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Cidades da Planície

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© 1998 by Cormac McCarthy

Título: Cidades da Planície


Título original: Cities of the Plain (1998)
Autor: Cormac McCarthy
Tradução e Prefácio: Paulo Faria
Revisão de texto: Inês Dias
Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)

©Relógio D'Água Editores, março de 2015

Esta tradução segue o novo Acordo Ortográfico.

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ISBN 978-989-641-481-8

Composição e paginação: Relógio D'Água Editores


Impressão: Guide Artes Gráficas, Lda.
Depósito Legal n.0: 384694/14
Cormac McCarthy

Cidades da Planície

Terceiro Volume
Trilogia da Fronteira

Tradução e Prefácio de
Paulo Faria

Ficções
PREFÁCIO

Cidades da Planície, pu blica do em 1998, conclu iu a «Trilogia da


Fronte ira », inicia da em 1992 com Belos Cavalos e continua da em
1994 com A Travessia. Tu do come çou com um gu ião para cinema ,
escrito p or Corma c McCarthy nos a nos 80 e que ne nhum estúdio ou
realizador se m ostrou interessa do em perfilhar. Esse gu ião (de que
existe uma vers ão quase final nos arqu iv os de Corma c McCarthy,
em Sa n Marcos , no Te xas ) serviu de base a este roma nce , Cidades da
Planície, mas não sem que a ntes , tra balha ndo às avessas , Corma c
McCarthy criasse dois outros roma nces para contar o passa do das
duas pers onage ns principa is desta narrativa (John Gra dy Cole e
Billy Parham ). Eis , p ois , resum idame nte , a história das orige ns
desta trilogia .
O fa cto de Cidades d a Planície ser um roma nce cria do a partir de
um gu ião para cinema é bem notório na prevalência que os diálogos
têm no te xto e numa certa secura estilística a qu i pate nte , ape nas
a ba ndona da no ep ílog o, que constitu i certame nte , atrev o-me a a fir­
mar, um a crescento bem ma is tardio. Estam os muito longe da atmos­
fera quase romântica de Belos Cavalos, e tam bém dos amplos v oos
filos óficos de A Travessia. Em Cidades da Planície, a aride z da pa i­
sagem toma conta de tu do, e a prosa , não se ndo emp obrecida , é
des carna da , lúgu bre . Des de as prime iras p áginas , mergulham os
num roma nce fe ito de gestos repetidos, p ov oado p or pers onage ns
e njaula das , força das a um rep isar consta nte de m ovime ntos e de
frases. Uma ve z e outra e outra , estes home ns sa codem os maços
para tirar um cigarro do interior; s opram o fum o dos cigarros e dos
8 Prefácio

charutos s obre os tamp os das mesas , das es criva ninhas e dos bal­
cões dos bares; p ousam o ma ço e p õem -lhe o is que iro em cima ;
atiram as beatas para longe com p iparotes , ja ze ndo-as des crever
arcos de lu z na noite ; de bru çam -se e es carram ; e pergu ntam u ns a os
outros (e até a os cavalos ): «0 que é que queres ja zer?». É com o se ,
neste final da trilog ia , a vida estivesse redu zida a um leque restrito
de m ovime ntos , de p oss ibilidades . Com o se a estre ite za dos cam i­
nhos a o noss o disp or se tornasse finalme nte notória nos ma is ínfi­
m os p orme nores do quotidia no, e os fios que nos pre ndem a os de dos
do gra nde bone cre iro gu iassem todos os noss os gestos , mesm o os
ma is insig nifica ntes . Sempre que a ba ndonam os trilhos ha bitua is e
percorrem se ndas vagame nte cerim oniosas , estes cowboys hes itam ,
um p ou co perdidos . O que jazer com o chap éu ? Tirá-lo? De ixá-lo
ficar na ca be ça ? Ficar com ele na m ão? Pousá-lo algures?
Uma e outra vez, os home ns deste roma nce , va que iros quase to­
dos , pergu ntam u ns a os outros o que fariam na vida se tivessem a o
seu disp or todas a s alternativas . Que rum o escolheriam s e todos os
caminhos fossem p oss íve is . São com o náufrag os ou prisione iros fa­
m élicos a pergu ntar u ns a os outros que iguarias comeriam se, p or
m ilagre , lhes fossem conce didos todos os seus dese jos . E, com o
náufrag os ou pris ione iros fam élicos , há nestas conversas a cerca do
p oss ível a ime nsa melancolia de quem se sa be agrilhoa do a um ca­
minho estreito. Pior a inda : de quem tem mu ita dificulda de em con­
ce ber se quer cam inhos alternativos para a sua existência .
As «cida des da pla nície » do título s ão a Sodoma e a Gom orra
bíblicas referidas no Génes is , 19, 29: «Ao destruir as cida des da
pla nície , p orém , Deus recordou -se de Abra ão e salvou Lot do cata­
clism o, pelo qual arras ou as cida des onde Lot ha bitava . » Mas s ão
tam bém El Pas o e Ju áre z, as duas cida des irm ãs numa e noutra
margem do rio, o Rio Gra nde , que tra ça a fronteira e ntre os Esta dos
Unidos e o México. Esta fronte ira é a qu i, para todos os efe itos , a
última fronteira , e e xerce s obre os heróis desta trilogia uma atração
irres istível, leva ndo-os a cru zá-la constanteme nte em bus ca de uma
terra me xica na que julgam e nca ntada e m ág ica , uma terra onde os
lobos a inda u ivam em liberda de , onde uma certa pure za ainda não
se extingu iu nos cora ções dos home ns , onde a e xistência dos va quei­
ros é a inda p oss ível na sua s ingele za imem orial, sem a amea ça da
Cidades da Planície 9

m ode rnida de que , a li no Su doeste ame rica no, no res ca ldo da Segu n­
da Guerra Mu ndial (a a ção de Cidades da Planície de corre em
1952), irá em breve sepulta r todas as formas de vida a ncestrais .
Repetidame nte , os jove ns p rotag onistas desta saga e m três pa rtes
a ca bam p or ve r reve la da a ve rda de ira fa ce do México, que é, a fina l,
na mitolog ia corma ckiana , a ve rda de ira fa ce do mu ndo: um lugar
miste rios o, que não se deixa desve ndar; um luga r viole nto, sem es­
pera nça , onde a ge neros ida de , o a ltru ísm o e a se de de justiça con­
vivem com um ce rto fata lism o imp la cáve l, uma certa aus ência de
Deus . O mu ndo é um luga r varrido pe lo fog o div ino que tom ba das
a ltu ras , sem que Lot, o justo, se p ossa sa lva r.
O México é tam bém um lugar em gue rra . «Ouvire is fa la r de gue r­
ras e de rum ores de gue rras , mas não v os assuste is », lem os em
Mateus , 24, 6, e Mr Johns on usa esta mesma exp ress ão, «gue rras e
rum ores de gue rras », a o referir-se a os conflitos a rma dos pe rma ne n­
tes que m oldaram o destino do México e tam bém dos Esta dos Uni­
dos da Am érica a o long o de toda a sua história . A gue rra e ntre estes
dois pa íses ( 1846-1848), log o pa ra come ça r, mas tam bém as gue rras
civis que e nsa ngue ntaram ca da um de les , e a inda as duas gue rras
mu ndiais em que os Esta dos Unidos se viram e nvolvidos . Todos estes
conflitos se rvem de pa no de fundo à Trilog ia da Fronte ira , e a inda
a Meridiano de Sangue (1985), que algu ns consideram pe rtine nte
ju nta r a este conjunto à la ia de p rólog o pa ra constituir, na obra de
Corma c McCarthy, uma hip otética Tetra log ia da Fronte ira . Neste
qua dro, a gue rra entre os Estados Unidos e o México assume espe ­
cia l imp ortância , já que m oldou p rofundame nte a rela ção e ntre as
duas jove ns na ções , estabelecendo um pa drão de resse ntimento e
fas cínio da pa rte dos me xica nos de rrota dos em re la ção a o p ode ros o
vizinho do norte , e uma mes cla de desp re zo, me do e tam bém fas cínio
da pa rte dos ame rica nos .
Em Belos Cavalos, a o interroga r John Gra dy Cole , o cap itão me ­
xica no p rop orciona a Corma c McCa rthy esta des crição: «Ele
de bru çou -se na ca deira e tirou um is queiro do dólma n e a ce ndeu o
ciga rro e p ous ou o is que iro na se cretária , a o la do do lápis , e pu xou
o cinze iro pa ra s i com um de do e tornou a re costa r-se na ca de ira e
se ntou -se com o bra ço e rgu ido e o ciga rro a ces o a es cass os ce ntí­
metros da ore lha , numa p ostu ra que pa re cia estra nha à sua pess oa .
10 Pr efácio

Com o se a tivesse a dmira do algu res noutrem , talve z. » Aqu i, em Ci­


dades da Planície, o chu lo, Eduardo, é des crito ass im : «Com as
m ãos e ntre la ça das atrás de si, ao fundo das costas , numa p ostu ra
que e le ta lve z tivesse a dm irado noutrem ou cuja des crição tivesse
lido a lgures , mas uma p ostu ra nativa de outro pa ís , não do seu . »
Duas das pers onage ns ma is fascinantes da trilogia , o capitão e o
chu lo, am bos mexica nos , am bos dev orados p or um ódio entra nha do
à Am érica e a o que e la rep rese nta , não conseguem , mesm o ass im ,
de ixa r de imita r a s p oses de atores de Hollywood ou de outros he róis
sa ídos da iconog rafia americana . Resse ntimento e fas cínio. Medo e
desp re zo. Gestos guia dos p or fios inv is íve is .
Exímio a retrata r a v ida dos cowboys num ra ncho do Nov o Méxi­
co, nos a nos 50, Corma c McCa rthy des creve a qu i um qu otidia no
marca do pela aus ência das mu lhe res . Socorro, a única p rese nça fe ­
minina na casa , quase nu nca fala . O que a ca ra cte riza é, esse ncia l­
me nte , o gesto de e nxotar os home ns para longe do fog ão, com o
quem e nxota bichos inofe nsiv os mas imp ortu nos e desa je ita dos . So­
corro é um espectro, ass im com o o é a fa le cida mu lhe r do p rop rie ­
tário, alv o de ve ne ra ção da pa rte de todos qua ntos a conhe ce ram . O
espa ço p or e xcelência das mu lhe res em Cidades da Planície é o
borde l e a p rostituição. Dir-se -ia que os home ns de Cormac McCa r­
thy não sa bem bem o que ja ze r das mulheres , e que , na sua relação
com e las, se veem espa rtilhados na a lte rnância dos mesm os se nti­
me ntos que guiam a s u.a rela ção com a te rra me xica na ig nota : des ­
p re zo, me do e um fascínio reve rencia l.
Cidades da Planície é, em certa me dida , um regress o a Belos Cava­
los em ve rsão deca ída , conspurca da . Em vez de se interna rem no
México profundo, em busca de um lugar edénico, os cowboys limitam­
-se a atravessar a fronteira para ir a os bordéis de Ju áre z, imitando os
turistas citadinos à p rocura de em oções fáceis . Dep ois de Alejandra,
a filha-fam ília virgem cu jo estatuto s ocial a tornou inalcançável para
John Gra dy Cole , e le apa ixona-se ag ora por Magda /ena , a prostituta
virginal que nada p ode corromper, é certo, mas cu jas origens no re bo­
talho da sociedade a tornam tam bém , ironicame nte , ina cess ível para
o jovem herói. A um ou tro nível, a cena da caçada a os cães é também
cru cial para esta be lecer a dege nerescência do u nivers o em que estas
personagens se m ovem. A a rte nobre da caça , da luta dos homens
Cidades da Planície 11

contra a argúcia de animais indómitos, dá a qu i lugar a uma org ia de


violência se lvática , um massa cre grotes co de criatu ras lerdas, e os
próprios cowboys se sentem degra dados p or esta matança .
Resta ape nas , intoca do na sua nobre za , o cava lo, com quem John
Gra dy Cole ma ntém uma re la ção de irma nda de sag ra da e que lhe
insp ira refle xões tão ousa das que não colhem se quer una nim ida de
ju nto dos outros cowboys . Re fle xões que ap ontam com o único cami­
nho da sa lva ção a bus ca de uma p le na comu nhão com o que há de
ma is puro no mu ndo.
A na rrativa da história do cosm o tem no seu centro, tal com o Cor­
ma c McCarthy nos diz no ep ílog o, uma ara coberta de entalhes das
armas usa das nos sa crifícios humanos, manchada pe lo sa ngue das
vítimas que nenhuma chuva, nenhuma intemp érie consegue apagar,
p or mu itos s éculos e milénios que passem . A mesma a ra .fizera a sua
apa rição em Meridiano de Sangue, quando um outro me xicano des­
conhecido (ou será o mesmo?) se dirige ao rapaz numa cantina: «Fez
um gesto a indicar o mu ndo ma is a lém , onde toda a terra jazia s ob
um ma nto de trevas e toda a terra e ra uma g rande a ra mancha da . »
John Gra dy Cole , ensa ngue nta do, chega à Calle de Noche Triste co­
m o um s olda do de Cortés nessa noite fatal, a «Noite Triste » da na r­
rativa histórica . Conqu ista dor vindo até a o México em bus ca de so­
nhos, deixa a li a pele, incapa z de levar para casa o seu tes ou ro (a sua
amada), m orto às mãos do chu lo que lhe diz: «E nós vam os devora r­
-vos, meu amig o. A vocês e a todo o v oss o p álido imp ério. »
A p rosa de Corma c McCa rthy p ossu i semp re a qu ilo que distingue
a g ra nde lite ratu ra : o p ode r de torna r irreconhecíve l o mu ndo que
já vim os ta ntas ve zes , de vira r do avess o os pene dos que cobrem a
te rra (ta l com oja zem a da do pass o John Gra dy Cole e Billy Pa rham)
pa ra reve la r as ga le rias onde se es condem os noss os me dos , de nos
leva r a olha r em v olta com o estra nge iros e pe rgu nta r, com o Billy a o
chegar à Hacie nda Sa n Dieg o, e m A Travessia: «Qué clase de lugar
es éste?» Ou com o John Gra dy Cole a o se nta r-se à mesa com o
maestro: «Que luga r é este ?»

Paulo Faria
Outubro de 2014
12 Prefácio

Bibliografi a consultada para esta tradução:

Arn old, Edw in T. e D ianne C . L uce (org.), Perspectives on Cormac Mc­


Carthy, U niversity Press of Mississippi, J ackson, 1 999.
Arn old, Edw in T. e D ianne C. L uce (org.), A Cormac McCarthy Compa­
nion - The Border Trilogy, University Press of Mississippi, J ack son,
200 1 .
H all, W ade e R ick W allach, Sacred Violence (Volume 2 - Cormac
McCarthy's Western Novels), Texas W estern Press, El Paso, 2002.
L incoln, Kenneth, Cormac McCarthy - American Canticles, Palgrave
MacMillan, N ova I orq ue, 20 1 0.
W ard, F ay E., The Cowboy at Work, D over Publications, Mineola, N ova
I orq ue, 2003.
Cidades da Planície
I

Pararam na soleira da porta e bateram com as botas no chão


para sacudir a chuva e agitaram os chapéus em gestos largos e
limparam a água dos rostos . Lá fora , na rua , a chuva retalhava a
água das poças , lançando os vermelhos e os verdes garridos dos
painéis de néon em deambulações fervilhantes, e a chuva dançava
nos tejadilhos de aço dos carros estacionados ao longo da berma
do passeio.
Raios me partam se não ' tou já meio afogado , disse Billy. Agitou
o chapéu , que escorria água. Onde é que ' tá o vaqueiro americano de
gema?
Já entrou .
Vamos embora . Senão ele ainda escolhe as gordas jeitosas todas
só pra ele .
As prostitutas , em trajes menores , de ar maltrapilho , ergueram os
olhos dos sofás coçados onde estavam sentadas . O bordel encontrava­
-se quase deserto . Eles tomaram a bater com as botas no chão e
cruzaram a sala até junto do balcão e ali pararam e empurraram os
chapéus para a nuca com os polegares espetados e apoiaram os pés
no varão acima do escoadouro ladrilhado , enquanto o barman lhes
servia os whis kies . À luz vermelho-sangue do balcão , no meio do
fumo que pairava em volta, ergueram os copitos num gesto fugaz e
acenaram com a cabeça, como que para saudar um quarto compa­
nheiro agora perdido para eles , e inclinaram os copos para trás e
tomaram a pousá-los no balcão , já vazios , e limparam as bocas com
as costas das mãos . Troy espetou o queixo na direção do barman e
16 Cormac McCarthy

executou um gesto circular com o dedo , indicando os copos vazios .


O ba rma n assentiu com a cabeça.
John Grady, pareces uma ratazana das docas , raios te partam .
É como eu me sinto .
O ba rma n serviu-lhes os whis kies .
Nunca vi chuvada assim como esta. Querem uma cerveja pra re-
bater? Dê-nos três cervejas .
Já escolheste uma destas queridinhas pra ti ?
O rapaz abanou a cabeça.
De qual é que gostas , Troy?
Eu cá sou como tu . Vim até cá abaixo em cata duma gorda e é uma
gorda que vou papar. Uma coisa te digo , camarada, quando um gajo
lhe dá a vontade de comer uma gorda, não há outra mulher que o
satisfaça.
Sei bem o que é essa febre . Acho melhor escolheres uma, John
Grady.
O rapaz voltou-se e olhou para as rameiras no outro extremo da
divisão .
E que tal aquela grandalhona além , a do pijama verde?
Não o ponhas a rondar a minha tipa, acudiu Troy. Ainda vais fazer
que rebente aqui uma cena de pancadaria não tarda.
Vai lá. Ela ' tá a olhar pràqui .
Elas ' tão todas a olhar pràqui .
Vai l á . D á pra ver que lhe caíste n o goto .
Ela atirava o bom do John Grady ao ar e ele saía disparado pelo
teto .
Aqui o vaqueiro americano de gema não , nem penses nisso . Este
cowboy aferrava-se a ela que nem um carrapiço . Então e aquela
além , embrulhada nos cortinados azuis?
Não ligues ao que ele diz , John Grady. Dá impressão de que a
cara dela pegou fogo e apagaram o lume a bater-lhe com um ancinho
nas fuças . Cá na minha opinião , a loira da ponta faz mais o teu estilo .
Billy abanou a cabeça e estendeu o braço para o seu whis key . Não
vale a pena discutir com este homem. Não tem gosto nenhum em
mulheres , ora aí ' tá uma verdade matemática.
Vai pelo que diz aqui o papá, aconselhou Troy. Aqui o papá orien­
ta-te pra uma garina com uma chicha que se veja. Aí o Parham até
Cidades da Planície 17

disse uma vez que u m homem nunca devia de molhar o bico com
uma tipa que não conseguisse carregar ao colo . Disse que , se a casa
pegasse fogo .
Ou o celeiro .
Ou o celeiro .
Lembras-te daquela vez que a gente trouxe cá abaixo o Clyde
Stapp?
Lembro-me bem , e o gajo era um homem com o juízo no lugar.
Escolheu uma tipa que tinha umas carnes bem nutridas .
O JC e os outros meteram uns dólares nas mãos da velha pra ela
os deixar ir lá atrás espreitar. Queriam tirar uma fotografia ao gajo,
mas desmancharam-se a rir e estragaram o arranjinho .
Dissemos ao Clyde que ele parecia um macaco a foder uma bola
de futebol . Julguei que ele ia andar à porrada connosco . Então e que
tal aquela de vermelho , acolá?
Não lhe dês ouvidos , John Grady.
Valor ao quilo , medido em dólares. Nem sequer lhe interessa pon-
derar esse lado da questão .
Vão vocês andando , disse John Grady.
Escolhe uma , vá.
Deixa ' tar.
' Tás a ver, Troy? Só conseguiste baralhar as ideias ao rapaz , mais
nada.
O JC disse a toda a malta que o Clyde se apaixonou pela moça e
que a queria levar pra casa com ele , mas que eles só tinham trazido
a carrinha de caixa aberta e ia ser preciso mandar vir a camioneta
grande . Nessa altura já o Clyde tinha curado a piela e se tinha desa­
paixonado , e o JC disse que nunca mais o levava a uma casa de pu­
tas . Disse que ele não se tinha comportado duma maneira máscula e
responsável .
Vão vocês andando , repetiu John Grady.
Das traseiras do bordel chegava-lhe aos ouvidos o som da chuva
a tamborilar num telhado metálico . Pediu mais um copo de whis key
e ficou ali de pé , a rodar o copo vagarosamente sobre a madeira en­
vernizada e a observar a sala atrás de si no espelho amarelecido do
velho expositor do bar Brunswick . Uma das rameiras atravessou a
sala e deu-lhe o braço e pediu-lhe que lhe pagasse uma bebida, mas
18 Cormac McCarthy

ele disse que só estava à espera dos amigos . Ao fim de um certo


tempo , Troy regressou e sentou-se num banco diante do balcão e
pediu mais um whis key. Mantinha as mãos unidas diante de si , sobre
o balcão , como um homem sentado na igreja. Tirou um cigarro do
bolso da camisa.
Não sei , John Grady.
O que é que tu não sabes?
Não sei .
O ba rma n serviu-lhe o whis key.
Serve-lhe outro .
O barma n obedeceu .
Uma outra rameira viera dar o braço a John Grady. O pó de arroz
no rosto dela estalara que nem argamassa.
Diz-lhe que tens um esquentamento , sugeriu Troy.
John Grady estava a falar com ela em espanhol . Ela puxava-lhe o
braço .
Uma vez , o Billy disse isso a uma gaja aqui em baixo . Ela respon­
deu que não fazia mal , que ela também.
Acendeu o cigarro com um isqueiro Zipp o da Terceira de Infanta­
ria e pousou o isqueiro em cima do maço e soprou o fumo numa
torrente ao longo da madeira envernizada e olhou para John Grady.
A prostituta voltara para o sofá, e John Grady estava a remirar qual­
quer coisa no espelho do expositor, atrás do balcão . Troy virou-se e
seguiu-lhe o olhar. Uma jovem de não mais de dezassete anos , talvez
mais nova, até , estava sentada no braço do sofá , de mãos entrelaça­
das no regaço e olhos baixos . Remexia na bainha do vestido berran­
te , qual colegial . Ergueu o rosto e olhou na direção deles . O compri­
do cabelo negro tombava-lhe sobre o ombro , e ela afastou-o devagar
com as costas da mão .
É bem bonita, aquela pequena, verdade? comentou Troy.
John Grady fez que sim com a cabeça .
Vai lá, atira-te a ela.
Deixa ' tar.
Anda, raios .
Cá vem ele .
Billy acercou-se do balcão e ajeitou o chapéu .
Queres que eu a vá buscar? perguntou Troy.
Cidades da Planície 19

Eu sei ir buscá-la, se a quiser.


Otra ve z, disse Billy. Voltou-se e percorreu a sala com o olhar.
Anda, vá, incitou Troy. Raios , a gente espera por ti .
É pràquela mocita que vocês ' tão a olhar? Aposto que nem quinze
anos tem .
E u aposto o mesmo , acudiu Troy.
Agarra aquela com quem eu fui . É égua de bons andamentos , ou
eu não seja um cavaleiro de truz .
O ba rma n serviu-lhes whis kies .
Ela já aí vem , não tarda.
Deixa ' tar.
Billy olhou para Troy. Virou-se e pegou no copo e contemplou a
bebida avermelhada, quase a transbordar, ergueu o copo e bebeu e
tirou o dinheiro do bolso da camisa e esticou o queixo na direção do
ba rma n, que o olhava.
'Tão prontos? perguntou .
Claro .
Vamos comer qualquer coisa. Acho que a chuva ' tá prestes a parar.
Já não ouço nada.
Subiram a Ignacio Mejía até à Juárez Avenue . Nas sarjetas corria
uma água acinzentada, e as luzes dos bares e dos cafés e das lojas de
bricabraque sangravam lentamente na rua negra e molhada. Os lojis­
tas chamavam-nos , e vendedores ambulantes com joias e ponchos
arremetiam para os assediar de um e de outro lado . Cruzaram a Juá­
rez Avenue e subiram pela Mejía até chegarem ao Napoleón e ali se
sentaram a uma mesa junto à vidraça que dava para a rua. Um em­
pregado de libré aproximou-se e limpou com uma vassourinha a
toalha branca, suja de nódoas .
Ca ba lle ros , disse .
Comeram bifes e beberam café e ouviram Troy contar histórias da
guerra e fumaram e viram os velhos táxis amarelos a cruzar as enor­
mes poças de água nas ruas . Caminharam pela Juárez Avenue acima ,
até à ponte .
Os elétricos já tinham deixado de circular, e as ruas estavam qua­
se desertas , sem comércio nem trânsito . Os carris a brilhar à luz
molhada dos candeeiros convergiam para o casinhoto do posto fron­
teiriço e seguiam mais além , para onde jaziam embutidos na ponte
20 Cormac McCarthy

como enormes grampos cirúrgicos ligando aqueles mundos díspares


e frágeis , e o teto de nuvens descera dos cumes das Franklins e des­
lizara para sul , ao encontro das silhuetas escuras das montanhas do
México , erguidas contra o céu iluminado pelas estrelas . Atravessa­
ram a ponte e empurraram o torniquete , cada qual por sua vez , de
chapéus um bocadinho à banda, um bocadinho ébrios , e começaram
a percorrer o extremo sul da El Paso Street .

Ainda não amanhecera quando John Grady o acordou . Estava a pé


e vestido e já fora até à cozinha e regressara e falara com os cavalos
e encontrava-se parado no vão da porta do cubículo de Billy, com a
cortina de lona arrepanhada contra a ombreira e uma chávena de
café na mão . Eh , cowboy , chamou .
Billy gemeu .
Toca a andar. Podes dormir no inverno .
Raios .
Toca a andar. 'Tás aí deitado há quase quatro horas seguidas , chiça.
Billy soergueu-se e rodou sobre o traseiro e pôs os pés no chão e
ficou sentado , com a cabeça nas mãos .
Não percebo como é que consegues ficar aí deitado dessa maneira.
Raios te partam , ' tás sempre todo contentinho da vida logo pela
manhã . Onde é que ' tá a porcaria do meu café?
Eu cá não te vou trazer café nenhum . Levanta daí o rabo . A papa­
roca 'tá na mesa.
Billy estendeu o braço para o alto e pegou no chapéu , que estava
pendurado num prego de madeira, acima da cama, e pô-lo na cabeça
e ajeitou-o . Pronto , disse . Já acordei .
John Grady virou-se e percorreu a coxia central da estrebaria, em
direção à casa. Os cavalos relincharam-lhe das baias enquanto ele
passava. Eu sei bem que horas são , disse-lhes ele . No extremo da
cavalariça, uma corda para içar o feno pendia do palheiro , lá no alto ,
e ele escorropichou o resto do café e atirou para o chão as borras e
deu um salto e desferiu uma palmada na corda, fazendo-a baloiçar, e
saiu .
Estavam todos à mesa, a comer, quando Billy empurrou a porta e
entrou . Socorro acercou-se e pegou no prato de scones e levou-o
para junto do fogão e despejou os s cones para dentro de um tabulei-
Cidades da Planície 21

ro metálico e meteu o tabuleiro dentro do aquecedor d e pratos e tirou


scones quentes de dentro do aquecedor e pô-los no prato e levou o
prato de volta para a mesa. Sobre a mesa havia uma tigela de ovos
mexidos e outra de papa de milho pilado e um prato de salsichas e
uma molheira cheia de molho e boiões de conservas e ainda p ico de
ga llo e manteiga e mel . Billy lavou a cara no lava-loiça e Socorro
estendeu-lhe a toalha e ele secou o rosto e pousou a toalha na banca­
da e aproximou-se da mesa e alçou a perna por cima do espaldar da
cadeira vazia e sentou-se e estendeu o braço para os ovos . Oren
lançou-lhe um olhar por cima das páginas do seu jornal e continuou
a ler.
Billy tirou ovos mexidos com a colher e pousou a tigela e estendeu
o braço para o prato das salsichas . ' Dia, Oren , saudou . ' Dia, JC .
JC ergueu os olhos do prato . Também deves de ter ' tado a noite
inteira à porrada com um urso , cá pra mim .
À porrada com u m urso , repetiu Billy. Estendeu o braço e pegou
num s cone e tomou a dobrar o pano sobre o prato e estendeu o braço
para pegar na manteiga .
Deixa-me cá olhar pra esses olhos outra vez , pediu JC .
Os meus olhos não têm nada de mal . Passa-me daí a sa lsa .
Verteu o molho picante com a colher por cima dos ovos mexidos .
O fogo combate-se com o fogo . Não é verdade , John Grady?
Um velho entrara na cozinha, de suspensórios pendentes . Trazia
uma camisa antiquada, daquelas a que se abotoava o colarinho , que
estava aberta no decote e não tinha colarinho . Tinha-se barbeado
havia pouco , e via-se-lhe espuma de barbear no pescoço e no lóbulo
de uma orelha. John Grady empurrou a cadeira para trás .
Venha pràqui , Mr Johnson , disse . Sente-se aqui . Eu já acabei .
Levantou-se , pegando no prato para o levar para o lava-loiça, mas
o velho fez-lhe sinal que se sentasse e encaminhou-se para o fogão .
Senta-te , ordenou , senta-te . Vim só buscar uma pinguinha de café .
Socorro soltou uma caneca de porcelana branca da face inferior da
prateleira do armário e encheu-a de café e rodou-a, virando a asa
para fora, e estendeu-a ao velho , e ele pegou-lhe e fez que sim com
a cabeça e tomou a atravessar a cozinha. Parou junto à mesa e tirou
duas colheres bem cheias de açúcar do açucareiro e deitou-as dentro
da caneca e saiu da divisão , levando consigo a colher do açúcar. John
22 Cormac McCarthy

Grady pousou a chávena e o prato sujos no aparador e pegou na sua


marmita, que se encontrava em cima da bancada, e saiu .
O que é que se passa com ele? perguntou JC .
Não se passa nada com ele , respondeu Billy.
Eu ' tava a falar do John Grady.
Eu sei de quem tu 'tavas a falar.
Oren dobrou o jornal e pousou-o na mesa . Não comecem os dois,
atalhou . Troy, ' tás pronto?
'Tou pronto .
Empurraram as cadeiras para trás , afastando-se da mesa, e puse­
ram-se de pé e saíram . Billy permaneceu sentado , a palitar os dentes .
Olhou para JC . O que é que vais fazer esta manhã?
Vou até à cidade com o velho .
Billy assentiu com a cabeça . Lá fora, no terreiro , o motor da car­
rinha arrancou . Bom, disse . Já há luz que chegue pra se ver, acho eu .
Levantou-se e cruzou a cozinha e tirou da bancada a sua marmita
e saiu . JC estendeu o braço por cima da mesa e pegou no jornal .
John Grady estava sentado atrás do volante da carrinha, com o
motor a ronronar. B illy entrou e pousou a marmita no fundo e fechou
a porta e olhou para ele .
Bom, disse . 'Tás pronto pra labutar uma jornada em troca da tua
jorna?
John Grady engatou a mudança e seguiram pelo carreiro abaixo .
Desde o romper do dia até romper os lombos em troca duns aben­
çoados cobres , comentou Billy. Adoro esta vida. Gostas desta vida,
rapaz? Eu cá adoro esta vida. Gostas desta vida, não gostas? É que
eu cá, santo Deus , adoro esta vida. Adoro-a, só te digo .
Enfiou a mão no bolso da camisa e sacudiu o maço de cigarros ali
guardado para tirar um cigarro do interior e acendeu-o com o isquei­
ro e pôs-se a fumar enquanto seguiam pelo carreiro abaixo , através
das compridas sombras matinais da vedação e dos postes e dos car­
valhos . O sol alvejava, ofuscante , no vidro poeirento do para-brisas .
As vacas paradas junto à vedação mugiam ao ver passar a carrinha,
e Billy remirou-as . Vacas , disse .
Fizeram a pausa do meio-dia numa elevação coberta de erva,
nas pastagens de barro vermelho , quinze quilómetros a sul da casa
da herdade . B illy deitou-se com o casaco enrolado debaixo da ca-
Cidades da Planície 23

beça e o chapéu a cobrir-lhe os olhos . De pálpebras franzidas ,


contemplou os promontórios cinzentos das Guadalupes , cento e
trinta quilómetros a oeste . Detesto vir pra estas bandas , comentou .
Este raio deste terreno nem sequer um poste de vedação consegue
segurar.
John Grady, sentado de pernas cruzadas , mordiscava o caule de
uma erva. Trinta quilómetros a sul dali , uma faixa viçosa de verde
corria ao longo do vale do Rio Grande . Em primeiro plano , campos
cinzentos cercados por vedações . Poeira cinzenta na esteira de um
trator com a sua grade a percorrer os regos cinzentos de um campo
de algodão outonal .
Mr Johnson diz que o exército mandou gente cá pra baixo com
ordens pra percorrer sete estados do Sudoeste e desencantar a terra
mais desgraçada que eles conseguissem encontrar e depois fazerem
um relatório . E que o rancho do Mac 'tava lá mesmo no meio .
Billy olhou para John Grady e tornou a olhar para as montanhas .
Achas que isso é verdade? perguntou John Grady.
Raios , quem sabe .
O JC diz que o velho ' tá a ficar cada vez mais maluco .
Bom, ele ainda tem mais juízo maluco do que o JC são , portanto
o que é que isso nos diz sobre o JC?
Não sei .
Não há problema nenhum com ele . 'Tá velho , mais nada.
O JC diz que ele não ficou bom desde que a filha morreu .
Vamos lá a ver. Não havia razões pra ter ficado . Ela era a luz dos
olhos dele .
Pois .
Se calhar, devíamos de perguntar ao Delbert. Pra termos a opinião
do Delbert sobre o caso .
O Delbert não é tão burro como parece .
Espero bem que não , santo Deus . Seja lá como for, o velho sempre
teve as suas manias , e ainda as tem . Esta terra já não é igual . Nunca
mais vai ser. Se calhar, todos nós ficámos um bocadinho malucos .
Acho que , se toda a gente enlouquecesse ao mesmo tempo , ninguém
reparava, o que é que tu achas?
John Grady debruçou-se e escarrou entre os dentes e tomou a en­
fiar a erva na boca. Gostavas dela, não gostavas?
24 Cormac McCarthy

A valer. Nunca conheci quem me tratasse com mais simpatia do


que ela.
Um coiote emergiu do matagal e trotou ao longo da crista da ele­
vação , quatrocentos metros a leste . Olha-me bem pràquele filho da
mãe , disse Billy.
Deixa-me ir buscar a espingarda.
Ele raspa-se antes que tu tenhas acabado de te pôr de pé .
O coiote trotou ao longo da crista e parou e olhou para trás e de­
pois meteu para o lado oposto da crista e tomou a mergulhar no
matagal .
O que é que achas que ele anda a fazer assim às claras , em pleno dia?
Provavelmente , ele ' tá a pensar o mesmo sobre ti .
Achas que ele nos viu?
Bom , não o vi enfiar-se de cabeça naqueles arbustos de nopa l,
acolá, por isso não me parece que ele fosse completamente ceguinho .
John Grady ficou atento , à espera de ver o coiote reaparecer, mas
o coiote não tomou a surgir.
O mais engraçado , disse Billy, é que eu me ' tava a preparar pra me
ir embora quando ela ficou doente . ' Tava pronto a seguir viagem.
Depois de ela morrer, ainda tinha muito menos razões pra ficar, mas
acabei por ficar mesmo .
Se calhar, achaste que o Mac precisava de ti .
Patranhas .
Que idade tinha ela?
Não sei . Trinta e muitos. Quarenta, talvez . Mas ninguém lhe dava
tanto , atenção .
Achas que ele já se recompôs?
O Mac?
Sim.
Não . Quem perde uma mulher assim nunca se recompõe . Ele não
se ' tá a recompor de nada. Nunca se vai recompor.
Sentou-se e pôs o chapéu na cabeça e ajeitou-o . 'Tás pronto , ca­
marada?
'Tou .
Levantou-se com gestos hirtos e debruçou-se e pegou na marmita
e sacudiu os fundilhos das calças com uma mão e depois curvou-se
e pegou no casaco . Olhou para John Grady.
Cidades da Planície 25

Um vaqueiro velho disse-me uma vez que nunca tinha conhecido


uma moça criada numa casa com água corrente que tivesse dado uma
mulher como deve de ser. Ela teve uma vida dura desde pequena . O
velho Johnson nunca passou dum cowboy , nada mais do que um
cowboy , e sabes bem o que isso quer dizer. O Mac conheceu-a num
jantar da igreja, em Las Cruces , quando ela tinha dezassete anos , e
pronto , ficou o caso arrumado . Ele não se vai conseguir recompor.
Nem agora, nem em breve , nem nunca.
Estava escuro quando chegaram a casa . Billy rodou o manípulo
para subir o vidro da carrinha e ficou sentado , a olhar o edifício . 'Tou
completamente estafado , porra, comentou .
Queres deixar o material aqui na carrinha e pronto?
Vamos levar o esticador. Talvez chova. Talvez . E aquela caixa de
grampos . Enferrujam todos .
Eu vou buscar.
Tirou os objetos da caixa da carrinha . As luzes acenderam-se na
coxia central do estábulo . Billy estava ali parado , a abanar a mão
para cima e para baixo .
Cada vez que mexo nesta porcaria, apanho um choque .
É dos pregos nas botas .
Então porque é que não apanho um choque nos pés?
Não sei .
Pendurou o esticador num prego e pousou a caixa de grampos
numa trave cruzada da parede , mesmo ao lado da porta. Os cavalos
relincharam nas suas baias .
Caminhou ao longo da coxia central e, ao chegar à última baia, des­
feriu uma pancada na porta com a mão aberta. Ouviu-se uma explosão
imediata contra as tábuas , do lado oposto . Uma nuvem de poeira pai­
rou à luz . Ele olhou para trás , para Billy, e fez um largo sorriso . Pica-o ,
vá, avisou Billy. Olha que ele deita essa porra abaixo com um coice .

Joaquín deu um passo atrás , com ambas as mãos sobre a tábua


onde estava apoiado , e baixou a cabeça, como se tivesse visto no
cercado uma coisa tão horrível que os seus olhos não a conseguissem
suportar. Mas recuara somente para escarrar, e fê-lo à sua maneira
vagarosa e contemplativa, e depois tomou a chegar-se à frente e es­
preitou de novo através das tábuas . Ca ba l/o, disse . A sombra do ca-
26 Cormac McCarthy

valo a trote passou sobre as tábuas e sobre o rosto dele e passou


adiante . Ele abanou a cabeça .
Eles dirigiram-se para onde algumas tábuas de cinco por trinta ti­
nham sido pregadas e fixas com travessas ao longo do topo do cer­
cado e treparam e sentaram-se com os tacões das botas enfiados na
trave por baixo e puseram-se a fumar e ficaram a ver John Grady
desbastar o poldro .
Mas o que é que ele quer daquele filho da mãe com focinho de
coruja, afinal de contas?
Billy abanou a cabeça. Talvez seja como o Mac diz . Cada homem
acaba com o cavalo que melhor lhe quadra.
O que é aquilo que ele tem na cabeça?
Chama-se um cabeção de passar à guia.
E qual é o problema duma simples xáquima?
Terias de perguntar ao cowboy.
Troy debruçou-se e escarrou . Olhou para Joaquín . Qu é pie nsas ?
perguntou .
Joaquín encolheu os ombros . Observou o cavalo a descrever cír-
culos no cercado , na ponta da guia.
Aquele cavalo foi domado com um freio , disse Troy.
Pois foi .
Calculo que ele queira tirar-lhe o s maus hábitos e começar tudo de
novo .
Bom , disse Billy, desconfio bem que seja lá o que for que ele quei-
ra fazer vai conseguir fazê-lo quase de certeza .
Ficaram a ver o cavalo dar voltas .
Ele não ' tá a treiná-lo pro circo , ou ' tá?
Não . O circo foi ontem à tardinha, quando ele se escarranchou no
poldro .
Quantas vezes é que foi cuspido?
Quatro .
E quantas vezes é que tornou a montar?
Sabes bem quantas vezes .
Ele é algum especialista em cavalos manientos , ou quê?
Vamos embora , disse Billy. Ele é bem capaz de fazer aquele filho
da mãe andar aqui às voltas a tarde inteira.
Dirigiram-se para a casa .
Cidades da Planície 27

Pergunta ao Joaquín acolá, sugeriu Billy.


Perguntar-me o quê?
Se o cowboy percebe de cavalos .
O cowboy diz que não percebe nada de cavalos .
Eu sei .
Diz que gosta deles e que trabalha com afinco , mais nada.
E o que é que tu achas? perguntou Billy.
Joaquín abanou a cabeça.
O Joaquín acha que os métodos dele são esquisitos .
O Mac também.
Joaquín não respondeu até chegarem à cancela . Aí, parou e olhou
para trás , para o cercado . Por fim , disse que não fazia muita diferen­
ça gostarmos de cavalos ou não , se eles não gostassem de nós . Disse
que os melhores domadores que alguma vez conhecera eram homens
que os cavalos não largavam sequer um minuto . Contou que os ca­
valos seguiam Billy Sánchez até à latrina e ficavam parados à porta
e esperavam por ele .

Quando regressou da cidade , John Grady não estava no estábulo ,


e quando caminhou até à casa para jantar, também não o encontrou
lá. Troy estava sentado à mesa, a palitar os dentes . Ele sentou-se com
o seu prato e estendeu o braço para o sal e a pimenta . Onde é que 'tá
a malta toda? perguntou .
O Oren acabou de sair. O JC saiu com a miúda dele . O John Gra-
dy deve de 'tar deitado na cama .
Não , não 'tá.
Bom , é capaz de ter ido a qualquer lado pra pensar na vida dele .
O que é que aconteceu?
Aquele cavalo caiu pra trás , em cima dele . Parecia que lhe tinha
partido o pé .
E ele 'tá bem?
Acho que sim . Levaram-no ao médico , ele sempre a praguejar e a
mandar vir. O médico ligou-lhe o pé e deu-lhe um par de muletas e
disse-lhe que não se metesse em aventuras .
E ele anda de muletas?
Sim. Pelo menos devia de andar.
Isso tudo aconteceu esta tarde?
28 Cormac McCarthy

Foi . Durante um pedaço , isto ' teve animado como caraças . O


Joaquín veio chamar o Oren , e o Oren foi até lá abaixo e disse-lhe
que saísse do cercado , mas ele não queria. O Oren disse que pensou
que ia ter de lhe ir à cara . A coxear atrás do raio do cavalo , a querer
montá-lo outra vez . Finalmente , lá o convenceu a descalçar a bota.
O Oren disse que mais dois minutos e tinham de lha cortar.
Billy fez que sim com a cabeça e mordeu um scone com ar pensa-
tivo .
Ele ' tava disposto a fazer frente ao Oren?
'Tava, sim .
Billy mastigou . Abanou a cabeça.
E o pé dele , ' tá muito mal?
Torceu o tornozelo .
O que é que o Mac disse?
Nada. Foi ele quem o levou ao médico .
Dá ideia que tudo o que ele faz ' tá bem feito , na maneira de ver
do Mac .
Agora é que disseste tudo .
Billy tomou a abanar a cabeça. Estendeu o braço para pegar na
sa lsa . Não há espetáculo que venha à cidade que eu não falhe , co­
mentou . Isto se calhar vai manchar a reputação dele como o domador
de primeira água que alguns julgavam , não te parece?
Não sei se vai ou não . O Joaquín diz que ele se firmou num estri­
bo e que caiu agarrado ao filho da mãe como se 'tivesse empoleirado
numa árvore a vir por ali abaixo .
Pra quê?
Não sei . Acho que ele não gosta de largar um cavalo , só isso .

Estava a dormir havia uma hora, talvez , quando a agitação no es­


curo da coxia central do estábulo o acordou . Ficou deitado alguns
momentos, à escuta, depois levantou-se e estendeu a mão para o fio
e puxou-o para acender a luz do teta e pôs o chapéu e foi até à porta
e arredou a cortina e olhou para fora. O cavalo passou-lhe de súbito
a um palmo e meio da cara e lançou-se num tropel pela coxia fora e
voltou-se e ficou a arquejar e a bater com os cascos no escuro .
Raios partam , soltou . Comparsa?
John Grady passou a coxear.
Cidades da Planície 29

Mas o que é que ' tás praí a fazer, chiça?


O outro seguiu a coxear até abandonar a luz. Billy saiu para a coxia.
É s um idiota do raio que ta parta, não és? Mas o que é que se pas-
sa contigo , caramba?
O cavalo recomeçou a correr. Ele ouviu-o a aproximar-se e soube
que ele aí vinha, mas no preciso momento em que tomou a transpor
a soleira da porta viu-o explodir no espaço de luz proveniente da
lâmpada solitária no seu cubículo , a galopar de boca aberta, os olhos
semelhantes a ovos na cabeça.
Raios partam , soltou. Pegou nas calças , que estavam penduradas
no varão de ferro , aos pés da cama , e vestiu-as com gestos rápidos e
ajeitou o chapéu e tomou a sair do quarto.
O cavalo lançara-se novamente pela coxia fora. Ele comprimiu-se
contra a porta da baia junto ao seu cubículo. O cavalo passou , des­
vairado , como se a estrebaria estivesse em chamas , depois foi bater
contra a porta no extremo da coxia e virou-se e ficou parado , a soltar
relinchos estridentes.
Raios partam , mas vais deixar em paz esse maluco desse filho da
mãe , ou quê? O que é que se passa contigo , afinal , porra?
John Grady penetrou novamente a coxear na luz poeirenta, a ar­
rastar na sua esteira uma laçada de corda, e desapareceu , manquejan­
te , pelo lado oposto.
Nem sequer tens luz pra lhe atirar a corda, chiça , gritou Billy.
O cavalo arremeteu num tropel , vindo do extremo mais distante da
coxia. Estava aparelhado , com os estribos a adejar às ilhargas. Um
destes deve ter ficado preso numa tábua lá na ponta do estábulo onde
o animal rodopiou , banhado pelas finas ripas de luz da lâmpada do
terreiro , porque se ouviu um estalo de madeira a partir-se e um clan­
gor nas trevas , e depois o cavalo apoiou-se nas patas dianteiras e
desferiu um valente coice nas tábuas do extremo da cavalariça. Um
minuto depois , as luzes da casa acenderam-se. Dentro do estábulo , a
poeira pairava no ar como fumo.
Pronto , já ' tá, bradou Billy. Já acordaste a casa toda, porra.
A silhueta escura do cavalo moveu-se à luz zebrada. O animal
estendeu o pescoço comprido e bramiu. A porta abriu-se no extremo
do estábulo.
John Grady tornou a passar ao pé-coxinho com a corda na mão.
30 Cormac McCarthy

Alguém ligou o interruptor da luz. Oren surgiu ali parado , a agitar


a mão em volta de si. Diabos me levem , soltou. Porque é que nin­
guém conserta esta porcaria.
O cavalo desvairado fitava-o , a pestanejar, parado a três metros de
distância. Ele olhou para o cavalo e olhou para John Grady, parado
no meio da coxia central com a corda de laçar.
O que é que se ' tá aqui a passar, com mil diabos? perguntou.
Vá , anda, incitou Billy. Diz-lhe qualquer coisa. Eu cá é que não
tenho resposta pra lhe dar, isso te garanto.
O cavalo deu meia-volta e trotou alguns metros pela coxia fora e
estacou e ficou ali parado.
Mete-me esse cavalo na baia, chiça , ordenou Oren.
Passa pra cá a corda, disse Billy.
John Grady fitou-o por sua vez. Achas que nem sequer o consigo
apanhar?
Então vá lá. Apanha-o. Só espero que o filho da mãe te passe por
cima.
Um de vocês os dois apanhe-o , disse Oren , e vamos lá a acabar
com este disparate todo.
A porta abriu-se atrás de Oren , e Mr. Johnson apareceu ali , de cha­
péu e botas e camisa de dormir. Feche a porta, Mr Johnson , pediu
Oren. Entre , se quiser.
John Grady deixou cair o laço sobre o pescoço do cavalo e aproxi­
mou-se dele ao longo da corda e enfiou a mão por dentro do laço e
agarrou as rédeas que arrastavam pelo chão e descartou a corda.
Não montes esse cavalo , avisou Oren .
O cavalo é meu.
Bom, então podes dizer isso ao Mac . Ele vai aqui ' tar não tarda.
Vá, comparsa, pediu B illy. Mete lá o raio do cavalo na baia, como
o homem te pediu.
John Grady olhou para ele e olhou para Oren e depois voltou-se e
conduziu o cavalo pela coxia fora e meteu-o na baia.
Raios partam este disparate pegado , soltou Oren. Venha daí, Mr
Johnson. Raios partam.
O velho voltou-se e saiu , e Oren seguiu-o e puxou a porta atrás de
si , fechando-a. Quando John Grady saiu da baia a coxear, trazia con­
sigo a sela, agarrando-a pelo chifre do cepilho , os estribos a arrasta-
Cidades da Planície 31

rem pela poeira. Cruzou a coxia para a casa dos arreios. Billy encos­
tou-se à ombreira, a observá-lo. Quando saiu da casa dos arreios,
John Grady passou por Billy sem olhar para ele.
É s levado da breca, só te digo , comentou Billy. Sabias?
John Grady voltou-se à porta do seu cubículo e olhou para Billy e
olhou para o fundo do estábulo iluminado e escarrou silenciosamen­
te para o chão de terra batida e tornou a olhar para Billy. O assunto
não era da tua conta, disse. Ou era.
Billy abanou a cabeça. Diabos me levem , soltou.

Nas montanhas , viram veados à luz dos faróis , e à luz dos faróis
os veados eram pálidos que nem fantasmas e igualmente silencio­
sos. Viravam os olhos encarnados na direção daquele Sol desconhe­
cido e davam passos de viés e agrupavam-se e saltavam a valeta da
berma isolados ou aos pares. Uma pequena corça desequilibrou-se
no macadame e raspou desvairadamente com os cascos e tombou
sobre os quartos traseiros e tornou a levantar-se e desapareceu com
os outros no meio do chapa rra l, para além da berma da estrada.
Troy aproximou o whis key das luzes do painel de instrumentos ,
para verificar o nível do líquido na garrafa , e desatarraxou a tampa
e bebeu e atarraxou novamente a tampa e passou a garrafa a Billy.
Não há falta de veados pra um gajo caçar por estas bandas , ao que
parece.
Billy desatarraxou a tampa da garrafa e bebeu e ficou a contem­
plar a linha branca ao longo da estrada sombria. Não tenho dúvidas
de que isto é uma bela terra.
Não queres deixar o Mac.
Não sei. Não sem ter um motivo qualquer.
Fiel ao rancho.
Não é só isso. Uma pessoa tem de encontrar um poiso , a certa al-
tura. Raios, já tenho vinte e oito anos.
Não pareces.
Ah , não?
Pareces ter quarenta e oito. Passa o whis key .
Billy remirou o planalto desértico. Os fios elétricos , de barriga
pendente , corriam sobre o pano de fundo da noite.
Eles não se ralam de a gente beber?
32 Cormac McCarthy

Ela não gosta assim muito. Mas não pode fazer grande coisa. Seja
como for, não vamos lá aparecer propriamente a cair de bêbedos.
O teu irmão bebe?
Troy assentiu com a cabeça solenemente. Mais depressa do que
um vairão consegue fugir dum pica-peixe.
Billy bebeu um gole e devolveu a garrafa.
O que é que o moço ia fazer? perguntou Troy.
Não sei.
Tu e ele tiveram um desaguisado?
Não. Ele é um gajo como deve de ser. Só disse que precisava de
ir fazer uma coisa.
O tipo sabe montar um cavalo. Isso ninguém lhe tira.
Sabe , sim , senhor.
É um fulaninho sem medo de nada.
Podes crer. Tem lá a sua maneira de ver as coisas.
Aquele cavalo de quem ele tanto gosta não passa dum bandido
do raio que o parta , se queres saber a minha opinião.
Billy fez que sim com a cabeça. Nem mais.
Então o que é que ele quer do bicho?
Acho que é isso mesmo que ele quer do bicho.
Ainda achas que ele o vai pôr a segui-lo pra todo o lado que nem
um cachorrinho?
Sim. Acho que vai.
Acredito quando vir.
Queres apostar umas massas?
Troy pegou no maço que estava no painel de instrumentos e sacu­
diu-o para tirar um cigarro do interior e meteu o cigarro na boca e
premiu o isqueiro. Não me quero abotoar com o teu dinheiro.
Homessa, não te acanhes , ' tás à vontade.
Acho que passo. Ele não vai gostar das muletas.
Nem um bocadinho.
Quanto tempo é que vai ter de andar com elas?
Não sei. Umas semanas. O médico disse-lhe que torcer o torno-
zelo podia ser pior do que parti-lo.
Aposto que ele não as aguenta nem uma semana.
Eu cá aposto o mesmo.
Uma lebre imobilizou-se na estrada. Os olhos vermelhos brilha­
vam-lhe.
Cidades da Planície 33

Sai daí, parvalhona, avisou Billy.


A lebre produziu um baque suave por baixo da carrinha. Troy pu­
xou o isqueiro do painel de instrumentos e acendeu o cigarro com ele
e tomou a enfiar o isqueiro no recetáculo .
Quando saí da tropa, fui até Amarillo com o Gene Edmonds para o
rode o e a feira de gado . Ele tinha convidado duas moças pra irem com
a gente e tudo . 'Tava combinado aparecermos em casa delas às dez em
ponto da manhã, pràs irmos buscar, mas já passava da meia-noite
quando saímos de El Paso . O Gene tinha um Olds 88 novinho em
folha e atirou-me as chaves e disse-me pra guiar. Assim que entrámos
na estrada oitenta, olhou pra mim e disse-me pra meter o prego a fun­
do . Aquela máquina motivava um gajo, pra ser franco . Acelerei até
aos cento e trinta, cento e trinta e cinco . Ainda me faltava um metro
de acelerador pra carregar. Ele tomou a olhar pra mim . Eu perguntei:
A que velocidade queres tu ir? Ele disse que era à velocidade a que eu
me sentisse bem . Raios . Não fiz mais nada, acelerei até aos cento e
oitenta, mais ou menos , e lá fomos nós . Uma bela estrada plana que
nunca mais acabava. Uns mil quilómetros daquilo à nossa frente .
Pois bem , havia imensas lebres na estrada. Ficavam ali paradas , a
olhar pràs luzes . Pimba. Pimba . Olhei pro Gene e perguntei-lhe: O
que é que queres fazer quanto a estas lebres? Ele olhou pra mim e
disse: Lebres? Quer dizer, se andasses à cata dalguém que se ' tivesse
completamente cagando , o Gene era o homem certo . ' Tava-se nas
tintas se o melaço pràs panquecas passasse a custar uma fortuna cada
colherinha.
Parámos numa estação de serviço em Dimmitt, no Texas , quando
o dia ' tava a despontar. Fui até às bombas e desliguei o motor e ficá­
mos ali sentados e 'tava um carro do outro lado das bombas e o tipo
que ali trabalhava 'tava a encher o depósito e a lavar o para-brisas .
Uma mulher ' tava sentada no carro . O tipo que ia ao volante tinha
ido lá dentro fazer uma mija ou coisa assim . Enfim, parámos de
frente pra esse outro carro , e eu ' tava assim a modos que recostado
no banco , de cabeça pra trás , à espera do tipo da bomba, e nem se­
quer ' tava a pensar na tal mulher, mas 'tava a vê-la . Só ali sentado ,
a olhar à volta, sei lá. Bom, vai daí ela endireitou-se no banco e de­
satou a berrar como se a 'tivessem a cortar aos bocados . Um berrei­
ro incrível , só te digo . Pus-me logo direito , sem perceber o que era
34 Cormac McCarthy

aquilo . Ela olhava pro nosso lado , e eu pensei que o Gene tivesse
feito qualquer coisa. Que tivesse aberto a braguilha, ou coisa assim.
Uma pessoa nunca sabia do que ele era capaz . Olhei pro Gene , mas
ele ' tava como eu , não fazia ideia do que se ' tava ali a passar. Bom,
nessa altura saiu o tipo da casa de banho , e era um matulão do cara­
ças , deixa-me dizer-te . Eu saí do carro e dei a volta. Julguei que tinha
dado em maluco . O Oldsm obile tinha à frente uma grelha avantaj ada,
de forma oval , parecia uma escumadeira grandalhona, e quando eu
me cheguei à parte da frente do carro vi que ' tava completamente
cheia de cabeças de lebres . Quer dizer, havia pra cima de cem cabe­
ças de lebres ali cravadas , e a parte da frente do carro , o para-choques
e tudo , ' tava a escorrer sangue e tripas de lebre , e as lebres deviam
de ter virado a cabeça mesmo no momento do impacto , porque ' ta­
vam todas a olhar em frente , de olhos desvairados . Os dentes à ban­
da. A sorrir. Não te consigo explicar o que aquilo parecia. Eu próprio
'tive quase a desatar também aos berros . Já tinha reparado que o
carro ' tava a aquecer, mas pensei que era da velocidade a que a gen­
te ia. O tal tipo queria-me vir às trombas por causa daquilo . Eu disse:
Homessa, pá. Lebres . Sabes? Que se lixe . O Gene saiu do carro e
começou a mandar vir com ele , mas eu disse-lhe pra se meter outra
vez no carro e calar a boca. O tipo foi ter com a mulher e disse-lhe
que se calasse e que parasse de chorar baba e ranho e isso , mas não
o consegui acalmar completamente . ' Tive prestes a dar dois murros
no fulano pra arrumar o assunto .
Billy via a noite a desenrolar-se no seu carretel . O chaparral na
berma, o tecido leve das montanhas , negro e muito liso , recortado no
céu do deserto salpicado de estrelas por cima deles . Troy fumava.
Estendeu a mão para o whis key e desatarraxou a tampa e ficou a se­
gurar a garrafa.
Passei à reserva em San Diego . Apanhei o primeiro autocarro
dali pra fora . Eu e outro tipo embebedámo-nos no autocarro e assim
a modos que fomos escorraçados . Saí em Tucson e entrei numa loja
e comprei um par de botas novas com fecho de correr e um fato .
Não sei por que diabo comprei aquele fato . Pensei que era mesmo
assim , que um gajo tinha de ter um. Meti-me noutro autocarro e fui
até El Paso e fui nessa noite até Alamogordo , pra ir buscar os meus
cavalos . Palmilhei esta terra toda. Trabalhei no Colorado . Trabalhei
Cidades da Planície 35

lá em cima, no enclave . Fui parar à cadeia numa cidadezinha mer­


dosa, tão merdosa que nem te vou dizer o nome . Mas era no estado
do Texas , isso era. No estado do Texas . Eu não tinha feito nada .
'Tava no lugar errado à hora errada, só isso . Julguei que nunca mais
me deixavam vir embora . Meti-me numa rixa com um mexicano e
por pouco não o matava. Fiquei lá na cadeia nove meses inteirinhos ,
contados ao dia. Não escrevi pra casa , não era capaz disso , nem que
me pagassem . Quando acabei por sair e fui ver dos meus cavalos ,
tinham-nos vendido pra pagar a conta da ração . 'Tava-me nas tintas
pra um deles , mas gostava do outro porque já o tinha há imenso
tempo . Dava impressão de que ninguém fazia ideia do que era feito
dele . Eu sabia que , se deitasse as mãos aos colarinhos do fulano ,
malhava com os costados outra vez no raio da cadeia . Perguntei por
toda a parte . Finalmente , alguém me disse que tinham vendido o
meu cavalo pra fora do estado . Achavam que o comprador era do
Alabama , ou doutro buraco assim. Eu tinha aquele cavalo desde os
meus treze anos .
Perdi um cavalo no México a que me tinha afeiçoado imenso ,
disse B illy. Tinha-o desde os meus nove anos .
É muito fácil .
O quê , perder um cavalo?
Troy empinara a garrafa e bebeu e baixou-a e tornou a enroscar a
tampa e limpou a boca com as costas da mão e pousou a garrafa no
assento . Não , disse . Uma pessoa afeiçoar-se a um cavalo .
Meia hora depois , saíram da estrada e passaram a rumorejar por
cima dos tubos metálicos de uma ponte de segurança contra gado e
seguiram pela estrada de terra batida com quilómetro e meio de com­
primento até à casa da herdade . A luz do alpendre estava acesa, e três
cães de gado arremeteram e desataram a correr a par da carrinha ,
soltando ladridos . Elton surgiu à porta e ficou parado no alpendre ,
com as mãos nos bolsos de trás e o chapéu na cabeça.
Comeram numa mesa comprida, na cozinha, passando uns aos
outros tigelas de papas de milho com leite e de quiabo e uma grande
travessa de bifes na frigideira e s cones.
Isto ' tá mesmo bom , minha senhora, disse Billy.
A mulher de Elton olhou para ele . Não te importas de não me tra­
tar por senhora , pois não?
36 Cormac McCarthy

Não , senhora.
Faz-me sentir velha.
Sim, senhora.
É mais forte do que ele , comentou Troy.
Não faz mal , disse a mulher.
A mim é que nunca me deste assim tanta folga.
Darem-te folga nunca foi coisa de que tu precisasses assim muito ,
retrucou a mulher.
Vou tentar não dizer senhora, desculpou-se Billy.
Uma garota de sete anos estava sentada à mesa e observava-os
com os olhos muito abertos . Continuaram a comer. Ao fim de algum
tempo , ela indagou : Que mal tem?
Que mal tem o quê?
Dizer minha senhora .
Elton ergueu o rosto . Não tem mal nenhum, querida. A tua mamã
é uma dessas mulheres modernas , só isso .
O que é uma mulher modema?
Come o jantar, anda, interveio a mulher. Se as coisas fossem à
maneira do teu papá, ainda nem sequer se tinha inventado a roda.
Sentaram-se em velhas cadeiras de assento de palha, no alpendre ,
e Elton pousou os três copos baixos no chão de tábuas , entre os seus
pés , e desenroscou a tampa da garrafa e verteu três porções e tomou
a pôr a tampa e pousou a garrafa no chão e distribuiu os copos e
recostou-se na sua cadeira de baloiço . Sa lu d, disse .
Apagara a luz do alpendre , e estavam agora sentados no quadrado
de luz suave proveniente da janela. Ergueu o copo à luz e olhou atra­
vés do líquido como um farmacêutico . Não adivinhas quem é que
voltou prà casa da Bell , começou .
Nem digas o nome dela.
Bom, afinal sempre adivinhaste .
E quem mais podia ser?
Elton recostou-se na cadeira e baloiçou-se . Os cães estavam para­
dos no terreiro , junto à base dos degraus, de olhos erguidos para ele .
O que é que aconteceu , perguntou Troy. O velhote finalmente cor­
reu com ela de casa?
Não sei . Em teoria, ela ' tá de visita. Parece que 'tá a ser a modos
que uma visita das longas .
Cidades da Planície 37

Pois .
Seja lá qual for o consolo que isso nos dê .
Não dá consolo nenhum .
Elton assentiu com a cabeça. Tens razão , anuiu . Não dá.
Billy beberricou o whis key e olhou para as silhuetas das monta­
nhas , lá ao longe . Caíam estrelas por toda a parte .
A Rachel deu de caras com ela em Alpine , disse Elton . A sonsinha
fez um sorriso e disse ora viva, com ar de quem não parte um prato .
Troy, debruçado para diante na cadeira, tinha os cotovelos apoiados
nos joelhos , o copo nas duas mãos , à sua frente . Elton baloiçou-se .
Lembras-te de que costumávamos ir todos os anos ao Bloy 's pra
tentar engatar miúdas? Foi aí que ele a conheceu . Numa pregação
campal . Uma pessoa fica a pensar nos desígnios de Deus . Convidou­
-a pra sair, e ela disse-lhe que não saía com um homem que bebia
álcool . Ele olhou-a nos olhos e disse-lhe que não bebia. Ela ia caindo
de cu . Deve de ter sido um certo choque pra ela, encontrar um men­
tiroso ainda maior do que ela era. Mas ele disse-lhe a verdade nua e
crua. É claro que ela o chamou à pedra. Disse que sabia sem margem
pra dúvidas que ele bebia . Disse que toda a gente no condado de
Jeff Davis sabia que ele bebia , bebia que nem uma esponja e era um
autêntico estoira-vergas . Ele nem pestanejou . Disse que dantes be­
bia, mas que se tinha deixado disso . Ela perguntou-lhe quando é que
ele tinha deixado de beber, e ele respondeu foi mesmo agora. E ela
saiu com ele . E, tanto quanto eu sei , ele nunca mais tocou em álcool .
Até ela o deixar, é claro . Nessa altura, ele tinha imenso atraso pra
recuperar. Ainda falam dos malefícios da bebida. A bebida não im­
porta nada . Mas ele mudou a partir daquele dia.
Ela ainda é bonita?
Não sei . Não a vi . A Rachel disse que sim . Satã tem o poder de
vestir a pele dum anjo. Aqueles grandes olhos azuis . Conhecia mais
manhas pra dar a volta à cabeça dum homem do que a avó do demó­
nio . Não sei onde é que elas aprendem tanta marosca. Raios , ela só
tinha dezassete anos .
Já nascem assim , disse Troy. Não precisam de aprender nada .
Podes crer.
O que elas parecem incapazes de aprender é a não calcar aos pés
um pobre diabo qualquer só pelo gozo de o ver de rastos .
38 Cormac McCarthy

Billy beberricava o whis key .


Deixa-me cá ver o teu copo , disse Elton .
Pousou-o no chão , entre os pés , e verteu o whiskey e tomou a fe-
char a garrafa e estendeu o braço e passou o copo a Billy.
Obrigado , disse Billy.
'Tiveste na guerra? perguntou Elton .
Não . Deram-me como inapto .
Elton fez que sim com a cabeça.
Tentei alistar-me em três alturas diferentes , mas não me quiseram
aceitar.
Eu sei como foi . Eu cá tentei que me mandassem prà frente de
combate , mas passei a guerra toda em Camp Pendleton. O Johnny
combateu nos quatro cantos do teatro de guerra do Pacífico . Viu
companhias inteiras abatidas diante dos olhos dele . Nunca sofreu
nem sequer um arranhão . Acho que isso o incomodava.
Troy estendeu o copo , e Elton pousou-o no chão e encheu-o e devol­
veu-o . Em seguida, encheu o seu próprio copo . Recostou-se . Pra onde
é que 'tás a olhar? perguntou ao cão . O cão desviou o focinho .
O que mais me incomoda , e depois vou-me calar sobre esse as­
sunto , é que tivemos uma discussão dos diabos naquela manhã, e eu
não tive oportunidade de fazer as pazes com ele . Disse-lhe na cara
que ele era um palerma do caraças - e era mesmo - e que a pior
coisa que ele podia fazer ao outro tipo era deixá-lo ficar com ela. E
era mesmo . Nessa altura já eu sabia bem de que massa ela era feita .
Quase que andámos à pancada os dois . Nunca te tinha contado isto .
Foi muito feio. Não o tomei a ver com vida. Não me devia de ter
metido no assunto . Quando alguém ' tá no estado em que ele ' tava,
não se consegue falar com essa pessoa. Nem sequer vale a pena
tentar.
Troy observava-o . Tu contaste-me isso , disse .
Pois. Devo de ter contado . Já não sonho com ele . Dantes, sonhava
o tempo todo . Tinha umas conversas com ele .
Pensei que ias mudar de assunto .
Muito bem . Mesmo assim, ainda parece que é o único assunto que
há. Não é verdade?
Ergueu-se pesadamente da cadeira, segurando nas mãos a garrafa e
o copo . Vamos ali até ao estábulo . Eu mostro-te a cria que a égua do
Cidades da Planície 39

Jones pariu , aquela que tu sempre achaste que não valia nada. Tragam
os vossos copos . Eu tenho a garrafa.

Cavalgaram toda a manhã através dos bosques pouco densos de


zimbro , mantendo-se nas cristas pedregosas . Uma tempestade estava
a formar-se sobre a cordilheira de Sierra Viejas , a oeste , e sobre a
ampla planura que corria para sul , a partir das faldas das Guadalupes ,
e se estendia em volta da cadeia montanhosa de Cuesta dei Burro e
mais além, até Presidio e à fronteira. Atravessaram a cabeceira do
regato ao meio-dia e sentaram-se no meio das folhas amarelas e con­
templaram as folhas a rodopiar e a deslizar num pego enquanto co­
miam o almoço que Rachel lhes preparara.
Olha pra isto , disse Troy.
O que é?
Uma toalha de mesa .
Raios .
Verteu café de um termo para as duas chávenas . As sanduíches de
peru que comeram vinham embrulhadas em pano .
O que é que há no outro termo?
Sopa.
Sopa?
Sopa .
Raios .
Comeram.
Há quanto tempo é que ele é maioral aqui em baixo?
Há uns dois anos .
Billy fez que sim com a cabeça . Ele não se ofereceu já antes pra
te contratar?
Já. Eu disse-lhe que não me importava de trabalhar com ele , mas
não sabia ao certo se me apetecia trabalhar pra ele .
O que é que te fez mudar de ideias?
Não mudei de ideias . Só ' tou a pensar no assunto .
Continuaram a comer. Troy indicou as terras a sul com um aceno
de cabeça. Dizem que não houve um só quilómetro desta ravina em
que não emboscassem um branco .
Billy remirou a s redondezas . D á ideia que não havia de ser difícil
aprenderem a não se meter por ali .
40 Cormac McCarthy

Quando acabaram de comer, Troy verteu o resto do café para den­


tro das chávenas e tomou a atarraxar a tampa do termo e pousou-o
no chão , ao lado do termo da sopa e dos panos de embrulhar as san­
duíches e da toalha de mesa ainda dobrada, tudo pronto para guardar
nas bolsas das selas . Ficaram sentados , a beberricar o café . Os cava­
los parados a jusante , lado a lado , ergueram as cabeças do rio , onde
estavam a beber. Tinham folhas húmidas coladas ao focinho .
O Elton tem lá as ideias dele sobre o que aconteceu , disse Troy. Se
não tivesse encontrado aquela moça, o Johnny havia de encontrar
outra coisa qualquer. Não deixava que ninguém o guiasse . O Elton
diz que ele mudou . Ele não mudou coisa nenhuma. Era quatro anos
mais velho do que eu . Não é assim muito . Mas ele palmilhou lugares
que eu nunca hei de ver. Que eu dou graças por nunca ir ver. As pes­
soas diziam sempre que ele era teimoso que nem um burro , mas não
era só isso . Uma vez , tinha ele quinze anos , não mais , andou à pan­
cada com o papá. Ao soco . Obrigou o velhote a bater nele . Disse-lhe
na cara que o respeitava e tal , mas que não lhe admitia ele falar-lhe
assim . Uma reprimenda qualquer que o velhote lhe deu , já nem sei
ao certo porquê . Eu chorei que nem uma criança. Ele não chorou .
Tomava-se sempre a levantar do chão . O nariz todo amassado , e
assim . O velhote fartou-se de lhe dizer pra ficar caído . Raios , o ve­
lhote ' tava a chorar. Espero nunca mais ver uma coisa assim pareci­
da outra vez . Ainda agora, quando me lembro , fico agoniado . E não
havia nada que ninguém pudesse ter feito pra pôr fim àquilo .
O que é que aconteceu?
O velhote acabou por lhe virar as coisas e ir-se embora . ' Tava
derrotado , e sabia-o . O Johnny ali de pé . Quase que nem se tinha nas
pernas . A berrar-lhe que voltasse pra trás . O velhote nem sequer
olhou por cima do ombro . Seguiu direito à casa.
Troy olhou para o fundo da chávena. Atirou as borras para cima
das folhas .
Não foi só ela. Há um certo género de homens que , quando não
conseguem ter o que querem, não ficam com a segunda melhor
coisa, têm de ficar com a pior que encontram . O Elton acha que o
Johnny era assim , e se calhar até era . Mas eu acho que ele amava
aquela moça. Acho que sabia que género de mulher ela era , mas
não se ralava. Acho que era a própria natureza dele que lhe escapa-
Cidades da Planície 41

v a . Acho que ele ' tava perdido , mais nada. Este mundo não foi feito
pra ele . Já tinha vivido mais do que a sua conta antes de saber andar.
Antes de se casar. Raios . Ele nem sequer aguentava usar sapatos de
atacadores .
Mas tu gostavas dele , ainda assim .
Troy olhou ao longe , através do arvoredo . Bom, disse . Não me
parece que gostar seja a palavra certa. Não consigo falar sobre isso .
Eu queria ser como ele . Mas não era . Tentei .
Ele era o preferido do vosso pai , calculo .
Ah , sim . Ninguém tinha problemas com isso . Sabia-se que era
assim mesmo . Era o que era . Raios . Nem sequer havia discussão .
'Tás pronto?
'Tou pronto .
Pôs-se de pé . Espalmou a mão contra o fundo das costas e
espreguiçou-se . Olhou para Billy. Eu gostava imenso dele , disse . O
Elton também . Era impossível não gostar. Era só isso , mais nada.
Dobrou os panos debaixo do braço , juntamente com os termos .
Nem sequer tinham visto que género de sopa era. Voltou-se e olhou
por cima do ombro , para Billy. Então , que tal te parece esta terra?
Gosto disto .
Também eu . Sempre gostei .
Quer dizer que te vais mudar pràqui?
Não .
A noite caía no momento em que entraram a cavalgar em Fort
Davis. Os noitibós descreviam círculos acima das antigas praças de
armas quando eles passaram , e o céu sobre as montanhas atrás deles
era vermelho-sangue . Elton estava à espera com a carrinha e o atre­
lado para cavalos diante do Hotel Limpia. Desaparelharam os cava­
los no parque de estacionamento de brita e pousaram as selas na
caixa da carrinha e limparam o pelo dos cavalos e meteram-nos no
atrelado e entraram no hotel e cruzaram o átrio até à cafetaria .
E que tal , gostaste daquele cavalinho? perguntou Elton .
Gostei bastante dele , respondeu Billy. Demo-nos bastante bem .
Sentaram-se e examinaram as ementas . O que é que vocês vão
querer? perguntou Elton .
Partiram por volta das dez . Elton ficou parado no terreiro , com as
mãos nos bolsos traseiros . Ainda ali estava parado , somente a silhue-
42 Cormac McCarthy

ta dele contra a luz do alpendre , quando eles dobraram a curva no


extremo do carreiro e romperam direitos à estrada.
Billy ia ao volante . Olhou para Troy, a seu lado . Vais ficar acorda-
do , não vais?
Sim . 'Tou acordado .
Já decidiste?
Já, acho que sim .
Vamos ter de ir pra qualquer lado .
Pois . Eu sei .
Não me perguntaste a minha opinião .
Bom . Tu não vens aqui pra baixo a não ser que eu venha, e eu não
venho . Por isso , que diferença faz eu ' tar-te a perguntar?
Billy não respondeu .
Ao fim de um certo tempo , Troy disse: Raios , eu já sabia que não
ia voltar aqui pra baixo .
Pois.
Uma pessoa volta pra casa e tudo o que queria que 'tivesse diferen­
te ainda 'tá igual , e tudo o que queria que 'tivesse igual 'tá diferente .
Sei bem o que queres dizer.
Sobretudo quando somos o mais novo , acho eu . Tu não eras o
mais novo da família, pois não?
Não . Era o mais velho .
Ser o mais novo é do pior que há. Isso te posso garantir. Não se
ganha nada com isso .
Continuaram a percorrer a estrada através das montanhas . Cerca
de um quilómetro e meio depois do cruzamento com a estrada 166
viram um grupo de mexicanos cuja camioneta se encontrada encos­
tada à berma, sobre a erva. Os homens quase avançaram para o meio
da estrada, a agitar os chapéus . Billy abrandou .
Que se lixem estes gajos , atirou Troy.
Billy passou adiante . Olhou pelo retrovisor, mas nada conseguiu
distinguir, à parte o escuro da estrada e as profundezas da noite no
deserto . Parou a carrinha vagarosamente .
Raios , Parham, soltou Troy.
Eu sei . É só que não sou capaz .
'Tás-te a preparar pra nos meter num assado , de tal maneira que
só chegamos a casa quando for dia claro .
Cidades da Planície 43

Eu sei .
Engatou a marcha-atrás e começou a rolar vagarosamente às arre­
cuas pela estrada fora, usando a linha branca que emergia de baixo
da parte da frente da carrinha para se guiar. Quando a camioneta
assomou do escuro a par deles, pôde ver que o pneu da frente , do
lado direito , estava em baixo .
Os mexicanos aglomeraram-se em volta das janelas . Pu ncha da ,
explicaram . Te nem os u na l/a nta pu ncha da .
Pue do ve r/o, disse Billy. Estacionou a carrinha na berma e saiu .
Troy acendeu um cigarro e abanou a cabeça.
Precisavam de um macaco . Tinham algum pneu sobressalente? Sí.
Por supuesto.
Ele tirou o macaco da caixa da carrinha e eles levaram-no para
junto da camioneta e começaram a levantar a parte da frente . Tinham
dois pneus sobressalentes , mas nenhum deles retinha o ar. Revezaram­
-se a dar à manivela na bomba vetusta. Por fim, endireitaram-se e
olharam para Billy.
Ele tirou as ferramentas para os pneus da caixa da carrinha e
contornou o veículo e tirou de baixo do banco a lata de remendos
e uma lanterna elétrica. Levaram um dos sobressalentes para a es­
trada e deitaram-no na horizontal e puseram-se em pé em cima do
pneu para lhe descolar a aba da respetiva jante e , em seguida , o
homem que recebera as ferramentas da mão de Billy deu um passo
em frente e começou a soltar o rebordo do pneu da jante enquanto
os outros olhavam . A câmara de ar que ele retirou da cavidade in­
terior do pneu era feita de borracha encarnada e estava coberta por
um flagelo bexigoso de remendos . O homem pousou-a no macada­
me , e B illy apontou-lhe a luz da lanterna . Hay pa rches s obre los
pa rches , comentou .
Es ve rda d, confirmou o homem .
La otra ?
Estápeor.
Um dos homens mais jovens deu à bomba, e a câmara de ar inchou
vagarosamente na estrada e ali ficou a sibilar. Ele ajoelhou-se e apro­
ximou o ouvido dos vários buracos . Billy fez saltar a tampa de folha
de Flandres da lata de remendos e contou com o polegar quantos ali
estavam contidos . Troy saíra da carrinha e voltou para trás e ficou de
44 Cormac McCarthy

pé , a fumar em silêncio , a olhar para o pneu e para a câmara de ar e


para os mexicanos .
Estes trouxeram o pneu furado , fazendo-o rolar pelo chão para
contornar a camioneta, e Billy apontou-lhe a luz . Tinha no flanco um
grande buraco de bordos irregulares. Parecia ter sido estraçalhado
por buldogues . Troy escarrou silenciosamente para a estrada . Os
mexicanos ergueram o pneu e atiraram-no para a caixa da camioneta.
Billy tirou o pau de giz de dentro da lata de remendos e traçou
círculos em volta dos buracos da câmara de ar, e eles desatarraxaram
a peça central da válvula e sentaram-se em cima da câmara de ar e
depois caminharam-lhe por cima até ficar completamente achatada.
Em seguida, sentaram-se na estrada, com a linha branca a correr-lhes
junto aos cotovelos e a noite garrida do deserto lá no alto , as miríades
de constelações a moverem-se no negrume com a subtileza de seres
marinhos , e labutaram com aquela forma de borracha no regaço,
vermelha e sem brilho , de pernas cruzadas , como alfaiates ou pesca­
dores a remendar as suas redes. Feriam a borracha com o pequeno
raspador metálico estampado na tampa da lata e aplicavam os remen­
dos e pegavam-lhes fogo com um fósforo , um após outro , até todos
estarem derretidos e todos estarem prontos . Quando tornaram a en­
cher a câmara de ar, ficaram sentados na estrada, nas trevas silencio­
sas do deserto , à escuta.
Oye a lg o? perguntou Billy.
Na da .
Ficaram à escuta.
Ele tornou a desatarraxar a peça central da válvula e , quando aca­
baram de desencher a câmara de ar, o homem enfiou-a dentro do
pneu e ajustou bem o pneu em volta do rebordo da jante e prendeu a
válvula, e o rapaz aproximou-se com a bomba e começou a encher o
pneu . Deu à bomba durante imenso tempo . Quando as abas do pneu
se colaram à jante , ele parou e desatarraxaram da válvula o tubo de
borracha, e o homem tirou da boca a peça central da válvula e
enroscou-a na válvula sibilante , e depois deram um passo atrás e
olharam para Billy. Ele escarrou e deu meia-volta e tornou a dirigir­
-se para a carrinha, para ir buscar o manómetro .
Troy estava a dormir no banco da frente . Billy tirou o manómetro
do porta-luvas e regressou para junto dos outros , e mediram a pres-
Cidades da Planície 45

são do ar no pneu e fizeram-no rolar até junto da camioneta e


encaixaram-no no eixo da roda e apertaram os parafusos com uma
chave feita de um bocal soldado a um grosso tubo de ferro . Em se­
guida, baixaram o macaco e puxaram-no de baixo da camioneta e
entregaram-no a Billy.
Ele pegou no macaco e nas ferramentas para os pneus e guardou a
lata de remendos e o manómetro no bolso da camisa e a lanterna
elétrica no bolso de trás das calças de ganga. Em seguida, apertou a
mão a todos os homens do círculo .
Adónde va n? perguntou .
O homem encolheu os ombros . Disse que iam até Sanderson , no
Texas . Voltou-se e olhou ao longe , para os promontórios escuros, a
leste . Os homens mais novos estavam parados em volta deles .
Hay tra ba jo aliá?
Ele tornou a encolher os ombros. Espe ro que sí, respondeu . Olhou
para Billy. Es va que ro?
Sí. Va quero.
O homem fez que sim com a cabeça. Aquela era uma região de
va que ros , e as aflições dos outros homens não tinham ali lugar, e
nada mais havia a dizer, ou quase . Tornaram a apertar as mãos , e os
mexicanos treparam para cima da camioneta, e a camioneta rangeu e
tossiu e arrancou e rolou lenta e pesadamente até à faixa de rodagem .
Os homens e os rapazes na caixa puseram-se de pé e ergueram as
mãos . Ele via-os acima da bossa escura da cabina, sobre o cobalto
escuro e queimado do céu . O farol traseiro , que era só um , tinha um
curto-circuito nos fios e piscava, acendendo e apagando como um
sinal de aviso até que a camioneta dobrou a curva e desapareceu .
Ele guardou o macaco e as ferramentas na carrinha e abriu a porta
e acordou Troy, tocando-lhe com o cotovelo .
Vamos embora, cowboy .
Troy endireitou-se e olhou para a estrada vazia. Olhou para trás
deles .
Pra onde é que eles foram?
Foram-se embora.
Que horas achas tu que são?
Não sei .
Já acabaste de te armar em bom samaritano?
46 Cormac McCarthy

Já, já acabei .
Debruçou-se e abriu a portinhola do porta-luvas e meteu lá dentro
a lata de remendos de borracha e o manómetro e a lanterna elétrica
e tomou a fechá-la e ligou o motor.
Pra onde é que eles iam? perguntou Troy.
Pra Sanderson .
Sanderson?
Isso .
E donde é que eles vinham?
Não sei . Não disseram .
Aposto que nem sequer vão pra Sanderson , comentou Troy.
E pra onde é que achas que eles vão?
Raios , sabe-se lá.
E porque é que alguém havia de mentir sobre ir pra Sanderson , no
Texas?
Não sei .
Continuaram estrada fora . Ao dobrarem uma curva, com um talu­
de íngreme à direita da estrada, houve um súbito clarão branco e um
ruído sólido , vuuump . A carrinha guinou , os pneus a chiar. Quando
pararam , estavam quase fora da estrada, com duas rodas metidas na
valeta .
Mas que raio , soltou Troy. Mas que raio .
Uma grande coruja jazia, cruciforme , sobre o para-brisas da carri­
nha do lado do condutor. O laminado do vidro formara uma conca­
vidade suave para a acolher, e a coruja tinha as asas bem abertas e
jazia nos anéis concêntricos e nos raios do vidro estilhaçado como
uma enorme traça presa numa teia de aranha .
Billy desligou o motor. Ficaram sentados , a olhar para o animal .
Uma das patas da coruja estremeceu e encolheu-se e fechou-se numa
garra enclavinhada e tomou a descontrair-se devagar, e ela mexeu a
cabeça um bocadinho , como que para os ver melhor, e depois morreu .
Troy abriu a porta e saiu . Billy ficou atrás do volante , a olhar para
a coruja. Depois desligou os faróis e saiu também .
A coruja era toda ela macia e penugenta. A cabeça tombou-lhe
para diante e baloiçou . Era macia e quente quando se lhe tocava, e
parecia desconjuntada dentro da plumagem . Ele soltou-a e levou-a
até à vedação e pendurou-a no arame farpado e regressou . Sentou-se
Cidades da Planície 47

na carrinha e acendeu os faróis para avaliar se conseguia conduzir


com o para-brisas naquele estado ou se teria de o rebentar por com­
pleto a pontapé . Havia um espaço intacto no canto inferior direito , e
ele achou que conseguia ver se se curvasse e espreitasse através do
vidro nesse ponto . Troy afastara-se um pouco na estrada e estava de
pé , a mijar.
Ele ligou o motor da carrinha e tomou a entrar na estrada. Troy
afastara-se mais um pouco e estava sentado na erva da berma. Ele
conduziu até junto dele e baixou o vidro e olhou para ele .
O que é que se passa contigo? perguntou .
Nada, respondeu Troy.
'Tás pronto pra arrancar?
'Tou .
Levantou-se e contornou a carrinha pela parte da frente e entrou .
Billy voltou-se e olhou para ele .
'Tás bem?
Sim. 'Tou bem .
Foi só uma coruja.
Eu sei . Não é isso .
Bom, então o que é?
Troy não respondeu .
Ele engatou em primeira a alavanca de mudanças que assomava
do fundo da carrinha e soltou o travão de mão . Avançaram pela es­
trada fora. Ele conseguia ver bastante bem . Podia debruçar-se e olhar
através do vidro do outro lado da barra divisória. 'Tás bem? insistiu .
O que é?
Troy olhava pela janela, para as trevas que passavam . É tudo ,
pronto , disse . Tudo e mais alguma coisa, raios partam . Chiça. Não
me ligues , deixa-me 'tar. Não devia de beber whis key , logo pra co­
meço de conversa.
Seguiram até Van Horn e pararam para meter gasolina e para beber
café , e nessa altura já a região onde Troy crescera e para onde ele
pensara regressar e onde o irmão morto estava sepultado ficara para
trás e eram duas horas em ponto da manhã.
O Mac vai ter umas coisas pra dizer quando vir a carrinha.
Billy fez que sim com a cabeça. Talvez eu consiga ir até à cidade
e mandar consertá-la amanhã de manhã.
48 Cormac McCarthy

Quanto é que achas que vai custar?


Não sei .
Queres dividir a despesa a meias?
Dava-me um certo jeito .
'Tá certo .
Tens a certeza de que ' tás bem?
Sim . 'Tou ótimo . Ponho-me a pensar nas coisas , só isso .
Pois .
Só que não ajuda nada, pois não?
Nicles .
Estavam sentados , a beber café . Troy sacudiu o maço para tirar de
lá um cigarro e acendeu-o e pousou o maço e o isqueiro Zipp o em
cima da mesa. Porque é que tiveste de parar ali atrás?
Parei , pronto .
Disseste que tinhas de parar.
Pois.
Mas o que é? Uma espécie de coisa religiosa?
Não . Não é nada disso . É só que o pior dia da minha vida foi uma
vez , tinha eu dezassete anos , em que eu e o meu comparsa - o meu
irmão - ' távamos em fuga e ele 'tava ferido , e uma camioneta cheia
de mexicanos muito parecida com aquela ali atrás apareceu do meio
do nada e safou-nos daquele sarilho . Eu nem sabia ao certo se aque­
la camioneta velha deles conseguia deixar um cavalo pra trás , mas
conseguiu . Eles não tinham nenhuma razão pra parar pra nos ajudar.
Mas pararam . Acho que nem sequer lhes passou pela cabeça não
pararem . É tudo .
Troy continuava a olhar pela janela. Bom , comentou . Parece-me
uma razão bastante boa.
Bom . Foi a única razão de que eu precisei , seja lá como for. ' Tás
pronto?
'Tou , sim. Escorropichou o café da chávena. ' Tou pronto .

Pagou os dois cêntimos na cancela e empurrou o torniquete e co­


meçou a atravessar a ponte . Nas margens do rio , por baixo do tabu­
leiro , rapazitos erguiam baldes de estanho pregados na ponta de va­
ras e pediam dinheiro em altos brados . Ele chegou ao outro extremo
da ponte e mergulhou num mar de vendedores ambulantes que ali
Cidades da Planície 49

esperavam , apregoando joias baratas , artigos de cabedal , mantas . Se­


guiram-no ao longo de uma certa distância e foram substituídos por
outros, numa sucessão de bufarinheiros revezando-se ao longo da
Juárez Avenue e pela Ignacio Mejía acima até à Santos Degollado ,
onde se deixaram ficar para trás e o viram afastar-se .
Parado no extremo do balcão , ele pediu um whiskey e apoiou o pé
no varão e olhou para o outro extremo da sala, para as rameiras .
Dónde están sus compafie ros ? perguntou o ba rma n.
Ele ergueu o copo de whis key e rodou-o na mão . En el camp o,
respondeu . Bebeu um trago .
Ficou ali durante duas horas . As rameiras atravessaram a sala uma
por uma, para lhe oferecerem os seus favores , e, uma por uma , vol­
taram para trás . Ele não perguntou por ela. Quando saiu , bebera
cinco whis kies e pagou-os com um dólar e pôs outro dólar em cima
para o ba rman. Atravessou a Juárez Avenue e caminhou a coxear
pela Mejía acima até ao Napoleón e escolheu uma mesa junto à par­
te da frente do café e pediu um bife . Ali sentado , bebeu café enquan­
to esperava e contemplou a vida nas ruas . Um homem veio até à
porta e tentou vender-lhe cigarros . Um homem tentou vender-lhe
uma Nossa Senhora feita de celuloide pintado . Um homem com um
estranho aparelho provido de mostradores e manípulos perguntou­
-lhe se ele se queria eletrocutar. Ao fim de um certo tempo , trouxe­
ram-lhe o bife .
Tomou a ir até l á n a noite seguinte . Estava na sala meia dúzia de
soldados de Fort Bliss , jovens recrutas com as cabeças praticamente
rapadas . Olharam-no com rostos ébrios , olharam-lhe para as botas .
Parado diante do balcão , ele bebeu três whis kies vagarosamente . Ela
não apareceu .
Subiu a Juárez Avenue por entre os bufarinheiros e os chulos . Viu
um rapaz a vender tatus empalhados . Viu um turista bêbedo a cami­
nhar a custo pelo passeio , carregando nos braços uma armadura com­
pleta. Viu uma jovem lindíssima a vomitar na rua. Os cães voltaram­
-se ante aquele som e correram ao encontro dela.
Subiu a Tlaxcala e a Mariscai e entrou noutro lugar parecido e sen­
tou-se ao balcão . As rameiras vieram dar-lhe puxões no braço . Ele
disse que estava à espera de uma pessoa. Ao fim de um certo tempo ,
saiu e caminhou de regresso à ponte .
50 Cormac McCarthy

Tinha prometido a Mac não tomar a montar o cavalo até o tornozelo


estar melhor. No domingo, depois do pequeno-almoço , adestrou o ani­
mal no cercado , e de tarde aparelhou Bird e cavalgou até aos montes
Jarillas . No alto de um penhasco rochoso nu, parou o cavalo e contem­
plou a paisagem. As planuras salgadas cobertas de lençóis de água re­
brilhavam ao sol do crepúsculo , cento e vinte quilómetros a leste . O
pico de El Capitan mais além. Todas as altas montanhas do Novo
México a esbaterem-se para norte , para além das planícies vermelhas ,
das manchas de creosotes vetustos . À luz extremamente oblíqua, as
sombras das vedações , semelhantes a escadas , pareciam carri s de ca­
minho de ferro a percorrer o terreno, e as pombas sulcavam os ares
abaixo dele ao encontro de um tanque de água no rancho McNew. Ele
não via gado em nenhum ponto daquela charneca coberta de pegadas
de vacas . As pombas arrulhavam em toda a parte e não soprava vento .
Quando chegou a casa, já estava escuro , e quando acabou de de­
saparelhar o cavalo e de o meter na baia e entrou na cozinha, Socor­
ro já levantara a mesa e estava a lavar a loiça. Ele serviu-se de uma
chávena de café e sentou-se , e ela trouxe-lhe o j antar, e , enquanto ele
estava a comer, Mac entrou e parou no vão da porta que dava para o
corredor e acendeu um charuto .
'Tás pronto , ou quê? perguntou .
Sim , senhor.
Não te apresses . Não te apresses .
Tomou a afastar-se pelo corredor fora . Socorro trouxe a panela do
fogão e, usando a colher, verteu-lhe no prato o resto do ca ldillo.
Trouxe-lhe mais café e serviu uma chávena para Mac e deixou-a a
fumegar no lado oposto da mesa. Quando ele acabou de comer,
levantou-se e levou o prato e a chávena para o lava-loiça e serviu-se
de mais café e depois acercou-se do velho armário de cerejeira trazi­
do numa carroça desde o Kentucky, por montes e vales, oitenta anos
antes , e abriu a porta e tirou o jogo de xadrez , que se encontrava
arrumado entre velhas revistas de criação de gado e livros de registo
com lombada e cantos de cabedal e diários de contas com capas de
couro e velhas caixas verdes de cartuchos de caçadeira e projéteis de
espingarda Remington. Na prateleira mais alta, uma caixa de madei-
Cidades da Planície 51

ra com as arestas ensambladas em cauda de andorinha contendo pe­


sos de balança de latão . Um estojo de cabedal com instrumentos de
desenho no interior. Uma carroça de vidro puxada por um cavalo
também de vidro , que outrora, havia muito tempo , contivera bom­
bons para um Natal . Ele fechou a porta do armário e levou o tabulei­
ro e a caixa de madeira para a mesa e abriu o tabuleiro e fez deslizar
a tampa da caixa e derramou as peças , umas de nogueira esculpida,
outras de azevinho esculpido , e pô-las nos seus lugares . Em seguida,
ficou sentado , a beber o seu café .
Mac entrou e puxou a cadeira diante dele e sentou-se e puxou o
pesado cinzeiro de vidro de entre os frascos de ketchup e de molho
picante e pousou o charuto dentro do cinzeiro e bebeu um gole de café.
Com um aceno de cabeça, indicou a mão esquerda de John Grady. John
Grady abriu a mão , depois pousou os peões no tabuleiro .
Fico outra vez com as brancas , disse Mac .
Sim, senhor.
Ele moveu um peão .
JC entrou e foi ao fogão buscar uma chávena de café e veio até
junto da mesa e ficou ali parado .
Senta-te , disse Mac . ' Tás a atravancar a cozinha .
Deixe ' tar. Não vou ficar a ver.
É melhor sentares-te , aconselhou John Grady. O patrão precisa de
se concentrar ao máximo .
Tens toda a razão , acudiu Mac .
JC sentou-se . Mac remirava o tabuleiro . JC lançou um olhar de re­
lance à pilha de peças de xadrez brancas junto ao braço de John Grady.
Rapaz , acho melhor dares uma folga aqui ao velhote . Ainda aca­
bas substituído por alguém que guarde melhor as vacas e jogue pior
xadrez .
Mac estendeu o braço e moveu o bispo que lhe restava. John Grady
moveu o cavalo . Mac pegou no charuto e ficou a soltar baforadas de
fumo em silêncio .
Moveu a rainha. John Grady moveu o outro cavalo e recostou-se
na cadeira . Xeque , disse .
Mac examinava o tabuleiro . Raios , soltou . Ao fim de um certo
tempo , ergueu os olhos . Voltou-se para JC . Queres jogar com ele?
Não , senhor. Ele faz-me ver a luz .
52 Cormac McCarthy

Conheço bem essa sensação . Acabei de levar uma tareia que até
andei de roda.
Olhou para o relógio de parede e pegou no charuto e enfiou-o en-
tre os dentes . Jogo mais uma partida, disse .
Sim , senhor, anuiu John Grady.
Socorro tirou o avental e pendurou-o e parou à porta.
Boa noite , disse .
' Noite , Socorro .
JC levantou-se da cadeira. Algum de vocês quer mais café?
Começaram a jogar. Quando John Grady comeu a rainha preta, JC
empurrou a cadeira para trás e pôs-se de pé .
Eu bem tentei avisar-te , rapaz . Vem aí um inverno muito frio .
Atravessou a cozinha e pousou a chávena no lava-loiça e foi até à
porta.
' Noite , disse .
Mac , em silêncio , remirava o tabuleiro . O charuto jazia no cinzei­
ro , apagado .
'Noite , disse John Grady.
Ele abriu a porta e saiu . A porta de rede fechou-se com um ruído
seco . O relógio fazia tiquetaque . Mac recostou-se . Pegou na beata do
charuto e depois tornou a pô-la no cinzeiro . Acho que vou dar-me
por vencido , declarou .
Ainda pode ganhar.
Mac olhou para ele . Baleias , retorquiu .
John Grady encolheu os ombros . Mac olhou para o relógio . Olhou
para John Grady. Em seguida, debruçou-se e rodou cuidadosamente
o tabuleiro . John Grady moveu o cavalo preto que restava a Mac .
Mac franziu os lábios . Examinou o tabuleiro . Fez a sua jogada.
Cinco jogadas depois , John Grady deu xeque-mate ao rei branco .
Mac abanou a cabeça. Vamo-nos deitar, disse .
Sim, senhor.
Começou a guardar as peças . Mac empurrou a cadeira para trás e
pegou nas chávenas .
A que horas é que o Troy e o Billy disseram que voltavam?
Acho que não disseram .
Porque é que não foste com eles?
Achei melhor ficar por aqui , mais nada.
Cidades da Planície 53

Mac levou as chávenas até ao lava-loiça. Eles perguntaram-te se


querias ir?
Sim, senhor. Não preciso de ir a todos os lugares onde eles vão .
Fechou a caixa, fazendo-lhe deslizar a tampa, e dobrou o tabuleiro
e levantou-se .
O Troy 'tá-se a preparar pra se mudar lá pra baixo e trabalhar pro
irmão?
Não sei , Mr Mac .
Cruzou a cozinha e tomou a guardar o jogo de xadrez no armário
e fechou a porta e pegou no chapéu .
Não sabes ou não queres dizer?
Não sei . Se não quisesse dizer, dizia que não queria.
Eu sei que dizias .
Mr Mac .
Sim .
Sinto-me mal por causa do Delbert.
E porque é que te sentes mal?
Bom . Tenho um bocado a impressão de lhe ter tirado o emprego .
Pois bem , não tiraste nada . Ele ia-se embora, fosse lá como fosse .
Sim, senhor.
Deixa que seja eu a governar esta casa. ' Tá certo?
Sim, senhor. Boa noite , Mr Mac .
Acende a luz do estábulo , acolá.
Eu vejo bem .
Vias melhor com a luz acesa.
Sim, senhor. Bom. Incomoda os cavalos .
Incomoda os cavalos?
Sim, senhor.
Pôs o chapéu na cabeça e abriu a porta, empurrando-a. Mac viu-o
atravessar o terreiro . Em seguida, apagou a luz da cozinha e virou-se
e atravessou a divisão e percorreu o corredor. Incomoda os cavalos ,
soltou . Chiça.

Quando se levantou de manhã e foi até ao quarto de Billy, para o


acordar, Billy não estava lá. A cama estava revolvida , como se al­
guém ali tivesse dormido , e ele coxeou até ao exterior, deixando
para trás as baias dos cavalos, e olhou para o outro extremo do ter-
54 Cormac McCarthy

reiro , na direção da cozinha. Em seguida, contornou o estábulo até


ao lado oposto , onde a carrinha estava estacionada. Billy estava sen­
tado no lugar do condutor, debruçado sobre o volante , a desapertar
os parafusos da moldura metálica que prendia o para-brisas , deixan­
do cair os parafusos para dentro do cinzeiro .
'Dia, cowboy , saudou .
'Dia. O que é que aconteceu ao para-brisas?
Uma coruja.
Uma coruja?
Uma coruja.
Desapertou os últimos parafusos e soltou a moldura do encaixe e
retirou-a e começou a soltar os bordos do vidro estilhaçado da cerca­
dura de borracha, usando a ponta da chave de parafusos .
Dá a volta e empurra-me esta coisa aí pelo lado de fora. 'Pera um
minuto . Tens aqui umas luvas .
John Grady calçou as luvas e contornou a carrinha ao pé-coxinho
e empurrou os bordos do vidro enquanto Billy ia fazendo força com
a chave de parafusos na ranhura . Acabaram por conseguir retirar o
vidro da moldura na parte de baixo e num dos lados , e então Billy
pediu as luvas a John Grady e puxou o para-brisas inteiro do encaixe
e ergueu-o acima do volante e pousou-o no fundo da carrinha , do
lado do passageiro .
Como é que fizeste , conduziste com a cabeça de fora da janela?
Não . Sentei-me mais ou menos no meio do banco e olhei pelo
lado bom .
Empurrou para trás a escova do limpa-para-brisas , que jazia tom-
bada para dentro , sobre o painel de instrumentos .
Pensei que se calhar ainda não tivesses chegado .
Chegámos por volta das cinco . O que é que fizeste?
Não fiz grande coisa .
Não andaste a fazer rode os no estábulo enquanto eu 'tive fora,
pois não?
Nicles .
Como é que ' tá o teu pé?
'Tá bom .
Billy empurrou o limpa-para-brisas , vencendo a resistência da
mola, e soltou a escova da haste com a chave de parafusos e pousou
a escova no banco .
Cidades da Planície 55

Vais comprar um vidro novo prà carrinha?


Vou pedir ao Joaquín que traga um quando ele for à cidade . Não
quero que o velhote veja, se puder evitar.
Raios , qualquer um podia ter chocado com uma coruja.
Eu sei . Mas qualquer um não chocou , fui eu .
John Grady estava debruçado através da janela aberta da porta es­
cancarada da carrinha. Voltou-se e escarrou e debruçou-se mais. Bom,
retrucou . Não sei o que isso quer dizer.
Billy pousou a chave de parafusos no banco . Eu também não , disse .
Não sei porque é que disse isso. Vamos entrar, pra ver se ela já tem o
pequeno-almoço pronto . 'Tou capaz de comer o carburador e as velas
dum touro bravo .
Quando se sentaram à mesa, Oren ergueu os olhos do jornal e re­
mirou John Grady por cima das lentes dos óculos . Como é que vai o
teu pé? perguntou .
'Tá bom .
Aposto que sim .
'Tá bom que chegue pra montar a cavalo . Era isso que tu querias
saber, não era?
Consegues metê-lo num estribo?
Não preciso de meter.
Oren voltou a concentrar-se no jornal . Comeram . Ao fim de um
certo tempo , ele pousou o jornal e tirou os óculos e pô-los em cima
da mesa.
Um homem vai mandar até cá uma poldra que quer oferecer à mu­
lher. Eu não disse ai nem ui , fiquei muito caladinho . Ele não sabe
nada sobre o animal , à parte o sangue . Nem sobre outro cavalo ne­
nhum , provavelmente , parece-me bem .
Ela ' tá desbastada?
A mulher ou a égua?
Aposto dobrado contra singelo em como nenhuma delas o ' tá, acu­
diu JC . E nem preciso de as ver.
Não sei , respondeu Oren . Meio desbastada ou desbastada às três
pancadas . Ele quer deixá-la cá durante duas semanas . Eu disse-lhe
que lhe dávamos todo o treino que ela conseguisse assimilar nesse
período de tempo , e ele pareceu-me satisfeito com a ideia.
Muito bem .
56 Connac McCarthy

Billy, vocês trabalham com a gente esta semana?


Acho que sim .
A que horas disse o homem que eles apareciam? perguntou John
Grady.
Disse depois do pequeno-almoço . JC . 'Tão prontos?
Eu já nasci assim .
Bom , o dia avança, trigoso , declarou Oren. Guardou os óculos no
bolso da camisa e empurrou a cadeira para trás .

Entraram no terreiro numa carrinha de caixa aberta, trazendo a


reboque um atrelado novo para um só cavalo , por volta das oito e
meia. John Grady saiu para ir ao encontro deles. O atrelado estava
pintado de negro e tinha no flanco , a letras de ouro , o nome de um
rancho , algures no Norte do Novo México , de que ele nunca ouvira
falar. Os dois homens que estavam a destrancar e a baixar o taipal do
atrelado saudaram John Grady com um aceno de cabeça, e o mais
alto dos dois lançou um olhar rápido ao terreiro e depois fizeram a
égua descer a rampa às arrecuas .
Onde é que ' tá o Oren? perguntou o homem alto .
John Grady observava a poldra . O animal tinha uma aparência
nervosa, normal numa jovem égua que pisava pela primeira vez um
terreno desconhecido . Ele coxeou em volta dela para a ver do lado
oposto . O olho dela seguiu-o .
Faça-a andar por aí.
O quê?
Faça-a andar por aí.
O Oren ' tá cá?
Não , senhor. Não ' tá. Eu é que sou o desbastador. Faça-a andar um
bocadinho , que é pra eu a poder ver.
O homem ficou imóvel durante um longo momento . Em seguida,
passou ao outro homem a guia presa à cabeçada. Fá-la dar aí umas
voltas , Louis . Olhou para John Grady. John Grady observava a poldra.
A que horas ' tá a contar que ele regresse?
Só lá prà noite .
Observaram a poldra a andar para trás e para diante .
Você é que é mesmo o desbastador?
Sou , sim, senhor.
Cidades da Planície 57

De que é que ' tá à procura?


John Grady observou atentamente a poldra e olhou para o homem .
Aquela égua é coxa, declarou .
Coxa.
Sim , senhor.
Merda, soltou o homem .
O homem que estava a conduzir a égua olhou para trás , por cima
do ombro .
Ouviste isto , Louis? atirou-lhe o homem em voz alta.
Sim. Ouvi . Por acaso não a quer abater e resolver o problema du­
ma vez por todas , ou quer?
O que é que o leva a pensar que aquela égua é coxa? perguntou o
homem .
Vamos lá a ver. Não é questão do que eu penso ou deixo de pensar.
Ela coxeia da pata esquerda da frente . Deixe-me ver-lhe a pata.
Trá-la cá, Louis.
Acha que ela consegue ir até aí?
Não sei .
O outro trouxe a égua à guia, e John Grady acercou-se dela e encos­
tou-se a ela com o ombro e ergueu-lhe a pata dianteira entre os joelhos
e examinou o casco . Passou o polegar em volta da ranilha e examinou
a muralha do casco . Encostou-se ao animal para lhe sentir a respiração
e falou com a égua e puxou o lenço de assoar do bolso de trás e mo­
lhou-o com saliva e começou a limpar a muralha do casco .
Quem é que pôs isto aqui? perguntou .
Quem pôs o quê?
Este curativo . Ergueu o lenço para lhes mostrar a mancha do casco .
Não sei , respondeu o homem .
John Grady tirou do bolso o canivete e abriu-o e passou a ponta de
cima para baixo , ao longo da face lateral da muralha do casco . O ho­
mem aproximara-se para ver melhor. Ele ergueu a lâmina do canive­
te . Vê isto? perguntou .
Sim?
Ela tem uma fissura neste casco , e alguém a encheu com cera e
depois pôs um unguento pra cascos por cima.
Endireitou-se e deixou tombar a pata da poldra e afagou-lhe a
espádua, e ficaram os três ali parados , a olhar para o animal . O ho-
58 Cormac McCarthy

mem alto enfiou as mãos nos bolsos de trás . Voltou-se e escarrou .


Bom, disse .
O homem que segurava a égua pela arreata riscou o chão com a
biqueira da bota e desviou o rosto .
O patrão vai aos arames quando ouvir isto .
Onde é que vocês a compraram?
O homem tirou uma mão do bolso de trás e ajeitou o chapéu .
Olhou para John Grady e tomou a olhar para a poldra.
Posso deixá-la consigo? perguntou .
Não , senhor.
Bom, ' tou a pedir-lhe prà deixar aqui só até o Oren voltar e eu e
ele podermos falar sobre este assunto .
Não posso fazer isso .
E porque não?
Não posso .
'Tá-me a dizer pra eu a meter no atrelado e a levar daqui pra fora.
John Grady não respondeu . Também não tirou os olhos do ho-
mem .
De certeza que pode dar um jeitinho , tomou o homem.
Não me parece que possa.
Olhou para o homem que segurava o cavalo . Olhou na direção da
casa e olhou novamente para John Grady. Depois levou a mão à an­
ca e sacou da carteira e abriu-a e tirou do interior uma nota de dez
dólares e dobrou a nota e tomou a guardar a carteira e estendeu a
nota na direção do rapaz . Pegue lá, disse . Meta isso no bolso e não
diga a ninguém onde é que a arranjou .
Não me parece que possa fazer isso .
Vá lá.
Não , senhor.
O rosto do homem turvou-se . Ficou ali parado , a segurar a nota na
mão estendida. Depois atafulhou-a no bolso da camisa.
Não lhe custava nada, ou custava?
John Grady não respondeu . O homem voltou-se e tomou a escarrar.
Eu não tive nada que ver com o tratamento que deram à égua, se
é isso que você 'tá aí a pensar.
Eu também não disse que tinha tido .
Mas também não é capaz de desenrascar um homem , pois não?
Cidades da Planície 59

Dessa maneira, não , não sou .


O homem ficou a olhar para John Grady. Escarrou novamente .
Olhou para o outro homem e espraiou a vista pela planura em volta .
Vamos embora , Carl , disse o outro homem . Chiça.
Trouxeram a égua a passo através do terreiro , até junto da carrinha
e do atrelado . John Grady olhou-os , ali parado . Meteram a égua no
atrelado e levantaram o taipal e fecharam as portas e prenderam-nas
com as trancas . O homem alto contornou o flanco da carrinha. Eh ,
rapaz , chamou .
Sim , senhor.
Vai pro inferno .
John Grady não respondeu .
' Tás-me a ouvir?
Sim, senhor. ' Tou a ouvir.
Depois meteram-se na carrinha e deram meia-volta e afastaram-se
através do terreiro e seguiram pelo caminho abaixo .

Deixou cair as rédeas do cavalo no pátio , junto à porta da cozinha,


e entrou . Socorro não estava na cozinha , e ele chamou-a e esperou e
depois tomou a sair. No momento em que estava a montar no cavalo,
ela apareceu à porta. Levou as mãos aos olhos , para se proteger do
sol . Bue no, disse .
A qu é hora reg resa el Sefí or Ma c?
No s é.
Ele assentiu com a cabeça. Ela observava-o . Perguntou-lhe a que
horas regressava, e ele disse que seria depois do cair da noite .
Esp érate , disse ela .
Está bie n.
No. Esp érate .
Ela entrou e m casa. Ele ficou sentado n a sela. O cavalo bateu com
os cascos no terreno nu e abanou a cabeça. Pronto , disse ele . Já vamos .
Quando tornou a sair, ela trazia o almoço dele embrulhado num
pano e aproximou-se do estribo e entregou-lho . Ele agradeceu-lhe
e curvou o braço para trás das costas e guardou o almoço na bolsa
para caça do casaco de lona e acenou com a cabeça e picou o ca­
valo . Ela viu-o cavalgar até à cancela e debruçar-se e soltar a tran­
ca e abrir a cancela sem desmontar e transpô-la e torcer as rédeas
60 Cormac McCarthy

e fechar a cancela sem desmontar e depois partir estrada fora a


trote , com o sol matinal a bater-lhe nos ombros , de chapéu atirado
para a nuca. Sentado na sela, muito direito . O pé envolto em liga­
duras e descalço de um lado , o estribo vazio . As vacas Hereford e
os vitelos seguiam-no ao longo da vedação e soltavam mugidos ao
vê-lo passar.
Cavalgou o dia inteiro entre o gado meio bravio na pastagem
Bransford , e um vento frio soprava dos cumes das montanhas do
Novo México . As vacas afastavam-se a trote diante dele ou corriam
de cauda arrebitada sobre as planícies pedregosas , por entre os creo­
sotes , e ele examinava-as em movimento , à procura de mazelas .
Estava a adestrar o cavalo ao mesmo tempo que fazia a triagem do
gado , e o cavalinho azul que ele montava denotava o desprezo pelas
vacas típico dos cavalos de apartação e empurrava-as contra a cerca
transversal e mordia-as . John Grady soltou-lhe a rédea, e ele apartou
do rebanho um grande vitelo de um ano , e John Grady laçou o vitelo
e enrolou a corda no chifre da sela, mas o vitelo não tombou . O ca­
valinho ficou parado , de patas abertas , a retesar a corda, o vitelo de
pé , na outra ponta, a retorcê-la .
O que é que queres fazer agora? perguntou ele ao cavalo .
O cavalo deu meia-volta e recuou . O vitelo seguiu-o , aos pinotes .
Se calhar pensas que eu voltou saltar pro chão , ir até lá assim ao
pé-coxinho e deitar a unha àquele matulão do raio que o parta.
Esperou até o vitelo , levado pelos pinotes desenfreados , ter en­
trado numa clareira entre os creosotes , e então lançou o cavalo a
galope . Foi recolhendo a corda folgada por cima da cabeça do ca­
valo , e abordou o vitelo pelo flanco direito . O vitelo seguiu a trote .
A corda corria-lhe do pescoço , a roçar pelo chão do lado esquerdo ,
arrastava numa curva atrás das patas e regressava pelo lado direito
do vitelo , seguindo o cavalo . John Grady certificou-se de que a
corda estava bem enrolada em volta do chifre do cepilho e depois
firmou-se num estribo e desviou a outra perna da corda que arras­
tava pelo chão . Ao retesar-se com um estalo , a corda puxou para
trás a cabeça do vitelo num repelão e arrancou-lhe as patas traseiras
de baixo do corpo . O v itelo rodopiou em pleno ar e estampou-se no
chão de quadris para diante , por entre uma nuvem de poeira , e ali
ficou estendido .
Cidades da Planície 61

John Grady já saltara d o cavalo e coxeou ao longo d a corda até


onde o vitelo estava deitado e ajoelhou-se-lhe em cima da cabeça
antes que ele conseguisse recompor-se e agarrou-lhe a pata traseira e
puxou do cinturão o cordão de amarrar bezerros e amarrou-o e espe­
rou até o animal parar de se debater. Em seguida, curvou-se e puxou
a pata para o alto , para examinar melhor o inchaço na parte interior
da perna que fazia o vitelo correr de maneira esquisita e que o levara
a apartá-lo da manada e a laçá-lo , logo para começar.
O vitelo tinha uma pua de madeira enfiada debaixo da pele . Ele
tentou agarrá-la com os dedos , mas a pua estava partida quase rente
à pele . Apalpou ao longo do respetivo comprimento e empurrou a
ponta com o polegar e tentou fazê-la avançar. Conseguiu expor mais
um bocadinho da ponta acerada e , por fim , debruçou-se e agarrou-a
com os dentes e puxou-a para fora. Um soro aguado escorreu da fe­
rida. Ele segurou o espinho debaixo do nariz e cheirou-o e depois
atirou-o para longe e regressou para junto do cavalo , para ir buscar
o frasco de Pee rless e os algodões . Quando soltou o vitelo , o animal
corria pior do que antes , mas pareceu-lhe que ia recuperar.
Comeu o almoço ao meio-dia , num afloramento de rocha vulcâni­
ca, com vista para o leito de cheia a norte e a oeste . Havia pictogra­
mas antigos entre as rochas , gravuras de animais e de luas e de ho­
mens e hieróglifos perdidos cujo significado nenhum homem alguma
vez iria conhecer. As rochas estavam quentes ao sol , e ele escolheu
um lugar abrigado do vento e ficou a contemplar a terra silenciosa e
vazia. Nada se movia. Ao fim de um certo tempo , dobrou os panos
em que o almoço viera embrulhado e pôs-se de pé e desceu dos pe­
nedos e apanhou o cavalo .
Ainda estava a escovar o animal coberto de suor com a almofaça
à luz da coxia central do estábulo quando Billy apareceu a palitar os
dentes e ficou parado a olhá-lo .
Pra onde é que foste?
Pra Cedar Springs .
' Tiveste lá em cima o dia inteiro?
' Tive .
Telefonou o homem que é dono daquela poldra .
Calculei que telefonasse .
Não ' tava chateado nem nada .
62 Cormac McCarthy

Nem tinha razões pra ' tar.


Ele perguntou ao Mac se te podia pedir que visses uns cavalos
pra ele .
Bom .
Avançou ao longo do cavalo , a escovar-lhe o pelo . Billy observava-
-o . Ela diz que deita o resto fora não tarda, se tu não vens .
Eu vou já, é só um minutinho .
Muito bem .
O que é que achaste daquela terra lá em baixo?
Achei que era uma terra bem bonita.
Ah , sim?
Não vou pra lado nenhum . O Troy também não .
John Grady fez correr a escova ao longo da garupa do cavalo . O ca­
valo estremeceu . Todos havemos de ir pra algum lado, quando o exér­
cito deitar a mão a esta terra toda.
Sim , eu sei .
O Troy não se vai embora?
Billy olhou para a ponta do palito e tomou a metê-lo na boca. A som­
bra de um morcego que viera caçar à luz do estábulo passou sobre o
cavalo, sobre John Grady.
Acho que ele só queria ver o irmão .
John Grady fez que sim com a cabeça. Debruçou-se com os dois
antebraços sobre o dorso do cavalo e arrancou os pelos soltos da
escova e ficou a vê-los cair.
Quando entrou na cozinha, Oren ainda estava à mesa. Ergueu os
olhos do jornal , depois tornou a embrenhar-se na leitura. John Grady
foi até ao lava-loiça e lavou-se , e Socorro abriu a porta do aquecedor
de pratos por cima do fomo e tirou de lá um prato .
Ele sentou-se a comer o jantar e a ler as notícias na parte de trás
do jornal de Oren, do outro lado da mesa.
O que é um plebiscito? perguntou Oren .
Boa pergunta.
Ao fim de algum tempo , Oren admoestou-o: Não ' tejas a ler a
parte de trás do meu jornal .
O quê?
Eu disse pra não ' tares a ler a parte de trás do meu jornal .
Pronto , ' tá bem .
Cidades da Planície 63

Ele dobrou o jornal e fê-lo deslizar sobre a mesa e ergueu a chá-


vena de café e bebeu um gole .
Como é que sabias que eu 'tava a ler a parte de trás do jornal?
Conseguia perceber.
E que mal tem?
Nada. Deixa-me nervoso , pronto . É um mau hábito que as pessoas
têm . Se uma pessoa quer ler o jornal de outra, deve-lhe pedir.
'Tá certo .
O homem que é dono daquela poldra que tu não quiseste aqui no
rancho telefonou pra cá, a tentar contratar-te .
Eu já tenho emprego .
Acho que ele só queria que tu fosses com ele até Fabens , pra veres
um cavalo .
John Grady fez que sim com a cabeça. Não é isso que ele quer.
Oren fitou-o . Foi o que o Mac disse .
Ou não é só isso que ele quer.
Oren acendeu um cigarro e tomou a pousar o maço na mesa . John
Grady continuou a comer.
O que é que o Mac disse?
Disse que te dizia.
Bom. Já 'tá dito .
Raios , telefona ao homem . Podias fazer uns negociozitos de cava­
los ao fim de semana. Pra ganhares umas massas .
Acho que não sei como é que se trabalha sem ser pra um homem
de cada vez .
Oren fumava. Observava o rapaz .
Hoje fui até Cedar Springs . 'Tive a apartar o refugo na manada
que lá temos .
Não te perguntei nada .
Eu sei . Levei aquele cavalito azul do Watson .
E que tal se portou ele?
Acho que se portou muita bem . Não me 'tou aqui a gabar nem
nada. Já era um bom cavalo antes de eu lhe pôr a sela no lombo .
Podias ter comprado aquele cavalo .
Eu sei .
De que é que não gostaste nele?
Não houve nada de que eu não gostasse nele .
64 Cormac McCarthy

Não o queres comprar agora.


Nicles .
Acabou de comer e rapou o prato com o último pedaço de tortilha
e comeu-o e afastou o prato e bebeu o café e pousou a chávena e
olhou para Oren .
É um cavalo como deve de ser, bom em tudo o que faz . Ainda não
é um cavalo feito , mas acho que vai dar um cavalo vaqueiro .
Ainda bem . É claro que a tua preferência vai pra um que se curve
todo que nem uma serra de fita e que se atire de cabeça contra a
parede da estrebaria.
John Grady sorriu . O cavalo dos meus sonhos , disse . Não é exata­
mente assim .
Então como é que é?
Não sei . Acho que é só qualquer coisa de que a gente gosta. Ou de
que não gosta. Podemos fazer uma lista das qualidades todas dum
cavalo numa folha de papel e, ainda assim, não ficamos a saber se
vamos gostar do cavalo ou não .
Então e se fizeres uma lista de todos os defeitos?
Não sei . Eu diria que , provavelmente , quando chegamos a essa
parte já tomámos a nossa decisão .
Achas que há cavalos tão manientos que não se consegue fazer
nada deles?
Acho , sim . Mas , provavelmente , não são assim tantos como as pes­
soas julgam .
Talvez não . Achas que um cavalo consegue entender o que um
homem lhe diz?
O quê , as palavras , é isso?
Não sei . Se ele consegue entender o que o homem diz .
John Grady olhou pela janela. Havia água perlada na vidraça. Dois
morcegos caçavam à luz do estábulo . Não , disse ele . Acho que ele
consegue entender o que nós queremos dizer.
Observou os morcegos . Olhou para Oren .
Acho que a minha impressão acerca dum cavalo é que ele se afli­
ge principalmente com o que não sabe . Gosta de nos poder ver. Se
isso não for possível , gosta de nos poder ouvir. Talvez ache que , se
nós ' tivermos a falar, não ' tamos a fazer outra coisa qualquer que ele
não sabe .
Cidades da Planície 65

Achas que os cavalos pensam?


Claro . Tu não?
Sim , acho que sim. Certas pessoas dizem que não .
Bom. Certas pessoas podem ' tar enganadas .
Achas que consegues perceber o que um cavalo ' tá a pensar?
Acho que consigo perceber o que ele se ' tá a preparar pra fazer.
Geralmente .
John Grady sorriu . Sim, disse . Geralmente .
O Mac sempre afirmou que um cavalo sabe a diferença entre o
certo e o errado .
O Mac ' tá certo .
Oren puxava fumaças . Bom, disse . Isso sempre foi uma coisa que
me custou um bocadinho a engolir.
Acho que , se eles não soubessem a diferença, nem se conseguia
ensiná-los .
Não achas que ensiná-los é só obrigá-los a fazerem o que a gente
quer?
Acho que até se consegue ensinar um galo a fazer o que a gente
quer. Mas não o temos na mão . Há uma maneira de treinar um cava­
lo em que , quando acabamos , temos o cavalo na mão . Mas sem o
vergar. Um bom cavalo percebe as coisas sozinho . Conseguimos ver
o que lhe vai na alma. Ele não faz uma coisa enquanto ' tamos a olhar
pra ele e outra coisa diferente quando não ' tamos . É sempre igual a
si próprio . Quando ensinamos um cavalo desta maneira, não o con­
seguimos obrigar a fazer uma coisa que ele saiba que ' tá errada. Ele
revolta-se contra nós , se o tentarmos forçar. E, se o maltratarmos ,
isso mata-o , acaba com ele . Um bom cavalo tem a justiça no coração .
Já vi isso com estes meus olhos .
Tens uma opinião dos cavalos bem melhor do que a minha, co­
mentou Oren .
A verdade é que não tenho assim muitas opiniões , no que toca aos
cavalos . Quando era miúdo , achava que sabia tudo o que havia pra
saber sobre cavalos . No que toca aos cavalos , fui ficando cada vez
mais bronco , diga-se .
Oren sorriu .
Se um homem compreendesse mesmo os cavalos , continuou John
Grady. Se um homem compreendesse mesmo os cavalos, quase que
66 Cormac McCarthy

podia ensinar um deles só olhando pro animal . Não tinha nada que
saber. A minha maneira é o mais diferente que pode haver de desbas­
tar o cavalo com uma corrente metálica. Mas também é o mais dife­
rente que pode haver do que é possível .
Estendeu as pernas . Cruzou o pé magoado por cima da bota.
Numa coisa tens razão , prosseguiu . A maioria deles ' tá estragada
antes mesmo de os trazerem até aqui . Estragam-nos da primeira vez
que lhes põem a sela no dorso. Antes disso , até . Os melhores cavalos
são os que andaram de volta de cachopos . Ou talvez até , melhor ain­
da, um cavalo selvagem acabado de trazer das pradarias , onde nunca
tenha posto a vista num homem . Esse não tem nada pra desaprender.
Eras capaz de ter uma certa dificuldade em convencer alguém das
vantagens dessa última possibilidade .
Eu sei .
Alguma vez domaste um cavalo selvagem?
Sim . Mas é muito raro conseguirmos ensinar um.
Porquê?
As pessoas não os querem ensinados . Só os querem domados . É
preciso ensinar o dono .
Oren debruçou-se e esborrachou a beata do cigarro . Compreendo ,
disse .
John Grady ficou a contemplar o fumo que subia até à concavidade
do quebra-luz , por cima da mesa. Provavelmente não é verdade , isso
que eu disse sobre o cavalo que nunca viu um homem . Eles precisam
de ver pessoas . Precisam de as ver a andar por ali , mais nada. Se ca­
lhar, basta que pensem que as pessoas são árvores até aparecer o des­
bastador.

Ainda havia luz lá fora, uma luz cinzenta com a chuva a tombar
novamente nas ruas e os vendedores ambulantes aglomerados nos
portais , a olhar a chuva de rostos inexpressivos . Ele bateu com os pés
no chão para sacudir a água das botas e entrou e dirigiu-se ao balcão
e tirou o chapéu e pousou-o no banco alto . Não havia mais clientes .
Duas prostitutas repoltreadas num sofá observaram-no sem muito
interesse . O ba rma n serviu-lhe um whis key .
Ele descreveu a rapariga ao ba rma n, mas este limitou-se a enco­
lher os ombros e a abanar a cabeça.
Cidades da Planície 67

Eres muy joven .


O outro tornou a encolher os ombros . Limpou o tampo do balcão
e recostou-se e tirou um cigarro do bolso da camisa e acendeu-o .
John Grady fez sinal de que queria mais um whis key e deixou escor­
regar as moedas uma a uma para cima do balcão . Levou o chapéu e
o copo até ao sofá e interrogou as rameiras , mas elas puxavam-lhe a
roupa e pediam-lhe que lhes pagasse um copo e não respondiam . Ele
fitou-lhes os rostos . Quem elas seriam por trás do pó de arroz empas­
tado e do carmim , do rímel negro e gorduroso a orlar-lhes os escuros
olhos índios . Pareciam alheadas e tristes. Como loucas vestidas para
sair à noite . Ele olhou para o veado de néon pendurado na parede ,
atrás delas , e para os panejamentos berrantes de felpa, de ouropel e
trancelins . Ouvia a chuva no telhado , nas traseiras , e o gotejar sumi­
do e cadenciado da água a cair do teto para poças nos tapetes verme­
lho-sangue . Escorropichou o whiskey e pousou o copo na mesa baixa
e pôs o chapéu . Lançou-lhes um aceno de cabeça e tocou na aba do
chapéu , à laia de despedida .
Joven , chamou a mais velha.
Sí.
Ela olhou em volta com ar furtivo , mas não estava ali ninguém que
pudesse ouvir.
Ya no está, disse .
Ele perguntou para onde é que ela fora, mas elas não sabiam . Per-
guntou se ela voltaria para ali , mas elas achavam que não .
Ele tornou a tocar no chapéu . Gra cias , disse .
Ándale , despediram-se as prostitutas .
À esquina, um taxista entroncado de fato azul feito de sarja luzidia
chamou-o. Tinha na mão um guarda-chuva vetusto , raro naquelas pa­
ragens . Um dos painéis entre as varetas fora substituído por uma folha
de celofane azul , e, debaixo desta, o rosto do taxista exibia essa cor.
Perguntou a John Grady se queria ir ver as moças , e ele respondeu
que sim .
Seguiram de carro através das ruas alagadas e repletas de buracos .
O taxista estava ligeiramente ébrio e tecia comentários desbragados
acerca dos peões que atravessavam a rua diante deles ou que se en­
contravam parados nos vãos das portas . Tecia comentários acerca de
facetas do caráter daqueles estranhos , fazendo deduções a partir da
68 Cormac McCarthy

aparência deles . Tecia comentários acerca dos cães que atravessavam


a rua. Falava acerca daquilo que os cães estariam a pensar e para
onde é que eles estariam a ir e porquê .
Sentaram-se num bordel , nos arrabaldes da cidade , e o taxista sa­
lientou as virtudes das várias prostitutas que estavam na sala. Disse
que os homens que saíam para se divertir aceitavam muitas vezes a
primeira proposta que lhes faziam, mas que o homem prudente deve­
ria mostrar-se mais seletivo . Que não deveria deixar-se enganar pelas
aparências . Disse que era melhor conservar a liberdade de movimen­
tos , no que às meretrizes dizia respeito . Disse que , numa sociedade
saudável , a escolha deveria sempre ser uma prerrogativa do compra­
dor. Voltou-se para encarar o rapaz com olhos sonhadores.
De acuerdo ? indagou .
Claro que sí, respondeu John Grady.
Acabaram as bebidas e levantaram-se para partir. Lá fora estava
escuro , e nas ruas as luzes coloridas jaziam esborratadas e ligeira­
mente marteladas sob a chuva fina. Sentaram-se ao balcão de uma
casa notuma chamada Red Cock . O taxista saudou-o , erguendo o
copo , e bebeu . Examinaram as rameiras .
Posso levar usted a outros lugares , disse o taxista. Quiçá ela foi
para a sua terra .
Talvez .
Quiçá ela se casou . À s vezes , estas moças se casam .
Eu vi-a aqui em baixo há duas semanas .
O taxista refletiu . Ia fumando o seu cigarro . John Grady terminou
a sua bebida e ergueu-se . Vamos a regresar a La Venada , disse .
Na Calle de Santos Degollado , sentou-se ao balcão e esperou . Ao
fim de um certo tempo , o taxista regressou e debruçou-se e sussurrou­
-lhe e depois olhou em volta com cautela estudada.
Usted tem de falar com Manolo . Manolo somente nos pode dar
essa informação .
Onde é que ele ' tá?
Eu levo usted até ele . Eu levo usted. Tudo está combinado . Usted
tem de pagar.
John Grady fez menção de tirar a carteira do bolso . O taxista pôs­
-lhe a mão no braço . Olhou na direção do barman . A.fuera , disse . No
podemos hacerlo aquí.
Cidades da Planície 69

No exterior, ele tornou a procurar a carteira com a mão , mas o ta­


xista disse-lhe que esperasse . Olhou em volta com ares teatrais . Es
peligroso , sibilou .
Entraram no táxi .
Onde é que ele ' tá? perguntou John Grady.
Vamos ter com ele agora. Eu levo usted.
Ligou o motor e arrancaram , seguindo pela rua fora, e voltaram à
direita. Chegados a meio do quarteirão , tornaram a virar e meteram
por uma viela e estacionaram . O taxista desligou o motor e apagou
as luzes . Ficaram sentados na escuridão . Ouviam um rádio ao longe .
Ouviam a água da chuva dos canales a gotejar nas poças da viela. Ao
fim de um certo tempo , um homem surgiu e abriu a porta traseira do
táxi e entrou .
A luz do tejadilho estava apagada dentro do táxi , e John Grady não
conseguia ver o rosto do homem. Este fumava um cigarro e cobria-o
com a mão em concha quando o levava à boca, à maneira dos campo­
neses . John Grady sentia o cheiro da água-de-colónia que ele usava.
Bueno , disse o homem .
Usted paga-lhe agora, acudiu o taxista. Ele diz a usted onde está a
rapariga.
Quanto é que lhe pago?
Usted me paga cinquenta dólares , disse o homem.
Cinquenta dólares?
Ninguém respondeu .
Não tenho cinquenta dólares .
O homem permaneceu sentado durante alguns momentos . Em
seguida, tornou a abrir a porta e saiu .
Alto lá, chamou John Grady.
O homem ficou parado na viela, com uma mão na porta. John
Grady conseguia vê-lo . Usava fato preto e gravata preta. Tinha um
rosto pequeno , em forma de cunha.
Conhece esta rapariga? perguntou John Grady.
É claro que conheço a rapariga . Usted me faz perder tempo .
Como é que ela é?
Tem dezasseis anos . É a epiléptica . Só há uma . Partiu há duas
semanas . Usted me faz perder tempo . Não tem dinheiro e me faz
perder tempo .
70 Cormac McCarthy

Eu arranjo o dinheiro . Trago-o amanhã à noite .


O homem olhou para o taxista.
Vou à La Venada. Levo-lhe o dinheiro à La Venada .
O homem voltou a cabeça ligeiramente e escarrou e tornou a virar­
-se . Usted não pode vir à La Venada. Por causa deste negócio . O que
é que se passa com usted? Quanto dinheiro tem?
John Grady tirou a carteira do bolso . Trinta e tal , disse . Folheou as
notas com o polegar. Trinta e seis dólares.
O homem estendeu a mão . Dê-me cá.
John Grady entregou-lhe o dinheiro . Ele dobrou as notas num
chumaço e enfiou-as dentro do bolso da camisa sem sequer olhar
para elas . O White Lak.e , disse . Depois fechou a porta e desapareceu .
Nem sequer lhe ouviram os passos a afastar-se pela viela. O taxista
voltou-se no assento .
Usted quer ir até ao White Lak.e?
Não tenho mais dinheiro .
O taxista tamborilou com os dedos no espaldar do banco . Não tem
dinero nenhum?
Não .
O taxista abanou a cabeça. Não tem dinero , repetiu . Okay . Quer
voltar prà Avenida?
Não lhe posso pagar.
Não faz mal .
Ligou o motor e recuou pela viela fora, até à rua. Usted me paga
da próxima vez . O kay?
Okay .
Okay .

Quando passou diante do quarto de Billy, a luz estava acesa, e ele


parou e arredou a lona e olhou para o interior. Billy estava deitado
na cama. Baixou o livro que estava a ler e olhou por cima das pági­
nas e depois pousou-o .
O que é que ' tás a ler?
Destry . Onde é que 'tiveste?
Alguma vez foste a um lugar chamado White Lake?
Sim, fui . Uma vez .
É muito caro?
Cidades da Planície 71

É muito caro . Porquê?


' Tava aqui a pensar se havia de lá ir. Até amanhã.
Deixou a lona tombar e voltou-se e continuou pela coxia central
até ao seu quarto .
Acho melhor não pores os pés no White Lake , rapaz , gritou Billy.
John Grady abriu a cortina e procurou a corrente do candeeiro às
apalpadelas .
Não é lugar pra um cowboy .
Encontrou a corrente e puxou-a para acender a luz .
' Tás-me a ouvir?

Coxeou pelo corredor fora depois do pequeno-almoço , de chapéu


na mão . Mr Mac? chamou .
McGovem surgiu à porta do seu escritório . Tinha uns quantos
papéis na mão e mais alguns entalados debaixo do cotovelo . Entra,
rapaz , disse .
John Grady ficou parado no limiar. Mac estava atrás da secretária.
Entra, repetiu . De que é que precisas que eu não tenha?
Ergueu o rosto dos seus papéis . John Grady continuava parado na
soleira.
Queria saber se posso pedir um adiantamento do salário do mês
que vem .
Mac pegou na carteira. De quanto é que precisas .
Bom. Gostava de pedir cem, se pudesse ser.
Mac olhou para ele . Posso-te dar os cem , se tu quiseres, disse . O
que é que tens na ideia fazer pro mês que vem?
Eu cá me amanho .
Ele abriu a carteira e contou cinco notas de vinte . Bom , disse .
Acho que já tens idade que chegue pra governares a tua vida . Não é
nada da minha conta, pois não?
É só que eu precisava do dinheiro pra uma coisa.
' Tá certo .
Juntou as notas num maço e curvou-se para diante e pousou-as
sobre a secretária. John Grady entrou na divisão e pegou-lhes e
dobrou-as e enfiou-as no bolso da camisa.
Obrigado , disse .
Não tens de quê . Como é que ' tá o teu pé?
72 Cormac McCarthy

Vai bem .
Ainda o poupas um bocadinho , pelo que vejo.
Não há problema.
Ainda fazes tenções de comprar aquele cavalo?
Sim , senhor. Ainda.
Como é que percebeste que a poldra do Wolfenbarger tinha um
casco magoado?
Deu pra ver.
Ela não coxeava.
Não , senhor. Era a orelha .
A orelha?
Sim, senhor. De cada vez que aquela pata tocava no chão , uma
orelha mexia-se um bocadinho . Eu fiquei de olho nela.
Deitaste-te um bocado a adivinhar, como no póquer.
Sim, senhor. Mais ou menos .
Mas não quiseste ir mercadejar cavalos com o velhote , ainda assim.
Não , senhor. Ele é seu amigo?
Conheço-o . Porquê?
Por nada.
O que é que ias dizer?
Deixe ' tar.
Podes dizê-lo . Vá, desembucha.
Bom . Acho que ia dizer que não me parece que o conseguisse li-
vrar de sarilhos a trabalhar pra ele a tempo parcial .
Queres dizer que ia ser um trabalho a tempo inteiro?
Eu não disse isso .
Mac abanou a cabeça. Põe-te mas é a andar, disse .
Sim, senhor.
Não lhe disseste isso , pois não?
Não , senhor. Não cheguei a falar com ele .
Bom. É pena.
Sim, senhor.
Pôs o chapéu e deu meia-volta, mas tomou a parar junto à porta .
Obrigado , Mr Mac .
Vai-te lá embora. O dinheiro é teu .
Quando ele regressou , naquela noite , Socorro j á saíra da cozinha,
e não estava ninguém à mesa, excetuando o velho . Este estava a fu-
Cidades da Planície 73

mar um cigarro enrolado à mão e a ouvir as notícias na rádio . John


Grady foi buscar o seu prato e serviu-se de café e pousou a comida
na mesa e puxou a cadeira e sentou-se .
'Noite , Mr Johnson , saudou .
' Noite , rapaz .
Então , que novidades temos?
O velho abanou a cabeça . Debruçou-se sobre a mesa, até alcançar
o parapeito da janela, onde o rádio estava pousado , e desligou-o . Já
não há novidades nenhumas , declarou . Guerras e rumores de guer­
ras . Nem sei porque é que ouço isto . É um péssimo hábito , e quem
me dera conseguir acabar com ele , mas acho que ' tou cada vez pior.
John Grady verteu pico de gallo com uma colher sobre o arroz e
as flautas e enrolou uma tortilha e começou a comer. O velho
observava-o . Indicou as botas do rapaz com um aceno de cabeça.
Dá ideia que hoje andaste por terras lamacentas a valer.
Sim , senhor. Andei mesmo . Um bocado .
Esse barro gorduroso é difícil de limpar, agarra-se a tudo . O Oliver
Lee dizia sempre que tinha vindo pràqui porque esta terra era tão
desgraçada que ninguém mais a ia querer e iam-no deixar em paz e
sossego . É claro que se enganou . Pelo menos em relação a deixarem­
-no em paz e sossego .
Sim, senhor. Acho que se enganou .
Como é que vai o teu pé .
Vai bem.
O velho sorriu . Puxou uma fumaça do cigarro e soltou a cinza com
pancadinhas para dentro do cinzeiro sobre a mesa.
Não te deixes enganar pelas chuvadas boas que temos tido . Esta
terra ' tá-se a preparar pra secar, depois o vento leva-a toda.
Como é que sabe?
É mesmo assim.
Quer mais uma pinguinha de café?
Não , obrigado .
O rapaz levantou-se e foi até ao fogão e encheu a chávena e re­
gressou .
Esta terra já deu o que tinha a dar, declarou o velho . As pessoas é
que têm a memória curta. Se calhar ainda deviam de agradecer ao
exército por tomar conta disto enquanto é tempo .
74 Cormac McCarthy

O rapaz comia. Quanto é que acha que o exército vai expropriar?


O velho puxou uma fumaça do cigarro e esmagou a beata com ar
pensativo . Acho que eles vão ficar com a bacia de Tularosa inteira.
É o que me parece .
E podem expropriar assim?
Podem . Podem expropriar assim. As pessoas vão-se fartar de ber­
rar e de estrebuchar. Mas não têm outro remédio . Deviam ficar feli­
zes por lhes tirarem isto das mãos .
O que é que acha que Mr Prather vai fazer?
O John Prather vai fazer o que diz que vai fazer.
Mr Mac disse que ele os avisou de que a única maneira de sair
dali era num caixão .
Então é assim mesmo que ele vai sair. Podes apostar o que qui­
seres .
John Grady rapou o prato e recostou-se com a chávena de café na
mão . Não devia de lhe perguntar isto , começou .
Pergunta.
Não precisa de me responder.
Eu sei .
Quem é que acha que matou o coronel Fountain?
O velho abanou a cabeça. Ficou imóvel durante muito tempo .
Não devia de lhe ter perguntado .
Não . Não faz mal . Sabes que a filha dele também se chamava
Maggie . Foi ela quem disse ao Fountain que levasse o miúdo com
ele . Disse que não haviam de fazer mal a um rapaz de oito anos . Mas
enganou-se , não é verdade?
Sim, senhor.
Imensa gente acha que foi o Oliver Lee quem o matou . Eu conhe­
cia o Oliver bastante bem . Éramos da mesma idade . Ele próprio tinha
quatro filhos . Não me acredito , pronto .
Não lhe parece que ele fosse capaz disso?
Ainda vou mais longe . Digo que não foi ele .
Nem foi ele quem 'teve por trás do crime?
Bom. Isso já é outra história. Uma coisa é certa, ele não derramou
lágrimas pelo sucedido . Pelo coronel , pelo menos .
Não quer mesmo mais uma pinguinha de café?
Não , obrigado , rapaz . Ficava a noite inteira desperto .
Cidades da Planície 75

Acha que eles ainda ' tão enterrados por ali , num ermo qualquer?
Não . Não acho .
O que é que acha que aconteceu?
Sempre achei que tinham levado os corpos pro México . Os tipos
tinham duas alternativas : ou enterravam os corpos num ermo qual­
quer, a sul do desfiladeiro , onde alguém era bem capaz de os desco­
brir, ou então andavam mais cinquenta quilómetros até onde podiam
atirá-los pro abismo onde acaba o mundo , e acho que foi isso que
eles fizeram .
John Grady fez que sim com a cabeça. Beberricou o café . Alguma
vez se viu metido num tiroteio?
Sim. Uma vez . E já tinha idade pra ter juízo , diga-se de passagem .
Onde é que foi?
Lá em baixo , no rio , a leste de Clint. Foi em mil nove e dezassete ,
pouco antes de o meu irmão morrer, e 'távamos do lado errado do rio ,
à espera da noite pra trazer uns cavalos roubados que tínhamos recu­
perado , e vieram dizer à gente que eles 'tavam emboscados à nossa
espera. Esperámos , esperámos , e, ao fim dum certo tempo , a Lua
nasceu - só uma lasca de Lua, nem chegava a meia-lua. Subiu no
céu atrás de nós e vimo-la refletida no para-brisas do carro deles, no
meio das árvores que bordejavam a margem escarpada do rio . O Wen­
dell Williams olhou pra mim e disse: Temos duas luas no céu . Acho
que nunca vi tal coisa. E eu disse: Sim, e uma delas 'tá virada do
avesso . E abrimos fogo sobre eles com as nossas espingardas .
E eles ripostaram?
Claro que sim . Ali deitados , descarregámos mais ou menos uma
caixa de cartuchos cada um, e então eles puseram-se a andar.
Alguém ficou ferido?
Que eu tenha sabido , não . Acertámos no carro uma ou duas vezes.
Rebentámos com o para-brisas .
E conseguiram trazer os cavalos pra esta banda?
Conseguimos .
Quantas cabeças eram?
Ainda eram umas quantas . Praí umas setenta cabeças .
Isso é uma data de cavalos .
Era uma data de cavalos , sim. Pagaram-nos bom dinheiro , também .
Mas não compensou 'tarmos ali a servir de alvo pros outros fulanos .
76 Cormac McCarthy

Não , senhor. Calculo que não .


Desarranja um bocado a cabeça dum homem .
O quê , �r Johnson?
Dispararem contra a gente . Atirarem-nos terra pra cima. Folhas
desfeitas em pedaços . �uda o jeito de ver as coisas dum homem.
Talvez haja quem até goste . Eu nunca gostei .
O senhor não combateu na revolução?
Não .
�as ' tava lá em baixo , não ' tava?
Sim . Andava a ver se me punha a andar dali pra fora. Já lá ' tava
há demasiado tempo . Até me deu jeito que aquilo rebentasse . Uma
pessoa acordava numa vilória, num domingo de manhã, e lá ' tavam
eles no meio da rua , aos tiros uns aos outros . Não se conseguia per­
ceber nada daquilo . Vi jeitos de deixarmos lá a pele . Assisti a coisas
horríveis naquele país . Sonhei com aquilo durante anos .
Debruçou-se e apoiou os cotovelos na mesa e tirou os apetrechos
do bolso da camisa e enrolou outro cigarro e acendeu-o . Ficou senta­
do , a olhar para a mesa. Falou durante muito tempo . Referiu os nomes
das cidades e das aldeolas . Dos pueblos de adobe . As execuções con­
tra as paredes de adobe , salpicadas com sangue novo por cima das
manchas negras e secas do sangue antigo , e o pó fino da argila a es­
correr em fio dos buracos de balas na parede depois de os homens
terem caído e o fumo das espingardas a dispersar-se devagar e os
cadáveres amontoados nas ruas ou empilhados dentro das carretas de
rodas de madeira a avançar, rumorejantes , sobre o empedrado ou so­
bre as estradas de terra batida até às sepulturas anónimas . Havia mi­
lhares de homens que iam para a guerra vestidos com o único fato que
possuíam . O fato com que se tinham casado e com que iriam ser se­
pultados . Parados nas ruas de casaco e gravata e chapéu , atrás dos
fardos e das carroças viradas de pernas para o ar, a disparar as espin­
gardas que nem contabilistas enfurecidos . E as pequenas peças de
artilharia sobre rodas que deslizavam para trás na rua a cada obus e
era preciso correr a agarrá-las e o infindável tropel dos cavalos ao
encontro da morte , ostentando bandeiras ou estandartes ou as tapeça­
rias semelhantes a tendas pintadas com retratos da Virgem , alçadas
em varas para a batalha, como se a própria mãe de Deus fosse a au­
tora de toda aquela calamidade e pandemónio e loucura.
Cidades da Planície 77

O relógio de caixa alta no corredor bateu as dez horas .


Se calhar é melhor eu ir-me deitar, disse o velho .
Sim , senhor.
Levantou-se . Não é que eu goste muito , disse . Mas não há nada a
fazer.
Boa noite , Mr Johnson .
Boa noite .

O taxista fez questão de o acompanhar através do portão de ferro


forjado no muro alto de tijolo e pelo caminho acima, até à porta .
Como se a escuridão envolvente que formava os arrabaldes da ci­
dade constituísse uma ameaça. Ou as planuras desérticas em volta .
Puxou um cordão de campainha de veludo , numa reentrância do
arco , e deu um passo atrás , a trautear uma música. Olhou para John
Grady.
Se usted quer que eu espere , eu posso esperar.
Não . Não é preciso .
A porta abriu-se . Uma rececionista de traje de noite sorriu-lhes e
deu um passo atrás e segurou a porta . John Grady entrou e tirou o
chapéu , e a mulher falou com o taxista e depois fechou a porta e
virou-se . Estendeu a mão , e John Grady fez menção de alcançar o
bolso de trás das calças . Ela sorriu .
O seu chapéu , disse .
Ele entregou-lhe o chapéu , e ela fez um gesto a indicar a sala, e
ele voltou-se e entrou , alisando o cabelo com a palma da mão .
Havia um balcão à direita, para além de dois degraus, e ele trans­
pô-los e avançou por trás dos bancos , onde havia homens a beber e
a conversar. O balcão era de mogno , iluminado por uma luz suave , e
os barmen usavam pequenos casacos cor de vinho e laçarotes da
mesma cor. No salão , as rameiras repoltreavam-se em sofás de da­
masco vermelho e brocado cor de ouro . Usavam camisas de noite e
vestidos formais até aos pés e vestidos justos de cetim branco ou de
veludo púrpura com uma racha pela coxa acima e usavam sapatos de
cristal ou de ouro e sentavam-se em posturas estudadas , com as bo­
cas vermelhas a fazer beicinho na penumbra. Um candelabro com
pingentes de vidro facetado pendia do teto , e num estrado , à direita,
um trio de cordas tocava.
78 Cormac McCarthy

Ele caminhou até ao extremo mais afastado do balcão . Quando


pôs a mão no corrimão , o barman já estava diante dele , a pousar um
guardanapo no tampo .
Boa noite , meu senhor, saudou .
'Noite . Quero um Old Grandad e um copo de água à parte .
Com certeza .
O barman afastou-se . John Grady apoiou a bota no varão de latão
polido para os pés e pôs-se a observar as prostitutas no espelho do ex­
positor de bebidas . Os homens ao balcão eram, na sua maioria, mexica­
nos bem vestidos , juntamente com alguns americanos de camisas às
flores , feitas de um tecido imoderadamente fino . Uma mulher alta, de
vestido diáfano, atravessou o salão como o fantasma de uma prostituta.
Uma barata que estivera a caminhar ao longo do balcão, atrás das garra­
fas , subiu para o espelho, onde deparou consigo própria e se imobilizou .
Ele pediu outra bebida . O barman serviu-o . Quando tornou a olhar
para o espelho , ela estava sentada, sozinha, num sofá de veludo es­
curo , com o vestido espraiado em volta de si e as mãos muito com­
postas no regaço . Ele estendeu a mão para pegar no chapéu , sem tirar
os olhos dela. Chamou o barman .
La cuenta por favor.
Baixou os olhos . Lembrou-se de que deixara o chapéu com a rece­
cionista, à porta. Tirou a carteira do bolso e empurrou uma nota de
cinco dólares sobre o tampo de mogno e dobrou o resto das notas e
meteu-as no bolso da camisa. O barman trouxe-lhe o troco , e ele
empurrou um dólar para trás , na direção do homem , e voltou-se e
olhou para o outro extremo da sala, onde ela estava sentada. Ela pa­
recia franzina e perdida. Tinha os olhos fechados , e ele deu-se conta
de que ela estava a ouvir a música. Verteu o copito de whiskey para
dentro do copo de água e pousou o copito no balcão e pegou na sua
bebida e começou a atravessar a sala.
A sombra esbatida dele , sob as luzes do grande diadema de vidro
lá no alto , talvez a tenha arrancado aos seus devaneios . Ela ergueu o
rosto para ele e sorriu veladamente com a boca pintada de criança.
Ele esteve prestes a estender a mão para a aba do chapéu .
Olá, saudou . Importa-se que eu me sente?
Ela tornou a endireitar-se e alisou a saia para desimpedir o assen­
to do sofá, a seu lado . Um empregado avançou das sombras ao longo
Cidades da Planície 79

das paredes e pousou dois guardanapos na mesa baixa de vidro dian­


te deles e perfilou-se .
Traga-me um Old Grandad e um copo de água à parte . E o que ela
'tiver a beber.
O homem acenou com a cabeça e afastou-se . John Grady olhou
para a rapariga. Ela debruçou-se e tomou a alisar a saia.
Lo siento , disse . Pero no hablo inglês .
Está bien . Podemos hablar espaiiol.
Oh , disse ela. Qué bueno .
Qué es su nombre ?
Magda/ena . Y usted?
Ele não respondeu . Magda/ena , repetiu .
Ela baixou os olhos . Como se o som do próprio nome a perturbasse .
Es su nombre de pila ? perguntou ele .
Sí. Por supuesto .
No es su nombre . . . su nombre profesional.
Ela levou a mão à boca. Oh , disse . No . Es mi nombre propio .
Ele observou-a. Disse-lhe que a tinha visto na La Venada, mas ela
limitou-se a assentir com a cabeça e não pareceu espantada. O em­
pregado chegou com as bebidas , e ele pagou-lhe e deu-lhe um dólar
de gorjeta. Ela não tocou na sua bebida, nem naquele momento , nem
depois . Falava tão baixo que ele tinha de se debruçar para lhe ouvir
as palavras . Disse que as outras mulheres estavam a olhar, mas que
não fazia mal . Era só porque ela era nova naquela casa. Ele fez que
sim com a cabeça. No importa , disse .
Ela perguntou-lhe porque é que ele não falara com ela na La Ve­
nada. Ele explicou que era por estar com os amigos . Ela perguntou­
-lhe se ele tinha alguma paixoneta na La Venada, mas ele disse que
não .
No me recuerda ? perguntou ele .
Ela abanou a cabeça. Ergueu o rosto . Ficaram os dois em silêncio.
Cuántos aiios tiene ? perguntou ele .
Bastantes .
Ele disse que não fazia mal se ela não quisesse dizer, mas ela não
respondeu . Sorriu com ar melancólico . Tocou-lhe na manga. Fue men­
tira , observou . Lo que decía .
Cómo ?
80 Cormac McCarthy

Ela disse que era mentira não se lembrar dele . Disse que ele estava
parado junto ao balcão e que ela pensara que ele viria falar com ela,
mas que ele não viera e que , quando ela olhara outra vez , ele tinha
desaparecido .
Verdad?
Sí.
Ele disse que , na realidade , ela não mentira. Disse que ela se limi­
tara a abanar a cabeça, mas ela tomou a abanar a cabeça e disse que
essas eram as piores mentiras de todas . Perguntou-lhe porque é que
viera ao White Lake sozinho , e ele olhou para as bebidas intactas na
mesa diante deles e pensou acerca disso e acerca das mentiras e
virou-se e olhou para ela.
Porque la andaba buscando , explicou . Ya tengo tiempo buscándola .
Ela não respondeu .
Y cómo es que me recuerda ?
Ela desviou o rosto quase por completo , quase sussurrou . También
yo , disse .
Mande ?
Ela voltou-se e olhou para ele . También yo .
No quarto , virou-se e fechou a porta atrás deles . Ele nem se con­
seguia lembrar de como haviam chegado ali . Lembrava-se da mão
dela na dele , pequena e fria, uma sensação tão estranha. A luz frag­
mentada em prismas do candelabro a correr num rio sobre os ombros
nus de Magdalena quando passaram por baixo . Quase aos tropeções
na esteira dela, como uma criança.
Ela foi até junto da cabeceira da cama e acendeu duas velas e de­
pois apagou a luz . Ele estava parado no quarto , com as mãos junto
às ilhargas . Ela levou as mãos à nuca e soltou o colchete do vestido
e puxou para baixo o fecho de correr. Ele começou a desabotoar a
camisa. O quarto era pequeno , e a cama enchia-o quase por comple­
to . Era uma cama com colunas nos cantos, dossel e cortinas de or­
ganza cor de vinho , e as velas brilhavam através do tecido sobre as
almofadas com uma luz avinhada.
Ouviram-se pancadas suaves na porta.
Tenemos que pagar, disse ela.
Ele tirou do bolso as notas dobradas . Para la noche , disse .
Es muy caro .
Cidades da Planície 81

Cuánto ? Estava a contar as notas . Tinha oitenta e dois dólares . Es­


tendeu-lhe o dinheiro . Ela olhou para as notas e olhou para ele . Toma­
ram a ouvir-se as pancadas .
Dame cincuenta , disse ela.
Es bastante ?
Sí, sí. Ela pegou no dinheiro e abriu a porta e estendeu as notas e
disse qualquer coisa em surdina ao homem do outro lado . Ele era
alto e magro e fumava um cigarro com uma boquilha de prata e ves­
tia uma camisa de seda negra. Olhou para o cliente durante um breve
momento através da porta entreaberta e contou o dinheiro e assentiu
com a cabeça e virou costas e ela fechou a porta. Tinha as espáduas
nuas muito pálidas à luz das velas no ponto em que o vestido estava
aberto . O cabelo negro cintilava-lhe . Voltou-se e retirou os braços
das mangas do vestido e agarrou a parte da frente diante de si . Saiu
do meio da poça de tecido amarrotado e estendeu o vestido sobre
uma cadeira e avançou para trás das cortinas semelhantes a gaze e
arredou as cobertas da cama e depois soltou dos ombros as alças da
combinação e deixou-a tombar e entrou nua na cama e puxou a col­
cha de cetim até ao queixo e voltou-se sobre o flanco e pôs o braço
por baixo da cabeça e ficou deitada a olhá-lo .
Ele despiu a camisa e ficou parado , procurando com os olhos um
lugar para a pousar.
Sobre la si/la , sussurrou ela.
Ele dobrou a camisa sobre a cadeira e sentou-se e descalçou as
botas e enfiou as peúgas nos canos das botas e afastou as botas para
o lado e pôs-se de pé e desafivelou o cinto . Atravessou o quarto , todo
nu , e ela estendeu a mão e arredou as cobertas para ele , e ele deslizou
para baixo dos lençóis tingidos e apoiou a cabeça na almofada e er­
gueu os olhos para o dossel suavemente pregueado . Voltou-se e
olhou para ela . Ela não tirara os olhos dele . Ele levantou o braço , e
ela deslizou contra ele a todo o comprimento do seu corpo macio e
nu e fresco . Ele agarrou-lhe o cabelo negro e derramou-o sobre o
próprio peito como uma bênção .
Es casado ? perguntou ela.
No .
Perguntou-lhe porque é que ela queria saber. Ela ficou em silêncio
durante alguns momentos . Depois disse que seria um pecado mais
82 Cormac McCarthy

grave se ele fosse casado . Ele refletiu acerca disto . Perguntou-lhe se


era mesmo por isso que ela queria saber, mas ela respondeu que ele
estava a querer saber demasiado . Depois, debruçou-se e beijou-o . Ao
alvorecer, ele abraçou-a enquanto ela dormia e não teve necessidade
de lhe perguntar fosse o que fosse .
Ela acordou enquanto ele se estava a vestir. Ele calçou as botas e
foi até junto da cama e sentou-se na borda e encostou-lhe a mão à
face e alisou-lhe o cabelo . Ela voltou-se , meio adormecida, e ergueu
os olhos para ele . As velas nos seus castiçais tinham-se consumido
por completo , e os pedacinhos de pavio jaziam enegrecidos nas for­
mas rendilhadas de cera.
Tienes que irte ?
Sí.
Vas a regresar?
Sí.
Ela examinou-lhe os olhos para saber se ele estava a dizer a ver-
dade . Ele debruçou-se e beijou-a.
Vete con Dios , sussurrou ela.
Y tú.
Ela apertou-o nos braços e puxou-o contra o peito e depois soltou­
-o, e ele pôs-se de pé e foi até à porta. Virou-se e ficou parado , a olhar
para ela.
Diz o meu nome , pediu .
Ela estendeu os braços e afastou a cortina do dossel . Mande ? per-
guntou .
Di mi nombre .
Ela segurava a cortina, ali deitada. Tu nombre es Juan , disse .
Sim , disse ele . Depois fechou a porta e percorreu o corredor.
O salão estava vazio . Cheirava a fumo cediço e a fermento adoci­
cado e aos perfumes esbatidos de lilás e de rosas das rameiras desa­
parecidas . Não estava ninguém ao balcão . À luz cinzenta viam-se
nódoas no tapete , arestas coçadas nos braços da mobília, queimadu­
ras de cigarros. No vestíbulo , soltou o trinco da meia-porta pintada e
entrou no pequeno bengaleiro e pegou no chapéu . Em seguida, abriu
a porta da frente e saiu para o frio da manhã.
Ali , nos arrabaldes da cidade , uma paisagem de choupanas baixas ,
feitas de zinco e de madeira de caixotes . Terrenos baldios de poeira e
Cidades da Planície 83

saibro e , mais além , as planícies de salva e creosotes. Os galos canta­


vam , e o ar cheirava a carvão de lenha a arder. Ele orientou-se pela
luz cinzenta a leste e rompeu na direção da cidade . No alvorecer frio,
as luzes ainda ardiam lá longe , sob a capa escura das montanhas , com
aquela insularidade preciosa comum às cidades do deserto . Um ho­
mem vinha a calcorrear a estrada, tangendo um burro carregado com
uma pilha alta de lenha. Na lonjura, os sinos das igrejas tinham come­
çado a soar. O homem lançou-lhe um sorriso matreiro . Como se par­
tilhassem um segredo , aqueles dois. Qualquer coisa acerca da velhice
e da juventude e das exigências de uma e de outra e da justiça dessas
exigências . E das exigências de que uma e outra são alvo . O mundo
passado , o mundo que está para vir. A efemeridade que ambos parti­
lham . Acima de tudo , o conhecimento , no mais íntimo do ser, de que
a beleza e a perda se confundem .

A velha criada zarolha foi a primeira a chegar junto dela, trotou


estoicamente pelo corredor fora de chinelos estragados e abriu a
porta de repelão e deparou com ela na cama, arqueada e a debater-se
furiosamente como se um qualquer íncubo estivesse a acometê-la. A
velha trazia as chaves amarradas por uma tira de couro a um curto
pedaço de cabo de vassoura, e embrulhou o pau com um rápido en­
rolar das roupas da cama e enfiou-o à força entre os dentes da rapa­
riga . A rapariga arqueou o corpo , muito hirta , e a criada trepou para
cima da cama e empurrou-a para baixo e segurou-a. Uma segunda
mulher surgira à porta , trazendo um copo de água, mas ela mandou­
-a embora com um agitar da cabeça .
Es como una mujer diabólica , observou a mulher.
Vete , bradou a criada . No es diabólica . Vete .
Mas as rameiras da casa estavam a acotovelar-se no vão da porta
e começaram a abrir caminho até ao interior, todas com os rostos
besuntados de creme e papelotes nos cabelos e vestidas com as suas
roupas de dormir heteróclitas e reuniram-se em volta da cama , sol­
tando clamores , e uma delas adiantou-se com uma estátua da Virgem
e ergueu-a acima da cama, e outra pegou numa das mãos da rapariga
e começou a amarrá-la à coluna da cabeceira da cama, usando a fai­
xa do seu roupão . A rapariga tinha a boca ensanguentada, e algumas
das rameiras chegaram-se à frente e embeberam os lenços de assoar
84 Cormac McCarthy

no sangue , como que para o limpar, mas esconderam os lenços nos


bolsos para os levar consigo , e a boca da rapariga continuava a san­
grar. Soltaram-lhe o outro braço e amarraram-no também, e algumas
delas estavam a entoar cânticos e algumas estavam a benzer-se , e a
rapariga arqueou as costas e debateu-se e depois ficou hirta, de olhos
brancos . As outras tinham trazido pequenas imagens dos seus quar­
tos e sacrários votivos de folha dourada e gesso pintado , e algumas
estavam atarefadas a acender velas quando o proprietário do estabe­
lecimento apareceu à porta em mangas de camisa.
Eduardo! Eduardo! gritaram elas . Ele entrou no quarto em passa­
das largas , afastando-as com as costas da mão . Varreu para o chão os
ícones e as velas e agarrou a velha criada por um braço e atirou-a
para trás .
Basta! gritou . Basta!
As prostitutas aglomeraram-se , a choramingar, agarrando os rou­
pões em volta dos seios bamboleantes . Recuaram para a porta. Ape­
nas a criada não arredou pé .
Por qué estás esperando ? sibilou ele .
O olho solitário dela pestanejou . Ela recusava desviar-se .
Ele sacara, algures das suas roupas , uma navalha italiana de ponta
e mola com punhos de ónix negro e virola de prata, e debruçou-se e
cortou as faixas que prendiam os pulsos da rapariga e agarrou as co­
bertas e puxou-as para cima, cobrindo-lhe a nudez , e fechou a navalha
e ocultou-a tão silenciosamente como a fizera surgir.
No la moleste , sibilou a criada . No la moleste .
Cállate .
Golpéame si tienes que golpear a alguien .
Ele virou-se e agarrou a velha pelos cabelos e levou-a de rojo até à
porta e empurrou-a para o corredor, para junto das rameiras , e fechou
a porta atrás dela. Tê-la-ia trancado, mas aquelas portas só se tranca­
vam pelo lado de fora. A velha, mesmo assim, não tomou a entrar,
antes ficou na soleira, a gritar que precisava das chaves . Parado, ele
olhava para a rapariga. O pedaço de cabo de vassoura caíra-lhe da bo­
ca e jazia nos lençóis manchados de sangue. Ele pegou-lhe e foi até à
porta e abriu-a. A velha encolheu-se e ergueu um braço , mas ele limi­
tou-se a atirar as chaves para o fundo do corredor, fazendo-as estralejar
e retinir no chão , e depois tomou a fechar a porta com estrondo .
Cidades da Planície 85

Ela respirava serenamente , ali deitada. Havia um pano caído na


cama , e ele pegou-lhe e segurou-o durante alguns momentos , quase
como se fosse debruçar-se para lhe limpar o sangue da boca, mas
depois atirou-o também para longe e deu meia-volta e olhou mais
uma vez para a balbúrdia que reinava no quarto e praguejou em voz
baixa e saiu e fechou a porta atrás de si .

Ward trouxe o garanhão para fora da baia e começou a percorrer a


coxia central do estábulo com ele . O garanhão parou a meio da coxia
e ficou ali parado , a tremer, e deu pequenos passos , como se o chão
debaixo das suas patas se tivesse tomado instável . De pé junto do
garanhão , Ward falou com ele , e o garanhão sacudiu a cabeça para
cima e para baixo , numa espécie de anuência frenética . Já antes ti­
nham percorrido aquela via-sacra , mas o garanhão não se mostrava
por isso menos desvairado , nem Ward menos paciente . Conduziu o
cavalo a caracolar diante das baias , onde os outros cavalos descre­
viam círculos e reviravam os olhos .
John Grady estava a segurar a égua com um aziar, e , quando o
garanhão entrou na estala, ela tentou empinar-se . Virou-se no extre­
mo da corda e disparou um coice com uma pata traseira e depois
tomou a tentar empinar-se .
Ora aqui ' tá uma égua bem bonita, comentou Ward .
Sim, senhor.
O que é que aconteceu ao olho dela?
O tipo que era dono dela vazou-lho com um pau .
Ward conduziu o garanhão de olhos esgazeados em volta do perí-
metro da estala. Vazou-lho com um pau , repetiu .
Sim, senhor.
Mas depois não o conseguiu pôr outra vez no lugar, pois não?
Não , senhor.
Pronto , disse Ward . Vamos lá, pronto . Linda égua .
É verdade , disse John Grady. É mesmo linda.
Ele conduziu o garanhão para diante aos repelões . A eguazita re­
virou o olho são até ficar tão branco como o olho cego . JC e outro
homem tinham entrado na baia e fechado a porta atrás deles. Ward
virou-se e olhou por cima das cabeças deles, para além dos tabiques
das baias .
86 Cormac McCarthy

Não vos volto a avisar, gritou . Toca a andar pra casa, como eu
mandei .
Duas adolescentes saíram do estábulo e começaram a cruzar o ter­
reiro em direção à casa.
Onde é que ' tá o Oren? perguntou Ward .
John Grady voltou-se com a égua, que saltitava nervosamente . Es­
tava totalmente debruçado sobre o dorso dela e tentava evitar que ela
lhe pisasse os pés .
Teve de ir a Alamogordo .
Segura-a bem , avisou Ward . Segura-a.
O garanhão empinou-se , com o grande falo a oscilar.
Segura-a, insistiu Ward .
Já 'tá.
Ele sabe onde é que é.
A égua deu um pinote e desferiu um coice com uma pata. À ter­
ceira tentativa, o garanhão montou-a, a içar-se a custo , a bater com
os cascos traseiros no chão , as grandes coxas a palpitar e as veias
salientes . John Grady segurava tudo isto diante dele na ponta de uma
corda retorcida como uma criança que segurasse por um cordel uma
quimera arquejante a debater-se , invocada por artes de feitiçaria do
seio do vazio para o mundo diurno estupefacto . Com o aziar preso
num punho fechado , encostou o rosto ao pescoço coberto de suor.
Ouviu os foles vagarosos dos pulmões dela e sentiu o sangue a pul­
sar. Ouviu o bater pausado e surdo do coração dentro dela como um
motor nas profundezas de um navio .
Ele e JC meteram a égua no atrelado . Ela parece-te emprenhada?
perguntou JC .
Não sei .
Ele vergou-lhe o dorso , não foi?
Ergueram o taipal traseiro do atrelado e prenderam-no dos dois la­
dos . John Grady voltou-se e encostou-se ao atrelado e limpou o rosto
com o lenço e tornou a puxar o chapéu sobre os olhos .
O Mac já vendeu o poldro .
Só espero que não tenha gastado a massa.
Ah , sim?
Ela já foi coberta duas vezes e não emprenhou .
Pelo garanhão do Ward?
Cidades da Planície 87

Não .
Eu cá aposto tudo no padreador do Ward .
O Mac também.
' Tamos prontos?
' Tamos prontos . Queres dar um saltinho à cantina?
Pagas tu?
Raios , soltou JC . Julguei que te ia convencer a fazeres equipa comi­
go no shu.ffleboard. Pra termos hipótese de melhorar a nossa posição
financeira.
Da última vez que alinhei nisso , a posição em que acabámos não
foi propriamente financeira.
Entraram na carrinha.
' Tás sem cheta, verdade? perguntou JC .
Não tenho um tostão furado .
Arrancaram vagarosamente pelo caminho abaixo . O atrelado es-
tralejava atrás deles . Troy contava os trocos na palma da mão .
Tenho que chegue pra duas cervejas a cada um, declarou .
Deixa ' tar.
'Tou pronto a estoirar tudo , um dólar e trinta e cinco cêntimos
inteirinhos .
O melhor é voltarmos pra casa e pronto .

Viu Billy a cavalgar ao longo da linha da vedação , descendo a partir


do ponto onde esta assomava no cômoro , sobre o pano de fundo das
dunas vermelhas . Ele passou adiante e depois sofreou as rédeas e olhou
ao longe , para o terreno escalavrado pelo vento, e virou-se e olhou
para John Grady. Debruçou-se e escarrou .
Terra agreste , comentou .
Terra agreste .
Dantes havia aqui erva grama até aos estribos dum cavalo .
Já ouvi dizer. Tornaste a ver aquele rebanho?
Não . Espalharam-se por aí, sabe Deus por onde , e vá lá alguém
encontrá-los . Ariscos que nem veados. Um homem precisa de três
cavalos pra andar por estas bandas um dia inteiro .
Porque é que não subimos pelo barranco de Bell Springs .
'Tiveste lá a semana passada?
Não .
88 Cormac McCarthy

Vamos a isso .
Atravessaram a planície vermelha de creosotes e começaram a
trepar ao longo do arroyo seco , sobre o manto de cascalho vermelho .
John Grady Cole era um tipo sem igual , cantou Billy.
O trilho sulcava através da rocha e conduzia ao leito seco de uma
torrente . A poeira assemelhava-se a pó de talco encarnado .
Com cu de guta-percha e barriga de cabedal .
Uma hora depois , pararam os cavalos junto à nascente . O gado
tinha ali estado e tomara a partir. Havia rastos húmidos no extremo
sul da ciénega e rastos húmidos no trilho que conduzia para sul ,
descendo pelo flanco da crista.
Há pelo menos dois vitelos novos com esta manada, declarou Billy.
John Grady não respondeu . Os cavalos ergueram as bocas gotejan­
tes da água, um e depois o outro , e resfolegaram e curvaram o pes­
coço e tomaram a beber. As folhas mortas presas aos choupos alva­
centos e retorcidos roçagavam ao vento . Num planalto acima das
nascentes erguia-se uma casinha de adobe , havia já muitos anos em
ruínas . Billy tirou os cigarros do bolso da camisa e sacudiu o maço
para soltar um e encurvou as espáduas para diante e acendeu-o .
Dantes, eu sonhava ter uma quintarola no alto da serra, num lugar
assim como este . Criar umas quantas cabeças . Matar a minha caça
pra comer. Esse género de coisa.
Ainda és capaz de vir a ter.
Duvido .
Nunca se sabe .
Uma vez , invernei num acampamento nos confins dum rancho ,
aqui no Novo México , mais pra norte . Ao fim dum certo tempo , uma
pessoa farta-se um bocado da própria companhia. Eu cá não repetia
a experiência, se pudesse evitar. Por pouco não morri congelado
naquele raio daquela choupana. O vento arrancava-me o chapéu da
cabeça dentro de casa.
Puxou uma fumaça. Os cavalos ergueram as cabeças e olharam ao
longe . John Grady soltou o latigo que prendia a corda de laçar e
tomou a atá-lo . Achas que gostavas de ter vivido nos velhos tempos?
perguntou .
Não . Quando era miúdo , achava que sim . Achava que andar a
correr atrás duma manada de vacas escanzeladas num cu-de-Judas
Cidades da Planície 89

qualquer era a coisa mais parecida com o Paraíso a que um homem


podia chegar. Agora já não dou grande valor a isso , a bem dizer.
Achas que eles eram duma raça mais rija naquela época?
Mais rija ou mais burra?
As folhas secas restolhavam . O crepúsculo aproximava-se , e Billy
abotoou o casaco para se proteger do frio .
Eu era capaz de aqui morar, disse John Grady.
Moço e ignorante como és , é provável que fosses .
Acho que havia de gostar.
Eu digo-te de que é que gosto .
De quê?
Quando um tipo carrega no interruptor e as luzes se acendem .
Pois .
Quando penso no que queria em miúdo e no que quero agora, não
são a mesma coisa. Acho que o que eu queria não era o que eu queria.
'Tás pronto?
Sim. ' Tou pronto . O que é que queres agora?
Billy falou com o cavalo e torceu as rédeas para o fazer dar meia­
-volta. Ficou ali parado e olhou para a casinha de adobe atrás de si e
para a paisagem azul que se estendia aos pés deles , a arrefecer. Raios ,
disse . Não sei o que é que quero . Nunca soube .
Cavalgaram para casa ao lusco-fusco . As silhuetas escuras do ga-
do afastavam-se mal-humoradamente diante deles.
Isto é a retaguarda daquela manada, disse Billy.
Pois é .
Cavalgaram e m frente .
Quando somos moços , temos certas ideias sobre como as coisas
vão ser, explicou Billy. Crescemos um bocadinho e começamos a ser
mais cautelosos . Acho que , no fim de contas , acabamos a tentar res­
tringir a dor. Seja como for, esta terra já não é a mesma . Nem nada
do que aqui há é o mesmo . A guerra mudou tudo . Acho que as pes­
soas ainda nem sequer perceberam .
O céu a oeste escurecia. Um vento frio soprava. Eles avistavam a
aura das luzes da cidade a assomar a sessenta e cinco quilómetros dali .
Tens de te agasalhar melhor do que isso , aconselhou Billy.
Eu ' tou bem . Em que é que a guerra mudou as coisas?
Mudou , pronto . Já não é como antes. Nem nunca mais vai ser.
90 Cormac McCarthy

Parado à porta das traseiras , Eduardo fumava um dos seus charu­


tos esguios , a olhar para a chuva. Um armazém de chapa ondulada
erguia-se atrás do edifício , e não havia ali muita coisa para ver, à
parte a chuva e as poças negras de água no chão da viela onde a
chuva caía e a luz suave da lâmpada amarela enroscada no bocal por
cima da porta dos fundos . O ar estava fresco . O fumo pairava à luz .
Uma rapariga que coxeava, apoiando-se numa perna mirrada, passou
no corredor, carregada com uma grande braçada de roupa de cama
suja. Ao fim de um certo tempo , ele fechou a porta e voltou para trás ,
caminhando pelo corredor até ao seu escritório .
Quando Tiburcio bateu à porta, ele nem sequer se virou . Ade/ante ,
disse . Tiburcio entrou . Aproximou-se da secretária e contou dinheiro
sobre o tampo . A secretária era de vidro cintilante e madeira de uma
árvore de fruto , e havia um sofá de cabedal branco contra uma pare­
de e uma mesinha baixa de vidro e metal cromado e havia um peque­
no balcão contra a outra parede , com quatro bancos também de ca­
bedal branco . A alcatifa que cobria o chão tinha um tom creme
intenso . O alcahuete acabou de contar o dinheiro e ficou à espera, de
pé . Eduardo voltou-se e olhou para ele . O alcahuete fez um sorriso
minguado sob o bigode fino . O cabelo negro e besuntado de brilhan­
tina cintilava-lhe à luz suave . A camisa negra exibia um lustre aceti­
nado por ter sido engomada com um ferro demasiado quente .
Eduardo prendeu o charuto entre os dentes e foi até junto da secre­
tária. Ficou a olhar para o tampo . Espalhou num leque , com a mão
esguia e adornada de joias , as notas que se encontravam em cima do
vidro , e tirou o charuto dos dentes e ergueu o rosto .
El mismo muchacho ?
El mismo .
Franziu os lábios, assentiu com a cabeça. Bueno , disse . Ándale .
Depois de Tiburcio sair, ele destrancou a gaveta da secretária e
tirou do interior uma carteira de cabedal de forma alongada com
uma corrente pendente e enfiou as notas na carteira e tomou a me­
ter a carteira na gaveta e trancou-a de novo . Abriu o livro de regis­
to e anotou lá uma entrada e fechou-o . Em seguida , foi até à porta
e ficou a fumar em silêncio e a olhar para fora , para o extremo do
Cidades da Planície 91

corredor. Com a s mãos entrelaçadas atrás de s i , ao fundo das cos­


tas , numa postura que ele talvez tivesse admirado noutrem ou cuja
descrição tivesse lido algures, mas uma postura nativa de outro
país , não do seu .

O mês de novembro passou , e ele viu-a somente mais uma vez .


O alcahuete veio até à porta e bateu com os nós dos dedos na madei­
ra e afastou-se , e ela disse que ele tinha de se ir embora. Ele segurou
as mãos dela nas suas , ambos sentados de pernas cruzadas como al­
faiates e vestidos dos pés à cabeça no centro da cama de dossel .
Curvava-se para diante e falava com ela muito depressa e com gran­
de fervor, mas ela limitava-se a dizer que era demasiado perigoso , e
depois o alcahuete bateu outra vez à porta e não se afastou .
Prométeme , instou ele . Prométeme .
O alcahuete bateu com o pomo da mão fechada. Ela agarrou-lhe a
mão , de olhos muito abertos .
Debes salir, sussurrou .
Prométeme .
Sí. Sí. Lo prometo .
Quando passou pelo salão , estava quase vazio . O pianista cego que
substituía o trio de cordas àquelas horas tardias estava sentado no mo­
cho , mas não estava a tocar. A filha, uma rapariga nova, encontrava-se
de pé ao lado dele . Sobre o piano via-se o livro que ela lhe estivera a
ler enquanto ele tocava. John Grady cruzou a sala e tirou do bolso o
seu penúltimo dólar e deixou-o cair dentro do copo vazio em cima do
piano . O maestro sorriu e fez uma ligeira vénia. Gracias , agradeceu .
Cómo estás , saudou John Grady.
O velho sorriu de novo . Meu jovem amigo , disse . Como vai? Está
tudo bem consigo?
Sim, obrigado . E você?
O outro encolheu os ombros . Os ombros magros subiram-lhe den­
tro do tecido negro e mortiço do fato e tornaram a tombar. Estou
bem , respondeu . Estou bem .
Já acabou o trabalho por esta noite?
Não . Vamos agora jantar.
É muito tarde .
Ah , sim . É tarde .
92 Cormac McCarthy

O velho falava um inglês do Velho Mundo , uma linguagem de


outro lugar, de outra época. Firmou-se bem e pôs-se de pé e voltou­
-se com gestos hirtos .
Quer vir connosco?
Não , obrigado . Tenho de ir andando .
E que tal tem corrido a sua corte?
Ele não sabia ao certo se entendera a pergunta. Examinou as pala­
vras no seu espírito . A rapariga, disse .
O velho acenou com a cabeça, em sinal de assentimento .
Não sei , disse John Grady. 'Tá a correr bem, parece-me . Espero
que sim.
É um esforço incerto , acudiu o velho . Tem de ser perseverante .
Perseverar é tudo .
Sim, senhor.
A rapariga tirara o chapéu do pai de cima do piano e estava a
segurá-lo . Pegou-lhe na mão , mas ele não fez menção de partir. Em
vez disso , voltou-se para a sala, deserta à parte duas prostitutas e um
bêbedo junto ao balcão . Somos amigos , disse .
Sim, senhor, anuiu John Grady. Não sabia ao certo a quem é que
o velho se estava a referir.
Posso confidenciar-lhe uma coisa?
Sim.
Creio que ela lhe tem afeto . Levou aos lábios um dedo delicado e
amarelecido .
Obrigado . Fico-lhe muito grato .
É claro . Estendeu a mão , com a palma para cima, e a rapariga pôs­
-lhe a aba do chapéu entre os dedos , e ele pegou-lhe com as duas
mãos e virou-se e pô-lo na cabeça e ergueu os olhos .
Acha que ela é boa pessoa? perguntou John Grady.
Ai , credo , disse o velho . Ai , credo .
Eu acho que sim .
Ai , credo , repetiu o velho .
John Grady sorriu. Vou deixá-lo j antar descansado . Dirigiu um
aceno de cabeça à rapariga e deu meia-volta para partir.
A maleita dela , disse o velho . O meu amigo sabe da maleita dela?
Ele virou-se . Como? perguntou .
Pouco se sabe . Há imensa superstição . Aqui , as pessoas estão di­
vididas em dois campos. Algumas têm uma perspetiva benigna, ou-
Cidades da Planície 93

tras não . Compreende . Mas eis a minha convicção . Estou convicto


de que ela é, no melhor dos casos , uma visita. No melhor dos casos .
O lugar dela não é aqui . Entre nós .
Sim, senhor. Eu sei que o lugar dela não é aqui .
Não , acudiu o velho . Não é desta casa que estou a falar. Estou a
falar daqui . Entre nós .
Ele regressou através das ruas . Levando consigo as palavras do ce­
go acerca das suas perspetivas como se fossem um contrato com o
mundo futuro . Apesar do frio , os habitantes de Juárez estavam parados
diante das portas abertas , a fumar ou a falar uns com os outros em voz
alta. Ao longo das ruas arenosas de terra batida, os bufarinheiros no­
turnos empurravam os seus carrinhos sacolejantes ou tangiam os pe­
quenos burros na sua frente . Apregoavam leeen-ya . Apregoavam que­
ro-seeen-a . A palmilhar as ruas mergulhadas na escuridão e a chamar
em altos brados como velhos pretendentes , eles próprios em busca de
donzelas há muito alheias aos seus apelos .
II

Ele esperou , mas ela não veio . Ficou à janela, com as pregas da ren­
da antiga amarfanhadas na mão , e contemplou a vida nas ruas . Qualquer
um que tivesse erguido os olhos para o ver ali , atrás das vidraças desa­
linhadas e cobertas de poeira, teria adivinhado a história dele . A tarde
aquietou-se . Do outro lado da rua, um comerciante fechou e trancou os
taipais metálicos da sua loja de ferragens . Um táxi parou diante do ho­
tel , e ele encostou o rosto à vidraça fria, mas não conseguiu ver se al­
guém saiu do carro . Voltou-se e foi até à porta e abriu-a e caminhou até
ao alto da escada, onde podia olhar para o átrio, lá em baixo . Ninguém
apareceu . Quando voltou para dentro do quarto e tomou a aproximar-se
da janela, o táxi partira. Sentou-se na cama. As sombras alongaram-se .
Ao fim de um certo tempo , ficou escuro no quarto , e o néon verde do
letreiro do hotel acendeu-se do lado de fora da janela, e, ao fim de um
certo tempo , ele levantou-se e pegou no chapéu , que estava pousado em
cima da cómoda, e saiu . Virou-se ao chegar à porta e tomou a olhar
para dentro do quarto e depois puxou a porta, fechando-a atrás de si . Se
tivesse ali ficado mais um bocadinho, ter-se-ia cruzado com a criada La
Tuerta na escadaria encardida, em vez de o fazer no átrio , como veio a
acontecer, ele um qualquer hóspede , ela uma qualquer velha com um
olho leitoso a afadigar-se, vinda da rua. Ele saiu para o crepúsculo fres­
co e ela subiu as escadas , ofegante , e bateu à porta e esperou e tomou a
bater. Uma porta ao fundo do corredor abriu-se , e um homem pôs a
cabeça de fora. Disse-lhe que precisava de toalhas .

*
Cidades da Planície 95

Ele estava deitado na cama rude , a fitar as tábuas toscamente ser­


radas do teto do cubículo , quando B illy surgiu e ficou parado no vão
da porta. Estava ligeiramente ébrio . Tinha o cabelo atirado para a
nuca. O que é que contas , cowboy , saudou .
Viva, Billy.
Como é que vais?
Vou bem , obrigado . Onde é que vocês foram?
Fomos a um baile em Mesilla.
Quem é que foi?
Todos menos tu .
Sentou-se no vão da porta e encostou à ombreira a sola de uma
bota e tirou o chapéu e pô-lo no joelho e encostou a cabeça para trás .
John Grady olhou-o .
Dançaste?
Dancei que nem um perdido .
Não sabia que eras um dançarino de truz .
E não sou .
Dás o teu melhor, é isso?
Só visto , que contado não se acredita . O Oren diz-me que aquele
cavalo chalupa de quem tu tanto gostas já te vem comer à mão .
Isso talvez seja um certo exagero .
O que é que tu lhes dizes?
A quem?
Aos cavalos .
Não sei . A verdade .
Deve de ser um segredo do ofício .
Não .
Como é que se pode mentir a um cavalo?
Voltou-se e olhou para John Grady. Não sei , respondeu o rapaz .
'Tás-me a perguntar como é que se mente ou como é que consegui­
mos arranjar ânimo pra mentir?
Como é que se mente .
Não sei . Acho que tem que ver com o que nos vai no coração , mais
nada .
Achas que um cavalo sabe o que nos vai no coração?
Acho . Tu não?
Billy não respondeu . Ao fim de um certo tempo , disse : Sim. Acho
que sim .
96 Cormac McCarthy

Eu cá não sou muito bom a mentir.


Só não tens é prática que chegue .
Ao longo da coxia, dentro das baías , ouviam o arquejar e a agita­
ção dos animais .
Tens uma namorada com quem sais?
John Grady cruzou as botas uma sobre a outra. Sim, disse . Ando a
tentar.
O JC disse que tinhas .
Como é que o JC soube?
Só disse que tu manifestavas os sintomas todos .
Manifestava?
Pois .
E quais são?
Ele não disse . Fazes tenções de a trazer até cá um dia destes , prà
gente a poder ver?
Sim. Eu trago-a até cá.
Bom.
Tirou o chapéu do joelho e pô-lo na cabeça e pôs-se de pé .
Billy?
Diz .
Eu depois explico-te . É assim a modos que uma trapalhada. Agora
' tou um bocado estafado , só isso.
Não duvido nem um bocadinho , cowboy . A gente vê-se amanhã de
manhã.

Foi até lá na semana seguinte , tendo no bolso dinheiro que apenas


chegava para pagar uma bebida ao balcão . Observou-a no espelho .
Ela estava sentada, muito direita, no sofá de veludo escuro , com as
mãos muito compostas no regaço , dir-se-ia uma debutante . Ele bebia
o whiskey devagar. Quando tornou a olhar para o espelho , pareceu­
-lhe que ela o estivera a observar. Terminou o whiskey e pagou-o e
virou costas para partir. Não tencionava olhar diretamente para ela ,
mas fê-lo . Não conseguia sequer imaginar a vida dela.
Pegou no chapéu e deu à mulher o resto dos seus trocos , e ela
sorriu e agradeceu-lhe , e ele pôs o chapéu na cabeça e deu meia­
-volta. Tinha a mão na maçaneta de ónix esculpido da porta quando
um dos empregados de mesa se postou diante dele .
Cidades da Planície 97

Un momento , disse .
Ele estacou . Olhou para a rapariga do bengaleiro e olhou para o
empregado de mesa.
O empregado de mesa estava parado entre ele e a porta. A rapari-
ga, disse . Ela diz para usted não esquecer ela.
Ele olhou na direção do salão , mas não a conseguia ver da porta.
Dígame ? indagou .
Ela diz para usted não . . .
En espafíol, por favor. Dígame en espafíol lo que dice ella .
O homem recusou-se . Tomou a repetir as palavras em inglês e
depois virou costas e desapareceu .
Ele sentou-se na noite seguinte no Moderno e esperou pelo maes­
tro e pela filha . Esperou muito tempo , e pensou que eles talvez já
tivessem ali estado , ou que talvez não viessem naquela noite . Quan­
do a rapariguita abriu a porta, viu-o ali e ergueu o rosto para o pai ,
mas não disse nada. Sentaram-se numa mesa junto à porta, e o em­
pregado veio e serviu um copo de vinho .
Ele levantou-se e atravessou a sala e parou junto da mesa deles .
Maestro , disse .
O cego virou o rosto para o alto e sorriu para o espaço à ilharga de
John Grady. Como se um duplo invisível ali estivesse de pé .
Buenas noches , saudou .
Cómo está?
Ah , disse o cego . O meu jovem amigo .
Sim.
Por favor. Tem de se juntar a nós . Sente-se .
Obrigado .
Sentou-se . Olhou para a rapariga. O cego sibilou para chamar o
empregado , e o empregado aproximou-se .
Qué toma ? perguntou o maestro .
Nada. Obrigado .
Por favor. Insisto .
Não me posso demorar.
Traiga un vino para mi amigo .
O empregado assentiu com a cabeça e afastou-se . John Grady
empurrou o chapéu para trás com o polegar e debruçou-se , apoiando
os cotovelos na mesa. Que lugar é este? perguntou .
98 Cormac McCarthy

O Moderno? É um lugar onde vêm os músicos . É um lugar muito


antigo . Sempre aqui esteve . Tem de vir cá no sábado . Vêm muitas
pessoas de idade . Irá vê-las . Vêm dançar. Gente muito velha a dan­
çar. Aqui . Neste lugar. O Moderno .
Vão tocar outra vez?
Sim, sim. É claro . Ainda é cedo . São meus amigos .
Tocam todas as noites?
Sim . Todas as noites . Vão tocar não tarda. Já vai ver.
Como que para confirmar as palavras do maestro, os violinistas
começaram a afinar os seus instrumentos na sala interior. O violon­
celista debruçou-se , a apurar o ouvido , de cabeça inclinada, e fez
correr o arco por cima das cordas . Um casal que estava sentado a
uma mesa contra a parede do fundo ergueu-se e parou sob o arco de
pedra, de mãos dadas , e depois aventurou-se sobre o chão de cimen­
to no momento em que os músicos começaram a tocar uma valsa
antiga. O maestro curvou-se para diante , tentando ouvir. Estão a
dançar? indagou . Há alguém a dançar agora?
A rapariguita olhou para John Grady. Sim, respondeu John Grady.
Estão a dançar.
O velho recostou-se , assentiu com a cabeça . Ó timo , disse . Isso é
ótimo .

Sentaram-se contra um penhasco rochoso no cume das Franklins ,


em volta de uma fogueira que adejava ao vento , e as silhuetas deles
projetadas sobre os rochedos nas suas costas ensombravam os petró­
glifos ali gravados por outros caçadores , mil anos antes . Ouviam os
cães a correr, bem mais abaixo . Os urros dos animais propagaram-se ,
descendo pelo flanco da montanha, e tomaram a soar, mais ténues , e
depois desvaneceram-se quando a matilha rompeu ao longo de um
barranco pedregoso , nas trevas . A sul , as luzes distantes da cidade
jaziam espalhadas no leito do deserto como um diadema pousado
sobre o veludo negro de um joalheiro . Archer pusera-se de pé e
voltara-se na direção dos cães lançados em corrida para melhor os
ouvir e, ao fim de um certo tempo , tomou a agachar-se e escarrou
para o meio do lume .
Ela não vai trepar a uma árvore , declarou .
Também acho que não vai , disse Travis .
Cidades da Planície 99

Como é que sabes que é a mesma leoa-de-montanha? pergun­


tou JC .
Travis tirara o tabaco do bolso e alisou e vergou uma mortalha
com os dedos . Ela já nos fez o mesmo antes , explicou . Vai correr que
nem uma perdida até se pisgar pra longe .
Ficaram à escuta. Os urros tomaram-se mais débeis e , ao fim de
um certo tempo , deixaram de se ouvir. Billy afastara-se pela vertente
da montanha acima para procurar lenha e regressou a arrastar um
cepo morto de cedro . Ergueu-o e deixou-o cair em cima da fogueira.
Uma chuva de faúlhas elevou-se e deslizou pela noite fora. O cepo ,
muito negro e retorcido , erguia-se sobre as pequenas labaredas . Dir­
-se-ia uma criatura amorfa que tivesse emergido da noite para se
aquecer no meio deles .
Não conseguiste encontrar um pedação de lenha maior do que
esse , Parham?
Já vai pegar fogo não tarda .
O Parham apagou a fogueira duma vez só , atirou JC .
A hora mais sombria é pouco antes do temporal , disse Billy. Já vai
pegar fogo não tarda.
' Tou a ouvi-los , disse Travis .
Também eu .
Ela acabou de passar no cabeço daquele grande barranco , onde a
estrada corta pra trás .
Aquela cadela, a Lucy, não vai voltar esta noite .
Que cadela é essa?
Uma cadela daquela linhagem do Aldridge . Esses cães foram cria­
dos pelos irmãos Lee . Só se esqueceram de lhes meter na massa do
sangue o desistir.
O melhor cão que alguma vez tivemos foi o avô dela, acudiu Archer.
Lembras-te desse cão, o Roscoe , Travis?
É claro que me lembro . As pessoas julgavam que ele era arraçado
de bluetick, mas era um cão-leopardo de sangue puro com olhos vi­
drados de berlinde , que adorava lutar. Perdemo-lo lá em baixo , em
Nyarit. Um jaguar deitou-lhe as unhas e deu-lhe uma dentada que
quase o desfez em dois .
Vocês já não caçam lá em baixo .
Não .
1 00 Cormac McCarthy

Desde antes da guerra que não voltámos lá. Nas últimas viagens ,
passou a ser muito cansativo . O s irmãos Lee quase que j á tinham
deixado de lá ir. Trouxeram imensos jaguares daquela terra, essa é
que é a verdade .
JC debruçou-se e escarrou para dentro do fogo . As labaredas tre­
pavam como serpentes ao longo dos flancos do cepo .
Não vos fazia impressão ' tarem assim tão longe , perdidos lá no
meio do México?
Sempre nos demos bem com aquela gente .
Uma pessoa não precisa de ir longe pra se meter em sarilhos , dis­
se Archer. Se um gajo quer sarilhos , arranja toda a sarna que quiser
pra se coçar na outra margem daquele rio , acolá.
Agora é que disseste a verdade toda.
Quando uma pessoa atravessa aquele rio , entra noutra terra. Fala
com alguns dos velhos vaqueiros que vivem junto desta fronteira.
Pergunta-lhes pela revolução .
Tu lembras-te da revolução , Travis?
Aqui o Archer pode contar-te mais coisas do que eu .
Ainda andavas de cueiros , não andavas , Travis?
Praticamente . Lembro-me de acordar estremunhado uma vez e ir
à janela e olhámos lá pra fora e viam-se os canhões a disparar a eito
lá longe como se fosse o quatro de julho .
A gente morávamos na Wyoming Street, contou Archer. Depois de
o papá morrer. O meu tio Pless , do lado da minha mãe , trabalhava
numa oficina mecânica, na Alameda, e os tipos trouxeram-lhe os
percutores de duas peças de artilharia e perguntaram-lhe se ele podia
fazer uns novos, e ele fê-los no tomo e não quis receber um tostão
pelo trabalho . A malta ' tava toda a torcer pelos rebeldes . Trouxe os
percutores velhos pra casa e deu-os à gente , aos cachopos . Houve
uma oficina que fez uns canos de canhão a partir dos eixos duns
vagões de caminhos de ferro , e eles arrastaram-nos prà outra banda
do rio atrás duma parelha de mulas . Os munhões foram feitos a par­
tir de caixas do diferencial de camiões Ford, e enfiaram-nos em
molduras de madeira e usaram as rodas duns carroções pros montar
em cima . Isto foi em novembro de mil nove e treze . O Villa entrou
em Juárez às duas em ponto da madrugada, num comboio que tinha
tomado de assalto . Era uma guerra sem quartel . Montes de gente em
Cidades da Planície 101

El Paso ficou com as vidraças estilhaçadas pelo tiroteio . E morreu


gente , já agora. As pessoas desciam até à margem e ficavam lá, à
beira-rio , a assistir àquilo como se fosse um desafio de basebol .
O Villa voltou em mil nove e dezanove . O Travis pode contar-te
como foi . A gente ia até lá à socapa e punha-se à caça de recordações .
Cápsulas de bala vazias , eu sei cá. Havia mulas e cavalos mortos
pelas ruas . As montras das lojas desfeitas a tiro . Vimos cadáveres
alinhados na alameda , com mantas a tapá-los ou toldos de carroções .
Isso esfriou-nos os ânimos , só te digo . Obrigaram-nos a tomar duche
com os mexicanos antes de nos deixarem atravessar outra vez a fron­
teira prà banda de cá. Desinfetaram as nossas roupas e tudo . Havia
tifo lá em baixo , e tinha morrido gente da doença.
Ficaram sentados a fumar em silêncio e a olhar ao longe , para as
luzes distantes no fundo do vale , a seus pés . Dois cães aproximaram­
-se , assomando da noite , e passaram por trás dos caçadores . As som­
bras dos animais trotaram sobre a escarpa de rocha e eles dirigiram­
-se para um lugar na poeira seca, sob os penedos, onde se enroscaram
e em breve adormeceram.
Aquela luta toda não serviu de grande préstimo a ninguém, co­
mentou Travis . Ou , se serviu , eu cá não dei por nada.
Calcorreei aquela terra toda lá pra baixo . Era comprador de gado
pro Spurlocks . Pelo menos em teoria . Era um puto , não passava dis­
so . Cavalguei pelo Norte do México inteiro . Raios , não havia gado
nenhum . Pelo menos que merecesse esse nome . Na maior parte do
tempo , visitava as terras , mais nada. Gostava daquilo . Gostava da­
quela terra e gostava das pessoas que lá viviam. Palmilhei a cavalo
o Chihuahua inteiro e uma boa parte de Coahuila e uma parte de
Sonora . Andava por montes e vales durante semanas a fio e não tinha
nem sequer um peso no bolso , mas não fazia diferença. Aquela gen­
te acolhia-me e dava-me guarida e dava-me de comer e dava de co­
mer ao meu cavalo e chorava quando eu me ia embora. Uma pessoa
podia lá ficar pra sempre . Eles não tinham nada de seu . Nunca ti­
nham tido , nunca iriam ter. Mas podia-se parar numa estancia mi­
núscula, absolutamente no meio do nada , e eles acolhiam um estra­
nho como se fosse da família. Via-se que a revolução não lhes tinha
trazido bem nenhum. Muitos deles tinham perdido varões da família .
Pais ou filhos ou as duas coisas . Quase todos , cá pra mim. Não ti-
1 02 Cormac McCarthy

nham motivos pra ser hospitaleiros pra ninguém. Muito menos pra
um moço gringo . Aquele prato de feijão que nos punham à frente
tinha-lhes custado muito suor. Mas nunca me mandaram embora .
Nem uma vez que fosse .
Três outros cães passaram junto à fogueira e procuraram um leito
sob a escarpa. As estrelas deslizavam para oeste . Os caçadores fala­
ram de outras coisas , e, ao fim de algum tempo , outro cão surgiu .
Evitava pousar no chão uma pata dianteira, e Archer levantou-se e
trepou até abaixo da escarpa para ver o que se passava com ele . Ou­
viram o cão latir, e, quando Archer voltou , disse que eles tinham
' tado numa luta.
Mais dois cães regressaram, e então estavam todos de volta, exce-
to um.
Eu espero um bocado , se vocês quiserem ir andando , disse Archer.
Nós esperamos contigo .
Eu não me importo .
Nós esperamos um bocado . Acorda o moço Cole acolá .
Deixa-o dormir, disse Billy. Ele 'tá à porrada com o urso .
A fogueira esmoreceu e o ar ficou mais frio e eles chegaram-se
para mais perto das chamas e alimentaram-nas à mão com paus e
com velhos ramos estaladiços que partiram dos destroços de árvores
retorcidas pelo vento ao longo do rebordo rochoso . Contaram histó­
rias do velho Oeste tal como ele era outrora. Os mais velhos falavam
e os mais novos escutavam-nos , e a luz começou a assomar na gar­
ganta da montanha, acima deles, e depois tenuemente , ao longo do
leito do deserto , lá em baixo .
A cadela de quem eles estavam à espera regressou , a coxear bas­
tante , e contornou a fogueira. Travis chamou-a. Ela estacou com os
seus olhos vermelhos e olhou para eles . Ele pôs-se de pé e chamou-a
de novo , e ela aproximou-se e ele agarrou-lhe a coleira e virou-a
para a luz . A cadela tinha quatro sulcos sanguinolentos a cruzar-lhe
do flanco . Via-se-lhe na espádua uma aba de pele arrancada, expon­
do o músculo por baixo , e o sangue gotejava-lhe devagar de uma
orelha rasgada para a terra arenosa onde ela se encontrava parada.
Temos de suturar isto , disse Travis .
Archer puxou uma trela de entre a s que enfiara no cinto e pren­
deu-a ao anel metálico na coleira da cadela recém-chegada . Esta
Cidades da Planície 103

era portadora das únicas novas que eles teriam da caçada, dando
testemunho de coisas que eles podiam somente imaginar ou conje­
turar lá longe , na noite . Ela arreganhou os dentes quando Archer
lhe tocou na orelha, e, quando ele a soltou , ela recuou e fincou as
patas dianteiras no chão e sacudiu a cabeça . O sangue salpicou os
caçadores e crepitou no lume . Eles levantaram-se para partir.
Vamos embora, cowboy , disse Billy.
John Grady soergueu-se e apalpou o chão em volta de si , à procu-
ra do chapéu .
Que belo caçador de pumas que me saíste .
O domador de cavalos ' tá acordado? perguntou JC .
O domador de cavalos ' tá acordado .
Um homem que tem ' tado à caça do tal urso não deve de ter mui­
to interesse nestes leões-de-montanha .
Acho que tens toda a razão .
Quando a coisa aperta, que é feito dele? E nós aqui à mercê dos
velhotes . Bem que nos tinha dado jeito uma ajudinha, rapaz . Levá­
mos um baile de patranhas que até meteu dó . Uma autêntica abada.
É que nem sequer deu luta , não é verdade , Billy?
Nem sequer deu luta.
John Grady endireitou o chapéu e afastou-se ao longo do bordo da
escarpa. A planura desértica jazia abaixo deles , fria e azul à luz cinzen­
ta, e a forma do rio a descer do norte através da muralha de árvores
invernais cor de cinza estendia-se num serpentear alvacento de névoa.
A sul , a grelha fria e cinzenta da cidade distante e a cidade mais antiga
na outra margem do rio , quais marcas estampadas no solo do deserto .
Mais além, as montanhas do México . A podenga ferida afastou-se do
lume , onde os homens estavam a separar e a acorrentar os cães , e veio
ao encontro de John Grady e parou ao lado dele e examinou à planície
a seus pés juntamente com ele . John Grady sentou-se e deixou as botas
baloiçar sobre o rebordo de rocha, e a cadela deitou-se e pousou o
focinho ensanguentado junto da perna dele , e , ao fim de um certo
tempo , ele pôs-lhe o braço em volta da cabeça.

Billy estava sentado , de cotovelos na mesa e braços cruzados .


Observava John Grady. John Grady franziu os lábios . Moveu o ca­
valo branco que lhe restava . Billy olhou para Mac . Mac analisou a
1 04 Cormac McCarthy

jogada e olhou para John Grady. Recostou-se na cadeira e examinou


o tabuleiro . Ninguém falou .
Mac pegou na rainha preta e segurou-a na mão durante alguns
momentos e depois tomou a pousá-la. Em seguida, tomou a pegar na
rainha e moveu-a. B illy recostou-se na cadeira. Mac estendeu o bra­
ço e pegou no charuto frio que estava no cinzeiro e meteu-o na boca.
Seis jogadas depois , o rei branco sofrera xeque-mate . Mac recos­
tou-se e acendeu o charuto . Billy respirou fundo , soprando sobre o
tampo da mesa.
John Grady ficou sentado , a olhar para o tabuleiro . Bela partida,
disse .
Não há mal que sempre dure , comentou Mac , nem bem que nunca
acabe .
Cruzaram o terreiro em direção ao estábulo .
Diz-me uma coisa, pediu Billy.
Diz lá.
E eu sei que tu me vais dizer a verdade .
Já sei qual é a pergunta.
E qual é a resposta.
A resposta é não .
Não facilitaste nem um bocadinho pro deixar ganhar?
Não . Não acredito nisso .
Os cavalos agitaram-se e resfolegaram nas suas baias enquanto
eles caminhavam pela coxia fora. John Grady olhou para Billy.
Não achas que ele pensa isso , ou achas?
Espero bem que não . Chiça, ele não havia de gostar nem um bo­
cadinho .
Chiça, nem um bocadinho .

Entrou na casa de penhores com a arma enfiada no coldre e o col­


dre e o cinturão a penderem-lhe do ombro . O penhorista era um ve­
lho de cabelo branco e estava a ler o jornal , aberto sobre o tampo de
uma vitrina, ao fundo da loja. Havia armas em expositores ao longo
de uma parede e guitarras suspensas do teto e facas e pistolas e joa­
lharia e ferramentas nos seus estojos . John Grady pousou o cinturão
da arma sobre o balcão envidraçado , e o velho olhou para o cinturão
e olhou para John Grady. Sacou o revólver do coldre e engatilhou-o
Cidades da Planície 1 05

e deixou o cão repousar no entalhe da posição de segurança e rodou


o tambor e abriu a janela de carregamento e olhou para as câmaras e
fechou a janela de carregamento e armou o cão e tomou a baixá-lo ,
segurando-o com o polegar. Voltou a arma ao contrário e olhou para
os números de série na carcaça e no guarda-mato e na armação me­
tálica do punho e tomou a enfiá-la no coldre e ergueu o rosto .
Quanto quer? perguntou .
Preciso duns quarenta dólares .
O velho chupou o ar entre os dentes e abanou a cabeça gravemente .
Já me ofereceram cinquenta por essa arma. Só preciso de a pôr no
prego .
Posso dar-lhe vinte e cinco , talvez .
John Grady olhou para a arma . Dê-me trinta, disse .
O penhorista abanou a cabeça, indeciso.
Não a quero vender, tomou John Grady. Só preciso de pedir em-
prestado , dando-a como penhor.
O cinturão e o coldre também, sim?
Sim. Vai tudo junto .
Seja.
Pegou no bloco de impressos e , vagarosamente , copiou o número
de série e escreveu o nome de John Grady e a morada dele e rodou
o papel sobre o vidro para o rapaz ler e assinar. Em seguida, destacou
as folhas e estendeu o duplicado a John Grady e levou a arma para o
cubículo gradeado , nas traseiras da loja. Quando regressou , trazia o
dinheiro e pousou-o no balcão .
Eu volto prà vir buscar, disse John Grady.
O velho fez que sim com a cabeça.
Pertencia ao meu avô .
O velho abriu as mãos e tomou a fechá-las . Um gesto de compro­
misso . Não exatamente uma bênção . Com um aceno de cabeça, indi­
cou a vitrina, onde estava exposta meia dúzia de velhos revólveres
Colt, alguns niquelados , alguns com platinas de chifre de veado . Um
com velhas platinas de guta-percha, j á gastas , outro com a mira dian­
teira limada.
Todos estes pertenciam ao avô de alguém, disse .
Quando ia a subir a Juárez Avenue , um engraxador meteu conver­
sa com ele . Viva, cowboy , saudou .
1 06 Cormac McCarthy

Viva.
Acho melhor deixares-me engraxar-te essas botas .
Seja.
Sentou-se num banquinho de campismo de armar e pôs a bota
em cima da tosca caixa de madeira do engraxador. O engraxador
arregaçou-lhe a perna das calças e começou a tirar da caixa os tra­
pos e as escovas e as latas de graxa e a pousar tudo no chão , à mão
de semear.
Vais ter com a tua miúda?
Vou , pois.
Só espero que não ' tivesses a pensar em ir até lá com estas botas .
Se calhar até foi bom tu chamares-me . Ela era capaz de correr co-
migo .
O rapaz limpou a poeira da bota com o trapo e ensaboou-a. Quan-
do é que te vais casar? perguntou .
O que é que te leva a pensar que me vou casar?
Não sei . Tens ar disso , assim a modos . Vais?
Não sei . Talvez .
Sempre és cowboy , afinal de contas?
Sou , sim.
Trabalhas num rancho?
Sim. Um rancho pequeno . Uma estancia , podemos dizer.
E gostas?
Sim. Gosto .
O rapaz limpou a bota e abriu a lata e começou a besuntar graxa
no cabedal com os dedos manchados da mão esquerda.
É trabalho duro , não é?
É . À s vezes.
Então e se pudesses ser outra coisa?
Eu nunca seria outra coisa.
Então e se pudesses ser o que quisesses neste mundo?
John Grady sorriu . Abanou a cabeça.
' Tiveste na guerra?
Não . Era demasiado novo .
O meu irmão era demasiado novo , mas mentiu sobre a idade .
Era americano?
Não .
Cidades da Planície 1 07

Que idade tinha ele?


Dezasseis .
Devia de ser grande prà idade , calculo .
Era um grande aldrabão prà idade , isso é que era.
John Grady sorriu .
O rapaz tomou a pôr a tampa na lata e pegou na escova.
Perguntaram-lhe se era pachuco . Ele disse que todos os pachucos
que conhecia viviam em El Paso . Disse-lhes que não conhecia ne­
nhum pachuco mexicano .
Escovou a bota. John Grady observava-o .
E ele era pachuco?
Claro . Pois claro que era.
Escovou a bota e depois tomou a enfiar a escova na caixa e tirou
de lá o pano e fê-lo estalar e curvou-se e começou a fazer deslizar o
pano para trás e para diante sobre a biqueira da bota.
Juntou-se aos marines . Ganhou dois purple hearts .
Então e tu?
Então e eu o quê .
A quem é que te juntaste .
Ele ergueu os olhos de relance para John Grady. Roçou o pano em
volta do contraforte da bota . Aos marines é que não me juntei , de
certeza, disse .
Então e aos pachucos .
Nã .
Não és um pachuco?
Nã.
E és aldrabão?
Claro .
Dos grandes?
Bastante grande . Deixa cá ver o outro pé .
Então e o preto à volta dos rebordos?
Faço isso no fim . Não te preocupes com nada.
John Grady pôs o outro pé em cima da caixa e arregaçou a perna
das calças .
A aparência é importante com as mulheres , disse o rapaz . Não
penses que elas não te olham pràs botas .
Tens namorada?
1 08 Cormac McCarthy

Porra, não .
Dá impressão de que tiveste umas más experiências .
E quem é que não teve? Uma pessoa mete-se com elas e acaba
sempre escaldado .
Um dia destes , uma bonequinha ainda te deita a unha .
Espero bem que não .
Que idade tens?
Catorze .
Mentes acerca da tua idade?
Pois claro que minto .
Quando uma pessoa confessa, acho que deixa de ser mentira.
O rapaz parou de esfregar a graxa durante breves momentos e fi­
cou sentado , a olhar para a bota. Depois recomeçou .
Se há alguma coisa que eu quero que seja diferente daquilo que é ,
então digo que é assim mesmo . Que mal tem?
Não sei .
Quem mais vai saber se é assim?
Ninguém, acho eu .
Ninguém, ora aí ' tá.
O teu irmão é casado?
Qual irmão? Tenho três .
Aquele que ' teve nos marines .
Sim. É casado . São todos casados .
Se são todos casados , porque é que perguntaste qual?
O engraxador abanou a cabeça . Chiça, soltou .
Deves de ser o mais novo , verdade?
Não . Tenho um irmão com dez anos que é casado e tem três putos .
É claro que sou o mais novo . O que é que tu achas?
Bom, talvez vos ' teja na massa do sangue , o casamento .
O casamento não ' tá na massa do sangue de ninguém . Seja como
for, eu sou um fora da lei . Oveja negra . Falas espanhol?
Sim. Falo espanhol .
Oveja negra . Sou eu .
A ovelha negra.
Eu sei o que é .
Eu também sou .
O rapaz ergueu o rosto para ele . Estendeu a mão e tirou a escova
da caixa. Ah , sim? disse .
Cidades da Planície 1 09

Sim.
Cá a mim não me pareces fora da lei nenhum .
Como é a cara dum fora da lei?
Não é como a tua.
Escovou a bota e guardou a escova e pegou no pano e fê-lo estalar.
John Grady observava-o . Então e tu? Se pudesses ser tudo o que
quisesses?
Seria cowboy .
A sério?
O rapaz levantou os olhos para ele com expressão de repugnância.
Não , merda, declarou. O que é que se passa contigo? Havia de ser um
rico, ficava o dia inteiro refastelado , sem fazer nada. O que é que achas?
E se tivesses de fazer qualquer coisa?
Não sei . Talvez fosse piloto de aviões.
Ah , sim?
Claro . Voava pra toda a parte .
E o que é que fazias quando lá chegasses?
Voava pra outra terra qualquer.
Acabou de engraxar a bota e tirou o frasco de graxa preta e come­
çou a tingir o tacão e os bordos da sola com a esponjinha.
A outra bota , disse .
John Grady pôs o outro pé em cima da caixa, e o rapaz pintou-lhe
os bordos . Em seguida, enfiou a esponjinha dentro do frasco e atar­
raxou a tampa e atirou o frasco para dentro da caixa. 'Tá pronto ,
declarou .
John Grady tomou a baixar as bainhas das calças e pôs-se de pé e
meteu a mão no bolso e tirou uma moeda e entregou-a ao rapaz .
Obrigado .
B aixou os olhos para as botas . O que é que achas .
Ela é capaz de te deixar entrar. Onde é que tens as flores?
Flores?
Claro . Vais precisar de toda a ajuda possível .
É s capaz de ter razão .
Eu nem devia de 'tar a explicar-te isto .
E porque não?
Era melhor alguém dar-te o tiro de misericórdia e acabar com esse
teu sofrimento .
1 10 Cormac McCarthy

John Grady sorriu . Donde é que tu és? perguntou .


Daqui mesmo .
Não és nada .
Cresci na Califórnia .
O que é que ' tás aqui a fazer?
Gosto disto aqui.
Ah , sim?
Sim.
Gostas de engraxar sapatos?
Não desgosto .
Gostas da rua.
Sim. Não gosto de ir à escola.
John Grady ajeitou o chapéu e olhou para o fundo da rua. Baixou
os olhos para o rapaz . Bom, disse . Eu cá também nunca gostei muito .
Fora da lei , comentou o rapaz .
Fora da lei . Acho que tu ainda és capaz de ser um fora da lei mais
tramado do que eu .
Acho que tens razão .
Eu ainda só ' tou a tomar-lhe o jeito .
Se precisares de ajuda, vem ter comigo . Tenho todo o gosto em
ensinar-te a mexer os cordelinhos .
John Grady sorriu . Certo , disse . Vemo-nos por aí.
Adiós, vaquero .
Adiós, bolero .
O rapaz sorriu e mandou-o avançar com um aceno da mão .

A criada estava parada atrás dela no espelho de corpo inteiro , com


a boca eriçada de ganchos para o cabelo . Olhou para a rapariga no
espelho , tão pálida e tão esguia, vestida com uma combinação , com
o cabelo preso no alto da cabeça. Olhou para Josefina. Josefina des­
viou-se para o lado , com um braço cruzado e o outro cotovelo apoia­
do neste , o punho encostado ao queixo . No , disse . No .
Abanou a cabeça e agitou a mão , como que para repelir uma afron­
ta, e a criada começou a tirar os ganchos e os pentes do cabelo da
rapariga até a longa cascata negra lhe tornar a tombar sobre os ombros
e as costas . Pegou na escova e pôs-se novamente a escovar o cabelo
da rapariga, acompanhando os gestos com a mão aberta por baixo ,
Cidades da Planície 111

erguendo a massa sedosa e negra a cada movimento e deixando-a cair


outra vez . Josefina adiantou-se e pegou num pente de prata que se
encontrava em cima da mesa e puxou para trás o cabelo da rapariga
sobre a têmpora e prendeu-o ali . Remirou a rapariga e remirou a ra­
pariga no espelho . A criada dera um passo atrás e ficou imóvel , a
segurar a escova com ambas as mãos . Ela e Josefina contemplaram a
rapariga no espelho , as três à luz amarela do candeeiro de mesa, ali
paradas dentro das volutas de gesso dourado da moldura do espelho
como figuras num quadro flamengo antigo .
Cómo es, pues , disse Josefina.
Estava a falar com a rapariga, mas esta não respondeu .
Es más joven . Más . . .
Inocente , completou a rapariga.
A mulher encolheu os ombros . Inocente pues , concordou .
Examinou o rosto da rapariga no espelho . No le gusta ?
Está bien , sussurrou a rapariga . Me gusta .
Bueno , disse a mulher. Soltou-lhe o cabelo e meteu o pente na mão
da criada . Bueno .
Depois de ela sair, a velha tomou a pousar o pente na mesa e tor­
nou a adiantar-se com a sua escova. Bueno , disse . Abanou a cabeça
e fez estalar a língua.
No te preocupes , acudiu a rapariga.
A velha escovava-lhe o cabelo com mais ferocidade . Bellísima ,
sibilava. Bellísima .
Ajudava-a com cuidado . Com solicitude . Um a um, os colchetes e
as presilhas . Passou as mãos sobre o veludo lilás , aconchegou-lhe os
seios , um após outro , e ajeitou a orla do decote , prendendo o vestido
à roupa interior. Sacudiu fiapos soltos de tecido . Segurou a rapariga
pela cintura e rodou-a como uma boneca e ajoelhou-se aos pés dela e
prendeu-lhe as correias dos sapatos . Ergueu-se e deu um passo atrás .
Puedes caminar? perguntou .
No , respondeu a rapariga .
No ? Es mentira . Es una broma . No ?
No , disse a rapariga.
A criada fez o gesto de quem enxota um bicho . A rapariga cami­
nhou pelo quarto em passo deliberadamente afetado sobre os saltos
altos dourados dos chinelos .
1 12 Cormac McCarthy

Te mortifican ? perguntou a criada .


Claro .
Tomou a parar diante do espelho . A velha postou-se atrás dela.
Quando pestanejava, somente se fechava o olho são . De tal modo que
ela parecia estar a piscar o olho numa qualquer cumplicidade sugesti­
va. Alisou com a mão o cabelo preso , retesou os ombros do vestido,
no alto das mangas .
Como una princesa , sussurrou .
Como una puta , replicou a rapariga.
A criada agarrou-a pelo braço . Sibilou-lhe , de olho a chamejar à
luz do candeeiro . Disse-lhe que ela se havia de casar com um homem
muito importante e muito rico e que ia viver numa casa bonita e ter
lindos filhos . Disse-lhe que conhecera muitos casos assim.
Quién ? indagou a rapariga.
Muchas , sibilou a criada . Muchas . Raparigas , disse-lhe , que não
possuíam uma beleza comparável à dela . Raparigas que não tinham
a sua dignidade nem a sua elegância. A rapariga não respondeu .
Olhou por cima do ombro da velha , para os olhos no espelho , como
se fora uma irmã ali presente que suportasse com estoicismo aquele
cerco montado às suas esperanças . Parada na alcova de cores berran­
tes que era em si mesma uma imitação espalhafatosa de outros apo­
sentos , outros mundos . A encarar a sua própria arrogância fingida no
tremó como se fora uma prova para desmentir os rogos da velha, as
promessas da velha. Ali de pé como uma donzela numa fábula, a
repudiar as ofertas da bruxa, que ocultam em si pactos implícitos de
corrupção . Pretensões que nunca podem ser abandonadas , espólios
para sempre inalienáveis . Dirigindo-se àquela rapariga ali parada no
espelho , disse-lhe que não havia maneira de saber em que lugar en­
veredámos pelo caminho que agora percorremos , mas apenas que o
estamos a calcorrear.
Mande ? perguntou a criada. Cuál senda ?
Cualquier senda . Esta senda . La senda que escoja .
Mas a velha disse que alguns não têm escolha. Disse que , para os
pobres, qualquer escolha é uma moeda de duas faces .
Estava ajoelhada n o chão , a prender novamente a bainha do vesti­
do com alfinetes. Tirara os alfinetes da boca, e agora pousou-os no
tapete e foi-lhes pegando , um por um. A rapariga observou a própria
Cidades da Planície 113

imagem no espelho . A cabeça grisalha da velha curvada a seus pés .


Ao fim de um certo tempo , disse que havia sempre uma escolha,
mesmo que essa escolha fosse a morte .
Cielos , soltou a velha. Benzeu-se rapidamente e continuou a cra­
var alfinetes .
Quando ela entrou no salão , ele estava junto ao balcão , de pé . Os
músicos estavam no estrado , a montar os instrumentos e a afiná-los ,
e as poucas notas ou acordes soavam na quietude da divisão como se
uma qualquer cerimónia estivesse prestes a realizar-se . No meio das
sombras do nicho , atrás do estrado , Tiburcio estava parado a fumar,
com os dedos entrelaçados em volta da esguia boquilha de marfim
nielado do cigarro . Olhou para a rapariga e olhou na direção do bar.
Observou o rapaz a voltar-se e a pagar a bebida e a pegar no copo e
a descer a escada larga no ponto em que os corrimões de corda for­
rados de veludo conduziam ao salão . Soprou o fumo vagarosamente
das suas narinas delicadas e depois abriu a porta atrás de si . A clari­
dade fugaz enquadrou-o em silhueta, e a sua sombra, comprida e
esguia, tombou fugazmente sobre o chão do salão , e depois a porta
tornou a fechar-se como se ele não tivesse sequer ali estado .
Está peligroso , sussurrou ela.
Cómo ?
Peligroso . Percorreu o salão com os olhos .
Tenía que verte , disse ele .
Tomou as mãos dela nas suas , mas ela limitou-se a olhar, angus­
tiada, para a porta onde Tiburcio estivera parado . Agarrou-lhe os
pulsos e suplicou-lhe que partisse . Um empregado emergiu das som­
bras , deslizante .
Estás loco , sussurrou ela. Loco .
Tienes razón .
Ela pegou-lhe na mão e pôs-se de pé . Virou-se e murmurou qual­
quer coisa ao empregado . John Grady levantou-se e meteu dinheiro
na mão do empregado e voltou-se para ela.
Debemos irnos , disse ela. Estamos perdidos .
Ele disse que não , que se recusava. Disse que não tornaria a fazer
isso e que ela tinha de se encontrar com ele , mas ela disse que era
demasiado perigoso . Que agora era demasiado perigoso . A música
começara. Um longo acorde grave do violoncelo .
1 14 Cormac McCarthy

Me matará, sussurrou ela.


Quién ?
Ela apenas abanou a cabeça.
Quién , insistiu ele . Quién te matará?
Eduardo .
Eduardo .
Ela fez que sim com a cabeça. Sí, disse . Eduardo .

Sonhou naquela noite com coisas que ouvira contar e que eram
mesmo assim, embora ela nunca tivesse falado delas . Era numa sala
tão fria que o hálito dele fumegava, e em cuj as paredes de chapa
ondulada de aço estavam penduradas grinaldas , e onde um andaime
coberto de um tapete vermelho barato se erguia em degraus para
acolher as cadeiras de armar dos espectadores , feitas de ripas . Um
palco de madeira tosca, enfeitado como um carro alegórico de feira,
e cabos elétricos que corriam para um braço metálico lá no alto , fei­
to de tubo de ferro galvanizado , suportando holofotes , cada qual
coberto de folhas de celofane vermelho e verde e azul . Cortinas de
veludilho acetinado em pregas vermelhas como sangue .
Os turistas sentavam-se nas cadeiras , com binóculos de ópera pen­
durados ao pescoço , enquanto os empregados de mesa lhes pergunta­
vam o que queriam beber. Quando as luzes se esbateram, o mestre de
cerimónias subiu em passos largos para cima do tablado e tirou o
chapéu e fez uma vénia e sorriu e ergueu as mãos revestidas de luvas
brancas . Nos bastidores, o alcahuete estava parado a fumar, e atrás
dele revolteava uma grande amálgama confusa de figuras carnavales­
cas e obscenas , prostitutas maquilhadas com os seios à mostra, uma
gorda vestida de cabedal negro a empunhar um chicote , um par de
jovens com vestes eclesiásticas . Um padre , uma alcoviteira, um bode
de chifres e cascos pintados de dourado , trazendo ao pescoço uma
gola de rufos feita de crepe púrpura. Jovens debochados com faces
pintadas de carmim e olhos pintados de negro , trazendo velas na mão .
Um trio de mulheres de mãos dadas , famélicas e magras que nem
asiladas num sanatório e as três ataviadas com os mesmos adornos
baratos , os rostos besuntados com maquilhagem e pálidos como a
morte . No centro do grupo , uma rapariguita de vestido de gaze branco ,
deitada sobre um estrado de madeira como uma virgem oferecida em
Cidades da Planície 115

sacrifício . Dispostas em volta dela estão flores artificiais que parecem ,


com as suas cores pálidas e tons pastel , ter desbotado ao sol . Como se
as tivessem recuperado , talvez, de uma sepultura no deserto . A música
começou . Um rondó antigo , vagamente marcial . Há um estalido perió­
dico na melodia devido a um risco na placa de baquelite negro que
gira sob uma agulha, algures atrás das cortinas . As luzes da sala esba­
tem-se até somente o palco ficar iluminado . As cadeiras raspam no
chão . Alguns acessos de tosse . A música desvanece-se até restar so­
mente o sussurro da agulha, o clique periódico semelhante a um me­
trónomo avariado , ou então um relógio , um mau presságio . A cadência
de qualquer coisa periódica e à parte isso silenciosa e dotada de uma
resignação colossal , que só as trevas poderiam acolher.
Quando acordou , não foi deste sonho , mas sim de um outro , e per­
dera o rasto ao atalho de um sonho para o outro . Estava sozinho nu­
ma qualquer paisagem desolada onde o vento soprava sem cessar e
onde a presença dos que ali tinham passado antes ainda perdurava na
escuridão em volta . As vozes dessas pessoas chegavam até ele , ou
talvez o eco dessas vozes . Deitado , ele pôs-se à escuta . Era o velho
a deambular pelo terreiro em roupas de dormir, e John Grady passou
as pernas por cima do bordo do catre e estendeu o braço e pegou nas
calças e enfiou-as nas pernas e pôs-se de pé e afivelou o cinturão e
estendeu o braço e pegou nas botas . Quando saiu , Billy estava para­
do no vão da porta, de ceroulas .
Eu vou lá buscá-lo , disse John Grady.
Isto até mete dó , comentou Billy.
Alcançou-o no momento em que ele dobrava a esquina do estábu­
lo , a caminho sabe Deus de onde . Tinha o chapéu na cabeça e as botas
calçadas , e vestido com isto e com o fato-macaco interior, comprido
e branco , parecia o fantasma de um qualquer vaqueiro antigo a va­
guear por ali .
John Grady pegou-lhe pelo braço e começaram a caminhar na di­
reção da casa . Vamos lá, Mr Johnson , disse . Não precisa de andar
aqui ao relento .
A luz acendera-se na cozinha, e Socorro estava parada à porta, de
roupão . O velho tomou a estacar no terreiro e voltou-se e olhou no­
vamente para as trevas . John Grady, a seu lado , segurava-lhe o coto­
velo . Depois encaminharam-se os dois para a casa.
1 16 Cormac McCarthy

Socorro abriu a porta de rede de par em par. Olhou para John Grady.
O velho amparou-se com uma mão contra a ombreira da porta e entrou
na cozinha. Perguntou a Socorro se tinha café . Como se fosse disso
que andara à procura.
Sim, respondeu ela. Eu preparo café .
Ele 'tá bem , acudiu John Grady.
Quieres un cafecito ?
No gracias .
Pásale , disse ela. Pásale . Puedes encontrar sus pantalones ?
Sí. Sí.
Ajudou o velho a sentar-se numa cadeira, junto à mesa, e seguiu
pelo corredor fora . A luz de Mac estava acesa, e ele estava parado à
porta.
Ele 'tá bem?
Sim, senhor. Ele ' tá bem .
Continuou até ao extremo do corredor e entrou no quarto do lado
esquerdo e pegou nas calças do velho , que estavam suspensas do
poste , aos pés da cama, onde ele as tinha pendurado . Os bolsos esta­
vam pesados , cheios de trocos , um canivete , uma carteira para notas .
Um porta-chaves para abrir portas havia muito esquecidas . Voltou
pelo corredor fora, a segurar as calças pelo cinto . Mac ainda estava
parado no vão da porta. Estava a fumar um cigarro .
Ele não tem roupas nenhumas vestidas?
Só a roupa interior.
Uma destas noites , ele vai-se pôr a andar daqui pra fora nuzinho
como veio ao mundo . A Socorro despede-se , de certeza.
Ela não se despede .
Eu sei .
Que horas são , Mr Mac?
Passa das cinco . Raios , são quase horas de a gente se levantar,
sej a lá como for.
Sim, senhor.
Importas-te de te sentar com ele um pedacinho?
Não, senhor.
Pra ele não se sentir tão mal com o que fez. Como se ' tivesse a le­
vantar-se , de qualquer maneira.
Sim, senhor. 'Teja descansado .
Cidades da Planície 117

Não sabias que tinhas vindo trabalhar pra um rancho de malucos ,


pois não?
Ele não é maluco . Só ' tá velho .
Eu sei . Vai lá. Antes que ele apanhe frio . Provavelmente , aquele
fato-macaco velho que ele tem vestido não o aquece assim muito .
Sim, senhor.
Sentou-se junto do velho e bebeu café até Oren entrar. Oren olhou
para eles , mas nada disse . Socorro preparou o pequeno-almoço e
trouxe os ovos e os scones e o chorizo , e eles comeram. Quando John
Grady levou o prato até ao aparador e saiu , o dia estava mesmo a
romper. O velho ainda estava sentado à mesa, de chapéu . Nascera no
Leste do Texas , em mil oitocentos e sessenta e sete , e viera para
aquela terra ainda jovem . Durante a sua vida, a região passara do
candeeiro a petróleo e da charrete puxada por cavalos para os aviões
a jato e a bomba atómica , mas não fora isto que o confundira. Era o
facto de a filha ter morrido que ele não conseguia entender.

Sentaram-se na primeira fila da bancada, perto da mesa do pregoei­


ro , e Oren debruçava-se para diante de tempos a tempos para escarrar
cuidadosamente por sobre as tábuas do parapeito , para a poeira da
arena. Mac tinha um pequeno caderno no bolso da camisa e tirou-o e
consultou os seus apontamentos e tomou a guardar o cademinho e
depois tirou-o do bolso e ficou a segurá-lo na mão .
Nós vimos este cavalinho? perguntou .
Sim, senhor, respondeu John Grady.
Ele tomou a remirar o caderno .
Ele disse que era do Davis, mas não é .
Pois não .
É do Bean , interveio Oren . É um cavalo do Bean .
Eu sei que cavalo é , disse Mac .
O pregoeiro soprou para o microfone . Os altifalantes estavam
pendurados dos candeeiros altos , no extremo da arena, e a voz dele
estremeceu e ecoou junto ao teto do picadeiro para leilões .
Minhas senhoras e meus senhores , deixem-me fazer uma corre­
ção . Este cavalo é trazido a leilão por Mr Ryle Bean .
A base de licitação era quinhentos . Alguém no extremo oposto da
arena tocou na aba do chapéu , e o olheiro ergueu a mão e voltou-se ,
118 Cormac McCarthy

e o pregoeiro disse agora seiscentos agora seiscentos tenho seiscen­


tos quem é me dá sete sete sete . Setecentos agora .
Oren debruçou-se e escarrou pensativamente para a poeira. O teu
amigo ' tá acolá, informou .
Já o vi , disse John Grady.
Quem é? perguntou Mac .
O Wolfenbarger.
E ele vê-nos?
Sim, disse Oren . Ele vê-nos .
Sabias quem ele era, John Grady?
Sim, senhor. Ele foi lá ao rancho uma tarde .
Julguei que não querias falar com ele .
E não falei .
Faz de conta que ele nem sequer cá ' tá, mais nada.
Sim, senhor.
Quando é que ele lá foi?
Na semana passada. Não sei . Na quarta-feira, talvez .
Não lhe prestes atenção , pronto .
Sim, senhor. ' Teja descansado .
Tenho mais que fazer do que preocupar-me com ele .
Sim, senhor.
Oitenta, setecentos e oitenta, clamou o pregoeiro . Quem lá chega.
O homem não aceita menos .
O cavaleiro guiou o cavalo em volta da arena. Atravessou-a na
diagonal e parou e recuou .
É um bom cavalo de trabalho e um bom cavalo de laçar, atirou o
pregoeiro . Este cavalo vale mil dólares . Muito bem, meus senhores.
Tenho oito tenho oito tenho oito . Agora quero oitocentos e cinquen­
ta. Oito cinquenta oito cinquenta oito cinquenta.
O cavalo foi vendido por oitocentos e vinte e cinco , e trouxeram
uma égua árabe que foi vendida por setecentos . Mac viu-os levarem­
-na de volta para fora da arena.
Eu cá é que não queria na minha quinta aquela égua maluca dos
cornos , comentou .
Leiloaram um capão palomino bastante vistoso que rendeu mil e
trezentos dólares . Mac ergueu os olhos dos seus apontamentos . Onde
é que as pessoas arranjam tanta massa, porra? perguntou .
Cidades da Planície 1 19

Oren abanou a cabeça .


O Wolfenbarger licitou este cavalo?
Disseste pra não olharmos pràquele lado .
Eu sei . Ele fez algum lanço?
Sim .
Mas não o comprou , pois não .
Nicles .
Pensei que não ias olhar pràquela banda.
Não foi preciso . Ele pôs-se a acenar com a mão como se a casa
tivesse pegado fogo .
Mac abanou a cabeça e ficou a examinar os seus apontamentos .
' Tão-se a preparar pra trazer aquela muda dos broncos não tarda
nada , avisou Oren.
Diz-me cá o que é que achas , de quanto dinheiro ' tamos aqui a
falar?
Eu cá diria que um homem consegue comprar aqueles cavalos a
cem dólares por cabeça.
E o que é que fazias com os outros três , era vendê-los já de segui­
da neste leilão?
Vendê-los já de seguida . Ou talvez fosse melhor vendê-los lá no
rancho .
Mac fez que sim com a cabeça. Talvez, disse . Lançou um olhar às
bancadas . Detesto dar aulas de graça àquele filho da púcara.
Eu sei .
Acendeu um cigarro . Viram o moço de estrebaria trazer o cavalo
seguinte .
Eu diria que ele veio cá pra comprar, comentou Oren .
Eu diria o mesmo .
Ele vai licitar todos os cavalos do Red . Vais ver se vai ou não .
Eu sei . Devíamos de o acirrar só um bocadinho .
Oren não respondeu .
É canja, depenar um palerma, disse Mac . John Grady, qual é o
problema daquele cavalo?
Nenhum, que eu saiba.
Julguei que tinhas dito que era uma espécie de cruzamento rafeiro .
Um cavalo marciano , ou coisa assim do género .
Aquele cavalo é capaz de ter o sangue um bocadinho frio .
1 20 Cormac McCarthy

Oren escarrou por cima das tábuas e sorriu .


O sangue frio? perguntou Mac .
Sim, senhor.
A base de licitação do cavalo era trezentos dólares .
Que idade tinha aquele animal . Lembras-te?
Onze anos .
Pois , comentou Oren . Tinha onze há uns seis anitos .
Os lanços chegaram a quatrocentos e cinquenta. Mac repuxou a ore­
lha. Sou danado pra mercadejar cavalos , mais nada, atirou . O olheiro
apontou para o pregoeiro .
Agora tenho quinhentos tenho quinhentos tenho quinhentos tenho
quinhentos , proclamou o pregoeiro.
Julguei que não gostavas de fazer isso , disse Oren .
Fazer o quê? perguntou Mac .
Os lanços chegaram a seiscentos e depois a seiscentos e cinquenta.
O animal não abriu a boca nem abanou a cabeça nem fez coisa
nenhuma, disse o pregoeiro . Este cavalo vale um bocadinho mais de
dinheiro do que isto , amigos .
O cavalo foi vendido por setecentos . Wolfenbarger não chegou a
licitar. Oren lançou uma olhadela a Mac .
É castiço , aquele filho da púcara, verdade? comentou Mac .
Importas-te que eu diga uma coisa.
Diz lá.
Porque é que não fazemos o que dissemos e licitamos como se ele
não ' tivesse aqui .
Raios partam , tu não dás mesmo saída a um gajo. Obrigas um
homem a seguir os conselhos que ele próprio deu .
É tramado , não é .
Provavelmente , tens razão . Talvez seja a melhor estratégia, de
qualquer maneira, pra um paspalho como ele .
O moço de estrebaria trouxe o rosilho de quatro anos de McKin-
ney, cuja base de licitação foi seiscentos .
Onde é que para aquela muda? perguntou Mac .
Não sei .
Bom, ' tamos a chegar à hora da verdade .
Levou um dedo à orelha. O olheiro levantou a mão . A voz do pre­
goeiro estralejou , cuspida pelos altifalantes lá no alto . Tenho seis
Cidades da Planície 121

tenho seis tenho seis . Será que ouço sete . Quem me d á sete . Setecen­
tos , já 'tá. Sete sete sete .
Lá ' tá ele com aquela mãozinha .
J á o vi .
O cavalo chegou a setecentos e a setecentos e cinquenta e a oito­
centos . O cavalo chegou a oitocentos e cinquenta.
Há malta a licitar por todo o picadeiro , não é verdade? comentou
Oren .
Por todo o picadeiro .
Bom, não há nada a fazer. Quanto vale este cavalo?
Não sei . Vale o que pagarem por ele . John Grady?
Eu gostei do cavalo .
Quem me dera que tivessem trazido aquela muda primeiro .
Eu sei que o senhor tem um número na cabeça, Mr Mac .
Tinha, é verdade .
É o mesmo cavalo aqui que era lá na estala.
Isso é que é falar que nem um cavalheiro .
O leilão encalhara nos oitocentos e cinquenta. O pregoeiro bebeu
um gole de água. Isto é um belo cavalo , rapazes , comentou . 'Tão
bem enganados a respeito deste .
O cavaleiro picou o cavalo até ao extremo da arena e fê-lo dar
meia-volta e regressou . Montava-o sem freio , somente com uma
corda lançada em volta do pescoço , e rodou e parou o cavalo . Uma
coisa vos garanto , bradou . Eu cá não sou dono nem dum pelo da
crina deste animal , mas o que aqui ' tão a ver é um cavalo marchador.
Custa-vos mil dólares pro vosso garanhão cobrir a mãe dele , disse
o pregoeiro . O que é que me dizem, rapazes?
O alheiro ergueu a mão .
Tenho nove tenho nove tenho nove . Agora nove e cinquenta e
cinquenta e cinquenta. Nove e cinquenta. Agora nove e cinquenta.
Era nove e agora é nove e cinquenta.
Posso dizer uma coisa, acudiu John Grady.
Quem me dera que dissesses .
Não vai comprá-lo pra vender, pois não?
Não , não vou .
Bom, então acho que o senhor devia de comprar o cavalo que tem
na vontade .
1 22 Cormac McCarthy

Tens este animal em alta conta.


Tenho , sim, senhor.
Oren abanou a cabeça e debruçou-se e escarrou . Mac olhava para
o seu caderno .
Ele vai custar-me dinheiro , seja lá o que for que eu faça, é uma
maneira de ver a coisa .
O cavalo?
Não , não ' tou a falar do raio do cavalo .
Os lanços subiram a novecentos e cinquenta e depois a mil .
John Grady olhou para Mac e depois olhou para a arena.
Eu conheço aquele fulano acolá em cima da camisa aos quadra-
dos , disse Mac .
Também eu , disse Oren .
Gostava de os ver a comprarem outra vez o próprio cavalo .
Também eu gostava.
Mac comprou o cavalo por mil e cem dólares . Agora vou pedir
esmola pelas esquinas , porra, soltou .
É um belo cavalo , comentou John Grady.
Eu sei o belo cavalo que ali ' tá. Não tentes fazer-me sentir melhor.
Não lhe ligues , rapaz , interveio Oren . Ele quer que tu lhe elogies
o cavalo , só fica um bocadinho acanhado , mais nada.
Quanto é que achas que ali o perna-longa me custou neste negó­
cio?
Provavelmente , não te custou nada neste , respondeu Oren . Mas é
capaz de se ' tar a preparar pra te dar prejuízo no próximo .
O palafreneiro estava a molhar a poeira no chão do picadeiro com
uma mangueira. Trouxeram a muda de quatro cavalos , e Mac com­
prou-os também.
Como um ladrão nas trevas da noite , proclamou o pregoeiro . Nú­
mero um zero quatro . Vendido por quinhentos e vinte e cinco .
Isto podia ter custado mais do que custou , parece-me bem , comen-
tou Mac .
Andas a escapar-te entre os pingos de chuva.
Isso mesmo .
Ficou a ver o palafreneiro trazer para a arena o cavalo seguinte .
Lembras-te deste cavalo , John Grady.
Sim , senhor. Lembro-me deles todos .
Cidades da Planície 1 23

Mac folheava os seus apontamentos . Uma pessoa habitua-se a as­


sentar tudo e, ao fim dum certo tempo , já não se consegue lembrar
de nada .
A razão que te levou a assentar as coisas , logo pra começar, é que
já não te lembravas de nada, atirou Oren .
Eu conheço este cavalinho , disse Mac . Adorava vendê-lo ao Wolfen-
barger, só vos digo .
Julguei que o ias deixar ' tar quieto .
Ele podia montar um circo .
Aqui temos um cavalo de dentes rasos dos seus oito aninhos , pro­
clamou o pregoeiro . Um bom cavalo de trabalho e um bom cavalo
de laçar, e vale bastante mais do que os meus amigos começaram por
dar por ele .
Ele tem de comprar aquele cavalo . O animal consegue fazer quase
tudo , à parte andar em linha reta. Deve de lhe servir às mil maravilhas .
O cavaleiro guiou o animal em passo vivo para trás e para diante
em frente às bancadas , sofreando as rédeas e dando meia-volta.
Quinhentos quinhentos quinhentos , clamou o pregoeiro . É um belo
cavalo , rapazes . Cheio de saúde , é garantido . Olhem bem pra estas
serpentinas apertadas . Que nem um gato na chaminé dum fogão , mal­
ta. Agora quinhentos e cinquenta, e cinquenta, e cinquenta.
Mac repuxou a orelha. Quinhentos e cinquenta agora seis agora
seis agora seis, bradou o pregoeiro .
Oren fez um ar enojado .
Caramba, disse Mac . Podemos divertir-nos um bocadinho à custa
do fulano , ou não?
Os lanços chegaram a setecentos . O dono do animal pôs-se de pé
nas bancadas . Vamos fazer assim , sugeriu . Se alguém conseguir que
ele tome o freio nos dentes e não obedeça às rédeas , ofereço-lho .
Os lanços chegaram a setecentos e cinquenta, chegaram a oito­
centos.
John Grady, já ouviste aquela do pregador que roubou um poldro
e três vitelos?
Não , senhor.
Ele 'tava sempre a justificar tudo com as Escrituras . Quando o apa­
nharam , o juiz pediu-lhe que explicasse aquela patifaria, e ele virou-se
pra ele e disse: Bom, deixai vir a mim os pequeninos .
1 24 Cormac McCarthy

Acho que já me tinha contado essa, Mr Mac .


Mac fez que sim com a cabeça. Folheou os seus apontamentos .
Ele não sabia como é que havia de licitar aquela muda. Acho que
ficou todo baralhado .
Sim , senhor.
Agora, ' tá mortinho por comprar um cavalo .
É capaz de ' tar.
É s jogador de póquer, rapaz?
Já me sentei a jogar uma ou duas vezes , sim, senhor.
Achas que este cavalo se vai vender por menos de mil?
Não , senhor. Assim a modos que duvido muito .
E se passar dos mil , até onde é que vai chegar?
Não sei .
Eu cá também não .
Mac licitou o cavalo a oitocentos e cinquenta e depois a novecen­
tos e cinquenta. Nesse ponto , os lanços cessaram . Oren debruçou-se
e escarrou .
O que o Oren não entende é que quanto mais dinheiro aquele ca­
beça de burro tiver nos bolsos , mais dinheiro aquele cavalo do Wel­
burn me vai custar.
O Oren entende isso , contrapôs Oren . Ele só acha que tu devias de
comprar o cavalo pelo preço a que ele subir e pronto , em vez de te
arriscares a não teres dinheiro que chegue pra lá chegares . Seja como
for, aquele filho da púcara tem mais dinheiro do que o Carter tem
pastilhas pro fígado .
O olheiro levantou o braço .
Tenho mil tenho mil tenho mil , bradou o pregoeiro . Agora mil e
cem , agora mil e cem .
O cavalo chegou a mil e cem , e Wolfenbarger licitou-o a mil e du-
zentos , e Mac licitou-o a mil e trezentos .
Eu c á não sou responsável , avisou Oren .
Ena, aquele homem sabe negociar cavalos .
Ainda te lembras da base de licitação do cavalo?
Sim. Lembro-me .
Então vá, anda com isso .
Este Oren . . . , comentou Mac .
Wolfenbarger comprou o cavalo por mil e setecentos dólares .
Cidades da Planície 1 25

Um belo naco de carne de cavalo , comentou Mac . Condiz mesmo


bem com o fulano .
Meteu a mão no bolso e tirou de lá um dólar.
Porque é que não nos vais buscar umas Coca-Colas , John Grady.
Com certeza.
Oren ficou a vê-lo descer através da bancada.
Achas que ele te desconvencia de comprares um cavalo tão bem
como te conseguia convencer?
Sim. Acho que sim .
Eu também acho que sim .
Quem me dera ter mais meia dúzia assim como ele .
Sabes que há coisas sobre um cavalo que ele só sabe dizer em
espanhol?
E que me importa que ele só as saiba em grego . Porquê?
Só achei que era curioso . Achas que ele é de San Angelo?
Acho que ele é de onde diz que é .
Parece-me bem que sim .
Aprendeu tudo num livro que leu .
Num livro que leu?
O Joaquín diz que ele sabe o nome de todos os ossos que um ca­
valo tem no corpo .
Oren fez que sim com a cabeça. Bom, disse . É bem capaz disso .
Sei de algumas coisas que ele não aprendeu em livro nenhum .
Também eu , concordou Mac .
Quando trouxeram para a arena o cavalo seguinte , o pregoeiro leu
em pormenor alguns trechos da documentação do animal .
Parece-me que este é um cavalo bíblico , comentou Mac .
Não me digas .
O cavalo foi a leilão com uma base de licitação de mil dólares e
chegou a mil e oitocentos e cinquenta , mas a venda não se fez . Oren
debruçou-se e escarrou . Este homem tem o seu cavalo em alta conta,
disse .
Oh , se tem , concordou Mac .
Trouxeram a trote o cavalo de Welbum , e Mac comprou-o por mil
e quatrocentos dólares .
Rapazes , disse . Vamos embora pra casa .
1 26 Cormac McCarthy

Não queres deixar-te ficar pra gastares mais umas massas do Wolfen­
barger?
Wolfenbarger quem?

Socorro dobrou e pendurou o pano da loiça, desamarrou e pendu-


rou o avental . Virou-se ao chegar à porta.
Buenas noches , disse .
Buenas noches , disse Mac .
Ela fechou a porta. Ele ouviu-a a dar corda ao seu velho relógio de
latão . Um pouco mais tarde , ouviu o ténue ruído crepitante do sogro
a dar corda ao relógio de caixa alta no corredor. A portinhola de vidro
do relógio fechou-se suavemente . Depois fez-se silêncio . Fez-se si­
lêncio na casa e fez-se silêncio nas terras em volta. Ele fumava,
sentado . O fogão soltava estalidos à medida que ia arrefecendo . Lá
longe , nos montes atrás da casa, um coiote ululou . No tempo em que
eles passavam os invernos na casa antiga, na faixa sueste do rancho ,
a última coisa que ele ouvia de noite antes de adormecer era o bra­
mido do comboio a avançar para leste , vindo de El Paso . Sierra
Blanca, Van Horn , Marfa, Alpine , Marathon . A rolar pela pradaria
azul através da noite , a caminho de Langtry e de Del Rio . A verruma
branca do farol dianteiro a iluminar os arbustos do deserto e os olhos
do gado junto aos carris, pairando nas trevas como brasas . Os va­
queiros nos montes , de pé , com os ponchos em volta dos ombros , a
ver o comboio passar cá em baixo , e as pequenas raposas do deserto
a aventurar-se para o leito do caminho de ferro já mergulhado no
negrume , a farejar o rasto da composição no lugar onde os carris de
aço quentes jaziam a zumbir na noite .
Essa parte do rancho havia muito que se perdera, e o restante em
breve seguiria o mesmo caminho . Ele bebeu o resto do café , já frio na
chávena, e acendeu o último cigarro antes de ir para a cama e depois
levantou-se da cadeira e apagou a luz e voltou a sentar-se e ficou a
fumar no escuro . Uma frente de tempestade descera do norte durante
a tarde , e o tempo arrefecera. Não choveu . Talvez nas parcelas orien­
tais do rancho . Lá no alto , nas Sacramentos. As pessoas imaginavam
que , se conseguissem sobreviver a uma seca, podiam contar com al­
guns anos bons para tentar recuperar, mas era exatamente como sair
sete num par de dados. A seca não sabia quando é que a última ocor-
Cidades da Planície 1 27

rera, e ninguém sabia quando é que a seguinte iria chegar. Fosse como
fosse , aquele rancho de criação de gado estava praticamente na falên­
cia. Ele puxou uma fumaça vagarosa do cigarro . Este chamejou e
atenuou-se . Ia fazer três anos em fevereiro que a mulher morrera. O
dia de Nossa Senhora das Candeias , segundo dizia Socorro . Da Can­
delária. Tinha qualquer coisa que ver com a Virgem . Como tudo . No
México não há Deus . Só ela. Esborrachou a beata para a apagar e
pôs-se de pé e ficou parado , a olhar lá para fora, para o terreiro dian­
te do estábulo , suavemente iluminado . Ah , Margaret, disse .

JC parou diante do Maud 's e saiu e bateu com a porta da carrinha,


e ele e John Grady entraram .
Ora aqui vêm duas belas peças , disse Troy.
Foram para junto do balcão . O que é que vocês vão querer, rapa-
zes , perguntou Travis .
Dá-nos duas Blue Ribbons .
Ele tirou as garrafas do frigorífico e abriu-as e pousou-as no balcão .
Eu pago , disse John Grady.
Eu pago , acudiu JC .
Pôs quarenta cêntimos em cima do tampo e pegou na garrafa pelo
gargalo e bebeu uma longa golada e limpou a boca com as costas da
mão e encostou-se ao balcão do bar.
Trabalhaste o dia inteiro escarranchado na sela? perguntou Troy.
Sou principalmente um cavaleiro da noite , respondeu JC .
Billy estava de pé , curvado sobre a mesa de shu.ffleboard, a fazer
deslizar para trás e para diante o disco metálico . Olhou para Troy e
olhou para JC e depois lançou o disco por sobre o tabuleiro de ma­
deira de lei . Os pinos no extremo do tabuleiro ergueram-se , impeli­
dos pela máquina, e a luz de strike acendeu-se no painel das pontua­
ções , e as campainhas contaram os pontos . Troy fez um sorriso de
orelha a orelha e entalou no canto da boca o charuto que estava a
fumar e deu um passo em frente e pegou no disco e curvou-se sobre
a mesa.
Queres jogar?
O JC joga.
Queres jogar, JC?
Sim, eu jogo . Quanto é que ganha o vencedor?
1 28 Cormac McCarthy

Troy derrubou todos os pinos na máquina de bowling e recuou e


fez estalar os dedos .
Eu e o JC jogamos contra ti e o Askins .
Askins estava parado junto à máquina, com uma mão enfiada no
bolso de trás e a outra a segurar uma cerveja. Eu e o Jessie jogamos
contra ti e o Troy, sugeriu .
Billy acendeu um cigarro . Olhou para Askins . Olhou para JC .
Tu e o Troy joguem contra eles , disse .
Vá, anda, joga tu .
Tu e o Troy joguem . Vá lá.
Qual é o prémio? insistiu JC .
Quero lá saber.
Vê lá o sarilho em que te metes .
Qual é o prémio , Troy?
É o que eles quiserem que seja.
Vamos jogar a um dólar.
Ena, vocês não brincam . Toca a sacar das moedas . Jessie , alinhas?
Alinho , sim, respondeu Jessie .
Billy sentou-se no banco , ao balcão , ao lado de John Grady. Fica­
ram a ver enquanto os jogadores metiam na máquina as moedas de
vinte e cinco cêntimos. Os números rolaram para trás , e as campai­
nhas retiniram . Troy verteu cera granulada de uma lata para cima do
tabuleiro e fez deslizar o disco para trás e para diante e curvou-se
para o lançar. Abriu a escola de boliche , proclamou .
Mostra lá o que vales .
Havias de ficar espantado com o que se aprende com um jogador
experiente .
Atirou o disco pela mesa fora. As campainhas retiniram. Ele deu
um passo atrás e fez estalar os dedos . Coisas , disse , que nos são
muito úteis a vida inteira .
Preciso de falar contigo , disse John Grady.
Billy soprou fumo para o meio da sala. Muito bem , disse .
Vamos ali pra trás , pràs traseiras .
Vamos lá.
Pegaram nas cervejas e foram até aos fundos do estabelecimento ,
onde havia mesas e cadeiras e um palco e uma pista de dança de ci­
mento envernizado . Puxaram duas cadeiras com os pés e sentaram-
Cidades da Planície 1 29

-se junto de uma mesa e pousaram as cervejas . A sala estava mergu­


lhada na penumbra e cheirava a mofo .
Aposto que já sei o que é que me vais dizer, começou Billy.
Pois. Eu sei .
Ele pôs-se a arrancar o rótulo da garrafa de cerveja com a unha do
polegar enquanto escutava. Nem sequer ergueu os olhos para John
Grady. John Grady falou-lhe da rapariga e falou-lhe do White Lake
e de Eduardo e contou-lhe o que o maestro cego dissera. Quando
acabou de falar, Billy ainda não erguera os olhos , mas parara de ar­
rancar o rótulo da garrafa. Não disse nada. Ao fim de um certo tem­
po , tirou os cigarros do bolso e acendeu um e pousou o maço e o
isqueiro em cima da mesa.
' Tás a fazer pouco de mim , não ' tás? perguntou .
Não . Acho que não ' tou .
Mas o que é que se passa contigo? 'Tiveste a beber diluente pra
tintas ou coisa do género?
John Grady empurrou o chapéu para trás . Espraiou a vista pelo
soalho . Não , respondeu .
Deixa cá ver se eu percebi bem . Queres que eu vá a uma casa de
putas em Juárez , no México , e que compre essa tal rameira com di­
nheiro vivo e que a traga prà banda de cá do rio, pro rancho . É mais
ou menos isto , certo?
John Grady assentiu com a cabeça .
Merda, soltou Billy. Sorri o u coisa do género , sim? Raios partam .
Diz-me que não ' tás doido varrido .
Não ' tou doido varrido .
Não ' tás o tanas .
' Tou apaixonado por ela, Billy.
Billy afundou-se na cadeira. Os braços pendiam-lhe , inertes , junto
aos flancos . Ah , diabos me levem , soltou . Diabos me levem .
Eu sei que soa mal , o que é que hei de fazer?
A culpa é toda minha, porra. Nunca te devia de ter levado até lá
abaixo . Nunca na vida. A culpa é minha. Chiça, nem sei de que é que
me ' tou pràqui a queixar.
Debruçou-se e tirou o cigarro aceso do cinzeiro de latão onde o
pusera e puxou uma fumaça e soprou o fumo por cima da mesa.
Abanou a cabeça. Diz-me uma coisa, tomou .
1 30 Cormac McCarthy

Diz lá.
O que é que tu fazias com ela, raios e coriscos te partam, se a
conseguisses tirar lá de baixo? Que não vais conseguir, digo-te já.
Casava-me com ela.
Billy suspendeu o gesto , com o cigarro a meio caminho da boca.
Tomou a pousá-lo .
Pronto , ' tá decidido , declarou . 'Tá decidido . Vou mandar internar­
-te no manicómio .
' Tou a falar a sério , Billy.
B illy recostou-se na cadeira. Ao fim de um certo tempo , ergueu ao
alto uma mão . Nem acredito no que ' tou a ouvir, porra . Parece-me
bem que eu é que enlouqueci . Diabos me levem se não ' tou maluco
dos cornos . Mas tu perdeste esse juízo todo? Diabos me levem pràs
profundezas do Inferno , comparsa. Nunca na porra da minha vida
ouvi nada que se parecesse com isto .
Eu sei . Não posso fazer nada.
Não podes o tanas .
Ajudas-me?
Não , porra, nem pensar. Sabes o que é que vão fazer contigo?
Vão-te ligar a cabeça a uma daquelas máquinas e depois puxam um
interruptor enorme e fritam-te os miolos até tu deixares de ser um
perigo pra ti mesmo .
Eu ' tou a falar a sério , Billy.
E tu achas que eu não ' tou? Ainda os vou ajudar a ligar os fios .
Eu não posso ir até lá abaixo . Ele sabe quem eu sou .
Olha pra mim , rapaz . Não ' tás a dizer coisa com coisa. Mas de que
género de gente julgas tu que ' tás a falar? Achas mesmo que podes
ir até lá abaixo e mercadejar com um chulo oleoso qualquer que
compra e vende pessoas sem pensar duas vezes como quem vai até
ao relvado do tribunal pra trocar canivetes com outros putos?
Não posso fazer nada.
Mas tu páras de dizer isso , raios partam? Que raio de conversa é
essa, não podes fazer nada?
Deixa ' tar, esquece . Não faz mal .
Não faz mal? Merda.
Afundou-se na cadeira.
Queres mais uma cerveja?
Cidades da Planície 131

Não , não quero . Quero uma garrafa inteira de whiskey , chiça, pe-
nico .
Não te levo a mal por não quereres ter nada que ver com isto .
Bom , fico feliz da vida por essa tua simpatia, caramba.
Sacudiu o maço até tirar de lá um cigarro .
Já tens um aceso , avisou John Grady.
Billy não lhe prestou atenção . Não tens dinheiro , atirou . Por isso ,
não 'tou bem a ver como é que fazes tenções de ir às compras de putas .
Eu arranjo.
Arranjas onde?
Arranjo.
Quanto é que tinhas na ideia oferecer ao gajo?
Dois mil dólares .
Dois mil dólares .
Pois.
Bom. Se é que ainda havia alguma dúvida, agora é que já não há,
de certeza. Enlouqueceste completamente e não há mais nada pra
dizer sobre o assunto . Não é assim?
Não sei .
Bom, sei eu . Onde raio , com mil diabos , explica-me só , onde raio
julgas tu que vais arranjar dois mil dólares?
Não sei . Hei de arranjar.
Não ganhas isso num ano .
Eu sei .
'Tás num estado de espírito perigoso , rapaz . Sabias?
Talvez .
Eu já vi isto antes. Sabes que tens andado esquisito desde que des­
te aquele trambolhão? Já pensaste nisto? Olha pra mim . 'Tou a falar
a sério .
Eu não dei em maluco , Billy.
Bom, um de nós deu . Merda. A culpa é minha. É tudo . A culpa é
minha.
Não tem nada que ver contigo .
O tanas é que não tem .
Não faz mal . Deixa ' tar, pronto .
Billy recostou-se na cadeira. Fitou os dois cigarros a arder no cin­
zeiro . Ao fim de um certo tempo , empurrou o chapéu para a nuca e
1 32 Cormac McCarthy

passou a mão sobre os olhos e sobre a boca e tomou a puxar o chapéu


para baixo e percorreu a sala com o olhar. Na divisão contígua, junto
ao balcão , as campainhas do shuffleboard retiniam. Ele olhou para
John Grady.
Como é que te meteste numa alhada deste tamanho?
Não sei .
Como é que deixaste as coisas chegar a este ponto?
Não sei . De certa maneira, sinto que não tive nada que ver com
esta história. Como se as coisas fossem assim mesmo . Como se as
coisas sempre tivessem sido assim mesmo .
Billy abanou a cabeça com expressão triste . Mais maluqueira, dis-
se . Não é demasiado tarde , sabes .
Ah , isso é que é .
Nunca é demasiado tarde . S ó precisas de tomar uma decisão .
Já tomei a minha decisão .
Bom, então destoma-a. Começa outra vez do zero
Há dois meses , eu teria concordado contigo . Agora, sei que não
vale a pena. Há certas coisas que a gente não decide . Decidir não tem
nada que ver com elas .
Ficaram muito tempo ali sentados . Ele olhou para John Grady e
circunvagou os olhos pela sala. A pista de dança poeirenta, o palco
vazio . As formas de uma bateria coberta por um pano . Empurrou a
cadeira para trás e pôs-se de pé e tomou a pousar a cadeira cuidado­
samente no seu lugar e depois virou costas e afastou-se , atravessou a
sala e passou diante do balcão e saiu porta fora .

A altas horas , naquela noite , deitado na cama, no escuro , ouviu a


porta da cozinha a fechar-se e ouviu a porta de rede a fechar-se de­
pois . Ficou ali deitado . Em seguida, sentou-se e rodou as pernas e
pôs os pés no chão e pegou nas botas e nas calças de ganga e vestiu
as calças e calçou as botas e pôs o chapéu e saiu do estábulo . A Lua
estava quase cheia e fazia frio e era tarde e não se via fumo a elevar­
-se da chaminé da cozinha. Mr Johnson estava sentado no alpendre
das traseiras , de casaco de lona, a fumar um cigarro . Ergueu o rosto
para John Grady e acenou com a cabeça. John Grady sentou-se no
alpendre ao lado dele . O que é que ' tá a fazer aqui fora sem o seu
chapéu? perguntou .
Cidades da Planície 1 33

Não sei .
' Tá tudo bem consigo?
' Tá . Eu ' tou bem . À s vezes, uma pessoa tem vontade de ' tar ao
relento de noite . Queres um cigarro?
Não , obrigado .
Também não conseguias dormir?
Não , senhor. Acho que não .
Que tal são os cavalos novos?
Acho que ele fez uma boa compra.
Os poldros que eu vi ali metidos no cercado tinham um ar meio
assustadiço .
Tenho ideia de que ele vai vender alguns deles.
Mercadejar cavalos , comentou o velho . Abanou a cabeça . Puxou
uma fumaça.
O senhor domava cavalos , Mr Johnson?
Quando calhava. Só o que era preciso , mais nada. Nunca fui do­
mador no verdadeiro sentido da palavra. Uma vez , magoei-me a sé­
rio . Uma pessoa pode amedrontar-se e não o saber. Coisas pequenas .
Uma pessoa nem sequer dá por elas .
Mas gosta de montar a cavalo .
Gosto , sim . Mas a Margaret montava duas vezes melhor do que
eu . Nunca vi mulher com mais jeito pra lidar com os cavalos do que
ela. Muito mais do que eu . Não é fácil pra um homem reconhecer
isto , mas é verdade .
O senhor trabalhou pro rancho Matadors , não foi?
É verdade . Trabalhei , sim.
E que tal?
Era trabalho duro . Ora aí ' tá.
As coisas não mudaram muito , acho eu .
Ah , se calhar até mudaram . Um bocado . Eu nunca adorei este ofí-
cio da criação de gado . Foi o único que aprendi , só isso .
Puxou outra fumaça.
Posso perguntar-lhe uma coisa? perguntou John Grady.
Força.
Que idade tinha você quando se casou?
Eu nunca me cheguei a casar. Nunca encontrei ninguém que me
quisesse .
1 34 Cormac McCarthy

Olhou para John Grady.


A Margaret era filha do meu irmão . Ele e a mulher morreram os
dois em mil nove e dezoito , levados pela epidemia de gripe .
Eu não sabia.
Ela não chegou a conhecer os pais , a bem dizer. Era bebé , ainda .
Bom, tinha cinco anos . Onde é que ' tá o teu casaco?
Eu ' tou bem.
Eu ' tava em Fort Collins , no Colorado , quando isso aconteceu .
Mandaram-me chamar. Despachei os cavalos e vim com eles no
mesmo comboio . Vê lá, não apanhes frio aqui fora.
Não , senhor. 'Teja descansado . Não tenho frio .
Eu tinha todas as razões do mundo pra conseguir, mas nunca fui
capaz de encontrar uma que cá no meu entender se quadrasse com a
Margaret.
Uma quê?
Mulher. Uma mulher. Acabamos por desistir, no fim de contas .
Provavelmente , é um erro . Não sei . A Socorro criou-a, em grande
medida. Ela falava espanhol melhor do que a própria Socorro . É duro ,
horrivelmente duro . A Socorro ia morrendo de desgosto . Ainda não
conseguiu recuperar. Acho que nunca vai conseguir.
Sim, senhor.
Tentámos de todas as maneiras e feitios estragá-la com mimos ,
mas nunca conseguimos . Não sei porque é que ela saiu assim como
saiu . É um milagre , acho que se pode dizer. Não foi mérito meu , isso
te garanto .
Sim, senhor.
Olha acolá. O velho indicou a Lua com um aceno de cabeça.
O quê?
Agora não as consegues ver. Só um minutinho . Não . Desaparece-
ram .
O que era?
Aves a voar por diante da Lua. Gansos , se calhar. Não sei .
Não vi . Pra que lado iam?
Pra norte . Provavelmente , vão pràqueles terrenos paludosos junto
ao rio, pràs bandas de Belen .
Sim, senhor.
Dantes , eu adorava andar a cavalo de noite .
Cidades da Planície 1 35

Também eu .
De noite , vemos coisas no deserto que não conseguimos entender.
O nosso cavalo vê coisas . Vê coisas que o assustam, é claro , mas
depois vê coisas que não o assustam , mas , ainda assim, a gente sabe
que ele viu qualquer coisa.
Que género de coisa?
Não sei .
Fantasmas ou coisa do género , é isso?
Não . Não sei o que sej am . Só sabemos que ele vê coisas . ' Tão ali
à nossa volta.
Não são uns animais daninhos quaisquer?
Não .
Não é uma coisa qualquer que o amedronte?
Não . É mais uma coisa que ele já sabe que ali ' tá.
Mas nós não .
Mas nós não . Sim.
O velho ia puxando fumaças . Contemplava a Lua . Não se viram
mais aves a voar. Ao fim de um certo tempo , ele disse: Não ' tou a
falar de bichos-papões. ' Tou mais a falar das coisas assim como elas
são . Se ao menos a gente soubesse .
Sim, senhor.
' Távamos uma noite junto ao rio Platte , perto de Ogallala , e eu
' tava enroscado na minha manta acolchoada, um bocado afastado
do acampamento . Era uma noite de luar, assim como esta de hoje .
Frio . A primavera daquele ano . Acordei e acho que os ouvi enquan­
to dormia e era um grande ruído de sussurros por toda a parte e eram
gansos aos milhares , a rumarem rio acima . Passaram durante quase
uma hora . Toldaram a Lua. Pensei que a manada se levantasse don­
de ' tava deitada, mas não . Levantei-me e fui pra campo aberto e
fiquei a observá-los , e alguns outros vaqueiros novos do rancho
também se tinham levantado e ficámos ali todos parados , de fato­
-macaco de malha, a olhar pràquilo . Era um sussurro , só isso . Eles
voavam lá bem alto e não era uma algazarra nem nada que se pare­
cesse , e nunca pensei que uma coisa daquelas nos acordasse , assim
estafados como nós 'távamos . Eu tinha na minha muda um cavalo
prà noite chamado Boozer, e o velho Boozer veio ter comigo . Acho
que ele deve de ter achado que a manada se ia levantar também , mas
1 36 Cormac M cCarthy

não aconteceu . E eram vacas que andavam sempre sobre brasas ,


aquelas .
Alguma vez uma das suas manadas debandou?
Sim. ' Távamos a conduzir o gado pra Abilene , em mil oito e oi­
tenta e cinco . Eu era pouco mais do que um cachopo . Tínhamo-nos
travado de razões com o representante dum dos ranchos , e ele
seguiu-nos até ao ponto em que atravessámos o Red River, junto à
loja do Doane , pra entrarmos no Território Í ndio . Ele sabia que nos
íamos ver em palpos de aranha pra recuperarmos o gado naquele
lugar, e não se enganou , mas deitámos a mão ao gajo e tinha sido
mesmo ele , porque ainda tresandava a querosene . Veio à socapa de
noite e pegou fogo a um gato e atirou com ele pro meio da manada.
Quer dizer, atirou com o bicho pelo ar. O Walter Devereaux 'tava a
regressar do quarto de modorra e ouviu o barulho e olhou pra trás .
Disse que parecia um cometa a atravessar o prado e a guinchar a
plenos pulmões . Santo Deus , as vacas arremeteram dali que nem
doidas . Levámos três dias a ajuntar outra vez a manada e quando
finalmente conseguimos pôr-nos a caminho dali pra fora ainda nos
faltavam umas quarenta e tal cabeças , perdidas ou aleijadas ou rou­
badas , e mais dois cavalos .
E o que foi feito do moço?
O moço?
O que atirou o gato .
Ah . Se bem me recordo , não ficou lá muito bem tratado .
Calculo que não .
As pessoas são capazes de tudo .
Sim, senhor. É verdade .
Se viveres o tempo suficiente , vais ver.
Sim, senhor. Já vi .
Mr Johnson não respondeu . Atirou a beata para o meio do terreiro
num vagaroso arco vermelho .
Não há nada pra arder aí pelos prados . Ainda me lembro do tempo
em que podia haver incêndios nas pradarias aqui na região .
Eu não ' tava a dizer que já vi tudo , tomou John Grady.
Eu sei que não ' tavas .
Só 'tava a dizer que vi coisas que preferia não ter visto .
Eu sei . Este mundo dá-nos lições bem duras .
Cidades da Planície 1 37

E qual é a mais dura?


Não sei . Talvez seja só que , quando as coisas desaparecem , desa­
parecem de vez . Não voltam mais.
Sim , senhor.
Ficaram em silêncio . Ao fim de um certo tempo, o velho disse: No
dia a seguir a eu ter feito cinquenta anos , em março de mil nove e
dezassete , fui a cavalo até à antiga casa do rancho , no poço do Wilde ,
e 'tavam lá seis lobos mortos pendurados numa vedação . Cavalguei ao
longo da vedação e passei-lhes a mão pelos dorsos . Olhei pros olhos
deles . Um caçador a soldo do governo tinha-os trazido na noite da
véspera. Tinha-os matado com iscos envenenados . Estricnina. Nem sei
ao certo . Lá pra norte , nas Sacramentos . Uma semana depois , trouxe
mais quatro . Desde esse dia que não ouço um lobo nesta terra. Se ca­
lhar até é uma coisa boa. Eles podem ser danados pro gado . Mas eu
sempre fui aquilo a que se pode chamar supersticioso . Religioso é que
nunca fui , disso tenho a certeza, porra. E sempre me pareceu que uma
criatura pode viver e morrer, mas que o género de criaturas que eles
eram sempre existiu no mundo . Não sabia que se podia envenenar is­
so . Há trinta e tal anos que não ouço uivar um lobo . Não sei onde é que
se vai pra ouvir um. Talvez já não haja um lugar assim.
Quando tornou a percorrer o estábulo , Billy estava parado à porta.
Ele voltou prà cama?
Voltou .
O que é que ele 'tava a fazer a pé?
Disse que não conseguia dormir. E tu , o que é que ' tavas a fazer?
A mesma coisa. E tu?
A mesma coisa.
É qualquer coisa que anda no ar, parece-me bem.
Não sei .
De que é que ele 'tava a falar?
Coisas , sei lá.
O que é que ele disse?
Acho que disse que as vacas conseguem distinguir entre um bando
de gansos e um gato em chamas .
Se calhar não é boa ideia andares tanto de roda dele .
É s capaz de ter razão .
Vocês os dois parecem ter muita coisa em comum .
1 38 Cormac McCarthy

Ele não é maluco , Billy.


Talvez . Mas não sei se tu serias a primeira pessoa a quem eu pedia
opinião sobre essa matéria.
Vou prà cama .
' Noite .
'Noite .

Disse à mulher em espanhol que fazia tenções de ficar com o cha­


péu e levou-o consigo quando subiu os dois degraus que conduziam
ao bar e depois tomou a pô-lo na cabeça. Havia alguns homens de
negócios mexicanos parados diante do balcão , e ele saudou-os com
um aceno de cabeça ao passar. Eles retribuíram com gestos sóbrios .
O barman pousou um guardanapo . Sefíor? disse .
Um Old Grandad e um copo de água à parte .
O barman afastou-se . Billy tirou do bolso os cigarros e o isqueiro
e pousou-os no balcão . Olhou para o espelho do expositor. Várias
rameiras estavam esparramadas aqui e além nos sofás do salão . Pare­
ciam refugiadas de um baile de máscaras . O barman regressou com o
copito de whiskey e pousou-o no balcão juntamente com o copo de
água, e Billy pegou no whiskey e agitou-o uma vez num movimento
circular vagaroso e depois ergueu-o e bebeu . Estendeu a mão para os
cigarros , chamou o barman com um gesto da cabeça.
Otra vez , pediu .
O barman aproximou-se com a garrafa . Serviu a bebida.
Dónde está Eduardo , indagou Billy.
Quién ?
Eduardo .
O barman verteu a bebida com expressão pensativa . Abanou a
cabeça.
El patrón , explicou Billy.
El patrón no está.
Cuándo regresa ?
No sé. Ficou imóvel , a segurar a garrafa . Hay un problema ? per­
guntou .
Billy sacudiu o maço para tirar um cigarro e pô-lo na boca e es­
tendeu a mão para o isqueiro . No , disse . No hay un problema . Preci­
so de falar com ele por causa dum negócio .
Cidades da Planície 1 39

E qual é o negócio?
Ele acendeu o cigarro e pousou o isqueiro em cima do maço e
soprou o fumo ao longo do balcão e ergueu o rosto .
Parece-me que não ' tamos a avançar muito , comentou .
O barman encolheu os ombros .
Billy tirou o dinheiro do bolso da camisa e pousou uma nota de
dez dólares no balcão .
Isto não é pràs bebidas .
O barman olhou para o outro extremo do balcão , fitando o ponto
onde os homens de negócios estavam parados . Olhou para Billy.
Você sabe quanto vale este emprego? perguntou .
Como?
Perguntei se sabe quanto vale este emprego .
' Tá-me a dizer que ganha montes de dinheiro em gorjetas .
Não . Estou a perguntar-lhe se sabe quanto custa comprar um em-
prego assim.
Nunca ouvi dizer que alguém comprasse um emprego .
O senhor faz muitos negócios no México?
Não .
O barman continuava parado , de garrafa na mão . Billy tirou nova­
mente o dinheiro do bolso e pousou duas notas de cinco em cima da
nota de dez . O barman espalmou a mão por cima do dinheiro e guar­
dou-o no bolso . Un momento , disse . Espérate .
Billy pegou no whiskey e fê-lo rodopiar e bebeu . Pousou o copo e
passou as costas do pulso pela boca. Quando olhou para o espelho do
expositor, o alcahuete estava parado junto ao seu cotovelo esquerdo ,
qual Lúcifer.
Si seiior, disse este .
Billy virou-se e olhou para ele .
Você é o Eduardo?
Não . Em que posso ajudá-lo?
Eu queria falar com o Eduardo .
E qual é o assunto que tem para falar com ele?
Queria falar com ele , pronto .
Sim . Fale comigo .
Billy voltou-se para olhar para o barman , mas o barman afastara­
-se para servir os outros clientes.
1 40 Cormac McCarthy

É um assunto pessoal , mais nada, explicou Billy. Não lhe vou fa­
zer mal , raios .
As sobrancelhas do alcahuete moveram-se ligeiramente para cima .
É bom saber isso, comentou . Há alguma coisa que não lhe agrade?
Tenho um negócio que talvez lhe interesse .
E quem é o negociante .
Como?
E quem é o negociante .
Sou eu . Eu sou o negociante .
Tiburcio remirou-o durante muito tempo . Eu sei quem tu és, disse .
Sabes quem eu sou?
Sim.
E quem sou eu?
É s o trujamán .
E o que é isso?
Não falas espanhol?
Falo espanhol , sim .
Vens com a mordida .
Billy tirou o dinheiro do bolso e pousou-o no balcão . Tenho dezoi-
to dólares . É tudo o que tenho . E ainda não paguei as bebidas .
Paga as bebidas .
Como?
Paga as bebidas .
Billy deixou uma nota de cinco sobre o balcão e guardou os treze
dólares no bolso da camisa, juntamente com os cigarros e o isqueiro ,
e olhou para o outro .
Segue-me .
Seguiu-o através do salão , deixando para trás as rameiras vestidas
com os seus trajes delicados de rameiras . Cruzou o caleidoscópio de
luz fragmentada do candelabro no teto e atravessou o palco vazio até
alcançar uma porta atrás deste .
A porta estava forrada de baeta cor de vinho e não tinha maçane­
ta . O alcahuete abriu-a, mesmo assim , e entraram num corredor de
paredes azuis onde havia uma única lâmpada azul atarraxada no
teto , acima da porta . O alcahuete segurou a porta, e ele cruzou o
limiar, e o alcahuete fechou-a atrás deles e virou-se e caminhou
pelo corredor fora. O aroma almiscarado da água-de-colónia dele
Cidades da Planície 141

pairava n o ar. N o extremo oposto d o corredor, parou e bateu duas


vezes com os nós dos dedos numa porta adornada com relevos de
folha de prata. Voltou-se , à espera, de mãos cruzadas diante dele ao
nível dos pulsos .
Uma campainha retiniu , e o alcahuete abriu a porta. Espera aqui ,
ordenou .
Billy esperou . Uma velha zarolha percorreu o corredor e bateu a
uma das portas . Quando o viu ali , benzeu-se , fazendo o sinal da cruz .
A porta abriu-se e ela desapareceu no interior e a porta fechou-se e o
corredor ficou novamente vazio sob a suave luz azul .
Quando a porta de prata se abriu , o alcahuete fez-lhe sinal que
entrasse , executando um gesto em concha com os dedos magros e
repletos de anéis . Ele entrou e ficou ali parado . Depois tirou o
chapéu .
Eduardo estava sentado à sua secretária, a fumar um dos seus cha­
rutos negros e esguios . Estava sentado de viés , com os pés cruzados
diante de si , apoiados na gaveta de baixo da secretária , que se encon­
trava aberta, e parecia estar a examinar as botas rebrilhantes de pele
de lagarto . Em que posso ajudá-lo? perguntou .
Billy olhou para trás de si , para Tiburcio . Tornou a olhar para
Eduardo . Eduardo levantou os pés da gaveta e rodou vagarosamente
na cadeira. Vestia fato negro , com uma camisa verde-clara de colari­
nho desapertado . Apoiou o braço no tampo de vidro cintilante da
secretária, segurando o charuto na mão . Parecia não ter grande coisa
a ocupar-lhe o espírito .
Tenho um negócio a propor-lhe , começou Billy.
Eduardo ergueu o pequeno charuto e examinou-o . Tornou a olhar
para Billy.
Uma coisa que é capaz de lhe interessar, prosseguiu Billy.
Eduardo fez um sorriso subtil . Olhou por cima do ombro de Billy,
para o alcahuete , e olhou novamente para Billy. A sorte vai bater-me
à porta, comentou . Mas que bom .
Puxou uma longa fumaça vagarosa do charuto . Executou um ges­
to estranho e elegante com a mão que o prendia , rodando-o num arco
e segurando-o com a palma para cima. Como se ali segurasse qual­
quer coisa invisível . Ou estivesse habituado a ter na mão um objeto
agora ausente .
1 42 Cormac McCarthy

Importa-se que a gente falemos sozinhos? perguntou Billy.


Ele executou um aceno de cabeça, e o alcahuete retirou-se e fe­
chou a porta. Quando este saíra , Eduardo recostou-se na cadeira e
tomou a rodar e cruzou novamente as botas sobre a gaveta. Ergueu
os olhos e esperou .
O que eu queria, começou Billy, era comprar uma destas moças .
Comprar, repetiu Eduardo .
Sim, senhor.
O que é que quer dizer com isso , comprar.
Eu dou-lhe o dinheiro e levo-a comigo daqui pra fora.
Você acha que estas raparigas estão aqui contra a sua vontade .
Não sei se 'tão ou não.
Mas é isso que você pensa.
Eu não penso nada.
É claro que pensa. Caso contrário , o que é que haveria para com­
prar?
Não sei .
Eduardo franziu os lábios . Remirou a ponta do charuto . Ele não
sabe , disse .
' Tá-me a dizer que estas moças são livres de sair pela porta fora
quando muito bem entenderem .
Eis uma boa pergunta.
Atão e o que é que seria uma boa resposta.
Eu diria que elas são livres enquanto pessoas .
Enquanto quê?
Enquanto pessoas . Elas são livres enquanto pessoas . Se são livres
aqui? Aproximou da têmpora o indicador espetado . Bom , vá lá
saber-se . . .
Se uma delas quisesse ir embora, podia ir.
Elas são putas . Para onde é que haviam de ir?
Imagine que uma delas se queria casar.
Eduardo encolheu os ombros . Ergueu os olhos para Billy.
Diga-me uma coisa, disse .
Com certeza.
Você é o interessado ou o agente?
Se eu sou o quê?
É você que pretende comprar essa tal rapariga?
Cidades da Planície 1 43

Sou , sim.
Costuma vir muitas vezes ao White Lake?
'Tive aqui uma vez .
Onde é que conheceu esta rapariga?
Na La Venada.
E agora quer casar-se com ela.
Billy não respondeu .
O chulo puxou uma fumaça vagarosa do cigarro e soprou o fumo
vagarosamente na direção das suas botas . Acho que você é o agente ,
declarou .
Eu não sou agente nenhum. Trabalho pro Mac McGovem , no ran­
cho Cross Fours , junto de Orogrande , no Novo México , pode per­
guntar a quem quiser.
Parece-me que você não está aqui por sua conta.
' Tou aqui pra lhe fazer uma oferta.
Eduardo puxava fumaças .
Dinheiro vivo , acrescentou Billy.
Esta rapariga tem uma doença. O seu amigo sabia?
Eu não disse que tinha um amigo .
Ela não lhe contou , pois não?
Como é que sabe que rapariga é .
Chama-se Magdalena.
Billy remirou-o . Você percebeu isso por causa do que eu lhe disse
sobre La Venada.
Essa rapariga não vai sair desta casa. O seu amigo talvez julgue
que sim , mas isso não vai acontecer. Talvez ela própria o julgue . Ela
é muito jovem . Deixe-me perguntar-lhe uma coisa.
Força.
O que é que se passa com o seu amigo , para ele se apaixonar por
putas?
Não sei .
Será que ele acha que ela não é mesmo uma puta?
Não lhe sei dizer.
Não pode falar com ele?
Não .
Porque ela é puta até à medula. Eu conheço-a.
Calculo que sim .
1 44 Cormac McCarthy

O seu amigo é muito rico?


Não .
O que é que ele pode oferecer a esta rapariga? Porque é que ela
havia de partir?
Não sei . Acho que ele pensa que ela ' tá apaixonada por ele .
Santo Deus , soltou Eduardo . E você acredita numa coisa dessas?
Não sei .
Acredita numa coisa dessas?
Não .
E o que é que vai fazer?
Não sei . O que é que quer que eu lhe diga?
Não há nada para lhe dizer. Ele bebe muito , o seu amigo?
Não . Nada de especial .
Estou a tentar ajudá-lo .
Billy bateu com o chapéu ao de leve contra o flanco da perna.
Olhou para Eduardo e passeou os olhos pela sala que lhe servia de
gabinete . No canto , contra a parede mais afastada, havia um pequeno
bar. Um sofá forrado de cabedal branco . Uma mesinha baixa com
tampo de vidro .
Você não acredita em mim , disse Eduardo .
Não acredito que você não tenha algum dinheiro investido nessa
tal rapariga.
Mas eu disse tal coisa?
Julguei que sim .
Ela deve-me uma certa quantia. Dinheiro que lhe foi adiantado
para as roupas . As joias .
Quanto dinheiro .
Acha que eu era capaz de lhe fazer a si essa pergunta?
Não sei . Parece-me que eu nunca ' taria na situação de ma fazerem .
Acha que e u sou um traficante de escravas .
Eu não disse isso .
É o que você pensa.
O que é que quer que eu diga ao meu amigo .
Que diferença faz?
Acho que talvez faça alguma diferença pra ele .
O seu amigo está dominado por uma paixão irracional . Nada que
você lhe diga vai fazer alguma diferença. Ele meteu na cabeça uma
Cidades da Planície 1 45

certa história. De como as coisas serão . Nessa história, ele vai ser
feliz . Qual é o problema desta história?
Diga-me você .
O problema desta história é que não se trata de uma história ver­
dadeira. Os homens têm na cabeça uma imagem de como o mundo
irá ser. De qual o papel que irão desempenhar nesse mundo . O mun­
do pode revestir-se para eles de muitas formas diferentes , mas há um
mundo que nunca existirá, e esse mundo é o mundo dos sonhos de­
les . Acredita nisto?
Billy pôs o chapéu . Agradeço-lhe o tempo que perdeu comigo ,
disse .
Não tem de quê .
Ele voltou-se para partir.
Não respondeu à minha pergunta, observou Eduardo .
Ele tomou a virar-se . Olhou para o chulo . O charuto nos dedos
curvados em concha num gesto elegante , as botas caras . A sala sem
janelas . A respetiva mobília, que parecia ter sido trazida para ali e
disposta daquela maneira somente para que se desenrolasse aquela
cena. Não sei , disse . Provavelmente , acredito , acho eu . Só não gosto
de o dizer.
E porquê?
Parece uma traição , de certa maneira.
A verdade pode ser uma traição?
Talvez . Seja como for, certos homens alcançam o que desej am .
Nenhum homem . O u talvez apenas fugazmente , para logo o per-
derem. Ou talvez apenas para provar ao sonhador que o mundo dos
seus desejos , tomado realidade , já não é esse mundo , nem por som­
bras .
Pois.
Acredita nisto?
Vou dizer-lhe uma coisa.
Diga .
Deixe-me dormir sobre o assunto .
O chulo assentiu com a cabeça. Ándale pues , disse . A porta abriu­
-se sem que houvesse qualquer meio ou sinal visível . Tiburcio pos­
tou-se , à espera. Billy voltou-se de novo e olhou para trás . Você não
respondeu à minha pergunta, notou .
1 46 Cormac McCarthy

Não?
Não .
Repita lá.
Deixe-me perguntar-lhe outra coisa, em vez disso .
Seja.
Ele 'tá metido num sarilho , não ' tá?
Eduardo sorriu . Soprou o fumo do charuto por sobre o tampo de
vidro da sua secretária. Isso não é uma pergunta, redarguiu .

Era tarde quando ele regressou , mas a luz ainda estava acesa na
cozinha . Ficou sentado na carrinha durante uns minutos, depois
desligou o motor. Deixou a chave na ignição e saiu e cruzou o ter­
reiro até à casa. Socorro já se fora deitar, mas havia broa de milho
no aquecedor de pratos , por cima do fogão , e ainda um prato de
feijão e batatas com dois pedaços de frango frito . Ele levou os pra­
tos até à mesa e voltou atrás e tirou talheres do escorredor e pegou
numa chávena e serviu-se de café e tornou a pousar a cafeteira so­
bre o queimador do fogão , onde ainda se via o brilho vermelho e já
mortiço das brasas , e levou o café até à mesa e sentou-se e começou
a comer. Comia vagarosa e metodicamente . Quando terminou , le­
vou os pratos até ao lava-loiça e abriu o frigorífico e curvou-se
para remirar o interior, em busca de alguma coisa que lhe pudesse
servir de sobremesa. Encontrou uma tigela de pudim e levou-a até
ao aparador e tirou da prateleira um pratinho e encheu-o e tornou a
guardar o pudim no frigorífico e serviu-se de mais café e sentou-se
a comer o pudim e a ler o jornal de Oren. O relógio tiquetaqueava
no corredor. O fogão soltava estalidos à medida que arrefecia.
Quando John Grady entrou , foi até ao fogão e serviu-se de uma
chávena de café e aproximou-se da mesa e sentou-se e empurrou o
chapéu para a nuca.
Já 'tás a pé pra começar o dia? perguntou Billy.
Espero que não .
Que horas são?
Não sei .
Billy beberricou o café . Meteu a mão no bolso , em busca dos ci­
garros.
Acabaste de chegar? indagou John Grady.
Cidades da Planície 1 47

Sim.
Calculo que a resposta tenha sido não .
Calculas bem , pazinho .
Bom.
É mais ou menos o que tu ' tavas à espera, não é assim?
Pois. Ofereceste-lhe o dinheiro?
Ah , tivemos os dois uma bela conversinha, bem vistas as coisas .
O que é que ele disse .
Billy acendeu o cigarro e pousou o isqueiro em cima do maço .
Disse que ela não queria sair de lá.
Bom , isso é mentira .
Bom, talvez seja. Mas ele diz que ela não vai sair.
Bom, mas vai .
Billy soprou o fumo vagarosamente por cima da mesa. John Grady
observava-o .
Achas que eu sou maluco e mais nada, não achas?
Sabes bem o que eu acho .
Bom.
Porque é que não olhas bem pra ti . Pra veres o mal que esta ideia
te fez . A falares sobre vender o teu cavalo . É a velha história de sem­
pre , outra vez a mesma coisa. Um gajo a perder a cabeça por causa
dum rabo de saia . Só que , no teu caso , a história não tem ponta por
onde se lhe pegue . Nada.
A teu ver.
A meu ver ou aos olhos de qualquer um .
Curvou-se para diante e começou a contar pelos dedos da mão que
segurava o cigarro: Ela não é americana . Não é cidadã deste país .
Não fala inglês . Trabalha numa casa de putas . Não , ouve até ao fim.
E, pra acabar em beleza - estava a segurar o polegar - , há um filho
da mãe que é dono dela e que é garantido , tão certo como eu me
chamar Billy, que atira contigo prà sepultura se te metes com ele .
Rapaz , não há moças na banda de cá da porra do rio?
Como ela não há .
Bom , aposto que ' tás cheio de razão , não haja dúvida.
Apagou o cigarro , esborrachando-o . Bom . Já fui até onde podia ir
contigo . Agora vou prà cama.
Muito bem .
1 48 Cormac McCarthy

Empurrou a cadeira para trás e pôs-se de pé e ficou parado . Se eu


acho que tu deste em maluquinho? atirou . Não. Não acho . Tu escreves­
te outra vez o compêndio todo dos malucos . Se tu és apenas maluco ,
então os pobres diabos que 'tão lá fechados no manicómio e a quem
dão a comida por baixo da porta merecem que os soltem na rua, e já.
Meteu os cigarros e o isqueiro no bolso da camisa e levou a chá­
vena e a tigela até ao lava-loiça. À porta, parou de novo e olhou
para trás . A gente vê-se amanhã de manhã, disse .
Billy?
Diz .
Obrigado . Fico-te muito grato .
Eu diria que fiz o que fiz com todo o gosto , mas 'taria a mentir.
Eu sei . Obrigado , seja como for.
Fazes tenções de vender aquele garanhão?
Não sei . Acho que sim .
Talvez o Wolfenbarger to compre .
Já pensei nisso .
Calculo que sim . Vemo-nos amanhã de manhã.
John Grady viu-o cruzar o terreiro em direção ao estábulo . Cur­
vou-se para diante e limpou com a manga a água perlada na vidraça
da janela. A sombra de Billy encurtou-se através do terreiro até que
ele passou sob a luz amarela por cima da porta do estábulo e depois
cruzou o limiar e mergulhou no escuro do estábulo e perdeu-se de
vista. John Grady deixou cair as cortinas diante da vidraça e virou-se
e ficou sentado , a fitar a chávena vazia na sua frente . Havia borras
no fundo da chávena , e ele fez rodar a chávena e olhou para elas .
Depois fê-las rodar em sentido oposto , como se quisesse devolvê-las
à sua posição anterior.

De pé no bosque de salgueiros , de costas para o rio , ele observava


a estrada e os veículos que a percorriam. Havia pouco trânsito . A
poeira dos poucos carros pairava no ar seco muito tempo depois de
os carros terem desaparecido . Ele desceu até ao rio e acocorou-se e
ficou a ver a água que passava, turva da argila. Atirou uma pedra.
Depois outra. Virou-se e tornou a olhar na direção da estrada.
O táxi , quando chegou , parou junto ao desvio e depois fez
marcha-atrás e descreveu a curva e veio a chocalhar e a sacolej ar
Cidades da Planície 1 49

pela estrada abaixo , uma estrada de lama repleta de sulcos , e parou


na clareira . Ela saiu do lado oposto e pagou ao motorista e falou
fugazmente com ele , e o motorista assentiu com a cabeça e ela re­
cuou . O motorista engatou a mudança e pôs o braço sobre o espaldar
do banco e fez recuar o táxi e deu meia-volta. Olhou para o lado do
rio . Depois arrancou ao encontro da estrada e afastou-se para o lado
da cidade .
Ele pegou na mão dela. Tenía miedo que no vendrías , disse .
Ela não respondeu . Encostou-se a ele . O cabelo negro caía-lhe por
sobre os ombros . O cheiro a sabonete . A carne e os ossos vivos de­
baixo do tecido do vestido dela.
Me amas ? perguntou ele .
Sí. Te amo .
Sentou-se no tronco de um choupo e ficou a vê-la enquanto ela
caminhava pela água pouco funda, sobre os seixos . Ela virou-se e
sorriu-lhe . O vestido arregaçado em volta das coxas morenas . Ele
tentou sorrir-lhe por sua vez , mas sentiu a garganta presa e desviou
os olhos .
Ela sentou-se no tronco ao lado dele , e ele tomou-lhe os pés entre
as mãos , um de cada vez , e secou-os com o lenço e prendeu com os
próprios dedos as pequenas fivelas dos sapatos dela. Ela debruçou-se
e apoiou-lhe a cabeça sobre o ombro , e ele beijou-a e tocou-lhe no
cabelo e nos seios e no rosto , como faria um cego .
Y mi respuesta ? indagou .
Ela pegou-lhe na mão e beijou-lha e encostou-a ao coração e disse
que era dele e que faria tudo o que ele quisesse , mesmo que isso lhe
custasse a vida.
Era natural do estado de Chiapas e fora vendida aos treze anos
para saldar uma dívida de jogo . Não tinha família. Em Puebla, fugiu
e foi para um convento , em busca de proteção . O próprio proxeneta
apareceu nos degraus da entrada do convento , na manhã seguinte , e ,
à luz pura do dia, contou o dinheiro n a palma d a mão d a madre su­
periora e levou a rapariga novamente consigo .
Este homem despiu-a e espancou-a com um chicote feito da câ­
mara de ar de um pneu de camioneta . Depois apertou-a nos braços
e disse-lhe que a amava. Ela tomou a fugir e foi à polícia. Três
agentes levaram-na para uma sala na cave , onde havia um colchão
1 50 Cormac McCarthy

sujo no chão . Quando acabaram de se servir dela, venderam-na aos


outros polícias . Depois , venderam-na aos prisioneiros a troco dos
poucos pesos que estes conseguiam reunir, ou trocaram-na por ci­
garros . Por fim , mandaram chamar o proxeneta e tornaram a ven­
der-lha.
Ele espancou-a com os punhos e atirou-a contra a parede e atirou­
-a ao chão e deu-lhe pontapés . Disse-lhe que , se ela tornasse a fugir,
a matava. Ela fechou os olhos e ofereceu-lhe a garganta. Na sua
raiva, ele agarrou-a e ergueu-a pelo braço , mas o braço partiu-se-lhe
na mão . Um estalo surdo , como um galho seco . Ela arquejou e soltou
um grito de dor.
Mira , gritou ele . Mira, puta, que has hecho .
Uma curandera tratou o braço, que agora não esticava bem. Ela
mostrou-lhe . Mires, disse . A casa chamava-se La Esperanza del Mun­
do . Onde uma criança de rosto pintado e quimono cheio de nódoas , de
braço ao peito , chorava em silêncio ou se encaminhava sem uma pa­
lavra para um quarto nas traseiras , acompanhada por homens , a troco
de um preço que não chegava a dois dólares .
Ele debruçou-se , a chorar, com os braços em volta dela. Tapou-lhe
a mão com a boca. Ela afastou-lhe a mão . Hay más , disse .
No .
Ela queria contar-lhe mais, mas ele tornou a pôr-lhe os dedos so-
bre a boca. Disse que só queria saber uma coisa.
Lo que quieras , disse ela.
Te casas conmigo .
Sí, querido , volveu ela. Le respuesta es sí. Caso-me contigo .

Quando entrou na cozinha, Oren e Troy e JC estavam ali sentados ,


e ele dirigiu-lhes um aceno de cabeça e foi até ao fogão e serviu-se
do pequeno-almoço e do café e veio até à mesa. Troy arrastou a ca­
deira ligeiramente para o lado , para lhe dar espaço . Não ' tás a ficar
todo rebentado por causa desses compromissos constantes do namo­
ro , ou ' tás , rapaz?
Porra, interveio JC . Nem penses em tentar acompanhar a pedalada
deste cowboy .
Falei com o Crawford por causa do teu cavalo , disse Oren .
O que é que ele disse .
Cidades da Planície 151

Disse que achava que tinha u m comprador, se tu aceitasses descer


aos valores dele .
Os mesmos valores?
Os mesmos valores .
Não me parece que possa aceitar isso .
Ele talvez dê um bocadinho mais . Mas não muito .
John Grady assentiu com a cabeça . Continuou a comer.
Talvez fosse melhor levares o cavalo a leilão .
O leilão é só daqui a três semanas .
Duas e meia.
Diz-lhe que eu aceito trezentos e vinte e cinco .
JC levantou-se e levou os seus pratos para o lava-loiça. Oren acen-
deu um cigarro .
Quando é que o vais ver? perguntou John Grady.
Falo hoje mesmo com ele , se quiseres.
Seja.
Continuou a comer. Troy levantou-se e levou os pratos para o
lava-loiça, e ele e JC saíram . John Grady rapou o prato com o último
pedaço de scone e comeu-o e empurrou a cadeira para trás .
Esses pequenos-almoços de quatro minutos ainda te vão arranjar
sarilhos com o sindicato , atirou Oren.
Tenho de falar com o patrão um minutinho .
Levou o prato e a chávena até ao lava-loiça e limpou as mãos aos
flancos das calças e cruzou a divisão e percorreu o corredor.
Bateu na ombreira da porta do escritório e olhou para o interior,
mas a divisão estava vazia. Seguiu pelo corredor fora até ao quarto
de Mac e bateu na porta aberta. Mac saiu da casa de banho , com uma
toalha enrolada ao pescoço e o chapéu na cabeça.
' Dia, rapaz , saudou .
' Dia, Mr Mac . Vinha pedir-lhe pra falar consigo um minutinho .
Entra, anda.
Pendurou a toalha no espaldar de uma cadeira e aproximou-se do
roupeiro-cómoda antiquado e tirou de lá uma camisa e sacudiu-a para
a desdobrar e ficou de pé a desapertar os botões . John Grady continua­
va parado no vão da porta.
Entra , anda, insistiu Mac . Toma a pôr o raio do chapéu na cabeça.
Sim , senhor. Deu dois passos para dentro do quarto e pôs o chapéu
e ficou ali parado . Na parede em frente viam-se fotografias emoldu-
152 Cormac McCarthy

radas de cavalos . Sobre a cómoda, numa moldura de prata trabalha­


da, uma fotografia de Margaret Johnson McGovem .
Mac vestiu a camisa e pôs-se a abotoá-la. Senta-te , rapaz , orde-
nou .
Deixe ' tar.
Vá, anda . Dá impressão de que tens muita coisa a afligir-te .
Havia um pesado cadeirão de carvalho forrado de cabedal escuro
do lado oposto da cama, e ele cruzou o soalho e sentou-se ali . Algu­
mas roupas de Mac estavam atiradas para cima de um dos braços do
cadeirão . Ele apoiou o cotovelo no outro braço . Mac entalou a frente
e a fralda da camisa nas calças com gestos largos da mão aberta e
abotoou as calças e afivelou o cinturão e pegou nas chaves e nos
trocos e na carteira, que se encontravam em cima da cómoda.
Acercou-se da cama, trazendo as peúgas , e sentou-se e desenrolou-as
e começou a calçá-las . Bom, disse . Olha que não vais ter uma opor­
tunidade melhor do que esta.
John Grady fez menção de tirar novamente o chapéu , mas depois
tomou a pôr as mãos no regaço . Em seguida , debruçou-se , de coto­
velos nos joelhos .
Faz de conta que é um charco de água fria num dia muito quente
e salta lá pra dentro , sugeriu Mac .
Sim, senhor. Bom . Quero-me casar.
Mac parou a meio de uma peúga. Em seguida, acabou de puxar a
peúga e curvou-se para pegar na bota . Casar, disse .
Sim, senhor.
Muito bem.
Quero-me casar e , pra começar, pensei que , se o senhor não se
importasse , eu podia vender aquele cavalo .
Mac calçou a bota e pegou na outra bota e ficou sentado , com ela
na mão . Rapaz , disse . Consigo entender um homem querer-se casar.
Eu ia fazer vinte anos dali a um mês quando me casei . Assim a mo­
dos que acabámos de nos criar um ao outro . Mas era capaz de ter um
bocadinho mais de posses do que tu . Achas que consegues arcar com
as despesas?
Não sei . Pensei que talvez desse , se vendesse o cavalo .
Há quanto tempo andas a pensar nisso?
Bom . Há uns tempos .
Cidades da Planície 1 53

Não é uma daquelas coisas que tem mesmo de ser, ou é?


Não , senhor. Não é nada disso .
Bom, porque é que não aguentas uns tempos . Ver se a vontade não
te passa.
Não posso fazer isso , a sério .
Bom, não sei o que isso quer dizer.
Há uns problemas .
Bom, eu tenho tempo pra ouvir, se me quiseres contar a história.
Sim, senhor. Bom. Logo pra começar, ela é mexicana.
Mac fez que sim com a cabeça. Já vi casamentos desses a resultar
bem, comentou . Calçou a bota.
Por isso , tenho o problema de a trazer prà banda de cá.
Mac pousou o pé no chão e pôs as mãos nos joelhos . Ergueu o
rosto para o rapaz . Prà banda de cá? perguntou .
Sim, senhor.
Queres dizer da outra margem do rio?
Sim, senhor.
Queres dizer que ela é mexicana mexicana?
Sim, senhor.
Raios , rapaz .
Circunvagou a vista pelo quarto . O Sol acabara de surgir acima do
estábulo . Olhou para as cortinas de renda branca na j anela. Olhou
para o rapaz ali sentado , muito hirto , no cadeirão do pai dele . Bom,
continuou . Isso é um problema, lá isso é , acho eu . Não é que seja o
pior que já ouvi . Que idade tem ela?
Dezasseis.
Mac tinha o lábio inferior entalado entre os dentes . A coisa piora
cada vez mais , não é verdade? Ela fala inglês?
Não , senhor.
Nem uma palavra.
Não , senhor.
Mac abanou a cabeça. Lá fora, ouviam o gado a bramir ao longo
da vedação , junto à estrada. Ele olhou para John Grady. Rapaz , disse ,
já pensaste bem no assunto?
Sim, senhor. Pensei e muito .
Calculo que já tenhas tomado a tua decisão .
Sim, senhor.
1 54 Cormac McCarthy

Não ' tarias aqui se não fosse assim, não é verdade?


Nem mais .
Onde é que fazes tenções viver?
Bom, Mr Mac , queria falar consigo sobre isso . Pensei que o se­
nhor talvez não se importasse se eu desse um jeito naquela casa ve­
lha lá em Bell Springs .
Diacho . Essa casa já nem telhado tem , pois não?
O telhado ' tá desfeito , sim . Fui lá ver. Dá pra consertar aquilo .
É capaz de ser um conserto valente .
Eu conseguia fazer o trabalho .
Provavelmente , conseguias . Provavelmente . Não disseste nada
sobre dinheiro . Não te posso aumentar. Sabes isso .
Eu não pedi nenhum aumento .
Ia ter de aumentar o Billy e o JC . Chiça. Era capaz de ter de au­
mentar o Oren .
Sim, senhor.
Mac estava debruçado para diante , de dedos entrelaçados . Rapaz ,
disse , acho que devias de esperar. Mas se meteste na cabeça ir avan­
te , então vai avante . Farei o que puder por ti .
Obrigado , Mr Mac .
Ele pousou as mãos nos joelhos e pôs-se de pé . John Grady pôs-se
de pé . Mac abanou a cabeça, com um meio sorriso . Olhou para o rapaz .
Ela é bonita?
Sim, senhor. É muito bonita, olá se é .
Aposto que é , sim . Trá-la até cá. Quero vê-la.
Sim, senhor.
Dizes que ela não fala inglês?
Não , senhor.
Diacho . Abanou novamente a cabeça. Bom, disse . Vá, anda. Põe-
-te a mexer daqui pra fora.
Sim, senhor.
John Grady cruzou o quarto até à porta e estacou e virou-se .
Obrigado , Mr Mac .
Vá, anda.

Ele e Billy cavalgaram até Cedar Springs . Cavalgaram até ao ca­


beço da ravina e tomaram a cavalgar pelo declive abaixo , empurran-
Cidades da Planície 1 55

do todo o gado para a planura diante deles e laçando tudo o que pa­
recesse suspeito , laçando os animais pela cabeça ou pelas patas
traseiras e fazendo-os estatelarem-se no chão , entre bramidos , para
depois desmontarem e deixarem cair as rédeas enquanto os cavalos
davam passos atrás , mantendo tensas as cordas de laçar. Havia bezer­
ros novos naquele terreno , e alguns tinham larvas de varejeira no
umbigo , e eles besuntavam-lhes a ferida com Peerless e limpavam­
-na com algodão e tornavam a besuntá-la e soltavam-nos. Ao final da
tarde , cavalgaram pelo monte acima até Bell Springs , e John Grady
desmontou e deixou Billy com os cavalos enquanto os animais be­
biam e cruzou as manchas de erva sacaton até à velha casa de adobe
e abriu a porta com um empurrão e entrou .
Ficou parado , sem fazer ruído . A luz do Sol tombava ao longo de
todo o comprimento da divisão , jorrando do pequeno caixilho na
parede ocidental . O chão era de argila batida e revestida de óleo , e
estava juncado de destroços , roupas velhas e latas de comida e pe­
quenos cones de lama de aparência bizarra que se tinham formado
quando a água se coara através do teto de adobe e gotejara por entre
as latillas para assim erguer aquelas construções semelhantes às das
térmitas do Velho Mundo . Ao canto encontrava-se a armação de fer­
ro de uma cama, com latas de cerveja vazias atarraxadas ao acaso por
dentro das molas nuas . Na parede do fundo , um calendário de 1928
da Clay Robinson & Co . , mostrando um cowboy a guardar as vacas
durante a noite , com a Lua a assomar no horizonte . Ele passou atra­
vés do longo âmago de luz , onde pôs as partículas de poeira a dançar,
e cruzou a ombreira sem porta para entrar na divisão contígua. Havia
um pequeno fogão de lenha com dois bicos contra a parede do fundo ,
os tubos ferrugentos da chaminé caídos numa pilha, por trás , e viam­
-se duas velhas caixas de café Arbuckle pregadas à parede e uma
terceira caída no chão . Alguns boiões de conservas caseiras , feijão e
tomate e salsa . Cacos de vidro no chão . Jornais antigos , de antes da
guerra . Um velho oleado decrépito da marca Fish , pendurado por
uma cavilha na parede , junto à porta da cozinha, e alguns pedaços de
cabedal para arreios , já velhos . Quando ele se virou , Billy estava
parado no vão da porta, a observá-lo .
Esta é que é a suite da lua de mel? perguntou .
É como aqui vês .
1 56 Cormac McCarthy

Ele encostou-se à ombreira da porta e tirou os cigarros do bolso da


camisa e extraiu um de dentro do maço e acendeu-o .
A única coisa que aqui te falta é uma mula morta no chão .
John Grady fora até à porta dos fundos e estacou ali , a olhar para
fora.
Achas que vais conseguir trazer a carrinha até cá acima?
Acho que talvez conseguíssemos , subindo pelo outro lado .
Que merda é essa de conseguíssemos? 'Tás a falar de ti e do teu
cavalo , não?
John Grady sorriu . Da porta da cozinha via-se o sol tardio a brilhar
no alto da crista rochosa nua dos montes Jarillas . Ele fechou a porta
e olhou para Billy por cima do ombro e acercou-se do fogão e ergueu
a chapa de ferro fundido que cobria um dos orifícios e espreitou
para o interior e tornou a baixá-la.
Talvez eu ' teja enganado a este respeito , observou Billy, mas te­
nho cá a sensação de que quando elas se habituam à luz elétrica e à
água corrente , é um bocado difícil tornar a desmamá-las desses lu­
xos .
É preciso começar por algum lado .
Ela vai cozinhar nessa geringonça?
John Grady sorriu . Contornou Billy e entrou na outra divisão .
Billy endireitou-se no vão da porta para o deixar passar e depois fi­
cou a segui-lo com os olhos . Espero que ela seja uma rapariga do
campo , acrescentou .
O que é que me dizes de descermos a cavalo ali pela parte de trás
e vermos qual é o aspeto da estrada velha.
É como tu quiseres . Vamos chegar tarde a casa.
John Grady, parado na soleira da porta, olhava para fora . Sim,
disse . Tudo bem . Posso vir até cá no domingo .
Billy observava-o . Desencostou-se vagarosamente da ombreira da
porta e cruzou a divisão . Vamos embora, anuiu . Seja lá como for,
vamos voltar pra casa a cavalgar no escuro .
Billy?
Sim .
Não faz diferença nenhuma, sabes . O que a s pessoas pensam .
Pois . Eu sei isso muito bem.
Olha que belo quadro , não é .
Cidades da Planície 1 57

Estava a contemplar os cavalos na outra margem do regato , de


patas assentes nas suas silhuetas cada vez mais escuras , traçadas no
vau , de cabeças erguidas a olhar na direção da casa, mais os choupos
e as montanhas e a extensão vermelha do céu crepuscular mais além .
Achas que eu vou crescer e ultrapassar esta mania que me deu ,
seja lá qual for.
Não . Não acho . Achava, mas agora já não .
' Tou demasiado enterrado , é isso?
Não é só isso . És tu . A maior parte das pessoas , quando leva na
cabeça o suficiente , ao fim dum certo tempo começa a abrir a pesta­
na. Cada vez me lembras mais o Boyd . A única maneira que eu tinha
de o convencer a fazer qualquer coisa era pedir-lhe que não a fizesse .
Dantes , havia um cano desde a nascente até à casa.
Podias pôr a água a correr outra vez por aí, acho eu .
Pois podia.
Eu diria que a água ainda 'tá boa. Não há nada aqui em cima .
Billy saiu para o quintal e puxou uma longa fumaça do cigarro e
ficou a olhar para os cavalos . John Grady fechou a porta atrás de si .
Billy olhou para ele .
Não me chegaste a dizer o que o Mac te disse .
Não disse grande coisa. Se achou que eu ' tou maluco , foi dema­
siado cavalheiro pra mo atirar à cara.
O que é que achas que ele dizia se soubesse que ela trabalha no
White Lake?
Não sei .
O tanas é que não sabes .
Ele não vai saber, a não ser que tu lhe contes .
Já pensei nisso .
Ah , sim?
Ele vai trepar pelas paredes .
Billy atirou a beata com u m piparote através do quintal . J á estava
escuro que chegasse para esta formar um arco à luz cada vez mais
ténue . Arcos dentro do arco . É melhor irmos andando , rematou .

Não vendeu o cavalo a Wolfenbarger. No sábado , dois amigos de


McGovem foram até ao rancho e encostaram-se ao guarda-lamas da
carrinha e fumaram e conversaram enquanto ele aparelhava o cavalo
158 Cormac McCarthy

e o conduzia para fora do estábulo . Endireitaram-se quando viram o


cavalo . Ele acenou-lhes com a cabeça e conduziu o animal para o
cercado .
Mac veio da cozinha e saudou os homens com um aceno de ca­
beça.
'Dia.
Cruzou o terreiro . Crawford apresentou-o ao outro homem, e
encaminharam-se os três para o cercado .
Aquele parece o cavalo que o velho Chávez costumava montar,
disse o homem.
Tanto quanto sei , não há parentesco entre eles .
Foi uma história engraçada, a desse cavalo .
Pois foi .
Parece-lhe que u m cavalo pode ficar triste quando u m homem
morre?
Não . E o meu amigo?
Não . Ainda assim, foi uma história bastante engraçada.
Foi , sim.
O homem caminhou em volta do cavalo enquanto John Grady o
segurava. Pôs a mão atrás da pata dianteira do cavalo e fitou-o no
olho . Recuou contra o corpo do cavalo e ergueu-lhe do chão uma
pata traseira e tornou a pousá-la, mas não olhou para o casco e não
olhou para dentro da boca do cavalo .
Dizes que este animal tem três anos?
Sim, senhor.
Monta-o e dá umas voltas com ele .
Ficaram a ver enquanto John Grady montou o cavalo para trás e
para diante e o obrigou a dar meia-volta e a recuar e depois o lançou
a meio galope pelo cercado .
Porque é que o rapaz o quer vender, afinal?
Mac não respondeu . Observaram o cavalo . Ao fim de um certo
tempo , ele explicou: Ele precisa do dinheiro , mais nada. O cavalo é
de confiança.
O que é que achas , Junior?
Não me perguntes a opinião . Ainda me pões de candeias às aves­
sas aqui com o Mac .
O cavalo não é meu , notou Mac .
Cidades da Planície 1 59

O que é que achas?


Crawford escarrou . É um cavalo com uma bela estampa, cá pra
mim .
Quanto é que ele aceita pelo animal?
O que ele ' tá a pedir.
Ficaram os três a olhar.
Sou capaz de chegar a duzentos e cinquenta.
Mac abanou a cabeça.
Ele é livre de vender o cavalo por quanto quiser, não é? observou
o homem.
Mac fez que sim com a cabeça. É , disse . Mas se ele se desfizesse
daquele cavalo por duzentos e cinquenta dólares , eu fazia-lhe as
contas e mandava-o embora. Não ia querer um tipo assim tão igno­
rante em minha casa. Um homem desses até era capaz de se magoar.
O homem raspou a terra com a biqueira da bota. Olhou para Craw-
ford e examinou novamente o cavalo e olhou para Mac .
Ele aceita trezentos?
E você dá trezentos?
Dou , sim .
John Grady, chamou Mac .
Sim , Mr Mac?
Traz cá o cavalo deste homem e tira-lhe a tua sela de cima do
lombo .
Sim, senhor, anuiu John Grady.

Quando ele chegou naquela noite , Oren e Troy estavam ainda à


mesa, a beber café , e ele foi buscar o prato ao aquecedor, por cima
do fogão , e encheu a chávena e juntou-se a eles .
Dizem-me que já 'tás quase bom do raio do pé , disse-lhe Oren .
Praticamente .
No fim de contas , parece que concluíste que aquele malandro era
demasiado chalupa pra se fazer dele um cavalo como deve de ser.
Precisava do dinheiro , mais nada.
O Mac disse que o homem nem sequer o montou .
E não montou .
Calculo que a fama do animal o tenha precedido .
É capaz .
1 60 Cormac McCarthy

Se calhar ainda voltas a ter notícias dele .


É capaz .
Ficaram a vê-lo comer.
Este cowboy acha que os cavalos têm juízo e que as pessoas é que
são malucas , atirou Troy.
Talvez ele tenha razão .
Vocês têm andado de roda de cavalos diferentes de mim .
É mais provável termos andado de roda de pessoas diferentes .
Olha que não sei , ripostou Troy. Já conheci uns quantos chalupas .
E como é que te deste com eles?
John Grady ergueu os olhos . Sorriu . Oren estava a espremer um
cigarro para fora do maço. Todos os cavalos são malucos , declarou .
Até certo ponto . A única coisa que se pode dizer em abono deles é
que não tentam esconder isso da gente .
Curvou-se e riscou um fósforo de madeira na parte de baixo do
assento da cadeira e acendeu o cigarro e sacudiu o fósforo para o
apagar e pousou-o no cinzeiro .
Porque é que achas que eles são malucos? perguntou John Grady.
Porque é que eu acho isso ou porque é que eles são malucos?
Porque é que eles são .
São feitos assim, pronto . Um cavalo tem dois cérebros . Não vê a
mesma coisa com os dois olhos ao mesmo tempo . Tem um olho pra
ver cada lado .
Também um peixe , acudiu Troy.
Bom. É verdade .
Também um peixe tem dois cérebros?
Não sei . Não sei se um peixe tem cérebro que se veja, a bem dizer.
Talvez um peixe nem tenha esperteza que chegue pra ser maluco ,
pronto .
Acho que tens razão . Um cavalo não é assim tão bronco como isso .
São demasiado broncos pra se porem à sombra, e até as vacas , que
são burras como as portas , sabem fazer isso .
Também um peixe se põe à sombra. Ou uma serpente-cascavel , lá
por isso .
Achas que uma serpente é mais bronca do que um peixe?
Raios , Troy. Eu sei lá. Quem é que sabe uma coisa dessas , chiça?
São os dois mais burros do que a conta, na minha maneira de ver.
Cidades da Planície 161

Bom, não era minha intenção enervar-te assim tanto .


Não ' tou enervado .
Bom, continua lá com a história.
Não é uma história. Era só uma observação sobre cavalos .
Bom, então diz lá.
Não sei . Esqueci-me .
Não te esqueceste nada.
'Tavas a falar de u m cavalo ter dois cérebros, observou John Grady.
Oren puxou uma fumaça do cigarro . Olhou para John Grady. Debru-
çou-se e deu pancadinhas para sacudir a cinza para dentro do cinzeiro .
Eu só ' tava a dizer que um cavalo é uma criatura diferente do que
muita gente pensa. O que muita gente toma por ignorância da parte
do cavalo é apenas confusão entre o cavalo do lado direito e o cava­
lo do lado esquerdo . Era como se um de nós aparelhasse um cavalo
e tudo e depois fosse até ao lado direito do animal e começasse a
montá-lo . Todos sabemos o que acontece .
Claro . É um pandemónio do arco-da-velha .
Nem mais. Aquele cavalo em particular ainda nem sequer nos ti­
nha visto .
Oren ergueu os cotovelos num gesto repentino e recuou , alarma­
do , encolhendo o lado direito do próprio corpo . Merda, soltou . Quem
é este?
Troy fez um largo sorriso . John Grady bebeu da sua chávena e
tomou a pousá-la na mesa. Porque é que não pode ser apenas por ele
não ' tar habituado a que o montem por aquele lado? indagou .
E é . Mas o que importa é que ele não consegue perguntar à outra
metade do cavalo se alguma vez viu aquele homem antes , nem pedir­
-lhe conselho sobre o que deve de fazer.
Bom, parece-me que , se os dois lados do cavalo nem sequer falas­
sem um com o outro , isso dava logo problemas sérios . O cavalo in­
teiro nem sequer começava a andar todo junto na mesma direção . O
que me dizes a isto?
Oren puxava fumaças . Olhou para Troy. Não sou nenhuma autori­
dade em cérebros de cavalos . Só vos ' tou a dizer o que tem sido a
minha experiência de cowboy . Um cavalo tem dois lados , e a minha
experiência diz-me que a única hipótese é trabalharmos um dos lados
e esquecermos o outro .
1 62 Cormac McCarthy

Já conheci pessoas que eram assim . Várias , aliás .


Sim. Também eu . Mas acho que isso é uma coisa que elas aperfei-
çoaram . Um cavalo é assim de nascença.
Não achas que se podia treinar os dois lados do cavalo por igual?
' Tás-me a cansar a cabeça.
Raios, é uma pergunta que faz sentido .
Acho que se podia. Talvez . Havia de ser difícil . Um homem quase
que ia ter de se dividir em duas pessoas .
Bom, imagina que tinhas um irmão gémeo .
Parece-me que , em princípio , talvez se pudesse treinar um cavalo
desse jeito . Não sei . Mas o que é que ias ter entre mãos quando aca­
basses?
Um cavalo com os dois lados bem equilibrados .
Nada disso . Ficavas mas era com um cavalo que achava que tu
eras dois tipos iguais , mais nada. Imagina que um dia ele vos via aos
dois do mesmo lado . E então?
Parece-me que ele ia achar que tu eras quadrigémeos .
Oren esborrachou a beata . Não , disse . la achar a mesma coisa do
que toda a gente .
Ou seja?
Que tu não jogas com o baralho todo .
Empurrou a cadeira para trás e levantou-se . A gente vê-se amanhã
de manhã.
A porta da cozinha fechou-se . Troy abanou a cabeça . O velho
Oren anda a perder o sentido de humor.
John Grady sorriu . Empurrou o prato com o polegar, afastando-o
da borda da mesa, e recostou-se na cadeira. Pela janela, pôde ver
Oren a ajeitar o chapéu enquanto rompia pelo caminho abaixo , em
direção à casinha que partilhava com o gato . Como se o mundo mor­
to em volta talvez se desse ao trabalho de reparar. Ele nem sempre
fora cowboy . Tinha sido mineiro no Norte do México e combatera
em guerras e em revoluções e fora operário em campos petrolíferos
na B acia Pérmica e marinheiro sob três estandartes diferentes . Che­
gara até a casar-se uma vez .
John Grady escorropichou as derradeiras borras escuras do fundo
da chávena e pousou-a na mesa. O Oren é um tipo às direitas , disse .
III

Quando atravessou o alto da ravina, sentiu o mesmo cheiro que o


cavalo j á antes sentira . Um odor fétido a carne podre trazido num
qualquer vetor do ar fresco do final da tarde . Parou o cavalo e virou­
-se na sela e esquadrinhou o ar com o nariz , mas o cheiro passara e
desvanecera-se . Fez o cavalo dar meia-volta e ficou parado , de fren­
te para o fundo da ravina , depois tornou a picar o cavalo e começou
a descer pelo estreito trilho para gado . O cavalo observava o gado a
afastar-se diante deles através do mato rasteiro e arrebitava as ore­
lhas para a esquerda e para a direita.
Eu vou-te dizendo o que tens de fazer, disse-lhe John Grady.
Cem metros mais abaixo , do lado mais distante da ravina, tornou
a sentir o cheiro e parou o cavalo . O animal esperou , imóvel .
Não eras capaz de descobrir o rasto a uma vaca morta pra mim, ou
eras? indagou John Grady.
O cavalo permanecia parado . Ele picou-o de novo e desceram ao
longo de mais uns quatrocentos metros , e o cavalo adotou o anda­
mento que era o seu e não prestou mais atenção ao gado distante . Um
pouco mais à frente , ele sofreou as rédeas do animal e aspirou o ar
pelas narinas . Ficou sentado na sela. Depois , deu meia-volta e come­
çou a subir pelo trilho que os trouxera até ali .
Procurou rastos e , por fim , sentiu o cheiro , amadurecido e intenso,
e desmontou ao lusco-fusco e ficou a olhar para a carcaça rodeada
por uma nuvem de moscas de um bezerro novo que fora arrastado
para o centro de um anel de creosotes , em terreno totalmente aberto .
Não chovia havia duas semanas , e as marcas de arrastamento do cor-
1 64 Cormac McCarthy

po eram visíveis sobre o cascalho , e ele percorreu um bom troço do


rasto que ali conduzia, em busca de areia ou de poeira onde pudesse
ter ficado a marca de uma pata , mas não encontrou nenhuma. Voltou
para trás e pegou nas rédeas e montou e remirou a paisagem em vol­
ta para fixar o lugar e depois afastou-se dali e cavalgou de novo pela
ravina abaixo .

Ele e Billy estavam parados junto do bezerro morto , e Billy afas­


tou-se , seguindo as marcas de arrastamento que vinham ter ali , e fi­
cou a contemplar as cercanias .
Até onde é que foste? perguntou .
Não muito longe .
Teve de ser um animal robusto , pra arrastar esse vitelo grandalhão .
Achas que foi um puma?
Não . Um puma teria coberto a carcaça. Ou tentado cobrir.
Montaram e começaram a cavalgar ao longo do rasto , percorrendo-
-o às avessas . Perderam o rasto no terreno duro e tornaram a encon­
trá-lo . Billy seguia o rasto sobre os mantos de cascalho , erguendo ou
baixando a cabeça para assim apanhar um certo ângulo da luz . Ex­
plicou que o terreno calcado tinha uma aparência diferente , e , ao fim
de um certo tempo , John Grady conseguiu dar-se conta do mesmo .
O dia estava frio . Os cavalos estavam frescos , por ser de manhã e o
tempo estar assim , e pareciam despreocupados .
Cavaleiros da pradaria, disse Billy.
Cavaleiros da pradaria.
Detetives .
Pinkertons .
O bezerro fora separado da manada e perseguido e morto em ter­
reno aberto . Billy desmontou e percorreu o local . Havia sangue nos
penedos , negro do sol .
Não achas que foram somente coiotes? perguntou John Grady.
Não me parece .
Quem é que achas que foi?
Eu sei quem foi .
O quê?
Cães .
Cães?
Cidades da Planície 1 65

Isso mesmo .
Eu cá nunca vi cães por estas bandas .
Eu também não . Mas eles ' tão cá.
Nos dias seguintes, encontraram mais dois bezerros mortos . Per­
correram a pastagem de Cedar Springs e cruzaram o leito de cheia,
mais abaixo , e cavalgaram sobre as escarpas de rocha ígnea circun­
dantes e sobre a meseta que corria para leste , em direção à velha
mina. Encontraram rastos dos cães , mas não os viram . Antes de a
semana terminar, encontraram outro bezerro morto havia pouco tem­
po , nem um dia, sequer.
Numa prateleira, na casa dos arreios , havia algumas velhas armadi­
lhas Oneida número três , de mola dupla, e Billy ferveu-as e besuntou­
-as com cera e levaram-nas no dia seguinte e enterraram três delas em
volta da carcaça. Saíram antes do romper do dia para verificar as arma­
dilhas e , ao chegarem junto do cadáver, viram que as armadilhas esta­
vam todas desenterradas e dispersas pelo chão . Uma delas não fora
sequer desarmada. A carcaça em si pouco mais era do que pele e ossos .
Não sabia que os cães eram assim tão espertos , comentou John
Grady.
Nem eu . Provavelmente , eles não sabiam que nós éramos assim
tão broncos .
Já alguma vez tinhas posto armadilhas pra cães?
Não .
O que é que queres fazer?
Billy ergueu do chão a armadilha ainda aberta e meteu a mão por
baixo das mandíbulas e fê-las saltar com o polegar. O engenho
fechou-se com um som metálico e cavo no ar silencioso da manhã.
Ele cortou os arames e prendeu os anéis uns aos outros com um outro
arame e pendurou as armadilhas no chifre do cepilho e montou . Er­
gueu os olhos para John Grady.
Ainda não descobrimos que caminhos usam eles , só isso . Talvez
eles pisem uma armadilha montada no trilho , sem engodo .
Achas que os cães do Travis lhes davam caça?
Sentado na sela, Billy contemplava a longa luz matinal nas rochas
da meseta. Não sei , disse . Ora aí ' tá uma excelente pergunta .
Aparelharam um cavalo de carga e levaram até à meseta um caixote­
-cozinha para vaqueiros e as mantas acolchoadas e acamparam ali .
1 66 Cormac McCarthy

Sentaram-se a beber café por canecas de estanho e a ver as brasas cha­


mejar e esmorecer à medida que o vento as soprava como um abanador.
Lá longe , na planície aos pés deles , as luzes das cidades jaziam a bru­
xulear nas suas grelhas , com a linha sinuosa e escura do rio a dividi-las .
Julguei que tinhas um outro assunto a que acudir, atirou Billy.
E tenho .
Achas que pode esperar.
Espero bem que possa esperar. Não sei ao certo se isto pode .
Bom , fico satisfeito por ver que não te esqueceste completamente
dos princípios em que foste criado .
Não me esqueci de nada.
Mas 'tás cansado de eu te andar a moer o juízo .
Tens esse direito .
Beberricavam o café . O vento soprava. Eles repuxavam as mantas
para cobrir os ombros .
Não tenho ciúmes, sabes .
Nunca disse que tinhas .
Eu sei . Mas eras capaz de ter pensado . A verdade é que nem que
me pagassem eu queria ' tar no teu lugar.
Eu sei .
Billy acendeu um cigarro com um tição da fogueira e tomou a
pousar o tição no lume . Puxou fumaças . Tem muito melhor aspeto
vista aqui de cima do que lá em baixo , não é verdade?
Tem. Tem, sim.
Há imensas coisas que parecem melhores vistas de longe .
Ah , sim?
Eu acho que sim .
Se calhar tens razão . A vida que levámos, logo pra começar.
Pois . E talvez a parcela da vida que ainda não vivemos , também .
Ficaram acampados no sábado e percorreram o terreno sob o re-
bordo da falésia no domingo de manhã e , ao meio-dia, encontraram
um bezerro morto havia pouco , caído num manto de cascalho , em
pleno leito de cheia. A mãe estava ali parada, a olhar para a cria, e
eles enxotaram-na e ela afastou-se a mugir e parou e olhou para trás .
Aquelas vacas de face malhada de antigamente não desistiam dum
vitelo assim com esta facilidade , comentou Billy. Aposto que ela não
tem ferida nenhuma.
Cidades da Planície 1 67

Eu aposto o mesmo , ajuntou John Grady.


Não serves pra nada senão pra comer e cagar, não é assim? atirou
Billy à vaca. A vaca fitou-o com olhos lerdos .
Sabes que eles ' tão escondidos por aí naquelas rochas , algures por
baixo do rebordo da falésia.
Pois. Eu sei . Mas havia de ser bonito , tentarmos trepar até ali a
cavalo , e eu de certeza que não vou até lá a pé .
John Grady baixou os olhos para o bezerro morto . Debruçou-se e
escarrou . O que é que queres fazer?
Porque é que não embalamos a trouxa e voltamos pra casa e liga­
mos ao Travis e vemos o que é que ele diz .
'Tá certo . Se ele viesse até aqui esta noite , podíamos fazer-lhes
uma espera .
Bom, ele não vai vir até aqui esta noite , isso te posso garantir.
E porque não?
Porra, soltou Billy. Aquele velho não caça ao domingo .
John Grady sorriu . E se o nosso boi tivesse caído ao poço , como
diz nas Escrituras ?
Ele não ia mexer uma palha , nem que a manada inteira tivesse
caído ao poço , mais eu e tu e o Mac atrás dela.
Talvez nos deixasse só trazer os cães emprestados .
Não deixava nada . Seja como for, aqueles cães também não caçam
ao domingo . São cães cristãos.
Cães cristãos .
Isso mesmo . Foram criados assim .
No momento em que se afastavam a cavalgar pelo troço superior
do leito de cheia, ouviram outra vaca a mugir e pararam e ficaram
sentados na sela , a remirar o terreno abaixo deles .
' Tás a vê-la? perguntou Billy.
'Tou . 'Tá acolá adiante .
É a mesma?
Não .
Billy debruçou-se e escarrou . Bom, comentou . Sabes o que aquilo
quer dizer. Queres ir até lá abaixo?
Não vejo o que é que a gente ganhava com isso .

*
1 68 Cormac McCarthy

Romperam nas trevas através das amplas planuras do vale cober­


tas de creosotes , na terça-feira, antes da aurora. Archer tinha um
conjunto de seis caixas de transporte de cães que se encaixavam à
justa na traseira da camioneta Reo que eles iam a conduzir, e a ca­
mioneta avançava a rosnar numa mudança baixa, e as luzes dos fa­
róis baloiçavam para cima e para baixo em fulcros amarelo-claros ,
revelando os cavaleiros que seguiam à frente do veículo , nas trevas ,
mais as formas dos creosotes e os olhos vermelhos dos cavalos quan­
do estes viravam a cabeça ou cruzavam o trilho diante da camioneta.
Os cães a baloiçar nas suas caixas seguiam em silêncio , e os cavalei­
ros fumavam ou conversavam em surdina uns com os outros . Os
chapéus puxados para baixo , as golas de bombazina dos casacos de
lona voltadas para cima . Cavalgavam devagar, a subir o vale extenso
e plano adiante da camioneta.
A camioneta parou num leque de cascalho , no cabeço do vale , e
os cavaleiros desmontaram e deixaram cair as rédeas em cima dos
cavalos e ajudaram Travis e Archer a descarregar os cães e a pren­
dê-los às longas trelas múltiplas feitas de couro para arreios . Os
cães recuavam e dançavam e latiam , e alguns erguiam a boca ao
alto e uivavam , e os uivos ecoavam no bordo da falésia e repercu­
tiam-se pelo vale , e Travis prendeu o primeiro grupo de cães com
uma laçada ao para-choques da frente da camioneta, onde o seu
bafo coletivo alvejava em nuvens sob o clarão dos faróis e os cava­
los , alinhados ao longo da orla das trevas , batiam com as patas no
chão e resfolegavam e se curvavam para tocar ao de leve com o
focinho nos feixes de luz amarela. Eles passavam os cães , agarra­
dos pela coleira, por cima do bordo do taipal , retirando-os das
caixas do lado oposto da camioneta , e prendiam-nos também às
trelas , e as estrelas a leste começaram a perder o brilho e a apagar­
-se uma por uma .
Conduziram os cães , que soltavam ladridos , através do cascalho ,
e Billy e John Grady cavalgaram abaixo deles e infletiram para trás
e para diante até localizarem o bezerro morto no leito da torrente .
Fora devorado até aos ossos , e os ossos tinham sido arrastados em
volta, por cima da terra. A caixa torácica jazia com os esgalhos re­
curvos voltados para o alto na planura pedregosa, qual uma enorme
planta carnívora a cismar no alvorecer agreste .
Cidades da Planície 1 69

Chamaram em voz alta os homens que seguravam as trelas dos


cães , e Travis , por sua vez , chamou os outros , atrás de si , e desceram
pelo leito da torrente , com os grandes podengos de raça bluetick e
treeing walker a repuxar as trelas e a babar-se e a sorver o ar com os
narizes . Quando chegaram junto dos restos do bezerro , recuaram e
acanharam-se e farejaram o chão e olharam para Travis .
Não tragam pràqui o s cavalos , ordenou Travis . Vamos dar-lhes
uma hipótese .
Começou a soltar os cães e a incitá-los a que buscassem . Eles
andavam para cá e para lá, a cheirar a terra, e os cães que Archer
estava a trazer pela ladeira abaixo começaram a ulular e a gemer, e
Archer soltou-lhes as trelas e eles precipitaram-se como flechas pelo
barranco abaixo .
Travis caminhou até ao ponto onde Billy estava parado , escarran­
chado na sela. Postou-se com as trelas entrançadas num feixe e ati­
radas por cima do ombro e ficou à espera.
O que é que achas? indagou Billy.
Não sei .
Aposto que aqueles filhos da mãe que andam a matar os bezerros
não se foram embora daqui há muito tempo .
E eu aposto o mesmo .
O que é que achas?
Não sei . Se o Smoke não lhes for no encalço , então nenhum dos
outros vai .
É o teu melhor cão?
Não . Mas é o cão certo pra este trabalho .
E porquê?
Porque já antes perseguiu outros cães .
E o que é que ele achou disso?
Não me chegou a dizer.
Os cães lançavam-se para cá e para lá no escuro , regressavam e
tomavam a partir.
Dá-me impressão de que eles saíram daqui em todas as direções .
Quantos é que te parece que eles serão aqui em cima?
Não faço ideia. Três ou quatro .
Aposto que são mais do que isso .
Talvez tenhas razão .
1 70 Cormac McCarthy

Lá vai ele acolá.


Um dos cães apanhara o rasto e desatou a correr, soltando ladri­
dos . Os outros irromperam do meio dos creosotes e, em escassos
segundos , os oito podengos estavam a vociferar a plenos pulmões .
Dá ideia de que apanharam o rasto bem fresco naquele terreno
seco , observou Travis . Onde é que ' tá o meu cavalo?
O JC é que o tinha, mas acho que já foi andando .
Sabes pra onde é que eles ' tão a ir, não sabes?
' Tão a subir pràquelas rochas debaixo da meseta, acolá, diria eu .
Archer aproximou-se , trazendo o cavalo de Travis pelas rédeas .
Travis subiu para a sela e olhou na direção do oriente . Já ' tá quase
claro que chegue pra se ver.
Vai haver uma luta de cães sem dó nem piedade lá no alto daque­
les penedos .
Já percebi . Vamos embora, rapazes .
John Grady e JC estavam parados a cavalo no extremo superior do
leito da torrente quando Archer e Travis e Billy cavalgaram até ao
alto .
Onde é que ' tão o Troy e o Joaquín?
Já foram indo .
Vamos embora .
Ouviram isto?
O quê?
Escutem .
Do rebordo da escarpa, na orla ocidental do leito de cheia, que era
a mais distante , além dos brados dos podengos a seguir o rasto ,
chegaram-lhes aos ouvidos ladridos breves e cortantes , um uivar si­
nistro .
Aqueles ignorantes daqueles filhos da mãe ' tão a responder, co­
mentou Billy.
Se calhar, querem participar na batida, disse Archer. Os palermas
dos filhos da púcara não perceberam que são eles a caça.
Quando chegaram ao sopé dos penhascos , os podengos já tinham
expulsado os cães do meio dos rochedos , e eles ouviram-nos a lutar
enquanto corriam e , em seguida, uma longa perseguição ululante
soou através do cascalho e dos penedos dispersos , sempre em dire­
ção ao alto . Brilhava agora uma luz cinzenta , e eles lançaram os
Cidades da Planície 171

cavalos a trote e m fila indiana ao longo d a base das falésias , se­


guindo um trilho que serpenteava por entre os fragmentos tomba­
dos de rocha ígnea . Travis pôs o cavalo a par de John Grady. Es­
tendeu o braço e pousou a mão no pescoço do animal , e John
Grady abrandou .
Escuta , disse Travis .
Estacaram e ficaram ali parados e apuraram o ouvido . Billy acer-
cou-se .
Preparem os laços , rapazes , aconselhou Travis .
Achas que se consegue ver que chegue pra deitar um laço?
Vamos descobrir não tarda nada .
Soltaram das selas as cordas de laçar. Nada de pressas , aconselhou
Travis . Eles vão aparecer de rompante aqui no alto . Deixá-los sair
pra campo aberto . Tenham cuidado , ouviram? Vamos lá a ver se não
laçamos os nossos próprios cães .
Armaram os laços e picaram os cavalos para diante .
Façam esses laços pequenos , acrescentou Travis . Façam-nos pe­
quenos . Eles escorregam por dentro deles que nem faca em manteiga
quente .
Os brados dos podengos soaram subitamente mesmo por cima de­
les , onde o trilho descrevia uma volta e subia, íngreme , por trás de
uns grandes penedos tombados. Viram três silhuetas a saltar de rocha
em rocha. Depois , mais duas . John Grady montava o cavalo azul­
-pardo de Watson e cravou os calcanhares nas costelas do animal , e
o cavalo baixou os quadris e atirou o focinho para o alto e disparou
a correr. Billy seguiu-lhe no encalço .
Os podengos que vinham a perseguir as presas assomaram das fra­
gas acima deles , latindo a plenos pulmões , e John Grady torceu as ré­
deas para a direita. Tanto ele como Billy estavam muito empertigados
na sela, num esforço para verem os cães que se aproximavam a correr.
Quando estes emergiram no troço superior do trilho , John Grady olhou
para trás . Billy estava a vibrar golpes , ora de cima para baixo , ora de
baixo para cima, com o pequeno laço de brinquedo da sua corda de
laçar. Trinta metros atrás dele , entre os rochedos , vários cães de Travis ,
de pelo pigarço , vinham lançados na mecha. Ele debruçou-se sobre o
pescoço do cavalo , para falar com ele e o incitar a avançar, e depois
tomou a endireitar-se para ver. Diante dele, três cães de aparência ama-
1 72 Cormac McCarthy

relada corriam num galope largo em linha reta, enfileirados , subindo


um longo barranco de cascalho . Ele debruçou-se e tomou a falar com
o cavalo , mas este já os vira. Lançou uma olhadela para trás , para ver
onde estava Billy, e, quando tomou a olhar em frente , o cão na cauda
da coluna afastara-se dos outros dois . Ele lançou o cavalo pelo declive
abaixo e rompeu a galope sobre a planície , atrás do animal .
O laço , sendo tão pequeno , quase não tinha peso , e ele alargou-o
até ao dobro do tamanho e fê-lo rodar por cima da cabeça e depois
apanhou-o com a mão e tomou a duplicá-lo . Quando o cavalo viu a
corda a assomar-lhe junto à orelha esquerda, espalmou as orelhas
para trás e arremeteu de boca aberta sobre o rafeiro em fuga, qual
terrível flagelo .
O cão não tinha experiência enquanto presa. Não travou nem des­
creveu guinadas , limitou-se a correr em frente , e John Grady fez
rodar o laço com mais vigor e debruçou-se sobre o cepilho da sela.
Manteve-se atento , não fosse o cão arrepiar caminho , mas este pare­
cia achar que conseguia correr mais do que o cavalo . A corda enro­
lada voou , e o laço desenroscou-se das suas voltas . O cavalo pardo
ergueu a cabeça e cravou as patas dianteiras no cascalho e baixou os
quartos traseiros, e John Grady enrolou a outra ponta da corda no
cabedal lustroso do cepilho , e a corda retesou-se com um estalo , e o
cão foi cuspido pelo ar em silêncio . Descreveu uma pirueta sem ruí­
do e aterrou no cascalho com um vuump suave e cavo .
Naquele momento , três outros cães já se tinham lançado através
da planície , com Travis e Joaquín no encalço . Estes passaram a trin­
ta metros, lançados a toda a brida, e John Grady incitou o cavalo
pardo com uma palmada e foi atrás deles , o cão amarelo a saltar na
sua esteira por cima dos pedregulhos e através dos creosotes , na
ponta da corda de maguey com dez metros . Outros podengos e cava­
leiros tinham emergido dos penedos , a oeste , e estavam alinhados ao
longo do leito de cheia, e ele continuou a cavalgar, arrastando o cão
ao longo de uma certa distância, depois sofreou as rédeas de repente
e saltou para o chão e correu atrás para soltar a corda do cão . O cão
estava flácido e ensanguentado e jazia no cascalho , de dentes arrega­
nhados , olhos meio saídos das órbitas . Pôs-lhe um pé em cima do
corpo e soltou o laço e correu para junto do cavalo , que o esperava,
a enrolar a corda enquanto corria.
Cidades da Planície 1 73

Por esta altura já a luz do dia brilhava em pleno , e havia já quatro


cavaleiros na planície , diante dele , a avançar numa longa curva, e ele
montou e pôs ao ombro a corda enrolada e lançou-se na peugada
deles num galope curto .
Quando passou por Joaquín , o mexicano gritou-lhe qualquer coi­
sa, mas ele não conseguiu perceber as palavras do outro . Fustigou
o cavalo com o laço na ponta da corda, seguindo Travis e JC e os
podengos de Travis . Por pouco não atropelou um dos cães fora da
lei . Este fugira a rastejar e escondera-se num maciço de espinheiros­
-anõe s , e John Grady teria passado por ali sem o ver se o animal
não tivesse perdido a cabeça no último momento , lançando-se para
fora do esconderij o . Torceu as rédeas para virar o cavalo tão repen­
tinamente que quase perdeu um estribo . Billy assomou à sua direi­
ta e passou por ele , e o cão cortou caminho para trás e tentou passar
em frente ao cavalo dele , e , no momento em que o fez , Billy alcan­
çou-o e debruçou-se e lançou-lhe a corda, e o cavalo baixou os
quadris e estacou , de cascos a derrapar no meio de um torvelinho
de poeira , e o cão voou pelos ares e bateu no chão e tornou a saltar
e deslizou e depois conseguiu pôr-se de pé a custo e ficou parado ,
a olhar em volta . Billy fez rodar o cavalo e puxou o cão para o
chão , mas este levantou-se de novo e começou a correr na ponta da
corda . Quando John Grady os deixou para trás , o cão estava a fin­
car os pés no chão e a contorcer-se e a dar patadas na corda, mas
Billy cravou os calcanhares no cavalo e o cão foi arrebatado para
longe . Na extensão do leito de cheia, Joaquín fazia o cavalo descre­
ver ziguezagues e soltava gritos , e os cães estavam dispersos e la­
dravam e lutavam . Travis surgiu , a rodar o laço , e John Grady
desviou a montada para o lado , mas o cão que ele estava a perse­
guir descreveu uma guinada diante do cavalo e surgiu de súbito à
sua frente . Ele lançou o cavalo atrás do cão e este tentou voltar
para trás , mas John Grady atirou o laço e enrolou a corda no chifre
da sela e torceu as rédeas do cavalo para a direita . O cão rodopiou
no ar e aterrou e levantou-se a correr e deu meia-volta e tornou a
ser atirado pelos ares . John Grady picou o cavalo pardo , e o cão
veio a saltitar e a bater contra os obstáculos em silêncio , num arco
amplo , e depois veio a arrastar pelo meio do mato e do cascalho na
esteira do cavalo .
1 74 Cormac McCarthy

Ele regressou a arrastar a corda livre , a recolhê-la e a enrolá-la


enquanto cavalgava. Travis e Joaquín e Billy, parados , deixavam os
cavalos recuperar o fôlego . O segundo grupo de podengos estava
agora a perseguir os cães ao longo do troço inferior do leito de cheia,
a acossá-los entre os penedos e os seixos e a lutar e a retomar a per­
seguição . Joaquín sorria.
Roubei-te o cão , parece-me bem , desculpou-se John Grady.
Há cães com fartura, disse Joaquín .
Olha pro JC , acudiu Billy. Olha só pra ele . Parece que tem um
enxame de abelhas a picá-lo .
Mas quantos cães destes há, porra?
Não sei . O Archer espantou outra matilha inteira acolá, onde acaba
aquela grande ravina.
E já apanharam algum?
Não me parece . O Troy ' tá a pé naqueles penedos , além no alto .
Dois podengos emergiram do chaparral e descreveram um círculo
e farejaram o chão e ficaram parados , com ar hesitante .
Busca, busca ! gritou-lhes Travis . Toca a ir atrás deles !
Bom, parceiro , se o teu cavalo ainda não ' tá completamente nas
lonas , porque é que não vamos até ali abaixo , onde ' tá a haver festa?
Billy cravou os calcanhares no cavalo . Não seja por mim, disse .
Vão lá andando , disse Travis . Eu já vos apanho .
A caçar cães à corda, gritou Billy. Eu sabia que ia acabar assim .
Joaquín fez um largo sorriso e picou o cavalo até o lançar num
trote largo e ergueu um punho fechado acima da cabeça. Ade/ante,
muchachos! bradou .
Perreros!
Tonteros!
Travis ficou a vê-los afastarem-se . Abanou a cabeça e debruçou-se
e escarrou e virou o cavalo para se dirigir ao lugar onde vira Archer
pela última vez .
No ponto em que eles assomaram , abandonando a planície desér­
tica, havia grandes penedos tombados da meseta, lá no alto , e eles
cavalgaram ladeira acima pelo meio das fragas até que John Grady
parou o cavalo e ergueu a mão . Estacaram para apurar o ouvido . John
Grady pôs-se de pé nos estribos e remirou a encosta acima deles.
Billy tocou o cavalo até junto dele .
Cidades da Planície 1 75

Acho que eles ' tão a ir pro alto da meseta.


Também acho .
E conseguem lá chegar?
Não sei . Provavelmente . Parecem achar que sim .
Consegues vê-los?
Não . Havia um filho da mãe amarelo , grandalhão , e outro assim a
modos que sarapintado . São capazes de ser uns três ou quatro .
Dá ideia de que despistaram os cães , não é assim?
Pelo menos parece .
Achas que conseguimos chegar lá ao alto?
Acho que sou capaz de conhecer um caminho .
Billy fitou os baluartes de rocha com as pálpebras franzidas . De­
bruçou-se e escarrou . Detestava chegar com o cavalo ao meio daque­
la ravina e não poder andar nem pra diante nem pra trás .
Também eu .
Além disso , não sei se nos vamos sair lá muito bem , a dar caça a
estes cães daninhos sem podengos . O que é que achas?
Só precisamos de lá chegar acima antes de eles se rasparem . Aqui-
lo lá no alto é terreno quase aberto .
Bom, vai tu à frente , então .
' Tá certo .
Não nos podemos apressar demasiado .
'Tá certo .
Vamos só cobrir o terreno à nossa frente . A ver se não nos mete­
mos numa camisa de onze varas .
' Tá certo .
Ele seguiu John Grady, descendo pelo caminho por onde tinham
subido até ali , e cavalgaram ao longo de quase quilómetro e meio e
depois meteram pelo leito da torrente acima. A encosta tomou-se
íngreme , o caminho mais estreito . Desmontaram e conduziram os
cavalos à brida. Atravessaram faixas cinzentas de terra repleta de
detritos de antigos acampamentos , arrastada pela água do seio do
arroy o, trazendo consigo fragmentos de osso e de loiça de barro , e
passaram sob pictogramas traçados nos penedos da orla da falésia
que exibiam imagens de caçadores e de xamãs e de grupos reunidos
em volta da fogueira e de ovelhas do deserto , todas gravadas na su­
perfície da rocha havia mil anos e mais ainda. Passaram por baixo de
1 76 Cormac McCarthy

um grupo de dançarinos de mãos dadas , semelhantes a figuras de


papel recortadas por crianças e desenhadas na pedra a escantilhão .
Sob a camada de rocha saliente havia um longo rebordo , e eles volta­
ram-se e olharam para trás , espraiando a vista sobre o leito de cheia
e o deserto . Troy cavalgava ao encontro de Travis e de JC e de Ar­
cher, e todos se dirigiam para a camioneta, com a maior parte dos
cães a reboque . Não avistaram Joaquín em parte alguma. Ao longe ,
divisaram a estrada de asfalto através de um hiato nos montes baixos ,
a vinte e cinco quilómetros dali . O s cavalos parados resfolegavam .
E agora , é pra onde , cowboy? indagou Billy.
John Grady fez um sinal com a cabeça a indicar o terreno acima
deles e tomou a pôr-se em marcha, conduzindo o cavalo .
O rebordo tomou-se mais estreito à medida que subia, até se con­
verter somente numa falha entre os estratos da rocha, e eles condu­
ziram os cavalos até um desfiladeiro tão exíguo que o cavalo de Billy
fincou as patas no chão e se recusou a avançar mais . Recuou e agitou
a cabeça , repuxando as rédeas , e resvalou perigosamente nas lascas
de xisto . Billy olhou ao longo da estreita passagem . As muralhas de
rocha a pique erguiam-se ao encontro do céu azul .
Comparsa, tens mesmo a certeza de que isto é boa ideia?
John Grady deixara cair as rédeas do cavalo azul e despojou-se do
casaco e recuou com cautela até junto de Billy.
Leva o meu cavalo , disse .
O quê?
Leva o meu cavalo . Ou seja, o do Watson . Ele já passou por aqui
antes .
Tomou as rédeas da mão de Billy e serenou o cavalo e amarrou-lhe
o casaco pelas mangas sobre os olhos , encostando-se ao animal com
todo o seu corpo . Billy subiu pausadamente até onde estava o cavalo
pardo e pegou nas rédeas e conduziu-o pelo caminho acima, através
dos rochedos , o cavalo a escorregar no xisto argiloso , as esporas
soltas a tilintar na superfície da rocha. No alto da escarpa, os cavalos
escoicearam e treparam pelo último troço do carreiro e emergiram na
meseta e ficaram parados , a tremer e a resfolegar. John Grady soltou
o casaco da cabeça do cavalo , e o cavalo resfolegou e olhou em vol­
ta . A quilómetro e meio de distância, sobre a meseta, três cães bra­
vios galopavam , a olhar para trás .
Cidades da Planície 1 77

Queres montar aquele cavalo bom? perguntou John Grady.


Deixa-me montar este cavalo bom .
Bom, acolá vão eles .
Lançaram-se através do planalto desafogado , as cordas a estralejar
e altos gritos, curvados para diante na sela, cavalgando a par um do
outro . Ao fim de quilómetro e meio , tinham reduzido para metade o
avanço dos cães . Os cães mantiveram-se na meseta, e a meseta alar­
gou-se diante deles . Se tivessem permanecido junto ao rebordo , tal­
vez tivessem encontrado um lugar para descerem novamente , por
onde os cavalos não os pudessem seguir, mas eles pareciam conven­
cidos de que conseguiam deixar para trás toda e qualquer criatura
que se desse ao trabalho de lhes ir no encalço , e correram a bom
correr, dois deles lado a lado e o terceiro atrás , as longas sombras
caninas à sua ilharga, à luz do Sol , precipitando-se entrecortadamen­
te sobre a erva cinzento-amarelada do planalto .
Billy alcançou-os no cavalo pardo antes que eles pudessem disper­
sar-se e debruçou-se e laçou o cão que ia na cauda do grupo . Nem
sequer chegou a enrolar a corda no chifre da sela, limitou-se a apa­
nhar duas voltas em torno do pulso e deu um puxão violento e arran­
cou o cão do solo e cavalgou em frente , arrastando-o atrás do cavalo
com a corda numa mão .
Tornou a alcançar os cães e picou a montada para os ultrapassar.
Os cães em fuga ergueram a cabeça, de olhar perdido , as línguas a
adejar. O companheiro morto surgiu a deslizar à ilharga deles , na
ponta da corda que rojava pelo chão . Billy olhou para trás e torceu
as rédeas para a direita e arrastou o cão morto diante deles e passou­
-lhes à frente num amplo arco em corrida. John Grady vinha lançado
a toda a brida através da meseta , e Billy fez parar o cavalo pardo
numa série de saltinhos e saltou da sela e soltou o laço do cão e tor­
nou a enrolá-lo em corrida e montou de novo .
Alcançou os cães em primeiro lugar e atirou o laço , que se fechou
com um estalo em volta do canzarrão amarelo na dianteira. O cão
malhado arrepiou caminho quase por baixo das patas do cavalo e
lançou-se em direção ao bordo da escarpa. O cão amarelo rebolou ,
aos tombos , tornou a levantar-se e continuou a correr com o nó cor­
redio à volta do pescoço . John Grady surgiu a cavalgar atrás de Billy
e lançou a corda e apanhou o cão amarelo pelas patas traseiras e
1 78 Cormac McCarthy

fustigou o cavalo com a outra ponta da corda, dobrada sobre si mes­


ma, e depois enrolou-a em volta do chifre do cepilho . A corda de
laçar de Billy sibilou numa curva ao longo da superfície do solo e
imobilizou-se , e o canzarrão amarelo ergueu-se subitamente do chão
num voo de cabeça, retesado entre as duas cordas , e as cordas res­
soaram numa só nota, fugaz e cava, e depois o cão explodiu .
O Sol não nascera sequer havia uma hora, e , sob o jorro transver­
sal de luz plana que banhava a meseta, o sangue que esguichou no ar
diante deles foi tão cintilante e tão inesperado como uma aparição .
Uma coisa invocada do seio do nada e absolutamente inexplicável .
A cabeça do cão saiu disparada a descrever círculos , as cordas enco­
lheram-se no ar, o corpo do cão foi estatelar-se na terra com um ba­
que surdo .
Raios partam, soltou Billy.
Ouviu-se um longo grito estridente ao fundo da meseta. Joaquín
estava a cavalgar ao encontro deles, acompanhado por três blueticks .
Vira-os laçar o cão simultaneamente pela cabeça e pelas patas trasei­
ras e agitou o chapéu , a rir-se . Os cães galopavam ao lado do cavalo .
Ainda não tinham avistado o cão malhado a romper para a orla da
meseta.
Ayeee muchachos! chamou Joaquín . Soltava urros e ria-se e debru­
çou-se e, agitando o chapéu , enxotou os cães que seguiam na esteira
do cavalo .
Raios , disse Billy. Não sabia que ias fazer isso .
Nem eu .
Filho da mãe . Puxou a corda para si, enrolando-a à medida que a
recolhia . John Grady cavalgou até onde o cadáver decapitado do cão
jazia na erva manchada de sangue e desmontou e soltou a corda dos
quartos traseiros do animal e tomou a montar. Os podengos acerca­
ram-se , a descrever círculos em volta da carcaça e a farejar o sangue ,
com o pelo do pescoço eriçado . Um deles andou em volta do cavalo
de John Grady e depois recuou e ficou parado , a ladrar-lhe , mas John
Grady não lhe prestou atenção . Enrolou a corda e virou-se e cravou
os calcanhares nos flancos do cavalo e partiu pela meseta fora, no
encalço do cão solitário restante . Por esta altura já Joaquín vira tam­
bém o cão e lançou-se em perseguição dele , a vergastar o cavalo com
a corda dobrada e a gritar aos cães . Billy ficou imóvel , a vê-los afas-
Cidades da Planície 1 79

tarem-se . Enrolou a corda e amarrou-a e limpou o sangue das mãos


à perna das calças de ganga e depois ficou escarranchado na sela, a
ver a perseguição desenvolver-se ao longo da orla da meseta. O cão
malhado parecia não encontrar nenhum caminho para descer do pla­
nalto e dir-se-ia estar cada vez mais cansado à medida que galopava
junto ao rebordo . Quando ouviu os podengos , guinou novamente
para a zona alta e cruzou por trás de Joaquín , e Joaquín obrigou o
cavalo a rodar e , numa perseguição em linha reta, alcançou-o e la­
çou-o em menos de quilómetro e meio de terreno . Billy picou o ca­
valo até aos penedos do bordo da falésia e desmontou e acendeu um
cigarro e sentou-se a remirar a paisagem para sul .
Eles regressaram a cavalgar através da meseta, com os podengos
na esteira dos cavalos . Joaquín arrastava o cão morto pela erva, na
ponta da corda. O cão estava ensanguentado e meio esfacelado e ti­
nha os olhos vidrados e a língua pendia-lhe da boca, crivada de pa­
lhiço e erva. Acercaram-se do rebordo da escarpa, e Joaquín desmon­
tou e soltou a corda do cão morto .
Há cachorros aqui nas redondezas , disse .
Billy acercou-se e ficou a olhar para o cão . Era uma cadela de tetas
inchadas . Ele afastou-se e foi buscar o cavalo e montou e olhou por
cima do ombro para John Grady.
Vamos pelo caminho mais longo . Trepar por aquelas fragas dá-me
calafrios .
John Grady tirara o chapéu e pousou-o no cepilho da sela, diante
de si. Tinha o rosto salpicado de sangue e via-se-lhe sangue na cami­
sa. Passou as costas da manga pela testa e pegou no chapéu e tornou
a pô-lo na cabeça. Por mim , tudo bem , anuiu . Joaquín?
Claro , acudiu Joaquín . Olhou para o Sol . Chegamos a casa pra
jantar.
Achas que os caçámos todos?
É difícil dizer.
Eu cá diria que tirámos as manias a uns poucos .
Eu cá diria o mesmo .
Quantos cães do Archer é que subiram até aqui contigo?
Três .
Bom, agora só temos aqui dois .
Viraram-se nas selas e remiraram a meseta.
1 80 Cormac McCarthy

Pra onde é que achas que ele foi?


Não faço ideia, disse Joaquín .
Pode ter descido pela outra banda, acolá.
Joaquín debruçou-se e escarrou e voltou o cavalo . Vamos embora,
disse . Ele pode ' tar em qualquer lado . Há sempre um que não quer
voltar pra casa.

Ainda estava escuro na manhã seguinte quando John Grady o acor-


dou . Ele resmungou e virou-se e tapou a cabeça com a almofada.
Acorda, cowboy .
Mas que horas são , porra?
Cinco e meia.
Mas o que é que se passa contigo?
Queres ver se conseguimos encontrar aqueles cães?
Cães? Quais cães? Mas de que é que tu 'tás praí a falar?
Os cachorros .
Merda, soltou Billy.
John Grady sentou-se no vão da porta e apoiou uma bota contra a
ombreira . Billy? disse .
O que é , chiça.
Podíamos ir até lá e dar uma vista de olhos .
Billy virou-se na cama e olhou para John Grady, ali sentado à
porta, de viés , no escuro . ' Tás a dar comigo em maluco , pá, declarou .
Procuramos os rastos . Garanto-te que conseguimos encontrá-los .
Tu não os consegues encontrar.
Podíamos pedir um par de cães ao Travis .
O Travis não empresta os cães a ninguém . Já falámos sobre isso .
Eu sei mais ou menos onde é que fica aquela toca.
Porque é que não me deixas dormir?
Podíamos ' tar de volta à hora do jantar. Garanto-te .
'Tou-te a suplicar de joelhos que me deixes em paz e sossego ,
rapaz . De joelhos . Não quero ser obrigado a dar-te um tiro . O Mac
nunca mais me ia largar da mão .
Onde os cães apareceram daquela primeira vez , logo abaixo da­
quela grande ladeira de cascalho? Aposto que passámos a uns quin­
ze metros da toca. Tu sabes que eles ' tão naqueles penedos granda­
lhões .
Cidades da Planície 181

Saíram os dois, levando sobre os cepilhos das selas uma pá de


cabo comprido , uma picareta, uma barra de ferro de um metro e vin­
te . Socorro apareceu à porta do seu quarto de roupão e papelotes no
cabelo no momento em que eles estavam à procura de alguma coisa
para comer e enxotou-os para a mesa enquanto cozinhava ovos e
salsichas e fazia café. Embrulhou-lhes o almoço enquanto eles co­
miam.
Billy olhou pela janela, para onde os cavalos estavam aparelhados ,
junto à porta da cozinha. Toca a comer e vamos embora, disse . E não
lhe digas onde é que vamos .
Certo .
Não quero ter de ouvir sermões .
Penetraram n a pastagem de Valenciana antes de o Sol nascer e
passaram junto ao poço velho . O gado afastava-se diante deles à
meia-luz cinzenta. Billy montava com a pá ao ombro . Uma coisa te
digo , atirou .
O quê .
Há lugares naquelas fragas onde , se eles ' tiverem lá acoitados , tu
não os consegues sacar cá pra fora.
Pois. Eu sei .
Quando alcançaram o trilho ao longo da orla ocidental do leito de
cheia, o Sol estava a assomar atrás da meseta, e a luz que transpunha
a planície dardejava até às fragas acima deles , de modo que rompe­
ram pela noite restante num poço azul-escuro , com o novo dia a
tombar vagarosamente à sua volta. Cavalgaram até ao extremo supe­
rior e voltaram vagarosamente para trás , Billy à cabeça, a examinar
o terreno de ambos os lados do cavalo , debruçando-se com o ante­
braço sobre a cernelha do animal .
É s pisteiro? indagou John Grady.
Sou danado pra seguir rastos . Consigo seguir o rasto dos pássaros
que voam baixinho .
O que é que vês?
Nada de nada, chiça.
O sol desceu pelas fragas e avançou pelo terreno acidentado , ao
encontro deles . Eles pararam os cavalos .
1 82 Cormac McCarthy

Eles andam a seguir estes trilhos das vacas , notou Billy. Ou anda­
vam . Não me parece que ' tivessem todos na mesma toca. Acho que
havia dois grupos separados .
É possível .
' Tás a ver um lugar abrigado como aquele acolá?
Sim?
Vai haver pelo de cão em todos os penedos . Vamos dar uma volta
aqui por cima e ficar de olhos bem abertos .
Tomaram a subir o vale , mantendo-se junto à escarpa, por entre os
penedos e o cascalho . Descreviam círculos entre os fraguedos e remi­
ravam o chão . Tinham-se passado semanas desde a última chuvada, e
as pegadas de cães que tinham ficado marcadas nos trilhos de argila
aos pés deles desde há muito que haviam sido apagadas pela passa­
gem do gado , e no terreno seco os cães não deixavam rasto algum .
Vamos voltar aqui pra cima, sugeriu Billy.
Seguiram ao longo da encosta superior, bem perto das falésias
rochosas . Atravessaram a ladeira de cascalho e passaram por baixo
dos velhos xamãs e dos arcanos que nenhum registo compilava, ins­
critos naquelas tábuas desmesuradas .
Eu sei onde é que eles ' tão , disse Billy.
Virou o cavalo no trilho estreito e tornou a descer por entre os
rochedos . John Grady seguiu-o . Billy parou e deixou cair as rédeas
e descavalgou . Transpôs a pé uma garganta estreita nas fragas e de­
pois tornou a emergir e apontou pela encosta abaixo .
Eles entravam aqui por três lados , explicou . Acolá em baixo , as
vacas chegaram mesmo até junto dos penedos , mas não conseguem
passar. Vês aquela erva alta?
Vejo, sim .
A razão pra 'tar assim alta é que as vacas não conseguiram entrar
ali prà comer.
John Grady desmontou e seguiu-o para o meio dos penedos . Subi­
ram até ao alto da ladeira e voltaram para trás e examinaram o terre­
no . Os cavalos, parados , olhavam para dentro da ravina .
Vamos sentar-nos aqui um bocadinho , propôs Billy.
Sentaram-se . No meio dos penedos estava fresco . O chão estava
frio . Billy fumava .
'Tou a ouvi-los , disse John Grady.
Cidades da Planície 1 83

Também eu .
Levantaram-se e ficaram de pé , à escuta. Os vagidos cessaram.
Depois recomeçaram.
A toca era num recanto das rochas e formava um ângulo ao mer­
gulhar sob um penedo . Deitados de barriga na erva, eles apuraram o
ouvido .
Consigo cheirá-los , disse Billy.
Também eu .
Ficaram à escuta.
Como é que os vamos tirar dali?
Billy olhou para ele . Não vamos , disse .
Talvez eles saiam .
Pra quê?
Podíamos ir buscar leite e pô-lo aqui fora pra eles .
Não me parece que eles saiam . Escuta bem, repara como são pe­
querruchos . Aposto que ainda nem sequer têm os olhos abertos . O
que é que tu queres destes cachorros , seja como for? perguntou .
Não sei . Detesto deixá-los ali em baixo .
Talvez os conseguíssemos sacar cá pra fora. Se arranjássemos um
ocotillo comprido que chegasse .
John Grady, deitado no chão , remirava as trevas sob o penedo .
Deixa-me ver o teu cigarro , pediu.
Billy estendeu-lho .
Há outra entrada, notou John Grady. O ar sopra pra fora desta. Vês
o fumo?
Billy estendeu o braço e pegou no cigarro . Sim, disse . Mas a toca
continua a ser debaixo daquele penedo , e o penedo tem o tamanho
da cozinha do Mac .
Um cachopo conseguia rastejar ali pra dentro .
E onde é que tu ias arranjar o puto? E imagina que ele ficava pre­
so ali em baixo?
Podíamos amarrar-lhe uma corda às pernas .
E depois amarravam-te uma corda ao pescoço se alguma coisa lhe
acontecesse . Deixa-me ver a tua faca.
John Grady entregou-lhe o canivete , e ele pôs-se de pé e afastou­
-se e , ao fim de um certo tempo , regressou com um ramo de ocotillo .
Tinha uns bons três metros de comprido , e ele sentou-se e aparou os
1 84 Cormac McCarthy

espinhos do meio metro inferior, para se poder agarrar, e depois dei­


taram-se e revezaram-se durante a meia hora seguinte a vasculhar
com o ocotillo no fundo do buraco , rodando-o num esforço para
prender o pelo dos cachorros nos espinhos .
Nem sabemos se isto é comprido que chegue , notou Billy.
Eu acho que o problema é o buraco ser demasiado grande ali em
baixo . Íamos ter de enfiar a ponta do pau por baixo deles pra conse­
guirmos alguma coisa e, mesmo assim , só com um golpe de sorte .
Desde há um bocado que não ouço nenhum deles a guinchar.
São capazes de ter fugido pra um recanto , ou coisa do género .
Billy soergueu-se e puxou o ocotillo para fora do buraco e exami-
nou-lhe a ponta.
Tem pelo agarrado?
Sim. Algum . Mas , provavelmente , o que não falta ali por baixo é
pelo .
Quanto é que achas que pesa aquele pedregulho?
Merda, soltou Billy.
Só precisávamos de o virar ao contrário .
Aposto que aquele raio daquele penedo pesa umas cinco tonela-
das . Como é que o vais virar ao contrário , explicas-me , caramba?
Não me acredito que fosse assim tão difícil como isso .
E pra onde é que o vais virar ao contrário?
Podíamos fazê-lo cair pra esta banda.
Assim ficava caído por cima da abertura.
E depois? Os cachorros ' tão lá ao fundo .
Porque é que és tão teimoso , teimoso que nem um burro? Não
consegues trazer os cavalos aqui pra dentro , e , mesmo que conse­
guisses , eles puxavam o raio do penedo pra cima da cabeça deles .
Eles não precisavam de ' tar aqui dentro . Podiam ' tar ali fora.
As cordas não são compridas que chegue .
São , se as amarrarmos uma à outra, ponta com ponta.
Mesmo assim, não dá. Só pra dar a volta ao penedo era preciso
uma inteira.
Acho que consigo arranjar solução .
Tens algum esticador de cordas nas bolsas da sela? Sej a lá como
for, dois cavalos nunca conseguiam virar aquele penedo de panta­
nas .
Cidades da Planície 1 85

Conseguiam, se tivessem um ponto de apoio pra fazer de alavanca.


Teimoso que nem um burro , atirou Billy. O caso mais grave que
já vi , se bem me parece .
Há umas árvores jovens de boa grossura no cabeço do leito da tor­
rente . Se conseguíssemos cortar uma delas com a picareta, podíamos
usá-la como vara pra fazer de alavanca. Depois , podíamos amarrar a
corda à ponta do tronco, e assim já não era preciso amarrá-la à volta
do penedo . Matávamos dois coelhos com uma cajadada.
Dois cavalos e dois cowboys , diz antes.
Devíamos de ter trazido um machado .
Quando ' tiveres pronto pra voltar pra casa, diz-me . Eu cá vou ver
se consigo dormir uma sonecazita .
' Tá certo .
John Grady cavalgou pelo leito da torrente acima com a picareta
atravessada na sela diante dele . Billy estendeu-se e cruzou as botas
uma por cima da outra e puxou o chapéu para cobrir o rosto . Reina­
va o mais completo silêncio na bacia. Nem vento , nem pássaros .
Nem bramidos de gado . Ele estava quase a dormir quando ouviu o
primeiro golpe surdo da lâmina da picareta. Sorriu para a escuridão
da copa do chapéu e adormeceu .
Quando John Grady regressou , vinha a arrastar atrás do cavalo o
tronco de um choupo jovem que derrubara e despojara das ramagens.
Tinha uns cinco metros e meio de comprido e perto de quinze centí­
metros de diâmetro na base , e o respetivo peso , suspenso do laço de
corda preso ao chifre do cepilho , repuxava a sela para aquele lado .
Ele cavalgava meio de pé , apoiado no estribo do lado direito , com a
perna esquerda pendente sobre o tronco da árvore jovem , e o cavalo
caminhava em passo cauteloso . Ao chegar aos penedos , John Grady
descavalgou e soltou a corda e baixou a vara para o chão e entrou na
ravina e deu um pontapé na sola da bota de Billy.
Acorda e mija, disse . O mundo ' tá a arder.
Deixa arder, que o meu pai é bombeiro .
Anda lá, dá-me aqui uma mãozinha.
Billy empurrou o chapéu para trás , destapando o rosto , e olhou
para o alto . 'Tá certo , disse .
Amarraram a corda de laçar de John Grady à ponta da vara e ergue­
ram a vara atrás do penedo e formaram um montículo de pedras para
1 86 Cormac McCarthy

colmatar o hiato entre a base da vara e a saliência seguinte de rocha ,


encosta acima. E m seguida, John Grady uniu a s pontas de agarrar das
duas reatas por meio de um longo entrançado e formou um amplo
laço em forma de Y na outra ponta da corda de Billy, permitindo-lhe
fazer laços para ambos os cepilhos das selas . Puseram os cavalos lado
a lado e deixaram cair os laços sobre os chifres dos cepilhos e olha­
ram para a corda que pendia, bamba, da ponta da vara, e olharam um
para o outro e depois arredaram os cavalos do seu pouso e obrigaram­
-nos a avançar, puxando-os pelas faceiras . A corda retesou-se , muito
tensa. A vara vergou-se . Eles falaram com os cavalos , convencendo­
-os a avançar, e os cavalos entregaram-se à tarefa com afinco . Billy
ergueu os olhos para a corda. Se aquela filha da púcara se parte , avi­
sou , o melhor é acharmos um buraco pra nos metermos .
A vara deslizou subitamente d e viés num vaivém e tomou a parar
e ficou ereta , trémula.
Merda, soltou Billy.
Já sei . Se aquela coisa se solta dali , não é só dum buraco que va-
mos andar à cata.
Vamos andar à cata dum cangalheiro , isso sim .
O que é que queres fazer?
A festa é tua, cowboy .
John Grady contornou o penedo e verificou se o tronco estava bem
fixo e regressou . Vamos trazer os cavalos um bocadinho mais prà
esquerda, disse .
Seja.
Fizeram avançar os cavalos devagarinho . A corda retesou-se e
começou a desenrolar-se vagarosamente em tomo do seu eixo . Eles
olharam para a corda e olharam para os cavalos . Entreolharam-se .
Foi então que o rochedo se moveu . Começou a erguer-se aos sola­
vancos , assomando do lugar onde repousara ao longo dos mil anos
anteriores e empinou-se e oscilou e tombou para diante , para dentro
da pequena gruta , com um baque que eles sentiram reverberar atra­
vés das solas das botas . A vara estralejou entre as pedras , os cavalos
recuperaram o equilíbrio e ficaram parados .
Caralhos ma fodam , soltou Billy.
Começaram a escavar na terra despida e sem sol que o penedo
desocupara e, ao fim de vinte minutos , tinham destapado a toca. Os
Cidades da Planície 1 87

cachorros estavam ao fundo , no mais recôndito do buraco, aninhados


num monte . John Grady deitou-se de barriga no chão e enfiou o bra­
ço para baixo e para trás e tirou um cachorro da toca e ergueu-o à luz .
Enchia-lhe a palma da mão , não mais, e era gordo e agitava em vol­
ta o pequeno focinho e gemia e pestanejava, abrindo e fechando os
olhos azul-claros .
Pega-lhe .
Quantos são?
Não sei .
Tomou a enfiar o braço pelo buraco abaixo e alcançou o fundo e
trouxe outro para fora. Billy sentou-se e foi amontoando os cães to­
dos juntos na dobra do joelho à medida que eles surgiam . Eram
quatro . Aposto que estes merdosos ' tão cheios de fome , comentou .
Não há mais?
John Grady jazia estendido , com a face colada à terra. Acho que é
tudo , disse .
Os cães estavam a tentar esconder-se debaixo do joelho de Billy. Ele
ergueu um, segurando-o pelo magro cachaço . O bicho pendia como
uma peúga, a fuzilar o mundo lugubremente com os olhos aguados .
Escuta um minuto , disse John Grady.
Ficaram imóveis , à escuta.
Há outro .
Enfiou o braço pelo buraco abaixo e , deitado no chão , vasculhou
às apalpadelas nas trevas , por baixo deles . Fechou os olhos . Já o
agarrei , disse .
O cão que trouxe do seio da toca estava morto .
Aí ' tá o enfezado da ninhada, comentou Billy.
O cãozinho estava enroscado e hirto , com as patas diante da face .
Ele pousou-o no chão e mergulhou o cotovelo ainda mais fundo no
buraco .
Consegues achá-lo?
Não .
Billy pôs-se de pé . Deixa-me tentar, disse . Tenho o braço mais com­
prido do que tu .
' Tá certo .
Billy deitou-se na poeira e meteu o braço pelo buraco dentro . An­
da cá, meu cagalhãozinho , disse .
1 88 Cormac McCarthy

Já o agarraste?
Já. Diabos me levem se não me parece que o patife me quer morder.
O cão surgiu a soltar vagidos e a contorcer-se-lhe na mão .
Este aqui não é enfezado nenhum , comentou B illy.
Deixa-me vê-lo .
É gordo que nem uma bola de sebo .
John Grady pegou no cãozito e segurou-o na mão em concha.
O que será que ele ' tava a fazer ali no fundo , sozinho?
Se calhar, ' tava com o outro que morreu .
John Grady ergueu c! cão ao alto e fitou-lhe a facezita engelhada.
Acho que já arranjei um cão , disse .

Trabalhou ao longo de todo o mês de dezembro na choupana.


Carregou ferramentas no dorso do cavalo pelo trilho de Bell Springs
acima e deixou uma picareta e uma pá junto à estrada e trabalhava
no piso da estrada à mão , ao cair da noite , quando estava fresco , a
encher os sulcos cavados pela água e a cortar o mato e a abrir valetas
e a encher de terra as fissuras e a agachar-se e a remirar o terreno ,
tentando perceber de que modo a água iria correr. Ao fim de três
semanas , tinha-se livrado da maior parte do lixo , tendo-o levado
para longe ou queimado , e pintara o fogão e consertara o telhado e
conduzira a carrinha pela primeira vez ao longo da estrada velha, até
chegar à choupana, transportando na caixa os novos troços de cha­
miné de fogão , feitos de metal laminado azul , mais as latas de tinta
e de cal e as novas prateleiras de pinho para a cozinha.
No ferro-velho situado na Alameda, percorreu para trás e para
diante as coxias entre velhos caixilhos de janelas ali empilhados ,
munido de uma fita métrica de aço , a medir comprimentos e larguras
e a comparar os números com os que rabiscara no bloco que trazia
no bolso da camisa. Arrastou as janelas que queria para a coxia e foi
buscar a carrinha e fê-la recuar até à porta, e ele e o dono do ferro­
-velho carregaram as janelas na caixa. O homem vendeu-lhe várias
vidraças para substituir as que se tinham partido e mostrou-lhe como
deveria riscá-las e parti-las com um diamante corta-vidro , e depois
ofereceu-lhe o diamante corta-vidro .
Comprou uma velha mesa de cozinha menonista, feita de pinho , e
o homem ajudou-o a transportá-la para o exterior e a pousá-la na
Cidades da Planície 1 89

caixa da carrinha e disse-lhe que era melhor tirar a gaveta e pô-la no


fundo da caixa, na vertical .
Se você dobra uma curva, a gaveta solta-se daqui .
Sim, senhor.
Arrisca-se a que a gaveta saia disparada por cima do taipal .
Sim, senhor.
E pegue naquelas vidraças e guarde-as ali dentro da cabina, junto
de si , se não as quer partidas .
' Tá certo .
Até à vista .
Sim, senhor.
Trabalhava de noite , até bem tarde , e regressava a casa e desapa­
relhava o cavalo e escovava-o na treva parcial da coxia central do
estábulo e encaminhava-se para a cozinha e tirava o jantar do aque­
cedor de pratos e sentava-se à mesa e comia sozinho , à luz repleta de
sombras do candeeiro , e ficava a ouvir a crónica irrepreensível do
mecanismo antigo do relógio no corredor e do silêncio antigo do
deserto no negrume em volta. Havia noites em que adormecia na
cadeira e acordava a horas estranhas e se levantava a cambalear e
cruzava o terreiro até ao estábulo e pegava no cachorro e o punha
dentro do caixote , no chão , ao lado do catre , e se deitava de bruços ,
com o braço por cima do bordo do catre e a mão dentro do caixote
para que o bicho não ganisse , e depois adormecia vestido .
O Natal veio e passou . Na tarde do primeiro domingo de janeiro ,
Billy surgiu a cavalgar e cruzou o pequeno regato e gritou ó da casa
e descavalgou . John Grady veio à porta.
O que é que ' tás a fazer? perguntou Billy.
A pintar caixilhos de janelas .
Billy assentiu com a cabeça . Olhou em volta. Não me vais convi­
dar pra entrar?
John Grady passou a manga ao longo da asa do nariz . Segurava
um pincel numa mão e tinha os dedos azuis . Não sabia que era pre­
ciso , disse . Anda, entra .
Billy entrou e estacou . Tirou um cigarro do bolso e acendeu-o e
olhou em volta de si . Entrou na outra divisão e regressou . As paredes
de tijolos de adobe tinham sido caiadas , e o interior da casinha cinti­
lava e tinha uma aparência de austeridade monástica. O chão de argi-
1 90 Cormac McCarthy

la fora varrido , ensopado com água e nivelado , e John Grady batera-o


com um malho artesanal confecionado a partir de uma estaca de ve­
dação com um pedaço de tábua pregado à base .
Esta casa velha não parece nada má. Fazes tenções de arranjar um
santo pra pôr no canto , além?
Sou capaz .
Billy fez que sim com a cabeça.
Toda a ajuda é bem-vinda, acrescentou John Grady.
Já percebi , disse Billy. Olhou para o azul-vivo dos caixilhos das
janelas . Eles não tinham lá tinta azul? perguntou .
Disseram que isto era o mais parecido que se conseguia arranjar.
Tens na ideia pintar a porta da mesma cor?
Nem mais .
Tens outro pincel?
Tenho , sim . Tenho um .
Billy tirou o chapéu e pendurou-o numa das cavilhas junto à porta.
Bom, disse . Onde é que ' tá?
John Grady verteu tinta da sua lata para uma outra vazia, e Billy
agachou-se sobre um joelho e remexeu o pincel dentro da tinta . Pas­
sou os pelos do pincel cuidadosamente na horizontal contra o rebor­
do da lata e pintou uma faixa azul-viva ao longo do pinázio central .
Olhou por cima do ombro .
Explica-me lá porque é que tens um pincel a mais?
Era só pro caso de aparecer um palerma qualquer mortinho por
pintar, acho eu .
Largaram o trabalho antes de escurecer. Um vento frio descia da
garganta dos montes Jarillas . Ficaram parados junto à carrinha e
Billy fumou e contemplaram o lume em fuga a escurecer até dar lu­
gar à treva sobre as montanhas , a oeste .
Vai ser um frio de rachar aqui em cima no inverno , parceiro , co-
mentou Billy.
Eu sei .
Frio e solidão .
Eu não me vou sentir sozinho .
Eu 'tava a falar dela.
O Mac diz que ela pode ir até lá abaixo e trabalhar com a Socorro
sempre que quiser.
Cidades da Planície 191

Ah , isso é bom . Não deve de haver muitas cadeiras vazias à mesa


nesses dias .
John Grady sorriu . Calculo que tenhas razão .
Quando foi a última· vez que a viste?
Já faz um certo tempo .
Quanto tempo?
Não sei . Três semanas .
Billy abanou a cabeça.
Ela ainda lá ' tá, disse John Grady.
Tens imensa confiança nela.
Tenho , sim .
O que é que achas que vai acontecer quando ela e a Socorro se
juntarem as duas pra uma conversinha?
Ela não conta tudo o que sabe .
Ela ou a Socorro?
Qualquer uma delas .
Espero que tenhas razão .
Eles não vão correr com ela, Billy. Ela tem outras qualidades, pra
além de ser bonita .
Billy atirou o cigarro com um piparote através do quintal . É me-
lhor irmos andando .
Podes levar a carrinha, se quiseres .
Deixa ' tar.
Vá, anda. Eu monto aquele teu isco pra abutres a cair de podre .
Billy fez que sim com a cabeça. Vais atirá-lo às cegas pro meio do
mato , a tentares ganhar-me a corrida. Vais fazer com que uma cobra
o morda e não sei lá mais o quê .
Vá, anda . Eu sigo atrás da carrinha .
Um cavalo daqueles precisa dalguém com um jeitinho especial
pro montar no escuro .
Aposto que sim .
Um cavaleiro capaz de incutir confiança num animal .
John Grady sorriu e abanou a cabeça.
Um cavaleiro habituado aos usos e necessidades do cavalo-notur­
no . Que siga devagar pelo meio do gado , no escuro. Que cavalgue da
esquerda prà direita. Que cante pros bois ariscos . Que não acenda
fósforos .
1 92 Cormac McCarthy

' Tou a perceber.


O teu avô contava histórias do tempo em que ia com as manadas
por essas terras acima?
À s vezes . Sim .
Achas que alguma vez vais voltar àquelas paragens?
Duvido .
Vais , sim . Qualquer dia. Ou eu acho que vais . Se viveres até lá.
Queres levar tu a carrinha?
Nã. Vai andando . Eu sigo já atrás .
'Tá certo .
Não comas a minha sobremesa.
'Tá certo . Agradeço-te teres vindo até cá.
Não tinha mais nada pra fazer.
Bom .
Se tivesse , tinha ficado a fazê-lo .
A gente vê-se lá em casa.
A gente vê-se lá em casa.

Josefina estava parada à porta, a olhar. No quarto , a criada virou­


-se , com uma mão a erguer o peso do cabelo escuro da rapariga para
ela ver.
Bueno , comentou Josefina. Muy bonita .
A criada fez um sorriso minguado , com a boca eriçada de ganchos
para o cabelo . Josefina olhou para trás de si, para o fundo do corredor,
e depois debruçou-se para dentro do quarto . Él viene , sussurrou . Em
seguida, virou costas e afastou-se em passo furtivo pelo corredor fora.
A criada virou a rapariga rapidamente e examinou-a e tocou-lhe no
cabelo e deu um passo atrás . Passou o polegar pelos lábios , recolhen­
do os ganchos . Eres la china poblana perfecta , disse . Perfecta .
Es bel/a la china poblana ? perguntou a rapariga.
A criada arqueou as sobrancelhas com ar de espanto . A pálpebra
engelhada adejou sobre o olho alvacento e cego . Sí, respondeu . Sí.
Por supuesto . Todo el mundo lo sabe .
Eduardo surgiu no vão da porta. A criada viu os olhos da rapariga e
voltou-se . Ele fez um gesto brusco com o queixo , fitando-a, e ela foi
até à cómoda e pousou a escova para o cabelo e pôs os ganchos dentro
de um tabuleiro de porcelana e passou diante dele e cruzou a porta.
Cidades da Planície 1 93

Ele entrou e fechou a porta atrás de si . A rapariga estava parada,


muito calada, no centro da divisão .
Voltéate , ordenou ele . Executou um movimento rotativo com o
indicador.
Ela virou-se .
Ven aquí.
Ela avançou devagar e parou . Ele tomou-lhe o queixo na palma
da mão e levantou-lhe o rosto e fitou-a nos olhos pintados. Quando
ela tornou a baixá-los , ele enfiou-lhe a mão no cabelo apanhado na
nuca e puxou-lhe a cabeça para trás . Ela volveu os olhos para o
teto . A garganta pálida exposta. O pulsar do sangue visível nas
grossas artérias de um e de outro lado do pescoço e o pequeno tique
no canto da boca. Ele ordenou-lhe que olhasse para ele , e ela obe­
deceu , mas parecia ter o poder de tornar opacos aqueles seus olhos
escuros e de pálpebras ligeiramente descaídas . De tal modo que as
profundezas ali visíveis se perdiam ou ficavam veladas . De tal mo­
do que aqueles olhos escondiam o mundo ali contido . Ele tornou a
fincar os dedos no cabelo da rapariga, e a pele macia retesou-se
sobre as maçãs do rosto dela, e os olhos arregalaram-se-lhe . Ele
tornou a ordenar-lhe que olhasse para ele , mas ela estava já a fazê­
-lo e não respondeu .
A quién le rezas ? sibilou ele .
A Dios .
Quién responde ?
Nadie .
Nadie , repetiu ele .
Naquela noite , ela sentiu o pneuma frio a invadi-la no momento
em que j azia nua na cama. Virou-se e , num brado , chamou o cliente
parado no quarto .
' Tou-me a despachar o mais depressa que consigo , disse ele .
Quando se enfiou na cama, ao lado dela, a rapariga soltara um
grito e ficara rígida e tinha os olhos brancos . À luz atenuada, ele não
a via, mas pôs-lhe a mão no corpo e sentiu-a arqueada e trémula sob
a sua palma e retesada que nem a pele de uma caixa de rufo . Sentiu
o tremor que dela emanava como o zumbido de uma corrente a per­
correr-lhe os ossos .
O que é? indagou . O que é?
1 94 Cormac McCarthy

Saiu para o corredor meio despido , a vestir as calças . Tiburcio apa­


receu , vindo do nada. Empurrou o homem para o lado e ajoelhou-se em
cima da cama da rapariga e desafivelou o cinto e arrancou-o da cintura
e agarrou-lhe a ponta e dobrou-o em dois e agarrou o maxilar da rapa­
riga e enfiou-lhe o cabedal à força entre os dentes . O cliente observava
da porta. Eu não fiz nada, justificou-se . Nem sequer toquei nela.
Tiburcio levantou-se e caminhou até à porta em passadas largas .
Ela ficou assim de repente , ajuntou o cliente .
Não conte a ninguém , avisou Tiburcio . Compreende?
O senhor é que manda, amigo . Deixe-me só ir buscar os sapatos .
O alcahuete fechou a porta atrás dele . A rapariga respirava aspe-
ramente através do cinturão . Ele sentou-se e puxou as cobertas para
a destapar. Examinou-a, de rosto inexpressivo . Curvou-se ligeira­
mente sobre ela, vestido de seda negra. O sussurro suave e engana­
dor do tecido . Um voyeur mórbido , um cangalheiro . Um íncubo de
predisposições incertas ou talvez somente um dândi sombrio que ali
tivesse entrado por acaso, vindo das ruas de néon , e que macaqueas­
se de modo imperfeito , com as mãos pálidas e adelgaçadas , os gestos
rituais das artes curativas que vira ou que ouvira descrever ou tal
como ele os imaginava. Quem és tu? perguntou . Não és nada.

Quando ele saiu para o alpendre e deixou a porta de rede bater na


sua esteira, Mr Johnson estava sentado no bordo do alpendre , de
cotovelos apoiados nos joelhos , a contemplar o pôr do sol no ponto
em que este se pintava de escuro e chamejava sobre as Franklins , a
oeste . Bandos distantes de gansos moviam-se para jusante ao longo
da jornada . Pareciam não passar de pedacinhos de fio sobre o pano
de fundo do vermelho agreste do céu , e estavam demasiado longe
para se poderem ouvir.
' Tás de saída pra onde? perguntou o velho .
John Grady aproximou-se do bordo do alpendre e ficou ali a pali­
tar os dentes e a contemplar a paisagem juntamente com o outro . O
que é que o faz pensar que eu ' tou de saída pra algum lado?
Esse cabelo todo lambido pra trás que nem um rato-almiscarado .
As botas .
Ele sentou-se nas tábuas , ao lado do velho . Vou até à cidade , de­
clarou .
Cidades da Planície 1 95

O velho assentiu com a cabeça. Bom, volveu . Acho que ainda lá


deve de ' tar.
Sim, senhor.
Mas não to posso jurar.
Quando é que foi a última vez que ' teve em El Paso , Mr Johnson?
Não sei . Faz um ano , acho eu . Talvez mais.
Não se cansa de ficar aqui assim o tempo todo?
Sim . À s vezes .
Nem sequer lhe apetece dar lá uma saltada, só pra ver o que é que
se anda a passar?
Não me parece que isso ajudasse . Não acredito que se passe algu­
ma coisa.
Costumava ir a Juárez?
Costumava, sim . Em tempos que já lá vão , quando bebia. A última
vez que ' tive em Juárez , no México , foi em mil nove e vinte e nove .
Vi um homem morto a tiro num bar. Ele ' tava de pé junto ao balcão ,
a beber uma cerveja, e outro tipo entrou no bar e veio por trás dele e
sacou do cinturão uma pistola Government de calibre quarenta e
cinco e deu-lhe um tiro em cheio na nuca. Tornou a enfiar a arma no
cós das calças e deu meia-volta e foi-se embora. Nem sequer apres­
sou o passo .
Matou-o ali mesmo?
Sim. O tipo morreu ali de pé . O que eu mais recordo foi a rapidez
com que ele caiu . Que nem um peso morto . Os filmes também nunca
mostram essa parte como deve de ser.
E onde é que você 'tava?
Eu 'tava parado quase ao lado do fulano . Vi tudo no espelho atrás do
balcão . Ainda hoje sou um bocado surdo deste ouvido aqui por causa
disso . A cabeça por pouco não lhe saltou do pescoço , chiça. Sangue por
todo o lado . Miolos . Eu tinha vestida uma camisa Stradivarius de ga­
bardina, novinha em folha, e trazia um chapéu Stetson bastante razoá­
vel , e queimei tudo o que tinha no corpo , à parte as botas . Devo de ter
tomado uns nove banhos de enfiada, uns a seguir aos outros .
Olhou para a paisagem lá longe , a oeste , onde o céu começava a
escurecer. Histórias do velho Oeste , rematou .
Sim, senhor.
Imensas pessoas alvejadas e mortas .
1 96 Connac McCarthy

E porquê?
Mr Johnson passou as pontas dos dedos pelo queixo . Bom, disse .
Acho que a maioria desta gente vinha do Tennessee e do Kentucky.
Da região de Edgefield , na Carolina do Sul . Do Sul do Missouri .
Eram montanheses . Descendiam de montanheses lá do Velho Mun­
do . Não faziam cerimónia em dar um tiro noutra pessoa . Não era
só aqui . Vinham pra oeste , cada vez mais pra oeste , e, quando aqui
chegaram , foi mais ou menos na altura em que Sam Colt inventou
o seis-tiros , e foi a primeira vez que estes tipos puderam comprar
uma arma que se podia levar dum lado pro outro enfiada no cintu­
rão . Foi só isto , não tem mistério nenhum . Não tinha nada que ver
com esta terra , nem por sombras . O Oeste . Havia de ser igual , fos­
se qual fosse a terra onde eles tivessem ido parar. Já pensei no as­
sunto , e foi essa a única conclusão a que consegui chegar, no fim
de contas .
O senhor abusava muito da bebida, Mr Johnson? Sem ofensa, claro .
Abusava bastante . Talvez não tanto como alguns gostassem de
recordar. Mas foi mais do que uma amizade passageira.
Sim, senhor.
Podes perguntar tudo o que quiseres .
Sim, senhor.
Quando chegares à minha idade , assim a modos que perdes a mania
de te deixares tolher por cerimónias . Acho que isto embaraça um bo­
cado o Mac , às vezes . Mas não te acanhes em perguntar-me coisas .
Sim, senhor. Foi nessa altura que deixou de beber?
Não . Eu era mais empenhado do que isso . Deixei de beber e de­
pois comecei outra vez . Deixei de beber e recomecei . Finalmente ,
acabei por largar a bebida de vez . Se calhar, fiquei demasiado velho
pra isso , mais nada. Não houve virtude nenhuma da minha parte .
No beber ou no largar a bebida?
Nas duas coisas . Não há virtude nenhuma em a gente largar o que ,
logo pra começo de conversa, já não somos capazes de fazer. Aquilo
além é bonito , não achas .
Indicou o pôr do sol com um aceno de cabeça . Vermelho laminar,
sombrio. O fresco da escuridão iminente estava contido naquele cre­
púsculo , e rodeava-os por completo .
Sim, senhor, concordou John Grady. É , sim .
Cidades da Planície 1 97

O velho tirou os cigarros do bolso da camisa. John Grady sorriu .


Vejo que não deixou de fumar, comentou .
Tenciono ser enterrado com um maço guardado no bolso .
Acha que vai precisar deles na outra banda?
A verdade é que não . Mas um homem pode sempre ter esperança.
Observou o céu . Pra onde é que os morcegos vão quando é inver-
no? Têm de comer.
Acho que são capazes de migrar.
Espero bem que sim.
Acha que eu me devia de casar?
Raios , rapaz . Como é que queres que eu saiba?
O senhor nunca se casou .
Isso não quer dizer que não tenha tentado .
O que é que aconteceu?
Ela não me quis.
E porque não?
Eu era demasiado pobretão pra ela. Ou talvez pro paizinho dela.
Não sei .
O que é que aconteceu então?
Foi uma coisa esquisita. Ela acabou por se casar com outro fulano
e morreu de parto . Não era coisa rara, naqueles tempos . Era bonita
como raio , a moça. A mulher. Acho que ainda nem vinte anos tinha
feito . Ainda penso nela.
As derradeiras cores feneceram a oeste . O céu estava escuro e azul .
Depois ficou somente escuro . As janelas da cozinha jaziam desenha­
das sobre as tábuas do alpendre ao lado deles , ambos ali sentados .
Sinto falta de saber o que foi feito de certas pessoas . Onde é que
'tão a viver e como é que se ' tão a safar e onde é que morreram ,
quando morreram mesmo . Penso no velho Bill Reed . À s vezes , per­
gunto a mim mesmo , penso cá com os meus botões: O que será feito
do velho Bill Reed? Acho que nunca vou ficar a saber. Eu e ele éra­
mos bons amigos , diga-se .
E mais?
Mais o quê?
Mais coisas de que sente saudades .
O velho abanou a cabeça . Não me puxes pela língua.
Muita coisa?
1 98 Cormac McCarthy

Nem tudo . Não tenho saudades de arrancar um dente com uma te­
naz de ferrador e só ter a água fresca do poço pra aliviar as dores . Mas
tenho saudades da antiga vida nos pastos . Levei manadas de gado pra
norte quatro vezes . Foram os melhores tempos da minha vida. Os
melhores . Andar sem poiso certo . Ver novas terras . Não há nada que
se compare neste mundo . Nem nunca haverá. Todos sentados à volta
da fogueira, ao serão , com a manada deitada no prado , em descanso ,
sem u m sopro de vento . Encher uma caneca de café . Ouvir o s vaquei­
ros mais antigos a contar as suas histórias . Belas histórias , diga-se .
Enrolar um cigarro . Dormir. Não há sono como aquele . Nunca.
Atirou o cigarro com um piparote para o meio das trevas . Socorro
abriu a porta e olhou para fora. Mr Johnson , disse , é melhor o senhor
entrar. Está demasiado frio para si .
Eu vou já, não me demoro .
É melhor eu ir andando , se calhar, disse John Grady.
Não deixes uma mulher à espera, aconselhou o velho . É coisa que
elas não suportam.
Sim, senhor.
Vai-te lá embora , anda.
Ele pôs-se de pé . Socorro tomara a entrar. Ele baixou os olhos
para o velho . Ainda assim , o senhor não acha que seja uma grande
ideia, pois não?
O que é que eu não acho que seja?
Um homem casar-se .
Eu não disse tal coisa.
Mas acha?
Acho que um homem deve de fazer o que lhe manda o coração ,
declarou o velho . É tudo o que eu alguma vez pensei seja lá sobre o
que for.
Ao subir a Juárez Avenue , no meio das chusmas de turistas , viu o
engraxador na sua esquina e acenou-lhe com a mão .
Deves de ir a caminho pra ver a tua moça, começou o rapaz .
Não . Vou ver um amigo meu .
Ela ainda é a tua novia?
É, sim .
Quando é que se vão casar?
Muito em breve .
Cidades da Planície 1 99

Pediste-lhe?
Sim .
E ela disse que sim?
Disse .
O rapaz fez um largo sorriso . Otro más de los perdidos , disse .
Otro más .
Ándale pues , volveu o rapaz . Agora já não te posso ajudar.
Entrou no Moderno e tirou o chapéu e pendurou-o entre os chapéus
e os instrumentos suspensos do comprido cabide de parede , junto à
porta, e escolheu uma mesa junto à que estava reservada para o maes­
tro . O barman lançou-lhe um aceno de cabeça do outro lado da sala e
ergueu uma mão . Buenas tardes , saudou em voz alta.
Buenas tardes , retribuiu John Grady. Entrelaçou as mãos na sua
frente , no tampo da mesa. Dois dos músicos vetustos , com os seus
fatos de palco , negros e baços , estavam sentados a uma mesa, no can­
to , e inclinaram a cabeça para o cumprimentar educadamente , enquan­
to amigo do maestro , e ele correspondeu à saudação e o empregado
cruzou o chão de cimento com o seu avental branco e saudou-o tam­
bém. Ele pediu uma tequila, e o empregado fez uma vénia. Como se a
decisão fosse solene e acertada. Do exterior, na rua, vinham os gritos
das crianças , os pregões dos vendedores ambulantes. Um feixe qua­
drado de luz tombava de viés da janela gradeada que dava para a rua,
acima dele , e terminava no chão , num trapezoide alvacento . No centro
deste feixe , dir-se-ia uma criatura exposta numa gaiola torta e inclina­
da de viés, sentava-se um grande gato caseiro cor de limão , a lavar-se .
O animal abanou a cabeça e bocejou . Virou-se e olhou para ele . O
empregado trouxe a tequila.
Ele molhou o alto do punho fechado com a língua e verteu sal de
um saleiro e beberricou um gole de tequila e tirou do pires um gomo
de limão cortado e esmagou-o entre os dentes e tornou a pousá-lo no
pires e lambeu o sal do punho . Em seguida, bebeu um novo gole de
tequila. Os músicos observavam-no , sentados em silêncio .
Ele bebeu a tequila e pediu outra . O gato desaparecera. A gaiola
de luz moveu-se através do chão . Ao fim de um certo tempo , come­
çou a trepar pela parede . O empregado acendera as luzes na outra
sala, e um terceiro músico entrara e juntara-se aos dois primeiros .
Em seguida, o maestro entrou com a filha .
200 Cormac McCarthy

O empregado aproximou-se e ajudou-o a tirar o casaco e segurou­


-lhe a cadeira. Falaram durante breves momentos , e o empregado fez
que sim com a cabeça e sorriu para a rapariga e levou consigo o ca­
saco do maestro e pendurou-o . A rapariga voltou-se ligeiramente na
cadeira e olhou para John Grady.
Cómo estás ? perguntou ela.
Bien . Y tú?
Bien, gracias .
O cego inclinara-se maliciosamente na cadeira, à escuta. Boa noi-
te , saudou . Quer juntar-se a nós , por favor?
Obrigado . Sim. Gostava muito .
Então venha daí.
Ele empurrou a cadeira para trás e levantou-se . O maestro sorriu
ante a aproximação dele e estendeu a mão para o seio das trevas .
Como vai?
Vou bem , obrigado .
O cego falou com a rapariga em espanhol . Abanou a cabeça. A Ma­
ria é acanhada, comentou . Por qué no hablas inglés con nuestro ami­
go ? Vê . Ela recusa-se . Não vale a pena. Onde está o empregado? O
que quer beber, diga-me cá?
O empregado trouxe as bebidas , e o maestro pediu a bebida para
o seu convidado . Pôs a mão no braço da rapariga para ela esperar até
que todos estivessem servidos . Quando o empregado se afastou , ele
voltou-se . Muito bem , disse . O que é que aconteceu?
Pedi-lhe que se casasse comigo .
E ela recusou? Diga-me .
Não . Ela aceitou .
Mas tão solene . Pregou-nos um susto .
A rapariga revirou os olhos e desviou o rosto . John Grady não
fazia ideia do que esta expressão significava.
Vim pedir-lhe um favor.
É claro , acudiu o maestro . Mas com certeza.
Ela não tem família. Não tem quem a leve ao altar. Gostava que o
senhor fosse o padrino dela.
Ah, soltou o maestro . Levou as mãos entrelaçadas ao queixo e
depois tomou a pousá-las na mesa. Esperaram .
Sinto-me honrado , é claro . Mas trata-se de uma questão muito
séria. Compreende .
Cidades da Planície 20 1

Sim . Compreendo .
Vai viver na América .
Sim .
N a América, repetiu o maestro . Sim.
Permaneceram imóveis . O cego , no seu silêncio , mostrava-se dupla­
mente silencioso . Até os três músicos ao canto o observavam. Não
conseguiam ouvir-lhe as palavras , mas pareciam igualmente esperar
que ele prosseguisse .
A função de padrino não se resume a uma mera cerimónia, come­
çou ele . Não é um simples gesto de afinidade , nem uma forma de
ligar dois amigos entre si .
Sim . Compreendo .
É uma questão muito séria, e ninguém pode sentir-se insultado se
outro homem recusar esse compromisso , caso apresente razões hon­
rosas .
Sim, senhor.
É preciso sermos lógicos nestes assuntos .
O maestro ergueu uma mão diante de si e abriu os dedos e manteve­
-a ali suspensa. Como uma invocação, talvez, ou o gesto de quem
apara um golpe . Se não fosse cego , estaria simplesmente a examinar as
próprias unhas . Tenho uma saúde débil , prosseguiu . Mas , mesmo que
assim não fosse , essa rapariga vai iniciar uma nova vida, e deve ter
quem a aconselhe no seu novo país . Não acha que seria melhor assim?
Não sei . Parece-me que ela precisa de toda a ajuda que lhe possam
dar.
Sim . É claro .
É por causa da sua vista?
O cego baixou a mão . Não , disse . Não é uma questão de vista.
Ele esperou que o cego prosseguisse , mas este não o fez .
Há alguma coisa que o senhor não possa dizer diante d a rapariga?
A rapariga? acudiu o maestro . Sorriu o seu sorriso cego , abanou a
cabeça . Ai , credo , soltou . Não , não . Não temos segredos . Um pai
cego e já velho com segredos? Não , isso seria impossível .
Não temos padrinos na América, continuou John Grady.
O empregado acercou-se e pousou a bebida de John Grady diante
dele , e o maestro agradeceu ao empregado e fez deslizar os dedos
sobre a madeira da mesa até tocarem no seu próprio copo .
202 Cormac McCarthy

Bebo à saúde da boda , disse .


Gracias .
Beberam . A rapariga dobrou a palhinha dentro da sua garrafa de
refresco e debruçou-se e beberricou .
Se fosse possível , disse o maestro , encontrar uma pessoa inteli­
gente e de bom coração , então talvez fosse possível explicar-lhe o
encargo . O que é que acha?
Acho que você é essa pessoa.
O cego bebeu um gole de vinho e tomou a pousar o copo no mes­
mo anel , sobre o tampo da mesa, que o copo deixara livre havia
pouco , e entrelaçou as mãos , pensativo .
Deixe-me dizer-lhe uma coisa, começou .
Sim, senhor.
Num assunto desta natureza, assim que alguém é convidado ,
toma-se de imediato responsável . Ainda que recuse .
Eu só ' tou a pensar no bem dela.
Também eu .
Ela não tem mais ninguém. Não tem amigos .
Mas o padrino não tem de ser um amigo .
Tem de ser alguma coisa.
Tem de ser um homem de caráter, disposto a tomar a seu cargo
certos deveres . É tudo . Pode ser um amigo ou não . Pode ser um rival
de outra casa. Pode ser um homem capaz de reconciliar famílias
apartadas pela intriga ou pelos ódios ou pela política. Compreende .
Pode até ser alguém sem grande proximidade com a família. Pode
até ser um inimigo .
Um inimigo?
Sim. Conheço um caso assim . Nesta mesma cidade .
Porque é que um homem havia de querer um inimigo para padrino?
Pelas melhores razões . Ou pelas piores . Este homem de quem
estamos a falar estava às portas da morte quando o seu último filho
veio ao mundo . Um varão . O seu único filho varão . E então , que
fez ele? Apelou àquele homem que outrora fora seu amigo mas que
era agora seu inimigo figadal e pediu-lhe que fosse padrino do fi­
lho dele . O homem recusou , é claro . O quê? Mas ele enlouqueceu?
Deve ter ficado estupefacto . Tinham-se passado anos desde a últi­
ma vez que haviam falado um com o outro , e a enemistad entre
Cidades da Planície 203

ambos era um sentimento profundo e amargo . Talvez se tivessem


tornado inimigos pela mesma razão que os levara outrora a travar
amizade . O que acontece muitas vezes no mundo . Mas este homem
insistiu . E tinha - como é que vocês dizem - el naipe ? En su
manga .
O trunfo .
Sim. O trunfo na manga . Disse ao inimigo que estava a morrer. Eis
o trunfo . Sobre a mesa. O homem não podia recusar. Toda a possibi­
lidade de escolha lhe foi retirada das mãos .
O cego ergueu uma mão no ar repleto de fumo , num gesto fino e
cortante , de baixo para cima. Veio então o falatório , prosseguiu . O
falatório sem fim. Há quem diga que o moribundo queria reatar a
amizade . Outros , que ele tratara aquele homem de forma muito in­
justa e que desejava fazer as pazes antes de abandonar este mundo
para sempre . Outros diziam outras coisas . Que aquela história não
era o que parecia à primeira vista. Eu digo isto: O homem que estava
a morrer não era dado a sentimentalismos . Também ele perdera ami­
gos , ceifados pela morte . Não era um homem que se deixasse levar
por ilusões . Sabia que as coisas que mais desejamos guardar no co­
ração nos são muitas vezes roubadas , ao passo que aquelas que de­
sejávamos repelir de nós parecem muitas vezes, devido a esse mes­
mo desejo, tornar-se dotadas de uma capacidade de resistência
insuspeita. Sabia como é frágil a memória daqueles que amámos .
Como fechamos os olhos e falamos com eles . Como desejamos
ouvir-lhes novamente as vozes , e como essas vozes e essas memórias
se desvanecem cada vez mais, até que aquilo que era carne e sangue
não passa de eco e sombras . No fim de contas , talvez nem isso .
Sabia que os nossos inimigos , pelo contrário , parecem estar sem­
pre connosco . Quanto maior o nosso ódio , mais persistente a memó­
ria que conservamos deles , de tal maneira que um inimigo verdadei­
ramente implacável se torna imortal . De tal modo que o homem que
nos infligiu grandes danos ou nos sujeitou a grandes injustiças se
toma um hóspede em nossa casa para todo o sempre . Talvez só o
perdão possa desalojá-lo .
Foi este , portanto , o raciocínio daquele homem. Se acreditarmos
nas suas melhores intenções . Ligar o padrino à sua causa com os
laços mais fortes que ele conhecia . E havia mais . É que , naquela
204 Cormac McCarthy

escolha, ele arregimentou também o mundo como sua sentinela. Os


deveres de um amigo não seriam objeto de grande escrutínio . Mas
um inimigo? Compreende agora com que arte ele capturou o outro
na rede que teceu . Porque este inimigo era, na verdade , um homem
consciencioso . Um inimigo honrado . E este inimigo-padrino tem
agora de albergar o moribundo para sempre no coração . Tem de su­
portar os olhos do mundo eternamente assestados em si. Doravante ,
um tal homem dificilmente se pode dizer que trace o seu próprio
rumo .
O pai morre , como teria de morrer. O inimigo tornado padrino
converte-se agora em pai da criança. O mundo está atento . Monta
vigia em lugar do morto . Que , pela sua audácia, o recrutou para o seu
serviço . Porque o mundo possui uma consciência , por muito que os
homens disso duvidem . E, embora essa consciência possa ser enca­
rada como a soma das consciências dos homens , há outra perspetiva,
que é a de que esta consciência pode ter existência própria , e a par­
cela de cada homem não passa de um pequeno fragmento do todo ,
ínfimo e imperfeito . O homem que morreu preferia esta perspetiva.
Assim como eu próprio . Os homens talvez acreditem que o mundo
é . . . qual é a palavra? Volúvel .
Inconstante .
Inconstante? Não sei . Volúvel, seja. Mas o mundo não é volúvel .
O mundo é sempre igual . O homem designou o mundo como sua
testemunha, para poder acorrentar o inimigo ao seu serviço . Para que
o inimigo fosse fiel aos seus deveres . Eis o que ele fez . Era essa a
minha convicção , pelo menos . À s vezes , ainda acredito nisso .
Como é que essa história acabou?
De uma maneira muito estranha.
O velho estendeu a mão para o seu copo . Bebeu e segurou o copo
diante de si, como que a examiná-lo , e depois pousou-o na mesa
novamente na sua frente .
De uma maneira muito estranha. É que a circunstância da sua de­
signação acabou por elevar o padrinazgo daquele homem ao papel
central da sua existência. Trouxe à tona o melhor nele . Mais do que
o melhor. Virtudes havia muito negligenciadas começaram quase de
imediato a florescer. Ele abandonou todos os vícios . Começou até a
ir à missa. Aquela sua nova incumbência pareceu ter despertado nas
Cidades da Planície 205

partes mais recônditas do seu caráter a honra, a lealdade , a coragem


e a devoção . O que ele ganhou dificilmente se pode exprimir por
palavras . Quem teria previsto tal coisa?
O que é que aconteceu? perguntou John Grady.
O cego sorriu o seu sorriso magoado de cego . Cheira-lhe a esturro ,
disse .
Sim.
Nem mais . A história não acabou bem . Talvez esta fábula tenha
uma moral . Talvez não . Deixo isso à sua consideração .
O que é que aconteceu?
Este homem, cuja vida mudara para sempre por causa do pedido no
leito de morte do seu inimigo , acabou na ruína. A criança tomou-se a
sua vida. Mais do que a sua vida. Dizer que ele idolatrava aquela
criança é nada dizer. No entanto , tudo correu mal . Uma vez mais ,
creio que as intenções do moribundo eram as melhores . Mas há outra
perspetiva. Não seria a primeira vez que um pai sacrifica um filho .
O afilhado cresceu e tornou-se um jovem desvairado e sem freio .
Tomou-se um criminoso . Um pequeno ladrão . Um tavolageiro . E
outras coisas . Por fim, no inverno de mil nove e sete , na cidade de
Ojinaga, matou um homem. Tinha dezanove anos . Uma idade próxi­
ma da sua, talvez.
A mesma.
Sim. Talvez fosse este o destino dele . Talvez nenhum padrino o
pudesse ter salvado de si próprio . Nenhum pai . O padrino esbanjou
tudo quanto possuía em subornos e gratificações . Em vão . Uma tal
estrada, uma vez encetada, não tem fim, e ele morreu sozinho e po­
bre . Nunca se mostrou amargurado . Quase nem ponderava a possibi­
lidade de ter sido objeto de uma traição . Outrora, fora um homem
forte e até impiedoso , mas o amor faz os homens palermas . Eu pró­
prio falo enquanto vítima. Ficamos indefesos , e depois resta apenas
saber se o destino irá mostrar alguma misericórdia para connosco .
Ou muito pouca. Ou nenhuma.
Os homens dizem que o destino é cego , que é uma coisa sem pla­
no nem fito definido . Mas que género de destino é esse? Cada ato
neste mundo que não admite recuo teve antes dele um outro , e este ,
outro ainda. Numa rede vasta e infindável . Os homens imaginam que
as escolhas que se lhes oferecem estão ao seu dispor. Mas somos li-
206 Cormac McCarthy

vres de agir somente sobre o que nos é dado . A escolha perde-se no


labirinto de gerações , e cada gesto neste labirinto é em si mesmo
uma servidão , porque esvazia todas as alternativas e vincula o indi­
víduo, de modo cada vez mais férreo , aos constrangimentos que
formam uma vida. Se o morto tivesse sido capaz de perdoar ao ini­
migo quaisquer agravos dele recebidos , tudo teria sido diferente .
Será que o filho chamou a si a missão de vingar o pai? Será que o
morto sacrificou o filho? Os nossos planos assentam num futuro que
nos é desconhecido . O mundo toma a sua forma a cada hora que
passa, sopesando as coisas que tem ao seu dispor, e, embora possa­
mos tentar adivinhar essa forma, não dispomos de maneira de o fa­
zer. Temos apenas a lei de Deus, mais a sabedoria de a seguirmos ,
caso queiramos .
O maestro debruçou-se e ajeitou as mãos n a sua frente . O copo de
vinho estava vazio , e ele pegou-lhe e ergueu-o . Aqueles que não
conseguem ver, prosseguiu , têm de confiar no que aconteceu antes .
Se eu não quiser fazer figura de palerma, a beber por um copo vazio ,
tenho de me recordar se escorropichei o vinho ou não . Este homem
que se tomou padrino . Falo dele como se tivesse morrido velho , mas
não foi o caso . Ele era mais novo do que eu o sou agora . Falo dele
como se a sua consciência ou os olhos do mundo ou ambas as coisas
o tivessem levado a um tal rigor nos seus deveres . Mas estas consi­
derações rapidamente se dissiparam . Foi por amor do afilhado que
ele se desgraçou , se é que se pode falar em desgraça. O que é que
acha disto?
Não sei .
Nem eu . Sei apenas que todos os atos desprovidos de paixão aca­
bam por ser desmascarados . Todos os gestos.
Permaneceram em silêncio . A sala estava mergulhada na quietude
em volta deles . John Grady via a água a perlar-se sobre o seu copo ,
que permanecia intacto na sua frente . O cego pousou o seu próprio
copo novamente na mesa e afastou-o de si .
Até que ponto o meu amigo ama essa rapariga?
Era capaz de morrer por ela.
O alcahuete está apaixonado por ela.
Tiburcio?
Não . O grande alcahuete .
Cidades da Planície 207

Eduardo .
Sim.
Permaneceram calados . No salão exterior, os músicos tinham che­
gado e estavam a montar os instrumentos . John Grady fitava o chão .
Ao fim de um certo tempo , ergueu os olhos .
A velha é de confiança?
La Tuerta?
Sim .
Ai , credo , soltou o cego e m voz baixa.
A velha diz-lhe que ela se vai casar.
A velha é mãe de Tiburcio .
John Grady recostou-se na cadeira. Ficou muito calado . Olhou
para a filha do cego . Ela fitou-o . Silenciosa. Dócil . Insondável .
Você não sabia.
Não . Ela sabe? Sim, é claro que sabe .
Sim .
E ela sabe que o Eduardo 'tá apaixonado por ela?
Sim .
Os músicos começaram a tocar uma partita barroca ligeira . Dan­
çarinos idosos encheram a pista de dança. O cego , sentado , tinha as
mãos diante dele , sobre a mesa.
Ela acha que o Eduardo a vai matar, observou John Grady.
O cego fez que sim com a cabeça.
O senhor acha que ele a vai matar?
Sim, respondeu o maestro . Acho que ele a vai matar.
E é por isso que não quer ser padrinho dela?
Sim . É por isso .
Tomá-lo-ia responsável .
Sim.
Os dançarinos moviam-se com o seu formalismo hirto sobre o
piso de cimento varrido e envernizado . Dançavam com uma elegân­
cia antiga, dir-se-iam figuras saídas de um filme .
O que é que acha que eu devia fazer?
Não o posso aconselhar.
Não me quer aconselhar.
Não . Não quero .
Eu abdicava dela, se achasse que não a conseguia proteger.
208 Cormac McCarthy

Talvez .
Você não acha que eu fosse capaz .
Acho que as dificuldades talvez sejam maiores do que o meu ami­
go imagina.
O que é que hei de fazer.
O cego permaneceu imóvel . Ao fim de um certo tempo , disse: Tem
de compreender. Eu não tenho certezas . E o assunto é da maior gra­
vidade .
Passou a mão sobre o tampo da mesa . Como se estivesse a alisar
algo de invisível na sua frente . Quer que eu lhe conte um segredo
qualquer do grande alcahuete . Que lhe dê a conhecer uma qualquer
fraqueza. Mas a própria rapariga é que é a fraqueza.
O que é que acha que eu devo fazer?
Reze a Deus.
Sim.
Vai rezar?
Não .
E porque não?
Não sei .
Não acredita n'Ele?
Não é isso .
É por a rapariga ser uma mujerzuela .
Não sei . Talvez .
O cego deixou-se ficar sentado . Estão a dançar, disse .
Sim.
Não é essa a razão .
Qual é que não é?
Ela ser uma rameira.
Não .
Você era capaz de abdicar dela? Verdadeiramente?
Não sei .
Nesse caso , não saberia o que pedir nas suas orações .
Não . Não saberia o que pedir.
O cego fez que sim com a cabeça. Curvou-se para diante . Pousou
um cotovelo na mesa e apoiou a testa contra o polegar, qual confes­
sor. Parecia estar a ouvir a música. O meu amigo j á a conhecia antes
de ela ter ido para o White Lake , notou .
Cidades da Planície 209

Vi-a antes . Sim.


Na La Venada.
Sim .
Assim como ele .
Sim . Calculo que sim.
Foi aí que tudo começou .
Sim.
Ele é um cuchillero . Um .filero , como dizem aqui . Um homem de
certo rigor. Um homem sério .
Eu próprio também sou sério .
É claro . Se não fosse , não haveria problema nenhum .
John Grady remirou aquele rosto passivo . Fechado para o mundo ,
exatamente como o mundo estava fechado para ele .
O que é que me ' tá a dizer?
Nada tenho a dizer.
Ele ' tá apaixonado por ela .
Sim .
Mas era capaz d e a matar.
Sim .
Compreendo .
Talvez . Deixe-me dizer-lhe apenas uma coisa. O seu amor não tem
amigos . Você acha que tem , mas não tem . Nenhum. Talvez nem se­
quer Deus.
E o senhor?
Não me incluo nestas contas . Se conseguisse ver o que o futuro
reserva, dir-lhe-ia. Mas não consigo .
Acha que eu sou um palerma.
Não . Não acho .
Mesmo que achasse , não mo diria.
Não , mas não lhe mentiria. Não acho isso . Nunca achei. Um ho­
mem tem sempre razão em tentar alcançar o que ama.
Ainda que isso o mate?
Acho que sim . Ainda que assim seja.

Empurrou o carrinho de mão , cheio com a última carga de detritos ,


desde o quintal da cozinha até à fogueira do lixo, e despejou-o e re­
cuou um passo e ficou a ver o lume em tons escuros de cor de laranja
210 Cormac McCarthy

a arquejar por entre os penachos sombrios de fumo que se elevavam


contra o céu do crepúsculo . Passou o antebraço sobre a testa e curvou­
-se e agarrou novamente as pegas do carrinho de mão e conduziu-o aos
solavancos até onde a carrinha de caixa aberta estava estacionada e
pô-lo na caixa e ergueu e trancou o taipal traseiro e regressou ao inte­
rior da casa. Héctor estava a caminhar às arrecuas pela divisão , a
varrer com a vassoura. Trouxeram a mesa da cozinha da outra divisão
e depois trouxeram as cadeiras . Héctor trouxe o candeeiro do guarda­
-loiça e pousou-o na mesa e retirou a chaminé de vidro e acendeu o
pavio. Soprou o fósforo para o apagar e tomou a encaixar a chaminé e
regulou a chama com a rosca de latão . Onde está o santo? perguntou .
Ainda ' tá na carrinha. Vou lá buscá-lo .
Saiu de casa e trouxe o resto das coisas da cabina da carrinha.
Pousou a tosca imagem de madeira do santo sobre a cómoda e de­
sembrulhou os lençóis e pôs-se a fazer a cama . Héctor permaneceu
no vão da porta.
Queres que te ajude?
Não . Obrigado .
Ele encostou-se à ombreira da porta, a fumar. John Grady alisou
os lençóis e desdobrou as fronhas e enfiou-lhes dentro as almofadas
de penas e depois desdobrou a colcha de retalhos que Socorro lhe
oferecera. Héctor enfiou o cigarro na boca e aproximou-se do lado
oposto da cama e estenderam a colcha e recuaram.
Acho que já ' tá tudo , disse John Grady.
Regressaram à cozinha, e John Grady debruçou-se e pôs a mão em
concha no alto da chaminé do candeeiro e soprou a chama, apagando­
-a, e saíram e fecharam a porta atrás deles . Saíram para o quintal , e
John Grady voltou-se e olhou para trás , para a choupana. A noite
estava agreste . Escura, nublada, fria. Desceram até à carrinha .
Eles esperam por ti pra jantar?
Sim, respondeu Héctor. Claro .
Podes comer lá em casa, se quiseres .
Deixa estar.
Subiram para a carrinha e fecharam as portas com um puxão . John
Grady ligou o motor.
Ela sabe montar a cavalo? perguntou Héctor.
Sim. Sabe montar a cavalo .
Cidades da Planície 21 1

Arrancaram pela estrada coberta de sulcos abaixo , as ferramentas


a escorregar e a estralejar atrás deles , na caixa do veículo . En qué
piensas ? perguntou John Grady.
Nada .
Continuaram aos solavancos , a carrinha em segunda velocidade ,
os faróis a baloiçar. Quando dobraram a primeira curva da estrada,
as luzes da cidade surgiram lá longe , na planície abaixo deles , a cin­
quenta quilómetros dali.
Arrefece muito aqui em cima , disse Héctor.
Pois.
Já passaste alguma noite aqui em cima?
Fiquei aqui algumas noites até depois da meia-noite .
Olhou para Héctor. Héctor tirou os apetrechos do bolso da camisa
e começou a enrolar um cigarro .
Tienes tus dudas .
Ele encolheu os ombros . Riscou um fósforo na unha do polegar e
acendeu o cigarro e soprou o fósforo , apagando-o . Hombre de pre­
caución , comentou .
Yo ?
Yo .
Duas corujas agachadas na poeira da estrada voltaram as faces
pálidas e em forma de coração à luz dos faróis da carrinha e pesta­
nejaram e elevaram-se , levadas pelas asas brancas , silenciosas como
duas almas a ascender, e desapareceram nas trevas lá no alto .
Buhos , disse John Grady.
Lechuzas .
Tecolotes .
Héctor sorriu . Puxou uma fumaça do cigarro . O rosto moreno
cintilou-lhe no vidro escuro . Quizás , volveu .
Pueda ser.
Pueda ser. Sí.

Quando entrou na cozinha, Oren ainda estava sentado à mesa. Ele


pendurou o chapéu e foi até ao lava-loiça e lavou as mãos e serviu-se
de café . Socorro saiu do seu quarto e enxotou-o para longe do fogão ,
e ele levou o café até à mesa e sentou-se . Oren ergueu os olhos do
jornal .
212 Cormac McCarthy

Que novidades há, Oren?


Queres as boas ou as más?
Não sei . Escolhe qualquer coisa a meio caminho .
Não têm aqui nada disso . Não seria notícia.
Pois, acho que não .
A filha do McGregor foi escolhida pra ser a Rainha do Festival do
Sol . Alguma vez a viste?
Não .
Um amor de garota. A tua casa já ' tá a ficar pronta?
' Tá tudo a correr bem .
Socorro pousou o prato diante dele , juntamente com um prato de
s cones coberto com um pano .
Ela não é uma moça da cidade , ou é?
Não .
Isso é bom .
Pois . Pois é .
O Parham disse-me que ela é bonita que nem u m cachorrinho sa­
rapintado .
Ele acha que eu sou maluco .
Bom. Talvez sejas um bocadinho maluco . Ele talvez ' teja com uns
certos ciúmes .
Observou o rapaz enquanto este comia. Bebia o café em pequenos
goles .
Quando me casei , todos os meus amigos me disseram que eu era
maluco . Disseram que me ia arrepender.
E arrependeste-te?
Não . Acabou por não correr bem . Mas não me arrependi . Não foi
por culpa dela.
O que é que aconteceu?
Não sei . Imensas coisas . Principalmente , não me dei bem com os
pais dela. A mãe era uma mulher horrível , uma bruxa do raio que a
parta. Pensei que já tinha visto mulheres horríveis , mas não tinha. Se
o velhote tivesse vivido , a gente talvez tivéssemos tido uma hipótese .
Mas ele era fraco do coração . Topei logo a desgraça antes de ela
acontecer. Cada vez que lhe perguntava pela saúde , não era só por
mera curiosidade . Ele acabou por morrer mesmo , e lá veio ela. De
armas e bagagens . E pronto , era uma vez um casamento .
Cidades da Planície 213

Pegou nos cigarros , que estavam e m cima da mesa, e acendeu um.


Soprou o fumo com ar pensativo através da divisão . Observou o ra­
paz .
' Tivemos juntos três anos quase certos . Ela dava-me banho , acre­
dites ou não . Eu gostava imenso dela. Se fosse órfã, ainda 'taríamos
casados .
Lamento muito .
Um homem casa-se e não sabe o que pode acontecer. Pode achar
que sabe , mas não sabe .
Provavelmente , tens razão .
Se queres mesmo saber quais são os teus defeitos e o que é que
devias de fazer pra te emendares , só precisas de deixar os teus sogros
mudarem-se lá pra casa. Ficas logo instruído sobre o assunto duma
ponta à outra, isso te garanto .
Ela não tem família.
Isso é bom , volveu Oren . Isso foi a tua jogada mais inteligente até
agora.
Depois de Oren ter saído , ele ficou muito tempo sentado a beber
o café . Pela janela , lá longe , a sul , avistava as línguas viperinas , es­
guias e brancas , a lamber silenciosamente ao longo da orla do céu ,
nas trevas acima do México . O único som era o relógio a tiqueta­
quear no corredor.
Quando entrou no estábulo , a luz de Billy ainda estava acesa. Ele
dirigiu-se para a baia onde guardava o cachorro e pegou-lhe e
aninhou-o , a contorcer-se e a latir, na curva do braço , e levou-o para
o seu cubículo . Parou à porta e olhou para trás .
Boa noite , disse em voz alta.
Empurrou a cortina para o lado e apalpou por cima de si no escu­
ro , à procura da corrente para acender o candeeiro .
Boa noite , bradou Billy.
Ele sorriu . Soltou a corrente e sentou-se no catre , no escuro , a
afagar o ventre do cachorro . Sentia o cheiro dos cavalos . O vento
esbravejava cada vez mais , e uma chapa solta do telhado retinia no
extremo do estábulo , e o vento passava e tornava a passar. Estava
frio no quarto , e ele pensou em acender o pequeno aquecedor de
querosene , mas ao fim de um certo tempo limitou-se a descalçar as
botas e a tirar as calças e pôs o cachorro dentro do caixote e gatinhou
214 Cormac McCarthy

para baixo dos cobertores . O vento lá fora e o frio no quarto eram


como naquelas noites de inverno , nas planícies do Norte do Texas ,
quando ele era garoto e estava em casa do avô . Quando as tempesta­
des desciam do norte e as extensões de pradaria em volta da casa
alvejavam à luz dos relâmpagos repentinos e a casa estremecia no
ribombar dos trovões . Em noites assim e em manhãs assim , no ano
em que lhe deram o seu primeiro poldro , ele embrulhava-se no co­
bertor e saía de casa e ia até ao estábulo , inclinado para vencer a
força do vento , as primeiras gotas de chuva a fustigarem-no , duras
como seixos , percorria a longa coxia central como um refugiado
envolto numa mortalha , por entre as ripas súbitas de luz que emer­
giam em sta ccato das paredes de tábuas afastadas , movendo-se atra­
vés daqueles proscénios serrilhados e elétricos nos pontos em que
eles refulgiam , brancos e fugitivos , através do estábulo , fiada após
fiada, até chegar à baía onde o cavalinho estava de pé , à espera, e
então soltava o trinco da porta e sentava-se na palha, de braços em
volta do pescoço do animal , até ele parar de tremer. Ficava ali a noi­
te inteira e ainda ali estava na manhã seguinte , quando Arturo entra­
va no estábulo para alimentar os cavalos . Arturo acompanhava-o de
regresso à casa antes que mais alguém acordasse , a sacudir-lhe a
palha do cobertor enquanto caminhava a seu lado , sem dizer uma
palavra . Como se ele fosse um pequeno lorde . Como se a guerra e a
engrenagem da guerra nunca o fossem deserdar. Todos os seus so­
nhos de infância eram iguais. Uma criatura qualquer estava assusta­
da e ele tinha ido confortá-la . Ainda tinha sonhos assim . E isto: pa­
rado no seu quarto , de fato negro , a dar o nó da nova gravata negra
que usara para o funeral do avô , naquele dia frio e ventoso . E parado
naquele cubículo , na cavalariça de Mac McGovem , noutro dia as­
sim , na alvorada fria, antes do começo do trabalho , vestido com um
outro fato parecido , as duas metades da caixa em que o fato viera
caídas em cima do catre , o papel de seda a derramar-se para fora e o
cordel cortado caído ao lado , em cima do catre , juntamente com o
canivete que ele usara para o cortar e que pertencera ao seu pai , e
Billy na soleira da porta, a observá-lo . Ele abotoou o casaco e
endireitou-se . De mãos cruzadas nos punhos , diante de si . O rosto
pálido na superfície do pequeno espelho que ele apoiara numa das
traves de cinco por dez que escoravam o tosco tabique de barrotes do
Cidades da Planície 215

quarto . Pálido à luz do inverno que se derramava sobre a região .


Billy debruçou-se e escarrou no palhiço e virou-se e caminhou pela
coxia central do estábulo e cruzou o terreiro em direção à casa para
tomar o pequeno-almoço .

A última vez que a viu foi no mesmo quarto de esquina, no primei­


ro andar do Dos Mundos . Postado à janela, viu-a pagar ao motorista
e foi até à porta, para a poder ver a subir a escada. Segurou-lhe as
mãos enquanto ela se sentava, ofegante , na borda da cama.
Estás bien ? perguntou .
Sí, respondeu ela. Creo que sí.
Ele perguntou-lhe se continuava certa do que queria, se não tinha
mudado de ideias .
No , respondeu ela. Y tú?
Nunca .
Me quieres ?
Para siempre . Y tú?
Hasta el fin de mi vida .
Pues eso es todo .
Ela disse que tentara rezar por eles , mas que não era capaz .
Parqué no ?
No sé. Creí que Dios no me oiría .
El oirá. Reza e l domingo . Dile que es importante .
Fizeram amor e ficaram deitados, ela enroscada contra ele e sem se
mexer, somente a respirar muito baixinho contra o flanco dele . Ele
não sabia se ela estava acordada, mas contou-lhe coisas acerca da sua
vida que ainda não lhe contara. Contou-lhe que trabalhara para o ha­
cendado em Cuatro Ciénegas e falou-lhe da filha deste homem e da
última vez que a vira e do tempo que passara na prisão , em Saltillo , e
da cicatriz que tinha no rosto , a cicatriz cuja origem tinha prometido
explicar-lhe sem que o tivesse chegado a fazer. Contou-lhe daquela
vez em que vira a mãe em palco , no Majestic Theatre , em San Anto­
nio , no Texas , e falou-lhe do tempo em que ele e o pai costumavam
cavalgar pelos montes a norte de San Angelo e falou-lhe do avô e do
rancho e do trilho dos comanches , que atravessava a faixa ocidental
do rancho , e do modo como ele percorria esse trilho ao luar, no outo­
no de cada ano , quando era rapaz , e contou-lhe que os fantasmas dos
216 Cormac McCarthy

comanches passavam em volta dele , a caminho do outro mundo , uma


e outra vez , porque uma coisa, uma vez posta em movimento , não tem
fim neste mundo até a derradeira testemunha ter sucumbido .
As sombras alongaram-se no quarto antes de eles partirem . Ele
disse-lhe que o motorista Gutiérrez a iria buscar ao café em la Calle
de Noche Triste , para a levar até à outra margem . Teria com ele os
documentos necessários para ela cruzar a fronteira.
Todo está arreglado , explicou .
Ela apertou-lhe as mãos com mais força. Os seus olhos escuros
remiraram-no . Ele disse-lhe que nada tinha a temer. Disse-lhe que
Ramón era amigo deles e que os papéis estavam tratados e que ne­
nhum mal lhe iria acontecer.
Él te recogerá a las siete por la mafíana . Tienes que estar allí en
punto .
Estaré allí.
Quédate adentro hasta que él llegue .
Sí, sí.
No /e digas nada a nadie .
No . Nadie .
No puedes traer nada contigo .
Nada ?
Nada .
Tengo miedo , disse ela.
Ele abraçou-a. Não tenhas medo , disse-lhe .
Ficaram sentados , mudos e quedos . Lá em baixo , na rua, os ven­
dedores ambulantes tinham começado os seus pregões . Ela encostou
o rosto com força ao ombro dele .
Hablan los sacerdotes espano/? perguntou .
Sí. Ellos hablan espaiíol.
Quiero saber, continuou ela, si crees hay perdón de pecados .
Ele abriu a boca para falar, mas ela pôs-lhe a mão sobre os lábios .
Lo que crees en tu corazón , disse .
Ele olhou por cima do ombro dela, além do cabelo escuro e cinti­
lante , para fitar o lusco-fusco cada vez mais sombrio nas ruas da
cidade . Pensou nas coisas em que acreditava e em que não acredita­
va. Ao fim de um certo tempo , disse que acreditava em Deus, ainda
que tivesse as suas dúvidas quanto às pretensões dos homens em
Cidades da Planície 217

conhecer o que vai n a mente de Deus. Mas que u m Deus incapaz de


perdoar não merecia o nome de Deus .
Cualquier pecado ?
Cualquier. Sí.
Sin excepción de nada ? Ela colou-lhe a mão com força contra os
lábios uma segunda vez . Ele beijou-lhe os dedos e afastou-lhe a mão .
Con la excepción de desesperación , respondeu . Para eso no hay
remedia .
Por fim , ela perguntou se ele a iria amar até ao fim da vida e fez
menção de lhe tapar a boca com os dedos , mas ele segurou-lhe a
mão . No tengo que pensar/o , disse . Sí. Para todo mi vida .
Ela tomou-lhe o rosto nas mãos e beijou-o . Te amo , disse . Y seré
tu esposa .
Levantou-se e virou-se para ele e pegou-lhe nas mãos . Debo irme ,
prosseguiu . Ele pôs-se de pé e envolveu-a num abraço e beijou-a ali ,
no quarto cada vez mais sombrio . Queria acompanhá-la pelo corredor
fora, até ao alto da escada, mas ela deteve-o à porta e beijou-o e disse­
-lhe adeus . Ele ficou a ouvir os passos dela nos degraus . Foi à janela
para poder vê-la, mas ela deve ter seguido pelo passeio , abaixo dele ,
porque ele não a conseguiu avistar. Sentou-se na cama, no quarto
vazio , e ficou à escuta dos sons de todo aquele comércio ignoto no
mundo lá fora. Ficou muito tempo sentado e meditou acerca da sua
vida e teve a certeza de que , em grande medida, lhe teria sido impos­
sível prevê-la, e perguntou a si mesmo , não obstante toda a sua força
de vontade e toda a sua determinação , qual a parcela dessa vida que
fora obra sua. O quarto estava escuro e o letreiro de néon do hotel
acendera-se lá fora e, ao fim de um certo tempo , ele levantou-se e
pegou no chapéu , que estava na cadeira, junto à cama, e pô-lo na
cabeça e saiu e desceu a escada.

No cruzamento , o táxi parou . Um homem baixo com uma braça­


deira de crepe negro avançou para o meio da rua e ergueu a mão , e
o taxista tirou o chapéu e pô-lo em cima do tablier. A rapariga
debruçou-se para ver. Ouvia cornetas abafadas na rua , o clope-clope
de cascos .
Os músicos que surgiram eram velhos de fatos negros e poeiren­
tos . Atrás deles vinham os homens a carregar o defunto , trazendo aos
218 Cormac McCarthy

ombros uma prancha de madeira juncada de flores . Engrinaldado


entre estas flores, o rosto pálido de um jovem que morrera havia
pouco . Tinha as mãos pousadas às ilhargas e sacolej ava, muito hirto ,
sobre a tábua onde estivera exposto , agora apoiada nos ombros dos
que o transportavam, e as notas desgarradas das cometas ciganas
repletas de amolgadelas reverberavam nas vidraças das montras
diante das quais eles passavam e nas velhas fachadas de lama ou de
estuque , e um aglomerado de mulheres de rebozos negros passou a
chorar e também crianças e homens de negro ou com braçadeiras
negras e entre eles , conduzido pela rapariga, o maestro cego a avan­
çar com os seus pequenos passos arrastados e a sua expressão de
assombro angustiado . Atrás deles vinham dois cavalos desempare­
lhados a puxar uma carreta de madeira já gasta pelas intempéries , em
cuj a caixa , que ninguém varrera e onde ainda havia restos de palha e
de joio , se via um caixão feito de madeira, de tábuas aplainadas à
mão , presas com cavilhas também de madeira e sem pregos , qual
caixão sefardita de antanho , e a madeira fora chamuscada para a
enegrecer e depois besuntada com cera de abelhas e petróleo de ilu­
minação para não perder a cor negra, de tal modo que , à parte o vago
granulado da madeira, parecia um objeto feito de ferro brunido .
Atrás da carreta vinha um homem a transportar a tampa do caixão , e
trazia-a às costas como um penitente da morte , e as roupas e ele
próprio estavam enegrecidos por causa da tampa, com cera ou sem
ela. O taxista benzeu-se silenciosamente . A rapariga benzeu-se e
beijou as pontas dos dedos . A carreta passou a estralejar, e as rodas
de raios recortaram vagarosamente num rolar de dados o lado oposto
da rua e os mirones de ar solene ali parados , um leque de cartas de
rostos sortidos sob as fachadas das lojas , e os longos novelos de luz
na rua fragmentaram-se no girar dos raios , e as sombras dos cavalos
marchavam , eretas e oblíquas , à frente das sombras oblongas das
rodas desenhadas sobre o empedrado , a girar, a girar.
Ela ergueu as mãos e comprimiu o rosto contra o espaldar bafien­
to do banco do táxi . Recostou-se , uma mão a cobrir-lhe os olhos , o
rosto pendido para cima do ombro . De repente , sentou-se muito di­
reita, com os braços às ilhargas , e soltou um berro , e o motorista
torceu-se todo no banco e voltou-se a custo para trás . Seiíorita ? in­
dagou . Sefíorita ?
Cidades da Planície 219

O teto da sala era de betão e exibia a marca das tábuas usadas para
o moldar, os nós e as cabeças dos pregos desenhados no betão e o arco
fóssil da lâmina circular da serra de uma qualquer serração no alto da
montanha. Via-se uma única lâmpada enfarruscada que brilhava ali
com uma luz cor de laranja relutante e uma moleirinha que a patrulha­
va em órbitas aleatórias no sentido dos ponteiros do relógio .
Jazia presa com correias a uma mesa de aço . Sentia o aço frio
contra as costas através da camisa de dormir curta e branca que trazia
vestida. Olhou para a luz . Virou a cabeça e olhou para a divisão . Ao
fim de um certo tempo , uma enfermeira entrou pela porta de metal
cinzento , e ela virou para a recém-chegada o rosto maculado e sujo.
Por favor, sussurrou . Por favor.
A enfermeira soltou-lhe as correias e alisou-lhe o cabelo , afastando­
-lho da face , e disse que voltava dali a pouco com qualquer coisa
para ela beber, mas , quando a porta se fechou , ela soergueu-se sobre
a mesa e desceu para o chão . Procurou algum lugar onde pudessem
ter posto as roupas dela, mas , excetuando uma segunda mesa de aço
contra a parede do fundo , a sala estava vazia. A porta, quando a abriu ,
dava para um longo corredor verde , tenuemente iluminado , que se
prolongava até uma segunda porta fechada, no outro extremo . Ela
percorreu o corredor e experimentou a porta. Esta abriu-se para um
lanço de degraus de cimento , um corrimão de tubo metálico . Ela des­
ceu três lanços de degraus e saiu para a rua mergulhada no escuro .
Não sabia onde estava. À esquina, pediu a um homem que lhe
indicasse o caminho para el centro , e ele remirou-lhe os seios e con­
tinuou a fazê-lo enquanto falava. Ela começou a caminhar pelo pas­
seio coberto de fissuras . Observava o pavimento , não fosse haver
cacos de vidro ou pedras . As luzes dos carros que passavam desenha­
vam-lhe a silhueta esguia nas paredes , numa enorme transparência
sombria, a camisa de dormir dissipada pelo fogo e os ossos quase à
vista, e depois , ao deixarem-na para trás , projetavam-na a rodopiar
às arrecuas , fazendo-a desaparecer novamente nas trevas . Um ho­
mem parou a par dela num automóvel e rolou à sua ilharga e dirigiu­
-lhe obscenidades em surdina. Parou mais adiante e esperou . Ela
meteu por uma viela de terra batida entre dois edifícios e agachou-se ,
220 Cormac McCarthy

percorrida por calafrios , atrás de uns bidões de gasolina feitos de


aço , cobertos de amolgadelas . Esperou muito tempo . Estava muito
frio . Quando tomou a sair da viela, o carro desaparecera e ela reto­
mou a caminhada. Passou por um terreno baldio onde um cão arre­
meteu silenciosamente contra ela ao longo de uma vedação e depois
estacou no recanto da rede , amortalhado no próprio hálito , em silên­
cio , a vê-la afastar-se . Passou por uma casa mergulhada na treva com
um quintal onde um velho também de roupas de dormir estava a
urinar contra uma parede de lama seca, e aquelas duas pessoas lan­
çaram uma à outra um aceno silencioso de cabeça através do espaço
sombrio , quais figuras que se encontram num sonho . O passeio ter­
minou , e ela continuou a caminhar na areia fria, junto à berma da
estrada , e parava de tempos a tempos para , vacilante , arrancar os
pequenos carrapiços de cabeça-de-cabra das plantas dos pés ensan­
guentados . Manteve diante de si o halo de luz da cidade e caminhou
durante muito tempo . Quando atravessou o Boulevard 16 de Sep­
tiembre , manteve os braços apertados com força em volta do peito e
os olhos baixos sob o clarão dos faróis dos veículos e , seminua,
cruzou a avenida num estrondear de buzinas de automóveis como
um fantasma andrajoso , expulso das trevas costumeiras e fugazmen­
te acossado através do mundo visível para logo tomar a eclipsar-se
no seio da história dos sonhos dos homens .
Embrenhou-se nos barrios a norte da cidade , ao longo dos velhos
muros de lama seca e dos flancos de zinco dos armazéns , onde as
ruas de areia eram iluminadas somente pelas estrelas . Alguém estava
a cantar na estrada uma canção que ela recordava da sua própria in­
fância, e em breve passou por uma mulher que caminhava em dire­
ção à cidade . Trocaram boas-noites e prosseguiram , mas a mulher
parou e voltou-se e chamou-a em voz alta .
Adónde va ? perguntou .
A mi casa .
A mulher permaneceu em silêncio . A rapariga perguntou-lhe se a
conhecia, mas a mulher disse que não . Perguntou à rapariga se era
aquele o barrio dela, e a rapariga disse que era, e a mulher perguntou
em seguida como é que se explicava ela não a conhecer. Quando ela
nada disse , a mulher voltou para trás pela estrada em passo vagaroso ,
ao encontro dela.
Cidades da Planície 221

Qué pasó? perguntou .


Nada .
Nada , repetiu a mulher. Caminhou num semicírculo em volta dela,
ali parada, a tremer, de braços cruzados por cima dos seios . Como se
pretendesse encontrar uma incidência favorável na claridade azul das
estrelas do deserto à luz da qual a verdadeira identidade da rapariga
fosse desvendada.
Eres dei White Lake , disse .
A rapariga fez que sim com a cabeça.
Y regresas ?
Sí.
Por qué?
No sé.
No sabes .
No .
Quieres ir conmigo ?
No puedo .
Porqué no ?
Ela não sabia. A mulher tomou a perguntar-lhe . Disse-lhe que
podia ir com ela e viver na casa dela, onde morava com os filhos .
A rapariga sussurrou que não a conhecia.
Te gusta tu vida por aliá? indagou a mulher.
No .
Ven conmigo .
Ela permaneceu parada, percorrida por calafrios . Abanou a cabeça
em sinal negativo . O Sol não tardaria a nascer. No escuro acima de­
las , uma estrela caiu , e, no vento frio antes da alvorada , papéis galo­
pavam e ficavam presos e roçagavam fugazmente nos espinhos da
vegetação da berma e tomavam a lançar-se a galope . A mulher olhou
para o céu do deserto , a leste . Olhou para a rapariga . Perguntou à
rapariga se tinha frio , e ela disse que tinha . Tomou a perguntar-lhe:
Quieres ir conmigo ?
Ela disse que não podia. Disse que dali a três dias o rapaz que
amava se ia casar com ela . Agradeceu-lhe pelo seu bom coração .
A mulher levantou o rosto da rapariga, pegando-lhe com a mão , e
olhou para ela. A rapariga esperou que ela falasse , mas a mulher
limitou-se a fitar-lhe o rosto , como que para recordar-se dela mais
222 Cormac McCarthy

tarde . Talvez para ler em segunda mão o traçado dos caminhos que
a tinham conduzido àquele lugar. O que estava perdido ou o que
estava em ruínas . Quem a morte despojara de tudo . Ou o que restava.
Cómo s e llama ? perguntou a rapariga, mas a mulher não respon­
deu . Tocou no rosto da rapariga e afastou a mão e voltou-se e seguiu
caminho ao longo do escuro da estrada para fora do barrio mergu­
lhado nas trevas e não olhou para trás .
O carro de Eduardo não estava no seu lugar habitual . Ela esguei­
rou-se , trémula, ao longo da viela, junto da parede do armazém, e
tentou abrir a porta, mas estava trancada. Bateu com o punho fecha­
do e esperou e tornou a bater. Esperou muito tempo. Ao fim de um
bocado , tornou a afastar-se para o meio da rua. O hálito dela forma­
va penachos à luz , junto da parede de chapa ondulada. Olhou nova­
mente para trás , para o fundo da viela , e depois contornou o edifício
até à fachada e cruzou o portão e subiu o caminho de acesso .
A porteira de rosto maquilhado não pareceu nada surpresa ao vê-la
ali parada , a abraçar o próprio tronco , de camisa de dormir com pa­
lavras estampadas a escantilhão . Deu um passo atrás e segurou a
porta, e a rapariga entrou e agradeceu-lhe e encaminhou-se para o
salão . Dois homens parados ao balcão viraram-se para a ver. Uma
criança pálida e suja, a deambular pelas ruas ao deus-dará, que ali
tivesse entrado por infortúnio , vinda do frio exterior, para cruzar a
divisão de olhos baixos e braços cruzados sobre os seios . Deixando
pegadas de sangue no tapete , como se um penitente por ali tivesse
passado .

Ele parecia ter-se vestido com esmero para a ocasião , embora


pudesse dar-se o caso de ter assuntos a tratar noutro ponto da cidade .
Arregaçou suavemente a manga da camisa com o seu botão de punho
de ouro para ver as horas no relógio . Vestia um fato leve de seda
xantungue cinzenta e trazia uma gravata de seda da mesma cor. A
camisa era de uma tonalidade pálida de amarelo-limão , e usava um
lenço amarelo de seda no bolso do peito do casaco , e as botas pretas
de cano curto , com os fechos de correr na face interna, estavam bem
engraxadas , porque ele deixava os sapatos diante da sua porta , vários
pares de cada vez , como se o corredor da casa de passe fosse a coxia
de uma carruagem-cama.
Cidades da Planície 223

Ela tinha no corpo o robe cor de açafrão que ele lhe oferecera.
Sentada na cama antiga, onde os pés não lhe chegavam bem ao soa­
lho . Tinha a cabeça pendida, de modo que o cabelo lhe tombava em
cascata sobre as coxas , e tinha as mãos pousadas na cama, às ilhar­
gas , como se tivesse medo de cair, talvez .
Ele proferiu em tom ponderado as palavras de um homem ponde­
rado . Quanto mais ponderadamente falava, mais frio era o vento que
soprava no vazio do coração dela. A cada ponto culminante na histó­
ria dela , ele fazia uma pausa para lhe dar espaço para falar, mas ela
não falava , e o seu silêncio conduzia apenas , inexoravelmente , à ar­
remetida seguinte , até que a estrutura composta somente pela palavra
falada e que deveria ter-se dissipado no preciso momento em que ele
a articulava, sem deixar qualquer vestígio ou resíduo ou sombra no
mundo vivo , essa estrutura incorpórea assomou no quarto , converti­
da num ente pleno de relevância, e dentro do seu corpo espectral
estava contida a vida dela.
Quando ele acabou de falar, ficou de pé , a olhá-la. Perguntou-lhe
o que tinha a dizer. Ela abanou a cabeça.
Nada ? indagou ele .
No , replicou ela. Nada .
Qué crees que eres ?
Nada .
Nada . Sí. Pero piensas que has traído una dispensa especial a
esta casa ? Que Dios te ha escogido ?
Nunca creí tal cosa .
Ele virou-se e ficou a olhar pela janelinha gradeada. Contemplava
os limites da cidade , onde as estradas morriam no deserto em ravinas
arenosas e em lixeiras , contemplava a cintura branca ao meio-dia
onde o fumo dos montes de lixo em chamas ardia ao longo do hori­
zonte como a assinatura de hordas de vândalos saídas das extensões
bravias e insondáveis mais além . Falou sem se virar. Disse que a ti­
nham estragado com mimos naquela casa . Por causa da sua juventu­
de . Disse que a doença dela era apenas isso , uma doença, e que ela
era uma palerma ao acreditar nas superstições das mulheres da casa.
Disse que ela era duas vezes palerma ao confiar nelas , porque elas
seriam capazes de lhe comer a carne , se achassem que isso as iria
proteger da doença ou que lhes poderia garantir o afeto do amante
224 Cormac McCarthy

com quem sonhavam ou que lhes iria purificar a alma aos olhos do
deus sanguinário e bárbaro a quem dirigiam as suas preces . Repetiu
que a doença dela era apenas isso , uma doença, e que a própria doen­
ça haveria de provar que o era quando finalmente a matasse , tal co­
mo iria fazer em breve .
Virou-se para a remirar. A curva dos seus ombros e o seu movi­
mento com o sobe e desce da respiração . O pulsar do sangue na ar­
téria do pescoço dela. Quando ela ergueu os olhos e viu o rosto dele ,
soube que ele lhe tinha devassado os sentimentos mais profundos . O
que era verdade e o que era falso. Ele fez o seu sorriso de lábios
duros . O teu amante não sabe , declarou . Não lhe disseste .
Mande ?
Tu amado no lo sabe .
No , murmurou ela. Él no lo sabe .

Ele dispôs as peças sem grandes cuidados no tabuleiro e rodou-o


em tomo do seu eixo . Jogo mais uma partida contra si , disse .
Mac abanou a cabeça . Segurou o charuto e soprou o fumo vagaro­
samente por cima da mesa e depois pegou na chávena e escorropi­
chou o resto do café .
Pra mim , chega, declarou .
Sim, senhor. Jogou muito bem , Mr Mac .
Nunca pensei que sacrificasses um bispo .
Era um dos gambitos de Schõnberger.
Leste muitos manuais de xadrez?
Não , senhor. Não li muitos . Li o dele .
Disseste-me que jogavas póquer.
Um bocadinho . É verdade .
Porque é que eu fico com a sensação de que não foi bem só um
bocadinho .
Nunca joguei lá muito póquer. O meu pai é que era jogador de
póquer. Ele sempre disse que o problema do póquer era uma pessoa
jogar com dois géneros de dinheiro . O que ganhávamos sabia que
nem ginjas , mas o que perdíamos saía-nos do pelo .
E ele era um bom jogador de póquer?
Era, sim, senhor. Era um dos melhores , acho eu . Mas avisou-me pra
eu não me apegar ao jogo. Dizia-me que não era vida que valesse a pena.
Cidades da Planície 225

Atão porque é que ele se tomou jogador, se achava isso?


Ele só era bom nisso e noutra coisa.
E qual era a outra coisa?
Era ser cowboy .
Calculo que ele fosse muito bom nisso .
Sim, senhor. Ouvi dizer que havia alguns que se dizia serem me­
lhores do que ele , e ' tou certo de que havia alguns melhores . Eu é
que nunca vi nenhum, só isso .
Ele ' teve na marcha da morte , não ' teve?
'Teve , sim.
Imensos rapazes desta região ' tiveram nessa marcha. Muitos deles
mexicanos .
Sim, senhor. É verdade .
Mac puxou uma fumaça do charuto e soprou o fumo na direção da
janela. O Billy já fez as pazes contigo ou ainda andam os dois de
candeias às avessas?
Ele é um tipo às direitas .
Ele ainda vai ser o teu padrinho?
Vai , sim.
Mac assentiu com a cabeça. Ela não tem ninguém de família que
vá assistir?
Não , senhor. A Socorro vai levar a família.
Ainda bem. Já não visto o meu fato vai pra três anos . O melhor é
experimentá-lo antes, a ver se ainda me serve , acho eu .
John Grady guardou as últimas peças na caixa e enfiou a tampa de
madeira nos entalhes e fê-la deslizar, fechando-a.
A Socorro é capaz de ter de me alargar um bocado as calças .
Ficaram sentados . Mac fumava. Não és católico , ou és? perguntou .
Não , senhor.
Não vou ter de me recusar a nada nem dar justificações , pois não?
Não , senhor.
Quer então dizer que terça-feira é o grande dia.
Sim, senhor. Dezassete de fevereiro . É o último dia antes da Qua­
resma. Ou o penúltimo , acho eu . Depois disso , ninguém se pode
casar até à Páscoa.
Isso não é fazer as coisas um bocado à justa?
Vai correr tudo bem .
226 Cormac McCarthy

Mac fez que sim com a cabeça . Entalou o charuto entre os dentes
e empurrou a cadeira para trás . Espera aqui um minutinho , orde­
nou .
John Grady ouviu-o percorrer o corredor até ao quarto . Quando
ele regressou , sentou-se e pousou na mesa uma aliança de ouro .
Isto ' tá na gaveta da minha cómoda vai pra três anos . Não serve a
ninguém ali guardada, nem nunca vai servir. Eu e ela falámos sobre
todas as coisas , e falámos sobre esta aliança. Ela não quis que a en­
terrassem com a aliança no dedo . Quero que fiques com ela.
Acho que não posso aceitar, Mr Mac .
Podes , sim . Já pensei em tudo o que tu poderias objetar acerca do
assunto , por isso , em vez de discutirmos a coisa ponto por ponto ,
vamos poupar-nos a esse incómodo e tu guardas este anel no bolso
e, na próxima terça-feira, enfia-lo no dedo da tal moça. Talvez tenhas
de o mandar ajustar. A mulher que usava esta aliança era lindíssima.
Podes perguntar a quem quiseres , não era só a minha opinião . Mas o
que as pessoas viam não chegava aos calcanhares do que ela era por
dentro . Gostávamos de ter tido filhos , mas não tivemos . Não foi por
falta de tentarmos , caramba. Ela era uma mulher com bom senso pra
dar e vender. Julguei que ela só queria que eu guardasse esta aliança
como recordação , mas ela disse-me que eu havia de saber o que fazer
com ela, quando o momento certo chegasse , e é claro que tinha ra­
zão . Tinha razão acerca de todas as coisas . E não é pra me gabar que
te digo que ela dava mais valor a essa aliança e ao que ela significa­
va do que a qualquer outra coisa a que alguma vez chamou sua . E
isso incluía alguns cavalos de primeiríssima categoria. Por isso , pega
nesta aliança e guarda-a no bolso e não te ponhas a discutir comigo
por causa de tudo e mais alguma coisa.
Sim, senhor.
E agora, vou-me deitar.
Sim, senhor.
Boa noite .
Boa noite .

Do desfiladeiro nos picos mais altos dos montes Jarillas , eles avis­
tavam o verde da meseta abaixo das nascentes e avistavam a fina
agulha imóvel de fumo que brotava do lume no fogão , a assomar
Cidades da Planície 227

verticalmente no ar matinal , azul e parado . Pararam os cavalos . B illy


indicou o panorama com um aceno de cabeça .
Quando eu era miúdo , a crescer lá em baixo , no Tacão da Bota, eu
e o meu irmão costumávamos parar quando chegávamos ao alto du­
ma meseta, a sul do rancho , a caminho das montanhas , e olhávamos
pra trás , prà casa lá em baixo . À s vezes 'tava a nevar, ou atão havia
neve no chão , de inverno , e havia sempre lume no fogão e via-se o
fumo da chaminé e era lá muito ao longe e parecia diferente , visto lá
de cima. Parecia sempre diferente . Era diferente . À s vezes, passáva­
mos o dia inteiro nas montanhas , a arrebanhar o gado espantadiço
pra fora dos barrancos e a trazê-lo pra baixo , pro comedouro , onde
púnhamos ração . Acho que não houve uma só vez que a gente não
tenha parado e olhado pra trás daquele jeito antes de rompermos por
aquelas penedias acima. No lugar onde parávamos não 'távamos
sequer a uma hora de casa, e o café ainda 'tava quente no fogão , lá
em baixo , mas era como se fosse no cabo do mundo . No cabo do
mundo .
Ao longe , avistavam a fina linha reta da estrada principal , e uma
camioneta do tamanho de um brinquedo a percorrê-la silenciosamen­
te . Mais além, a linha verde das margens escarpadas do rio e, cordi­
lheira após cordilheira, as montanhas distantes do México . B illy ob­
servava-o .
Achas que alguma vez vais voltar ali?
Onde?
Ao México .
Não sei . Gostava de lá voltar. E tu?
Não me parece . Acho que já tive a minha conta.
Eu vim de lá em fuga. A cavalgar de noite . Cheio de medo de fazer
uma fogueira .
Tinhas levado um tiro .
Tinha levado um tiro . Aquelas pessoas acolhiam-me . Davam-me
guarida . Mentiam pra me proteger. Nunca ninguém me perguntou o
que é que eu tinha feito .
B illy estava sentado na sela, de mãos cruzadas com as palmas
para baixo sobre o arção dianteiro . Debruçou-se e escarrou . Fui até
lá abaixo em três viagens separadas . Em nenhuma delas trouxe de lá
aquilo de que fui à cata .
228 Cormac McCarthy

John Grady fez que sim com a cabeça. O que é que fazias , se não
pudesses ser cowboy?
Não sei . Acho que havia de pensar em qualquer coisa. E tu?
Não sei que coisa seria essa em que eu havia de pensar.
Bom, somos capazes de ter de pensar todos em qualquer coisa.
Pois.
Achas que conseguias viver no México?
Sim. Provavelmente .
Billy assentiu com a cabeça. Sabes quanto é que um vaquero ga­
nha em jeito de salário .
Sei , pois.
Podias ter a sorte de arranjar trabalho como capataz , ou coisa do
género . Mas , mais cedo ou mais tarde , eles vão correr com os bran­
cos todos daquele país . Nem mesmo a B abícora vai sobreviver.
Eu sei .
Inscrevias-te na escola de veterinária, se tivesses dinheiro , calcu-
lo . Não é verdade?
Olarila. Inscrevia-me , sim .
Escreves à tua mãe?
Mas o que é que a minha mãe vem fazer à conversa?
Nada. Só fico na dúvida se tu fazes alguma ideia do fora da lei
que és .
Porquê?
Porque é que eu fico na dúvida?
Porque é que eu sou um fora da lei .
Não sei . Tens um coração de fora da lei , só isso . Já vi o mesmo
noutras pessoas .
Por eu ter dito que conseguia viver no México?
Não é só isso .
Não achas que , se ainda sobra alguma coisa desta nossa vida, é ali
em baixo?
Se calhar.
Tu também gostas desta vida.
Ai gosto? Eu nem sei o que esta vida é . E também não sei o que é
o México, isso te garanto , porra . Acho que é uma ideia na nossa ca­
beça. O México . Palmilhei muito terreno ali em baixo . Quando ou­
vimos cantar a primeira ranchera , compreendemos o país inteiro .
Cidades da Planície 229

Quando chega o dia em que já ouvimos uma centena delas , não sa­
bemos nada de nada. Nem nunca havemos de saber. Já há muito
tempo que dei por encerrado o que tinha a fazer ali em baixo .
Enganchou a perna por cima do cepilho da sela e pôs-se a enrolar
um cigarro . Tinham deixado cair as rédeas , e os cavalos vergavam os
pescoços e mordiscavam tristemente os tufos esparsos de erva que o
vento , soprando pela garganta rochosa, fazia tremer. Ele curvou-se
de costas para o vento e riscou um fósforo com a unha do polegar e
acendeu o cigarro e tomou a virar-se .
Não sou o único . Aquilo é outro mundo . Toda a gente que eu co­
nheço que alguma vez voltou lá abaixo ia em cata de qualquer coisa.
Ou achava que ia.
Pois.
Há uma diferença entre desistir e saber quando fomos derrotados .
John Grady fez u m sinal afirmativo .
Se calhar não acreditas nisto . Acreditas?
John Grady contemplou as montanhas distantes . Não , respondeu .
Acho que não .
Ficaram muito tempo ali parados . O vento soprava . Billy havia
muito que terminara o seu cigarro , e apagou a beata contra a sola da
bota. Tomou a estender a perna sobre o chifre da sela e fez deslizar
a bota para o estribo e debruçou-se e pegou nas rédeas . Os cavalos
deram alguns passos e pararam .
O meu pai disse-me uma vez que algumas das pessoas mais infe­
lizes que conheceu foram as que finalmente tinham conseguido al­
cançar o que sempre desejaram .
Bom, tomou John Grady. Eu cá ' tou disposto a arriscar. Uma coi­
sa é certa, já tentei da outra maneira , chiça.
Pois.
Não se consegue dar conselhos a ninguém, comparsa. Raios , é o
mesmo do que darmos conselhos a nós mesmos . E nem isso uma
pessoa consegue fazer. Cada qual tenta usar o melhor que pode a sua
sensatez , e pronto , é tudo .
Pois . Bom. O mundo não sabe nada acerca da tua sensatez .
Eu sei . É pior do que isso, até . O mundo ' tá-se nas tintas .

*
230 Cormac McCarthy

No domingo da Quinquagésima, na escuridão antes da alvorada,


ela acendeu uma vela e pousou o castiçal no chão , ao lado da cómo­
da, onde a luz não se veria por baixo da porta para o corredor. Lavou­
-se na bacia, usando sabão e um pano , e debruçou-se e deixou o ca­
belo negro tombar diante de si e passou-lhe o pano molhado a todo
o comprimento uma meia centena de vezes e depois escovou-o ou­
tras tantas . Verteu algumas gotas frugais de perfume na palma da
mão e comprimiu as palmas das mãos uma contra a outra e perfumou
o cabelo e a nuca. Em seguida, apanhou o cabelo e torceu-o numa
corda e enrolou-o e prendeu-o com ganchos .
Vestiu-se com cuidado , envergando um dos três vestidos de sair à
rua que possuía, e ficou a remirar-se no espelho tenuemente ilumina­
do . O vestido era azul-marinho , com tiras brancas na gola e nas
mangas , e ela virou-se diante do espelho e erguéu as mãos acima do
ombro e apertou os botões do alto e tornou a virar-se . Sentou-se no
cadeirão e calçou os sapatos pretos de salto alto e pôs-se de pé e
acercou-se da cómoda e pegou na malinha e guardou lá dentro os
poucos artigos de higiene que ali cabiam . No coja nada , sussurrou .
Dobrou dentro da malinha a roupa interior lavada e enfiou lá a esco­
va e os pentes e premiu o fecho para o fechar. No coja nada . Pegou
na c.amisola que estava no espaldar da cadeira e pô-la aos ombros e
virou-se para olhar o quarto que nunca mais tornaria a ver. O santo
de madeira toscamente trabalhada estava no mesmo lugar de sempre .
A segurar o bordão colado , tão torto . Ela tirou uma toalha do supor­
te junto ao lavatório e embrulhou o santo na toalha e depois sentou­
-se na cadeira com o santo no regaço e a malinha a pender-lhe do
ombro e esperou .
Esperou muito tempo . Não tinha relógio de pulso . Mantinha-se
atenta ao dobrar dos sinos na cidade distante , mas às vezes , quando
o vento soprava do deserto , não se conseguia ouvi-los . Ao fim de um
bom bocado , ouviu um galo a cantar. Finalmente , ouviu os passos da
criada a chinelar ao longo do corredor e levantou-se no momento em
que a porta se abriu , e a velha espreitou para dentro do quarto , pro­
curando-a com os olhos , e voltou-se e tornou a olhar por cima do
ombro , para o fundo do corredor, e depois entrou , a mão aberta em
leque à sua frente e um dedo comprimido contra os lábios , e fechou
a porta silenciosamente atrás de si .
Cidades da Planície 23 1

Lista ? sibilou .
Sí. Lista .
Bueno . Vámonos .
A velha executou um sacolejar com o ombro e um empinar meio
lampeiro da cabeça. Uma madrasta coberta de pó de arroz saída de
um livro de histórias infantis . Uma rude conspiradora a gesticular
sobre o tablado . A rapariga agarrou a malinha e pôs-se de pé e meteu
o santo debaixo do braço , e a velha abriu a porta e espreitou para
fora e depois fez-lhe sinal com a mão para que se apressasse no mo­
mento em que saíram para o corredor.
Os sapatos dela faziam clique-clique nos ladrilhos . A velha olhou
para o chão, e a rapariga curvou-se ligeiramente e ergueu os pés ,
primeiro um, depois o outro , e tirou os sapatos e entalou-os debaixo
do braço , juntamente com o santo .
A mulher fechou a porta atrás delas e avançaram ambas pelo cor­
redor, a velha caduca a dar-lhe a mão como se ela fosse uma criança
e a remexer no avental para escolher as chaves suspensas da tira de
cabedal presa ao pedaço de pau de vassoura.
Ao chegar à porta da rua, ela parou e tomou a calçar os sapatos
enquanto a velha abafava o pesado trinco com o rebozo e o fazia
rodar com a chave . E então a porta abriu-se para o frio e as trevas .
Ficaram as duas frente a frente . Rápido, rápido , sussurrou a velha,
e a rapariga enfiou-lhe nas mãos o dinheiro que lhe prometera e de­
pois lançou-lhe os braços ao pescoço e beijou-lhe a bochecha seca e
coriácea e virou-se e transpôs o limiar da porta. Já no degrau , voltou­
-se para receber a bênção da velha, mas a criada estava demasiado
aflita para reagir e , antes que ela se pudesse afastar da luz da porta,
a velha estendeu a mão e agarrou-lhe o braço .
No te vayas , sibilou . No te vayas .
Com um repelão , a rapariga libertou o braço dos dedos fincados
da mulher. A manga do vestido rasgou-se-lhe ao longo da costura do
ombro . No , murmurou , recuando . No .
A velha estendeu uma mão . Chamou-a em voz rouquejante . No te
vayas , bradou . Me equivoqué.
A rapariga agarrou o santo e a malinha com força e afastou-se pela
viela fora. Antes de chegar ao extremo da ruazita, virou-se e olhou
para trás uma derradeira vez . La Tuerta ainda estava parada à porta, a
232 Cormac McCarthy

observá-la. A segurar junto ao peito o punhado de pesos . E então o


olho dela cintilou vagarosamente à luz , e a porta fechou-se e a chave
rodou e o trinco correu para sempre sobre aquele mundo .
Ela percorreu a viela até à estrada e tomou o caminho da povoa­
ção . Ouvia-se o ladrar de cães , e o ar estava cheio de fumo dos lumes
de carvão de lenha nos casebres baixos de lama seca das colonias .
Ela caminhou ao longo da estrada arenosa que cruzava o deserto . As
estrelas em torrente acima dela. As orlas inferiores do firmamento
serradas aos ziguezagues para dar lugar às formas negras das monta­
nhas , e as luzes das cidades a chamejar na planície como estrelas que
tivessem confluído para um lago . Ela cantava para si mesma, à me­
dida que caminhava, uma canção de há muito tempo . Faltavam duas
horas para o alvorecer. Para a cidade , uma .
Não passavam carros na estrada. De uma elevação , ela pôde avis­
tar para leste , através do deserto , a oito quilómetros de distância, as
luzes aleatórias das camionetas a moverem-se vagarosamente sobre
a estrada principal que subia de Chihuahua . O ar estava parado . Ela
via o próprio hálito no escuro . Contemplou as luzes de um carro que
cruzou da esquerda para a direita , algures diante dela, e ficou a ver
as luzes a afastarem-se . Algures , num qualquer lugar do mundo , es­
tava Eduardo .
Quando chegou ao cruzamento , examinou a lonjura em ambas as
direções, atenta a qualquer sinal de luzes de carros em aproximação
antes de atravessar. Preferiu as ruas estreitas ao percorrer os barrios ,
nas zonas limítrofes da cidade . Já havia janelas iluminadas com can­
deeiros de petróleo atrás das paredes de ocotillo ou de ramagens
entrelaçadas . Começou a deparar com trabalhadores esporádicos
com os seus almoços dentro de latas de banha que eles transporta­
vam pela asa, a assobiar em surdina enquanto se punham a caminho
ao frio do romper da manhã. Tinha os pés novamente a sangrar den­
tro dos sapatos e sentia o sangue húmido e a impressão de frio que
este causava.
O café albergava a única luz em toda a Calle de Noche Triste . Na
montra escura da sapataria adjacente , um gato , sentado no meio dos
sapatos, observava a rua deserta. Voltou a cabeça para a observar
quando ela passou . Ela empurrou a porta do café , com o seu vidro
embaciado , e entrou .
Cidades da Planície 233

Dois homens na mesa junto à vidraça ergueram o rosto quando ela


entrou e seguiram-na com os olhos à medida que ela avançava. Ela
foi até à parede do fundo e sentou-se junto de uma das mesinhas de
madeira e pousou a malinha e o embrulho na cadeira, a seu lado , e
retirou a ementa do suporte de arame cromado e pôs-se a percorrê-la
com os olhos . O empregado acercou-se . Ela pediu um cafecito , e ele
assentiu com a cabeça e regressou para junto do balcão . Estava calor
no café , e, ao fim de um certo tempo , ela despiu a camisola e pousou­
-a na cadeira. Os homens continuavam ainda a remirá-la. O empre­
gado trouxe o café e pousou-o diante dela, juntamente com a colher
e o guardanapo . Ela ficou espantada ao ouvi-lo perguntar de que
terra era .
Mande ? perguntou .
De dónde v iene ?
Ela disse-lhe que era de Chiapas , e ele ficou alguns momentos a
observá-la, como se quisesse perceber em que medida tais pessoas
poderiam diferir das que ele conhecia . Explicou que um dos homens
lhe pedira que perguntasse . Quando ela se virou e olhou para os ho­
mens , eles sorriram , mas eram sorrisos sem alegria. Ela olhou para o
empregado . Estoy esperando a un amigo , explicou .
Por supuesto , acudiu o empregado .
Ela ficou sentada a beber o café durante muito tempo . A rua lá
fora pintou-se de cinzento na alvorada de fevereiro . Os dois homens
junto à vidraça do café havia muito que tinham acabado de beber o
café e partido , e outros tinham chegado para lhes tomar o lugar. As
lojas permaneciam fechadas . Algumas camionetas passaram na rua,
e havia gente a entrar, emergindo do frio , e a empregada ia agora de
mesa em mesa.
Pouco depois das sete , um táxi azul encostou junto à porta, e o
motorista saiu e entrou no café e varreu as mesas com o olhar. Diri­
giu-se para os fundos da sala e olhou-a de alto .
Lista ? perguntou .
Dónde está Ramón ?
Ele ficou a palitar os dentes com ar pensativo . Disse que Ramón
não podia vir.
Ela olhou para a parte da frente do café . O táxi estava parado na
rua, com o motor ligado no ar frio .
234 Cormac McCarthy

Está bien , disse o motorista. Vámonos . Debemos damos prisa .


Ela perguntou-lhe se ele conhecia John Grady, e ele fez que sim
com a cabeça e agitou o palito . Sí, sí, declarou . Acrescentou que
conhecia toda a gente . Ela olhou de novo para o táxi a fumegar na
rua.
Ele recuara um passo para lhe permitir que se pusesse de pé . B ai­
xou os olhos para a cadeira onde ela pousara a malinha. O santo
embrulhado na toalha do bordel . Ela pousou a mão sobre estas coi­
sas . Que ele talvez quisesse transportar por delicadeza. Perguntou­
-lhe quem é que lhe pagara.
Ele tomou a enfiar o palito na boca e ficou a olhar para ela . Por
fim , disse que ninguém lhe pagara. Disse que era primo de Ramón e
que Ramón tinha recebido quarenta dólares . Pôs a mão no espaldar
da cadeira vazia e ficou a olhar a rapariga de alto . Os ombros dela
subiam e desciam a cada respiração . Como alguém prestes a cometer
uma proeza física. Ela disse que não sabia.
Ele debruçou-se mais . Mire , começou . Su novio . Él tiene una ci­
catriz aquí. Passou o indicador sobre a face para traçar o sulco da
navalha que deixara a cicatriz que o amante dela exibia em resultado
da luta três anos antes , no comedor do cárcel de Cuellar, na cidade
de Saltillo . Verdad? indagou .
Sí, sussurrou ela. Es verdad. Y tiene mi tarjeta verde ?
Sí. Ele tirou do bolso o cartão verde e pousou-o na mesa. No car­
tão estava impresso o nome dela.
Está satisfecha ? perguntou .
Sí, sussurrou ela. Estoy satisfecha . E pôs-se de pé e agarrou as
suas coisas e deixou dinheiro na mesa para pagar o café e seguiu-o
para a rua .
Na alvorada fria, todo aquele mundo meio sórdido estava nova­
mente a iluminar-se , e, enquanto viajava em silêncio no banco trasei­
ro do táxi , através das ruas que iam despertando , ela fincou os dedos
em volta da relíquia de madeira toscamente esculpida e despediu-se
silenciosamente de tudo o que conhecia e de todas as coisas que
nunca mais tomaria a ver. Disse adeus a uma velha de rebozo negro
que veio à porta para ver se o tempo estava bom e disse adeus a três
raparigas da idade dela que contornaram com cuidado a poça de água
no chão da rua deixada pela chuva recente e que iam a caminho da
Cidades da Planície 235

missa e disse adeus aos cães e aos velhos nas esquinas e aos vende­
dores ambulantes a empurrar os seus carrinhos pela rua fora para dar
início ao seu comércio e aos lojistas que abriam a porta dos seus
estabelecimentos e às mulheres que se ajoelhavam , munidas de um
balde e um trapo , para lavar os ladrilhos da galeria. Disse adeus aos
passarinhos alinhados , espádua contra espádua, ao longo dos fios
elétricos lá no alto , que tinham dormido e estavam agora a acordar e
cujo nome ela nunca saberia.
Passaram através dos arrabaldes da cidade e ela pôde ver o rio à
sua esquerda, por entre as árvores ribeirinhas , e os edifícios altos da
cidade mais além, que se situavam noutro país , e as montanhas es­
calvadas onde o sol em breve iria tombar sobre os penedos . Deixa­
ram para trás os velhos edifícios municipais abandonados . Cisternas
enferrujadas num terreno baldio juncado de papéis amarrotados e
sujos que o vento ali deixara. As súbitas estacas metálicas esguias de
uma vedação que desfilaram silenciosamente como peças de uma
engrenagem diante da janela, da direita para a esquerda, e que , ao
desfilarem desta maneira e no período em que assim desfilaram ,
começaram a invocar o feiticeiro adormecido no seu seio antes que
ela conseguisse desviar os olhos a custo . Cobriu os olhos com as
mãos , respirando fundo . Nas trevas dentro das palmas das mãos em
concha, viu-se em cima de uma mesa branca e fria, numa sala fria e
branca. As vidraças das portas e das janelas desta sala eram reforça­
das com uma grossa rede de arame , e ali dentro , a soltar altos brados ,
havia rameiras e criadas de rameiras , uma chusma d e mulheres, to­
das a lançar-lhe gritos . Ela sentou-se muito direita na mesa e atirou
a cabeça para trás , como se fosse dar um grito ou como se fosse
cantar. Qual uma jovem diva novamente encarcerada num manicó­
mio . Não se ouviu som algum. O pneuma frio passou . Ela deveria
tê-lo chamado de volta. Quando abriu os olhos , o táxi saíra da estra­
da e estava a rolar aos solavancos por um carreiro de terra batida, e
o taxista estava a remirá-la pelo espelho retrovisor. Ela olhou em
volta, mas não conseguiu avistar a ponte . Viu o rio através do arvo­
redo e a neblina que se elevava do rio e as montanhas de rocha
agreste na outra margem, mas não avistou a cidade . Viu uma silhue­
ta a caminhar por entre as árvores , junto ao rio . Perguntou ao moto­
rista se iam atravessar ali para a outra margem , e ele respondeu que
236 Cormac McCarthy

sim . Disse que ela ia passar agora para a outra margem . Em seguida,
o táxi entrou na clareira e imobilizou-se , e, ao olhar, quem ela viu a
caminhar ao seu encontro , pela clareira fora, aos primeiros alvores
da manhã, foi Tiburcio , de sorriso nos lábios .

Ele abandonou o rancho por volta das cinco e conduziu até junto da
fachada do bar mergulhado na escuridão , onde podia ver o mostrador
tenuemente iluminado do relógio de parede , lá dentro . Fez marcha­
-atrás com a carrinha no parque de estacionamento coberto de brita
para poder observar a estrada e tentou não se virar para ver as horas no
relógio a cada escassos minutos , mas acabou por fazer isso mesmo .
Poucos carros passavam . Pouco depois das seis em ponto , um par
de faróis dianteiros abrandou , e ele endireitou-se sobre o volante e
limpou o para-brisas com o antebraço do casaco , mas as luzes passa­
ram , e o carro não era um táxi , mas sim um carro-patrulha do depar­
tamento do xerife . Julgou que eles talvez voltassem para trás , para
lhe perguntarem o que é que ele estava ali a fazer, mas não . Estava
imenso frio dentro da carrinha, e , ao fim de um certo tempo , ele saiu
e deu uns passos em volta e fustigou o próprio tronco com os braços
e bateu com as botas no chão . Em seguida, tomou a entrar na carri­
nha. O relógio do bar marcava seis e meia. Ao olhar para leste , ele
pôde avistar os contornos cinzentos da paisagem .
As luzes da bomba de gasolina, oitocentos metros mais adiante ,
junto à berma da estrada, apagaram-se . Uma camioneta seguiu estra­
da fora. Ele perguntou a si mesmo se daria tempo para ir até lá de
carro e beber um café antes de o táxi chegar. À s oito e meia, concluiu
que , se era isso que tinha de fazer para levar a que o táxi aparecesse ,
então fá-lo-ia, e ligou o motor. Logo em seguida, tomou a desligá-lo .
Meia hora depois , viu a carrinha de Travis a passar na estrada. Ao
cabo de escassos minutos , a carrinha regressou e abrandou e entrou
no parque de estacionamento . John Grady baixou o vidro da sua
carrinha. Travis parou junto dele e ficou atrás do volante , a olhá-lo .
Debruçou-se e escarrou .
O que é que se passa, puseram-te no olho da rua?
Ainda não .
Julguei que tivessem roubado a carrinha . Não tiveste uma avaria ,
o u tiveste?
Cidades da Planície 237

Não . Só 'tava à espera duma pessoa.


Há quanto tempo aqui ' tás?
Há um bom bocado .
Essa coisa tem aquecimento?
Nem por isso .
Travis abanou a cabeça. Olhou na direção da estrada . John Grady
debruçou-se e tornou a limpar o vidro com a manga. É melhor eu ir
andando , disse .
'Tás metido nalgum género de sarilho?
Sim. Sou capaz disso .
Por causa duma rapariga, calculo eu .
Pois .
Elas não valem o incómodo , rapaz .
Já ouvi dizer.
Bom. Não faças nenhuma parvoíce .
Provavelmente , é tarde de mais .
Não é tarde de mais , se ainda não a tiveres feito .
' Tá tudo bem .
Estendeu o braço e rodou a chave e premiu o botão da ignição .
Virou-se e olhou para Travis . A gente vê-se , disse .
Saiu do parque de estacionamento e meteu pela estrada, voltando
pelo caminho que o trouxera até ali . Travis ficou sentado a contem­
plar a carrinha até esta desaparecer da vista.
IV

Quando chegou ao café na Calle de Noche Triste , o estabelecimen­


to estava cheio , e a rapariga afadigava-se para trás e para diante com
pratos de ovos e cestos cheios de tortilhas . Nada sabia. Só tinha vindo
trabalhar havia uma hora. Ele seguiu-a para dentro da cozinha. O
cozinheiro ergueu o rosto do fogão e olhou para a rapariga. Quién es ?
perguntou . A rapariga encolheu os ombros . Olhou para John Grady.
Equilibrou vários pratos pelo braço acima e tornou a sair, empurrando
a porta. O cozinheiro nada sabia. Disse que o empregado se chamava
Felipe , mas que não estava ali . Só iria regressar ao final da tarde . John
Grady ficou a olhá-lo durante alguns minutos , enquanto ele virava as
tortilhas na grelha com os dedos . Em seguida, empurrou a porta,
abrindo-a, e saiu , cruzando o restaurante .
Seguiu o rasto do taxista através dos vários bares esconsos onde
ele oferecia os seus serviços . Bares onde os clientes da noite da vés­
pera agarravam as bebidas com dedos enclavinhados e franziam as
pálpebras à luz da porta de cada vez que esta se abria, como suspeitos
submetidos a interrogatório . Só por um triz evitou andar duas vezes
à pancada por se recusar a aceitar uma bebida. Foi até à Venada e
bateu à porta, mas ninguém veio abrir. Postou-se diante do Moderno ,
a espreitar para o interior, mas estava tudo fechado e sombrio .
Foi até ao salão de bilhar na Mariscai Street que era frequentado
pelos músicos e onde os instrumentos destes estavam pendurados ao
longo da parede , guitarras e bandolins e trompas de latão ou de ar­
gentão . Uma harpa mexicana . Perguntou pelo maestro , mas ninguém
o vira. Ao meio-dia, não lhe restava outro lugar aonde ir senão o
Cidades da Planície 239

White Lake . Sentou-se num café , tendo diante de si uma chávena de


café sem natas nem leite . Ficou ali muito tempo . Havia outro lugar
aonde ir, mas ele também não o queria visitar.
Um homem que parecia um anão , de bata branca , conduziu-o por
um corredor fora. O edifício cheirava a cimento húmido . Lá fora, ele
ouvia o trânsito na rua, um martelo pneumático .
O homem empurrou uma porta no extremo do corredor e segurou­
-a e fez-lhe sinal para avançar, inclinando a cabeça , e depois esten­
deu o braço e premiu o interruptor. O rapaz tirou o chapéu . Estavam
numa sala onde os mortos recentes , quatro ao todo , jaziam nas suas
tábuas mortuárias . As tábuas estavam apoiadas em suportes com
pernas feitas de tubos de canalização , e os mortos jaziam ali de mãos
às ilhargas e olhos fechados e os pescoços pousados em calços de
madeira, escuros e manchados . Nenhum deles tinha um pano a co­
bri-lo , mas todos jaziam com as suas roupas vestidas , tal como a
morte os encontrara. Tinham a aparência de viajantes com os trajes
amarrotados , a descansar numa antecâmara. Ele avançou devagar,
passando diante das mesas . As luzes do teto , lá no alto , estavam re­
vestidas por pequenos cestos de arame . As paredes estavam pintadas
de verde . No pavimento , um ralo de latão . Pedacinhos de fiapos de
esfregona enroscados em volta das pequenas rodas metálicas por
baixo das mesas .
A rapariga a quem ele jurara o seu amor eterno jazia na última
mesa. Jazia tal como os cortadores de junco a tinham encontrado ,
naquela manhã, nos baixios sob os salgueiros da margem, a neblina
a elevar-se do rio . O cabelo molhado e revolto . Tão negro . Repleto
de folhas de erva, castanhas e mortas . O rosto tão pálido . A garganta
cortada, hiante e exangue . Tinha o vestido azul de ver a Deus retor­
cido em volta do corpo , as meias rasgadas . Perdera os sapatos .
Não havia sangue , porque a água arrastara-o todo . Ele estendeu a
mão e tocou-lhe na face . Oh , meu Deus, disse .
La conoce ? perguntou o auxiliar.
Oh , meu Deu s .
La conoce ?
Ele apoiou-se na mesa, a esborrachar o chapéu . Pôs a mão sobre
os olhos , a agarrar o crânio . Se tivesse força suficiente , tê-lo-ia es­
premido até o esmagar, expulsando tudo o que ali estava contido .
240 Cormac McCarthy

O que jazia diante dele naquele momento e tudo o que a sua cabeça
poderia albergar para todo o sempre .
Sefíor, disse o auxiliar, mas o rapaz deu meia-volta e empurrou-o
para o lado e dirigiu-se para a saída aos tropeções . O homem pôs-se
a chamá-lo . Parou à porta e chamou-o enquanto ele percorria o cor­
redor. Disse que , se ele conhecia aquela rapariga, tinha de a identifi­
car. Disse que havia papéis para preencher.

As vacas no longo barranco de Cedar Springs , que ele subiu a


cavalo , remiravam-no ali paradas , a ruminar, e depois tornavam a
baixar a cabeça . O cavaleiro sabia que elas conseguiam adivinhar-lhe
as intenções pela postura do cavalo que ele montava. Ele deixou-as
para trás e cavalgou encosta acima, embrenhando-se nos montes , e
assomou no alto da meseta e rompeu vagarosamente ao longo do
rebordo . Parou o cavalo , de frente para o vento , e ficou a ver o com­
boio a subir pelo vale , a vinte e cinco quilómetros dali . A sul , a linha
verde e esguia do rio jazia como um traço feito por uma criança com
um lápis de cera através da vastidão árida, cor de malva e bistre .
Mais além , as montanhas do México , em tons cada vez mais esbati­
dos de azul e cinzento , dissipavam-se na lonjura. A erva ao longo da
meseta a seus pés contorcia-se ao vento . Uma frente escura de mau
tempo adensava-se a norte . O cavalinho baixou a cabeça, e ele torceu
as rédeas para o obrigar a voltar-se e rompeu adiante . O cavalo pare­
cia hesitante , e espraiou a vista para oeste . Como que para se recor­
dar do caminho . O rapaz cravou-lhe os calcanhares nas ilhargas . Não
precisas de te afligir com isso , comentou .
Atravessou a estrada de asfalto e cortou caminho através da faixa
mais ocidental do rancho McGregor. Cavalgou por paragens que nun­
ca antes vira. Ao princípio da tarde , deparou com um cavaleiro escar­
ranchado no cavalo , de mãos cruzadas descontraidamente sobre o ar­
ção dianteiro da sela. O cavalo era um macho castrado negro de boa
aparência, com uma expressão de argúcia no olhar. Estava pintado de
ocre até aos joelhos por causa da poeira daquela região , e a sela era de
um velho modelo a que chamavam de percussão lateral , com estribos
Visa/ia e o chifre do cepilho achatado , do tamanho de um pires de
café . O cavaleiro estava a mascar tabaco e saudou John Grady com um
aceno de cabeça quando este se aproximou . Posso ajudá-lo? indagou .
Cidades da Planície 24 1

John Grady debruçou-se e escarrou . Ou seja, eu não devia de ' tar


na vossa terra, disse . Olhou para o cavaleiro . Um homem escassos
anos mais velho do que ele próprio . O cavaleiro contemplou-o por
sua vez com os olhos azul-claros .
Trabalho pro Mac McGovem , prosseguiu John Grady. Acho que
você deve de conhecê-lo .
Sim, redarguiu o cavaleiro . Conheço-o . Vocês têm gado que se
transviou pra estas bandas?
Não . Que eu saiba, não . Eu é que me transviei pra estas bandas , a
bem dizer.
O cavaleiro empurrou a aba do chapéu ligeiramente para trás com
o polegar. O encontro entre ambos tivera lugar num leito de cheia
argiloso , desprovido de erva ou de qualquer outro rebento , e o único
som que o vento fazia era nas roupas deles . As nuvens escuras con­
tinuavam amontoadas numa alta muralha, a norte , e o fio delgado e
silencioso de um raio apareceu ali e pulsou e tomou a desaparecer.
O cavaleiro debruçou-se e escarrou e ficou à espera.
'Tava planeado eu casar-me daqui a dois dias , explicou o rapaz .
O cavaleiro fez que sim com a cabeça, mas o rapaz não disse mais
nada.
Calculo que você tenha mudado de ideias .
O rapaz não respondeu . O cavaleiro olhou ao longe , para norte , e
tornou a fitá-lo .
Aquilo ali é capaz de nos trazer alguma chuva.
É capaz . Choveu lá na cidade nas duas últimas noites .
O meu amigo já jantou?
Não . Parece-me bem que não .
Porque é que não vem comigo até à casa.
É melhor eu voltar pra donde vim .
Se calhar foi ela que mudou de ideias .
O rapaz desviou o rosto . Não respondeu .
Vai aparecer outra num instantinho . Há de ver.
Não , não vai .
Porque é que não vem comigo até à casa e não janta com a gente .
Agradeço-lhe muito . Tenho de voltar pra donde vim .
Você lembra-me um bocadinho eu próprio . Meto uma coisa na ca­
beça e cavalgo em frente .
242 Cormac McCarthy

John Grady segurava as rédeas com mão frouxa. Ficou muito tem­
po a olhar para a paisagem ondulada antes de falar. Quando o fez , o
cavaleiro teve de se curvar para diante para lhe ouvir as palavras .
Quem me dera cavalgar em frente , disse ele . Quem me dera.
O cavaleiro limpou os cantos da boca com a base do polegar. Tal­
vez seja melhor você não voltar já pra donde veio , aconselhou . Tal­
vez seja melhor esperar só um bocadinho .
Cavalgava em frente sem olhar pra trás . Cavalgava até onde não
pudesse achar um só dos dias que vivi até hoje. Mesmo que desse
meia-volta e esquadrinhasile cada palmo daquele terreno . Depois, ca­
valgava mais um bocado .
Eu já fui assim, disse o cavaleiro .
É melhor eu ir andando .
Tem a certeza de que não aceita o meu convite? Cozinha-se muito
bem lá em casa.
Não . Obrigado .
Bom.
Espero que aquela chuva caia aqui no alto pra vocês .
Muito agradecido .
Virou o cavalo e meteu para sul , rompendo pelo amplo leito de
cheia. O cavaleiro virou também o seu cavalo e começou a seguir
para norte , mas parou antes de ter cavalgado muito . Escarranchado
na sela, ficou a ver o rapaz a afastar-se pelo amplo vale e observou-o
durante muito tempo . Quando deixou de o conseguir avistar, ergueu­
-se ligeiramente nos estribos . Como que a preparar-se para o chamar.
O rapaz nem por uma vez olhou para trás . Quando desapareceu , o
cavaleiro ficou ali ainda um bocadinho . Deixara cair as rédeas e fi­
cou imóvel , com uma perna cruzada sobre o cepilho da sela, e em­
purrou o chapéu para a nuca e debruçou-se e escarrou e remirou as
cercanias . Como se a paisagem devesse ter alguma coisa a dizer-lhe
pelo facto de aquela figura a ter percorrido .

Era muito tarde , já quase reinava a escuridão , quando ele meteu o


cavalo pelo vau e desmontou sob os choupos na clareira, na margem
oposta. Deixou cair as rédeas e encaminhou-se para a choupana e abriu
a porta. Lá dentro estava escuro , e ele parou no vão da porta e olhou
para trás , para o cair da noite . A terra a cobrir-se de trevas . O céu a
Cidades da Planície 243

oeste vermelho-sangue onde o Sol desaparecera, e os passarinhos es­


curos a esvoaçar das alturas , fugindo diante da tempestade . O vento no
tubo da chaminé gemia com um som prolongado e seco . Ele entrou no
quarto de dormir e ficou ali parado . Pegou num fósforo e acendeu o
candeeiro e baixou o pavio e tomou a encaixar a chaminé de vidro e
sentou-se na cama, de mãos entre os joelhos . O santo de madeira es­
culpida lançava-lhe das sombras um olhar malicioso de soslaio . A sua
própria sombra, formada pelo candeeiro , subia pela parede atrás dele .
Uma silhueta desajeitada, que não parecia representá-lo de todo . Ao
fim de um certo tempo , tirou o chapéu e deixou-o cair no chão e bai­
xou o rosto para as mãos .
Quando cavalgou de novo para longe dali, já estava escuro e o
vento soprava e não havia estrelas no céu e estava frio , e a erva sa ca­
ton ao longo do ribeiro debatia-se ao vento , e as pequenas árvores
despidas que ele ia deixando para trás zumbiam que nem fios elétri­
cos . O cavalo estremeceu e deu alguns passos e ergueu os sumidou­
ros do nariz para o vento . Como que para decifrar o que poderia haver
na tempestade iminente que não fosse apenas tempestade . Atraves­
saram o ribeiro e meteram pela estrada velha abaixo . John Grady
julgou ouvir uma raposa a regougar e procurou-a com os olhos ao
longo do bordo rochoso recortado contra o pano de fundo do céu ,
acima da estrada, à esquerda. Ao final da tarde , no México , costuma­
va vê-las a sair das tocas e a percorrer os veios de rocha ígnea acima
das planuras , de onde a vista era privilegiada. Para observarem às
ocultas quaisquer pequenas formas de vida que se pudessem aventu­
rar em campo aberto ao lusco-fusco . Ou então limitavam-se a sentar­
-se em silhueta sobre aquelas muralhas erguidas por mão divina,
quais ícones saídos do Egito , silenciosas e imóveis contra o céu cada
vez mais sombrio , capazes de satisfazer todos os pedidos que lhes
fossem endereçados .
Ele deixara o candeeiro aceso n a choupana, e a janela suavemente
iluminada parecia quente e convidativa. Ou teria parecido aos olhos
de outrem . Pela parte que lhe tocava, dera aquele capítulo por encer­
rado e , depois de atravessar o regato e de meter pela estrada que ti­
nha de percorrer, não tomou a olhar para trás .
Quando entrou no terreiro , estava a tombar uma chuva miúda, e
ele pôde vê-los a todos reunidos à mesa do jantar através da vidraça
244 Cormac McCarthy

da janela da cozinha, turvada pela chuva. Continuou a cavalgar em


direção ao estábulo e depois sofreou as rédeas do cavalo e olhou
para trás . Pareceu-lhe estar a ver aqueles homens numa outra época,
antes sequer de ele próprio ter chegado ao rancho . Ou então eram
como homens numa outra casa, de cujas vidas e histórias ele nada
soubesse . Em grande medida, pareciam estar todos somente à espera
de que as coisas voltassem a ser de um modo que nunca mais toma­
riam a ser.
Entrou a cavalo no estábulo e desmontou e deixou o cavalo ali
parado e foi até ao seu quarto . Os cavalos olharam para fora, por
cima das portas das baías , e observaram-no enquanto ele passava.
Ele não acendeu a luz . Tirou a lanterna elétrica da prateleira e ajoe­
lhou-se e abriu o baú e vasculhou no interior e tirou de lá o imper­
meável e uma camisa seca e tirou do fundo do baú a faca de mato
que pertencera ao pai e o sobrescrito castanho que continha o seu
dinheiro e pousou tudo isto na cama . Em seguida , despiu a camisa
e vestiu a camisa seca e enfiou o impermeável pela cabeça e meteu
a faca de mato no bolso do impermeável . Tirou algumas notas do
sobrescrito e tomou a meter o sobrescrito no baú e fechou a tampa.
Finalmente , apagou a lanterna e tomou a pousá-la na prateleira e
voltou a sair.
Ao chegar ao fim do carreiro , desmontou e amarrou as rédeas uma
à outra por cima do chifre do cepilho e voltou para trás alguns me­
tros , conduzindo o cavalo pelo carreiro acima, a escorregar na lama,
e depois soltou a faceira e deu um passo atrás e desferiu uma palma­
da na garupa do cavalo e ficou a vê-lo trotar pelo carreiro fora, atra­
vés da lama espessa, até o animal desaparecer na chuva e nas trevas .
Os primeiros faróis que o iluminaram , de pé na berma da estrada
asfaltada , abrandaram e pararam. Ele abriu a porta do carro e olhou
para o interior.
Tenho as botas todas sujas de lama, avisou .
Entra, disse o homem . Mal não fazes a esta carripana.
Ele entrou e fechou a porta com um puxão . O condutor engatou a
alavanca das mudanças e curvou-se para diante e remirou a estrada
de pálpebras franzidas . De noite não vejo um palmo à frente do na­
riz , porra, comentou . O que é que andas a fazer assim à chuva?
Pra além de me encharcar todo , é isso que quer dizer?
Cidades da Planície 245

Pra além de te encharcares todo .


Preciso de ir à cidade , só isso .
O condutor olhou para ele . Era um velho rancheiro , magro e de
ossos salientes . Usava um chapéu de copa redonda, tal como faziam
dantes alguns velhos. Raios , rapaz , tomou . És um caso desesperado .
Não é nada disso . Tenho um assunto pra tratar, mais nada.
Bom, deve de ser uma coisa que não pode esperar, caso contrário
não ' tarias aqui , pois não?
Não , senhor. Não ' taria.
Bom, eu cá também não . Neste momento , já passa meia hora da
minha hora de deitar.
Sim, senhor.
Isto é um último recurso .
Como?
Isto é um último recurso . Tenho um animal doente .
Estava curvado sobre o volante , e o automóvel encontrava-se às
cavalitas da linha branca central . Olhou para o rapaz . Eu desvio o
carro pro lado , se vier alguém, disse . Eu sei conduzir. Só não vejo é
nada.
Sim , senhor.
Pra quem é que trabalhas?
Pro Mac McGovem .
O velho Mac . Ele é dos bons . Verdade?
Sim, senhor. É dos bons .
Uma pessoa rebentava uma carrinha Ford de caixa aberta antes de
encontrar melhor.
Sim , senhor. Creio bem que sim .
Tenho uma égua doente . Uma eguazita nova. 'Tá a tentar parir.
Deixou alguém com ela?
A minha mulher 'tá em casa. No estábulo , a bem dizer.
O carro rolava em frente . A chuva fustigava a estrada sob as luzes
dos faróis , e os limpa-para-brisas bailavam para trás e para diante
sobre o vidro .
Vai fazer sessenta anos que nos casámos a vinte e dois de abril .
Isso é imenso tempo .
É , sim. Não parece , mas é . Ela veio até cá com a família do Okla­
homa, num carroção coberto . Quando nos casámos, tínhamos os dois
246 Cormac McCarthy

dezassete anos . Fomos até Dallas , prà exposição , na nossa lua de


mel . Não nos queriam alugar um quarto . Nenhum de nós parecia ter
idade que chegasse pra se casar. Não se passou um só dia nestes
sessenta anos em que eu não tenha agradecido a Deus por aquela
mulher. Não fiz nada prà merecer, isso te posso garantir. Não sei o
que é que alguém podia fazer pra isso .

Billy pagou a tarifa na cabina e atravessou a ponte a pé . Os rapa­


zes junto ao rio , por baixo da ponte , erguiam os baldes na ponta de
varas e pediam dinheiro aos gritos . Ele desceu a Juárez Avenue entre
os turistas , deixando para trás os bares e as lojas de bricabraque , os
pregoeiros a chamá-lo dos portais . Entrou no Florida e pediu um
whiskey e bebeu-o e pagou e tornou a sair.
Subiu a Tlaxcala até ao Moderno , mas estava fechado . Bateu e
esperou sob o arco revestido de azulejos verdes e amarelos . Cami­
nhou até ao flanco do edifício e espreitou para o interior através do
canto partido da vidraça de uma das janelas gradeadas . Pôde distin­
guir a luzinha acima do balcão , nas traseiras . Parado à chuva, olhou
para o fundo da rua, que se estendia num corredor estreito de lojas e
bares e casas baixas . O ar cheirava a fumo de diesel e a fogueiras de
lenha .
Regressou à Juárez Avenue e apanhou um táxi . O motorista olhou-
-o pelo espelho retrovisor.
Conoce el White Lake ?
Sí. Claro .
Bueno . Vámonos .
O motorista assentiu com a cabeça, e arrancaram . Billy recostou­
-se no táxi e ficou a ver as ruas soturnas daquela cidade fronteiriça a
desfilarem à luz chuvosa da tarde . Abandonaram a rua asfaltada e
começaram a percorrer as estradas lamacentas dos barrios , nos arra­
baldes . Os burros dos vendedores ambulantes, tendo presas ao dorso
pilhas colossais de feixes de lenha, desviavam as cabeças no mo­
mento em que o táxi passava, a chapinhar por sobre os buracos no
chão . Tudo estava coberto de lama.
Quando pararam diante do White Lake , Billy saiu do táxi e acen­
deu um cigarro e tirou a carteira do bolso de trás das calças de ganga.
Eu posso esperar por si, disse o taxista .
Cidades da Planície 247

Deixe ' tar.


Posso entrar e esperar.
Sou capaz de demorar um pedaço . Quanto é que lhe devo?
Três dólares . Não quer que eu espere por si?
Não .
O taxista encolheu os ombros e pegou no dinheiro e tomou a subir
o vidro da janela e pôs o carro em marcha. Billy meteu o cigarro na
boca e olhou para o edifício que ali se erguia, na orla do barrio , entre
os casebres de lama e de caixotes desmantelados e as paredes de
chapa franzida do armazém .
Encaminhou-se para as traseiras do bar e meteu pela viela, deixan­
do o armazém para trás , e bateu na primeira de duas portas e esperou .
Com um piparote , atirou a beata do cigarro para o meio da lama .
Erguera o braço para bater de novo quando a porta se abriu , e a velha
criada olhou para fora . Assim que o viu , tentou fechar a porta, mas
ele tomou a abri-la com um encontrão , e ela virou costas e escapuliu­
-se pelo corredor fora, com uma mão no alto da cabeça, a soltar
gritos . Ele fechou a porta atrás de si e olhou para o fundo do corre­
dor. Cabeças de rameiras com papelotes no cabelo assomaram e logo
tomaram a desaparecer, quais galinhas . Portas fecharam-se . Ele não
percorrera sequer três metros ao longo do corredor quando um ho­
mem vestido de negro , de rosto esguio , com forma de fuinha, surgiu
e tentou agarrar-lhe no braço . Perdão , disse o homem. Perdão .
Billy soltou o braço com um gesto brusco . Onde é que 'tá o Eduar­
do? perguntou .
Perdão , repetiu o homem. Tentou novamente prender o braço de
Billy. Erro . Billy agarrou-o pelo peitilho da camisa e atirou-o com
força contra a parede . Era tão leve . Etéreo , insignificante . Não ofere­
ceu resistência, antes pareceu limitar-se a esbracejar em volta de si ,
como se tivesse perdido qualquer coisa, e Billy largou o punhado de
seda negra que arrepanhara no punho fechado mesmo a tempo . A lâ­
mina fina da navalha sibilou-lhe junto do cinturão , e ele saltou para
trás e ergueu os braços . Tiburcio agachou-se e fez negaças com a
navalha diante de si .
Meu cabrãozinho de merda, soltou Billy. Esmurrou o mexicano em
cheio na boca, e o mexicano bateu com toda a força contra a parede
e sentou-se no chão . A navalha deslizou pelo corredor fora, a rodopiar
248 Cormac McCarthy

e a estralejar. A velha no extremo do corredor observava, com os de­


dos entre os dentes. O olho dela fechou-se e tornou a abrir-se , num
piscar colossal e obsceno . Ele virou-se para o chulo e ficou surpreso
ao vê-lo a tentar pôr-se de pé , a empunhar um pequeno canivete de
prata ainda preso à corrente que lhe cruzava a parte da frente das
calças negras , apertadas nos tornozelos . Billy bateu-lhe na têmpora e
ouviu um osso a partir-se . A cabeça do chulo rodou para trás , e ele
deslizou mais de um metro pelo corredor fora e ficou caído no chão ,
num amontoado retorcido e negro , qual uma ave morta. A velha lan­
çou-se pelo corredor fora, precipitando-se desajeitadamente , a soltar
brados . Ele agarrou-a no momento em que ela passou e obrigou-a a
voltar-se. Aiee , gritou ela. Aiee . Ele prendeu-lhe os pulsos e sacudiu­
-a. Dónde está mi compafíero ? atirou .
Ai e e , gritou ela. Tentou libertar-se para ir ter com o chulo caído no
chão .
Dígame . Dónde está mi cuate ?
No sé. No sé. Por Dios, no sé nada .
Dónde está la muchacha ? Magda/ena ? Dónde está Magda/ena ?
Jesús María y José ten compasión no está. No está.
Dónde está Eduardo ?
No está. No está.
No está ninguém nesta porra desta casa, pois não?
Soltou-a, e ela lançou-se sobre o chulo caído e ergueu-lhe o rosto
e encostou-o ao peito . Billy abanou a cabeça com ar enojado e avan­
çou pelo corredor e apanhou a navalha do chão e cravou a lâmina
entre a porta e a ombreira e partiu a lâmina com um estalo e atirou o
cabo para longe e rodou sobre os calcanhares e voltou para trás . A
criada encolheu-se e ergueu uma mão acima da cabeça, mas ele
baixou-se e, ignorando-a, arrancou a corrente de prata do colete do
chulo e partiu também a lâmina do canivete .
Este filho da mãe tem mais alguma faca escondida?
Aiee , gemeu a criada , a balançar-se para trás e para diante com a
cabeça oleosa do chulo aconchegada junto ao peito . O chulo desper­
tara e estava a fitá-lo com um olho estrábico através do cabelo pega­
joso da mulher. Moveu um braço em volta, frenético e descompassa­
do . B illy baixou-se e agarrou-o pelo cabelo e puxou-lhe o rosto para
o alto .
Cidades da Planície 249

Dónde está Eduardo ?


A criada estava a gemer e a balbuciar entre soluços e tentava sol­
tar os dedos de Billy do cabelo do chulo .
En su oficina , arquejou o chulo .
Ele soltou-o e endireitou-se e limpou a mão oleosa à perna das
calças de ganga e caminhou pelo corredor até chegar ao extremo .
A porta de Eduardo , revestida de folha de prata, não tinha maçaneta,
e ele ficou alguns momentos a remirá-la e depois ergueu uma bota e
deu-lhe um pontapé , arrombando-a . A porta soltou-se completamen­
te dos gonzos , num grande estilhaçar de madeira, rodou ligeiramente
de viés e caiu para dentro da sala. Eduardo estava sentado à secretá­
ria. Parecia estranhamente sereno .
Onde é que ele ' tá? atirou Billy.
O amigo misterioso .
Ele chama-se John Cole , e se lhe tocaste nem que seja num cabelo ,
mato-te aqui mesmo , meu cabrão .
Eduardo recostou-se . Abriu a gaveta da secretária .
Acho melhor teres uma caixa d e sapatos cheia de pistolas a í den­
tro , avisou Billy.
Eduardo tirou um charuto da gaveta da secretária e fechou-a e tirou
do bolso o cortador de charutos de ouro e ergueu o charuto e aparou­
-o e meteu-o na boca e guardou o cortador novamente no bolso .
Porque é que eu havia de precisar de uma pistola?
Eu já te dou várias razões , se não me explicares as coisas como
deve de ser.
A porta não estava trancada .
O quê?
A porta não estava trancada.
E eu quero lá saber da porra da tua porta.
Eduardo acenou com a cabeça. Tirara o isqueiro do bolso e estava
a fazer deslizar a chama em volta da ponta do charuto e rodava o cha­
ruto vagarosamente na boca com os dedos . Olhou para Billy. Depois
olhou para trás de Billy. Quando este se virou , o alcahuete estava
parado à porta, uma mão na ombreira repleta de lascas , a respirar
devagar, compassadamente . Tinha um olho inchado , já meio fechado ,
a boca tumefacta e a sangrar e a camisa rasgada. Eduardo mandou-o
sair com um ligeiro agitar do queixo .
250 Cormac McCarthy

Com certeza, observou , não nos achas incapazes de nos proteger­


mos da ralé e dos borrachos que aqui vêm?
Meteu o isqueiro no bolso e ergueu os olhos . Tiburcio ainda estava
parado no vão da porta. Ándale pues , ordenou . Tiburcio olhou para
Billy por uns instantes , de rosto tão inexpressivo como uma serpente­
-cascavel , depois virou costas e afastou-se pelo corredor fora.
A polícia anda à procura do teu amigo , prosseguiu Eduardo . A ra­
pariga está morta. Encontraram o corpo dela no rio , esta manhã.
Diabos te levem pro Inferno .
Eduardo remirou o charuto . Levantou o rosto para Billy. Vês o que
aconteceu .
Não podias deixá-la ir sem complicações , pois não .
Lembras-te da nossa conversa, da última vez que nos encontrá-
mos .
Sim. Lembro-me bem .
Não acreditaste em mim .
Acreditei em ti .
Falaste com o teu amigo?
Sim. Falei com ele .
Mas as tuas palavras não o fizeram mudar de ideias .
Não . Não fizeram .
E agora não te posso ajudar. Compreendes.
Não vim aqui à cata da tua ajuda.
Talvez queiras ponderar a questão do teu próprio papel nesta his­
tória.
Não há nada que me possam apontar.
Eduardo puxou uma funda fumaça do charuto e soprou o fumo
vagarosamente em direção ao centro desabitado da sala. Ofereces
uma imagem bizarra, comentou . Não obstante as tuas opiniões acerca
da matéria, o que aconteceu foi o resultado do facto de o teu amigo
cobiçar os haveres de outro homem e se mostrar obstinadamente de­
terminado a utilizar esses haveres em seu próprio proveito , sem olhar
às consequências . Mas é claro que isto não faz desaparecer as conse­
quências . Ou faz? E agora eis-te aqui na minha presença, ofegante e
de cabeça meio perdida , depois de causares estragos no meu estabe­
lecimento comercial e de ferires o meu ajudante . E depois de , quase
certamente , teres sido cúmplice no estratagema para atrair uma das
Cidades da Planície 25 1

raparigas à minha guarda para longe desta casa, conduzindo-a à mor­


te . E , no entanto , pareces estar a pedir-me que te ajude a resolver as
tuas dificuldades . Porquê?
Billy olhou para a sua mão direita. Estava já muito inchada . Olhou
para o chulo sentado de viés atrás da secretária. As botas caras cru­
zadas diante dele .
Achas que eu não tenho a que me agarrar, não achas?
Não sei o que tens ou deixas de ter.
Eu também conheço este país .
Ninguém conhece este país .
Billy virou costas . Parou à porta e olhou para o fundo do corredor.
Em seguida, olhou novamente para o chulo . Diabos te levem, atirou .
Tu e todos os da tua laia.

Sentou-se numa cadeira de aço , numa sala vazia, com o chapéu no


joelho . Quando a porta finalmente se abriu de novo , o agente olhou
para ele e fez-lhe sinal com as pontas dos dedos para avançar. Ele
levantou-se e seguiu o homem pelo corredor fora. Um prisioneiro
estava a limpar o linóleo gasto com uma esfregona e , no momento
em que eles passaram , deu um passo atrás e esperou e depois tornou
a mover a esfregona para trás e para diante .
O agente bateu à porta do capitão com um dedo enclavinhado e
depois abriu a porta e fez um gesto a Billy para entrar. Ele entrou , e
a porta fechou-se atrás dele . O capitão estava sentado à secretária, a
escrever. Ergueu os olhos fugazmente . Em seguida , continuou a es­
crever. Ao fim de um certo tempo , esboçou um gesto com o queixo
a indicar duas cadeiras , à sua esquerda. Por favor, disse . Sente-se .
Billy sentou-se numa das cadeiras e pousou o chapéu na cadeira a
seu lado . Em seguida, tornou a pegar-lhe e ficou com o chapéu na
mão . O capitão pôs a caneta de parte e ergueu os papéis e deu-lhes
pancadinhas e alinhou-os num retângulo e pousou-os a seu lado e
olhou para ele .
Em que posso ajudá-lo? começou .
' Tou aqui por causa duma rapariga que apareceu morta no rio ,
esta manhã. Acho que a consigo identificar.
Já sabemos quem ela é , tornou o capitão . Recostou-se na cadeira.
Ela era sua amiga?
252 Cormac McCarthy

Não . Vi-a uma vez , mais nada.


Ela era prostituta .
Era, sim .
O capitão tinha as mãos comprimidas uma contra a outra . Debru­
çou-se e tirou de um tabuleiro de madeira de carvalho , no canto da
secretária, uma grande fotografia de aparência rebrilhante e esten­
deu-lha.
É esta a rapariga?
B illy pegou na fotografia e virou-a ao contrário e observou-a. Er­
gueu o rosto para o capitão . Não sei , declarou . É um bocado difícil
de perceber.
A rapariga da fotografia parecia feita de cera. Tinham-na virado
para apanhar a melhor perspetiva da garganta cortada. Billy segurava
a folha com gestos cautelosos . Tomou a erguer o rosto para o capitão .
Deve de ser ela, provavelmente .
O capitão estendeu o braço e pegou na fotografia e tomou a pousá-
-la no tabuleiro , voltada para baixo . O senhor tem um amigo , disse .
Sim, senhor.
Qual era a relação dele com esta rapariga?
Ele ia-se casar com ela .
Casar-se com ela .
Sim, senhor.
O capitão pegou na caneta e desatarraxou-lhe a tampa. Como é
que ele se chama?
John Grady Cole .
O capitão escreveu . Onde é que está o seu amigo? perguntou .
Não sei .
Conhece-lo bem?
Sim . Conheço-o bem .
Foi ele que matou a rapariga?
Não .
O capitão voltou a atarraxar a tampa na caneta e recostou-se . Mui-
to bem , volveu .
Muito bem o quê .
O senhor é livre de partir.
Era livre de partir quando aqui entrei .
Foi ele quem o mandou?
Cidades da Planície 253

Não , ele não me mandou .


Muito bem.
É tudo o que você tem pra dizer?
O capitão tomou a juntar as mãos . Tamborilou nos dentes com as
pontas dos dedos . Lá fora, o ruído das pessoas a falar no corredor.
Mais além, o trânsito na rua .
Como é que s e pronuncia o seu nome?
Diga?
Como é que se pronuncia o seu nome .
Parham . Diz-se Parham.
Parham .
Não vai escrevê-lo?
Não .
Já o tem escrito .
Já.
Bom.
Não me vai dizer nada . Pois não?
Billy baixou os olhos para o chapéu . Ergueu o rosto para o capitão .
O senhor sabe que aquele chulo a matou .
O capitão tamborilava nos dentes . Gostávamos de falar com o seu
amigo , disse .
Você gostava de falar com ele , mas não com o chulo .
Com o chulo já nós falámos .
Pois . E eu também sei o que é que fala mais alto .
O capitão abanou a cabeça com ar cansado . Olhou para o nome no
bloco . Levantou o rosto e olhou para Billy.
Mr Parham , disse . Todos os homens da minha família desde há
três gerações foram mortos em defesa desta república. Avôs , pais,
tios , irmãos . Onze homens ao todo . Todas as convicções que eles
possam ter alimentado residem agora em mim . Todas as esperanças .
Isto dá que pensar. Compreende? Eu rezo a estes homens . O sangue
deles correu nas ruas e nas sarjetas e nos arroyos e entre as pedras
do deserto . Eles são o meu México , e rezo a eles e respondo perante
eles e perante eles apenas . Não respondo perante mais ninguém . Não
respondo perante chulos .
Se isso é verdade , então retiro o que disse .
O capitão inclinou a cabeça.
254 Cormac McCarthy

Billy acenou com a cabeça, indicando a fotografia no tabuleiro . O


que é que fizeram com ela? Com o corpo .
O capitão ergueu uma mão e deixou-a tombar de novo . Ele já fez
a sua visita. Esta manhã.
Ele viu aquilo?
Sim. Antes de sabermos a identidade da rapariga. O - como é que
lhe chamam? O practicante . O practicante disse ao meu tenente que
ele falava muito bem espanhol . Tem uma cicatriz . Uma marca no
rosto . Aqui .
Isso não faz dele má pessoa.
Ele é má pessoa?
É um rapaz como deve de ser, dos melhores que já conheci . O me-
lhor.
Não sabe onde é que ele está .
Não , senhor. Não sei .
O capitão ficou imóvel alguns momentos . Depois , pôs-se de pé e
estendeu a mão . Agradeço-lhe por ter vindo , disse .
Billy ergueu-se e apertaram as mãos , e Billy pôs o chapéu na ca-
beça. Ao chegar à porta, virou-se .
Ele não é dono do White Lake , pois não? O tal Eduardo .
Não .
Calculo que não me vá dizer quem é .
Não é importante . U m homem de negócios . Ele nada tem que ver
com esta história.
Você não o considera um chulo , parece-me bem .
O capitão remirou-o . Billy esperou .
Sim, respondeu o capitão . Considero-o um chulo , sim.
Apraz-me ouvir isso , notou Billy. Eu também acho o mesmo .
O capitão acenou com a cabeça.
Não sei o que aconteceu , prosseguiu Billy. Mas sei porque é que
aconteceu .
Explique-me , então .
Ele apaixonou-se por ela.
O seu amigo .
Não . O tal Eduardo .
O capitão tamborilou com os dedos ao de leve no rebordo da se­
cretária. Ah , sim? disse .
Cidades da Planície 255

Sim.
O capitão abanou a cabeça . Não vejo como é que um homem pode
governar uma casa dessas , se se apaixona pelas raparigas .
Nem eu .
Sim . Porquê esta rapariga?
Não sei .
Disse-me que só a viu uma vez .
É verdade .
Acha que o seu amigo não era um palerma assim tão grande .
Disse-lhe na cara que era. Talvez ' tivesse enganado .
O capitão assentiu com a cabeça. Eu também não sou nenhum
palerma, Mr Parham . Sei que você não o traria até mim . Mesmo que
ele tivesse as mãos cobertas de sangue . Sobretudo se assim fosse .
Billy fez que sim com a cabeça. Passe bem , disse .
Saiu e subiu a rua e entrou no primeiro bar que encontrou e pediu
um copo de whiskey e levou-o até à cabina telefónica, na parede dos
fundos . Socorro atendeu , e ele explicou-lhe o que sucedera e pediu
que ela chamasse Mac , mas Mac já estava ao telefone .
Espero que me vás explicar que trapalhada é esta.
Sim, senhor. Vou , sim. Se ele aparecer por aí, não o deixe sair outra
vez, se puder.
Talvez me queiras dizer como é que pretendes mantê-lo preso num
lugar onde ele não queira ' tar.
Eu volto praí assim que puder. Só vou espreitar nalguns lugares .
Eu vi logo que havia qualquer coisa nesta história que não batia
certo .
Sim, senhor.
Sabes onde é que ele ' tá?
Não , senhor. Não sei .
Telefona-me assim que souberes alguma coisa. Ouviste bem?
Sim, senhor.
Telefona-me , quer saibas alguma coisa, quer não . Não me deixes
aqui pendurado a noite inteira .
Sim, senhor. ' Teja descansado .
Pousou o auscultador e bebeu o whiskey e levou o copo vazio
para o balcão e pousou-o ali . Otra vez , disse . O barman serviu-o .
O estabelecimento estava vazio, com exceção de um só bêbedo . Ele
256 Cormac McCarthy

bebeu o segundo copo e pousou uma moeda de vinte e cinco cênti­


mos no balcão e saiu . Ao caminhar pela Juárez Avenue acima, os
taxistas chamavam-no sem parar, desafiando-o a ir ver o espetáculo .
A ir ver as raparigas .

John Grady bebeu um whiskey puro no Kentucky Club e pagou e


saiu e dirigiu um aceno de cabeça ao taxista parado à esquina. Entra­
ram no automóvel , e o taxista virou-se e olhou para ele .
Para onde é que vai , meu amigo?
Pro White Lake .
O outro virou-se e ligou o motor e arrancaram pela rua fora. A chu­
va convertera-se num chuvisco constante , mas as ruas estavam alaga­
das , e o táxi rolava devagar e subiu a Juárez Avenue que nem um
barco , as luzes espalhafatosas refletidas na água negra a espraiarem-se
e a oscilarem e a recomporem-se novamente na sua esteira.
O carro de Eduardo encontrava-se estacionado na viela, no escuro
da parede do armazém , e ele aproximou-se do veículo e tentou abrir­
-lhe a porta. Em seguida, ergueu a bota e desferiu um pontapé no
vidro da janela. O vidro era laminado e formou uma teia de aranha
sob a claridade e abaulou para dentro . Ele aplicou-lhe novo golpe
com a bota , e o vidro tombou para cima do assento , e ele enfiou o
braço no interior e pôs o pomo da mão sobre a buzina e fê-la soar
três vezes e recuou . O som ecoou na viela e dissipou-se . Ele despiu
o oleado e tirou a faca do bolso e agachou-se e entalou as calças de
ganga nos canos das botas e enfiou a faca, metida na respetiva bai­
nha, na bota esquerda. Em seguida, estendeu o oleado sobre o capot
do carro e tomou a tocar a buzina. O eco ainda mal se dissipara
quando a porta nas traseiras do edifício se abriu e Eduardo saiu para
o exterior e se encostou à parede , furtando-se à luz .
John Grady afastou-se de junto do carro . Um fósforo chamejou , e
o rosto de Eduardo curvou-se à luz da labareda, com um dos seus
pequenos cigarillos nos dentes . O fósforo moribundo descreveu um
arco na viela .
O pretendente , disse .
Avançou , penetrando na luz , e debruçou-se sobre o parapeito de
ferro . Puxou uma fumaça e olhou para o seio da noite . B aixou os
olhos para o rapaz .
Cidades da Planície 257

Podias ter batido à minha porta.


John Grady tirara o impermeável do capot do carro e postou-se no
meio da viela, com o impermeável dobrado debaixo do braço . Eduar­
do fumava.
Vieste pagar-me o dinheiro que me deves , calculo .
Vim matar-te .
O chulo chupou vagarosamente no cigarillo . Inclinou a cabeça
ligeiramente e soprou o fumo para o alto num fino jorro dos seus
lábios finos .
Não me parece , declarou .
Virou-se e , lentamente , desceu os três degraus que conduziam à
viela . John Grady deu alguns passos para a esquerda e ficou à es­
pera .
Acho que nem sabes ao certo porque é que aqui estás , prosseguiu
Eduardo . O que é muito triste . Talvez eu te possa instruir. Talvez
ainda haja tempo para aprender. Tomou a puxar uma fumaça do ci­
garillo e depois deixou-o cair e espalmou-o com a bota num movi­
mento de torção .
John Grady nem sequer o viu a sacar da navalha. Talvez ele a ti­
vesse oculta na palma da mão desde o início . Ouviu-se um pequeno
estalido agudo , e uma cintilação fugaz refletiu-se na lâmina. E de­
pois novamente a cintilação . Como se ele estivesse a rodar a navalha
na mão . John Grady sacou a faca do cano da bota e enrolou o imper­
meável no antebraço direito e agarrou a ponta solta no punho fecha­
do . Eduardo avançou para o meio da viela, para ficar com a luz por
trás de si. Escolhia cuidadosamente onde punha os pés , evitando as
poças de água da chuva. A camisa de seda clara ondulava-lhe à luz .
Voltou-se e olhou para o rapaz .
Muda de ideias , aconselhou . Vai-te embora. Escolhe a vida . Ainda
és jovem .
Vim matar-te ou morrer.
Ah , volveu Eduardo .
Não vim pra conversar.
É apenas uma formalidade . Por causa da tua juventude .
Não tens de te afligir com a minha juventude .
O chulo estava parado na viela. A camisa aberta no colarinho . O
cabelo escorrido e impregnado de gordura era azul à luz . Segurava a
25 8 Cormac McCarthy

fina navalha de ponta e mola com um gesto descontraído . Queria que


soubesses que ainda estou disposto a perdoar-te , disse .
Adiantara-se em passos quase impercetíveis . Parou . A cabeça li­
geiramente pendida para o lado . À espera .
Vou dar-te todos os trunfos . Talvez não tenhas participado em as­
sim tantas rixas . Penso que irás descobrir que , muitas vezes, num
combate , o último a falar acaba por ser derrotado .
Levou dois dedos aos lábios , a aconselhar silêncio . Em seguida,
pôs a mão em concha e fez sinal ao rapaz para avançar. Vem, disse .
Temos de dar um primeiro passo . É como um primeiro beijo.
Ele obedeceu . Deu um passo em frente e fez uma negaça e tentou
golpear o chulo com a faca de viés e tornou a recuar. Eduardo ar­
queou as costas como um gato e ergueu os cotovelos para que a
lâmina lhes passasse por baixo . A sombra dele na parede do arma­
zém assemelhava-se a um maestro sombrio a erguer a batuta para
começar. Sorriu e rodou em círculo . A cabeça muito lisa rebrilhava­
-lhe . Quando arremeteu , baixou-se imenso e moveu-se da esquerda
para a direita , e a navalha passou diante dele três vezes , demasiado
rápida para que alguém a conseguisse acompanhar e quase demasia­
do rápida para se ver. John Grady repeliu a lâmina com o braço di­
reito embrulhado no impermeável e recuou aos tropeções e recupe­
rou o equilíbrio , mas Eduardo estava de novo a descrever círculos ,
sorridente .
Julgas que nunca tínhamos visto tipos como tu? Eu já vi muitos
tipos como tu . Tantos , tantos . Julgas que eu não conheço a América?
Eu conheço a América. Que idade julgas tu que eu tenho?
Parou e agachou-se e fez uma negaça e tornou a caminhar, descre­
vendo um círculo . Tenho quarenta anos , continuou . Um velho , não?
Mereço respeito , não? Não estas rixas em vielas com navalhas .
Tornou a arremeter e , quando recuou , tinha o braço ferido mesmo
abaixo do cotovelo , e a camisa de seda amarela estava escura do
sangue . Ele pareceu não reparar.
Não estas rixas com pretendentes . Com campónios . Que são aos
magotes , que nunca mais acabam .
Deteve-se e deu meia-volta e começou a caminhar em sentido
oposto . Parecia um ator a percorrer um palco . Por vezes , parecia
quase nem reparar na presença do rapaz .
Cidades da Planície 259

Descem um por um do paraíso leproso onde vivem, em busca de


uma coisa agora extinta entre eles . Uma coisa para a qual talvez já
não tenham sequer um nome . Sendo campónios, é claro , o primeiro
lugar que lhes ocorre para procurar é um bordel .
O sangue gotejava-lhe da manga. Os pingos vagarosos e escuros
desapareciam na areia escura que ambos pisavam . Ele brandiu a na­
valha para trás e para diante à sua frente , na sua lenta caminhada no
sentido dos ponteiros do relógio . Como um homem a cortar ervas
daninhas a esmo .
·
Por esta altura, naturalmente , o anseio toldou-lhes a inteligência.
A pouca inteligência que possuem, é claro . As verdades mais simples
obscurecem-se . Eles parecem não conseguir perceber que o facto
mais elementar respeitante às putas -
De súbito , ei-lo muito baixo diante de John Grady. Quase de joe­
lhos . Quase como um suplicante . O rapaz não conseguia entender
como é que ele ali fora parar, mas , quando o chulo se afastou e reto­
mou o seu caminhar em círculo , a coxa do rapaz estava aberta num
fundo lanho , e o sangue quente corria-lhe pela perna abaixo .
É que elas são putas , completou Eduardo .
Agachou-se e fez uma negaça e tomou a descrever o seu círculo .
Em seguida, aproximou-se e , com um golpe de revés , executou outro
corte , não mais do que dois dedos acima do primeiro .
Julgas que ela não me suplicou que fosse ter com ela? Queres que
eu te conte as coisas que ela queria que eu lhe fizesse? Coisas que
ultrapassam a imaginação de um campónio , posso garantir-te .
Mentiroso .
O pretendente fala .
Lançou-se com a sua faca, mas Eduardo desviou-se para o lado e
endireitou-se , tão pequeno e tão estreito , e desviou a cabeça com ar
de desdém, à maneira dos toureiros . Rodaram em círculo .
Antes de te reclamar completamente para mim , vou dar-te ainda
uma última oportunidade de te salvares. Deixo-te ir embora, preten­
dente . Se te quiseres ir embora.
O rapaz moveu-se de viés, de olhar atento . O sangue arrefecera­
-lhe na perna. Passou pelo nariz a manga do braço que segurava a
faca. Salva-te , disse . Se puderes. Salva-te , chefe do putedo .
Ele chama-me nomes .
260 Cormac McCarthy

Rodavam em círculo .
Ele faz ouvidos moucos à razão . Aos amigos . Ao maestro cego .
A todos. Nada o seduz tanto como atirar-se para a sepultura de uma
puta morta . E ainda me chama nomes .
Volvera o rosto para o alto . Estendeu a mão , como que para deno­
tar a inutilidade dos conselhos , e pareceu dirigir-se a uma qualquer
testemunha invisível .
Eis aqui um campónio de truz , atirou . Um campónio e peras .
Fez uma negaça para a esquerda e feriu John Grady uma terceira
vez na coxa.
Vou explicar-te o que estou a fazer. O que , aliás , já fiz . Porque ,
mesmo sabendo-o , não terás capacidade para lhe pôr travão . Queres
que te diga?
Ele nada diz , o pretendente . Muito bem . Eis o meu plano . Um trans­
plante cirúrgico . Pôr o cérebro do pretendente dentro da coxa dele . O
que é que te parece?
Rodou em círculo . A navalha pairava devagar, para trás e para
diante . Acho que talvez já tenha conseguido . E como é que um ho­
mem assim pode pensar? Cujo cérebro sofreu uma tal trasladação .
Ele ainda tem esperança de viver. É claro . Mas está a ficar mais
fraco . A areia está a beber-lhe o sangue . O que é que achas , preten­
dente? Vais falar ou não?
Tornou a fazer uma negaça com a navalha e recuou e continuou a
descrever o seu círculo .
Ele nada diz . No entanto , quantas vezes o avisaram? E depois ain­
da tentou comprar a rapariga? Desde esse momento até este , tudo se
tornou tão certo como a escuridão e o dia claro .
John Grady fez uma negaça e vibrou duas cutiladas com a faca .
Eduardo contorceu-se como u m gato a cair. Rodaram e m círculo .
És como as putas do camp o, campónio . Acreditas que a loucura é
sagrada. Uma graça especial . Um toque especial . Uma partilha da
natureza divina.
Segurou a navalha diante de si, ao nível da cintura, e passou-a
vagarosamente para trás e para diante .
Mas o que é que isso nos diz acerca de Deus?
Moveram-se simultaneamente . O rapaz tentou agarrar-lhe o braço .
Debateram-se , desferindo golpes . O chulo empurrou-o para trás e
Cidades da Planície 26 1

recuou , rodando em círculo . Tinha a camisa cortada no peitilho e


via-se-lhe um rasgão vermelho sobre o ventre . O rapaz permanecia
de mãos baixas , palmas voltadas para o chão , à espera. Tinha o braço
esfacelado e deixara cair a faca na areia. Não tirou os olhos do chulo .
Tinha dois cortes no ventre e escorria sangue . O impermeável desen­
rolara-se e pendia-lhe do antebraço , e ele enrolou-o de novo devagar
e prendeu-lhe a ponta no punho fechado e endireitou-se .
O pretendente parece ter perdido a faca. Não é lá muito bom , hem?
Voltou-se , começou a rodar em sentido oposto . B aixou os olhos
para a faca.
O que é que vamos fazer agora?
O rapaz não respondeu .
O que é que me dás em troca da faca?
O rapaz observava-o .
Faz-me uma oferta, sugeriu Eduardo . O que é que davas , neste
momento , para poderes recuperar a faca?
O rapaz virou a cabeça e escarrou . Eduardo virou-se e regressou
atrás em passo lento .
Dás-me um olho?
O rapaz fez menção de se baixar e agarrar a faca, mas Eduardo
lançou-lhe um gesto de aviso e calcou a lâmina com a sua bota negra
e esguia.
Se me deixares arrancar-te um olho da cara, eu dou-te a faca , pros­
seguiu . Caso contrário, corto-te a garganta e pronto .
O rapaz nada disse . Observava-o .
Pensa bem , aconselhou Eduardo . Com um olho são , talvez ainda
me consigas matar. Uma escorregadela descuidada. Um golpe feliz .
Quem sabe? Tudo é possível . O que é que me dizes?
Afastou-se ligeiramente para a esquerda e regressou . A faca jazia
espalmada contra o seu molde na areia.
Nada, hem? Deixa cá ver. Vou fazer-te uma oferta melhor. Dá-me
uma orelha. Que tal?
O rapaz lançou-se num salto , tentando agarrar-lhe o braço. Ele
rodopiou , furtando-se , e passou a lâmina mais duas vezes pelo ventre
do rapaz . O rapaz mergulhou ao encontro da faca caída, mas Eduar­
do já estava de pé sobre ela, e ele recuou , agarrado ao estômago , com
o sangue quente a escorrer-lhe por entre os dedos .
262 Cormac McCarthy

Vais ver as tuas tripas antes de morrer, avisou Eduardo . Recuou .


Pega na faca, ordenou .
O rapaz ficou a olhá-lo .
Pega na faca. Julgaste que eu estava a falar a sério? Pega na faca .
Ele curvou-se e pegou n a faca e limpou a lâmina ao flanco das
calças de ganga. Rodaram em círculo . A lâmina de Eduardo cortara­
-lhe a fáscia dos músculos do estômago , e ele sentia-se quente e ago­
niado e tinha a mão pegajosa do sangue , mas tinha medo de soltar a
própria barriga. O impermeável tomara a desenrolar-se , e ele sacudiu­
-o para o soltar e deixou-o cair atrás de si . Rodaram em círculo .
As lições são difíceis de aprender, notou Eduardo . Parece-me que
terás de concordar. Mas , neste ponto, o futuro não é assim tão incerto .
O que é que vês? De um cuchillero para outro . De um.filero para outro .
Fez uma negaça com a navalha . Sorriu . Rodaram em círculo .
O que é que ele vê , o pretendente . Ainda espera algum milagre?
Talvez veja a verdade , por fim , nos seus próprios intestinos . Como
fazem os velhos brujos do campo .
Aproximou-se com a navalha e fez uma negaça junto do rosto do
rapaz , e , em seguida, a lâmina tombou num arco etéreo de luz des­
cendente e ligou as três barras por meio de um corte vertical para lhe
formar a letra E na carne da coxa.
Rodou em círculo para a esquerda. Atirou o cabelo oleoso para
trás com um golpe da cabeça.
Sabes qual é o meu nome , campónio? Sabes como é que eu me
chamo?
Virou costas ao rapaz e afastou-se vagarosamente . Dirigia-se à noite .
Ao morrer, talvez o pretendente perceba que foi a sua sede de
mistérios que o condenou . Putas . Superstição . Por fim, a morte . Por­
que foi isso que te trouxe até aqui . Era disso que andavas à procura .
Voltou para trás . Passou a lâmina de novo na sua frente naquele
gesto vagaroso semelhante a uma gadanha e olhou para o rapaz com
ar interrogador. Como se este lhe pudesse responder, por fim .
Eis o que te trouxe até aqui e o que sempre te trará aqui . A s pes­
soas como tu não suportam a ideia de o mundo ser banal . De o mun­
do não conter mais nada, à parte o que se ergue diante de nós . Mas
o mundo mexicano é um mundo feito somente de adornos , e, por
baixo , é extremamente singelo . Enquanto o vosso mundo . . . - pas-
Cidades da Planície 263

sou a lâmina para trás e para diante , qual uma lançadeira através de
um tear - o vosso mundo paira, prestes a cair, sobre um labirinto de
perguntas que ninguém se atreve a formular. E nós vamos devorar­
-vos , meu amigo . A vocês e a todo o vosso pálido império .
Quando ele tomou a arremeter, o rapaz não fez qualquer esforço
para se defender. Limitou-se a vibrar golpes com a faca , e, ao recuar,
Eduardo tinha novos cortes no braço e a rasgar-lhe o peito . Atirou a
cabeça novamente para trás , para descolar do rosto as madeixas ne­
gras escorridas . O rapaz aguentou a pé firme , impassível , seguindo-o
com os olhos . Estava encharcado em sangue .
Não tenhas medo , voltou à carga Eduardo . Não dói assim tanto .
Havia de doer amanhã. Mas não vai haver amanhã.
John Grady continuava a agarrar o próprio ventre . Tinha os dedos
pegajosos de sangue e sentia qualquer coisa a assomar-lhe para a pal­
ma da mão . Tomaram a terçar armas , e Eduardo rasgou-lhe as costas
do braço , mas ele continuou agarrado ao ventre e recusou-se a desviar
a mão . Rodaram. As botas dele faziam um som macio e viscoso.
Por causa de uma puta , observou o chulo . Por causa de uma puta.
Tomaram a acercar-se um do outro , e John Grady baixou o braço
que empunhava a faca. Sentiu a lâmina de Eduardo a escorregar-lhe
da costela e a cruzar-lhe a parte de cima do estômago e a passar
adiante . Ficou sem fôlego . Não fez nenhum esforço para se furtar
nem para aparar o golpe . Ergueu a faca num movimento brusco , gol­
peando de baixo para cima a partir do joelho , e cravou-a no alvo e
recuou aos tropeções . Ouviu o estalo dos dentes do mexicano no
momento em que o queixo dele se fechou com uma pancada violen­
ta. A navalha de Eduardo tombou com um leve chapinhar na peque­
na poça de água estagnada a seus pés , e ele virou costas . Em seguida,
olhou para trás . Dir-se-ia um homem ao subir para um comboio . O
cabo da faca de mato sobressaía-lhe da face inferior do queixo . Ele
ergueu a mão e tocou-lhe . Tinha a boca fechada num esgar. Tinha o
queixo pregado ao maxilar superior e agarrou o cabo a mãos ambas ,
como se o fosse arrancar, mas não o fez . Afastou-se e deu meia-volta
e encostou-se à parede do armazém . Em seguida, sentou-se . Fletiu os
joelhos , aproximando-os do tronco , e ficou ali sentado a respirar,
arquejante , de dentes semicerrados . Pousou as mãos às ilhargas e
olhou para John Grady e depois , ao fim de um certo tempo , debru-
264 Cormac McCarthy

çou-se devagar e ficou tombado na viela, contra a parede do edifício ,


e não se tomou a mexer.
John Grady estava encostado à parede , do lado oposto da viela, a
agarrar a barriga com as duas mãos . Não te sentes , ordenou . Não te
sentes .
Conseguiu equilibrar-se e soprou com força e recuperou o fôlego e
olhou para o chão . A camisa pendia-lhe em farrapos sangrentos . Um
tubo cinzento de intestino comprimia-se-lhe entre os dedos . Rangeu
os dentes e agarrou o intestino e empurrou-o para dentro da ferida e
cobriu-o com a mão . Deu alguns passos e apanhou da água a navalha
de Eduardo e cruzou a viela e, ainda a agarrar o ventre , despojou o
inimigo da camisa de seda, cortando-a com uma mão , e, apoiando-se
à parede , com a navalha entre os dentes , enrolou a camisa em volta
do próprio corpo e amarrou-a com força. Em seguida, deixou a nava­
lha cair na areia e deu meia-volta e avançou lentamente , de pernas
trémulas , pela viela fora, até sair para a estrada.
Tentou evitar as ruas principais . O jorro das luzes da cidade que
lhe servia de farol pairava sobre o deserto como uma alvorada eter­
namente prestes a acontecer. As botas dele iam-se enchendo de san­
gue , e ele deixava rastos sanguinolentos nas ruas arenosas dos bar­
rios , e os cães surgiam na rua atrás dele para lhe farejar o cheiro e
eriçavam as cerdas do cachaço e rosnavam e esgueiravam-se para
longe . Ele falava sozinho à medida que caminhava. Começou a con­
tar os passos . Ouvia sereias ao longe e, a cada passo , sentia o sangue
quente a ressumar-lhe entre os dedos enclavinhados .
Quando alcançou a Calle de Noche Triste , sentia a cabeça andar à
roda e tinha os pés a vacilar debaixo dele . Encostou-se a uma parede
e reuniu forças para atravessar a rua. Nenhum carro passou .
Não comeste , disse . Nisso é que foste esperto .
Fez força com as mãos contra a parede e afastou-se desta. Parou na
berma do passeio e apalpou o chão diante de si com um pé e tentou
estugar o passo , para o caso de surgir algum carro , mas tinha medo de
cair e não sabia ao certo se conseguiria levantar-se outra vez .
Um pouco mais tarde , lembrou-se de ter atravessado a rua, mas
parecia-lhe que fora há imenso tempo . Vira luzes lá adiante . Acabou
por perceber que eram de uma fábrica de tortilhas . Um estralejar de
velha maquinaria movida por correias de transmissão , alguns traba-
Cidades da Planície 265

lhadores de aventais polvilhados de farinha a conversar sob uma


lâmpada elétrica amarela. Ele seguiu em frente , a cambalear. Deixou
para trás casas escuras . Terrenos baldios . Velhos muros esboroados
de lama seca, meio sepultados em lixo trazido pelo vento . Abrandou ,
ficou parado , a vacilar. Não te sentes , avisou .
Mas sentou-se . O que o despertou foi alguém a revistar-lhe os bol­
sos ensopados de sangue . Agarrou um pulso esguio e ossudo e er­
gueu os olhos para fitar um rapazito . O garoto esbracejou e deu
pontapés e tentou libertar-se . Chamou os amigos em altos gritos , mas
eles já iam a fugir pelo terreno baldio . Todos haviam julgado que ele
estava morto .
Ele puxou o garoto para si. Mira , começou . Está bien . No te mo-
lestaré.
Déjame , pediu o garoto .
Está bien . Está bien .
O garoto dava puxões para um lado e para o outro . Procurou os
amigos com os olhos , mas eles tinham desaparecido nas trevas . Dé­
jame , suplicou . Estava à beira das lágrimas .
John Grady falou com ele do modo como falaria com um cavalo
e , ao fim de um certo tempo , o garoto parou de se debater e ficou ali
de pé . Ele disse-lhe que era um grande fi lero e que acabara de matar
um homem ruim e que precisava da ajuda do garoto . Explicou que a
polícia ia andar à procura dele e que precisava de se esconder. Falou
muito tempo . Contou ao garoto as suas proezas de faquista e , com
grande dificuldade , levou a mão ao bolso de trás das calças e tirou
de lá a carteira e deu-a ao garoto . Disse-lhe que o dinheiro que ali
havia era para ele e depois explicou-lhe o que devia fazer. Em segui­
da, pediu ao garoto que lho repetisse . Depois soltou o pulso do garo­
to e esperou . O garoto recuou um passo . Ficou ali parado , a segurar
a carteira manchada de sangue . A seguir, acocorou-se e fitou o ho­
mem nos olhos . Os braços a cingir os joelhos ossudos . Puede andar?
perguntou .
Un poquito . No mucho .
Es peligroso aquí.
Sí. Tienes razón .
O garoto fê-lo levantar-se , e ele apoiou-se naquele ombro magro
enquanto se dirigiam para o recanto mais distante do terreno baldio ,
266 Cormac McCarthy

onde , atrás do muro , havia uma casita de brincar feita de caixotes


desmantelados . O garoto ajoelhou-se e ergueu uma cortina de sera­
pilheira e ajudou-o a gatinhar lá para dentro . Disse que havia ali uma
vela e fósforos , mas ofilero ferido respondeu que era mais seguro na
escuridão . Começara a sangrar de novo abundantemente . Sentia-o
debaixo da mão . Vete , ordenou . Vete . O rapaz deixou cair a cortina .
Os colchões onde ele se deitara estavam húmidos da chuva e chei­
ravam muito mal . Tinha imensa sede . Tentou não pensar. Ouviu um
carro a passar na rua. Ouviu um cão a ladrar. Jazia com a seda ama­
rela da camisa do inimigo embrulhada em volta dele como uma faixa
cerimonial que o sangue tingira de escuro e manteve a mão enclavi­
nhada e coberta de sangue sobre a parede retalhada do estômago .
A apertar-se com força para não escapar de si mesmo , pois sentia-a
cada vez mais , aquela leveza que ele tomava pela sua alma e que se
postava, tão hesitante , à porta do seu eu corpóreo . Dir-se-ia um ani­
mal de passo veloz que estivesse parado , a farejar o ar diante da
porta aberta de uma gaiola. Ouviu o dobrar distante dos sinos da
catedral na cidade e ouviu o seu próprio fôlego , suave e incerto , no
frio e nas trevas daquela casa de brincar de crianças , naquela terra
alheia onde ele jazia no seu próprio sangue . Ajuda-me , suplicou . Se
achas que eu mereço . Ámen .

Quando deparou com o cavalo aparelhado na coxia central do es­


tábulo , conduziu-o para o exterior e montou-o e rompeu pelo escuro ,
subindo pela estrada velha, em direção à casita de adobe de John
Grady. Tinha esperança de que o cavalo lhe desse uma pista qual­
quer. Quando chegou à casa e viu a luz à janela, lançou o cavalo a
trote e atravessou o ribeiro a chapinhar e entrou no quintal , onde
parou o animal e desmontou e chamou ó da casa.
Abriu a porta com um empurrão . Comparsa? chamou . Comparsa?
Entrou no quarto de dormir.
Comparsa?
Não estava ali ninguém . Ele saiu e chamou e esperou e tomou a
chamar. Tomou a entrar e abriu a portinhola do fogão . O lume estava
preparado para acender, com achas de lenha e acendalhas e folhas de
jornal . Fechou a portinhola e saiu novamente . Chamou , mas nin­
guém respondeu . Montou e afrouxou por completo as rédeas e inci-
Cidades da Planície 267

tou o cavalo com os joelhos , mas o animal apenas queria atravessar


o ribeiro em sentido inverso e meter novamente pela estrada abaixo .
Deu meia-volta e cavalgou de regresso à casita e ali ficou à espera
durante uma hora, mas ninguém apareceu . Quando chegou ao ran­
cho , era quase meia-noite .
Deitou-se no catre e tentou dormir. Pareceu-lhe ouvir o apito de
um comboio ao longe , ténue e perdido . Seguramente adormeceu ,
porque teve um sonho em que a rapariga morta vinha ao seu encon­
tro , a ocultar a garganta com a mão . Estava coberta de sangue e
tentou falar, mas não foi capaz . Ele abriu os olhos . Muito ao longe ,
ouviu o telefone a tocar na casa .
Quando chegou à cozinha, Socorro estava ao telefone , de roupão .
Lançou a Billy gestos desvairados . Sí, sí, disse . Sí, joven . Espérate .

Despertou , frio e a transpirar e com uma sede devoradora. Perce­


beu que o novo dia chegara, porque sentia um sofrimento atroz .
Quando se mexeu , o sangue coagulado nas roupas estalou em volta
dele como gelo . Foi então que ouviu a voz de Billy.
Comparsa, disse este . Comparsa .
Abriu o s olhos . Billy estava ajoelhado junto dele . Atrás de Billy,
o garoto segurava o pano , e, lá fora, o mundo era frio e cinzento .
Billy virou-se para o garoto . Á ndale , ordenou . Rápido . Rápido .
A cortina tombou . Billy riscou um fósforo e ergueu-o ao alto . Meu
grandessíssimo palerma, ralhou . Meu grandessíssimo palerma.
Pegou no coto de vela pousado no seu pires que se encontrava
numa prateleira pregada ao caixote e acendeu a vela e aproximou-a
do amigo . Ah , merda , soltou . Meu grandessíssimo palerma . Conse­
gues andar?
Não me mexas daqui .
Tem de ser.
Seja como for, não me conseguias levar pro outro lado da fronteira.
O tanas é que não consigo .
Ele matou-a, comparsa . O filho da puta matou-a.
Eu sei .
A polícia anda a dar-me caça.
O JC vai trazer a carrinha. Levamos a merda da cancela à frente ,
se for preciso .
268 Cormac McCarthy

Não me mexas daqui , comparsa. Não vou a lado nenhum.


O tanas é que não vais .
Não sou capaz . Pensei que era, a princípio . Mas não sou .
Vamos lá com calma. Não ' tou pra ouvir essas merdas . Raios , já
tive arranhadelas piores do que essa no olho .
'Tou todo cortado aos bocados , Billy.
Nós levamos-te de volta. Não te vás abaixo agora, raios partam .
Billy. Escuta. Não faz mal . Eu sei que não me vou safar.
Já te disse .
Não . Escuta. Pfff. Não sabes o que eu dava por um copo de água
fresca .
Eu vou buscar.
Fez menção de pousar a vela no chão , mas John Grady agarrou-lhe
o braço . Não vás , pediu . Talvez quando o miúdo voltar.
' Tá certo .
Ele disse que não ia doer nada. Aquele mentiroso da merda. Pfff .
Já ' tá a nascer o dia, não ' tá?
'Tá, sim .
Eu vi-a, comparsa . Tinham-na lá na morgue , e não parecia ela,
mas era ela. Encontraram-na no rio. Ele cortou-lhe a garganta, com­
parsa.
Eu sei .
Eu só o queria apanhar. Comparsa, eu queria tanto apanhá-lo .
Devias de me ter dito . Não tinhas nada que vir até cá sozinho .
Eu só o queria apanhar.
Tem calma, sim? Eles já aí chegam , não tarda. Aguenta firme ,
ouviste?
' Tá tudo bem. Isto dói como caraças , Billy. Pfff . 'Tá tudo bem .
Queres que vá buscar a tal água?
Não . Fica aqui . Ela era tão bonita, comparsa, raios partam .
Era, sim .
Afligi-me o dia inteiro por causa dela. Lembras-te de nós conver­
sarmos sobre pra onde é que as pessoas vão quando morrem. Eu acho
que vamos todos pra um lugar qualquer, e vi-a ali estendida e achei
que talvez ela não fosse pro Céu , porque , tu sabes porquê , e pensei
que ela era capaz de não ir e pensei em Deus , na maneira como Ele
perdoa as pessoas , e pensei se podia pedir a Deus que me perdoasse
Cidades da Planície 269

por matar aquele filho da puta, porque tu e eu sabemos que eu não


' tou nada arrependido e se calhar isto parece conversa de ignorante ,
mas eu não queria ser perdoado se ela não o fosse . Não queria fazer
nem ser nada que ela não fosse , como ir pro Céu ou coisa do género .
Eu sei que isto parece uma maluqueira. Comparsa, quando a vi ali
estendida perdi a vontade de viver. Percebi que a minha vida ' tava
acabada. Foi quase que um alívio pra mim .
Caluda, agora. Não acabou nada.
Ela queria agir como deve de ser. Isso tem de contar pra qualquer
coisa, não achas? Contou , no meu caso .
E também no meu .
Há um talão de penhor na parte de cima do meu baú . Se quiseres,
podes resgatar a minha arma e ficar com ela pra ti .
Havemos de a resgatar os dois .
É preciso pagar trinta dólares prà levantar. Também lá tenho di­
nheiro no baú . Num sobrescrito castanho .
Não te aflijas com nada. Tem calma, não te enerves .
A aliança do Mac 'tá naquela caixinha de latão . Devolve-lha, não
te esqueças . Pfff . Como caraças , comparsa.
Aguenta firme , ouviste?
Pusemos aquela casinha num brinco , não foi?
Pusemos , sim .
Achas que podias ficar com aquele cachorrinho pra ti e tratares
dele?
Tu vais lá ' tar. Não te aflijas com nada .
Isto dói , comparsa. Como caraças .
Eu sei . Aguenta firme .
Acho que se calhar vou precisar agora daquela pinguinha de água.
Aguenta firme . Eu vou buscar. Não me demoro nada.
Pousou o coto de vela, dentro do seu pires cheio de gordura, sobre
a prateleira, e saiu às arrecuas e deixou cair a cortina. Enquanto cor­
ria, atravessando o terreno baldio , olhou para trás . O quadrado de luz
amarela que brilhava através da serapilheira parecia um qualquer
santuário de esperança lá longe , na margem do mundo prestes a rom­
per, mas um mau pressentimento aflorou-lhe ao coração .
A meio do quarteirão havia um café que acabara de abrir as portas .
A rapariga que estava a dispor as mesinhas de metal teve um sobres-
270 Cormac McCarthy

salto quando o viu ali , desvairado e com ar de quem não dormiu , os


joelhos das calças ensanguentados de vermelho nos pontos onde ele
se ajoelhara no colchão ensopado de sangue .
Agua , pediu ele . Necesito agua .
Ela dirigiu-se para o balcão sem desviar os olhos dele . Tirou um
copo largo do expositor e encheu-o com água de uma garrafa e pou­
sou-o no balcão e recuou .
No hay un vaso más grande ? perguntou ele .
Ela fitou-o com ar lerdo .
Dame dos , pediu ele . Dos .
Ela pegou noutro copo e encheu-o e pousou-o no balcão . Ele pôs
uma nota de um dólar em cima do balcão e pegou nos dois copos e
saiu . Era uma alvorada cinzenta . As estrelas tinham-se esbatido , e as
formas sombrias das montanhas erguiam-se ao longo do céu . Ele
transportou os copos cautelosamente , um em cada mão , e atravessou
a rua.
Quando chegou à casinha feita de madeira de caixotes , a vela ardia
ainda, e ele pegou em ambos os copos com a mesma mão e empurrou
a serapilheira para trás e agachou-se , de joelhos no chão .
Aqui tens , comparsa, disse .
Mas já tinha visto . Pousou os copos de água com gestos vagaro­
sos . Comparsa, chamou . Comparsa?
O rapaz jazia com o rosto desviado da luz . Tinha os olhos abertos .
B illy chamou-o . Como se ele não pudesse ter ido para longe . Com­
parsa, chamou . Comparsa? Ah , raios partam . Comparsa?
Isto até mete dó , disse . Nunca vi nada na minha vida que metesse
assim tanto dó como isto . Nunca. Oh , meu Deus. Comparsa . Oh ,
raios partam.
Quando conseguiu cingi-lo nos braços , pôs-se de pé e virou-se .
Malditas putas , soltou . Chorava , e as lágrimas corriam-lhe pelo rosto
irado , e lançava brados ao dia estilhaçado , insultando todas as ramei­
ras , e chamava Deus , pedindo-lhe que visse o que tinha diante dos
olhos . Olha pra isto , bradava. Vês? Vês?
O sabat passara e, na alvorada cinzenta de segunda-feira, um cor­
tejo de colegiais vestidos de uniformes azuis, todos iguais , caminha­
va em fila atrás de uma mulher, ao longo do passeio coberto de sai­
bro . A mulher descera do lancil do passeio para levar as crianças a
Cidades da Planície 27 1

atravessar a rua, no cruzamento , quando viu o homem a aproximar­


-se pela rua acima, coberto de manchas escuras de sangue , a carregar
nos braços o cadáver do amigo . Ela ergueu o braço , e as crianças
estacaram e aglomeraram-se , com os livros escolares aconchegados
junto ao peito . Ele passou diante delas . As crianças não conseguiam
tirar os olhos dele . O rapaz morto nos seus braços pendia, com a
cabeça tombada para trás , e aqueles olhos semicerrados nada con­
templavam da paisagem que ia desfilando , feita da rua ou do muro
ou do céu cada vez mais pálido ou das silhuetas das crianças que se
benziam à luz cinzenta . Aquele homem e o seu fardo abandonaram
para todo o sempre aquele cruzamento sem nome , e a mulher tomou
a descer para a rua, e as crianças seguiram-na, e todos prosseguiram
ao encontro dos seus lugares previamente designados , que , segundo
alguns creem , foram escolhidos há já muito tempo , desde o começo
do mundo , até .
EPÍLOGO

Partiu três dias depois , ele e o cão . Um dia frio e ventoso . O ca­
chorro tremia e soltava latidos até que ele lhe pegou ao colo e o pôs
em cima do cepilho da sela ao montar. Acertara contas com Mac na
noite anterior. Socorro recusava-se a olhá-lo no rosto . Pousou o pra­
to diante dele , e ele ficou a olhar para o prato e depois levantou-se e
percorreu o corredor, deixando o prato intacto em cima da mesa .
Ainda ali estava quando ele tomou a cruzar a cozinha dez minutos
depois pela derradeira vez , e ela ainda estava diante do fogão , osten­
tando na testa, feita de cinza, a marca do polegar do padre , ali deixa­
da naquela manhã para lhe recordar a sua mortalidade . Como se ela
tivesse outro pensamento que não esse . Mac pagou-lhe , e ele dobrou
o dinheiro e guardou-o no bolso da camisa, que abotoou .
Quando é que te vais embora?
Amanhã de manhã.
Não és obrigado a ir.
Não sou obrigado a nada, só mesmo a morrer.
Não vais mudar de ideias?
Não , senhor.
Bom. Nada é pra sempre .
Certas coisas são .
Pois . Certas coisas são .
Lamento muito , Mr Mac .
Também eu , Billy.
Eu devia de ter cuidado melhor dele .
Todos devíamos .
Cidades da Planície 273

Sim, senhor.
Aquele primo dele chegou cá há uma hora. O tal Thatcher Cole .
Ligou da cidade . Disse que finalmente conseguiram falar com a mãe .
E o que é que ela disse?
Ele não me disse . Disse que já não tinham notícias dele vai pra três
anos . O que é que achas disto?
Não sei .
Nem eu .
O senhor vai até San Angelo?
Não . Se calhar, devia de ir. Mas não vou .
Sim, senhor. Bom.
Esquece isto tudo , rapaz .
Quem me dera. Acho que ainda vai demorar uns tempos .
Também me parece .
Sim, senhor.
Com um aceno de cabeça , Mac indicou a mão inchada e azul de
Billy. Não achas que devias de pedir a alguém que te visse essa mão?
Deixe ' tar.
Vais ter sempre trabalho aqui . O exército vai tomar conta deste
rancho , mas nós havemos de achar qualquer coisa pra fazer.
Fico-lhe muito agradecido .
A que horas sais?
Bem cedo .
Já disseste ao Oren?
Não , senhor. Ainda não .
Calculo que o vás ver ao pequeno-almoço .
Sim, senhor.
Mas não . Partiu a cavalo em plena escuridão , muito antes do
romper do dia , e cavalgou sem parar até o Sol nascer e quando o
Sol se pôs ainda continuava a cavalgar. Nos anos seguintes , uma
seca terrível abateu-se sobre o Texas ocidental . Ele seguia de terra
em terra . Não havia trabalho em nenhum recanto daquela região .
Viam-se as cancelas das pastagens abertas de par em par, e a areia
deslizava sobre as estradas , e, ao fim de alguns anos , passou a ser
raro ver gado , fosse de que género fosse , e ele cavalgava de terra
em terra . Dia após dia no mundo . Ano após ano no mundo . Até
chegar a velho .
274 Cormac McCarthy

Na primavera do segundo ano do novo milénio, estava a viver no


Hotel Gardner, em El Paso , no Texas , e trabalhava como figurante
num filme . Quando o trabalho se acabou , ele permaneceu no quarto .
Havia um televisor no átrio de entrada , e homens da idade dele e
mais novos sentavam-se ali ao serão , nas velhas cadeiras , e viam
televisão , mas ele não era grande apreciador e os homens tinham
pouca coisa para lhe dizer, ou ele a eles . O dinheiro acabou-se-lhe .
Três semanas depois , foi despejado . Havia muito que vendera a sela,
e saiu para a rua somente com o saco de viagem de cabedal e o rolo
de mantas .
Havia um sapateiro naquela rua, alguns quarteirões acima , e ele
entrou para ver se lhe podiam consertar a bota. O sapateiro olhou
para a bota e abanou a cabeça. A sola era agora fina que nem papel ,
e o cabedal puído soltara-se da costura . Ele levou a bota para as tra­
seiras e coseu-a na máquina de costura e voltou e pousou-a de pé em
cima do balcão . Recusou-se a aceitar dinheiro pelo trabalho . Disse
que a costura não ia segurar a sola, e não segurou mesmo .
Uma semana depois , estava algures no Arizona central . A chuva
descera do norte , e o tempo arrefeceu . Sentou-se por baixo de um
viaduto de betão e ficou a ver as rajadas de chuva a soprar através
dos campos . Os camiões pesados passavam , amortalhados pela chu­
va, com as luzes de presença acesas e as grandes rodas a girar que
nem turbinas . O trânsito este-oeste passava lá no alto com um rumo­
rejar abafado . Ele embrulhou-se no cobertor e tentou adormecer so­
bre o cimento frio , mas o sono demorava a chegar. Os ossos doíam­
-lhe . Tinha setenta e oito anos . O coração que já o deveria ter matado
havia tanto tempo , a fazer fé nas palavras dos médicos da tropa du­
rante os exames de recrutamento , ainda lhe tiquetaqueava no peito ,
embora não por vontade dele . Aconchegou as mantas em volta de si
e, ao fim de um certo tempo , adormeceu mesmo .
Durante a noite , sonhou com a irmã, morta havia setenta anos e
sepultada perto de Fort Sumner. Viu-a tão nitidamente . Nada muda­
ra , nada se esbatera. Ela caminhava devagar ao longo da estrada de
terra batida que passava junto da casa. Trazia no corpo o vestido
branco que a avó lhe costurara a partir de um lençol , e, nas mãos da
avó , o vestido adquirira um corpete pregueado e debruns de espigui­
lha entrelaçada com fita azul. Eis o que ela trazia no corpo . Isso e o
Cidades da Planície 275

chapéu de palha que lhe tinham oferecido pela Páscoa. Quando ela
passou diante da casa, ele percebeu que ela nunca mais tomaria a
entrar ali e que ele nunca mais a tomaria a ver, e , enquanto dormia,
chamou-a em voz alta para junto de si , mas ela não se voltou nem lhe
respondeu , limitou-se a caminhar por aquela estrada deserta, numa
tristeza infinita e numa infinita perda .
Acordou e ficou deitado no escuro e no frio e pensou nela e pensou
no irmão , que morrera no México . Em tudo se enganara, em tudo o que
alguma vez pensara acerca do mundo e acerca da sua vida no mundo .
À s primeiras horas da manhã, o trânsito na via rápida abrandou e
a chuva parou . Ele soergueu-se , sacudido por calafrios , e puxou o
cobertor em volta dos ombros . Metera no bolso do casaco alguns
pacotes de bolachas de água e sal de um restaurante de berma de
estrada e pôs-se a comê-las e a contemplar a luz cinzenta a ressumar
dos campos agrestes e molhados do outro lado da faixa de asfalto .
Pareceu-lhe ouvir os brados distantes de grous que estariam a dirigir­
-se para norte , para os seus lugares de veraneio , no Canadá, e pensou
neles adormecidos num campo alagado , no México , numa alvorada
já distante , apoiados numa só pata , no paul , com o bico enfiado na
plumagem , silhuetas cinzentas alinhadas em filas , quais monges en­
capuzados a fazer as suas orações . Quando olhou para o lado oposto
do viaduto , para a outra berma da autoestrada , viu outro homem
como ele , ali sentado , também solitário e sozinho .
O homem ergueu a mão numa saudação . Ele retribuiu o cumpri-
mento .
Buenos días , gritou o homem.
Buenos días .
Qué tiene de comer?
Unas galletas, nada más .
O homem assentiu com a cabeça. Desviou o olhar.
Podemos compartirlas .
Bueno , disse o homem em voz alta. Gracias .
Allí voy .
Mas o homem pôs-se de pé . Eu vou ter contigo , bradou .
Desceu o talude de betão e atravessou a faixa de rodagem e saltou
por cima da barreira de proteção e cruzou a placa central entre os
pilares redondos de cimento e atravessou as faixas que se dirigiam
276 Cormac McCarthy

para norte e trepou até onde B illy estava sentado e acocorou-se e


olhou para ele .
Não é grande coisa, disse B illy. Puxou do bolso os poucos pacotes
de bolachas de água e sal que lhe restavam e estendeu-os .
Muy amable , agradeceu o homem .
Está bien . A princípio , pensei que fosses outra pessoa.
O homem sentou-se e estendeu as pernas diante de si e cruzou os
pés . Rasgou um pacote de bolachas com um dente canino e tirou de
lá uma bolacha e ergueu-a e olhou para ela e depois mordeu-a,
partindo-a em doi s , e ficou a mastigar. Tinha um bigode hirsuto , a
pele macia e morena. Era difícil determinar qual a sua idade .
Quem é que achaste que eu podia ser? perguntou .
Alguém , mais nada. Uma criatura de quem eu tenho ' tado à espe­
ra, de certa maneira. Pareceu-me tê-la visto de raspão uma ou duas
vezes nestes últimos dias . Não cheguei a ver-lhe a cara como deve
de ser.
Qual é a aparência dessa tal criatura?
Não sei . Acho que , cada vez mais , se parece com um amigo .
Julgaste que eu era a morte .
Passou-me pela cabeça essa possibilidade .
O homem assentiu com a cabeça . Ia mastigando . B illy observa-
va-o .
Não és , pois não?
Não .
Continuaram a comer as bolachas de água e sal , sem nada que as
acompanhasse .
Adónde vas ? perguntou Billy.
AI sur. Y tú?
AI norte .
O homem fez que sim com a cabeça. Sorriu . Qué clase de hombre
comparta sus gal/e tas con la muerte ?
Billy encolheu os ombros . Que género de morte as comeria?
Que género de morte , com efeito , concordou o homem.
Eu não ' tava a tentar perceber nada . De todos modos el compartir
es la ley dei camino, verdad?
De veras .
Pelo menos, foi assim que me ensinaram desde pequeno .
Cidade s da Planície 277

O homem concordou com um aceno de cabeça. No México , em


certos dias do ano , é hábito pôr-se um lugar à mesa para a morte .
Mas talvez já soubesses isto .
Sim.
Ela tem imenso apetite .
Tem , sim .
Talvez meia dúzia de bolachas fossem consideradas um insulto .
Talvez ela tenha de se contentar com o que consegue agarrar. Co-
mo os restantes de nós .
O homem fez que sim com a cabeça. Sim , disse . É possível .
O trânsito tornara-se mais intenso na autoestrada. O Sol nascera.
O homem abriu o segundo pacote de bolachas . Disse que talvez a
morte tivesse uma perspetiva mais magnânima . Que talvez , à sua
maneira igualitária, a morte pesasse as dádivas dos homens a partir
do ponto de vista destes , e que assim , aos olhos da morte , as oferen­
das dos pobres em nada se distinguissem das de qualquer outra
pessoa .
Como Deus.
Sim. Como Deus.
Nadie puede sobornar a la muerte , declarou Billy.
De veras . Nadie .
Nem Deus.
Nem Deus .
Billy viu a luz a fazer sobressair as formas da água parada nos
campos , do outro lado da estrada. Pra onde é que vamos quando
morremos? perguntou .
Não sei , respondeu o homem . Onde é que estamos agora?
O Sol ergueu-se acima da planura atrás deles . O homem estendeu-
-lhe o último pacote de bolachas que restava.
Podes ficar com elas , disse Billy.
No quieres más ?
Tenho a boca demasiado seca.
O homem assentiu com a cabeça, guardou as bolachas de água e
sal no bolso . Para el camino , observou . Nasci no México . Há já
muitos anos que não vou até lá.
Vais pra lá agora?
Não .
278 Cormac McCarthy

Billy assentiu com a cabeça. O homem remirou o dia que aí vinha.


A meio da minha vida, começou , tracei o rumo desta sobre um mapa
e examinei-o durante muito tempo . Tentei perceber qual o desenho
que este rumo formava sobre a terra, porque achei que , se conseguis­
se entender esse desenho e identificar a sua forma, saberia melhor
como continuar a partir dali . Saberia qual deveria ser o meu rumo .
Poderia desvendar o futuro da minha vida.
E qual foi o resultado?
Diferente do que eu estava à espera .
Como é que soubeste que ' tavas a meio da tua vida?
Tive um sonho . Foi por isso que desenhei o mapa.
E qual era a aparência?
Do mapa?
Sim.
Era interessante . Parecia-se com diferentes coisas . Havia diferen-
tes perspetivas que uma pessoa podia adotar. Fiquei espantado .
Conseguias lembrar-te de todos os lugares onde tinhas 'tado?
Ah , sim . Tu não?
Não sei . Tenho ' tado em tantos lugares. Sim. Acho que sim. Se
metesse essa ideia na cabeça. Se me sentasse e me aplicasse a estudar
o assunto .
Sim . É claro . Foi esse o meu método . Cada coisa conduz a outra .
Duvido que consigamos esquecer a nossa jornada. Para o bem ou
para o mal .
Mas com que géneros de coisas se parecia? O mapa.
A princípio, vi ali um rosto , mas depois virei-o ao contrário e olhei­
-o de outras maneiras e, quando o tornei a virar, o rosto tinha desapa­
recido . E também não o consegui encontrar outra vez .
O que é que foi feito dele?
Não sei .
Mas viste-o mesmo ou só te pareceu que o tinhas visto?
O homem sorriu . Qué pregunta , retorquiu . Qual seria a diferença?
Não sei . Acho que tem de haver uma diferença.
Também eu . Mas qual é?
Bom. Não havia de ser como um rosto verdadeiro .
Não . Era um indício . Un bosquejo . Un borrador, quizás .
Sim .
Cidades da Planície 279

Seja como for, é difícil alhearmo-nos dos nossos desejos e vermos


as coisas dotadas de vida própria .
Acho que vemos aquilo que temos diante dos olhos , mais nada.
Sim. Eu cá não acho o mesmo .
Como foi o sonho?
O sonho , repetiu o homem .
Não tens de me contar.
Como é que sabes?
Não tens de me contar nada .
Talvez . Seja como for, havia um homem que estava a viajar atra­
vés das montanhas e chegou a um lugar nas montanhas onde certos
peregrinos se costumavam reunir em tempos muito remotos .
Isso é o sonho?
Sim.
Ándale pues .
Gracias . Onde os peregrinos se costumavam reunir em tempos
muito remotos . En tiempos antiguos .
Já antes contaste esse sonho .
Sim.
Ándale .
En tiempos antiguos . Era uma garganta altaneira nas montanhas ,
o tal lugar onde ele chegara , e havia ali uma laje de rocha, e a laje
de rocha era muito antiga e tombara nos dias precoces da terra de
um alto pefiasco nas montanhas e jazia no fundo da garganta com o
seu flanco liso e fendido exposto às intempéries e ao sol . E na su­
perfície desta rocha viam-se ainda as manchas de sangue daqueles
que tinham sido massacrados em cima dela para apaziguar os deu­
ses . O ferro no sangue destes seres desaparecidos enegrecera a pedra
e ali podia ser visto . Juntamente com os entalhes dos golpes de ma­
chados ou as marcas das espadas sobre a pedra para mostrar onde
essa tarefa fora levada a cabo .
Esse lugar existe mesmo?
Não sei . Sim . Existem lugares assim . Mas este lugar não era um
desses . Este era um lugar de sonho .
Ándale .
De modo que o viajante chegou a este lugar ao cair da noite , quan­
do as montanhas em volta estavam a escurecer e o vento na garganta
280 Cormac McCarthy

ia arrefecendo com o cair da noite , e ele pousou o seu fardo para re­
pousar e tirou o chapéu para arrefecer a testa e foi então que os olhos
lhe tombaram sobre a tal ara manchada de sangue que as intempéries
da sierra e as tempestades da sierra se tinham mostrado ao longo de
tantos milénios impotentes para purgar. E foi ali que ele escolheu
passar a noite , tal é a imprudência daqueles que Deus teve a bondade
de proteger da sua justa parcela de adversidade neste mundo .
Quem era o viajante?
Não sei .
Eras tu?
Não me parece . Mas a verdade é que , se nem no mundo palpável
nos reconhecemos , que hipóteses teremos de nos reconhecer em so­
nhos?
Eu cá acho que saberia, se fosse eu .
Sim. Mas nunca encontraste pessoas em sonhos que nunca antes
tinhas visto? Em sonhos ou fora deles?
Claro .
E quem eram elas ?
Não sei . Gente imaginária.
Tu achas que as inventaste . No teu sonho .
Acho que sim . Claro .
Eras capaz de o fazer acordado?
Billy tinha os braços sobre os joelhos . Não , respondeu . Acho que
não .
Não . Seja como for, parece-me que o nosso eu , nos sonhos ou fora
deles, é somente a parcela que escolhemos ver. Deduzo que cada ho­
mem seja mais do que julga.
Ándale .
Portanto . Este viajante era um homem assim. Pousou o seu fardo
e remirou o cenário à sua volta, cada vez mais escuro . Naquela gar­
ganta altaneira nada havia senão penhascos e taludes de cascalho , e ,
como ele pretendia ao menos elevar-se acima dos trilhos prováveis
das serpentes durante a noite , acercou-se do altar e pôs-lhe as mãos
em cima. Hesitou , mas não hesitou o suficiente . Desenrolou a manta
sobre o penedo e prendeu-lhe as pontas com pedras , para que o ven­
to não a arrastasse para longe antes de ele conseguir descalçar as
botas .
Cidades da Planície 28 1

Ele sabia que género de penedo era aquele?


Não .
Então quem sabia?
O sonhador sabia.
Tu .
Sim.
Bom, então calculo que tu e ele tinham de ser duas pessoas dife­
rentes .
Porquê?
Porque se vocês fossem o mesmo , então cada qual saberia o que o
outro sabia.
Como no mundo .
Sim .
Mas isto não é o mundo . Isto é u m sonho . No mundo , essa questão
não se poderia pôr.
Á ndale .
Descalçou as botas . Quando as descalçou , trepou para cima do
rochedo e embrulhou-se na manta e , em cima daquele catre frio e
horrendo , aninhou-se para dormir.
Boa sorte pra ele .
Sim . E , todavia, ele conseguiu adormecer.
Adormeceu no teu sonho .
Sim.
Como é que sabes que ele ' tava a dormir?
Via-o a dormir.
E ele sonhou?
O homem ficou a olhar para os sapatos . Descruzou as pernas e
tornou a cruzá-las ao contrário. Bom , disse . Não sei ao certo como é
que te hei de responder. Certos acontecimentos tiveram lugar. Certas
facetas desses acontecimentos permanecem obscuras . É difícil saber,
por exemplo , quando é que estes acontecimentos ocorreram .
Porquê?
O sonho que eu tive foi numa certa noite . E, nesse sonho , o via­
jante aparecia. Que noite foi esta? Na vida do viaj ante , quando foi
que ele passou a noite naquela posada rochosa? Ele dormiu e ocor­
reram acontecimentos que eu te vou contar, mas quando é que foi
isto? Compreendes o problema . Digamos que os acontecimentos que
282 Cormac McCarthy

tiveram lugar foram um sonho deste homem, cuja existência em si


permanece hipotética. Como avaliar o mundo daquela mente hipoté­
tica? E o que é que nele é sono e o que é vigília? Como é que se
explica ele possuir um mundo notumo , logo para começar? As coisas
precisam de um terreno onde se possam firmar. Assim como toda a
alma exige um corpo . Um sonho dentro de um sonho lança desafios
que uma pessoa à primeira vista não imaginaria.
Um sonho dentro de um sonho pode nem ser um sonho .
Temos de ponderar essa possibilidade .
Cá a mim, isso soa-me a superstição .
E o que é isso?
A superstição?
Sim.
Bom. Acho que é quando acreditamos em coisas que não existem .
Como ontem? Ou amanhã?
Como os sonhos de alguém que imaginámos em sonhos . O ontem
' teve aqui , e o amanhã vem a caminho .
Talvez . Mas , seja lá como for, os sonhos deste homem pertenciam­
-lhe . Eram diferentes do meu sonho . No meu sonho , o homem estava
deitado no seu rochedo , a dormir.
Ainda assim, podias tê-los inventado .
En este mundo todo es posible . Vamos a ver.
É como a imagem da tua vida no tal mapa.
Cómo ?
Es un dibujo nada más . Não é a tua vida . Um desenho não é uma
coisa. É só um desenho .
Bem dito . Mas o que é a nossa vida? Conseguimos vê-la? Ela
eclipsa-se assim que aparece . Momento após momento . Até que se
eclipsa para não mais aparecer. Quando olhamos para o mundo , há
algum instante no tempo em que a imagerp. vista se converte em re­
cordação? O que é que as distingue? É isso que não temos forma de
revelar. É isso que está ausente do nosso mapa e da imagem que
este forma. E, no entanto , é tudo o que temos .
Ainda não disseste se o mapa te foi dalgum préstimo ou não .
O homem percutiu o lábio inferior com o indicador estendido .
Olhou para Billy. Sim, disse . Havemos de lá chegar. Para já, só pos­
so dizer que esperava uma espécie de cálculo que resumisse a con-
Cidades da Planície 283

vergência do mapa e da vida quando a vida terminasse . É que , dentro


das suas limitações , deve haver uma forma comum ou um domínio
partilhado entre o ato de narrar e o que é narrado . E, se assim for,
então também o desenho , ainda que num qualquer formato parcelar,
deve possuir um rumo próprio , e, nesse caso , tudo o que há de vir
terá de se situar nesse trilho . Dizes que a vida de um homem não
pode ser representada num desenho . Mas talvez eu e tu nos esteja­
mos a referir a coisas diferentes . O desenho procura capturar e imo­
bilizar no seio das suas configurações aquilo que nunca possuiu . O
nosso mapa nada sabe acerca do tempo . Não tem capacidade de falar
sequer das horas implícitas na sua própria existência. Nem das que
passaram , nem das que hão de vir. Todavia, na sua forma final , o
mapa e a vida que este traça têm de convergir, pois é aí que o tempo
chega ao fim .
Quer dizer que , mesmo que e u tenha razão , é pelos motivos erra-
dos .
Talvez devêssemos regressar ao sonhador e ao seu sonho .
Á ndale .
Talvez pretendas dizer que o viajante acordou e que os aconteci­
mentos que tiveram lugar não eram , de todo , um sonho . Mas eu creio
que encará-los como um sonho é o rumo mais sensato . Porque se
estes acontecimentos fossem outra coisa que não um sonho , ele não
acordaria , de todo . Como verás .
Ándale .
O meu próprio sonho é outra questão . O meu viajante dorme um
sonho agitado . Devo acordá-lo? Os direitos de propriedade do so­
nhador sobre aquilo que sonha têm os seus limites . Não posso des­
pojar o viajante de toda a sua autonomia, sob pena de ele desaparecer
sem deixar rasto . Compreendes o problema.
Acho que começo a compreender vários problemas .
Sim. O viajante também tem uma vida, e há um rumo nessa vida,
e , se ele não aparecesse neste sonho , o sonho seria completamente
diverso e não poderia haver qualquer alusão ao viajante . Poderás
dizer que ele não tem existência palpável e que , portanto , não tem
história, mas o meu ponto de vista é que , seja ele o que for, sejam
quais forem as suas origens , ele não pode existir sem uma história. E
o terreno dessa história não é diferente do teu ou do meu , pois é a
284 Cormac McCarthy

vida enquanto predicado dos homens que nos garante a nossa própria
realidade e a de tudo o que nos rodeia. A nossa perspetiva privilegia­
da daquela noite concreta da história daquele homem faz-nos tomar
consciência de que todo o conhecimento é um pedido de empréstimo
e todo o facto uma dívida. Porque cada acontecimento nos é revelado
somente aquando da renúncia a todos os caminhos alternativos . Para
nós , a vida do viajante no seu todo converge naquele lugar e naquela
hora, seja o que for que saibamos acerca dessa vida, ou seja qual for
a matéria de que ela é feita. De acuerdo ?
Ándale .
Portanto . Ele aninhou-se para dormir. E durante a noite houve uma
tempestade nas montanhas , e os relâmpagos estalaram e o vento ulu­
lou na garganta, e o repouso do viajante foi um repouso bem mitigado ,
na verdade . Os picos escalvados em volta dele foram arrancados do
negrume uma e outra vez a golpes de malho pelos relâmpagos , e, no
clarão desses relâmpagos , ele ficou espantado ao avistar, descendo
através dos arroyos pedregosos , uma trupe de homens a empunhar
archotes à chuva e a entoar um qualquer cântico ou oração em surdina
enquanto avançava. Ele soergueu-se da laje para melhor os distinguir.
Pouco mais via do que as cabeças e os ombros deles a agitarem-se à
luz dos archotes , mas eles pareciam envergar uma grande variedade
de adornos , toucados primitivos confecionados com as plumas de
aves ou com a pele de felinos da selva. Com a pelagem de minúsculos
macaquinhos . Usavam colares de contas ou de pedra ou de conchas
marinhas e xailes de fibras entretecidas que talvez fossem musgo .
À luz das tochas fumegantes que crepitavam à chuva, ele pôde ver que
eles carregavam aos ombros uma padiola ou um ataúde e em seguida
ouviu ecoar entre as fragas as notas flutuantes de uma trompa e o rufar
vagaroso de um tambor.
Quando desceram para a estrada, ele pôde vê-los melhor. Na van­
guarda vinha um homem com uma máscara feita da carapaça lavrada
de uma tartaruga, toda engastada de ágata e jaspe . Trazia na mão um
cetro , em cujo castão estava esculpida uma figura à sua imagem e
semelhança, e essa figura empunhava também um cetro igual em
miniatura, e este cetro também, por sua vez , naquilo que temos de
imaginar como sendo uma infinidade desconhecida da alternância de
ser e imagem .
Cidades da Planície 285

Atrás dele vinha o tocador de tambor com o seu instrumento de


couro cru curado com sal , retesado sobre uma armação de freixo , que
ele percutia com uma espécie de mangual feito de uma bola de ma­
deira de lei amarrada a um pau . O tambor emitia uma nota cava de
grande ressonância, e ele tangia-o com golpes do mangual desferidos
de baixo para cima, e a cada pancada inclinava a cabeça para escutar,
como talvez fizesse um homem que estivesse a afinar um tambor.
Seguia-se um homem que trazia uma espada embainhada sobre uma
almofada de cabedal e atrás dele vinham os homens dos archotes e
depois a padiola e os homens que a carregavam . O viajante não con­
seguia perceber se a pessoa que eles transportavam estava viva ou se
aquele desfile seria talvez uma espécie de cortejo fúnebre a percorrer
as montanhas à chuva, em plena noite . A fechar a fila indiana vinha
o tocador de trompa, transportando um instrumento feito de cana,
cingido com anéis de fio de cobre e enfeitado com borlas suspensas .
Ele tocava-o soprando num pedaço de tubo , e a trompa emitia três
notas , que pairavam no ar notumo e velado acima deles como um
corpo dotado de peso próprio .
Quantas pessoas havia no cortejo?
Oito , creio eu .
Continua.
Os homens avançaram pela estrada, e o viajante soergueu-se e
deixou pender as pernas sobre o rebordo da sua ara e repuxou a man­
ta em volta dos ombros e esperou . Eles caminharam até ficarem
diante do lugar onde ele estava sentado , e ali estacaram e ali ficaram
parados . O viajante observava-os . Se é verdade que se sentia curioso ,
estava também com medo .
Atão e tu?
Eu tinha apenas curiosidade .
Como é que sabias que ele tinha medo?
O homem examinou a faixa de rodagem vazia abaixo deles . Ao fim
de um certo tempo , disse: Aquele homem não era eu . Se é possível
que fosse uma parte de mim que não reconheço , então também tu o
podes ser. Tomo a invocar o meu argumento das histórias comuns .
Onde é que tu ' tavas durante esse tempo todo?
Estava a dormir na minha cama.
Não ' tavas no sonho .
286 Cormac McCarthy

Não .
B illy debruçou-se e escarrou . Bom , disse , eu tenho setenta e oito
anos e , durante estes anos todos , tive imensos sonhos . E, tanto quan­
to me consigo lembrar, apareci em todos eles . Não me lembro duma
só vez em que tenha sonhado com outras pessoas e em que eu não
' tivesse ali por perto . A minha ideia é que , quase sempre , a gente
sonha com nós mesmos . Uma vez , até sonhei que 'tava morto . Mas
eu próprio ' tava ali parado , a olhar pro cadáver.
Compreendo , disse o homem .
O que é que compreendes?
Compreendo que tens pensado bastante acerca dos sonhos .
Não tenho pensado nos sonhos , nem por sombras . Tenho sonhos ,
mais nada .
Podemos discutir isto mais tarde?
Podes fazer o que muito bem quiseres .
Obrigado .
Tens a certeza de que não ' tás a inventar isto tudo .
O homem sorriu . Olhou para o lado oposto da via rápida e es­
praiou a vista pelos campos e abanou a cabeça, mas não respondeu .
Ou era isto que tu querias discutir?
O problema é que a tua pergunta é precisamente a pergunta de que
depende toda esta história.
Um trator com semirreboque passou por cima deles , e as andori­
nhas que faziam ninho nas abóbadas de betão levantaram voo e
descreveram um círculo e voltaram para trás .
Sê paciente comigo , pediu o homem . Esta história, como todas as
histórias , tem as suas origens numa pergunta. E as histórias que vi­
bram em nós de forma mais avassaladora têm tendência a virar-se
contra o narrador e a apagá-lo , mais aos seus motivos , de toda a
memória. Por isso , a questão de saber quem está a contar a história
é muito consiguiente .
Nem todas as histórias têm que ver com uma pergunta.
Têm, sim. Onde tudo é conhecido , não é possível qualquer narra­
tiva.
B illy debruçou-se e escarrou de novo . Á ndale , disse .
Estava curioso e com medo , o tal viajante , e lançou em voz alta ao
cortejo uma saudação que ecoou entre as fragas . Perguntou-lhes para
Cidades da Planície 287

onde se dirigiam, mas eles não lhe deram resposta alguma. Postaram­
-se na estrada velha que cruzava a garganta, ali aglomerados , gente
muda e notuma com os seus archotes e os seus instrumentos musi­
cais e o seu prisioneiro , e esperaram . Como se ele fosse um mistério
para eles . Ou como se estivessem à espera de que ele dissesse uma
qualquer coisa em particular que ele ainda não dissera.
Ele ' tava mesmo a dormir.
Eis o que me parece .
E se ele tivesse acordado?
Então deixaria de ver aquilo que via. E eu com ele .
Porque é que não dizes apenas que essas coisas se teriam desva-
necido ou desaparecido?
Qual das duas?
Qual das duas o quê?
Desaparecer o desvanecerse .
Hay una diferencia?
Sí. Lo que se desvanece es simplesmente fuera de la vista . Pero
desaparecido ? Encolheu os ombros . Para onde vão as coisas? Num
caso como o do viajante e das suas aventuras - em que nem sequer
podemos afirmar com segurança de onde é que as coisas vinham ,
logo para começar - , pouco há a dizer quanto ao lugar para onde
el as poderiam ir quando desaparecessem . Num tal caso , não dispo­
mos sequer de um ponto de apoio por onde possamos começar.
Posso dizer uma coisa?
É claro .
Acho que tens o hábito de tomar as coisas um bocadinho mais
complicadas do que seria necessário . Porque é que não te limitas a
contar a história?
Eis um bom conselho . Veremos o que se pode arranjar.
Á ndale pues .
Embora eu devesse fazer-te notar que és tu que tens estado a le-
vantar interrogações .
Não , não devias .
Sim. É claro .
Vá, anda lá com isso .
Sim.
Bico calado , é o que é .
288 Cormac McCarthy

Cómo ?
Nada. Eu paro de fazer perguntas , pronto .
Eram boas perguntas .
Não vais contar a história, ou vais?
Portanto , talvez ele se tenha debatido , tentando acordar. Apesar de
a noite estar fria e de a cama dele ser feita de pedra dura, não foi
capaz . Entretanto , tudo era silêncio . A chuva cessara. O vento . Os
membros do cortejo trocaram algumas palavras , e depois os carrega­
dores avançaram e pousaram a padiola no chão pedregoso. Sobre a
padiola jazia uma rapariga de olhos fechados e mãos cruzadas sobre
o peito , dir-se-ia morta. O sonhador olhou para ela e olhou para a
trupe parada em volta dela. Ainda que a noite fosse bem fria e , segu­
ramente , mais fria ainda nas paragens varridas pelo vento de onde
eles tinham descido , eles vestiam roupas leves , e mesmo as capas e
as mantas que traziam a cobrir-lhes os ombros eram de um tecido de
malha larga. À luz dos archotes , os rostos e os troncos deles brilha­
vam do suor. E, por mais estranhas que fossem.a aparência deles e a
missão de que pareciam incumbidos , não deixavam por isso de ser
estranhamente familiares aos olhos dele . Como se ele já tivesse visto
algures tudo aquilo .
Num sonho , digamos.
Se quiseres .
Não me cabe decidir.
Achas que sabes como é que este sonho acaba.
Tenho cá umas ideias .
Veremos .
Continua.
Da trupe fazia parte uma espécie de boticário que trazia no cintu­
rão , a cingir-lhe os rins , as panaceias do seu ofício , e ele e o chefe do
grupo trocaram impressões em voz baixa. O chefe empurrou a cara­
paça de tartaruga para o alto da cabeça, qual soldador a erguer a
máscara do rosto , mas o sonhador não lhe pôde ver as feições . O re­
sultado da conversa entre ambos foi que três dos homens seminus do
bando se adiantaram e se aproximaram da ara. Traziam um frasqui­
nho e um cálice , e pousaram o cálice sobre a pedra e encheram-no e
estenderam-no ao sonhador.
Eu cá, se fosse a ele , pensava duas vezes .
Cidades da Planície 289

Tarde de mais . Ele pegou-lhe com ambas as mãos, com a mesma


solenidade com que lho haviam estendido , e levou-o aos lábios e bebeu .
O que é que tinha dentro?
Não sei .
Que género de cálice era?
Um cálice de chifre , aquecido ao lume e moldado de forma a
aguentar-se de pé .
O que é que a bebida lhe fez?
Fê-lo esquecer.
E o que é que ele esqueceu? Tudo?
Esqueceu o sofrimento da sua vida. E também não se deu conta do
castigo que esse esquecimento ia acarretar.
Adiante .
Bebeu o líquido até à última gota e devolveu o cálice , e , quase de
imediato , tudo lhe foi arrebatado , de tal modo que ele se assemelhou
novamente a uma criança e uma grande tranquilidade tombou sobre
ele e os seus medos mitigaram-se ao ponto de ele estar disposto a
tomar-se cúmplice de uma cerimónia sangrenta que era então e é
ainda uma afronta a Deus .
Foi esse o castigo?
Não . O preço a pagar foi ainda mais alto .
Qual foi?
Que também isto seria esquecido .
E isso seria assim tão má ideia?
Espera e verás .
Vá, segue .
Bebeu o cálice e entregou-se ao arbítrio sombrio daqueles vetustos
serranos. E eles , por sua vez, conduziram-no do penedo para a estra­
da e caminharam para trás e para diante com ele . Pareciam estar a
incitá-lo a que remirasse as cercanias , as fragas e as montanhas , as
estrelas que se dilatavam acima deles contra o negrume eterno da
natividade do mundo .
O que é que eles ' tavam a dizer?
Não sei .
Não os conseguias ouvir?
O homem não respondeu . Ali sentado , remirava com ar meditabun­
do os contornos do betão lá no alto . Os ninhos das andorinhas cola-
290 Cormac McCarthy

vam-se aos recantos altaneiros como colónias de pequenos hornos de


lama ali invertidos . O trânsito tomara-se mais intenso . As sombras em
forma de caixote que os camiões repeliam ao penetrar por baixo do
viaduto esperavam por eles no ponto onde os camiões assomavam
novamente para a luz do Sol , do lado oposto . Ele ergueu a mão no
gesto vagaroso de quem atira qualquer coisa para longe . Não há forma
de responder à tua pergunta. Não é que haja homenzinhos dentro da
nossa cabeça a ter uma conversa. Não há som. Que linguagem é esta,
portanto? Seja como for, este sonho calou bem fundo no sonhador, e
em sonhos assim há uma linguagem que é mais antiga do que a pró­
pria palavra falada. Este idioma é uma moeda de troca diferente e não
permite mentiras nem qualquer dissonância em relação à verdade .
Pensei que tinhas dito que eles 'tavam a falar.
No meu sonho , de que eles eram os protagonistas , talvez eles es­
tivessem a conversar. Ou talvez eu estivesse apenas a introduzir no
sonho a melhor interpretação ao meu dispor. O sonho do viajante é
coisa diversa.
Adiante .
O mundo antigo chama-nos a prestar contas . O mundo dos nossos
pais . . .
Cá a mim parece-me que , se eles ' tavam a falar no teu sonho , ti-
nham de 'tar a falar no sonho dele . É o mesmo sonho .
É a mesma pergunta .
E qual é a resposta?
Lá chegaremos .
Ándale .
O mundo dos nossos pais reside dentro de nós . Dez mil gerações ,
mais ainda. Uma forma sem história não tem capacidade de se per­
petuar. O que não tem passado não pode ter futuro . No âmago da
nossa vida está a história de que esta vida é composta, e nesse âmago
não há idiomas , mas somente o ato de saber, e é isto que partilhamos ,
nos sonhos e fora deles. Antes de o primeiro homem falar e depois
de o derradeiro se ver reduzido ao silêncio para todo o sempre . No
entanto , no fim de contas , ele falou mesmo , tal como veremos .
Muito bem .
Portanto , ele caminhou com os seus captores até sentir a mente
serena, sabendo que a sua vida estava agora à mercê de mãos alheias .
Cidades da Planície 29 1

Ele não parece tipo pra dar muita luta.


Estás a esquecer-te da refém.
A rapariga .
Sim .
Vá, segue .
É importante compreender que ele não se entregou de bom gra­
do . O mártir que deseja as chamas não é o candidato certo para
nelas ser imolado . Onde não há castigo , não pode haver galardão .
Compreendes .
Vá, segue .
Eles pareciam estar à espera de que ele tomasse uma decisão . De
que ele lhes dissesse qualquer coisa, talvez. Ele examinava tudo o que
à sua volta podia ser examinado . As estrelas e os penedos e o rosto da
rapariga adormecida, deitada na sua padiola. Os seus captores . Os
capacetes e as vestes deles. Os archotes que eles transportavam, que
eram feitos de tubos ocos cheios de petróleo , com pavios de corda, e
cujas chamas estavam protegidas do vento por lâminas de mica encai­
xilhadas por tiras de chumbo canelado , com coberturas e chaminés de
folha de cobre martelado . Tentou fitá-los nos olhos , mas os olhos deles
eram escuros , e eles tinham-nos enegrecido com graxa preta, como
homens chamados a atravessar grandes extensões de neve . Ou de
areia. Tentou ver-lhes os pés , para perceber como estavam calçados ,
mas as túnicas deles tombavam-lhes sobre as rochas em volta, e ele
nada conseguiu ver. Aquilo que viu foi a estranheza do mundo e o
pouco que dele conhecemos e a dificuldade que temos em preparar­
-nos para o que há de vir. Viu que a vida de um homem pouco mais
era do que um instante , e que , como o tempo era eterno , cada homem
estava, sempre e eternamente , no meio da sua jornada, fosse qual fos­
se a sua idade ou a distância já percorrida. Pareceu-lhe ver no silêncio
do mundo uma grande conspiração , e deu-se conta de que ele próprio
fazia certamente parte dessa conspiração e de que já deixara para trás
os seus captores e os planos deles . Se é que teve alguma revelação , foi
esta: de que era depositário deste saber, a que acedera apenas graças
ao abandono de todas as suas convicções anteriores . E, com isto , vol­
tou-se para os seus captores e disse-lhes: Não vos direi nada.
Não vos direi nada. Foi isto que ele lhes disse , e nada mais disse .
Num instante , eles conduziram-no até à laje e estenderam-no sobre
292 Cormac McCarthy

ela e ergueram a rapariga da sua padiola e levaram-na até junto dele .


O peito dela ofegava.
O peito dela o quê?
O peito dela ofegava.
Adiante .
Ela curvou-se e beijou-o e deu um passo atrás , e , em seguida, o
arcatronte adiantou-se com a sua espada e ergueu-a nas duas mãos
acima dele e cortou cerce a cabeça do viajante , separando-lha do
corpo .
E pronto , a história acabou assim, imagino .
Nem por sombras .
Se calhar vais-me dizer que ele sobreviveu depois de lhe cortarem
a pinha .
Sim. Acordou do sonho e ficou ali sentado , cheio de frio e de me­
do , a tremer. Naquela mesma garganta solitária. Naquela mesma
cadeia árida de montanhas . Naquele mesmo mundo .
E tu?
O narrador sorriu com expressão melancólica, como um homem a
recordar a sua infância. Estes sonhos revelam também o mundo , dis­
se . Ao acordarmos , lembramo-nos dos acontecimentos que os com­
põem, ainda que , muitas vezes, a narrativa seja fugidia e difícil de
recordar. Todavia, é a narrativa que dá vida ao sonho , ao passo que os
acontecimentos em si são muitas vezes intermutáveis . Os aconteci­
mentos do mundo da nossa vigília, por seu lado , são-nos impostos , e
a narrativa é o eixo a que não temos acesso , ao longo do qual é pre­
ciso organizá-los . Cabe-nos pesar e categorizar e ordenar estes acon­
tecimentos . Somos nós que os reunimos para formar a história que
nos constitui . Cada homem é o bardo da sua própria existência. É
assim que se une ao mundo . Este é a um tempo o seu castigo e o seu
galardão por se furtar ao sonho do mundo em que ele figura. Portanto .
Eu podia ter acordado naquele momento , mas , à medida que o mundo
se aproximava, também o viajante sobre a sua laje começou a esbater­
-se , e , como eu não estava disposto a despedir-me dele , chamei-o em
voz alta.
Ele tinha nome?
Não . Não tinha nome .
Como é que chamaste?
Cidades da Planície 293

Limitei-me a gritar-lhe que ficasse , e ele ficou mesmo , e então


continuei a dormir, e o viajante virou-se para mim e esperou .
Se calhar, ficou surpreendido por te ver.
Boa pergunta. Ele pareceu surpreso , com efeito , e , no entanto , é
frequente nos sonhos as maiores extravagâncias parecerem privadas
do seu poder de nos assombrar, e as quimeras mais improváveis sur­
gem aos nossos olhos como banais . O desejo de moldar o mundo ao
sabor das nossas conveniências , que sentimos na nossa vida quando
despertos , suscita todo o género de paradoxos e de dificuldades . Tu­
do o que está à nossa guarda fervilha com uma agitação interior. Nos
sonhos , porém, encontramo-nos na grande democracia do possível , e
aí somos, com efeito , verdadeiros peregrinos . É aí que avançamos ao
encontro do que nos espera.
Tenho outra pergunta.
Queres saber se o viajante sabia que tinha estado a sonhar. Se é
que ele tinha estado mesmo a sonhar, aliás .
Como tu próprio disseste , não é a primeira vez que contas essa
história .
Sim .
Qual é a resposta.
Talvez não te agrade .
Isso não te devia impedir de responder.
Ele fez-me a mesma pergunta .
Queria saber se tinha ' tado a sonhar?
Sim.
O que é que ele disse?
Perguntou-me se eu os tinha visto .
As pessoas com as túnicas e os archotes e isso .
Sim.
E.
Bom. Eu tinha-as visto . É claro .
E foi isso que lhe disseste .
Disse-lhe a verdade .
Bom, uma mentira também teria servido perfeitamente , não?
Porquê?
Desde que o levasse a acreditar que o que ele sonhara era genuíno .
Sim . Compreendes a dificuldade .
294 Cormac McCarthy

B illy debruçou-se e escarrou . Contemplou a paisagem a norte . É


melhor eu ir andando , disse . Ainda tenho muito que caminhar.
Tens pessoas à tua espera?
Espero bem que sim . Gostava muito de as ver, oh , se gostava.
Ele queria que eu fosse testemunha dele . Nos sonhos , porém , não
pode haver testemunhas . Tu próprio o disseste .
Foi apenas um sonho . Tu sonhaste com ele . Podes obrigá-lo a fa-
zer o que muito bem entenderes .
Onde é que ele estava antes de eu sonhar com ele?
Diz-me tu .
A minha convicção é esta, e vou repeti-la: A história dele é a mes­
ma do que a tua ou a minha. Eis a matéria de que ele é feito . Que
outra matéria poderia ser? Se eu o tivesse criado assim como Deus
cria os homens , como seria possível eu não saber o que ele ia dizer
antes mesmo de ele abrir a boca? Ou não saber como é que ele se ia
mover antes de ele executar os seus gestos? Num sonho , não sabe­
mos o que se vai seguir. Somos surpreendidos .
Muito bem .
Então de onde é que veio esta criatura?
Não sei .
Dois mundos tocam-se aqui . Achas que os homens têm o poder de
invocar o que desejam? Invocar um mundo , enquanto estão desper­
tos ou adormecidos? Fazê-lo respirar e depois dispor sobre ele figu­
ras que um espelho reflete ou cuja presença o Sol reconhece? Incutir
nessas figuras a nossa alegria e o nosso desespero? Será que um
homem consegue esconder-se a este ponto aos próprios olhos? E ,
sendo assim , quem é que está escondido? E de quem?
Invocamos o mundo que Deus formou , e só esse . E esta nossa
vida, a que damos tanto valor, não é também obra nossa, seja como
for que optemos por a relatar. A respetiva forma foi imposta ao vazio
logo na fonte , e todas as considerações acerca do que poderia ter
tomado um rumo diferente são disparatadas , porque não existem
rumos diferentes . De que seriam feitos? Onde se esconderiam? Ou
como fariam a sua aparição? A probabilidade do que existe é absolu­
ta. O facto de não termos a capacidade de o adivinhar de antemão
não o toma menos certo . O facto de podermos imaginar histórias
alternativas nada significa.
Cidades da Planície 295

Quer dizer que a história acaba assim?


Não . O viajante estava de pé sobre a laje, e, sobre a laje , bem vi­
síveis , estavam as marcas dos machados e das espadas e a oxidação
escura do sangue daqueles que ali tinham morrido e que as intempé­
ries do mundo eram impotentes para apagar. Ali , o viaj ante deitara-se
para dormir, sem pensar na morte , e contudo , quando acordou , não
conseguia pensar noutra coisa. O firmamento que os seus carrascos
o tinham convidado a remirar exibia agora uma aparência diferente .
A ordem da sua vida parecia alterada de um momento para o outro ,
em plena passada. Um remate na tessitura das coisas . Esse firma­
mento , em cujos contornos os homens veem destinos coincidentes e
análogos aos seus , parecia agora pulsar com uma energia treslouca­
da. Como se , na sua rotação , as coisas tivessem ficado desengonça­
das , virando o calendário às avessas . Ele achou até que talvez hou­
vesse uma falha temporal no registo . Que , doravante , talvez não
houvesse forma de consignar novas observações . Será que fazia di­
ferença?
' Tás-me a perguntar.
Sim .
Acho que fazia diferença pra ti . No caso dele , não faço ideia. O
que é que tu achas?
O narrador fez uma pausa, meditabundo . Creio , respondeu , que o
sonhador se imaginou numa qualquer encruzilhada. Contudo , não
existem encruzilhadas . Não há alternativa às nossas decisões . Pode­
mos ponderar uma escolha, mas percorremos um só caminho . O li­
vro de registo do mundo é composto pelas suas entradas , mas não
pode ser novamente dividido nelas . E, a dado passo, este registo
inevitavelmente supera qualquer descrição possível do seu conteúdo ,
e isto , creio eu , foi o que o sonhador viu . Pois à medida que a capa­
cidade de falar acerca do mundo nos abandona, também a história do
mundo perde o seu fio condutor e , como tal , a sua autoridade . O
mundo que há de vir tem de ser composto do que é passado . Não há
outra matéria-prima disponível . E, no entanto , acho que ele viu o
mundo a desfraldar-se a seus pés . Os preparativos que ele adotara
para a sua jornada pareciam-lhe agora um eco da morte das coisas .
Julgo que ele viu um terrível negrume a assomar.
Tenho de ir andando .
296 Cormac McCarthy

O homem não respondeu . Contemplava as vegas junto à berma da


estrada e as terras áridas mais além, agora a cintilar ao sol novíssimo .
Este deserto aqui à nossa volta foi outrora um vasto oceano , disse .
Pode uma coisa assim desaparecer? De que são feitos os oceanos ?
O u eu? O u tu?
Não sei .
O homem pôs-se de pé e espreguiçou-se . Espreguiçou-se com imen­
so vigor, esticando muito os braços e rodopiando . Baixou os olhos
para Billy e sorriu .
E assim acabou a história, observou Billy.
Não .
O homem acocorou-se e ergueu a mão , com a palma para cima.
Ergue a tua mão , pediu . Assim .
Isto é algum compromisso , ou quê?
Não . Já assumiste o teu compromisso . Desde o início . Ergue a
mão .
Ele ergueu a mão , tal como o homem lhe pedira .
Vês a semelhança?
Sim.
Sim. É disparatado afirmar que as coisas existem somente quando
se concretizam . O molde para o mundo e para tudo o que ele contém
foi criado há muito tempo . No entanto , a história do mundo , que é
tudo o que dele conhecemos , não existe fora dos instrumentos da sua
execução . Nem esses instrumentos podem existir fora da sua própria
história. E assim por diante . Esta nossa vida não é uma imagem do
mundo . É o mundo em si , e não é composta de ossos nem de sonhos
nem de tempo , mas sim de culto . Nada mais a pode conter. Nada
mais pode nela ser contido .
O que aconteceu ao viajante , então?
Nada. Esta história não tem fim . Ele acordou , e tudo estava como
antes . Ele era livre de partir.
Para os sonhos de outros homens.
Talvez . De sonhos assim e dos seus rituais também não pode haver
fim . Aquilo que buscamos é outra coisa completamente diferente .
Seja lá qual for o formato que adquira nos sonhos dos homens ou nos
seus atos , nunca se encaixará no pretendido . Estes sonhos e estes
atos são movidos por uma fome tremenda. Procuram satisfazer uma
Cidades da Planície 297

necessidade que nunca conseguem satisfazer, e só nos resta agrade­


cer por isso .
E tu ainda ' tavas a dormir.
Ainda . No final do sonho , afastámo-nos ao alvorecer e havia um
acampamento nas planícies , lá em baixo , de onde não se elevavam
colunas de fumo , embora estivesse muito frio , e descemos até àque­
le lugar, mas tudo ali estava abandonado . Havia tendas de peles de
animais armadas naquele terreno pedregoso com espigões de escó­
rias de ferro , e dentro destas tendas viam-se restos de antigas refei­
ções , intactas e frias , em pratos frios de barro . Havia arsenais cheios
de armas primitivas e vetustas com as partes metálicas trabalhadas e
embutidas com filigrana de ouro , e havia túnicas cosidas a partir das
peles de animais do Norte e baús de couro cru com fechos e cantos
de cobre martelado , e estes baús estavam repletos de vergões e de
marcas das suas viagens e dos muitos anos decorridos , e lá dentro
havia velhas narrativas e livros de registo e memoriais da história
daquele povo desaparecido , o caminho que aquela gente percorrera
no mundo e os cálculos que eles tinham feito do custo dessa jornada.
E, num lugar à parte , um esqueleto de velhos ossos de cor sépia,
cosidos dentro de um sudário de cabedal .
Caminhámos lado a lado através de toda aquela desolação e de
todo aquele abandono , e eu perguntei-lhe se aquelas pessoas tinham
ido cumprir alguma missão , mas ele respondeu que não era esse o
caso . Quando lhe pedi que me explicasse o que acontecera, ele fitou­
-me e disse: já aqui estive antes . Tu também . Tudo o que aqui vês é
de quem o quiser tomar como seu . Não toques em nada. Foi então
que acordei .
Do sonho dele ou do teu?
Havia apenas um sonho de que acordar. Acordei desse mundo
para este . Tal como o viajante , tudo o que eu olvidara acabaria por
se me deparar de novo .
O que é que tinhas olvidado?
O mundo da nossa jornada, impossível de cartografar. Uma gar­
ganta nas montanhas . Uma laje manchada de sangue . As marcas do
aço na rocha. Nomes gravados no calcário oxidável , entre peixes de
pedra e conchas antigas . Coisas esbatidas ou a esbaterem-se . O fun­
do marinho seco . Os utensílios dos caçadores nómadas . Os sonhos
298 Cormac McCarthy

engastados nas lâminas das suas armas . Os ossos exóticos de um


profeta. O silêncio . A extinção gradual da chuva. O cair da noite .
Tenho de ir andando .
Felicidades , cuate .
Pra ti também .
Tomara que os teus amigos estejam à tua espera.
Igualmente .
Cada vez que um homem morre , fá-lo no lugar de todos os outros .
E , como a morte acaba por tocar a todos , não há forma de mitigar o
medo que ela nos inspira, exceto amar o homem que toma o nosso
lugar. Não estamos à espera de que a história dele seja escrita. Ele
passou por aqui há muito tempo . Esse homem que é todos os homens
e que sobe ao cadafalso no nosso lugar até chegar a nossa vez , até
chegar o momento em que teremos de ser nós a substituí-lo . Ama-lo ,
esse homem? Irás honrar o rumo que ele tomou? Irás ouvir-lhe a
narrativa?

Dormiu naquela noite dentro de uma manilha de betão , junto à


berma da estrada, onde uma equipa de operários estivera a trabalhar.
Um enorme camião basculante amarelo Euclid sobressaía no meio
da lama, e as colunas de betão alvacentas e despidas de uma rampa
de acesso leste-oeste elevavam-se atrás do camião , afastando-se nu­
ma curva, aglomeradas e a ascender sem bases nem capitéis , quais
ruínas de uma velha ordem arquitetónica alinhadas na penumbra.
Durante a noite , um vento desceu do norte , trazendo consigo o sabor
da chuva, mas nenhuma chuva caiu . Ele sentia o cheio dos creosotes
molhados no deserto ali em volta. Tentou dormir. Ao fim de um cer­
to tempo , levantou-se e sentou-se no rebordo circular da manilha,
dir-se-ia um homem dentro de um sino , e olhou para as trevas que o
cercavam. Lá longe , no deserto , a oeste , erguia-se o que lhe pareceu
ser uma das antigas missões espanholas daquela região , mas , quando
a tornou a examinar, viu que era a cúpula branca e redonda de uma
estação de radar. Mais além, e também parcialmente encoberta ao
luar, avistou uma fileira de silhuetas a avançar a custo, debatendo-se
silenciosamente ao vento . Aqueles homens pareciam vestidos de tú­
nicas , e alguns caíam no meio dos seus esforços e erguiam-se para
esbracejar novamente . Achou que eles deviam estar a caminhar pe-
Cidades da Planície 299

nosamente ao seu encontro através do deserto mergulhado na escu­


ridão , mas a verdade é que eles não saíam do mesmo lugar. Tinham
a aparência de indivíduos internados num manicómio , vestidos com
pijamas claros , a esmurrar silenciosamente o vidro que os confinava.
Ele chamou-os , mas o grito que soltou foi levado pelo vento , e , fos­
se como fosse , eles estavam demasiado longe para o ouvir. Ao fim
de um certo tempo , tomou a embrulhar-se na sua manta , no interior
da manilha, e , ao fim de um certo tempo , adormeceu . Na manhã se­
guinte , a tempestade passara, e o que ele viu lá longe , no deserto , à
luz do novo dia, foram apenas farrapos de tela plástica presos a uma
vedação , para onde o vento os arrastara.
Dirigiu-se para leste , para o condado de De Baca, no Novo Méxi­
co , e procurou a sepultura da irmã, mas não a conseguiu encontrar.
As pessoas daquela região mostraram-se afáveis para ele , e os dias
tomaram-se mais quentes e ele quase não sofria privações na sua
vida na estrada. Detinha-se para falar com as crianças ou com os
cavalos . Mulheres davam-lhe de comer nas suas cozinhas , e ele dor­
mia embrulhado na sua manta, debaixo das estrelas , e ficava a ver os
meteoritos a riscarem o céu . Certo dia, à tardinha, bebeu de uma
nascente , sob a copa de um choupo , debruçando-se para baixar a
boca e chupar na superfície fria e sedosa da água, vendo os vairões
a deixarem-se arrastar um bocadinho para logo recuperarem a sua
posição na corrente abaixo dele . Havia um copo de folha de Flandres
enfiado na ponta de uma estaca, e ele pegou-lhe e ficou sentado a
segurá-lo . Já não via um copo numa nascente havia muitos anos , e
segurou-o com as duas mãos , tal como tinham feito milhares de pes­
soas antes dele , desconhecidas e contudo unidas naquele sacramento .
Mergulhou o copo na água e levou-o , fresco e a gotejar, à boca.
No outono daquele ano , quando o tempo frio chegou , foi acolhido
por uma família que vivia muito perto de Portales , no Novo México ,
e passou a dormir numa pequena choupana anexa à cozinha, muito
semelhante ao quarto onde dormira em rapaz . Na parede do corredor
estava pendurada uma fotografia emoldurada que fora revelada a
partir de uma chapa de vidro partida em cinco bocados , e na fotogra­
fia certos antepassados estavam novamente reunidos como peças de
um puzzle , num estudo dotado da sua própria geometria ligeiramen­
te enviesada , que lhe proporcionava uma certa coesão . Atribuindo
300 Cormac McCarthy

um significado adicional ou separado a cada uma das figuras ali


sentadas . Aos seus rostos . À s suas formas .
Era um casal com uma filha de doze anos e um rapaz de catorze ,
e o pai comprara-lhes um poldro que eles albergavam num barracão ,
atrás da casa. O poldro não valia grande coisa, mas ele saía para o ar
livre à tarde , quando eles desciam do autocarro escolar, e mostrava­
-lhes como desbastar o poldro com uma guia e uma cabeçada. O
rapaz gostava do poldro , mas a rapariga adorava o animal , e saía de
casa para o frio da noite , depois do jantar, e sentava-se no chão co­
berto de palha do barracão e falava com ele .
Ao serão , depois do jantar, a mulher convidava Billy por vezes
para jogar às cartas com eles , e por vezes ele e as crianças sentavam­
-se à mesa da cozinha e ele contava-lhes histórias de cavalos e dos
velhos tempos . À s vezes, falava-lhes do México .
Uma noite , sonhou que Boyd estava dentro do quarto com ele ,
mas , por mais que ele o chamasse aos gritos , o irmão não dizia uma
palavra. Quando acordou , a mulher estava sentada na cama dele e
pousara-lhe a mão no ombro .
Mr Parham , está tudo bem consigo?
Sim, senhora. Peço imensa desculpa. Devia de 'tar a sonhar, acho eu .
Tem a certeza de que está tudo bem?
Sim, senhora.
Quer que eu lhe traga uma pinguinha de água?
Não , senhora. Muito agradecido . Eu tomo a adormecer não tarda.
Quer que eu deixe a luz acesa na cozinha?
Se não se importa.
Muito bem.
Agradeço-lhe muito .
O Boyd era o seu irmão .
Era, sim . Já morreu vai pra muitos anos .
Mas o senhor ainda tem saudades dele .
Tenho , sim . Sempre .
Ele era o mais novo?
Era. Dois anos mais novo .
Compreendo .
Ele era o melhor. Fugimos pro México os dois juntos . Quando
éramos miúdos . Depois de os nossos pais morrerem. Fomos até lá
Cidades da Planície 30 1

abaixo porque queríamos deitar a mão a uns cavalos que nos tinham
roubado . Éramos uns garotos , mais nada. Ele era uma maravilha a
lidar com cavalos . Sempre gostei de o ver montar. Gostava de o ver
de roda dos cavalos . Dava tudo o que tenho neste mundo pro ver só
mais uma vez .
E há de ver.
Espero que tenha razão .
Tem a certeza de que não quer uma pinguinha de água?
Não , senhora . 'Tou bem assim .
Ela afagou-lhe a mão . Mãos nodosas , cheias de cicatrizes das cor­
das , sardentas dos sóis e dos anos. As veias encordoadas que as liga­
vam ao coração . Havia ali mapas de sobra para os homens decifra­
rem . Havia ali sinais e prodígios divinos em abundância para criar
uma paisagem . Para criar um mundo . Ela levantou-se para partir.
Betty, disse ele .
Sim.
Eu não sou quem a Betty julga que eu sou . Eu não sou nada. Não
sei porque é que me aturam aqui .
Bom , Mr Parham . Eu sei quem o senhor é . E sei porquê . Agora,
toca a dormir. Vemo-nos amanhã de manhã.
Sim , senhora.

DEDICATÓRIA

Serei teu .filho, cuidarás de mim


Sê tu eu mesmo ao chegar meu fim
Gela este mundo ruim
Espuma o gentio brutal
A história acaba assim
Volta a folha, eis o .final.
GLOSSÁRIO (NÃO EXAUSTIVO)
DE CIDADES DA PLANÍCm

alcahuete: alcaiote , alcoviteiro .

Babícora: William Randolph Hearst ( 1 863- 1 95 1 ) , o grande magnata


americano dos jornais (em quem Orson Welles se terá inspirado para
o protagonista de O mundo a seus pés) , possuía um rancho colossal
no estado mexicano de Chihuahua , chamado La B abícora .

Bloy 's: o acontecimento anual mais famoso no condado de Jeff Davis ,


n o Texas , é o B loys Camp Meeting , uma pregação campal iniciada
em 1 890 pelo mission ário presbiteriano William Benjamin B loys e
que se realiza durante cinco dias , em agosto .

Brunswick: nos bares do velho Oeste , eram presença quase obrigatória


os balcões neocl ássicos de madeira trabalhada , atrás dos quais se er­
guiam expositores profusamente espelhados , repletos de volutas e de
colunas . Estes balcões eram produzidos em Chicago pela empresa de
John Moses Brunswick .

Destry: B illy lê westerns de cordel , em particular um romance intitulado


Destry , que Edwin T. Arnold , grande estudioso da obra de Cormac
McCarthy, identificou como Destry Rides Again ( 1 930) , uma história
de heroísmo e vingança da autoria de Max Brand ( 1 892- 1 944) . O
romance foi v árias vezes adaptado ao cinema , nomeadamente em
1 939 (tendo James Stewart no papel principal) .

Fountain, Albert: político e advogado republicano , o coronel Albert


Fountain ( 1 838- 1 896) foi viver para o Novo México e, enquanto
304 Glossário

procurador público , conduziu a acusação contra Oliver Lee num caso


de roubo de gado . Ao regres sar a casa, em Mesilla , vindo de Las
Cruces , desapareceu juntamente com o filho de oito anos , Henry, e os
corpos nunca foram encontrados .

Lee, Oliver: nascido n o Texas , Oliver Lee ( 1 865- 1 94 1 ) estabeleceu-se


no Sueste do Novo México , em terras que viriam a fazer parte do
atual condado de Otero , e rapidamente se tomou um rancheiro rico e
poderoso . Entrou em conflito com outros rancheiros da zona , acaban­
do por ser acusado do assassínio de Albert Fountain e do filho deste .
Levado a tribunal , acabou ilibado de todas as acusações .

Muda dos broncos: num rancho , a manada de cavalos de sela para


trabalho com o gado chama-se remuda ; dentro da remuda , cada va­
queiro tem a seu cargo uma muda de cavalos (cinco ou sei s , normal­
mente) , que vai utilizando alternadamente ao longo do seu dia de
trabalho ; uma destas mudas é composta por animais ainda em estado
semisselvagem e pouco adestrados : é a muda dos broncos .

nombre de pila: nome de batismo (dado que a pila é a pia batismal) .

Peerless: até meados do século xx , o único remédio ao dispor dos cow­


boys para combater as larvas da varejeira Cochliomyia era um desin­
fetante chamado Peerless Screw Worm Medicine . Esta varejeira põe
ovos nos ferimentos expostos dos animais , e as larvas (as «screw
worms») alimentam-se da carne viva dos hospedeiros , acabando por
os matar.

Representante: na época remota em que os ranchos em solo americano


não tinham vedações a delimitá-los , as v árias manadas de gado
misturavam-se livremente . Duas vezes por ano , na primavera e no
outono , os vaqueiros reuniam os animai s , marcavam os novos bezer­
ros e contavam as cabeças . Na primavera procedia-se ainda à separa­
ção dos animais para venda . Nestas ocasiões , representantes de cada
um dos ranchos certificavam-se de que os animais com diferentes
ferros eram devidamente separados .
Índice
Prefácio 7

I 15
II 94
III 1 63
IV 238
Epílogo 272

Glossário (não exaustivo) de Cidades da Planície 303


ÜBRAS DO AUTOR NESTA EDITORA

O Guarda do Pomar
Meridiano de Sangue
A Estrada , vencedor do Prémio Pulitzer 2007
Este País Não É para Velhos
Suttree
Belos Cavalos
Nas Trevas Exteriores

A Travessia
O Conselheiro

Filho de Deus
ÚLTIMOS LIV�OS NESTA COLEÇÃO

1 98 . Vladimir Nabokov: Riso na Escuridão


1 9 9 . Dalton Trevisan : Guerra Conjugal
200 . Dalton Trevisan : A Trombeta do Anjo Vingador
20 1 . Vladimir Nabokov: A Verdadeira Vida de Sebastian Knight
202 . Alice Munro : Amada Vida
203 . Hjalmar Sõderberg: O Jogo Sério
204 . Vladimir Nabokov: Lolita
205 . Michel Houellebecq: As Partículas Elementares
206 . Vladimir Nabokov: Pnin
207 . Cormac McCarthy: O Conselheiro
208 . Kate Atkinson : Vida Após Vida
209 . A . M . Homes: Assim para Nós Haja Perdão
2 1 0 . Jhumpa Lahiri : A Planície
2 1 1 . Alice Munro : Vidas de Raparigas e Mulheres
2 1 2 . Rachel Kushner: Os Lança-Chamas
2 1 3 . Isaac B ábel: Contos e Diários
2 1 4 . Hermann Broch : A Morte de Virgílio
2 1 5 . Elena Ferrante : Crónicas do Mal de Amor
2 1 6 . Margaret Atwood: Ressurgir
2 1 7 . Katherine Anne Porter: A Torre Inclinada e Outros Contos
2 1 8 . Nathan Filer: O Choque da Queda
2 1 9 . Alice Munro: Falsos Segredos
220 . Marguerite Duras : Moderato Cantabile
22 1 . Marguerite Duras : Olhos Azuis Cabelo Preto
222 . Saul Bellow: Agarra o Dia
223 . Michel Houellebecq: Plataforma
224 . Saul Bellow: Henderson, o Rei da Chuva
225 . Alice Munro : Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento
226 . Flannery O ' Connor: O Céu É dos Violentos
227 . S aul Bellow : O Planeta do Sr. Sammler
228 . Cormac McCarthy: Filho de Deus
229 . Elena Ferrante : A Amiga Genial
230 . S aul Bellow: Contos e Novelas I
23 1 . Karl Ove Knausgãrd: A Morte do Pai - A Minha Luta : I
232 . Lydia Davis : Não Posso nem Quero
233 . Vladimir Nabokov: Fogo Pálido
234 . Antoine de Saint-Exupéry : Voo Nocturno
235 . Antoine de Saint-Exupéry : Piloto de Guerra
236 . Hanif Kureishi : O Buda dos Subúrbios
237 . Hanif Kureishi : A Última Palavra
23 8 . Richard Flanagan : A Senda Estreita para o Norte Profundo
239 . Antoine de S aint-Exupéry : Terra dos Homens
240 . Jonas Jonasson : A Analfabeta Que Era Um Génio dos Números

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