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PRAZO RAZOÁVEL E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Alberto Silva Franco


A palavra processo não se acomoda à devido processo legal (art. 5º, inc. LIV, da judicial e administrativo, são assegurados a

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idéia de um ponto fixo no tempo, nem de CF). Todo acusado tem o direito de obter razoável duração do processo e os meios que
algo que ocorra de modo instantâneo. O — em tempo delimitado — pronuncia- garantam a celeridade de sua tramitação”.
processo traduz-se num seqüenciamento mento judicial que defina sua posição. Fala- O novo cânon constitucional conduz a
de atos que consomem tempo. Nas várias se no direito constitucional norte-ameri- uma série de indagações. O que deve ser
fases sucessivas em que se desdobra o pro- cano que “todo cidadão tem the right to a entendido por prazo razoável? Quais os
cesso, isto é, desde a sua proposição até speed trial, pondo-se termo, de forma mais critérios que embasam o juízo de razoa-
seu desfecho, há, sem dúvida, tempo rápida possível, à situação de incerteza em que bilidade? Quando se pode afirmar que se
transcorrido. Processo e tempo apresen- se encontra”(3). ultrapassou a bar-
tam-se, portanto, como termos que se in- A correlação O que deve ser entendido reira máxima da
terpenetram, que se correlacionam inti- processo-tempo por prazo razoável? Quais os razoabilidade? A
mamente. “O processo como conjunto de atos mostra-se mais área de significa-
que se desenvolvem no tempo, não escapa às relevante ainda critérios que embasam o juízo do do prazo ra-
características genéticas de cada um de seus quando, no bojo de razoabilidade? Quando se zoável não foi de-
componentes e assim como cada ato proces- do processo pe- vidamente bali-
sual conta o tempo entre seus elementos cons- nal, se adiciona pode afirmar que se zada. Trata-se,
titutivos básicos, o tempo passa a ser também um plus, ou seja, ultrapassou a barreira portanto, de um
componente fundamental do conjunto. O iter quando se faz uso máxima da razoabilidade? conceito aberto e,
do processo transcorre no tempo e se estrutu- do poder cautelar por isso, dotado
ra em fases e graus que, por desenrolar-se no do Estado, em detrimento do direito de de bastante elasticidade, o que o torna vul-
tempo, tem estabelecidos, normalmente, pra- liberdade do cidadão. No caso da prisão nerável a dados de subjetividade. O Tri-
zos para sua duração”(1). cautelar, portanto, processo e tempo são bunal Europeu de Direitos Humanos
Prazo é, assim, “o tempo em que algo dois termos que necessitam de imperiosa tentou retirar “o juízo da razoabilidade do
deve ser feito”(2). É o lapso temporal a que compatibilização. “Nada justifica o pro- terreno movediço da subjetividade, apresen-
estão jungidos o juiz e as partes para que longamento do processo, com a submissão do tando alguns critérios que deveriam ser sub-
pratiquem determinados atos, a fim de que acusado a uma medida de coerção pessoal que metidos a uma aferição balanceada”. Assim,
o processo não se inercie em seu ponto o despoja, por tempo indefinido, de sua liber- “passaram a ser dados que deveriam ser ne-
inicial, mas daí caminhe sem tropeços até dade. A duração temporal do processo tem de cessariamente examinados para a constru-
o seu termo, ou seja, até o momento em ser devidamente demarcada, não só em res- ção do conceito de razoabilidade”: a maior
que o conflito de interesses em jogo en- peito aos princípios constitucionais já enun- ou menor complexidade do processo; a
contre a necessária solução. Embora juiz ciados, mas também em consideração ao prin- maior ou menor diligência dos órgãos do
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e partes sejam destinatários de prazos le- cípio da presunção de inocência, que não su- processo; a duração em si da prisão; a
galmente fixados, força é convir que a in- porta que um acusado fique preso a titulo duração dessa prisão em relação à natu-
cumbência maior para efeito de dinami- provisório, no aguardo, sem limitação tem- reza do fato e à entidade da pena comina-
zar o processo cabe, em especial, ao juiz poral, do encerramento do processo penal”(4). da e da pena aplicável em caso de conde-
que, por dirigi-lo, tem a responsabilida- O art. 8º, 1, da Convenção Americana nação; “os efeitos da medida cautelar em
de de dar-lhe impulsão. É evidente que, sobre Direitos Humanos (Pacto de São relação ao réu; a conduta do acusado, máxi-
se os prazos ficassem ao dispor das par- José da Costa Rica), aprovada pelo Con- me o exame de suas atitudes no sentido de
tes, surgiriam óbices intransponíveis a que gresso Nacional, através do Decreto-Le- colaborar no desenvolvimento do processo ou
o processo atingisse seus fins. Incumbe, gislativo nº 27, de 26.05.1992, e cujo cum- de indicar a presença de uma vontade dilató-
portanto, ao juiz a cobrança dos prazos primento foi determinado pelo Decreto ria, ou mesmo paralisadora do feito, etc.”(5).
concedidos por lei às partes. Isto não sig- nº 678, de 06.11.1992, introduziu no cená- No direito processual penal brasilei-
nifica, no entanto, que o juiz possa mani- rio jurídico brasileiro a questão do prazo ro, não se formulou ainda uma adequada
pular a seu talante os prazos a si próprio razoável nos seguintes termos: “toda pes- definição do conteúdo e do alcance do
destinados. A administração da justiça não soa tem direito de ser ouvida com as devidas conceito de prazo razoável. E isso seria
poderá prorrogar indefinidamente o re- garantias dentro de um prazo razoável, imprescindível, não apenas por causa do
mate do processo, transferindo-o para um por um juiz ou tribunal competente, inde- Pacto de São José da Costa Rica, mas,
tempo futuro e de determinação impre- pendente e imparcial, estabelecido anterior- agora, principalmente em razão do prin-
cisa. Justiça a destempo não é justiça. mente por lei, na apuração de qualquer acu- cípio estatuído no inc. LXXVIII do art.
A interação entre processo e tempo sação formal formulada contra ele, ou para 5º da Constituição Federal. Há, na reali-
assume um perfil ainda mais complexo que determinem seus direitos ou obrigações dade, exigência constitucional de que o
quando se cuida de processo penal. Trata- de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de prazo razoável de duração do processo
se aqui de pôr em destaque o direito — que qualquer outra natureza”. O dispositivo do tenha embasamento em lei infraconsti-
toda pessoa desfruta — de liberar-se da Pacto de São José da Costa Rica, reco- tucional. É necessário, portanto, que se
imputação de ter praticado fato crimino- nhecido por alguns, como norma com estabeleça o prazo razoável “de um modo
so, mediante uma decisão judicial prola- força constitucional, e por outros, como seguro e preciso que o coloque fora do al-
tada dentro de uma determinada equação regra infra-constitucional, colocou na cance de toda manipulação, decisionismo
temporal. Tal direito, de enquadramento mesa de discussão a questão do prazo ra- ou arbitrariedade judicial” (6).
constitucional, vincula-se direta e ime- zoável que logrou, através da recente Na falta da adequada legislação, o con-
diatamente ao princípio da dignidade da Emenda nº 45, de 8 de dezembro de 2004, ceito deve ser montado em nível judicial.
pessoa humana, enquanto princípio reitor consagração constitucional, com o acrés- Para tanto, tornam-se necessárias três con-
do Estado Democrático de Direito ( art. cimo do inciso LXXVIII ao art. 5º da siderações prévias. A primeira é a de que
1º, III, da CF), e ao próprio princípio do Constituição Federal: “a todos, no âmbito a noção de prazo razoável se constitui numa

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construção em favor do acusado, e não em critério de oitenta e um dias perdeu sua devida conta a necessidade de pôr termo,

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seu prejuízo. Trata-se de princípio funda- força e surgiu, em substituição, o indiscri- o mais rápido possível, à privação da liber-
mental positivado em nível constitucio- minado acolhimento da razoabilidade, a dade do réu e à situação de incerteza em
nal, e não de instrumento posto nas mãos dano do direito de liberdade das pessoas. que se encontra, respeitado o devido pro-
do juiz para prorrogar indefinidamente a Sem nenhuma adequada motivação, dá-se cesso legal. Com isso, enquanto inexistir lei
duração do pro- à idéia de prazo ra- a respeito do prazo razoável, dá-se, de um
cesso ou para exo- zoável um caráter lado, ao acusado a garantia de que o proces-
nerar-se da inér- Num Estado Democrático de mágico, tornando- so terminará num prazo prefixado e, de ou-
cia ou do retarda- Direito, a exigência de que o a idônea a justifi- tro, permite-se o controle dessa aferição
mento com que se processo se finde em prazo car os mais absur- judicial pela instância superior. Só, assim,
houve na direção dos abusos. Nin- será pertinente falar-se de duração razoável
dele. Num Esta- razoável exclui qualquer guém pode desco- do processo, nos termos do princípio cons-
do Democrático concessão de espaço ao juiz para nhecer as dificul- titucional inserido no inciso LXXVIII do
de Direito, a exi- dades de atendi- art. 5º da Constituição Federal. Caso con-
gência de que o arbitrariamente determinar o mento rígido dos trário, o arbítrio falará em nome do Estado
processo se fin- ritmo do processo. prazos procedi- Democrático de Direito.
de em prazo ra- mentais quando
zoável exclui qualquer concessão de espa- analisados como mera soma aritmética, Notas
ço ao juiz para arbitrariamente determi- máxime em face de determinados fatos (1) PASTOR, Daniel R. El Plazo Razonable en el
nar o ritmo do processo. A segunda consi- criminosos que se revelam, no mundo Proceso del Estado de Derecho, Buenos Aires:
deração é a de que o prazo razoável é pre- atual, de extraordinária complexidade. Ad Hoc, 2002, p. 87.
cisamente um prazo e, como tal, deve con- Além disso, outros dados podem influir e (2) HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da
ter limites precisos, não se olvidando que justificar a prorrogação do desfecho do Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Editora Ob-
jetiva, 2001, p. 2.279).
deve ter sempre um dies a quo e um dies ad processo. Para tais situações, é válido o (3) FRANCO, Alberto Silva e MORAES, Maurí-
quem, com o trato temporal total a ser conceito de prazo razoável desde que essa cio Zanoide de. Código de Processo Penal e sua
computado dentro desses dois marcos. A razoabilidade não seja determinada por Interpretação Judicial, 2ª ed., vol. 1, São Paulo:
terceira consideração é a de que há dificul- puro arbítrio judicial. Destarte, para obs- Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 279.
dade em preencher a idéia de tempo ra- tar qualquer tipo de manipulação dessa (4) FRANCO, Alberto Silva e MORAES, Mau-
rício Zanoide de. Ibidem.
zoável, pois corre-se o risco de se substi- ordem, enquanto não houver equaciona- (5) FRANCO, Alberto Silva e MORAES, Mau-
tuir um conceito um tanto vago por outro mento legal da matéria em atendimento rício Zanoide de. Ibidem.
de maior vagueza. Com efeito, se são ana- ao princípio constitucional, tudo está a (6) PASTOR, Daniel R. Ob.cit., p. 473. O referi-
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lisados os padrões jurisprudenciais utili- indicar que se deva acoplar o critério de do autor observa ainda, com propriedade (pp.
zados para a compreensão do significado oitenta e um dias ao conceito de prazo 362/363) que “o Estado está obrigado a dar senti-
do, através de sua legislação, a um direito funda-
de prazo razoável (natureza complexa do razoável. Com efeito, a operação mate- mental que, de outra forma, cairia no vazio. Não
processo, pluralidade de réus, ocorrência mática de somar os prazos individuais que é possível evitar esta obrigação sob pretexto das
de crime grave, o comportamento do acu- compõem o processo, de forma que o re- dificuldades apresentadas pela diversidade de vari-
sado, a demora nos atos instrutórios, o sultado seja equivalente ao total máximo áveis de cada caso para traduzir o prazo razoável
retardamento da sentença, o aguardo pelo de duração do conjunto desses prazos, não abstrato dos catálogos fundamentais num prazo
concreto da legislação secundária. O omissão de
julgamento do tribunal do júri, etc.), fácil poderá ser simplesmente desprezada e concretizá-lo deve-se exclusivamente ao desejo de
será verificar que o princípio constitucio- substituída pelo critério da razoabilidade. manter no poder dos juízes a decisão tanto da
nal de que o desfecho do processo deve É evidente, assim, que o decurso do refe- fixação da duração do processo no caso dado, como
ocorrer em prazo razoável é puramente rido prazo se traduz no dies a quo do prazo o reconhecimento da conseqüência jurídica apli-
ilusório. A utilização de “standards inde- razoável. Esse é o ponto de partida que cável em caso de violação. Esta situação, além da
arbitrariedade evidente que por definição repre-
terminados para delimitar outro standard permitirá ao juiz reavaliar a questão do senta, estimulou o surgimento da mais absoluta
indeterminado (prazo razoável) dificilmen- tempo de duração da prisão cautelar para insegurança na tarefa de verificar se um processo
te atraca a questão em bom porto”(7). efeito de prorrogá-la, se se mostrar razoá- em concreto atingiu ou não seu prazo máximo de
Antes da integração do Pacto de São vel o retardamento do término do proces- duração razoável e permitiu, assim, o estabeleci-
mento das mais variadas conseqüências para o
José da Costa Rica na legislação proces- so, em razão de fatos concretamente elen- caso de uma resposta afirmativa”.
sual penal brasileira, adotava-se, em rela- cados. Nessa situação, com fundamento (7) GRILLO CIOCCHINI, Pablo Agustín.
ção ao procedimento ordinário, nos casos no prazo esgotado ou em vias de exaurir- “Debido proceso, “plazo razonable” y otras de-
em que o acusado tivesse sido submetido se, deve o juiz, em despacho motivado(8), clamaciones”, em Debido Proceso, Buenos Aires:
a uma medida prisional cautelar, um cri- explicar as razões pelas quais prorroga o Rubinzal-Culzoni Editores, 2003, pp. 175/201
(8) FRANCO, Alberto Silva e MORAES, Mau-
tério pretoriano que consistia na adição processo por um tempo máximo e defini- rício Zanoide. Ibidem, observam com funda-
acumulada dos prazos processualmente do (dies ad quem). Tem-se, desta forma, um mento no art. 402 do CPP que, sendo o juiz
estabelecidos e que veio a ter no art. 8º da termo inicial, de caráter estritamente ob- “obrigado a declinar os motivos da demora sem-
Lei nº 9.034/95 expressão legal extensível, jetivo, para que se possa, com o menor pre que concluir a instrução fora do prazo, com
por força do art. 3º do CPP, a todo ordena- grau de subjetividade possível, justificar, maior razão deverá fundamentar a necessidade
da prisão cautelar, se o arco de tempo proces-
mento processual. Nessa hipótese, a dura- diante de fatos concretos, o prosseguimen- sual, a que alude Chiavario, previsto para um
ção do processo em margem superior a to do processo e tem-se ainda um termo determinado procedimento, estiver consumido”.
oitenta e um dias tornava a prisão ilegal. final também delimitado, ficando, assim,
Com a introdução do critério da razoabi- a avaliação judicial dentro de pautas estri- Alberto Silva Franco
lidade e com a inexistência de quantifica- tamente objetivas. É evidente que a quan- Desembargador aposentado do TJ/SP
ção legal definidora da razoabilidade, o tificação do prazo razoável deverá levar na e membro do IBCCRIM

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