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Título: A Travessia
Título original: The Crossing (1994)
Autor: Cormac McCarthy
Tradução e Prefácio: Paulo Faria
Revisão de texto: Anabela Prates Carvalho
Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)
sobre fotografia de Peter Josyph
ISBN 978-989-641-324-8
A Travessia
Segundo Volume
Trilogia da Fronteira
Tradução e Prefácio de
Paulo Faria
Ficções
Prefácio
«Acho que foi a escrita dele que o levou até lá .» Foi assim, com
esta frase luminosa, que Jim Long, amigo de infância de Cormac Mc
Carthy, me explicou a inflexão ocorrida na obra deste com Meridiano
de Sangue (1985), deslocando o eixo da sua escrita dos Apalaches
para o Oeste selvagem . Jim Long, o 1-Bone que McCarthy imortalizou
em Suttree (1979), não andou na universidade, não concluiu sequer o
liceu, mas resumiu nesta formulação tão bela o que toda uma legião
de críticos literá'rios nunca exprimira com tanta clareza . Cormac Mc
Carthy, o escritor da aridez e do silêncio que antecede o trovão, poeta
da brutalidade e da luta do ser humano contra a inevitabilidade do
caos, das convulsões viscerais da vida orgânica e dos cataclismos ge
ológicos, cronista das cicatrizes do passado a cauterizar a pele do
presente , Cormac McCarthy tinha inevitavelmente de povoar com a
sua prosa, alterando-a e redesenhando-a, a imensidão da paisagem
árida do Oeste selvagem e também esse outro mundo misterioso, cati
vante e ameaçador: o México . Mais cedo ou mais tarde, a escrita dele
iria conduzi-lo até ali, pois precisava desta paisagem para se expandir
e se alcandorar a um novo patamar de tenebrosa excelência . E foi
também claro desde o início que o imaginário do Oeste, com o seu
contraste entre pulsões construtivas e destrutivas, entre sonho e pesa
delo, entre extrema candura e perversidade extrema, tinha com o ima
ginário de McCarthy tantos pontos de contacto que um e outro esta
vam destinados a encontrar-se .
Dois anos depois de Belos Cavalos (1992), que lhe valeu o National
Book Award e o tornou conhecido para além do círculo relativamente
restrito de admiradores que até aí acompanhavam a sua obra, McCar
thy prosseguiu a sua Trilogia da Fronteira com este A Travessia (1994) .
Depois da saga de John Grady Cole por terras mexicanas em Belos
8 Prefácio
mundo que nos rodeia, de cuja existência não nos damos conta a não
ser quando essa existência cessa abruptamente . Em Meridiano de San
gue, o ex-padre, à laia de metáfora da voz de Deus, socorre-se da ima
gem dos cavalos a pastar na noite que, quando cessam, acordam todos
os homens adormecidos num acampamento . Em A Travessia, quando a
respiração silenciosa de um irmão adormecido ao nosso lado cessa
porque ele se levantou sem fazer ruído, acordamos também . A voz do
amor divino, do amor fraterno, está sempre presente em Cormac Mc
Carthy, mas quase nunca é enunciada, quase nunca se torna explícita:
damos por ela quando cessa . As personagens dele raramente dizem
umas às outras que nutrem afecto mútuo; comunicam umas com as
outras e com o mundo por uma panóplia de gestos instintivos que in
corporam o amor mútuo como coisa que não se nomeia, acerca da qual
não se reflecte, que só sabemos que existe quando se cala: quando al
guém morre ou desaparece, quando um modo de vida ou um lugar
morre ou desaparece também . Sempre em silêncio .
E falar em silêncio é também trazer à liça tudo o que McCarthy cala .
No meio de tantas descrições pormenorizadas (imagem de marca do
autor), há sempre facetas e episódios cuidadosamente escolhidos que
McCarthy deixa envoltos em mistério, como que para nos atormentar.
Em Por Quem os Sinos Dobram, quando Pilar narra em pormenor a
Robert Jordan e a Maria a matança dos fascistas numa cidadezinha
espanhola, abstém-se depois de contar aquilo que diz ter sido «ainda
pior»: a entrada dos fascistas na povoação, três dias depois . Hem
ingway jaz questão de deixar à imaginação do leitor a tarefa de preen
cher este vazio . McCarthy jaz o mesmo na cena da latrina que encerra
Meridiano de Sangue, e torna a lançar mão deste artifício em A Traves
sia. Quando Billy deambula por uma feira de diversões (território de
eleição do imaginário mccarthyano), o pregoeiro diante de uma. cara
vana, mais o seu acólito, tentam incitá-lo a entrar para ver uma atrac
ção fascinante, mas que nunca chega a ser nomeada, deixando-nos
para sempre na dúvida . Que atracção se esconde no interior? É a diva
da companhia de ópera que está dentro da caravana ? Que espectáculo
sórdido ou grotesco ali se encena ? E, mais importante ainda: será que
o próprio Cormac McCarthy sabe a resposta a estas perguntas?
Voltemos ao início . «Foi a escrita dele que o levou até lá.» A frase de
Jim Long revela-se uma formulação certeira a muitos níveis e aplica-se
com especial relevância a este A Travessia. Nunca como aqui foi tão
patente que a escrita de Cormac McCarthy é ela própria uma viagem
que nos leva até ao mais fundo de nós mesmos, uma jornada pelos me-
A Travessia 11
Julho de 2012
Paulo Faria
dos do coração dele , se tivessem transviado na sua jornada pela vida, até
finalmente darem por si atrás da muralha daquele olhar vetusto , de onde
não havia regresso possível para todo o sempre .
Do lugar onde se encontrava, ele não conseguia avistar o irmão nem
o cavalo . Viu os anéis vagarosos a afastarem-se sobre a água a partir do
ponto onde o cavalo bebia, atrás do canavial , e viu a ligeira flexão mus
cular por baixo da pele da mandíbula esguia e glabra do índio .
O índio voltou-se e olhou para o pego . O único som era o da água a
gotejar do focinho erguido do cavalo . Olhou para o rapaz .
Meu cabrãozinho duma figa, disse .
Eu não fiz nada.
Quem é aquele contigo?
O meu irmão .
Que idade tem ele?
Dezasseis .
O índio ergueu-se . Ergueu-se imediatamente e sem esforço e olhou
na direcção do pego , onde Billy estava de pé , a segurar o cavalo , e de
pois olhou novamente para Boyd . Vestia um velho casaco andrajoso de
cobrejão e tinha na cabeça um velho Stetson sebento com a copa enfu
nada e tinha as botas remendadas com arame .
O qué que vocês andam aqui a fazer?
Viemos à cata de lenha.
Têm alguma coisa que se coma?
Não .
Ondé que vocês moram?
O rapaz hesitou .
Perguntei-te ondé que vocês moravam.
Ele fez um gesto para jusante .
Muito longe?
Não sei .
Meu cabrãozinho duma figa.
Pôs a espingarda ao ombro e caminhou pela margem do pego e ficou
ali parado , a olhar para o cavalo e para B illy.
Viva, saudou B illy.
O índio escarrou . Vocês assustaram a caça toda aqui nas redondezas ,
não é verdade? soltou .
Não sabíamos que ' tava aqui alguém.
Não têm nada que se coma?
Não , senhor.
Ondé que vocês moram?
A Travessia 19
'Tá certo .
Ele fica aqui comigo .
Pra quê?
Pra me fazer companhia.
Pra lhe fazer companhia.
Isso mesmo .
Ele não precisa de ficar aqui .
Eu não lhe vou fazer mal .
Eu sei que não . Porque ele não vai ficar.
O índio sorveu o ar entre os dentes . Vocês têm armadilhas?
Não temos armadilhas nenhumas .
Ele ergueu os olhos para eles . Sorveu o ar entre os dentes com um ruí-
do sibilante . Toca a andar, então , disse . Tragam-me um bocado de açúcar.
Muito bem . Deixe-me ver a caneca.
Podes levá-la quando voltares .
Quando chegaram ao trilho do gado , B illy olhou para trás , para Boyd ,
e olhou para a luz do fogo entre as árvores . Na planura, o luar era tão
intenso que se podiam contar as cabeças de gado .
Não lhe vamos levar café nenhum, pois não? perguntou Boyd .
Não .
Então e a caneca, como é que fazemos?
Não fazemos nada.
E se a mamã perguntar por ela?
Diz-lhe a verdade . Diz-lhe que eu a dei a um índio . Diz-lhe que um
índio veio até à casa e que eu lha dei .
'Tá bem .
Eu ainda posso vir a ter sarilhos juntamente contigo .
E eu ainda posso vir a ter mais sarilhos do que tu .
Diz-lhe que fui eu .
Podes crer que digo .
Atravessaram o terreno aberto ao encontro da vedação e das luzes da
casa.
Não devíamos de ter ido até lá, logo pra começar, disse Boyd .
B illy não respondeu .
Ou devíamos .
Não .
Então porque é que fomos?
Não sei .
Ainda estava escuro na manhã seguinte , quando o pai entrou no quar
to deles .
24 Cormac McCarthy
B illy, disse .
O rapaz sentou-se na cama e olhou para o pai ali de pé , emoldurado
pela luz da cozinha.
O que é que o cão ' tá a fazer trancado no fumeiro?
Esqueci-me de o soltar.
Esqueceste-te de o soltar?
Sim, senhor.
Mas o que é que ele ' tava lá a fazer, logo pra começo de conversa?
Ele rodou o corpo para fora da cama, pousando os pés no chão frio ,
e curvou-se para pegar nas roupas . Eu vou já soltá-lo , disse .
O pai permaneceu à porta alguns momentos , depois tomou a afastar
-se pela cozinha e pelo corredor. À luz da porta aberta, Billy via Boyd
enroscado , a dormir na outra cama. Vestiu as calças e apanhou as botas
do chão e saiu .
No momento em que acabou de dar comida e água aos cavalos já era
dia, e selou Bird e montou-o e saiu a cavalgar da coxia central do estábu
lo e desceu até ao rio para procurar o índio ou para ver se ele ainda lá
estava. O cão seguia nos calcanhares do cavalo . Cruzaram a pastagem e
seguiram para jusante e romperam através das árvores . Ele parou o cavalo
e ficou escarranchado na sela. O cão ficou a seu lado , a farejar o ar, alçan
do o focinho com movimentos rápidos , a coligir e a compilar uma imagem
dos acontecimentos da noite anterior. O rapaz tomou a picar o cavalo .
Quando penetrou no acampamento do índio , a fogueira estava fria e
negra. O cavalo agitava-se e dava passos nervosos de viés , e o cão ca
minhou em volta das cinzas mortas com o focinho colado ao chão e os
pêlos eriçados ao longo do dorso .
Quando voltou para casa, a mãe tinha o pequeno-almoço pronto , e ele
pendurou o chapéu e puxou uma cadeira e começou a pôr ovos no prato
com uma colher. Boyd já estava a comer.
Onde ' tá o papá? perguntou ele .
Não te atrevas sequer a respirar à mesa sem teres agradecido a Deus
por esta refeição , ralhou a mãe .
Sim, senhora.
B aixou a cabeça e recitou as palavras para si mesmo e depois esten-
deu a mão para pegar num scone .
Onde ' tá o papá.
'Tá na cama. Já comeu .
A que horas voltou ele .
Há umas duas horas . Cavalgou toda a noite .
Mas porquê?
A Travessia 25
Ele não me dá pancada, eu não lhe dou pancada a ele , retorquiu Boyd .
Billy escarrou para o palhiço seco no chão da coxia. Esperaram. O ca
valo expirou , esvaziando os pulmões . Boyd puxou a correia e afivelou-a.
Cavalgaram pela pastagem de Ibafíez durante toda a manhã, a remirar
as vacas . Estas mantinham as distâncias e remiravam-nos por sua vez ,
vacas de patas compridas e de focinho variegado , arraçadas de estirpes
mexicanas , algumas de chifres compridos , de todas as cores possíveis .
À hora do almoço , voltaram para casa, trazendo à corda uma bezerra de
um ano , e meteram-na no cercado de estacas acima do estábulo para o
pai a ver e entraram e lavaram-se . O pai já estava sentado à mesa. Ra
paze s , saudou .
Sentem-se lá, disse a mãe . Pousou na mesa uma travessa de bifes de
vaca fritos . Uma tigela de feijão . Depois de darem graças por aquela
refeição , ela estendeu a travessa ao pai e ele retirou um bife para o seu
prato com o garfo e passou-a a B illy.
O papá diz que há uma loba por esses montes , disse ela.
B illy imobilizou-se de travessa na mão , com a faca erguida.
Uma loba? perguntou Boyd .
O pai fez que sim com a cabeça. Matou um vitelo de engorda gran
dote lá no cabeço de Foster Draw.
Quando? perguntou Billy.
Já faz uma semana ou mais , provavelmente . O moço Oliver mais novo
seguiu-lhe o rasto pelas montanhas acima. Ela veio do México. Cruzou
o desfiladeiro de San Luis e subiu pela encosta ocidental das Animas e
rompeu pra cá perto do cabeço de Taylor 's Draw e depois desceu e cru
zou o vale e subiu para os montes Peloncillos . Subiu aquilo tudo até à
neve . Havia três dedos de neve no chão lá onde ela matou o vitelo .
Como é que o pai sabe que era uma loba? quis saber Boyd .
Bom , como é que achas que ele sabe? interveio B illy.
Via-se bem onde é que ela tinha feito as suas precisões , explicou o pai .
Ah , disse Boyd.
O que é que o pai tem na ideia fazer? perguntou B illy.
Bom , acho melhor que a gente a apanhe . Não vos parece?
Sim, senhor.
Se o velho Echols aqui ' tivesse , apanhava-a , disse Boyd .
Mr Echol s .
Se Mr Echols aqui ' tivesse , apanhava-a.
Sim, é verdade . Mas não ' tá.
* * *
A Travessia 27
Não há problema.
Vai lá. Eu trato dos cavalos .
que pouco mais comia do que carcaças de animais mortos e exibia uma
aparência acossada e não encontrara quaisquer vestígios de lobos . Co
meu e descansou e tornou a comer. Comeu até o ventre se lhe arrastar
pelo chão e não regressou para junto do vitelo morto . Nunca regressava
para junto de uma presa morta. Nunca atravessava uma estrada nem
uma linha férrea à luz do dia . Nunca passava por baixo de uma vedação
de arame duas vezes no mesmo ponto . Eram estes os novos protocolos .
Restrições que antes não vigoravam . Mas agora sim .
Deambulou para oeste , embrenhando-se no condado de Cochise , no
estado do Arizona, cruzou o braço sul do Skeleton Creek e continuou
mais para oeste , até ao cabeço do Starvation Canyon , e depois foi para
sul , até Hog Canyon Springs . Em seguida, voltou para leste , vagueando
pelas terras altas entre os barrancos de Clanton e de Foster. À noite ,
descia até às planícies das Animas e perseguia os antílopes selvagens , a
vê-los fluir e rodopiar na poeira da sua própria passagem onde esta se
elevava como fumo do leito da bacia, a contemplar a flexão meticulo
samente afinada dos seus membros e os movimentos bambaleantes das
suas cabeças e o lento enovelamento e a lenta extensão da sua corrida,
procurando qualquer indício entre eles que lhe apontasse qual a sua
presa.
Naquela época do ano , as fêmeas dos antílopes já estavam prenhas ,
e, como era habitual elas abortarem , muito antes do final da gestação , a
cria mais débil , por duas vezes ela deparou com estes nados-mortos
pálidos caídos no chão, ainda quentes e de olhos arregalados , corpos de
um azul leitoso e quase translúcidas ao alvorecer, como desmanchas
emanados de um outro mundo totalmente diverso . Ela devorou-os por
completo , ali caídos , cegos e moribundos na neve , sem deixar sequer os
ossos . Antes que o Sol nascesse , abandonava a planura e erguia o foci
nho , parada num promontório baixo ou num penedo sobranceiro ao
vale e uivava, uivava, rasgando aquele silêncio terrível . Talvez tivesse
abandonado aquela região de uma vez por todas , caso não tivesse depa
rado com o odor de um lobo mesmo abaixo da garganta altaneira, a
oeste de Black Point . Estacou como se tivesse batido contra um muro .
Caminhou em círculos em volta da armadilha durante quase uma
hora, a destrinçar e a catalogar os diversos odores e a ordenar a respec
tiva sequência, num esforço para reconstituir os acontecimentos que ali
tinham ocorrido . Quando se afastou , cruzou a garganta para sul , seguin
do os rastos dos cavalos já com trinta e seis horas .
À tardinha, já encontrara as oito armadilhas , e estava de regresso à
garganta da montanha, onde caminhou em volta da armadilha, a soltar
36 Cormac McCarthy
Ela ficou parada junto do fogão , a observá-lo ali curvado sobre a sua
tarefa . Em seguida, virou costas e tirou a caçarola de ferro do suporte e
pousou-a no fogão . Abriu a portinhola da fornalha para meter lá lenha,
mas ele já o fizera .
Quando acabaram de comer o pequeno-almoço , o pai limpou a boca
e pousou o guardanapo na mesa e empurrou a cadeira para trás .
Onde é que ' tão as armadilhas?
Penduradas na corda da roupa, disse Boyd .
Ele levantou-se e saiu da cozinha . B illy esvaziou a chávena e pousou-
-a na mesa diante de si .
Queres que eu fale com ele?
Não .
Muito bem . Nesse caso , não abro a boca. Fosse como fosse , prova
velmente não ia servir de nada .
Quando o pai regressou do estábulo , passados dez minutos , Boyd
estava junto à pilha de lenha, em mangas de camisa, a rachar cavacas
para o fogão .
Queres vir com a gente? perguntou o pai .
Deixe ' tar, respondeu Boyd .
O pai entrou em casa. Ao fim de algum tempo , Billy saiu .
Mas o que é que se passa contigo , chiça? soltou .
Não se passa nada comigo . O que é que se passa contigo?
Não sejas burro . Pega no casaco e toca a andar.
Nevara de noite nas montanhas , e a neve na garganta, a oeste de B lack
Point , tinha um palmo e meio de espessura. O pai conduziu o cavalo à
brida pela neve , a seguir a pista da loba, e seguiram-na toda a manhã
através das terras altas até a neve se acabar debaixo das patas dela, mes
mo acima da estrada de Cloverdale Creek . Ele desmontou e ficou a
olhar ao longe , para a extensão desafogada onde ela se perdera, e depois
tornou a montar e deram meia-volta e cavalgaram de regresso ao alto da
montanha, para irem verificar as armadilhas do outro lado da garganta.
Ela ' tá prenha, disse o pai .
Montou mais quatro armadilhas sem engodo no trilho e depois inicia
ram o regresso . Boyd estava a tremer na sela e tinha os lábios azuis .
O pai deixou-se ficar para trás , a par dele , e despiu o casaco e estendeu
-lho .
Não tenho frio , disse Boyd .
Eu não te perguntei se tinhas frio . Veste isso .
Dois dias mais tarde , quando Billy e o pai percorreram novamente a
fiada de armadilhas , viram que uma das armadilhas colocadas no trilho ,
38 Cormac McCarthy
a cavalgar e m sentido oposto e de novo para baixo , mas não via indício
algum do que ela perseguira em corrida. Apanhou-lhe de novo o rasto e
seguiu-o através do terreno aberto e pela encosta virada a sul e sobre a
meseta acima de Cloverdale Draw, e aqui ela afugentara uma pequena
manada de gado reunida entre os zimbros e fizera fugir as vacas da
meseta, enlouquecidas e a escorregar e a dar grandes tombos na neve , e
aqui ela matara uma bezerra de dois anos na orla do arvoredo .
A bezerra jazia sobre o flanco à sombra da floresta, com os olhos
vidrados e a língua de fora, e ela começara a alimentar-se da carcaça
entre as patas traseiras e comera o fígado e arrastara os intestinos sobre
a neve e devorara vários quilos de carne do interior das coxas . A bezer
ra ainda não estava totalmente hirta nem totalmente fria. Ali caída ,
derretera a neve até ao solo numa silhueta escura à sua volta.
O cavalo desejava alhear-se por completo do sucedido . Arqueou o
pescoço e revirou os olhos , e os orifícios das narinas lançavam bafora
das como fumarolas . O rapaz deu-lhe palmadinhas no pescoço e falou
com ele e depois desmontou e amarrou as rédeas a um galho e caminhou
em volta do animal morto , a examiná-lo . O olho voltado para cima es
tava azul e parado , e não havia nele qualquer reflexo nem qualquer
mundo . Não se viam corvos nem outras aves por ali . Tudo era frio e
silêncio . Ele regressou para junto do cavalo e retirou a espingarda do
respectivo estojo e tomou a verificar a câmara. O mecanismo estava
perro do frio . Ele baixou o cão com o polegar e desamarrou as rédeas e
montou e guiou o cavalo para baixo , ao longo da orla do bosque , caval
gando com a espingarda atravessada sobre o regaço .
Seguiu-a ao longo de todo o dia. Não a chegou a ver. A dado momen
to , afugentou-a de uma cama num maciço de moitas que servia de corta
-vento , na vertente sul , onde ela dormira ao sol . Ou julgou tê-la afugen
tado . Ajoelhou-se e colocou a mão na erva calcada, para ver se estava
quente , e ficou ali sentado para ver se alguma haste de erva se iria endi
reitar, mas nenhuma o fez , e não tinha maneira de saber se a cama estava
quente do corpo dela ou do calor do Sol . Tomou a montar e prosseguiu .
Por duas vezes , perdeu-lhe o rasto na pastagem de Cloverdale Creek,
onde a neve derretera, e de ambas as vezes tomou a encontrá-lo no círcu
lo que descreveu em busca de sinais. Do outro lado da estrada de Clover
dale viu fumo e cavalgou até lá e deparou com três vaqueros do rancho
de Pendleton a comerem o seu almoço . Eles não sabiam que havia uma
loba ali nas redondezas . Pareciam pouco convencidos . Entreolharam-se .
Convidaram-no a desmontar e a juntar-se a eles , e ele assim fez e eles
deram-lhe uma chávena de café e ele retirou o almoço de dentro da
42 Cormac McCarthy
teceu , pois bem , o puma que tinha ' tado no Texas ' tava com um ar mais
morto que vivo . O puma do Novo México olhou pra ele e disse-lhe as
sim: Santo Deu s , comparsa, ' tás com um ar horrível . O que é que te
aconteceu , conta lá. O puma que tinha ' tado no Texas disse assim: Eu
cá não sei . 'Tou quase a morrer de fome . O outro puma virou-se pra ele
e disse-lhe assim: Bom, conta-me lá o que andaste a fazer. Se calhar não
fizeste as coisas bem feitas .
Bem , vai daí o puma do Texas disse: Eu tenho ' tado a usar os velhos
métodos que sempre deram bom resultado . Empoleiro-me num galho
por cima do trilho e depois , quando um texano passa por baixo a cavalo,
dou um rugido de ensurdecer e salto-lhe pra cima das costas . E é isso
que eu tenho ' tado a fazer.
Bom, o puma do Novo México olhou pra ele e disse assim: Muito me
admira não teres morrido de fome . 'Tás a fazer tudo mal , não é assim
que se caçam texanos , nem percebo como é que conseguiste chegar vivo
ao fim do Inverno . Escuta bem. Primeiro que tudo , quando ruges dessa
maneira, lá se lhes vai a bazófia. Depois , quando lhes saltas assim pra
cima das costas , lá se lhes vão as peneiras . Raios , comparsa. Ficas sem
nada, só sobram as botas e o cinturão .
O velho tombou sobre o volante , a arquejar. Ao fim de um certo tem
po , começou a tossir. Ergueu o rosto e limpou os olhos rasos de água
com um dedo e abanou a cabeça e ergueu os olhos para o rapaz .
Percebeste a piada? indagou . Os texanos?
B illy sorriu . Sim, senhor, disse .
Tu não és do Texas , ou és?
Não, senhor.
Bem me pareceu que não eras . Bom. É melhor eu ir andando . Se
queres apanhar coiotes , dá um salto à minha casa.
'Tá certo .
Não explicou onde era a casa dele . Engatou a alavanca das mudanças
e puxou para baixo o manípulo da ignição e afastou-se pela estrada fora.
rapaz se o velho lhe tinha explicado como havia de apanhar o lobo , e ele
respondeu que não .
Ela tocou na têmpora. Às vezes ele no se lembra assim tão bem , dis-
se . Está velho .
Sim , senhora.
Ninguém o vem visitar. É uma tristeza, hem?
Sim, senhora.
Nem sequer o padre . Veio uma vez , se calhar duas , mas nunca mais
veio depois .
Mas porquê?
Ela encolheu os ombros . As pessoas dizem que ele é brujo . Sabes o
que é brujo?
Sim, senhora.
Dizem que ele é brujo . Dizem que Deus abandonou este homem . Ele
tem o pecado de Satanás . O pecado do orgullo . Sabes o que é orgullo?
Sim, senhora.
Ele acha que sabe mais do que o padre . Acha que sabe mais do que
Deus .
Ele a mim disse-me que não sabia nada.
B ah , soltou ela. Bah . Acreditas nisso? Vês aquele velho? S abes que
coisa tão horrível é esta, morrer sem Deus? Ser aquele que Deus afas
tou? Pensa bem .
Sim, senhora. Tenho de i r andando .
Tocou na aba do chapéu e contornou a mulher para chegar à porta e
saiu para a escuridão do crepúsculo . As luzes da povoação , dispersas ao
longo da pradaria , jaziam naquele vale azul como uma serpente coberta
de jóias , a incandescer na frescura do começo da noite . Quando tornou
a olhar para a casa, ela estava parada no vão da porta.
Muito obrigado , minha senhora, disse ele .
Ele no me é nada, bradou ela. No hay parentesco . S abes o que é pa
rentesco?
Sim, senhora.
No hay parentesco . Ele era tío da falecida mulher do meu falecido
marido . O que é isto? Compreendes? E todavia tenho-o aqui . Quem mais
haveria de cuidar deste homem? Compreendes? Ninguém se importa.
Sim , senhora.
Pensa bem.
Ele soltou as rédeas da estaca e desamarrou-as . Muito bem , disse .
Vou pensar.
Pode-te acontecer a ti .
56 Cormac McCarthy
Sim, senhora.
Ele montou e voltou o cavalo e ergueu uma mão . As montanhas a sul
erguiam-se , muito negras , sob um céu violeta. A neve tão pálida nas
encostas voltadas a norte . Como espaços vazios deixados para inscrever
mensagens .
La je! gritou ela. La je es todo .
Ele voltou o cavalo ao longo do trilho sulcado de regos e seguiu em
frente . Quando olhou para trás , ela ainda estava parada diante da porta
aberta . Parada ao frio . Ele olhou para trás uma derradeira vez e a porta
ainda continuava aberta, mas ela já lá não estava, e ele pensou que tal
vez o velho a tivesse chamado . Mas depois pensou que , provavelmente ,
aquele velho já não chamava por ninguém .
meia-volta e olhou para trás . A loba olhava-o como antes . Ele permane
ceu ali parado imenso tempo . Com o sol quente nas costas . O mundo à
espera. Por fim , cavalgou de regresso para junto da loba.
Ela ergueu-se e ficou de pé , com os flancos a mirrarem e a enfunarem
-se . Tinha a cabeça baixa e a língua pendia-lhe , trémula, entre os longos
incisivos do maxilar inferior. Ele soltou o cordão que prendia a corda de
laçar e pô-la ao ombro e desmontou . Tirou alguns troços de cordão de
amarrar gado da mochila atrás da sela e prendeu-os ao cinturão com
uma laçada e preparou a corda de laçar e caminhou em volta da loba . O
cavalo de nada lhe servia, porque , caso retesasse a corda, mataria a loba
ou soltá-la-ia da armadilha ou ambas as coisas . Descreveu um círculo
em volta da loba e procurou qualquer coisa a que pudesse amarrar a
corda para conseguir derrubar o animal . Nada havia que a corda alcan
çasse e a que ele a pudesse prender, e, por fim , despiu o casaco e usou
-o para vendar o cavalo e conduziu-o para barlavento da loba e deixou
cair as rédeas para que ele ficasse parado . Em seguida, foi soltando a
corda e armou o laço e deixou-o tombar sobre a loba. Ela avançou atra
vés do laço , arrastando a armadilha consigo , e olhou para a corda e
olhou para ele . A corda encontrava-se agora em volta da corrente da
armadilha. Ele olhou para o laço com expressão exasperada e soltou a
corda e afastou-se através do deserto até encontrar um paloverde e
cortou-lhe um ramo com mais de dois metros de comprido e com uma
bifurcação na ponta, e regressou a aparar-lhe os galhos com a navalha.
Ela observava-o . Ele prendeu o laço com a ponta do pau e puxou-o
para si . Pensou que ela talvez mordesse o pau , mas não . Quando teve o
laço novamente na mão , foi obrigado a passar os doze metros de corda
por dentro da alça e a começar de novo . Ela ficou a ver a corda com
grande atenção enquanto esta ia fazendo a sua travessia e, quando a
ponta passou sobre a corrente da armadilha e se escapuliu através da
erva morta, tornou a deitar-se no chão.
Ele armou um laço mais apertado e avançou . Ela pôs-se de pé . Ele
atirou o laço e ela baixou as orelhas e agachou-se e arreganhou-lhe os
dentes. Ele fez mais duas tentativas , e, à terceira, o laço tombou sobre
o pescoço da loba e ele retesou a corda.
Ela desatou a contorcer-se sobre as patas traseiras , a erguer a pesada
armadilha ao alto , junto ao peito , e a desferir dentadas na corda e a dar
-lhe patadas com a pata livre . Soltou um queixume surdo que era o
primeiro som que se lhe ouvia.
Ele recuou e fê-la tombar ao comprido até ela jazer no chão , arquejan
te , e ele continuou a recuar ao encontro do cavalo , sempre a desenrolar
A Travessia 61
correu em círculo na ponta da corda até passar pela cholla que primeiro
prendera o gancho da armadilha, e aí a corda fê-la dar uma volta até
estacar de repente , arquejante , presa no meio dos espinhos .
Ele ergueu-se e acercou-se dela. A loba agachou-se e colou as orelhas
à cabeça . A saliva pendia-lhe das mandíbulas em fiapos brancos . Ele
sacou da navalha e agarrou o pau enfiado na boca dela e falou com ela
e afagou-lhe a cabeça, mas ela limitou-se a arreganhar os dentes e a
estremecer.
Não vale a pena lutares, disse-lhe ele .
Cortou a ponta saída do paloverde junto à boca dela e guardou a na
valha e caminhou em volta da cholla a segurar a ponta da corda até a
soltar e depois conduziu a loba, que se contorcia e ia sacudindo a cabe
ça, para terreno aberto . A força dela deixara-o estupefacto . Estacou de
pernas abertas , a segurar a corda com ambas as mãos , sobre as coxas , e
voltou-se e remirou as cercanias , procurando ver o cavalo . Ela não pa
rava de se debater, e ele tomou a agarrar a ponta da corda e sentou-se
com a corda enrolada numa dupla volta em tomo do punho fechado e
cravou os dois tacões das botas na terra e deixou a loba correr. Desta
vez , quando retesou novamente a corda, ela voou pelos ares e aterrou de
costas e ficou ali estatelada . Ele puxou a corda e arrastou-a para junto
de si através da terra.
Levanta-te , ordenou . Não ' tás magoada.
Acercou-se e parou junto dela, ali caída a arquejar. Remirou-lhe a
pata ferida. Havia uma aba de pele solta puxada para baixo em volta da
articulação como uma peúga, e a ferida estava suja e coberta de pauzi
nhos e folhas . Ele ajoelhou-se e tocou na loba . Vá, anda, disse . Espan
taste o meu cavalo , por isso toca a ir à procura dele .
Quando finalmente a conseguiu arrastar até à estrada, estava quase
exausto . O cavalo encontrava-se parado a uns cem metros , a pastar na
valeta da berma. Levantou a cabeça e olhou para ele e baixou a cabeça
para continuar a pastar. Ele prendeu a corda com uma laçada a uma
estaca de vedação e tirou do cinto o último troço de corda para amarrar
bezerros e amarrou a alça à corda que prendia a loba, para assim impe
dir que o nó corredio se soltasse , e voltou então para trás através da
pastagem para ir apanhar do chão o casaco e para ir buscar a armadilha.
Quando regressou , ela estava espalmada contra a estaca e meio es
trangulada, de tanto se ter debatido para trás e para diante . Ele deixou
cair a armadilha e ajoelhou-se e desprendeu a corda da estaca e fê-la
correr a todo o comprimento para cá e para lá através dos arames até
libertar novamente a loba. Ela pôs-se de pé e sentou-se na erva poeiren-
64 Cormac McCarthy
Bom, a menos que ele faça mesmo questão de vir à boleia, acho que
lhe posso ir buscar o cavalo sozinho .
Tu não queres é ir na carrinha com aquele lobo , é o que é , disse o
homem.
Não é que não queira. É que não vou mesmo .
Bom, eu ' tava-me a preparar pra sugerir que já que o animal é bem
capaz de saltar da caixa da carrinha, porque é que não o levas na cabina
contigo enquanto o rapaz segue na traseira?
RL agarrara os cães pelos pedaços de corrente que arrastavam pelo
chão e estava a prender o terceiro cão aos dois primeiros com o cinto .
'Tá-se mesmo a ver, eu a conduzir a carrinha por essa estrada fora com
um lobo no banco ao meu lado , retorquiu ele . É que é mesmo pra já, não
haja dúvida.
O homem permanecia parado, a olhar para a loba. Ergueu a mão para
ajeitar o chapéu , mas não trazia chapéu , por isso limitou-se a coçar a ca
beça. Olhou para o rapaz . E eu a julgar que conhecia todos os lunáticos
deste vale , disse . Com estas redondezas a encherem-se de gente , uma pes
soa nem sequer se consegue manter a par dos vizinhos todos . Já jantaste?
Não , senhor.
Bom , vem com a gente até à casa.
E o que é que quer que eu faça com ela?
Ela?
Esta loba aqui .
Bom, acho que ela vai ter de ficar pràli deitada na cozinha até a gen
te acabar de comer.
Deitada na cozinha?
'Tava a brincar, rapaz . Co ' a breca. Se metesses essa criatura dentro
de casa, havia de se ouvir a minha mulher a berrar em Albuquerque com
os fios do telégrafo todos caídos no chão .
Não a quero deixar cá fora. É capaz de algum bicho a atacar.
Eu sei . Anda daí, vá. Seja como for, eu também não a ia deixar cá
fora e arriscar-me a que alguém a visse , nem por sombras . Ainda me
vinham dar caça com uma rede pra borboletas .
Meteram a loba no fumeiro e deixaram-na ali e encaminharam-se
para a cozinha. O homem olhou para a espingarda que o rapaz levava
na mão , mas não disse nada. Quando chegaram à porta da cozinha, o
rapaz apoiou a espingarda contra a parede da casa, e o homem segurou
a porta para o deixar passar e entraram os dois .
A mulher guardara o jantar por cima do fogão para o manter quente
e tornou a tirar tudo para fora e pôs um prato na mesa para o rapaz . Lá
A Travessia 73
Sim, senhor. Vou ter cuidado . Agradeço-lhe muito e mais à sua se
nhora .
O homem fez que sim com a cabeça. O rapaz ergueu uma mão e tor
ceu as rédeas para obrigar o cavalo a dar a volta e afastou-se através da
terra que a escuridão ia cobrindo , com a loba a manquejar na sua estei
ra . O homem ficou junto à cancela, a vê-lo partir. Lá muito longe , a sul ,
erguia-se o escuro das montanhas , e sobre aquele fundo ele não conse
guia distinguir os contornos daquelas figuras e em breve ambos foram
engolidos e se perderam , cavalo e cavaleiro , na noite iminente . A derra
deira coisa que ele viu naquela aridez varrida pelo vento foi a pata en
trapada de branco da loba a mover-se ao acaso e em staccato como um
djim pálido lá longe , extravagante no frio e na escuridão crescentes . Por
fim , também isso desapareceu , e ele fechou a cancela e voltou-se para a
casa.
foi que a ligadura lhe desaparecera da pata. Depois viu que o pau entre
os dentes dela desaparecera. Depois viu que o cordão que antes lhe
amarrava a boca desaparecera .
Ela enfrentou-o , com os pêlos eriçados ao longo do dorso . A corda de
laçar amarrada à coleira e enroscada em anéis pelo chão estava esfiapa
da e húmida no ponto onde ela a tinha estado a roer.
Ele deteve-se e ficou petrificado . Recuou ao longo da corda até che
gar junto do cavalo e então desamarrou a corda do chifre da sela. Não
tirou os olhos dela.
Segurando a ponta solta da corda, começou a descrever um círculo
em volta da loba. Ela rodou sem sair do lugar, a fitá-lo . Ele interpôs um
pequeno pinheiro entre ambos . Tentava caminhar com gestos despreo
cupados , mas sentia que todas as suas motivações eram evidentes aos
olhos dela. Passou a corda numa laçada em volta de um ramo alto e
tornou a apanhá-la e depois recuou e retesou a corda até a prender. A
parte folgada da corda assomou a desenrolar-se do seio das ervas e das
agulhas de pinheiro e repuxou a coleira da loba. Ela baixou a cabeça e
seguiu a corda.
Quando ela ficou parada debaixo do ramo , ele puxou a corda até as
patas dianteiras dela ficarem quase acima do chão e depois aliviou a
corda um bocadinho e amarrou-a e ficou parado a olhar para a loba. Ela
arreganhou-lhe os dentes e voltou-se e tentou afastar-se , mas não con
seguia. Parecia perplexa, sem saber o que fazer. Ao fim de um certo
tempo , ergueu a pata ferida e começou a lambê-la.
Ele regressou para junto do lume e amontoou na fogueira toda a lenha
que recolhera. Depois pegou no cantil e tirou da mochila uma das últi
mas sanduíches e extraiu-a do papel de embrulho e levou o cantil e o
papel para junto da loba.
Ela ficou a ver enquanto ele escavava um buraco na terra fofa e ficou
a ver enquanto ele o amaciava com a parte de trás do tacão da bota. Em
seguida, ele abriu o papel na depressão e pôs-lhe uma pedra em cima
para não voar e encheu-o de água do cantil.
Desamarrou a corda e foi-lhe dando folga enquanto recuava. Ela
observava-o , imóvel . Ele recuou mais alguns passos e agachou-se no
chão , a segurar a corda. Ela olhou para o lume e olhou para ele . Sentou
-se sobre os quadris e lambeu as mandíbulas doridas . Ele levantou-se e
foi até ao buraco e verteu mais água e agitou-a com a mão , chapinhan
do . Em seguida, tornou a atarraxar a tampa do cantil e pousou-o de pé
ao lado do buraco cheio de água e recuou de novo e sentou-se no chão .
Observaram-se um ao outro . Já quase escurecera. Ela pôs-se de pé e
A Travessia 83
Se calhar pensas que podes esperar até eu adormecer pra depois veres
se te consegues soltar, disse .
Ela ergueu a cabeça e olhou para ele .
Pois , prosseguiu ele . 'Tou a falar contigo .
Quando o açaimo ficou pronto , voltou-o nas mãos e experimentou a
fivela. Parecia bastante sólido . Fechou a navalha e enfiou o açaimo no
bolso de trás e tirou da mochila os últimos troços de cordão de amarrar
bezerros e enfiou-os na presilha das calças e pegou nas peias do cavalo
e meteu-as no outro bolso de trás . Em seguida, encaminhou-se para o
ponto onde a corda estava amarrada. A loba ergueu-se e ficou de pé , à
espera.
Ele puxou-a lentamente para o alto pela coleira. Ela desferiu patadas
na corda e tentou fincar-lhe os dentes . Ele falou com ela e tentou acalmá
-la, mas parecia não servir de nada, por isso limitou-se a içá-la e prendeu
a corda com uma laçada, com a loba em posição erecta e meio estrangu
lada, a cabeça quase a tocar no ramo por cima de si . Em seguida, pôs-se
de gatas no chão e rastejou até onde ela se encontrava na vertical , a
contorcer-se , e atou-lhe as patas traseiras uma à outra com uma peia e
deu uma volta com a ponta livre da corda de laçar em tomo da peia e
amarrou-a e rolou sobre as costas para se afastar e pôs-se de pé e recuou .
Puxou a laçada até a soltar e , dando folga à ponta da corda presa à colei
ra com uma mão , começou a puxar a loba ao seu encontro pelas patas de
trás com a outra. Se alguém visse isto, disse à loba, agarravam-me e
levavam-me prà hospital dos malucos assim amarrado como tu .
Quando a estendera ao comprido , pegou na outra peia e amarrou-lhe
as patas traseiras ao pequeno pinheiro-de-Banks que estivera a usar
como ponto de apoio para retesar a corda e , em seguida, soltou a ponta
da corda de laçar das patas dela e enrolou-a e pendurou-a ao ombro .
Quando ela sentiu a corda a ficar folgada, ergueu-se com esforço e co
meçou a desferir dentadas nas cordas que lhe prendiam as patas de trás .
Ele tornou a puxá-la para baixo e , em seguida, caminhou num amplo
movimento circular em volta dela até alcançar o ramo em volta do qual
a corda estava enrolada. Passou a ponta solta da corda por cima do ramo
e recuou e estendeu a loba ao comprido no chão .
Eu sei que tu pensas que eu te ' tou a tentar matar, disse ele . Mas não
' tou .
Amarrou a corda a outro pequeno pinheiro-de-Banks e tirou o cordão
de amarrar bezerros da presilha das calças e acercou-se do lugar onde
ela jazia, hirta e trémula e a arquejar entre as cordas retesadas . Deu um
nó corredio no cordão e tentou meter-lho em volta do focinho . À segun-
A Travessia 85
da tentativa, ela agarrou-o com a boca. Ele ficou parado sobre ela, à
espera de que ela o soltasse . Os olhos amarelos fitavam-no .
Larga, ordenou ele .
Agarrou o cordão com força e puxou-o .
Muito bem , disse . Nada de estupidezes agora , sim? Não estava a falar
com a loba . Se ela te ferra o dente , disse , nem sequer a fivela do cinto
vão encontrar.
Quando viu que ela se recusava a soltar o cordão de amarrar bezerros ,
agarrou a corda presa à coleira e puxou-a até lhe cortar o ar. Em seguida ,
estendeu o braço e pegou no cordão e , ainda a retesar a corda, soltou-o
e enfiou-lho em volta da boca e puxou-o para lha fechar e deu três vol
tas com o cordão e prendeu-o com uma laçada e largou de novo a corda.
Sentou-se no chão . A fogueira esmorecia e, com ela, a luz . Muito bem ,
disse . Não desistas agora. Raios , ainda tens dez dedos .
Tirou o açaimo do bolso e ajustou-lho em volta do focinho . Servia
bastante bem . A ponta estava demasiado folgada, e ele tornou a tirar-lho
e sacou da navalha e fez novas incisões e tornou a prender os fatigas e
voltou a meter-lhe o açaimo no focinho e afivelou-lho atrás das orelhas .
Em seguida, prendeu-o de novo , apertando mais um buraco. Prendeu à
coleira dela os dois pioses pendentes e depois enfiou a lâmina da nava
lha pela parte lateral do açaimo e cortou o cordão com que lhe amarrara
a boca.
A primeira coisa que ela fez foi sorver uma grande golfada de ar. Em
seguida, tentou morder o cabedal . Mas ele usara o couro da sela em
volta do focinho dela para formar um basal largo , e ela não o conseguia
prender entre os dentes por ser tão rijo. Ele desamarrou-lhe as patas
traseiras e recuou . Ela pôs-se de pé e começou a saltar e a dar sacões na
ponta da corda. Ele acocorou-se nas agulhas de pinheiro a observá-la.
Quando ela finalmente se aquietou , ele levantou-se e desamarrou a cor
da e conduziu-a para junto do lume .
Pensou que as chamas a iriam deixar apavorada, mas não . Prendeu a
corda a meio do seu comprimento ao chifre da sela que estava pousada
diante do fogo para secar, depois pegou no lençol e no boião de unguen
to e sentou-se às cavalitas dela e limpou e tratou a pata e fez-lhe uma
nova ligadura . Pensou que ela o iria tentar morder, mesmo com o açai
mo posto , mas não . Quando terminou , deixou-a levantar-se , e ela
ergueu-se e caminhou até à ponta da corda e farejou a ligadura e deitou
-se , de olhos postos nele .
Ele dormiu com a sela à laia de almofada. Por duas vezes , durante a
noite , acordou com a sela a mexer-se debaixo da cabeça e estendeu o
86 Cormac McCarthy
braço e deu um puxão na corda e falou com a loba. Estava deitado com
os pés voltados para a fogueira, de modo que , caso ela descrevesse um
círculo no escuro da noite e arrastasse a corda através das chamas , teria
de a arrastar por cima dele , acordando-o . Já sabia que ela era mais inte
ligente do que qualquer cão , mas não sabia até que ponto . Os coiotes
latiam nos montes abaixo deles , e ele voltou-se para ver se ela lhes
prestava alguma atenção , mas ela parecia estar adormecida. Todavia,
assim que o olhar dele tombou sobre ela, a loba abriu os olhos . Ele des
viou os seus . Esperou e depois tentou novamente , de modo mais furtivo .
Os olhos abriram-se como antes .
Ele cabeceou e adormeceu e a fogueira reduziu-se a um monte de
brasas e ele acordou ao frio e deu com a loba a observá-lo . Quando
tornou a acordar, a Lua já se pusera e a fogueira estava quase apagada.
Fazia imenso frio . As estrelas mantinham-se fixas nos seus lugares co
mo figuras recortadas numa candeia de folha-de-flandres . Ele levantou
-se e alimentou a fogueira com mais lenha e avivou a chama com o
chapéu . Os coiotes tinham-se calado , e a noite era somente trevas e si
lêncio . Ele tivera um sonho , e nesse sonho um mensageiro surgia das
planuras , a sul , com uma frase escrita num pedaço de papel arrancado
de um livro-mestre , mas ele não a conseguia ler. Olhou para o mensa
geiro , mas aquele rosto estava obscurecido nas sombras e não se lhe
viam as feições , e ele percebeu que o mensageiro era somente um men
sageiro e nada lhe saberia dizer das novas de que era portador.
Na manhã seguinte , levantou-se e tornou a alimentar a fogueira e
agachou-se , percorrido por calafrios , diante das chamas , embrulhado na
manta . Comeu a última sanduíche que a mulher do rancheiro preparara
para ele e depois tirou a pele de coelho da mochila e dirigiu-se para
onde a loba estava deitada. Ela pôs-se de pé ante a sua aproximação . Ele
desembrulhou a pele já hirta e estendeu-lha. Ela farejou-a e olhou para
ele e deu dois passos em círculo e ficou parada a olhar para a carne , com
as orelhas ligeiramente inclinadas para diante .
'Tou em crer que mais um bocadinho e comias , disse ele .
Afastou-se e procurou um galho de árvore partido e cortou-o no com
primento desejado e, com a navalha, esculpiu-lhe uma ponta até moldar
uma fina espátula. Depois voltou para trás e sentou-se no chão e agarrou
a loba pela coleira e puxou-a contra a própria perna e segurou-a até ela
parar de se debater. Abriu a pele no chão e recolheu na espátula um
pedacinho da carne escura do coração e puxou para si aquela cabeça
bravia e passou a espátula para trás e para diante para ela cheirar. Em
seguida, segurando-lhe o longo focinho na mão em concha, levantou-
A Travessia 87
com elas . Enfiou o cigarro no canto da boca e chamou a loba. Deu pal
madinhas no chão para ela se aproximar.
Qué pasó con la pata ? indagou .
Ele encolheu os ombros . Disse que ela ficara com a pata presa numa
armadilha. Muito abaixo deles , no flanco da montanha, ouviam os gritos
dos arrieros .
Ela ofereceu-lhe do tabaco delas , mas o rapaz disse que não , obriga
do . Ela encolheu os ombros . Ele pediu imensa desculpa por causa dos
burros , mas a velha disse que os arrieros eram pouco experientes e não
sabiam bem como dominar as bestas , fosse como fosse . Disse que a
revolução matara todos os homens dignos desse nome no país , deixando
apenas os tontos . Disse , além do mais, que os palermas geram outros
palermas iguais a eles e que ali estava a prova disso e que, como somen
te as mulheres apalermadas lhes davam trela, os descendentes estavam
duplamente condenados . Tomou a chupar no cigarro , que agora pouco
mais era do que cinza, deixou-o cair ao chão e fitou o rapaz com olhos
vesgos .
Me entiende ? perguntou .
Sí, claro .
Ela examinou a loba. Tomou a olhar para ele . O olho semicerrado
resultava provavelmente de um ferimento , mas dava-lhe o ar de alguém
que exigia franqueza. Va a parir, disse .
Sí.
Como la jovencita .
Ele olhou para a rapariga. Ela não parecia grávida. Voltara-se de cos
tas para eles e, ali sentada, fumava e espraiava a vista pelas cercanias
onde nada havia para ver, embora alguns gritos ténues ainda soassem
pela encosta acima.
Es su hija ? perguntou ele .
Ela abanou a cabeça. Disse que a rapariga era mulher do filho dela.
Disse que eles eram casados , mas que não tinham dinheiro para pagar
ao padre , por isso não tinha sido o padre a casá-los .
Los sacerdotes son ladrones , interveio a rapariga . Eram as suas pri
meiras palavras . A mulher acenou com a cabeça a indicar a rapariga e
revirou os olhos . Una revolucionaria , disse . Soldadera . Los que no
pueden recordar la sangre de la guerra son siempre los más ardientes
para la lucha .
Ele disse que tinha de ir andando . Ela não lhe prestou atenção . Disse
que , nos seus tempos de criança, vira fuzilar um padre na aldeia de As
censión . Encostaram-no à parede da sua própria igreja e abateram-no a
90 Connac McCarthy
Ele disse que sim . Disse que não s e podia confiar nela.
Ela disse que gostava de ter um cachorrinho de uma cadela assim ,
porque depois ele havia de crescer e de se tornar um cão de guarda e
havia de morder toda a gente que aparecesse . Todos que vengan de al
rededor, disse . Fez um gesto largo com a mão que abrangeu os pinhei
ros e o vento nos pinheiros e os arrieros desaparecidos e a mulher a
observá-la do seu rebozo escuro . Disse que um cão assim havia de la
drar de noite se aparecessem ladrões ou outra pessoa qualquer que não
fosse desejada.
Ay ay , disse a mulher, a revirar os olhos .
Ele repetiu mais uma vez que tinha de ir andando . A mulher disse-lhe
que fosse com Deus , e a jovencita disse-lhe somente que fosse andando ,
se era esse o seu desejo, e ele caminhou pelo trilho fora com a loba e
alcançou o cavalo e amarrou a corda ao chifre da sela e montou . Quando
olhou para trás , a rapariga estava sentada ao lado da mulher. Não esta
vam a conversar, estavam apenas sentadas lado a lado , à espera de que
os arrieros regressassem . Ele cavalgou ao longo da crista até à primeira
curva do trilho e olhou de novo para trás , mas elas não se tinham mexi
do nem mudado de postura e, àquela distância, pareciam muito cabisbai
xas . Como se a partida dele as tivesse despojado de qualquer coisa.
A paisagem em si era imutável . Ele continuou a cavalgar, e as altas
montanhas a sudoeste não pareciam mais próximas ao final do dia do
que se fossem uma mera imagem no olho em si . À tardinha, ao subir
através de uma mancha de carvalhos-anões , ele espantou um bando de
peru s .
Os perus tinham estado a alimentar-se n o bosque abaixo dele e esvo
açaram sobre uma ravina e desapareceram no meio das árvores , do lado
oposto . Ele parou o cavalo e fixou-lhes a posição com o olhar. Em se
guida, conduziu o cavalo para fora do trilho , encosta abaixo , desmontou
e amarrou o cavalo e soltou a corda e amarrou a loba a uma árvore e
pegou na espingarda e puxou a alavanca à frente para se certificar de
que havia um projéctil na câmara e depois rompeu através do valezito ,
com um olho no Sol que já iluminava as árvores por trás no cabeço do
barranco , a oeste .
Os perus estavam no chão, numa clareira, a passar para trás e para
diante por entre os troncos de árvore zebrados ao lusco-fusco cada vez
mais sombrio , quais aves de chapa recortada numa barraca de tiro , numa
feira. Ele agachou-se e susteve a respiração e começou a avançar vaga
rosamente ao encontro deles . Quando ainda se encontrava a uns bons
cinquenta ou sessenta metros acima dos peru s , uma das fêmeas afastou-
92 Cormac McCarthy
-se das sombras listadas e saiu para campo aberto e deteve-se e torceu o
pescoço e deu mais um passo . Ele engatilhou a espingarda e agarrou o
tronco de um pequeno freixo e pousou o cano por cima do indicador
dobrado e empurrou-o contra o flanco da árvore com o polegar e fez
pontaria à ave . Teve em conta a queda da bala e teve em conta o modo
como a luz incidia de viés nos pontos de mira da espingarda e disparou .
A pesada espingarda deu um coice , e o eco do tiro repercutiu-se em
carambolas pelas cercanias . A perua jazia a agitar as asas e a contorcer
-se no chão . As outras aves assomaram do meio das árvores em todas as
direcções , algumas a passarem quase directamente por cima dele . Ele
ergueu-se e correu ao encontro do animal caído .
Havia sangue por todo o lado nas folhas mortas . Ela jazia sobre o
flanco com as patas a correr no meio das folhas , e tinha o pescoço ver
gado para trás de modo bizarro . Ele agarrou-a e comprimiu-a contra o
chão e ali a segurou . O tiro partira-lhe o pescoço junto à nuca e rasgara
a espádua de um dos lados , e ele viu que por pouco não falhara o alvo
por completo .
Ele e a loba juntos comeram a perua inteira e depois sentaram-se
perto da fogueira, lado a lado . A loba com a corda a restringir-lhe os
movimentos , a sobressaltar-se e a estremecer ante cada pequena erup
ção entre as brasas . Quando ele lhe tocava, a pele dela contraía-se e
estremecia-lhe sob a mão como a de um cavalo . Ele falou com ela acer
ca da sua vida, mas isso não pareceu apaziguar os receios da loba. Ao
fim de um certo tempo , pôs-se a cantar para ela.
De manhã, ao encetar a jornada, deparou com um grupo de homens
a cavalo , os primeiros que via naquela terra . Eram cinco e montavam
bons corcéis e todos estavam armados . Sofrearam as rédeas no trilho
diante dele e saudaram-no com modos meio divertidos , enquanto os
seus olhos faziam o inventário de todos os adereços da sua pessoa. Rou
pas , botas , chapéu . Cavalo e espingarda . A sela mutilada. Por fim, exa
minaram a loba. Que se furtara , tentando esconder-se entre os esparsos
fetos de montanha, a um escasso metro do trilho .
Qué tienes aliá, joven ? bradaram .
Escarranchado na sela, ele cruzou as mãos sobre o arção dianteiro .
Debruçou-se e escarrou . Remirou-os sob a aba do seu chapéu . Um deles
picara o cavalo para melhor observar a loba, mas o cavalo esquivou-se
e não queria avançar, e ele curvou-se para diante e desferiu uma palma
da na face do animal e repuxou-lhe a cabeça rudemente com as rédeas .
A loba jazia, colada contra o chão , com as orelhas para trás , na ponta da
corda.
A Travessia 93
altas , a sul , e dava a volta no povoado para correr de novo para sul , sob
a muralha ocidental da serra de Pilares . Ele abandonou a estrada e se
guiu um carreiro ao longo do rio e parou o cavalo para o deixar beber
nos remoinhos frios . Um velho com um burro estava a recolher madei
ra trazida pela corrente , apanhando a lenha caída nas extensões de cas
calho . As formas alvacentas e retorcidas da madeira amontoadas em
cima do burro assemelhavam-se a uma tapeçaria de ossos . O rapaz pi
cou o cavalo para montante , com os cascos do animal a resvalar nos
seixos redondos do rio .
A aldeia onde entrou era um antigo povoado mórmon do século ante
rior, e ele passou por edifícios de tijolo com telhados de zinco , uma loja
com paredes de tijolo e uma falsa fachada de madeira. Na alameda de
fronte da loja tinham pendurado grinaldas de árvore em árvore , e os
membros de uma pequena charanga encontravam-se sentados no coreto
zinho , como que a aguardar a chegada de um dignitário , quiçá. Ao longo
das fachadas da rua e na alameda havia vendedores ambulantes a vender
cacahuates e maçarocas de milho cozido polvilhadas de malagueta em
pó e bufíuelos e natillas e cartuchos de papel cheios de fruta. Ele des
montou e amarrou o cavalo e tirou a espingarda do estojo, não fosse al
guém roubá-la, e caminhou na direcção da alameda . Entre os frequenta
dores da feira naquele pequeno parque de lama seca e árvores famélicas
havia visitantes ainda mais exóticos do que ele próprio , famílias cobertas
de andrajos que deambulavam de boca aberta entre as tendas de lona
remendadas e menonistas trajados como campónios numa venda de ba
nha da cobra, com os seus chapéus de palha e jardineiras , e uma fileira
de crianças paradas , meio estupefactas , diante de um painel pintado feito
de lona a representar espalhafatosas anormalidades humanas e índios
tarahumaras e yaquis com arcos e aljavas cheias de flechas e dois rapazes
apaches de botas de pele de veado com olhos graves e negros como car
vão , vindos do seu acampamento nas sierras , onde os últimos represen
tantes livres da sua tribo viviam como espectros da nação que outrora
haviam sido , e todos com tal circunspecção que o arraial maltrapilho que
ali contemplavam podia perfeitamente passar pelos atavios de algum
novo flagelo divino prestes a abater-se sobre eles .
Ele encontrou a loba sem grande dificuldade , mas não possuía os dez
centavos exigidos para a ver. Tinham armado uma tenda improvisada
com lençóis por cima da pequena carroça e tinham colocado um cartaz
à frente a contar a história dela e o número de pessoas que , tanto quan
to se sabia, ela devorara . Ele ficou ali parado , a ver as poucas pessoas
que entravam e saíam em fila. Não pareciam muito entusiasmadas com
1 06 Cormac McCarthy
o que tinham acabado de ver. Quando ele lhes perguntou pela loba, elas
encolheram os ombros . Disseram que uma loba era uma loba. Não acre
ditavam que ela tivesse devorado ninguém.
O homem que cobrava o dinheiro à entrada da tenda escutou com a
cabeça curvada enquanto o rapaz lhe explicava a sua situação . Ergueu a
cabeça e fitou os olhos do rapaz . Pásale , disse .
Ela estava deitada na caixa da carroça, num leito de palha. Tinham
-lhe desamarrado a corda da coleira e provido a coleira com uma cor
rente e enfiado a corrente através das tábuas do fundo da carroça, de tal
forma que ela apenas conseguia erguer-se e pôr-se de pé . Ao seu lado ,
na palha, via-se uma tigela de barro que talvez contivesse água. Um
rapazito estava parado , com os cotovelos pendidos sobre o taipal da
carroça, com uma vara de jungir bestas apoiada ao ombro num gesto
descontraído . Quando viu entrar quem julgou ser um novo cliente ,
endireitou-se e começou a espicaçar a loba com o pau e a sibilar-lhe .
Ela ignorou as picadas . Jazia sobre o flanco , a inspirar e a expirar
serenamente . Ele olhou para a pata magoada. Apoiou a espingarda con
tra a carroça e chamou-a.
Ela levantou-se de imediato e voltou-se e ficou a olhar para ele com
as orelhas arrebitadas . O rapaz com a vara na mão ergueu os olhos para
ele sobre o bordo da carroça.
Ele falou com ela muito tempo e , como o rapaz que tratava da loba
não percebia as suas palavras , disse o que lhe ia no coração . Fez-lhe
promessas que jurou cumprir. Jurou que a levaria para as montanhas ,
onde ela encontraria outros seres da sua raça. Ela observava-o com os
seus olhos amarelos , e nesses olhos não havia desespero , somente aque
le mesmo abismo insondável de solidão que esvaziava o mundo até ao
seu âmago . Ele virou-se e olhou para o rapaz . Preparava-se para falar
quando o tendeiro irrompeu no interior, sob a cobertura, e lhes sibilou .
Él viene , avisou . Él viene.
Maldición , soltou o rapaz . Atirou o pau ao chão , e ele e o homem
começaram a remover os lençóis e a desamarrar as cordas das estacas
que tinham cravado na lama. No momento em que os lençóis tomba
vam , o carretero surgiu em corrida através da alameda e pôs-se a ajudá
-los , apanhando os lençóis com gestos bruscos e sibilando-lhes que se
despachassem . Num instante , estavam a enfiar a pequena mula de olhos
vendados às arrecuas entre os varais da carroça e a ajustar os arreios e
a apertar fivelas aqui e além .
La tablilla! gritou o carretero . O rapaz arrancou o letreiro e enfiou-o
debaixo do amontoado de cordas e lençóis , e o carretero saltou para a
A Travessia 1 07
* * *
108 Cormac McCarthy
para se libertar da corrente . Alguns dos homens que vinham atrás esta
vam a cair de bêbedos e davam-lhe pontapés e chamavam-lhe cobarde .
Passaram junto da bodega de pedra onde a luz dos beirais tombava ao
longo do topo das paredes e projectava as sombras das traves do telhado
na escuridão do terreiro . A iluminação do interior parecia vergar as pa
redes , e, no manto de luz defronte das portas abertas , as sombras das
figuras lá dentro rodopiavam e alongavam-se , e o grupo entrou a arras
tar a loba sobre a argila batida. Os presentes abriram alas aos recém
-chegados com muitos aplausos e brados . Estes entregaram as tochas a
mozos que as apagaram no chão de terra, e , quando todos tinham entra
do e se encontravam no interior, os mozos empurraram as pesadas portas
de madeira para as fechar e deixaram cair a tranca.
Ele avançou ao longo da orla da multidão . Era uma estranha igualan
ça de testemunhas ali reunida, e entre os mercadores de povoações ad
jacentes e os hacendados das redondezas e os pequenos hidalgos de
gotera vindos de lugares tão longínquos como Agua Prieta e Casas
Grandes , com os seus fatos bem justos ao corpo , havia comerciantes e
caçadores e gerentes e mayordomos das haciendas e dos ejidos e havia
capatazes e vaqueros e alguns jornaleiros benquistos . Não se viam mu
lheres . Ao longo do extremo oposto do edifício erguiam-se assentos ou
bancadas montadas sobre postes e no centro da bodega havia uma esta
cada ou arena redonda com uns seis metros de diâmetro , talvez, delimi
tada por uma paliçada baixa de madeira. As tábuas da paliçada estavam
negras do sangue seco dos dez mil galos de combate que ali tinham
morrido , e no centro da arena assomava um tubo de ferro havia pouco
cravado no chão .
Ele abriu caminho com os ombros a partir da retaguarda no preciso
momento em que estavam a arrastar a loba sobre as tábuas e para dentro
da arena . Os espectadores nas bancadas puseram-se de pé para ver. O
homem na arena acorrentou a loba ao cano e depois arrastou-a até à
ponta da corrente e repuxou-lhe o corpo , estendendo-a ao comprido
enquanto lhe retiravam o açaimo artesanal . Em seguida, recuaram e
soltaram o nó corredio da corda com que a tinham estendido no chão .
Ela pôs-se de pé e olhou em volta. Parecia pequena e maltratada e ar
queava o dorso como um gato . A ligadura desaparecera-lhe da pata, e
ela apoiou-a com cuidado no chão ao mover-se de viés até à ponta da
corrente para logo regressar, com os colmilhos brancos a cintilar à luz
dos reflectores de estanho , lá no alto .
Os primeiros pares de cães já tinham sido trazidos para o interior
pelos seus tratadores e saltavam e puxavam as trelas e soltavam ladridos
1 14 Cormac McCarthy
com ela. Ninguém se moveu , ninguém falou . Ele agarrou mais uma
volta da corrente e tentou de novo . O suor que lhe perlava a testa cinti
lava à luz . Ele tentou ainda uma terceira vez , mas não foi capaz de ar
rancar a estaca do chão e endireitou-se e voltou-se para trás e agarrou a
loba em si pela coleira e soltou o mosquetão que prendia a corrente e
puxou a cabeça ensanguentada e coberta de baba para junto de si e pôs
-se de pé .
O facto de a loba estar solta, à parte a mão dele a agarrar-lhe a colei
ra, não escapou à atenção dos homens que tinham entrado na arena.
Entreolharam-se . Alguns começaram a recuar. A loba mantinha-se en
costada à coxa do güero , de dentes arreganhados e com os flancos a
inchar e a mirrar alternadamente , e não executou movimento algum.
Es mía , disse o rapaz .
As pessoas nas bancadas começaram a lançar brados , mas as que se
encontravam nas proximidades da loba desacorrentada pareciam hesi
tantes quanto ao rumo a seguir. No fim de contas , quem se adiantou não
foi o alguacil nem o hacendado , mas sim o filho do hacendado . Os
outros abriram alas diante dele , um jovem que trazia no casaco agaloado
o perfume das jovens mulheres com quem dançara escassos momentos
antes . Penetrou na arena e avançou e estacou de botas afastadas e com
os polegares descontraidamente suspensos da faixa azul que lhe cingia
a cintura. Se é que tinha medo da loba, não deu qualquer sinal disso .
Qué quieres, joven ? perguntou .
O rapaz repetiu o que dissera aos cavaleiros com quem se encontrara
no Cajón Bonita, nas montanhas a norte . Explicou que era guardião da
loba e que ela fora confiada ao seu cuidado , mas o jovem hacendado
sorriu com expressão pesarosa e abanou a cabeça e disse que a loba
fora apanhada numa armadilha na serra de Pilares Teras , que são umas
montanhas bárbaras e selvagens , e que os auxiliares de Don Beto o ti
nham encontrado a atravessar o rio junto a Colonia de Oaxaca e o ti
nham impedido de levar a loba para o seu país , onde ele a tencionava
vender por bom preço .
Falava em voz alta e límpida, como alguém a declamar à multidão , e ,
quando terminou , ficou com as mãos cruzadas uma sobre a outra diante
de si , como se nada mais houvesse a dizer.
De pé , o rapaz segurava a loba. Sentia o movimento da respiração
dela e o leve tremor do corpo dela contra o seu . Olhou para o jovem
fidalgo e olhou para o círculo de rostos banhados pela luz . Disse que
tinha vindo do condado de Hidalgo , no Novo México , e que trouxera a
loba consigo desse lugar. Disse que a tinha capturado numa armadilha
118 Cormac McCarthy
de aço e que ele e a loba tinham viajado seis dias por montes e vales
naquele país e que não tinham vindo da serra de Pilares , nem por som
bras , antes estavam a tentar atravessar o rio para subir a essas mesmas
montanhas quando a força da corrente os obrigara a voltar para trás .
O jovem hacendado retirou as mãos da sua frente e entrelaçou-as
atrás das costas . Rodou sobre os calcanhares e deu alguns passos com
ar meditabundo e tornou a voltar-se e ergueu os olhos .
Para qué trajo la loba aquí? De que sirvió?
De pé , ele segurava a loba. Todos ficaram à espera que ele respondes
se , mas ele não tinha resposta. Percorreu a assembleia com os olhos ,
procurando os olhos que o fitavam. O árbitro permanecia com o relógio
/
de bolso ainda estendido diante de si. Os tratadores , parados , seguravam
as cole iras dos cães a mãos ambas nos punhos fechados . O homem da
selha de água esperava. O jovem hacendado voltou-se para olhar para a
plateia. Sorriu e tornou a virar-se para o rapaz . Depois falou em inglês .
O meu amigo pensa que este país é um país qualquer onde pode vir
e fazer o que bem lhe apetece .
Eu nunca pensei isso . Nunca pensei coisa nenhuma acerca deste país ,
aliás .
Pois , disse o hacendado .
'Távamos só de passagem , prosseguiu o rapaz . Não ' távamos a fazer
mal a ninguém. Queríamos pasar, no más .
Pasar o traspasar?
O rapaz voltou-se e escarrou para a poeira do chão . Sentia a loba a
encostar-se-lhe à perna. Explicou que os rastos da loba vinham do Mé
xico . Disse que a loba nada sabia acerca de fronteiras . O jovem fidalgo
assentiu com a cabeça, como que a concordar, mas quando abriu a boca
disse que aquilo que a loba sabia ou deixava de saber era irrelevante e
que se a loba atravessara a fronteira, pois tanto pior para ela, mas que a
fronteira continuava a existir, independentemente de tudo o resto .
Os espectadores fizeram que sim com a cabeça e trocaram murmú
rios . Olharam para o rapaz para ver como é que ele iria responder. O
rapaz disse apenas que , caso o deixassem partir, voltaria para a América
com a loba e que pagaria toda e qualquer multa a que o condenassem,
mas o hacendado abanou a cabeça. Disse que era demasiado tarde para
isso e que , fosse como fosse , o alguacil apreendera a loba e que o ani
mal fora confiscado para cobrir o portazgo . Quando o rapaz disse que
não fazia ideia de que seria obrigado a pagar para atravessar aquela re
gião , o hacendado retorquiu que , nesse caso , ele estava mais ou menos
na mesma situação da loba.
A Travessia 119
chão com uma pedra e pendurou o lençol numa armação de paus onde
o tecido começou a fumegar à luz das labaredas como um véu chame
jante erguido numa terra bravia para onde os celebrantes de uma qual
quer paixão secreta tivessem sido levados por seitas rivais ou talvez
para onde tivessem simplesmente fugido em plena noite , apavorados
ante os seus próprios actos . Embrulhou a manta em volta dos ombros e
ficou sentado ao frio , a tremer, à espera da alvorada, para então procurar
um lugar onde pudesse sepultar a loba. Ao fim de um certo tempo , o
cavalo subiu do regato , a arrastar atrás de si as rédeas molhadas pelo
meio das folhas , e parou à beira do lume .
Ele adormeceu com as palmas das mãos voltadas para cima diante de
si , como um penitente a dormitar. Quando acordou , ainda estava escuro .
A fogueira esmorecera até se reduzir a algumas labaredas baixas a fer
vilhar sobre as brasas . Ele tirou o chapéu e agitou-o para avivar as
chamas até atear de novo a fogueira e juntou-lhe a lenha que reunira.
Procurou o cavalo , mas não o via. Os coiotes continuavam a ulular ao
longo dos contrafortes de pedra da serra de Pilares , e a leste o céu
pintava-se de um vago tom de cinzento . Agachou-se sobre a loba e
tocou-lhe no pêlo. Tocou-lhe nos dentes frios e perfeitos . O olho voltado
para o fogo não reflectia luz alguma, e ele fechou-o com o polegar e
sentou-se junto dela e pousou-lhe a mão sobre a fronte ensanguentada e
fechou os próprios olhos para a poder ver a correr pelas montanhas , a
correr à luz das estrelas onde a erva estava húmida e o nascer do Sol
ainda não viera dissolver a rica matriz das criaturas que ali tinham pas
sado na noite antes dela. Veados e lebres e rolas e arganazes , todos rica
mente emoldurados no ar para seu deleite , todas as nações do mundo
possível ordenado por Deus das quais ela fazia parte , sem delas estar
separada. Nos lugares por onde ela corria, os brados dos coiotes
calavam-se de súbito como se uma porta se tivesse fechado sobre eles ,
e tudo era medo e assombro . Ele ergueu-lhe a cabeça hirta das folhas e
abraçou-a ou fez menção de agarrar nos braços o que ninguém pode
agarrar, o que corria já entre as montanhas , a um tempo terrível e de
grande beleza, como flores que se alimentam de carne . Uma coisa de
que o sangue e os ossos são feitos , mas que eles mesmos não conse
guem criar em altar algum nem por qualquer ferimento de guerra. Uma
coisa que não nos custa crer que seja capaz de cortar e moldar e esculpir
a forma escura do mundo , sem dúvida, pois se o vento o consegue , se a
chuva o consegue . Mas que não se pode agarrar, nunca se pode agarrar,
e não é flor alguma, mas é veloz , isso sim , e é uma caçadora, e o próprio
vento tem pavor dela e o mundo não a pode perder.
II
tal como todas as coisas boas era também um perigo . Em seguida, reti
rou as mãos da sela do rapaz e recuou um passo e ali ficou . O rapaz
agradeceu-lhe aquelas palavras , mas disse que na realidade não era um
órfão e depois agradeceu às mulheres ali paradas e voltou o cavalo e
afastou-se . Eles ficaram a vê-lo partir. Ao passar pelas últimas choupa
nas de ramagens , voltou-se e olhou para trás , e, no momento em que o
fez , o velho falou-lhe em altos brados . Eres! exclamou . Eres huérfano!
Mas o rapaz limitou-se a levantar uma mão e tocou no chapéu e caval
gou em frente .
Ao cabo de dois dias , foi ter a uma estrada de carroças que cruzava
as sierras para leste e para oeste . As florestas estavam verdes do azevi
nho e do madrofío , a estrada parecia pouco usada. Num dia inteiro de
viagem não encontrou vivalma. Cruzou uma garganta no cume onde o
caminho era tão estreito que as rochas exibiam velhas cicatrizes dos
cubos das rodas de carroças , e abaixo da garganta viam-se montículos
funerários de pedra aqui e além , as mojoneras de muerte daquelas para
gens onde os viajantes tinham sido mortos pelos índios anos antes .
Aquela região parecia despovoada e estéril e ele não viu caça nem viu
aves e nada havia por ali excepto o vento e o silêncio .
Chegado à escarpa oriental , desmontou e conduziu o cavalo ao longo
de uma saliência rochosa de pedra cinzenta. Os zimbros raquíticos que
cresciam junto do rebordo inclinavam-se , vergados por um vento que há
muito passara. Ao longo da face das escarpas de pedra viam-se vetustos
pictogramas representando homens e animais e sóis e luas , bem como
outras representações que pareciam não ter referente algum no mundo ,
ainda que talvez outrora tivessem tido . Ele sentou-se ao sol e espraiou a
vista pela paisagem a leste , a ampla barranca do Bavispe e a planura de
Carretas mais além, que em tempos fora o fundo de um oceano , e os
pequenos campos de cultivo parcelados e o milho novo a verdejar nas
terras antigas de Chichimeca onde os padres tinham passado e os solda
dos tinham passado , e as missões esfareladas em lama e as cadeias de
montanhas em volta da planura, cordilheira sobre cordilheira em tons
pálidos de azul onde o terreno se estendia, esfacelado por garras , para
norte e para sul , desfiladeiro e cordilheira, sierra e barranca , tudo à es
pera, como coisas vistas num sonho , que o mundo nascesse , que o mun
do passasse . Viu um único abutre suspenso , imóvel, num qualquer vector
altaneiro que o vento escolhera para ele . Viu o fumo de uma locomotiva
a passar lentamente para sul sobre a planície , a sessenta quilómetros dali .
Tirou de um bolso esfarrapado um punhado de sementes de pifíon e
espalhou-as sobre uma rocha e partiu-as com uma pedra pequena. Ga-
1 32 Cormac McCarthy
nhara o hábito de falar com o cavalo e falou com ele agora, enquanto
fazia estalar os pinhões , e quando os libertou das suas cascas recolheu
-os na concha da mão e estendeu-os . O cavalo olhou para ele e olhou
para as sementes de pifion e avançou dois passos arrastados e colou-lhe
à palma da mão a boca semelhante a borracha.
Ele limpou a baba da mão contra a perna das calças e sentou-se a
partir e a comer o resto das sementes enquanto o cavalo observava. Em
seguida, pôs-se de pé e caminhou até à borda da escarpa e atirou a pe
dra . A pedra voou a rodopiar e caiu , caiu e desapareceu no silêncio . Ele
ficou à escuta sem se mexer. Num ponto muito abaixo de si soou o ténue
estralejar da pedra contra a pedra. Ele voltou para trás e estendeu-se
sobre a saliência de rocha quente e aninhou a cabeça na curva do braço
e fitou a escuridão da copa do chapéu . O seu lar parecia-lhe agora re
moto e semelhante a um sonho . Havia momentos em que não conseguia
trazer à memória o rosto do pai .
Dormiu e , enquanto dormia, sonhou com homens bravios que vinham
ao seu encontro com mocas e que tinham os dentes limados em pontas
aguçadas e que se reuniram em volta dele e o avisaram do que iam fazer,
mesmo .�ntes de meterem mãos à obra . Acordou e ficou à escuta. Como
se eles ainda ali estivessem , quiçá, no limiar da escuridão do seu cha
péu . Agachados entre os penedos . A talhar na pedra com pedras aqueles
simulacros do mundo vivo que escolhiam fazer perdurar, com o mundo
morto entre as mãos . Ele tirou o chapéu e pô-lo sobre o peito e olhou
para o céu azul . Soergueu-se e procurou o cavalo com os olhos , mas o
cavalo estava somente a um ou dois passos , ali parado à espera dele .
Pôs-se de pé e moveu os ombros para sacudir a rigidez e pôs o chapéu
na cabeça e apanhou do chão as rédeas que arrastavam e percorreu a
pata dianteira do cavalo com a mão até o animal erguer a pata e aninhou
o casco entre os joelhos e examinou-o . O cavalo há muito que perdera
as ferraduras , e os cascos estavam crescidos e espalmados , e ele tirou do
bolso a navalha e aparou a taipa do casco onde os bordos se encontra
vam fissurados e depois soltou a pata do cavalo e caminhou em volta do
animal a inspeccionar e a aparar os outros cascos , um por um . O roçagar
constante das moitas e da verdura nas montanhas dissipara todos os
vestígios de odores do estábulo , e o cavalo exalava agora um cheiro
quente a terra. Tinha cascos escuros com grossas muralhas e nas veias
corria-lhe sangue de grullo suficiente para fazer dele um cavalo de
montanha, tanto por conformação como por temperamento , e, como o
rapaz crescera em lugares onde os comentários acerca de cavalos eram
mais ou menos ininterruptas , sabia que o sangue que determina a forma
A Travessia 1 33
Valer-lhe .
Sim.
O rapaz ergueu o rosto para o homem. Continuou a comer. Que dia é
hoje? perguntou .
É domingo .
Eu queria saber que dia do mês .
Não sei .
E sabe em que mês estamos?
Não .
Então como é que sabe que hoje é domingo .
Porque é domingo de sete em sete dias .
O rapaz continuou a comer.
Eu sou mórmon . Ou era. Nasci mórmon .
Ele não sabia ao certo o que era um mórmon . Olhou para a divisão .
Olhou para os gatos .
Eles vieram para cá há muitos anos . Mil e oitocentos e noventa e seis .
Do lltah . Vieram quando foi incorporado nos Estados Unidos . O Utah .
Eu era mórmon . Depois converti-me à fé da Igreja. Depois passei a ser
nem sei bem o quê . Depois passei a ser eu .
E o que é que faz aqui?
Sou o guardião . O zelador.
E zela por quê?
Pela igreja.
'Tá quase em ruínas .
Sim. Claro . Desabou no terremoto .
E o senhor já aqui ' tava nessa altura?
Não tinha nascido .
Quando foi?
Em mil e oitocentos e oitenta e sete .
O rapaz acabou os ovos e pousou o garfo no prato . Olhou para o ho-
mem .
H á quanto tempo vive você aqui?
Faz agora seis anos .
E a igreja já ' tava assim quando pràqui veio .
Sim.
Ele ergueu a chávena e escorropichou o conteúdo e tomou a pousá-la
no pires . Agradeço-lhe o pequeno-almoço , disse .
Não tens de quê .
Ele parecia pronto para se levantar e partir. O homem enfiou a mão
no bolso da camisa e tirou de lá tabaco e uma pequena bolsa de pano
A Travessia 1 37
em seu próprio benefício . Era sua opinião , pelo contrário , que todos os
actos em breve se esquivavam à influência do seu propagador, para logo
serem arrastados numa onda tonitruante de consequências imprevisí
vei s . Parecia-lhe que no mundo havia uma outra hierarquia de priorida
des , uma outra ordem, e que era esta potência que tinha entre mãos toda
e qualquer petição de que ele pudesse ser signatário . Entretanto , ia es
perando um chamamento , sem que soubesse qual a missão que lhe iria
ser confiada.
O homem recostou-se na cadeira , ergueu o rosto para o rapaz e sorriu.
Não me interpretes mal , disse . Os acontecimentos do mundo não podem
ter uma vida separada do próprio mundo . E, todavia, o mundo em si não
pode ter das coisas uma visão temporal . É impossível o mundo ter mo
tivos para favorecer certas iniciativas ao invés de outras . A passagem
dos exércitos e a passagem das areias no deserto são uma e a mesma
coisa. Não há preferência, compreendes . Como poderia haver? A mando
de quem? Este homem não deixou de acreditar em Deus . Nem sequer
passou a ter uma perspectiva moderna acerca de Deus . Havia Deus e
havia o mundo . Ele sabia que o mundo acabaria por o esquecer, mas que
Deus não o podia esquecer. E, no entanto , era precisamente isso que ele
desejava.
É fácil de ver que nada, à parte a mágoa, poderia levar um homem a
adoptar uma tal visão das coisas . E , contudo , uma mágoa que não tem
remédio não é mágoa. É uma irmã sombria a viajar sob a máscara da
mágoa. Os homens não viram as costas a Deus com essa facilidade ,
percebes . Não com essa facilidade . Lá bem fundo , cada homem tem a
percepção de que um qualquer ente sabe da sua existência. Esse ente
sabe , e é impossível fugir-lhe e não nos podemos esconder dele . Imagi
nar outra coisa é imaginar o indizível . Nunca este homem deixou de
acreditar em Deus . Não . Antes começou a acreditar em coisas horrendas
acerca d ' Ele .
Ele vive agora da sua pensão na Cidade do México . Não tem amigos .
De dia senta-se no parque . A própria terra debaixo dos seus pés foi adu
bada com o sangue dos antigos . Ele vê passar os transeuntes . Acabou
por se convencer de que os fitos e as motivações com que eles imagi
nam investidos os seus movimentos não passam , na realidade , de um
meio para os descrever. Parece-lhe que os movimentos deles estão na
verdade subordinados a movimentos mais amplos , em padrões que eles
desconhecem, e estes, por sua vez , subordinam-se a outros . Estas refle
xões não lhe proporcionam conforto algum , garanto-te . Ele vê o mundo
a escapar-se-lhe entre os dedos . Em torno de si um colossal vazio sem
1 44 Cormac McCarthy
eco . Foi então que ele começou a rezar. Sem qualquer motivo puro para
isso , talvez . Mas , no fim de contas , que aparência teria um tal motivo?
Será possível convencermos Deus com blandícias? Será possível supli
carmos-Lhe ou pedirmos-Lhe que compreenda a sensatez da nossa ar
gumentação? Poderá uma criatura que é obra da sua própria mão fazer
alguma coisa que Lhe agrade mais do que se tivesse agido de m::.>do
diverso? Será possível surpreendê-Lo? Lá no íntimo do seu coração ,
este homem já começara a maquinar contra Deu s , embora ainda o não
soubesse . Não o saberia até começar a sonhar com Ele .
Quem consegue sonhar com Deus? Este homem sonhava. Nos seus
sonhos , Deus estava muito atarefado . Quando Lhe falavam, não respon
dia. Quando Lhe lançavam gritos , não ouvia. O homem via-O curvado
sobre a sua labuta. Como que visto através de uma lupa. Sentado somen
te à luz da sua própria presença. A tecer o mundo . Nas suas mãos o mun
do brotava do nada e nas suas mãos o mundo desaparecia novamente no
nada. Eternamente . Eternamente . Assim. Eis ali um Deus digno de aten
ção . Um Deus que parecia escravo dos deveres que impusera a si mesmo .
Um Deus com uma capacidade insondável de vergar tudo a um propósi
to incompreensível . Nem o caos em si se encontrava fora dessa matriz.
E , algures naquela tapeçaria que era o mundo , a cada passo urdido e logo
desfiado , havia um fio que era ele próprio , e ele acordou a chorar.
Certo dia, levantou-se e meteu os seus parcos haveres numa velha
mala de viagem que guardara todos aqueles anos debaixo da cama e
desceu a escada pela derradeira vez . Trazia a sua Bíblia debaixo do
braço . Qual excêntrico pastor de uma qualquer seita miserável . Ao cabo
de três dias chegou à cidade de Caborca, de sagrada memória. Ali para
do junto ao rio , de pálpebras franzidas , a erguer os olhos ao sol para
contemplar a cúpula do transepto em ruínas da igreja de La Purísima
Concepción de Nuestra Sefíora de Caborca a flutuar no ar puro do de
serto . Assim .
O homem abanou a cabeça devagar. Tomara os apetrechos do tampo
da mesa e começara a enrolar mais um cigarro . Com ar muito pensativo .
Como se a maneira de fazer um cigarro fosse para ele um enigma.
Levantou-se e foi até ao fogão e acendeu o cigarro com a mesma lasca
enegrecida de madeira e inspeccionou o lume e fechou a porta do fogão
e regressou à mesa e sentou-se como antes .
Talvez conheças a cidade de Caborca. A igreja é muito bonita. As
cheias do rio , ao longo dos anos , destruíram-na bastante . O coro e duas
torres sineiras . As traseiras da nave e a maior parte do transepto sul .
O que resta apoia-se em três pernas , por assim dizer. A cúpula está sus-
A Travessia 1 45
por muitas e variadas narrações que se façam . Era esta, assim, a sua
convicção . Se o mundo era uma história, quem senão a testemunha lhe
poderia dar vida? Onde senão aí poderia essa história ter a sua existên
cia? Era esta a perspectiva das coisas que o começou a seduzir. E ele
começou a ver em Deus uma terrível tragédia. Que a existência da Di
vindade estava ameaçada pela falta deste simples pormenor. Que para
Deus não podia haver testemunha. Nada cujos limites Lhe pusessem
termo . Nada por meio do qual a sua existência Lhe pudesse ser anuncia
da. Nada de que Ele se pudesse afastar para dizer eu sou isto e aquilo é
outra coisa. Onde aquilo existe eu não resido . Ele podia criar tudo ex
cepto alguma coisa que o negasse .
Agora podemos falar de loucura. Agora não há risco em o fazer. Tal
vez pudéssemos dizer que só um louco seria capaz de andar para trás e
para diante , a esfarrapar as roupas por causa da responsabilidade de
Deus . O que pensar, portanto , deste homem que afirma que Deus o pre
servou não uma mas duas vezes , salvando-o das ruínas da terra apenas
para que ele pudesse prestar testemunho contra Ele?
O fogo crepitava no fogão . Ele recostou-se na cadeira. Uniu as pontas
dos dedos e comprimiu-as , cinco contra cinco , e flectiu as mãos uma
contra a outra com expressão pensativa. Como que a pôr à prova a força
de uma qualquer proposição membranosa. Um grande gato cinzento
avançou pela mesa fora e parou a olhá-lo . Faltava-lhe uma orelha quase
inteira, e os dentes assomavam-lhe fora da boca. O homem afastou-se
um bocadinho da mesa e o gato desceu-lhe para o regaço e enroscou-se
e espalmou-se-lhe contra as pernas e voltou a cabeça e remirou grave
mente o rapaz do outro lado da mesa, à maneira de um consultante . Um
gato capaz de dar bons conselhos . O homem pousou-lhe uma mão em
cima, como que para o prender ali . Olhou para o rapaz . A tarefa do nar
rador não é fácil , disse . Aparentemente , exige-se-lhe que escolha a sua
história de entre as muitas que são possíveis . Porém , claro que não é
assim. Trata-se , em vez disso , de converter uma só em muitas . O narra
dor tem sempre de tomar precauções para contrariar a convicção de
quem o escuta - talvez formulada explicitamente , talvez implícita -
de que j á antes ouviu aquela história. Ele apresenta as categorias em que
o auditor desejará encaixar a narrativa à medida que a vai ouvindo . Mas
compreende que a narrativa em si não é uma categoria entre outras , mas
sim a categoria de todas as categorias , pois nada existe que se situe fora
do seu âmbito . Tudo é narrar. Não duvides .
O padre não tomou a visitar o velho , a história ficou inacabada. O
velho , é claro , de modo algum cessou de andar para trás e para diante e
1 50 Cormac McCarthy
achasse que o padre era bem capaz de fazer desabar o edifício , coisa em
que ele próprio fracassara. Mas a cúpula, é claro , permaneceu suspensa
no ar, e, ao fim de um certo tempo , o velho começou a falar. Tomou a
mão do padre como se fosse a mão de um camarada e falou da sua vida
e do que esta fora e daquilo em que se tomara. Explicou ao padre aquilo
que aprendera. Por fim , disse que nenhum homem consegue ver a sua
vida até esta chegar ao seu termo , e como emendar então os erros come
tidos? É somente pela graça de Deus que estamos ligados a este fio da
vida. Segurou a mão do padre na sua e pediu ao padre que olhasse para
as mãos de ambos ali unidas e disse-lhe repare na semelhança. Esta car
ne não passa de uma recordação e , todavia, conta a verdade . Em última
análise , o trilho de cada homem é o trilho de qualquer outro . Não há
jornadas separadas , pois não há homens separados para as encetar. Todos
os homens são um só , e não há outra história para contar. O padre , po
rém , interpretou estas palavras somente como confissão e, quando o
velho se calou , começou a proferir as fórmulas da absolvição . Ante isto ,
o velho agarrou-lhe o braço no momento em que ele traçava o sinal da
cruz ali , no ar parado , junto ao seu leito de morte , e deteve-o com o seu
olhar. Soltou a outra mão do padre e ergueu a sua. Como um homem
prestes a partir de viagem . Salva-te , sibilou . Salva-te . Depois morreu .
Lá fora, nas ruas repletas de ervas daninhas , tudo era silêncio . O ho
mem passou a mão em concha sobre a cabeça do gato , a alisar-lhe as
orelhas para trás . A sã, a mutilada. O gato jazia com as patas da frente
enroscadas contra o peito , de olhos semicerrados . Este é o meu gato
guerreiro , disse o homem . Pero es el más dulce de todo . Y el más sim
pático .
Ergueu o rosto . Sorriu . A tarefa do contador de histórias não é assim
tão simples . Por esta altura, claro que já adivinhaste quem era o padre .
Ou talvez não tanto padre , mais advogado de coisas sacerdotais . Ideias
sacerdotais . Durante algum tempo , este padre tentou ainda aferrar-se à
sua vocação , mas , por fim , deixou de conseguir suportar a expressão no
olhar dos que o abordavam em busca de conselhos . Que conselhos tinha
ele para dar, este homem de palavras? Não tinha respostas para as per
guntas que o velho mensageiro trouxera da capital . Quanto mais pensa
va nelas , mais intrincadas se tomavam . Quanto mais tentava sequer
formulá-las , mais elas se esquivavam a todas as suas figurações , e, por
fim , acabou por se dar conta de que não se tratava das dúvidas do velho
pensionista, mas sim das suas .
Sepultaram o velho no adro da igreja de Caborca, entre as pessoas do
seu sangue . Foi nisto que redundou o acordo de Deus com este homem .
152 Connac McCarthy
é uma afronta. Agora atenta bem n o que eu digo . Outro ouvirá a s pala
vras que nunca proferiste . As próprias pedras são feitas de ar. Aquilo
que elas têm o poder de esmagar nunca viveu . No fim de contas , todos
seremos apenas a imagem que construímos de Deu s . Pois nada é genu
íno , à parte a graça divina.
das Animas . Olhou para tudo isto e caiu de joelhos no chão e pôs-se a
soluçar, com as mãos no rosto .
Quando cavalgou através de Animas , as casas pareciam desertas .
Parou junto da loja e encheu o cantil com água da torneira no flanco do
edifício , mas não entrou . Dormiu nessa noite nas planícies a norte da
povoação . Nada tinha para comer e não fez lume . Acordou uma e outra
vez ao longo da noite , e, de cada vez que acordava, a assinatura de Cas
siopeia rodara mais um pouco em volta da estrela polar, e, de cada vez
que acordava, tudo estava como sempre fora e como seria para todo o
sempre . Ao meio-dia do dia seguinte , entrou a cavalo em Lordsburg .
Tenho o quê?
Sabes alguma coisa que não me tenhas dito .
O senhor tem jurisdição no México?
Não .
Então que diferença faz?
Essa resposta não vale um caracol .
Pois não . É mais ou menos como a sua.
O xerife olhou-o durante algum tempo .
S e achas que e u me ' tou nas tintas pra isto , disse , enganas-te redon
damente , porra.
O rapaz permaneceu imóvel. Levou as costas de um antebraço a um
olho e depois ao outro e voltou-se e tomou a olhar pela janela. Não
havia trânsito na rua. Lá fora, no passeio , duas mulheres estavam a con
versar em espanhol .
Podes-me dar uma descrição dos cavalos?
Com certeza.
Algum deles tinha ferro?
Um deles tinha. Um chamado Nifío . O papá comprou-o a um mexi
cano .
O xerife assentiu com a cabeça. Muito bem , disse . Debruçou-se e
abriu uma gaveta da secretária e tirou de lá uma caixa metálica e
pousou-a no tampo da secretária e abriu-a.
Nem eu não te devia de passar prà mão esta papelada, disse . Mas eu
nem sempre faço o que me mandam . Tens lugar pra guardar isto?
Não sei . O que é que aí ' tá?
Papéis . Uma autorização de casamento . Certidões de nascimento . Há
aqui alguns papéis sobre cavalos , mas a maior parte já tem uns anos
valentes . Também aqui tens a aliança de casamento da tua mãe .
Então e o relógio do papá?
Não havia relógio nenhum . Há umas coisas de casa que 'tão com os
Websters . Se quiseres , eu guardo estes papéis no banco . Ainda nem se
quer nomearam um tutor, por isso não sei que mais hei-de fazer com
eles .
Devia haver papéis sobre o Nifío e sobre um outro cavalo, o B ailey.
O xerife fez rodar a caixa e empurrou-a sobre o tampo da secretária.
O rapaz começou a folhear os documentos .
Quem é Margarita Evelyn Parham? perguntou o xerife .
É a minha irmã.
Onde é que ela ' tá?
Morreu .
1 62 Cormac McCarthy
Não , senhor. O que eu acho é que não consigo dar nome à coisa.
Quando saiu para o sol e desamarrou o cavalo do parquímetro , as
pessoas a passar na rua voltaram-se para o olhar. Uma criatura vinda das
mesetas bravias , saída do passado . Um ser hirsuto, sujo, de olhar famé
lico e famélico ventre . Totalmente indizível . Naquela figura exótica os
transeuntes contemplavam o que mais invej avam e o que mais abomi
navam . Embora sentissem carinho por ele , não deixava de ser verdade
que seriam bem capazes de o matar por dá cá aquela palha.
rem, há já sete dias naquele país , depois de atravessarem, uma por uma,
as miseráveis vilórias de lama seca ao longo do rio , entraram na vila de
Bacerac . Diante de uma casa caiada , debaixo da copa de um sabugueiro ,
estavam dois cavalos parados de cabeça baixa. Um deles era um grande
macho castrado de pêlo rosilho , com um ferro recente na garupa esquer
da, e o outro era Keno , o cavalo deles , aparelhado com uma sela mexi
cana trabalhada.
Olha além , disse Boyd .
Já o vi . Desmonta.
Boyd deslizou do cavalo e Billy desmontou e passou-lhe as rédeas e
puxou a caçadeira do estojo da sela. O cão parara na estrada e estava a
olhá-los , de cabeça voltada. Billy abriu a culatra da caçadeira para se
certificar de que estava carregada e tornou a fechá-la e olhou para Boyd .
Leva o cavalo até acolá e não te metas no caminho .
'Tá bem .
Ficou a ver enquanto Boyd levava o cavalo à brida até ao lado opos
to da rua e depois voltou-se e encaminhou-se para a casa. O cão ficou a
olhar ora para um , ora para outro , até que Boyd o chamou com um as
sobio .
Ele caminhou em volta do cavalo e afagou-lhe o pescoço , e o cavalo
empurrou-lhe a fronte contra a camisa e soltou contra ele um longo
resfolegar adocicado . Ele apoiou a caçadeira contra o sabugueiro e er
gueu o estribo e pendurou-o no chifre do cepilho e puxou o fatigo e
soltou a correia e soltou também a cilha traseira e agarrou a sela pelo
chifre e pela patilha e ergueu-a nas mãos e pousou-a no chão . Em segui
da, puxou do dorso do cavalo o cobrejão e pendurou-o sobre o chifre do
cepilho e pegou na caçadeira e desamarrou o cavalo e conduziu-o até ao
lado oposto da rua , onde Boyd se encontrava à espera .
Tornou a enfiar a caçadeira no estojo e olhou de novo na direcção da
casa. Monta o Bird , disse .
Boyd escarranchou-se na sela e olhou de alto para ele .
Leva os cavalos por aí acima e não deixes que te vejam da casa.
Encontro-me contigo no extremo sul da vila. Esconde-te , mais nada. Eu
dou contigo .
O que é que tencionas fazer?
Quero ver quem ali ' tá dentro .
Então e se forem eles?
Não são .
Quem é que achas que ali ' tá dentro?
Não sei . Acho que morreu alguém . Agora vai andando .
1 74 Cormac McCarthy
Não me parece que eles voltassem pra trás pelo mesmo caminho .
Acho que eles sabem onde os lugares ficam , mais nada.
Bom , nesse caso sabes mais do que eu .
Eu não disse isso .
Não , fui eu que disse .
Olhou para Boyd . Este encontrava-se sentado com a manta sobre os
ombros e as botas baratas cruzadas diante de si. Porque é que não te
deitas? perguntou ele .
Boyd debruçou-se e escarrou para o seio das brasas . Ficou a ver a
saliva fervilhar. Porque é que não te deitas tu , retorquiu .
Quando partiram , na manhã seguinte , ainda brilhava uma luz cinzen
ta . Neblina a mover-se através das árvores . Fizeram-se ao caminho para
ver o que o dia lhes iria trazer e, ao cabo de menos de uma hora, para
ram os cavalos no bordo oriental da escarpa e ficaram a ver enquanto o
Sol inchava como vidro candente lá longe , acima das planuras de
Chihuahua, para criar novamente o mundo a partir das trevas .
Ao meio-dia estavam outra vez na pradaria, a romper através de erva
mais suculenta do que toda a que tinham visto até ali , a romper através
de tallo azul e através de banderilla . De tarde , avistaram, lá longe , a sul ,
uma paliçada erecta de ciprestes esguios e verdes e os muros brancos e
esguios de uma hacienda . A cintilar no calor como um navio branco no
horizonte . Distante e incognoscível . Billy voltou-se para olhar para
Boyd , para ver se ele tinha visto , mas Boyd estava a fitar aquela apari
ção enquanto cavalgava. A hacienda cintilou e perdeu-se no calor e
depois reapareceu logo acima do horizonte e ficou ali a pairar, suspensa
no céu . Quando ele tomou a olhar, desaparecera por completo .
No longo crepúsculo , conduziram os cavalos à brida para os refres
carem . Havia uma mancha de árvores a meia distância, e eles tomaram
a montar e seguiram nessa direcção . O cão trotava adiante com a língua
pendida, e a extensão da pradaria cada vez mais sombria afundava-se
em volta deles , fresca e azul , e as formas das montanhas que tinham
abandonado erguiam-se atrás deles , negras e sem dimensão , contra o
céu do final da tarde .
Mantiveram as árvores a contraluz diante deles e , à medida que se
aproximavam da clareira, foram afugentando das suas camas as silhue
tas gemebundas dos bois . Os bois abanavam o pescoço e afastavam-se
a trote no escuro , e os cavalos farejavam o ar e a erva calcada. Eles pi
caram os cavalos para o meio das árvores , e os cavalos abrandaram a
marcha e pararam e depois avançaram em passo cuidadoso até entrarem
na água escura e parada.
1 82 Cormac McCarthy
Pearam Bird e depois prenderam Keno a uma estaca num lugar onde
ele manteria as vacas afastadas deles enquanto dormissem . Nada tinham
para comer e não fizeram lume , apenas se embrulharam nas mantas ,
deitados no chão . Por duas vezes , durante a noite , enquanto pastava, o
cavalo passou-lhes por cima a corda que o amarrava, e ele acordou e
ergueu a corda acima do irmão ali deitado a dormir e tomou a pousá-la
na erva. Jazia no escuro , embrulhado na manta, e ficou à escuta dos
cavalos a cortarem a erva com os dentes e sentiu o cheiro agradável e
intenso do gado e depois adormeceu de novo .
Ao amanhecer, estavam sentados , nus , na água escura da ciénaga ,
quando um grupo de vaqueros se acercou a cavalo . Deram de beber às
montadas no extremo oposto e lançaram-lhes acenos de cabeça e
deram-lhes os bons-dias e , escarranchados nos cavalos que iam beben
do , enrolaram cigarros e contemplaram a paisagem .
Adónde van ? perguntaram em voz alta.
A Casas Grandes , respondeu B illy.
Eles fizeram que sim com a cabeça. Os cavalos levantaram os foci
nhos gotejantes e remiraram sem grande curiosidade as silhuetas alva
centas agachadas na água e baixaram as cabeças e beberam de novo .
Quando estavam prontos para partir, os vaqueros desejaram-lhes boa
viagem e voltaram os cavalos para longe da ciénaga e lançaram-nos a
trote através do arvoredo e romperam pela planura para sul , pelo mesmo
caminho que os conduzira até ali .
Eles lavaram as roupas com raiz de iúca e penduraram-nas a secar
numa acácia, de onde os espinhos não as deixariam voar para longe .
Roupas já muito gastas pela região que vinham atravessando e que qua
se não tinham forma de remendar. As camisas quase transparentes , a
dele já a esgaçar-se pelo centro das costas abaixo . Desenrolaram as
mantas e deitaram-se , nus , debaixo dos choupos , e dormiram com os
chapéus a cobrirem-lhes os olhos enquanto as vacas se aproximavam
pelo meio das árvores e ficavam paradas a olhá-los .
Quando ele acordou , Boyd estava sentado , a olhar ao longe por entre
o arvoredo .
O que é?
Olha acolá.
Ele soergueu-se e olhou para o lado oposto da ciénaga . Três crianças
índias estavam acocoradas nos caniços , a observá-los . Quando ele se
pôs de pé , com a manta em volta dos ombros , elas fugiram a correr.
Onde é que ' tá o cão , chiça?
Não sei . Que é que ' tavas à espera que ele fizesse?
A Travessia 1 83
Para além das árvores assomava fumo de lenha, e ele ouvia vozes .
Aconchegou a manta em volta de si e afastou-se e foi buscar as roupas
de ambos e regressou .
Eram tarahumaras e viajavam a pé , como sempre faziam os da sua
raça, e estavam a regressar às sierras . Não conduziam rebanhos de ga
do , não tinham cães . Não falavam espanhol . Os homens usavam panos
brancos a cingirem-lhes os rins e chapéus de palha e pouco mai s , mas
as mulheres e as raparigas envergavam vestidos de cores garridas , com
muitos saiotes por baixo . Alguns calçavam huaraches , mas na sua
maioria andavam descalços , e os pés , calçados ou não , eram rombos e
semelhantes a mocas e cheios de grossos calos . Os seus aprestos esta
vam embrulhados em fardos de pano tecido à mão , tudo empilhado
debaixo de uma árvore , juntamente com meia dúzia de arcos de madu
ra e aljavas de couro de cabra com longas flechas feitas de juncos guar
dadas lá dentro .
As mulheres junto à fogueira para cozinhar olharam-nos com pouco
interesse , ali parados na orla da clareira, vestidos com os seus andrajos
acabados de lavar. Um velho e um rapazito estavam a tocar violinos ar
tesanais e o garoto parou de tocar, mas o velho continuou . Há já mil anos
que os tarahumaras vinham ali fazer aguada, e uma boa parte do que se
podia ver no mundo passara por aquele lugar. Espanhóis de armadura e
caçadores e peleiros e fidalgos de alta estirpe e as suas esposas e os seus
escravos e fugitivos e exércitos e revoluções e os mortos e os moribun
dos . E tudo o que eles viam iam narrando , e tudo o que narravam recor
davam . Dois órfãos pálidos e famélicos vindos do Norte com chapéus
desmesurados eram fáceis de incorporar na história. Eles sentaram-se no
chão , um pouco afastados dos outros , e, usando pratos de folha tão quen
tes que não lhes conseguiam pegar, comeram uma espécie de succotash
em que identificaram sementes de abóbora e de mezquite e pedacinhos
de aipo silvestre . Comeram com os pratos equilibrados sobre a parte de
dentro das botas , pousadas diante de si, de tacões unidos . Enquanto es
tavam a comer, uma mulher aproximou-se deles , vinda da fogueira, e
serviu-lhes de uma cabaça uma mucilagem cor de tijolo feita sabe Deus
de quê . Eles ficaram sentados , a olhar a beberagem . Nada mais havia
para beber. Ninguém falou . Os índios eram escuros , quase negros , e a
sua reserva e o seu silêncio traduziam uma visão do mundo enquanto
lugar provisório , contingente , profundamente suspeito . Mostravam-se
absortos e desconfiados , como se respeitassem uma trégua periclitante .
Pareciam encontrar-se num estado de vigilância imprevidente e desam
parada. Como homens a pisar uma camada de gelo fino .
1 84 Cormac McCarthy
Sim. Podia ter vendido , mas não vendi . Que interesse tem o meu
amigo nesse cavalo?
Eu não ' tou propriamente muito interessado no cavalo . Só andava à
cata do homem que lho vendeu .
Quem é o rapaz na rua?
Como?
O rapaz na rua.
É o meu irmão .
Porque é que ele está lá fora?
Ele ' tá muito bem lá fora .
Porque é que não o trazes cá para dentro?
Ele ' tá óptimo .
Porque é que não o trazes cá para dentro?
Billy olhou pela janela. Pôs o chapéu na cabeça e saiu .
Pensei que ' tavas de olho nos cavalos , disse .
Eles ' tão parados além, disse Boyd .
Os cavalos estavam numa rua lateral , presos pelas rédeas a um espi-
gão num poste telegráfico .
Que maneira desgraçada de deixar um cavalo .
Eu não os deixei . 'Tou aqui mesmo .
Ele viu-te aí sentado . Quer que tu entres .
Pra quê?
Não lhe perguntei .
Não achas que era melhor pra nós seguirmos viagem e pronto?
Vai correr tudo bem . Anda daí.
Boyd olhou na direcção da janela do ganadero , mas o sol batia na
vidraça e ele não conseguia ver para o interior.
Anda daí, repetiu Billy. Se não tornamos a entrar, ele vai ficar a pen-
sar coisas .
A pensar coisas já ele ' tá.
Não ' tá nada.
Olhou para Boyd . Olhou rua acima, para os cavalos . Aqueles cavalos
' tão com um aspecto horrível , comentou .
Eu sei .
Enfiou as mãos nos bolsos de trás das calças de tecido grosseiro e
desferiu algumas pancadas com o tacão da bota na poeira da rua, ras
gando ali uma concavidade . Olhou para Boyd . Cavalgámos que nos
fartámos pra ver este homem , disse .
Boyd debruçou-se e escarrou entre as botas . Muito bem , disse .
A Travessia 1 89
Sim, senhor.
O ganadero arqueou as sobrancelhas . Concordas com ele?
Não , senhor. Não concordo com ele .
Porque é que acredita nele e não em mim? indagou Boyd .
Quem acharia o contrário? perguntou o ganadero .
Cá pra mim , o senhor gosta de ouvir as pessoas mentir, mais nada.
O ganadero disse que sim, que gostava. Acrescentou que esse era um
requisito prévio indispensável para singrar naquele negócio , aliás .
Olhou para B illy.
Hay algo más , disse . Mais qualquer coisa. O que é?
É tudo o que eu sei dizer.
Mas não é tudo o que há para dizer.
Olhou para Boyd. Pois não? indagou .
Nem sei pra que é que você me pergunta isso .
O ganadero sorriu . Ergueu-se laboriosamente da secretária. Assim de
pé era um homem mais pequeno . Dirigiu-se a um arquivador de carvalho
e abriu uma gaveta e folheou alguns papéis e regressou com uma pasta e
sentou-se e colocou a pasta sobre a secretária, na sua frente , e abriu-a.
Sabes ler espanhol? perguntou .
Sei , sim , senhor.
O ganadero ia percorrendo o documento com o indicador esticado .
O cavalo foi comprado num leilão , no dia dois de Março . Foi uma
compra em lote , vinte e três cavalos .
E quem foi o vendedor?
La Babícora.
Voltou a pasta aberta e empurrou-a por sobre a secretária. Billy não
olhou para os papéis . O que é La Babícora? perguntou .
O ganadero ergueu as sobrancelhas hirsutas . O que é a Babícora?
repetiu .
Sim, senhor.
É um rancho . O dono é um compatriota vosso , um tal sefior Hearst .
E eles vendem muitos cavalos?
Não vendem tantos como os que compram.
E porque é que eles venderam o cavalo?
Quién sabe ? O capón não é lá muito popular neste país . Há um pre-
conceito , parece-me que é assim que se diz .
B illy baixou os olhos para o registo de venda.
Fazes favor, disse o ganadero . Podes ver à vontade .
Ele pegou na pasta e percorreu a lista de cavalos discriminados sob o
lote número quarenta e um oitenta e sei s .
A Travessia 191
Sim.
Ergueu os olhos para Boyd . Mas Boyd limitou-se a abanar a cabeça
e prosseguiu .
A pequena silhueta da rapariga sumiu-se nas trevas , mais à frente .
Ainda se viam rolas a pousar nos campos , a oeste da estrada. Continu
aram a ouvi-las a cruzar os ares lá no alto , mesmo depois de a escuridão
se ter adensado tanto que já nada se via. Boyd continuou a cavalgar,
depois esperou na estrada. Ao fim de um certo tempo , B illy alcançou-o .
Estava outra vez escarranchado na sela e prosseguiram lado a lado .
Deixaram para trás as terras irrigadas e deixaram para trás , num bos
que de árvores junto à berma, um jacal de lama seca e paus onde ardia
a ténue luz cor de laranja de uma candeia improvisada . Pareceu-lhes que
devia ser o lugar onde a rapariga vivia e ficaram surpresos ao deparar
com ela novamente na estrada, a caminhar adiante .
Quando a ultrapassaram pela terceira vez era já noite fechada, e Billy
sofreou as rédeas do cavalo ao lado dela e perguntou-lhe se ainda tinha
muito que andar, e ela hesitou por momentos e depois disse que não . Ele
ofereceu-se para lhe transportar a trouxa na garupa do cavalo enquanto
ela continuaria a caminhar pelo seu pé , mas ela recusou educadamente .
Tratava-o por sefíor. Olhou para Boyd . Ocorreu a Billy que ela se pode
ria ter escondido no chaparral da berma , mas que não o fizera .
Desejaram-lhe as boas-noites e prosseguiram e , pouco depois , depara
ram com dois cavaleiros na estrada a seguir em sentido contrário ao
deles , e os desconhecidos falaram-lhes brevemente do seio das trevas e
continuaram adiante . Ele parou o cavalo e ficou a segui-los com os
olhos , e Boyd parou a seu lado .
'Tás a pensar o mesmo que eu? perguntou Billy.
Boyd tinha os antebraços cruzados sobre a cernelha do cavalo . Que-
res esperar por ela?
Quero , pois.
Seja. Achas que eles se vão meter com ela?
Billy não respondeu . Os cavalos batiam com as patas no chão e tor
navam a imobilizar-se . Ao fim de um certo tempo , ele disse: Vamos
esperar só um minutinho . Ela já aparece não tarda. Depois podemos
seguir.
Mas ela não apareceu ao fim de um minutinho , nem ao fim de dez
minutos , nem ao fim de trinta .
Vamos voltar pra trás , disse Billy.
Boyd debruçou-se e escarrou vagarosamente para a estrada e voltou
o cavalo .
1 96 Cormac McCarthy
B illy olhou para ele . Voltou-se ligeiramente e olhou para o seu cava
lo . Curvadas como um tríptico sombrio num pesa-papéis de vidro , dis
tinguiu as silhuetas dos dois homens e da rapariga a chamejar à luz fu
gitiva da fogueira , no centro negro do olho do animal . Passou as rédeas
a Boyd por trás das costas . Leva-os pra acolá, disse . Não tires a sela ao
Bird e não lhe afrouxes o fatigo e não os ponhas junto dos cavalos deles .
Boyd passou na frente dele a conduzir os cavalos e passou junto dos
homens e mergulhou no escuro do arvoredo . B illy adiantou-se e dirigiu
-lhes um aceno de cabeça e empurrou o chapéu um tudo-nada para a
nuca. Postou-se diante do lume e baixou os olhos para as chamas . Olhou
para a rapariga.
Cómo está, saudou .
Ela não respondeu . Quando ele olhou para o lado oposto da fogueira ,
o homem que estava a fumar agachara-se sobre os calcanhares e estava
a observá-lo através da deformação do calor, com olhos da cor do car
vão molhado . No chão , a seu lado , encontrava-se uma garrafa com uma
maçaroca de milho a servir de rolha.
De dónde viene ? perguntou o outro .
Ame rica .
Tejas .
Nuevo Mexico .
Nuevo Mexico , repetiu o homem . Adónde va ?
Billy observou-o . Ele tinha o braço direito cruzado sobre o peito e ali
preso pelo cotovelo do braço esquerdo , de tal forma que o antebraço
esquerdo se erguia na vertical à sua frente , a segurar o cigarro numa
pose estranhamente formal , estranhamente delicada. Billy olhou nova
mente para a rapariga e olhou novamente para o homem do lado oposto
da fogueira. Não tinha resposta à pergunta do outro .
Hemos perdido un caballo , disse . Lo buscamos .
O homem não respondeu . Segurava o cigarro entre o indicador e o
dedo médio e deixou pender o pulso num gesto semelhante ao de uma
ave e puxou uma fumaça e depois tornou a erguer o cigarro ao alto .
Boyd assomou das árvores e contornou o fogo e parou , mas o homem
não olhou para ele . Atirou a beata para o seio das chamas diante de si e
dobrou os braços em volta dos joelhos e começou a baloiçar-se para trás
e para diante num movimento quase imperceptível . Espetou o queixo na
direcção de Billy e perguntou se ele os tinha seguido para lhes poder ver
os cavalos .
No , respondeu Billy. Nuestro caballo es un caballo muy distinto . Lo
conoceríamos en cualquier luz .
1 98 Cormac McCarthy
Assim que disse isto , percebeu que eliminara a sua única resposta
plausível à pergunta que o homem iria fazer a seguir. Olhou para Boyd .
Boyd percebera o mesmo . O homem baloiçava-se , remirava-os . Qué
quieren pues ? indagou .
Nada , respondeu Billy. No queremos nada .
Nada , repetiu o homem . Articulou a palavra como se a saboreasse .
Imprimiu ao queixo uma ligeira rotação de viés , como faria um homem
ao ponderar a plausibilidade do que acaba de ouvir. Dois cavaleiros que
se cruzam com outros dois numa estrada escura e seguem em frente e
que , pouco depois , se cruzam também com um viajante a pé sabem que
os tais cavaleiros ultrapassaram o viajante a pé e seguiram em frente .
Eis o que não oferecia dúvidas . Os dentes do homem cintilaram à luz do
fogo . Ele retirou qualquer coisa que tinha presa entre os dentes e
examinou-a e depois comeu-a. Cuántos afíos tiene ? perguntou .
Yo ?
Quién más .
Diecisiete .
O homem fez que sim com a cabeça. Cuántos afíos tiene la mucha-
cha ?
No lo sé.
Qué opina .
B illy olhou para a rapariga. Ela permanecia sentada, de olhos fitos no
próprio regaço . Parecia ter uns catorze anos , talvez .
Es muy joven , disse ele .
Bastante .
Doce quizás .
O homem encolheu os ombros . Estendeu o braço e pegou na garrafa
que se encontrava no chão e tirou-lhe a rolha e bebeu e ficou a segurar
a garrafa pelo gargalo . Declarou que se elas já tinham idade para san
grar, também já tinham idade para dar o corpo ao manifesto . Em segui
da, ergueu a garrafa acima do próprio ombro . O homem atrás dele deu
um passo em frente e tomou-lha da mão e bebeu . Ali perto , na estrada,
ia a passar um cavalo . O cão pusera-se de pé para ouvir. O cavaleiro não
se deteve , e o lento clope-clope dos cascos na lama seca da estrada
desvaneceu-se , e o cão deitou-se de novo . O homem de pé bebeu uma
segunda vez e, em seguida, devolveu a garrafa. O outro homem pegou
-lhe e tomou a enfiar a maçaroca no gargalo , dando pancadas com o
pomo da mão , depois sopesou a garrafa.
Quiere tomar? perguntou .
No . Gracias .
A Travessia 1 99
a sul . Fizeram uma pausa por volta do meio-dia numa nascente no de
serto onde carvalhos e sabugueiros cresciam em manchas densas nas
depressões e soltaram os cavalos e dormiram no chão . B illy dormiu com
a caçadeira aconchegada no braço , e , ao acordar, a rapariga estava sen
tada a observá-lo . Ele perguntou-lhe se ela sabia montar caballo en
pelo e ela disse que sim . Quando tomaram a partir, ela cavalgou atrás
de Boyd , para assim revezar os cavalos . Ele pensou que Boyd iria colo
car objecções , mas ele nada disse . Quando olhou para trás , a rapariga
seguia com ambos os braços em volta da cintura dele . Quando tomou a
olhar para trás , mais tarde , o cabelo escuro dela derramava-se sobre o
ombro do irmão e ela adormecera-lhe contra as costas .
À tardinha chegaram à hacienda de San Diego , situada num monte
sobranceiro às terras lavradas que desciam até ao rio Casas Grandes e
até ao Piedras Verdes . Um moinho de vento rodava na planície abaixo
deles como um brinquedo chinês , e os cães ladravam na lonjura. À luz
alongada e rasante , as montanhas em tons crus de ocre erguiam-se com
fundas sombras nas suas pregas , e, no céu a sul , uma dúzia de abutres
rodava num vagaroso carrossel de crepe .
III
Era quase noite cerrada quando eles passaram diante da casa princi
pal e percorreram o caminho de acesso , deixando para trás os pórticos
com as suas colunas esguias de ferro trabalhado , deixando para trás as
paredes de estuque branco com cunhais feitos de blocos de arenito ver
melho e uma filigrana de terracota ao longo dos parapeitos superiores .
Na fachada da casa viam-se três arcos de pedra, e, acima destes ,
encontravam-se esculpidas as palavras Hacienda de San Diego em le
tras arqueadas sobre as iniciais L.T. As altas janelas palladianas tinham
as portadas fechadas , e as portadas estavam gastas pelo tempo e partidas
e a tinta e o estuque tombavam em lascas das paredes e o tecto do pór
tico não passava de uma fiada de ripas de madeira nuas , todas mancha
das da chuva e empenadas . Eles romperam a cavalo pelo pátio em di
recção ao que pareciam ser os domicílios , onde o fumo se elevava
contra o céu do crepúsculo , e cruzaram os portões de madeira abertos
para o pátio interior e pararam os cavalos lado a lado .
Num dos cantos do recinto encontrava-se a carcaça de um vetusto
Dodge , modelo de turismo , há muito despojado das rodas e dos eixos ,
dos vidros e dos assentos . No extremo oposto da cerca, uma fogueira
para cozinhar ardia no chão , e, à luz das chamas , eles distinguiram duas
caravanas pintadas de corres garridas com roupa pendurada numa corda
entre ambas e, a passar para trás e para diante defronte do lume , mulhe
res e homens de roupões e quimonos que pareciam pertencer a um circo .
Qué e/ase de lugar es éste ? perguntou B illy.
Es ejido , disse a rapariga.
Qué e/ase de gente ?
No lo sé.
Ele descavalgou num só movimento e a rapariga deixou-se escorre
gar do dorso do cavalo de Boyd e acercou-se e pegou nas rédeas .
A Travessia 205
Disse que não tinha dinheiro , mas ela limitou-se a fitá-lo como se não
compreendesse . Em seguida, disse que toda a gente ia assistir, e que os
que tinham dinheiro pagariam pelos que não tinham . Disse que toda a
gente tinha de ir. Nem sequer lhe passava pela cabeça que alguém fosse
posto de parte . Quem permitiria tal coisa?
Ele ergueu-se e ficou de pé . Procurou Boyd com os olhos, mas não o
via nem à rapariga. Os retardatários apressavam-se através do fumo das
fogueiras moribundas . A mulher mudara a criança para a outra anca e
avançou e pegou-lhe pela mão , como se ele próprio fosse uma criança .
Vámonos , disse . Está bien .
Seguiram os outros pela encosta acima, com a multidão a caminhar
vagarosamente por causa dos velhos , e os velhos a instar as outras pes
soas a que passassem e seguissem adiante . Ninguém o fez . A casa vazia
na crista da elevação acima deles erguia-se , soturna e sem luz , mas bro
tava música do longo recinto murado onde outrora se situavam as ofici
nas e os establos , as residências dos capatazes . A luz derramava-se para
o exterior através das altas portas das cavalariças , e fanais de petróleo
ou de pez , improvisados com baldes , ardiam de ambos os lados do arco
de pedra à entrada, e aqui os ejiditarios formavam fila e avançavam em
passo arrastado com os seus centavos e os seus pesos agarrados nos
punhos fechados para os entregar ao porteiro , ali postado com o seu
fato negro luzidio . Dois jovens a transportar uma padiola passaram
através da multidão . A padiola era feita de varas e de lençóis, e o velho
ali deitado estava vestido de fato e gravata e agarrava nos dedos encla
vinhados um rosário de madeira e fitava com olhar lúgubre o arco do
céu acima de si . B illy olhou para a criança que a mulher levava ao colo ,
mas a criança dormia. Quando chegaram aos portões , a mulher pagou e
o porteiro agradeceu-lhe e deixou cair as moedas para dentro de um
balde pousado no chão a seu lado e eles transpuseram o limiar e entra
ram no pátio .
Tinham colocado as pequenas caravanas garridas no extremo oposto
do recinto . Havia candeias pousadas num semicírculo diante das cara
vanas , sobre o terreno de argila compacta, e candeias penduradas de
uma corda estendida no alto , e, sob o jorro de luz ascendente , rostos de
rapazitos observavam ao longo do parapeito como fiadas de máscaras
teatrais ali dispostas . As mulas que se encontravam entre os varais esta
vam aparelhadas com arreios agaloados e repletos de enfeites de ouro
pel e de veludo , e as mulas e as caravanas eram as mesmas que trans
portavam a pequena companhia pelas estradas secundárias da república
para que os seus membros se apresentassem à noite em palco com ague-
208 Cormac McCarthy
o Rogelio o agarrou , só por pouco não lhe deu uma catanada também .
O Rogelio sentiu-se enojado . Enojado . Caíram os dois na estrada. No
meio do sangue e da poeira. A rebolarem debaixo das patas das bestas .
Com o carro prestes a virar-se e toda a gente que lá ia dentro . Repug
nante . E se alguém surgisse por esta estrada? E se aparecesse gente
nesta estrada naquele momento e assistisse àquele espectáculo?
O que é que aconteceu à mula?
A mula? A mula morreu . É claro .
Ninguém teve a ideia de lhe dar um tiro ou nada do género?
Sim. Há uma história. Fui eu própria. Dei um passo em frente para
abater a tal mula, o que é que tu pensas? O Rogelio proibiu este gesto .
Porque ia assustar as outras mulas , diz-me ele . Consegues imaginar is
to? Neste ponto dos acontecimentos? Depois diz que quer despedir o
Gasparito . Diz que o Gasparito é um lunático , mas o Gasparito é apenas
um borrachón . De Vera Cruz , está claro . E um cigano . Consegues ima
ginar isto?
Pensei que todos vocês eram ciganos .
Ela soergueu-se na rede . Cómo ? soltou . Cómo ? Quién lo dice ?
Todo e/ mundo .
Es mentira . Mentira . Me entiendes ? Curvou-se para diante e escarrou
duas vezes na terra.
Neste momento , a porta ensombrou-se realmente , e um homem baixo
e moreno em mangas de camisa surgiu ali , a lançar em volta olhares
fuzilantes . A prima donna voltou-se na rede e ergueu os olhos para ele .
Como se a aparição dele à porta tivesse projectado uma sombra visível .
Ele abarcou com o olhar os visitantes e as suas montadas e tirou do
bolso da camisa um maço de cigarros El Toro e meteu um na boca e
vasculhou no bolso em busca de um fósforo .
Buenas tardes , saudou Billy.
Achas que um cigano é capaz de cantar ópera? insistiu a mulher. Um
cigano? Os ciganos só sabem tocar guitarra e pintar os cavalos . E dançar
as suas danças primitivas .
Soergueu-se na rede e alçou os ombros e abriu as mãos na sua frente .
Em seguida, entoou uma longa nota penetrante que não era bem um
grito de dor e não era bem nenhuma outra coisa. Os cavalos agitaram-se
e arquearam os pescoços , e os cavaleiros tiveram de lhes repuxar as
rédeas com toda a força, e, ainda assim , eles contorciam-se e davam
passos para cá e para lá e reviravam os olhos . Nos campos em volta, os
jornaleiros imobilizaram-se , petrificados nos seus regos .
Sabes o que foi isto? perguntou ela .
216 Cormac McCarthy
Andamos por aqui à cata duns cavalos que nos foram roubados .
E à guarda de quem estavam esses cavalos?
Ninguém respondeu .
Ela olhou para Boyd . Abriu o leque . Pintado sobre o fole dobrado de
papel de arroz via-se um dragão com grandes olhos redondos . Ela fe
chou o leque . Durante quanto tempo vão andar à procura desses cava
los? indagou .
O tempo que for preciso .
Podría ser un viaje largo .
Quizás .
As viagens longas perdem-se muitas vezes .
Como diz?
Verás . É difícil , mesmo para dois irmãos , viajar juntos numa tal jor
nada. A estrada tem as suas próprias razões , e não há dois viajantes que
tenham o mesmo entendimento dessas razões . Se é que conseguem che
gar a entendê-las , diga-se de passagem. Ouve os corridos desta terra.
Ficarás a perceber. E então verás , na tua própria vida, qual é o custo das
coisas . Talvez seja verdade que nada está oculto . Todavia, muitos não
desejam ver o que está diante deles, bem à vista. Verás . A forma da es
trada é a estrada em si . Não há qualquer outra estrada que ostente essa
forma, somente aquela. E todas as viagens nela iniciadas serão levadas
até ao seu termo . Quer se encontrem os cavalos , quer não .
Se calhar é melhor irmos andando , disse Billy.
Ándale pues , disse a prima donna . Que Deus vos acompanhe .
Se eu vir esse tal Punchinello na estrada, digo-lhe que a senhora ' tá à
espera dele .
Pa.ff, replicou a prima donna . Não desperdices o teu fôlego .
Adiós .
Adiós .
Ele olhou para o homem nos degraus . Hasta luego , disse .
O homem acenou com a cabeça. Adiós , disse .
B illy torceu as rédeas do cavalo para o fazer dar meia-volta. Olhou
para trás e tocou na aba do chapéu . A prima donna abriu o leque num
gesto elegante , deixando pender a mão . O arriero inclinou-se para dian
te com as mãos nas rótulas e tentou uma derradeira vez cuspir para cima
do cão , e depois todos eles romperam através do campo até à estrada.
Quando ele olhou por cima do ombro , para a prima donna , ela estava a
observá-los pelo binóculo. Como se desta forma os pudesse avaliar
melhor, a afastarem-se pela estrada listada de sombras , com o crepúscu
lo já próximo . Habitando somente aquele terreno ocular em que a pai-
A Travessia 219
Tenho , sim .
Diz-lhe que traga a caçadeira.
Diz-lhe tu .
A rapariga estava parada no rio com os cavalos .
Tráigame la escopeta , pediu B illy e m voz alta.
Ela olhou para ele . Caminhou pela água a chapinhar até ao lado di
reito do cavalo dele e tirou a caçadeira do estojo e trouxe-lha. Ele soltou
o fuste com o dedo enclavinhado e abriu a culatra da arma e tirou o
cartucho e levantou o cano para o soltar e agachou-se diante de Boyd .
Chega cá isso , disse . Passa pra cá.
Boyd estendeu-lhe a bota, e ele pousou-a no chão e enfiou lá o braço
e apalpou no interior à procura do prego e depois enfiou a cauda do
cano dentro da bota e martelou o prego com o bloco de fecho e tornou
a enfiar lá a mão e apalpou de novo e depois devolveu a bota a Boyd .
Essas botas cheiram horrivelmente mal , comentou .
Boyd calçou a bota e pôs-se de pé e andou para trás e para diante .
Billy tornou a montar a caçadeira e enfiou o cartucho na câmara com
o polegar e fechou a culatra da arma e apoiou-a na vertical sobre o cas
calho e sentou-se a segurá-la. A rapariga estava novamente no rio com
os cavalos .
Achas que ela os viu? perguntou Boyd .
Viu o quê?
Aqueles gaiatos nus .
Ele ergueu os olhos de pálpebras franzidas para fitar Boyd , ali parado
a contraluz . Bom , disse , acho que deve de ter visto . Ela não ficou cegui
nha desde ontem , ou ficou?
Boyd olhou para a rapariga parada no rio .
Ela não viu nada que não tivesse visto antes , prosseguiu B illy.
O que é que queres dizer com isso?
Não quero dizer nada.
O tanas é que não queres .
Não quero dizer nada. As pessoas vêem outras pessoas nuas , mais
nada. Não comeces outra vez com as tuas maluqueiras . Raios . Eu vi
aquela cantora de ópera no rio , nuazinha como veio ao mundo .
Viste agora.
O tanas é que não vi . Ela ' tava a tomar banho. ' Tava a lavar o cabelo .
Quando é que isso tudo aconteceu?
Ela lavou o cabelo e torceu-o todo como se fosse uma camisa.
Nuazinha de todo , dizes tu?
Nem um trapinho , digo eu .
A Travessia 22 1
Boyd não respondeu . O cão mudo fora esconder-se nas ervas da ber
ma e agora reapareceu e ficou parado , à espera . Boyd permanecia imó
vel na sela.
Bom, de que é que ' tás à espera? perguntou Billy.
'Tou à espera que tu me digas pra que lado queres ir.
Bom , pra que lado achas tu que nós vamos agora, chiça?
' Tá combinado ' tarrno s em Santa Ana de Babícora daqui a três dias .
Bom , somos bem capazes de nos atrasar.
Então e os papéis?
De que raio nos servem os papéis sem o cavalo? Seja como for, aca
baste de ver o que os papéis valem neste país .
Um dos rapazes que saiu daqui com os cavalos tinha uma espingarda
num estojo de bota.
Eu vi . Não sou cego .
Boyd voltou o cavalo e romperam novamente para oeste pela estrada
fora. O cão colocou-se a par deles e pôs-se a trotar do lado direito do
cavalo , à sombra do corpo deste .
Queres desistir? perguntou B illy.
Eu nunca disse nada sobre desistir.
As coisas por estas bandas não são como lá na nossa terra.
Eu nunca disse que eram .
Tu recusas-te a usar o bom senso . Viemos até demasiado longe pra
voltarmos pra casa mortos .
Boyd apertou os flancos do cavalo com os tacões das botas , e o cava
lo estugou o passo. Achas que há um lugar que fique assim tão longe?
perguntou .
Encontraram os rastos dos dois cavaleiros e dos três cavalos no pon
to em que estes tinham regressado à estrada e, uma hora depois ,
encontravam-se de regresso ao lugar, acima do lago , onde primeiro ti
nham visto os cavalos . Boyd cavalgou devagar ao longo da berma da
estrada, a examinar o terreno a seus pés , até ver onde é que os cavalos ,
ferrados e sem ferraduras , tinham abandonado a estrada e metido para
norte através das pastagens altaneiras e ondulantes .
Pra onde é que tu achas que eles vão? perguntou .
Não sei , respondeu Billy. Lá por isso , também não sei donde é que
eles vieram .
Cavalgaram para norte toda a tarde . De uma elevação , aos derradei
ros raios do crepúsculo , viram os cavaleiros a arrebanhar diante de si os
cavalos , agora em número de uma dúzia, mais ou menos , a uns dez
quilómetros dali , na pradaria azul que ia arrefecendo .
A Travessia 235
É.
Ele assentiu com a cabeça. Continuou a fumar. Deixou cair o cigarro
na estrada. O cavalo olhou para a beata.
Compreendem que isto é uma questão muito séria, disse .
Pra nós é .
Ele tornou a fazer que sim com a cabeça. Sigam-me , ordenou .
Torceu as rédeas para fazer rodar o cavalo e rompeu estrada acima.
Não olhou para trás para se certificar de que eles o seguiam, mas eles
fizeram-no . Nem lhes passou pela cabeça cavalgar a par dele .
A meio da tarde estavam totalmente envoltos pela nuvem de poeira da
manada de cavalos . Ouviam-nos na estrada, mais adiante , embora não os
conseguissem avistar. Quijada desviou o cavalo da estrada e guiou-o nu
ma curva através dos pinheiros e reentrou na estrada à frente da remuda .
O caporal cavalgava à cabeça e , quando viu Quijada, ergueu uma mão , e
os vaqueros lançaram os cavalos a trote e cortaram o caminho à manada,
e o caporal adiantou-se e ele e Quijada pararam frente a frente e conver
saram, sentados nas selas . O caporal olhou para trás , para os dois rapazes
escarranchados sobre o cavalo esquelético . Lançou um brado aos vaque
ros . Os cavalos na estrada agrupavam-se e rodopiavam nervosamente , e
um dos cavaleiros percorreu a manada em sentido inverso , a enxotar os
cavalos do meio do arvoredo . Quando todos os cavalos se tinham aquie
tado e estavam confinados à estrada, Quijada voltou-se para Billy.
Quais são os vossos cavalos ? perguntou .
Billy voltou-se na sela e percorreu a remuda com os olhos . Uns trin
ta cavalos parados na estrada ou a apoiar-se ora numa pata ora noutra,
soturnos , a erguer e a baixar as cabeças na poeira dourada que cintilava
ao sol .
O baio grande , disse . E aquele baio de cor clara junto dele . Aquele
com o luzeiro . E aquele malhado lá atrás . O tigre .
Separa-os , ordenou Quijada.
Com certeza, disse B illy. Voltou-se para Boyd . Desmonta.
Deixa-me ser eu a fazer, pediu Boyd .
Desmonta.
Ele que os separe , interveio Quijada.
Billy olhou para Quijada. O caporal rodara o cavalo , e os dois ho
mens estavam agora parados lado a lado . Ele passou a perna sobre o
arção dianteiro da sela e deixou-se escorregar para o chão e recuou .
Boyd içou-se para a sela à força de braços e pegou na corda e começou
a armar um laço , tocando o cavalo para diante com os joelhos e seguin
do ao longo da orla da remuda em direcção à cauda do grupo . Os vaque-
A Travessia 239
O que é que ele ia fazer com os papéis do Nifio e sem o cavalo? per-
guntou Boyd .
Não sei . Procurava um cavalo a condizer com os papéis . Dorme .
Seja como for, os papéis não valem um caracol , porra .
Eu sei .
'Tou com uma fome do caraças .
Quando é que deste em praguejar assim dessa maneira?
Quando deixei de ter que comer.
Bebe água.
Já bebi .
Dorme .
A luz já raiava a leste . B illy pôs-se de pé e ficou à escuta.
O que é que ' tás a ouvir? perguntou Boyd .
Nada.
Este lugar até mete medo .
Eu sei . Dorme .
Sentou-se e aninhou a caçadeira no regaço . Ouvia os cavalos a pastar
na erva da pradaria ali perto .
'Tás a dormir? perguntou .
Não .
Eu recuperei os papéis .
Os papéis do Nifio?
Sim .
Bale las .
Não , é verdade .
E onde é que os foste buscar.
'Tavam na mochila . Quando ia pra pôr a pistola dele outra vez no
lugar, lá 'tavam os papéis na mochila .
Diabos me levem.
Ali sentado , continuava a agarrar a caçadeira e a escutar os cavalos e
o silêncio do mundo mais além . Ao fim de um certo tempo , Boyd per
guntou : E puseste a pistola no lugar?
Não .
Porquê?
Não pus , pronto .
Tem-la contigo?
Tenho , sim. Dorme .
Quando o dia raiou , pôs-se de pé e afastou-se para ver qual a aparên
cia da paisagem em volta . O cão levantou-se e seguiu-o . Ele caminhou
até ao alto da elevação e acocorou-se, apoiado na caçadeira. A quilóme-
250 Cormac McCarthy
Certo.
Quanto tempo vais demorar?
Não vou demorar muito .
Certo.
Cavalgou para jusante com a caçadeira atravessada sobre o arção
dianteiro da sela. Tirara o cartucho de chumbo grosso da câmara e vas
culhou entre os cartuchos na bolsa até encontrar dois cartuchos de
chumbo número cinco e carregou a arma com um destes e meteu o outro
no bolso da camisa, que abotoou. Cavalgava devagar e remirava o rio
entre o arvoredo enquanto avançava. Quilómetro e meio a jusante , viu
patos na água. Desmontou e deixou cair as rédeas e pegou na caçadeira
e começou a acercar-se deles furtivamente através dos salgueiros na
margem. Tirou o chapéu e pousou-o no chão. O cavalo relinchou atrás
dele , e ele olhou por cima do ombro e amaldiçoou-o em surdina e de
pois soergueu-se e olhou para o rio. Os patos ainda lá estavam. Três
negrelhos sombrios , imóveis na calma de peltre do caudal. A neblina
elevava-se do rio como fumo. Ele avançou cautelosamente por entre os
salgueiros , a agachar-se à medida que progredia. O cavalo relinchou de
novo . Os patos levantaram voo.
Ele pôs-se de pé e olhou para trás. Rais te partam , soltou. Mas o ca
valo não estava a olhar para ele. Estava a olhar para a outra margem do
rio . Ele voltou-se e viu ali cinco homens a cavalo.
Deixou-se cair de gatas . Eles avançavam para montante em fila india
na, por entre as árvores da margem oposta. Não o tinham visto . Os patos
rodaram lá no alto à luz nova do Sol e voaram numa curva larga para
jusante. Os cavaleiros ergueram os olhos , continuaram a cavalgar. Nifío
estava parado entre os salgueiros , bem à vista, mas eles não o viram e o
cavalo não tornou a relinchar e eles passaram adiante e desapareceram
rio acima entre as árvores .
Ele pôs-se de pé e apanhou o chapéu do chão e enterrou-o na cabeça
e caminhou cautelosamente até onde o cavalo se encontrava, para não o
assustar, e pegou nas rédeas e montou e fez rodar o cavalo e lançou-o a
trote largo .
Afastou-se do rio e descreveu uma curva, rompendo através da pra
daria. A luz do Sol banhava já os ramos mais altos dos choupos. Ele
vasculhou na mochila atrás de si enquanto cavalgava, tentando encon
trar o cartucho de chumbo grosso . Não viu os cavaleiros em nenhum
ponto na margem oposta do rio e, quando avistou os seus próprios ca
valos a pastar entre as árvores, amarrados às estacas , meteu na direcção
do acampamento.
A Travessia 253
Boyd percebeu o que estava a acontecer sem que ele dissesse uma
palavra e afastou-se para ir buscar os cavalos . Billy desmontou de um
salto e agarrou as mantas de ambos e enrolou-as e amarrou-as . Boyd
surgiu do rio a pé , em corrida, a enxotar os cavalos na sua frente .
Tira-lhes as cordas ! bradou Billy. Vamos ter de fugir a sete pés .
Boyd voltou-se . Ergueu uma mão , fazendo menção de agarrar o pri
meiro cavalo quando os animais assomaram das árvores , e foi então que
a camisa se lhe enfunou nas costas , tingida de vermelho , e ele caiu ao
chão .
Billy percebeu depois que vira a própria bala da espingarda. Que o
sibilar e o sopro que lhe soaram aos ouvidos haviam sido os ruídos da
bala a passar, e que ele a vira por um breve momento de imobilidade
diante dos olhos , com o sol a bater de lado no pequeno nódulo de metal
giratório , o chumbo rebrilhante pela fricção das estrias do cano , afrou
xado por ter atravessado o corpo do irmão mas ainda a mover-se mais
depressa do que o som e a passar-lhe junto ao ouvido esquerdo com a
sucção do ar como um sussurro saído do vácuo e a ténue trepidação da
onda de choque , e depois a bala a fazer ricochete no ramo de uma árvo
re e a cantarolar para longe sobre o deserto atrás dele , a bala que só por
uma unha negra não lhe tirara a vida, e, por fim , o som do tiro a surgir,
vagaroso , na esteira do projéctil .
A detonação reverberou até à outra margem do rio , concisa e cava, e
ecoou , vinda do deserto . Ele já desatara a correr entre os cavalos frené
ticos que se inclinavam para cá e para lá, e ajoelhou-se e voltou o irmão
ali caído na terra manchada de sangue . Oh , meu Deus , soltou . Oh , meu
Deus .
Ergueu da poeira a cabeça do irmão . A camisa andrajosa molhada de
sangue . Boyd ! chamou . Boyd !
Dói imenso , Billy.
Eu sei .
Dói imenso .
A espingarda crepitou outra vez do outro lado do rio . Todos os cava
los tinham corrido para fora do arvoredo , excepto Nifío , que , de rédeas
caídas , batia com os cascos no chão . Ele voltou-se na direcção do som
e ergueu uma mão . No tire! bradou . No tire! Nos rendimos! Nos rendi
mos aquí!
A espingarda crepitou de novo . Ele pousou Boyd no chão e correu ao
encontro do cavalo e agarrou as rédeas caídas no preciso momento em
que o animal se voltava para abandonar aquele lugar. Obrigou o cavalo
a dar meia-volta e trouxe-o a trote até onde o irmão estava caído e pisou
254 Cormac McCarthy
Alguns disseram , é claro , que o tal Wirtz lhe tinha salvado a vida, pois ,
caso ele não o tivesse cegado , tê-lo-iam seguramente encostado à parede
e fuzilado . Outros diziam que teria sido melhor assim. Ninguém pergun
tou ao cego qual a sua opinião sobre o assunto . Sentado no frio cárcel de
pedra, viu a luz desvanecer-se à sua volta até que , por fim , ficou mergu
lhado na escuridão . Os olhos secaram-lhe e encarquilharam-se , e as
hastes de que pendiam secaram , e o mundo desapareceu e ele dormiu por
fim e sonhou com as terras por onde cavalgara durante as suas campa
nhas nas serranias e com as aves de cores vivas que ali havia e com as
flores silvestres e sonhou com raparigas descalças junto à berma da es
trada, nas povoações de montanha, cujos olhos eram lagos de promessas ,
fundos e escuros como o mundo em si , e , acima de tudo , sonhou com o
céu azul e retesado do México onde o futuro do homem participava quo
tidianamente no ensaio geral e a silhueta da morte com a sua caveira de
papel e o fato de ossos pintados deambulava a passos largos para cá e
para lá diante das luzes da ribalta a declamar em voz alta.
Hace vientiocho anos, disse a mulher. Y mucho ha cambiado. Y a
pesar de eso todo es lo mismo.
O rapaz estendeu a mão e tirou o último ovo da tigela e fê-lo estalar
e começou a descascá-lo . Enquanto o fazia, o cego tomou a palavra .
Disse que , pelo contrário , nada mudara e tudo estava diferente . O mun
do renovava-se a cada dia que passava, pois Deus assim o fazia todos
os dias . E, no entanto , continha em si todos os males , exactamente como
antes , nem mai s , nem menos .
O rapaz enterrou os dentes no ovo . Olhou para a mulher. Ela parecia
estar à espera de que o cego dissesse mais qualquer coisa e, quando ele
se absteve de falar mai s , ela prosseguiu como ante s .
Os rebeldes regressaram e tomaram Durango a dezoito de Junho e
conduziram-no para fora do cárcel e ele ficou parado no meio da rua
enquanto os sons da fuzilaria ecoavam dos arrabaldes , onde os soldados
federais em fuga iam sendo perseguidos e abatidos a tiro . Ali de pé , ele
apurou o ouvido , à escuta de alguma voz que pudesse reconhecer.
Quién es usted, ciego? perguntavam-lhe as vozes . Ele dizia-lhes o
nome , mas ninguém o conhecia. Alguém cortou e lhe deu uma vara de
madeira verde , e , tendo isto como seu único pertence , ele partiu sozinho
a pé pela estrada para Parral .
Adivinhava a hora do dia voltando o rosto para o Sol invisível como
um adorador daquele astro . E também pelos sons das cercanias . Pela
frescura da noite , a humidade . Pelo canto dos pássaros e pelo calor ini
cial dos primeiros alvitres de luz na sua pele . As pessoas traziam-lhe
A Travessia 26 1
água e comida das casas por onde ele passava e davam-lhe provisões
para o caminho . Os cães que irrompiam na estrada de pêlo eriçado para
o desafiar escapuliam-se , sorrateiros . Ele ficou surpreso ante a autorida
de que a sua cegueira lhe conferia . Parecia não lhe faltar nada.
Chovera naquelas paragens , e flores silvestres desabrochavam na ber
ma da estrada. Ele avançava devagar, a apalpar os sulcos do chão com o
seu cajado de madeira verde . Não tinha botas , pois há muito lhas tinham
roubado , e naqueles primeiros dias caminhava descalço e tinha o coração
repleto de desespero . Mais do que repleto . O desespero instalara-se den
tro dele como um hóspede . Como um parasita que tivesse expulsado o
seu próprio ser da sua morada e tivesse assumido a forma desse espaço
dentro de si onde outrora ele mesmo residira. Sentia o intruso alojado
contra a própria garganta . Não conseguia comer. Bebia água em pequenos
goles por um copo oferecido anonimamente do seio das trevas do mundo
e tomava a devolver o copo para o âmago dessas trevas . A sua libertação
do cárcel pouco significava para ele , e em certos dias a liberdade parecia
-lhe somente uma nova maldição e neste estado caminhou vagarosamen
te para norte , a apalpar o chão com a bengala, na estrada para Parral .
Chovera nas trevas frescas da sua primeira noite sozinho no campo ,
e ele parou e ficou à escuta e ouviu a chuva a aproximar-se através do
deserto . O vento trazia o cheiro dos creosotes molhados . Ele ergueu o
rosto e ficou junto à berma da estrada e o que lhe ocorria nesse momen
to era que , além do vento e da chuva, nada mais brotaria para o tocar do
seio daquele alheamento que era o mundo . Nem com amor, nem com
inimizade . Os laços que o prendiam ao mundo tinham-se tomado rígi
dos . Cada vez que ele se movia, o mundo movia-se também , e ele nun
ca se conseguiria aproximar do mundo nem lhe conseguiria escapar.
Sentou-se nas ervas da berma da estrada, à chuva, e chorou .
Na manhã do seu terceiro dia fora da prisão , entrou no povoado de
Juan Ceballos e ali parou na estrada com a bengala ao alto e voltou-se ,
à escuta , a franzir as pálpebras naquele seu esgar terrível . Mas os cães
já se tinham escapulido , e uma mulher falou com ele do seu lado direito
e perguntou-lhe se lhe podia pegar na mão , e ele estendeu-lha .
Y adónde va? perguntou ela.
Ele disse que não sabia . Disse que ia para onde fosse a estrada.
O vento . A vontade de Deu s .
La voluntad d e Dios, disse ela . Como s e escolhesse .
Levou-o para sua casa . Ele sentou-se diante de uma tosca mesa de
tábuas , e ela deu-lhe um pozole com fruta para comer, mas ele não foi
capaz de comer, por mais que ela o incitasse . Ela pediu-lhe que contas-
262 Cormac McCarthy
havia água suficiente no rio para uma pessoa se afogar, e o cego assen
tiu com a cabeça. Disse que , fosse lá como fosse , não hav i a privacidade
suficiente .
Prosseguiu dizendo que havia uma igreja ali perto , não? O amigo
respondeu que não havia igreja nenhuma. Que não havia nada ali nas
redondezas , absolutamente nada. O cego disse que ouvira um sino , e o
homem replicou que tivera um tio que era cego e que também ele ouvia
muitas vezes sons que não existiam .
O cego encolheu os ombros . Disse que o tinham cegado há pouco
tempo . O homem perguntou-lhe porque é que ele achava que o som de
um sino tinha de provir de uma igreja, mas o cego limitou-se a encolher
novamente os ombros e continuou a fumar. Perguntou que outro som
uma igreja faria .
O homem perguntou-lhe porque é que desej ava morrer, mas o cego
replicou que não era importante . O homem perguntou-lhe se era por não
conseguir ver, e ele disse que era uma razão entre outras. Continuaram
a fumar. Por fim , o cego expôs-lhe a sua conjectura de que , seja lá como
for, os cegos já abandonaram em parte este mundo . Disse que se con
vertera numa mera voz para falar numa escuridão incompatível com os
motivos da vida. Explicou que o mundo e tudo o que nele existia se ti
nham convertido para ele num mero boato . Uma suspeita . Encolheu os
ombros . Disse que não desej ava ser cego . Que vivera mais do que a sua
condição merecia.
O homem ouviu-o sem o interromper, depois ficaram e m silêncio . O
cego ouviu o ténue crepitar do cigarro do outro na água abaixo de s i . Por
fim , o homem disse que era pecado perder o ânimo e que , de qualquer
forma, o mundo permanecia como sempre fora. Isto , pelo menos , era
incontestável . Quando o cego não respondeu , ele convidou o cego a
tocar-lhe , mas o cego tinha relutância em fazer esse gesto .
Con permiso, disse o homem. Pegou na mão do cego e colocou-lhe
os dedos sobre os seus lábios . E aí ficaram pousados o s dedos do cego .
No gesto de adjurar outrem a que se mantivesse em silêncio .
Toca, incitou o homem . O cego recusava-se a obedecer. O outro pegou
novamente na mão do cego e moveu-lha sobre o próprio rosto . Toca,
incitou . Si el mundo es ilusión la perdida del mundo es ilusión también.
O cego ficou ali sentado , com a mão colada ao rosto do homem . Em
seguida, começou a mexê-la. Um rosto de idade indefinida. Moreno ou
de pele clara. Tocou no nariz estreito . No cabelo liso e hirsuto . Tocou
nos globos oculares dos olhos do homem sob as finas pálpebras fecha
das . Não se ouvia som algum na manhã daquele planalto desértico , ex-
A Travessia 265
pos e o estado das colheitas e diziam os nomes das pessoas que mora
vam nas casas por onde iam passando e confiavam-lhe pormenores das
suas vidas domésticas ou falavam das enfermidades dos velhos. Conta
vam-lhe as mágoas das suas vidas. A morte deste ou daquele amigo , a
inconstância dos amantes. Falavam da infidelidade dos maridos de uma
forma que era para ele uma aflição e fincavam-lhe os dedos no braço e
sibilavam os nomes de prostitutas. Nenhuma o obrigou a jurar segredo ,
nenhuma lhe perguntou o nome. O mundo desfraldou-se diante dele
como nunca antes na sua vida.
No dia vinte e seis de Junho desse ano , um destacamento de huertis
tas passou pela povoação de Rodeo rumo a leste , a Torreón. Chegaram
já alta noite , muitos embriagados e todos a pé , e acamparam na alameda
e queimaram os bancos como lenha e , ao amanhecer cinzento , arreba
nharam todos aqueles que acusaram de ser simpatizantes da causa rebel
de e alinharam-nos diante do muro de lama seca da granja e deram-lhes
cigarros para fumarem e depois abateram-nos enquanto os filhos das
vítimas assistiam e as mulheres e as mães ululavam e arrancavam os
cabelos. Quando o cego chegou , no dia seguinte , caiu , sem dar por isso ,
no meio de um funeral alinhado ao longo da rua cinzenta de lama, e ,
antes que conseguisse avaliar correctamente os acontecimentos que se
sucediam à sua volta, uma jovem pegou-lhe na mão e conduziu-o até ao
cemitério poeirento nos arrabaldes da vila. Ali , entre as humildes cruzes
de madeira e as jarras de faiança e as bandejas baratas de vidro usadas
para o ofertório , pousaram no chão o primeiro de três caixões feitos de
tábuas de madeira para caixotes, defeituosamente enegrecidos com que
rosene e fuligem de chaminés , enquanto o corneteiro que acompanhava
o cortejo tocava uma marcha militar melancólica e um ancião da loca
lidade falava em lugar do padre , pois não havia ali nenhum. A rapariga
apertou-lhe a mão na sua, debruçou-se para ele.
Era mi hermano, sussurrou.
Lo siento, disse o cego.
Ergueram o morto do caixote e baixaram-no para os braços de dois
homens que se tinham deixado escorregar para o fundo da cova. Ali o
estenderam na terra crua e tornaram a ajeitar-lhe sobre o peito os braços
que lhe tinham tombado , soltos , e puseram-lhe um pano sobre o rosto.
Em seguida, estes rudes coveiros improvisados ergueram os braços e
agarraram as mãos dos amigos que os esperavam e os ajudaram a sair
da sepultura, e cada homem verteu uma pazada de terra sobre o morto
vestido com as suas pobres roupas , o caliche cinzento a matraquear em
surdina e as mulheres a soluçar, e depois ergueram aos ombros o caixa-
268 Cormac McCarthy
uma maçã das que comprara e ficaram ali o s dois a comer as maçãs e
depois puseram as trouxas ao ombro e partiram juntos .
A mulher recostou-se . O rapaz pensou que ela ia continuar a história,
mas não . Ficaram sentados em silêncio .
Era la muchacha, disse ele .
Sí.
Olhou para o cego. O cego permanecia sentado , com o rosto crispado
meio oculto pela sombra, à luz do candeeiro de petróleo . Deve ter pres
sentido o rapaz a remirá-lo . Es una carantofía, no? disse .
No, respondeu Billy. Y además, no me dijo que los aspectos de las
cosas son enganosas?
Como o rosto do cego não possuía expressão alguma, não se percebia
quando ele ia falar, ou sequer se o iria fazer. Ao fim de um certo tempo ,
ele levantou uma mão da mesa naquele gesto bizarro de bênção ou de
sespero . Para mí, sí, disse .
B illy olhou para a mulher. Ela continuava sentada como antes , de
mãos entrelaçadas sobre a mesa . Ele perguntou ao cego se tinha ouvido
falar de outros que tivessem sofrido a mesma calamidade que ele às
mãos daquele homem , mas o cego limitou-se a dizer que lhe chegara
aos ouvidos , sim, mas que não tinha visto nem conhecido esses homens .
Acrescentou que o s cegos não procuram a companhia uns dos outros .
Contou como certa vez , na alameda de Chihuahua, ouvira uma bengala
a avançar, dando pancadinhas no chão , e anunciou em voz alta a sua
condição e perguntou se um outro homem semelhante a si ali estaria
naquelas trevas mútuas . As pancadinhas cessaram . Ninguém falou . Em
seguida, as pancadinhas recomeçaram e afastaram-se pelo passeio fora
e desvaneceram-se entre os ruídos do trânsito na rua .
Curvou-se u m pouco para diante . Entienda que y a existe este ogro.
Este chupador de ojos. É l y otros como él. Ellos no han desaparecido
del mundo. Y nunca lo haran.
B illy perguntou-lhe se os homens como aquele que lhe roubara os
olhos eram somente produtos da guerra, mas o cego replicou que , uma
vez que a guerra em si era obra deles , dificilmente se poderia afirmar
uma coisa dessas . Disse que , em sua opinião , ninguém podia falar acer
ca das origens de tais homens nem dos lugares onde eles poderiam
aparecer, mas somente da sua existência. Declarou que aquele que rou
ba os olhos a outrem rouba-lhe todo um mundo , e ele próprio fica
deste modo eternamente oculto . Como é que se pode falar da sua loca
lização?
Y sus suefíos, disse o rapaz . Se han hecho más pálidos?
272 Cormac McCarthy
gia a coisas que , em bom rigor, não possuem uma nem outra. Invocará
o testemunho do próprio mundo para corroborar a verdade daquilo que ,
na realidade , são apenas os seus desejos . Na sua encarnação derradeira,
talvez procure vincular as suas palavras com sangue , pois nessa altura
já terá descoberto que as palavras se desvanecem e perdem o travo , ao
passo que a dor se renova sempre .
Quizás hay poca de justicia en este mundo, continuou o cego . Mas
não pelo motivo que o sepulturero imagina. Antes sucede que a imagem
do mundo é tudo o que os homens conhecem do mundo , e esta imagem
do mundo é perigosa. Os instrumentos que o homem recebeu para o
ajudar a encontrar o seu caminho no mundo têm também o poder de lhe
ocultar o rumo onde reside o seu caminho genuíno . A chave do Céu tem
o poder de abrir os portões do Inferno . O mundo , que ele imagina ser o
cibório de todas as coisas feitas à imagem de Deu s , converter-se-á em
mero pó ante os seus olhos . Para que o mundo sobreviva, é preciso
revigorá-lo todos os dias . A este homem será exigido que recomece ,
quer queira, quer não . Somos dolientes en la oscuridad. Todos nosotros.
Me entiendes? Los que pueden ver, los que no pueden.
O rapaz remirou a máscara à luz do candeeiro . Lo que debemos en
tender, continuou o cego, es que ultimamente todo es polvo. Todo lo que
podemos tocar. Todo lo que podemos ver. En esta tenemos la evidencia
más profunda de la justicia, de la misericordia. En esta vemos la ben
dición más grande de Dias.
A mulher levantou-se . Disse que era tarde . O cego não fez qualquer
gesto para a imitar. Continuou sentado como antes . O rapaz olhou para
ele . Por fim , perguntou-lhe porque é que isto era uma bênção , e o cego
não respondeu e não respondeu e depois , por fim , disse que , como aqui
lo que podemos tocar se converte em pó , não há forma de confundirmos
estas coisas com as genuínas . Na melhor das hipóteses , são meros ves
tígios dos lugares onde esteve o que é genuíno . Talvez nem cheguem a
ser isso . Talvez não passem de obstáculos que temos de superar na su
prema cegueira do mundo .
Na manhã seguinte , quando saiu para selar o cavalo , a mulher estava
a atirar milho de uma bota para as aves no quintal . Melros selvagens
desciam a voar das árvores e corriam para cá e para lá e debicavam
entre as galinhas , mas ela alimentava todos sem discriminação . O rapaz
observou-a. Achava-a muito bela. Aparelhou o cavalo e deixou-o ali
parado e fez as suas despedidas e depois montou e afastou-se . Quando
olhou para trás , ela ergueu a mão . As aves rodeavam-na por completo .
Vaya con Dias! gritou a mulher.
A Travessia 275
Ele guiou o cavalo até à estrada. Não andara muito quando o cão
emergiu do chaparral e se colocou a par do cavalo . Envolvera-se numa
luta e estava coberto de lanhos e ensanguentado e mantinha uma pata
junto ao peito . B illy parou o cavalo e baixou os olhos para ele . O cão
deu mais alguns passos a coxear e parou .
Onde é que ' tá o Boyd? perguntou B illy.
O cão arrebitou as orelhas e olhou em volta.
Meu parvalhão .
O cão olhou na direcção da casa.
Ele ' tava na camioneta. Não ' tá aqui .
Picou o cavalo , e o cão pôs-se a caminhar atrás e romperam para
norte ao longo da estrada.
Antes do meio-dia, chegaram à estrada principal para norte , para Casas
Grandes , e ele ficou parado naquela encruzilhada vazia em pleno deserto
e olhou para norte e para trás de si , para sul , mas nada havia para ver,
exceptuando o céu e a estrada e o deserto . O Sol estava quase a pino . Ele
fez deslizar a caçadeira para fora do estojo poeirento de cabedal e abriu
-lhe a culatra e tirou o cartucho e olhou para o rebordo do fundo para ver
que género de chumbo continha. Era chumbo número cinco , e ele pensou
em meter na caçadeira o cartucho de chumbo grosso , mas depois , no fim
de contas , tomou a enfiar o cartucho de chumbo número cinco na câmara
e fechou a culatra da arma e tomou a metê-la no estojo e seguiu para
norte , pela estrada para San Diego , com o cão a coxear na esteira do ca
valo . Onde é que ' tá o Boyd? perguntou ele . Onde é que ' tá o Boyd?
Nessa noite , dormiu num campo , embrulhado na manta que a mulher
lhe dera. As margens escarpadas de um rio erguiam-se em plena planície ,
a quilómetro e meio de distância, talvez , e era nessa direcção que o ca
valo teria seguido , caso o soltassem . Deitado na terra que ia arrefecendo ,
ele contemplou as estrelas . A silhueta escura do cavalo à sua esquerda,
onde ele o prendera com a estaca. O cavalo a levantar a cabeça acima da
linha do horizonte para escutar entre as constelações e depois a curvá-la
para pastar de novo . Ele examinou aqueles mundos derramados nas suas
pálidas ignições sobre a noite sem nome e tentou falar com Deus acerca
do irmão e, ao fim de um certo tempo , adormeceu . Adormeceu e acordou
de um sonho perturbador e não foi capaz de dormir novamente .
No sonho , caminhava a custo através de um espesso manto de neve ,
ao longo de uma crista rochosa, ao encontro de uma casa sombria, e os
lobos seguiram-no até à vedação . Faziam correr as bocas esguias con
tra os flancos uns dos outros e fluíam-lhe em volta dos joelhos e rasga
vam sulcos na neve com os focinhos e alçavam as cabeças ao alto , e ,
276 Cormac McCarthy
e que ele permanecera vivo até aos limites de Mata Ortíz , mas , para
além disso , quem saberia dizer?
Ele agradeceu-lhe e deu meia-volta para partir.
Es su perro? perguntou ela.
Ele respondeu que o cão era do irmão . Ela disse que bem lhe parecia ,
porque o cão tinha um a r preocupado . Olhou para o exterior, para a rua ,
onde o cavalo s e encontrava parado .
Es su cabal/o, disse .
Sí.
Ela fez que sim com a cabeça. Bueno, disse . Monte, caballero. Mon
te y vaya con Dios.
Ele agradeceu-lhe e caminhou até junto do cavalo e desamarrou-o e
montou . Voltou-se e tocou na aba do chapéu , de olhos fitos na velha ali
parada à porta .
Momento! bradou ela.
Ele esperou . Passados instantes , uma rapariga surgiu e esgueirou-se
para contornar a mulher e aproximou-se do estribo do cavalo e ergueu
os olhos para ele . Era muito bonita e muito tímida. Ergueu uma mão ,
com o punho fechado .
Qué tiene? indagou ele .
Tómelo.
Ele estendeu a mão aberta, e ela deixou-lhe cair na palma um peque
no coração de prata. Ele voltou-o para a luz e remirou-o . Perguntou-lhe
o que era.
Un milagro, disse ela.
Milagro?
Sí. Para el güero. El güero herido .
Ele voltou o coração na mão e baixou os olhos para ela.
No era herido en el corazón, disse . Mas ela limitou-se a desviar o
rosto e não respondeu , e ele agradeceu-lhe e deixou cair o coração den
tro do bolso da camisa. Gracias, disse . Muchas gracias.
Ela recuou , afastando-se do cavalo . Que joven tan valiente, disse , e
ele concordou que , na verdade , o irmão era corajoso e tornou a tocar no
chapéu e ergueu uma mão para a velha ali parada na soleira, ainda a
agarrar o enxota-moscas , e picou o cavalo , metendo pela única rua de
lama de Mata Ortíz , rompendo para norte , em direcção a San Diego .
Estava escuro e o céu sem estrelas devido às nuvens de chuva quando
ele atravessou a ponte e cavalgou colina acima, ao encontro dos domicílios .
Os mesmos cães irromperam a ulular e rodearam o cavalo, e ele deixou
para trás as portas mal iluminadas e os vestígios das fogueiras nocturnas
A Travessia 279
as suas oferendas , qual ícone num dia de festa religiosa. O médico des
ligou o motor e os faróis e estendeu a mão para pegar na maleta, mas
Billy já lhe pegara para a transportar. Ele assentiu com a cabeça e saiu
do carro e ajeitou o chapéu e entrou na casa, com B illy atrás .
A mulher Mufíoz já emergira da outra divisão , e deteve-se à luz frágil
da vela votiva, tendo no corpo o único vestido que B illy alguma vez lhe
vira, e desejou ao médico as boas-noites . O médico entregou-lhe o cha
péu e depois desabotoou o casaco e deixou-o escorregar dos ombros e
ergueu-o e fê-lo rodar e retirou do bolso interior os óculos no respectivo
estoj o . Em seguida, estendeu o casaco à mulher e tirou os botões de
punho , o esquerdo e depois o direito , e meteu-os no bolso das calças e
arregaçou as mangas engomadas da camisa branca, duas voltas cada, e
sentou-se no catre baixo e tirou os óculos do estojo e pô-los no rosto e
olhou para Boyd . Pousou-lhe uma mão na testa. Cómo estás? pergun
tou . Cómo te sientes?
Nunca mejor, arquejou Boyd .
O médico sorriu . Voltou-se para a mulher. Hiérvame algo de agua,
pediu . Em seguida, tirou do bolso uma pequena lanterna niquelada e
debruçou-se sobre Boyd . Boyd fechou os olhos, mas o médico puxou
para baixo a pálpebra inferior de cada olho , primeiro um, depois o ou
tro , e examinou-os . Agitou a luz vagarosamente para cá e para lá diante
das pupilas e examinou-as . Boyd tentou desviar o rosto , mas o médico
colocara-lhe a mão junto da face . Véame, ordenou .
Puxou a manta para baixo . Uma qualquer criaturinha fugiu sobre a
musselina. Boyd vestia uma das blusas brancas de algodão que os traba
lhadores dos campos usavam , sem gola nem botões . O médico arrega
çou-a e puxou o cotovelo direito de Boyd através da manga e passou-lhe
a blusa sobre a cabeça e, em seguida, com muito cuidado , puxou a peça
de roupa ao longo do braço esquerdo de Boyd e entregou-a a Billy sem
sequer olhar para ele . Boyd jazia envolto em tiras de lençol de algodão ,
e o ferimento sangrara através das ligaduras e o sangue secara e enegre
cera. O médico enfiou a mão espalmada sob as ligaduras e pousou a
mão sobre o peito de Boyd . Respire, ordenou . Respire profundo. Boyd
respirou , mas a sua respiração era ofegante e penosa. O médico fez
deslizar a mão para o lado esquerdo do peito dele , perto da mancha es
cura nas ligaduras , e disse-lhe para respirar de novo . Curvou-se e abriu
os fechos da maleta e tirou de lá o estetoscópio e pendurou-o ao pesco
ço e tirou uma tesoura de pontas rombas e cortou as ligaduras sujas e
levantou as pontas cortadas , todas hirtas do sangue . Colocou os dedos
sobre o peito nu de Boyd e percutiu o dedo médio esquerdo com o di-
284 Cormac McCarthy
Boyd bebeu .
Não bebas demasiado depressa, instou B illy. Inclinou o copo . Pare
cias um destes campónios com aquela farpela.
Boyd sorveu um fundo gole através da palhinha e depois desviou o
rosto, a tossir.
Não bebas demasiado depressa.
Ali estendido , ele tentava recuperar o fôlego . Tornou a beber. B illy
afastou o copo e esperou e depois tornou a estendê-lo . O tubo de vidro
matraqueou e fez ruídos de sucção . Ele inclinou o copo . Quando Boyd
bebera toda a água, ficou deitado a recuperar o fôlego e ergueu os olhos
para B illy. Há coisas piores prà gente parecer, disse .
B illy pousou o copo na cadeira . Não velei muito bem por ti , pois não?
perguntou .
B oyd não respondeu .
O médico diz que tu vais ficar bom .
B oyd respirava, ofegante , com a cabeça atirada para trás . Fitava as
vigas escuras do tecto , lá no alto .
Diz que tu vais ficar como novo .
Não o ouvi dizer nada disso , retorquiu Boyd .
Quando o médico regressou , B illy pegou no copo e pôs-se de pé e
ficou ali parado a segurá-lo . O médico vinha a secar as mãos . Él tenía
sed, verdad?
Sim, senhor, confirmou B illy.
A mulher transpôs a porta, trazendo um balde de água fumegante .
Billy acercou-se dela e pegou no balde pela asa, e o médico fez-lhe um
gesto , indicando-lhe que o pusesse no lar. Dobrou a toalha e pousou-a
junto à maleta e pousou-lhe o sabão em cima e sentou-se . Bueno, disse .
Bueno. Voltou-se para B illy. Ayúdame, pediu .
Juntos , voltaram Boyd sobre o flanco . Boyd arquejava e esbracejava
no ar em volta com uma mão enclavinhada. Agarrou o ombro de B illy.
Calma, parceiro , disse Billy. Eu sei que dói .
Não sabes nada, rouquejou Boyd .
Está bien, disse o médico . Está bien así.
Delicadamente , descolou as ligaduras manchadas e enegrecidas do
peito de Boyd e soltou-as e entregou-as à mulher. Deixou no seu lugar
as cataplasmas negras e repletas de ervas , a do peito e a maior, atrás do
ombro . Debruçou-se sobre o rapaz e comprimiu as cataplasmas suave
mente , cada qual por sua vez , para ver se algum fluido lhes escorria de
baixo , e cheirou o ar, aproximando o nariz com gestos hesitantes , em
busca de algum indício de apodrecimento . Bueno, disse . Bueno. Tocou
A Traves sia 287
* * *
A Travessia 293
Ándale , disse .
O mozo enrolou a corda e pendurou-a no chifre da sela do burro e
contornou o cavalo e deu-lhe palmadinhas e pegou nas rédeas e meteu
o pé no estribo e alçou-se para a sela. Voltou o cavalo e cavalgou pelo
paseo , entre as casas todas iguais , e lançou o cavalo a trote e seguiu até
ao alto da colina, deixando para trás a hacienda , e ali deu meia-volta ,
pois não queria levar o cavalo para fora da vista de Billy. Fez recuar o
cavalo e obrigou-o a voltar-se e descreveu vários círculos , desenhando
oitos , e depois lançou o cavalo a galope pela encosta abaixo e parou-o
bruscamente diante da porta, com os cascos a deslizar no chão , e des
montou , tudo num só movimento .
Le gusta ? perguntou Billy.
Claro que sí, respondeu o mozo . Debruçou-se e pousou a mão espal
mada sobre o pescoço do cavalo e depois acenou com a cabeça e rodou
sobre os calcanhares e subiu para o dorso do burro e trotou pelo paseo
fora sem olhar para trás .
que comprar comida, caso tivesse visto . Ela seguia em ritmo vagaroso ,
uma dúzia de passadas atrás dele , e ele voltou-se para a olhar uma ou
duas vezes , mas ela não sorriu nem deu qualquer indício de se ter aper
cebido do gesto , e , ao fim de um certo tempo , ele deixou de olhar. S abia
que ela não abandonara a casa sem provisões , mas ela não se referiu ao
assunto e ele também não . Um pouco a norte da povoação , ela falou
atrás dele , e ele parou e voltou o cavalo na estrada.
Tienes hambre ? perguntou ela .
Ele empurrou o chapéu para trás com o polegar e olhou para ela. ' Tou
capaz de comer o carburador e as velas dum touro bravo , disse .
Mande ?
Comeram numa mata de acácias junto à berma da estrada. Ela esten
deu o serape e dispôs sobre o tecido tortillas num pano e tamales nos
seus invólucros estriadas de camisas de milho e um pequeno frasco de
jrijoles cuja tampa desatarraxou e onde enfiou uma colher de pau . Abriu
um pano contendo quatro empanadas . Duas maçarocas de milho frias ,
polvilhadas com chile vermelho em pó . Uma quarta parte de uma pe
quena rodela de queijo de cabra.
Sentou-se com as pernas enfiadas debaixo do corpo , de cabeça volta
da para que a aba do chapéu lhe cobrisse o rosto com a sombra. Come
ram . Quando ele lhe perguntou se ela não queria saber o que sucedera a
Boyd , ela respondeu que já sabia. Ele fitou-a. Ela parecia bem frágil , ali
envolta nas roupas . No pulso esquerdo via-se-lhe um hematoma azul .
Exceptuando isso , a pele dela era tão perfeita que parecia estranhamen
te artificial . Como se a tivessem pintado .
Tienes medo de los hombres , disse ele .
Cuáles hombres ?
Todos los hombres .
Ela voltou-se e olhou para ele . Baixou os olhos . Ele pensou que ela
estava a reflectir acerca da pergunta, mas ela limitou-se a enxotar um
escarabajo do serape e estendeu o braço e pegou numa empanada e
mordeu-a delicadamente .
Y quizás tienes razón , acrescentou ele .
Quizás .
Ela olhou para o ponto onde os cavalos estavam parados na erva da
berma, com as caudas a espanejar. Pensou que ela não ia dizer mais
nada, mas ela começou a falar acerca da farru1ia. Contou que a avó fi
cara viúva por causa da revolução e casara de novo e enviuvara nova
mente em menos de um ano e casara uma terceira vez e enviuvara pela
terceira vez e não mais se tornara a casar, embora tivesse tido muitas
A Travessia 299
oportunidades para o fazer, já que era muito bela e ainda nem contava
vinte anos quando o derradeiro marido caíra, a fazer fé no que o tio
dele contara, em Torreón , com uma mão sobre o peito no gesto de quem
jura fidelidade , a apertar a bala de espingarda dentro de si como uma
dádiva, com a espada e a pistola que trazia a tombarem atrás dele , inú
teis , entre os palmitos , na areia , o cavalo sem cavaleiro a deambular no
turbilhão de balas e obuses e gritos de homens , a afastar-se a trote com
os estribos a adejarem para logo arrepiar caminho , a vaguear em silhue
ta com outros da sua raça entre os cadáveres dos mortos naquela planu
ra enlouquecida enquanto a treva descia em volta deles , cercando-os por
completo , e pequenos pássaros afugentados dos seus abrigos nos espi
nheiros regressaram e esvoaçaram por ali a pipilar, e a Lua ergueu-se no
céu , cega e branca , a leste , e os pequenos coiotes surgiram a trote para
devorar os mortos , arrancando-lhes a carne das roupas .
Disse que a avó era céptica em relação a muitas coisas neste mundo ,
acima de tudo em relação aos homens . Dizia que em todos os ofícios
excepto na guerra os homens de talento e vigor prosperam . Na guerra ,
sucumbem. A avó falava-lhe muitas vezes dos homens e falava com
grande fervor e dizia que os homens temerários eram uma grande tenta
ção para as mulheres e que isto era somente uma desgraça como outra
qualquer e pouco havia a fazer para lhe dar remédio . Dizia que ser mu
lher era viver uma vida de dificuldades e desgostos e que quem negava
isto não queria, pura e simplesmente , encarar a realidade . E dizia que ,
uma vez que assim era e que não havia forma de o alterar, era melhor
fazer o que o coração nos mandava, na alegria e na desdita, do que
limitarmo-nos a buscar conforto , já que nada nos podia confortar.
Buscá-lo era somente acolher a desdita de braços abertos e virar a cara
a tudo o resto . Dizia que todas as mulheres sabiam estas coisas , embora
raramente falassem acerca delas . Por fim, dizia que , se as mulheres
eram atraídas pelos homens impetuosos , era apenas porque lá no íntimo
do coração sabiam que um homem que não fosse capaz de matar por
elas não prestava para nada.
Ela acabara de comer. Ficou sentada, com as mãos cruzadas sobre o
regaço , e as frases que acabara de proferir contrastavam com a sua com
postura . A estrada encontrava-se vazia, as cercanias silenciosas . Ele
perguntou-lhe se ela achava Boyd capaz de matar um homem . Ela
voltou-se e olhou-o atentamente . Como se ele fosse alguém com quem
era preciso medir muito bem as palavras , de modo a fornecer a respec
tiva explicação . Por fim , disse que a notícia andava de boca em boca por
toda a região . Que toda a gente sabia que o güerito matara o gerente de
300 Cormac McCarthy
ções , e ela assentiu com a cabeça sem tirar os olhos do fogo e disse que
já tinha percebido .
Pegou na manta e desceu para junto do lago . Ele viu-a afastar-se e
depois descalçou as botas com gestos bruscos e embrulhou o serape em
volta de si e mergulhou num sono agitado . Acordou em plena noite ou
de madrugada, sem saber que horas eram, e voltou-se e remirou o lume
para ver quanto tempo dormira , mas a fogueira estava praticamente fria
no chão . Olhou para leste , para ver se algum vestígio da alvorada tingia
de cinzento a linha do horizonte , mas viam-se apenas as trevas e as es
trelas . Remexeu nas cinzas com um pau . As poucas brasas vermelhas
que emergiram no coração negro da fogueira pareciam secretas e impro
váveis . Como os olhos de criaturas estremunhadas que seria melhor não
espicaçar. Pôs-se de pé e caminhou pelo declive abaixo até ao lago com
o serape em volta dos ombros e olhou para as estrelas no lago . O vento
esmorecera, e a água jazia, negra e parada. Jazia como um buraco na
quele mundo desértico e alpestre , um buraco em cujo fundo as estrelas
se estavam a afogar. Qualquer coisa o acordara, e ele pensou que talvez
tivesse ouvido cavaleiros na estrada e que eles lhe tivessem visto a fo
gueira, mas não havia fogueira alguma que se pudesse ver, e depois
pensou que talvez a rapariga se tivesse levantado e aproximado do lume
e tivesse parado junto dele , ali estendido a dormir, e lembrou-se de ter
sentido o sabor da chuva no rosto , mas não chovia nem antes chovera ,
e foi então que ele se lembrou do seu sonho . No sonho , ele estava nou
tra terra que não era aquela, e a rapariga ajoelhada a seu lado não era
aquela rapariga. Ajoelhavam-se à chuva numa cidade mergulhada na
treva, e ele segurava nos braços o irmão moribundo , mas não lhe con
seguia ver o rosto nem lhe conseguia pronunciar o nome . Algures por
entre as ruas negras e gotejantes , um cão uivava. Era tudo . Olhou ao
longe , para o lago , onde não havia vento , apenas a quietude sombria e
as estrelas , e , todavia, sentiu um vento frio a passar. Agachou-se na
junça, à beira do lago , e deu-se conta de que temia o mundo futuro , pois
nele estavam já escritas certezas que nenhum homem poderia desejar.
Viu passar, como numa tapeçaria vagarosa, imagens a desenrolar-se de
coisas vistas e não vistas . Viu a loba morta na montanha e o sangue do
falcão na pedra e viu um ataúde de vidro com colgaduras de pano negro
a passar numa rua, transportado sobre varas por mozos . Viu o arco que
ele deitara fora a boiar nas águas frias do B avispe como uma serpente
morta e o sacristão solitário nas ruínas da povoação por onde o terremo
to passara e o eremita no transepto desmoronado da igreja de Caborca.
Viu a água da chuva a escorrer de uma lâmpada eléctrica atarraxada à
A Travessia 303
Cómo no ?
O arriero encolheu os ombros . Executou um gesto cortante com o
pomo da mão através do ar. Se fué, disse .
Con el dinero .
Claro .
Explicou que os tinham deixado sem recursos nem quaisquer mdos
para viajar. No momento em que ele próprio partira, a duefia vendera
todas as mulas menos uma, e as quezílias eram constantes . Quando
B illy perguntou o que é que ela ia fazer, o outro tornou a encolher os
ombros. Olhou para longe , para o fundo da rua . Olhou para B illy.
Perguntou-lhe se lhe podia dar uns poucos de peso s , para poder comprar
qualquer coisa que se comesse .
B illy respondeu que não tinha dinheiro , mas a rapariga j á se levanta
ra e foi até junto do cavalo e, ao regressar, deu ao arriero algumas
moedas , e ele agradeceu-lhe um certo número de vezes e curvou-se e
tocou no chapéu e guardou as moedas no bolso e desejou-lhes boa via
gem e virou costas e afastou-se rua abaixo e desapareceu na única can
tina daquele pueblo de montanha.
Pobrecito , comentou a rapariga.
B illy escarrou para cima da erva seca. Declarou que o arriero estava
provavelmente a mentir e que , além do mai s , não passava de um bêbedo
e ela não lhe devia ter dado dinheiro . Em seguida, levantou-se e dirigiu
-se até onde os cavalos estavam parados e afivelou o fatigo e pegou nas
rédeas e montou e rompeu através da aldeia em direcção à linha do
caminho-de-ferro e à estrada para norte , sem sequer olhar por cima do
ombro para se certificar de que ela o seguia.
Durante os três dias de jornada que levaram a chegar a San Diego , ela
quase não pronunciou uma palavra. Na última noite , ela queria continu
ar a cavalgar no escuro até ao ejido , mas ele recusou . Acamparam junto
ao rio , alguns quilómetros a sul de Mata Ortíz , e ele fez uma fogueira
com ramos de árvore trazidos pela água , numa língua de cascalho , no
leito do rio , e ela cozinhou o resto do feijão seco e das tortillas , os úni
cos víveres de que dispunham desde que haviam saído de Las Varas .
Comeram frente a frente , em lados opostos do lume , enquanto a foguei
ra ardia até se reduzir a um frágil cesto de brasas e a Lua se erguia a
leste e lá no alto , muito estridentes e muito ténues , eles ouviram os
chamamentos de aves a moverem-se para sul e viram-nas avançar em
criptogramas esguios através da orla ocidental sombriamente abrasada
e mergulhar na penumbra e nas trevas mais além .
Las grullas llegan , disse ela.
A Travessia 305
nara e calcavam-na com os pés para dentro dos compridos sacos de al
godão .
As noites eram frescas , e ele sentava-se junto ao lume e bebia café
com os ejiditarios enquanto os cães do recinto deambulavam de foguei
ra em fogueira, em busca de restos de comida. Nessa altura já B oyd saía
a cavalgar à tardinha, escarranchado na sela com gestos hirtos e seguin
do a passo , com a rapariga a montar Nifío na sua esteira, muito próxima.
Ele perdera o chapéu na refrega junto ao rio e usava um velho chapéu
de palha que lhe tinham arranjado e uma camisa feita de tecido às riscas
para forrar enxergões . Depois de eles regressarem , B illy caminhava até
ao ponto onde os cavalos estavam peados , abaixo dos domicilias , e ca
valgava Nifío em pêlo até ao rio e metia o cavalo pelos baixios que a
escuridão ia cobrindo , no lugar onde vira a duefía nua a tomar banho , e
o cavalo bebia e erguia o focinho a escorrer água e ficavam os dois à
escuta do rio a passar e do som dos patos algures na água e , por vezes ,
do ranger ténue e agudo do voo dos grous que ainda passavam para sul ,
quilómetro e meio acima do rio . Cavalgou pela margem oposta ao
lusco-fusco e pôde ver, na vasa ribeirinha, entre os choupos , as pegadas
dos cavalos nos pontos onde Boyd passara e seguiu os rastos para ver
onde é que eles tinham ido e tentou adivinhar os pensamentos do cava
leiro que deixara aqueles rasto s . Quando regressou a pé ao recinto , j á
era tarde , e cruzou a porta baixa e sentou-se n o catre onde o irmão j azia
a dormir.
Boyd , chamou .
O irmão acordou e voltou-se e ficou ali deitado à luz pálida da vela e
ergueu os olhos para ele . O quarto estava quente do calor do dia a coar
-se das paredes de lama seca, e Boyd estava em tronco nu . Tirara as li
gaduras do peito e tinha a pele mais branca do que o irmão alguma vez
se recordava e estava tão magro , com a fiada de costelas a destacar-se ,
crua, contra a palidez da pele , e , quando ele se voltou à luz avermelha
da, B illy pôde ver-lhe o buraco no peito durante um breve instante e
desviou os olhos como um homem que , inadvertidamente , toma conhe
cimento de alguma coisa secreta de que não tinha o mais pequeno direi
to de se inteirar, para a qual não estava, nem de perto nem de longe ,
preparado . Boyd puxou para cima a coberta de musselina e recostou-se
e olhou para ele . O longo cabelo claro que ele já não cortava há muito
tempo derramado em volta dele e o rosto tão magro . O que é? pergun
tou .
Fala comigo .
Deita-te .
A Travessia 307
onde o seu regresso foi notado pelos poblanos , de tal forma que o seu
próprio jornadear começou a assumir a forma de uma lenda. Fazia frio
de noite nas planícies montesinhas naqueles primeiros dias de Dezem
bro , e ele tinha poucos agasalhos com que se aquecer. Quando tornou a
entrar em Casas Grandes , já não comia há dois dias e passava da meia
-noite e caía uma chuva fria .
B ateu durante muito tempo aos portões d o zaguán . Nas traseiras d a
casa, um cão ladrou . Por fim , uma luz acendeu-se .
Quando o mozo abriu o portão e olhou para o exterior e o viu ali pa
rado à chuva, a segurar o cavalo , não pareceu surpreso . Perguntou pelo
irmão dele , e B illy disse que o irmão recuperara dos seus ferimentos
mas que desaparecera, e pediu desculpa pela hora tardia mas queria
saber se poderia falar com o senhor doutor. O mozo respondeu que a
hora pouco importava , já que o senhor doutor tinha morrido .
Ele não perguntou ao mozo quando é que o médico morrera nem qual
a causa da morte . Parado , de cabeça descoberta, segurava o chapéu com
ambas as mãos diante de si . Lo siento , disse .
O mozo fez que sim com a cabeça. Ficaram ali parados em silêncio e
então o rapaz pôs o chapéu e voltou-se e meteu um pé no estribo e içou
-se para a sela e escarranchou-se no dorso do cavalo escuro e molhado
e baixou os olhos para o mozo . Disse que o médico fora um bom homem
e olhou para o fundo da rua , para as luzes da cidade , e tornou a olhar
para o mozo .
Nadie sabe lo que le espera en este mundo , comentou o mozo .
De veras , concordou o rapaz .
Acenou com a cabeça e tocou no chapéu e deu meia-volta e tornou a
afastar-se pela rua sombria abaixo .
IV
Bom, rapaz , quando chegares a Fort Bliss logo lhes dizes que é isso
que queres fazer.
Sim, senhor. Preciso de levar a minha sela comigo?
Não precisas de levar nada de nada. Eles vão cuidar de ti como a tua
mãezinha.
Sim, senhor.
Assentou os nomes deles e as datas de nascimento e a filiação e as
moradas , um por um , e assinou quatro vales de refeição e entregou-lhos
e explicou-lhes como ir ter ao consultório onde deveriam fazer os exa
mes médicos e deu-lhes os impressos necessários .
' Tou a contar que vocês ' tejam despachados e de regresso logo a se
guir ao almoço , disse .
Então e eu ? perguntou B illy.
Tu esperas aqui . Os outros podem ir andando . Vemo-nos esta tarde ,
aqui mesmo .
Quando os outros saíram , o sargento estendeu a B illy os impressos e
o vale de refeição .
Olha pro rodapé dessa segunda folha, disse . Isso é um impresso de
autorização parental . Se te queres alistar no exército deste teu amigo ,
acho melhor trazeres-me esse papel com a assinatura da tua mãe . Se ela
tiver de descer lá do Céu pra assinar, eu cá por mim não me ralo nada.
Percebes o que te ' tou aqui a dizer?
Sim, senhor. Se bem me parece , quer que eu assine o nome da minha
falecida mãe nessa folha de papel .
Eu não disse isso . Ouviste-me a dizer isso?
Não , senhor.
Vá, toca a andar. Vemo-nos outra vez depois do almoço .
Sim, senhor.
Deu meia-volta e saiu . Havia gente parada à porta atrás dele , e
desviaram-se para o deixar passar.
Parham , chamou o sargento .
Ele voltou-se . Sim , senhor, disse .
Volta cá esta tarde , ouviste?
Sim, senhor.
Não tens mais nenhum lugar aonde ir.
Ele atravessou a rua e desamarrou o cavalo e montou e cavalgou
pela Silver Street acima e depois pela West Spruce , a segurar os papéis
na mão . Todas as ruas para este e para oeste tinham nomes de árvores ,
as para norte e para sul nomes de minerais . Amarrou o cavalo diante do
Manhattan Cafe , na diagonal em relação à estação das camionetas . Ao
A Travessia 313
Eu não me esqueço .
Ela afastou-se para regressar para junto do balcão , e ele curvou-se
sobre o impresso e escreveu sobre a linha Louisa May Parham . A mãe
chamava-se Carolyn.
Quando saiu , os outros três rapazes vinham a caminhar pelo passeio
em direcção ao café . Conversavam uns com os outros como se fossem
amigos de longa data . Quando o viram , pararam de conversar, e ele fa
lou com eles e perguntou-lhes como estavam e eles responderam que
estava tudo bem e entraram no café .
O médico chamava-se M oir, e o consultório era afastado dali , n a West
Pine . Quando lá chegou , havia meia dúzia de pessoas à espera, a maio
ria homens ainda novos e rapazes sentados com os impressos de recru
tamento na mão . Ele deu o nome à enfermeira atrás da secretária e
sentou-se numa cadeira e esperou juntamente com os outros .
Quando a enfermeira finalmente o chamou pelo nome , ele tinha ador
mecido e acordou com um sobressalto e olhou em volta , sem saber onde
estava.
Parham , repetiu ela.
Ele pôs-se de pé . Sou eu , disse .
A enfermeira estendeu-lhe um impresso , e ele ficou de pé no corredor
enquanto ela lhe cobria um olho com um cartão e o mandava ler o painel
na parede . Ele leu tudo até à última letra, e ela pôs à prova o outro olho .
O meu amigo tem bons olhos , comentou .
Sim, senhora, disse ele . Sempre tive .
Poi s , acredito , comentou ela. Não é costume as pessoas começarem
com olhos ruins e depois a vista ir melhorando .
Quando ele entrou no consultório , o médico mandou-o sentar numa
cadeira e examinou-lhe os olhos com uma lanterna eléctrica e meteu-lhe
um instrumento frio no ouvido e olhou lá para dentro . Mandou-o desa
botoar a camisa.
Vieste até cá a cavalo , disse .
Sim, senhor.
E de onde é que vieste .
Do México .
Compreendo . Tens algum historial de doenças na família?
Não , senhor. ' Tão todos mortos .
Compreendo , disse o médico .
Encostou o cone frio do estetoscópio ao peito do rapaz e pôs-se à
escuta. Percutiu-lhe o peito com as pontas dos dedos . Tornou a encostar
-lhe o estetoscópio ao peito e escutou de olhos fechados. Endireitou-se
A Travessia 315
Sim, senhor.
Quem é que te disse que ias morrer?
Não sei . Também nunca me disseram que não ia.
Bom, comentou o médico . Nunca te poderiam garantir uma coisa des-
sas , mesmo que tivesses um coração rijo como o de um cavalo . Pois não?
Não , senhor. Parece-me que não .
Vai-te lá embora.
Como?
Vai-te lá embora .
Quando o autocarro parou no parque de estacionamento , nas traseiras
da estação de camionetas de Deming , eram três em ponto da madruga
da. Ele caminhou até à casa de Chandler e entrou na casa dos arreios e
pegou na sua sela e dirigiu-se para a baia e conduziu Nifio para a coxia
central e atirou-lhe o cobrejão para cima do dorso . Estava muito frio . O
estábulo era feito de tábuas de carvalho pregadas , e ele via o bafo do
cavalo a deslizar sobre as ripas , iluminado pela única lâmpada amarela
no exterior. O palafreneiro Ruiz surgiu e parou à porta, com o cobertor
a envolver-lhe os ombros . Ficou a ver enquanto Billy selava o cavalo .
Perguntou-lhe se conseguira alistar-se no exército .
No , respondeu Billy.
Lo siento .
Yo también .
Adónde va ?
No sé.
Regresa a Mexico ?
No .
Ruiz fez que sim com a cabeça. Buen viaje , disse .
Gracias .
Conduziu o cavalo à brida para o exterior, ao longo da coxia central
do estábulo e através da porta, e montou e afastou-se .
Cavalgou através da povoação e meteu pela estrada velha para sul ,
para Hermanas e Hachita. O cavalo tinha ferraduras novas e respirava
saúde , graças aos cereais que lhe tinham dado a comer, e ele cavalgou
até ao nascer do Sol e cavalgou o dia inteiro e cavalgou até o Sol se pôr
e continuou a cavalgar pela noite dentro . Dormiu num planalto , embru
lhado na manta, e levantou-se antes da alvorada, percorrido por cala
frios , e seguiu viagem . Abandonou a estrada logo a oeste de Hachita e
rompeu pelas faldas das montanhas Little Hatchet e deparou com a li
nha férrea vinda da fundição da Phelps Dodge , a sul , e atravessou os
carris e alcançou o lago salgado pouco profundo ao pôr do Sol .
318 Cormac McCarthy
Havia água acumulada nas planícies até onde a vista dele alcançava,
e o crepúsculo na água convertera-a num lago de sangue . Ele tentou
picar o cavalo para diante , mas o cavalo não conseguia avistar a mar
gem oposta do lago e fincou as patas no chão e recusou-se a avançar.
Ele deu meia-volta e meteu para sul ao longo das planuras . A montanha
Gillespie jazia coberta de neve e , mais além, os picos das Animas
erguiam-se , banhados pelos derradeiros raios de sol daquele dia, com a
neve muito vermelha nos rincões . E , lá muito a sul , as cordilleras páli
das e antigas do México a confinar o mundo visível . Ele chegou perto
dos vestígios de uma velha cerca e desmontou e retorceu os grampos
para os soltar de algumas das estacas esguias e ateou uma fogueira e
sentou-se com as botas cruzadas diante de s i , a fitá-la. O cavalo estava
parado nas trevas , na orla do lume , a remirar desoladamente o terreno
salgado e árido . A culpa é tua , disse-lhe o rapaz . Não tenho pena nenhu
ma de ti .
Na manhã seguinte atravessaram o lago , liso e pouco profundo , e
antes do meio-dia chegaram à velha estrada de Playas e seguiram-na
para oeste até ao seio das montanhas . Havia neve na garganta e nem um
rasto a sulcá-la. Desceram até ao lindo vale das Animas e meteram pela
estrada que descia para sul , vinda de Animas , e chegaram ao rancho da
família Sanders cerca de duas horas depois do anoitecer.
Ele chamou da cancela, e a rapariga surgiu no alpendre .
É o B illy Parham ! gritou ele .
Quem?
O B ill y Parham .
Anda daí, B illy Parham ! bradou ela.
Quando ele entrou na sala de estar, Mr S anders pôs-se de pé . Estava
mais velho , mais pequeno , mais frágil . Entra aqui em casa, disse .
' Tou suj íssimo pra entrar.
Vá, anda, entra lá. Julgámos que tinhas morrido .
Não , senhor. Ainda não morri , por enquanto .
O velho apertou-lhe a mão e segurou-lha. Olhava por cima do ombro
dele , para a porta. Onde é que ' tá o Boyd? perguntou .
Comeram na sala de jantar. A rapariga serviu-os e depoi s sentou-se .
Comeram rosbife com batatas e feijão , e a rapariga passou-lhe um prato
com pão coberto por um pano de linho , e ele tirou uma fatia de broa de
milho e barrou-a com manteiga. Isto ' tá óptimo , caramba, comentou .
Ela é uma bela cozinheira, disse o velho . Só espero que não decida
casar-se e deixar-me aqui sozinho . Se eu tivesse de cozinhar a minha
comida, até os gatos mudavam de casa.
A Travessia 319
ser e uma manta acolchoada e uma velha espingarda Stevens tiro a tiro
de calibre 3 2 . Cavalgou para sul pelos planaltos a oeste de Socorro e
cavalgou através de Magdalena e cruzou as planícies de Saint Augustine .
Quando entrou em Silver City, estava a nevar, e hospedou-se no Hotel
Palace e sentou-se no quarto , a ver a neve cair na rua. Não se via nin
guém. Saiu ao fim de um certo tempo e desceu a Bullard Street até à
loja de rações para animais , mas estava fechada. Encontrou uma merce
aria e comprou seis embalagens de cereais para o pequeno-almoço e
regressou e deu os cereais aos cavalos e pôs os animais no quintal , nas
traseiras do hotel , e comeu o jantar na sala de refeições do hotel e subiu
para o quarto e meteu-se na cama . Quando desceu , na manhã seguinte ,
foi o único a tomar o pequeno-almoço e , quando saiu para tentar com
prar roupas , todas as lojas estavam fechadas . O céu estava cinzento e
fazia frio nas ruas e um vento ruim soprava do norte e não se via nin
guém . Ele tentou abrir a porta do bazar, por ter visto uma luz acesa lá
dentro , mas o bazar também estava fechado . Quando regressou ao hotel ,
perguntou ao recepcionista se era domingo , e o recepcionista respondeu
que era sexta-feira .
Ele olhou para a rua pela vidraça. Não há nenhuma loja aberta, disse .
É dia de Natal , disse o recepcionista . Não há lojas abertas no dia de
Natal .
Ele vagueou até ao enclave no Norte do Texas e trabalhou durante a
maior parte do ano seguinte para o rancho Matadors e trabalhou para o
T Diamond . Vagueou para sul e trabalhou por curtos períodos aqui e
além, por vezes não mais de uma semana . Na Primavera do terceiro ano
da guerra já quase não havia uma casa rural em toda aquela região que
não tivesse uma estrela dourada na janela . Ele trabalhou até Março num
pequeno rancho nos arrabaldes de Magdalena, no Novo México , até que
um dia recebeu o salário e selou o cavalo e amarrou o saco-cama ao
dorso do cavalo de carga e tornou a viajar para sul . Atravessou a última
estrada de asfalto mesmo a leste de Steins e, dois dias depois , cavalgou
até à cancela do SK B ar. Era um dia fresco de Primavera, e o velho
estava sentado no alpendre , na sua cadeira de baloiço , com o chapéu na
cabeça e uma Bíblia no regaço . Curvara-se para diante , tentando ver
quem seria. Como se o meio metro adicional de proximidade lhe permi
tisse focar a imagem do cavaleiro . Parecia mais velho e mais frágil ,
muito debilitado na sua aparência nos dois anos decorridos desde que
ele o vira pela última vez . B illy chamou-o pelo nome e o velho disse-lhe
que desmontasse , e ele obedeceu . Quando chegou à base dos degrau s ,
parou com uma mão n o balaústre de tinta estalada e ergueu o s olhos
A Travessia 325
para o velho . Este estava sentado com a Bíblia fechada sobre um dedo ,
para marcar a página. É s tu , Parham? perguntou .
Sim , senhor. Sou o Billy.
Subiu os degraus e tirou o chapéu e apertou a mão ao velho . Os olhos
do velho tinham desbotado e exibiam agora uma tonalidade mais clara
de azul . Ele segurou a mão de Billy durante muito tempo . Deus te aben
çoe , disse . Tenho pensado imenso em ti . Senta-te aqui, que é pra poder
mos conversar um bocado .
Ele puxou uma das velhas cadeiras com assento de palhinha e sentou
-se e pôs o chapéu em cima do joelho e olhou ao longe , por sobre os
pastos , em direcção às montanhas , e olhou para o velho .
Calculo que já soubesses do Miller, disse o velho .
Não , senhor. Não tenho recebido muitas notícias .
Foi morto no atol de Kwajalein .
Lamento imenso saber disso .
Temos sofrido bastante por estas bandas . B astante .
Permaneceram calados . Soprava uma brisa vinda do Sul . Um vaso de
espargo-de-jardim suspenso do beiral do alpendre , no canto , baloiçava
suavemente , e a respectiva sombra oscilava sobre as tábuas do soalho ,
vagarosa e aleatória e descentrada.
O senhor tem passado bem? perguntou Billy.
Ah, eu ' tou bem . Fui operado às cataratas no Outono passado , mas cá
vou andando . A Leona fez-me a desfeita de se casar. Agora o marido foi
prà guerra e ela mora em Roswell , não sei pra quê . Arranjou um empre
go . Tentei meter-lhe juízo naquela cabeça, mas já sabes como são as
coisas .
Pois sei .
A verdade é que eu já nem devia de aqui andar, sequer.
Espero que o senhor viva pra sempre .
Não me desejes uma coisa dessas .
Recostara-se e fechara a B íblia. Aquela chuva vem pra estas bandas ,
comentou .
Sim, senhor. Creio que vem mesmo .
Consegues cheirá-la?
Consigo , sim .
Sempre gostei do cheiro .
Ficaram calados . Ao fim de um certo tempo , B illy perguntou :
Consegue cheirá-la?
Não .
Ficaram calados.
326 Cormac McCarthy
joelho das calças . Billy pegou no seu copo e segurou-o diante de si.
Disse que estava naquele país para encontrar o irmão . Acrescentou que
o irmão era um bocadinho maluco e que ele não o devia ter abandonado ,
mas que o fizera.
Continuaram sentados , de copos na mão . Olharam para o bêbedo .
Tome, Alfonso , instou o homem mais novo . Gesticulou com o copo . O
taberneiro ergueu o seu copo e bebeu e tornou a pousar o copo vazio na
mesa e encostou-se ao espaldar da cadeira. Como um jogador que mo
veu a sua peça e se recosta para aguardar os resultados . Olhou sobre a
mesa para o homem mais novo de todos, que estava sentado um pouco
à parte , com o chapéu descaído sobre a testa e a segurar o copo cheio
com ambas as mãos diante de si como uma oferenda. Que até ao mo
mento não pronunciara uma só palavra. Toda a sala tinha começado a
zumbir muito ao de leve .
Toda e qualquer cerimónia tem como única finalidade evitar o derra
mamento de sangue . Mas o bêbedo , devido à sua condição , habitava um
estado crepuscular de responsabilidade , e foi a esta que o homem à sua
ilharga apelou em silêncio . Sorriu e encolheu os ombros e ergueu o copo
para o norteamericano e bebeu . Quando tornou a pousar o copo , o bêbe
do moveu-se . Debruçou-se devagar e estendeu a mão para o seu copo e o
homem mais novo sorriu e tornou a erguer o copo , como que à laia de
saudação ao vê-lo abandonar os seus pensamentos mórbidos . Mas o bê
bedo fincou os dedos em volta do copo e depois , muito devagar, inclinou
-o sobre o bordo da mesa e despejou o whiskey no chão e tornou a pousá-
-lo sobre o tampo da mesa. Em seguida, com mão trémula, agarrou a
garrafa de mescal e voltou-a ao contrário e verteu o combustível amarelo
e oleoso para dentro do copo e pousou a garrafa novamente na mesa, com
o sedimento e o verme a rodar, vagarosos , no sentido dos ponteiros do
relógio , sobre o fundo de vidro . Por fim, recostou-se como antes .
O homem mais novo olhou para B illy. Lá fora, na povoação mergu
lhada nas trevas , um cão ladrou .
No le gusta el whiskey? perguntou Billy.
O bêbedo não respondeu . O copo de mescal encontrava-se pousado na
mesa, exactamente como no momento em que B illy entrara na taberna.
Es el sello , interveio o homem mais novo .
El sello ?
Sí.
Ele disse que o outro não gostava da chancela, que era a chancela de
um governo opressor. Disse que o outro se recusava a beber de uma tal
garrafa. Que era uma questão de honra.
334 Cormac McCarthy
pareceu até fechar os olhos, e talvez o tenha feito . O bêbedo fechou a mão
estendida e baixou o punho cerrado para a mesa. Billy descreveu um
círculo vagaroso no ar com o dedo estendido . Otra vez , repetiu .
O taberneiro olhou para B illy. Olhou para o patriota de olhos plúm
beos ali sentado , de punho erguido junto do copo . Era demasiado fuer
te para é/, comentou . Demasiado juerte .
B illy não tirou os olhos do bêbedo . Más mentiras , disse . Declarou
que não era de todo verdade que o mescal fosse demasiado forte para
ele , ao contrário do que o taberneiro afirmara.
Todos olhavam para a garrafa de mescal . Para a meia-lua negra da
sombra da garrafa ao lado da garrafa. Quando o bêbedo não se moveu
nem falou , Billy estendeu a mão sobre a mesa para agarrar a garrafa de
whiskey e tornou a encher todos os copos e pousou novamente a garrafa
na mesa. Em seguida, empurrou a cadeira para trás e pôs-se de pé .
O bêbedo colocou ambas as mãos sobre o bordo da mesa.
O homem que até aí nada dissera avisou-o em inglês de que , caso ele
tirasse o dinheiro do bolso , o homem lhe daria um tiro .
Não duvido nem um bocadinho , disse B illy. Dirigiu-se ao taberneiro
sem tirar os olhos do homem do lado oposto da mesa . Cuánto debo ?
perguntou .
Cinco do/ares ? disse o taberneiro .
Ele enfiou dois dedos no bolso da camisa e tirou de lá o dinheiro e
abriu o maço de notas com o polegar e soltou do maço uma nota de
cinco dólares e pousou-a na mesa. Olhou para o homem que falara com
ele em inglês . Ele vai-me dar um tiro nas costas? perguntou .
O homem ergueu os olhos para ele de baixo da aba do chapéu e sor
riu . Não , disse . Não me parece .
B illy tocou na aba do chapéu e dirigiu um aceno de cabeça aos ho
mens à mesa. Cabal/eras , disse . E voltou-se para se encaminhar para a
porta, deixando o copo cheio sobre a mesa.
Se ele te chamar, não te voltes , avisou o jovem.
Ele não se deteve e não se virou , e estava prestes a alcançar a porta
quando o homem o chamou . Joven , disse .
Ele estacou . Os cavalos na rua ergueram as cabeças e olharam para ele .
Ele avaliou a distância até à porta, que não excedia a sua própria altura.
Caminha, disse . Caminha, mais nada. Mas não caminhou . Deu meia-volta.
O bêbedo não se movera. Continuava sentado na cadeira, e o jovem
que falava inglês erguera-se e estava de pé ao lado dele e pousara-lhe
uma mão no ombro . Pareciam estar a posar para um álbum de retratos
de bandidos .
336 Cormac McCarthy
a chamejar a leste . Não havia vento nem cheiro a chuva no ar, e, todavia,
as gotas caíam cada vez mai s . O cavalo queria parar na estrada, e o
cavaleiro olhou para trás , para a povoação mergulhada no escuro . Os
poucos quadrados diminutos das janelas onde brilhava uma luz ténue e
avermelhada. O estralejar da chuva a cair na argila dura da estrada
assemelhava-se ao som de cavalos a atravessar uma ponte , algures na
treva . Ele começava a sentir-se embriagado . Parou o cavalo e depois
deu meia-volta e arrepiou caminho .
Guiou o cavalo através da primeira porta com que deparou , deixando
cair a corda do cavalo de carga e debruçando-se ao longo do pescoço da
montada para passar por baixo do lintel . Uma vez no interior, sentado na
sela, deu-se conta de que tombava sobre ele a mesmíssima chuva, e er
gueu o rosto para ver as mesmíssimas estrelas por cima de si . Torceu as
rédeas para voltar o cavalo e tornou a sair e entrou noutra porta e o cre
pitar surdo das gotas de chuva na copa do chapéu cessou de imediato .
Desmontou e bateu com os pés em volta, para ver o que se encontrava
no chão . Saiu e trouxe o cavalo de carga para dentro e soltou a corda
amarrada em diamante que prendia os fardos e puxou a manta acolcho
ada para o chão e desafivelou as correias e retirou as cangalhas do dorso
do animal e peou-o e conduziu-o novamente para o exterior, deixando-o
à chuva. Em seguida , soltou o latigo do cavalo de sela e tirou-lhe a sela
e as bolsas da sela e pousou a sela no chão , encostada à parede , e
ajoelhou-se e procurou às apalpadelas as cordas da colcha e desamarrou
-a e desenrolou-a e sentou-se e descalçou as botas . Sentia-se cada vez
mais ébrio . Tirou o chapéu e deitou-se . O cavalo passou-lhe junto da
cabeça e parou a olhar porta fora. Não me pises com essas patas , raiste
partam , soltou ele .
Quando acordou , na manhã seguinte , a chuva cessara e a luz do dia
brilhava em pleno . Sentia-se muito mal . Acordara durante a noite , nem
sabia ao certo quando , e saíra aos tropeções para vomitar, e lembrava-se
de procurar em volta com olhos lacrimejantes algum sinal dos cavalos
e de cambalear novamente para o interior. Talvez nem se recordasse
disso , não fora o caso de , ao soerguer-se e procurar as botas , ter verifi
cado que as tinha calçadas . Pegou no chapéu e pô-lo na cabeça e olhou
na direcção da porta. V árias crianças que ali estavam sentadas a
observá-lo puseram-se de pé e recuaram .
Dónde están los caballos ? perguntou ele .
Elas disseram que os cavalos estavam a comer.
Ele pôs-se de pé demasiado depressa e encostou-se à ombreira da
porta, com a mão sobre os olhos . Estava abrasado de sede . Tornou a
338 Cormac McCarthy
Ele explicou que tivera uma irmã que morrera, mas ela abanou a ca-
beça . Hermano , emendou . Uno que vive, uno que ha muerto .
Cuál es cual?
No sabes ?
No .
Ni yo tampoco .
Ela soltou-lhe a mão e pôs-se de pé e pegou no balde . Tomou a olhar
por sobre o campo , para os garotos e o cavalo . Disse que ele talvez ti
vesse tido sorte durante a noite , já que a chuva possivelmente mantive
ra em casa aqueles que , de outro modo , eram bem capazes de ter deam
bulado pelas ruas , mas acrescentou que a chuva que nos favorece pode
também trair-nos . Disse ainda que , ao passo que a chuva caía por von
tade de Deus , o mal escolhia a sua própria hora, e que aqueles que o mal
buscava talvez não fossem eles próprios totalmente desprovidos de uma
certa parcela de treva. Disse que o coração se denunciava, e que os per
versos tinham muitas vezes olhos para ver o que permanecia oculto à
vista dos bon s .
Y sus ojos ?
Ela atirou a cabeça para trás , o cabelo negro tombou-lhe e m volta dos
ombros . Disse que não tinha visto nada . Que era somente um jogo . Em
seguida, virou costas e afastou-se através do campo e subiu a ladeira ao
encontro da estrada.
Ele cavalgou para sul durante todo o dia e, ao fim da tarde , atravessou
a cidade de Casas Grandes e meteu para sul , pela estrada que primeiro
percorrera com o irmão três anos antes , passando junto das ruínas que
se iam cobrindo de treva ao lusco-fusco , deixando para trás os antigos
terreiros de baile onde os noitibós caçavam ainda. No dia seguinte , che
gou à hacienda de San Diego e parou o cavalo junto aos velhos chou
pos , à beira do rio . Em seguida, cavalgou sobre a ponte de tábuas e su
biu até aos domicilias .
A casa da família Mufíoz estava vazia. Ele percorreu as divisões . Não
havia nenhuma peça de mobiliário . No nicho onde a Virgem antes se
encontrava , nada excepto uma escama cinzenta de velha cera de vela
acumulada no estuque poeirento .
Ele estacou à porta, depois saiu e montou e rompeu até ao recinto ,
cruzando os portões .
No pátio , u m velho que estava sentado a tecer cestos disse-lhe que
eles tinham partido . Ele perguntou ao velho se sabia para onde é que
eles tinham ido , mas o velho parecia não ter uma compreensão clara da
ideia de destino . Executou um gesto amplo a designar o mundo . O ca-
A Travessia 343
ido até lá tão cedo somente para aproveitar o facto de , àquela hora, a
estrada ainda não se encontrar coberta de uma nuvem de poeira.
Ele seguiu-os até ao interior da povoação e cavalgou pelas ruelas
poeirentas . Não se via ninguém. Ele debruçou-se do cavalo e bateu a
uma porta escolhida ao acaso e ficou sentado , à escuta. Ninguém veio
abrir. Ele desenfiou a bota do estribo , puxando o pé atrás , e desferiu um
pontapé na porta para bater com mais força, mas a porta estava mal
trancada e abriu-se vagarosamente de par em par, desaparecendo na
escuridão baixa.
Hola , chamou ele .
Ninguém respondeu . Ele olhou para o fundo da rua estreita. Olhou
para o interior sob o lintel da porta. Contra a parede do fundo do casi
nhoto , uma vela ardia num prato , e, estendido numa armação de madei
ra, com flores silvestres das montanhas em volta de si , jazia um velho
envergando o seu fato mortuário .
Ele descavalgou e deixou cair as rédeas e cruzou a porta acanhada e
tirou o chapéu . O velho tinha as mãos compostas sobre o peito e não tinha
sapatos nos pés e tinham-lhe amarrado os pés descalços um ao outro
pelos dedos grandes com um pedaço de cordel , para não jazerem espar
ramados . Billy chamou em voz baixa para o seio das trevas da casa, mas
aquela divisão era a única de que a casa se compunha. Quatro cadeiras
vazias alinhavam-se contra uma parede . Uma fina poeira cobria tudo . No
alto da parede do fundo havia uma janelinha, e ele atravessou a divisão e
olhou para o pátio atrás da casa. Via-se ali um velho carro funerário de
tracção animal , com os varais voltados para trás e encostados à caixa.
Dentro de um barracão aberto , no extremo oposto da cerca, apoiado sobre
cavaletes , via-se um tosco caixão de madeira feito de barrotes de pinho .
A tampa do caixão estava encostada à parede do barracão . Tinham ene
grecido o caixão e a tampa pelo lado de fora, mas o interior era de ma
deira nova ainda crua, sem pano a forrá-lo nem outro forro qualquer.
Ele voltou-se e olhou para o velho exposto na sua prancha de madei
ra. O velho tinha um bigode , e o bigode e o cabelo eram grisalhos , cor
de prata. As mãos cruzadas sobre o peito eram grandes e robustas . Não
lhe tinham limpado as unhas . Tinha a pele morena e poeirenta , os pés
descalços quadrados e nodosos . O fato que trazia no corpo parecia pe
queno para ele e era de um modelo que já não se via, nem mesmo na
quela região , e, muito provavelmente , o velho tivera-o toda a vida.
Ele retirou dos ramos uma pequena flor amarela cuja forma se asse
melhava à de um malmequer e que vira crescer nas bermas das estradas
e olhou para a flor e para o velho . Na sala reinava um cheiro a cera, um
A Travessia 345
Ela olhou-o com o lábio superior preso nos dentes de baixo . Por fim ,
disse que era por saber quem ele era.
Y quién soy? perguntou ele .
Ela disse que ele era o irmão do güerito .
Ele baixou o pé da parede atrás de si e olhou para ela e olhou para
trás dela, para os que tinham vindo chorar o morto , vestidos de escuro ,
a passarem em fila e a retirarem comida da mesa como outras tantas
figuras da morte no banquete , e tomou a olhar para ela. Perguntou-lhe
se sabia onde é que ele podia encontrar o irmão .
Ela não respondeu . O movimento das figuras na sala tomou-se mais
lento , os murmúrios abafados dos enlutados converteram-se num sus
surro . Os presentes desejavam uns aos outros que a refeição lhes fizesse
bom proveito , e foi então que tudo aquilo se obliterou na história da sua
própria repetição , e ele pôde ouvir aquelas cerimónias antecedentes a
encaixarem-se algures como blocos de madeira nas respectivas ranhu
ras . Como cavilhas numa fechadura ou como as rodas dentadas de ma
deira nas máquinas antigas a deslizar, dente após dente , para o seio dos
entalhes abertos no carreto que sobe sem cessar ao seu encontro . No
sabe ? perguntou ela.
No .
Ela encostou a mão à boca, de indicador estendido . Quase no gesto
de quem intima outra pessoa a calar-se . Estendeu a mão como se talvez
lhe fosse tocar. Disse que os ossos do irmão dele jaziam no cemitério de
San Buenaventura .
Estava escuro quando ele saiu e desamarrou o cavalo e montou .
Afastou-se , passando diante das janelas descoradas e cerosas , e meteu
pela estrada para sul , pelo caminho que o trouxera até ali . Quando ven
ceu a primeira elevação , a aldeia desapareceu atrás dele e as estrelas
fervilharam , incontávei s , no negrume lá no alto , e não havia som algum
na noite além do clope-clope compassado dos cascos na estrada, o ténue
ranger do cabedal , o fôlego dos cavalos .
Deambulou por aquela região durante semanas a fio, inquirindo toda
e qualquer pessoa que se mostrasse disposta a ser inquirida . Numa bode
ga na povoação de montanha de Temosachic , ouviu pela primeira vez
alguns versos do corrido em que o jovem güero desce do Norte . Pelo tan
rubio . Pistola en mano . Qué buscas joven ? Que te levantas tan tempra
no . Perguntou ao corridero quem era este joven acerca do qual ele can
tava, mas o outro limitou-se a responder que era um jovem que procura
va fazer justiça, tal como a canção contava, e que já morrera havia muitos
anos . O corridero segurou o braço cheio de adornos do instrumento com
A Travessia 347
pátio cheio de fumo da hacienda de San Diego , quando ele e Boyd ti
nham cruzado pela primeira vez aqueles portões , há já tanto tempo , a
mesma caravana que ele vira abandonada na berma da estrada enquanto
a linda diva se sentava debaixo do seu toldo , à espera do regresso dos
homens e dos cavalos que nunca haveriam de regressar. Repeliu a mão
do acólito da sua manga . No quiero ver, disse .
Sí, sí, incitou o acólito em voz entaramelada. Es un espectáculo .
Nunca ha visto nada como esta .
Ele agarrou o pulso magro do acólito e apertou-o com força . Oiga,
hombre , declarou . No quiero veria, me entiende ?
O acólito encolheu-se ante aquele gesto , lançou um olhar sem espe
rança por cima do ombro , na direcção do pregoeiro que aguardava, com
a bengala pousada sobre o palanque na sua frente . Todos se tinham vol
tado para ver o vencedor na orla mais recôndita das luzes . A mulher
junto à roda adoptara uma pose provocante , com o indicador curvado
sobre a covinha na face . O pregoeiro ergueu a bengala e executou com
ela um movimento largo . Adelante! bradou . Qué pasó?
Ele empurrou o acólito para longe de si e soltou-lhe o pulso , mas o
acólito , longe de se deixar abater, esgueirou-se novamente para junto
dele e , repuxando-lhe as roupas com pequenos movimentos dos dedos ,
começou a sussurrar-lhe ao ouvido as atracções do espectáculo dentro
da caravana. O pregoeiro tornou a chamá-lo . Disse que toda a gente
estava à espera. Mas Billy já se voltara para partir, e o pregoeiro
chamou-o com um brado uma derradeira vez e fez um qualquer comen
tário dirigido à multidão que pôs toda a gente a rir e a tentar olhar por
cima do ombro . O acólito ficou parado , com expressão desolada, com a
barata nas mãos , mas o pregoeiro declarou que não haveria terceira
tentativa com a roda, e que , em vez disso , a mulher que fazia girar a
roda faria ela própria a escolha de quem teria direito a entrar sem pagar.
Ela sorriu e examinou os rostos com os seus olhos pintados e apontou
um rapaz na primeira fila da multidão , mas o pregoeiro disse que ele era
demasiado novo e que não seria permitido , e a mulher fez beicinho e
disse que , mesmo assim, ele era muy guapo e depois escolheu um peon
de pele morena que estava parado diante dela, muito hirto , vestido com
roupas que talvez fossem alugadas , e desceu os degraus e pegou-lhe
pela mão , e o pregoeiro ergueu um rolo de bilhetes no punho fechado ,
e os homens comprimiram-se para os comprar.
Ele afastou-se para além das luzes suspensas e atravessou o prado até
onde deixara o cavalo e pagou ao establero e conduziu Nino à brida,
retirando-o do meio dos outros animais, e montou . Olhou para trás ,
350 Cormac McCarthy
Pueblo de Bachiniva
Abril era el mes
Jinetes armados
Llegaron los seis
Si tenía miedo
No se le veía en su cara
Cuantos vayan llegando
El güerito les espera
duzirem gado diante de si . Fazia frio nas montanhas de noite , mas eles
pareciam vestidos com roupas leves e tinham somente os serapes para
se embrulharem ao dormir. Chamavam-lhes mascareiías por causa dos
bois de face branca que se criavam na B abícora e chamavam-lhes agrin
gados porque trabalhavam para o homem branco . Passavam em desfiles
silenciosos sobre as encostas dos taludes e trepavam através dos desfi
ladeiros ao encontro das vegas ervosas altaneiras , montando os cavalos
com os seus modos a um tempo formais e descontraídos , com o sol
baixo a cintilar-lhes nos copos de latão amarrados aos chifres das selas .
Ele via-lhes as fogueiras a arder na montanha, de noite , mas nunca foi
ao encontro deles .
Num certo final de tarde , mesmo antes de escurecer, penetrou numa
estrada e deu meia-volta e seguiu-a para oeste . O Sol encarnado que
ardia na ampla garganta das montanhas diante dele despojara-se da sua
forma e ia sendo sorvido vagarosamente para iluminar todo o céu com
um clarão crepuscular vermelho-escuro . Quando a treva caiu , assomou
na lonjura, sobre a planície , a luz amarela de uma habitação solitária , e
ele cavalgou em frente até chegar a uma pequena cabana revestida de
tábuas imbricadas e parou o cavalo defronte da porta e chamou .
Um homem veio à porta e saiu para a varanda . Quién es ? perguntou .
Un viajero .
Cuántos son ustedes ?
Yo sólo .
Bueno , disse o homem. Desmonte . Pásale .
Ele descavalgou e amarrou as rédeas ao pilar do alpendre e subiu os
degraus e tirou o chapéu . O homem segurou a porta para o deixar pas
sar, e ele entrou e o homem seguiu-o e fechou a porta e indicou o lume
com um aceno de cabeça.
Sentaram-se e beberam café . O homem chamava-se Quijada e era um
índio yaqui do Oeste de Sonora e era o mesmo gerente da parcela de
Nahuerichic da B abícora que dissera a Boyd para separar os cavalos
deles da remuda e os levar. Vira o güero solitário a cavalgar nas monta
nhas e tinha dito ao alguacil para não o importunar. Disse ao convidado
que sabia quem ele era e porque viera até ali . Depois recostou-se na
cadeira. Levou a chávena aos lábios e bebeu e contemplou o fogo .
Vossemecê é o homem que nos devolveu os cavalos , disse Billy.
Ele fez que sim com a cabeça . Debruçou-se e olhou para Billy e de
pois ficou sentado , de olhos fitos no lume . A chávena de porcelana
grossa pela qual bebia , já sem asa, parecia um almofariz de boticário, e
ele estava sentado de cotovelos sobre os joelhos , a segurar a chávena
A Travessia 355
diante de si com ambas as mãos , e B illy pensou que ele ia dizer mais
qualquer coisa, mas não . Billy bebeu pela sua chávena e ficou a segurá
-la. O fogo crepitava. Lá fora, no mundo , tudo era silêncio . O meu ir
mão ' tá morto? perguntou .
Está.
Mataram-no em Ignacio Zaragosa?
Não . Em San Lorenzo .
A rapariga também?
Não . Quando a levaram , estava coberta de sangue e não se tinha de
pé , por isso é natural que as pessoas pensassem que ela tinha sido ferida
a tiro , mas não foi assim.
E o que foi feito dela?
Não sei . Talvez tenha voltado para junto da família. Era muito nova.
Perguntei por ela em Namiquipa. Não sabiam o que era feito dela.
Nunca te iam dizer em Namiquipa.
Onde é que o meu irmão ' tá sepultado?
Está sepultado em Buenaventura.
Há lá alguma pedra tumular?
Há uma tábua. Ele era muito popular junto do povo . Era uma perso-
nagem muito popular.
Ele não matou o manco em La Boquilla.
Eu sei .
Eu ' tava lá.
Sim . Ele matou dois homens em Galeana. Ninguém sabe porquê .
Nem sequer trabalhavam para o latifundio . Mas o irmão de um deles era
amigo de Pedro Lopéz .
O alguacil.
O alguacil. Sim .
Ele vira-o uma vez nas montanhas , acompanhado dos seus sequazes ,
os três a descerem uma linha de cumeeira ao lusco-fusco . O alguacil
trazia uma espada curta numa bainha suspensa do cinto e não respon
dia perante ninguém . Quijada recostou-se na cadeira e sentou-se com
as botas cruzadas na sua frente . A chávena no regaço . Ambos contem
plavam o lume . Como se algum artefacto de metal estivesse ali a tem
perar. Quijada ergueu a chávena como se fosse beber. Depois tornou a
baixá-la.
Há o latifundio de Babícora, explicou . Com toda a riqueza e o poder
de Mr Hearst por trás . E há os campesinos com os seus andrajos . Qual
achas tu que vai levar a melhor?
Não sei .
356 Cormac McCarthy
Ficaram ali sentados durante muito tempo . Por fim, Quijada inclinou
-se para diante e examinou a própria chávena. Ele devia ter ido para
casa, disse .
Sim.
Porque é que não foi?
Não sei . Talvez a cachopa.
A cachopa não teria ido com ele?
Calculo que sim . Ele não tinha propriamente uma casa a que regressar.
Talvez te coubesse a ti ter cuidado melhor dele .
Ele não era pessoa de quem fosse fácil cuidar. Você mesmo o disse .
S im .
O que é que diz o corrido?
Quijada abanou a cabeça. O corrido conta tudo e não conta nada. Eu
ouvi a história do güerito há anos . Ainda o teu irmão não era sequer
nascido .
Acha que não conta a história dele?
Sim, conta a história dele . Conta o que deseja contar. Conta o que dá
vida à fábula. O corrido é a história dos pobres . Não tem de ser fiel às
verdades da história, mas sim às verdades dos homens . Conta a fábula
daquele homem solitário que é todos os homen s . Crê que , quando dois
homens se encontram , uma de duas coisas pode acontecer e nada mais.
Num caso , nasce uma mentira , e no outro , a morte .
Assim dito , parece que a morte é a verdade .
Sim. Parece que a morte é a verdade . Ele olhou para B illy. Mesmo
que o güerito na canção seja o teu irmão , ele já não é o teu irmão .
Ninguém o pode reivindicar para si .
Faço tenções de o levar de volta comigo .
Não to vão permitir.
A quem me devo dirigir?
Não há ninguém a quem te possas dirigir.
A quem é que me devia dirigir, se houvesse alguém?
Podias suplicar a Deus . À parte isso , não há ninguém .
Billy abanou a cabeça. Remirava o próprio rosto sombrio que oscila
va em guinadas repentinas no anel branco da chávena. Ao fim de um
certo tempo , ergueu o rosto . Olhou para o lume . Acredita em Deus?
perguntou .
Quijada encolheu os ombros . Nos dias em que acordo mais piedoso ,
disse .
Ninguém nos consegue dizer como é que vai ser a nossa vida, pois
não?
358 Connac McCarthy
Não .
É sempre completamente diferente do que nós ' távamos à espera .
Quijada fez que sim com a cabeça. Se as pessoas soubessem de ante-
mão a história das suas vidas , quantas é que iriam preferir vivê-las? As
pessoas falam do que nos está reservado . Mas não há nada que nos es
teja reservado . O dia é feito do que sucedeu antes. O mundo em si fica
certamente espantado ao ver a forma do que vai surgindo . Talvez até
Deu s .
Nós viemos até cá abaixo em busca dos nossos cavalo s . Eu e o meu
irmão . Acho que ele nem sequer queria saber dos cavalos , mas eu fui
demasiado palerma pra perceber. Eu não sabia nada sobre ele . Pensei
que sabia. Acho que ele sabia muito mais sobre mim . Gostava de o levar
de volta e de o sepultar no seu país natal .
Quijada escorropichou o café da chávena e ficou ali sentado , a
segurá-la no regaço .
Calculo que não ache que isto sej a uma ideia muito boa.
Acho que talvez tenhas alguns problemas .
Mas não é só isso que você acha.
Não .
Acha que o lugar dele é onde ele ' tá agora.
Acho que os mortos não têm nacionalidade .
Não . Mas os parentes deles têm .
Quijada não respondeu . Ao fim de muito tempo , mexeu-se . Debruçou
-se . Voltou a chávena de porcelana branca ao contrário e segurou-a na
palma da mão e remirou-a. O mundo não tem nome , disse . Os nomes
dos cerras e das sierras e dos desertos existem apenas nos mapas .
Damos-lhes nome para não nos perdermos . E , contudo , foi por já nos
termos perdido que inventámos esses nomes . O mundo não se pode
perder. Nós é que nos perdemos . E é por esses nomes e essas coordena
das terem sido criados por nós que não nos podem salvar. Que não nos
podem ajudar a encontrar o caminho perdido . O teu irmão está no lugar
que o mundo escolheu para ele . Está onde deveria estar. E , todavia, o
lugar que ele encontrou foi também escolhido por ele . Eis um golpe de
sorte que não deve ser desprezado .
Céu cinzento , terra cinzenta . Durante todo o dia, ele rompeu para
norte , derreado , sobre o cavalo derreado e ensopado da chuva, através da
lama arenosa das estradas de montanha. A chuva assolava a estrada dian
te dele sob as rajadas de vento e tamborilava-lhe sobre o capote imper-
A Travessia 359
O irmão dele estava sepultado contra o muro mais a sul , por baixo de
uma cruz de tábuas em cuja madeira tinham gravado com um prego em
brasa as palavras Fali e! 24 de febrero 1 943 sus hermanos en armas
dedican este recuerdo D E P. Encostado à tábua via-se um anel de ara
me enferrujado que outrora fora uma coroa fúnebre . Não havia nome
algum .
Ele acocorou-se e tirou o chapéu . Mais a sul , um monte de lixo ardia
em fogo lento no ar húmido , e um fumo negro subia para o tecto de
nuvens escuras . A desolação daquele lugar era uma coisa requintada.
Já escurecera quando ele cavalgou de regresso a B uenaventura.
Desmontou diante da porta da igreja e entrou e tirou o chapéu . Junto ao
altar, algumas velas pequenas ardiam, e , àquela luz meio fugidia, uma
figura solitária ajoelhava-se , curvada nas suas orações . Ele avançou
pela nave lateral . Havia ladrilhos soltos no chão que baloiçavam e sol
tavam estalidos por baixo das botas dele . Curvou-se e tocou no braço da
figura ajoelhada. Sefíora , disse .
Ela ergueu a cabeça, um rosto moreno e pespontado de rugas , visível
nas pregas mais escuras do rebozo .
Dónde está e! sepulturero ?
Muerto .
Quién está encargado de! cementerio ?
Dios .
Dónde está e! sacerdote .
Se fué.
Ele olhou em volta, para o interior mal iluminado da igreja. A mulher
parecia aguardar por novas perguntas , mas ele não sabia o que lhe per
guntar mais .
Qué quiere, joven ? indagou ela.
Nada . Está bien . Ele baixou os olhos para ela. Por quién está oran
do ? perguntou .
Ela disse que estava a rezar, nada mai s . Disse que deixava ao cuidado
de Deus o modo como as orações deveriam ser repartidas . Rezava por
todos . Rezaria por ele .
Gracias .
No puedo hacerlo de otro modo .
Ele assentiu com a cabeça . Conhecia-a bastante bem, aquela anciã do
México , os seus filhos há muito mortos naquele sangue e violência que
as suas preces e as suas prostrações pareciam impotentes para apazi
guar. A sua frágil silhueta era uma constante naquela terra, a sua angús
tia silenciosa. Para além das paredes da igreja, a noite albergava um
A Travessia 361
de viés na terra. Por fim , desceu para a sepultura e, àquela luz pálida e
bruxuleante , começou a soltar as tábuas com a pá e atirou-as uma após
outra para fora do buraco até os restos mortais do irmão ficarem total
mente à vista, o corpo muito composto sobre um catre de andrajos
apodrecidos , a nadar nas roupas , como sempre .
Cavalgou em direcção à saída até transpor o portão e desmontou e
procurou com os olhos até avistar a silhueta do cavalo de carga recorta
da sobre o céu , a sul , e tomou a montar e foi até lá e trouxe o animal
pela arreata e conduziu-o através do portão e até junto da sepultura.
Desmontou e desamarrou o saco-cama e desenrolou-o no chão e soltou
o oleado e estendeu-o. Era uma noite sem vento , e o círio por ele impro
visado com uma tábua de caixão ardia ainda junto à sepultura. Desceu
para o fundo da cova e tomou o irmão nos braços e ergueu-o do caixão .
Boyd nada pesava. Ele compôs a ossada sobre a manta acolchoada e
embrulhou o corpo no tecido e amarrou a trouxa nas pontas com cor
dões de amarrar gado enquanto o cavalo olhava, à espera. Ali perto , na
estrada de saibro , ouviu o gemido de uma camioneta na ladeira e as
luzes assomaram e descreveram uma curva vagarosa através do deserto
e sobre os promontórios desabrigados e depois a camioneta passou
adiante , deixando um rasto alvacento de poeira , e continuou a avançar
laboriosamente para leste .
Quando finalmente acabou de reencher a cova com terra, era já perto
da meia-noite . Calcou a terra com as botas e depois atirou as pedras
soltas com a pá novamente para cima do montículo e, por último , pegou
na cruz que encostara contra o muro e equilibrou-a de pé entre as pedras
e empilhou calhaus em volta para a segurar. O archote de madeira há
muito fora consumido pelo fogo , e ele pegou-lhe pela ponta carboniza
da e atirou-o para o outro lado do muro . Depois atirou também a pá.
Ergueu Boyd nos braços e pousou-o sobre as cangalhas de madeira e
enrolou os cobertores que compunham o seu saco-cama e colocou-os
sobre a garupa do cavalo e amarrou tudo com corda. Depois afastou-se
e apanhou o chapéu do chão e pô-lo na cabeça e apanhou o cantil e
pendurou-o do chifre do cepilho pela alça e montou e fez o cavalo dar
meia-volta. Ficou ali parado um longo momento , a lançar em volta um
último olhar. Depois tomou a desmontar. Aproximou-se da sepultura e
soltou a cruz de madeira dos calhaus rolados e levou-a para junto do
cavalo de carga e amarrou-a às hastes do lado esquerdo das cangalhas e
depois tomou a montar e , conduzindo pela arreata o cavalo de carga,
rompeu através do cemitério e cruzou o portão e meteu pelo caminho
abaixo . Ao chegar à estrada, cruzou-a e meteu a corta-mato em direcção
364 Cormac McCarthy
No .
No ?
Permaneceram parados . Um clarão branco cintilou por baixo do cha
péu do cavaleiro , como se ele tivesse sorrido . O que ele tinha feito fora
agarrar as rédeas do cavalo com os dentes . O clarão seguinte foi uma
navalha que assomou algures das suas roupas e reflectiu a luz ao voltar
-se por um breve instante , como um peixe no fundo de um rio . Billy
deixou-se escorregar pelo flanco direito do cavalo. O bandolero agarrou
a arreata do cavalo de carga, mas este fincou as patas na terra e baixou
-se sobre os quartos traseiros , e o homem picou os ilhais do seu cavalo
para o fazer avançar e tentou golpear as cordas que amarravam a carga
com a navalha, enquanto o cavalo de carga se debatia na ponta da ar
reata. Alguns dos companheiros do homem riram-se , e ele soltou uma
imprecação e puxou o cavalo de carga para si e enrolou a arreata nova
mente ao chifre da sela e estendeu o braço e cortou as cordas e puxou a
colcha cheia de ossos , fazendo-a tombar.
B illy estava a tentar desatar o nó na aba da bolsa da sela, para tirar de
lá a pistola, mas Nifío voltou-se e bateu com as patas no chão e recuou ,
a agitar a cabeça para a esquerda e para a direita. O bandolero soltou a
arreata do cepilho e deitou-a fora e descavalgou . O cavalo de carga deu
meia-volta e afastou-se a trote . O homem curvou-se sobre a forma caída
no chão , envolta no seu sudário, e rasgou com um único golpe largo da
navalha as cordas e a manta acolchoada, de uma ponta à outra, e afastou
as cobertas a pontapé para expor à luz cinzenta o pobre corpo de Boyd ,
com o casaco largueirão , as mãos cruzadas sobre o peito , as mãos res
sequidas com os ossos gravados na pele de cabedal , ali estendido com
o rosto encovado volvido para o alto e a abraçar o próprio corpo como
um ser frágil , cheio de frio naquela alvorada indiferente .
Filho da puta, soltou Billy. Filho da puta.
Es un engano ? atirou o homem. Es un engano ?
Pontapeou a pobre criatura ressequida. Voltou-se com a navalha.
Dónde está el dinero ?
Las alforjas! gritou um dos cavaleiros . B illy passara sob o pescoço
de Nifío e tornou a estender o braço para a aba da bolsa da sela, no
flanco direito do cavalo . O bandolero abriu o rolo de mantas a seus pés
com a navalha e separou os cobertores a pontapé e calcou-os com as
botas e voltou-se e então estendeu o braço e agarrou as rédeas de Nifío .
Mas o cavalo deve ter visto a despontar entre eles uma qualquer força
demoníaca, pois empinou-se e recuou e , ao recuar, pisou a ossada e
tornou a empinar-se e desferiu patadas , e o bandolero perdeu o equilí-
366 Cormac McCarthy
dentro viam-se os fios e cabos que corriam para a cauda, até ao leme de
direcção e aos lemes de profundidade , e via-se o cabedal dos assentos
estalado e deformado e enegrecido do sol e, nos seus engastes niquela
dos já sem brilho , os mostradores de vidro no painel de instrumentos ,
glaucos e enevoados do esmerilar das areias do deserto . Os montantes
das asas estavam amarrados em feixes , alinhados com o corpo do apa
relho , e as pás da hélice estavam dobradas para trás sobre a cobertura
do motor e os montantes do trem de aterragem encontravam-se dobra
dos por baixo da fuselagem .
Eles passaram adiante e fizeram alto na planura e deixaram os mais
jovens a tratar dos animais e depois arrepiaram caminho pelo trilho fora,
a enrolar cigarros e a passar de mão em mão um esclarajo feito de um
cartucho vazio de calibre 50 dentro do qual ardia um pedaço de estopa.
Eram ciganos de Durango e a primeira coisa que lhe perguntaram foi o
que é que se passava com o cavalo .
Ele explicou-lhes que o cavalo estava ferido e que lhe parecia que os
ferimentos eram graves . Um deles perguntou-lhe quando é que aquilo
acontecera, e ele respondeu que tinha sido na véspera. O outro mandou
um dos homens mais novos até à jangada, e , passados poucos minutos ,
este regressou com uma velha sacola de lona. Em seguida, todos cami
nharam através do arvoredo para ir ver o cavalo .
O cigano ajoelhou-se nas folhas mortas e começou por examinar os
olhos do animal . Depois retirou-lhe a lama gretada do peito e olhou
para a ferida. Ergueu o rosto para B illy.
Herida de cuchillo , explicou B illy.
A expressão do cigano não se alterou , e ele não tirou os olhos de
Billy. B illy olhou para os outros homen s . Estavam agachados sobre as
ancas , em volta do cavalo . Pareceu-lhe que , caso o cavalo morresse ,
eles eram bem capazes de o comer. Contou que um bando de quatro
ladrões lhe saíra ao caminho , e que um deles , um lunático , atacara o
cavalo . O homem assentiu com a cabeça. Passou a mão pela parte infe
rior do queixo . Não tornou a olhar para o animal . Perguntou a B illy se
queria vender o cavalo , e B illy soube pela primeira vez que o cavalo ia
sobreviver.
Ali agachados , todos o observavam. Ele olhou para o almocreve .
Disse que o cavalo pertencera ao seu pai e que não se podia separar
dele , e o homem fez que sim com a cabeça e abriu a sacola.
Por.firio , disse . Tráigame agua .
Olhou através do arvoredo na direcção do acampamento de B illy,
onde um esguio penacho de fumo , imóvel como uma corda, se erguia
372 Cormac McCarthy
longe . Eles pendiam dos penedos nas trevas ululantes , ele e os seus
homens , como grandes macacos sitiados , e gritavam mudamente uns
aos outros no turbilhão , e o primo dele , chamado Macio , desceu para
amarrar melhor a fuselagem, embora ninguém soubesse de que serviria
a fuselagem sem as asas , e o próprio Macio esteve prestes a ser arrasta
do pelas águas e a morrer. Na manhã do décimo dia, a chuva parou . Eles
avançaram ao longo dos penedos na alvorada húmida e cinzenta, mas
todos os indícios da sua empresa se tinham eclipsado , varridos pela
cheia, como se nada tivesse acontecido . O rio continuou a engrossar, e ,
n a manhã d o dia seguinte , enquanto contemplavam , ali sentados , o jor
ro hipnótico de água na ravina abaixo deles , um homem afogado saiu
disparado da catarata a montante , dir-se-ia um enorme peixe alvacento ,
e de bruços descreveu um círculo na espuma dos remoinhos lá ao fundo ,
como se estivesse em busca de qualquer coisa no leito do rio , e depois
foi sugado para jusante para prosseguir a sua jornada. Já percorrera um
longo caminho nas suas viagens , a avaliar pela sua aparência, pois as
roupas já tinham desaparecido , assim como grande parte da pele e todo
o cabelo , exceptuando um vago tufo sobre o crânio , completamente
raspado devido à passagem sobre os seixos ribeirinhos . Ao rodar em
círculo na espuma, moveu-se de um modo flácido e desengonçado , co
mo se não tivesse ossos . Qual um íncubo ou um manequim. Porém , ao
vê-lo passar por baixo de si , eles puderam ver, revelado naquele corpo ,
aquilo de que os homens são feitos , tudo o que prefeririam ter conti
nuado a ignorar. Puderam ver ossos e ligamentos e puderam ver-lhe as
ripas das costelas mais pequenas e, através da pele dessorada e corroída
pela abrasão , as formas mais escuras dos órgãos no interior. O morto
descreveu um círculo e adquiriu velocidade e depois saiu pela ravina
atroadora, como se tivesse tarefas prementes a jusante .
O cigano soprou suavemente por entre os dentes . Examinou o lume .
Y entonces qué? perguntou B illy.
Ele abanou a cabeça. Como se a recordação daquelas coisas fosse
para ele uma provação . No fim de contas , eles escalaram a escarpa para
sair da garganta e desceram as montanhas até Sahuaripa e aí esperaram
até que , finalmente , uma camioneta surgiu num zumbido a descer pela
estrada quase intransitável de Divisaderos, e eles viajaram na caixa
desta camioneta durante quatro dias , sentados com as pás atravessadas
sobre os joelhos , informes da lama, a descer vezes incontáveis para
cavar e labutar na vasa como condenados enquanto o motorista lhes
gritava da cabina, para depois retomarem a viagem no camião geme
bunda . Até B acanora. Até Tonichi . De novo para norte , saindo de Nuri
378 Cormac McCarthy
até San Nicolás e Y écora para depois continuarem através das monta
nhas , até Temosachic e Madera , onde o homem com quem tinham fir
mado contrato lhes iria exigir a devolução da quantia que lhes fora
adiantada.
O cigano atirou a beata do cigarro para o lume e cruzou as botas
diante dele e puxou-as para si com ambas as mãos e ficou assim senta
do , curvado para diante , a examinar as labaredas . B illy perguntou-lhe se
tinham chegado a encontrar os destroços do avião , e ele respondeu que
não , poi s , na realidade , nada havia para encontrar. Billy perguntou-lhe
então porque é que , bem vistas as coisas , tinham regressado a Madera,
e o homem ponderou esta pergunta. Por fim , disse que não lhe parecia
que tivesse sido por acaso que conhecera o tal homem e fora contratado
para subir às montanhas , nem fora o acaso que enviara as chuvas e cau
sara a cheia no rio Papigochic . Permaneceram sentados em silêncio . O
homem encarregado de velar pelo balde ergueu-se uma terceira vez e
mexeu o conteúdo e retirou-o do lume para arrefecer. Billy olhou para
os rostos solenes em volta da fogueira. Os ossos por baixo da pele cor
de azeitona . Homens que vagueavam pelo mundo . Acocoravam-se ali
com leveza naquele círculo na floresta, a um tempo vigilantes e desem
baraçados . Não estabeleciam com coisa alguma relações de proprieda
de , quase nem o faziam com o espaço que ocupavam. Com base nas
suas vidas passadas , tinham chegado à mesma conclusão que os seus
pais antes deles . Que o movimento em si é uma forma de propriedade .
Ele olhou para eles e disse que o avião que agora transportavam para
norte ao longo da estrada era , portanto , um outro avião .
Os olhos negros de todos os presentes voltaram-se para o chefe da
quele pequeno clã. Este permaneceu imóvel durante muito tempo .
Reinava um grande silêncio . Ali perto , na estrada, um boi começou a
urinar ruidosamente . Por fim , ele moldou a boca e disse que lhe parecia
que o destino interviera na questão por motivos que só ao destino di
ziam respeito . Explicou que o destino podia intervir nos assuntos dos
homens para os deitar por terra ou para os menosprezar, mas dizer que
o destino podia negar a verdade e favorecer o que é falso pareceria uma
visão contraditória das coisas . Falar de uma vontade no mundo que se
opunha à nossa era uma coisa. Falar de uma tal vontade que se opuses
se à verdade era uma coisa bem diversa, já que , nesse caso , tudo deixa
va de fazer sentido . Billy perguntou-lhe então se achava que o falso
avião fora arrastado para longe por Deus de modo a apontar o verdadei
ro , e o cigano respondeu que não fora assi m . Quando B illy lhe disse que
lhe parecera ter percebido das suas palavras que fora Deus quem, em
A Travessi a 379
por dizer. Também não ' tive neste lugar aqui perto como tinha dito . Eu
cá mudo de mulher como quem muda de camisa. Sempre fui assim,
sempre hei-de ser.
Aqueles ciganos trouxeram aquele avião lá do alto das sierras e pelo
rio Papigochic abaixo?
Foi isso que eles contaram?
Foi .
Aquele avião saiu dum celeiro no rancho Tal iafero , perto de Flores
Magón . Nem sequer podia voar nesse lugar que tu ' tás aí a dizer. A
altitude máxima daquele avião não passa duns mil e oitocentos me
tros .
O homem que o pilotava morreu aos comandos?
Que eu saiba, não .
Foi por isso que vieste até este país? Pra encontrar aquele avião e
levá-lo de volta?
Vim até este país porque tinha emprenhado uma rapariga em McAllen ,
no Texas , e o paizinho dela queria-me dar um tiro .
Billy fitou a fogueira.
Fala-se muito duma pessoa fugir dum lobo pra se ir a correr meter na
boca doutro , prosseguiu o homem. Alguma vez levaste um tiro?
Não .
Eu já, duas vezes . A última vez foi no centro de Cuauhtémoc , em
plena luz do dia, numa tarde de sábado . Toda a gente desatou a fugir. O
que me valeu foram duas menonistas que me apanharam do chão da rua
e me meteram numa carroça , senão eu ainda ' tava pràli caído .
E onde é que te acertaram com o tiro?
Aqui mesmo , respondeu ele . Voltou-se e empurrou o cabelo para trás
acima da têmpora direita. Vês aqui? Vê-se bem .
Debruçou-se e escarrou para dentro do lume e olhou para o charuto e
tornou a metê-lo na boca. Puxou uma fumaça. Eu cá não sou maluco ,
prosseguiu .
Eu nunca disse que eras .
Não . Mas és bem capaz de ter pensado .
É s capaz de ter pensado o mesmo sobre mim .
Sou capaz .
Isso aconteceu mesmo ou só disseste por dizer?
Não . Aconteceu mesmo .
Mataram o meu irmão a tiro aqui em baixo . Eu tinha vindo até cá pro
levar pra casa. Mataram-no a sul daqui . Numa povoação chamada S an
Lorenzo .
A Travessia 387
Uma pessoa consegue fazer com que a matem aqui em baixo quase
tão depressa como outra coisa qualquer que decida fazer.
Mataram o meu pai a tiro no Novo México . O cavalo que ' tá deitado
acolá era dele .
Este mundo é cruel , comentou o homem .
Ele veio do Texas em mil nove e dezanove . Tinha mais ou menos a
idade que eu tenho agora. Não nasceu lá. Nasceu no Missouri .
Eu tinha um tio que nasceu no Missouri . O pai dele caiu duma carro
ça uma noite e estatelou-se na lama, perdido de bêbedo , quando ia a
passar por lá, e foi assim que calhou ele nascer no Missouri .
A minha mãe era dum rancho lá em cima , no condado de De B aca.
A mãe dela era mexicana de gema , nem sequer falava uma palavra de
inglês . Viveu com a gente até morrer. Eu tinha uma irmã mais nova
que morreu quando eu tinha sete anos , mas lembro-me perfeitamente
dela. Fui até Fort Sumner pra tentar achar a sepultura dela, mas não
consegui . Chamava-se Margaret. Sempre gostei desse nome pra uma
rapariga. Se alguma vez tivesse uma filha, era esse o nome que lhe
dava.
É melhor eu ir andando .
Bom .
Não te esqueças d o que e u te disse sobre a fogueira .
Bom.
Dá impressão de que já tiveste sarilhos de sobra neste mundo .
Pus-me a dar à língua , mais nada. Tenho tido mais sorte do que a
maioria. Só há uma vida que merece ser vivida, e eu nasci prà viver. Isso
compensa tudo o resto . O meu comparsa sabia viver bem melhor do que
eu . Era uma pessoa genuína de nascença. E era mais esperto do que eu ,
além disso . Nem só sobre cavalos . Sobre todas as coisas . O meu pai
sabia bem que assim era. Sabia-o e sabia que eu sabia e não havia mais
nada pra dizer sobre o assunto .
É melhor eu ir andando .
Toma cuidado contigo .
Hei-de tomar.
Levantou-se , ajeitou o chapéu . A Lua estava alta e o céu desanuviara
-se . O rio , jazendo atrás das árvore s , parecia metal em fusão .
Este mundo nunca mais vai ser o mesmo , comentou o cavaleiro .
Sabias?
Eu sei . Já não o é neste momento .
* * *
388 Cormac McCarthy
Quatro dias depois , partiu para norte ao longo do rio , com os restos
mortais do irmão presos a um travais que fizera com árvores novas a
arrastar atrás do cavalo . Levaram três dias a alcançar a fronteira . Ele
deixou para trás o primeiro obelisco branco a assinalar a linha de fron
teira internacional a oeste de Dog Springs e cruzou o velho reservatório
seco que ali existia. Os vetustos taludes de terra tinham desabado em
certos pontos , e ele cavalgou através do leito de argila gretada do reser
vatório , com as varas do travais a raspar na sua esteira. Havia na argila
pegadas de gado e de antílopes e de coiotes que tinham passado por ali
depois de uma chuvada recente , e ele deparou com um lugar que estava
totalmente coberto por runas , os rastos aleatórios de grous em forma de
tridente onde as aves tinham descido em voo planado até pousarem
para depois deambularem em passadas largas sobre aquela lama estéril.
Dormiu naquela noite no seu país natal e teve um sonho em que viu os
peregrinos de Deus a calcorrearem a berma sombria de um caminho à
derradeira luz do lusco-fusco daquele dia, e eles pareciam estar a regres
sar de algum árduo cometimento que não era um feito guerreiro e tam
bém não estavam ainda em fuga, antes pareciam de regresso de alguma
labuta a que talvez aquelas e todas as outras criaturas estivessem subju
gadas . Um arroya escuro separava-o do lugar onde eles caminhavam, e
ele olhou para ver se conseguia perceber pela natureza das suas ferra
mentas qual a tarefa que eles tinham estado a executar, mas eles não
traziam ferramenta alguma e avançavam a custo em silêncio sobre o
pano de fundo de um céu que escurecia em todos os quadrantes e depois
desapareceram . Ao acordar nas trevas que o rodeavam por completo ,
pareceu-lhe que uma qualquer criatura teria efectivamente passado na
noite do deserto e ficou ali acordado muito tempo , mas nada lhe indica
va que essa criatura alguma vez regressasse .
No dia seguinte , cavalgou através de Hermanas e rompeu pela estra
da poeirenta para oeste e , nesse final de tarde , parou o cavalo defronte
da loja em Hatchita e olhou ao longe , para o Sudoeste , onde o Sol tardio
batia nos picos das Animas , e soube que nunca mais iria até àquele lu
gar. Cruzou o vale das Animas devagar, a arrastar o travais atrás de si ,
e esta travessia levou-lhe o dia inteiro . Quando entrou no povoado de
Animas , na manhã do dia seguinte , era Quarta-Feira de Cinzas pelo
calendário , e as primeiras pessoas que ele viu foram mexicanos com
marcas de fuligem na testa , cinco crianças e uma mulher a caminharem
em fila indiana pela berma poeirenta da estrada, vindas da localidade .
Desejou-lhes os bons-dias , mas elas benzeram-se ao verem o corpo no
travais e seguiram caminho sem uma palavra. Ele comprou uma pá na
A Travessia 389
Prefácio 7
A Travessia
I 15
II 1 26
III 204
IV 309
O Filho de Deus
O Guarda do Pomar
Meridiano de Sangue
A Estrada , vencedor do Prémio Pulitzer 2007
Este País Não É para Velhos
Suttree
Belos Cavalos
Nas Trevas Exteriores
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