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Da necessidade de uma cláusula geral

de nulidade. Dos atos da administração

O problema jurídico consolidação por decurso de tempo se revelem in-


1.1. o instituto da nulidade é um corolário do toleráveis ou incompatíveis com a juridicidade e as
princípio do estado de direito (art. 2.º e n.º 3 do art. necessidades de segurança (2). Porque como tem
3.º da CrP), funcionando como mecanismo prote- sido defendido, a anulabilidade só serve os fins da
tor da integridade interna do sistema jurídico, atra- segurança jurídica se, ultrapassado o prazo para a
vés do controlo substantivo que repele as mais impugnação do ato anulável, todos os operadores
grosseiras atuações contra legem da administração. jurídicos, a começar pela administração e a acabar
trata-se do único instrumento que, ao rejeitar a nos particulares, puderem agir como se o ato fosse
produção provisória de efeitos dos atos grosseira- legal, independentemente de o ser ou não (3).
mente ilegais (1), dispensa os órgãos da administra- Pode assim dizer-se que a defesa da legalidade
ção do dever de os respeitar enquanto não forem face aos atos da administração assenta sobre dois
revogados ou anulados, desse modo garantindo pilares essenciais: o da tutela jurisdicional efetiva
atuações consentâneas com o princípio da boa ad- dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
ministração (art. 5.º do CPa). Por outro lado, é o sujeitos afetados por atos anuláveis e o da efetiva-
que e impede a consolidação desses atos por de- ção do valor negativo da nulidade, que determina
curso do tempo, nessa medida assegurando a inte- a improdutividade total, ab initio dos atos que a lei
gridade e a tutela jurisdicional efetiva de direitos assim determine, em razão da ilegalidade neles co-
fundamentais e outros valores estruturais do sis- metida ser incompatível com a produção provisó-
tema jurídico – maxime, o princípio da separação de ria de efeitos e a possibilidade de consolidação por
poderes – mesmo depois do decurso dos curtos decurso do tempo, resultantes das ponderações
prazos de impugnação. atrás referidas, de favorecimento da capacidade
esta forma de invalidade é por conseguinte a operativa da administração e da segurança e esta-
que permite a resolução das tensões entre os prin- bilidade das relações jurídicas em que é parte. o
cípios da legalidade e da segurança jurídica nos instituto da nulidade funciona assim como uma
casos em que aquela produção de efeitos ou a sua resposta imunitária especialmente severa já que se
trata do “desvalor da atividade administrativa com o

(1) trata-se fundamentalmente dos atos viciados por ile-


galidade tão grave que a respetiva produção de efeitos prejudi- (2) Como refere José Vieira de andrade, “a nulidade admi-
caria a mesma segurança e certeza jurídica que o regime da anu- nistrativa, essa desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 336, a
labilidade pretende assegurar. ou como refere José Vieira de nulidade é a resposta normativa reservada a situações em que
andrade, “nulidade e anulabilidade do acto administrativo – o desvalor da atuação administrativa reveste de uma tal gravi-
ac. do sta de 30.5.2001, P. 22 251”, CJA, n.º 43, 2004, p. 47, “Deve dade que o respeito pela legalidade deva prevalecer sobre a se-
entender-se que, para além dos casos expressamente previstos na lei, gurança e a estabilidade jurídicas.
devem ser nulos todos os atos que sofram de vícios de tal modo graves (3) andré salgado de Matos e João taborda da gaMa, “o
que tornem inaceitável, em princípio, a produção dos respetivos efei- prazo para exercício do direito à restituição de emolumentos
tos”. notariais indevidamente cobrados”, Fiscalidade, 2002, 9, p. 128.

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qual o princípio da legalidade não pode conviver, mesmo descendência dos nossos tribunais, aliás documen-
em nome da segurança e da estabilidade, como acontece tada por diversos autores (9), não só impede uma
com o regime-regra da anulabilidade” (4). operância minimamente consistente do regime da
Como igualmente refere Vieira de andrade, a nulidade nos casos em que ela se impõe, como tem
construção legal da nulidade foi criada a pensar permitido, em virtude dos potenciais efeitos cons-
nos atos administrativos que regulam situações ju- titutivos das decisões ilegais da administração, a
rídicas que envolvem direitos e interesses legal- distribuição de efeitos provisórios à discrição,
mente protegidos dos particulares. neste âmbito, assim erigindo a atuação contra legem da adminis-
visa assegurar a proteção de importantes interesses tração em autêntica fonte de direito.
substantivos individuais como forma de consolidar
valores do estado de direito democrático no con- 1.2. a isto acresce a eliminação da cláusula geral
texto das relações jurídicas de direito Público (5). que permitia considerar nulos por natureza os atos
donde, apesar de ser por todos apontada como um administrativos viciados por ilegalidades especial-
tipo excecional de invalidade, ela deve ser vista mente graves, fora das situações tipificadas na lei.
como a resposta normal da lei quanto a condutas daqui resulta que, dando-se o caso de ser praticado
decisórias invulgarmente grosseiras e ilegais (6), ex- ato portador de vício de ilegalidade de tal modo
primindo a intolerância da produção de efeitos grave que ponha em causa os fundamentos do sis-
quanto a atos contendo vícios graves que ponham tema jurídico (10) e não se preenchendo qualquer
em causa os fundamentos do sistema jurídico (7). das cláusulas de nulidade taxativamente previstas
acontece que, apesar do repetido reconheci- na lei, o intérprete seja fatalmente conduzido à
mento que os nossos tribunais fazem, em abstrato, aplicação do regime regra da anulabilidade (n.º 1
do regime da nulidade, continuam a revelar uma do art. 163.º do CPa) (11). donde resultaria a pro-
incapacidade patológica para a sua aplicação aos
casos concretos que o justifiquem, em favor de um
desproporcional e generalizado favorecimento da
regra da anulabilidade, suscetível de vulnerabili- (9) Paulo otero, Legalidade e Administração Pública, 2003, pp.
zar, de forma desrazoável, interesses dignos de 532 e segs., dinaMene de Freitas, O Acto Administrativo Incons-
proteção, cuja violação pode pôr em causa os fun- titucional, 2010, pp. 207 e segs., andré salgado de Matos e João
taborda da gaMa, “o prazo para exercício do direito à resti-
damentos do sistema jurídico. neste sentido, deve- tuição de emolumentos notariais indevidamente cobrados”, Fis-
mos ter em conta o reverso daquilo a que Vieira de calidade, 2002, 9, p. 131, tiago serrão, “a nulidade do acto
andrade apelida de dureza do regime puro da nuli- inconstitucional”, Estudos de Direito Público, 2011, pp. 231 e 239
e segs.
dade (8), e considerar antes a dureza que a generali- (10) deve colocar-se a questão da constitucionalidade desta
zação da regra da anulabilidade pode representar solução, desde logo pela sua incompatibilidade com vários as-
para a administração da justiça. esta excessiva con- petos do princípio reforçado da juridicidade tributária, na me-
dida em que o interesse público da proteção da integridade da
ordem jurídica do estado de direito pode exigir que aquele
deva sobrepor-se aos valores da segurança jurídica e das neces-
sidades de estabilização dos atos da administração. Por outro
lado, como chama à atenção José Casalta nabais, “a respeito
(4) Como nota José Vieira de andrade, “a nulidade admi- da invalidade do ato tributário”, RLJ, ano 148, n.º 4013, p. 90, a
nistrativa, essa desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 339, ci- tal pode exigir princípio da igualdade, na medida em que o di-
tando o ac. do sta de 17/2/2004 (proc. 1572/02). reito a uma tutela jurisdicional efetiva resulte degradado em re-
(5) José Vieira de andrade, “a nulidade administrativa, essa lação a atos que apesar de materialmente afetados por uma
desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 338. ilegalidade muito grave, o legislador não os qualifique expres-
(6) excecionais serão as condutas grosseiramente ilegais da samente como tais.
administração e não as respostas da lei para as repelir. (11) Como refere liCínio loPes Martins, “a invalidade do
(7) Paulo otero, Direito do Procedimento Administrativo, vol. acto administrativo no novo Código do Procedimento admi-
i, 2016, p. 633. nistrativo: as alterações mais relevantes”, Comentários ao Novo
(8) José Vieira de andrade, “a nulidade administrativa, essa Código do Procedimento Administrativo, vol. ii, Carla aMado
desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 344. goMes, ana Fernanda neVes e tiago serrão (coord.), 3.ª ed.,

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dução de efeitos provisórios desse ato e a susceti- no entanto, a Constituição projeta efeitos vin-
bilidade, durante um curto espaço de tempo, de culativos sobre as opções do legislador em matéria
tais efeitos serem destruídos com eficácia retroativa de regulamentação das invalidades da conduta ad-
(n.º 2 do art. 163.º do CPa), período findo o qual o ministrativa (14). entre estes destaca-se a nosso ver
ato poderia tornar-se inimpugnável, estabilizando- a existência de uma cláusula que permita estender
-se definitivamente. a nulidade a atos que, pela agressão que represen-
ora, o estabelecimento da anulabilidade como tam, não mereçam outra forma de invalidade, o
desvalor-regra sem que exista um critério de segu- que se impõe por em casos-limite ser a única que
rança, que permita reconduzir as ilegalidades mais permite à administração rejeitar “soluções manifes-
graves e evidentes com as quais o princípio da le- tamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de
galidade não possa razoavelmente conviver, signi- Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das
fica atribuir à partida efeitos jurídicos a todos atos normas jurídicas e das valorações próprias do exercício
ilegais da administração não previamente confi- da função administrativa” (art. 8.º do CPa) (15).
gurados expressamente pelo legislador como casos donde a eliminação da cláusula geral da nuli-
de nulidade, independentemente da sua gravida- dade, ainda que justificada por uma indemons-
de (12). não parece que isto seja sustentável do trada e genérica ponderação em favor dos estafa-
ponto de vista da proteção do estado de direito, já dos princípios da segurança jurídica e da tutela da
que a nulidade dos atos administrativos em casos confiança, introduz rigidez ao sistema, retira aos
não expressamente previstos não pode ser excluída tribunais poder de conformação do direito aos
à partida (13), concebendo-se decisões administra- casos concretos a que se impõem, e cria desigual-
tivas de tal modo incompatíveis com a ideia de di- dades de tratamento em casos de semelhante gra-
reito, que mesmo os valores da segurança e da vidade. não é aliás admissível que a atribuição de
certeza se oponham à possibilidade de produção efeitos a condutas administrativas contrárias à ju-
de efeitos provisórios e à sua consolidação por de- ridicidade fique exclusivamente ao critério do le-
curso de tempo, próprios da anulabilidade. gislador, sem que seja dado aos tribunais a possibi-
lidade – e por via dela, a responsabilidade – de
ponderar a solução mais adequada sobretudo em
casos excêntricos, em que a atribuição de efeitos
2016, pp. 295-296, seria desejável a manutenção de uma cláusula
geral de último recurso para resolver eventuais lacunas legais provisórios e a sua estabilização sejam inadmissí-
relativamente a situações em que a sanção da nulidade se justi- veis e conduzam a resultados incongruentes e in-
fique, sobretudo tendo em conta que vários dos casos de nuli- toleráveis (16).
dade hoje constantes do art. 161.º foram precisamente o resul-
tado de experiências jurisprudenciais e contributos doutrinais aliás uma das condições elementares de coerên-
em torno da interpretação da cláusula geral de nulidade. cia do sistema jurídico é a de que o controlo subs-
(12) não obstante a eliminação da cláusula geral de nulidade
ter sido acompanhada da inclusão de vários novos casos de ví-
cios conducentes à nulidade, José Casalta nabais, “a respeito
da invalidade do ato tributário”, RLJ, ano 148, n.º 4013, p. 90,
considera juridicamente inaceitável a possibilidade de existirem
situações de extrema gravidade cuja única resposta aceitável à (14) Paulo otero, Direito do Procedimento Administrativo, vol.
luz do princípio do estado de direito seria a nulidade e pelo i, 2016, p. 615.
facto de não se enquadrarem no elenco de vícios descritos no (15) liCínio loPes Martins, “a invalidade do acto adminis-
art. 161.º, n.º 2, do CPa, devam ser reconduzidos à consequência trativo no novo Código do Procedimento administrativo: as al-
precária da anulabilidade. terações mais relevantes”, Comentários ao Novo Código do
(13) Como defendem andré salgado de Matos e João ta- Procedimento Administrativo, vol. ii, Carla aMado goMes, ana
borda da gaMa, “o prazo para exercício do direito à restituição Fernanda neVes e tiago serrão (coord.), 3.ª ed., 2016, p. 293.
de emolumentos notariais indevidamente cobrados”, Fiscali- no mesmo sentido, andré salgado de Matos, “a invalidade
dade, 2002, 9, p. 127, a sanação dos atos anuláveis por decurso do acto administrativo no projecto de revisão do Código do Pro-
do tempo característica da anulabilidade é proibida pela Cons- cedimento administrativo”, CJA, n.º 100, 2013, p. 50.
tituição quanto aos atos administrativos que aplicam normas (16) Paulo otero, Direito do Procedimento Administrativo, vol.
inconstitucionais. i, 2016, p. 614.

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tantivo dos atos da administração não apresente li- blico e com respeito pelos direitos e interesses le-
mitações formais, permitindo ao julgador reconhe- galmente protegidos dos cidadãos.
cer a nulidade de atos portadores de vícios que, no que em particular diz respeito ao relaciona-
apesar de não expressamente previstos, sejam de mento dos atos da administração com a Constitui-
tal modo graves que não possam ser rececionados ção, a realização do direito envolve a interpretação
pelo sistema jurídico. Pelo que uma cláusula geral das disposições legais aplicáveis em conformidade
de nulidade assente no princípio da proporciona- com a lei Fundamental (n.º 3 do art. 3.º da CrP), a
lidade ou no critério da gravidade e evidência, sua execução com respeito pela vinculação direta
constante da lei alemã (17), permitiria o acesso a um aos direitos, liberdades e garantias (n.º 2 do art. 18.º
instrumento jurídico impeditivo da produção de da CrP), e a ponderação de soluções à luz dos
efeitos provisórios. além disso, permitiria impedir princípios jurídicos fundamentais, à cabeça dos
a consolidação desses atos por efeito do decurso do quais se encontram os da proporcionalidade e da
tempo, nos casos em que estes possam revelar-se igualdade (art. 13.º e n.º 2 do art. 266.º da CrP).
mais danosos do que a insegurança jurídica even- apesar de o sistema de fiscalização da consti-
tualmente provocada pela aplicação do regime da tucionalidade apenas abranger normas que infrin-
nulidade. jam o disposto na Constituição ou os princípios
nela consignados (n.º 1 do art. 277.º da CrP) (18),
O relacionamento direto dos atos da adminis- isso não significa que os atos da administração
tração com a Constituição não possam violar diretamente a Constituição (19).
2.1. ora, a validade dos atos da administração tal sucederá quando os atos da administração vio-
funda-se na Constituição, como nela se funda o re- lem princípios caracterizadores da ordem jurídico-
gime das invalidades. Já a subordinação da admi- constitucional (20), ou normas preceptivas de con-
nistração à juridicidade envolve em primeiro lugar, teúdo suficientemente determinado a vinculá-la di-
uma subordinação primária da atividade administra- reta e imediatamente, sem necessidade de concre-
tiva à lei, com respeito pelos princípios da compe- tização normativa (21), que preceituam a disciplina
tência e da reserva de lei, no âmbito da qual a imediata e vinculante de determinada conduta (22).
administração nela deve encontrar o pressuposto e entre estas normas imediatamente vinculantes dos
o fundamento das suas atuações. num segundo atos da administração, estão as que constam do tí-
nível, deve assegurar a compatibilidade da sua con- tulo ii da parte i consagrando direitos, liberdades
duta com as demais manifestações do bloco legal, e garantias e os demais direitos constitucionais do-
com respeito pelo primado da Constituição, em tados de idêntica completude estrutural (art. 17.º
particular das normas constitucionais diretamente
aplicáveis e de acordo com os princípios gerais
operativos do estado de direito; devendo, num ter-
(18) não obstante o sistema de fiscalização da constituciona-
ceiro nível, conduzir à prossecução do interesse pú- lidade ter por objeto atos normativos desconformes com a cons-
tituição, dinaMene de Freitas, O Acto Administrativo
Inconstitucional, 2010, pp. 190-195, nota que o tribunal Consti-
tucional tem adotado uma noção funcional de norma que em
(17) Pensamos que, de iure condendo, o legislador deveria abrir determinados casos inclui atos que visem produzir efeitos em
a porta para a nulidade dos atos especialmente graves e evidentes situações individuais e concretas.
numa formulação semelhante à da lei alemã, de tal forma que (19) goMes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Cons-
além das ilegalidades incluídas no catálogo de nulidades, fosse tituição, 7.ª ed., 2003, p. 939.
possibilitada a cominação da nulidade por aplicação de um teste (20) Como os princípios da constitucionalidade, da legali-
de proporcionalidade e caso essa solução se afigurasse consentânea dade, da proibição do excesso ou da imparcialidade.
com a consciência jurídica geral. Contra esta solução, embora sem (21) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es-
apresentar uma formulação alternativa, andré salgado de tudos de Direito Público, 2011, p. 243, e José de Melo alexan-
Matos, “algumas observações críticas acerca dos actuais qua- drino, Direitos Fundamentais, 2.ª ed., 2011, p. 94.

dros legais e doutrinais da invalidade do acto administrativo”, (22) goMes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da
CJA, n.º 82, 2010, pp. 64-65. Constituição, 1991, p. 50.

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da CrP) (23). tanto uns como outros gozam de apli- retamente atinente à desconformidade com a Cons-
cabilidade direta, vinculando diretamente a ad- tituição (29).
ministração a respeitá-los e a torná-los efetivos, di- ora, o que impõe a não consolidação dos atos
zendo-se por isso imediatamente eficazes (24). Já os di- administrativos que desrespeitem diretamente a
reitos económicos, sociais e culturais, sendo direi- lei Fundamental não é o regime administrativo
tos a prestações do estado e tendo como destinatá- das invalidades, mas própria força normativa da
rio direto o legislador, são estruturalmente incom- Constituição (30). a falta de correspondência que o
pletos não sendo por isso imediatamente exequí- regime das invalidades administrativas vota à su-
veis (25), exceto na sua componente negativa, premacia da Constituição coloca a questão da sua
quando e na medida em que traduzam um dever constitucionalidade, já que além de facilitar a con-
de abstenção por parte da administração (26). solidação de atuações administrativas com ela con-
trárias por decurso de pouco tempo, não prevê a
2.2. dependendo a validade de todos os atos do realização das ponderações necessárias à adoção
estado e outras entidades públicas da sua confor- de decisões constitucionalmente conformes (31).
midade com a Constituição (n.º 3 do art. 3.º da não faz por isso sentido, à luz da desejável
CrP) (27), então por maioria de razão, os atos pro- unidade e coerência do sistema jurídico, que as
duzidos sob a sua regulação direta não devem ter- atuações ilegais da administração pública mereçam
-se por consolidados na ordem jurídica se inquina- igual tratamento, quer tenham ou não violado a
dos de inconstitucionalidade (28). um dos sinais Constituição pois as violações da lei e da Consti-
deste primado são as situações em que a lei admite tuição não têm a mesma gravidade. também não
– e até impõe – a reapreciação de atos da adminis- faz sentido, à luz dos mesmos valores responsáveis
tração muito depois de esgotados os prazos da sua por fazer do direito um sistema, que as atuações in-
impugnação contenciosa (art. 78.º da lgt e n.º 1 do constitucionais da administração pública mereçam
art. 168.º do CPa). a reintegração da ilegalidade um tratamento mais favorável do que a conduta le-
provocada por ato administrativo violador da gislativa inconstitucional. a administração pública
Constituição acaba ainda por ser imposta pela lei não deve poder fazer o que a Constituição proíbe
geral administrativa através do sistema de invali- ao legislador (32). a solução da mera anulabilidade
dades, assente numa tipificação dos vícios dos atos dos atos administrativos com vício de inconstitu-
administrativos apesar de, com exceção de referên- cionalidade consequente, que apliquem normas in-
cia ao “conteúdo essencial de um direito fundamental”, constitucionais conduz aliás a uma dupla insegu-
nele não constar qualquer causa de invalidade di- rança jurídica, na medida em que o ato administra-
tivo contrário à Constituição tornado inimpugná-
vel ao abrigo do regime das invalidades da lei geral

(23) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es-


tudos de Direito Público, 2011, p. 247.
(24) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es- (29) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es-
tudos de Direito Público, 2011, p. 245. tudos de Direito Público, 2011, p. 250.
(25) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es- (30) Pois como refere José Vieira de andrade, “nulidade e
tudos de Direito Público, 2011, p. 247. anulabilidade do acto administrativo – ac. do sta de 30.5.2001,
(26) goMes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da P. 22 251”, CJA, n.º 43, 2004, p. 47, os casos identificados como
Constituição, 1991 p. 127. nulidade devem ser interpretados de acordo com o juízo valo-
(27) Como refere tiago serrão, “a nulidade do acto incons- rativo de gravidade que pressupõem, “e não como meras decisões
titucional”, Estudos de Direito Público, 2011, p. 173, a inconstitu- de qualificação formal, produtos da autoridade legislativa”.
cionalidade é a relação de desconformidade jurídica que se (31) dinaMene de Freitas, O Acto Administrativo Inconstitu-
verifica entre um determinado ato jurídico-público e a Consti- cional, 2010, p. 250, tiago serrão, “a nulidade do acto inconsti-
tuição. tucional”, Estudos de Direito Público, 2011, p. 255.
(28) dinaMene de Freitas, O Acto Administrativo Inconstitu- (32) Paulo otero, Direito do Procedimento Administrativo, vol.
cional, 2010, p. 229. i, 2016, pp. 615-616.

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administrativa, estaria a qualquer momento sujeito quente, que tem lugar sempre que a desconformi-
a ser retroativamente eliminado pela ordem jurí- dade com a Constituição resulte de o ato ser prati-
dica (33) (n.º 3 do art. 282.º da CrP, a contrario) (34). cado mediante aplicação de normas inconstitucio-
daí a advertência feita por goMes Canotilho, nais. sendo a norma aplicada inconstitucional e por
de que a pressão da superior força normativa das isso nula ou inexistente (37), designadamente por
normas constitucionais eventualmente conduzirá ter sido declarada inconstitucional ou por não ter
à revisão da dogmática dos vícios dos atos admi- sido promulgada (art. 137.º da CrP), a atribuição
nistrativos e do respetivo regime, adaptando-o de de efeitos ao ato que a aplica contraria a Constitui-
maneira a responder adequadamente aos atos que desa- ção, já que o seu resultado será atribuir efeitos a
fiem abertamente a Constituição, desde logo impondo uma norma por ela expressamente rejeitada. a sim-
a possibilidade de anulação de atos administrati- ples admissão de que o ato aplicador de norma in-
vos inconstitucionais tornados inimpugnáveis (35). constitucional possa produzir efeitos provisórios e
consolidar-se num curto espaço de tempo atribuem
2.3. a este propósito cumpre distinguir as rela- à administração uma capacidade inovatória à mar-
ções de desconformidade que se estabelecem entre gem da Constituição e contrária ao direito, facili-
atos administrativos e o parâmetro normativo da tadora da prepotência e do arbítrio da justiça do
Constituição (36): a inconstitucionalidade será indi- caso concreto, devendo por isso, ser em regra pura
reta quando, resultando da violação da lei, implicar e simplesmente rejeitada.
o afastamento do padrão de legalidade a que a ad- neste sentido, apesar de conceder-se que a so-
ministração está adstrita de acordo com a Consti- lução deve ser encontrada no regime das invali-
tuição (n.º 2 do art. 266.º da CrP), caso em que dades administrativas, em certos casos a nulidade
esses atos merecerão naturalmente a forma de in- parece apresentar-se como a única resposta ade-
validade que em cada caso for imposta pela aplica- quada à gravidade da ofensa cometida (38), devendo
ção do regime constante dos arts. 161.º e segs. do por isso o ato ser qualificado como praticado com a
CPa. total ausência de base legal característica da incom-
Por outro lado, os atos da administração podem petência absoluta. nestes casos, a nulidade parece ser
ainda resultar em inconstitucionalidade conse- a única resposta necessária e adequada a não per-
mitir que a administração produza o preciso efeito
que a lei quis impedir: a aplicação da norma des-
conforme. nestes casos, a perturbação eventual-
(33) andré salgado de Matos e João taborda da gaMa, “o mente criada pela improdutividade ipso jure será
prazo para exercício do direito à restituição de emolumentos
ultrapassada pela rejeição do exercício de um poder
notariais indevidamente cobrados”, Fiscalidade, 2002, 9, p. 128.
estes atos mesmo quando meramente anuláveis parecem dever não consentido e contrário à lei Fundamental.
admitir sempre impugnação contenciosa, mesmo depois de es-
gotados os prazos previstos na lei para o efeito.
(34) a declaração da inconstitucionalidade com força obri-
gatória e geral prevista no art. 282.º da CrP produz efeitos
desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional (37) Como ensina goMes Canotilho, Direito Constitucional e
e afeta as decisões administrativas tomadas com base em norma Teoria da Constituição, 7.ª ed., 2003, pp. 940, 953, 956, a lei incons-
declarada inconstitucional (n.º 3 do art. 282.º a contrario da CrP), titucional “é uma lei ferida de nulidade ou invalidade absoluta”. de
exceto se por razões de segurança jurídica, equidade ou inte- igual modo, a violação de uma diretiva com efeito direto não
resse público de excecional relevo, conduzirem à fixação de di- produz um simples vicio de violação de lei, mas antes a sua de-
ferentes efeitos da inconstitucionalidade. saplicação total, andré salgado de Matos e João taborda da
(35) goMes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Cons- gaMa, “o prazo para exercício do direito à restituição de emo-
tituição, 7.ª ed., 2003, p. 941. no mesmo sentido, andré salgado lumentos notariais indevidamente cobrados”, Fiscalidade, 2002,
de Matos e João taborda da gaMa, “o prazo para exercício do 9, p. 117.
direito à restituição de emolumentos notariais indevidamente (38) neste sentido, andré salgado de Matos, A Fiscalização
cobrados”, Fiscalidade, 2002, 9, p. 129. Administrativa da Constitucionalidade, 2004, pp. 426 e segs., e di-
(36) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es- naMene de Freitas, O Acto Administrativo Inconstitucional, 2010,
tudos de Direito Público, 2011, p. 231. pp. 235 e segs.

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Por tudo isto, ainda que se admita poderem não existe um princípio da legalidade autónomo
existir casos concretos menos graves de inconstitu- da obediência à Constituição, como o princípio da
cionalidade consequente relativamente aos quais constitucionalidade é a premissa maior de toda a su-
deva ser de concluir pela anulabilidade, somos de bordinação administrativa à legalidade. Por isso,
opinião de que, em regra, o princípio da constitu- atendendo ao papel desempenhado pela Constitui-
cionalidade (n.º 3 do art. 3.º da CrP) será incompa- ção como fonte primária de validade material in-
tível com a estabilização do ato que aplique norma terna dos atos de direito Público e fonte direta-
inconstitucional por decurso do prazo de impug- mente vinculante de direito (n.os 2 e 3 do art. 3.º da
nação contenciosa. nestes casos, deve aceitar-se o CrP), exprimindo consequentemente a dependên-
alargamento dos prazos de impugnação por todo cia substancial do estado em todas as suas formas
o tempo em que o ato puder ser removido ex tunc à legalidade democrática fundada na Constituição
da ordem jurídica, em virtude da declaração de in- (39), alguns autores entendem que os atos adminis-
constitucionalidade da norma aplicada, com força trativos diretamente desconformes com a Consti-
obrigatória e geral, nos termos do n.º 3 do art. 282.º tuição devem necessariamente ser considerados
da CrP, a contrario. nulos (40). autores como tiago serrão, para quem
Finalmente, se o ato for desconforme com a nulidade, tal como configurada na lei geral admi-
norma constitucional imediatamente condicio- nistrativa, visa tutelar o interesse público da prote-
nante da atividade da administração, ocorrerá uma ção da integridade da ordem jurídica, traço
inconstitucionalidade direta. nesta violação ime- determinante para a definição da barreira que se-
diata de parâmetro normativo de nível superior, para nulidade e anulabilidade. sendo o interesse
que pode ser uma violação de direitos, liberdades público da tutela da integridade da ordem jurídica
e garantias ou outros direitos de natureza análoga, sempre colocado em causa quando ocorre ativi-
ocorre o equivalente a uma alteração legislativa por dade administrativa contrária à Constituição (41), a
ato da administração. esta alteração, além de não interpretação conforme ao princípio da constitucio-
consentida pela Constituição, é com ela incompa- nalidade permitirá concluir pela nulidade dos atos
tível, desde logo porque restrita à situação indivi- que a violem direta e imediatamente (42).
dual e por isso arbitrária e contrária ao princípio
da igualdade. também aqui, a aceitar-se a forma-
ção de caso decidido contra a Constituição, estar-
se-ia a facilitar a instrumentalização do regime das (39) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es-
invalidades para restringir direitos fundamentais tudos de Direito Público, 2011, pp. 255-256.
(40) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es-
ou violar normas constitucionais com carácter pre- tudos de Direito Público, 2011, pp. 256-258. em sentido seme-
ceptivo. isto, além de gravemente desconforme lhante, dinaMene de Freitas, O Acto Administrativo Inconstitu-
com a Constituição, fonte de validade de todos os cional, 2010, p. 251.
(41) Como referem andré salgado de Matos e João ta-
atos do estado (n.º 3 do art. 3.º da CrP), resultaria borda da gaMa, “o prazo para exercício do direito à restituição
numa utilização flagrantemente desproporcional de emolumentos notariais indevidamente cobrados”, Fiscali-
do regime de invalidades, e permitiria afinal efeitos dade, 2002, 9, p. 130, a nulidade dos atos administrativos basea-
dos em ato normativo inconstitucional constitui aliás “prova da
que a Constituição não autoriza.
sobrevivência da figura da nulidade por natureza enquanto categoria
ontologicamente ineliminável”.
2.4. ao contrário do entendimento tradicional- (42) Para tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucio-
nal”, Estudos de Direito Público, 2011, pp. 257-258, os preceitos
mente sustentado pela doutrina, que aponta para
relativos a direitos, liberdades e garantias e outros de assento
o n.º 2 do art. 266.º da CrP para sustentar a afirma- constitucional e natureza análoga detêm uma completude es-
ção de que a administração deve antes de tudo obe- trutural e ocupam uma posição privilegiada no ordenamento
jurídico constitucional português que lhes confere suficiente
diência primária à lei, a realidade é que para esta
força jurídica a resistir aos atos desconformes da administração
disposição “os órgãos e agentes administrativos estão que se lhe devem submeter, o que não pode deixar de implicar
subordinados à Constituição e à lei”, pelo que não só a nulidade dos atos administrativos que ofendam tais preceitos,

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da necessidade de uma cláusula geral de nulidade. dos atos da administração

Tomada de posição Com efeito, apesar da diversidade dos vícios


3.1. não obstante concordarmos genericamente conducentes à nulidade dificultar a formulação de
com esta tese, julgamos que a violação da Consti- um critério substancial satisfatório, o elemento que
tuição não deve ser valorada autonomamente, mas uniformemente a convoca é fundamentalmente o
antes ser complementada com uma valoração da da elevada gravidade da violação cometida, inde-
intolerabilidade concreta dessa violação, segundo pendentemente da extensão dos danos provoca-
um teste de proporcionalidade (43), na sua tripla di- dos. donde, sempre que a produção de efeitos
mensão. À luz deste critério devem ser ponderados jurídicos provisórios e a consolidação por decurso
a gravidade da ofensa, a possibilidade de ao ato do tempo se revelem intoleráveis, a inexistência de
serem consentidos efeitos provisórios, e a possibi- uma cláusula geral de nulidade deve ser ultrapas-
lidade de consolidação dos seus efeitos por decurso sada quando por força de um teste de proporcio-
de tempo. nestes termos, o ato administrativo vio- nalidade, ela se revele como a única solução capaz
lador da Constituição deve ser considerado nulo, de assegurar, entre a ilegalidade cometida e a con-
mesmo na ausência de disposição legal, sempre tramedida que lhe corresponde, uma tripla dimen-
que a sua eficácia potencial seja logica ou axiologi- são de adequação, necessidade e equilíbrio.
camente repudiada pela ordem jurídica (44) e a nu- de acordo com esta cláusula geral, que cremos
lidade se imponha por ser a resposta adequada, implícita na Constituição e na lei (45), de resto ba-
necessária e equilibrada face à violação cometida. seada, à semelhança da cláusula que figura na lei
alemã, no princípio da proporcionalidade, a comi-
nação da nulidade deve revelar-se como a sanção
e não apenas daqueles que violem o seu conteúdo essencial. de mais adequada à gravidade da ilegalidade cometida.
acordo com este autor, “assim o exige o princípio da constituciona-
além disso, esta solução deve ser aplicada quando
lidade e, de modo particular, o critério do tipo de ato e da gravidade do
vício, que deverá nortear o interprete na sua tarefa de concretização do se revele necessária a impedir a produção de efeitos
disposto no primeiro segmento do n.º 1 do artigo 133.º do CPA”. Con- provisórios inaceitáveis ou a possibilidade da sua
clui que resulta não só da força normativa da Constituição que consolidação a breve trecho. deve por fim apresen-
resulta do princípio da constitucionalidade, mas também e de
modo especial da eficácia e vinculatividade imediatas dos pre- tar-se como uma solução equilibrada, na medida em
ceitos que integram a categoria dos direitos, liberdades e garan- que o sacrifício que potencialmente implica à segu-
tias, que toda e qualquer violação a tais disposições configura rança jurídica seja ultrapassado pelo benefício que
uma transgressão de tal modo grave, que reclama o imediato
restabelecimento do interesse público desse modo preterido, o
a imediata rejeição da ilegalidade cometida traria
que só pode ser conseguido com a sua nulidade. não só à estabilidade e previsibilidade das situa-
(43) trata-se de um princípio operativo da ordem constitu- ções, como pelo efeito consequente de proteção da
cional portuguesa e um corolário densificador do princípio
constitucional do estado de direito democrático. o princípio da
coerência e integridade do sistema jurídico.
proporcionalidade releva no tocante a restrições a direitos fun- nem faria aliás sentido que o juiz ou a adminis-
damentais (n.º 2 do art. 18.º da CrP), sendo desde a lC 1/89 um tração pudessem, com base nos princípios da boa-
princípio materialmente constitutivo da atuação da administra-
fé, da proteção da confiança e da proporciona-
ção pública, postulando o uso moderado do poder (n.º 2 do art.
266.º da CrP) e desempenhando uma importante função nega- lidade ou outros princípios jurídico-constitucio-
tiva nos casos em que emerge com perigo o excesso de poder. nais, atribuir efeitos jurídicos a situações de facto
acresce que, nota goMes Canotilho, Direito Constitucional e Teo-
decorrentes de atos nulos (n.º 3 do art. 162.º do
ria da Constituição, 7.ª ed., 2003, pp. 271, 920 e 1163, citando os
acs. do tC n.os 176/2000 e 1202/2000, este princípio tem sido in- CPa), e já não tivessem a possibilidade de, com
vocado para alicerçar o próprio juízo de inconstitucionalidade.
(44) Como defendem MarCelo rebelo de sousa e andré
salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, tomo iii, 2.ª ed.,
2009, p. 180. no mesmo sentido, diogo Freitas do aMaral,
Curso de Direito Administrativo, vol. ii, 4.ª ed., 2018, p. 367, as nu- (45) Como nota Paulo otero, Direito do Procedimento Admi-
lidades por natureza são aquelas em que, por razões de lógica nistrativo, vol. i, 2016, p. 635, não se pode aliás excluir que a des-
jurídica, “embora não previstas na lei, não podiam deixar de ser como conformidade da atuação administrativa com normas do direito
tais consideradas, porque seria totalmente inadequado o regime da sim- da união europeia nos venha a obrigar ao reconhecimento de
ples anulabilidade”. nulidades por natureza.

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Justiça adMinistratiVa n.º 147 • Julho/setembro 2021

base em juízo semelhante e por aplicação dos mes- normativos sobre as valorações próprias do exercí-
mos princípios, declarar a nulidade de ato admi- cio da função administrativa, que vinculam a ad-
nistrativo, nos casos em que essa consequência se ministração a atuar em obediência à lei e ao Direito (n.º
apresente para o homem médio e de acordo com a 1 do art. 3.º do CPa), a prosseguir o interesse público,
consciência jurídica geral, como a única solução ad- no respeito pelos direitos e interesses legalmente prote-
missível. gidos dos cidadãos (art. 4.º do CPa), sendo que as de-
Julgamos por isso que, apesar da falta de previ- cisões que colidam com direitos subjetivos ou interesses
são legal expressa de uma cláusula geral de invali- legalmente protegidos dos particulares só podem afetar
dade, a autoridade competente para proceder à essas posições na medida do necessário e em termos pro-
anulação ou declaração de nulidade deve concluir porcionais aos objetivos a realizar (n.º 2 do art. 7.º do
por esta última sempre que, na sequência de um CPa). e permite ainda a rejeição das soluções mani-
teste de proporcionalidade que abranja as suas três festamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de
dimensões, conclua que o tipo de invalidade não Direito (art. 8.º do CPa) (46).
possa ser outro. e não se diga que a nulidade, por Quando, pela gravidade e alarme social de cer-
operar imediatamente – não produzindo quaisquer tas ilegalidades praticadas em atos administrati-
efeitos jurídicos, independentemente da declaração vos, não possam ser tolerados os seus efeitos pro-
de nulidade (n.º 1 do art. 162.º do CPa) – não pode visórios e a possibilidade da sua consolidação por
ficar dependente de um teste de proporcionalidade decurso de tempo, por serem mais gravosos e con-
porque a declaração de nulidade é sempre uma de- trários à unidade do sistema jurídico do que as per-
cisão de carácter declarativo que, até ser tomada turbações eventualmente causadas pela aplicação
pelos tribunais ou pelo órgão administrativo com- do regime da nulidade, tais atos devem ser decla-
petente, implicará sempre divergências de enten- rados nulos. o que se verificará quando o tipo mais
dimento. radical de invalidade se revele como o mais ade-
quado à gravidade da ilegalidade cometida, seja
3.2. esta parece-nos ser a única solução compa- necessário à proteção de princípios estruturais do
tível com o regime das invalidades, por via do qual sistema jurídico ou de relevantes direitos subjetivos
são necessariamente nulos os atos que padecem de ou interesses legalmente protegidos, e a sua prote-
invalidades de tal modo graves que não possam ser ção através do regime da nulidade justifique, de
anuláveis, o que acontece quando a anulabilidade acordo com uma ponderação de equilíbrio, a per-
conduzir a resultados incompatíveis com o sistema turbação à segurança jurídica a que eventualmente
a que pertencem. é para onde apontam os dados possa dar lugar.

José aVilez ogando

(46) além disso, deve adotar os comportamentos adequados


aos fins prosseguidos (n.º 1 do art. 7.º do CPa), recusando atua-
ções burocratizadas, ineficientes e a utilização supérflua dos re-
cursos do estado, pautando-se por critérios de eficiência,
economicidade e celeridade (art. 5º do CPa), o que significa o
dever de avaliar a litigiosidade da sua atuação, a proibição de
insistência em soluções ilegais ou desconformes com o princípio
da proporcionalidade, geradoras de uma litigiosidade indese-
jável do ponto de vista da realização dos fins do estado.

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