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Editorial..................................................................04

Introdução..............................................................07

Review – A Maldição do deus

Carmesim.................................................................11

Conto – A Maldição do deus

Carmesim.................................................................15

Review – Aqueles que Caminham até o

Valhalla....................................................................56

Conto - Aqueles que Caminham até o

Valhalla....................................................................63

Poema – “Nunca além da

Besta”....................................................................157

Poema – “Uma Canção das Terras

Despidas”..............................................................159

Apoiadores............................................................165

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Por Marco Antonio Collares

Os fãs e leitores brasileiros de fantasia, Espada &


Feitiçaria e de Robert Howard vivem perguntando nas
redes sociais, em diferentes grupos ou páginas, sobre
quais seriam os contos do autor texano que foram
traduzidos para o português, além daqueles mais
conhecidos que são os ciclos de Conan, Kull, Solomon
Kane ou Bran Mak Morn. Uma pergunta constante,
devemos dizer, e que sempre nos inquieta aqui no
Fórum, Conan o Bárbaro. Ora, temos um blog e uma
sessão específica de downloads com alguns contos
originais traduzidos por nossa equipe, mas realmente o
público pede mais e mais, algo mais palpável, talvez,
quem sabe uma nova publicação de contos, com o

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devido tratamento sobre as influências do escritor texano, bem
como sobre os aspectos nodais inscritos em suas narrativas. Pois
bem, o leitor terá diante de si, a partir de agora, uma revista
quinzenal, na qual serão apresentadas duas resenhas para dois
contos traduzidos, fechando com dois poemas escritos por
Howard, de preferência sobre temas próximos aos contos da
presente edição. Para isso, nos utilizaremos de versões originais
em inglês ou traduções em espanhol, com o labor de Marcelo
Alves, um dos membros do Fórum, mais Fernando Neeser de
Aragão, do site “Crônicas da Ciméria”, e com os auxílios do
estudioso acadêmico em Howard, também escriba do Fórum,
Marco Antonio Collares e do incrível escritor e editor de fantasia,
Jean Gabriel Álamo. Isso sem falar nas ilustrações originais que
pretendemos trazer nas próximas edições, com a participação de
artistas nacionais. Mas que critério será escolhido para os contos a
serem traduzidos e publicados em cada edição dessa revista
quinzenal? Em teoria, nenhum. Não, melhor dizendo, de
preferência, os contos daqueles ciclos howardianos não tão
conhecidos ou que, talvez, possam ser (re) pensados a partir de um
olhar mais aprofundado, expressando a grandiosidade das linhas
escritas. Na primeira edição, a escolha recaiu sobre dois
personagens interessantíssimos: James Allison, dos ciclos de
“Memórias Raciais” e Kirby O’Donnel, dos ciclos de aventura e

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ficção histórica de Howard, o primeiro conto denominado de “A
Maldição do Deus Carmesim”, o segundo, intitulado de
“Caminhantes de Valhalla”. O primeiro, traduzido por Marcelo
Alves e o segundo, por Neeser. Provavelmente o leitor e fã do
cimério Conan não conhece tais contos, conhece pouco ou sequer
sabe que Howard era um escritor prolífico que muito ultrapassou
seu mais famoso personagem, sendo um gênio da escrita pulp de
sua época histórica, os anos 1920/1930. Com essa revista,
esperamos então ajudar a divulgar ainda mais esse grande escritor
da contemporaneidade, desvelando outros tantos personagens e
narrativas vibrantes que certamente irão conquistar ainda mais o
público brasileiro. Nossa intenção, podemos afirmar, é apenas
essa. Nos damos por satisfeitos caso o mestre de Cross Plains seja
finalmente reconhecido por seu gênio criativo e visto para além de
suas mais famosas criaturas.

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Por Marcelo Souza e Marco Antonio Collares

Depois de uma postagem na página do facebbok


da Confraria do Forum Conan o Bárbaro no dia 21 de
agosto de 2020, de um trecho do conto “A Maldição
do deus Carmesim”, de Robert E. Howard, eis que a
ideia se tornou concreta agora com essa nova revista
digital do FORUM CONAN O BÁRBARO destinada
à publicação dos melhores contos de toda a obra de
Robert E. Howard.

O projeto desta revista digital destina-se a todos


os fãs da obra de Robert E. Howard e tem o intuito de
trazer a diversidade de contos que o autor escreveu ao
longo de sua breve carreira como escritor. Nessas
páginas, o fã e sedento leitor terá a opotunidade de
encontrar histórias (contos, novelas, poemas, etc.) que
são inéditas ou tem a sua circulação restritas aos
circulos de estudiosos da obra de Howard mas que
ainda não foram disponibilizados ao público em geral.

Ao longos dessas edições, que começam aqui com


este primeiro número, pretendemos desbravar essa

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“seara” inédita e trazer o melhor da literatura howardiana tanto ao
público em geral, quanto aos apoiadores do Forum Conan o
Bárbaro e, quem sabe, um dia essas edições serão impressas.

Bem, nessa primeira edição da revista, traremos "A Maldição


do Deus Carmesim", primeiro conto escrito do personagem Kirby
O'Donnell. Mas quem seria esse personagem, afinal? Ora, trata-se
de um aventureiro caça tesouros no Oriente Próximo a lá Indiana
Jones, um "irlandês negro" com cabelos negros e olhos de azuis,
dentro do clichê howardiano, que adorava mimetizar aspectos de
si mesmo em seus personagens.

Se El Borak era o caça tesouro pistoleiro rápido com


fundamentos políticos de criar seu império asiático, O'Donnell
não, pois era apenas um espadachim disfarçado que adorava a
caça aos tesouros e o senso de aventuras e de perigo.

O segundo conto, “Aqueles que Caminham até o Valhalla” –


muitas vezes traduzido como “Caminhantes do Valhalla”
(Marchers of Valhalla) – traz a aparição de outro personagem
howardiano para o leitor “desgustar” na leitura desta revista.
Trata-se do personagem chamado James Allison. Um personagem
que, diferente dos bárbaros howardiano, é um homem do inicio do

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século XX e que vive uma vida tediosa no Texas. Aleijado e
amargurado, James Allison carrega uma doença terminal que o
consome. Vive uma vida solitária que só é esquecida quando ele
se lembra de suas vidas passadas antes dessa Era Contemporânea.
Aqui temos um tipo de narrativa que os especialistas na obra de
Howard chamarão de “memória racial” em que um personagem,
viajando no tempo em Eras passadas, recorda que nasceu, cresceu,
guerreou, amou e envelheceu em uma determinada etnia tribal
bárbara de povos proto-europeus, chamados, dentro do universo
mitológico de Howard, de aesires e vanires.

Marchers of Valhalla é o terceiro conto, dito canônico, que


o escritor Robert E. Howard escreveu sobre o seu personagem
James Allison. Entretanto, esse conto somente apareceu e foi
publicado no ano de 1972 por Donald Grant em uma época em
que muitos acreditavam que o melhor da narrativa de Howard
estava concentrado unicamente em seu personagem mais famoso,
que era o Conan. A narrativa desse conto veio comprovar o
contrário. Possuindo uma importante carga lírica, esse conto vem
marcado com batalhas campais brutais no melhor estilo de Espada
& Feitiçaria, se bem que o teor FEITIÇARIA não aparece
explícito nesta narrativa; ele e mais sutil e está vinculado mais a
um desenvolvimento e intervenções de poderes sobrenaturais à

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vontade humana marcado por deuses e deusa ancestrais
envolvidos na trama. Mas, já resenhamos muito aqui e deixaremos
para o leitor o melhor , que é a leitura, ou como alguns dizem, “o
prazer da leitura” de um autor como Robert E. Howard.

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Por Marcelo Souza

"A Maldição do Deus Carmesim" (The Curse of


the Crimson God), originalmente intitulada «The Trail
of the Bloodstained God» ("A Trilha do Deus
Manchado de Sangue"), nunca foi publicada durante a
vida do autor. Seu manuscrito lhe foi devolvido pela
revista Thrilling Adventures em 8 de outubro de
1935. Howard revisou o texto e o enviou a seu agente,
o colega escritor Otis Adelbert Kline, em 31 de janeiro
de 1936. Kline enviou a história para várias
publicações, mas todas a rejeitaram: Dime Adventure
(enviada em 4 de fevereiro de 1936 e retornada em 2 de
março), Short Stories (enviada em 3 de março e
retornada em 18 de março), Adventure (enviada em 19
Março, retornando em 8 de abril) e Argosy (enviada
em 9 de abril, retornando em 22 de abril).

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Ilustração da capa do livro de Robert E. Howard, “Kirby O’Donnell,
Caçador de Tesouros”, feita pea PROVIDENCE Press e publicada em
fevereiro de 2018 na Itália.

Anos se passariam para que, após a morte do autor, esse conto


fosse finalmente publicado, mas com armadilhas. No início dos
anos 50, quando L. Sprague de Camp levou a cabo o espólio dos
papéis e manuscritos de Robert E. Howard, ele encontrou o
manuscrito e o reescreveu como uma história de Conan,
limitando-se a mudar apenas alguns nomes da trama (o
personagem Hassan passou a ser Sassan e assim por diante),
rifles foram substituídos por arcos e flechas e montanhas afegãs
por algumas montanhas remotas da Era Hiboriana (assinando a

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nova versão da história, como se ele tivesse feito algo de bom
com ela). O resultado, «The Blood-Stained God» ("O Deus
manchado de sangue") foi publicado no volume «Tales of
Conan» ("Contos de Conan") em 1955. A versão original teria
que esperar quase vinte anos antes de aparecer como ela
realmente é, e é por isso que, na maioria das edições
publicadas em outros países, esse conto aparece como a terceira
história da saga de Kirby O’Donnell, o que é incongruente
quando se lê os três romances: no final de "A Maldição do Deus
Carmesim", O'Donnell fará amizade com Yar Mohammed, que
se torna seu irmão de sangue. O guerreiro Waziri reaparecerá em
"As Espadas de Shahrazar", reconhecendo O'Donnell com
alegria ao encontrá-lo novamente.

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Tradução e Revisão: Marcelo Souza

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CAPÍTULO 1
No Beco de Satã

Estava escuro, como a boca de um lobo, aquele fedorento


beco afegão pelo qual Kirby O’Donnell, com seu disfarce de
espadachim curdo, avançava em uma busca tão impenetrável
como a escuridão que lhe rodeava. Foi um agudo uivo de dor que
fez com que mudasse por completo o rumo de sua busca. Os gritos
de dor e agonia não eram um som estranho nos labirínticos becos
de Medina el Harami, a Cidade dos Ladrões, e nenhum homem
tímido ou sensato poderia pensar em interferir em assuntos que
não eram de seu interesse. Mas O’Donnell não era nenhum dos
dois, e havia algo arraigado em sua alma irlandesa que não lhe
permitia ouvir um grito de dor sem tentar prestar ajuda.

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Obedecendo aos seus instintos, ele se virou para um raio de
luz que, concidentemente ao lado dele, atravessava a escuridão.
E no instante seguinte, estava espiando por uma fenda em uma
janela fechada numa parede de pedra. O que viram seus olhos
despertou uma maré vermelha de fúria em sua mente, apesar do
fato de que sua alma já estivesse endurecida depois de tantos
anos de aventuras nas terras mais cruéis do mundo.

Mas O'Donnell jamais poderia permanecer indiferente ao ver


como torturavam uma pessoa.

Ele olhava para uma ampla sala, com paredes cobertas por
cortinas de veludo e o chão repleto de tapetes e divãs caros. Ao
redor de um desses divãs estava agrupado quase uma dúzia de
homens... Sete bravos yusufzai de pele escura, e mais dois, que
eram difíceis de identificar. No divã estava estendido outro
homem, um nativo da tribo Waziri, nu até a cintura. Era um
homem corpulento, mas os rufiões, tão grandes e musculosos
como ele, seguravam seus tornozelos e pulsos. Quatro deles
forçaram-no a permanecer deitado no divã, incapaz de se mover,
embora seus músculos se debatessem, sofrendo violentos
espasmos nos membros e na altura dos ombros. Seus olhos
resplandeciam com um brilho avermelhado e seu peito largo

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brilhava de suor. Havia uma boa razão para isso. O'Donnell viu
um homem grande, com um turbante de seda vermelha, usando
uma pinça de prata, puxando um pedaço de carvão incandescente
dentro de um braseiro, para trazê-lo ao peito nu do cativo, que
mostrava queimaduras de brasas anteriores.

Outro homem, ainda mais alto que o de turbante vermelho,


resmungou uma pergunta que O'Donnell não entendeu. O waziri
balançou a cabeça violentamente e cuspiu no interrogador. No
instante seguinte o carvão incandescente caiu em seu peito

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peludo, arrancando um brado desumano do homem torturado. E,
nesse mesmo momento, O'Donnell se jogou, com todo o seu
peso, contra a janela.

O americano, de ascendência irlandesa, não era um homem


alto, mas seus ossos eram fortes e sua constituição feita de aço.
Os cacos de vidro se estilhaçaram com um estrondo e ele caiu do
outro lado da janela em pé, com a cimitarra na mão e o kindhjal
na outra. Os torturadores se viraram e olharam perplexos para
ele.

E o que viram foi uma figura misteriosa e mascarada, usando


o traje típico de um curdo, com a adição de um kafiyeh
ondulante em volta do rosto. Acima de sua máscara, seus olhos
brilhavam como brasas, paralisando-os. Mas a cena permaneceu
congelada e imóvel por apenas um instante, pois logo se tornou
uma maré de um combate furioso.

O homem de turbante vermelho deu uma ordem rápida, e um


gigante peludo avançou para enfrentar o intruso recém-chegado.
O yusufzai empunhava um punhal Khiber de quase um metro de
comprimento em guarda baixa e, dando um passo para frente,
levantou a lâmina. Mas a cimitarra de O’Donnell projetou um

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golpe vindo de cima para baixo, atingindo o pulso que
empunhava o terrível aço. A mão, ainda segurando o punhal,
voou para longe do pulso com um banho de sangue, e a longa e
estreita lâmina que O'Donnell segurava na mão esquerda
deslizou pela garganta do assassino, causando-lhe um engasgo
de agonia.

Enquanto o cadáver ainda se mexia com os últimos espasmos,


o americano saltou sobre ele, na direção do homem de turbante
vermelho e de seu guarda-costas alto. Ele não temia que
pudessem atacá-lo com armas de fogo. Mesmo no beco de Satã,
o tiroteio à noite certamente seria investigado, e nenhum dos
habitantes do beco desejava sofrer uma investigação policial.

Ele estava certo quanto a isso, pois o homem de turbante


vermelho empunhou uma faca e o homem alto, um sabre.

—Corte o pescoço dele, Jallad! — grasnou o homem de


turbante vermelho, afastando-se do ataque impetuoso do
americano. Achmet, me ajude!

O homem chamado Jallad, que significa Executor,


interrompeu a estocada de O'Donnell e a devolveu. O'Donnell

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evitou o contra-ataque com uma agilidade que poderia ter
envergonhado uma pantera faminta e, com o mesmo movimento,
aproximou-se do homem de turbante vermelho novamente, que
estendeu a adaga para se defender. O homem de turbante
vermelho uivou e deu um salto para trás, evitando o kindhjal de
O’Donnell por uma margem tão estreita que a lâmina cortou sua
roupa de seda, arranhando a pele abaixo. Ele tropeçou em um
divã e perdeu o equilíbrio, caindo atrás do móvel. Mas antes que
O'Donnell pudesse aproveitar sua vantagem, Jallad lançou-se
sobre ele, desferindo uma chuva de estocadas de seu sabre.
Havia tanta força quanto habilidade no braço do homem alto, e
por um instante O'Donnell teve que ficar na defensiva.

Mas, enquanto O’Donnell defendia os relampejantes golpes


de espada, o americano viu um yusufzai - aquele que o homem
de turbante vermelho havia chamado Achmet - avançando em
sua direção, pegando um mosquete antigo pelo cano. Um único
golpe de seu pesado cabo de latão poderia quebrar o crânio de
um homem como um ovo. O homem de turbante vermelho
conseguiu se levantar e, em seguida, o americano viu os outros
três se aproximando pelos lados.

Ele não esperou que o cercassem. Um golpe cintilante de sua

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cimitarra, parado no último momento, enviou Jallad
cambaleando para trás e O'Donnell girou como um gato
assustado e saltou em direção a Achmet. O yusufzai uivou,
erguendo o mosquete, mas a velocidade ofuscante do ataque do
americano o pegou desprevenido. Antes que ele pudesse dar um
único golpe, já estava caído no chão, assistindo seu sangue e seu
interior vazarem através de um grande golpe em seu abdômen.

Lançado um grito selvagem, Jallad investiu novamente contra


O'Donnell, mas o americano não ficou imóvel para aguardar o
ataque.

Não havia mais ninguém entre ele e o waziri no divã. Ele


saltou direto em direção aos quatro homens, que ainda estavam
segurando pulsos e pés do prisioneiro. Soltaram o homem,
gritando alarmados, e pegando seus tulwars. Um deles lançou
uma punhalada cruel no waziri, que rolou do divã para o chão,
evitando o ataque. Um segundo depois, O'Donnell ficou entre o
prisioneiro e seus captores. Estes, por sua vez, começaram a
assediar o americano, que recuou, puxando o waziri.

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—Saia daqui! Vá em frente! Rápido!

—Cães! — gritou o homem de turbante vermelho enquanto


avançava, acompanhado por Jallad—. Não o deixe escapar!

—Venha e prove a morte você mesmo, cão! — O'Donnel riu


de forma selvagem em meio ao clamor dos aços. Mas, mesmo
envolvido na paixão do combate, ele lembrou que devia fingir
um sotaque curdo.

O waziri, fraco e trêmulo pela tortura que havia sofrido,


descobriu uma trava, abrindo a porta que levava a um pequeno
pátio fechado.

—Fuja! —gritou O'Donnell—. Suba o muro enquanto eu os


detenho!

O’Donnell ficou entre a porta e o pátio, com suas duas


lâminas de aço afiado e mortal. O Waziri tropeçou no pátio,
enquanto os homens de dentro da casa se lançavam uivando
contra o americano. Mas na abertura estreita da porta, seu
próprio número jogava contra eles. O americano riu e xingou,
enquanto defendia estocadas e se esquivava dos golpes. O

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homem de turbante vermelho, atrás de seus homens suados,
estava empenhado em incentivá-los, aproveitando para dedicar
ao intruso curdo todos os insultos que conhecia. Jallad estava
tentando fazer um bom corte na direção de O'Donnell, mas seus
próprios homens estavam bloqueando seu caminho. Então, com a
velocidade de uma cobra, a cimitarra de O'Donnell deslizou entre
a lâmina de um tulwar, e um yusufzai, depois de sentir o aço frio
em suas entranhas, caiu no chão moribundo. Jallad, que estava
investindo fundo em uma estocada, tropeçou no homem morto e
caiu no chão. Instantaneamente, a porta foi bloqueada por
diferentes atacantes, que lançavam maldições e xingavam
enquanto tentavam se organizar. Mas antes que pudessem fazê-
lo, O'Donnell virou-se e correu pelo pátio em direção ao muro
pelo qual o Waziri havia desaparecido.

O'Donnell deu um salto e agarrou o topo do muro,


vislumbrando os becos escuros e labirínticos do outro lado.
Nesse instante, algo colidiu com sua cabeça. Era um banquinho,
jogado por Jallah, enquanto a silhueta de O'Donnell estava
claramente delineada contra as estrelas. Mas O'Donnell não sabia
o que o havia atingido, porque com o impacto, perdeu a
consciência. Sem forças e em silencioso, seu corpo caiu no outro
lado do muro, nas ruas sombrias.

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CAPÍTULO 2
Os caminhos da suspeita
Foi a fraca luminescência de uma lanterna sobre seu rosto
que tirou O'Donnell da inconsciência. Ele sentou-se, piscando e
sobressaltado, tateando em busca de sua espada. Então a luz se
apagou e, na escuridão reinante, uma voz soou:

—Fique tranquilo, Ali el Ghazi. Sou um amigo.

—Quem diabos é você? —Quis saber O'Donnell. Ele


encontrou sua cimitarra, caída no chão perto dele e, com a
agilidade de uma pantera, agachou-se com um salto repentino.
Estava na rua, aos pés do muro por onde caíra, e o outro homem
não passava de uma forma difusa pairando sobre ele sob a
sombria luz das estrelas.

—Seu amigo — repetiu o outro. Ele falou com sotaque


persa—. Aquele que sabe o nome pelo qual você se faz passar.
Você pode me chamar de Hassan. É um nome tão bom quanto
qualquer outro.

O'Donnell levantou-se, cimitarra na mão, e o persa estendeu

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algo para ele. O'Donnell captou o brilho do aço sob a luz
estrelada, mas antes que pudesse atacar, como pretendia, viu que
era seu próprio kindhjal, que Hassan havia apanhado do chão e
que agora lhe entregava, oferecendo-o pela empunhadura do
cabo.
—Você é tão desconfiado quanto um lobo faminto, Ali el
Ghazi —Hassan riu—. Mas é melhor você guardar o aço para seus
inimigos.

—Onde estão? —O'Donnell quis saber enquanto recuperava seu


kindhjal.

—Eles foram para as montanhas. Em busca do Deus manchado de


sangue.

O'Donnell sofreu um violento sobressalto. Ele agarrou o


kindhjal da mão do persa com um aperto de ferro e observou os
olhos escuros do homem, misteriosos e zombadores na
penumbra.

—Maldito seja! O que você sabe sobre o Deus manchado de


sangue? —A ponta afiada do seu kindhjal tocou levemente a pele
do persa embaixo das costelas.

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—Sei o seguinte —disse Hassan, imperturbável—. Eu sei que
você veio a Medina el Harami seguindo alguns ladrões que
roubaram seu mapa que leva a um tesouro maior que o da horda
de Akbar. Eu também vim aqui procurando por algo. Estava
escondido aqui perto, olhando através de um buraco na parede,
quando você invadiu a sala onde o waziri estava sendo torturado.
Como você sabia que foram eles que roubaram seu mapa?

—Não sabia! —O'Donnell murmurou—. Ouvi um homem


gritar e invadi para que parassem de torturá-lo. Se soubesse que
aqueles eram os homens que eu estava caçando... Escute, quanto
você sabe sobre o assunto?

—É isso que eu sei — disse Hassan—. Nas montanhas, não


muito longe desta cidade, mas escondido em um local quase
inacessível, há um templo antigo em que as pessoas não ousam
entrar. A região é proibida aos Ferengi, mas um certo inglês
chamado Pembroke encontrou este templo por acidente e, ao
entrar nele, descobriu um ídolo coberto de jóias vermelhas, que
chamou de Deus manchado de sangue. Embora não pudesse
levá-lo, ele desenhou um mapa, com a intenção de voltar para lá.
Ele conseguiu sair das montanhas sem sofrer um único arranhão,

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mas foi esfaqueado em Cabul por um fanático e morreu lá. Mas,
antes de morrer, deu o mapa a um curdo chamado Ali el Ghazi.

—E o que mais? — insistiu O'Donnell com tom sombrio. A


casa atrás dele estava escura e silenciosa. Não se ouvia nenhum
outro som na escuridão da rua, exceto o sussurro do vento e o
murmúrio baixo de suas vozes.

—O mapa foi roubado —disse Hassan—. Por quem, isso é


algo que você já sabe.

—Eu não sabia na época —rosnou O'Donnell—. Mais tarde,


soube que os ladrões eram um inglês chamado Hawklin e um
príncipe afegão deserdado chamado Jehungir Khan. Um servo
rebelde estava espionando Pembroke quando ele estava
agonizando, e contou-lhes do mapa. Eu não conhecia nenhum
deles de vista, mas consegui localizá-lo nesta cidade. Hoje à
noite soube que eles estavam escondidos em algum canto do
beco de Satã. Procurava as cegas por alguma pista do possível
esconderijo dele quando entrei nessa luta.

—Você lutou com eles sem saber que eram os homens que
você estava procurando! — disse Hassan—. O waziri é Yar

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Mohammed, um espião de Yakub Khan, o chefe Jowaki
proscrito. Eles o reconheceram e o convenceram a acompanhá-
los até essa casa, e estavam queimando-o para forçá-lo a revelar
os caminhos secretos para atravessar as montanhas, conhecidos
apenas pelos espiões de Yakub. Então você apareceu e já sabe o
resto.

—Tudo, exceto o que aconteceu quando eu escalei o muro —


disse O'Donnell.

—Alguém jogou um banquinho em você —respondeu


Hassan—. Quando você caiu do outro lado do muro, eles
pararam de prestar atenção em você, porque pensaram que você
tinha morrido ou porque não o reconheceram por causa da sua
máscara. Perseguiram o waziri, mas não sei se ele conseguiu
escapar, ou se o caçaram e o mataram. O que sei é que eles
voltaram depois de um tempo, carregaram seus cavalos às
pressas e partiram para o oeste, deixando os cadáveres onde
haviam caído. Cheguei aqui e descobri seu rosto para ver quem
você era e eu o reconheci.

—Então o homem de turbante vermelho era Jehungir Khan —


murmurou O’Donnell—. Mas, onde estava Hawklin?

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—Estava disfarçado de afegão ... ele era o homem que
chamavam de Jallad, o Executor, pois matou muitos homens.

—Nunca me ocorreu que Jallad fosse um ferengi" —rosnou


O'Donnell.

—Nem todos os homens são o que parecem ser —disse


Hassan casualmente—. Por exemplo, eu sei que você não é um
curdo, longe disso, mas um americano chamado Kirby
O'Donnell.

Por alguns segundos, houve um silêncio tenso, no qual a vida


e a morte dependiam de algo tão fino quanto um fio de cabelo.

—E que? —A voz de O'Donnell era tão suave e mortal


quanto o silvo de uma cobra.

—Nada! Como você, eu também quero esse deus vermelho.


É por esse motivo que segui Hawklin aqui. Mas sozinho não
consigo enfrentar com toda a gangue dele. Nem você. Mas
podemos unir forças. Vamos seguir esses ladrões e tirar o ídolo!

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—Muito bem —O'Donnell tomou a decisão rapidamente—.
Mas te matarei se você tentar algum truque, Hassan!

—Confie em mim! —respondeu Hassan—. Venha. Tenho


cavalos selados... muito melhor do que aquele com o qual você
entrou nesta cidade de ladrões.

O persa o conduziu por becos estreitos e intrincados, repletos


de varandas ornamentadas, e por labirintícos becos fedorentos,
finalmente parando em frente à porta iluminada de um pátio
fechado. Depois de bater com os nós dos dedos, um rosto
barbudo apareceu em uma pequena janela e, depois de murmurar
certas palavras, a porta se abriu. Hassan entrou confiante, mas
O'Donnell o fez desconfiado, quase esperando uma armadilha de
algum tipo, pois ele tinha muitos inimigos no Afeganistão, e
Hassan era um estranho. Mas as montarias estavam lá, e uma
ordem seca do guardião do estábulo fez com que servos
sonolentos os selassem os cavalos, enchendo seus alforjes com
pacotes de comida. Hassan comprou um par de rifles de alta
potência e cinturões separados cheios de cartuchos.

Pouco tempo depois eles estavam cavalgando juntos, saindo


pela porta oeste da cidade, ignorando os gritos do guarda

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sonolento. Os homens vão e vêm nas horas mais inoportunas de
Medina el Harami (que, nos mapas, aparece com outro nome,
embora as pessoas jurem que seu primitivo nome muçulmano se
encaixa muito melhor).

Hassan, o persa, era um homem baixo, mas musculoso, com


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um rosto largo e olhos escuros e alertas. Empunhava o rifle com
habilidade e levava pendurada, do lado dele, uma cimitarra.
O'Donnell sabia que, se necessário, lutaria com astúcia e
coragem. E ele também sabia até que ponto podia confiar em
Hassan. O aventureiro persa jogaria limpo desde que sua aliança
fosse lucrativa. Mas se chegasse o momento em que não visse
mais necessário a ajuda de O'Donnell, ele não hesitaria em
assassinar seu parceiro se tivesse a chance, a fim de ficar com
todo o tesouro. Homens do estilo de Hassan são tão implacáveis
como uma cobra.

Hawklin também era como uma cobra, mas O'Donnell não


estava preocupado com sua inferioridade numérica... pois ele
deveria estar lidando com cinco homens bem armados e
desesperados. Com sua frieza característica, ele decidiu que se
preocuparia com isso quando chegasse a hora.

O amanhecer os pegou andando por desfiladeiros rochosos,


alinhados com ladeiras íngremes de ambos os lados, e logo
depois Hassan diminuiu a velocidade para observar a trilha. Eles
estavam seguindo um caminho de areia macia, mas agora as
pegadas dos cascos viravam bruscamente para um lado,
desaparecendo no chão rochoso de um amplo platô.

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—Foi aqui que eles deixaram o caminho —disse Hassan—.
Até aqui é a trilha deixada por Hawklin. Não seremos capazes de
segui-lo por essas rochas. Você estudou o mapa quando estava
em sua posse... Para onde avança a rota a partir daqui?

O'Donnell sacudiu a cabeça, exasperado com a inesperada


frustração.

—Esse mapa era um quebra-cabeça e eu não o tinha comigo o


tempo suficiente para descobrir. A rota principal, localizada em
um caminho antigo que leva ao templo, deve estar em algum
lugar por aqui. Mas é indicado no mapa como "Castelo de Akbar.
E nunca ouvi falar de um castelo assim, ou de ruínas que são
chamadas assim ... Nem aqui ou em qualquer outro lugar.

—Olhe! —Exclamou Hassan, com os olhos brilhantes,


quando ele se ergueu acima dos estribos e apontou na direção de
um grande penhasco que se erguia no horizonte, alguns
quilômetros a oeste. Aquele é o castelo de Akbar! Hoje eles
chamam de Rocha das Águias, mas antigamente se referiam
àquela montanha como Castelo de Akbar! Eu li sobre ele em um
manuscrito muito antigo e sombrio! De alguma forma, Pembroke

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deve ter conhecido esse nome antigo, e o colocou no mapa para
confundir quem pudesse roubá-lo! Vamos! Jehungir Khan
certamente deve saber tudo isso também. Estamos há apenas
uma hora deles e nossos cavalos são melhores que os seus.

O'Donnell liderou o caminho, tentando forçar sua memória,


para lembrar os detalhes do mapa roubado. Contornando a base
da rocha, a sudoeste, ele desenhou uma linha imaginária do cume
para três outros picos que formavam um triângulo, muito ao sul.
Então ele e Hassan cavalgaram para o oeste, na diagonal. Onde o
caminho deles se cruzava com a linha imaginária, eles
descobriram restos de um caminho antigo que subia as
montanhas, fazendo muitos desvios. O mapa não estava
mentindo, e a memória de O'Donnell não havia falhado. Os
excrementos de cavalos indicavam que um grupo de cavaleiros
havia passado recentemente por esse caminho quase turvo.
Hassan disse que era o grupo Hawklin e O'Donnell concordou.

—Eles vão direto para o Castelo de Akbar, assim como nós.


Estamos encurtando a distância que nos separa deles. Mas não
estamos interessados em chegar muito perto. Nos superam em
número. É do nosso interesse ficar fora da vista deles até
conseguirem o ídolo. Então vamos emboscá-los e tirá-lo deles.

36
Os olhos de Hassan brilharam de alegria; tal estratégia era
muito agradável à sua natureza oriental.

—Mas devemos ser cautelosos — disse ele—. Pois a partir


deste ponto, a região pertence a Yakub Khan, que rouba a todos
que encontra. Se eles soubessem os caminhos ocultos, poderiam
evitá-lo. Agora, devem confiar na sorte para não cair em suas
mãos. E nós também teremos que estar alertas! Yakub Khan não
é meu amigo e odeia curdos!

37
CAPÍTULO 3
Espadas nos penhascos
Ao meio-dia eles ainda estavam seguindo o caminho antigo
que serpenteava incansavelmente ... e, obviamente, era tudo o
que restava de uma estrada velha e esquecida.

—Se esse waziri conseguiu voltar para Yakub Khan —disse


Hassan, enquanto andavam em direção a um desfiladeiro estreito
que se abria no sopé das montanhas que os cercavam— os
jowakis estarão obviamente alertas contra estranhos. Embora Yar
Mohammed não suspeitasse da verdadeira identidade de
Hawklin e não descobrisse o que ele estava procurando, também.
Yakub Khan não saberá. Acho que ele sabe onde fica o templo,
mas é supersticioso demais para aproximar-se. Fantasmas o
assustam. Ele não sabe nada sobre o ídolo. Pembroke deve ter
sido o único homem que entrou naquele templo sabe Allah
quantos séculos atrás. Em Peshawar, ouvi a história dos lábios de
38
um criado dele, morrendo de mordida de uma serpente. Hawklin,
Jehungir Khan, você e eu somos os únicos homens vivos que
conhecem a existência desse deus...

Eles ficaram assustados quando um Pathano magro, com


rosto de falcão, veio cavalgando em direção a eles da boca do
desfiladeiro.

—Pare! —Ele chamou imperiosamente, galopando na direção


deles com a mão estendida. Em nome de qual autoridade você
entra no território de Yakub Khan?

—Cuidado —O'Donnell murmurou—. É um jowaki. Pode


haver dezenas de rifles apontados para nós a partir dessas rochas
neste exato momento.

—Vou dar-lhe um dinheiro —disse Hassan entre dentes—.


Yakub Khan reivindica o direito de coletar tributo de todos os
que viajam por essa região. Talvez seja isso que esse cara queira.
Tocando seu cinturão, ele se dirigiu ao homem da tribo.

—Somos apenas dois viajantes pobres, que ficarão


encantados em prestar o tributo tão justamente exigido por seu

39
bravo chefe. Cavalgamos sozinhos.

—Então quem é esse que vem atrás de vocês? —perguntou o


jowaki bruscamente, balançando a cabeça na direção em que
tinham vindo.

Hassan, apesar de toda a cautela, virou a cabeça levemente, as


mãos tateando as moedas. E, naquele instante, um feroz triunfo
ardeu na face escura do jowaki e, com um movimento tão rápido
quanto o de uma cobra, ele tirou uma adaga do cinto e golpeou o
desprevenido persa.

Entretanto, por mais veloz que possa ter sido o jowaki,


O'Donnell foi ainda mais rápido, pois havia sentido a armadilha
que estava preparando para eles. Quando a adaga se aproximou
da garganta de Hassan, a cimitarra de O'Donnell brilhou à luz do
sol, e os aços colidiram. A adaga caiu das mãos do beduíno e,
com um zumbido, foi parar na coronha do rifle ao lado da sela.
Mas antes que ele pudesse recuperar sua arma, O'Donnell atacou
novamente, rachando o turbante e o crânio do homem. A
montaria do jowaki empinou, jogando o cadáver para a frente, e
O'Donnell retirou a espada.

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—Cavalgue em direção ao desfiladeiro! —Ele uivou—. É uma
emboscada!

A breve escaramuça não durou mais que alguns segundos.


Quando o corpo do jowaki caiu no chão, tiros de espingarda
ecoaram pelas rochas no lado da montanha. O cavalo de Hassan
saltou em uma convulsão repentina, depois galopou como um
raio em direção à boca do desfiladeiro, perdendo sangue a cada
passo. O'Donnell sentiu uma bala de chumbo afundar em sua
panturrilha enquanto apertava suas esporas e fugia atrás do persa,
que era incapaz de controlar sua montaria enlouquecida de dor.
Quando se aproximaram da entrada do desfiladeiro, três
cavaleiros, consagrados espadachins do clã Jowaki, saíram,
brandindo seus tulwar de lâmina larga. A montaria enlouquecida
de Hassan o levou direto em suas garras, e o persa lutou em vão
para freá-la. De repente, ele abandonou suas tentativas e,
segurando o rifle, começou a disparar enquanto cavalgava. Um
dos cavalos tropeçou e caiu, derrubando o cavaleiro no chão.
Outro deles levantou os braços para o céu e caiu fulminado. O
terceiro jogou em Hassan umas estocadas selvagens quando seu
animal enlouquecido passou por ele, mas o persa se agachou,
esquivando-se da lâmina e escapou para o desfiladeiro.

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Um momento depois, O'Donnell estava de frente para o
espadachim, que o atacou brandindo seu pesado tulwar. O
americano levantou a cimitarra e as lâminas encontraram-se em
um estrondo metálico, enquanto os cavalos galopavam lado a
lado. A montaria do homem da tribo recuou de novo com o
impacto, e O'Donnell, levantando-se nos estribos e golpeando
com toda a força, quebrou a lâmina de tulwar, rompendo o
crânio daquele que o empunhava. No momento seguinte, o
americano estava galopando em direção ao desfiladeiro. Ele
esperava que estivesse cheio de guerreiros armados, mas não
tinha escolha. Lá fora, balas choveram ao seu redor, colidindo
com pedras e ricocheteando em árvores secas.

Mas, evidentemente, o homem que havia formulado a


armadilha, considerava que a pontaria dos homens no alto da
montanha seria suficiente, e havia colocado apenas quatro
guerreiros no desfiladeiro, pois quando O'Donnell entrou nele, só
viu Hassan à frente. Alguns metros adiante, o cavalo ferido
tropeçou e caiu, e o persa saltou de maneira limpa quando sua
montaria caiu.

—Monte atrás de mim! —O'Donnell estalou, ajudando-o a


subir.

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E Hassan, com o rifle na mão, pulou para a traseira da sela.
Um toque de esporas nos flancos do cavalo carregado o forçou a
galopar pelo estreito desfiladeiro. Os gritos selvagens atrás deles
indicaram que os homens da tribo estavam indo para as
montarias do lado de fora, sem dúvida escondidos atrás do
primeiro penhasco. Então o caminho da garganta girou
bruscamente, e os sons de perseguição foram abafados. Mas eles
sabiam que os selvagens homens das montanhas logo entrariam
no desfiladeiro, procurando por ele, como lobos seguindo uma
trilha.

—Aquele espião waziri deve ter conseguido voltar para


Yakub Khan —ofegou Hassan—. Eles não querem ouro, mas
sangue. Você acha que eles mataram Hawklin?

—Hawklin deve ter passado por esse desfiladeiro antes que os


jowakis chegassem para preparar a emboscada —respondeu
O'Donnell—. Ou eles o estavam seguindo quando nos viram
chegando, e montaram essa armadilha para nós. Parece-me que
Hawklin está em algum lugar à nossa frente.

—Não importa — disse Hassan—. Este cavalo não pode nos

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levar muito mais longe. Ele se cansa rapidamente. Suas
montarias devem estar mais descansadas. É melhor encontrarmos
um lugar onde possamos dar a volta para lutar. Se conseguirmos
segurá-los até o anoitecer, talvez possamos fugir mais tarde.

Eles haviam avançado um pouco mais de um quilômetro e já


estavam começando a ouvir fracos sons de perseguição, ainda
muito longe deles, quando, abruptamente, chegaram a um espaço
aberto, em forma de tigela, cercado pelo sopé das montanhas. No
meio de sua extensão, uma ladeira subia gradualmente,
estreitando-se como um gargalo, até chegar a um passo na
montanha, a saída daquele anfiteatro natural. Havia algo não
natural naquela clareira, algo que alertou O'Donnell e Hassan,
que saltou do cavalo, lançando um alarido. Um muro baixo de
pedra fechava a entrada estreita da passagem. Um tiro de
espingarda ecoou daquela parede, quando a montaria de
O'Donnell ergueu a cabeça, assustada com o brilho do sol no
cano da arma. A bala, destinada ao cavaleiro, colidiu na cabeça
do animal.

A fera entrou em colapso e O'Donnell saltou dela, rolando


pelo chão até um grupo de rochas, atrás das quais Hassan já
havia se escondido. Numerosos lampejos de fogo iluminaram a

44
parede e balas assobiaram ao redor deles, colidindo com o toco
de rochas que serviam de refúgio. Eles se entreolharam com um
sorriso sombrio e irônico.

—Bem, já encontramos o Hawklin! — disse Hassan.

—E em alguns minutos, Yakub Khan aparecerá atrás de nós,


e estaremos entre a espada e a parede! —O'Donnell riu
baixinho, mas a situação era desesperadora. Com os inimigos
bloqueando o caminho das montanhas, e os outros inimigos
avançando pelo desfiladeiro atrás deles, eles estavam
completamente presos.

Os tocos de rocha sob os quais eles se agachavam os


protegiam do fogo vindo da parede, mas não ofereceriam
proteção contra os jowakis quando emergissem do desfiladeiro.
Se eles se movessem de lá, seriam expostos aos homens na
frente deles. Se eles não se mexessem, seriam baleados pelas
costas pelos jowakis.

Uma voz ecoou, desafiando-os:

—Saia daí, para levar um tiro, seu canalha! —Hawklin não fez

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nenhuma tentativa de esconder que era britânico—. Eu te conheço,
Hassan! Quem é esse curdo que está com você? Pensei que o
tivesse quebrado na noite passada!

—Sim, um curdo! —O'Donnell respondeu—. Um chamado


Ali, el Ghazi!

Após um momento de assombrado silêncio, Hawklin gritou:

—Eu deveria ter adivinhado, cachorro ianque!"Ah, sim, eu sei


muito bem quem você é! Bem, isso não importa agora!
Conseguimos encurralá-lo e você não pode se mover!

—Você está na mesma situação, Hawklin! —O'Donnell


exclamou—. Não ouviu o tiroteio na entrada do desfiladeiro?

—Claro! Quem está te perseguindo?

—Yakub Khan e cem jowakis! —O'Donnell exagerou—.


Quando ele acabar conosco, você acha que ele deixará você ir
tão calmamente? Depois de torturar um de seus homens para
tirar seus segredos?

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—É melhor nos deixar juntar a você! —Hassan acrescentou,
reconhecendo, como O'Donnell havia feito antes, que essa era
sua única chance—. Uma grande luta está chegando, e você
precisará de toda a ajuda que puder, se quiser sair vivo dela!

Hawklin fez um sinal por cima do muro com sua cabeça com
um turbante. Evidentemente, confiava no senso de honra dos
dois homens que odiava e não tinha medo de um tiro de traição.

—Isso é certo? —Ele exclamou.

—Você não consegue ouvir os cavalos? — O'Donnell


espinhou.
Não havia necessidade de perguntar. A garganta reverberou
com um ruído de cascos de cavalos e uivos selvagens. Hawklin
empalideceu. Ele sabia que tipo de pena podia esperar de Yakub
Khan. E conhecia a perícia em combate dos dois aventureiros... e
sabia até que ponto a ajuda deles poderia contar em uma luta até
a morte.

—Suba até aqui, rápido! —Ele gritou—. Se ainda estivermos


vivos quando a luta terminar, decidiremos quem ficará com o
ídolo!

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Realmente não era hora de pensar no tesouro, nem mesmo no
Deus Carmesim! Suas próprias vidas estavam em risco.
O'Donnell e Hassan se levantaram, com rifles na mão e correram
ladeira abaixo em direção à parede de pedra. Assim que
chegaram, os primeiros cavaleiros invadiram a entrada do
desfiladeiro e começaram a atirar. Agachado atrás do muro,
Hawklin e seus homens devolveram o fogo. Meia dúzia de selas
foram deixadas vazias, e os jowakis, desmoralizados pelo
inesperado granizo de balas, viraram-se e retornaram ao
desfiladeiro.

O'Donnell estudou os homens que Destino havia feito seus


aliados: os ladrões que roubaram seu mapa do tesouro e que,
quinze minutos antes, teriam ficado encantados em matá-lo;
Hawklin, sombrio e perspicaz, em sua roupa afegã; Jehungir
Khan, de aparência impecável, depois de ter pilotado três léguas;
e três hirsutos brutamontes yusufzai, por nomes tão diversos
quanto Akbar, Suliman e Yusuf, que arreganharam os dentes
com nojo. Aquela era uma aliança entre lobos que duraria apenas
enquanto durasse a ameaça comum.
Os homens atrás do muro começaram a atirar nas figuras
vestidas de branco que se espalhavam entre as rochas e arbustos

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perto da entrada do desfiladeiro. Os jowakis haviam desmontado
e estavam rastejando pela clareira, aproveitando cada pequeno
espaço coberto. Os rifles deles brilhavam por trás de todo toco de
pedra e cada arbusto frondoso.

—Eles devem ter nos seguido —resmungou Hawklin,


cutucando o cano de seu rifle—. O'Donnell, você mentiu para
nós! Aí for Não pode haver cem homens!

—De todo modo, ainda é uma quantidade suficiente para


cortar nossos pescoços —disse O'Donnell, apertando o gatilho.
Um homem que saltava em direção a uma pedra foi fulminado e
os guerreiros ocultos uivaram de raiva—. De qualquer forma,
nada impede que Yakub Khan envie alguém para pedir reforços.
Sua vila não fica a muitas horas a cavalo daqui.

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A conversa deles seguia o ritmo dos firmes estampidos de
seus rifles. Os Jowakis, bem escondidos, deixaram de sofrer
vítimas com o tiroteio.

—Pelo menos temos uma chance atrás desse muro —rosnou


Hawklin—. Não há como saber quantos séculos atrás ele foi
construído. Parece-me que foi erigido pela mesma raça que
ergueu o templo do Deus Carmesim. Essas montanhas estão
cheias de ruínas como essas. Maldição! —Ele gritou para seus
homens—: "Não atirem tanto! Estamos ficando sem munição.
Eles estão se aproximando lentamente para nos atacar corpo a
corpo. Reserve seus cartuchos para esse momento. Nós vamos
derrubá-los assim que eles saírem a céu aberto —e um instante
depois, ele exclamou:

—Aí vêm eles!

Os jowakis avançavam a pé, correndo de uma pedra para


outra, de um arbusto para o outro, disparando à medida que
avançavam. Os defensores contiveram os disparos friamente,
agachando-se e espiando através das rachaduras na parede. O
chumbo esmagou a rocha, causando poeira e faíscas. Suliman

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lançou uma série de maldições quando uma bala bateu em seu
ombro. Lá atrás, na foz do desfiladeiro, O'Donnell distinguiu a
barba ruiva de Yakub Khan, mas o chefe se protegeu antes que
pudesse atirar nele. Tão evasivo quanto uma raposa, Yakub não
estava disposto a liderar o ataque pessoalmente.

Mas os homens do seu clã lutaram com ferocidade


desenfreada. Talvez o silêncio dos defensores os tivesse levado a
acreditar que eles estavam sem munição. Ou talvez a sede de
sangue que ardia nas veias os tivesse deixado de lado a astúcia.
De qualquer maneira, trinta e cinco ou quarenta homens
subitamente saíram ao ar livre e se lançaram para cima com um
uivo de uma alcateia de lobos. Eles dispararam seus rifles
aleatoriamente, e logo estavam na barreira com seus punhais de
um metro de comprimento.

—Agora! —Hawklin gritou, e um voleio à queima-roupa


atingiu a frente da horda. Em um instante, a encosta se encheu de
figuras despedaçadas. Os homens que estavam abrigados atrás
do muro eram combatentes veteranos; o tipo de homem que
nunca pode falhar a essa distância. O tributo que se cobrou à
estrondosa chuva de chumbo foi impressionante, mas os
sobreviventes continuaram avançando, com seus olhos

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brilhando, espumando nas barbas e os largos punhais brilhando
nos punhos peludos.

—As balas não vão detê-los! —Hawklin uivou, disparando


seu último cartucho de seu rifle—. Defendam o muro ou
seremos homens mortos!

Os defensores esvaziaram suas armas contra a maior parte da


massa de beduínos e depois subiram na muralha, empunhando
seus aços e até seus rifles usando como maça de combate. A
estratégia de Hawklin havia fracassado, e agora era hora de lutar
corpo a corpo, golpeando e esquivando-se, e o diabo levando os
infelizes.

Os homens tropeçavam e caíam sob o impacto das últimas


balas, mas, acima de seus corpos despedaçados, a horda
continuou avançando contra a parede até alcançá-la. Por toda a
muralha ressoavam golpes que quebravam ossos, os tinir de aço
atingindo o aço e os gemidos dos moribundos. O punhado de
defensores ainda mantinha a vantagem de uma posição
privilegiada, e a base do muro estava cheia de cadáveres
empilhados antes que os jowakis conseguissem pisar no outro
lado da barricada. Um homem da tribo de olhos selvagens

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colocou a ponta do cano de um velho mosquete contra o rosto de
Akbar, e a descarga explodiu a cabeça do yusufzai. Um uivante
jowaki deslizou pela abertura estreita deixada pelo cadáver,
subindo a parede antes que O'Donnell pudesse evitá-lo. O
americano recuou com a intenção de carregar o rifle, mas
descobriu que não havia cartuchos no cinto. Só então ele viu o
jowaki selvagem subindo na parede. Ele correu em direção ao
homem, segurando o rifle como um taco, enquanto o beduíno
largou o mosquete para brandir uma faca comprida. Antes que
ele pudesse tirá-la da bainha, O'Donnell golpeou nele com o
rifle, esmagando seu crânio.

O'Donnell saltou sobre o cadáver para enfrentar a horda que


se espalhava por toda a parede. Enquanto empunhava o rifle
como uma maça, não teve tempo de assistir à luta ao seu redor.
Hawklin praguejava em inglês, Hassan em persa e alguém
gritava, em língua persa, uma agonia mortal. Ele ouviu sons de
batidas, gemidos e xingamentos, mas não podia se dar ao luxo de
olhar para a esquerda ou para a direita. Três homens tribais,
enlouquecidos pela sede de sangue, lutavam como gatos
selvagens para escalar o muro. O'Donnell os golpeou até que seu
rifle foi reduzido a uma pilha de fragmentos, e dois deles caíram
de cabeça aberta; mas o terceiro, escalando a parede, agarrou o

54
americano com as mãos de gorila e o abraçou, tão perto que ele
foi incapaz de usar seu bastão improvisado. Meio sufocado por
aqueles dedos peludos na garganta, O'Donnell puxou seu
kindhjal e cravou-o cegamente, várias vezes, até que o sangue
escorreu por sua mão e, com um rugido, o jowaki o soltou e
precipitou-se pela beira do muro.

Enquanto recuperava o fôlego, O'Donnell olhou em volta,


notando que a pressão parecia ter enfraquecido. A barricada não
estava mais cheia de rostos selvagens. Os jowakis tropeçavam
ladeira abaixo... os poucos que restaram para escapar. Suas
perdas foram terríveis, e não havia um homem sequer entre os
que escaparam que não sangrasse de algum ferimento.

Mas a vitória tinha sido cara. Sulimán estava estendido na


parede, com a cabeça quebrada como um ovo. Akbar estava
morto. Yusuf estava morrendo, com uma facada no abdômen, e
seus uivos eram terríveis. Enquanto O'Donnell o observava,
Hawklin implacavelmente terminou sua agonia com uma bala na
cabeça. Então o americano viu Jehungir Khan, sentado de costas
contra a parede, pressionando as mãos contra o corpo, enquanto
o sangue vazava por entre seus dedos. Os lábios do príncipe
estavam azulados, mas ele conseguiu lançar um sorriso sinistro.

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—Nasci em um palácio —ele sussurrou — e vou morrer atrás
de um muro de pedra! Não importa ... é o Kismet. Há uma
maldição flutuando neste tesouro... Os homens sempre morrem
quando seguem a trilha do Deus manchado de sangue ... —e ele
morreu enquanto falava.

Hawklin, O'Donnell e Hassan se entreolharam em silêncio.


Eles eram os únicos sobreviventes... três figuras esbeltas,
enegrecidas pela fumaça da pólvora misturada com sangue e
com suas roupas esfarrapadas. Os jowakis, depois de escaparem,
desapareceram no interior do penhasco, deixando a clareira do
desfiladeiro vazia, exceto pelos muitos mortos espalhados por
toda a encosta.

—Yakub escapou! —Hawklin resmungou—. Eu o vi deslizar


pelo desfiladeiro quando seus homens começaram a fugir.
Agora ele cavalgará para sua aldeia... E colocará toda a tribo em
nossos calcanhares! Vamos! Nós podemos encontrar o templo.
Vamos encarar isso como uma corrida ... podemos correr o risco
de tentar se apossar do ídolo e, de alguma forma, escapar pelas
montanhas, antes de sermos capturados. Estamos nessa situação
juntos. Poderíamos esquecer tudo o que aconteceu e unir forças
para o bem comum. Há tesouro suficiente para todos os três.

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—Há muita verdade no que você diz — rosnou O'Donnell—.
Mas é melhor você me devolver o mapa para começar.

Hawklin ainda estava segurando uma pistola fumegante na


mão, mas antes que ele pudesse levantá-la, Hassan estava
apontando o revólver para ele.

—Reservei alguns cartuchos para este momento —disse


Hassan, e Hawklin verificou como as pontas azuladas das balas
saíam do tambor do revólver—. Me dê sua arma. Agora dê o
mapa para O'Donnell.

Hawklin encolheu os ombros e puxou o pergaminho amassado.

—Malditos sejam! Se encontrarmos esse tesouro, mereço a


terceira parte! —ele exclamou.

O'Donnell examinou o mapa e colocou-o no cinto.

—Muito bem, não guardo rancor. Você é um porco, mas se


jogar limpo conosco, nós o trataremos como outro parceiro, não
é, Hassan?

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O persa assentiu, colocando as duas armas no cinto.

—Não há tempo para discutir. Se quisermos sair disso vivos,


será melhor para nós três fazermos o nosso melhor. Hawklin, se
os jowakis nos encontrarem, eu devolvo sua arma. Caso
contrário, você não precisará dela.

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CAPÍTULO 4
O Tributo do deus carmesim

Os cavalos estavam amarrados na passagem estreita atrás do


muro. Os três homens montaram os melhores animais, soltaram
os demais e galoparam pelo desfiladeiro que se estendia além do
desfiladeiro. A noite caiu sobre eles, mas eles continuaram
viajando sem ceder ao cansaço. Atrás deles, em algum lugar —
embora não soubessem se estavam muito longe ou muito perto
— os homens da tribo de Yakub Khan cavalgavam, e se o chefe
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conseguisse capturá-los, sua vingança seria terrível. Então eles
galoparam pela escuridão da noite no Himalaia, três homens
desesperados em uma busca enlouquecida, com a morte por trás,
perigos desconhecidos à sua frente e uma sombra de suspeita
mútua apertando seus nervos.

O'Donnell observou Hassan como um falcão. Depois de


vistoriar todos os cadáveres na muralha, ele não conseguiu
encontrar um único cartucho não disparado, de modo que as
pistolas de Hassan eram as únicas armas de fogo em todo o
grupo. Isso deu ao persa uma vantagem que O'Donnell não
gostou nada. Se chegasse um momento em que Hassan deixasse
de precisar da ajuda de seus companheiros, O'Donnell tinha
certeza de que o persa não teria nenhum escrúpulo em matá-los a
sangue frio. Mas Hassan não se voltaria contra eles enquanto
precisasse do apoio deles, e quando houvesse uma luta ...
O'Donnell acariciou suas lâminas afiadas com uma expressão
sombria. Em mais de uma ocasião, ele teve que usá-las contra o
chumbo ardente e ainda estava vivo para contar a história.

Enquanto continuavam seu caminho sob a luz das estrelas,


guiados pelo mapa que indicava a rota de maneira inconfundível
- mesmo à noite - O'Donnell se viu perguntando novamente o

60
que o autor do mapa havia tentado lhe dizer antes. A morte levou
Pembroke mais rápido do que ele esperava. Quando ele estava
imerso na descrição do templo, sua boca se encheu de sangue e
sua cabeça afundou para trás, enquanto se debatia
desesperadamente para sussurrar mais algumas palavras, antes de
morrer. Pareciam algum tipo de aviso... Mas do que?

Amanhecia quando deixaram um desfiladeiro estreito que


terminava em um amplo vale, cercado por pedras altas. O
desfiladeiro por onde haviam entrado, um caminho estreito entre
montanhas escarpadas, era a única entrada para o vale; sem o
mapa, eles nunca poderiam ter encontrado. Avançaram ao longo
de uma borda de rocha que corria pela extensão do muro que
cercava o vale, uma estrada elevada de trinta metros de altura
que, por um lado, era limitada por um muro natural que subia
trinta metros e, por outro Mais de trezentos caíram. Parecia não
haver maneira de descer às profundezas enevoadas do vale, que
se estendiam bem abaixo deles. Mas eles não dedicaram mais do
que alguns olhares ao que estava abaixo, porque o que viram
diante deles retirou de suas mentes toda a fadiga e fome que
sentiam. Ali mesmo, na borda, estava o templo, brilhando ao sol
nascente. Foi esculpido na rocha viva da montanha, e seu grande
pórtico esculpido parecia desafiá-los. A borda servia como uma

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estrada calçada que levava à sua porta assombrosa.

Que raça ou cultura eles poderiam representar, era algo que


O'Donnell não ousava conjecturar. Mil conquistadores
desconhecidos haviam pisado aquelas montanhas antes do
amanhecer cinzento da história. Civilizações sem nome haviam
se levantado e desmoronado antes dos cumes tremerem com as
trombetas de Alexandre, o Grande.

—Como vamos abrir a porta? —O'Donnell se perguntou. O


grande portão de bronze parecia ter sido construído para resistir a
uma bateria de artilharia. Desdobrou o mapa e olhou novamente
para as anotações rabiscadas nas margens. Mas Hassan desceu da
sela e correu em frente, gritando fora de si. Um estranho frenesi
próximo à loucura se originou no persa ao ver o templo e ao
pensamento da riqueza fabulosa que havia dentro dele.

—Ele é um estúpido! —Hawklin rosnou, desmontando do


cavalo—. Pembroke deixou um aviso por escrito na margem do
mapa... "Você pode entrar no templo, mas precisa ser cuidadoso,
porque o deus exige um tributo."

Hassan tocava e empurrava vários ornamentos e bordas do

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portal. Eles o ouviram gritar exultantemente enquanto alguns
deles se moviam sob suas mãos... Mas então seu grito se
transformou em um uivo de terror quando a porta, uma tonelada
de bronze esculpido, se inclinou e caiu com um estrondo. O
persa não teve tempo de evitá-la. Ele foi esmagado como uma
formiga. Seu cadáver preso permaneceu escondido sob a enorme
laje de bronze, sob a qual agora havia uma grande poça
carmesim de sangue.

Hawklin encolheu os ombros.

—Eu já te disse que ele era estúpido. Os antigos sabiam


guardar um tesouro. Eu me pergunto como Pembroke conseguiu
evitar ser esmagado.

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—Obviamente, de alguma forma, conseguiu acionar a porta
sem que ela se soltasse de seus suportes —respondeu
O'Donnell—. Foi o que aconteceu quando Hassan ativou esses
mecanismos. Deve ser o que Pembroke estava tentando me dizer
antes de morrer... quais mecanismos devia acionar e quais evitar.

—Bem, o deus cobrou seu tributo, e nós temos o caminho


aberto — rosnou Hawklin, pisando indiferente à porta
avermelhada. O'Donnel entrou logo atrás. Eles pararam no largo
umbral, examinando o interior sombrio como se espiassem o
esconderijo de uma cobra. Mas nenhuma fatalidade repentina
desceu sobre eles, nem a menor ameaça apareceu diante de seus
olhos. Entraram com cautela. O silêncio envolvia o templo
antigo, quebrado apenas pelo suave farfalhar de suas botas.

A escuridão os fez piscar. Além, um clarão carmesim atingiu


seus olhos, como o brilho do crepúsculo. Eles encararam o Deus
manchado de sangue, um objeto de bronze incrustado com
pedras flamejantes. Tinha o formato de um anão e estava de pé
sobre um bloco de basalto, de frente para a porta. À sua
esquerda, a poucos metros da base do pedestal, o chão do templo
estava aberto de um lado para o outro por uma grande falha, com
cerca de cinco metros de largura. Em algum momento de sua

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existência, um terremoto havia dividido o chão de rocha, e não
havia como saber até onde suas profundidades ressonantes
desciam. Muitas Eras atrás, inúmeras vítimas vociferantes
haviam sido lançadas naquele abismo negro pelas mãos de
terríveis sacerdotes, para servir como sacrifício humano ao Deus
Carmesim. As paredes do templo eram altas e tinham uma
escultura fantástica. O teto estava envolto em sombras
enevoadas.

Mas a atenção dos homens estava ansiosamente fixada no


ídolo. Sua aparência era brutal, repulsiva, uma monstruosidade
leprosa cujas jóias vermelhas davam a ele a aparência repulsiva
de estar coberto de sangue. Mas representava uma riqueza que
fazia seus cérebros dançarem.

—Deus! —O'Donnell murmurou—. Essas jóias são reais!


Elas devem valer uma fortuna!

—Milhões! —Hawklin ofegou—. Demais para compartilhar


com um ianque condenado!

Foram essas palavras, sussurradas inconscientemente entre os


dentes rangentes do inglês, que salvaram a vida de O'Donnell,

66
paralisado como estava pela contemplação daquele ídolo ímpio.
Ele virou a cabeça, captou o brilho do sabre de Hawklin e se
afastou bem a tempo. A lâmina sussurrando cortou um pedaço
do pano ao lado de sua cabeça. Amaldiçoando seu descuido, pois
deveria esperar tal traição, ele pulou para trás, desembainhando
sua cimitarra.

O grande inglês saltou para ele como uma expiração e


O'Donnell o encarou, deixando sua raiva fluir com um gosto de
paixão. Eles lutaram incansavelmente, movendo-se para frente e
para trás, aproximando-se do ídolo e se afastando dele, os pés
deslizando rapidamente sobre a rocha e as lâminas se chocando,
ressoando, lançando faíscas azuladas, enquanto se moviam pelas
sombras.

Hawklin era mais alto que O'Donnell, e seus braços eram mais
longos, mas O'Donnell era igualmente forte e ágil. Hawklin temia
o kindhjal que ele empunhava mais do que a cimitarra na mão
esquerda, e conseguiu manter a luta o mais longe possível, para
que seu maior alcance pudesse ser decisivo. Ele também tinha
uma adaga na mão esquerda, mas sabia que não poderia competir
com O'Donnell no manuseio do punhal. Mas ele conhecia um
grande número de truques sujos e os praticou com seu aço

67
comprido. Vez após vez, O'Donnell evitou a morte por uma
margem tão pequena quanto um fio de cabelo e, por enquanto,
nem mesmo sua grande habilidade e velocidade haviam rompido
a excelente defesa do inglês.

O'Donnell tentou em vão chegar perto do corpo a corpo.

Em uma ocasião, Hawklin tentou derrubá-lo na beira do


abismo, mas ele ficou ao ponto de quase ser empalado pela
cimitarra do americano; então abandonou a tentativa.

Então, inesperadamente, chegou o fim. O pé de O'Donnell


escorregou levemente no chão polido e sua espada balançou por
um instante. Hawklin mergulhou com toda sua força e
velocidade, numa investida que teria feito o sabre perfurar de
forma limpa no corpo de O'Donnell se ele tivesse conseguido
alcançar seu objetivo. Mas o americano não estava tão
desequilibrado quanto Hawklin pensava. Com uma leve
contorção de seu corpo, a lâmina longa passou dentro da
cavidade do braço direito, serrando o khalat solto e roçando as
costelas. Por um momento, a espada ficou presa entre os pedaços
de tecido solto e Hawklin uivou selvagemente, pegando sua
adaga. Afundo-a profundamente no braço direito de O'Donnell,

68
enquanto simultaneamente o kindhjal que O'Donnell segurava na
mão esquerda afundava entre as costelas de Hawklin.

O grito do ingles se transformou em um gorgolejo assustador.


Ele se afastou e, quando O'Donnell puxou a lâmina, o sangue
jorrou e Hawklin recuou, morrendo antes de atingir o chão.

O'Donnell deixou cair a arma e se ajoelhou, arrancando um


pedaço de seu khalat para improvisar um curativo. Seu braço
ferido estava sangrando profusamente, mas um exame rápido
garantiu que a adaga não havia cortado nenhum músculo ou veia
principal.

Enquanto aplicava a bandagem improvisada, amarrando com


o auxílio dos dedos e os dentes, olhou para o Deus manchado de
sangue que parecia contemplá-lo e ao homem que acabara de
matar. Ele havia cobrado um tributo pesado e seu rosto talhado
como uma gárgula parecia sugerir gula. O'Donnell estremeceu.
Certamente devia estar amaldiçoado. Poderia uma riqueza obtida
com essa fonte trazer boa sorte pelo preço simbolizado pelo
cadáver a seus pés? Ele afastou esse pensamento de sua mente. O
Deus Vermelho era dele, e ele o conquistara com suor, sangue e
espada. Ele teria que empacotá-lo e carregá-lo em um cavalo, e

69
sair dali antes que a vingança de Yakub Khan pudesse alcançá-
lo. Não retornaria pelo caminho que viera. Estaria cheio de
jowakis. Ele deveria escapar cegamente, avançando por
montanhas desconhecidas, confiando na sorte para chegar a um
lugar seguro.

—Levante as mãos! —Ele ouviu um grito triunfante cujos


ecos subiram ao teto.

Em um único movimento, ele se levantou, virou-se para a


porta... e ficou paralisado.

Dois homens estavam diante dele, e um deles apontou um


rifle para ele, pronto para disparar. Um dos homens era alto e
magro, com barba avermelhada.

—Yakub Khan! — murmurou O'Donnell.

O outro sujeito era um indivíduo forte e poderoso, que lhe era


vagamente familiar.

—Largue suas armas! —o chefe deu uma risada rouca—.


Você pensou que eu tinha ido para minha aldeia, não é?

70
Estúpido! Enviei todos os meus homens para lá, exceto um, que
foi o único que não foi ferido. Eles avisariam a tribo, enquanto
eu te seguiria, acompanhado por este homem. Eu segui sua trilha
a noite toda, e cheguei até aqui enquanto lutava com aquele ali,
estirado no chão. Chegou a sua hora, cão curdo! Para trás! Para
Trás! Para tras!

Sob a ameaça de um rifle, O'Donnell se moveu lentamente até


chegar perto do abismo negro. Yakub o acompanhou, a uma
distância segura de vários metros, e o rifle não hesitaria.

—Você me levou a um tesouro —Yakub murmurou,


abaixando o cano da arma na penumbra—. Eu não sabia que este
templo continha um ídolo! Se eu soubesse, eu o teria roubado há
muito tempo, apesar da superstição dos meus seguidores. Yar
Mohammed, pegue sua espada e punhal.

71
50
Ao ouvir esse nome, a identidade do corpulento companheiro
de Yakub foi esclarecida. O homem se abaixou para pegar a
espada e depois exclamou:

—Alá!

Ele estava olhando para o ornamento de bronze de cabeça de


falcão que coroava o cabo da cimitarra de O'Donnell.

—Espere! —o waziri exclamou—. Esta é a espada de quem


me salvou da tortura, mesmo correndo o risco de sua própria
vida! Seu rosto estava coberto, mas eu me lembro da cabeça de
falcão no punho de sua espada! É esse curdo!

—Silêncio! —o chefe resmungou—. Ele é um ladrão e vai


morrer!

—Não! —o waziri estava inflamado com a repentina e


apaixonada lealdade dos homens das montanhas—. Salvou
minha vida! Eu, um estranho! O que você me deu, exceto
trabalho duro e salários miseráveis? Eu renuncio a minha adesão
a você, ladrão jowaki!

51
—Cachorro! —Rugiu o chefe, virando-se contra Yar
Mohammed, que recuou por falta de armas de fogo. Yakub Khan
disparou e a bala arrancou uma mecha de cabelo da barba do
waziri. Yar Mohammed uivou uma maldição e correu para ficar
atrás do pedestal do ídolo.

Assim que o estampido do disparo ressoou, O'Donnell pulou


para derrubar o chefe, mas quando pulou, percebeu que iria
falhar. Com um grunhido, Yakub virou o rifle em sua direção e,
naquele momento, O'Donnell sabia que a morte viria do cano da
arma antes que ele pudesse alcançar o jowaki. O dedo de Yakub
começou a puxar o gatilho... e então Yar Mohammed levantou o
ídolo no ar, e seus poderosos músculos rangeram quando ele o
jogou.

Ele colidiu diretamente com o jowaki, derrubando-o para


trás... sobre a beira do abismo! Yakub Khan atirou às cegas
quando caiu, e O'Donnell sentiu o assobio próximo da bala. Um
grito frenético subiu ao teto do templo, enquanto homem e ídolo
desapareciam juntos para sempre.

Atordoado, O'Donnell deu um passo à frente e espiou por

52
cima da borda, examinando as profundezas negras. Ele ficou
olhando e ouvindo por um longo tempo, mas nem sequer
conseguiu percebeu o som da queda. Ele estremeceu com a
profundidade horripilante à sua frente e se afastou rapidamente.
Uma mão firme em seu ombro o fez se virar para olhar o rosto
barbudo e sorridente de Yar Mohammed.

—A partir deste momento, você será meu camarada —disse o


Waziri—. Se você realmente é quem se chama Ali, el Ghazi. É
verdade, então, que há um Ferengi escondido sob essa roupa?

O'Donnell assentiu, observando o homem de perto. Yar


Mohammed apenas sorriu ainda mais.
—Não importa! Eu matei o chefe que seguia, e agora as mãos
de sua tribo se levantarão contra mim. Devo seguir outro chefe...
e ouvi muitas histórias sobre as façanhas de Ali el Ghazi! Então
você vai me aceitar como seu seguidor, sahib?

—Você é o tipo de pessoa que vale a pena ter como amigo —


disse O'Donnell, estendendo a mão à maneira do homem branco.

—Que Allah lhe dê abençoe! —Yar Mohammed exclamou


alegremente, apertando sua mão com força—. E agora, vamos

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sair daqui rápido! Os Jowakis chegarão a este lugar antes que
passem muitas horas e não devem nos encontrar aqui! Mas existe
um caminho secreto, além deste templo, que desce ao vale, e
conheço caminhos ocultos que podem nos tirar dele e nos levar
muito mais longe, antes que nossos inimigos apareçam. Vamos
lá!

O'Donnell pegou suas armas e seguiu o waziri até a parte


externa do templo. O ídolo estava perdido para sempre, mas esse
tinha sido o preço de sua própria vida. E havia muitos outros
tesouros perdidos para desafiar a habilidade do aventureiro
incansável. Sua mente já estava se voltando para a possível
busca de um tesouro mítico oculto mencionado em cem lendas.

—Alhamdolillah! —Ele disse e riu com uma alegria


contagiante de viver enquanto seguia o waziri até o local onde
deixara os cavalos amarrados.

FIM

54
55
Por Etienne Navarre e Marco Antonio Collares

O autor espanhol Javier Martín Lalanda, em seu


fantástico livro “Cuando cantan las espadas” destacou
o quanto Robert E. Howard tinha "uma concepção
mítica do mundo”, algo para além de um viés
totalmente realista de escrita, apesar de doses fortes de
realismo em sua épica e até em sua fantasia. O
conhecimento da biblioteca pessoal do texano revela o
interesse do autor pelos ciclos de aventura e pelos
livros de história também, algo mesclado
exemplarmente em sua ficção literária. Howard era sim
um leitor assíduo de livros de história e, segundo os
textos de algumas suas cartas, ele tinha uma verdadeira
paixão pela ficção histórica, talvez ainda mais do que
pela fantasia. Ele escreveu em uma carta de 1933 para
HP Lovecraft: "Para mim, não há obra literária tão
empolgante, como reescrever a história em disfarces

56
fictícios ... Um único parágrafo pode ser saturado com ação e
drama suficientes para preencher todo um volume ficticio". O
interesse de Howard pela história, por maior que fosse, não se
estendeu, no entanto, aos povos "civilizados". Vejamos outro
enunciado do texano:

“Quando uma raça - qualquer que fosse - emerge da barbárie,


ou não, desperta o meu interesse. Tenho a impressão de que
entendo e de que posso escrever em profundidade sobre isso. Mas,
à medida que avança em direção à civilização, ela começa a me
escapar, até que no final desaparece completamente e descubro
que seus costumes, modos de pensar e ambições são
completamente estranhos e desconcertantes para mim. Assim, os
primeiros conquistadores mongóis da China inspiram em mim o
maior interesse e a maior apreciação; mas algumas gerações
depois, quando adotaram a civilização de seus súditos, não
inspiram o menor interesse em mim. Meu estudo da história tem
sido uma busca constante por novos bárbaros, de tempos em
tempos”.

A esse conceito mítico de que fala Lalanda, Howard


mesclava ao realismo, criando, segundo o estudioso, um conceito
da fábula épica vibrante e incrivelmente verossímil em sua

57
fantasia ou senso de grandiosidade narrativa. Howard sabia que o
verdadeiro épico deveria ser habitado por toques de lirismo, e ele
tinha um senso de poesia capaz de imaginar situações de extrema
beleza que, em princípio, não podiam parecer menos poéticas. O
conceito de civilização que Howard usa como base dramática
essencial da maioria de seus ciclos literários deve muito às teorias
darwinianas na moda de seu contexto histórico. Sabe-se, por
exemplo, que ele leu a famosa obra de Oswald Spengler, “A
decadência do Ocidente”, muito influente na época com seus
toques de darwinismo social. Assim, o escritor texano identificou-
se com o conceito cíclico defendido por esse incrível pensador
alemão: uma vez superado o zênite, cada cidade ou reino ou povo
iniciaria inevitavelmente um declínio que levaria ao se ocaso, a
sua decadência, até a seu desaparecimento. Esse desaparecimento
poderia ser acelerado pela competição e pela invasão de outras
nações que iniciariam assim um caminho inverso, ou poderiam
sofrer um lento definhamento, o que se traduziria em uma
degradação que Howard comumente associava ao vício sensual e
até, em alguns casos, a perversão sexual. Todos sabem que ele
escreveu em, "Além do Rio Negro" que “a barbárie é o estado
natural da humanidade”. Quanto mais as cidades ou reinos ou
povos permanecessem em estados civilizados, mais as mesmas
estariam se afastando de sua poderosa origem, forjadas pelo elo do

58
homem com a natureza, tornando-o as mesmas corruptas e
decadentes. Como Xuthal, em Conan ou Neegari em Kane, por
exemplo. Nesse sentido, cidades ou reinos antigos como a
poderosa Estígia ou mesmo Zamora eram notadamente colmeias
de escória e vilania, e seus portões se abriam de “par em par” para
os bárbaros que invadiam de tempos em tempos. Quem não
lembra da queda de Acheron pela força primal dos Hiborianos em
suas vagas expansionistas, naquela época ainda bárbaros e
selvagens. O mérito de Howard, e o que torna sua literatura
atemporal reside, em parte, na transcendência que consegue
conceder a fusão do espírito épico crepuscular e do lirismo
selvagem, com um dinamismo de tirar o fôlego de qualquer leitor
voraz. Howard chegou a conceber um ciclo - apelidado por
especialistas como "memória racial ou ancestral" - no qual um
indivíduo específico, James Allison por exemplo, um homem
aleijado, recordava suas encarnações passadas, normalmente de
homens em contraste com seu atual estado de impotência, sendo
ele no passado comumente algum poderoso guerreiro selvagem.
Em vida, Howard publicou dois contos desse personagem
(deixando alguns outros inéditos), nos quais o ancestral de Allison
era normalmente um guerreiro proto nórdico que vivia em uma era
inconcebivelmente distante no tempo e que realizava várias
aventuras no curso das migrações que seu povo fazia para o sul.

59
Sim, tal passado pode ser até mesmo a famosa Era Hiboriana do
personagem Conan, perfeitamente reconhecível na narrativa. O
contato com outras civilizações, mais primitivas ou até em
declínio, tornou essas tramas dos ciclos de memórias raciais
pontos de entrada ideal para estudar como Howard aplicou o
conceito de auge e decadência civilizacional à sua literatura
vibrante. “Caminhantes do Valhalla” é um desses contos e foi
publicado postumamente. Trata-se de um conto que apoia todos os
pontos de Howard sobre barbárie versus civilização, sendo esta
última, uma armadilha antinatural que poderia enfraquecer os
homens e suas respectivas sociedades históricas. Temos aqui uma
narrativa de guerreiros bárbaros, cidades decadentes e combates
sangrentos. Temos ação de início ao fim, com sangue e espadas,
em uma mistura intrigante feita com perfeição pela máquina
insaciável de Howard. "Caminhantes" desvela-se como um sonho
de Allison, como uma rememoração de seu passado, quando ele
era o aesir de nome Hialmar, numa época esquecida da
humanidade, vagando pelos ermos do mundo ao lado de sua raça,
ao final daquela era em que viveu um certo cimério famoso. Muito
do poder da história está nas descrições de Howard dos aesires, os
protagonistas da trama. Eles são "gigantes além da compreensão
dos modernos", e hoje “nenhum homem é tão forte quanto o mais
fraco dos irmãos de guerra de Hialmar”. No entanto, sua força não

60
é apenas física. Os aesires são "uma raça de lobos" e anos de
peregrinação e luta "incutiram nas suas almas o espírito da
natureza: o poder intangível que treme no lobo cinzento, que ruge
ao vento norte, que dorme no poderoso tumulto dos rios
turbulentos, que soa na fricção do granizo gelado, no bater das
asas da águia e se esconde no silêncio melancólico dos vastos
lugares ". Essa narrativa chega ao cerne do melhor em Howard,
que não é somente contar apenas uma boa trama, mas mostrar
como homens ficam na frente de todos os seus oponentes e da
fúria sem sentido da natureza. Howard sugere que há algo
enterrado no fundo da alma dos humanos modernos (mesmo sem
eles compreenderem do que se trata), lembrando uma luta
atemporal pela sobrevivência, na qual suas naturezas foram
enterradas por anos e anos de civilização, esperando emergir do
caos e da guerra primal. Se o leitor quer se surpreender com a luta
vigorosa de povos civilizados contra bárbaros errantes em sua
total potência destruidora, representados aqui pelos aesires e pelo
protagonista de nome Hialmar, bem, esse conto é um dos mais
profícuos para gerar tal comoção ante suas linhas escritas. Trata-se
de Howard em toda a sua essência e brutalidade, não perdendo em
nada para as melhores narrativas de seus ciclos mais famosos.

61
62
Tradução: Fernando Nesser de Aragão

Pós-revisão: Marcelo Souza

63
CAPÍTULO 1
O céu estava lívido, melancólico e repulsivo, como o azul
do aço embaçado, riscado por tiras de pálido carmesim.
Delineadas contra esse fundo marrom avermelhado erguiam-se
as baixas montanhas que coroam as áridas terras altas em uma
extensão macabra de areias movediças e florestas ressecadas,

64
repletas por terrenos baldios nos quais os agricultores passam
suas vidas de uma maneira assustadora e inútil, amargurados
pelo trabalho estéril.

Embora coxeando, eu acabava de subir um penhasco que se


erguia acima dos demais, rodeado por ressecados bosques de
carvalhos.

65
A esmagadora melancolia e desolação monótona da paisagem
diante de mim pareceu transformarem minha alma em uma
massa de poeira e cinzas. Depois de deixar-me sentar em um
tronco podre, senti como a tristeza moribunda daquela terra

66
pesava sobre mim.

O sol carmesim, quase escondido por nuvens e redemoinhos


de poeira, começava a se ocultar; pendia no horizonte, quase na
ponta dos meus dedos. Embora aquele belo crepúsculo não
pudesse glorificar os montes sombrios, seu brilho escuro
acentuava ainda mais a desolação esmagadora da paisagem.

Então, de repente, percebi que não estava sozinho. Das


profundezas do bosque de carvalhos emergiu uma mulher que
olhava para mim.

67
Eu a observei em assombroso silêncio. Havia tão pouca
beleza em minha vida que mal conseguia distingui-la, mas sabia
que essa mulher tinha uma beleza inconcebível. De estatura
média, era esbelta e bem formada. Esqueci como ela estava
vestida, embora me pareça que sua roupa era modesta, mas
elegante. O que lembro é a beleza curiosa de seu rosto, que se
destacava no meio de gloriosos cabelos ondulados escuros. Seus
olhos atraíram os meus como um ímã; não sabia dizer a cor
deles, mas eram escuros e brilhantes, com uma luz que nunca
tinha contemplado antes. Ela falou comigo com um sotaque
curioso em sua voz, desconhecido para mim, mas tão musical
como sinos distantes.

—O que te entristece tanto, Hialmar?

—Você certamente está enganada, senhorita — respondi.


Meu nome é James Allison. Você está procurando alguém?

Ela negou muito lentamente com a cabeça.

—Vim para contemplar a terra mais uma vez. Não imaginava


encontrá-lo aqui.

68
—Não a compreendo — insisti. Nós nunca nos vimos. Você
nasceu neste país? Você não tem sotaque texano.

Voltou a negar com a cabeça.

—Não. Mas conheci esta terra há muito... muito tempo.

—Você não me parece ser tão velha — disse. Desculpe-me


por eu não levantar. Como vê, só tenho uma perna, e a subida até
aqui foi tão longa que me vejo obrigado a sentar-me para
descansar.

—Vejo que a vida tem sido dura contigo — disse ela


gentilmente. Eu mal te reconheci. Seu corpo mudou muito...

—Então você deve ter me conhecido antes que eu perdesse


minha perna —repliquei com uma pitada de amargura, —
embora jure que não me lembro de você. Tinha apenas quatorze
anos quando um mustang caiu sobre mim, esmagando minha
perna ao ponto em que tiveram que amputá-la. Eu gostaria que
Deus tivesse quebrado meu pescoço ao invés da perna.

Tais são as palavras que os aleijados trocam com os

69
desconhecidos: sem implorar sua empatia, mas em um mudo
silêncio gritando desesperados pela tortura insuportável que suas
almas sofrem.

—Não fique triste — ela murmurou baixinho. A vida nos tira,


mas também nos dá...

—Ei, não me venha agora com discursos sobre resignação e


moral! —exclamei furiosamente. Se eu pudesse quebrar o pescoço
dos otimistas presunçosos deste mundo...! Por que deveria me
alegrar? O que me resta para fazer, exceto sentar e esperar uma
morte que se arrasta lentamente em minha direção por uma doença
incurável? Não tenho lembranças felizes para me alegrarem, nem
futuro para enfrentar, exceto por mais alguns anos de sofrimento
antes da escuridão do esquecimento total. Nunca houve beleza em
minha vida, nem nessas terras perdidas e inóspitas.

A represa que continha meus sentimentos transbordou e toda


a minha amargura e meus sonhos, há muito reprimidos, veio à
tona; e não parecia estranho para mim abrir minha alma àquela
desconhecia que eu nunca tinha visto antes.

—A terra lembra. – ela disse.

70
—Se é assim, eu não compartilho dessas lembranças. Eu
poderia ter vivido uma vida plena até aqui, servindo como cowboy
nos dias dos primeiros colonos, que transformaram uma vasta terra
desconhecida em um grupo de fazendas espalhadas. Mesmo
nessas terras, minha vida poderia ter sido plena como caçador de
bisão, guerreiro índio ou até mesmo explorador. Mas eu nasci fora
do meu tempo, e até os poucos feitos dessa época cansativa me
foram negados.

—É difícil explicar como é amargo ficar amarrado e


indefeso, notando como seu sangue quente seca em suas veias e
seus sonhos de glória desaparecem em sua mente. Eu venho de
uma raça inquieta, errante e lutadora. Meu tataravô caiu no
Álamo, ao lado de Davy Crockett. Meu avô galopou ao lado de
Jack Hayes e Bigfoot Wallace e foi abatido junto com três quartos
da brigada de Hood. Meu irmão mais velho morreu em Vimy
Rodge, lutando com os canadenses, e o mais novo caiu em
Argonne. Meu pai também é aleijado e passa o dia cochilando em
sua poltrona, embora seus sonhos sejam repletos de ótimas
lembranças, porque a bala que quebrou sua perna o atingiu durante
a investida na colina de San Juan.

71
—Mas, o que tenho eu para sentir, sonhar ou recordar?

—Você precisa se lembrar —ela sussurrou—. Mesmo que


seja na forma de sonhos que chegam até você, como os ecos de
uma música distante. Eu me recordo! Lembro-me de haver me
arrastado de joelhos em sua direção, e que você me perdoou... sim,
e o rugido estrondoso da terra afundando ... Por acaso você nunca
sonhou que está se afogando?

Eu estremeci.

—Como você sabe isso? Sinto constantemente como um


turbilhão de água espumosa sobe ao meu redor como uma
montanha esverdeada, antes de acordar, ofegando e sufocado...
mas como você sabe?

—Os corpos mudam, mas a alma permanece inalterada,


sonhando —ela respondeu enigmaticamente—. Até o mundo
muda de envelope. Esta terra deserta, que você diz, tem
lembranças muito mais antigas e maravilhosas do que as do Egito.

Neguei com a cabeça, confuso.

72
—Ou você está louca, ou eu estou. O Texas tem recordações
gloriosas de guerras, conquista e tragédias... mas, o que são seus
escassos séculos de história, comparados com a antiguidade do
Egito...? Isso sim é antiguidade.

—Então, como se define o Ser como um todo? – perguntou


ela.

—Não sei o que você quer dizer —eu disse—. Se estiver


falando de geologia, o que me surpreende é o fato dessa terra nada
mais ser uma sucessão de grandes planaltos ou elevações acima do
nível do mar que se elevam a mais de mil metros de altura, como
se fossem degraus de uma enorme escada, terminando nas
florestas da montanha. O último ponto de aterrissagem seria o
Caprock, acima do qual as Grandes Planícies começam.

73
—Em uma outra Era, aquelas Grandes Planícies se estendiam
até o Golfo —disse ela—. Há muito tempo, o que hoje
conhecemos como o estado do Texas nada mais era do que um
vasto platô que descia suavemente até a costa, embora sem as
encostas íngremes de hoje. Um terrível cataclismo dividiu o
rochedo do Caprock, permitindo que o oceano passasse rugindo,
tornando-o num novo litoral. Depois disso, Era após Era, as águas
gradualmente recuaram, deixando para trás aqueles degraus que

74
você conhece. Mas, ao recuarem, arrastaram muitas coisas
estranhas para as profundezas do Golfo... Você não se lembra das
imensas planícies, estendendo-se ao crepúsculo até os penhascos
que se erguiam em frente ao mar resplandecente? Ou a grande
cidade construída sobre esses penhascos?

75
Contemplei-a, perplexo. Ela se inclinou até mim em um gesto
repentino, e me senti rendido à sua estranha e gloriosa beleza.
Meus sentidos vacilaram. Ela colocou as mãos na frente dos meus
olhos, em um gesto estanho.

—Logo verás! —exclamou agudamente—. Contemple... o


que você vê?

—Vejo dunas de areia e bosques ressecados, escurecendo-se


ao pôr do sol —respondi muito lentamente, como em um transe—.
E um sol se pondo a oeste, no horizonte.

—E as vastas planícies que descem para as falésias


resplandecentes? —Ela exclamou—. Você vê as torres e a cúpula
dourada da cidade brilhando ao pôr do sol? Veja...

Então, como se a noite tivesse caído repentinamente, a


escuridão me invadiu como uma sensação de irrealidade, na qual a
única coisa existente era sua voz, veemente e imperiosa...

Senti o tempo e o espaço desaparecerem... girei sobre


abismos infinitos, com tempestades cósmicas que me arrastavam...

76
e então vislumbrei algumas nuvens, ilusórias e luminescentes, que
se retorciam para cristalizar-se em uma paisagem curiosa ... que
era familiar e estranha para mim ao mesmo tempo.

Grandes planícies com montanhas se estendiam para


desaparecer no horizonte enevoado. Ao sul, muito longe, uma
cidade negra, de proporções ciclópicas, erguia suas torres diante

77
do céu do pôr-do-sol e, além, brilhavam as águas azuis de um mar
calmo.

E, a uma distância menor, uma fila de homens avançou


através da planície. Homens altos, com longos cabelos loiros e
frios olhos azuis, protegidos com cotas-de-malha, capacetes e
armados com espadas, machados e escudos.

78
Um deles era diferente... ele era mais baixo, apesar de ter
uma compleição forte e o cabelo escuro. E quanto ao enorme
guerreiro loiro caminhando ao lado dele... foi aí que, por um
momento fugaz, senti uma clara sensação de dualidade. Eu, James
Allison, do século 20, me reconheci no homem que eu era naquela
época remota e naquele estranho lugar. Esse sentimento
desapareceu quase imediatamente, e então eu era Hialmar,
descendente das tribos loiras e sem conhecimento de qualquer
outra existência, seja ela futura ou passada.

Mas, quando eu narrar a história de Hialmar, serei forçado a


79
interpretar parte do que ele viveu, não como Hialmar, mas como o
meu eu moderno. Quando assim for, você entenderá. Pois você
deve se lembrar que Hialmar era apenas Hialmar, e não James
Allison; ele não tinha consciência do significado dessas
explicações, pois estava limitado por sua própria experiência de
vida. Eu sou James Allison e eu fui Hialmar, mas Hialmar não era
James Allison; um homem pode olhar para trás dez mil anos, mas
ninguém pode vislumbrar as brumas do futuro, nem por um
instante.

80
CAPÍTULO 2
Éramos quinhentos homens os quais passaram a encarar as
torres negras que desafiavam o azul do céu e do mar. Marchamos
durante todo o dia, desde que os primeiros raios carmesins do
amanhecer as mostraram aos nossos olhos atônitos. Podíamos vê-
las a distância naquelas descobertas planícies verdes; a princípio,
pensávamos que a cidade estava perto, mas, depois de marchar o
dia todo, ainda estávamos a quilômetros dela.

81
82
Temíamos que pudesse ser uma cidade fantasma... uma
daquelas ilusões que nos atormentaram durante nossa longa
marcha pelos desertos empoeirados do oeste, onde, refletidos no
céu escaldante, acreditávamos ver lagos calmos ladeados por
palmeiras, rios e grandes cidades, que desapareciam quando nos
aproximávamos. Mas agora não era uma miragem causada pelo
sol, poeira ou quietude. Pois, contra o céu claro da tarde, os
contrafortes ciclópicos, as enormes torres com ameias e a colossal
muralha foram distinguidas com clareza de detalhes.

Em que Era obscura eu, Hialmar, marchei com os homens da


minha tribo, atravessando as planícies para aquela cidade sem
nome? Não sei. Há muito tempo, meu povo de cabelos loiros
ainda morava em Nordheim, e não eram conhecidos como arianos,
mas como loiros Aesires e ruivos Vanirires. Foi antes das grandes
migrações da minha raça povoarem o mundo, embora algumas
menores já tivessem ocorrido. Estávamos vários anos longe de
nossa terra natal do norte, da qual os oceanos nos separavam.

Ah! Quão longa foi aquela jornada! Não houve migração que
pudesse se comparar a ela; nem mesmo as do meu povo, que
foram épicas. Tínhamos atravessado o mundo do norte gelado para

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as vastas planícies e vales das montanhas férteis, cultivadas por
um povo pacífico e moreno, até as selvas quentes e sufocantes,
que fediam a podridão e fervilhavam de vida através das terras
do leste, que brilhavam com cores vivas sob as graciosas
palmeiras, e nas quais raças muito antigas viviam em cidades de
pedra esculpida... e depois voltamos às terras congeladas e
cruzamos um estreito istmo congelado junto ao mar para descer,
finalmente, por algumas estepes nevadas em que os pequenos
comedores de gordura de baleia fugiam, entre gritos, de nossas
espadas; descemos para o sul e leste, atravessando colossais
montanhas e florestas enormes, gigantescas e desabitadas como o
Éden após a expulsão do homem ...

E, depois de cruzar as abrasadoras areias do deserto e as


planícies ilimitadas, contemplamos finalmente a silenciosa cidade
negra, junto ao mar. Muitos envelheceram durante a viagem. Eu,
Hialmar, me tornei um homem durante a trajetória. Embora fosse
apenas um menino ao dar os primeiros passos nessa nossa viagem;
agora sou um homem, um guerreiro experiente, com membros
poderosos, ombros largos e fortes, um pescoço poderoso e um
coração de aço.

Éramos todos fortes... como colossos que o homem moderno

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não é capaz de conceber. Atualmente, não há homem tão forte
quanto o mais fraco em nosso grupo, e nossos tendões robustos
eram capazes de uma velocidade ofuscante que os melhores
movimentos dos atletas modernos pareceriam desajeitados, lentos
e pesados em comparação. Nossa força não era apenas física;
nascidos de uma raça lupina, com anos peregrinando pela terra e
lutando contra homens, animais e todos os tipos de elementos,
forjaram nossas almas com o espírito selvagem ... aquele poder
intangível que é visto no uivo do lobo cinza quando ruge no vento
norte, e que subjuga à força dos rios turbulentos, que ressoa nos
açoites do granizo gelado, no bater das asas da águia e no silêncio
dos grandes espaços.

Eu já disse que foi uma viagem estranha. Não se tratava da


migração de uma tribo inteira, com homens e mulheres loiras, e
seus filhos nus. Éramos todos homens, aventureiros para quem até
as guerras migratórias eram pacíficas demais. Saímos sozinhos,
conquistando, vagando, apenas levados por uma vontade
enlouquecida de viajar além do horizonte.

No começo, éramos mais de mil, mas agora só restavam


quinhentos. Os ossos dos guerreiros que morreram pelo caminho
estavam embranquecidos ao longo da jornada percorrida pelo

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mundo. Muitos foram os líderes que nos guiaram e morreram.
Agora nosso líder era Asgrimm, envelhecido por aquela jornada
interminável... um guerreiro delgado, amargo e caolho, semelhante
a um lobo e que costumava morder sua barba acinzentada.

Viemos de inúmeros clãs, mas éramos todos de cabelos


dourados, exceto o homem que marchava ao meu lado. Era Kelka,
um Picto que era meu irmão de sangue. Ele se juntara a nós na
selva montanhosa de um país longínquo, onde sua raça havia
migrado para o leste, e onde os tambores de seu povo batiam
incessantemente sob a quente noite estrelada. Ele era baixo,
robusto e mortal como um gato da selva. Os aesires eram
bárbaros, mas Kelka era um selvagem. Ele trazia consigo o caos
abismal da selva negra e violenta que habitou. Sua caminhada
cautelosa sugeria a garra do tigre; em suas mãos de unhas escuras,
a presa do gorila e o fogo que arde nos olhos do leopardo também
queimava nos dele.

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Ah, éramos uma hoste brutal e deixamos para trás um rastro
de sangue e cinzas fumegantes em muitas terras! Não me atrevo a
contar sobre os massacres, as carnificinas e as rapinagens que
deixamos para trás, pois você recuaria horrorizado. Você pertence
a uma Era mais suave e pacífica, e não conseguiria entender
aqueles tempos selvagens em que um bando de lobos estripava
outro, e a moral e os costumes da vida eram tão diferentes dos de
hoje quanto o comportamento de um lobo cinza letal e o de um
cachorro de colo viscoso que cochila junto à lareira.

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Se por ventura alonguei demais minha explicação, foi para
você entender que tipos de homens atravessaram a planície em
direção à cidade e assimilar o que aconteceu a seguir. Sem esse
entendimento, a saga Hialmar não passaria de caos vociferante,
sem ordem ou significado.

A visão da grande cidade não nos intimidou. Muitas outras já


havíamos devastado em outras regiões do outro lado do mar.
Tínhamos aprendido a evitar lutar contra forças superiores, se
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possível, mas não tínhamos medo. Estávamos igualmente prontos
para a guerra como para um banquete de amizade, qualquer que
fosse a escolha dos moradores da cidade.

Já haviam nos visto. Estávamos próximos o bastante para


distinguir as fileiras de hortos, campos e vinhedos fora dos muros,
e a figuras dos trabalhadores que fugiam em direção à cidade.
Vimos um brilho de lanças nos edifícios, e ouvimos o rápido
retumbar dos tambores de guerra.

—Será guerra, irmão —disse Kelka guturalmente, preparando


firmemente seu escudo no braço esquerdo.

Em seguida pegamos nossos cinturões e agarramos as


armas... não de cobre e bronze, como nosso povo ainda usava na
distante Nordheim, mas de aço afiado, forjado por um povo
habilidoso que derrotamos na terra das palmeiras e elefantes, cujos
guerreiros armados com aço não haviam sido capazes de deter-
nos.

Paramos na planície a uma curta distância das grandes


muralhas negras que pareciam ser erguidas com gigantescos
blocos de basalto. Asgrimm, desarmado, surgiu a frente de nossas

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fileiras levantando as mãos, e as palmas abertas, porque ele queria
negociar. Mas uma flecha traçou uma parábola das torres,
colidindo com o chão ao lado dele, de modo que fez ele voltar às
nossas fileiras.

—Guerra, irmão! – sibilou Kelka, com chamas vermelhas


que ardiam em seus olhos negros.

E, naquele momento, os enormes portões se abriram e deles


surgiram fileiras de guerreiros, com suas plumas de guerra
agitando-se sobre suas cabeças entre o fulgor das lanças. O sol
poente brilhava como fogo entre seus polidos capacetes de cobre.

Eram homens altos, esbeltos, de pele escura, embora nem


pretos nem pardos, e com firmes traços aquilinos. Suas armaduras
eram de cobre e couro, e seus escudos cobertos de couro fervido.
Suas lanças, espadas delgadas e adagas longas eram de bronze.
Avançaram em formação perfeita, por volta de mil e quinhentos,
uma maré de penas em movimento e lanças brilhantes. Atrás
deles, os faróis zumbiam com os espectadores.

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Não houve conversa. Enquanto se aproximavam, o velho
Asgrimm gritou como um lobo na caçada e nos preparamos para
enfrentar o ataque. Não íamos em formação; corremos em
direção a eles como lobos, e vimos o desprezo em seus rostos de
falcão, ao nos aproximarmos. Não tínhamos arcos e nenhuma
flecha foi disparada de nossas fileiras que corriam, nem se
arremessou uma lança. Só queríamos chegar ao corpo-a-corpo.
Quando estávamos a um tiro de dardo, enviaram-nos uma chuva
de lanças, a maioria das quais ricocheteavam em nossos escudos
e cotas-de-malha, e depois, com um rugido gutural, nosso ataque
lançou-se ao alvo.

Quem disse que a ordenada disciplina de uma civilização


degenerada pode defrontar-se com a pura ferocidade da barbárie?
Lutavam para combater como uma só unidade; nós lutamos como
indivíduos, lançando-nos de cabeça contra suas lanças e talhando
como loucos. Toda sua primeira linha caiu sob nossas espadas
sibilantes; as filas posteriores recuaram e hesitaram, quando seus
guerreiros sentiram o impacto brutal de nossa incrível força. Se
houvessem aguentado, poderiam ter nos cercado, com seu número
superior e degolado-nos. Mas não conseguiram resistir. Abrimos
nosso caminho como um arado numa tormenta de golpes

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martelantes, rompendo suas linhas e pisoteando seus mortos
enquanto prosseguíamos inexoravelmente adiante. Sua formação
de batalha se dissolveu; lutaram contra nós homem a homem, e a
batalha tornou-se uma carnificina. Pois em força individual e
ferocidade, não conseguiam comparar-se a nós.

Ceifamo-los como milho; colhemos-lhes como sementes


maduras! Ah, quando revivo essa batalha, parece que James
Allison cede lugar ao encouraçado e potente Hialmar, com a
loucura da guerra em seu cérebro e o canto de guerra nos lábios. E
estou novamente embriagado pelo canto das espadas, o derramar
do sangue quente e o rugido da matança.

Romperam filas e fugiram, atirando suas lanças.


Perseguimos-lhes, derrubando-os enquanto corriam, até as
próprias portas, através das quais precipitaram-se os primeiros,
fechando-as em nossa cara e na dos infelizes que eram os últimos
na fuga. Sem poderem chegar à área de segurança, arranharam e
golpearam os inflexíveis portões até que lhes esfaqueamos. Logo,
foi a nossa vez de golpear as portas, até que uma chuva de pedras
e toras, vinda de cima, esmagou a cabeça de três ou quatro
guerreiros, e recuamos a uma distância segura. Ouvimos as
mulheres berrando nas ruas, e os homens entraram em formação

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nas paredes, disparando-nos flechas sem grande habilidade.

Os corpos dos mortos cobriam a planície, desde o ponto em


que as tropas se defrontaram até a soleira dos portões e, onde
havia caído um aesir, caíra meia-dúzia de guerreiros emplumados.

O sol tinha se posto. Fizemos nosso acampamento diante das


portas e, durante toda a noite, ouvimos prantos e gemidos dentro
dos muros, onde o povo gritava por aqueles cujos corpos imóveis
nós recolhemos e amontoamos a certa distância. Ao amanhecer,
pegamos os cadáveres dos trinta aesires que haviam caído no
combate e, deixando arqueiros para vigiar a cidade, levamo-los
aos lisos escarpados que desciam 150 metros até a praia de areia
branca. Encontramos caminhos tortuosos que levavam pra baixo e,
com nossa carga, abrimos caminho até a margem da água.

Ali, com barcos de pesca varados na areia, fizemos uma


grande jangada e nela amontoamos madeira. Sobre a pilha,
estendemos os guerreiros mortos, vestidos com seus coletes, suas
armas ao lado, e cortamos o pescoço dos doze prisioneiros que
fizéramos, manchando as armas e os flancos da jangada com seu
sangue. Logo ateamos fogo à madeira e lançamos a jangada ao
mar. Afastou-se boiando sobre a superfície da água azulada, até

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não ser mais que um brilho vermelho, dissipando-se no
amanhecer.

Depois subimos pelas veredas e nos alinhamos diante da


cidade, entoando nossos cânticos guerreiros. Pegamos nossos
arcos que construímos das árvores que estavam em volta da cidade
quando descemos para velar os nossos mortos, e um homem após
outro foi caindo das torres, atravessados por nossas longas flechas.
Das árvores que encontramos, crescendo nos jardins fora da
cidade, também construímos escadas de assalto e colocamos-nas
contra os muros. Subimos por elas, sob uma chuva de flechas,
lanças e vigas que caía sobre nós. Lançaram-nos chumbo
derretido, e quatro guerreiros arderam como formigas numa
labareda. Então, lançamos novamente nossas setas, até que
nenhuma cabeça emplumada apareceu na muralha.

Protegidos por nossos arqueiros, colocamos de novo as


escadas. Enquanto nos preparávamos para a subida que nos faria
ultrapassar os muros, numa das torres do muro da cidade, apareceu
uma figura que nos parou de repente. Era uma mulher; uma
mulher como não víamos há muitos anos... cabelo dourado
flutuando livremente ao vento, leitosa pele branca brilhando à luz
do sol. Chamou-nos em nossa própria língua, hesitante, como se

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não a usasse há muitos anos.

—Esperem! Meus mestres têm algo a dizer-lhes.

—Mestres? – Asgrimm cuspiu a palavra—. A quem uma


mulher dos aesires chama de mestres, a não ser aos homens de seu
próprio clã?

Ela pareceu não entender, mas respondeu:

—Esta é a cidade de Khemu, e os mestres de Khemu são os


senhores desta terra. Mandam-me dizer que não podem enfrentar-
lhes em batalha, mas dizem que terão pouco benefício se
escalarem estes muros, pois matarão suas mulheres e crianças com
suas próprias mãos, e vão incendiar os palácios, de modo que
vocês só tomarão uma pilha de pedras em ruínas. Mas, se
perdoarem a cidade, lhes mandarão presentes de ouro e jóias, ricos
vinhos e raros manjares, e as mulheres mais belas da cidade.

Asgrimm esticou a barba, resistiu em esquecer o saque e o


derramamento de sangue; mas os homens mais jovens rugiram:

—Perdoa a cidade, velho urso! Do contrário, matarão as

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mulheres... e vagamos durante várias luas sem possuir uma
mulher sequer.

—Jovens idiotas! —grunhiu Asgrimm—. Os beijos e as


palavras de amor das mulheres se dissipam e murcham, mas a
espada canta uma nova canção a cada golpe. Será o falso atrativo
das mulheres ou a brilhante loucura da matança?

—Mulheres! —rugiram os jovens guerreiros, fazendo


entrechocar suas espadas—. Deixe que nos enviem suas garotas, e
perdoaremos sua maldita cidade.

O velho Asgrimm deu a volta, com uma careta de amargo


desprezo, e se dirigiu à moça de cabeleira dourada na torre.

—Se dependesse de mim, eu arrasaria seus muros e


pulverizaria seus capitéis, e empaparia as cinzas com o sangue de
seus mestres. —disse—. Mas meus jovens são estúpidos! Envia-
nos mulheres e comida... e os filhos dos chefes, como reféns.

—Assim será feito, meu senhor. —respondeu a garota.

Retiramos as escadas de assalto e nos recolhemos ao

97
acampamento.

Logo as portas giraram, abrindo-se de novo, e delas saiu uma


procissão de escravos nus, carregando recipientes dourados que
continham manjares e vinhos tais como nós nunca sabíamos
existir. Eram guiados por um homem de rosto aquilino, com um
manto de penas coloridas, trazendo na mão uma vara de marfim e,
nas têmporas, um círculo de cobre em forma de serpente
enroscada, com a cabeça levantada na frente. Por seu porte, era
evidente que se tratava de um sacerdote, e pronunciou seu nome,
Shakkaru, apontando a si mesmo. Com ele, chegou meia dúzia de
jovens, vestidos com calças de seda, cinturões com jóias, alegres
plumas e tremendo de medo. A jovem de cabelos amarelos
permanecia na torre e nos disse que aqueles eram os filhos dos
príncipes, e Asgrimm fê-los provar o vinho e a comida antes que
nós comêssemos ou bebêssemos.

Para Asgrimm, os escravos trouxeram jarras de âmbar cheias


de ouro em pó, uma capa de flamejante seda escarlate, um
cinturão com uma fivela de ouro e jóias, e um enfeite para a
cabeça, feito de cobre polido e adornado com penas grandes.

O velho guerreiro balançou a cabeça e murmurou:

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—O ouro falso e o brilho são pós de vaidade e dissipam-se
com o passar dos anos, mas o fio da matança jamais fica cego, e o
odor do sangue recém-derramado é bom para o olfato de um
velho.

Mas, apesar de dizer isso, Asgrimm colocou os adornos, e


depois chegaram as moças – criaturas jovens e esbeltas, flexíveis e
de olhos escuros, escassamente adornadas com sedas brilhantes –
e ele escolheu a mais bela, embora meditabundo, feito um homem
que escolhia um fruto amargo.

Haviam se passado muitas luas desde que vimos mulheres,


salvo as rechonchudas criaturas, manchadas de fumaça, dos
comedores de gordura de baleia. Os guerreiros agarraram as
aterradas garotas com um apetite selvagem... mas meu espírito
estava deslumbrado pela imagem da moça de cabelos dourados na
torre. Não havia lugar em minha mente para outro pensamento.
Asgrimm me pôs para vigiar os reféns e me deu ordens para matá-
los sem piedade, caso o vinho ou a comida estivessem
envenenados, ou se alguma mulher apunhalasse um guerreiro com
uma adaga oculta, ou se os homens da cidade nos atacassem
repentinamente.

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Mas os únicos homens que saíram da cidade vieram apenas
recolher os corpos de seus mortos e, com grandes e estranhos
rituais, cremaram-nos num grande promontório de frente para o
mar.

Logo outra procissão aproximou-se de nós, mais longa e


elaborada que a primeira. Os chefes dos guerreiros caminhavam
aos lados, sem armas, com seus enfeites e túnicas e capas de seda
substituindo suas couraças. Diante deles marchava Shakkaru,
levantando sua vara de marfim, e, entre as filas, jovens escravos,
só com mantos curtos de plumas de ouro, levavam uma liteira de
mogno polido, com dossel e incrustada de joias.

Dentro dela, estava sentado um homem frágil, com uma


curiosa coroa em sua delgada e proeminente cabeça. Junto à
liteira, caminhava a moça de pele branca que havia falado desde a
torre. Chegaram diante de nós e os escravos se ajoelharam, ainda
segurando a liteira, enquanto os nobres apartavam-se para cada
lado, caindo de joelhos. Somente Shakkaru e a garota
permaneceram em pé.

O velho Asgrimm encarou-os, fraco, hirsuto, desconfiado,

100
seu rosto cheio de rugas, ensombrecido pelas negras plumas de
seu novo elmo que agitavam-se sobre ele. E pensei em quão
natural aspecto de rei ele tinha, em pé entre seus gigantescos
guerreiros e de espada na mão, comparado com o homem que
repousava estendido na liteira levada por escravos.

Mas eu só tinha olhos para a garota, que vi cara a cara pela


primeira vez. Vestia apenas uma curta túnica sem mangas e com
gola baixa, de seda azul, que chegava a uma mão acima dos
joelhos, e nos pés usava suaves sandálias de couro verde. Tinha os
olhos grandes e tranquilos, a pele mais clara que o leite mais
branco e sua cabeleira capturava o sol num ondulante brilho
dourado. Havia uma suavidade em sua forma esbelta, que jamais
eu tinha visto em mulher alguma dos aesires. Havia uma feroz
beleza em nossas mulheres, mas esta moça era tão formosa e sem
essa ferocidade. Não crescera numa terra desolada, como elas,
onde a vida era uma batalha implacável pela existência, tanto para
o homem quanto para a mulher. Mas não me demorei em tais
pensamentos; simplesmente permaneci imóvel, deslumbrado por
sua loira irradiação, enquanto ela traduzia as palavras do rei e as
respostas dos roucos grunhidos de Asgrimm.

—Meu senhor lhe disse, "Escute, eu sou Akkheba, sacerdote

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de Ishtar e rei de Khemu. Que reine a amizade entre nós. Nós
precisamos uns dos outros, pois vocês são homens que vagam
cegamente numa terra desolada, como disse minha bruxaria, e a
cidade de Khemu precisa de espadas afiadas e braços poderosos,
pois vem contra nós um inimigo, vindo do mar, que não podemos
rechaçar sozinhos. Permaneçam nesta terra, emprestem suas
espadas, tomem nossos presentes para o vosso prazer e nossas
jovens como esposas. Nossos escravos trabalharão por vocês, e a
cada dia lhes sentarão diante de mesas que rangerão sob as carnes,
os pescados, os cereais, o pão branco, os vinhos e as frutas. Usarão
belas roupas e morarão em palácios de mármore com leitos de
seda e fontes brilhantes”.

Asgrimm compreendeu o discurso, pois havíamos visto as


cidades da terra das palmeiras; mas só ao falar em inimigos e
manejo de espadas, seus frios olhos azuis resplandeceram.

—Ficaremos. —respondeu, e rugimos nosso


consentimento—. Ficaremos e arrancaremos o coração dos
inimigos que vierem contra nós. Mas acamparemos fora dos
muros, e os reféns ficarão conosco, noite e dia.

—Está bem. —disse Akkheba, com uma régia inclinação de

102
sua delgada cabeça.

Os nobres de Khemu ajoelharam-se diante de Asgrimm, e


teriam beijado-lhe as suas sandálias atadas em longas tiras, mas
ele insultou-os e recuou, aborrecido e desconfortável, enquanto
seus guerreiros rugiam com áspera alegria. Depois, Akkheba
regressou à sua liteira, balançando-se nos ombros de seus
escravos, e nos alojamos para um longo descanso de nossas
andanças. Olhei, um longo tempo, para a intérprete de cabeleira
dourada, até que os portões da cidade fecharam-se atrás dela.

Assim, permanecemos fora dos muros e, dia após dia, o povo


nos trazia comida e vinho; e enviaram-nos mais garotas. Os
trabalhadores vieram e trabalharam nos jardins, campos e
vinhedos, sem nos temerem, e os barcos de pesca zarparam...
estreitas embarcações com proas curvadas e velas de seda com
desenhos de listras. Finalmente aceitamos o convite do rei, e
fomos numa massa compacta, os reféns no centro com espadas
desembainhadas no pescoço, através das portas gradeadas de ferro,
para o interior da cidade.

Por Ymir, como eram grandes os edifícios de Khemu! Com


toda certeza, os senhores atuais da cidade tinham sido gerado por

103
deuses, pois, do contrário, quem poderia erguer esses muros de
basalto, com 24 metros de altura e 12 metros de base? Ou
construir essa grande cúpula dourada, que se erguia a mais de 150
metros por cima das ruas pavimentadas de mármore?

Enquanto caminhávamos pela espaçosa rua, ladeada por


colunas, até a grande praça do mercado, de espadas na mão, as
portas e janelas estavam cheias de rostos ansiosos, fascinados e
assustados. As conversas da praça do mercado pararam de repente
quando entramos nela e as pessoas afastaram-se das barracas e
pontos, para que passássemos. Estávamos alerta como tigres, e o
mais leve incidente bastaria para fazer-nos explodir num repentino
massacre. Mas o povo de Khemu era sábio e não houve
provocação alguma.

Com uma reverência, os sacerdotes chegaram, se inclinaram


diante de nós e conduziram-nos ao grande palácio real, de
mármore e pedra negra. Ao lado do palácio havia um grande pátio
aberto, pavimentado com lajes de mármore, e deste pátio umas
escadas de mármore, largas o bastante para subirem dez homens
lado a lado, levavam até um estrado onde o rei subia
ocasionalmente para dirigir-se à multidão. Esta ala era de
construção mais velha que o restante do palácio e tinha um teto

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inclinado de pedra, cuidadosamente talhado, abrupto e empinado,
que se erguia sobre todos os outros pináculos da cidade, com
exceção da cúpula dourada. A beirada desta ladeira de tijolos
estava apenas alguns pés acima do estrado, e nenhum aesir jamais
viu o que esta ala continha; o povo dizia que era o harém de
Akkheba.

Além deste pátio, estavam as misteriosas casas, com


frontispícios de colunas, dos sacerdotes inferiores, aos dois lados
de uma larga rua pavimentada de mármore, e, mais além, a alta
cúpula dourada que coroava o grande templo de Ishtar. Por todos
os lados, erguiam-se torres resplandecentes e capitéis de safira,
mas a cúpula brilhava serenamente sobre todas elas, igual à
brilhante glória de Ishtar que, disse-nos Shakkaru, brilhava sobre
as cabeças dos homens. Digo que Shakkaru nos disse; nos poucos
dias que haviam passado entre nós, os jovens príncipes haviam
aprendido muito de nosso idioma rude e simples. E, mediante sua
tradução e através de sinais, os sacerdotes de Khemu conversaram
conosco.

Conduziram-nos às altas portas dos templos, mas, observando


através das fileiras de grandes colunas de mármore o misterioso e
escuro interior, tememos uma cilada e nos recusamos a entrar. Eu

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procurava ansiosamente, o tempo todo, a jovem de cabelos
dourados, mas não a via em parte alguma. Não mais necessária
como intérprete, o silêncio da cidade havia engolido-a.

Após esta primeira visita, voltamos ao nosso acampamento


do lado de fora dos muros, mas regressamos vez ou outra,
primeiro em grupos e depois, quando nossas suspeitas se
acalmaram, em grupos menores ou sozinhos. Todavia, não
dormíamos dentro da cidade, embora Akkheba nos convidasse a
erguermos nossas tendas na grande praça do mercado, se nos
desagradavam os palácios de mármore que nos oferecia. Nenhum
de nós jamais havia morado numa casa de pedra ou atrás de muros
altos. Nossa raça morava em tendas de peles curtidas, ou choças
de barro e bambu, e nós, os da longa viagem, dormíamos sobre o
solo nu tão frequentemente quanto os lobos. Mas, de dia,
vagabundeávamos através da cidade, maravilhando-nos diante de
seus prodígios, tomando o que queríamos nas barracas, para
desespero dos mercadores, e entrando nos palácios, com
precaução, mas ao nosso bel-prazer, para sermos atendidos por
mulheres que nos temiam, mas pareciam fascinadas por nós. O
povo de Khemu era maravilhosamente bom para aprender; logo
falavam nossa língua tão bem quanto nós, embora sua pronúncia
fosse difícil para nossas bárbaras línguas.

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Mas tudo isto levou tempo. No primeiro dia após visitarmos a
cidade, alguns de nós voltamos a ela, e Shakkaru nos guiou ao
palácio dos altos sacerdotes, que estava unido ao templo de Ishtar.
Ao entrar, vi a moça dos cabelos dourados, polindo um
rechonchudo ídolo de cobre com um pedaço de seda. Asgrimm
pôs uma pesada mão no ombro de um dos jovens príncipes.

— Diga ao sacerdote que desejo esta garota para mim. —


grunhiu.

Antes que o sacerdote pudesse responder, uma fúria vermelha


invadiu meu cérebro e caminhei em direção a Asgrimm, como um
tigre em direção a seu rival.

—Se algum de nós tomar essa mulher, será Hialmar —


grunhi, e Asgrimm virou-se como um gato, diante do rouco e
denso sussurro assassino de minha voz.

Encaramo-nos tensamente, com as mãos nos cabos das


espadas. Kelka sorriu como um lobo, e começou a deslizar em
direção às costas de Asgrimm, desembainhando cautelosamente
sua longa faca, quando Akkheba falou através do interprete.

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—Não, meus senhores, Aluna não é para nenhum de vocês,
nem para qualquer outro homem. É a donzela da deusa Ishtar.
Peçam qualquer outra mulher da cidade e ela será de vocês, até
mesmo a favorita do rei; mas esta mulher está consagrada à deusa.

Asgrimm grunhiu e não insistiu no assunto. O misterioso


incenso do templo havia impressionado até mesmo sua alma feroz,
e embora os aesires não temessem os deuses de outros povos, ele
não desejava, contudo, tomar uma moça que havia estado em
comunhão tão estreita com a divindade. Mas minhas superstições
eram mais fracas que meu desejo por Aluna. Voltei novamente,
vez ou outra, ao palácio dos sacerdotes e, embora não gostassem
muito de minha visita, não quiseram ou não ousaram me proibir a
entrada; e, com tão pobre fundamento, comecei meu cortejo.

O que direi de minhas habilidades para cortejar? Se fosse


qualquer outra mulher, já a teria arrastado até minha tenda,
puxando sua longa cabeleira, mas mesmo sem a proibição
sacerdotal, havia algo em meu interesse por Aluna que afastava
minhas mãos da violência. Cortejei-a como nós, aesires, fazemos
com nossas belezas flexíveis e ferozes... ostentando proezas e com
relatos de rapina e matanças. E é verdade, sem exagero, que meus

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relatos de batalha e massacres me atrairiam a mais esquiva das
mais selvagens belezas de Nordheim. Mas Aluna era delicada e
amável, e crescera no templo e no palácio, ao invés da choça de
bambu e do campo gelado! Minhas ferozes fanfarrices
assustavam-na; não as entendia. E, por uma estranha perversidade
da Natureza, era esta mesma falta de compreensão que a tornava
mais atraente para mim. Ao mesmo tempo, a selvageria que ela
temia em mim fazia-a me olhar com mais interesse do que tinha
para com os homens suaves de Khemu.

Mas, em minhas conversas com ela, tive conhecimento de sua


chegada a Khemu, e sua saga era tão estranha quanto a de
Asgrimm e nossa partida. Não podia dizer grande coisa de onde
vivera sua infância, carecendo de conhecimentos geográficos, mas
havia sido muito longe ao leste, cruzando o mar. Lembrava de
uma costa desolada, açoitada pelas ondas, míseras cabanas de
lama e bambu, e pessoas de cabeleira loira, como ela. Assim,
cheguei a crer que ela provinha de um ramo dos aesires que
indicava a migração mais ocidental de nossa raça nessa época.
Tinha talvez nove ou dez anos quando fora capturada, numa
incursão à aldeia por homens morenos em galeras... não sabia
quem eram, e meu conhecimento dos tempos não me indica, pois
na época, os fenícios ainda não haviam lançado-se ao mar, nem

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tampouco os egípcios. Não posso fazer mais do que supor que
eram homens de alguma raça antiga, sobreviventes de outra Era,
como o povo de Khemu... destruídos e esquecidos diante da
ascensão de raças mais jovens.

Levaram-na, e uma tormenta empurrou-lhes em direção ao


oeste e sul durante muitos dias, até que sua galera encalhou nos
recifes de uma ilha estranha, onde homens pintados correram até a
praia e mataram os sobreviventes para seus caldeirões de cozinha.
Por algum capricho, perdoaram a garota de cabelos amarelos e,
colocando-a numa grande canoa com gesticulantes crânios ao
longo das bordas, remaram até avistar as águas de Khemu nos
altos escarpados.

Ali, venderam-na aos sacerdotes de Khemu para que se


tornasse donzela da deusa Ishtar. Eu supunha que sua posição era
sagrada e reverenciada, mas descobri que era de outro modo. O
verme da suspeita se agitou em minha alma contra os khemuri, ao
dar-me conta, em suas palavras, do cruel e amargo desprezo que
tinham por pessoas de outras raças mais jovens.

Sua posição no templo não era honrosa nem digna e, embora


servisse à deusa, não tinha honras, exceto a de que nenhum

110
homem, exceto os sacerdotes, podiam tocá-la. Era, de fato, uma
simples criada, sujeita à fria crueldade dos sacerdotes aquilinos.
Para eles, não era bela; para eles, sua alva pele e sua brilhante
cabeleira dourada não eram mais que as marcas de uma raça
inferior. E até eu, que não era muito inclinado a exercitar meu
cérebro, tive a vaga ideia de que, se uma garota loira era tão
desprezível a seus olhos, a traição devia espionar por trás das
honras que rendiam a homens da mesma raça.

Através de Aluna, aprendi um pouco sobre Khemu, e algo


mais dos sacerdotes e príncipes. Como povo eram muito antigos.
Proclamavam-se descendentes dos semilendários lemurianos. No
passado, suas cidades haviam coberto o golfo sobre o qual
dominava Khemu. Mas algumas foram engolidas pelo mar,
algumas outras caíram diante dos selvagens pintados das ilhas e
outras foram destruídas por guerras civis, de modo que agora,
durante quase mil anos, Khemu havia reinado em solitária
majestade. Seu único contato havia sido com o errante povo
pintado das ilhas, o qual, até um ano antes, vinha regularmente em
suas longas canoas de proa alta para comerciar com âmbar cinza,
cocos, dentes de baleia e o coral obtido de suas ilhas; e mogno,
peles de leopardo, ouro virgem, presas de elefante e minério de
cobre, obtido em algum distante e desconhecido continente

111
tropical ao sul.

O povo de Khemu era uma raça agonizante. Embora fossem


milhares, muitos eram escravos, descendentes de mil gerações de
escravos. Sua raça não era mais que uma sombra de sua antiga
grandeza. Mais alguns séculos e eles se extinguiriam, mas no mar,
em direção ao sul, invisível além do horizonte, aguardava uma
ameaça que podia aniquilá-los a todos em um só golpe.

O povo pintado havia deixado de chegar para comercializar


em paz. Haviam chegado em canoas de guerra, com o estrondo
das lanças nos escudos cobertos de pele, e um bárbaro cântico
guerreiro. Havia surgido um rei entre eles, o qual havia unido as
tribos rivais, e agora lançava-os contra Khemu... não seus antigos
senhores, pois o velho império do qual Khemu fizera parte havia
desmoronado antes que esse povo chegasse às ilhas, desse
continente distante que era o berço de sua raça. Este rei não era
como eles; era um gigante de pele branca, como nós, com
enlouquecidos olhos azuis e cabelos vermelhos como o sangue.

O povo de Khemu tinha visto-o. À noite, suas canoas de


guerra, repletas de lanceiros pintados, haviam atracado na costa e,
ao amanhecer, os assassinos subiram as passagens do escarpado,

112
matando os pescadores que dormiam em choças ao longo da praia,
massacrando os trabalhadores que se preparavam para lavrar os
campos e atacando os portões. Contudo, os grandes muros
resistiram e os atacantes cansaram-se do assalto e se retiraram.
Mas o rei ruivo permanecera diante dos portões, balançando pelos
longos cabelos a cabeça decepada de uma mulher, e gritou seu
sangrento juramento de regressar com uma pequena frota de
canoas de guerra que faria o mar enegrecer, e derrubar as torres de
Khemu no pó manchado de vermelho. Ele e seus assassinos eram
os inimigos que tínhamos sido pagos para combater, e
aguardávamos sua chegada com selvagem impaciência.

E, enquanto esperávamos, nos acostumamos mais e mais com


as coisas da civilização, tanto quanto uns bárbaros podem
acostumar-se em tão pouco tempo. Ainda acampávamos fora dos
muros e, dentro deles, continuávamos com as espadas nas mãos,
mas era mais por precaução instintiva do que por medo de traição.
Até Asgrimm pareceu adormecer com uma sensação de segurança,
especialmente depois que Kelka, enlouquecido pelo vinho que lhe
deram, matou três khemurianos na praça do mercado e não houve
vingança de sangue, nem punição, por isso.

Deixamos de lado nossos temores e permitimos aos

113
sacerdotes guiar-nos à silenciosa caverna em penumbra de um
edifício, que era o templo de Ishtar. Fomos inclusive ao altar
secreto, cujos fogos sagrados queimavam suavemente nas trevas
perfumadas. Ali, uma uivante escrava foi sacrificada no grande
altar negro com veios avermelhados, ao pé das escadarias de
mármore que ascendiam na escuridão, até se perderem de vista.
Essas escadas levavam à morada de Ishtar, nos disseram, e por
elas subia o espírito do sacrifício para servir à deusa. História que
acreditei que era realmente de fato, pois quando o cadáver do altar
ficou imóvel e os cânticos de adoração morreram num murmúrio
de gelar o sangue, ouvi sons de pranto bem acima de nós, e soube
que a alma nua da vítima contemplava, aterrorizada, a sua deusa.

Perguntei, então, à Aluna se, alguma vez, tinha visto a deusa.


Ela tremeu de medo, dizendo que só o espírito dos mortos via
Ishtar. Aluna, jamais pusera o pé na escadaria de mármore que
levava à casa da deusa. Era chamada a donzela de Ishtar, mas seus
deveres eram cumprir os caprichos dos sacerdotes de rosto
aquilino e das mulheres nuas de olhos malignos, que os serviam e
que deslizavam como sombras escuras entre as trevas purpúreas
das colunas.

Mas o descontentamento crescia entre os guerreiros, e

114
cansaram-se da comodidade, do luxo e até das mulheres de pele
escura, pois, na estranha alma dos aesires, só a sede da batalha
escarlate e a vagabundagem permanecem constantes. Asgrimm
conversava diariamente com Shakkaru e Akkheba sobre os tempos
antigos; eu estava acorrentado pelo desejo por Aluna, e Kelka se
embriagava todo dia nas tabernas, até cair inconsciente na rua.
Mas os outros bradavam contra a vida que levávamos, e
perguntavam a Akkheba sobre o inimigo que deveriam aniquilar.

—Tenham paciência. —disse Akkheba—. Eles virão, e com


seu rei ruivo entre eles.

115
CAPÍTULO 3

Um novo amanhecer ergueu-se sobre as águas


resplandecentes de Khemu. Os guerreiros haviam começado a
passar as noites, assim como os dias, na cidade. Eu fiquei bebendo
com Kelka na noite anterior, e dormi com ele na rua, até a brisa
matutina expulsar o topor do vinho em meu cérebro. Procurando
Aluna, desci a rua pavimentada de mármore e entrei no palácio de
Shakkaru, que estava unido ao templo de Ishtar. Atravessei as
grandes estâncias exteriores, onde mulheres e sacerdotes ainda
dormiam, e ouvi repentinamente, atrás de uma porta fechada, o
som de fortes golpes sobre delicada carne nua. Misturados com
eles, havia um pranto lastimoso e uma voz conhecida que, entre
soluços, pedia clemência.

116
A porta estava bem fortalecida, era de mogno reforçado com
prata, mas arrebentei-a como se fosse uma frágil placa de madeira.
Aluna encolhia-se no chão, com sua curta túnica revolta, diante de
um sacerdote de rosto afilado que, com fria maldade, açoitava-a
com um cruel chicote que deixava vergões vermelhos em sua
carne nua. Quando entrei, ele virou-se e seu rosto ficou
acinzentado. Antes que pudesse mover-se, cerrei o punho e lhe dei
tal golpe que esmaguei-lhe o crânio como uma casca de ovo, além
de quebrar-lhe o pescoço.

O palácio inteiro parecia palpitar diante de meu avermelhado


olhar assassino. Talvez não fosse nem tanto a dor que o sacerdote
causara a Aluna – pois a dor era a coisa mais comum nessa vida
feroz –, mas a maneira como ele havia infligido-lhe a dor... e
também saber que os sacerdotes haviam-na possuído... todos eles,
talvez.

Um homem não é melhor nem pior que seus sentimentos para


com as mulheres de seu sangue, o que é a única e autêntica prova
de consciência racial. Um homem se apropriará da mulher do
estranho, se sentará com ele para comer carne sem que sinta
incomodar sua consciência de raça. É somente ao ver um
estrangeiro em posse de uma mulher de seu sangue, ou tentando

117
consegui-la, que percebe a diferença entre raça e laço. Assim, eu,
que apertara em meus braços mulheres de muitas raças, que era
irmão de sangue de um selvagem picto, enlouqueci de fúria diante
da visão de um estranho pondo as mãos sobre uma mulher aesir.

Creio que foi o fato de vê-la, escrava de uma raça estranha, e


a lenta ira que isso causou, o que primeiro me levou em direção a
ela. Pois as raízes do amor se afundam no ódio e na fúria. E sua
doçura e amabilidade, tão pouco familiares para mim, fizeram
cristalizar essa primeira e vaga sensação.

Permaneci imóvel, com a testa franzida diante dela, enquanto


ela gemia a meus pés. Não coloquei-a de pé, nem limpei suas
lágrimas como teria feito um homem civilizado. Se me ocorresse
tal idéia, eu iria rechaçá-la, enfurecido, como indigna de um
homem.

Enquanto permanecia assim, escutei gritarem meu nome de


repente, e Kelka entrou correndo na sala, gritando:

—Eles estão vindo, irmão, como disse o velho! Os vigias dos


penhascos correram à cidade com a notícia de que o mar está
enegrecido pelas canoas de guerra!

118
Com um olhar para Aluna e uma desajeitada incoerência
lutando para expressar-se, me virei para seguir com o picto, mas a
moça se ergueu cambaleante e correu em minha direção, com as
lágrimas rolando por seu rosto e seus braços estendidos numa
súplica.

—Hialmar! —gemeu— Não me abandone! Tenho medo!


Tenho medo!

—Agora não posso levá-la comigo —grunhi—. A guerra e a


matança estão diante de nós. Mas, quando voltar, levarei você
comigo… e nem os sacerdotes de todos os deuses irão me deter!
Dei um rápido passo em direção a ela, minhas mãos
estendendo-se com desejo... e me afastei, temendo machucar-lhe a
carne terna, deixando minhas mãos vazias caírem aos meus lados.
Permaneci atordoado por um instante, dilacerado por um desejo
feroz, com a fala e a ação congeladas pela estranheza da emoção
que me rasgava a alma. Depois me obriguei a ir embora e segui o
impaciente picto pelas ruas.

O sol se erguia quando os aesires foram aos penhascos


debrumados de escarlate, seguidos pelos regimentos de Khemu.

119
Havíamos tirado os alegres enfeites do corpo e da cabeça, os quais
usávamos na cidade. O sol nascente faiscava em nossos capacetes
com chifres, nas couraças desgastadas e espadas nuas. Esquecidos
os meses de ócio e libertinagem, nossas almas ardiam com a
selvagem exultação da matança vindoura. Íamos a ela como a um
banquete e, ao marchar, fazíamos entrechocar a espada e o escudo
num ritmo frenético e trovejante, e cantávamos a canção de morte
de Niord, que comeu o vermelho e fumegante coração de
Heimdul. Os guerreiros de Khemu nos contemplavam,
assombrados; e as pessoas que abarrotavam os muros da cidade,
agitavam suas cabeças, perplexas, e intercambiavam murmúrios.

Assim chegamos aos penhascos e vimos, como havia dito


Kelka, o mar negro de canoas de guerra, de proa alta e adornadas
com crânios sorridentes. Dúzias dessas barcas já haviam atracado
na praia e outras se balançavam nas cristas das ondas. Os
guerreiros dançavam e gritavam na areia, e seu clamor chegava até
nós. Havia muitos, no mínimo três mil. Os homens de Khemu
empalideceram, mas o velho Asgrimm riu como há muitas luas
não ouvimos-no rir, e os anos caíram dele como se fosse uma capa
gasta.

Havia meia dúzia de caminhos que levavam, através dos

120
penhascos até a praia, e por eles deviam subir os invasores, pois os
precipícios dos outros lados eram impossíveis de escalar.
Alinhamo-nos diante desses caminhos e os homens de Khemu
ficaram atrás de nós. Pouco poderiam fazer nessa batalha,
mantendo-se na reserva para uma ajuda que não pedimos.

Os guerreiros pintados subiram, gritando em tumulto pelas


passagens, e finalmente vimos o seu rei dominando suas enormes
figuras. O sol da manhã brilhava em sua cabeleira com uma chama
escarlate, e sua risada era como o sopro do vento marinho.
Somente ele usava cota-de-malha e elmo, e em sua mão, sua
grande espada brilhava com um resplendor prateado. Sim, era um
dos vanires errantes, nosso parente ruivo de Nordheim. Nada sei
de sua longa viagem, suas andanças e sua saga selvagem, mas
deve ter sido mais feroz e estranha que a de Aluna ou a nossa. Por
qual loucura de sua alma chegou a ser rei desses ferozes
selvagens, não consigo imaginá-lo. Mas, quando viu que tipos de
homens lhe enfrentariam, nova fúria penetrou em seus gritos e,
sob suas ordens, os guerreiros coroaram as passagens como ondas
eriçadas de aço.

Pegamos nossos arcos, e as flechas assobiaram em nuvens


pelos desfiladeiros. As filas dianteiras foram desfeitas, as hordas

121
recuaram vacilantes, logo se agruparam e voltaram novamente.
Quebramos um ataque após outro, e um ataque após outro se
lançou pelas passagens com ferocidade cega. Os atacantes não
usavam armadura, e nossas longas setas penetravam os escudos
cobertos de pele como se fossem de pano. Não sabiam usar arco e
flecha. Ao chegarem suficientemente perto de nós, atiraram suas
lanças numa chuva uivante e alguns dos nossos morreram. Mas
poucos deles chegaram a um tiro de lança, e menos ainda
chegaram ao fim das passagens. Lembro de um guerreiro enorme,
que chegou arrastando-se pelo desfiladeiro, feito uma serpente,
espuma rubra escorrendo de seus lábios e as extremidades
emplumadas das flechas sobressaindo de seu ventre, costela,
pescoço e membros. Uivava como um cão raivoso e sua mordida
agonizante arrancou o calcanhar de minha sandália, enquanto eu
transformava sua cabeça numa ruína vermelha a pisadas.

Uns poucos conseguiram atravessar a chuva cegante de


flechas e chegaram ao combate corpo-a-corpo, mas ali não lhes foi
muito melhor. Nós, aesires, éramos muito mais fortes homem a
homem, e nossas armaduras desviavam suas lanças, enquanto
nossas espadas e machados trespassavam seus escudos de madeira
como se fossem de papel. Mas eram tantos que, se não fosse por
nossa posição vantajosa, todos os aesires teriam morrido nos

122
penhascos e o sol poente teria iluminado as ruínas fumegantes de
Khemu.

Mantivemos a posição nos penhascos durante todo o longo


dia de verão, até que, vazias nossas aljavas e desgastadas as cordas
de nossos arcos com os desfiladeiros cheios de cadáveres pintados,
lançamos fora os arcos e, desembainhando nossas espadas,
descemos os desfiladeiros e enfrentamos os invasores mano a
mano, lâmina contra lâmina. Haviam morrido como moscas nas
passagens, embora muitos deles se encontrassem vivos, com o
fogo de sua raiva ardendo com mais ferocidade, devido aos
corpos, emplumados de flechas, que jaziam sob nossos pés.

Uma onda de inimigos se lançou rugindo para cima,


golpeando com lanças e com maças de guerra. Enfrentamos-nos
num redemoinho de aço, fendendo crânios, afundando peitos, e
ceifando membros de seus corpos e de seus ombros, até os
desfiladeiros se tornarem uma confusão onde os homens, a duras
penas, conseguiam conservar o equilíbrio nos caminhos inundados
de sangue e abarrotados de cadáveres.

Quando cheguei, finalmente ao rei dos atacantes, o sol poente


lançava longas sombras através das praias escurecidas dos

123
penhascos. O rei se encontrava num terreno plano, onde a ladeira
inclinada corria horizontal num curto trecho antes de lançar-se
novamente para cima. As flechas haviam-no ferido e as espadas,
cortado-o, mas a enlouquecida labareda de seus olhos não havia se
apagado, e sua voz de trovão continuava ameaçando seus
ofegantes, cansados e cambaleantes guerreiros a seguirem adiante.
Mas agora, embora a batalha continuasse raivosamente em outros
desfiladeiros, ele se erguia entre um exército de mortos e só havia,
junto a ele, dois enormes guerreiros, com as lanças cheias de
sangue e miolos.

Kelka estava bem atrás de mim, quando me lancei em direção


ao vanir. Os dois guerreiros pintados saltaram para me fechar o
caminho, mas Kelka os enfrentou. Saltaram sobre ele pelos lados,
com suas lanças assobiando. Mas, como um lobo que evita um
golpe, ele se retorceu além das lâminas ensanguentadas e, por um
instante, as três figuras pareceram dançar juntas; logo um
guerreiro caiu, com o ventre aberto, e o outro caiu sobre ele, com a
cabeça meio separada do corpo.

Enquanto eu saltava em direção ao rei ruivo, nós dois


golpeamos ao mesmo tempo. Minha espada arrancou-lhe o elmo
da cabeça e, sob seu tremendo golpe, sua espada e meu escudo se

124
despedaçaram. Antes que eu pudesse golpear de novo, ele largou o
cabo quebrado e me agarrou como o faria um urso. Soltei minha
espada, inútil a tão curta distância e, abraçados, lutamos no alto do
penhasco.

Estávamos igualados em força, mas a sua fluía dele com o


sangue de vinte ferimentos. Lutando e ofegando devido ao
esforço, balançamos-nos, fortemente agarrados, senti minhas
têmporas latejarem e vi grandes veias inchando nas suas. De
repente, ele cedeu e caímos de cabeça, rolando pelo desfiladeiro.
Nessa luta inexorável, ninguém ousou tentar desembainhar uma
adaga. Mas, enquanto rolávamos, senti que seus poderosos
membros deixavam de ser tão férreos e, com uma vulcânica
erupção de esforço, me coloquei em cima dele e cravei
profundamente meus dedos em sua garganta nodosa. O suor e o
sangue nublavam minha vista, minha respiração ofegava, mas
afundei cada vez mais os dedos. Suas mãos começaram a tatear às
cegas e, finalmente, com um dilacerante ofego de esforço, saquei
minha adaga e afundei-a uma vez após outra, até que o gigante
jazeu imóvel sob mim.

Quando me ergui, cambaleante, meio cego e tremendo pela


desesperada contenda, Kelka ia cortar a cabeça do rei, mas eu o

125
impedi.

Um grito gemente se ergueu vindo dos invasores e, pela


primeira vez, fraquejaram. Seu rei havia sido o fogo que lhes unia,
como uma sentença a seu destino, durante o dia inteiro.
Desfizeram repentinamente suas fileiras e fugiram pelos
desfiladeiros, e derrubamos-nos enquanto fugiam. Seguimos-nos
até a praia, matando-os como se fossem gado e, enquanto corriam
para suas canoas e punham-nas pra flutuar, entramos na água até
que esta nos cobriu os ombros, saciando nossa fúria louca. Quando
os últimos sobreviventes, remando como loucos, ficaram a salvo, a
praia estava cheia de formas imóveis, e corpos flutuantes bailavam
sobre as ondas.
Só haviam cadáveres pintados na praia e nas águas, mas nos
desfiladeiros, onde o combate fora mais feroz, jaziam setenta
aesires mortos. Do restante de nós, poucos eram os que não
tinham nenhuma marca ou ferimento.

Que matança, por Ymir! O sol descia no horizonte, quando


regressamos dos penhascos, cansados, empoeirados e
ensanguentados, com pouco fôlego para cantar, mas com o
coração alegre por causa de nossas vermelhas façanhas. O povo de
Khemu cantou por nós. Saíram da cidade com grande gritaria,

126
aclamando-nos, e colocando, aos nossos pés, tapetes de seda
cobertos de rosas e pó de ouro. Carregamos nossos feridos em
liteiras. Mas, primeiro levamos nossos mortos à praia e quebramos
canoas de guerra para fazer uma grande jangada, carregamos-na e
ateamos fogo nelas. E levamos o rei ruivo dos invasores,
estendendo-o em sua grande canoa de guerra, com os cadáveres de
seus chefes mais valentes a seu redor para servirem-no na terra das
sombras, e lhe rendemos as mesmas honras que a nossos próprios
homens.

Procurei ansiosamente por Aluna entre a multidão, mas não a


vi. Erguemos tendas na praça do mercado, e ali colocamos nossos
feridos, e curandeiros khemurianos foram até eles e curaram os
ferimentos do restante de nós. Akkheba havia preparado um
grande banquete de vitória para nós, em seu grande salão, e lá
fomos, manchados de poeira e sangue. Até o velho Asgrimm
sorria como um lobo faminto, enquanto limpava o sangue seco de
suas mãos nodosas e colocava as vestimentas que lhe foram dadas.

Busquei um espaço entre as tendas onde jaziam os que


estavam feridos demais para caminharem ou serem levados ao
banquete, esperando que Aluna viesse me procurar. Mas não veio,
e fui ao grande salão do rei, dentro do qual permaneciam firmes os

127
guerreiros de Khemu... trezentos, para render mais honras aos
aliados, disse Akkheba.

O salão tinha mais de noventa metros de comprimento, e a


metade de largura. O chão era de mogno polido, coberto com
espessos tapetes e peles de leopardo. Os muros eram de pedra
lavrada, com muitas portas arcadas com placas de mogno,
erguendo-se até um alto teto abobadado cobertos com tapeçarias
de veludo. Akkheba estava sentado num trono no final do salão,
contemplando a festividade num estrado com um dossel e com
fileiras de lanceiros emplumados a cada lado. Os aesires sentaram
na grande mesa que percorria ao longo de todo o salão, com suas
roupas e couraças rasgadas, manchadas e empoeiradas; muitos
com bandagens ensanguentadas, bebendo, rugindo e se
empanturrando, servidos por escravos – tanto homens quanto
mulheres – que faziam reverência.

Chefes, nobres e guerreiros da cidade, com suas armaduras


polidas, estavam sentados entre seus aliados e, para cada aesir, me
pareceu que havia pelo menos três ou quatro garotas, rindo,
brincando e submetendo-se às suas toscas carícias. Suas
gargalhadas erguiam-se agudas e estridentes sobre o clamor.
Havia certa irrealidade na cena... uma leve tensão, uma alegria

128
forçada. Mas não vi Aluna. Assim que dei a volta, entrei por uma
das portas arcadas de mogno, cruzei uma câmara e entrei na outra.
Estava tenuemente iluminada e quase esbarrei no velho Shakkaru.
Recuou e pareceu muito incomodado por me encontrar, por algum
motivo. Notei que sua mão agarrava sua túnica, a qual, segundo
Akkheba, todos os sacerdotes usavam essa noite em nossa honra.

Ocorreu-me uma idéia e expressei-a em voz alta.

—Quero falar com Aluna. — disse — Onde ela está?

—Ela está ocupada com suas tarefas, então agora ela não
pode vê-lo, disse ele. — Vá ao templo amanhã...

Ele afastou-se de mim e, numa vaga palidez que detectei sob


sua compleição robusta, e num certo tremor oculto em sua voz,
percebi que me tinha um medo mortal e desejava livrar-se de mim.
A desconfiança do bárbaro se acendeu em meu interior. Num
instante, agarrei-lhe o pescoço, arrancando de sua mão a longa
lâmina de aspecto perverso que ele sacara da túnica.

—Onde está ela, chacal? — rugi — Diga-me, ou...

129
Pendia de minha mão feito um boneco, seus pés agitando-se
longe do chão, sua cabeça jogada para trás até quase quebrar o
pescoço. Com o medo da morte em seus olhos arregalados,
sacudiu violentamente a cabeça, e eu afrouxei um pouco minha
mão.

— Está no altar de Ishtar. — ofegou — Vão sacrificá-la à


deusa... perdoe minha vida... eu lhe direi tudo... todo o segredo e o
plano.

Já ouvira o bastante. Agarrando-lhe pelo cinturão e joelho,


girei-o no ar e arrebentei sua cabeça contra uma coluna. Saltando
em direção a uma porta exterior, corri entre filas de enormes
pilares até chegar à rua.

Um silêncio tenso reinava sobre todo o lugar. Não havia


multidões na noite, como havia pensado, celebrando a destruição
de seus inimigos. As portas estavam fechadas e as janelas,
trancadas. Mal se reluzia alguma luz, e nem sequer vi uma
sentinela. Tudo era estranho e irreal; a cidade, silenciosa e
fantasmagórica, na qual o único som era a estridente e antinatural
festa que surgia do grande salão de banquetes. Eu podia ver o
brilho das tochas na praça do mercado, onde jaziam nossos

130
feridos.

Lembrava de ter visto o velho Asgrimm sentado na cabeceira


da mesa, com suas mãos manchadas de sangue, e sua cota-de-
malha rota e empoeirada aparecendo sob o manto de seda que
usava; suas débeis feições estavam sombreadas pelas grandes
plumas negras que ondulavam sobre sua cabeça. Ao longo de toda
a mesa, as moças abraçavam e beijavam os aesires meio bêbados,
tirando-lhes os pesados capacetes e despindo-lhes as cotas-de-
malha, à medida que o vinho os aquecia.

Próximo ao fim da mesa, Kelka roia um grande osso de boi


como um lobo faminto. Algumas garotas sorridentes
importunavam-no, pedindo-lhe com mimos que lhes desse a
espada, até que, repentinamente enfurecido pela festa e pelos
incômodos, deu, à importunadora mais próxima, tamanho golpe
com o osso, que esta caiu ao chão, morta ou inconsciente. Mas as
risadas agudas e a selvagem diversão não diminuíram. De repente,
me pareceram vampiros e esqueletos, rindo sobre um banquete de
poeira e cinzas.

Avancei, apressado, pela rua silenciosa, cruzando o pátio e


atravessando as casas dos sacerdotes, que pareciam desertas salvo

131
pelos escravos. Entrei correndo no pórtico de altos pilares do
templo... atravessei, correndo, as trevas profundas, tateando no
escuro... irrompi na luz tênue do altar secreto... e parei, gelado.
Sacerdotes menores e mulheres nuas cercavam o altar em posição
de adoração, entoando o cântico do sacrifício, segurando taças de
ouro para recolher o sangue que fluía pelos sulcos manchados na
pedra. E nesse altar, gemendo em voz baixa, como um cervo
agonizante, estava Aluna.

Sombria era a fumaça de incenso que escurecia o altar; senti


meus olhos se nublando com aquela nuvem vermelha como o fogo
do inferno. Com um alarido inumano que ressoou horrivelmente
na abóbada do teto, atirei-me para frente e os crânios se partiram
sob os golpes enlouquecidos de minha espada. Minhas lembranças
desse massacre são caóticas e cheias de fúria. Lembro-me de
gritos frenéticos, o redemoinho de aço, o ruído dos cortes, o
choque dos golpes assassinos, o estalar dos ossos, o respingar do
sangue e a fuga atropelada de figuras, que arrancavam os cabelos e
gritavam por seus deuses, enquanto fugiam... e eu entre eles,
possuído por uma fúria silenciosa e letal, como um lobo, louco
por sangue, no meio de cordeiros. Poucos conseguiram escapar.

Eu lembro, delineada claramente contra um confuso fundo

132
avermelhado de loucura, uma esbelta mulher nua que estava
próxima ao altar, imobilizada de terror. Uma taça nos lábios, seus
olhos relampejantes, peguei-a com a mão esquerda e estatelei-a
contra as escadas de mármore, com uma fúria que deve ter
despedaçado todos os ossos de seu corpo. O resto, não me lembro
bem. Houve uma breve e louca explosão redemoinhante de
ferocidade, que semeou o altar de corpos mutilados. Depois me
ergui solitário entre os mortos, num altar que era uma confusão
total, com poças, manchas e regos de sangue, e fragmentos
humanos espalhados horrível e obscenamente pelo escuro chão
polido.

Minha espada era arrastada por uma mão repentinamente sem


forças, quando me aproximei do altar com passos vacilantes. As
pálpebras de Aluna se abriram trêmulas, quando olhei-a. Minhas
mãos pendendo frouxamente e todo o meu corpo parecia flácido e
indefeso.

—Hialmar! – murmurou ela.

Depois, suas pálpebras caíram, os longos cílios sombreando-


lhe as jovens faces, e, com um leve suspiro, moveu sua cabeleira
loira e inclinou-se como uma menina que se dispõe a dormir.

133
Toda minha alma agonizante gritava em meu interior, mas
meus lábios permaneciam mudos com a falta de articulação do
bárbaro. Caí de joelhos, junto ao altar, e, tocando vacilante sua
forma delgada com meus braços, beijei lento e vacilante – como
faria um jovem inexperiente – seus lábios moribundos. Esse ato –
esse único e vacilante beijo – foi o único traço de ternura em toda
a dura vida de Hialmar dos aesires.

Toda minha alma agonizante gritava em meu interior, mas


meus lábios permaneciam mudos com a pouca expressividade de
um bárbaro. Caí de joelhos, junto ao altar, e, tocando vacilante sua
forma delgada com meus braços, beijei lento e vacilante – como
faria um jovem inexperiente – seus lábios moribundos. Esse ato –
esse único e vacilante beijo – foi o único traço de ternura em toda
a dura vida de Hialmar dos aesires.

Levantei-me lentamente e permaneci próximo à garota morta,


e, com igual lentidão, recolhi mecanicamente a minha espada. Ao
contato familiar com o cabo, a fúria vermelha de minha raça
brotou novamente em meu cérebro.

Dando um grito terrível, saltei para as escadarias de mármore.

134
Ishtar! Haviam enviado seu espírito trêmulo à deusa e, seguindo
esse espírito de perto, chegaria o vingador! Só a deusa sangrenta
poderia pagar por Aluna. Meu culto eram os rituais simples do
bárbaro. Os sacerdotes haviam me dito que Ishtar morava nas
alturas e que os degraus levavam à sua residência. Eu supunha
vagamente que subiam através de reinos nebulosos de estrelas e
sombras. Mas subi até uma altura que fazia a mente vacilar, até o
altar debaixo de mim tornar-se um vago jogo de tênues luzes e
sombras, e a escuridão me envolveu completamente.

Então, cheguei repentinamente, não a algum vasto domínio


estrelado de divindades, mas a uma grade dourada e, atrás dela,
ouvi uma mulher soluçar. Mas não era a alma nua de Aluna que
gemia diante de algum trono divino, pois, morta ou viva, eu
conhecia seu pranto.

135
Louco de fúria, agarrei as barras que se torceram e partiram-
se em minhas mãos. Afastei-as como fibras de palha e cruzei-as de
um salto, com meu grito de matança tremendo na garganta. Na
tênue luz, vinda de uma tocha num nicho alto, vi que eu estava
numa câmara circular com uma cúpula, cujos muros e teto
pareciam ser de ouro. Havia ali leitos de veludo e almofadas de
seda, e entre eles jazia uma mulher nua, chorando. Vi as marcas
de um chicote em seu corpo alvo e parei, assombrado. Onde
estava a deusa Ishtar?

Devo ter falado em voz alta no meu khemuriano bárbaro, pois


ela levantou a cabeça e olhou pra mim com olhos escuros e
brilhantes, inundados de lágrimas. Havia nela uma estranha
beleza, algo exótico e distante, além da minha compreensão.

—Sou Ishtar —ela me respondeu, e sua voz era como o som


de distantes sinos dourados, ainda que quebrada pelo pranto.

—Você... – ofeguei – Você é Ishtar... a deusa de Khemu?

— Sim! —ela disse, ao mesmo tempo em que se ajoelhou,


retorcendo suas mãos brancas—. Oh, homem... quem quer que

136
você seja... conceda-me um pouco de clemência, se ainda resta
clemência no mundo! Corte minha cabeça e acabe com esta longa
agonia!

Mas eu recuei e abaixei a espada.

—Vim aqui para matar uma deusa ensanguentada. —


grunhi—. E não para degolar uma escrava soluçante. Se você é
Ishtar... quem... onde... em nome de Ymir, que loucura é esta?

—Escute, e eu lhe falarei! – clamou, arrastando-se de joelhos


em minha direção e agarrando minha couraça – Limite-se a ouvir,
e depois me conceda o pouco que peço... o golpe de sua espada!

"Sou Ishtar, filha do rei da obscura Lemúria, aquela que o


mar engoliu há muito tempo. Quando menina, me casaram com
Poseidon, deus do mar, e, na pavorosa e enigmática noite nupcial,
quando jazia flutuando e sem dano algum sobre o seio do oceano,
o deus concedeu-me o dom da vida eterna, que chegou a tornar-se
maldição nos longos séculos de meu cativeiro.

"Mas vivi na purpúrea Lemúria, jovem e bela, enquanto


minhas criadas cresciam e envelheciam ao meu redor. Logo

137
Poseidon se cansou da Lemúria e da Atlântida. Ergueu-se e
sacudiu sua cabeleira espumante, e seus brancos corcéis correram
sobre os muros, os pináculos e as torres escarlates. Mas me
levantou suavemente sobre seu seio e me levou intacta a uma terra
distante, onde vivi durante muitos séculos entre uma raça estranha
e benevolente.

"Então, num dia infeliz, subi a bordo de uma galera da


distante Khitai que, durante um furacão, afundou diante desta
costa maldita. Mas, como antes, fui levada à costa sobre as ondas
de meu senhor, Poseidon, e os sacerdotes me encontraram na
praia. O povo de Khemu se diz descendente da Lemúria, mas era
uma raça de súditos, falando uma língua mestiça. Quando falei
com eles em Lemuriano puro, disseram ao povo que Poseidon
havia enviado-lhes uma deusa, e o povo caiu de joelhos e me
adorou. Mas os sacerdotes de então eram tão diabólicos quanto os
de agora, necromantes e adoradores do mal, não tendo deus
algum, exceto os demônios dos Abismos Exteriores. Me trancaram
nesta cúpula dourada e, usando da crueldade, arrancaram meu
segredo.

"Durante mais de mil anos, fui adorada pelo povo, a quem às


vezes permitiam ver-me de longe, de pé na escadaria de mármore,

138
meio oculta pela fumaça do sacrifício, ou lhes permitiam ouvir
minha voz, falando numa língua estranha como um oráculo. Mas
os sacerdotes... oh, deuses de Mu, como tenho sofrido em suas
mãos! Deusa do povo... escrava dos sacerdotes!".

— Por que não os destruiu com sua bruxaria? – perguntei.

— Não sou uma bruxa – ela respondeu –, embora pudesse


acreditar que sou uma se eu lhe contasse os mistérios que as Eras
me revelaram. Mas há um feitiço que eu poderia invocar... uma
maldição terrível e esmagadora... se eu pudesse escapar desta
prisão... se eu pudesse me erguer nua, sob o amanhecer e invocar
Poseidon. Nas noites tranquilas, eu ouço-o rugindo além dos
penhascos, mas ele dorme e não ouve minhas chamadas. Mas, se
eu pudesse estar diante da sua presença e chamá-lo, ele poderia
ouvir-me e atender-me. Os sacerdotes são astutos... me afastaram
de seus olhos e de seus ouvidos... durante mais de mil anos, não
contemplei o grande monstro azul...

De repente, nos sobressaltamos os dois. Da cidade, bem


abaixo de nós, erguia-se um clamor estranho e selvagem.

—Traição! – exclamou – Estão matando sua gente nas ruas!

139
Vocês destruíram os inimigos que temiam... agora, voltam-se
contra vocês!

Lançando uma maldição, desci correndo as escadarias, dei


um último olhar angustiado à alva forma imóvel no altar e saí
correndo do templo. Da rua, além das casas dos sacerdotes,
erguia-se o entrechocar do aço, uivos de morte, gritos de fora e os
trovejantes gritos de guerra dos aesires. Não morriam sozinhos. Os
gritos de ódio e triunfo dos khemurianos mesclavam-se a outros,
de medo e dor. Diante de mim, a rua, já não silenciosa e
abandonada, fervia de homens combatendo. Das entradas das
tendas, casebres e palácios, surgiam iguais enxames de uivantes
habitantes da cidade, armados, para ajudarem seus soldados, que
travavam uma louca batalha contra os estrangeiros de cabelos
amarelos. Chamas de uma centena de fogueiras iluminavam a cena
frenética, como se fossem a luz do dia.

Enquanto me aproximava do pátio, que estava ao lado do


palácio do rei, ao longo das ruas onde corriam homens berrando,
um guerreiro aesir aproximou-se de mim, cambaleante, longe da
tormenta da batalha que se agitava à distância. Vinha sem
armadura, quase encurvado, e, embora sobressaísse uma flecha de
suas costas, era o próprio ventre que ele apertava com as mãos

140
vazias.

—O vinho estava envenenado. – grunhiu – Fomos traídos e


condenados. Bebemos muito e, com nossas taças, as mulheres nos
seduziram para nos livrarmos de nossas espadas e armaduras. Só
Asgrimm e o picto não as entregaram. Então, as mulheres fugiram
repentinamente, aquele velho abutre do Akkheba abandonou o
salão do banquete... e as dores nos atacaram! Oh, Ymir, minhas
entranhas se retorcem como uma corda cheia de nós! Então as
portas se abriram de repente e enxames de arqueiros lançaram suas
flechas sobre nós... os guerreiros de Khemu desembainharam suas
espadas e caíram sobre nós... os sacerdotes que enchiam o salão
sacaram lâminas ocultas de suas túnicas. Escute a gritaria na praça
do mercado, onde cortam as gargantas dos feridos! Ymir, um
homem pode rir do aço frio, mas isto...isto... oh, Ymir!

Caiu sobre o piso, curvado como um arco, a espuma


escorrendo de seus lábios e seus membros retorcendo-se em
horríveis convulsões. Corri ao pátio. Na extremidade mais
afastada, diante da rua em frente ao palácio, havia uma massa de
figuras que lutavam.

Multidões de homens de pele escura com armaduras lutavam

141
contra gigantes seminus de cabelos amarelos, que golpeavam e
dilaceravam como leões feridos, embora suas únicas armas fossem
bancos quebrados, armas arrebatadas de inimigos agonizantes ou
suas mãos nuas, e cujos lábios estavam manchados com a espuma
da agonia que inundavam suas entranhas. Juro por Ymir que não
morreram sós; seus pés pisavam corpos mutilados, e eram como
bestas selvagens cuja ferocidade não é satisfeita até extinguir-se a
última e diminuta faísca de vida.

142
143
CAPÍTULO 4
O grande salão do banquete ardia. À sua luz, vi sobre o
estrado que se erguia acima do combate, o velho Akkheba
estremecendo-se de terror ante sua própria traição, com dois
guardas robustos nos degraus sob ele. A luta havia se espalhado
por todo o pátio e eu vi Kelka. Estava bêbado, mas isso não
mudava suas qualidades mortíferas. Era o centro de um nó
convulso de figuras que lutavam e cortavam, e sua longa faca se
movia velozmente à luz do fogo, enquanto destroçava gargantas e
ventres, derramando sangue e vísceras sobre o piso de mármore.

Com um rugido rouco e repentino, avancei sobre eles e, num


instante, nos erguemos sozinhos, cercados por um anel de
cadáveres.

Sorriu como um lobo, seus dentes rangendo


espasmodicamente.

— Havia um demônio no vinho, Hialmar! Arranha minhas


entranhas como um gato selvagem... venha, vamos matar mais
alguns antes de morrer. Veja... o Velho luta seu último combate!

Dei uma rápida olhada no lugar onde, bem na frente do


144
incendiado salão de banquetes, a frágil figura de Asgrimm se
erguia sobre a matilha revolta. Vi o relâmpago de sua espada e os
homens que caíam a seu redor. Por um instante, suas plumas
balançaram-se sobre a horda... logo se desvaneceram e, sobre o
lugar onde estava, fluiu a horda escura.

No momento seguinte, eu estava saltando em direção às


escadarias de mármore, com Kelka atrás de mim. Ceifamos a fila
de guerreiros nos degraus inferiores e atravessamos. Apareceram
atrás de nós para nos fazer descer, mas Kelka se virou e sua longa
lâmina investiu mortalmente contra eles. Caíram sobre ele, de
todas as direções, e ali morreu ele como vivera: apunhalando e
matando em silencioso frenesi, sem pedir nem dar trégua.

Subi os degraus aos saltos, e o velho Akkheba berrou diante


da minha chegada. Havia deixado minha espada quebrada enfiada
no peitoral de um guarda. Com as mãos nuas, avancei sobre os
dois guardas nos degraus superiores. Saltaram para me
enfrentarem, dando navalhadas. Agarrei a lança de um e lancei-o
de cabeça pelas escadarias, para que seus miolos se arrebentassem
ao final delas. A lança do outro atravessou minha cota e o sangue
escorreu sobre a haste. Antes que pudesse soltá-la para um
segundo golpe, agarrei-lhe o pescoço e quebrei-o com meus

145
dedos. Retorcendo, em seguida, a lança e atirando-a para um lado,
corri na direção de Akkheba, que gritou e ergueu-se de um salto,
agarrando a beirada lavrada do curvo teto de pedra atrás do
estrado. A loucura do terror deu forças e qualidade ao velho.
Trepou pela inclinação feito um macaco, agarrando-se, com mãos
e pés, aos adornos esculpidos e uivando o tempo todo, feito um
cão espancado.

E eu lhe segui. Minha vida escapava pelo ferimento sob


minha cota-de-malha. Estava empapado de sangue, mas minha
vitalidade de fera selvagem não havia diminuído. Mais e mais para
cima, subiu gritando e, cada vez mais pra cima, nos erguemos
sobre a cidade, até balançarmos precariamente sobre o telhado,
mais cento e cinquenta metros acima das ruas uivantes. E então
ficamos imóveis, caça e caçador.

Um grito estranho e fantasmagórico soou acima do tumulto


infernal, que se exaltava sob nós, e acima dos gritos frenéticos de
Akkheba. Sobre a grande cúpula dourada, bem acima de todas as
outras torres, erguia-se uma figura nua, o cabelo voando ao vento
do amanhecer, delineada pelo brilho vermelho da aurora. Era
Ishtar, agitando os braços e gritando uma frenética invocação
numa língua estranha. Nos chegou muito debilmente. Havia

146
escapado da prisão dourada que eu quebrara. Agora erguia-se
sobre a cúpula, chamando o deus de seus pais, Poseidon!

147
Mas eu tinha minha própria vingança para consumar.
Preparei-me para o salto que levaria a nós dois numa queda de
cento e cinqüenta metros, para nos esborracharmos na morte... e,
sob meus pés, a sólida construção se moveu. Um novo frenesi
soou nos gritos de Akkheba. Com um estrondo de trovões, os
distantes penhascos caíram ao mar. Houve um longo e
cataclísmico choque, como se o mundo se despedaçasse, e, diante
dos meus olhos assombrados, toda a vasta planície ondulou, cedeu
e afundou em direção ao sul.

Grandes abismos se abriram na planície que se inclinava e,


repentinamente, com um ruído indescritível, um ranger de trovões,
e um estrondo de muros que caíam e torres que se inclinavam,
toda a cidade de Khemu se moveu! Deslizava-se, numa vasta e
caótica ruína, para o mar que se erguia e inchava-se para acolhê-
la! Nesse horror deslizante, uma torre chocava com outra,
dobrando-se e desmoronando, reduzindo insetos humanos que
gritavam a pó vermelho, esmagando-os com pedras que caíam.
Onde eu havia contemplado uma cidade arrumada, com muros,
tetos e pináculos, tudo era um louco, retorcido, dobrado e
quebradiço caos de pedra trovejante, onde os capitéis balançavam
loucamente sobre as ruínas e caíam entre estrondos.

148
A cúpula ainda cavalgava sobre a catástrofe, sobre ela a
figura alva continuava gritando e gesticulando. Logo, com um
rugido espantoso, o mar se deslocou e se ergueu, e grandes
tentáculos de espuma verde se curvaram, altos como montanhas, e
caíram rugindo sobre as ruínas que deslizavam, subindo cada vez
mais alto, até que todo o lado sul da cidade esmagada foi
escondido pelas águas verdes que se revolviam.

Por um instante, o velho telhado que agarrávamos ergueu-se

149
sobre as ruínas, mantendo sua posição. E, nesse momento, saltei e
agarrei o velho Akkheba. Seu grito de morte ressoou em meus
ouvidos enquanto, sob meus dedos de ferro, senti sua carne ser
esmagada como polpa apodrecida, seus tendões saltarem-lhe dos
ossos e os próprios se estilhaçarem.

Os estrondos do mundo que se quebrava ressoavam em meus


ouvidos, as agitadas águas esverdeadas estavam a meus pés, mas,
enquanto a terra inteira parecia desmoronar e quebrar-se, enquanto
a construção se desfazia sob meus pés e as trovejantes marés
verdes me submergiam, afogando-me em indizíveis profundidades
cintilantes, meu último pensamento foi que Akkheba morrera sob
minhas mãos, antes que uma só onda o tocasse. Então, as ondas
engoliram a cidade!

150
Levantei-me, com um grito, as mãos estendidas como que
151
para afastar as ondas trovejantes. Hesitei, atordoado pela surpresa.
Khemu e o passado haviam se desvanecido. Eu estava na colina
coberta de carvalhos e o sol pendia à altura de uma mão sobre os
carvalhais ressecados. Só se passaram segundos desde que a
mulher fizera aquele gesto diante dos meus olhos. Agora
continuava me olhando com esse enigmático sorriso, que tinha
menos de zombaria que de compaixão.

—O que aconteceu? – exclamei aturdidamente – Eu era


Hialmar... agora sou James Allison... o mar era aquele Golfo... as
Grandes Planícies corriam então até a costa, e na costa se erguia a
cidade maldita de Khemu. Não! Não posso crer-lhe! Não consigo
crer em minha própria razão. Você me hipnotizou... me fez
sonhar...

Ela negou com a cabeça.

— Tudo passou há muito, muito tempo, Hialmar.

— Então, o que foi feito de Khemu? – exclamei.

—Suas destroçadas ruínas dormem nas profundas águas azuis


do Golfo, onde foram submersas nas longas Eras que passaram

152
depois da terra abrir-se, antes que as águas recuassem e deixassem
estas longas estepes ondulantes.

—Mas, o que aconteceu com aquela mulher, Ishtar, sua


deusa?

— Não era acaso a noiva de Poseidon, que ouviu seu grito e


destruiu a maligna cidade? Ele levou-a, sem dano algum, sobre
seu seio. Não podia morrer, era eterna. Vagou por muitas terras e
viveu entre muitos povos, mas havia aprendido sua lição e ela, que
havia sido escrava dos sacerdotes, transformou-se em sua senhora.
Ela que havia sido uma deusa de aparência cruel, transformou-se
em deusa por direito próprio, por força de sua antiga sabedoria.

153
"Se transformou em Ishtar dos assírios e Ashtoreth dos
fenícios; foi Militta e Belit dos babilônios, e Derketa dos filisteus.
Sim, e ela foi Ísis dos egípcios e Astarté de Cartago; foi Freya dos
saxões, Afrodite dos gregos e Vênus dos romanos. As raças
chamam-na com muitos nomes e adoram-na de muitos modos,
mas é uma só e os fogos de seus altares não se apagaram".

Enquanto ela falava, ergueu seus límpidos e luminosos olhos


escuros em minha direção; o último e pálido brilho do crepúsculo
se refletiu na glória ondulante de sua cabeleira, negra como a
noite, emoldurando a estranha beleza de seu rosto, distante e
exótico além do meu entendimento. E um grito brotou de meus
lábios.

—Você! Você é Ishtar! Então é verdade! E você é imortal... é


a Mulher Eterna... a raiz e o broto da Criação... o símbolo da vida
imperecível! E eu... eu era Hialmar, e conheci o orgulho, a
batalha e terras distantes, e a brilhante glória da guerra...

—Tão certo quanto voltarás a conhecê-la, oh, meu fatigado


amigo – ela disse suavemente –, quando, dentro em pouco,
abandonares esta máscara torta de carne quebrada e vestires um
novo adorno, brilhante e esplendoroso como a armadura de

154
Hialmar!

Então a noite caiu, e não sei pra onde ela foi, mas eu me
sentei solitário na espessura da colina e o vento noturno subiu
sussurrando das dunas arenosas e dos pequenos bosques
ressecados, e murmurou entre os galhos tristes dos carvalhos
murchos.

FIM

155
Segundo Rusty Burke, editor e estudioso em
Robert Howard, o poema que se segue seria “das
melhores expressões da crença de Howard de que
somos, por natureza, bestas. Podemos construir
civilizações, mas ainda somos apenas macacos”.

156
Tradução de Marco Antonio Collares

Suba até o topo da escada


Onde os fantasmas dos planetas se banqueteiam
Fora do alcance da víbora
Nunca além da Besta.
Ele está lá, na ninhada do abismo,
Onde caem os fogos negros sem nome;
Ele está lá, nas estrelas se intrometendo,
Onde o sol é uma bola prateada.
Além de todo choro ou alegria,
Ele se esconde na nuvem e na grama;
Ele agarra as portas do diabo
E o ferrolho nas portas de Deus.
Construir e se empenhar é comum
Mas você nunca poderá escapar
A paixão selvagem e cega
A luxúria do macaco primal.

157
O poema, a seguir, nas considerações de Burke,
trata dos ciclos das civilizações, ascendendo e
decaindo, sendo substituídas pelas vagas e hordas
bárbaras que então constroem uma nova civilização.
Ela novamente surge e então declina e cai novamente
perante novos bárbaros, num ciclo ininterrupto de
civilização e barbárie.

158
Tradução de Marco Antonio Collares

Você relaxou em jardins onde a brisa soprava


O fragmento trêmulo da flor;
Mas nós fomos criados em uma terra
Onde a vida era muito difícil.
Você estuprou as uvas de sua alma roxa
Para suas taças de vinho cheias de água;
Descemos até os restos do buraco lamacento
Isso era amargo com álcali.
E você ficou flácido e com os membros redondos,
Falta de coragem e respiração;
Mas nos tornamos robustos, magros e sombrios
Em nossas garras nuas com a Morte.
A seda era muito dura para sua pele delicada,
O vinho tinto muito pobre para sua seca;
Nós caçamos os buracos onde a chuva ficava,
E despiu o lobo para nossa influência.
Redondas eram suas barrigas, macia sua mão,
159
Macio com a gordura da terra;
Tua era a riqueza de uma terra sorridente,
Nossa escassez do deserto.
Você cantou debaixo da árvore de gafanhoto,
Esquecido de fome e ódio: Sempre foi, sempre será!
Mesmo assim, estávamos no seu portão.
Você relaxou perto da fonte e do salão dourado
Até aquela manhã frenética
Quando estouramos os portões e rompemos a parede
Para cortá-lo como milho.
Colhemos o rendimento e aramos o campo
Com partes vermelhas e pingando,
E você não poderia lutar e você não poderia correr,
Você só poderia morrer como lebres.
Grim era a troca, vermelha a troca,
Com espadas pingando para moedas,
E suas mulheres gritaram na areia pisoteada
Com lombos machucados e sangrando.
Hábil era o cérebro e habilidosa a mão
Isso moldou a pedra teimosa,
Mas o cérebro derramou na areia sangrenta
Quando o ferro rachou o osso.
A mão que traçou o friso dourado,

160
Isso rolou na página escrita,
Não poderia virar o aço acionado,
Apoiado pela raiva primitiva.
De que valem a harpa e o alaúde,
Cinto com gemas e capa roxa,
Quando o machado pingando estava atingindo a casa
Na chama e na fumaça ofuscante?
O sangue manchava seu cetim, seda e renda.
Você ouviu seus filhos gemer,
E seus anciãos uivaram no mercado
Onde retiramos a pele do osso.
E onde seus juízes barbudos sentaram
Ordenando aos homens que vivessem ou morressem,
Um assassino nu rugiu e acenou
Um couro cabeludo ensanguentado no alto.
Sobre as ruínas arqueadas e espiraladas
As ondas ondulantes da nuvem de fumaça;
E você que viveu quando a espada estava cansada,
Você vive, mas como nossos escravos.
Nossas mãos duras agarram suas taças de ouro,
Nossos pés ásperos esmagam suas flores;
Nós colocamos nossos cavalos em estábulos em seus
corredores,

161
E toda a sua riqueza é nossa.
Nós trocamos nossos troncos de pele de lobo por sedas,
Nós os usamos desajeitadamente,
Nossos olhos estão sombrios, nossas barbas não aparadas,
Nossos bloqueios emaranhados fluem livremente.
Mas nossos filhos vão aparar suas barbas e cabelos,
Usarão capas de tom carmesim;
Eles vão levar suas filhas para suas camas,
Até que fiquem macios como você.
Eles vão trocar sua liberdade por harpas e alaúdes,
Descartar o arco e o dardo;
Eles vão construir uma prisão de cetim e ouro,
E chamá-las de Cultura e Arte.
Eles vão deitar no colo de uma terra sorridente,
Até que sua ferrugem desfaça e apodreça,
E eles desprezarão seu sangue e a mão calejada,
E os pais que os geraram.
Mas nossos irmãos ainda vivem no deserto escaldado pelo
sol
E seus filhos são duros e magros;
Eles vão caçar a matilha de lobos que perseguimos,
E beber a água que bebemos.
As fomes que sabíamos, eles também saberão,

162
As cicatrizes de presas e sarças;
Nas rochas onde eles se agacham quando as tempestades de
areia sopram
Eles encontrarão as marcas de nossos fogos.
Eles conhecerão as fomes que uma vez tivemos,
Enquanto corre o fluxo dos séculos,
Até que eles explodirão no deserto, loucos de fome,
Para massacrar nossos filhos preguiçosos.

163
164
Adeson Moraes
Afrânio Willian Tegão
Alexsandre de Lira Silva
Corwin Gothcrom
Edgar Rupel
Endeusa Marius
Eliezer Martins
Emerson Silva
Fabio Moreira de Melo
Fernando Donizetti
Gustavo Henrique Lemos
Henry Bernardo
Jonatas Faria Rossetti
João Dinardi de Castro
Karolyne da Rocha Bastos
Leonardo Franco Miranda
Leone Lúcio
Luiz Alfredo Bexiga
Marco Antonio Collares
Marcos Flávio Rodrigues
Mariana Bernardes
Mateus Martinbianco Bauer
Pedro Henrique Gonçalves Ferreira
Robilam Corrêa Júnior
Rodrigo Chiesa
Ronan Barros
Sebastião Alves
Valter F. Viana

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