas
delgadas e adagas longas eram de bronze. Avançaram em formação perfeita,
por volta de mil e quinhentos, uma maré de penas em movimento e lanças
brilhantes. Atrás deles, os faróis zumbiam com os espectadores.
88
89
Não houve conversa. Enquanto se aproximavam, o velho Asgrimm
gritou como um lobo na caçada e nos preparamos para enfrentar o ataque.
Não íamos em formação; corremos em direção a eles como lobos, e vimos
o desprezo em seus rostos de falcão, ao nos aproximarmos. Não tínhamos
arcos e nenhuma flecha foi disparada de nossas fileiras que corriam, nem
se arremessou uma lança. Só queríamos chegar ao corpo-a-corpo. Quando
estávamos a um tiro de dardo, enviaram-nos uma chuva de lanças, a
maioria das quais ricocheteavam em nossos escudos e cotas-de-malha, e
depois, com um rugido gutural, nosso ataque lançou-se ao alvo.
90
Ceifamo-los como milho; colhemos-lhes como sementes maduras!
Ah, quando revivo essa batalha, parece que James Allison cede lugar ao
encouraçado e potente Hialmar, com a loucura da guerra em seu cérebro e o
canto de guerra nos lábios. E estou novamente embriagado pelo canto das
espadas, o derramar do sangue quente e o rugido da matança.
91
a cidade, levamo-los aos lisos escarpados que desciam 150 metros até a praia
de areia branca. Encontramos caminhos tortuosos que levavam pra baixo e,
com nossa carga, abrimos caminho até a margem da água.
92
Protegidos por nossos arqueiros, colocamos de novo as escadas.
Enquanto nos preparávamos para a subida que nos faria ultrapassar os
muros, numa das torres do muro da cidade, apareceu uma figura que nos
parou de repente. Era uma mulher; uma mulher como não víamos há muitos
anos... cabelo dourado flutuando livremente ao vento, leitosa pele branca
brilhando à luz do sol. Chamou-nos em nossa própria língua, hesitante,
como se não a usasse há muitos anos.
93
—Perdoa a cidade, velho urso! Do contrário, matarão as mulheres... e
vagamos durante várias luas sem possuirmos uma mulher sequer.
94
e vinhos tais como nós nunca sabíamos existir. Eram guiados por um homem
de rosto aquilino, com um manto de penas coloridas, trazendo na mão uma
vara de marfim e, nas têmporas, um círculo de cobre em forma de serpente
enroscada, com a cabeça levantada na frente. Por seu porte, era evidente que
se tratava de um sacerdote, e pronunciou seu nome, Shakkaru, apontando a
si mesmo. Com ele, chegou meia dúzia de jovens, vestidos com calças de
seda, cinturões com jóias, alegres plumas e tremendo de medo. A jovem de
cabelos amarelos permanecia na torre e nos disse que aqueles eram os filhos
dos príncipes, e Asgrimm fê-los provar o vinho e a comida antes que nós
comêssemos ou bebêssemos.
95
amargo.
Dentro dela, estava sentado um homem frágil, com uma curiosa coroa
em sua delgada e proeminente cabeça. Junto à liteira, caminhava a moça de
pele branca que havia falado desde a torre. Chegaram diante de nós e os
96
escravos se ajoelharam, ainda segurando a liteira, enquanto os nobres
apartavam-se para cada lado, caindo de joelhos. Somente Shakkaru e a
garota permaneceram em pé.
Mas eu só tinha olhos para a garota, que vi cara a cara pela primeira
vez. Vestia apenas uma curta túnica sem mangas e com gola baixa, de seda
azul, que chegava a uma mão acima dos joelhos, e nos pés usava suaves
sandálias de couro verde. Tinha os olhos grandes e tranquilos, a pele mais
clara que o leite mais branco e sua cabeleira capturava o sol num ondulante
brilho dourado. Havia uma suavidade em sua forma esbelta, que jamais eu
tinha visto em mulher alguma dos aesires. Havia uma feroz beleza em nossas
mulheres, mas esta moça era tão formosa e sem essa ferocidade. Não
crescera numa terra desolada, como elas, onde a vida era uma batalha
implacável pela existência, tanto para o homem quanto para a mulher. Mas
não me demorei em tais pensamentos; simplesmente permaneci imóvel,
deslumbrado por sua loira irradiação, enquanto ela traduzia as palavras do
rei e as respostas dos roucos grunhidos de Asgrimm.
97
e rei de Khemu. Que reine a amizade entre nós. Nós precisamos uns dos
outros, pois vocês são homens que vagam cegamente numa terra desolada,
como disse minha bruxaria, e a cidade de Khemu precisa de espadas afiadas
e braços poderosos, pois vem contra nós um inimigo, vindo do mar, que não
podemos rechaçar sozinhos. Permaneçam nesta terra, emprestem suas
espadas, tomem nossos presentes para o vosso prazer e nossas jovens como
esposas. Nossos escravos trabalharão por vocês, e a cada dia lhes sentarão
diante de mesas que rangerão sob as carnes, os pescados, os cereais, o pão
branco, os vinhos e as frutas. Usarão belas roupas e morarão em palácios de
mármore com leitos de seda e fontes brilhantes”.
98
recuou, aborrecido e desconfortável, enquanto seus guerreiros rugiam com
áspera alegria. Depois, Akkheba regressou à sua liteira, balançando-se nos
ombros de seus escravos, e nos alojamos para um longo descanso de nossas
andanças. Olhei, um longo tempo, para a intérprete de cabeleira dourada, até
que os portões da cidade se fecharam atrás dela.
Assim, permanecemos fora dos muros e, dia após dia, o povo nos trazia
comida e vinho; e enviaram-nos mais garotas. Os trabalhadores vieram e
trabalharam nos jardins, campos e vinhedos, sem nos temerem, e os barcos
de pesca zarparam... estreitas embarcações com proas curvadas e velas de
seda com desenhos de listras. Finalmente aceitamos o convite do rei, e
fomos numa massa compacta, os reféns no centro com espadas
desembainhadas no pescoço, através das portas gradeadas de ferro, para o
interior da cidade.
99
tigres, e o mais leve incidente bastaria para fazer-nos explodir num
repentino massacre. Mas o povo de Khemu era sábio e não houve
provocação alguma.
1 00
Conduziram-nos às altas portas dos templos, mas, observando através
das fileiras de grandes colunas de mármore o misterioso e escuro interior,
tememos uma cilada e nos recusamos a entrar. Eu procurava ansiosamente,
o tempo todo, a jovem de cabelos dourados, mas não a via em parte alguma.
Não mais necessária como intérprete, o silêncio da cidade havia engolido-a.
Mas tudo isto levou tempo. No primeiro dia após visitarmos a cidade,
alguns de nós voltamos a ela, e Shakkaru nos guiou ao palácio dos altos
1 01
sacerdotes, que estava unido ao templo de Ishtar. Ao entrar, vi a moça dos
cabelos dourados, polindo um rechonchudo ídolo de cobre com um pedaço
de seda. Asgrimm pôs uma pesada mão no ombro de um dos jovens
príncipes.
—Não, meus senhores, Aluna não é para nenhum de vocês, nem para
qualquer outro homem. É a donzela da deusa Ishtar. Peçam qualquer outra
mulher da cidade e ela será de vocês, até mesmo a favorita do rei; mas esta
mulher está consagrada à deusa.
1 02
templo havia impressionado até mesmo sua alma feroz, e embora os aesires
não temessem os deuses de outros povos, ele não desejava, contudo, tomar
uma moça que havia estado em comunhão tão estreita com a divindade. Mas
minhas superstições eram mais fracas que meu desejo por Aluna. Voltei
novamente, vez ou outra, ao palácio dos sacerdotes e, embora não gostassem
muito de minha visita, não quiseram ou não ousaram me proibir a entrada;
e, com tão pobre fundamento, comecei meu cortejo.
1 03
conhecimentos geográficos, mas havia sido muito longe ao leste, cruzando
o mar. Lembrava de uma costa desolada, açoitada pelas ondas, míseras
cabanas de lama e bambu, e pessoas de cabeleira loira, como ela. Assim,
cheguei a crer que ela provinha de um ramo dos aesires que indicava a
migração mais ocidental de nossa raça nessa época. Tinha talvez nove ou
dez anos quando fora capturada, numa incursão à aldeia por homens
morenos em galeras... não sabia quem eram, e meu conhecimento dos
tempos não me indica, pois na época, os fenícios ainda não haviam lançado-
se ao mar, nem tampouco os egípcios. Não posso fazer mais do que supor
que eram homens de alguma raça antiga, sobreviventes de outra Era, como
o povo de Khemu... destruídos e esquecidos diante da ascensão de raças
mais jovens.
1 04
jovens.
1 05
O povo de Khemu era uma raça agonizante. Embora fossem milhares,
muitos eram escravos, descendentes de mil gerações de escravos. Sua raça
não era mais que uma sombra de sua antiga grandeza. Mais alguns séculos
e eles se extinguiriam, mas no mar, em direção ao sul, invisível além do
horizonte, aguardava uma ameaça que podia aniquilá-los a todos em um só
golpe.
1 06
o mar enegrecer, e derrubar as torres de Khemu no pó manchado de
vermelho. Ele e seus assassinos eram os inimigos que tínhamos sido pagos
para combater, e aguardávamos sua chegada com selvagem impaciência.
1 07
Perguntei, então, à Aluna se, alguma vez, tinha visto a deusa. Ela
tremeu de medo, dizendo que só o espírito dos mortos via Ishtar. Aluna,
jamais pusera o pé na escadaria de mármore que levava à casa da deusa. Era
chamada a donzela de Ishtar, mas seus deveres eram cumprir os caprichos
dos sacerdotes de rosto aquilino e das mulheres nuas de olhos malignos, que
os serviam e que deslizavam como sombras escuras entre as trevas
purpúreas das colunas.
III
1 08
Um novo amanhecer ergueu-se sobre as águas resplandecentes de
Khemu. Os guerreiros haviam começado a passar as noites, assim como os
dias, na cidade. Eu fiquei bebendo com Kelka na noite anterior, e dormi com
ele na rua, até a brisa matutina expulsar o topor do vinho em meu cérebro.
Procurando Aluna, desci a rua pavimentada de mármore e entrei no palácio
de Shakkaru, que estava unido ao templo de Ishtar. Atravessei as grandes
estâncias exteriores, onde mulheres e sacerdotes ainda dormiam, e ouvi
repentinamente, atrás de uma porta fechada, o som de fortes golpes sobre
delicada carne nua. Misturados com eles, havia um pranto lastimoso e uma
voz conhecida que, entre soluços, pedia clemência.
A porta estava bem fortalecida, era de mogno reforçado com prata,
mas arrebentei-a como se fosse uma frágil placa de madeira. Aluna
encolhia-se no chão, com sua curta túnica revolta, diante de um sacerdote
de rosto afilado que, com fria maldade, açoitava-a com um cruel chicote que
deixava vergões vermelhos em sua carne nua. Quando entrei, ele virou-se e
1 09
seu rosto ficou acinzentado. Antes que pudesse mover-se, cerrei o punho e
lhe dei tal golpe que esmagou o crânio como uma casca de ovo, além de
quebrar-lhe o pescoço.
Um homem não é melhor nem pior que seus sentimentos para com as
mulheres de seu sangue, o que é a única e autêntica prova de consciência
racial. Um homem se apropriará da mulher do estranho, se sentará com ele
para comer carne sem que sinta incomodar sua consciência de raça. É
somente ao ver um estrangeiro em posse de uma mulher de seu sangue, ou
tentando consegui-la, que percebe a diferença entre raça e laço. Assim, eu,
que apertara em meus braços mulheres de muitas raças, que era irmão de
sangue de um selvagem picto, enlouqueci de fúria diante da visão de um
estranho pondo as mãos sobre uma mulher aesir.
Creio que foi o fato de vê-la, escrava de uma raça estranha, e a lenta
ira que isso causou, o que primeiro me levou em direção a ela. Pois as raízes
do amor se afundam no ódio e na fúria. E sua doçura e amabilidade, tão
pouco familiares para mim, fizeram cristalizar essa primeira e vaga
sensação.
110
Permaneci imóvel, com a testa franzida diante dela, enquanto ela
gemia a meus pés. Não a coloquei de pé, nem limpei suas lágrimas como
teria feito um homem civilizado. Se me ocorresse tal ideia, eu iria rechaçá-
la, enfurecido, como indigna de um homem.
111
Dei um rápido passo em direção a ela, minhas mãos estendendo-se
com desejo... e me afastei, temendo machucar sua carne terna, deixando
minhas mãos vazias caírem aos meus lados. Permaneci atordoado por um
instante, dilacerado por um desejo feroz, com a fala e a ação congeladas pela
estranheza da emoção que me rasgava a alma. Depois me obriguei a ir
embora e segui o impaciente picto pelas ruas.
112
Assim chegamos aos penhascos e vimos, como havia dito Kelka, o mar
negro de canoas de guerra, de proa alta e adornadas com crânios sorridentes.
Dúzias dessas barcas já haviam atracado na praia e outras se balançavam
nas cristas das ondas. Os guerreiros dançavam e gritavam na areia, e seu
clamor chegava até nós. Havia muitos, no mínimo três mil. Os homens de
Khemu empalideceram, mas o velho Asgrimm riu como há muitas luas não
o ouvíamos rir, e os anos caíram dele como se fosse uma capa gasta.
Havia meia dúzia de caminhos que levavam, através dos penhascos até
a praia, e por eles deviam subir os invasores, pois os precipícios dos outros
lados eram impossíveis de escalar. Alinhamo-nos diante desses caminhos e
os homens de Khemu ficaram atrás de nós. Pouco poderiam fazer nessa
batalha, mantendo-se na reserva para uma ajuda que não pedimos.
113
Pegamos nossos arcos, e as flechas assobiaram em nuvens pelos
desfiladeiros. As filas dianteiras foram desfeitas, as hordas recuaram
vacilantes, logo se agruparam e voltaram novamente. Quebramos um ataque
após outro, e um ataque após outro se lançou pelas passagens com
ferocidade cega. Os atacantes não usavam armadura, e nossas longas setas
penetravam os escudos cobertos de pele como se fossem de pano. Não
sabiam usar arco e flecha. Ao chegarem suficientemente perto de nós,
atiraram suas lanças numa chuva uivante e alguns dos nossos morreram.
Mas poucos deles chegaram a um tiro de lança, e menos ainda chegaram ao
fim das passagens. Lembro de um guerreiro enorme, que chegou arrastando-
se pelo desfiladeiro, feito uma serpente, espuma rubra escorrendo de seus
lábios e as extremidades emplumadas das flechas sobressaindo de seu
ventre, costela, pescoço e membros. Uivava como um cão raivoso e sua
mordida agonizante arrancou o calcanhar de minha sandália, enquanto eu
transformava sua cabeça numa ruína vermelha a pisadas.
114
Mantivemos a posição nos penhascos durante todo o longo dia de
verão, até que, vazias nossas aljavas e desgastadas as cordas de nossos arcos
com os desfiladeiros cheios de cadáveres pintados, lançamos fora os arcos
e, desembainhando nossas espadas, descemos os desfiladeiros e
enfrentamos os invasores mano a mano, lâmina contra lâmina. Haviam
morrido como moscas nas passagens, embora muitos deles se encontrassem
vivos, com o fogo de sua raiva ardendo com mais ferocidade, devido aos
corpos, emplumados de flechas, que jaziam sob nossos pés.
115
Kelka estava bem atrás de mim, quando me lancei em direção ao vanir.
Os dois guerreiros pintados saltaram para me fechar o caminho, mas Kelka
os enfrentou. Saltaram sobre ele pelos lados, com suas lanças assobiando.
Mas, como um lobo que evita um golpe, ele se retorceu além das lâminas
ensanguentadas e, por um instante, as três figuras pareceram dançar juntas;
logo um guerreiro caiu, com o ventre aberto, e o outro caiu sobre ele, com a
cabeça meio separada do corpo.
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e, finalmente, com um dilacerante ofego de esforço, saquei minha adaga e
afundei-a uma vez após outra, até que o gigante jazeu imóvel sob mim.
117
seda cobertos de rosas e pó de ouro. Carregamos nossos feridos em liteiras.
Mas, primeiro levamos nossos mortos à praia e quebramos canoas de guerra
para fazer uma grande jangada, a carregamos e ateamos fogo nelas. E
levamos o rei ruivo dos invasores, estendendo-o em sua grande canoa de
guerra, com os cadáveres de seus chefes mais valentes a seu redor para
servirem-no na terra das sombras, e lhe rendemos as mesmas honras que a
nossos próprios homens.
118
tapeçarias de veludo. Akkheba estava sentado num trono no final do salão,
contemplando a festividade num estrado com um dossel e com fileiras de
lanceiros emplumados a cada lado. Os aesires sentaram na grande mesa que
percorria ao longo de todo o salão, com suas roupas e couraças rasgadas,
manchadas e empoeiradas; muitos com bandagens ensanguentadas,
bebendo, rugindo e se empanturrando, servidos por escravos – tanto homens
quanto mulheres – que faziam reverência.
—Ela está ocupada com suas tarefas, então agora ela não pode vê-lo,
disse ele. — Vá ao templo amanhã...
119
Ele afastou-se de mim e, numa vaga palidez que detectei sob sua
compleição robusta, e num certo tremor oculto em sua voz, percebi que me
tinha um medo mortal e desejava livrar-se de mim. A desconfiança do
bárbaro se acendeu em meu interior. Num instante, agarrei-lhe o pescoço,
arrancando de sua mão a longa lâmina de aspecto perverso que ele sacara da
túnica.
1 20
e fantasmagórica, na qual o único som era a estridente e antinatural festa que
surgia do grande salão de banquetes. Eu podia ver o brilho das tochas na
praça do mercado, onde jaziam nossos feridos.
1 21
segurando taças de ouro para recolher o sangue que fluía pelos sulcos
manchados na pedra. E nesse altar, gemendo em voz baixa, como um cervo
agonizante, estava Aluna.
1 22
Minha espada era arrastada por uma mão repentinamente sem forças,
quando me aproximei do altar com passos vacilantes. As pálpebras de Aluna
se abriram trêmulas, quando a olhei. Minhas mãos pendendo frouxamente
e todo o meu corpo parecia flácido e indefeso.
Toda minha alma agonizante gritava em meu interior, mas meus lábios
permaneciam mudos com a falta de articulação do bárbaro. Caí de joelhos,
junto ao altar, e, tocando vacilante sua forma delgada com meus braços,
beijei lento e vacilante – como faria um jovem inexperiente – seus lábios
moribundos. Esse ato – esse único e vacilante beijo – foi o único traço de
ternura em toda a dura vida de Hialmar dos aesires.
Toda minha alma agonizante gritava em meu interior, mas meus lábios
permaneciam mudos com a pouca expressividade de um bárbaro. Caí de
joelhos, junto ao altar, e, tocando vacilante sua forma delgada com meus
braços, beijei lento e vacilante – como faria um jovem inexperiente – seus
lábios moribundos. Esse ato – esse único e vacilante beijo – foi o único traço
de ternura em toda a dura vida de Hialmar dos aesires.
1 23
Levantei-me lentamente e permaneci próximo à garota morta, e, com
igual lentidão, recolhi mecanicamente a minha espada. Ao contato familiar
com o cabo, a fúria vermelha de minha raça brotou novamente em meu
cérebro.
1 24
soluçar. Mas não era a alma nua de Aluna que gemia diante de algum trono
divino, pois, morta ou viva, eu conhecia seu pranto.
Devo ter falado em voz alta no meu khemuriano bárbaro, pois ela
levantou a cabeça e olhou pra mim com olhos escuros e brilhantes,
inundados de lágrimas. Havia nela uma estranha beleza, algo exótico e
distante, além da minha compreensão.
1 25
Mas eu recuei e abaixei a espada.
"Sou Ishtar, filha do rei da obscura Lemúria, aquela que o mar engoliu
há muito tempo. Quando menina, me casaram com Poseidon, deus do mar,
e, na pavorosa e enigmática noite nupcial, quando jazia flutuando e sem
dano algum sobre o seio do oceano, o deus concedeu-me o dom da vida
eterna, que chegou a tornar-se maldição nos longos séculos de meu
cativeiro.
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"Então, num dia infeliz, subi a bordo de uma galera da distante Khitai
que, durante um furacão, afundou diante desta costa maldita. Mas, como
antes, fui levada à costa sobre as ondas de meu senhor, Poseidon, e os
sacerdotes me encontraram na praia. O povo de Khemu se diz descendente
da Lemúria, mas era uma raça de súditos, falando uma língua mestiça.
Quando falei com eles em Lemuriano puro, disseram ao povo que Poseidon
havia lhes enviado uma deusa, e o povo caiu de joelhos e me adorou. Mas
os sacerdotes de então eram tão diabólicos quanto os de agora, necromantes
e adoradores do mal, não tendo deus algum, exceto os demônios dos
Abismos Exteriores. Me trancaram nesta cúpula dourada e, usando da
crueldade, arrancaram meu segredo.
"Durante mais de mil anos, fui adorada pelo povo, a quem às vezes
permitiam ver-me de longe, de pé na escadaria de mármore, meio oculta
pela fumaça do sacrifício, ou lhes permitiam ouvir minha voz, falando numa
língua estranha como um oráculo. Mas os sacerdotes... oh, deuses de Mu,
como tenho sofrido em suas mãos! Deusa do povo... escrava dos
sacerdotes!".
1 27
rugindo além dos penhascos, mas ele dorme e não ouve minhas chamadas.
Mas, se eu pudesse estar diante da sua presença e chamá-lo, ele poderia
ouvir-me e atender-me. Os sacerdotes são astutos... me afastaram de seus
olhos e de seus ouvidos... durante mais de mil anos, não contemplei o grande
monstro azul...
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aproximou-se de mim, cambaleante, longe da tormenta da batalha que se
agitava à distância. Vinha sem armadura, quase encurvado, e, embora
sobressaísse uma flecha de suas costas, era o próprio ventre que ele apertava
com as mãos vazias.
1 29
arrebatadas de inimigos agonizantes ou suas mãos nuas, e cujos lábios
estavam manchados com a espuma da agonia que inundavam suas
entranhas. Juro por Ymir que não morreram sós; seus pés pisavam corpos
mutilados, e eram como bestas selvagens cuja ferocidade não é satisfeita até
extinguir-se a última e diminuta faísca de vida.
1 30
IV
1 31
O grande salão do banquete ardia. À sua luz, vi sobre o estrado que se
erguia acima do combate, o velho Akkheba estremecendo-se de terror ante
sua própria traição, com dois guardas robustos nos degraus sob ele. A luta
havia se espalhado por todo o pátio e eu vi Kelka. Estava bêbado, mas isso
não mudava suas qualidades mortíferas. Era o centro de um nó convulso de
figuras que lutavam e cortavam, e sua longa faca se movia velozmente à luz
do fogo, enquanto destroçava gargantas e ventres, derramando sangue e
vísceras sobre o piso de mármore.
1 32
degraus inferiores e atravessamos. Apareceram atrás de nós para nos fazer
descer, mas Kelka se virou e sua longa lâmina investiu mortalmente contra
eles. Caíram sobre ele, de todas as direções, e ali morreu ele como vivera:
apunhalando e matando em silencioso frenesi, sem pedir nem dar trégua.
E eu lhe segui. Minha vida escapava pelo ferimento sob minha cota-
de-malha. Estava empapado de sangue, mas minha vitalidade de fera
selvagem não havia diminuído. Mais e mais para cima, subiu gritando e,
cada vez mais pra cima, nos erguemos sobre a cidade, até balançarmos
precariamente sobre o telhado, mais cento e cinquenta metros acima das ruas
uivantes. E então ficamos imóveis, caça e caçador.
Um grito estranho e fantasmagórico soou acima do tumulto infernal,
1 33
que se exaltava sob nós, e acima dos gritos frenéticos de Akkheba. Sobre a
grande cúpula dourada, bem acima de todas as outras torres, erguia-se uma
figura nua, o cabelo voando ao vento do amanhecer, delineada pelo brilho
vermelho da aurora. Era Ishtar, agitando os braços e gritando uma frenética
invocação numa língua estranha. Nos chegou muito debilmente. Havia
escapado da prisão dourada que eu quebrara. Agora erguia-se sobre a
cúpula, chamando o deus de seus pais, Poseidon!
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Mas eu tinha minha própria vingança para consumar. Preparei-me para
1 35
o salto que levaria a nós dois numa queda de cento e cinqüenta metros, para
nos esborracharmos na morte... e, sob meus pés, a sólida construção se
moveu. Um novo frenesi soou nos gritos de Akkheba. Com um estrondo de
trovões, os distantes penhascos caíram ao mar. Houve um longo e
cataclísmico choque, como se o mundo se despedaçasse, e, diante dos meus
olhos assombrados, toda a vasta planície ondulou, cedeu e afundou em
direção ao sul.
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A cúpula ainda cavalgava sobre a catástrofe, sobre ela a figura alva
continuava gritando e gesticulando. Logo, com um rugido espantoso, o mar
se deslocou e se ergueu, e grandes tentáculos de espuma verde se curvaram,
altos como montanhas, e caíram rugindo sobre as ruínas que deslizavam,
subindo cada vez mais alto, até que todo o lado sul da cidade esmagada foi
escondido pelas águas verdes que se revolviam.
1 37
Os estrondos do mundo que se quebrava ressoavam em meus ouvidos,
as agitadas águas esverdeadas estavam a meus pés, mas, enquanto a terra
inteira parecia desmoronar e quebrar-se, enquanto a construção se desfazia
sob meus pés e as trovejantes marés verdes me submergiam, afogando-me
em indizíveis profundidades cintilantes, meu último pensamento foi que
Akkheba morrera sob minhas mãos, antes que uma só onda o tocasse. Então,
as ondas engoliram a cidade!
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Agora continuava me olhando com esse enigmático sorriso, que tinha menos
de zombaria que de compaixão.
1 39
—Mas, o que aconteceu com aquela mulher, Ishtar, sua deusa?
— Não era acaso a noiva de Poseidon, que ouviu seu grito e destruiu
a maligna cidade? Ele levou-a, sem dano algum, sobre seu seio. Não podia
morrer, era eterna. Vagou por muitas terras e viveu entre muitos povos, mas
havia aprendido sua lição e ela, que havia sido escrava dos sacerdotes,
transformou-se em sua senhora. Ela que havia sido uma deusa de aparência
cruel, transformou-se em deusa por direito próprio, por força de sua antiga
sabedoria.
1 40
Enquanto ela falava, ergueu seus límpidos e luminosos olhos escuros
em minha direção; o último e pálido brilho do crepúsculo se refletiu na
glória ondulante de sua cabeleira, negra como a noite, emoldurando a
estranha beleza de seu rosto, distante e exótico além do meu entendimento.
E um grito brotou de meus lábios.
Então a noite caiu, e não sei pra onde ela foi, mas eu me sentei solitário
na espessura da colina e o vento noturno subiu sussurrando das dunas
arenosas e dos pequenos bosques ressecados, e murmurou entre os galhos
tristes dos carvalhos murchos.
1 41
FIM
1 42
Segundo Rusty Burke, editor e estudioso em Robert
Howard, o poema que se segue seria “das melhores
expressões da crença de Howard de que somos, por natureza,
bestas. Podemos construir civilizações, mas ainda somos
apenas macacos”.
N U N C A A LÉ M D A B E S T A
1 43
Além de todo o choro ou alegria,
Ele se esconde na nuvem e na grama;
Ele agarra as portas do diabo
E o ferrolho nas portas de Deus.
Construir e se empenhar é comum
Mas você nunca poderá escapar
Diante da paixão selvagem e cega
Da luxúria do macaco primal.
DESPIDAS
Tradução de Marco Antonio Collares
1 44
Mas nós fomos criados em uma terra
Onde a vida era muito difícil.
Você estuprou as uvas de sua alma roxa
Para suas taças de vinho cheias de água;
Descemos até os restos do buraco lamacento
E isso era amargo com álcali.
E você ficou flácido e com os membros redondos,
Lhe falta de coragem e respiração;
Mas nos tornamos robustos, magros e sombrios
Em nossas garras nuas com a Morte.
A seda era muito dura para sua pele delicada,
O vinho tinto era muito pobre para a sua seca;
Nós caçamos em buracos onde a chuva ficava,
E despimos o lobo sob nossa influência.
Redondas eram suas barrigas, macias suas mãos,
Macios com a gordura da terra;
Tua era a riqueza de uma terra sorridente,
Nossa era a escassez do deserto.
Você cantou debaixo da árvore de gafanhoto,
Esquecido da fome e do ódio:
Sempre foi, sempre será!
Mesmo assim, estávamos no seu portão.
Você relaxou perto da fonte e do salão dourado
Até aquela manhã frenética
Quando estouramos os portões e rompemos a parede
Para cortá-lo como milho.
1 45
Colhemos o rendimento e aramos os campos;
Com partes vermelhas pingando,
E você não poderia lutar e correr,
Só poderia morrer como lebres.
Grim iria trocar, vermelha troca,
Com espadas pingando para as moedas conquistar,
E suas mulheres gritarem na areia pisoteada
Com lombos machucados e sangrando.
Hábil era o cérebro e habilidosa era a mão
Moldada na pedra teimosa,
Mas o cérebro derramou na areia sangrenta
Quando o ferro rachou o osso.
A mão que traçou o friso dourado,
Rolou na página escrita,
Não poderia virar o aço acionado,
Apoiado pela raiva primitiva.
De que valem a harpa e o alaúde,
Cinto com gemas e capa roxa,
Quando o machado pingando estava atingindo a casa
Na chama e na fumaça ofuscante?
O sangue manchava seu cetim, seda e renda.
Você ouviu seus filhos gemer,
E seus anciões uivaram no mercado
Onde retiramos a pele do osso.
E onde seus juízes barbudos sentaram
Ordenando aos homens que vivessem ou morressem,
1 46
Um assassino nu rugiu e acenou
Um couro cabeludo ensanguentado no alto.
Sobre as ruínas arqueadas e espiraladas
As ondas ondulantes da nuvem de fumaça;
E você que viveu quando a espada estava cansada,
Você vive tal como nossos escravos.
Nossas mãos duras agarram suas taças de ouro,
Nossos pés ásperos esmagam suas flores;
Nós colocamos nossos cavalos em estábulos em seus corredores,
E toda a sua riqueza é nossa.
Nós trocamos nossos troncos de pele de lobo por sedas,
Nós os usamos desajeitadamente,
Nossos olhos estão sombrios, nossas barbas não aparadas,
Nossos bloqueios emaranhados fluem livremente.
Mas nossos filhos vão aparar suas barbas e cabelos,
Usarão capas de tom carmesim;
Eles vão levar suas filhas para suas camas,
Até que fiquem macios como você.
Eles vão trocar sua liberdade por harpas e alaúdes,
Descartar o arco e o dardo;
Eles vão construir uma prisão de cetim e ouro,
E chamá-las de Cultura e Arte.
Eles vão deitar no colo de uma terra sorridente,
Até que sua ferrugem desfaça e apodreça,
E eles desprezarão seu sangue e a mão calejada,
E os pais que os geraram.
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Mas nossos irmãos ainda vivem no deserto escaldado pelo sol
E seus filhos são duros e magros;
Eles vão caçar a matilha dos lobos que perseguimos,
E beber a água que bebemos.
As fomes que sabíamos, eles também saberão,
As cicatrizes de presas e sarças;
Nas rochas onde eles se agacham
Quando as tempestades de areia sopram
Eles encontrarão as marcas de nossos fogos.
Eles conhecerão as fomes que uma vez tivemos,
Enquanto corre o fluxo dos séculos,
Até que eles explodirão no deserto, loucos de fome,
Para massacrar nossos filhos preguiçosos.
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1 49
Adeson Moraes
Afrânio Willian Tegão
Alexsandre de Lira Silva
Corwin Gothcrom
Edgar Rupel
Endeusa Marius
Eliezer Martins
Emerson Silva
Fabio Moreira de Melo
Fernando Donizetti
Gustavo Henrique Lemos
Henry Bernardo
Jonatas Faria Rossetti
João Dinardi de Castro
Karolyne da Rocha Bastos
Leonardo Franco Miranda
Leone Lúcio
Luiz Alfredo Bexiga
Marco Antonio Collares
Marcos Flávio Rodrigues
Mariana Bernardes
Mateus Martinbianco Bauer
Pedro Henrique Gonçalves Ferreira
Robilam Corrêa Júnior
Rodrigo Chiesa
Ronan Barros
Sebastião Alves
Valter F. Viana