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A Travessia

Relógio D'Água Editores


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© 1994 by Cormac McCarthy

Título: A Travessia
Título original: The Crossing (1994)
Autor: Cormac McCarthy
Tradução e Prefácio: Paulo Faria
Revisão de texto: Anabela Prates Carvalho
Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)
sobre fotografia de Peter Josyph

©Relógio D'Água Editores, Novembro de 2012

Encomende os seus livros em:


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ISBN 978-989-641-324-8

Composição e paginação: Relógio D' Á gua Editores


Impressão: Guide Artes Gráficas, Lda.
Depósito Legal n.0: 351609/12
Cormac McCarthy

A Travessia
Segundo Volume
Trilogia da Fronteira

Tradução e Prefácio de
Paulo Faria

Ficções
Prefácio

«Acho que foi a escrita dele que o levou até lá .» Foi assim, com
esta frase luminosa, que Jim Long, amigo de infância de Cormac Mc­
Carthy, me explicou a inflexão ocorrida na obra deste com Meridiano
de Sangue (1985), deslocando o eixo da sua escrita dos Apalaches
para o Oeste selvagem . Jim Long, o 1-Bone que McCarthy imortalizou
em Suttree (1979), não andou na universidade, não concluiu sequer o
liceu, mas resumiu nesta formulação tão bela o que toda uma legião
de críticos literá'rios nunca exprimira com tanta clareza . Cormac Mc­
Carthy, o escritor da aridez e do silêncio que antecede o trovão, poeta
da brutalidade e da luta do ser humano contra a inevitabilidade do
caos, das convulsões viscerais da vida orgânica e dos cataclismos ge­
ológicos, cronista das cicatrizes do passado a cauterizar a pele do
presente , Cormac McCarthy tinha inevitavelmente de povoar com a
sua prosa, alterando-a e redesenhando-a, a imensidão da paisagem
árida do Oeste selvagem e também esse outro mundo misterioso, cati­
vante e ameaçador: o México . Mais cedo ou mais tarde, a escrita dele
iria conduzi-lo até ali, pois precisava desta paisagem para se expandir
e se alcandorar a um novo patamar de tenebrosa excelência . E foi
também claro desde o início que o imaginário do Oeste, com o seu
contraste entre pulsões construtivas e destrutivas, entre sonho e pesa­
delo, entre extrema candura e perversidade extrema, tinha com o ima­
ginário de McCarthy tantos pontos de contacto que um e outro esta­
vam destinados a encontrar-se .
Dois anos depois de Belos Cavalos (1992), que lhe valeu o National
Book Award e o tornou conhecido para além do círculo relativamente
restrito de admiradores que até aí acompanhavam a sua obra, McCar­
thy prosseguiu a sua Trilogia da Fronteira com este A Travessia (1994) .
Depois da saga de John Grady Cole por terras mexicanas em Belos
8 Prefácio

Cavalos, o México volta a ocupar um lugar central neste segundo tomo


da trilogia . Se em Belos Cavalos o México era um lugar traiçoeiro on­
de, sob uma aparência edénica, se escondiam ameaças terríveis, neste
A Travessia acentua-se o retrato deste país como lugar onde os impul­
sos mais rudes têm livre curso, terra de descoberta interior que traz à
tona de cada um de nós os sentimentos mais genuínos, destruindo-nos
ou jazendo de nós heróis . Ou (como no caso de Billy Parham)
calejando-nos e despojando-nos de quase todas as réstias de inocência
e de idealismo .
Cormac McCarthy não retrata o México como um inferno, longe
disso . É antes um lugar primitivo, onde tudo está à .flor da pele e à .flor
da terra, pronto a brotar, onde a generosidade dos miseráveis e a pre­
potência e a brutalidade dos mais fortes coexistem a cada passo . É
também uma terra a um tempo amaldiçoada e encantada, onde a lenda
e a realidade se confundem . Mais ainda , uma terra onde todo e qual­
quer acontecimento invulgar se metamorfoseia quase de imediato em
narrativa lendária, enriquecendo-se de pormenores mirabolantes que
constituem uma nova realidade ficcional, quiçá mais genuína do que a
chã realidade de partida . E, na atmosfera de conto de fadas que envol­
ve tantas destas páginas, é como se Cormac McCarthy nos dissesse
constantemente: «É assim mesmo que eu escrevo, as minhas histórias
brotam com a espontaneidade orgânica destas fábulas anónimas, eu
limito-me a transcrevê-las, como se mas ditassem .» Para os mais aten­
tos, McCarthy inclui até, na boca do sábio Mr Sanders (no momento em
que este descreve a arte de um caçador exímio chamado Echols), aqui­
lo que talvez seja uma subtil metáfora do seu processo mental criativo
de escritor e uma justificação para a sua já lendária aversão a debater
os pormenores da sua própria obra: «Fui com ele uma ou duas vezes .
Ele montava uma armadilha num lugar qualquer e não havia o mais
leve sinal duma criatura passar por ali, e eu perguntava-lhe porque é
que a 'tava a armar ali, e metade das vezes ele não me sabia responder.
Não me sabia responder.» A verdade é que, em A Travessia, o mais
longo de quantos romances Cormac McCarthy escreveu, há quase sem­
pre alguém a contar uma história (e outra dentro desta e assim suces­
sivamente), um pouco à maneira do D. Quixote, e McCarthy maneja os
ritmos da narrativa com mão de mestre, alternando o tom de fábula e o
de tragédia, precipitando a acção para logo lhe sojrear as rédeas, re­
gressando aos mesmos temas e reutilizando as mesmas imagens uma e
outra vez sem que disso nos apercebamos, com a perícia de um conta­
dor de histórias do tempo da tradição oral, dir-se-ia .
A Travessia 9

O crítico John Wegner escreveu que «a Trilogia da Fronteira não


lida somente com a violência; o seu tema é a inevitabilidade da guerra,
a incapacidade para sobreviver pacificamente» . Esta incapacidade não
se manifesta somente por pulsões violentas . Manifesta-se também por
uma espécie de inconformismo pragmático, um lirismo com os pés bem
assentes no chão que não recua perante nenhum obstáculo . Nem John
Grady Cole nem Billy Parham são particularmente belicosos - são
tremendamente obstinados, isso sim, e (como tantas outras persona­
gens de McCarthy) parecem tomados de uma febre de irrequietude, uma
prontidão para partir, para afrontar as forças castradoras da inércia e
deixar tudo para trás de um momento para o outro . São (cada qual à
sua maneira) órfãos em busca de um lugar na terra, condenados à
eterna errância em demanda de um mundo harmonioso que talvez nun­
ca tenha existido a não ser nas tais lendas de matriz popular. O final de
A Travessia é particularmente revelador, com Billy a vislumbrar os
efeitos do ensaio atómico de Trinity, no Sul do Novo México, em Julho
de 1945 . Pelo menos é deste modo que muitos interpretam os derradei­
ros parágrafos da obra, e é lógico que assim seja: que melhor aconte­
cimento para assinalar o encerrar definitivo de uma era e vincar bem
a tal «incapacidade de sobreviver pacificamente» do que a primeira
explosão de uma bomba atómica concebida pelo homem para destruir
os seus semelhantes numa escala sem precedentes ?
Billy Parham revela com o mundo natural a mesma harmonia que
estava patente em John Grady Cole, e a escrita de McCarthy converte­
-se na ferramenta ideal para a retratar. Billy fala com a loba e com os
cavalos com uma desenvoltura e um tu-cá-tu-lá que torna claro que ele
próprio faz parte integrante do mundo orgânico em torno de si. Há
entre ele e os animais uma cumplicidade absoluta: ele insulta a loba
com benevolência trocista, censura-a, Jaz-lhe promessas, espicaça-a,
fala-lhe da sua vida, canta para ela . Alcançou com os seres vivos a
afinidade de um irmão, de um igual, reina entre ele e a natureza a con­
fiança máscula que une os companheiros de armas ou de ofício . Pouco
antes da captura da loba pelos mexicanos, homem, cavalo e loba expe­
rimentam um breve instante de harmonia quase perfeita, bebendo no
rio lado a lado em silêncio e em paz, como num Éden revisitado em que
as feras amansadas bebem nos regatos ao lado dos cordeiros .
De entre os temas que marcam o universo de McCarthy, há um que
sobressai: a ideia de que aquilo que nos desperta do sono (literal ou
figurado) não é um ruído nem uma intrusão, é antes o cessar de qual­
quer coisa no mundo . Por outras palavras: há presenças implícitas no
10 Prefácio

mundo que nos rodeia, de cuja existência não nos damos conta a não
ser quando essa existência cessa abruptamente . Em Meridiano de San­
gue, o ex-padre, à laia de metáfora da voz de Deus, socorre-se da ima­
gem dos cavalos a pastar na noite que, quando cessam, acordam todos
os homens adormecidos num acampamento . Em A Travessia, quando a
respiração silenciosa de um irmão adormecido ao nosso lado cessa
porque ele se levantou sem fazer ruído, acordamos também . A voz do
amor divino, do amor fraterno, está sempre presente em Cormac Mc­
Carthy, mas quase nunca é enunciada, quase nunca se torna explícita:
damos por ela quando cessa . As personagens dele raramente dizem
umas às outras que nutrem afecto mútuo; comunicam umas com as
outras e com o mundo por uma panóplia de gestos instintivos que in­
corporam o amor mútuo como coisa que não se nomeia, acerca da qual
não se reflecte, que só sabemos que existe quando se cala: quando al­
guém morre ou desaparece, quando um modo de vida ou um lugar
morre ou desaparece também . Sempre em silêncio .
E falar em silêncio é também trazer à liça tudo o que McCarthy cala .
No meio de tantas descrições pormenorizadas (imagem de marca do
autor), há sempre facetas e episódios cuidadosamente escolhidos que
McCarthy deixa envoltos em mistério, como que para nos atormentar.
Em Por Quem os Sinos Dobram, quando Pilar narra em pormenor a
Robert Jordan e a Maria a matança dos fascistas numa cidadezinha
espanhola, abstém-se depois de contar aquilo que diz ter sido «ainda
pior»: a entrada dos fascistas na povoação, três dias depois . Hem­
ingway jaz questão de deixar à imaginação do leitor a tarefa de preen­
cher este vazio . McCarthy jaz o mesmo na cena da latrina que encerra
Meridiano de Sangue, e torna a lançar mão deste artifício em A Traves­
sia. Quando Billy deambula por uma feira de diversões (território de
eleição do imaginário mccarthyano), o pregoeiro diante de uma. cara­
vana, mais o seu acólito, tentam incitá-lo a entrar para ver uma atrac­
ção fascinante, mas que nunca chega a ser nomeada, deixando-nos
para sempre na dúvida . Que atracção se esconde no interior? É a diva
da companhia de ópera que está dentro da caravana ? Que espectáculo
sórdido ou grotesco ali se encena ? E, mais importante ainda: será que
o próprio Cormac McCarthy sabe a resposta a estas perguntas?
Voltemos ao início . «Foi a escrita dele que o levou até lá.» A frase de
Jim Long revela-se uma formulação certeira a muitos níveis e aplica-se
com especial relevância a este A Travessia. Nunca como aqui foi tão
patente que a escrita de Cormac McCarthy é ela própria uma viagem
que nos leva até ao mais fundo de nós mesmos, uma jornada pelos me-
A Travessia 11

andros do nosso destino, uma demanda para tentar resolver o enigma


de saber até que ponto somos joguetes nas mãos de um ente supremo
ou seres capazes de determinar o nosso próprio rumo . A escrita de
McCarthy levou-o até ao Oeste e leva-nos agora nesta travessia pelas
terras ermas da nossa condição humana . Deixemo-nos, pois, levar.

Julho de 2012
Paulo Faria

Bibliografia consultada para esta tradução:

Arnold, Edwin T. e Dianne C. Luce (org.), Perspectives on Cormac McCarthy,


University Press of Mississippi, Jackson, 1999.
Arnold, Edwin T. e Dianne C. Luce (org.), A Cormac McCarthy Companion
- T he Border Trilogy, University Press of Mississippi, Jackson, 2001.
Hall, Wade e Rick Wallach, Sacred Violence (Volume 2- Cormac McCarthy's
Western Novels), Texas Western Press, El Paso, 2002.
Hawbaker, S. Stanley, Trapping North American Furbearers, Mercersburg
Printing, Mercersburg, 1974.
Ward, Fay E., The Cowboy at Work, Dover Publications, Mineola, Nova Ior­
que, 2003.
A Travessia
I

Quando se mudaram para sul , vindos do condado de Grant, Boyd mal


passava de um bebé , e o condado recém-formado que recebera o nome
de Hidalgo era em si pouco mais velho do que a criança. Na terra que
abandonaram jaziam os ossos de uma irmã dele e os ossos da avó ma­
terna. Aquela nova terra era fértil e bravia. Podia-se cavalgar a direito
até ao México sem deparar com uma só vedação . Ele carregava Boyd à
sua frente no cepilho da sela e ia-lhe dizendo os nomes dos traços da
paisagem e das aves e dos animais , em espanhol e em inglês . Na nova
casa, dormiam no quarto contíguo à cozinha, e de noite ele ficava acor­
dado na cama, à escuta da respiração do irmão no escuro , e sussurrava­
-lhe a meia-voz , enquanto ele dormia, os planos que traçara para eles e
como ia ser a vida de ambos .
Numa noite de Inverno , naquele primeiro ano , acordou com o clamor
dos lobos nos montes baixos , a oeste da casa, e soube que eles iriam
descer para a planície , sobre a neve acabada de cair, para perseguir os
antílopes ao luar. Puxou as calças pousadas aos pés da cama e pegou na
camisa e no casaco de lona com forro de cobrejão e tirou as botas de
baixo da cama e saiu para a cozinha e vestiu-se nas trevas , junto ao té­
nue calor do fogão , e ergueu as botas junto à janela para perceber qual
era a direita e qual a esquerda e calçou-as e pôs-se de pé e encaminhou­
-se para a porta da cozinha e saiu e fechou a porta atrás de si .
Ao passar junto ao estábulo , os cavalos- lançaram-lhe queixumes em
surdina no frio . A neve rangia-lhe debaixo das botas , e o hálito dele
fumegava à luz azulada. Uma hora depois , estava agachado na neve do
leito seco do regato , por onde sabia que os lobos tinham passado nas
suas idas e vindas , graças às pegadas na areia das ravinas , graças às
pegadas na neve .
16 Cormac McCarthy

Eles encontravam-se já na planura, e , ao cruzar o leque de saibro


onde o regato se derramava para sul , para o seio do vale , ele viu o pon­
to onde eles tinham atravessado antes . Avançou de gatas , apoiado nos
joelhos e nos cotovelos , com as mãos enfiadas nas mangas para as man­
ter afastadas da neve , e, quando alcançou os últimos zimbros escuros e
baixos , no lugar onde o amplo vale corria por baixo dos picos das Ani­
mas , agachou-se em silêncio para serenar o fôlego e depois soergueu-se
devagar e olhou ao longe .
Eles estavam a correr na planície , a acossar os antílopes , e os antílo­
pes moviam-se como fantasmas na neve e descreviam círculos e rodo­
piavam , e a poeira seca soprava em volta deles no luar frio e o bafo
deles fumegava, alvacento , ao frio , como se os consumisse algum fogo
interior, e os lobos contorciam-se e rodavam e saltavam num silêncio tal
que pareciam pertencer a um outro mundo totalmente diverso. Avança­
ram pelo vale fora e rodopiaram e avançaram para o outro extremo da
planície até se reduzirem a minúsculas silhuetas naquela brancura esba­
tida e depois desapareceram.
Ele tinha imenso frio . Esperou . Reinava ali um grande silêncio . Gra­
ças ao próprio hálito , conseguia perceber de que lado soprava o vento ,
e ficou a ver o hálito a brotar e a desaparecer e a brotar e a desaparecer
constantemente diante de si no frio, e esperou muito , muito tempo . Foi
então que os viu surgir. A correr em passadas largas , a cabriolar. A dan­
çar. A enfiar os focinhos na neve , esfuracando-a. A correr em passadas
largas e a galopar e a erguerem-se aos pares numa dança erecta para
logo tornarem a correr.
Eram sete no total e passaram a uns cinco metros do lugar onde ele
estava deitado . Ele via-lhes os olhos cor de amêndoa ao luar. Ouvia­
-lhes a respiração . Sentia no ar, eléctrica, a presença do saber deles .
Eles aglomeraram-se e roçaram os focinhos uns nos outros e lamberam­
-se uns aos outros . Depois imobilizaram-se . Estacaram , de orelhas ar­
rebitadas . Alguns com uma pata dianteira erguida até junto do peito .
Estavam a fitá-lo . Ele susteve a respiração . Eles sustiveram a respira­
ção . Ficaram imóveis . Depois voltaram-se e, em silêncio , afastaram-se
a trote . Quando ele chegou a casa, Boyd estava acordado , mas ele não
lhe disse onde tinha estado nem o que tinha visto . Não chegou a contar
a ninguém .
No Inverno em que Boyd fez catorze anos , as árvores que habitavam
o leito seco do rio ficaram despidas muito cedo , e o céu estava cinzento
dia após dia e as árvores assomavam, alvacentas , contra o céu . Um ven­
to frio descera do Norte , com a terra a correr sob as estacas nuas ao
A Travessia 17

encontro de u m acerto de contas cujos livros-mestres seriam compila­


dos e datados apenas muito depois de todos os créditos pendentes terem
caducado , tal é esta história. Entre os choupos pálidos com os galhos
como ossos e os troncos a despojarem-se da casca alvacenta ou verde
ou mais escura, aglomerados na curva exterior do leito do rio , abaixo da
casa, erguiam-se árvores tão colossais que na mata da margem oposta
havia um cepo serrado sobre o qual , em Invernos passados , os vaqueiros
tinham erguido uma tenda de lona para os mantimentos com um metro
por dois , para aproveitar o piso de madeira que o cepo proporcionava.
Ao cavalgar em busca de lenha, ele observava a própria sombra e a
sombra do cavalo e do travais a cruzarem aquelas paliçadas , árvore
após árvore . Boyd seguia no travais , a agarrar o machado , como que a
montar guarda à lenha que tinham recolhido , e olhava para oeste de
pálpebras franzidas , para onde o Sol fervilhava num lago seco e verme­
lho sob as montanhas áridas e os antílopes avançavam passo a passo e
baixavam a cabeça entre as vacas , recortados em silhueta sobre a planu­
ra que se estendia em primeiro plano .
Cruzaram o manto de folhas secas no leito do rio e cavalgaram até
chegar a um tanque ou pego no rio , e ele desmontou e deu de beber ao
cavalo enquanto Boyd percorria a margem em busca de pegadas de
ratos-almiscarados . O índio junto de quem Boyd passou , agachado so­
bre os calcanhares , nem sequer ergueu os olhos , de modo que , quando
ele o pressentiu ali e se voltou , o índio estava a olhar-lhe para o cinturão
e nem mesmo então ergueu os olhos e só o fez quando ele estacou por
completo . Ele podia ter estendido o braço e ter-lhe tocado com a mão .
O índio ali acocorado sob uma mancha esparsa de carriza , bem às cla­
ras , e, todavia, Boyd não o vira. O índio segurava sobre os joelhos uma
velha espingarda tiro a tiro 32 de percussão lateral , e estava de atalaia
ao lusco-fusco , à espera de que um qualquer animal se acercasse da
água para o matar. Fitou o rapaz nos olhos . O rapaz fitou-o também
assim. Olhos tão escuros que pareciam formados unicamente pela pupi­
la. Olhos em cujo seio o Sol se estava a pôr. Em cujo seio o rapaz esta­
va parado à ilharga do Sol .
Ele não sabia que uma pessoa se podia ver espelhada nos olhos de
outrem , nem que se podiam ali ver coisas como sói s . Erguia-se , gemi­
nado , naqueles poços escuros , com o cabelo tão claro , tão magro e tão
estranho , a mesmíssima criança. Como se fora uma criança do mesmo
sangue dele que se tivesse perdido e que agora ali estava, exilada num
outro mundo , atrás de uma janela fechada, onde o Sol vermelho se pu­
nha eternamente . Dir-se-ia um labirinto onde aqueles órfãos , despoja-
18 Cormac McCarthy

dos do coração dele , se tivessem transviado na sua jornada pela vida, até
finalmente darem por si atrás da muralha daquele olhar vetusto , de onde
não havia regresso possível para todo o sempre .
Do lugar onde se encontrava, ele não conseguia avistar o irmão nem
o cavalo . Viu os anéis vagarosos a afastarem-se sobre a água a partir do
ponto onde o cavalo bebia, atrás do canavial , e viu a ligeira flexão mus­
cular por baixo da pele da mandíbula esguia e glabra do índio .
O índio voltou-se e olhou para o pego . O único som era o da água a
gotejar do focinho erguido do cavalo . Olhou para o rapaz .
Meu cabrãozinho duma figa, disse .
Eu não fiz nada.
Quem é aquele contigo?
O meu irmão .
Que idade tem ele?
Dezasseis .
O índio ergueu-se . Ergueu-se imediatamente e sem esforço e olhou
na direcção do pego , onde Billy estava de pé , a segurar o cavalo , e de­
pois olhou novamente para Boyd . Vestia um velho casaco andrajoso de
cobrejão e tinha na cabeça um velho Stetson sebento com a copa enfu­
nada e tinha as botas remendadas com arame .
O qué que vocês andam aqui a fazer?
Viemos à cata de lenha.
Têm alguma coisa que se coma?
Não .
Ondé que vocês moram?
O rapaz hesitou .
Perguntei-te ondé que vocês moravam.
Ele fez um gesto para jusante .
Muito longe?
Não sei .
Meu cabrãozinho duma figa.
Pôs a espingarda ao ombro e caminhou pela margem do pego e ficou
ali parado , a olhar para o cavalo e para B illy.
Viva, saudou B illy.
O índio escarrou . Vocês assustaram a caça toda aqui nas redondezas ,
não é verdade? soltou .
Não sabíamos que ' tava aqui alguém.
Não têm nada que se coma?
Não , senhor.
Ondé que vocês moram?
A Travessia 19

Uns três quilómetros pra jusante .


Têm alguma coisa que se coma lá em vossa casa?
Temos , sim, senhor.
Se eu for até lá vocês trazem-me alguma coisa cá pra fora?
Pode vir até à nossa casa. A mamã dá-lhe de comer.
Eu não quero entrar n a vossa casa. Quero que vocês me tragam algu-
ma coisa cá pra fora.
Muito bem .
Vocês vão-me trazer alguma coisa cá pra fora ou não?
Sim.
Então ' tá combinado .
O rapaz continuava parado , a segurar o cavalo . O cavalo não tirara os
olhos do índio . Boyd , disse ele . Anda daí.
Vocês têm cães lá em casa?
Só um .
Vais prendê-lo?
Seja. Eu prendo-o .
Fecha-o num lugar qualquer, onde ele não se ponha a ladrar.
Muito bem .
Não vou até lá pra levar um tiro .
Eu prendo-o .
Pronto , muito bem .
Boyd . Anda daí. Vamos embora.
Boyd permanecia do lado oposto do pego , a olhar para ele .
Anda. Não tarda vai escurecer aqui .
Vai-te lá embora, faz o que o teu irmão te manda, disse o índio .
Nós não o ' távamos a incomodar.
Anda daí, Boyd . Vamos embora.
Ele cruzou a língua de saibro e trepou para cima do travo is .
Salta cá pra cima, disse B illy.
Ele desceu do alto da pilha de galhos que tinham recolhido e lançou
um olhar ao índio por cima do ombro e depois esticou o braço e tomou
na sua a mão que Billy lhe estendia e içou-se para a garupa do cavalo ,
atrás do irmão .
Como é que o encontramos? perguntou Billy.
O índio estava de pé , com a espingarda aos ombros , as mãos penden­
tes sobre a arma. Quando saírem, sigam direitos à Lua, disse .
E se a Lua ainda não tiver nascido?
O índio escarrou . Achas que eu te ia dizer pra seguires direito a uma
Lua que não ' tivesse lá? Vá, toca a andar.
20 Cormac McCarthy

O rapaz picou o cavalo e eles afastaram-se através das árvores . As


varas do travois arrastavam pequenos montinhos de folhas mortas com
um sussurro seco . O Sol baixo a oeste . O índio ficou a vê-los partir. O
rapaz mais novo cavalgava com um braço à volta da cintura do irmão ,
o rosto encarnado do sol , o cabelo , que era quase branco , cor-de-rosa do
sol . O irmão dissera-lhe para não olhar para trás , seguramente , porque
ele não olhou para trás . Quando cruzaram o leito seco do rio e subiram
para a planura, o Sol já estava atrás dos picos das montanhas Peloncillo ,
a oeste , e o céu ocidental tinha uma cor vermelho-escura sob os recifes
de nuvens . Romperam para sul , ao longo das margens escarpadas do rio
seco , e, quando Billy olhou por cima do ombro , o índio vinha oitocentos
metros atrás deles , ao lusco-fusco , trazendo a espingarda numa mão
com gesto descontraído .
Porque é que 'tás a olhar pra trás? perguntou Boyd .
Porque ' tou , pronto .
Vamos levar-lhe de comer?
Sim. Acho que podemos fazer isso .
Nem tudo o que podemos fazer é boa ideia, retorquiu Boyd .
Eu sei .

Observou o céu nocturno através da janela da sala da frente . As pri­


meiras estrelas cunhadas do seio da cumeeira escura, a sul , pendiam do
entrelaçado de verga sem vida do arvoredo ao longo do rio . A claridade
da Lua , que ainda não se erguera no céu , jazia numa neblina sulfurosa
sobre o vale , a leste . Ele ficou a ver enquanto a luz se derramava ao
longo dos bordos da pradaria desértica e a cúpula da Lua assomava da
terra, branca e bojuda e membranosa. Então desceu da cadeira onde
estivera ajoelhado e foi chamar o irmão .
Billy tinha carne de vaca e scones e uma caneca de folha cheia de
feijão , tudo embrulhado num pano e escondido atrás das panelas , na
prateleira da despensa, junto à porta da cozinha. Mandou Boyd à frente
e ficou à escuta e depois seguiu-o para o exterior. O cão ganiu e raspou
a porta do fumeiro com as unhas quando eles passaram por ali , e ele
mandou o cão calar-se e o animal obedeceu . Avançaram de costas ver­
gadas junto à cerca e depois começaram a descer em direcção às árvo­
res . Quando chegaram ao rio , a Lua estava bem alta no céu , e o índio
encontrava-se ali parado , com a espingarda novamente à laia de canga,
atravessada sobre o pescoço . Viam-lhe o hálito no frio. Ele deu meia­
-volta e eles seguiram-no através do leito de cascalho e meteram pelo
A Travessia 21

trilho de gado n a margem oposta, para jusante , ao longo da orla do pas­


to . Havia fumo de lenha no ar. Quatrocentos metros abaixo da casa, al­
cançaram a fogueira dele no meio dos choupos , e ele encostou a espin­
garda ao tronco de uma árvore e virou-se e olhou para eles .
Traz cá isso , ordenou .
B illy caminhou até à fogueira e tirou a trouxa da curva do braço e
estendeu-a. O índio pegou-lhe e agachou-se diante do lume com o mes­
mo desembaraço de marioneta que já antes se lhe vira e pousou o pano
no chão diante dele e abriu-o e retirou de lá o feijão e colocou a caneca
junto às brasas para aquecer e depois pegou num dos scones e num
pedaço de carne de vaca e começou a mastigar.
Essa caneca vai ficar toda preta, disse Billy. Eu tenho de a levar outra
vez pra casa .
O índio mastigava, com os olhos escuros semicerrados à luz das cha-
mas . Vocês não têm café lá em casa, indagou .
Não ' tá moído .
E tu não podes moer uma porção?
Posso , mas vai-se ouvir o barulho .
O índio meteu a segunda metade do scone na boca e inclinou-se um
bocadinho para diante e extraiu uma faca de mato de um qualquer pon­
to do seu corpo e estendeu o braço e mexeu o feijão na caneca com a
lâmina e depois ergueu os olhos para Billy e passou a lâmina sobre a
língua, primeiro um lado , depois o outro , num movimento lento como
se afiasse a faca, e depois cravou-a na ponta do tronco contra o qual
ardia a fogueira.
Há quanto tempo moram vocês aqui , perguntou .
Há dez anos .
Há dez anos . A vossa família é dona desta terra?
Não .
Estendeu o braço e pegou no segundo scone e cortou-o com os dentes
brancos e quadrados e pôs-se a mastigar, ali sentado .
Donde é que vossemecê é? perguntou Billy.
Sou de até onde a vista alcança.
E pra onde é que vai?
O índio debruçou-se e soltou a faca do tronco e tornou a mexer o
feijão e lambeu novamente a lâmina e depois enfiou a faca através da
pega e ergueu a caneca enegrecida. do fogo e pousou-a no chão diante
de si e começou a comer o feijão com a faca.
Que mais têm vocês lá em casa?
Como?
22 Cormac McCarthy

Perguntei o qué que vocês têm mais lá em casa.


Levantou a cabeça e remirou-os ali parados à luz da fogueira, a mas-
tigar vagarosamente , de olhos semicerrados .
Que género de coisas?
Todo o género de coisas . Alguma coisa que eu possa vender.
Não temos nada.
Não têm nada.
Não, senhor.
Ele continuou a mastigar.
Vocês vivem numa casa vazia?
Não .
Então têm alguma coisa.
Há mobílias e coisas assim . Aprestos da cozinha.
Têm cartuchos de espingarda?
Sim, senhor. Alguns .
De que calibre?
Não servem na sua espingarda.
De que calibre .
Quarenta e quatro quarenta.
Porqué que não me trazes uns quantos desses .
O rapaz lançou um aceno de cabeça à espingarda encostada à árvore .
Aquela espingarda além não é de calibre quarenta e quatro .
Não faz diferença. Eu posso trocar.
Não lhe posso trazer cartuchos de espingarda. O velhote dava logo
pela falta deles .
Então pra qué que falaste nos cartuchos , logo pra começar?
É melhor irmos andando , acudiu Boyd .
Temos de levar a caneca com a gente .
E que mais têm vocês? tomou o índio .
Não temos nada, respondeu Boyd .
Eu não te perguntei a ti . Que mais têm vocês?
Não sei . Vou ver o que consigo encontrar.
O índio meteu na boca a outra metade do segundo scone . Estendeu a
mão e tocou ao de leve na caneca com os dedos para ver se estava quen­
te e pegou-lhe e verteu os feijões restantes para dentro da boca aberta e
passou um dedo estendido pelo interior da caneca e lambeu o dedo e
tomou a pousar a caneca no chão .
Traz-me uma porção do tal café , disse .
Não posso moê-lo , que eles ouvem-me .
Traz o café e pronto . Eu esmigalho os grãos com uma pedra.
A Travessia 23

'Tá certo .
Ele fica aqui comigo .
Pra quê?
Pra me fazer companhia.
Pra lhe fazer companhia.
Isso mesmo .
Ele não precisa de ficar aqui .
Eu não lhe vou fazer mal .
Eu sei que não . Porque ele não vai ficar.
O índio sorveu o ar entre os dentes . Vocês têm armadilhas?
Não temos armadilhas nenhumas .
Ele ergueu os olhos para eles . Sorveu o ar entre os dentes com um ruí-
do sibilante . Toca a andar, então , disse . Tragam-me um bocado de açúcar.
Muito bem . Deixe-me ver a caneca.
Podes levá-la quando voltares .
Quando chegaram ao trilho do gado , B illy olhou para trás , para Boyd ,
e olhou para a luz do fogo entre as árvores . Na planura, o luar era tão
intenso que se podiam contar as cabeças de gado .
Não lhe vamos levar café nenhum, pois não? perguntou Boyd .
Não .
Então e a caneca, como é que fazemos?
Não fazemos nada.
E se a mamã perguntar por ela?
Diz-lhe a verdade . Diz-lhe que eu a dei a um índio . Diz-lhe que um
índio veio até à casa e que eu lha dei .
'Tá bem .
Eu ainda posso vir a ter sarilhos juntamente contigo .
E eu ainda posso vir a ter mais sarilhos do que tu .
Diz-lhe que fui eu .
Podes crer que digo .
Atravessaram o terreno aberto ao encontro da vedação e das luzes da
casa.
Não devíamos de ter ido até lá, logo pra começar, disse Boyd .
B illy não respondeu .
Ou devíamos .
Não .
Então porque é que fomos?
Não sei .
Ainda estava escuro na manhã seguinte , quando o pai entrou no quar­
to deles .
24 Cormac McCarthy

B illy, disse .
O rapaz sentou-se na cama e olhou para o pai ali de pé , emoldurado
pela luz da cozinha.
O que é que o cão ' tá a fazer trancado no fumeiro?
Esqueci-me de o soltar.
Esqueceste-te de o soltar?
Sim, senhor.
Mas o que é que ele ' tava lá a fazer, logo pra começo de conversa?
Ele rodou o corpo para fora da cama, pousando os pés no chão frio ,
e curvou-se para pegar nas roupas . Eu vou já soltá-lo , disse .
O pai permaneceu à porta alguns momentos , depois tomou a afastar­
-se pela cozinha e pelo corredor. À luz da porta aberta, Billy via Boyd
enroscado , a dormir na outra cama. Vestiu as calças e apanhou as botas
do chão e saiu .
No momento em que acabou de dar comida e água aos cavalos já era
dia, e selou Bird e montou-o e saiu a cavalgar da coxia central do estábu­
lo e desceu até ao rio para procurar o índio ou para ver se ele ainda lá
estava. O cão seguia nos calcanhares do cavalo . Cruzaram a pastagem e
seguiram para jusante e romperam através das árvores . Ele parou o cavalo
e ficou escarranchado na sela. O cão ficou a seu lado , a farejar o ar, alçan­
do o focinho com movimentos rápidos , a coligir e a compilar uma imagem
dos acontecimentos da noite anterior. O rapaz tomou a picar o cavalo .
Quando penetrou no acampamento do índio , a fogueira estava fria e
negra. O cavalo agitava-se e dava passos nervosos de viés , e o cão ca­
minhou em volta das cinzas mortas com o focinho colado ao chão e os
pêlos eriçados ao longo do dorso .
Quando voltou para casa, a mãe tinha o pequeno-almoço pronto , e ele
pendurou o chapéu e puxou uma cadeira e começou a pôr ovos no prato
com uma colher. Boyd já estava a comer.
Onde ' tá o papá? perguntou ele .
Não te atrevas sequer a respirar à mesa sem teres agradecido a Deus
por esta refeição , ralhou a mãe .
Sim, senhora.
B aixou a cabeça e recitou as palavras para si mesmo e depois esten-
deu a mão para pegar num scone .
Onde ' tá o papá.
'Tá na cama. Já comeu .
A que horas voltou ele .
Há umas duas horas . Cavalgou toda a noite .
Mas porquê?
A Travessia 25

Porque queria chegar a casa depressa, acho eu.


Quanto tempo vai ele dormir?
Bom , até acordar, parece-me. Tu fazes mais perguntas do que o Boyd.
Eu cá não fiz a primeira, interveio Boyd.
Saíram para o estábulo depois do pequeno-almoço. Pra onde é que
achas que ele foi? perguntou Boyd.
Foi-se embora.
E donde é que achas que ele veio?
Não sei. Ele tinha calçadas umas botas mexicanas. Ou o que sobrava
delas. É um vagabundo , nada mais.
Tu não sabes o que um índio é capaz de fazer, disse Boyd.
E o que é que tu sabes sobre índios , retorquiu B illy.
Bom , tu não sabes.
Tu não sabes o que ninguém é capaz de fazer.
Boyd tirou uma velha chave de parafusos gasta de um balde de ferra­
mentas e pincéis suspenso do poste do estábulo e pegou numa cabeçada
feita de corda que se encontrava pendurada no amarradouro e abriu a
porta da baia onde guardava o seu cavalo e entrou e encabrestou o ca­
valo e conduziu-o para fora. Prendeu a corda com uma laçada ao amar­
radouro e percorreu a canela do animal com a mão para o fazer mostrar
o casco e limpou a ranilha do casco e examinou-a e depois soltou a
pata do cavalo.
Deixa-me ver, disse B illy.
O casco ' tá são.
Então deixa-me ver.
Vê , se queres.
B illy puxou o casco do cavalo para o alto e anichou-o entre os joelhos
e examinou-o. Dá-me ideia que ' tá bom , disse.
Eu já tinha dito.
Fá-lo dar uma volta.
Boyd soltou a corda e conduziu o cavalo até ao fundo da coxia central
do estábulo e depois fê-lo regressar.
Vais buscar a tua sela? perguntou Billy.
Bom , acho que vou , se tu não te importas.
Trouxe a sela da casa dos arreios e lançou o cobrejão para cima do
dorso do cavalo e ergueu a sela com esforço e fê-la deslizar para um
lado e para o outro até ficar no lugar e puxou o latigo e apertou a cilha
traseira e ficou parado , à espera.
Deixaste-o ganhar esse mau hábito , disse Billy. Porque é que não lhe
dás uma boa pancada, pra ele deitar fora o ar todo dos bofes.
26 Cormac McCarthy

Ele não me dá pancada, eu não lhe dou pancada a ele , retorquiu Boyd .
Billy escarrou para o palhiço seco no chão da coxia. Esperaram. O ca­
valo expirou , esvaziando os pulmões . Boyd puxou a correia e afivelou-a.
Cavalgaram pela pastagem de Ibafíez durante toda a manhã, a remirar
as vacas . Estas mantinham as distâncias e remiravam-nos por sua vez ,
vacas de patas compridas e de focinho variegado , arraçadas de estirpes
mexicanas , algumas de chifres compridos , de todas as cores possíveis .
À hora do almoço , voltaram para casa, trazendo à corda uma bezerra de
um ano , e meteram-na no cercado de estacas acima do estábulo para o
pai a ver e entraram e lavaram-se . O pai já estava sentado à mesa. Ra­
paze s , saudou .
Sentem-se lá, disse a mãe . Pousou na mesa uma travessa de bifes de
vaca fritos . Uma tigela de feijão . Depois de darem graças por aquela
refeição , ela estendeu a travessa ao pai e ele retirou um bife para o seu
prato com o garfo e passou-a a B illy.
O papá diz que há uma loba por esses montes , disse ela.
B illy imobilizou-se de travessa na mão , com a faca erguida.
Uma loba? perguntou Boyd .
O pai fez que sim com a cabeça. Matou um vitelo de engorda gran­
dote lá no cabeço de Foster Draw.
Quando? perguntou Billy.
Já faz uma semana ou mais , provavelmente . O moço Oliver mais novo
seguiu-lhe o rasto pelas montanhas acima. Ela veio do México. Cruzou
o desfiladeiro de San Luis e subiu pela encosta ocidental das Animas e
rompeu pra cá perto do cabeço de Taylor 's Draw e depois desceu e cru­
zou o vale e subiu para os montes Peloncillos . Subiu aquilo tudo até à
neve . Havia três dedos de neve no chão lá onde ela matou o vitelo .
Como é que o pai sabe que era uma loba? quis saber Boyd .
Bom , como é que achas que ele sabe? interveio B illy.
Via-se bem onde é que ela tinha feito as suas precisões , explicou o pai .
Ah , disse Boyd.
O que é que o pai tem na ideia fazer? perguntou B illy.
Bom , acho melhor que a gente a apanhe . Não vos parece?
Sim, senhor.
Se o velho Echols aqui ' tivesse , apanhava-a , disse Boyd .
Mr Echol s .
Se Mr Echols aqui ' tivesse , apanhava-a.
Sim, é verdade . Mas não ' tá.

* * *
A Travessia 27

Depois do almoço , saíram os três e cavalgaram os quinze quilómetros


até ao rancho SK Bar e , sem desmontar, gritaram «Olá» à casa. A neta
de Mr Sanders olhou para fora e foi chamar o velho e sentaram-se todos
no alpendre enquanto o pai deles contava a Mr Sanders as novidades
acerca da loba. Sentado com os cotovelos sobre os joelhos , Mr Sanders
olhava fixamente as tábuas do soalho do alpendre entre as próprias bo­
tas e assentia com a cabeça e, de tempos a tempos , com o dedo mínimo ,
sacudia a cinza da ponta do cigarro. Quando o pai acabou de falar, ele
ergueu os olhos. Tinha os olhos muito azuis e muito belos , meio ocultos
nos vincos coriáceos do rosto. Como se neles houvesse qualquer coisa
que a rudeza daquela terra não tivesse conseguido tocar.
As armadilhas e os aprestos do Echols ainda ' tão além na cabana,
disse. Não me parece que ele se importasse se vocês usassem o que
precisam.
Com um piparote , atirou a beata do cigarro para o quintal e sorriu
para os dois rapazes e pôs as mãos nos joelhos e ergueu-se.
Deixem-me ir buscar as chaves, disse.
Quando abriram a cabana, o interior estava escuro e cheirava a mofo
e reinava ali um odor ceroso semelhante à carne de um animal acabado
de matar. O pai deteve-se à porta um momento e depois entrou. Na sala
da frente via-se um sofá velho , uma cama, uma escrivaninha. Eles atra­
vessaram a cozinha até ao vestiário , nas traseiras da casa. Ali , à luz
poeirenta de uma janelinha, sobre prateleiras de pinho toscamente ser­
radas , alinhava-se um sortido de boiões de fruta e frascos com rolhas de
vidro esmerilado e velhos frascos de botica, todos ostentando vetustos
rótulos octogonais debruados a vermelho , nos quais , na caligrafia esme­
rada de Echols , se discriminavam conteúdos e datas. Dentro dos frascos ,
líquidos escuros. Vísceras secas. Fígado , vesícula, rins. As entranhas do
animal bravio que sonha com o homem e assim tem sonhado em sonhos
ininterruptas desde há cem mil anos ou mais. Sonhos em que aquele
deus maligno e menor surge , pálido e nu e ignoto , para lhe massacrar
todo o clã e todos os parentes e para o expulsar da sua morada. Um deus
insaciável , que nenhuma cedência poderia apaziguar, nenhum derrama­
mento de sangue. Os boiões estavam cobertos por teias de poeira, e a
luz a tombar entre eles convertia aquela divisão acanhada, com o seu
vidro alquímico , numa estranha basílica dedicada a uma prática que em
breve se extinguiria entre os ofícios humanos , juntamente com o animal
a quem devia a sua existência. O pai retirou um dos boiões da prateleira
e rodou-o na mão e tornou a pousá-lo exactamente na sua marca circular
no pó. Numa prateleira mais baixa encontrava-se uma caixa de madeira
28 Cormac McCarthy

para munições com as arestas ensambladas e , dentro do caixote , cerca


de uma dúzia de pequenos frascos ou vidros sem rótulo . Escrita a lápis
de cera vermelho sobre a tábua de cima da caixa lia-se a inscrição Ma­
triz N .0 7. O pai ergueu à luz um dos frasquinhos e agitou-o e torceu a
rolha para a retirar e passou o frasco aberto por baixo do nariz.
Santo Deu s , suspirou .
Deixe-me cheirar, pediu Boyd .
Não , disse o pai . Guardou o frasquinho no bolso e puseram-se à pro­
cura das armadilhas , mas não as conseguiram encontrar. Procuraram no
resto da casa e cá fora, no alpendre , e também no fumeiro . Encontraram
algumas velhas armadilhas número três de mola comprida para coiotes ,
penduradas na parede do fumeiro , mas não encontraram mais armadi­
lhas nenhumas .
'Tão algures por aqui , disse o pai .
Recomeçaram a busca. Ao fim de um certo tempo , Boyd veio da
cozinha.
Encontrei-as , disse .
Estavam guardadas em dois caixotes de madeira, e sobre os caixotes
fora empilhada lenha para o fogão . Tinham a cobri-las uma gordura que
talvez fosse banha e estavam dispostas dentro dos caixotes como aren­
ques .
O que é que te levou a procurar ali em baixo? perguntou o pai .
O pai disse que elas ' tavam algures por aqui .
Ele abriu alguns jornais velhos sobre o linóleo do chão da cozinha e
começou a tirar as armadilhas de dentro dos caixotes . Tinham as molas
voltadas para dentro , para se tornarem mais compactas , e as correntes
enroladas em volta. Ele estendeu uma. A corrente coalhada de gordura
matraqueou surdamente . B ifurcava-se a partir de um anel metálico e
tinha um par de enormes mandíbulas numa extremidade e um gancho
na outra. Eles ficaram ali acocorados a contemplá-la. Parecia enorme .
Isto parece uma armadilha pra ursos , comentou Billy.
É uma armadilha pra lobos . Uma Newhouse número quatro e meio .
Dispôs oito delas no chão e limpou a gordura das mãos com um jor­
nal . Tornaram a pôr a tampa no caixote e tornaram a empilhar a lenha
sobre os caixotes , assim como Boyd os encontrara, e o pai regressou ao
vestiário e voltou com uma pequena caixa de madeira com fundo de
rede de arame e um saco de papel cheio de aparas de campeche e uma
cesta com alças de trazer às costas para guardar as armadilhas . Depois
saíram e tornaram a colocar o cadeado na porta da frente e desamarra­
ram os cavalos e montaram e desceram a cavalo até à casa.
A Travessia 29

Mr Sanders saiu para o alpendre , mas eles não desmontaram .


Fiquem só pra jantar, disse .
É melhor irmos andando . Muito obrigado .
Bem .
Levo oito armadilhas .
'Tá certo .
Vamos ver como é que isto corre .
Bom . Provavelmente , vai ser um bico-de-obra apanhá-la. Ela não ' tá
por estas bandas há tempo que chegue pra ter hábitos regulares .
O Echols disse que já não havia lobos nenhuns por aqui que os tivessem .
Ele lá deve saber. Ele próprio é meio arraçado de lobo .
O pai assentiu com a cabeça. Voltou-se ligeiramente na sela e olhou
para a lonjura. Tomou a olhar para o velho .
Alguma vez cheiraste aquelas mistelas que ele usa pra engodo?
Já, sim. Já cheirei .
O pai fez que sim com a cabeça. Ergueu uma mão e voltou o cavalo
e romperam em direcção à estrada.
Depois do jantar, pousaram a tina galvanizada em cima do fogão e
encheram-na à mão com baldes de água e despejaram lá para dentro
uma medida de lixívia e puseram as armadilhas a ferver. Alimentaram
o lume até serem horas de ir para a cama e depois mudaram a água e
tomaram a enfiar lá as armadilhas juntamente com as aparas de campe­
che e atafulharam o fogão com lenha e deixaram-no aceso . Boyd acor­
dou uma vez durante a noite e ficou deitado , à escuta do silêncio na
casa e nas trevas , com o fogão a crepitar ou a casa a ranger ao vento que
soprava da planície . Quando olhou para a cama de Billy, esta encontrava­
-se vazia, e, ao fim de um certo tempo , levantou-se e foi até à cozinha.
Billy estava sentado à j anela numa cadeira da cozinha voltada ao con­
trário . Tinha os braços cruzados sobre o espaldar da cadeira e estava a
observar a Lua acima do rio e das árvores ribeirinhas e das montanhas
a sul . Voltou-se e olhou para Boyd ali parado à porta.
O que é que ' tás a fazer? perguntou Boyd .
Levantei-me pra cuidar do lume .
Pra onde é que 'tás a olhar?
Não ' tou a olhar pra nada. Não há nada pra uma pessoa olhar.
Porque é que ' tás aí sentado .
Billy não respondeu . Ao fim de algum tempo , disse : Volta lá prà ca­
ma. Eu vou-me deitar não tarda.
Boyd avançou para dentro da cozinha. Parou junto à mesa. Billy
voltou-se e olhou para ele .
30 Cormac McCarthy

O que é que te acordou? perguntou .


Foste tu .
Eu não fiz barulho nenhum.
Eu sei .

Quando B illy se levantou , na manhã seguinte , o pai estava sentado à


mesa da cozinha, com um avental de couro no regaço , nas mãos um par
de velhas luvas de camurça, e esfregava cera de abelha no aço de uma
das armadilhas . As outras armadilhas encontravam-se estendidas sobre
uma pele de vitela, no chão , e tinham uma cor azul-negra muito escura.
Ele ergueu o rosto e depois tirou as luvas e pô-las no avental juntamen­
te com a armadilha e pousou o avental sobre a pele de vitela, no chão .
Ajuda-me com a tina, disse . Depois podes acabar de encerar estas
aqui .
Ele assim fez . Encerou-as cuidadosamente , impregnando de cera o
prato e as letras nele gravadas e os encaixes onde as mandíbulas se ar­
ticulavam e cada elo das pesadas correntes de metro e meio e o pesado
gancho de duas pontas na extremidade da corrente . Em seguida, o pai
pendurou-as cá fora, ao frio , onde os odores da casa não as contaminas­
sem . Na manhã seguinte , quando o pai entrou no quarto deles e o cha­
mou , ainda estava escuro .
B illy.
Sim, senhor.
O pequeno-almoço vai ' tar na mesa dentro de cinco minutos .
Sim, senhor.
Quando cavalgaram para fora do terreiro a manhã rompia, límpida e
gélida. As armadilhas estavam guardadas na cesta de salgueiro que o pai
levava às costas , com as alças folgadas de modo a que o fundo da cesta
assentasse na patilha da sela, atrás dele . Rumaram a sul . Acima deles, o
cume de Black Point cintilava com neve imaculada, sob os raios de um
Sol que ainda não assomara para iluminar o fundo do vale . Quando
cruzaram a estrada velha para Fitzpatrick Wells , o Sol já se via também
lá no alto , e foi ao sol que eles romperam para o cabeço da pastagem e
começaram a trepar em direcção aos montes Peloncillos .
A meio da manhã estavam parados , escarranchados nas selas , na orla
da vega altaneira onde o vitelo jazia morto . No trilho que seguiram
através do arvoredo havia neve nos rastos que o cavalo do pai dele dei­
xara três dias antes , e, à sombra das árvores onde o vitelo morto jazia,
viam-se manchas de neve que ainda não derretera, e a neve estava san-
A Travessia 31

guinolenta e calcada e cruzada e recruzada por pegadas de coiotes e o


vitelo estava esfacelado , com pedaços espalhados sobre a neve ensan­
guentada e sobre o terreno mais além . O pai tirara as luvas para enrolar
um cigarro e ficou a fumar, com as luvas numa mão que apoiou no arção
dianteiro da sela.
Não desmontes , disse. Vê se lhe consegues ver o rasto .
Cavalgaram pela planura. Os cavalos estavam assustadiços por causa
do sangue , e os cavaleiros falavam com eles em tom zombeteiro , dir-se­
-ia, como se quisessem fazer os cavalos sentirem-se envergonhados . Ele
não via vestígios da loba.
O pai descavalgou . Chega aqui , disse .
Não vai pôr aqui uma armadilha?
Não . Podes desmontar.
Ele desmontou . O pai deixara escorregar dos ombros as alças da ces­
ta de salgueiro e pousou a cesta na neve e ajoelhou-se e soprou a neve
da pegada cristalina que a loba ali deixara cinco noites antes .
É ela?
É ela.
É a pata dianteira dela.
É , sim.
É grande , não é?
Sim.
Ela não volta mais aqui?
Não . Ela não volta mais aqui .
O rapaz endireitou-se . Olhou ao longe , sobre o prado . Viam-se dois
corvos pousados numa árvore de ramos despidos . Decerto tinham le­
vantado voo ante a aproximação deles . À parte isso , nada havia.
Pra onde é que o pai acha que foi o resto do gado?
Não sei .
Se houver uma vaca morta numa pastagem , o resto da manada fica
lá?
Depende do que tiver matado a vaca. Elas não ficam numa pastagem
com um lobo .
Acha que por esta altura ela já matou outra presa noutro lugar qual­
quer?
O pai ergueu-se de onde se agachara junto à pegada e apanhou a ces­
ta do chão . Não me admirava nada, disse . 'Tás pronto?
Sim, senhor.
Montaram e cruzaram a vega e entraram no bosque do lado oposto e
seguiram o trilho do gado , subindo ao longo da orla do barranco . O ra-
32 Cormac McCarthy

paz observava os corvos. Ao fim de um certo tempo , as aves lançaram­


-se da árvore e voaram silenciosamente , regressando para junto do vite­
lo morto.
O pai montou a primeira armadilha abaixo da garganta da montanha ,
onde eles sabiam que a loba atravessara. O rapaz permaneceu n a sela e
ficou a ver enquanto o pai atirava para o chão a pele de vitela, com o
pêlo para baixo , e desmontava para cima desta e pousava a cesta de
alças.
Tirou da cesta as luvas de camurça e enfiou-as nas mãos e, com uma
colher de jardineiro , cavou um buraco na terra e enfiou o gancho no
buraco e depois enrolou a corrente por cima e tornou a tapar o buraco.
Em seguida, escavou uma concavidade pouco funda na terra, com a
forma da armadilha, molas e tudo. Tentou encaixar lá a armadilha e
depois escavou mais um bocadinho. Foi pondo a terra dentro da peneira
enquanto escavava e depois pousou a colher de jardineiro e retirou um
par de prensas da cesta e usou-as para apertar as molas até que as man­
díbulas se abriram. Ergueu a armadilha e examinou o entalhe do prato
enquanto afrouxava um parafuso e ajustava o gatilho. Agachado na
sombra irregular, com o sol nas costas , a segurar a armadilha ao nível
dos olhos sobre o pano de fundo do céu matinal , parecia estar a ajustar
um qualquer instrumento mais antigo , mais subtil. Astrolábio ou sextan­
te. Como um homem apostado em assinalar a própria posição no mun­
do. Apostado em avaliar, por meio de linhas imaginárias , arco ou corda,
o espaço entre o seu ser e o mundo existente. Se é que havia tal espaço.
Se é que era possível conhecê-lo. Pôs a mão sob as mandíbulas abertas
e moveu o prato ao de leve com o polegar.
Não queremos isto tão sensível que até um esquilo a faça saltar, disse.
Mas quase , chiça.
Em seguida, retirou as prensas e colocou a armadilha no buraco.
Cobriu as mandíbulas e o prato com um quadrado de papel impreg­
nado de cera de abelhas derretida e, usando a peneira, derramou a terra
cuidadosamente sobre a armadilha e , com a colher de jardineiro , espa­
lhou húmus e pedacinhos de madeira sobre a terra e ficou ali agachado
sobre as ancas , a olhar para a armadilha. Passava completamente des­
percebida . Por fim , tirou do bolso do casaco o frasco com a poção de
Echols e retirou-lhe a rolha e mergulhou um raminho no frasco e cravou
o raminho na terra, a trinta centímetros da armadilha, e depois tornou a
pôr a rolha no frasco e o frasco no bolso.
Levantou-se e entregou a cesta de vime com alças ao rapaz e
debruçou-se e dobrou a pele de vitela com a terra a cobri-la e depois
A Travessia 33

enfiou o pé no estribo do cavalo parado e montou e puxou a pele consi­


go para cima do cepilho da sela e fez o cavalo afastar-se da armadilha
às arrecuas .
Achas que consegues montar uma destas? perguntou .
Sim, senhor. Acho que sim.
O pai assentiu com a cabeça. O Echols costumava tirar as ferraduras
do cavalo . Depois chegou ao ponto de amarrar à volta dos cascos do
cavalo uns botins de couro de vaca que ele mesmo tinha feito . O Oliver
contou-me que ele montava armadilhas sem nunca descavalgar. Mon­
tava-as escarranchado na sela.
Como é que ele fazia isso?
Não sei .
Sentado na sela, o rapaz segurava a cesta de alças sobre o joelho .
Põe isso às costas , disse-lhe o pai . Vais precisar desse material , se
queres montar a próxima.
Sim, senhor, anuiu ele .
Ao meio-dia, tinham montado mais três armadilhas e almoçaram
numa mata de carvalhos-negros , no cabeço de Cloverdale Creek .
Reclinaram-se sobre os cotovelos e comeram as sanduíches e olharam
através do vale , na direcção dos montes Guadalupes , e para sueste , para
além dos picos das montanhas , onde conseguiam avistar as sombras das
nuvens a subirem através do amplo vale das Animas e, ainda mais além ,
na lonjura azul , as montanhas do México .
Acha que a conseguimos apanhar, pai? perguntou o rapaz .
Se não achasse , não ' tava aqui em cima.
Então e se ela já tiver sido apanhada antes ou já tiver andado de roda
de armadilhas ou coisa do género?
Nesse caso , vai ser difícil apanhá-la.
Já não há mais lobos a não ser os que sobem do México , calculo eu .
Ou há?
Provavelmente , não .
Comeram . Quando o pai terminou , dobrou o saco de papel onde trou-
xera as sanduíches e guardou-o no bolso .
'Tás pronto? perguntou .
Sim , senhor.
Quando cruzaram de novo o terreiro e entraram no estábulo , estavam
há treze horas fora de casa e completamente derreados . Tinham caval­
gado no escuro as últimas duas horas , e a casa estava escura, exceptu­
ando a luz da cozinha.
Vai andando pra casa e come o teu jantar, disse o pai .
34 Cormac McCarthy

Não há problema.
Vai lá. Eu trato dos cavalos .

A loba tinha cruzado a linha de fronteira internacional perto do ponto


onde esta intersectava o meridiano dos cento e oito graus e trinta minu­
tos e atravessou a velha estrada de Nations quilómetro e meio a norte da
fronteira e seguiu o Whitewater Creek para oeste , embrenhando-se nas
alturas das montanhas de San Luis , e transpôs a garganta para norte , em
direcção à cordilheira das Animas , e depois atravessou o vale das Ani­
mas e foi até aos montes Peloncillos , tal como relatado . Tinha na anca
uma ferida já coberta por uma crosta, no ponto em que o companheiro
a mordera duas semanas antes , algures nas montanhas de Sonora. Ele
mordeu-a porque ela se recusava a abandoná-lo . Imóvel , com uma pata
dianteira presa nas mandíbulas de uma armadilha de aço e a rosnar-lhe
para a afugentar, e ela ali deitada, mesmo no limiar do alcance da cor­
rente . Colava as orelhas ao crânio e soltava ganidos , mas não se afasta­
va. De manhã, eles surgiram , montados a cavalo . Ela ficou a ver de uma
encosta, a cem metros dali , no momento em que ele se pôs de pé para
os enfrentar.
Deambulou pelas faldas orientais da Sierra de la Madera durante uma
semana. Os seus antepassados tinham caçado camelos e cavalinhos
primitivos naquelas terras . Escasso alimento encontrou . A maior parte
da caça fora massacrada, afugentada dali . A maior parte da floresta der­
rubada para alimentar as caldeiras dos trituradores das minas . Os lobos
daquela região matavam gado há já muito tempo , mas a ignorância des­
tes animais era para eles um enigma. As vacas a soltar bramidos e a
sangrar e a cambalear pelos prados de montanha, com as suas patorras
e o seu tumulto , a urrar e a debater-se através das vedações , arrastando
estacas e arames na sua esteira. Os rancheiros diziam que eles dilacera­
vam o gado com uma selvajaria de que se abstinham ao capturar as
presas bravias . Como se as vacas evocassem neles uma qualquer raiva.
Como se os ofendesse a violação de uma velha ordem . Velhas cerimó­
nias . Velhos protocolos .
Ela atravessou o rio B avispe e avançou para norte . Trazia no ventre a
sua primeira ninhada e não tinha maneira de saber até que ponto estava
em apuros . Abandonava aquela região não porque a caça tivesse desa­
parecido , mas sim porque os lobos tinham desaparecido , e ela precisava
deles . Quando derrubou na neve o vitelo de engorda, no cabeço de Fos­
ter Draw, nas montanhas Peloncillo do Novo México , há duas semanas
A Travessia 35

que pouco mais comia do que carcaças de animais mortos e exibia uma
aparência acossada e não encontrara quaisquer vestígios de lobos . Co­
meu e descansou e tornou a comer. Comeu até o ventre se lhe arrastar
pelo chão e não regressou para junto do vitelo morto . Nunca regressava
para junto de uma presa morta. Nunca atravessava uma estrada nem
uma linha férrea à luz do dia . Nunca passava por baixo de uma vedação
de arame duas vezes no mesmo ponto . Eram estes os novos protocolos .
Restrições que antes não vigoravam . Mas agora sim .
Deambulou para oeste , embrenhando-se no condado de Cochise , no
estado do Arizona, cruzou o braço sul do Skeleton Creek e continuou
mais para oeste , até ao cabeço do Starvation Canyon , e depois foi para
sul , até Hog Canyon Springs . Em seguida, voltou para leste , vagueando
pelas terras altas entre os barrancos de Clanton e de Foster. À noite ,
descia até às planícies das Animas e perseguia os antílopes selvagens , a
vê-los fluir e rodopiar na poeira da sua própria passagem onde esta se
elevava como fumo do leito da bacia, a contemplar a flexão meticulo­
samente afinada dos seus membros e os movimentos bambaleantes das
suas cabeças e o lento enovelamento e a lenta extensão da sua corrida,
procurando qualquer indício entre eles que lhe apontasse qual a sua
presa.
Naquela época do ano , as fêmeas dos antílopes já estavam prenhas ,
e, como era habitual elas abortarem , muito antes do final da gestação , a
cria mais débil , por duas vezes ela deparou com estes nados-mortos
pálidos caídos no chão, ainda quentes e de olhos arregalados , corpos de
um azul leitoso e quase translúcidas ao alvorecer, como desmanchas
emanados de um outro mundo totalmente diverso . Ela devorou-os por
completo , ali caídos , cegos e moribundos na neve , sem deixar sequer os
ossos . Antes que o Sol nascesse , abandonava a planura e erguia o foci­
nho , parada num promontório baixo ou num penedo sobranceiro ao
vale e uivava, uivava, rasgando aquele silêncio terrível . Talvez tivesse
abandonado aquela região de uma vez por todas , caso não tivesse depa­
rado com o odor de um lobo mesmo abaixo da garganta altaneira, a
oeste de Black Point . Estacou como se tivesse batido contra um muro .
Caminhou em círculos em volta da armadilha durante quase uma
hora, a destrinçar e a catalogar os diversos odores e a ordenar a respec­
tiva sequência, num esforço para reconstituir os acontecimentos que ali
tinham ocorrido . Quando se afastou , cruzou a garganta para sul , seguin­
do os rastos dos cavalos já com trinta e seis horas .
À tardinha, já encontrara as oito armadilhas , e estava de regresso à
garganta da montanha, onde caminhou em volta da armadilha, a soltar
36 Cormac McCarthy

ganidos . Em seguida, começou a escavar. Escavou um buraco a par da


armadilha, até que a terra esventrada tombou para revelar as mandíbulas
do engenho . Ficou parada, a olhar. Escavou mais . Quando abandonou o
local , a armadilha estava à flor da terra , despida, apenas com um punha­
do de terra sobre o papel encerado que cobria o prato , e, quando o rapaz
e o pai cavalgaram através da garganta, na manhã seguinte , foi isso que
encontraram .
O pai desmontou do cavalo para cima da pele de vitela e examinou a
armadilha enquanto o rapaz permanecia escarranchado na sela, a obser­
var. O pai tornou a montar a armadilha e endireitou-se e abanou a cabe­
ça com ar pouco convicto . Percorreram o resto da fiada e, quando re­
gressaram na manhã seguinte , a primeira armadilha estava novamente
desenterrada e o mesmo sucedia com quatro outras . Levantaram três das
armadilhas e tornaram a montá-las no trilho , sem qualquer engodo .
O que é que impede uma vaca de pisar uma destas? perguntou o ra­
paz .
Absolutamente nada, respondeu o pai .
Três dias depois , encontraram outro bezerro morto . Cinco dias de­
pois , uma das armadilhas montadas no trilho fora arrancada da terra ,
voltada ao contrário e desarmada .
À tardinha, cavalgaram novamente até ao SK Bar e tornaram a cha­
mar por Sanders . Sentaram-se na cozinha e contaram ao velho tudo o
que ocorrera, e o velho fez que sim com a cabeça.
Uma vez , o Echols disse-me que tentar levar a melhor sobre um lobo
é como tentar levar a melhor sobre um cachopo . Não é que eles sejam
mais espertos . É só que não têm muito mais em que pensar. Fui com ele
uma ou duas vezes . Ele montava uma armadilha num lugar qualquer e
não havia o mais leve sinal duma criatura passar por ali , e eu perguntava­
-lhe porque é que a ' tava a armar ali , e metade das vezes ele não me
sabia responder. Não me sabia responder.
Foram até à cabana e pegaram em mais seis armadilhas e levaram-nas
para casa e ferveram-nas . Na manhã seguinte , quando a mãe entrou na
cozinha para preparar o pequeno-almoço , Boyd estava sentado no chão ,
a encerar as armadilhas .
Achas que é assim que vais cair nas boas graças dele? perguntou ela.
Não .
Quanto tempo tencionas ficar amuado?
Não sou eu que ' tou amuado .
Ele consegue ser tão teimoso como tu , sabes .
Então se calhar isto ' tá pra durar, não é verdade?
A Travessia 37

Ela ficou parada junto do fogão , a observá-lo ali curvado sobre a sua
tarefa . Em seguida, virou costas e tirou a caçarola de ferro do suporte e
pousou-a no fogão . Abriu a portinhola da fornalha para meter lá lenha,
mas ele já o fizera .
Quando acabaram de comer o pequeno-almoço , o pai limpou a boca
e pousou o guardanapo na mesa e empurrou a cadeira para trás .
Onde é que ' tão as armadilhas?
Penduradas na corda da roupa, disse Boyd .
Ele levantou-se e saiu da cozinha . B illy esvaziou a chávena e pousou-
-a na mesa diante de si .
Queres que eu fale com ele?
Não .
Muito bem . Nesse caso , não abro a boca. Fosse como fosse , prova­
velmente não ia servir de nada .
Quando o pai regressou do estábulo , passados dez minutos , Boyd
estava junto à pilha de lenha, em mangas de camisa, a rachar cavacas
para o fogão .
Queres vir com a gente? perguntou o pai .
Deixe ' tar, respondeu Boyd .
O pai entrou em casa. Ao fim de algum tempo , Billy saiu .
Mas o que é que se passa contigo , chiça? soltou .
Não se passa nada comigo . O que é que se passa contigo?
Não sejas burro . Pega no casaco e toca a andar.
Nevara de noite nas montanhas , e a neve na garganta, a oeste de B lack
Point , tinha um palmo e meio de espessura. O pai conduziu o cavalo à
brida pela neve , a seguir a pista da loba, e seguiram-na toda a manhã
através das terras altas até a neve se acabar debaixo das patas dela, mes­
mo acima da estrada de Cloverdale Creek . Ele desmontou e ficou a
olhar ao longe , para a extensão desafogada onde ela se perdera, e depois
tornou a montar e deram meia-volta e cavalgaram de regresso ao alto da
montanha, para irem verificar as armadilhas do outro lado da garganta.
Ela ' tá prenha, disse o pai .
Montou mais quatro armadilhas sem engodo no trilho e depois inicia­
ram o regresso . Boyd estava a tremer na sela e tinha os lábios azuis .
O pai deixou-se ficar para trás , a par dele , e despiu o casaco e estendeu­
-lho .
Não tenho frio , disse Boyd .
Eu não te perguntei se tinhas frio . Veste isso .
Dois dias mais tarde , quando Billy e o pai percorreram novamente a
fiada de armadilhas , viram que uma das armadilhas colocadas no trilho ,
38 Cormac McCarthy

abaixo da linha de neve , fora arrancada da terra. No trilho , trinta metros


mais abaixo , havia um lugar onde a lama se espalhara com o derreter da
neve , e na lama viam-se as pegadas de uma vaca. Um bocadinho mais
adiante , encontraram a armadilha. As pontas do gancho tinham ficado
presas e a vaca soltara-se , deixando um farrapo de pele ensanguentada,
pregueada como um acordeão , na face inferior das mandíbulas da arma­
dilha.
Passaram o resto da manhã a percorrer as pastagens em busca da
vaca manca, mas não a conseguiram encontrar.
Eis uma boa tarefa pra ti e pro Boyd amanhã, disse o pai .
Sim, senhor.
Não o quero a sair de casa meio despido , como fez no outro dia.
Sim, senhor.
Ele e Boyd encontraram a vaca ao princípio da tarde do dia seguinte .
Estava parada na orla dos cedros , a olhá-los . O resto do gado avançava
aos poucos ao longo da faixa inferior da vega . Era uma vaca velha , de
úberes secos , e, provavelmente , estava sozinha quando pisara a armadi­
lha, lá no alto da montanha. Eles romperam pelo bosque acima dela
para a espantar para terreno aberto , mas , ao ver o que eles se prepara­
vam para fazer, ela deu meia-volta e tornou a embrenhar-se nos cedros .
Boyd picou o cavalo através do arvoredo e cortou-lhe o caminho e
laçou-a e enrolou a corda no chifre da sela e , quando a vaca retesou a
outra ponta da corda, a correia da cilha rompeu-se e a sela foi-lhe arran­
cada de baixo do corpo e desapareceu pela encosta abaixo atrás da vaca,
a bater e a estrondear contra os troncos das árvores .
Ele dera um salto mortal para trás , cuspido do dorso do cavalo , e ,
sentado no chão , ficou a ver a vaca a afastar-se e m grande algazarra
pelo meio dos cedros até desaparecer da vista. Quando Billy se acercou
no seu cavalo , ele já tornara a montar em pêlo e partiram os dois em
perseguição da vaca.
Começaram a encontrar pedaços da sela quase de imediato e, ao fim
de um certo tempo , encontraram a sela em si ou o que dela restava,
somente a armação de madeira com farrapos de cabedal pendurados .
Boyd fez menção de desmontar.
Raios , larga isso , que já não tem préstimo , disse B illy.
Boyd deixou-se escorregar para o chão . Não é isso , soltou . Tenho de
despir algumas destas roupas . Estou quase em brasa, chiça.
Trouxeram a vaca para casa a coxear na ponta de uma corda e
meteram-na no estábulo , e o pai saiu de casa e tratou-lhe a pata com
pomada Corona e depois todos entraram em casa para jantar.
A Travessia 39

Ela rebentou a sela do Boyd , disse Billy.


Consegue-se consertar?
Não sobrou nada pra consertar.
O latigo rasgou-se?
Sim , senhor.
Quando foi a última vez que o verificaste?
Aquela albarda velha também nunca prestou pra nada, disse Boyd.
Aquela albarda velha era a tua única sela, não tens outra, retrucou o
pai .
No dia seguinte , B illy percorreu a fiada de armadilhas sozinho . Outra
vaca pisara uma armadilha, mas nada deixou nas mandíbulas metálicas ,
exceptuando algumas películas e lascas do casco . De noite nevou .
As armadilhas ' tão debaixo de meio metro de neve , disse o pai . De
que serve ires até lá acima?
Quero ver os caminhos que ela anda a usar.
Talvez vejas por onde ela passou . Duvido que isso te diga por onde
ela vai passar amanhã ou depois de amanhã .
De certeza que ajuda nalguma coisa.
Sentado à mesa, o pai contemplava a chávena de café . Muito bem ,
anuiu . Não deixes o cavalo derreado . Podes magoar um cavalo na neve .
Podes magoar um cavalo nas montanhas , no meio da neve .
Sim, senhor.
A mãe deu-lhe o almoço à porta da cozinha.
Toma cuidado , ouviste , disse .
Sim, senhora .
Vê se voltas antes do anoitecer.
Sim, senhora. Vou tentar.
Vais mas é conseguir, que é pra não te meteres em sarilhos .
Sim, senhora.
Quando emergiu do estábulo , montado em Bird , viu o pai a vir da
casa em mangas de camisa, com a espingarda e um estojo de sela para
a guardar. Estendeu-lhe ambos .
Se por acaso ela ' tiver presa numa armadilha, vem chamar-me . A não
ser que ela tenha a pata partida. Se ela tiver a pata partida, dá-lhe um
tiro . Caso contrário , ela torce-se toda e foge .
Sim , senhor.
E não chegues tarde , que é pra não afligires a tua mãe .
Sim , senhor. 'Teja descansado .
Voltou o cavalo e saiu pela cancela do gado e meteu pela estrada
para sul . O cão acercara-se da cancela e ficou ali a segui-lo com os
40 Cormac McCarthy

olhos . Ele cavalgou uma curta distância e depois parou e desmontou e


afivelou o estojo à ilharga da sela e puxou a alavanca da espingarda até
meio para se certificar de que havia uma bala na câmara e depois fez
escorregar a espingarda para dentro do estojo e afivelou-o e tomou a
montar e retomou a cavalgada . Diante dele , as montanhas alvejavam ao
sol , ofuscantes . Pareciam acabadas de nascer pela mão de um deus im­
previdente que talvez nem tivesse divisado um uso para elas . Era essa a
impressão que transmitiam . O cavaleiro cavalgava com o coração a
encher-lhe todo o peito , e o cavalo , que era também jovem , alçou a ca­
beça para trás e deu um passo para o lado na estrada e atirou um coice
com uma pata traseira e depois prosseguiram .
A neve na garganta chegava a meio das patas do cavalo , e o cavalo
calcava os montes de neve com elegância altaneira e agitava o focinho
fumegante sobre os recifes brancos e cristalinos e olhava ao longe , atra­
vés dos bosques escuros de montanha, ou arrebitava as orelhas ante a
fuga súbita de passarinhos invernais diante deles . Não havia rastos na
garganta e não havia gado nem rastos de gado na pastagem mais alta,
do outro lado da garganta. Estava muito frio . Quilómetro e meio a sul
da garganta, cruzaram um curso de água corrente , tão negro na neve que
levou o cavalo a estacar, procurando com os olhos qualquer ligeiro mo­
vimento da água para ter a certeza de que não se tratava de uma fissura
sem fundo que tivesse rasgado a montanha durante a noite . Cem metros
mais adiante , o rasto da loba penetrava no trilho e descia pela encosta
da montanha, diante deles .
Ele desceu do cavalo para a neve e deixou cair as rédeas e agachou-se
e empurrou a aba do chapéu para trás com o polegar. No fundo dos
pequenos poços que ela perfurara na neve jaziam as suas pegadas per­
feitas . A pata dianteira larga. A traseira estreita. Aqui e além, a marca
dos úberes a arrastar ou o lugar onde ela metera o focinho . Ele fechou
os olhos e tentou vê-la. Ela e outros da sua raça, lobos e fantasmas de
lobos a correr na brancura daquele mundo montesinho , tão perfeito pa­
ra seu uso como se lhes tivessem pedido conselho no momento de o
conceber. Endireitou-se e caminhou para o lugar onde o cavalo se en­
contrava parado , à espera. Olhou ao longe , sobre a montanha, na direc­
ção de onde ela viera, e depois montou e cavalgou em frente .
Quilómetro e meio mais adiante , ela abandonara o trilho e descera em
corrida através das manchas de zimbro dispersas . Ele desmontou e con­
duziu o cavalo à brida . Ela galgava três metros em cada salto . Na orla
do bosque , ela inflectiu e continuou ao longo da faixa superior da vega ,
a trote . Ele tomou a montar e cavalgou pela pastagem abaixo e tomou
A Travessia 41

a cavalgar e m sentido oposto e de novo para baixo , mas não via indício
algum do que ela perseguira em corrida. Apanhou-lhe de novo o rasto e
seguiu-o através do terreno aberto e pela encosta virada a sul e sobre a
meseta acima de Cloverdale Draw, e aqui ela afugentara uma pequena
manada de gado reunida entre os zimbros e fizera fugir as vacas da
meseta, enlouquecidas e a escorregar e a dar grandes tombos na neve , e
aqui ela matara uma bezerra de dois anos na orla do arvoredo .
A bezerra jazia sobre o flanco à sombra da floresta, com os olhos
vidrados e a língua de fora, e ela começara a alimentar-se da carcaça
entre as patas traseiras e comera o fígado e arrastara os intestinos sobre
a neve e devorara vários quilos de carne do interior das coxas . A bezer­
ra ainda não estava totalmente hirta nem totalmente fria. Ali caída ,
derretera a neve até ao solo numa silhueta escura à sua volta.
O cavalo desejava alhear-se por completo do sucedido . Arqueou o
pescoço e revirou os olhos , e os orifícios das narinas lançavam bafora­
das como fumarolas . O rapaz deu-lhe palmadinhas no pescoço e falou
com ele e depois desmontou e amarrou as rédeas a um galho e caminhou
em volta do animal morto , a examiná-lo . O olho voltado para cima es­
tava azul e parado , e não havia nele qualquer reflexo nem qualquer
mundo . Não se viam corvos nem outras aves por ali . Tudo era frio e
silêncio . Ele regressou para junto do cavalo e retirou a espingarda do
respectivo estojo e tomou a verificar a câmara. O mecanismo estava
perro do frio . Ele baixou o cão com o polegar e desamarrou as rédeas e
montou e guiou o cavalo para baixo , ao longo da orla do bosque , caval­
gando com a espingarda atravessada sobre o regaço .
Seguiu-a ao longo de todo o dia. Não a chegou a ver. A dado momen­
to , afugentou-a de uma cama num maciço de moitas que servia de corta­
-vento , na vertente sul , onde ela dormira ao sol . Ou julgou tê-la afugen­
tado . Ajoelhou-se e colocou a mão na erva calcada, para ver se estava
quente , e ficou ali sentado para ver se alguma haste de erva se iria endi­
reitar, mas nenhuma o fez , e não tinha maneira de saber se a cama estava
quente do corpo dela ou do calor do Sol . Tomou a montar e prosseguiu .
Por duas vezes , perdeu-lhe o rasto na pastagem de Cloverdale Creek,
onde a neve derretera, e de ambas as vezes tomou a encontrá-lo no círcu­
lo que descreveu em busca de sinais. Do outro lado da estrada de Clover­
dale viu fumo e cavalgou até lá e deparou com três vaqueros do rancho
de Pendleton a comerem o seu almoço . Eles não sabiam que havia uma
loba ali nas redondezas . Pareciam pouco convencidos . Entreolharam-se .
Convidaram-no a desmontar e a juntar-se a eles , e ele assim fez e eles
deram-lhe uma chávena de café e ele retirou o almoço de dentro da
42 Cormac McCarthy

camisa e ofereceu-lhes o que tinha. Eles estavam a comer feijão e tor­


tillas e a chupar uns ossos de cabra de aparência bastante ressequida, e ,
como não havia um quarto prato nem qualquer forma de repartir com os
restantes o que cada um tinha, eles encetaram uma pantomima de ofer­
tas e recusas e continuaram a comer como antes . Falaram de gado e do
estado do tempo , e , como todos eles andavam à procura de trabalho
para parentes no México , perguntaram se o pai dele precisava de aju­
dantes . Disseram que os rastos que ele vinha seguindo pertenciam pro­
vavelmente a um cão grande e, embora as pegadas fossem visíveis a
menos de quatrocentos metros do lugar onde estavam a comer, não se
mostraram inclinados a levantar-se e a ir examiná-las . Ele não lhes falou
da bezerra morta.
Quando acabaram de comer, raparam os pratos para cima das cinzas
da fogueira e limparam-nos com bocados de tortilla e comeram as tor­
tillas e guardaram os pratos nas mochilas . Em seguida, apertaram os
latigos dos cavalos e montaram . Ele sacudiu as borras da chávena e
limpou-a com a camisa e estendeu-a ao cavaleiro que lha dera.
Adiós compadrito , despediram-se eles . Hasta la vista . Tocaram nos
chapéus e voltaram os cavalos e afastaram-se , e, quando os viu desapa­
recer ao longe , ele foi buscar o cavalo e montou e meteu pelo trilho
para oeste , por onde a loba seguira.
À tardinha , ela estava de regresso às montanhas . Ele caminhava a pé ,
conduzindo o cavalo à rédea. Examinou os lugares onde ela escavara,
embora não conseguisse perceber de que é que ela andava à procura.
Mediu o dia restante com a mão debaixo do Sol , de braço estendido , e ,
por fim , subiu para a sela e voltou o cavalo para o alto d a encosta, a
percorrer a neve húmida em direcção à garganta e a casa.
Como já estava escuro , passou a cavalo diante da janela da cozinha e
debruçou-se e bateu no vidro sem se deter e seguiu depois para o está­
bulo . À mesa do jantar, contou-lhes o que tinha visto . Falou-lhes da
bezerra morta na montanha.
O lugar onde ela atravessou ao voltar pro Hog Canyon , disse o pai .
Isso era um trilho de gado?
Não , senhor. Nem era um trilho como deve de ser, bem vistas as coi­
sas .
Conseguia-se montar lá uma armadilha?
Sim, senhor. Eu ia pra fazer isso mesmo , se não fosse o caso de se
' tar a pôr assim tarde .
Desmontaste alguma das armadilhas?
Não , senhor.
A Travessia 43

Queres voltar lá pra cima amanhã?


Sim , senhor. Gostava muito .
Muito bem . Leva duas ou três armadilhas e monta-as no trilho , sem
engodo , e eu percorro a fileira contigo no domingo .
Não sei como é que vocês esperam que o Senhor abençoe os vossos
esforços , se nem sequer guardam o sabat , acudiu a mãe .
Bom, mulher, não nos caiu um boi ao poço , como disse Jesus Cristo ,
mas caíram-nos umas quantas bezerras , isso é certo .
Acho que é um mau exemplo para os rapazes .
O pai permaneceu imóvel , a olhar para a chávena. Olhou para o ra­
paz . Percorremos a fileira na segunda-feira, disse .
Deitados na fria escuridão do quarto de dormir, escutaram os brados
dos coiotes lá longe , na pastagem, a oeste da casa .
Achas que a consegues apanhar? perguntou Boyd .
Não sei .
O que é que vais fazer com ela, se a apanhares?
O que é que queres dizer com isso?
Quero saber o que é que vais fazer com ela.
Vou receber o prémio , acho eu .
Ficaram deitados no escuro . Os coiotes uivavam. Ao fim de um certo
tempo , Boyd disse: O que eu queria saber é como é que a vais matar.
Dá-se-lhes um tiro , acho eu . Não sei de outra maneira.
Eu gostava de a ver viva.
Talvez o papá te leve com ele .
Então e vou montar com quê?
Podias montar em pêlo .
Pois , disse Boyd . Podia montar em pêlo .
Ficaram deitados no escuro .
Ele vai-te dar a minha sela, disse Billy.
E tu vais montar com quê?
Ele vai-me comprar uma no Martel ' s .
Uma nova?
Não . Raios , uma nova não .
Lá fora, o cão estivera a ladrar, e o pai foi até à porta da cozinha e
chamou o cão pelo nome , e o animal calou-se de imediato . Os coiotes
continuaram a latir.
Billy?
O quê .
O papá escreveu a Mr Echols?
Sim.
44 Cormac McCarthy

Mas nunca recebeu resposta . Pois não?


Ainda não teve resposta, não .
B illy?
O quê .
Tive um sonho .
Que sonho .
Tive-o duas vezes .
Bom, mas que sonho foi .
Havia uma grande fogueira no meio do lago seco .
Não há nada que arda num lago seco .
Eu sei .
O que é que aconteceu .
Havia pessoas a arder. O lago ' tava em chamas e as pessoas ' tavam a
arder.
Foi qualquer coisa que tu comeste , provavelmente .
Tive o mesmo sonho duas vezes .
Se calhar comeste a mesma coisa duas vezes .
Não me parece .
Não é nada. Foi só um pesadelo . Dorme .
Era genuíno como a luz do dia . Eu via tudo perfeitamente .
As pessoas ' tão sempre a ter sonhos . Não quer dizer nada.
Então para que é que os têm?
Não sei . Dorme .
Billy?
O quê .
Tive a sensação de que ia acontecer uma coisa má .
Não vai acontecer nenhuma coisa má. Tiveste um pesadelo , foi só
isso . Não quer dizer que vá acontecer uma coisa má.
O que é que quer dizer?
Não quer dizer nada. Dorme .

Na floresta, nas encostas voltadas a sul , a neve derretera parcialmen­


te devido ao sol da véspera e tomara a congelar durante a noite , de
modo que tinha uma fina crosta a cobri-la. A crosta era suficientemente
dura , mas não mais , para os pássaros caminharem por cima. Ratinhos .
No trilho , ele viu por onde as vacas tinham descido . As armadilhas nas
montanhas jaziam todas intactas debaixo da neve com as mandíbulas
muito abertas , quais gnomas de aço silenciosos e broncos e cegos . Le­
vantou três das armadilhas , segurando os engenhos armados nas mãos
A Travessia 45

enluvadas para depois enfiar a mão por baixo da mandíbula e carregar


no prato com o polegar. As armadilhas saltavam com uma força tremen­
da. O estalo ferroso das mandíbulas a fechar-se com violência ecoava
no frio . Nada se via do seu movimento . Num instante , as mandíbulas
estavam abertas . No instante seguinte , estavam fechadas .
Cavalgava com as armadilhas arrumadas por baixo da pele de vitela,
no fundo da cesta com alças , para não caírem ao chão quando ele se
curvasse de viés na sela para se desviar dos ramos baixos . Quando che­
gou à bifurcação no trilho , rompeu pela vereda por onde ela metera na
noite anterior ao seguir para oeste , na direcção do Hog Canyon . Montou
as armadilhas no trilho e cortou e dispôs no chão paus para guiar os
passos da loba e regressou por um atalho que ele próprio destrinçou ,
quilómetro e meio para sul , e continuou a descer até à estrada de Clo­
verdale , para visitar as duas últimas armadilhas da fileira .
Ainda havia neve nos troços superiores da estrada, e viam-se no piso
marcas de pneus e pegadas de cavalos e rastos de veados . Ao chegar à
nascente , abandonou a estrada e atravessou a pastagem e desmontou e
deu de beber ao cavalo . Era quase meio-dia, a avaliar pelo Sol , e ele
tencionava cavalgar os seis quilómetros até Cloverdale e regressar pela
estrada.
Enquanto o cavalo estava a beber, um velho numa carrinha de caixa
aberta Model A parou lá adiante , junto à vedação . Billy puxou a cabeça
do cavalo para cima e montou e regressou para a estrada e parou o ca­
valo a par da carrinha . O homem debruçou-se da janela e olhou para ele .
Olhou para a cesta de alças .
O que é que andas a ver se apanhas? perguntou .
Era um rancheiro do fundo do vale , junto à fronteira, e Billy conhe­
cia-o mas não lhe disse o nome . Sabia que o velho queria ouvi-lo dizer
que andava a pôr armadilhas para coiotes , e não tinha vontade de men­
tir, pelo menos descaradamente .
Bom , disse . Tenho visto imensos rastos de coiotes por estas bandas .
Não me admira nada, disse o velho . Eles lá no nosso rancho já fize­
ram tudo menos entrar-nos pela porta dentro e sentarem-se à mesa com
a gente .
Remirou as cercanias com os seus olhos pálidos . Como se aqueles
pequenos predadores , misto de chacal e lobo , pudessem deambular pela
planura em plena luz do dia. Tirou do bolso um maço de cigarros pron­
tos a fumar e retirou de lá um e meteu-o na boca e ergueu o maço .
Queres um?
Não , senhor. Obrigado .
46 Cormac McCarthy

Ele guardou o maço e tirou do bolso um isqueiro de latão que parecia


um instrumento para soldar canos , para decapar pintura. Premiu a rodi­
nha, e uma bola azulada de fogo irrompeu com um sopro . Ele acendeu
o cigarro e fechou a tampa do isqueiro com um estalo, mas a chama
continuou a arder. Ele apagou a chama com um sopro e fez baloiçar o
isqueiro numa mão para o arrefecer. Olhou para o rapaz .
Tive de desistir de usar a gasolina com mais octanas , disse .
Sim, senhor.
És casado?
Não , senhor. Só tenho dezasseis anos .
Não te cases . As mulheres são malucas .
Sim, senhor.
Hades achar que encontraste uma que não é, mas adivinha . . .
O quê?
Ela vai ser tão maluca como as outras .
Sim, senhor.
Tens algumas armadilhas grandes aí dentro?
Grandes como?
Número quatro , por exemplo .
Não , senhor. Pra lhe dizer a verdade , não trago nenhuma comigo ,
nem grandes nem pequenas .
Então porque é que me perguntaste o que eu queria dizer com gran­
des?
Diga?
O velho indicou a estrada com um aceno de cabeça. Um puma atra­
vessou cerca dum quilómetro e meio abaixo daqui , ontem à tardinha.
Eles andam por aí, disse o rapaz .
O meu sobrinho tem uns cães de caça. Arranjou uns blueticks da li­
nhagem dos irmãos Lee . Uns belos cães de caça. Mas olha que ele não
os quer a meter as patas em nenhumas armadilhas de aço .
Eu ando além em cima, na direcção do Hog Canyon , disse o rapaz . E
ali nas redondezas de Black Point .
O velho ia fumando . O cavalo voltou a cabeça e farejou a carrinha e
tomou a desviar os olhos .
Já ouviste a história do puma do Texas e do puma do Novo México?
perguntou o velho .
Não , senhor. Acho que não .
Havia um puma do Texas e um puma do Novo México . Separaram-se
na fronteira e foi cada um pra seu lado caçar. Combinaram encontrar-se
na Primavera, pra ver como é que se tinham saído , e quando isso acon-
A Travessia 47

teceu , pois bem , o puma que tinha ' tado no Texas ' tava com um ar mais
morto que vivo . O puma do Novo México olhou pra ele e disse-lhe as­
sim: Santo Deu s , comparsa, ' tás com um ar horrível . O que é que te
aconteceu , conta lá. O puma que tinha ' tado no Texas disse assim: Eu
cá não sei . 'Tou quase a morrer de fome . O outro puma virou-se pra ele
e disse-lhe assim: Bom, conta-me lá o que andaste a fazer. Se calhar não
fizeste as coisas bem feitas .
Bem , vai daí o puma do Texas disse: Eu tenho ' tado a usar os velhos
métodos que sempre deram bom resultado . Empoleiro-me num galho
por cima do trilho e depois , quando um texano passa por baixo a cavalo,
dou um rugido de ensurdecer e salto-lhe pra cima das costas . E é isso
que eu tenho ' tado a fazer.
Bom, o puma do Novo México olhou pra ele e disse assim: Muito me
admira não teres morrido de fome . 'Tás a fazer tudo mal , não é assim
que se caçam texanos , nem percebo como é que conseguiste chegar vivo
ao fim do Inverno . Escuta bem. Primeiro que tudo , quando ruges dessa
maneira, lá se lhes vai a bazófia. Depois , quando lhes saltas assim pra
cima das costas , lá se lhes vão as peneiras . Raios , comparsa. Ficas sem
nada, só sobram as botas e o cinturão .
O velho tombou sobre o volante , a arquejar. Ao fim de um certo tem­
po , começou a tossir. Ergueu o rosto e limpou os olhos rasos de água
com um dedo e abanou a cabeça e ergueu os olhos para o rapaz .
Percebeste a piada? indagou . Os texanos?
B illy sorriu . Sim, senhor, disse .
Tu não és do Texas , ou és?
Não, senhor.
Bem me pareceu que não eras . Bom. É melhor eu ir andando . Se
queres apanhar coiotes , dá um salto à minha casa.
'Tá certo .
Não explicou onde era a casa dele . Engatou a alavanca das mudanças
e puxou para baixo o manípulo da ignição e afastou-se pela estrada fora.

Quando percorreram as armadilhas na segunda-feira, a neve derretera


por toda a parte , excepto nos rincões voltados a norte ou nos bosques
mais densos , abaixo da encosta norte da garganta. Ela desenterrara todas
as armadilhas , à parte as que se encontravam no trilho de Hog Canyon ,
e ganhara o hábito de as voltar ao contrário e de as desarmar.
Levantaram as armadilhas e o pai montou dois novos ardis com duas
armadilhas cada um, enterrando uma armadilha debaixo da outra, com
48 Cormac McCarthy

a armadilha de baixo voltada de pernas para o ar. Em seguida, montou


armadilhas sem engodo na zona circundante . Montou estes dois novos
ardis e regressaram a casa e, quando percorreram as armadilhas na ma­
nhã seguinte , havia um coiote morto no primeiro ardil . Desenterraram
todas as armadilhas deste ardil e B illy amarrou o coiote atrás da patilha
da sela e prosseguiram. A bexiga do coiote vertia urina pelo tlancc do
cavalo abaixo , exalando um cheiro peculiar.
De que é que o coiote morreu? perguntou ele .
Não sei , respondeu o pai . Às vezes , as criaturas morrem e pronto .
As cinco armadilhas do segundo ardil estavam todas desenterradas , e
todas cinco desarmadas . O pai ficou sentado na sela, a olhar para aquilo
durante muito tempo .
Echols não deu notícias . Ele e Boyd percorreram as pastagens mais
afastadas e começaram a recolher o gado . Encontraram mais dois vite­
los mortos . Depois outra bezerra.
Não digas nada sobre isto , a menos que ele pergunte , disse Billy.
E porque não?
Estavam montados lado a lado , Boyd sentado na antiga sela de Billy
e B illy na sela mexicana que o pai lhe adquirira por troca. Contempla­
ram a carnificina na floresta. Nunca pensei que ela conseguisse matar
uma bezerra assim tão grande , comentou Billy.
Porque é que não havemos de dizer nada? perguntou Boyd .
E de que serve afligi-lo por causa disto?
Voltaram-se para partir.
Ele talvez queira saber do sucedido , mesmo assim , insistiu Boyd .
Quando é que foi a última vez que recebeste más notícias e ficaste
todo satisfeito?
Então e se ele descobre sozinho?
Então que descubra.
E o que é que tu lhe vais dizer então? Que não o querias afligir?
Raispartam . Tu és pior que a mamã. Já ' tou arrependido de ter dito o
que disse .
Ficou entregue a si próprio na tarefa de percorrer as armadilhas . Ca­
valgou até ao SK Bar e pediu a chave a Mr Sanders e foi até à cabana
de Echols e examinou as prateleiras na pequena botica do vestiário .
Encontrou mais alguns frascos num caixote , no chão . Frascos poeiren­
tos com rótulos manchados de gordura que diziam Puma, que diziam
Lince . Havia outros frascos com rótulos enrolados e amarelecidos que
exibiam somente números e havia frascos feitos de vidro púrpura, qua­
se negros de tão escuros , que não tinham rótulo nenhum .
A Travessia 49

Ele guardou no bolso alguns frascos sem nome e regressou à sala da


frente da cabana e examinou a pequena biblioteca de Echols , guardada
numa estante feita de um caixote de madeira. Pegou num livro intitula­
do Trapping North American Furbearers , de S Stanley Hawbaker, e
sentou-se no chão a folheá-lo , mas Hawbaker era da Pensilvânia e não
tinha grande coisa para dizer acerca de lobos . Quando percorreu as ar­
madilhas , no dia seguinte , estavam desenterradas como antes .

Partiu na manhã seguinte , pela estrada para Animas , e calcorreou a


estrada durante sete horas até lá chegar. Parou ao meio-dia numa clareira,
entre enormes choupos vetustos, e comeu carne de vaca fria e scones e fez
um barquinho de papel com o saco em que trouxera o almoço e deixou-o
a rodopiar e a escurecer e a afundar-se no charco cristalino da nascente .
A casa situava-se na planura, a sul da povoação , e não havia estrada
para lá. Houvera um trilho em tempos , e ainda se via por onde este pas­
sara, dir-se-iam os vestígios de uma velha estrada de carroções , e foi por
aí que ele cavalgou até chegar ao poste do canto da cerca. Amarrou o
cavalo e caminhou até à porta e bateu com os nós dos dedos e ficou
parado , a olhar ao longe , sobre as planícies , até às montanhas a oeste .
Quatro cavalos estavam a avançar a passo sobre a crista da elevação
final , na lonjura, e estacaram e voltaram-se e olharam na direcção dele .
Como se o tivessem ouvido a bater à porta, a três quilómetros de distân­
cia. Ele virou-se para bater de novo , mas , nesse momento , a porta abriu­
-se e uma mulher surgiu , a olhá-lo . Estava a comer uma maçã, mas não
falou . Ele tirou o chapéu .
Buenas tardes , saudou . El sefíor está?
Ela desferiu uma dentada crepitante na maçã com os seus grandes
dentes brancos . Olhou para ele . El sefíor? repetiu .
Don Arnulfo .
Ela olhou por cima do ombro dele , para o cavalo amarrado à estaca
da vedação , e tomou a olhar para ele . Continuava a mastigar. Observou­
-o com os seus olhos negros .
Él está? insistiu ele .
'Tou a pensar no assunto .
O que é que há pra pensar? Ou ele ' tá em casa ou não ' tá.
Talvez .
Eu não tenho dinheiro .
Ela deu nova dentada na maçã. Ouviu-se um ruído sonoro e estaladi­
ço . Ele no quer o teu dinheiro , disse .
50 Corrnac McCarthy

Ele permanecia parado , de chapéu na mão . Olhou para o ponto onde


avistara os cavalos , mas eles tinham desaparecido atrás da elevação .
Muito bem, disse ela.
Ele olhou-a.
Ele tem ' tado doente . É capaz de no te dizer nada.
Bom . Talvez diga, talvez não .
Tu talvez prefiras voltar noutra altura.
Eu não tenho outra altura.
Ela encolheu os ombros . Bueno , disse . Pásale .
Abriu a porta de par em par, e ele passou diante dela e penetrou na
casa baixa de adobe . Gracias , disse .
Ela fez um gesto com o queixo . Atrás , indicou .
Gracias .
O velho estava num quarto escuro semelhante a uma cela , nas trasei­
ras da casa. O quarto cheirava a fumo de lenha e a querosene e a roupas
de cama cediças . O rapaz parou à porta e tentou divisá-lo . Voltou-se e
olhou para trás , mas a mulher fora para a cozinha. Entrou no quarto ,
descendo um degrau . Havia uma cama de ferro a um canto . Uma figu­
ra enfezada e escura deitada de borco . O quarto cheirava também a
poeira ou a barro . Como se fosse esse o cheiro do velho , talvez . Bem
vistas as coisas , porém , até mesmo o chão do quarto era feito de terra
lamacenta .
Ele disse em voz alta o nome do velho , e o velho mexeu-se entre as
cobertas . Ade/ante , arquejou .
Ele avançou , ainda a segurar o chapéu na mão . Passou , qual aparição ,
através da luz zebrada e rombóide da janelinha na parede ocidental . As
partículas de poeira rodopiaram, destroçadas . Estava frio no quarto , e
ele via os tufos alvacentos da respiração do velho a elevarem-se e a
desaparecerem no frio . Via os olhos negros num rosto curtido , onde a
cabeça do velho jazia no forro nu da almofada.
Güero , disse ele . Habla espafiol?
Sí sefior.
A mão do velho ergueu-se ligeiramente na cama e tornou a tombar.
Diz-me o que queres , disse ele .
Vim-lhe perguntar como é que se caçam lobos com armadilhas .
Lobos .
Sim, senhor.
Lobos , repetiu o homem . Ajuda-me .
Como?
Ajuda-me .
A Travessia 51

Tinha uma mão erguida. Pendia, trémula, à luz parcial , separada do


corpo , uma mão comum a todos ou a ninguém. O rapaz estendeu o bra­
ço e tomou-a na sua. Estava fria, era dura e exangue . Uma coisa feita de
cabedal e de osso . O velho soergueu-se a custo .
La almohada , arquejou .
O rapaz esteve prestes a pousar o chapéu na cama, mas susteve o
gesto . O velho fincou-lhe os dedos na carne ainda com mais força, e os
olhos negros endureceram-lhe , mas nada disse . O rapaz pôs o chapéu na
cabeça e estendeu o braço para trás do velho e agarrou a almofada flá­
cida e sebenta e encostou-a às barras de ferro da cabeceira da cama, e o
velho agarrou-lhe também a outra mão e depois recostou-se temerosa­
mente até repousar contra a almofada. Ergueu os olhos para o rapaz .
Tinha muita força nos braços , apesar de toda a sua aparência de fragili­
dade , e parecia relutante em soltar as mãos do rapaz antes de o ter olha­
do nos olhos .
Gracias , rouquejou .
Por nada .
Bueno , disse o velho . Bueno . Aliviou o aperto dos dedos , e Billy li­
bertou uma mão e tornou a tirar o chapéu e segurou-o pela aba .
Siéntate , disse o velho .
Ele sentou-se cautelosamente na borda do fino enxergão que cobria
as molas da cama. O velho não lhe soltou a mão .
Como te chamas?
Parham . Billy Parham.
O velho repetiu o nome em silêncio para si próprio . Te conozco ?
No sefíor. Estamos a las Charcas .
La Charca .
Sí.
Hay una historia allá.
Historia ?
Sí, disse o velho . Jazia a segurar a mão do rapaz e de olhos volvidos
para o alto , a fitar os gravetas que serviam de latillas no tecto . Una
historia desgraciada . De obras desalmadas .
O rapaz disse que não conhecia esta história e que gostava de a ouvir,
mas o velho disse que era melhor ele não a conhecer, pois há certas
coisas de que nenhum bem pode advir, e aquela parecia-lhe ser uma
delas . A sua respiração áspera abrandara e o respectivo som abrandara,
e também a ténue brancura do seu hálito que fora fugazmente visível no
frio do quarto . Continuava a apertar a mão do rapaz com a mesma força
de antes .
52 Cormac McCarthy

Mr Sanders disse que o senhor talvez tivesse um engodo que eu lhe


pudesse comprar. Disse que era melhor eu perguntar-lhe .
O velho não respondeu .
Ele deu-me um engodo que Mr Echols tinha, mas a loba agora pôs-se
a desenterrar as armadilhas e a desarmá-las .
Dónde está el sefíor Echols ?
No sé. Se fué.
Él murió ?
Não , senhor. Que eu saiba, não .
O velho fechou os olhos e tornou a abri-los . Jazia contra o forro da
almofada, com o pescoço ligeiramente torto . Parecia que o tinham ati­
rado para ali . À luz moribunda, os olhos nada permitiam adivinhar.
Parecia estar a examinar as sombras no quarto .
Conocemos por lo largo de las sombras que tardío es el día , disse .
Acrescentou que os homens achavam que isto significava que os pres­
ságios de uma tal hora eram portanto muito exagerados , mas que não
era assim , antes pelo contrário .
Tenho um frasco que diz Matriz Número Sete , explicou o rapaz . E
outro que não diz nada.
La matríz , disse o velho .
Ele esperou que o velho prosseguisse, mas o velho não prosseguiu . Ao
fim de um certo tempo , ele perguntou-lhe o que é que havia na matriz ,
mas o velho limitou-se a franzir a boca de lábios finos com ar de dúvida.
Continuou a segurar a mão do rapaz , e permaneceram assim sentados
durante algum tempo . O rapaz preparava-se para fazer mais uma pergun­
ta ao velho quando o velho tornou a falar. Disse que a matriz não era
assim tão fácil de definir. Cada caçador tinha de ter a sua própria fórmu­
la. Disse que fazia sentido dar nomes às coisas em função dos seus atri­
butos , atributos estes que em nada remontavam à respectiva substância.
Acrescentou que , em sua opinião , só as lobas na época própria eram uma
fonte adequada. O rapaz repetiu que o animal de que estava a falar era
uma loba, e perguntou se esse facto deveria figurar nas suas estratégias
contra ela, mas o velho limitou-se a dizer que não havia mais lobos .
Ella vino de Mexico , explicou o rapaz .
Ele pareceu não o ouvir. Disse que Echols tinha apanhado todos os
lobos .
El sefíor Sanders me dice que el sefíor Echols es media lobo el mis­
mo . Me dice que él conoce lo que sabe el lobo antes de que lo sepa el
lobo . Mas o velho contrapôs que nenhum homem sabia o que o lobo
sabia .
A Travessia 53

O Sol estava baixo a oeste , e a forma da luz vinda da janela jazia


suspensa ao longo da divisão, de uma parede à outra. Como se tivessem
extraído até ao âmago desse espaço uma coisa eléctrica. Por fim , o ve­
lho repetiu as suas palavras . El lobo es una cosa incognoscible , disse .
Lo que se tiene en la trampa no es mas que dientes y forro . El lobo
propio no se puede conocer. Lobo o lo que sabe el lobo . Tan como pre­
guntar lo que saben las piedras . Los arboles . El mundo .
O fôlego tornara-se-lhe arquejante devido ao esforço . Tossiu em sur­
dina e ficou imóvel . Ao fim de um certo tempo , tornou a falar.
Es cazador, el lobo , disse . Cazador. Me entiendes ?
O rapaz não sabia ao certo se entendia ou não . O velho prosseguiu ,
dizendo que o caçador era uma coisa diferente do que os homens julga­
vam . Disse que os homens pensam que o sangue das vítimas é de some­
nos importância, mas que o lobo sabe que assim não é . Disse que o lobo
é um ser de condição elevada, que sabe algo que os homens não sabem:
que não há no mundo outra ordem além daquela que a morte ali pôs .
Por fim , disse que , se é certo que os homens bebem o sangue de Deus ,
não compreendem a gravidade do gesto que assim executam . Disse que
os homens desejam ser graves , mas não compreendem como devem
agir para o ser. Entre os seus actos e as suas cerimónias encontra-se o
mundo , e neste mundo as tempestades sopram e as árvores contorcem­
-se ao vento e todos os animais que Deus criou vagueiam para trás e
para diante , e , contudo , os homens não vêem este mundo . Vêem os
actos das suas próprias mãos ou vêem as coisas a que dão nome e que
evocam na presença uns dos outros , mas o mundo que se interpõe é-lhes
invisível .
Queres apanhar esse lobo , disse o velho . Talvez queiras a pele para
poderes ganhar algum dinheiro . Talvez possas comprar umas botas ou
outra coisa assim . Podes fazer isso . Mas onde está o lobo? O lobo é
como o copo de nieve .
O floco de neve .
O floco de neve . Apanhas o floco de neve , mas quando olhas para a
tua mão o floco já lá não está. Talvez vejas um dechado . Mas antes que
o consigas ver já desapareceu . Se o quiseres ver, tens de o ver no seu
próprio terreno . Se o apanhas , perde-lo . Foge para um lugar de onde não
há regresso . Nem mesmo Deus o pode trazer de volta.
O rapaz baixou os olhos para as garras magras e encordoadas que lhe
seguravam a mão . A luz da janela alta empalidecera, o Sol pusera-se .
Escúchame, joven , arquejou o velho . Se conseguíssemos soprar com
força suficiente , conseguíamos apagar o lobo . Assim como derretemos
54 Cormac McCarthy

o copo . Assim como apagamos o fogo da candeia . O lobo é feito tal


como é feito o mundo . Não conseguimos tocar no mundo . Não o conse­
guimos segurar na nossa mão , porque é feito apenas de sopro .
Com grande esforço , soerguera-se um bocadinho para articular estas
proclamações , e, naquele momento , deixou-se tombar contra o forro da
almofada, e os olhos pareceram examinar somente as traves do tecto , lá
no alto . Aliviou a pressão magra e fria dos dedos . Onde está o Sol?
perguntou .
Se jué.
Ay. Á ndale, joven . Á ndale pues .
O rapaz retirou a mão e pôs-se de pé . Pôs o chapéu na cabeça e tocou
na aba .
Vaya con Dios .
Y tú, joven .
Contudo , antes que chegasse à porta, o velho tomou a chamá-lo .
Ele voltou-se e estacou .
Cuántos anos tienes ? perguntou o velho .
Dieciseis .
O velho permaneceu deitado no escuro em silêncio . O rapaz esperou .
Escúchame, joven , disse ele . Yo no sé nada . Esto es la verdad.
Está bien .
A matríz não te vai ajudar, prosseguiu o velho . Disse que o rapaz
devia procurar o lugar onde os actos de Deus e os do homem se confun­
dem . Onde uns e outros não se conseguem distinguir.
Y qué clase de lugar es éste ? perguntou o rapaz .
Lugares donde el fierro ya está en la tierra , respondeu o velho . Lu­
gares donde ha quemado el juego .
Y cómo se encuentra ?
O velho disse que não era uma questão de encontrar um tal lugar, mas
antes de o reconhecer quando ele surgisse aos nossos olhos . Disse que
era em lugares assim que Deus toma assento e congemina a destruição
daquilo que tanto lhe custou a criar.
Y por eso soy hereje , concluiu . Por eso y nada más .
Estava escuro no quarto . Ele agradeceu novamente ao velho , mas o
velho não respondeu , ou , caso tenha respondido , ele não o ouviu .
Voltou-se e saiu .
A mulher estava encostada à porta da cozinha. Estava recortada em
silhueta contra a luz amarela, e ele via-lhe as formas do corpo através
do vestido fino que ela trazia. Não parecia incomodá-la que o velho
estivesse deitado no escuro , sozinho , nas traseiras da casa. Perguntou ao
A Travessia 55

rapaz se o velho lhe tinha explicado como havia de apanhar o lobo , e ele
respondeu que não .
Ela tocou na têmpora. Às vezes ele no se lembra assim tão bem , dis-
se . Está velho .
Sim , senhora.
Ninguém o vem visitar. É uma tristeza, hem?
Sim, senhora.
Nem sequer o padre . Veio uma vez , se calhar duas , mas nunca mais
veio depois .
Mas porquê?
Ela encolheu os ombros . As pessoas dizem que ele é brujo . Sabes o
que é brujo?
Sim, senhora.
Dizem que ele é brujo . Dizem que Deus abandonou este homem . Ele
tem o pecado de Satanás . O pecado do orgullo . Sabes o que é orgullo?
Sim, senhora.
Ele acha que sabe mais do que o padre . Acha que sabe mais do que
Deus .
Ele a mim disse-me que não sabia nada.
B ah , soltou ela. Bah . Acreditas nisso? Vês aquele velho? S abes que
coisa tão horrível é esta, morrer sem Deus? Ser aquele que Deus afas­
tou? Pensa bem .
Sim, senhora. Tenho de i r andando .
Tocou na aba do chapéu e contornou a mulher para chegar à porta e
saiu para a escuridão do crepúsculo . As luzes da povoação , dispersas ao
longo da pradaria , jaziam naquele vale azul como uma serpente coberta
de jóias , a incandescer na frescura do começo da noite . Quando tornou
a olhar para a casa, ela estava parada no vão da porta.
Muito obrigado , minha senhora, disse ele .
Ele no me é nada, bradou ela. No hay parentesco . S abes o que é pa­
rentesco?
Sim, senhora.
No hay parentesco . Ele era tío da falecida mulher do meu falecido
marido . O que é isto? Compreendes? E todavia tenho-o aqui . Quem mais
haveria de cuidar deste homem? Compreendes? Ninguém se importa.
Sim , senhora.
Pensa bem.
Ele soltou as rédeas da estaca e desamarrou-as . Muito bem , disse .
Vou pensar.
Pode-te acontecer a ti .
56 Cormac McCarthy

Sim, senhora.
Ele montou e voltou o cavalo e ergueu uma mão . As montanhas a sul
erguiam-se , muito negras , sob um céu violeta. A neve tão pálida nas
encostas voltadas a norte . Como espaços vazios deixados para inscrever
mensagens .
La je! gritou ela. La je es todo .
Ele voltou o cavalo ao longo do trilho sulcado de regos e seguiu em
frente . Quando olhou para trás , ela ainda estava parada diante da porta
aberta . Parada ao frio . Ele olhou para trás uma derradeira vez e a porta
ainda continuava aberta, mas ela já lá não estava, e ele pensou que tal­
vez o velho a tivesse chamado . Mas depois pensou que , provavelmente ,
aquele velho já não chamava por ninguém .

Dois dias depois , ao cavalgar pela estrada de Cloverdale , desviou-se


sem motivo aparente e foi até ao ponto onde os vaqueros tinham feito a
pausa para o almoço e , sentado na sela, contemplou de alto a fogueira
negra e morta. Um animal tinha estado a escavar nas cinzas .
Desmontou e pegou num pau e remexeu na fogueira. Tomou a montar
e, com o cavalo a passo , seguiu ao longo do perímetro do acampamento .
Não havia razão para pensar que o necrófago fora outra criatura que não
um coiote , mas ele cavalgou por ali , mesmo assim . Cavalgou devagar e
voltou o cavalo com elegância. Como um cavaleiro a exibir-se num
concurso. Ao descrever o segundo círculo , um pouco mais longe da
fogueira, deteve-se . Junto a um penedo , a sotavento , no ponto onde a
areia fora arrastada, jazia a marca perfeita da pata dianteira da loba.
Ele desmontou e ajoelhou-se , a segurar as rédeas atrás das costas , e
assoprou a terra solta dentro da pegada e premiu os bordos delicados da
pegada com o polegar. Em seguida, tomou a montar e regressou à estra­
da e voltou para casa.
No dia seguinte , quando percorreu as armadilhas que tomara a mon­
tar com o novo engodo , encontrou-as desenterradas e desarmadas como
antes . Tomou a armá-las e montou duas armadilhas no trilho , sem engo­
do , mas nos seus gestos havia pouca convicção . Quando cavalgou atra­
vés da garganta, ao meio-dia, e espraiou a vista pelo vale de Cloverdale ,
a primeira coisa que viu foi , na lonjura, a fina coluna de fumo da foguei­
ra para cozinhar dos vaqueros .
Ficou sentado na sela durante muito tempo . Pôs a mão no arção tra­
seiro e olhou para trás , na direcção da garganta, e tomou a contemplar
o vale . Depois deu meia-volta e tomou a cavalgar montanha acima.
A Travessia 57

Quando acabou de levantar as armadilhas e de as guardar na cesta e


rompeu pelo vale e atravessou a estrada , o crepúsculo aproximava-se a
passos largos . Uma vez mais, verificou a posição do Sol pela largura da
sua mão na linha do horizonte . Restava-lhe pouco mais de uma hora de
luz do dia.
Desmontou junto da fogueira e tirou a colher de j ardineiro da cesta
de alças e acocorou-se e começou a limpar um espaço entre as cinzas e
o carvão e os ossos frescos . No âmago da fogueira havia ainda brasas
vivas , e ele amontoou-as de lado para arrefecerem e escavou um buraco
no chão , debaixo da fogueira, e depois tirou uma armadilha da cesta.
Nem sequer se deu ao trabalho de pôr as luvas de camurça.
Apertou as molas com as prensas e abriu as mandíbulas do engenho
e encaixou o gatilho no entalhe e avaliou a folga enquanto desapertava
o parafuso da prensa. Em seguida, removeu ambas as prensas e deixou
cair no buraco o gancho e a corrente e pousou a armadilha na fogueira.
Colocou um dos quadrados de papel impregnado de óleo sobre as
mandíbulas , para impedir que alguma brasa se alojasse sob o prato e o
encravasse , depois verteu cinza sobre a armadilha com a peneira e tor­
nou a espalhar o carvão e os pedacinhos carbonizados de madeira e
dispersou novamente os ossos e as lascas de pele enegrecida e espalhou
mais cinza sobre a armadilha e depois endireitou-se e deu alguns passos
atrás e ficou parado , a olhar para a fogueira fria e a limpar a colher de
jardineiro à costura das calças de ganga. Por fim, alisou um espaço na
areia, diante da fogueira, desenraizando os pequenos tufos de erva e de
arbustos-dos-veados , e ali escreveu uma mensagem para os vaqueros ,
gravando-a bem fundo , não fosse o vento apagá-la. Cuidado , escreveu .
Hay una trampa de lobos enterrada en el fuego . Depois atirou o pau
para longe e deixou cair a colher de jardineiro novamente na cesta e pôs
a cesta às costas e montou .
Cavalgou através da pastagem , ao encontro da estrada, e , à luz fria e
azul do lusco-fusco , voltou-se e olhou uma derradeira vez para o ardil .
Debruçou-se e escarrou . Agora lê o meu aviso , disse . Se conseguires .
Depois voltou o cavalo na direcção de casa.
Já escurecera há duas horas quando entrou na cozinha . A mãe
encontrava-se diante do fogão . O pai estava ainda sentado à mesa, a
beber café . O livro-caixa azul , já muito puído , onde eles faziam as con­
tas da casa encontrava-se pousado na mesa, desviado para o lado .
Onde é que ' tiveste? perguntou o pai .
Ele sentou-se , e o pai ouviu-o contar o que fizera e , quando ele ter­
minou , o pai assentiu com a cabeça.
58 Cormac McCarthy

Toda a minha vida, disse , tenho visto pessoas a aparecerem atrasadas ,


umas mai s , outras menos , nos lugares onde tinham combinado ' tar a
uma certa hora. Nunca ouvi uma que não tivesse uma boa justificação
pro atraso .
Sim, senhor.
Mas só há uma justificação .
Sim, senhor.
E sabes qual é?
Não , senhor.
É que a palavra delas não vale nada. Eis a única justificação que al­
guma vez houve ou haverá .
Sim, senhor.
A mãe tinha-lhe tirado o jantar do aquecedor de pratos , acima do
fogão , e pousou o prato diante dele e pousou também os talheres .
Come o teu jantar, disse-lhe .
Saiu da divisão . O pai ficou sentado , a vê-lo comer. Ao fim de um
certo tempo , levantou-se e levou a chávena até ao lava-loiça e passou-a
por água e colocou-a, voltada ao contrário , no escorredor. Eu acordo-te
amanhã de manhã, disse . Tens de ir até lá antes que caces algum desses
tais mexicanos .
Sim, senhor.
Havia de ser bonito , a história havia de dar pano pra mangas .
Sim, senhor.
Nem sequer tens a certeza que algum deles saiba ler.
Sim, senhor.
Acabou de jantar e foi para a cama. Boyd já estava a dormir. Ele ficou
muito tempo acordado na cama, a pensar na loba. Tentou ver o mundo
que a loba via. Tentou pensar nela a correr pelas montanhas de noite .
Perguntou a si mesmo se os lobos seriam tão insondáveis como o velho
dissera. Perguntou a si mesmo como seria o mundo que eles farejavam ,
quais os sabores que eles sentiam . Perguntou a si mesmo se o sangue
vivo com que eles dessedentavam a garganta teria um sabor diferente do
travo a espessa tintura ferrosa do seu próprio sangue . Ou do sangue de
Deus . Na manhã seguinte , já estava a pé antes do raiar da manhã, a selar
o cavalo na fria escuridão do estábulo . Cruzou o portão antes mesmo de
o pai se levantar da cama, e nunca mais o tomou a ver.
Ao cavalgar pela estrada para sul , sentia o cheiro do gado nos cam­
pos , nas trevas , para além da valeta da berma e da longa vedação . Quan­
do passou por Cloverdale, havia no céu somente uma luz cinzenta.
Meteu pela estrada de Cloverdale Creek e prosseguiu . Atrás dele , o Sol
A Travessia 59

nascia no desfiladeiro de San Lui s , e a sombra nova a cavalgar à sua


frente estendia-se , comprida e esguia, sobre a estrada. Passou junto do
velho estrado para bailes na floresta e, duas horas depois , quando aban­
donou a estrada e cruzou a pastagem ao encontro da fogueira do almoço
dos vaqueros , a loba pôs-se de pé para o acolher.
O cavalo estacou e recuou e bateu com as patas no chão . Ele susteve
o animal e deu-lhe palmadinhas e falou com ele e observou a loba. O
coração martelava-lhe no peito como uma criatura que quisesse sair
dali . Ela tinha a pata dianteira direita presa . O gancho prendera-se numa
cholla , a menos de trinta metros da fogueira, e ela ali permanecia para­
da. Ele ia dando palmadinhas no cavalo e falava com ele e baixou o
braço e soltou a fivela do estojo da sela e retirou de lá a espingarda e
desmontou e deixou cair as rédeas . A loba agachou-se ligeiramente .
Como que a tentar esconder-se . Depois tornou a erguer-se e olhou para
ele e olhou ao longe , na direcção das montanhas .
Quando ele se acercou , ela arreganhou os dentes , mas não rosnou e
manteve os olhos amarelos desviados da figura dele . O osso branco
surgia na ferida ensanguentada, entre as mandíbulas da armadilha. Ele
via-lhe as tetas através da fina pelagem do ventre , e ela mantinha a cau­
da entre as pernas e repuxou a armadilha e tornou a imobilizar-se .
Ele caminhou e m volta dela. Ela voltou-se e recuou . O Sol estava bem
alto no céu , e, ao sol , a pelagem dela era de um tom pardo acinzentado ,
com pontas mais claras no cachaço e uma lista negra ao longo do dorso ,
e ela voltou-se e recuou até esticar a corrente por completo e os flancos
dela inchavam e tornavam a mirrar com o movimento da sua respiração .
Ele acocorou-se no chão e apoiou a espingarda ao alto diante de si e
segurou-a pelo fuste e ficou ali acocorado durante muito tempo .
Não estava, nem de perto nem de longe , preparado para o que os seus
olhos contemplavam . Entre outras coisas , não tomara em linha de conta
se conseguiria cavalgar até ao rancho e regressar com o pai antes de os
vaqueros chegarem ao meio-dia, se é que eles iriam ali ter a essa hora.
Tentou recordar o que o pai lhe dissera. O que fazer caso ela tivesse a
perna partida ou caso tivesse ficado presa pela pata . Mediu a altura do
Sol e olhou para trás de si, na direcção da estrada . Quando tornou a
olhar para a loba, ela estava deitada, mas , quando o seu olhar tombou
sobre ela, a loba pôs-se novamente de pé . O cavalo , parado ali perto ,
atirou a cabeça para trás , fazendo tilintar o freio , mas ela não prestou
atenção nenhuma ao cavalo . Ele ergueu-se e voltou para trás e enfiou a
espingarda no estojo e pegou nas rédeas e montou e voltou o cavalo e
dirigiu-se para a estrada. A meio caminho , deteve-se novamente e deu
60 Cormac McCarthy

meia-volta e olhou para trás . A loba olhava-o como antes . Ele permane­
ceu ali parado imenso tempo . Com o sol quente nas costas . O mundo à
espera. Por fim , cavalgou de regresso para junto da loba.
Ela ergueu-se e ficou de pé , com os flancos a mirrarem e a enfunarem­
-se . Tinha a cabeça baixa e a língua pendia-lhe , trémula, entre os longos
incisivos do maxilar inferior. Ele soltou o cordão que prendia a corda de
laçar e pô-la ao ombro e desmontou . Tirou alguns troços de cordão de
amarrar gado da mochila atrás da sela e prendeu-os ao cinturão com
uma laçada e preparou a corda de laçar e caminhou em volta da loba . O
cavalo de nada lhe servia, porque , caso retesasse a corda, mataria a loba
ou soltá-la-ia da armadilha ou ambas as coisas . Descreveu um círculo
em volta da loba e procurou qualquer coisa a que pudesse amarrar a
corda para conseguir derrubar o animal . Nada havia que a corda alcan­
çasse e a que ele a pudesse prender, e, por fim , despiu o casaco e usou­
-o para vendar o cavalo e conduziu-o para barlavento da loba e deixou
cair as rédeas para que ele ficasse parado . Em seguida, foi soltando a
corda e armou o laço e deixou-o tombar sobre a loba. Ela avançou atra­
vés do laço , arrastando a armadilha consigo , e olhou para a corda e
olhou para ele . A corda encontrava-se agora em volta da corrente da
armadilha. Ele olhou para o laço com expressão exasperada e soltou a
corda e afastou-se através do deserto até encontrar um paloverde e
cortou-lhe um ramo com mais de dois metros de comprido e com uma
bifurcação na ponta, e regressou a aparar-lhe os galhos com a navalha.
Ela observava-o . Ele prendeu o laço com a ponta do pau e puxou-o
para si . Pensou que ela talvez mordesse o pau , mas não . Quando teve o
laço novamente na mão , foi obrigado a passar os doze metros de corda
por dentro da alça e a começar de novo . Ela ficou a ver a corda com
grande atenção enquanto esta ia fazendo a sua travessia e, quando a
ponta passou sobre a corrente da armadilha e se escapuliu através da
erva morta, tornou a deitar-se no chão.
Ele armou um laço mais apertado e avançou . Ela pôs-se de pé . Ele
atirou o laço e ela baixou as orelhas e agachou-se e arreganhou-lhe os
dentes. Ele fez mais duas tentativas , e, à terceira, o laço tombou sobre
o pescoço da loba e ele retesou a corda.
Ela desatou a contorcer-se sobre as patas traseiras , a erguer a pesada
armadilha ao alto , junto ao peito , e a desferir dentadas na corda e a dar­
-lhe patadas com a pata livre . Soltou um queixume surdo que era o
primeiro som que se lhe ouvia.
Ele recuou e fê-la tombar ao comprido até ela jazer no chão , arquejan­
te , e ele continuou a recuar ao encontro do cavalo , sempre a desenrolar
A Travessia 61

a corda, e deu uma volta n a corda e m torno do chifre d a sela e tornou a


avançar, trazendo na mão a ponta solta. Fez um esgar ao ver a pata dian­
teira da loba, cheia de sangue e esgaçada na armadilha, mas nada havia
a fazer. Ela ergueu do chão os quartos traseiros e debateu-se de viés e
contorceu-se e tentou libertar-se da corda e meneou a cabeça de um lado
para o outro e , a dado momento , chegou até a pôr-se de novo completa­
mente de pé , antes que ele a fizesse tombar outra vez . Agachou-se , a
segurar a corda a cerca de um metro dela, e , ao fim de um certo tempo ,
ela ficou a arquejar silenciosamente na terra. Fitou-o com os seus olhos
amarelos e fechou-os devagar e depois desviou os olhos .
Ele ergueu-se com um pé sobre a corda e tornou a sacar da navalha e
estendeu o braço com cuidado e agarrou a vara de paloverde . Cortou um
pedaço da ponta com um metro de comprido e guardou a navalha de
novo no bolso e tirou do cinto um troço de cordão de amarrar bezerros
e deu-lhe um nó corredio e prendeu-o entre os dentes . Em seguida, tirou
o pé de cima da corda e apanhou-lhe a ponta do chão e avançou na di­
recção da loba com o pau . Ela observava-o com um olho cor de amên­
doa, amarelo-escuro , a tingir-se de âmbar na íris. Repuxou a corda, de
focinho na terra, a boca aberta e os dentes tão brancos , tão perfeitamen­
te esculpidos . Ele puxou a corda, apertando-a no ponto onde se encon­
trava enrolada em volta do chifre da sela. Puxou até cortar a respiração
à loba e , em seguida, enfiou-lhe o pau entre os dentes.
Ela não emitiu qualquer som . Arqueou o corpo para o alto e torceu a
cabeça e mordeu o pau e tentou libertar-se dele . Ele puxou a corda com
força e estendeu a loba, desvairada e sacudida por vómitos , e empurrou­
-lhe o maxilar inferior contra o chão com o pau e tornou a pisar a corda
com a bota, a menos de trinta centímetros daqueles colmilhos . Nesse
momento , tirou o cordão de amarrar bezerros da boca e deixou cair o
respectivo nó corredio sobre o focinho dela e apertou-o com um sacão
e agarrou-a por uma orelha e deu três voltas com o cordão em volta das
mandíbulas dela, tão depressa que olhos humanos não lhe conseguiriam
seguir os movimentos , prendeu-o com uma laçada e caiu sobre o ani­
mal , ajoelhando-se com a loba viva a arquejar-lhe entre as pernas e a
sorver o ar e a agitar entre os dentes a língua toda coberta de terra e
detritos . Ela ergueu o focinho e fitou-o , com o olho delicadamente oblí­
quo , portador de um conhecimento do mundo bastante para compreen­
der cada dia, embora talvez não para as penas que cada dia acarreta .
Então ela fechou os olhos e ele afrouxou a corda e ergueu-se e recuou
um passo , e ela permaneceu deitada, a respirar pesadamente , com a
pata dianteira retesada para trás , presa na armadilha , e o pau enfiado na
62 Cormac McCarthy

boca. Ele próprio arquejava. Embora estivesse imenso frio , escorria


suor. Voltou-se e olhou para o cavalo, parado ali perto , com o casaco a
cobrir-lhe a cabeça. C ' os diabos , soltou . C ' os diabos . Enrolou a corda
solta que arrastava pelo chão e regressou para junto do cavalo e ergueu
a corda por cima e para além do chifre da sela e desamarrou as mangas
do casaco atadas por baixo da mandíbula do animal , tirando-lhe o ca­
puz , e pousou o casaco sobre a sela. O cavalo ergueu a cabeça e resfo­
legou e olhou na direcção da loba, e ele afagou-o no pescoço e falou
com ele e tirou as prensas da mochila e pendurou ao ombro o rolo de
corda e tornou a voltar-se para a loba.
Antes que a conseguisse alcançar, ela ergueu-se de um salto e lançou­
-se para retesar a corrente da armadilha, a contorcer-se e a agitar a ca­
beça e a levar à boca a pata livre . Ele puxou-a para baixo com a corda
e segurou-a. Uma espuma branca fervilhava entre os dentes da loba. Ele
acercou-se devagar e estendeu a mão e segurou-a pelo pau entre as
mandíbulas e falou com ela, mas a sua voz parecia ter somente o condão
de a fazer estremecer. Olhou para a pata presa na armadilha. Tinha pés­
simo aspecto . Agarrou a armadilha e colocou a prensa sobre a mola e
apertou o parafuso e depois apertou a segunda mola. Quando o orifício
da mola caiu para além das charneiras no prato , as mandíbulas metálicas
abriram-se , e a pata dianteira esfacelada da loba surgiu , flácida e ensan­
guentada, com o osso branco a brilhar. Ele estendeu a mão para lhe to­
car, mas ela encolheu a pata bruscamente e pôs-se de pé . Ele ficou es­
tupefacto ante aquela rapidez . Ela postou-se de pé , pronta a lutar, com
os olhos à altura dos dele , ali ajoelhado , embora ainda não o fitasse di­
rectamente . Ele retirou o rolo de corda do ombro e pô-lo no chão e pe­
gou na ponta e enrolou-a em torno do punho com duas voltas . Em se­
guida, aliviou a pressão sobre a ponta da corda com que prendia a loba.
Ela tentou pousar a pata ferida no chão e logo a tornou a erguer.
Vá, anda, desafiou ele . Se achas que és capaz .
Ela deu meia-volta e desatou a fugir. Tão veloz . Ele mal teve tempo
de cravar o tacão da bota diante de si , na terra, antes de ela retesar a
ponta da corda. Ela descreveu uma pirueta e caiu sobre o dorso e puxou­
-o para diante , fazendo-o tombar de bruços , sobre os cotovelos . Ele
levantou-se com movimentos atabalhoados , mas ela já estava a correr
noutra direcção e, quando retesou de novo a ponta da corda, quase o fez
estatelar-se ao comprido . Ele voltou-se e cravou ambos os calcanhares
no chão e deu uma volta da corda em torno do pulso . Ela lançara-se
agora ao encontro do cavalo, e o cavalo resfolegou e precipitou-se a
trote na direcção da estrada, com as rédeas a arrastar pelo chão . Ela
A Travessia 63

correu em círculo na ponta da corda até passar pela cholla que primeiro
prendera o gancho da armadilha, e aí a corda fê-la dar uma volta até
estacar de repente , arquejante , presa no meio dos espinhos .
Ele ergueu-se e acercou-se dela. A loba agachou-se e colou as orelhas
à cabeça . A saliva pendia-lhe das mandíbulas em fiapos brancos . Ele
sacou da navalha e agarrou o pau enfiado na boca dela e falou com ela
e afagou-lhe a cabeça, mas ela limitou-se a arreganhar os dentes e a
estremecer.
Não vale a pena lutares, disse-lhe ele .
Cortou a ponta saída do paloverde junto à boca dela e guardou a na­
valha e caminhou em volta da cholla a segurar a ponta da corda até a
soltar e depois conduziu a loba, que se contorcia e ia sacudindo a cabe­
ça, para terreno aberto . A força dela deixara-o estupefacto . Estacou de
pernas abertas , a segurar a corda com ambas as mãos , sobre as coxas , e
voltou-se e remirou as cercanias , procurando ver o cavalo . Ela não pa­
rava de se debater, e ele tomou a agarrar a ponta da corda e sentou-se
com a corda enrolada numa dupla volta em tomo do punho fechado e
cravou os dois tacões das botas na terra e deixou a loba correr. Desta
vez , quando retesou novamente a corda, ela voou pelos ares e aterrou de
costas e ficou ali estatelada . Ele puxou a corda e arrastou-a para junto
de si através da terra.
Levanta-te , ordenou . Não ' tás magoada.
Acercou-se e parou junto dela, ali caída a arquejar. Remirou-lhe a
pata ferida. Havia uma aba de pele solta puxada para baixo em volta da
articulação como uma peúga, e a ferida estava suja e coberta de pauzi­
nhos e folhas . Ele ajoelhou-se e tocou na loba . Vá, anda, disse . Espan­
taste o meu cavalo , por isso toca a ir à procura dele .
Quando finalmente a conseguiu arrastar até à estrada, estava quase
exausto . O cavalo encontrava-se parado a uns cem metros , a pastar na
valeta da berma. Levantou a cabeça e olhou para ele e baixou a cabeça
para continuar a pastar. Ele prendeu a corda com uma laçada a uma
estaca de vedação e tirou do cinto o último troço de corda para amarrar
bezerros e amarrou a alça à corda que prendia a loba, para assim impe­
dir que o nó corredio se soltasse , e voltou então para trás através da
pastagem para ir apanhar do chão o casaco e para ir buscar a armadilha.
Quando regressou , ela estava espalmada contra a estaca e meio es­
trangulada, de tanto se ter debatido para trás e para diante . Ele deixou
cair a armadilha e ajoelhou-se e desprendeu a corda da estaca e fê-la
correr a todo o comprimento para cá e para lá através dos arames até
libertar novamente a loba. Ela pôs-se de pé e sentou-se na erva poeiren-
64 Cormac McCarthy

ta e lançou um olhar desvairado ao longe , estrada acima, em direcção às


montanhas , com a espuma a fervilhar-lhe entre os dentes e a escorrer do
pau de paloverde .
Não tens juízo nenhum , raios , atirou-lhe ele .
Ergueu-se e vestiu o casaco e enfiou as prensas no bolso do casaco e
pendurou a armadilha ao ombro pela corrente e depois arrastou a loba
para o meio da estrada e começou a caminhar com ela atrás de si , a rojar
pelo chão de patas hirtas e a abrir um rasto através da poeira e do cas­
calho .
O cavalo levantou a cabeça para os remirar, a mastigar com movimen­
tos de ruminação . Depois deu meia-volta e começou a andar estrada fora.
Ele parou e ficou a ver o cavalo afastar-se . Voltou-se e olhou para a
loba atrás de si . Ao longe , ouvia o chug-chug da carrinha Model A do
velho rancheiro , e deu-se conta de que ela já o ouvira há um certo tempo .
Encurtou a corda duas ou três voltas e arrastou a loba através da valeta
da berma e parou junto à vedação e viu a carrinha a surgir no alto da
colina e a acercar-se com o seu acompanhamento de poeira e ruído .
O velho abrandou e debruçou-se , a olhar atentamente . A loba debatia­
-se e contorcia o corpo , e o rapaz , parado atrás dela, segurava-a com
ambas as mãos . Quando a carrinha rolou diante deles , o rapaz estava j á
deitado n o chão , com a s pernas em tesoura e m volta d o abdómen dela e
os braços a cingir-lhe o pescoço . O velho travou e , sentado ao volante
da carrinha com o motor a ronronar, curvou-se sobre o banco do passa­
geiro e baixou a janela. Mas que raio , disse . Mas que raio . . .
Não se importava de desligar isso? pediu o rapaz .
Isso é um lobo , caramba.
É , sim , senhor.
Mas que raio de história é esta.
A carrinha ' tá a assustá-la.
A assustá-la?
Sim, senhor.
Rapaz , o que é que se passa contigo? Se essa criatura se solta desse
açaimo , come-te vivo .
Sim, senhor.
O que é que ' tás a fazer com ele?
Não é ele , é ela.
É o quê?
É ela. É uma loba.
Co ' a breca, não faz diferença nenhuma se é ele ou ela. O que é que
' tás a fazer com essa criatura?
A Travessia 65

'Tou-me a preparar prà levar pra casa.


Pra casa?
Sim, senhor.
E pra quê , pela infernal comarca, dizes-me?
Não pode desligar esse motor?
Não é assim tão fácil como isso fazê-lo pegar outra vez .
Bom , então vou-lhe pedir que vá de carro até além à frente e deite a
mão ao meu cavalo e mo traga até aqui . Eu até amarrava esta bicha, mas
ela enreda-se toda nos arames da cerca.
O que eu gostava de fazer era tentar salvar-te do incómodo de seres
comido , retrucou o velho . Pra que é que ' tás a levar esse animal pra
casa?
É assim a modos que uma longa história.
Bom, eu cá gostava imenso de a ouvir.
O rapaz olhou para o fundo da estrada, onde o cavalo estava parado
a pastar. Olhou para o velho . Bom , disse . O meu pai queria que eu o
fosse chamar se apanhasse esta loba, mas eu não a quis deixar ficar
porque há uns vaqueros que costumam almoçar acolá em cima, e eu
pensei que o mais provável era eles darem-lhe um tiro , por isso decidi
que o melhor era levá-la pra casa comigo .
E sempre foste maluco?
Não sei . A verdade é que até hoje ainda não tinha sido posto à prova,
a bem dizer.
Que idade tens tu?
Dezasseis .
Dezasseis .
Sim, senhor.
Bom, tu não tens o juízo que Deus dá a um ganso . Sabias?
Talvez o senhor tenha razão .
Como é que esperas que o teu cavalo tolere um disparate deste tama­
nho .
Caso eu lhe consiga deitar a mão , não lhe vou pedir opiniões sobre o
assunto .
Fazes tenções de levar esse animal à corda atrás dum cavalo?
Faço , sim , senhor.
E como é que esperas obrigar a loba a fazer isso?
Também não lhe vou deixar grande escolha na matéria .
Sentado atrás d o volante , o velho olhou-o . E m seguida, saiu d a carri­
nha e fechou a porta e ajeitou o chapéu e contornou o veículo e parou
na orla da valeta. Trazia umas calças de lona e um casaco de lona com
66 Cormac McCarthy

forro de cobrejão e gola de bombazina e calçava botas de tacões baixos


e trazia um chapéu John B Stetson de pêlo de castor.
Até onde é que me posso aproximar? perguntou .
Até onde quiser.
O velho transpôs a valeta e acercou-se e ficou parado , a olhar para a
loba. Olhou para o rapaz e olhou para a loba durante mais algum tempo .
Ela vai ter lobachos .
Sim, senhor.
Ainda bem que a apanhaste , caramba.
Sim, senhor.
Pode-se tocar nela?
Pode , sim , senhor. Pode tocar nela.
O velho agachou-se e pôs a mão sobre a loba. A loba curvou-se e
contorceu-se , e ele retirou a mão com um gesto brusco . Em seguida,
tomou a tocar-lhe . Olhou para o rapaz . Uma loba, disse .
Sim, senhor.
O que é que tencionas fazer com ela?
Não sei .
Se calhar vais receber o prémio . Vender a pele .
Sim, senhor.
Ela não gosta muito que lhe toquem, pois não?
Não , senhor. Não gosta lá muito .
Quando a gente trazia gado pelo vale acima, lá de baixo , de Ciénega
Springs , na primeira noite costumávamos ir dar ali às redondezas do
Govemment Draw e era ali que acampávamos . E ouviam-se os lobos
nos quatro cantos do vale . Nas primeiras noites de calor. Ouviam-se
quase sempre naquela parte do vale . Há anos que já não ouço nenhum.
Ela veio do México .
Não duvido . Mais de metade das criaturas danadas vêm de lá.
Levantou-se e olhou para o fundo da estrada, onde o cavalo estava a
pastar. Se queres um conselho , disse , deixa-me ir buscar aquela espin­
garda que eu ali vejo a sair da bota e dás um tiro nesta filha da mãe
desta loba em cheio entre os olhos e pronto , ' tá o assunto arrumado .
Desde que o senhor me deite a mão ao cavalo , eu cá me governo ,
disse o rapaz .
Bom . Faz como entenderes .
Sim, senhor. Assim farei .
O velho abanou a cabeça. Muito bem, disse . Espera aqui , que eu vou
buscá-lo .
Eu cá não vou a lado nenhum , disse o rapaz .
A Travessia 67

Ele voltou para junto da carrinha e entrou e conduziu a carrinha até


ao ponto onde o cavalo se encontrava parado . Quando o cavalo viu a
carrinha a aproximar-se , atravessou a valeta e parou contra a cerca, e o
velho saiu da carrinha e seguiu o cavalo ao longo da cerca até conseguir
agarrar as rédeas que arrastavam pelo chão , e depois trouxe o cavalo
pela estrada em sentido inverso . O rapaz continuava sentado , a agarrar
a loba. Reinava um grande silêncio . O único som ao longo da estrada
era o ténue clope-clope seco dos cascos do cavalo no cascalho e o ron­
ronar ininterrupto da carrinha onde o velho a deixara com o motor liga­
do , junto à berma.
Quando ele arrastou a loba para o meio da estrada, o cavalo recuou e
estacou de frente para ela.
Talvez seja melhor amarrares o cavalo, sugeriu o velho .
Se o senhor o segurar só um minutinho , eu resolvo o problema.
Não sei ao certo se não preferia antes segurar a loba.
O rapaz folgou a corda o suficiente para a loba conseguir descer para
a valeta, mas não tanto que ela conseguisse chegar à cerca. Enrolou a
corda em volta do chifre da sela e soltou a loba e ela precipitou-se para
a valeta sobre três patas e retesou a ponta da corda e tombou de traseiro
no chão e levantou-se e agachou-se na valeta e ficou deitada, à espera.
O rapaz voltou-se e tomou as rédeas da mão do velho e levou um dedo
curvado à aba do chapéu .
Muito agradecido , disse .
Não tens de quê . Tem sido um dia interessante .
Sim, senhor. O meu ainda não acabou .
Não , não acabou . Toma cuidado , não a deixes soltar a boca, ouviste?
Arranca-te um bocado de carne tal que nem dentro do chapéu te cabe .
Sim, senhor.
Apoiou-se no estribo e içou-se para a sela e certificou-se de que a
corda estava bem enrolada no chifre e empurrou o chapéu para trás e
dirigiu ao velho um aceno de cabeça. Muito agradecido , disse .
Quando picou o cavalo , a loba subiu da valeta na ponta da corda , com
a pata ferida junto ao peito , guinou para o meio da estrada e foi a arras­
tar atrás do cavalo , de pernas hirtas , rígida como um animal embalsa­
mado . Ele deteve-se e olhou para trás . O velho estava parado na estrada,
a olhá-los .
Posso-lhe pedir uma coisa? disse ele .
Com certeza.
Se calhar é melhor o senhor ir andando e seguir com a carrinha. Pra
não ter de ultrapassar a gente .
68 Cormac McCarthy

Parece-me boa ideia.


O velho caminhou em frente e entrou na carrinha e voltou-se e olhou
para trás , para eles . O rapaz ergueu a mão . O velho parecia estar a
preparar-se para lhe gritar qualquer coisa, mas não o fez , limitou-se a
levantar a mão e voltou-se e arrancou pela estrada fora na direcção de
Cloverdale .
Ele prosseguiu . Rajadas de vento sopravam nuvens de poeira da su­
perfície da estrada . Quando ele se voltou para olhar a loba, ela tinha o
olho do lado da ventania semicerrado , para se proteger das pedrinhas
trazidas pelas rajadas , e avançava a coxear atrás do cavalo , de cabeça
baixa. Ele parou e ela avançou um bocadinho para afrouxar a corda e
depois virou-se e desceu novamente para a valeta. Ele preparava-se
para picar o cavalo quando ela se agachou na valeta e começou a verter
águas . Quando terminou , voltou-se e farejou esse ponto e farejou o
vento com o nariz e depois subiu para a estrada e parou , com a cauda
entre os jarretes e o vento a abrir-lhe pequenos sulcos no pêlo.
O rapaz permaneceu sentado na sela muito tempo , a observá-la. De­
pois desmontou e deixou cair as rédeas e pegou no cantil e dirigiu-se ao
ponto onde ela estava parada. Ela recuou até onde a corda lho permitia.
Ele suspendeu o cantil ao ombro e ergueu a perna para passar por cima
da corda e segurou-a entre os joelhos e puxou a loba para si. Ela
contorceu-se e fincou as patas , mas ele agarrou o nó corredio e enrolou­
-o numa volta dupla em torno do punho e obrigou-a a deitar-se na erva,
na berma da estrada, e pôs-se às cavalitas sobre ela. Era tudo o que
podia fazer para a segurar. Puxou o cantil para o peito e desatarraxou a
tampa com os dentes . O cavalo bateu com os cascos na estrada e ele
falou com ele e depois , prendendo a loba pelo pau enfiado na boca, com
a cabeça dela contra o joelho , começou lentamente a verter-lhe água
para o lado da boca. Ela ficou imóvel . O olho dela parou de se mover.
Em seguida, começou a engolir.
Grande parte da água escorreu para o chão , mas ele continuou a
vertê-la em fio entre os dentes dela, ao longo do freio de madeira verde .
Quando o cantil ficou vazio , ele soltou o pau e ela ficou deitada, muito
quieta, a recobrar o fôlego . Ele pôs-se de pé e recuou um passo , mas ela
não se mexeu . Com um piparote , ele fez a tampa encaixar-se no bocal ,
na ponta da corrente , e tornou a enroscá-la no cantil e regressou para
junto do cavalo e pendurou o cantil sobre a mochila e olhou para a loba.
Ela estava de pé , a olhá-lo . Ele montou e picou o cavalo . Quando olhou
para trás , ela vinha a coxear na ponta da corda. Quando parou , ela pa­
rou . Ao fim de uma hora de caminho pela estrada, ele deteve-se durante
A Travessia 69

muito tempo . Estava junto da vedação que emparcelava o rancho de


Robertson . Seguindo em frente , a uma hora de cavalo , iria ter a Clover­
dale e à estrada para norte . Para sul estendiam-se os terrenos desafoga­
dos . A erva amarela vergava-se sob o vento forte e a luz do Sol corria
sobre a paisagem diante das nuvens em movimento . O cavalo meneou
a cabeça e bateu com as patas e permaneceu no mesmo lugar. Pro diabo
com isto tudo , soltou o rapaz . Pro diabo com isto tudo , caramba.
Voltou o cavalo e transpôs a valeta e meteu para a ampla planície que
se estendia a perder de vista diante dele , para sul , na direcção das mon­
tanhas do México .
Ao meio-dia, cruzaram um desfiladeiro baixo no esporão mais orien­
tal dos montes Guadalupes e desceram ao encontro do vale aberto . Vi­
ram cavaleiros ao longe , na planura, mas estes prosseguiram sem se
deter. Ao final da tarde , deixaram para trás os derradeiros montes baixos
em forma de cones naquele terreno vulcânico e, uma hora depois , alcan­
çaram a derradeira vedação daquele país .
Era uma cerca que corria para leste e para oeste . Do outro lado havia
um caminho de terra batida. Ele voltou o cavalo para leste e seguiu
junto à cerca. Havia um trilho de gado ao longo da vedação , mas ele
pôs-se a cavalgar a uma certa distância deste , deixando entre si e o trilho
o intervalo suficiente para a loba não se meter por baixo dos arames , e
pouco depois chegou a uma casa rural .
Sentado na sela, numa ligeira elevação de terreno , remirou a casa.
Não via nas cercanias nenhum lugar seguro para deixar a loba , por
isso prosseguiu . Junto à cancela, desmontou e soltou a corrente e abriu
a cancela de par em par e conduziu o cavalo e a loba para o outro lado
e tornou a fechar a cancela e montou de novo . A loba estava parada na
estrada, de dorso arqueado , com o pêlo todo desalinhado , qual uma
criatura puxada de dentro de um cano às arrecuas , e, quando ele inci­
tou o cavalo a retomar a marcha, ela veio a arrastar atrás , de patas
hirtas . Ele voltou-se e olhou para ela. Se eu tivesse andado a comer as
vacas desta gente , disse , também não havia de lhes querer aparecer em
casa.
Antes que pudesse picar de novo o cavalo , ouviu-se um grande urro
vindo dos lados da casa, e , quando ele olhou , viu três enormes podengos
a correr estrada acima, rentes ao chão e muito velozes .
Cruzes credo merda, soltou ele .
Saltou para o chão e prendeu as rédeas ao arame de cima da cerca e
sacou a espingarda do estojo. Bird tinha os olhos revirados nas órbitas
e começou a bater com as patas para cá e para lá na estrada. A loba
70 Cormac McCarthy

manteve-se absolutamente imóvel , de cauda erguida e o pêlo todo eri­


çado . O cavalo deu meia-volta e repuxou as rédeas , o arame da vedação
vergou-se . No meio da balbúrdia, ele ouviu um grampo a saltar e, subi­
tamente , viu como num sonho mau o espectro do cavalo lançado a todo
o galope na planura, com a loba atrás na ponta da corda e os cães em
perseguição desenfreada, e soltou a corda do chifre da sela no preciso
momento em que as rédeas se romperam e o cavalo rodopiou e fugiu
num tropel , e ele voltou-se com a espingarda e com a loba para enfren­
tar os cães que o cercaram de repente , num caos de urros e de dentes
arreganhados e de olhos revirados .
Os cães começaram a descrever círculos , a raspar com as patas na
poeira, e ele puxou a loba para junto da perna e gritou-lhes e desferiu­
-lhes pancadas com o cano da espingarda para os repelir. Dois deles
traziam pedaços de corrente partida a pender-lhes da coleira, e o tercei­
ro não tinha coleira nenhuma. Em todo aquele pandemónio turbilhonan­
te , ele sentia a loba a tremer electricamente contra si e o coração dela a
martelar.
Eram cães de trabalho , e, embora descrevessem círculos e ladrassem,
ele sabia que nunca se atreveriam a atacar uma criatura que um homem
conservasse sob a sua protecção absoluta, mesmo tratando-se de um
lobo . Rodou juntamente com eles e desferiu um golpe na têmpora de um
deles com o cano da espingarda. Arreda ! gritou . Arreda ! Nessa altura já
dois homens vinham da casa em corrida.
Chamaram os cães pelo nome , e dois destes detiveram-se efectiva­
mente e olharam para trás , para o fundo da estrada. O terceiro arqueou
o dorso e avançou para a loba com passos miúdos de viés e entrechocou
os dentes e tornou a recuar e estacou , soltando um uivo . Um dos homens
tinha um guardanapo pendurado do peitilho da camisa e respirava pesa­
damente . Aqui , Julie ! ordenou . Aqui ! Diacho . Arranja um pau ou qual­
quer coisa, RL . Santo Deus.
O outro homem desapertou a fivela e puxou o cinturão das calças ,
fazendo-o deslizar através das presilhas , e começou a distribuir vergas­
tadas em seu redor com a fivela. De imediato , os cães começaram a
latir e a escapulir-se . O homem mais velho deteve-se e endireitou-se , de
mãos nas ancas , a recobrar o fôlego . Voltou-se para o rapaz . Viu o guar­
danapo na própria camisa e soltou-o com um puxão e usou-o para lim­
par a testa e enfiou-o no bolso de trás . Importas-te de me explicar o que
raio ' tás tu a fazer? perguntou .
'Tou a tentar que esses malditos cães não venham pra cima da minha
loba.
A Travessia 71

Não me dês respostas vivaças .


Não é isso . Eu dei com a sua vedação e vim à cata duma cancela,
mais nada. Não sabia que ia rebentar uma barafunda destas .
E o que é que tu ' tavas à espera que acontecesse?
Não sabia que havia aqui cães .
Bom , raispartam , tu viste a casa, ou não?
Sim, senhor.
O homem fitou-o de olhos franzidos . Tu és o moço do Will Parham .
Não és?
Sou , sim, senhor.
Como é que te chamas?
Billy Parham .
Bom, B illy, talvez isto te pareça uma pergunta estúpida, mas o que é
que tu andas a fazer com essa criatura, raios?
Apanhei-a.
Bom , calculo que sim. É essa aí com o pau enfiado na boca. Pra onde
vais tu com ela?
'Tava a ir pra casa.
Ah , isso é que não ' tavas . Tu ias naquela direcção .
'Tava a ir pra casa com ela quando mudei de ideias .
E que nova ideia foi essa que te veio à cabeça?
O rapaz não respondeu . Os cães andavam para trás e para diante , com
o pêlo eriçado ao longo do dorso .
RL , leva os cães pra casa e prende-os . Diz à patroa que eu não me
demoro .
Voltou-se de novo para o rapaz . Como é que tencionas recuperar o teu
cavalo?
Tenho de ir a pé atrás dele , acho eu .
Bom, é bem mais de meia légua desde aqui até à primeira ponte de
npas .
O rapaz permanecia parado , a segurar a loba. Olhou estrada fora, na
direcção por onde o cavalo se afastara.
Esse bicho viaja numa carrinha? perguntou o homem .
O rapaz lançou-lhe um olhar bizarro .
Raios , disse o homem . Presta atenção ao que eu te digo . RL , podes
levá-lo na carrinha pra ele apanhar o cavalo?
Sim, senhor. O cavalo dele é difícil de apanhar?
O teu cavalo é difícil de apanhar? perguntou o homem.
Não , senhor.
Ele diz que não é .
72 Cormac McCarthy

Bom, a menos que ele faça mesmo questão de vir à boleia, acho que
lhe posso ir buscar o cavalo sozinho .
Tu não queres é ir na carrinha com aquele lobo , é o que é , disse o
homem.
Não é que não queira. É que não vou mesmo .
Bom, eu ' tava-me a preparar pra sugerir que já que o animal é bem
capaz de saltar da caixa da carrinha, porque é que não o levas na cabina
contigo enquanto o rapaz segue na traseira?
RL agarrara os cães pelos pedaços de corrente que arrastavam pelo
chão e estava a prender o terceiro cão aos dois primeiros com o cinto .
'Tá-se mesmo a ver, eu a conduzir a carrinha por essa estrada fora com
um lobo no banco ao meu lado , retorquiu ele . É que é mesmo pra já, não
haja dúvida.
O homem permanecia parado, a olhar para a loba. Ergueu a mão para
ajeitar o chapéu , mas não trazia chapéu , por isso limitou-se a coçar a ca­
beça. Olhou para o rapaz . E eu a julgar que conhecia todos os lunáticos
deste vale , disse . Com estas redondezas a encherem-se de gente , uma pes­
soa nem sequer se consegue manter a par dos vizinhos todos . Já jantaste?
Não , senhor.
Bom , vem com a gente até à casa.
E o que é que quer que eu faça com ela?
Ela?
Esta loba aqui .
Bom, acho que ela vai ter de ficar pràli deitada na cozinha até a gen­
te acabar de comer.
Deitada na cozinha?
'Tava a brincar, rapaz . Co ' a breca. Se metesses essa criatura dentro
de casa, havia de se ouvir a minha mulher a berrar em Albuquerque com
os fios do telégrafo todos caídos no chão .
Não a quero deixar cá fora. É capaz de algum bicho a atacar.
Eu sei . Anda daí, vá. Seja como for, eu também não a ia deixar cá
fora e arriscar-me a que alguém a visse , nem por sombras . Ainda me
vinham dar caça com uma rede pra borboletas .
Meteram a loba no fumeiro e deixaram-na ali e encaminharam-se
para a cozinha. O homem olhou para a espingarda que o rapaz levava
na mão , mas não disse nada. Quando chegaram à porta da cozinha, o
rapaz apoiou a espingarda contra a parede da casa, e o homem segurou
a porta para o deixar passar e entraram os dois .
A mulher guardara o jantar por cima do fogão para o manter quente
e tornou a tirar tudo para fora e pôs um prato na mesa para o rapaz . Lá
A Travessia 73

fora, ouviram RL a ligar o motor da carrinha. Passaram os pratos de


mão em mão , tigelas de puré de batata e de feijão mosqueado e uma
travessa de bifes fritos . Quando ele ficou com o prato cheio até quase
não poder mai s , ergueu os olhos para o homem. O homem indicou o
próprio prato com um aceno de cabeça.
A gente já abençoou a comida, disse . Por isso, a menos que tenhas
alguma oração das tuas pra dizer, podes começar a metê-la no bucho .
Sim, senhor.
Começaram a comer.
Mulher, disse o homem , vê lá se consegues que ele nos explique pra
onde é que tenciona levar aquele lobo .
Se ele não quer dizer, também não é obrigado , retorquiu a mulher.
Vou levá-la prà México .
O homem estendeu a mão para pegar na manteiga. Bom , disse .
Parece-me boa ideia.
Vou levá-la até lá e depois vou soltá-la.
O homem fez que sim com a cabeça. Soltá-la, repetiu .
Sim, senhor.
Ela tem uma ninhada num lugar qualquer, não tem?
Não , senhor. Ainda não pariu .
Tens a certeza disso?
Sim, senhor. Ela vai parir não tarda.
E o que é que tu tens contra os mexicanos?
Não tenho nada contra eles .
Só achaste que talvez lhes desse jeito terem por lá mais um lobo ou dois .
O rapaz cortou um pedaço do bife e espetou-lhe o garfo . O homem
observava-o .
E que tal ' tão eles fornecidos por lá de cascavéis , fazes ideia?
Eu não a vou levar pra dar a ninguém. Só a vou levar até lá e depois
vou soltá-la. Foi de lá que ela veio .
O homem espalhou manteiga muito metodicamente ao longo do bor­
do de um scone , usando a faca. Tornou a pôr a parte de cima no scone
e olhou para o rapaz .
És um miúdo muito esquisito , comentou . Sabias?
Não , senhor. Sempre fui igual aos outros , tanto quanto sei .
Bom , olha que não és .
Sim , senhor.
Diz-me uma coisa. Não ' tás a fazer tenções de largar aquela criatura
mal cruzes a fronteira, ou ' tás? É que se ' tás , eu vou seguir-te até lá com
uma espingarda.
74 Cormac McCarthy

Eu ia levá-la de volta pràs montanhas .


Levá-la de volta pràs montanhas , repetiu o homem. Olhou para o
scone com expressão pensativa e depois mordeu-o vagarosamente .
Donde é a tua família? perguntou a mulher.
Moramos lá em cima, nas Charcas .
Ela ' tava a perguntar antes disso , explicou o homem .
Viemos do condado de Grant. E antes disso do De Baca.
O homem assentiu com a cabeça.
Já vivemos aqui em baixo há imenso tempo .
O que é imenso tempo?
Vai pra dez anos .
Dez anos , repetiu o homem . O tempo voa, não é verdade?
Vá, anda , come o teu jantar, disse a mulher. Não lhe prestes atenção .
Comeram. Ao fim de um certo tempo , a carrinha entrou no quintal e
passou diante da casa, e a mulher levantou-se da mesa e foi buscar o pra­
to de RL , que se encontrava no aquecedor de pratos , por cima do fogão .
Quando saíram de casa, depois do jantar, a noite aproximava-se e
fazia j á mais frio e o Sol pairava , baixo , acima das montanhas a oeste .
Bird estava no quintal , amarrado à cancela por uma cabeçada de corda,
com o freio e as rédeas suspensos do chifre da sela. A mulher, parada à
porta da cozinha, viu-os caminhar em direcção ao fumeiro .
Vamos ter cautela a abrir esta porta, disse o homem . Se a bicha se
livrou daquele açaimo , vocês vão ver que antes preferiam ' tar numa
banheira com um aligátor.
Sim, senhor, disse o rapaz .
O homem retirou o cadeado aberto da argola do ferrolho , e o rapaz
empurrou a porta cautelosamente para a abrir. A loba estava de pé , en­
costada ao canto . Não havia janela alguma no pequeno edifício de ado­
be , e ela pestanejou quando a luz lhe tombou sobre o corpo .
Ela ' tá bem, disse o rapaz .
Abriu a porta por completo .
Pobre bichinha, disse a mulher.
O rancheiro voltou-se , cheio de paciência. Jane Ellen , disse , o que é
que tu ' tás a fazer aqui fora?
Aquela pata ' tá com um aspecto horrível . Vou chamar o Jaime .
Vais fazer o quê?
Esperem aqui por mim .
Ela virou costas e afastou-se através do quintal . A meio caminho ,
puxou o casaco que deitara por cima dos ombros e vestiu-o . O homem
encostou-se à porta e abanou a cabeça.
A Travessia 75

Onde é que ela foi? perguntou o rapaz .


Mais loucura, replicou o homem . Isto é bem capaz de ser uma epide­
mia .
Parado à porta, enrolou um cigarro enquanto o rapaz segurava a loba
pela corda, sentado no chão .
Não tens este vício , ou tens? perguntou o homem .
Não , senhor.
Óptimo . Não comeces .
Fumou o cigarro . Olhava para o rapaz . Por quanto é que a vendias em
dinheiro vivo? perguntou .
Ela não 'tá à venda.
Por quanto é que a vendias , se ' tivesse?
Por dinheiro nenhum . Porque não ' tá.
Quando a mulher regressou , trazia consigo um velho mexicano ,
transportando debaixo do braço uma pequena caixa de estanho verde .
Ele saudou o rancheiro e tocou com a mão no chapéu e entrou no fumei­
ro com a mulher atrás de si . A mulher trazia uma trouxa de lençóis
limpos . O mexicano saudou o rapaz com um aceno de cabeça e tornou
a tocar no chapéu e ajoelhou-se diante da loba e olhou para ela.
Puede detenerla ? perguntou .
Sí, disse o rapaz .
Necesitas más luz ? perguntou a mulher.
Sí, disse o mexicano .
O homem saiu para o quintal e deixou cair o cigarro no chão e pisou­
-o . Trouxeram a loba para junto da porta e o rapaz agarrou-a enquanto
o mexicano lhe segurava a pata magoada pela articulação do cotovelo e
lhe examinava o ferimento . A mulher pousou a caixa de estanho no chão
e abriu-a e tirou de lá um frasco de hamamélide e ensopou um pedaço
de lençol no líquido . Passou o trapo ao mexicano , e este pegou-lhe e
olhou para o rapaz .
Estás listo, joven ?
Listo .
Agarrou melhor a loba e apertou-lhe as pernas em volta do corpo .
O mexicano pegou na pata dianteira da loba e começou a limpar a ferida.
Ela soltou um latido estrangulado e recuou , a debater-se nos braços
do rapaz , e, com um repelão , soltou a pata dos dedos do mexicano .
Otra vez , disse este .
Recomeçaram .
À segunda tentativa, ela atirou o rapaz para cá e para lá na divisão , e
o mexicano recuou vivamente . A mulher já dera alguns passos atrás .
76 Cormac McCarthy

A loba estava de pé , com a baba a fervilhar-lhe para dentro e para fora


entre os dentes , e o rapaz estava deitado no chão debaixo dela, pendu­
rado no pescoço do animal . Lá fora, no quintal , o rancheiro começara a
enrolar outro cigarro , mas naquele momento guardou a bolsa de tabaco
no bolso da camisa e ajeitou o chapéu .
Aguenta aí um minuto , disse . Maldição . Aguenta aí só um minuto .
Cruzou a porta e estendeu o braço e agarrou a loba pela corda e torceu
a corda no punho fechado .
Se as pessoas ouvem dizer que eu andei a dar os primeiros socorros
ao diabo dum lobo , já não vou poder viver mais neste condado , disse .
Muito bem . Faz o que tens a fazer, sem medo . Á ndale .
Concluíram a cirurgia à luz dos derradeiros raios de sol . O mexicano
puxara a aba solta de pele para o seu lugar e ficou sentado a suturá-la
pacientemente com uma pequena agulha recurva presa num porta­
-agulhas e, quando terminou , besuntou a pata com pomada Carona e
embrulhou-a em tiras de lençol , que amarrou . RL viera até ao fumeiro
e ali permaneceu , a observá-los e a palitar os dentes .
Deste-lhe água a beber? perguntou a mulher.
Dei , sim , minha senhora . É um bocado difícil pra ela beber.
Se lhe tirasses aquela coisa da boca ela mordia, calculo .
O rancheiro ergueu a perna para passar por cima da loba e saiu para
o quintal . Mordia, repetiu . Valha-me Santo Deus .
Quando ele partiu dali , trinta minutos depois , era quase noite . Dera a
armadilha ao rancheiro para ele lha guardar e trazia um farto almoço
embrulhado num pano , guardado na mochila , juntamente com o resto
do lençol e o boião de pomada Carona , e tinha uma velha manta de
Saltillo enrolada e amarrada atrás da sela. Alguém entrançara novas ti­
ras de couro para consertar as rédeas rotas , e a loba trazia uma coleira
de cão de bom cabedal , com uma chapa de latão que tinha gravado o
nome do rancheiro e o seu código postal e Cloverdale NM . O rancheiro
caminhou até à cancela com ele e soltou o fecho da cancela e abriu-a, e
o rapaz conduziu o cavalo à brida através do limiar, com a loba atrás , e
montou .
Toma cuidado contigo , rapaz , disse o homem .
Sim, senhor, ' teja descansado . Muito obrigado .
Passou-me pela cabeça prender-te aqui . Mandar chamar o teu pai .
Sim, senhor, eu sei que sim .
Ele é capaz de ficar danado comigo por eu não ter feito isso .
Não fica nada.
Bom . Tem cuidado com os bandidos .
A Travessia 77

Sim, senhor. Vou ter cuidado . Agradeço-lhe muito e mais à sua se­
nhora .
O homem fez que sim com a cabeça. O rapaz ergueu uma mão e tor­
ceu as rédeas para obrigar o cavalo a dar a volta e afastou-se através da
terra que a escuridão ia cobrindo , com a loba a manquejar na sua estei­
ra . O homem ficou junto à cancela, a vê-lo partir. Lá muito longe , a sul ,
erguia-se o escuro das montanhas , e sobre aquele fundo ele não conse­
guia distinguir os contornos daquelas figuras e em breve ambos foram
engolidos e se perderam , cavalo e cavaleiro , na noite iminente . A derra­
deira coisa que ele viu naquela aridez varrida pelo vento foi a pata en­
trapada de branco da loba a mover-se ao acaso e em staccato como um
djim pálido lá longe , extravagante no frio e na escuridão crescentes . Por
fim , também isso desapareceu , e ele fechou a cancela e voltou-se para a
casa.

Cruzaram naquele lusco-fusco sombrio uma ampla planura vulcâni­


ca, bordejada pela cercadura de montes . Os montes eram azul-escuros
na penumbra azul , e os cascos redondos do garrano faziam um clope­
-clope cavo no cascalho do leito do deserto . A noite caía de oriente , e as
trevas que passaram sobre eles surgiram num sopro súbito de frio e
quietude e passaram adiante . Como se a treva possuísse uma alma pró­
pria que era a assassina do Sol , a precipitar-se para oeste assim como os
homens acreditavam outrora, assim como talvez um dia tomem a acre­
ditar. Subiram a encosta para abandonar a planura à luz derradeira e
moribunda, homem e loba e cavalo , sobre um socalco de montes baixos
muito erodidos pelo vento , e cruzaram uma vedação ou passaram por
onde em tempos houvera uma vedação , com os arames há muito caídos
e enrolados e levados dali e as pequenas estacas nuas de mezquite a
vaguear em fila indiana, afastando-se para o seio da noite como uma
fileira de pensionistas curvados e disformes . Cruzaram a garganta no
escuro , e ali ele parou o cavalo e viu relâmpagos a sul , lá longe , sobre
as planícies do México . O vento varejava suavemente através das árvo­
res na garganta e trazia consigo salpicos de saraiva. Ele acampou ao
abrigo de um arroyo , a sul da garganta , e recolheu lenha e ateou uma
fogueira e deu à loba toda a água que ela quis beber. Em seguida,
amarrou-a à raiz em forma de cotovelo de um choupo , desenterrada
pela torrente , voltou para trás e desaparelhou e peou o cavalo . Desenro­
lou a manta e atirou-a sobre os ombros e pegou na mochila e foi sentar­
-se diante do lume . A loba, sentada sobre os quadris abaixo dele , no
78 Cormac McCarthy

barranco , observava-o com os seus olhos intratáveis , tão vermelhos à


luz do fogo . De tempos a tempos , curvava-se para tentar arrancar as li­
gaduras da pata com os molares , mas não as conseguia agarrar por
causa do pau enfiado nas mandíbulas .
Ele tirou da mochila uma sanduíche de carne de vaca e pão lêvedo e
desembrulhou-a e sentou-se a comer. A pequena fogueira chicoteava ao
vento , e a saraiva fina tombava sobre eles de viés , saída das trevas , e
vinha crepitar nas brasas . Ele comeu , de olhos postos na loba. Ela arre­
bitou as orelhas e voltou-se e olhou para o seio da noite , mas fosse o que
fosse que ia a passar passou e, ao fim de um certo tempo , ela pôs-se de
pé e olhou soturnamente para o terreno que não era escolha sua e rodou
três vezes e deitou-se voltada para o lume , com a cauda a cobrir-lhe o
focinho .
Ele acordou a noite inteira com o frio . Levantava-se e tomava a ali­
mentar a fogueira, e ela estava sempre a observá-lo . Quando as labare­
das se elevavam, os olhos dela ardiam na noite como candeias junto ao
portão de acesso a outro mundo . Um mundo a arder na margem de um
vazio insondável . Um mundo adivinhado a partir do sangue e do alca­
este do sangue e do sangue no seu âmago e no seu integumento , porque
nada a não ser o sangue tinha o poder de ressoar contra aquele vazio que
ameaçava devorá-lo a cada hora . Embrulhou-se na manta e observou-a.
Quando aqueles olhos e a nação de que eles eram testemunhas tivessem
finalmente desaparecido com a sua dignidade , de regresso às suas ori­
gen s , haveria talvez outras fogueiras e outras testemunhas e outros
mundos contemplados de modo diverso . Mas não seriam aquele .
Nas últimas horas antes do alvorecer conseguiu dormir, com ou sem
frio . Levantou-se à luz cinzenta e embrulhou-se na manta e ajoelhou-se
e tentou reavivar as cinzas mortas da fogueira, soprando-lhes . Afastou­
-se até onde podia contemplar o Oriente , para ver o nascer do Sol . Um
manto sarapintado de nuvens jazia através do céu neutro do deserto .
O vento amainara e a alvorada era silenciosa.
Quando se acercou da loba com o cantil na mão , ela não repuxou o
açaimo nem arqueou o dorso ao vê-lo . Ele tocou-lhe e ela furtou-se
devagar. Ele agarrou-a pela coleira e empurrou-a contra o chão e
sentou-se a fazer correr-lhe um fio de água entre os dentes , enquanto a
língua dela se movia e a garganta se ia contraindo e o olho frio lhe ob­
servava a mão de soslaio . Ele mantinha a mão debaixo da mandíbula
dela do outro lado , para impedir que a água escorresse para o chão , e ela
bebeu o conteúdo do cantil inteiro . Ele afagou-lhe o pêlo , ali sentado .
Depois estendeu o braço e apalpou-lhe o ventre . Ela debateu-se e revi-
A Travessia 79

rou o olho , desvairada. Ele falou-lhe em voz baixa. Meteu-lhe a palma


da mão entre as tetas quentes e nuas . Manteve-a ali durante muito tem­
po . De repente , sentiu qualquer coisa a mexer-se .
Quando partiu através do vale , para sul , a erva tinha um brilho dou­
rado ao sol da manhã. Viam-se antílopes a pastar na planura, oitocentos
metros a leste . Ele olhou para trás , para ver se ela reparara neles , mas
não . Ela coxeava atrás do cavalo em passo resoluto , semelhante a um
cão , e, desta forma, por volta do meio-dia, cruzaram a linha de fronteira
internacional e penetraram no México, no estado de Sonora, um lugar
cuja paisagem em nada se diferenciava do país que tinham acabado de
abandonar, e , todavia, totalmente exótico e totalmente estranho . Ele
parou o cavalo e olhou ao longe , sobre os montes vermelhos . A leste ,
via um dos obeliscos de cimento que assinalavam a linha de demarca­
ção . Naquela aridez desértica, tinha a aparência de um monumento a
uma expedição perdida.
Duas horas depois , tinham deixado o vale e começado a trepar atra­
vés dos montes baixos . Erva rala e ocotillo . Algumas vacas magras
afastavam-se a trotar diante deles . Pouco depois , chegaram ao Cajón
Bonita, que era o trilho principal para sul através das montanhas , e na
berma deste trilho , uma hora depois , depararam com um pequeno ran­
cho .
Ele parou o cavalo e puxou a loba para junto de si pela corda e cha­
mou em voz alta para ver se apareciam cães , mas nenhum surgiu . Avan­
çou devagar. Viam-se três casas de adobe a esfarelar-se e um homem
vestido de andrajos parado à porta de uma delas . O lugar tinha a aparên­
cia de uma velha estação de muda caída em ruínas . Ele cavalgou em
frente e deteve-se diante do homem e cruzou os pulsos , apoiando-os
sobre o arção dianteiro da sela.
Adónde va ? indagou o homem .
A las montafías .
O homem assentiu com a cabeça . Limpou o nariz com a manga e
voltou-se e olhou na direcção das montanhas que assim acabavam de
ser referidas . Como se nunca antes as tivesse observado com a devida
atenção . Olhou para o rapaz e para o cavalo e para a loba e novamente
para o rapaz .
Es cazador usted?
Sí.
Bueno , disse o homem . Bueno .
O dia estava frio , apesar de o Sol brilhar, e , todavia, o homem estava
seminu e não se via fumo algum a sair dos edifícios . Olhou para a loba.
80 Cormac McCarthy

Es buena cazadora su perra ?


O rapaz olhou para a loba. Sí, respondeu . Mejor no hay .
Es feroz?
A veces .
Bueno , disse o homem . Bueno . Perguntou ao rapaz se tinha tabaco , se
tinha café , se tinha carne . O rapaz não tinha nenhuma destas coisas , e o
homem pareceu aceitar a verdade inevitável deste facto . Continuava
encostado à ombreira da porta, a olhar para o chão . Ao fim de um certo
tempo , o rapaz deu-se conta de que ele estava a debater qualquer coisa
consigo mesmo .
Bueno , disse . Hasta luego .
O homem atirou um braço para o alto . Os andrajos adejaram-lhe em
volta do corpo . Ándale , disse .
Ele prosseguiu . Quando olhou para trás , o homem ainda permanecia
no vão da porta. Estava a olhar para o lado contrário , trilho abaixo , a ver
quem viria a seguir, dir-se-ia.
Ao final da tarde , cada vez que ele desmontava e avançava para ela
com o cantil, ela baixava-se vagarosamente para o chão como um animal
de circo e deitava-se sobre o flanco, à espera. O olho amarelo atento , a
orelha a agitar-se com pequenos movimentos dentro do arco da sua rota­
ção . Ele não sabia quanta da água que lhe dava é que ela estava a engolir,
nem de quanta ela precisava. Sentou-se no chão , a deixar-lhe correr a
água entre os dentes e a remirar-lhe o olho . Tocou-lhe no canto pregue­
ado da boca. Examinou a gruta coberta de veias e aveludada em cujo seio
o mundo audível se derramava. Começou a falar com ela. O cavalo , que
estava a pastar na berma do trilho , ergueu a cabeça e fitou-o .
Prosseguiram . A paisagem era um deserto altaneiro coberto de ondu­
lações , e o trilho percorria o cume das cristas , e, embora parecesse
muito frequentado , ele não viu ninguém . Nas encostas havia acácias ,
carvalhos-anões . Bosques pouco densos de zimbros . À tardinha, um
coelho surgiu no meio do trilho , trinta metros diante dele , e ele colheu
as rédeas do cavalo e levou dois dedos aos dentes e assobiou e o coelho
imobilizou-se e ele descavalgou e puxou a espingarda atrás para a ex­
trair do estojo e engatilhou-a, tudo num só movimento , e ergueu-a e
disparou .
O cavalo recuou , desvairado , e ele agarrou as rédeas que fustigavam
os ares e puxou o animal para si e acalmou-o . A loba desaparecera nas
moitas da berma do trilho . Ele segurou a espingarda junto à cintura e
puxou a alavanca para ejectar o cartucho vazio e apanhou-o em pleno ar
e guardou-o no bolso e meteu uma nova bala na câmara com um movi-
A Travessia 81

menta contrário da alavanca e baixou o cão com o polegar e soltou a


corda do chifre da sela e deixou cair as rédeas e caminhou para trás ,
para ir ver o que se passava com a loba.
Ela estava a tremer entre as ervas , muito perto de um pequeno zimbro
retorcido onde procurara esconder-se . Ante a aproximação dele , saltou ,
retesando a corda, e começou a debater-se . Ele encostou a espingarda a
uma árvore e acercou-se dela ao longo da corda e agarrou-a e falou com
ela, mas não foi capaz de a acalmar e ela não parava de tremer. Ao fim
de um certo tempo , ele pegou na espingarda e regressou para junto do
cavalo e meteu a espingarda no estojo e caminhou pelo trilho acima em
busca do coelho .
Havia um longo sulco ao longo do centro do trilho , cavado pela bala
da espingarda, e o coelho fora projectado para o alto , para o meio de uns
arbustos , onde jazia com as tripas caídas em anéis cinzentos . Estava
quase estraçalhado em dois bocados , e ele recolheu-o , quente e penu­
gento nas suas mãos , com a cabeça a baloiçar, flácida, e transportou-o
através dos bosques até encontrar uma árvore que o vento derrubara.
Ali , arrancou a casca de pinheiro solta com o tacão da bota e raspou a
superfície do tronco até a deixar limpa e pousou o coelho sobre a ma­
deira e sacou da navalha e , encavalitado sobre o tronco , esfolou o coe­
lho e estripou-o e cortou-lhe a cabeça e as patas . Cortou o fígado e o
coração em pedacinhos sobre o tronco , usando a navalha, e ficou senta­
do a olhar para a carne . Parecia uma quantidade insignificante . Limpou
a mão à erva seca e pegou no coelho e começou a cortar-lhe tiras de
carne do dorso e dos quartos traseiros e a cortá-las também em pedaci­
nhos , até a porção de carne que tinha perfazer uma mão-cheia, e então
embrulhou a carne na pele do coelho e fechou a navalha.
Voltou atrás e empalou o coelho morto num ramo partido de pinheiro
e encaminhou-se para onde a loba jazia agachada. Acocorou-se e esten­
deu a mão para ela, mas ela recuou na ponta da corda. Ele pegou num
pedacinho de fígado do coelho e estendeu-lho . Ela farejou-o delicada­
mente . Ele observou-lhe os olhos e as dúvidas que ali perpassavam .
Observou as narinas coriáceas . Ela voltou a cabeça de lado e , quando
ele lhe apresentou de novo o pedaço de carne , tentou recuar.
Talvez ainda não tenhas fome que chegue , disse ele . Mas vais ter não
tarda.
Acampou nessa noite numa pequena depressão , sob o lado da cume­
eira exposto ao vento , espetou o coelho numa vara de paloverde e pô-lo
a grelhar diante do lume , ainda antes de ir tratar do cavalo e da loba.
Quando se acercou dela, ela pôs-se de pé e a primeira coisa que ele viu
82 Cormac McCarthy

foi que a ligadura lhe desaparecera da pata. Depois viu que o pau entre
os dentes dela desaparecera. Depois viu que o cordão que antes lhe
amarrava a boca desaparecera .
Ela enfrentou-o , com os pêlos eriçados ao longo do dorso . A corda de
laçar amarrada à coleira e enroscada em anéis pelo chão estava esfiapa­
da e húmida no ponto onde ela a tinha estado a roer.
Ele deteve-se e ficou petrificado . Recuou ao longo da corda até che­
gar junto do cavalo e então desamarrou a corda do chifre da sela. Não
tirou os olhos dela.
Segurando a ponta solta da corda, começou a descrever um círculo
em volta da loba. Ela rodou sem sair do lugar, a fitá-lo . Ele interpôs um
pequeno pinheiro entre ambos . Tentava caminhar com gestos despreo­
cupados , mas sentia que todas as suas motivações eram evidentes aos
olhos dela. Passou a corda numa laçada em volta de um ramo alto e
tornou a apanhá-la e depois recuou e retesou a corda até a prender. A
parte folgada da corda assomou a desenrolar-se do seio das ervas e das
agulhas de pinheiro e repuxou a coleira da loba. Ela baixou a cabeça e
seguiu a corda.
Quando ela ficou parada debaixo do ramo , ele puxou a corda até as
patas dianteiras dela ficarem quase acima do chão e depois aliviou a
corda um bocadinho e amarrou-a e ficou parado a olhar para a loba. Ela
arreganhou-lhe os dentes e voltou-se e tentou afastar-se , mas não con­
seguia. Parecia perplexa, sem saber o que fazer. Ao fim de um certo
tempo , ergueu a pata ferida e começou a lambê-la.
Ele regressou para junto do lume e amontoou na fogueira toda a lenha
que recolhera. Depois pegou no cantil e tirou da mochila uma das últi­
mas sanduíches e extraiu-a do papel de embrulho e levou o cantil e o
papel para junto da loba.
Ela ficou a ver enquanto ele escavava um buraco na terra fofa e ficou
a ver enquanto ele o amaciava com a parte de trás do tacão da bota. Em
seguida, ele abriu o papel na depressão e pôs-lhe uma pedra em cima
para não voar e encheu-o de água do cantil.
Desamarrou a corda e foi-lhe dando folga enquanto recuava. Ela
observava-o , imóvel . Ele recuou mais alguns passos e agachou-se no
chão , a segurar a corda. Ela olhou para o lume e olhou para ele . Sentou­
-se sobre os quadris e lambeu as mandíbulas doridas . Ele levantou-se e
foi até ao buraco e verteu mais água e agitou-a com a mão , chapinhan­
do . Em seguida, tornou a atarraxar a tampa do cantil e pousou-o de pé
ao lado do buraco cheio de água e recuou de novo e sentou-se no chão .
Observaram-se um ao outro . Já quase escurecera. Ela pôs-se de pé e
A Travessia 83

sondou o ar em volta com pequenos movimentos penetrantes do nariz .


Em seguida, começou a avançar.
Quando chegou junto da água, farejou-a com movimentos hesitantes
e ergueu a cabeça para olhar para ele . Tornou a olhar para o lume e
para a silhueta do cavalo atrás do lume . Os olhos brilhavam-lhe à luz .
Baixou o focinho para farejar a água. Os olhos dela não o abandonaram
nem deixaram de chamejar, e, no momento em que ela baixou a cabeça
para beber, o reflexo daqueles olhos assomou na água escura como um
outro eu da loba que fosse inerente à terra ou que esperasse em todos os
lugares secretos , até mesmo em falsos bebedouros como aquele , de tal
modo que a loba se fortaleceria sempre a si mesma e nunca ficaria to­
talmente ao abandono no mundo .
Ali acocorado , ele ficou a observá-la, com a corda segura em ambas
as mãos . Dir-se-ia um homem a quem tivessem confiado a guarda de
uma coisa cuja utilidade ele mal conseguisse destrinçar. Depois de ter
bebido toda a água no buraco , ela lambeu a boca e olhou para ele e
depois inclinou-se e farejou o cantil . O cantil tombou e ela fugiu dele
com um salto e depois recuou para o seu lugar debaixo do galho e tor­
nou a sentar-se e começou novamente a lamber a pata.
Ele apertou bem a corda em volta do ramo alto e amarrou-a e depois
regressou para junto da fogueira. Voltou o coelho no espeto e foi buscar
a pele de coelho com a carne cortada aos bocados e regressou para jun­
to da loba e ergueu a pele cheia de carne diante dela, movendo-a para a
esquerda e para a direita. Em seguida, abriu a pele no chão e desamarrou
e deu folga à corda e recuou a segurá-la.
Observou-a.
Ela dobrou-se para diante e farejou o ar.
É coelho , disse ele . Cá pra mim nunca comeste coelho na tua vida.
Esperou para ver se a loba avançava, mas ela não se moveu . Ele ava-
liou a direcção do vento pelo fumo da fogueira e pegou na pele e levou­
-a à volta, para um ponto a barlavento da loba, e estendeu-a de novo
numa mão enquanto segurava a corda na outra. Pousou a pele no chão
e recuou , mas ela permaneceu imóvel .
Contornou-a e amarrou a corda como antes e regressou para junto do
lume . O coelho no espeto estava meio queimado e meio cru , e ele
sentou-se e comeu-o e em seguida, com a navalha, confeccionou um
açaimo a partir do cinto e usando duas longas tiras de cabedal que cor­
tou do resguardo da sela. Prendeu as peças umas às outras com incisões
e latigos , remirando a loba de tempos a tempos ali enroscada debaixo
da árvore , com a corda a ascender verticalmente à luz da fogueira .
84 Cormac McCarthy

Se calhar pensas que podes esperar até eu adormecer pra depois veres
se te consegues soltar, disse .
Ela ergueu a cabeça e olhou para ele .
Pois , prosseguiu ele . 'Tou a falar contigo .
Quando o açaimo ficou pronto , voltou-o nas mãos e experimentou a
fivela. Parecia bastante sólido . Fechou a navalha e enfiou o açaimo no
bolso de trás e tirou da mochila os últimos troços de cordão de amarrar
bezerros e enfiou-os na presilha das calças e pegou nas peias do cavalo
e meteu-as no outro bolso de trás . Em seguida, encaminhou-se para o
ponto onde a corda estava amarrada. A loba ergueu-se e ficou de pé , à
espera.
Ele puxou-a lentamente para o alto pela coleira. Ela desferiu patadas
na corda e tentou fincar-lhe os dentes . Ele falou com ela e tentou acalmá­
-la, mas parecia não servir de nada, por isso limitou-se a içá-la e prendeu
a corda com uma laçada, com a loba em posição erecta e meio estrangu­
lada, a cabeça quase a tocar no ramo por cima de si . Em seguida, pôs-se
de gatas no chão e rastejou até onde ela se encontrava na vertical , a
contorcer-se , e atou-lhe as patas traseiras uma à outra com uma peia e
deu uma volta com a ponta livre da corda de laçar em tomo da peia e
amarrou-a e rolou sobre as costas para se afastar e pôs-se de pé e recuou .
Puxou a laçada até a soltar e , dando folga à ponta da corda presa à colei­
ra com uma mão , começou a puxar a loba ao seu encontro pelas patas de
trás com a outra. Se alguém visse isto, disse à loba, agarravam-me e
levavam-me prà hospital dos malucos assim amarrado como tu .
Quando a estendera ao comprido , pegou na outra peia e amarrou-lhe
as patas traseiras ao pequeno pinheiro-de-Banks que estivera a usar
como ponto de apoio para retesar a corda e , em seguida, soltou a ponta
da corda de laçar das patas dela e enrolou-a e pendurou-a ao ombro .
Quando ela sentiu a corda a ficar folgada, ergueu-se com esforço e co­
meçou a desferir dentadas nas cordas que lhe prendiam as patas de trás .
Ele tornou a puxá-la para baixo e , em seguida, caminhou num amplo
movimento circular em volta dela até alcançar o ramo em volta do qual
a corda estava enrolada. Passou a ponta solta da corda por cima do ramo
e recuou e estendeu a loba ao comprido no chão .
Eu sei que tu pensas que eu te ' tou a tentar matar, disse ele . Mas não
' tou .
Amarrou a corda a outro pequeno pinheiro-de-Banks e tirou o cordão
de amarrar bezerros da presilha das calças e acercou-se do lugar onde
ela jazia, hirta e trémula e a arquejar entre as cordas retesadas . Deu um
nó corredio no cordão e tentou meter-lho em volta do focinho . À segun-
A Travessia 85

da tentativa, ela agarrou-o com a boca. Ele ficou parado sobre ela, à
espera de que ela o soltasse . Os olhos amarelos fitavam-no .
Larga, ordenou ele .
Agarrou o cordão com força e puxou-o .
Muito bem , disse . Nada de estupidezes agora , sim? Não estava a falar
com a loba . Se ela te ferra o dente , disse , nem sequer a fivela do cinto
vão encontrar.
Quando viu que ela se recusava a soltar o cordão de amarrar bezerros ,
agarrou a corda presa à coleira e puxou-a até lhe cortar o ar. Em seguida ,
estendeu o braço e pegou no cordão e , ainda a retesar a corda, soltou-o
e enfiou-lho em volta da boca e puxou-o para lha fechar e deu três vol­
tas com o cordão e prendeu-o com uma laçada e largou de novo a corda.
Sentou-se no chão . A fogueira esmorecia e, com ela, a luz . Muito bem ,
disse . Não desistas agora. Raios , ainda tens dez dedos .
Tirou o açaimo do bolso e ajustou-lho em volta do focinho . Servia
bastante bem . A ponta estava demasiado folgada, e ele tornou a tirar-lho
e sacou da navalha e fez novas incisões e tornou a prender os fatigas e
voltou a meter-lhe o açaimo no focinho e afivelou-lho atrás das orelhas .
Em seguida, prendeu-o de novo , apertando mais um buraco. Prendeu à
coleira dela os dois pioses pendentes e depois enfiou a lâmina da nava­
lha pela parte lateral do açaimo e cortou o cordão com que lhe amarrara
a boca.
A primeira coisa que ela fez foi sorver uma grande golfada de ar. Em
seguida, tentou morder o cabedal . Mas ele usara o couro da sela em
volta do focinho dela para formar um basal largo , e ela não o conseguia
prender entre os dentes por ser tão rijo. Ele desamarrou-lhe as patas
traseiras e recuou . Ela pôs-se de pé e começou a saltar e a dar sacões na
ponta da corda. Ele acocorou-se nas agulhas de pinheiro a observá-la.
Quando ela finalmente se aquietou , ele levantou-se e desamarrou a cor­
da e conduziu-a para junto do lume .
Pensou que as chamas a iriam deixar apavorada, mas não . Prendeu a
corda a meio do seu comprimento ao chifre da sela que estava pousada
diante do fogo para secar, depois pegou no lençol e no boião de unguen­
to e sentou-se às cavalitas dela e limpou e tratou a pata e fez-lhe uma
nova ligadura . Pensou que ela o iria tentar morder, mesmo com o açai­
mo posto , mas não . Quando terminou , deixou-a levantar-se , e ela
ergueu-se e caminhou até à ponta da corda e farejou a ligadura e deitou­
-se , de olhos postos nele .
Ele dormiu com a sela à laia de almofada. Por duas vezes , durante a
noite , acordou com a sela a mexer-se debaixo da cabeça e estendeu o
86 Cormac McCarthy

braço e deu um puxão na corda e falou com a loba. Estava deitado com
os pés voltados para a fogueira, de modo que , caso ela descrevesse um
círculo no escuro da noite e arrastasse a corda através das chamas , teria
de a arrastar por cima dele , acordando-o . Já sabia que ela era mais inte­
ligente do que qualquer cão , mas não sabia até que ponto . Os coiotes
latiam nos montes abaixo deles , e ele voltou-se para ver se ela lhes
prestava alguma atenção , mas ela parecia estar adormecida. Todavia,
assim que o olhar dele tombou sobre ela, a loba abriu os olhos . Ele des­
viou os seus . Esperou e depois tentou novamente , de modo mais furtivo .
Os olhos abriram-se como antes .
Ele cabeceou e adormeceu e a fogueira reduziu-se a um monte de
brasas e ele acordou ao frio e deu com a loba a observá-lo . Quando
tornou a acordar, a Lua já se pusera e a fogueira estava quase apagada.
Fazia imenso frio . As estrelas mantinham-se fixas nos seus lugares co­
mo figuras recortadas numa candeia de folha-de-flandres . Ele levantou­
-se e alimentou a fogueira com mais lenha e avivou a chama com o
chapéu . Os coiotes tinham-se calado , e a noite era somente trevas e si­
lêncio . Ele tivera um sonho , e nesse sonho um mensageiro surgia das
planuras , a sul , com uma frase escrita num pedaço de papel arrancado
de um livro-mestre , mas ele não a conseguia ler. Olhou para o mensa­
geiro , mas aquele rosto estava obscurecido nas sombras e não se lhe
viam as feições , e ele percebeu que o mensageiro era somente um men­
sageiro e nada lhe saberia dizer das novas de que era portador.
Na manhã seguinte , levantou-se e tornou a alimentar a fogueira e
agachou-se , percorrido por calafrios , diante das chamas , embrulhado na
manta . Comeu a última sanduíche que a mulher do rancheiro preparara
para ele e depois tirou a pele de coelho da mochila e dirigiu-se para
onde a loba estava deitada. Ela pôs-se de pé ante a sua aproximação . Ele
desembrulhou a pele já hirta e estendeu-lha. Ela farejou-a e olhou para
ele e deu dois passos em círculo e ficou parada a olhar para a carne , com
as orelhas ligeiramente inclinadas para diante .
'Tou em crer que mais um bocadinho e comias , disse ele .
Afastou-se e procurou um galho de árvore partido e cortou-o no com­
primento desejado e, com a navalha, esculpiu-lhe uma ponta até moldar
uma fina espátula. Depois voltou para trás e sentou-se no chão e agarrou
a loba pela coleira e puxou-a contra a própria perna e segurou-a até ela
parar de se debater. Abriu a pele no chão e recolheu na espátula um
pedacinho da carne escura do coração e puxou para si aquela cabeça
bravia e passou a espátula para trás e para diante para ela cheirar. Em
seguida, segurando-lhe o longo focinho na mão em concha, levantou-
A Travessia 87

-lhe com o polegar a estranha prega de cabedal preto do lábio superior.


Ela abriu a boca, e, quando o fez , ele enfiou a espátula pelo meio das
tiras de couro e entre os dentes dela e voltou-a ao contrário e fez-lha
passar sobre a língua e retirou-a.
Pensou que era bem possível que ela mordesse a espátula, mas não .
Ela fechou a boca. Ele viu a língua mover-se . A garganta a contrair-se .
Quando ela tomou a abrir a boca, engolira a carne .
Quando acabou de lhe dar de comer o pequeno punhado de carne de
coelho que lhe reservara, ele atirou para longe a pele e limpou o pauzi­
nho na erva e guardou-o no bolso e caminhou para o ponto onde vira o
cavalo pela última vez . O cavalo estava a meio da encosta da montanha,
numa campina de erva invernal , e ele acercou-se dele com a cabeçada
na mão e conduziu-o encosta acima, de regresso ao acampamento , e
selou-o e amarrou a corda da loba ao chifre da sela e montou e cavalgou
para sul ao longo do Cajón Bonita, embrenhando-se nas montanhas com
a loba na sua peugada.
Cavalgou durante todo o dia . A loba pareceu interessar-se pela paisa­
gem e erguia a cabeça e olhava ao longe sobre os prados ondulantes de
erva amarela e tufos de lechuguilla que se espraiavam para oeste das
cristas abauladas dos montes . Ele parava no alto de uma elevação para
deixar o cavalo retomar fôlego e ela escapulia-se para o meio das ervas
da berma e agachava-se e vertia águas e voltava-se para farejar esse
ponto . Os primeiros peregrinos que encontraram a caminhar para norte
com os seus burros carregados detiveram-se a cem metros de distância
e cederam-lhe o trilho ante a sua aproximação . Saudaram-no com gestos
comedidos . A loba agachou-se e colou-se às ervas , com as cerdas do
dorso eriçadas . Foi então que o primeiro burro lhe sentiu o cheiro .
As narinas do animal abriram-se como dois buracos na lama húmida
e os olhos ficaram brancos e cegos . O jumento espalmou as orelhas
contra a cabeça e arqueou o dorso e atirou um coice com as duas patas
traseiras , arrancando da terra uma das patas do burro atrás de si. O ani­
mal tombou a urrar ao lado do trilho , e, num abrir e fechar de olhos ,
gerou-se o maior dos pandemónios . Os burros rebentaram com as guias
à esquerda e à direita e precipitaram-se pela encosta da montanha abai­
xo , quais enormes perdizes , com os arrieros a perseguirem-nos e os
animais a embaterem contra os flancos das árvores e a tombar e a rebo­
lar e a endireitar-se outra vez e a correr de novo , e os toscos alforges de
madeira a desfazerem-se aos bocados e os cabazes a romperem-se e a
arrastarem pela encosta abaixo , na esteira das bestas , os fardos de peles
e de couros e as mantas e as miudezas neles contidos .
88 Cormac McCarthy

Ele sofreou as rédeas do cavalo ao senti-lo bater com as patas no chão


e agitar-se e estendeu a mão e desamarrou a corda do chifre da sela.
A loba correra pela montanha abaixo e enrolara-se em volta de uma
árvore , e ele cavalgou para a ir buscar. Quando regressou , trazendo-a
atrás de si , de patas hirtas e meio desvairada, o trilho encontrava-se
deserto , à parte uma velha e uma rapariga sentadas na erva da berma, a
passarem uma à outra tabaco e camisas de milho cortadas e a enrolarem
cigarros . A rapariga era um ou dois anos mais nova do que ele e acendeu
o seu cigarro com um esclarajo e passou-o à velha e soprou uma bafo­
rada de fumo e atirou a cabeça para trás e fitou-o sem pudor.
Ele enrolou a corda e desmontou e deixou cair as rédeas e pendurou
a corda enrolada no chifre da sela e tocou na aba do chapéu com dois
dedos .
Buenos días , saudou .
Elas acenaram com a cabeça, e a mulher mais velha retribuiu-lhe a
saudação de viva voz . A rapariga observava-o . Ele acercou-se da loba
ao longo da corda até ao lugar onde ela estava agachada nas ervas e
ajoelhou-se e falou com ela e conduziu-a pela coleira de regresso ao
trilho .
Es Americano , disse a mulher.
Sí.
Ela chupou ferozmente no cigarro e fitou-o com olhos piscos através
do fumo .
Es feroz la perra, no ?
Bastante .
Elas usavam vestidos artesanais e huaraches feitas de restos de cabe­
dal e couro cru . A mulher tinha um xaile negro ou rebozo em volta dos
ombros , mas a rapariga estava quase nua no seu fino vestido de algodão .
Tinham a pele escura como índias e os olhos negros como carvão e fu­
mavam da mesma maneira que os pobres comem , que é uma forma de
oração .
Es una loba , disse ele .
Cómo? disse a mulher.
Es una loba .
A mulher olhou para a loba. A rapariga olhou para a loba e para a
mulher.
De veras ? perguntou a mulher.
Sí.
A rapariga parecia prestes a pôr-se de pé e a afastar-se dali , mas a
mulher riu-se dela e disse-lhe que o caballero estava apenas a brincar
A Travessia 89

com elas . Enfiou o cigarro no canto da boca e chamou a loba. Deu pal­
madinhas no chão para ela se aproximar.
Qué pasó con la pata ? indagou .
Ele encolheu os ombros . Disse que ela ficara com a pata presa numa
armadilha. Muito abaixo deles , no flanco da montanha, ouviam os gritos
dos arrieros .
Ela ofereceu-lhe do tabaco delas , mas o rapaz disse que não , obriga­
do . Ela encolheu os ombros . Ele pediu imensa desculpa por causa dos
burros , mas a velha disse que os arrieros eram pouco experientes e não
sabiam bem como dominar as bestas , fosse como fosse . Disse que a
revolução matara todos os homens dignos desse nome no país , deixando
apenas os tontos . Disse , além do mais, que os palermas geram outros
palermas iguais a eles e que ali estava a prova disso e que, como somen­
te as mulheres apalermadas lhes davam trela, os descendentes estavam
duplamente condenados . Tomou a chupar no cigarro , que agora pouco
mais era do que cinza, deixou-o cair ao chão e fitou o rapaz com olhos
vesgos .
Me entiende ? perguntou .
Sí, claro .
Ela examinou a loba. Tomou a olhar para ele . O olho semicerrado
resultava provavelmente de um ferimento , mas dava-lhe o ar de alguém
que exigia franqueza. Va a parir, disse .
Sí.
Como la jovencita .
Ele olhou para a rapariga. Ela não parecia grávida. Voltara-se de cos­
tas para eles e, ali sentada, fumava e espraiava a vista pelas cercanias
onde nada havia para ver, embora alguns gritos ténues ainda soassem
pela encosta acima.
Es su hija ? perguntou ele .
Ela abanou a cabeça. Disse que a rapariga era mulher do filho dela.
Disse que eles eram casados , mas que não tinham dinheiro para pagar
ao padre , por isso não tinha sido o padre a casá-los .
Los sacerdotes son ladrones , interveio a rapariga . Eram as suas pri­
meiras palavras . A mulher acenou com a cabeça a indicar a rapariga e
revirou os olhos . Una revolucionaria , disse . Soldadera . Los que no
pueden recordar la sangre de la guerra son siempre los más ardientes
para la lucha .
Ele disse que tinha de ir andando . Ela não lhe prestou atenção . Disse
que , nos seus tempos de criança, vira fuzilar um padre na aldeia de As­
censión . Encostaram-no à parede da sua própria igreja e abateram-no a
90 Connac McCarthy

tiro de espingarda e foram-se embora. Quando os assassinos partiram ,


as mulheres da aldeia acercaram-se e ajoelharam e ergueram o padre ,
mas o padre estava morto ou moribundo , e algumas mulheres mergulha­
ram os lenços no sangue do padre e benzeram-se com o sangue , como
se fora o sangue de Cristo . Disse que , quando a gente nova vê padres
fuzilados em plena rua, isso muda a sua maneira de encarar a religião .
Disse que hoje em dia a gente nova não queria saber da religião nem dos
padres nem da farru1ia nem da pátria nem de Deus . Disse que achava
que aquela terra estava amaldiçoada e pediu-lhe a opinião , mas ele dis­
se que pouco sabia daquela terra.
Una maldición , disse ela. Es cierto .
Todos os sons dos arrieros se tinham dissipado nas encostas abaixo
deles . Apenas o vento soprava. A rapariga acabou o cigarro e levantou­
-se e deixou-o cair no trilho e pisou-o com a huarache e retorceu-o
para o âmago da poeira, como se a beata contivesse uma qualquer vida
malévola. O vento agitou-lhe o cabelo e colou-lhe ao corpo o vestido
leve . Olhou para o rapaz . Disse que a velha estava sempre a falar de
pragas e de padres mortos e que era meio louca e que ele não ligasse ao
que ela dizia.
Sabemos lo que sabemos , disse a velha.
Sí, retorquiu a rapariga . Lo que es nada .
A velha estendeu uma mão com a palma voltada para cima na direc­
ção da rapariga. Como que para a apresentar como prova de tudo o que
afirmava. Convidou-o a observar aquela que tudo sabia . A rapariga ati­
rou a cabeça para trás . Disse que ao menos sabia quem era o pai do seu
filho . A mulher alçou a mão ao alto . Ay ay , disse .
O rapaz segurava a loba contra a perna pela corda. Repetiu que tinha
de ir andando .
A velha espetou o queixo a indicar a loba. Disse que a pari dura já não
ia tardar.
Sí. De acuerdo .
Debe quitar el bosal, aconselhou a rapariga.
A mulher olhou para a rapariga. A rapariga explicou que , se a perra
tivesse as crias de noite , devia lambê-las . Disse que ele não a devia
deixar açaimada de noite , porque quem saberia dizer quanto tempo fal­
tava para chegar ao fim a prenhez dela? Disse que ela teria de lamber as
crias . Disse que toda a gente sabia isto .
Es verdad, corroborou a mulher.
O rapaz tocou no chapéu . Desejou-lhes um bom dia.
Es tan feroz la perra ? perguntou a rapariga.
A Travessia 91

Ele disse que sim . Disse que não s e podia confiar nela.
Ela disse que gostava de ter um cachorrinho de uma cadela assim ,
porque depois ele havia de crescer e de se tornar um cão de guarda e
havia de morder toda a gente que aparecesse . Todos que vengan de al­
rededor, disse . Fez um gesto largo com a mão que abrangeu os pinhei­
ros e o vento nos pinheiros e os arrieros desaparecidos e a mulher a
observá-la do seu rebozo escuro . Disse que um cão assim havia de la­
drar de noite se aparecessem ladrões ou outra pessoa qualquer que não
fosse desejada.
Ay ay , disse a mulher, a revirar os olhos .
Ele repetiu mais uma vez que tinha de ir andando . A mulher disse-lhe
que fosse com Deus , e a jovencita disse-lhe somente que fosse andando ,
se era esse o seu desejo, e ele caminhou pelo trilho fora com a loba e
alcançou o cavalo e amarrou a corda ao chifre da sela e montou . Quando
olhou para trás , a rapariga estava sentada ao lado da mulher. Não esta­
vam a conversar, estavam apenas sentadas lado a lado , à espera de que
os arrieros regressassem . Ele cavalgou ao longo da crista até à primeira
curva do trilho e olhou de novo para trás , mas elas não se tinham mexi­
do nem mudado de postura e, àquela distância, pareciam muito cabisbai­
xas . Como se a partida dele as tivesse despojado de qualquer coisa.
A paisagem em si era imutável . Ele continuou a cavalgar, e as altas
montanhas a sudoeste não pareciam mais próximas ao final do dia do
que se fossem uma mera imagem no olho em si . À tardinha, ao subir
através de uma mancha de carvalhos-anões , ele espantou um bando de
peru s .
Os perus tinham estado a alimentar-se n o bosque abaixo dele e esvo­
açaram sobre uma ravina e desapareceram no meio das árvores , do lado
oposto . Ele parou o cavalo e fixou-lhes a posição com o olhar. Em se­
guida, conduziu o cavalo para fora do trilho , encosta abaixo , desmontou
e amarrou o cavalo e soltou a corda e amarrou a loba a uma árvore e
pegou na espingarda e puxou a alavanca à frente para se certificar de
que havia um projéctil na câmara e depois rompeu através do valezito ,
com um olho no Sol que já iluminava as árvores por trás no cabeço do
barranco , a oeste .
Os perus estavam no chão, numa clareira, a passar para trás e para
diante por entre os troncos de árvore zebrados ao lusco-fusco cada vez
mais sombrio , quais aves de chapa recortada numa barraca de tiro , numa
feira. Ele agachou-se e susteve a respiração e começou a avançar vaga­
rosamente ao encontro deles . Quando ainda se encontrava a uns bons
cinquenta ou sessenta metros acima dos peru s , uma das fêmeas afastou-
92 Cormac McCarthy

-se das sombras listadas e saiu para campo aberto e deteve-se e torceu o
pescoço e deu mais um passo . Ele engatilhou a espingarda e agarrou o
tronco de um pequeno freixo e pousou o cano por cima do indicador
dobrado e empurrou-o contra o flanco da árvore com o polegar e fez
pontaria à ave . Teve em conta a queda da bala e teve em conta o modo
como a luz incidia de viés nos pontos de mira da espingarda e disparou .
A pesada espingarda deu um coice , e o eco do tiro repercutiu-se em
carambolas pelas cercanias . A perua jazia a agitar as asas e a contorcer­
-se no chão . As outras aves assomaram do meio das árvores em todas as
direcções , algumas a passarem quase directamente por cima dele . Ele
ergueu-se e correu ao encontro do animal caído .
Havia sangue por todo o lado nas folhas mortas . Ela jazia sobre o
flanco com as patas a correr no meio das folhas , e tinha o pescoço ver­
gado para trás de modo bizarro . Ele agarrou-a e comprimiu-a contra o
chão e ali a segurou . O tiro partira-lhe o pescoço junto à nuca e rasgara
a espádua de um dos lados , e ele viu que por pouco não falhara o alvo
por completo .
Ele e a loba juntos comeram a perua inteira e depois sentaram-se
perto da fogueira, lado a lado . A loba com a corda a restringir-lhe os
movimentos , a sobressaltar-se e a estremecer ante cada pequena erup­
ção entre as brasas . Quando ele lhe tocava, a pele dela contraía-se e
estremecia-lhe sob a mão como a de um cavalo . Ele falou com ela acer­
ca da sua vida, mas isso não pareceu apaziguar os receios da loba. Ao
fim de um certo tempo , pôs-se a cantar para ela.
De manhã, ao encetar a jornada, deparou com um grupo de homens
a cavalo , os primeiros que via naquela terra . Eram cinco e montavam
bons corcéis e todos estavam armados . Sofrearam as rédeas no trilho
diante dele e saudaram-no com modos meio divertidos , enquanto os
seus olhos faziam o inventário de todos os adereços da sua pessoa. Rou­
pas , botas , chapéu . Cavalo e espingarda . A sela mutilada. Por fim, exa­
minaram a loba. Que se furtara , tentando esconder-se entre os esparsos
fetos de montanha, a um escasso metro do trilho .
Qué tienes aliá, joven ? bradaram .
Escarranchado na sela, ele cruzou as mãos sobre o arção dianteiro .
Debruçou-se e escarrou . Remirou-os sob a aba do seu chapéu . Um deles
picara o cavalo para melhor observar a loba, mas o cavalo esquivou-se
e não queria avançar, e ele curvou-se para diante e desferiu uma palma­
da na face do animal e repuxou-lhe a cabeça rudemente com as rédeas .
A loba jazia, colada contra o chão , com as orelhas para trás , na ponta da
corda.
A Travessia 93

Cuánto quieres por tu lobo ? perguntou o homem .


Ele repuxou a pouca folga que a corda tinha e deu-lhe mais uma vol-
ta em torno do chifre da sela.
No puedo vender/o , disse .
Por qué no?
Ele examinou o cavaleiro . No es mía , respondeu .
No ? De quién es ?
Ele olhou para a loba, ali deitada, a estremecer. Olhou para as mon­
tanhas azuis , a sul . Explicou que a loba fora confiada ao seu cuidado ,
mas que não lhe pertencia e não a podia vender.
O homem segurava as rédeas descontraidamente numa mão , com a
outra mão na coxa. Voltou a cabeça e escarrou sem tirar os olhos do
rapaz .
De quién es ? tornou a perguntar.
O rapaz olhou para ele e para os cavaleiros que esperavam no trilho .
Disse que a loba era propriedade de um grande hacendado e que tinha
sido confiada à sua guarda para que nenhum mal lhe acontecesse .
Y este hacendado , prosseguiu o cavaleiro , él vive e n la colonia Mo­
rales ?
O rapaz disse que ele vivia ali , com efeito , e também noutros lugares .
O homem examinou-o durante muito tempo . Em seguida, fez avançar o
cavalo e os outros cavaleiros fizeram avançar os seus cavalos juntamen­
te com ele . Como se estivessem unidos por algum cordão invisível ou
por um princípio oculto . Passaram diante dele . Seguiam em fila, respei­
tando a hierarquia das idades , e o último a passar era de longe o mais
novo e, ao passar, olhou para o rapaz e levou o indicador à aba do cha­
péu . Suerte, muchacho , disse . Então todos seguiram em frente e ne­
nhum olhou para trás .
Estava frio nas montanhas e ainda havia neve nas gargantas altas e
neve na Sierra de la Cabellera. Acima do desfiladeiro de Cabellera, a
neve cobria o trilho ao longo de um quilómetro ou mais. A neve no tri­
lho era nova e ele ficou surpreso ao ver o número de viajantes que a
tinham calcorreado e veio-lhe à cabeça a dúvida se haveria naquelas
paragens peregrinos tão temerosos ao ponto de abandonarem o trilho
por completo ante a aproximação de qualquer cavaleiro . Examinou o
chão com olho mais atento . Pegadas de homens e de burros . Pegadas de
mulheres . Algumas marcas de botas , mas , na sua maioria, as pegadas
lisas e sem tacão das huaraches , deixando o desenho improvável de
rastos de pneus naquela terra bravia e montesinha. Viu rastos de crian­
ças e viu os rastos dos cavalos dos cavaleiros com quem se tinha cruza-
94 Cormac McCarthy

do naquela manhã. Viu rastos de pessoas descalças na neve . Cavalgou


em frente e, enquanto cavalgava, ia observando a loba para ver se ela
denunciaria a proximidade de quaisquer viajantes escondidos na berma,
mas ela limitava-se a trotar atrás do cavalo , a menear o focinho para
farejar o ar e a deixar as suas próprias pegadas enormes na neve para os
serranos se interrogarem por sua vez , abismados .
Acamparam nessa noite no leito de uma ravina de pedra, e ele con­
duziu a loba até um charco de água parada nos penedos , abaixo deles , e
segurou a corda enquanto ela descia para dentro de água e baixava a
boca para dentro do charco , para beber. Ela levantou a cabeça e ele
pôde ver a garganta dela a mover-se e a água a escorrer-lhe das mandí­
bulas . Sentou-se nos rochedos a segurar a corda e ficou a vê-la. A água
era negra entre os penedos ao lusco-fusco azul cada vez mais sombrio ,
e o bafo dela fumegava sobre a superfície do líquido . Ela baixava a
cabeça e tornava a erguê-la, a beber à maneira dos pássaros .
Para o jantar, ele comeu duas tortillas recheadas com feijão , ofereci­
das pelo único outro grupo com quem se cruzara naquele dia. Eram
menonistas de viagem para norte com uma rapariguita, em busca de um
médico que a tratasse . Pareciam rústicos saídos de uma pintura do sécu­
lo anterior e pouco falavam . Não disseram qual a enfermidade de que
sofria a rapariga. As tortillas eram coriáceas e o feijão estava quase
azedo , mas ele comeu tudo . A loba observava-o . Não é coisa que um
lobo queira comer, disse-lhe ele . Por isso não ' tejas aí a olhar.
Acabou de comer e bebeu um longo gole da água fria com que aca­
bara de encher o cantil e depois avivou a fogueira e percorreu o períme­
tro da sua luz , recolhendo toda a lenha que conseguiu encontrar. Mon­
tara o pequeno acampamento bastante afastado do trilho , mas o clarão
do lume podia ver-se a uma certa distância naquelas paragens , e , lá no
fundo , ele ficou na expectativa de que um ou mais viajantes nocturnos
viessem até ele durante a noite . Nenhum o fez . Ele ficou sentado , em­
brulhado na manta enquanto a noite arrefecia e as estrelas corriam pelo
céu fora, chamejantes , a sul , sobre as silhuetas negras das montanhas
onde seguramente os lobos viviam e tinham a sua morada.
No dia seguinte , num vale voltado a sul , viu pequenas flores azuis
entre as rochas e, perto do meio-dia, cruzou uma ampla garganta nas
montanhas e ficou parado , a espraiar a vista pelo vale do rio Bavispe .
Uma vaga neblina azul pairava sobre o caminho nos ziguezagues do
trilho , mais abaixo . Ele tinha muita fome e permaneceu sentado na sela ,
e ele e a loba farejaram o ar com os seus narizes e , e m seguida, retoma­
ram a marcha mais cautelosamente .
A Travessia 95

O fumo vinha de uma ravina abaixo do trilho , onde um grupo de índios


se detivera para fazer a refeição do meio-dia. Eram trabalhadores das
minas do Chihuahua ocidental e exibiam sobre a testa estreita a marca das
correias com que carregavam às costas os seus fardos . Eram seis , a cruzar
aquela região numa jornada até à sua aldeia, em Sonora, levando com
eles o corpo de um dos seus, morto sob um andaime . Estavam há três dias
em viagem e tinham mais três dias pela frente , e tinham tido sorte com o
estado do tempo . O cadáver jazia afastado deles , sobre as folhas , estendi­
do numa tosca padiola de varas e pele de vaca. Estava embrulhado em
lona e amarrado com tranças de erva e corda, e a lona do sudário tinha a
enfeitá-la laços vermelhos e verdes e estava coberta com ramos de azevi­
nho da montanha, e um dos índios encontrava-se sentado ao lado do
corpo , a guardá-lo ou talvez a fazer companhia ao morto . Arranhavam o
espanhol e convidaram-no a comer sem grande cerimónia, pois tal era o
uso naquela região . À loba não prestaram atenção alguma. Agachados
nas suas finas roupas artesanais, comiam pozole com os dedos por malgas
de estanho pintado e iam passando de mão em mão um balde comum
contendo chá feito de uma erva aromática do seu agrado . Chupavam os
dedos e limpavam-nos à pele dos braços e enrolavam em camisas de
milho os seus cigarros de punche . Nenhum deles lhe perguntou o que o
trazia ali . De onde vinha nem qual o seu destino . Contaram-lhe de tios e
pais fugidos para o Arizona para escapar às guerras infligidas ao seu po­
vo pelos mexicanos , e um deles estivera ele próprio nessa terra somente
para a ver, caminhando nove dias através de montanhas e desertos até lá
chegar e nove dias no regresso . Perguntou ao rapaz se ele era do Arizona,
e o rapaz respondeu que não , e o índio assentiu com a cabeça e disse que
era habitual entre os homens exagerarem as virtudes da sua própria terra.
Nessa noite , da orla do prado onde montara o acampamento , ele pôde
ver as luzes nas janelas das casas numa colonia junto ao B avispe , a
quinze quilómetros de distância. O prado estava cheio de flores que
mirravam ao lusco-fusco e tornavam a desabrochar ao nascer da Lua.
Ele não ateou fogueira alguma. Ele e a loba sentaram-se lado a lado no
escuro e ficaram a ver as sombras das criaturas a emergir no prado e a
avançar a passo e a trotar e a desaparecer para logo regressarem . A loba,
sentada no chão , observava com as orelhas para a frente e o nariz a
executar pequenas rectificações constantes no ar. Como que para levar
a cabo gestos de incitamento à vida no mundo . Com a manta pelos om­
bros , ele observava as sombras em movimento enquanto a Lua se ele­
vava acima das montanhas , nas suas costas , e as luzes distantes junto ao
B avispe bruxuleavam , apagando-se uma por uma até nenhuma restar.
96 Cormac McCarthy

Na manhã seguinte , parou o cavalo numa língua de cascalho e exa­


minou a água em movimento onde o rio largo e límpido corria para
longe e examinou a luz nos rápidos a jusante , onde a água se encrespa­
va no meandro . Soltou a corda da loba do chifre do cepilho e descaval­
gou . Conduziu cavalo e loba para a água pouco funda e todos três bebe­
ram do rio , e a água estava fria e sabia um bocadinho a ardósia. Ele
pôs-se de pé e limpou a boca e olhou para a lonjura, a sul , onde a cor­
dilheira alta e selvagem de Pilares Teras se erguia ao sol matinal .
Não conseguiu encontrar um vau cuja profundidade permitisse à loba
atravessar sem nadar. Ainda assim, achou que a conseguiria manter à
tona, e cavalgou de novo para montante até à língua de cascalho e aí
meteu o cavalo no rio .
Não avançara muito quando a loba começou a nadar e não avançara
muito quando se deu conta de que ela estava em dificuldades . Talvez
não conseguisse respirar por causa do açaimo . Começou a fustigar a
água com desespero crescente e a ligadura na pata dianteira soltara-se e
chicoteava para cá e para lá na água e isto pareceu apavorá-la e ela ten­
tou voltar para trás , apesar da corda. Ele parou o cavalo, e o cavalo deu
meia-volta e estacou com a água em caleiras à volta das patas e ficou de
frente para o puxão da corda no chifre da sela, mas nessa altura já o
rapaz deixara cair as rédeas no rio e descera para a água, que lhe dava
pelo meio da coxa.
Agarrou-a pela coleira e ergueu-a ao alto e nada mais pôde fazer sem
correr o risco de cair. Meteu-lhe a outra mão por baixo do peito para a
levantar, com a mão sob os frios mamilos coriáceas que eram quase
glabros . Tentou acalmá-la, mas ela dava patadas desvairadas na água.
A corda de laçar boiava num longo arco para jusante e repuxava-lhe a
coleira, e ele segurou a loba ao alto e regressou a custo para junto do
cavalo, com os seixos no fundo do rio a deslizarem-lhe por baixo das
botas e a água a jorrar-lhe em volta das pernas e soltou a corda e deixou
que a ponta flutuasse , solta . A corda desenrolou-se rio abaixo e endi­
reitou-se e ficou a ondular na corrente . A tira de lençol em volta da pata
da loba soltara-se e flutuara para longe . Ele olhou para a margem do rio
atrás de si . No momento em que assim fez , o cavalo irrompeu junto
dele e avançou aos tropeções e quase a trote através dos baixios e subiu
para a língua de cascalho , onde se voltou e ficou parado , a fumegar ao
frio da manhã, antes de se afastar para jusante , a sacudir a cabeça.
Ele voltou para trás com a loba, a debater-se na água, a falar com ela
e a manter-lhe a cabeça ao alto . Quando chegaram aos baixios , onde ela
já tinha pé , soltou-a e caminhou para fora do rio e estacou na língua de
A Travessia 97

cascalho e, enquanto a loba se sacudia, enrolou a corda que arrastava na


água. Quando tinha a corda enrolada e suspensa do ombro , voltou-se e
procurou o cavalo com o olhar. A jusante , sobre a língua de cascalho ,
lado a lado , estavam dois cavaleiros a observá-lo .
Nada havia na aparência deles que lhe agradasse . Olhou para trás
deles , para o ponto onde o seu cavalo estava a pastar entre os salgueiros,
com a coronha da espingarda a assomar do estojo feito de uma bota de
cano alto . Olhou para a loba. Ela estava a observar os cavaleiros .
Eles estavam vestidos com roupas de trabalho sujas de fazenda de
algodão e traziam chapéus e botas e pistolas automáticas 45 do exército
americano em coldres de cabedal preto suspensos dos cinturões . Já ti­
nham picado os cavalos e agora avançavam , escarranchados na sela em
postura insolente . Passaram à esquerda dele e um parou o cavalo e o
outro prosseguiu e parou atrás dele . Ele voltou-se , a remirá-los . O pri­
meiro desconhecido dirigiu-lhe um aceno de cabeça. Em seguida, olhou
para jusante , para o cavalo dele , e depois olhou para a loba e olhou de
novo para ele .
De dónde v iene ? perguntou .
America .
O outro fez que sim com a cabeça. Olhou para a outra margem do rio .
Curvou-se e escarrou . Sus documentos , disse .
Documentos ?
Sí. Documentos .
No tengo ningunos documentos .
O homem observou-o durante algum tempo .
Qué es su nombre , indagou .
Billy Parham .
O homem gesticulou para jusante com um vago agitar do queixo . Es
su caballo ?
Sí. Claro .
La factura por favor.
O rapaz olhou para o outro cavaleiro , mas o Sol estava atrás dele e os
traços do homem encontravam-se obscurecidos . Olhou novamente para
o homem que assim o interrogava. Yo no tengo esos papeles , declarou .
Pasaporte ?
Nada .
O cavaleiro permaneceu imóvel na sela, com as mãos descontraida­
mente cruzadas nos pulsos . Dirigiu um aceno de cabeça ao outro cava­
leiro , e o outro cavaleiro afastou-se e cavalgou pela língua de cascalho
fora e alcançou o cavalo do rapaz e trouxe-o de volta. O rapaz sentou-se
98 Cormac McCarthy

no cascalho e descalçou as botas , uma, depois a outra, e verteu a água


do rio que as enchia e tornou a calçá-las . Ficou ali sentado com os co­
tovelos sobre os joelhos e olhou para a loba e olhou para o outro lado
do rio , para a alta serra de Pilares erguendo-se ao sol . Sabia que naque­
le dia, pelo menos , não chegaria àquele lugar.
Tomaram o caminho para jusante , com o chefe a cavalgar com a es­
pingarda do rapaz atravessada sobre o arção dianteiro da sela e o rapaz
a segui-lo , com a loba na peugada do cavalo , muito próxima, e o tercei­
ro homem a fechar o cortejo, trinta metros mais atrás . A vereda afastava­
-se do rio e seguia através de um amplo prado onde pastavam cabeças
de gado . As vacas levantaram a cabeça, com as mandíbulas vagarosas a
remoer de viés , examinaram os cavaleiros e depois curvaram-se para
pastar de novo . Os cavaleiros prosseguiram pelo prado fora até darem
com uma estrada e depois voltaram para sul ao longo da estrada e con­
tinuaram até entrar num povoado composto por um punhado de casas
de lama seca a decompor-se na berma do caminho .
Percorreram a rua coberta de sulcos , sem olharem para a esquerda
nem para a direita. Alguns cães ergueram-se dos seus lugares bem de­
terminados ao sol e começaram a caminhar atrás dos cavalos e a farejá­
-los . Junto de um edifício de adobe no extremo da rua, os cavaleiros
pararam e desmontaram , e o rapaz amarrou a loba às longarinas de um
carroção ali parado e todos entraram .
Na divisão reinava um cheiro cediço . Nas paredes viam-se frescos
desbotados e vestígios desbotados de um lambrim pintado . Os despojos
de um tecto de linho pendiam em farrapos das vigas altas , lá no cimo .
O chão estava revestido de grandes ladrilhos de barro cru e , à semelhan­
ça das paredes , encontrava-se bastante delapidado , com os ladrilhos
partidos em muitos pontos , onde os cavalos lhes tinham passado por
cima. As janelas abriam-se apenas ao longo das paredes sul e leste e não
tinham vidraças e tinham as portadas fechadas , as que ainda as possuí­
am , enquanto através das outras o vento e a poeira sopravam e andori­
nhas entravam e saíam livremente . No extremo da divisão encontravam­
-se uma velha mesa de refeitório e uma cadeira trabalhada e cheia de
ornatos com espaldar alto , e contra a parede , por trás desta, via-se um
arquivador de aço cuja gaveta de cima fora certa vez aberta a golpes de
machado . Por todo o lado sobre os ladrilhos poeirentos havia rastos de
aves e de ratinhos e de lagartos e de cães e de gatos . Como se aquela
sala fosse um enigma constante para todas as criaturas vivendo nas
proximidades . Os cavaleiros estacaram sob os fiapos que pendiam do
tecto como líquenes , e o chefe encaminhou-se para a porta de dois ba-
A Travessia 99

tentes num dos lados da divisão , com a espingarda entalada na curva do


braço , e bateu à porta e chamou em voz alta e depois tirou o chapéu e
ficou à espera.
Escassos minutos depois , a porta abriu-se e um jovem mozo surgiu ali ,
e ele e o cavaleiro trocaram algumas palavras e o homem fez u m sinal
com a cabeça a indicar o exterior e o mozo olhou na direcção da porta da
rua e para o outro cavaleiro e para o rapaz e depois recuou e fechou a
porta. Esperaram . Lá fora, na rua, um grupo de cães tinha começado a
reunir-se diante do edifício . Alguns viam-se através da porta aberta. Sen­
tados , olhavam para a loba presa e olhavam uns para os outros enquanto
um rafeiro alto e esguio cor de cinza caminhava para trás e para diante à
frente deles , de cauda alçada e pêlo eriçado ao longo do dorso .
Quem surgiu à porta foi um jovem alguacil de ar sadio . Lançou um
olhar fugidio ao rapaz e voltou-se para o homem ali parado com a es­
pingarda do rapaz na mão .
Dónde está la loba ? perguntou .
Ajuera .
Ele fez que sim com a cabeça.
Puseram os chapéus na cabeça e cruzaram a sala. O homem que se­
gurava a espingarda empurrou o rapaz para diante , e o alguacil tornou
a olhar para ele .
Cuántos anos tiene? indagou .
Dieciseis .
Es su rifle ?
Es de mi padre .
No es ladrón usted? Asesino?
No .
O outro espetou o queixo na direcção do homem e ordenou-lhe que
devolvesse a espingarda ao rapaz e depois saiu pela porta aberta.
Na estrada defronte da casa encontravam-se para cima de duas dúzias
de cães e quase outras tantas crianças . A loba rastejara para baixo do
carroção e estava encostada à parede do edifício . Através da teia do
açaimo artesanal viam-se-lhe todos os dentes da boca. O alguacil
agachou-se e empurrou o chapéu para trás e pousou as mãos nas coxas
de palmas para baixo e examinou-a. Olhou para o rapaz . Perguntou se
ela era assanhada, e o rapaz disse que sim. Perguntou-lhe onde é que a
tinha apanhado , e ele respondeu que tinha sido nas montanhas . O ho­
mem fez que sim com a cabeça. Ergueu-se e falou com os seus auxilia­
res e depois virou costas e regressou para dentro do edifício . Os auxilia­
res entreolharam-se com ar constrangido e olharam para a loba.
1 00 Cormac McCarthy

Por fim , desamarraram a corda e arrastaram a loba de baixo do


carroção . Os cães tinham começado a uivar e a caminhar para trás e
para diante , e o grande cão cinzento lançou-se para diante e desferiu
uma dentada nos quartos traseiros da loba. A loba rodopiou e vergou­
-se na estrada. Os auxiliares puxaram-na dali . O cão cinzento descre­
veu um círculo , preparando nova arremetida, e um dos auxiliares
voltou-se e aplicou-lhe um pontapé com a bota que o apanhou por
baixo da mandíbula e lhe fechou a boca com um sonoro slape que pôs
as crianças a rir.
Nesse momento já o mozo emergira da casa com uma chave , e arras­
taram a loba até ao lado oposto da rua e destrancaram e soltaram as
correntes dos portões de um barracão de adobe e meteram a loba lá
dentro e tornaram a trancar as portas . O rapaz perguntou-lhes o que
tencionavam fazer com a loba, mas eles limitaram-se a encolher os om­
bros e foram buscar os cavalos e montaram e trotaram pela rua abaixo ,
a curvar as cabeças dos cavalos para este lado e para aquele e a fazê-los
caracolar como se houvesse mulheres por ali . O mozo abanou a cabeça
e regressou ao interior do edifício com a chave .
Ele sentou-se junto à porta da casa e ali ficou durante a hora do al­
moço . Ejectou as balas da espingarda e secou-as e secou a espingarda e
tornou a carregá-la e guardou-a no estojo e bebeu pelo cantil e verteu o
resto da água na copa do chapéu e deu de beber ao cavalo pelo chapéu
e afugentou a matilha de cães da porta do barracão . As ruas estavam
desertas , o dia era fresco e ensolarado . De tarde , o mozo apareceu à
porta e disse que o tinham mandado perguntar o que é que ele queria.
Ele disse que queria a loba. O mozo assentiu com a cabeça e voltou
para de � tro . Quando tornou a sair, disse que o tinham mandado dizer
que a loba fora apreendida como contrabando , mas que ele era livre de
partir, graças à clemência do alguacil, que tivera em conta a juventude
dele . O rapaz contrapôs que a loba não era contrabando , era, isso sim ,
um bem confiado à sua guarda, e que tinha de a reaver. O mozo ouviu-o
até ao fim e depois deu meia-volta e tornou a entrar na casa.
Ele sentou-se . Ninguém apareceu. Já ao final da tarde , um dos ele­
mentos do par de auxiliares regressou , à cabeça de uma pequena procis­
são desgarrada. Imediatamente atrás dele vinha uma pequena mula es­
cura do género das que se empregavam nas minas daquela região , e
atrás da mula uma carreta antiquada com rodas de madeira já várias
vezes consertadas . Atrás da carroça, uma amálgama variegada de habi­
tantes das redondezas , todos a pé , mulheres e crianças , rapazitos , muitos
trazendo trouxas ou carregando cestos ou baldes .
A Travessia 101

Pararam defronte do barracão , e o auxiliar descavalgou e o condutor


desceu da tosca caixa de madeira da carreta . Ficaram parados na estra­
da, a beber por uma garrafa de mescal , e, ao fim de um certo tempo , o
mozo veio da casa e destrancou as portas do barracão , e o auxiliar puxou
as correntes a retinir através dos encaixes de madeira da tranca e abriu
as portas de par em par e ficou ali parado .
A loba encontrava-se no canto mais distante , e pôs-se de pé a pesta­
nejar. O carretero recuou e despojou-se do casaco e pô-lo sobre a cabe­
ça da mula e amarrou-lhe as mangas por baixo das mandíbulas e ficou
a segurar o animal pela faceira. O auxiliar entrou no barracão e apanhou
a corda caída e arrastou a loba para o vão da porta. A multidão recuou
precipitadamente . Espicaçado pela bebida e pelo assombro dos mirones ,
o auxiliar agarrou a loba pela coleira e arrastou-a para o meio da estrada
e depois ergueu-a pela coleira e pela cauda e içou-a para a caixa da
carroça, com um joelho por baixo dela, à maneira dos homens habitua­
dos a carregar sacas . Passou a corda ao longo do flanco da carroça e
prendeu-a com uma laçada às tábuas na parte da frente . As pessoas na
estrada observavam cada um dos seus movimentos . Observavam com a
atenção de pessoas que talvez fossem chamadas a narrar o que tinham
visto . O auxiliar fez um sinal de cabeça ao carretero , e o carretero sol­
tou as mangas amarradas por baixo da mandíbula da mula e retirou o
casaco . Agarrou as duas guias no punho fechado sob a garganta da mu­
la e ficou a segurar o animal para ver como é que ele se comportava.
A mula ergueu a cabeça ao de leve para farejar o ar. Em seguida,
apoiou-se nas patas dianteiras e desferiu um coice que rompeu a retran­
ca de cabedal e escaqueirou a tábua do fundo da carreta onde a loba
estava amarrada. A loba veio a deslizar e a debater-se pela traseira aber­
ta da carroça, a arrastar a tábua partida atrás de si , e as pessoas soltaram
brados e voltaram costas para fugir. A mula urrou e lançou-se de viés
nos arreios e partiu o varal da carroça do lado direito e tombou na estra­
da e ficou caída, a espernear.
O carretero era forte e ágil e conseguiu saltar às cavalitas do pescoço
da pequena mula e agarrar a orelha da mula com os dentes até lhe con­
seguir cobrir novamente a cabeça com o casaco . Olhou em volta , a ar­
quejar. O auxiliar, que estava nesse preciso momento a montar de novo
o cavalo , tornou a descer para a estrada e agarrou a corda caída e travou
a loba com um puxão . Desamarrou a corda no ponto em que se encon­
trava presa à tábua partida e deitou fora a tábua e tornou a arrastar a
loba para dentro do barracão e fechou os portões . Mire! gritava o carre­
tero , deitado na estrada , a segurar o casaco sobre a cabeça da mula ,
1 02 Cormac McCarthy

agitando uma mão para indicar os destroços . Mire! O auxiliar escarrou


para a poeira e atravessou a estrada e entrou na casa.
Quando conseguiram mandar vir alguém para reparar o varal da car­
roça com um sarrafo e couro cru e quando estes consertos ficaram
prontos , o dia caminhava já para o seu final . Os peregrinos que haviam
acompanhado a carroça até à povoação tinham-se posicionado à sombra
dos edifícios , do lado ocidental da estrada, e comiam agora as suas me­
rendas e bebiam limonada. À tardinha, a carroça estava pronta , mas o
auxiliar desaparecera sem deixar rasto . Mandaram um garoto à casa
para indagar. Passou-se mais uma hora antes que o homem fizesse a sua
aparição , e ele ajeitou o chapéu e remirou o Sol e curvou-se para exa­
minar o conserto do varal , como se também lhe tivessem confiado a
inspecção de tais trabalhos , e depois tornou a entrar na casa. Quando
tornou a sair, vinha acompanhado pelo mozo , e atravessaram a estrada
até ao barracão e destrancaram e soltaram as correntes dos portões , e o
auxiliar tornou a puxar a loba para fora.
O carretero estava de pé , com a cabeça vendada da mula contra o
peito . O auxiliar remirou-o e depois chamou por um mozo de cuadra .
Um rapazito deu um passo em frente . Ele deu instruções ao rapaz pa­
ra se encarregar da mula e disse ao carretero que subisse para a carro­
ça. Não foi sem apreensão que o carretero cedeu a mula aos cuidados
do rapaz . Deu uma grande volta para contornar a loba açaimada e
trepou para a carroça e soltou as rédeas do fueiro e ficou de pé , a pos­
tos . O auxiliar içou a loba uma vez mais para dentro da carreta e
amarrou-a junto às tábuas na parte traseira . O carretero olhou para o
animal atrás de si e olhou para o auxiliar. Os olhos moveram-se-lhe
sobre os peregrinos à espera , agora novamente aglomerados , até que
deparou com os olhos do jovem extranjero a quem a loba fora confis­
cada. O auxiliar fez um sinal com a cabeça ao mozo de cuadra , e o
mozo retirou o casaco do carretero da cabeça da mula e afastou-se . A
mula lançou-se para a frente nos tirante s , desvairada . O carretero
tombou para trás , agarrando-se às tábuas nos bordos da carroça e ten­
tando não cair para cima da loba, e a loba repuxou a corda que a pren­
dia e soltou um brado selvagem e triste . O auxil iar riu-se e cravou os
calcanhares nos flancos do cavalo e tirou o casaco das mãos do mozo
num repelão e fê-lo rodar por cima da cabeça como um laço e atirou­
-o na direcção do carretero e depois sofreou novamente as rédeas no
meio da estrada, a rir-se , enquanto mula e carroça e loba e condutor se
lançavam através da aldeia num grande estrépito de madeira e gerando
imenso pó .
A Travessia 1 03

As pessoas estavam já a reunir as trouxas . O rapaz foi buscar a sela,


que se encontrava pousada junto ao flanco da casa, aparelhou o cavalo
e prendeu à sela o estojo da espingarda e montou e voltou o cavalo ,
fazendo-o penetrar no trilho rasgado por sulcos . Os que caminhavam a
pé comprimiram-se para a berma da estrada quando a sombra do cavalo
tombou sobre eles . Ele dirigiu-lhes um aceno de cabeça. Adónde va­
mos ? indagou .
Eles ergueram os olhos para ele . Velhas de rebozos . Raparigas aos pa-
res a carregar cestos , cada qual segurando uma asa. A !a feria , disseram.
La feria ?
Si sefíor.
Adónde ?
En e! pueblo de More/os .
Es lejos ? perguntou ele .
Elas disseram que não era longe para um cavaleiro . Unas pocas le­
guas , acrescentaram .
Ele seguia com o cavalo a passo ao lado delas . Y adónde va con la
loba ? perguntou .
A !a feria, sin duda .
Ele perguntou qual era o fito de levar a loba até à feira, mas elas pa­
reciam não saber. Encolheram os ombros , a caminhar pesadamente ao
lado do cavalo. Uma velha contou que a loba fora trazida das sierras ,
onde tinha devorado muitos garotinhos da escola. Uma outra mulher
disse que a loba fora capturada na companhia de um rapazito que fugira,
nu , para o meio da floresta . Uma terceira contou que os caçadores que
tinham trazido a loba lá do alto das sierras tinham sido seguidos por
outros lobos que de noite uivavam nas trevas em volta da fogueira, e
que alguns caçadores tinham dito que estes lobos não eram propriamen­
te lobos .
A estrada abandonava o rio e as planuras ribeirinhas e rompia para
norte , através de um amplo vale nas montanhas . Com o lusco-fusco , o
grupo dirigiu-se para um prado alpestre e ateou uma fogueira e deu
início à preparação do jantar. O rapaz amarrou o cavalo e sentou-se na
erva, não propriamente integrado no grupo e não propriamente isolado .
Desatarraxou a tampa do cantil e bebeu o resto da água e tornou a pôr a
tampa no gargalo e ficou sentado , a segurar nas mãos o recipiente vazio .
Ao fim de um certo tempo , um garoto veio ter com ele e convidou-o a
aproximar-se da fogueira.
Mostravam-se meticulosamente educados . Tratavam-no por caballe­
ro , apesar dos seus dezasseis anos , e ele sentou-se com o chapéu empur-
1 04 Cormac McCarthy

rado para trás e as botas cruzadas diante de si e comeu feijão e napolitos


e uma machaca feita de carne de cabra seca que era fétida e negra e
fibrosa e se encontrava polvilhada de malaguetas em pó para a viagem.
Le gusta ? perguntaram . Ele disse que gostava imenso . Perguntaram-lhe
de onde é que ele vinha e ele disse Nuevo Mexico e eles trocaram olha­
res e disseram que ele devia estar muito triste por se encontrar tão longe
de casa.
Ao crepúsculo , o prado parecia um acampamento de ciganos ou de
refugiados . O grupo engrossara com a chegada de novos viajantes vin­
dos da estrada, e havia agora novas fogueiras e silhuetas a deambular
para trás e para diante através dos espaços sombrios entre estas . Burros
pastavam na encosta do prado onde a vertente se erguia contra o céu
escuro cor de lilás , a oeste , e as pequenas carretas alinhavam-se em
silhueta, inclinadas sobre os varais, uma atrás da outra, quais vagonetas
de minério . Havia agora vários homens no grupo , a passarem de mão
em mão uma garrafa de mescal . Ao alvorecer, dois deles permaneciam
ainda sentados diante das cinzas frias e mortas . As mulheres levantaram­
-se para cozinhar o pequeno-almoço , tornaram a alimentar o fogo e
puseram-se a moldar tortillas de masa com sonoras palmadas e a
estendê-las num coma! cortado de uma chapa de zinco para telhados .
Contornavam com a mesma indiferença os bêbedos sentados e as albar­
das onde haviam pendurado mantas para secar.
A manhã já ia a meio quando a caravana se pôs em movimento . Os
que estavam demasiado ébrios para viajar foram tratados com toda a
deferência, e arranjou-se espaço para eles entre os haveres dentro das
carroças . Como se uma qualquer desdita se tivesse abatido sobre eles ,
desdita essa que poderia ter recaído sobre qualquer um dos outros ali
presentes .
A estrada que percorreram atravessava uma zona tão bravia que não
passaram por qualquer habitação nem encontraram qualquer outro via­
jante . Não fizeram pausa alguma ao meio-dia, mas , pouco depois , cru­
zaram uma garganta nas montanhas onde , três quilómetros mais abaixo ,
o rio corria e as casas dispersas de Colonia Morelos se erguiam ao lon­
go da quadratura das suas quatro ruas como marcações num jogo infan­
til traçado na poeira.
Ele abandonou o grupo enquanto eles montavam o acampamento na
planície de aluvião , a sul da aldeola, e dirigiu o cavalo para a estrada a
jusante , para ver se conseguia encontrar a loba. A estrada era feita de
argila seca franzida com rastos de carroça, tão duros que não se partiam
sob os cascos do cavalo . O rio era límpido e frio onde emergia das sierras
A Travessia 1 05

altas , a sul , e dava a volta no povoado para correr de novo para sul , sob
a muralha ocidental da serra de Pilares . Ele abandonou a estrada e se­
guiu um carreiro ao longo do rio e parou o cavalo para o deixar beber
nos remoinhos frios . Um velho com um burro estava a recolher madei­
ra trazida pela corrente , apanhando a lenha caída nas extensões de cas­
calho . As formas alvacentas e retorcidas da madeira amontoadas em
cima do burro assemelhavam-se a uma tapeçaria de ossos . O rapaz pi­
cou o cavalo para montante , com os cascos do animal a resvalar nos
seixos redondos do rio .
A aldeia onde entrou era um antigo povoado mórmon do século ante­
rior, e ele passou por edifícios de tijolo com telhados de zinco , uma loja
com paredes de tijolo e uma falsa fachada de madeira. Na alameda de­
fronte da loja tinham pendurado grinaldas de árvore em árvore , e os
membros de uma pequena charanga encontravam-se sentados no coreto­
zinho , como que a aguardar a chegada de um dignitário , quiçá. Ao longo
das fachadas da rua e na alameda havia vendedores ambulantes a vender
cacahuates e maçarocas de milho cozido polvilhadas de malagueta em
pó e bufíuelos e natillas e cartuchos de papel cheios de fruta. Ele des­
montou e amarrou o cavalo e tirou a espingarda do estojo, não fosse al­
guém roubá-la, e caminhou na direcção da alameda . Entre os frequenta­
dores da feira naquele pequeno parque de lama seca e árvores famélicas
havia visitantes ainda mais exóticos do que ele próprio , famílias cobertas
de andrajos que deambulavam de boca aberta entre as tendas de lona
remendadas e menonistas trajados como campónios numa venda de ba­
nha da cobra, com os seus chapéus de palha e jardineiras , e uma fileira
de crianças paradas , meio estupefactas , diante de um painel pintado feito
de lona a representar espalhafatosas anormalidades humanas e índios
tarahumaras e yaquis com arcos e aljavas cheias de flechas e dois rapazes
apaches de botas de pele de veado com olhos graves e negros como car­
vão , vindos do seu acampamento nas sierras , onde os últimos represen­
tantes livres da sua tribo viviam como espectros da nação que outrora
haviam sido , e todos com tal circunspecção que o arraial maltrapilho que
ali contemplavam podia perfeitamente passar pelos atavios de algum
novo flagelo divino prestes a abater-se sobre eles .
Ele encontrou a loba sem grande dificuldade , mas não possuía os dez
centavos exigidos para a ver. Tinham armado uma tenda improvisada
com lençóis por cima da pequena carroça e tinham colocado um cartaz
à frente a contar a história dela e o número de pessoas que , tanto quan­
to se sabia, ela devorara . Ele ficou ali parado , a ver as poucas pessoas
que entravam e saíam em fila. Não pareciam muito entusiasmadas com
1 06 Cormac McCarthy

o que tinham acabado de ver. Quando ele lhes perguntou pela loba, elas
encolheram os ombros . Disseram que uma loba era uma loba. Não acre­
ditavam que ela tivesse devorado ninguém.
O homem que cobrava o dinheiro à entrada da tenda escutou com a
cabeça curvada enquanto o rapaz lhe explicava a sua situação . Ergueu a
cabeça e fitou os olhos do rapaz . Pásale , disse .
Ela estava deitada na caixa da carroça, num leito de palha. Tinham­
-lhe desamarrado a corda da coleira e provido a coleira com uma cor­
rente e enfiado a corrente através das tábuas do fundo da carroça, de tal
forma que ela apenas conseguia erguer-se e pôr-se de pé . Ao seu lado ,
na palha, via-se uma tigela de barro que talvez contivesse água. Um
rapazito estava parado , com os cotovelos pendidos sobre o taipal da
carroça, com uma vara de jungir bestas apoiada ao ombro num gesto
descontraído . Quando viu entrar quem julgou ser um novo cliente ,
endireitou-se e começou a espicaçar a loba com o pau e a sibilar-lhe .
Ela ignorou as picadas . Jazia sobre o flanco , a inspirar e a expirar
serenamente . Ele olhou para a pata magoada. Apoiou a espingarda con­
tra a carroça e chamou-a.
Ela levantou-se de imediato e voltou-se e ficou a olhar para ele com
as orelhas arrebitadas . O rapaz com a vara na mão ergueu os olhos para
ele sobre o bordo da carroça.
Ele falou com ela muito tempo e , como o rapaz que tratava da loba
não percebia as suas palavras , disse o que lhe ia no coração . Fez-lhe
promessas que jurou cumprir. Jurou que a levaria para as montanhas ,
onde ela encontraria outros seres da sua raça. Ela observava-o com os
seus olhos amarelos , e nesses olhos não havia desespero , somente aque­
le mesmo abismo insondável de solidão que esvaziava o mundo até ao
seu âmago . Ele virou-se e olhou para o rapaz . Preparava-se para falar
quando o tendeiro irrompeu no interior, sob a cobertura, e lhes sibilou .
Él viene , avisou . Él viene.
Maldición , soltou o rapaz . Atirou o pau ao chão , e ele e o homem
começaram a remover os lençóis e a desamarrar as cordas das estacas
que tinham cravado na lama. No momento em que os lençóis tomba­
vam , o carretero surgiu em corrida através da alameda e pôs-se a ajudá­
-los , apanhando os lençóis com gestos bruscos e sibilando-lhes que se
despachassem . Num instante , estavam a enfiar a pequena mula de olhos
vendados às arrecuas entre os varais da carroça e a ajustar os arreios e
a apertar fivelas aqui e além .
La tablilla! gritou o carretero . O rapaz arrancou o letreiro e enfiou-o
debaixo do amontoado de cordas e lençóis , e o carretero saltou para a
A Travessia 1 07

carroça e lançou um brado ao tendeiro , e este retirou a venda dos olhos


da mula com um gesto brusco , e mula e carroça e loba e condutor saí­
ram para a rua a matraquear com estrépito . Os frequentadores da feira
dispersaram-se diante deles , e o carretero olhou para trás com expres­
são desvairada, estrada acima, para onde o alguacil e o seu séquito es­
tavam nesse momento a entrar na povoação , vindos do Sul - alguacil
e acompanhantes e serviçais e amigos e mozos de estribo e mozos de
cuadra , todos com os seus jaezes a cintilar ao sol , e , trotando entre as
patas dos cavalos , para cima de duas dúzias de cães de caça.
O rapaz já dera meia-volta e encaminhara-se para a rua, para ir buscar
o cavalo . Quando conseguiu desamarrá-lo e enfiar a espingarda no estojo
e montar e conduzir o cavalo para o meio da rua, o alguacil e o seu grupo
vinham já a avançar ao longo da alameda , quatro e seis a par, lançando
dichotes uns aos outros , muitos deles trajados com os atavios garridos do
norteíio e do charro , roupas todas bordadas com lantejoulas e debruadas
a galão prateado , as costuras das calças enfeitadas com conchinhas de
prata. Usavam selas com incrustações de prata trabalhada, com cepilhos
achatados , do tamanho de pratos , e alguns cavalgavam embriagados e
tiravam os enormes chapéus em gestos de cortesia bizarra, voltando-se
para as mulheres que os seus cavalos tinham empurrado contra as paredes
dos edifícios ou contra os portais das casas . Apenas os cães de caça que
trotavam com passada elegante por baixo deles pareciam graves e resolu­
tos , sem prestarem atenção alguma aos cães da povoação que irrompiam
de pêlo eriçado atrás deles , sem prestarem atenção a nada de nada, aliás .
Alguns tinham a pelagem de cor negra ou negra e castanha, mas na sua
maior parte eram blueticks trazidos até ali do Norte , anos antes , e alguns
eram tão semelhantes nas manchas e na cor aos cavalos sarapintados que
acompanhavam que pareciam feitos da mesma peça de pele . Os cavalos
caracolavam e ladeavam e atiravam as cabeças para o alto , e os cavaleiros
puxavam-lhes as rédeas , mas os cães trotavam em passo firme na estrada
diante deles , como se tivessem muita coisa a afligir-lhes o espírito .
Ele ficou na encruzilhada, à espera de os ver passar. Alguns lançaram­
-lhe acenos de cabeça e desejaram-lhe bom dia, como convinha a um
cavaleiro como eles , mas se o alguacil, ao passar, o reconheceu escar­
ranchado no cavalo naquele novo poiso , não deixou que se notasse .
Quando eles passaram , cavalos e cães e tudo , ele tocou o cavalo nova­
mente para o meio da estrada e partiu atrás deles e atrás da carreta , que
agora desaparecera ao longe , rio acima.

* * *
108 Cormac McCarthy

A hacienda cujos portões transpuseram situava-se num terreno plano


entre a estrada e o leito entrançado do rio Batopito , e devia o seu nome
às montanhas a leste , através das quais eles tinham cavalgado . Estendia­
-se , esbatida na lonjura, numa longa curva esguia de paredes caiadas ,
sob as finas flechas verdes de um bosque de ciprestes . A jusante havia
extensões de árvores de fruto e de nogueiras-pecãs em filas ordenadas .
Ele meteu pelo longo caminho de acesso no momento em que o grupo
de caçadores cruzava o portão principal , lá adiante . Nos campos viam­
-se toiros mestiços de orelhas compridas e dorso corcovado , de uma
raça nova naquela região , e os trabalhadores endireitaram-se e ficaram
parados , com as sacholas curtas na mão , a vê-lo passar. Ele ergueu o
braço à laia de saudação , mas eles debruçaram-se novamente na sua
labuta sem outro gesto .
Quando ele cruzou o portão aberto , não havia sinais do grupo . Um
mozo veio buscar o cavalo , e ele descavalgou e passou-lhe as rédeas
para a mão . O mozo avaliou-o com base nas roupas e fez um sinal com
a cabeça a indicar a porta da cozinha, e , escassos minutos depois , ele
estava sentado diante de uma mesa, juntamente com os serviçais do
grupo recém-chegado , cerca de uma dúzia no total , todos a comer gran­
des lascas de carne de vaca frita com feijão e tortillas de farinha ainda
quentes do coma!. À cabeceira da mesa sentava-se o carretero .
Ele passou a perna por cima do banco com o prato na mão e sentou­
-se , e o carretero dirigiu-lhe um aceno de cabeça , mas , quando ele lhe
perguntou pela loba, o carretero limitou-se a dizer que a loba era para a
feria e recusou-se a dar mais explicações .
Quando acabaram de comer, ele levantou-se e levou o prato até ao
escorredor e perguntou à cocinera onde estaria o patrón , mas ela
limitou-se a olhar para ele de relance e depois executou um gesto amplo
que abrangia os milhares de hectares de terra estendendo-se para norte
ao longo do rio que compunham a hacienda . Ele agradeceu-lhe e tocou
no chapéu e saiu e atravessou o recinto . Do lado oposto erguiam-se es­
tábulos e uma bodega ou celeiro e a longa fiada de casas de adobe onde
os trabalhadores se encontravam alojados .
Encontrou a loba acorrentada numa baia vazia. Estava de pé , refugia­
da num canto , e dois rapazes debruçavam-se sobre a porta da baia, a
assobiar-lhe e a tentar cuspir para cima dela. Ele percorreu a coxia cen­
tral do estábulo , em busca do seu cavalo, mas não havia cavalos ali
dentro . Tomou a sair para o recinto . Das terras a montante , aonde ti­
nham levado os cães para os fazer correr, o alguacil e o seu grupo esta­
vam a regressar à casa. No eirado atrás da casa, o carretero prendera
A Travessia 1 09

novamente a pequena mula à carroça e subira para cima da caixa. O


estalo seco das guias propagou-se através do recinto como um tiro de
pistola distante , e mula e carroça puseram-se em movimento . Cruzaram
o portão principal no preciso momento em que os primeiros cavaleiros
e os primeiros cães descreviam a curva e penetravam na estrada defron­
te deles .
Um tal grupo não abre caminho para mulas e carroças , e o carretero
desviou a sua carripana para a erva da berma da estrada para os deixar
passar, de pé na caixa, e tirou o chapéu com um gesto floreado enquan­
to procurava com os olhos o alguacil entre o grupo de cavaleiros que se
ia aproximando . Tomou a fazer estalar as guias . A mula avançou a con­
tragosto , e a carroça oscilou e rangeu e matraqueou sobre o terreno
agreste da berma. No momento em que os cães e os cavaleiros iam a
passar, o cão que encabeçava o grupo ergueu o focinho e sentiu na brisa
o cheiro da carroça e soltou um ladrido grave e voltou-se e correu para
trás da carroça que estrondeava mesmo ao lado da estrada . Os outros
cães irromperam em volta, de pêlo eriçado ao longo das espáduas , a
agitar os focinhos no ar. O carretero olhou para trás com expressão
alarmada . No instante em que o fez, a mula arqueou o dorso e desferiu
um coice e puxou a carrocinha de viés e lançou-se através dos campos
a galope , com os cães na sua peugada num enorme clamor.
O alguacil e os seus lacaios ergueram-se nos estribos e chamaram­
-nos aos gritos , a rir e a soltar urros . Alguns dos cavaleiros mais jovens
do grupo meteram esporas às montadas e lançaram-se na esteira da mu­
la e da carroça destrambelhadas , a lançar gritos ao carretero e a rir. O
carretero agarrou as tábuas e debruçou-se sobre a borda com o chapéu
na mão para enxotar os cães que saltavam em volta da carroça, raspando
com as unhas na madeira . Ainda que a carroça fosse alta , eles começa­
ram a saltar para o interior, três ou quatro , e a rebuscar na palha, a uivar
e a soltar queixumes , até que por fim ergueram uma pata e puseram-se
a urinar e cambalearam e tombaram contra o flanco da carroça e borri­
faram o carretero e borrifaram-se uns aos outros e lutaram fugazmente
e, por fim , postaram-se com as patas dianteiras ao longo dos taipais da
carroça e lançaram ladridos aos cães que corriam dos lados .
Os cavaleiros ultrapassaram-nos , soltando gargalhadas , e descreve­
ram círculos em volta da carroça a todo o galope até que um deles ,
empunhando a sua reata , atirou um laço em volta da cabeça da mula e
a fez parar. Soltaram brados e trocaram palavras em alta voz e afugen­
taram os cães com as pontas das cordas dobradas sobre si mesmas e
conduziram a carroça de regresso à estrada. Os cães dispersaram-se
1 10 Cormac McCarthy

pelos campos a correr, e as raparigas e as mulheres novas que ali traba­


lhavam soltavam guinchos e punham as mãos no alto da cabeça enquan­
to os homens permaneciam imóveis , a agarrar as sacholas à laia de va­
rapaus. Na estrada, o alguacil chamou o carretero e pescou do bolso
uma moeda de prata e atirou-lha com grande precisão . O carretero apa­
nhou a moeda e tocou com ela na aba do chapéu e desceu para a estrada
para inspeccionar a carroça e as rodas de madeira com as várias peças
toscamente aparelhadas e os arreios e o varal há bem pouco tempo con­
sertado . O alguacil olhou para além dos cavaleiros , para o ponto onde
o rapaz estava parado na estrada. Tirou do bolso outra moeda e atirou-a,
a rodopiar.
Por el Americano , bradou .
Ninguém a apanhou . Caiu na poeira e ali ficou caída. O alguacil
permaneceu sentado na sela. Dirigiu ao rapaz um aceno de cabeça.
Es para ti , disse .
Os cavaleiros observavam-no. Ele curvou-se e apanhou a moeda do
chão , e o alguacil assentiu com a cabeça e sorriu , mas o rapaz não agra­
deceu nem tocou no chapéu . Acercou-se dele e ergueu o braço , com a
moeda na mão .
No puedo aceptarlo , disse .
O alguacil arqueou a sobrancelha e fez que sim com a cabeça vigo­
rosamente .
Sí, insistiu . Sí.
O rapaz permaneceu à ilharga do cavalo do alguacil e fez um gesto
na direcção dele com a moeda estendida. No , disse .
No ? contrapôs o alguacil. Y cómo no ?
O rapaz disse que queria reaver a loba. Disse que não a podia vender.
Disse que se fosse preciso pagar uma multa ele trabalharia para pagar a
multa, ou se fosse preciso pagar uma taxa para ter uma licença ou uma
portagem para viajar naquela região ele trabalharia para as pagar, mas que
não se podia separar da loba porque a loba fora confiada à sua guarda.
O alguacil ouviu-o sem o interromper e, quando ele terminou , rece­
beu a moeda de volta e depois atirou-a ao carretero que esperava na
berma, como se uma moeda, uma vez oferecida, não pudesse ser devol­
vida a quem a ofereceu , e depois voltou o cavalo na estrada e chamou
os seus homens , e, tocando os cães na sua frente , cavalgaram todos na
direcção da hacienda e desapareceram através dos portões abertos .
O rapaz olhou para o carretero . O carretero trepara de novo para a
carroça e desamarrou as rédeas e olhou de alto para o rapaz . Disse que
o alguacil lhe tinha dado a moeda a ele . Disse que se o rapaz quisesse
A Travessia 111

a moeda deveria tê-la aceitado quando lha tinham oferecido . O rapaz


respondeu que não queria o dinheiro do homem , nem há bocado nem
agora. Disse que o carretero talvez fosse capaz de trabalhar para um
homem assim , mas que ele não . O carretero , porém , limitou-se a acenar
com a cabeça, como que a dizer que não esperava que o rapaz entendes­
se , mas que talvez um dia, com sorte , ele fosse capaz . Em seguida, fez
estalar as guias contra a garupa da mula e partiu estrada fora.
Ele encaminhou-se novamente para o estábulo onde tinham acorren­
tado a loba. Um velho mozo da casa fora ali colocado para a guardar e
para evitar que a molestassem . Estava na penumbra, sentado , de costas
contra a porta do estábulo , a fumar um cigarro . O chapéu jazia na palha,
a seu lado . Quando o rapaz lhe perguntou se podia ver a loba, ele chu­
pou bem fundo no cigarro , como que a ponderar o pedido . Depois disse
que ninguém podia ver a loba sem autorização do hacendado e que ,
fosse como fosse , não havia luz suficiente para a ver.
O rapaz ficou parado na soleira da porta. O mozo não falou mais, e ,
ao fim d e u m certo tempo , ele deu meia-volta e tomou a sair. Tornou a
cruzar o recinto até à casa e estacou ali , a olhar pelos portões do pátio .
Viam-se homens a rir e a beber e uma vitela a assar num espeto junto
ao muro , no outro extremo do terreiro , e à luz fuliginosa dos fogaréus
que ardiam no lusco-fusco azul e alongado do deserto viam-se mesas
repletas de iguarias e doces e fruta em quantidade suficiente para ali­
mentar cem pessoas ou mai s . Ele voltou-se e tomou a contornar a casa
para ir em busca de um dos mozos de cuadra e ver o que se passava com
o seu cavalo . Música de mariachis começou a soar atrás dele , no pátio ,
e recém-chegados desmontavam junto aos portões , a emergir das for­
mas cada vez mais sombrias das montanhas , a leste , ao longo da estrada,
acompanhados por cães que seguiam na esteira dos cavalos , assomando
à luz junto aos umbrais do portão , onde havia tochas a arder em tubos
de ferro cravados na terra.
Os cavalos dos convidados de menor condição , como ele próprio ,
estavam presos com cabeçadas de corda ao longo de um amarradouro ,
na traseira dos establos , e ele encontrou B ird parado entre eles . Ainda
tinha a sela posta e o freio e as rédeas pendiam-lhe do cepilho e estava
a comer ração de uma manjedoura feita de duas tábuas forradas de zin­
co , pregadas ao longo da parede . Ergueu a cabeça quando Billy falou
com ele e olhou para trás a mastigar.
Es su cabal/o ? perguntou o mozo .
Sí. Claro .
Todo está bien ?
112 Cmmac McCarthy

Sí. Bien . Gracias .


Os mozos iam avançando ao longo da fileira de cavalos , a tirar-lhes
as selas e a escovar os animais e a verter ração na manjedoura. Ele pediu
que deixassem o seu cavalo selado , e eles responderam que assim fa­
riam . Ele tomou a olhar para o cavalo . Atiraste-te à comida que nem um
danado , hem? disse .
Deu a volta até ao estábulo e cruzou a porta no extremo contrário e
parou . Fazia quase escuro na coxia central , e o mozo encarregado da
loba parecia adormecido . Ele procurou uma baia vazia e entrou e amon­
toou o feno num canto com as botas e deitou-se com o chapéu sobre o
peito e fechou os olhos . Ouvia os gritos dos mariachis e o uivar dos
podengos acorrentados num barracão , algures , e, ao fim de um certo
tempo , adormeceu .
Dormiu e , enquanto dormia, sonhou , e o sonho era acerca do pai e no
sonho o pai estava a caminhar a pé , perdido no deserto . À luz moribun­
da daquele dia, ele viu os olhos do pai . O pai encontrava-se parado , a
olhar para oeste , onde o Sol desaparecera e onde o vento se levantava
das trevas . Naquela aridez, os finos grãos de areia eram a única coisa
que o vento podia mover, e o vento movia-se com um constante fervi­
lhar migratório a acompanhá-lo . Como se na sua granulação suprema o
mundo buscasse algum freio contra a sua própria rotação eterna. Os
olhos do pai procuravam a chegada da noite na vermelhidão cada vez
mais carregada para além da orla do mundo , e aqueles olhos pareciam
contemplar com uma terrível serenidade de espírito o frio e a treva e o
silêncio que avançavam para o cobrir, e de repente tudo ficou escuro e
tudo foi engolido pelas trevas e no silêncio ele ouviu algures um sino
solitário que dobrou e depois emudeceu e foi então que acordou .
Homens com tochas passavam em fila indiana ao longo do estábulo ,
diante da porta aberta da baia onde ele estivera a dormir, com as suas
silhuetas a rodopiar, colossais, ao longo das paredes mais distantes . Ele
levantou-se e pôs o chapéu na cabeça e saiu . Estavam a arrastar a loba
da sua baía pela corrente , e ela encolhia-se à luz repleta de fumo e pu­
xava em sentido contrário e tentava manter-se colada ao chão para
proteger o ventre . Um homem munido de um velho cabo de ancinho
pôs-se atrás dela para a espicaçar, e, ao longe , algures para lá dos domi­
cílios , os podengos tinham irrompido num novo clamor.
Ele seguiu-os para o exterior e através do terreiro mergulhado na
escuridão . Transpuseram um portão aberto , um portão de madeira para
carruagens cujos batentes se encontravam presos a pilares de pedra, e o
ulular dos podengos tornou-se mais intenso e a loba encolheu-se e lutou
A Travessia 1 13

para se libertar da corrente . Alguns dos homens que vinham atrás esta­
vam a cair de bêbedos e davam-lhe pontapés e chamavam-lhe cobarde .
Passaram junto da bodega de pedra onde a luz dos beirais tombava ao
longo do topo das paredes e projectava as sombras das traves do telhado
na escuridão do terreiro . A iluminação do interior parecia vergar as pa­
redes , e, no manto de luz defronte das portas abertas , as sombras das
figuras lá dentro rodopiavam e alongavam-se , e o grupo entrou a arras­
tar a loba sobre a argila batida. Os presentes abriram alas aos recém­
-chegados com muitos aplausos e brados . Estes entregaram as tochas a
mozos que as apagaram no chão de terra, e , quando todos tinham entra­
do e se encontravam no interior, os mozos empurraram as pesadas portas
de madeira para as fechar e deixaram cair a tranca.
Ele avançou ao longo da orla da multidão . Era uma estranha igualan­
ça de testemunhas ali reunida, e entre os mercadores de povoações ad­
jacentes e os hacendados das redondezas e os pequenos hidalgos de
gotera vindos de lugares tão longínquos como Agua Prieta e Casas
Grandes , com os seus fatos bem justos ao corpo , havia comerciantes e
caçadores e gerentes e mayordomos das haciendas e dos ejidos e havia
capatazes e vaqueros e alguns jornaleiros benquistos . Não se viam mu­
lheres . Ao longo do extremo oposto do edifício erguiam-se assentos ou
bancadas montadas sobre postes e no centro da bodega havia uma esta­
cada ou arena redonda com uns seis metros de diâmetro , talvez, delimi­
tada por uma paliçada baixa de madeira. As tábuas da paliçada estavam
negras do sangue seco dos dez mil galos de combate que ali tinham
morrido , e no centro da arena assomava um tubo de ferro havia pouco
cravado no chão .
Ele abriu caminho com os ombros a partir da retaguarda no preciso
momento em que estavam a arrastar a loba sobre as tábuas e para dentro
da arena . Os espectadores nas bancadas puseram-se de pé para ver. O
homem na arena acorrentou a loba ao cano e depois arrastou-a até à
ponta da corrente e repuxou-lhe o corpo , estendendo-a ao comprido
enquanto lhe retiravam o açaimo artesanal . Em seguida, recuaram e
soltaram o nó corredio da corda com que a tinham estendido no chão .
Ela pôs-se de pé e olhou em volta. Parecia pequena e maltratada e ar­
queava o dorso como um gato . A ligadura desaparecera-lhe da pata, e
ela apoiou-a com cuidado no chão ao mover-se de viés até à ponta da
corrente para logo regressar, com os colmilhos brancos a cintilar à luz
dos reflectores de estanho , lá no alto .
Os primeiros pares de cães já tinham sido trazidos para o interior
pelos seus tratadores e saltavam e puxavam as trelas e soltavam ladridos
1 14 Cormac McCarthy

e empinavam-se , retesando as coleiras . Conduziram dois deles para


diante , e os espectadores na multidão chamavam os proprietários aos
gritos e assobiavam e faziam as suas apostas em alta voz . Os podengos
eram jovens e hesitantes . Os tratadores içaram-nos por cima do parapei­
to , para o interior da arena, onde eles começaram a descrever círculos ,
de pêlo eriçado , e ladraram à loba e olharam um para o outro . Os trata­
dores incitaram-nos com ruídos sibilantes , e eles caminharam em volta
da loba com cautela. A loba agachou-se e arreganhou os dentes . A mul­
tidão começou a apupar e a soltar assobios , e, ao fim de um certo tempo ,
um homem do outro lado da arena soprou num apito e os tratadores
adiantaram-se e agarraram a ponta das correntes que arrastavam pelo
chão e puxaram os cães para trás e arrastaram-nos por cima do parapei­
to e levaram-nos dali , com os cães novamente a retesar as coleiras e a
ladrar à loba, lá atrás .
A loba caminhava para trás e para diante e descrevia círculos , a co­
xear sobre três patas , e depois agachou-se junto à estaca de ferro , onde
parecia ter estabelecido a sua querencia . Os seus olhos cor de amêndoa
percorreram o círculo de rostos em volta da arena, e ela lançou um olhar
fugaz às luzes do tecto . Agachou-se sobre os cotovelos e depois ergueu­
-se e descreveu um círculo e tornou a agachar-se . Depois pôs-se de pé .
Um novo par de cães fora içado sobre o parapeito , a raspar com as
unhas na madeira.
Quando os tratadores soltaram os cães , estes lançaram-se para diante
de dorsos corcovados e atiraram-se como projécteis contra a loba, e os
três animais rolaram numa bola de colmilhos arreganhados e a
entrechocar-se , ao som do tilintar das correntes . A loba lutava no mais
absoluto silêncio . Debateram-se pelo chão até que se ouviu um latido
estridente e um dos cães surgiu a descrever círculos , com uma pata
dianteira erguida. A loba agarrara o outro cão pelo maxilar inferior e
derrubou-o e pôs-se às cavalitas dele e soltou-lhe a mandíbula com um
repelão e enterrou-lhe as presas na garganta e mordeu novamente para
agarrar melhor o ponto em que o pescoço musculoso se lhe escapava
sob as pregas soltas da pele .
O rapaz conseguira avançar até às bancadas . Postou-se junto a um dos
pilares de pedra e tirou o chapéu para os que estavam atrás de si pode­
rem ver, mas depois deu-se conta de que ninguém mais tirara o seu , por
isso tornou a pô-lo . Se a deixassem , a loba teria sido bem capaz de ma­
tar o cão, mas o árbitro fez soar o seu apito e um dos tratadores avançou
com um pedaço de cana de um metro e oitenta de comprido e vibrou
uma pancada na orelha da loba. Ela soltou a presa e deu um salto para
A Travessia 1 15

trás e rodou sobre os quadris. Os tratadores agarraram os cães pelas


correntes e levaram-nos dali . Um homem avançou e transpôs a barrica­
da baixa de madeira e começou a caminhar em círculos , trazendo uma
selha de cujo interior ia lançando mãos-cheias de água, dir-se-ia um
horticultor atordoado e pateta, a encharcar metodicamente a poeira no
piso da arena enquanto a loba, deitada, arquejava. O rapaz virou costas
e avançou ao longo da orla da multidão até à porta das traseiras por
onde os podengos tinham desaparecido e saiu para as trevas frescas do
exterior. Um tratador com dois novos cães já vinha a transpor o limiar.
Um grupo de rapazes que fumava cigarros junto à parede dos fundos
da bodega virou-se e olhou para ele à luz que se derramava da porta
aberta. O uivar dos cães na tulha, mais atrás , era sonoro e ininterrupto .
Cuántos perros tienen ? perguntou-lhes ele .
O rapaz mais próximo olhou para ele . Disse que tinham quatro cães .
Y usted? perguntou .
Ele explicou que se estava a referir a todos os cães , mas eles
limitaram-se a encolher os ombros .
Quién sabe ? disseram . Bastante .
Ele passou diante deles e encaminhou-se para a tulha. Era um edifício
comprido com telhado de zinco , e ele pegou numa candeia que estava
pendurada numa estaca e levantou a tranca de madeira do encaixe na
porta e empurrou a porta para a abrir e entrou com a candeia ao alto . Ao
longo da parede , os podengos desataram a saltar e a ladrar, repuxando
as correntes que os prendiam . Havia para cima de trinta no celeiro , na
sua maioria redbones e blueticks trazidos das terras a norte , mas tam­
bém animais indiferenciadas de linhagens do Novo Mundo e cães que
pouco mais eram do que pitbulls criados para lutar. Acorrentados ao
fundo do celeiro , separados dos outros, viam-se dois enormes airedales ,
e , quando as luzes da candeia lhes incendiaram os olhos , o rapaz viu ali
uma coisa que nem sequer os cães de combate possuíam em tal absolu­
ta pureza e recuou , não confiando nas correntes que os prendiam . Saiu
às arrecuas e fechou a porta e deixou cair a tranca no encaixe e tornou
a pendurar a candeia na estaca. Dirigiu um aceno de cabeça aos rapazes
parados ao longo da parede e contornou-os e entrou de novo na bodega .
A multidão parecia ter efectivamente engrossado durante a sua curta
ausência. Do lado oposto da arena alinhavam-se os membros da banda
de mariachis com os seus fatos brancos de mau corte . Através da turba,
ele conseguiu entrever a loba. Estava agachada sobre os quadri s , de
boca muito aberta, e arremetia alternadamente em direcção a um e a
outro dos dois cães que descreviam círculos em volta dela. Um dos cães
1 16 Cormac McCarthy

levara uma mordidela na orelha, e ambos os tratadores estavam salpica­


dos de sangue onde o animal dera uma volta a abanar a cabeça. Ele
abriu caminho através da multidão e, ao chegar ao parapeito de madeira,
ergueu a perna para o transpor e penetrou na arena .
A princípio , tomaram-no por mais um tratador, mas foi dos tratado­
res que ele se acercou . Estes encontravam-se agora no extremo mais
distante da arena , agachados e a executar fintas de corpo em posturas
de ataque e defesa semelhantes às que desejariam ver os cães adoptar
e a entoar cânticos em vozes estridentes para espicaçar os cães e a
contorcer-se e a fazer gestos com as mãos numa imitação grotesca da
refrega diante deles . Quando o mais próximo o viu avançar, soergueu­
-se e olhou na direcção do árbitro . O árbitro encontrava-se parado ,
com o apito na boca, mas parecia não saber como interpretar o que via.
O rapaz contornou os tratadores e penetrou no perímetro do círculo de
três metros e meio de terreno revolto , definido pela corrente a que a
loba estava presa. Alguém lançou um grito de aviso , e o árbitro soprou
no ftpito , e então um grande silêncio tombou sobre a bodega . A loba
estava de pé , a arquejar. O rapaz passou diante dela e agarrou o primei­
ro cão pela pele solta do lombo e ergueu-lhe do chão os quartos trasei­
ros e agachou-se e agarrou-lhe a corrente e recuou com o animal nas
mãos e voltou-se e entregou a corrente ao tratador. O tratador pegou na
corrente e puxou contra a própria perna o cão , que se debatia sem parar.
Qué pasó? indagou .
Mas o rapaz já fora em busca do segundo cão . Nesse momento já
alguns dos espectadores tinham começado a gritar, e ouvia-se um mur­
múrio agreste a percorrer a bodega . Os tratadores olharam na direcção
do árbitro . O árbitro tornou a soprar no apito e gesticulou na direcção
do intruso . Este , por sua vez , içou ao alto o segundo cão pela corrente e
levou-o , apoiado nas patas traseiras , até junto do segundo tratador, e
depois virou costas e dirigiu-se para junto da loba.
Ela estava de pé , de patas afastadas , com os flancos a palpitar e a
boca negra franzida e arrepanhada, mostrando os dentes brancos e per­
feitos . Ele agachou-se e falou com ela. Não tinha maneira de saber se
ela o iria morder ou não . Um punhado de homens trepara por cima da
estacada e avançava ao encontro dele , mas , ao chegarem ao perímetro
do terreno revolto , imobilizaram-se como se tivessem deparado com um
muro . Ninguém falou com ele . Todos pareciam à espera de ver qual
seria o seu próximo gesto . Ele ergueu-se e acercou-se da estaca de ferro
cravada no chão e enrolou uma volta da corrente em torno do antebraço
e acocorou-se e agarrou a corrente junto ao anel e tentou levantar-se
A Travessia 1 17

com ela. Ninguém se moveu , ninguém falou . Ele agarrou mais uma
volta da corrente e tentou de novo . O suor que lhe perlava a testa cinti­
lava à luz . Ele tentou ainda uma terceira vez , mas não foi capaz de ar­
rancar a estaca do chão e endireitou-se e voltou-se para trás e agarrou a
loba em si pela coleira e soltou o mosquetão que prendia a corrente e
puxou a cabeça ensanguentada e coberta de baba para junto de si e pôs­
-se de pé .
O facto de a loba estar solta, à parte a mão dele a agarrar-lhe a colei­
ra, não escapou à atenção dos homens que tinham entrado na arena.
Entreolharam-se . Alguns começaram a recuar. A loba mantinha-se en­
costada à coxa do güero , de dentes arreganhados e com os flancos a
inchar e a mirrar alternadamente , e não executou movimento algum.
Es mía , disse o rapaz .
As pessoas nas bancadas começaram a lançar brados , mas as que se
encontravam nas proximidades da loba desacorrentada pareciam hesi­
tantes quanto ao rumo a seguir. No fim de contas , quem se adiantou não
foi o alguacil nem o hacendado , mas sim o filho do hacendado . Os
outros abriram alas diante dele , um jovem que trazia no casaco agaloado
o perfume das jovens mulheres com quem dançara escassos momentos
antes . Penetrou na arena e avançou e estacou de botas afastadas e com
os polegares descontraidamente suspensos da faixa azul que lhe cingia
a cintura. Se é que tinha medo da loba, não deu qualquer sinal disso .
Qué quieres, joven ? perguntou .
O rapaz repetiu o que dissera aos cavaleiros com quem se encontrara
no Cajón Bonita, nas montanhas a norte . Explicou que era guardião da
loba e que ela fora confiada ao seu cuidado , mas o jovem hacendado
sorriu com expressão pesarosa e abanou a cabeça e disse que a loba
fora apanhada numa armadilha na serra de Pilares Teras , que são umas
montanhas bárbaras e selvagens , e que os auxiliares de Don Beto o ti­
nham encontrado a atravessar o rio junto a Colonia de Oaxaca e o ti­
nham impedido de levar a loba para o seu país , onde ele a tencionava
vender por bom preço .
Falava em voz alta e límpida, como alguém a declamar à multidão , e ,
quando terminou , ficou com as mãos cruzadas uma sobre a outra diante
de si , como se nada mais houvesse a dizer.
De pé , o rapaz segurava a loba. Sentia o movimento da respiração
dela e o leve tremor do corpo dela contra o seu . Olhou para o jovem
fidalgo e olhou para o círculo de rostos banhados pela luz . Disse que
tinha vindo do condado de Hidalgo , no Novo México , e que trouxera a
loba consigo desse lugar. Disse que a tinha capturado numa armadilha
118 Cormac McCarthy

de aço e que ele e a loba tinham viajado seis dias por montes e vales
naquele país e que não tinham vindo da serra de Pilares , nem por som­
bras , antes estavam a tentar atravessar o rio para subir a essas mesmas
montanhas quando a força da corrente os obrigara a voltar para trás .
O jovem hacendado retirou as mãos da sua frente e entrelaçou-as
atrás das costas . Rodou sobre os calcanhares e deu alguns passos com
ar meditabundo e tornou a voltar-se e ergueu os olhos .
Para qué trajo la loba aquí? De que sirvió?
De pé , ele segurava a loba. Todos ficaram à espera que ele respondes­
se , mas ele não tinha resposta. Percorreu a assembleia com os olhos ,
procurando os olhos que o fitavam. O árbitro permanecia com o relógio
/
de bolso ainda estendido diante de si. Os tratadores , parados , seguravam
as cole iras dos cães a mãos ambas nos punhos fechados . O homem da
selha de água esperava. O jovem hacendado voltou-se para olhar para a
plateia. Sorriu e tornou a virar-se para o rapaz . Depois falou em inglês .
O meu amigo pensa que este país é um país qualquer onde pode vir
e fazer o que bem lhe apetece .
Eu nunca pensei isso . Nunca pensei coisa nenhuma acerca deste país ,
aliás .
Pois , disse o hacendado .
'Távamos só de passagem , prosseguiu o rapaz . Não ' távamos a fazer
mal a ninguém. Queríamos pasar, no más .
Pasar o traspasar?
O rapaz voltou-se e escarrou para a poeira do chão . Sentia a loba a
encostar-se-lhe à perna. Explicou que os rastos da loba vinham do Mé­
xico . Disse que a loba nada sabia acerca de fronteiras . O jovem fidalgo
assentiu com a cabeça, como que a concordar, mas quando abriu a boca
disse que aquilo que a loba sabia ou deixava de saber era irrelevante e
que se a loba atravessara a fronteira, pois tanto pior para ela, mas que a
fronteira continuava a existir, independentemente de tudo o resto .
Os espectadores fizeram que sim com a cabeça e trocaram murmú­
rios . Olharam para o rapaz para ver como é que ele iria responder. O
rapaz disse apenas que , caso o deixassem partir, voltaria para a América
com a loba e que pagaria toda e qualquer multa a que o condenassem,
mas o hacendado abanou a cabeça. Disse que era demasiado tarde para
isso e que , fosse como fosse , o alguacil apreendera a loba e que o ani­
mal fora confiscado para cobrir o portazgo . Quando o rapaz disse que
não fazia ideia de que seria obrigado a pagar para atravessar aquela re­
gião , o hacendado retorquiu que , nesse caso , ele estava mais ou menos
na mesma situação da loba.
A Travessia 119

Esperaram . O rapaz olhou para o alto , para as traves do tecto , até


onde a poeira e o fumo tinham ascendido e onde se moviam lentamente
em lentas volutas diante das luzes . Percorreu os rostos com o olhar, em
busca de algum a quem pudesse expor o seu caso , mas nada viu .
Debruçou-se e soltou a fivela da coleira de cabedal que cingia o pesco­
ço da loba e retirou-lha e endireitou-se. Os mais próximos tentaram re­
cuar para o seio da multidão . O jovem aristocrata sacou da faixa um
pequeno revólver.
Agárrala , ordenou .
Ele não se mexeu . Vários outros espectadores tinham também sacado
das armas . Ele parecia um homem em cima do cadafalso , a procurar na
turba alguma afinidade com o que lhe ia no coração . Procura infrutífera
aquela, embora todos os presentes talvez dessem por si naquela mesma
posição , cedo ou tarde . Ele olhou para o jovem fidalgo . Sabia que o
outro ia abater a loba. B aixou-se e tornou a pôr a coleira em volta do
pêlo ensanguentado do pescoço da loba e apertou-lhe de novo a fivela.
Ponga la cadena , ordenou o hacendado .
Ele obedeceu . Curvou-se e apanhou do chão o mosquetão na ponta
da corrente e enfiou-o na argola da coleira. Em seguida , deixou cair a
corrente na poeira e afastou-se da loba. As pistolinhas desapareceram
tão silenciosamente como haviam surgido .
Abriram caminho para o deixar passar e seguiram-no com os olhos
enquanto ele se afastava. Lá fora, a noite arrefecera ainda mais e o ar
cheirava a fumo de lenha dos lumes para cozinhar ali perto , nos domi­
cílios dos trabalhadores . Alguém fechou a porta atrás dele . O quadrado
de luz onde ele se encontrava parado estreitou-se aos poucos na sombra
da porta até desaparecer na treva. A tranca tombou secamente no seu
lugar do lado de dentro . Ele subiu no escuro até ao establo onde esta­
vam a cuidar dos cavalos . Um jovem mozo ergueu-se e saudou-o. Ele
acenou com a cabeça e entrou e foi buscar o seu cavalo e tirou-lhe a
cabeçada de corda e pendurou-a no amarradouro e enfreou o animal .
Desenrolou a manta que se encontrava atrás da sela e embrulhou-a em
volta dos ombros . Em seguida, montou e cavalgou para fora, deixando
para trás os cavalos parados , e lançou um aceno de cabeça ao mozo e
tocou no chapéu e rompeu em direcção à casa.
O portão para o pátio estava fechado . Ele descavalgou e abriu-o e
depois tornou a montar. Curvou-se para diante na sela para passar sob o
arco do portão e transpôs o limiar com os estribos a roçar ao longo do
estuque e a tilintar contra os umbrais de ferro . O pátio estava revestido
de ladrilhos de barro , e o som dos cascos do cavalo na tijoleira levou as
1 20 Cormac McCarthy

criaditas a erguerem os olhos das suas tarefas . Ficaram imóveis , a segu­


rar toalhas de mesa e pratos e cestos de verga. Ao longo das paredes , as
candeias de azeite ainda ardiam no alto dos seus postes , e as sombras
em staccato de morcegos à caça cruzavam os ladrilhos e desapareciam
e reapareciam e passavam em sentido oposto . Ele atravessou o pátio a
cavalo e saudou as mulheres com um aceno de cabeça e debruçou-se na
sela e tirou uma empanada de uma travessa e ficou sentado na sela a
comê-la. O cavalo inclinou o focinho comprido por cima da mesa, mas
ele torceu as rédeas para o desviar. A empanada estava recheada com
carne condimentada, e ele comeu-a e baixou-se e pegou noutra. As mu­
lheres retomaram as suas tarefas . Ele acabou de comer a empanada e
depois tirou um pastel doce de uma bandeja e comeu-o , guiando o ca­
valo ao longo das mesas . As mulheres afastaram-se diante dele . Ele
tornou a lançar-lhes um aceno de cabeça e desejou-lhes as boas-noites .
Pegou noutro pastel e percorreu o perímetro do pátio a comê-lo enquan­
to o cavalo estremecia ante a passagem dos morcegos , e depois tornou
a cruzar o portão em sentido oposto e meteu pelo caminho . Ao fim de
um certo tempo , uma das mulheres atravessou o pátio e fechou o portão
atrás dele .
Quando chegou à estrada, voltou para sul , em direcção à povoação , a
cavalgar vagarosamente . O ulular dos cães desvanecia-se lá atrás . Uma
meia-lua pendia a leste , inclinada sobre as montanhas , qual um olho
semicerrado de raiva.
Já alcançara as luzes na periferia da colonia quando parou o cavalo
na estrada. Em seguida, torceu as rédeas para o forçar a dar meia-volta
e arrepiou caminho .
Quando parou diante da porta da bodega , fez deslizar um pé para
fora do estribo e deu uma pancada sonora na porta com o tacão da bota.
A porta estremeceu contra a tranca no interior. Ele ouvia os gritos dos
homens e ouvia os rosnidos dos cães no barracão , do lado oposto da
bodega . Ninguém veio abrir. Ele contornou o edifício até às traseiras e
desceu ao longo da estreita passagem murada entre a bodega e a tulha
onde os cães estavam encerrados . Alguns homens que estavam acoco­
rados ao longo do muro puseram-se de pé . Ele dirigiu-lhes um aceno de
cabeça e descavalgou e retirou a espingarda do estojo e amarrou as ré­
deas uma à outra e deixou-as cair em volta da estaca no canto do barra­
cão e passou diante dos homens e abriu a porta e entrou .
Ninguém lhe prestou atenção alguma. Ele avançou através da multi­
dão e, ao chegar junto da estacada , viu que a loba estava sozinha na
arena e que tinha uma aparência de meter dó . Regressara para junto da
A Travessia 121

estaca e agachara-se junto desta, mas a cabeça jazia-lhe n a terra e a


língua pendia-lhe sobre a terra e tinha o pêlo emaranhado e sujo de
terra e de sangue , e os olhos amarelos não fitavam absolutamente nada.
Estava a lutar há quase duas horas e defrontara em grupos de dois a
maior parte dos numerosos cães trazidos para aferia . No outro extremo
da estacada , um par de tratadores segurava os airedales , e uma discus­
são estava a decorrer com o árbitro e com o jovem hacendado . Não
havia ninguém perto dos airedales , e eles retesavam as trelas e faziam
estalar os colmilhos molhados e puxavam rudemente os tratadores para
cá e para lá. A poeira suspensa sob as luzes cintilava como sílica. O
aguador mantinha-se a postos com a sua selha de água.
Ele transpôs o parapeito e caminhou ao encontro da loba e puxou a
alavanca para meter um projéctil na câmara da espingarda e parou a três
metros dela e levou a arma ao ombro e apontou para a cabeça ensan­
guentada e disparou .
O eco do tiro no espaço fechado do celeiro silenciou todos os outros
sons com o seu estrépito . Os airedales agacharam-se e ganiram e fugi­
ram em círculos para trás dos tratadores . Ninguém se mexeu . O fumo
azul da espingarda pairava no ar. A loba jazia , estendida no chão , morta.
Ele baixou a espingarda e fez saltar o cartucho vazio com um movi­
mento da alavanca e apanhou-o no momento em que rodopiava em
pleno ar e guardou-o no bolso e tornou a fechar a culatra da espingarda
com novo puxão na alavanca e ficou imóvel , com o polegar sobre o cão .
Olhou para a multidão que o rodeava. Ninguém falou . Alguns homens
estavam a olhar para trás de si, mas não foi o jovem fidalgo que avançou
até à estacada , mas sim o auxiliar do alguacil, que ele vira pela última
vez a instigar o carretero pela rua abaixo com o casaco deste , na colonia
a montante . O auxiliar transpôs a barricada e penetrou na arena e exigiu
ao rapaz que lhe entregasse a espingarda. O rapaz manteve-se firme . O
auxiliar soltou a aba do coldre com um estalido e sacou de lá a pistola
automática 45 já engatilhada.
Déme la carabina , insistiu .
O rapaz olhou para a loba. Olhou para a multidão . Tinha os olhos
rasos de lágrimas , mas não baixou o cão da espingarda nem se mexeu
para entregar a arma. O auxiliar ergueu a pistola e apontou-lha à parte
superior do peito . Espectadores no lado mais afastado da estacada
agacharam-se ou tombaram de joelhos , e alguns deles estenderam-se de
bruços na terra, com as mãos a cobrir-lhes a cabeça. No silêncio , o úni­
co som era o queixume surdo de um dos cães . Foi então que alguém
falou das bancadas . Bastante , disse . No le moleste .
1 22 Cormac McCarthy

Era o alguacil. Todos se voltaram para ele . Estava de pé numa das


filas mais altas da tosca estrutura de tábuas , com homens de ambos os
lados com os seus chapéus de castor 7 x , alguns a fumar puros , à seme­
lhança do próprio alguacil. Ele gesticulou com uma mão . Disse que
estava tudo acabado . Ordenou ao rapaz que guardasse a espingarda,
garantindo-lhe que ninguém lhe faria mal . O auxiliar baixou a pistola,
os observadores na plateia levantaram-se do chão e sacudiram o pó das
roupas . O rapaz pousou o cano da espingarda sobre o ombro e baixou o
cão com o polegar. Voltou-se e ergueu os olhos para o alguacil. O al­
guacil executou com as costas da mão um pequeno gesto de quem
varre . Dirigido a ele ou à multidão em geral , Billy não sabia, mas os
espectadores começaram a falar uns com os outros uma vez mais e al­
guém abriu as portas da bodega para a fria noite mexicana.
O homem a quem a pele fora prometida transpôs as tábuas e avançou .
Caminhou em volta da loba morta e postou-se de frente para ela, com a
faca de mato na mão . O rapaz perguntou-lhe quanto valia a pele , e o
outro encolheu os ombros . Remirou o rapaz cuidadosamente .
Cuánto quiere por él? perguntou o rapaz .
El cuero ?
La loba .
O pretendente à posse da pele olhou para a loba e olhou para o rapaz .
Disse que a pele valia cinquenta pesos .
Acepta la carabina ? perguntou o rapaz .
O pretendente ergueu as sobrancelhas , mas logo recuperou a compos­
tura . Es un huinche ? indagou .
Claro . Cuarenta y cuatro .
Ele deixou tombar do ombro a arma ali apoiada e atirou-a ao homem .
O pretendente puxou a alavanca com um gesto brusco e tomou a fechá­
-la. Curvou-se e apanhou da terra o projéctil ejectado e limpou-o à
manga da camisa e tomou a introduzi-lo na janela de carregamento .
Ergueu a espingarda e apontou às luzes lá no alto . A arma valia uma
dúzia de peles de lobo mutiladas , mas ele segurou-a e sopesou-a na mão
e olhou para o rapaz antes de assentir com a cabeça . Bueno , disse . Pôs
a arma ao ombro e estendeu a mão . O rapaz baixou os olhos para a mão
e depois , vagarosamente , tomou-a na sua, e selaram a troca com um
aperto de mãos no centro da arena enquanto a populaça desfilava a ca­
minho da porta aberta. Examinavam-no com os seus olhos escuros ao
passarem , mas se tinham ficado desapontados pelo fim do espectáculo
não deram mostras disso , pois também eles eram convidados do hacen­
dado e do alguacil e guardaram para si a sua opinião , tal como era há-
A Travessia 1 23

bito fazer-se naquelas paragens . O pretendente à posse da pele pergun­


tou ao rapaz se ele tinha mais cartuchos para a espingarda , mas o rapaz
limitou-se a abanar a cabeça e ajoelhou-se e tomou nos braços o corpo
flácido da loba que , embora magro , era tudo o que ele conseguia carre­
gar, e atravessou a arena e transpôs a barricada e encaminhou-se para a
porta das traseiras com a cabeça a baloiçar, pendente , e o sangue vaga­
roso a gotejar na sua esteira.
Quando cavalgou para fora da sombra do edifício , com a loba sobre
o arção dianteiro da sela, embrulhara-a no resto do lençol que a mulher
do rancheiro lhe dera . O pátio encontrava-se repleto de cavaleiros de
partida e dos gritos que eles lançavam uns aos outros. Os cães vieram
aglomerar-se em volta das patas do cavalo dele , a soltar ladridos , e o
cavalo esquivou-se e bateu com as patas no chão e desferiu-lhes coices ,
e ele passou defronte da porta aberta da bodega e prosseguiu através do
portão e saiu para os campos ao encontro do rio , a debruçar-se na sela e
a enxotar os últimos cães com o chapéu . A sul , acima da povoação ,
viam-se foguetes a subir em longos arcos crepitantes e a desabrochar na
treva e a tombar numa chuva lenta de confetti quentes . O estampido de
cada explosão alcançava-o muito depois do clarão de luz , e em cada
clarão de luz pendiam os fantasmas enfarruscados dos foguetes que ti­
nham subido antes . Ele chegou ao rio e voltou para jusante e cavalgou
através dos rápidos pouco fundos e rompeu pelas amplas línguas de
cascalho . Um bando de patos ultrapassou-o , a voar para jusante no es­
curo . Ele ouvia-lhes o bater das asas . Conseguiu distingui-los onde eles
se erguiam contra o céu e se afastavam em lampejas sobre a paisagem
escura, a oeste . Deixou para trás a povoação e as pequenas luzes da
feira de diversões e as formas das luzes que jaziam , indistintas , nos re­
moinhos vagarosos e negros da água ao longo da margem do rio . Uma
girândola de fogo preso já queimada erguia-se , fumegante , qual roda de
suplício , para além dos salgueiros-anões . Ele examinou o declive das
montanhas , a forma delas . O vento que soprava da água cheirava a me­
tal molhado . Sentia o sangue da loba contra a coxa, onde o sangue en­
sopara o lençol e lhe ensopara as calças , e levou a mão à perna e provou
o sabor do sangue , que era igual ao sabor do seu próprio sangue . Os
fogos-de-artifício extinguiram-se . A meia-lua pendia sobre o manto
negro das montanhas .
Na confluência dos rios , cavalgou através da ampla praia de casca­
lho e deteve-se no vau , e ele e o cavalo olharam para norte , onde o rio
corria límpido e frio das alturas sombrias daquela região . Ele quase
estendeu o braço para sacar a espingarda do estojo e evitar que se mo-
1 24 Cormac McCarthy

lhasse , mas depois limitou-se a picar o cavalo , incitando-o a penetrar


nos baixios .
Sentia os cascos do cavalo a percutir em surdina as pedras arredon­
dadas no leito do rio e ouvia a água a marulhar em volta das patas do
cavalo. A água subiu sob o ventre do animal , e ele sentiu-lhe o frio
quando lhe começou a entrar nas botas . Um derradeiro foguete solitário
subiu acima da aldeia e revelou-os a meio do rio e revelou toda a paisa­
gem em volta deles , as árvores das margens estranhamente envoltas em
sombras , as rochas alvacentas . Um cão solitário do povoado que sentira
o cheiro da loba no vento e o seguira para os arrabaldes ficou imóvel na
praia, apoiado em três patas , petrificado sob aquela luz falsa, e foi então
que tudo se tornou a desvanecer nas trevas de onde tudo fora evocado .
Transpuseram o vau e emergiram do rio a escorrer água, e ele olhou
para trás , para a aldeia cada vez mais escura, e depois lançou o cavalo
através dos salgueiros e dos canaviais da margem e rompeu para oeste ,
em direcção às montanhas . Enquanto assim cavalgava, ia cantando ve­
lhas canções que o pai outrora cantara em tempos idos e um suave
corrido em espanhol que a avó lhe ensinara e que contava a morte de
uma corajosa soldadera que pegou na espingarda do companheiro caído
e enfrentou o inimigo num ermo vetusto onde reinava a morte . Era uma
noite sem nuvens, e , enquanto ele cavalgava, a Lua desapareceu atrás da
orla da montanha e as estrelas começaram a assomar a leste , onde fazia
mais escuro . Subiram pelo curso seco do leito de um regato na noite
subitamente mais fria , como se tivesse sido a Lua a dar-lhe calor. E
meteram pelos montes baixos onde ele cavalgou toda a noite , a cantar
baixinho enquanto prosseguia.
Quando alcançou os primeiros taludes de cascalho sob as escarpas
altas da serra de Pilares , a alvorada já não iria tardar. Sofreou as rédeas
do cavalo numa depressão coberta de erva e desmontou e deixou cair as
rédeas . Tinha as calças hirtas do sangue . Aninhou a loba nos braços e
baixou-a para o chão e desdobrou o lençol . Ela estava hirta e fria e tinha
o pêlo hirsuto do sangue que lhe secara em cima. Ele conduziu o cavalo
de regresso ao regato e deixou-o ali para beber e percorreu as margens
em busca de lenha para atear uma fogueira. Coiotes latiam ao longo dos
montes a sul e soltavam os seus chamamentos das silhuetas escuras das
escarpas acima dele , onde os seus bramidos pareciam não ter outra ori­
gem que não a noite em si .
Ele ateou a fogueira e ergueu a loba do lençol e levou o lençol até ao
regato e agachou-se nas trevas e lavou o sangue que manchava o tecido
e trouxe-o de volta e cortou paus bifurcados de um lódão e cravou-os no
A Travessia 1 25

chão com uma pedra e pendurou o lençol numa armação de paus onde
o tecido começou a fumegar à luz das labaredas como um véu chame­
jante erguido numa terra bravia para onde os celebrantes de uma qual­
quer paixão secreta tivessem sido levados por seitas rivais ou talvez
para onde tivessem simplesmente fugido em plena noite , apavorados
ante os seus próprios actos . Embrulhou a manta em volta dos ombros e
ficou sentado ao frio , a tremer, à espera da alvorada, para então procurar
um lugar onde pudesse sepultar a loba. Ao fim de um certo tempo , o
cavalo subiu do regato , a arrastar atrás de si as rédeas molhadas pelo
meio das folhas , e parou à beira do lume .
Ele adormeceu com as palmas das mãos voltadas para cima diante de
si , como um penitente a dormitar. Quando acordou , ainda estava escuro .
A fogueira esmorecera até se reduzir a algumas labaredas baixas a fer­
vilhar sobre as brasas . Ele tirou o chapéu e agitou-o para avivar as
chamas até atear de novo a fogueira e juntou-lhe a lenha que reunira.
Procurou o cavalo , mas não o via. Os coiotes continuavam a ulular ao
longo dos contrafortes de pedra da serra de Pilares , e a leste o céu
pintava-se de um vago tom de cinzento . Agachou-se sobre a loba e
tocou-lhe no pêlo. Tocou-lhe nos dentes frios e perfeitos . O olho voltado
para o fogo não reflectia luz alguma, e ele fechou-o com o polegar e
sentou-se junto dela e pousou-lhe a mão sobre a fronte ensanguentada e
fechou os próprios olhos para a poder ver a correr pelas montanhas , a
correr à luz das estrelas onde a erva estava húmida e o nascer do Sol
ainda não viera dissolver a rica matriz das criaturas que ali tinham pas­
sado na noite antes dela. Veados e lebres e rolas e arganazes , todos rica­
mente emoldurados no ar para seu deleite , todas as nações do mundo
possível ordenado por Deus das quais ela fazia parte , sem delas estar
separada. Nos lugares por onde ela corria, os brados dos coiotes
calavam-se de súbito como se uma porta se tivesse fechado sobre eles ,
e tudo era medo e assombro . Ele ergueu-lhe a cabeça hirta das folhas e
abraçou-a ou fez menção de agarrar nos braços o que ninguém pode
agarrar, o que corria já entre as montanhas , a um tempo terrível e de
grande beleza, como flores que se alimentam de carne . Uma coisa de
que o sangue e os ossos são feitos , mas que eles mesmos não conse­
guem criar em altar algum nem por qualquer ferimento de guerra. Uma
coisa que não nos custa crer que seja capaz de cortar e moldar e esculpir
a forma escura do mundo , sem dúvida, pois se o vento o consegue , se a
chuva o consegue . Mas que não se pode agarrar, nunca se pode agarrar,
e não é flor alguma, mas é veloz , isso sim , e é uma caçadora, e o próprio
vento tem pavor dela e o mundo não a pode perder.
II

As iniciativas votadas ao fracasso dividem as vidas para todo o sem­


pre no antes e no depois . Ele levou a loba até ao cume das montanhas
no cepilho da sela e sepultou-a numa garganta altaneira, sob um montí­
culo de cascalho . Os lobinhos no ventre dela sentiram o frio a fechar-se
em volta deles e soltaram queixumes mudos na treva, e ele sepultou-os
a todos e empilhou-lhes as pedras por cima e conduziu o cavalo para
longe dali . Vagueou para o seio das montanhas . Talhou um arco a partir
de um ramo de azevinho , fez flechas com canas . Pensou em tornar-se
de novo a criança que nunca fora.
Percorreram as terras altas durante semanas a fio e foram ficando
magros e escaveirados , homem e cavalo , e o cavalo pastava na erva
rala de Inverno nas montanhas e mordiscava os líquenes das rochas , e o
rapaz caçou trutas com as suas flechas , trespassando-as ali paradas aci­
ma das suas sombras no leito frio de pedra dos pegos , e comeu-as e
comeu nopal verde e foi então que , num dia ventoso , ao atravessar uma
selada alta nas montanhas , um falcão passou diante do Sol e a sua som­
bra correu tão veloz na erva diante deles que fez o cavalo deter-se , tré­
mulo , e o rapaz ergueu os olhos para onde a ave rodava, lá bem no alto ,
e tirou o arco do ombro e prendeu uma flecha na corda e disparou-a e
ficou a vê-la subir, com o vento a fazer vibrar as penas enfiadas numa
ranhura da cana, e viu-a girar e descrever um arco , e o falcão a rodar em
círculo e depois a alvejar subitamente , com a flecha cravada no peito
claro .
O falcão rodou sobre si mesmo e deslizou para longe , levado pelo
vento , e desapareceu atrás do manto da serrania, tendo deixado cair uma
única pena. Ele cavalgou para ir em busca da ave , mas não a chegou a
encontrar. Encontrou uma gota solitária de sangue que secara nos pene­
dos e escurecera ao vento e nada mais . Desmontou e sentou-se no chão
A Travessia 1 27

ao lado do cavalo , onde o vento soprava, e fez um corte no pomo da


mão com a navalha e ficou a ver o sangue vagaroso a gotejar sobre a
pedra. Dois dias depois , parou o cavalo num promontório sobranceiro
ao rio B avispe , e o rio estava a correr às avessas . Ou isso ou o Sol esta­
va a pôr-se a leste , atrás dele . Montou o acampamento rudimentar atrás
de um renque de zimbros e esperou que a noite passasse para ver o que
o Sol faria ou o que faria o rio e na manhã seguinte , quando o dia rom­
peu sobre as montanhas distantes e através da ampla planura diante
dele , percebeu que tornara a atravessar as montanhas para onde o rio
corria novamente para norte , ao longo do flanco oriental das sierras .
Embrenhou-se ainda mais nas montanhas . Sentou-se numa árvore
que o vento derrubara, numa floresta montesinha de madroíios e freixos ,
e com a navalha cortou à medida um pedaço de corda enquanto o cava­
lo o olhava. Pôs-se de pé e enfiou a corda através das presilhas das
calças de ganga que lhe escorregavam pelas ancas abaixo e tornou a
fechar a navalha. Não é nada que se coma, disse ao cavalo .
Naquela região alpestre e selvagem deitava-se ao frio e nas trevas e
ficava à escuta do vento e observava as derradeiras brasas dispersas da
sua fogueira já moribundas e os ziguezagues vermelhos no seio dos
carvões incandescentes , nos pontos em que estes se quebravam ao longo
das suas quadrículas aleatórias . Como se , ao purgar-se a madeira, trans­
parecessem geometrias ocultas e as respectivas ordens que apenas po­
diam surgir totalmente reveladas , pois tal é o mundo , nas trevas e nas
cinzas . Não ouviu lobos . Andrajoso e meio morto de fome e com o ca­
valo desalentado , penetrou uma semana depois na aldeia mineira de El
Tigre .
Uma dúzia de casas dispostas sem nexo ao longo de uma encosta
sobranceira a um valezito de montanha . Não se via ninguém . Ele parou
o cavalo no meio da rua de lama , e o cavalo fitou soturnamente a povo­
ação , os toscos jacales de lama seca e paus com as suas portas de couro
de vaca. Ele picou o cavalo , e uma mulher surgiu na rua e acercou-se
dele e parou junto ao estribo e ergueu os olhos para o rosto de criança
sob o chapéu e perguntou se ele estava doente . Ele respondeu que não .
Que tinha fome , só isso . Ela disse-lhe para desmontar, e ele obedeceu e
fez deslizar o arco do ombro e pendurou-o do arção dianteiro e seguiu­
-a até à casa dela enquanto o cavalo caminhava atrás .
Sentou-se na cozinha , que se encontrava quase mergulhada na escu­
ridão , de tão abrigada que estava do sol , e comeu jrijoles de uma tigela
de barro com uma grande colher de folha-de-flandres esmaltada. A úni­
ca luz tombava de um buraco no tecto que fazia as vezes de chaminé , e
1 28 Cormac McCarthy

a mulher ajoelhou-se sob esse ponto junto de um brasero baixo de bar­


ro e voltou as tortillas num comal de barro antigo e rachado , enquanto
o fumo esparso trepava pela parede enegrecida e desaparecia lá no alto .
Ele ouvia galinhas a cacarejar no exterior, e , numa divisão ainda mais
escura, atrás de uma cortina feita de serapilheira cosida , uma pessoa
adormecida dormia. A casa cheirava a fumo e a gordura rançosa, e o
fumo possuía o odor vagamente antisséptico da madeira de pifíon . Ela
virou as tortillas com os dedos nus e pô-las num prato de barro e levou­
-lhas . Ele agradeceu-lhe e dobrou uma tortilla e mergulhou-a no feijão
e comeu .
De dónde v iene ? perguntou ela.
De los Estados Unidos .
De Tejas ?
Nuevo Mexico .
Qué lindo , disse ela.
Lo conoce ?
No .
Ela ficou a vê-lo comer.
Es minero ? quis saber.
Vaquero .
Ay, vaquero .
Quando ele terminou e rapou a tigela com o último bocado de tortilla ,
ela pegou na loiça e levou-a para o outro lado da divisão e pô-la dentro
de um balde . Ao regressar, sentou-se no banco feito com uma tábua
larga de madeira, do outro lado da mesa, e pôs-se a remirá-lo . Adónde
va ? indagou .
Ele não sabia. Lançou um olhar vago aos quatro cantos da sala. Pen­
durado da parede nua de lama seca com uma cavilha de madeira via-se
um calendário com uma estampa colorida de um Buick de 1 927 . Ao
lado do automóvel estava uma mulher de casaco de peles e turbante . Ele
disse que não sabia para onde ia. Ficaram sentados frente a frente . Ele
inclinou a cabeça para indicar a porta coberta pela cortina. Es su mari­
do ? perguntou .
Ela disse que não . Disse que era a irmã.
Ele assentiu com a cabeça. Tomou a lançar um olhar à divisão , que ,
de qualquer forma, o seu primeiro olhar exaurira já, e depois estendeu
o braço sobre o ombro e tirou o chapéu pendurado no remate do espal­
dar da cadeira atrás de si e empurrou a cadeira para trás sobre o chão de
argila batida e pôs-se de pé .
Muchísimas gracias , disse .
A Travessia 1 29

Clarita , chamou a mulher.


Não tirara os olhos dele , e ocorreu ao rapaz que ela talvez fosse um
bocadinho louca. Ela tomou a chamar. Voltou-se e olhou para a divisão
mergulhada na escuridão atrás da cortina, ergueu um dedo estendido .
Momentito , disse . Levantou-se e entrou na outra divisão . Ao cabo de
escassos minutos , tomou a aparecer. Arredou a serapilheira contra o
umbral da porta num gesto vagamente teatral . A mulher que estivera a
dormir transpôs o limiar e parou defronte dele , vestida com um roupão
de seda artificial cor-de-rosa cheio de nódoas . Olhou para ele e virou-se
e olhou para a irmã. Era talvez a mais nova, mas pareciam-se bastante .
Tomou a olhar para o rapaz . Ele continuava de pé , com o chapéu nas
mãos . A irmã permaneceu atrás dela no vão da porta, com a serapilheira
esgaçada e poeirenta puxada contra si de um modo que sugeria, talvez ,
que a aparição da mulher adormecida era uma coisa rara e transitória.
Ela própria não mais do que um arauto do bem futuro . A irmã adorme­
cida cingiu melhor o roupão em volta do corpo e estendeu o braço e
tocou no rosto do rapaz com uma mão . Em seguida, deu meia-volta e
tomou a cruzar o limiar da porta para não mais ser vista . O rapaz agra­
deceu à sua anfitriã e pôs o chapéu na cabeça e abriu a porta desengon­
çada de cabedal e saiu para o exterior, mergulhando na luz do Sol , onde
o cavalo o esperava.
Ao romper pela estrada onde não havia sulcos de rodas nem marcas
de cascos nem qualquer sinal de comércio , passou por dois homens
parados num portal que o chamaram e lhe fizeram sinai s . Ele tomara a
pendurar o arco ao ombro e pensou que a cavalgar assim armado com
os seus andrajos enegrecidos , escarranchado naquele cavalo esqueléti­
co , certamente constituía um espectáculo bastante triste ou ridículo ,
mas , quando remirou com mais atenção os que assim o atormentavam ,
pareceu-lhe que dificilmente teria pior aparência do que eles , por isso
prossegum .
Cruzou o valezito e cavalgou para oeste , embrenhando-se nas monta­
nhas . Não tinha maneira de saber há quanto tempo estava naquele país ,
mas , com tudo o que tinha visto naquelas paragens , bom ou mau , e em
que ia meditando enquanto cavalgava, sabia que já não temia o que quer
que ali se lhe deparasse . Nos dias seguintes viria a encontrar índios
selvagens nos confins das sierras a viver nas chozas e choupanas das
suas rancherías miseráveis e índios ainda mais selvagens que viviam
em cavernas , e é bem possível que todos eles o tivessem na conta de
louco , a avaliar pela consideração com que o tratavam . Deram-lhe de
comer, e as mulheres lavaram-lhe as roupas e coseram-lhas e remen-
1 30 Cormac McCarthy

daram-lhe as botas com uma sovela artesanal e os ligamentos da pata de


um falcão . Falavam uns com os outros na sua língua ou com ele no seu
espanhol macarrónico . Contaram-lhe que a maior parte dos seus jovens
tinha ido trabalhar nas minas ou nas cidades ou nas haciendas dos me­
xicanos, mas que eles não confiavam nos mexicanos . Mercadejavam
com eles nas aldeolas ao longo do rio e, por vezes, postavam-se na orla
exterior da luz e observavam-nos nas suas festividades , mas , à parte
isso , evitavam todos os contactos . Disseram que era hábito dos mexica­
nos culpá-los pelos crimes que cometiam entre si e que os mexicanos se
embriagavam e se matavam uns aos outros e depois mandavam solda­
dos para as montanhas para lhes dar caça. Quando ele lhes disse de
onde vinha , ficou surpreso ao verificar que eles também conheciam
essa terra, mas recusavam-se a falar acerca dela. Ninguém tentou trocar
de cavalo com ele . Ninguém lhe perguntou porque viera até ali . Avi­
saram-no apenas de que devia evitar a região dos yaquis , a oeste , porque
os yaquis o matariam . Em seguida, as mulheres embalaram para ele um
jantar feito com carne seca e coriácea ou machaca e milho torrado e
tortillas manchadas de fuligem, e um velho adiantou-se e dirigiu-se-lhe
num espanhol que ele mal conseguia entender, a falar com grande con­
vicção , de olhos fitos nos seus , e a agarrar-lhe a sela atrás e à frente , de
tal modo que o rapaz quase ficou sentado nos braços dele . Estava vesti­
do de modo bizarro e vistoso , e tinha as roupas bordadas com símbolos
que possuíam a aparência geométrica de instruções , talvez um jogo .
Usava jóias de jade e de prata e tinha o cabelo comprido e mais negro
do que a sua idade deixaria prever. Disse ao rapaz que , ainda que ele
fosse huérfano , devia pôr fim às suas deambulações e criar para si um
lugar no mundo , porque vaguear daquela maneira acabaria por se tornar
para ele uma paixão , e esta paixão levá-lo-ia a alhear-se dos homens e ,
n o fim de contas , de si mesmo . Disse que s ó podíamos conhecer o mun­
do tal como ele existia nos corações dos homens . É que embora o mun­
do parecesse um lugar que continha os homens , era na realidade um
lugar contido dentro deles , e, portanto , para o conhecer, tínhamos de
examinar os homens e aprender a conhecer-lhes o coração , e para fazer
isto era preciso viver na companhia dos homens e não somente passar
entre eles . Disse que , embora o huérfano talvez sentisse que o seu lugar
já não era entre os homens , tinha de repelir de si este sentimento , porque
ele continha em si próprio uma grandeza de espírito que os homens
podiam ver, e acrescentou que os homens gostariam de o conhecer e que
o mundo iria precisar dele assim como ele precisava do mundo , pois
eram um só . Por fim , disse que , apesar de isto ser em si uma coisa boa,
A Travessia 131

tal como todas as coisas boas era também um perigo . Em seguida, reti­
rou as mãos da sela do rapaz e recuou um passo e ali ficou . O rapaz
agradeceu-lhe aquelas palavras , mas disse que na realidade não era um
órfão e depois agradeceu às mulheres ali paradas e voltou o cavalo e
afastou-se . Eles ficaram a vê-lo partir. Ao passar pelas últimas choupa­
nas de ramagens , voltou-se e olhou para trás , e, no momento em que o
fez , o velho falou-lhe em altos brados . Eres! exclamou . Eres huérfano!
Mas o rapaz limitou-se a levantar uma mão e tocou no chapéu e caval­
gou em frente .
Ao cabo de dois dias , foi ter a uma estrada de carroças que cruzava
as sierras para leste e para oeste . As florestas estavam verdes do azevi­
nho e do madrofío , a estrada parecia pouco usada. Num dia inteiro de
viagem não encontrou vivalma. Cruzou uma garganta no cume onde o
caminho era tão estreito que as rochas exibiam velhas cicatrizes dos
cubos das rodas de carroças , e abaixo da garganta viam-se montículos
funerários de pedra aqui e além , as mojoneras de muerte daquelas para­
gens onde os viajantes tinham sido mortos pelos índios anos antes .
Aquela região parecia despovoada e estéril e ele não viu caça nem viu
aves e nada havia por ali excepto o vento e o silêncio .
Chegado à escarpa oriental , desmontou e conduziu o cavalo ao longo
de uma saliência rochosa de pedra cinzenta. Os zimbros raquíticos que
cresciam junto do rebordo inclinavam-se , vergados por um vento que há
muito passara. Ao longo da face das escarpas de pedra viam-se vetustos
pictogramas representando homens e animais e sóis e luas , bem como
outras representações que pareciam não ter referente algum no mundo ,
ainda que talvez outrora tivessem tido . Ele sentou-se ao sol e espraiou a
vista pela paisagem a leste , a ampla barranca do Bavispe e a planura de
Carretas mais além, que em tempos fora o fundo de um oceano , e os
pequenos campos de cultivo parcelados e o milho novo a verdejar nas
terras antigas de Chichimeca onde os padres tinham passado e os solda­
dos tinham passado , e as missões esfareladas em lama e as cadeias de
montanhas em volta da planura, cordilheira sobre cordilheira em tons
pálidos de azul onde o terreno se estendia, esfacelado por garras , para
norte e para sul , desfiladeiro e cordilheira, sierra e barranca , tudo à es­
pera, como coisas vistas num sonho , que o mundo nascesse , que o mun­
do passasse . Viu um único abutre suspenso , imóvel, num qualquer vector
altaneiro que o vento escolhera para ele . Viu o fumo de uma locomotiva
a passar lentamente para sul sobre a planície , a sessenta quilómetros dali .
Tirou de um bolso esfarrapado um punhado de sementes de pifíon e
espalhou-as sobre uma rocha e partiu-as com uma pedra pequena. Ga-
1 32 Cormac McCarthy

nhara o hábito de falar com o cavalo e falou com ele agora, enquanto
fazia estalar os pinhões , e quando os libertou das suas cascas recolheu­
-os na concha da mão e estendeu-os . O cavalo olhou para ele e olhou
para as sementes de pifion e avançou dois passos arrastados e colou-lhe
à palma da mão a boca semelhante a borracha.
Ele limpou a baba da mão contra a perna das calças e sentou-se a
partir e a comer o resto das sementes enquanto o cavalo observava. Em
seguida, pôs-se de pé e caminhou até à borda da escarpa e atirou a pe­
dra . A pedra voou a rodopiar e caiu , caiu e desapareceu no silêncio . Ele
ficou à escuta sem se mexer. Num ponto muito abaixo de si soou o ténue
estralejar da pedra contra a pedra. Ele voltou para trás e estendeu-se
sobre a saliência de rocha quente e aninhou a cabeça na curva do braço
e fitou a escuridão da copa do chapéu . O seu lar parecia-lhe agora re­
moto e semelhante a um sonho . Havia momentos em que não conseguia
trazer à memória o rosto do pai .
Dormiu e , enquanto dormia, sonhou com homens bravios que vinham
ao seu encontro com mocas e que tinham os dentes limados em pontas
aguçadas e que se reuniram em volta dele e o avisaram do que iam fazer,
mesmo .�ntes de meterem mãos à obra . Acordou e ficou à escuta. Como
se eles ainda ali estivessem , quiçá, no limiar da escuridão do seu cha­
péu . Agachados entre os penedos . A talhar na pedra com pedras aqueles
simulacros do mundo vivo que escolhiam fazer perdurar, com o mundo
morto entre as mãos . Ele tirou o chapéu e pô-lo sobre o peito e olhou
para o céu azul . Soergueu-se e procurou o cavalo com os olhos , mas o
cavalo estava somente a um ou dois passos , ali parado à espera dele .
Pôs-se de pé e moveu os ombros para sacudir a rigidez e pôs o chapéu
na cabeça e apanhou do chão as rédeas que arrastavam e percorreu a
pata dianteira do cavalo com a mão até o animal erguer a pata e aninhou
o casco entre os joelhos e examinou-o . O cavalo há muito que perdera
as ferraduras , e os cascos estavam crescidos e espalmados , e ele tirou do
bolso a navalha e aparou a taipa do casco onde os bordos se encontra­
vam fissurados e depois soltou a pata do cavalo e caminhou em volta do
animal a inspeccionar e a aparar os outros cascos , um por um . O roçagar
constante das moitas e da verdura nas montanhas dissipara todos os
vestígios de odores do estábulo , e o cavalo exalava agora um cheiro
quente a terra. Tinha cascos escuros com grossas muralhas e nas veias
corria-lhe sangue de grullo suficiente para fazer dele um cavalo de
montanha, tanto por conformação como por temperamento , e, como o
rapaz crescera em lugares onde os comentários acerca de cavalos eram
mais ou menos ininterruptas , sabia que o sangue que determina a forma
A Travessia 1 33

do jarrete ou a largura da fronte determina também um ser interior com


um certo carácter e não outro , e, quanto mais selvagem a vida de ambos
nas montanhas se tornava, mais ele sentia o cavalo a travar uma guerra
subtil contra si mesmo . Não lhe parecia que o cavalo o fosse abandonar,
mas estava certo de que o cavalo já pensara nessa possibilidade . Aparou
o último casco traseiro e conduziu o animal de regresso ao trilho estrei­
to e montou e deu meia-volta e começou a descer ao encontro da gar­
ganta.
A estrada descia a face de granito da sierra como um cabelo de reló­
gio . Ele espantava-se de que carroças tivessem conseguido transpor
aqueles ziguezagues apertados . Havia desmoronamentos ao longo dos
bordos da estrada onde ele desmontou e conduziu o cavalo à brida e
havia penedos caídos na estrada que nenhum homem conseguiria remo­
ver. O caminho descia dos pinhais através de carvalhos e zimbros . Um
terreno bravio e revolto . Por todo o lado o manancial verde a invadir as
barrancas . À luz do crepúsculo, um verde desmaiado e trémulo . A des­
cida levou-lhe umas sete horas , as últimas na escuridão .
Dormiu essa noite num troço de leito seco , sobre a areia ribeirinha ,
com manchas densas de canas e de salgueiros à sua volta, e , na manhã
seguinte , cavalgou para norte junto ao curso do rio até chegar a um
vau . Encalhadas na planície vermelha de aluvião , na outra margem do
rio , viam-se as ruínas de uma povoação a afundar-se na lama de onde
fora erguida . Uma única nuvem de fumo elevava-se no ar azul . Ele
meteu o cavalo no vau e parou para deixar o animal beber e debruçou­
-se na sela e recolheu na mão uma concha de água e passou-a pelo
rosto e recolheu outra para beber. A água era fria e límpida. A montan­
te , andorinhões ou andorinhas voavam em círculos e alvejavam a rasar
a água, e o sol da manhã aquecia-lhe o rosto . Cravou os tacões das
botas nos flancos do cavalo , e o cavalo ergueu a boca gotejante do rio
e caminhou devagar pela água até ao seio do vau . A meio do rio , ele
tornou a deter-se e retirou o arco do ombro e deixou que a água o le­
vasse . O arco rodopiou e deu saltos nos rápidos e afastou-se a boiar
para dentro do pego , mais abaixo . Um crescente de madeira pálida, a
rodar, levado para cá e para lá, perdido no sol que incidia na água.
Legado de um qualquer arqueiro afogado , músico , fazedor de fogo . Ele
rompeu pelo vau e trepou por entre os salgueiros e o carrizal da mar­
gem e penetrou na povoação .
A maior parte dos edifícios ainda de pé encontrava-se no outro extre­
mo da aldeia, e foi na direcção destes que ele cavalgou . Passou pelos
destroços de uma antiga carruagem meio esborrachada num zaguán
1 34 Cormac McCarthy

cujas portas tinham desabado para o interior. Passou por um horno de


lama seca num quintal , de cujo interior um qualquer animal o observa­
va, e passou pelas ruínas de uma enorme igreja de adobe cujas traves do
tecto jaziam tombadas nos destroços . O homem parado à porta nas tra­
seiras da igreja tinha a pele mais clara do que ele próprio e tinha cabelo
ruivo e olhos azul-claros e falou com ele em alta voz , primeiro em es­
panhol e depois em inglês . Disse-lhe para descavalgar e para entrar.
Ele deixou o cavalo à porta da igreja e seguiu o homem para o interior
de uma pequena sala onde havia lume a arder num fogão artesanal de
chapa de ferro . A divisão continha uma pequena cama ou catre e uma
comprida mesa de pinho com pernas torneadas e várias cadeiras com
espaldar de travessas , semelhantes às que os menonistas daquela região
fabricavam . Um certo número de gatos das mais variadas cores jazia
deitado pela sala. O homem fez um gesto a indicar vagamente os gatos ,
como se fosse necessário desculpá-los , de certa maneira, e depois ges­
ticulou ao rapaz para que se sentasse numa cadeira . O rapaz soltou a
manta que lhe envolvia os ombros e ficou parado , a segurá-la. A divisão
estava muito quente , e , contudo , o homem debruçara-se e abrira a porta
do fogão e afadigava-se a alimentá-lo com mais lenha. Em cima do fo­
gão via-se uma sertã de ferro e uma chaleira e alguns tachos enegreci­
dos , juntamente com um bule de prata com patas de grifo cheio de
fundas amolgadelas e já sem lustro que contrastava bizarramente com o
resto dos utensílios . Ele endireitou-se e fechou a porta do fogão com o
pé e ergueu o braço e pegou em duas chávenas e dois pires de porcelana
e pousou-os na mesa. Um gato levantou-se e caminhou pela mesa fora
e olhou para dentro de cada uma das chávenas , primeiro uma, depois a
outra, e depois sentou-se . O homem trouxe o bule do fogão e encheu as
chávenas e tomou a pôr o bule no mesmo lugar e olhou para o rapaz .
Eres puros huesos , disse .
Tengo miedo es verdad.
Por favor. Não faças cerimónia. Queres uns ovos?
Era capaz de comer uns ovos , sim .
Quantos vais comer?
Como três .
Não há pão .
Como quatro .
Tens de te sentar.
Sim, senhor.
Ele pegou num pequeno balde esmaltado e saiu por uma porta baixa.
O rapaz puxou uma cadeira e sentou-se . Dobrou a manta às três panca-
A Travessia 1 35

das e pousou-a na cadeira a seu lado e pegou na chávena mais perto de


si e beberricou o café . Não era café genuíno . Ele não sabia o que era.
Percorreu a divisão com o olhar. Os gatos observavam-no . Ao fim de
um certo tempo , o homem regressou com ovos a rolar pelo fundo do
balde . Pegou na frigideira e ergueu-a pelo cabo e examinou-lhe o inte­
rior como quem remira um espelho negro e depois tomou a pousá-la e
verteu ali banha com uma colher, tirando-a de um boião de barro . Ficou
a ver a gordura derreter e depois partiu os ovos para dentro da frigidei­
ra e mexeu-os com a mesma colher. Quatro ovos , disse .
Sim , senhor.
O homem voltou-se e olhou para ele e depois tomou a voltar-se para
a sua tarefa. Ocorreu ao rapaz que o outro não estivera a falar com ele .
Quando os ovos ficaram prontos , o homem tirou um prato da prateleira
e despejou os ovos lá para dentro e colocou um garfo enegrecido na
borda do prato e pousou-o na mesa, diante do rapaz . Serviu-lhe mais
café e tomou a pôr o bule no fogão e sentou-se do outro lado da mesa
para o ver comer.
Estás perdido , disse .
O rapaz deteve-se com uma garfada de ovos na mão e meditou neste
comentário. Não me parece , disse .
O último homem que aqui veio estava doente . Era um homem doen-
te .
Quando foi isso?
O homem fez um gesto vago no ar com uma mão .
O que é que lhe aconteceu? indagou o rapaz .
Morreu .
O rapaz continuou a comer. Eu cá não 'tou doente , disse .
Ele está sepultado no adro da igreja.
O rapaz ia comendo . Eu não 'tou doente , repetiu , e não ' tou perdido .
Foi o primeiro a ser ali sepultado desde há muitos anos , deixa que te
diga.
Quantos anos?
Não sei .
E porque é que ele veio até aqui?
Era um mineiro das montanhas . Um barretero . Adoeceu e então veio
até aqui . Mas era demasiado tarde . Já ninguém lhe podia valer.
Quantas mais pessoas vivem aqui?
Ninguém . Sou só eu .
Quer dizer que você foi a única pessoa que tentou?
Que tentou o quê?
1 36 Cormac McCarthy

Valer-lhe .
Sim.
O rapaz ergueu o rosto para o homem. Continuou a comer. Que dia é
hoje? perguntou .
É domingo .
Eu queria saber que dia do mês .
Não sei .
E sabe em que mês estamos?
Não .
Então como é que sabe que hoje é domingo .
Porque é domingo de sete em sete dias .
O rapaz continuou a comer.
Eu sou mórmon . Ou era. Nasci mórmon .
Ele não sabia ao certo o que era um mórmon . Olhou para a divisão .
Olhou para os gatos .
Eles vieram para cá há muitos anos . Mil e oitocentos e noventa e seis .
Do lltah . Vieram quando foi incorporado nos Estados Unidos . O Utah .
Eu era mórmon . Depois converti-me à fé da Igreja. Depois passei a ser
nem sei bem o quê . Depois passei a ser eu .
E o que é que faz aqui?
Sou o guardião . O zelador.
E zela por quê?
Pela igreja.
'Tá quase em ruínas .
Sim. Claro . Desabou no terremoto .
E o senhor já aqui ' tava nessa altura?
Não tinha nascido .
Quando foi?
Em mil e oitocentos e oitenta e sete .
O rapaz acabou os ovos e pousou o garfo no prato . Olhou para o ho-
mem .
H á quanto tempo vive você aqui?
Faz agora seis anos .
E a igreja já ' tava assim quando pràqui veio .
Sim.
Ele ergueu a chávena e escorropichou o conteúdo e tomou a pousá-la
no pires . Agradeço-lhe o pequeno-almoço , disse .
Não tens de quê .
Ele parecia pronto para se levantar e partir. O homem enfiou a mão
no bolso da camisa e tirou de lá tabaco e uma pequena bolsa de pano
A Travessia 1 37

contendo papéis cortados de camisas de milho . Um dos gatos deitados


no catre pôs-se de pé e espreguiçou-se , patas traseiras e patas da frente ,
saltou silenciosamente para cima da mesa e acercou-se do prato do ra­
paz e farejou-o e agachou-se sobre os cotovelos dobrados e começou a
mordiscar delicadamente pequenos restos de ovo dos dentes do garfo .
O homem derramara pedacinhos de tabaco sobre uma mortalha e pôs-se
a enrolar o cigarro , movendo os dedos para trás e para diante . Empurrou
os adereços sobre a mesa, na direcção do rapaz .
Obrigado , disse este . Nunca ganhei esse hábito .
O homem assentiu com a cabeça e retorceu ao canto da boca o cigar­
ro que acabara de fazer e levantou-se e foi até ao fogão . Tirou uma
comprida lasca de madeira de uma lata cheia delas ali pousada e abriu
a porta do fogão e debruçou-se e pegou fogo à lasca e usou-a para acen­
der o cigarro . Em seguida, assoprou para apagar a chama da lasca e
tomou a metê-la na lata e fechou a porta do fogão e voltou para a mesa
com o bule e encheu de novo a chávena do rapaz . A sua própria cháve­
na permanecia sobre o tampo , negra e fria e intacta. Tomou a pôr o
bule no fogão e contornou a mesa e sentou-se como antes . O gato
ergueu-se e viu-se ao espelho na porcelana branca do prato e afastou-se
e sentou-se e bocejou e começou a lavar-se .
E porque é que veio pràqui? perguntou o rapaz .
E tu?
Diga?
Porque é que vieste para aqui?
Eu não vim pràqui . 'Tou só de passagem .
O homem puxou uma fumaça do cigarro . Também eu , disse . Comigo
é o mesmo .
'Tá de passagem há seis anos?
O homem fez um pequeno gesto brusco com uma mão . Vim para aqui
como herético , a fugir de uma vida anterior. Estava em fuga.
Veio até aqui pra se esconder?
Vim por causa da devastação .
Diga?
A devastação . Do terremoto .
'Tou a ver.
Andava em busca de provas da mão de Deus no mundo . Tinha-me
convencido de que se tratava de um poder eivado de ira e pensei que
os homens não tinham examinado suficientemente os milagres da des­
truição . Os desastres de uma certa magnitude . Achei que talvez hou­
vesse provas que tivessem sido ignoradas . Achei que Ele não se daria
1 38 Connac McCarthy

ao incómodo de apagar todas as impressões digitai s . O meu desejo de


saber era muito forte . Pensei até que deixar alguns indícios talvez
O divertisse .
Que género de indícios?
Não sei . Qualquer coisa. Qualquer coisa inesperada. Qualquer coisa
fora do lugar. Qualquer coisa imprecisa ou defeituosa . Um rasto na ter­
ra. Uma bugiganga caída. Não uma causa. Isso te posso eu garantir. Não
uma causa. As causas apenas se multiplicam , nada mais . Conduzem ao
caos . O que eu queria era conhecer os desígnios dele . Não conseguia
conceber que Ele destruísse a sua própria igreja sem razão .
Acha que as pessoas que aqui viviam talvez tenham feito algum mal?
O homem fumou com expressão pensativa. Pareceu-me possível ,
sim . Possível . Como nas cidades da planície . Pensei que talvez houves­
se provas de qualquer coisa abominável , suficientemente abominável
para O levar a erguer a mão contra este lugar. Qualquer coisa nos es­
combros . Na terra. Debaixo das vigas . Qualquer coisa de sombrio .
Quem s11beria dizer?
E o que é que encontrou?
Nada. Uma boneca . Um prato . Um osso .
Curvou-se para diante e apagou o cigarro numa tigela de barro sobre
a mesa.
Estou aqui por causa de um certo homem. Vim para lhe reconstituir
os passos . Talvez para ver se havia alguma rota alternativa. O que aqui
havia para se encontrar não era uma coisa. As coisas separadas das res­
pectivas histórias não têm significado algum . S ão apenas formas . De
um certo tamanho e de uma certa cor. De um certo peso . Quando o sig­
nificado delas se perdeu aos nossos olhos , já nem sequer têm nome . A
história, pelo contrário , nunca se pode perder do seu lugar no mundo ,
pois ela própria constitui esse lugar. E era isso que aqui se podia encon­
trar. O corrido . A fábula. E, tal como todos os corridos , bem vistas as
coisas contava uma só história, pois há apenas uma história para se
contar.
Os gatos mudavam de posição e agitavam-se , o lume crepitava no
fogão . Lá fora, na aldeia abandonada, o mais profundo silêncio .
E que história é essa? indagou o rapaz .
Na cidade de Caborca, junto ao rio Altar, vivia um homem que já era
velho . Nascera em Caborca e em Caborca morreu . Contudo , viveu al­
gum tempo aqui, nesta povoação . Em Huisiachepic .
O que é que Caborca sabe de Huisiachepic , Huisiachepic de Cabor­
ca? São mundos diferentes , tens de concordar. No entanto , existe apenas
A Travessia 1 39

um mundo , e tudo o que é imaginável é necessário para o constituir.


Pois também este mundo , que nos parece uma coisa feita de pedras e
flores e sangue , não é uma coisa mas sim uma fábula. E tudo o que
nele existe é uma fábula, e cada fábula a soma de todas as fábulas me­
nores , e , todavia, também estas são a mesmíssima fábula e contêm
igualmente tudo o resto no seu seio . Portanto , tudo é necessário . Todas
as coisas , mesmo as mais insignificantes . Ei s a lição mais difícil . Não
podemos abdicar de nada. Nada podemos desprezar. Porque as costuras
estão ocultas aos nossos olhos , compreendes . As ensamblagens . O mo­
do como o mundo está construído . Não temos maneira de saber que
parte poderíamos retirar. Que parte omitir. Não temos maneira de adivi­
nhar o que se iria aguentar de pé e o que talvez desabasse . E as costuras
que estão ocultas aos nossos olhos encontram-se , como é óbvio , na fá­
bula em si , e a fábula não tem morada nem lugar onde resida, excepto
no acto de a contarmos , e é aí que ela vive e tem o seu lar e portanto
nunca podemos dá-la por terminada. O acto de a contar nunca tem fim.
E quer estejamos em Caborca, quer em Huisiachepic , quer noutro lugar
qualquer com outro nome qualquer ou sem nome algum , torno a afirmar
que todas as fábulas são uma só . Se atentarmos bem , todas as fábulas
são uma só .
O rapaz mergulhou o olhar no disco escuro de líquido na sua cháve­
na, o líquido que não era café . Olhou para o homem e olhou para os
gatos . Pareciam estar a dormir, do primeiro ao último , e ocorreu-lhe que
a voz do homem não era para eles novidade e que ele devia falar sozi­
nho na ausência de qualquer ouvido providencial vindo do mundo exte­
rior. Ou então falava com os gatos .
Então e o homem que aqui vivia? perguntou .
Sim. Os pais desse homem foram mortos por um tiro de canhão den­
tro da igreja de Caborca, onde se tinham refugiado com outros para se
proteger dos fora-da-lei americanos que invadiram esta terra. Talvez
saibas alguma coisa acerca da história deste país . Quando removeram
as pedras e o entulho , o rapaz jazia nos braços da mãe morta. O pai do
rapaz jazia ali perto e tentou falar. Soergueram-no . Correu-lhe sangue
da boca. Curvaram-se para ouvir o que ele teria para dizer, mas ele nada
disse . Tinha o peito esmagado e exalava sangue ao respirar e levantou
uma mão como que a dizer adeus e depois morreu .
Trouxeram o rapaz para esta aldeia. De Caborca pouco se recordava.
Recordava o pai . Certas coisas . Recordava o pai a erguê-lo nos braços
para ver o espectáculo de marionetas na alameda . Da mãe recordava-se
ainda menos . Talvez nada. Os pormenores da sua vida são estranhos
1 40 Cormac McCarthy

pormenores . É uma história de desdita . Ou assim parece , à primeira


vista. O fim ainda está por contar.
Aqui ele se fez homem. Nesta aldeia. Aqui arranjou mulher e casou
e, quando a vontade de Deus assim o dispôs , também ele foi abençoado
com um filho .
Na primeira semana de Maio do ano de mil e oitocentos e oitenta e
sete , este homem pega no filho e enceta uma viagem . Tenciona ir até
Bavispe e ali deixar o filho a cargo de um tio que é também o padrino
do rapaz . De Bavispe continuará até Batopite , onde tratará da venda do
açúcar de certas estancias a sul . Irá passar a noite em Batopite . Eis uma
viagem em que eu tenho pensado muitas vezes . Esta viagem e este ho­
mem . É jovem . Talvez nem trinta anos tenha. Monta uma mula. O rapaz
monta no cepilho da sela, diante dele . É Primavera, e as flores silvestres
desabrocham nos prados ao longo do rio . Ele prometeu regressar com
um presente para a jovem mulher. Vê-a ali parada. Ela acena-lhe com a
mão à despedida quando ele parte . Ele não possui outro retrato dela,
para além do que leva no coração . Pensa nisto . Talvez ela esteja a cho­
rar. Ali parada, a vê-lo desaparecer da vista . Parada na própria sombra
desta igreja, que está condenada a ruir. A vida é uma memória, depois
não é nada. Toda a lei está escrita numa semente .
O homem arqueara os dedos acima da mesa para situar a cena. Passou
uma mão da esquerda para a direita para mostrar onde as coisas tinham
estado e qual fora certamente a posição do Sol e do cavaleiro ou da
mulher ali parada. Como se quisesse moldar no ar do presente os espa­
ços onde tais coisas tinham estado .
Em Bavispe havia uma feira. Um circo itinerante . E o homem ergueu
o filho ao alto sob as lanternas de papel , tal como o seu pai fizera antes
dele , para que o garoto pudesse ver. Um palhaço , um mágico , um ho­
mem que exibia serpentes nas mãos nuas . Na manhã seguinte , partiu
sozinho para Batopite , tal como já se disse , deixando ali o filho. E ali
em Bavispe a criança morreu , esmagada no terremoto . O padrino segu­
rou o rapaz nos braços e chorou . O terremoto poupou a povoação de
B atopite . Ainda hoje se pode ver a enorme fenda na face da montanha,
do outro lado do rio , como uma enorme gargalhada. Foi tudo o que se
soube do desastre em Batopite . Não chegaram lá outras novas . Ao re­
gressar a Bavispe , no dia seguinte , o homem encontrou um viajante a pé
que lhe contou o sucedido . Recusando-se a acreditar naquelas palavras ,
picou a mula, e , ao chegar a Bavispe , tudo estava em ruínas , tal como o
viajante lhe contara, e a morte estava por toda a parte em grande abun­
dância.
A Travessia 141

Entrou n a povoação já apavorado com o que iria encontrar. Ouviu


tiros . Viu fugir cães que tinham estado a devorar os cadáveres nos es­
combros , e os cães passaram por ele , lépidos , e atrás surgiram homens
armados que pararam no meio da rua, aos gritos . Na alameda , os mortos
jaziam sobre esteiras de juncos ribeirinhos , e velhas vestidas de negro
caminhavam para trás e para diante entre as fileiras , a agitar frondes
verdes para enxotar as moscas . O padrino veio ter com ele e chorou ,
curvado junto ao estribo da mula, e não foi capaz de falar, apenas tomou
as rédeas nas mãos e o conduziu , a soluçar. Através da alameda onde
jaziam os mortos , comerciantes e lavradores e as mulheres de comer­
ciantes e lavradores . Rapariguinhas da escola mortas . Estendidas sobre
juncos na alameda de Bavispe . Um cão morto com um trajo carnavales­
co . Um palhaço morto . E o mais novo de todos era o filho dele , esma­
gado e sem vida. Ele desmontou e apertou ao peito o corpo esfacelado
e coberto de sangue do filho . Isto no ano de mil e oitocentos e oitenta e
sete .
Que pensamentos seriam os seus? Quem não lhe consegue sentir a
angústia? Regressa a Huisiachepic , transportando na garupa da mula o
cadáver do menino com que Deus abençoara o seu lar. À espera dele em
Huisiachepic está a mãe do menino , e é aquele o presente que ele lhe
leva.
Um homem assim é como alguém que , ao acordar de um sonho de
amargura, dá por si numa tristeza ainda maior. Tudo o que ama se con­
verteu agora num tormento para si . Puxaram o pino do eixo do universo .
Tudo aquilo de que desviamos o olhar ameaça fugir para longe . Um tal
homem está perdido para nós . Move-se e fala. Mas ele próprio se esba­
teu agora mais do que a mais ténue sombra entre todas as coisas que
contempla. Não há maneira possível de o retratar. A marca mais insig­
nificante sobre a página exagera a sua presença.
Quem procuraria a companhia de um tal homem? Aquilo que fala em
nós e nos liga uns aos outros e está para além das nossas palavras ou
para além do erguer ou do menear de uma mão para dizer que é isto que
me vai no coração , ou isto . Isso perdera-se nele . Assim .
O rapaz observava-o . O homem tinha os olhos a cintilar e colocara
uma mão com a palma para cima sobre a mesa, como se dentro dela
estivesse o que se perdera. Fechou o punho em volta dessa coisa.
Perdemo-lo de vista durante alguns anos . Ele abandona a mulher nas
ruínas desta povoação . Muitos amigos morreram . Da mulher nada
mais se sabe . Ele está na Guatemala. Está em Trinidad . Como poderia
ele regressar? Caso tivesse preservado somente uma parcela do funeral
1 42 Cormac McCarthy

da sua vida, talvez então não houvesse necessidade de regressar com


flores e amargura. Todavia, tendo em conta o modo como tudo se pas­
sara , não restava dele parcela alguma que o pudesse fazer. Compreen­
des?
Os homens que sobreviveram a grandes desastres sentem muitas ve­
zes que a sua salvação foi obra do destino . Vêem ali a mão da Providên­
cia. Este homem viu de novo em si o que talvez tivesse esquecido . Que
há muito tempo fora eleito para fugir ao destino comum dos homens .
Pois o que agora se lhe pedia era que se reconciliasse com o facto de ter
sido chamado por duas vezes do seio das cinzas , do seio do pó e dos
escombros . Para quê? Não devemos concluir que tais escolhas divinas
são felizes , porque o não são . Ao ser poupado à morte , ele deu por si
separado tanto dos seus ancestrais como da sua posteridade . Não passa­
va de uma versão abreviada de um ser. As suas pretensões à vida co­
mum dos homens tornaram-se ténues , impalpáveis . Era um tronco sem
raízes nem ramos . Talvez houvesse , mesmo então , um momento em que
ele teria ido até à igreja para rezar. Mas a igreja jazia em ruínas , arrasa­
da. E no coro ensombrado dentro dele o solo também se movera , tam­
bém abrira rachas . Também ali havia ruínas . Uma devastação rasgara­
-se-lhe na alma, e talvez ele visse com nova clarividência como , à
�é melhança da igreja, ele próprio não passava de um corpo de barro , e
talvez pensasse que a igreja não tornaria a ser reconstruída, pois execu­
tar tal trabalho exige , antes de mais nada, que Deus resida nos corações
dos homens , já que é apenas aí que a igreja possui existência genuína e ,
quando aí sucumbe , nenhum poder a consegue reconstruir. Ele tornou­
-se um herético . Assim .
Depois de muitas deambulações de juventude , este homem apareceu
por fim na capital e ali trabalhou durante alguns anos . Era portador de
mensagens . Transportava uma sacola de cabedal e lona fechada com um
cadeado . Não tinha maneira de saber qual o conteúdo das mensagens ,
nem alimentava qualquer curiosidade a esse respeito . A s fachadas de
pedra dos edifícios entre os quais deambulava nas suas idas e vindas
quotidianas estavam esburacadas com as marcas antigas de disparos .
Nos lugares mais altos , fora do alcance das pessoas , subsistiam , besun­
tados aqui e além, medalhões delgados e escuros de chumbo , vestígios
dos projécteis das metralhadoras outrora colocadas nas ruas . As salas
onde ele ficava à espera eram salas de onde homens de altos cargos ti­
nham sido arrastados para enfrentar a execução . Será necessário dizer
que ele era um homem sem convicções políticas? Era um simples men­
sageiro . Não tinha fé no poder dos homens para agirem com sensatez
A Travessia 1 43

em seu próprio benefício . Era sua opinião , pelo contrário , que todos os
actos em breve se esquivavam à influência do seu propagador, para logo
serem arrastados numa onda tonitruante de consequências imprevisí­
vei s . Parecia-lhe que no mundo havia uma outra hierarquia de priorida­
des , uma outra ordem, e que era esta potência que tinha entre mãos toda
e qualquer petição de que ele pudesse ser signatário . Entretanto , ia es­
perando um chamamento , sem que soubesse qual a missão que lhe iria
ser confiada.
O homem recostou-se na cadeira , ergueu o rosto para o rapaz e sorriu.
Não me interpretes mal , disse . Os acontecimentos do mundo não podem
ter uma vida separada do próprio mundo . E, todavia, o mundo em si não
pode ter das coisas uma visão temporal . É impossível o mundo ter mo­
tivos para favorecer certas iniciativas ao invés de outras . A passagem
dos exércitos e a passagem das areias no deserto são uma e a mesma
coisa. Não há preferência, compreendes . Como poderia haver? A mando
de quem? Este homem não deixou de acreditar em Deus . Nem sequer
passou a ter uma perspectiva moderna acerca de Deus . Havia Deus e
havia o mundo . Ele sabia que o mundo acabaria por o esquecer, mas que
Deus não o podia esquecer. E, no entanto , era precisamente isso que ele
desejava.
É fácil de ver que nada, à parte a mágoa, poderia levar um homem a
adoptar uma tal visão das coisas . E , contudo , uma mágoa que não tem
remédio não é mágoa. É uma irmã sombria a viajar sob a máscara da
mágoa. Os homens não viram as costas a Deus com essa facilidade ,
percebes . Não com essa facilidade . Lá bem fundo , cada homem tem a
percepção de que um qualquer ente sabe da sua existência. Esse ente
sabe , e é impossível fugir-lhe e não nos podemos esconder dele . Imagi­
nar outra coisa é imaginar o indizível . Nunca este homem deixou de
acreditar em Deus . Não . Antes começou a acreditar em coisas horrendas
acerca d ' Ele .
Ele vive agora da sua pensão na Cidade do México . Não tem amigos .
De dia senta-se no parque . A própria terra debaixo dos seus pés foi adu­
bada com o sangue dos antigos . Ele vê passar os transeuntes . Acabou
por se convencer de que os fitos e as motivações com que eles imagi­
nam investidos os seus movimentos não passam , na realidade , de um
meio para os descrever. Parece-lhe que os movimentos deles estão na
verdade subordinados a movimentos mais amplos , em padrões que eles
desconhecem, e estes, por sua vez , subordinam-se a outros . Estas refle­
xões não lhe proporcionam conforto algum , garanto-te . Ele vê o mundo
a escapar-se-lhe entre os dedos . Em torno de si um colossal vazio sem
1 44 Cormac McCarthy

eco . Foi então que ele começou a rezar. Sem qualquer motivo puro para
isso , talvez . Mas , no fim de contas , que aparência teria um tal motivo?
Será possível convencermos Deus com blandícias? Será possível supli­
carmos-Lhe ou pedirmos-Lhe que compreenda a sensatez da nossa ar­
gumentação? Poderá uma criatura que é obra da sua própria mão fazer
alguma coisa que Lhe agrade mais do que se tivesse agido de m::.>do
diverso? Será possível surpreendê-Lo? Lá no íntimo do seu coração ,
este homem já começara a maquinar contra Deu s , embora ainda o não
soubesse . Não o saberia até começar a sonhar com Ele .
Quem consegue sonhar com Deus? Este homem sonhava. Nos seus
sonhos , Deus estava muito atarefado . Quando Lhe falavam, não respon­
dia. Quando Lhe lançavam gritos , não ouvia. O homem via-O curvado
sobre a sua labuta. Como que visto através de uma lupa. Sentado somen­
te à luz da sua própria presença. A tecer o mundo . Nas suas mãos o mun­
do brotava do nada e nas suas mãos o mundo desaparecia novamente no
nada. Eternamente . Eternamente . Assim. Eis ali um Deus digno de aten­
ção . Um Deus que parecia escravo dos deveres que impusera a si mesmo .
Um Deus com uma capacidade insondável de vergar tudo a um propósi­
to incompreensível . Nem o caos em si se encontrava fora dessa matriz.
E , algures naquela tapeçaria que era o mundo , a cada passo urdido e logo
desfiado , havia um fio que era ele próprio , e ele acordou a chorar.
Certo dia, levantou-se e meteu os seus parcos haveres numa velha
mala de viagem que guardara todos aqueles anos debaixo da cama e
desceu a escada pela derradeira vez . Trazia a sua Bíblia debaixo do
braço . Qual excêntrico pastor de uma qualquer seita miserável . Ao cabo
de três dias chegou à cidade de Caborca, de sagrada memória. Ali para­
do junto ao rio , de pálpebras franzidas , a erguer os olhos ao sol para
contemplar a cúpula do transepto em ruínas da igreja de La Purísima
Concepción de Nuestra Sefíora de Caborca a flutuar no ar puro do de­
serto . Assim .
O homem abanou a cabeça devagar. Tomara os apetrechos do tampo
da mesa e começara a enrolar mais um cigarro . Com ar muito pensativo .
Como se a maneira de fazer um cigarro fosse para ele um enigma.
Levantou-se e foi até ao fogão e acendeu o cigarro com a mesma lasca
enegrecida de madeira e inspeccionou o lume e fechou a porta do fogão
e regressou à mesa e sentou-se como antes .
Talvez conheças a cidade de Caborca. A igreja é muito bonita. As
cheias do rio , ao longo dos anos , destruíram-na bastante . O coro e duas
torres sineiras . As traseiras da nave e a maior parte do transepto sul .
O que resta apoia-se em três pernas , por assim dizer. A cúpula está sus-
A Travessia 1 45

pensa no céu como uma aparição e assim continua desde há muitos


anos . Uma coisa bastante improvável . Nenhum alvenel conseguiria
conceber uma tal estrutura. Durante anos e anos , o povo de Caborca
esperou que a cúpula caísse . Era como uma coisa inacabada nas suas
vidas . Faziam-se depender acontecimentos de resultado duvidoso do
facto de a cúpula cair ou não . Dizia-se de certos homens velhos e vene­
ráveis que , quando morressem, a cúpula cairia, e eles morreram e os
filhos deles morreram e a cúpula continuava a flutuar no ar puro até que ,
por fim , assumiu tal importância nos espíritos das pessoas da cidade que
elas mal conseguiam falar do assunto .
Foi isto que ele ali encontrou . Talvez nem sequer tenha meditado na
questão de saber o que o conduzira àquele lugar. E, todavia, era preci­
samente aquilo que buscava. Por baixo daquele tecto perigoso deixou
cair na terra o seu enxergão e ateou a sua fogueira e ali se preparou
para receber o que até então se lhe esquivara. Fosse qual fosse o seu
nome . Ali , nas ruínas daquela igreja do seio de cuja poeira e destroços
ele fora erguido setenta anos antes e lançado no mundo para viver a sua
vida. Tal como ela fora. Tal como passara a ser. Tal como seria.
Puxou uma fumaça vagarosa do cigarro . Examinou o fumo que subia.
Como se no seu lento desenrolar residissem as linhas mestras da história
que ele contava. Sonho ou memória ou pedra erigida em edifício . Com
pancadinhas suaves , fez cair a cinza para dentro da tigela.
As pessoas da cidade vieram e ficaram paradas a ver. A uma certa
distância. Estavam interessadas em ver o que Deus faria com um tal
homem . Talvez ele fosse um louco . Talvez um santo . Ele não lhes pres­
tou atenção . Andava para trás e para diante e murmurava, debruçado
sobre a sua B íblia, e folheava as páginas . Lá no alto , na cúpula, havia
frescos que representavam os mesmos acontecimentos em que ele me­
ditava. Na face ocidental da cúpula viam-se os ninhos de barro das go­
londrinas argamassados entre as vestes desbotadas dos santos . De
tempos a tempos , no seu caminhar em círculos , ele detinha-se e erguia
o livro ao alto e percutia uma página com o dedo em riste e dirigia-se
ao seu Deus com grande profusão de palavras . Eis o que eles viam . Um
velho eremita. Um homem sem história. Alguns diziam tratar-se de um
homem piedoso que viera viver para o meio deles e outros chamavam­
-lhe lunático e muitos sentiam-se escandalizados , já que nunca tinham
ouvido alguém a interpelar Deus naqueles termos . Nunca tinham visto
alguém a desafiar Deus na sua própria casa.
Dir-se-ia que o que ele desejava, este homem , era estabelecer uma
qualquer colindancia com o seu Criador. Demarcar fronteiras e limites .
1 46 Cormac McCarthy

Garantir que se traçavam linhas divisórias e que estas eram respeitadas .


Quem julgaria possível um tal ajuste? As fronteiras do mundo são as
que Deus concebeu . Com Deus não pode haver ajuste algum . Que tería­
mos nós para oferecer em troca?
Mandaram vir o padre . O padre veio e falou com o homem. O padre
fora da igreja. O paroquiano solitário lá dentro . Debaixo da sombra da
perigosa cúpula. O padre falou àquele homem transviado acerca da na­
tureza de Deus e do espírito e da vontade e do significado da graça nas
vidas humanas e o velho ouviu-o sem o interromper e assentiu com a
cabeça em certas passagens mais relevantes e , quando o padre se calou ,
ergueu ao alto o seu livro e gritou ao padre . Tu nada sabes . Eis o que ele
gritou . Tu nada sabes .
As pessoas olharam para o padre . Para ver como é que ele iria reagir.
O padre remirou o homem e depois tornou a ir-se embora. A convicção
com que o velho falara tinha-lhe abalado o coração , e ele pesou as pa­
lavras do velho e ficou perturbado , porque é claro que as palavras do
velho eram verdadeiras . E se o velho sabia aquilo , que mais saberia ele?
Regressou no dia seguinte . E no outro a seguir. As pessoas vinham
assistir. Eruditqs da terra. Para ouvir o que iria ser dito por cada uma das
partes . O velho a andar para trás e para diante debaixo da sombra da
cúpula. O padre cá fora. O velho a folhear o seu livro com terrível des­
treza. Como alguém a contar dinheiro . O padre a ripostar, apoiando-se
naqueles elevados princípios canónicos a que atribuía tal amplitude .
Ambos heréticos até à medula do osso .
Curvou-se para diante e apagou o cigarro . Ergueu um dedo . Como
que para recomendar cautela. O sol entrara na divisão pela janela virada
a sul , e certos gatos tinham-se levantado para se espreguiçarem, para
mudarem de posição .
Com esta diferença, prosseguiu ele . Com esta diferença. O padre
nada apostava. Nada arriscava ali . Não pisava os mesmos terrenos do
velho tresloucado . Não se acolhia à mesma sombra. Antes preferia
postar-se no exterior do edifício delicado da sua própria igreja e, devido
a esta escolha, esvaziava as suas palavras do seu poder de prestar teste­
munho .
O velho , movido por um qualquer instinto , pisava um terreno a um
tempo abençoado e funesto . Era esta a sua escolha, este o seu gesto .
Todos concordavam que o seu testemunho era poderoso . A força das
suas convicções estava bem patente aos olhos de todos . Nas suas pala­
vras havia pouca moderação e pouco freio . Nesta sua nova vida, o liber­
tino tinha rédea solta. Compreendes? Devido à sua arrogância, declara-
A Travessia 1 47

ra guerra ao ente vivo . Naquele terreno perigoso , fizera de si próprio a


única testemunha que alguma vez pode haver, e se alguns lhe viam nos
olhos o arrebatamento da loucura, que outra coisa se deveria procurar
em alguém que desafiara o Deus do universo num terreno escolhido por
esse próprio Deus? Pois é sempre essa a natureza de um tal terreno ,
perigoso e transitório . E tanto assim é que temos d e pleitear a nossa
causa ali ou em lugar nenhum.
E o padre? Um homem de princípios flexíveis . De sentimentos libe­
rais . Um homem generoso , até . Um pouco filósofo . E, todavia, pode­
ríamos dizer que a sua caminhada através do mundo era tão flexível que
quase nem deixava rasto na sua esteira. Trazia em si uma grande reve­
rência pelo mundo , aquele padre . Ouvia a voz da Divindade no murmú­
rio do vento nas árvores . Até as pedras eram sagradas . Era um homem
razoável e estava convencido de que o seu próprio coração albergava
amor.
Mas não . E Deus também não sussurra através das árvores . A voz
dele não se confunde com nenhuma outra. Quando os homens a ouvem,
caem de joelhos e sentem a alma dilacerada e lançam-Lhe brados e não
há neles medo , somente aquele ardor no coração que brota de um tal
anseio , e lançam brados para que a presença divina perdure , pois com­
preendem de imediato que , embora os ímpios possam viver satisfeitos no
seu exílio , aqueles a quem Ele falou não conseguem imaginar uma vida
sem Ele , somente trevas e desespero . As árvores e as pedras não fazem
parte dessa vida. Assim. O padre , devido à própria generosidade do seu
espírito , encontrava-se em perigo mortal e não o sabia. Acreditava num
Deus ilimitado , sem centro nem circunferência. Este carácter informe
fora precisamente aquilo a que ele lançara mão para tomar Deus mais
acessível . Era esta a sua colindancia . Na sua liberalidade , cedera todo o
terreno . E , nesta colindancia , Deus não fora chamado a dar a sua opinião .
Ver Deus em todo o lado é não O ver em lugar nenhum . Vivemos dia
após dia, cada dia muito semelhante ao seguinte , até que , num certo dia,
sem que nada o fizesse prever, deparamos com um homem ou vemos
um homem que talvez já fosse nosso conhecido e que é um homem
igual a tantos outros , mas que executa um certo gesto revelador de si
que se assemelha ao empilhar dos seus bens sobre um altar, e neste
gesto reconhecemos o que se encontra oculto nos nossos corações e que
nunca se perde verdadeiramente para nós nem alguma vez se pode per­
der, e é aquele momento , compreendes . Aquele momento preciso . É por
isto que ansiamos e é isto que temos medo de procurar e que constitui a
nossa única salvação possível .
1 48 Cormac McCarthy

Assim . O padre foi-se embora. Regressou à cidade . O velho ao seu


testamento . Ao seu deambular para trás e para diante e ao seu terçar de
razões . Convertera-se numa espécie de advogado . Esmiuçava os escri­
tos não para honra e glória do seu Criador, mas antes para encontrar
argumentos contra Ele . Para destrinçar em gentis minudências uma na­
tureza mais sombria. Falsos favores . Pequenos embustes . Promessas
esquecidas ou uma mão erguida com demasiada prontidão . Para encon­
trar argumentos contra Ele , entendes . Compreendia o que o padre não
conseguia compreender. Que o que procuramos é o adversário válido .
Porque arremetemos e logo tombamos a esbracejar por entre demónios
de arame e crepe e ansiamos por algo de mais substancial que se nos
oponha. Algo que nos reprima ou que sustenha a nossa mão . Caso con­
trário , não haveria limites ao nosso ser, e também nós acabaríamos por
ampliar as nossas pretensões até perdermos toda a definição . Até sermos
engolidos , por fim, pelo próprio vácuo a que nos desejávamos opor.
A igreja de Caborca continuava de pé como antes . Até o padre via que
o pensionista andrajoso acampado no entulho era o único paroquiano
que o'tt(m plo alguma vez voltaria a ter. Partiu . Deixou o velho naquele
terreno que reivindicara para si , debaixo da sombra daquela cúpula que ,
no dizer de alguns , oscilava visivelmente na ventania. Tentou sorrir
ante a postura do velho . Que novas de Deus haveria no facto de aquela
igreja permanecer de pé ou tombar? Que outra coisa além dos caprichos
do vento em saber se a cúpula periclitante viria a revelar-se um santuá­
rio ou um sepulcro para um velho anacoreta de espírito transtornado?
Nada se alteraria. Nada seria revelado . No fim de contas , tudo ficaria
como antes .
Os actos têm a sua existência na testemunha. Sem esta, quem pode
falar do acto? No fim de contas , poderíamos até dizer que o acto nada
é, a testemunha é tudo . Pode ser que o velho visse certas contradições
na sua própria posição . Se os homens eram as criaturas ociosas que ele
imaginava serem, não seria preferível ter sido mandatado para apresen­
tar a sua petição pelo próprio Ente contra quem esta era dirigida? Tal
como tem sucedido com muitos outros filósofos , aquilo que a princípio
parecia uma objecção inultrapassável para as suas teorias acabou por,
gradualmente , surgir a seus olhos como uma componente necessária
destas e, por fim , como o seu elemento fulcral . Viu o mundo dissolver­
-se em nada na própria multiplicidade dos exemplos que o constituem .
Apenas a testemunha se mantinha firme . E a testemunha dessa testemu­
nha. Pois o que possui uma verdade profunda é também verdade nos
corações dos homens e nunca pode , portanto , ser falsamente narrado ,
A Travessia 1 49

por muitas e variadas narrações que se façam . Era esta, assim, a sua
convicção . Se o mundo era uma história, quem senão a testemunha lhe
poderia dar vida? Onde senão aí poderia essa história ter a sua existên­
cia? Era esta a perspectiva das coisas que o começou a seduzir. E ele
começou a ver em Deus uma terrível tragédia. Que a existência da Di­
vindade estava ameaçada pela falta deste simples pormenor. Que para
Deus não podia haver testemunha. Nada cujos limites Lhe pusessem
termo . Nada por meio do qual a sua existência Lhe pudesse ser anuncia­
da. Nada de que Ele se pudesse afastar para dizer eu sou isto e aquilo é
outra coisa. Onde aquilo existe eu não resido . Ele podia criar tudo ex­
cepto alguma coisa que o negasse .
Agora podemos falar de loucura. Agora não há risco em o fazer. Tal­
vez pudéssemos dizer que só um louco seria capaz de andar para trás e
para diante , a esfarrapar as roupas por causa da responsabilidade de
Deus . O que pensar, portanto , deste homem que afirma que Deus o pre­
servou não uma mas duas vezes , salvando-o das ruínas da terra apenas
para que ele pudesse prestar testemunho contra Ele?
O fogo crepitava no fogão . Ele recostou-se na cadeira. Uniu as pontas
dos dedos e comprimiu-as , cinco contra cinco , e flectiu as mãos uma
contra a outra com expressão pensativa. Como que a pôr à prova a força
de uma qualquer proposição membranosa. Um grande gato cinzento
avançou pela mesa fora e parou a olhá-lo . Faltava-lhe uma orelha quase
inteira, e os dentes assomavam-lhe fora da boca. O homem afastou-se
um bocadinho da mesa e o gato desceu-lhe para o regaço e enroscou-se
e espalmou-se-lhe contra as pernas e voltou a cabeça e remirou grave­
mente o rapaz do outro lado da mesa, à maneira de um consultante . Um
gato capaz de dar bons conselhos . O homem pousou-lhe uma mão em
cima, como que para o prender ali . Olhou para o rapaz . A tarefa do nar­
rador não é fácil , disse . Aparentemente , exige-se-lhe que escolha a sua
história de entre as muitas que são possíveis . Porém , claro que não é
assim. Trata-se , em vez disso , de converter uma só em muitas . O narra­
dor tem sempre de tomar precauções para contrariar a convicção de
quem o escuta - talvez formulada explicitamente , talvez implícita -
de que j á antes ouviu aquela história. Ele apresenta as categorias em que
o auditor desejará encaixar a narrativa à medida que a vai ouvindo . Mas
compreende que a narrativa em si não é uma categoria entre outras , mas
sim a categoria de todas as categorias , pois nada existe que se situe fora
do seu âmbito . Tudo é narrar. Não duvides .
O padre não tomou a visitar o velho , a história ficou inacabada. O
velho , é claro , de modo algum cessou de andar para trás e para diante e
1 50 Cormac McCarthy

de soltar invectivas . Ele , pelo menos , não tencionava esquecer as injus­


tiças da sua vida passada. Os dez mil insultos . O catálogo de mágoas .
Ele tinha o estado de espírito da parte ofendida, compreendes . Não dei­
xava escapar nada. Do padre o que podemos dizer? À semelhança de
todos os padres , tinha o espírito toldado pela ilusão da sua proximidade
com Deus. Que padre repudia as próprias vestes , ainda que seja para se
salvar? E, todavia, o velho não deixava de lhe povoar os pensamentos ,
e , certo dia, mandaram-no chamar e disseram-lhe que o velho adoecera.
Que jazia no seu catre e não falava com ninguém. Nem sequer com
Deus . O padre foi vê-lo, e assim era, com efeito . Parou no exterior do
transepto e dirigiu-se ao velho . Perguntou-lhe se estava mesmo doente .
O velho jazia, a contemplar os frescos desbotados . As idas e vindas das
golondrinas . Lançou um olhar ao padre e tinha uma expressão esgaze­
ada e vazia e tornou a desviar o rosto . O padre , vendo uma oportunida­
de na fraqueza alheia, à habitual maneira humana, retomou a sua argu­
mentação no ponto em que a abandonara, várias semanas antes , e
começou a declamar ao velho os seus ensinamentos relativos à bondade
de Deus. O velho tapou os ouvidos com as mãos em concha, mas o
padre apenas se aproximou ainda mais . Por fim , o velho ergueu-se a
cambalear do seu catre e começou a apanhar pedras do entulho e a atirá­
-las ao padre em saraivada, até o conseguir escorraçar.
O padre regressou três dias depois e tornou a falar com o velho , mas
o velho já não o ouvia. A comida, o jarro de leite - que as pessoas de
Caborca se tinham habituado a deixar para ele na orla da linha de som­
bra - , permaneciam intactos . Deus vencera-o pela astúcia, evidente­
mente . Como poderia ter havido outra possibilidade? No fim de contas ,
parecia que Ele pusera ao seu serviço até mesmo as usurpações heréti­
cas do velho . O sentimento de ter sido eleito , que a um tempo dera
alento e atormentara o pensionista ao longo de tantos anos , cumpria-se
agora de uma forma que ele não antevira, e, diante do seu olhar pertur­
bado , a verdade assomava em toda a sua horrível pureza. Viu que fora
na verdade eleito e que o Deus do universo era ainda mais terrível do
que os homens julgavam . Não era possível fugir-Lhe , não era possível
pô-Lo de parte nem circunscrevê-Lo , e era bem verdade que Ele conti­
nha em Si tudo o resto , até mesmo as reflexões do herético , caso con­
trário não seria sequer um Deus digno desse nome .
O padre ficou muito comovido pelo que viu , e isto surpreendeu-o
bastante . Por fim , acabou por superar até os seus receios e aventurou-se
sob a cúpula da igreja em ruínas até se abeirar do velho . Talvez isto tenha
dado alento ao velho . Talvez , mesmo naquela conjuntura tardia, ele
A Travessia 151

achasse que o padre era bem capaz de fazer desabar o edifício , coisa em
que ele próprio fracassara. Mas a cúpula, é claro , permaneceu suspensa
no ar, e, ao fim de um certo tempo , o velho começou a falar. Tomou a
mão do padre como se fosse a mão de um camarada e falou da sua vida
e do que esta fora e daquilo em que se tomara. Explicou ao padre aquilo
que aprendera. Por fim , disse que nenhum homem consegue ver a sua
vida até esta chegar ao seu termo , e como emendar então os erros come­
tidos? É somente pela graça de Deus que estamos ligados a este fio da
vida. Segurou a mão do padre na sua e pediu ao padre que olhasse para
as mãos de ambos ali unidas e disse-lhe repare na semelhança. Esta car­
ne não passa de uma recordação e , todavia, conta a verdade . Em última
análise , o trilho de cada homem é o trilho de qualquer outro . Não há
jornadas separadas , pois não há homens separados para as encetar. Todos
os homens são um só , e não há outra história para contar. O padre , po­
rém , interpretou estas palavras somente como confissão e, quando o
velho se calou , começou a proferir as fórmulas da absolvição . Ante isto ,
o velho agarrou-lhe o braço no momento em que ele traçava o sinal da
cruz ali , no ar parado , junto ao seu leito de morte , e deteve-o com o seu
olhar. Soltou a outra mão do padre e ergueu a sua. Como um homem
prestes a partir de viagem . Salva-te , sibilou . Salva-te . Depois morreu .
Lá fora, nas ruas repletas de ervas daninhas , tudo era silêncio . O ho­
mem passou a mão em concha sobre a cabeça do gato , a alisar-lhe as
orelhas para trás . A sã, a mutilada. O gato jazia com as patas da frente
enroscadas contra o peito , de olhos semicerrados . Este é o meu gato
guerreiro , disse o homem . Pero es el más dulce de todo . Y el más sim­
pático .
Ergueu o rosto . Sorriu . A tarefa do contador de histórias não é assim
tão simples . Por esta altura, claro que já adivinhaste quem era o padre .
Ou talvez não tanto padre , mais advogado de coisas sacerdotais . Ideias
sacerdotais . Durante algum tempo , este padre tentou ainda aferrar-se à
sua vocação , mas , por fim , deixou de conseguir suportar a expressão no
olhar dos que o abordavam em busca de conselhos . Que conselhos tinha
ele para dar, este homem de palavras? Não tinha respostas para as per­
guntas que o velho mensageiro trouxera da capital . Quanto mais pensa­
va nelas , mais intrincadas se tomavam . Quanto mais tentava sequer
formulá-las , mais elas se esquivavam a todas as suas figurações , e, por
fim , acabou por se dar conta de que não se tratava das dúvidas do velho
pensionista, mas sim das suas .
Sepultaram o velho no adro da igreja de Caborca, entre as pessoas do
seu sangue . Foi nisto que redundou o acordo de Deus com este homem .
152 Connac McCarthy

Tal era a sua colindancia , e tal é , quiçá, a de todos os homens . Na hora


da morte , disse ao padre que se enganara em todas as suas reflexões
acerca de Deus e, no entanto , alcançara finalmente uma compreensão
d ' Ele . Percebera que todas as suas exigências feitas a Deus residiam ,
intactas e mudas , até mesmo nos corações mais singelos . A sua discór­
dia, as suas razões de queixa, tudo isto tinha lugar na mais humilde das
histórias . Pois o trilho do mundo é também um só e não muitos , e não
existe um rumo alternativo em qualquer uma das suas parcelas , nem
sequer na mais mesquinha, já que esse rumo é fixado por Deus e contém
em si todas as consequências no próprio caminho que vai percorrendo
e fora desse caminho não há rumo nem consequências nem nada de
nada. Nunca houve . No fim de contas , o que o padre acabou por perce­
ber foi que a verdade pode muitas vezes ser transportada pelo mundo
por aqueles que dela não têm qualquer consciência. São portadores de
algo que tem peso e importância e que , todavia, não tem para eles nome
a que possam recorrer para o evocar ou trazer a lume . Deambulam pelo
mundo ignorando a verdadeira natureza da sua condição , tais são os
ardis da verdade e tais os seus estratagemas . Até que , um dia, naquele
gesto casual , naquele subtil movimento de renúncia, sem disso se darem
conta, fazem recair sobre uma alma subordinada uma tal onda de devas­
tação que essa alma muda para sempre , para sempre arrancada à estrada
que fora destinada a trilhar e conduzida em vez disso para uma estrada
cuja existência até então desconhecia. Este novo homem mal saberá a
hora em que mudou de rumo ou a origem dessa mudança. Ele próprio
nada terá feito para levar a que um tão grande bem o bafejasse . E, con­
tudo , terá na sua posse aquela essência, compreendes . Sem que a tives­
se procurado , sem que a merecesse . Terá na sua posse aquela liberdade
esquiva que os homens buscam com tal desespero infindável .
O que o padre compreendeu , por fim , foi que a lição de uma vida
nunca se basta a si mesma. Só a testemunha tem o poder de a avaliar. É
vivida somente para o próximo . O padre , portanto , compreendeu o que
o anacoreta não conseguira compreender. Que Deus não precisa de tes­
temunhas . Nem abonatórias nem de acusação . A verdade é , isso sim ,
que se não houvesse Deus não poderia haver testemunhas , pois o mun­
do não possuiria identidade , existiria somente a opinião que cada ho­
mem dele tem . O padre compreendeu que nenhum homem é eleito ,
porque não há nenhum homem que o não seja. Aos olhos de Deus, todos
os homens são heréticos . O primeiro acto do herético é denunciar o seu
irmão . Para se poder libertar dele . Todas as palavras que proferimos são
manifestações de vaidade . Cada fôlego que soltamos sem exaltar Deus
A Travessia 153

é uma afronta. Agora atenta bem n o que eu digo . Outro ouvirá a s pala­
vras que nunca proferiste . As próprias pedras são feitas de ar. Aquilo
que elas têm o poder de esmagar nunca viveu . No fim de contas , todos
seremos apenas a imagem que construímos de Deu s . Pois nada é genu­
íno , à parte a graça divina.

Depois de ele montar, o homem acercou-se do estribo e ergueu para


ele os olhos de pálpebras franzidas ao sol do meio-dia . Vais para a Amé­
rica? perguntou .
Vou , sim, senhor.
Para junto da tua família.
Sim.
Há quanto tempo não os vês?
Não sei .
Ele olhou para o fundo da rua. Perdida nas ervas daninhas entre duas
fileiras de edifícios em ruínas . Os amontoados de tijolos de lama que as
chuvas episódicas da região haviam esboroado , dando-lhes formas que
sugeriam a obra de colossais colónias de insectos . Não se ouvia nenhum
ruído em parte alguma. Ele baixou os olhos para o homem. Nem sei em
que mês estamos , disse .
Sim . Está claro .
Vem aí a Primavera.
Vai para casa.
Sim, senhor. Faço tenções disso .
O homem recuou um passo . O rapaz tocou no chapéu .
Muito agradecido pelo pequeno-almoço .
Vaya con Dios, joven .
Gracias . Adiós .
Voltou o cavalo e afastou-se pela rua abaixo . No extremo da povoa­
ção conduziu o cavalo ao encontro do rio e olhou para trás uma derra­
deira vez , mas o homem desaparecera.

Atravessou e tomou a atravessar o rio vezes sem conta durante os


dias seguintes , nos pontos em que a estrada ia de vau em vau ou ao
longo daqueles leques de aluviões acumulados no sopé dos montes onde
o rio formava baixios e meandros e corria . Passou pela povoação de
Tamichopa, que fora arrasada e incendiada pelos apaches na véspera do
Domingo de Ramos do ano de mil e setecentos e cinquenta e oito , e ao
154 Cormac McCarthy

princípio da tarde entrou no lugar de Bacerac , que era a antiga povoação


de Santa María, fundada no ano de mil e seiscentos e quarenta e dois e
onde uma criança surgiu sem que ele a chamasse e tomou o cavalo pela
cabeçada e o conduziu pela rua fora.
Cruzaram um portal onde ele foi obrigado a curvar-se sobre o pesco­
ço do cavalo e prosseguiram por um zaguán caiado até entrarem num
pátio onde um burro amarrado a uma estaca fazia rodar um moinho de
pedra para trigo . Ele desmontou e deram-lhe um pano para se lavar e
depois conduziram-no para dentro da casa e deram-lhe de almoçar.
Sentou-se diante de uma mesa de madeira de tampo esfregado com
dois outros jovens e comeram uma refeição saborosa de abóbora cozida
e sopa de cebola e tortillas e feijão . Os rapazes eram ainda mais novos
do que ele e lançavam-lhe olhares furtivos e ficaram à espera de que ele
falasse , sendo o mais velho , mas ele nada disse e portanto comeram em
silêncio . Alimentaram-lhe o cavalo e, ao cair da noite , deitaram-no num
catre de ferro com um enxergão de camisas de milho , nas traseiras da
casa. Ele não falara a ninguém , excepto para agradecer. Pareceu-lhe que
o tinham confundido com outra pessoa. Acordou uma vez , sem saber
que horas eram , e soergueu-se para ver uma silhueta a observá-lo no vão
da porta, mas era somente a olla de barro ali pendurada na semiobscu­
ridade para arrefecer a água durante a noite e não um outro género de
silhueta nem um outro género de barro . O ruído seguinte que ouviu foi
o slape-slape de mãos a prepararem as tortillas para o pequeno-almoço
ao raiar do dia.
Um dos rapazes trouxe-lhe café numa malga, sobre um tabuleiro .
Ele saiu para o pátio a bebê-lo . Ouvia mulheres a falar algures noutro
ponto da casa e ficou ao sol , a beber o café e a observar os beija-flores
que se inclinavam e se lançavam como flechas e se imobilizavam en­
tre as flores suspensas sobre o muro . Ao fim de um certo tempo , uma
mulher veio à porta e chamou-o para tomar o pequeno-almoço . Ele
voltou-se com a tigela na mão e, ao voltar-se , viu o cavalo do pai a
passar na rua.
Cruzou o zaguán e estacou na rua, mas a rua estava vazia. Caminhou
até à esquina e olhou para leste e para oeste e caminhou até à praça e
olhou para norte ao longo da estrada principal , mas não viu nem cavalo
nem cavaleiro . Virou-se e começou a caminhar de regresso à casa. En­
quanto avançava, apurou o ouvido , atento a qualquer som de um cavalo
algures atrás dos muros ou portais por onde ia passando . Ficou parado
diante da casa durante muito tempo e depois entrou para tomar o
pequeno-almoço .
A Travessia 155

Comeu sozinho n a cozinha. Parecia não estar ninguém e m casa. Aca­


bou de comer e levantou-se e saiu para tratar do cavalo e depois regres­
sou à casa para agradecer às mulheres , mas não as conseguiu encontrar.
Chamou em voz alta, mas ninguém respondeu . Parou na soleira da por­
ta de um quarto com tectos altos forrados de canas e mobilado com um
velho roupeiro de madeira escura trazido de outro país e duas camas de
madeira pintadas de azul. Na parede do fundo , num nicho , um retablo
de estanho pintado da Virgem com um círio esguio a arder diante da
imagem . Ao canto , um berço de criança, e , no berço , um cãozinho de
olhos toldados que ergueu a cabeça e ficou à escuta da presença dele .
Ele regressou à cozinha e procurou qualquer coisa com que pudesse
escrever. No fim de contas , retirou farinha da tigela colocada no apara­
dor e polvilhou-a sobre a mesa de madeira e escreveu ali o seu agrade­
cimento e saiu e foi buscar o cavalo e conduziu-o pela arreata através
do zaguán e cruzou o portal . Atrás dele , no pátio , a pequena mula fazia
rodar incansavelmente o malaxador de argila. Montou e cavalgou pela
ruazita poeirenta, a lançar acenos de cabeça àqueles com quem se ia
cruzando . A cavalgar como um jovem fidalgo , apesar de todos os seus
andrajos . Transportando no ventre a dádiva da refeição que recebera,
que a um tempo lhe dava sustento e conferia a outrem direitos sobre a
sua pessoa. Porque a partilha do pão não é uma coisa assim tão simples ,
nem o são os sinais de gratidão por essa partilha. Quaisquer que sejam
os agradecimentos que se dão , quer falados , quer escritos .
A meio da manhã, passou pela povoação de Bavispe . Não parou .
A carroça de um vendedor de carne encontrava-se parada na plaza
diante da igreja, e velhas com véus de musselina negra erguiam as tiras
vermelho-escuras que pendiam dos expositores e espreitavam-lhes
para baixo com estranha lascívia. Ele prosseguiu . Ao meio-dia estava
em Colonia de Oaxaca e parou o cavalo na estrada diante da casa do
alguacil e depois escarrou silenciosamente para a poeira do chão e
prosseguiu . Ao meio-dia do dia seguinte tornou a passar pelo povoado
de Morelos e meteu pela estrada para norte , na direcção de Ojito . Ao
longo de todo o dia, nuvens negras de tempestade avançavam para
norte . Ele atravessou o rio uma última vez e trepou através dos montes
baixos e escarpados , onde a tempestade o alcançou numa saraivada de
gelo . Ele e o cavalo abrigaram-se num complexo de velhos edifícios
abandonados junto à berma da estrada . O granizo passou e começou a
cair uma chuva incessante . Escorria água por todo o lado através do
tecto de barro , por cima deles , e o cavalo mostrava-se agitado e dava
passos nervosos . Algum odor de antigos infortúnios ou talvez apenas a
1 56 Cormac McCarthy

proximidade das paredes . A noite caiu , e ele puxou a sela do dorso do


cavalo e fez uma cama a um canto , usando a palha solta que amontoou
com os pés . O cavalo saiu para a chuva e ele deitou-se sob a manta,
num ponto de onde conseguia ver através das paredes em ruínas a si­
lhueta do cavalo parado junto à estrada e a silhueta do cavalo no clarão
mudo e errático do relâmpago , à medida que a tempestade se afastava
para oeste . Adormeceu . Alta noite acordou , mas o que o acordou fora
apenas o cessar da chuva. Levantou-se e saiu . A Lua estava a leste ,
acima da escarpa sombria das montanhas . Lençóis de água estendiam­
-se nas planuras do outro lado da estrada acanhada. Não havia vento ,
e , todavia, a extensão de água parada bruxuleou à luz cor de osso como
se qualquer coisa tivesse passado sobre ela, e a Lua esfolada na água
estremeceu e desviou-se e tornou a endireitar-se e depois tudo ficou
como antes .
Na manhã seguinte , cavalgou através do posto fronteiriço de Doug­
las , no Arizona. O guarda dirigiu-lhe um aceno de cabeça e ele retribuiu .
Dá-me ideia que és capaz de ter ficado por lá um bocadinho mais de
tempo do que levavas na ideia, comentou o guarda .
O rapaz permaneceu escarranchado na sela, com as mãos apoiadas no
cepilho . Baixou os olhos para o guarda. O meu amigo não era capaz de
emprestar meio dólar a uma pessoa pra comer, ou era? perguntou .
O guarda ficou longos momentos sem se mexer. Depois enfiou a mão
no bolso .
Eu moro prõs lados de Cloverdale , disse o rapaz . Diga-me o seu no­
me , que eu arranjo maneira de lhe devolver o dinheiro .
Ora aí tens .
Com a mão em concha, o rapaz apanhou em pleno ar a moeda que
rodopiava e fez que sim com a cabeça e deixou-a cair no bolso da cami­
sa. Como é que o meu amigo se chama?
John Gilchrist .
Não é destas redondezas .
Não .
Eu chamo-me B illy Parham .
Pois bem , muito prazer.
Eu mando-lhe este meio dólar assim que apanhar alguém que venha
pra estas bandas . Não tem de se preocupar.
Eu não ' tou nada preocupado .
O rapaz segurava as rédeas com mão frouxa. Espraiou a vista pela rua
larga que se estendia diante dele e pelos montes áridos em volta . Tornou
a olhar para Gilchrist .
A Travessia 1 57

E que tal acha esta terra? perguntou .


Gosto bastante disto .
O rapaz fez que sim com a cabeça. Também eu , disse . Tocou na aba
do chapéu . Obrigado , disse . Fico-lhe muito reconhecido . Em seguida,
chegou os calcanhares ao ventre do cavalo de aparência bravia e caval­
gou pela rua acima, penetrando na América.

Passou o dia inteiro a calcorrear a velha estrada de Douglas para


Cloverdale . À tardinha chegou ao alto dos montes Guadalupes e estava
frio , muito frio no desfiladeiro com a penumbra precoce a cair e o ven­
to que se lançava através da garganta . Cavalgava sentado descontraída­
mente na sela , de costas vergadas , com os cotovelos junto ao tronco . Lia
nomes e datas que tinham sido escritos na pedra por homens mortos há
muito tempo , homens que por ali tinham passado assim como ele . Abai­
xo de si , no longo crepúsculo cheio de sombras , estendia-se a bela pla­
nície das Animas . Ao descer o flanco oriental do desfiladeiro , o cavalo
percebeu subitamente onde estava e ergueu o focinho e relinchou e
alongou o andamento .
Já passava da meia-noite quando chegou a casa. Não se viam luzes .
Foi até ao estábulo para desaparelhar o cavalo e não havia cavalos no
estábulo e não se via o cão e antes mesmo de cruzar metade da coxia
central do estábulo ele percebeu que se passava qualquer coisa de hor­
rivelmente errado . Puxou a sela do dorso do cavalo e pendurou-a e pu­
xou algum feno, deixando-o cair, fechou a porta da baía e desceu até à
casa e abriu a porta da cozinha e entrou .
A casa estava vazia. Ele percorreu todas as divisões . A maior parte da
mobília desaparecera. A sua própria cama acanhada de ferro , vazia à
parte o enxergão , era o único móvel no quarto contíguo à cozinha. Den­
tro do roupeiro , alguns cabides de arame . Entrou na despensa e encon­
trou pêssegos de conserva e ficou de pé no escuro , junto ao lava-loiça,
a comer os pêssegos do boião de vidro com uma colher de pau e a olhar
pela janela para os pastos a sul , azuis e silenciosos sob a Lua nascente ,
com a vedação a correr ao encontro das trevas debaixo das montanhas
e a sombra da vedação a cruzar a terra ao luar como uma sutura. Rodou
a torneira do lava-loiça, mas esta soltou somente um arquejo seco e
depois nada. Acabou de comer os pêssegos e foi até ao quarto dos pais
e deteve-se na soleira a olhar para a armação vazia da cama, para as
poucas peças de roupa em farrapos caídas no chão . Foi até à porta da
frente e abriu-a e saiu para o alpendre . Desceu até ao rio e ficou à escu-
158 Cormac McCarthy

ta. Ao fim de um certo tempo , voltou para dentro de casa e deitou-se na


cama e, ao fim de um certo tempo , adormeceu .
Ao romper do dia j á estava a pé , a passar em revista os boiões de
conservas nas prateleiras da despensa. Encontrou tomate estufado e
comeu e saiu para o estábulo e procurou uma escova e trouxe o cavalo
para o sol e ficou a escová-lo durante imenso tempo . Em seguida,
conduziu-o de regresso à coxia do estábulo e selou-o e montou e saiu
pelo portão aberto e meteu pela estrada para norte , em direcção ao S K
B ar.
Quando cavalgou para dentro do terreiro , o velho Sanders estava
sentado no alpendre , quase na mesma posição em que ele o deixara. Não
reconheceu o rapaz . Nem sequer reconheceu o cavalo. Mesmo assim ,
disse-lhe em voz alta que desmontasse .
Sou o B illy Parham ! gritou o rapaz . O velho não respondeu durante
um longo momento . Em seguida, voltou-se para dentro de casa e cha­
mou . Leona! chamou . Leona !
A rapariga surgiu à porta e protegeu o s olhos d o sol com uma mão e
olhou para o cavaleiro . Em seguida, saiu e estacou com a mão no ombro
do avô . Como se fosse o cavaleiro que tivesse chegado com más notí­
cias para o velho .

Quando regressou à casa, já passava do meio-dia. Deixou o cavalo


selado , parado no terreiro , e entrou e tirou o chapéu . Percorreu todas as
divisões . Pensou que o velho tivesse enlouquecido , mas não conseguia
perceber o que se passava com a rapariga. Entrou no quarto dos pais e
estacou . Ficou ali parado durante muito tempo . Viu como o forro do
colchão exibia a marca ferrugenta das molas e olhou para esse desenho
durante muito tempo . Depois pendurou o chapéu na maçaneta da porta
e acercou-se da cama. Parou junto desta. B aixou-se e agarrou o colchão
e arrastou-o de cima da cama e pô-lo na vertical e deixou-o tombar
para trás sobre o soalho . O que surgiu à luz na parte de baixo foi uma
enorme mancha de sangue já seca, quase negra, a embeber o colchão de
tal forma que estalou e se desfez em lascas como o vidrado escuro de
uma peça de cerâmica. Uma vaga poeira acre elevou-se . Ele permane­
ceu ali imóvel . Moveu as mãos no ar em volta de si e , por fim , agarrou
o balaústre da cama e fincou-lhe os dedos para se segurar. Ao fim de um
certo tempo ergueu os olhos e ao fim de um certo tempo caminhou até
junto da janela. Onde a luz do meio-dia se derramava sobre os. campos .
Sobre o verde novo dos choupos ao longo do rio . A cintilar nos picos
A Travessia 159

das Animas . Olhou para tudo isto e caiu de joelhos no chão e pôs-se a
soluçar, com as mãos no rosto .
Quando cavalgou através de Animas , as casas pareciam desertas .
Parou junto da loja e encheu o cantil com água da torneira no flanco do
edifício , mas não entrou . Dormiu nessa noite nas planícies a norte da
povoação . Nada tinha para comer e não fez lume . Acordou uma e outra
vez ao longo da noite , e, de cada vez que acordava, a assinatura de Cas­
siopeia rodara mais um pouco em volta da estrela polar, e, de cada vez
que acordava, tudo estava como sempre fora e como seria para todo o
sempre . Ao meio-dia do dia seguinte , entrou a cavalo em Lordsburg .

O xerife ergueu os olhos da secretária. Franziu os lábios finos .


Chamo-me B illy Parham , disse o rapaz .
Eu sei quem tu és . Entra. Senta-te .
Ele sentou-se numa cadeira diante da secretária do xerife e pousou o
chapéu sobre o joelho .
Por onde tens andado , rapaz?
Pelo México .
México .
Sim, senhor.
E porque é que fugiste assim?
Eu não fugi .
Andavas a ter sarilhos em casa?
Não , senhor. O papá nunca deixou que houvesse sarilhos .
O xerife recostou-se na cadeira. Tamborilou no lábio inferior com o
indicador estendido e remirou com ar pensativo o rapaz andrajoso dian­
te de si . Pálido da poeira do caminho . Magro , esquelético . Uma corda a
segurar-lhe as calças .
E o que é que andavas a fazer no México?
Não sei . Fui até lá, pronto .
Quer dizer que te passou uma coisa pela vista e lembraste-te de ir dar
uma voltinha até ao México . É isso que me ' tás a dizer?
Sim , senhor. Acho que sim .
O xerife estendeu o braço e empurrou um maço de papéis agrafados
da orla da secretária e alinhou-os com o polegar. Olhou para o rapaz .
Que sabes tu desta desgraça, rapaz?
Não sei nada. Vim cá pra lhe perguntar.
O xerife permaneceu sentado a olhá-lo . Muito bem , disse . Se essa é
a tua história, vais ter de a assumir.
1 60 Cormac McCarthy

Não é história nenhuma.


Muito bem . Fomos até lá abaixo com pisteiros . Levaram seis cavalos
dali pra fora. Mr Sanders diz que lhe parece que eram seis ao todo os
cavalos lá na casa. É verdade?
É , sim, senhor. Havia sete cavalos , contando com o meu .
O Jay Tom e o moço dele disseram que os fulanos eram dois e que
partiram com os cavalos praí duas horas antes do nascer do dia.
Conseguiram perceber isso?
Conseguiram perceber isso .
Foram até à casa a pé .
Sim.
E o que é que o Boyd diz?
O Boyd não diz nada. Fugiu e escondeu-se . Ficou deitado ao frio a
noite inteira e no dia seguinte foi até à casa do Sanders e não consegui­
ram que ele dissesse coisa com coisa. O Miller teve de se meter na
carrinha e ir até lá e foi então que encontrou aquela desgraça. Tinham­
-nos abatido com uma caçadeira.
B illy olhou sobre o ombro do xerife , para a rua. Tentou engolir, mas
não conseguiu . O xerife observava-o .
A primeira coisa que eles fizeram foi apanhar o cão e cortar-lhe a
garganta. Depois sentaram-se à espera, a ver se alguém saía. Esperaram
tanto tempo que um deles até foi fazer uma mija. Esperaram pra ter a
certeza que toda a gente ' tava outra vez a dormir depois de o cão ter
parado de ladrar e isso tudo .
Eram mexicanos?
Eram índios . Ou o Jay Tom diz que eles eram índios . Acho que ele
deve de saber. O cão não chegou a morrer.
O quê?
Eu disse que o cão não chegou a morrer. O Boyd é que o tem . Ficou
mudo que nem uma pedra .
Sentado , o rapaz fitava o chapéu manchado de gordura pousado de
viés sobre o joelho .
Que género de armas levaram eles? perguntou o xerife .
Não havia armas nenhumas pra levar. A única arma lá em casa era
uma carabina quarenta e quatro quarenta, e era eu quem a tinha comigo .
Não lhes serviu de grande coisa, pois não?
Não , senhor.
Não temos nada a que nos agarrar. Sabes isso .
Sim, senhor.
E tu , tens?
A Travessia 161

Tenho o quê?
Sabes alguma coisa que não me tenhas dito .
O senhor tem jurisdição no México?
Não .
Então que diferença faz?
Essa resposta não vale um caracol .
Pois não . É mais ou menos como a sua.
O xerife olhou-o durante algum tempo .
S e achas que e u me ' tou nas tintas pra isto , disse , enganas-te redon­
damente , porra.
O rapaz permaneceu imóvel. Levou as costas de um antebraço a um
olho e depois ao outro e voltou-se e tomou a olhar pela janela. Não
havia trânsito na rua. Lá fora, no passeio , duas mulheres estavam a con­
versar em espanhol .
Podes-me dar uma descrição dos cavalos?
Com certeza.
Algum deles tinha ferro?
Um deles tinha. Um chamado Nifío . O papá comprou-o a um mexi­
cano .
O xerife assentiu com a cabeça. Muito bem , disse . Debruçou-se e
abriu uma gaveta da secretária e tirou de lá uma caixa metálica e
pousou-a no tampo da secretária e abriu-a.
Nem eu não te devia de passar prà mão esta papelada, disse . Mas eu
nem sempre faço o que me mandam . Tens lugar pra guardar isto?
Não sei . O que é que aí ' tá?
Papéis . Uma autorização de casamento . Certidões de nascimento . Há
aqui alguns papéis sobre cavalos , mas a maior parte já tem uns anos
valentes . Também aqui tens a aliança de casamento da tua mãe .
Então e o relógio do papá?
Não havia relógio nenhum . Há umas coisas de casa que 'tão com os
Websters . Se quiseres , eu guardo estes papéis no banco . Ainda nem se­
quer nomearam um tutor, por isso não sei que mais hei-de fazer com
eles .
Devia haver papéis sobre o Nifío e sobre um outro cavalo, o B ailey.
O xerife fez rodar a caixa e empurrou-a sobre o tampo da secretária.
O rapaz começou a folhear os documentos .
Quem é Margarita Evelyn Parham? perguntou o xerife .
É a minha irmã.
Onde é que ela ' tá?
Morreu .
1 62 Cormac McCarthy

Porque é que ela tem um nome mexicano?


Deram-lhe o nome da minha avó .
Ele tomou a empurrar a caixa metálica sobre o tampo da secretária e
dobrou novamente ao longo dos seus três vincos os dois papéis que ti­
rara do interior e enfiou-os dentro da camisa.
Só queres isso? perguntou o xerife .
Sim , senhor.
Ele fechou a tampa da caixa e guardou-a na gaveta da secretária e
fechou a gaveta e recostou-se na cadeira e olhou para o rapaz . Não fazes
tenções de voltar lá pra baixo, ou fazes? perguntou .
Ainda não decidi o que vou fazer. Antes de mais nada, tenho de ir
buscar o Boyd .
Ir buscar o Boyd?
Sim, senhor.
O Boyd não vai a lado nenhum.
Se eu for, ele vai .
O Boyd ainda é menor. Não te vão confiar a guarda dele . Raios . Tu
próprio também és menor.
Eu não ' tou a pedir.
Rapaz , não te atravesses no caminho da lei por causa disto .
Não faço tenções disso . Mas também espero que a lei não se atraves­
se no meu caminho .
Tirou o chapéu do joelho e segurou-o fugazmente em ambas as mãos
e depois pôs-se de pé . Agradeço-lhe pelos papéis , disse .
O xerife pôs as mãos nos braços da cadeira, como se fizesse menção
de se levantar, mas permaneceu sentado . Então e as descrições dos ca­
valos? perguntou . Queres escrevê-las pra mim?
E o que é que a gente ganhava com isso?
Não aprendeste a ter maneiras enquanto andaste lá por baixo , pois
não?
Não , senhor. Parece-me que não. Aprendi algumas coisas , mas de
certeza que não aprendi a ter maneiras .
O xerife indicou a janela com um aceno de cabeça. Aquilo é o teu
cavalo lá fora?
É , sim , senhor.
'Tou a ver aquele estojo de bota. Onde é que ' tá a espingarda?
Troquei-a .
E trocaste-a por o quê?
Acho que não sou capaz de dizer.
Diz antes que não queres dizer.
A Travessia 1 63

Não , senhor. O que eu acho é que não consigo dar nome à coisa.
Quando saiu para o sol e desamarrou o cavalo do parquímetro , as
pessoas a passar na rua voltaram-se para o olhar. Uma criatura vinda das
mesetas bravias , saída do passado . Um ser hirsuto, sujo, de olhar famé­
lico e famélico ventre . Totalmente indizível . Naquela figura exótica os
transeuntes contemplavam o que mais invej avam e o que mais abomi­
navam . Embora sentissem carinho por ele , não deixava de ser verdade
que seriam bem capazes de o matar por dá cá aquela palha.

A casa onde o irmão estava a viver situava-se no extremo oriental da


cidade . Uma casita de estuque com um quintal delimitado por uma ve­
dação e um alpendre na parte da frente . Ele amarrou B ird à vedação e
abriu a cancela e avançou pelo caminho acima. O cão contornou a casa
e arreganhou-lhe os dentes e eriçou os pêlos do dorso .
Sou eu , cabeça-de-alho-chocho , disse ele .
Ao ouvir a voz dele , o animal espalmou as orelhas contra a cabeça e
começou a rastejar através do quintal ao seu encontro . Não ladrara e não
ganiu .
Ó da casa! chamou ele .
O cão contorceu-se-lhe contra as pernas . Põe-te a andar, disse ele .
Tomou a chamar, depois subiu para o alpendre e bateu à porta da
frente e esperou . Ninguém veio abrir. Contornou a casa para as traseiras .
Quando tentou abrir a porta da cozinha, verificou que estava destranca­
da, e abriu-a e espreitou para o interior. É o Billy Parham ! gritou .
Entrou e fechou a porta . Olá! chamou . Atravessou a cozinha e parou
no vestíbulo . Preparava-se para chamar de novo quando a porta da co­
zinha se abriu atrás dele . Voltou-se e viu que Boyd estava ali parado .
Imóvel , com um balde de aço numa mão e a outra na maçaneta da por­
ta. Estava mais alto . Encostou-se à ombreira da porta .
Deves de ter achado que eu ' tava morto , disse Billy.
Se eu achasse que tu ' tavas morto , não ' tava aqui .
Fechou a porta e pousou o balde sobre a mesa da cozinha. Olhou
para B illy e olhou pela janela . Quando Billy tomou a falar com ele , o
irmão recusava-se a olhá-lo , mas Billy percebeu que ele tinha os olhos
molhados .
'Tás pronto pra abalar? perguntou .
Claro , respondeu Boyd . 'Tava só à tua espera.
Tiraram uma caçadeira de um roupeiro no quarto de dormir e levaram
dezanove dólares em moedas e notas pequenas de uma caixa de porce-
1 64 Cormac McCarthy

Jana branca que se encontrava dentro da gaveta de uma escrivaninha e


atafulharam o dinheiro todo dentro de um porta-moedas antiquado de
cabedal . Tiraram a manta da cama e procuraram um cinturão e algumas
roupas para B illy e tiraram todos os cartuchos que havia nos bolsos de
um casaco Carhart pendurado na parede , junto à porta das traseiras , um
de chumbo grosso e o resto número cinco e número sete , pegaram num
saco para roupa suja e encheram-no com comida enlatada e pão e tou­
cinho e bolachas de água e sal e maçãs da despensa e saíram de casa e
amarraram o saco ao arção dianteiro da sela e montaram e percorreram
a ruazita arenosa , os dois escarranchados no dorso do animal , com o cão
a trotar atrás . Uma mulher com molas da roupa na boca, num quintal por
onde passaram , dirigiu-lhes um aceno de cabeça . Atravessaram a estra­
da principal e atravessaram os carris da Southem Pacific Railway e
voltaram para oeste . Ao cair da noite estavam acampados nas planuras
alcalinas , vinte e cinco quilómetros a oeste de Lordsburg , diante de uma
fogueira feita de estacas de vedação que tinham arrancado da terra com
o cavalo . A leste e a sul havia água nas planuras , e dois grous-do­
-Canadá encontravam-se parados lá longe sob os derradeiros raios de
luz do dia, presos às suas imagens reflectidas , quais estátuas daquelas
aves num jardim devastado onde uma calamidade tivesse varrido tudo
o resto . Em volta deles , as placazitas ressequidas e gretadas de lama
jaziam a defumar, e a fogueira de estacas corria, esfrangalhada, ao ven­
to , e os papéis dos víveres que eles iam abrindo saltitaram para longe ,
amachucados em bola, um após outro , levados pela ventania para o seio
da escuridão cada vez mais densa.
Alimentaram o cavalo com farinha de aveia que tinham trazido da
casa, e Billy cravou nacos de toucinho ao longo de um pedaço de arame
da vedação e pendurou-os acima do lume . Olhou para Boyd ali sentado ,
com a caçadeira atravessada sobre o regaço .
Tu e o papá ainda conseguiram resolver as vossas questões?
Sim. Mais ou menos pela metade .
Qual metade?
Boyd não respondeu .
O que é que 'tás aí a comer?
Uma sanduíche de passas .
Billy abanou a cabeça. Verteu água do cantil para dentro de uma lata
de frutas em conserva e pousou-a sobre as brasas .
Que é que aconteceu à tua sela? perguntou Boyd .
Billy olhou para a sela com o resguardo mutilado sob o loro do lado
direito , mas não respondeu .
A Travessia 1 65

Eles hão-de vir à caça da gente , disse Boyd .


Deixá-los vir.
Como é que lhes vamos pagar por tudo o que lhes tirámos?
Billy ergueu os olhos para ele . Se calhar o melhor é ires-te habituan­
do à ideia de seres um fora-da-lei , disse .
Mesmo um fora-da-lei não rouba as pessoas que lhe deram guarida e
o trataram bem .
Vamos ter de ouvir essa conversa durante quanto tempo?
Boyd não respondeu . Comeram e desenrolaram as mantas e deitaram­
-se para dormir. O vento soprou durante toda a noite . Consumiu a fo­
gueira e consumiu as brasas da fogueira, e as formas enoveladas e retor­
cidas do arame ao rubro chamejaram por breves instantes como a
armação incandescente de um enorme coração nas trevas da noite e
depois desvaneceram-se e tornaram-se negras , e o vento a soprar redu­
ziu as brasas a cinzas e arrastou as cinzas para longe e esgravatou a ar­
gila onde as brasas e a cinza tinham estado , até que , além do arame
enegrecido , não havia vestígio algum da fogueira, e durante toda a noi­
te passaram entes nas trevas que , sem se darem a conhecer, possuíam
não obstante um destino bem definido .
'Tás acordado? perguntou Billy.
'Tou .
O que é que lhes disseste?
Nada .
Porquê?
De que é que ia servir?
O vento soprava. As areias migratórias passavam a fervilhar.
Billy?
O quê?
Eles sabiam o meu nome .
Sabiam o teu nome?
Chamaram por mim . Chamaram Boyd . Boyd .
Isso não quer dizer nada. Dorme .
Como se a gente fosse amigos .
Dorme .
Billy?
O quê?
Não é preciso tentares fazer a coisa parecer melhor do que é .
Billy não respondeu .
É o que é .
Eu sei . Dorme .
1 66 Cormac McCarthy

Na manhã seguinte, sentaram-se a comer e olharam sobre as planuras


onde uma qualquer criatura se movia articuladamente ao nascer do Sol , lá
longe, na argila cor de aço da playa . Ao fim de um certo tempo, percebe­
ram que era um cavaleiro. Encontrava-se talvez a um quilómetro é. meio e
aproximou-se numa série de imagens esguias e trémulas que, nàqueles
lugares onde o terreno a seus pés estava inundado, aumentavam subita­
mente de altura e depois mirravam e tomavam a lançar-se para o alto , de
tal modo que o cavaleiro parecia avançar e recuar e avançar de novo . O Sol
ergueu-se nos recifes vermelhos de nuvens ao longo da margem oriental , e
o cavaleiro avançou , a cruzar um lago que tinha quinze quilómetros de
largura e dez centímetros de profundidade . Billy levantou-se e foi buscar a
caçadeira e regressou e enfiou-a debaixo da manta e tomou a sentar-se .
O cavalo era da cor do terreno ou este tingira-o até ficar dessa tona­
lidade . O cavaleiro rompeu sobre a água parada e pouco funda, e a água
agitada sob os cascos do cavalo cintilava à luz e eclipsava-se de imedia­
to como chumbo a rodopiar numa tina. Assomou do lago e percorreu
uma rota aos ziguezagues ao longo da margem arenosa repleta de sal­
-gema, por entre os tufos dispersos de erva, até que parou o cavalo cor
de barro diante deles e baixou os olhos para os remirar sob a sombra do
chapéu . Não falou . Olhou para eles e olhou para trás de si , por sobre a
playa , e debruçou-se e escarrou e tomou a olhar para eles . Vocês não
são quem eu pensava que eram , disse .
Quem é que vossemecê pensava que nós éramos?
O cavaleiro ignorou-o . O que é que vocês andam a fazer por aqui?
perguntou .
Não andamos a fazer nada.
Ele olhou para Boyd . Olhou para o cavalo . O que é que tu tens aí
debaixo dessa manta? disse .
Uma caçadeira.
'Tás-te a preparar pra me dar um tiro?
Não , senhor.
Aquele é teu irmão?
Ele tem boca pra responder.
És irmão dele?
Sou , sim .
O que é que vocês ' tão os dois aqui a fazer?
' Tamos de passagem.
De passagem?
Poi s .
D e passagem pra onde?
A Travessia 1 67

Vamos até Douglas , no Arizona.


Ah , sim?
Temos amigos por lá.
E não têm amigos aqui por estas bandas?
Não fomos feitos prà vida na cidade .
Aquele cavalo além é vosso?
É, sim .
Eu sei quem vocês são , disse o homem.
Eles não responderam. O homem olhou para trás de si , ao longo das
planuras do lago seco , onde o fino lençol de água parada jazia como
chumbo na manhã sem vento . Debruçou-se e escarrou de novo e olhou
para Billy.
Vou dizer a Mr Boruff o que vocês me disseram . Que vocês são só
um par de fulanos sem morada certa. Ou então , se preferirem, eu espero
por vocês e podem voltar pra trás comigo .
Nós não vamos voltar pra trás . Mas fico-lhe muito agradecido .
Deixem-me dizer-vos outra coisa, caso não saibam .
Diga lá.
Preparem-se , porque vão ter de suar as estopinhas .
Billy não respondeu .
Que idade tens tu?
Dezassete .
O homem abanou a cabeça . Bom , disse . Passem muito bem .
Diga-me uma coisa, pediu Billy.
O que é.
Como é que nos conseguiu ver assim de tão longe?
Vi o vosso reflexo . Em certas alturas conseguem-se ver coisas ao
longe numa playa que ' tão demasiado distantes pra se verem. Alguns
dos rapazes diziam que vocês eram uma miragem , mas Mr Boruff per­
cebeu que não . Ele conhece bem estas paragens . Sabe o que nelas exis­
te e o que não existe . Eu também .
Tome a olhar nesta direcção dentro duma hora e veja se nos consegue
avistar.
Faço tenções disso .
Lançou um aceno de cabeça a cada um deles separadamente , ali sen-
tados naquela praia erma tão longe do mar, e olhou para o cão mudo .
Esse bicho não vale grande coisa como cão de guarda, pois não?
Cortaram-lhe a garganta.
Eu sei , disse o cavaleiro . Passem muito bem . Em seguida, voltou o
cavalo e arrepiou caminho , a cavalgar através das planuras e através do
1 68 Cormac McCarthy

lago . Cavalgou ao encontro do Sol e cavalgou em silhueta, mas , embo­


ra o Sol estivesse bem alto e já não lhes batesse nos olhos quando eles
próprios montaram e romperam para sul ao longo da orla da bacia, con­
tinuaram a nada avistar na margem oposta do lago , onde o cavaleiro
desaparecera.
Algures a meio da manhã, cruzaram a linha de fronteira com o estado
do Arizona. Seguiram através de uma cadeia baixa de montanhas e des­
ceram para o vale de San Simon onde este rompia do Norte e fizeram a
pausa para almoçar junto ao rio , num bosque de choupos . Peararn e
deram de beber ao cavalo e sentaram-se , nus , dentro do pego pouco
fundo de cascalho . Pálidos , magros , sujos . Billy observou o irmão até
que este ergueu a cabeça e olhou para ele .
Não vale a pena perguntares-me uma data de coisas .
Eu não te ia perguntar nada.
Hás-de perguntar.
Continuaram sentados na água. Sentado na erva, o cão olhava-os .
Ele anda com a s botas do papá calçadas , não anda? lançou Billy.
Pronto , lá ' tás tu .
Tens muita sorte de não teres morrido também.
Não vejo em que é que tive sorte .
Isso é uma coisa ignorante de se dizer.
Tu não sabes .
O que é que eu não sei?
Mas Boyd não explicou o que é que ele não sabia.
Comeram sardinhas e bolachas de água e sal à sombra dos choupos e
dormiram e , de tarde , retomaram a jornada.
A certa altura, pensei que tu tinhas ido prà Califórnia, disse Boyd .
E o que é que eu ia fazer prà Califórnia?
Não sei . Eles têm cowboys lá na Califórnia.
Cowboys da Califórnia.
Eu cá é que não queria ir prà Califórnia .
Nem eu .
Era capaz de ir pro Texas .
Pra quê?
Não sei . Nunca lá ' tive .
Nunca ' tiveste em lugar nenhum . Que raio de motivo é esse , então?
É o único que eu tenho .
Cavalgaram em frente . Nas longas sombras , as lebres irrompiam dos
esconderijos e corriam , saltitantes , e tornavam a imobilizar-se . O cão
mudo não lhes prestava atenção .
A Travessia 1 69

Porque é que as forças da lei não podem ir até ao México? perguntou


Boyd .
Porque as leis americanas não valem nada no México .
Então e as leis mexicanas?
O México é uma terra sem lei . É um bando de malfeitores , mais nada.
Um cartucho de chumbo número cinco mata um homem?
Mata, se te aproximares o suficiente . Faz um buraco que dá pra en­
fiares lá um braço .
À tardinha, atravessaram a estrada principal mesmo a leste de Bowie
e chegaram à estrada velha para sul que cruzava a serra de Dos Cabezas .
Acamparam e B illy apanhou lenha ao longo de um arroyo de pedra
pouco profundo e comeram e sentaram-se diante do lume .
Achas que vêm atrás de nós? perguntou Boyd .
Não sei . São capazes disso .
Debruçou-se e remexeu as brasas com um pau e enfiou o pau no fogo .
Billy observava-o .
Não nos apanham .
Eu sei .
Porque é que não dizes o que te vai na cabeça.
Não me vai nada na cabeça.
Ninguém teve a culpa.
Boyd fitava as chamas . Coiotes latiam lá longe , ao longo da cumeei-
ra, a norte do acampamento .
Vais dar contigo em maluco , mais nada, disse Billy.
Já dei .
Ergueu os olhos . O cabelo claro parecia branco . Parecia ter catorze
anos , à beira de atingir uma idade qualquer que nunca existiu. Dir-se-ia
que estivera ali sentado e Deus criara as árvores e os penedos em volta
dele . Parecia a sua própria reencarnação e depois novamente a reencar­
nação dessa reencarnação . Acima de tudo , parecia repleto de uma terrí­
vel tristeza . Como se fosse portador das novas de uma horrenda perda
de que mais ninguém ouvira ainda falar. Uma qualquer vasta tragédia
que não se traduzia em factos nem em incidentes nem em peripécias ,
mas sim na essência do próprio mundo .
No dia seguinte , cruzaram a garganta alpestre de Apache Pass . Boyd
seguia sentado atrás dele , com as pernas finas a baloiçar sobre os flan­
cos do cavalo , e, juntos , contemplaram a paisagem a sul . Era um dia
ensolarado e soprava vento e havia corvos nas montanhas a vogar nas
correntes ascendentes, sobre as encostas voltadas a sul .
Ora aqui ' tá mais um lugar onde tu nunca ' tiveste , comentou B illy.
1 70 Cormac McCarthy

'Tão por todo o lado , verdade?


Vês aquela linha além, onde a cor muda?
Vejo.
É o México .
Não me parece que se ' teja a aproximar.
O que é queres dizer com isso?
Quero dizer que vamos tocar prà frente , se queremos lá chegar.
Ao meio-dia do dia seguinte deram com a estrada 666 e seguiram a
faixa de asfalto que descia do vale de Sulphur Springs. Atravessaram o
povoado de Elfrida . Atravessaram o povoado de MeNeai . À tardinha,
cavalgaram pela rua principal de Douglas e detiveram-se diante da
choupana que fazia as vezes de posto fronteiriço . O guarda encontrava­
-se à porta e saudou-os com um aceno de cabeça. Olhou para o cão .
Onde é que ' tá o Gilchrist? perguntou B illy.
'Tá de folga. Só volta amanhã de manhã.
Posso deixar dinheiro pra ele?
Claro . Podes deixar o dinheiro .
Dá-me meio dólar, Boyd .
Boyd pescou do bolso a bolsa de cabedal dos trocos e abriu-lhe o
fecho com um estalido . O dinheiro estava todo em moedas de cinco e
dez cêntimos e de um cêntimo , e ele contou as moedas necessárias e
fê-las deslizar para a concha da mão e passou-as a Billy por cima do
ombro deste . B illy pegou nas moedas e espalhou-as sobre a palma da
mão com o dedo espetado e tornou a contá-las e depois tornou a juntá­
-las na concha da mão e baixou-se e estendeu-as no punho fechado .
Eu devo-lhe meio dólar.
Muito bem , disse o guarda.
B illy tocou na aba do chapéu com o dedo indicador e tocou o cavalo
para diante .
Vocês levam esse cão com vocês? perguntou o guarda.
Se ele quiser vir.
O guarda ficou a vê-los afastarem-se , com o cão a trotar atrás . Atra­
vessaram a pontezinha. O guarda mexicano ergueu o rosto para eles e
fez-lhes sinal para avançarem , e eles penetraram em Agua Prieta.
Eu sei contar, disse Boyd .
O quê?
Eu sei contar. Não havia necessidade de tu contares o dinheiro segun­
da vez .
B illy voltou-se e olhou para ele e tornou a virar-se para diante .
Muito bem , disse . Não volto a fazer o mesmo .
A Travessia 171

Compraram paletas de gelado a u m vendedor ambulante e sentaram­


-se no lancil do passeio , aos pés do cavalo , e ficaram a ver a povoação
ganhar vida ao cair da noite . O cão jazia, inquieto , na poeira diante de­
les , enquanto os cães da vila passavam e descreviam círculos com o
dorso arqueado , a farejarem-lhe o cheiro .
Compraram farinha e feijão seco numa mercearia e sal e café e frutos
secos e malaguetas secas e compraram uma pequena frigideira esmalta­
da e uma panela com tampa e uma caixa de fósforos de cozinha e alguns
utensílios e trocaram por pesos o dinheiro que lhes restava.
Agora ' tás rico , disse B illy.
É só fogo de vista, como aqueles pretos a fazer de ricos , disse Boyd .
Temos mais dinheiro do que eu tinha quando vim até cá abaixo .
Isso não me serve de grande consolo .
Abandonaram a estrada no extremo sul da vila e seguiram o rio ao
longo do seu curso de seixos rolados cinzento-claros até ao seio do de­
serto e acamparam no escuro . Billy preparou-lhes o jantar e comeram e
sentaram-se a olhar o fogo .
Tens de parar de pensar nisso , disse Billy.
Eu não 'tou a pensar nisso .
Então ' tás a pensar em quê?
Em nada.
Isso é difícil .
Então e se te acontecesse alguma coisa?
Não ' tejas sempre a pensar no que podia acontecer.
Mas se acontecesse?
Tu podias voltar pra trás .
Pra casa dos Websters?
Pois.
Depois de os termos roubado e isso tudo?
Tu não os roubaste . Pensei que não ' tavas a pensar em nada.
E não ' tou . Só fiquei um bocado preocupado .
B illy debruçou-se e escarrou para dentro da fogueira. Vais ver que
ficas bem .
Eu ' tou bem agora.
Cavalgaram durante todo o dia seguinte ao longo do rio secular no
seu leito de pedras e, quando a tarde começava a declinar, entraram no
lugarejo de Ojito , na berma da estrada. Boyd estivera a dormir, com o
rosto contra as costas do irmão , e endireitou-se , todo transpirado e
amarrotado , e pegou no chapéu que esborrachara no regaço , entre am­
bos , e pô-lo na cabeça.
1 72 Cormac McCarthy

Onde é que nós ' tamos? perguntou .


Não sei .
Tenho fome .
Eu sei . Eu também .
Achas que eles têm aqui alguma coisa que se coma?
Não sei .
Pararam o cavalo diante de um homem num umbral de lama seca a
esfarelar-se e perguntaram-lhe se havia alguma coisa que se comesse na
aldeia, e o homem reflectiu alguns momentos e depois disse que lhes
podia vender uma galinha. Eles prosseguiram . No ponto onde a estrada
vazia penetrava no deserto , a sul , uma tempestade estava a levantar-se
e a paisagem tinha uma aparência azulada sob as nuvens e os fios del­
gados dos relâmpagos que se erguiam repetidamente acima das agrestes
montanhas azuis , ao longe , irrompiam no silêncio absoluto como uma
tempestade numa campânula de vidro . A tempestade apanhou-os ime­
diatamente antes do cair da noite . A chuva abateu-se através do deserto
em chicotadas ferozes , a afugentar bandos de rolas bravas diante de si ,
e eles penetraram numa muralha de água e ficaram encharcados de ime­
diato . Cem metros mais adiante , desmontaram e ficaram parados num
maciço de árvores na berma, a segurar o cavalo e a contemplar a chuva
a rugir na lama. Quando a tempestade passou , reinava em volta deles o
negrume absoluto da noite , e eles ficaram nas trevas sem estrelas , per­
corridos por calafrios , à escuta da água a gotejar no silêncio .
O que é que queres fazer agora? perguntou Boyd .
Montar e seguir adiante , calculo .
Este cavalo ' tá horrorosamente encharcado prà gente lhe trepar pro
lombo .
Ele é capaz de dizer o mesmo acerca de ti .
Passava da meia-noite quando cavalgaram através do povoado de
Morelos . As candeias iam-se apagando pela rua fora, como se eles trou­
xessem as trevas consigo . Ele embrulhara o casaco em volta de Boyd , e
Boyd cabeceava, adormecido , contra as suas costas , e o cavalo avança­
va pela lama com ruídos de sucção , de cabeça baixa, e o cão zigueza­
gueava diante deles por entre as poças de água estagnada e meteram
então pela estrada para sul por onde ele seguira os peregrinos até à feira ,
na Primavera daquele mesmo ano , há já tanto tempo .
Passaram o que restava da noite num jacal a dois passos da estrada e ,
n a manhã seguinte , atearam uma fogueira e prepararam o pequeno­
-almoço e secaram as roupas e depois selaram o cavalo e meteram de
novo pela estrada para sul . Ao fim de mais três dias de assim cavalga-
A Travessia 173

rem, há já sete dias naquele país , depois de atravessarem, uma por uma,
as miseráveis vilórias de lama seca ao longo do rio , entraram na vila de
Bacerac . Diante de uma casa caiada , debaixo da copa de um sabugueiro ,
estavam dois cavalos parados de cabeça baixa. Um deles era um grande
macho castrado de pêlo rosilho , com um ferro recente na garupa esquer­
da, e o outro era Keno , o cavalo deles , aparelhado com uma sela mexi­
cana trabalhada.
Olha além , disse Boyd .
Já o vi . Desmonta.
Boyd deslizou do cavalo e Billy desmontou e passou-lhe as rédeas e
puxou a caçadeira do estojo da sela. O cão parara na estrada e estava a
olhá-los , de cabeça voltada. Billy abriu a culatra da caçadeira para se
certificar de que estava carregada e tornou a fechá-la e olhou para Boyd .
Leva o cavalo até acolá e não te metas no caminho .
'Tá bem .
Ficou a ver enquanto Boyd levava o cavalo à brida até ao lado opos­
to da rua e depois voltou-se e encaminhou-se para a casa. O cão ficou a
olhar ora para um , ora para outro , até que Boyd o chamou com um as­
sobio .
Ele caminhou em volta do cavalo e afagou-lhe o pescoço , e o cavalo
empurrou-lhe a fronte contra a camisa e soltou contra ele um longo
resfolegar adocicado . Ele apoiou a caçadeira contra o sabugueiro e er­
gueu o estribo e pendurou-o no chifre do cepilho e puxou o fatigo e
soltou a correia e soltou também a cilha traseira e agarrou a sela pelo
chifre e pela patilha e ergueu-a nas mãos e pousou-a no chão . Em segui­
da, puxou do dorso do cavalo o cobrejão e pendurou-o sobre o chifre do
cepilho e pegou na caçadeira e desamarrou o cavalo e conduziu-o até ao
lado oposto da rua , onde Boyd se encontrava à espera .
Tornou a enfiar a caçadeira no estojo e olhou de novo na direcção da
casa. Monta o Bird , disse .
Boyd escarranchou-se na sela e olhou de alto para ele .
Leva os cavalos por aí acima e não deixes que te vejam da casa.
Encontro-me contigo no extremo sul da vila. Esconde-te , mais nada. Eu
dou contigo .
O que é que tencionas fazer?
Quero ver quem ali ' tá dentro .
Então e se forem eles?
Não são .
Quem é que achas que ali ' tá dentro?
Não sei . Acho que morreu alguém . Agora vai andando .
1 74 Cormac McCarthy

É melhor levares a caçadeira.


Não preciso . Vai-te embora.
Viu-o cavalgar pela estreita rua de terra batida acima e depois voltou­
-se e caminhou de regresso à casa.
B ateu à porta e ficou parado com o chapéu nas mãos . Ninguém veio
abrir. Tomou a pôr o chapéu e caminhou ao longo da parede e empurrou
um velho portão para carros feito de madeira gasta, mas o portão tinha
uma barra a trancá-lo . Olhou para o alto do muro . Havia fundos partidos
de garrafa ali embutidos nos tijolos de lama seca. Ele sacou da navalha
e enfiou-a entre os dois batentes do portão e começou a fazer deslizar a
velha tranca de madeira ao longo dos batentes , um centímetro de cada
vez , até que a extremidade se soltou do encaixe e ele empurrou o portão
para o abrir e cruzou o limiar e tomou a fechá-lo . Não se viam marcas
de coisas a arrastar na poeira , nada entrara nem saíra. Havia galinhas
empoleiradas numa árvore em plena luz do dia. Cruzou o pátio até às
traseiras da casa e deteve-se no vão de uma porta que dava para um
longo corredor. Num banco baixo viam-se vasos de barro com plantas
que tinham sido regadas havia pouco , e a terra estava molhada e os la­
drilhos por baixo do banco estavam molhados . Tomou a tirar o chapéu
e caminhou ao longo do corredor e parou diante da porta no extremo
oposto . Num quarto mergulhado na penumbra, uma mulher encontrava­
-se deitada numa cama. Em volta dela viam-se figuras gémeas envoltas
em rebozos escuros . Sobre uma mesa ardia uma vela.
A mulher na cama jazia de olhos fechados , a segurar nas mãos um
rosário de vidro . Estava morta. Uma das mulheres ajoelhadas voltou a
cabeça e olhou para ele . Em seguida, olhou para uma parte da divisão
que ele não conseguia ver. Ao fim de um certo tempo , um homem saiu
a vestir o casaco e dirigiu um aceno de cabeça educado ao rapaz parado
à porta.
Quién es ? perguntou .
Era alto e loiro e falava espanhol com sotaque estrangeiro. B illy
desviou-se para o lado e ficaram parados no corredor.
Estaba su caballo enfrente de la casa ?
O homem imobilizou-se , com o casaco suspenso de um ombro .
Olhou para B illy e olhou para o fundo do corredor. Estaba ? disse .

Encontrou Boyd escondido com os cavalos numa mancha de carrizo


à beira do rio , a sul da povoação .
Qualquer um podia ter dado contigo aqui , disse-lhe .
A Travessia 1 75

Boyd não respondeu . B illy agachou-se no chão e partiu uma cana e


tomou a parti-la entre as mãos .
É um médico alemão . Tinha uma factura para o cavalo. Ou disse que
tinha. Disse que tinha papéis passados por um negociante de cavalos de
Casas Grandes chamado Soto .
Boyd mantivera-se de pé , a segurar a caçadeira. Tomou a enfiá-la no
estojo e debruçou-se e escarrou . Bom , disse . Sejam lá quais forem os
papéis que ele tem , sempre é mais do que nós temos .
Nós temos o cavalo .
De pé , Boyd olhava para além do cavalo , para o rio que corria. Eles
vão-nos dar um tiro , disse .
Anda lá, disse B illy. Vamos embora.
Entraste-lhe pela casa dentro e pronto?
Poi s .
O que é que lhe disseste?
Vamos embora. Não viemos até cá pra nos divertirmos .
O que é que tu lhe disseste .
Disse-lhe a verdade . Disse-lhe que o cavalo dele foi roubado por ín-
dios .
E onde é que ele 'tá agora?
Levou o cavalo do mozo e cavalgou rio abaixo pra lhes dar caça.
la armado?
Sim . la armado , poi s .
O que é que nós vamos fazer?
Vamos até Casas Grandes .
E onde é que isso fica?
Não sei .
Deixaram Keno no matagal com duas peias e o cão amarrado a ele e
regressaram à vila no outro cavalo . Sentaram-se no chão na praça poei­
renta enquanto um velho magro , acocorado em frente , desenhava para
eles , usando um pau aguçado , um retrato da região que eles disseram
desejar visitar. Esboçou na poeira os rios e os promontórios e os pueblos
e as cadeias montanhosas . Começou a desenhar árvores e casas . Nu­
vens . Uma ave . Traçou também os próprios cavaleiros , ambos escarran­
chados sobre a mesma montada. B illy debruçava-se de vez em quando
para indagar a dimensão de uma ou outra parcela do caminho a percor­
rer, e , nesses momentos , o homem voltava-se e remirava com pálpebras
franzidas o cavalo parado na rua e depois dava uma resposta em horas .
Enquanto este conciliábulo ia decorrendo , quatro homens vestidos com
fatos vetustos e desbotados do sol permaneciam sentados num banco , a
1 76 Connac McCarthy

um metro ou dois dali . Quando o velho terminou , o mapa que desenha­


ra cobria na terra uma área do tamanho de uma manta. Pôs-se de pé e
sacudiu a poeira dos fundilhos das calças com um gesto da mão aberta.
Dá-lhe um peso , disse Billy.
Boyd pescou o porta-moedas do bolso e abriu-lhe o fecho e tirou de
lá uma moeda e Billy deu-a ao velho e o velho aceitou-a com elegâr�cia
e dignidade e tirou o chapéu e tornou a pô-lo na cabeça e trocou apertos
de mão com eles os dois e guardou a moeda no bolso e virou costas e
afastou-se através do pequeno zócalo crestado do sol e eclipsou-se rua
acima sem olhar para trás . Quando ele desapareceu da vista, os homens
no banco começaram a rir. Um deles levantou-se para melhor ver o
mapa.
Es un fantasma , comentou .
Fantasma ?
Sí, sí. Claro .
Cómo ?
Cómo ? Porque el viejo está loco es como .
Loco ?
Completamente .
Billy ficou a olhar para o mapa, ali parado . No es correcto ? indagou .
O homem ergueu as mãos ao céu . Disse que o que ali estavam a ver
não passava de um ornato . Disse que , fosse como fosse , a questão não
era tanto saber se o mapa era correcto , mas saber se algum mapa tinha
validade . Disse que naquela região havia incêndios e terramotos e inun­
dações , e que a pessoa tinha de conhecer a região em si e não somente
os pontos de referência nela existentes . Além do mais , disse , quando é
que aquele velho viajara até àquelas montanhas pela última vez? Ou
viajara para onde quer que fosse? O mapa dele , bem vistas as coisas ,
mais do que um mapa, era o desenho de uma jornada. E que jornada era
essa? E quando?
Un dibujo de un viaje , disse . Un viaje pasado, un viaje antiguo .
Ergueu uma mão num gesto de renúncia. Como se não se pudesse
dizer mais nada. Billy olhou para os três outros homens no banco . Eles
olhavam-no com um certo brilho nos olhos , de tal modo que ele se in­
terrogou se não estariam a fazer troça dele . Mas o que estava sentado à
direita curvou-se para diante e sacudiu a cinza do cigarro e dirigiu-se ao
homem de pé e disse que , no que tocava a viagens , havia certamente
outros perigos numa jornada , para além do risco de nos perdermos .
Disse que os planos eram uma coisa e as viagens outra . Declarou que
era um erro fazer pouco caso da boa vontade inerente ao desejo do velho
A Travessia 1 77

em guiá-los , pois também isso tinha de ser tido em conta, e , só por si ,


dar-lhes-ia força e determinação na sua jornada.
O homem que estava de pé ponderou estas palavras e depois apagou­
-as no ar diante de si com um gesto vagaroso do indicador espetado ,
qual leque . Disse que dificilmente se poderia esperar que , no que dizia
respeito ao mapa, os jóvenes lhe atribuíssem crédito . Afirmou que , em
qualquer caso , um mau mapa era pior do que mapa nenhum, pois engen­
drava no viajante uma falsa segurança e poderia facilmente levá-lo a pôr
de parte os instintos que de outra forma o guiariam, caso lhes confiasse
o seu destino . Disse que seguir um falso mapa era propiciar o desastre .
Indicou o mapa desenhado na terra com um gesto . Como que a convidá­
-los a darem-se conta da respectiva futilidade . O segundo homem no
banco assentiu com a cabeça em sinal de concordância com estas pala­
vras e disse que o mapa em questão era um desvario e que os cães na
rua lhe iriam mijar em cima. Mas o homem à direita limitou-se a sorrir
e retrucou que , lá por isso , os cães também lhes iriam mijar nas sepul­
turas , e o que é que isso demonstrava?
O homem de pé disse que um argumento válido para um caso era
válido para todos os outros e que , fosse como fosse , as nossas sepulturas
nada reivindicam para além das suas simples coordenadas e não dão
conselhos acerca do modo de lá chegar, somente a garantia de que lá
chegaremos . Podemos até pensar que aqueles que jazem em sepulturas
profanadas - por cães ou seja lá de que modo for - talvez fossem
portadores de palavras de aviso mais sensatas e mais apropriadas às
realidades do mundo . Ante isto , o homem à esquerda, que até então não
dissera uma palavra, ergueu-se a rir e, por meio de gestos , indicou aos
rapazes que o seguissem , e estes acompanharam-no para fora da praça
e entraram na rua, deixando os contendores entregues à sua rústica ter­
tu/ia de banco de jardim. Billy desamarrou o cavalo e ficaram parados
enquanto o homem lhes apontava o trilho para leste e lhes descrevia
certos pontos de referência nas montanhas , dizendo-lhes que o trilho
terminava num lugar chamado Las Ramadas e que teriam de confiar na
sua sorte ou na sua amizade com Deus para atravessarem a cadeia mon­
tanhosa até Los Horcones . Apertou-lhes as mãos e sorriu e desejou-lhes
boa sorte , e eles perguntaram a que distância ficava Casas Grandes , e
ele ergueu uma mão com o polegar recolhido sobre a palma. Cuatro
días , disse . Olhou na direcção da praça, onde os outros homens estavam
ainda a interpelar-se mutuamente , e disse que naquela mesma noite te­
riam de ir ao funeral da mulher de um amigo e que o estado de espírito
deles era idiosincrático e que não ligassem ao que eles tinham dito .
1 78 Cormac McCarthy

Acrescentou que a experiência lhe ensinara que , ao invés de tornar os


homens pensativos ou sensatos , a morte os conduz muitas vezes a atri­
buir grande importância a coisas triviais . Perguntou se eles eram irmãos
e eles responderam que sim e ele aconselhou-os a velarem um pelo
outro neste mundo . Tornou a indicar as montanhas com um aceno de
cabeça e disse que os serranos tinham bom coração , mas que noutros
lugares já não era bem assim . Em seguida, desejou-lhes novamente boa
sorte e pediu a Deus que os acompanhasse e deu um passo atrás e er­
gueu a mão num gesto de despedida.
Quando ficaram fora do alcance da vista dos velhos , abandonaram a
estrada e desceram até ao rio e seguiram o carreiro ribeirinho até reco­
lherem o outro cavalo e o cão . Boyd montou Keno e assim cavalgaram
até chegarem ao vau , onde atravessaram o rio e meteram pela estrada
para leste , em direcção às montanhas .
A estrada, se é que merecia tal nome , em breve deixou de o ser. No
ponto em que abandonava o rio tinha a largura de uma carroça ou mais
e, em tempos recentes , fora raspada ou nivelada com um aplainador e o
mato desbastado nas bermas , mas , mal se afastava da povoação , os res­
ponsáveis por esta empresa pareciam ter perdido o ânimo , e eles deram
por si num banal caminho pedestre , seguindo o curso de um arroyo
seco ao encontro do alto dos montes . Logo após o anoitecer, depararam
com uma pequena propriedade , um aglomerado de cabanas feitas de
estacas cravadas no chão sobre uma trinchera ou terraço sustentado por
pedregulhos . Acamparam logo acima deste lugar, no troço de terreno
plano seguinte , e pearam os cavalos e atearam uma fogueira. Abaixo
deles, por entre os pinheiros e os zimbros raquítico s , avistavam a luz
amarela de uma casa. Um pouco mais tarde , enquanto coziam uma pa­
nela de feijão , um homem caminhou estrada acima, trazendo uma can­
deia. Chamou-os da estrada, e B illy avançou até ao ponto onde a caça­
deira se encontrava encostada a uma árvore e chamou-o por sua vez ,
dizendo-lhe que se aproximasse . O outro veio até junto do lume e parou .
Olhou para o cão .
Buenas noches , saudou .
Buenas noches .
Son Americanos ?
Sí.
O homem ergueu a candeia. Olhou para as silhuetas dos cavalos , do
lado oposto da fogueira.
Dónde está el caballero ?
No hay otro caballero más que nosotros , respondeu Billy.
A Travessia 1 79

O olhar do homem errou sobre os seus magros haveres . Billy sabia


que o tinham mandado para os convidar a irem até à casa, mas ele não
o fez . Trocaram algumas frases acerca de coisas insignificantes, e de­
pois o homem pediu licença para se retirar. Tornou a encaminhar-se
para a estrada, e, através das árvores , eles viram-no a levantar a candeia
até junto do rosto e a erguer o vidro pela pega e a apagar a chama com
um sopro . Em seguida, desceu até à casa no escuro .
No dia seguinte , a sua rota conduziu-os até às montanhas que deli­
mitavam o vale do rio B avispe sob a vertente ocidental . O trilho
tornou-se ainda mais agreste , com desabamentos onde os cavaleiros se
viam obrigados a desmontar e a conduzir à brida os cavalos , calcorre­
ando a custo o leito estreito do arroyo e subindo pelo caminho aos zi­
guezagues , e havia lugares onde o trilho divergia e escolas de pensa­
mento separadas se perdiam através dos pinheiros e dos carvalhos-anões .
Acamparam nessa noite num trecho de floresta que ardera h á muito
tempo , entre os esqueletos das árvores e entre as formas dos penedos
que se tinham partido ao meio no terramoto , meio século antes , e que ,
ao escorregarem pela montanha abaixo sobre as superfícies de fractura ,
fazendo roçar pedra contra pedra , tinham ateado o lume com que ha­
viam queimado vivos os bosques . Os troncos das árvores , partidos e j á
sem ramos , erguiam-se e m todos os ângulos possíveis , alvacentos e
mortos ao lusco-fusco , e ao lusco-fusco pequenos mochos voaram no
mais absoluto silêncio aqui e acolá através da clareira que se ia cobrin­
do de treva.
Eles sentaram-se junto à fogueira e cozinharam e comeram o touci­
nho restante com o feijão e as tortillas e dormiram no chão , embrulha­
dos nas mantas , e o vento entre a estacaria morta e cinzenta em volta
deles não produzia som algum e os mochos ao piarem na noite lança­
vam piados suaves e diluídos como o arrulhar de rolas .
Cavalgaram durante dois dias pelas terras altas . Caiu uma chuva miú­
da. Estava frio , e cavalgaram com as mantas em volta do corpo , e o cão
trotava adiante , qual farroupo mudo e tresloucado de badalo ao pescoço
a conduzir o rebanho , e o bafo das narinas dos cavalos formava pena­
chos muito brancos no ar rarefeito . B illy ofereceu-se para se revezarem
a montar o cavalo selado , mas Boyd disse que preferia montar Keno ,
com ou sem sela. Quando Billy propôs então que trocassem a sela para
o outro cavalo , Boyd limitou-se a abanar a cabeça e cravou os tacões
das botas nas ilhargas do animal para o incitar.
Cavalgaram através das ruínas de velhas serrações e cavalgaram
através de um prado de montanha salpicado com os cepos escuros de
1 80 Cormac McCarthy

árvores . Do outro lado do vale , à tardinha , com o sol a bater na encos­


ta , avistaram as escórias de uma antiga mina de prata , e , acampada em
cabanas de junco por entre as formas enferrujadas de máquinas vetus­
tas , uma família de mineiros ciganos que explorava a galeria abando­
nada e cujos membros agora se perfilavam , grandes e pequenos , sem
ordem aparente , diante da fogueira nocturna para cozinhar, a ver pas­
sar os cavaleiros ao longo da vertente oposta e a proteger os olhos do
sol com as mãos em pala, qual destacamento de militares andrajosos
e enlouquecidos na parada . Nesse mesmo final de tarde , ele abateu um
coelho e pararam à luz oblíqua da montanha e atearam uma fogueira
e cozinharam o coelho e comeram-no e deram as tripas ao cão e de­
pois os ossos e, quando acabaram , ficaram sentados , a remirar as
brasas .
Achas que os cavalos sabem onde nós ' tamos? perguntou Boyd .
O que é que queres dizer com isso?
Ele ergueu os olhos do lume . Queria saber se tu achas que eles sabem
onde nós ' tamos .
Mas que raio de pergunta é essa?
Bom . Acho que é uma pergunta sobre cavalos e sobre o que é que eles
sabem do lugar onde ' tão .
Raios , eles não sabem nada . 'Tão numas montanhas algures . Queres
saber se eles sabem que ' tão no México , é isso?
Não . Mas se nós ' tivéssemos no alto dos montes Peloncillos ou nou­
tro lugar assim , eles percebiam onde ' tavam . Conseguiam dar com o
caminho de regresso , se a gente os soltasse .
'Tás-me a perguntar se eles conseguiam dar com o caminho de volta
a partir daqui se os soltássemos?
Não sei .
Bom, então o que é que me ' tás a perguntar.
'Tou a perguntar se eles sabem onde é que ' tão .
B illy fitou as brasas . Não faço ideia do que é que tu ' tás praí a dizer,
chiça .
Bom. Deixa ' tar.
Queres dizer que eles assim a modos que têm uma imagem na cabeça
do lugar onde fica o rancho?
Não sei .
Mesmo que tivessem , não queria dizer que o conseguissem achar.
Eu não disse que eles o conseguiam achar. Talvez conseguissem e
talvez não .
Não conseguiam seguir o caminho de regresso todo até a casa. Raios .
A Travessia 181

Não me parece que eles voltassem pra trás pelo mesmo caminho .
Acho que eles sabem onde os lugares ficam , mais nada.
Bom , nesse caso sabes mais do que eu .
Eu não disse isso .
Não , fui eu que disse .
Olhou para Boyd . Este encontrava-se sentado com a manta sobre os
ombros e as botas baratas cruzadas diante de si. Porque é que não te
deitas? perguntou ele .
Boyd debruçou-se e escarrou para o seio das brasas . Ficou a ver a
saliva fervilhar. Porque é que não te deitas tu , retorquiu .
Quando partiram , na manhã seguinte , ainda brilhava uma luz cinzen­
ta . Neblina a mover-se através das árvores . Fizeram-se ao caminho para
ver o que o dia lhes iria trazer e, ao cabo de menos de uma hora, para­
ram os cavalos no bordo oriental da escarpa e ficaram a ver enquanto o
Sol inchava como vidro candente lá longe , acima das planuras de
Chihuahua, para criar novamente o mundo a partir das trevas .
Ao meio-dia estavam outra vez na pradaria, a romper através de erva
mais suculenta do que toda a que tinham visto até ali , a romper através
de tallo azul e através de banderilla . De tarde , avistaram, lá longe , a sul ,
uma paliçada erecta de ciprestes esguios e verdes e os muros brancos e
esguios de uma hacienda . A cintilar no calor como um navio branco no
horizonte . Distante e incognoscível . Billy voltou-se para olhar para
Boyd , para ver se ele tinha visto , mas Boyd estava a fitar aquela apari­
ção enquanto cavalgava. A hacienda cintilou e perdeu-se no calor e
depois reapareceu logo acima do horizonte e ficou ali a pairar, suspensa
no céu . Quando ele tomou a olhar, desaparecera por completo .
No longo crepúsculo , conduziram os cavalos à brida para os refres­
carem . Havia uma mancha de árvores a meia distância, e eles tomaram
a montar e seguiram nessa direcção . O cão trotava adiante com a língua
pendida, e a extensão da pradaria cada vez mais sombria afundava-se
em volta deles , fresca e azul , e as formas das montanhas que tinham
abandonado erguiam-se atrás deles , negras e sem dimensão , contra o
céu do final da tarde .
Mantiveram as árvores a contraluz diante deles e , à medida que se
aproximavam da clareira, foram afugentando das suas camas as silhue­
tas gemebundas dos bois . Os bois abanavam o pescoço e afastavam-se
a trote no escuro , e os cavalos farejavam o ar e a erva calcada. Eles pi­
caram os cavalos para o meio das árvores , e os cavalos abrandaram a
marcha e pararam e depois avançaram em passo cuidadoso até entrarem
na água escura e parada.
1 82 Cormac McCarthy

Pearam Bird e depois prenderam Keno a uma estaca num lugar onde
ele manteria as vacas afastadas deles enquanto dormissem . Nada tinham
para comer e não fizeram lume , apenas se embrulharam nas mantas ,
deitados no chão . Por duas vezes , durante a noite , enquanto pastava, o
cavalo passou-lhes por cima a corda que o amarrava, e ele acordou e
ergueu a corda acima do irmão ali deitado a dormir e tomou a pousá-la
na erva. Jazia no escuro , embrulhado na manta, e ficou à escuta dos
cavalos a cortarem a erva com os dentes e sentiu o cheiro agradável e
intenso do gado e depois adormeceu de novo .
Ao amanhecer, estavam sentados , nus , na água escura da ciénaga ,
quando um grupo de vaqueros se acercou a cavalo . Deram de beber às
montadas no extremo oposto e lançaram-lhes acenos de cabeça e
deram-lhes os bons-dias e , escarranchados nos cavalos que iam beben­
do , enrolaram cigarros e contemplaram a paisagem .
Adónde van ? perguntaram em voz alta.
A Casas Grandes , respondeu B illy.
Eles fizeram que sim com a cabeça. Os cavalos levantaram os foci­
nhos gotejantes e remiraram sem grande curiosidade as silhuetas alva­
centas agachadas na água e baixaram as cabeças e beberam de novo .
Quando estavam prontos para partir, os vaqueros desejaram-lhes boa
viagem e voltaram os cavalos para longe da ciénaga e lançaram-nos a
trote através do arvoredo e romperam pela planura para sul , pelo mesmo
caminho que os conduzira até ali .
Eles lavaram as roupas com raiz de iúca e penduraram-nas a secar
numa acácia, de onde os espinhos não as deixariam voar para longe .
Roupas já muito gastas pela região que vinham atravessando e que qua­
se não tinham forma de remendar. As camisas quase transparentes , a
dele já a esgaçar-se pelo centro das costas abaixo . Desenrolaram as
mantas e deitaram-se , nus , debaixo dos choupos , e dormiram com os
chapéus a cobrirem-lhes os olhos enquanto as vacas se aproximavam
pelo meio das árvores e ficavam paradas a olhá-los .
Quando ele acordou , Boyd estava sentado , a olhar ao longe por entre
o arvoredo .
O que é?
Olha acolá.
Ele soergueu-se e olhou para o lado oposto da ciénaga . Três crianças
índias estavam acocoradas nos caniços , a observá-los . Quando ele se
pôs de pé , com a manta em volta dos ombros , elas fugiram a correr.
Onde é que ' tá o cão , chiça?
Não sei . Que é que ' tavas à espera que ele fizesse?
A Travessia 1 83

Para além das árvores assomava fumo de lenha, e ele ouvia vozes .
Aconchegou a manta em volta de si e afastou-se e foi buscar as roupas
de ambos e regressou .
Eram tarahumaras e viajavam a pé , como sempre faziam os da sua
raça, e estavam a regressar às sierras . Não conduziam rebanhos de ga­
do , não tinham cães . Não falavam espanhol . Os homens usavam panos
brancos a cingirem-lhes os rins e chapéus de palha e pouco mai s , mas
as mulheres e as raparigas envergavam vestidos de cores garridas , com
muitos saiotes por baixo . Alguns calçavam huaraches , mas na sua
maioria andavam descalços , e os pés , calçados ou não , eram rombos e
semelhantes a mocas e cheios de grossos calos . Os seus aprestos esta­
vam embrulhados em fardos de pano tecido à mão , tudo empilhado
debaixo de uma árvore , juntamente com meia dúzia de arcos de madu­
ra e aljavas de couro de cabra com longas flechas feitas de juncos guar­
dadas lá dentro .
As mulheres junto à fogueira para cozinhar olharam-nos com pouco
interesse , ali parados na orla da clareira, vestidos com os seus andrajos
acabados de lavar. Um velho e um rapazito estavam a tocar violinos ar­
tesanais e o garoto parou de tocar, mas o velho continuou . Há já mil anos
que os tarahumaras vinham ali fazer aguada, e uma boa parte do que se
podia ver no mundo passara por aquele lugar. Espanhóis de armadura e
caçadores e peleiros e fidalgos de alta estirpe e as suas esposas e os seus
escravos e fugitivos e exércitos e revoluções e os mortos e os moribun­
dos . E tudo o que eles viam iam narrando , e tudo o que narravam recor­
davam . Dois órfãos pálidos e famélicos vindos do Norte com chapéus
desmesurados eram fáceis de incorporar na história. Eles sentaram-se no
chão , um pouco afastados dos outros , e, usando pratos de folha tão quen­
tes que não lhes conseguiam pegar, comeram uma espécie de succotash
em que identificaram sementes de abóbora e de mezquite e pedacinhos
de aipo silvestre . Comeram com os pratos equilibrados sobre a parte de
dentro das botas , pousadas diante de si, de tacões unidos . Enquanto es­
tavam a comer, uma mulher aproximou-se deles , vinda da fogueira, e
serviu-lhes de uma cabaça uma mucilagem cor de tijolo feita sabe Deus
de quê . Eles ficaram sentados , a olhar a beberagem . Nada mais havia
para beber. Ninguém falou . Os índios eram escuros , quase negros , e a
sua reserva e o seu silêncio traduziam uma visão do mundo enquanto
lugar provisório , contingente , profundamente suspeito . Mostravam-se
absortos e desconfiados , como se respeitassem uma trégua periclitante .
Pareciam encontrar-se num estado de vigilância imprevidente e desam­
parada. Como homens a pisar uma camada de gelo fino .
1 84 Cormac McCarthy

Quando acabaram de comer, eles disseram obrigado e retiraram-se .


Nenhum dos presentes reconheceu qualquer facto . Ninguém disse nada.
Enquanto se afastavam através das árvores , Billy olhou para trás , mas
nem sequer as crianças os tinham estado a ver partir.
Os tarahumaras prosseguiram viagem à tardinha. Um grande silêncio
caiu sobre a clareira. Billy pegou na caçadeira e afastou-se através da erva
com o cão e examinou as cercanias no longo crepúsculo vermelho. Os bois
magros e cor de sebo observaram-no dos choupos e das acácias e resfole­
garam e afastaram-se a trote. Nada havia para caçar, exceptuando as peque­
nas rolas que ali vinham beber, e ele não queria desperdiçar cartuchos com
elas . Subiu a uma pequena elevação na pradaria e ficou a ver o Sol a pôr-se
atrás das montanhas , a oeste, e voltou para trás no escuro, e, na manhã
seguinte , apanharam os cavalos e selaram Bird e partiram novamente.
Chegaram ao povoado mórmon de Colonia Juárez ao final da tarde e
cavalgaram através dos pomares e das vinhas e apanharam maçãs das
árvores e guardaram-nas na roupa. Atravessaram o rio Casas Grandes
pela estreita ponte de tábuas e passaram diante das casas de aparência
asseada, revestidas de ripas caiadas . Renques de árvores bordejavam a
ruazita, e cada casa tinha o seu jardim e o seu relvado e a sua cerca
branca de estacas .
Que raio de terra é esta? perguntou Boyd .
Não sei .
Continuaram a cavalgar até ao extremo da rua e , assim que dobraram
a primeira curva na estrada apertada e poeirenta, deram por si novamen­
te no deserto , como se a cidadezinha não passasse de um sonho . À tardi­
nha, na estrada para Casas Grandes , passaram junto das ruínas muralha­
das da antiga cidade de adobe de Chichimeca. Entre aqueles aglomerados
de casinhas e labirintos de argila ardiam aqui e além na penumbra as
fogueiras de refugiados , e, nos lugares onde se punham de pé e andavam
para trás e para diante , os refugiados iam projectando as suas sombras
cambaleantes sobre as paredes decrépitas como intendentes ébrios , e a
Lua ergueu-se acima da cidade morta e brilhou sobre os baluartes em
aterro e brilhou sobre as criptas sem telhado e sobre os fomos escavados
na terra e sobre os currais de lama seca e sobre o recinto do jogo da bola
onde os noitibós caçavam e sobre as acequias sem água onde cacos de
loiça e ferramentas de pedra, juntamente com os ossos dos seus artesãos ,
jaziam embebidos nos pavimentos de barro gretado , a decompor-se .
Penetraram em Casas Grandes , transpondo os carris dos Caminhos­
-de-Ferro Mexicanos do Nordeste , assentes sobre um aterro elevado , e
deixaram para trás a estação ferroviária e romperam pela rua acima e
A Travessia 1 85

amarraram os cavalos diante de um café e entraram . Atarraxadas nos


seus receptáculos no tecto e derramando sobre as mesas uma luz ama­
rela e crua estavam as primeiras lâmpadas eléctricas que eles viam
desde que haviam deixado Agua Prieta, junto à fronteira americana.
Sentaram-se a uma mesa, e Boyd tirou o chapéu e pô-lo no chão . Não
estava ninguém na sala. Ao fim de um certo tempo , uma mulher surgiu
de trás de um vão de porta coberto por uma cortina, nos fundos , e
acercou-se e parou junto à mesa deles e olhou-os de alto . Não tinha
bloco para escrever e parecia não haver ementa. Billy perguntou-lhe se
tinha bifes , e ela assentiu com a cabeça e disse que sim . Eles fizeram o
pedido e ficaram ali sentados , a olhar pela janelinha, para a rua sombria
onde os cavalos estavam parados .
O que é que achas? perguntou B illy.
De quê?
Seja lá do que for.
Boyd abanou a cabeça. Tinha as pernas magras estendidas na sua
frente . Do lado oposto da rua, uma família de menonistas passou de­
fronte das montras das lojas tenuemente iluminadas , os homens de jar­
dineiras com as mulheres atrás de amplos vestidos folgados , desbotados
do sol , trazendo grandes cestas de ir ao mercado .
Não vais amarrar o burrinho , ou vais?
Não .
Em que é que ' tás a pensar?
Em nada.
Muito bem .
Boyd observou a rua. Ao fim de um certo tempo , voltou-se e olhou
para B illy. 'Tava a pensar que foi demasiado fácil , disse .
O quê?
Darmos com o Keno daquela maneira. Deitarmos-lhe assim a mão .
Poi s . Talvez .
Ele sabia que não teriam recuperado o cavalo até terem atravessado
a fronteira com ele e que nada era fácil , mas não o disse .
Tu não confias em nada, disse .
Pois não .
As coisas mudam .
Eu sei . Certas coisas .
Afliges-te com tudo . Mas isso não muda nada. Ou muda?
Boyd permanecia sentado , a remirar a rua. Dois cavaleiros passaram,
vestidos com o que pareciam ser uniformes de músicos de uma banda.
Ambos olharam para os cavalos amarrados defronte do café .
1 86 Cormac McCarthy

Ou muda, insistiu B illy.


Boyd abanou a cabeça. Não sei , disse . Não sei o que é que teria aca­
bado por acontecer se eu não me tivesse afligido .
Dormiram nessa noite num campo de ervas poeirentas a dois passos
da linha férrea e, na manhã seguinte , tomaram banho numa vala de irri­
gação e montaram e regressaram à cidade e comeram no mesmo café .
Billy perguntou à mulher s e ela sabia onde era o escritório d e u m gana­
dera chamado Soto , mas ela não sabia. Comeram um lauto pequeno­
-almoço de ovos e chorizo e tortillas feitas de farinha de trigo como
ainda não tinham visto outras naquele país e pagaram com o que verifi­
caram ser praticamente a derradeira parcela do seu dinheiro e saíram
para a rua e montaram e cavalgaram pela cidade . O escritório do tal
Soto era num edifício de tijolo , três quarteirões a sul do café . Billy es­
tava a observar os reflexos dos dois cavaleiros a passar no vidro da ja­
nela do edifício , do outro lado da rua, onde os cavalos famélicos avan­
çavam , bamboleantes , por segmentos, ao longo das vidraças defeituosas ,
quando viu o cão desengonçado a aparecer também e percebeu que o
cavaleiro à cabeça daquele desfile pouco sedutor era ele próprio . Depois
viu que as letras estampadas no vidro por cima da cabeça do cavaleiro
diziam Ganaderos e por cima disso diziam Soto y Gillian .
Olha acolá, disse .
Já vi , disse Boyd .
Porque é que não disseste nada, se já tinhas visto?
'Tou a dizer agora.
Pararam os cavalos na rua. O cão sentou-se na poeira e esperou . B illy
debruçou-se e escarrou e olhou para trás , para Boyd .
Importas-te que eu te pergunte uma coisa?
Pergunta.
Quanto tempo é que tencionas ficar assim amuado?
Até me passar o amuo .
Billy fez que sim com a cabeça. Escarranchado na sela, contemplou os
reflexos de ambos na vidraça. Parecia incapaz de explicar a aparência
deles na imagem. Já calculava que tu pudesses dizer isso, comentou . Mas
Boyd vira-o a examinar o retábulo de peregrinos andrajosos emparelhados
com os seus cavalos todos tortos na quadrícula em quebra-cabeças das
vidraças do ganadero , mais o cão mudo a seus pés , e indicou a janela com
um aceno de cabeça. Eu 'tou a olhar prà mesma coisa do que tu, disse .
Regressaram mais duas vezes ao escritório do ganadero até o conse­
guirem encontrar lá. Billy deixou Boyd a cuidar dos cavalos . Mantém o
Keno fora de vista, disse .
A Travessia 1 87

Não sou nenhum ignorante , retrucou Boyd .


Ele cruzou a rua e ergueu uma mão junto à porta para aplacar o brilho
intenso na vidraça e olhou para o interior. Um escritório antiquado com
lambris escuros envernizados , mobília escura de carvalho . Abriu a por­
ta e entrou . A vidraça da porta matraqueou quando ele a fechou , e o
homem atrás da secretária ergueu os olhos . Segurava junto ao ouvido o
auscultador de um telefone antiquado de pedestal . Bueno , disse . Bueno .
Piscou o olho a Billy. Fez-lhe um gesto com a mão a indicar-lhe que
avançasse . Billy tirou o chapéu .
Sí, sí. Bueno , disse o ganadero . Gracias . Es muy amable . Repôs o
auscultador no seu suporte e afastou o telefone de si . Bueno , disse . Pen­
dejo . Completamente sin vergüenza . Ergueu o rosto para o rapaz . Pásale,
pásale .
Billy continuava de pé , a segurar o chapéu . Busco al sefíor Soto ,
disse .
No está .
Cuándo regresa ?
Todo el mundo quiere saber. Quem é você?
Billy Parham .
E quem é B illy Parham?
Sou de Cloverdale , no Novo México.
Deveras?
Sim , senhor. Deveras .
E o que deseja o meu amigo do sefíor Soto?
Billy fez rodar o chapéu um quarto de volta entre as mãos . Olhou
para a janela. O homem olhou com ele .
Eu sou o Sefíor Gillian , disse . Talvez lhe possa ser útil.
Pronunciava Gueeyan . Esperou .
Bom , retomou B illy. Vocês venderam um cavalo a um médico alemão
chamado Haas .
O homem assentiu com a cabeça. Parecia ansioso por ver a história
desenvolver-se .
E eu ando à cata do homem a quem vocês compraram o cavalo . É
bem capaz de ter sido a um índio .
Gillian recostou-se na cadeira . B ateu com o dedo nos dentes de
baixo .
Era um baio escuro castrado com um metro e sessenta de altura, mais
ou menos . Aquilo a que se pode chamar um castafío oscuro .
Eu conheço bem os traços desse cavalo . Escusado será dizer.
Sim , senhor. Talvez você lhe tenha vendido mais do que um cavalo .
188 Cormac McCarthy

Sim. Podia ter vendido , mas não vendi . Que interesse tem o meu
amigo nesse cavalo?
Eu não ' tou propriamente muito interessado no cavalo . Só andava à
cata do homem que lho vendeu .
Quem é o rapaz na rua?
Como?
O rapaz na rua.
É o meu irmão .
Porque é que ele está lá fora?
Ele ' tá muito bem lá fora .
Porque é que não o trazes cá para dentro?
Ele ' tá óptimo .
Porque é que não o trazes cá para dentro?
Billy olhou pela janela. Pôs o chapéu na cabeça e saiu .
Pensei que ' tavas de olho nos cavalos , disse .
Eles ' tão parados além, disse Boyd .
Os cavalos estavam numa rua lateral , presos pelas rédeas a um espi-
gão num poste telegráfico .
Que maneira desgraçada de deixar um cavalo .
Eu não os deixei . 'Tou aqui mesmo .
Ele viu-te aí sentado . Quer que tu entres .
Pra quê?
Não lhe perguntei .
Não achas que era melhor pra nós seguirmos viagem e pronto?
Vai correr tudo bem . Anda daí.
Boyd olhou na direcção da janela do ganadero , mas o sol batia na
vidraça e ele não conseguia ver para o interior.
Anda daí, repetiu Billy. Se não tornamos a entrar, ele vai ficar a pen-
sar coisas .
A pensar coisas já ele ' tá.
Não ' tá nada.
Olhou para Boyd . Olhou rua acima, para os cavalos . Aqueles cavalos
' tão com um aspecto horrível , comentou .
Eu sei .
Enfiou as mãos nos bolsos de trás das calças de tecido grosseiro e
desferiu algumas pancadas com o tacão da bota na poeira da rua, ras­
gando ali uma concavidade . Olhou para Boyd . Cavalgámos que nos
fartámos pra ver este homem , disse .
Boyd debruçou-se e escarrou entre as botas . Muito bem , disse .
A Travessia 1 89

Gillian ergueu o rosto quando eles entraram . B illy segurou a porta


para o irmão , e Boyd entrou . Não tirou o chapéu . O ganadero recostou­
-se e examinou-os , primeiro um , depois o outro . Como se tivesse sido
chamado a avaliar-lhes a consanguinidade .
Este aqui é o meu irmão Boyd , disse Billy.
Gillian fez um gesto a pedir-lhe que se adiantasse .
Ele ' tava preocupado com a nossa aparência , prosseguiu Billy.
Ele próprio me pode dizer quais são as suas preocupações .
Boyd permanecia com o s polegares enfiados no cinto . Ainda não ti­
nha tirado o chapéu . Eu cá não ' tava nada preocupado com a nossa
aparência, declarou .
O ganadero remirou-o de novo . Vocês são do Texas , disse .
Do Texas?
Sim.
Onde é que foi buscar uma ideia dessas?
Vocês vieram até aqui do Texas , não?
Eu cá nunca na minha vida pus os pés no Texas .
Como é que conhecem o Dr Haas?
Eu não o conheço . Nunca lhe pus a vista em cima.
Que interesse têm vocês nesse tal cavalo?
O cavalo não pertence ao tal doutor. Uns índios roubaram-no do nos­
so rancho .
E o vosso pai mandou-vos até ao México para recuperarem esse cavalo .
Ele não nos mandou a lado nenhum. Ele ' tá morto . Mataram-no e
mais à minha mãe com uma caçadeira e roubaram os cavalos .
O ganadero franziu o sobrolho . Olhou para Billy. Confirmas isto?
perguntou .
Eu ' tou como o senhor, retrucou B illy. 'Tou só à espera de ouvir o que
se segue .
O ganadero examinou-os durante muito tempo . Por fim , disse que
alcançara a sua situação actual depois de muito tempo a negociar cava­
los de terra em terra, tanto no país deles como no seu , e que acabara por
aprender, o que é obrigatório para tais negociantes , a reconstituir as
histórias daqueles com quem entrava em contacto eliminando , em gran­
de medida, as suas próprias alternativas . Disse que raramente se enga­
nava e que raramente ficava surpreso .
O que acabas de me contar é absurdo , declarou .
Bom , retrucou Boyd . Se é isso que acha, pois fique na sua.
O ganadero rodou ligeiramente na cadeira . Bateu com o dedo nos
dentes . Olhou para Billy. O teu irmão acha que eu sou um palerma.
1 90 Cormac McCarthy

Sim, senhor.
O ganadero arqueou as sobrancelhas . Concordas com ele?
Não , senhor. Não concordo com ele .
Porque é que acredita nele e não em mim? indagou Boyd .
Quem acharia o contrário? perguntou o ganadero .
Cá pra mim , o senhor gosta de ouvir as pessoas mentir, mais nada.
O ganadero disse que sim, que gostava. Acrescentou que esse era um
requisito prévio indispensável para singrar naquele negócio , aliás .
Olhou para B illy.
Hay algo más , disse . Mais qualquer coisa. O que é?
É tudo o que eu sei dizer.
Mas não é tudo o que há para dizer.
Olhou para Boyd. Pois não? indagou .
Nem sei pra que é que você me pergunta isso .
O ganadero sorriu . Ergueu-se laboriosamente da secretária. Assim de
pé era um homem mais pequeno . Dirigiu-se a um arquivador de carvalho
e abriu uma gaveta e folheou alguns papéis e regressou com uma pasta e
sentou-se e colocou a pasta sobre a secretária, na sua frente , e abriu-a.
Sabes ler espanhol? perguntou .
Sei , sim , senhor.
O ganadero ia percorrendo o documento com o indicador esticado .
O cavalo foi comprado num leilão , no dia dois de Março . Foi uma
compra em lote , vinte e três cavalos .
E quem foi o vendedor?
La Babícora.
Voltou a pasta aberta e empurrou-a por sobre a secretária. Billy não
olhou para os papéis . O que é La Babícora? perguntou .
O ganadero ergueu as sobrancelhas hirsutas . O que é a Babícora?
repetiu .
Sim, senhor.
É um rancho . O dono é um compatriota vosso , um tal sefior Hearst .
E eles vendem muitos cavalos?
Não vendem tantos como os que compram.
E porque é que eles venderam o cavalo?
Quién sabe ? O capón não é lá muito popular neste país . Há um pre-
conceito , parece-me que é assim que se diz .
B illy baixou os olhos para o registo de venda.
Fazes favor, disse o ganadero . Podes ver à vontade .
Ele pegou na pasta e percorreu a lista de cavalos discriminados sob o
lote número quarenta e um oitenta e sei s .
A Travessia 191

Qué es un bayo lobo ? perguntou .


O ganadero encolheu os ombros .
Ele voltou a página. Passou em revista a s descrições . Ruano . Bayo .
Bayo cebruno . Alazán . Alazán Quemado . Metade dos cavalos tinham
cores de que ele nunca ouvira falar. Yeguas e caballos , capones e potros .
Viu um cavalo que lhe pareceu que talvez fosse Nino . Depois viu outro
que talvez também fosse . Fechou a pasta e tomou a pousá-la sobre a
secretária do ganadero .
O que é que achas? indagou o ganadero .
O que é que eu acho de quê?
Disseste-me que vocês tinham vindo em cata do vendedor do cavalo
e não do próprio cavalo .
Sim, senhor.
Talvez o vosso amigo trabalhe para o sefíor Hearst. É bem possível .
Sim , senhor. É bem possível .
Não é uma coisa lá muito fácil , encontrar um homem no México .
Não , senhor.
O monte é vasto .
Sim, senhor.
Um homem pode-se perder.
Sim , senhor. Pois pode .
O ganadero continuava sentado . Tamborilou no braço da cadeira com
o indicador. Qual telegrafista reformado . Algo más , disse . O que é?
Não sei .
Ele curvou-se para diante na secretária. Olhou para Boyd e baixou os
olhos para as botas de Boyd . Billy seguiu-lhe o olhar. O outro procura­
va as marcas das correias das esporas .
Vocês estão longe de casa, disse . Escusado será dizer. Ergueu o rosto
para B illy.
Sim, senhor, disse Billy.
Deixem-me dar-vos um conselho . Sinto essa obrigação .
Muito bem .
Voltem para casa.
Não temos casa pra onde voltar, ripostou Boyd .
Billy olhou para ele . Boyd ainda não tirara o chapéu .
Porque é que não lhe perguntas porque é que ele quer que a gente vá
pra casa, disse .
Deixa-me explicar-te porque é que ele quer isso , interveio o gana­
dera . É porque ele sabe o que tu talvez não saibas . Que o passado não
pode ser emendado . Tu achas que as pessoas são todas parvas . Mas
1 92 Cormac McCarthy

não há assim tantas razões para vocês estarem no México . Pensa


nisso .
Vamos embora, disse Boyd .
Estamos próximos da verdade , aqui . Eu não sei qual é essa verdade .
Não sou uma cigana capaz de ler a sina. Mas vejo grandes dissabores à
espreita. Grandes dissabores . Devias dar ouvidos ao teu irmão . Ele é
mais velho .
Também você é .
O ganadero tornou a recostar-se n a cadeira. Olhou para Billy. O teu
irmão é suficientemente jovem para acreditar que o passado ainda exis­
te , disse . Que as injustiças nele contidas esperam que ele lhes dê remé­
dio . Talvez tu também acredites nisto?
Eu não tenho opinião . Só vim até cá por causa duns cavalos .
Que remédio pode haver? Que remédio pode haver para o que não
existe? Compreendes? E onde está o remédio que não acarreta conse­
quências imprevistas? Que acto não pressupõe um futuro que é em si
mesmo desconhecido?
Eu já uma vez abandonei este país , disse Billy. Não foi o futuro que
me fez regressar até cá.
O ganadero mantinha as mãos erguidas diante de si , uma acima da
outra, com um espaço entre elas . Como se segurasse ali algo de invisí­
vel , fechado dentro de uma caixa também invisível . Nunca sabemos
quais as coisas que pomos em movimento , disse . Nenhum homem tem
maneira de saber. Nenhum profeta consegue antever. As consequências
de um acto são muitas vezes completamente diferentes daquilo que
prevíamos . Temos de nos certificar de que o propósito no nosso coração
é amplo que chegue para conter todas as reviravoltas infelizes , todas as
desilusões . Compreendes? Nem tudo possui um tal valor.
Boyd estava parado à porta . Billy voltou-se e olhou para ele . Olhou
para o ganadero . O ganadero repeliu o ar diante de si com as costas da
mão . Sim, sim , disse . Vai-te embora.
Já na rua, Billy olhou para trás , para ver se o ganadero os estaria a
olhar da sua janela.
Não te ponhas a olhar pra trás , disse Boyd . Tu sabes bem que ele ' tá
a olhar pra nós .
Cavalgaram para sul , abandonando a cidade , e meteram pela estrada
para San Diego . Seguiam em silêncio , com o cão mudo e de patas dori­
das ora a trotar, ora a caminhar diante deles pelo centro da estrada sem
sombras ao meio-dia .
Sabes de que é que ele ' tava a falar? perguntou B illy.
A Travessia 1 93

Boyd voltou-se ligeiramente no cavalo que montava em pêlo e olhou


para trás .
Sim . Sei do que é que ele ' tava a falar. E tu , sabes?
Passaram através das últimas pequenas colonias a sul da cidade . Nos
campos que iam deixando para trás havia homens e mulheres a apanhar
algodão entre as plantas cinzentas e quebradiças . Deram de beber aos
cavalos numa acequia junto à berma da estrada e afrouxaram os latigos
para os deixarem resfolegar. Ao longe , sobre os campos parcelados ,
viram um homem a lavrar a terra com um boi preso pelos cornos a um
arado de uma só rabiça. O arado era de um género já vetusto no Egipto ,
pouco mais do que a raiz de uma árvore . Eles montaram e prosseguiram .
Ele voltou-se e olhou para Boyd . Magro no dorso do cavalo desapare­
lhado . Ainda mais magro em sombra. O cavalo alto e escuro que calcor­
reava a estrada com as patas a moverem-se em amplas flexões angulo­
sas e a arquearem-se , oblíquas na poeira, era mais fiel à imagem de um
cavalo do que o próprio cavalo que ele montava. Ao final do dia, do
cômoro de uma elevação na estrada, pararam os cavalos e espraiaram a
vista sobre as courelas irregulares de terreno escuro abaixo dele s , onde
as represas estavam agora abertas para os campos acabados de lavrar e
a água parada nos sulcos brilhava à luz do crepúsculo como grelhas de
metal polido em barras a estender-se ao encontro da lonjura. Como se
os portões de acesso a um qualquer empreendimento antiquíssimo se
tivessem aberto ali , para além dos choupos junto à valeta, para além dos
pássaros a cantar à tardinha.
Pouco depois , na estrada que se ia cobrindo de penumbra, ultrapassa­
ram uma rapariga que caminhava descalça e trazia à cabeça uma trouxa
de pano que lhe pendia de ambos os lados como um enorme chapéu
macio . De tal modo que , quando eles passaram devagar, clope-clope ,
ela foi obrigada a voltar o corpo inteiro de viés para os ver. Eles diri­
giram-lhe acenos de cabeça e Billy desejou-lhe boa noite e ela retribuiu
a saudação e eles prosseguiram . Um pouco mais adiante , chegaram a
um lugar onde a água a transbordar das acequias enchera a valeta, e
desmontaram e conduziram os cavalos ao longo da berma e sentaram-se
na erva e ficaram a ver os gansos a caminharem para cá e para lá, mui­
to hirtos , sobre os campos cada vez mais escuros . A rapariga passou
pela estrada. A princípio , eles pensaram que ela estava a cantar baixi­
nho , mas ela estava a chorar. Ao ver os cavalos , parou . Os cavalos er­
gueram a cabeça e olharam para a estrada. Ela avançou , e os animais
baixaram a cabeça e beberam de novo . Quando eles tornaram a conduzir
os cavalos pelo talude acima até à estrada, ela era uma silhueta muito
1 94 Cormac McCarthy

pequena e quase imóvel na distância, lá mais adiante . Montaram e tor­


naram a partir e, ao fim de pouco tempo , ultrapassaram-na de novo .
Billy picou o cavalo para o lado oposto da estrada. De modo a obrigá­
-la a voltar o rosto para oeste para lhe responder, encarando os derradei­
ros raios de luz , caso ele lhe falasse ao passar à sua ilharga. Porém, ao
ouvir os cavalos na estrada atrás de si , ela atravessou também para o
lado oposto e , quando ele falou com ela, ela não se voltou , e , mesmo
que tenha respondido , ele não lhe ouviu a voz . Eles prosseguiram . Mais
cem metros e ele deteve-se e desceu para a estrada.
O que é que ' tás a fazer? perguntou Boyd .
Ele volveu os olhos para trás , na direcção da rapariga. Ela parara.
Não tinha para onde ir a não ser em frente . Billy voltou-se e levantou o
estribo mais próximo e pendurou-o no chifre do cepilho e verificou o
fatigo .
'Tá a ficar escuro , disse Boyd .
Já 'tá escuro .
Bom , vamos andando .
'Tamos a ir.
A rapariga recomeçara a caminhar. Acercou-se devagar, mantendo-se
junto à berma oposta da estrada. Quando ela ficou a par deles , B illy
perguntou-lhe se queria boleia . Ela não respondeu . Abanou a cabeça sob
o seu fardo e depois estugou o passo . B illy ficou a vê-la afastar-se . Afa­
gou o cavalo e pegou nas rédeas e começou a caminhar pela estrada,
conduzindo o cavalo à brida atrás de si. Sentado no dorso de Keno ,
Boyd observava-o .
O que é que te deu? perguntou .
O quê?
A pedires-lhe pra vir com a gente .
Qual é o problema?
Boyd picou Keno e pôs-se a cavalgar à ilharga do irmão . O que é que
' tás a fazer? perguntou .
'Tou a trazer o meu cavalo à brida.
Mas o que é que se passa contigo , porra?
Não se passa nada comigo .
Bom, então o que é que ' tás a fazer?
'Tou só a trazer o meu cavalo à brida. Assim como tu vais montado
no teu .
O tanas é que ' tás .
Tens medo de raparigas?
Medo de raparigas?
A Travessia 1 95

Sim.
Ergueu os olhos para Boyd . Mas Boyd limitou-se a abanar a cabeça
e prosseguiu .
A pequena silhueta da rapariga sumiu-se nas trevas , mais à frente .
Ainda se viam rolas a pousar nos campos , a oeste da estrada. Continu­
aram a ouvi-las a cruzar os ares lá no alto , mesmo depois de a escuridão
se ter adensado tanto que já nada se via. Boyd continuou a cavalgar,
depois esperou na estrada. Ao fim de um certo tempo , B illy alcançou-o .
Estava outra vez escarranchado na sela e prosseguiram lado a lado .
Deixaram para trás as terras irrigadas e deixaram para trás , num bos­
que de árvores junto à berma, um jacal de lama seca e paus onde ardia
a ténue luz cor de laranja de uma candeia improvisada . Pareceu-lhes que
devia ser o lugar onde a rapariga vivia e ficaram surpresos ao deparar
com ela novamente na estrada, a caminhar adiante .
Quando a ultrapassaram pela terceira vez era já noite fechada, e Billy
sofreou as rédeas do cavalo ao lado dela e perguntou-lhe se ainda tinha
muito que andar, e ela hesitou por momentos e depois disse que não . Ele
ofereceu-se para lhe transportar a trouxa na garupa do cavalo enquanto
ela continuaria a caminhar pelo seu pé , mas ela recusou educadamente .
Tratava-o por sefíor. Olhou para Boyd . Ocorreu a Billy que ela se pode­
ria ter escondido no chaparral da berma , mas que não o fizera .
Desejaram-lhe as boas-noites e prosseguiram e , pouco depois , depara­
ram com dois cavaleiros na estrada a seguir em sentido contrário ao
deles , e os desconhecidos falaram-lhes brevemente do seio das trevas e
continuaram adiante . Ele parou o cavalo e ficou a segui-los com os
olhos , e Boyd parou a seu lado .
'Tás a pensar o mesmo que eu? perguntou Billy.
Boyd tinha os antebraços cruzados sobre a cernelha do cavalo . Que-
res esperar por ela?
Quero , pois.
Seja. Achas que eles se vão meter com ela?
Billy não respondeu . Os cavalos batiam com as patas no chão e tor­
navam a imobilizar-se . Ao fim de um certo tempo , ele disse: Vamos
esperar só um minutinho . Ela já aparece não tarda. Depois podemos
seguir.
Mas ela não apareceu ao fim de um minutinho , nem ao fim de dez
minutos , nem ao fim de trinta .
Vamos voltar pra trás , disse Billy.
Boyd debruçou-se e escarrou vagarosamente para a estrada e voltou
o cavalo .
1 96 Cormac McCarthy

Não tinham percorrido mais de quilómetro e meio quando viram uma


fogueira algures mais adiante , por entre as formas ferrosas dos arbustos .
A estrada descreveu uma curva, e a fogueira desviou-se vagarosamente
para a direita. Em seguida, aproximou-se de novo . Oitocentos metros
mais à frente , eles pararam os cavalos . A fogueira ardia num pequeno
carvalhal , a leste . A luz das chamas reflectia-se sob a cúpula sombria
das folhas , e sombras moviam-se para trás e para diante , e um cavalo
relinchou no escuro mais além .
O que é que queres fazer? perguntou Boyd .
Não sei . Deixa-me pensar.
Ficaram ali parados na estrada mergulhada no escuro .
Já pensaste?
Acho que não há nada a fazer senão ir até lá e pronto .
Eles vão perceber que nós viemos atrás deles .
Eu sei . Não podemos fazer nada.
Boyd observava o lume através das árvores .
O que é que queres fazer? perguntou Billy.
Se queremos ir até lá, vamos em frente e não se pensa mais nisso .
Desmontaram e conduziram os cavalos à brida. O cão sentou-se na
estrada e observou-os . Depois levantou-se e seguiu-os .
Quando entraram no terreno desafogado , sob as árvores , os dois ho­
mens estavam de pé , do lado oposto da fogueira, a vê-los aproximarem­
-se . Os cavalos deles não estavam à vista. A rapariga estava sentada no
chão , com as pernas dobradas debaixo do corpo , a agarrar a trouxa no
regaço . Quando viu quem aí vinha, desviou o rosto e pôs-se a fitar o
âmago da fogueira .
Buenas noches , saudou Billy em voz alta.
Buenas noches , disseram eles .
Ficaram parados , a segurar os cavalos . Os outros não os tinham con­
vidado a avançar. Ao penetrar no círculo de luz , o cão estacou de súbito
e depois recuou um bocadinho e ficou à espera. Os homens observavam­
-nos . Um deles estava a fumar um cigarro e levou-o aos lábios e chu­
pou-o de lábios franzidos e soprou um fino jorro de fumo na direcção
do fogo . Executou um gesto circular com o braço , com o indicador
apontado para baixo . Disse-lhes para darem a volta com os cavalos e
para os levarem até junto das árvores , mais atrás . Nuestros caballos
están allá, disse .
Está bien , disse Billy. Não se mexeu .
O homem disse que não estava bem . Disse que não queria os cavalos
deles a conspurcarem a terra onde eles iam dormir.
A Travessia 1 97

B illy olhou para ele . Voltou-se ligeiramente e olhou para o seu cava­
lo . Curvadas como um tríptico sombrio num pesa-papéis de vidro , dis­
tinguiu as silhuetas dos dois homens e da rapariga a chamejar à luz fu­
gitiva da fogueira , no centro negro do olho do animal . Passou as rédeas
a Boyd por trás das costas . Leva-os pra acolá, disse . Não tires a sela ao
Bird e não lhe afrouxes o fatigo e não os ponhas junto dos cavalos deles .
Boyd passou na frente dele a conduzir os cavalos e passou junto dos
homens e mergulhou no escuro do arvoredo . B illy adiantou-se e dirigiu­
-lhes um aceno de cabeça e empurrou o chapéu um tudo-nada para a
nuca. Postou-se diante do lume e baixou os olhos para as chamas . Olhou
para a rapariga.
Cómo está, saudou .
Ela não respondeu . Quando ele olhou para o lado oposto da fogueira ,
o homem que estava a fumar agachara-se sobre os calcanhares e estava
a observá-lo através da deformação do calor, com olhos da cor do car­
vão molhado . No chão , a seu lado , encontrava-se uma garrafa com uma
maçaroca de milho a servir de rolha.
De dónde viene ? perguntou o outro .
Ame rica .
Tejas .
Nuevo Mexico .
Nuevo Mexico , repetiu o homem . Adónde va ?
Billy observou-o . Ele tinha o braço direito cruzado sobre o peito e ali
preso pelo cotovelo do braço esquerdo , de tal forma que o antebraço
esquerdo se erguia na vertical à sua frente , a segurar o cigarro numa
pose estranhamente formal , estranhamente delicada. Billy olhou nova­
mente para a rapariga e olhou novamente para o homem do lado oposto
da fogueira. Não tinha resposta à pergunta do outro .
Hemos perdido un caballo , disse . Lo buscamos .
O homem não respondeu . Segurava o cigarro entre o indicador e o
dedo médio e deixou pender o pulso num gesto semelhante ao de uma
ave e puxou uma fumaça e depois tornou a erguer o cigarro ao alto .
Boyd assomou das árvores e contornou o fogo e parou , mas o homem
não olhou para ele . Atirou a beata para o seio das chamas diante de si e
dobrou os braços em volta dos joelhos e começou a baloiçar-se para trás
e para diante num movimento quase imperceptível . Espetou o queixo na
direcção de Billy e perguntou se ele os tinha seguido para lhes poder ver
os cavalos .
No , respondeu Billy. Nuestro caballo es un caballo muy distinto . Lo
conoceríamos en cualquier luz .
1 98 Cormac McCarthy

Assim que disse isto , percebeu que eliminara a sua única resposta
plausível à pergunta que o homem iria fazer a seguir. Olhou para Boyd .
Boyd percebera o mesmo . O homem baloiçava-se , remirava-os . Qué
quieren pues ? indagou .
Nada , respondeu Billy. No queremos nada .
Nada , repetiu o homem . Articulou a palavra como se a saboreasse .
Imprimiu ao queixo uma ligeira rotação de viés , como faria um homem
ao ponderar a plausibilidade do que acaba de ouvir. Dois cavaleiros que
se cruzam com outros dois numa estrada escura e seguem em frente e
que , pouco depois , se cruzam também com um viajante a pé sabem que
os tais cavaleiros ultrapassaram o viajante a pé e seguiram em frente .
Eis o que não oferecia dúvidas . Os dentes do homem cintilaram à luz do
fogo . Ele retirou qualquer coisa que tinha presa entre os dentes e
examinou-a e depois comeu-a. Cuántos afíos tiene ? perguntou .
Yo ?
Quién más .
Diecisiete .
O homem fez que sim com a cabeça. Cuántos afíos tiene la mucha-
cha ?
No lo sé.
Qué opina .
B illy olhou para a rapariga. Ela permanecia sentada, de olhos fitos no
próprio regaço . Parecia ter uns catorze anos , talvez .
Es muy joven , disse ele .
Bastante .
Doce quizás .
O homem encolheu os ombros . Estendeu o braço e pegou na garrafa
que se encontrava no chão e tirou-lhe a rolha e bebeu e ficou a segurar
a garrafa pelo gargalo . Declarou que se elas já tinham idade para san­
grar, também já tinham idade para dar o corpo ao manifesto . Em segui­
da, ergueu a garrafa acima do próprio ombro . O homem atrás dele deu
um passo em frente e tomou-lha da mão e bebeu . Ali perto , na estrada,
ia a passar um cavalo . O cão pusera-se de pé para ouvir. O cavaleiro não
se deteve , e o lento clope-clope dos cascos na lama seca da estrada
desvaneceu-se , e o cão deitou-se de novo . O homem de pé bebeu uma
segunda vez e, em seguida, devolveu a garrafa. O outro homem pegou­
-lhe e tomou a enfiar a maçaroca no gargalo , dando pancadas com o
pomo da mão , depois sopesou a garrafa.
Quiere tomar? perguntou .
No . Gracias .
A Travessia 1 99

Ele tornou a sopesar a garrafa na mão e, em seguida, atirou-a com um


gesto largo , de baixo para cima, por sobre a fogueira. B illy apanhou-a
no ar e olhou para o homem . Segurou a garrafa à luz . O mescal turvo e
amarelo rolou viscosamente dentro do vidro , e a forma enroscada do
gusano morto contornou o fundo da garrafa num arrastar vagaroso , qual
pequeno feto errante .
No quiero tomar, disse .
Tome, insistiu o homem .
Ele tornou a olhar para a garrafa. As marcas de dedos gordurosos na
garrafa brilhavam à luz das chamas . Ele olhou para o homem e depois
torceu a maçaroca para a retirar do gargalo .
Vai buscar os cavalos , disse .
Boyd passou atrás dele . O homem observava-o . Adónde vas ? pergun-
tou .
Vai , não pares , ordenou B illy.
Adónde va el muchacho ?
Está enfermo .
Boyd cruzou a clareira e seguiu ao encontro das árvores. O cão pôs-se
de pé e seguiu-o com os olhos . O homem voltou-se e tornou a olhar
para Billy. Billy ergueu a garrafa e começou a beber. Bebeu e baixou a
garrafa . Corriam-lhe lágrimas dos olho s , e ele limpou-as com o antebra­
ço e olhou para o homem e ergueu a garrafa e tornou a beber.
Quando baixou a garrafa, estava praticamente vazia. Sorveu um gran­
de gole de ar e olhou para o homem , mas o homem estava a olhar para a
rapariga. Ela erguera-se e estava a olhar na direcção das árvores . Senti­
ram o chão a estremecer. O homem pôs-se de pé e voltou-se . Atrás dele ,
o segundo homem afastara-se do lume e lançou-se numa corrida com­
passada, a erguer os braços numa exortação silenciosa. Tentava barrar o
caminho aos cavalos que emergiram do arvoredo , a agitar as cabeças e a
trotar de viés para não pisarem as cordas de amarrar às estacas .
Demonios , soltou o homem. Billy deixou cair a garrafa e atirou a
rolha de maçaroca para dentro do lume e estendeu o braço e agarrou a
rapariga pela mão .
Vámonos , disse .
Ela curvou-se e agarrou a trouxa do chão . Boyd assomou das árvores
a galope . Estava curvado sobre o pescoço de Keno e segurava as rédeas
do cavalo de Billy numa mão e a caçadeira na outra e trazia as rédeas
do próprio cavalo presas nos dentes , qual cavaleiro de circo .
Vámonos , sibilou B illy, mas ela já lhe estava a agarrar o braço com
toda a força.
200 Cormac McCarthy

Boyd conduziu os cavalos quase através da fogueira e puxou as réde­


as de Keno para o fazer parar, a bater com os cascos no chão e de olhos
desvairados . Tomou a fincar os dentes nas rédeas e atirou a caçadeira a
B illy. B illy apanhou-a e agarrou a rapariga pelo cotovelo e içou-a na
direcção do cavalo . Os outros dois cavalos tinham desaparecido na pla­
nície mergulhada na escuridão , a sul do acampamento , e o homem que
lhe atirara a garrafa de mescal vinha novamente a assomar das trevas ,
trazendo na mão esquerda uma longa faca esguia. À parte o ruído dos
cavalos a resfolegar e a percutir o chão com as patas , o silêncio era
absoluto . Ninguém falou . O cão descrevia círculos nervosos atrás dos
cavalos . Vámonos , repetiu B illy. Quando olhou , a rapariga já estava
sentada na garupa do cavalo , atrás da sela e das mantas enroladas . Agar­
rou as rédeas que Boyd lhe estendia e passou-as sobre a cabeça do ca­
valo e engatilhou a caçadeira com uma só mão , como se fosse uma
pistola. Não sabia se estava ou não carregada. O mescal pesava-lhe no
estômago como um íncubo sacrílego . Enfiou o pé no estribo , e a rapari­
ga espalmou-se num gesto exímio contra o flanco do cavalo , e ele pas­
sou a perna por cima dela e obrigou o cavalo a rodar. O homem já esta­
va sobre ele , e Billy apontou-lhe a caçadeira ao peito . O homem
lançou-se para agarrar o freio , mas o cavalo esquivou-se e Billy tirou a
bota do estribo e desferiu um pontapé na direcção do homem e o homem
baixou-se e passou a lâmina da faca sobre o flanco da perna de B illy,
retalhando-lhe a bota e também as calças . Ele obrigou o cavalo a dar
meia-volta e cravou-lhe os calcanhares nas ilhargas , e o homem lançou­
-se para agarrar a rapariga e deitou-lhe a mão a um punhado do vestido ,
mas o tecido rasgou-se e então eles cavalgaram a toda a brida através da
campina de erva baixa e saíram para a estrada, onde Boyd , escarrancha­
do no animal , com o cavalo a bater com as patas no chão à luz das es­
trelas , esperava por eles . Ele parou o cavalo , que ergueu as patas dian­
teiras e atirou a cabeça para o alto , e falou à rapariga por cima do
ombro . Está bien ? perguntou .
Sí, sí, sussurrou ela. Debruçava-se sobre a trouxa, com ambos os
braços a cingir a cintura dele .
Vamos embora, disse Boyd .
Romperam para sul pela estrada fora num galope vivo , lado a lado ,
com o cão atrás , a perder terreno a cada metro . Não havia luar, mas as
estrelas naquela região eram tantas que os cavaleiros projectavam som­
bras na estrada, mesmo assim . Dez minutos depois , Boyd segurou o
cavalo de Billy pelas rédeas sem desmontar enquanto B illy, de pé na
berma da estrada, agarrava os próprios joelhos e vomitava na erva da
A Travessia 20 1

valeta . O cão assomou das trevas a arquejar, e os cavalos olhavam para


Billy e batiam com os cascos na estrada. B illy ergueu o rosto e limpou
os olhos lacrimejantes . Olhou para a rapariga. Ela montava o cavalo
seminua, com as pernas despidas a pender sobre os quadris do animal .
Ele escarrou e limpou a boca às costas da manga e olhou para a própria
bota. Em seguida, sentou-se na estrada e descalçou a bota e olhou para
a perna. Tomou a calçar a bota e levantou-se e apanhou a caçadeira
pousada na estrada e regressou para junto dos cavalos . A perna das cal­
ças de ganga adejava-lhe em volta do tornozelo .
Temos de sair desta estrada, disse . Eles não vão demorar assim tanto
tempo a apanhar os cavalos .
'Tás ferido?
'Tou óptimo . Vamos embora.
Vamos só ficar à escuta um bocadinho .
Ficaram à escuta.
Não se ouve nada com o raio do cão assim a ofegar.
Escuta só um pedacinho .
B illy pegou nas rédeas e ergueu-as acima da cabeça do cavalo e me­
teu a bota no estribo , e a rapariga baixou-se e ele içou-se para a sela num
movimento largo . Maluquinho , comentou . O meu irmão é maluquinho .
Mande ? perguntou a rapariga.
Escuta só um pedacinho , repetiu Boyd .
O que é que tu ouves?
Nada. Como é que te sentes?
Mais ou menos como seria de esperar.
Ela não fala uma palavra de inglês , ou fala?
Raios , não . Como é que ela havia de falar inglês?
Boyd remirava as trevas ao fundo da estrada. Sabes que eles hão-de
vir atrás da gente .
B illy enfiou a caçadeira no estojo. Claro que sei , porra, disse .
Não digas palavrões à frente dela.
O quê?
Eu disse pra não te pores a dizer palavrões à frente dela.
Tu mesmo acabaste de dizer que ela não fala uma palavra de inglês .
Só por causa disso não deixam de ser palavrões .
Não dizes coisa com coisa. E o que é que te levou a pensar que aque-
les filhos da púcara ali atrás não tinham pistolas escondidas na roupa?
Eu não pensei nada disso . Foi por isso que te atirei a caçadeira.
B illy debruçou-se e escarrou . Raispartam, disse .
O que é que tens na ideia fazer com ela?
202 Cormac McCarthy

Não sei . Raios . Como é que queres que eu saiba?


Guiaram os cavalos para fora da estrada e meteram por uma planura
sem árvores . As montanhas achatadas e negras na distância formavam
uma orla denticulada ao longo do bordo inferior dos céus . A rapariga
equilibrava-se na garupa, pequena e erecta, com uma mão a agarrar
B illy pelo cinturão . A jornadearem à luz das estrelas entre os limites
sombrios das cadeias montanhosas , a leste e a oeste , possuíam a aparên­
cia de cavaleiros de um conto de fadas a conduzir de regresso à sua
pátria uma rainha de terras remotas que alguém raptara.
Acamparam em terreno seco , numa elevação , onde a noite se afunda­
va em torno deles num abismo infinito , e prenderam os cavalos com
estacas e deixaram Bird aparelhado . A rapariga ainda nada dissera.
Afastou-se nas trevas , e não a tornaram a ver até à manhã seguinte .
Quando acordaram , havia uma fogueira no solo e ela estava a verter
água do cantil e pô-la a aquecer, movendo-se para cá e para lá em silên­
cio à luz cinzenta. Embrulhado na manta, Billy ficou deitado a observá­
-la. Ela certamente encontrara novas roupas entre os seus haveres , pois
vestia novamente uma saia. Mexeu a água dentro da caçarola, embora
ele não fizesse ideia do que ela estava ali a mexer. Fechou os olhos .
Ouviu o irmão a dizer qualquer coisa em espanhol e , quando tornou a
olhar, ainda embrulhado na manta, viu Boyd agachado junto ao lume ,
de pernas cruzadas , a beber pelo seu copo de folha-de-flandres .
Levantou-se e enrolou a manta, e ela trouxe-lhe um copo de chocola­
te quente e regressou para junto da fogueira. Aloirara tortillas na peque­
na frigideira deles e, usando uma colher, encheu-as de feijão , e senta­
ram-se os três junto ao fogo e comeram o pequeno-almoço enquanto o
dia ia clareando em volta deles .
Tiraste a sela ao B ird? perguntou Billy.
Não . Foi ela.
Ele assentiu com a cabeça. Continuaram a comer.
Esse teu corte é muito fundo? perguntou Boyd .
É só um arranhão . Ele fez-me um rasgão enorme na bota.
Esta terra é tramada pràs roupas .
Pela parte que me toca, assim parece . O que é que te deu pra afugen-
tares os cavalos deles assim daquela maneira?
Não sei . Passou-me pela cabeça fazer aquilo .
Ouviste o que ele disse sobre ela?
Sim. Ouvi .
Ao nascer do Sol já tinham levantado o acampamento e já estavam a
calcorrear uma vez mais a planura de cascalho e creosotes em direcção
A Travessia 203

a sul . Fizeram uma pausa por volta do meio-dia numa nascente no de­
serto onde carvalhos e sabugueiros cresciam em manchas densas nas
depressões e soltaram os cavalos e dormiram no chão . B illy dormiu com
a caçadeira aconchegada no braço , e , ao acordar, a rapariga estava sen­
tada a observá-lo . Ele perguntou-lhe se ela sabia montar caballo en
pelo e ela disse que sim . Quando tomaram a partir, ela cavalgou atrás
de Boyd , para assim revezar os cavalos . Ele pensou que Boyd iria colo­
car objecções , mas ele nada disse . Quando olhou para trás , a rapariga
seguia com ambos os braços em volta da cintura dele . Quando tomou a
olhar para trás , mais tarde , o cabelo escuro dela derramava-se sobre o
ombro do irmão e ela adormecera-lhe contra as costas .
À tardinha chegaram à hacienda de San Diego , situada num monte
sobranceiro às terras lavradas que desciam até ao rio Casas Grandes e
até ao Piedras Verdes . Um moinho de vento rodava na planície abaixo
deles como um brinquedo chinês , e os cães ladravam na lonjura. À luz
alongada e rasante , as montanhas em tons crus de ocre erguiam-se com
fundas sombras nas suas pregas , e, no céu a sul , uma dúzia de abutres
rodava num vagaroso carrossel de crepe .
III

Era quase noite cerrada quando eles passaram diante da casa princi­
pal e percorreram o caminho de acesso , deixando para trás os pórticos
com as suas colunas esguias de ferro trabalhado , deixando para trás as
paredes de estuque branco com cunhais feitos de blocos de arenito ver­
melho e uma filigrana de terracota ao longo dos parapeitos superiores .
Na fachada da casa viam-se três arcos de pedra, e, acima destes ,
encontravam-se esculpidas as palavras Hacienda de San Diego em le­
tras arqueadas sobre as iniciais L.T. As altas janelas palladianas tinham
as portadas fechadas , e as portadas estavam gastas pelo tempo e partidas
e a tinta e o estuque tombavam em lascas das paredes e o tecto do pór­
tico não passava de uma fiada de ripas de madeira nuas , todas mancha­
das da chuva e empenadas . Eles romperam a cavalo pelo pátio em di­
recção ao que pareciam ser os domicílios , onde o fumo se elevava
contra o céu do crepúsculo , e cruzaram os portões de madeira abertos
para o pátio interior e pararam os cavalos lado a lado .
Num dos cantos do recinto encontrava-se a carcaça de um vetusto
Dodge , modelo de turismo , há muito despojado das rodas e dos eixos ,
dos vidros e dos assentos . No extremo oposto da cerca, uma fogueira
para cozinhar ardia no chão , e, à luz das chamas , eles distinguiram duas
caravanas pintadas de corres garridas com roupa pendurada numa corda
entre ambas e, a passar para trás e para diante defronte do lume , mulhe­
res e homens de roupões e quimonos que pareciam pertencer a um circo .
Qué e/ase de lugar es éste ? perguntou B illy.
Es ejido , disse a rapariga.
Qué e/ase de gente ?
No lo sé.
Ele descavalgou num só movimento e a rapariga deixou-se escorre­
gar do dorso do cavalo de Boyd e acercou-se e pegou nas rédeas .
A Travessia 205

Quem são estas pessoas? perguntou Boyd .


Não sei .
Entraram no recinto , B illy e a rapariga a pé , a rapariga a conduzir o
cavalo à brida. Boyd cavalgou atrás deles . As figuras no outro extremo
não lhes prestaram atenção alguma. Junto à fogueira, dois rapazes esta­
vam a acender candeeiros com uma lasca de madeira a arder e depois ,
usando u m pau bifurcado , iam passando o s candeeiros acesos pela pega
a um rapaz sobre a azotea que se movia contra o céu cada vez mais
sombrio , a pendurar os candeeiros do parapeito . O terreno do recinto ia
ficando mais iluminado à medida que o garoto progredia, e em breve
um galo começou a cantar. Outros rapazes empilhavam fardos de palha
contra um muro , e, sob o portal mais afastado , havia homens a desenro­
lar um cenário de lona pintada muito gretado e gasto das suas viagens .
Duas das figuras vestidas com trajos de fantasia pareciam embrenha­
das numa controvérsia, e um dos indivíduos deu um passo atrás e abriu
muito os braços . Como que para demonstrar a medida de qualquer coi­
sa colossal . Em seguida, irrompeu a cantar numa língua estrangeira.
Todo o movimento cessou até ele ter terminado . Em seguida, tudo co­
meçou de novo .
Dónde están los domicílios ? perguntou B illy.
A rapariga indicou com um aceno de cabeça a escuridão para além
dos muros . Afuera , disse .
Vamos embora.
Eu gostava de assistir, disse Boyd .
Nem sequer sabes o que é .
É qualquer coisa.
Billy tomou as rédeas da mão da rapariga. Olhou para a fogueira atrás
de si , para as figuras ali reunidas . Podemos voltar, disse . Eles ainda se
'tão a preparar.
Cavalgaram até onde se erguiam os três compridos edifícios de adobe
que albergavam os trabalhadores e meteram pela passagem entre os dois
primeiros , acompanhados todo o caminho por duas fileiras de rafeiros
de pêlo eriçado , a rosnar. A noite estava quente e havia fogueiras para
cozinhar acesas ao ar livre e, à luz suave , um tilintar abafado de utensí­
lios e o slape-slape delicado de mãos a moldar tortillas . As pessoas
deambulavam de fogueira em fogueira e as vozes delas propagavam-se
nas trevas e, mais distante ainda, ouvia-se o som de uma guitarra na
doçura da noite estival .
Deram-lhes quartos no extremo da fiada, e a rapariga tirou a sela ao
cavalo de Billy e conduziu ambos os animais para lhes dar de beber.
206 Cormac McCarthy

Billy pescou um fósforo de madeira do bolso da camisa e riscou-o com


a unha do polegar, acendendo-o . As duas divisões possuíam uma única
porta e uma única j anela e tectos altos de vigas com latillas de pauzi­
nhos . Uma porta baixa ligava-as e ao canto do segundo quarto havia
uma lareira e um pequeno altar com uma Virgem de madeira pintada.
Um boião contendo ervas mortas . Um copo para beber em cujo fundo
jazia um medalhão de cera enegrecida. Contra a parede erguia-se um
aparelho feito de varas amarradas numa armação e entrançado com tiras
de couro cru ainda com pêlo. Tinha a aparência de uma tosca alfaia
agrícola, mas era, na realidade , uma cama. Ele apagou o fósforo com
um sopro e dirigiu-se à saída e parou no vão da porta. Boyd estava sen­
tado no degrau diante da entrada, a contemplar a rapariga. Ela
encontrava-se junto ao bebedouro para as bestas , no outro extremo da
cerca, a segurar os cavalos enquanto eles bebiam . Ela e os dois cavalos
e o cão tinham a rodeá-los um semicírculo de cães sentados de todas as
pelagens e cores , mas ela não lhes prestava atenção . Esperava muito
pacientemente com os cavalos enquanto eles bebiam . Enquanto eles
erguiam as bocas gotejantes e olhavam em volta e enquanto bebiam de
novo . Não tocou nos cavalos nem falou com eles . Limitou-se a esperar
enquanto eles bebiam, e eles beberam durante muito tempo .
Comeram com uma família chamada Mufioz . Tinham certamente um
ar exausto da viagem , porque a mulher não parava de os incitar a que
comessem , e o homem executava pequenos gestos de quem ergue coisas
com as mãos estendidas , convidando-os a comer mais. Perguntou a
Billy de onde é que eles tinham vindo , e ouviu a resposta com uma
certa tristeza ou resignação . Como se lhe relatassem coisas que não ti­
nham remédio . Comeram acocorados no chão , com pratos de barro e
colheres . A rapariga nada disse que fizesse luz acerca das suas origens ,
e ninguém lhe perguntou . Enquanto comiam, uma sonora voz de tenor
veio a pairar na noite , acima dos telhados dos domicílios . Percorreu a
escala até à nota mais aguda e depois em sentido descendente , duas
vezes em sucessão . O silêncio tombou sobre o acampamento . Um cão
começou a uivar. Só quando parecia que já nada mais se iria seguir é
que os ejiditarios recomeçaram a falar. Um pouco mais tarde , um sino
dobrou algures no recinto , e, no reverberar prolongado , as pessoas co­
meçaram a levantar-se e a chamar umas pelas outras .
A mulher levara o comal e as caçarolas para a casa e estava agora de
pé , no vão da porta iluminado por uma candeia, com uma criança pe­
quena num braço . Viu Billy ainda sentado no chão e fez-lhe um gesto
para que se levantasse . Vámonos , chamou . Ele ergueu o rosto para ela.
A Travessia 207

Disse que não tinha dinheiro , mas ela limitou-se a fitá-lo como se não
compreendesse . Em seguida, disse que toda a gente ia assistir, e que os
que tinham dinheiro pagariam pelos que não tinham . Disse que toda a
gente tinha de ir. Nem sequer lhe passava pela cabeça que alguém fosse
posto de parte . Quem permitiria tal coisa?
Ele ergueu-se e ficou de pé . Procurou Boyd com os olhos, mas não o
via nem à rapariga. Os retardatários apressavam-se através do fumo das
fogueiras moribundas . A mulher mudara a criança para a outra anca e
avançou e pegou-lhe pela mão , como se ele próprio fosse uma criança .
Vámonos , disse . Está bien .
Seguiram os outros pela encosta acima, com a multidão a caminhar
vagarosamente por causa dos velhos , e os velhos a instar as outras pes­
soas a que passassem e seguissem adiante . Ninguém o fez . A casa vazia
na crista da elevação acima deles erguia-se , soturna e sem luz , mas bro­
tava música do longo recinto murado onde outrora se situavam as ofici­
nas e os establos , as residências dos capatazes . A luz derramava-se para
o exterior através das altas portas das cavalariças , e fanais de petróleo
ou de pez , improvisados com baldes , ardiam de ambos os lados do arco
de pedra à entrada, e aqui os ejiditarios formavam fila e avançavam em
passo arrastado com os seus centavos e os seus pesos agarrados nos
punhos fechados para os entregar ao porteiro , ali postado com o seu
fato negro luzidio . Dois jovens a transportar uma padiola passaram
através da multidão . A padiola era feita de varas e de lençóis, e o velho
ali deitado estava vestido de fato e gravata e agarrava nos dedos encla­
vinhados um rosário de madeira e fitava com olhar lúgubre o arco do
céu acima de si . B illy olhou para a criança que a mulher levava ao colo ,
mas a criança dormia. Quando chegaram aos portões , a mulher pagou e
o porteiro agradeceu-lhe e deixou cair as moedas para dentro de um
balde pousado no chão a seu lado e eles transpuseram o limiar e entra­
ram no pátio .
Tinham colocado as pequenas caravanas garridas no extremo oposto
do recinto . Havia candeias pousadas num semicírculo diante das cara­
vanas , sobre o terreno de argila compacta, e candeias penduradas de
uma corda estendida no alto , e, sob o jorro de luz ascendente , rostos de
rapazitos observavam ao longo do parapeito como fiadas de máscaras
teatrais ali dispostas . As mulas que se encontravam entre os varais esta­
vam aparelhadas com arreios agaloados e repletos de enfeites de ouro­
pel e de veludo , e as mulas e as caravanas eram as mesmas que trans­
portavam a pequena companhia pelas estradas secundárias da república
para que os seus membros se apresentassem à noite em palco com ague-
208 Cormac McCarthy

les mesmos trajos enquanto as candeias se acendiam e as multidões se


apinhavam numa qualquer plaza ou alameda de uma cidade de provín­
cia onde um homem passava para trás e para diante , a agitar diante de
s i , como se fora um tunbulo, um balde de água perfurado com buracos
feitos por pregos para assim assentar a poeira, e onde a prima donna se
movia numa silhueta lasciva atrás de um toldo de carroção a envergar o
seu trajo de palco ou a voltar-se para se remirar num espelho que nin­
guém conseguia ver mas cuja presença todos podiam imaginar.
Ele assistiu à peça com interesse , mas pouco conseguiu entender. Os
elementos da companhia estavam talvez a descrever uma das suas aven­
turas , acontecida durante as suas deambulações , e cantavam com os
rostos muito próximos uns dos outros e choravam, e, no final , o homem
em trajo multicor de bufão matou a mulher e matou à punhalada um
outro homem , talvez o seu rival , e rapazitos adiantaram-se a correr, se­
gurando a orla da cortina, para a fechar, e as mulas paradas nos seus
arreios ergueram as cabeças , despertando da sua sonolência, e começa­
ram a agitar-se e a dar pequenos passos .
Não se ouviram aplausos . A multidão permaneceu sentada no chão ,
em silêncio . Algumas mulheres choravam . Ao fim de um certo tempo ,
o majordomo que se dirigira ao público antes da representação atraves­
sou a cortina e agradeceu-lhes por terem ido assistir e afastou-se para o
lado e fez uma vénia enquanto os rapazes tomavam a abrir a cortina,
arrastando-a para um e para outro lado . Os actores surgiram diante deles
de mãos dadas e fizeram vénias e mesuras e ouviram-se aplausos aqui e
além, e , em seguida, a cortina fechou-se definitivamente .
Na manhã seguinte , ainda a penumbra quase não se convertera em
luz , ele saiu do recinto e desceu até ao rio . Caminhou sobre a ponte de
tábuas assente em pilares de pedra e ficou ali parado a contemplar as
águas frias e límpidas do Casas Grandes correndo das montanhas a sul .
Deu meia-volta e olhou para jusante . A trinta metros de distância, com
água pelas coxas , estava a prima donna , nua. O cabelo , solto e molhado ,
colava-se-lhe às costas e chegava à água. Ele ficou petrificado . Ela
voltou-se e fez tombar o cabelo diante de si e curvou-se e baixou-o
para dentro do rio . Os seios pendiam-lhe acima da água. Ele tirou o
chapéu e ficou ali com o coração a bater-lhe penosamente debaixo da
camisa. Ela endireitou-se e enrolou o cabelo e torceu-o para espremer a
água. Tinha a pele tão branca. A mancha escura de pêlo ao fundo do
ventre era quase uma grosseria.
Ela curvou-se mais uma vez e arrastou o cabelo pela água com um
menear lateral e depois endireitou-se e agitou o cabelo em volta de si
A Travessia 209

num grande arco de salpicos e ficou ali de pé , com a cabeça atirada


para trás e os olhos fechados . O Sol a nascer acima das cordilheiras
cinzentas a leste iluminava o ar nas alturas . Ela ergueu uma mão . Mo­
veu o corpo , executou um movimento largo com ambas as mãos diante
de si . Curvou-se e tomou nos braços o cabelo caído e segurou-o e pas­
sou uma mão sobre a superfície da água, como que para a abençoar, e
ele contemplava-a e, enquanto assim a contemplava, viu que o mundo
que sempre estivera em toda a parte diante dos seus olhos lhe fora ago­
ra ocultado , coberto por um véu , dir-se-ia. Ela voltou-se e ele pensou
que ela talvez fosse cantar ao Sol . Ela abriu os olhos e viu-o ali na pon­
te e voltou-lhe costas e caminhou vagarosamente até sair do rio e ele
perdeu-a de vista entre os troncos alvacentos e erectos dos choupos , e o
Sol nasceu e o rio continuou a correr como antes mas nada era igual
nem ele pensou que alguma vez voltaria a ser.
Tornou a subir em passo pausado até ao recinto . À nova luz do alvo­
recer, as sombras dos trabalhadores a partir para os campos com as en­
xadas ao ombro passavam uma por uma ao longo da parede do celeiro
voltada a leste , quais figuras num drama agrário . A mulher Mufíoz deu­
-lhe o pequeno-almoço , e ele saiu com a sela ao ombro e apanhou o
cavalo e selou-o e montou e afastou-se a cavalgar para observar as re­
dondezas .
Só ao meio-dia é que as caravanas transportando a companhia de
ópera encetaram a jornada, franquearam os portões , desceram a encosta
e cruzaram a ponte antes de romper para sul , pela estrada para Mata
Ortíz , para Las Varas e para Babícora. À luz crua do meio-dia, o doura­
do sem brilho das letras e a tinta vermelha descolorida e as tapeçarias
desbotadas pelo sol pareciam indicar o fim de um estado de graça, lon­
ge do fausto da noite anterior, e as caravanas , à medida que rumoreja­
vam e oscilavam vagarosamente para sul e iam mirrando no calor e na
desolação , pareciam incumbidas de um qualquer propósito novo e mais
austero . Como se a luz do dia divino lhes tivesse moderado as esperan­
ças . Como se a luz e a paisagem assim tornada visível fossem estranhas
ao seu verdadeiro desígnio . Ele ficou a observar de uma elevação no
terreno ondulado a sul da hacienda , onde a erva fervilhava ao vento a
seus pés . As caravanas avançavam devagar por entre os choupos na
outra margem do rio , as pequenas mulas caminhavam laboriosamente .
Ele debruçou-se e escarrou e picou o cavalo com os calcanhares .
De tarde , deambulou pelas divisões vazias da velha residencia . As
salas estavam despojadas dos seus adornos e candelabros , e o soalho de
tacos desaparecera quase todo . Perus davam passos para cá e para lá e
210 Cormac McCarthy

afastavam-se através das divisões diante dele . A casa cheirava a humi­


dade e a palha cediça, e as manchas de água tinham esboçado sobre o
estuque abaulado e decrépito grandes mapas de contornos livres em
tons de sépia, dir-se-iam vetustos reinos de outrora, mundos antigos . No
canto da sala de estar, um animal morto , pele seca e ossos . Um cão ,
talvez . Ele saiu para o pátio . Os toscos tijolos de lama seca viam-se por
baixo do estuque esfarelado das paredes em volta. No centro do espaço
aberto , um poço de pedra aparelhada. Um sino tangia na lonjura.
À tardinha, os homens fumavam e conversavam e deambulavam em
pequenos grupos de fogueira em fogueira. A mulher Mufíoz trouxe-lhe
a bota, e ele examinou-a à luz das chamas . O longo corte no cabedal
fora remendado com uma sovela e fio . Ele agradeceu-lhe e calçou-a. As
mulheres ajoelhavam-se na terra batida e debruçavam-se sobre as brasas
e voltavam com as mãos nuas as tortillas nos comales quentes de chapa
de ferro , deixando ao longo dos bordos da massa sem levedura, quais
marcas numa talha, dedadas negras por terem alimentado o fogo com
carvão de lenha. Um ritual infindável , infindavelmente repetido , a pro­
pagação da grande hóstia secular dos mexicanos . A rapariga ajudou a
mulher a preparar a refeição e , depois de terem dado de comer aos ho­
men s , veio sentar-se ao lado de Boyd e comeu em silêncio . Boyd pare­
ceu não lhe prestar muita atenção . Ele dissera a Boyd que iriam partir
dentro de dois dias , e, a avaliar pelo modo como ela erguia os olhos
para o fitar do lado oposto da fogueira, ele percebeu que Boyd lhe con­
tara .
Ela trabalhou nos campos ao longo de todo o dia seguinte e , ao final
da tarde , entrou em casa e foi lavar-se com uma tigela e um trapo atrás
da cortina e depois saiu e sentou-se a ver uns rapazitos jogarem à bola
no pátio de argila batida entre os edifícios . Quando ele entrou a cavalo
no pátio , ela pôs-se de pé e acercou-se e pegou nas rédeas e perguntou­
-lhe se podia ir com eles .
Ele descavalgou e tirou o chapéu e enfiou os dedos no cabelo molha­
do de suor e tomou a pôr o chapéu na cabeça e olhou para ela. No ,
disse .
Ela ficou parada a segurar o cavalo . Desviou o rosto . Com os olhos
escuros marejados de lágrimas . Ele perguntou-lhe porque é que queria
ir com eles , mas ela limitou-se a abanar a cabeça . Ele perguntou-lhe se
tinha medo , se havia ali alguma coisa que lhe metesse medo . Ela não
respondeu . Ele perguntou-lhe que idade tinha, e ela disse catorze . Ele
fez que sim com a cabeça. Cavou um crescente na terra a seus pés com
o tacão da bota. Olhou para ela.
A Travessia 211

Alguien le busca , disse .


Ela não respondeu .
No se puede quedar aquí?
Ela abanou a cabeça. Disse que não podia ficar. Disse que não tinha
para onde ir.
Ele percorreu o recinto com os olhos à luz pacata do cair da noite .
Disse que também não tinha para onde ir, por isso não a poderia ajudar
muito , mas ela limitou-se a abanar a cabeça e disse que iria para onde
quer que eles fossem, tanto lhe fazia.
Ao alvorecer do dia seguinte , enquanto ele selava o cavalo , os traba­
lhadores acercaram-se , trazendo dádivas de comida. Trouxeram-lhes
tortillas e chiles e carne seca e galinhas vivas e queijos inteiros até os
cumularem com uma montanha de provisões , muito para além da sua
capacidade de as transportar. A mulher Mufíoz deu a Billy uma coisa
que , quando ela recuou um passo , ele viu ser um punhado de moedas
dentro de um trapo atado . Ele tentou devolver-lhe o dinheiro , mas ela
voltou-lhe costas e regressou à sua casa sem uma palavra. Quando ca­
valgaram para fora da cerca, a rapariga seguia atrás de Boyd , no dorso
do cavalo sem sela, com os braços em volta da cintura dele .
Cavalgaram todo o dia para sul e fizeram a pausa do meio-dia junto
ao rio e comeram um lauto almoço , usando as provisões que transpor­
tavam, e dormiram debaixo das árvores. Já perto do final do dia, alguns
quilómetros a sul de Las Varas , na estrada para Madera, chegaram a um
lugar onde os cavalos se recusaram a avançar e estacaram na estrada, a
resfolegar.
Olha acolá, disse Boyd .
A companhia de ópera estava acampada junto da estrada, num campo
de flores silvestres . As caravanas encontravam-se paradas lado a lado e
alguém pendurara um toldo de lona entre elas para servir de ramada , e ,
n a sombra que assim s e formava, a prima donna estava descontraída­
mente reclinada numa grande rede de lona com um bule de chá na mesa
a seu lado e um leque japonês . Ouvia-se um gramofone a tocar através
da porta aberta da caravana, e , no campo que confinava com o acampa­
mento , um grupo de trabalhadores apoiava-se nos utensílios , de chapéus
na mão , a ouvir a música.
Ela ouvira os cavalos na estrada e sentou-se na rede e ergueu uma
mão para proteger os olhos do sol e olhar ao longe , embora o sol esti­
vesse atrás dela e o toldo lhe desse sombra, fosse como fosse .
Calculo que eles acampem assim ao ar livre como ciganos , disse
Billy.
212 Cormac McCarthy

Eles são ciganos .


Quem disse?
Toda a gente .
As orelhas do cavalo rodaram pelos quatro pontos cardeais em busca
da fonte da música.
Eles tiveram uma avaria.
Porque é que dizes isso?
Se não fosse assim, já tinham ido mais longe .
Se calhar decidiram parar aqui , mais nada.
Pra quê? Não há aqui nada.
B illy debruçou-se e escarrou . Achas que ela ' tá aqui sozinha, sem
mais ninguém?
Não sei .
O que é que achas que deu aos cavalos?
Não sei .
Olha, ela apontou o binóculo à gente .
A prima donna tomara da mesa um pequeno binóculo de ópera de
cabo comprido e remirava através deste instrumento na direcção da es­
trada.
Vamos desmontar.
Muito bem .
Trouxeram os cavalos à brida pela estrada, e ele mandou a rapariga
perguntar se a mulher precisava de alguma coisa. A música cessou . A
mulher gritou qualquer coisa para dentro da caravana, e , passado pouco
tempo , a música recomeçou .
Morreu uma mula, disse Boyd .
Como é que sabes?
Morreu , eu sei .
B illy percorreu o acampamento com o olhar. Não se viam animais ,
fosse de que género fosse.
O mais provável é as mulas ' tarem peadas nos carvalhos , acolá, disse .
Não ' tão nada.
Quando a rapariga regressou , disse que uma das mulas morrera.
Merda, soltou B illy.
O quê , disse Boyd .
Tu armaste isto tudo .
Armei o quê?
Isto da mula. Ela fez-te um sinal ou coisa do género .
O sinal da mula morta.
Pois.
A Travessia 213

Boyd debruçou-se e escarrou e abanou a cabeça. A rapariga continu­


ava parada, com uma mão em pala sobre os olhos , à espera. Billy olhou
para ela. As roupas finas . As pernas cobertas de poeira. Os pés enfiados
em huaraches feitas de tiras de cabedal e couro cru . Perguntou-lhe há
quanto tempo os homens tinham partido , e ela disse dois dias .
É melhor irmos até l á ver s e ela ' tá bem .
E o que é que tencionas fazer se não ' tiver? perguntou Boyd .
Diabos me levem se eu sei .
Bom , então porque é que não seguimos adiante .
Pensei que tu é que gostavas de andar por aí a salvar pessoas .
Boyd não respondeu . Montou , e B illy voltou-se e ergueu o rosto
para o olhar. Ele desenfiou uma bota do estribo e debruçou-se e deu a
mão à rapariga, e ela meteu o pé no estribo e ele içou-a e depois picou
o cavalo . Bom , vamos embora, disse . Já que nada mais te deixa satis­
feito .
Ele seguiu-os através do campo . Quando os trabalhadores os viram
aproximar-se , começaram novamente a cavar a terra com as suas enxa­
das curtas . Ele cavalgou a par de Boyd e pararam os cavalos lado a lado
diante da prima donna reclinada e deram-lhe as boas-tardes . Ela assen­
tiu com a cabeça. Remirou-os acima do bordo do leque aberto . Tinha
pintada uma qualquer cena oriental , e as varetas eram de marfim embu­
tido com fio de prata.
Los hombres han salido por Madero ? perguntou Billy.
Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça. Disse que deviam estar a
regressar a qualquer momento . Baixou ligeiramente o leque e olhou ao
longe , para a estrada para sul . Como se eles pudessem aparecer naquele
preciso instante .
B illy permaneceu escarranchado na sela. Parecia incapaz de pensar
no que dizer mais . Ao fim de um certo tempo , tirou o chapéu .
Vocês são americanos , disse a mulher.
Somos , sim , senhora. A rapariga deve-lhe ter dito , calculo .
Nada há a esconder.
Nós não temos nada a esconder. Só vim até aqui pra lhe perguntar se
podemos fazer alguma coisa por si .
Ela arqueou as sobrancelhas pintadas com expressão de surpresa.
Pensei que vocês talvez tivessem tido uma avaria aqui no meio da
estrada.
Ela olhou para Boyd . Boyd desviou os olhos para as montanhas , a sul .
Nós vamos seguir por esta estrada fora, continuou B illy. Se a senhora
quiser que a gente leve uma mensagem , ou coisa que valha.
214 Cormac McCarthy

Ela soergueu-se um bocadinho na rede e deu uma ordem em voz alta


para dentro da caravana. Basta , ordenou . Basta la música .
Ficou à escuta, com uma mão apoiada sobre a mesa. Num momento ,
a música cessou e ela afundou-se de novo na rede e abriu o leque e
olhou por cima do bordo deste para o jovem jinete ali sentado na sela
diante dela. Billy olhou na direcção da caravana, pensando que talvez
alguém fosse aparecer à porta, mas ninguém surgiu .
De que é que morreu a mula? perguntou .
Essa mula, disse ela. Essa mula morreu porque o sangue dela
espalhou-se todo pela estrada.
Como?
Ela ergueu uma mão languidamente diante de si , com os dedos muito
finos , a adejar, repletos de anéis . Como se descrevesse a ascensão da
alma do animal .
Aquela mula estava a ter as suas teimosias , mas ninguém a conseguia
trazer à razão . Não deviam ter incumbido o Gasparito de atender às
necessidades daquela mula. Ele não tinha o temperamento certo para
uma mula assim . Por isso , já percebeste o que acabou por suceder.
Não , minha senhora.
E a bebida, também . Nestas questões , a bebida está sempre presente .
E depois o medo . As outras mulas desatam a berrar. Tienen mucho mie­
do . Aos berros . A escorregar e a cair no meio do sangue e a berrar. O que
é que se diz a estes animais? Como é que lhes sossegamos o espírito?
Ela executou um gesto peremptório para o lado . Como se rejeitasse
qualquer coisa, vendo-a perder-se entre os ventos na solidão quente e
seca, entre o canto dos pássaros na pequena clareira, no início do cre­
púsculo . Alguma vez se conseguirá tornar a fazer destes animais o que
eles eram antes? Nem por sombras . Sobretudo no caso de mulas tea­
trais , como estas . Estas mulas nunca mais terão paz . Nunca mais. Com­
preendes?
O que é que ele fez à mula?
Tentou cortar-lhe a cabeça com uma catana. Está claro . O que é que
a rapariga vos disse? Ela não fala inglês?
Não , minha senhora. Só disse que o animal tinha morrido , mais nada.
A prima donna olhou para a rapariga com ar desconfiado . Onde é que
vocês encontraram esta rapariga?
Ela ia a andar pela estrada, só isso . Nunca pensei que se conseguisse
cortar a cabeça duma mula com uma catana.
É claro que não . Só um palerma borracho é que tentaria uma tal pro­
eza. Quando os golpes não serviram de nada, começou a serrar. Quando
A Travessia 215

o Rogelio o agarrou , só por pouco não lhe deu uma catanada também .
O Rogelio sentiu-se enojado . Enojado . Caíram os dois na estrada. No
meio do sangue e da poeira. A rebolarem debaixo das patas das bestas .
Com o carro prestes a virar-se e toda a gente que lá ia dentro . Repug­
nante . E se alguém surgisse por esta estrada? E se aparecesse gente
nesta estrada naquele momento e assistisse àquele espectáculo?
O que é que aconteceu à mula?
A mula? A mula morreu . É claro .
Ninguém teve a ideia de lhe dar um tiro ou nada do género?
Sim. Há uma história. Fui eu própria. Dei um passo em frente para
abater a tal mula, o que é que tu pensas? O Rogelio proibiu este gesto .
Porque ia assustar as outras mulas , diz-me ele . Consegues imaginar is­
to? Neste ponto dos acontecimentos? Depois diz que quer despedir o
Gasparito . Diz que o Gasparito é um lunático , mas o Gasparito é apenas
um borrachón . De Vera Cruz , está claro . E um cigano . Consegues ima­
ginar isto?
Pensei que todos vocês eram ciganos .
Ela soergueu-se na rede . Cómo ? soltou . Cómo ? Quién lo dice ?
Todo e/ mundo .
Es mentira . Mentira . Me entiendes ? Curvou-se para diante e escarrou
duas vezes na terra.
Neste momento , a porta ensombrou-se realmente , e um homem baixo
e moreno em mangas de camisa surgiu ali , a lançar em volta olhares
fuzilantes . A prima donna voltou-se na rede e ergueu os olhos para ele .
Como se a aparição dele à porta tivesse projectado uma sombra visível .
Ele abarcou com o olhar os visitantes e as suas montadas e tirou do
bolso da camisa um maço de cigarros El Toro e meteu um na boca e
vasculhou no bolso em busca de um fósforo .
Buenas tardes , saudou Billy.
Achas que um cigano é capaz de cantar ópera? insistiu a mulher. Um
cigano? Os ciganos só sabem tocar guitarra e pintar os cavalos . E dançar
as suas danças primitivas .
Soergueu-se na rede e alçou os ombros e abriu as mãos na sua frente .
Em seguida, entoou uma longa nota penetrante que não era bem um
grito de dor e não era bem nenhuma outra coisa. Os cavalos agitaram-se
e arquearam os pescoços , e os cavaleiros tiveram de lhes repuxar as
rédeas com toda a força, e, ainda assim , eles contorciam-se e davam
passos para cá e para lá e reviravam os olhos . Nos campos em volta, os
jornaleiros imobilizaram-se , petrificados nos seus regos .
Sabes o que foi isto? perguntou ela .
216 Cormac McCarthy

Não , minha senhora. Só sei que foi um belo grito .


Isto foi o do agudo . Achas que alguma cigana consegue cantar esta
nota? Alguma cigana com a sua voz de cana rachada?
Acho que nunca pensei muito na questão .
Mostra-me essa cigana, desafiou a prima donna . Gostava de ver essa
tal cigana.
Quem é que se lembra de pintar um cavalo?
Os ciganos , é claro . Quem mais? Pintores de cavalos . Dentistas de
cavalos .
B illy tirou o chapéu e limpou a testa com as costas da manga da ca­
misa e tomou a pôr o chapéu . O homem à porta descera até meio dos
degraus de madeira pintada e sentou-se a fumar. Debruçou-se e estalou
os dedos para chamar o cão . O cão recuou .
Onde é que aconteceu essa história com a mula? perguntou Billy.
Ela soergueu-se e apontou com o leque fechado . Na estrada, disse .
A menos de cem metros daqui . Não podíamos avançar mais. Uma mula
amestrada. Uma mula com experiência teatral . Massacrada nos tirantes
por um palerma bêbedo .
O homem nos degraus puxou uma última longa fumaça do cigarro e ,
com u m piparote , atirou a beata ao cão .
Tem alguma mensagem para o seu grupo , se nós os virmos? indagou
B illy.
Diz ao Jaime que nós estamos bem , e ele que venha no seu andamen-
to , sem pressas .
Quem é o Jaime?
Punchinello . É o Punchinello .
Como diz?
O payaso . O paliaço .
O palhaço .
Sim. O palhaço .
No espectáculo .
Sim.
Eu não o vou reconhecer sem as pinturas de guerra.
Mande ?
Como é que eu o vou reconhecer.
Vais reconhecê-lo , descansa.
Ele faz rir as pessoas?
Ele leva as pessoas a fazer o que lhe apetece . Às vezes , faz chorar as
raparigas , mas isso é outra história.
Porque é que ele a mata?
A Travessia 217

A prima donna recostou-se n a rede . Examinou-lhe o rosto . Olhou


para os trabalhadores no campo , lá longe . Ao fim de um certo tempo ,
voltou-se para o homem nos degraus .
Díganos, Gaspar. Por qué me mata e l punchinello ?
Ele ergueu os olhos para ela. Olhou para os cavaleiros . Te mata , dis-
se , porque él sabe tu secreto .
Paff, retrucou a prima donna . No es porque yo sé el de él?
No .
A pesar de lo que piensa la gente ?
A pesar de cualquier.
Y qué es este secreto ?
O homem ergueu um pé diante de si e rodou a bota para a examinar.
Era uma bota de cabedal preto com os atacadores a subir pelo flanco , de
um género raramente visto naquela região . El secreto , disse , es que en
este mundo la máscara es la que es verdadera .
Le entendió? perguntou a prima donna .
Ele disse que compreendera. Perguntou-lhe se era também essa a
opinião dela, mas ela limitou-se a agitar uma mão languidamente . É o
que diz o arriero , comentou . Quién sabe ?
Ele disse que era o seu segredo .
Paff. Eu não tenho segredo nenhum. Seja como for, isso já não me
interessa. Ser morta noite após noite . Esgota as forças de uma pessoa.
As faculdades de reflexão . É melhor concentrarmo-nos nas coisas pe­
quenas .
Eu cá pensei que ele ' tava com ciúmes , mais nada.
Sim . Claro . Mas mesmo sentir ciúmes põe à prova as nossas forças .
Ciúmes em Durango e de novo em Monclova e de novo em Monterrey.
Ciúmes com calor e com chuva e com frio . Uma tal onda de ciúmes
deve exaurir o rancor de mil e um corações , não? Como é que se há-de
fazer isto? Acho que é melhor começar por um estudo das coisas mais
pequenas . Depois seguir-se-ão as maiores . Nas coisas mais pequenas
conseguimos progredir. Aí, os nossos esforços são recompensados . Tal­
vez somente a postura da cabeça. O movimento de uma mão . O arriero
é um mero espectador destas matérias . Não percebe que , para aquele
que usa a máscara, nada se altera. O actor não tem o poder de agir, a não
ser em obediência ao que o mundo lhe ordena. Máscara ou não , para ele
é o mesmo .
Ela pegou no binóculo de ópera pela haste e examinou as cercanias .
A estrada. As sombras compridas sobre a estrada. E que rumo levam
vocês os três? perguntou .
218 Cormac McCarthy

Andamos por aqui à cata duns cavalos que nos foram roubados .
E à guarda de quem estavam esses cavalos?
Ninguém respondeu .
Ela olhou para Boyd . Abriu o leque . Pintado sobre o fole dobrado de
papel de arroz via-se um dragão com grandes olhos redondos . Ela fe­
chou o leque . Durante quanto tempo vão andar à procura desses cava­
los? indagou .
O tempo que for preciso .
Podría ser un viaje largo .
Quizás .
As viagens longas perdem-se muitas vezes .
Como diz?
Verás . É difícil , mesmo para dois irmãos , viajar juntos numa tal jor­
nada. A estrada tem as suas próprias razões , e não há dois viajantes que
tenham o mesmo entendimento dessas razões . Se é que conseguem che­
gar a entendê-las , diga-se de passagem. Ouve os corridos desta terra.
Ficarás a perceber. E então verás , na tua própria vida, qual é o custo das
coisas . Talvez seja verdade que nada está oculto . Todavia, muitos não
desejam ver o que está diante deles, bem à vista. Verás . A forma da es­
trada é a estrada em si . Não há qualquer outra estrada que ostente essa
forma, somente aquela. E todas as viagens nela iniciadas serão levadas
até ao seu termo . Quer se encontrem os cavalos , quer não .
Se calhar é melhor irmos andando , disse Billy.
Ándale pues , disse a prima donna . Que Deus vos acompanhe .
Se eu vir esse tal Punchinello na estrada, digo-lhe que a senhora ' tá à
espera dele .
Pa.ff, replicou a prima donna . Não desperdices o teu fôlego .
Adiós .
Adiós .
Ele olhou para o homem nos degraus . Hasta luego , disse .
O homem acenou com a cabeça. Adiós , disse .
B illy torceu as rédeas do cavalo para o fazer dar meia-volta. Olhou
para trás e tocou na aba do chapéu . A prima donna abriu o leque num
gesto elegante , deixando pender a mão . O arriero inclinou-se para dian­
te com as mãos nas rótulas e tentou uma derradeira vez cuspir para cima
do cão , e depois todos eles romperam através do campo até à estrada.
Quando ele olhou por cima do ombro , para a prima donna , ela estava a
observá-los pelo binóculo. Como se desta forma os pudesse avaliar
melhor, a afastarem-se pela estrada listada de sombras , com o crepúscu­
lo já próximo . Habitando somente aquele terreno ocular em que a pai-
A Travessia 219

sagem surgia d o nada e tomava a eclipsar-se n o nada, árvore e pedra e


as montanhas mais além a cobrirem-se de escuridão , tudo contido e por
sua vez contendo somente o que era necessário e nada mais .

Acamparam num carvalhal junto ao rio e fizeram uma fogueira e


sentaram-se no chão enquanto a rapariga lhes preparava o jantar com o
maná que tinham trazido do ejido . Depois de comerem, ela deu os restos
ao cão e lavou os pratos e a panela e foi tratar dos cavalos . Tomaram a
partir já tarde na manhã seguinte e , ao meio-dia, conduziram os cavalos
para fora da estrada de terra batida e meteram por um carreiro ao longo
da orla inferior de um campo de pimentos e seguiram até ao arvoredo e
até junto do rio que cintilava silenciosamente no calor. Os cavalos estu­
garam o passo. A vereda descrevia uma curva e corria ao longo de uma
vala de irrigação e depois descia para o meio das árvores e tomava a
emergir e seguia ao longo de uma mancha de salgueiros ribeirinhos e
atravessava um canavial . Um vento fresco soprava da água, com os
pendões brancos das canas a vergarem-se e a sibilarem suavemente sob
as rajadas . Para além dos fetos , o som da água a cair.
Eles emergiram do canavial num vau calcado por mil e um viajantes ,
no ponto onde a água do canal de irrigação se escoava. Acima deles havia
um charco para onde corria a água de um velho cano de drenagem cane­
lado . A água jorrava pesadamente para dentro do charco , e ali a chapinhar
na lagoa via-se meia dúzia de rapazes completamente nus . Estes viram os
cavaleiros no vau e viram a rapariga, mas não lhes prestaram atenção .
Raios , soltou Boyd .
Cravou os calcanhares nas costelas do cavalo e fê-lo avançar através
dos baixios arenosos . Não olhou para a rapariga atrás de si . Ela observa­
va os rapazes com interesse jovial . Olhou para Billy por cima do ombro
e pôs o outro braço em volta da cintura de Boyd e cavalgaram em frente .
Quando chegaram ao rio , ela deslizou da garupa do cavalo e tomou
as rédeas na mão e conduziu ambos os animais para dentro de água e
afrouxou o latigo de Bird e esperou junto dos cavalos enquanto eles
bebiam . Boyd sentou-se na margem do rio com uma das botas na mão .
O que é que passa? perguntou Billy.
Nada.
Ele desceu pela língua de cascalho a coxear, levando a bota na mão ,
pegou num seixo redondo e sentou-se e enfiou o braço dentro da bota e
começou a martelar com o seixo .
Tens aí um prego?
220 Cormac McCarthy

Tenho , sim .
Diz-lhe que traga a caçadeira.
Diz-lhe tu .
A rapariga estava parada no rio com os cavalos .
Tráigame la escopeta , pediu B illy e m voz alta.
Ela olhou para ele . Caminhou pela água a chapinhar até ao lado di­
reito do cavalo dele e tirou a caçadeira do estojo e trouxe-lha. Ele soltou
o fuste com o dedo enclavinhado e abriu a culatra da arma e tirou o
cartucho e levantou o cano para o soltar e agachou-se diante de Boyd .
Chega cá isso , disse . Passa pra cá.
Boyd estendeu-lhe a bota, e ele pousou-a no chão e enfiou lá o braço
e apalpou no interior à procura do prego e depois enfiou a cauda do
cano dentro da bota e martelou o prego com o bloco de fecho e tornou
a enfiar lá a mão e apalpou de novo e depois devolveu a bota a Boyd .
Essas botas cheiram horrivelmente mal , comentou .
Boyd calçou a bota e pôs-se de pé e andou para trás e para diante .
Billy tornou a montar a caçadeira e enfiou o cartucho na câmara com
o polegar e fechou a culatra da arma e apoiou-a na vertical sobre o cas­
calho e sentou-se a segurá-la. A rapariga estava novamente no rio com
os cavalos .
Achas que ela os viu? perguntou Boyd .
Viu o quê?
Aqueles gaiatos nus .
Ele ergueu os olhos de pálpebras franzidas para fitar Boyd , ali parado
a contraluz . Bom , disse , acho que deve de ter visto . Ela não ficou cegui­
nha desde ontem , ou ficou?
Boyd olhou para a rapariga parada no rio .
Ela não viu nada que não tivesse visto antes , prosseguiu B illy.
O que é que queres dizer com isso?
Não quero dizer nada.
O tanas é que não queres .
Não quero dizer nada. As pessoas vêem outras pessoas nuas , mais
nada. Não comeces outra vez com as tuas maluqueiras . Raios . Eu vi
aquela cantora de ópera no rio , nuazinha como veio ao mundo .
Viste agora.
O tanas é que não vi . Ela ' tava a tomar banho. ' Tava a lavar o cabelo .
Quando é que isso tudo aconteceu?
Ela lavou o cabelo e torceu-o todo como se fosse uma camisa.
Nuazinha de todo , dizes tu?
Nem um trapinho , digo eu .
A Travessia 22 1

E porque é que nunca disseste nada sobre isso?


Não tens de saber tudo .
Boyd , de pé , mordiscava o lábio . Tu foste ter com ela e falaste-lhe ,
disse .
O quê?
Foste ter com ela e falaste-lhe . Como se nunca tivesses visto nada.
Bom , o que é que querias que eu fizesse? Que lhe dissesse que a tinha
visto nuazinha em pêlo e que depois começasse a conversar com ela?
Boyd acocorara-se na extensão de cascalho e tirou o chapéu e ficou
sentado a segurá-lo nas duas mãos diante de si . Olhou para o rio que
passava . Achas que se calhar devíamos de ter ficado lá atrás? perguntou .
No ejido?
Pois .
E ficarmos à espera que os cavalos viessem ter com a gente , não?
Ele não respondeu . Billy ergueu-se e afastou-se ao longo da língua de
cascalho . A rapariga trouxe os cavalos e ele tornou a guardar a caçadei­
ra no estojo e olhou para Boyd .
'Tás pronto pra seguir viagem? perguntou num brado .
'Tou .
Ele apertou as cilhas do seu cavalo e tomou as rédeas da mão da ra­
pariga. Quando olhou para Boyd , Boyd ainda estava ali sentado .
O que é agora? perguntou .
Boyd ergueu-se devagar. Agora não é nada, disse . Não é nada dife­
rente do que era antes .
Olhou para Billy. Sabes do que eu ' tou a falar?
Sei , respondeu Billy. Sei bem do que tu ' tás a falar.

Ao fim de três dias a cavalgar, chegaram à encruzilhada onde a velha


estrada de carroções descia de La Nortefía , nas sierras ocidentais , para
depois cruzar os planaltos de Babícora e romper através do vale do
Santa María até Namiquipa. Os dias eram quentes e secos, e os cavalei­
ros e os seus cavalos ao final de cada dia tinham a cor da estrada. Ca­
valgavam através dos campos até junto do rio e Billy atirava ao chão a
sela e as mantas enroladas e , enquanto a rapariga montava o acampa­
mento , ele levava os cavalos para jusante e despojava-se das botas e das
roupas e montava em pêlo para dentro do rio , conduzindo o cavalo de
Boyd pelas rédeas , e ficava ali escarranchado no dorso do animal , nu à
parte o chapéu , e via a poeira da estrada a coar-se numa mancha alva­
centa rio abaixo na água límpida e fria.
222 Cormac McCarthy

Os animais bebiam. Levantavam as cabeças e olhavam ao longe ,


para jusante . Ao fim de um certo tempo , um velho apareceu através do
arvoredo na outra margem , a conduzir uma junta de bois com uma vara
para bestas . Os bois estavam jungidos a uma canga artesanal de madei­
ra de álamo tão descorada pelo sol que parecia um osso antigo e gasto
pelas intempéries que eles usassem ao pescoço . Penetraram no rio com
os seus movimentos vagarosos e bambaleantes e olharam para montan­
te e para jusante e para os cavalos na margem oposta antes de começa­
rem a beber. O velho ficou à beira da água e olhou para o rapaz despido
a cavalo .
Cómo le va ? saudou B illy.
Bien, gracias a Dias , disse o velho . Y a usted?
Bien .
Falaram do estado do tempo . Falaram das colheitas , de que o velho
sabia imenso e o rapaz nada. O velho perguntou ao rapaz se ele era um
vaquero , e ele disse que era e o velho fez que sim com a cabeça. Disse
que os cavalos eram bons cavalos . Toda a gente via isso . Os olhos
fugiram-lhe rio acima, para onde a fina coluna azul de fumo do acam­
pamento deles se erguia no ar parado .
Mi hermano , explicou B illy.
O velho fez um sinal afirmativo com a cabeça. Estava vestido com a
manta branca e suja daquela região que os jornaleiros envergavam para
trabalhar nos campos , quais doentes conspurcados que tivessem aban­
donado um qualquer manicómio supremo para enfim ferirem , de pés
fincados no chão , com raiva vagarosa e tresloucada, a terra em si . Os
bois ergueram as bocas gotejantes do seio do rio , primeiro um e depois
o outro . O velho baixou a vara na direcção deles , como que para os
abençoar.
Le gustan , indagou .
Claro , disse Billy.
Ficou a vê-los beber. Perguntou ao velho se os bois trabalhavam com
afinco , e o velho ponderou a pergunta e depois disse que não sabia.
Disse que os bois não tinham escolha. Olhou para os cavalos . Y los
caballos ? perguntou .
O rapaz disse que achava que os cavalos trabalhavam com bastante
afinco . Disse que alguns cavalos gostavam do seu trabalho . Gostavam
de trabalhar com o gado . Disse que os cavalos eram diferentes dos boi s .
Um guarda-rios voou rio acima e descreveu uma curva apertada e
chilreou e depois tornou a guinar por sobre a água e seguiu para mon­
tante . Ninguém olhou para ele . O velho disse que o boi era um animal
A Travessia 223

próximo de Deu s , como toda a gente sabia, e que talvez o silêncio e a


ruminação do boi se assemelhassem à sombra de um silêncio mais vas­
to , de um pensamento mais profundo .
Ergueu o rosto . Sorriu . Disse que , fosse como fosse , o boi sabia pelo
menos que devia trabalhar, evitando assim que o abatessem e comes­
sem , e que era muito útil saber isto .
Adiantou-se e enxotou os animais para fora do rio . Eles treparam a
margem de cascalho e resfolegaram e torceram o pescoço . O velho
voltou-se , com a vara ao ombro .
Está lejos de su casa ? perguntou .
O rapaz disse que não tinha casa.
No rosto do velho surgiu uma expressão consternada. Disse que o
rapaz tinha certamente uma casa, mas o rapaz insistiu que não . O velho
disse que havia um lugar para toda a gente no mundo e que iria rezar
pelo rapaz . Em seguida, conduziu os bois para longe através do bosque
de salgueiros e de sicómoros , na penumbra recente , e pouco depois
desapareceu da vista.
Quando ele regressou para junto do lume , era já quase noite . O cão
pôs-se de pé e a rapariga avançou para tomar a seu cargo os cavalos
luzidios e gotejantes . Ele caminhou até à fogueira e voltou a sela ali
pousada para secar.
Ela quer ir até Namiquipa pra ver a mãe , disse Boyd .
Ele ficou de pé , a olhar o irmão de alto . Acho que ela pode ir pra
onde muito bem entender, retorquiu .
Ela quer que eu vá com ela.
Quer que tu vás com ela?
Pois.
Pra quê?
Não sei . Porque tem medo .
B illy fitava as brasas . É isso que tu queres fazer? perguntou .
Não .
Então de que é que ' tamos pràqui a falazar?
Eu disse-lhe que ela podia levar o cavalo .
B illy acocorou-se devagar, com os cotovelos apoiados nos joelhos .
Abanou a cabeça. Não , disse .
Ela não tem outra maneira de ir.
Mas o que é que tu achas que vai acontecer se alguém a vir a montar
um cavalo roubado , porra? Raios . Qualquer cavalo , aliás .
Não é roubado .
Não é o tanas . E como é que tencionas recuperar o cavalo?
224 Cormac McCarthy

Ela trá-lo de volta.


O cavalo e mais o xerife . Pra que é que ela fugiu , se agora quer
voltar?
Não sei .
Eu também não . Viemos de muito longe pra deitar a mão àquele ca­
valo .
Eu sei .
B illy escarrou para o seio das chamas . Eu cá detestava ser mulher
neste país , só te digo . O que é que ela tem na ideia fazer, depois de
voltar?
Boyd não respondeu .
Ela sabe que nós não temos onde cair mortos?
Sabe .
Porque é que ela não fala comigo?
Tem medo que tu a abandones por aí.
É por isso que quer levar o cavalo .
Pois . Deve de ser.
E se eu não a deixar levá-lo?
Acho que ela acabava por ir, desse lá por onde desse .
Então que vá.
A rapariga regressou . Eles pararam de conversar, embora ela não
conseguisse entender o que eles diziam . Ela dispôs as panelas deles
sobre as brasas e afastou-se em direcção ao rio para ir buscar água. B illy
olhou para Boyd .
Não me digas que eras capaz de fugir com ela. Eras?
Eu não vou a lado nenhum .
Se te visses e m palpos de aranha.
Não sei a que é que te referes .
S e tu achasses que ela ia ficar entregue à sua sorte ou que não ia haver
ninguém pra cuidar dela ou se alguém se metesse com ela. Coisas desse
género . Eras bem capaz de te raspar com ela. Ou não?
Boyd debruçou-se e, com os dedos , empurrou as pontas enegrecidas
de duas achas para diante , para o seio das pequenas brasas , e limpou os
dedos à perna das calças de ganga. Não olhou para o irmão . Era, disse .
Se calhar até era.
Na manhã seguinte , cavalgaram até à encruzilhada e aí se despediram
da rapariga.
Quanto dinheiro temos? perguntou Boyd .
Quase nenhum , raios .
Porque é que não lho dás?
A Travessia 225

Eu já sabia que isto ia acontecer. E como é que vamos comer,


explicas-me?
Dá-lhe metade .
Seja.
Ela montava o cavalo em pêlo e baixou o rosto para Boyd com os
olhos negros rasos de lágrimas e depois deixou-se escorregar do cavalo
e abraçou-o . Billy olhava-os . Olhou para o céu a sul , repleto de nuvens
de tempestade . Debruçou-se e cuspiu para a estrada uma saliva escassa.
Vamos lá, disse .
Boyd içou-a para o cavalo , e ela voltou-se e olhou para ele com a mão
na boca e depois forçou o cavalo a rodar, torcendo as rédeas , e partiu
pela estreita estrada de terra batida para leste .

Prosseguiram para sul ao longo da estrada poeirenta, ambos escarran­


chados mais uma vez sobre o dorso do cavalo de Billy. A poeira
elevava-se do topo da estrada diante deles , e as acácias da berma
contorciam-se e sibilavam ao vento . Ao final da tarde , o céu escureceu
e a chuva começou a chapinhar na terra e a matraquear-lhes nas abas
dos chapéus . Cruzaram-se com três cavaleiros que vinham pela estrada.
Cavalos desirmanados e aprestos ainda piores . Quando B illy olhou para
trás , dois deles tinham-se voltado e olhavam-no .
Achas que conseguíamos reconhecer os mexicanos a quem tirámos a
rapariga? perguntou .
Não sei . Não me parece . Tu conseguias?
Não sei . Provavelmente , não .
Continuaram a cavalgar à chuva. Ao fim de um certo tempo , Boyd
disse: Eles reconheciam-nos .
Pois, concordou Billy. Eles reconheciam-nos .
A estrada tornou-se mais estreita à medida que subia para as monta­
nhas . A paisagem eram pinhais ralos a perder de vista, e a erva escassa
e frágil nos prados parecia fraca nutrição para o sustento de um cavalo .
Revezavam-se a seguir a pé pelas curvas da estrada, conduzindo o cava­
lo à brida ou caminhando à ilharga do animal . Acampavam nos pinhais
de noite , e as noites eram novamente frias , e, quando penetraram na
povoação de Las Varas , há já dois dias que não comiam . Cruzaram os
carris do caminho-de-ferro e passaram diante dos grandes armazéns de
adobe com os seus botaréus de lama seca e os seus letreiros que diziam
puro maíz e compro maíz . Havia pilhas de madeira de pinho amarela,
cortada em folhas , ainda em bruto , ao longo das linhas de manobras , e a
226 Cormac McCarthy

atmosfera encontrava-se impregnada de fumo de pifíon . Deixaram para


trás a estação de comboios , um edifício baixo , de paredes estucadas ,
com o seu telhado de chapa ondulada, e desceram para a vila. As casas
eram de adobe com telhados de duas águas revestidos de tabuinhas de
madeira e viam-se pilhas de lenha nos quintais e cercas feitas de ripas
de pinho . Um cão de ar ousado que não tinha uma pata coxeou para o
meio da rua diante deles e voltou-se para lhes fazer frente .
Vai-te a ele , Trooper, atirou Boyd .
Porra, soltou B illy.
Comeram naquilo que fazia as vezes de um café naquela terra de
aparência agreste . Três mesas numa sala vazia, sem lume .
Acho que ' tá mais calor lá fora do que cá dentro , comentou Billy.
Boyd olhou pela janela, para o cavalo parado na rua. Olhou para os
fundos do café .
Achas que este lugar ' tá sequer aberto?
Ao fim de um certo tempo , uma mulher cruzou a porta nas traseiras
e postou-se diante deles .
Qué tiene de comer? perguntou Billy.
Tenemos cabrito .
Qué más ?
Enchi/adas de pollo .
Qué más ?
Cabrito .
Eu cá não como cabrito nenhum, declarou Billy.
Nem eu .
Dos ordenes de las enchi/adas , pediu B illy. Y café.
Ela fez que sim com a cabeça e afastou-se .
Boyd mantinha as mãos entre os joelhos para as aquecer. Lá fora, um
fumo cinzento soprava pelas ruas . Não se via ninguém .
Achas que é pior ter frio ou ter fome?
Acho que é pior ter as duas coisas .
Quando a mulher trouxe os pratos , pousou-os na mesa e depois fez o
gesto de quem enxota um animal na direcção da parte da frente do café .
O cão estava parado atrás d a vidraça, a olhar para o interior. Boyd tirou
o chapéu e agitou-o diante da vidraça num movimento largo , e o cão
foi-se embora. Ele tomou a pôr o chapéu e pegou no garfo . A mulher foi
até aos fundos e regressou com duas canecas de café numa mão e um
cesto de tortillas de milho na outra. Boyd tirou qualquer coisa da boca
e pousou-a no prato e ficou a fitá-la.
O que é isso? perguntou B illy.
A Travessia 227

Não sei . Parece uma pena.


Desfizeram as enchiladas , tentando encontrar qualquer coisa comes­
tível lá dentro . Dois homens entraram e olharam para eles e foram
sentar-se na mesa do fundo .
Come o feijão , aconselhou Billy.
Poi s , disse Boyd .
Verteram o feijão para dentro das tortillas com as colheres e
comeram-nas e beberam o café . Os dois homens ao fundo da sala per­
maneciam sentados em silêncio , à espera de que lhes trouxessem a re­
feição .
Ela vai-nos perguntar o que é que as enchiladas tinham de mal , disse
Billy.
Não sei se vai ou não . Achas que alguém chega a comer estas coisas?
Não sei . Podemos levá-las e dá-las ao cão .
'Tás-me a propor levar a comida da mulher lá pra fora e dá-la ao cão
mesmo à frente da porta do café dela?
Se o cão a comer, claro .
Boyd empurrou a cadeira para trás e levantou-se . Deixa-me ir lá fora
buscar a panela , disse . Podemos dar de comer ao cão mais daqui a bo­
cado .
Seja.
Dizemos-lhe que vamos levar a comida com a gente e pronto .
Quando ele tornou a entrar com a panela, raparam a comida dos pra-
tos e puseram a tampa na panela e sentaram-se a beber o café . A mulher
surgiu com duas travessas de carne de aparência suculenta, com molho
e arroz e pico de gal/o .
Raios , soltou Billy. Aquilo tem óptimo aspecto , hem?
Pediu a conta, e a mulher acercou-se e disse-lhes que eram sete pesos .
Billy pagou e fez sinal com a cabeça para os fundos da sala e perguntou
à mulher o que é que aqueles homens estavam a comer.
Cabrito , disse ela.
Quando saíram para a rua, o cão pôs-se de pé e ficou à espera.
Raios , disse Billy. Dá-lhe isso e que se lixe .
À tardinha, na estrada para Boquilla, encontraram um grupo de va­
queros a conduzir para norte umas mil cabeças de novilhos de raça
corriente ainda meio bravios , rumo aos currais de Naco , junto à frontei­
ra. Seguiam a manada há três dias desde a região de Quemada, bem no
extremo sul de La B abícora, e estavam sujos e com uma aparência ex­
travagante , e o gado desvairado e assustadiço . Os novilhos passaram a
bramir num mar de poeira, e os cavalos cor de espectros trotavam entre
228 Cormac McCarthy

eles , sorumbáticos e de olhos vermelhos , de cabeça baixa. Alguns cava­


leiros ergueram o braço em jeito de saudação . Os jovens güeros tinham
subido até uma elevação de terreno e descavalgaram e ficaram parados
junto do cavalo e viram o caos alvacento e vagaroso a fluir para oeste
com o Sol , deixando a terra na sua esteira a fumegar suavemente e os
últimos gritos dos cavaleiros e os últimos queixumes do gado a
dissiparem-se no silêncio azul-escuro do crepúsculo . Tomaram a mon­
tar e seguiram viagem . Já de noite , passaram por uma aldeola naquele
planalto em que as casas eram feitas de toros com telhados de tabuinhas
de madeira. O fumo e o cheiro a comida ao lume pairavam no ar frio .
Eles cavalgaram através das faixas de luz amarela que tombavam na
estrada, provenientes das janelas iluminadas pelas candeias , e tomaram
a mergulhar nas trevas e no frio . Na manhã seguinte , naquela mesma
estrada, encontraram , molhados e luzidios , a subir da laguna de monta­
nha a sul da estrada, os cavalos Bailey e Tom e Nino .
Tinham acabado de trepar para o leito da estrada com meia dúzia de
outros cavalos , todos ainda a escorrer água, e trotaram e agitaram as
cabeças no ar fresco da manhã. Dois cavaleiros subiram para a estrada
atrás deles e enxotaram-nos , obrigando-os a deixar de mordiscar a erva
da berma, e tocaram-nos para diante .
Billy sofreou as rédeas do cavalo e guiou-o para a berma da estrada
e passou a perna num só movimento sobre o cepilho da sela e deixou­
-se escorregar e, erguendo o braço, passou as rédeas a Boyd . Os cava­
los aglomerados avançaram , cheios de curiosidade , de orelhas arrebi­
tadas . O cavalo do pai deles atirou a cabeça para trás e soltou um
longo relincho .
Homessa, quem diria! exclamou Billy. Homessa, quem diria!
Remirou os cavaleiros . Também eles jovens . Talvez da idade dele .
Estavam molhados até aos joelhos , e os cavalos que montavam estavam
também molhados . Tinham visto os cavaleiros e tinham-nos visto a
desviar a montada para o lado e avançaram com mais cautela. Billy
sacou a caçadeira do estojo e abriu a culatra para se certificar de que
estava carregada e tornou a fechar a culatra com um sacão rápido para
cima. Os cavalos , que seguiam a passo , pararam na estrada.
Arma um laço , ordenou ele . Não deixes passar o Nino .
Avançou para o meio da estrada com a caçadeira na curva do braço .
Boyd transpôs o arção traseiro da sela com um impulso e soltou o cor­
dão que prendia o lasso à sela e fez correr a corda entre as mãos . Os
outros cavalos tinham parado , mas Nino prosseguiu junto à berma da
estrada, de cabeça alçada, a farejar o ar.
A Travessia 229

Alto , Niõo ! gritou Billy. Alto , rapaz !


Os dois cavaleiros que vinham atrás estacaram . Ficaram ali parados ,
sem saber o que fazer. Billy atravessara a estrada para cortar o caminho
a Niõo , e Niõo atirou a cabeça para o alto e voltou para o meio da es­
trada.
Qué pasa ? perguntaram os vaqueros num brado .
Ou atiras o laço a este filho da mãe ou pegas na caçadeira, decide-te !
exclamou Billy.
Boyd ergueu o laço . Niõo já medira o espaço entre o homem a pé e o
homem a cavalo , e lançou-se para diante . Quando viu a corda a subir no
ar, tentou deter-se , mas escorregou na argila compacta da estrada, e
Boyd rodou o laço uma vez e fez-lho tombar sobre a cabeça e enrolou
a corda em volta do chifre da sela. Bird deu meia-volta e fincou as patas
na estrada e baixou os quadri s , mas Niõo estacou quando a corda lhe
acertou e ficou ali parado e soltou um relincho e olhou para os cavalei­
ros e para os cavalos atrás de si .
Qué están haciendo ? bradaram os cavaleiros . Continuavam parados
no lugar onde primeiro se tinham detido . Os outros cavalos tinham dado
meia-volta e tinham começado novamente a pastar na berma.
Pega num bocado daquela corda curta e faz-me uma xáquima, disse
Billy.
Fazes tenções de o montar?
Faço .
Eu posso montá-lo .
Eu monto-o . Desenrola mais corda. Mais corda.
Boyd deu laçadas e nós até formar a xáquima e cortou a corda com o
canivete e atirou a xáquima a Billy. B illy apanhou-a e acercou-se de
Niõo ao longo do comprimento da corda de laçar, falando-lhe em voz
baixa. Os dois cavaleiros picaram os cavalos .
Ele enfiou a xáquima na cabeça de Niõo e soltou a corda de laçar.
Falou com o cavalo e deu-lhe palmadinhas e depois puxou o laço sobre
a cabeça do animal e deixou-o cair no chão e conduziu o cavalo para
junto do ponto onde Boyd estava montado no outro cavalo . O laço de
corda deslizou sobre a terra. Os cavaleiros tomaram a parar. Qué pasa ?
bradaram .
Billy atirou a caçadeira a Boyd e depois saltou e içou-se com ambas
as mãos para cima do dorso do cavalo e lançou uma perna para se es­
carranchar e tomou a estender a mão para receber a caçadeira. Niõo
bateu com os cascos na estrada e atirou a cabeça para trás .
Joga a tua corda ao velho Bailey acolá, ordenou Billy.
230 Cormac McCarthy

Boyd olhou para os dois cavaleiros , parados mais adiante na estrada.


Picou o cavalo .
No moleste a esos cabal!os , avisaram os cavaleiros em voz alta.
Billy guiou Nino com as rédeas até à berma da estrada. Boyd avançou
sobre os cavalos que pastavam sem pressas na erva da berma e atirou o
laço . Ao fazê-lo , antecipou-se ao movimento de Bailey, e , quando este
ergueu a cabeça para se desviar, enfiou-a em cheio no laço . Billy, escar­
ranchado no cavalo do pai , observava. Eu também conseguia fazer
aquilo , disse ao cavalo . Ao fim dumas nove tentativas .
Quiénes son ustedes ? bradaram os cavaleiros .
Billy cavalgou para diante . Somos proprietarios de estos caballos ,
atirou .
Os vaqueros permaneceram no mesmo lugar. Atrás deles , uma ca­
mioneta surgira na estrada, vinda de Boquilla. Estava demasiado longe
para se ouvir, mas eles devem ter visto o olhar dos outros dois cavalei­
ros a desviar-se , pois voltaram-se e olharam por cima do ombro . Nin­
guém se moveu . A camioneta aproximou-se devagar, com a caixa de
velocidades a soltar um gemido agudo e crescente . A poeira das rodas
espalhava-se vagarosamente pelas cercanias . B illy desviou o cavalo da
estrada e ficou parado , com a caçadeira apoiada na vertical sobre a coxa.
A camioneta avançou . Passou a arquejar. O motorista olhou para os
cavalos e para o rapaz montado de caçadeira em punho . Na caixa da
camioneta estavam oito ou dez trabalhadores, todos aninhados uns con­
tra os outros como recrutas e, quando a camioneta passou , eles ficaram
a olhar para a estrada atrás de si por entre a poeira e o fumo do motor,
a fitar sem expressão alguma os cavalos e os cavaleiros .
Billy picou Nino . Porém , quando procurou os vaqueros com os olhos ,
só um deles permanecia na estrada. O outro já cavalgava para sul , arre­
piando caminho através do campo . Ele rompeu ao encontro dos cavalos
parados e separou Tom da manada e enxotou o resto dos cavalos para
fora da estrada e voltou-se e olhou para Boyd . Toca a andar, disse .
Romperam ao encontro do cavaleiro solitário com o cavalo solto a
trotar diante deles e Boyd a trazer Bailey atrás de si pela corda de laçar.
O jovem vaquero viu-os aproximarem-se . Em seguida, guiou o cavalo
para fora da estrada e para a campina, e ali ficou a vê-los passar. Billy
olhou ao longe sobre o campo , tentando avistar o outro cavaleiro , mas
este desaparecera atrás de uma elevação . Ele abrandou o passo do cava­
lo e gritou ao vaquero .
Adónde se fué su compadre ?
O jovem vaquero não respondeu .
A Travessia 23 1

Ele tomou a picar o cavalo , com a caçadeira erguida contra o ombro .


Olhou para trás , para os cavalos a pastar junto à berma, e olhou nova­
mente para o vaquero e depois pôs-se a par de Boyd e prosseguiram.
Quatrocentos metros mais adiante , quando olhou por cima do ombro ,
viu o vaquero na estrada, a cavalgar vagarosamente atrás deles . Um
pouco mais adiante , deteve-se e postou o cavalo de viés na estrada e
apoiou a caçadeira no joelho . O vaquero deteve-se também. Quando
eles retomaram a cavalgada, ele recomeçou também a cavalgar.
Bom , agora é que ' tamos em apertos .
' Tamos em apertos desde que saímos de casa, retrucou Boyd .
O outro moço foi pedir ajuda.
Eu sei .
Não têm cavaleado muito o Nifio , pois não .
Não muito .
Olhou para Boyd . Sujo e andrajoso , com o chapéu pendido para dian­
te por causa do sol e o rosto oculto na sombra. Parecia o representante
de uma nova raça de meninos cavaleiros deixados na esteira da guerra
ou de uma epidemia ou da fome naquela terra.
Ao meio-dia, com os muros baixos da hacienda de Boquilla a cintilar
ao longe , cinco cavaleiros surgiram na estrada diante deles . Quatro vi­
nham armados com espingardas que traziam atravessadas sobre o cepi­
lho da sela ou seguravam numa mão com gesto descontraído . Colheram
as rédeas bruscamente , e os animais bateram com as patas no chão e
deram passos de viés na estrada, e os cavaleiros chamaram-se mutua­
mente aos gritos , embora não estivessem afastados uns dos outros , antes
pelo contrário .
Os dois irmãos pararam os cavalos . Tom continuou a trotar em frente ,
de orelhas arrebitadas . Billy voltou-se e olhou para trás . Havia mais três
cavaleiros na estrada atrás deles . Olhou para Boyd . O cão caminhou até
à berma da estrada e sentou-se . Boyd debruçou-se e escarrou e olhou
para sul , a remirar as pastagens sem vedações , a forma do lago na lon­
jura, encrespado e alvacento onde espelhava o tecto de nuvens lá no
alto . Cinco ou seis novilhos magros de pêlo pardo tinham erguido as
cabeças para fitar os cavalos na estrada. Ele tomou a olhar para os ca­
valeiros atrás de si e olhou para Billy.
Queres tentar fugir?
Não .
Os nossos cavalos 'tão mais frescos .
Tu não sabes que género de cavalos têm eles . Seja como for, o B ird
nunca ia conseguir acompanhar o Nifio .
232 Cormac McCarthy

Remirou os cavaleiros que avançavam . Passou a caçadeira a Boyd .


Guarda isto , disse . Dá-me os papéis .
Boyd estendeu o braço para trás de s i e começou a desatar o cordel
da roseta na bolsa da sela.
Não fiques aí especado com isso na mão , disse Billy. Guarda isso .
Ele enfiou a caçadeira no estojo. Tens muito mais confiança em pa­
pelada do que eu, declarou .
Billy não respondeu . Estava a olhar os cavaleiros que avançavam
pela estrada, os cinco agora a par, de espingardas erguidas excepto um.
Tom estacou na berma da estrada e lançou um relincho aos cavalos que
se aproximavam. Um dos cavaleiros guardou a espingarda no estojo e
pegou na sua corda. Tom viu-o acercar-se e depois deu meia-volta e
começou a afastar-se da estrada, mas o cavaleiro picou a montada e fez
rodar o laço e fê-lo tombar sobre o pescoço do cavalo . O cavalo parou
e imobilizou-se a dois passos da berma, e o cavaleiro deixou tombar no
chão o rolo de corda e todos avançaram .
Boyd passou a Billy o sobrescrito castanho contendo os papéis de
Nifío , e Billy ficou a segurá-lo e a segurar frouxamente na outra mão a
corda da xáquima. Tinha a face interna das pernas húmida do cavalo e
sentia o cheiro do animal , e o cavalo bateu com as patas e meneou a ca­
beça e relinchou aos cavaleiros que se acercavam .
Estes pararam a um metro de distância, se tanto . O homem mais velho
entre eles remirou-os a ambos e assentiu com a cabeça. Bueno , disse .
Bueno . Faltava-lhe um braço , e a manga direita da camisa encontrava-se
espalmada e presa ao ombro com um alfinete . Guiava o cavalo com as
rédeas amarradas e usava uma pistola no cinturão e um chapéu sóbrio de
copa achatada, de um género que já não se via muito naquela terra, e
calçava botas trabalhadas até aos joelhos e trazia um chicote de couro
entrançado . Olhou para Boyd e olhou novamente para Billy e para o
sobrescrito que este segurava na mão .
Déme sus papeles , ordenou .
Não lhe dês os papéis , aconselhou Boyd .
Como é que ele os vai ver, se eu não lhos der?
Los papeles , insistiu o homem .
Billy picou o cavalo para diante e curvou-se e entregou o sobrescrito
e depois fez recuar o cavalo e ali parou . O homem entalou o sobrescrito
nos dentes e soltou o pequeno fecho que prendia a aba e , em seguida,
tirou do interior os papéis e desdobrou-os e examinou os selos e ergueu­
-os à luz . Folheou os papéis e depois tomou a dobrá-los e tirou o sobres-
A Travessia 233

crito da axila e tomou a guardar os papéis dentro do sobrescrito e


entregou-o ao cavaleiro à sua direita.
Billy perguntou-lhe se conseguia ler os papéis , já que estes se encon­
travam escritos em inglês , mas o homem não respondeu . Inclinou-se
um bocadinho para ver melhor o cavalo que Boyd montava. Declarou
que os papéis não tinham valor nenhum . Disse que , tendo em conta a
juventude deles , não iria apresentar queixa. Acrescentou que , caso eles
quisessem reclamar, podiam ir falar com o Seíior Lopez em Babícora .
Em seguida, voltou-se e falou com o homem à sua direita, e este ho­
mem guardou o sobrescrito dentro da camisa, e ele e outro homem
avançaram com as espingardas erguidas na mão esquerda. Boyd olhou
para B illy.
Solta o cavalo , disse Billy.
Boyd ficou imóvel , a segurar a corda.
Faz o que eu te disse , insistiu Billy.
Boyd debruçou-se e aliviou o nó corredio da corda de laçar sob a
mandíbula de Bailey e puxou a corda sobre a cabeça do animal . O ca­
valo deu meia-volta e cruzou a valeta da berma e afastou-se a trote .
Billy desceu do dorso de Nino e soltou-lhe a xáquima da cabeça e usou­
-a para fustigar o animal na garupa, e o animal voltou-se e partiu atrás
do outro cavalo . Nesse momento já os cavaleiros atrás deles se tinham
aproximado , lançando-se em perseguição dos cavalos sem que ninguém
lho ordenasse . O jefe sorriu . Olhou para eles e tocou no chapéu à laia de
despedida e colheu as rédeas e voltou o cavalo bruscamente na estrada.
Vámonos , disse . Em seguida, ele e os quatro cavaleiros armados parti­
ram estrada fora em direcção a Boquilla, de onde tinham vindo . Lá
longe , na planura, os jovens vaqueros tinham alcançado os cavalos sol­
tos e estavam a conduzi-los de volta para a estrada, rumando a oeste ,
como era a sua intenção inicial , e em breve todos se perderam de vista
na reverberação do calor do meio-dia e restou somente o silêncio . Para­
do na estrada, B illy debruçou-se e escarrou .
Diz lá o que te vai na cabeça, disse .
Não tenho nada pra dizer.
Bom.
'Tás pronto?
'Tou .
Boyd flectiu a perna e ergueu a bota, desenfiando-a do estribo , e Billy
enfiou lá o pé e içou-se para trás dele .
Santa ignorância, raispartam , se queres que te diga, soltou Boyd .
Pensei que não tinhas nada pra dizer.
234 Cormac McCarthy

Boyd não respondeu . O cão mudo fora esconder-se nas ervas da ber­
ma e agora reapareceu e ficou parado , à espera . Boyd permanecia imó­
vel na sela.
Bom, de que é que ' tás à espera? perguntou Billy.
'Tou à espera que tu me digas pra que lado queres ir.
Bom , pra que lado achas tu que nós vamos agora, chiça?
' Tá combinado ' tarrno s em Santa Ana de Babícora daqui a três dias .
Bom , somos bem capazes de nos atrasar.
Então e os papéis?
De que raio nos servem os papéis sem o cavalo? Seja como for, aca­
baste de ver o que os papéis valem neste país .
Um dos rapazes que saiu daqui com os cavalos tinha uma espingarda
num estojo de bota.
Eu vi . Não sou cego .
Boyd voltou o cavalo e romperam novamente para oeste pela estrada
fora. O cão colocou-se a par deles e pôs-se a trotar do lado direito do
cavalo , à sombra do corpo deste .
Queres desistir? perguntou B illy.
Eu nunca disse nada sobre desistir.
As coisas por estas bandas não são como lá na nossa terra.
Eu nunca disse que eram .
Tu recusas-te a usar o bom senso . Viemos até demasiado longe pra
voltarmos pra casa mortos .
Boyd apertou os flancos do cavalo com os tacões das botas , e o cava­
lo estugou o passo. Achas que há um lugar que fique assim tão longe?
perguntou .
Encontraram os rastos dos dois cavaleiros e dos três cavalos no pon­
to em que estes tinham regressado à estrada e, uma hora depois ,
encontravam-se de regresso ao lugar, acima do lago , onde primeiro ti­
nham visto os cavalos . Boyd cavalgou devagar ao longo da berma da
estrada, a examinar o terreno a seus pés , até ver onde é que os cavalos ,
ferrados e sem ferraduras , tinham abandonado a estrada e metido para
norte através das pastagens altaneiras e ondulantes .
Pra onde é que tu achas que eles vão? perguntou .
Não sei , respondeu Billy. Lá por isso , também não sei donde é que
eles vieram .
Cavalgaram para norte toda a tarde . De uma elevação , aos derradei­
ros raios do crepúsculo , viram os cavaleiros a arrebanhar diante de si os
cavalos , agora em número de uma dúzia, mais ou menos , a uns dez
quilómetros dali , na pradaria azul que ia arrefecendo .
A Travessia 235

Achas que são eles? perguntou Boyd .


Têm de ser, não vejo outra hipótese , disse B illy.
Prosseguiram. Romperam para o seio da escuridão e, quando ficou
demasiado escuro para se ver, pararam o cavalo e ficaram à escuta. Não
havia som algum, à parte o vento na erva. A estrela da tarde pairava a
oeste , a pouca altura, redonda e vermelha como um sol mirrado . B illy
deixou-se escorregar para o chão e tomou as rédeas da mão do irmão e
conduziu o cavalo .
'Tá escuro que nem dentro da pança duma vaca .
Eu sei . O céu ' tá cheio de nuven s .
É uma bela maneira duma pessoa levar uma mordidela duma cobra,
isso é que é .
Eu tenho botas nos pés . O cavalo não .
Chegaram ao cume de uma colina e Boyd soergueu-se nos estribos .
Consegues vê-los? perguntou Billy.
Não .
O que é que vês?
Não vejo nada. Não há nada pra ver. É só trevas e mais trevas e de-
pois mais trevas até perder de vista.
Se calhar eles ainda não tiveram tempo de fazer a fogueira .
Se calhar vão seguir sem parar a noite inteira.
Continuaram a avançar ao longo da crista da elevação .
Lá ' tão eles acolá, disse Boyd .
Já os vi .
Atravessaram a vertente oposta, penetrando numa campina baixa, e
procuraram um lugar abrigado do vento . Boyd descavalgou e ficou de
pé na bajada ervosa, e Billy passou-lhe as rédeas .
Procura alguma coisa a que o possas amarrar. Não lhe deites peias e
não o tentes prender a uma estaca. Ele vai-se meter na remuda deles .
Puxou do dorso do animal a sela e as mantas e a bolsa da sela.
Queres fazer uma fogueira? perguntou Boyd .
E com que é que a fazias?
Boyd afastou-se com o cavalo até desaparecer na noite . Ao fim de um
certo tempo , regressou .
Não encontro nada a que o possa amarrar.
Passa-mo pra cá.
Armou o laço na corda de laçar e passou-o sobre a cabeça do cavalo
e enrolou a outra ponta ao chifre do cepilho da sela.
Vou dormir com a sela a servir-me de almofada, disse . Ele acorda-me
se se afastar mais de uma dúzia de metros .
236 Cormac McCarthy

Nunca vi noite mais escura do que esta, disse Boyd .


Eu sei . Acho que se ' tá a preparar pra chover.
Na manhã seguinte , quando caminharam pela crista da elevação e
olharam para norte , não viram fogueira nem fumo de fogueira. O mau
tempo afastara-se , e o dia estava límpido e sem vento . Não se via abso­
lutamente nada nos prados ondulantes até onde a vista alcançava.
Isto é uma paisagem e tanto , comentou Billy.
Achas que eles deram às de vila-diogo?
Havemos de os encontrar.
Romperam a cavalgar e começaram a procurar rastos quilómetro e
meio a norte dali . Encontraram a fogueira fria e apagada, e B illy
agachou-se e soprou para o seio das cinzas e escarrou para cima das
brasas , mas estas não emitiram o mais pequeno crepitar.
Eles não fizeram fogueira nenhuma esta manhã.
Achas que nos viram?
Não .
Não dá pra perceber a que horas abalaram daqui .
Eu sei .
Então e se eles 'tão praí emboscados pra nos encantoar num barranco
qualquer?
Encantoar?
Pois.
Onde é que ouviste isso?
Não sei .
Eles não ' tão emboscados em lado nenhum . Madrugaram , mais nada.
Montaram e prosseguiram . Viam os rastos dos cavalos onde estes ti-
nham avançado através da erva.
Temos de ter cuidado pra não subirmos a um destes cumes e darmos
de caras com eles , disse Boyd .
Já tinha pensado nisso .
Arriscamo-nos a perder-lhes o rasto .
Não lhes vamos perder o rasto .
Então e se a terra ficar dura e cheia de pedras? Já pensaste nisso?
Então e se o mundo acabar, ripostou B illy. Já pensaste nisso?
Sim. Já pensei nisso .
A meio da manhã, viram os cavaleiros a romper ao longo de uma
crista, três quilómetros a leste , a arrebanhar os cavalos diante deles.
Uma hora depois , depararam com uma estrada que corria para leste e
para oeste , e ficaram ali parados , sobre o dorso do animal , a examinar o
chão . Na poeira viam-se os rastos de uma grande remuda de cavalos , e
A Travessia 237

eles olharam para o fundo da estrada, a leste , para onde a remuda se


afastara. Meteram para leste ao longo da estrada e, ao meio-dia, conse­
guiam distinguir diante de si o manto esporádico de poeira a dissipar-se
nos pontos baixos do caminho por onde os cavalos tinham passado .
Uma hora depois , chegaram a uma encruzilhada. Ou chegaram a um
lugar onde um sulco semelhante a uma ravina descia das montanhas , a
norte , e atravessava a estrada e prosseguia através da paisagem ondula­
da , para sul . Parado na estrada, montado num belo cavalo de sela ame­
ricano , encontrava-se um homenzinho moreno de idade indefinida, com
um chapéu John B Stetson na cabeça e um par de botas caras de cabedal
latigo com tacões muito reentrantes . Empurrara o chapéu para a nuca e
estava a fumar um cigarro silenciosamente e a vê-los aproximarem-se
pela estrada fora.
Billy travou o passo do cavalo , examinou o terreno em volta à procu­
ra de outros cavalos , outros cavaleiros . Parou o cavalo a curta distância
e também ele empurrou para trás o chapéu com o polegar. Buenos días ,
saudou .
O homem remirou-os fugazmente com os seus olhos negros . Tinha as
mãos cruzadas diante de si sobre o cepilho da sela num gesto descontraí­
do , e o cigarro ardia-lhe , pendente , entre os dedos . Mudou ligeiramente
de posição na sela e olhou por cima do ombro para o trilho coberto de
sulcos onde a vaga poeira da remuda pairava ainda levemente no ar
como uma neblina de pólen estival .
Quais são os vossos planos? indagou .
Como? perguntou Billy.
Quais são os vossos planos . Digam-me quais são os vossos planos .
Ergueu o cigarro e aspirou uma fumaça vagarosa e soprou o fumo
vagarosamente diante de si . Parecia não ter pressa nenhuma de fazer
fosse o que fosse .
Quem é o senhor? perguntou Billy.
Chamo-me Quijada. Trabalho para Mr Simrnons . Sou superintenden­
te de Nahuerichic .
Permanecia imóvel na sela. Tomou a puxar uma fumaça vagarosa do
cigarro .
Diz-lhe que andamos à cata dos nossos cavalos , disse Boyd .
Eu é que sei o que lhe devo ou não dizer, retorquiu Billy.
Que cavalos? interveio o homem .
Cavalos roubados do nosso rancho , no Novo México .
Ele remirou-os . Espetou o queixo na direcção de Boyd . Este é teu
irmão?
238 Cormac McCarthy

É.
Ele assentiu com a cabeça. Continuou a fumar. Deixou cair o cigarro
na estrada. O cavalo olhou para a beata.
Compreendem que isto é uma questão muito séria, disse .
Pra nós é .
Ele tornou a fazer que sim com a cabeça. Sigam-me , ordenou .
Torceu as rédeas para fazer rodar o cavalo e rompeu estrada acima.
Não olhou para trás para se certificar de que eles o seguiam, mas eles
fizeram-no . Nem lhes passou pela cabeça cavalgar a par dele .
A meio da tarde estavam totalmente envoltos pela nuvem de poeira da
manada de cavalos . Ouviam-nos na estrada, mais adiante , embora não os
conseguissem avistar. Quijada desviou o cavalo da estrada e guiou-o nu­
ma curva através dos pinheiros e reentrou na estrada à frente da remuda .
O caporal cavalgava à cabeça e , quando viu Quijada, ergueu uma mão , e
os vaqueros lançaram os cavalos a trote e cortaram o caminho à manada,
e o caporal adiantou-se e ele e Quijada pararam frente a frente e conver­
saram, sentados nas selas . O caporal olhou para trás , para os dois rapazes
escarranchados sobre o cavalo esquelético . Lançou um brado aos vaque­
ros . Os cavalos na estrada agrupavam-se e rodopiavam nervosamente , e
um dos cavaleiros percorreu a manada em sentido inverso , a enxotar os
cavalos do meio do arvoredo . Quando todos os cavalos se tinham aquie­
tado e estavam confinados à estrada, Quijada voltou-se para Billy.
Quais são os vossos cavalos ? perguntou .
Billy voltou-se na sela e percorreu a remuda com os olhos . Uns trin­
ta cavalos parados na estrada ou a apoiar-se ora numa pata ora noutra,
soturnos , a erguer e a baixar as cabeças na poeira dourada que cintilava
ao sol .
O baio grande , disse . E aquele baio de cor clara junto dele . Aquele
com o luzeiro . E aquele malhado lá atrás . O tigre .
Separa-os , ordenou Quijada.
Com certeza, disse B illy. Voltou-se para Boyd . Desmonta.
Deixa-me ser eu a fazer, pediu Boyd .
Desmonta.
Ele que os separe , interveio Quijada.
Billy olhou para Quijada. O caporal rodara o cavalo , e os dois ho­
mens estavam agora parados lado a lado . Ele passou a perna sobre o
arção dianteiro da sela e deixou-se escorregar para o chão e recuou .
Boyd içou-se para a sela à força de braços e pegou na corda e começou
a armar um laço , tocando o cavalo para diante com os joelhos e seguin­
do ao longo da orla da remuda em direcção à cauda do grupo . Os vaque-
A Travessia 239

ras fumavam, a observá-lo . Ele avançava devagar, sem olhar para os


cavalos . Avançou com o laço a pender-lhe do lado esquerdo do cavalo e
depois fê-lo rodar sem erguer a mão ao longo da faixa de pinheiros na
berma e , com um gesto largo do braço , atirou um haalihan sobre as ca­
beças dos cavalos que agora se agitavam , fazendo tombar o laço sobre o
pescoço de Nino , e ergueu o braço ao alto para evitar que a corda lassa
tombasse sobre os dorsos dos cavalos que se interpunham , tudo num só
gesto , e enrolou a corda em volta do chifre do cepilho e começou a diri­
gir estalidos com a língua ao cavalo preso e a incitá-lo com voz suave a
abandonar a manada. Os vaqueras observavam-no , fumavam.
Nino começou a avançar. Bailey seguiu-o, com ambos a abrir cami­
nho , hesitantes e de olhos arregalados , por entre os cavalos estranhos .
Boyd trouxe-os na sua esteira, bem perto , e continuou ao longo da ber­
ma da estrada. Desenrolou a corda do chifre da sela e armou um laço
jimsaw com a ponta livre da corda e, ao chegar à cauda da manada,
deixou cair o laço sobre a cabeça de Tom sem sequer olhar para o ani­
mal . Em seguida, conduziu os três cavalos novamente em sentido inver­
so , ao longo da berma da estrada, deixando para trás a remuda , e parou
com os cavalos comprimidos contra Bird e uns contra os outros , a le­
vantarem e a baixarem as cabeças .
Quijada voltou-se e falou com o capara!, e o capara! fez que sim
com a cabeça. Em seguida, Quijada virou-se e olhou para Billy.
Levem os vossos cavalos , disse .
Billy estendeu o braço e tomou as rédeas da mão do irmão e ficou
parado na estrada, a segurar os cavalos . Preciso que me passe um papel ,
disse .
Que género de papel .
Uma quitação ou uma canducta ou uma factura . Uma certidão qual­
quer com o seu nome lá escrito , até eu conseguir levar os cavalos pra
fora destas terras .
Quijada assentiu com a cabeça. Voltou-se e soltou a aba da bolsa da
sela e vasculhou entre os seus aprestos e retirou de lá um pequeno ca­
derninho de cabedal negro . Abriu-o e tirou um lápis da capa e pôs-se a
escrever.
Como é que te chamas? perguntou .
B illy Parham .
O outro escreveu . Quando terminou , arrancou a folha do caderno e
tornou a enfiar o lápis na capa e baixou-se para estender o papel a Billy.
Billy pegou-lhe e dobrou-o sem o ler e tirou o chapéu e enfiou o papel
dobrado por dentro da carneira e tornou a pôr o chapéu na cabeça.
240 Cormac McCarthy

Obrigado , disse . Fico-lhe muito agradecido .


Quijada tomou a acenar com a cabeça e falou de novo com o caporal.
O caporal chamou os vaqueros . Boyd debruçou-se e pegou nas rédeas
e conduziu o cavalo a passo até aos pinheiros poeirentos na berma e
voltou-se , e ele e os cavalos ficaram a olhar enquanto os vaqueros pu­
nham a remuda novamente em marcha. Começaram a desfilar. Os c& v a­
los comprimiam-se e reagrupavam-se e reviravam os olhos , e o vaquero
a cavalgar na cauda do grupo olhou para Boyd montado no seu cavalo
junto dos outros cavalos entre as árvores e ergueu uma mão e atirou o
queixo para o alto num pequeno gesto . Adiós, caballero , saudou . Em
seguida, estugou o passo para alcançar a remuda , e todos seguiram es­
trada acima e se embrenharam nas montanhas .

À tardinha, deram de beber aos cavalos num abrevadero feito de blocos


de calcário talhado . As pás do moinho rodavam vagarosamente acima
deles , e a sombra comprida e inclinada das pás jazia a rodar na pradaria
montesinha, num carrossel vagaroso e escuro. Tinham selado Niõo, e Billy
desmontou e afrouxou a cilha para o deixar resfolegar à vontade , e Boyd
deixou-se escorregar do dorso de Bailey, que tinha vindo a montar, e be­
beram do cano e depois agacharam-se e ficaram a ver os cavalos beber.
Gostas de ver os cavalos beber, disse Billy.
Pois gosto .
Ele fez que sim com a cabeça. Também eu .
No teu entender, que valor tem esse papel?
Nestas redondezas , eu diria que este papel vale ouro .
E não vale grande coisa fora daqui .
Não . Não vale grande coisa fora daqui .
Boyd arrancou uma haste de erva e enfiou-a entre os dentes .
Porque é que achas que ele nos deixou ficar com os cavalos?
Porque sabia que eram nossos .
Como é que ele sabia?
Sabia, pronto .
Podia ter ficado com eles , fosse como fosse.
Sim. Podia.
Boyd escarrou e tomou a entalar a haste de erva entre os dentes . Ob­
servava os cavalos . Voltámos a ter uma sorte danada, disse . Darmos
assim de caras com os cavalos .
Eu sei .
Quanta sorte é que ainda achas que nos ' tá reservada?
A Travessia 24 1

'Tás a falar de ainda encontrarmos os outros dois cavalos , é isso?


Pois. Isso mesmo . Ou outra coisa qualquer.
Não sei .
Nem eu .
Achas que a rapariga vai lá 'tar, como prometeu?
Sim. Ela vai lá ' tar.
Pois, disse Billy. Calculo que sim .
As rolas que se aproximavam a voar por sobre as terras áridas a sul
faziam um desvio brusco e afastavam-se do tanque , alvejantes , quando
os viam ali sentados . A água do cano corria com um som frio e metálico .
O Sol a ocidente , ao descer para baixo das nuvens acasteladas , sugara a
luz dourada e deixara a terra toda azul e fresca e silenciosa.
Tu achas que eles têm os outros cavalos , não achas? disse Boyd .
Quem .
Tu sabes quem. Aqueles cavaleiros que saíram de Boquilla.
Não sei .
Mas é o que tu achas .
Pois. É o que eu acho .
Tirou da carneira do chapéu o papel que Quijada lhe dera e desdobrou­
-o e leu-o e tornou a dobrá-lo e enfiou-o de novo no chapéu e pôs o
chapéu na cabeça. Não te agrada isto , pois não? perguntou .
A quem é que isto havia de agradar?
Não sei . Raios .
O que é que achas que o velhote faria no nosso lugar?
Sabes bem o que ele faria.
Boyd tirou a haste dos dentes e enfiou-a na casa do botão da camisa
andrajosa e deu-lhe um laço e atou-a.
Pois . Mas ele não 'tá aqui pra nos dizer, pois não?
Não sei . Duma certa maneira, acho que ele vai ter sempre uma pala­
vra a dizer.

Ao meio-dia do dia seguinte , entraram em Boquilla y Anexas a arre­


banhar os cavalos na sua frente . Boyd ficou com os cavalos enquanto
Billy entrava na tienda e comprava doze metros de corda de cânhamo
com centímetro e meio de grossura para fazer xáquimas . A mulher atrás
do balcão estava a medir uma peça de um rolo de tecido . Segurava o
tecido com o queixo e media-o ao longo do braço estendido e cortou o
tecido com uma régua metálica e uma faca e dobrou a peça e empurrou­
-a sobre o balcão até junto de uma rapariga. A rapariga colocou sobre o
242 Cormac McCarthy

balcão , uma a uma, moedas de cobre e tlacos antigos e pesos e notas


amarrotadas , e a mulher contou o total e agradeceu-lhe e a rapariga saiu
com o tecido dobrado debaixo do braço . Depois de ela partir, a mulher
foi até à janela e ficou a vê-la. Disse que o tecido era para o pai da ra­
pariga. B illy disse que daria uma camisa bonita, mas a mulher respon­
deu que não era para fazer uma camisa, mas sim para forrar o interior
do caixão . B illy olhou pela janela. A mulher disse que a família da ra­
pariga não era rica. Que ela aprendera aquelas extravagâncias a traba­
lhar para a mulher do hacendado e que tinha gastado o dinheiro que
pusera de parte para a sua boda . A rapariga ia a atravessar a rua poei­
renta com a peça de tecido debaixo do braço . À esquina estavam três
homens que desviaram o rosto quando ela se acercou , e dois deles
seguiram-na com os olhos depois de ela passar.

Sentaram-se à sombra de uma parede de adobe caiada e comeram


tacos embrulhados em folhas gordurosas de papel pardo , comprados a
um vendedor ambulante . O cão observava-os . Billy amachucou o papel
vazio numa bola e limpou as mãos às calças de ganga e sacou da nava­
lha e mediu um troço de corda entre os braços esticados .
Vamos ficar aqui sentados? perguntou Boyd .
Vamos . Porquê? Tens um encontro marcado nalgum lugar?
Porque é que não vamos até acolá e nos sentamos na alameda?
Pode ser.
Porque é que achas que eles não chegaram a marcar os cavalos?
Não sei . Provavelmente , os cavalos passaram de mão em mão uma
data de vezes nesta terra.
Talvez os devêssemos marcar.
E com que é que os marcávamos , explicas-me , chiça?
Não sei .
Billy cortou a corda e pousou a navalha e fez um laço para confec­
cionar o bosal. Boyd meteu na boca o último bocado do taco e ficou ali
sentado a mastigar.
O que é que achas que puseram nestes tacos? perguntou .
Gatos .
Gatos?
Claro . Não viste como o cão ' tava a olhar pra ti?
Não acredito que tenham feito isso , declarou Boyd .
Vês algum gato na rua?
'Tá demasiado calor pros gatos andarem na rua.
A Travessia 243

Vês algum à sombra?


Pode haver alguns deitados à sombra, sabe-se lá onde .
Quantos gatos viste tu , fosse lá onde fosse?
Tu não eras capaz de comer um gato , disse Boyd . Mesmo que fosse
só pra me veres comer um .
Era capaz .
Não , não eras .
Era, se ' tivesse com fome suficiente .
Não tens assim tanta fome .
Tinha bastante fome . E tu , não?
Tinha, pois. Agora já não . Não comemos gatos nenhuns , pois não?
Não .
Conseguias perceber, se tivéssemos comido?
Conseguia. E tu também . Pensei que querias ir até à alameda , acolá .
'Tou à tua espera.
Já os lagartos . . . disse B illy. Quase que não se conseguem distinguir
do frango .
Merda, soltou Boyd .
Enxotaram os cavalos até ao lado oposto da rua e para a sombra das
árvores pintadas , e Billy confeccionou xáquimas com pontas de corda a
arrastar pelo chão , para que os cavalos as pisassem, caso lhes desse na
gana afastarem-se muito , e Boyd deitou-se na relva crestada e cheia de
peladas com o cão a servir-lhe de almofada e o chapéu sobre os olhos e
adormeceu . Ninguém passou por aquela rua ao longo de toda a tarde .
Billy pôs as xáquimas nos cavalos e amarrou-os e acercou-se do irmão
e estendeu-se na relva e , ao fim de um certo tempo , estava também a
dormir.
Ao final da tarde , um cavaleiro solitário montado num cavalo quiçá
um pouco acima da sua condição parou na rua, defronte da alameda , e
remirou-os ali a dormir e remirou-lhes os cavalos . Debruçou-se e escar­
rou . Em seguida, deu meia-volta e arrepiou caminho .
Quando Billy acordou , soergueu-se e olhou para Boyd . Boyd voltara­
-se sobre o flanco e tinha o braço em volta do cão . Ele estendeu o braço
e apanhou da terra o chapéu do irmão . O cão abriu um olhou e fitou-o .
A subir a rua vinham cinco cavaleiros .
Boyd , chamou ele .
Boyd soergueu-se e procurou o chapéu às apalpadelas .
Lá vêm eles , avisou Billy. Pôs-se de pé e caminhou para o meio da rua
e apertou o fatigo de Bird e soltou as rédeas e subiu para a sela. Boyd
pôs o chapéu na cabeça e dirigiu-se para onde os cavalos estavam para-
244 Cormac McCarthy

dos . Desamarrou Nifío e conduziu-o pela arreata para junto de um dos


banquinhos de ripas de ferro e subiu para cima do banco e passou uma
perna por cima do dorso nu do animal , tudo num só movimento , sem
sequer parar o cavalo , e deu meia-volta e deixou as árvores para trás e
saiu para o meio da rua. Os cavaleiros continuavam a avançar. Billy
olhou para Boyd . Boyd estava sentado no dorso do animal , ligeiramente
inclinado para diante , com as mãos espalmadas sobre a cernelha do ca­
valo . Curvou-se e escarrou e limpou a boca com as costas do pulso .
Os outros acercaram-se devagar. Nem sequer olharam para os cava­
los parados sob as árvores . Exceptuando o cavaleiro maneta, eram todos
jovens e não pareciam estar armados .
Olha ali o teu comparsa, disse Billy.
O jefe .
Não me parece que ele seja tão jefe como isso .
E porquê?
Não ' taria aqui . Teria mandado alguém . Reconheces algum dos ou­
tros?
Não . Porquê?
'Tava só curioso de saber o tamanho do grupo com que ' tamos aqui
a lidar.
O mesmo homem , com as mesmas botas de couro trabalhado e o
mesmo chapéu de copa rasa, voltou o cavalo um tudo-nada de viés
diante deles , como se fosse contorná-los . Em seguida, desviou o cavalo
para o lado oposto . Por fim , parou o cavalo diante deles e acenou com
a cabeça. Bueno , disse .
Quiero mis papeles , atirou Billy.
Os jovens mais atrás entreolharam-se . O manco examinou os dois
rapazes . Perguntou-lhes se por acaso não eram malucos . B illy não res­
pondeu . Tirou o papel do bolso e desdobrou-o . Disse que tinha uma
factura para os cavalos .
Factura de donde ? perguntou o manco .
De la Babícora .
O homem voltou a cabeça e escarrou para a poeira da rua sem tirar
os olhos de Billy. La Babícora , repetiu .
Sí.
Firmado por quién ?
Firmado por el seiior Quijada .
O rosto do outro permaneceu inexpressivo . Quijada no es alguacil,
declarou .
Es gerente , ripostou B illy.
A Travessia 245

O manco encolheu os ombros . Deixou cair as rédeas amarradas uma


à outra sobre o chifre do cepilho e estendeu a sua única mão . Permíta­
me , disse .
Billy dobrou o papel e guardou-o no bolso da camisa. Disse que ti­
nham vindo em busca dos outros dois cavalos . O homem tornou a en­
colher os ombros . Disse que não os podia ajudar. Disse que não podia
ajudar os jovens americanos .
Não precisamos da sua ajuda, declarou B illy.
Cómo ?
Mas B illy já conduzira o cavalo para a direita, fazendo-o avançar
para o meio da rua. Fica aí, Boyd , ordenou . O jefe voltou-se para o ca­
valeiro à sua direita. Disse-lhe para tomar conta dos cavalos . Te los
encargo , disse .
No toque esos cabal/os , avisou B illy.
Cómo ? perguntou o jefe . Cómo ?
Boyd emergiu de baixo das árvores .
Fica aí, disse-lhe Billy. Faz o que eu te digo .
Dois cavaleiros tinham avançado ao encontro dos cavalos amarrados .
O terceiro fez menção d e cortar caminho ao cavalo d e Boyd , mas este
picou a montada com os calcanhares e guiou o cavalo para o meio da rua.
Pra trás , avisou Billy.
O cavaleiro torceu as rédeas do cavalo para o fazer rodar. Olhou para
o jefe . Nifío começara a revirar os olhos e a bater com os cascos na rua.
O manco tomara as rédeas do cavalo nos dentes e cruzara o braço sobre
o tronco e estava a executar o gesto de desabotoar a aba do coldre da
arma que trazia à cintura. Os olhos revirados de Nifío devem ter comu­
nicado alguma informação desagradável aos restantes cavalos na rua,
pois o cavalo do jefe começou também a saltitar e a agitar o focinho .
Billy arrancou o chapéu da cabeça com um repelão e picou o cavalo
para diante com os tacões das botas e agitou o chapéu diante dos olhos
do cavalo do jefe , e o cavalo do jefe empinou-se bruscamente , baixou os
quartos traseiros e escarvou e deu dois passos para trás . O jefe agarrou
o grande cepilho achatado da sela, e , quando o fez , o cavalo tornou a
agitar-se e descreveu um quarto de volta e caiu para trás na rua . B illy
fez rodopiar o cavalo para cá e para lá, e o cavalo pisou o chapéu do
jefe e rodou e atirou-o a deslizar pela rua fora. Ao voltar-se , B illy viu
Nifío empinar-se e viu Boyd inclinado para trás , com os tacões das botas
cravados nos flancos do animal . O cavalo do jefe estava de joelhos , a
raspar com as patas no chão , e debateu-se e pôs-se de pé de um salto e
lançou-se pela rua abaixo , com as rédeas amarradas pendentes e os es-
246 Cormac McCarthy

tribos a adejar. O jefe jazia na estrada. Movia os olhos de um lado para


o outro , a abarcar os movimentos rancorosos dos cavalos em volta de si .
Olhou para o seu chapéu , esborrachado na estrada.
A pistola estava caída na poeira. Dos cavaleiros no grupo do jefe , dois
estavam debaixo das árvores a tentar dominar os cavalos , que davam
sacões e repuxavam as guias das xáquimas , e outro desmontara e vinha
em auxílio do homem caído . O quarto cavaleiro voltou-se e olhou para
a pistola. Boyd escorregou da garupa do seu cavalo e lançou as rédeas
por cima da cabeça do animal , tudo num só movimento , e deu um pon­
tapé na pistola, atirando-a para o meio da rua. Nino tentou empinar-se
de novo e quase o arrastou pelo ar, mas ele puxou o cavalo para baixo
e avançou para diante do cavaleiro , que já dera meia-volta , e cortou-lhe
o caminho e enfiou dois dedos pelas narinas acima do cavalo do ho­
mem, fazendo-o recuar e agitar a cabeça com violência. Em seguida,
conduziu Nino atrás de si a trote para o meio da rua e curvou-se e apa­
nhou a pistola do chão e enfiou-a no cinto e agarrou um punhado de
crina e içou-se para cima do animal e obrigou-o a dar meia-volta.
B illy estava de pé , parado no meio da rua. Um dos outros vaqueros
desmontara também , e agora dois deles estavam ajoelhados na terra,
tentando ajudar o jefe a sentar-se . O jefe , porém, não se conseguia sen­
tar. Eles soergueram-no , mas ele pendeu molemente para o lado e
tombou-lhes nos braços . Eles devem ter achado que ele estava apenas
atordoado , porque continuavam a falar com ele e a dar-lhe palmadinhas
nas bochechas . Ali perto , na rua, um grupo de mirones começara a
reunir-se . Os outros dois cavaleiros descavalgaram e deixaram cair as
rédeas e vieram a correr.
Isso não serve de nada, disse Billy.
Um dos vaqueros voltou-se e olhou para ele . Cómo? indagou .
Es inútil, disse Billy. Se quebrá el espinazo .
Mande ?
Ele tem a espinha partida.

Abandonaram a estrada quilómetro e meio a norte da povoação e


romperam para oeste até alcançarem o rio . Boyd enxotara os outros
cavalos diante de si enquanto os cavaleiros estavam ajoelhados na rua,
e tinham agora consigo todos os animai s . Já quase escurecera. Sentaram­
-se numa língua de cascalho e ficaram a ver os cavalos parados na água
sobre o pano de fundo do céu cada vez mais frio . O cão penetrou na
água e bebeu e ergueu a cabeça e voltou a cabeça para os fitar.
A Travessia 247

E agora , tens alguma ideia? perguntou Boyd .


Não . Não tenho .
Ficaram sentados a contemplar os cavalos , nove ao todo .
Provavelmente , eles têm um fulano qualquer que é capaz de achar o
rasto dum lagarto por cima duma escarpa rochosa.
Provavelmente .
O que é que vamos fazer com os cavalos deles?
Não sei .
Boyd escarrou .
Talvez se eles recuperarem os cavalos que lhes pertencem nos dei-
xem em paz .
Lérias .
Eles não vão esperar até amanhã de manhã.
Eu sei .
Sabes o que é que eles nos vão fazer?
Tenho uma ideia, sim .
Boyd atirou um seixo para dentro de água. O cão voltou-se e olhou
para o lugar onde a pedra desaparecera.
Não podemos enxotar estes cavalos por esta terra adiante no meio do
escuro .
Não faço tenções disso .
Bom , então porque é que não explicas o que é que tencionas fazer.
B illy ergueu-se e ficou a olhar para os cavalos que bebiam. Acho que
devíamos de separar os cavalos deles e levá-los até àquele cabeço acolá
e espantá-los de volta pràs bandas de Boquilla. Eles hão-de lá chegar,
mais cedo ou mais tarde .
Muito bem .
Deixa-me cá ver a pistola.
O que é que tens na ideia fazer com ela?
Pô-la na mochila do homem, que é o lugar dela.
Achas que ele ' tá morto?
Se não ' tá, vai ' tar.
Então que diferença faz?
Billy olhou para os cavalos no rio . Baixou os olhos para Boyd . Bom ,
disse , se não faz diferença nenhuma, então passa-ma pra cá.
Boyd sacou a pistola do cinturão e estendeu-a para o alto . Billy
entalou-a no próprio cinto e avançou pelo rio dentro e montou B ird e
separou os cinco cavalos de Boquilla dos restantes e enxotou-os para
fora do rio .
Não deixes os nossos cavalos vir atrás , disse .
248 Connac McCarthy

Eles não vão atrás .


Não deixes que ninguém se aproxime enquanto eu não tiver voltado .
Vá, anda.
Não faças fogueiras nem nada.
Vai-te lá embora. Eu não sou idiota nenhum.
Ele afastou-se a cavalgar e desapareceu no alto da elevação . O Sol
pusera-se , e o longo crepúsculo fresco das terras altas assentara arraiais .
O s outros três cavalos assomaram do rio , u m após outro , e começaram
a pastar na erva boa ao longo da margem . Já estava escuro quando Billy
regressou . Cavalgou directamente da planície para o acampamento de­
les .
Boyd pôs-se de pé . Deves tê-lo deixado galopar à rédea solta, comen-
tou .
Foi isso mesmo . 'Tás pronto .
Só ' tava à tua espera.
Bom, vamos embora.
Arrebanharam os cavalos e conduziram-nos até à outra margem do
rio e romperam para os cumes . As planícies em volta deles azuis e des­
pojadas de vida. A Lua esguia e cornuda jazia reclinada a oeste como
um graal , e a forma cintilante de Vénus pendia imediatamente por cima
como uma estrela a tombar num barco . Mantiveram-se em terreno aber­
to , afastados do rio , e cavalgaram toda a noite e , já próximo do amanhe­
cer, fizeram um acampamento longe da água, numa quemada de árvores
ardidas ali aglomeradas , mortas e negras e esfaceladas , numa pequena
elevação , quilómetro e meio a oeste do rio . Desmontaram e procuraram
algum indício de água, mas nada havia.
Deve de ter havido água por aqui em tempos , disse Billy.
Se calhar o fogo secou-a.
Uma nascente ou um olho-d ' água. Qualquer coisa .
Não há erva. Não há nada .
É uma queimada antiga. Tem anos e anos .
O que é que queres fazer?
Vamos aguentar e pronto . Não tarda nasce o dia.
Seja.
Pega na tua colcha. Eu fico de vigia um bocado .
Quem me dera ter uma colcha.
Os fora-da-lei viajam com pouca bagagem .
Prenderam o s cavalos com estacas , e Billy sentou-se com a caçadeira
entre os destroços sombrios das árvores em volta . A Lua há muito se
pusera. Não soprava vento .
A Travessia 249

O que é que ele ia fazer com os papéis do Nifio e sem o cavalo? per-
guntou Boyd .
Não sei . Procurava um cavalo a condizer com os papéis . Dorme .
Seja como for, os papéis não valem um caracol , porra .
Eu sei .
'Tou com uma fome do caraças .
Quando é que deste em praguejar assim dessa maneira?
Quando deixei de ter que comer.
Bebe água.
Já bebi .
Dorme .
A luz já raiava a leste . B illy pôs-se de pé e ficou à escuta.
O que é que ' tás a ouvir? perguntou Boyd .
Nada.
Este lugar até mete medo .
Eu sei . Dorme .
Sentou-se e aninhou a caçadeira no regaço . Ouvia os cavalos a pastar
na erva da pradaria ali perto .
'Tás a dormir? perguntou .
Não .
Eu recuperei os papéis .
Os papéis do Nifio?
Sim .
Bale las .
Não , é verdade .
E onde é que os foste buscar.
'Tavam na mochila . Quando ia pra pôr a pistola dele outra vez no
lugar, lá 'tavam os papéis na mochila .
Diabos me levem.
Ali sentado , continuava a agarrar a caçadeira e a escutar os cavalos e
o silêncio do mundo mais além . Ao fim de um certo tempo , Boyd per­
guntou : E puseste a pistola no lugar?
Não .
Porquê?
Não pus , pronto .
Tem-la contigo?
Tenho , sim. Dorme .
Quando o dia raiou , pôs-se de pé e afastou-se para ver qual a aparên­
cia da paisagem em volta . O cão levantou-se e seguiu-o . Ele caminhou
até ao alto da elevação e acocorou-se, apoiado na caçadeira. A quilóme-
250 Cormac McCarthy

tro e meio , na planura a norte , pastava uma manada de vacas de pelagem


pálida, gado criado em campo aberto . À parte isso , nada. Quando re­
gressou para junto das árvores , ficou parado , a contemplar o irmão
adormecido .
Boyd , disse .
Sim.
'Tás pronto pra seguir viagem?
O irmão soergueu-se e olhou para a paisagem na lonjura. 'Tou , disse .
Podíamos voltar pra norte , prà hacienda . A velhota escondia-nos .
Até quando?
Não sei .
Combinámos encontrar-nos com ela amanhã.
Eu sei . Não há nada a fazer.
Quanto tempo levávamos a chegar à hacienda?
Não sei . Vamos embora.
Romperam para norte e cavalgaram até avistarem o rio . Havia gado
a pastar ao longo da orla do arvoredo , no terreno escarpado em volta das
margens . Escarranchados nos cavalos , olharam para trás , para a pradaria
altaneira e ondulante que se espraiava para sul .
Consegue-se matar uma vaca com uma caçadeira? perguntou Boyd .
Se te aproximares o suficiente . Sim.
Então e com uma pistola?
Tinhas de te chegar o suficiente pra lhe acertares .
A que distância tinhas de ' tar?
Nós não vamos abater vaca nenhuma . Anda daí.
Alguma coisa temos de comer.
Eu sei . Anda daí.
Quando alcançaram o rio , atravessaram-no pelos baixios e procura­
ram uma estrada na margem oposta, mas não havia estrada nenhuma.
Seguiram o curso do rio para norte e , ao princípio da tarde , entraram no
pueblito de San José , um aglomerado de choupanas de lama seca, bai­
xas e de aspecto cinzento . No momento em que passaram com a sua
fileira de cavalos pelo trilho repleto de sulcos , algumas mulheres esprei­
taram , desconfiadas , através das portas baixas .
O que é que tu achas que se passa aqui? perguntou Boyd .
Não sei .
Se calhar elas pensam que nós somos ciganos .
Se calhar pensam que somos ladrões de cavalos .
Uma cabra observava-os de um telhado baixo com os seus olhos de
ágata.
A Travessia 25 1

Ay cabrón , lançou Billy.


Isto é um lugar levado da breca, comentou Boyd .
Encontraram uma mulher que aceitou dar-lhes de comer e sentaram­
-se numa esteira de junco entretecido sobre o chão de argila e comeram
atole frio por tigelas artesanais feitas de barro cru . Quando raparam o
fundo das tigelas , as tortillas ficaram repletas de pedrinhas e sujas de
lama. Tentaram pagar à mulher, mas ela recusou o dinheiro . B illy insis­
tiu e disse que era para os nifíos , mas ela disse que não tinha nifíos .
Acamparam nessa noite num bosque de choupos , junto ao rio , e
prenderam os cavalos com estacas na erva ribeirinha e despiram-se e
nadaram no rio em plena escuridão . A água era fria e sedosa. O cão ,
sentado na margem , olhava-os . Na manhã seguinte , B illy levantou-se
antes do amanhecer e afastou-se e soltou Nifío da sua estaca e con­
duziu-o de regresso ao acampamento e selou-o e montou com a caça­
deira .
Onde é que vais? perguntou Boyd .
Vou ver se consigo deitar a mão a alguma coisa prà gente comer.
Muito bem .
Fica aqui . Eu não me demoro .
E aonde é que eu havia de ir?
Não sei .
O que é que eu faço se aparecer alguém?
Não vai aparecer ninguém .
Mas se aparecer?
B illy olhou para ele . O outro estava agachado com a manta em volta
dos ombros , tão magro e tão andrajoso . Olhou para ele e olhou mais
além , para lá dos troncos alvacentos dos choupos, para o ervaçal desér­
tico que assomava em colinas suaves à luz cinzenta do alvorecer.
Dá-me impressão que o que tu queres é que eu te deixe a pistola.
Acho que era capaz de ser boa ideia.
Sabes como é que se dispara?
Sei , porra.
Tem duas seguranças .
Eu sei .
Muito bem .
Tirou a pistola da bolsa e curvou-se para lha entregar.
Tem uma bala na câmara .
Certo .
Não a dispares . Só temos essa e mais as que ' tão no carregador.
Eu não a vou disparar.
252 Cormac McCarthy

Certo.
Quanto tempo vais demorar?
Não vou demorar muito .
Certo.
Cavalgou para jusante com a caçadeira atravessada sobre o arção
dianteiro da sela. Tirara o cartucho de chumbo grosso da câmara e vas­
culhou entre os cartuchos na bolsa até encontrar dois cartuchos de
chumbo número cinco e carregou a arma com um destes e meteu o outro
no bolso da camisa, que abotoou. Cavalgava devagar e remirava o rio
entre o arvoredo enquanto avançava. Quilómetro e meio a jusante , viu
patos na água. Desmontou e deixou cair as rédeas e pegou na caçadeira
e começou a acercar-se deles furtivamente através dos salgueiros na
margem. Tirou o chapéu e pousou-o no chão. O cavalo relinchou atrás
dele , e ele olhou por cima do ombro e amaldiçoou-o em surdina e de­
pois soergueu-se e olhou para o rio. Os patos ainda lá estavam. Três
negrelhos sombrios , imóveis na calma de peltre do caudal. A neblina
elevava-se do rio como fumo. Ele avançou cautelosamente por entre os
salgueiros , a agachar-se à medida que progredia. O cavalo relinchou de
novo . Os patos levantaram voo.
Ele pôs-se de pé e olhou para trás. Rais te partam , soltou. Mas o ca­
valo não estava a olhar para ele. Estava a olhar para a outra margem do
rio . Ele voltou-se e viu ali cinco homens a cavalo.
Deixou-se cair de gatas . Eles avançavam para montante em fila india­
na, por entre as árvores da margem oposta. Não o tinham visto . Os patos
rodaram lá no alto à luz nova do Sol e voaram numa curva larga para
jusante. Os cavaleiros ergueram os olhos , continuaram a cavalgar. Nifío
estava parado entre os salgueiros , bem à vista, mas eles não o viram e o
cavalo não tornou a relinchar e eles passaram adiante e desapareceram
rio acima entre as árvores .
Ele pôs-se de pé e apanhou o chapéu do chão e enterrou-o na cabeça
e caminhou cautelosamente até onde o cavalo se encontrava, para não o
assustar, e pegou nas rédeas e montou e fez rodar o cavalo e lançou-o a
trote largo .
Afastou-se do rio e descreveu uma curva, rompendo através da pra­
daria. A luz do Sol banhava já os ramos mais altos dos choupos. Ele
vasculhou na mochila atrás de si enquanto cavalgava, tentando encon­
trar o cartucho de chumbo grosso . Não viu os cavaleiros em nenhum
ponto na margem oposta do rio e, quando avistou os seus próprios ca­
valos a pastar entre as árvores, amarrados às estacas , meteu na direcção
do acampamento.
A Travessia 253

Boyd percebeu o que estava a acontecer sem que ele dissesse uma
palavra e afastou-se para ir buscar os cavalos . Billy desmontou de um
salto e agarrou as mantas de ambos e enrolou-as e amarrou-as . Boyd
surgiu do rio a pé , em corrida, a enxotar os cavalos na sua frente .
Tira-lhes as cordas ! bradou Billy. Vamos ter de fugir a sete pés .
Boyd voltou-se . Ergueu uma mão , fazendo menção de agarrar o pri­
meiro cavalo quando os animais assomaram das árvores , e foi então que
a camisa se lhe enfunou nas costas , tingida de vermelho , e ele caiu ao
chão .
Billy percebeu depois que vira a própria bala da espingarda. Que o
sibilar e o sopro que lhe soaram aos ouvidos haviam sido os ruídos da
bala a passar, e que ele a vira por um breve momento de imobilidade
diante dos olhos , com o sol a bater de lado no pequeno nódulo de metal
giratório , o chumbo rebrilhante pela fricção das estrias do cano , afrou­
xado por ter atravessado o corpo do irmão mas ainda a mover-se mais
depressa do que o som e a passar-lhe junto ao ouvido esquerdo com a
sucção do ar como um sussurro saído do vácuo e a ténue trepidação da
onda de choque , e depois a bala a fazer ricochete no ramo de uma árvo­
re e a cantarolar para longe sobre o deserto atrás dele , a bala que só por
uma unha negra não lhe tirara a vida, e, por fim , o som do tiro a surgir,
vagaroso , na esteira do projéctil .
A detonação reverberou até à outra margem do rio , concisa e cava, e
ecoou , vinda do deserto . Ele já desatara a correr entre os cavalos frené­
ticos que se inclinavam para cá e para lá, e ajoelhou-se e voltou o irmão
ali caído na terra manchada de sangue . Oh , meu Deus , soltou . Oh , meu
Deus .
Ergueu da poeira a cabeça do irmão . A camisa andrajosa molhada de
sangue . Boyd ! chamou . Boyd !
Dói imenso , Billy.
Eu sei .
Dói imenso .
A espingarda crepitou outra vez do outro lado do rio . Todos os cava­
los tinham corrido para fora do arvoredo , excepto Nifío , que , de rédeas
caídas , batia com os cascos no chão . Ele voltou-se na direcção do som
e ergueu uma mão . No tire! bradou . No tire! Nos rendimos! Nos rendi­
mos aquí!
A espingarda crepitou de novo . Ele pousou Boyd no chão e correu ao
encontro do cavalo e agarrou as rédeas caídas no preciso momento em
que o animal se voltava para abandonar aquele lugar. Obrigou o cavalo
a dar meia-volta e trouxe-o a trote até onde o irmão estava caído e pisou
254 Cormac McCarthy

as rédeas enquanto erguia o irmão da terra e depois voltou-se e


empurrou-o para cima da sela e atirou as rédeas por cima da cabeça do
cavalo e fincou as mãos no cepilho e içou-se para trás do irmão , ali
sentado a tombar para cá e para lá, e agarrou-o pela cintura e debruçou­
-se e cravou os calcanhares no ventre de Nifío .
Três novos tiros retiniram no momento em que eles emergiram das
árvores e saíram para terreno aberto , mas nessa altura já ele lançara o
cavalo a galope . O irmão bamboleava contra ele , todo flácido e ensan­
guentado , e ele pensou que ele tivesse morrido . Viu os outros cavalos a
correr na planície diante deles . Um dos animais ficara para trás e parecia
estar ferido . O cão desaparecera da vista.
O cavalo que ele alcançou era Bailey e fora alvejado mesmo acima
do j arrete traseiro e , quando eles o ultrapassaram, estacou por completo .
Quando B illy olhou para trás , viu-o ali parado . Como se tivesse perdido
o ânimo .
Alcançou os outros dois cavalos ao fim de quilómetro e meio, talvez ,
e eles puseram-se a correr na esteira dele . Ao olhar para trás , avistou os
cinco cavaleiros na planura, lançados a toda a brida em perseguição
numa fina linha de poeira, alguns a fustigar as montadas na cabeça e nos
flancos , todos trazendo as espingardas à ilharga nos braços estendidos ,
tudo nítido e cru ao novo sol matinal . Olhando e m frente , viu apenas
erva e as esporádicas palmillas que salpicavam a planície estendendo-se
até às sierras azuis . Não havia para onde fugir e não havia onde ele se
pudesse entrincheirar. Picou Nifío violentamente com os tacões das
botas . B ird e Tom começavam já a perder terreno , e ele voltou-se e
chamou-os em voz alta . Quando tornou a olhar em frente , avistou ao
longe uma pequena forma escura a cruzar a paisagem da esquerda para
a direita, num rasto de poeira , e soube que havia ali uma estrada.
Debruçou-se , agarrando o irmão contra si , e falou com Nifío e cra­
vou os calcanhares por baixo dos flancos do animal e galoparam num
tropel sobre a planície deserta, com os estribos a adejar e a saltar para
os lados . Quando olhou para trás , Bird e Tom ainda seguiam atrás dele ,
e deu-se conta de que Nifío estava a ficar fatigado sob o peso dos dois
cavaleiros que carregava no dorso. Pareceu-lhe que os cavaleiros que
vinham a persegui-lo tinham ficado um pouco para trás e depois viu
que um deles estacara e viu o penacho branco de fumo da espingarda e
ouviu o estampido ténue e cavo da arma perdido no espaço aberto , mas
foi tudo . Lá adiante , o veículo na estrada desaparecera ao longe , dei­
xando apenas uma mancha alvacenta de poeira a pairar para assinalar a
sua passagem .
A Travessia 255

A estrada era de terra batida, cheia de altos e baixos , e, como não


havia berma nem valeta a delimitá-la, ele deu por si em plena faixa de
rodagem quase sem dar por isso . Sofreou as rédeas com violência, fa­
zendo o cavalo resvalar, e obrigou o animal arquejante a dar meia-volta.
B ird vinha lançado atrás deles, e ele tentou travar-lhe o passo , mas foi
então que , ao olhar para sul , viu a avançar penosamente ao seu encon­
tro , saída do vazio , uma velha camioneta de caixa plana a transportar
trabalhadores rurais. Alheou-se de B ird e voltou-se e picou o cavalo
para sul , ao longo da estrada, na direcção da camioneta, a agitar o cha­
péu.
A camioneta não tinha travões, e , quando o viu , o condutor começou
a engatar vagarosamente as mudanças cada vez mais baixas , com um
ranger metálico . Os trabalhadores comprimiram-se junto ao taipal da
caixa, de olhos postos no rapaz ferido .
T ómelo! gritou-lhes ele . T ómelo! O cavalo batia com os cascos no
chão e revirava os olhos , e um homem debruçou-se e pegou nas rédeas
e prendeu-as com uma laçada a uma das hastes da caixa da camioneta,
e outras mãos estenderam-se para o rapaz e alguns homens desceram
para a estrada para ajudar a erguê-lo . O sangue era uma condição das
suas vidas , e nenhum perguntou que desgraça lhe sucedera nem porquê .
Chamavam-lhe el güerito e ergueram-no para dentro da camioneta e
limparam o sangue das mãos ao peito das camisas. Um vigia estava de
pé , com uma mão sobre a cabina do condutor, a ver os cavaleiros lá
longe , na planície.
Pronto, bradou , pronto!
Vámonos! gritou Billy ao motorista. Debruçou-se e soltou as rédeas
e bateu na porta da camioneta com o punho de viés. Os homens na ca­
mioneta estenderam as mãos para ajudar a subir os que tinham descido
para a estrada, e o motorista engatou a mudança e a camioneta arrancou
com um sacão. Um dos homens estendeu uma mão manchada de san­
gue , e B illy apertou-a. Tinham improvisado um leito para Boyd sobre
as tábuas toscas da caixa, com camisas e se rapes. Ele não conseguia
perceber se o irmão estava vivo ou morto. O homem agarrou-lhe a mão
com força. No te preocupes! gritou .
Gracias, hombre. Es mi hermano.
Vámonos! bradou o homem. A camioneta avançou penosamente es­
trada fora num queixume grave de mudanças. Lá longe , na pradaria, os
cavaleiros estavam já a dividir-se , com dois deles a cortar caminho para
norte , para seguir a camioneta. Os trabalhadores acenavam-lhe e
assobiavam-lhe , vendo-o ali parado na estrada, montado no cavalo , e
256 Cormac McCarthy

faziam gestos com as mãos em amplos círculos por cima da cabeça,


incitando-o a retomar a fuga. Ele já saltara para diante à força de braços ,
escarranchando-se na sela, e procurou os estribos com os pés e o sangue
ressumava-lhe , frio , através das calças . Picou Nifío com os calcanhares.
B ird estava quilómetro e meio mais adiante na pradaria . Quando olhou
para trás , os cavaleiros estavam a menos de cem metros, e ele debruçou­
-se ao longo do pescoço de Nifío e incitou-o a que desse tudo por tudo .
Cavalgou na esteira de B ird sobre a pradaria , mas , quando o alcan­
çou , viu que ele tinha nos olhos a mesma expressão que B ailey, e per­
cebeu que nada havia a fazer. Olhou para trás , para os cavaleiros , e pe­
diu uma derradeira vez ao seu velho cavalo que tivesse genica e depois
seguiu em frente . Ouviu de novo aquele estampido cavo e distante que
uma espingarda solta em terreno aberto e, quando olhou para trás , um
dos cavaleiros desmontara e estava ajoelhado ao lado do cavalo , a dis­
parar. Ele curvou-se na sela e continuou a cavalgar. Quando olhou de
novo para trás , os dois cavaleiros tinham mirrado na planície e, quando
olhou uma derradeira vez , estavam ainda mais pequenos e Bird não se
via em parte alguma. Nunca mais tornou a ver Tom .
A meio d a manhã, sozinho naquela terra, conduziu pela arreata o
cavalo encharcado e exausto por um arroyo pedregoso acima. Falava
com o cavalo e pisava somente as pedras e, sempre que o cavalo punha
uma pata na areia do leito do arroyo, soltava as rédeas e voltava atrás e
apagava a marca com um molho de erva. Tinha as pernas das calças
hirtas do sangue seco e sabia que tanto ele como o cavalo teriam de
encontrar água muito em breve .
Deixou o cavalo parado com o fatigo afrouxado e trepou e deitou-se
na orla do arroyo e examinou a paisagem para leste e para sul . Nada viu .
Tornou a descer o talude escarpado e apanhou do chão as rédeas do
cavalo parado e agarrou o arção dianteiro da sela e olhou para a forma
escura do sangue no cabedal e ficou ali um momento com as rédeas
dobradas no punho fechado e o antebraço sobre a cernelha molhada e
salgada do cavalo do pai . Porque é que aqueles filhos da puta não me
deram um tiro a mim? disse em voz alta.
Ao lusco-fusco azul daquele dia, avistou uma luz lá longe , a norte ,
que a princípio julgou ser a estrela polar. Manteve-se atento , a ver se
esta se ergueria acima do horizonte , mas isso não aconteceu , e ele mu­
dou ligeiramente o seu rumo e, conduzindo o cavalo esgotado à rédea ,
rompeu através d a pradaria desértica nessa direcção . O cavalo vinha
atrás dele com passo vacilante , e ele deixou-se ficar para trás e agarrou
a faceira da cabeçada e caminhou a par do cavalo e falou com ele. O
A Travessia 257

cavalo tão coberto de crostas brancas de geada salgada que brilhava


como um prodígio que tivesse encetado a travessia da planura cada vez
mais sombria. Quando tinha dito ao animal tudo o que lhe ocorria, co­
meçou a contar-lhe histórias. Contou-lhe histórias em espanhol que a
avó lhe contara em criança e , depois de lhe contar todas as histórias de
que se conseguia lembrar, cantou para o cavalo.
A última lasca fina da velha Lua pendia sobre as montanhas distantes ,
a oeste. Vénus afastara-se. Com a escuridão , uma enxurrada de estrelas ,
leve como gaze. Não lhe ocorria para que serviriam , tantas eram. Pal­
milhou o caminho durante mais uma hora e depois parou e apalpou o
cavalo para se certificar de que estava seco e içou-se para a sela e pros­
seguiu. Quando procurou a luz , esta desaparecera, e ele determinou a
própria posição pelas estrelas , e , ao fim de um certo tempo , a luz reapa­
receu do seio do manto escuro do promontório desértico que a ocultara.
Ele parara de cantar e tentou lembrar-se de como deveria rezar. Por fim,
limitou-se a rezar a Boyd. Não morras , suplicou. És tudo o que tenho.

Era quase meia-noite quando depararam com a vedação , e ele voltou


então para leste e cavalgou até chegar a uma cancela. Desmontou e
conduziu o cavalo à brida através do limiar e fechou novamente a can­
cela e tornou a montar e seguiu pelo caminho de argila alvacenta ao
encontro da luz onde vários cães se tinham já posto de pé e avançavam
agora a ulular.
A mulher que veio à porta não era jovem. Vivia naquele lugar isolado
com o marido , que , segundo ela disse , tinha dado os olhos pela revolu­
ção. Repeliu os cães com gritos , fazendo-os escapulirem-se , e, quando
se afastou para ele passar, o marido a quem ela se referira estava de pé
na pequena divisão de tecto baixo e parecia ter-se levantado para saudar
um qualquer dignitário. Quién es? perguntou ele.
Ela disse que era um americano que se perdera, e o homem fez que
sim com a cabeça. Desviou o rosto , e a luz do candeeiro de petróleo
banhou por momentos a face encarquilhada dos sóis e das chuvas. Não
havia olhos nas órbitas , e as pálpebras encontravam-se fechadas e fran­
zidas , de tal modo que ele exibia constantemente uma expressão de
tristeza absorta. Como se velhos erros o afligissem.
Sentaram-se em volta de uma mesa de pinho pintada de verde , e a
mulher trouxe-lhe leite numa chávena. Ele já quase se esquecera de que
as pessoas bebiam leite. Ela riscou um fósforo e aproximou-o do pavio
circular do queimador no fogão de querosene e ajustou a chama e pôs
258 Cormac McCarthy

uma chaleira a aquecer e, quando a água ferveu , colocou ovos lá dentro


com uma colher, um por um, e tornou a tapar a chaleira com a tampa.
O cego mantinha-se muito hirto e erecto na cadeira. Como se ele pró­
prio fosse o convidado na sua casa. Quando os ovos ficaram cozidos , a
mulher trouxe-os a fumegar numa tigela e sentou-se a ver o rapaz co­
mer. Ele pegou num ovo e pousou-o logo muito depressa. Ela sorriu .
Le gustan los blanquillos? perguntou o cego .
Sí. Claro.
Os ovos fumegavam na tigela sob o olhar dele s . À luz crua do cande­
eiro de petróleo , os rostos pendiam , suspensos como máscaras .
Dígame, pediu o velho . Qué novedades tiene?
Ele explicou-lhes que estava naquela terra para tentar recuperar vá­
rios cavalos que tinham sido roubados à sua fanu1ia . Disse que viaj ava
com o irmão , mas que as circunstâncias os tinham separado um do ou­
tro . O cego inclinou a cabeça para ouvir melhor. Perguntou por novas
da revolução , mas o rapaz não tinha novas para lhe dar. O cego disse
então que , embora aquela região estivesse tranquila, isso não era neces­
sariamente um bom indício . O rapaz olhou para a mulher. A mulher
assentiu com a cabeça solenemente , em sinal de concordância. Parecia
dar grande valor às palavras do marido . Ele tirou um ovo da tigela e
partiu-lhe a casca contra a borda e começou a descascá-lo . Enquanto
comia, a mulher começou a contar-lhe a vida de ambos .
Disse que o cego nascera numa família humilde . Orígenes humildes,
disse . Disse que ele perdera os olhos no ano do Senhor de mil e nove­
centos e treze , na cidade de Durango . Ele cavalgara para leste no final
do Inverno desse ano e juntou-se a Maclovio Herrera, e, no dia três de
Fevereiro , combateram em Namiquipa e tomaram a povoação . Em
Abril , combateu em Durango com os rebeldes , sob o comando de Con­
treras e Pereyra. No arsenal federal havia um canhão antigo com reparo
de madeira, de fabrico francês , cujo manejo lhe foi confiado . Não con­
seguiram tomar a cidade . Ele podia ter-se posto em fuga, disse a mulher,
mas recusou-se a abandonar o seu posto . Foi aprisionado juntamente
com muitos outros . Deram aos prisioneiros a oportunidade de jurar le­
aldade ao governo , e aqueles que se recusavam a fazê-lo eram encosta­
dos a uma parede e fuzilados sem cerimónia. Entre eles havia homens
de muitas nações . Americanos e ingleses e alemãe s . E homens de terras
de que nunca ninguém ouvira falar. E, contudo , também eles eram leva­
dos até à parede e ali morriam sob as horríveis descargas de fuzilaria,
por entre o horrível fumo . Tombavam lado a lado em silêncio , com o
sangue dos seus corações a salpicar o estuque atrás deles . Ele viu isto .
A Travessia 259

Entre os defensores de Durango havia, é claro , poucos estrangeiros,


mas um deles dava nas vistas . Um huertista alemão chamado Wirtz que
era capitão do exército federal . Os rebeldes capturados encontravam-se
parados na rua , agrilhoados uns aos outros com arame de vedações , dir­
-se-iam brinquedos , e este homem percorreu a fileira e curvou-se para
examinar cada um deles e remirar-lhes nos olhos a obra da morte en­
quanto os assassínios prosseguiam nas suas costas . O homem falava
bem espanhol , embora o falasse com sotaque alemão , e disse ao artille­
ro que só o mais patético dos palermas morreria por uma causa que ,
além de errada , estava condenada à derrota, e o cativo cuspiu-lhe na
cara. O alemão fez então uma coisa muito estranha. Sorriu e lambeu o
cuspo do homem em volta da boca. Era um homem muito corpulento ,
com mãos enormes, e estendeu os braços e agarrou a cabeça do jovem
cativo com estas duas mãos e curvou-se , como se o fosse beijar. Mas
não era de um beijo que se tratava . Agarrou-o pelo rosto , e é bem pos­
sível que tenha parecido aos outros que se debruçou para o beijar em
ambas as faces , talvez à maneira militar dos franceses , mas o que ele fez
em vez disso , com um grande afundar das bochechas , foi chupar os
olhos do homem para fora da cabeça, primeiro um , depois o outro , e
cuspi-los novamente e deixá-los pendurados das hastes , húmidos e es­
tranhos e a baloiçarem-lhe sobre as faces .
E ele assim ficou. Sentia uma grande dor, mas era ainda maior a sua
agonia ante o mundo desarticulado que agora contemplava e que nunca
mais poderia ser emendado . Também não se conseguia decidir a tocar
nos olhos . Gritou a plenos pulmões , cheio de desespero , e agitou as mãos
no ar diante de si . Não conseguia ver o rosto do inimigo . O arquitecto da
sua treva, o ladrão que o privara da luz . Via a poeira revolta na rua por
baixo de si . Uma amálgama caótica de botas de homens . Via a própria
boca. Quando obrigaram os prisioneiros a dar meia-volta e os levaram
dali , os amigos pegaram-lhe no braço e ajudaram-no a caminhar enquan­
to o solo lhe baloiçava loucamente sob os pés . Nunca ninguém vira uma
coisa assim. Falavam daquilo com assombro . Os buracos vermelhos no
crânio dele brilhavam como candeias . Como se ali houvesse um fogo
mais profundo que o demónio chupara para o fazer assomar à superfície .
Tentaram meter-lhe os olhos novamente nas órbitas com uma colher,
mas ninguém foi capaz , e os olhos secaram-lhe nas faces como uvas e
o mundo foi-se esbatendo e perdendo a cor e depois desapareceu para
sempre .
Billy olhou para o cego . Este mantinha-se erecto e impassível .
A mulher esperou . Depois prosseguiu .
260 Cormac McCarthy

Alguns disseram , é claro , que o tal Wirtz lhe tinha salvado a vida, pois ,
caso ele não o tivesse cegado , tê-lo-iam seguramente encostado à parede
e fuzilado . Outros diziam que teria sido melhor assim. Ninguém pergun­
tou ao cego qual a sua opinião sobre o assunto . Sentado no frio cárcel de
pedra, viu a luz desvanecer-se à sua volta até que , por fim , ficou mergu­
lhado na escuridão . Os olhos secaram-lhe e encarquilharam-se , e as
hastes de que pendiam secaram , e o mundo desapareceu e ele dormiu por
fim e sonhou com as terras por onde cavalgara durante as suas campa­
nhas nas serranias e com as aves de cores vivas que ali havia e com as
flores silvestres e sonhou com raparigas descalças junto à berma da es­
trada, nas povoações de montanha, cujos olhos eram lagos de promessas ,
fundos e escuros como o mundo em si , e , acima de tudo , sonhou com o
céu azul e retesado do México onde o futuro do homem participava quo­
tidianamente no ensaio geral e a silhueta da morte com a sua caveira de
papel e o fato de ossos pintados deambulava a passos largos para cá e
para lá diante das luzes da ribalta a declamar em voz alta.
Hace vientiocho anos, disse a mulher. Y mucho ha cambiado. Y a
pesar de eso todo es lo mismo.
O rapaz estendeu a mão e tirou o último ovo da tigela e fê-lo estalar
e começou a descascá-lo . Enquanto o fazia, o cego tomou a palavra .
Disse que , pelo contrário , nada mudara e tudo estava diferente . O mun­
do renovava-se a cada dia que passava, pois Deus assim o fazia todos
os dias . E, no entanto , continha em si todos os males , exactamente como
antes , nem mai s , nem menos .
O rapaz enterrou os dentes no ovo . Olhou para a mulher. Ela parecia
estar à espera de que o cego dissesse mais qualquer coisa e, quando ele
se absteve de falar mai s , ela prosseguiu como ante s .
Os rebeldes regressaram e tomaram Durango a dezoito de Junho e
conduziram-no para fora do cárcel e ele ficou parado no meio da rua
enquanto os sons da fuzilaria ecoavam dos arrabaldes , onde os soldados
federais em fuga iam sendo perseguidos e abatidos a tiro . Ali de pé , ele
apurou o ouvido , à escuta de alguma voz que pudesse reconhecer.
Quién es usted, ciego? perguntavam-lhe as vozes . Ele dizia-lhes o
nome , mas ninguém o conhecia. Alguém cortou e lhe deu uma vara de
madeira verde , e , tendo isto como seu único pertence , ele partiu sozinho
a pé pela estrada para Parral .
Adivinhava a hora do dia voltando o rosto para o Sol invisível como
um adorador daquele astro . E também pelos sons das cercanias . Pela
frescura da noite , a humidade . Pelo canto dos pássaros e pelo calor ini­
cial dos primeiros alvitres de luz na sua pele . As pessoas traziam-lhe
A Travessia 26 1

água e comida das casas por onde ele passava e davam-lhe provisões
para o caminho . Os cães que irrompiam na estrada de pêlo eriçado para
o desafiar escapuliam-se , sorrateiros . Ele ficou surpreso ante a autorida­
de que a sua cegueira lhe conferia . Parecia não lhe faltar nada.
Chovera naquelas paragens , e flores silvestres desabrochavam na ber­
ma da estrada. Ele avançava devagar, a apalpar os sulcos do chão com o
seu cajado de madeira verde . Não tinha botas , pois há muito lhas tinham
roubado , e naqueles primeiros dias caminhava descalço e tinha o coração
repleto de desespero . Mais do que repleto . O desespero instalara-se den­
tro dele como um hóspede . Como um parasita que tivesse expulsado o
seu próprio ser da sua morada e tivesse assumido a forma desse espaço
dentro de si onde outrora ele mesmo residira. Sentia o intruso alojado
contra a própria garganta . Não conseguia comer. Bebia água em pequenos
goles por um copo oferecido anonimamente do seio das trevas do mundo
e tomava a devolver o copo para o âmago dessas trevas . A sua libertação
do cárcel pouco significava para ele , e em certos dias a liberdade parecia­
-lhe somente uma nova maldição e neste estado caminhou vagarosamen­
te para norte , a apalpar o chão com a bengala, na estrada para Parral .
Chovera nas trevas frescas da sua primeira noite sozinho no campo ,
e ele parou e ficou à escuta e ouviu a chuva a aproximar-se através do
deserto . O vento trazia o cheiro dos creosotes molhados . Ele ergueu o
rosto e ficou junto à berma da estrada e o que lhe ocorria nesse momen­
to era que , além do vento e da chuva, nada mais brotaria para o tocar do
seio daquele alheamento que era o mundo . Nem com amor, nem com
inimizade . Os laços que o prendiam ao mundo tinham-se tomado rígi­
dos . Cada vez que ele se movia, o mundo movia-se também , e ele nun­
ca se conseguiria aproximar do mundo nem lhe conseguiria escapar.
Sentou-se nas ervas da berma da estrada, à chuva, e chorou .
Na manhã do seu terceiro dia fora da prisão , entrou no povoado de
Juan Ceballos e ali parou na estrada com a bengala ao alto e voltou-se ,
à escuta , a franzir as pálpebras naquele seu esgar terrível . Mas os cães
já se tinham escapulido , e uma mulher falou com ele do seu lado direito
e perguntou-lhe se lhe podia pegar na mão , e ele estendeu-lha .
Y adónde va? perguntou ela.
Ele disse que não sabia . Disse que ia para onde fosse a estrada.
O vento . A vontade de Deu s .
La voluntad d e Dios, disse ela . Como s e escolhesse .
Levou-o para sua casa . Ele sentou-se diante de uma tosca mesa de
tábuas , e ela deu-lhe um pozole com fruta para comer, mas ele não foi
capaz de comer, por mais que ela o incitasse . Ela pediu-lhe que contas-
262 Cormac McCarthy

se de onde vinha, mas ele tinha vergonha da sua condição e recusou-se


a explicar como é que aquela calamidade se abatera sobre ele . Ela
perguntou-lhe se ele sempre fora cego , e ele ponderou esta pergunta e ,
ao fim de um certo tempo , disse que sim, que sempre o fora.
Ao partir, tinha nos pés um par de velhas huaraches remendadas e
trazia ao ombro um fino serape. No bolso das calças andrajosas , algu­
mas moedas de cobre . Os homens a conversar na rua calavam-se ante a
sua aproximação e tornavam a falar depois de ele passar. Como se ele
pudesse ser um qualquer auxiliar das trevas , enviado para espiar entre
os homens . Como se as palavras levadas por um cego pudessem por
esse facto adquirir uma vida imponderável e vir ao nosso encontro nou­
tro lugar, ostentando um significado que não estava nas cogitações de
quem as tinha proferido . Ele voltou-se na estrada e ergueu a bengala.
Ustedes no saben nada de mí! gritou . Eles calaram-se e ele virou costas
e prosseguiu e , ao fim de um certo tempo , ouviu-os a conversar de novo .
Nessa noite , ouviu ruídos de batalha lá muito longe , na planura, e
ficou de pé na treva, à escuta. Cheirou o vento , procurando o odor da
cordite , e apurou o ouvido em busca de sons de homens e cavalos , mas
apenas conseguiu ouvir o vago matraquear dos tiros de espingarda e, a
espaços , a detonação cava e forte de um obus a disparar metralha e , ao
fim de um certo tempo , nada.
Na manhã seguinte , bem cedo , a bengala estralejou diante dele nas
tábuas de uma ponte . Estacou . Estendeu o braço e desferiu algumas
pancadinhas mais à frente . Avançou cautelosamente sobre as tábuas e
parou e pôs-se à escuta. Muito abafado , por baixo de si , ouvia o som da
água a correr.
Desceu pela margem do regato e abriu caminho através dos juncos
até chegar à água. Estendeu o braço e tocou-lhe com a bengala . Fustigou
a água e depois parou . Ergueu a cabeça para ouvir.
Quién está? perguntou em alta voz .
Ninguém lhe respondeu .
Pousou no chão o seu serape e despojou-se dos andrajos e tornou a
pegar na bengala e , magro e despido e sujo, entrou no rio .
Caminhou pela água, perguntando a si mesmo se esta seria talvez
suficientemente funda para o arrastar para longe . Imaginou que , naque­
la sua condição de eterna noite , talvez tivesse já percorrido metade da
distância até à morte . Que a transição , no caso dele , não poderia ser
assim tão brusca, pois o mundo encontrava-se já a uma certa distância,
e , se os terrenos que ele invadia na sua treva não eram pertença da mor­
te , então a quem pertenciam?
A Travessia 263

A água chegava-lhe somente aos joelhos . Ele ficou de pé no rio ,


equilibrou-se com o seu bordão . Depois sentou-se . A água estava fria,
movia-se vagarosamente em volta dele . Ele baixou o rosto para lhe
sentir o odor, para a saborear. Ficou ali sentado muito tempo . Ao longe ,
ouviu um sino que dobrou vagarosamente três vezes e se calou . Pôs-se
de joelhos e depois debruçou-se para diante e deitou-se de bruços na
água . Colocou o bordão à laia de canga sobre a nuca e segurou-o com
as duas mãos . Susteve a respiração . Fincou os dedos no caj ado e
segurou-o durante muito tempo . Quando já não o conseguia segurar
mais , expirou e depois tentou inspirar água, mas não foi capaz e , quan­
do deu por si , estava de joelhos no rio , a arquejar e a tossir. Largara a
bengala e esta flutuara para longe , e ele pôs-se de pé e cambaleou para
cá e para lá, a tossir e a sorver o ar e a desferir pancadas na superfície
do rio com a palma da mão aberta . O homem parado na ponte julgou
estar em presença de um alienado , certamente . Julgou ver alguém que
tentava serenar o rio ou uma qualquer criatura dentro do rio . Até que lhe
viu as órbitas estéreis .
A la izquierda! bradou .
O cego parou . Agachou-se com os braços cruzados diante de si .
A su izquierda! bradou o homem .
O cego desferiu palmadinhas na água à sua esquerda.
A tres metros! gritou o homem . Pronto. Se va.
Ele avançou aos tropeções . Debateu-se , às apalpadelas . O homem na
ponte ia gritando as coordenadas , e , por fim , ele fechou os dedos em
volta do bordão e sentou-se no rio por pudor e encostou a bengala ao
corpo na mão fechada.
Qué hace, ciego? perguntou o homem num brado.
Nada. No me molesta.
Yo? Le molesto? Ciego, ciego.
Disse que julgara que o cego se estava a afogar e que estava prestes
a lançar-se em seu auxílio quando o viu a erguer-se , a cuspir água .
O cego estava sentado d e costas voltadas para a ponte e para a estra­
da. Sentiu o cheiro do fumo do tabaco e, ao fim de um certo tempo ,
perguntou ao homem se lhe dava um cigarro .
Por supuesto.
Levantou-se e caminhou pela água até à margem. Dónde está mi ra­
pa? perguntou em voz alta .
O homem foi-lhe dando indicações até ele encontrar as roupas . Quan­
do ele se vestiu , subiu até à estrada, e ele e o homem sentaram-se na
ponte , a fumar. O sol sabia-lhe bem nas costas . O homem disse que não
264 C ormac McCarthy

havia água suficiente no rio para uma pessoa se afogar, e o cego assen­
tiu com a cabeça. Disse que , fosse lá como fosse , não hav i a privacidade
suficiente .
Prosseguiu dizendo que havia uma igreja ali perto , não? O amigo
respondeu que não havia igreja nenhuma. Que não havia nada ali nas
redondezas , absolutamente nada. O cego disse que ouvira um sino , e o
homem replicou que tivera um tio que era cego e que também ele ouvia
muitas vezes sons que não existiam .
O cego encolheu os ombros . Disse que o tinham cegado há pouco
tempo . O homem perguntou-lhe porque é que ele achava que o som de
um sino tinha de provir de uma igreja, mas o cego limitou-se a encolher
novamente os ombros e continuou a fumar. Perguntou que outro som
uma igreja faria .
O homem perguntou-lhe porque é que desej ava morrer, mas o cego
replicou que não era importante . O homem perguntou-lhe se era por não
conseguir ver, e ele disse que era uma razão entre outras. Continuaram
a fumar. Por fim , o cego expôs-lhe a sua conjectura de que , seja lá como
for, os cegos já abandonaram em parte este mundo . Disse que se con­
vertera numa mera voz para falar numa escuridão incompatível com os
motivos da vida. Explicou que o mundo e tudo o que nele existia se ti­
nham convertido para ele num mero boato . Uma suspeita . Encolheu os
ombros . Disse que não desej ava ser cego . Que vivera mais do que a sua
condição merecia.
O homem ouviu-o sem o interromper, depois ficaram e m silêncio . O
cego ouviu o ténue crepitar do cigarro do outro na água abaixo de s i . Por
fim , o homem disse que era pecado perder o ânimo e que , de qualquer
forma, o mundo permanecia como sempre fora. Isto , pelo menos , era
incontestável . Quando o cego não respondeu , ele convidou o cego a
tocar-lhe , mas o cego tinha relutância em fazer esse gesto .
Con permiso, disse o homem. Pegou na mão do cego e colocou-lhe
os dedos sobre os seus lábios . E aí ficaram pousados o s dedos do cego .
No gesto de adjurar outrem a que se mantivesse em silêncio .
Toca, incitou o homem . O cego recusava-se a obedecer. O outro pegou
novamente na mão do cego e moveu-lha sobre o próprio rosto . Toca,
incitou . Si el mundo es ilusión la perdida del mundo es ilusión también.
O cego ficou ali sentado , com a mão colada ao rosto do homem . Em
seguida, começou a mexê-la. Um rosto de idade indefinida. Moreno ou
de pele clara. Tocou no nariz estreito . No cabelo liso e hirsuto . Tocou
nos globos oculares dos olhos do homem sob as finas pálpebras fecha­
das . Não se ouvia som algum na manhã daquele planalto desértico , ex-
A Travessia 265

ceptuando a respiração de ambos . Sentiu os globos oculares a moverem­


-se debaixo dos seus dedos . Pequenos movimentos repentinos , como os
movimentos num minúsculo útero . Afastou a mão . Disse que nada con­
seguia adivinhar. Es una cara, declarou . Pues qué?
O outro homem permaneceu em silêncio . Como se meditasse na me­
lhor forma de responder. Perguntou ao cego se conseguia chorar. O cego
respondeu que qualquer homem conseguia chorar, mas o que o homem
queria saber era se os cegos eram capazes de verter lágrimas pelos orifí­
cios onde os olhos tinham estado em tempos , e como é que isso lhes era
possível? Ele não sabia. Puxou uma última fumaça do cigarro e deixou­
-o cair no rio . Disse novamente que o mundo onde se movia era muito
diferente do que os homens julgam , e que , aliás , quase nem merecia tal
nome . Disse que fechar os olhos não permitia entender nada. Assim co­
mo dormir não nos permite entender a morte . Disse que não era uma
questão de ilusão ou de falta dela. Falou do amplo barrial ressequido e
do rio e da estrada e das montanhas mais além e do céu azul por cima
delas como distracções para manter o mundo arredado , o mundo genuíno
e intemporal . Disse que a luz do mundo estava somente nos olhos dos
homens , pois o mundo em si movia-se nas trevas eternas e as trevas eram
a sua verdadeira natureza e a sua verdadeira condição , e nesta treva o
mundo girava com perfeita coesão entre todas as suas partes, mas nada
havia ali para ver. Disse que o mundo era senciente até ao seu núcleo e
secreto e negro muito para além do que os homens imaginam e que a sua
natureza não residia no que podia ou não ser visto . Disse que seria capaz
de fitar o Sol até o obrigar a apagar-se , mas de que serviria?
Estas palavras pareceram reduzir o amigo ao silêncio . Ficaram senta­
dos lado a lado na ponte . O Sol brilhava sobre eles . Por fim , o homem
perguntou-lhe como é que tinha chegado a estas conclusões , e ele res­
pondeu que eram coisas de que há muito desconfiava e que os cegos têm
muito em que reflectir.
Levantaram-se para partir. O cego perguntou ao amigo para que lado
ia. O homem hesitou . Perguntou ao cego para que lado ia ele . O cego
apontou com o seu bordão .
Al norte, disse .
AI sur, disse o outro .
Ele assentiu com a cabeça. Estendeu a mão para o seio das trevas , e
despediram-se .
Hay luz en el mundo, ciego, declarou o homem. Como antes, así
ahora. Mas o cego limitou-se a virar costas e meteu como antes pela
estrada para Parral .
266 Cormac McCarthy

Neste ponto , a mulher interrompeu a sua narrativa e olhou para o


rapaz . Este tinha as pálpebras pesadas . A cabeça pendeu-lhe com um
sacão .
Está despierto, el joven? perguntou o cego .
O rapaz endireitou-se na cadeira.
Sí, disse a mulher. Está despierto.
Hay luz?
Sí. Hay luz.
O cego sentava-se numa postura erecta e formal . Com as mãos aber­
tas de palmas para baixo sobre a mesa diante de si . Como que para
amparar o mundo , ou para se amparar nele . Continuá, disse .
Bueno, prosseguiu a mulher. Como en todos los cuentos hay tres via­
jeros con quienes nos encontramos en el camino. Ya nos hemos encon­
trado la mujer y el hombre. Olhou para o rapaz . Puede acertar quién es
el tercero?
Un nifio?
Un nifio. Exactamente.
Pera es verídica, esta historia?
O cego interveio para dizer que , com efeito , a história era verídica.
Disse que não pretendiam distraí-lo , nem sequer instruí-lo . Disse que a
sua única intenção era contar a verdade e que , à parte isso , não os movia
qualquer outro fito .
B illy perguntou como era possível que , na longa estrada para Parral ,
ele tivesse encontrado somente três pessoas , mas o cego respondeu que
encontrara outras pessoas naquela estrada e que delas recebera muitas
provas de afecto , mas que os três estranhos em questão eram aqueles
com quem ele falara da sua cegueira e que , portanto , estavam fadados
para ser as personagens principais num cuento cujo herói era um cego ,
cujo tema era a visão . Verdad?
Es héroe, este ciego?
Por momentos , o cego absteve-se de responder. Por fim , disse que era
melhor esperar para ver. Que era melhor cada um julgar por si . Em se­
guida, fez um gesto com a mão dirigido à mulher, e ela prosseguiu como
antes .
Ele viajou para norte ao longo da estrada, como já se disse , até que ,
ao fim de nove dias , chegou à vila de Rodeo , junto ao Río Oro . Por toda
a parte atraía as oferendas . As mulheres vinham ao seu encontro .
Detinham-no na estrada. Instavam-no a que ficasse com os seus haveres
e ofereciam-se para o acompanhar uma parte do caminho , pela estrada
fora. Caminhando à ilharga dele , descreviam-lhe a povoação e os cam-
A Travessia 267

pos e o estado das colheitas e diziam os nomes das pessoas que mora­
vam nas casas por onde iam passando e confiavam-lhe pormenores das
suas vidas domésticas ou falavam das enfermidades dos velhos. Conta­
vam-lhe as mágoas das suas vidas. A morte deste ou daquele amigo , a
inconstância dos amantes. Falavam da infidelidade dos maridos de uma
forma que era para ele uma aflição e fincavam-lhe os dedos no braço e
sibilavam os nomes de prostitutas. Nenhuma o obrigou a jurar segredo ,
nenhuma lhe perguntou o nome. O mundo desfraldou-se diante dele
como nunca antes na sua vida.
No dia vinte e seis de Junho desse ano , um destacamento de huertis­
tas passou pela povoação de Rodeo rumo a leste , a Torreón. Chegaram
já alta noite , muitos embriagados e todos a pé , e acamparam na alameda
e queimaram os bancos como lenha e , ao amanhecer cinzento , arreba­
nharam todos aqueles que acusaram de ser simpatizantes da causa rebel­
de e alinharam-nos diante do muro de lama seca da granja e deram-lhes
cigarros para fumarem e depois abateram-nos enquanto os filhos das
vítimas assistiam e as mulheres e as mães ululavam e arrancavam os
cabelos. Quando o cego chegou , no dia seguinte , caiu , sem dar por isso ,
no meio de um funeral alinhado ao longo da rua cinzenta de lama, e ,
antes que conseguisse avaliar correctamente os acontecimentos que se
sucediam à sua volta, uma jovem pegou-lhe na mão e conduziu-o até ao
cemitério poeirento nos arrabaldes da vila. Ali , entre as humildes cruzes
de madeira e as jarras de faiança e as bandejas baratas de vidro usadas
para o ofertório , pousaram no chão o primeiro de três caixões feitos de
tábuas de madeira para caixotes, defeituosamente enegrecidos com que­
rosene e fuligem de chaminés , enquanto o corneteiro que acompanhava
o cortejo tocava uma marcha militar melancólica e um ancião da loca­
lidade falava em lugar do padre , pois não havia ali nenhum. A rapariga
apertou-lhe a mão na sua, debruçou-se para ele.
Era mi hermano, sussurrou.
Lo siento, disse o cego.
Ergueram o morto do caixote e baixaram-no para os braços de dois
homens que se tinham deixado escorregar para o fundo da cova. Ali o
estenderam na terra crua e tornaram a ajeitar-lhe sobre o peito os braços
que lhe tinham tombado , soltos , e puseram-lhe um pano sobre o rosto.
Em seguida, estes rudes coveiros improvisados ergueram os braços e
agarraram as mãos dos amigos que os esperavam e os ajudaram a sair
da sepultura, e cada homem verteu uma pazada de terra sobre o morto
vestido com as suas pobres roupas , o caliche cinzento a matraquear em
surdina e as mulheres a soluçar, e depois ergueram aos ombros o caixa-
268 Cormac McCarthy

te vazio e a tampa para os levar de regresso à povoação e trazer até ali


mais um cadáver. O cego ouvia novas pessoas a chegar ao pequeno
cemitério , e em breve o levaram para perto dali , através da multidão que
se acotovelava, para de novo ficar parado a ouvir mais uma singela
oração campestre .
Quién es? perguntou num sussurro .
A rapariga agarrou-lhe a mão com força . Otro hermano, segredou .
Enquanto assistiam ao terceiro enterro , o cego debruçou-se e pergun-
tou quantos mais membros da família dela iriam ser enterrados , mas ela
disse que aquele era o último .
Otro hermano?
Mi padre.
Os torrões de terra matraquearam , as mulheres prantearam de novo .
O cego pôs o chapéu .
No regresso , cruzaram-se na estrada com outro cortejo que seguia a
caminho do cemitério , e o cego ouviu novamente choros e novamente
pés a arrastar pelo caminho sob o peso lúgubre do morto que carrega­
vam . Ninguém falou . Quando o cortejo passou , a rapariga conduziu-o
novamente para a estrada e prosseguiram como antes.
Ele perguntou à rapariga se ficara alguém vivo da sua família, mas
ela respondeu que só restava ela, pois a mãe já morrera há anos .
Chovera na noite anterior e chovera sobre a fogueira apagada deixada
pelos assassinos , e o cego sentia o cheiro das cinzas molhadas . Deixa­
ram para trás a granja de argila cujo muro , que ficara escuro do sangue ,
estava agora novamente lavado , obra das mulheres da vila, como se
nunca tivesse havido sangue a cobri-lo . A rapariga contou-lhe as execu­
ções e disse o nome de cada homem que morrera e explicou quem era e
como se postara diante do muro e como tombara. Os soldados repeliram
as mulheres até fuzilarem o derradeiro homem , e , em seguida, o capitão
afastou-se e elas precipitaram-se para tentar suster os homens nos bra­
ços enquanto eles morriam .
Y tú? perguntou o cego .
Ela começara por correr para junto do pai , mas ele já estava morto .
Depois dirigiu-se para junto de cada um dos irmãos , começando pelo
mais velho . Mas também eles estavam mortos . Deambulou entre as mu­
lheres ali agachadas no chão , a apertarem os cadáveres contra si e a
embalarem-nos e a chorarem. Os soldados partiram . Vários cães envol­
veram-se numa luta na rua ali próxima. Ao fim de um certo tempo ,
surgiram alguns homens com carretas. Ela andava para trás e para dian­
te , levando na mão o chapéu do pai . Não sabia o que fazer com o chapéu .
A Travessia 269

Ainda tinha o chapéu no regaço , à meia-noite , sentada na igreja,


quando o sepulturero se deteve para falar com ela. Ele disse-lhe que era
melhor ela ir para casa, mas ela respondeu que o pai e os irmãos esta­
vam mortos na casa dela , estendidos nas esteiras , com uma vela acesa
no chão , e que ela não tinha onde dormir. Disse que toda a casa estava
ocupada pelos mortos e que , por isso , tinha vindo até à igreja. O sepul­
turero ouviu-a. Em seguida, sentou-se ao lado dela no tosco banco de
madeira . Àquela hora tardia, a igreja estava deserta. Ficaram sentados
lado a lado , cada qual a segurar o seu chapéu , ela o sombrero de palha
entretecida, ele o chapéu de feltro negro coberto de poeira. Ela chorava.
Ele suspirou e parecia também exausto e abatido . Disse que , embora
gostássemos de dizer que Deus irá punir aqueles que fazem estas coisas ,
e embora as pessoas falem muitas vezes nestes termos , a sua experiên­
cia ensinara-lhe que não podemos falar em nome de Deus e que os ho­
mens com histórias de maldade gozavam muitas vezes vidas de confor­
to e morriam em paz e eram sepultados com honra. Disse que era um
erro esperar demasiado da justiça neste mundo . Disse que a ideia de que
o mal raramente é recompensado era muito exagerada, já que , se não
houvesse vantagem alguma na maldade , os homens evitá-la-iam , e ,
nesse caso , que sentido faria associar a virtude ao acto de a repudiar? A
natureza da sua profissão impunha-lhe uma experiência da morte que
superava a da maioria dos homens , e disse que , embora fosse verdade
que o tempo cura a amargura do luto , fá-lo somente à custa da lenta
extinção dos entes amados da memória do coração , que é o único lugar
onde eles podem residir, antes ou depois . Os rostos esbatem-se , as vozes
desvanecem-se . Trá-los de volta, sussurrou o sepulturero. Fala com
eles . Chama-os pelos nomes . Faz isto e não deixes morrer a amargura,
pois é esta que suaviza todas as dádivas .
A rapariga repetiu estas palavras ao cego , os dois ali parados diante
do muro da granja. Disse que as raparigas tinham vindo mergulhar os
paiiuelos no sangue dos fuzilados que formava poças na terra, ou que
tinham arrancado tiras de tecido da orla dos saiotes. Houve muitas idas
e vindas nesta azáfama, dir-se-ia um bando de enfermeiras enlouqueci­
das , despojadas de toda a memória das suas funções apropriadas . O
sangue em breve ensopou a terra, e , com o cair da noite , antes de a chu­
va começar, chegaram matilhas de cães que abocanharam pedaços de
lama impregnada de sangue e os engoliram e desferiram dentadas na
direcção uns dos outros e lutaram entre si e tomaram a escapulir-se , e ,
ao romper d o dia, já não restava o mais pequeno indício d a morte e do
sangue e dos assassínios .
270 Cormac McCarthy

Ficaram ali os dois em silêncio , até que o cego tocou na rapariga,


tocou-lhe no rosto e nas faces e nos lábios . Não lhe pediu para o fazer.
Ela ficou muito quieta. Tocou-lhe nos olhos , primeiro num , depois no
outro . Ela perguntou-lhe se ele fora soldado , e ele disse que sim e ela
perguntou-lhe se tinha matado muitos homens , e ele respondeu que
nenhum. Ela pediu-lhe que se baixasse , para ela poder fechar os olhos e
tocar-lhe no rosto para perceber o que se conseguia descobrir dessa
forma, e ele obedeceu . Não lhe disse que nunca seria o mesmo para ela.
Ao chegar aos olhos, ela hesitou .
Ándale, disse ele . Está bien.
Ela tocou nas pálpebras engelhadas , afundadas dentro das órbitas .
Tocou-lhes suavemente com as pontas dos dedos e perguntou-lhe se ele
sentia ali alguma dor, mas ele respondeu que sentia apenas a dor da
memória e que às vezes , de noite , sonhava que aquela treva era em si
mesma um sonho e depois acordava e tocava naqueles olhos que já ali
não estavam . Disse que estes sonhos eram para ele um tormento e que ,
no entanto , não desejava que cessassem . Disse que , assim como a sua
memória do mundo se iria desvanecer, essa memória iria também
desvanecer-se nos seus sonhos , até que , mais cedo ou mais tarde , ele
temia possuir apenas a treva absoluta, sem sombra do mundo de outro­
ra. Disse que receava o que essa treva pudesse albergar, pois parecia-lhe
que o mundo ocultava mais do que revelava .
N a rua , a s pessoas continuavam a passar, vagarosas . Persínese,
sussurrou-lhe a rapariga. O cego não lhe queria largar a mão , mas en­
costou o bordão à própria cintura e benzeu-se atabalhoadamente com a
mão esquerda. O cortejo passou . A rapariga tomou a agarrar-lhe a mão
com força e prosseguiram .
Entre as roupas do pai ela desencantou-lhe um casaco e uma camisa
e umas calças . Meteu as escassas peças de roupa restantes que havia na
casa dentro de um saco de musselina e amarrou-lhe a boca e pegou na
faca de cozinha e no molcajete e em algumas colheres , juntamente com
a comida que havia, e amarrou tudo dentro de um velho serape de S al­
tillo . A casa estava fresca e cheirava a terra. Lá fora, entre os muros e
pátios enclausurados , ele ouvia aves de capoeira, uma cabra, uma crian­
ça. Ela trouxe-lhe água num balde para ele se lavar, e ele lavou-se com
um trapo e depois vestiu as roupas . Ficou de pé numa pequena divisão
que era a casa inteira e esperou que ela regressasse . A porta estava aber­
ta para a estrada, e as pessoas a passar na rua , a caminho do cemitério ,
podiam vê-lo ali parado . Quando ela regressou , tomou a pegar-lhe na
mão e disse que ele estava guapo com as suas roupas novas e deu-lhe
A Travessia 27 1

uma maçã das que comprara e ficaram ali o s dois a comer as maçãs e
depois puseram as trouxas ao ombro e partiram juntos .
A mulher recostou-se . O rapaz pensou que ela ia continuar a história,
mas não . Ficaram sentados em silêncio .
Era la muchacha, disse ele .
Sí.
Olhou para o cego. O cego permanecia sentado , com o rosto crispado
meio oculto pela sombra, à luz do candeeiro de petróleo . Deve ter pres­
sentido o rapaz a remirá-lo . Es una carantofía, no? disse .
No, respondeu Billy. Y además, no me dijo que los aspectos de las
cosas son enganosas?
Como o rosto do cego não possuía expressão alguma, não se percebia
quando ele ia falar, ou sequer se o iria fazer. Ao fim de um certo tempo ,
ele levantou uma mão da mesa naquele gesto bizarro de bênção ou de­
sespero . Para mí, sí, disse .
B illy olhou para a mulher. Ela continuava sentada como antes , de
mãos entrelaçadas sobre a mesa . Ele perguntou ao cego se tinha ouvido
falar de outros que tivessem sofrido a mesma calamidade que ele às
mãos daquele homem , mas o cego limitou-se a dizer que lhe chegara
aos ouvidos , sim, mas que não tinha visto nem conhecido esses homens .
Acrescentou que o s cegos não procuram a companhia uns dos outros .
Contou como certa vez , na alameda de Chihuahua, ouvira uma bengala
a avançar, dando pancadinhas no chão , e anunciou em voz alta a sua
condição e perguntou se um outro homem semelhante a si ali estaria
naquelas trevas mútuas . As pancadinhas cessaram . Ninguém falou . Em
seguida, as pancadinhas recomeçaram e afastaram-se pelo passeio fora
e desvaneceram-se entre os ruídos do trânsito na rua .
Curvou-se u m pouco para diante . Entienda que y a existe este ogro.
Este chupador de ojos. É l y otros como él. Ellos no han desaparecido
del mundo. Y nunca lo haran.
B illy perguntou-lhe se os homens como aquele que lhe roubara os
olhos eram somente produtos da guerra, mas o cego replicou que , uma
vez que a guerra em si era obra deles , dificilmente se poderia afirmar
uma coisa dessas . Disse que , em sua opinião , ninguém podia falar acer­
ca das origens de tais homens nem dos lugares onde eles poderiam
aparecer, mas somente da sua existência. Declarou que aquele que rou­
ba os olhos a outrem rouba-lhe todo um mundo , e ele próprio fica
deste modo eternamente oculto . Como é que se pode falar da sua loca­
lização?
Y sus suefíos, disse o rapaz . Se han hecho más pálidos?
272 Cormac McCarthy

O cego ficou imóvel durante algum tempo . Dir-se-ia estar a dormir.


Dir-se-ia estar à espera de que lhe levassem novas . Por fim , disse que ,
nos seus primeiros anos de trevas , tinha tido sonhos cheios de vida,
muito além do que seria de esperar, e que acabara por ansiar por eles ,
mas tanto o s sonhos como as memórias se tinham esbatido , um após
outro , até deixarem de existir. De tudo o que outrora possuíra, nent.um
vestígio restava. A aparência do mundo . Os rostos das pessoas que ama­
va. Por fim , até mesmo a sua própria pessoa se perdera para ele . O que
quer que fora em tempos , deixou de ser. Disse que , tal como sucede com
todo o homem que chega ao fim de qualquer coisa, só lhe restava reco­
meçar. No puedo recordar el mundo de luz, disse . Hace muchos anos.
Ese mundo es un mundo frágil. Ultimamente lo que vine a ver era más
durable. Más verdadero.
Falou dos primeiros anos da sua cegueira, em que o mundo à sua vol­
ta aguardava os seus movimentos . Disse que os homens dotados de vista
podem escolher o que desejam ver, ao passo que , para os cegos , o mun­
do aparece por sua livre vontade . Disse que , para os cegos, tudo estava
abruptamente ao alcance da mão , nada anunciava a sua aproximação
com antecedência. Origens e destinos convertiam-se em meros boatos .
Movermo-nos é chocarmos contra o mundo . Caso nos sentemos , imó­
vei s , o mundo desaparece . En mis primeros anos de la oscuridad pensé
que la ceguera fué unaforma de la muerte. Estuve equivocado. Al perder
la vista es como un sueno de caída. Se piensa que no hay ningúnfondo
en este abismo. Se cae y cae. La luz retrocede. La memoria de la luz. La
memoria del mundo. De su propia cara. De la carantona.
Ergueu uma mão devagar1e manteve-a diante de si . Como se medisse
qualquer coisa. Disse que , caso esta queda fosse uma queda para a mor­
te , então a morte em si era diferente do que os homens supunham . Onde
está o mundo nesta queda? Estará também a recuar para longe junta­
mente com a luz e a memória da luz? Ou será que o mundo não cai
também? Disse que , na sua cegueira, se perdera efectivamente a si mes­
mo e perdera todas as memórias de si mesmo e, contudo , descobrira no
mais fundo e mais tenebroso dessa perda que ali havia também um ter­
reno firme e que era por aí que devíamos começar.
En este viaje el mundo visible es no más que un distraimiento. Para
los ciegos y para todos los hombres. Ultimamente sabemos que no po­
demos ver el buen Dias. Vamos escuchando. Me entiendes, joven? De­
hemos escuchar.
Quando ele se absteve de prosseguir, o rapaz perguntou-lhe se , nesse
caso , o conselho que o sepulturero dera à rapariga na igreja fora um
A Travessia 273

falso conselho , mas o cego replicou que o sepulturero dera conselhos de


acordo com a sua ilustração , e não era justo censurá-lo . Tais homens
tomavam até a seu cargo aconselhar os mortos . Ou encomendarem-nos
a Deus , depois de o padre e os amigos e os filhos terem regressado a
suas casas . Disse que o sepulturero talvez se atrevesse a falar de uma
treva de que não tinha conhecimento , pois caso possuísse esse conheci­
mento não poderia ser sepulturero. Quando o rapaz lhe perguntou se
este conhecimento era um conhecimento especial , apenas acessível aos
cegos, o cego respondeu que não . Disse que a maioria dos homens agia
nas suas vidas como o carpinteiro cujo trabalho progredia tão vagarosa­
mente , devido às ferramentas rombas que usava, que não tinha tempo
de as afiar.
Y las palabras del sepulturero acerca de la justicia? insistiu o rapaz .
Qué opina?
Ante isto , a mulher estendeu o braço e pegou na tigela cheia de cascas
de ovo e disse que era tarde e que o marido não se podia cansar. O rapaz
disse que compreendia, mas o cego disse para eles não se preocuparem .
Explicou que tinha meditado bastante na pergunta que o rapaz acabava
de lhe fazer. Tal como haviam meditado muitos homens antes dele e tal
como haveriam de meditar muitos outros depois de ele morrer. Disse
que até mesmo o sepulturero compreenderia que todas as narrativas
eram narrativas de trevas e luz , e talvez preferisse assim, no fim de
contas . No entanto , havia ainda uma outra ordem para a narrativa, que
era uma coisa de que os homens não falam . Declarou que os perversos
sabem que , se o mal que fazem for suficientemente horrendo , os ho­
mens não irão erguer a voz para lhe pôr termo . Que os homens só têm
estômago para as pequenas maldades, e só a estas se irão opor. Disse
que o mal genuíno tem o poder de levar o pequeno pecador a repelir os
seus próprios actos , e, na contemplação desse mal , ele poderá até encon­
trar o caminho da virtude , que até aí os seus pés se abstiveram de cal­
correar, e talvez não lhe reste outra alternativa senão percorrê-lo . Até
um homem assim poderá ficar atónito ante o que lhe é revelado e dar
por si a procurar uma qualquer ordem para lhe opor. E , no entanto , em
tudo isto há duas coisas de que ele talvez não se chegue a aperceber.
Não se apercebe de que , enquanto a ordem que os virtuosos buscam
nunca é a virtude em si , mas somente ordem, a desordem do mal é na
realidade a coisa em si . Também não se apercebe de que , enquanto os
virtuosos se deixam enredar a cada passo pela sua ignorância do mal ,
para os perversos tudo é claro como água, tanto a luz como as trevas .
Este homem de que estamos a falar tentará impor a ordem e a genealo-
274 Cormac McCarthy

gia a coisas que , em bom rigor, não possuem uma nem outra. Invocará
o testemunho do próprio mundo para corroborar a verdade daquilo que ,
na realidade , são apenas os seus desejos . Na sua encarnação derradeira,
talvez procure vincular as suas palavras com sangue , pois nessa altura
já terá descoberto que as palavras se desvanecem e perdem o travo , ao
passo que a dor se renova sempre .
Quizás hay poca de justicia en este mundo, continuou o cego . Mas
não pelo motivo que o sepulturero imagina. Antes sucede que a imagem
do mundo é tudo o que os homens conhecem do mundo , e esta imagem
do mundo é perigosa. Os instrumentos que o homem recebeu para o
ajudar a encontrar o seu caminho no mundo têm também o poder de lhe
ocultar o rumo onde reside o seu caminho genuíno . A chave do Céu tem
o poder de abrir os portões do Inferno . O mundo , que ele imagina ser o
cibório de todas as coisas feitas à imagem de Deu s , converter-se-á em
mero pó ante os seus olhos . Para que o mundo sobreviva, é preciso
revigorá-lo todos os dias . A este homem será exigido que recomece ,
quer queira, quer não . Somos dolientes en la oscuridad. Todos nosotros.
Me entiendes? Los que pueden ver, los que no pueden.
O rapaz remirou a máscara à luz do candeeiro . Lo que debemos en­
tender, continuou o cego, es que ultimamente todo es polvo. Todo lo que
podemos tocar. Todo lo que podemos ver. En esta tenemos la evidencia
más profunda de la justicia, de la misericordia. En esta vemos la ben­
dición más grande de Dias.
A mulher levantou-se . Disse que era tarde . O cego não fez qualquer
gesto para a imitar. Continuou sentado como antes . O rapaz olhou para
ele . Por fim , perguntou-lhe porque é que isto era uma bênção , e o cego
não respondeu e não respondeu e depois , por fim , disse que , como aqui­
lo que podemos tocar se converte em pó , não há forma de confundirmos
estas coisas com as genuínas . Na melhor das hipóteses , são meros ves­
tígios dos lugares onde esteve o que é genuíno . Talvez nem cheguem a
ser isso . Talvez não passem de obstáculos que temos de superar na su­
prema cegueira do mundo .
Na manhã seguinte , quando saiu para selar o cavalo , a mulher estava
a atirar milho de uma bota para as aves no quintal . Melros selvagens
desciam a voar das árvores e corriam para cá e para lá e debicavam
entre as galinhas , mas ela alimentava todos sem discriminação . O rapaz
observou-a. Achava-a muito bela. Aparelhou o cavalo e deixou-o ali
parado e fez as suas despedidas e depois montou e afastou-se . Quando
olhou para trás , ela ergueu a mão . As aves rodeavam-na por completo .
Vaya con Dias! gritou a mulher.
A Travessia 275

Ele guiou o cavalo até à estrada. Não andara muito quando o cão
emergiu do chaparral e se colocou a par do cavalo . Envolvera-se numa
luta e estava coberto de lanhos e ensanguentado e mantinha uma pata
junto ao peito . B illy parou o cavalo e baixou os olhos para ele . O cão
deu mais alguns passos a coxear e parou .
Onde é que ' tá o Boyd? perguntou B illy.
O cão arrebitou as orelhas e olhou em volta.
Meu parvalhão .
O cão olhou na direcção da casa.
Ele ' tava na camioneta. Não ' tá aqui .
Picou o cavalo , e o cão pôs-se a caminhar atrás e romperam para
norte ao longo da estrada.
Antes do meio-dia, chegaram à estrada principal para norte , para Casas
Grandes , e ele ficou parado naquela encruzilhada vazia em pleno deserto
e olhou para norte e para trás de si , para sul , mas nada havia para ver,
exceptuando o céu e a estrada e o deserto . O Sol estava quase a pino . Ele
fez deslizar a caçadeira para fora do estojo poeirento de cabedal e abriu­
-lhe a culatra e tirou o cartucho e olhou para o rebordo do fundo para ver
que género de chumbo continha. Era chumbo número cinco , e ele pensou
em meter na caçadeira o cartucho de chumbo grosso , mas depois , no fim
de contas , tomou a enfiar o cartucho de chumbo número cinco na câmara
e fechou a culatra da arma e tomou a metê-la no estojo e seguiu para
norte , pela estrada para San Diego , com o cão a coxear na esteira do ca­
valo . Onde é que ' tá o Boyd? perguntou ele . Onde é que ' tá o Boyd?
Nessa noite , dormiu num campo , embrulhado na manta que a mulher
lhe dera. As margens escarpadas de um rio erguiam-se em plena planície ,
a quilómetro e meio de distância, talvez , e era nessa direcção que o ca­
valo teria seguido , caso o soltassem . Deitado na terra que ia arrefecendo ,
ele contemplou as estrelas . A silhueta escura do cavalo à sua esquerda,
onde ele o prendera com a estaca. O cavalo a levantar a cabeça acima da
linha do horizonte para escutar entre as constelações e depois a curvá-la
para pastar de novo . Ele examinou aqueles mundos derramados nas suas
pálidas ignições sobre a noite sem nome e tentou falar com Deus acerca
do irmão e, ao fim de um certo tempo , adormeceu . Adormeceu e acordou
de um sonho perturbador e não foi capaz de dormir novamente .
No sonho , caminhava a custo através de um espesso manto de neve ,
ao longo de uma crista rochosa, ao encontro de uma casa sombria, e os
lobos seguiram-no até à vedação . Faziam correr as bocas esguias con­
tra os flancos uns dos outros e fluíam-lhe em volta dos joelhos e rasga­
vam sulcos na neve com os focinhos e alçavam as cabeças ao alto , e ,
276 Cormac McCarthy

ali ao frio , o hálito deles assim reunido formava um braseiro em torno


dele , e a neve estendia-se tão azul ao luar e aqueles olhos eram da cor
do mais pálido topázio onde os lobos se agachavam e soltavam ganidos
e metiam a cauda entre as pernas e rastejavam e estremeciam à medida
que se aproximavam da casa e os colmilhos brilhavam-lhes , tão bran­
cos , e as línguas vermelhas pendiam-lhes da boca. Chegados à cancela,
recusaram-se a avançar mai s . Olhavam para trás , para as formas escu­
ras das montanhas . Ele ajoelhou-se na neve e estendeu os braços para
eles e eles tocaram-lhe no rosto com os focinhos selvagens e tornaram
a recuar e o hálito deles era quente e cheirava a terra e ao âmago da
terra . Quando o último dos lobos se adiantara, eles ficaram parados
num crescente diante dele , e os seus olhos eram como luzes da ribalta
a banhar a ordem do mundo , e depois deram meia-volta e rodopiaram
e afastaram-se a correr através da neve e desapareceram , fumegantes ,
à luz invernal . Dentro d a casa, o s pais dele dormiam , e , quando ele se
esgueirou para dentro da sua cama, Boyd voltou-se para ele e sussurrou
que tinha tido um sonho e que no sonho B illy fugira de casa e que , ao
acordar do sonho e ao ver-lhe a cama vazia , ele pensara que era mesmo
verdade .
Dorme , disse B illy.
Não vais fugir e deixar-me aqui , pois não , Billy?
Não .
Prometes?
Sim. Prometo .
Aconteça o que acontecer?
Sim. Aconteça o que acontecer.
B illy?
Dorme .
B illy.
Chiu . Vais acordá-los .
No sonho , porém , Boyd dizia apenas em voz suave que eles não iam
acordar.
A alvorada demorou a chegar. Ele levantou-se e caminhou pela pra­
daria desértica e remirou o leste em busca de luz . Nos primórdios cin­
zentos do dia, o canto das rolas vindo das acácias . Um vento a descer
do Norte . Ele enrolou a manta e comeu as últimas tortillas e ovos cozi­
dos que ela lhe dera e selou o cavalo e partiu a cavalgar no momento em
que o Sol emergia da terra, a leste .
Ao cabo de menos de uma hora, estava a chover. Ele desamarrou a
manta atrás de si e pô-la sobre os ombro s . Viu a chuva a aproximar-se
A Travessia 277

através da lonjura numa muralha cinzenta, e em breve esta fustigava a


argila lisa e cinzenta da bajada através da qual ele cavalgava. O cavalo
avançava a custo . O cão caminhava ao lado . Pareciam aquilo que efec­
tivamente eram , párias numa terra estranha . Sem lar a que se abrigas­
sem , acossados , exaustos .
Ele cavalgou o dia inteiro através do amplo barrial, entre as margens
escarpadas do rio e a longa corda direita da estrada, a oeste . A chuva
abrandou , mas sem cessar. Choveu todo o dia. Por duas vezes , ele viu
cavaleiros mais adiante na planura e parou o cavalo , mas os cavaleiros
prosseguiram . À tardinha , atravessou os carris do caminho-de-ferro e
entrou no pueblo de Mata Ortíz .
Deteve-se diante da porta de uma pequena tienda azul e desmontou e
prendeu as rédeas a um poste com uma laçada e entrou e ficou parado
na escuridão parcial . A voz de uma mulher falou com ele . Ele perguntou­
-lhe se havia um médico naquele lugar.
Médico? repetiu ela. Médico?
Encontrava-se sentada numa cadeira, no extremo do balcão , com o
que parecia ser um enxota-moscas aninhado nos braços .
En éste pueblo, explicou ele .
Ela examinou-o . Como se tentasse determinar a natureza da sua do­
ença. Ou dos seus ferimentos . Disse que não havia nenhum médico
mais perto do que Casas Grandes . Em seguida, soergueu-se da cadeira
e começou a sibilar e a executar gestos com o enxota-moscas na direc­
ção dele , como que a repeli-lo .
Como? indagou ele .
Ela deixou-se cair na cadeira, a rir. Abanou a cabeça e levou a mão à
boca. No, disse . No . El perro . El perro . Dispénsame. Ele voltou-se e viu
o cão parado na soleira da porta, atrás de si . A mulher ergueu-se pesa­
damente , ainda a rir, e avançou a repuxar um par de velhos óculos com
aros de metal . Colocou-os sobre a cana do nariz e pegou-lhe pelo braço
e voltou-o para a luz .
Güero, disse . Busca el herido, no?
Es mi hermano.
Ficaram parados em silêncio . Ela não lhe soltara o braço . Ele tentou
decifrar-lhe a expressão nos olhos , mas a luz reflectia-se no vidro dos
óculos e uma das lentes estava meio opaca da poeira, como se ela fosse
cega daquele olho , talvez , e não visse necessidade de a limpar.
El vivía? perguntou .
Ela disse que ele estava vivo quando passara diante da porta dela , e
que várias pessoas tinham seguido a camioneta até ao extremo da aldeia
278 Cormac McCarthy

e que ele permanecera vivo até aos limites de Mata Ortíz , mas , para
além disso , quem saberia dizer?
Ele agradeceu-lhe e deu meia-volta para partir.
Es su perro? perguntou ela.
Ele respondeu que o cão era do irmão . Ela disse que bem lhe parecia ,
porque o cão tinha um a r preocupado . Olhou para o exterior, para a rua ,
onde o cavalo s e encontrava parado .
Es su cabal/o, disse .
Sí.
Ela fez que sim com a cabeça. Bueno, disse . Monte, caballero. Mon­
te y vaya con Dios.
Ele agradeceu-lhe e caminhou até junto do cavalo e desamarrou-o e
montou . Voltou-se e tocou na aba do chapéu , de olhos fitos na velha ali
parada à porta .
Momento! bradou ela.
Ele esperou . Passados instantes , uma rapariga surgiu e esgueirou-se
para contornar a mulher e aproximou-se do estribo do cavalo e ergueu
os olhos para ele . Era muito bonita e muito tímida. Ergueu uma mão ,
com o punho fechado .
Qué tiene? indagou ele .
Tómelo.
Ele estendeu a mão aberta, e ela deixou-lhe cair na palma um peque­
no coração de prata. Ele voltou-o para a luz e remirou-o . Perguntou-lhe
o que era.
Un milagro, disse ela.
Milagro?
Sí. Para el güero. El güero herido .
Ele voltou o coração na mão e baixou os olhos para ela.
No era herido en el corazón, disse . Mas ela limitou-se a desviar o
rosto e não respondeu , e ele agradeceu-lhe e deixou cair o coração den­
tro do bolso da camisa. Gracias, disse . Muchas gracias.
Ela recuou , afastando-se do cavalo . Que joven tan valiente, disse , e
ele concordou que , na verdade , o irmão era corajoso e tornou a tocar no
chapéu e ergueu uma mão para a velha ali parada na soleira, ainda a
agarrar o enxota-moscas , e picou o cavalo , metendo pela única rua de
lama de Mata Ortíz , rompendo para norte , em direcção a San Diego .
Estava escuro e o céu sem estrelas devido às nuvens de chuva quando
ele atravessou a ponte e cavalgou colina acima, ao encontro dos domicílios .
Os mesmos cães irromperam a ulular e rodearam o cavalo, e ele deixou
para trás as portas mal iluminadas e os vestígios das fogueiras nocturnas
A Travessia 279

onde a névoa do fumo de lenha pairava sobre o recinto no ar húmido . Não


viu ninguém a correr para levar novas da sua chegada e , todavia, ao chegar
à porta da casa da farrulia Mufíoz, viu a mulher ali parada, à espera dele.
Havia pessoas a sair das casas . Ele baixou os olhos para ela sem desmontar.
Él está? perguntou .
Sí. Él está.
É l vive?
Él vive.
Desmontou e entregou as rédeas ao rapaz mais próximo de entre o
grupo reunido em volta dele e tirou o chapéu e cruzou a porta baixa. A
mulher seguiu-o . Boyd jazia num catre , no lado oposto do quarto . O cão
já estava enroscado na cama com ele . Ali em volta, no chão , viam-se
oferendas de comida e de flores e imagens sacras de madeira ou barro
ou tecido e pequenas caixas artesanais de madeira contendo milagros e
ollas e cestos e frascos de vidro e estatuetas . No nicho da parede acima
dele , uma vela dentro de um copo ardia aos pés da pobre madona de
madeira, mas não havia outra luz na divisão .
Regalos de los obreros, sussurrou a mulher.
Del ejido?
Ela disse que alguns dos presentes eram do ejido, mas que , na sua
maioria, eram dos trabalhadores que o tinham trazido até ali . Explicou
que a camioneta regressara e os homens tinham entrado em fila, de
chapéus na mão , para colocar aquelas oferendas diante dele .
Billy acocorou-se e olhou para Boyd . Puxou a manta para baixo e
arregaçou a camisa que ele trazia vestida. Boyd estava embrulhado em
ligaduras de musselina, como um cadáver preparado para o funeral , e
sangrara através do tecido e o sangue estava seco e negro . Ele pousou a
mão na testa do irmão , e Boyd abriu os olho s .
Como é que vai s , parceiro? perguntou .
Pensei que eles te tinham apanhado , sussurrou Boyd . Pensei que ' ta-
vas morto .
Eu ' tou aqui mesmo .
Aquele Nifío é um cavalo valente .
Sim. É um valente , aquele Nifío .
Ele estava pálido e quente . Sabes que dia é hoje? perguntou .
Não , que dia é hoje?
Faço quinze anos . Mesmo que não passe de hoje, j á tenho quinze
anos feitos .
Não te aflijas com isso .
Voltou-se para a mulher. Qué dice el médico?
280 Cormac McCarthy

A mulher abanou a cabeça . Não havia ali médico . Tinham chamado


uma velha que era apenas uma bruja, e ela ligara-lhe as feridas com uma
cataplasma de ervas medicinais e tinha-lhe dado uma tisana a beber.
Y qué dice la bruja? Es grave?
A mulher desviou o rosto . À luz do nicho , ele via-lhe as lágrimas no
rosto moreno . Ela mordeu o lábio inferior. Não respondeu . Raistepar­
tam , murmurou ele .
Eram três da madrugada quando entrou a cavalo em Casas Grandes .
Cruzou o aterro alto d a linha do caminho-de-ferro e seguiu pela Rua da
Alameda acima até avistar uma luz numa cantina. Desmontou e entrou .
Numa mesa perto do balcão , um homem jazia adormecido sobre os
braços cruzado s , e, à parte isso , a sala estava vazia.
Hombre, chamou B illy.
O homem endireitou-se com um sobressalto . O rapaz diante dele ti­
nha toda a aparência das pessoas portadoras de novas graves . O outro
permaneceu sentado em postura cautelosa, com as mãos sobre a mesa,
de um e de outro lado .
E! médico, indagou Billy. Dónde vive el médico.

O mozo do médico rodou a chave na fechadura e removeu a tranca da


porta recortada no portão de madeira e ficou ali parado no limiar do
zaguán ensombrado . Não proferiu uma palavra, limitou-se a esperar que
o suplicante contasse a sua história. Quando Billy terminou , fez um si­
nal afirmativo com a cabeça. Bueno, disse . Pásale.
Desviou-se para o lado , e B illy entrou e o mozo tornou a trancar a
porta. Espere aquí, disse . Em seguida afastou-se com passos abafados
sobre os godos e desapareceu no escuro .
Ele esperou muito tempo . Do fundo do zaguán vinha o cheiro a plan­
tas verdes e a terra e a húmus . Um restolhar de vento . De criaturas que
se agitavam , arrancadas ao sono . Do lado de fora do portão , Nino relin­
chou baixinho . Por fim , uma luz acendeu-se no pátio , e o mozo reapare­
ceu . Atrás dele , o médico .
Não estava vestido , antes surgiu de roupão , com uma mão no bolso .
Um homem pequeno e desgrenhado .
Dónde está su hermano? perguntou .
En el ejido de San Diego.
Y cuándo ocurrió ese accidente?
Hace dos días.
O médico examinou o rosto do rapaz à luz pálida e amarela.
A Travessia 28 1

Ele tem muita febre?


Não sei . Sim. Alguma.
O médico assentiu com a cabeça. Bueno, disse . Ordenou ao mozo que
ligasse o carro e depois tomou a voltar-se para Billy. Preciso de alguns
minutos , disse . Cinco minutos .
Ergueu uma mão e abriu os dedo s .
Sim, senhor.
Não tens nada com que me pagar, é claro .
Tenho um bom cavalo lá fora. Dou-lhe o cavalo.
Eu não quero o teu cavalo .
Tenho os papéis dele . Tengo los papeles.
O médico já se voltara para se afastar. Traz o cavalo , disse . Podes pôr
o cavalo aqui dentro .
Tem espaço no carro pra podermos levar a sela com a gente?
A sela?
Eu gostava de ficar com a sela. Foi o meu pai quem ma ofereceu . Não
tenho maneira de a levar comigo .
Podes levá-la contigo no cavalo .
Não aceita ficar com o cavalo?
Não . Deixa estar.
Ficou na rua , a segurar Nino , enquanto o mozo fazia deslizar as barras
e abria os altos portões de madeira . Fez menção de avançar, trazendo o
cavalo pela arreata , mas o mozo fez-lhe sinal que recuasse e disse-lhe
para esperar e depois deu meia-volta e desapareceu . Ao fim de um certo
tempo , ele ouviu o carro a arrancar, e o mozo assomou no zaguán ao
volante de um velho Dodge Opera Coupé. Conduziu o carro até à rua e
saiu e deixou o motor a funcionar e pegou nas rédeas e conduziu o ca­
valo através dos portões , em direcção às traseiras .
Ao fim de poucos minutos , o médico apareceu . Estava vestido com
um fato escuro , e o mozo vinha atrás , trazendo-lhe a maleta dos utensí­
lios .
Listo? perguntou o médico .
Listo.
O médico contornou o carro e entrou . O mozo passou-lhe a maleta e
fechou a porta . B illy entrou pelo lado oposto , e o médico acendeu os
faróis e o motor desligou-se .
Ele ficou sentado , à espera. O mozo abriu a porta e enfiou a mão
debaixo do banco e retirou de lá a manivela e dirigiu-se para a parte da
frente do automóvel , e o médico desligou os faróis . O mozo curvou-se
e enfiou a manivela no encaixe e soergueu-se e fê-la rodar uma vez , e o
282 Cormac McCarthy

motor arrancou de novo . O médico fez o motor roncar ruidosamente e


tornou a acender as luzes e baixou o vidro da janela e recebeu a mani­
vela da mão do mozo . Em seguida, engatou em primeira a alavanca das
mudanças que assomava do fundo do carro e arrancaram .
A rua era estreita e mal iluminada, e os feixes amarelos dos faróis
dianteiros derramavam-se até uma parede no extremo desta. Uma famí­
lia vinha precisamente a entrar na rua, com o homem a caminhar à
frente , atrás dele uma mulher e duas raparigas já quase adolescentes ,
trazendo cestos e trouxas amarradas às três pancadas . Imobilizaram-se
sob o feixe dos faróis como veados , e as suas posturas imitavam as
sombras desmedidas projectadas sobre a parede atrás dele s , com o ho­
mem muito direito e hirto e a mulher e a filha mais velha a erguerem um
braço , como que para se protegerem . O médico rodou o grande volante
de madeira para a esquerda e as luzes dos faróis desviaram-se com uma
guinada e as silhuetas desapareceram mais uma vez nas trevas inomina­
das da noite mexicana.
Conta-me esse acidente , disse o médico .
O meu irmão levou um tiro de espingarda no peito .
E quando é que isso aconteceu?
Há dois dias .
E ele consegue falar?
Diga?
Ele consegue falar? Está desperto?
Sim, senhor. 'Tá desperto . Nunca foi pessoa de grandes falas .
Sim, disse o médico . É claro . Acendeu um cigarro e fumou em silên­
cio na estrada para sul . Disse que o carro tinha um rádio e que Billy o
podia ligar, se lhe apetecesse , mas B illy pensou que o médico o ligaria
ele próprio , se quisesse ouvir. Ao fim de um certo tempo , o médico fê­
-lo . Ficaram a ouvir música americana hillbilly emitida a partir de
Acufía, junto à fronteira do Texas , e o médico conduzia e fumava em
silêncio , e os olhos quentes do gado a pastar nas valetas , na berma da
estrada, boiavam sob as luzes do carro , e por toda a parte o deserto se
estendia nas trevas em volta.
Meteram pela estrada do ejido através do barro ribeirinho , com as
formas alvacentas dos troncos dos choupos a passar diante das luze s , e
rolaram pesadamente sobre a ponte de madeira e pela encosta acima até
penetrarem na cerca. Os cães do ejido corriam para trás e para diante em
frente às luzes , a ulular. Billy apontou o caminho e eles avançaram ,
passando defronte dos alojamentos comunitários , e pararam diante da
luz amarela esbatida onde o irmão dele jazia no interior da casa, entre
A Travessia 283

as suas oferendas , qual ícone num dia de festa religiosa. O médico des­
ligou o motor e os faróis e estendeu a mão para pegar na maleta, mas
Billy já lhe pegara para a transportar. Ele assentiu com a cabeça e saiu
do carro e ajeitou o chapéu e entrou na casa, com B illy atrás .
A mulher Mufíoz já emergira da outra divisão , e deteve-se à luz frágil
da vela votiva, tendo no corpo o único vestido que B illy alguma vez lhe
vira, e desejou ao médico as boas-noites . O médico entregou-lhe o cha­
péu e depois desabotoou o casaco e deixou-o escorregar dos ombros e
ergueu-o e fê-lo rodar e retirou do bolso interior os óculos no respectivo
estoj o . Em seguida, estendeu o casaco à mulher e tirou os botões de
punho , o esquerdo e depois o direito , e meteu-os no bolso das calças e
arregaçou as mangas engomadas da camisa branca, duas voltas cada, e
sentou-se no catre baixo e tirou os óculos do estojo e pô-los no rosto e
olhou para Boyd . Pousou-lhe uma mão na testa. Cómo estás? pergun­
tou . Cómo te sientes?
Nunca mejor, arquejou Boyd .
O médico sorriu . Voltou-se para a mulher. Hiérvame algo de agua,
pediu . Em seguida, tirou do bolso uma pequena lanterna niquelada e
debruçou-se sobre Boyd . Boyd fechou os olhos, mas o médico puxou
para baixo a pálpebra inferior de cada olho , primeiro um, depois o ou­
tro , e examinou-os . Agitou a luz vagarosamente para cá e para lá diante
das pupilas e examinou-as . Boyd tentou desviar o rosto , mas o médico
colocara-lhe a mão junto da face . Véame, ordenou .
Puxou a manta para baixo . Uma qualquer criaturinha fugiu sobre a
musselina. Boyd vestia uma das blusas brancas de algodão que os traba­
lhadores dos campos usavam , sem gola nem botões . O médico arrega­
çou-a e puxou o cotovelo direito de Boyd através da manga e passou-lhe
a blusa sobre a cabeça e, em seguida, com muito cuidado , puxou a peça
de roupa ao longo do braço esquerdo de Boyd e entregou-a a Billy sem
sequer olhar para ele . Boyd jazia envolto em tiras de lençol de algodão ,
e o ferimento sangrara através das ligaduras e o sangue secara e enegre­
cera. O médico enfiou a mão espalmada sob as ligaduras e pousou a
mão sobre o peito de Boyd . Respire, ordenou . Respire profundo. Boyd
respirou , mas a sua respiração era ofegante e penosa. O médico fez
deslizar a mão para o lado esquerdo do peito dele , perto da mancha es­
cura nas ligaduras , e disse-lhe para respirar de novo . Curvou-se e abriu
os fechos da maleta e tirou de lá o estetoscópio e pendurou-o ao pesco­
ço e tirou uma tesoura de pontas rombas e cortou as ligaduras sujas e
levantou as pontas cortadas , todas hirtas do sangue . Colocou os dedos
sobre o peito nu de Boyd e percutiu o dedo médio esquerdo com o di-
284 Cormac McCarthy

reito e ficou à escuta. Moveu a mão e percutiu de novo . Moveu a mão


para baixo , até ao abdómen encovado e lívido de Boyd , e fez força su­
avemente com os dedo s . Mantinha-se atento ao rosto do rapaz .
Tienes muchos amigos, disse . No?
Cómo? arquejou Boyd .
Tantos regalos.
Ergueu os auscultadores do estetoscópio para os colocar nos ouvidos
e pousou o cone sobre o peito de Boyd e escutou . Moveu-o da direita
para a esquerda. Respire profundo, repetiu . Por la boca. Otra vez. Bue­
no. Colocou o cone sobre o coração de Boyd e ficou à escuta . À escuta
de olhos fechados .
B illy, arquejou Boyd .
Chiu , disse o médico . Levou os dedos aos lábios . No habla.
Deixou cair os auscultadores do estetoscópio em volta do pescoço e
ergueu pela corrente um relógio de ouro do bolso do colete e fez-lhe
saltar a tampa com o polegar. Comprimiu dois dedos contra o lado do
pescoço de Boyd , por baixo do maxilar, e voltou o mostrador de porce­
lana branca do relógio na direcção da vela votiva e ficou a olhar tran­
quilamente enquanto o ponteiro fino como uma agulha, a devorar os
segundos , ia percorrendo fatias sucessivas do mostrador com os seus
pequenos números romanos .
Cuándo puedo yo hablar? sussurrou Boyd .
O médico sorriu . Ahora si quieres, disse .
Billy?
Sim.
Não tens de ficar.
Eu 'tou bem aqui .
Não tens de ficar, se não quiseres . Não faz mal .
Eu não vou a parte nenhuma.
O médico fez deslizar o relógio novamente para o bolso do colete .
Saca la lengua, ordenou .
Examinou a língua de Boyd e meteu-lhe o dedo dentro da boca e
apalpou-lhe a superfície interna da bochecha . Em seguida , curvou-se e
ergueu a maleta do chão e pousou-a no catre , a seu lado , e abriu-a e
inclinou-a ligeiramente para a luz . A mala era de grosso cabedal granu­
lado , tingido de negro , e estava esfolada e gasta nos cantos , e o cabedal
nesses pontos e ao longo dos rebordos tornara a adquirir a sua cor cas­
tanha. Os fechos de latão estavam gastos após oitenta anos de uso , pois
o pai do médico usara aquela maleta antes dele . Ele tirou do interior
uma braçadeira para medir a pressão arterial e enrolou-a em volta do
A Travessia 285

braço magro de Boyd , junto ao ombro , e encheu-a com a pêra. Colocou


o cone do estetoscópio na curva do braço de Boyd e ficou à escuta . Viu
a agulha tombar e viu-a dar saltos . Nas lentes dos seus óculos vetustos ,
a chama esguia e erecta da vela votiva erguia-se , centrada. Muito peque­
na, muito firme . Dir-se-ia a luz do exame sagrado a arder-lhe nos olhos
já caducos . Desenrolou o tecido e voltou-se para Billy.
Hay una mesa chica en la casa? O una silla?
Hay una silla.
Bueno. Tráigala. Y tráigame un contenedor de agua. Una bota o
cualquiera cosa que tenga.
Sí sefíor.
Y traiga un vaso de agua potable.
Sim , senhor.
Él debe tomar agua. Me entiendes?
Sim, senhor.
Y deja abierta la puerta. Necesitamos aire.
Sim, senhor. É pra já.
Regressou a transportar a cadeira de pernas para o ar, suspensa do
braço pela travessa, e trazia uma olla de barro cheia de água numa mão
e um copo de água do poço na outra . O médico pusera-se de pé e vesti­
ra um avental branco e segurava uma toalha e uma barra de sabão de
aparência escura. Bueno, disse . Embrulhou o sabão na toalha e entalou­
-o na axila e tomou a cadeira do braço de Billy com cuidado e
endireitou-a e pousou-a no chão e rodou-a ligeiramente no lugar onde
desejava colocá-la. Tomou a olla da mão de B illy e pousou-a na cadeira
e debruçou-se e remexeu na maleta e retirou de lá uma palhinha de vidro
recurva e enfiou-a no copo que Billy segurava . Disse-lhe para dar a
água a beber ao irmão . Disse-lhe para se certificar de que ele bebia de­
vagar.
Sim, senhor, disse Billy.
Bueno, disse o médico . Tirou a toalha de baixo do braço e arregaçou
as mangas , mais uma volta cada uma. Baixou os olhos para Billy.
No te preocupes, disse .
Sim, senhor, disse Billy. Vou tentar.
O médico fez que sim com a cabeça e deu meia-volta e saiu para ir
lavar as mãos . Sentado no catre , B illy curvou-se para diante e segurou
o copo e a palhinha para Boyd beber. Posso puxar estas cobertas pra
cima, disse . Tens frio? Não tens frio , ou tens?
Não tenho frio .
Vamos lá, bebe .
286 Cormac McCarthy

Boyd bebeu .
Não bebas demasiado depressa, instou B illy. Inclinou o copo . Pare­
cias um destes campónios com aquela farpela.
Boyd sorveu um fundo gole através da palhinha e depois desviou o
rosto, a tossir.
Não bebas demasiado depressa.
Ali estendido , ele tentava recuperar o fôlego . Tornou a beber. B illy
afastou o copo e esperou e depois tornou a estendê-lo . O tubo de vidro
matraqueou e fez ruídos de sucção . Ele inclinou o copo . Quando Boyd
bebera toda a água, ficou deitado a recuperar o fôlego e ergueu os olhos
para B illy. Há coisas piores prà gente parecer, disse .
B illy pousou o copo na cadeira . Não velei muito bem por ti , pois não?
perguntou .
B oyd não respondeu .
O médico diz que tu vais ficar bom .
B oyd respirava, ofegante , com a cabeça atirada para trás . Fitava as
vigas escuras do tecto , lá no alto .
Diz que tu vais ficar como novo .
Não o ouvi dizer nada disso , retorquiu Boyd .
Quando o médico regressou , B illy pegou no copo e pôs-se de pé e
ficou ali parado a segurá-lo . O médico vinha a secar as mãos . Él tenía
sed, verdad?
Sim, senhor, confirmou B illy.
A mulher transpôs a porta, trazendo um balde de água fumegante .
Billy acercou-se dela e pegou no balde pela asa, e o médico fez-lhe um
gesto , indicando-lhe que o pusesse no lar. Dobrou a toalha e pousou-a
junto à maleta e pousou-lhe o sabão em cima e sentou-se . Bueno, disse .
Bueno. Voltou-se para B illy. Ayúdame, pediu .
Juntos , voltaram Boyd sobre o flanco . Boyd arquejava e esbracejava
no ar em volta com uma mão enclavinhada. Agarrou o ombro de B illy.
Calma, parceiro , disse Billy. Eu sei que dói .
Não sabes nada, rouquejou Boyd .
Está bien, disse o médico . Está bien así.
Delicadamente , descolou as ligaduras manchadas e enegrecidas do
peito de Boyd e soltou-as e entregou-as à mulher. Deixou no seu lugar
as cataplasmas negras e repletas de ervas , a do peito e a maior, atrás do
ombro . Debruçou-se sobre o rapaz e comprimiu as cataplasmas suave­
mente , cada qual por sua vez , para ver se algum fluido lhes escorria de
baixo , e cheirou o ar, aproximando o nariz com gestos hesitantes , em
busca de algum indício de apodrecimento . Bueno, disse . Bueno. Tocou
A Traves sia 287

suavemente na área debaixo do braço de Boyd , entre as duas cataplas­


mas , onde a pele estava azul e de aparência tumefacta.
La entrada es en el pecho, no ?
Sí, disse Billy.
Ele assentiu com a cabeça e pegou na toalha e no sabão e mergulhou
a toalha na olla cheia de água e ensaboou-a e começou a lavar as costas
e o peito de Boyd , limpando a pele cuidadosamente em volta das cata­
plasmas e por baixo do braço . Enxaguou a toalha na olla e espremeu-a
e curvou-se e limpou o sabão . No ponto em que a voltou , a toalha esta­
va escura do sarro . No estás demasiado frío ? indagou . Estás cómodo ?
Bueno . Bueno .
Quando terminou , pôs a toalha de parte e pousou a olla no chão e
debruçou-se e tirou da maleta uma toalha dobrada que colocou sobre a
cadeira e abriu cautelosamente , usando apenas as pontas dos dedo s . No
interior estava uma segunda toalha esterilizada na autoclave e dobrada
para formar uma trouxa presa com adesivo . Com gestos suave s , ele
soltou e retirou o adesivo e , segurando as pontas da toalha delicadamen­
te entre o polegar e o indicador, abriu-a sobre o assento da cadeira. Lá
dentro havia quadrados de gaze e quadrados de musselina e bolas de
algodão . Pequenas toalhas dobradas . Rolos de ligadura de tecido . Ele
ergueu as mãos sem tocar em nada e tirou da maleta duas bacias esmal­
tadas , encaixadas uma na outra, e pousou uma delas junto da maleta e
inclinou a outra e encheu-a parcialmente com água quente do balde e
depois transportou-a cuidadosamente com ambas as mãos até à cadeira
e pousou-a na borda do assento , afastada das ligaduras . Escolheu de
entre os respectivos compartimentos no seu estojo os instrumentos de
aço niquelado . Tesouras de pontas aguçadas e pinças de dissecção e
pinças hemostáticas , cerca de uma dúzia no total . Boyd observava. B illy
observava. Ele deixou cair os instrumentos para dentro da bacia e tirou
da maleta uma pequena seringa com uma pêra de borracha encarnada e
colocou-a também na bacia e tirou da maleta uma pequena lata de bis­
muto e dois pauzinhos de nitrato de prata e desembrulhou-os dos seus
invólucros de folha-de-flandres e colocou-os na toalha, ao lado da ba­
cia. Em seguida, tirou da maleta um frasco de tintura de iodo e desen­
roscou a tampa e passou o frasco à mulher e estendeu as mãos acima da
bacia e deu-lhe indicações para que lhe vertesse a tintura de iodo sobre
as mãos . Ela deu um passo em frente e tirou a tampa do frasco .
Ándale , ordenou ele .
Ela verteu o líquido .
Más , disse ele . Un poquito más .
288 Cormac McCarthy

Como a porta da rua estava aberta, a chama dentro do copo estreme­


ceu e agitou-se , e a luz minguada que se derramava chamejou para logo
se sumir e ameaçou expirar por completo . Curvados sobre o pobre catre
onde o rapaz jazia, eles os três pareciam assassinos rituai s . Bastante ,
disse o médico . Bueno . Ergueu as mãos gotejantes . Estavam tingidas de
castanho com tons de ferrugem. A tintura de iodo movia-se na tina como
sangue marmoreado . Ele dirigiu à mulher um sinal afirmativo com a
cabeça. Ponga el resto en el agua , disse .
Ela verteu o resto da tintura de iodo na bacia, e o médico avaliou a
temperatura da água com um dedo e depois , num gesto rápido , pescou
uma pinça hemostática de dentro da bacia e, com a pinça, pegou num
molho de quadrados de musselina e mergulhou-os no líquido e ergueu­
-os para escorrer. Voltou-se novamente para a mulher. Bueno , disse .
Quita la cataplasma .
Ela levou uma mão à boca. Olhou para B oyd e olhou para o médico .
Ándale pues , disse ele . Está bien .
Ela benzeu-se e curvou-se e estendeu a mão e agarrou o trapo que
envolvia a cataplasma e ergueu-lhe a ponta e enfiou o polegar por baixo
da cataplasma e removeu-a com um puxão . Era feita de ervas emaranha­
das e estava escura de sangue e soltou-se com relutância. Como uma
criatura que se ti vesse estado ali a alimentar. Ela deu um passo atrás e
embrulhou-a nas ligaduras sujas , escondendo-a da vista. Boyd jazia à
luz bruxuleante da vela votiva com um pequeno buraco redondo alguns
centímetros acima e à esquerda do mamilo esquerdo . A ferida estava
seca e coberta de crostas e de aparência alvacenta. O médico curvou-se
e limpou-a cuidadosamente com o algodão . A tintura de iodo manchava
a pele de Boyd. O sangue acumulava-se vagarosamente no buraco , e
uma fina linha de sangue escorreu-lhe sobre o peito . O médico colocou
sobre a ferida um quadrado limpo de gaze . Ficaram a vê-lo enegrecer
aos poucos com sangue . O médico ergueu os olhos para a mulher.
La otra ? perguntou ela.
Sí. Por favor.
Ela debruçou-se e soltou a cataplasma das costas de Boyd com o
polegar e arrancou-a . Maior, mais negra, mais feia. Por baixo havia um
buraco de bordos irregulares , hiante e vermelho . Em volta, a carne es­
tava coagulada com crostas de sangue enegrecido . O médico colocou
um molho de quadrados de gaze sobre a ferida e pôs-lhe um quadrado
de musselina por cima e fez pressão sobre este com as pontas dos dedos
e segurou-o ali . Aos poucos , o tecido pintou-se de escuro . O médico pôs
mais compressas . Um fio delgado de sangue corria pelas costas de Boyd
A Travessia 289

abaixo . O médico limpou o sangue e tomou a fazer força com as pontas


dos dedos contra o ferimento .
Quando a hemorragia cessou , pegou num quadrado de tecido e
mergulhou-o na solução de tintura de iodo dentro da bacia e , enquanto
segurava o chumaço contra a ferida nas costas do rapaz , começou a
limpar cautelosamente em volta de ambos os ferimentos . Deixou cair as
compressas sujas na tina vazia a seu lado e , depois de terminar, empur­
rou os óculos para cima sobre a cana do nariz com as costas do pulso e
olhou para B illy.
Pega-lhe na mão , disse .
Mande ?
Pega-lhe na mão .
No sé si me va permitir.
Él te permite .
Ele sentou-se na orla do catre e pegou na mão de Boyd , e Boyd
agarrou-a nos dedos enclavinhados .
Anda com isso , sem dó nem piedade , sussurrou Boyd .
Qué dice ?
Nada , disse B illy. Ándale .
O médico pegou num pano esterilizado e embrulhou-o em volta da
pequena lanterna eléctrica e ligou-a e pegou-lhe e meteu-a na boca. Em
seguida, deixou cair o pano para dentro da bacia juntamente com as
compressas e debruçou-se e tirou da bacia uma pinça hemostática e
curvou-se sobre Boyd e , suavemente , levantou os quadrados de tecido
do ferimento de saída e apontou a luz ao buraco . O sangue já estava a
começar a acumular-se de novo , e ele colocou a pinça hemostática no
ferimento e fechou-a com um estalido .
Boyd curvou-se para diante e lançou a cabeça para trás , mas não gritou .
O médico tirou outra pinça hemostática da bacia e absorveu o sangue com
um quadrado de algodão e examinou a ferida com a luz e, em seguida,
tomou a laquear com a pinça. Os tendões no pescoço de Boyd brilhavam,
retesados , à luz da vela. O médico segurava a lanterna entre os dentes
cerrados . Unos pocos minutos más , informou . Unos pocos minutos .
Aplicou mais duas pinças hemostáticas e , em seguida, tirou da bacia
a seringa com a pêra encarnada e encheu-a com a solução e deu instru­
ções à mulher para pegar na toalha e a segurar contra as costas do rapaz .
Depois , vagarosamente , irrigou o ferimento . Limpou a ferida com uma
compressa e tornou a irrigá-la, removendo assim coágulos de sangue e
pedacinhos de matéria. Estendeu a mão para a bacia e retirou de lá uma
pinça hemostática e fechou-a no seu lugar.
290 Cormac McCarthy

Pobrecito , comentou a mulher.


Unos pocos minutos más , repetiu o médico .
Tomou a irrigar a ferida com a seringa e pegou num dos pauzinhos
de nitrato de prata e, manejando com uma mão uma compressa de mus­
selina presa numa pinça hemostática, foi limpando coágulos e detritos ,
enquanto , com a outra, i a cauterizando com o nitrato de prata. O nitrato
de prata deixava rastos cinzento-claros no tecido vivo . Ele aplicou mais
uma pinça hemostática e tomou a irrigar o ferimento . A mulher dobrou
a toalha contra as costas de Boyd e segurou-a no lugar. Com a pinça de
dissecção , o médico retirou da ferida um pequeno detrito e ergueu-o à
luz . Tinha o tamanho de um grão de trigo , mais ou menos , e ele ergueu­
-o e fê-lo rodar sob o pequeno cone de luz .
Qué es eso ? indagou Billy.
O médico curvou-se com a lanterna entre os dentes, para que o rapaz
pudesse ver melhor. Plomo , explicou . Mas era uma pequena lasca arran­
cada à sexta costela de Boyd , e ele estava a referir-se à vaga coloração
metálica ao longo do bordo concoidal do osso . Pousou-o na toalha, jun­
tamente com a pinça, e, com o indicador, apalpou ao longo das costelas
de Boyd , da frente para trás . Mantinha-se atento ao rosto de Boyd en­
quanto assim fazia. Te duele ? perguntou . Aliá? Aliá? Boyd jazia com o
rosto desviado . Pelo ruído , dava impressão de que mal conseguia respirar.
O médico tirou da bacia uma pequena tesoura de pontas aguçadas e
lançou um olhar breve a B illy e , em seguida, começou a cortar fiapos
de tecido morto ao longo do bordo da ferida. Billy estendeu os braços e
tomou a mão de Boyd nas suas .
Le interesa el perro , comentou o médico .
Billy olhou na direcção da porta. O cão observava-os , sentado . De-
sanda, ordenou .
Está bien , disse o médico . No lo molesta . Es de su hermano, no ?
Sí.
O médico fez que sim com a cabeça.
Quando terminou , disse à mulher para segurar a toalha por baixo da
ferida no peito do rapaz e , em seguida, irrigou-a e limpou-a também .
Tomou a irrigá-la e remexeu-lhe no interior com uma compressa. Por
fim , recostou-se e tirou a lanterna eléctrica da boca e pousou-a sobre a
toalha e olhou para B illy.
Es un muchacho muy valiente , comentou .
Es grave ? perguntou B illy.
Es grave , respondeu o médico . Pero no es muy grave .
Qué sería muy grave ?
A Travessia 29 1

O médico ajeitou os óculos , tornando a empurrá-los para cima com o


pulso . O ar arrefecera dentro do quarto . Via-se muito ao de leve o hálito
do médico a formar penachos e a vacilar à luz vacilante . Um leve man­
to de suor perlado cobria-lhe a testa . Ele fez no ar diante de si o sinal da
cruz . Eso , disse . Eso es muy grave .
Estendeu o braço e tornou a pegar na lanterna, tendo-a embrulhado
num dos quadrados de musselina . Meteu-a na boca e pegou na seringa
com pêra de borracha e tornou a enchê-la e pousou-a a seu lado e de­
poi s , lentamente , soltou a primeira das pinças hemostáticas que jaziam
num círculo metálico em volta do ferimento nas costas de Boyd .
Retirou-a muito devagar. Em seguida, abriu a pinça seguinte .
Pegou na seringa e , suavemente , lavou a ferida e limpou-a com uma
compressa e pegou no pauzinho de nitrato de prata e , delicadamente ,
tocou com ele no ferimento . Trabalhou do alto da ferida para a parte de
baixo . Quando removera a última pinça hemostática e a deixara cair
dentro da bacia, ficou imóvel um momento com ambas as mãos sobre
as costas de Boyd , como que a exortá-lo a que se curasse . Depois pegou
na lata de bismuto e desatarraxou-lhe a tampa e ergueu-a acima dos
ferimentos e polvilhou-os com o pó branco .
Colocou quadrados de gaze nas feridas e sobre a ferida nas costas
do rapaz colocou uma pequena toalha limpa que escolheu de entre as
suas ligaduras esterilizadas e prendeu estas compressas com adesivo ,
e , em seguida , ele e B illy ajudaram Boyd a soerguer-se , e o médico ,
com gestos rápido s , embrulhou-o com um rolo de ligadura de pano ,
passando-lhe o rolo por baixo dos braços , até chegar ao fim . Prendeu
a ponta com dois pequenos agrafos de aço e tornaram a vestir a Boyd
a sua blusa e estenderam-no novamente na cama com cuidado . B oyd
deixou pender a cabeça e inspirou um longo sorvo rouquejante de ar.
Fué muy afortunado , comentou o médico .
Cómo ?
Que no se le han punzado los pulmones . Que no se le ha quebrado la
gran arteria cual era muy cerca de la dirección de la bala . Pero sobre
todo que no hay ni gran infección . Muy afortunado .
Embrulhou os instrumentos na toalha e meteu-os dentro da maleta
e esvaziou as bacias para dentro do balde e limpou-as com um pano
e guardou-as e fechou a maleta . Passou as mãos por água e secou-as
e pôs-se de pé e tirou do bolso os botões de punho e desenrolou as
mangas e abotoou os punhos . Disse à mulher que iria regressar no dia
seguinte para mudar as ligaduras e que iria deixar os acessórios à
guarda dela e que lhe mostraria como é que desejava que ela fizesse
292 Cormac McCarthy

o penso . Disse que o rapaz tinha de beber água em abundância. Que


tinham de o manter quente . Em seguida, passou a maleta para a mão
de B illy e voltou-se e a mulher ajudou-o a vestir o casaco e ele pegou
no chapéu e agradeceu-lhe pela ajuda e curvou-se para transpor a
porta baixa.
B illy seguiu-o para o exterior com a maleta e deteve-o quando ele se
dirigia para a parte da frente do carro com a manivela. Entregou-lhe a
maleta e tomou-lhe a manivela da mão . Permítame , disse .
Curvou-se no escuro e procurou o encaixe na grelha do radiador com
os dedos e enfiou lá a manivela e empurrou-a para engrenar. Em segui­
da, endireitou-se e fez rodar a manivela. O motor arrancou e o médico
assentiu com a cabeça. Bueno , disse . Recuou ao longo do guarda-lama
e empurrou ligeiramente o manípulo para regular a combustão e voltou­
-se e tomou a manivela das mãos de B illy e debruçou-se e guardou-a
debaixo do assento .
Gracias , agradeceu .
A usted.
O médico fez um sinal afirmativo com a cabeça. Olhou na direcção
da porta , onde a mulher se encontrava parada, e olhou novamente para
B illy. Tirou um cigarro do bolso e meteu-o na boca.
Se queda con su hermano , disse .
Sí. Accepte el caballo, por favor.
O médico disse que não . Acrescentou que mandaria o mozo com o
cavalo na manhã seguinte . Olhou para o céu a leste , onde os primeiros
raios de luz cinzenta recortavam o contorno do telhado da hacienda do
seio das trevas apropriadas . Ya es de mafíana , comentou . Viene la ma­
drugada .
Sim, disse Billy.
Fica com o teu irmão . Eu mando o cavalo .
Em seguida, entrou no carro e puxou a porta para a fechar e acendeu
os faróis . Nada havia para ver, e , todavia, os ejiditarios tinham-se aglo­
merado diante das portas , ao longo de toda a fiada de alojamentos , ho­
mens e mulheres pálidos sob as luzes , pálidos com as suas roupas de
algodão cru , com crianças agarradas aos joelhos e todos a olhar quando
o carro passou a rolar, pesado e vagaroso , e descreveu uma curva dentro
do recinto e saiu e se afastou estrada abaixo , com os cães a correr a par,
a ulular e a debruçar-se para mordiscar os pneus que se pregueavam
suavemente ao guinar sobre a argila.

* * *
A Travessia 293

Quando Boyd acordou , já a manhã ia alta, Billy estava ali sentado , e


quando ele acordou ao meio-dia e quando tornou a acordar à tardinha
ele ali estava. Ali ficou , a cabecear e a titubear até ao lusco-fusco , e fi­
cou surpreso ao ouvir chamarem-no pelo nome .
Billy?
Abriu os olhos . Curvou-se para diante .
Não tenho água.
Deixa-me ir buscar. Onde é que ' tá o copo?
' Tá aqui mesmo . Billy?
O que é?
Tens de ir até Namiquipa.
Eu cá não vou a lado nenhum .
Ela vai pensar que nós a abandonámos .
Não te posso deixar.
Eu fico bem aqui .
Não posso ir até lá e deixar-te aqui assim .
Podes , sim .
Precisas dalguém que olhe por ti .
Escuta, disse Boyd . Eu já me ' tou nas tintas pra isso . Vai até lá como
eu te pedi . Seja como for, ' tavas preocupado com o cavalo .
O mozo chegou ao meio-dia do dia seguinte , montado num burro e a
conduzir Nifío por uma cabeçada de corda com uma guia comprida . Os
trabalhadores estavam nos campos , e ele atravessou a ponte e seguiu ao
longo da fiada das suas habitações , sempre a chamar em alta voz pelo
sefíor Páramo enquanto avançava. B illy saiu e o mozo parou o burro e
saudou-o com um aceno de cabeça. Su caballo , disse .
Ele olhou para o cavalo . Via-se que o animal comera e bebera e re­
pousara e que o tinham escovado e parecia um outro cavalo diferente , e
ele disse isto mesmo ao mozo . O mozo assentiu com a cabeça descon­
traidamente e soltou a laçada que prendia a corda ao chifre da sua sela
e deixou-se escorregar do dorso do burro .
Por qué no montaba el caballo ? perguntou B illy.
O mozo encolheu os ombro s . Disse que o cavalo não lhe pertencia e
que , por isso , não tinha o direito de o montar.
Quiere montaria ?
Ele tornou a encolher os ombros . Ficou ali parado com a guia da
cabeçada na mão .
Billy acercou-se do cavalo e soltou as rédeas do chifre da sela, onde
estavam penduradas , e enfreou o cavalo e deixou tombar as rédeas e des­
fez os nós da cabeçada, fazendo deslizar a corda sobre o pescoço de Nifío .
294 Cormac McCarthy

Ándale , disse .
O mozo enrolou a corda e pendurou-a no chifre da sela do burro e
contornou o cavalo e deu-lhe palmadinhas e pegou nas rédeas e meteu
o pé no estribo e alçou-se para a sela. Voltou o cavalo e cavalgou pelo
paseo , entre as casas todas iguais , e lançou o cavalo a trote e seguiu até
ao alto da colina, deixando para trás a hacienda , e ali deu meia-volta ,
pois não queria levar o cavalo para fora da vista de Billy. Fez recuar o
cavalo e obrigou-o a voltar-se e descreveu vários círculos , desenhando
oitos , e depois lançou o cavalo a galope pela encosta abaixo e parou-o
bruscamente diante da porta, com os cascos a deslizar no chão , e des­
montou , tudo num só movimento .
Le gusta ? perguntou Billy.
Claro que sí, respondeu o mozo . Debruçou-se e pousou a mão espal­
mada sobre o pescoço do cavalo e depois acenou com a cabeça e rodou
sobre os calcanhares e subiu para o dorso do burro e trotou pelo paseo
fora sem olhar para trás .

A noite já quase caíra quando ele partiu . A mulher Mufíoz tentou


convencê-lo a esperar até à manhã seguinte , mas ele recusou . O médico
viera ao final da tarde e deixara as ligaduras para a mulher e um cartu­
cho de sulfato de magnésio , e ela preparou para Boyd uma tisana feita
de manzanilla e de árnica e da raiz do arbusto golondrina . Meteu pro­
visões para B illy num velho moral de lona, e ele pendurou-o do chifre
do cepilho e montou e voltou o cavalo e baixou os olhos para ela .
Dónde está la pistola ? perguntou .
Ela disse que estava guardada debaixo da almofada, por baixo da
cabeça do irmão dele . Ele assentiu com a cabeça. Lançou um olhar es­
trada fora, até à ponte e ao rio , e tomou a olhar para ela. Perguntou-lhe
se tinham vindo alguns homens até ao ejido .
Sí, disse ela. Dos veces .
Ele tornou a assentir com a cabeça. Es peligroso para ustedes .
Ela encolheu os ombros . Disse que a vida era perigosa. Disse que ,
para um homem do povo , não havia outra alternativa.
Ele sorriu . Mi hermano es un hombre dei pueblo ?
Sí, disse ela. Claro .
Ele cavalgou para sul ao longo da estrada, por entre os choupos da
margem, atravessou a aldeia de Mata Ortíz e, sempre a cavalgar, viu a
Lua assomar do Ocidente até ao seu frio meridiano , e só então fez um
desvio e passou o resto da noite num bosque que avistara a contraluz da
A Travessia 295

estrada. Embrulhou-se no seu serape e pendurou o chapéu sobre os ca­


nos das botas erectas e não acordou antes do dia claro .
No dia seguinte , cavalgou todo o dia. Passaram poucos carro s , e ele
não viu cavaleiros . À tardinha, a camioneta que levara o irmão até San
Diego surgiu vinda do Norte , pesadona, a descer a estrada num vagaro­
so desenrolar de poeira do caminho , e imobilizou-se com um ranger
prolongado . Os trabalhadores na caixa da camioneta acenaram-lhe e
chamaram-no aos gritos , e ele acercou-se e empurrou o chapéu para a
nuca e ergueu a mão para os saudar. Eles aglomeraram-se ao longo da
orla da caixa e estenderam as mãos , e ele debruçou-se do cavalo e aper­
tou a mão a todos eles, do primeiro ao último . Eles disseram que era
perigoso para ele andar assim pela estrada. Não perguntaram por Boyd
e, quando ele começou a dar-lhes notícias , eles fizeram-no calar com
acenos das mãos, pois tinham ido visitá-lo naquele mesmo dia . Disse­
ram que ele comera e que bebera um copito de pulque , para lhe dar vi­
gor, e que todos os sinais eram extremamente animadores . Disseram
que somente a mão da Virgem lhe poderia ter dado alento depois de ele
sofrer um ferimento tão terrível . He rida tan grave , disseram . Tan horri­
ble . Herida tan fea .
Falavam do irmão dele , deitado com a pistola debaixo da almofada,
e falavam num sussurro esganiçado . Tan joven , diziam . Tan valiente . Y
peligroso por todo eso . Como el tigre herido en su cueva .
Billy olhou para eles . Olhou ao longe para oeste , por sobre a terra que
ia arrefecendo , as longas faixas de sombra. Rolas arrulhavam das acá­
cias . Os trabalhadores acreditavam que o irmão matara o manco num
tiroteio nas ruas de Boquilla y Anexas . Que o manco disparara sobre ele
sem provocação , e que loucura da parte do manco , essa, por não ter
contado com a grande coragem do güerito . Pediram-lhe insistentemente
mais pormenores . Como o güerito se erguera de uma poça de sangue na
poeira para sacar da pistola e abater o manco , derrubando-o da sela do
cavalo . Dirigiam-se a Billy com grande reverência e perguntaram-lhe
como é que ele e o irmão tinham abraçado aquela vida de justiceiros .
Ele examinou-lhes os rosto s . O que viu naqueles olhos comoveu-o
muito . O motorista e dois outros homens que viajavam na cabina da
camioneta tinham descido e estavam parados junto da caixa do veículo ,
na traseira . Todos ficaram à espera do que ele iria dizer. No fim de con­
tas , ele disse-lhes que os relatos do conflito eram muito exagerados e
que o irmão tinha somente quinze anos e que a culpa era dele próprio ,
por não ter cuidado do irmão como devia. Não o devia ter trazido para
uma terra estranha para ser alvejado a tiro na rua como um cão . Eles
296 Cormac McCarthy

limitaram-se a abanar as cabeças e a repetir uns aos outros a idade de


Boyd . Quince aíios , diziam . Qué guapo . Qué joven tan esforzado . Por
fim , ele agradeceu-lhes por terem tratado do irmão e tocou na aba do
chapéu , e , ante isto , todos eles tomaram a comprimir-se , de mãos esten­
didas , e ele tomou a apertar-lhes a mão e também apertou a mão do
motorista e dos outros dois homens parados na estrada e depois torceu
as rédeas do cavalo para o fazer rodar e deixou a camioneta para trás e
afastou-se ao longo da estrada para sul . Ouviu as portas da camioneta a
bater com estrondo atrás de si e ouviu o motorista a engatar a mudança
e a camioneta ultrapassou-o vagarosamente com um ronco no meio da
poeira cada vez mais densa. Os trabalhadores na traseira acenaram-lhe
e alguns tiraram os chapéus e foi então que um deles se ergueu e se
apoiou com a mão no ombro do companheiro do lado e levantou um
punho no ar e lançou um grito a B illy. Hay justicia en el mundo! bradou .
Em seguida, todos se afastaram .
Ele acordou nessa noite com a terra a tremer-lhe debaixo do corpo e
soergueu-se e procurou o cavalo com os olhos . O cavalo estava parado ,
com a cabeça erguida contra o céu nocturno do deserto , a olhar para
oeste . Um comboio rompia ao encontro das terras baixas , com o cone
amarelo-claro do farol dianteiro a verrumar vagarosa e serenamente
através do deserto e o estralejar distante dos rodados exótico e mecâni­
co naquela aridez sombria de silêncio . Por fim , a pequena janela qua­
drada do vagão-dormitório a deslizar atrás . O comboio passou e deixou
somente o ténue rasto pálido de fumo da caldeira a pairar acima do
deserto , e depois soou o assobio prolongado e solitário a ecoar por sobre
as cercanias quando a composição se acercou da passagem de nível em
Las Varas .
Ele entrou em Boquilla ao meio-dia, com a caçadeira atravessada
sobre o arção dianteiro da sela. Não se via ninguém nas ruas . Meteu
pela estrada para sul , para Santa Ana de Babícora. Ao cair da noite ,
começou a deparar com cavaleiros que seguiam para norte , em direcção
a Boquilla, homens na flor da idade e rapazes com o cabelo negro cola­
do ao crânio com brilhantina e as botas engraxadas e vestindo camisas
baratas de algodão que tinham sido passadas a ferro com tijolos quente s .
Era sábado à noite , e eles iam a u m baile . Saudavam-no com acenos
graves de cabeça, montados em burros ou nas pequenas mulas das ex­
plorações mineiras . Ele retribuía as saudações , de olhos atentos a todos
os gestos , com a caçadeira erguida contra si, o coice da coronha aninha­
do contra o interior da coxa . O belo corcel que ele montava a farejá-los,
de narinas dilatadas . Quando cavalgou através de La Pinta, na alta pia-
A Travessia 297

nície de zimbros acima do vale do rio Santa María, a Lua já se erguera


no céu , e quando entrou em Santa Ana de B abícora era meia-noite e a
povoação estava mergulhada na escuridão e vazia. Ele deu de beber ao
cavalo na alameda e meteu pela estrada para oeste , para Namiquipa.
Depois de cavalgar uma hora, chegou a um pequeno regato que era um
dos afluentes junto à cabeceira do S anta María e conduziu o cavalo
para fora da estrada e peou-o na erva ribeirinha e embrulhou-se no se­
rape e dormiu numa exaustão sem sonhos .
Quando acordou , o Sol já se erguera no céu há horas . Desceu até ao
regato , levando as botas na mão , e entrou na água e curvou-se e lavou
o rosto . Quando se endireitou e procurou o cavalo com os olhos , viu-o
parado , a olhar na direcção da estrada. Ao fim de escassos minutos ,
surgiu um cavaleiro . A descer a estrada, montada no cavalo que a mãe
dele outrora montava, vinha a rapariga com um vestido novo de algodão
azul e um chapelinho de palha com uma fita verde que lhe pendia pelas
costas abaixo . Billy ficou a vê-la passar e, quando ela desapareceu da
vista, sentou-se na erva e remirou as próprias botas ali pousadas e o
correr vagaroso do riacho e as hastes de erva que se vergavam e se tor­
navam a endireitar constantemente à brisa da manhã. Por fim , estendeu
os braços para pegar nas botas e calçou-as e pôs-se de pé e acercou-se
do cavalo e embridou-o e selou-o e montou e penetrou na estrada e
partiu no encalço dela.
Ao ouvir o cavalo na estrada, ela pôs a mão no alto do chapéu e
voltou-se e olhou para trás . Em seguida, parou a montada. Ele abrandou
o andamento do cavalo e foi até junto dela . Ela fitou-o com os seus
olhos escuros .
Está muerto ? perguntou . Está muerto ?
No .
No me mienta .
Le juro por Di os .
Gracias a Dios . Gracias a Dios . Ela deixou-se escorregar do cavalo
e largou as rédeas e ajoelhou-se com as suas roupas novas na argila
seca e coberta de sulcos da estrada e benzeu-se e fechou os olhos e en­
trelaçou as mãos para rezar.
Uma hora depois , quando cruzaram novamente Santa Ana de B abíco­
ra, ela ainda mal falara. Era quase meio-dia e cavalgaram através da
única rua lamacenta, deixando para trás as fiadas baixas de edifícios de
adobe esboroados e a meia dúzia de árvores pintadas que compunham a
alameda , e romperam outra vez pelo planalto desértico . Ele nada viu
que se assemelhasse a uma tienda na povoação e não tinha dinheiro com
298 Cormac McCarthy

que comprar comida, caso tivesse visto . Ela seguia em ritmo vagaroso ,
uma dúzia de passadas atrás dele , e ele voltou-se para a olhar uma ou
duas vezes , mas ela não sorriu nem deu qualquer indício de se ter aper­
cebido do gesto , e , ao fim de um certo tempo , ele deixou de olhar. S abia
que ela não abandonara a casa sem provisões , mas ela não se referiu ao
assunto e ele também não . Um pouco a norte da povoação , ela falou
atrás dele , e ele parou e voltou o cavalo na estrada.
Tienes hambre ? perguntou ela .
Ele empurrou o chapéu para trás com o polegar e olhou para ela. ' Tou
capaz de comer o carburador e as velas dum touro bravo , disse .
Mande ?
Comeram numa mata de acácias junto à berma da estrada. Ela esten­
deu o serape e dispôs sobre o tecido tortillas num pano e tamales nos
seus invólucros estriadas de camisas de milho e um pequeno frasco de
jrijoles cuja tampa desatarraxou e onde enfiou uma colher de pau . Abriu
um pano contendo quatro empanadas . Duas maçarocas de milho frias ,
polvilhadas com chile vermelho em pó . Uma quarta parte de uma pe­
quena rodela de queijo de cabra.
Sentou-se com as pernas enfiadas debaixo do corpo , de cabeça volta­
da para que a aba do chapéu lhe cobrisse o rosto com a sombra. Come­
ram . Quando ele lhe perguntou se ela não queria saber o que sucedera a
Boyd , ela respondeu que já sabia. Ele fitou-a. Ela parecia bem frágil , ali
envolta nas roupas . No pulso esquerdo via-se-lhe um hematoma azul .
Exceptuando isso , a pele dela era tão perfeita que parecia estranhamen­
te artificial . Como se a tivessem pintado .
Tienes medo de los hombres , disse ele .
Cuáles hombres ?
Todos los hombres .
Ela voltou-se e olhou para ele . Baixou os olhos . Ele pensou que ela
estava a reflectir acerca da pergunta, mas ela limitou-se a enxotar um
escarabajo do serape e estendeu o braço e pegou numa empanada e
mordeu-a delicadamente .
Y quizás tienes razón , acrescentou ele .
Quizás .
Ela olhou para o ponto onde os cavalos estavam parados na erva da
berma, com as caudas a espanejar. Pensou que ela não ia dizer mais
nada, mas ela começou a falar acerca da farru1ia. Contou que a avó fi­
cara viúva por causa da revolução e casara de novo e enviuvara nova­
mente em menos de um ano e casara uma terceira vez e enviuvara pela
terceira vez e não mais se tornara a casar, embora tivesse tido muitas
A Travessia 299

oportunidades para o fazer, já que era muito bela e ainda nem contava
vinte anos quando o derradeiro marido caíra, a fazer fé no que o tio
dele contara, em Torreón , com uma mão sobre o peito no gesto de quem
jura fidelidade , a apertar a bala de espingarda dentro de si como uma
dádiva, com a espada e a pistola que trazia a tombarem atrás dele , inú­
teis , entre os palmitos , na areia , o cavalo sem cavaleiro a deambular no
turbilhão de balas e obuses e gritos de homens , a afastar-se a trote com
os estribos a adejarem para logo arrepiar caminho , a vaguear em silhue­
ta com outros da sua raça entre os cadáveres dos mortos naquela planu­
ra enlouquecida enquanto a treva descia em volta deles , cercando-os por
completo , e pequenos pássaros afugentados dos seus abrigos nos espi­
nheiros regressaram e esvoaçaram por ali a pipilar, e a Lua ergueu-se no
céu , cega e branca , a leste , e os pequenos coiotes surgiram a trote para
devorar os mortos , arrancando-lhes a carne das roupas .
Disse que a avó era céptica em relação a muitas coisas neste mundo ,
acima de tudo em relação aos homens . Dizia que em todos os ofícios
excepto na guerra os homens de talento e vigor prosperam . Na guerra ,
sucumbem. A avó falava-lhe muitas vezes dos homens e falava com
grande fervor e dizia que os homens temerários eram uma grande tenta­
ção para as mulheres e que isto era somente uma desgraça como outra
qualquer e pouco havia a fazer para lhe dar remédio . Dizia que ser mu­
lher era viver uma vida de dificuldades e desgostos e que quem negava
isto não queria, pura e simplesmente , encarar a realidade . E dizia que ,
uma vez que assim era e que não havia forma de o alterar, era melhor
fazer o que o coração nos mandava, na alegria e na desdita, do que
limitarmo-nos a buscar conforto , já que nada nos podia confortar.
Buscá-lo era somente acolher a desdita de braços abertos e virar a cara
a tudo o resto . Dizia que todas as mulheres sabiam estas coisas , embora
raramente falassem acerca delas . Por fim, dizia que , se as mulheres
eram atraídas pelos homens impetuosos , era apenas porque lá no íntimo
do coração sabiam que um homem que não fosse capaz de matar por
elas não prestava para nada.
Ela acabara de comer. Ficou sentada, com as mãos cruzadas sobre o
regaço , e as frases que acabara de proferir contrastavam com a sua com­
postura . A estrada encontrava-se vazia, as cercanias silenciosas . Ele
perguntou-lhe se ela achava Boyd capaz de matar um homem . Ela
voltou-se e olhou-o atentamente . Como se ele fosse alguém com quem
era preciso medir muito bem as palavras , de modo a fornecer a respec­
tiva explicação . Por fim , disse que a notícia andava de boca em boca por
toda a região . Que toda a gente sabia que o güerito matara o gerente de
300 Cormac McCarthy

Las Varitas . O homem que traíra Socorro Rivera e vendera os próprios


compatriotas à Guardia Blanca de La B abícora.
B illy escutou tudo isto e , quando ela terminou , disse que o manco
tinha caído do cavalo e partido a espinha, e que ele próprio tinha assis­
tido à cena .
Esperou . Ao fim de um certo tempo , ela ergueu os olho s .
Quieres algo más ? perguntou .
No . Gracias .
Ela começou a guardar os restos do piquenique . Ele observava-a , mas
não fez qualquer gesto para a ajudar. Pôs-se de pé , e ela dobrou o sera­
pe e embrulhou neste o resto das provisões e tornou a amarrá-lo com os
cordões .
No sabes nada de mi hermano , declarou ele .
Quizás , disse ela.
Ergueu-se com o serape enrolado suspenso do ombro .
Por qué no me contesta ? perguntou ele .
Ela ergueu o rosto para ele . Disse que já lhe respondera. Disse que
em todas as famílias havia uma pessoa que é diferente , e os outros estão
convencidos de que conhecem essa pessoa, mas não a conhecem . Disse
que ela própria era assim, e por isso sabia do que falava . Em seguida,
deu meia-volta e encaminhou-se para onde os cavalos estavam a pastar
nas ervas poeirentas da berma da estrada e amarrou o serape atrás da
patilha da sela e apertou a cilha e subiu para a sela.
Ele montou e picou o cavalo , contornando-a para penetrar na estrada.
Depois parou e olhou para trás . Disse que havia coisas acerca do irmão
dele que só a farru1ia podia saber e que , como o resto da farru1ia estava
morta, ninguém sabia a não ser ele . Todos os pequenos pormenores . To­
das as vezes em que ele estivera doente em criança ou o dia em que fora
picado por um escorpião e pensou que ia morrer ou tudo o que sucedera
na sua vida noutra parte do país , de que nem o próprio Boyd se recordava,
incluindo a avó e a irmã gémea, mortas e sepultadas há já tanto tempo
num lugar que , muito provavelmente , ele nunca mais tornaria a ver.
Sabías que él tenía una gemela ? perguntou . Que murió cuando tenía
cinco aiios ?
Ela respondeu que não sabia que Boyd tivera outrora uma irmã gé­
mea , nem que ela tinha morrido , mas que não era importante , porque
agora ele tinha outra. Dito isto , picou o cavalo e contornou-o e meteu
pela estrada.
Uma hora depois , ultrapassaram três raparigas a pé . Duas delas carre­
gavam um cesto , cada qual a segurar uma asa, com um pano a cobri-lo .
A Travessia 30 1

Iam a caminho do pueblo de Soto Maynez e ainda tinham muito que


andar. Olharam para trás ao ouvir os cavaleiros na estrada atrás delas e
aglomeraram-se a rir e , quando os cavaleiros passaram , empurraram-se
umas às outras para a orla da estrada e olharam para o alto com as pu­
pilas velozes e escuras e desataram a rir, ocultando a boca com as mãos .
Billy tocou no chapéu e seguiu em frente , mas a rapariga deteve-se e
pôs o cavalo a passo junto das desconhecidas e , ao olhar para trás , ele
viu-a a conversar com elas . Eram pouco mais novas do que ela, mas ela
estava a repreendê-las naquela mesma voz grave e inexpressiva. Por
fim , elas pararam e recuaram contra o chaparral na berma, mas então
ela parou o cavalo por completo e continuou a dirigir-se-lhes até termi­
nar. Depois virou-se e picou o cavalo e não olhou para trás .
Cavalgaram todo o dia . Já estava escuro quando entraram em La
Boquilla, e ele cavalgou através da vila como no caminho de ida, com
a caçadeira erguida na sua frente . Quando passaram pelo lugar onde o
manco caíra, ela fez o sinal da cruz e beijou os dedos . Depois prosse­
guiram . Os troncos dispersos das árvores pintadas da alameda erguiam­
-se , pálidos como ossos , à luz das janelas . Algumas janelas com vidra­
ças , mas a maioria com papel pardo engordurado , pregado aos caixilhos
com tachas , e atrás deles nem movimento nem sombras , somente aque­
les quadrados descorados , dir-se-iam pergaminhos ou velhos mapas
estéreis que o tempo há muito tivesse despojado de qualquer vestígio
dos seus terrenos ou dos caminhos neles traçados . Nos arrabaldes do
povoado viram uma fogueira a arder mesmo junto à berma da estrada e
abrandaram e seguiram cautelosamente , mas a fogueira parecia ser so­
mente um monte de lixo em chamas e não se via ninguém por ali e eles
passaram adiante e mergulharam na região sombria a oeste .
Nessa noite , acamparam numa campina, na orla do lago , e partilha­
ram as últimas provisões que ela trouxera. Quando ele lhe perguntou se
não teria tido medo de cruzar aquela região sozinha de noite , ela respon­
deu que não havia outro remédio , e que uma pessoa tinha de se entregar
nas mãos de Deu s .
Ele perguntou s e Deus cuidava sempre dela, e ela examinou o âmago
do fogo durante muito tempo , no ponto em que as brasas ofegavam , ora
vivas , ora baças , ora novamente vivas , sob o vento que soprava do lago .
Por fim, disse que Deus cuidava de todas as criaturas , e que ninguém se
podia furtar aos cuidados dele , assim como não se podia furtar ao juízo
dele . Disse que nem mesmo os perversos se podiam furtar ao amor di­
vino . Ele observava-a. Comentou que ele próprio não tinha uma tal
ideia de Deus e que praticamente desistira de Lhe dirigir as suas ora-
302 Cormac McCarthy

ções , e ela assentiu com a cabeça sem tirar os olhos do fogo e disse que
já tinha percebido .
Pegou na manta e desceu para junto do lago . Ele viu-a afastar-se e
depois descalçou as botas com gestos bruscos e embrulhou o serape em
volta de si e mergulhou num sono agitado . Acordou em plena noite ou
de madrugada, sem saber que horas eram, e voltou-se e remirou o lume
para ver quanto tempo dormira , mas a fogueira estava praticamente fria
no chão . Olhou para leste , para ver se algum vestígio da alvorada tingia
de cinzento a linha do horizonte , mas viam-se apenas as trevas e as es­
trelas . Remexeu nas cinzas com um pau . As poucas brasas vermelhas
que emergiram no coração negro da fogueira pareciam secretas e impro­
váveis . Como os olhos de criaturas estremunhadas que seria melhor não
espicaçar. Pôs-se de pé e caminhou pelo declive abaixo até ao lago com
o serape em volta dos ombros e olhou para as estrelas no lago . O vento
esmorecera, e a água jazia, negra e parada. Jazia como um buraco na­
quele mundo desértico e alpestre , um buraco em cujo fundo as estrelas
se estavam a afogar. Qualquer coisa o acordara, e ele pensou que talvez
tivesse ouvido cavaleiros na estrada e que eles lhe tivessem visto a fo­
gueira, mas não havia fogueira alguma que se pudesse ver, e depois
pensou que talvez a rapariga se tivesse levantado e aproximado do lume
e tivesse parado junto dele , ali estendido a dormir, e lembrou-se de ter
sentido o sabor da chuva no rosto , mas não chovia nem antes chovera ,
e foi então que ele se lembrou do seu sonho . No sonho , ele estava nou­
tra terra que não era aquela, e a rapariga ajoelhada a seu lado não era
aquela rapariga. Ajoelhavam-se à chuva numa cidade mergulhada na
treva, e ele segurava nos braços o irmão moribundo , mas não lhe con­
seguia ver o rosto nem lhe conseguia pronunciar o nome . Algures por
entre as ruas negras e gotejantes , um cão uivava. Era tudo . Olhou ao
longe , para o lago , onde não havia vento , apenas a quietude sombria e
as estrelas , e , todavia, sentiu um vento frio a passar. Agachou-se na
junça, à beira do lago , e deu-se conta de que temia o mundo futuro , pois
nele estavam já escritas certezas que nenhum homem poderia desejar.
Viu passar, como numa tapeçaria vagarosa, imagens a desenrolar-se de
coisas vistas e não vistas . Viu a loba morta na montanha e o sangue do
falcão na pedra e viu um ataúde de vidro com colgaduras de pano negro
a passar numa rua, transportado sobre varas por mozos . Viu o arco que
ele deitara fora a boiar nas águas frias do B avispe como uma serpente
morta e o sacristão solitário nas ruínas da povoação por onde o terremo­
to passara e o eremita no transepto desmoronado da igreja de Caborca.
Viu a água da chuva a escorrer de uma lâmpada eléctrica atarraxada à
A Travessia 303

parede de chapa metálica de um armazém. Viu uma cabra com chifres


dourados amarrada num campo lamacento .
Por último , viu o irmão parado num lugar fora do seu alcance , encer­
rado atrás de uma janela, num mundo onde ele nunca poderia ir. Quan­
do o viu ali , percebeu que já antes o vira assim em sonhos , e percebeu
que o irmão lhe iria sorrir, e esperou que ele o fizesse , um sorriso que
ele próprio suscitara e cujo significado lhe escapava por completo , e
perguntou a si mesmo se o estado que finalmente alcançara seria uma
incapacidade para distinguir o que efectivamente sucedera de tudo o
que não passava de mera aparência. Ficou ali ajoelhado durante muito
tempo , seguramente , porque o céu a leste acabou afinal por se tingir de
cinzento com a alvorada, e as estrelas dissiparam-se por fim em cinza
no lago cada vez mais pálido e os pássaros começaram a cantar da mar­
gem oposta e o mundo recomeçou a aparecer mais uma vez .
Partiram de manhã sem nada terem comido , à parte as derradeiras
tortillas , já secas e a endurecer nos bordos . Ela cavalgava na esteira
dele e não conversaram e , desta forma , atravessaram ao meio-dia a pon­
te de madeira sobre o rio e entraram em Las Varas .
Via-se pouca gente nas ruas . Compraram feijão e tortillas numa peque­
na tienda e compraram quatro tamales a uma velha que os vendia na rua,
usando um bidão de aço para gasolina encaixado numa armação de ma­
deira, com rodas de ferro forjado provenientes de uma vagoneta de miné­
rio . A rapariga pagou à mulher e sentaram-se em cima de uma saca de
achas de lenha de pifion , nas traseiras de uma loja, e comeram em silên­
cio . Os tamales cheiravam e sabiam a carvão de lenha. Enquanto estavam
a comer, um homem acercou-se deles e sorriu e acenou com a cabeça.
Billy olhou para a rapariga, ela olhou para ele . Ele olhou para o cavalo e
para a coronha da caçadeira a assomar do estojo por baixo da sela.
No me recuerdas , disse o homem .
B illy tomou a olhar para ele . Olhou-lhe para as botas . Era o arriero
que vira pela última vez nos degraus da caravana da companhia de ópe­
ra, no bosque à beira da estrada a sul de San Diego .
Le conozco , disse B illy. Cómo le va ?
Bien . Olhou para a rapariga. Dónde está su hermano ?
Ya está e n San Diego .
O arriero fez que sim com a cabeça com ar entendido . Como se com­
preendesse uma qualquer situação .
Dónde está la caravana ? indagou B illy.
O outro disse que não sabia . Disse que tinham esperado junto à berma
da estrada, mas que ninguém regressara, no fim de contas .
304 Cormac McCarthy

Cómo no ?
O arriero encolheu os ombros . Executou um gesto cortante com o
pomo da mão através do ar. Se fué, disse .
Con el dinero .
Claro .
Explicou que os tinham deixado sem recursos nem quaisquer mdos
para viajar. No momento em que ele próprio partira, a duefia vendera
todas as mulas menos uma, e as quezílias eram constantes . Quando
B illy perguntou o que é que ela ia fazer, o outro tornou a encolher os
ombros. Olhou para longe , para o fundo da rua . Olhou para B illy.
Perguntou-lhe se lhe podia dar uns poucos de peso s , para poder comprar
qualquer coisa que se comesse .
B illy respondeu que não tinha dinheiro , mas a rapariga j á se levanta­
ra e foi até junto do cavalo e, ao regressar, deu ao arriero algumas
moedas , e ele agradeceu-lhe um certo número de vezes e curvou-se e
tocou no chapéu e guardou as moedas no bolso e desejou-lhes boa via­
gem e virou costas e afastou-se rua abaixo e desapareceu na única can­
tina daquele pueblo de montanha.
Pobrecito , comentou a rapariga.
B illy escarrou para cima da erva seca. Declarou que o arriero estava
provavelmente a mentir e que , além do mai s , não passava de um bêbedo
e ela não lhe devia ter dado dinheiro . Em seguida, levantou-se e dirigiu­
-se até onde os cavalos estavam parados e afivelou o fatigo e pegou nas
rédeas e montou e rompeu através da aldeia em direcção à linha do
caminho-de-ferro e à estrada para norte , sem sequer olhar por cima do
ombro para se certificar de que ela o seguia.
Durante os três dias de jornada que levaram a chegar a San Diego , ela
quase não pronunciou uma palavra. Na última noite , ela queria continu­
ar a cavalgar no escuro até ao ejido , mas ele recusou . Acamparam junto
ao rio , alguns quilómetros a sul de Mata Ortíz , e ele fez uma fogueira
com ramos de árvore trazidos pela água , numa língua de cascalho , no
leito do rio , e ela cozinhou o resto do feijão seco e das tortillas , os úni­
cos víveres de que dispunham desde que haviam saído de Las Varas .
Comeram frente a frente , em lados opostos do lume , enquanto a foguei­
ra ardia até se reduzir a um frágil cesto de brasas e a Lua se erguia a
leste e lá no alto , muito estridentes e muito ténues , eles ouviram os
chamamentos de aves a moverem-se para sul e viram-nas avançar em
criptogramas esguios através da orla ocidental sombriamente abrasada
e mergulhar na penumbra e nas trevas mais além .
Las grullas llegan , disse ela.
A Travessia 305

Ele contemplou as aves . Os grous voavam para sul , e ele contemplou­


-lhes as delgadas esquadrilhas a percorrer aqueles corredores invisíveis
inscritos no seu sangue há cem mil anos . Contemplou-os até terem de­
saparecido , e o derradeiro grito agudo e aflautado , semelhante a uma
cometa de criança, dissipou-se através dos ares no começo da noite , e
então ela levantou-se e pegou no seu serape e afastou-se pela língua de
cascalho e desapareceu entre os choupos .
Cavalgaram através da ponte de tábuas de madeira e subiram até à
velha hacienda ao meio-dia do dia seguinte . Havia pessoas paradas em
fila diante das portas dos domicilias , gente que deveria estar nos cam­
pos , e ele deu-se conta de que aquele era um qualquer dia festivo do
calendário . Ultrapassou a rapariga e parou o cavalo diante da porta da
família Muiioz e desmontou e deixou cair as rédeas e tirou o chapéu e
curvou-se e cruzou a porta baixa.
Boyd estava sentado no catre , de costas apoiadas na parede . A chama
da vela votiva inclinava-se para cá e para lá no copo acima da cabeça
dele , e, envolto como estava nas suas ligaduras feitas de lençol , ele pa­
recia alguém que se tivesse soerguido subitamente no seu próprio veló­
rio . O cão mudo , que estivera deitado , pôs-se de pé e encostou-se a ele .
Dónde estabas ? perguntou Boyd . Não estava a falar com o irmão . Esta­
va a falar com a rapariga que , de sorriso nos lábios , transpôs a soleira
da porta atrás dele .

No dia seguinte , ele afastou-se a cavalgar rio abaixo e esteve fora


todo o dia . Lá nas alturas , bandos esguios de aves bravias voavam em
direcção às terras baixas , e folhas de árvore tombavam no rio , folhas de
salgueiro e de choupo , a rodopiar e a descrever círculos na corrente . As
suas sombras , a deslizar sobre os seixos do leito , pareciam caracteres
escritos . Já escurecera quando ele regressou , a guiar o cavalo através do
fumo das fogueiras para cozinhar, de poça de luz em poça de luz , qual
sentinela a cavalo a patrulhar os fogos de bivaque de um acampamento .
Nos dias seguinte s , trabalhou com os pastores , a conduzir ovelhas do
cume dos montes e através do portão alto em forma de arco do recinto ,
onde os animais se atropelavam e trepavam uns sobre os outros e os
esqui/adores se mantinham de pé , a postos , com as suas grandes tesou­
ras . Conduziam as ovelhas , meia dúzia de cada vez , para dentro do ar­
mazém decrépito de tecto alto , e os esqui/adores erguiam-nas sobre as
patas traseiras e entalavam-nas entre os joelhos e tosquiavam-nas à
mão , e rapazitos reuniam a lã das tábuas do soalho que a chuva empe-
306 Cormac McCarthy

nara e calcavam-na com os pés para dentro dos compridos sacos de al­
godão .
As noites eram frescas , e ele sentava-se junto ao lume e bebia café
com os ejiditarios enquanto os cães do recinto deambulavam de foguei­
ra em fogueira, em busca de restos de comida. Nessa altura já B oyd saía
a cavalgar à tardinha, escarranchado na sela com gestos hirtos e seguin­
do a passo , com a rapariga a montar Nifío na sua esteira, muito próxima.
Ele perdera o chapéu na refrega junto ao rio e usava um velho chapéu
de palha que lhe tinham arranjado e uma camisa feita de tecido às riscas
para forrar enxergões . Depois de eles regressarem , B illy caminhava até
ao ponto onde os cavalos estavam peados , abaixo dos domicilias , e ca­
valgava Nifío em pêlo até ao rio e metia o cavalo pelos baixios que a
escuridão ia cobrindo , no lugar onde vira a duefía nua a tomar banho , e
o cavalo bebia e erguia o focinho a escorrer água e ficavam os dois à
escuta do rio a passar e do som dos patos algures na água e , por vezes ,
do ranger ténue e agudo do voo dos grous que ainda passavam para sul ,
quilómetro e meio acima do rio . Cavalgou pela margem oposta ao
lusco-fusco e pôde ver, na vasa ribeirinha, entre os choupos , as pegadas
dos cavalos nos pontos onde Boyd passara e seguiu os rastos para ver
onde é que eles tinham ido e tentou adivinhar os pensamentos do cava­
leiro que deixara aqueles rasto s . Quando regressou a pé ao recinto , j á
era tarde , e cruzou a porta baixa e sentou-se n o catre onde o irmão j azia
a dormir.
Boyd , chamou .
O irmão acordou e voltou-se e ficou ali deitado à luz pálida da vela e
ergueu os olhos para ele . O quarto estava quente do calor do dia a coar­
-se das paredes de lama seca, e Boyd estava em tronco nu . Tirara as li­
gaduras do peito e tinha a pele mais branca do que o irmão alguma vez
se recordava e estava tão magro , com a fiada de costelas a destacar-se ,
crua, contra a palidez da pele , e , quando ele se voltou à luz avermelha­
da, B illy pôde ver-lhe o buraco no peito durante um breve instante e
desviou os olhos como um homem que , inadvertidamente , toma conhe­
cimento de alguma coisa secreta de que não tinha o mais pequeno direi­
to de se inteirar, para a qual não estava, nem de perto nem de longe ,
preparado . Boyd puxou para cima a coberta de musselina e recostou-se
e olhou para ele . O longo cabelo claro que ele já não cortava há muito
tempo derramado em volta dele e o rosto tão magro . O que é? pergun­
tou .
Fala comigo .
Deita-te .
A Travessia 307

Preciso que tu fales comigo .


' Tá tudo bem , fica descansado . ' Tá tudo bem .
Não ' tá nada.
Tu ' tás sempre preocupado com as coisas . Eu ' tou bem .
Eu sei que tu ' tás , disse B illy. Mas eu não ' tou .

Três dias depois , quando acordou de manhã e saiu de casa, eles


tinham-se ido embora. Ele caminhou até à última casa da fiada e olhou
para a base da encosta , na direcção do rio . O cavalo do pai dele , parado
no campo , ergueu a cabeça e olhou para ele e olhou ao longe , para a
estrada que descia até ao rio e para a ponte e para a estrada mais além .
Foi à casa buscar as suas coisas e selou o cavalo e partiu a cavalgar.
Não se despediu de ninguém. Parou o cavalo na estrada, para além dos
choupos junto ao rio , e espraiou o olhar para sul , para as montanhas , e
olhou para oeste , onde as nuvens de tempestade pairavam, separadas a
golpes de tesoura do horizonte delgado e escuro , e olhou para o céu
cianóide em cambiantes escuros , retesado e formando uma abóbada a
cobrir todo o México, onde o mundo vetusto se agarrava às pedras e aos
esporos dos seres vivos e residia no sangue dos homens . Voltou o cava­
lo e rompeu pela estrada para sul , desprovido de sombra no dia cinzen­
to , a cavalgar com a caçadeira fora do estoj o , atravessada sobre o arção
dianteiro da sela. É que a inimizade do mundo só naquele dia se tornara
evidente a seus olhos , e fria e sem remédio como se afigura certamente
a todos os que já não têm outra causa, exceptuando eles próprios , para
se lhe oporem .
Procurou-os durante semanas , mas encontrou somente sombras e
boatos . Encontrou o pequeno milagro em forma de coração no bolso do
relógio das calças de ganga e pescou-o de lá com o indicador e segurou­
-o na palma da mão e examinou-o durante muito , muito tempo . Caval­
gou para sul até chegar a Cuauhtémoc . Voltou para norte , para Namiqui­
pa, mas não encontrou ninguém que confirmasse conhecer a rapariga, e
seguiu para oeste até La Norteõa e até à linha de cumeeira das serranias
e emagreceu e ficou escaveirado nestas suas andanças e pálido da poei­
ra da estrada, mas nunca mais os tornou a ver. Parou o cavalo ao romper
do dia na encruzilhada de Buenaventura e ficou a ver as aves aquáticas
a sulcar os ares acima do rio e das lagunas solitárias , o movimento lí­
quido e sombrio das suas asas contra o nascer do Sol vermelho . Tornou
a romper para norte através das pequenas aldeolas de adobe da meseta,
passou por Alamo e por Galeana, lugarejos por onde já antes passara e
308 Cormac McCarthy

onde o seu regresso foi notado pelos poblanos , de tal forma que o seu
próprio jornadear começou a assumir a forma de uma lenda. Fazia frio
de noite nas planícies montesinhas naqueles primeiros dias de Dezem­
bro , e ele tinha poucos agasalhos com que se aquecer. Quando tornou a
entrar em Casas Grandes , já não comia há dois dias e passava da meia­
-noite e caía uma chuva fria .
B ateu durante muito tempo aos portões d o zaguán . Nas traseiras d a
casa, um cão ladrou . Por fim , uma luz acendeu-se .
Quando o mozo abriu o portão e olhou para o exterior e o viu ali pa­
rado à chuva, a segurar o cavalo , não pareceu surpreso . Perguntou pelo
irmão dele , e B illy disse que o irmão recuperara dos seus ferimentos
mas que desaparecera, e pediu desculpa pela hora tardia mas queria
saber se poderia falar com o senhor doutor. O mozo respondeu que a
hora pouco importava , já que o senhor doutor tinha morrido .
Ele não perguntou ao mozo quando é que o médico morrera nem qual
a causa da morte . Parado , de cabeça descoberta, segurava o chapéu com
ambas as mãos diante de si . Lo siento , disse .
O mozo fez que sim com a cabeça. Ficaram ali parados em silêncio e
então o rapaz pôs o chapéu e voltou-se e meteu um pé no estribo e içou­
-se para a sela e escarranchou-se no dorso do cavalo escuro e molhado
e baixou os olhos para o mozo . Disse que o médico fora um bom homem
e olhou para o fundo da rua , para as luzes da cidade , e tornou a olhar
para o mozo .
Nadie sabe lo que le espera en este mundo , comentou o mozo .
De veras , concordou o rapaz .
Acenou com a cabeça e tocou no chapéu e deu meia-volta e tornou a
afastar-se pela rua sombria abaixo .
IV

Atravessou a fronteira em Columbus , no Novo México . O guarda na


choupana do posto fronteiriço examinou-o fugazmente e fez-lhe sinal
com a mão para que passasse . Como se visse gente como ele demasia­
das vezes por aqueles dias para alimentar dúvidas acerca daquele des­
conhecido . B illy, mesmo assim, parou o cavalo . Sou americano , decla­
rou , ainda que não pareça .
Dá impressão que te depenaram lá por baixo , comentou o guarda.
Não voltei rico , isso é certo .
Deves de ter voltado pra não ficares de fora da coboiada.
Acho que foi isso . Só espero que me aceitem num lado qualquer.
Não precisas de te afligir a esse respeito . Não tens o pé chato , ou
tens?
O pé chato?
Pois . Se tiveres o pé chato , não te aceitam .
De que é que vossemecê ' tá praí a falar, raios?
' Tou a falar da tropa.
Da tropa?
Sim , poi s . Da tropa. Quanto tempo ' tiveste tu longe de casa, diz-me
cá?
Não faço ideia. Nem sequer sei em que mês ' tamos.
Não sabes o que aconteceu?
Não . O que é que aconteceu?
Co' a breca, rapaz . Este país ' tá em guerra.
Ele meteu pela longa estrada de argila batida que seguia em linha
recta para norte , até Deming . O dia estava frio e ele trazia a manta em
volta dos ombros . Tinha os joelhos a assomarem-lhe das calças e as
botas a desfazer-se aos bocados . Quanto aos bolsos , que lhe pendiam da
camisa por farrapos , ele há muito os arrancara e deitara fora, e as costas
310 Cormac McCarthy

da camisa, onde o tecido se rasgara em dois , estavam cosidas com fibra


de piteira, e o colarinho do casaco separara-se e o forro esfarrapado
erguia-se-lhe agora em volta do pescoço como uma espécie de renda
espalhafatosa, dando-lhe a aparência improvável de um janota arruina­
do . Os poucos carros que passavam davam-lhe todo o espaço que aque­
la estrada apertada permitia, e as pessoas voltavam o rosto para o olhar
através das volutas de poeira, como se ele fosse uma criatura absoluta­
mente exótica naquela paisagem . Uma criatura saída de uma época mais
antiga de que somente tinham ouvido falar. Uma criatura acerca da qual
tinham lido . Ele cavalgou todo o dia e rompeu à tardinha pelas colinas
no sopé das Florida Mountains e prosseguiu através do planalto até vir
o lusco-fusco e até virem as trevas . Naquela escuridão , cruzou-se com
um grupo de cinco cavaleiros em fila a seguir para sul , pelo caminho
por onde ele viera, e saudou-os em espanhol e desejou-lhes uma boa
noite , e eles saudaram-no por sua vez enquanto passavam, um por um,
nas suas vozes suave s . Como se a proximidade da treva e a dureza do
caminho tivessem feito deles aliados . Ou como se apenas ali se pudes­
sem encontrar aliados .
Entrou em Derning à meia-noite e percorreu a rua principal de um
extremo ao outro . Os cascos sem ferraduras do cavalo estralejavam
surdamente no asfalto em pleno silêncio . Fazia imenso frio . Estava tudo
fechado . Ele passou a noite na estação de camionetas , na esquina da
Spruce com a Gold, a dormir no chão de ladrilhos embrulhado no sera­
pe sujo, com o saco de lona das roupas a servir de almofada e o chapéu
manchado e sujo a cobrir-lhe o rosto . A sela enegrecida pelo suor estava
encostada à parede , juntamente com a caçadeira no seu estoj o . Ele dor­
miu de botas calçadas e levantou-se duas vezes durante a noite e saiu
para ver como estava o cavalo, que deixara amarrado a um candeeiro
público com a corda de laçar.
Na manhã seguinte , quando o café abriu , ele acercou-se do balcão e
perguntou à mulher onde é que uma pessoa ia para se alistar no exérci­
to . Ela disse que o posto de recrutamento era no arsenal , na South Silver
Street , mas que não lhe parecia que estivesse aberto tão cedo .
Muito obrigado , minha senhora, agradeceu ele .
Quer café?
Não , minha senhora. Não tenho dinheiro .
Sente-se , disse ela.
Sim, senhora.
Ele sentou-se num dos bancos , e ela trouxe-lhe uma caneca de porce­
lana branca cheia de café . Ele agradeceu-lhe e pôs-se a beber. Ao fim de
A Travessia 311

um certo tempo , ela veio do grelhador e pousou diante dele um prato de


ovos e toucinho fumado e um prato de torradas .
Não diga a ninguém onde é que arranjou essa comida, disse .
O posto de recrutamento estava fechado quando ele lá chegou , e ele
estava à espera nos degraus com dois rapazes de Deming e um terceiro
de um rancho nas redondezas quando o sargento chegou e destrancou a
porta.
Eles ficaram de pé diante da secretária dele . Ele examinou-os .
Qual de vocês é que ainda não fez dezoito anos , indagou .
Ninguém respondeu .
Normalmente , há mais ou menos um em cada quatro que ainda não
fez dezoito , e eu ' tou a ver quatro recrutas na minha frente .
Eu só tenho dezassete , disse Billy.
O sargento assentiu com a cabeça . Bom , disse . Vais ter de pedir à tua
mãezinha que assine por ti .
Eu não tenho mãezinha. Já morreu .
Então e o teu pai?
Também já morreu .
Bom, então vais ter de pedir ao parente mais chegado . Um tio ou
seja quem for. Ele tem de te passar uma declaração com assinatura re­
conhecida no notário .
Eu não tenho parente nenhum . Só tenho um irmão , e ele é mais novo
do que eu .
Onde é que tu trabalhas?
Não trabalho em lado nenhum.
O sargento recostou-se na cadeira. Donde é que tu és? perguntou .
Sou das bandas de Cloverdale .
De certeza que tens algum parente .
Não , pelo menos que eu saiba.
O sargento tamborilou com o lápis na mesa. Olhou pela janela . Olhou
para os outros rapazes .
Vocês querem todos alistar-se no exército? perguntou .
Eles entreolharam-se . Sim, senhor, disseram .
Não parecem lá muito convencidos .
Sim, senhor, repetiram eles .
Ele abanou a cabeça e rodou a cadeira e enfiou um impresso no rolo
da máquina de escrever.
Eu quero entrar prà cavalaria, disse o rapaz do rancho . O meu pai
combateu na cavalaria na última guerra.
312 Cormac McCarthy

Bom, rapaz , quando chegares a Fort Bliss logo lhes dizes que é isso
que queres fazer.
Sim, senhor. Preciso de levar a minha sela comigo?
Não precisas de levar nada de nada. Eles vão cuidar de ti como a tua
mãezinha.
Sim, senhor.
Assentou os nomes deles e as datas de nascimento e a filiação e as
moradas , um por um , e assinou quatro vales de refeição e entregou-lhos
e explicou-lhes como ir ter ao consultório onde deveriam fazer os exa­
mes médicos e deu-lhes os impressos necessários .
' Tou a contar que vocês ' tejam despachados e de regresso logo a se­
guir ao almoço , disse .
Então e eu ? perguntou B illy.
Tu esperas aqui . Os outros podem ir andando . Vemo-nos esta tarde ,
aqui mesmo .
Quando os outros saíram , o sargento estendeu a B illy os impressos e
o vale de refeição .
Olha pro rodapé dessa segunda folha, disse . Isso é um impresso de
autorização parental . Se te queres alistar no exército deste teu amigo ,
acho melhor trazeres-me esse papel com a assinatura da tua mãe . Se ela
tiver de descer lá do Céu pra assinar, eu cá por mim não me ralo nada.
Percebes o que te ' tou aqui a dizer?
Sim, senhor. Se bem me parece , quer que eu assine o nome da minha
falecida mãe nessa folha de papel .
Eu não disse isso . Ouviste-me a dizer isso?
Não , senhor.
Vá, toca a andar. Vemo-nos outra vez depois do almoço .
Sim, senhor.
Deu meia-volta e saiu . Havia gente parada à porta atrás dele , e
desviaram-se para o deixar passar.
Parham , chamou o sargento .
Ele voltou-se . Sim , senhor, disse .
Volta cá esta tarde , ouviste?
Sim, senhor.
Não tens mais nenhum lugar aonde ir.
Ele atravessou a rua e desamarrou o cavalo e montou e cavalgou
pela Silver Street acima e depois pela West Spruce , a segurar os papéis
na mão . Todas as ruas para este e para oeste tinham nomes de árvores ,
as para norte e para sul nomes de minerais . Amarrou o cavalo diante do
Manhattan Cafe , na diagonal em relação à estação das camionetas . Ao
A Travessia 313

lado situava-se a Victoria Land and Cattle Company, e dois homens


com os chapéus de abas estreitas e as botas de tacão baixo que os pro­
prietários rurais usavam encontravam-se parados no passeio a conver­
sar. Olharam-no quando ele passou e ele saudou-os com um aceno de
cabeça, mas eles não retribuíram .
Ele deslizou para o interior do cubículo e pousou os papéis na mesa
e olhou para a ementa. Quando a empregada se aproximou , ele começou
a pedir o prato de carne com legumes , mas ela disse que só começavam
a servir almoços às onze em ponto . Sugeriu que ele podia tomar o
pequeno-almoço .
E u já comi u m pequeno-almoço hoje.
Bom , não há nenhuma directiva municipal sobre quantos pequenos-
-almoços é que a pessoa pode tomar.
E qual é o tamanho máximo do pequeno-almoço que eu posso pedir?
Qual é o tamanho máximo que consegue comer?
Tenho um vale de refeição do posto de recrutamento .
Eu sei . 'Tou a vê-lo pousado acolá.
Posso pedir quatro ovos?
Diga-me só como é que os quer.
Ela trouxe-lhe o pequeno-almoço numa travessa oblonga de faiança,
com os quatro ovos estrelados bem passados e uma fatia de presunto
frito e papa de milho pilado com manteiga, e trouxe também um prato
de scones e uma pequena tigela de molho .
Se quiser mais alguma coisa, é só dizer, disse .
' Tá certo .
Quer uma arrufada?
Sim, senhora.
Quer que lhe traga mais café?
Sim , senhora.
Ergueu os olhos para ela. Tinha uns quarenta anos , cabelo preto e
dentes estragados , e fez-lhe um largo sorriso . Gosto de ver um homem
comer, disse .
Bom , disse ele . Tem aqui um que lhe deve encher as medidas a esse
respeito .
Quando acabou de comer, ficou sentado a beber o café e a examinar
o impresso que a mãe deveria assinar. Ficou ali sentado a examiná-lo e
a pensar no assunto e , ao fim de um certo tempo , perguntou à emprega­
da se lhe podia trazer uma caneta de tinta permanente .
Ela trouxe-lhe uma caneta e estendeu-lha. Não se esqueça de ma
devolver, pediu . Não é minha.
3 14 Cormac McCarthy

Eu não me esqueço .
Ela afastou-se para regressar para junto do balcão , e ele curvou-se
sobre o impresso e escreveu sobre a linha Louisa May Parham . A mãe
chamava-se Carolyn.
Quando saiu , os outros três rapazes vinham a caminhar pelo passeio
em direcção ao café . Conversavam uns com os outros como se fossem
amigos de longa data . Quando o viram , pararam de conversar, e ele fa­
lou com eles e perguntou-lhes como estavam e eles responderam que
estava tudo bem e entraram no café .
O médico chamava-se M oir, e o consultório era afastado dali , n a West
Pine . Quando lá chegou , havia meia dúzia de pessoas à espera, a maio­
ria homens ainda novos e rapazes sentados com os impressos de recru­
tamento na mão . Ele deu o nome à enfermeira atrás da secretária e
sentou-se numa cadeira e esperou juntamente com os outros .
Quando a enfermeira finalmente o chamou pelo nome , ele tinha ador­
mecido e acordou com um sobressalto e olhou em volta , sem saber onde
estava.
Parham , repetiu ela.
Ele pôs-se de pé . Sou eu , disse .
A enfermeira estendeu-lhe um impresso , e ele ficou de pé no corredor
enquanto ela lhe cobria um olho com um cartão e o mandava ler o painel
na parede . Ele leu tudo até à última letra, e ela pôs à prova o outro olho .
O meu amigo tem bons olhos , comentou .
Sim, senhora, disse ele . Sempre tive .
Poi s , acredito , comentou ela. Não é costume as pessoas começarem
com olhos ruins e depois a vista ir melhorando .
Quando ele entrou no consultório , o médico mandou-o sentar numa
cadeira e examinou-lhe os olhos com uma lanterna eléctrica e meteu-lhe
um instrumento frio no ouvido e olhou lá para dentro . Mandou-o desa­
botoar a camisa.
Vieste até cá a cavalo , disse .
Sim, senhor.
E de onde é que vieste .
Do México .
Compreendo . Tens algum historial de doenças na família?
Não , senhor. ' Tão todos mortos .
Compreendo , disse o médico .
Encostou o cone frio do estetoscópio ao peito do rapaz e pôs-se à
escuta. Percutiu-lhe o peito com as pontas dos dedos . Tornou a encostar­
-lhe o estetoscópio ao peito e escutou de olhos fechados. Endireitou-se
A Travessia 315

e tirou o s auscultadores dos ouvidos e recostou-se n a cadeira. Tens um


sopro no coração , declarou .
O que é que isso significa?
Significa que não te vais alistar no exército .
Ele trabalhou para um estábulo situado junto à estrada nacional du­
rante dez dias e dormiu numa baia até ter dinheiro para roupas e para o
bilhete de camioneta para El Paso e deixou o cavalo com o dono do
terreno e partiu para leste com um blusão de lona grossa, novinho em
folha, e uma camisa azu l , também nova, com botões de madrepérola.
Estava um dia frio e ventoso em El Paso . Ele procurou o posto de
recrutamento , e o funcionário preencheu os mesmos impressos e ele
pôs-se na fila com um certo número de homens e despiram-se e mete­
ram as roupas num cesto e receberam uma ficha de latão com um nú­
mero gravado e depois ficaram em fila, nus , de papéis na mão .
Quando ele chegou diante da secretária, entregou ao médico o seu
impresso , e o médico examinou-lhe o interior da boca e dos ouvidos .
Em seguida, encostou-lhe o estetoscópio ao peito . Mandou-o virar-se e
encostou-lhe o estetoscópio às costas e ficou à escuta. Em seguida,
auscultou-lhe novamente o peito . Por fim , pegou num carimbo que se
encontrava sobre a secretária e carimbou o impresso de Billy e assinou­
-o e pegou na folha de papel e entregou-lha.
Não te posso dar como apto , declarou .
O que é que se passa comigo .
Tens uma irregularidade nos teus batimentos cardíacos .
O meu coração não tem problema nenhum.
Tem , sim .
Vou morrer?
Um dia, claro . Provavelmente , não é tão grave como isso . Mas é o
suficiente para não poderes entrar para o exército .
O senhor doutor podia-me dar como apto , se quisesse .
Podia . Mas não o vou fazer. Fosse como fosse , haviam de acabar por
descobrir, lá mais para diante . Mais cedo ou mais tarde .
Ainda não era meio-dia quando ele saiu do posto e desceu a San
Antonio Street. Desceu a South El Paso Street até ao Splendid Cafe e
comeu um bife com legumes e regressou à estação das camionetas e
estava de regresso a Deming antes do anoitecer.
Na manhã seguinte , quando avançou pela coxia central do estábulo ,
Mr Chandler estava a remexer entre adereços na casa dos arreios .
Ergueu os olhos. Bom, disse . Alistaste-te no exército?
Não , senhor, não consegui . Recusaram-me .
316 Cormac McCarthy

Bom, lamento muito .


Sim, senhor. Também eu .
O que é que tencionas fazer?
Vou tentar em Albuquerque , a ver se pega.
Rapaz , eles têm montes e montes de postos de recrutamento espalha­
dos por esse país fora . Um homem podia fazer carreira a tentar alistar-se
em todos .
Eu sei . Vou só tentar mais uma vez .
Trabalhou até ao fim da semana e recebeu o salário e apanhou o au­
tocarro na manhã de domingo . A viagem demorou o dia inteiro . A noite
caiu mesmo a norte de Socorro , e o céu estava repleto de bandos de aves
aquáticas que descreviam círculos e baixavam do céu ao encontro das
terras pantanosas ribeirinhas , a leste da estrada nacional . Ele contemplou­
-as com o rosto colado ao vidro frio e cada vez mais escuro da janela.
Apurou o ouvido para lhes distinguir os clamores , mas não os conseguia
ouvir acima do zumbido da camioneta.
Dormiu no YMCA e já se encontrava diante do posto de recrutamen­
to quando o abriram de manhã e antes do meio-dia já estava na camio­
neta, de regresso ao sul . Perguntara ao médico se havia algum medica­
mento que pudesse tomar, mas o médico disse-lhe que não . Perguntou
se havia alguma coisa que a pessoa pudesse tomar para fazer o coração
funcionar bem só durante uns tempos .
De onde és tu , perguntou-lhe o médico .
De Cloverdale , no Novo México .
Em quantos postos de recrutamento diferentes já te tentaste alistar?
Com este é o terceiro .
Rapaz , mesmo que tivéssemos um médico surdo , não o íamos pôr a
auscultar os recrutas com um estetoscópio . Acho que precisas de voltar
para casa e pronto .
Não tenho casa pra onde ir.
Julguei que tinhas dito que és de qualquer-coisa-dale . Como é que era
o nome?
Cloverdale .
Cloverdale .
Eu era de lá, mas já não sou . Não tenho pra onde ir. Acho que preci­
so de entrar pro exército . Já que vou morrer, seja lá como for, porque é
que não fazem uso de mim? Eu não tenho medo .
Quem me dera poder ajudar-te , disse o médico . Mas não posso . Não
me cabe a mim decidir. Tenho de cumprir os regulamentos , como toda
a gente . Recusamos homens como deve ser todos os dias .
A Travessia 317

Sim, senhor.
Quem é que te disse que ias morrer?
Não sei . Também nunca me disseram que não ia.
Bom, comentou o médico . Nunca te poderiam garantir uma coisa des-
sas , mesmo que tivesses um coração rijo como o de um cavalo . Pois não?
Não , senhor. Parece-me que não .
Vai-te lá embora.
Como?
Vai-te lá embora .
Quando o autocarro parou no parque de estacionamento , nas traseiras
da estação de camionetas de Deming , eram três em ponto da madruga­
da. Ele caminhou até à casa de Chandler e entrou na casa dos arreios e
pegou na sua sela e dirigiu-se para a baia e conduziu Nifio para a coxia
central e atirou-lhe o cobrejão para cima do dorso . Estava muito frio . O
estábulo era feito de tábuas de carvalho pregadas , e ele via o bafo do
cavalo a deslizar sobre as ripas , iluminado pela única lâmpada amarela
no exterior. O palafreneiro Ruiz surgiu e parou à porta, com o cobertor
a envolver-lhe os ombros . Ficou a ver enquanto Billy selava o cavalo .
Perguntou-lhe se conseguira alistar-se no exército .
No , respondeu Billy.
Lo siento .
Yo también .
Adónde va ?
No sé.
Regresa a Mexico ?
No .
Ruiz fez que sim com a cabeça. Buen viaje , disse .
Gracias .
Conduziu o cavalo à brida para o exterior, ao longo da coxia central
do estábulo e através da porta, e montou e afastou-se .
Cavalgou através da povoação e meteu pela estrada velha para sul ,
para Hermanas e Hachita. O cavalo tinha ferraduras novas e respirava
saúde , graças aos cereais que lhe tinham dado a comer, e ele cavalgou
até ao nascer do Sol e cavalgou o dia inteiro e cavalgou até o Sol se pôr
e continuou a cavalgar pela noite dentro . Dormiu num planalto , embru­
lhado na manta, e levantou-se antes da alvorada, percorrido por cala­
frios , e seguiu viagem . Abandonou a estrada logo a oeste de Hachita e
rompeu pelas faldas das montanhas Little Hatchet e deparou com a li­
nha férrea vinda da fundição da Phelps Dodge , a sul , e atravessou os
carris e alcançou o lago salgado pouco profundo ao pôr do Sol .
318 Cormac McCarthy

Havia água acumulada nas planícies até onde a vista dele alcançava,
e o crepúsculo na água convertera-a num lago de sangue . Ele tentou
picar o cavalo para diante , mas o cavalo não conseguia avistar a mar­
gem oposta do lago e fincou as patas no chão e recusou-se a avançar.
Ele deu meia-volta e meteu para sul ao longo das planuras . A montanha
Gillespie jazia coberta de neve e , mais além, os picos das Animas
erguiam-se , banhados pelos derradeiros raios de sol daquele dia, com a
neve muito vermelha nos rincões . E , lá muito a sul , as cordilleras páli­
das e antigas do México a confinar o mundo visível . Ele chegou perto
dos vestígios de uma velha cerca e desmontou e retorceu os grampos
para os soltar de algumas das estacas esguias e ateou uma fogueira e
sentou-se com as botas cruzadas diante de s i , a fitá-la. O cavalo estava
parado nas trevas , na orla do lume , a remirar desoladamente o terreno
salgado e árido . A culpa é tua , disse-lhe o rapaz . Não tenho pena nenhu­
ma de ti .
Na manhã seguinte atravessaram o lago , liso e pouco profundo , e
antes do meio-dia chegaram à velha estrada de Playas e seguiram-na
para oeste até ao seio das montanhas . Havia neve na garganta e nem um
rasto a sulcá-la. Desceram até ao lindo vale das Animas e meteram pela
estrada que descia para sul , vinda de Animas , e chegaram ao rancho da
família Sanders cerca de duas horas depois do anoitecer.
Ele chamou da cancela, e a rapariga surgiu no alpendre .
É o B illy Parham ! gritou ele .
Quem?
O B ill y Parham .
Anda daí, B illy Parham ! bradou ela.
Quando ele entrou na sala de estar, Mr S anders pôs-se de pé . Estava
mais velho , mais pequeno , mais frágil . Entra aqui em casa, disse .
' Tou suj íssimo pra entrar.
Vá, anda, entra lá. Julgámos que tinhas morrido .
Não , senhor. Ainda não morri , por enquanto .
O velho apertou-lhe a mão e segurou-lha. Olhava por cima do ombro
dele , para a porta. Onde é que ' tá o Boyd? perguntou .
Comeram na sala de jantar. A rapariga serviu-os e depoi s sentou-se .
Comeram rosbife com batatas e feijão , e a rapariga passou-lhe um prato
com pão coberto por um pano de linho , e ele tirou uma fatia de broa de
milho e barrou-a com manteiga. Isto ' tá óptimo , caramba, comentou .
Ela é uma bela cozinheira, disse o velho . Só espero que não decida
casar-se e deixar-me aqui sozinho . Se eu tivesse de cozinhar a minha
comida, até os gatos mudavam de casa.
A Travessia 319

Ora essa, avô , interveio a rapariga.


Eles também queriam dar o Miller como inapto , disse o velho . Por
causa da perna dele . Aceitaram-no lá em Albuquerque . Dá-me ideia que
os recrutam por lá assim a granel .
A mim não me aceitaram . Vão metê-lo na cavalaria?
Não me parece . Nem me parece que vá haver cavalaria nenhuma.
Ele olhou para o lado oposto da mesa , a mastigar devagar. À luz
amarela do candelabro de vidro prensado , as velhas fotografias e retra­
tos acima do aparador pareciam artefactos recuperados de alguma anti­
ga mudança. Até o velho parecia distante deles . Dos edifícios em tons
de sépia, dos velhos telhados de tabuinhas . Das pessoas a cavalo .
Homens sentados entre cactos de papelão num estúdio de fotógrafo , de
fato e gravata, com as pernas das calças atafulhadas dentro dos canos
das botas e as espingardas apoiadas na vertical diante deles . Os vestidos
antiquados das mulheres. A expressão cautelosa ou acossada nos seus
olhos . Como gente fotografada sob ameaça de armas .
Aquele é o John Slaughter naquele retrato na ponta, acolá.
Qual deles?
Aquele último , em cima, à direita , por baixo do certificado do Miller.
Tiraram aquela fotografia em frente da casa dele .
Quem é a rapariguita índia?
É a Apache May. Trouxeram-na dum acampamento de índios que eles
atacaram , um bando de apaches que andavam a roubar gado . Mil oito e
noventa e cinco ou seis, algures por aí. Ele é capaz de ter matado alguns
deles . Voltou com ela, que era um bebezinho de colo . Trazia um vestido
feito dum cartaz eleitoral , e ele acolheu-a e criou-a como se fosse sua
filha. Era maluquinho por ela . A cachopa morreu num incêndio , não
muito tempo depois de lhe terem tirado essa fotografia.
O senhor conheceu-o?
Conheci-o , sim . Trabalhei pra ele uns tempos .
E o senhor alguma vez matou u m índio?
Não . ' Tive quase , uma ou duas vezes . Uns índios que trabalhavam
pra mtm .
Quem é aquele montado na mula?
É o James Autry. 'Tava-se nas tintas , montava qualquer pileca.
E quem é aquele com o puma no cavalo de carga?
O velho abanou a cabeça . Sei o nome dele , disse . Mas não o consigo
dizer.
Bebeu o resto do café e ergueu-se e foi buscar os cigarros e um cin­
zeiro do aparador. O cinzeiro era da Feira Mundial de Chicago e era
320 Cormac McCarthy

feito de metal fundido e dizia 1 83 3 - 1 933 . Dizia Um Século de Progresso .


Vamos aqui pra dentro , disse ele .
Entraram na sala de estar. Havia um harmónio de carvalho apainelado
contra a parede , junto à porta que eles transpuseram , vindos da sala de
jantar. Com um napperon de renda por cima. Uma fotografia emoldura­
da, pintada à mão , da mulher do velho em jovem.
Essa coisa não toca, disse o velho . Seja como for, j á não há ninguém
que a saiba tocar.
A minha avó costumava tocar um destes órgãos , disse B illy. Na igreja.
Dantes , as mulheres tocavam música. Agora, a gente liga o gramofo­
ne e pronto .
Ele curvou-se e abriu a portinhola do fogão com o atiçador e avivou
o lume e enfiou lá dentro mais uma acha e fechou a porta.
Sentaram-se e o velho contou-lhe histórias dos tempos em que an­
dava a laçar vacas no México , ainda homem novo , e do raide de Villa
sobre Columbus , no Novo México, em mil e novecentos e dezasseis , e
dos grupos armados chefiados por xerifes a perseguir malfeitores em
fuga para a fronteira até ao Tacão da Bota do Novo México , e da seca
e da mortandade de gado em oitenta e seis e de como ele e outros ti­
nham conduzido para norte os bois de raça corriente comprados por
tuta e meia, levando as manadas para fora daquela terra devastada
através dos planaltos ressequidos . Bois tão esquálidos que o velho
contou que à tardinha, ao passarem diante do Sol onde este chamej ava
sobre a orla ocidental do deserto , quase se conseguia ver à transparên­
cia deles .
O que é que tens na ideia fazer? perguntou .
Não sei . Vou tentar arranjar trabalho num lado qualquer, acho eu .
Nós aqui ' tamos quase a fechar as portas .
Sim, senhor. Eu não ' tava a pedir.
Esta guerra, comentou o velho . Não há modo de perceber o que isto
vai dar.
Pois . Também me parece que não .
O velho tentou convencê-lo a passar ali a noite , mas ele recusou .
Encontravam-se parados no alpendre . Estava frio , e a pradaria em volta
estendia-se num profundo silêncio. O cavalo lançou-lhes um relincho da
cancela.
Não te fazia diferença , partires logo ao amanhecer, disse o velho .
Eu sei . Preciso de ir andando , só isso .
Bom.
Gosto de cavalgar de noite , seja como for.
A Travessia 32 1

Sim, disse o velho . Eu sempre gostei . Toma cuidado , rapaz .


Sim, senhor. Não se aflija. Muito obrigado .

Acampou nessa noite na vasta planície das Animas , e o vento soprava


na erva e ele dormiu no chão, embrulhado no serape e na manta de lã que
o velho lhe tinha dado . Ateou uma pequena fogueira, mas tinha pouca le­
nha e a fogueira apagou-se de noite e ele acordou e ficou a ver as estrelas
invernais a perderem as forças e a precipitarem-se para a morte nas trevas .
Ouvia o cavalo a dar passos para cá e para lá, de patas peadas , e ouvia a
erva a rasgar-se suavemente na boca do cavalo e ouvia-o a respirar ou a
agitar a cauda e viu lá longe , a sul , para além das montanhas Hatchet, o
clarão dos relâmpagos sobre o México, e percebeu que não o iriam sepul­
tar naquele vale , mas nalgum lugar distante, entre estranhos , e olhou para
o ponto onde a erva corria ao vento, à luz fria das estrelas , como se fora a
terra em si a precipitar-se impetuosamente , e disse em voz baixa antes de
tomar a adormecer que a única coisa que sabia de entre todas as coisas que
as pessoas afirmavam saber era que não havia certezas acerca de nada. Não
apenas acerca da guerra que aí vinha. Acerca de nada, absolutamente nada.
Foi trabalhar para o rancho Hashknives , só que já não era o
Hashknives . Mandaram-no para um acampamento nos limites do ran­
cho , junto ao Little Colorado . Em três meses, viu outros três seres hu­
manos . Quando lhe pagaram , em Março , foi até ao posto dos correios ,
em Winslow, e mandou uma ordem de pagamento a Mr Sanders para
saldar a dívida de vinte dólares que tinha com ele e foi até um bar na
First Street e sentou-se num banco e empurrou o chapéu para trás com
o polegar e pediu uma cerveja.
Que género de cerveja queres? perguntou o barman .
Qualquer uma. Tanto faz .
Não tens idade que chegue pra beber cerveja.
Então porque é que me perguntou que género de cerveja eu queria?
Tanto faz , porque eu não te vou servir.
Que género de cerveja ' tá ele a beber?
O homem no extremo do balcão , que ele indicara com um aceno de
cabeça, remirou-o . Isto é cerveja à pressão , rapaz , disse . Diz só que
queres uma cerveja à pressão .
Sim, senhor. Muito obrigado .
Não tens de quê .
Ele caminhou rua acima e entrou no bar seguinte e sentou-se num
banco . O barman acercou-se em passo vagaroso e parou diante dele .
322 Cormac McCarthy

Dê-me uma cervej a à pressão .


O outro afastou-se ao longo do balcão e verteu a cervej a para dentro
de uma caneca redonda de vidro e regressou e pousou-a no balcão . B illy
colocou um dólar sobre o tampo , e o barman dirigiu-se à caixa regista­
dora e fez retinir a gaveta e regressou e espalmou setenta e cinco cênti­
mos sobre o tampo do balcão .
Donde é que tu és? perguntou .
Sou das bandas de Cloverdale . Tenho andado a trabalhar prà Hash-
knives .
Já não há Hashknives nenhum. Os B abbitts venderam-no .
Pois . Eu sei .
Venderam-no a um criador de ovelhas .
Pois .
O que é que tu achas disso?
Não sei .
Pois eu sei .
B illy olhou ao longo do balcão . Estava vazio , exceptuando um solda­
do que parecia ébrio . O soldado fitava-o .
Mas não lhe chegaram a vender o ferro , pois não? prosseguiu o bar-
man .
Não .
Não . Portanto , já não há Hashknives nenhum.
Queres tirar à sorte pra ver quem mete a moeda na jukebox? pergun-
tou o soldado .
Billy olhou para ele . Não , respondeu . Não ' tou interessado .
Então fica aí sentado .
É o que eu tenciono fazer.
Há algum problema com a cerveja? atirou o barman .
Não . Acho que não . Costuma receber muitas queixas?
Só reparei que não ' tás a bebê-la, mais nada.
B illy olhou para a cerveja. Olhou ao longo do balcão . O soldado
voltara-se ligeiramente e estava sentado com uma mão no joelho . Como
se hesitasse em levantar-se ou não .
Só pensei que a cerveja talvez tivesse algum problema , insistiu o
barman .
Bom, não me parece que tenha, disse B illy. Mas se tiver eu aviso-o .
Tens um cigarro? perguntou o soldado .
Não fumo .
Não fumas .
Não .
A Travessia 323

O barman pescou um maço de Lucky Strike do bolso da camisa e


depositou-o com um gesto vigoroso sobre o balcão e fê-lo deslizar até
junto do soldado . Ora aí ten s , soldado , disse .
Obrigado , agradeceu o militar. Sacudiu o maço até um cigarro asso­
mar na vertical e puxou-o com a boca e tirou um isqueiro do bolso e
acendeu o cigarro e pousou o isqueiro sobre o balcão e fez deslizar o
maço de cigarros novamente para junto do barman . O que é que tens aí
no bolso? perguntou .
Com quem é que ' tás a falar? ripostou B illy.
O soldado soprou fumo ao longo do balcão . 'Tou a falar contigo ,
disse .
Bom, disse B illy. Acho que ninguém tem nada que ver com o que eu
tenho no meu bolso .
O soldado não respondeu . Continuou sentado , a fumar. O barman
estendeu o braço e pegou no maço pousado no balcão e tirou um cigar­
ro e acendeu-o e tomou a guardar o maço no bolso da camisa. Ficou ali
de pé , encostado ao expositor traseiro , de braços cruzados e com o ci­
garro fumegante entre os dedos . Ninguém falou . Pareciam estar à espe­
ra de que alguém chegasse .
Sabes que idade tenho? perguntou o barman .
B illy olhou para ele . Não , disse . Como é que eu havia de saber a sua
idade?
Vou fazer trinta e oito anos em Junho . No dia catorze de Junho .
B illy não respondeu .
E é por isso que não ' tou de uniforme .
B illy olhou para o soldado . Este continuava sentado , a fumar.
Tentei alistar-me , prosseguiu o barman . Tentei mentir e dar-lhes uma
idade falsa, mas eles não foram na minha cantiga.
Ele não quer saber, interveio o soldado . ' Tá-se nas tintas pro unifor­
me , é o que é .
O barman puxou uma fumaça do cigarro e soprou o fumo n a direcção
do balcão . Aposto que já não se ' tava nas tintas se fosse um uniforme
com aquele sol nascente no colarinho e eles viessem a marchar pela
Second Street abaixo em formação cerrada. Aposto que nessa altura já
ele não se ' tava nas tintas .
B illy pegou na caneca de cerveja e bebeu todo o conteúdo e tomou a
pousá-la no balcão e pôs-se de pé e puxou o chapéu para baixo e olhou
uma derradeira vez para o soldado e deu meia-volta e saiu para a rua.
Trabalhou mais nove meses para o rancho Aja e , quando partiu , tinha
um cavalo de carga que adquirira por troca e um saco-cama como deve
324 Cormac McCarthy

ser e uma manta acolchoada e uma velha espingarda Stevens tiro a tiro
de calibre 3 2 . Cavalgou para sul pelos planaltos a oeste de Socorro e
cavalgou através de Magdalena e cruzou as planícies de Saint Augustine .
Quando entrou em Silver City, estava a nevar, e hospedou-se no Hotel
Palace e sentou-se no quarto , a ver a neve cair na rua. Não se via nin­
guém. Saiu ao fim de um certo tempo e desceu a Bullard Street até à
loja de rações para animais , mas estava fechada. Encontrou uma merce­
aria e comprou seis embalagens de cereais para o pequeno-almoço e
regressou e deu os cereais aos cavalos e pôs os animais no quintal , nas
traseiras do hotel , e comeu o jantar na sala de refeições do hotel e subiu
para o quarto e meteu-se na cama . Quando desceu , na manhã seguinte ,
foi o único a tomar o pequeno-almoço e , quando saiu para tentar com­
prar roupas , todas as lojas estavam fechadas . O céu estava cinzento e
fazia frio nas ruas e um vento ruim soprava do norte e não se via nin­
guém . Ele tentou abrir a porta do bazar, por ter visto uma luz acesa lá
dentro , mas o bazar também estava fechado . Quando regressou ao hotel ,
perguntou ao recepcionista se era domingo , e o recepcionista respondeu
que era sexta-feira .
Ele olhou para a rua pela vidraça. Não há nenhuma loja aberta, disse .
É dia de Natal , disse o recepcionista . Não há lojas abertas no dia de
Natal .
Ele vagueou até ao enclave no Norte do Texas e trabalhou durante a
maior parte do ano seguinte para o rancho Matadors e trabalhou para o
T Diamond . Vagueou para sul e trabalhou por curtos períodos aqui e
além, por vezes não mais de uma semana . Na Primavera do terceiro ano
da guerra já quase não havia uma casa rural em toda aquela região que
não tivesse uma estrela dourada na janela . Ele trabalhou até Março num
pequeno rancho nos arrabaldes de Magdalena, no Novo México , até que
um dia recebeu o salário e selou o cavalo e amarrou o saco-cama ao
dorso do cavalo de carga e tornou a viajar para sul . Atravessou a última
estrada de asfalto mesmo a leste de Steins e, dois dias depois , cavalgou
até à cancela do SK B ar. Era um dia fresco de Primavera, e o velho
estava sentado no alpendre , na sua cadeira de baloiço , com o chapéu na
cabeça e uma Bíblia no regaço . Curvara-se para diante , tentando ver
quem seria. Como se o meio metro adicional de proximidade lhe permi­
tisse focar a imagem do cavaleiro . Parecia mais velho e mais frágil ,
muito debilitado na sua aparência nos dois anos decorridos desde que
ele o vira pela última vez . B illy chamou-o pelo nome e o velho disse-lhe
que desmontasse , e ele obedeceu . Quando chegou à base dos degrau s ,
parou com uma mão n o balaústre de tinta estalada e ergueu o s olhos
A Travessia 325

para o velho . Este estava sentado com a Bíblia fechada sobre um dedo ,
para marcar a página. É s tu , Parham? perguntou .
Sim , senhor. Sou o Billy.
Subiu os degraus e tirou o chapéu e apertou a mão ao velho . Os olhos
do velho tinham desbotado e exibiam agora uma tonalidade mais clara
de azul . Ele segurou a mão de Billy durante muito tempo . Deus te aben­
çoe , disse . Tenho pensado imenso em ti . Senta-te aqui, que é pra poder­
mos conversar um bocado .
Ele puxou uma das velhas cadeiras com assento de palhinha e sentou­
-se e pôs o chapéu em cima do joelho e olhou ao longe , por sobre os
pastos , em direcção às montanhas , e olhou para o velho .
Calculo que já soubesses do Miller, disse o velho .
Não , senhor. Não tenho recebido muitas notícias .
Foi morto no atol de Kwajalein .
Lamento imenso saber disso .
Temos sofrido bastante por estas bandas . B astante .
Permaneceram calados . Soprava uma brisa vinda do Sul . Um vaso de
espargo-de-jardim suspenso do beiral do alpendre , no canto , baloiçava
suavemente , e a respectiva sombra oscilava sobre as tábuas do soalho ,
vagarosa e aleatória e descentrada.
O senhor tem passado bem? perguntou Billy.
Ah, eu ' tou bem . Fui operado às cataratas no Outono passado , mas cá
vou andando . A Leona fez-me a desfeita de se casar. Agora o marido foi
prà guerra e ela mora em Roswell , não sei pra quê . Arranjou um empre­
go . Tentei meter-lhe juízo naquela cabeça, mas já sabes como são as
coisas .
Pois sei .
A verdade é que eu já nem devia de aqui andar, sequer.
Espero que o senhor viva pra sempre .
Não me desejes uma coisa dessas .
Recostara-se e fechara a B íblia. Aquela chuva vem pra estas bandas ,
comentou .
Sim, senhor. Creio que vem mesmo .
Consegues cheirá-la?
Consigo , sim .
Sempre gostei do cheiro .
Ficaram calados . Ao fim de um certo tempo , B illy perguntou :
Consegue cheirá-la?
Não .
Ficaram calados.
326 Cormac McCarthy

Que notícias tens tu do Boyd? perguntou o velho .


Não tive notícias . Ele acabou por não voltar do México . Ou , se vol­
tou , nunca me chegou aos ouvidos .
O velho ficou em silêncio durante muito tempo . Observava o hori­
zonte que ia escurecendo , a sul .
Uma vez vi chover numa estrada de asfalto no Arizona, contou . Chovia
dum lado da linha branca ao longo dum quilómetro inteiro e o outro lado
'tava seco que nem um osso . Mesmo ao longo da linha mediana.
Acredito , disse B illy. Já vi chover dessa maneira.
Era uma coisa muito estranha de se ver.
Já vi trovejar no meio dum nevão , uma vez , disse Billy. Trovões e
relâmpagos . Não se conseguiam ver os relâmpagos . Ficava tudo ilumi­
nado à nossa volta de repente , branco que nem algodão .
Um mexicano contou-me isso uma vez , disse o velho . Fiquei sem
saber se havia de acreditar nele ou não .
Foi no México que eu vi isto .
Talvez isso não aconteça nesta terra.
Billy sorri u . Cruzou as botas sobre as tábuas do alpendre diante de si
e contemplou a paisagem .
Gosto dessas botas , comentou o velho .
Comprei-as em Albuquerque .
Têm ar de ser bem boas .
Espero bem que sejam . Paguei bom dinheiro por elas .
'Tá tudo pela hora da morte , com a guerra e isso . As poucas coisas
que se encontram à venda.
As rolas aproximavam-se em voo , cruzando o pasto em direcção à
lagoa para o gado , a oeste da casa.
Não me fizeste a desfeita de te casares , não? perguntou o velho .
Não , senhor.
As pessoas detestam ver um homem solteiro . Não sei que mal é que
tem . Costumavam-me moer o juízo pra eu casar de novo , e eu já tinha
quase sessenta anos quando a minha mulher morreu . A minha cunhada,
principalmente . Eu já tinha tido ao meu lado a melhor companheira que
alguma vez existiu . Não ia ter uma sorte assim duas vezes seguidas .
Não , senhor. Era pouco provável .
Lembro-me do meu velho tio Bud Langford que costumava dizer
assim às pessoas: Só mesmo uma mulher do outro mundo pra me con­
vencer a aturar uma mulher todos os dias da minha vida. ' Tá claro que
ele também nunca se casou . Por isso , não sei como é que tinha tantas
certezas .
A Travessia 327

Uma coisa devo dizer, deixam-me completamente às aranhas .


Quem .
As mulheres .
Bom, disse o velho . Pelo menos não deste em mentiroso .
Também não valia de nada mentir.
Porque é que não metes os cavalos no estábulo antes que os teus
aprestos se molhem todos acolá fora.
Se calhar é melhor eu ir andando .
Não te vais assim embora à chuva. Daqui a um pedacinho vamos
jantar aqui em casa. Tenho aí uma mexicana que cozinha pra mim .
Bom. Se calhar preciso de meter pés ao caminho enquanto não perco
o ânimo .
Fica aqui comigo e jantamos juntos . Homessa, ainda agora aqui che­
gaste .
Quando ele regressou do estábulo , o vento soprava com mais força,
mas ainda não começara a chover.
Eu lembro-me daquele cavalo , disse o velho . Era o cavalo do teu pai .
Era , sim , senhor.
Ele comprou-o a um mexicano . Dizia que , quando o comprou , o ca­
valo não sabia uma palavra de inglês .
O velho ergueu-se a custo da cadeira de baloiço e entalou a B íblia
debaixo do braço . Até mesmo a pessoa levantar-se duma cadeira passa
a ser um esforço . Até custa a crer, não achas?
Parece-lhe que os cavalos entendem o que as pessoas dizem?
Nem sei •
ao certo se a maioria das pessoas entende . Vamos entrar. Ela
já chamou duas vezes .
Ele levantou-se na manhã seguinte antes do romper do dia e atraves­
sou a casa mergulhada no escuro até à cozinha, onde havia uma luz . A
mulher estava sentada à mesa da cozinha, a ouvir um velho rádio de
madeira que tinha a forma de uma mitra de bispo . Estava a ouvir um
posto que emitia de Ciudad Juárez e , quando ele surgiu à porta, desligou
o aparelho e olhou para ele .
Está bien , disse ele . No tiene que apagarlo .
Ela encolheu os ombros e pôs-se de pé . Disse que o programa já tinha
acabado , fosse como fosse . Perguntou-lhe se ele queria tomar o
pequeno-almoço , e ele disse que sim.
Enquanto ela lho preparava , ele foi até ao estábulo e escovou os ca­
valos e limpou-lhes os cascos e depois selou Niõo e deixou o fatigo
solto e prendeu as velhas cangalhas Visalia ao dorso do cavalo de carga
e amarrou a manta acolchoada e regressou à casa. Ela tirou o pequeno-
328 Cormac McCarthy

-almoço dele do forno e pousou-o na mesa. Cozinhara ovos e presunto


e tortillas de farinha de trigo e feijão , e pousou os pratos diante dele e
serviu-lhe café .
Quiere crema ? perguntou .
No gracias . Hay salsa ?
Ela pousou a salsa junto ao braço dele , num pequeno molcajete de
rocha lávica.
Gracias .
Ele pensou que ela iria sair da cozinha , mas não . Ficou parada a vê-lo
comer.
Es pariente del sefíor Sanders ? perguntou .
No . Él era amigo de mi padre .
Ele ergueu os olhos para ela. Siéntate , disse . Puede sentarse .
Ela executou um pequeno gesto com a mão , cujo significado ele não
entendeu . Continuou parada como antes .
Su salud no es buena , comentou ele .
Ela concordou que não . Disse que ele tinha tido problemas nos olhos
e que ficara muito triste por causa do sobrinho que tinha sido morto na
guerra. Conoció a su sobrino ? perguntou .
Sí. Y usted?
Ela disse que não conhecera o sobrinho . Disse que , quando fora tra­
balhar para aquela casa, o sobrinho já estava morto . Disse que tinha
visto uma fotografia dele , e que ele era muito bonito .
Ele comeu o resto dos ovos e rapou o prato com a tortilla e comeu a
tortilla e bebeu o resto do café e limpou a boca e ergueu o rosto e
agradeceu-lhe .
Tiene que hacer un viaje largo? perguntou ela.
Ele ergueu-se e pôs o guardanapo sobre a mesa e pegou no chapéu ,
que se encontrava sobre a outra cadeira, e pô-lo na cabeça. Respondeu
que , com efeito , tinha uma longa viagem pela frente . Disse que não
sabia como iria ser o final dessa viagem, ou sequer se iria perceber que
se tratava do final quando lá chegasse , e pediu-lhe em es p anhol que
rezasse por ele , mas ela respondeu que já decidira rezar antes mesmo de
ele lhe ter pedido .

Assinou um impresso a atestar a posse dos cavalos na alfândega me­


xicana, em Berendo , e dobrou as declarações carimbadas e guardou-as
na bolsa da sela e deu ao aduanero um dólar de prata. O aduanero
bateu-lhe continência com expressão grave e tratou-o por caballero , e
A Travessia 329

ele cavalgou para sul , penetrando no velho México , no estado de


Chihuahua . Cruzara aquele posto fronteiriço pela última vez sete anos
antes, quando tinha treze anos e o pai montava o cavalo que ele agora
cavalgava e tinham tomado posse de oitocentas cabeças de gado , ven­
didas por dois americanos que andavam a arrebanhar bois nos confins
de um rancho abandonado , nas montanhas a oeste de Ascensión . Nessa
época havia ali um café , mas agora já não . Ele rompeu pela ruazita de
lama abaixo e comprou três tacos a uma mulher sentada junto a uma
braseira de carvão de lenha, na poeira da berma, e comeu-os enquanto
cavalgava.
Dois dias a cavalo conduziram-no , ao final da tarde , à localidade de
Janos , ou às suas luzes , situadas na planura que a escuridão ia cobrindo ,
abaixo dele . Parou a montada na velha estrada de carroções coberta de
sulcos e espraiou a vista em direcção às sierras ocidentais , negras con­
tra o pano de fundo vermelho-sangue do céu . Mais além estendia-se a
bacia do rio B avispe e a alta serra de Pilares , com a neve ainda agarrada
aos rincões voltados a norte e as noites ainda frias lá junto ao cume , no
alto plano , onde ele montara outro cavalo , numa outra época, há muito
tempo .
Aproximou-se vindo de oriente , nas trevas , deixando para trás uma
das torres de adobe , agora a esboroar-se , da antiga povoação muralhada,
e cavalgou vagarosamente através de uma aldeia totalmente composta
de adobe e em ruínas há já cem anos. Passou junto da igreja alta de ti­
jolos de lama e dos vetustos sinos verdes espanhóis , suspensos da sua
armação de madeira no adro , e junto das portas abertas das casas onde
havia homens sentados a fumar em silêncio . Atrás dele s , à luz amarela
dos candeeiros de petróleo , as mulheres andavam para cá e para lá nos
seus afazeres . Sobre a aldeia pairava uma neblina de fumo de carvão de
lenha, e de um ponto algures naquele labirinto de casinhotas elevava-se
o som de música a tocar.
Ele seguiu o som ao longo das galerias estreitas de lama seca, até que ,
por fim , deu por si diante de uma porta suspensa por dobradiças de
couro de boi , feita de toscas tábuas de pinho pregadas , cobertas por uma
crosta de resina seca. A divisão onde entrou era somente mais uma na
fileira de casinhotas habitados ou abandonados que bordejavam um e
outro lado da ruela. Assim que ele transpôs o limiar, a música cessou e
os músicos voltaram-se e olharam para ele . Havia várias mesas na sala
e todas possuíam pernas torneadas e cheias de lavores que estavam su­
jas de lama, como se tivessem estado ao ar livre , à chuva . Em volta de
uma das mesas estavam sentados quatro homens , com copos e uma
330 Cormac McCarthy

garrafa. Ao longo da parede do fundo via-se um balcão trabalhado , re­


pleto de ornatos e espelhos , trazido até ali só Deus sabia de onde , e nas
prateleiras esculpidas e poeirentas do expositor traseiro via-se meia
dúzia de garrafas , algumas com rótulos , outras não .
Está abierto ? perguntou ele .
Um dos homens empurrou a cadeira para trás sobre o chão de argila
e pôs-se de pé . Era muito alto e, quando se ergueu , a cabeça desapareceu­
-lhe na treva acima da única lâmpada com quebra-luz que pendia sobre
a mesa. Sí, caballero , respondeu . Cómo no?
Dirigiu-se para o balcão e retirou um avental que estava pendurado
de um prego e atou-o à cintura e pôs-se de pé defronte do mogno traba­
lhado , banhado por uma luz ténue , de mãos cruzadas na sua frente .
Parecia um açougueiro parado numa igreja. B illy dirigiu um aceno de
cabeça aos outros três homens à mesa e deu-lhes as boas-noites , mas
nenhum deles respondeu . Os músicos levantaram-se com os seus instru­
mentos e saíram em fila para a rua .
Ele empurrou o chapéu um tudo-nada para trás e cruzou a sala e pôs
as mãos sobre o balcão e examinou as garrafas na parede do fundo .
Déme un Waterfills y Frazier, pediu .
O taberneiro ergueu um dedo . Como se concordasse com a sensatez
daquela escolha. Estendeu o braço e pegou num copo baixo e largo de
entre uma panóplia variada e colocou-o sobre o balcão e retirou a gar­
rafa de whiskey da prateleira e encheu o copo até a meio .
Agua ? indagou .
No gracias . Tome algo para usted.
O taberneiro agradeceu-lhe e retirou da prateleira outro copo igual e
verteu-lhe whiskey para dentro e pousou a garrafa sobre o balcão . No pó
que cobria a garrafa, a mão dele deixou uma marca visível sob o clarão
amarelado do candeeiro . B illy ergueu o copo e olhou para o taberneiro
por sobre a borda. Salud, disse .
Salud, disse o taberneiro . Beberam . B illy pousou o copo e fez um
gesto a apontá-lo , executando um movimento circular do dedo que in­
cluía também o copo do taberneiro . Voltou-se e olhou para os três ho­
mens sentados à mesa. Y sus amigos también , acrescentou .
Bueno , disse o taberneiro . Cómo no .
Atravessou a divisão de avental posto , com a garrafa na mão , e
encheu-lhes os copos e eles fizeram um brinde à saúde dele e ele ergueu
o seu copo e beberam . O taberneiro regressou para junto do balcão e ali
ficou , hesitante , a segurar o copo e a garrafa. B illy pousou o copo sobre
o balcão . Por fim , uma voz da mesa ergueu-se a convidá-lo a juntar-se
A Travessia 33 1

a eles . Ele pegou no copo e virou-se e agradeceu-lhes . Não sabia quem


falara.
Quando puxou para trás a cadeira que o taberneiro antes desocupara
e se sentou e ergueu os olhos , viu que o mais velho dos três homens
estava muito embriagado . Vestia uma guayabera manchada de suor e
estava tombado na cadeira , com o queixo pendido sobre o colarinho
desabotoado da camisa. Os olhos negros , nos seus cálices orlados de
vermelho , estavam taciturnos e ausentes . Como escórias de chumbo
vertidas em orifícios para ali encerrar uma qualquer criatura virulenta
ou predatória. No vagaroso sobe e desce das gelosias das pálpebras , um
intervalo excessivamente prolongado . Quem falou foi o homem mais
jovem, à sua direita. Disse que , naquele país , a distância entre dois co­
pos de whiskey era muito grande para o viajante .
B illy assentiu com a cabeça. Olhou para a garrafa pousada sobre a
mesa. Era ligeiramente amarelada , ligeiramente defeituosa. Não tinha
rolha nem rótulo e continha um fluido turvado por uma fina borra, um
fino sedimento . Um verme de piteira finamente recurvado . Tomamos
mescal, disse o homem . Recostou-se na cadeira e bradou ao taberneiro .
Venga! gritou-lhe . Siéntate con nosotros.
O taberneiro pousou a garrafa de whiskey sobre o balcão , mas B illy
disse-lhe que a trouxesse . Ele desapertou o avental e tirou-o e tornou a
pendurá-lo no prego e aproximou-se com a garrafa. Billy fez um gesto
a indicar os copos na mesa. Otra vez, disse .
Otra vez , repetiu o taberneiro . Encheu os copos , um por um . Depois
de encher todos os copos , exceptuando o do homem que estava bêbedo ,
hesitou , vendo que este ainda tinha o copo cheio , mas ficou ali parado
diante dele . O homem mais jovem tocou-lhe no cotovelo. Alfonso , dis­
se . Tome .
Alfonso não bebeu . Fitou com olhar plúmbeo o pálido recém­
-chegado . A bebida , mais do que reduzi-lo , parecia tê-lo devolvido a um
qualquer estado atávico com que ele outrora perdera contacto . O ho­
mem mais novo olhou para o americano , do outro lado da mesa . Es un
hombre muy serio , disse .
O taberneiro pousou a garrafa diante deles e arrastou uma cadeira de
uma mesa ali próxima e sentou-se . Todos ergueram os copos . Teriam
bebido , só que Alfonso escolheu aquele momento para falar. Quién es,
joven ? perguntou .
Todos fizeram uma pausa. Olharam para B illy. Billy ergueu o copo e
bebeu e pousou o copo vazio e olhou novamente por sobre a mesa para
aqueles olhos .
332 Cormac McCarthy

Un hombre , disse . No más .


Americano .
Claro . Americano .
Es vaquero ?
Sí. Vaquero .
O bêbedo não se mexeu . Os olhos não se mexeram . Dir-se-ia que
estava a falar sozinho .
Tome, Alfonso , insistiu o homem mais novo . Ergueu o seu próprio
copo e circunvagou o olhar pelos presentes . Os outros ergueram os co­
pos . Todos beberam .
Y usted? perguntou B illy.
O bêbedo não respondeu . O lábio inferior, vermelho e molhado ,
pendia-lhe , flácido , dos dentes brancos e perfeitos . Parecia não ter ouvido .
Es soldado ? perguntou .
Soldado no .
O homem mais novo disse que o bêbedo fora soldado durante a revo­
lução e que combatera em Torreón e em Zacatecas e que fora ferido
muitas vezes . B illy olhou para o bêbedo . O negro opaco dos olhos dele .
O homem mais novo disse que ele tinha sido alvejado com três balas no
peito em Zacatecas e que ficara caído na poeira das ruas , na escuridão
e ao frio , enquanto os cães lhe bebiam o sangue . Acrescentou que os
buracos estavam ali , no peito do patriota, para quem os quisesse ver.
Otra vez , disse B illy. O taberneiro curvou-se para diante com a gar­
rafa e encheu os copos .
Quando todos os copos estavam cheios , o homem mais novo ergueu
o seu copo e propôs um brinde à revolução . Beberam . Pousaram os
copos e limparam a boca com as costas da mão e olharam para o bêbe­
do . Por qué viene aquí? perguntou este .
Todos olharam para Billy.
Aquí? perguntou B illy.
Mas o bêbedo não respondia a perguntas , limitava-se a formulá-las .
O homem mais novo debruçou-se ligeiramente na cadeira. A este país ,
sussurrou .
A este país , repetiu Billy. Os outros esperaram . Ele debruçou-se e
estendeu o braço por cima da mesa e pegou no copo de mescal do bê­
bedo e, com um gesto brusco , lançou o respectivo conteúdo para o chão
da sala e tornou a pousar o copo na mesa. Ninguém se mexeu . Ele fez
um gesto ao taberneiro . Otra vez, disse .
O taberneiro estendeu a mão vagarosamente para a garrafa e , vagaro­
samente , tornou a encher os copos . Pousou a garrafa e limpou a mão ao
A Travessia 333

joelho das calças . Billy pegou no seu copo e segurou-o diante de si.
Disse que estava naquele país para encontrar o irmão . Acrescentou que
o irmão era um bocadinho maluco e que ele não o devia ter abandonado ,
mas que o fizera.
Continuaram sentados , de copos na mão . Olharam para o bêbedo .
Tome, Alfonso , instou o homem mais novo . Gesticulou com o copo . O
taberneiro ergueu o seu copo e bebeu e tornou a pousar o copo vazio na
mesa e encostou-se ao espaldar da cadeira. Como um jogador que mo­
veu a sua peça e se recosta para aguardar os resultados . Olhou sobre a
mesa para o homem mais novo de todos, que estava sentado um pouco
à parte , com o chapéu descaído sobre a testa e a segurar o copo cheio
com ambas as mãos diante de si como uma oferenda. Que até ao mo­
mento não pronunciara uma só palavra. Toda a sala tinha começado a
zumbir muito ao de leve .
Toda e qualquer cerimónia tem como única finalidade evitar o derra­
mamento de sangue . Mas o bêbedo , devido à sua condição , habitava um
estado crepuscular de responsabilidade , e foi a esta que o homem à sua
ilharga apelou em silêncio . Sorriu e encolheu os ombros e ergueu o copo
para o norteamericano e bebeu . Quando tornou a pousar o copo , o bêbe­
do moveu-se . Debruçou-se devagar e estendeu a mão para o seu copo e o
homem mais novo sorriu e tornou a erguer o copo , como que à laia de
saudação ao vê-lo abandonar os seus pensamentos mórbidos . Mas o bê­
bedo fincou os dedos em volta do copo e depois , muito devagar, inclinou­
-o sobre o bordo da mesa e despejou o whiskey no chão e tornou a pousá-
-lo sobre o tampo da mesa. Em seguida, com mão trémula, agarrou a
garrafa de mescal e voltou-a ao contrário e verteu o combustível amarelo
e oleoso para dentro do copo e pousou a garrafa novamente na mesa, com
o sedimento e o verme a rodar, vagarosos , no sentido dos ponteiros do
relógio , sobre o fundo de vidro . Por fim, recostou-se como antes .
O homem mais novo olhou para B illy. Lá fora, na povoação mergu­
lhada nas trevas , um cão ladrou .
No le gusta el whiskey? perguntou Billy.
O bêbedo não respondeu . O copo de mescal encontrava-se pousado na
mesa, exactamente como no momento em que B illy entrara na taberna.
Es el sello , interveio o homem mais novo .
El sello ?
Sí.
Ele disse que o outro não gostava da chancela, que era a chancela de
um governo opressor. Disse que o outro se recusava a beber de uma tal
garrafa. Que era uma questão de honra.
334 Cormac McCarthy

B illy olhou para o bêbedo .


Es mentira , disse o bêbedo .
Mentira ? perguntou Billy.
Sí. Mentira .
Billy olhou para o homem mais novo . Perguntou-lhe o que é que era
mentira, mas o homem mais novo disse-lhe que não se afligisse . Nada
es mentira , declarou .
No es cuestión de ningún sello , atalhou o bêbedo .
Falava devagar, mas não sem desembaraço . Voltara-se e dirigiu o seu
comentário ao homem mais novo a seu lado . Depois virou-se e conti­
nuou a fitar Billy. B illy executou um círculo com o dedo . Otra vez ,
disse . O taberneiro estendeu o braço e pegou na garrafa.
Se preferes beber esse mijo de gato fedorento em vez dum bom
whiskey americano , disse Billy, isso é lá contigo .
Mande ? retrucou o bêbedo .
O taberneiro , ali sentado , hesitava. Por fim , debruçou-se e encheu os
copos vazios e pegou na rolha e empurrou-a de novo para dentro do
gargalo . Billy ergueu o copo . Salud, disse . Bebeu . Todos beberam .
Excepto o bêbedo . Lá fora, na rua, os vetustos sinos espanhóis dobra­
ram uma vez , duas vezes. O bêbedo inclinou-se para diante . Estendeu o
braço sobre o copo de mescal pousado na sua frente e agarrou de novo
a garrafa de mescal . Pegou-lhe e encheu o copo de B illy com um movi­
mento ligeiramente circular da mão . Como se o pequeno copo tivesse
de ser enchido de um modo bem preciso . Em seguida, endireitou a gar­
rafa e pousou-a na mesa e recostou-se .
O taberneiro e os dois homens mais novos seguravam os copos . B illy
olhou para o mescal . Recostou-se na cadeira. Olhou na direcção da porta.
Via Nifío parado na rua . Os músicos que tinham fugido dali estavam já a
tocar novamente , algures noutra rua, noutra taverna . Ou talvez fossem
outros músicos . Ele estendeu a mão e pegou no mescal e ergueu-o à luz .
Um sedimento semelhante a fumo rodopiava em volutas contra o vidro .
Pedacinhos de detritos . Ninguém se mexeu . Ele inclinou o copo e bebeu .
Salud, bradou o homem mais novo . Beberam. O taberneiro bebeu .
B ateram com os copos vazios no tampo da mesa e sorriram uns para os
outros . Foi então que Billy se inclinou para o lado e cuspiu o mescal
para o chão .
No silêncio que se seguiu , o pueblo em si pareceu ter sido sugado pelo
deserto circundante . Não se ouvia som algum fosse onde fosse . O bêbedo
permanecia sentado , petrificado no gesto de estender a mão para pegar no
copo . O homem mais novo baixou os olhos . Na sombra do candeeiro ,
A Travessia 335

pareceu até fechar os olhos, e talvez o tenha feito . O bêbedo fechou a mão
estendida e baixou o punho cerrado para a mesa. Billy descreveu um
círculo vagaroso no ar com o dedo estendido . Otra vez , repetiu .
O taberneiro olhou para B illy. Olhou para o patriota de olhos plúm­
beos ali sentado , de punho erguido junto do copo . Era demasiado fuer­
te para é/, comentou . Demasiado juerte .
B illy não tirou os olhos do bêbedo . Más mentiras , disse . Declarou
que não era de todo verdade que o mescal fosse demasiado forte para
ele , ao contrário do que o taberneiro afirmara.
Todos olhavam para a garrafa de mescal . Para a meia-lua negra da
sombra da garrafa ao lado da garrafa. Quando o bêbedo não se moveu
nem falou , Billy estendeu a mão sobre a mesa para agarrar a garrafa de
whiskey e tornou a encher todos os copos e pousou novamente a garrafa
na mesa. Em seguida, empurrou a cadeira para trás e pôs-se de pé .
O bêbedo colocou ambas as mãos sobre o bordo da mesa.
O homem que até aí nada dissera avisou-o em inglês de que , caso ele
tirasse o dinheiro do bolso , o homem lhe daria um tiro .
Não duvido nem um bocadinho , disse B illy. Dirigiu-se ao taberneiro
sem tirar os olhos do homem do lado oposto da mesa . Cuánto debo ?
perguntou .
Cinco do/ares ? disse o taberneiro .
Ele enfiou dois dedos no bolso da camisa e tirou de lá o dinheiro e
abriu o maço de notas com o polegar e soltou do maço uma nota de
cinco dólares e pousou-a na mesa. Olhou para o homem que falara com
ele em inglês . Ele vai-me dar um tiro nas costas? perguntou .
O homem ergueu os olhos para ele de baixo da aba do chapéu e sor­
riu . Não , disse . Não me parece .
B illy tocou na aba do chapéu e dirigiu um aceno de cabeça aos ho­
mens à mesa. Cabal/eras , disse . E voltou-se para se encaminhar para a
porta, deixando o copo cheio sobre a mesa.
Se ele te chamar, não te voltes , avisou o jovem.
Ele não se deteve e não se virou , e estava prestes a alcançar a porta
quando o homem o chamou . Joven , disse .
Ele estacou . Os cavalos na rua ergueram as cabeças e olharam para ele .
Ele avaliou a distância até à porta, que não excedia a sua própria altura.
Caminha, disse . Caminha, mais nada. Mas não caminhou . Deu meia-volta.
O bêbedo não se movera. Continuava sentado na cadeira, e o jovem
que falava inglês erguera-se e estava de pé ao lado dele e pousara-lhe
uma mão no ombro . Pareciam estar a posar para um álbum de retratos
de bandidos .
336 Cormac McCarthy

Me /lama embustero ? perguntou o bêbedo .


No , respondeu ele .
Embustero ? Fincou os dedos na camisa e abriu-a com um repelão .
Estava fechada com molas metálicas e abriu-se facilmente e sem ruído .
Como se , quiçá, as molas estivessem gastas e lassas precisamente devi­
do a tais demonstrações no passado . Ficou a segurar a camisa maito
aberta, como que a convidar novamente a trindade de balas de espingar­
da cuja marca lhe jazia sobre o peito macio e glabro , mesmo acima do
coração , num triângulo isósceles de estigmas tão perfeito . Ninguém em
volta da mesa se mexeu . Nenhum dos presentes olhou para o patriota
nem para as suas cicatrizes , pois já todos as tinham visto antes .
Observavam o güero ali de pé , enquadrado na porta. Não se mexeram e
não se ouvia som algum, e ele pôs-se à escuta de um qualquer som na
povoação que lhe indicasse que esta não se encontrava também à escu­
ta, já que tinha a sensação de que , em parte , a sua chegada àquele lugar
fora não somente conhecida de antemão mas ordenada, e ficou à escuta
dos músicos que tinham fugido assim que ele entrara naquele estabele­
cimento e que talvez estivessem também , eles próprios , à escuta do si­
lêncio , algures no meio daquele casario escalavrado de lama seca, e
pôs-se à escuta de qualquer som além do martelar surdo do próprio
coração a arrastar o sangue através das pequenas galerias escuras da sua
vida corpórea naquele vagaroso dobrar hidráulico . Olhou para o homem
que o avisara para que não se virasse , mas esse era o único aviso que o
homem tinha para lhe dar. O que ele viu foi que o único artefacto mani­
festo da história desta república insignificante onde ele parecia agora
prestes a morrer que possuía a mais ínfima parcela de autoridade ou
significado ou pretensão de relevância estava ali sentado diante dele , à
luz descorada daquela cantina , e tudo o resto que brotasse dos lábios
dos homens ou das canetas dos homens teria de ser malhado a quente
desde o início sobre a bigorna da sua própria encenação antes de poder
sequer merecer o epíteto de mentira. Em seguida, tudo passou . Ele tirou
o chapéu e ficou ali parado . Depois , indiferente ao que aí vinha, tomou
a pô-lo na cabeça e virou costas e saiu porta fora e desamarrou os cava­
los e montou e rompeu pela rua estreita abaixo , a conduzir o cavalo de
carga pela arreata, e não olhou para trás .

Ainda não abandonara os limites da aldeia quando uma gota de chuva


do tamanho de um berlinde médio lhe tombou na aba do chapéu . Depois
outra. Ele ergueu os olhos para um céu sem nuven s . Os planetas visíveis
A Travessia 337

a chamejar a leste . Não havia vento nem cheiro a chuva no ar, e, todavia,
as gotas caíam cada vez mai s . O cavalo queria parar na estrada, e o
cavaleiro olhou para trás , para a povoação mergulhada no escuro . Os
poucos quadrados diminutos das janelas onde brilhava uma luz ténue e
avermelhada. O estralejar da chuva a cair na argila dura da estrada
assemelhava-se ao som de cavalos a atravessar uma ponte , algures na
treva . Ele começava a sentir-se embriagado . Parou o cavalo e depois
deu meia-volta e arrepiou caminho .
Guiou o cavalo através da primeira porta com que deparou , deixando
cair a corda do cavalo de carga e debruçando-se ao longo do pescoço da
montada para passar por baixo do lintel . Uma vez no interior, sentado na
sela, deu-se conta de que tombava sobre ele a mesmíssima chuva, e er­
gueu o rosto para ver as mesmíssimas estrelas por cima de si . Torceu as
rédeas para voltar o cavalo e tornou a sair e entrou noutra porta e o cre­
pitar surdo das gotas de chuva na copa do chapéu cessou de imediato .
Desmontou e bateu com os pés em volta, para ver o que se encontrava
no chão . Saiu e trouxe o cavalo de carga para dentro e soltou a corda
amarrada em diamante que prendia os fardos e puxou a manta acolcho­
ada para o chão e desafivelou as correias e retirou as cangalhas do dorso
do animal e peou-o e conduziu-o novamente para o exterior, deixando-o
à chuva. Em seguida , soltou o latigo do cavalo de sela e tirou-lhe a sela
e as bolsas da sela e pousou a sela no chão , encostada à parede , e
ajoelhou-se e procurou às apalpadelas as cordas da colcha e desamarrou­
-a e desenrolou-a e sentou-se e descalçou as botas . Sentia-se cada vez
mais ébrio . Tirou o chapéu e deitou-se . O cavalo passou-lhe junto da
cabeça e parou a olhar porta fora. Não me pises com essas patas , raiste­
partam , soltou ele .
Quando acordou , na manhã seguinte , a chuva cessara e a luz do dia
brilhava em pleno . Sentia-se muito mal . Acordara durante a noite , nem
sabia ao certo quando , e saíra aos tropeções para vomitar, e lembrava-se
de procurar em volta com olhos lacrimejantes algum sinal dos cavalos
e de cambalear novamente para o interior. Talvez nem se recordasse
disso , não fora o caso de , ao soerguer-se e procurar as botas , ter verifi­
cado que as tinha calçadas . Pegou no chapéu e pô-lo na cabeça e olhou
na direcção da porta. V árias crianças que ali estavam sentadas a
observá-lo puseram-se de pé e recuaram .
Dónde están los caballos ? perguntou ele .
Elas disseram que os cavalos estavam a comer.
Ele pôs-se de pé demasiado depressa e encostou-se à ombreira da
porta, com a mão sobre os olhos . Estava abrasado de sede . Tornou a
338 Cormac McCarthy

erguer a cabeça e cruzou o limiar da porta e olhou para as crianças . Elas


apontavam estrada abaixo .
Ele avançou até deixar para trás o último casinhoto da fileira de ha­
bitações baixas de lama seca, com os garotos a segui-lo , e acercou-se
dos cavalos até os conseguir alcançar num campo coberto de erva, no
lado sul do povoado , onde um pequeno regato atravessava a estrada.
Ficou parado , a segurar as rédeas de Nino . Os garotos olhavam-no .
Quieres montar? perguntou ele .
Eles entreolharam-se . O mais novo era um rapazito dos seus cinco
anos , que ergueu ambos os braços muito direitos no ar e ficou à espera.
B illy pegou-lhe ao colo e escarranchou-o no cavalo e depois a rapari­
guita e, por fim , o rapaz mais velho . Disse ao rapaz mais velho para
agarrar os mais novos , e o rapaz assentiu com a cabeça e ele pegou
novamente nas rédeas e na corda do cavalo de carga, que arrastava pelo
chão , e conduziu ambos os cavalos pelo prado acima, ao encontro da
estrada.
Uma mulher acercava-se , vinda da aldeia. Quando as crianças a vi­
ram, puseram-se a trocar sussurros . Ela trazia um balde azul com um
pano a cobri-lo . Parou na berma da estrada, a segurar o balde pela asa
de arame com ambas as mãos , diante de si . Depois meteu pelo campo
ao encontro dele s .
B illy tocou n o chapéu e desejou-lhe os bons-dias . Ela parou e ficou
de pé , a segurar o balde . Disse que tinha andado à procura dele . Disse
que sabia que ele não se afastara muito , porque a cama e a sela continu­
avam onde ele as deixara. Disse que as crianças lhe tinham ido contar
que havia um cavaleiro adormecido numa das caídas na orla da povoa­
ção , um cavaleiro doente , e que ela lhe trouxera um pouco de menudo
ainda quente do lume e que , caso ele comesse , já teria forças para ence­
tar a sua jornada.
Curvou-se e pousou o balde no chão e retirou o pano e estendeu-lho .
Ele ficou parado , a segurá-lo , de olhos postos no balde . Lá dentro esta­
va pousada uma tigela de esmalte mosqueado coberta com um prato e
ao lado da tigela encontravam-se enfiadas algumas tortillas dobradas .
Ele olhou para ela.
Ándale , disse ela. Fez um gesto a indicar o balde .
Y usted?
Ya comí.
Ele olhou para os garotos alinhados sobre o dorso do cavalo . Entregou
as rédeas e a corda de laçar ao rapaz .
Toma un paseo , disse .
A Travessia 3 39

O rapaz estendeu a mão e pegou nas rédeas e entregou a ponta da


corda à rapariga e depois passou uma das rédeas por cima da cabeça da
rapariga e cravou os calcanhares nas ilhargas do cavalo . Billy olhou
para a mulher. Es muy amable , disse . Ela disse-lhe que comesse antes
que ficasse frio .
Ele acocorou-se no chão e tentou pegar n a tigela, mas estava dema­
siado quente . Con permiso , disse ela. Estendeu os braços e retirou a ti­
gela do interior do balde e ergueu o prato e pousou a tigela no prato e
passou-lho para as mãos . Depois baixou-se de novo e pegou numa co­
lher e entregou-lha também .
Gracias , agradeceu ele .
Ela ajoelhou-se na erva diante dele para o ver comer. Os cordões das
tripas boiavam no caldo de carne límpido e oleoso como planárias va­
garosas . Ele disse que não estava mesmo doente , apenas um pouco
crudo por causa da noite passada na taberna. Ela respondeu que com­
preendia e que não tinha importância e que a doença não tinha maneira
de saber quem a causara, e que todos devíamos dar graças a Deus por
isto .
Ele tirou uma tortilla do balde e rasgou-a e tomou a dobrá-la e
mergulhou-a no caldo . Pegou num pedaço de tripa com a colher, e a
tripa escorregou da colher e ele cortou-a em dois com o bordo da colher
contra o flanco da tigela. O menudo estava quente e picante dos tempe­
ros . Ele comeu . Ela observava-o .
Os garotos acercaram-se por trás dele , montados no cavalo , e ficaram
à espera. Ele ergueu o rosto para eles e executou um gesto circular com
o dedo e eles cavalgaram de novo para longe . Ele olhou para a mulher.
Son suyos ?
Ela abanou a cabeça. Disse que não eram .
Ele fez que sim com a cabeça. Ficou a vê-los afastarem-se . A tigela
arrefecera um pouco e ele pegou-lhe pelo rebordo e inclinou-a e bebeu
por ela e deu uma dentada na tortilla . Muy sabroso , comentou .
Ela disse que tinha tido um filho , mas que ele j á morrera há vinte
anos .
Ele olhou para ela. Achava que ela não parecia velha que chegasse
para ter tido um filho há vinte anos , mas a verdade é que ela não apa­
rentava nenhuma idade bem definida. Disse que ela devia ter sido mãe
muito nova, e ela respondeu que , com efeito , tinha sido mãe muito nova,
mas que as pessoas costumam menosprezar muito a dor dos joven s .
Levou uma mão a o peito . Disse que o filho continuava a viver na alma
dela .
340 Cormac McCarthy

Ele olhou ao longe , através do campo . As crianças estavam escarran­


chadas no cavalo , junto à borda do rio , e o rapaz parecia estar à espera
de que o cavalo bebesse . O cavalo, parado , esperava pela próxima or­
dem , fosse lá qual fosse . Ele sorveu o resto do menudo e dobrou o
derradeiro quadrante de tortilla e usou-o para rapar a tigela e comeu-o
e meteu a colher, o prato e a tigela novamente dentro do balde e olhou
para a mulher.
Cuánto le debo, sefíora , perguntou .
Sefíorita , emendou ela. Nada .
Ele tirou as notas dobradas do bolso da camisa. Para los nifíos .
Nifíos no tengo .
Para los nietos .
Ela riu-se e abanou a cabeça . Nietos tampoco , disse .
Ele ficou ali sentado , a segurar o dinheiro .
Es para el camino , disse ela.
Bueno . Gracias .
Déme su mano .
Cómo ?
Su mano .
Ele deu-lhe a mão e ela pegou-lhe e voltou-a com a palma para cima
e segurou-a na sua e examinou-a.
Cuántos afíos tiene ? perguntou .
Ele disse que tinha vinte .
Tan joven . Ela percorreu-lhe a palma da mão com a ponta do dedo .
Franziu os lábios . Hay ladrones aquí, disse .
En mi palma ?
Ela inclinou-se para trás e fechou os olhos e riu-se . Riu-se com um
entusiasmo descontraído . Me !leva Judas , soltou . No . Abanou a cabeça .
Trazia n o corpo somente uma fina bata florida, e os seios baloiçavam­
-lhe dentro do tecido . Tinha os dentes brancos e perfeitos . As pernas
nuas e morenas .
Dónde pues ? indagou ele .
Ela prendeu o lábio inferior com os dentes e remirou-o com os seus
olhos escuro s . Aquí, disse . En este pueblo .
Hay ladrones en todos lados , contrapôs ele .
Ela abanou a cabeça . Disse que , no México , havia aldeias onde os
ladrões viviam e aldeias onde isso não acontecia. E acrescentou que
isto era um acordo aceitável .
Ele perguntou-lhe se ela era ladra, e ela riu-se de novo . Ay , disse .
Dios mio, qué hombre . Olhou para ele . Quizás , disse .
A Travessia 34 1

Ele perguntou-lhe que género de coisas roubaria ela, se fosse ladra,


mas ela limitou-se a sorrir e voltou a mão dele na sua e examinou-a.
Qué ve ? indagou ele .
El mundo .
El mundo ?
El mundo según usted.
Es gitana ?
Quizás sí. Quizás no .
Ela colocou a outra mão sobre a dele . Olhou para o extremo oposto
do campo , para onde as crianças estavam a cavalgar.
Qué vio ? insistiu ele .
Nada . No vi nada .
Es mentira .
Sí.
Ele perguntou-lhe porque é que ela se recusava a dizer-lhe o que vira ,
mas ela limitou-se a sorrir e abanou a cabeça. Ele perguntou-lhe se não
havia nenhuma boa nova, e ela ficou mais séria e fez com a cabeça um
sinal afirmativo e voltou-lhe novamente a palma da mão para cima .
Disse que ele iria ter uma longa vida. Percorreu o contorno da linha que
descrevia uma curva sob a base do polegar dele .
Con mucha tristeza , disse ele .
Bastante , disse ela. Acrescentou que não havia vida sem tristeza.
Pera usted ha visto algo mala , contrapôs ele . Qué es ?
Ela respondeu que , fosse o que fosse que vira, nada havia a fazer,
quer fosse bom , quer fosse mau , e que ele acabaria por tomar conheci­
mento de tudo , quando Deus assim o entendesse . Remirou-o com a ca­
beça um bocadinho pendida de viés . Como se houvesse uma pergunta
que ele deveria fazer, se ao menos fosse arguto que chegue para a for­
mular, mas ele não sabia que pergunta era essa e o momento estava a
escoar-se a passos largos .
Qué novedades tiene de mi hermano , perguntou ele .
Cuál hermano ?
Ele sorriu . Disse que só tinha um irmão .
Ela destapou-lhe a mão e segurou-a entre as suas . Não olhou para a
palma. Es mentira , disse . Tiene dos .
Ele abanou a cabeça.
Mentira tras mentira , insistiu ela. Curvou-se para lhe examinar a
palma da mão .
Qué ve ? perguntou ele .
Veo dos hermanos . Uno ha muerto .
342 Cormac McCarthy

Ele explicou que tivera uma irmã que morrera, mas ela abanou a ca-
beça . Hermano , emendou . Uno que vive, uno que ha muerto .
Cuál es cual?
No sabes ?
No .
Ni yo tampoco .
Ela soltou-lhe a mão e pôs-se de pé e pegou no balde . Tomou a olhar
por sobre o campo , para os garotos e o cavalo . Disse que ele talvez ti­
vesse tido sorte durante a noite , já que a chuva possivelmente mantive­
ra em casa aqueles que , de outro modo , eram bem capazes de ter deam­
bulado pelas ruas , mas acrescentou que a chuva que nos favorece pode
também trair-nos . Disse ainda que , ao passo que a chuva caía por von­
tade de Deus , o mal escolhia a sua própria hora, e que aqueles que o mal
buscava talvez não fossem eles próprios totalmente desprovidos de uma
certa parcela de treva. Disse que o coração se denunciava, e que os per­
versos tinham muitas vezes olhos para ver o que permanecia oculto à
vista dos bon s .
Y sus ojos ?
Ela atirou a cabeça para trás , o cabelo negro tombou-lhe e m volta dos
ombros . Disse que não tinha visto nada . Que era somente um jogo . Em
seguida, virou costas e afastou-se através do campo e subiu a ladeira ao
encontro da estrada.
Ele cavalgou para sul durante todo o dia e, ao fim da tarde , atravessou
a cidade de Casas Grandes e meteu para sul , pela estrada que primeiro
percorrera com o irmão três anos antes , passando junto das ruínas que
se iam cobrindo de treva ao lusco-fusco , deixando para trás os antigos
terreiros de baile onde os noitibós caçavam ainda. No dia seguinte , che­
gou à hacienda de San Diego e parou o cavalo junto aos velhos chou­
pos , à beira do rio . Em seguida, cavalgou sobre a ponte de tábuas e su­
biu até aos domicilias .
A casa da família Mufíoz estava vazia. Ele percorreu as divisões . Não
havia nenhuma peça de mobiliário . No nicho onde a Virgem antes se
encontrava , nada excepto uma escama cinzenta de velha cera de vela
acumulada no estuque poeirento .
Ele estacou à porta, depois saiu e montou e rompeu até ao recinto ,
cruzando os portões .
No pátio , u m velho que estava sentado a tecer cestos disse-lhe que
eles tinham partido . Ele perguntou ao velho se sabia para onde é que
eles tinham ido , mas o velho parecia não ter uma compreensão clara da
ideia de destino . Executou um gesto amplo a designar o mundo . O ca-
A Travessia 343

valeiro permaneceu montado e passeou os olhos pelo pátio . O velho


carro de turismo . Os edifícios a cair em ruínas . Uma perua empoleirada
numa janela sem caixilho . O velho tornara a debruçar-se sobre o seu
cesto , e ele desejou-lhe os bons-dias e voltou o cavalo e , trazendo o
cavalo de carga pela arreata, tornou a sair, cruzando o alto portão em
arco , deixou para trás os alojamentos dos locatários e desceu a encosta
até ao rio e atravessou novamente a ponte .
Dois dias depois , cavalgou através de Las Varas e voltou para leste ,
em direcção a La Boquilla, metendo pela estrada onde ele e o irmão ti­
nham visto pela primeira vez o cavalo do pai a subir do lago para a es­
trada, encharcado e a gotejar. Não caíra chuva nas terras altas , e a estra­
da estava poeirenta sob as patas dos cavalo s . Um vento seco a soprar de
norte . Na planura distante , para além do lago , a poeira a soprar de
B abícora, como se esta estivesse em chamas . Ao crepúsculo , o grande
avião vermelho Waco surgiu de oeste e descreveu um círculo e mergu­
lhou entre o arvoredo .
Acampou na planície e ateou uma pequena fogueira que fervilhava ao
vento como o lume de uma forja e que engoliu a sua magra provisão de
paus e ramos . Ele ficou a vê-la arder muito , muito tempo . Os farrapos
de labaredas que se escapuliam pela terra fora rompiam-se e desapare­
ciam como um grito nas trevas . No dia seguinte , cavalgou através de
Babícora e de Santa Ana de Babícora e meteu pela estrada para norte ,
para Namiquipa .
A povoação pouco mais era do que um acampamento de mineiros
localizado numa escarpa sobranceira ao rio , e ele prendeu os cavalos
com estacas abaixo da localidade , a leste , num bosque de salgueiros
ribeirinhos , e tomou banho no rio e lavou as roupas . Na manhã seguin­
te , quando cavalgou ao encontro da aldeia, deparou com o cortejo de um
casamento a vir pela estrada. Uma banal carreta de madeira enfeitada
com grinaldas . Um impermeável feito de manta amarrado sobre uma
armação periclitante de varas arqueadas de salgueiro para evitar que a
noiva apanhasse sol . A carroça era puxada por uma única mula pequena,
cinzenta e trôpega, e a noiva sentava-se sozinha na caixa, a segurar um
guarda-sol aberto por baixo do toldo pouco firme . Na estrada, ao lado
dela, caminhava um grupo de homens de fatos negros ou fatos cinzentos
que talvez outrora tivessem sido negros , e, no momento em que passa­
ram , a noiva voltou-se e olhou para ele ali escarranchado no cavalo ,
junto à berma, qual testemunha pálida de mau agouro , e ela benzeu-se
e virou novamente o rosto e o cortejo seguiu em frente . Ele tornou a ver
a carroça na aldeia . O casamento era só da parte da tarde , e eles tinham
344 Cormac McCarthy

ido até lá tão cedo somente para aproveitar o facto de , àquela hora, a
estrada ainda não se encontrar coberta de uma nuvem de poeira.
Ele seguiu-os até ao interior da povoação e cavalgou pelas ruelas
poeirentas . Não se via ninguém. Ele debruçou-se do cavalo e bateu a
uma porta escolhida ao acaso e ficou sentado , à escuta. Ninguém veio
abrir. Ele desenfiou a bota do estribo , puxando o pé atrás , e desferiu um
pontapé na porta para bater com mais força, mas a porta estava mal
trancada e abriu-se vagarosamente de par em par, desaparecendo na
escuridão baixa.
Hola , chamou ele .
Ninguém respondeu . Ele olhou para o fundo da rua estreita. Olhou
para o interior sob o lintel da porta. Contra a parede do fundo do casi­
nhoto , uma vela ardia num prato , e, estendido numa armação de madei­
ra, com flores silvestres das montanhas em volta de si , jazia um velho
envergando o seu fato mortuário .
Ele descavalgou e deixou cair as rédeas e cruzou a porta acanhada e
tirou o chapéu . O velho tinha as mãos compostas sobre o peito e não tinha
sapatos nos pés e tinham-lhe amarrado os pés descalços um ao outro
pelos dedos grandes com um pedaço de cordel , para não jazerem espar­
ramados . Billy chamou em voz baixa para o seio das trevas da casa, mas
aquela divisão era a única de que a casa se compunha. Quatro cadeiras
vazias alinhavam-se contra uma parede . Uma fina poeira cobria tudo . No
alto da parede do fundo havia uma janelinha, e ele atravessou a divisão e
olhou para o pátio atrás da casa. Via-se ali um velho carro funerário de
tracção animal , com os varais voltados para trás e encostados à caixa.
Dentro de um barracão aberto , no extremo oposto da cerca, apoiado sobre
cavaletes , via-se um tosco caixão de madeira feito de barrotes de pinho .
A tampa do caixão estava encostada à parede do barracão . Tinham ene­
grecido o caixão e a tampa pelo lado de fora, mas o interior era de ma­
deira nova ainda crua, sem pano a forrá-lo nem outro forro qualquer.
Ele voltou-se e olhou para o velho exposto na sua prancha de madei­
ra. O velho tinha um bigode , e o bigode e o cabelo eram grisalhos , cor
de prata. As mãos cruzadas sobre o peito eram grandes e robustas . Não
lhe tinham limpado as unhas . Tinha a pele morena e poeirenta , os pés
descalços quadrados e nodosos . O fato que trazia no corpo parecia pe­
queno para ele e era de um modelo que já não se via, nem mesmo na­
quela região , e, muito provavelmente , o velho tivera-o toda a vida.
Ele retirou dos ramos uma pequena flor amarela cuja forma se asse­
melhava à de um malmequer e que vira crescer nas bermas das estradas
e olhou para a flor e para o velho . Na sala reinava um cheiro a cera, um
A Travessia 345

vago odor a podre . Um ténue resquício de copal queimado . Qué nove­


dades ahora viejo ? perguntou . Meteu a flor na casa do botão do bolso
da camisa e saiu e puxou a porta para a fechar atrás de si .

Ninguém naquela povoação sabia o que sucedera à rapariga. A mãe


fora viver para outra terra. A irmã tinha ido para a Cidade do México há
já vários anos , quem sabe o que sucedia a essas raparigas . . . De tarde ,
os convidados do casamento subiram a rua , com a noiva e o noivo sen­
tados na caixa da carreta coberta . Passaram devagar, acompanhados por
um tambor e uma cometa, a carroça a ranger, a noiva com o seu véu
branco , o noivo de preto . Os sorrisos como esgares , nos olhos uma ex­
pressão de terror. Na aparência assemelhavam-se a certas figuras do
folclore daquele país que dançam aos pare s , com os próprios ossos pá­
lidos pintados nas roupas . A carroça , com o seu ranger vagaroso , era
como a que cruza a vau os sonhos do paisano no seu sono cansado , a
passar vagarosamente da esquerda para a direita através da noite irrecu­
perável que só ele labuta para alcançar, fenecendo já próximo da alvo­
rada num vago estrépito , um ténue pavor.
À tardinha, transportaram o velho da casa mortuária e sepultaram-no
no cemitério entre as tábuas inclinadas e gastas das intempéries que
faziam as vezes de pedras tumulares naquela região austera de monta­
nha. Ninguém questionou o direito do güero de estar entre os familiares
e amigos enlutados , e ele saudou-os silenciosamente com acenos de
cabeça e entrou na casa baixa onde tinham posto uma mesa com muitos
dos melhores produtos que aquelas paragens tinham para oferecer.
Enquanto ele estava encostado à parede , a comer tamales , uma mulher
abordou-o e disse-lhe que a rapariga não seria lá muito fácil de encon­
trar, já que era uma bandida famosa, e que muita gente andava à procu­
ra dela . Acrescentou que corria o boato de que tinham posto a cabeça
dela a prémio em La Babícora. Contou que havia quem acreditasse que
a rapariga oferecia prata e jóias aos pobres, enquanto outros acredita­
vam que ela era uma bruxa ou um demónio . Era também possível que a
rapariga estivesse morta , embora fosse totalmente falso que a tivessem
matado em Ignacio Zaragosa.
Ele examinou-a. Era uma jovem do campo , nada mais . Vestida com
uma pobre blusa negra de algodão tingida por mão pouco habilidosa, a
que mão pouco habilidosa aplicara o mordente . O corante negro
deixara-lhe anéis escuros em volta dos pulsos .
Y por qué me dice esta pues ? perguntou ele .
346 Cormac McCarthy

Ela olhou-o com o lábio superior preso nos dentes de baixo . Por fim ,
disse que era por saber quem ele era.
Y quién soy? perguntou ele .
Ela disse que ele era o irmão do güerito .
Ele baixou o pé da parede atrás de si e olhou para ela e olhou para
trás dela, para os que tinham vindo chorar o morto , vestidos de escuro ,
a passarem em fila e a retirarem comida da mesa como outras tantas
figuras da morte no banquete , e tomou a olhar para ela. Perguntou-lhe
se sabia onde é que ele podia encontrar o irmão .
Ela não respondeu . O movimento das figuras na sala tomou-se mais
lento , os murmúrios abafados dos enlutados converteram-se num sus­
surro . Os presentes desejavam uns aos outros que a refeição lhes fizesse
bom proveito , e foi então que tudo aquilo se obliterou na história da sua
própria repetição , e ele pôde ouvir aquelas cerimónias antecedentes a
encaixarem-se algures como blocos de madeira nas respectivas ranhu­
ras . Como cavilhas numa fechadura ou como as rodas dentadas de ma­
deira nas máquinas antigas a deslizar, dente após dente , para o seio dos
entalhes abertos no carreto que sobe sem cessar ao seu encontro . No
sabe ? perguntou ela.
No .
Ela encostou a mão à boca, de indicador estendido . Quase no gesto
de quem intima outra pessoa a calar-se . Estendeu a mão como se talvez
lhe fosse tocar. Disse que os ossos do irmão dele jaziam no cemitério de
San Buenaventura .
Estava escuro quando ele saiu e desamarrou o cavalo e montou .
Afastou-se , passando diante das janelas descoradas e cerosas , e meteu
pela estrada para sul , pelo caminho que o trouxera até ali . Quando ven­
ceu a primeira elevação , a aldeia desapareceu atrás dele e as estrelas
fervilharam , incontávei s , no negrume lá no alto , e não havia som algum
na noite além do clope-clope compassado dos cascos na estrada, o ténue
ranger do cabedal , o fôlego dos cavalos .
Deambulou por aquela região durante semanas a fio, inquirindo toda
e qualquer pessoa que se mostrasse disposta a ser inquirida . Numa bode­
ga na povoação de montanha de Temosachic , ouviu pela primeira vez
alguns versos do corrido em que o jovem güero desce do Norte . Pelo tan
rubio . Pistola en mano . Qué buscas joven ? Que te levantas tan tempra­
no . Perguntou ao corridero quem era este joven acerca do qual ele can­
tava, mas o outro limitou-se a responder que era um jovem que procura­
va fazer justiça, tal como a canção contava, e que já morrera havia muitos
anos . O corridero segurou o braço cheio de adornos do instrumento com
A Travessia 347

uma mão e ergueu o copo da mesa e brindou silenciosamente ao homem


que assim o interrogava e brindou em voz alta à memória de todos os
homens justos do mundo , pois, tal como se cantava no corrido , o cami­
nho deles estava repleto de sangue e os actos da vida deles estavam es­
critos com esse sangue , que era o sangue do coração do mundo , e disse
ainda que os homens sérios cantavam a canção dos justos e somente esta.
No final de Abril, no povoado de Madera, guardou o cavalo num está­
bulo e pôs-se a deambular a pé por uma feira, no prado do outro lado dos
carri s . Fazia frio naquela terreola de montanha, e o ar estava impregnado
do cheiro a fumo de madeira de pifíon e do cheiro a resina da serração .
No prado , as luzes estavam suspensas lá no alto, e os feirantes anuncia­
vam as suas panaceias ou proclamavam em altos brados os prodígios
ocultos dentro das tendas sebentas , pintadas a escantilhão , armadas com
cordas na erva calcada. Ele comprou um copo de sidra a um vendedor e
pôs-se a observar os rostos dos habitantes da povoação , rostos morenos e
graves , os olhos negros que pareciam prestes a incendiar-se sob o clarão
das luzes da feria . As raparigas que passavam de mãos dadas . A ousadia
ingénua dos seus olhares de relance . Deteve-se diante de uma caravana
pintada onde um homem num púlpito vermelho e dourado desfiava uma
cantilena dirigida a um ajuntamento masculino . Uma roda com as figuras
da lotería encontrava-se presa ao tabique da caravana, e uma rapariga
com um vestido vermelho muito justo e um bolero preto e prateado , de pé
sobre uma plataforma de madeira, estava pronta a fazê-la girar. O homem
no púlpito voltou-se para a rapariga e ergueu a bengala, e a rapariga sorriu
e deu um puxão na roda, de lado , e pô-la a estralejar. Todos os rostos se
voltaram para ver. Os pregos no rebordo da roda passavam, matraquean­
tes , sobre a lingueta de cabedal , e a roda abrandou e acabou por parar, e
a mulher voltou-se para a multidão e sorriu . O pregoeiro tomou a erguer
a bengala e designou a figura desbotada na roda cuja vez chegara.
La sirena! bradou .
Ninguém se mexeu .
Alguien ?
Ele remirou a multidão . Os homens encontravam-se parados dentro de
uma cuadra improvisada , feita de corda. Ele estendeu a bengala por cima
deles , como que para os ordenar, convertendo-os numa espécie de colec­
tivo . A bengala era de esmalte negro , e o castão de prata tinha a forma de
um busto que talvez fosse um retrato esculpido do próprio pregoeiro .
Otra vez! bradou .
Os olhos dele percorreram a turba. Remiraram Billy, que estava pa­
rado na orla da multidão , sozinho , e tomaram a afastar-se . A roda fazia
348 Cormac McCarthy

claque-claque e girava na sua trajectória um bocadinho enviesada, as


figuras em movimento converteram-se num borrão . O ponteiro de cabe­
dal trepidava.
Um homem baixo e desdentado esgueirou-se até junto dele e puxou­
-lhe a camisa. Agitava diante de si o baralho de cartas , aberto em leque .
No verso das cartas via-se um padrão de símbolos indecifráveis, entrela­
çados para formar um desenho adamascado . Tome , disse . Pronto, pronto .
Cuánto ?
Está libre . Tome .
Ele tirou do bolso uma moeda de um peso e tentou entregá-la ao ho­
mem , mas o homem abanou a cabeça. Olhou para a roda. Esta fazia
slape-slape devagar.
Nada, nada , instou o homem . Tenga prisa .
A roda fazia slape , slape . Ele escolheu uma carta.
Espere , gritou o pregoeiro . Espere . . .
A roda girou um pouco mai s , soltando um derradeiro estalido suave ,
e parou .
La calavera! bradou o pregoeiro .
Ele voltou a carta ao contrário . Impressa na respectiva face estava a
calavera .
Alguien ? gritou o pregoeiro . Os homens na multidão olhavam uns
para os outros .
O homenzinho à ilharga de B illy agarrou-lhe o cotovelo . Lo tiene ,
sibilou . Lo tiene .
Qué gano ?
O homem abanou a cabeça com ar impaciente . Tentou obrigá-lo a
erguer ao alto a mão que segurava a carta. Disse que ele teria direito a
ver.
Ver qué?
Adentro , sibilou o homem . Adentro . Estendeu o braço e arrancou-lhe
a carta da mão e ergueu-a ao alto . Aquí! chamou . Aquí tenemos la cala­
vera .
O pregoeiro moveu a bengala numa lenta aceleração por sobre as
cabeças da turba e depois , subitamente , apontou o castão de prata na
direcção de Billy e do acólito .
Tenemos ganador! bradou . Adelante, ade/ante!
Venga , arquejou o acólito . Repuxava o cotovelo de Billy. Mas Billy
vira já, a sangrar através da pintura berrante , velhas letras de uma exis­
tência anterior, e reconheceu a caravana da companhia itinerante de
ópera que vira parada, com os raios das rodas pintados de dourado , no
A Travessia 349

pátio cheio de fumo da hacienda de San Diego , quando ele e Boyd ti­
nham cruzado pela primeira vez aqueles portões , há já tanto tempo , a
mesma caravana que ele vira abandonada na berma da estrada enquanto
a linda diva se sentava debaixo do seu toldo , à espera do regresso dos
homens e dos cavalos que nunca haveriam de regressar. Repeliu a mão
do acólito da sua manga . No quiero ver, disse .
Sí, sí, incitou o acólito em voz entaramelada. Es un espectáculo .
Nunca ha visto nada como esta .
Ele agarrou o pulso magro do acólito e apertou-o com força . Oiga,
hombre , declarou . No quiero veria, me entiende ?
O acólito encolheu-se ante aquele gesto , lançou um olhar sem espe­
rança por cima do ombro , na direcção do pregoeiro que aguardava, com
a bengala pousada sobre o palanque na sua frente . Todos se tinham vol­
tado para ver o vencedor na orla mais recôndita das luzes . A mulher
junto à roda adoptara uma pose provocante , com o indicador curvado
sobre a covinha na face . O pregoeiro ergueu a bengala e executou com
ela um movimento largo . Adelante! bradou . Qué pasó?
Ele empurrou o acólito para longe de si e soltou-lhe o pulso , mas o
acólito , longe de se deixar abater, esgueirou-se novamente para junto
dele e , repuxando-lhe as roupas com pequenos movimentos dos dedos ,
começou a sussurrar-lhe ao ouvido as atracções do espectáculo dentro
da caravana. O pregoeiro tornou a chamá-lo . Disse que toda a gente
estava à espera. Mas Billy já se voltara para partir, e o pregoeiro
chamou-o com um brado uma derradeira vez e fez um qualquer comen­
tário dirigido à multidão que pôs toda a gente a rir e a tentar olhar por
cima do ombro . O acólito ficou parado , com expressão desolada, com a
barata nas mãos , mas o pregoeiro declarou que não haveria terceira
tentativa com a roda, e que , em vez disso , a mulher que fazia girar a
roda faria ela própria a escolha de quem teria direito a entrar sem pagar.
Ela sorriu e examinou os rostos com os seus olhos pintados e apontou
um rapaz na primeira fila da multidão , mas o pregoeiro disse que ele era
demasiado novo e que não seria permitido , e a mulher fez beicinho e
disse que , mesmo assim, ele era muy guapo e depois escolheu um peon
de pele morena que estava parado diante dela, muito hirto , vestido com
roupas que talvez fossem alugadas , e desceu os degraus e pegou-lhe
pela mão , e o pregoeiro ergueu um rolo de bilhetes no punho fechado ,
e os homens comprimiram-se para os comprar.
Ele afastou-se para além das luzes suspensas e atravessou o prado até
onde deixara o cavalo e pagou ao establero e conduziu Nino à brida,
retirando-o do meio dos outros animais, e montou . Olhou para trás ,
350 Cormac McCarthy

para a névoa das luzes da feira de diversões a chamejar na atmosfera


tonificante e mesclada de fumo , e depois rompeu a cavalgar, atravessan­
do a linha do caminho-de-ferro , e meteu pela estrada que saía de Madera
para sul , em direcção a Temosachic .
Uma semana depois , tomou a cavalgar através de Babícora na escuri­
dão da madrugada. Ar fresco e silêncio . Nenhum cão . O clope-clope dos
cascos dos cavalos . A sombra azul dos cavalos e do cavaleiro que o luar
projectava a passar de viés ao longo da rua numa queda constante de ca­
beça. A estrada para norte fora nivelada havia pouco com um aplainador,
e ele cavalgou ao longo da ourela, através do montículo de terra macia
que a máquina fora derramando . Zimbros escuros lá longe na planura,
formando uma ilha na alvorada. Gado escuro . Um Sol branco a nascer.
Ele deu de beber aos cavalos numa ciénaga ervosa, onde choupos
vetustos se erguiam num círculo como numa história de duende s , e
embrulhou-se na manta acolchoada e adormeceu . Quando acordou , um
homem a cavalo estava parado a olhá-lo . Ele soergueu-se . O homem
sorriu. Te conozco , disse .
Billy estendeu o braço e pegou no chapéu e pô-lo na cabeça. Pois ,
disse . E eu também te conheço .
Mande ?
Dónde está su compaiiero ?
O homem ergueu uma mão do arção dianteiro da sela num gesto va-
go . Se murió , disse . Dónde está la muchacha ?
Lo mismo .
O homem sorriu . Disse que os caminhos do Senhor eram misteriosos .
Tiene razón .
Y su hermano ?
No sé. Muerto también, tal vez .
Tantos , comentou o homem .
B illy olhou para o ponto onde os seus cavalos estavam a pastar.
Adormecera com a cabeça sobre a mochila fechada com uma correia,
em cujo interior a pistola estava guardada. Os olhos do outro seguiram
os seus quando ele os desviou . O homem disse que , por cada homem
que a morte escolhe , um outro vê a sua pena comutada, e sorriu com
ares conspirativos . Como alguém que encontrou um seu semelhante .
Curvou-se para diante , com as mãos muito compostas sobre o cepilho
da sela, e escarrou .
Qué piensa ? indagou .
B illy não sabia ao certo o que lhe estava a ser perguntado . Disse que
os homens morrem .
A Travessia 35 1

Sentado na sela, o homem ponderou este comentário com ar grave .


Como se houvesse um substrato mais profundo contido nesta ideia que
ele tivesse de ter em conta. Disse que os homens pensam que as escolhas
da morte são uma coisa insondável , e, contudo , cada acto suscita o acto
que se segue , e , na medida em que colocam um pé diante do outro , os
homens tomam-se cúmplices da sua própria morte , assim como de todos
os outros factos do seu destino . Acrescentou ainda que , por outro lado ,
não podia deixar de se considerar que o fim último de cada homem é
determinado logo à nascença, e que os homens buscam a sua própria
morte , derrubando todo e qualquer obstáculo . Disse que ambas estas
perspectivas eram uma só e que , embora os homens possam encontrar a
morte em lugares estranhos e obscuros que facilmente poderiam ter evi­
tado , era mais correcto dizer-se que, por mais oculto ou tortuoso que
fosse o caminho para a sua própria destruição , eles acabavam sempre por
o trilhar. Sorriu . Falava como alguém que parecia dar-se conta de que a
morte era a condição da existência, e a vida uma mera emanação desta.
Qué piensa usted? perguntou . B illy disse que não tinha opinião , além
daquela que já exprimira . Disse que , quer a vida de um homem estives­
se inscrita num livro algure s , quer fosse sendo moldada dia após dia, a
vida era uma e uma só , pois possuía somente uma realidade , e essa rea­
lidade era o acto de a viver. Disse que , embora fosse verdade que os
homens moldam as suas próprias vidas , era também verdade que estas
vidas não podiam possuir uma forma diferente , pois que forma seria
então essa?
Bien dicho , comentou o homem . Espraiou a vista pelas cercanias .
Disse que conseguia ler os pensamentos dos homens . B illy não lhe fez
notar que ele já por duas vezes lhe perguntara o que estava ele a pensar.
Perguntou ao homem se conseguia adivinhar o que ele estava a pensar
naquele momento , mas o homem limitou-se a responder que os pensa­
mentos de ambos eram exactamente os mesmos. Em seguida, declarou
que não guardava rancor a nenhum homem por causa de uma mulher, já
que as mulheres eram somente haveres ambulantes que qualquer um
podia confiscar e que isso não passava de um folguedo que não devia
ser levado a sério por homens dignos desse nome . Acrescentou que não
tinha em grande conta os homens que matavam por causa de rameiras .
Fosse como fosse , concluiu , a cadela estava morta, o mundo seguia o
seu curso .
Tomou a sorrir. Tinha qualquer coisa dentro da boca e desviou-a para
um lado com a língua e sorveu o ar entre os dentes e tornou a desviá-la
para a posição inicial . Tocou no chapéu .
352 Cormac McCarthy

Bueno , disse . E! camino espera .


Tocou novamente no chapéu e picou de esporas o cavalo e torceu-lhe
as rédeas até o animal revirar os olhos e baixar a garupa e bater com as
patas no chão e partiu então a trote pelo meio das árvores e meteu pela
estrada, onde em breve desapareceu da vista. B illy desafivelou a mochila
e tirou de lá a pistola e abriu a janela de carregamento com o polegar e
rodou o tambor e verificou as câmaras e depois baixou o cão com o pole­
gar e ficou ali sentado durante muito tempo , de ouvido apurado , à espera.
No dia quinze de Maio , a fazer fé no primeiro jornal que ele via des­
de há sete semanas , tomou a penetrar em Casas Grandes e guardou o
cavalo num estábulo e alugou um quarto no Hotel Carnino Recto .
Levantou-se de manhã e percorreu o corredor ladrilhado até à sala de
banhos . Quando regressou , postou-se diante da janela, onde a luz mati­
nal tombava de viés sobre a trama crua no tapete gasto debaixo dos seus
pés , e pôs-se a ouvir uma rapariga a cantar no j ardim , lá em baixo .
Estava sentada sobre um pano de lona branca , e , amontoadas sobre a
lona, encontravam-se nueces ou nozes-pecãs , uns quantos alqueires
destas . Ela tinha uma pedra achatada presa entre os joelhos e ia partindo
as nozes-pecãs com uma mano de pedra e , enquanto trabalhava, ia can­
tando . Curvada para diante , com o cabelo escuro a tombar-lhe em volta
das mãos como um véu , trabalhava e cantava. Cantava assim:

Pueblo de Bachiniva
Abril era el mes
Jinetes armados
Llegaron los seis

Esmagava as cascas entre as pedras , extraía as nozes e deixava-as cair


num frasco a seu lado .

Si tenía miedo
No se le veía en su cara
Cuantos vayan llegando
El güerito les espera

Separava com os dedos de ossos finos a semente da casca, os delica­


dos hemisférios fissurados onde está inscrito , forçoso é que acreditemos ,
cada traço da árvore que a gerou , cada traço da árvore que ela irá gerar.
Em seguida, ela cantou novamente as mesmas duas estrofes . Ele abotoou
a camisa e pegou no chapéu e desceu a escada e saiu para o pátio .
A Travessia 353

Quando o viu a caminhar ao seu encontro sobre o empedrado , ela parou


de cantar. Ele tocou no chapéu e desejou-lhe os bons-dias . Ela ergueu o
rosto e sorriu . Era uma rapariga dos seus dezasseis anos, talvez . Muito
bonita. Ele perguntou-lhe se sabia mais alguma estrofe do corrido que
estava a cantar, mas ela respondeu que não . Disse que era um corrido
antigo . Disse que era muito triste e que , no final , o güerito e a novia
morrem nos braços um do outro , porque se lhes acabaram as munições .
Disse que , no final , os homens do patrón se afastam a cavalgar e as
pessoas vêm do povoado e levam o güerito e a sua novia para um lugar
secreto e ali os sepultam e os passarinhos fogem a voar, mas que ela não
se lembrava bem da letra e , fosse como fosse , estava cheia de vergonha
por ele ter estado a ouvi-la cantar. Ele sorriu . Disse-lhe que ela tinha uma
voz bonita, e ela desviou o rosto e deu um estalo com a língua.
Ele ficou parado a olhar sobre o pátio , para as montanhas a oeste .
A rapariga observava-o .
Déme su mano , pediu .
Mande ?
Déme su mano . Ela própria estendeu a mão diante de si , de punho
cerrado . Ele acocorou-se sobre os tacões das botas e estendeu a mão e
ela deu-lhe um punhado de nozes-pecãs descascadas e depois fechou a
mão dele com a sua e olhou em volta, como se fora um qualquer pre­
sente secreto e alguém pudesse ver. Ándale pues , disse . Ele agradeceu­
-lhe e ergueu-se e voltou para trás , cruzando o pátio , e subiu até ao
quarto , mas , quando tornou a olhar pela janela , ela desaparecera.
Nos dias seguintes cavalgou pelas terras altas da B abícora. Ateava a
sua fogueira numa qualquer depressão abrigada e de noite , por vezes ,
afastava-se através dos prados e deitava-se no chão , no silêncio do mun­
do , e remirava o firmamento chamejante por cima de si . Ao regressar
para junto do lume , nessas noites , pensava muitas vezes em Boyd , pen­
sava nele sentado de noite junto de uma fogueira igualzinha àquela ,
numa paisagem em tudo igual àquela. O fogo na bajada não passava de
um halo brilhante , oculto no solo como um vislumbre secreto do núcleo
chamejante da Terra que tivesse rompido caminho até ao seio da escu­
ridão . Ele parecia a si mesmo uma pessoa sem vida anterior. Como se ,
de certa forma, tivesse morrido há anos e se tivesse convertido para
todo o sempre num outro ser desprovido de história, desprovido de vida
futura digna de nota.
Nas suas deambulações a cavalo, avistava ocasionalmente grupos de
vaqueros a cruzar os prados alpestre s , por vezes montados em mulas , já
que estas conseguiam trepar os alcantis da montanha, por vezes a con-
354 Cormac McCarthy

duzirem gado diante de si . Fazia frio nas montanhas de noite , mas eles
pareciam vestidos com roupas leves e tinham somente os serapes para
se embrulharem ao dormir. Chamavam-lhes mascareiías por causa dos
bois de face branca que se criavam na B abícora e chamavam-lhes agrin­
gados porque trabalhavam para o homem branco . Passavam em desfiles
silenciosos sobre as encostas dos taludes e trepavam através dos desfi­
ladeiros ao encontro das vegas ervosas altaneiras , montando os cavalos
com os seus modos a um tempo formais e descontraídos , com o sol
baixo a cintilar-lhes nos copos de latão amarrados aos chifres das selas .
Ele via-lhes as fogueiras a arder na montanha, de noite , mas nunca foi
ao encontro deles .
Num certo final de tarde , mesmo antes de escurecer, penetrou numa
estrada e deu meia-volta e seguiu-a para oeste . O Sol encarnado que
ardia na ampla garganta das montanhas diante dele despojara-se da sua
forma e ia sendo sorvido vagarosamente para iluminar todo o céu com
um clarão crepuscular vermelho-escuro . Quando a treva caiu , assomou
na lonjura, sobre a planície , a luz amarela de uma habitação solitária , e
ele cavalgou em frente até chegar a uma pequena cabana revestida de
tábuas imbricadas e parou o cavalo defronte da porta e chamou .
Um homem veio à porta e saiu para a varanda . Quién es ? perguntou .
Un viajero .
Cuántos son ustedes ?
Yo sólo .
Bueno , disse o homem. Desmonte . Pásale .
Ele descavalgou e amarrou as rédeas ao pilar do alpendre e subiu os
degraus e tirou o chapéu . O homem segurou a porta para o deixar pas­
sar, e ele entrou e o homem seguiu-o e fechou a porta e indicou o lume
com um aceno de cabeça.
Sentaram-se e beberam café . O homem chamava-se Quijada e era um
índio yaqui do Oeste de Sonora e era o mesmo gerente da parcela de
Nahuerichic da B abícora que dissera a Boyd para separar os cavalos
deles da remuda e os levar. Vira o güero solitário a cavalgar nas monta­
nhas e tinha dito ao alguacil para não o importunar. Disse ao convidado
que sabia quem ele era e porque viera até ali . Depois recostou-se na
cadeira. Levou a chávena aos lábios e bebeu e contemplou o fogo .
Vossemecê é o homem que nos devolveu os cavalos , disse Billy.
Ele fez que sim com a cabeça . Debruçou-se e olhou para Billy e de­
pois ficou sentado , de olhos fitos no lume . A chávena de porcelana
grossa pela qual bebia , já sem asa, parecia um almofariz de boticário, e
ele estava sentado de cotovelos sobre os joelhos , a segurar a chávena
A Travessia 355

diante de si com ambas as mãos , e B illy pensou que ele ia dizer mais
qualquer coisa, mas não . Billy bebeu pela sua chávena e ficou a segurá­
-la. O fogo crepitava. Lá fora, no mundo , tudo era silêncio . O meu ir­
mão ' tá morto? perguntou .
Está.
Mataram-no em Ignacio Zaragosa?
Não . Em San Lorenzo .
A rapariga também?
Não . Quando a levaram , estava coberta de sangue e não se tinha de
pé , por isso é natural que as pessoas pensassem que ela tinha sido ferida
a tiro , mas não foi assim.
E o que foi feito dela?
Não sei . Talvez tenha voltado para junto da família. Era muito nova.
Perguntei por ela em Namiquipa. Não sabiam o que era feito dela.
Nunca te iam dizer em Namiquipa.
Onde é que o meu irmão ' tá sepultado?
Está sepultado em Buenaventura.
Há lá alguma pedra tumular?
Há uma tábua. Ele era muito popular junto do povo . Era uma perso-
nagem muito popular.
Ele não matou o manco em La Boquilla.
Eu sei .
Eu ' tava lá.
Sim . Ele matou dois homens em Galeana. Ninguém sabe porquê .
Nem sequer trabalhavam para o latifundio . Mas o irmão de um deles era
amigo de Pedro Lopéz .
O alguacil.
O alguacil. Sim .
Ele vira-o uma vez nas montanhas , acompanhado dos seus sequazes ,
os três a descerem uma linha de cumeeira ao lusco-fusco . O alguacil
trazia uma espada curta numa bainha suspensa do cinto e não respon­
dia perante ninguém . Quijada recostou-se na cadeira e sentou-se com
as botas cruzadas na sua frente . A chávena no regaço . Ambos contem­
plavam o lume . Como se algum artefacto de metal estivesse ali a tem­
perar. Quijada ergueu a chávena como se fosse beber. Depois tornou a
baixá-la.
Há o latifundio de Babícora, explicou . Com toda a riqueza e o poder
de Mr Hearst por trás . E há os campesinos com os seus andrajos . Qual
achas tu que vai levar a melhor?
Não sei .
356 Cormac McCarthy

Ele tem os dias contados .


Mr Hearst?
Sim .
Porque é que vossemecê trabalha para a Babícora?
Porque eles me pagam .
Quem foi Socorro Rivera?
Quijada bateu ao de leve na borda da chávena com o anel de ouro que
trazia no dedo . Socorro Rivera tentou organizar os trabalhadores contra
o latifundio . Foi morto há cinco anos no paraje de Las Varitas pelas
Guardias Blancas , juntamente com dois outros homens . Crecencio
Macías e Manuel Jiménez .
Billy fez que sim com a cabeça.
A alma do México é muito antiga, prosseguiu Quijada. Quem quer
que afirme conhecê-la é um mentiroso ou um palerma. Ou ambas as
coisas . Agora que os ianques os traíram de novo , os mexicanos apres­
sam-se a reivindicar o seu sangue índio . Mas nós não os queremos .
Muito especialmente os yaquis . Os yaquis têm uma longa memória .
Acredito . Alguma vez tomou a ver o meu irmão depois d e nós termos
partido com os cavalos?
Não .
Como é que sabe tanta coisa sobre ele?
Ele era um homem perseguido . Para onde é que havia de ir?
Inevitavelmente , Casares acolheu-o . Vamos sempre ter com o inimigo
dos nossos inimigos .
Ele tinha somente quinze anos . Dezassei s , acho eu .
Ainda melhor.
Eles não cuidaram lá muito bem dele , pois não?
Ele não queria que cuidassem dele . Queria matar pessoas . Aquilo que
faz de alguém um bom inimigo também faz dessa pessoa um bom ami­
go .
No entanto , vossemecê trabalha pra Mr Hearst?
Sim.
Ele voltou-se e olhou para Billy. Eu não sou mexicano , declarou . Não
tenho essas lealdades . Essas obrigações . Tenho outras .
Tê-lo-ia abatido com as suas próprias mãos?
O teu irmão?
Sim.
Se tivesse de ser. Sim.
Se calhar, não devia ' tar aqui a beber o seu café .
S e calhar.
A Travessia 357

Ficaram ali sentados durante muito tempo . Por fim, Quijada inclinou­
-se para diante e examinou a própria chávena. Ele devia ter ido para
casa, disse .
Sim.
Porque é que não foi?
Não sei . Talvez a cachopa.
A cachopa não teria ido com ele?
Calculo que sim . Ele não tinha propriamente uma casa a que regressar.
Talvez te coubesse a ti ter cuidado melhor dele .
Ele não era pessoa de quem fosse fácil cuidar. Você mesmo o disse .
S im .
O que é que diz o corrido?
Quijada abanou a cabeça. O corrido conta tudo e não conta nada. Eu
ouvi a história do güerito há anos . Ainda o teu irmão não era sequer
nascido .
Acha que não conta a história dele?
Sim, conta a história dele . Conta o que deseja contar. Conta o que dá
vida à fábula. O corrido é a história dos pobres . Não tem de ser fiel às
verdades da história, mas sim às verdades dos homens . Conta a fábula
daquele homem solitário que é todos os homen s . Crê que , quando dois
homens se encontram , uma de duas coisas pode acontecer e nada mais.
Num caso , nasce uma mentira , e no outro , a morte .
Assim dito , parece que a morte é a verdade .
Sim. Parece que a morte é a verdade . Ele olhou para B illy. Mesmo
que o güerito na canção seja o teu irmão , ele já não é o teu irmão .
Ninguém o pode reivindicar para si .
Faço tenções de o levar de volta comigo .
Não to vão permitir.
A quem me devo dirigir?
Não há ninguém a quem te possas dirigir.
A quem é que me devia dirigir, se houvesse alguém?
Podias suplicar a Deus . À parte isso , não há ninguém .
Billy abanou a cabeça. Remirava o próprio rosto sombrio que oscila­
va em guinadas repentinas no anel branco da chávena. Ao fim de um
certo tempo , ergueu o rosto . Olhou para o lume . Acredita em Deus?
perguntou .
Quijada encolheu os ombros . Nos dias em que acordo mais piedoso ,
disse .
Ninguém nos consegue dizer como é que vai ser a nossa vida, pois
não?
358 Connac McCarthy

Não .
É sempre completamente diferente do que nós ' távamos à espera .
Quijada fez que sim com a cabeça. Se as pessoas soubessem de ante-
mão a história das suas vidas , quantas é que iriam preferir vivê-las? As
pessoas falam do que nos está reservado . Mas não há nada que nos es­
teja reservado . O dia é feito do que sucedeu antes. O mundo em si fica
certamente espantado ao ver a forma do que vai surgindo . Talvez até
Deu s .
Nós viemos até cá abaixo em busca dos nossos cavalo s . Eu e o meu
irmão . Acho que ele nem sequer queria saber dos cavalos , mas eu fui
demasiado palerma pra perceber. Eu não sabia nada sobre ele . Pensei
que sabia. Acho que ele sabia muito mais sobre mim . Gostava de o levar
de volta e de o sepultar no seu país natal .
Quijada escorropichou o café da chávena e ficou ali sentado , a
segurá-la no regaço .
Calculo que não ache que isto sej a uma ideia muito boa.
Acho que talvez tenhas alguns problemas .
Mas não é só isso que você acha.
Não .
Acha que o lugar dele é onde ele ' tá agora.
Acho que os mortos não têm nacionalidade .
Não . Mas os parentes deles têm .
Quijada não respondeu . Ao fim de muito tempo , mexeu-se . Debruçou­
-se . Voltou a chávena de porcelana branca ao contrário e segurou-a na
palma da mão e remirou-a. O mundo não tem nome , disse . Os nomes
dos cerras e das sierras e dos desertos existem apenas nos mapas .
Damos-lhes nome para não nos perdermos . E , contudo , foi por já nos
termos perdido que inventámos esses nomes . O mundo não se pode
perder. Nós é que nos perdemos . E é por esses nomes e essas coordena­
das terem sido criados por nós que não nos podem salvar. Que não nos
podem ajudar a encontrar o caminho perdido . O teu irmão está no lugar
que o mundo escolheu para ele . Está onde deveria estar. E , todavia, o
lugar que ele encontrou foi também escolhido por ele . Eis um golpe de
sorte que não deve ser desprezado .

Céu cinzento , terra cinzenta . Durante todo o dia, ele rompeu para
norte , derreado , sobre o cavalo derreado e ensopado da chuva, através da
lama arenosa das estradas de montanha. A chuva assolava a estrada dian­
te dele sob as rajadas de vento e tamborilava-lhe sobre o capote imper-
A Travessia 359

meável , e as pegadas dos cascos fechavam-se atrás dele , a ressumar lo­


do . À tardinha, ouviu novamente os grous lá no alto , a passarem muito
acima do manto de nuvens , equilibrando abaixo deles a reentrância da
curva da Terra, o clima da Terra. Os seus olhos de metal rotinados nos
trilhos que Deus designou para que eles os seguissem . Os seus corações
a transbordar.
Entrou a cavalgar na povoação de S an Buenaventura ao cair da noite
e seguiu por entre poças de água parada, deixando para trás a alameda
com os troncos das árvores pintados de branco e a velha igreja branca ,
e meteu pela velha estrada para Gallego . A chuva cessara e a água go­
tejava agora das árvores da alameda e gotejava dos altos canales nas
casas de paredes de adobe por onde ele passava. A estrada subia pelos
montes baixos a leste da localidade e aí, situado num socalco de terra
cerca de quilómetro e meio acima do casario , encontrava-se o cemitério .
Ele meteu pelo desvio e avançou a chapinhar pela vereda lamacenta
e parou o cavalo diante dos portões de madeira. O cemitério era um
recinto amplo e bravio , abrangendo um campo cheio de pedras soltas e
silvas e cercado por um muro baixo de lama seca já então em ruínas . Ele
estacou e espraiou a vista por esta desolação . Voltou-se e olhou para o
cavalo de carga atrás de si e olhou para o manto leve de nuvens cinzen­
tas e para a luz crepuscular a esmaecer a oeste . Um vento forte descia
da garganta nas montanhas , e ele desmontou e deixou cair as rédeas e
cruzou o portão e rompeu pelo campo ermo coberto de seixos dispersos .
Um corvo levantou voo dos fetos e afastou-se a esgrimir com a venta­
nia, a crocitar em voz esganiçada. Os dólmenes de arenito vermelho que
se erguiam na vertical entre as lápides e as cruzes baixas naquela char­
neca bravia assemelhavam-se às ruínas distantes de um qualquer encla­
ve clássico rodeado pelas montanhas azuis , as colinas mais próximas .
A maior parte das sepulturas não passava de simples montículos de
pedra, sem nada que as identificasse . Algumas possuíam uma singela
cruz de madeira composta por duas ripas pregadas ou presas uma à
outra com arame retorcido . As pedras arredondadas que recobriam os
quatro cantos da cerca eram os restos dispersos destes montículos , e , se
ignorássemos as estelas de pedra vermelha, aquele lugar assemelhava­
-se a um campo de batalha onde tivessem sido sepultados os mortos em
combate . Exceptuando o vento na erva selvagem e áspera, não se ouvia
som algum. Ele afastou-se ao longo de um caminho estreito e incerto
que serpenteava entre as sepulturas , entre as lajes e as lousas dos sepul­
cros enegrecidas pelos líquenes . A média distância, um pilar de pedra
vermelha com a forma de um tronco de árvore de ramos podados .
360 Connac McCarthy

O irmão dele estava sepultado contra o muro mais a sul , por baixo de
uma cruz de tábuas em cuja madeira tinham gravado com um prego em
brasa as palavras Fali e! 24 de febrero 1 943 sus hermanos en armas
dedican este recuerdo D E P. Encostado à tábua via-se um anel de ara­
me enferrujado que outrora fora uma coroa fúnebre . Não havia nome
algum .
Ele acocorou-se e tirou o chapéu . Mais a sul , um monte de lixo ardia
em fogo lento no ar húmido , e um fumo negro subia para o tecto de
nuvens escuras . A desolação daquele lugar era uma coisa requintada.
Já escurecera quando ele cavalgou de regresso a B uenaventura.
Desmontou diante da porta da igreja e entrou e tirou o chapéu . Junto ao
altar, algumas velas pequenas ardiam, e , àquela luz meio fugidia, uma
figura solitária ajoelhava-se , curvada nas suas orações . Ele avançou
pela nave lateral . Havia ladrilhos soltos no chão que baloiçavam e sol­
tavam estalidos por baixo das botas dele . Curvou-se e tocou no braço da
figura ajoelhada. Sefíora , disse .
Ela ergueu a cabeça, um rosto moreno e pespontado de rugas , visível
nas pregas mais escuras do rebozo .
Dónde está e! sepulturero ?
Muerto .
Quién está encargado de! cementerio ?
Dios .
Dónde está e! sacerdote .
Se fué.
Ele olhou em volta, para o interior mal iluminado da igreja. A mulher
parecia aguardar por novas perguntas , mas ele não sabia o que lhe per­
guntar mais .
Qué quiere, joven ? indagou ela.
Nada . Está bien . Ele baixou os olhos para ela. Por quién está oran­
do ? perguntou .
Ela disse que estava a rezar, nada mai s . Disse que deixava ao cuidado
de Deus o modo como as orações deveriam ser repartidas . Rezava por
todos . Rezaria por ele .
Gracias .
No puedo hacerlo de otro modo .
Ele assentiu com a cabeça . Conhecia-a bastante bem, aquela anciã do
México , os seus filhos há muito mortos naquele sangue e violência que
as suas preces e as suas prostrações pareciam impotentes para apazi­
guar. A sua frágil silhueta era uma constante naquela terra, a sua angús­
tia silenciosa. Para além das paredes da igreja, a noite albergava um
A Travessia 361

pavor milenar trajado com uma panóplia de penas e de escamas de pei­


xes régios , e, embora este monstro devorasse ainda os filhos daquele
povo , quem poderia dizer que piores desastres da guerra e tormentos e
aflições a constância daquela velha talvez tivesse impedido , que histó­
rias ainda mais tenebrosas contra as quai s , no fim de contas , apenas se
erguia a sua silhueta mirrada, curvada e a soltar murmúrios , as suas
mãos caducas a agarrar o terço feito de caroços de frutos . Impassível ,
austera , implacável . Diante de um Deus exactamente assim .
Quando ele saiu a cavalgar na manhã seguinte , bem cedo , já não
chovia, mas a luz do dia ainda não despontara, e a paisagem estendia-se ,
cinzenta, sob um céu cinzento . A sul , os cumes agrestes da S ierra del
Nido assomavam das nuvens e tornavam a desaparecer na lonjura . Ele
desmontou junto ao portão de madeira e peou o cavalo de carga e desa­
marrou a pá e tornou a montar e cavalgou pelo carreiro abaixo , por entre
os seixos que cobriam o chão , com a pá ao ombro .
Quando chegou junto da sepultura, descavalgou e cravou a pá na
terra e tirou as luvas da bolsa da sela e olhou para o céu cinzento e , por
fim , tirou a sela ao cavalo e peou-o e deixou-o a pastar entre as pedras .
Em seguida, voltou-se e acocorou-se e agarrou a frágil cruz de madeira,
fazendo-a oscilar para trás e para diante entre as pedras que a prendiam
até a soltar. A pá era um artefacto primitivo , encabado com uma longa
vara de paloverde , e a anilha exibia as marcas onde fora martelada sobre
o punção encaixado na bigorna, com a linha de sutura toscamente sol­
dada na forja. Tomou-lhe o peso na mão e tornou a olhar para o céu e
curvou-se e começou a remover às pazadas o montículo de pedras soltas
sobre a campa do irmão .
Demorou imenso tempo nesta labuta. Tirara o chapéu e , ao fim de um
certo tempo , despiu a camisa e pendurou-a no muro . Por volta do meio­
-dia, a avaliar pela posição do Sol , tinha cavado cerca de um metro e
enterrou a pá na terra solta e encaminhou-se para onde deixara a sela e
as bolsas e tirou de lá o seu almoço de tortillas recheadas com feijão e
sentou-se na erva a comer e a beber água pelo cantil de zinco forrado de
lona. Não se vira ninguém a passar na estrada durante toda a manhã, à
excepção de um autocarro solitário , a trepar a ladeira lentamente , com o
motor a ranger, até transpor a garganta em direcção a Gallego , para leste .
De tarde , três cães apareceram e sentaram-se entre as pedras a
observá-lo . Ele debruçou-se para apanhar um calhau do chão , mas eles
baixaram-se e desapareceram entre os fetos . Mais tarde , um carro meteu
pela estrada do cemitério e parou junto do portão e duas mulheres per­
correram o carreiro e foram até ao recanto mais ocidental do campo
362 Cormac McCarthy

santo . Ao fim de um certo tempo , regressaram . O homem que as condu­


zira até ali sentou-se no muro a fumar e ficou a olhar para Billy, mas
não disse uma palavra. B illy continuava a cavar.
A meio da tarde , a lâmina bateu no caixão . Ele pensara que talvez
nem houvesse caixão nenhum . Continuou a cavar. Quando conseguiu
pôr a nu a tampa do caixão , já pouco restava do dia. Cavou ao longo do
flanco e apalpou ao longo das tábuas de madeira, em busca de pegas ,
mas não conseguiu encontrar nenhuma. Continuou a cavar até libertar
uma das extremidades do caixão , e por essa altura já começara a escu­
recer. Cravou a pá na terra solta e foi buscar Nifío .
Selou o cavalo e trouxe-o à brida para junto da sepultura e pegou na
corda de laçar e dobrou-a sobre si e enrolou-a em volta do chifre da
sela e depois enfiou a ponta solta em volta do caixão , empurrando-a ao
longo das tábuas de madeira com a lâmina da pá. Em seguida, atirou a
pá para o chão e trepou para fora da cova e arredou o cavalo do seu
pouso e fê-lo avançar lentamente .
A corda retesou-se . Ele olhou para trás . Depois tomou a fazer avançar
o cavalo devagarinho . Ouviu-se uma explosão abafada de madeira no
buraco , e a corda ficou lassa. O cavalo estacou .
Ele voltou para trás . O caixão desfizera-se , e ele viu os ossos de Boyd
nas suas vestes mortuárias por entre as tábuas partidas . Sentou-se na
terra . O Sol pusera-se e estava a escurecer. O cavalo permanecia na
ponta da corda, à espera. Subitamente , ele sentiu frio e pôs-se de pé e
caminhou até ao muro e pegou na camisa e vestiu-a e regressou e ficou
ali parado .
Podias meter a terra lá pra dentro outra vez e pronto , disse . Nem uma
hora demoravas .
Acercou-se das bolsas da sela e tirou os fósforos e regressou e acen­
deu um e segurou-o acima da sepultura. O caixão estava quase comple­
tamente estilhaçado . Um cheiro bafiento a cave fechada elevava-se da
terra escura . Ele sacudiu o fósforo para o apagar e foi até junto do ca­
valo e soltou a corda e regressou a enrolá-la na mão e estacou a segurar
a corda enrolada, no lusco-fusco azul e sem vento , e olhou ao longe ,
para norte , onde , sob o tecto de nuvens , as estrelas mais temporãs cha­
mejavam. Bom , disse . Podias fazer isso .
Repuxou a corda até soltar a ponta que se encontrava presa ao caixão
e pousou o rolo de corda sobre o montículo de terra solta. Depois pegou
na pá e, com a lâmina, removeu uma longa lasca de madeira de uma das
tábuas partidas e bateu com a lasca contra o caixão para soltar a terra
agarrada e riscou um fósforo e pegou fogo à madeira e cravou a lasca
A Travessia 363

de viés na terra. Por fim , desceu para a sepultura e, àquela luz pálida e
bruxuleante , começou a soltar as tábuas com a pá e atirou-as uma após
outra para fora do buraco até os restos mortais do irmão ficarem total­
mente à vista, o corpo muito composto sobre um catre de andrajos
apodrecidos , a nadar nas roupas , como sempre .
Cavalgou em direcção à saída até transpor o portão e desmontou e
procurou com os olhos até avistar a silhueta do cavalo de carga recorta­
da sobre o céu , a sul , e tomou a montar e foi até lá e trouxe o animal
pela arreata e conduziu-o através do portão e até junto da sepultura.
Desmontou e desamarrou o saco-cama e desenrolou-o no chão e soltou
o oleado e estendeu-o. Era uma noite sem vento , e o círio por ele impro­
visado com uma tábua de caixão ardia ainda junto à sepultura. Desceu
para o fundo da cova e tomou o irmão nos braços e ergueu-o do caixão .
Boyd nada pesava. Ele compôs a ossada sobre a manta acolchoada e
embrulhou o corpo no tecido e amarrou a trouxa nas pontas com cor­
dões de amarrar gado enquanto o cavalo olhava, à espera. Ali perto , na
estrada de saibro , ouviu o gemido de uma camioneta na ladeira e as
luzes assomaram e descreveram uma curva vagarosa através do deserto
e sobre os promontórios desabrigados e depois a camioneta passou
adiante , deixando um rasto alvacento de poeira , e continuou a avançar
laboriosamente para leste .
Quando finalmente acabou de reencher a cova com terra, era já perto
da meia-noite . Calcou a terra com as botas e depois atirou as pedras
soltas com a pá novamente para cima do montículo e, por último , pegou
na cruz que encostara contra o muro e equilibrou-a de pé entre as pedras
e empilhou calhaus em volta para a segurar. O archote de madeira há
muito fora consumido pelo fogo , e ele pegou-lhe pela ponta carboniza­
da e atirou-o para o outro lado do muro . Depois atirou também a pá.
Ergueu Boyd nos braços e pousou-o sobre as cangalhas de madeira e
enrolou os cobertores que compunham o seu saco-cama e colocou-os
sobre a garupa do cavalo e amarrou tudo com corda. Depois afastou-se
e apanhou o chapéu do chão e pô-lo na cabeça e apanhou o cantil e
pendurou-o do chifre do cepilho pela alça e montou e fez o cavalo dar
meia-volta. Ficou ali parado um longo momento , a lançar em volta um
último olhar. Depois tomou a desmontar. Aproximou-se da sepultura e
soltou a cruz de madeira dos calhaus rolados e levou-a para junto do
cavalo de carga e amarrou-a às hastes do lado esquerdo das cangalhas e
depois tomou a montar e , conduzindo pela arreata o cavalo de carga,
rompeu através do cemitério e cruzou o portão e meteu pelo caminho
abaixo . Ao chegar à estrada, cruzou-a e meteu a corta-mato em direcção
364 Cormac McCarthy

à linha de cumeeira de Santa María, mantendo a estrela polar à sua di­


reita, olhando para trás de tempos a tempos para ver se a lona contendo
os restos mortais do irmão não descaía. As pequenas raposas do deserto
soltavam ladridos . Os velhos deuses daquela terra marcavam-lhe a rota
sobre o terreno entenebrecido . Talvez lhe inscrevessem o nome no seu
vetusto diário de vaidades .
Ao fim de duas noites a cavalgar, passou pelas luzes de Casas Grandes ,
lá longe , a oeste , a pequena cidade a perder-se d e vista atrás dele , na
planura. Atravessou a velha estrada que descia de Guzmán e de Sabinal
e foi ter ao rio Casas Grandes e meteu pelo trilho para norte que costea­
va a margem do rio . De manhã, bem cedo , ainda a luz do dia não brilha­
va a valer, cruzou o pueblo de Corralitos , meio abandonado , meio em
ruínas . As casas do povoado com seteiras nas paredes para defesa contra
os apaches já desaparecidos . Os montes nus de escórias , sombrios e vul­
cânicos , recortavam-se contra a linha do horizonte . Ele cruzou a linha do
caminho-de-ferro e, uma hora a norte da povoação , no alvorecer cinzen­
to , quatro cavaleiros irromperam de uma mancha de arvoredo e pararam
as montadas no trilho , diante dele .
Ele sofreou as rédeas do cavalo . Os cavaleiros permaneceram imó­
vei s , em silêncio . Os animais escuros que montavam ergueram os foci­
nhos , como que a farejá-lo no ar em volta. Para além das árvore s , a
forma cintilante e lisa do rio jazia como uma faca . Ele examinou os
homens . Não os vira moverem-se , e, todavia, eles pareciam mais próxi­
mos . Permaneciam divididos diante dele no carreiro , dois e mais dois .
Qué tiena allá? perguntaram .
Los huesos de mi hermano .
Permaneceram parados em silêncio . Um dos cavaleiros destacou-se
do grupo e cavalgou para diante . Cruzou o trilho enquanto assim avan­
çava e depois tomou a cruzá-lo em sentido contrário . Montava muito
direito , com expressão maliciosa. Dir-se-ia um participante num sinistro
concurso de dressage . Parou o cavalo quase ao alcance do braço de
B illy e curvou-se para diante com os antebraços cruzados sobre o arção
dianteiro da sela.
Huesos ? perguntou .
Sí.
A nova luz a oriente brilhava por trás dele , convertendo-lhe o rosto
numa sombra sob a forma do chapéu . Os outros cavaleiros eram silhue­
tas ainda mais escuras . O cavaleiro endireitou-se na sela e olhou por
cima do ombro , na direcção deles . Depois tomou a voltar-se para B illy.
Ábralo , ordenou .
A Travessia 365

No .
No ?
Permaneceram parados . Um clarão branco cintilou por baixo do cha­
péu do cavaleiro , como se ele tivesse sorrido . O que ele tinha feito fora
agarrar as rédeas do cavalo com os dentes . O clarão seguinte foi uma
navalha que assomou algures das suas roupas e reflectiu a luz ao voltar­
-se por um breve instante , como um peixe no fundo de um rio . Billy
deixou-se escorregar pelo flanco direito do cavalo. O bandolero agarrou
a arreata do cavalo de carga, mas este fincou as patas na terra e baixou­
-se sobre os quartos traseiros , e o homem picou os ilhais do seu cavalo
para o fazer avançar e tentou golpear as cordas que amarravam a carga
com a navalha, enquanto o cavalo de carga se debatia na ponta da ar­
reata. Alguns dos companheiros do homem riram-se , e ele soltou uma
imprecação e puxou o cavalo de carga para si e enrolou a arreata nova­
mente ao chifre da sela e estendeu o braço e cortou as cordas e puxou a
colcha cheia de ossos , fazendo-a tombar.
B illy estava a tentar desatar o nó na aba da bolsa da sela, para tirar de
lá a pistola, mas Nifío voltou-se e bateu com as patas no chão e recuou ,
a agitar a cabeça para a esquerda e para a direita. O bandolero soltou a
arreata do cepilho e deitou-a fora e descavalgou . O cavalo de carga deu
meia-volta e afastou-se a trote . O homem curvou-se sobre a forma caída
no chão , envolta no seu sudário, e rasgou com um único golpe largo da
navalha as cordas e a manta acolchoada, de uma ponta à outra, e afastou
as cobertas a pontapé para expor à luz cinzenta o pobre corpo de Boyd ,
com o casaco largueirão , as mãos cruzadas sobre o peito , as mãos res­
sequidas com os ossos gravados na pele de cabedal , ali estendido com
o rosto encovado volvido para o alto e a abraçar o próprio corpo como
um ser frágil , cheio de frio naquela alvorada indiferente .
Filho da puta, soltou Billy. Filho da puta.
Es un engano ? atirou o homem. Es un engano ?
Pontapeou a pobre criatura ressequida. Voltou-se com a navalha.
Dónde está el dinero ?
Las alforjas! gritou um dos cavaleiros . B illy passara sob o pescoço
de Nifío e tornou a estender o braço para a aba da bolsa da sela, no
flanco direito do cavalo . O bandolero abriu o rolo de mantas a seus pés
com a navalha e separou os cobertores a pontapé e calcou-os com as
botas e voltou-se e então estendeu o braço e agarrou as rédeas de Nifío .
Mas o cavalo deve ter visto a despontar entre eles uma qualquer força
demoníaca, pois empinou-se e recuou e , ao recuar, pisou a ossada e
tornou a empinar-se e desferiu patadas , e o bandolero perdeu o equilí-
366 Cormac McCarthy

brio e um casco dianteiro do cavalo enganchou-se-lhe no cinturão e


arrancou-lho do corpo e abriu-lhe de repelão a parte da frente das cal­
ças . Ele fugiu a rastejar de baixo do cavalo e praguejou desvairadamen­
te e tornou a tentar agarrar as rédeas que baloiçavam para cá e para lá,
e os homens atrás dele riram-se , e , antes que a alguém ocorresse uma
coisa assim , ele mergulhou a navalha no peito do cavalo .
O cavalo deteve-se e ficou parado , a estremecer. A ponta da lâmina
cravara-se no esterno do animal , e o bandolero recuou e abriu os braços .
Diabos te levem, maldito sejas ! exclamou B illy. Segurou o cavalo
trémulo pela cisgola e agarrou o cabo da navalha e puxou a lâmina do
peito do cavalo e atirou-a para longe . O sangue encheu a ferida, escor­
reu pelo peito do cavalo . Ele arrancou o chapéu da cabeça e comprimiu­
-o contra o ferimento e lançou um olhar desvairado aos homens a cava­
lo atrás de s i . Eles permaneciam montados como antes . Um deles
debruçou-se e escarrou e meneou o queixo na direcção dos outros .
Vámonos , disse .
O bandolero exigia a Billy que fosse buscar a navalha. Billy não
respondeu . Segurava o chapéu contra o peito do cavalo e tentou mais
uma vez estender o braço e soltar a aba da bolsa da sela , mas não a
conseguiu alcançar. O bandolero estendeu a mão e agarrou as correias
que prendiam as bolsas da sela e puxou-as para o chão e arrastou-as de
baixo das patas do cavalo .
Vámonos , chamou o cavaleiro .
Mas o bandolero já encontrara a pistola e ergueu-a para a mostrar aos
outros . Esvaziou o conteúdo das bolsas e espalhou os aprestos de B illy
pelo chão com os pés , as roupas de reserva, a lâmina de barbear. Pegou
numa camisa e ergueu-a e depois pendurou-a ao ombro e engatilhou a
pistola e fez rodar o tambor e baixou de novo o cão . Ergueu a perna
para transpor a devastação da ossada arrancada do seio da colcha e en­
gatilhou a pistola e encostou-a à cabeça de B illy e exigiu-lhe o dinheiro .
B illy sentia o chapéu a ficar quente e pegajoso do sangue , no ponto em
que o segurava contra o peito do cavalo . O sangue ressumava através do
feltro e corria-lhe pelo braço abaixo . Vai prà Inferno ! replicou .
Vámonos! chamou o cavaleiro . Voltou o cavalo .
O homem com a pistola olhou para os outros . Tengo que encontrar
mi cuchillo! bradou .
Desarmou a pistola e fez menção de a enfiar no cinturão , mas não
tinha cinturão . Voltou-se e olhou para montante , onde o dia vinha a
despontar atrás das margens escarpadas do rio cobertas de silvados . O
bafo dos cavalos parados formava penachos que logo se desvaneciam .
A Travessia 367

O chefe disse-lhe para ir buscar o cavalo . Disse-lhe que não precisava


da navalha e que matara um bom cavalo sem motivo .
Então foram-se embora. B illy ficou ali de pé , a segurar o chapéu es­
borrachado e ensopado de sangue , e ouviu os cavalos a atravessar o rio
a montante e depois ouviu apenas o rio e os primeiros pássaros que
despertavam naquelas cercanias e o próprio fôlego e a respiração arque­
jante do cavalo . Pôs o braço em volta do pescoço do cavalo e afagou-o
e sentia-o a tremer e sentia-o a encostar-se a ele e teve medo de que o
animal morresse e sentia no peito do cavalo um desespero muito seme­
lhante ao seu .
Torceu o chapéu para espremer o sangue e limpou a mão às calças e
desafivelou a sela e puxou-a para o chão e deixou-a caída onde tombou
no meio do caminho , juntamente com o resto dos destroços ali espalha­
dos , e conduziu o cavalo à brida vagarosamente pelo meio das árvores
e através de uma língua de cascalho até penetrar no rio . A água estava
fria ao correr-lhe para dentro das botas e ele ia falando com o cavalo e
curvou-se e ergueu o chapéu cheio de água e despejou a água sobre o
peito do animal . O cavalo fumegava ao frio , e a respiração dele come­
çara a soltar ruídos de sucção e a crepitar e soava toda distorcida. Ele
pôs a palma da mão sobre o buraco , mas o sangue correu-lhe entre os
dedos . Despiu a camisa e dobrou-a e comprimiu-a contra o peito do
animal , mas a camisa em breve se encheu de sangue , e, ainda assim, o
sangue não parava de correr.
Deixara as rédeas tombar no rio e adejar ao sabor das águas e deu
palmadinhas no cavalo e falou com ele e deixou-o ali parado enquanto
caminhou pela água até à margem e arrancou um punhado de argila mo­
lhada de baixo das raízes dos salgueiros . Voltou atrás e aplicou a argila
sobre o ferimento e alisou-a com a palma da mão aberta. Enxaguou a
camisa e espremeu-lhe a água e dobrou-a sobre o pedaço de lama e espe­
rou à luz cinzenta, com o vapor a elevar-se do rio . Não sabia se o sangue
alguma vez ia parar de correr, mas parou mesmo , e , sob os primeiros
raios esmaecidos de sol através da planura oriental , a paisagem cinzenta
pareceu aquietar-se e os pássaros pareceram aquietar-se e à luz do novo
Sol os picos das montanhas distantes a oeste , para além da região bravia
de Bavispe , assomaram do alvorecer como um sonho do mundo . O cava­
lo voltou-se e pousou-lhe a longa face ossuda sobre o ombro .
Conduziu o animal para a margem e até ao trilho e voltou-o para ficar
de frente para a luz . Olhou-lhe para dentro da boca, em busca de sangue ,
mas não havia ali sangue que ele pudesse ver. Velho Nino , disse . Velho
Nino . Deixou a sela e as bolsas da sela onde tinham tombado . As man-
368 Cormac McCarthy

tas revoltas . O cadáver do irmão de través nos panos que o envolviam ,


com um antebraço amarelo atirado para o lado . Conduziu o cavalo va­
garosamente à sua ilharga , a segurar-lhe a camisa suja de lama contra o
peito . As botas chapinhavam-lhe com água do rio e sentia-se enregela­
do . Caminharam pelo trilho acima e penetraram numa mancha de mog­
nos silvestres onde ele ficaria parcialmente oculto aos olhos de qualyuer
grupo que passasse junto ao rio e depois voltou atrás e pegou na sela e
nas bolsas da sela e nas mantas que compunham o saco-cama. Por fim ,
foi buscar os restos mortais do irmão .
Os ossos pareciam unidos somente pelo invólucro exterior ressequido
de pele e pelos respectivos tegumentos, mas o cadáver estava intacto ,
sem nenhum membro arrancado . Ele ajoelhou-se na estrada e tomou a
cruzar os braços leves como penas e embrulhou a manta acolchoada em
volta e desenredou as cordas e amarrou as pontas para que as partes
cortadas se mantivessem unidas . Quando concluiu todas estas tarefas , o
Sol já estava bem alto no céu e ele cingiu a ossada nos braços e levou-a
para o meio do arvoredo e pousou-a no chão . Por último , encaminhou-se
de novo para o rio e lavou e torceu o chapéu e encheu-o com água do rio
e levou-o ao cavalo , para ver se ele queria beber. O cavalo não qui s .
Estava deitado nas folhas e a camisa estava caída nas folhas e a compres­
sa de argila começara a estalar e o sangue corria novamente da ferida e
formava uma poça escura nos pequenos cálices de bordos acerados das
folhas secas de mogno e o cavalo não levantava a cabeça .
Ele afastou-se e procurou o cavalo d e carga, mas não o conseguiu ver.
Foi até ao rio e acocorou-se e enxaguou a camisa e vestiu-a e pegou
num punhado de argila limpa de baixo dos salgueiros e levou-a pela
encosta acima e espalhou a nova lama sobre a antiga e sentou-se , trému­
lo, nas folhas mortas , a observar o cavalo . Ao fim de um certo tempo ,
tomou a afastar-se e desceu o trilho para procurar o outro cavalo .
Não o conseguiu encontrar. Quando regressou rio acima, apanhou o
cantil que estava caído junto à berma do trilho e apanhou o copo de
latão e a lâmina de barbear e encaminhou-se de novo para o arvoredo .
O cavalo, deitado nas folhas , estremecia, percorrido por calafrios , e ele
retirou um dos cobertores do saco-cama e estendeu-o sobre o cavalo e
sentou-se com a mão sobre a espádua do animal e , ao fim de um certo
tempo , adormeceu .
Acordou com um sobressalto em pleno sonho , um sonho meio deses­
perado . Curvou-se sobre o cavalo ali deitado a respirar silenciosamente
entre as folhas e olhou para o Sol , para ver até que ponto o dia avança­
ra. Tinha a camisa quase seca sobre o tronco e desabotoou o bolso e ti-
A Travessia 369

rou de lá o dinheiro e estendeu as notas para as pôr a secar. Depois tirou


a caixa de fósforos de madeira da bolsa da sela e espalhou-os também .
Caminhou pelo trilho abaixo até ao ponto onde a emboscada ocorrera e
procurou aqui e além no chaparral da berma até encontrar a navalha.
Era um punhal antiquado feito de uma faca militar barata, com ambos
os bordos da lâmina amolados para ficarem cortantes . Limpou-a às cal­
ças e voltou para trás e juntou-a ao resto dos objectos que conseguira
reunir. Depois caminhou até onde deixara Boyd . Um carreiro de formi­
gas vermelhas encontrara a ossada, e ele acocorou-se nas folhas e
examinou-as e depois endireitou-se e pisou-as sobre a terra e pegou na
colcha e carregou-a nos braços e entalou-a na forquilha de uma árvore
e voltou para trás e sentou-se ao lado do cavalo .
Ninguém passou durante o dia inteiro . De tarde , ele foi novamente
em busca do outro cavalo . Pensou que talvez o animal tivesse fugido
para montante , ou que os salteadores o tivessem levado , mas , fosse
como fosse , nunca mais o tornou a ver. Ao cair da noite , os fósforos já
tinham secado e ele ateou uma fogueira e pôs um pouco de feijão a
aquecer e sentou-se junto ao lume e ficou à escuta do rio a passar na
treva. A Lua cor de algodão que se erguera no céu diurno , a leste , as­
somou lá no alto , e ele deitou-se , envolto nos cobertore s , e ficou a ver
se alguma ave passaria diante da Lua ao voar rio acima, para norte ,
mas , se alguma o fez , ele não a viu e , ao fim de um certo tempo , ador­
meceu .
De noite , enquanto dormia, Boyd veio ter com ele e acocorou-se
junto às brasas escuras da fogueira, tal como fizera centenas de vezes
antes, e sorriu o seu sorriso suave que não era propriamente cínico e
tirou o chapéu e segurou-o diante de si e baixou os olhos para o contem­
plar. No sonho , ele sabia que Boyd estava morto e que era preciso abor­
dar esse facto com uma certa cautela, pois os temas que exigiam discri­
ção em vida exigiam-na duplamente na morte , e ele não tinha maneira
de saber que palavra ou gesto poderia subtrair de novo o irmão para o
seio daquele vazio de onde emergira. Quando finalmente lhe perguntou
como era estar morto , Boyd limitou-se a sorrir e desviou o rosto e não
quis responder. Falaram de outras coisas e ele tentou não acordar do
sonho , mas o fantasma perdeu nitidez e esbateu-se e ele acordou e ficou
deitado , a olhar para as estrelas lá no alto através do emaranhado dos
ramos de árvore e tentou pensar como seria o lugar onde estava Boyd ,
mas Boyd estava morto e o seu corpo devastado e reduzido aos ossos ,
embrulhado na colcha, a montante , no meio das árvore s , e ele voltou o
rosto para a terra e chorou .
370 Cormac McCarthy

Estava a dormir na manhã seguinte quando ouviu os gritos de arrie­


ros e o estalar de chicotes e um cantar desabrido nos bosques a jusante .
Calçou as botas e encaminhou-se para onde o cavalo j azia nas folhas
mortas . O flanco do animal , que ele receara encontrar hirto e frio , subia
e descia sob o cobertor, e o cavalo voltou o olho para o fitar quando ele
se ajoelhou à sua ilharga. Um olho em cujo seio se desenhavam, como
no fundo de uma taça, o céu e as árvores arqueadas e o seu próprio
rosto a aproximar-se . Pousou uma mão sobre o peito do animal , onde a
lama se empastara e secara e abrira gretas . O pêlo estava duro e tinha
pontas aceradas de sangue seco . Ele afagou a espádua musculosa e falou
com o cavalo , e o cavalo exalava o ar vagarosamente pelo nariz .
Tomou a ir buscar água no chapéu , mas o cavalo não conseguia beber
sem se pôr de pé . Sentou-se e molhou a boca do animal com a mão e
ficou à escuta dos arrieros no trilho , a aproximarem-se aos poucos , e ,
ao fim de u m certo tempo , pôs-se de pé e acercou-se do caminho e ficou
parado à espera deles .
Surgiram do meio do arvoredo , a conduzir três parelhas de bois jun­
gidas , e vestiam trajes como ele nunca antes vira. Í ndios ou ciganos,
talvez, a avaliar pelas cores garridas das camisas e das faixas que usa­
vam . Conduziam os bois com uma longa guia enfiada em argolas e uma
vara a unir a parelha da frente , e os bois avançavam a custo e gingavam
nos tirantes , com o bafo a fumegar-lhes ao frio da manhã. Atrás dele s ,
sobre uma jangada artesanal feita d e madeira verde e assente sobre ve­
lhos eixos de camioneta , via-se um avião . Era de um modelo vetusto e
estava desmontado e as asas amarradas com corda ao longo da fusela­
gem . O leme do estabilizador vertical baloiçava para trás e para diante
em pequenos movimentos erráticos com o oscilar da jangada, como que
a efectuar correcções na trajectória que iam seguindo , e os bois ginga­
vam pesadamente nos seus tirantes e os pneus de borracha desirmana­
dos pregueavam-se suavemente sobre as pedras e através das ervas da­
ninhas de ambos os lados do trilho estreito .
Os almocreves , quando o viram , ergueram as mãos em gestos de
saudação e lançaram gritos . Quase como se estivessem à espera de de­
parar com ele , mais cedo ou mais tarde . Usavam colares e pulseiras de
prata e alguns exibiam pequenas argolas de ouro nas orelhas e
chamaram-no em voz alta e apontaram ao longo da estrada estreita,
para uma extensão ervosa a montante , no meandro do rio , onde iriam
parar para falar com ele . O avião pouco mais era do que um esqueleto
com farrapos de tela agarrados às longarinas , desbotados pelo sol , cor
de compota de ruibarbo , e travessas de freixo vergadas ao vapor, e lá
A Travessia 37 1

dentro viam-se os fios e cabos que corriam para a cauda, até ao leme de
direcção e aos lemes de profundidade , e via-se o cabedal dos assentos
estalado e deformado e enegrecido do sol e, nos seus engastes niquela­
dos já sem brilho , os mostradores de vidro no painel de instrumentos ,
glaucos e enevoados do esmerilar das areias do deserto . Os montantes
das asas estavam amarrados em feixes , alinhados com o corpo do apa­
relho , e as pás da hélice estavam dobradas para trás sobre a cobertura
do motor e os montantes do trem de aterragem encontravam-se dobra­
dos por baixo da fuselagem .
Eles passaram adiante e fizeram alto na planura e deixaram os mais
jovens a tratar dos animais e depois arrepiaram caminho pelo trilho fora,
a enrolar cigarros e a passar de mão em mão um esclarajo feito de um
cartucho vazio de calibre 50 dentro do qual ardia um pedaço de estopa.
Eram ciganos de Durango e a primeira coisa que lhe perguntaram foi o
que é que se passava com o cavalo .
Ele explicou-lhes que o cavalo estava ferido e que lhe parecia que os
ferimentos eram graves . Um deles perguntou-lhe quando é que aquilo
acontecera, e ele respondeu que tinha sido na véspera. O outro mandou
um dos homens mais novos até à jangada, e , passados poucos minutos ,
este regressou com uma velha sacola de lona. Em seguida, todos cami­
nharam através do arvoredo para ir ver o cavalo .
O cigano ajoelhou-se nas folhas mortas e começou por examinar os
olhos do animal . Depois retirou-lhe a lama gretada do peito e olhou
para a ferida. Ergueu o rosto para B illy.
Herida de cuchillo , explicou B illy.
A expressão do cigano não se alterou , e ele não tirou os olhos de
Billy. B illy olhou para os outros homen s . Estavam agachados sobre as
ancas , em volta do cavalo . Pareceu-lhe que , caso o cavalo morresse ,
eles eram bem capazes de o comer. Contou que um bando de quatro
ladrões lhe saíra ao caminho , e que um deles , um lunático , atacara o
cavalo . O homem assentiu com a cabeça. Passou a mão pela parte infe­
rior do queixo . Não tornou a olhar para o animal . Perguntou a B illy se
queria vender o cavalo , e B illy soube pela primeira vez que o cavalo ia
sobreviver.
Ali agachados , todos o observavam. Ele olhou para o almocreve .
Disse que o cavalo pertencera ao seu pai e que não se podia separar
dele , e o homem fez que sim com a cabeça e abriu a sacola.
Por.firio , disse . Tráigame agua .
Olhou através do arvoredo na direcção do acampamento de B illy,
onde um esguio penacho de fumo , imóvel como uma corda, se erguia
372 Cormac McCarthy

no ar matinal . Bradou ao homem que pusesse a água a aquecer e depois


tornou a olhar para B illy. Con su permiso , disse .
Por supuesto .
Ladrones .
Sí. Ladrones .
O almocreve baixou os olhos para o cavalo . Gesticulou com o queixo
na direcção da árvore onde a ossada de Boyd estava alojada nos panos
que a cingiam .
Qué tiene aliá? perguntou .
Los huesos de mi hermano .
Huesos , disse o cigano . Voltou-se e olhou para o lado d o rio , aonde o
seu companheiro tinha ido com o balde . Os outros três homens espera­
vam , acocorados . Rafael, disse ele . Lena . Voltou-se para B illy e sorriu .
Olhou em volta, para a pequena mancha de árvore s , e espalmou a mão
aberta contra a face num gesto curioso , como talvez fizesse um homem
ao recordar-se de ter esquecido alguma coisa. Usava no indicador um
anel trabalhado de ouro e jóias e uma cadeia de ouro encordoada em
volta da garganta. Tornou a sorrir e fez um gesto a indicar a fogueira ,
para que fizessem os preparativos ali .
Juntaram lenha e tornaram a avivar a fogueira e trouxeram calhaus
para construir uma trempe e ali pousaram o balde a aquecer. Mergulhados
na água do balde estavam vários punhados de pequenas folhas verdes ,
e o aguadeiro cobrira o balde com o que parecia ser um velho címbalo
de latão , e todos se sentaram em volta do lume a contemplar o balde
que , ao fim de um certo tempo , começou a fumegar entre as labaredas .
O que se chamava Rafael levantou a tampa com um pau e pousou-a
no chão e mexeu a espuma verde lá dentro e depois tornou a pôr a tam­
pa. Uma infusão verde-clara escorria pelos flancos do balde e sibilava
no fogo . O chefe dos almocreve s , sentado , enrolava um cigarro . Passou
a bolsa de pano ao homem à sua ilharga e debruçou-se e retirou do lume
um galho em chamas e, com a cabeça pendida para o lado , acendeu o
cigarro e depois tornou a meter o ramo na fogueira . B illy perguntou-lhe
se ele próprio não tinha medo dos ladrões naquela região , mas o homem
limitou-se a responder que era muito raro os ladrões molestarem os gi­
tanos , porque também estes eram homens da estrada.
Y adónde van con el aeroplano ? perguntou Billy.
O cigano fez um gesto com o queixo . Al norte , respondeu .
Fumaram . O balde soltava nuvens de vapor. O cigano sorri u .
Con respecto a l aeroplano , disse , hay tres historias . Cuál quiere oír?
B illy sorriu . Disse que queria ouvir a história verdadeira.
A Travessia 373

O cigano franziu os lábios . Parecia estar a ponderar a plausibilidade


disto . Por fim , disse que era necessário tomar claro que havia dois aviões
daqueles , ambos pilotados por jovens americanos , ambos perdidos nas
montanhas no Verão calamitoso de mil nove e quinze .
Puxou uma longa fumaça do cigarro e soprou o fumo na direcção da
fogueira . Certos factos eram conhecidos , disse . Havia terreno comum e
por aí se podia começar. Aquele avião ficara ao abandono nas altas
montanhas desérticas de Sonora, e o vento e a areia soprada pela venta­
nia tinham-no despojado do revestimento de tela, e índios de passagem
tinham arrancado e levado consigo a chapa metálica de identificação no
painel de instrumentos para lhes servir de amuleto , e o aparelho para ali
ficara naquelas terras altas e bravias , perdido e votado ao abandono ,
sem que ninguém soubesse da sua existência, aliás , durante quase trinta
anos . Até aqui , tudo era uma única história . Quer houvesse dois aviões,
quer houvesse um só . Qualquer um dos aviões de que se falasse , a his­
tória era a mesma .
Puxou cuidadosamente uma fumaça da beata do cigarro , presa entre
o polegar e o indicador, com um olho escuro semicerrado por causa do
fumo que se lhe elevava junto ao nariz no ar parado . Por fim , Billy
perguntou-lhe se fazia alguma diferença de qual dos aviões se tratava ,
já que não havia diferenças dignas desse nome . O cigano fez que sim
com a cabeça. Pareceu aprovar a pergunta, embora não lhe tenha dado
resposta . Disse que o pai do piloto morto os tinha contratado para trans­
portarem o avião até um lugar junto à fronteira, mesmo a leste de
Palomas . Enviara o seu agente à cidadezinha de Madera - pueblo que
conoce - , e este agente era, ele próprio , o género de homem capaz de
fazer uma pergunta exactamente assim .
Sorriu . Fumou o resto do cigarro até só restar cinza e deixou a cinza
cair na fogueira e, em seguida, soprou o fumo vagarosamente . Lambeu
o polegar e limpou-o no joelho das calças . Disse que , para os homens
da estrada, a realidade das coisas era sempre importante . Disse que o
estratega não confundia os seus expedientes com a realidade do mundo ,
caso contrário o que seria feito dele? El mentiroso debe primero saber
la verdad, declarou . De acuerdo ?
Acenou com a cabeça na direcção do lume . O aguadeiro levantou-se
e agitou as brasas com um pau e pôs mais lenha por baixo do balde e
voltou para o seu lugar. O cigano esperou até ele ter concluído a tarefa.
Depois prosseguiu . Referiu que a identidade do pequeno biplano de
tela não tinha significado algum , excepto na respectiva história, e disse
que , uma vez que era sabido que aquele artefacto esfarrapado tinha um
374 Cormac McCarthy

irmão no mesmo estado , a questão da identidade fora efectivamente


levantada. Disse que os homens partem do princípio de que a verdade
de uma coisa reside nessa mesma coisa, independentemente das opi­
niões de quem a contempla , ao passo que aquilo que é fraudulento não
deixa de o ser, por mais fielmente que reproduza a aparência exigida.
Caso o avião que o cliente pagara para ser transportado do meio das
terras bravias e levado até à fronteira não fosse , na realidade , o aparelho
em que o filho morrera, então a sua enorme semelhança com o aparelho
genuíno não se poderia considerar um ponto a seu favor, longe disso ,
mas antes mais um pormenor na trama do mundo para ludibriar os ho­
mens . Onde está, portanto , a verdade disto? A reverência ligada aos ar­
tefactos da história é uma coisa que os homens sentem . Poderíamos até
dizer que aquilo que dota qualquer objecto de importância é somente a
história em que esse objecto participou . E , todavia, onde reside essa
história?
O cigano olhou rio acima, para o ponto onde o avião se encontrava ,
por trás das árvores . Pareceu meditar acerca d a forma d o aparelho na­
quele local . Como se naquele artefacto primitivo estivesse contida algu­
ma pista ainda por codificar acerca das campanhas da revolução , as es­
tratégias de Angeles , as tácticas de Villa. Y por qué lo quiere el cliente ?
perguntou . Que después de todo no es nada más que el ataúd de su hijo ?
Ninguém respondeu . Ao fim de algum tempo , o cigano prosseguiu .
Disse que , a princípio , achara que o cliente desejava somente possuir o
avião como recordação . Aquele cujos ossos do filho estavam há muito
espalhados pela sierra . Agora, já tinha uma opinião diferente . Disse
que , enquanto o avião permanecesse na montanha , a respectiva história
era coerente . Suspensa no tempo . A sua presença na montanha era toda
a sua história petrificada numa única imagem , à vista de todo s . O clien­
te pensava, e tinha razão em assim pensar, que , caso pudesse remover
aquele destroço do lugar onde j azia, ano após ano , à chuva e à neve e
ao sol , então e só então conseguiria despojá-lo do poder de se lhe apro­
priar dos sonhos . O cigano gesticulou com uma mão num gesto vagaro­
so e brando . La historia de! hijo termina en las montafías , disse . Y por
aliá queda la realidad de él.
Abanou a cabeça. Disse que as tarefas simples acabam por se revelar,
muitas veze s , difíceis . Disse que , fosse como fosse , aquela dádiva das
montanhas não possuía o poder genuíno de sossegar o coração de um
velho , já que , uma vez mai s , a sua viagem seria interrompida e nada se
alteraria . E a identidade do avião seria questionada, algo que nas mon­
tanhas não merecia qualquer contestação . Era forçar uma decisão .
A Travessi a 37 5

Tratava-se de um assunto delicado . E , como tantas vezes sucedia, Deus


acabara por tomar o assunto entre mãos e decidira ele mesmo as coisas .
É que , no fim de contas , ambos os aviões tinham sido trazidos do alto
da montanha , e um deles estava no rio Papigochic e o outro estava ali ,
diante deles . Como lo ve .
Esperaram . Rafael tomou a erguer-se e espicaçou o lume e levantou
a tampa do balde e mexeu o caldo fumegante lá dentro e voltou a tapá­
-lo . Entretanto , o cigano enrolara outro cigarro e acendera-o . Reflectia
sobre a melhor forma de continuar.
Cidade de Madera. Um mapa manchado e fantasioso , impresso em
papel já a rasgar-se nas dobras . Um saco de lona para dinheiro cheio de
pesos de prata. Dois homens que se conheceram quase por acaso , ne­
nhum dos quais alguma vez confiaria no outro . O cigano arrepanhou os
lábios naquilo a que dificilmente se chamaria um sorriso . Disse que ,
onde há poucas esperanças , as desilusões rareiam . Eles haviam-se em­
brenhado nas montanhas no Outono , dois anos ante s , e construíram um
trenó com troncos de árvores e, usando este meio de transporte , trouxe­
ram os destroços do avião até à orla da grande garganta do rio
Papigochic . Ali , com uma corda e um sarilho , baixariam o aparelho até
ao rio , onde construiriam então uma jangada para lhe transportar a car­
caça e as asas e os montantes rio abaixo , até à ponte da estrada de Mesa
Tres Ríos , e dali seguiriam por terra até à fronteira, a oeste de Palomas .
A neve escorraçou-os das terras altas antes mesmo de alcançarem o rio .
Os outros homens em volta daquela pálida fogueira diurna pareciam
acompanhar as palavras dele com toda a atenção . Como se eles próprios
só há pouco tempo tivessem sido recrutados para aquela empresa. O
cigano falava devagar. Descreveu-lhes a natureza da região onde o apa­
relho se despenhara. O carácter bravio daquelas paragens e as vegas
ervosas e altaneiras e as barrancas profundas onde os dias eram polares
na sua brevidade , barrancas em cujo leito grandes rios pareciam meros
pedacinhos de fio . Abandonaram aquela região e regressaram na
Primavera. Já não tinham dinheiro . Uma vidente tentou avisá-los , fazê­
-los voltar para trás . Cigana como eles . Ele pesou as palavras da mulher,
mas sabia algo que ela ignorava . Sabia que , se é certo que um sonho
pode prever o futuro , pode também contrariar esse futuro . Pois Deus
nunca permitirá que nós saibamos o que o futuro nos reserva. Ele não
está obrigado perante ninguém a fazer com que o mundo siga um curso
fixo de antemão , e aqueles que , graças a artes de feitiçaria ou a um so­
nho , consigam romper o véu que ensombra tudo o que está diante deles
podem levar, precisamente devido a essa visão , a que Deus arranque o
376 Cormac McCarthy

mundo da sua trajectória e o lance noutro curso completamente diverso ,


e depois , que dizer do feiticeiro? Que dizer do sonhador e do seu sonho?
Fez uma pausa para que todos pudessem meditar acerca disto . Para que
ele próprio pudesse meditar na questão . Depois prosseguiu . Falou do
frio nas montanhas naquela estação . Povoou o terreno para benefício do
auditório com certas aves e animai s . Papagaios . Jaguares . Homens de
outro tempo a viver nas cavernas daquela região tão remota que o mun­
do se esquecera de os matar. Os tarahumaras de pé , seminus , ao longo
da muralha de rocha a pique em volta do abismo , enquanto a fuselagem
e a estrutura das asas do avião despedaçado baloiçavam no azul e iam
mirrando e rodavam lentamente no precipício cada vez mais fundo da
barranca , silencioso e sem o mais leve repicar, e, lá muito abaixo deles ,
as silhuetas de abutres rodavam em espirais vagarosas como pedacinhos
de cinza numa corrente ascendente .
Falou dos rápidos no rio e dos grandes penedos que obstruíam a gar­
ganta e da chuva nas montanhas durante a noite e do modo como o rio
se lançava a ulular nos troços estreitos como um comboio , e , de noite ,
a chuva que tombava de uma altura de quilómetros e quilómetros para
o seio daquele fender supremo da casca da Terra sibilava-lhes nas fo­
gueiras de lenha trazida pelo rio , e a rocha maciça em volta deles , atra­
vés da qual a água rugia, estremecia como uma mulher, e , quando eles
falavam uns com os outros , nenhuma palavra se formava no ar, devido
ao ruído tremendo naquele mundo inferior.
Passaram nove dias na garganta enquanto a chuva caía e o caudal do
rio ia subindo , até que , por fim , ficaram encurralados no alto de uma
saliência rochosa como ratos silvestres ali refugiados , sete homens ao
todo , sem comida nem lenha, e toda a garganta fremia como se o mun­
do em si estivesse prestes a fender-se por baixo deles e a engolir tudo ,
e colocavam sentinelas de noite até ele próprio perguntar qual a ameaça
que os mantinha de atalaia? Que fazer caso os acometesse?
O címbalo de latão sobre o balde elevou-se uma nesga ao longo de
um bordo , e o líquido vomitou uma espuma verde que escorreu pelo
flanco do balde e o címbalo tombou de novo sem ruído . O gitano esten­
deu o braço e sacudiu a ponta de cinza do seu cigarro para cima das
brasas com ar pensativo .
Nueve días . Nueve noches . Sin comida . Sin fuego . Sin nada . O rio
engrossou e eles amarraram a jangada com as cordas do sarilho e depois
com trepadeiras e o rio engrossou ainda mais e foi despedaçando a jan­
gada, toro após toro e tábua após tábua sem que eles nada pudessem
fazer, e a chuva caía sem parar. Primeiro , as asas foram arrastadas para
A Travessia 377

longe . Eles pendiam dos penedos nas trevas ululantes , ele e os seus
homens , como grandes macacos sitiados , e gritavam mudamente uns
aos outros no turbilhão , e o primo dele , chamado Macio , desceu para
amarrar melhor a fuselagem, embora ninguém soubesse de que serviria
a fuselagem sem as asas , e o próprio Macio esteve prestes a ser arrasta­
do pelas águas e a morrer. Na manhã do décimo dia, a chuva parou . Eles
avançaram ao longo dos penedos na alvorada húmida e cinzenta, mas
todos os indícios da sua empresa se tinham eclipsado , varridos pela
cheia, como se nada tivesse acontecido . O rio continuou a engrossar, e ,
n a manhã d o dia seguinte , enquanto contemplavam , ali sentados , o jor­
ro hipnótico de água na ravina abaixo deles , um homem afogado saiu
disparado da catarata a montante , dir-se-ia um enorme peixe alvacento ,
e de bruços descreveu um círculo na espuma dos remoinhos lá ao fundo ,
como se estivesse em busca de qualquer coisa no leito do rio , e depois
foi sugado para jusante para prosseguir a sua jornada. Já percorrera um
longo caminho nas suas viagens , a avaliar pela sua aparência, pois as
roupas já tinham desaparecido , assim como grande parte da pele e todo
o cabelo , exceptuando um vago tufo sobre o crânio , completamente
raspado devido à passagem sobre os seixos ribeirinhos . Ao rodar em
círculo na espuma, moveu-se de um modo flácido e desengonçado , co­
mo se não tivesse ossos . Qual um íncubo ou um manequim. Porém , ao
vê-lo passar por baixo de si , eles puderam ver, revelado naquele corpo ,
aquilo de que os homens são feitos , tudo o que prefeririam ter conti­
nuado a ignorar. Puderam ver ossos e ligamentos e puderam ver-lhe as
ripas das costelas mais pequenas e, através da pele dessorada e corroída
pela abrasão , as formas mais escuras dos órgãos no interior. O morto
descreveu um círculo e adquiriu velocidade e depois saiu pela ravina
atroadora, como se tivesse tarefas prementes a jusante .
O cigano soprou suavemente por entre os dentes . Examinou o lume .
Y entonces qué? perguntou B illy.
Ele abanou a cabeça. Como se a recordação daquelas coisas fosse
para ele uma provação . No fim de contas , eles escalaram a escarpa para
sair da garganta e desceram as montanhas até Sahuaripa e aí esperaram
até que , finalmente , uma camioneta surgiu num zumbido a descer pela
estrada quase intransitável de Divisaderos, e eles viajaram na caixa
desta camioneta durante quatro dias , sentados com as pás atravessadas
sobre os joelhos , informes da lama, a descer vezes incontáveis para
cavar e labutar na vasa como condenados enquanto o motorista lhes
gritava da cabina, para depois retomarem a viagem no camião geme­
bunda . Até B acanora. Até Tonichi . De novo para norte , saindo de Nuri
378 Cormac McCarthy

até San Nicolás e Y écora para depois continuarem através das monta­
nhas , até Temosachic e Madera , onde o homem com quem tinham fir­
mado contrato lhes iria exigir a devolução da quantia que lhes fora
adiantada.
O cigano atirou a beata do cigarro para o lume e cruzou as botas
diante dele e puxou-as para si com ambas as mãos e ficou assim senta­
do , curvado para diante , a examinar as labaredas . B illy perguntou-lhe se
tinham chegado a encontrar os destroços do avião , e ele respondeu que
não , poi s , na realidade , nada havia para encontrar. Billy perguntou-lhe
então porque é que , bem vistas as coisas , tinham regressado a Madera,
e o homem ponderou esta pergunta. Por fim , disse que não lhe parecia
que tivesse sido por acaso que conhecera o tal homem e fora contratado
para subir às montanhas , nem fora o acaso que enviara as chuvas e cau­
sara a cheia no rio Papigochic . Permaneceram sentados em silêncio . O
homem encarregado de velar pelo balde ergueu-se uma terceira vez e
mexeu o conteúdo e retirou-o do lume para arrefecer. Billy olhou para
os rostos solenes em volta da fogueira. Os ossos por baixo da pele cor
de azeitona . Homens que vagueavam pelo mundo . Acocoravam-se ali
com leveza naquele círculo na floresta, a um tempo vigilantes e desem­
baraçados . Não estabeleciam com coisa alguma relações de proprieda­
de , quase nem o faziam com o espaço que ocupavam. Com base nas
suas vidas passadas , tinham chegado à mesma conclusão que os seus
pais antes deles . Que o movimento em si é uma forma de propriedade .
Ele olhou para eles e disse que o avião que agora transportavam para
norte ao longo da estrada era , portanto , um outro avião .
Os olhos negros de todos os presentes voltaram-se para o chefe da­
quele pequeno clã. Este permaneceu imóvel durante muito tempo .
Reinava um grande silêncio . Ali perto , na estrada, um boi começou a
urinar ruidosamente . Por fim , ele moldou a boca e disse que lhe parecia
que o destino interviera na questão por motivos que só ao destino di­
ziam respeito . Explicou que o destino podia intervir nos assuntos dos
homens para os deitar por terra ou para os menosprezar, mas dizer que
o destino podia negar a verdade e favorecer o que é falso pareceria uma
visão contraditória das coisas . Falar de uma vontade no mundo que se
opunha à nossa era uma coisa. Falar de uma tal vontade que se opuses­
se à verdade era uma coisa bem diversa, já que , nesse caso , tudo deixa­
va de fazer sentido . Billy perguntou-lhe então se achava que o falso
avião fora arrastado para longe por Deus de modo a apontar o verdadei­
ro , e o cigano respondeu que não fora assi m . Quando B illy lhe disse que
lhe parecera ter percebido das suas palavras que fora Deus quem, em
A Travessi a 379

última análise , tomara a decisão respeitante aos dois aviões , o cigano


replicou que , com efeito , estava convicto de que assim fora, mas não
acreditava que , através deste acto , Deus tivesse falado com quem quer
que fosse . Declarou que não era um homem supersticioso . Os ciganos
ouviram estas palavras e depois voltaram-se para B illy, para ver como
é que ele reagiria . Billy disse que lhe parecia que os carregadores não
atribuíam grande importância à identidade do avião , mas o gitano
limitou-se a encará-lo e examinou-o com aqueles olhos escuros e in­
quietos. Disse que a identidade do avião era importante e que se tratava,
na realidade , do cerne da sua missão . De um certo ponto de vista, era
até lícito afirmar-se que o grande problema do mundo era o facto de
aquilo que sobrevivia ser encarado como prova concreta acerca dos
acontecimentos passados . Uma falsa autoridade ligava-se ao que persis­
tia, como se os artefactos do passado que tinham resistido ao tempo o
tivessem feito por um qualquer acto de vontade própria. E , contudo , a
testemunha não podia sobreviver ao acto de testemunhar. No mundo
que acabava por existir, o que prevalecia nunca podia falar em nome do
que tinha perecido , antes podia somente exibir a sua própria arrogância.
Considerava-se símbolo e soma do mundo desaparecido , mas não era
uma coisa nem outra. Ele declarou que , fosse como fosse , o passado
pouco mais era do que um sonho , e a sua força no mundo era objecto de
grandes exageros . Pois o mundo era criado de novo a cada dia, e era
somente a maneira como os homens se agarravam às carapaças desapa­
recidas deste mundo que podia fazer dele mais uma carapaça igual a
tantas outras .
La cáscara no es la cosa , disse . Parecia igual . Mas não era.
Y la tercera historia ? indagou B illy.
La tercera historia , respondeu o cigano , es ésta . Él existe en la histo­
ria de las historias . Es que ultimadamente la verdad no puede quedar
en ningún otro lugar sino en e! habla . Abriu as mãos diante de si e olhou
para as palmas . Como se estas tivessem executado alguma labuta que
não fosse obra sua . O passado , prosseguiu , é sempre esta disputa entre
duas partes que esgrimem argumentos contrários . Memórias que o tem­
po esbateu . Não há repositório para as nossas imagens . Os entes queri­
dos que nos visitam em sonhos são estranhos . Mesmo ver com clareza
acarreta um esforço . Procuramos testemunhas , mas o mundo não nos
proporciona sequer uma só . Eis a terceira história. É a história que cada
homem cria sozinho , a partir daquilo que lhe resta. Fragmentos de des­
troços . Alguns ossos . As palavras dos mortos . Como criar um mundo a
partir disto? Como viver nesse mundo , uma vez criado?
380 Cormac McCarthy

Olhou para o balde . Já não se elevavam nuvens de vapor, e ele assen­


tiu com a cabeça e pôs-se de pé . Rafael ergueu-se e pegou na sacola e
pendurou-a ao ombro e pegou no balde , e todos seguiram o cigano atra­
vés dos bosques ribeirinhos até onde o cavalo jazia deitado , e , aí chega­
dos , um dos homens ajoelhou-se e ergueu do chão a cabeça do cavalo
enquanto Rafael tirava da sacola um funil de cabedal e um pedaço de
mangueira de borracha, depois agarraram a boca do cavalo e abriram­
-lhe as mandíbulas à força enquanto ele ensebava a mangueira e a metia
pelas goelas do cavalo abaixo e enfiava o funil na ponta, torcendo-o
para o firmar bem , e, por fim , verteram sem grande cerimónia o con­
teúdo do balde para dentro da pança do cavalo .
Quando deram a tarefa por concluída, o cigano tomou a lavar o san­
gue seco do peito do cavalo e examinou a ferida e depois amassou uma
grande mão-cheia de folhas cozidas do fundo do balde e comprimiu-as
contra o ferimento numa cataplasma que envolveu num saco de serapi­
lheira e amarrou com um cordão em volta do pescoço do cavalo e atrás
das patas dianteiras deste . Quando terminou , endireitou-se e recuou e
ficou a olhar de alto para o animal numa longa contemplação . O oavalo
tinha uma aparência muito estranha, diga-se . Soergueu a cabeça e fitou­
-os com os olhos a pestanejar e depois soltou um arquejo e estendeu o
pescoço nas folhas mortas e ficou ali deitado . Bueno , comentou o ciga­
no . Olhou para Billy e sorriu .
Foram até à estrada, e o gitano puxou a aba do chapéu para baixo ,
endireitando-a, e fez deslizar para o alto , sob o queixo , o pedaço de osso
de ave com desenhos gravados que usava para apertar a gravata, e olhou
para os bois e para a jangada e para o avião . Olhou por entre o arvoredo ,
para onde a colcha enrolada que albergava o cadáver de Boyd se encon­
trava entalada entre os ramos baixos da árvore tascate . Olhou para B illy.
Estoy regresándole a mi país , explicou Billy.
O cigano tomou a sorrir e olhou para norte ao longo da estrada. Otros
huesos , disse . Otros hermanos . Disse que , em criança, viajara imenso
pela terra dos gavachos . Contou que seguia o pai pelas ruas das cidades
ocidentais e que reuniam quinquilharias soltas das casas para depois as
venderem . Disse que , por vezes , dentro de baús e caixotes, deparavam
com velhas fotografias e ferrótipos . Aqueles retratos possuíam valor
somente para os vivos que tinham conhecido as pessoas em causa, e ,
com a passagem dos anos , já não havia ninguém nessas circunstâncias .
Mas o pai dele era cigano e tinha uma mente de cigano , e pendurava
aqueles retratos estalados e de tons esbatidos com molas da roupa nos
arames cruzados acima da carroça. E ali ficavam . Ninguém perguntava
A Travessia 381

o que eram . Ninguém o s queria comprar. A o fim d e um certo tempo , o


rapaz começou a achar que compunham uma história repleta de avisos ,
e punha-se a examinar aqueles rostos cor de sépia em busca de um qual­
quer segredo que eles lhe poderiam desvendar, um segredo dos seus
tempos de mortalidade . Os rostos tornaram-se-lhe muito familiares . A
avaliar pelas suas roupas antigas , estavam mortos há muito tempo , e ele
remirava-os , sentados a fazer pose nos degraus das varandas , sentados
em cadeiras num jardim . Todo o passado e todo o futuro e todos os so­
nhos nados-mortos cauterizados na captura fugaz da luz dentro do com­
partimento da câmara. Ele examinava aqueles rostos . Expressões de
vago descontentamento . Expressões de pesar. Talvez uma certa amargu­
ra incipiente causada por coisas que à época ainda não se tinham con­
cretizado , mas que agora pertenciam para sempre ao passado .
O pai dele dizia que os gorgios eram gente insondável , e ele próprio
achava o mesmo . Quer em carne e osso , quer em quaisquer retratos . As
fotografias suspensas do arame converteram-se para ele numa espécie
de interrogação lançada ao mundo . Pressentia nelas um certo poder e
deu-se conta de que os gorgios as consideravam funestas , pois mal olha­
vam para elas , mas a verdade era ainda mais sombria, tal como sucede
habitualmente .
O que ele acabou por perceber foi que , assim como os parentes nos
seus instantâneos esmaecidos não possuíam valor algum, exceptuando
no coração de outrem , o mesmo sucedia com esse coração no de uma
outra pessoa, num desgaste horrendo e infindável , sem que mais ne­
nhum valor existisse . Toda a representação era um ídolo . Todo o retrato
uma heresia. Nas suas imagens , eles tinham pensado encontrar uma
imortalidade mitigada, mas não se pode apaziguar o esquecimento . Era
isto que o pai lhe tentara dizer, e era por isto que eles eram homens da
estrada . Era este o motivo para haver daguerreótipos amarelecidos sus­
pensos por molas da roupa dos arcos de arame da carroça do pai .
Disse ainda que as viagens envolvendo a companhia dos mortos eram
conhecidas pela sua dificuldade , mas que , na verdade , todas as viagens
tinham tal companhia. Disse que , na sua opinião , era imprudente consi­
derar que os mortos não têm poder para agir no mundo , pois o seu poder
é grande e a sua influência frequentemente mais avassaladora junto
daqueles que menos desconfiam dela . Disse que o que os homens não
compreendem é que aquilo que os mortos abandonaram não é em si um
mundo , é igualmente a mera imagem do mundo nos corações dos ho­
mens . Disse que é impossível abandonar o mundo , pois este é eterno em
todas as suas formas , assim como o são todas as coisas que nele ex is-
382 Cormac McCarthy

tem . Naqueles rostos que agora serão eternamente anónimos entre os


seus tarecos gastos está escrita uma mensagem que nunca pode ser
enunciada, porque o tempo mataria sempre o mensageiro antes que ele
conseguisse chegar ao destino .
Sorriu . Pensamos , disse , que somos las víctimas del tiempo . En rea­
lidad la vía del mundo no es fijada en ningún lugar. Cómo sería posi­
ble ? Nosotros mismos somos nuestra propia jornada . Y por eso somos
el tiempo también . Somos lo mismo . Fugitivo . Inescrutable . Desapíadado .
Voltou-se e falou em romani com os outros , e um deles tirou um lon­
go chicote dos ganchos pregados às tábuas laterais da jangada e
desenrolou-o e fê-lo descrever um arco pelos ares, com o respectivo
estalo a ecoar como um tiro de espingarda nos bosques , e a caravana
pôs-se laboriosamente em marcha. O cigano voltou-se e sorriu . Disse
que talvez se tomassem a encontrar noutra estrada qualquer, já que o
mundo não era tão vasto como os homens imaginavam . Quando Billy
lhe perguntou quanto é que lhe devia pelos seus serviços , ele descartou
a dívida com um aceno da mão . Para el camino , respondeu . Depois
virou costas e partiu estrada fora atrás dos outros . B illy ficou ali parado ,
a segurar o fino maço de notas de banco manchadas de sangue que tira­
ra do bolso . Chamou o cigano em alta voz , e o cigano virou-se .
Gracias! gritou-lhe .
O cigano ergueu uma mão . Por nada .
Yo no soy un hombre del camino .
Mas o cigano limitou-se a sorrir e acenou com uma mão . Disse que
os usos e costumes da estrada ditavam leis a todos os que nela se aven­
turavam . Disse que na estrada não havia casos especiai s . Depois virou
costas e afastou-se em passadas largas atrás dos outros .

Ao final da tarde , o cavalo ergueu-se e ficou de pé sobre as patas


trémulas . Ele não lhe pôs a cabeçada, apenas caminhou a par do animal
até ao rio , onde este entrou na água com passos muito cautelosos e be­
beu durante imenso tempo . Ao cair da noite , enquanto estava a preparar
o jantar com as tortillas e o queijo de cabra que os ciganos lhe tinham
deixado , um cavaleiro surgiu na estrada. Solitário. A assobiar. Parou
entre as árvores . Depois avançou mais devagar.
Billy pôs-se de pé e caminhou até à estrada, e o cavaleiro deteve-se e
ficou escarranchado na sela. Empurrou o chapéu um bocadinho para
trás , para melhor ver, para melhor ser visto . Olhou para Billy e para a
fogueira e para o cavalo deitado no bosque mais além .
A Travessia 383

Buenas tardes , saudou B illy.


O cavaleiro acenou com a cabeça . Montava um belo cavalo e calçava
botas de boa qualidade e trazia na cabeça um belo chapéu Stetson e
fumava um pequeno puro negro . Tirou o puro da boca e escarrou e tor­
nou a metê-lo na boca.
Falas americano? perguntou .
Falo , sim, pois .
Bem me pareceu que tinhas cara de pessoa com um bocadinho de
juízo . O que é que andas a fazer por esta terra, chiça? O que é que aque­
le cavalo acolá tem?
Bom , ando a tratar da minha vida. Acho que até posso dizer o mesmo
do cavalo .
O homem não lhe prestou atenção . Não ' tá morto , ou ' tá?
Não . Não ' tá . Uns salteadores foram-se a ele com uma navalha.
Foram-se a ele com uma navalha?
Isso mesmo .
Queres dizer que o castraram?
Não . Quero dizer que lhe deram uma facada no peito com uma nava-
lha comprida.
E porque é que fizeram uma coisa dessas , raios?
Diz-me tu .
Eu cá não sei .
Bom, eu cá também não .
O cavaleiro fumava com expressão contemplativa. Espraiou a vista
por sobre a paisagem a oeste do rio . Não compreendo este país , comen­
tou . É que não compreendo mesmo nada deste país . Não tens contigo
nenhum café que se possa beber, ou tens?
Tenho ali café ao lume . Se quiseres desmontar, também tenho o jantar
quase pronto . Não é grande coisa, mas eu partilho-o com todo o gosto .
Bom , eu agradecia-te imenso .
Desmontou com gestos fatigados e passou as rédeas por trás das cos­
tas e tornou a ajeitar o chapéu e avançou a conduzir o cavalo à brida .
Mesmo nada de nada, retomou . Viste passar por aqui o meu avião?
Acocoraram-se junto ao fogo enquanto a floresta ia escurecendo e
esperaram que o café levantasse fervura. Nunca pensei que aqueles ciga­
nos se agarrassem à tarefa com afinco , assim como ' tão a fazer, comen­
tou o homem . Tinha as minhas dúvidas sobre eles . Mas se há qualidade
que eu tenho é a seguinte: quando me engano , reconheço o meu erro .
Bom . É uma coisa boa, a pessoa ser assim .
É , sem dúvida .
3 84 Cormac McCarthy

Comeram as tortillas recheadas com feijão , juntamente com o queijo


derretido . O queijo fedia intensamente a cabra. B illy levantou a tampa
da cafeteira com um pau e olhou lá para dentro e tomou a pousar a
tampa. Olhou para o homem . Este estava sentado no chão à maneira de
um alfaiate , com uma mão a segurar as solas das botas unidas .
Tens cara de quem já anda aqui por baixo há uns tempos largos , disse .
Não sei . Que cara é essa?
Cara de quem ' tá a precisar de voltar pra casa.
Bom . É s bem capaz de ter razão . Esta é a minha terceira viagem . Foi
a única vez que vim até esta terra e que consegui aquilo de que vinha à
procura. Só que acabou por não ser o que eu queria, diabos me levem .
O homem assentiu com a cabeça. Parecia não ter necessidade de sa­
ber do que se tratava . Uma coisa te digo , contrapôs . Só me voltam a
apanhar aqui em baixo quando as galinhas tiverem dentes. Um corta­
-palha completo como o dum burro . Isso te digo eu sem rodeios ne­
nhuns .
Billy serviu o café . Beberam . O café nos copos de folha-de-flandres
estava quentíssimo , cáustico , mas o homem pareceu não reparar. Bebia
e olhava através da floresta escura na direcção do rio e dos painéis pra­
teados do rio entrançados sobre as línguas de cascalho ao luar. A jusan­
te , a taça cor de nácar da Lua jazia moldada nos recifes de nuvens como
uma caveira untada com sebo . Ele atirou as borras do café para o meio
das trevas . É melhor ir andando , disse .
Se quiseres ficar, ' tás à tua vontade .
Gosto de cavalgar de noite .
Bom.
Acho até que assim se cobre mais terreno .
Há gatunos aos montes por esta terra, disse Billy.
Gatunos , disse o homem . Remirou o lume . Ao fim de um certo tempo ,
tirou do bolso um dos charutos finos e negros e examinou-o . Em seguida,
arrancou-lhe a ponta com os dentes e cuspiu-a para o seio do fogo .
Fumas charutos?
Foi vício que nunca ganhei .
Não é contra a tua religião?
Que eu saiba, não .
O homem debruçou-se e puxou da fogueira uma cavaca a arder e
acendeu o charuto com ela . Foram precisas várias tentativas para que a
ponta do charuto pegasse fogo . Quando finalmente conseguiu, tomou a
pôr o pedaço de lenha na fogueira e soprou um anel de fumo e depois
soprou um outro anel mais pequeno através do centro deste .
A Travessia 385

A que horas partiram eles daqui ? perguntou .


Não sei . Ao meio-dia , talvez .
Não vão percorrer nem quinze quilómetros .
É capaz de ter sido mais tarde .
Sempre que eu passo a noite num lado qualquer, eles têm uma avaria .
Ainda não falharam uma vez que fosse . A culpa é minha. As sefioritas
' tão-me sempre a desviar do caminho . Gostei imenso das mademoisel­
les neste lugar aqui perto , pra não variar. Gosto muito quando elas não
falam uma palavra de inglês . Foste até lá?
Não .
Ele estendeu a mão para o seio do fogo e tirou de lá o pau que usara
para acender o charuto e agitou-o até apagar a chama e depois voltou-se
e desenhou nas trevas atrás de si com a ponta encarnada e fumegante
como uma criança. Ao fim de um certo tempo , voltou a meter o pau no
lume .
Como é que ' tá o teu cavalo? Muito mal? perguntou .
Não sei . Já ' tá assim deitado há dois dias .
Devias de ter pedido àquele cigano que tratasse dele . Eles têm fama
de saber tudo e mais alguma coisa sobre cavalos .
A sério?
Não sei . Sei que eles têm artes de fazer com que um cavalo doente
pareça cheio de saúde o tempo suficiente prà poderem vender.
Eu cá não quero vender o meu .
Deixa-me que te diga o melhor que tens a fazer.
O quê?
Mantém esta fogueira bem alta.
E porquê .
Por causa dos pumas , aí tens porquê . A carne de cavalo é a preferida
deles .
B illy fez que sim com a cabeça. Sempre ouvi dizer isso, concordou .
E sabes porque é que sempre ouviste dizer isso?
Porque é que sempre ouvi dizer isso?
Poi s .
Não . Porquê?
Porque é a verdade , ora aí ' tá porquê .
Achas que a maior parte das coisas que um homem ouve são verdade?
Tem sido essa a minha experiência.
Pois não tem sido a minha.
Ali sentado , o homem ia fumando e contemplava o fogo . Ao fim de
um certo tempo , disse: Também não tem sido a minha. Disse aquilo só
386 Cormac McCarthy

por dizer. Também não ' tive neste lugar aqui perto como tinha dito . Eu
cá mudo de mulher como quem muda de camisa. Sempre fui assim,
sempre hei-de ser.
Aqueles ciganos trouxeram aquele avião lá do alto das sierras e pelo
rio Papigochic abaixo?
Foi isso que eles contaram?
Foi .
Aquele avião saiu dum celeiro no rancho Tal iafero , perto de Flores
Magón . Nem sequer podia voar nesse lugar que tu ' tás aí a dizer. A
altitude máxima daquele avião não passa duns mil e oitocentos me­
tros .
O homem que o pilotava morreu aos comandos?
Que eu saiba, não .
Foi por isso que vieste até este país? Pra encontrar aquele avião e
levá-lo de volta?
Vim até este país porque tinha emprenhado uma rapariga em McAllen ,
no Texas , e o paizinho dela queria-me dar um tiro .
Billy fitou a fogueira.
Fala-se muito duma pessoa fugir dum lobo pra se ir a correr meter na
boca doutro , prosseguiu o homem. Alguma vez levaste um tiro?
Não .
Eu já, duas vezes . A última vez foi no centro de Cuauhtémoc , em
plena luz do dia, numa tarde de sábado . Toda a gente desatou a fugir. O
que me valeu foram duas menonistas que me apanharam do chão da rua
e me meteram numa carroça , senão eu ainda ' tava pràli caído .
E onde é que te acertaram com o tiro?
Aqui mesmo , respondeu ele . Voltou-se e empurrou o cabelo para trás
acima da têmpora direita. Vês aqui? Vê-se bem .
Debruçou-se e escarrou para dentro do lume e olhou para o charuto e
tornou a metê-lo na boca. Puxou uma fumaça. Eu cá não sou maluco ,
prosseguiu .
Eu nunca disse que eras .
Não . Mas és bem capaz de ter pensado .
É s capaz de ter pensado o mesmo sobre mim .
Sou capaz .
Isso aconteceu mesmo ou só disseste por dizer?
Não . Aconteceu mesmo .
Mataram o meu irmão a tiro aqui em baixo . Eu tinha vindo até cá pro
levar pra casa. Mataram-no a sul daqui . Numa povoação chamada S an
Lorenzo .
A Travessia 387

Uma pessoa consegue fazer com que a matem aqui em baixo quase
tão depressa como outra coisa qualquer que decida fazer.
Mataram o meu pai a tiro no Novo México . O cavalo que ' tá deitado
acolá era dele .
Este mundo é cruel , comentou o homem .
Ele veio do Texas em mil nove e dezanove . Tinha mais ou menos a
idade que eu tenho agora. Não nasceu lá. Nasceu no Missouri .
Eu tinha um tio que nasceu no Missouri . O pai dele caiu duma carro­
ça uma noite e estatelou-se na lama, perdido de bêbedo , quando ia a
passar por lá, e foi assim que calhou ele nascer no Missouri .
A minha mãe era dum rancho lá em cima , no condado de De B aca.
A mãe dela era mexicana de gema , nem sequer falava uma palavra de
inglês . Viveu com a gente até morrer. Eu tinha uma irmã mais nova
que morreu quando eu tinha sete anos , mas lembro-me perfeitamente
dela. Fui até Fort Sumner pra tentar achar a sepultura dela, mas não
consegui . Chamava-se Margaret. Sempre gostei desse nome pra uma
rapariga. Se alguma vez tivesse uma filha, era esse o nome que lhe
dava.
É melhor eu ir andando .
Bom .
Não te esqueças d o que e u te disse sobre a fogueira .
Bom.
Dá impressão de que já tiveste sarilhos de sobra neste mundo .
Pus-me a dar à língua , mais nada. Tenho tido mais sorte do que a
maioria. Só há uma vida que merece ser vivida, e eu nasci prà viver. Isso
compensa tudo o resto . O meu comparsa sabia viver bem melhor do que
eu . Era uma pessoa genuína de nascença. E era mais esperto do que eu ,
além disso . Nem só sobre cavalos . Sobre todas as coisas . O meu pai
sabia bem que assim era. Sabia-o e sabia que eu sabia e não havia mais
nada pra dizer sobre o assunto .
É melhor eu ir andando .
Toma cuidado contigo .
Hei-de tomar.
Levantou-se , ajeitou o chapéu . A Lua estava alta e o céu desanuviara­
-se . O rio , jazendo atrás das árvore s , parecia metal em fusão .
Este mundo nunca mais vai ser o mesmo , comentou o cavaleiro .
Sabias?
Eu sei . Já não o é neste momento .

* * *
388 Cormac McCarthy

Quatro dias depois , partiu para norte ao longo do rio , com os restos
mortais do irmão presos a um travais que fizera com árvores novas a
arrastar atrás do cavalo . Levaram três dias a alcançar a fronteira . Ele
deixou para trás o primeiro obelisco branco a assinalar a linha de fron­
teira internacional a oeste de Dog Springs e cruzou o velho reservatório
seco que ali existia. Os vetustos taludes de terra tinham desabado em
certos pontos , e ele cavalgou através do leito de argila gretada do reser­
vatório , com as varas do travais a raspar na sua esteira. Havia na argila
pegadas de gado e de antílopes e de coiotes que tinham passado por ali
depois de uma chuvada recente , e ele deparou com um lugar que estava
totalmente coberto por runas , os rastos aleatórios de grous em forma de
tridente onde as aves tinham descido em voo planado até pousarem
para depois deambularem em passadas largas sobre aquela lama estéril.
Dormiu naquela noite no seu país natal e teve um sonho em que viu os
peregrinos de Deus a calcorrearem a berma sombria de um caminho à
derradeira luz do lusco-fusco daquele dia, e eles pareciam estar a regres­
sar de algum árduo cometimento que não era um feito guerreiro e tam­
bém não estavam ainda em fuga, antes pareciam de regresso de alguma
labuta a que talvez aquelas e todas as outras criaturas estivessem subju­
gadas . Um arroya escuro separava-o do lugar onde eles caminhavam, e
ele olhou para ver se conseguia perceber pela natureza das suas ferra­
mentas qual a tarefa que eles tinham estado a executar, mas eles não
traziam ferramenta alguma e avançavam a custo em silêncio sobre o
pano de fundo de um céu que escurecia em todos os quadrantes e depois
desapareceram . Ao acordar nas trevas que o rodeavam por completo ,
pareceu-lhe que uma qualquer criatura teria efectivamente passado na
noite do deserto e ficou ali acordado muito tempo , mas nada lhe indica­
va que essa criatura alguma vez regressasse .
No dia seguinte , cavalgou através de Hermanas e rompeu pela estra­
da poeirenta para oeste e , nesse final de tarde , parou o cavalo defronte
da loja em Hatchita e olhou ao longe , para o Sudoeste , onde o Sol tardio
batia nos picos das Animas , e soube que nunca mais iria até àquele lu­
gar. Cruzou o vale das Animas devagar, a arrastar o travais atrás de si ,
e esta travessia levou-lhe o dia inteiro . Quando entrou no povoado de
Animas , na manhã do dia seguinte , era Quarta-Feira de Cinzas pelo
calendário , e as primeiras pessoas que ele viu foram mexicanos com
marcas de fuligem na testa , cinco crianças e uma mulher a caminharem
em fila indiana pela berma poeirenta da estrada, vindas da localidade .
Desejou-lhes os bons-dias , mas elas benzeram-se ao verem o corpo no
travais e seguiram caminho sem uma palavra. Ele comprou uma pá na
A Travessia 389

loja de ferragens e meteu para sul , afastando-se do casario , até chegar


ao pequeno cemitério , e aí peou o cavalo e deixou-o a pastar do lado de
fora dos portões enquanto labutava a cavar a sepultura.
A terra seca e o caliche já lhe davam pela cintura quando o xerife
parou o carro e saiu e veio ao encontro dele , cruzando o portão .
Já desconfiava que fosses tu , disse .
Billy deteve-se e apoiou-se na pá e ergueu os olhos para ele , de pál­
pebras franzidas . Tinha despido a camisa, reduzida a um andrajo, e es­
tendeu o braço e apanhou-a do chão e limpou o suor da testa com ela e
ficou parado , à espera.
Aquele além estendido é o teu irmão , calculo , continuou o xerife .
É , sim, senhor.
O xerife abanou a cabeça. Olhou ao longe , a remirar a paisagem .
Como se houvesse ali qualquer coisa que , em bom rigor, fosse impossí­
vel de apreender. Baixou os olhos para Billy.
Não há muita coisa pra dizer, pois não?
Não , senhor. É verdade .
Bom . Não podes andar por aí de terra em terra a sepultar pessoas .
Deixa-me ir falar com o juiz , a ver se consigo que ele passe uma certi­
dão de óbito . Nem sei ao certo a quem pertence esse talhão onde tu ' tás
a cavar.
Sim, senhor.
Vai ter comigo amanhã a Lordsburg .
' Tá certo .
O xerife puxou o chapéu para baixo e tomou a abanar a cabeça e deu
meia-volta e cruzou novamente o portão ao encontro do carro .
Nos dias que se seguiram ele cavalgou para norte , até Silver City, e
para oeste , até Duncan , no Arizona, e de novo para norte , através das
montanhas , até Glenwood , até Reserve . Trabalhou para o rancho
Carrizozos e para o GS e partiu sem motivo aparente e , em Julho desse
ano , tomou a vaguear para sul , até S ilver City, e meteu pela velha estra­
da para leste , deixando para trás as minas de Santa Rita, continuando
por San Lorenzo e pela cordilheira de B lack Range . Uma ventania so­
prava das montanhas , a norte , e a pradaria diante dele pintara-se de tons
escuros sob as nuvens em movimento . O cavalo avançava em passo
arrastado com a cabeça pendida, e o cavaleiro montava muito direito ,
com o chapéu puxado para baixo sobre os olhos . Na paisagem em volta
viam-se apenas unhas-de-gato e creosotes sobre uma planície de casca­
lho , e não havia vedações e a erva era rala. Escassos quilómetros mais
adiante , ele deparou com a estrada de asfalto e parou o cavalo . Uma
390 Cormac McCarthy

camioneta passou com um ruído gemebundo e afastou-se , mergulhando


na lonjura. A cento e trinta quilómetros dal i , as serranias de rocha agres­
te das Organ Mountains cintilavam sob as nuvens à luz facetada do sol
tardio . Enquanto ele as contemplava, viu-as dissipar-se num manto de
sombra. O vento que soprava do deserto trazia consigo salpicas de chu­
va. Ele cruzou a valeta da berma e subiu para o asfalto e reduziu a
passada do cavalo e olhou para trás . O painço que crescia espontanea­
mente na orla da estrada vergava-se e contorcia-se ao vento . Ele deu
meia-volta e começou a percorrer a estrada em direcção a uns edifícios
que avistara . Os pneus descartados dos camiões de longo curso j aziam
na berma da estrada nacional , retorcidos e enrugados , semelhantes a
bainhas de pele enegrecidas pelo sol , libertadas na muda por velhos
sáurios terrestres e ali espalhadas ao longo da faixa de macadame . O
vento descia do Norte e depois veio a chuva, que se abateu em lençóis
através da estrada diante dele .
Viam-se três edifícios de adobe situados a dois passos da estrada que
outrora tinham sido uma estação de muda naquela região , e os telhados
quase tinham desaparecido e a maior parte das vigas fora levada dali .
Em frente havia uma velha bomba de gasolina cor de laranja coberta de
ferrugem, com o vidro partido no alto . Ele conduziu o cavalo à brida
para o maior dos edifícios e tirou-lhe a sela e pousou-a no chão . A um
canto encontrava-se uma pilha de feno , e ele pontapeou-a para a soltar
ou talvez apenas para ver o que poderia conter. O feno estava seco e
poeirento e no meio havia uma depressão onde uma qualquer criatura
tinha estado a dormir. Ele saiu e contornou o edifício até às traseiras e
regressou com um velho tampão de roda e deitou água lá para dentro do
cantil de lona e segurou-o nas mãos para o cavalo beber. Lá fora, através
do caixilho despedaçado de madeira da janela, via a estrada a cintilar à
chuva, muito negra .
Pegou nas mantas e abriu-as no feno e estava sentado a comer sardi­
nhas de uma lata e a contemplar a chuva quando um cão amarelo con­
tornou o flanco do edifício e entrou pela porta aberta e parou . Olhou
primeiro para o cavalo . Em seguida, rodou a cabeça e olhou para ele .
Era um cão velho , com o pêlo já grisalho em volta do focinho , os quar­
tos traseiros horrivelmente aleijados , e a cabeça ligava-se de viés ao
corpo , dir-se-ia, e movia-se grotescamente . Uma criatura artrítica e des­
conjuntada que avançou de esguelha como um caranguejo e farejou o
chão para decifrar o rasto do homem e depois levantou a cabeça e vas­
culhou o ar em volta com o focinho e tentou destrinçá-lo das sombras
com os olhos leitosos e meio cegos .
A Travessia 39 1

Billy pousou as sardinhas cuidadosamente a seu lado . Sentia o cheiro


da criatura na humidade . O cão encontrava-se ali parado no limiar da
porta, com a chuva a tombar nas ervas e no saibro atrás de si , e estava
molhado e tinha um ar miserável , e tão coberto de cicatrizes e alquebra­
do que quase parecia feito de partes remendadas de outros cães pela mão
de vivisseccionistas tresloucados . Ficou parado e depois sacudiu-se na­
quele seu jeito grotesco e manquejou a gemer até ao recanto mais afas­
tado da divisão , onde olhou para trás e depois deu três voltas e se deitou .
Ele limpou a lâmina da faca à perna das calças e pousou a faca sobre
a lata e olhou em torno de si . Arrancou da parede um torrão solto de
terra e atirou-o ao animal . O cão emitiu um estranho som gemebundo ,
mas não se mexeu .
Desanda! gritou ele .
O cão gemeu , mas ficou deitado como antes .
Ele soltou uma imprecação em voz baixa e pôs-se de pé e olhou em
volta, à procura de uma arma. O cavalo olhou para ele e olhou para o
cão . Ele atravessou a divisão e saiu para a chuva e contornou o flanco
do edifício . Ao regressar, trazia na mão um pedaço de cano metálico
com um metro de comprido e avançou sobre o cão a empunhá-lo . Toca
a andar ! gritou . Desanda !
O cão levantou-se a soltar queixumes e avançou a bambolear rente à
parede e saiu a coxear para o terreiro . Quando ele se virou para se tornar
a sentar nas mantas , o animal esgueirou-se junto dele e entrou novamen­
te no edifício . Ele deu meia-volta e correu na direcção do animal a
brandir o cano , fazendo-o fugir precipitadamente .
Foi atrás do cão . Lá fora, este estacara na orla da estrada, ali parado
à chuva, a olhar para trás . Talvez em tempos tivesse sido um cão de
caça, talvez abandonado nas montanhas ou na berma de uma estrada por
alguém que o julgara morto . Repositório de mil e uma indignidades e
arauto só Deus sabia de quê . Ele curvou-se e apanhou na mão enclavi­
nhada um punhado de pequenas pedras do manto de cascalho e atirou­
-as . O cão ergueu a cabeça disforme e ululou de modo esquisito . Ele
arremeteu sobre o animal e este começou a fugir estrada fora. Ele cor­
reu-lhe no encalço e atirou mais pedras e gritou-lhe e atirou-lhe o peda­
ço de cano . O cano tombou a estralejar e a deslizar sobre a estrada atrás
do cão , e o cão tornou a uivar e começou a correr, a manquejar com
movimentos alquebrados sobre as patas cambadas , com a estranha ca­
beça retorcida no pescoço . Enquanto assim fugia, ergueu a cabeça de
viés e uivou mais uma vez com um som horrendo . Um ruído que não
parecia desta terra. Como se uma mescla terrível de amargura tivesse
392 Cormac McCarthy

irrompido do mundo pretérito . Afastou-se a cambalear pela estrada fora,


à chuva, apoiado nas patas tolhidas , e, enquanto assim fugia, uivou uma
e outra vez , dando voz ao desespero que lhe ia no coração , até desapa­
recer de toda a vista e de todo o som no começo da noite .

Acordou à luz branca do meio-dia no deserto e soergueu-se entre os


cobertores fétidos . A sombra do caixilho de madeira nua da janela, tra­
çada a escantilhão na parede oposta, começou a empalidecer e a
desbotar-se sob os seus olhos . Como se uma nuvem estivesse a passar
diante do Sol . Ele afastou os cobertores com um movimento brusco das
pernas e calçou as botas e pôs o chapéu e levantou-se e saiu . A estrada
tinha uma cor cinzento-clara sob a luz , e a luz estava a sumir-se ao lon­
go das margens do mundo . Passarinhos tinham despertado nos fetos do
deserto , na berma da estrada, e começaram a chilrear e a esvoaçar para
cá e para lá, e sobre o asfalto , mais adiante , bandos de tarântulas que
vinham a atravessar a estrada nas trevas como caranguejos terrestres
estacaram , petrificadas em plena flexão dos segmentos , arqueadas como
marionetas , a apalpar com as patas em gestos cadenciados de oitava
parada as súbitas sombras articuladas de si próprias por baixo de si .
Ele olhou para o fundo da estrada e olhou na direcção da luz que ia
esmaecendo . Formas cada vez mais sombrias de nuvens a cobrir todo o
horizonte setentrional . Parara de chover durante a noite , e um arco-íris
entrecortado ou imperfeito assomava do deserto numa ténue curva de
néon , e ele olhou novamente para a estrada que se estendia como antes ,
todavia mais escura e ainda a escurecer onde se afastava para leste e
onde não havia sol e não havia alvorada, e quando ele olhou novamente
para norte a luz estava a sumir-se cada vez mais depressa e aquele meio­
-dia em que ele acordara transformara-se agora numa penumbra ignota
e agora numa treva ignota e as aves que tinham levantado voo pousaram
e tudo era agora novamente silêncio nos fetos junto à estrada.
Rompeu a caminhar. Um vento frio descia das montanhas . O vento
precipitava-se , cortante , das vertentes ocidentais do continente , onde a
neve estival jazia acima do limiar do arvoredo , e o vento soprava atra­
vés das florestas altaneiras de abetos e entre os troncos dos álamos e o
vento varria a planura do deserto , no sopé . Parara de chover durante a
noite e ele rompeu a caminhar pela estrada e chamou pelo cão .
Chamou , chamou . Parado naquela treva inexplicável . Em que não ha­
via som algum em nenhum lugar, excepto o vento . Passado um certo
tempo , sentou-se na estrada. Tirou o chapéu e pousou-o no asfalto
A Travessia 393

diante de si e vergou a cabeça e tomou o rosto nas mãos e chorou .


Ficou ali sentado no chão um bom bocado , e , passado um certo tempo ,
o Oriente pintou-se afinal de tons de cinza, e , passado um certo tempo ,
o Sol genuíno e criado por Deus nasceu afinal , uma vez mai s , para
todos sem destrinça.
Glossário (não exaustivo) de A Travessia

Ángeles: Felipe Á ngeles Ramirez ( 1 869- 1 9 1 9) , herói popular da Revolução


Mexicana; foi um dos lugares-tenentes de Pancho Villa, com quem acabou
por se incompatibilizar; acabou por morrer fuzilado depois de capturado
pelas forças do presidente Venustiano Carranza .
Columbus: na noite de oito para nove de Março de 1 9 1 6 , Pancho Villa lançou
um raide sobre a povoação fronteiriça de Columbus , no Novo México , em
grande medida como retaliação pelo reconhecimento oficial , por parte do
governo americano , do regime de Venustiano Carranza (com quem Villa se
incompatibilizara) ; os Estados Unidos , por sua vez , enviaram uma força
militar sob o comando do general Pershing para território mexicano , com o
intuito de capturar Villa, mas sem sucesso .
Corrido: o corrido era a balada popular mexicana por excelência. Tinha muitas
vezes uma forma narrativa , contando à população , maioritariamente analfa­
beta , as proezas de heróis populares ou as peripécias da Revolução Mexicana
( 1 9 1 0- 1 920) .
Durango: em Abril de 1 9 1 3 , Calixto Contreras e Orestes Pereyra , à cabeça de
um exército de tropas revolucionárias , tentaram tomar Durango , capital do
estado do mesmo nome , mas foram repelidos pelas tropas huertistas (leais
ao ditador Victoriano Huerta) ; a dezoito de Junho do mesmo ano , uma coli­
gação de rebeldes sob o comando de Tomás Urbina tomou e saqueou a ci­
dade no meio de um banho de sangue .
Ejido: porção de terra agrícola explorada em regime comunitário por agricul­
tores pobres (os ejiditarios) ; no cerne da Revolução Mexicana esteve sem­
pre a questão da posse da terra, num país em que , desde os tempos coloniai s ,
dominavam os grandes latifúndios e a exploração dos camponeses pobres
por parte dos latifundiários absentistas ; foi o general Lázaro Cárdenas , pre­
s idente do México entre 1 934 e 1 940 , que encetou um verdadeiro programa
de reforma agrária , desmantelando alguns grandes latifúndios para consti­
tuir ejidos e convertendo os sem-terra em ejiditarios .
396 Glossário

Gavacho: no espanhol falado no Méxic o , usa-se o termo gavacho para desig­


nar um americano , especialmente um branco .
Gorgio: termo d a língua romani que o s ciganos empregam para designar qual­
quer não-cigano .
Hashknives: depoi s de regressar do México pela segunda vez , B illy trabalha
para um rancho no Arizona que em tempos fora conhecido por este nome ; a
designação derivava do ferro de marcar gado usado no rancho , representan­
do uma lâmina de picar carne ( «hashknife»); o rancho alcançou um estatuto
lendário no Velho Oeste em finais do século XIX , em grande medida devido
às tropelias e aos actos criminosos dos cowboys que lá trabalhavam , famo­
sos pelo seu carácter indomável e brutal .
Hearst: William Randolph Hearst ( 1 863- 1 95 1 ) , o grande magnata americano
dos jornais (em quem Orson Welles se terá inspirado para o protagonista de
O Mundo a Seus Pés) , possuía um rancho colossal no estado mexicano de
Chihuahua, chamado La B abícora . Para além de se comportar como um
latifundiário impiedoso , Hearst não se coibia de interferir na política interna
mexicana, advogando (através dos seus jornais) a necessidade de uma inter­
venção militar dos Estados Unidos para pôr cobro ao caos gerado pela revo­
lução no México .
Herrera, Maclovio: revolucionário mexicano que começou por combater ao
lado de Pancho Villa, tomando-se um dos generai s do exército deste (a fa­
mosa Divi sión dei Norte ) ; em 1 9 1 4 , quando Villa e Venustiano C arranza
entraram em conflito , Herrera tomou partido por este último , tomando-se
alvo da ira de Villa; morreu tragicamente em 1 9 1 5 , abatido pelos próprios
soldados , que o tomaram por u m inimigo .
Hidalgo de gotera: de entre as muitas e diversas c ategorias de fidalgos na
Espanha de antanho , os hidalgos de gotera eram os que gozavam deste tí­
tulo somente numa dada localidade , perdendo os privilégios da sua fidal­
guia ao mudarem de domicíl i o ; talvez a designação se fique a dever ao
facto de a água de uma goteira tombar sempre num só lugar, dele nunca se
desviando .
Hoolihan : no linguaj ar dos vaqueiros , executar um hoolihan (termo de origem
obscura) significa atirar o laço de modo a que este tombe quase na horizon­
tal sobre o pescoço do animal que se quer laçar (embora o gesto admita
muitas variantes) ; é um método especialmente eficaz para laçar um cavalo
que se encontre no meio de uma manada compacta .
L.T. : na hacienda de S an Diego , no Norte de Chihuahua (por onde os irmãos
Parham passam repetidas vezes ao longo do romance) , acima dos arcos da
fachada do edifício principal encontram-se esculpidas as iniciais L . T. , iden­
tificando o antigo proprietário , Luís Terrazas ( 1 829- 1 923 ) . Terrazas era um
dos homens mais ricos do México , dono de enormes herdades no estado de
Chihuahua . Foi na hacienda de S an Diego , tomada pelas forças rebeldes de
A Travessia 397

Pancho Vil l a , que , em 1 9 1 1 , Francisco Madero foi proclamado presidente


do México , pondo fim à longa ditadura de Porfírio Díaz .
Molcajete: grande almofariz de pedra ou de barro cozido , com três pés curtos
e resistente s , que se usa para fazer molhos .
Rivera, Socorro: Lázaro Cárdenas , presidente do Méxic o , encetou nos anos
trinta uma reforma agrária em larga escala; em 1 937 , propôs-se desmembrar
o colossal latifúndio de La B abícora (mais de trezentos mil hectares) , pro­
priedade de William Randolph Hearst; por esta époc a , chegou à região um
activista dos direitos dos sem-terra chamado S ocorro Rivera , que , segundo
certas versões , teria sido enviado pelo próprio presidente Cárdenas para
organizar os camponeses pobres e l iderar o seu movimento ; a tensão cres­
cente desembocou em violência a 14 de Abril de 1 93 9 , quando a Guardia
B l anca de Hearst (composta por mercenários) abateu S ocorro Rivera e ou­
tros activistas .
Slaughter, John: John Horton Slaughter ( 1 84 1 - 1 922) foi uma figura mítica do
Velho Oeste ; combateu na Guerra Civil , tomou-se membro dos Texas
Rangers , participou nas guerras contra os índios , tomou-se jogador, criador
de gado e agente das forças da lei; numa das suas incursões contra os apa­
che s , encontrou uma rapariguita nativa abandonada , que ele e a mulher
adoptaram e a quem deram o nome de Apache M ay (por estarem convictos
de que a criança nascera no mês de Maio) , e que viria a morrer tragicamen­
te num incêndi o .
Soldadera: o termo soldadera designa não apenas a s mulheres (esposas , com­
panheiras e familiares ) que acompanhavam os combatentes durante a
Revolução Mexicana, mas também as mulheres que , tomando armas , com­
bateram activamente nessa mesma revolução .
Índice

Prefácio 7

A Travessia

I 15
II 1 26
III 204
IV 309

Glossário (não exaustivo) de A Travessia 395


ÜBRAS DO AUTOR NESTA EDITORA

O Filho de Deus
O Guarda do Pomar
Meridiano de Sangue
A Estrada , vencedor do Prémio Pulitzer 2007
Este País Não É para Velhos
Suttree
Belos Cavalos
Nas Trevas Exteriores
NESTA COLECÇÃO

1 . Ingeborg B achmann: Trinta Anos


2. Thomas Bemhard: O Náufrago
3 . Karen B lixen: Contos de Inverno
4. Karen B lixen : Novos Contos de Inverno
5 . Karen Blixen : As Cariátides
6 . Hermann B roch : A Morte de Virgílio [ 1 .0 e 2 .0 volumes]
7 . Charles B ukowski : A Sul de Nenhum Norte
8 . Joseph Conrad: Linha de Sombra
9. Joseph Conrad: O Negro do Narciso
1 0 . F. Scott Fitzgerald: Sonhos de Inverno
1 1 . F. Scott Fitzgerald: Este Lado do Paraíso
1 2 . Alain-Foumier: O Grande Meaulnes
1 3 . W. Gombrowicz: Pornografia
1 4 . Juan Goytisolo: Paisagens depois da Batalha
1 5 . Peter Handke: O Chinês da Dor
1 6 . Peter Handke:A Angústia do Guarda-Redes antes do Penalty
1 7 . Kazuo Ishiguro : As Colinas de Nagazaki
1 8 . Panait Istrati: Kyra Kyralina
1 9 . Henry James: O Desenho no Tapete
20 . Thomas Mann :A Morte em Veneza
2 1 . Thomas Mann: O Cisne Negro
22 . Katherine Mansfield: Viagem Indiscreta
23 . Katherine Mansfield: O Garden-Party
24 . Lou Andreas-Salomé : Um Desvario
25 . ltalo S vevo : Senilidade
26 . Virginia Woolf: A Casa Assombrada
27 . Virginia Woolf: As Ondas
28 . Clarice Lispector: Onde Estiveste de Noite
29 . Clarice Lispector: Laços de Família
30 . Thomas Bemhard: Perturbação
3 1 . Henri-Pierre Roché : Jules e Jim
3 2 . Tchinguiz Aitmatov : Djamila
3 3 . Tchinguiz Aitmatov: O Navio Branco
34. Variam Chalamov: Contos de Kolimá
3 5 . F. S cott Fitzgerald: O Último Magnate
36. F. Scott Fitzgerald: Belos e Malditos
3 7 . F. Scott Fitzgerald: Terna É a Noite
3 8 . Marguerite Duras : Agatha
39. Virginia Woolf: Os Anos
40 . Michel Toumier: Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico
4 1 . Merce Rodoreda: A Morte e a Primavera
42 . Rosa Liksom: Os Paraísos do Caminho Vazio
43 . Cormac McCarthy: O Filho de Deus
44. Virgínia Woolf: Orlando
45 . Antonio Mufíoz Molina: Nada do Outro Mundo
46 . William B oyd: A Tarde Azul
47 . Stig Dagerman: As Sete Pragas do Casamento
48 . Don DeLillo: Os Nomes
49 . Cormac McCarthy : O Guarda do Pomar
50 . F. Scott Fitzgerald: O Grande Gatsby
5 1 . Richard Ford: A Última Oportunidade
5 2 . Roddy Doyle: A Mulher Que Ia contra as Portas
5 3 . Leonard Cohen: Belos Vencidos
54 . Enrico Brizzi : Jack Frusciante Saiu do Grupo
55 . David Guterson: A Neve Caindo sobre os Cedros
5 6 . Jack Kerouac : Pela Estrada Fora
57 . Connie Palmen: As Leis
5 8 . Jack Kerouac : Big Sur
5 9 . Clarice Lispector: Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres
60 . Clarice Lispector: A Paixão segundo G. H.
6 1 . Antonin Artaud: Os Tarahumaras
62 . Jack Kerouac : Os Vagabundos do Dharma
63 . Clarice Lispector: Perto do Coração Selvagem
64 . Clarice Lispector: A Maçã no Escuro
65 . Arthur Schnitzler: A História de Um Sonho
66 . Roddy Doyle: A Lenda de Henry Smart
67 . Don DeLillo: O Corpo enquanto Arte
68 . B oris Vian : A Espuma dos Dias
69 . Lorrie Moore: Pássaros da América
70 . Clarice Lispector: A Hora da Estrela
7 1 . Marguerite Duras : O Navio Night
72. Evelyn Waugh: Reviver o Passado em Brideshead
73 . Javier Marías: Negras Costas do Tempo
74 . S amuel Beckett: Molloy
75 . Robert Walser: O Salteador
76. Manuel Puig: O Beijo da Mulher Aranha
77 . Thomas Mann: As Confissões de Félix Krull, Cavalheiro de Indústria
7 8 . Dylan Thomas: Uma Visão do Mar e Outras Histórias
79 . Lorrie Moore : Como a Vida
80 . Don DeLillo: Cosmópolis
8 1 . Virgínia Woolf: Mrs . Dalloway
82. Robert Wal ser: A Rosa
83 . Rebecca Miller: Velocidade Pessoal
84. Iris Murdoch : A Máquina do Amor Sagrado e Profano
85 . Don DeLillo: Mao II
86. S am Shepard : O Grande Sonho do Paraíso
8 7 . D. H. Lawrence: Mulheres Apaixonadas
8 8 . Iris Murdoch: O Mar, o Mar
89. Robert Walser: Jakob von Gunten
90 . D. H. Lawrence: O Amante de Lady Chatterley
9 1 . Iris Murdoch: O Bom Aprendiz
92 . Robert Walser: O Ajudante
93 . Jack Kerouac : Os Subterrâneos
94 . Tim Krabbé: A Desaparecida
95 . Iris Murdoch : Um Homem Acidental
96 . Cormac McCarthy : A Estrada
97 . Junichirõ Tanizaki : Naomi
98 . Glenway Wescott: O Falcão Peregrino
99. Malcolm Lowry : Debaixo do Vulcão
1 00 . Cormac McCarthy: Este País Não É para Velhos
1 0 1 . Alice Munro : Fugas
1 0 2 . Muriel Spark: Raparigas de Escassos Recursos
1 0 3 . Alice Munro : O Amor de Uma Boa Mulher
1 04. Jack Kerouac : Duluoz, O Vaidoso
105 . Robert Walser: Histórias de Amor
1 0 6 . Kate Chopin : O Despertar
1 07 . Virginia Woolf: Rumo ao Farol
1 08 . Glenway Wescott: Um Apartamento em Atenas
109. Juan Carlos Onetti : A Vida Breve
1 1 0 . Juan Carlos Onetti: Um Sonho Realizado e Outros Contos
1 1 1 . Liudrnila Ulítskaia: Mentiras de Mulher
1 1 2 . Junichirõ Tanizaki : Diário de Um Velho Louco
1 1 3 . Iri s Murdoch : O Príncipe Negro
1 1 4. Iris Murdoch : Uma Cabeça Decepada
1 1 5 . Daphne du Maurier: O Outro Eu
1 1 6 . Junichirõ Tanizaki : A Mãe do Capitão Shigemoto e O Cortador de Canas
1 1 7 . Rebecca West: O Regresso do Soldado
1 1 8 . Cormac McCarthy : Suttree
1 1 9 . Jack Kerouac : Tristessa
1 20 . Jack London: Presa Branca
1 2 1 . John Cheever: Parece Mesmo o Paraíso
1 22 . Liudrni1a Ulítskaia: Funeral Divertido
1 23 . Juan Carlos Onetti : Os Adeuses
1 24 . Jack London: O Apelo da Floresta
1 25 . Don DeLillo: Cão em Fuga
1 26 . John Cheever: Bullet Park
1 27 . Eudora Welty : O Coração dos Ponders
1 2 8 . Thomas Pynchon: O Leilão do Lote 49
1 29 . Clarice Lispector: A Cidade Sitiada
1 30 . Eudora Welty : Os Melhores Contos
1 3 1 . Robert Walser: Os Irmãos Tanner
1 32 . Evelyn Waugh: Corpos Vis
1 3 3 . Arto Paasilinna: A Lebre de Vatanen
1 34 . Alice Munro : A Vista de Castle Rock
1 3 5 . Raymond Radiguet: Com o Diabo no Corpo
1 36 . Elsa Morante: A Ilha de Arturo
1 37 . Arto Paasilinna: Um Aprazível Suicídio em Grupo
1 3 8 . John Cheever: Crónica de Wapshot
1 39 . Arto Paasilinna: As Dez Mulheres do Industrial Rauno Riimekorpi
1 40 . Penelope Fitzgerald: A Flor Azul
1 4 1 . Evelyn Waugh: Declínio e Queda
1 42 . Djuna B arnes: O Bosque da Noite
143 . Henry Green: Amores
1 44 . Edna O ' B rien: Raparigas da Província
1 45 . Muriel Spark: Memento Mori
146. William Trevor: Depois da Chuva
1 47 . Lorrie Moore : Uma Porta nas Escadas
148 . Cormac McCarthy: Meridiano de Sangue
1 49 . Alice Munro : Demasiada Felicidade
1 50 . Cormac McCarthy : Belos Cavalos
1 5 1 . William Trevor: Amor e Verão
1 52 . Daniyal Mueenuddin : Outros Quartos, Outras Maravilhas
1 5 3 . Liudmila Petruchévskaia: Hora: Noite
1 54 . F. Scott Fitzgerald: The Crack-Up e Outros Escritos
1 55 . Don DeLillo: Americana
1 5 6 . William Trevor: A Viagem de Felicia
1 5 7 . Cormac McCarthy : Nas Trevas Exteriores
1 5 8 . Alice Munro: O Progresso do Amor
1 5 9 . Iris Murdoch: Sob a Rede
1 60 . Evelyn Waugh: As Desventuras do Sr. Pinfold
1 6 1 . Liudmila Ulítskaia: Caso Kukótski
1 62 . Jack Kerouac : Pela Estrada Fora - O Rolo Original
1 63 . Boris Vian: O Arranca Corações
1 64 . E . M . Forster: Um Quarto com Vista
1 65 . Evelyn Waugh: Enviado Especial
1 66 . John O ' Hara: Encontro em Samarra
1 67 . Raymond Roussel : Impressões de África
1 6 8 . Tom Robbins: Mais Um Número de Feira
1 69 . Yukio Mishima: Morte em Pleno Verão e Outros Contos
1 70 . Virgínia Woolf: Flush - Uma Biografia
1 7 1 . Isaac B abel : Contos Escolhidos
1 7 2 . Hiromi Kawakami : Os Anos Doces
1 7 3 . Hjalmar Sõderberg: O Doutor Glas
1 74 . Yukio Mishima: O Tumulto das Ondas
1 75 . Eudora Welty : A Filha do Optimista
1 76 . Liudmila Petruchévskaia: A Mulher Que Tentou Matar o Bebé da Vizinha
1 7 7 . Virginia Woolf: Entre os Actos
1 7 8 . Harper Lee : Mataram a Cotovia
1 7 9 . Clarice Lispector: Água Viva
1 80 . Clarice Lispector: O Lustre
1 8 1 . Don DeLillo: Great Jones Street
1 82 . Denis Johnson: Sonhos e Comboios
1 8 3 . Luigi Pirandello: Contos
1 84 . Virginia Woolf: Noite e Dia
1 85 . Evelyn Waugh: Oficiais e Cavalheiros
1 86 . Lydia Davis: Contos Completos
1 87 . Hiromi Kawakarni : Manazuru
1 8 8 . Carson McCullers : Contos Escolhidos
1 89 . Irene Némirovsky : Os Cães e os Lobos
1 90 . Irene Némirovsky : O Baile
1 9 1 . Irene Némirovsky : David Golder
1 92 . Vladimir Nabokov: Rei, Dama, Valete
1 93 . Vladimir Nabokov: Ada ou Ardor

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