Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
SUMÁRIO:
I. Introdução; II. Caracterização do pagamento especial por conta; 1.
Evolução; 2. Enquadramento actual; 3. Regime sancionatório; III. Apreciação
da constitucionalidade do pagamento especial por conta; 1. Alguns
princípios constitucionais em matéria fiscal; 2. O objecto do imposto sobre o
rendimento das pessoas colectivas; 3 A inconstitucionalidade do pagamento
especial por conta; IV. Conclusão.
I. Introdução
1
A génese e o desenvolvimento desta figura, que pretende ser uma
forma de pagamento do imposto apurado a final, esteve envolta em
polémica porquanto as suas características apontavam para a instituição
de uma colecta mínima das empresas, como forma de dotar o Estado de
um mecanismo adicional de combate às práticas de evasão fiscal,
essencialmente materializadas em sede de IRC pela ocultação de
rendimentos e ou da empolação de custos. Com a sua introdução no
ordenamento jurídico-tributário português pretendeu o Legislador
combater as graves distorções em matéria de equidade e justiça tributária,
enquanto se aumentava a eficácia económica do Estado.
1. Evolução
2
Assim configurado, o pagamento especial por conta esquematiza-se da
seguinte forma:
3
anos posteriores, limitada apenas a situações de cessação de actividade.
Neste caso, o sujeito passivo podia unicamente reaver o montante em
excesso dos pagamentos especiais por conta efectuados nos três anos
anteriores à cessação, mediante requerimento a apresentar nos 90 dias
seguintes ao da cessação da actividade.
1 Resta saber qual a política da administração tributária quanto à ordem por que serão
deduzidos em cada exercício, os pagamento especiais por conta não integralmente
deduzidos em exercícios anteriores por insuficiência de colecta apurada. A redacção do
nº. 1 do artigo 87º sugere que seja feita primeiro a dedução do pagamento especial por
conta do próprio exercício a que respeita, seguindo-se os restantes, em caso de
insuficiência da colecta, até ao quarto exercício anterior. No entanto parece-nos que a
dedução dos restantes deverá ser feita por ordem de antiguidade.
4
a) o montante do pagamento especial por conta é igual à diferença
entre o valor correspondente a 1% dos respectivos proveitos e
ganhos do ano anterior, com o limite mínimo de € 1.250 e máximo
de € 200.000, e o montante dos pagamentos por conta efectuados no
ano anterior2;
5
seguinte àquele a que o pagamento especial por conta diz
respeito 5.
5Não obstante o que sobre este ponto diz o n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC, veio o
Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, através do Despacho d nº. 1553/ 2003-
XV de 18 de Junho, a permitir que “ os sujeitos passivos, não abrangidos pelo regime de
tributação previsto no artigo 53º do mesmo diploma, podem solicitar o reembolso, no exercício
seguinte àquele a que respeita, da parte do pagamento especial por conta que não tenha sido
deduzida à colecta do exercício de 2003, desde que preenchidos, cumulativamente, os requisitos
constantes das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 87º do Código do IRC.” .
6 Será inferior a € 1.250 sempre que o for a diferença entre o valor correspondente a 1%
dos proveitos e ganhos do ano a que respeita e o montante dos pagamentos por conta
efectuados no ano anterior.
6
2. Enquadramento actual
7
operações elencadas nas diversas alíneas desse mesmo artigo. Sucede
porém que como foi dito, existem proveitos e ganhos que não concorrem
para a determinação do lucro tributável ou que dele estão afastados em
virtude de isenção de tributação ou de outro benefício fiscal. Dada a
função instrumental do pagamento especial por conta de pagamento por
conta da colecta que se vier a apurar relativa ao mesmo exercício, não
faria qualquer sentido que para efeitos de determinação do quantitativo
do pagamento especial por conta fossem relevados proveitos
expressamente desconsiderados pelo Legislador para esse efeito.
8
Por outro lado, o pagamento especial por conta é um pagamento
por conta do imposto que se liquidar a final, e tem por base uma
rendibilidade estimada das empresas, diga-se optimista, de 3,33% ao ano e
não mais, tendo sido por essa razão que a taxa que acabou por ser
adoptada fosse de 1% e não de 1,5%, como estava prevista na proposta de
Lei de Orçamento de Estado para 2003, dada a difícil situação económica
que as empresas hoje enfrentam de uma forma generalizada. Estender a
definição de proveitos e ganhos para além daqueles que são considerados
pelo próprio Estado como relevantes para a fixação de rendimento
tributável, além de incoerente, seria ainda mais abusivo.
9
possibilidade ao sujeito passivo que apresente um rácio de rentabilidade
inferior a 90% da média dos rácios das empresas do sector, de eficazmente
apresentar justificação para tal divergência. O mesmo será dizer que as
empresas que apresentarem um desajustamento em termos de
rentabilidade superior a 10% ficam sem os montantes que entregaram a
mais ao Estado. Isto, mesmo que em acção de inspecção realizada para o
efeito, venha a ser obtida a certificação, por parte da Administração
Tributária, de que as colectas apuradas nos cinco anos anteriores ao
pedido de reembolso foram de facto insuficientes para absorver os
pagamentos por conta realizados. Somos contudo de opinião, de que aqui
estamos perante um verdadeiro confisco não assumido, aplicado por via
legislativa, às empresas que não apresentem rácios de rentabilidade
considerados desejáveis, apresentando a lei neste aspecto particular clara
inconstitucionalidade por objectiva violação ao princípio do direito de
propriedade privada expressamente consagrado no artigo 62º da
Constituição da República Portuguesa, e que constitui um princípio que
estravasa a própria Constituição Fiscal. Conceber esta situação que aliás se
encontra prevista na lei, é conceber a retenção por parte do Estado de
riqueza sem qualquer motivo justificativo, no que qualificamos como um
verdadeiro enriquecimento sem causa.
10
anos são por si só susceptíveis de violentar fortemente as finanças de
muitas empresas que assim se vêm privadas de fundos que lhes permitam
levar a cabo planos de investimento. Estes, acrescidos aos eventuais custos
de uma inspecção tributária9, serão as mais das vezes dissuasores dos
pedidos de reembolso. A retenção por parte do Estado do pagamento
especial por conta não deduzido apenas se pode explicar por uma lógica
segundo a qual o contribuinte presume-se culpado até provado inocente,
o que é completamente inaceitável.
3. Regime sancionatório
9 A Portaria nº. 923/ 99 de 20 de Outubro estabelece que os limites mínimo e máximo dos
montantes devidos pela inspecção são calculados mediante a aplicação de uma taxa sobre
o volume de negócios da empresa inspeccionada, e variam entre um mínimo de €
3.152,40 e um máximo de € 34.915,85 para cada exercício inspeccionado.
Em concreto, para pedidos de inspecção de cinco exercícios, como é o caso do pedido de
reembolso do pagamento especial por conta, isto representará por si só uma contingência
fiscal das empresas em montante mínimo de € 15.762 e máximo de € 174.579,25.
10 TERESA GIL, Pagamento Especial Por Conta, in revista FISCO, p. 17.
11
15/ 2001 de 5 de Junho, infracção contra-ordenacional11 punida com coima
variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa
ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido. Nos casos em
que a conduta descrita é imputável ao sujeito passivo a título de
negligência, a coima abstractamente aplicável varia entre um mínimo de
10% e metade do montante em falta, sem que se possa ultrapassar o limite
máximo abstractamente estabelecido.
No entanto, uma vez que esta infracção não pode deixar de ser
praticada por pessoa colectiva, não deixaria de se aplicar o disposto no nº.
4 do artigo 26º do mesmo diploma, nos termos do qual aqueles limites
mínimo e máximo são elevados para o dobro – ou seja, punível com coima
entre o dobro e o quádruplo da prestação em falta nos casos de dolo, e de
20% ao valor da prestação em falta, nos casos de negligência – sempre que
praticados por uma pessoa colectiva, não fosse a circunstância de o
Legislador, antecipando a forte contestação social ligada à medida
impopular do agravamento do pagamento especial por conta operado
com o Orçamento de Estado de 2003, ter expressamente consignado no nº.
5 do artigo 28º da Lei nº. 32-B/ 2002 de 30 de Dezembro que “ o
incumprimento do artigo 28º do Código do IRC é punido, nos termos da alínea f)
do nº. 5 do artigo 114 do Regime Geral das Infracções Tributárias com coima
variável entre 50% e o valor da prestação tributária em falta, no caso de
negligência, e com coima variável entre o valor e o triplo da prestação tributária
em falta, quando a infracção for cometida dolosamente.” .
11 Cf. nº. 1 e da alínea f) do nº. 5 do artigo 114º do Regime Geral das Infracções
Tributárias.
12
Outra ordem de consideração prende-se com a circunstancia de
saber a que título – dolo ou negligência – imputar a falta de realização do
pagamento especial por conta às empresas que apresentem falta de meios
financeiros, sendo certo que não lhes foi dada a possibilidade de
provisionar adequadamente esta inesperada obrigação fiscal em anos
anteriores.
13
termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e
cobrança se não façam nos termos da lei” .
103º da CRP.
13 NUNO DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol II, p. 27.
14
já existentes ou de outros bens cuja aquisição se deu sem que se tivesse
previsto a mudança na futura lei fiscal. É neste sentido que é consagrada a
dignidade constitucional da natureza não retroactiva da lei fiscal como
forma de tutela da confiança, tendo em conta a consideração de que a
forma de tributação gera nos contribuintes expectativas e incertezas que
afectam inexoravelmente as suas decisões de investimento e de
consumo 14.
15
O princípio da generalidade da tributação na medida da
capacidade contributiva tem duas funções: uma função solidarista, que
impõe que todos devem contribuir para as despesas públicas na medida
de que disponham dessa capacidade, e uma função garantística, que obriga
a que só devam ser sujeitos a tributação os que podem pagar.
16
desutilidade da tributação é mais forte ou mais fraca, em função da maior
ou menor quantidade dos bens disponíveis, partiu-se para uma concepção
de igualdade de sacrifícios não através da regra da proporcionalidade,
mas sim pela regra da progressividade, o que implica a aplicação de taxas
de imposto sucessivamente mais elevadas à medida que o rendimento, o
capital, ou o consumo, aumentam.
17
foi aliás adoptado pelo legislador ordinário ao consagrar que “ o lucro
tributável (...) é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e
das variações positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas
naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente
corrigidos nos termos deste Código.” 20.
18
etc., e toda a restante panóplia de outros encargos tributários fiscais e
parafiscais que hoje inundam as empresas de um modo quase
insuportável. Naturalmente que o que restará na maioria das empresas e
que não se destinar a planos de investimento na modernização, expansão
ou na compra de matérias primas acabam por ser os rendimentos que
depois são tributados nos trabalhadores e detentores de capital, em sede
das várias categorias do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas
Singulares.
19
como segundo critério na cobrança de impostos sobre o rendimento das
pessoas colectivas. A utilidade das regras sobre tributação do lucro
esgota-se na questão de saber se a excepção se verifica, ou seja, se o
pagamento especial por conta foi insuficiente para cobrir uma outra
colecta possível. Como segundo critério na cobrança de impostos, o IRC
passou apenas a ser uma forma de legitimação da nova fórmula de
tributação das empresas: a de um imposto proporcional sobre os proveitos
e ganhos.
20
O pagamento especial por conta viola o princípio da tributação na
medida da capacidade contributiva, na sua função solidarista, ao não
considerar as diferenças económicas entre empresas em diferentes
sectores de actividade23, e a sua diferente capacidade para pagar imposto,
calculado com a medida de uma taxa única sobre os proveitos. É do
conhecimento geral, não apenas dos estudiosos das matérias económico
financeiras, que as vendas são um indicador que pode ser altamente
falacioso atenta a diversidade de actividades empresariais, uma vez que
há negócios pouco interessantes com elevadas rentabilidades de vendas
mas com baixa rotação do activo, podendo o inverso também ser
verdadeiro. Quando ainda se acrescentam outros proveitos e ganhos, sem
distinção, ainda se agrava a sua iniquidade24.
21
Como atrás se fez referência, caso se revele a insuficiência da
colecta apurada no ano a que se refere o pagamento especial por conta, o
contribuinte pode proceder à sua dedução até ao quarto exercício
seguinte27. Nesta situação, o pagamento especial por conta perde a sua
característica de pagamento por conta passando a afirmar-se como uma
entrega antecipada de imposto de anos vindouros, configurando-se
mesmo como um imposto. Isto decorre aliás do disposto no artigo 33º da
Lei Geral Tributária28, que reforça esta ideia ao referir que os pagamentos
por conta do imposto devido a final são “ entregas pecuniárias antecipadas
que sejam efectuadas pelos sujeitos passivos no período de formação do facto
tributário” . E isto viola o princípio da capacidade contributiva, pois esta
não é levada em consideração – como aliás não poderia em qualquer caso
sê-lo, por tratar-se do pagamento por conta – e na medida em que a
capacidade contributiva de anos vindouros não existe, por ser
indeterminada e indeterminável29.
22
de resistência expresso no nº. 3 do artigo 103º da Constituição da
República Portuguesa, nos termos do qual ninguém pode ser obrigado a
pagar impostos que não se hajam criado nos termos da Constituição.
Mas ainda que assim se não entenda, por se considerar não ter o
pagamento especial por conta a natureza de um imposto, sempre se dirá
serem inconstitucionais as normas contidas nos nºs. 1 e 3 do artigo 87º do
Código do IRC. Senão vejamos: a possibilidade conferida aos
contribuintes de deduzir o pagamento especial por conta não absorvido
pela colecta, às colectas apuradas nos quatro anos seguintes à sua entrega
nos cofres do Estado, apresenta-se como uma faculdade meramente
aparente, porquanto durante esses anos que se seguirem o contribuinte
fará igualmente entregas a título de pagamento especial por conta, que
supõem já uma rendibilidade dos proveitos correspondente a 3,33%, o que
reconhecidamente encontra-se muito acima das rendibilidades verificadas
pelas empresas portuguesas, mormente das pequenas e médias empresas
que constituem o grosso do tecido empresarial português. Donde, uma
empresa que tenha verificado uma colecta insuficiente para absorver o
pagamento especial por conta entregue, deverá no exercício seguinte
apresentar uma rendibilidade não só superior às suas rendibilidades
passadas, como ainda uma rendibilidade superior àquela que dela espera
o próprio Estado, de 3,33%, por forma a absorver não apenas os
pagamentos especiais por conta não deduzidos em colectas relativas a
exercícios anteriores, mas também o pagamento especial por conta que fez
nesse exercício. E assim sucessivamente.
23
que significa que não podem obter reembolso os sujeitos passivos que
exerçam a título principal, uma actividade de natureza comercial,
industrial ou agrícola, não isentos ou sujeitos a algum regime especial de
tributação, que não tenham optado pelo regime de tributação pelo lucro
consolidado, e que no exercício anterior tenham apresentado um volume
anual de proveitos não superior a € 149.639,37!
24
Administração Tributária através de inspecção que certifique que as
colectas dos cinco anos anteriores ao pedido de reembolso foram bem
apuradas, e que foram de facto insuficientes para absorver os pagamentos
por conta realizados, podem mesmo assim não conseguir o reembolso
desses montantes entregues em excesso (mas devidamente entregues,
porque em cumprimento de uma obrigação legal e sujeito a um regime
sancionatório pesadíssimo, como vimos), por terem apresentado um
desvio da sua taxa de rentabilidade superior a 10% para menos, em
relação à média das empresas do sector. E mais assim é, pois a lei não
prevê que o contribuinte possa justificar o não cumprimento do rácio
estabelecido, designadamente por aquela não lhe ser imputável.
4. Conclusão
25
OS DEVERES DE INFORMAÇÃO PERMANENTE
NO MERCADO DE CAPITAIS(*)
I. INTRODUÇÃO
1. Objecto
1
(CVM)1, como nos regulamentos e orientações emitidos pela Comissão do
Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), onde é acolhido com uma regulação
exaustiva nos seus mais variados aspectos, tanto no que diz respeito à quantidade,
como à qualidade da informação a disponibilizar e que se destina à entidade de
supervisão, às entidades emitentes, aos investidores e ao público em geral,
desaguando numa ideia de transparência dos mercados financeiros.
1
Aprovado pelo Decreto Lei nº. 486/99 de 13 de Novembro e adiante abreviadamente designado
por CVM. As disposições legais a que se faz referência sem indicação expressa do diploma em
que se inserem, devem ter-se por reportadas ao Código dos Valores Mobiliários.
2
Cfr., artigos 123º e segs. do CVM.
3
Veja-se INTERNATIONAL ORGANIZATION OF SECURITIES COMMISSIONS (OICV -
IOSCO), “Principles for Ongoing Disclosure and Material Development Reporting by Listed
Entities”, Outubro de 2002, p. 3. O termo ongoing disclosure é usado para referir o apontado
conjunto de deveres de informação — informação a prestar segundo um princípio geral de
relevância implícita ou explícita e aquela que deve ser divulgada em determinadas datas ou
intervalos de tempo — em contraposição com a informação a prestar por ocasião da realização de
ofertas públicas de distribuição ou de aquisição.
2
regularmente determinada informação em momentos pré determinados, ou de
manter o mercado permanentemente actualizado face a factos que entretanto
ocorram, através da sua divulgação tempestiva. É esta última classe de deveres
que assegura a contínua actualização da informação disponível no mercado,
através da divulgação de factos segundo um critério geral de relevância, implícita
ou explícita. Temos assim, como exemplos tradicionalmente apontados quanto
aos deveres de informação periódica, a obrigatoriedade de publicação de peças de
informação financeira anual, semestral ou trimestral por parte das entidades
emitentes, e quanto aos deveres de informação contínua, os deveres que impõem a
realização de comunicações e publicações obrigatórias relativos à aquisição ou
alienação de participações qualificadas em sociedade aberta ou a factos
relevantes.
O presente texto pretende fornecer uma visão de sistema sobre a rede dos
deveres de informar habitualmente incidentes sobre os sujeitos que operam no
mercado de capitais, seja através da técnica da sua comunicação a sujeitos
determinados, seja através da estatuição de obrigações de emitir comunicados ao
público em geral. No entanto, e atendendo a que a instituição de deveres de
informação permanente sobre os diversos agentes é susceptível de produzir
externalidades que cumpre minimizar, tentaremos detectar as zonas onde os
referidos deveres nos pareçam insuficientes ou excessivos, sem deixar de levantar
outras questões, sempre que a sua pertinência e o objecto deste estudo o
permitirem.
4
Cfr. artigo 23º do CVM.
5
Cfr. artigos 358º e segs do CVM.
6
Cfr. artigos 236º e segs do CVM.
7
Cfr. artigo 123º do CVM.
3
2. Autonomia dos deveres informativos do Direito dos Valores
Mobiliários face ao Direito Societário8
8
Sobre o direito à informação nas sociedades comerciais, veja-se CARLOS PINHEIRO TORRES,
“O Direito à Informação nas Sociedades Comerciais”, Almedina, 1998.
9
Desde logo, enquanto o Direito dos Valores Mobiliários se estrutura em torno da posição do
investidor e por conseguinte, ao nível das relações externas do titular de valores mobiliários, o
Direito Societário estrutura-se em torno da posição do sócio logo ao nível das relações internas
que mantém no âmbito da sociedade, seja qual for o tipo social em causa.
4
por destinatários a generalidade dos sujeitos económicos. Assim, enquanto
conjunto de normas estruturadoras de um conjunto de posições internas dos sócios
na sociedade, o Código das Sociedades Comerciais apresenta um conjunto de
deveres informativos que, particularmente no que diz respeito às sociedades
anónimas, nasce da tutela específica atribuída pelo direito à posição dos
accionistas minoritários. Deste modo compreende-se que, atento o carácter
instrumental da informação exigida ao nível societário, esta se encerre dentro dos
limites da própria sociedade, visando exclusivamente criar as condições para que
os sócios possam esclarecidamente exercer os seus direitos10.
5
instituição, que é o próprio mercado11. Daí que o princípio da transparência,
enquanto meio instrumental destinado a tutelar a eficiência e a equidade do
mercado, deve apenas ser restringido no que for estritamente necessário para a
defesa dos interesses que tem em vista assegurar. Exemplo disto é a pontual
imposição que encontramos no Código dos Valores Mobiliários de deveres de
sigilo a determinados agentes12.
3. Plano de exposição
11
EDUARDO PAZ FERREIRA, “A informação…”, in Direito dos Valores Mobiliários, Coimbra
Editora, Vol. III, p. 140.
12
Desta constatação é exemplo a disposição contida no artigo 174º do CVM que se justifica ainda
pelo princípio da igualdade no acesso à informação, nos termos da qual devem guardar segredo
sobre a preparação da oferta pública de aquisição, o oferente, a sociedade visada, os seus
accionistas e titulares de órgãos sociais, juntamente com todos os sujeitos que lhes prestem
serviços a título permanente ou ocasional, até ao momento da publicação do anúncio preliminar.
Outro exemplo é o disposto no artigo 354º do CVM, onde se estabelece que os órgãos da CMVM,
os seus titulares, trabalhadores, e as pessoas que lhe prestem quaisquer serviços a título
permanente ou ocasional, ficam sujeitos ao dever de guardar segredo profissional sobre os factos e
os elementos cujo conhecimento lhes advenha do exercício das suas funções, mesmo após a
cessação das actividades ou das funções que lhe deram origem, salvo tratando-se de factos ou
elementos cuja divulgação pela CMVM seja imposta ou permitida por lei.
13
Cabe no entanto fazer aqui uma breve referência a outros aspectos que ficam por explorar nestas
páginas, como é o caso do regime da responsabilidade civil por incumprimento de deveres de
informação. Sobre o tema, embora no domínio do direito civil, veja-se JORGE FERREIRA
SINDE MONTEIRO, “Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações”,
Almedina, 1989, e no domínio do Direito dos Valores Mobiliários, CARLOS COSTA PINA,
“Dever de Informação e Responsabilidade pelo Prospecto no Mercado Primário de Valores
Mobiliários”, Coimbra Editora, 1999.
6
Em segundo lugar, serão brevemente abordados determinados aspectos
subjacentes aos deveres de informar, como sejam as questões da ambivalência dos
sujeitos perante a informação, da perenidade da questão da transparência no
mercado de capitais e da teleologia dos deveres de informação.
7
desintermediação financeira14, e que consiste na possibilidade que estes agentes
passam a dispor de procederem à captação directa de capital junto do público
investidor, em alternativa ao tradicional recurso a aplicações em produtos
bancários. Assim, enquanto ponto privilegiado de encontro entre a poupança
gerada pelos investidores e a procura de fontes de financiamento às empresas e ao
próprio Estado, o mercado de valores mobiliários constitui uma importante peça
da economia nacional em geral e do sistema financeiro em especial
desempenhando uma inegável função de interesse colectivo.
5. Os riscos do mercado
14
Cfr. PAULO CÂMARA, “Emissão e Subscrição de Valores Mobiliários”, in Direito dos Valores
Mobiliários, Lex, 1997, p. 202 e 203.
15
Neste sentido, CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A informação no Direito do Mercado de
Valores Mobiliários”, in Direito dos Valores Mobiliários, Lex, 1997, p. 336.
8
liquidez esperada. A estes riscos acrescenta ainda SOUSA FRANCO16 o risco
sistémico do mercado que redunda no afastamento dos investidores, fazendo com
que as crises inicialmente localizadas se propaguem a outras entidades ou a outros
mercados, num verdadeiro “efeito dominó”.
16
Cfr. “Actas do Conselho Nacional do Mercado de Valores Mobiliários” de 8 de Setembro de
1997 e 22 de Janeiro de 1998, edição do Ministério das Finanças e da Comissão do Mercado de
Valores Mobiliários, 1998, p. 9.
17
Veja-se ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Da Boa Fé no Direito Civil”, 1984, Vol. I, p.
605, “Direito das Obrigações”, 1º Vol, 1988, p. 149, RUI DE ALARCÃO “Direito das
Obrigações”, 1983, p. 66 e 67, e JOÃO ANTUNES VARELA, “Das Obrigações Em Geral”,
1995, Vol. II, p. 10 e segs..
18
MANUEL BOTELHO DA SILVA, “Dos critérios de aferição de insuficiência de informação
numa oferta pública de valores mobiliários fundadora de responsabilidade civil pelo prospecto”,
in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 3, 1998, p. 178.
19
Veja-se THEODOR BAUMS, “Changing Patterns of Corporate Disclosure in Continental
Europe: the Example of Germany”, European Corporate Governance Institute, 2002, p. 3.
9
óbvio, sendo susceptíveis de alterar o curso normal da oferta e da procura, estas
assimetrias trazem consigo efeitos altamente perniciosos ao desenvolvimento do
mercado, pois ao suscitarem dúvidas no espírito dos investidores quanto à
evolução das cotações ou quanto à percepção de que existem sujeitos detentores
de melhor informação que os coloquem numa posição de vantagem na análise
dessa mesma evolução, criam as condições para o seu progressivo afastamento do
mercado.
20
FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “O direito de informar e os crimes de
mercado”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 2, 1998, p. 98. Sobre a as reacções
do mercado à divulgação de informações sobre os activos neles negociados, veja-se MAFALDA
GOUVEIA MARQUES e MÁRIO FREIRE, “A informação no mercado de capitais”, in Cadernos
do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 3, 1998, p. 113 e segs., e PEDRO WILTON, “Impacto da
Divulgação de Resultados na Negociação em Mercado de Bolsa”, in Cadernos do Mercado de
Valores Mobiliários, nº. 15, 2002, p. 51 e segs.
10
Em termos económicos, o mercado eficiente foi definido como o mercado
em que a diferença entre o preço efectivo de cada valor mobiliário e o preço
esperado pelos investidores perante toda informação disponível, é igual a zero21.
Para uma melhor compreensão dos efeitos da informação sobre os preços num
mercado eficiente, generalizou-se uma classificação introduzida por HARRY
ROBERTS22, que corresponde a três níveis de incorporação da informação nos
preços.
21
Neste sentido, veja-se EUGENE FAMA, “Efficient Capital Markets: a Review of Theory and
Empirical Work”, in Journal of Finance, 25, p. 383 a 417. Como sugestivamente afirmou uns anos
depois M. RUBINSTEIN, o mercado eficiente é aquele em que os preços não seriam alterados se
todos revelassem aquilo que sabem, in “Securities Market Efficiency, in an Arrow-Debreu
Economy”, in American Economic Review, 65, p. 812 a 824. Citados apud RICHARD A
BREALEY e STEWART C. MYERS, “Princípios de Finanças Empresariais”, 5ª Ed., 1998, p.
336.
Uma importante classificação a ter em conta sobre os diferentes aspectos da aptidão do mercado
para o adequado desempenho da sua função económica, designadamente no que se refere ao papel
desempenhado pela informação, foi divulgada entre nós por CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A
informação…”, ob. cit., p. 334 que, na esteira da doutrina alemã subdivide a eficiência do mercado
em três aspectos fundamentais: a capacidade institucional, a capacidade operacional, e a
capacidade alocativa de funcionamento do mercado. Sobre o prisma da capacidade institucional
de funcionamento, a eficiência do mercado assenta na verificação dos pressupostos de existência
do mercado, e que se traduzem na possibilidade de este funcionar como um espaço privilegiado de
intercâmbio entre agentes económicos. Entre esses pressupostos temos a existência de uma oferta e
de uma procura que se encontram em transacções seguras e informais, factores que determinam a
eleição por parte dos agentes económicos, desse mercado e não de outro qualquer, como espaço
preferencial de negociação. O aspecto da eficiência operacional do mercado refere-se ao grau de
neutralidade dos mecanismos tendentes à obtenção de informação face aos preços dos activos nele
negociados. Por último, a capacidade alocativa de funcionamento prende-se com um nível de
funcionamento do mercado em que os capitais envolvidos sejam investidos nas entidades que deles
venham a tirar o melhor proveito e que por esse facto se encontram nas melhores condições para
assegurar uma melhor remuneração aos seus investidores. Este efeito apenas pode ser atingido
desde que aos investidores seja facultada a possibilidade de prévia ponderação dos rendimentos
esperados e dos riscos inerentes aos investimentos a realizar, baseada em informação assente em
condições de igualdade e segurança.
22
HARRY V. ROBERTS, “Statistical Versus Clinical Prediction of the Stock Market”.
Documento não publicado e apresentado no seminário sobre análise dos preços dos valores
mobiliários na Universidade de Chicago, em Maio de 1967. Citado apud RICHARD A BREALEY
e STEWART C. MYERS, “Princípios de Finanças Empresariais”, 5ª Ed., 1998, p. 329.
11
informação publicada. Este aspecto foi já bastante abordado, inclusivamente entre
nós23, tendo-se verificado que grande parte da informação tornada pública é rápida
e cuidadosamente incorporada na cotação dos activos a que diz respeito. Contudo,
sendo certo que índices de reacção relativamente curtos à disponibilização de
informação relevante constituem um indicador positivo sobre o funcionamento do
mercado, normalmente indiciando que nele não se encontram instaladas bolsas de
informação privilegiada, não será menos certo que elevados índices de reacção à
informação ocasional e avulsa revelam um mercado instável, e por conseguinte
facilmente manipulável24.
23
Veja-se MAFALDA GOUVEIA MARQUES e MÁRIO FREIRE, “A informação…”, ob. cit., p.
113 e segs.
Como referiram RICHARD A BREALEY e STEWART C. MYERS, “Princípios…”, ob. cit., p.
990, uma vez que num mercado eficiente os preços dos valores mobiliários reflectem sempre toda
a informação disponível, assumindo sempre com um maior ou menor rigor o seu verdadeiro valor,
a concorrência entre investidores adequadamente informados leva a que os preços respondam
rapidamente a uma nova informação logo que ela se torne conhecida.
24
Cfr. FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “O direito…”, ob. cit., p. 100.
25
Como referem RICHARD A BREALEY e STEWART C. MYERS, “Princípios…”, ob. cit., p.
346 , “A santa padroeira da Bolsa de Valores de Barcelona é a Nossa Senhora da Esperança. É a
padroeira perfeita, uma vez que num mercado eficiente tudo o que se pode racionalmente esperar
é obter uma rendibilidade que compense exactamente pelo valor temporal do investimento e pelos
riscos assumidos”.
12
sobre a realidade subjacente se incorpore no próprio valor mobiliário a que diga
respeito.
Esta última tendência surge agravada pela forte concorrência que nestes
mercados se faz sentir, e pela circunstância de que a simples detenção de
informação permitir aos seus titulares correr, como vimos, menos riscos do que
aqueles a que tipicamente estão sujeitos os demais investidores.
26
A eficiência dos mercados constitui uma das incumbências do Estado no âmbito económico e
social, cabendo-lhe, nos termos da alínea e) do artigo 81º da Constituição da República
Portuguesa, “assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a
equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas
e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral.”.
27
Cfr. EDUARDO PAZ FERREIRA, “A informação…”, ob. cit., p. 145, citando ALBERTO
PREDIERI, “Lo Stato come riduttore di assimetrie informative nella Regolazione dei Mercati
Finanziari”, p. 69 e segs.
28
Curiosamente a propósito, cite-se o expressivo slogan recentemente escolhido por um conhecido
jornal de informação financeira, que sugere: “Saiba tudo às quintas no Jornal de Negócios, ou dias
depois em todo o lado”, ou ainda a conhecida frase atribuída a ARISTÓTELES ONASSIS,
segundo a qual “o segredo dos negócios é saber algo que mais ninguém sabe”.
13
Deste modo, o mercado carece de um adequado quadro jurídico que lhe
permita impor o ajustamento perante as assimetrias informativas pontualmente
emergentes, de maneira a que entre a ocorrência de um determinado facto
susceptível de influir nos preços e o momento da sua divulgação decorra o
mínimo espaço de tempo possível. Nesta medida, o Direito dos Valores
Mobiliários é chamado a proporcionar a todos igualdade no acesso e na
distribuição dos riscos próprios do investimento através da imposição sobre os
agentes que nele actuam, de um amplo e eficaz conjunto de deveres de
informação29.
29
Como poder ler-se no considerando nº. 31 da Directiva nº. 2001/34/CE, de 28 de Maio, “uma
política de informação adequada dos investidores no sector dos valores mobiliários é susceptível
de melhorar a sua protecção, de reforçar a sua confiança nos mercados desses valores e de
assegurar assim o seu bom funcionamento”.
30
Fundamentalmente da Directiva nº. 82/121/CEE, de 15 de Fevereiro relativa à informação
periódica a publicar pelas sociedades cujas acções são emitidas à cotação oficial de uma bolsa de
valores e da Directiva nº. 88/627/CEE, de 12 de Dezembro, relativa às informações a publicar por
ocasião da aquisição ou alienação de uma participação importante numa sociedade cotada na
bolsa. As matérias regulamentadas por estas directivas foram entretanto codificadas pela
aprovação da Directiva nº. 2001/34/CE, de 28 de Maio, relativa à admissão de valores mobiliários
à cotação oficial de uma bolsa de valores e à informação a publicar sobre esses valores, a qual foi
alterada pela Directiva nº. 2003/6/CE, de 28 de Janeiro.
14
O sistema de revelações obrigatórias (mandatory disclosure),
conjuntamente com uma série de outras medidas implementadas por força
daqueles diplomas, como a constituição da Securities Exchange Comission, surge
como a reacção à grande depressão que afectou os mercados financeiros norte
americanos em 1929 e teve essencialmente em vista restaurar a confiança dos
investidores no mercado de valores mobiliários, tradicionalmente a grande fonte
de financiamento das empresas norte-americanas.
31
É o caso do seu Regulamento sobre deveres de informação nº. 11/2000, de 19 de Julho, alterado
pelos Regulamentos nºs. 24/2000, de 19 de Julho, 13/2002, de 26 de Agosto e 11/2003, de 2 de
Dezembro, do Regulamento sobre o governo das sociedades cotadas nº. 7/2001, de 28 de
Dezembro, alterado pelo referido Regulamento nº. 11/2003, dos seus “Entendimentos Relativos ao
Dever Legal de Informação sobre Factos Relevantes pelos Emitentes de Valores Mobiliários
admitidos à Negociação em Bolsa” de Julho de 2000 e das “Recomendações da CMVM sobre o
Governo das Sociedades Cotadas” cuja versão mais recente é de Novembro de 2003. Estes
documentos encontram-se disponíveis em www.cmvm.pt/.
32
PAULO CAMARA, “Os deveres de informação e a formação de preços no mercado de valores
mobiliários”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 2, 1998, p. 91.
33
Neste sentido, veja-se PAULO CÂMARA, “Os deveres…”, ob. cit., p. 87. Parece-nos ser o caso,
da rede intrincada prevista no Regulamento da CMVM nº. 11/000, de deveres de publicação e de
dupla publicação de factos cuja divulgação encontra-se já muitas vezes assegurada por força de
outras disposições, e que deixam muitas vezes o intérprete numa posição em que, na dúvida,
deverá publicar factos apenas sujeitos a comunicação ou a proceder a nova publicação, sob pena
de se colocar em posição de lhe ser imputada a prática de um ilícito contra-ordenacional.
15
directo prejuízo para a margem de liquidez proporcionada pelo investimento em
valores mobiliários.
34
Veja-se AMADEU JOSÉ FERREIRA, “Direito dos Valores Mobiliários”, 1997, p. 334.
35
SOUSA FRANCO, “Actas do Conselho Nacional do Mercado de Valores Mobiliários” de 8 de
Setembro de 1997 e 22 de Janeiro de 1998, edição do Ministério das Finanças e da Comissão do
Mercado de Valores Mobiliários, p. 10. Também neste sentido, a COMISSÃO DO MERCADO
DE VALORES MOBILIÁRIOS, ao chamar à atenção nas suas “Orientações relativas ao dever
legal de prestação de informação sobre factos relevantes” que o cumprimento rigoroso dos
deveres de informação por parte das entidades emitentes não deverá ser por estas encarado como
um encargo sem retorno, a ser cumprido estritamente de modo a evitar o perigo da aplicação de
sanções, mas sim como a contrapartida de um benefício expresso na redução do risco imputável
aos valores mobiliários por si emitidos, contribuindo para que o mercado de valores mobiliários
continue a ser um instrumento eficiente e duradouro do seu financiamento.
16
9. A teleologia dos deveres de informação
36
A informação que aqui se pretende assegurar é a informação orientada à formação de negócios
no mercado em condições de igualdade e segurança. Concordamos com AMADEU JOSÉ
FERREIRA, “Direito…”, ob. cit., p. 40, quando afirma que o princípio da defesa do investidor não
é funcionalmente dependente do princípio da defesa do mercado. No entanto, a circunstância de o
legislador atender, ao lado do interesse dos investidores, à defesa dos interesses dos potenciais
adquirentes (cfr. nº. 2 do artigo 1º do CVM) é uma decorrência deste princípio. Daí que em nosso
ver, o princípio que se encontra fundamentalmente subjacente à instituição de deveres de
informação será o princípio da defesa do mercado de capitais, sem prejuízo de encontrarmos
pontualmente normas que de uma forma mais intensa visam a protecção particular dos
investidores, como sucede com as disposições contidas no artigo 323º e no nº. 2 do artigo 314º do
CVM.
37
Cfr. nº. 1 do artigo 5º do CVM.
17
O esclarecimento dos investidores no que diz respeito qualquer aspecto
susceptível de influenciar a avaliação que fazem dos investimentos propostos em
função das suas expectativas e perspectivas futuras, é uma condição determinante
para uma tomada de decisão de investimento ou de desinvestimento livre e
responsável. A necessidade de esclarecimento dos investidores, designadamente
dos não institucionais, exige-se de um modo muito especial na negociação em
mercados regulamentados, onde as transacções têm lugar as mais das vezes dentro
do sistema centralizado e em massa, entre sujeitos que não têm qualquer contacto
entre si38. Naturalmente que estas características tornam inadequadas as
tradicionais soluções do direito civil que, como referimos constituem os sujeitos
envolvidos como garantes do esclarecimento da contraparte, reclamando um
conjunto de soluções próprias que permitam a ocorrência de um fenómeno de
publicização da informação.
38
Neste sentido, veja-se CÉLIA REIS, “Violação de Deveres de informação”, in Cadernos do
Mercado de Valores Mobiliários, nº. 4, 1999, p. 269 e AMADEU JOSÉ FERREIRA, “Direito…”,
ob. cit., p. 333.
39
Naturalmente que a entidade emitente assegura este tratamento igual quando, na posse de
informações não comunicadas, procede à sua divulgação tempestiva no mercado antes do que a
qualquer outro sujeito. Cfr. artigo 15º do CVM, nos termos do qual: “a sociedade aberta deve
assegurar tratamento igual aos titulares dos valores mobiliários por ela emitidos que pertençam à
mesma categoria.”. Este princípio infere-se a partir do princípio da igualdade jurídica consagrado
no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, e influencia directamente inúmeros outros
preceitos constantes do CVM de entre os quais destacamos a parte final do nº. 2 do artigo 1º, o nº.
1 do artigo 6º, os artigos 112º, 197º, o nº. 5 do artigo 203º e a alínea a) do nº. 2 do artigo 393º do
CVM.
40
Como a este propósito chama à atenção FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, quem
negoceia com informação privilegiada, antecipa-se ilegitimamente ao resto do mercado, e por isso
não corre os mesmos riscos que os demais investidores (“O direito…”, ob. cit., p. 103).
18
detentores de informação não tornada pública possam atenuar ou eliminar em
proveito próprio o risco de informação, em detrimento dos demais investidores41.
41
CÉLIA REIS, “Violação…”, ob. cit., p. 271.
42
CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A informação…”, ob. cit., p. 337. Frisando igualmente este
aspecto, EDUARDO PAZ FERREIRA, “A informação…”, ob. cit., p. 147.
19
IV. ENQUADRAMENTO DOS DEVERES DE INFORMAR
20
comprovados, e (vi) conformar-se com a lei, a ordem pública e os bons costumes.
Estes elevados padrões de qualidade são aplicáveis a toda a informação
susceptível de influenciar as decisões dos investidores e ainda àquela
especificamente dirigida às entidades reguladoras do mercado, seja qual for o
meio de divulgação utilizado e ainda que inserida em conselho, recomendação,
mensagem publicitária ou relatório de notação de risco47.
21
de conteúdo divergente, porventura até contraditórias com o prospecto, colocando
em causa a sua utilidade prática, tanto mais que o investidor médio é muito mais
atraído pela mensagem publicitária do que pela análise económica e financeira
mais exaustiva50. Neste sentido, a publicidade relativa a ofertas públicas, além de
se encontrar sujeita a autorização prévia por parte da CMVM, deve obedecer a
rigorosas exigências como sejam as da sua conformação com os padrões
informativos acima enunciados, a necessidade de referência expressa à existência
ou à futura disponibilidade de prospecto, e a sua harmonia com o conteúdo desse
mesmo prospecto51.
50
EDUARDO PAZ FERREIRA, “A informação…”, ob. cit., p. 143. Neste sentido, dispõe o nº. 3
do citado artigo 121º, que à responsabilidade civil pelo conteúdo da informação divulgada em
mensagens publicitárias aplicam-se, com as devidas adaptações, as normas relativas à
responsabilidade civil pelo prospecto constantes nos artigos 149° e seguintes do CVM.
51
Cfr. nºs. 1 e 2 do artigo 121º do CVM. O prospecto informativo é um documento que, em regra
precede a realização de ofertas públicas relativas a valores mobiliários e a sua admissão à
negociação em mercado regulamentado, e que constitui uma importantíssima fonte de informação
técnica que tem em vista esclarecer o público quanto aos os investimentos concretamente
propostos (cfr. respectivamente nº. 1 do artigo 134º, e nº. 1 do artigo 236º do CVM). O prospecto
deverá sempre conter informação que esteja nas condições prescritas no citado nº. 1 do artigo 7º
(cfr. nº. 1 do artigo 135º do CVM), de maneira a permitir que o público em geral possa formar
juízos fundados sobre a oferta, os valores mobiliários que dela são objecto e os direitos que lhe
são inerentes e sobre a situação patrimonial, económica e financeira do emitente.
52
Cfr. os termos conjugados do nº. 2 do artigo 140º do CVM e do nº. 2 do artigo 1º do citado
Regulamento nº. 11/2000, na sua redacção actualmente em vigor.
22
é disponibilizada53. Entre os documentos que envolvem uma pronúncia
obrigatória por parte de auditores quanto à da informação financeira neles contida,
temos os documentos de prestação de contas, estudos de viabilidade, aqueles que
devam ser publicados no âmbito de pedido de admissão à negociação de valores
mobiliários, e outros que por imperativo legal devam ser submetidos à CMVM54.
53
Os auditores financeiros são sujeitos de direito privado que devem estar registados como tal na
CMVM, e cuja função é a de defender o funcionamento do mercado de valores mobiliários,
zelando essencialmente pela correcção técnica da informação que nele é disponibilizada. Daí que
se encontrem sujeitos a especiais regras de constituição, funcionamento e responsabilidade que
pretendem assegurar elevados padrões de independência e aptidão profissional (Cfr. artigos 9º e
10º do CVM e o Regulamento da CMVM nº. 6/2000, de 23 de Fevereiro). Cfr. PAULO
CÂMARA, “O Governo das Sociedades em Portugal: Uma Introdução” in Cadernos do Mercado
de Valores Mobiliários, nº. 12, 2001, p. 51.
54
Cfr. nº. 1 do artigo 8º do CVM. Adicionalmente, caso os documentos a que se refiram as peças
emitidas por auditor financeiro integrem previsões sobre a evolução dos negócios ou sobre a
situação económica ou financeira da entidade a que digam respeito, deverão aqueles pronunciar-se
sobre os respectivos pressupostos, critérios e coerência (cfr. nº. 2 do artigo 8º do CVM).
55
Chama-se à atenção para a circunstância de que o cumprimento dos deveres de informação à
CMVM por parte das entidades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em
mercado regulamentado, sobretudo no que diz respeito às condições a que devem obedecer a
entrega e o processamento dos elementos que integram a informação a prestar, encontra-se
regulamentado pela Instrução da CMVM nº. n.º 12/2002, disponível em http://www.cmvm.pt/.
23
público”. Nestes casos, o comportamento devido tem por destinatário o público
em geral, e como tal, deve ser levado a cabo através de meio de comunicação de
grande difusão em Portugal que seja acessível aos destinatários da informação56.
O Regulamento nº. 11/2000 da CMVM precisa que, salvo disposição legal ou
regulamentar em contrário, tais deveres de informação devem ser cumpridos
através da sua publicação num jornal de grande circulação em Portugal e, sendo
caso disso, no boletim do mercado regulamentado em que os valores mobiliários a
que dizem respeito estejam admitidos à negociação57.
Focando agora os efeitos jurídicos, no que diz respeito ao tema que nos
propusemos analisar, incidentes sobre as entidades emitentes, os membros dos
seus órgãos sociais ou sobre os sujeitos a quem são imputados direitos de voto
naquelas, deverá desde logo atender-se essencialmente a dois círculos normativos,
dos quais resultam específicos deveres de prestar informação: o do regime geral
das sociedades abertas e um regime mais exigente respeitante às entidades
emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado
regulamentado58.
Seja como for, esta distinção apresenta uma enorme relevância nesta
matéria, uma vez que determina a aplicação de estruturas normativas que
pressupõem um grau de exigência distinto no que diz respeito à incidência de
56
Cfr. nº. 1 do artigo 5º do CVM
57
Cfr. nº. 1 do artigo 1º do citado regulamento, com a redacção que lhe foi dada pelo Regulamento
nº. 13/2002. Esta regra pode no entanto ser afastada nos termos do artigo 8º-A do Regulamento nº.
11/2000 quando, no que diz respeito aos documentos de prestação de contas a divulgar por
sociedades emitentes de acções admitidas à negociação em mercado regulamentado situado ou a
funcionar em Portugal, a divulgação pelo público seja assegurada pela imediata inserção da
informação abrangida no seu sítio na Internet, dando conhecimento desse facto à CMVM.
58
Cfr. alínea b) do nº. 1 do artigo 200º e artigos 244º e segs. do CVM.
Não se tratam no entanto de círculos normativos concêntricos, já que não existe inteira
coincidência entre sociedades abertas e entidades emitentes de valores admitidos à negociação em
mercado regulamentado, pela circunstância de que nesta última categoria mobiliária podemos
encontrar ainda entidades emitentes de valores mobiliários representativos de dívida igualmente
admitidos à negociação, que podem não ser sociedades, como é o caso, por exemplo, do Estado ou
das cooperativas.
24
deveres de informação permanente. A nossa exposição passará por conseguinte
por uma breve incursão sobre o regime das sociedades abertas, passando
subsequentemente aos deveres de informação permanente ligados à sua estrutura
societária segundo critérios de imputação de direitos de voto. Seguidamente,
passaremos aos deveres de informação permanente directamente associados a
entidades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado
regulamentado.
59
Cfr. O artigo 7º do Decreto-Lei nº. 486/99 de 13 de Novembro, que aprovou o Código dos
Valores Mobiliários, nos termos do qual “as expressões «sociedade de subscrição pública» e
«sociedade com subscrição pública», utilizadas em qualquer lei ou regulamento, consideram-se
substituídas pela expressão «sociedade com o capital aberto ao investimento do público» com o
sentido que lhe atribui o artigo 13º do Código dos Valores Mobiliários.”.
25
regulamentado, a alienação de acções em oferta pública de venda ou de troca
quantitativamente significativa, ou a constituição a partir de cisão ou fusão de
uma sociedade aberta. O momento da aquisição da qualidade de sociedade aberta
ocorre assim que existir um contacto irreversível com o público, ou seja, no
momento do apuramento do resultado da oferta ou no momento da admissão à
negociação dos valores por si emitidos no mercado, ou no caso de se tratar de
sociedade constituída através de fusão ou cisão, no momento do registo do acto
constitutivo da nova sociedade60.
60
A perda de qualidade de sociedade aberta tem lugar uma vez verificadas as circunstâncias
enumeradas no nº. 1 do artigo 27º do CVM, a partir do momento da publicação da decisão a tomar
para o efeito pela CMVM, e implica a imediata exclusão dos valores mobiliários emitidos pela
sociedade em causa da negociação em mercado regulamentado e a impossibilidade da sua
readmissão à negociação nesse mercado pelo prazo de um ano (cfr. nºs. 1 e 2 do artigo 29º do
CVM).
61
Como consequência da aquisição da qualidade de sociedade aberta, estas encontram-se
obrigadas, por força do disposto no artigo 14º do CVM, de mencionar essa qualidade em todos os
actos qualificados como externos pelo artigo 171º do Código das Sociedades Comerciais.
62
Cfr. nº. 1 do artigo 20º do CVM.
63
Sobre o tema, veja-se CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A Imputação de Direitos de Voto no
Código dos Valores Mobiliários”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 7, 2000, p.
163 e segs.
26
permite colocar a descoberto as relações de poder que determinam a titularidade
do controlo nestas sociedades64. O preceito em causa apresenta-se portanto como
uma look-through provision essencial para o conhecimento das estruturas de
controlo societário, favorecendo nessa medida o exercício do poder de escrutínio
por parte dos investidores.
64
Este regime resulta da constatação de que certos acordos são muitas vezes susceptíveis de
permitir exercer uma influência mais decisiva sobre a gestão do que a própria detenção de
participações sociais.
65
Cfr. artigos 16º a 18º do CVM.
66
Calculada nos termos do nº. 1 do artigo 20º do CVM.
27
acções ou de outros valores mobiliários que confiram direito à sua subscrição ou
aquisição, admitidos à negociação em mercado regulamentado — ou mesmo
quem reduza a sua participação em sociedade aberta para um valor inferior a
qualquer uma daquelas fasquias, deve, dentro dos três dias seguintes à ocorrência
do facto que lhes deu origem, informar a CMVM, a sociedade participada e as
entidades gestoras dos mercados onde os valores mobiliários emitidos por aquela
estejam admitidos à negociação, não apenas da ocorrência desse mesmo facto,
como ainda das situações que determinem a imputação ao participante de direitos
de voto inerentes a valores mobiliários pertencentes a terceiros67.
67
Cfr. nºs. 1 e 2 do artigo 16º do CVM.
68
Cfr. nº. 3 do artigo 16º do CVM, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº. 61/2002
de 20 de Março.
69
Cfr. nº. 6 do artigo 16º do CVM. Esta declaração é emitida caso a omissão ou insuficiência que
originaram a emissão da declaração de falta de transparência não seja suprida nos 30 dias
seguintes à notificação dirigida para o efeito pela CMVM aos interessados e aos membros dos
órgãos sociais da sociedade aberta em causa (cfr. nºs. 4 e 5 do artigo 16º do CVM).
70
Nos termos do nº. 8 do artigo em análise, os direitos patrimoniais que se vierem a vencer
durante a suspensão deverão ser creditados em conta especialmente aberta para o efeito junto de
instituição de crédito habilitada a receber depósitos em Portugal, sendo proibido o levantamento
de quaisquer valores que nela venham a constar, enquanto durar a suspensão.
28
de direitos vigora enquanto a declaração de falta de transparência não for retirada
pela CMVM.
Por sua vez, a sociedade participada, os titulares dos seus órgãos sociais
ou outra sociedade que com ela esteja em relação de domínio ou de grupo71,
deverão, após a recepção de uma comunicação sobre a aquisição ou alienação de
uma participação qualificada no seu capital social, proceder à imediata divulgação
desse facto junto do público, promovendo a sua publicação72. Este dever não
depende no entanto da recepção desta participação, porquanto estas entidades ou
mesmo a própria entidade gestora do mercado regulamentado onde os valores
mobiliários em causa estejam admitidos à negociação, têm o dever de proceder à
sua comunicação tempestiva à CMVM sempre que tiverem conhecimento ou
fundados indícios de incumprimento dos referidos deveres de informação73.
B) Os acordos parassociais
71
Cfr. nºs. 1 e 3 do artigo 17º e artigo 21º do CVM.
72
Uma vez em poder da entidade emitente, estas informações encontram-se sujeitas a uma dupla
publicação, nos termos do o nº. 1 do artigo 1º-B do Regulamento nº. 11/2000, devendo ser
comunicadas à CMVM antes da sua divulgação. Isto, é claro, caso não se lance mão do mecanismo
consignado no artigo 18º do CVM, que permite à CMVM dispensar a referida publicação, nos
casos em que se trate de participações de 2% e de 5% dos direitos de voto em sociedade aberta
emitente de acções ou de outros valores mobiliários que confiram direito à sua subscrição ou
aquisição, admitidos à negociação em mercado regulamentado, e desde que o participante seja
membro de um mercado regulamentado situado ou a funcionar num Estado-membro da União
Europeia, detiver as acções transitoriamente com vista à sua alienação e declarar que não pretende
exercer qualquer influência sobre a gestão da sociedade a que correspondem os direitos de voto
adquiridos.
73
Cfr. nº. 2 do artigo 17º do CVM, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº. 61/2002
de 20 de Março.
29
O acesso aos acordos parassociais permite à entidade de supervisão
exercer o controlo sobre situações geradoras de imputação de direitos de voto que
os mesmos possam eventualmente implicar, designadamente quando por qualquer
razão forem constitutivos de deveres de informação. Trata-se aliás de uma
obrigação extensível a quaisquer outros acordos cuja validade a CMVM entenda
questionar, caso tome conhecimento da existência de quaisquer acordos não
tornados públicos que considere relevantes para o controlo da gestão da sociedade
emitente. Além disso, e na medida em que tais acordos possam influir de maneira
relevante sobre o domínio da sociedade visada, a CMVM poderá ainda determinar
que os contraentes procedam, no todo ou em parte, à sua publicação74.
74
Cfr. nº. 2 do citado artigo 19º do CVM.
75
Cfr. nº. 3 do citado artigo 19º do CVM.
76
JORGE MAGALHÃES CORREIA, “Notas breves sobre o regime dos acordos parassociais nas
sociedades cotadas”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 15, 2002, p. 91 e segs.
30
qualificadas previsto no artigo 16º do CVM. Por outras palavras, o normativo em
vigor apresenta consequências diferentes para situações de falta de transparência,
aplicáveis a realidades potencialmente coincidentes. Parece-nos que podem aqui
surgir dois tipos de problemas: um ao nível da compatibilização das cominações
previstas — a da suspensão do exercício de direitos inerentes à participação social
em causa, e a da eficácia relativa das deliberações tomadas com base em votos
cujo exercício encontra-se condicionado por acordo parassocial — e outro ao
nível dos possíveis expedientes encontrados pelos outorgantes de tais acordos
para se prevalecerem do regime menos gravoso ou mais conveniente, sendo certo
que contrariamente ao que acontece com os acordos parassociais, os outorgantes
de outros acordos que impliquem imputação de direitos de voto em sociedades
abertas não carecem, em princípio77 de participar à CMVM os texto integral dos
acordos abrangidos.
77
Nos termos do nº. 4 do artigo 16º do CVM, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei
nº. 61/2002 de 20 de Março, uma vez que a CMVM pode considerar que não se encontra
cumprido o referido dever de comunicação “de forma cabal”. No entanto, cfr. igualmente alínea d)
do nº. 1 do artigo 359º e alínea a) do nº. 2 do artigo 361 do CVM.
31
quer na permanente sujeição a deveres contínuos de divulgação de toda a
informação abrangida por um critério geral de relevância.
78
Cfr. nº. 1 do artigo 244º do CVM.
79
Cfr. nº. 4 do artigo 244º do CVM.
80
Cfr. nºs. 1 e 2 do artigo 245º do CVM.
81
Cfr. nº. 4 do artigo 245º do CVM.
32
Logo que estes documentos sejam colocados à disposição dos accionistas,
o emitente deverá proceder ao seu envio à CMVM e à entidade gestora de bolsa82,
que assim têm um acompanhamento em tempo real da evolução do grau de
esclarecimento dos investidores, e ficam habilitadas a verificar as repercussões
que a libertação da informação vai tendo sobre o volume de transacções e os
preços praticados no mercado.
82
Cfr. nº. 5 do artigo 245º do CVM.
83
Em particular, a informação semestral deverá conter, nos termos do nº. 1 do artigo 246º do
CVM, o montante líquido do volume de negócios, o resultado apurado antes ou depois de
deduzida a carga fiscal expectável, e o texto integral do relatório de auditor registado na CMVM,
bem como com os exigidos pelo nº. 1 do artigo 7º do Regulamento nº. 11/2000.
33
B) O dever de divulgação sobre aspectos relacionados com o
governo das sociedades cotadas
84
Cfr. artigo 405º e 406º do CSC. Isto decorre da falta de coincidência de objectivos entre uns e
outros, e é susceptível de produzir três tipos de conflitos de interesses: os gestores podem votar
para si próprios elevadas remunerações; têm tendência para investir em detrimento da distribuição
de resultados; e privilegiam a manutenção da actividade da empresa ainda que com prejuízo da
racionalidade económica. Cfr. PAUL A. SAMUELSON e WILLIAM D. NORDHAUS, in
“Economia”, 16ª Edição, p. 177.
85
Sobre o tema, cfr. PAULO CÂMARA “O Governo…”, ob. cit., p. 46 e segs., maxime p. 47-49,
chamando à atenção para os chamados agency problems e focando a inexistência entre nós de uma
cultura de responsabilização dos titulares de órgãos de administração por actos praticados em
matéria de gestão.
34
No entanto, a necessidade de viabilização de uma gestão flexível e eficaz
destas sociedades desaconselha uma intervenção ao nível do incremento do
protagonismo dos sócios no desenrolar dos seus negócios mediante o aumento de
competências da assembleia geral, o que seria potencialmente dissuasor do
investimento e prejudicial para a sua gestão. Nesta medida, importa que os meios
para o efectivo exercício da soberania dos investidores sobre as entidades
emitentes sejam assegurados através do acesso a informações completas e
actualizadas sobre as políticas de governo adoptadas pelos respectivos órgãos de
administração86.
86
Como chama à atenção ANTÓNIO BORGES na sua intervenção na conferência “Os Novos
Desafios para o Mercado de Capitais” in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 10,
2001, p. 107 e segs., ao referir que “o verdadeiro papel do mercado de capitais é ser uma fonte
muito importante de racionalidade económica, de disciplina, de exigência, no que respeita ao
desempenho das empresas. Um mercado eficaz é um mercado que exige que o capital seja bem
empregue, que o capital tenha rentabilidade elevada, é um mercado que recompensa as
aplicações correctas de capital e penaliza, sanciona aquelas que estão erradas. (…) Portanto o
que está em causa num verdadeiro mercado de capitais é justamente a soberania dos accionistas,
a capacidade que os accionistas têm de mandar na economia, de mandar nas empreses e de
justamente decidirem quem é que gere bem e quem é que gere mal as empresas e portanto
recompensarem, apoiarem, investirem nas empresas bem geridas e retirarem o seu capital e
sancionarem as empresas mal geridas.”.
87
Como explica PAULO CÂMARA, “Códigos de Governo das Sociedades”, in Cadernos do
Mercado de Valores Mobiliários, nº. 15, 2002, p. 65 e segs..
O modo de implementação dos códigos de governo das sociedades constitui um fenómeno curioso
de simbiose com as forças do mercado: institui-se uma cartilha de práticas societárias apresentadas
junto do público como um conjunto de comportamentos desejáveis e reveladores de uma gestão sã
e prudente ao mais alto nível. A intenção é conduzir os investidores, designadamente os
institucionais a adoptar como critério adicional nas suas escolhas de investimento ou de
desinvestimento, o grau ou o estilo de observância das regras de governo, sancionando onde a
mesma não se apresente satisfatória. Paralelamente, temos os membros do conselho de
administração das sociedades cotadas que passam a poder ver os referidos códigos de governo
como possíveis formas de fazer passar publicamente uma imagem de credibilidade e competência.
88
Estas recomendações foram recentemente alteradas em Novembro de 2003.
35
instituindo a obrigatoriedade da publicação, em anexo próprio aos documentos de
prestação de contas, de elementos relacionados com a sua administração, com
expressa indicação do grau de adesão à cartilha de governo, incluindo, no que diz
respeito às regras não acatadas, os fundamentos para a sua inobservância.
89
Cfr. artigos 2º e 3º do Regulamento nº. 11/2003.
90
Cfr. nº. 1 do artigo 248º do CVM. No caso de se tratar de entidade emitente de valores
mobiliários representativos de dívida, o facto relevante será aquele que, nos termos do nº. 2 do
mesmo artigo, seja susceptível de afectar de maneira relevante a capacidade da entidade emitente
cumprir os seus compromissos. Sobre este tema, veja-se ainda o artigo publicado por GONÇALO
36
Este dever de informação encontra-se previsto com recurso a conceitos
indeterminados sob a forma de uma catch all provision, apresentando um carácter
subsidiário em relação às demais situações subsumíveis às disposições legais
estatuidoras de deveres de informação91. Deste modo, visa abarcar circunstancias
ou factos susceptíveis de alterar o curso normal da oferta e da procura, em que a
divulgação de informação que importa fornecer tempestivamente aos investidores
não se encontra assegurada por qualquer um dos demais mecanismos previstos na
Lei92. No entanto, há que interpretar esta norma com o máximo de cuidado de
forma a afastar a incerteza por parte das entidades sujeitas a este dever, e de
salvaguardar o máximo grau de segurança jurídica na sua aplicação.
37
Há que igualmente chamar à atenção de que, sendo o evento
potencialmente enquadrável no conceito de facto relevante, muitas vezes
composto por diversos acontecimentos preliminares, pode suceder que a
obrigação de divulgar se verifique antes de consumado o seu processo de
formação, inclusivamente pela circunstância de um desses factos preparatórios ou
instrumentais consubstanciar-se, ele próprio, com um facto relevante.
38
mercado a divulgação de factos artificiais e contingentes, geradoras de
expectativas muitas vezes infundadas96, quanto a não divulgação de factos
definitivos ocorridos na esfera do emitente, potencialmente susceptíveis de influir
relevantemente no preço dos valores mobiliários por ela emitidos97.
Por outro lado, exige-se que o facto ocorrido tenha lugar no âmbito da
esfera de actividade da entidade emitente. Quanto a este aspecto, verifica-se que a
norma delimita com esta expressão o seu espaço de incidência aos factos
potencialmente relevantes que tenham tido uma consequência concreta no âmbito
da esfera de actividade do emitente, independentemente da causa externa ou
interna que lhe tenha dado origem98. Isto explica-se não apenas pela circunstância
de se pretender salvaguardar o mínimo lapso de tempo possível entre o momento
da verificação do facto e o da sua divulgação, fazendo o mesmo incidir sobre a
entidade com a melhor acessibilidade subjectiva à informação, e que por
conseguinte se encontra nas melhores condições para proceder à sua divulgação
no mercado, mas também por um critério de razoabilidade em não impor às
entidades emitentes deveres de informação sobre factos ocorridos fora dessa
esfera de actividade, como acontecia no âmbito do anterior código.
96
Pois podem tornar-se naquilo que é conhecido como self-fulfilling prophecy, ou seja, a profecia
que se cumpre a si mesma.
97
No entanto, cita-se a este respeito GONÇALO CASTILHO DOS SANTOS que refere ser
“impressiva, em suma, a complexidade inerente às situações estudadas. Porventura, porque se
congregam nesta questão não só o equilíbrio problemático entre sociedade cotada, mercado de
valores mobiliários e regime societário, mas também uma componente simultaneamente extra-
societária (negociações e reflexo junto do público investidor) e intra-societária (distribuição de
competências, direitos das minorias, etc.).” (“O Dever …” in Cadernos do Mercado de Valores
Mobiliários, 2002, 15, p. 37).
98
Esta opção afasta o dever de as entidades emitentes procederem à divulgação por qualquer facto
relevante ocorrido na sua situação económica e financeira, como sucedia com a previsão da alínea
a) do nº. 1 do artigo 344º do anterior Código do Mercado dos Valores Mobiliários, seria altamente
oneroso para as entidades a ele obrigadas. Insurgindo-se com a excessiva latitude do dever que
impendia sobre as entidades emitentes, CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A informação…” , ob.
cit., p. 347, referiu com razão que “deve ter-se presente que a informação tem custos e que um
sobredimensionamento destes redunda em prejuízo da eficiência pretendida, em detrimento dos
investidores, das entidades emitentes e da economia em geral. Não há mercados sem investidores,
mas também não os há sem entidades emitentes.”.
39
investidores e demais agentes que operam no mercado de capitais, quanto à
informação previamente tornada pública, não se justificará onerar o emitente com
acrescidos deveres de informação.
Finalmente, para que seja constitutivo deste dever o facto em causa deverá
revelar-se susceptível de, devido à sua incidência sobre a situação patrimonial ou
financeira do emitente ou sobre o andamento normal dos seus negócios, influir de
maneira relevante no preço das acções por si emitidas ou sobre a capacidade de
cumprir os seus compromissos. O juízo de prognose a que esta norma faz apelo
refere-se, não só à incidência do facto sobre a situação económico-financeira do
emitente, como ainda sobre o andamento normal dos seus negócios, o que se
explica pela circunstância de que nem todos os factos susceptíveis de influir na
avaliação que os investidores fazem dos seus activos apresentam uma incidência
directa ou imediata sobre a sua situação económico-financeira, reflectida
designadamente nos seus documentos de prestação de contas.
99
Como critério para determinar a existência ou não de uma influência “material”, o Supreme
Court norte-americano instituiu no caso TSC Industries, Inc. V. Northway, Inc., o critério segundo
o qual um facto é relevante quando existir uma forte probabilidade de que um reasonable investor
caracterizasse a revelação do facto omitido como alterador da “mistura total” (total mix) das
informações disponíveis sobre os valores mobiliários em causa.
100
Cfr. supra, III, nº. 9.
40
considerada facto relevante101. Este dispositivo visa compelir as entidades
emitentes a corrigirem as informações por si disponibilizadas sobre factos
relevantes, eliminando eventuais deficiências e dotando-as, ainda que a posteriori,
dos padrões de qualidade da informação exigidos no mercado.
101
Cfr. nº. 3 do artigo 248º do CVM.
102
Cfr. nº. 1 do artigo 1º-A do Regulamento nº. 11/2000, com a redacção que lhe foi dada pelo
Regulamento nº. 24/2000. Nos termos do nº. 2 deste artigo, a entidade emitente deve guardar
segredo sobre a existência de facto relevante até que a sua divulgação seja feita través do sistema
de difusão da CMVM, após o que a divulgação do facto relevante pode realizar-se através de
outros meios de comunicação.
103
Cfr. nº. 3 do artigo 1º-A do citado Regulamento.
104
Cfr. artigo 250º do CVM. Nos restantes casos, a dispensa poderá ser concedida quando a
publicação de informação seja contrária ao interesse público e possa causar prejuízo grave para o
emitente, desde que a ausência de publicação não seja de molde a induzir o público em erro sobre
factos e circunstâncias essenciais para a avaliação dos valores mobiliários, ou seja, grosso modo,
desde que não se trate de factos relevantes.
41
informado, são os intermediários financeiros. É que ao invés da informação que se
encontra a cargo das entidades emitentes durante o início e o desenvolvimento da
vida dos valores mobiliários, temos a jusante a informação a cargo dos
intermediários financeiros que intervêm aquando da sua transacção no mercado,
como agentes esclarecedores dos actuais ou potenciais investidores. Por outras
palavras, trata-se aqui não de assegurar informação actuando a partir da fonte, mas
sim orientar a actividade daqueles que operam no fim da linha, oferecendo ao
investidor precisamente aquilo que o mercado tem para lhes dar.
105
Trata-se de uma actividade que apenas pode ser exercida profissionalmente por determinadas
entidades registadas na CMVM (cfr. nº. 1 do artigo 295º do CVM). Essas entidades são, nos
termos do nº. 1 do artigo 293º, além das entidades gestoras de instituições de investimento
colectivo autorizadas a exercer essa actividade em Portugal, as instituições de crédito, e as
empresas de investimento em valores mobiliários que estejam autorizadas a exercer actividades de
intermediação financeira em Portugal, que tanto podem ser sociedades corretoras (brokers),
sociedades financeiras de corretagem (dealers), sociedades de patrimónios, bem como outras
sociedades que como tal sejam qualificadas por Lei, ou que não sendo instituições de crédito,
estejam autorizadas a prestar algum dos serviços de investimento em valores mobiliários a título
principal e profissional. As actividades concretamente prosseguidas por estas entidades são os
serviços de investimento em valores mobiliários, que englobam entre outras, as funções de
recepção, de transmissão e de execução de ordens de investimento por conta de outrem, a gestão
de carteiras e a colocação em ofertas públicas de distribuição, e os serviços auxiliares dos serviços
de investimento, entre os quais se incluem o registo e depósito de valores mobiliários, a
consultoria para investimento e a assistência em ofertas públicas (cfr. , nº. 1 do artigo 289º e artigo
291º do CVM).
106
Refira-se a propósito que a negociação em mercado regulamentado é necessariamente efectuada
através dos seus membros, nos termos dos nºs. 1 e 2 do artigo 203º do CVM.
42
legislador tenha entendido prestar especial atenção a esta actividade,
estabelecendo a obrigatoriedade de por via da mesma serem assegurados elevados
níveis de aptidão profissional, observando-se os ditames da boa fé, de acordo com
elevados padrões de diligência, lealdade e transparência107. Acresce ainda a
específica consagração legal da responsabilidade dos intermediários financeiros
de orientarem a sua actividade no sentido da protecção dos legítimos interesses
dos seus clientes e da eficiência do mercado108.
107
Cfr. nº. 1 do artigo 305º e nº. 2 do artigo 304º do CVM, juntamente com o disposto nos artigos
32º e seguintes do Regulamento nº. 12/2000.
108
Cfr. nº. 1 do artigo 304º do CVM.
109
Cfr. os artigos 38º e segs. do Regulamento nº. 12/2000, que concretizam os deveres de
informação a cargo dos intermediários financeiros.
110
Consagrada no nº. 3 do artigo 304º do CVM.
111
Cfr. nº. 1 do artigo 312º do CVM.
112
Cfr. artigo 323º do CVM.
43
Significa isto que no que toca à informação, a intervenção do
intermediário financeiro é vista pelo legislador como uma peça fundamental para
a conformação da informação existente no mercado com as especiais
características de ciência e de experiência de cada investidor individualmente
considerado, cabendo-lhe portanto a responsabilidade de colmatar as eventuais
insuficiências que a informação disponível pontualmente apresente perante cada
investidor, designadamente perante aqueles que estejam menos preparados para
tomar decisões de investimento responsáveis e esclarecidas.
113
Cfr. nº. 2 do artigo 314º do CVM.
114
Cfr. artigo 2º do Decreto-Lei n.º 394/99 de 13 de Outubro, nº. 1 do artigo 201º, nº. 4 do artigo
203º e nº. 1 do artigo 204º do CVM.
115
Cfr. alínea c) do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 394/99 de 13 de Outubro, e artigos 205º, 206º e
207º do CVM.
44
Os deveres de informação permanente a que destas entidades estão sujeitas
são deveres que se confinam a determinados factos que tipicamente têm lugar na
esfera de actividade dos mercados que se encontram sob a sua alçada, como
sejam, os deveres de informar o público sobre os valores mobiliários admitidos à
negociação, as operações realizadas e respectivos preços e as comissões por si
cobradas no exercício da sua actividade. No entanto, dadas as diferentes
características que cada mercado apresenta quer no que diz respeito aos agentes
que neles intervêm como investidores, aos valores mobiliários transaccionados e
às próprias entidades emitentes, cabe à entidade gestora de cada mercado adequar
o conteúdo, os meios e a periodicidade da informação a prestar a essas
características, tendo sobretudo em conta o nível de conhecimentos dos
investidores e a composição dos vários interesses envolvidos116.
116
Cfr. nºs. 1 e 2 do artigo 202º do CVM.
117
Cfr. nº. 3 do artigo 202º do CVM.
118
Cfr. alínea c) do artigo 358º do CVM.
45
adequados ao regular funcionamento do mercado e à defesa dos interesses dos
investidores. Para o efeito dispõe de amplas competências de autoridade pública
que lhe conferem o poder de adoptar determinados procedimentos de supervisão
como sejam, a título exemplificativo119, os de emitir regulamentos de diversa
índole, acompanhar de modo contínuo o funcionamento do mercado e a
actividade das próprias entidades que nele actuam, fiscalizar o cumprimento da lei
e dos regulamentos, e nessa linha de conta, dar ordens, formular recomendações
concretas, difundir informações, e instruir processos e punir as infracções que
sejam da sua competência.
119
Cfr. artigo 360º do CVM. No que se refere ao exercício desses poderes, encontramos no nº. 2
do artigo 361º do CVM, um elenco de prerrogativas instrumentais de entre as quais destacamos as
de poder exigir quaisquer elementos e informações e examinar livros, registos e documentos, não
podendo as entidades supervisionadas invocar o segredo profissional, tendo-se ainda sentido a
necessidade de afirmar expressamente no mesmo artigo, a ressalva de que o seu exercício deve ser
levado a cabo com respeito pela autonomia das entidades sujeitas à sua supervisão, o que sem
dúvida traduz a percepção, por parte do legislador, da enorme amplitude dos poderes de que a
Comissão dispõe e da susceptibilidade que uma aplicação desregrada destas disposições poderia
ter, de restringir princípios fundamentais que se prendem directamente com a condição inerente à
personalidade jurídica das entidades eventualmente visadas pela supervisão.
120
Cfr. artigos 355º e 356º do CVM.
121
Cfr. nº. 4 do artigo 244º do CVM.
46
situações, dispensar as entidades emitentes do dever de publicação de informações
relativas a valores mobiliários por si emitidos122.
122
Cfr. nº. 1 do artigo 250º do CVM.
123
Cfr. artigo 366º do CVM.
124
Nos termos do prescrito nos artigos 384º e 386º do CVM.
125
No que se refere aos processos de contra-ordenação, os poderes da CMVM são alargados,
cabendo-lhe, além de instaurar os correspondentes processos, proceder à aplicação de coimas,
sanções acessórias, e medidas de natureza cautelar (cfr. artigo 408º do CVM).
126
Cfr. artigo 357º do CVM.
47
ainda um sistema de difusão de informação respeitante a todos os elementos
constantes dos seus registos, a factos relevantes, a participações qualificadas e a
documentos de prestação de contas que lhe sejam comunicados127. Mas a missão
da CMVM neste domínio passa também pela promoção e desenvolvimento do
mercado de capitais, patrocinando iniciativas de carácter pedagógico128, e
fomentando o conhecimento das normas aplicáveis designadamente através da
publicação anual do texto actualizado das normas legais e regulamentares
relacionadas com as matérias reguladas no Código dos Valores Mobiliários129.
127
Cfr. artigo 367º do CVM.
128
É ainda no desempenho destas atribuições de carácter pedagógico em relação a todos os
intervenientes no mercado, que a CMVM edita ainda algumas brochuras onde apresenta
determinados aspectos que revestem interesse para o mercado e que considera merecedoras de um
especial cuidado e atenção, e cuja simples publicação no seu Boletim não permitiria a sua
adequada divulgação.
129
Cfr. artigo 371º do CVM.
130
Não obstante, a CMVM tem procurado encarar estes problemas, tendo em Janeiro de 2000
elaborado um conjunto de entendimentos e de recomendações sobre a utilização da Internet, que
no essencial vêm reafirmar e explicitar o conteúdo de determinadas regras de informação contidas
no código, designadamente no que se refere à sua aplicação às novas tecnologias.
48
dos emitentes da Internet onde toda a informação obrigatória é tornada disponível,
são passos muito significativos no sentido de uma efectiva transparência do
mercado de capitais, que devem ser conciliados com a simplificação e clarificação
do regulamento sobre cumprimento de deveres de informação.
49
Paralelamente, prevê-se ainda para breve a adopção formal da Directiva da
Transparência131 que introduzirá alterações à Directiva 2001/34/CE132
actualmente em vigor, incidindo essencialmente sobre os deveres de informação
relativos a participações qualificadas, à prestação de informação periódica e ao
regime linguístico da informação a disponibilizar por emitentes de valores
mobiliários admitidos à negociação em mercados regulamentados a funcionar no
espaço europeu.
131
Estas propostas integram-se num conjunto de medidas consideradas prioritárias para a
concretização do mercado único para os meios financeiros através da reforma da legislação no
domínio dos mercados de valores mobiliários, delineado no Plano de Acção para os Serviços
Financeiros, adoptado pelos Chefes de Estado e de Governo no Conselho Europeu de Lisboa em
Março de 2000, o qual foi mais tarde confirmado nas reuniões do Conselho Europeu de Estocolmo
e de Barcelona, que tiveram lugar respectivamente em Março de 2001 e em Março de 2002.
132
Como refere a proposta de Directiva apresentada pela Comissão Europeia em 26 de Março de
2003, na sua exposição de motivos, “a proposta deverá constituir uma resposta adequada à
evolução verificada nos EUA, incluindo a lei Sarbanes-Oxley, com vista à promoção dos
mercados de capitais europeus.”.
50
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA
EMPRESA E O PAPEL DO ADVOGADO
Pelo Dr. José João de Avilez Ogando
Sumário:
I. IntRODUçãO; 1. Colocação da questão, 2. noção de Responsabili-
dade Social da Empresa, 3. O ressurgimento do tema; II. AS tEORIAS
EM COnFROntO, 1. A teoria dos detentores de um interesse sobre a
sociedade (stakeholders), 2. A teoria dos titulares do capital (stockhol-
ders), 3. A superação ética da Doutrina Social da Igreja, 4. Os níveis de
responsabilidade social da empresa; III. O PAPEL DO ADVOGADO.
I. INTRODUÇÃO
1. Colocação da questão
I. Em Setembro de 2003, o CCbE — Conselho das Ordens e
Sociedades de Advogados da União Europeia publicou um docu-
mento intitulado “CSr — Corporate Social responsability and the
role of the Legal Profession”(1) cuja leitura se recomenda e que
pretende ser um guia para os advogados europeus em matéria de
aconselhamento sobre questões relacionadas com a Responsabili-
dade Social das Empresas(2). trata-se de um documento que faz
(1) Documento disponível no site do CCbE, já na segunda actualização, de Junho
de 2008.
(2) O termo responsabilidade surge aqui, não no sentido jurídico do termo, mas
sim no seu sentido ético, referindo-se portanto à conduta a que um determinado sujeito se
encontra obrigado por força de um preceito moral.
868 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO
designadamente referência às oportunidades e benefícios que se
apresentam para as empresas que escolhem adoptar comportamen-
tos socialmente responsáveis, bem como aos riscos envolvidos
para a sua não observância, às razões que levam o CCbE a consi-
derar os advogados como especialmente vocacionados pelo acon-
selhamento neste domínio, e às oportunidades e técnicas de acon-
selhamento a adoptar na abordagem destes temas.
Logo nas exposições introdutórias daquele documento diri-
gido a todos os advogados europeus é referido que
“a responsabilidade Social das Empresas (rSE) é um
instrumento de mudanças positivas na empresa. Ela define o
quadro e a forma dentro das quais a empresa deve dirigir a
sua actividade por forma a responder às expectativas da
sociedade nos domínios ético, jurídico, comercial e público.
Estas linhas de orientação servem como ponto de partida
para o advogado de empresas na definição de novas soluções
jurídicas para os seus clientes”(3).
II. no entanto, antes de serem apontadas baterias relativa-
mente à responsabilidade social das empresas, a abordagem deste
tema exige uma prévia reflexão sobre algumas perspectivas que
têm sido lançadas sobre o tema e que colocam em perspectiva o
próprio papel da empresa na sociedade moderna em que hoje vive-
mos, de maneira a sabermos definir com precisão o papel da
empresa na sociedade moderna.
III. trata-se de um tema objecto de considerável debate
noutros países, que gerou inicialmente uma controvérsia entre os
partidários da teoria dos detentores de capital (stockholders) e
aqueles que defendem a teoria dos detentores de interesses sobre a
sociedade (stakeholders). Estas duas correntes centraram muito o
seu debate, não em particulares concepções éticas relativamente ao
(3) CCbE — Conselho das Ordens e Sociedades de Advogados da União Euro-
peia, “CSr — Corporate Social responsability and the role of the Legal Profession”, p. 2.
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA EMPRESA 869
papel da empresa, mas sim na extensão do envolvimento da pró-
pria empresa no desempenho de actividades de carácter social-
mente valioso. Por outras palavras estas concepções discutem
sobre quem é que incide esta responsabilidade, defendendo o papel
da empresa como eventual sujeito activo de justiça social, recondu-
zindo-se no fundo à questão de saber se as empresas devem ou não
ser consideradas como sujeitos morais, abrangidos por deveres de
carácter ético para com a comunidade.
Este debate está hoje relativamente superado, na medida em
que as concepções éticas que advogam a responsabilidade social
da empresa vêm-na como um meio de atingir determinados fins
socialmente úteis, tornando a questão de saber sobre quem é que
incidem os deveres de a tornar socialmente responsável ― se a
própria sociedade, os accionistas ou os seus administradores ―
uma questão meramente secundária.
Daí que não utilizaremos tanto o termo sociedade como o de
empresa, já que os termos muitas vezes confundidos pretendem
aqui sempre designar, não a forma jurídica habitualmente adoptada
para a prossecução de uma actividade social, mas sim toda a uni-
dade económica composta pela organização de meios e factores
produtivos.
IV. Cabe no entanto aqui uma referência às teorias dos
stockholders e dos stakeholders porquanto cada uma delas repre-
senta um estádio distinto na abordagem do problema da responsa-
bilidade social das empresas sendo que cada uma trouxe uma pers-
pectiva nova à discussão, representando um novo estádio na
maturação e na compreensão do problema. A posição da Doutrina
Social da Igreja é igualmente invocada pois como veremos e inde-
pendentemente das convicções de cada um, acaba de facto por tra-
zer mais e melhor ao debate, ao focar o princípio da subsidiarie-
dade e sustentar os valores da solidariedade, da justiça social e do
papel das organizações na sociedade como justificação para um
novo nível de responsabilidade social das empresas.
870 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO
I. Como é sabido, fala-se em responsabilidade para designar
a situação de quem é chamado a responder pelos seus próprios
actos, ou seja, de um dever a que determinada pessoa singular ou
colectiva está adstrita em virtude da ocorrência de um qualquer
facto gerador do mesmo. Assim, o responsável é aquele sobre quem
impende a obrigação de responder por determinada circunstância,
sendo o termo igualmente utilizado como adjectivo para apontar
aqueles que evidenciam uma capacidade para assumir os deveres
que decorrem do risco ou do custo que as suas actividades represen-
tam para um ou mais indivíduos ou para a própria colectividade.
II. neste contexto, a responsabilidade social das empresas é
geralmente descrita como um movimento voluntário de integração
de preocupações sociais e ambientais na gestão das empresas, quer
no que diz respeito directamente às suas operações comerciais, quer
no que diz respeito à sua interacção com outras partes envolvidas no
processo. Isto implica uma atenção redobrada ao nível ético por
parte dos seus responsáveis relativamente aos investidores, aos pró-
prios funcionários, ao ambiente, aos clientes e fornecedores e às
próprias comunidades locais em que a empresa se integra.
III. Em termos conceptuais, o termo responsabilidade da
empresa comporta um sentido institucional e um sentido operacio-
nal. Fala-se de responsabilidade social da empresa em sentido ins-
titucional para designar genericamente uma estratégia tendente a
assegurar a prosperidade da empresa através da satisfação das legí-
timas expectativas dos grupos de interesses que a envolvem, o que
implica atingir um ponto de equilíbrio entre a iniciativa económica
privada e os interesses da colectividade.
Por outro lado, a responsabilidade social da empresa em sen-
tido operacional relaciona-a directamente com a ideia de susten-
tabilidade desdobrando-se essencialmente nas seguintes três
dimensões:
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA EMPRESA 871
a) a dimensão económica, onde entra a necessidade de asse-
gurar rentabilidade financeira, o que apenas se consegue
mediante a valorização pública dos bens e serviços pro-
porcionados pela empresa através de meios lícitos e etica-
mente satisfatórios;
b) a dimensão social da sustentabilidade da empresa que
exprime a sua capacidade para ir ao encontro das aspira-
ções dos trabalhadores respeitando os seus direitos e for-
necendo-lhes o seu espaço de realização pessoal; e
c) a dimensão ambiental, por intermédio da qual na escolha
de processos e meios de produção a empresa assegura a
necessidade de preservação ambiental e a economia de
recursos naturais.
3. O ressurgimento do tema
I. A teoria da função social da empresa começou a tomar
corpo em finais da década de setenta como consequência da cons-
tatação do crescente protagonismo das empresas na economia de
mercado, potenciada pelos processos de globalização, de integra-
ção dos mercados e pelo retrocesso do intervencionismo estatal a
que se assistiu no último quartel do século XX. Estes factores
foram determinantes para a crescente dispersão do capital social
das sociedades pelo público investidor que, conjuntamente com as
facilidades sem precedentes no acesso à informação, determinam
uma maior capacidade de influência por parte de diversos grupos
de intervenientes que pelas mais diversas razões estão ligados à
vida das empresas.
À medida em que as empresas se integram na sociedade, seja
pelo seu desenvolvimento e crescente sucesso comercial, seja pela
sua expansão para novos mercados, aumentam aqueles que sobre
ela detêm um qualquer interesse. Este fenómeno produziu uma ten-
dência inexorável e progressiva no sentido da tomada de consciên-
cia quanto ao impacto das actuações da empresa sobre elementos
exteriores a ela, consequências a que vulgarmente os economistas
872 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO
designam de externalidades. E nas sociedades modernas este pro-
blema torna-se mais pertinente uma vez que a maior exposição das
empresas acaba por torná-las mais vulneráveis no mercado, uma
vez que a sua credibilidade fica sujeita a um escrutínio cada vez
mais exigente.
Estes efeitos são ainda potenciados quando existam fenóme-
nos de expansão que determinam que as empresas inicialmente
situadas num único local partam para outros mercados onde, atra-
vés do desenvolvimento das suas actividades, aumentem a sua
influência e exposição, designadamente ao nível das condições de
vida das populações locais onde a sua actividade se desenrola.
II. não podemos ainda esquecer que uma importante cate-
goria de sujeitos afectados pelo desempenho das empresas são de
facto os próprios investidores detentores do capital, em cujos inte-
resses se inclui a necessidade de adopção voluntária de um con-
junto de boas práticas de direcção e funcionamento que assegurem
a imagem da empresa, a sua integração com as comunidades em
que se inserem e sejam assim geradoras de maior sustentabilidade
económico-financeira.
À medida que os tempos correm e que se pronuncia o movi-
mento de integração e de expansão das empresas no mundo globa-
lizado, todo este conjunto de pressões vai-se sentindo de uma forma
mais pronunciada. Hoje as empresas são mais sensíveis a questões
como o respeito pelos direitos dos trabalhadores, o meio ambiente e
até as condições de vida das populações mais desfavorecidas, pois
sabem que o comportamento da organização é valorado e reflecte-
-se no prestígio dos produtos e marcas que comercializam. Por
outro lado, há que ter em conta o comportamento de quem procura
realizar investimentos socialmente responsáveis e que por isso é
descriminado positivamente em detrimento da concorrência.
III. O interesse suscitado relativamente a estas questões foi
também em parte reavivado pelo ressurgir dos escândalos financei-
ros a que assistimos no início da década, entre os quais se destaca
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA EMPRESA 873
como exemplo paradigmático o abrupto colapso da gigante ameri-
cana Enron que como outras possuía o seu próprio código ético que
não foi respeitado. Acontecimentos como estes chamaram a atenção
para a necessidade de salvaguardar a existência de regras relativas ao
bom governo das sociedades e criar os mecanismos que permitam de
alguma forma ao público em geral aferir o cumprimento de regras de
boa conduta no governo das sociedades.
Este movimento no sentido de assegurar o bom governo das
sociedades em geral e em especial naquelas que abrem o seu capi-
tal ao público, pode considerar-se incluído numa pequena parte
daquilo a que se designa a responsabilidade social das empresas.
Isto porque em geral, os membros dos órgãos de administração,
especialmente das empresas que têm o seu capital disperso pelo
público, têm responsabilidades para com os investidores de revela-
ção ao mercado do grau de cumprimento de determinadas práticas
de direcção adoptadas.
IV. Mas este conceito tem ressurgido também ao nível da
implementação de conjuntos sistematizados de regras que têm em
vista regular não só as relações entre os membros do órgão de
administração e os accionistas, mas muitas vezes também sobre as
relações da empresa com os seus stakeholders, sendo que ao levar
à assunção de compromissos da empresa perante os credores, os
trabalhadores e os accionistas asseguram uma cultura de credibili-
dade, transparência e justiça.
Além disso, a experiência tem demonstrado que o reposicio-
namento do papel da empresa na sociedade induzido pela adopção
de práticas consideradas socialmente valiosas beneficia a empresa,
provocando o aumento da sua competitividade a médio e longo
prazo(4). Outros benefícios para a alteração de comportamentos
através da adopção de uma postura a vários níveis ética por parte
da empresa têm sido apontados como permitindo entre outras, cap-
tar investidores que procurem realizar investimentos em empresas
socialmente responsáveis bem como despoletar processos internos
que permitam às organizações tomar consciência e ir ao encontro,
de uma maneira mais eficiente, das necessidades e legítimas
expectativas de todos quantos estão envolvidos nas suas operações.
I. De acordo com os defensores da teoria dos stakeholders,
os membros do órgão executivo devem atender a todos quantos
afectam ou são afectados pela vida da empresa e têm, por isso, um
interesse no seu bom funcionamento. Entre estes, além dos pró-
prios accionistas, encontram-se os empregados, fornecedores,
clientes, a comunidade local e o Estado. De acordo com esta posi-
ção, o objectivo da empresa seria o de coordenar os interesses des-
tes grupos, fazendo incidir sobre os administradores os deveres
morais de dirigir a actividade social, tendo em atenção manter um
constante equilíbrio de tais interesses.
II. A principal ideia que se encontra por trás desta teoria
resulta da ideia de que a empresa, ao beneficiar de diversos facto-
res de produção proporcionados pela sociedade em geral e pelo
próprio Estado, que tornam possível o desenvolvimento das suas
operações, estaria por isso obrigada a compensar a comunidade
que torna o seu sucesso possível.
Esta forma de encarar o papel da empresa desencadeou um
movimento que teve em vista ultrapassar as questões levantadas
pelo problema de separação entre titularidade e controlo sobretudo
das grandes empresas, no sentido de estabelecer uma estrutura teó-
rica que permitisse legitimar a adopção de certos comportamentos
considerados socialmente responsáveis por parte dos respectivos
administradores.
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA EMPRESA 875
III. A verdade é que, ao contrário do que advoga esta teoria, a
empresa não é um sujeito moral. E a querer-se assacar às empresas
alguma responsabilidade neste domínio há que atender-se ao disposto
no artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, nos termos do qual
“a capacidade da sociedade compreende os direitos e as
obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu
fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou
sejam inseparáveis da personalidade singular”.
(5) Os administradores e gerentes estão obrigados como é sabido ao dever geral de
diligência previsto no artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais, nos termos do
qual: “os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a
diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta
os interesses dos sócios e dos trabalhadores”.
876 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO
dade de ser sensível às necessidades de cada um, lançando luz
sobre novos campos de responsabilidade social e tornando mais
amplo e abrangente o horizonte ético da empresa.
o mais consentâneos possíveis com a sua função qual seja a de
prosseguir os interesses dos accionistas, desde logo através de polí-
ticas de maximização do lucro. Segundo este autor, a dificuldade
no exercício da responsabilidade social por parte dos administra-
dores de empresas acaba por ilustrar a grande virtude da empresa
privada que consiste em forçar as pessoas a serem responsáveis
pelos seus actos, tornando a exploração alheia difícil.
neste artigo, FRIEDMAn defende que
“existe um e apenas um tipo de responsabilidade social
da empresa: usar os seus recursos e envolver-se em activida-
des destinadas a aumentar os seus lucros na medida em que
se mantenha dentro das regras do jogo, o que significa
envolver-se numa concorrência aberta e livre sem engano
ou fraude.”
O seu desacordo com aqueles que defendiam uma responsabi-
lidade social das empresas sem limites, ia ao ponto de afirmar que
os mesmos, ao negar o lucro como o fim último da empresa, esta-
vam a defender puro e inadulterado socialismo.
III. não obstante as suas propostas terem tido para muitos o
significado que os administradores das empresas deveriam alcan-
çar os fins de lucro a todo o custo, a verdade é que este autor reco-
nhece especificamente o imperativo de que os negócios sejam
prosseguidos no estrito respeito pela lei e pelas regras de mercado,
reconhecendo o lugar da ética no exercício das actividades de
direcção. Estes limites à acção dos administradores contrariam a
ideia generalizada contra aquele autor, de que a teoria de FRIEDMAn
defende políticas de gestão unicamente viradas para a maximiza-
ção do lucro e desprovidas de qualquer preocupação quanto à sua
responsabilidade social.
MILtOn FRIEDMAn teve o mérito de chamar a atenção para o
facto de que as empresas são instrumentos nas mãos dos accionis-
tas, transferindo o centro da discussão do tema da responsabilidade
social e clarificando o que hoje nos parece óbvio: que a responsa-
bilidade social da empresa não se deve confundir com a responsa-
bilidade social do empresário.
IV. Poderá portanto dizer-se que, segundo este autor:
a) a empresa cumpre a sua função social primacialmente
através do desempenho da sua actividade económica,
contribuindo desse modo para a realização dos objectivos
gerais de política económica, ao gerar lucro para os seus
accionistas;
b) a prossecução da actividade económica da empresa
deve conformar-se com o conjunto de preceitos legais e
éticos aplicáveis aos demais agentes do mercado, sem
recurso a praticas ilícitas ou fraudulentas; e
c) a existir uma intervenção voluntária socialmente
valiosa por parte da empresa que ultrapasse o estrito
âmbito do referido nas alíneas anteriores, a mesma
não caberá aos seus administradores, sendo isso sim
uma matéria da responsabilidade dos detentores do
capital(9).
I. A nossa análise aos pontos de vista atrás descritos é com-
plementada com uma breve abordagem à ética católica na adopção
de comportamentos socialmente responsáveis, uma vez que coloca
o tema numa perspectiva inteiramente diferente.
(9) naturalmente que, no contexto das sociedades com o capital aberto ao investi-
mento do público, em que o capital se encontra disperso pelo público investidor que coloca as
suas poupanças em partes de capital, as pessoas sobre as quais verdadeiramente recai a res-
ponsabilidade de definir a condução dos destinos da empresa serão os investidores institucio-
nais ou outras pessoas ou grupos de pessoas que detenham uma participação suficientemente
influente, designadamente ao nível da nomeação de membros do órgão de administração.
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA EMPRESA 879
O pensamento contido na Doutrina Social da Igreja não se
detém com a questão de saber se a empresa é um ente moral ou
não, nem tão pouco se questiona saber quais os sujeitos activos e
passivos de comportamentos éticos, antes aproveita o melhor con-
tributo de cada uma das correntes e indica a necessidade de que a
empresa seja orientada para o bem comum. De facto, é defendido
na linha aliás da teoria dos stockholders de Milton Friedman que
“Cada um tem o direito de iniciativa económica e usará
legitimamente os seus talentos a fim de contribuir para uma
abundância proveitosa a todos e recolher os justos frutos
dos seus esforços. Mas terá o cuidado de se conformar com
as regulamentações impostas pelas legítimas autoridades
em vista do bem comum”(10).
Por outro lado existe também uma aproximação à teoria dos
stakeholders onde se defende que
“Os responsáveis de empresas têm, perante a socie-
dade, a responsabilidade económica e ecológica das suas
operações. Estão obrigados a ter em consideração o bem das
pessoas, e não somente o aumento dos lucros. Estes são
necessários, pois permitem realizar investimentos que asse-
gurem o futuro das empresas e garantam o emprego”(11).
Assim, à medida que mais meios e poder são colocados à dis-
posição de cada um, maior se torna a urgência de colocar esses
(10) Catecismo, ponto 2429.
(11) Catecismo, ponto 2432.
(12) JOãO PAULO II, Centesimus Annus, 43.
880 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO
meios ao serviço do bem comum. E aqui o empresário deve consi-
derar-se particularmente obrigado no sentido de utilizar o seu pri-
vilégio e autoridade como instrumentos privilegiados para alcançar
esse fim.
II. Para a Doutrina Social da Igreja, a responsabilidade social
da empresa é um conceito que pode de algum modo relacionar-se
com o conceito de Justiça Social, introduzido pelo PAPA PIO XI na
sua encíclica Quadragesimo Anno, no sentido de poder ser vista
como a virtude de quem, no âmbito da empresa, ordena o seu com-
portamento tendo em vista o cumprimento de propósitos social-
mente valiosos. Significa conhecer o seu lugar na sociedade e exer-
cer as suas funções empresariais em vista da influência no sentido do
melhoramento das instituições sociais. Como escreveu MICHAEL
nOVAK,
“o Papa constata que os homens e as mulheres livres
dos tempos modernos podem juntar-se, organizar-se e modi-
ficar as instituições das sociedades em que vivem. Realizar
este potencial social exige-lhes vigilância, iniciativa, visão
de futuro, coragem, realismo, competências organizacionais
e perseverança (além de uma provável ajuda de advogados).
Além disso, sem a prática desta virtude, o princípio da subsi-
diariedade não poderia apelar a nenhum grupo social
menor do que o Estado”(13).
I. Cada uma das teorias assinaladas tem o mérito de nos
fazer compreender melhor um aspecto diferente da responsabili-
dade social da empresa, e de nos ajudar a ver com maior lucidez as
obrigações sociais da empresa que decorrem: (i) da sua função eco-
nómica concreta, como também (ii) da necessidade de retribuir
adequadamente a todos quantos depende a prossecução da sua acti-
vidade, e ainda (iii) do seu posicionamento relativamente à socie-
dade como um todo.
Daí que se diga que a responsabilidade social da empresa cor-
responde a uma tomada de consciência a três níveis que correspon-
dem a três círculos concêntricos, que têm em conta sucessivamente
a sua função económica, as forças que operam à volta da empresa e
o papel que a mesma desempenha na colectividade em que se
insere.
II. temos portanto um primeiro círculo que é o da exempla-
ridade ou da excelência. Como referiu MILtOn FRIEDMAn, as
empresas têm que ser eficientes. Essa é a primeira responsabili-
dade social das empresas: produzir valor acrescentado. no entanto,
este nível de responsabilidade da empresa em sociedade, é insepa-
rável de um outro aspecto fundamental para que o valor gerado
seja socialmente valioso: é necessário que no desenrolar das suas
operações e na prossecução do seu fim último a empresa respeite a
legalidade e os direitos de todas as partes envolvidas. Por outras
palavras, a primeira responsabilidade das empresas é o da exem-
plaridade ou excelência no exercício da sua actividade.
dores, trabalhadores, e até mesmo a comunidade local, na medida
do seu contributo para a criação de valor acrescentado por parte da
empresa, mas também dos encargos por cada um suportados.
IV. Finalmente, temos um terceiro círculo de responsabili-
dade social que onerará mais o empresário do que as empresas atra-
vés dos seus administradores, que corresponde à responsabilidade da
empresa relativamente à colectividade em geral, ao Estado e ao meio
ambiente, que cumpre ter em consideração em diferentes medidas,
quer consoante os custos envolvidos para as próprias empresas, quer
consoante o seu impacto concreto nas suas operações.
II. Assim, e dada a especial proximidade dos advogados das
empresas aos centros de decisão das mesmas, existem um conjunto
de oportunidades de aconselhamento que podem traduzir-se em
projectos de diversa índole, tais como:
884 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO
a) a elaboração de planos de responsabilidade social e a sen-
sibilização para o seu efeito preventivo no que diz respeito
a potenciais litígios em empresas cujos processos não
satisfaçam todos os requisitos legais;
b) a sensibilização das empresas para a circunstância de que
cada vez mais o comportamento das empresas que não se
conforme inteiramente com os preceitos legais em vigor
está sujeito a procedimentos civis que podem ser onerosos
mesmo em casos de negligência, aumentando de ano para
ano os casos de potencial responsabilidade criminal;
c) a preparação de estratégias de planeamento fiscal relacio-
nadas com a realização de acções no domínio dos planos
de responsabilidade social, tirando partido de todos os
benefícios fiscais conexos com essas actividades como é o
caso dos benefícios fiscais relacionados com o mecenato;
d) a prestação de serviços relacionados com a divulgação de
informação sobre as operações da empresa ao público em
geral ou a entidades de supervisão, a emissão de comuni-
cados em exercício de direitos de resposta;
e) elaboração de códigos éticos ou de conduta, etc.
III. As estratégias de responsabilidade social incluem uma
gama variável de práticas que podem diferir de empresa para
empresa na base de um conjunto de variáveis, tais como: as carac-
terísticas do sector de actividade, os valores da empresa, a cultura
da organização, a sua história específica, as suas relações com con-
sumidores, os atributos das marcas que comercializa, entre outras.
A adopção destes comportamentos podem fazer parte de um
novo conjunto de serviços que promoverá o desenvolvimento de
uma cultura de organização, ao mesmo tempo transmitindo uma
imagem institucional com atributos próprios que fortalecerão a sua
reputação e credibilidade comerciais. Por outro lado, tais serviços
aumentarão o prestígio das empresas em causa uma vez que as
torna participantes activas do melhoramento das condições de vida
nas comunidades onde operam.
A natureza jurídica da autoliquidação
26
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 33 • Julho/Setembro 2021
dação como um verdadeiro e próprio ato adminis- os dados necessários à prossecução do interesse
trativo. público a seu cargo (10), sendo certo, acrescentamos
Começando por estes, destacamos antes do mais nós, que, ao abrigo do princípio da declaração,
os que veem na autoliquidação um ato delegado, pra- essas declarações dos contribuintes, desde que
ticado no exercício de poderes de delegação ou de apresentadas nos termos previstos na lei, presu-
representação, que foi entre nós a posição defendida mem-se verdadeiras (art. 75.º, n.º 1, da LGT). Daí
por ARMINDO MONTEIRO (6). No entanto, como nota que, ao contrário do que sucede nos atos provisó-
VIEIRA DE ANDRADE, a delegação é um ato adminis- rios cujos efeitos dependem necessariamente de
trativo pelo qual um órgão autorizado por lei para uma futura reponderação definitiva por parte da
a prática de determinados atos permite que essa sua Administração (11), na autoliquidação essa pronún-
competência seja exercida por outro órgão da cia é desnecessária e na maior parte dos casos não
mesma (delegação de competências) ou de outra se chega a verificar (12).
pessoa coletiva (delegação de atribuições) (7). Ora, à Temos depois a tese que vê na autoliquidação
autoliquidação não subjaz qualquer ato de delega- um ato que, embora materialmente praticado por
ção, mas antes deveres que a lei coloca diretamente um particular, redundaria num ato administrativo
a cargo de particulares, relegando a competência da de liquidação tácito ou presumido, que surgiria no mo-
Administração a uma função meramente supletiva mento da entrega da declaração, consolidando-se
ou fiscalizadora dos atos de autoliquidação por depois de decorrido o prazo de comprovação ad-
aqueles praticados (8). ministrativa do seu teor caso a Administração não
Outros pretendem ver na autoliquidação um ato determinasse a sua incorreção (13). Como é fácil de
provisório de liquidação que seria mais tarde homo- ver, a primeira crítica que se pode apontar a esta
logado ou corrigido pela Administração (9). A ideia tese é a de não fornecer qualquer explicação para a
que subjaz a esta tese é a de que a autoliquidação natureza jurídica da autoliquidação, mas antes ao
deve ser entendida como um ato provisório susce- presumido ato que posteriormente a rececionasse
tível de ser modificado ou revogado pela Adminis- tacitamente. Seja como for, a existência deste pre-
tração, cujo silêncio importa a sua consolidação e tenso ato constitui uma pura ficção sem qualquer
receção definitiva tácita na ordem jurídica. Ora, base legal nem correspondência com a realidade,
como refere LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, o auto- uma vez que na maior parte dos casos não é feita
lançamento inerente à autoliquidação já conduz, qualquer fiscalização das declarações prestadas
por si só, a que a Administração disponha de todos pelo particular. Além disso, como nota ANA PAULA
DOURADO, o contribuinte não apresenta à Adminis-
tração qualquer pretensão (14), nem esta é em todo
(6) ARMINDO MONTEIRO, Introdução ao Estudo do Direito Fiscal,
Lisboa, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lis-
boa 1951, pp. 111-112, ex vi ANA PAULA DOURADO, “A natureza
jurídica da autoliquidação”, cit., p. 182; e LOURENÇO VILHENA DE (10) LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, “A autoliquidação: con-
FREITAS, “A autoliquidação: contributo para uma análise da sua tributo para uma análise da sua natureza jurídica”, cit., p. 42.
natureza jurídica”, cit., p. 28. No mesmo sentido parece ir PAULO (11) JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Admi-
MARQUES, A Revisão do Acto Tributário, Almedina, 2017, pp. 164 nistrativo, cit., p. 176.
e 191, que depois de defender que “os atos de privados não inte- (12) ANA PAULA DOURADO, “A natureza jurídica da autoliqui-
grados organicamente na administração pública, mesmo que conexos dação”, cit., p. 184.
com a atividade administrativa, estão excluídos do conceito de acto ad- (13) LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, “A autoliquidação: contri-
ministrativo”, acaba por conceder que “na autoliquidação (…) o buto para uma análise da sua natureza jurídica”, cit., p. 27. Neste
contribuinte actua na vez dos serviços, instituindo a lei uma delegação sentido vai JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 10.ª ed., Almedina,
de poderes administrativos tributários nos próprios contribuintes”. 2017, p. 312, negando que a autoliquidação tenha natureza de
(7) JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Adminis- ato administrativo, apesar de ver nela um ato tributário “relati-
trativo, 5.ª ed., Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, p. 101. vamente ao qual, por via de regra, se verifica uma homologação implícita
(8) Neste sentido, ANA PAULA DOURADO, “A natureza jurídica pela administração tributária decorrente da aceitação do pagamento do
da autoliquidação”, cit., p. 183. imposto.”.
(9) Entre nós, neste sentido SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, (14) ANA PAULA DOURADO, “A natureza jurídica da autoliqui-
Almedina, 1995, p. 312. dação”, cit., p. 184.
27
A natureza jurídica da autoliquidação
o caso necessária, porque o ato de autoliquidação de os atos administrativos serem praticados por par-
produz por si próprio efeitos jurídicos imediatos. ticulares (18).
Finalmente, o silêncio da Administração não cons-
titui qualquer manifestação de aprovação, até por- 2.2. Por outro lado, temos aqueles que negam a
que a ausência de decisão só tem o valor de possibilidade de os particulares praticarem atos ad-
deferimento nos casos expressamente previstos na ministrativos tributários, vendo na autoliquidação
lei [art. 130.º, n.º 1, do Código do Procedimento Ad- um mero conjunto de operações materiais, pratica-
ministrativo (CPA)]. das em cumprimento de deveres de colaboração. O
De salientar ainda a posição de LOURENÇO VI- mais destacado defensor desta tese é ALBERTO XA-
LHENA DE FREITAS, para quem a função tituladora do VIER (19), observando que nem toda a operação lógica
ato tributário e o efeito da abstração que assume face pela qual se procede à subsunção de factos a normas
à obrigação subjacente verificam-se no caso do ato pode qualificar-se como aplicação do Direito, já que
de autoliquidação (15), tal como sucede quanto aos esta pressupõe a existência de um ato jurídico (20).
demais atos administrativos. Daí que este Autor veja Considera este Autor que o ato de aplicação do Di-
na autoliquidação um verdadeiro ato administrativo reito apresenta autonomia quanto aos seus efeitos,
tributário, praticado por um particular no exercício sendo de carácter obrigatório e vinculante. Esta ati-
de poderes jurídico-administrativos que lhe são le- vidade distinguir-se-ia do comportamento do par-
galmente atribuídos, com o objetivo de fixação au- ticular na autoliquidação, apenas reconduzível ao
toritária da quantificação da dívida de imposto, cumprimento de um dever de adequação espontâ-
possibilitando o cumprimento do dever fundamen- nea e pacífica ao quadro legal, comportamento este
tal de pagar impostos (16). Segundo VILHENA DE FREI- que seria desprovido daqueles atributos (21).
TAS, a principal questão que poderia levantar-se Não obstante ALBERTO XAVIER admitir que, em
contra a qualificação da autoliquidação como um determinados casos, para cumprir esse dever o
ato administrativo reside no facto de se tratar de um contribuinte “procede a uma operação que, do estrito
ato praticado por um privado (17). Mas como nota,
até a mais avançada doutrina admite a possibilidade (18) MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo,
3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1951, p. 220; DIOGO FREITAS
DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 4.ª ed., Alme-
(15) LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, “A autoliquidação: con- dina, 2018, p. 199.
tributo para uma análise da sua natureza jurídica”, cit., p. 49. (19) No mesmo sentido, VÍTOR FAVEIRO, Noções Fundamentais
(16) LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, “A autoliquidação: con- do Direito Fiscal Português, I vol., Coimbra, Coimbra Editora, 1984,
tributo para uma análise da sua natureza jurídica”, cit., p. 47. pp. 406-410; JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Pro-
Não obstante este Autor assinalar como originalidade do ato de cesso Tributário – Anotado e Comentado, 6.ª ed., II vol., Áreas Editora,
autoliquidação a circunstância de se tratar de um ato autoritário 2006, p. 406. Também ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, Princípios de Direito
produtor de efeitos na esfera jurídica de quem o emite, facto que Fiscal, vol. I, 2.ª ed., Almedina, 1979, pp. 236-237, vê na autoliqui-
considera ser uma situação original no direito administrativo dação uma simples manifestação de conhecimento ou participa-
português, entende que essa especialidade não é suficiente para ção de ciência sujeita a verificação da Administração. Segundo
obstar a que se considere o ato de autoliquidação como um ver- este Autor, nestes casos, “o ato tributário é praticado após o paga-
dadeiro e próprio ato administrativo (cf. “A autoliquidação: con- mento, e tem como resultado homologar ou corrigir a liquidação efetuada
tributo para uma análise da sua natureza jurídica”, cit., p. 38). pelo contribuinte, que, assim, só por via dessa homologação ou depois de
Quanto a isto importa referir que, em rigor, a autoliquidação corrigidos os erros da liquidação – que podem, inclusivamente, constituir
produz efeitos na esfera jurídica de quem o emite como a pró- uma infração fiscal – fica liberado, transformando-se então a liquidação,
pria liquidação administrativa, já que tanto o contribuinte como que anteriormente era como que apenas provisória ou condicional, em
a Administração são partes da relação jurídico-tributária, biu- verdadeira liquidação definitiva.”. Não obstante numa primeira aná-
nívoca por natureza. Assim, se tivermos em conta a quantidade lise possa parecer que BRAZ TEIXEIRA adira à tese do ato provisório
de pagamentos antecipados, sejam eles retidos na fonte ou sujeito a posterior homologação, este Autor rejeita tout cour à au-
pagos por conta da prestação devida a final, torna-se evidente toliquidação o carácter de ato administrativo, ainda que provisó-
que da autoliquidação tanto pode resultar uma obrigação de pa- rio. Aderindo a esta posição, PAMPLONA CORTE-REAL, Direito Fiscal,
gamento a favor do contribuinte como um crédito e a correspe- policop., 1980, pp. 61-62.
tiva obrigação de pagamento a cargo da Administração. (20) ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário,
(17) LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, “A autoliquidação: con- Coimbra, Almedina, 1972, pp. 57-58.
tributo para uma análise da sua natureza jurídica”, cit., p. 38. (21) Ibidem, p. 59.
28
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 33 • Julho/Setembro 2021
ponto de vista lógico, é idêntica à efetuada pela adminis- também os que veem na autoliquidação um mero
tração fiscal”, refere que tal operação “não é dotada conjunto de operações materiais executadas em cum-
de qualquer relevância jurídica”, sendo o produto “de primento de deveres de colaboração não consegui-
simples operações mentais” sem efeitos jurídicos pró- ram distanciar-se da evidência de que, nela, o
prios (22). Reconhece que “muitas vezes a liquidação particular procede a simples operações de registo
não é uma simples operação mental, por se dever corpori- em suporte próprio previamente elaborado e dis-
zar num documento (…) cuja elaboração é rigorosamente ponibilizado pela Administração.
disciplinada por lei, de tal modo que a sua inobservância Como refere ANA PAULA DOURADO, mais do que
produz efeitos jurídicos próprios”. No entanto, a auto- uma mera declaração de ciência, a autoliquidação é
liquidação não constitui um ato jurídico, mas antes uma manifestação de vontade através da qual são
“a simples realização de um dever tributário acessório, im- tomadas decisões, das quais resultam efeitos jurídi-
posto por lei para meros efeitos de fiscalização ou controlo cos concretos, incluindo sancionatórios (25), con-
da legalidade dos pagamentos efetuados”. Conclui, por cluindo que, “juridicamente, basta qualificar a autoli-
isso, tratar-se de “uma atividade de registo em documen- quidação como ato jurídico” (26). Mas não é menos certo
tos próprios (…), de natureza análoga à dos lançamentos que essas operações materiais, conjugadas com o su-
na escrita dos comerciantes” (23). porte concedido pela Administração para colocar o
Para este Autor, apenas existirá ato tributário nos ato em condições de ser como tal rececionado, dão-
casos em que a Administração intervenha em mo- -lhe qualidades em tudo semelhantes às atribuídas
mento posterior, no exercício dos seus poderes de ao ato tributário praticado pela Administração. O
fiscalização, verificando se a obrigação foi bem ou problema da sua qualificação como ato administra-
mal declarada, e procedendo, neste último caso, à li- tivo ainda poderia colocar-se ao abrigo da anterior
quidação corretiva ou adicional correspondente (24). definição legal de ato administrativo (art. 120.º do
Nestas situações, o ato tributário não será a impro- anterior CPA), que os via como “decisões dos órgãos
priamente chamada autoliquidação, mas sim a even- da Administração” (27). No entanto, tal objeção já não
tual determinação da prestação de imposto feita pela procederia em face da nova definição legal de ato
Administração. administrativo, que dispensa a integração do seu
autor na Administração Pública.
3. Pontos atendíveis nas duas teses em con- Por outro lado, note-se que apesar da volunta-
fronto riedade que caracteriza a conduta do particular que
procede à autoliquidação, esta apresenta um con-
Apesar de as duas grandes conceções atrás des- teúdo estritamente vinculado e condicionado.
critas não terem conseguido encontrar uma solução Como bem assinala ALBERTO XAVIER, a autoliquida-
satisfatória que refletisse adequadamente tanto as
semelhanças como as diferenças entre a autoliqui-
(25) ANA PAULA DOURADO, “A natureza jurídica da autoliqui-
dação e o ato de liquidação administrativa, não
dação”, cit., pp. 180 e 190.
pode ignorar-se a existência de pontos atendíveis (26) Quanto a esta qualificação parecem não existir dúvidas,
entre os argumentos esgrimidos pelos autores que já que para a autoliquidação ser perfeita apenas se exige que o
agente tenha querido a conduta, independentemente do resul-
as defendem. Do mesmo modo que os que pro-
tado jurídico alcançado. Ver JOÃO DE CASTRO MENDES, Teoria
curam enquadrar a autoliquidação como um verda- Geral do Direito Civil, vol. II, AAFDL, 1995, p. 22.
deiro e próprio ato administrativo não puderam (27) Mesmo assim, já então MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/PEDRO
COSTA GONÇALVES/JOÃO PACHECO DE AMORIM, Código do Procedi-
alhear-se da circunstância de que ela produz os
mento Administrativo Comentado, vol. II, Edições Almedina, 1995,
mesmos efeitos que a liquidação administrativa, pp. 63-64, procediam a uma interpretação extensiva do art. 120.º
do CPA, considerando que as decisões “de particulares nos casos
em que eles apareçam legalmente investidos da prerrogativa de auto-
(22) Ibidem, p. 60. ridade administrativa, são também decisões que – preenchidos os res-
(23) Ibidem, p. 63. tantes elementos da noção do art. 120.º – consubstanciam atos
(24) Ibidem, p. 64. administrativos”.
29
A natureza jurídica da autoliquidação
ção é um ato de registo em documentos próprios, o peticionado pelo particular e emite a correspon-
de natureza análoga à dos lançamentos na escrita dente licença. A mediação entre o conteúdo das
dos comerciantes (28), realizado sobre um docu- normas atribuidoras de competência (normas de
mento cuja elaboração é rigorosamente disciplinada organização administrativa) e das normas que dis-
pela Administração, de tal modo que a sua inobser- ciplinam o seu exercício (normas de decisão mate-
vância pode inviabilizar, como muitas vezes sucede, rial), por um lado, e o conjunto das circunstâncias
a produção dos efeitos normalmente resultantes da de facto sobre as quais a decisão irá incidir, por
sua receção na ordem jurídica. outro, é feita única e exclusivamente pelo órgão
competente para a prática do ato. Pode dizer-se
4. Tomada de posição: uma nova forma de en- que, através do ato, o seu autor passa da lei para a
tender a autoliquidação decisão sem qualquer outra condicionante que o
próprio entendimento que faz da lei e dos factos
4.1. A criação do mecanismo da autoliquidação sobre os quais deve decidir. De igual modo, a auto-
é motivada por razões de boa administração que liquidação seria um ato inteiramente praticado por
facilmente se compreendem: trata-se de um meca- particulares caso lhes fosse permitido declarar os
nismo em tudo igual ao ato de liquidação adminis- factos com relevância fiscal e liquidar o imposto de-
trativa do imposto, exceto na circunstância de ser vido nos termos que resultassem da sua particular
completado pelos sujeitos com um conhecimento interpretação das normas aplicáveis. Isto é, se a cada
mais próximo das informações relevantes a prestar um fosse dada a possibilidade de apresentar um ato
(at arm’s length). Com este ato realiza-se não só a de liquidação elaborado de acordo com o seu enten-
eficácia funcional fiscal como ainda a eficiência fis- dimento individual quanto ao sentido das normas
cal, já que se substitui a liquidação administrativa fiscais materialmente aplicáveis e em resultado da
por uma forma de liquidação expedita e que im- sua concretização nas suas próprias situações indi-
plica o mínimo de custos associados (29). Ora, se a viduais lhes fosse dada a possibilidade de por si rea-
figura da autoliquidação foi criada por estas razões, lizar as operações materiais de cálculo em seu
para valer como ato semelhante ao ato de liquidação entender devidas, com vista à determinação da pres-
administrativa de imposto, se é enquadrável na tação de imposto correspondente.
noção legal de ato administrativo e se produz os Mas não é isso que encontramos na autoliquida-
mesmos efeitos, quer sobre a obrigação de imposto ção: esta é realizada sobre uma ferramenta especí-
quer sobre as relações formais que se desenvolvem fica (outrora um impresso, hoje uma aplicação de
a partir da declaração dos direitos tributários, então software) disponibilizada pela Administração aos
só não deverá ter a mesma natureza caso exista particulares. A construção desse impresso ou apli-
algum motivo atendível que a isso obste. cação obedeceu a uma prévia destilação das normas
Imagine-se que um particular requer uma li- jurídicas aplicáveis segundo o particular entendi-
cença a uma autarquia. Depois de cumpridos os mento da Administração Fiscal, que delas retirou as
procedimentos legais, o órgão competente aprova consequências necessárias à construção da plata-
forma declarativa que resolve uma parte impor-
tante das questões interpretativas que se poderiam
(28) A intervenção dos particulares na autoliquidação tanto
não diverge daquela que encontramos na declaração de rendi- colocar aos contribuintes aderentes.
mentos feita pelos contribuintes ao abrigo das regras do Im- Por outro lado, a criação, por parte da Adminis-
posto sobre os Rendimentos das Pessoas Singulares, que no art. tração, do meio exclusivo através do qual o parti-
91.º-A, n.º 7, do Código do IRC o legislador refere-se à autoli-
quidação como “declaração periódica de rendimentos”. cular autoliquida o seu tributo, envolve a suficiente
(29) Sobre o tema, ver SUZANA TAVARES DA SILVA, “O princípio predeterminação que permita reduzir o contributo
(fundamental) da eficiência”, in Revista da Faculdade de Direito do particular a um mínimo imposto pelo princípio
da Universidade do Porto, n.º 7, Porto, 2010, pp. 519-544. Também
JOSÉ CASALTA NABAIS, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Al-
da eficiência fiscal. Mas mais do que isso: esta fer-
medina, 1997, pp. 373-374 e 620-621. ramenta ou plataforma condiciona profundamente
30
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 33 • Julho/Setembro 2021
31
A natureza jurídica da autoliquidação
previstas na lei (34). Esta posição, em rigor, não se actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos
enquadra em qualquer uma das posições anterior- princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça,
mente identificadas na medida em que o Autor se da imparcialidade e da boa fé” (art. 266.º, n.º 2), não se
limita a afastar a qualificação da autoliquidação vendo qualquer razão para que atos sujeitos à fisca-
como ato administrativo, não esclarecendo verda- lização da Administração não devam respeitar tam-
deiramente o seu entendimento quanto à natureza bém estes parâmetros de atuação.
dos atos privados com efeitos públicos que refere.
O principal problema que encontramos nesta ex- 4.3. Face ao exposto, entendemos que a autoli-
pressão, e, em geral, em todas as teses que negam quidação não pode deixar de ser entendida como
que os particulares pratiquem atos administrativos um ato administrativo partilhado, praticado mediante
tributários, são os efeitos imediatamente produzidos a conjugação dos contributos da Administração e do
pelo ato de autoliquidação, e que apenas se podem particular, assim se revelando como uma codecisão
reconduzir aos efeitos do ato administrativo (35). A em que, nas palavras de VIEIRA DE ANDRADE, o su-
este propósito, a lei determina expressamente que, jeito que o pratica “não é obrigado a aceitar o conteúdo
nos casos de autoliquidação, a competência para a avalia- da proposta, mas depende dela para tomar a decisão” (36).
ção direta é do sujeito passivo (art. 82.º, n.º 1, da LGT), A predeterminação do meio ou da plataforma em
ato que, de resto, produz efeitos substancialmente que o ato deve ser praticado corresponde à fixação
idênticos aos da liquidação administrativa, já que das condições em que o mesmo pode ser rececio-
“[h]avendo lugar a autoliquidaçaõ de imposto e não sendo nado qua tale na ordem jurídica, isto é, como verda-
efetuado o pagamento deste até ao termo do respetivo deiro e próprio ato tributário, praticado no exercício
prazo, começam a correr imediatamente juros de mora e a de poderes jurídico-administrativos, nos mesmos
cobrança da dívida é promovida pela Autoridade Tribu- termos dos demais atos da Administração (37).
tária e Aduaneira” (art. 109.º do Código do IRC). Por Não deve, por isso, atribuir-se ao contribuinte
outro lado, é preciso ter em conta que não só a pró- todo o crédito pela autoliquidação do imposto, já que
pria lei equipara a autoliquidação à liquidação ad- é precisamente este carácter de codecisão que explica
ministrativa para efeitos de qualificação do ato como as suas especialidades quando confrontada com a
lesivo [art. 95.º, n.º 2, alínea a), da LGT], como o de- decisão de apuramento da prestação de imposto ex-
curso do prazo de pagamento subsequente à autoli- clusivamente tomada pela Administração (38). É o
quidação constitui imediatamente a Administração
no poder-dever de proceder à cobrança da prestação (36) JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Admi-
de imposto. nistrativo, cit., p. 181. Só assim julgamos possível distinguir,
como refere ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributá-
Além disso, sendo certo que “as entidades priva-
rio, cit., p. 63, “aí onde se verifica a prática de um acto de aplicação da
das que exerçam poderes públicos podem ser sujeitas, nos norma material pela Administração dali onde um simples particular,
termos da lei, a fiscalização administrativa” (art. 267.º, cumprindo um dever instrumental, regista em documentos adequados
os factos sujeitos a imposto e o tributo que lhes corresponde”.
n.º 6, da Constituição da República Portuguesa), não
(37) Desde logo para efeitos do art. 68.º, n.º 1, do CPPT, nos
pode deixar de entender-se serem aplicáveis aos termos do qual “[o] procedimento de reclamação graciosa visa
atos de autoliquidação as exigências constitucionais a anulação total ou parcial dos actos tributários por iniciativa
e legais aplicáveis aos atos administrativos, sob pena do contribuinte”, em linha, aliás, com o art. 97.º, n.º 1, alínea a),
onde se estabelece que a impugnação da liquidação dos tributos
de cairmos no casuísmo incompatível com o Direito inclui os atos de autoliquidação. E em linha, também, com o art.
(art. 3.º, n.º 1, do CPA). Aliás, da Constituição resulta 95.º, n.º 2, alínea a), da LGT, que considera os atos de autoliqui-
expressamente que “[o]s órgãos e agentes administra- dação como atos imediatamente lesivos.
(38) E não se diga que a autoliquidação não é antecedida por
tivos estão subordinados à Constituição e à lei e devem um procedimento prévio porque desde o momento da verifica-
ção dos factos tributários inúmeras obrigações acessórias vão
(34) JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, Lições de Procedimento e Pro- sendo desencadeadas, cumpridas e rececionadas pela Adminis-
cesso Tributário, 6.ª ed., Almedina, 2018, p. 54. tração, todas elas a ter em conta no momento final da apresen-
(35) JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Admi- tação da declaração de apuramento correspondente, com
nistrativo, cit., p. 165. impacto direto sobre os montantes a pagar ou a receber.
32
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 33 • Julho/Setembro 2021
que explica, por exemplo, que nos casos em que da autoliquidação que consiste no cumprimento pelo
está exclusivamente em causa matéria de Direito e sujeito passivo das condicionantes legais e regula-
a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com mentares aplicáveis é imputável à Administração (40).
orientações genéricas emitidas pela Administração
Tributária, o contribuinte, ao impugnar atos de au-
toliquidação, não estará, em rigor, a proceder a um JOSÉ AVILEZ OGANDO
venire contra factum proprium. Nestes casos, a im-
pugnação ou tem por objeto exclusivamente maté-
ria de Direito, ou aspetos vinculados do ato a que
o contribuinte obedeceu nos termos previamente
definidos pela Administração, segundo detalhadas
instruções de preenchimento ou outras orientações,
e submetida a verificação prévia de erros ou diver-
gências automaticamente detetáveis.
Esta solução parece ser também a que melhor ex-
plica as situações em que a impugnação do ato tri-
butário de autoliquidação não se encontra sujeita a
prévia reclamação necessária, uma vez que estas
serão precisamente aquelas em que os erros na au-
toliquidação podem ser considerados imputáveis
aos serviços. Aliás, também o legislador parece ver
na autoliquidação uma certa forma de codecisão,
como se depreende do art. 43.º, n.º 2, da LGT, ao re-
ferir que “[c]onsidera-se também haver erro imputável
aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser
efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter
seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas
da administração tributária, devidamente publicadas”.
Nestes casos, em que o dever de reembolsar com
juros pagamentos indevidos resulta de erro come-
tido em autoliquidação na qual foram seguidas as (40) Aqui, JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de
Processo Tributário – Anotado e Comentado, vol. I, 6.ª ed., Áreas
orientações genéricas da Administração Tributária, Editora, 2011, p. 536-537, vai mais longe e considera mesmo que,
a doutrina dominante vai no sentido de que na au- não obstante a norma do n.º 2 do art. 43.º da LGT consagre exis-
toliquidação o sujeito passivo atua como Administra- tir erro imputável aos serviços quanto a elementos da autoliqui-
dação resultantes da obediência a orientações genéricas da
ção Fiscal (39). O que equivale a afirmar que a parte
Administração, não poderá deixar de entender-se existir ainda
erro imputável aos serviços mesmo nos casos em que o contribuinte
recebe da Administração instruções não incluídas em orientações ge-
néricas. Nestes casos, o direito do contribuinte à indemnização
pelo pagamento indevido da prestação tributária resultante de
erro imputável aos serviços depende de ser feita prova das ins-
truções incorretas da Administração cujo acatamento conduziu
ao pagamento da dívida tributária em montante superior ao le-
galmente devido. Em sentido diferente, PAULO MARQUES, A Re-
visão do Acto Tributário, cit., p. 246, considerando que “as
orientações genéricas devem ser entendidas num sentido restrito, sem
prejuízo de em outras situações de deficiente informação pelo fisco, es-
teja acautelada a aplicação das regras gerais de indemnização, que não
(39) RUI DUARTE MORAIS, Manual de Procedimento e Processo propriamente mediante juros indemnizatórios, sendo que só neste úl-
Tributário, cit., p. 367. timo caso se presume o dano sofrido pelo contribuinte”.
33
PREFÁCIO
5
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
É por isso que a presente obra se vem juntar a uma muito recente vaga de
estudos sobre esta área e merece o nosso efusivo aplauso.
A partir de um tema tido por plenamente sedimentado pela doutrina
e jurisprudência, o autor decide disputar a correcção desta posição e argu-
menta, com coragem e o devido enquadramento, que a nulidade existe – e com
uma dimensão não devidamente ponderada pela jurisprudência – e merece
a devido tutela pelo Processo Tributário.
Cabe registar, a este propósito, que a construção dogmática conducente à
tese em que culmina a obra é de natureza piramidal, pretendendo preencher
a globalidade dos pressupostos em que a mesma assenta, com o devido deta-
lhe e qualidade técnica, como o leitor compreenderá pela análise da mesma.
Trata-se, indiscutivelmente, de um contributo sólido para a dogmática fis-
cal nacional e que força a Doutrina e a Jurisprudência a reabordar a tese ora
proposta pelo autor, mesmo que não necessariamente merecedora do apoio
de todos (ou, sequer, da maioria) os intervenientes na relação jurídica fiscal
formal. Mas, e se bem o fomos conhecendo ao longo do acompanhamento
da sua investigação, o autor não tem pretensões de ser conservador nas suas
posições, antes ousando reequacionar o (até agora, absolutamente margi-
nal) papel da sanção da nulidade no ato tributário. E, não sobrem dúvidas,
fá-lo com inegável qualidade, como o leitor terá oportunidade de comprovar.
6
APRESENTAÇÃO
7
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
8
ÍNDICE
prefácio 5
apresentação 7
abreviaturas 15
INTRODUÇÃO 17
1. Exposição do problema jurídico 17
2. Objeto de investigação 24
3. Metodologia 27
4. O contexto atual das relações jurídico-tributárias 29
5. O contribuinte como destinatário das leis fiscais 31
6. Plano de exposição 34
PARTE I
O ATO TRIBUTÁRIO 37
CAPÍTULO I
ESTRUTURA DAS RELAÇÕES JURÍDICO-TRIBUTÁRIAS 39
1. Preliminares 39
2. A relação jurídica de imposto 41
9
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
3. As relações jurídico-tributárias 46
4. Efeitos próprios da obrigação fiscal 49
5. Características da obrigação fiscal 52
6. Razão de ordem 57
CAPÍTULO II
O PRINCÍPIO REFORÇADO
DA JURIDICIDADE TRIBUTÁRIA 59
1. O Estado fiscal como Estado de Direito 59
2. Os três problemas do Estado fiscal 63
3. A insuficiência do princípio da legalidade administrativa 66
4. Reserva de lei parlamentar 69
4.1. Concretização do princípio 69
4.2. A extensão da reserva formal 71
4.3. Consentimento como garantia de transparência e clareza normativa 74
5. Reserva material de lei: o princípio da tipicidade 75
5.1. Concretização do princípio 76
5.2. As teses da tipicidade fechada 79
5.3. A abertura dos tipos imposta pela praticabilidade 81
5.4. A segurança jurídica como limite à abertura dos tipos 83
5.5. A concretização ativa do princípio 85
6. O primado da lei e do Direito 86
6.1. A presunção de constitucionalidade 87
6.2. A crise da legalidade estrita 88
6.3. A subordinação da administração à juridicidade 90
6.4. O princípio da tributação na medida da capacidade contributiva 93
6.5. O dever de exame da constitucionalidade dos atos normativos a aplicar 94
6.6. O direito fundamental a um certo exercício dos poderes tributários 98
7. Conclusões e sequência 100
CAPÍTULO III
O PROCEDIMENTO TRIBUTÁRIO 103
1. Carácter procedimental da atividade tributária 103
2. O procedimento como uma certa forma de tomada de decisões 105
3. A natureza dos poderes e o específico interesse público prosseguido
pela administração 107
4. O princípio da descoberta da verdade material como extensão da reserva
de lei parlamentar 112
10
ÍNDICE
CAPÍTULO IV
O ATO TRIBUTÁRIO 123
1. Noção 123
2. Natureza jurídica do ato tributário 126
3. As funções do ato tributário 129
4. A autoliquidação 132
4.1. As posições na doutrina 133
4.2. Posição adotada 137
5. A ambivalência do ato tributário 145
CAPÍTULO V
TUTELA GERAL DA LEGALIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO 147
1. A dupla valoração normativa dos atos tributários e suas consequências 147
2. O caso paradigmático do erro imputável aos serviços 153
2.1. A posição da doutrina e da jurisprudência 154
2.2. Tomada de posição 156
3. Limites à estabilização dos atos tributários 160
4. A impugnação administrativa dos atos tributários: em especial sua
finalidade 162
5. A impugnação contenciosa dos atos tributários: em especial os seus
fundamentos 166
6. A oposição à execução: em especial, o fundamento de ilegalidade
da liquidação da dívida exequenda 167
7. A revisão dos atos tributários: justificação da reapreciação extraordinária
do ato 173
PARTE II
A NULIDADE 179
CAPÍTULO VI
A NULIDADE DOS ATOS DA ADMINISTRAÇÃO 181
1. Fundamento e sentido da invalidade 181
2. A sede da disciplina jurídica da invalidade do ato tributário 184
11
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
CAPÍTULO VII
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO 239
1. Nulidade e contencioso tributário: possíveis objeções 239
1.1. A execução prévia da obrigação tributária 239
1.2. Os prazos alargados de reapreciação dos atos tributários 242
2. A posição do STA 244
3. O direito fundamental de natureza análoga à legalidade na tributação 256
4. Atos que ofendem o conteúdo essencial do direito fundamental
à legalidade da tributação 260
4.1. Atos impositivos de “impostos que não hajam sido criados nos termos
da Constituição” 262
4.2. Atos impositivos de impostos “que tenham natureza retroativa” 266
4.3. Atos impositivos de impostos “cuja liquidação e cobrança se não façam
nos termos da lei” 268
5. Casos graves de violação da juridicidade tributária 271
5.1. Os atos tributários desprovidos de base legal 271
5.2. Os atos tributários baseados em factos inexistentes 275
5.3. A liquidação feita com recurso a ato estranho às atribuições da AT 279
12
ÍNDICE
CONCLUSÕES 289
jurisprudência 303
bibliografia 309
13
INTRODUÇÃO
1
Acórdão do Plenário do STA de 30/05/2001 (proc. 22251).
2
Idêntica argumentação pode encontrar-se em diversos acórdãos do STA, entre os quais se contam
os acórdãos do STA de 10/30/2002 (proc. 026390), de 28/01/2004 (proc. 01709/03), de 29-06-2005,
(proc. 0117/05), de 06/29/2005 (proc. 0117/05), de 06/22/2005 (Pleno) (proc. 01259/04), de
10/11/2006 (proc. 0676/06), de 11/23/2005, (proc. 0612/05), de 11/02/2011, (proc. 0158/11),
de 11/21/2012, (proc. 0210/12), de 05/07/2014, (proc. 01412/12), de 12/12/2013, (proc. 07025/13),
de 02/05/2015, (proc. 01775/13), e de 04/06/2016, (proc. 08/16).
17
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
3
Acórdão do STA de 24/11/1983 (proc. 17640).
4
Acórdão do Plenário do STA de 30/05/2001 (proc. 22251).
5
Sem prejuízo da análise que será feita oportunamente, neste caso, em que o ato tributário pro-
cede à criação de uma obrigação pecuniária em razão da improdutividade jurídica do despacho
em que se baseou, podem levantar-se duas sub hipóteses. A de vir a apurar-se que afinal o tributo
liquidado tem a natureza de imposto, caso em que o ato é claramente nulo, não só por se tratar de
18
INTRODUÇÃO
um ato estranho às atribuições da pessoa coletiva em que se integra o seu autor (artigo 161º nº. 2
al. b) do CPA), como por se tratar de um ato ferido de usurpação de poderes (artigo 161º nº. 2 al. a)
do CPA), já que a criação de impostos é uma atribuição exclusiva do poder legislativo (artigo 165º
nº. 1 al. i) da CRP). A segunda consiste em pretender-se enquadrar como taxa este tributo liquidado
sem qualquer base legal. Neste caso, não se estará perante um ato estranho às atribuições da pessoa
coletiva em que o seu autor se insere porque as autarquias locais dispõem de poder regulamentar
próprio (artigo 241º da CRP), que inclui o poder de criar as taxas cobradas pela utilização dos
seus serviços (artigo 238º nº. 4 da CRP), cuja aprovação é da competência das respetivas assem-
bleias municipais (artigo 25º nº. 1 al. b) do RJAL). No entanto, , dado que o esquema de repartição
de competências no âmbito das autarquias locais baseia-se numa rígida separação de poderes,
será possível reconduzir esta situação (como em situação análoga defende DIOGO FREITAS DO
AMARAL, Curso de Direito Administrativo, 4ª ed., 2018, pp. 348-349, citando o igualmente seu O
caso do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol (parecer jurídico), 2008, pp. 51-52) à figura
de usurpação de poderes, caso em que o ato de liquidação deve entender-se nulo. Seja como for,
a questão ficaria hoje ultrapassada com a aplicação do artigo 161º nº. 2 al. k) do CPA, nos termos
do qual são nulos os atos que criem obrigações pecuniárias não previstas na lei, que inclui todos
atos tributários desprovidos de base legal.
6
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, “Nulidade e anulabilidade do acto administrativo – Ac. do STA de
30.5.2001, P. 22 251”, CJA, nº. 43, jan/fev. 2004, pp. 46-48.
19
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
7
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, “Nulidade e anulabilidade do acto administrativo – Ac. do STA de
30.5.2001, P. 22 251”, CJA, nº. 43, jan/fev. 2004, p. 48.
8
Resultante dos artigos 285º e 286º, n.º 1, al. a) do CPT, hoje artigos 203º e 204º nº. 1 al. a) do CPPT.
20
INTRODUÇÃO
9
Pelo menos cinco dos quais proferidos pelo Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA
(acórdãos de 07/04/2005 (proc. 1108/03), de 22/06/2005 (proc. 1259/04), de 16/11/2005 (proc.
019/04), de 16/12/2010 (proc. 0396/10), de 16/10/2013 (proc. 0412/13)), o primeiro destes também
relatado pelo conselheiro JORGE LOPES DE SOUSA e com seis votos de vencido expressos na
declaração de voto do conselheiro JOSÉ SANTOS BOTELHO.
10
Acórdãos do STA de 21/05/2008 (proc. 0220/08), de 16/09/2009 (proc. 0418/09), de 22/03/2011
(proc. 0749/10), de 25/05/2011 (proc. 091/11), de 02/11/2011 (proc. 0158/11), de 16/05/2012
(proc. 0275/12), de 21/11/2012 (proc. 0210/12), de 24/10/2012, (proc. 0501/12), de 07/11/2012,
(proc. 0824/12), de 28/11/2012, (proc. 01038/12), de 25/06/2013, (proc. 0611/12), de 26/06/2013,
(proc. 0231/13), de 14/05/2014, (proc. 01644/13), de 18/06/2014, (proc. 0417/14), de 10/09/2014,
(proc. 01681/13), de 05/11/2014, (proc. 0371/13), de 06/04/2016, (proc. 08/16), de 06/04/2016,
(proc. 07/16), de 03/05/2017, (proc. 0924/16), de 31/05/2017, (proc. 0975/16), de 05/12/2018, (proc.
0780/17).
11
Acórdão do STA de 07/03/2007 (proc. 01150/06).
21
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
12
Acórdão do STA de 18/06/2014 (proc. 0417/14).
22
INTRODUÇÃO
prática de ato estranho às suas atribuições. Além disso, o exercício por parte
da Administração Tributaria de opção reservada por lei ao contribuinte na
escolha do regime tributário aplicável constitui uma inaceitável ingerência
na sua esfera privada, sendo ofensivo do conteúdo essencial de direitos fun-
damentais, mormente o direito do impugnante a não pagar impostos cuja
liquidação se não faça nos termos da lei e o direito fundamental a ser tratado
em condições de igualdade. Servindo a norma violada o propósito de con-
cretizar e proteger especificamente este último direito, a sua violação privou
absolutamente o impugnante da proteção por ela conferida. Entende assim
que a tributação feita nestes termos corresponde a um inaceitável confisco,
um esbulho arbitrário e uma expropriação sem indemnização, proibidos pela
Constituição material e fiscal formal, conducentes à nulidade do ato impug-
nado. Sendo esta forma de invalidade invocável a todo o tempo, constitui
a Administração Tributária no dever de abster-se de insistir na ilegalidade
de substituir-se aos contribuintes no exercício de opções compreendidas no
âmbito da liberdade gerir a sua esfera privada.
Decidindo, o STA considerou que “A apontada ilegalidade, a verificar-se não
é geradora de nulidade, invocável a todo o tempo, mas de mera anulabilidade que há-de
ser suscitada e graciosa ou contenciosamente declarada dentro dos prazos legais (…) que
se mostram manifestamente excedidos. (…) Pese embora a Administração Tributária
esteja estritamente vinculada ao princípio da legalidade, isso não significa que qual-
quer acto que pratique e que se afaste da lei, ou da melhor interpretação dela, se possa
qualificar como um ato estranho às atribuições da Autoridade Tributária para efei-
tos do disposto no artigo 161º do CPA, ou todas as ilegalidades praticadas na elabora-
ção de actos de liquidação estariam assim convertidas em vícios geradores de nulidade
do acto e invocáveis a todo o tempo, não sendo, manifestamente intenção do legisla-
dor, seja no direito tributário, seja em qualquer ramo de direito, banalizar o insti-
tuto da nulidade dos actos estendendo-o a quase todas as situações de ilegalidade. (…)
Do mesmo modo não se verifica uma violação do direito constitucional de igualdade por-
que a ilegalidade cometida não consistiu num tratamento discriminatório do recorrente
face a outros contribuintes em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de
origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, con-
dição social ou orientação sexual, proibida pelo art.º 13.º da Constituição da República
Portuguesa.”13.
23
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
2. Objeto de investigação
2.1. Estas decisões revelam por si os paradoxos em que o STA se tem colo-
cado no que diz respeito à nulidade dos atos tributários: ao mesmo tempo em
que o ato que liquida imposto inexistente nas leis em vigor é meramente anu-
lável, declara-se que os vícios dos atos tributários devem ser sancionados com a
nulidade nos casos previstos na lei, como sucede quando esses atos ofendam o
conteúdo essencial de um direito fundamental. Isto, sem que, com exceção dos
atos que ofendam o caso julgado14, sejam conhecidos pelo STA quaisquer atos
tributários nulos ao abrigo do artigo 161º do CPA. A nulidade é a consequência
normal dos atos que violem o conteúdo essencial de direitos fundamentais ou
sejam afetados por ilegalidades de tal modo graves e evidentes, que o legislador
as identifique como não podendo produzir efeitos provisórios nem beneficiar
do efeito estabilizador do decurso do tempo, próprio da generalidade dos atos
da administração. Trata-se de um prolongamento da especial vinculatividade
de certas normas legais face às demais, ou um reflexo da especial intensidade
do insulto que certos comportamentos representam para o sistema jurídico.
O ato tributário é o ato mais vezes praticado pela administração pública,
sendo ainda um dos atos administrativos que mais diretamente restringem
ou afetam a esfera jurídica privada. Daí que os poderes concedidos para a
prática de atos tributários sejam especialmente marcados pela subordinação
à lei, ordenada por um princípio de juridicidade, reforçado tanto por uma
exigente reserva de lei formal e material, como pela atribuição aos particu-
lares de um direito fundamental a não pagar impostos inconstitucionais ou
ilegalmente liquidados e pagos (artigo 103º, nº. 3 da CRP)15. Além disso, deve
ser visto como um exemplo paradigmático das relações entre administra-
ção e administrados, tanto pelo volume de atos praticados, como porque
nele o interesse publico se manifesta pelo permanente compromisso entre
o interesse público primário de satisfação das necessidades financeiras do
Estado, e o respeito pela juridicidade que dá corpo aos direitos resultantes da
obrigação de imposto, entre os quais se contam relevantes direitos subjetivos
públicos carecedores de tutela efetiva.
Ver adiante, maxime número 3 do capítulo VII. No mesmo sentido, JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE
15
Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ª ed., 2012, p. 81, GOMES CANOTILHO,
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 2003, p. 405, JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, tomo IV, 3ª ed., 2000, p. 151, JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar
impostos, 1997, p. 186, nota 5, SALDANHA SANCHES, O ónus da prova no processo fiscal, Lisboa, 1987, p. 5.
24
INTRODUÇÃO
2.3. Como se viu, tem havido forte resistência dos tribunais superiores
à aplicação do instituto da nulidade às ilegalidades mais graves praticadas
em atos tributários, exigindo que se determine os traços específicos do seu
regime nesta sede. Ora, nem nós, nem o próprio legislador desconsideramos
Como são exemplo paradigmático os casos de pretensas taxas com natureza de imposto criadas
16
pelas autarquias, muitas vezes para fazer face ao aumento de despesa inerente às transferências de
competências, não acompanhadas dos correspondentes meios financeiros.
25
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
26
INTRODUÇÃO
3. Metodologia
VIEIRA DE ANDRADE, “A nulidade administrativa, essa desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 339.
18
VIEIRA DE ANDRADE, “A nulidade administrativa, essa desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 336.
19
27
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
20
As realidades instituídas pelas normas instrumentais estão na base da distinção que fez escola
na doutrina alemã, entre Direito Tributário material, que compreende as normas reguladoras dos
elementos da relação tributária e dos direitos e obrigações dela resultantes, e o Direito Tributário
formal ou instrumental onde se integram as normas reguladoras da atividade de aplicação das leis
de imposto e dos instrumentos de garantia dos direitos dos particulares. Para ALBERTO XAVIER,
Manual de Direito Fiscal, I, Lisboa, 1974, p. 20 e Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 14, esta
distinção terá afetado a unidade sistemática do Direito Fiscal, chegando a imputar-lhe a subalter-
nização do Direito Tributário formal e sua consequente atrofia doutrinária, dado o seu carácter
meramente acessório ou auxiliar, preferindo a designação de Direito Tributário instrumental.
Donde, a par das normas que selecionam os factos suscetíveis de despoletar a obrigação fiscal a
cargo dos sujeitos passivos e as regras de apuramento do conteúdo da prestação dela resultante,
encontramos ainda variadíssimas normas de carácter instrumental, que estabelecem a forma como
a administração fiscal deve exercer a sua atividade e relacionar-se com os contribuintes, de modo
a facilitar a descoberta da verdade material e a assegurar os espaços de defesa das garantias dos
contribuintes. É por intermédio destas normas que se desenvolvem os procedimentos com vista à
declaração dos direitos tributários (artigo 54º nº. 1 da LGT), através de uma atividade reveladora
da vontade funcional do legislador.
28
INTRODUÇÃO
22
Apesar de este trabalho se debruçar sobre a nulidade do ato tributário entendido em sentido
estrito, entendemos que as suas conclusões pensadas para as suas significativas especificidades
deverão aplicar-se ainda aos atos em matéria tributária e aos atos administrativos em matéria
tributária.
29
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
23
A expressão “cumprimento voluntário” é um oximoro frequentemente utilizado pela Autoridade
Tributária significando cumprimento espontâneo ou não provocado dos comportamentos impostos
pelas leis fiscais. Ver por todos o relatório de atividades desenvolvidas pela Autoridade Tributária
“Combate à Fraude e Evasão Fiscais e Aduaneiras”, 2020, Gabinete do SEAF, Junho de 2021.
24
Como refere SALDANHA SANCHES, “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento
Administrativo e a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio
Galvão Teles, I, 2003, p. 870, criticando a ineficiência deste modelo de gestão fiscal “a possibilidade de
uma pronúncia expressa e clara da administração fiscal em todas as relações sujeito ativo/sujeito passivo se tinha
um carácter utópico mesmo na época do Estado mínimo é completamente impensável na época do Estado fiscal”.
30
INTRODUÇÃO
25
SALDANHA SANCHES “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento Administrativo e
a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles, I,
2003, pp. 854-856. Deste modo, as empresas elaboram o seu balanço comercial calculam o lucro
fiscal e as tributações autónomas, liquidam o imposto, comunicam-no à administração e entregam-
-no nos cofres do Estado através de várias formas de pagamento antecipado, a maior parte das vezes
sem qualquer intervenção da administração. Além disso, ainda servem de serviços periféricos da
administração retendo na fonte vários tributos relativos às operações em que intervêm: às remu-
nerações que pagam aos seus trabalhadores retêm o IRS, às transmissões de bens e prestações de
serviços cobram o IVA que depois de deduzir o suportado nas aquisições entregam nos cofres do
Estado, liquidam o imposto de selo devido pelas suas operações, o IUC das suas viaturas e o IMI
dos seus imóveis. Com o imposto quase sempre pago antecipadamente, a regra passa a ser o reem-
bolso dos montantes avançados à cabeça pelo sujeito passivo. Com o aumento da complexidade das
declarações a entregar, este reembolso tende a aumentar ou a diminuir à razão da familiaridade
dos contribuintes com o preenchimento dos formulários e com as leis fiscais.
31
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
26
SALDANHA SANCHES “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento Administrativo
e a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles I,
2003, p. 855.
27
Como refere SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, p. 36, a clareza das
leis fiscais é uma expressão da reserva de lei parlamentar.
28
SALDANHA SANCHES “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento Administrativo
e a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles I,
2003, p. 857.
29
Como acentua JOÃO DE CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 1978, p. 67,
citando LUIGI BANGOLINI, “O conceito de relação jurídica tem sido considerado como uma categoria
central da ciência jurídica, na qual se exprime aquele elemento de relação que parece estar sempre presente em
toda a manifestação da realidade jurídica”.
32
INTRODUÇÃO
30
Deste modo, os vários códigos fiscais seguem o mesmo figurino, definindo primeiro a incidên-
cia objetiva e subjetiva, as isenções, o facto gerador da obrigação, depois a definição da matéria
tributável e as taxas e finalmente as obrigações acessórias e as garantias das obrigações. Também a
LGT acolhe expressamente este esquema no seu título II, distribuindo por cinco capítulos os seus
elementos e vicissitudes: os sujeitos, o objeto, a constituição, a extinção e a garantia da prestação
tributária. SÉRGIO VASQUES, Manual, de Direito Fiscal, 2ª ed., 2018, pp. 71-72.
31
Apesar da obrigação de imposto nascer como uma obrigação ex lege a partir da verificação, na esfera
privada, de factos previstos na lei e de o conteúdo da prestação resultante desse encontro entre factos
e lei, resultar igualmente de critérios nela contidos, é com o ato tributário que a obrigação de imposto
ganha uma nova vida, por via da abstração que a sua função tituladora lhe dá (MÁRIO ESTEVES
DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM, Código do Pro-
cedimento Administrativo comentado, Vol. II, 1995, p. 58). É com base nos elementos ao dispor das
partes, convocados ao procedimento pelos deveres de colaboração dos contribuintes e informados
pelos princípios do inquisitório e da descoberta da verdade material, que a situação material subja-
cente é revelada e cristalizada no ato tributário, permitindo finalmente à administração executá-la
e aos contribuintes cumprir as suas obrigações e ou recorrer às garantias de defesa dos seus direitos.
32
Como sintetiza SÉRGIO VASQUES, Manual, de Direito Fiscal, 2ª ed., 2018, p. 73, referindo-se
à marginalização dos princípios fundamentadores do sistema pela doutrina do século passado,
33
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
6. Plano de exposição
34
INTRODUÇÃO
35
Não ver ou não querer ver? O estranho caso do “pagamento voluntário da coima”
determinado por ato de condenação em infração contraordenacional
– Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo,
proferido no Processo n.º 030/20.6BEBJA, de 9 de junho de 2021*
arguido, prescrição, por não ser apurada a ocorrência se formou. Já quanto à segunda consequência, deverão
de infração, ou em resultado do “pagamento voluntário igualmente existir mecanismos de mitigação dos atos
da coima no decurso do processo de contraordenação executórios do ato e ofensivos do património dos
tributária”3. Pagamento este que a lei faz equivaler particulares afetados, sob pena de verificar-se na sua
à admissão de culpa, levando o processo a parar nos esfera prejuízos que prejudicariam uma efetiva tutela
seus carris e a tornar desnecessária a adoção de do direito a invocar a invalidade do ato praticado pela
uma decisão condenatória ou absolutória, e por isso administração. Daí que os particulares que virem ser
conduzindo imediatamente à extinção do procedimento. levantado contra si processo de execução fiscal por
Acontece que, aparentemente, o procedimento falta de pagamento da coima em que hajam sido
concreto a que o aresto em análise se refere ter-se-á condenados, podem sempre proceder – como aliás
extinto das duas formas: extinguiu-se primeiro por frequentemente sucede – ao pagamento da quantia
morte natural, no dia 4 de dezembro de 2019, dia exequenda e acrescidos, assim extinguindo a execução.
em que por ter sido proferida a decisão final atribuidora Em alternativa poderão ainda obter a suspensão da
de responsabilidade contraordenacional conducente execução mediante prestação de garantia idónea ou
à aplicação de coima, foi atingido o seu fim típico; obtenção de dispensa da sua apresentação em razão
e extinguiu-se depois por morte assistida, no dia 31 de insuficiência de meios económicos4, sem que fique
de dezembro de 2019, dia em que o chefe de finanças prejudicada a discussão a que possa haver lugar quanto
de Mourão proferiu despacho de arquivamento do à legalidade do ato que lhe deu origem5.
processo, com fundamento na sua “extinção por Garantir o recurso à tutela jurisdicional do ato sem
pagamento”. que, paralelamente, seja dado ao particular abundantes
Passemos então à abordagem, que o carácter do meios de evitar que o seu património seja afetado
presente texto exige necessariamente sucinta, dos por diligências de cobrança, conduz a uma garantia
argumentos utilizados para fundamentar a decisão de tutela meramente formal e não efetiva. Porque
sob análise. permite que esta cobrança coerciva necessária funcione
como instrumento de inaceitáveis pressões sobre os
II. Em primeiro lugar, considera o STA que a extinção particulares afetados – pressões que se agravam
do procedimento de contraordenação em virtude do fatalmente com as indignas demoras processuais – o
pagamento voluntário da coima determinada no termo que mesmo em termos técnicos corresponde a uma
do mesmo procedimento, retira ao arguido o necessário autêntica tomada de reféns pela via administrativa.
interesse em agir no recurso judicial daquela decisão. Este efeito que a imediata execução pode ter sobre
Com essa falta de interesse em agir, o arguido careceria a discussão da legalidade do ato é resolvido no
de legitimidade para o recurso impugnatório do ato, domínio tributário pelo artigo 9.º da Lei Geral Tributária
o que obstaria à sua admissão, ficando o tribunal (doravante, “LGT”), que garante o acesso à justiça
impedido de apreciar o pedido nele formulado. tributária “para a tutela plena e efectiva de todos os
Mas será mesmo assim? Será que o particular direitos ou interesses legalmente protegidos”, e que
condenado em contraordenação que cumpra o prazo “todos os actos em matéria tributária que lesem direitos
de pagamento a que está vinculado, perde o interesse ou interesses legalmente protegidos são impugnáveis
legalmente protegido em ver jurisdicionalmente discutida ou recorríveis nos termos da lei”. As condições
a legalidade da decisão que a determina? Para responder subjetivas para esta ampla impugnabilidade são ainda
a esta pergunta é preciso dar um passo atrás para notar garantidas pelo n.º 3 do mesmo artigo, o qual assegura
que uma decisão desta natureza comporta sempre para que “[o] pagamento do imposto nos termos de lei
o seu destinatário duas consequências negativas: (i) que atribua benefícios ou vantagens no conjunto de
define imperativamente o carácter censurável da sua certos encargos ou condições – como é o caso de
conduta como a pena destinada a dissuadir a potencial obstar- se a pendência de processo de cobrança
reincidência; e (ii) dado o seu carácter executivo e
executório, não só serve de base a uma execução como
4
habilita a administração a conduzir a mesma e a obter, Cfr. artigo 52.º da LGT e artigos 169.º e 199.º do CPPT.
5
pelos seus próprios meios, a satisfação do crédito O que o STA parece não ter presente é que a maior parte
correspondente. das coimas segue este caminho e são em grande parte
A primeira destas consequências negativas pode pagas antes de transitar em julgado a decisão judicial que
ser atacada pelo recurso ao mecanismo de tutela apreciar da sua legalidade. Sendo que, nos casos de
jurisdicional, justificada pelo interesse juridicamente procedência dos recursos de contraordenação, redundam
na obrigação de reembolso dos montantes cobrados
protegido do destinatário do ato a ver apreciada a sua
coercivamente por parte da administração, no âmbito da
legalidade e a do procedimento no âmbito do qual obrigação de “plena reconstituição da situação que existiria
se não tivesse sido cometida a ilegalidade” (n.º 1 do artigo
3
Cfr. al. c) do artigo 61.º do RGIT. 100.º da LGT).
132
Não ver ou não querer ver? O estranho caso do “pagamento voluntário da coima”
determinado por ato de condenação em infração contraordenacional
Aliás, por força deste entendimento sistematicamente afetados a uma sequência predeterminada de atos
plasmado em jurisprudência consolidada no STA, o dirigidos à sua adequada produção, como ainda porque
principal efeito do ato é afinal vincular juridicamente a sua emissão a final é o evento conclusivo dessa
o particular a um comportamento (pagar a coima mesma sequência de atos. Depois, o ato desempenha
aplicada), cujo acatamento atempado extingue direitos uma função concretizadora da lei geral e abstrata,
que a Constituição pessoalmente lhe atribui. Neste proporcionando uma expressão da vontade funcional
caso, o destinatário do ato que lhe imputou uma do legislador16. A especial força jurídica que a lei
contraordenação caiu no erro de cumprir o respetivo associa a estes atos permite ainda que desempenhem,
prazo de pagamento – ainda que simultaneamente com entre outras, uma função definitória imperativa, por
a apresentação do recurso jurisdicional – perdeu forma a que a definição jurídica nele contida vincule
legitimidade em agir porque o órgão responsável pela a administração, os destinatários e quaisquer terceiros17,
condução do procedimento decidiu, posteriormente em termos tais que só possa ser mais tarde alterada
à prática do ato, emitir despacho de extinção do com base em elementos novos ou numa nova valoração
procedimento de contraordenação13. O que significa dos elementos de prova até então obtidos. Poder que
que, aparentemente, a legitimidade processual do aliás reclama as garantias proporcionadas pelo
responsável contraordenacional encontra- se na procedimento no âmbito do qual o ato se formou, em
disponibilidade do autor do ato, que, posteriormente especial pela sua natureza contraditória, intervindo a
à decisão final, pode, por via de um simples despacho, administração como agente imparcial encarregue da
ordenar o arquivamento ou a extinção do procedimento. descoberta da verdade material e da correta expressão
O que não deixa de ser extraordinário, até porque da da vontade funcional do legislador relativamente ao
mesma forma que algo não pode ser e não ser ao mesmo caso concreto18.
tempo, também um processo não pode extinguir-se Para a impugnação da decisão com vista à discussão
em dois momentos distintos: no momento em que é da sua legalidade, é irrelevante que o processo se
praticado ato de condenação em responsabilidade mantenha ou não aberto, até porque o objeto do
contraordenacional e posteriormente também, com o recurso judicial de contraordenação não é a legalidade
afinal soberano despacho de extinção. do procedimento, mas antes a legalidade da decisão
Ora, como é sabido, o procedimento administrativo, que lhe põe termo19, aquela que define com carácter
é um método de coordenação dos diversos contributos definitivo a responsabilidade contraordenacional
com vista à tomada de decisões ordenadas pelo interesse e se mantém em vigor mesmo depois de aquele ser
público14, no que é afinal uma atividade reveladora extinto, dizendo o direito sobre o caso concreto que
destinada a habilitar a administração a produzir o ato é seu objeto.
decisório a que se destina e que lhe põe termo. O Como a propósito escreve I NÊS F ERREIRA L EITE ,
procedimento administrativo é assim uma forma “[o] processo contraordenacional é, na sua fase
disciplinada de aplicação do Direito substantivo, administrativa, ainda um processo tendente à prática
aberta à participação dos interessados, fornecendo o de um ato administrativo: a decisão de aplicação da
enquadramento necessário a habilitar a administração coima”20. Também o Tribunal Constitucional no seu
a proferir uma decisão conforme à lei15. A sua especial Acórdão n.º 19/2011 reconheceu que “as decisões
força jurídica é precisamente o que permite à decisão administrativas que aplicam determinada sanção não
de aplicação da coima desempenhar um conjunto de podem deixar de ser consideradas como «actos
funções, a começar por uma função procedimental, administrativos», na medida em que visam produzir
já que não apenas sujeita o seu autor e os particulares efeitos jurídicos, numa situação individual e concreta”.
16
13
MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e J.
Procedimento que, repita-se, ficou concluído com a decisão PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo
que declarou verificada a infração e condenou no pagamento Comentado, vol. II, 1995, p. 44.
de coima. 17
14
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo,
Cfr. n.º 1 do artigo 266.º da CRP. 5.ª ed., p. 2017, p. 165.
15
SALDANHA SANCHES, O ónus da prova no processo fiscal, 18
ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário,
Lisboa, 1987, p. 8. Como refere ALBERTO XAVIER, Conceito 1972, p. 569.
e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 144, a principal 19
consequência da natureza processual da atividade tributária Que inclui eventuais ilegalidades formais cometidas no
é a distinção entre os atos preparatórios e o ato conclusivo procedimento em que se formou.
20
do processo, aquele que declara o Direito do caso concreto, Cfr. INÊS FERREIRA LEITE, “A autonomização do direito
cristalizando, para as futuras relações entre sujeitos sancionatório administrativo, em especial, o direito
da obrigação de imposto, os elementos abstratamente contraordenacional”, in Regime Geral das Contraordenações
descritos nas normas substantivas, neste caso as normas e as Contraordenações Administrativas e Fiscais, CEJ, 2015,
incriminadoras de carácter contraordenacional. p. 55.
134
Não ver ou não querer ver? O estranho caso do “pagamento voluntário da coima”
determinado por ato de condenação em infração contraordenacional
O carácter impugnatório do recurso judicial de cumprir a pena administrativamente fixada. Caso que
contraordenação relativamente ao ato de fixação da ademais é o daquele que pretende efetuar um pagamento
coima resulta de diversas normas legais, entre as quais nos termos de lei “que atribua benefícios ou vantagens
se destacam o n.º 1 do artigos 55.º, o n.º 1 do 59.º do no conjunto de certos encargos ou condições”24, sendo
RGCO e o artigo 53.º e n.º 1 do artigo 80.º do RGIT, o benefício em causa o da não sujeição às operações
daí resultando que não existe qualquer incompatibilidade de cobrança coerciva da decisão que o condenou,
entre (i) a extinção do procedimento contraordenacional; além da virtualidade de dispensar a administração da
(ii) a manutenção na ordem jurídica da decisão que alocação de recursos para a sua cobrança25.
dele resulta; e (iii) a manutenção do interesse em A posição defendida pelo STA receciona uma solução
apresentar pedido de tutela jurisdicional quanto à que além de não ser pretendida pelo legislador, é
legalidade de tal decisão. Seguindo o critério do objeto ineficaz, ineficiente e dispendiosa do ponto de vista
da ação impugnatória em que consiste o recurso judicial da boa administração (que é aquela que gasta o
de contraordenação, no caso em apreço a legitimidade mínimo de recursos para realizar os seus fins). Além disso,
particular afetado resultou naturalmente do seu interesse como é desproporcionada porque não existe qualquer
direto e pessoal à legalidade da decisão que sobre justificação para que esse pagamento – feito entre
si dizia respeito21, interesse cuja proteção legal é o dia em que a decisão é tomada e o dia em que é
assegurada pela norma atribuidora do direito a invocar instaurada a execução para a sua cobrança – conduz
a sua invalidade. à ilegal preclusão do direito de impugnação do ato
Donde o claro sentido da norma contida na al. c) que define a responsabilidade contraordenacional26.
do artigo 61.º do RGIT é apenas e só o de incluir, entre Além desta gratuita desproporção, condena os
os factos extintivos do procedimento, o pagamento particulares que pretendam ver discutida a legalidade
feito no seu decurso, que dispense a administração do da decisão que os condenou, à violência de serem
poder-dever de se pronunciar sobre o respetivo caso obrigatoriamente executados pela Autoridade
concreto22. É por isso compreensível que o pagamento Tributária. Execução que os coloca perante o dilema27
feito nessas condições deixe o particular sem interesse de alternativamente ver o património afetado no âmbito
em agir no âmbito de qualquer recurso judicial de das diligências de cobrança coerciva ordenadas pelo
impugnação, que sempre seria aliás desprovido de órgão de execução fiscal, ou efetuar o pagamento do
objeto23. Pelo que nas situações em que o particular, montante devido para a sua extinção da execução,
ao invés de esperar pelo ato a que o procedimento se prestar uma garantia para a sua suspensão ou a obter,
dirige, antecipadamente opte por efetuar o pagamento sendo disso caso, a sua dispensa. Pagamento e garantias
aproveitando os benefícios – que se traduzem em que nesta fase são calculados tendo por base a coima
autênticos convites transacionais – de pagamento aplicada, acrescida de juros, porque realizada fora de
antecipado da coima, fica a entidade administrativa prazo e das custas que o desplante da sua pretensão
competente desonerada do dever de decisão, assim impugnatória necessariamente deu causa.
se extinguindo o procedimento sem que haja pronúncia
quanto à responsabilidade contraordenacional. IV. O STA afasta por fim qualquer ofensa aos
Situações que não se podem confundir com direitos constitucionais do acesso ao direito e à tutela
a do particular a quem essa responsabilidade jurisdicional efetiva28, por considerar que “a arguida
contraordenacional já foi imputada por decisão com deixou de ter qualquer interesse juridicamente atendível
carácter definitivo, e que pretenda espontaneamente no resultado do recurso interposto. É que, ainda que
a decisão jurisdicional que viesse a ser proferida no
recurso lhe fosse favorável, a mesma não repercutiria
21
Cfr. al. a), n.º 1 do artigo 55.º do Código do Processo qualquer efeito útil na sua esfera jurídica, sendo certo
nos Tribunais Administrativos (doravante, “CPTA”).
22 24
Trata-se, por conseguinte, do pagamento voluntário a Cfr. n.º 3 do artigo 9.º da LGT.
que se refere o n.º 1 do artigo 70.º do RGIT, o qual comina 25
Cfr. artigo 5.º do CPA.
que, na notificação ao arguido para apresentar a defesa, 26
deve ainda ser-lhe comunicado “as possibilidades de Sem prejuízo da possibilidade de renúncia expressa,
pagamento antecipado da coima nos termos do artigo 75.º nos termos do n.º 3 do artigo 9.º da LGT.
27
ou, até à decisão do processo, de pagamento voluntário Autisticamente imposto face à realidade do país, já que
nos termos do artigo 78º”. como é sabido, são frequentemente objeto de processos
23
Trata-se do pagamento voluntário a que se refere o artigo de contraordenação aqueles que têm menos recursos e
50.º-A do RGCO, que declara “admissível em qualquer apresentam mais baixos níveis de instrução e menos
altura do processo, mas sempre antes da decisão, o conhecimentos sobre as suas próprias obrigações e meios
pagamento voluntário da coima, a qual, se o contrário não de reação processual.
28
resultar da lei, será liquidada pelo mínimo, sem prejuízo Cfr. n.os 1 e 10 do artigo 20.°, n.os 4 e 5 do artigo 32.° e
das custas que forem devidas.”. artigo 268.° da CRP.
135
José Avilez Ogando RDA
que o interesse em recorrer se define pela utilidade vícios susceptíveis de gerar a antijuridicidade desses
derivada da procedência do recurso. Ora, extinto que actos, têm de ser havidas como inconstitucionais,
está o procedimento contra-ordenacional por motivo e, por via de consequência, como inteiramente
do pagamento voluntário acima referido, a arguida irrelevantes” (JOSÉ MANUEL CARDOSO DA COSTA,
colocou-se voluntariamente na situação de já nada “A tutela dos direitos fundamentais”, Boletim
poder fazer relativamente à coima aplicada”. do Ministério da Justiça – Documentação e Direito
O extraordinário desta argumentação é que, como Comparado, n.º 5, 1981, p. 209). Ou, na formulação
é evidente, nos casos descritos, a “utilidade derivada de J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA
da procedência do recurso” é a anulação do ato e o (Constituição da República Portuguesa Anotada,
dever que dessa anulação resulta para a administração 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 938): “A garantia
“de reconstituir a situação que existiria se o ato anulado constitucional do recurso impede a isenção contenciosa
não tivesse sido praticado”29, ou nas palavras da LGT, de certos actos, ou partes de actos, ou a exclusão do
a “plena reconstituição da situação que existiria se não conhecimento de certos vícios, de modo a conferir
tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo direito à impugnação contenciosa de todos os actos
o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e em todos os aspectos juridicamente vinculados”.”.
condições previstos na lei”30.
Mas recuemos um pouco: nestes autos, o particular Conclusão
invocou o Acórdão do Tribunal Constitucional (doravante,
TC) n.º 135/2009 que considerou inconstitucional A decisão em análise exprime uma jurisprudência
norma que impedia o arguido que pagasse a coima, de pacífica que falha ao basear-se no errado entendimento
discutir mais tarde a existência da infração, mediante a de que a utilidade para os particulares da procedência
apresentação de recurso judicial da decisão administrativa do recurso de contraordenação – que exprime o seu
que aplicou sanção acessória de inibição de conduzir. interesse direto em demandar – consiste em evitar o
Mais uma vez, o STA não soube ou não quis ver o dispêndio do valor da coima. Mas como todos devem
facto lógico de que a inconstitucionalidade verificada reconhecer, o objeto dos recursos de contraordenação
pelo TC decorre do impedimento legal resultante do não são as coimas pagas, mas antes as decisões que
pagamento da coima, de impugnação de decisão posterior declaram infrações concretas por estes praticados e
a esse pagamento, declarativa de infração e fixadora da valoram e aplicam as sanções correspondentes. A primeira
responsabilidade contraordenacional. utilidade da garantia de tutela jurisdicional efetiva é
Como muito bem pressentiu o TC, o que estava em assegurar aos particulares a discussão da legalidade
causa era, “não apenas a faculdade de questionar a das decisões administrativas que lhes digam respeito.
correcção da qualificação jurídica dos factos, mas a Nesta decisão não é tida em conta a grosseira
própria verificação dos factos”. Mais: “não surge como desproporção que consiste em cominar o cumprimento
razoável impor como contrapartida à “vantagem” que espontâneo posterior à prolação da decisão que condena
o arguido terá obtido, ao decidir proceder ao pagamento na prática de contraordenação, com a preclusão do
voluntário da coima, [...] o inconveniente de não poder direito a ver jurisdicionalmente discutida a legalidade
discutir a efectiva verificação dos factos [...]. Ora, da decisão administrativamente tomada quanto à prática
como a jurisprudência deste Tribunal (cf., entre outros, de infração, sobretudo quando anteriormente ou
os Acórdãos n.ºs 429/89 e 8/99) e a mais relevante simultaneamente a esse cumprimento tenha sido
doutrina têm reiteradamente afirmado, “o artigo 269.º, apresentado recurso jurisdicional da mesma decisão.
n.º 2 [actual artigo 268.º, n.º 4], da Constituição, pode Acresce que não são igualmente ponderadas as
e deve ser interpretado como estabelecendo uma inaceitáveis porque injustificadas diferenças de
garantia completa de recurso, quer dizer, uma garantia tratamento31 que se estabelecem entre os particulares
que assegura aos particulares a possibilidade de que procedam ao pagamento da coima dentro do
impugnarem judicialmente todos os actos singulares prazo de pagamento fixado pelo órgão administrativo
e concretos da Administração Pública que produzam que aplica a coima, e aqueles que o fazem no âmbito
efeitos jurídicos externos e sejam susceptíveis, portanto, do processo de execução fiscal. Discriminações
de lesar os seus direitos”, pelo que “quaisquer normas que são além do mais contrárias ao princípio da boa
legais que excluam esta possibilidade de impugnação administração que obriga a favorecer as soluções menos
relativamente a certos actos ou a certas categorias de burocráticas e mais eficientes do ponto de vista da
actos administrativos ou que restrinjam os possíveis menor litigiosidade e melhor gestão dos recursos
fundamentos de tal impugnação apenas a alguns dos públicos32.
29
Cfr. n.º 1 do artigo 172.º do CPA e n.º 1 do artigo 173.º
31
do CPTA. Cfr. artigo 13.º da CRP.
30 32
Cfr. n.º 1 do artigo 100.º da LGT. Cfr. artigo 5.º do CPA.
136
Não ver ou não querer ver? O estranho caso do “pagamento voluntário da coima”
determinado por ato de condenação em infração contraordenacional
33
Cfr. artigo 61.º, 70.º e 78.º do RGIT à semelhança, aliás,
do disposto no artigo 50.º-A do RGCO.
137
A dupla valoração normativa dos atos tributários
e o caso paradigmático do erro imputável aos serviços
Abstract: This text integrates the dogmatic from Constitutional Law and Admi-
nistrative Law, to reveal the peculiarities of the activity of application of subs-
tantive Tax Law norms in relation to other activities of the administration. It is
intended to show how the greater requirement of the reinforced principle of tax
legality with respect to the general principle of administrative legality – constitu-
tive of the typicality principle and to a certain extent justifying the autonomy of
Tax Law – leads to the non-degradation of the rights of taxpayers not affected by
the fundamental duty to pay taxes, into mere legally protected interests. Finally,
*
Advogado na SGFC Advogados. Mestre em Direito. Doutorando em Direito.
the consequence of this finding at the level of the tax procedure and process is
analyzed, especially with regard to the adequate understanding of the legal expres-
sion “error attributable to the services”.
1
Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 475-476.
2
Como ensinam Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 537 citando A.
Ferrer Correia em Lições de Direito Comercial, Vol III, 1975, p. 47, o ato tributário apresenta-se
como um ato abstrato, que ao cristalizar os direitos e deveres emergentes da obrigação de imposto
aos termos por ele declarados, ganha uma existência independente da situação material que lhe deu
origem. Esta qualidade, própria dos demais atos da administração, é-lhe atribuída, tanto na vertente
de abstração formal, traduzida na sua aptidão para desempenhar uma multiplicidade de funções, como
na sua vertente de abstração material, por via da qual o ato, uma vez praticado, passa a valer inde-
pendentemente dos factos que lhe deram origem e do fim por ele visado. A abstração material do
ato tributário é o que explica que depois da definição imperativa da tributação a realizar, a potencial
fluidez dos diferentes entendimentos que possam existir quanto aos elementos da relação material de
imposto passa a apenas poder ser invocada por referência à situação por ele declarada, que assim passa
a servir de centro de intersecção das diferentes posições jurídicas em jogo.
3
É como ato administrativo que a natureza instrumental do ato tributário releva, concretizando a
previsão legal abstrata nos casos individuais. O traço distintivo deste ato está na sua capacidade de
proceder, com efeitos jurídicos externos, à fixação global da situação jurídica complexa emergente
da obrigação tributária individual e concreta. Através dele, ambas as partes da relação tributária ficam
vinculadas aos termos por ele declarados, possibilitando aos contribuintes o comportamento libera-
tório das suas obrigações e a abertura das vias impugnatórias que visam assegurar a tutela jurisdicional
efetiva dos seus direitos e habilitando a administração a desencadear a execução coerciva do direito
de crédito à prestação nele fixada.
4
José Robin de Andrade, A Revogação dos Actos Administrativos, 2.ª ed., 1985, pp. 98-104.
5
A este propósito Paulo Otero Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 240, refere-se a
direitos subjetivos perfeitos, que serão aqueles que não podem ser condicionados ou enfraquecidos
por via de uma atuação administrativa preventiva ou condicionante, por oposição aos direitos enfra-
quecidos que designa por direitos subjetivos imperfeitos.
6
Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 456. Um exemplo clássico desta
compressão ou enfraquecimento de direitos é o direito do funcionário ao vencimento que resultará
enfraquecido face ao exercício do poder disciplinar de suspensão.
7
Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 521-522.
8
Que para todos os efeitos é a que passa a valer, exceto no domínio da discussão da legalidade do
ato tributário.
9
Cfr. ainda o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei n.º
67/2007 de 31 de dezembro.
por violação do seu artigo 103.º n.º 3. É certo que, com o decurso do prazo de
pagamento, a prestação de imposto torna-se imediatamente exigível, proceden-
do-se desde logo à sua execução coerciva, em conformidade com a estrutura
solve et repete do contencioso tributário. No entanto não só não existe qualquer
interesse público na tributação ilegalmente obtida, como a arrecadação ilegal de
tributos é contra esse mesmo interesse público, já que rompe o consentimento
estruturalmente necessário à sustentabilidade do Estado fiscal, colocando em
causa a paz social e o status quo político e prejudica valores essenciais da Cons-
tituição económica10.
Além disso, resultando o imposto num fenómeno impositivo de natureza
obrigacional, logo situado no plano do deve e do haver, a limitação do seu exer-
cício não deve ser feita através de uma passiva e genérica remissão ao direito de
propriedade privada, mas antes mediante o estabelecimento de limites ao exer-
cício desse mesmo poder. Apenas com a interposição, entre o direito de prote-
ção da esfera privada e o dever fundamental de pagar impostos, de um direito
fundamental11, como aquele formulado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, pode
adequadamente impedir-se que o direito do particular confrontado com uma
liquidação ilegal de imposto que decidiu pagar para obstar ao desencadear da
cobrança coerciva da dívida, se torne num direito enfraquecido, e se transforme
em interesse legalmente protegido.
Daí que o direito dos particulares a não serem tributados ilegalmente se
apresente estruturalmente como um direito subjetivo público, por se traduzir num
poder para a prossecução de interesses simultaneamente públicos e privados12
– já que nele se alinham a juridicidade ínsita no Estado de Direito e a neces-
sidade de proteger a esfera privada de abusos cometidos pela administração
no exercício de poderes fiscais13 –, que além do mais figura na Constituição
como direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garan-
tias previstas no catálogo (artigo 17.º da CRP) a não ser obrigado a pagar impostos
10
Como refere Alberto Xavier, Aspetos Fundamentais do Contencioso Tributário, 1972, pp. 100, o
abuso do poder tributário tem por efeito colocar uma parcela do património do particular em condi-
ções de não ser aproveitado em virtude do pagamento do imposto e consequentemente na privação
das utilidades decorrentes da subtração dessa parcela patrimonial.
11
Como defendem José Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, 5.ª ed., 2012, p. 81, Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed.,
2003, p. 405, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 3.ª ed., 2000, p. 151, José
Casalta Nabais, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, p. 186, nota 5, Saldanha Sanches,
O ónus da prova no processo fiscal, Lisboa, 1987, p. 5.
12
Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 6.ª ed., 1951, p. 168.
13
Esfera privada que, como vimos, é um pilar fundamental do princípio do Estado fiscal já que assenta
por sua vez na estruturação da economia como uma economia de mercado, livre e concorrencial.
1.4. Note-se que o ato tributário pode ser visto como conduta objetivamente
desconforme com o quadro legal que lhe corresponde, caso em que se diz que o
ato é ilegal. Mas a contradição do ato com a lei pode resultar de ele ser praticado
com violação de algum dever legal de com ela se conformar – seja ele um dever
instrumental ou o dever de respeito por direitos não enfraquecíeis dos particu-
lares – e nesse caso se diz que o ato além de ilegal é ainda ilícito14. Trata-se de
duas valorações autónomas da maior importância que podem incidir sobre o
mesmo ato: ao passo que a ilegalidade traduz um juízo de reprovação pela des-
conformidade do ato com a lei, a ilicitude é um juízo relativo a uma conduta
marcada por uma violação de um dever legal do agente que a praticou15. Pelo
que os atos ilegais da administração podem ser também ilícitos quando na sua
execução ocorreu preterição de algum dever legal.
A distinção entre os juízos de valor autónomos de ilegalidade e ilicitude
tem interesse quanto ao ato tributário por produzirem em regra consequências
diferentes: ao passo que a ilegalidade conduz à anulabilidade ou à declaração
de nulidade, a ilicitude conduz à responsabilidade civil e consequentemente à
obrigação de indemnizar. Assim, pode o ato ser desconforme com o quadro
legal que lhe corresponde e essa desconformidade não se dever à violação de
qualquer dever por parte do órgão que o pratica. No entanto, é preciso ter em
conta que, como se viu, os atos tributários ilegais são frequentemente ainda
14
Como a propósito se pode ler no n.º 1 do artigo 9.º do Lei 67/2007, de 31 de dezembro, “Con‑
sideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou
princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de
cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos”.
15
Alberto Xavier, Aspetos Fundamentais do Contencioso Tributário, 1972, pp. 99-101. No nosso orde-
namento a distinção resulta desde logo do artigo 9.º da Lei n.º 67/2007 de 31 de dezembro. Ver
ainda Soares Martinez, Filosofia do Direito, 2003, p. 555.
ilícitos por violação do dever de respeito pelo direito subjetivo público dos
particulares (n.º 1 do artigo 266.º da CRP), com a estrutura de uma liberdade
e natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (artigo 17.º da CRP), a
não pagar impostos inconstitucionais ou cuja liquidação e cobrança se não faça
nos termos da lei.
É este fenómeno de dupla valoração normativa dos atos tributários que permite
explicar a difícil consolidação dos atos anuláveis e o frequente dever de revisão
oficiosa do ato tributário16, mesmo depois de esgotados os meios previstos na
lei para a sua impugnação graciosa e/ou contenciosa. Este meio, a ser despo-
letado tanto a pedido dos contribuintes como por iniciativa da administração
permite reparar situações de injustiça grave ou notória, além de outras, em que
a administração pretenda ilegitimamente fazer-se prevalecer da consolidação de
situações originadas pela sua própria violação de deveres legais de conduta a que
se encontra adstrita no exercício da atividade administrativa.
Das considerações que antecedem resulta que o ato tributário pode ser des-
conforme com o quadro legal que lhe corresponde, sendo por isso ilegal, e essa
desconformidade não se dever à violação de qualquer dever por parte do órgão
que o pratica, não sendo por isso ilícito. É o caso dos atos praticados sem erro
imputável aos serviços, cuja desconformidade com a lei não resulta da inobser-
vância de qualquer dever por parte da administração (n.º 1 do artigo 43.º da
LGT). Por isso devem ser considerados ilegais, mas não ilícitos, os atos rela-
tivamente aos quais a administração não tenha violado qualquer dever, tendo
cumprido todas as formalidades exigidas por lei e procedido à sua aplicação de
acordo com o material probatório disponibilizado ao longo do procedimento,
e ainda assim, o seu ato conclusivo não reflete a situação material subjacente
resultando num ato discordante com a obrigação de imposto constituída.
É o que acontece nas situações de erro de facto na autoliquidação ou naque-
las em que esta não tenha sido efetuada de acordo com orientações genéricas
emitidas pela administração tributária, em que não haverá erro imputável aos
serviços, mas antes erro imputável ao contribuinte. Em ambos os casos, além
de a impugnação do ato dever ser obrigatoriamente precedida de reclamação
graciosa que permita o posterior reconhecimento e correção do erro praticado
pelo contribuinte (n.º 1 do artigo 131.º do CPPT), não haverá naturalmente
16
Como veremos adiante, “no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda
não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços” (n.º 1 do artigo 78.º da LGT).
17
Aliás nestes casos, em que se considera haver erro imputável aos serviços, e em que a ilegalidade da
autoliquidação decorre de matéria exclusivamente de Direito, os particulares são muito justamente
dispensados de apresentar reclamação graciosa necessária, pois não se justifica uma pronuncia obriga-
tória prévia da administração (n.º 3 do artigo 131.º do CPPT). A anterior redação do n.º 2 do artigo
78.º da LGT revogada pela al. h) do n.º 1 do artigo 215.º da Lei n.º 7-A/2016 de 30 de março, esta-
tuía que “Sem prejuízo dos ónus legais de reclamação ou impugnação pelo contribuinte, considera-se imputável
aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação”. Tratava-se de uma redação criticável
na medida em que naturalmente nem todos os erros da autoliquidação devam ser considerados erros
imputáveis aos serviços, mas apenas aqueles que possam ser reconduzidos à parcela do ato imputável à
administração. Por isso, somos de opinião que, de iure condendo, deverá a lei considerar expressamente
como imputável aos serviços para efeitos da sua revisão, a ilegalidade da autoliquidação nos casos
previstos no n.º 3 do artigo 131.º do CPPT, sem prejuízo desse entendimento ser atualmente possí-
vel à luz de uma defensável interpretação extensiva do artigo 78.º da LGT, como também entende
Paulo Marques, A Revisão do Acto Tributário, 2017, pp. 185-196.
18
José Maria Fernandes Pires (coord.), Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 2015, p. 360.
19
Ver jurisprudência assente do STA dos acórdãos de 29/10/2008 (proc. 622/08), de 21/01/2009
(proc. 0945/08), de 09/09/2009 (proc. 0369/09), de 04/11/2009 (proc. 665/09), de 08/06/2011
(proc. 0876/09), de 20/01/2010 (proc. 0942/09), de 07/09/2011 (proc. 416/11), de 30/05/2012
(proc. 410/12), de 02/12/2015 (proc. 01610/13), de 11/28/2018 (proc. 087/18.0BALSB). Veja-se
também o acórdão do TC n.º 83/2014, que sobre esta matéria também se pronunciou.
20
Jorge Lopes de Sousa, Código do Procedimento e de Processo Tributário, I, 2011, p. 532.
21
Artigo 22.º da CRP e Lei n.º 67/2007 de 31 de dezembro. A nosso ver, remeter os contribuin-
tes para a ação destinada a efetivar a responsabilidade civil extracontratual do Estado corresponde a
declarar a incapacidade do contencioso tributário para resolver os seus próprios problemas, além de
ser um entendimento contrário ao princípio da plenitude dos meios processuais, nos termos do qual
a todo o direito de impugnar corresponde o meio processual mais adequado de o fazer valer em
juízo (artigo 97.º n.º 2 da LGT). Além disso, é igualmente contrário ao princípio da tutela jurisdi-
cional efetiva (artigo 9.º da LGT, 96.º da CPPT e n.º 4 do artigo 268.º da CRP), pois não só impõe
custos acrescidos aos particulares, como leva aqueles que confiaram no procedimento tributário e
num sentido razoável da lei e mesmo assim as suas pretensões de juros indemnizatórios improcede-
ram com aquele fundamento, a verem mais tarde esgotado o prazo legal de recurso à ação, dado o
atual tempo de decisão dos tribunais administrativos e fiscais. Segundo José Manuel Sérvulo Cor-
reia e Mafalda Carmona, “O princípio pro actione no procedimento administrativo – Ac. do STA de
22.1.2004, p. 2064/03”, CJA, pp. 38 e segs., o princípio pro actione ou do favorecimento processual
impõe que, sendo as leis processuais um instrumento para a realização da justiça, devam evitar-se as
situações de denegação de justiça por excessivo formalismo. Além disso, como reiteram por diver-
sas vezes e muito bem ao longo da sua obra, Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade,
Contencioso Tributário, Vol. I, 2017, por exemplo a p. 518, a subsistência da dicotomia existente no
procedimento e processo tributário entre os meios administrativos e os meios formais tributários típi-
cos, dificulta a ação dos intervenientes incluindo a administração tributária e não adianta na proteção
dos contribuintes, bem pelo contrário.
22
Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade Contencioso Tributário, Vol. I, 2017, pp.
219-222.
23
Jesuíno Alcântara Martins e Costa Alves, Procedimento e Processo Tributário: uma perspetiva
prática, 2015, p. 69.
24
Paulo Marques, A Revisão Oficiosa do Acto Tributário, 2017, pp. 246-247.
25
A afirmação fácil de que a inobservância de formalidade essencial em determinado procedimento não
teve qualquer influencia no ato tributário, não deve levar-nos a esquecer que a concreta relevância
de formalidades essenciais apenas pode ser verdadeiramente avaliada depois de elas serem cumpridas.
29
Só fará sentido que o efeito da anulação respeite apenas ao reembolso em singelo do imposto inde-
vidamente prestado, sem que se admita a constituição do dever de indemnizar, caso se reconheça a
ilegalidade do ato, mas não a ilicitude da conduta imputável à administração, por violação de algum
dever legal a que esteja adstrita por ser a entidade legalmente encarregue da condução do procedi-
mento tributário. Ver Alberto Xavier, Aspetos Fundamentais do Contencioso Tributário, 1972, p. 100.
3. Conclusões
30
Por esta mesma razão são assimilados a erro imputável aos serviços, as situações previstas no n.º 3 do
artigo 43.º da LGT, em que são devidos juros indemnizatórios: “a) Quando não seja cumprido o prazo
legal de restituição oficiosa dos tributos; b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração
tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito; c) Quando a
revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se
o atraso não for imputável à administração tributária. d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que
declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a
liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.”. Nos dois primeiros casos está em
causa a violação do dever de imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida
a ilegalidade (artigo 100.º da LGT), no terceiro caso temos um atraso de tal ordem do cumprimento
do prazo legal de decisão, que o legislador a partir de certa altura começa a considerar injustificável,
passando por isso a ligar a erro imputável aos serviços (n.º 1 do artigo 56.º e n.º 1 do artigo 57.º da LGT).
Finalmente, no último caso o que está em causa é evidentemente a violação do dever de respeito
pelo direito subjetivo público dos contribuintes a apenas pagar impostos que hajam sido criados nos
termos da Constituição (n.º 3 do artigo 103.º da CRP).
31
Vinculações em que, dada a sua natureza de poderes-deveres, a administração não é livre no seu
exercício.
32
Estamos em crer encontrar-se por construir uma dogmática própria da ilegalidade dos atos tribu-
tários, tema que pensamos terá interesse ser abordado em texto autónomo.
33
Apesar do paralelismo evidente da expressão “injustiça grave ou notória” com a cláusula alemã das
nulidades por natureza, nenhuma das qualificações desencadeadores da revisão dos atos tributários
constitui causa de ilegalidade, não podendo por isso servir de base a qualquer teoria de invalidades
mistas. A primeira por se referir a “injustiça” e não a ilegalidade; e as expressões “erro imputável aos
serviços” e “duplicação de coleta” por serem na verdade causas de ilicitude, referindo-se à violação de
deveres de conduta por parte da administração no exercício das suas funções. Não obstante se con-
ceda que este tipo de violação pode não estar presente nos casos da “duplicação de coleta”, sempre que
esta se deva a negligencia do contribuinte, estamos em crer que mesmo nestes casos esta acabe por
se reconduzir a evidentes injustiças graves ou notórias.
1. A dupla valoração normativa dos atos tribu- como garantia da liberdade económica e pessoal.
tários Ora, foi precisamente para proteger estes bens que
entre o dever fundamental de pagar impostos e a
1.1. Um dos aspetos essenciais à apreensão da necessidade de proteção da esfera privada se inter-
relação jurídico-fiscal consiste na integração das li- pôs o direito em matéria fiscal, de natureza análoga
gações existentes entre a malha de normas que aos direitos, liberdades e garantias, a não “ser obri-
produzem efeitos no plano substantivo (normas de gado a pagar impostos que não hajam sido criados nos
decisão material) e as normas que regulam o exer- termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva
cício dos poderes-deveres procedimentais da Ad- ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da
ministração (normas de ação). Neste contexto, lei” (n.º 3 do art. 103.º da CRP).
devemos reconhecer a existência de uma dupla Não será assim de estranhar que as situações ju-
vinculação no plano da atividade administrativa rídicas instrumentais que se desenvolvem no campo
de imposição de tributos. É que esta deve não só do procedimento tributário visem tutelar não só as
respeitar a precedência e preeminência da lei [n.º posições ativas da Administração, mas também o
2 do art. 103.º e alínea i) do n.º 1 do art. 165.º da respeito pelos direitos dos administrados, a começar
Constituição da República Portuguesa (CRP)] e ser pela proteção da sua esfera patrimonial contra
orientada com vista à realização do interesse pú- quaisquer imposições que excedam o legalmente
blico da juridicidade da tributação (n.º 2 do art. exigido (1). No centro destes interesses temos o ato
266.º da CRP), entendido como critério geral de tributário, que, não obstante ter, como condição de
exercício dos poderes-deveres da Administração, validade, a sua conformidade com a relação material
como deve ainda respeitar os direitos subjetivos e subjacente, a verdade é que, para o futuro, é ele que
interesses legalmente protegidos dos particulares, passa a valer. É a sua abstração (2) que permite a cen-
direitos e interesses que aquela atividade é susce-
tível de enfraquecer (n.º 1 do art. 266.º e n.º 3 do art.
103.º da CRP). (1) ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário,
1972, pp. 475-476.
Com efeito, o pagamento de impostos assenta
(2) Como ensina ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto
num dever fundamental que dá resposta a um con- Tributário, cit., p. 537, citando A. FERRER CORREIA em Lições de Di-
junto de decisões tomadas pelo Estado quanto à reito Comercial, vol. III, 1975, p. 47, o ato tributário apresenta-se
preponderância de certas necessidades públicas como um ato abstrato, que, ao cristalizar os direitos e deveres
emergentes da obrigação de imposto aos termos por ele decla-
sobre as necessidades privadas. A satisfação das ne- rados, ganha uma existência independente da situação material
cessidades financeiras do Estado fiscal, por realizar- que lhe deu origem. Esta qualidade, própria dos demais atos da
se à custa de uma parcela do produto da economia, Administração, é-lhe atribuída, tanto na vertente de abstração
formal, traduzida na sua aptidão para desempenhar uma mul-
baseia-se no regular funcionamento do sistema eco- tiplicidade de funções, como na vertente de abstração material,
nómico. Sistema que, como é sabido, tem como pi- por via da qual o ato, uma vez praticado, passa a valer indepen-
lares fundamentais os direitos à propriedade dentemente dos factos que lhe deram origem e do fim por ele
visado. A abstração material do ato tributário é o que explica
privada e à livre iniciativa económica sintetizados que depois da definição imperativa da tributação a realizar, a
no direito à livre disposição dos bens próprios potencial fluidez dos diferentes entendimentos que possam
15
A dupla valoração normativa dos atos tributários – e o caso paradigmático do erro imputável aos serviços
tralização dos elementos da obrigação de imposto Acontece que, como nos ensina ALBERTO XAVIER,
necessários à determinação da prestação dela resul- sendo o ato tributário, por força do princípio da ti-
tante, num único suporte por todos conhecido, que picidade, estritamente vinculado, nele não se mani-
daí em diante passa a servir de referente do exercício festa qualquer poder de disposição que possa pro-
de direitos (3). vocar o enfraquecimento ou a degradação de direi-
tos subjetivos em meros interesses legalmente pro-
1.2. Ora, como é sabido, em geral, o legítimo tegidos. Isto porque, formando-se a obrigação de
exercício dos poderes da Administração através de imposto instantaneamente com a verificação dos fac-
atos administrativos envolve uma declaração sobre tos tributários, a dívida de imposto está constituída
o Direito do caso concreto, que frequentemente im- muito antes de o ato tributário ser praticado (7).
plica a compressão ou a degradação dos direitos No entanto – dizemos nós –, isto será assim se a
subjetivos dos particulares no mero interesse juri- factualidade declarada no ato corresponder à ver-
dicamente protegido quanto à legalidade desses dade material e tanto as normas aplicadas como as
atos (4). Neste sentido, fala-se em direito enfraque- operações realizadas de acordo com as mesmas es-
cido ou comprimido para designar o fenómeno de tiverem conformes com a lei e o Direito e forem
degradação de um direito subjetivo num interesse compatíveis com as demais normas do bloco legal.
protegido por lei à legalidade da decisão (5). Nestes A verdade é que isto nem sempre acontece,
casos, tais interesses tornam-se na posição jurídica sendo concebível que o ato declarativo de factos des-
simétrica ao ato de autoridade exercido, garan- conformes com a situação material subjacente venha
tindo apenas aos particulares o recurso a instru- a estabilizar-se na ordem jurídica pelo decurso dos
mentos de controlo da legalidade do exercício dos prazos de recurso aos meios de tutela da sua legali-
poderes da Administração (6). dade, consolidando a obrigação de imposto errada-
mente declarada no ato. Nestes casos, o ato tribu-
tário, ao produzir, por via da abstração, um efeito
existir quanto aos elementos da relação material de imposto de descolamento entre a realidade subjacente e a rea-
passa a apenas poder ser invocada por referência à situação por
ele declarada, que assim se torna no centro de interseção das di- lidade declarada (8), pode atingir a esfera jurídica do
ferentes posições jurídicas em jogo. contribuinte na parte que vai para além do recorte an-
(3) É como ato administrativo que a natureza instrumental do teriormente feito no âmbito da obrigação fiscal, em
ato tributário releva, concretizando a previsão legal abstrata nos
casos individuais. O traço distintivo deste ato está na sua capaci-
resultado da interseção entre facto e norma. Nestas
dade de proceder, com efeitos jurídicos externos, à fixação global situações, pode dizer-se que o ato tributário terá um
da situação jurídica complexa emergente da obrigação tributária efeito potencialmente constitutivo, na medida em que
individual e concreta. Através dele, ambas as partes da relação
jurídica tributária ficam vinculadas aos termos por ele declarados,
– salvo nos casos de nulidade – produzirá “efeitos ju-
possibilitando aos contribuintes o comportamento liberatório das rídicos, que podem ser destruídos com eficácia retroativa
suas obrigações e a abertura das vias impugnatórias que visam se o ato vier a ser anulado por decisão proferida pelos tri-
assegurar a tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos e habili-
bunais administrativos ou pela própria Administração”
tando a Administração a desencadear a execução coerciva do di-
reito de crédito à prestação nele fixada. [n.º 2 do art. 163.º do Código do Procedimento Ad-
(4) JOSÉ ROBIN DE ANDRADE, A Revogação dos Actos Adminis- ministrativo (CPA)], efeitos estes que o decurso dos
trativos, 2.ª ed., 1985, pp. 98-104.
prazos de impugnação graciosa e contenciosa em
(5) A este propósito, PAULO OTERO, Manual de Direito Admi-
nistrativo, vol. I, 2013, p. 240, refere-se a direitos subjetivos per- regra permite consolidar.
feitos, que serão aqueles que não podem ser condicionados ou Sucede que, mesmo nestes casos, esta degrada-
enfraquecidos por via de uma atuação administrativa preven-
ção de direitos dos particulares não ocorrerá, como
tiva ou condicionante, por oposição aos direitos enfraquecidos
que designa por direitos subjetivos imperfeitos.
(6) ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, cit.,
p. 456. Um exemplo clássico desta compressão ou enfraqueci- (7) ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, cit.,
mento de direitos é o direito do funcionário ao vencimento, que pp. 521-522.
resultará enfraquecido face ao exercício do poder disciplinar de (8) Que para todos os efeitos é a que passa a valer, exceto no
suspensão. domínio da discussão da legalidade do ato tributário.
16
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 35 • Janeiro/Março 2022
dá testemunho a possibilidade de acionamento da Daí que o direito dos particulares a não serem
responsabilidade civil do Estado (9) imposta pelo tributados ilegalmente se apresente estruturalmente
art. 22.º da CRP, no caso, por violação do seu art. como um direito subjetivo público, por se traduzir
103.º, n.º 3. É certo que, com o decurso do prazo de num poder para a prossecução de interesses simul-
pagamento, a prestação de imposto torna-se ime- taneamente públicos e privados (12) – já que nele se
diatamente exigível, procedendo-se desde logo à alinham a juridicidade ínsita no Estado de Direito e
sua execução coerciva, em conformidade com a es- a necessidade de proteger a esfera privada de abu-
trutura solve et repete do contencioso tributário. No sos cometidos pela Administração no exercício de
entanto, não só não existe qualquer interesse pú- poderes fiscais (13) –, que, além do mais, figura na
blico na tributação ilegalmente obtida, como a ar- Constituição como direito fundamental de natureza
recadação ilegal de tributos é contra esse mesmo análoga aos direitos, liberdades e garantias previstas
interesse público, já que rompe o consentimento es- no catálogo (art. 17.º), a não ser obrigado a pagar im-
truturalmente necessário à sustentabilidade do Es- postos inconstitucionais ou ilegalmente liquidados e pagos
tado fiscal, colocando em causa a paz social e o (n.º 3 do art. 103.º e art. 17.º da CRP).
status quo político e prejudica valores essenciais da
Constituição económica (10). 1.3. Donde, ao contrário do que muitas vezes
Além disso, resultando o imposto num fenó- sucede perante o exercício de poderes de autori-
meno impositivo de natureza obrigacional, logo si- dade, de degradação de direitos subjetivos em in-
tuado no plano do deve e do haver, a limitação do teresses legalmente protegidos, o exercício de
seu exercício não deve ser feita através de uma pas- poderes tributários não degrada ou enfraquece os
siva e genérica remissão ao direito de propriedade direitos subjetivos dos particulares à proteção da
privada, mas antes mediante o estabelecimento de parcela da sua esfera privada não afetada pelo con-
limites ao exercício desse mesmo poder. Apenas teúdo do dever fundamental de pagar impostos.
com a interposição, entre o direito de proteção da Porque limitando-se o ato tributário a proceder ao
esfera privada e o dever fundamental de pagar im- natural desenvolvimento da obrigação de imposto
postos, de um direito fundamental (11), como aquele previamente constituída, revelando e declarando a
formulado no n.º 3 do art. 103.º da CRP, pode ade- prestação apta a extingui-la por cumprimento, a es-
quadamente impedir-se que o direito do particular fera privada permanece, em geral, intacta. Além
confrontado com uma liquidação ilegal de imposto disso, o exercício de poderes tributários não de-
que decidiu pagar para obstar ao desencadear da grada o direito subjetivo dos particulares não
cobrança coerciva da dívida se torne num direito abrangido pelo seu dever fundamental de pagar
enfraquecido, e se transforme em interesse legal- impostos, porque aquele se encontra protegido por
mente protegido. um limite constitucional ao exercício dos poderes
tributários, instituído mediante atribuição aos par-
ticulares do direito fundamental a não pagar im-
(9) Cfr. ainda o Regime da Responsabilidade Civil Extracon-
tratual do Estado, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31/12. postos que não hajam sido criados nos termos da
(10) Como refere ALBERTO XAVIER, Aspectos Fundamentais do Constituição, que tenham natureza retroativa ou
Contencioso Tributário, 1972, p. 100, o abuso do poder tributário
cuja liquidação e cobrança se não faça nos termos
tem por efeito colocar uma parcela do património do particular
em condições de não ser aproveitado em virtude do pagamento da lei. Direito que, além de possuir um conteúdo
do imposto e consequentemente na privação das utilidades de- imediatamente vinculante da Administração, em
correntes da subtração dessa parcela patrimonial.
(11) Como defendem JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fun-
damentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª ed., 2012, p. 81; (12) MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 6.ª
GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ed., 1951, p. 168.
7.ª ed., 2003, p. 405; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitu- (13) Esfera privada que, como vimos, é um pilar fundamen-
cional, tomo IV, 3.ª ed., 2000, p. 151; JOSÉ CASALTA NABAIS, O Dever tal do princípio do Estado fiscal, já que assenta, por sua vez, na
Fundamental de Pagar Impostos, 1997, p. 186, nota 5; e SALDANHA estruturação da economia como uma economia de mercado,
SANCHES, O Ónus da Prova no Processo Fiscal, Lisboa, 1987, p. 5. livre e concorrencial.
17
A dupla valoração normativa dos atos tributários – e o caso paradigmático do erro imputável aos serviços
termos idênticos às demais normas que informam tos aprovados por leis válidas e constitucionais e
a sua atividade, permanece intacto perante qual- cujas liquidação e cobrança sejam feitas nos termos
quer ato de autoridade que o pretenda comprimir. da lei.
Pelo que, além do limite interno em que a juridi-
cidade da tributação se traduz, o exercício dos po- 1.4. Note-se que o ato tributário pode ser visto
deres tributários encontra ainda um limite externo como conduta objetivamente desconforme com o qua-
que será o direito fundamental previsto no n.º 3 do dro legal que lhe corresponde, caso em que se diz
art. 103.º da CRP. Esta constatação conduz-nos a re- que o ato é ilegal. Mas a contradição do ato com a
conhecer a existência de dois níveis de vinculação lei pode resultar do facto de ele ser praticado com
dos atos tributários: o da sua submissão à juridici- violação de algum dever legal de com ela se con-
dade tributária com vista à correta manifestação da formar – seja um dever instrumental ou o dever de
vontade funcional do legislador expressa no âmbito respeito por direitos não enfraquecíeis dos particu-
da sua reserva de lei parlamentar [n.º 2 do art. 266.º, lares – e, neste caso, diz-se que o ato, além de ilegal,
alínea i) do n.º 1 do art. 165.º e n.º 2 do art. 103.º da é ainda ilícito (14). Trata-se de duas valorações au-
CRP]; e o do dever de respeito pelos direitos subje- tónomas da maior importância que podem incidir
tivos dos particulares, onde se inclui a direta aplica- sobre o mesmo ato: ao passo que a ilegalidade tra-
ção do direito fundamental à legalidade na tribu- duz um juízo de reprovação pela desconformidade
tação (n.º 1 do art. 266.º, n.º 3 do art. 103.º, art. 17.º e do ato com a lei, a ilicitude é um juízo relativo a
n.º 1 do art. 18.º da CRP). uma conduta marcada por uma violação de um
Apesar de ambas as realidades constituírem afi- dever legal do agente que a praticou (15). Pelo que
nal expressões do mesmo princípio, mantendo entre os atos ilegais da Administração podem ser tam-
si inegáveis zonas de sobreposição, elas funcionam bém ilícitos quando na sua execução ocorreu pre-
como perspetivas parcelares da mesma realidade. A terição de algum dever legal.
primeira perspetiva está ao nível da prossecução das A distinção entre os juízos de valor autónomos
atribuições da Administração fiscal na medida em de ilegalidade e de ilicitude tem interesse quanto ao
que a parcela de interesse público que a lei lhe in- ato tributário por produzirem em regra consequên-
cumbe de prosseguir implica, como competência cias diferentes: ao passo que a ilegalidade conduz
das competências, a aplicação das normas de que à anulabilidade ou à declaração de nulidade, a ili-
depende a prossecução dessa mesma parcela de in- citude conduz à responsabilidade civil e consequen-
teresse público e consequentemente a conformidade temente à obrigação de indemnizar. Assim, pode o
e compatibilidade da sua atuação com a juridici- ato ser desconforme com o quadro legal que lhe
dade. Neste nível de vinculação, a Administração corresponde e essa desconformidade não se dever
deve exercer os seus poderes-deveres tributários no à violação de qualquer dever por parte do órgão
quadro de um procedimento imparcial marcado que o pratica. No entanto, é preciso ter em conta
pelo inquisitório com vista à descoberta da verdade que, como se viu, os atos tributários ilegais são fre-
material, de modo a que possa exprimir a necessária quentemente ainda ilícitos por violação do dever de
adesão do conteúdo dos seus atos às situações ma- respeito pelo direito subjetivo público dos particu-
teriais subjacentes a que se dirigem. A segunda pers-
petiva está ao nível do exercício das competências do (14) Como a propósito se pode ler no n.º 1 do art. 9.º da Lei
autor do ato, na medida em que os poderes funcio- n.º 67/2007, “[c]onsideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titula-
nais da Administração devem ser exercidos com res- res de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princí-
pios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de
peito pelos deveres legais que sobre si impendem, ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa
entre os quais se conta o dever de respeito pelos di- de direitos ou interesses legalmente protegidos”.
reitos subjetivos e interesses legalmente protegidos (15) ALBERTO XAVIER, Aspectos Fundamentais do Contencioso Tri-
butário, cit., pp. 99-101. No nosso ordenamento, a distinção re-
dos particulares, que, em matéria de impostos, in- sulta, desde logo, do art. 9.º da Lei n.º 67/2007. Ver, ainda, SOARES
cluem o direito fundamental a apenas pagar impos- MARTINEZ, Filosofia do Direito, 2003, p. 555.
18
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 35 • Janeiro/Março 2022
lares (n.º 1 do art. 266.º da CRP), com a estrutura de É o que acontece nas situações de erro de facto
uma liberdade e natureza análoga aos direitos, li- na autoliquidação ou naquelas em que esta não
berdades e garantias (art. 17.º da CRP), a não pagar tenha sido efetuada de acordo com orientações ge-
impostos inconstitucionais ou cujas liquidação e co- néricas emitidas pela Administração Tributária, em
brança se não façam nos termos da lei. que não haverá erro imputável aos serviços, mas
É este fenómeno de dupla valoração normativa dos antes erro imputável ao contribuinte. Em ambos os
atos tributários que permite explicar a difícil con- casos, além de a impugnação do ato dever ser obri-
solidação dos atos anuláveis e o frequente dever de gatoriamente precedida de reclamação graciosa
revisão oficiosa do ato tributário (16), mesmo depois que permita o posterior reconhecimento e a corre-
de esgotados os meios previstos na lei para a sua ção do erro praticado pelo contribuinte [n.º 1 do art.
impugnação graciosa e/ou contenciosa. Este meio, 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tri-
a ser despoletado tanto a pedido dos contribuintes butário (CPPT)], não haverá naturalmente lugar a
como por iniciativa da Administração, permite re- juros indemnizatórios. O legislador vai neste mesmo
parar situações de injustiça grave ou notória, além sentido ao determinar, no n.º 2 do art. 43.º da LGT,
de outras, em que a Administração pretenda ilegi- que se considere “haver erro imputável aos serviços nos
timamente fazer-se prevalecer da consolidação de casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com
situações originadas pela sua própria violação de base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no
deveres legais de conduta a que se encontra ads- seu preenchimento, as orientações genéricas da adminis-
trita no exercício da atividade administrativa. tração tributária, devidamente publicadas” (17).
19
A dupla valoração normativa dos atos tributários – e o caso paradigmático do erro imputável aos serviços
conduzir à anulação do ato (18), tem-se entendido (19), Geral Tributária atribua uma indemnização baseada
quanto a nós erradamente, que o erro imputável aos em presunção e não faça idêntica atribuição nos
serviços que fundamenta o direito a juros indemni- casos em que a ilegalidade cometida não implique
zatórios refere-se apenas ao erro sobre os pressupos- a ilegalidade material da própria prestação. Isto sem
tos de facto ou ao erro sobre os pressupostos de que, acrescenta, “na sequência de uma anulação deri-
Direito. Assim, têm os nossos tribunais superiores vada de vício procedimental ou de forma ou incompetên-
entendido que a anulação de um ato de liquidação cia, o contribuinte que se sinta lesado nos seus direitos
fundada unicamente em vício formal da responsa- patrimoniais esteja legalmente impedido de exigir judi-
bilidade da Administração não implica a existência cialmente a reparação a que se julgue com direito”, em
de erro de que resulte pagamento da dívida tribu- ação destinada a efetivar a responsabilidade civil ex-
tária em montante superior ao devido. Deste modo, tracontratual do Estado (21).
têm ficado excluídos do direito a juros indemniza- No mesmo sentido vão SERENA CABRITA NETO e
tórios casos como os de violação do direito de parti- CARLA CASTELO TRINDADE, entendendo que “não faz
cipação dos particulares ou de desconsideração dos sentido indemnizar o contribuinte que sempre teria de
elementos novos carreados para o procedimento proceder ao pagamento do tributo e só tem direito à de-
pelo particular, em violação do princípio da desco- volução da quantia paga por razões que ultrapassam o
berta da verdade material. Trata-se de casos em que, ato subjacente” (22). Segundo estas Autoras, serão de
quanto a nós, se verificam ilegalidades que são tam- afastar quaisquer dúvidas relativas à constitucio-
bém ilicitudes, porque imputáveis a condutas reali- nalidade desta solução, porque apesar do direito
zadas em violação de deveres de conduta por parte
da Administração e do dever de respeito pelas ga- (21) Art. 22.º da CRP e Lei n.º 67/2007, de 31/12. A nosso ver,
rantias dos contribuintes, todos naturalmente com remeter os contribuintes para a ação destinada a efetivar a res-
ponsabilidade civil extracontratual do Estado corresponde a de-
potencial influência direta sobre o resultado do pro- clarar a incapacidade do contencioso tributário para resolver os
cedimento. seus próprios problemas, além de ser um entendimento contrário
Em defesa daquela tese, JORGE LOPES DE SOUSA (20) ao princípio da plenitude dos meios processuais, nos termos do
qual a todo o direito de impugnar corresponde o meio processual
refere, quanto aos vícios de forma resultantes da vio- mais adequado de o fazer valer em juízo (art. 97.º, n.º 2, da LGT).
lação de normas que regulam a atividade da Admi- Além disso, é igualmente contrário ao princípio da tutela juris-
nistração, que deles “não implica que tenha havido lesão dicional efetiva (n.º 1 do art. 9.º da LGT, n.º 1 do 96.º do CPPT e
n.º 4 do art. 268.º da CRP), pois não só impõe custos acrescidos
da situação jurídica substantiva”. Para este autor, nos aos particulares, como leva aqueles que confiaram no procedi-
casos em que há a certeza que a prestação patrimo- mento tributário e num sentido razoável da lei, e mesmo assim
nial foi indevidamente exigida, isto é, naqueles em as suas pretensões de juros indemnizatórios improcederam com
aquele fundamento, a verem mais tarde esgotado o prazo legal
que ocorre a anulação de um ato tributário por não
de recurso à ação com aquele fundamento, dado o atual prazo
se verificarem os pressupostos de facto ou de Direito de decisão dos tribunais administrativos e fiscais. Segundo JOSÉ
em que deva assentar, compreende-se que a Lei MANUEL SÉRVULO CORREIA/MAFALDA CARMONA, “O princípio pro
actione no procedimento administrativo – Ac. do STA de
22.1.2004, P. 2064/03”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 44,
Março/Abril de 2004, pp. 38 e segs., o princípio pro actione ou do
(18) JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES (coord.), Lei Geral Tributária favorecimento processual impõe que, sendo as leis processuais
Comentada e Anotada, 2015, p. 360. um instrumento para a realização da justiça, devam evitar-se as
(19) Ver jurisprudência assente do Supremo Tribunal Admi- situações de denegação de justiça por excessivo formalismo.
nistrativo nos Acórdãos de 29/10/2008 (proc. 0622/08), de 21/1/2009 Além disso, como reiteram por diversas vezes e muito bem ao
(proc. 0945/08), de 9/9/2009 (proc. 0369/09), de 4/11/2009 (proc. longo da sua obra SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRIN-
0665/09), de 20/1/2010 (proc. 0942/09), de 8/6/2011 (proc. 0876/09), DADE, Contencioso Tributário, vol. I, 2017, por exemplo, na p. 518,
de 7/9/2011 (proc. 0416/11), de 30/5/2012 (proc. 0410/12), de a subsistência da dicotomia existente no procedimento e processo
12/2/2015 (proc. 01610/13), e de 28/11/2018 (proc. 087/18.0BALSB) tributário entre os meios administrativos e os meios formais tri-
(disponíveis em www.dgsi.pt). Veja-se ainda o Acórdão do Tribunal butários típicos dificulta a ação dos intervenientes, incluindo a
Constitucional n.º 83/2014, que sobre esta matéria também se pro- Administração Tributária, e não adianta na proteção dos contri-
nunciou (disponível em www.tribunalconstitucional.pt). buintes, bem pelo contrário.
(20) JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Pro- (22) SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Conten-
cesso Tributário, I, 2011, p. 532. cioso Tributário, vol. I, cit., pp. 219-222.
20
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 35 • Janeiro/Março 2022
previsto no n.º 3 do art. 103.º da CRP, a não atribui- em si, da declaração do Direito nele contida, mas
ção de juros indemnizatórios não constitui uma antes do modo como ele é praticado. O erro tem
aceitação da legalidade de atos de liquidação que lugar quando, no decurso de um procedimento de
padecem de vícios formais. Estas Autoras citam tomada de decisão, o seu autor viola um qualquer
ainda JESUÍNO ALCÂNTARA MARTINS e JOSÉ COSTA dever a que esteja obrigado. Nestes casos, o ato não
ALVES, referindo que a anulação de um ato tributá- só é desconforme com a lei, como deve sofrer a con-
rio com fundamento em caducidade do direito à li- sequência associada à circunstância de ter sido pro-
quidação “não implica a existência de qualquer erro duzido com violação de um dever legal.
sobre os pressupostos de facto ou de direito” (23). No E do ato ilegal por vício de forma não se diga
mesmo sentido, PAULO MARQUES entende que o não produzir desconformidade entre a prestação
erro imputável aos serviços “cinge-se às situações em por ele declarada e a relação jurídica tributária que
que está afetada a definição da relação tributária entre lhe serve de base, por duas ordens de razão. Em
as partes, designadamente a existência de casos em que primeiro lugar, porque as formalidades legalmente
o fisco cobra uma prestação tributária com carácter in- exigidas servem para assegurar adequados pa-
devido, o que não será o caso de existir o vício de incom- drões de segurança jurídica, mas também para que
petência ou de forma” (24). exista concordância entre a prestação declarada no
ato e a relação tributária subjacente. Defender que
2.2. Tomada de posição a sua preterição não significa que a prestação tri-
butária não seja indevida, equivale a declarar a ir-
2.2.1. Não podemos acompanhar estas teses. O relevância da sua integração no procedimento legal
exercício de um poder depois de decorrido o prazo de produção de atos tributários. Depois, porque
de caducidade, além de ser ilegal e por isso anulá- basta a simples possibilidade de a preterição de tais
vel por vício de incompetência relativa, é ainda ilí- formalidades influir na decisão final, para que a re-
cito e por isso gerador de responsabilidade pelos ceção de tais atos na ordem jurídica deva ser pura
danos causados, por violar o dever de respeitar o e simplesmente rejeitada, uma vez que não estão
direito subjetivo público do contribuinte (arts. 55.º asseguradas as mínimas condições de fidedigni-
da LGT, 4.º do CPA e n.º 1 do art. 266.º da CRP) a dade exigidas por lei. É o que resulta do regime da
apenas pagar impostos cuja liquidação seja feita anulabilidade, aplicável aos atos praticados com
nos termos da lei (n.º 3 do art. 103.º da CRP). Além ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas
disso, a culpa é presumida na prática de atos jurí- aplicáveis (art. 163.º, n.º 1, do CPA) e da própria
dicos ilícitos (n.º 2 do art. 10.º da Lei 67/2007, de Constituição, ao declarar no n.º 3 do seu art. 103.º
31/12), presunção que é precisamente função do que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos
n.º 1 do art. 43.º da LGT assegurar. cujas liquidação e cobrança se não façam nos ter-
Mas recuemos um pouco: a determinação do mos da lei. E se o contribuinte, confrontado com
sentido e do alcance da expressão erro imputável aos um ato praticado nestas condições, pagar a dívida
serviços não tem que ver com a conveniência ou de maneira a evitar a sua cobrança coerciva, estará
falta dela quanto ao pagamento de juros indemni- em todo o caso a realizar um pagamento indevido da
zatórios nos casos de pagamento indevido da pres- prestação tributária (n.º 1 do art. 43.º da LGT).
tação tributária por força de atos anulados por Ora, os poderes-deveres de natureza formal estão
vícios formais. ligados ao procedimento precisamente devido à sua
O erro consiste numa forma incorreta de tomar natureza instrumental quanto ao seu ato conclusivo.
uma decisão. Não se trata de uma qualidade do ato É para garantir que o ato tributário reproduza fiel-
mente a situação material subjacente que o legisla-
(23) JESUÍNO ALCÂNTARA MARTINS/JOSÉ COSTA ALVES, Procedi- dor nele integra determinadas formalidades que
mento e Processo Tributário: uma perspetiva prática, 2015, p. 69.
reputa de essenciais. E reputa-as de essenciais pela re-
(24) PAULO MARQUES, A Revisão Oficiosa do Acto Tributário, cit.,
pp. 246-247. levância potencial que essas formalidades podem ter
21
A dupla valoração normativa dos atos tributários – e o caso paradigmático do erro imputável aos serviços
no apuramento de casos concretos, sem as quais a rejeitada tout court, além de ser qualificada como
fiabilidade dos seus atos conclusivos, sobretudo em aquilo que é: um erro imputável aos serviços.
procedimentos massificados como são os procedi-
mentos tributários, não pode ser garantida (25). 2.2.2. Ademais, o risco da ilegalidade dos atos
Como exemplos desta relevância temos o direito da Administração, por preterição de formalidades
dos contribuintes à participação nas decisões que consideradas essenciais (27), influir substancial-
lhes digam respeito, que se justifica à luz do princí- mente no ato conclusivo do procedimento, deve
pio do contraditório, mas também do princípio da correr por conta da Administração e não dos parti-
descoberta da verdade material, já que ninguém se culares. Como nota RUI DUARTE MORAIS, o entendi-
encontra em melhor posição do que o contribuinte mento doutrinal e jurisprudencial atrás descrito
para aportar ao procedimento elementos relevantes tem por efeito a antecipação ilegal e artificial do
ao completo apuramento da obrigação de imposto. vencimento da obrigação tributária nos casos em
Temos ainda o prazo de caducidade do poder-dever que o pagamento tenha sido realizado com vista a
de liquidação de tributos (26), porque além do direito obstar a diligências de cobrança, uma vez que,
que os particulares devem ter a alguma estabiliza- vindo a liquidação a ser anulada por vício de
ção das suas relações com a Administração, devem forma, o imposto apenas se tornará exigível depois
ainda ter a segurança de saber que não lhes serão de emitido um segundo ato tributário sem a parte
exigidos impostos muitos anos após a verificação viciada (28). Esta antecipação do momento em que
dos factos que lhes deram origem. É que o decurso se vence a prestação tributária declarada em ato
de um determinado prazo torna inaceitáveis os fac- produzido com erro exclusivamente imputável à
tos apurados, desde logo pela maior dificuldade da Administração é evidentemente uma restrição ile-
sua contraprova. gítima do direito dos contribuintes a não pagar im-
Todas estas exigências legais têm finalidades postos cuja liquidação se não faça nos termos da lei
bem definidas, a começar pelo objetivo de garantir (n.º 3 do art. 103.º da CRP), sendo causadora de pre-
que o ato resultante do procedimento reflita a fac- juízos (art. 22.º da CRP), que naturalmente devem
tualidade efetivamente verificada, e assim exprima ser ressarcidos.
realmente a vontade funcional do legislador. Pelo Assim, o erro é uma qualificação que se refere ao
que, ainda que se pretenda defender, segundo um modo como o ato é produzido, e será imputável aos servi-
juízo de prognose póstuma, que a preterição destas for- ços quando esse erro lhes deva ser atribuído. Enten-
malidades não afeta o resultado final da atividade der esta expressão de outro modo implica descon-
administrativa de gestão fiscal, bastará a mera sus- siderar a presunção de que o legislador se soube ex-
cetibilidade ou potencial de afetar a decisão final to- primir em termos adequados (art. 9.º, n.º 3, do Có-
mada no procedimento para que a mesma deva ser digo Civil, aplicável ex vi do n.º 1 do art. 11.º da
LGT). Mas mesmo aqui, aquelas teses falham o alvo,
porque a ratio que se encontra por detrás do uso da
(25) A afirmação fácil de que a inobservância de formalidade
essencial em determinado procedimento não teve qualquer in- expressão erro imputável aos serviços que encontra-
fluência no ato tributário não deve levar-nos a esquecer que a con- mos no procedimento tributário resulta da distinção
creta relevância de formalidades essenciais apenas pode ser
entre atos que apenas são ilegais e atos que além de
verdadeiramente avaliada depois de elas serem cumpridas. Além
de que, em procedimentos de massa, as formalidades essenciais ilegais são ainda ilícitos por violação de um dever
são estabelecidas precisamente para obstar aos elevados custos legal a cargo da Administração. Pois ao passo que a
associados ao estabelecimento de procedimentos que não as ob-
servem. Finalmente, como escrevem ANTUNES VARELA/J. MIGUEL
BEZERRA/SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 1985,
p. 390, o erro na forma de processo deve envolver uma inutilização
de todos os atos praticados na medida em que dela resulte uma di- (27) Pela lei, pela Constituição e por resultarem de direitos
minuição das garantias de defesa. dos particulares.
(26) Que, como vimos, constitui uma garantia dos contri- (28) RUI DUARTE MORAIS, Manual de Procedimento e de Processo
buintes sujeita a reserva de lei parlamentar. Tributário, 2016, p. 372.
22
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 35 • Janeiro/Março 2022
ilegalidade é causa de invalidade, a ilicitude conduz à proteção da sua esfera privada perante a atuação
ao dever de indemnizar (29). da Administração violadora de deveres legais que
Não temos dúvidas que, violando a Adminis- sobre si impendem tornar-se-ia num direito enfra-
tração um dever a que está obrigada na produção quecido, em violação do n.º 3 do art. 103.º da CRP e
de um ato tributário, comete um erro que pode ser do direito ao ressarcimento do prejuízo causado
imputado aos serviços. Se na sequência desse erro for pela restrição ilegítima do seu direito (art. 22.º da
realizado o pagamento indevido da dívida tributá- CRP, aplicável por remissão do seu art. 17.º).
ria, então deve o contribuinte ser indemnizado pelo Constatamos, assim, que uma das particulari-
período que o montante prestado esteve indevida- dades do direito dos impostos é a circunstância de
mente entregue a quem a ele não tinha, nessa al- este ser em grande medida informado pelo direito
tura, direito. Não indemnizar os contribuintes que fundamental previsto no n.º 3 do art. 103.º da CRP.
paguem indevidamente imposto cuja liquidação se Particularidade de tal modo significativa que im-
não faça nos termos da lei corresponde a obrigar os pede o direito dos particulares à proteção da sua
contribuintes a proceder ao seu pagamento, em esfera privada e à livre disposição dos seus bens de
clara violação do n.º 3 do art. 103.º da CRP. É a Ad- se converter em direito enfraquecido em conse-
ministração e não os contribuintes quem deve su- quência do exercício de poderes de autoridade ad-
portar o custo resultante das ilicitudes que lhe são ministrativa na declaração de direitos tributários,
imputáveis. Se a ilicitude não influi na exigibili- transformando-o em simples interesse legalmente
dade a final da prestação tributária, a Administra- protegido, e sujeitando as condutas que os violem
ção terá a possibilidade de o demonstrar quando ou restrinjam ao regime geral e particular aplicável
praticar o ato sem a parte viciada, e será então, aos direitos, liberdades e garantias.
tarde e não cedo, devido a erro imputável aos ser-
viços, que a dívida tributária deverá ser exigida. 3. Conclusões
Do mesmo modo que, quando retardada a liqui-
dação de parte ou da totalidade do imposto devido Podemos agora apreciar como o exercício de po-
por facto imputável ao sujeito passivo, são devidos deres tributários não degrada o direito subjetivo
juros compensatórios (n.º 1 do art. 35.º da LGT), dos particulares à proteção da parcela da sua esfera
quando, por alguma razão imputável à violação de privada não afetada pelo conteúdo do dever funda-
um dever legal da Administração, haja de restituir- mental de pagar impostos. Primeiro, porque limi-
se ao contribuinte algum montante por este indevi- tando-se o ato tributário a proceder ao natural
damente pago, deve entender-se existir erro impu- desenvolvimento da obrigação de imposto previa-
tável aos serviços gerador da obrigação de paga-
mento de juros indemnizatórios (n.º 1 do art. 43.º da
LGT) (30). A não ser assim, o direito do contribuinte nota de crédito; c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do
contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o
atraso não for imputável à administração tributária; d) Em caso de de-
(29) Só fará sentido que o efeito da anulação respeite apenas cisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitu-
ao reembolso em singelo do imposto indevidamente prestado, cionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que
sem que se admita a constituição do dever de indemnizar, caso se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respec-
se reconheça a ilegalidade do ato, mas não a ilicitude da conduta tiva devolução.”. Nos dois primeiros casos está em causa a violação
imputável à Administração, por violação de algum dever legal a do dever de imediata e plena reconstituição da situação que existiria se
que esteja adstrita por ser a entidade legalmente encarregue da não tivesse sido cometida a ilegalidade (n.º 1 do art. 100.º da LGT); no
condução do procedimento tributário. Ver ALBERTO XAVIER, As- terceiro caso temos um atraso de tal ordem do cumprimento do
petos Fundamentais do Contencioso Tributário, cit., p. 100. prazo legal de decisão, que o legislador, a partir de certa altura,
(30) Por esta mesma razão são assimiladas a erro imputável começa a considerar injustificável, passando por isso a ligar a erro
aos serviços as situações previstas no n.º 3 do art. 43.º da LGT, imputável aos serviços (n.º 1 do art. 56.º e n.º 1 do art. 57.º da LGT);
em que são devidos juros indemnizatórios: “a) Quando não seja finalmente, no último caso, o que está em causa é, evidentemente,
cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos; b) Em caso a violação do dever de respeito pelo direito subjetivo público dos
de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, contribuintes a apenas pagarem impostos que hajam sido criados
a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nos termos da Constituição (n.º 3 do art. 103.º da CRP).
23
A dupla valoração normativa dos atos tributários – e o caso paradigmático do erro imputável aos serviços
mente constituída, a esfera privada permanece em pressão legal erro imputável aos serviços resulta da dis-
geral intacta; depois, porque esta encontra-se prote- tinção entre atos que apenas são ilegais e aqueles
gida por um limite constitucional ao exercício dos que além de ilegais são ainda ilícitos por violação de
poderes tributários, instituído mediante atribuição um dever legal a que a Administração está adstrita.
aos particulares do direito fundamental que, além O encerramento por decurso do tempo dos di-
de possuir um conteúdo imediatamente vinculante ferentes meios impugnatórios dos atos tributários
da Administração, em termos idênticos às demais em geral pode ter o mesmo efeito que a constitui-
normas que informam a sua atividade, permanece ção de direitos sobreponíveis às relações jurídicas
intacto perante atos de autoridade que o pretendam previamente constituídas ou, na ausência destas, a
comprimir. direitos dos particulares. Mas como a juridicidade
Pelo que os atos tributários estão condicionados tributária é reforçada por um direito de natureza
por dois níveis de vinculação: o da correta expressão análoga, repugna-lhe que a sanação da ilegalidade
da legalidade tributária com vista à correta manifes- dos atos tenha lugar por mero decurso do tempo.
tação da vontade funcional do legislador expressa Sendo por isso que, no procedimento tributário, o
no âmbito da sua reserva de lei parlamentar [n.º 2 esgotamento dos prazos previstos na lei para o re-
do art. 266.º, alínea i) do n.º 1 do art. 165.º e n.º 2 do curso a certos meios impugnatórios em muitos
art. 103.º da CRP]; e o do cumprimento das vincula- casos não preclude o direito a mais tarde suscitar a
ções legais de que depende o exercício das posições apreciação da ilegalidade dos atos tributários.
jurídicas ativas da Administração, sejam as que se Não significa isto qualquer aproximação ao re-
impõem por força do interesse público no exercício gime da nulidade, já que, apesar de em certos casos
da função administrativa (31), sejam as que decorram a ilegalidade dos atos tributários poder ser arguida
da obrigação de respeito pelos direitos subjetivos muito depois de decorrido o prazo de reclamação
dos particulares, onde se inclui a aplicação direta ou de impugnação, a regra continua a ser a da sua
do direito fundamental a não pagar impostos in- anulabilidade, o que significa que, em regra, os atos
constitucionais ou ilegalmente liquidados e cobra- em discussão produzirão efeitos jurídicos, que
dos (n.º 1 do art. 266.º, n.º 3 do art. 103.º, art. 17.º e podem ser destruídos com eficácia retroativa, caso
n.º 1 do art. 18.º da CRP). venham a ser anulados por decisão proferida pelos
O ato tributário está, assim, sujeito a duas valo- tribunais ou pela própria Administração. Além
rações autónomas de desconformidade face ao qua- disso, o pedido de revisão oficiosa do ato tributário
dro legal que lhe corresponde: o ato será ilegal por está condicionado à existência, não de ilegalidade,
estar em contradição com a lei, vício que conduz à mas de erro imputável aos serviços, de duplicação
anulabilidade ou à declaração de nulidade, e será de coleta ou de injustiça grave ou notória (33).
ainda ilícito se for praticado com violação de algum
dever legal a que a Administração estiver sujeita,
caso em que a desconformidade é conducente à res-
ponsabilidade civil e à obrigação de indemnizar (32). (33) Apesar do paralelismo evidente da expressão injustiça
O erro consiste numa forma incorreta de tomar uma grave ou notória com a cláusula alemã das nulidades por natu-
reza, nenhuma das qualificações desencadeadores da revisão
decisão e será imputável aos serviços quando lhes
dos atos tributários constitui causa de ilegalidade, não podendo,
deva ser atribuído. A ratio que está por detrás da ex- por isso, servir de base a qualquer teoria de invalidades mistas.
A primeira por se referir a injustiça e não a ilegalidade; e as ex-
pressões erro imputável aos serviços e duplicação de coleta por serem,
na verdade, causas de ilicitude, referindo-se à violação de deve-
(31) Vinculações em que, dada a sua natureza de poderes- res de conduta por parte da Administração no exercício das suas
-deveres, a Administração não é livre no seu exercício. funções. Não obstante se conceda que este tipo de violação pode
(32) Estamos em crer encontrar-se por construir uma dog- não estar presente nos casos da duplicação de coleta, sempre que
mática própria da ilegalidade dos atos tributários, tema que esta se deva a negligência do contribuinte, estamos em crer que
pensamos haver interesse desenvolver em trabalho a publicar mesmo nestes casos esta acabe por se reconduzir a evidentes in-
futuramente. justiças graves ou notórias.
24
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 35 • Janeiro/Março 2022
Nestes termos, o prazo de consolidação definitiva Esgotados estes prazos, a relação material de
dos atos tributários não coincide com o esgotamento imposto, tal como se encontra configurada no ato
dos prazos para a sua impugnação administrativa tributário ilegal, em princípio consolida-se, em vir-
ou contenciosa, sempre que a ilegalidade resulte de tude da caducidade do poder de praticar o ato tri-
erro imputável aos serviços ou dê origem a situações butário sem a ilegalidade cometida, exceto nos casos
de injustiça grave ou notória, caso em que a discus- de nulidade (n.º 3 do art. 102.º do CPPT).
são da legalidade do ato ainda pode ter lugar no âm-
bito do acionamento da revisão oficiosa do ato
tributário, em regra desencadeado antes do decurso JOSÉ AVILEZ OGANDO
de quatro anos após a liquidação, ou a todo o tempo,
se o tributo ainda não tiver sido pago.
25
ESTRUTURA E CONTEXTO ATUAL DAS RELAÇÕES
JURÍDICO-FISCAIS
Resumo: Com este texto pretende dar-se uma perspectiva geral sobre a
complexa estrutura das relações jurídico-fiscais, identificando os seus principais
traços característicos e contextualizando os diversos fenómenos que se verificam
no seu âmbito. Identifica-se direitos e obrigações integrados no núcleo material
dessas relações, e na sua periferia um âmbito mais amplo de natureza formal,
onde podem ser identificadas três ordens de múltiplos outros direitos e deveres.
Proceder-se-á por fim a uma breve análise da atual alteração de paradigma
quanto a estas relações, originada pelos avanços tecnológicos e dos próprios
desenvolvimentos técnicos do moderno Direito Fiscal.
Palavras-chave: Relações jurídico-fiscais; Obrigação de imposto; Gestão do
risco fiscal.
1
Mestre em Direito. Advogado na “SGFC e Associados”. Doutorando em Direito.
1. Preliminares
2
JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, p. 148 e segs..
3
Artigo 2º nº. 1 do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de dezembro, que aprova a orgânica da
Autoridade Tributária e Aduaneira.
4
Esta evolução e aumento de complexidade coexistem com a proliferação legislativa que se
faz sentir particularmente em matérias fiscais, que resultam tanto de causas internas ao fenómeno
tributário, tais como o combate à fraude e evasão fiscais e às inovações no campo das práticas de
planeamento fiscal, como de causas que lhe são externas, tais como a incorporação de normas im-
postas no contexto da integração europeia e as crises financeiras recentemente sentidas pelos Estados
pressionando os sistemas fiscais a serem mais eficazes e produtivos. Estes fatores contribuíram para
o aumento da densidade dos regimes legais existentes, como para a necessidade de coexistência de
tributos cada vez mais numerosos.
5
Como refere OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil Teoria Geral, Vol. III, 2002, p. 51, “a relação
jurídica não é fenómeno privativo do Direito das Obrigações”. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em
Geral, vol. I, 9ª ed., 1996, p. 29, reconhece a influência dos quadros lógicos do direito das obrigações
na fixação e fundamentação das soluções, na sistematização das matérias e principalmente na trans-
posição dos elementos facultados pela interpretação e integração das leis para o plano dogmático em
vários setores do Direito, incluindo no Direito Público, “especialmente no Direito Fiscal, quanto à relação
tributária”.
6
SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 1995, 7ª ed., p. 161 e ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, Princí-
pios de Direito Fiscal, 3ª ed., 1985, p. 170.
7
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2012, p. 67. Contra a
utilização deste conceito para explicar o fenómeno tributário insurgiu-se PESSOA JORGE, Curso de
Direito Fiscal, Lisboa, 1964, pp. 134-136, afirmando não ver “que esse conceito possa ser de utilidade na
técnica jurídico-fiscal, por reunir realidades profundamente heterogéneas: não há uma relação jurídica fiscal,
há várias, tantas quantos os vínculos que ligam o Estado aos contribuintes e a todas as outras pessoas que
tenham deveres de carácter fiscal.”. Apesar de reconhecer que “a aplicação da técnica da relação jurídica à
obrigação de imposto teve (…) vantagens, pois permitiu mostrar que ela obedece, nas suas linhas fundamentais,
à estrutura da relação jurídica creditória e que, consequentemente, é possível aplicar-lhe, em larga medida,
as conclusões do estudo científico desta (…) a técnica da relação jurídica, contemplando a obrigação numa
perspetiva estática, não permite apreender a sua verdadeira fisionomia, que é essencialmente dinâmica, porque
não permite acompanhá-la na sua evolução, surpreendê-la no seu desenvolvimento e compreender as fases por
que atravessa, e que, justamente no campo do Direito Fiscal, apresentam especialidades de assinalar.”. Não
obstante concordar-se com PESSOA JORGE, quando refere que não existe uma relação jurídica fiscal
mas sim várias, julga-se que a relação obrigacional de imposto é útil para enquadrar uma certa zona
do fenómeno fiscal, não dispensando a sua arrumação no quadro mais vasto daquilo a que o legisla-
dor designa genericamente por relações jurídico-tributárias (artigo 1º da LGT), onde já será possível
compreender a integração das suas dimensões obrigacional e administrativa.
8
Como notam JOAQUIM FREITAS DA ROCHA e HUGO FLORES DA SILVA, Teoria Geral da
Relação Jurídica Tributaria, 2017, p. 31, além de ampla, esta noção não define o conceito, limitando-se a
referir o que se deve considerar como relações jurídico-tributárias. Por outro lado não é rigorosa porque
nem todas as relações “estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singula-
res e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas” devem considerar-se em rigor, relações
jurídico-tributárias, como parece ser o caso da obrigação a cargo da Autoridade Tributaria de forne-
cer dados informativos relativos à liquidação e cobrança de impostos municipais e às transferências
de receitas à Associação Nacional de Municípios (artigo 17º, nº. 6 da RJAFL).
9
Esta norma põe fim à antiga controvérsia que ocupou a doutrina no século passado e que já
estava em grande medida ultrapassada quando em 1972 ALBERTO XAVIER publicou a sua disserta-
ção Conceito e Natureza do Ato Tributário.
ser alterados por vontade das partes” (artigo 36º, nº. 2 da LGT)10, pretende alargar
o conceito às relações tributárias instrumentais ou adjetivas, estabelecidas entre a
administração fiscal e os particulares, no âmbito dos diversos procedimentos
previstos nas normas de Direito tributário formal.
10
Ver ainda na LGT, as disposições relativas aos regimes subsidiariamente aplicáveis (artigo
2º), à personalidade tributária (artigo 15º), à legitimidade no procedimento tributário (artigo 65º). En-
contramos ainda referências à relação tributária na Constituição, onde se estabelece que aos tribunais
administrativos e fiscais compete dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e
fiscais (artigo 212º, nº. 3), no CPPT, a respeito da legitimidade para desencadear certos procedimentos
(artigo 95º-B), no ETAF a propósito da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal
para decidir sobre questões suscitadas no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo
4º, nº. 1, al. a)), no RJAT onde a relação tributária é referida a propósito dos efeitos da decisão arbitral
(artigo 24º, nº. 1, al. a)) e no RGIT onde se faz referência a obrigações emergentes da relação jurídico-
-tributária (artigo 124º).
11
ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, Lições, 2ª ed., 2017, p. 90; SALDANHA SANCHES,
Manual de Direito Fiscal, 2ª ed. pp. 129 e segs.; SÉRGIO VASQUES, Manual, de Direito Fiscal, 2ª ed., 2018,
p. 379 e segs.; JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, pp. 231 e segs.; MANUEL PIRES e
RITA CALÇADA PIRES, Direito Fiscal, 4ª ed., 2010, pp. 217 e segs.; AMÉRICO BRÁS CARLOS, Impostos,
Teoria Geral, 2006, p. 53 e segs.; MANUEL FREITAS PEREIRA, Fiscalidade, 3ª ed., 2009, pp. 249 e segs.;
ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, Princípios de Direito Fiscal, vol. I, 3ª ed., 1985, pp. 167 e segs.; VASCO
VALDEZ, “A Constituição e as normas fiscais. Noção de imposto e taxa. A relação jurídica tributária”, Lições de
Fiscalidade, vol. I – princípios gerais e fiscalidade interna, coord. João Ricardo Catarino/Vasco Branco
Guimarães, 6ª ed., 2018, pp. 179 e segs.; JÓNATAS MACHADO e PAULO NOGUEIRA DA COSTA,
Manual de Direito Fiscal, Perspetiva Multinível, 2016, pp. 227 e segs.; SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal,
1995, 7ª ed., p. 162; VÍTOR FAVEIRO, Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, I. Vol., Introdução
ao Estudo da Realidade Tributária, Teoria Geral do Direito Fiscal, 1984, p. 356 e segs..
12
Como ensina JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil Teoria Geral, Vol. III, 2002, p.
48, as relações jurídicas complexas são aquelas cujo conteúdo é composto por múltiplas posições de
poder ou dever. A generalidade da Doutrina vê porém a relação jurídica complexa como conjunto
de vínculos emergentes do mesmo facto jurídico ou, como refere JOÃO DE CASTRO MENDES, Teo-
ria Geral do Direito Civil, vol. I, 1978, p. 77, um “conjunto de relações travadas entre as mesmas pessoas,
unificadas por um fator especial, maxime o derivarem do mesmo facto jurídico”. No mesmo sentido, JOÃO
ANTURES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 1996, p. 65 e MÁRIO ALMEIDA COSTA, Direito
das Obrigações, 12ª ed., 2013, p. 73. Estamos com JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil Teoria
Geral, Vol. III, 2002, p. 49, que considera este critério insuficiente, já que um mesmo facto pode dar
origem a mais de uma relação e uma relação pode ser originada por mais de um facto, preferindo
caracterizar a relação jurídica complexa como aquela em que múltiplas posições de poder ou dever
são juridicamente organizadas de modo unitário.
13
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2012, p. 68. Como muito
recentemente considerou o Pleno do STA no seu acórdão de 04/18/2018 (proc. 046/18), na sua essên-
cia, a relação jurídica tributária é uma subespécie da relação jurídica administrativa, “conclusão que
resulta do facto de um dos sujeitos daquela relação estar integrado na Administração e de, por isso, ao menos
mediatamente, a mesma ter natureza administrativa e ser, subsidiariamente, regulada por normas de direito ad-
ministrativo (art.º 2.º/c) da LGT). Por ser assim é que, por um lado, a lei fala em competências administrativas
no domínio tributário (n.º 3 do art.º 1.º da LGT) e, por outro, o legislador teve grande preocupação em definir
com rigor o conceito de relação jurídica tributária e de identificar as entidades que, em nome da Administração,
nelas podiam intervir”.
14
Como é exemplo clássico a obrigação de entrega de declaração periódica de rendimentos (ar-
tigos 60º do código do IRS e artigo 120º do código do IRC). Para um apanhado destas obrigações, ver
JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, pp. 236 e segs.; FREITAS PEREIRA, Fiscalidade,
3ª ed., 2009, pp. 253-260. De notar ainda que a al. c) do nº. 2 do artigo 8º da LGT, inclui a definição das
obrigações acessórias como igualmente abrangida pelo princípio reforçado de legalidade tributária,
juntamente com diversos outros aspetos definidores da obrigação fiscal, como a incidência, a taxa,
os benefícios fiscais, as garantias dos contribuintes, a definição dos crimes fiscais, o regime geral das
contraordenações fiscais, entre outros.
15
Artigo 71º, nº. 1, al. a) e artigo 99º, nº. 1 do código do IRS. Outro exemplo é a obrigação a
cargo de notários, conservadores, secretários judiciais, secretários técnicos de justiça e entidades e
profissionais, de comunicar a relação dos atos por si praticados e das decisões transitadas em julgado no mês
anterior dos processos a seu cargo que sejam suscetíveis de produzir rendimentos sujeitos a IRS (artigo 123º
do código do IRS) e as obrigações previstas no artigo 49º do código do IMT a cargo dos notários e
outros profissionais.
16
Artigo 20º da LGT, em que “por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente
do contribuinte” e se efetiva “através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido” pelo devedor
principal, sempre que a lei assim o determine.
17
Como refere ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, Lições, 2ª ed., 2017, p. 73, no direi-
to alemão a responsabilidade tributária distingue-se claramente da obrigação tributária. Segundo
ANTUNES VARELA isto deve-se à conceção em tempos corrente na doutrina daquele país quanto
à natureza das obrigações, vendo-a como uma relação complexa integrada por dois elementos: o
débito (Schuld) e a responsabilidade (Haftung). Para uma apreciação crítica sobre as teorias Schuld und
2.3. Porém, estas considerações não nos devem levar a qualificar como
acessórios da obrigação de imposto, todos os deveres de colaboração instituídos
pelas leis fiscais19. Neste sentido, devem ser considerados como deveres formais
autónomos da obrigação principal, os deveres gerais de colaboração e os deveres
funcionais de comunicação, sobretudo nos casos em que o não cumprimento
desses deveres não implique qualquer responsabilidade fiscal substantiva20. São
disso exemplo as obrigações fiscais acessórias sem correspondência direta com
a obrigação fiscal, a cargo do próprio sujeito passivo, que apenas apresentam
Hafung, e refutação de tais conceções no contexto da discussão sobre a natureza jurídica da obrigação,
ver ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª ed., 1996, pp. 148-157.
18
Não se diga, como parece defender JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, p.
242, que a relação jurídica fiscal se desdobra na relação de imposto e em várias relações jurídicas acessó-
rias de carácter formal, com diversos conteúdos e diferentes intervenientes, pois como ensina SOARES
MARTINEZ, Direito Fiscal, 7ª ed., 1995, p. 170, na linha aliás de ANTUNES VARELA, Das Obrigações
em Geral, vol. I, 9ª ed., 1996, p. 125, a relação obrigacional de imposto permite acomodar toda a sorte
deveres secundários destinados a preparar o cumprimento, a assegurar a realização da prestação ou
ainda os relativos às prestações substitutivas (responsabilidade subsidiária) ou complementares (juros
moratórios), pelo que os deveres acessórios se integram, juntamente com a obrigação principal, na
relação material de imposto.
19
SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 1995, 7ª ed., p. 169. Para a confusão terminológica con-
tribuem diversas disposições legais, sobretudo da LGT, que além de procurar encobrir sob o mesmo
manto da relação jurídica tributária, simultaneamente realidades integradas na obrigação de imposto e
outras que não o estão. Um claro exemplo disso é a noção legal de obrigações acessórias (artigo 31º, nº.
2 da LGT), que parece abranger simultaneamente obrigações secundárias e muitas outras que não o
são, já que todas elas visam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto.
20
Não fornecendo o legislador uma definição legal de imposto que é entre nós um conceito desenvolvido
pela doutrina e pela jurisprudência, e admitindo como o fazem DIOGO LEITE DE CAMPOS e MÓNICA
LEITE DE CAMPOS, Direito Tributário, 1996, p. 23, SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 1995, 7ª ed.,
pp. 29-29, ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, Princípios de Direito Fiscal I, 3ª ed., 1985, pp. 36-37 e ALBERTO
XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p 38, que o imposto possa envolver prestações de
facere e de non facere, dever-se-á questionar até que ponto muitas destas prestações deverão ser con-
sideradas acessórias, sobretudo quanto àquelas que, não sendo integráveis no esquema da obrigação
de imposto, consistam na prestação de um serviço, logo sendo suscetíveis de avaliação pecuniária.
Nestes casos estaremos certamente perante verdadeiras e próprias prestações de carácter patrimonial,
unilaterais, definitivas, coativas e sem carácter de sanção, destinadas a satisfazer as necessidades financeiras do
Estado e outras entidades públicas. Apesar de poder argumentar-se em sentido contrário com a redação
do artigo 40º da LGT, onde se estabelece que “as prestações tributárias são pagas em moeda corrente ou
por cheque, débito em conta”, a verdade é que essa disposição não parece excluir a possibilidade de
existirem outros tipos de prestações.
relevância para o sistema fiscal no seu conjunto e que por isso não podem, sem
algum contorcionismo, integrar-se na figura da relação jurídico-fiscal21; e ainda
as obrigações a cargo de terceiros sem correspondência direta com a obrigação
fiscal22, relativamente às operações em que intervenham no exercício da sua
atividade.
Como veremos de seguida, as situações jurídicas emergentes do fenómeno
tributário são de vária ordem, não sendo possível reconduzi-las a todas a uma ou
a várias obrigações de imposto23, mas antes serem entendidas como integrantes
de uma atividade que envolve procedimentos de fiscalização e aplicação das
normas fiscais, a que se designa por atividade de gestão fiscal.
3. As relações jurídico-tributárias
21
São exemplos destas obrigações acessórias sem correspondência direta com a obrigação tributária
a cargo do próprio sujeito passivo, a obrigação de obtenção de número de identificação fiscal (artigo 3º do
Decreto-Lei nº. 14/2013 de 28 de janeiro), a obrigação de comunicação da mudança de domicílio fiscal (nº. 3
do artigo 19º LGT e nº. 1 do artigo 43º do CPPT) e a obrigação de nomeação de representante fiscal (nº. 6 do
artigo 19º da LGT).
22
É o caso da obrigação do notário de exigir ao cedente em operação de trespasse, certidão
comprovativa da inexistência de dívidas tributárias ou do comprovativo da comunicação da opera-
ção de trespasse ao serviço periférico (nºs. 1 e 2 do artigo 82º do CPPT).
23
Como notam a propósito MANUEL PIRES e RITA CALÇADA PIRES, Direito Fiscal, 4ª ed.,
2010, p. 218, a relação jurídico-tributária, com a obrigação tributária no seu centro não permite en-
quadrar todos os deveres de colaboração resultantes das leis fiscais, designadamente aqueles que não
apresentam uma ligação direta a uma obrigação tributária específica. Referem que ao passo que a re-
lação jurídica será o esquema indicado para situações jurídicas correspondentes, o procedimento per-
mite a concatenação de situações jurídicas não correspondentes, como com grande frequência sucede
no Direito tributário. De acordo com os mesmos autores, a “relação jurídica parece não poder compreender
o fenómeno do imposto na sua globalidade. Para esse efeito, o conceito de procedimento é mais adequado. Não
se afirma que não deva ser estudada a obrigação fiscal, visto não poder esquecer-se a sua importância (…) mas
não se pode também esquecer todas as outras situações subjetivas resultantes do imposto e a visão unitária que
o procedimento permite.”.
24
ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 544.
25
Para FREITAS PEREIRA, Fiscalidade, 3ª ed., 2009, pp. 249-250, é possível ver neste conjunto
de direitos e deveres em que se desdobra a relação jurídica fiscal, duas áreas bem distintas: uma zona
central ou nuclear e uma outra circundante ou periférica. A primeira diz respeito à obrigação de im-
posto e integra o direito à prestação pecuniária em que essa obrigação se concretiza e o corresponden-
te dever de a prestar bem como outros direitos e deveres dela derivados sem autonomia em relação
àquela. Na zona periférica, encontram-se os direitos e deveres destinados a garantir e a controlar a
obrigação principal e a que designamos por obrigações ou deveres fiscais acessórios.
26
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed. p. 132.
27
Exceto nos casos dos impostos sem liquidação, caracterizados pela ausência de um ato ad-
ministrativo que determine o montante do imposto a pagar, por este estar fixado na lei, como era o
caso do antigo imposto de selo pago por estampilha. ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, Finanças Públicas e
Direito Financeiro, 1990, pp. 281-282, fala em três momentos em que se realiza a aplicação do imposto:
a determinação da matéria coletável, a liquidação e a cobrança: “Se estes três momentos existem em todos
os impostos, nalgum deles, porém, devido à mecânica adoptada na sua aplicação, os dois primeiros como que se
confundem no tempo, por se efectuarem simultaneamente a determinação da matéria coletável e a liquidação.
Noutros ainda, quando a lei fixa directamente o montante eventual do imposto, não há, propriamente, lugar
a tais operações, porquanto as mesmas foram realizadas pelo legislador, ao estabelecer ele próprio o montante
concreto e efectivo da colecta.”.
28
Como referem JÓNATAS MACHADO e PAULO NOGUEIRA DA COSTA, Manual de Direito
Fiscal, Perspetiva Multinível, 2016, p. 65, isto deve-se ao problema do “free rider” ou do parasitismo
social, em que as partes no contrato social procuram maximizar os seus benefícios, minimizando
ao mesmo tempo os seus custos procurando evitar ou evadir o cumprimento das suas obrigações
tributárias.
29
JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 2017, p. 233. No mesmo sentido, DIOGO LEITE DE
CAMPOS e MÓNICA LEITE DE CAMPOS, Direito Tributário, 1996, p. 178-179 e ALBERTO XAVIER,
Conceito e natureza do Acto Tributário, 1972, p. 510.
30
DIOGO LEITE DE CAMPOS, As três fases dos princípios fundamentantes do direito tributário,
ROA, I, 67, (2007), p. 73.
31
A expressão “cumprimento voluntário” é um oximoro frequentemente utilizado pela Autori-
dade Tributária significando cumprimento espontâneo ou não provocado dos comportamentos impostos
pelas leis fiscais. Ver por todos o relatório de atividades desenvolvidas pela Autoridade Tributária
“Combate à Fraude e Evasão Fiscais e Aduaneiras”, 2017, Gabinete do SEAF, Junho de 2018.
32
Como refere SALDANHA SANCHES, “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento Admi-
nistrativo e a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão
Teles, I, 2003, p. 870, criticando a ineficiência deste modelo de gestão fiscal “a possibilidade de uma
pronúncia expressa e clara da administração fiscal em todas as relações sujeito ativo/sujeito passivo se tinha um
carácter utópico mesmo na época do Estado mínimo é completamente impensável na época do Estado fiscal”.
5.2. Esta alteração de paradigma, ao exigir que a aplicação normal da lei fiscal
caiba cada vez mais aos particulares, exige que o legislador adeque o conteúdo
das leis fiscais à sua aplicação massificada e as revista de acrescidas exigências de
33
SALDANHA SANCHES “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento Administrativo
e a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles, I,
2003, pp. 854-856. Deste modo, as empresas elaboram o seu balanço comercial calculam o lucro fiscal
e as tributações autónomas, liquidam o imposto, comunicam-no à administração e entregam-no nos
cofres do Estado através de várias formas de pagamento antecipado, a maior parte das vezes sem
qualquer intervenção da administração. Além disso, ainda servem de serviços periféricos da adminis-
tração retendo na fonte vários tributos relativos às operações em que intervêm: às remunerações que
pagam aos seus trabalhadores retêm o IRS, às transmissões de bens e prestações de serviços cobram
o IVA que depois de deduzir o suportado nas aquisições entregam nos cofres do Estado, liquidam
o imposto de selo devido pelas suas operações, o IUC das suas viaturas e o IMI dos seus imóveis.
Com o imposto quase sempre pago antecipadamente, a regra passa a ser o reembolso dos montantes
avançados à cabeça pelo sujeito passivo. Com o aumento da complexidade das declarações a entre-
gar, este reembolso tende a aumentar ou a diminuir à razão da familiaridade dos contribuintes com
o preenchimento dos formulários e com as leis fiscais.
34
SALDANHA SANCHES “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento Administrativo
e a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles I, 2003,
p. 855.
35
Como refere SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, p. 36, a clareza
das leis fiscais é uma expressão da reserva de lei parlamentar.
36
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2002, pp. 36-37.
3
da necessidade de uma cláusula geral de nulidade. dos atos da administração
qual o princípio da legalidade não pode conviver, mesmo descendência dos nossos tribunais, aliás documen-
em nome da segurança e da estabilidade, como acontece tada por diversos autores (9), não só impede uma
com o regime-regra da anulabilidade” (4). operância minimamente consistente do regime da
Como igualmente refere Vieira de andrade, a nulidade nos casos em que ela se impõe, como tem
construção legal da nulidade foi criada a pensar permitido, em virtude dos potenciais efeitos cons-
nos atos administrativos que regulam situações ju- titutivos das decisões ilegais da administração, a
rídicas que envolvem direitos e interesses legal- distribuição de efeitos provisórios à discrição,
mente protegidos dos particulares. neste âmbito, assim erigindo a atuação contra legem da adminis-
visa assegurar a proteção de importantes interesses tração em autêntica fonte de direito.
substantivos individuais como forma de consolidar
valores do estado de direito democrático no con- 1.2. a isto acresce a eliminação da cláusula geral
texto das relações jurídicas de direito Público (5). que permitia considerar nulos por natureza os atos
donde, apesar de ser por todos apontada como um administrativos viciados por ilegalidades especial-
tipo excecional de invalidade, ela deve ser vista mente graves, fora das situações tipificadas na lei.
como a resposta normal da lei quanto a condutas daqui resulta que, dando-se o caso de ser praticado
decisórias invulgarmente grosseiras e ilegais (6), ex- ato portador de vício de ilegalidade de tal modo
primindo a intolerância da produção de efeitos grave que ponha em causa os fundamentos do sis-
quanto a atos contendo vícios graves que ponham tema jurídico (10) e não se preenchendo qualquer
em causa os fundamentos do sistema jurídico (7). das cláusulas de nulidade taxativamente previstas
acontece que, apesar do repetido reconheci- na lei, o intérprete seja fatalmente conduzido à
mento que os nossos tribunais fazem, em abstrato, aplicação do regime regra da anulabilidade (n.º 1
do regime da nulidade, continuam a revelar uma do art. 163.º do CPa) (11). donde resultaria a pro-
incapacidade patológica para a sua aplicação aos
casos concretos que o justifiquem, em favor de um
desproporcional e generalizado favorecimento da
regra da anulabilidade, suscetível de vulnerabili- (9) Paulo otero, Legalidade e Administração Pública, 2003, pp.
zar, de forma desrazoável, interesses dignos de 532 e segs., dinaMene de Freitas, O Acto Administrativo Incons-
proteção, cuja violação pode pôr em causa os fun- titucional, 2010, pp. 207 e segs., andré salgado de Matos e João
taborda da gaMa, “o prazo para exercício do direito à resti-
damentos do sistema jurídico. neste sentido, deve- tuição de emolumentos notariais indevidamente cobrados”, Fis-
mos ter em conta o reverso daquilo a que Vieira de calidade, 2002, 9, p. 131, tiago serrão, “a nulidade do acto
andrade apelida de dureza do regime puro da nuli- inconstitucional”, Estudos de Direito Público, 2011, pp. 231 e 239
e segs.
dade (8), e considerar antes a dureza que a generali- (10) deve colocar-se a questão da constitucionalidade desta
zação da regra da anulabilidade pode representar solução, desde logo pela sua incompatibilidade com vários as-
para a administração da justiça. esta excessiva con- petos do princípio reforçado da juridicidade tributária, na me-
dida em que o interesse público da proteção da integridade da
ordem jurídica do estado de direito pode exigir que aquele
deva sobrepor-se aos valores da segurança jurídica e das neces-
sidades de estabilização dos atos da administração. Por outro
lado, como chama à atenção José Casalta nabais, “a respeito
(4) Como nota José Vieira de andrade, “a nulidade admi- da invalidade do ato tributário”, RLJ, ano 148, n.º 4013, p. 90, a
nistrativa, essa desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 339, ci- tal pode exigir princípio da igualdade, na medida em que o di-
tando o ac. do sta de 17/2/2004 (proc. 1572/02). reito a uma tutela jurisdicional efetiva resulte degradado em re-
(5) José Vieira de andrade, “a nulidade administrativa, essa lação a atos que apesar de materialmente afetados por uma
desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 338. ilegalidade muito grave, o legislador não os qualifique expres-
(6) excecionais serão as condutas grosseiramente ilegais da samente como tais.
administração e não as respostas da lei para as repelir. (11) Como refere liCínio loPes Martins, “a invalidade do
(7) Paulo otero, Direito do Procedimento Administrativo, vol. acto administrativo no novo Código do Procedimento admi-
i, 2016, p. 633. nistrativo: as alterações mais relevantes”, Comentários ao Novo
(8) José Vieira de andrade, “a nulidade administrativa, essa Código do Procedimento Administrativo, vol. ii, Carla aMado
desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 344. goMes, ana Fernanda neVes e tiago serrão (coord.), 3.ª ed.,
4
Justiça adMinistratiVa n.º 147 • Julho/setembro 2021
dução de efeitos provisórios desse ato e a susceti- no entanto, a Constituição projeta efeitos vin-
bilidade, durante um curto espaço de tempo, de culativos sobre as opções do legislador em matéria
tais efeitos serem destruídos com eficácia retroativa de regulamentação das invalidades da conduta ad-
(n.º 2 do art. 163.º do CPa), período findo o qual o ministrativa (14). entre estes destaca-se a nosso ver
ato poderia tornar-se inimpugnável, estabilizando- a existência de uma cláusula que permita estender
-se definitivamente. a nulidade a atos que, pela agressão que represen-
ora, o estabelecimento da anulabilidade como tam, não mereçam outra forma de invalidade, o
desvalor-regra sem que exista um critério de segu- que se impõe por em casos-limite ser a única que
rança, que permita reconduzir as ilegalidades mais permite à administração rejeitar “soluções manifes-
graves e evidentes com as quais o princípio da le- tamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de
galidade não possa razoavelmente conviver, signi- Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das
fica atribuir à partida efeitos jurídicos a todos atos normas jurídicas e das valorações próprias do exercício
ilegais da administração não previamente confi- da função administrativa” (art. 8.º do CPa) (15).
gurados expressamente pelo legislador como casos donde a eliminação da cláusula geral da nuli-
de nulidade, independentemente da sua gravida- dade, ainda que justificada por uma indemons-
de (12). não parece que isto seja sustentável do trada e genérica ponderação em favor dos estafa-
ponto de vista da proteção do estado de direito, já dos princípios da segurança jurídica e da tutela da
que a nulidade dos atos administrativos em casos confiança, introduz rigidez ao sistema, retira aos
não expressamente previstos não pode ser excluída tribunais poder de conformação do direito aos
à partida (13), concebendo-se decisões administra- casos concretos a que se impõem, e cria desigual-
tivas de tal modo incompatíveis com a ideia de di- dades de tratamento em casos de semelhante gra-
reito, que mesmo os valores da segurança e da vidade. não é aliás admissível que a atribuição de
certeza se oponham à possibilidade de produção efeitos a condutas administrativas contrárias à ju-
de efeitos provisórios e à sua consolidação por de- ridicidade fique exclusivamente ao critério do le-
curso de tempo, próprios da anulabilidade. gislador, sem que seja dado aos tribunais a possibi-
lidade – e por via dela, a responsabilidade – de
ponderar a solução mais adequada sobretudo em
casos excêntricos, em que a atribuição de efeitos
2016, pp. 295-296, seria desejável a manutenção de uma cláusula
geral de último recurso para resolver eventuais lacunas legais provisórios e a sua estabilização sejam inadmissí-
relativamente a situações em que a sanção da nulidade se justi- veis e conduzam a resultados incongruentes e in-
fique, sobretudo tendo em conta que vários dos casos de nuli- toleráveis (16).
dade hoje constantes do art. 161.º foram precisamente o resul-
tado de experiências jurisprudenciais e contributos doutrinais aliás uma das condições elementares de coerên-
em torno da interpretação da cláusula geral de nulidade. cia do sistema jurídico é a de que o controlo subs-
(12) não obstante a eliminação da cláusula geral de nulidade
ter sido acompanhada da inclusão de vários novos casos de ví-
cios conducentes à nulidade, José Casalta nabais, “a respeito
da invalidade do ato tributário”, RLJ, ano 148, n.º 4013, p. 90,
considera juridicamente inaceitável a possibilidade de existirem
situações de extrema gravidade cuja única resposta aceitável à (14) Paulo otero, Direito do Procedimento Administrativo, vol.
luz do princípio do estado de direito seria a nulidade e pelo i, 2016, p. 615.
facto de não se enquadrarem no elenco de vícios descritos no (15) liCínio loPes Martins, “a invalidade do acto adminis-
art. 161.º, n.º 2, do CPa, devam ser reconduzidos à consequência trativo no novo Código do Procedimento administrativo: as al-
precária da anulabilidade. terações mais relevantes”, Comentários ao Novo Código do
(13) Como defendem andré salgado de Matos e João ta- Procedimento Administrativo, vol. ii, Carla aMado goMes, ana
borda da gaMa, “o prazo para exercício do direito à restituição Fernanda neVes e tiago serrão (coord.), 3.ª ed., 2016, p. 293.
de emolumentos notariais indevidamente cobrados”, Fiscali- no mesmo sentido, andré salgado de Matos, “a invalidade
dade, 2002, 9, p. 127, a sanação dos atos anuláveis por decurso do acto administrativo no projecto de revisão do Código do Pro-
do tempo característica da anulabilidade é proibida pela Cons- cedimento administrativo”, CJA, n.º 100, 2013, p. 50.
tituição quanto aos atos administrativos que aplicam normas (16) Paulo otero, Direito do Procedimento Administrativo, vol.
inconstitucionais. i, 2016, p. 614.
5
da necessidade de uma cláusula geral de nulidade. dos atos da administração
tantivo dos atos da administração não apresente li- blico e com respeito pelos direitos e interesses le-
mitações formais, permitindo ao julgador reconhe- galmente protegidos dos cidadãos.
cer a nulidade de atos portadores de vícios que, no que em particular diz respeito ao relaciona-
apesar de não expressamente previstos, sejam de mento dos atos da administração com a Constitui-
tal modo graves que não possam ser rececionados ção, a realização do direito envolve a interpretação
pelo sistema jurídico. Pelo que uma cláusula geral das disposições legais aplicáveis em conformidade
de nulidade assente no princípio da proporciona- com a lei Fundamental (n.º 3 do art. 3.º da CrP), a
lidade ou no critério da gravidade e evidência, sua execução com respeito pela vinculação direta
constante da lei alemã (17), permitiria o acesso a um aos direitos, liberdades e garantias (n.º 2 do art. 18.º
instrumento jurídico impeditivo da produção de da CrP), e a ponderação de soluções à luz dos
efeitos provisórios. além disso, permitiria impedir princípios jurídicos fundamentais, à cabeça dos
a consolidação desses atos por efeito do decurso do quais se encontram os da proporcionalidade e da
tempo, nos casos em que estes possam revelar-se igualdade (art. 13.º e n.º 2 do art. 266.º da CrP).
mais danosos do que a insegurança jurídica even- apesar de o sistema de fiscalização da consti-
tualmente provocada pela aplicação do regime da tucionalidade apenas abranger normas que infrin-
nulidade. jam o disposto na Constituição ou os princípios
nela consignados (n.º 1 do art. 277.º da CrP) (18),
O relacionamento direto dos atos da adminis- isso não significa que os atos da administração
tração com a Constituição não possam violar diretamente a Constituição (19).
2.1. ora, a validade dos atos da administração tal sucederá quando os atos da administração vio-
funda-se na Constituição, como nela se funda o re- lem princípios caracterizadores da ordem jurídico-
gime das invalidades. Já a subordinação da admi- constitucional (20), ou normas preceptivas de con-
nistração à juridicidade envolve em primeiro lugar, teúdo suficientemente determinado a vinculá-la di-
uma subordinação primária da atividade administra- reta e imediatamente, sem necessidade de concre-
tiva à lei, com respeito pelos princípios da compe- tização normativa (21), que preceituam a disciplina
tência e da reserva de lei, no âmbito da qual a imediata e vinculante de determinada conduta (22).
administração nela deve encontrar o pressuposto e entre estas normas imediatamente vinculantes dos
o fundamento das suas atuações. num segundo atos da administração, estão as que constam do tí-
nível, deve assegurar a compatibilidade da sua con- tulo ii da parte i consagrando direitos, liberdades
duta com as demais manifestações do bloco legal, e garantias e os demais direitos constitucionais do-
com respeito pelo primado da Constituição, em tados de idêntica completude estrutural (art. 17.º
particular das normas constitucionais diretamente
aplicáveis e de acordo com os princípios gerais
operativos do estado de direito; devendo, num ter-
(18) não obstante o sistema de fiscalização da constituciona-
ceiro nível, conduzir à prossecução do interesse pú- lidade ter por objeto atos normativos desconformes com a cons-
tituição, dinaMene de Freitas, O Acto Administrativo
Inconstitucional, 2010, pp. 190-195, nota que o tribunal Consti-
tucional tem adotado uma noção funcional de norma que em
(17) Pensamos que, de iure condendo, o legislador deveria abrir determinados casos inclui atos que visem produzir efeitos em
a porta para a nulidade dos atos especialmente graves e evidentes situações individuais e concretas.
numa formulação semelhante à da lei alemã, de tal forma que (19) goMes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Cons-
além das ilegalidades incluídas no catálogo de nulidades, fosse tituição, 7.ª ed., 2003, p. 939.
possibilitada a cominação da nulidade por aplicação de um teste (20) Como os princípios da constitucionalidade, da legali-
de proporcionalidade e caso essa solução se afigurasse consentânea dade, da proibição do excesso ou da imparcialidade.
com a consciência jurídica geral. Contra esta solução, embora sem (21) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es-
apresentar uma formulação alternativa, andré salgado de tudos de Direito Público, 2011, p. 243, e José de Melo alexan-
Matos, “algumas observações críticas acerca dos actuais qua- drino, Direitos Fundamentais, 2.ª ed., 2011, p. 94.
dros legais e doutrinais da invalidade do acto administrativo”, (22) goMes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da
CJA, n.º 82, 2010, pp. 64-65. Constituição, 1991, p. 50.
6
Justiça adMinistratiVa n.º 147 • Julho/setembro 2021
da CrP) (23). tanto uns como outros gozam de apli- retamente atinente à desconformidade com a Cons-
cabilidade direta, vinculando diretamente a ad- tituição (29).
ministração a respeitá-los e a torná-los efetivos, di- ora, o que impõe a não consolidação dos atos
zendo-se por isso imediatamente eficazes (24). Já os di- administrativos que desrespeitem diretamente a
reitos económicos, sociais e culturais, sendo direi- lei Fundamental não é o regime administrativo
tos a prestações do estado e tendo como destinatá- das invalidades, mas própria força normativa da
rio direto o legislador, são estruturalmente incom- Constituição (30). a falta de correspondência que o
pletos não sendo por isso imediatamente exequí- regime das invalidades administrativas vota à su-
veis (25), exceto na sua componente negativa, premacia da Constituição coloca a questão da sua
quando e na medida em que traduzam um dever constitucionalidade, já que além de facilitar a con-
de abstenção por parte da administração (26). solidação de atuações administrativas com ela con-
trárias por decurso de pouco tempo, não prevê a
2.2. dependendo a validade de todos os atos do realização das ponderações necessárias à adoção
estado e outras entidades públicas da sua confor- de decisões constitucionalmente conformes (31).
midade com a Constituição (n.º 3 do art. 3.º da não faz por isso sentido, à luz da desejável
CrP) (27), então por maioria de razão, os atos pro- unidade e coerência do sistema jurídico, que as
duzidos sob a sua regulação direta não devem ter- atuações ilegais da administração pública mereçam
-se por consolidados na ordem jurídica se inquina- igual tratamento, quer tenham ou não violado a
dos de inconstitucionalidade (28). um dos sinais Constituição pois as violações da lei e da Consti-
deste primado são as situações em que a lei admite tuição não têm a mesma gravidade. também não
– e até impõe – a reapreciação de atos da adminis- faz sentido, à luz dos mesmos valores responsáveis
tração muito depois de esgotados os prazos da sua por fazer do direito um sistema, que as atuações in-
impugnação contenciosa (art. 78.º da lgt e n.º 1 do constitucionais da administração pública mereçam
art. 168.º do CPa). a reintegração da ilegalidade um tratamento mais favorável do que a conduta le-
provocada por ato administrativo violador da gislativa inconstitucional. a administração pública
Constituição acaba ainda por ser imposta pela lei não deve poder fazer o que a Constituição proíbe
geral administrativa através do sistema de invali- ao legislador (32). a solução da mera anulabilidade
dades, assente numa tipificação dos vícios dos atos dos atos administrativos com vício de inconstitu-
administrativos apesar de, com exceção de referên- cionalidade consequente, que apliquem normas in-
cia ao “conteúdo essencial de um direito fundamental”, constitucionais conduz aliás a uma dupla insegu-
nele não constar qualquer causa de invalidade di- rança jurídica, na medida em que o ato administra-
tivo contrário à Constituição tornado inimpugná-
vel ao abrigo do regime das invalidades da lei geral
7
da necessidade de uma cláusula geral de nulidade. dos atos da administração
administrativa, estaria a qualquer momento sujeito quente, que tem lugar sempre que a desconformi-
a ser retroativamente eliminado pela ordem jurí- dade com a Constituição resulte de o ato ser prati-
dica (33) (n.º 3 do art. 282.º da CrP, a contrario) (34). cado mediante aplicação de normas inconstitucio-
daí a advertência feita por goMes Canotilho, nais. sendo a norma aplicada inconstitucional e por
de que a pressão da superior força normativa das isso nula ou inexistente (37), designadamente por
normas constitucionais eventualmente conduzirá ter sido declarada inconstitucional ou por não ter
à revisão da dogmática dos vícios dos atos admi- sido promulgada (art. 137.º da CrP), a atribuição
nistrativos e do respetivo regime, adaptando-o de de efeitos ao ato que a aplica contraria a Constitui-
maneira a responder adequadamente aos atos que desa- ção, já que o seu resultado será atribuir efeitos a
fiem abertamente a Constituição, desde logo impondo uma norma por ela expressamente rejeitada. a sim-
a possibilidade de anulação de atos administrati- ples admissão de que o ato aplicador de norma in-
vos inconstitucionais tornados inimpugnáveis (35). constitucional possa produzir efeitos provisórios e
consolidar-se num curto espaço de tempo atribuem
2.3. a este propósito cumpre distinguir as rela- à administração uma capacidade inovatória à mar-
ções de desconformidade que se estabelecem entre gem da Constituição e contrária ao direito, facili-
atos administrativos e o parâmetro normativo da tadora da prepotência e do arbítrio da justiça do
Constituição (36): a inconstitucionalidade será indi- caso concreto, devendo por isso, ser em regra pura
reta quando, resultando da violação da lei, implicar e simplesmente rejeitada.
o afastamento do padrão de legalidade a que a ad- neste sentido, apesar de conceder-se que a so-
ministração está adstrita de acordo com a Consti- lução deve ser encontrada no regime das invali-
tuição (n.º 2 do art. 266.º da CrP), caso em que dades administrativas, em certos casos a nulidade
esses atos merecerão naturalmente a forma de in- parece apresentar-se como a única resposta ade-
validade que em cada caso for imposta pela aplica- quada à gravidade da ofensa cometida (38), devendo
ção do regime constante dos arts. 161.º e segs. do por isso o ato ser qualificado como praticado com a
CPa. total ausência de base legal característica da incom-
Por outro lado, os atos da administração podem petência absoluta. nestes casos, a nulidade parece ser
ainda resultar em inconstitucionalidade conse- a única resposta necessária e adequada a não per-
mitir que a administração produza o preciso efeito
que a lei quis impedir: a aplicação da norma des-
conforme. nestes casos, a perturbação eventual-
(33) andré salgado de Matos e João taborda da gaMa, “o mente criada pela improdutividade ipso jure será
prazo para exercício do direito à restituição de emolumentos
ultrapassada pela rejeição do exercício de um poder
notariais indevidamente cobrados”, Fiscalidade, 2002, 9, p. 128.
estes atos mesmo quando meramente anuláveis parecem dever não consentido e contrário à lei Fundamental.
admitir sempre impugnação contenciosa, mesmo depois de es-
gotados os prazos previstos na lei para o efeito.
(34) a declaração da inconstitucionalidade com força obri-
gatória e geral prevista no art. 282.º da CrP produz efeitos
desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional (37) Como ensina goMes Canotilho, Direito Constitucional e
e afeta as decisões administrativas tomadas com base em norma Teoria da Constituição, 7.ª ed., 2003, pp. 940, 953, 956, a lei incons-
declarada inconstitucional (n.º 3 do art. 282.º a contrario da CrP), titucional “é uma lei ferida de nulidade ou invalidade absoluta”. de
exceto se por razões de segurança jurídica, equidade ou inte- igual modo, a violação de uma diretiva com efeito direto não
resse público de excecional relevo, conduzirem à fixação de di- produz um simples vicio de violação de lei, mas antes a sua de-
ferentes efeitos da inconstitucionalidade. saplicação total, andré salgado de Matos e João taborda da
(35) goMes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Cons- gaMa, “o prazo para exercício do direito à restituição de emo-
tituição, 7.ª ed., 2003, p. 941. no mesmo sentido, andré salgado lumentos notariais indevidamente cobrados”, Fiscalidade, 2002,
de Matos e João taborda da gaMa, “o prazo para exercício do 9, p. 117.
direito à restituição de emolumentos notariais indevidamente (38) neste sentido, andré salgado de Matos, A Fiscalização
cobrados”, Fiscalidade, 2002, 9, p. 129. Administrativa da Constitucionalidade, 2004, pp. 426 e segs., e di-
(36) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es- naMene de Freitas, O Acto Administrativo Inconstitucional, 2010,
tudos de Direito Público, 2011, p. 231. pp. 235 e segs.
8
Justiça adMinistratiVa n.º 147 • Julho/setembro 2021
Por tudo isto, ainda que se admita poderem não existe um princípio da legalidade autónomo
existir casos concretos menos graves de inconstitu- da obediência à Constituição, como o princípio da
cionalidade consequente relativamente aos quais constitucionalidade é a premissa maior de toda a su-
deva ser de concluir pela anulabilidade, somos de bordinação administrativa à legalidade. Por isso,
opinião de que, em regra, o princípio da constitu- atendendo ao papel desempenhado pela Constitui-
cionalidade (n.º 3 do art. 3.º da CrP) será incompa- ção como fonte primária de validade material in-
tível com a estabilização do ato que aplique norma terna dos atos de direito Público e fonte direta-
inconstitucional por decurso do prazo de impug- mente vinculante de direito (n.os 2 e 3 do art. 3.º da
nação contenciosa. nestes casos, deve aceitar-se o CrP), exprimindo consequentemente a dependên-
alargamento dos prazos de impugnação por todo cia substancial do estado em todas as suas formas
o tempo em que o ato puder ser removido ex tunc à legalidade democrática fundada na Constituição
da ordem jurídica, em virtude da declaração de in- (39), alguns autores entendem que os atos adminis-
constitucionalidade da norma aplicada, com força trativos diretamente desconformes com a Consti-
obrigatória e geral, nos termos do n.º 3 do art. 282.º tuição devem necessariamente ser considerados
da CrP, a contrario. nulos (40). autores como tiago serrão, para quem
Finalmente, se o ato for desconforme com a nulidade, tal como configurada na lei geral admi-
norma constitucional imediatamente condicio- nistrativa, visa tutelar o interesse público da prote-
nante da atividade da administração, ocorrerá uma ção da integridade da ordem jurídica, traço
inconstitucionalidade direta. nesta violação ime- determinante para a definição da barreira que se-
diata de parâmetro normativo de nível superior, para nulidade e anulabilidade. sendo o interesse
que pode ser uma violação de direitos, liberdades público da tutela da integridade da ordem jurídica
e garantias ou outros direitos de natureza análoga, sempre colocado em causa quando ocorre ativi-
ocorre o equivalente a uma alteração legislativa por dade administrativa contrária à Constituição (41), a
ato da administração. esta alteração, além de não interpretação conforme ao princípio da constitucio-
consentida pela Constituição, é com ela incompa- nalidade permitirá concluir pela nulidade dos atos
tível, desde logo porque restrita à situação indivi- que a violem direta e imediatamente (42).
dual e por isso arbitrária e contrária ao princípio
da igualdade. também aqui, a aceitar-se a forma-
ção de caso decidido contra a Constituição, estar-
se-ia a facilitar a instrumentalização do regime das (39) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es-
invalidades para restringir direitos fundamentais tudos de Direito Público, 2011, pp. 255-256.
(40) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es-
ou violar normas constitucionais com carácter pre- tudos de Direito Público, 2011, pp. 256-258. em sentido seme-
ceptivo. isto, além de gravemente desconforme lhante, dinaMene de Freitas, O Acto Administrativo Inconstitu-
com a Constituição, fonte de validade de todos os cional, 2010, p. 251.
(41) Como referem andré salgado de Matos e João ta-
atos do estado (n.º 3 do art. 3.º da CrP), resultaria borda da gaMa, “o prazo para exercício do direito à restituição
numa utilização flagrantemente desproporcional de emolumentos notariais indevidamente cobrados”, Fiscali-
do regime de invalidades, e permitiria afinal efeitos dade, 2002, 9, p. 130, a nulidade dos atos administrativos basea-
dos em ato normativo inconstitucional constitui aliás “prova da
que a Constituição não autoriza.
sobrevivência da figura da nulidade por natureza enquanto categoria
ontologicamente ineliminável”.
2.4. ao contrário do entendimento tradicional- (42) Para tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucio-
nal”, Estudos de Direito Público, 2011, pp. 257-258, os preceitos
mente sustentado pela doutrina, que aponta para
relativos a direitos, liberdades e garantias e outros de assento
o n.º 2 do art. 266.º da CrP para sustentar a afirma- constitucional e natureza análoga detêm uma completude es-
ção de que a administração deve antes de tudo obe- trutural e ocupam uma posição privilegiada no ordenamento
jurídico constitucional português que lhes confere suficiente
diência primária à lei, a realidade é que para esta
força jurídica a resistir aos atos desconformes da administração
disposição “os órgãos e agentes administrativos estão que se lhe devem submeter, o que não pode deixar de implicar
subordinados à Constituição e à lei”, pelo que não só a nulidade dos atos administrativos que ofendam tais preceitos,
9
da necessidade de uma cláusula geral de nulidade. dos atos da administração
10
Justiça adMinistratiVa n.º 147 • Julho/setembro 2021
base em juízo semelhante e por aplicação dos mes- normativos sobre as valorações próprias do exercí-
mos princípios, declarar a nulidade de ato admi- cio da função administrativa, que vinculam a ad-
nistrativo, nos casos em que essa consequência se ministração a atuar em obediência à lei e ao Direito (n.º
apresente para o homem médio e de acordo com a 1 do art. 3.º do CPa), a prosseguir o interesse público,
consciência jurídica geral, como a única solução ad- no respeito pelos direitos e interesses legalmente prote-
missível. gidos dos cidadãos (art. 4.º do CPa), sendo que as de-
Julgamos por isso que, apesar da falta de previ- cisões que colidam com direitos subjetivos ou interesses
são legal expressa de uma cláusula geral de invali- legalmente protegidos dos particulares só podem afetar
dade, a autoridade competente para proceder à essas posições na medida do necessário e em termos pro-
anulação ou declaração de nulidade deve concluir porcionais aos objetivos a realizar (n.º 2 do art. 7.º do
por esta última sempre que, na sequência de um CPa). e permite ainda a rejeição das soluções mani-
teste de proporcionalidade que abranja as suas três festamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de
dimensões, conclua que o tipo de invalidade não Direito (art. 8.º do CPa) (46).
possa ser outro. e não se diga que a nulidade, por Quando, pela gravidade e alarme social de cer-
operar imediatamente – não produzindo quaisquer tas ilegalidades praticadas em atos administrati-
efeitos jurídicos, independentemente da declaração vos, não possam ser tolerados os seus efeitos pro-
de nulidade (n.º 1 do art. 162.º do CPa) – não pode visórios e a possibilidade da sua consolidação por
ficar dependente de um teste de proporcionalidade decurso de tempo, por serem mais gravosos e con-
porque a declaração de nulidade é sempre uma de- trários à unidade do sistema jurídico do que as per-
cisão de carácter declarativo que, até ser tomada turbações eventualmente causadas pela aplicação
pelos tribunais ou pelo órgão administrativo com- do regime da nulidade, tais atos devem ser decla-
petente, implicará sempre divergências de enten- rados nulos. o que se verificará quando o tipo mais
dimento. radical de invalidade se revele como o mais ade-
quado à gravidade da ilegalidade cometida, seja
3.2. esta parece-nos ser a única solução compa- necessário à proteção de princípios estruturais do
tível com o regime das invalidades, por via do qual sistema jurídico ou de relevantes direitos subjetivos
são necessariamente nulos os atos que padecem de ou interesses legalmente protegidos, e a sua prote-
invalidades de tal modo graves que não possam ser ção através do regime da nulidade justifique, de
anuláveis, o que acontece quando a anulabilidade acordo com uma ponderação de equilíbrio, a per-
conduzir a resultados incompatíveis com o sistema turbação à segurança jurídica a que eventualmente
a que pertencem. é para onde apontam os dados possa dar lugar.
11
REVISTA ELECTRÓNICA DE FISCALIDADE DA AFP (2022) ANO IV – NÚMERO 1
__________________________________________________________________________________________________________________
RESUMO
ABSTRACT
In this text, we characterize the reinforced principle of tax legality, revealing its meaning
from the nature of the Tax State and then detecting the particularly intense demands for
stability and predictability in this area. We then proceed to identify the three problems
called to be solved by this principle and the insufficiency of protection offered by the
1
Advogado. O autor pode ser contactado em jaogando@sgfc-law.pt .
__________________________________________________________________________________________________________________
principle of administrative legality. And we then pass on to analyse how this end is
achieved through the parliament’s exclusive competence in tax matters, the legal type
principle and the primacy of law and the Constitution, reinforced by a fundamental right
not to be forced to pay taxes that have not been created in the terms set out in the
Constitution, which are retroactive in nature or whose settlement and collection are not
carried out in accordance with the law, an authentic intrinsic limit to the fundamental
duty to pay taxes, which we shall call a fundamental right to the legality of taxation.
ÍNDICE
__________________________________________________________________________________________________________________
1.1. O Estado fiscal 2 define-se como aquele cujas necessidades financeiras são
essencialmente asseguradas por impostos3, que assim funcionam em termos figurativos
como o preço que pagamos por uma sociedade civilizada4. Esta visão dos impostos
reflete a noção de que, ainda que não estejamos a receber os benefícios correspondentes
aos tributos que pagamos, estaremos ainda assim dispostos a pagá-los pois apenas desse
modo poderemos proteger a esfera privada das agressões do Estado ou de terceiros.
A história demonstra que a forma como o Estado se financia traduz uma escolha,
tanto quanto às suas funções, como quanto à própria organização social, já que as
alternativas no financiamento do Estado são dificilmente compagináveis com o sistema
de direitos liberdades e garantias. Ao passo que o Estado patrimonial não sabe distinguir
entre esfera pública e privada, tendendo a ser incompatível com a ideia de propriedade, o
Estado prestador ou tributário, ao fornecer todos ou a maioria dos bens e serviços, dita as
regras do mercado, tendendo a impedir ou a condicionar fortemente a livre iniciativa e a
construção de um mercado concorrencial.
Pelo contrário, para o Estado fiscal participar, pela via do imposto, nos resultados
das atividades prosseguidas pelos agentes económicos, tem de reconhecer a sua liberdade
para prosseguir essas atividades como entenderem, garantindo-lhes respeito pelos seus
direitos à propriedade privada e à livre iniciativa económica. Donde, a opção tomada com
as revoluções liberais e que até hoje mantemos aponta para uma organização que além da
separação dos poderes, observa também a separação entre Estado e economia5,
2
O princípio do Estado fiscal infere-se a partir de diversas disposições da Constituição portuguesa, das
quais se destacam o nº. 1 do artigo 103º e os artigos 80º, 81º, 82º e 83º da CRP.
3
JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, p. 192. Em particular sobre a
caracterização do Estado português como Estado fiscal, ver na mesma obra pp. 210-216.
4
OLIVER WENDELL HOLMES JR. Compañia General de Tabacos de Filipinas vs. Collector of Internal
Revenue, 1927, 275 US 87, 88: “It is true, as indicated the last cited case, that every exaction of money for
an act is a discouragement to the extent of the payment required, but that which its immediacy is a
discouragement may be part of an encouragement when seen its organic connection with the whole. Taxes
are what we pay for civilized society, including the chance to insure. A penalty on the other hand (…)”.
5
Isto, sem prejuízo do principio da subordinação do poder económico ao poder politico democrático,
previsto no artigo 80º al. a) da CRP, expresso nas exceções ao principio da neutralidade fiscal, impostas
pelo caracter social do Estado de Direito, como previsto no artigo 81º, al. b) da CRP: “Incumbe
prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social: (…) b) Promover a justiça social, assegurar a
igualdade de oportunidades e operar as necessárias correções das desigualdades na distribuição da
riqueza e do rendimento, nomeadamente através da política fiscal; (…)”, e ainda na al. h) do nº. 2 do artigo
__________________________________________________________________________________________________________________
reservando a política, entendida como a atividade que se ocupa dos assuntos coletivos, ao
Estado, enquanto que a economia, entendida como o conjunto de atividades destinadas à
satisfação das necessidades individuais, é reservada à sociedade em geral e aos indivíduos
em particular6. Naturalmente que, extraindo-se da economia de mercado os recursos
necessários à produção de bens públicos, o seu bom funcionamento é do interesse do
Estado fiscal, o que implica necessariamente uma adequada articulação do sistema fiscal
com o sistema económico em vigor.
66º da CRP: “assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e
qualidade de vida”, ou no nº. 1 do artigo 103º da CRP: “o sistema fiscal visa, (…) uma repartição justa
dos rendimentos e da riqueza”.
6
Ver por todos JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, pp. 191 e segs..
7
MANUEL AFONSO VAZ, Direito Económico, A Ordem Económica Portuguesa, 4ª ed., 1998, p. 132.
__________________________________________________________________________________________________________________
a) do nº. 1 do artigo 59º da CRP) e a livre iniciativa económica (nº. 1 do artigo 61º da
CRP), no quadro de um mercado concorrencial (al. f) do artigo 81º da CRP).
Mas a formação e o desenvolvimento da economia de mercado não se bastam com
a consagração de direitos instrumentais à efetiva e livre participação dos agentes
económicos8. Exige-se ainda que estes possuam condições para adotar comportamentos
racionais e possam ajustar-se aos riscos e às incertezas razoavelmente espectáveis num
mercado eficiente. Isto implica a eliminação de fatores de incerteza externos, como são
aqueles que possam ter origem nas intervenções do legislador ou da administração 9.
Porque se aos riscos normais do mercado forem acrescentados fatores externos de
incerteza, estes impedirão a capacidade dos agentes económicos se determinarem pelo
funcionamento normal do mercado, a ponto de tornar os comportamentos de investimento
menos racionais que os de desinvestimento.
Torna-se assim necessário que o Estado seja capaz de eliminar incertezas externas,
como aquelas que resultam do sistema fiscal, de maneira a assegurar que os agentes
económicos fiquem, tanto quanto possível, apenas entregues aos riscos do mercado, assim
garantindo as necessárias condições para a racionalidade económica dos seus
comportamentos.
A segurança jurídica deve assim ser entendida como autêntica condição
existencial do Estado fiscal, alicerçando um ambiente de certeza, favorecedor da
estabilidade do valor dos ativos e de confiança dos indivíduos e das empresas quanto aos
encargos esperados em resultado das suas atuações. A estabilidade proporcionada por este
princípio é o que permite aos indivíduos formar (ex post) expectativas quanto à
continuidade das posições que ocupam (princípio da certeza do Direito), além da
8
Neste contexto, ADAM SMITH na sua obra Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações,
identificou quatro qualidades desejáveis dos sistemas fiscais: a certeza (os impostos que os indivíduos
devem ser obrigados a pagar, bem como os momentos e as respetivas formas de pagamento devem ser
certos e não arbitrários para os contribuintes e para os demais sujeitos obrigados), a igualdade (os
contribuintes devem contribuir para a manutenção do governo, tanto quanto possível na proporção das suas
capacidades) a neutralidade (devem ser lançados nos tempos e modos de pagamento mais convenientes
para os contribuintes a eles obrigados), e a eficiência (devem ainda ser configurados em termos de
maximizar os resultados para o erário público com o mínimo de sacrifícios possível para os contribuintes).
9
Como refere ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 305-306, “um sistema
que autorizasse a Administração a criar tributos ou a alterar os elementos essenciais de impostos já
existentes, viria do mesmo passo a criar condições adicionais de insegurança jurídica e económica,
obrigando a uma constante revisão dos planos individuais, à qual a livre iniciativa não poderia resistir.”.
__________________________________________________________________________________________________________________
confiança necessária a, com base nessas expectativas (ex ante), apoiar as ações adequadas
às posições que esperam ocupar no futuro (princípio da proteção da confiança).
10
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p. 105. Sobre o tema, ver ainda GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional, 6ª ed, 1993, pp. 548 e segs..
11
ALBERTO XAVIER Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 295-298.
12
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, p. 50.
__________________________________________________________________________________________________________________
2.1. A configuração jurídica dos sistemas fiscais deve assentar num conjunto de
pressupostos normativos que garantam a sua integridade intra-sistemática, solucionando
essencialmente três problemas. O primeiro é o da legitimação da lei de imposto, que se
coloca no momento da criação da norma, exigindo a necessária anuência daqueles a
quem as obrigações incumbem; depois, o problema da manifestação da vontade funcional
do legislador, que se verifica no momento da aplicação da lei aos casos concretos,
condicionando o exercício do poder tributário por parte da administração; por fim temos
o problema do critério material intrínseco de repartição dos encargos fiscais que diz
respeito ao conteúdo das normas de imposto.
Representando os impostos para os contribuintes restrições à livre disposição dos
seus bens, torna-se antes de tudo necessário assegurar a legitimação da norma de imposto,
o que é feito através da ideia — mais antiga que o próprio Estado de Direito — de
13
autotributação , mediada pelo parlamento eleito democraticamente. Nem podia ser de
outro modo uma vez que, estando em causa a substituição de necessidades privadas por
necessidades coletivas14, na distribuição dos encargos tributários é dada uma dupla
garantia: a que é dada aos contribuintes, de que os termos da delimitação da sua esfera
privada será sempre precedida de discussão e autorização por parte dos seus
representantes; e a garantia que os contribuintes dão ao Estado, de que a cobrança
decorrerá em termos pacíficos e sem quebras de paz social.
Parece-nos aliás que, mais do que uma garantia dos administrados, a tributação
depende explícita ou implicitamente da obtenção de consensos junto dos contribuintes15,
13
ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 275 e segs..
14
ARMINDO MONTEIRO, Introdução ao Estudo do Direito Fiscal I, Separata da Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, Vol. VI, 1949 e Vol. VII, 1950, p. 66.
15
Parte da doutrina considera, como JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997,
p. 327, que “a função do consentimento estamental dos impostos era exclusivamente garantística. Tratava-
se de proteger a liberdade pessoal e garantir a segurança jurídica, evitando uma tributação arbitrária dos
membros das comunidades estamentais”. Não podemos concordar com esta caracterização. Antes mesmo
de o consentimento surgir como uma garantia dos administrados, ele representou, pelo contrário, uma
garantia de cobrança, um sinal confirmatório dado ao soberano sobre a aceitação generalizada dos encargos
que daí em diante seriam impostos. Neste sentido, ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto
Tributário, 1972, p. 277, refere que o princípio surgiu ligado à ideia de autotributação, ou seja, à ideia de
que os impostos só podiam ser eficazmente criados se aceites pelas assembleias representativas dos sujeitos
a eles obrigados, e portanto, à ideia de sacrifício coletivamente consentido. Ver ainda DIOGO LEITE DE
CAMPOS e MÔNICA LEITE DE CAMPOS, Direito Tributário, 1996, pp. 76-78. Assim, muito mais do que um
salto civilizacional resultante da instituição precoce de um percursor dos direitos fundamentais, o
consentimento auto ordenador dos administrados foi o percursor da legalidade tributária. Nessa medida,
terá inicialmente servido mais os interesses do governante do que propriamente dos governados. Em
__________________________________________________________________________________________________________________
que os soberanos aproveitam para obter uma relegitimação do seu poder. Tendo em conta
que a partir de um certo nível de incumprimento torna-se materialmente impossível impor
prestações coativas individuais a todos os sujeitos passivos incumpridores 16, torna-se
claro que a sustentabilidade dos Estados fiscais depende de uma anuência generalizada
por parte dos cidadãos obrigados17, quanto aos encargos que lhes são impostos. Esta
anuência começa precisamente com a aprovação das leis fiscais por órgãos
representativos dos cidadãos, transmitindo-lhes uma legitimidade democrática própria18.
primeiro lugar, por uma razão lógica: a consagração do direito a impostos é de tal modo intrusiva que não
se vê como poderia, sobretudo naquele tempo, ser eficazmente instituída sem a colaboração dos obrigados.
Com efeito, antes de qualquer imposto ser instituído, o direito dos contribuintes sobre os seus próprios bens
está mais garantido para o seu titular do que a expectativa do futuro credor em vir a receber o imposto
(melior est conditio possidentis), ainda que investido em poderes de autoridade. Por isso, será este o
primeiro interessado em obter esse consentimento. Conforme descrevem D IOGO LEITE DE CAMPOS e
MÔNICA LEITE DE CAMPOS, Direito Tributário, 1996, p. 75, a propósito das experiências fiscais na Roma
antiga, o tributo cuja cobrança se baseia puramente em poderes de autoridade torna-se num instrumento de
opressão, dificultando a sustentabilidade dos regimes impositores. Pelo contrário, o sucesso do Estado fiscal
reside na circunstância de as imposições fiscais decorrerem num clima de relativa paz social. Depois,
porque como é sabido, as monarquias medievais não assentavam no poder absoluto do rei, mas sim em
apoios de diferentes grupos sociais. Como salienta VASCO BRANCO GUIMARÃES, Princípios Gerais da
Fiscalidade, Lições de Fiscalidade, Vol I – Princípios gerais e fiscalidade interna, coord. João Ricardo
Catarino e Vasco Branco Guimarães 6ª ed., 2018, pp. 84-91, “por detrás de cada decisão tributaria” do
soberano na Idade Média “está uma consulta e negociação com os interessados”; os tributos eram por vezes
utilizados como “contrapartida pela não desvalorização da moeda”, podendo defender-se que “em
Portugal o lançamento dos impostos gerais era uma concessão das Cortes”. O mesmo autor refere ainda
que “a necessidade de cartas de confirmação indicia o seu não cumprimento” e que no foral de Pontével
de 1194 D. Sancho I colocou-se mesmo na posição de cumpridor dos direitos que ele próprio determinou,
concluindo que “a aplicação pura do princípio do consentimento e a extração das consequências exatas
da sua não verificação provocaram crises financeiras graves. As crises advinham da impossibilidade da
arrecadação dos réditos orçamentários nomeadamente os fiscais”.
16
Por se tornar impraticável alocar um inspetor tributário a cada contribuinte potencialmente incumpridor.
17
Se isto é assim hoje, terá sido ainda mais assim nos tempos do Estado patrimonial em que os impostos
começaram a ser lançados como contribuições extraordinárias pedidas pelo rei e consentidas pelos seus
súbditos. Como refere neste sentido ARMINDO MONTEIRO, Introdução ao Estudo do Direito Fiscal I,
Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. VI, 1949 e Vol. VII, 1950,
pp. 54-63, “A vontade do soberano teve de adaptar-se frequentemente às exigências das populações, que
entendiam os impostos na sua origem, como concessões feitas, pelo indivíduo ou pelas coletividades
menores, ao poder mais alto; e a regra tributária refletia esta formação, em que havia fortes elementos de
acordo, visto que surgiu depois de discussão entre representantes dos interesses e opiniões opostos. Esta
adaptação de vontades — que, como fórmula jurídica atual, aparece na exigência, expressa em quase todas
as Constituições, da votação da lei de imposto e da autorização anual de cobrança dada pelos órgãos
legislativos eleitos, como condição essencial de validade do tributo — é elemento fundamental da criação
da norma tributária: e serve para afirmar o direito fiscal como força anterior ao Estado”.
18
Como refere ainda SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos
Administrativos, pp. 196-197, não só o poder deve fundar-se no povo como o corte da ligação entre a
emissão de normas e a vontade popular colocaria em causa a bondade do seu conteúdo, o que deve evitar-
se, sobretudo em matéria de impostos em que cada norma representa um acordo celebrado entre o Estado
e os contribuintes quanto à produção dos bens públicos, e nessa medida, quanto aos termos em que as
necessidades devem ter prioridade sobre as necessidades privadas.
__________________________________________________________________________________________________________________
19
SÉRGIO VASQUES, Manual, de Direito Fiscal, 2ª ed., 2018, p. 76.
20
A estrutura interna das normas fiscais exige ainda a resolução de outros problemas, tratados pelos
economistas e cuja solução apenas se pode encontrar no modo como se encontra estruturada a arquitetura
do sistema fiscal. Estamos a referir-nos aos problemas económicos da neutralidade fiscal, que se refere à
qualidade dos impostos que não interfiram nem perturbem a melhor distribuição dos recursos pela economia
e ao problema da eficiência fiscal que exige impostos adequados à prossecução dos seus objetivos
económico-sociais. Neste sentido ver SOUSA FRANCO, Finanças Públicas e Direito Financeiro, 1980,
pp. 198-199 e 289-291.
21
Na expressão do §14º do artigo 145º da Carta Constitucional de 1826, que a tributação dos cidadãos seja
feita “em proporção dos seus haveres”. Disposição semelhante pode ser encontrada no artigo 28º da
Constituição de 1933. Ver JORGE MIRANDA, As Constituições Portuguesas, de 1822 ao texto actual da
Constituição, 6.ª ed., 1977.
__________________________________________________________________________________________________________________
3.1. Da exigência atrás abordada de que o Estado se exprima através da lei decorre
o princípio da legalidade administrativa, que como se referiu, subordina todos os atos dos
órgãos e agentes da administração à Constituição e à lei (nº. 2 do artigo 266º da CRP).
Ao contrário dos sujeitos de Direito Privado que se determinam num quadro de autonomia
(sendo permitido tudo o que não for proibido)23, a administração rege-se por princípios
de competência e reserva de lei (sendo proibido tudo o que não for permitido), impondo
que a capacidade de atuação de cada órgão se restrinja à parcela de interesse público
colocada a seu cargo e que a sua atuação seja prevista por lei. A autonomia pública resulta
da permissão legal concedida ao autor do ato para atuar no âmbito das suas competências
e das normas que estabelecem os termos em que ela deve ser exercida, o que geralmente
o vincula a examinar, ponderar e decidir24. Quando os poderes de atuação são concedidos
sem a predeterminação do comportamento do órgão da administração, este fica com uma
certa margem de livre decisão na aplicação da norma a casos concretos 25. Daí que onde
ali se fala em liberdade, aqui se fale em margem de livre decisão.
A vinculação da administração à prossecução do interesse público definido
heteronomamente (nº. 1 do artigo 266º da CRP), determina que as posições ativas da
administração tenham a natureza de poderes-deveres, vinculando-a a encontrar na lei os
pressupostos da sua ação e exercer os poderes que lhe são concedidos dentro dos limites
22
O respeito pela capacidade para contribuir é imposto tanto pela necessidade de manter intacto o
consentimento prestado pelos contribuintes, como pela exigência de neutralidade do sistema imposta pela
separação entre Estado e economia, permitindo que a tributação não afete qualquer das condições em que
assentou a realização das manifestações de riqueza tributadas.
23
JOÃO DE CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, II, 1995, p. 284; JOÃO ANTUNES VARELA, Das
obrigações em geral, I, 9ª ed., 1996, p. 238.
24
BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa,
1995, pp. 26-27.
25
BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa,
1995, pp. 31-32.
__________________________________________________________________________________________________________________
por ela impostos26. Pois mesmo nos casos em que é admitido o uso de poderes de livre
decisão ou apreciação, estes devem ser exercidos “em obediência à lei e ao direito, dentro
dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos
fins” (nº. 1 do artigo 3º do CPA).
É assim comum dizer-se que o princípio da legalidade tanto impõe o princípio da
reserva de lei habilitante (legalidade-fundamento), estabelecendo limites internos à
atividade administrativa27, como o princípio do primado da lei (legalidade-limite), que
estabelece limites externos de legalidade à sua atuação28. Numa formulação positiva, o
princípio da legalidade exprime-se através do princípio da reserva de lei ou regra de
conformidade29. De acordo com esta, toda a atuação da administração deve encontrar na
lei o seu fundamento, exigindo-se que os seus atos estejam autorizados por lei e sejam
praticados de acordo com essa autorização. Esta vertente do princípio da legalidade traduz
uma concordância dos atos da administração com as determinações previamente vertidas
em letra de lei e apresenta-se como uma garantia formal, já que as leis hão de ser
executadas como expressão da vontade funcional do poder legislativo. Por outro lado,
este princípio também funciona como uma garantia material, na medida em que os
comandos legais validamente produzidos fazem presumir que os atos praticados em sua
26
DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª ed, 2018, pp. 40, FERNANDA
PAULA OLIVEIRA e JOSÉ FIGUEIREDO DIAS, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, 5ªa
ed, 2017, p.123, BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão
Administrativa, 1995, p. 80.
27
Chama-se no entanto à atenção com PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I,
2016, pp. 141-142, que esta reserva de lei, que define tipicamente um espaço de regulação exclusiva do
poder legislativo, exprime-se do ponto de vista da administração pela precedência de lei, nos termos da
qual todo o poder da administração tem de se basear numa norma legal habilitante.
28
GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 6ª ed, 1993, p. 371.
29
ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, Erro e ilegalidade no acto administrativo, 1962, p. 38, ALBERTO
XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 282, PAULO OTERO, Direito do Procedimento
Administrativo, Vol. I, 2016, pp. 141-142. Não obstante concordarmos com V ASCO BRANCO GUIMARÃES,
Princípios Gerais da Fiscalidade, Lições de Fiscalidade, Vol I – Princípios gerais e fiscalidade interna,
coord. João Ricardo Catarino e Vasco Branco Guimarães 6ª ed., 2018, p. 97, quando afirma que “a
formulação do princípio da legalidade em direito fiscal mantém sempre o seu carácter próprio não se
confundindo com a formulação administrativa” entendemos que esse carácter próprio não se refere a
qualquer discordância na dogmática e no sentido dos conceitos utilizados em ambos os ramos do Direito,
que deve ser concordante, sob pena de cairmos na completa desarmonia de conceitos o que nos conduziria
a ter duas administrações. Com efeito, apesar de ambos os ramos de Direito partilharem as mesmas
formulações do princípio da legalidade, é inegável que em Direito fiscal este apresenta um conteúdo próprio
e reforçado, adiante ilustrado.
__________________________________________________________________________________________________________________
30
MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, Lisboa, I, 1994/95, p. 100.
__________________________________________________________________________________________________________________
destinadas a resolver cada um dos problemas atrás descritos, dando lugar a um princípio
mais exigente, que com VIEIRA DE ANDRADE31 podemos designar por princípio reforçado
da juridicidade tributária.
A reserva de lei postula que toda a atuação da administração seja conforme com a
norma que lhe serve de fundamento. No entanto, ela assume vários graus e pode ser
entendida tanto quanto à distribuição da competência para a produção de atos normativos
que servem de fundamento da atividade administrativa, como quanto ao grau de
determinação e concretização normativa das condutas, de que essa reserva deve
revestir32.
Atendendo ao critério da fonte de produção normativa, a reserva poderá ser
formal, quando se exige que o exercício do poder administrativo seja baseado em lei
regularmente emitida por um órgão com competência legislativa normal, ou uma simples
reserva material quando apenas se exige que determinada atuação administrativa se
baseie em norma geral e abstrata, independentemente da sua natureza, seja ela legislativa
ou regulamentar33.
31
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, “Nulidade e anulabilidade do acto administrativo – anotação ao Ac. do STA
de 30.5.2001, P. 22 251”, CJA, 43 (2004), p. 48.
32
ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 285.
33
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p. 110.
34
Já não somente imposta pelo princípio do Estado de Direito, que implica que o Estado se exprima
utilizando formas jurídicas e por isso normas gerais e abstratas, mas também pelo princípio Democrático
(artigo 2º e nº. 2 do artigo 3º da CRP). Neste sentido, JÓNATAS MACHADO e PAULO NOGUEIRA DA
COSTA, Manual de Direito Fiscal, Perspetiva Multinível, 2016, p. 68-70.
__________________________________________________________________________________________________________________
35
Os princípios gerais aplicáveis às taxas estão previstos na Lei nº. 53-E/2006, de 29 de dezembro, que
aprovou o RGTAL.
36
A estas matérias acrescenta-se a competência exclusiva para legislar em assuntos relacionados com
crimes e contraordenações de natureza fiscal e o respetivo processo (al. c) e d) do nº. 1 do artigo 165º da
CRP).
37
Sobre o conteúdo mínimo destas autorizações, ver o acórdão do TC nº. 358/92, exigindo que cumpram a
sua “tripla função”: conteúdo material bastante da lei de autorização, linha de orientação do legislador
delegado e informação genérica das inovações a introduzir no ordenamento para os particulares.
38
Como nota NUNO DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, 9ª ed., 2000, p. 41, o decreto lei
autorizado tem sido a principal fonte de Direito Fiscal, como sucede na generalidade dos países
desenvolvidos. Sobre as leis de autorização legislativa ver ANA PAULA DOURADO, O Princípio da
Legalidade Fiscal, 2007, pp. 58-59 e 84-103.
39
Ver o regime da Lei Orgânica nº. 2/2013 de 2 de setembro, que aprova a LFRA, designadamente o seu
artigo 56º prevendo que os órgãos regionais têm competências tributárias de natureza normativa e
administrativa, a exercer pelas Assembleias Legislativas respetivas, compreendendo os poderes de criar e
regular impostos, apenas vigentes nas respetivas regiões autónomas, definindo a incidência, a taxa, a
liquidação, a cobrança, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes, e o poder de adaptar os
impostos de âmbito nacional às especificidades regionais, dentro dos limites fixados na lei. Ver ANA PAULA
DOURADO, O Princípio da Legalidade Fiscal, 2007, pp. 60-66.
40
Ver o regime da Lei nº. 73/2013 de 3 de setembro, que aprova o RFALEI e o acórdão do TC nº. 711/2006
de 29/12/2006. Ver ainda ANA PAULA DOURADO, O Princípio da Legalidade Fiscal, 2007, pp. 66-68.
__________________________________________________________________________________________________________________
A esta reserva de lei formal acresce a enumeração que o nº. 2 do artigo 103º da
CRP faz dos elementos essenciais necessariamente por ela abrangidos: a incidência dos
impostos que constitui a previsão dos pressupostos objetivos e subjetivos de cuja
verificação depende o nascimento da obrigação fiscal, a taxa, que é a principal decisão
quantitativa da lei fiscal integrando por isso a sua estatuição, os benefícios fiscais,
importantes derrogações ao princípio da generalidade da tributação, e as garantias dos
contribuintes, que visam a proteger a efetividade dos seus direitos. Neste sentido, esta
disposição distingue as normas a que se refere das demais, nomeadamente das normas
meramente procedimentais ou de execução, como as normas instrumentais relativas à
41
Esta configuração da reserva de lei formal como reserva exclusiva de competência legislativa impõe uma
subordinação dos interesses representados pela maioria parlamentar que sustenta politicamente o governo,
à vontade parlamentar que implica sempre uma discussão alargada para a qual concorrem os representantes
de todos os eleitores, assegurando a participação das minorias na produção legislativa em matéria de
impostos. SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2018, p. 328.
__________________________________________________________________________________________________________________
liquidação e cobrança dos tributos42, relativamente às quais a aludida reserva de lei formal
não se aplica43.
Esta norma constitucional introduz uma importante clarificação dirigida ao
legislador quanto à extensão da reserva de lei formal, no sentido em que ela abrange os
elementos estruturantes dos impostos, selecionados em função da sua influência direta
sobre a repartição dos encargos tributários. Deve ter-se como elemento interpretativo
neste sentido, a epígrafe do artigo 103º da CRP, “sistema fiscal”, e por essa via admitir-
se a reserva de lei formal (al. i) do nº. 1 do artigo 165º da CRP), como abrangendo os
benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes como sendo de igual modo integrantes
do sistema fiscal. Aliás outro entendimento não faria sentido, sobretudo se atendermos à
influência direta que cada um destes elementos pode ter na distribuição dos encargos
fiscais. De facto, as decisões contidas na lei sobre as realidades sujeitas a tributação e as
taxas a aplicar tanto têm potencial para afetar a distribuição dos encargos e o nível global
de tributação, como as isenções e outros benefícios instituídos em atenção a interesses
atendíveis do Estado. De igual modo, a definição dos termos em que as garantias dos
contribuintes podem ser exercidas têm o potencial de impor sacrifícios tão ou mais
significativos que os da própria tributação44. Além disso, sendo o seu papel efetivar os
outros direitos, uma oneração no seu exercício teria o efeito prático de comprimir os
42
Como entende a generalidade da doutrina, designadamente SALDANHA SANCHES, Manual de Direito
Fiscal, p. 33, em argumentação a que se adere, o nº. 3 do artigo 103º da CRP, ao garantir que ninguém será
obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição e cuja liquidação e
cobrança se não faça nos termos da lei não está a incluir necessariamente estas regras de execução (quando
não se ocupem de regular as garantias dos contribuintes) no âmbito de aplicação do 165º, mas antes a exigir
que, além de os impostos serem criados nos termos da Constituição, a sua liquidação e cobrança seja feita
nos termos das leis materiais, gerais e abstratas que as regulam. Note-se que esta posição colide com o
vertido na al. a) do nº. 2 do artigo 8º da LGT, nos termos da qual “Estão ainda sujeitos ao princípio da
legalidade tributária: a) A liquidação e cobrança dos tributos, incluindo os prazos de prescrição e
caducidade”.
43
Estamos no entanto com JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, p. 342, quando refere que
“embora a disciplina jurídica da liquidação e cobrança dos impostos esteja, por via de regra, excluída da
reserva de lei decorrente do principio da legalidade fiscal, ela não está naturalmente excluída da reserva
de lei constante da al. b) do nº. 1 do art. 165º da Constituição.”.
44
As normas de liquidação e cobrança podem trazer sérios encargos para os contribuintes, sobretudo
quando impuserem deveres de cooperação autónomos da obrigação de imposto, cada vez mais impostos
pelos movimentos de privatização do sistema fiscal. Nestes casos, poderão suscitar-se questões sobre se
esses deveres não estarão nos limites da noção de imposto ou no mínimo nos limites da reserva de lei
parlamentar, na medida em que implicarem uma decisão efetiva quanto à distribuição dos encargos
tributários. SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed. 2018, p. 336 e SALDANHA SANCHES, Manual
de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, p. 35.
__________________________________________________________________________________________________________________
direitos sujeitos a reserva de lei formal. Todos estes elementos são qualificados como
elementos essenciais do sistema fiscal, de maneira a que as decisões sobre a maior ou
menor produção de bens públicos ou sobre qualquer aspeto que possa afetar diretamente
a distribuição de sacrifícios pelos contribuintes sejam sempre reservadas ao parlamento 45.
Assim, do ponto de vista do princípio da reserva de lei formal, o nº. 2 do artigo
103º da CRP faz incluir na noção de sistema fiscal matérias que de outro modo poderiam
ficar de fora da competência exclusiva do parlamento, como os benefícios fiscais 46 e as
garantias dos contribuintes47. Também por força desta disposição, mesmo quando o
parlamento delegue no Governo a função de legislar sobre estas matérias, deve ainda
assim tomar uma posição sobre o conteúdo de cada um daqueles elementos essenciais,
fazendo constar essas decisões da respetiva lei de autorização legislativa. Ao impor que
as normas de Direito Fiscal material constem de atos formais legislativos, o princípio de
reserva de lei formal postula padrões mínimos de certeza e segurança jurídicas,
conduzindo afinal a uma estrita vinculação da administração ao poder legislativo,
implicando o afastamento definitivo tanto do costume como dos regulamentos como
fontes de Direito fiscal substantivo48.
45
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, pp. 33-36.
46
Além da óbvia implicação que os benefícios fiscais têm na distribuição dos encargos tributários, que a
nosso ver justificam por si só a inclusão dos benefícios fiscais entre os elementos essenciais dos impostos
sob pena de deixar-se entrar pela janela o que não se deixou entrar pela porta, devem ainda ser
considerados como tal uma vez que a exigência de legalidade não se limita à administração agressiva e
ainda porque de outro modo os benefícios fiscais poderiam ficar excluídos desse princípio por visarem em
regra a realização de finalidades extrafiscais, que hão de ser proporcionais à receita que com esses
benefícios fiscais se deixa de cobrar. ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal – Lições, pp. 144-146. Ainda,
JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, pp 363-364.
47
Tem sido entendido por alguns autores, como JOSÉ CASALTA NABAIS, “Os direitos fundamentais na
jurisprudência do tribunal constitucional”, BFDC, nº. 65, 1989, pp. 18 e segs e Direito Fiscal, p. 143, que
esta reserva não será exigível quanto às garantias dos contribuintes, quando forem objeto de ampliação ou
alargamento, mas apenas nos casos da sua restrição ou condicionamento.
48
ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 286-287, MANUEL PIRES e
RITA CALÇADA PIRES, Direito Fiscal, 4ª ed., 2010, p. 103.
__________________________________________________________________________________________________________________
49
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2002, pp. 36-37.
50
Ao contrário do que faz a generalidade da doutrina, VASCO BRANCO GUIMARÃES, Princípios Gerais da
Fiscalidade, Lições de Fiscalidade, Vol I – Princípios gerais e fiscalidade interna, coord. João Ricardo
Catarino e Vasco Branco Guimarães 6ª ed., 2018, p. 92, integra a analise da reserva de lei formal no
princípio do consentimento, expresso pela regra da aprovação anual do orçamento.
__________________________________________________________________________________________________________________
Mais do que impor que a atuação da administração seja conforme com a norma
que lhe serve de fundamento, a reserva de lei imposta pelo princípio reforçado da
legalidade tributária é um espaço de regulação exclusivamente reservado ao parlamento.
Esta reserva que como vimos se designa por reserva de lei formal51, traduz-se na
exigência de que a criação das leis sobre criação de impostos e sistema fiscal seja da
competência exclusiva da Assembleia da República, salvo decreto-lei autorizado do
Governo. Vimos ainda que a reserva de lei, como aspeto do princípio da legalidade, tanto
pode ser entendida segundo o critério da fonte de produção normativa quanto ao do grau
de determinação da conduta fornecido pela lei. Neste último sentido fala-se na existência
de uma reserva relativa quando da lei não se exige uma regulamentação detalhada sobre
as condições em que a atuação da administração pode ter lugar, confiando à administração
os critérios de atuação sobre cada caso concreto. Nestes casos, cabe à administração
escolher, de entre as várias atuações possíveis, todas elas em princípio juridicamente
equivalentes, aquela que segundo o seu critério melhor realiza o interesse público.
Quando isto acontece, diz-se estarmos perante poderes discricionários, que são aqueles
que atribuem à administração uma certa margem de livre decisão.
Fala-se por outro lado em reserva absoluta, sempre que da reserva de lei se exigir
uma densificação tal que, além da atribuição de um poder para atuar, nela se deva
51
Embora se tenha preferido a designação de reserva parlamentar pois o que está em causa é, mais do que
uma mera reserva lei formal, uma reserva de lei da competência exclusiva da Assembleia da República
(artigo 165º da CRP).
__________________________________________________________________________________________________________________
igualmente encontrar os próprios critérios de decisão dos casos individuais 52. Os poderes
assim atribuídos serão, por conseguinte, vinculados, na medida em que todos os critérios
de decisão são predeterminados por lei, sem prejuízo de ser atribuída à administração uma
certa margem de livre apreciação quanto aos pressupostos de exercício dos seus poderes.
52
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p. 110.
53
Como ensina ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, Lições 2ª ed., 2017, pp. 90-92, este conjunto de
pressupostos descritos na lei cuja concretização dá origem ao nascimento da obrigação tributária principal,
são o que a doutrina alemã designa tatbestand (factos ou factualidade). De acordo com a mesma autora,
pode ainda falar-se em tatbestand sistemático para designar não apenas a noção de tatbestand de ALBERT
HENSEL, como o “conjunto de pressupostos abstratos contidos nas leis fiscais cuja concretização dá
origem a certas consequências jurídicas”, mas abrangendo ainda essas mesmas consequências jurídicas,
incluindo as regras de cálculo da matéria tributável, de apuramento do montante da prestação tributária e
sua eventual conjugação com deduções aplicáveis por força de isenções ou de pagamentos realizados
antecipadamente. Esta noção de tatbestand sistemático que identifica na lei a cadeia normativa de previsão
e estatuição aplicável a cada caso permite uma melhor sistematização da relação jurídica de imposto e
orientar o procedimento tributário em ordem ao fim pretendido pelo legislador quanto a cada caso
__________________________________________________________________________________________________________________
individual. Mais desenvolvidamente sobre o tema, ANA PAULA DOURADO, O Princípio da Legalidade
Fiscal, 2007, pp. 292 e segs..
54
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2012, p. 51.
55
Como ensina PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, p. 144, a precedência
de lei postula uma densidade normativa suficiente para impor que a aplicação da lei tenha uma
previsibilidade mínima e garanta igualdade de tratamento sem deixar margem para o arbítrio disfarçado de
justiça do caso concreto proporcionada pela administração, e afastando a existência de normas legais em
branco em matérias sujeitas à reserva de lei.
56
Isto resulta do citado nº. 2 do artigo 103º da CRP, mas também do princípio que declara todos os cidadãos
como iguais perante a lei (nº. 1 do artigo 13º da CRP), tornando juridicamente intolerável que uma
consequência aplicada a um contribuinte seja diferente da aplicada a um outro que esteja na mesma situação.
57
PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, p. 142.
58
ALBERTO XAVIER, citando WERNER FLUME, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 293.
__________________________________________________________________________________________________________________
59
No mesmo sentido, JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, 5ª ed., 2012, p. 81, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed.,
2003, p. 405, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 3ª ed., 2000, p. 151, JOSÉ
CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, p. 186, nota 5, SALDANHA SANCHES, O
ónus da prova no processo fiscal, Lisboa, 1987, p. 5.
60
Entre outros, os resultantes dos artigos 12º, 13º, 18º, 20º, 21º, 22º e 266º da CRP.
61
Como refere ANA PAULA DOURADO, O Princípio da Legalidade Fiscal, 2007, p. 225 e segs., a reserva
de material das leis fiscais é comum a vários ordenamentos e a sua observância caracteriza os estados de
__________________________________________________________________________________________________________________
Direito, de tal forma que, mesmo que não existindo uma disposição como a do nº. 2 do artigo 103º da CRP,
ainda assim se entenderia que os aspetos como o objeto do imposto, os sujeitos passivos e os elementos de
quantificação do imposto devessem considerar-se a ela submetidos.
62
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p. 116; NUNO DE SÁ GOMES, Manual de
Direito Fiscal, Vol. II, 9ª ed., 2000, p. 63, MANUEL PIRES e RITA CALÇADA PIRES, Direito Fiscal,
4ª ed., 2010, pp. 111 e 119, VÍTOR FAVEIRO, Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, I. Vol.,
Introdução ao Estudo da Realidade Tributária, Teoria Geral do Direito Fiscal, 1984, pp. 187-190,
SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 1995, 7ª ed., p. 108; PAMPLONA CORTE-REAL, Direito Fiscal,
Apontamentos, policop., 1980, p. 126; NUNO DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, 9ª ed., 2000,
pp. 39-40.
63
Para NUNO DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, 9ª ed., 2000, pp. 63-64, daqui decorre que
o silêncio da lei nas normas de incidência tem um sentido normativo preciso que é o de delimitar
negativamente a incidência. Assim, não havendo verdadeiramente lacunas no domínio das normas de
incidência, também não pode haver integração analógica relativamente aos factos nelas não previstos.
__________________________________________________________________________________________________________________
64
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, pp. 123 e 124. No mesmo sentido, NUNO
DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, 9ª ed., 2000, p. 54 e MANUEL PIRES e RITA CALÇADA
PIRES, Direito Fiscal, 4ª ed., 2010, p. 111. Estaremos perante uma norma fiscal em branco no caso de se
entender, como facto tributável “a permanência do veículo no território nacional em violação das
obrigações previstas no presente código” (al. d) do nº. 2 do artigo 5º do código do ISV), sobretudo se
tivermos em consideração a liquidação de ISV relativa a um veículo não destinado a matrícula relativamente
ao qual não tenha sido processada a declaração prevista no artigo 24º do código do ISV dentro do prazo de
dez dias aí previsto. Neste caso, além de norma fiscal em branco, estaremos ainda perante uma tributação
com carácter de sanção, o que entendemos nós, pode inclusivamente constituir ilegalidade geradora de
nulidade por ofensa ao conteúdo essencial do direito fundamental de natureza análoga previsto no nº. 3 do
artigo 103º da CRP (al. d) do nº. 1 do artigo 161º do CPA, aplicável ex vi do artigo 2º al. c) da LGT).
65
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, pp. 123-124, e Conceito e Natureza do Acto
Tributário, 1972, pp. 320-335.
66
Para NUNO DE SÁ GOMES, As Garantias dos Contribuintes: Algumas Questões Em Aberto, CTF, 371, pp.
25 e 104, e O Principio da Segurança Jurídica na Criação e Aplicação do Tributo, CTF, 371, pp. 143 e
segs., o princípio da legalidade em matéria fiscal, com os seus corolários da tipicidade fechada,
indisponibilidade do tipo, exclusivismo e determinação, implicam a proibição, quer da discricionariedade
administrativa, quer do emprego, pelo legislador fiscal, de conceitos vagos ou indeterminados, a
concretizar por interpretação da AT, sem que a lei defina os respetivos pressupostos.
67
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p. 128.
68
Entendida como a liberdade que o órgão de aplicação do Direito tem, com vista à realização de um fim
definido por lei, de optar num quadro de decisões possíveis, todas elas juridicamente válidas e equivalentes
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p. 125.
69
Sobre o princípio da tipicidade em especial, ver por todos A NA PAULA DOURADO, O Princípio da
Legalidade Fiscal, 2007, delimitando as exigências de determinação da lei fiscal e conjugando a eventual
margem de liberdade decorrente da inevitável indeterminação legal, permitindo ao mesmo tempo o controlo
judicial efetivo das decisões da administração.
__________________________________________________________________________________________________________________
70
JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, p. 356.
71
Razão porque à expressão reserva absoluta de lei formal, prefere-se a de reserva material de lei
parlamentar.
72
Mais do que margem de livre apreciação, JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, p. 145-146 e O dever
fundamental de pagar impostos, 1997, p. 378 e segs., admite que por interferência de outros princípios
__________________________________________________________________________________________________________________
constitucionais como o da praticabilidade, à administração seja atribuída uma certa margem de livre
decisão, logo discricionariedade, incluindo a possibilidade de recurso à analogia.
73
Contêm conceitos indeterminados, entre outras, as normas que concedem à administração a possibilidade
de “efetuar as correções adequadas” a rendimentos e gastos dos inventários, sempre que a utilização de
determinados critérios “conduza a desvios significativos” (nº. 3 do artigo 26º do CIRC); decidir o que
entende por “realizações de utilidade social” para efeitos de dedutibilidade de gastos (nº. 1 do artigo 43º
do CIRC); efetuar as correções consideradas necessárias para a determinação do lucro tributável em virtude
de relações especiais com outro sujeito passivo e proceder aos “ajustamentos adequados” na determinação
dos lucros tributáveis das entidades envolvidas (nº. 11 do artigo 63º do CIRC); definir o que considera ser
“atividades suscetíveis de originar distorções de concorrência ou aquelas que são exercidas de forma não
significativa” para efeitos da não consideração do Estado e demais pessoas coletivas de direito público
como sujeitos passivos do imposto (nº. 2 do artigo 2º do código do IVA); a dedução de prejuízos de períodos
anteriores nos casos em que tenha havido alteração da titularidade de mais de 50% do capital social ou da
maioria dos direitos de voto, “em casos de reconhecido interesse económico” (nº. 12 do artigo 52º do
CIRC); a utilização de gastos de financiamento nos casos em que tenha havido alteração da titularidade de
mais de 50% do capital social ou da maioria dos direitos de voto, “em caso de reconhecido interesse
económico” (nº. 8 do artigo 67º do CIRC); a dedução ao lucro tributável do novo grupo pela a nova
sociedade dominante, dos prejuízos fiscais verificados durante os períodos de tributação anteriores quando
esta opte pela continuação da aplicação do regime especial de tributação do grupo, “em casos de
reconhecido interesse económico” (nº. 3 do artigo 71º do CIRC); etc..
74
JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, p. 621.
75
Segundo JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, p. 148 a rigorosa exigência de
determinação da lei fiscal só é exigível face a normas de tributação efetiva e já não no campo das normas
de tributação fictícia ou aparente, aplicáveis quando a aplicação as primeiras não forem possíveis.
76
JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, pp. 376-377.
__________________________________________________________________________________________________________________
77
A abertura dos tipos conduz a um paradoxo do Estado fiscal atual: ao mesmo tempo se reconhece intensa
vinculação da administração à lei como forma de melhor garantir as posições subjetivas dos particulares
perante os poderes públicos, defende-se a indispensabilidade de apetrechar a administração de novos e
renovados poderes, concedendo-lhe uma crescente margem de livre decisão. Este paradoxo é ainda
ampliado pelo processo de transição do Estado-fiscal atual para um Estado de tal forma endividado que a
lógica da tributação passa a reger-se pela necessidade de satisfazer com maior eficiência os compromissos
financeiros do Estado, conduzindo a uma deterioração da legitimidade democrática do sistema fiscal. Como
refere ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, lições, 2ª ed., 2017, p. 109, “no quadro da União Económica
e Monetária (…) a legitimação dos impostos e os limites da carga fiscal estão agora ligados a um binómio
Estado-dívida, e servem a estabilidade da moeda única. Neste contexto, a estabilidade da carga fiscal não
está já relacionada com o conceito de representação popular na escolha de bens e serviços públicos (e o
princípio da reserva de lei), mas com a necessidade de cumprir os compromissos assumidos junto dos
credores.”.
78
A ausência de um critério de decisão abre via para o arbítrio, com o consequente tratamento diferente de
situações equiparáveis, em violação do direito fundamental previsto no artigo 13º da CRP. São exemplos
de poderes desse tipo, entre outros, os de decidir “o critério considerado mais adequado” à determinação
da “parte dos gastos comuns a imputar” (nº. 2 do artigo 54º do código do IRC); os de “discordar dos
elementos declarados”, e de fixar nesse caso “os que entender adequados” (nº. 4 do artigo 35º do código
do IVA), de autorizar ou não a utilização de critérios de mensuração de rendimentos e gastos dos inventários
diferentes dos previstos na lei (nº. 6 do artigo 26º do código do IRC); de autorizar ou não a alteração dos
critérios de mensuração de rendimentos e gastos dos inventários face aos utilizados em anteriores períodos
de tributação (nº. 2 do artigo 27º do código do IRC); de autorizar ou não a sujeição a deperecimento de
ativos ainda não entrados em funcionamento ou utilização (nº. 4 do artigo 29º do código do IRC); de
autorizar ou não a adoção pelo sujeito passivo de métodos de depreciação e amortização, de que resulte a
aplicação de quotas de depreciação ou amortização superiores às previstas na lei (nº. 3 do artigo 30º código
do IRC); de autorizar ou não a alteração de métodos de depreciação e amortização (nº. 2 do artigo 31º-A
do código do IRC), etc..
__________________________________________________________________________________________________________________
interesse público79. Daí que por vezes o legislador, face à maior capacidade técnica e de
meios da administração e à sua natural proximidade aos casos concretos, diminua
intencionalmente a densidade da norma, reconhecendo implicitamente por essa via a
existência de um núcleo essencial da função administrativa 80.
Como a obscuridade das leis fiscais afeta o cálculo do montante dos rendimentos
líquidos dos particulares e o valor dos seus ativos, as diminuições intencionais no grau de
predeterminação das leis devem ser excecionais e respeitar os princípios da reserva de lei
parlamentar e da segurança jurídica, de modo a assegurar pelo menos um grau mínimo de
determinação quanto aos encargos futura ou potencialmente esperados. Essencial é que
seja garantido um grau de determinação das normas fiscais que deixe os agentes
económicos, tanto quanto possível entregues apenas aos riscos do mercado, evitando que
os riscos fiscais anulem a racionalidade económica das suas escolhas. Por isso tem-se
entendido que o legislador fiscal deve pelo menos assegurar que os contribuintes possam
entender e prever81, ainda que de forma aproximada, o valor das posições que ocupam, e
formar uma razoável expectativa quanto aos encargos e os benefícios inerentes ao valor
dos seus ativos, e aos tribunais a possibilidade de controlar a sua legalidade 82. Nestas
condições, o princípio da legalidade tributária ficará violado se uma menor determinação
das normas implicar incertezas quanto aos encargos fiscais que contaminem ou dificultem
a capacidade de os agentes económicos avaliar e assumir os riscos normais do mercado,
a ponto de tornar os comportamentos de desinvestimento mais atrativos que os de
investimento.
A criação destes espaços de livre apreciação, e em certos casos de livre decisão,
são um sintoma de uma maior agressividade da luta contra a fraude e evasão fiscais,
79
BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa,
1995, pp. 31-32.
80
Como refere BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão
Administrativa, 1995, pp. 42-65, as razões para esta reserva de administração não se ficam por aqui,
encontrando ainda fundamentos na Constituição, seja no conceito material de lei por ela perfilhado,
tendencialmente material ou normativo (nº. 2 do artigo 18º e nº. 1 do artigo 49º da CRP), no princípio da
separação de poderes (artigos 2º e 111º da CRP), na conceção de uma administração prestadora e eficiente
(artigo 5º do CPA e al. c) do artigo 81º, nº. 2 do artigo 198º, al. c) do artigo 199º, nº. 2 do artigo 267º e no
nº. 2 do artigo 266º da CRP) e na legitimidade democrática, direta e indireta, de alguns órgãos da
administração (nº. 2 do artigo 235º, nº. 1 e 2 do artigo 239º, nº.2 do artigo 245º e 251º da CRP).
81
ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal – Lições, 2ª ed., 2017, p. 136.
82
Citando jurisprudência do TC, ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, 2ª ed., 2017, pp. 150-157.
__________________________________________________________________________________________________________________
83
ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal – Lições, 2ª ed., 2017, p. 155, defendendo que as exigências de
praticabilidade e da igualdade possível implicam que os tribunais devam aceitar a concretização ou
interpretação da administração desde que ela seja uma interpretação plausível de conceitos indeterminados
relativos a normas de quantificação de elementos da matéria tributável,
84
PAULO OTERO Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, p. 144.
85
Como ensina ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal: Lições, 2ª ed., 2018, p. 96, a propósito da
indeterminação legal das regras sobre preços de transferência, “os acordos entre o fisco e contribuinte,
nestes casos, são importantes para evitar o prolongamento do litígio e o desfecho incerto, se o caso for a
__________________________________________________________________________________________________________________
tribunal, dada a indeterminação legal e a grande margem livre apreciação existente. Mas dado que todas
as soluções devem ser encontradas dentro dessa margem de livre apreciação, não se pode dizer que haja
uma alteração dos elementos essenciais da relação jurídica pelas “partes”. Em caso de litígio não
resolvido por acordo entre o fisco e o contribuinte, cabe aos Tribunais controlar os limites internos e
externos da margem de livre apreciação e ir criando uma jurisprudência constante que concretize o
princípio (por tipificação)”. Ver ANA PAULA DOURADO, O Princípio da Legalidade Fiscal, 2007, pp. 571
e segs. e JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, pp 336-337.
86
ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, Lições, 2ª ed., 2017, p. 117.
__________________________________________________________________________________________________________________
Poder-se-ia desde logo afirmar em resposta a esta questão que, sendo a tributação
um espaço de regulação reservado ao parlamento, a constitucionalidade das normas
fiscais é assegurada pelo próprio funcionamento do processo legislativo e pelos
mecanismos de controlo dessa atividade. A produção normativa em ambiente de reserva
de lei parlamentar criaria a presunção de que as soluções consagradas foram
adequadamente ponderadas de acordo com os parâmetros constitucionais e com os
princípios que dão coerência ao sistema. Segundo este raciocínio, a administração
presumirá que cada norma a aplicar já inclui em si mesma uma ponderação individual
excludente da iniquidade e conforme ao quadro jurídico-constitucional no âmbito da qual
se formou.
É verdade que a reserva material de lei parlamentar legitima politicamente a
administração e esclarece os termos da sua intervenção, conferindo-lhe previsibilidade e
fazendo presumir que a lei a aplicar é um critério ordenador axiologicamente conforme
com a Constituição89. No entanto, esta reserva de lei desacompanhada de princípios
87
Como refere JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2017, p. 51, o princípio
da determinidade de conteúdo, sendo manifestação específica da reserva parlamentar, ao exigir uma
densidade legal acrescida e por conseguinte, uma vinculação mais intensa da atividade administrativa, tende
a excluir a atribuição de poderes discricionários.
88
SÉRGIO VASQUES, Manual, de Direito Fiscal, 2ª ed., 2018, p. 76:
89
PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, p. 138. A administração está
vinculada ao acatamento da lei sendo que só a título excecional, como é o caso o das leis que violem
ostensivamente direitos fundamentais diretamente aplicáveis, poderão os órgãos administrativos desaplicar
as normas que servem de fundamento à sua ação por inconstitucionalidade, o que pode implicar a prática
de atos feridos de ilegalidade derivada por inconstitucionalidade.
__________________________________________________________________________________________________________________
materiais não chega para assegurar a justiça material dos casos concretos 90, sobretudo nos
tempos que correm, em que a administração assume um papel cada vez mais relevante na
conformação da textura aberta das normas fiscais aos casos concretos.
90
DIOGO LEITE DE CAMPOS e MÔNICA LEITE DE CAMPOS Direito Tributário, 1996, p. 88; JOSÉ CASALTA
NABAIS, Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, p. 141.
91
Nas palavras de JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2017, p. 25,
“multiplicação exponencial de normas jurídicas”; ROGÉRIO SOARES referia-se a “motorização” ou
“inflação” legislativa, Direito Público e Sociedade Técnica, 2008, pp. 134 e segs.
92
O nºs. 2 e 3 do artigo 8º da CRP aceita a primazia do direito comunitário, originário e derivado sobre a
legislação interna. Neste sentido GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª
ed., 2003 pp. 825 e segs.; FAUSTO DE QUADROS, Direito da União Europeia, 2008, p. 400 e segs,
JOÃO SÉRGIO RIBEIRO Direito Fiscal da União Europeia, p. 29. Ver ainda o acórdão do STA de
29/02/2012 (proc. 01017/11), onde se refere que “desta primazia resulta então que não podem ser aplicadas
normas de direito interno que contrariem normas de direito comunitário”.
93
Trata-se de contradições de valores e princípios que perturbam a unidade e a adequação do sistema
CLAUS WILHELM CANARIS Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito, 1989
pp 200-201.
94
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2017, p. 50.
95
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed. p. 31.
__________________________________________________________________________________________________________________
96
Para GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 2003 p. 1159, o sistema
jurídico deve hoje ser entendido como um sistema normativo aberto de regras e princípios.
97
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2017, p. 26.
98
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2017, pp. 50 e 25.
99
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 343. Um claro sinal deste movimento
foi recentemente protagonizado pelo legislador na alteração introduzida no artigo 43º nº. 3 da LGT, feita
através da Lei nº. 9/2019 de 1 de fevereiro e comentada por I ARA MARQUES FREITAS e MARIANA
MENDONÇA SARAIVA em “O direito a juros indemnizatórios em caso de inconstitucionalidade da norma
aplicada e o erro imputável aos serviços”, in Revista Eletrónica de Fiscalidade da AFP (2019) Ano I-1.
__________________________________________________________________________________________________________________
100
Como estabelece o nº. 3 do artigo 6º do TUE: “Do direito da União fazem parte, enquanto princípios
gerais, os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos
do Homem e das Liberdades Fundamentais e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos
Estados-Membros”. E o seu artigo 2º: “A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana,
da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem,
incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros,
numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a
solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.”.
101
PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, p. 141. Aliás, como refere JOÃO
CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, 10ª. ed., 2009, pp. 91-92, a vinculação da administração
à juridicidade é materialmente feita por duas vias: através de vinculações absolutas ou rígidas, estabelecidas
através de normas jurídicas que, quando contrariadas, invalidam a decisão; e as vinculações relativas ou
flexíveis tendo como parâmetro princípios jurídicos que funcionam como padrões de otimização da
atividade administrativa, envolvendo a necessidade de soluções de ponderação tais como o princípio da
prossecução do interesse público, do respeito por direitos e interesses protegidos dos cidadãos, os princípios
da igualdade, da proporcionalidade, da imparcialidade, da boa fé e da justiça.
__________________________________________________________________________________________________________________
resulta do citado nº. 2 do artigo 266º da CRP, que coloca os órgãos e agentes
administrativos em subordinação “à Constituição e à lei” e do nº. 1 do artigo 3º do CPA,
ao impor que os órgãos da Administração Pública atuem “em obediência à lei e ao
direito”102.
Assim, da administração não se exige apenas que entenda os textos legais, mas
que tome conhecimento da legalidade das suas atuações. Como protagonista ativo na
realização do Direito, da administração exige-se que assuma como primeiro momento do
exercício da sua atividade a interpretação da lei e da Constituição, para delas extrair o
programa de realização do interesse público que fundamenta e orienta a sua atuação. O
carácter absoluto da lei como vetor da atividade administrativa depende da sua
conformidade com os parâmetros e princípios gerais da atividade administrativa de nível
superior, tais como os da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade
e da boa-fé (nº. 2 do artigo 266º da CRP), o que obriga à desaplicação da lei sempre que
as soluções nela contidas conduzam a resultados inconstitucionais103, manifestamente
iníquos ou injustos104, sem prejuízo do controlo judicial da constitucionalidade das
soluções legislativas e da validade das atuações da administração 105.
102
A Autoridade Tributária e Aduaneira, que de acordo com o nº. 1 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º
118/2011, de 15 de dezembro, “é um serviço da administração direta do Estado dotado de autonomia
administrativa”, que nos termos da al. a) do nº. 1 do artigo 7º do mesmo diploma, rege-se, entre outros,
pelo “princípio da legalidade, que implica que a prossecução das suas atribuições deve pautar-se pela
rigorosa observância das disposições legais e no respeito pelas garantias dos contribuintes”.
103
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2017, p. 51.
104
Para PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 321 a valorização de uma
conduta administrativa alicerçada no principio geral da justiça é uma decorrência indispensável da conceção
personalista de interesse público, implicando que todas as decisões da administração tenham em conta os
resultados concretos da sua atuação, exigindo-se, por via dessa ponderação, que seja assegurada a
compatibilidade dos seus atos com os princípios de justiça material do Estado de Direito, tais como a
proporcionalidade, a tutela da confiança, a igualdade ou a proibição do arbítrio.
105
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 361.
106
PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, pp. 137-138.
__________________________________________________________________________________________________________________
107
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 435
108
MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, Lisboa, I, 1994/95, p. 105, FREITAS DO
AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2001, p. 48, BERNARDO AYALA, O (Défice de) Controlo
Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa, 1996, p. 74, PAULO OTERO, Direito do Procedimento
Administrativo, Vol. I, 2016, p. 146.
109
Apesar da juridicidade conformar toda a atividade do Estado, focar-nos-emos ao longo deste estudo na
vinculatividade da atividade de gestão fiscal a este princípio, que é a atividade de Direito Público que em
primeira linha procede à aplicação das normas de Direito fiscal material, independentemente de tal
aplicação ser realizada pela administração ou por particulares.
110
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, pp. 181-182. Como veremos, a
supremacia da Constituição implica que a validade dos atos do Estado e de quaisquer entidades públicas
depende da sua conformidade com a Constituição (nº. 3 do artigo 3º da CRP).
__________________________________________________________________________________________________________________
111
GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 2003, pp. 431-432.
112
Ideia que já constava da carta constitucional de 1826, cujo § 14 do artigo 145º determinava que as
contribuições dos cidadãos para as despesas do Estado, devia ser feita “em proporção dos seus haveres”.
__________________________________________________________________________________________________________________
materiais intrínsecos da ordem jurídica do Estado fiscal113. E deve fazê-lo nas suas três
vertentes: (i) na vertente universal ou solidarista, na medida em que, salvaguardado o
mínimo existencial e sem prejuízo da consideração fiscal da família 114, todos devem
contribuir, (ii) na vertente da uniformidade, porque tendo todos a mesma dignidade, todos
devem contribuir segundo o mesmo critério, assim se excluindo a existência de diferentes
classes de pagadores; e (iii) na vertente garantística ou da capacidade contributiva, na
medida em que a tributação deve respeitar a capacidade de cada um para contribuir. Esta
regra da tributação na medida da capacidade contributiva é aliás uma decorrência lógica
da conjugação da regra da igualdade de todos os cidadãos perante a lei aplicada aos
impostos, com a sua vertente negativa de não-discriminação (nº. 2 do artigo 13º da CRP),
já que tributar a todos segundo um mesmo critério e sem discriminação em razão da
situação económica ou condição social, é tributar na medida da capacidade
contributiva115.
O princípio reforçado da juridicidade fiscal impõe assim a igualdade como critério
material intrínseco, ordenador de toda a tributação, princípio que podemos designar por
princípio da generalidade da tributação segundo a capacidade contributiva 116.
113
JOSÉ CARDOSO DA COSTA, “O Princípio da Capacidade Contributiva no Constitucionalismo Português
e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, BCEUC, Vol. LVII tomo I, 2014, p. 1169. Sobre este
princípio ver, entre outros, JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, pp. 435
e segs., e Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, pp. 154 e segs., e NUNO DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal,
Vol. II, 9ª ed., 2000, pp. 200 e segs..
114
A salvaguarda de um mínimo de existência económica abaixo do qual não é legítimo ao Estado tributar
é uma decorrência do primado da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da CRP) e do princípio da
consideração fiscal da família, resultante do nº. 1 do artigo 104º da CRP.
115
Para GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed.,
2007, p. 1093, constituindo a obrigação fiscal um sacrifício legalmente imposto à esfera patrimonial dos
cidadãos, pode colocar-se o problema da sua imposição dever respeitar, por analogia os limites às restrições
a direitos fundamentais, e obedecer por isso a um critério de proporcionalidade, que impede a criação de
impostos arbitrários.
116
Este princípio encontra-se formulado no nº. 1 do artigo 4º da LGT nos seguintes termos: “Os impostos
assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento
ou da sua utilização e do património”.
__________________________________________________________________________________________________________________
inconstitucionais serem em princípio eficazes até a sua invalidade ser declarada pelo
TC117, sendo a administração responsável pela juridicidade da sua atuação, não deveria
ser obrigada a aplicá-las.
Tradicionalmente tem-se argumentado, na linha da supremacia do poder
legislativo, que a administração está vinculada a uma estrita obediência à lei, não estando
na sua disponibilidade o exercício de uma competência genérica de desaplicação de
normas inconstitucionais, salvo em situações manifestamente excecionais 118. Os autores
que defendem esta posição baseiam-na na circunstância de a desaplicação das normas
inconstitucionais ser uma competência atribuída aos tribunais (artigo 204º da CRP), sendo
por isso vista como uma reserva absoluta de fiscalização da constitucionalidade, que a ser
exercida pela administração, implicaria uma violação do princípio da separação de
poderes (nº. 1 do artigo 111º da CRP)119. De acordo com este entendimento, a
administração está impedida de recusar a aplicação de uma norma contida num ato
legislativo com fundamento na sua inconstitucionalidade, encontrando-se por isso por
vezes vinculada a praticar atos inválidos120.
Ainda assim, a maioria da doutrina nacional tem optado por uma posição
intermédia121, considerando que em certos casos a desaplicação de lei inconstitucional
deve ter-se por compreendida na genérica subordinação da administração à Constituição,
à lei e ao Direito (nº. 2 do artigo 266º da CRP e nº. 1 do artigo 3º do CPA). Neste sentido,
é defendida a teoria da competência de rejeição limitada, por via da qual aos órgãos da
administração é permitido o acesso à Constituição, com o consequente poder de rejeição
117
De notar que a Constituição habilita que atos inconstitucionais praticados pela administração publica
produzam alguns efeitos quando a isso obrigarem razoes de segurança jurídica, equidade ou interesse
público de excecional relevo o exigirem (nº. 4 do artigo 282º da CRP.
118
Neste sentido, BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre decisão
Administrativa, 1995, p. 76. Como exemplos de autores que defendem este entendimento, PAULO OTERO,
Legalidade e Administração Pública, 2003, p. 668, cita MARCELO REBELO DE SOUSA, MÁRIO ESTEVES DE
OLIVEIRA e FERNANDO ALVES CORREIA. No mesmo sentido vai o Parecer da PGR nº. 20/2010-C de
15/03/2013.
119
De acordo com a o princípio da separação de poderes, cada um dos poderes do Estado não pode invadir
o núcleo essencial do sistema de competências caracterizador de outra função. A violação do princípio da
separação de poderes dá origem a atos com vicio de usurpação de poderes, que serão então nulos (al. a) do
nº. 2 do artigo 161º do CPA).
120
PAULO OTERO Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 377 e Direito do Procedimento
Administrativo, Vol. I, 2016, p. 147.
121
Apenas RUI MEDEIROS, A Decisão de Inconstitucionalidade, 1999, p. 149 e segs. e ANDRÉ SALGADO DE
MATOS, A Fiscalização Administrativa da Constitucionalidade, 2004, pp163 e segs. admitem a existência
de um poder genérico de fiscalização da constitucionalidade a cargo da administração.
__________________________________________________________________________________________________________________
122
Neste sentido, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 2003, p.
941. Em sentido semelhante, JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição de
1976, 5ª ed, 2012 pp. 200-205, admitindo a desaplicação irrestrita da lei inconstitucional em caso de
inconstitucionalidade evidente, em casos de inconstitucionalidade material quando resulte de um equilíbrio
ponderado dos interesses em jogo, devendo o órgão ponderar o equilíbrio da decisão de desaplicação e
decidir-se pela que considere menos onerosa. Para este autor, a administração não deverá desaplicar a norma
inconstitucional se a sua suspensão for viável e reservar a desaplicação aos órgãos superiores. Também
JOSÉ CASALTA NABAIS, “Os direitos fundamentais na jurisprudência do tribunal constitucional”, BFDC,
nº. 65, 1989, p. 23, admite a competência de desaplicação no que diz respeito a normas evidentemente
inconstitucionais.
123
PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, 2003, p. 671, Manual de Direito Administrativo,
Vol. I, 2013, p. 377 nota 1221 e Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, p. 139, nota 569.
124
A este respeito, merece nota a posição que, como nota ANDRÉ SALGADO DE MATOS, A fiscalização
administrativa da constitucionalidade, 2004, p. 159, foi manifestada pelo TC nos seus acórdãos nºs. 24/85
e 304/85. Para este Tribunal, se por um lado, do nº. 2 do artigo 266º da CRP decorre a “adstrição da
administração à lei fundamental, quando ela se lhe refere imediatamente, e à lei, quando esta se coloca
como parâmetro de referência entre a própria constituição e a atividade regulamentar”, sustentando por
isso que “à administração é proibido desobedecer à lei por inconstitucionalidade”, parece por outro lado
nos mesmos acórdãos defender mais adiante a teoria da desaplicação limitada, ao afirmar que “a
Constituição, ao dispor sobre a atividade regulamentar da administração, e sempre que esta não tenha de
a aplicar diretamente (…), exige, pois, que os seus órgãos e agentes tomem por vetor da jurisdicidade dos
seus atos pura e simplesmente a lei”.
__________________________________________________________________________________________________________________
125
O Direito da União Europeia tem como destinatários não só os Estados Membros mas igualmente os
seus nacionais, de acordo com a teoria do ato claro, como decidido nos casos Van Gend & Loos (de 05-02-
1963, proc. C-26/62) e Van Duyn (de 04/12/1974, proc. C-41/74), e jurisprudência subsequente do TJUE.
126
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 378 nota 1223.
__________________________________________________________________________________________________________________
6.6.1. Será porventura devido a estas perplexidades resultantes das relações entre
lei e Constituição, ainda não completamente resolvidas pela reconfiguração do princípio
da legalidade em princípio da juridicidade, que a Constituição fiscal formal tenha
procedido à qualificação deste princípio, promovendo-o a um princípio reforçado de
juridicidade tributária, ao associar-lhe o direito subjetivo público127 de carácter análogo
aos direitos, liberdades e garantias dos particulares a um certo conteúdo da lei fiscal128.
Em matéria de impostos a Lei Fundamental constitui a administração no dever de
desaplicar as normas de Direito fiscal material129 que não tenham sido criadas nos termos
127
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed, 2002, p. 31.
128
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, p. 55.
129
Como refere SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, p. 55, estamos perante
“princípios constitucionais que vão também criar, do ponto de vista metodológico, um sistema interno no
ordenamento jurídico-tributário (…) estes princípios de justiça material que devem estrutural a lei fiscal,
dão uma nova e reforçada expressão ao princípio da legalidade.”.
__________________________________________________________________________________________________________________
6.6.2. Não faz por conseguinte sentido que, ao mesmo tempo em que
reconhecemos à administração a função de dizer o Direito dos casos concretos, hesitemos
em aceitar a sua capacidade para tomar posição sobre a conformidade das normas que
servem de base legal à sua atuação. A vinculação da atividade administrativa ao Direito
exige que a administração transcenda a metodologia subsuntiva, acriticamente presa a
uma legalidade subordinante, reclamando o seu papel de executora da lei e do Direito e
resolvendo eventuais antinomias normativas e valorativas, com respeito pelas posições
jurídicas dos particulares e o recurso a critérios de otimização que conferem unidade ao
sistema132. Deve ser este o paradigma de uma administração pública submetida ao poder
legislativo e comprometida com a implementação das imposições constitucionais,
130
Como refere PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 120, o direito de
resistência investe os particulares na faculdade de não acatarem ordens que ofendam os seus direitos
liberdades e garantias bem como de repelirem pela força qualquer agressão, sempre que o recurso à
autoridade pública não for possível ou eficaz.
131
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, p. 31. No mesmo sentido, caracterizando o direito a
apenas pagar impostos criados nos termos da Constituição e cuja liquidação e cobrança se faça nos termos
da lei como direito fundamental de natureza análoga, ver JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ª ed., 2012, p. 81, GOMES CANOTILHO, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 2003, p. 405, JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, tomo IV, 3ª ed., 2000, p. 151, JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar
impostos, 1997, p. 186, nota 5, SALDANHA SANCHES, O ónus da prova no processo fiscal, Lisboa, 1987, p.
5.
132
JOÃO CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, 10º ed., 2009, p. 92; PAULO OTERO, Manual de
Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 436. Ao contrário das normas que se excluem mutuamente os
princípios baseiam-se numa convivência conflitual sem pretensão de exclusividade.
__________________________________________________________________________________________________________________
7. CONCLUSÃO
133
BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa,
1995, pp. 78-80.
__________________________________________________________________________________________________________________
134
A subordinação da atividade administrativa à lei e ao Direito imposta pelo princípio da juridicidade
implica uma vinculação à ideia de Direito e a uma conceção social de justiça excludente da prepotência, do
arbítrio e da atuação administrativa injusta, da invalidade da atuação contrária à juridicidade e a obrigação
de proceder à reposição da legalidade violada. PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I,
2013, p. 352.
135
Nas palavras de ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª ed., 1996, pp. 18 e 68, “A
obrigação, com todos os poderes e deveres que se enxertam no seu tronco, pode mesmo considerar-se como
um processo (conjunto de atos logicamente encadeados entre si e subordinados a determinado fim)
conducente ao cumprimento”.