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CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Diligências
de prova
e interrupção
da prescrição

MIGUEL RESENDE ELVAS1

1 Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (Escola de Lisboa). Advogado

no Departamento Jurídico da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Todas as opiniões expressas neste
texto são exclusivamente pessoais, não podendo de modo algum ser imputadas à Comissão do Mercado de
Valores Mobiliários.

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DILIGÊNCIAS DE CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS
PROVA E INTERRUPÇÃO
DA PRESCRIÇÃO

I. INTRODUÇÃO

N
o artigo 28.º do Regime Geral das ção, já à luz da jurisprudência vinda
Contraordenações e Coimas encon- de referir tal questão aparenta ser
tra-se consagrado o elenco, taxa- controvertida.
tivo, de causas de interrupção da Apesar de uma análise e com-
prescrição que vigoram no proce- preensão dessa jurisprudência à luz
dimento contraordenacional, en- dos concretos casos sub judice reve-
tre elas figurando «a realização de lar que essa suposta divergência de
quaisquer diligências de prova, de- posições quanto à idoneidade desse
signadamente exames e buscas, ou concreto tipo de diligência de pro-
com o pedido de auxílio às autori- va para interromper a prescrição
dades policiais ou a qualquer au- é, na verdade, apenas meramente
toridade administrativa», tal como aparente.
consagrada na alínea b), do n.º 1 do Essa conclusão traz, porém,
citado dispositivo. consigo um outro desafio interpre-
Pese embora a aparente linea- tativo, igualmente suscitado pela
ridade da letra da lei (v.g. ao referir jurisprudência em questão, que,
que a realização de quaisquer dili- brevitatis causa, pode ser resumido
gências de prova interrompe a pres- nos seguintes termos: será admis-
crição), facto é que a referência no sível excluir do âmbito de aplicação
mencionado preceito a “exames e da norma em questão, com funda-
buscas” enquanto tipo de diligên- mento na sua ratio teleológica, di-
cias aptas a interromper a prescri- ligências de prova manifestamen-
ção, tem originado junto dos nossos te desnecessárias e cuja realização
tribunais entendimentos aparen- tenha constituído mero expediente
temente divergentes sobre a ratio abusivo para obviar à prescrição do
subjacente a tal enunciação e, em procedimento contraordenacional?
particular, sobre as diligências de Essa é uma das questões a que,
prova que deverão considerar-se no presente texto, procuraremos
abrangidas pela sua letra. responder. Antes disso, faremos,
A relevância da questão extra- contudo, uma breve descrição dos
vasa, contudo, o mero plano teó- fundamentos e/ou ratio que subja-
rico. É que se para o comum intér- zem à interrupção da prescrição, a
prete (e aqui nos incluímos) poderá que se seguirá uma tomada de po-
parecer inequívoco, face à letra da sição, à luz da letra e - daquela que
lei, que a inquirição de uma teste- consideramos ser a - ratio da lei,
munha (como diligência de prova sobre o tipo de diligências de prova
que inequivocamente é), consti- que consideramos estarem abran-
tui, ao abrigo do mencionado pre- gidas pela alínea b), do n.º 1, do ar-
ceito, facto interruptivo da prescri- tigo 28.º do RGCO. l

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PROVA E INTERRUPÇÃO
DA PRESCRIÇÃO

II. BREVE ENQUADRAMENTO: DA INTERRUPÇÃO


DA PRESCRIÇÃO E SEUS FUNDAMENTOS

A
figura da prescrição apresenta-se curso do tempo torna mais difícil e
como garantia de certeza, segurança de resultados duvidosos a investiga-
e previsibilidade do sistema jurídico ção (e a consequente prova) do facto
e de efetivação do poder punitivo do e, em particular, da culpa do agente,
Estado em tempo útil e sem inércia elevando a cotas insuportáveis o pe-
injustificada, atribuindo ao decurso rigo de erros judiciários”.
do tempo sobre a prática de um fac- Como vem entendendo o Tribunal
to razão suficiente para que o direito Constitucional, através do instituto
sancionatório se abstenha de intervir da prescrição procura-se “[a]ssim, a
ou de punir. conciliação entre o interesse público
A propósito dessa figura ensi- na perseguição do ilícito (penal, con-
na FIGUEIREDO DIAS2, que “[p]or traordenacional) e o direito do agen-
um lado a censura comunitária tra- te de não ver excessivamente prote-
duzida no juízo de culpa esbate- lada a definição das consequências
-se, se não chega mesma a desapa- (penais, contraordenacionais) do
recer. Por outro lado, e com maior facto praticado, de modo a que pos-
importância, as exigências de pre- sa alcançar a paz jurídica individual.
venção especial, porventura muito Assim sendo, a relevância do insti-
fortes logo a seguir ao cometimen- tuto não se confina ao plano estri-
to do facto, tornam-se progressiva- tamente processual, mas reporta-se
mente sem sentido e podem mesmo também ao plano substantivo.”3
falhar completamente os seus obje- Por outro lado, como bem colo-
tivos (…) também do ponto de vis- cam em evidência MANUEL SIMAS
ta processual, aliás, como tem sido SANTOS e MANUEL LOPES DE
geralmente notado, o instituto geral SOUSA4 “[a] interrupção da prescri-
da prescrição encontra pleno funda- ção vai buscar a sua razão de ser ao
mento (…) na medida em que o de- fundamento da própria prescrição. O

2
Cfr. Direito Penal Português, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, 2009, pp. 699-670.
3
Cfr. Ac. n.º 297/2016 do Tribunal Constitucional.
4
Cfr. Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, Vislis Editores, 2001, anotação ao artigo 28.º, p. 228.

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processo contra-ordenacional ou as substanciam, assim, e em suma,


sanções prescrevem em vista da des- momentos objetivos de afirmação
necessidade da repressão, pelo es- da pretensão estadual do exercício
quecimento em que o tempo vai en- do ius puniendi e, como tal, fazen-
volvendo a infracção. Daí que todos do nossas as palavras de EDUARDO
os actos praticados no sentido da pu- CORREIA6, “[i]dóneos para afastar
nição do infractor e reveladores do os fundamentos que podem conduzir
interesse do Estado nessa punição a dar relevo à prescrição como causa
devam logicamente interromper a da extinção da responsabilidade cri-
prescrição.”5 minal” (e, por identidade de razão,
As causas de interrupção con- contraordenacional). l

5
Neste mesmo sentido, vide também o Ac. (de fixação de jurisprudência) do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2011, proferido no âmbito do processo n.º

401/07.3TBSR-A.C1-A.S1, onde se deixou consignado que: “(…) Também a consagração de causas de interrupção do procedimento contra-ordenacional se liga à

ideia de que o decurso do tempo não deve levar à prescrição do procedimento quando o Estado, pela prática de actos processuais relevantes, segundo a concreta

estruturação do processo contra-ordenacional, objectivamente afirma a sua pretensão sancionatória.”


6
Cfr. «Actos processuais que interrompem a prescrição do procedimento criminal», Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 94, N.º 3213, p. 373.

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III. DO TIPO DE DILIGÊNCIAS DE PROVA IDÓNEAS


A INTERROMPER A PRESCRIÇÃO
DO PROCEDIMENTO POR CONTRAORDENAÇÃO

N
o procedimento contraordenacional de auxilio» a terceiras entidades, en-
o instituto da prescrição encontra- quanto exemplos de diligências idó-
-se regulado no artigo 27.º do Regime neas a interromper a prescrição, o
Geral das Contraordenações e Coimas que poderia sugerir algum propósito
(de ora em diante, “RGCO”)7, sendo delimitativo. Afigura-se-nos, ain-
as causas de interrupção da mesma da assim, inequívoca, a intenção do
consagradas no artigo 28.º do men- legislador de conferir eficácia inter-
cionado diploma. ruptiva da prescrição a toda a dili-
Estatui o artigo 28.º, n.º 1, do gência de prova cuja realização seja
RGCO, na sua alínea b), que a prescri- funcionalmente dirigida à instrução
ção do procedimento contraordena- do processo de contraordenação.
cional se interrompe com «a realiza- Repare-se que, se por um lado, o
ção de quaisquer diligências de prova, legislador optou por empregar a ex-
designadamente exames e buscas, ou pressão «quaisquer diligências de
com o pedido de auxílio às autorida- prova», por outro lado, e nessa ime-
des policiais ou a qualquer autoridade diata sequência normativa, consig-
administrativa». nou, de modo expresso, o advérbio
Reconheceu, assim, o legislador, «designadamente». Ora, se o legis-
convertendo em norma, que a reali- lador quisesse restringir o âmbi-
zação, no âmbito de um processo de to das diligências de prova idóneas a
contraordenação, de quaisquer dili- interromper a prescrição às especi-
gências de prova representa afirma- ficamente elencadas na norma ou a
ção suficientemente solene da pre- outras que, com essas, partilhassem
tensão estadual do exercício do jus de alguma forma semelhanças aten-
puniendi, pelo que deverá determinar díveis, não teria determinado que a
a interrupção da prescrição do proce- realização de quaisquer diligências
dimento contraordenacional no âm- de prova interrompe a prescrição,
bito do qual tais diligências sejam nem lançado, depois, mão do advér-
realizadas. bio «designadamente» que, por na-
Sendo certo que, no mencionado tureza, desempenha uma função me-
preceito, o legislador se refere a «exa- ramente enunciativa.
mes e buscas», bem como a «pedidos O que permite concluir que os

7
Aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27/10, entretanto alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17/10, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14/09, pelo Decreto-Lei

n.º 323/2001, de 17/12, e pela Lei n.º 109/2001, de 24/12.

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exemplos de diligências de prova cias de prova tipicamente realizadas


avançados pelo legislador na alínea (oficiosamente ou a requerimento do
b), do n.º 1, do artigo 28.º do RGCO arguido) pelas autoridades adminis-
não visam delimitar, ainda que in- trativas no uso dos seus poderes de
dicativamente, o tipo de diligências instrução e investigação (cf. artigo
que, ao abrigo da norma em questão, 54.º, n.º 2 do RGCO9), também as dili-
serão de molde a interromper a pres- gências efetuadas no contexto de apli-
crição (o que, como se referiu, sem- cação do artigo 54.º, n.º 3 do RGCO10
pre seria contraditório com a deter- (v.g. os pedidos que sejam efetuados
minação expressa de que a realização pelas autoridades administrativas
de quaisquer diligências terá esse e as diligências que, no seguimen-
efeito), mas apenas tornar claro algo to desses pedidos, sejam realizadas
que poderia resultar dúbio à luz da le- pelas entidades às quais sejam con-
tra da lei. fiadas, no todo ou em parte, a inves-
Com efeito, a referência a «exa- tigação e instrução) serão de mol-
mes e buscas» (que, sublinhe-se, de a interromper a prescrição. Sendo
constituem ambos meios de obten- que, como bem coloca em evidência
ção de prova) torna claro que o efeito PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE,
interruptivo deverá ser reconhecido “[o]s pedidos de auxílio às autorida-
mesmo que as diligências (de prova) des policiais incluem quer os pedidos
realizadas assumam a natureza de de realização de diligências de provas
meios de obtenção de prova (v.g. de- quer o pedido de auxílio à força públi-
sencadeados oficiosamente pelas au- ca” (itálico nosso)11.
toridades administrativas)8. Os exemplos avançados pelo le-
A menção expressa aos “pedidos gislador (de diligências idóneas a in-
de auxilio” torna, por sua vez, ine- terromper a prescrição) têm, assim, a
quívoco que, para além das diligên- virtualidade de esclarecer que, através

8
Também no sentido de ser esta a finalidade da enunciação constante do preceito, se pronunciou recentemente o Tribunal da Concorrência, Regulação e

Supervisão de Santarém, em sentença proferida em 21.07.2021, no âmbito do processo n.º 290/20.2YUSTR (que, na fase administrativa do processo de contraor-

denação, correu termos na CMVM sob o n.º 6/2017), na qual, a propósito do preceito em análise, se deixou consignado o entendimento de “[o] que se divisa é que,

procurando evitar espúrias discussões dogmáticas e teóricas e reforçando a ideia de inexistência a um direito à prescrição, afirmou o legislador na alínea b), do

número 1, do artigo 28.º do RGCO, a aptidão de quaisquer diligências de prova para interromper a prescrição, quer assumam a natureza de meios de prova ou de

meios de obtenção de prova. Na verdade, em qualquer daquelas atuações, o acto praticado corporiza a intenção da Autoridade Pública de exercer o ius puniendi,

sendo essa a ratio da norma.”. Esta sentença pode ser consultada em www.cmvm.pt.
9
No qual se dispõe que “[a] autoridade administrativa procederá à sua investigação e instrução, finda a qual arquivará o processo ou aplicará uma coima.”.
10
No qual se dispõe que “[a]s autoridades administrativas poderão confiar a investigação e instrução, no todo ou em parte, às autoridades policiais, bem como

solicitar o auxílio de outras autoridades ou serviços públicos”.


11
Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do

Homem, Universidade Católica Editora, 2011, p. 112.

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da expressão «quaisquer diligências Ora, a realização, no âmbito de um


de prova», se pretendeu remeter quer processo de contraordenação, de qual-
para o conceito de prova como ati- quer diligência de prova (correspon-
vidade probatória (entendida como da a mesma a uma inquirição de tes-
processo de recolha de elementos temunha, a um pedido de elementos
probatórios tendente a averiguar os probatórios ao Arguido ou a terceiras
factos denunciados e a sustentar a entidades, a uma perícia, a uma bus-
acusação) quer para o conceito de ca ou exame) funcionalmente dirigi-
prova como meio (entendida como da à instrução do processo, constitui
momento de produção de prova des- manifestação, clara e inequívoca, da
tinado a formar a convicção da enti- manutenção do interesse do Estado na
dade sobre a verificação dos factos).12 efetivação da responsabilidade san-
A interpretação vinda de sufragar cionatória do agente, o que certamen-
é, a nosso ver, a única que verdadei- te justificou a opção do legislador de
ramente se coaduna com a letra da lei. atribuir, em sede contraordenacional,
Mas, para além disso, essa interpre- eficácia interruptiva à prática de qual-
tação é também a que, salvo melhor quer ato dirigido a essa finalidade.
opinião, melhor se compagina com E isto vale quer para as diligên-
aquela que nos parece ser a ratio da cias de prova que sejam realizadas
norma em questão. por iniciativa da autoridade adminis-
Como, a título de enquadramen- trativa, quer para as que sejam reali-
to, tivemos oportunidade de refe- zadas a requerimento do/s Arguido/s,
rir, aquilo que efetivamente releva, ainda que estas últimas (maxime, a
para efeitos da interrupção da pres- prova obtida e/ou produzida em re-
crição, é a manifestação por parte da sultado da sua realização) venham
Autoridade Pública da intenção (ou, a ser desconsideradas (maxime, não
pelo menos, da manutenção da in- valoradas) pela autoridade adminis-
tenção) de exercer o ius puniendi. trativa na sua decisão final13.

12
A este propósito, nunca será demais relembrar que, como ensina GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Vol. II, Verbo, 2011, pp. 143-144, a prova

tem por função a demonstração da realidade dos factos (artigo 341.º do Código Civil) podendo ser entendida com “tríplice significado”: (a) prova como atividade

probatória; (b) prova como resultado e (c) prova como meio.


13
Neste sentido vide o Ac. proferido, em 17.01.2018, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo n.º 292/17.6T9MGR.C1 (Rel. Jorge França), no qual se

consignou que:“[a]figurando-se-nos evidente que o efeito interruptivo da prescrição de determinada diligência probatória não pode ficar dependente da valora-

ção que a entidade administrativa faz da mesma, nomeadamente de a considerar ou não credível ou relevante”, e ainda que “[n]ão releva, para efeitos de ocorrência

de causa interruptiva que a prova arrolada pela defesa seja ou não considerada pela autoridade administrativa para efeitos de formação da sua convicção ou de

fundamentação da decisão, apenas relevando que haja tido lugar no processo a produção desse tipo de prova pessoal. Com efeito, a referida al. b) do artº 28º, 1, do

RGCO confere esse poder interruptivo à «realização de quaisquer diligências de prova» não arredando, de forma alguma, a produção de prova pessoal, nem fa-

zendo depender essa eficácia interruptiva da valoração ou não da prova produzida (…)” (itálicos nossos)

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Desde logo porque a lei refere- propostas pela defesa e entendidas


-se à realização de quaisquer dili- como necessárias pela autoridade
gências de prova, não distinguindo administrativa competente constitui
(nem havendo, in casu, razões para o clara manifestação do exercício de
intérprete dever distinguir) entre as tal desiderato.14
que forem realizadas oficiosamen- Por tudo quanto se expôs, en-
te e as que resultem de requerimen- tendemos assistir inteira razão a
to da defesa (e sejam consideradas ANTÓNIO BEÇA PEREIRA15 quan-
necessárias pela autoridade admi- do, em comentário ao referido artigo
nistrativa). Mas também, e sobretu- 28.º do RGCO, refere que “[d]a alínea
do, porque existem razões pondero- b) resulta que, existindo um proces-
sas para considerar tais diligências so contra-ordenacional, a realiza-
abrangidas pela letra e ratio do pre- ção de qualquer diligência da prova
ceito: consubstanciando as causas determina a interrupção da prescri-
de interrupção da prescrição mo- ção, pelo que, por exemplo, a inqui-
mentos objetivos de afirmação cla- rição de uma testemunha terá esse efei-
ra do exercício da pretensão punitiva to”, bem como a PAULO PINTO DE
do Estado, tal pretensão só adquire, ALBUQUERQUE16 quando, também
contudo, legitimidade substantiva em comentário ao mesmo dispositi-
em respeito ao princípio constitu- vo, defende que “[a]s diligências de
cional de defesa do arguido em sede prova, mesmo ilegais, têm o efeito
de processos de contraordenação (cf. interruptivo da prescrição” poden-
artigo 32.º, n. º 10, da Constituição do “[s]er realizadas quer antes quer
da República Portuguesa), razão depois da constituição do suspeito
pela qual a realização de diligências como arguido (..).”17 (itálicos nossos).

14
Neste sentido vide, o Ac. proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 11.04.2019, no âmbito no processo n.º 3099/18.0T8GDM.P (Rel. João Pedro Nunes

Maldonado), onde se deixou consignado, nomeadamente, que “[e]m processo contra-ordenacional a realização de diligências de prova requeridas pelo arguido

em fase de instrução, garantia de defesa com conforto constitucional, constitui a máxima expressão do desiderato estadual de exercício da sua pretensão punitiva

motivo pelo qual, dada a sua especial dignidade, é causa de interrupção do prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional” (itálico nosso).
15
Cfr. Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2017, p. 95.
16
Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos

do Homem, Universidade Católica Editora, 2011, p. 112.


17
Contra, defendendo que apenas as diligências de prova realizadas depois da constituição como arguido deverão ter eficácia interruptiva, vide JOÃO SOARES

RIBEIRO, Contra-ordenações Laborais, Almedina, 2000, pp. 109-110. Não acompanhamos, contudo, salvo o respeito que é devido, a posição do autor. Desde logo

porque, como decorre de tudo quanto já se expôs, cremos que tal entendimento não tem cabimento na letra da lei ou na sua ratio, mas também porque, con-

trariamente ao que esse autor defende, não nos parece que a referência no mencionado preceito a exames e buscas “sugira” a prévia existência de arguido.

Muito pelo contrário, é nosso entendimento que a referência, no mencionado preceito, a esses meios de obtenção de prova, a par com a referência aos pedidos

de auxílio a autoridade administrativas, aponta precisamente no sentido da autonomia da eficácia interruptiva da prescrição atribuída a diligências de prova,

face à eventual notificação ao arguido dessa qualidade (que, sublinhe-se, em processo de contraordenação, tende a coincidir com a dedução da acusação).

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Entendimento que, de resto, tem e Supervisão de Santarém (de ora em


igualmente encontrado eco na ju- diante “TCRS”)18, quer pelos nossos
risprudência proferida quer pelo Tribunais da Relação19. l
Tribunal da Concorrência, Regulação

As diligências probatórias de busca e exame, tal como a apreensão, representam apenas meios processuais de aquisição de prova do facto ilícito, não raras

vezes empreendidos em fase embrionária do procedimento, quando o seu objeto não está ainda delimitado nem devidamente identificado/s o/s agente/s dos

factos. Por outro lado, a qualidade de “buscado” ou “examinado” não tem de ser necessariamente coincidente com a de arguido, seja no momento das diligências

de buscas e exames, seja em momento posterior: uma pessoa ou uma empresa pode ser alvo de buscas sem que seja previamente constituída arguida. Mesmo

em Processo Penal não se encontra prevista a obrigatoriedade de constituição de arguido em momento prévio à realização de diligências de busca e apreensão,

conforme resulta a contrario dos artigos 57.º, 58.º e 59.º do Código de Processo Penal. Acresce ainda que podem ser realizados exames e buscas ou solicitada a

sua realização sem que venha a existir arguido, maxime quando o resultado da sua realização conduza, por falta de indícios suficientemente estabilizados da

prática da infração, à não dedução de acusação.


18
No sentido de que a realização de qualquer tipo de diligência de prova e, em particular, a inquirição de testemunhas, por iniciativa da autoridade administrativa,

é, ao abrigo do mencionado preceito, idónea a interromper a prescrição, pronunciou-se já o TCRS na referida sentença proferida em 21.07.2021, no âmbito do

processo n.º 290/20.2YUSTR (que, na fase administrativa do processo de contraordenação, correu termos na CMVM sob o n.º 6/2017), na qual se deixou consig-

nado, nomeadamente, que “[a] inquirição de testemunhas constitui uma diligência de prova, normativamente relevante nos termos e para os efeitos previstos

na alínea b), do numero 1, do artigo 28.º do RGCO”. No sentido de que são igualmente idóneas a produzir, ao abrigo do mencionado preceito, efeito interruptivo da

prescrição, notificações dirigidas ao arguido ou a terceiras entidades que consubstanciem pedidos de elementos probatórios (relevantes para a instrução dos

autos) se pronunciou o mesmo Tribunal em sentença proferida, em 13.03.2017, no âmbito do processo n.º 283/16.4YUSTR (que, na fase administrativa do processo

de contraordenação, correu termos na CMVM sob o n.º 42/2012), onde, com especial interesse para o tema em análise se consignou também o entendimento,

que merece a nossa total adesão, de que “[a] instrução documental assume nos processos contra-ordenacionais importância destacada e até prevalente em

relação a outros elementos de prova. (…) e que “[a] eficácia interruptiva não dependem (sic) da efectividade ou até da ocorrência da resposta” (itálico nosso).
19
Neste sentido vide o Ac. proferido, em 26.20.2017, pelo Tribunal da Relação do Porto no âmbito do processo n.º 7/17.9T8ETR.P1 (Rel. Pedro Vaz Pato), no qual se deixou

vertido que: “Estatui o referido artigo 28.º, n.º 1, b), do Regime Geral das Contra-Ordenações que interrompe a prescrição do procedimento contra-ordenacional «a

realização de quaisquer diligências de prova». Não se faz distinção entre diligências de prova mais ou menos complexas (são quaisquer diligências de prova). A

referência às buscas e exames é meramente exemplificativa (usa-se o vocábulo designadamente). Considera o legislador (e não nos cabe nesta sede contestar tal

opção) que a realização de quaisquer diligências de prova, sem distinção (e, portanto, também a inquirição de testemunhas, de acusação ou de defesa), representa a

afirmação solene da pretensão estadual do exercício do jus punendi, afirmação que justifica a interrupção da prescrição do procedimento criminal.” (itálico nosso).

Também no Ac. proferido, em 17.01.2018, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo n.º 292/17.6T9MGR.C1 (Rel. Jorge França), se consignou que:

“[é] unânime o entendimento de que a inquirição de testemunhas constitui diligência de prova na acepção dada pelo artigo 28.°, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º

433/82, de 27 de Outubro, constituindo, nesta medida, causa de interrupção da prescrição” e ainda que “[a] referida al. b) do artº 28º, 1, do RGCO confere esse

poder interruptivo à «realização de quaisquer diligências de prova» não arredando, de forma alguma, a produção de prova pessoal, nem fazendo depender essa

eficácia interruptiva da valoração ou não da prova produzida; basta que a produção de prova haja efectivamente tido lugar. A referência a «exames ou buscas»,

(…) é meramente indicativa o que resulta de forma imediata do uso do advérbio que o antecede, v.g. «designadamente»” (itálicos nossos).

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PROVA E INTERRUPÇÃO
DA PRESCRIÇÃO

IV. DA NECESSIDADE E RELEVÂNCIA DA DILIGÊNCIA


DE PROVA REALIZADA ENQUANTO FUNDAMENTO
E PRESSUPOSTO DE ATRIBUIÇÃO DE EFICÁCIA
INTERRUPTIVA DA PRESCRIÇÃO

U
ma corrente jurisprudencial - na so, o que leva a concluir que não são
qual se inscrevem um acórdão pro- todas as diligências que têm o mé-
ferido, em 18.11.2009, pelo Tribunal rito de interromper o prazo prescri-
da Relação de Coimbra20 e, em reite- cional, e muito menos diligências de
ração, perante um caso semelhan- prova perfeitamente irrelevantes, in-
te, da jurisprudência ali firmada, justificadas e sem qualquer utilidade
também um acórdão proferido, em para o apuramento da responsabili-
09.09.2015, pelo Tribunal da Relação dade contraordenacional do agente”,
do Porto21 - vem defendendo a ne- o que se concluiu verificar-se relati-
cessidade de realizar uma “inter- vamente a diligências de inquirição
pretação restritiva” do artigo 28.º, de testemunhas levadas a cabo por
n.º 1, alínea b) do RGCO (maxime da iniciativa das autoridades adminis-
expressão “quaisquer diligências”) trativas, no âmbito dos processos de
no sentido de as diligências de pro- contraordenação objeto de aprecia-
va suscetíveis de interromperem o ção nos mencionados arestos.
prazo de prescrição se apresentarem A jurisprudência firmada nesses
como diligências necessárias para a acórdãos deve, contudo, ser enqua-
instrução dos autos, e não quaisquer drada e compreendida à luz dos con-
diligências de prova, de iniciativa da cretos casos ali apreciados, cuja sin-
autoridade administrativa, sem rele- gularidade impõe especial cautela em
vância processual e manifestamente qualquer tentativa de extrapolar o
dilatórias. que ali foi decidido (e, em particular,
Para tanto, sustenta essa juris- os fundamentos com que foi decidido
prudência que a referência especí- proceder a uma interpretação restriti-
fica nesse texto legal à realização de va da alínea b), do n.º 1, do artigo 28.º
exames e buscas, “[t]ransmite a ideia do RGCO) para casos que não sejam
da necessidade de realização de dili- em tudo semelhantes.
gências de prova que revelem alguma Com efeito, é bom de ver que, em
complexidade e morosidade ou que, ambos os casos, a diligência de pro-
requeridas pela defesa, atrasem re- va cuja eficácia interruptiva se discu-
levantemente o decurso do proces- tia consistiu, na sugestiva expressão

20
Proferido no âmbito no processo n.º 142/09.7TAILH.C1 (Rel. João Gomes de Sousa).
21
Proferido no âmbito do processo n.º 67/14.4TBVFR.P1 (Rel. Raul Esteves).

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de um dos arestos em causa, numa consideradas abrangidas pela letra


corriqueira inquirição do(s) agen- (maxime, pela expressão «diligên-
te(s) autuante(s), por iniciativa da cias de prova») e ratio do mencionado
autoridade administrativa, com vis- preceito.
ta a confirmar o conteúdo do(s) au- Assim, mais do que um critério
to(s) de notícia, quando esse mesmo de decisão assente na maior ou me-
conteúdo não tenha sido colocado nor idoneidade de certos tipos de atos
em causa na/s defesa/s do/s argui- e/ou diligências de prova para in-
do/s. Tendo sido nesse contexto que, terromper, ao abrigo do menciona-
por um lado, se concluiu que tais di- do preceito, a prescrição do proce-
ligências de prova, para além de ma- dimento contraordenacional, o que
nifestamente inúteis, surgiram ine- nos parece verdadeiramente resultar
quivocamente como uma medida de dessa jurisprudência é um critério in-
"gestão" das interrupções do prazo terpretativo, fundado na teleologia da
prescricional (e, consequentemente, norma, segundo o qual a necessidade
como expedientes abusivos para obs- da diligência de prova realizada ser-
tar ao decurso do mesmo) e, por ou- ve de limite à atuação da autoridade
tro lado, se concluiu, com esse fun- administrativa: apenas as diligências
damento, que tais diligências não de prova necessárias no contexto da
cabiam na ratio do artigo 28.º, n.º 1, estrutura do processo contraordena-
alínea b) do RGCO. cional (que, como se sabe, se caracte-
Essa jurisprudência não assen- riza pela simplicidade e celeridade) e
ta, assim, numa negação categórica funcionalmente dirigidas à instrução
da idoneidade da produção de pro- do processo de contraordenação de-
va testemunhal ou de qualquer outro verão ser interruptivas da prescrição.
tipo diligência de prova para, ao abri- Sendo, de resto, também essa lei-
go do disposto na al. b), do n.º 1, do tura que outra jurisprudência (pos-
artigo 28.º do RGCO, produzir efeitos terior) tem feito dos mencionados
interruptivos da prescrição, mas sim arestos, como se constata, desde
no entendimento, fundado na singu- logo, pelo acórdão proferido em
laridade dos casos ali apreciados, de 23.04.2018, pelo Tribunal da Relação
que diligências probatórias (corres- de Guimarães23, no qual, precisamen-
pondam as mesmas a uma inquirição te por referência aos dois acórdãos
de testemunha, ou a qualquer outra aqui em causa, invocados pela defe-
diligência) sem qualquer utilidade e/ sa para obstar à eficácia interruptiva
ou relevância processual e manifes- de uma inquirição de testemunhas, se
tamente dilatórias22, não deverão ser deixou consignado que: “[n]ão obs-

22
Como se terá verificado com as inquirições de testemunhas levadas a cabo nos casos em apreciação nos dois acórdãos citados.
23
No âmbito do processo n.º 1134/14.0EAPRT.G1 (Rel. Jorge Bispo).

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tante, o certo é que, no caso verten- de interrupção da prescrição o legis-


te, contrariamente ao que sucedia nas lador não tinha em mente, muito me-
situações objeto dos referidos acór- nos pretendeu abranger, diligências
dãos, de modo algum se pode concluir manifestamente desnecessárias e/ou
que a diligência de inquirição dos dois inúteis para a instrução dos autos e
agentes autuantes se apresenta como (apenas) funcionalmente dirigidas à
meramente dilatória, constituindo gestão do prazo prescricional.
um expediente abusivo da autorida- Convicção que, contudo, nos as-
de administrativa com vista a obstar siste, não pelo facto de o legislador
ao decurso do prazo de prescrição do ter elencado os exames e buscas como
procedimento. Desde logo porque, ao exemplos de diligências de prova ap-
invés do alegado pela recorrente, as tas a interromper a prescrição (pois,
testemunhas não se limitaram a confir- como já tivemos oportunidade de re-
mar o conteúdo do auto de notícia. (...) ferir, consideramos que tais exem-
Pelo exposto, afigura-se-nos que à plos não servem qualquer propósi-
realização da diligência de prova tra- to delimitativo), mas sim por razões
duzida na inquirição dos dois agentes que se prendem, por um lado, com a
autuantes, por iniciativa da autorida- vinculação das autoridades adminis-
de administrativa, no dia 01-10-2014, trativas ao princípio da legalidade e,
deve ser reconhecido o efeito inter- por outro lado, com a já descrita ratio
ruptivo da prescrição do procedi- que subjaz à consagração das causas
mento contraordenacional previsto de interrupção de prescrição.
na al. b) do n.º 1 do art. 28º do RGCO, Quanto ao primeiro ponto, im-
por, manifestamente, não se ter tra- portará, no essencial, reter que a ne-
duzido num ato processual inútil ou cessidade e/ou utilidade de qualquer
dilatório e, portanto, um expedien- diligência de prova constitui pres-
te abusivo daquela autoridade, com o suposto da sua realização, não sendo
propósito claro de interromper o pra- suposto, em processo de contraorde-
zo de prescrição.”24 (itálicos nossos). nação, haver lugar à realização de di-
Ora, temos por certo que ao pres- ligências de prova manifestamente
crever que a realização de quaisquer inúteis e/ou desnecessárias e exclu-
diligências de prova constitui causa sivamente dirigidas à interrupção de

24
Idêntico entendimento foi também recentemente sufragado pelo TCRS, na já citada sentença proferida em 21.07.2021, no âmbito do processo n.º 290/20.2YUSTR,

na qual, precisamente perante a invocação, pela defesa, desses mesmos dois acórdãos com vista a afastar a eficácia interruptiva da prescrição de inquirições

de testemunhas levadas a cabo, em momento prévia à dedução da acusação, por iniciativa da autoridade administrativa (in casu, a CMVM), se concluiu que “[n]

ão se divisa nas mesmas propósito dilatório ou irrelevância normativa, o que era suscetível de consentir – mas se não verifica - a transposição para estes autos

do sentido jurisprudencial acolhido nos arestos convocados pela Recorrente. Na sobredita jurisprudência censura-se, adequadamente, diligências probatórias

promovidas pelas entidades administrativas sem relevância processual para o objecto dos autos ou com cariz dilatório, porque supérfluo, irrelevante ou repetitivo.

Nenhuma dessas idiossincrasias, repete-se, estão em causa nestes autos.” (itálico nosso).

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determinado prazo prescricional. Os da verdade material, da celeridade e


poderes de investigação e instrução da eficiência processual, legitima que
que assistem às autoridades adminis- a autoridade administrativa que pre-
trativas servem um fim, que constitui side à investigação e instrução recu-
simultaneamente pressuposto e limi- se a realização de qualquer diligência
te da sua atuação, pelo que – sob pena de prova requerida pelo arguido que
de violação do princípio da legalida- se mostre irrelevante, inadmissível e/
de – não deverão ser praticados atos ou desnecessária para a descoberta da
que sejam estranhos e/ou que não se verdade material25/26, esses mesmos
proponham a atingir as finalidades princípios, a par com o principio da le-
do processo e, em particular, daque- galidade, impõem que a mesma auto-
la “fase” processual. Assim, da mes- ridade se abstenha de praticar, por sua
ma forma que a vinculação aos prin- iniciativa, atos e/ou realizar diligên-
cípios da investigação e da descoberta cias que revistam tais características.

25
Como ensina GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, 2º vol., Verbo, 2008, p. 134 “[a] preocupação do legislador em estabelecer o con-

trolo judicial das provas permanece ao longo da história do direito e surge da necessidade de as limitar às que são imprescindíveis para a de-

cisão, eliminando as que não têm que ver com os factos objecto do processo ou as que, ainda que tendo relação com eles, não representam novidade algu-

ma que possa influir na decisão. Na fase do julgamento o poder do tribunal de recusar a admissão e produção de prova requerida pela acusação e pela

defesa é limitado pela sua inadmissibilidade, irrelevância ou superfluidade, inadequação, inobtenibilidade ou por ser meramente dilatória (artigo 340º,

nº 3 e 4).” (itálico nosso). No mesmo sentido, embora por referência ao processo de contraordenação, também ANTÓNIO DE OLIVEIRA MENDES e JOSÉ DOS

SANTOS CABRAL, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2004, p. 139, defendem que “[o] arguido tem o direito de se pronunciar

sobre a contra-ordenação e sobre a sanção ainda na fase administrativa. Igualmente não se vislumbra motivo para se negar naquela fase a possibilidade

de o arguido requerer a prática de diligências relevantes para a sua defesa em termos perfeitamente equiparados aos que sucedem em sede de inquéri-

to relativamente à autoridade judiciária. Questão diversa será a de saber se a autoridade administrativa está obrigada à prática dos actos requeridos pelo

arguido e aí entendemos que a resposta terá de ser negativa. Na verdade, se aquela entidade preside à investigação e instrução apenas deverá praticar os

actos que se proponham atingir as finalidades daquela fase processual o que pode não coincidir, necessariamente, com os actos propostos.” (itálicos nosso)

Na jurisprudência, vide entre outros, o Ac. proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em 08/04/2014, no âmbito do processo n.º 108/13.2TBCUB (Rel. João Gomes

de Sousa): “V – A não inquirição de uma testemunha indicada pelo arguido na fase administrativa não pode estar dependente da simples vontade da entidade

administrativa e esta não pode, de motu próprio, decidir não inquirir a testemunha por razões que não têm a ver com a necessidade da sua inquirição para a de-

fesa do arguido”, e o Ac. proferido pelo mesmo Tribunal da Relação, em 24/09/2013, no âmbito do Processo n.º 1.175/10.6TBAF.E1 (Rel. João Gomes de Sousa): “II

– Mas o direito à produção de prova está limitado pela sua admissibilidade, relevância jurídica e necessidade (…). Se essa concretização é inútil para os autos, o

princípio da necessidade impõe que não se admita. Ou seja, não há um direito absoluto à produção de qualquer prova de forma não controlada.” (itálicos nosso).
26
A este propósito FREDERICO COSTA PINTO, «Direito de Audição e Direito de Defesa em Processo de Contraordenação: conteúdo alcance e conformidade constitucio-

nal», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Vol. 23, No. 1 (2013), p. 91, refere que “[c]abe em última instância ao titular do processo decidir da relevância e necessi-

dade da prova a produzir, o que não inutiliza as garantias de defesa perante a possibilidade de impugnar a decisão final requerendo um julgamento específico para

esse efeito”. E PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, p. 230, sustenta que “[o] poder de direcção do processo adminis-

trativo inclui o poder de praticar ou não praticar os actos de investigação e as diligências probatórias que entender adequados aos fins do processo contra-ordena-

cional e, designadamente, não realizar as diligências requeridas pelo arguido, à imagem e semelhança do que sucede com o MP quando dirige o inquérito criminal”.

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Depois, importa atentar que não nente à norma em questão, se fazer


se traduzindo a realização de diligên- valer a intenção e finalidade da lei ,
cias de prova com as características embora tendo sempre presente que
vindas de referir (i.e. manifestamen- “[s]e a redução teleológica de uma
te desnecessárias e funcionalmente norma é uma operação hermenêuti-
dirigidas apenas a evitar a prescri- ca possível, para que ela seja levada a
ção) um momento de verdadeira afir- cabo é necessário que seja manifes-
mação da pretensão de exercício dos tamente desadequada a aplicação da
ius puniendi, não só não lhe assiste o norma à situação em causa, por se ve-
fundamento justificativo da atribui- rificar um desvirtuamento chocante das
ção de eficácia interruptiva (da pres- finalidades perseguidas com a sua pre-
crição) à realização desse tipo de di- visão” (itálico nosso).28
ligências, como o reconhecimento Contudo, se à luz do que se dei-
dessa eficácia implicaria um desvir- xou exposto nos parece admissível
tuamento das finalidades persegui- proceder, como se procedeu na juris-
das pela lei com a previsão dessa cau- prudência em análise, a uma inter-
sa de interrupção. pretação restritiva - ou, noutra pers-
Assim, embora a realização de petiva metodológica da interpretação
diligências de prova desnecessárias e da lei que nos parece ser a que melhor
unicamente dirigidas à gestão de de- se adequa ao caso em análise, à redu-
terminado prazo de prescrição possa ção teleológica – do artigo 28.º, n.º 1,
estar aparentemente abrangida pela al. b) do RGCO, de forma a excluir do
letra da lei (maxime, pela expres- seu âmbito de aplicação diligências de
são «quaisquer diligências de prova» prova manifestamente desnecessá-
constante da alínea b), do n.º 1, do ar- rias e que, demonstradamente, cons-
tigo 28.º do RCGO), parece-nos ine- tituam mero expediente abusivo de
quívoco que tais atos escapam à sua gestão de prazo de prescrição em cur-
ratio teleológica. E, se assim é, a in- so. Já nos suscita, contudo, as maio-
terpretação constitui, efetivamente, res reservas que se pretenda extrair
caminho admissível para, ao abrigo e da referência no mencionado pre-
com fundamento na teleologia ima- ceito a “exames e buscas” qualquer

27
A este propósito, e fazendo nossas, porque per se elucidativas, as palavras de António Castanheira Neves, citado pelo Supremo Tribunal de Justiça em Ac. profe-

rido em 01/17/2013, no âmbito do processo n.º 219/11.9JELSB-L1.S1, importa sublinhar que: “Na acentuação da interpretação teleológica, os resultados da interpre-

tação enriqueceram-se de outros tipos de grande relevo prático, e que têm de comum aceitarem já a redução ou a correcção do texto a favor do cumprimento

efectivo dada intenção prático-normativa da norma; é o que se verifica com a interpretação correctiva, geralmente aceite, em que se admite que o intérprete

sacrifique (corrija) o texto da lei para realizar a intenção prática da norma. Num plano de proximidade estão os instrumentos metodológicos ou «modos interpre-

tativos» que se designam por “redução teleológica”: trata-se de reduzir ou de excluir do campo de aplicação de uma norma, com fundamento na teleologia imanente

à norma, casos aparentemente abrangidos pela expressão estritamente linguística da sua letra” (itálico nosso).
28
Cf. Ac. proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 10/12/2021, no âmbito do processo n.º 756/19.7T8ANS-A.C1 (Rel. Silvia Pires).

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intenção do legislador no sentido de decerto abriria a porta.


condicionar a atribuição de eficácia Por último, note-se que admitir
interruptiva da prescrição em fun- que apenas a realização de exames e
ção do concreto tipo de diligência de buscas ou de outras diligências com
prova realizada ou da sua “comple- um grau equiparável de complexida-
xidade” e/ou “morosidade”, ou que de e/ou morosidade (embora, refi-
se possa excluir do âmbito de aplica- ra-se, na ausência de um critério e/
ção da norma, com esse fundamen- ou parâmetro legal de morosidade ou
to, qualquer diligência que, pela sua complexidade, não vemos como será
natureza (v.g. pelo tipo de diligência) sequer possível fazer essa equipação
ou pelo seu resultado, não se revele sem cair em arbitrariedade decisória)
“morosa” ou “complexa”. teria, ao abrigo do preceito em análise,
Com efeito, para além de, como o condão de interromper a prescrição,
já tivemos oportunidade de refe- comportaria efeitos práticos tão re-
rir, tal interpretação não ter, a nos- levantes que suscitam uma imediata
so ver, qualquer cabimento na letra e desconfiança sobre a bondade dessa
teleologia da norma, a mesma intro- solução. Basta ver que se assim fosse,
duz um fator de incerteza decisória em todos os casos em que não se ve-
(maxime, sobre o que possa e/ou deva rificasse a possibilidade ou a necessi-
considerar-se diligência morosa e/ dade de realizar buscas ou exames ou
ou mais ou menos complexa, sen- de recorrer a outros meios de prova
do certo que nem os exames e buscas ou de obtenção de prova de comple-
seguem um padrão uniforme de mo- xidade ou morosidade de alguma for-
rosidade e/ou complexidade). Donde, ma equiparável – o que, aliás, mais do
a bem da segurança jurídica e em que exceção, constituirá certamente a
respeito pelo princípio da legalidade, regra… - a realização de (outras) dili-
uma tal interpretação não é necessá- gências probatórias necessárias e re-
ria nem desejável29. Não sendo, aliás, levantes para a descoberta da verda-
de excluir que, ao determinar que a de material não só não interromperia
realização de quaisquer diligências a prescrição como, no limite, pode-
de prova constitui causa de inter- ria conduzir à prescrição do proces-
rupção da prescrição, o legislador te- so contraordenacional, o que, a nosso
nha precisamente procurado evitar, ver, contraria frontalmente a finali-
a bem da segurança jurídica, espúrias dade visada pelo legislador com a ins-
discussões dogmáticas e/ou teóricas tituição da causa de interrupção da
como aquelas a que tal entendimento prescrição em análise. l

29
Conforme se julgou no Ac. n.º 126/2009 do Tribunal Constitucional, é “[e]xigível, como emanação do princípio da legalidade da perseguição criminal, que o Estado

proceda à regulamentação da prescrição – incluindo o regime da interrupção e suspensão dos prazos prescricionais – de uma forma precisa e concreta, obviando

a situações em que se opere, na prática, ineficácia do instituto da prescrição” (itálico nosso).

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