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A CONSTITUCIONALIDADE

DO REGIM E DO PAGAM ENTO ESPECIAL POR CONTA


Com as alterações introduzidas pela Lei nº. 32-B/ 2002 de 30 de Dezembro

José João de Avillez Ogando *

SUMÁRIO:
I. Introdução; II. Caracterização do pagamento especial por conta; 1.
Evolução; 2. Enquadramento actual; 3. Regime sancionatório; III. Apreciação
da constitucionalidade do pagamento especial por conta; 1. Alguns
princípios constitucionais em matéria fiscal; 2. O objecto do imposto sobre o
rendimento das pessoas colectivas; 3 A inconstitucionalidade do pagamento
especial por conta; IV. Conclusão.

I. Introdução

O pagamento especial por conta foi introduzido entre nós pelo


Decreto-Lei nº. 44/ 98 de 3 de Março e consiste num pagamento por conta
do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) que se vier a
liquidar, a efectuar durante o ano a que respeitam os rendimentos objecto
de tributação, tendo por medida os rendimentos do ano anterior,
configurando-se ainda como sendo um pagamento especial, ou seja, com a
finalidade de assegurar a favor do Estado um quantitativo de imposto
calculado em função da colecta expectável por empresas que observam
rácios de rentabilidade considerados normais.

Trata-se assim de um adiantamento obrigatoriamente feito ao


Estado pelas pessoas colectivas que exerçam a título principal uma
actividade comercial, industrial ou agrícola, bem como pelas não
residentes com estabelecimento estável em território português, desde que
em qualquer caso não estejam abrangidas pelo regime simplificado de
tributação do rendimento.

*O autor é Advogado da sociedade de advogados Seabra, Gonçalves Ferreira, Cunha e


Associados.

1
A génese e o desenvolvimento desta figura, que pretende ser uma
forma de pagamento do imposto apurado a final, esteve envolta em
polémica porquanto as suas características apontavam para a instituição
de uma colecta mínima das empresas, como forma de dotar o Estado de
um mecanismo adicional de combate às práticas de evasão fiscal,
essencialmente materializadas em sede de IRC pela ocultação de
rendimentos e ou da empolação de custos. Com a sua introdução no
ordenamento jurídico-tributário português pretendeu o Legislador
combater as graves distorções em matéria de equidade e justiça tributária,
enquanto se aumentava a eficácia económica do Estado.

Nos termos do preâmbulo do citado Decreto-Lei – que


curiosamente inicia com a proclamação “ o presente diploma reduz a taxa do
IRC em 2 pontos… ” – uma das virtualidades do pagamento especial por
conta consiste no facto de permitir aproximar o momento da produção do
rendimentos da sua tributação, o que também não deixa de ser curioso, já
que na altura de efectuar este pagamento, em Março, ainda não estão
decorridos três quartos do período de tributação, sendo isso sim, uma
forma de tributação das empresas à cabeça, cobrada antes mesmo da
formação dos elementos sobre os quais será apurada a matéria colectável
que eventualmente se venha a verificar.

II. Caracterização do pagamento especial por conta

1. Evolução

O pagamento especial por conta entrou em vigor entre nós com a


caracterização que lhe foi dada, como se disse, pelo Decreto-Lei nº. 44/ 98,
nos termos do qual era determinado com base na diferença entre o valor
de 1% do volume de negócios correspondente a vendas e prestações de
serviços prestados durante o ano anterior, com os limites mínimo de Esc.
100.000$00 (€ 498,80) e máximo de Esc. 300.000$00 (€ 1.496,39), e o
montante dos pagamentos por conta efectuados durante o ano anterior.

2
Assim configurado, o pagamento especial por conta esquematiza-se da
seguinte forma:

PEC = 1% Volume Negócios – Pagamentos por Conta


(€ 498,80 < PEC < € 1.496,39)

A entrega de pagamento especial por conta vencia-se no mês de


Março altura em que era em princípio pago de uma só vez, com a
possibilidade de o sujeito passivo optar pela faculdade de proceder à sua
entrega em duas prestações, nos meses de Março e Outubro, ou nos 3º e
10º meses do período de tributação, no caso de se tratar de sujeitos
passivos cujo período de tributação não fosse coincidente com o ano civil.

A sua recuperação processava-se por dedução à colecta do próprio


exercício e até ao exercício seguinte e ou por reembolso da parte não
deduzida por insuficiência de colecta mediante requerimento apresentado
nos 30 dias seguintes ao termo do prazo de apresentação da declaração
periódica de rendimentos relativa ao último exercício ou, em caso de
cessação de actividade, da declaração do período em que esta ocorrer.

A lei consagrava ainda uma dispensa de efectuar pagamento


especial por conta por parte das sociedades, no respectivo ano de início de
actividade.

Nestes termos, o regime do pagamento especial por conta tal como


se encontrava concebido inicialmente, apontava pelo menos formalmente
para um verdadeiro pagamento por conta do imposto devido a final, uma
vez que a lei previa a possibilidade de solicitar a sua restituição, sempre
que a colecta efectivamente apurada fosse insuficiente para a integral
absorção do montante entregue em excesso.

Com a entrada em vigor da Lei nº. 30-G/ 2000 de 29 de Dezembro,


estendeu-se o período de dedução à colecta até ao quarto exercício
seguinte, tendo-se prejudicado a configuração original do pagamento
especial por conta como um pagamento por conta, com a redução da
possibilidade de reembolso do montante não absorvido pela colecta de

3
anos posteriores, limitada apenas a situações de cessação de actividade.
Neste caso, o sujeito passivo podia unicamente reaver o montante em
excesso dos pagamentos especiais por conta efectuados nos três anos
anteriores à cessação, mediante requerimento a apresentar nos 90 dias
seguintes ao da cessação da actividade.

Assim, a reforma então introduzida e que vigorou entre nós


durante os exercícios de 2001 e 2002, permitiu que – fora das situações de
cessação da actividade – a única forma de recuperação de pagamento
especial por conta pago em excesso seria a da dedução à colecta do
próprio exercício e até ao quarto exercício seguinte, o que não deixa de se
tratar de uma vantagem meramente aparente, já que apesar de o
contribuinte passar a poder imputar o pagamento especial por conta em
quatro exercícios, a verdade é que em cada um deles realizará entregas
substanciais de pagamento especial por conta, que serão igualmente
associadas às colectas dos exercícios a que digam respeito 1.

Assim, de um pagamento por conta, o pagamento especial por


conta configurado desta forma apresentava-se como uma verdadeira
colecta mínima, desconsiderando o princípio constitucional da tributação
das empresas fundamentalmente com base no lucro real obtido,
penalizando essencialmente as empresas que apresentassem reduzidos ou
nulos resultados fiscais.

Com a aprovação do Orçamento de Estado para 2003, aprovado pela


Lei nº. 32-B/ 2002 de 30 de Dezembro, o pagamento especial por conta
passou a ter a seguinte caracterização:

1 Resta saber qual a política da administração tributária quanto à ordem por que serão
deduzidos em cada exercício, os pagamento especiais por conta não integralmente
deduzidos em exercícios anteriores por insuficiência de colecta apurada. A redacção do
nº. 1 do artigo 87º sugere que seja feita primeiro a dedução do pagamento especial por
conta do próprio exercício a que respeita, seguindo-se os restantes, em caso de
insuficiência da colecta, até ao quarto exercício anterior. No entanto parece-nos que a
dedução dos restantes deverá ser feita por ordem de antiguidade.

4
a) o montante do pagamento especial por conta é igual à diferença
entre o valor correspondente a 1% dos respectivos proveitos e
ganhos do ano anterior, com o limite mínimo de € 1.250 e máximo
de € 200.000, e o montante dos pagamentos por conta efectuados no
ano anterior2;

b) as sociedades passam a estar dispensadas de efectuar este


pagamento no ano de início de actividade e no seguinte3;

c) o reembolso é possibilitado mediante dedução à colecta líquida


apurada do exercício em curso, e até ao quarto exercício seguinte,
sendo que na parte que não tenha sido possível deduzir por
insuficiência das colectas apuradas, a possibilidade de reembolso
encontra-se condicionada às seguintes condições4:

i. os sujeitos passivos em causa não sejam susceptíveis de ser


abrangidos pelo regime simplificado de tributação;

ii. tenham tido, no exercício a que diz respeito o pagamento


especial por conta a reembolsar, uma rentabilidade igual a
pelo menos 90% da média dos rácios de rentabilidade das
empresas do sector de actividade em que se inserem;

iii. a insuficiência de colecta que deu origem ao reembolso seja


justificada pelo sujeito passivo perante a Administração
Tributária; e

iv. seja requerida para o efeito uma acção de inspecção tributária


nos 90 dias seguintes ao termo do prazo de apresentação da
declaração periódica de rendimentos do quarto exercício

2 Fazendo correspondência com o esquema anterior:


PEC = 1% Proveitos e Ganhos – Pagamentos por Conta
(€1.250 < PEC < € 200.000).
3 Cf. nº. 4 do artigo 98º do Código do IRC.
4 Cf. nº. 3 do artigo 87º do Código do IRC.

5
seguinte àquele a que o pagamento especial por conta diz
respeito 5.

Com a recente aprovação do Decreto-Lei nº. 129/ 2003 de 26 de


Junho, o legislador, ainda preocupado com o combate às práticas evasivas
de ocultação de rendimentos e de empolamento de custos, geradoras de
graves distorções dos princípios da equidade e da justiça tributária, da própria
eficiência económica, e fazendo agora referência ainda ao princípio da
estabilidade tributária, veio mais uma vez, tendo em conta a particular
conjuntura económica e a situação financeira em que actualmente se
encontram a maioria dos sujeitos passivos, alterar o regime do pagamento
especial por conta no que diz respeito ao horizonte temporal para a sua
entrega nos cofres do Estado, e possibilitando a sua limitação pelos
sujeitos passivos, ao montante que, segundo os dados de que disponham,
prevejam venha a ser absorvido pela colecta esperada.

Assim este diploma estabelece no seu artigo 1º que nos casos em


que o pagamento especial por conta apurado nos termos do nº. 2 do artigo
98º do Código do IRC seja igual ou inferior6 a € 1.250, deve ser pago
integralmente nos meses de Junho e Novembro. Caso pelo contrário, o
pagamento especial por conta a realizar pelo sujeito passivo seja superior
ao mínimo legal, deve o respectivo pagamento ser feito da seguinte forma:
o montante de € 1.250 acrescido de 20% do valor que excede aquele
montante ser pago nos meses de Junho e Novembro de 2003, devendo o
remanescente ser pago no mês de Fevereiro de 2004.

5Não obstante o que sobre este ponto diz o n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC, veio o
Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, através do Despacho d nº. 1553/ 2003-
XV de 18 de Junho, a permitir que “ os sujeitos passivos, não abrangidos pelo regime de
tributação previsto no artigo 53º do mesmo diploma, podem solicitar o reembolso, no exercício
seguinte àquele a que respeita, da parte do pagamento especial por conta que não tenha sido
deduzida à colecta do exercício de 2003, desde que preenchidos, cumulativamente, os requisitos
constantes das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 87º do Código do IRC.” .
6 Será inferior a € 1.250 sempre que o for a diferença entre o valor correspondente a 1%

dos proveitos e ganhos do ano a que respeita e o montante dos pagamentos por conta
efectuados no ano anterior.

6
2. Enquadramento actual

Quanto a principais alterações de regime, temos desde logo a


ampliação da base de incidência, que deixa de se referir ao volume de
negócios para passar a incidir sobre totalidade dos proveitos e ganhos
obtidos pela empresa durante o ano anterior. Surge no entanto a questão
de saber se, para efeitos da determinação do quantitativo em concreto do
pagamento especial por conta, são ou não tidos em consideração todo o
tipo de ganhos, incluindo aqueles que não têm relevância no âmbito da
tributação pelo lucro real, seja por configurarem meras expectativas, como
sucede com os proveitos decorrentes da aplicação do método da
equivalência patrimonial, seja por se encontrarem isentos ou sujeitos a um
regime especial de tributação.

Parece-nos que não. Como se disse, o pagamento especial por conta


é antes de mais um pagamento por conta do imposto que se vier a
liquidar em função das regras de determinação da matéria colectável em
IRC, configurando-se ainda como sendo especial, ou seja, com específicas
finalidades de assegurar adiantadamente um quantitativo de imposto a
favor do Estado, calculado em função da colecta expectável por empresas
que observam níveis de rentabilidade considerados normais7.

Dada a sua função, e atendendo em especial ao elemento


sistemático e à unidade do sistema jurídico na determinação do exacto
sentido e alcance da norma que ora nos propomos analisar, o nº. 1 do
artigo 17º do Código do IRC fornece-nos uma definição de proveitos e
ganhos nos termos da qual consideram-se proveitos e ganhos os derivados de
operações de qualquer natureza, em consequência de uma acção normal ou
ocasional, básica ou meramente acessória, designadamente os resultantes de

7 Os rácios de rendibilidade económica considerados normais não são de todo razoáveis

para as sociedades portuguesas na actual conjuntura económica, presumindo-se uma


rentabilidade de cerca de 3,33% nas empresas que apresentem um volume anual de
proveitos e ganhos até € 20.000.000,00, e permitindo às que apresentem volumes
superiores, de apresentar inferiores rentabilidades dos proveitos e ganhos antes de
impostos.

7
operações elencadas nas diversas alíneas desse mesmo artigo. Sucede
porém que como foi dito, existem proveitos e ganhos que não concorrem
para a determinação do lucro tributável ou que dele estão afastados em
virtude de isenção de tributação ou de outro benefício fiscal. Dada a
função instrumental do pagamento especial por conta de pagamento por
conta da colecta que se vier a apurar relativa ao mesmo exercício, não
faria qualquer sentido que para efeitos de determinação do quantitativo
do pagamento especial por conta fossem relevados proveitos
expressamente desconsiderados pelo Legislador para esse efeito.

Um exemplo disto seria a inclusão na base de cálculo do


pagamento especial por conta, dos proveitos e ganhos decorrentes da
aplicação do método de equivalência patrimonial, expressamente
afastados da determinação do lucro tributável das empresas por força do
nº. 7 do artigo 18º do Código do IRC, como forma de evitar situações de
dupla tributação económica, já que faz reflectir a valorização de
participações sociais de outras sociedades, que são igualmente tributadas
nos seus rendimentos, em sede de IRC8.

8 Estamos portanto com MANUEL ANSELMO TORRES ao referir que “ os proveitos e

ganhos insusceptíveis de influenciar positivamente a colecta de IRC terão, forçosamente de se


considerar insusceptíveis de contribuir para a incidência dos respectivos pagamentos por conta” ,
sendo que as correcções ao resultado contabilístico determinadas por lei para o
apuramento do lucro tributável “ têm uma influência directa na colecta do imposto, pelo que
todas deverão ter a mesma influência na determinação do valor do pagamento especial por conta” ,
Incidência e Inconstitucionalidade do Pagamento Especial Por Conta do IRC, in revista FISCO,
p. 28.
Este entendimento foi acolhido pelo próprio Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais,
embora sem eficácia externa à Administração Pública, que através do Despacho nº.
1553/ 2003-XV veio explicitar que nos proveitos e ganhos a considerar no cálculo do
pagamento especial por conta, além dos rendimentos excluídos de tributação nos termos
dos artigos 11.º, 45.º e 46.º do Código do IRC, não se incluem as seguintes rubricas:
a) a variação da produção;
b) os trabalhos para a própria empresa;
c) os ganhos resultantes da aplicação do método de equivalência patrimonial;
d) a restituição de impostos não dedutíveis;
e) a redução de provisões não dedutíveis;
f) o excesso na estimativa para impostos.” (Cf. parágrafos 3 e 4 do despacho
citado).

8
Por outro lado, o pagamento especial por conta é um pagamento
por conta do imposto que se liquidar a final, e tem por base uma
rendibilidade estimada das empresas, diga-se optimista, de 3,33% ao ano e
não mais, tendo sido por essa razão que a taxa que acabou por ser
adoptada fosse de 1% e não de 1,5%, como estava prevista na proposta de
Lei de Orçamento de Estado para 2003, dada a difícil situação económica
que as empresas hoje enfrentam de uma forma generalizada. Estender a
definição de proveitos e ganhos para além daqueles que são considerados
pelo próprio Estado como relevantes para a fixação de rendimento
tributável, além de incoerente, seria ainda mais abusivo.

Outra alteração significativa introduzida com o Orçamento de


Estado de 2003, é a do aumento exponencial dos limites mínimo e máximo
do pagamento especial por conta que passam a ser respectivamente de €
1.250 e de € 200.000, esta sim geradora de obrigação de pagamento por
parte de muitos contribuintes de quantias totalmente desajustadas em
relação às colectas previsíveis de muitos contribuintes, especialmente
quando conjugadas com o alargamento da base de cálculo, e penalizando
em particular as empresas que registam elevados volumes de proveitos
associados a margens muito reduzidas.

Certamente dada a violência das duas alterações a que acima se faz


referência, que se deverá fazer sentir de uma maneira muito particular
pelas sociedades em início de actividade, optou o Legislador por
dispensá-las do pagamento especial por conta não só no ano de início de
actividade, mas também no ano seguinte.

Finalmente, temos a reintrodução da possibilidade de reembolso


do pagamento especial por conta não deduzido, esta também certamente
imposta pela violência quer do alargamento da base de cálculo quer do
aumento dos limites mínimo e máximo (este multiplicado para 134 vezes
o valor anterior), e que mediante a verificação de certas condições, poderá
em teoria materializar-se na recuperação de alguns dos montantes
indevidamente suportados pelos contribuintes. Desde logo quanto ao
primeiro dos requisitos acima mencionados, é de notar que não é dada

9
possibilidade ao sujeito passivo que apresente um rácio de rentabilidade
inferior a 90% da média dos rácios das empresas do sector, de eficazmente
apresentar justificação para tal divergência. O mesmo será dizer que as
empresas que apresentarem um desajustamento em termos de
rentabilidade superior a 10% ficam sem os montantes que entregaram a
mais ao Estado. Isto, mesmo que em acção de inspecção realizada para o
efeito, venha a ser obtida a certificação, por parte da Administração
Tributária, de que as colectas apuradas nos cinco anos anteriores ao
pedido de reembolso foram de facto insuficientes para absorver os
pagamentos por conta realizados. Somos contudo de opinião, de que aqui
estamos perante um verdadeiro confisco não assumido, aplicado por via
legislativa, às empresas que não apresentem rácios de rentabilidade
considerados desejáveis, apresentando a lei neste aspecto particular clara
inconstitucionalidade por objectiva violação ao princípio do direito de
propriedade privada expressamente consagrado no artigo 62º da
Constituição da República Portuguesa, e que constitui um princípio que
estravasa a própria Constituição Fiscal. Conceber esta situação que aliás se
encontra prevista na lei, é conceber a retenção por parte do Estado de
riqueza sem qualquer motivo justificativo, no que qualificamos como um
verdadeiro enriquecimento sem causa.

O reembolso do pagamento especial por conta pago em excesso


deve ser considerado justificado através de confirmação da insuficiência
de colecta, feita mediante acção de inspecção realizada a requerimento do
contribuinte nos 90 dias seguintes ao termo do prazo para apresentação
da declaração periódica de rendimentos relativa ao mesmo exercício.
Tratando-se de uma inspecção tributária efectuada por iniciativa do
próprio sujeito passivo, aplica-se-lhe o Decreto-Lei nº. 6/ 99 de 8 de
Janeiro, o qual tem efeitos vinculativos para a Administração Tributária e
a cujo acesso depende de prova de interesse legítimo por parte do sujeito
passivo.

Note-se que passados quatro anos, os custos de oportunidade e


financeiros dos montantes entregues a título de pagamento especial por
conta não absorvidos pelas cargas tributárias verificadas ao longo dos

10
anos são por si só susceptíveis de violentar fortemente as finanças de
muitas empresas que assim se vêm privadas de fundos que lhes permitam
levar a cabo planos de investimento. Estes, acrescidos aos eventuais custos
de uma inspecção tributária9, serão as mais das vezes dissuasores dos
pedidos de reembolso. A retenção por parte do Estado do pagamento
especial por conta não deduzido apenas se pode explicar por uma lógica
segundo a qual o contribuinte presume-se culpado até provado inocente,
o que é completamente inaceitável.

Dado que a acção de inspecção tributária para efeito de reembolso


do pagamento especial por conta visa a confirmação de que os sujeitos
passivos não obtiveram colecta suficiente para absorver a totalidade do
pagamento efectuado, e obter por via dessa confirmação, a restituição dos
montantes entregues em excesso ao Estado, dificilmente se poderá admitir
que esta situação deva ser considerada com prestação de qualquer serviço
ao contribuinte e, como tal, deva ser remunerada10.

Faltando quatro exercícios para serem efectuados os primeiros


pedidos de reembolso ao abrigo do nº. 3 do artigo 87º do Código do IRC,
espera-se que esta situação venha a ser alterada em tempo útil.

3. Regime sancionatório

A falta de entrega do pagamento especial por conta constitui, nos


termos do Regime Geral das Infracções Tributárias aprovado pela Lei nº.

9 A Portaria nº. 923/ 99 de 20 de Outubro estabelece que os limites mínimo e máximo dos
montantes devidos pela inspecção são calculados mediante a aplicação de uma taxa sobre
o volume de negócios da empresa inspeccionada, e variam entre um mínimo de €
3.152,40 e um máximo de € 34.915,85 para cada exercício inspeccionado.
Em concreto, para pedidos de inspecção de cinco exercícios, como é o caso do pedido de
reembolso do pagamento especial por conta, isto representará por si só uma contingência
fiscal das empresas em montante mínimo de € 15.762 e máximo de € 174.579,25.
10 TERESA GIL, Pagamento Especial Por Conta, in revista FISCO, p. 17.

11
15/ 2001 de 5 de Junho, infracção contra-ordenacional11 punida com coima
variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa
ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido. Nos casos em
que a conduta descrita é imputável ao sujeito passivo a título de
negligência, a coima abstractamente aplicável varia entre um mínimo de
10% e metade do montante em falta, sem que se possa ultrapassar o limite
máximo abstractamente estabelecido.

No entanto, uma vez que esta infracção não pode deixar de ser
praticada por pessoa colectiva, não deixaria de se aplicar o disposto no nº.
4 do artigo 26º do mesmo diploma, nos termos do qual aqueles limites
mínimo e máximo são elevados para o dobro – ou seja, punível com coima
entre o dobro e o quádruplo da prestação em falta nos casos de dolo, e de
20% ao valor da prestação em falta, nos casos de negligência – sempre que
praticados por uma pessoa colectiva, não fosse a circunstância de o
Legislador, antecipando a forte contestação social ligada à medida
impopular do agravamento do pagamento especial por conta operado
com o Orçamento de Estado de 2003, ter expressamente consignado no nº.
5 do artigo 28º da Lei nº. 32-B/ 2002 de 30 de Dezembro que “ o
incumprimento do artigo 28º do Código do IRC é punido, nos termos da alínea f)
do nº. 5 do artigo 114 do Regime Geral das Infracções Tributárias com coima
variável entre 50% e o valor da prestação tributária em falta, no caso de
negligência, e com coima variável entre o valor e o triplo da prestação tributária
em falta, quando a infracção for cometida dolosamente.” .

Ora, com o devido respeito, e tendo em conta que a falta de entrega


de pagamento especial por conta não pode deixar de ser imputado a uma
pessoa colectiva, não se perscruta o interesse que terá informado o
Legislador ao agravar o limite mínimo da coima no caso de negligência e
ao mesmo tempo desagravar nos seus limites mínimo e máximo, a coima
prevista para a falta de entrega da prestação tributária, em caso de dolo.

11 Cf. nº. 1 e da alínea f) do nº. 5 do artigo 114º do Regime Geral das Infracções
Tributárias.

12
Outra ordem de consideração prende-se com a circunstancia de
saber a que título – dolo ou negligência – imputar a falta de realização do
pagamento especial por conta às empresas que apresentem falta de meios
financeiros, sendo certo que não lhes foi dada a possibilidade de
provisionar adequadamente esta inesperada obrigação fiscal em anos
anteriores.

III. Apreciação da constitucionalidade do pagamento especial por conta

Debruçemo-nos agora sobre a questão da conformidade da figura


do pagamento especial por conta tal como se encontra actualmente
definido e regulado, com a Constituição da República Portuguesa, que nos
fornece os traços fundamentais do ordenamento jurídico-tributário
português e estabelece o quadro dos direitos e garantias do sujeito passivo
da relação jurídica tributária.

1. Alguns princípios constitucionais em matéria fiscal

O regime constitucional relevante sobre a matéria constitui a


Constituição Fiscal que ao estabelecer verdadeiros limites materiais ao
Legislador, quanto à intromissão do Estado na esfera privada dos
contribuintes, atribui direitos subjectivos públicos aos contribuintes.
Assim, as funções do sistema fiscal aparecem definidas no nº. 1 do artigo
103º da CRP, nos termos do qual “ o sistema fiscal visa a satisfação das
necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição
justa dos rendimentos e da riqueza” . O princípio da legalidade fiscal,
encontra-se consagrado no nº. 2, deste mesmo artigo, onde se determina
que “ os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os
benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes” . Como afloramento e
concretização deste princípio, no nº. 3 é consagrado um direito de
resistência em matéria fiscal perante “ impostos que não hajam sido criados nos

13
termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e
cobrança se não façam nos termos da lei” .

O princípio da legalidade tem desde logo como implicação directa a


vinculação do legislador aos princípios constitucionais destinados a dar
tutela jurídica aos direitos fundamentais e aos legítimos interesses dos
administrados, determinando a permanente conformação da formulação e
aplicação das normas fiscais, com a Lei Fundamental. Como exemplos de
inconstitucionalidade por violação a este princípio, temos os impostos
confiscatórios que se configurem como expropriações indirectas com
violação do princípio da propriedade privada, da livre iniciativa
económica e da distribuição igualitária dos rendimentos12. Ora, como tem
sido salientado pela doutrina, a supressão da propriedade privada, sem
indemnização, num Estado de Direito, só pode ter lugar no caso das penas
de confisco e ainda aí após um procedimento legal em que tenha sido
dada a possibilidade aos desapossados de se defenderem completa e
devidamente13.

Por outro lado, os princípios da protecção da confiança e da segurança


jurídica ao assegurar uma relativa estabilidade legislativa, favorecem a
racionalidade do planeamento dos sujeitos económicos, sendo o grau de
neutralidade fiscal directamente influenciado pelo estabelecimento de
uma certa continuidade nas opções legislativas que forem tomadas.
Assim, a previsibilidade da lei fiscal e das decisões administrativas e
judiciais que a vão aplicar, bem como a determinabilidade da
quantificação dos encargos tributários esperados, constitui uma
importante condição da racionalidade dos comportamentos dos sujeitos
económicos.

A própria alteração da lei fiscal gera uma retroactividade própria,


que decorre das alterações que ela produz no valor dos activos financeiros

12 Respectivamente previstos no artigo 62º, na alínea c) do artigo 80º e do nº. 1 do artigo

103º da CRP.
13 NUNO DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol II, p. 27.

14
já existentes ou de outros bens cuja aquisição se deu sem que se tivesse
previsto a mudança na futura lei fiscal. É neste sentido que é consagrada a
dignidade constitucional da natureza não retroactiva da lei fiscal como
forma de tutela da confiança, tendo em conta a consideração de que a
forma de tributação gera nos contribuintes expectativas e incertezas que
afectam inexoravelmente as suas decisões de investimento e de
consumo 14.

Outro aspecto que se retira das normas constitucionais em matéria


fiscal prende-se com os princípios da igualdade tributária segundo o qual
todos devem ser igualmente tributados sem discriminações arbitrárias, o
qual infere-se a partir do princípio da igualdade jurídica consagrado no
artigo 13º da CRP. A Doutrina decompõe este princípio 15 nos seus
corolários formais da generalidade da tributação na medida da capacidade
contributiva, entendida como o princípio segundo o qual a obrigação de
pagar impostos deve incidir apenas sobre aqueles que tiverem capacidade
contributiva e na estrita medida dessa capacidade, e da uniformidade na
tributação, que determina que a igualdade fiscal deve traduzir-se numa
uniformidade de tributação, que imponha igualdade de sacrifícios.

Ao contrário do que sucede noutros países, a nossa Lei


Fundamental não acolhe expressamente o princípio da capacidade
contributiva, muito embora a densa estruturação constitucional dos
princípios em matéria fiscal aponte necessariamente para o seu
acolhimento material, como se pode verificar v.g. no disposto nos nºs. 1 e
3 do artigo 104º, que “ o imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição
das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os
rendimentos do agregado familiar” e que “ a tributação sobre o património deve
contribuir para a igualdade entre os cidadãos” .

SALDA NHA SANCHES, Direito Fiscal, p. 85.


14

Sobre o princípio da igualdade tributária e seus corolários, seguimos de perto NUNO


15

DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol II, p. 200 e segs.

15
O princípio da generalidade da tributação na medida da
capacidade contributiva tem duas funções: uma função solidarista, que
impõe que todos devem contribuir para as despesas públicas na medida
de que disponham dessa capacidade, e uma função garantística, que obriga
a que só devam ser sujeitos a tributação os que podem pagar.

A função solidarista do princípio da capacidade contributiva


determina que todos devem pagar impostos para acorrer às despesas
públicas na medida da sua capacidade de pagar, e além de ter também
implicações constitucionais, designadamente a proibição de concessão de
privilégios arbitrários a certos contribuintes, vem a traduzir-se numa
igualdade de tributação, postulando a uniformidade nos critérios de
tributação 16.

Por sua vez, a vertente garantística do princípio da capacidade


contributiva desempenha ainda um papel de tutela do direito de
propriedade e de iniciativa económica, no sentido de que os impostos ao
atenderem à capacidade contributiva devem respeitá-la e não suprimi-la
ou exauri-la. Interpretamos portanto o referido princípio constitucional
com NUNO DE SÁ GOMES17, relacionando-o com os princípios do direito
de propriedade privada e do direito à livre iniciativa económica, com a
inevitável consequência de que são constitucionalmente proibidos os
impostos confiscatórios. Para este aspecto particular concorre ainda o
princípio da proporcionalidade, com a proibição do excesso e a
consequente inconstitucionalidade dos impostos confiscatórios e
expiatórios e das medidas fiscais excessivamente onerosas para o
contribuinte.

Quanto ao princípio da uniformidade na tributação, tendo-se


constatado no âmbito da teoria marginalista sobre o rendimento 18, que a

16 NUNO DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol II, p. 202 e segs.


17 NUNO DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol II, p. 201.
18 Esta teoria explica-nos que à medida que as necessidades vão sendo satisfeitas pelos

agentes económicos, a utilidade dos bens sucessivamente empregados vai diminuindo,


pelo que a utilidade marginal de cada uma das doses dos bens empregados na sua

16
desutilidade da tributação é mais forte ou mais fraca, em função da maior
ou menor quantidade dos bens disponíveis, partiu-se para uma concepção
de igualdade de sacrifícios não através da regra da proporcionalidade,
mas sim pela regra da progressividade, o que implica a aplicação de taxas
de imposto sucessivamente mais elevadas à medida que o rendimento, o
capital, ou o consumo, aumentam.

Como vimos, o princípio da capacidade contributiva constitui um


princípio ordenador do ordenamento jurídico tributário que vincula o
próprio legislador à selecção de factos tributários a partir das concretas
circunstancias da vida real reveladoras de maior ou menor capacidade
contributiva. Os princípios acima descritos implicam nas suas várias
vertentes, limites legislativos a formas de tributação confiscatórias da
riqueza, de maneira a que o principal elemento da legitimação do imposto
esteja na sua generalidade e no modo como realiza a distribuição de
encargos segundo um princípio de igualdade de sacrifícios. A teleologia
constitucional aponta assim e em síntese para a tributação do rendimento
estruturada no nosso sistema fiscal segundo o princípio da capacidade
contributiva, como forma de diminuição das desigualdades e proporcionando
uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.

2. O objecto do imposto sobre o rendimento das pessoas


colectivas

No que em particular diz respeito à tributação das pessoas


colectivas, a Constituição da República Portuguesa adoptou, como critério
aferidor da capacidade contributiva das empresas, o seu lucro real, ao
proclamar que “ a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu
rendimento real” 19, o que demonstra claramente que a tributação das
empresas deve basear-se fundamentalmente na sua contabilidade, o que

satisfação é equivalente à utilidade da dose marginal, última ou final. Cf. PEDRO


SOARES MARTINEZ, Manual de Economia Política, p. 105 e segs.
19 Cf. nº. 2 do artigo 104º da Constituição da República Portuguesa.

17
foi aliás adoptado pelo legislador ordinário ao consagrar que “ o lucro
tributável (...) é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e
das variações positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas
naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente
corrigidos nos termos deste Código.” 20.

A determinação do lucro com base na contabilidade foi adoptada


como critério de aferição do rendimento real das empresas por ser a forma
mais rigorosa de determinar a imagem fiel do património, da situação
financeira e dos resultados das empresas, e por essa via, de apurar em
atenção à sua capacidade contributiva, a sua medida de oneração fiscal.
Isto constitui aliás um corolário da opção tomada pelo nosso Legislador
fiscal, de que a tributação do rendimento é concretizada ao nível das
empresas como uma tributação prévia do rendimento pessoal das pessoas
singulares.

Dir-se-á que o pagamento especial por conta é um instrumento de


combate à evasão fiscal, numa altura em que uma grande parte das
empresas não chega sequer a gerar matéria colectável. Cumpre no entanto
chamar a atenção de que o sujeito passivo último do imposto é sempre e
em última análise a pessoa singular detentora do capital, sendo certo que
a tributação das empresas é instrumental daquela. Com efeito, a
tributação das empresas é sempre um pagamento por conta do imposto
sobre o rendimento pessoal21 que seria mais tarde suportado pelos
titulares do capital, seja directamente, através do Imposto sobre
Rendimento das Pessoas Singulares seja indirectamente, através dos
impostos sobre o património, sobre o valor acrescentado, o Imposto de
Selo que incide v.g. sobre os seus financiamentos, sobre os aumentos de
capital, sobre a abertura dos seus livros de escrituração, as contribuições
para a Segurança Social, as taxas emolumentares cobradas pelos serviços
dos Registos e Notariado para a prática de inúmeros actos societários e
comerciais, as custas judiciais, as taxas de licenciamento da actividade,

20 Cf. nº. 1 do artigo 17º do Código do IRC.


21 SALDA NHA SANCHES, Direito Fiscal, p. 51.

18
etc., e toda a restante panóplia de outros encargos tributários fiscais e
parafiscais que hoje inundam as empresas de um modo quase
insuportável. Naturalmente que o que restará na maioria das empresas e
que não se destinar a planos de investimento na modernização, expansão
ou na compra de matérias primas acabam por ser os rendimentos que
depois são tributados nos trabalhadores e detentores de capital, em sede
das várias categorias do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas
Singulares.

3. A inconstitucionalidade do pagamento especial por conta

Até à reforma operada pelo Orçamento de Estado para 2003, não


existia qualquer dúvida de que como vimos, o pagamento especial por
conta pago, com a configuração que lhe era dada pela Lei nº. 30-G/ 2000
de 29 de Dezembro, tinha-se transformado num verdadeiro imposto, dada
a impossibilidade de reembolso, excepto em situações de cessação de
actividade. Além disso, era mais facilmente coberto pela colecta apurada,
dada a sua reduzida expressão. Nos casos em que se apurava existir
insuficiência de colecta para absorver o pagamento especial por conta, este
não era reembolsável, configurando-se portanto como um verdadeiro e
próprio imposto mínimo. A verdade é que dada a sua expressão na
contabilidade das empresas, o pagamento especial por conta encontrava-
se integrado no IRC, e era este que conferia legitimidade para a imposição
do pagamento especial por conta e não o contrário, sendo que quando
constituía um tributo não era contestado, dada a sua baixa expressão, pela
generalidade dos agentes económicos.

Ora, não temos hoje qualquer razão para sustentar entendimento


diferente, pelo que o actual regime do pagamento especial por conta
continua a apresentá-lo como um verdadeiro imposto sobre as vendas, e
agora sobre os proveitos e ganhos. Enquanto prestação patrimonial de
carácter definitivo, o método de cálculo do IRC passa a definir-se como
um conjunto de normas unicamente dirigidas à Administração Tributária

19
como segundo critério na cobrança de impostos sobre o rendimento das
pessoas colectivas. A utilidade das regras sobre tributação do lucro
esgota-se na questão de saber se a excepção se verifica, ou seja, se o
pagamento especial por conta foi insuficiente para cobrir uma outra
colecta possível. Como segundo critério na cobrança de impostos, o IRC
passou apenas a ser uma forma de legitimação da nova fórmula de
tributação das empresas: a de um imposto proporcional sobre os proveitos
e ganhos.

A introdução do pagamento especial por conta na sua versão


actualmente em vigor, violou os princípios da confiança e da segurança
jurídica e veio introduzir um grau de retroactividade na lei fiscal na
medida em que o seu aumento verdadeiramente desproporcional e
desproporcionado de limites mínimo e máximo de, respectivamente, €
498,80 e € 1.496,39 para os limites mínimo de € 1.250,00 e máximo de €
200.000,0022, sem que tivesse sido dada aos contribuintes qualquer
possibilidade de prever, provisionar adequadamente em anos anteriores e
eventualmente de encontrar os meios de financiamento necessários para
fazer face a esta inesperada obrigação fiscal. As alterações introduzidas
pelo Orçamento de Estado para 2003 no regime do pagamento especial
por conta violaram o princípio da tutela da confiança e afectaram a
credibilidade da Administração Fiscal, ao desconsiderar os agentes
económicos que fizeram investimentos em activos financeiros e
patrimoniais sem que esta alteração substancial na tributação das
empresas pudesse ser prevista.

Pelo aumento sem qualquer critério da base de incidência, bem


como dos seus limites mínimo e máximo, a Lei nº. 32-B/ 2002 de 30 de
Dezembro violou o princípio da proporcionalidade, transformado o
pagamento especial por conta numa medida fiscal excessivamente
onerosa para muitos contribuintes.

22 Cf. nº. 2 do artigo 98º do Código do IRC.

20
O pagamento especial por conta viola o princípio da tributação na
medida da capacidade contributiva, na sua função solidarista, ao não
considerar as diferenças económicas entre empresas em diferentes
sectores de actividade23, e a sua diferente capacidade para pagar imposto,
calculado com a medida de uma taxa única sobre os proveitos. É do
conhecimento geral, não apenas dos estudiosos das matérias económico
financeiras, que as vendas são um indicador que pode ser altamente
falacioso atenta a diversidade de actividades empresariais, uma vez que
há negócios pouco interessantes com elevadas rentabilidades de vendas
mas com baixa rotação do activo, podendo o inverso também ser
verdadeiro. Quando ainda se acrescentam outros proveitos e ganhos, sem
distinção, ainda se agrava a sua iniquidade24.

Viola ainda o princípio da capacidade contributiva na sua função


garantística, por duas vias: pois pagam em termos iguais os que podem e
os que não podem pagar, por não apresentarem rendimentos, sejam quais
forem os seus proveitos, pois que sempre os terão ainda que não tenham
lucro. Por outro lado, viola o aludido princípio por afastar arbitrariamente
a possibilidade de reembolso às empresas que sejam susceptíveis de ser
abrangidas pelo regime simplificado de tributação 25, o que é
incompreensível.

Finalmente e no âmbito do princípio da igualdade tributária, o


pagamento especial por conta viola outro seu corolário formal que é o
princípio da uniformidade na tributação, uma vez que a sua taxa é
proporcional e não progressiva26, o que é indutor de maior desigualdade
entre os contribuintes.

23 Cf. nº. 1 do artigo 98º do Código do IRC.


24 LUÍS JANEIRO, Comentários sobre a proposta inicial das alterações do PEC de 2003.
25 Cf. nº. 3 do artigo 87º do Código do IRC.
26 Cf. nº. 2 do artigo 98º do Código do IRC. Este princípio aplica-se ao pagamento
especial por conta e não à taxa geral do IRC, uma vez que a sua taxa incide unicamente
sobre os proveitos e não sobre o lucro, que já de si comporta custos associados, segundo
uma lógica de que nas empresas os custos crescem com os proveitos. Por outras palavras,
sendo necessária uma maior quantidade de bens, a sua utilidade mantém-se.

21
Como atrás se fez referência, caso se revele a insuficiência da
colecta apurada no ano a que se refere o pagamento especial por conta, o
contribuinte pode proceder à sua dedução até ao quarto exercício
seguinte27. Nesta situação, o pagamento especial por conta perde a sua
característica de pagamento por conta passando a afirmar-se como uma
entrega antecipada de imposto de anos vindouros, configurando-se
mesmo como um imposto. Isto decorre aliás do disposto no artigo 33º da
Lei Geral Tributária28, que reforça esta ideia ao referir que os pagamentos
por conta do imposto devido a final são “ entregas pecuniárias antecipadas
que sejam efectuadas pelos sujeitos passivos no período de formação do facto
tributário” . E isto viola o princípio da capacidade contributiva, pois esta
não é levada em consideração – como aliás não poderia em qualquer caso
sê-lo, por tratar-se do pagamento por conta – e na medida em que a
capacidade contributiva de anos vindouros não existe, por ser
indeterminada e indeterminável29.

Diga-se em abono da verdade que o pagamento especial por conta


sofre de uma doença genética, que impede qualquer limitação ao seu
reembolso em caso de insuficiência de colecta do ano a que respeita, que
explica-se genericamente pelo facto de ser calculado com base na colecta
expectável por empresas que observem níveis de rentabilidade
considerados normais, e que decorre da forma de cálculo encontrada para
traduzir essa realidade. Isto acaba por ser o equivalente à noção de homem
médio, em matéria fiscal aplicado ao rendimento das empresas, o que
contende claramente com o princípio constitucional da tributação na
medida da capacidade contributiva.

Por tudo quanto antecede, fica claramente demonstrada a


inconstitucionalidade do pagamento especial por conta por objectiva
violação do princípio da legalidade, legitimadora do exercício do direito

27 Cf. nº. 1 do artigo 87º do Código do IRC.


28 Aprovada pelo Decreto-Lei nº. 398/ 98 de 17 de Dezembro.
29 MANUEL ANSELMO TORRES, Incidência e Inconstitucionalidade do Pagamento Especial

Por Conta do IRC, in revista FISCO, p. 28.

22
de resistência expresso no nº. 3 do artigo 103º da Constituição da
República Portuguesa, nos termos do qual ninguém pode ser obrigado a
pagar impostos que não se hajam criado nos termos da Constituição.

Mas ainda que assim se não entenda, por se considerar não ter o
pagamento especial por conta a natureza de um imposto, sempre se dirá
serem inconstitucionais as normas contidas nos nºs. 1 e 3 do artigo 87º do
Código do IRC. Senão vejamos: a possibilidade conferida aos
contribuintes de deduzir o pagamento especial por conta não absorvido
pela colecta, às colectas apuradas nos quatro anos seguintes à sua entrega
nos cofres do Estado, apresenta-se como uma faculdade meramente
aparente, porquanto durante esses anos que se seguirem o contribuinte
fará igualmente entregas a título de pagamento especial por conta, que
supõem já uma rendibilidade dos proveitos correspondente a 3,33%, o que
reconhecidamente encontra-se muito acima das rendibilidades verificadas
pelas empresas portuguesas, mormente das pequenas e médias empresas
que constituem o grosso do tecido empresarial português. Donde, uma
empresa que tenha verificado uma colecta insuficiente para absorver o
pagamento especial por conta entregue, deverá no exercício seguinte
apresentar uma rendibilidade não só superior às suas rendibilidades
passadas, como ainda uma rendibilidade superior àquela que dela espera
o próprio Estado, de 3,33%, por forma a absorver não apenas os
pagamentos especiais por conta não deduzidos em colectas relativas a
exercícios anteriores, mas também o pagamento especial por conta que fez
nesse exercício. E assim sucessivamente.

Não tendo o contribuinte conseguido taxas de rendibilidade


médias ao ano correspondentes a 3,33%, e caso não tenha entretanto
cessado a actividade, deverá lançar mão do mecanismo de reembolso –
também ele aparente, como veremos – por força do qual o reembolso é
condicionado à circunstância de os sujeitos passivos em causa não serem
susceptíveis de ser abrangidos pelo regime simplificado de tributação 30. O

30 Cf. nº. 3 do artigo 87º do Código do IRC.

23
que significa que não podem obter reembolso os sujeitos passivos que
exerçam a título principal, uma actividade de natureza comercial,
industrial ou agrícola, não isentos ou sujeitos a algum regime especial de
tributação, que não tenham optado pelo regime de tributação pelo lucro
consolidado, e que no exercício anterior tenham apresentado um volume
anual de proveitos não superior a € 149.639,37!

O afastamento dos pequenos empresários do acesso ao mecanismo


de reembolso, é arbitrário, e viola o princípio da igualdade tributária,
consagrado na Constituição 31.

Como vimos, caso o contribuinte de facto reúna a condição de


acesso ao mecanismo de reembolso, para reaver os montantes entregues
em excesso, deverá requerer, e em princípio pagar, uma acção de
inspecção onde a insuficiência de colecta que deu origem ao reembolso
seja certificada pela Administração Tributária. Fazer depender a
devolução de montantes que, segundo o critério da própria lei, foram
entregues em excesso, é inconstitucional, por violar o princípio da
propriedade privada expressamente consagrado nos nºs. 1 e 2 do artigo
62º da CRP, porquanto constitui um empréstimo público forçado sem
juros, incluindo-se por conseguinte na noção de imposto 32.

No entanto, o Legislador exige ainda, como vimos, que o


contribuinte tenha tido um rácio de rentabilidade igual a pelo menos 90%
da média dos rácios de rentabilidade das empresas do mesmo sector de
actividade. Isto significa que as empresas que solicitem e demonstrem à

31 Cf. artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. No entanto, bem se


compreende a sua exclusão, que se prende com a impossibilidade sentida pela
Administração de dar resposta aos pedidos de inspecção tributária que se prevê venham
a verificar-se cinco anos após a reforma do pagamento especial por conta. Não obstante,
calculamos que a intenção será a de levar a que o maior número possível de contribuintes
optem pelo regime simplificado de tributação, já que este ao dispensar a documentação
dos custos do sujeito passivo, representa uma diminuição dos custos envolvidos na
cobrança de Imposto sobre o Rendimento das pessoas Colectivas, por parte da
Administração Tributária.
32 SOARES MA RTINEZ, Direito Fiscal, p. 40.

24
Administração Tributária através de inspecção que certifique que as
colectas dos cinco anos anteriores ao pedido de reembolso foram bem
apuradas, e que foram de facto insuficientes para absorver os pagamentos
por conta realizados, podem mesmo assim não conseguir o reembolso
desses montantes entregues em excesso (mas devidamente entregues,
porque em cumprimento de uma obrigação legal e sujeito a um regime
sancionatório pesadíssimo, como vimos), por terem apresentado um
desvio da sua taxa de rentabilidade superior a 10% para menos, em
relação à média das empresas do sector. E mais assim é, pois a lei não
prevê que o contribuinte possa justificar o não cumprimento do rácio
estabelecido, designadamente por aquela não lhe ser imputável.

4. Conclusão

Nestes termos, reputamos o pagamento especial por conta, tal


como actualmente encontra a sua expressão no Código do Imposto sobre
o Rendimento das Pessoas Colectivas, como inconstitucional por atentar
contra o princípio da capacidade contributiva cuja preservação é imposta
pela tutela do princípio da propriedade privada e pelo princípio da livre
iniciativa económica, configurando-se como um empréstimo público
forçado, as mais das vezes um verdadeira expropriação sem
indemnização ou, para o caso das empresas que apresentem um desvio de
rentabilidade superior a 10% em relação ao rácio médio de rentabilidade
do sector, de um verdadeiro confisco de natureza indirectamente
sancionatória aplicada por via legislativa, que certamente constituirá um
enriquecimento sem causa do Estado.

Esta é, s. m. j., a nossa opinião.

Lisboa, 14 de Julho de 2003.

José João de Avillez Ogando

25
OS DEVERES DE INFORMAÇÃO PERMANENTE
NO MERCADO DE CAPITAIS(*)

José João de Avillez Ogando(**)

I. INTRODUÇÃO; 1. Objecto; 2. Autonomia dos deveres informativos do Direito dos


Valores Mobiliários face ao Direito Societário; 3. Plano de exposição; II. A
RELEVÂNCIA DA INFORMAÇÃO NO MERCADO DE CAPITAIS; 4. A confiança
no mercado de valores mobiliários; 5. Os riscos do mercado; 6. A eficiência do
mercado e a formação de preços; III. ASPECTOS SUBJACENTES AOS DEVERES
DE INFORMAR; 7. A ambivalência dos sujeitos perante a informação; 8. O princípio
da full disclosure; 9. A teleologia dos deveres de informação; IV.
ENQUADRAMENTO DOS DEVERES DE INFORMAR; 10. A qualidade da
informação; 11. O cumprimento dos deveres de informar; V. OS DEVERES DE
INFORMAÇÃO RELATIVOS A ENTIDADES EMITENTES; 12. Razão de ordem;
13. As sociedades abertas; A) Os deveres de comunicação de participações
qualificadas; B) Os acordos parassociais; 14. Os deveres de informação permanente
relativos a entidades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em
mercado regulamentado; A) Os deveres de prestar informação periódica; B) O dever
de divulgação sobre aspectos relacionados com o governo das sociedades cotadas; C)
O dever contínuo de prestar informação relevante; VI. OUTROS SUJEITOS
PASSIVOS DO DEVER DE INFORMAR; 15. A informação a prestar por
intermediários financeiros; 16. A informação a prestar pelas entidades gestoras de
mercados regulamentados; 17. O papel da Comissão do Mercado de Valores
Mobiliários; VII. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

I. INTRODUÇÃO

1. Objecto

A informação é o grande pano de fundo em que se movem os agentes que


actuam no mercado de capitais, e constitui o pressuposto fundamental que
condiciona a própria capacidade de subsistência do mercado. Trata-se de um tema
que atravessa transversalmente o Direito dos Valores Mobiliários, encontrando-se
amplamente difundido e tratado, tanto no Código dos Valores Mobiliários

(*) O presente texto corresponde, com algumas modificações e aditamentos, a um trabalho


realizado para o IV curso de Pós Graduação em Direito dos Valores Mobiliários, na Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, organizado pelo Instituto dos Valores Mobiliários, em 2000.
(**)
O autor é Advogado na Sociedade de Advogados Seabra, Gonçalves Ferreira, Cunha e
Associados.

1
(CVM)1, como nos regulamentos e orientações emitidos pela Comissão do
Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), onde é acolhido com uma regulação
exaustiva nos seus mais variados aspectos, tanto no que diz respeito à quantidade,
como à qualidade da informação a disponibilizar e que se destina à entidade de
supervisão, às entidades emitentes, aos investidores e ao público em geral,
desaguando numa ideia de transparência dos mercados financeiros.

Os deveres de informação sobre os quais nos debruçamos neste estudo são


sujeições impostas por lei no sentido da divulgação de situações de facto em
ordem à formação de negócios no mercado. Estes deveres formam uma rede
montada para assegurar que a revelação de todo e qualquer facto que possa ser
considerado susceptível para afectar a avaliação que os investidores fazem dos
activos negociáveis em mercado, seja feita em tempo oportuno e em condições de
igualdade e segurança.

No entanto, com a expressão informação permanente pretendemos


exprimir um conjunto específico de deveres em contraposição com aqueles que
compõem a informação ocasional a que os sujeitos que operam no mercado de
capitais podem em certas condições ficar obrigados, por força da verificação de
determinados eventos ou circunstâncias típicas mas de verificação incerta, como
sucede nos casos de lançamento de oferta pública2. Assim, com a expressão
informação permanente queremos designar o conjunto interdependente de
deveres usualmente designados de ongoing disclosure3, de prestação de
informação corrente no mercado secundário, por via dos quais se pretende
assegurar uma permanente disponibilidade e actualização da informação.

Por sua vez, dentro dos deveres de informação permanente, é possível


subdistinguir entre deveres de prestar informação periódica, e deveres que visam
assegurar uma informação contínua, consoante se trate de obrigações de divulgar

1
Aprovado pelo Decreto Lei nº. 486/99 de 13 de Novembro e adiante abreviadamente designado
por CVM. As disposições legais a que se faz referência sem indicação expressa do diploma em
que se inserem, devem ter-se por reportadas ao Código dos Valores Mobiliários.
2
Cfr., artigos 123º e segs. do CVM.
3
Veja-se INTERNATIONAL ORGANIZATION OF SECURITIES COMMISSIONS (OICV -
IOSCO), “Principles for Ongoing Disclosure and Material Development Reporting by Listed
Entities”, Outubro de 2002, p. 3. O termo ongoing disclosure é usado para referir o apontado
conjunto de deveres de informação — informação a prestar segundo um princípio geral de
relevância implícita ou explícita e aquela que deve ser divulgada em determinadas datas ou
intervalos de tempo — em contraposição com a informação a prestar por ocasião da realização de
ofertas públicas de distribuição ou de aquisição.

2
regularmente determinada informação em momentos pré determinados, ou de
manter o mercado permanentemente actualizado face a factos que entretanto
ocorram, através da sua divulgação tempestiva. É esta última classe de deveres
que assegura a contínua actualização da informação disponível no mercado,
através da divulgação de factos segundo um critério geral de relevância, implícita
ou explícita. Temos assim, como exemplos tradicionalmente apontados quanto
aos deveres de informação periódica, a obrigatoriedade de publicação de peças de
informação financeira anual, semestral ou trimestral por parte das entidades
emitentes, e quanto aos deveres de informação contínua, os deveres que impõem a
realização de comunicações e publicações obrigatórias relativos à aquisição ou
alienação de participações qualificadas em sociedade aberta ou a factos
relevantes.

Neste contexto, escapam designadamente ao âmbito deste estudo, os


deveres de informar relacionados com a solicitação de procuração para
representação em assembleia geral de sociedade aberta4, os deveres de informar a
que determinados sujeitos estão obrigados em função de relações de supervisão
institucional5, a informação a prestar aquando da admissão de valores mobiliários
à negociação em bolsa6 ou do lançamento de ofertas públicas7.

O presente texto pretende fornecer uma visão de sistema sobre a rede dos
deveres de informar habitualmente incidentes sobre os sujeitos que operam no
mercado de capitais, seja através da técnica da sua comunicação a sujeitos
determinados, seja através da estatuição de obrigações de emitir comunicados ao
público em geral. No entanto, e atendendo a que a instituição de deveres de
informação permanente sobre os diversos agentes é susceptível de produzir
externalidades que cumpre minimizar, tentaremos detectar as zonas onde os
referidos deveres nos pareçam insuficientes ou excessivos, sem deixar de levantar
outras questões, sempre que a sua pertinência e o objecto deste estudo o
permitirem.

4
Cfr. artigo 23º do CVM.
5
Cfr. artigos 358º e segs do CVM.
6
Cfr. artigos 236º e segs do CVM.
7
Cfr. artigo 123º do CVM.

3
2. Autonomia dos deveres informativos do Direito dos Valores
Mobiliários face ao Direito Societário8

O Direito dos Valores Mobiliários assenta simultaneamente em duas


grandes ordens de princípios que concorrem em pé de igualdade para a sua
densificação: princípios de carácter público, que determinam a transparência dos
mercados baseando-se na concepção da responsabilidade das sociedades perante a
colectividade em geral e na necessidade de assegurar a subsistência dos mercados,
e princípios de carácter privado, característicos do Direito Comercial, exigidos
pela necessidade de conjugar a informalidade com a segurança na realização das
transacções comerciais, resultando em regras de protecção dos investidores que
assumem um pendor claramente privatístico9.

No entanto, apesar de a implementação de soluções de transparência ter de


algum modo sido antecipada pelo Direito Societário, a verdade é que os interesses
tutelados pelas normas instituidoras de deveres de informação constantes do
Código das Sociedades Comerciais emergem de uma constelação de valores
próprios que tem no seu centro a protecção do sócio minoritário. Ora tal
constatação procede, no que diz respeito à informação exigida no âmbito do
direito societário, da existência de uma clivagem que ao longo dos tempos se foi
fazendo sentir entre a titularidade e o controlo das sociedades comerciais. Este
fenómeno foi-se verificando gradualmente, à medida em que o capital das
sociedades se dispersava pelo público investidor, facto que levou à crescente
necessidade de protecção dos sócios minoritários.

Pode portanto dizer-se que pelo menos na sua origem, os interesses


tutelados através da instituição de deveres de informação em matéria de Direito
das Sociedades Comerciais, são interesses internos à própria sociedade,
conferidos com carácter de exclusividade aos seus sócios e que, por isso,
acabaram por divergir daqueles que se encontram consagrados no CVM, que têm

8
Sobre o direito à informação nas sociedades comerciais, veja-se CARLOS PINHEIRO TORRES,
“O Direito à Informação nas Sociedades Comerciais”, Almedina, 1998.
9
Desde logo, enquanto o Direito dos Valores Mobiliários se estrutura em torno da posição do
investidor e por conseguinte, ao nível das relações externas do titular de valores mobiliários, o
Direito Societário estrutura-se em torno da posição do sócio logo ao nível das relações internas
que mantém no âmbito da sociedade, seja qual for o tipo social em causa.

4
por destinatários a generalidade dos sujeitos económicos. Assim, enquanto
conjunto de normas estruturadoras de um conjunto de posições internas dos sócios
na sociedade, o Código das Sociedades Comerciais apresenta um conjunto de
deveres informativos que, particularmente no que diz respeito às sociedades
anónimas, nasce da tutela específica atribuída pelo direito à posição dos
accionistas minoritários. Deste modo compreende-se que, atento o carácter
instrumental da informação exigida ao nível societário, esta se encerre dentro dos
limites da própria sociedade, visando exclusivamente criar as condições para que
os sócios possam esclarecidamente exercer os seus direitos10.

De forma substancialmente diversa, em atenção aos citados fenómenos de


crescente pulverização na distribuição do capital das sociedades abertas e ainda do
maior grau de circulabilidade dos valores mobiliários por elas emitidos,
encontramos hoje no Direito dos Valores Mobiliários um conjunto de deveres
informativos que se projectam para o exterior da própria sociedade e que visam
inversamente, a tutela de posições individuais de sujeitos abstractamente
considerados como os actuais e potenciais adquirentes de valores mobiliários. De
facto, não será demasiado reconhecer que isto decorre da natureza causal dos
valores mobiliários disponíveis no mercado e, consequentemente, da existência de
um variadíssimo leque de factores, que apesar de aparentemente inócuos para o
investidor médio, são susceptíveis de exercer uma influência sobre os preços,
como sejam a idoneidade do titular do órgão de gestão da entidade emitente, o
parceiro estratégico escolhido, os acordos de cooperação entre si celebrados, a
ocorrência dentro do seu ramo de actividade de uma determinada inovação
tecnológica, etc..

Os deveres de informação em massa são, como se referiu, movidos pelo


princípio da transparência que se projecta para a colectividade, e que apesar de
por vezes apresentar uma difícil compatibilidade em relação a valores próprios do
direito privado — que implicam uma atribuição de poderes relacionados com a
protecção da propriedade privada e com a capacidade de auto-regulamentação dos
sujeitos económicos — são uma consequência directa do surgimento de uma nova
10
Como acontece nos casos em que o sócio se dirige à sociedade para, ao abrigo dos artigos 289º,
291º e 288º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), respectivamente, consultar elementos
preparatórios da assembleia geral, para solicitar informações por escrito, ou para consultar
elementos sobre a sua gestão. Neste sentido, veja-se EDUARDO PAZ FERREIRA, “A Informação
no Mercado de Valores Mobiliários”, in Direito dos Valores Mobiliários, Coimbra Editora, Vol.
III, 2001, p. 139.

5
instituição, que é o próprio mercado11. Daí que o princípio da transparência,
enquanto meio instrumental destinado a tutelar a eficiência e a equidade do
mercado, deve apenas ser restringido no que for estritamente necessário para a
defesa dos interesses que tem em vista assegurar. Exemplo disto é a pontual
imposição que encontramos no Código dos Valores Mobiliários de deveres de
sigilo a determinados agentes12.

3. Plano de exposição

O campo de análise no que se refere aos deveres de informação no Direito


dos Valores Mobiliários é vasto e apela a uma abordagem multidisciplinar. No
entanto, pretende-se aqui detectar os fundamentos económicos e jurídicos do
sistema de deveres de informação e ainda, como atrás se fez referência, desvendar
a estrutura permanente de focos de luz em que assenta o princípio da transparência
do mercado de capitais13.

Deste modo, a abordagem proposta passa, em primeiro lugar, por uma


análise ao papel que a informação desempenha na construção de um mercado de
capitais eficiente, designadamente ao nível do incremento da confiança dos
investidores, da transparência na formação de preços e da igualdade na
distribuição dos riscos que o investimento inevitavelmente implica.

11
EDUARDO PAZ FERREIRA, “A informação…”, in Direito dos Valores Mobiliários, Coimbra
Editora, Vol. III, p. 140.
12
Desta constatação é exemplo a disposição contida no artigo 174º do CVM que se justifica ainda
pelo princípio da igualdade no acesso à informação, nos termos da qual devem guardar segredo
sobre a preparação da oferta pública de aquisição, o oferente, a sociedade visada, os seus
accionistas e titulares de órgãos sociais, juntamente com todos os sujeitos que lhes prestem
serviços a título permanente ou ocasional, até ao momento da publicação do anúncio preliminar.
Outro exemplo é o disposto no artigo 354º do CVM, onde se estabelece que os órgãos da CMVM,
os seus titulares, trabalhadores, e as pessoas que lhe prestem quaisquer serviços a título
permanente ou ocasional, ficam sujeitos ao dever de guardar segredo profissional sobre os factos e
os elementos cujo conhecimento lhes advenha do exercício das suas funções, mesmo após a
cessação das actividades ou das funções que lhe deram origem, salvo tratando-se de factos ou
elementos cuja divulgação pela CMVM seja imposta ou permitida por lei.
13
Cabe no entanto fazer aqui uma breve referência a outros aspectos que ficam por explorar nestas
páginas, como é o caso do regime da responsabilidade civil por incumprimento de deveres de
informação. Sobre o tema, embora no domínio do direito civil, veja-se JORGE FERREIRA
SINDE MONTEIRO, “Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações”,
Almedina, 1989, e no domínio do Direito dos Valores Mobiliários, CARLOS COSTA PINA,
“Dever de Informação e Responsabilidade pelo Prospecto no Mercado Primário de Valores
Mobiliários”, Coimbra Editora, 1999.

6
Em segundo lugar, serão brevemente abordados determinados aspectos
subjacentes aos deveres de informar, como sejam as questões da ambivalência dos
sujeitos perante a informação, da perenidade da questão da transparência no
mercado de capitais e da teleologia dos deveres de informação.

Na terceira parte será feito um breve enquadramento dos deveres de


informar, da questão dos padrões de qualidade da informação exigíveis em
atenção aos interesses que se visa proteger e dos meios e procedimentos a adoptar
no seu cumprimento. Finalmente, será analisada a disciplina jurídica dos deveres
informativos a que estão obrigados determinados sujeitos que operam no
mercado, sem deixar de fazer uma referência ao importantíssimo papel de
controlo da informação assumido pela Comissão do Mercado dos Valores
Mobiliários.

II. A RELEVÂNCIA DA INFORMAÇÃO NO MERCADO DE


CAPITAIS

4. A confiança no mercado de valores mobiliários

O mercado de valores mobiliários constitui um espaço privilegiado de


encontro entre a oferta e a procura de valores mobiliários mas, mais precisamente,
entre a poupança e a procura de fontes de investimento empresarial. Deste modo,
desempenha uma importante função económica na medida em que através deste
encontro fazem-se comunicar os interesses de aforro particular com as
necessidades de captação de recursos, canalizando-se a riqueza produzida e não
consumida em aplicações empresariais de uma forma rápida e directa. Ao
absorver o contínuo investimento da poupança a favor de actividades produtivas
através da sua transformação em capital investido, o mercado de valores
mobiliários contribui decisivamente para o desenvolvimento e a dinamização da
economia, enquanto permite aos investidores a legítima expectativa da
rentabilização das suas aplicações.

É a partir deste efeito aglutinador de diferentes necessidades sentidas pelos


agentes económicos que surge um fenómeno a que se tem designado de

7
desintermediação financeira14, e que consiste na possibilidade que estes agentes
passam a dispor de procederem à captação directa de capital junto do público
investidor, em alternativa ao tradicional recurso a aplicações em produtos
bancários. Assim, enquanto ponto privilegiado de encontro entre a poupança
gerada pelos investidores e a procura de fontes de financiamento às empresas e ao
próprio Estado, o mercado de valores mobiliários constitui uma importante peça
da economia nacional em geral e do sistema financeiro em especial
desempenhando uma inegável função de interesse colectivo.

Estas propriedades do mercado têm como pressuposto essencial, por um


lado, a confiança do público investidor na veracidade, objectividade e rigor da
informação que nele é disponibilizada, mediante o reconhecimento de
determinadas qualidades de segurança e rentabilidade susceptíveis de compensar
os riscos inerentes aos investimentos propostos, e por outro, a noção de que o
mercado dispõe de mecanismos de tutela que lhes permitam atenuar ou mesmo
suprimir os efeitos negativos de determinados riscos típicos a que estão sujeitos os
investidores que nele actuam.

5. Os riscos do mercado

Ora, os riscos típicos a que nos referimos decorrem da existência de


relações assentes em informação assimétrica propícios ao surgimento de bolsas de
informação exclusiva de certos agentes, como sejam15: (i) o risco de
oportunidade, consubstanciado no risco de a decisão de investimento a adoptar
não se apresentar como a mais conveniente ou oportuna; (ii) o risco de
rendimento, isto é, o risco da não conservação do capital investido ou da falta do
rendimento esperado; (iii) o risco de administração que correm nomeadamente os
pequenos investidores, de o governo das entidades emitentes dos valores
mobiliários de que são titulares, não ser entregue a pessoas suficientemente
idóneas, competentes e respeitadoras das leis do mercado; e (iv) o risco de
liquidez, que é o risco de a decisão de desinvestimento a tomar não proporcionar a

14
Cfr. PAULO CÂMARA, “Emissão e Subscrição de Valores Mobiliários”, in Direito dos Valores
Mobiliários, Lex, 1997, p. 202 e 203.
15
Neste sentido, CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A informação no Direito do Mercado de
Valores Mobiliários”, in Direito dos Valores Mobiliários, Lex, 1997, p. 336.

8
liquidez esperada. A estes riscos acrescenta ainda SOUSA FRANCO16 o risco
sistémico do mercado que redunda no afastamento dos investidores, fazendo com
que as crises inicialmente localizadas se propaguem a outras entidades ou a outros
mercados, num verdadeiro “efeito dominó”.

Todos estes perigos apresentam-se perante o público em geral como


elementos dissuasores à sua participação no mercado, inserindo-se num risco
ainda mais abrangente que pesa sobre a generalidade dos investidores, que é o
chamado risco de informação, e que se prende com a possibilidade de
identificação e de valoração dos factores de risco atrás assinalados. É que ao invés
de um normal processo de negociação bilateral, em que o dever de informar que
vincula as partes constitui uma decorrência do princípio da boa fé na formação
dos contratos17, as relações no processo de negociação padronizada que o
mercado de valores mobiliários oferece, determinam o agravamento substancial
do risco da informação. Isto sucede com as dificuldades que se sentem no
mercado, não apenas ao nível da acessibilidade subjectiva da informação, que é
aquela que se prende fundamentalmente com os desníveis de ciência e de
experiência existentes entre os sujeitos envolvidos, mas talvez e de forma talvez
mais intensa ao nível da acessibilidade objectiva à informação, ou seja, no que se
refere às desigualdades que decorrem da circunstância de determinados factos
com relevância para a formação dos preços ocorrerem apenas no âmbito da esfera
de acção de certos agentes18.

Como é natural, a posição dos aforradores é a de apenas realizar


investimentos caso os problemas de desigualdade informativa que os colocam em
desvantagem sejam reduzidos para um nível satisfatório ou sejam, em alternativa,
contrabalançados por uma adequada remuneração face ao risco assumido, o que
nem sempre é possível assegurar por parte das entidades emitentes19. Como é

16
Cfr. “Actas do Conselho Nacional do Mercado de Valores Mobiliários” de 8 de Setembro de
1997 e 22 de Janeiro de 1998, edição do Ministério das Finanças e da Comissão do Mercado de
Valores Mobiliários, 1998, p. 9.
17
Veja-se ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Da Boa Fé no Direito Civil”, 1984, Vol. I, p.
605, “Direito das Obrigações”, 1º Vol, 1988, p. 149, RUI DE ALARCÃO “Direito das
Obrigações”, 1983, p. 66 e 67, e JOÃO ANTUNES VARELA, “Das Obrigações Em Geral”,
1995, Vol. II, p. 10 e segs..
18
MANUEL BOTELHO DA SILVA, “Dos critérios de aferição de insuficiência de informação
numa oferta pública de valores mobiliários fundadora de responsabilidade civil pelo prospecto”,
in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 3, 1998, p. 178.
19
Veja-se THEODOR BAUMS, “Changing Patterns of Corporate Disclosure in Continental
Europe: the Example of Germany”, European Corporate Governance Institute, 2002, p. 3.

9
óbvio, sendo susceptíveis de alterar o curso normal da oferta e da procura, estas
assimetrias trazem consigo efeitos altamente perniciosos ao desenvolvimento do
mercado, pois ao suscitarem dúvidas no espírito dos investidores quanto à
evolução das cotações ou quanto à percepção de que existem sujeitos detentores
de melhor informação que os coloquem numa posição de vantagem na análise
dessa mesma evolução, criam as condições para o seu progressivo afastamento do
mercado.

Nestes termos, o desenvolvimento e expansão do mercado passa pelo


incremento da sua eficiência e receptividade junto dos investidores através da
redução do risco de informação, o que apenas se obtém pelo incremento da
percepção de que o investimento em valores mobiliários pode realizar-se
racionalmente, com base no conhecimento da situação das entidades emitentes e
das suas perspectivas futuras.

6. A eficiência do mercado e a formação de preços

O mercado de valores mobiliários é um mercado vive da sua capacidade


de ser transparente, encontrando-se amplamente demonstrada a enorme
sensibilidade e reactividade dos preços dos activos nele negociados20 à
informação divulgada. Nesta medida, a confiança coloca-se com a maior
acuidade, pressupondo desde logo a capacidade de o mercado operar de forma
transparente e neutral, permitindo uma distribuição igualitária dos riscos de
informação que lhe são inerentes. É aqui que o legislador é chamado a intervir no
sentido de criar as condições para que as decisões de investimento sejam tomadas
por vontades livres e esclarecidas, e de ao mesmo tempo proteger o mercado
contra a formação de assimetrias informativas, impondo revelações tempestivas e
reprimindo comportamentos que se materializam na ocultação ou na utilização
indevida da informação.

20
FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “O direito de informar e os crimes de
mercado”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 2, 1998, p. 98. Sobre a as reacções
do mercado à divulgação de informações sobre os activos neles negociados, veja-se MAFALDA
GOUVEIA MARQUES e MÁRIO FREIRE, “A informação no mercado de capitais”, in Cadernos
do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 3, 1998, p. 113 e segs., e PEDRO WILTON, “Impacto da
Divulgação de Resultados na Negociação em Mercado de Bolsa”, in Cadernos do Mercado de
Valores Mobiliários, nº. 15, 2002, p. 51 e segs.

10
Em termos económicos, o mercado eficiente foi definido como o mercado
em que a diferença entre o preço efectivo de cada valor mobiliário e o preço
esperado pelos investidores perante toda informação disponível, é igual a zero21.
Para uma melhor compreensão dos efeitos da informação sobre os preços num
mercado eficiente, generalizou-se uma classificação introduzida por HARRY
ROBERTS22, que corresponde a três níveis de incorporação da informação nos
preços.

No primeiro nível, correspondente a uma forma fraca de eficiência do


mercado, os preços dos valores mobiliários apenas reflectem em cada momento
toda a informação contida nos preços anteriores. Aqui, a informação disponível
sobre cada valor mobiliário seria apenas aquela que resultasse do percurso
evolutivo das suas cotações.

Numa acepção semi-forte da eficiência dos mercados, os preços reflectem


não apenas o seu próprio percurso evolutivo, como também toda a restante

21
Neste sentido, veja-se EUGENE FAMA, “Efficient Capital Markets: a Review of Theory and
Empirical Work”, in Journal of Finance, 25, p. 383 a 417. Como sugestivamente afirmou uns anos
depois M. RUBINSTEIN, o mercado eficiente é aquele em que os preços não seriam alterados se
todos revelassem aquilo que sabem, in “Securities Market Efficiency, in an Arrow-Debreu
Economy”, in American Economic Review, 65, p. 812 a 824. Citados apud RICHARD A
BREALEY e STEWART C. MYERS, “Princípios de Finanças Empresariais”, 5ª Ed., 1998, p.
336.
Uma importante classificação a ter em conta sobre os diferentes aspectos da aptidão do mercado
para o adequado desempenho da sua função económica, designadamente no que se refere ao papel
desempenhado pela informação, foi divulgada entre nós por CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A
informação…”, ob. cit., p. 334 que, na esteira da doutrina alemã subdivide a eficiência do mercado
em três aspectos fundamentais: a capacidade institucional, a capacidade operacional, e a
capacidade alocativa de funcionamento do mercado. Sobre o prisma da capacidade institucional
de funcionamento, a eficiência do mercado assenta na verificação dos pressupostos de existência
do mercado, e que se traduzem na possibilidade de este funcionar como um espaço privilegiado de
intercâmbio entre agentes económicos. Entre esses pressupostos temos a existência de uma oferta e
de uma procura que se encontram em transacções seguras e informais, factores que determinam a
eleição por parte dos agentes económicos, desse mercado e não de outro qualquer, como espaço
preferencial de negociação. O aspecto da eficiência operacional do mercado refere-se ao grau de
neutralidade dos mecanismos tendentes à obtenção de informação face aos preços dos activos nele
negociados. Por último, a capacidade alocativa de funcionamento prende-se com um nível de
funcionamento do mercado em que os capitais envolvidos sejam investidos nas entidades que deles
venham a tirar o melhor proveito e que por esse facto se encontram nas melhores condições para
assegurar uma melhor remuneração aos seus investidores. Este efeito apenas pode ser atingido
desde que aos investidores seja facultada a possibilidade de prévia ponderação dos rendimentos
esperados e dos riscos inerentes aos investimentos a realizar, baseada em informação assente em
condições de igualdade e segurança.
22
HARRY V. ROBERTS, “Statistical Versus Clinical Prediction of the Stock Market”.
Documento não publicado e apresentado no seminário sobre análise dos preços dos valores
mobiliários na Universidade de Chicago, em Maio de 1967. Citado apud RICHARD A BREALEY
e STEWART C. MYERS, “Princípios de Finanças Empresariais”, 5ª Ed., 1998, p. 329.

11
informação publicada. Este aspecto foi já bastante abordado, inclusivamente entre
nós23, tendo-se verificado que grande parte da informação tornada pública é rápida
e cuidadosamente incorporada na cotação dos activos a que diz respeito. Contudo,
sendo certo que índices de reacção relativamente curtos à disponibilização de
informação relevante constituem um indicador positivo sobre o funcionamento do
mercado, normalmente indiciando que nele não se encontram instaladas bolsas de
informação privilegiada, não será menos certo que elevados índices de reacção à
informação ocasional e avulsa revelam um mercado instável, e por conseguinte
facilmente manipulável24.

Num mercado eficiente na sua forma forte, entre a informação disponível


no mercado inclui-se, não apenas a informação tornada pública, como também
toda a informação que possa ser obtida com base numa aturada análise à empresa
e à economia. Neste contexto, os preços, ao incorporarem toda a informação
subjacente a cada título, traduzem o seu verdadeiro valor. Isto significa que num
mercado eficiente não existem possibilidades de a maioria dos investidores
conseguirem taxas de rendibilidade sistematicamente excessivas com base em
informações privilegiadas, uma vez que neste mercado estas informações não
existem25.

A classificação proposta quanto ao grau de eficiência do mercado face à


informação disponível explica-nos que a capacidade de incorporação de todos os
dados relevantes e susceptíveis de averiguação nos preços, leva a que o verdadeiro
valor actual de cada valor mobiliário corresponda a um preço de equilíbrio que
engloba toda a informação disponível para os investidores em cada momento. Por
outras palavras, a natureza causal dos valores mobiliários leva a que a informação

23
Veja-se MAFALDA GOUVEIA MARQUES e MÁRIO FREIRE, “A informação…”, ob. cit., p.
113 e segs.
Como referiram RICHARD A BREALEY e STEWART C. MYERS, “Princípios…”, ob. cit., p.
990, uma vez que num mercado eficiente os preços dos valores mobiliários reflectem sempre toda
a informação disponível, assumindo sempre com um maior ou menor rigor o seu verdadeiro valor,
a concorrência entre investidores adequadamente informados leva a que os preços respondam
rapidamente a uma nova informação logo que ela se torne conhecida.
24
Cfr. FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “O direito…”, ob. cit., p. 100.
25
Como referem RICHARD A BREALEY e STEWART C. MYERS, “Princípios…”, ob. cit., p.
346 , “A santa padroeira da Bolsa de Valores de Barcelona é a Nossa Senhora da Esperança. É a
padroeira perfeita, uma vez que num mercado eficiente tudo o que se pode racionalmente esperar
é obter uma rendibilidade que compense exactamente pelo valor temporal do investimento e pelos
riscos assumidos”.

12
sobre a realidade subjacente se incorpore no próprio valor mobiliário a que diga
respeito.

III. ASPECTOS SUBJACENTES AOS DEVERES DE INFORMAR

7. A ambivalência dos sujeitos perante a informação

Apesar de a informação constituir um elemento fundamental para a


própria existência e funcionamento do mercado26, este nem sempre a produz
espontaneamente, em tempo oportuno e com a quantidade e a qualidade
indispensáveis à tomada de decisões de investimento esclarecidas. Esta ideia
resulta da já conhecida e natural ambivalência27 nas relações entre os agentes
económicos e a informação, que decorre quer das dificuldades na disseminação da
informação relevante por todos os actuais e potenciais investidores, quer da forte
tendência que nestes mercados se verifica para o surgimento de assimetrias ao
nível da informação. Tais assimetrias são produto de desequilíbrios nos diferentes
graus de conhecimento e de experiência entre investidores e outros agentes do
mercado, mas também do natural interesse dos sujeitos económicos em valorizar a
informação alheia, evitando ao mesmo tempo divulgar a informação de que
dispõem28.

Esta última tendência surge agravada pela forte concorrência que nestes
mercados se faz sentir, e pela circunstância de que a simples detenção de
informação permitir aos seus titulares correr, como vimos, menos riscos do que
aqueles a que tipicamente estão sujeitos os demais investidores.

26
A eficiência dos mercados constitui uma das incumbências do Estado no âmbito económico e
social, cabendo-lhe, nos termos da alínea e) do artigo 81º da Constituição da República
Portuguesa, “assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a
equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas
e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral.”.
27
Cfr. EDUARDO PAZ FERREIRA, “A informação…”, ob. cit., p. 145, citando ALBERTO
PREDIERI, “Lo Stato come riduttore di assimetrie informative nella Regolazione dei Mercati
Finanziari”, p. 69 e segs.
28
Curiosamente a propósito, cite-se o expressivo slogan recentemente escolhido por um conhecido
jornal de informação financeira, que sugere: “Saiba tudo às quintas no Jornal de Negócios, ou dias
depois em todo o lado”, ou ainda a conhecida frase atribuída a ARISTÓTELES ONASSIS,
segundo a qual “o segredo dos negócios é saber algo que mais ninguém sabe”.

13
Deste modo, o mercado carece de um adequado quadro jurídico que lhe
permita impor o ajustamento perante as assimetrias informativas pontualmente
emergentes, de maneira a que entre a ocorrência de um determinado facto
susceptível de influir nos preços e o momento da sua divulgação decorra o
mínimo espaço de tempo possível. Nesta medida, o Direito dos Valores
Mobiliários é chamado a proporcionar a todos igualdade no acesso e na
distribuição dos riscos próprios do investimento através da imposição sobre os
agentes que nele actuam, de um amplo e eficaz conjunto de deveres de
informação29.

8. O princípio da full disclosure

A necessidade de organizar o mercado no sentido de assegurar a


necessária informação para que todos os investidores possam autodeterminar-se
no quadro de um mercado transparente e igualitário, levou ao acolhimento do
princípio da full disclosure (revelação total) ou da transparência no ordenamento
jurídico português, que desempenha um papel estruturante no moderno Direito
dos Valores Mobiliários. Este princípio foi introduzido entre nós através da
importação do direito anglo-saxónico, feita por via da transposição do direito
comunitário30. No entanto a influência fundamental veio do contributo norte-
americano que, através do Securities Act de 1933 e do Securities Exchange Act de
1934, na sequência do Companies Act britânico de 1901, introduziu uma
dicotomia entre duas categorias mobiliárias de sociedades: as closed corporations
e as publicly held corporations, fazendo recair sobre as últimas o peso de um
quadro de deveres mais exigente, sobretudo ao nível da informação.

29
Como poder ler-se no considerando nº. 31 da Directiva nº. 2001/34/CE, de 28 de Maio, “uma
política de informação adequada dos investidores no sector dos valores mobiliários é susceptível
de melhorar a sua protecção, de reforçar a sua confiança nos mercados desses valores e de
assegurar assim o seu bom funcionamento”.
30
Fundamentalmente da Directiva nº. 82/121/CEE, de 15 de Fevereiro relativa à informação
periódica a publicar pelas sociedades cujas acções são emitidas à cotação oficial de uma bolsa de
valores e da Directiva nº. 88/627/CEE, de 12 de Dezembro, relativa às informações a publicar por
ocasião da aquisição ou alienação de uma participação importante numa sociedade cotada na
bolsa. As matérias regulamentadas por estas directivas foram entretanto codificadas pela
aprovação da Directiva nº. 2001/34/CE, de 28 de Maio, relativa à admissão de valores mobiliários
à cotação oficial de uma bolsa de valores e à informação a publicar sobre esses valores, a qual foi
alterada pela Directiva nº. 2003/6/CE, de 28 de Janeiro.

14
O sistema de revelações obrigatórias (mandatory disclosure),
conjuntamente com uma série de outras medidas implementadas por força
daqueles diplomas, como a constituição da Securities Exchange Comission, surge
como a reacção à grande depressão que afectou os mercados financeiros norte
americanos em 1929 e teve essencialmente em vista restaurar a confiança dos
investidores no mercado de valores mobiliários, tradicionalmente a grande fonte
de financiamento das empresas norte-americanas.

O princípio da full disclosure é a peça crítica de uma estrutura destinada a


criar uma cultura de mercado assente na maximização da divulgação de
informação por parte de todos os agentes envolvidos, encontrando a sua expressão
em cada um dos deveres de informação previstos no CVM e nos Regulamentos,
Recomendações e outros documentos emanados pela CMVM31.

No entanto, as dificuldades de implementação de soluções de


transparência encontram-se ligadas à circunstância de as transacções ocorrerem
dentro do sistema sem que os investidores conheçam a contraparte, ou seja, num
ambiente de massificação e indeterminabilidade dos sujeitos a quem a informação
se destina. Este facto, aliado à enorme diversidade de meios de divulgação ao
dispor dos sujeitos a ela obrigados e às falhas de mercado que a regulamentação
excessiva pode originar, suscitam o problema do possível excesso na quantidade
da informação tornada pública, em claro detrimento da sua qualidade32. Há pois
que atender a um princípio de razoabilidade quanto à imposição de deveres de
informação aos agentes do mercado, dado que excessivos deveres de prestação de
informação e de publicidade implicam custos acrescidos na sua obtenção33, com

31
É o caso do seu Regulamento sobre deveres de informação nº. 11/2000, de 19 de Julho, alterado
pelos Regulamentos nºs. 24/2000, de 19 de Julho, 13/2002, de 26 de Agosto e 11/2003, de 2 de
Dezembro, do Regulamento sobre o governo das sociedades cotadas nº. 7/2001, de 28 de
Dezembro, alterado pelo referido Regulamento nº. 11/2003, dos seus “Entendimentos Relativos ao
Dever Legal de Informação sobre Factos Relevantes pelos Emitentes de Valores Mobiliários
admitidos à Negociação em Bolsa” de Julho de 2000 e das “Recomendações da CMVM sobre o
Governo das Sociedades Cotadas” cuja versão mais recente é de Novembro de 2003. Estes
documentos encontram-se disponíveis em www.cmvm.pt/.
32
PAULO CAMARA, “Os deveres de informação e a formação de preços no mercado de valores
mobiliários”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 2, 1998, p. 91.
33
Neste sentido, veja-se PAULO CÂMARA, “Os deveres…”, ob. cit., p. 87. Parece-nos ser o caso,
da rede intrincada prevista no Regulamento da CMVM nº. 11/000, de deveres de publicação e de
dupla publicação de factos cuja divulgação encontra-se já muitas vezes assegurada por força de
outras disposições, e que deixam muitas vezes o intérprete numa posição em que, na dúvida,
deverá publicar factos apenas sujeitos a comunicação ou a proceder a nova publicação, sob pena
de se colocar em posição de lhe ser imputada a prática de um ilícito contra-ordenacional.

15
directo prejuízo para a margem de liquidez proporcionada pelo investimento em
valores mobiliários.

Daí que em atenção aos fins de eficiência propostos, a tendência apontada


pela doutrina seja a de criar as condições para uma adequada selectividade e
doseamento na distribuição dos deveres informativos impostos aos diversos
intervenientes no mercado, consoante os factos sujeitos a informação ocorram
dentro do âmbito da sua esfera de actividade. Neste sentido, apenas será de exigir
a informação que as entidades obrigadas possam dispor com o esforço que lhes
seja razoavelmente exigível, excluindo portanto do âmbito dos referidos deveres
todos os factos cujo desconhecimento lhes não seja imputável34.

À diminuição de custos junta-se a diminuição de riscos decorrente do


maior controlo das próprias entidades emitentes naturalmente propiciado pela
maior visibilidade da sua situação patrimonial e financeira35. Trata-se do
tradicional problema de encontrar um justo e económico ponto de equilíbrio
(trade off), entre o enquadramento jurídico da tutela dos riscos de informação a
que estão sujeitos os investidores através do acolhimento do princípio geral da
transparência, e a operacionalidade de funcionamento do próprio mercado, tendo
em vista a utilização dos métodos que se revelem simultaneamente mais eficazes
e menos dispendiosos de divulgação de informação necessária ao esclarecimento
de todos os actuais e potenciais adquirentes de valores mobiliários. Esta solução
de compromisso leva a que os deveres de informação devam incidir justamente
sobre os sujeitos que se encontrem objectivamente nas melhores condições de
assegurar a sua difusão, com um mínimo de custos associados.

34
Veja-se AMADEU JOSÉ FERREIRA, “Direito dos Valores Mobiliários”, 1997, p. 334.
35
SOUSA FRANCO, “Actas do Conselho Nacional do Mercado de Valores Mobiliários” de 8 de
Setembro de 1997 e 22 de Janeiro de 1998, edição do Ministério das Finanças e da Comissão do
Mercado de Valores Mobiliários, p. 10. Também neste sentido, a COMISSÃO DO MERCADO
DE VALORES MOBILIÁRIOS, ao chamar à atenção nas suas “Orientações relativas ao dever
legal de prestação de informação sobre factos relevantes” que o cumprimento rigoroso dos
deveres de informação por parte das entidades emitentes não deverá ser por estas encarado como
um encargo sem retorno, a ser cumprido estritamente de modo a evitar o perigo da aplicação de
sanções, mas sim como a contrapartida de um benefício expresso na redução do risco imputável
aos valores mobiliários por si emitidos, contribuindo para que o mercado de valores mobiliários
continue a ser um instrumento eficiente e duradouro do seu financiamento.

16
9. A teleologia dos deveres de informação

Ora, face ao que fica exposto, a ratio fundamental mediatamente


subjacente aos deveres informativos previstos no Código dos Valores Mobiliários
prende-se fundamentalmente com um interesse público de defesa da eficiência do
mercado de capitais, através da protecção dos investidores genericamente
considerados como a colectividade composta por todos os actuais e potenciais
adquirentes de valores mobiliários36. No sentido do entendimento proposto temos
o nº. 2 do artigo 1º do CVM, que estabelece que o reconhecimento de novos
valores mobiliários fica dependente de determinados requisitos, como seja desde
logo o serem emitidos em circunstâncias que assegurem os interesses dos
potenciais adquirentes. A intenção do legislador de não se limitar a circunscrever
à protecção conferida aos investidores individualmente considerados, mas de a
estender à universalidade dos potenciais adquirentes, é aqui evidente, em atenção
ao interesse público que reveste o adequado funcionamento do mercado de
capitais. Outro reflexo deste objectivo constitui a imposição de que os deveres de
informação previstos no CVM devam ser cumpridos mediante a sua divulgação
através de meio de comunicação de grande difusão em Portugal37.

Quanto às finalidades imediatamente subjacentes às normas instituidoras


de deveres de informação, temos o esclarecimento dos investidores quanto às
decisões de investimento ou de desinvestimento a adoptar, a distribuição
igualitária do risco, e a formação regular dos preços dos valores mobiliários
disponíveis no mercado.

36
A informação que aqui se pretende assegurar é a informação orientada à formação de negócios
no mercado em condições de igualdade e segurança. Concordamos com AMADEU JOSÉ
FERREIRA, “Direito…”, ob. cit., p. 40, quando afirma que o princípio da defesa do investidor não
é funcionalmente dependente do princípio da defesa do mercado. No entanto, a circunstância de o
legislador atender, ao lado do interesse dos investidores, à defesa dos interesses dos potenciais
adquirentes (cfr. nº. 2 do artigo 1º do CVM) é uma decorrência deste princípio. Daí que em nosso
ver, o princípio que se encontra fundamentalmente subjacente à instituição de deveres de
informação será o princípio da defesa do mercado de capitais, sem prejuízo de encontrarmos
pontualmente normas que de uma forma mais intensa visam a protecção particular dos
investidores, como sucede com as disposições contidas no artigo 323º e no nº. 2 do artigo 314º do
CVM.
37
Cfr. nº. 1 do artigo 5º do CVM.

17
O esclarecimento dos investidores no que diz respeito qualquer aspecto
susceptível de influenciar a avaliação que fazem dos investimentos propostos em
função das suas expectativas e perspectivas futuras, é uma condição determinante
para uma tomada de decisão de investimento ou de desinvestimento livre e
responsável. A necessidade de esclarecimento dos investidores, designadamente
dos não institucionais, exige-se de um modo muito especial na negociação em
mercados regulamentados, onde as transacções têm lugar as mais das vezes dentro
do sistema centralizado e em massa, entre sujeitos que não têm qualquer contacto
entre si38. Naturalmente que estas características tornam inadequadas as
tradicionais soluções do direito civil que, como referimos constituem os sujeitos
envolvidos como garantes do esclarecimento da contraparte, reclamando um
conjunto de soluções próprias que permitam a ocorrência de um fenómeno de
publicização da informação.

Ainda incluído na ratio das normas instituidoras da tutela informativa no


Direito dos Valores Mobiliários, encontramos o interesse em assegurar uma
distribuição igualitária do risco de informação, o qual é potenciado nestes
mercados pela existência das assimetrias objectivas e subjectivas a que acima se
faz referência. Tal objectivo é alcançado pela consagração do princípio da
igualdade no acesso à informação em diversas disposições do CVM39, que se
apresenta como determinante para a diluição das assimetrias na distribuição do
risco, e para a generalização das possibilidades de identificação e de valoração
dos riscos típicos inerentes aos investimentos concretamente propostos40. Ora, ao
evitar a proliferação de assimetrias informativas, este princípio impede que os

38
Neste sentido, veja-se CÉLIA REIS, “Violação de Deveres de informação”, in Cadernos do
Mercado de Valores Mobiliários, nº. 4, 1999, p. 269 e AMADEU JOSÉ FERREIRA, “Direito…”,
ob. cit., p. 333.
39
Naturalmente que a entidade emitente assegura este tratamento igual quando, na posse de
informações não comunicadas, procede à sua divulgação tempestiva no mercado antes do que a
qualquer outro sujeito. Cfr. artigo 15º do CVM, nos termos do qual: “a sociedade aberta deve
assegurar tratamento igual aos titulares dos valores mobiliários por ela emitidos que pertençam à
mesma categoria.”. Este princípio infere-se a partir do princípio da igualdade jurídica consagrado
no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, e influencia directamente inúmeros outros
preceitos constantes do CVM de entre os quais destacamos a parte final do nº. 2 do artigo 1º, o nº.
1 do artigo 6º, os artigos 112º, 197º, o nº. 5 do artigo 203º e a alínea a) do nº. 2 do artigo 393º do
CVM.
40
Como a este propósito chama à atenção FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, quem
negoceia com informação privilegiada, antecipa-se ilegitimamente ao resto do mercado, e por isso
não corre os mesmos riscos que os demais investidores (“O direito…”, ob. cit., p. 103).

18
detentores de informação não tornada pública possam atenuar ou eliminar em
proveito próprio o risco de informação, em detrimento dos demais investidores41.

Finalmente, cabe uma forte preocupação na teleologia dos deveres de


informação pela correcta formação dos preços dos activos negociados no mercado
de valores mobiliários. É que o efeito da informação sobre os preços dos activos
resulta do funcionamento das leis económicas da oferta e da procura, a partir dos
juízos formados pelos investidores quanto ao realismo dos preços que os valores
disponíveis no mercado apresentam em cada momento. Ao permitir aos
investidores formar expectativas quanto à estabilidade e rendibilidade das suas
aplicações, a informação disponível incorpora-se na negociação dos activos,
ficando reflectida nos respectivos preços.

Da constatação de todos estes factores conclui-se, no que diz respeito em


particular a este aspecto da formação de preços, que ao acervo de deveres
informativos juridicamente impostos aos agentes do mercado subjazem razões
que a economia soube apurar tendo em vista assegurar a eficiência do mercado e
paralelamente, a protecção do investidor, designadamente do investidor não
institucional.

Advirta-se no entanto, em homenagem ao referido princípio da autonomia


privada, que a aplicação dos mecanismos de protecção dos investidores e do
mercado consagrados no CVM não pretende eliminar o risco do investimento
propriamente dito, recaindo sempre o ónus e o risco da decisão exclusivamente
sobre o investidor, que conserva o inalienável direito de fazer figura de idiota (to
make a fool of himself)42. De facto, a tutela conferida pelo Direito dos Valores
Mobiliários através da implementação destas obrigações informativas não
pretende garantir o mérito das decisões individuais dos investidores, mas tão-só
assegurar que estes orientem os seus investimentos de uma forma livre e
responsável, através do acesso em tempo oportuno a informação perceptível,
fiável e comparável.

41
CÉLIA REIS, “Violação…”, ob. cit., p. 271.
42
CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A informação…”, ob. cit., p. 337. Frisando igualmente este
aspecto, EDUARDO PAZ FERREIRA, “A informação…”, ob. cit., p. 147.

19
IV. ENQUADRAMENTO DOS DEVERES DE INFORMAR

10. A qualidade da informação

A relevância fundamental que o princípio da transparência assume no


Direito dos Valores Mobiliários é desde logo sublinhada pela sua inserção
sistemática no Código dos Valores Mobiliários, que reserva no seu título I um
capítulo inteiramente dedicado à informação e onde é genericamente tratada a
questão da qualidade da informação a disponibilizar no mercado.

Neste sentido, são estabelecidos determinados parâmetros com que a


informação deve conformar-se de maneira a que os investidores dela possam
retirar todos os elementos necessários a uma correcta avaliação dos seus
investimentos actuais ou futuros. Assim, além da obrigatoriedade de se encontrar
redigida em língua portuguesa43, a informação que seja susceptível de influenciar
as decisões dos investidores ou que seja prestada às entidades de supervisão e às
entidades gestoras dos mercados, de sistemas de liquidação, e de sistemas
centralizados de valores mobiliários, deve ser completa, verdadeira, actual clara
objectiva e lícita44.

Concretizando o sentido destas expressões, a informação a prestar deve:


(i) compreender todos os elementos susceptíveis de influir no preço dos valores
mobiliários45, (ii) representar fielmente a realidade que se destina a reflectir, não
induzindo em erro os seus destinatários, (iii) ser oportunamente fornecida e
actualizada quanto aos factos supervenientes que afectem o seu conteúdo, (iv) ser
perceptível para os seus destinatários46, (v) apoiar-se em factos suficientemente
43
Nos termos do nº. 1 do artigo 6º do CVM, deve ser redigida em português ou acompanhada de
tradução para português devidamente legalizada a informação divulgada em Portugal que seja
susceptível de influenciar as decisões dos investidores, nomeadamente quando respeite a ofertas
públicas, a mercados de valores mobiliários, a actividades de intermediação e a emitentes. A
CMVM poderá no entanto, ao abrigo do nº. 2 deste artigo, dispensar a tradução, no todo ou em
parte, caso considere encontrarem-se acautelados os interesses dos investidores.
44
Cfr. nº. 1 do artigo 7º do CVM.
45
No entanto, como refere PAULO CÂMARA in “Os deveres…”, ob. cit., p. 91, “para fundar a
prudência no cumprimento do dever de informação (…) somam-se às explicações normativas,
razões de índole económica, na medida em que tem sido evidenciado que a disponibilização de
toda a informação, incluindo a relativa a factos inexactos, não confirmados ou não consumados, é
factor de ineficiência dos mercados.”.
46
Um aspecto pouco abordado no que diz respeito à apresentação da informação relevante sobre
emitentes junto do público é a vantagem da estandardização da informação. É desejável que além

20
comprovados, e (vi) conformar-se com a lei, a ordem pública e os bons costumes.
Estes elevados padrões de qualidade são aplicáveis a toda a informação
susceptível de influenciar as decisões dos investidores e ainda àquela
especificamente dirigida às entidades reguladoras do mercado, seja qual for o
meio de divulgação utilizado e ainda que inserida em conselho, recomendação,
mensagem publicitária ou relatório de notação de risco47.

A observância formal destas características é administrativamente


controlada pela CMVM que aprecia a legalidade da informação divulgada, sem no
entanto prestar qualquer garantia quanto ao mérito das decisões que, com base
nela, os investidores possam vir a tomar48.

O Código subscreve a ideia de que a tutela de determinados valores


relacionados com o mercado implica uma actuação a nível das próprias
mensagens publicitárias, determinando que à publicidade relacionada com valores
mobiliários é aplicável o regime geral da publicidade49. Aliás, não se
compreenderia que à margem da informação proporcionada, v.g., através de
prospecto informativo, pudessem ser disponibilizadas informações publicitárias

de ser clara, verdadeira e objectiva, a informação apresente-se perante os seus destinatários em


moldes que lhes permitam comparar um conjunto de alternativas de investimento, antes de
procederem a qualquer intervenção no mercado, seja de compra ou de venda. A utilidade deste
aspecto existe independentemente do período a que as diferentes peças informativas dizem
respeito, já que a comparabilidade implica a possibilidade de relacionar peças informativas que se
referem a períodos distintos no tempo, no espaço e nos sujeitos, como sucederá, respectivamente,
entre documentos de prestação de contas prestados por uma mesma empresa em datas diferentes,
entre peças informativas emitidas por entidades cotadas em mercados distintos, ou entre material
informativo relativo a diferentes entidades emitentes. Note-se que tratando-se de um valor relativo,
pode mesmo defender-se uma estandardização que aumente a comparabilidade mesmo entre peças
de informação financeira periódica e documentos de prestação de informação contínua, como
sucede com a prestação de informação relativa a factos relevantes.
47
Cfr. nº. 2 do artigo 7º do CVM. Esta disposição legal vem estabelecer um regime comum para
todas as formas de divulgação de informação, retirando de alguma forma relevância prática às
distinções introduzidas pelas modernas concepções da teoria da informação, que de outro modo
restringiriam o campo de aplicação do nº. 1 do artigo 7º, uma vez que tendem a limitar o conceito
de informação aos conteúdos cognoscíveis e como tal, transmissíveis, reservando para uma noção
de comunicação os processos por intermédio dos quais tais conteúdos seriam transmitidos. Sem
querer aprofundar esta matéria, refira-se apenas que a acepção de informação a que se refere o
Código dos Valores Mobiliários traduz uma concepção ampla, e que abrange tanto os conteúdos
transmitidos, como os próprios processos de transmissão de conhecimentos potencialmente
relevantes, pelo que não fará sentido proceder-se a quaisquer distinções nesta sede.
48
Cfr. nº. 3 do artigo 118º e nº. 2 do artigo 234º do CVM. Cfr. igualmente o que ficou dito supra,
III, nº. 9.
49
Cfr. nº. 4 do artigo 7º do CVM. Sobre a articulação entre o regime geral da publicidade e as
regras específicas do Código dos Valores Mobiliários com ela conexas, veja-se SOFIA
NASCIMENTO RODRIGUES, “Publicidade Relativa a Valores Mobiliários”, in Cadernos do
mercado de Valores Mobiliários, nº. 11, 2001, p. 95 e segs..

21
de conteúdo divergente, porventura até contraditórias com o prospecto, colocando
em causa a sua utilidade prática, tanto mais que o investidor médio é muito mais
atraído pela mensagem publicitária do que pela análise económica e financeira
mais exaustiva50. Neste sentido, a publicidade relativa a ofertas públicas, além de
se encontrar sujeita a autorização prévia por parte da CMVM, deve obedecer a
rigorosas exigências como sejam as da sua conformação com os padrões
informativos acima enunciados, a necessidade de referência expressa à existência
ou à futura disponibilidade de prospecto, e a sua harmonia com o conteúdo desse
mesmo prospecto51.

No entanto, e dadas as óbvias diferenças que as técnicas de divulgação da


informação apresentam entre si, sempre que o prospecto seja divulgado através da
utilização de outros meios, como sejam o recurso à Internet ou a agências
noticiosas, deve ser tornado acessível de modo separado em relação a qualquer
outra informação, designadamente publicitária. Além disso, a sua divulgação
através daqueles meios deve ocorrer simultaneamente ou em momento posterior à
disponibilização do prospecto junto do público, salvo no caso da sua prévia
divulgação através do sistema de difusão de informação da CMVM52.

Outra forma de controlo da qualidade de informação, designadamente


daquela que se encontra total ou parcialmente assente em asserções de carácter
técnico, é garantida pelo necessário parecer de auditores financeiros quanto ao
teor de determinados documentos de divulgação obrigatória. Desta forma, estes
agentes desempenham um importante papel de guardiões (gatekeepers) da
integridade dos mercados e da veracidade e rigor técnico da informação que neles

50
EDUARDO PAZ FERREIRA, “A informação…”, ob. cit., p. 143. Neste sentido, dispõe o nº. 3
do citado artigo 121º, que à responsabilidade civil pelo conteúdo da informação divulgada em
mensagens publicitárias aplicam-se, com as devidas adaptações, as normas relativas à
responsabilidade civil pelo prospecto constantes nos artigos 149° e seguintes do CVM.
51
Cfr. nºs. 1 e 2 do artigo 121º do CVM. O prospecto informativo é um documento que, em regra
precede a realização de ofertas públicas relativas a valores mobiliários e a sua admissão à
negociação em mercado regulamentado, e que constitui uma importantíssima fonte de informação
técnica que tem em vista esclarecer o público quanto aos os investimentos concretamente
propostos (cfr. respectivamente nº. 1 do artigo 134º, e nº. 1 do artigo 236º do CVM). O prospecto
deverá sempre conter informação que esteja nas condições prescritas no citado nº. 1 do artigo 7º
(cfr. nº. 1 do artigo 135º do CVM), de maneira a permitir que o público em geral possa formar
juízos fundados sobre a oferta, os valores mobiliários que dela são objecto e os direitos que lhe
são inerentes e sobre a situação patrimonial, económica e financeira do emitente.
52
Cfr. os termos conjugados do nº. 2 do artigo 140º do CVM e do nº. 2 do artigo 1º do citado
Regulamento nº. 11/2000, na sua redacção actualmente em vigor.

22
é disponibilizada53. Entre os documentos que envolvem uma pronúncia
obrigatória por parte de auditores quanto à da informação financeira neles contida,
temos os documentos de prestação de contas, estudos de viabilidade, aqueles que
devam ser publicados no âmbito de pedido de admissão à negociação de valores
mobiliários, e outros que por imperativo legal devam ser submetidos à CMVM54.

11. O cumprimento dos deveres de informar

Apesar da variedade de fórmulas encontrada nas normas impositoras de


deveres de informar, destacam-se ao longo do CVM duas técnicas distintas quanto
ao seu modo de cumprimento: a comunicação de factos a sujeitos determinados e
a emissão de comunicados ao público em geral.

Na primeira categoria de deveres encontramos designadamente as


estatuições contidas nos artigos 16º, 19º, 244º e nº. 1 do artigo 249º do CVM,
onde se prevê que os sujeitos a ela obrigados “informem”, “comuniquem” ou
“enviem” à CMVM determinados factos ou elementos que contenham
informação. Naturalmente que aqui trata-se de prestações de facto idênticas, que
se materializam na emissão de declarações receptícias àquela entidade de
supervisão55.

Incluídos na segunda categoria de deveres estão os deveres assinalados nos


artigos 17º, 245º, 246º, nº. 1 do artigo 248º e nº. 2 do artigo 249º do CVM, onde
os sujeitos abrangidos são adstritos à obrigação de “publicar” ou de “informar o

53
Os auditores financeiros são sujeitos de direito privado que devem estar registados como tal na
CMVM, e cuja função é a de defender o funcionamento do mercado de valores mobiliários,
zelando essencialmente pela correcção técnica da informação que nele é disponibilizada. Daí que
se encontrem sujeitos a especiais regras de constituição, funcionamento e responsabilidade que
pretendem assegurar elevados padrões de independência e aptidão profissional (Cfr. artigos 9º e
10º do CVM e o Regulamento da CMVM nº. 6/2000, de 23 de Fevereiro). Cfr. PAULO
CÂMARA, “O Governo das Sociedades em Portugal: Uma Introdução” in Cadernos do Mercado
de Valores Mobiliários, nº. 12, 2001, p. 51.
54
Cfr. nº. 1 do artigo 8º do CVM. Adicionalmente, caso os documentos a que se refiram as peças
emitidas por auditor financeiro integrem previsões sobre a evolução dos negócios ou sobre a
situação económica ou financeira da entidade a que digam respeito, deverão aqueles pronunciar-se
sobre os respectivos pressupostos, critérios e coerência (cfr. nº. 2 do artigo 8º do CVM).
55
Chama-se à atenção para a circunstância de que o cumprimento dos deveres de informação à
CMVM por parte das entidades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em
mercado regulamentado, sobretudo no que diz respeito às condições a que devem obedecer a
entrega e o processamento dos elementos que integram a informação a prestar, encontra-se
regulamentado pela Instrução da CMVM nº. n.º 12/2002, disponível em http://www.cmvm.pt/.

23
público”. Nestes casos, o comportamento devido tem por destinatário o público
em geral, e como tal, deve ser levado a cabo através de meio de comunicação de
grande difusão em Portugal que seja acessível aos destinatários da informação56.
O Regulamento nº. 11/2000 da CMVM precisa que, salvo disposição legal ou
regulamentar em contrário, tais deveres de informação devem ser cumpridos
através da sua publicação num jornal de grande circulação em Portugal e, sendo
caso disso, no boletim do mercado regulamentado em que os valores mobiliários a
que dizem respeito estejam admitidos à negociação57.

V. OS DEVERES DE INFORMAÇÃO RELATIVOS A ENTIDADES


EMITENTES

12. Razão de ordem

Focando agora os efeitos jurídicos, no que diz respeito ao tema que nos
propusemos analisar, incidentes sobre as entidades emitentes, os membros dos
seus órgãos sociais ou sobre os sujeitos a quem são imputados direitos de voto
naquelas, deverá desde logo atender-se essencialmente a dois círculos normativos,
dos quais resultam específicos deveres de prestar informação: o do regime geral
das sociedades abertas e um regime mais exigente respeitante às entidades
emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado
regulamentado58.

Seja como for, esta distinção apresenta uma enorme relevância nesta
matéria, uma vez que determina a aplicação de estruturas normativas que
pressupõem um grau de exigência distinto no que diz respeito à incidência de
56
Cfr. nº. 1 do artigo 5º do CVM
57
Cfr. nº. 1 do artigo 1º do citado regulamento, com a redacção que lhe foi dada pelo Regulamento
nº. 13/2002. Esta regra pode no entanto ser afastada nos termos do artigo 8º-A do Regulamento nº.
11/2000 quando, no que diz respeito aos documentos de prestação de contas a divulgar por
sociedades emitentes de acções admitidas à negociação em mercado regulamentado situado ou a
funcionar em Portugal, a divulgação pelo público seja assegurada pela imediata inserção da
informação abrangida no seu sítio na Internet, dando conhecimento desse facto à CMVM.
58
Cfr. alínea b) do nº. 1 do artigo 200º e artigos 244º e segs. do CVM.
Não se tratam no entanto de círculos normativos concêntricos, já que não existe inteira
coincidência entre sociedades abertas e entidades emitentes de valores admitidos à negociação em
mercado regulamentado, pela circunstância de que nesta última categoria mobiliária podemos
encontrar ainda entidades emitentes de valores mobiliários representativos de dívida igualmente
admitidos à negociação, que podem não ser sociedades, como é o caso, por exemplo, do Estado ou
das cooperativas.

24
deveres de informação permanente. A nossa exposição passará por conseguinte
por uma breve incursão sobre o regime das sociedades abertas, passando
subsequentemente aos deveres de informação permanente ligados à sua estrutura
societária segundo critérios de imputação de direitos de voto. Seguidamente,
passaremos aos deveres de informação permanente directamente associados a
entidades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado
regulamentado.

13. As sociedades abertas

Antes de abordarmos os deveres de informação permanente relativos a


entidades emitentes, não podemos deixar de fazer aqui uma breve referência à
sociedade aberta, que ao contrário do tipo societário que assenta sobretudo sobre
uma participação social de onde se desprendem direitos subjectivos, constitui um
centro de intercessão de normas de Direito dos Valores Mobiliários que se
prendem essencialmente com um esquema de protecções reflexas do investidor.

A sociedade com o capital aberto ao investimento do público59 é um tipo


mobiliário dotado de características próprias, que apresenta notórias diferenças
em relação às sociedades não abertas ou fechadas, as quais decorrem
essencialmente de um fenómeno de separação entre a titularidade e o controlo.
Este fenómeno é predominante nas sociedades cujo capital se encontra disperso
pelo público, e tem consequências, quer ao nível da estruturação interna, quer ao
nível da estruturação externa dos seus poderes de controlo e gestão.

A aquisição da qualidade de sociedade aberta depende da verificação de


alguma das previsões contidas no artigo 13º do CVM, que constitui um catálogo
de tipos de verificação automática. Tais critérios são essencialmente, a difusão de
acções pelo público, tanto por via da aquisição originária de acções ou de valores
equiparados que tenham sido objecto de oferta pública de subscrição, como pela
admissão de acções ou de valores equiparados à negociação em mercado

59
Cfr. O artigo 7º do Decreto-Lei nº. 486/99 de 13 de Novembro, que aprovou o Código dos
Valores Mobiliários, nos termos do qual “as expressões «sociedade de subscrição pública» e
«sociedade com subscrição pública», utilizadas em qualquer lei ou regulamento, consideram-se
substituídas pela expressão «sociedade com o capital aberto ao investimento do público» com o
sentido que lhe atribui o artigo 13º do Código dos Valores Mobiliários.”.

25
regulamentado, a alienação de acções em oferta pública de venda ou de troca
quantitativamente significativa, ou a constituição a partir de cisão ou fusão de
uma sociedade aberta. O momento da aquisição da qualidade de sociedade aberta
ocorre assim que existir um contacto irreversível com o público, ou seja, no
momento do apuramento do resultado da oferta ou no momento da admissão à
negociação dos valores por si emitidos no mercado, ou no caso de se tratar de
sociedade constituída através de fusão ou cisão, no momento do registo do acto
constitutivo da nova sociedade60.

Nota saliente e estruturalmente, talvez o aspecto mais importante no


regime das sociedades abertas61 tem a ver com a técnica legislativa utilizada no
novo código para a medição de participações qualificadas62, que passa pela
assimilação da titularidade à detenção de uma capacidade de influência sobre o
exercício de direitos de voto63. Trata-se de um preceito dotado de uma enorme
complexidade dogmática, que monta a sua técnica em ficções jurídicas
denunciadoras de um perigo de influência sobre o exercício do direito de voto,
mas sem efeitos ao nível societário. A técnica utilizada permite a imputação de
direitos de voto a pessoa diversa do titular directo, sem o eliminar, apresentando
por conseguinte um efeito multiplicador dos sujeitos considerados em posição de
exercer influência sobre o controlo da gestão de sociedades abertas, provocando
nessa medida um certo apagamento da figura do sócio.

Embora este fenómeno de ampliação possa parecer paradoxal quando o


que no fundo se pretende ao nível societário com a informação é assegurar a
soberania dos investidores na tomada de decisões sobre os seus investimentos, a
verdade é que a equiparação para certos efeitos entre as posições dos detentores
de um poder de influência sobre o governo da sociedade e a posição do accionista,

60
A perda de qualidade de sociedade aberta tem lugar uma vez verificadas as circunstâncias
enumeradas no nº. 1 do artigo 27º do CVM, a partir do momento da publicação da decisão a tomar
para o efeito pela CMVM, e implica a imediata exclusão dos valores mobiliários emitidos pela
sociedade em causa da negociação em mercado regulamentado e a impossibilidade da sua
readmissão à negociação nesse mercado pelo prazo de um ano (cfr. nºs. 1 e 2 do artigo 29º do
CVM).
61
Como consequência da aquisição da qualidade de sociedade aberta, estas encontram-se
obrigadas, por força do disposto no artigo 14º do CVM, de mencionar essa qualidade em todos os
actos qualificados como externos pelo artigo 171º do Código das Sociedades Comerciais.
62
Cfr. nº. 1 do artigo 20º do CVM.
63
Sobre o tema, veja-se CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A Imputação de Direitos de Voto no
Código dos Valores Mobiliários”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 7, 2000, p.
163 e segs.

26
permite colocar a descoberto as relações de poder que determinam a titularidade
do controlo nestas sociedades64. O preceito em causa apresenta-se portanto como
uma look-through provision essencial para o conhecimento das estruturas de
controlo societário, favorecendo nessa medida o exercício do poder de escrutínio
por parte dos investidores.

Os critérios de imputação dos direitos de voto constituem uma superação


do conceito de detenção jurídica e têm consequências desde logo ao nível da
determinação da existência de deveres de divulgação pública de participações
qualificada em sociedades abertas65 que apesar de por vezes quantitativamente
pouco expressivas dada a crescente pulverização do seu capital social, são
consideradas susceptíveis de influenciar os preços dos valores mobiliários por si
emitidos.

A) O dever de comunicação de participações qualificadas

A aquisição da qualidade de sociedade aberta implica, para os sujeitos que


adquiram ou alienem participações consideradas qualificadas nos termos do artigo
16º e segundo os critérios de imputação dos direitos de voto previstos no nº. 1 do
artigo 20º do CVM, a imediata sujeição a um importante conjunto de deveres de
informação. A consagração destes deveres tem especificamente em vista um
efeito preventivo de desencorajar a adopção de práticas ilícitas como transacções
intra-grupo ilícitas, fraude a regras sobre concorrência, e de ao mesmo tempo
permitir o conhecimento das relações de domínio existentes nas sociedades
abertas, dada a sua influência reflexa sobre a gestão e sobre os próprios preços dos
valores mobiliários por elas emitidos e ou detidos.

Assim, estabelece a referida disposição legal que quem atinja ou ultrapasse


uma participação66 correspondente a 10%, 20%, um terço, metade, dois terços e
90% dos direitos de voto correspondentes ao capital social de uma sociedade
aberta — e ainda a 2% ou a 5%, no caso de se tratar de sociedade emitente de

64
Este regime resulta da constatação de que certos acordos são muitas vezes susceptíveis de
permitir exercer uma influência mais decisiva sobre a gestão do que a própria detenção de
participações sociais.
65
Cfr. artigos 16º a 18º do CVM.
66
Calculada nos termos do nº. 1 do artigo 20º do CVM.

27
acções ou de outros valores mobiliários que confiram direito à sua subscrição ou
aquisição, admitidos à negociação em mercado regulamentado — ou mesmo
quem reduza a sua participação em sociedade aberta para um valor inferior a
qualquer uma daquelas fasquias, deve, dentro dos três dias seguintes à ocorrência
do facto que lhes deu origem, informar a CMVM, a sociedade participada e as
entidades gestoras dos mercados onde os valores mobiliários emitidos por aquela
estejam admitidos à negociação, não apenas da ocorrência desse mesmo facto,
como ainda das situações que determinem a imputação ao participante de direitos
de voto inerentes a valores mobiliários pertencentes a terceiros67.

Face à ineficácia apresentada pelo mecanismo constante da primeira


versão do artigo 16º do CVM, com a aprovação do Decreto-lei nº. 61/2002 de 20
de Março procedeu-se ao aditamento dos seus actuais números 3 a 9, por via dos
quais foi tornado mais exigente o regime de controlo de participações qualificadas
nas sociedades abertas. Adicionalmente, foi clarificada a obrigação do detentor da
participação qualificada de, com cada uma das comunicações a que está sujeito à
medida em que vai ultrapassando para mais ou para menos qualquer um dos
referidos limites, proceder à identificação de toda a cadeia de entidades a quem a
participação deve ser imputada, independentemente da lei a que se encontrem
sujeitas68.

A falta de comunicação da cadeia de domínio em termos considerados


satisfatórios para a CMVM, implica a emissão e publicação de uma declaração de
falta de transparência quanto à titularidade das participações sociais em causa69.
Este acto levado a cabo pela entidade de supervisão tem por efeito a imediata
suspensão do exercício do direito de voto e dos direitos de natureza patrimonial
inerentes às mesmas participações sociais70, com excepção do direito de
preferência na subscrição de novas acções em aumentos de capital. A suspensão

67
Cfr. nºs. 1 e 2 do artigo 16º do CVM.
68
Cfr. nº. 3 do artigo 16º do CVM, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº. 61/2002
de 20 de Março.
69
Cfr. nº. 6 do artigo 16º do CVM. Esta declaração é emitida caso a omissão ou insuficiência que
originaram a emissão da declaração de falta de transparência não seja suprida nos 30 dias
seguintes à notificação dirigida para o efeito pela CMVM aos interessados e aos membros dos
órgãos sociais da sociedade aberta em causa (cfr. nºs. 4 e 5 do artigo 16º do CVM).
70
Nos termos do nº. 8 do artigo em análise, os direitos patrimoniais que se vierem a vencer
durante a suspensão deverão ser creditados em conta especialmente aberta para o efeito junto de
instituição de crédito habilitada a receber depósitos em Portugal, sendo proibido o levantamento
de quaisquer valores que nela venham a constar, enquanto durar a suspensão.

28
de direitos vigora enquanto a declaração de falta de transparência não for retirada
pela CMVM.

Por sua vez, a sociedade participada, os titulares dos seus órgãos sociais
ou outra sociedade que com ela esteja em relação de domínio ou de grupo71,
deverão, após a recepção de uma comunicação sobre a aquisição ou alienação de
uma participação qualificada no seu capital social, proceder à imediata divulgação
desse facto junto do público, promovendo a sua publicação72. Este dever não
depende no entanto da recepção desta participação, porquanto estas entidades ou
mesmo a própria entidade gestora do mercado regulamentado onde os valores
mobiliários em causa estejam admitidos à negociação, têm o dever de proceder à
sua comunicação tempestiva à CMVM sempre que tiverem conhecimento ou
fundados indícios de incumprimento dos referidos deveres de informação73.

B) Os acordos parassociais

Paralelamente, não pode deixar de ser reconhecida a grande importância


dos acordos parassociais na estrutura de controlo das sociedades abertas, como
sustentáculo de participações qualificadas ou de defesas anti-OPA. Por esta razão,
o artigo 19º do CVM exige a comunicação à CMVM dos acordos parassociais
que visem adquirir, manter ou reforçar uma participação qualificada em
sociedade aberta ou assegurar ou frustrar o êxito de oferta pública de aquisição,
comunicação essa que deverá ser feita, no prazo de três dias após a data da sua
celebração, por qualquer um dos contraentes.

71
Cfr. nºs. 1 e 3 do artigo 17º e artigo 21º do CVM.
72
Uma vez em poder da entidade emitente, estas informações encontram-se sujeitas a uma dupla
publicação, nos termos do o nº. 1 do artigo 1º-B do Regulamento nº. 11/2000, devendo ser
comunicadas à CMVM antes da sua divulgação. Isto, é claro, caso não se lance mão do mecanismo
consignado no artigo 18º do CVM, que permite à CMVM dispensar a referida publicação, nos
casos em que se trate de participações de 2% e de 5% dos direitos de voto em sociedade aberta
emitente de acções ou de outros valores mobiliários que confiram direito à sua subscrição ou
aquisição, admitidos à negociação em mercado regulamentado, e desde que o participante seja
membro de um mercado regulamentado situado ou a funcionar num Estado-membro da União
Europeia, detiver as acções transitoriamente com vista à sua alienação e declarar que não pretende
exercer qualquer influência sobre a gestão da sociedade a que correspondem os direitos de voto
adquiridos.
73
Cfr. nº. 2 do artigo 17º do CVM, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº. 61/2002
de 20 de Março.

29
O acesso aos acordos parassociais permite à entidade de supervisão
exercer o controlo sobre situações geradoras de imputação de direitos de voto que
os mesmos possam eventualmente implicar, designadamente quando por qualquer
razão forem constitutivos de deveres de informação. Trata-se aliás de uma
obrigação extensível a quaisquer outros acordos cuja validade a CMVM entenda
questionar, caso tome conhecimento da existência de quaisquer acordos não
tornados públicos que considere relevantes para o controlo da gestão da sociedade
emitente. Além disso, e na medida em que tais acordos possam influir de maneira
relevante sobre o domínio da sociedade visada, a CMVM poderá ainda determinar
que os contraentes procedam, no todo ou em parte, à sua publicação74.

O incumprimento da obrigação de proceder à comunicação dos referidos


acordos parassociais tem como consequência a anulabilidade das deliberações
tomadas com base nos votos expressos em execução de tais acordos, salvo se for
feita a prova de que tais deliberações teriam sido adoptadas sem aqueles votos75.

O enfoque dado pelo legislador aos acordos parassociais obrigando à sua


divulgação, prende-se com a sua evidente susceptibilidade de influenciar o
controlo das sociedades abertas. Daí que a regulamentação em causa tenha
essencialmente em vista a salvaguarda dos princípios da igualdade de tratamento
dos investidores e da transparência, sem ao mesmo tempo ofender
desnecessariamente a autonomia privada dos sócios outorgantes de tais acordos na
auto regulamentação dos seus interesses76.

Sem pretender entrar em grandes desenvolvimentos que ultrapassariam


largamente o âmbito deste estudo, não podemos deixar de referir que esta
disposição apresenta dificuldades que têm a ver com a sua concatenação com a
disciplina contida nos artigos 16º, 20º e 21º do CVM. Isto porque, se é verdade
que por um lado, as soluções para situações de falta de transparência previstas
para a aquisição de participações qualificadas e para os acordos parassociais são
diferentes entre si, não é menos certo que os próprios acordos parassociais podem
fundamentar uma imputação de direitos de voto ao abrigo do artigo 20º, caindo
portanto no âmbito de abrangência do dever de comunicação de participações

74
Cfr. nº. 2 do citado artigo 19º do CVM.
75
Cfr. nº. 3 do citado artigo 19º do CVM.
76
JORGE MAGALHÃES CORREIA, “Notas breves sobre o regime dos acordos parassociais nas
sociedades cotadas”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 15, 2002, p. 91 e segs.

30
qualificadas previsto no artigo 16º do CVM. Por outras palavras, o normativo em
vigor apresenta consequências diferentes para situações de falta de transparência,
aplicáveis a realidades potencialmente coincidentes. Parece-nos que podem aqui
surgir dois tipos de problemas: um ao nível da compatibilização das cominações
previstas — a da suspensão do exercício de direitos inerentes à participação social
em causa, e a da eficácia relativa das deliberações tomadas com base em votos
cujo exercício encontra-se condicionado por acordo parassocial — e outro ao
nível dos possíveis expedientes encontrados pelos outorgantes de tais acordos
para se prevalecerem do regime menos gravoso ou mais conveniente, sendo certo
que contrariamente ao que acontece com os acordos parassociais, os outorgantes
de outros acordos que impliquem imputação de direitos de voto em sociedades
abertas não carecem, em princípio77 de participar à CMVM os texto integral dos
acordos abrangidos.

14. Os deveres de informação permanente relativos a entidades


emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado
regulamentado

Como atrás referimos, as entidades emitentes de valores mobiliários


admitidos à negociação em mercado regulamentado estão sujeitas a um maior
grau de exigência quanto aos deveres destinados a assegurar uma informação
permanente, dada a maior exposição do seu capital face ao público investidor.
Este aspecto reflecte-se essencialmente por um lado, na maior diversidade de
conteúdos da informação a prestar por estas entidades, e por outro, na
intensificação do acompanhamento que a CMVM sobre elas exerce relativamente
ao respectivo cumprimento.

De facto, a par dos deveres de informação ocasional, estas entidades estão


sujeitas a especiais deveres de informação permanente que se materializam quer
em obrigações de prestar informação periódica, essencialmente relativa à sua
actividade e resultados e exigível em datas ou intervalos específicos de tempo,

77
Nos termos do nº. 4 do artigo 16º do CVM, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei
nº. 61/2002 de 20 de Março, uma vez que a CMVM pode considerar que não se encontra
cumprido o referido dever de comunicação “de forma cabal”. No entanto, cfr. igualmente alínea d)
do nº. 1 do artigo 359º e alínea a) do nº. 2 do artigo 361 do CVM.

31
quer na permanente sujeição a deveres contínuos de divulgação de toda a
informação abrangida por um critério geral de relevância.

A segunda nota saliente quanto ao quadro de deveres de informação que


estão a cargo destas entidades, é a circunstância de o seu cumprimento dever ser
sempre precedido do envio de todos os documentos e informações a que dizem
respeito à CMVM e à entidade gestora do mercado regulamentado em que os
valores mobiliários por si emitidos estejam admitidos à negociação78. A CMVM
tem aliás o dever de, caso por qualquer razão tenha conhecimento do
incumprimento dos deveres de informação a que estas entidades estão obrigadas,
interpelá-las tendo em vista o cumprimento das disposições legais ou
regulamentares não acatadas e, sendo caso disso, proceder à publicação dessas
informações, a expensas daquelas79.

A) Os deveres de prestar informação periódica

No que se refere aos deveres das entidades emitentes de valores


mobiliários admitidos à negociação em bolsa, de proceder à divulgação periódica
dos documentos de prestação de contas anuais, devem os mesmos ser cumpridos
mediante a sua publicação, logo que possível e o mais tardar até 30 dias após a
sua aprovação. Estes documentos devem ser acompanhados por relatório
elaborado por auditor registado na CMVM, relatório esse que deverá conter uma
opinião relativa às previsões sobre a evolução dos negócios e da situação
económica e financeira contidas nos referidos documentos de prestação de
contas, bem como os elementos correspondentes à certificação legal de contas,
no caso de esta não ser exigida por outra norma ou de não ter sido elaborada
por auditor registado na CMVM80. De qualquer modo, caso a CMVM considere
que os elementos publicados sejam insuficientes para conferir uma imagem exacta
do património, da situação financeira e dos resultados da sociedade emitente,
poderá ainda ordenar a publicação das informações complementares que para o
efeito entenda necessárias81.

78
Cfr. nº. 1 do artigo 244º do CVM.
79
Cfr. nº. 4 do artigo 244º do CVM.
80
Cfr. nºs. 1 e 2 do artigo 245º do CVM.
81
Cfr. nº. 4 do artigo 245º do CVM.

32
Logo que estes documentos sejam colocados à disposição dos accionistas,
o emitente deverá proceder ao seu envio à CMVM e à entidade gestora de bolsa82,
que assim têm um acompanhamento em tempo real da evolução do grau de
esclarecimento dos investidores, e ficam habilitadas a verificar as repercussões
que a libertação da informação vai tendo sobre o volume de transacções e os
preços praticados no mercado.

Outro dever informativo que decorre para os emitentes de valores


mobiliários cotados em bolsa consiste na obrigação de publicar a informação
relativa à actividade e resultados do primeiro semestre do exercício, até três meses
após o seu termo83. Como esclarece o nº. 2 do artigo 246º do CVM, a finalidade
da divulgação de informação semestral prende-se com a necessidade de facultar
aos investidores elementos que lhes permitam formar juízos fundamentados sobre
a evolução da actividade e dos resultados da sociedade desde o termo do exercício
anterior, bem como, na medida do possível, a evolução previsível do exercício em
curso. Estes são aliás os objectivos que presidem em geral à instituição dos
deveres de informação periódica incidentes sobre as sociedades cotadas em bolsa.
No entanto, pretende-se aqui assegurar um ainda maior grau de actualização da
informação relevante sobre as entidades emitentes, que além de permitir a
comparação dos elementos apresentados com os correspondentes do ano anterior,
faculta aos investidores a possibilidade de detecção de eventuais factores
específicos que tenham influenciado a actividade e resultados da actividade
emitente, colocando a informação financeira divulgada em perspectiva.

Refira-se ainda a este propósito, que as entidades emitentes de acções


admitidas à negociação no mercado de cotações oficiais estão ainda sujeitas à
obrigação adicional prevista no artigo 8º do Regulamento nº. 11/2000 de divulgar
trimestralmente informação relativa à sua actividade, resultados e situação
económica e financeira.

82
Cfr. nº. 5 do artigo 245º do CVM.
83
Em particular, a informação semestral deverá conter, nos termos do nº. 1 do artigo 246º do
CVM, o montante líquido do volume de negócios, o resultado apurado antes ou depois de
deduzida a carga fiscal expectável, e o texto integral do relatório de auditor registado na CMVM,
bem como com os exigidos pelo nº. 1 do artigo 7º do Regulamento nº. 11/2000.

33
B) O dever de divulgação sobre aspectos relacionados com o
governo das sociedades cotadas

Estreitamente conexa com a informação periódica relativa à actividade e


resultados das entidades emitentes de valores mobiliários cotados em bolsa, é a
obrigatoriedade de estas divulgarem o grau de cumprimento das recomendações
da CMVM sobre o governo das sociedades cotadas. Trata-se de uma obrigação
que apresenta particularidades merecedoras de uma atenção especial, desde logo
pela diferente função que este dever de informar desempenha no esclarecimento
dos investidores quanto às políticas de gestão e transparência adoptadas pelo
emitente.

A obrigatoriedade de divulgar o relatório de governança societária assume


uma particular relevância pelas especiais obrigações que implica para os
executivos das entidades abrangidas e explica-se pela verificação de um
fenómeno de separação entre a titularidade e o controlo, que conduz ao
apagamento da figura do investidor como sujeito detentor de um complexo de
direitos subjectivos sobre a sociedade. Este fenómeno de desagregação emerge do
progressivo franqueamento do capital das sociedades modernas perante o público
investidor, com a consequente dispersão das participações de capital de modo a
que uma minoria possa por si só exercer uma influência relevante sobre o
controlo, mas também pelas amplas competências que o órgão de administração
assume na condução dos seus negócios e na definição das suas estratégias
futuras84. Apesar de decorrer da natural dispersão do capital provocada pela
colocação em mercado, este fenómeno reclama uma especial atenção por parte do
legislador, designadamente através de esquemas de responsabilização dos
administradores e de protecção dos investidores que, enquanto sócios, vêm
afectados os seus poderes de soberania85.

84
Cfr. artigo 405º e 406º do CSC. Isto decorre da falta de coincidência de objectivos entre uns e
outros, e é susceptível de produzir três tipos de conflitos de interesses: os gestores podem votar
para si próprios elevadas remunerações; têm tendência para investir em detrimento da distribuição
de resultados; e privilegiam a manutenção da actividade da empresa ainda que com prejuízo da
racionalidade económica. Cfr. PAUL A. SAMUELSON e WILLIAM D. NORDHAUS, in
“Economia”, 16ª Edição, p. 177.
85
Sobre o tema, cfr. PAULO CÂMARA “O Governo…”, ob. cit., p. 46 e segs., maxime p. 47-49,
chamando à atenção para os chamados agency problems e focando a inexistência entre nós de uma
cultura de responsabilização dos titulares de órgãos de administração por actos praticados em
matéria de gestão.

34
No entanto, a necessidade de viabilização de uma gestão flexível e eficaz
destas sociedades desaconselha uma intervenção ao nível do incremento do
protagonismo dos sócios no desenrolar dos seus negócios mediante o aumento de
competências da assembleia geral, o que seria potencialmente dissuasor do
investimento e prejudicial para a sua gestão. Nesta medida, importa que os meios
para o efectivo exercício da soberania dos investidores sobre as entidades
emitentes sejam assegurados através do acesso a informações completas e
actualizadas sobre as políticas de governo adoptadas pelos respectivos órgãos de
administração86.

Tendo em vista combater estes fenómenos e em parte impelidos por


fenómenos de internacionalização87 foram entre nós aprovados em 1999, as
Recomendações da CMVM sobre o Governo das Sociedades Cotadas88, onde
aquela entidade divulga os seus entendimentos sobre práticas desejáveis em
matéria de administração das sociedades cotadas, recomendando que os emitentes
informem o mercado do grau de cumprimento das mesmas. O passo seguinte no
processo da sua implementação no nosso ordenamento jurídico foi o de aprovar o
Regulamento nº. 7/2001, através do qual procedeu-se à publicação de um modelo
de relatório anual sobre o governo das sociedades cotadas e à consagração do
dever destas sociedades de divulgar aspectos ligados à sua direcção e controlo,

86
Como chama à atenção ANTÓNIO BORGES na sua intervenção na conferência “Os Novos
Desafios para o Mercado de Capitais” in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº. 10,
2001, p. 107 e segs., ao referir que “o verdadeiro papel do mercado de capitais é ser uma fonte
muito importante de racionalidade económica, de disciplina, de exigência, no que respeita ao
desempenho das empresas. Um mercado eficaz é um mercado que exige que o capital seja bem
empregue, que o capital tenha rentabilidade elevada, é um mercado que recompensa as
aplicações correctas de capital e penaliza, sanciona aquelas que estão erradas. (…) Portanto o
que está em causa num verdadeiro mercado de capitais é justamente a soberania dos accionistas,
a capacidade que os accionistas têm de mandar na economia, de mandar nas empreses e de
justamente decidirem quem é que gere bem e quem é que gere mal as empresas e portanto
recompensarem, apoiarem, investirem nas empresas bem geridas e retirarem o seu capital e
sancionarem as empresas mal geridas.”.
87
Como explica PAULO CÂMARA, “Códigos de Governo das Sociedades”, in Cadernos do
Mercado de Valores Mobiliários, nº. 15, 2002, p. 65 e segs..
O modo de implementação dos códigos de governo das sociedades constitui um fenómeno curioso
de simbiose com as forças do mercado: institui-se uma cartilha de práticas societárias apresentadas
junto do público como um conjunto de comportamentos desejáveis e reveladores de uma gestão sã
e prudente ao mais alto nível. A intenção é conduzir os investidores, designadamente os
institucionais a adoptar como critério adicional nas suas escolhas de investimento ou de
desinvestimento, o grau ou o estilo de observância das regras de governo, sancionando onde a
mesma não se apresente satisfatória. Paralelamente, temos os membros do conselho de
administração das sociedades cotadas que passam a poder ver os referidos códigos de governo
como possíveis formas de fazer passar publicamente uma imagem de credibilidade e competência.
88
Estas recomendações foram recentemente alteradas em Novembro de 2003.

35
instituindo a obrigatoriedade da publicação, em anexo próprio aos documentos de
prestação de contas, de elementos relacionados com a sua administração, com
expressa indicação do grau de adesão à cartilha de governo, incluindo, no que diz
respeito às regras não acatadas, os fundamentos para a sua inobservância.

A divulgação do nível de conformação com as recomendações sobre o


governo das sociedades cotadas afasta-se das obrigações de facultar informação
actualizada sobre a evolução dos negócios da sociedade emitente desde logo pelo
seu conteúdo, por versar sobre diferentes aspectos relacionados com a estrutura e
actuação dos seus órgãos, a forma de participação dos investidores nas
assembleias gerais da sociedades, a existência de situações potencialmente
geradoras de conflitos de interesses e até de procedimentos internos de controlo,
tudo isto no sentido de uma efectiva aproximação e abertura para com os titulares
do capital. Seja como for, a abordagem indicada elevou a deveres de informação
periódica a revelação junto do público de diversa informação, de entre a qual
contam-se informações sobre organização interna, sistema de controlo de riscos,
processos de gestão, evolução das cotações e política de distribuição de
dividendos. Adicionalmente, com a entrada em vigor do Regulamento nº.
11/2003, foram reorganizadas algumas matérias e imposta a todas as entidades
abrangidas a obrigatoriedade de divulgação da remuneração paga aos auditores e a
permanente disponibilização de determinadas informações em sítio próprio na
Internet89.

C) O dever contínuo de prestar informação relevante

As entidades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em


mercado regulamentado estão ainda obrigadas a proceder à divulgação de
quaisquer factos ocorridos na sua esfera de actividade que não sejam do
conhecimento público e que, devido à sua incidência sobre a situação
patrimonial ou financeira ou sobre o andamento normal dos seus negócios, sejam
susceptíveis de influir de maneira relevante no preço das acções90.

89
Cfr. artigos 2º e 3º do Regulamento nº. 11/2003.
90
Cfr. nº. 1 do artigo 248º do CVM. No caso de se tratar de entidade emitente de valores
mobiliários representativos de dívida, o facto relevante será aquele que, nos termos do nº. 2 do
mesmo artigo, seja susceptível de afectar de maneira relevante a capacidade da entidade emitente
cumprir os seus compromissos. Sobre este tema, veja-se ainda o artigo publicado por GONÇALO

36
Este dever de informação encontra-se previsto com recurso a conceitos
indeterminados sob a forma de uma catch all provision, apresentando um carácter
subsidiário em relação às demais situações subsumíveis às disposições legais
estatuidoras de deveres de informação91. Deste modo, visa abarcar circunstancias
ou factos susceptíveis de alterar o curso normal da oferta e da procura, em que a
divulgação de informação que importa fornecer tempestivamente aos investidores
não se encontra assegurada por qualquer um dos demais mecanismos previstos na
Lei92. No entanto, há que interpretar esta norma com o máximo de cuidado de
forma a afastar a incerteza por parte das entidades sujeitas a este dever, e de
salvaguardar o máximo grau de segurança jurídica na sua aplicação.

Decompondo agora os diversos elementos de que se compõe a previsão do


normativo sob análise, verificamos que é feito apelo à existência de um facto
ocorrido, ou seja, de um determinado facto definitivo, o que bem se compreende
tendo em vista evitar a formação de juízos de especulação sobre a informação
divulgada. A exigência de que o facto seja definitivo, afasta em princípio
quaisquer etapas preliminares no seu processo de formação, pelo menos enquanto
permanecer o sigilo entre as partes intervenientes no respectivo processo93.

CASTILHO DOS SANTOS “O Dever dos Emitentes de Valores Mobiliários Admitidos à


Negociação em Bolsa de Informar sobre Factos Relevantes” in Cadernos do Marcado de Valores
Mobiliários, 2002, 15, p. 27 e segs.
91
Cfr. designadamente, os deveres de prestar as informações consignadas no artigo 249º, como
sejam as de comunicar à CMVM e à entidade gestora da bolsa elementos sobre a alteração dos
seus estatutos, bem como de promover à divulgação imediata junto do público de determinados
factos específicos directamente relacionados com o exercício dos direitos inerentes aos valores
mobiliários por si emitidos.
O que se pretende com a instituição deste dever é a divulgação de aspectos susceptíveis de influir
nas cotações e não, como é óbvio, a qualificação jurídica que o emitente faz desses factos, pelo
que qualquer facto relevante que esteja abrangido por um dever autónomo de divulgação incidente
sobre a entidade emitente não carece de nova divulgação, a menos que caia no âmbito do nº. 3 do
artigo 248º do CVM, por se tratar de informação que não seja completa, verdadeira, clara e
objectiva.
92
Diferentemente do que sucede noutros países, como é o caso do Estados Unidos, a abordagem
adoptada pelo legislador português foi a de recorrer a uma prescrição genérica segundo um critério
de relevância. Esta opção surge no entanto mitigada pela lista de factos potencialmente relevantes
anexa aos citados “Entendimentos…”, de Julho de 2000, e que se reveste de natureza meramente
indicativa.
93
COMISSÃO DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS, “Entendimentos…”, Julho de
2000, 2.1.. A par do esclarecimento que é feito nestes entendimentos quer quanto ao conteúdo da
norma que estabelece o dever de divulgação de informação considerada relevante, quer no que diz
respeito aos procedimentos a adoptar e às sanções aplicáveis, é apresentada em anexo uma lista de
exemplos de factos que no entender da CMVM são potencialmente relevantes. Entre tais factos
encontramos, entre outros: acordos de cooperação, fusão, cisão ou transformação da entidade
emitente ou de outras entidades que integrem o seu grupo económico, a adopção de quaisquer
medidas de reestruturação do passivo, a verificação de inovações tecnológicas, sinistros, litígios.

37
Há que igualmente chamar à atenção de que, sendo o evento
potencialmente enquadrável no conceito de facto relevante, muitas vezes
composto por diversos acontecimentos preliminares, pode suceder que a
obrigação de divulgar se verifique antes de consumado o seu processo de
formação, inclusivamente pela circunstância de um desses factos preparatórios ou
instrumentais consubstanciar-se, ele próprio, com um facto relevante.

Assim, a determinação do momento a partir do qual deve considerar-se


verificado um facto relevante, há que distinguir as decisões formais que no âmbito
do seu processo de formação são tomadas pelos órgãos sociais do emitente,
daquelas que estando igualmente inseridas no processo de formação de um facto
relevante não sejam adoptadas formalmente, mas apenas surgindo como
integradas no âmbito da gestão empresarial corrente da entidade emitente. Quanto
às primeiras, e a menos que tais decisões possam ser autonomamente
consideradas como factos relevantes, o dever de informação por facto relevante
apenas poderá existir — dependendo da verificação dos demais requisitos — caso
tais decisões versem sobre o desfecho do processo94. Caso pelo contrário, as
decisões formalmente tomadas no âmbito do processo de formação de um facto
relevante, não versem ou não deixem antever qual o seu desfecho, servindo
apenas para deliberar sobre questões preliminares, o dever de informação não
existirá95.

No que respeita às decisões tomadas informalmente pelos membros dos


órgãos sociais do emitente no âmbito do processo de formação de um facto
relevante, ou seja, aquelas que sendo embora integradas na gestão empresarial da
sua actividade, não deixem no entanto antever tratarem-se preliminares de um
facto que se prevê possa vir a ser enquadrado como facto relevante, a ocorrência
de um facto definitivo para efeitos da sua subsunção à norma sob análise apenas
terá lugar quando houver quebra ou levantamento do sigilo observado pelas partes
intervenientes. Isto para proteger o mercado das contingências e instabilidades
próprias de um processo negocial em curso, porquanto é tão prejudicial ao

Esta posição da entidade de supervisão nacional está de acordo com o entendimento da


INTERNATIONAL ORGANIZATION OF SECURITIES COMMISSIONS (OICV - IOSCO),
nos seus “Principles…”, ob. cit., p. 5.
94
COMISSÃO DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS, “Entendimentos…”, cit., 2.1..
95
Isto repita-se, enquanto se mantiver o sigilo entre as partes intervenientes no respectivo processo
e a menos que estas questões prévias preparatórias ou instrumentais possam autonomamente ser
consideradas por si sós com factos relevantes.

38
mercado a divulgação de factos artificiais e contingentes, geradoras de
expectativas muitas vezes infundadas96, quanto a não divulgação de factos
definitivos ocorridos na esfera do emitente, potencialmente susceptíveis de influir
relevantemente no preço dos valores mobiliários por ela emitidos97.

Por outro lado, exige-se que o facto ocorrido tenha lugar no âmbito da
esfera de actividade da entidade emitente. Quanto a este aspecto, verifica-se que a
norma delimita com esta expressão o seu espaço de incidência aos factos
potencialmente relevantes que tenham tido uma consequência concreta no âmbito
da esfera de actividade do emitente, independentemente da causa externa ou
interna que lhe tenha dado origem98. Isto explica-se não apenas pela circunstância
de se pretender salvaguardar o mínimo lapso de tempo possível entre o momento
da verificação do facto e o da sua divulgação, fazendo o mesmo incidir sobre a
entidade com a melhor acessibilidade subjectiva à informação, e que por
conseguinte se encontra nas melhores condições para proceder à sua divulgação
no mercado, mas também por um critério de razoabilidade em não impor às
entidades emitentes deveres de informação sobre factos ocorridos fora dessa
esfera de actividade, como acontecia no âmbito do anterior código.

Outro aspecto da informação abrangida por este dever é a circunstância de


ela apenas incidir sobre factos que não sejam do conhecimento público, o que
bem se compreende dado que a informação já conhecida pode considerar-se
assimilada pelo mercado, reflectindo-se nos preços dos activos a que diz respeito.
Assim, e à luz de um princípio de confiança relativamente ao conhecimento dos

96
Pois podem tornar-se naquilo que é conhecido como self-fulfilling prophecy, ou seja, a profecia
que se cumpre a si mesma.
97
No entanto, cita-se a este respeito GONÇALO CASTILHO DOS SANTOS que refere ser
“impressiva, em suma, a complexidade inerente às situações estudadas. Porventura, porque se
congregam nesta questão não só o equilíbrio problemático entre sociedade cotada, mercado de
valores mobiliários e regime societário, mas também uma componente simultaneamente extra-
societária (negociações e reflexo junto do público investidor) e intra-societária (distribuição de
competências, direitos das minorias, etc.).” (“O Dever …” in Cadernos do Mercado de Valores
Mobiliários, 2002, 15, p. 37).
98
Esta opção afasta o dever de as entidades emitentes procederem à divulgação por qualquer facto
relevante ocorrido na sua situação económica e financeira, como sucedia com a previsão da alínea
a) do nº. 1 do artigo 344º do anterior Código do Mercado dos Valores Mobiliários, seria altamente
oneroso para as entidades a ele obrigadas. Insurgindo-se com a excessiva latitude do dever que
impendia sobre as entidades emitentes, CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A informação…” , ob.
cit., p. 347, referiu com razão que “deve ter-se presente que a informação tem custos e que um
sobredimensionamento destes redunda em prejuízo da eficiência pretendida, em detrimento dos
investidores, das entidades emitentes e da economia em geral. Não há mercados sem investidores,
mas também não os há sem entidades emitentes.”.

39
investidores e demais agentes que operam no mercado de capitais, quanto à
informação previamente tornada pública, não se justificará onerar o emitente com
acrescidos deveres de informação.

Finalmente, para que seja constitutivo deste dever o facto em causa deverá
revelar-se susceptível de, devido à sua incidência sobre a situação patrimonial ou
financeira do emitente ou sobre o andamento normal dos seus negócios, influir de
maneira relevante no preço das acções por si emitidas ou sobre a capacidade de
cumprir os seus compromissos. O juízo de prognose a que esta norma faz apelo
refere-se, não só à incidência do facto sobre a situação económico-financeira do
emitente, como ainda sobre o andamento normal dos seus negócios, o que se
explica pela circunstância de que nem todos os factos susceptíveis de influir na
avaliação que os investidores fazem dos seus activos apresentam uma incidência
directa ou imediata sobre a sua situação económico-financeira, reflectida
designadamente nos seus documentos de prestação de contas.

Quanto ao requisito da influência relevante que o facto deverá ter no preço


das acções, tem aqui apenas em vista afastar os factos susceptíveis de apenas
produzir variações diminutas nos preços, sem apresentar uma expressão real do
ponto de vista económico. Donde, o emitente divulgará os factos que,
encontrando-se nas condições acima descritas, tenham um impacto de tal ordem
na sua própria actividade ou na sua situação económico-financeira, que sejam
aptos a afectar substancialmente99 os direitos e as expectativas dos investidores
quanto aos valores mobiliários por si emitidos. Dado que o que é substancial para
uns não o é para outros, e tendo em conta o conjunto de interesses tutelados pelas
normas instituidoras destes deveres100, deverá entender-se como tal o facto que,
encontrando-se nas circunstâncias acima descritas, seja susceptível de influir na
apreciação económica que um investidor não institucional médio faz dos activos
onde coloca o seu aforro.

Mais estabelece a norma sob análise que a prestação de informação sobre


factos relevantes que não seja completa, verdadeira, clara e objectiva é

99
Como critério para determinar a existência ou não de uma influência “material”, o Supreme
Court norte-americano instituiu no caso TSC Industries, Inc. V. Northway, Inc., o critério segundo
o qual um facto é relevante quando existir uma forte probabilidade de que um reasonable investor
caracterizasse a revelação do facto omitido como alterador da “mistura total” (total mix) das
informações disponíveis sobre os valores mobiliários em causa.
100
Cfr. supra, III, nº. 9.

40
considerada facto relevante101. Este dispositivo visa compelir as entidades
emitentes a corrigirem as informações por si disponibilizadas sobre factos
relevantes, eliminando eventuais deficiências e dotando-as, ainda que a posteriori,
dos padrões de qualidade da informação exigidos no mercado.

A obrigação de divulgação imediata de informação sobre factos relevantes


por parte das entidades emitentes deverá ser cumprida após a sua comunicação
tempestiva à entidade gestora da bolsa e à CMVM, que promove a divulgação do
facto através do sistema de difusão de informação de que dispõe, antes de a
qualquer outro meio de comunicação102. A divulgação destes factos deve ainda ser
levada a cabo fora do horário de funcionamento da bolsa, a menos que a CMVM
autorize expressamente, após devidamente ponderados os interesses da sociedade
emitente e os do próprio mercado103.

Refira-se ainda que ao contrário do que sucedia com o anterior Código do


Mercado dos Valores Mobiliários, a CMVM possui a faculdade de dispensar as
entidades emitentes sujeitas aos deveres acrescidos de informação decorrentes da
admissão à negociação em mercado regulamentado, por entender verificar-se em
concreto uma limitação desproporcionada de outros interesses atendíveis, como é
o caso dos legítimos interesses do emitente104.

VI. OUTROS SUJEITOS PASSIVOS DO DEVER DE INFORMAR

15. A informação a prestar por intermediários financeiros

Outro grupo de sujeitos actuantes no mercado que estão igualmente


sujeitos a relevantíssimos deveres de manter o mercado permanentemente

101
Cfr. nº. 3 do artigo 248º do CVM.
102
Cfr. nº. 1 do artigo 1º-A do Regulamento nº. 11/2000, com a redacção que lhe foi dada pelo
Regulamento nº. 24/2000. Nos termos do nº. 2 deste artigo, a entidade emitente deve guardar
segredo sobre a existência de facto relevante até que a sua divulgação seja feita través do sistema
de difusão da CMVM, após o que a divulgação do facto relevante pode realizar-se através de
outros meios de comunicação.
103
Cfr. nº. 3 do artigo 1º-A do citado Regulamento.
104
Cfr. artigo 250º do CVM. Nos restantes casos, a dispensa poderá ser concedida quando a
publicação de informação seja contrária ao interesse público e possa causar prejuízo grave para o
emitente, desde que a ausência de publicação não seja de molde a induzir o público em erro sobre
factos e circunstâncias essenciais para a avaliação dos valores mobiliários, ou seja, grosso modo,
desde que não se trate de factos relevantes.

41
informado, são os intermediários financeiros. É que ao invés da informação que se
encontra a cargo das entidades emitentes durante o início e o desenvolvimento da
vida dos valores mobiliários, temos a jusante a informação a cargo dos
intermediários financeiros que intervêm aquando da sua transacção no mercado,
como agentes esclarecedores dos actuais ou potenciais investidores. Por outras
palavras, trata-se aqui não de assegurar informação actuando a partir da fonte, mas
sim orientar a actividade daqueles que operam no fim da linha, oferecendo ao
investidor precisamente aquilo que o mercado tem para lhes dar.

A actividade de intermediação financeira105 em valores mobiliários


consiste, numa acepção ampla, no conjunto de actividades que se dirigem ao
relacionamento da oferta e da procura em valores mobiliários. O exercício das
funções próprias dos intermediários financeiros implica naturalmente um
constante acompanhamento que se traduz em assegurar continuamente todo o tipo
de serviços relacionados com o investimento em valores mobiliários, e que se
consubstanciam designadamente na prestação de assistência financeira, na
prospecção de investidores e de clientes, e na prestação de diversas informações
quer no que diz respeito ao conteúdo das operações a realizar, quer quanto ao
comportamento dos valores mobiliários disponíveis no mercado.

Pode portanto dizer-se que, na medida em que o intermediário financeiro


se apresenta perante o público como a face do mercado, o desempenho da sua
actividade apresenta consequências evidentemente repercutíveis quer na protecção
dos investidores, quer no funcionamento do próprio mercado106. Daí que o

105
Trata-se de uma actividade que apenas pode ser exercida profissionalmente por determinadas
entidades registadas na CMVM (cfr. nº. 1 do artigo 295º do CVM). Essas entidades são, nos
termos do nº. 1 do artigo 293º, além das entidades gestoras de instituições de investimento
colectivo autorizadas a exercer essa actividade em Portugal, as instituições de crédito, e as
empresas de investimento em valores mobiliários que estejam autorizadas a exercer actividades de
intermediação financeira em Portugal, que tanto podem ser sociedades corretoras (brokers),
sociedades financeiras de corretagem (dealers), sociedades de patrimónios, bem como outras
sociedades que como tal sejam qualificadas por Lei, ou que não sendo instituições de crédito,
estejam autorizadas a prestar algum dos serviços de investimento em valores mobiliários a título
principal e profissional. As actividades concretamente prosseguidas por estas entidades são os
serviços de investimento em valores mobiliários, que englobam entre outras, as funções de
recepção, de transmissão e de execução de ordens de investimento por conta de outrem, a gestão
de carteiras e a colocação em ofertas públicas de distribuição, e os serviços auxiliares dos serviços
de investimento, entre os quais se incluem o registo e depósito de valores mobiliários, a
consultoria para investimento e a assistência em ofertas públicas (cfr. , nº. 1 do artigo 289º e artigo
291º do CVM).
106
Refira-se a propósito que a negociação em mercado regulamentado é necessariamente efectuada
através dos seus membros, nos termos dos nºs. 1 e 2 do artigo 203º do CVM.

42
legislador tenha entendido prestar especial atenção a esta actividade,
estabelecendo a obrigatoriedade de por via da mesma serem assegurados elevados
níveis de aptidão profissional, observando-se os ditames da boa fé, de acordo com
elevados padrões de diligência, lealdade e transparência107. Acresce ainda a
específica consagração legal da responsabilidade dos intermediários financeiros
de orientarem a sua actividade no sentido da protecção dos legítimos interesses
dos seus clientes e da eficiência do mercado108.

Os deveres de informação a que estão sujeitos os intermediários


financeiros passam por conseguinte pela recolha, verificação e fornecimento da
informação necessária a uma tomada de decisão esclarecida e fundamentada por
parte dos seus clientes, mas também pelo suprimento de eventuais insuficiências
nos níveis de ciência e de experiência dos seus clientes, geradoras de desníveis na
acessibilidade subjectiva da informação109. Sinal disto é o que dispõe a norma
lapidar contida no nº. 2 do artigo 312º nos termos da qual a extensão e a
profundidade da informação devem ser tanto maiores quanto menor for o grau de
conhecimentos e de experiência do cliente. Para o efeito, o intermediário deve, ao
abrigo da regra know your customer110, conhecer o seu cliente a ponto de saber na
medida do que for necessário para o cumprimento dos seus deveres, qual a sua
situação financeira, a sua experiência em matéria de investimentos e
inclusivamente os próprios objectivos que prossegue através dos serviços a
prestar.

Podemos no entanto distinguir os deveres gerais de acessoria na tomada de


decisão por parte do seu cliente, por natureza prévios à realização das operações a
que a intermediação se refere111, e os deveres emergentes da realização de uma
operação por si intermediada, relativos a todos aspectos relacionados com a sua
execução, resultados e sobre a ocorrência de quaisquer circunstâncias que possam
afectar a posição do seu cliente justificando a modificação das instruções
recebidas do seu cliente112.

107
Cfr. nº. 1 do artigo 305º e nº. 2 do artigo 304º do CVM, juntamente com o disposto nos artigos
32º e seguintes do Regulamento nº. 12/2000.
108
Cfr. nº. 1 do artigo 304º do CVM.
109
Cfr. os artigos 38º e segs. do Regulamento nº. 12/2000, que concretizam os deveres de
informação a cargo dos intermediários financeiros.
110
Consagrada no nº. 3 do artigo 304º do CVM.
111
Cfr. nº. 1 do artigo 312º do CVM.
112
Cfr. artigo 323º do CVM.

43
Significa isto que no que toca à informação, a intervenção do
intermediário financeiro é vista pelo legislador como uma peça fundamental para
a conformação da informação existente no mercado com as especiais
características de ciência e de experiência de cada investidor individualmente
considerado, cabendo-lhe portanto a responsabilidade de colmatar as eventuais
insuficiências que a informação disponível pontualmente apresente perante cada
investidor, designadamente perante aqueles que estejam menos preparados para
tomar decisões de investimento responsáveis e esclarecidas.

Não deverá deixar de se acentuar, para se ter na devida conta a especial


relevância que o legislador atribui ao papel dos intermediários financeiros, em
especial no que diz respeito ao cumprimento das suas obrigações de prestar
informação, a presunção de culpa que sobre si impende em sede de
responsabilidade civil, quando o dano seja causado no âmbito de obrigações
contratuais e, em qualquer caso, quando seja originado pela violação de deveres
de informação113.

16. A informação a prestar pelas entidades gestoras de mercados


regulamentados

As entidades gestoras de mercados regulamentados são entidades a quem


compete a gestão de bolsas ou de outros mercados regulamentados e a definição
das regras necessárias ao seu bom funcionamento de acordo com a respectiva
legislação, a admissão dos membros através dos quais a negociação se processa e
a definição do elenco das operações realizáveis nesses mercados114. No exercício
das suas funções a entidade gestora pode ainda prestar serviços relacionados com
a emissão e a negociação de valores mobiliários que não constituam actividade de
intermediação e ordenar a admissão de valores mobiliários no mercado, bem como
a sua suspensão ou exclusão115.

113
Cfr. nº. 2 do artigo 314º do CVM.
114
Cfr. artigo 2º do Decreto-Lei n.º 394/99 de 13 de Outubro, nº. 1 do artigo 201º, nº. 4 do artigo
203º e nº. 1 do artigo 204º do CVM.
115
Cfr. alínea c) do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 394/99 de 13 de Outubro, e artigos 205º, 206º e
207º do CVM.

44
Os deveres de informação permanente a que destas entidades estão sujeitas
são deveres que se confinam a determinados factos que tipicamente têm lugar na
esfera de actividade dos mercados que se encontram sob a sua alçada, como
sejam, os deveres de informar o público sobre os valores mobiliários admitidos à
negociação, as operações realizadas e respectivos preços e as comissões por si
cobradas no exercício da sua actividade. No entanto, dadas as diferentes
características que cada mercado apresenta quer no que diz respeito aos agentes
que neles intervêm como investidores, aos valores mobiliários transaccionados e
às próprias entidades emitentes, cabe à entidade gestora de cada mercado adequar
o conteúdo, os meios e a periodicidade da informação a prestar a essas
características, tendo sobretudo em conta o nível de conhecimentos dos
investidores e a composição dos vários interesses envolvidos116.

Adicionalmente, a CMVM poderá exigir a prestação de informações


complementares por parte da entidade gestora, sempre que entenda que tal se
revela necessário à defesa dos investidores117. Somos no entanto de opinião que a
este respeito, esta faculdade conferida à CMVM, deverá apenas ser exercida no
estrito âmbito dos deveres de informação a que a entidade gestora está obrigada, e
não no sentido de permitir a criação de novos deveres de informação a cargo desta
entidade. Donde, o acto por intermédio do qual a CMVM exija informações
adicionais à entidade gestora não deverá ir além do que exigir a prestação de
informações sobre os valores mobiliários admitidos à negociação, das operações
realizadas e respectivos preços e das tabelas das comissões por si cobradas.

17. O papel da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários

Uma palavra final para a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários a


quem compete promover a eficiência, a equidade, a segurança e a transparência do
mercado de valores mobiliários, obedecendo nomeadamente à função que lhe
assinala expressamente o Código dos Valores Mobiliários de exercer o controlo
da informação118. Nessa medida, a entidade de supervisão assegura o
acompanhamento dos agentes do mercado garantindo os índices de informação

116
Cfr. nºs. 1 e 2 do artigo 202º do CVM.
117
Cfr. nº. 3 do artigo 202º do CVM.
118
Cfr. alínea c) do artigo 358º do CVM.

45
adequados ao regular funcionamento do mercado e à defesa dos interesses dos
investidores. Para o efeito dispõe de amplas competências de autoridade pública
que lhe conferem o poder de adoptar determinados procedimentos de supervisão
como sejam, a título exemplificativo119, os de emitir regulamentos de diversa
índole, acompanhar de modo contínuo o funcionamento do mercado e a
actividade das próprias entidades que nele actuam, fiscalizar o cumprimento da lei
e dos regulamentos, e nessa linha de conta, dar ordens, formular recomendações
concretas, difundir informações, e instruir processos e punir as infracções que
sejam da sua competência.

Pode aliás dizer-se que a plena realização das atribuições da CMVM é


inseparável da consagração de um amplo poder de acesso à informação, que é
assegurado não apenas por intermédio do conjunto de disposições legais que já
obrigam os agentes do mercado a prestar informação à Comissão, mas também a
partir dos poderes de investigação que lhe são concedidos, juntamente com a
possibilidade do estabelecimento de sistemas de interconexão informativa com
outras entidades responsáveis pela supervisão financeira, nacional ou
estrangeiras120. Naturalmente que de outro modo não poderia suceder, uma vez
que não haveria a possibilidade de actuar eficazmente no exercício das suas
funções de controlo da informação sem o acesso alargado a uma grande
quantidade de elementos informativos.

Outro aspecto em que pode igualmente aferir-se o papel fundamental da


CMVM nesta matéria, além do dever de proceder ela própria à publicação das
informações a que as entidades emitentes estão obrigadas, em caso de recusa por
parte destas121, é a circunstância de a Comissão dispor da faculdade de, em certas

119
Cfr. artigo 360º do CVM. No que se refere ao exercício desses poderes, encontramos no nº. 2
do artigo 361º do CVM, um elenco de prerrogativas instrumentais de entre as quais destacamos as
de poder exigir quaisquer elementos e informações e examinar livros, registos e documentos, não
podendo as entidades supervisionadas invocar o segredo profissional, tendo-se ainda sentido a
necessidade de afirmar expressamente no mesmo artigo, a ressalva de que o seu exercício deve ser
levado a cabo com respeito pela autonomia das entidades sujeitas à sua supervisão, o que sem
dúvida traduz a percepção, por parte do legislador, da enorme amplitude dos poderes de que a
Comissão dispõe e da susceptibilidade que uma aplicação desregrada destas disposições poderia
ter, de restringir princípios fundamentais que se prendem directamente com a condição inerente à
personalidade jurídica das entidades eventualmente visadas pela supervisão.
120
Cfr. artigos 355º e 356º do CVM.
121
Cfr. nº. 4 do artigo 244º do CVM.

46
situações, dispensar as entidades emitentes do dever de publicação de informações
relativas a valores mobiliários por si emitidos122.

Note-se ainda que estes poderes de controlo e de averiguação da


informação que a CMVM assume devem ser sempre exercidos de harmonia com
o princípio da neutralidade, nos termos do qual a sua intervenção deve limitar-se
ao necessário para assegurar a qualidade da informação que é disponibilizada no
mercado num plano de estrita neutralidade, não lhe cabendo como vimos, garantir
o mérito dos investimentos concretamente propostos, nem tão-pouco de dar
qualquer orientação susceptível de condicionar as escolhas dos investidores.

No domínio da informação, compete ainda à CMVM fiscalizar o


cumprimento da legislação sobre publicidade123 e de promover a repressão de
determinados comportamentos sancionados no Código, essencialmente ligados à
utilização indevida da informação e à violação de deveres informativos. No
âmbito do processo penal relativo a crimes contra o mercado, cabe à CMVM124
iniciar e dirigir o processo de averiguações preliminares, e no caso de obtenção de
notícia de crime, remeter o processo à autoridade judiciária competente, sendo
que no domínio contra-ordenacional, compete em especial à CMVM proceder à
instrução de processos, aplicando as respectivas sanções125, e eventualmente
ordenando, no que diz respeito a material publicitário ilegal, as modificações e
rectificações necessárias para pôr termo à ilegalidade e a imediata suspensão da
sua divulgação.

Como contrapartida desta concentração de poderes de supervisão, a


CMVM tem a seu cargo significativas obrigações de informação permanente. A
própria actividade da CMVM está sujeita a regras de publicidade que são
designadamente asseguradas pela publicação periódica do seu boletim126, onde
entre outros, devem figurar os regulamentos e instruções por si emitidas, as suas
recomendações e pareceres genéricos, as decisões de autorização, e as decisões de
registo e de averbamento ao registo, no caso de este ser público. A CMVM gere

122
Cfr. nº. 1 do artigo 250º do CVM.
123
Cfr. artigo 366º do CVM.
124
Nos termos do prescrito nos artigos 384º e 386º do CVM.
125
No que se refere aos processos de contra-ordenação, os poderes da CMVM são alargados,
cabendo-lhe, além de instaurar os correspondentes processos, proceder à aplicação de coimas,
sanções acessórias, e medidas de natureza cautelar (cfr. artigo 408º do CVM).
126
Cfr. artigo 357º do CVM.

47
ainda um sistema de difusão de informação respeitante a todos os elementos
constantes dos seus registos, a factos relevantes, a participações qualificadas e a
documentos de prestação de contas que lhe sejam comunicados127. Mas a missão
da CMVM neste domínio passa também pela promoção e desenvolvimento do
mercado de capitais, patrocinando iniciativas de carácter pedagógico128, e
fomentando o conhecimento das normas aplicáveis designadamente através da
publicação anual do texto actualizado das normas legais e regulamentares
relacionadas com as matérias reguladas no Código dos Valores Mobiliários129.

Colocam-se hoje à CMVM importantes desafios no domínio da garantia


da qualidade da informação, desafios esses que resultam da internacionalização
dos mercados financeiros e sobretudo das novas tecnologias de comunicação, e de
um modo particular da Internet. Curiosamente, apesar de o preâmbulo do Código
fazer uma referência a esta irreversível constatação dos nossos tempos, o seu texto
normativo furtou-se a encarar o problema directamente, conformando-se com o
elevado grau de imprevisibilidade da sua evolução futura e por considerar que a
evolução tecnológica no domínio da informação é de tal forma rápida que não se
compadece com um adequado esforço de codificação130.

VII. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A rede de deveres de informar no direito dos valores mobiliários é um


esquema que tem em vista conciliar os interesses de maximizar a informação
disponível em cada momento com o mínimo de custos associados e observando
padrões de qualidade mínima constantes. Soluções como o sistema de difusão de
informações da CMVM, a obrigatoriedade de criação de gabinetes de apoio ao
investidor, de nomeação de representantes das relações para o mercado, de sites

127
Cfr. artigo 367º do CVM.
128
É ainda no desempenho destas atribuições de carácter pedagógico em relação a todos os
intervenientes no mercado, que a CMVM edita ainda algumas brochuras onde apresenta
determinados aspectos que revestem interesse para o mercado e que considera merecedoras de um
especial cuidado e atenção, e cuja simples publicação no seu Boletim não permitiria a sua
adequada divulgação.
129
Cfr. artigo 371º do CVM.
130
Não obstante, a CMVM tem procurado encarar estes problemas, tendo em Janeiro de 2000
elaborado um conjunto de entendimentos e de recomendações sobre a utilização da Internet, que
no essencial vêm reafirmar e explicitar o conteúdo de determinadas regras de informação contidas
no código, designadamente no que se refere à sua aplicação às novas tecnologias.

48
dos emitentes da Internet onde toda a informação obrigatória é tornada disponível,
são passos muito significativos no sentido de uma efectiva transparência do
mercado de capitais, que devem ser conciliados com a simplificação e clarificação
do regulamento sobre cumprimento de deveres de informação.

No entanto, o delinear das normas que regulamentam estes deveres vai


surgindo da experiência norte americana, que continua a ser o motor de
desenvolvimentos nesta área, e é onde as novas soluções são testadas.

São conhecidas as medidas que neste domínio têm vindo a ser


implementadas, essencialmente os regulamentos Fair Disclosure Act de
Dezembro de 2000 e o Sarbanes-Oxley Act de Julho de 2002, com o objectivo de
apertar ainda mais o cerco a possíveis práticas fraudulentas que se vieram a
verificar, como sucedeu com os escândalos financeiros que abalaram o mercado
financeiro norte americano envolvendo empresas como a Enron, World.com e
Global Crossing. Ambas pretendem ser uma resposta apta a restabelecer a
confiança dos investidores através da reformulação de um sistema que se revelou
incapaz de prevenir as referidas práticas fraudulentas.

No domínio comunitário, temos a aprovação da Directiva 2003/6/CE de


28 de Janeiro de 2003 do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao abuso de
informação privilegiada e à manipulação e abuso de mercado e das recentes
Directivas da Comissão 2003/124/CE e 2003/125/CE, ambas de 22 de Dezembro
de 2003 que vieram estabelecer respectivamente, as medidas de aplicação daquela
no que diz respeito à definição e divulgação pública de informação privilegiada, à
definição de manipulação de mercado e à apresentação de recomendações de
investimento e à divulgação de conflitos de interesses. Pelas soluções que
consagram, designadamente no que diz respeito às alterações que implicarão no
actual conceito de informação relativa a factos relevantes e à instituição de novos
deveres de informação relativos à apresentação de recomendações de
investimento, estas Directivas estabelecem um regime de carácter marcadamente
preventivo, cujo escopo directo é impedir práticas de abuso de mercado sob a
forma de abuso de informação privilegiada e de manipulação de mercado, através
da instituição de obrigações que visam limitar ex ante, as possibilidades de
utilização de informação privilegiada por parte do círculo reservado de agentes
que a ela têm acesso.

49
Paralelamente, prevê-se ainda para breve a adopção formal da Directiva da
Transparência131 que introduzirá alterações à Directiva 2001/34/CE132
actualmente em vigor, incidindo essencialmente sobre os deveres de informação
relativos a participações qualificadas, à prestação de informação periódica e ao
regime linguístico da informação a disponibilizar por emitentes de valores
mobiliários admitidos à negociação em mercados regulamentados a funcionar no
espaço europeu.

As modificações que se avizinham no domínio dos deveres de informação


pretendem essencialmente harmonizar os regimes de todos os Estados Membros
da União Europeia no sentido de permitir uma maior integração dos mercados
europeus de valores mobiliários potenciando, ao assegurar uma adequada
tempestividade e comparabilidade da informação disponível, uma efectiva
liberdade de circulação de capitais.

Lisboa, 31 de Janeiro de 2004

131
Estas propostas integram-se num conjunto de medidas consideradas prioritárias para a
concretização do mercado único para os meios financeiros através da reforma da legislação no
domínio dos mercados de valores mobiliários, delineado no Plano de Acção para os Serviços
Financeiros, adoptado pelos Chefes de Estado e de Governo no Conselho Europeu de Lisboa em
Março de 2000, o qual foi mais tarde confirmado nas reuniões do Conselho Europeu de Estocolmo
e de Barcelona, que tiveram lugar respectivamente em Março de 2001 e em Março de 2002.
132
Como refere a proposta de Directiva apresentada pela Comissão Europeia em 26 de Março de
2003, na sua exposição de motivos, “a proposta deverá constituir uma resposta adequada à
evolução verificada nos EUA, incluindo a lei Sarbanes-Oxley, com vista à promoção dos
mercados de capitais europeus.”.

50
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA
EMPRESA E O PAPEL DO ADVOGADO
Pelo Dr. José João de Avilez Ogando

Sumário:
I. IntRODUçãO; 1. Colocação da questão, 2. noção de Responsabili-
dade Social da Empresa, 3. O ressurgimento do tema;  II. AS tEORIAS
EM COnFROntO, 1. A teoria dos detentores de um interesse sobre a
sociedade (stakeholders), 2. A teoria dos titulares do capital (stockhol-
ders), 3. A superação ética da Doutrina Social da Igreja, 4. Os níveis de
responsabilidade social da empresa;  III. O PAPEL DO ADVOGADO.

I. INTRODUÇÃO

1. Colocação da questão

I. Em Setembro de 2003, o CCbE — Conselho das Ordens e
Sociedades de Advogados da União Europeia publicou um docu-
mento intitulado “CSr — Corporate Social responsability and the
role of the Legal Profession”(1) cuja leitura se recomenda e que
pretende ser um guia para os advogados europeus em matéria de
aconselhamento sobre questões relacionadas com a Responsabili-
dade Social das Empresas(2). trata-se de um documento que faz

(1)  Documento disponível no site do CCbE, já na segunda actualização, de Junho
de 2008.
(2)  O termo responsabilidade surge aqui, não no sentido jurídico do termo, mas
sim no seu sentido ético, referindo-se portanto à conduta a que um determinado sujeito se
encontra obrigado por força de um preceito moral.
868 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO

designadamente referência às oportunidades e benefícios que se
apresentam para as empresas que escolhem adoptar comportamen-
tos socialmente responsáveis, bem como aos riscos envolvidos
para a sua não observância, às razões que levam o CCbE a consi-
derar os advogados como especialmente vocacionados pelo acon-
selhamento neste domínio, e às oportunidades e técnicas de acon-
selhamento a adoptar na abordagem destes temas.
Logo nas exposições introdutórias daquele documento diri-
gido a todos os advogados europeus é referido que
“a responsabilidade Social das Empresas (rSE) é um
instrumento de mudanças positivas na empresa. Ela define o
quadro e a forma dentro das quais a empresa deve dirigir a
sua actividade por forma a responder às expectativas da
sociedade nos domínios ético, jurídico, comercial e público.
Estas linhas de orientação servem como ponto de partida
para o advogado de empresas na definição de novas soluções
jurídicas para os seus clientes”(3).

II. no entanto, antes de serem apontadas baterias relativa-
mente à responsabilidade social das empresas, a abordagem deste
tema exige uma prévia reflexão sobre algumas perspectivas que
têm sido lançadas sobre o tema e que colocam em perspectiva o
próprio papel da empresa na sociedade moderna em que hoje vive-
mos,  de  maneira  a  sabermos  definir  com  precisão  o  papel  da
empresa na sociedade moderna. 

III. trata-se de um tema objecto de considerável debate
noutros países, que gerou inicialmente uma controvérsia entre os
partidários da teoria dos detentores de capital (stockholders) e
aqueles que defendem a teoria dos detentores de interesses sobre a
sociedade (stakeholders). Estas duas correntes centraram muito o
seu debate, não em particulares concepções éticas relativamente ao

(3)  CCbE — Conselho das Ordens e Sociedades de Advogados da União Euro-
peia, “CSr — Corporate Social responsability and the role of the Legal Profession”, p. 2.
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA EMPRESA 869

papel da empresa, mas sim na extensão do envolvimento da pró-
pria empresa no desempenho de actividades de carácter social-
mente  valioso.  Por  outras  palavras  estas  concepções  discutem
sobre quem é que incide esta responsabilidade, defendendo o papel
da empresa como eventual sujeito activo de justiça social, recondu-
zindo-se no fundo à questão de saber se as empresas devem ou não
ser consideradas como sujeitos morais, abrangidos por deveres de
carácter ético para com a comunidade. 
Este debate está hoje relativamente superado, na medida em
que as concepções éticas que advogam a responsabilidade social
da empresa vêm-na como um meio de atingir determinados fins
socialmente úteis, tornando a questão de saber sobre quem é que
incidem os deveres de a tornar socialmente responsável ― se a
própria sociedade, os accionistas ou os seus administradores ―
uma questão meramente secundária. 
Daí que não utilizaremos tanto o termo sociedade como o de
empresa, já que os termos muitas vezes confundidos pretendem
aqui sempre designar, não a forma jurídica habitualmente adoptada
para a prossecução de uma actividade social, mas sim toda a uni-
dade económica composta pela organização de meios e factores
produtivos.

IV. Cabe  no  entanto  aqui  uma  referência  às  teorias  dos
stockholders e dos stakeholders porquanto cada uma delas repre-
senta um estádio distinto na abordagem do problema da responsa-
bilidade social das empresas sendo que cada uma trouxe uma pers-
pectiva  nova  à  discussão,  representando  um  novo  estádio  na
maturação e na compreensão do problema. A posição da Doutrina
Social da Igreja é igualmente invocada pois como veremos e inde-
pendentemente das convicções de cada um, acaba de facto por tra-
zer mais e melhor ao debate, ao focar o princípio da subsidiarie-
dade e sustentar os valores da solidariedade, da justiça social e do
papel das organizações na sociedade como justificação para um
novo nível de responsabilidade social das empresas.
870 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO

2. Noção de Responsabilidade Social da Empresa

I. Como é sabido, fala-se em responsabilidade para designar
a situação de quem é chamado a responder pelos seus próprios
actos, ou seja, de um dever a que determinada pessoa singular ou
colectiva está adstrita em virtude da ocorrência de um qualquer
facto gerador do mesmo. Assim, o responsável é aquele sobre quem
impende a obrigação de responder por determinada circunstância,
sendo o termo igualmente utilizado como adjectivo para apontar
aqueles que evidenciam uma capacidade para assumir os deveres
que decorrem do risco ou do custo que as suas actividades represen-
tam para um ou mais indivíduos ou para a própria colectividade.

II. neste contexto, a responsabilidade social das empresas é
geralmente descrita como um movimento voluntário de integração
de preocupações sociais e ambientais na gestão das empresas, quer
no que diz respeito directamente às suas operações comerciais, quer
no que diz respeito à sua interacção com outras partes envolvidas no
processo. Isto implica uma atenção redobrada ao nível ético por
parte dos seus responsáveis relativamente aos investidores, aos pró-
prios funcionários, ao ambiente, aos clientes e fornecedores e às
próprias comunidades locais em que a empresa se integra.

III. Em termos conceptuais, o termo responsabilidade da
empresa comporta um sentido institucional e um sentido operacio-
nal. Fala-se de responsabilidade social da empresa em sentido ins-
titucional para designar genericamente uma estratégia tendente a
assegurar a prosperidade da empresa através da satisfação das legí-
timas expectativas dos grupos de interesses que a envolvem, o que
implica atingir um ponto de equilíbrio entre a iniciativa económica
privada e os interesses da colectividade.
Por outro lado, a responsabilidade social da empresa em sen-
tido operacional relaciona-a directamente com a ideia de susten-
tabilidade  desdobrando-se  essencialmente  nas  seguintes  três
dimensões:
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA EMPRESA 871

a) a dimensão económica, onde entra a necessidade de asse-
gurar rentabilidade financeira, o que apenas se consegue
mediante a valorização pública dos bens e serviços pro-
porcionados pela empresa através de meios lícitos e etica-
mente satisfatórios; 
b) a  dimensão social da  sustentabilidade  da  empresa  que
exprime a sua capacidade para ir ao encontro das aspira-
ções dos trabalhadores respeitando os seus direitos e for-
necendo-lhes o seu espaço de realização pessoal; e 
c) a dimensão ambiental, por intermédio da qual na escolha
de processos e meios de produção a empresa assegura a
necessidade de preservação ambiental e a economia de
recursos naturais.

3. O ressurgimento do tema

I. A teoria da função social da empresa começou a tomar
corpo em finais da década de setenta como consequência da cons-
tatação do crescente protagonismo das empresas na economia de
mercado, potenciada pelos processos de globalização, de integra-
ção dos mercados e pelo retrocesso do intervencionismo estatal a
que se assistiu no último quartel do século XX. Estes factores
foram determinantes para a crescente dispersão do capital social
das sociedades pelo público investidor que, conjuntamente com as
facilidades sem precedentes no acesso à informação, determinam
uma maior capacidade de influência por parte de diversos grupos
de intervenientes que pelas mais diversas razões estão ligados à
vida das empresas. 
À medida em que as empresas se integram na sociedade, seja
pelo seu desenvolvimento e crescente sucesso comercial, seja pela
sua expansão para novos mercados, aumentam aqueles que sobre
ela detêm um qualquer interesse. Este fenómeno produziu uma ten-
dência inexorável e progressiva no sentido da tomada de consciên-
cia quanto ao impacto das actuações da empresa sobre elementos
exteriores a ela, consequências a que vulgarmente os economistas
872 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO

designam de externalidades. E nas sociedades modernas este pro-
blema torna-se mais pertinente uma vez que a maior exposição das
empresas acaba por torná-las mais vulneráveis no mercado, uma
vez que a sua credibilidade fica sujeita a um escrutínio cada vez
mais exigente.
Estes efeitos são ainda potenciados quando existam fenóme-
nos de expansão que determinam que as empresas inicialmente
situadas num único local partam para outros mercados onde, atra-
vés do desenvolvimento das suas actividades, aumentem a sua
influência e exposição, designadamente ao nível das condições de
vida das populações locais onde a sua actividade se desenrola. 

II. não podemos ainda esquecer que uma importante cate-
goria de sujeitos afectados pelo desempenho das empresas são de
facto os próprios investidores detentores do capital, em cujos inte-
resses se inclui a necessidade de adopção voluntária de um con-
junto de boas práticas de direcção e funcionamento que assegurem
a imagem da empresa, a sua integração com as comunidades em
que se inserem e sejam assim geradoras de maior sustentabilidade
económico-financeira.
À medida que os tempos correm e que se pronuncia o movi-
mento de integração e de expansão das empresas no mundo globa-
lizado, todo este conjunto de pressões vai-se sentindo de uma forma
mais pronunciada. Hoje as empresas são mais sensíveis a questões
como o respeito pelos direitos dos trabalhadores, o meio ambiente e
até as condições de vida das populações mais desfavorecidas, pois
sabem que o comportamento da organização é valorado e reflecte-
-se no prestígio dos produtos e marcas que comercializam. Por
outro lado, há que ter em conta o comportamento de quem procura
realizar investimentos socialmente responsáveis e que por isso é
descriminado positivamente em detrimento da concorrência.

III. O interesse suscitado relativamente a estas questões foi
também em parte reavivado pelo ressurgir dos escândalos financei-
ros a que assistimos no início da década, entre os quais se destaca
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA EMPRESA 873

como exemplo paradigmático o abrupto colapso da gigante ameri-
cana Enron que como outras possuía o seu próprio código ético que
não foi respeitado. Acontecimentos como estes chamaram a atenção
para a necessidade de salvaguardar a existência de regras relativas ao
bom governo das sociedades e criar os mecanismos que permitam de
alguma forma ao público em geral aferir o cumprimento de regras de
boa conduta no governo das sociedades. 
Este movimento no sentido de assegurar o bom governo das
sociedades em geral e em especial naquelas que abrem o seu capi-
tal ao público, pode considerar-se incluído numa pequena parte
daquilo a que se designa a responsabilidade social das empresas.
Isto porque em geral, os membros dos órgãos de administração,
especialmente das empresas que têm o seu capital disperso pelo
público, têm responsabilidades para com os investidores de revela-
ção ao mercado do grau de cumprimento de determinadas práticas
de direcção adoptadas.

IV. Mas este conceito tem ressurgido também ao nível da
implementação de conjuntos sistematizados de regras que têm em
vista regular não só as relações entre os membros do órgão de
administração e os accionistas, mas muitas vezes também sobre as
relações da empresa com os seus stakeholders, sendo que ao levar
à assunção de compromissos da empresa perante os credores, os
trabalhadores e os accionistas asseguram uma cultura de credibili-
dade, transparência e justiça.
Além disso, a experiência tem demonstrado que o reposicio-
namento do papel da empresa na sociedade induzido pela adopção
de práticas consideradas socialmente valiosas beneficia a empresa,
provocando o aumento da sua competitividade a médio e longo
prazo(4). Outros benefícios para a alteração de comportamentos
através da adopção de uma postura a vários níveis ética por parte
da empresa têm sido apontados como permitindo entre outras, cap-
tar investidores que procurem realizar investimentos em empresas

(4)  OECD Observer, “Corporate Governance and responsability: Foundations


for market integrity”, n.º 234, Outubro de 2002, p. 7 e segs.
874 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO

socialmente responsáveis bem como despoletar processos internos
que permitam às organizações tomar consciência e ir ao encontro,
de  uma  maneira  mais  eficiente,  das  necessidades  e  legítimas
expectativas de todos quantos estão envolvidos nas suas operações.

II. AS TEORIAS EM CONFRONTO

1. A teoria dos detentores de um interesse sobre a socie-


dade (stakeholders)

I. De acordo com os defensores da teoria dos stakeholders,
os membros do órgão executivo devem atender a todos quantos
afectam ou são afectados pela vida da empresa e têm, por isso, um
interesse no seu bom funcionamento. Entre estes, além dos pró-
prios  accionistas,  encontram-se  os  empregados,  fornecedores,
clientes, a comunidade local e o Estado. De acordo com esta posi-
ção, o objectivo da empresa seria o de coordenar os interesses des-
tes grupos, fazendo incidir sobre os administradores os deveres
morais de dirigir a actividade social, tendo em atenção manter um
constante equilíbrio de tais interesses.

II. A principal ideia que se encontra por trás desta teoria
resulta da ideia de que a empresa, ao beneficiar de diversos facto-
res de produção proporcionados pela sociedade em geral e pelo
próprio Estado, que tornam possível o desenvolvimento das suas
operações, estaria por isso obrigada a compensar a comunidade
que torna o seu sucesso possível.
Esta forma de encarar o papel da empresa desencadeou um
movimento que teve em vista ultrapassar as questões levantadas
pelo problema de separação entre titularidade e controlo sobretudo
das grandes empresas, no sentido de estabelecer uma estrutura teó-
rica que permitisse legitimar a adopção de certos comportamentos
considerados socialmente responsáveis por parte dos respectivos
administradores.
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA EMPRESA 875

III. A verdade é que, ao contrário do que advoga esta teoria, a
empresa não é um sujeito moral. E a querer-se assacar às empresas
alguma responsabilidade neste domínio há que atender-se ao disposto
no artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, nos termos do qual
“a capacidade da sociedade compreende os direitos e as
obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu
fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou
sejam inseparáveis da personalidade singular”.

De  acordo  com  esta  norma,  a  capacidade  de  exercício  da


sociedade tem como limite a prossecução do seu fim imediato, ou
seja gerar lucros, o que restringe fortemente a autonomia dos admi-
nistradores no que diz respeito à adopção de políticas socialmente
responsáveis. tal compreende-se uma vez que os administrado-
res(5) gerem meios de produção que lhes são alheios, permitindo-
lhes apenas neste domínio a tomada de decisões abrangidas pelo
primeiro nível de responsabilidade social que consiste em que a
realização de lucros seja feita mediante o exemplar cumprimento
de todas as regras do jogo.
Isto não significa, claro está, que não tenha sentido pensar
num  sentido  mais  abrangente  da  responsabilidade  social  da
empresa. na verdade, há que não desconsiderar a empresa como
sujeito juridicamente autónomo e separar a sua responsabilidade
directa da responsabilidade dos empresários seus accionistas. não
nos devemos esquecer que na noção de responsabilidade social da
empresa nos referimos a esta como centro de intersecção de res-
ponsabilidades de carácter social, onde se incluem simultanea-
mente a pessoa colectiva e o empresário, que apesar de serem enti-
dades relacionadas, têm funções claramente distintas.
não obstante, a teoria dos stakeholders teve o mérito indiscu-
tível de chamar a atenção para os diferentes grupos que cooperam
para que a actividade da empresa seja possível, e para a necessi-

(5)  Os administradores e gerentes estão obrigados como é sabido ao dever geral de
diligência previsto no artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais, nos termos do
qual: “os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a
diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta
os interesses dos sócios e dos trabalhadores”.
876 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO

dade de ser sensível às necessidades de cada um, lançando luz
sobre novos campos de responsabilidade social e tornando mais
amplo e abrangente o horizonte ético da empresa.

2. A teoria dos titulares do capital (stockholders)

I. Em 1970, MILtOn FRIEDMAn publicou um controverso


artigo que constituiu uma reacção àquilo a que veio a designar-se
de teoria dos stakeholders(6/7)e onde expressava as suas opiniões
no  que  diz  respeito  à  responsabilidade  social  das  empresas.
Segundo este autor, o primeiro passo para a clarificação da dou-
trina da responsabilidade social da empresa é questionarmo-nos o
que é que a mesma implica e para quem. Em princípio, as pessoas
responsáveis pelos actos da sociedade seriam os detentores do
capital, já que são elas que detêm o domínio sobre ela. no entanto,
e uma vez que a discussão da responsabilidade social é primaria-
mente dirigida às empresas, a sua abordagem é sobretudo da com-
petência dos membros do órgão executivo.

II. O  elemento  chave  da  posição  deste  autor  assenta  no


facto de os administradores serem representantes ou agentes que
agem no interesse dos accionistas, o que determina que a sua prin-
cipal responsabilidade seja para com estes(8). Donde, a responsabi-
lidade social dos administradores seja o gerir a empresa em termos

(6)  O termo stakeholder foi inicialmente introduzido em 1963 como “os grupos


sem cujo apoio a organização deixaria de existir” (R. EDUARD FREEMAn e DAVID L. REED,
in “Stockholders and Stakeholdres: A New Perspective on Corporate Commerce”, cit.
apud Stephen M. bainbridge, in “The Bishops and the Corporate Stakeholder Debate”). 
(7)  MILtOn FRIEDMAn, “The Social responsability of Business is to increase its
Profits”, the new York times Magazine, 13 de Setembro de 1970, p. 32.
(8)  “Num sistema de liberdade de iniciativa económica e de propriedade privada,
um executivo de empresa é um empregado dos donos do negócio. Ele tem uma responsabi-
lidade directa para com os seus empregadores. Tal responsabilidade é a de levar a cabo a
actividade social de acordo com a vontade daqueles, que geralmente será a de aumentar
os lucros ao máximo, conformando-se ao mesmo tempo com as regras básicas vigentes em
sociedade, tanto as incorporadas na lei, como em costumes éticos. (…) Enquanto as suas
acções de acordo com as da “responsabilidade social” reduzirem os resultados para os
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA EMPRESA 877

o mais consentâneos possíveis com a sua função qual seja a de
prosseguir os interesses dos accionistas, desde logo através de polí-
ticas de maximização do lucro. Segundo este autor, a dificuldade
no exercício da responsabilidade social por parte dos administra-
dores de empresas acaba por ilustrar a grande virtude da empresa
privada que consiste em forçar as pessoas a serem responsáveis
pelos seus actos, tornando a exploração alheia difícil. 
neste artigo, FRIEDMAn defende que
“existe um e apenas um tipo de responsabilidade social
da empresa: usar os seus recursos e envolver-se em activida-
des destinadas a aumentar os seus lucros na medida em que
se mantenha dentro das regras do jogo, o que significa
envolver-se numa concorrência aberta e livre sem engano
ou fraude.”

O seu desacordo com aqueles que defendiam uma responsabi-
lidade social das empresas sem limites, ia ao ponto de afirmar que
os mesmos, ao negar o lucro como o fim último da empresa, esta-
vam a defender puro e inadulterado socialismo.

III. não obstante as suas propostas terem tido para muitos o
significado que os administradores das empresas deveriam alcan-
çar os fins de lucro a todo o custo, a verdade é que este autor reco-
nhece  especificamente  o  imperativo  de  que  os  negócios  sejam
prosseguidos no estrito respeito pela lei e pelas regras de mercado,
reconhecendo  o  lugar  da  ética  no  exercício  das  actividades  de
direcção. Estes limites à acção dos administradores contrariam a
ideia generalizada contra aquele autor, de que a teoria de FRIEDMAn
defende políticas de gestão unicamente viradas para a maximiza-
ção do lucro e desprovidas de qualquer preocupação quanto à sua
responsabilidade social.
MILtOn FRIEDMAn teve o mérito de chamar a atenção para o
facto de que as empresas são instrumentos nas mãos dos accionis-

investidores, eles estão a gastar o dinheiro alheio”. MILtOn FRIEDMAn, “The Social res-


ponsability…”, cit..
878 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO

tas, transferindo o centro da discussão do tema da responsabilidade
social e clarificando o que hoje nos parece óbvio: que a responsa-
bilidade social da empresa não se deve confundir com a responsa-
bilidade social do empresário. 

IV. Poderá portanto dizer-se que, segundo este autor: 
a) a empresa cumpre a sua função social primacialmente
através do desempenho da sua actividade económica,
contribuindo desse modo para a realização dos objectivos
gerais de política económica, ao gerar lucro para os seus
accionistas; 
b) a prossecução da actividade económica da empresa
deve conformar-se com o conjunto de preceitos legais e
éticos aplicáveis aos demais agentes do mercado, sem
recurso a praticas ilícitas ou fraudulentas; e 
c) a existir uma intervenção voluntária socialmente
valiosa por parte da empresa que ultrapasse o estrito
âmbito do referido nas alíneas anteriores, a mesma
não caberá aos seus administradores, sendo isso sim
uma matéria da responsabilidade dos detentores do
capital(9).

3. A superação ética da Doutrina Social da Igreja

I. A nossa análise aos pontos de vista atrás descritos é com-
plementada com uma breve abordagem à ética católica na adopção
de comportamentos socialmente responsáveis, uma vez que coloca
o tema numa perspectiva inteiramente diferente.

(9)  naturalmente que, no contexto das sociedades com o capital aberto ao investi-
mento do público, em que o capital se encontra disperso pelo público investidor que coloca as
suas poupanças em partes de capital, as pessoas sobre as quais verdadeiramente recai a res-
ponsabilidade de definir a condução dos destinos da empresa serão os investidores institucio-
nais ou outras pessoas ou grupos de pessoas que detenham uma participação suficientemente
influente, designadamente ao nível da nomeação de membros do órgão de administração.
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA EMPRESA 879

O pensamento contido na Doutrina Social da Igreja não se
detém com a questão de saber se a empresa é um ente moral ou
não, nem tão pouco se questiona saber quais os sujeitos activos e
passivos de comportamentos éticos, antes aproveita o melhor con-
tributo de cada uma das correntes e indica a necessidade de que a
empresa seja orientada para o bem comum. De facto, é defendido
na linha aliás da teoria dos stockholders de Milton Friedman que 
“Cada um tem o direito de iniciativa económica e usará
legitimamente os seus talentos a fim de contribuir para uma
abundância proveitosa a todos e recolher os justos frutos
dos seus esforços. Mas terá o cuidado de se conformar com
as regulamentações impostas pelas legítimas autoridades
em vista do bem comum”(10).

Por outro lado existe também uma aproximação à teoria dos
stakeholders onde se defende que 
“Os responsáveis de empresas têm, perante a socie-
dade, a responsabilidade económica e ecológica das suas
operações. Estão obrigados a ter em consideração o bem das
pessoas, e não somente o aumento dos lucros. Estes são
necessários, pois permitem realizar investimentos que asse-
gurem o futuro das empresas e garantam o emprego”(11).

no  entanto,  ao  introduzir  o  conceito  de  solidariedade,  o


âmbito da responsabilidade social da empresa é lançado a patama-
res ainda mais abrangentes:
“tal como a pessoa se realiza plenamente na doação de
si própria, assim a propriedade se justifica moralmente na
criação quando, em moldes e tempos devidos, gera ocasiões
de trabalho e crescimento humano para todos”(12).

Assim, à medida que mais meios e poder são colocados à dis-
posição de cada um, maior se torna a urgência de colocar esses

(10)  Catecismo, ponto 2429.
(11)  Catecismo, ponto 2432.
(12)  JOãO PAULO II, Centesimus Annus, 43.
880 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO

meios ao serviço do bem comum. E aqui o empresário deve consi-
derar-se particularmente obrigado no sentido de utilizar o seu pri-
vilégio e autoridade como instrumentos privilegiados para alcançar
esse fim.

II. Para a Doutrina Social da Igreja, a responsabilidade social
da empresa é um conceito que pode de algum modo relacionar-se
com o conceito de Justiça Social, introduzido pelo PAPA PIO XI na
sua encíclica Quadragesimo Anno, no sentido de poder ser vista
como a virtude de quem, no âmbito da empresa, ordena o seu com-
portamento tendo em vista o cumprimento de propósitos social-
mente valiosos. Significa conhecer o seu lugar na sociedade e exer-
cer as suas funções empresariais em vista da influência no sentido do
melhoramento das instituições sociais. Como escreveu MICHAEL
nOVAK, 
“o Papa constata que os homens e as mulheres livres
dos tempos modernos podem juntar-se, organizar-se e modi-
ficar as instituições das sociedades em que vivem. Realizar
este potencial social exige-lhes vigilância, iniciativa, visão
de futuro, coragem, realismo, competências organizacionais
e perseverança (além de uma provável ajuda de advogados).
Além disso, sem a prática desta virtude, o princípio da subsi-
diariedade não poderia apelar a nenhum grupo social
menor do que o Estado”(13).

Este princípio da subsidiariedade que foi inicialmente formu-


lado na doutrina social da igreja pelo PAPA PIO XI e posteriormente
clarificado pelo PAPA JOãO PAULO II na sua carta encíclica Centesi-
mus Annus, é o que confere um especial papel à empresa na socie-
dade. Por ele se exprime a noção de que a sociedade desenvolve-se
melhor quando os seus membros reconhecem que diferentes orga-
nizações sociais — tais como a família, a empresa, o governo —
assumem responsabilidades diferentes na sociedade. nos termos
deste princípio, 

(13)  MICHAEL nOVAK, “A Ética Católica e o Espírito do Capitalismo”, p. 114.


A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA EMPRESA 881

“uma instância social de ordem superior não deve


interferir na vida interna de uma comunidade de ordem
inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes
apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a
sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em
vista o bem comum”(14).

Desta  forma  se  defende  expressamente  que  o  objectivo


último da empresa deve atender a sua existência como comuni-
dade de pessoas que, de diverso modo, procuram a satisfação das
suas necessidades fundamentais e constituem um grupo especial
ao serviço de toda a sociedade. O Papa chama à atenção para a cir-
cunstância de que o verdadeiro debate deve centrar-se em todos
aqueles que de uma forma ou de outra tomem parte na empresa, e
que façam uso da virtude da justiça social no ambiente do labor
quotidiano. Daí que se chame à atenção das nações para a forma-
ção de empresários eficientes e conscientes das suas responsabili-
dades.

III. A  função  social  da  empresa  a  que  JOãO PAULO II e


autores como MICHAEL nOVAK chamaram à atenção tem como
principal mérito o de fazer notar que além da função social primá-
ria da empresa defendida por MILtOn FRIEDMAn e das suas obri-
gações perante todos quantos contribuem para o desenrolar das
suas operações, a empresa tem também que ter em consideração,
ao  desenhar  as  suas  posições  no  domínio  da  responsabilidade
social, o seu próprio lugar na sociedade em que está enquadrada e
que, por via dos princípios da subsidiariedade e da justiça social,
deve assumir. Relativamente a este último aspecto, chama-se à
atenção do papel dos empresários, como sujeitos morais últimos
na esfera da empresa, que se querem conscientes das suas respon-
sabilidades.

(14)  JOãO PAULO II, Centesimus Annus, 48; cfr. igualmente PIO XI, Quadragesimo


Anno, 79.
882 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO

4. Os níveis de responsabilidade social da empresa

I. Cada uma das teorias assinaladas tem o mérito de nos
fazer compreender melhor um aspecto diferente da responsabili-
dade social da empresa, e de nos ajudar a ver com maior lucidez as
obrigações sociais da empresa que decorrem: (i) da sua função eco-
nómica concreta, como também (ii) da necessidade de retribuir
adequadamente a todos quantos depende a prossecução da sua acti-
vidade, e ainda (iii) do seu posicionamento relativamente à socie-
dade como um todo.
Daí que se diga que a responsabilidade social da empresa cor-
responde a uma tomada de consciência a três níveis que correspon-
dem a três círculos concêntricos, que têm em conta sucessivamente
a sua função económica, as forças que operam à volta da empresa e
o  papel  que  a  mesma  desempenha  na  colectividade  em  que  se
insere.

II. temos portanto um primeiro círculo que é o da exempla-
ridade  ou  da  excelência.  Como  referiu  MILtOn FRIEDMAn,  as
empresas têm que ser eficientes. Essa é a primeira responsabili-
dade social das empresas: produzir valor acrescentado. no entanto,
este nível de responsabilidade da empresa em sociedade, é insepa-
rável de um outro aspecto fundamental para que o valor gerado
seja socialmente valioso: é necessário que no desenrolar das suas
operações e na prossecução do seu fim último a empresa respeite a
legalidade e os direitos de todas as partes envolvidas. Por outras
palavras, a primeira responsabilidade das empresas é o da exem-
plaridade ou excelência no exercício da sua actividade.

III. O  segundo  círculo  de  responsabilidade  social  das


empresas é o dos stakeholders, ou seja, o da responsabilidade da
empresa relativamente a todos os que concorrem directamente para
o sucesso das suas operações comerciais. De acordo com este nível
de responsabilidade social a empresa deve compensar adequada-
mente ou não prejudicar desnecessariamente os clientes, fornece-
A RESPOnSAbILIDADE SOCIAL DA EMPRESA 883

dores, trabalhadores, e até mesmo a comunidade local, na medida
do seu contributo para a criação de valor acrescentado por parte da
empresa, mas também dos encargos por cada um suportados.

IV. Finalmente, temos um terceiro círculo de responsabili-
dade social que onerará mais o empresário do que as empresas atra-
vés dos seus administradores, que corresponde à responsabilidade da
empresa relativamente à colectividade em geral, ao Estado e ao meio
ambiente, que cumpre ter em consideração em diferentes medidas,
quer consoante os custos envolvidos para as próprias empresas, quer
consoante o seu impacto concreto nas suas operações.

III. O PAPEL DO ADVOGADO

I. Através do documento “CSr — Corporate Social res-


ponsability and the role of the Legal Profession”, o CCbE sus-
tenta que a profissão de advogado desempenha um papel relevante
na tomada de consciência das empresas e dos empresários na peda-
gogia da responsabilidade social da empresa e na implementação
de  comportamentos  socialmente  responsáveis,  referindo  que  a
advocacia e a responsabilidade social das empresas prosseguem
fins convergentes, como a defesa da moralidade, legalidade e jus-
tiça.  E  uma  vez  que  a  principal  função  do  órgão  executivo  da
empresa  é  assegurar  a  sua  prosperidade  dirigindo  a  actividade
comercial ao mesmo tempo que se conforma com as legítimas
expectativas dos seus accionistas e restantes stakeholders, cumpre
ao  advogado  promover  a  implementação  daqueles  valores  nas
empresas.

II. Assim, e dada a especial proximidade dos advogados das
empresas aos centros de decisão das mesmas, existem um conjunto
de oportunidades de aconselhamento que podem traduzir-se em
projectos de diversa índole, tais como:
884 JOSÉ JOãO DE AVILEz OGAnDO

a) a elaboração de planos de responsabilidade social e a sen-
sibilização para o seu efeito preventivo no que diz respeito
a  potenciais  litígios  em  empresas  cujos  processos  não
satisfaçam todos os requisitos legais;
b) a sensibilização das empresas para a circunstância de que
cada vez mais o comportamento das empresas que não se
conforme inteiramente com os preceitos legais em vigor
está sujeito a procedimentos civis que podem ser onerosos
mesmo em casos de negligência, aumentando de ano para
ano os casos de potencial responsabilidade criminal;
c) a preparação de estratégias de planeamento fiscal relacio-
nadas com a realização de acções no domínio dos planos
de responsabilidade social, tirando partido de todos os
benefícios fiscais conexos com essas actividades como é o
caso dos benefícios fiscais relacionados com o mecenato; 
d) a prestação de serviços relacionados com a divulgação de
informação sobre as operações da empresa ao público em
geral ou a entidades de supervisão, a emissão de comuni-
cados em exercício de direitos de resposta;
e) elaboração de códigos éticos ou de conduta, etc.

III. As estratégias de responsabilidade social incluem uma
gama  variável  de  práticas  que  podem  diferir  de  empresa  para
empresa na base de um conjunto de variáveis, tais como: as carac-
terísticas do sector de actividade, os valores da empresa, a cultura
da organização, a sua história específica, as suas relações com con-
sumidores, os atributos das marcas que comercializa, entre outras.
A adopção destes comportamentos podem fazer parte de um
novo conjunto de serviços que promoverá o desenvolvimento de
uma cultura de organização, ao mesmo tempo transmitindo uma
imagem institucional com atributos próprios que fortalecerão a sua
reputação e credibilidade comerciais. Por outro lado, tais serviços
aumentarão o prestígio das empresas em causa uma vez que as
torna participantes activas do melhoramento das condições de vida
nas comunidades onde operam.
A natureza jurídica da autoliquidação

1. Considerações introdutórias referindo no art. 54.º, n.º 2, da Lei Geral Tributá-


ria (LGT) que “[a]s garantias dos contribuintes previstas
Como será do conhecimento geral, no nosso sis- no presente capítulo aplicam-se também à autoliquidação,
tema fiscal a incumbência da liquidação ordinária de retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida
tributos tem sido sistematicamente transferida da tributária, na parte não incompatível com a natureza des-
Administração para os particulares, sendo atual- tas figuras”. Apesar de algumas exceções (4), a dou-
mente assegurada, quase na sua totalidade, pelo trina obedeceu, declarando tout cour os atos de
mecanismo da autoliquidação (1). Por via disso, os autoliquidação como “atos equiparados aos atos de li-
meios ao dispor da Administração têm vindo a con- quidação praticados pela administração para efeitos do
centrar-se cada vez mais no controlo a posteriori e na recurso pelos sujeitos passivos aos mesmos meios de ga-
correção das liquidações efetuadas pelos particula- rantia graciosos, judiciais ou jurisdicionais” (5).
res. Quando assim é, as liquidações administrativas Acontece que a simples equiparação da autoliqui-
assumem a natureza de liquidações extraordinárias, dação ao ato tributário, limitada à parte não incom-
acompanhando o desenvolvimento patológico das patível com a sua natureza, não só nada esclarece
relações jurídico-fiscais. Estas são designadas por quanto à natureza destes atos, como ainda contri-
oficiosas quando realizadas na sequência do não bui para dificultar essa determinação, já que os in-
cumprimento espontâneo por parte do contri- clui no mesmo grupo que a “retenção na fonte ou
buinte da sua obrigação de autoliquidar o imposto, repercussão legal a terceiros da dívida tributária”. Por
e quando os rendimentos incluídos na autoliquida- essa razão, procuraremos neste texto responder à
ção realizada mereçam correção quanto ao seu difícil questão de saber qual será afinal a natureza
montante serão, consoante o caso, liquidações adi- jurídica da autoliquidação.
cionais ou corretivas (2).
Muito embora a tarefa de liquidação dos tributos 2. As posições na doutrina
seja hoje, na sua vasta maioria, desempenhada por
particulares e não obstante as importantes perplexi- 2.1. Descrevendo em termos sintéticos as diver-
dades teóricas que a autoliquidação coloca, a ver- sas posições doutrinais, a grande clivagem que en-
dade é que, com o passar do tempo, foi-se perdendo contramos a respeito da natureza jurídica da auto-
o interesse no tema. E como essas perplexidades não liquidação é entre aqueles que negam a possibili-
foram ultrapassadas de forma satisfatória, o legisla- dade de os particulares praticarem atos administra-
dor sentiu a necessidade de resolver a situação (3), tivos tributários e os que configuram a autoliqui-

nação dos actos da autoliquidação, substituição tributária e pa-


(1) Conforme sucede, nomeadamente, nos casos do Imposto gamentos por conta”.
sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) e do Imposto (4) ANA PAULA DOURADO, “A natureza jurídica da autoliqui-
sobre o Valor Acrescentado (IVA) [art. 89.º, alínea a), do Código dação”, in Separata da Revista Jurídica, 1988, pp. 179-191; LOU-
do IRC e arts. 27.º e 29.º do Código do IVA]. RENÇO VILHENA DE FREITAS, “A autoliquidação: contributo para
(2) RUI DUARTE MORAIS, Manual de Procedimento e Processo Tri- uma análise da sua natureza jurídica”, in Ciência e Técnica Fiscal –
butário, Almedina, 2016, p. 62; SERENA CABRITA NETO/CARLA CAS- Cadernos (CTF), n.º 405, 2002, pp. 7-50; ambos os Autores, por sua
TELO TRINDADE, Contencioso Tributário, vol. I, Almedina, 2017, p. 459. vez, citam alguma doutrina nacional e sobretudo estrangeira.
(3) Na sequência, aliás, do que o Código de Processo Tribu- (5) SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Conten-
tário antes dispunha na sua secção VII, com a epígrafe “Impug- cioso Tributário, vol. I, cit., p. 459.

26
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 33 • Julho/Setembro 2021

dação como um verdadeiro e próprio ato adminis- os dados necessários à prossecução do interesse
trativo. público a seu cargo (10), sendo certo, acrescentamos
Começando por estes, destacamos antes do mais nós, que, ao abrigo do princípio da declaração,
os que veem na autoliquidação um ato delegado, pra- essas declarações dos contribuintes, desde que
ticado no exercício de poderes de delegação ou de apresentadas nos termos previstos na lei, presu-
representação, que foi entre nós a posição defendida mem-se verdadeiras (art. 75.º, n.º 1, da LGT). Daí
por ARMINDO MONTEIRO (6). No entanto, como nota que, ao contrário do que sucede nos atos provisó-
VIEIRA DE ANDRADE, a delegação é um ato adminis- rios cujos efeitos dependem necessariamente de
trativo pelo qual um órgão autorizado por lei para uma futura reponderação definitiva por parte da
a prática de determinados atos permite que essa sua Administração (11), na autoliquidação essa pronún-
competência seja exercida por outro órgão da cia é desnecessária e na maior parte dos casos não
mesma (delegação de competências) ou de outra se chega a verificar (12).
pessoa coletiva (delegação de atribuições) (7). Ora, à Temos depois a tese que vê na autoliquidação
autoliquidação não subjaz qualquer ato de delega- um ato que, embora materialmente praticado por
ção, mas antes deveres que a lei coloca diretamente um particular, redundaria num ato administrativo
a cargo de particulares, relegando a competência da de liquidação tácito ou presumido, que surgiria no mo-
Administração a uma função meramente supletiva mento da entrega da declaração, consolidando-se
ou fiscalizadora dos atos de autoliquidação por depois de decorrido o prazo de comprovação ad-
aqueles praticados (8). ministrativa do seu teor caso a Administração não
Outros pretendem ver na autoliquidação um ato determinasse a sua incorreção (13). Como é fácil de
provisório de liquidação que seria mais tarde homo- ver, a primeira crítica que se pode apontar a esta
logado ou corrigido pela Administração (9). A ideia tese é a de não fornecer qualquer explicação para a
que subjaz a esta tese é a de que a autoliquidação natureza jurídica da autoliquidação, mas antes ao
deve ser entendida como um ato provisório susce- presumido ato que posteriormente a rececionasse
tível de ser modificado ou revogado pela Adminis- tacitamente. Seja como for, a existência deste pre-
tração, cujo silêncio importa a sua consolidação e tenso ato constitui uma pura ficção sem qualquer
receção definitiva tácita na ordem jurídica. Ora, base legal nem correspondência com a realidade,
como refere LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, o auto- uma vez que na maior parte dos casos não é feita
lançamento inerente à autoliquidação já conduz, qualquer fiscalização das declarações prestadas
por si só, a que a Administração disponha de todos pelo particular. Além disso, como nota ANA PAULA
DOURADO, o contribuinte não apresenta à Adminis-
tração qualquer pretensão (14), nem esta é em todo
(6) ARMINDO MONTEIRO, Introdução ao Estudo do Direito Fiscal,
Lisboa, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lis-
boa 1951, pp. 111-112, ex vi ANA PAULA DOURADO, “A natureza
jurídica da autoliquidação”, cit., p. 182; e LOURENÇO VILHENA DE (10) LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, “A autoliquidação: con-
FREITAS, “A autoliquidação: contributo para uma análise da sua tributo para uma análise da sua natureza jurídica”, cit., p. 42.
natureza jurídica”, cit., p. 28. No mesmo sentido parece ir PAULO (11) JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Admi-
MARQUES, A Revisão do Acto Tributário, Almedina, 2017, pp. 164 nistrativo, cit., p. 176.
e 191, que depois de defender que “os atos de privados não inte- (12) ANA PAULA DOURADO, “A natureza jurídica da autoliqui-
grados organicamente na administração pública, mesmo que conexos dação”, cit., p. 184.
com a atividade administrativa, estão excluídos do conceito de acto ad- (13) LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, “A autoliquidação: contri-
ministrativo”, acaba por conceder que “na autoliquidação (…) o buto para uma análise da sua natureza jurídica”, cit., p. 27. Neste
contribuinte actua na vez dos serviços, instituindo a lei uma delegação sentido vai JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 10.ª ed., Almedina,
de poderes administrativos tributários nos próprios contribuintes”. 2017, p. 312, negando que a autoliquidação tenha natureza de
(7) JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Adminis- ato administrativo, apesar de ver nela um ato tributário “relati-
trativo, 5.ª ed., Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, p. 101. vamente ao qual, por via de regra, se verifica uma homologação implícita
(8) Neste sentido, ANA PAULA DOURADO, “A natureza jurídica pela administração tributária decorrente da aceitação do pagamento do
da autoliquidação”, cit., p. 183. imposto.”.
(9) Entre nós, neste sentido SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, (14) ANA PAULA DOURADO, “A natureza jurídica da autoliqui-
Almedina, 1995, p. 312. dação”, cit., p. 184.

27
A natureza jurídica da autoliquidação

o caso necessária, porque o ato de autoliquidação de os atos administrativos serem praticados por par-
produz por si próprio efeitos jurídicos imediatos. ticulares (18).
Finalmente, o silêncio da Administração não cons-
titui qualquer manifestação de aprovação, até por- 2.2. Por outro lado, temos aqueles que negam a
que a ausência de decisão só tem o valor de possibilidade de os particulares praticarem atos ad-
deferimento nos casos expressamente previstos na ministrativos tributários, vendo na autoliquidação
lei [art. 130.º, n.º 1, do Código do Procedimento Ad- um mero conjunto de operações materiais, pratica-
ministrativo (CPA)]. das em cumprimento de deveres de colaboração. O
De salientar ainda a posição de LOURENÇO VI- mais destacado defensor desta tese é ALBERTO XA-
LHENA DE FREITAS, para quem a função tituladora do VIER (19), observando que nem toda a operação lógica
ato tributário e o efeito da abstração que assume face pela qual se procede à subsunção de factos a normas
à obrigação subjacente verificam-se no caso do ato pode qualificar-se como aplicação do Direito, já que
de autoliquidação (15), tal como sucede quanto aos esta pressupõe a existência de um ato jurídico (20).
demais atos administrativos. Daí que este Autor veja Considera este Autor que o ato de aplicação do Di-
na autoliquidação um verdadeiro ato administrativo reito apresenta autonomia quanto aos seus efeitos,
tributário, praticado por um particular no exercício sendo de carácter obrigatório e vinculante. Esta ati-
de poderes jurídico-administrativos que lhe são le- vidade distinguir-se-ia do comportamento do par-
galmente atribuídos, com o objetivo de fixação au- ticular na autoliquidação, apenas reconduzível ao
toritária da quantificação da dívida de imposto, cumprimento de um dever de adequação espontâ-
possibilitando o cumprimento do dever fundamen- nea e pacífica ao quadro legal, comportamento este
tal de pagar impostos (16). Segundo VILHENA DE FREI- que seria desprovido daqueles atributos (21).
TAS, a principal questão que poderia levantar-se Não obstante ALBERTO XAVIER admitir que, em
contra a qualificação da autoliquidação como um determinados casos, para cumprir esse dever o
ato administrativo reside no facto de se tratar de um contribuinte “procede a uma operação que, do estrito
ato praticado por um privado (17). Mas como nota,
até a mais avançada doutrina admite a possibilidade (18) MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo,
3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1951, p. 220; DIOGO FREITAS
DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 4.ª ed., Alme-
(15) LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, “A autoliquidação: con- dina, 2018, p. 199.
tributo para uma análise da sua natureza jurídica”, cit., p. 49. (19) No mesmo sentido, VÍTOR FAVEIRO, Noções Fundamentais
(16) LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, “A autoliquidação: con- do Direito Fiscal Português, I vol., Coimbra, Coimbra Editora, 1984,
tributo para uma análise da sua natureza jurídica”, cit., p. 47. pp. 406-410; JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Pro-
Não obstante este Autor assinalar como originalidade do ato de cesso Tributário – Anotado e Comentado, 6.ª ed., II vol., Áreas Editora,
autoliquidação a circunstância de se tratar de um ato autoritário 2006, p. 406. Também ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, Princípios de Direito
produtor de efeitos na esfera jurídica de quem o emite, facto que Fiscal, vol. I, 2.ª ed., Almedina, 1979, pp. 236-237, vê na autoliqui-
considera ser uma situação original no direito administrativo dação uma simples manifestação de conhecimento ou participa-
português, entende que essa especialidade não é suficiente para ção de ciência sujeita a verificação da Administração. Segundo
obstar a que se considere o ato de autoliquidação como um ver- este Autor, nestes casos, “o ato tributário é praticado após o paga-
dadeiro e próprio ato administrativo (cf. “A autoliquidação: con- mento, e tem como resultado homologar ou corrigir a liquidação efetuada
tributo para uma análise da sua natureza jurídica”, cit., p. 38). pelo contribuinte, que, assim, só por via dessa homologação ou depois de
Quanto a isto importa referir que, em rigor, a autoliquidação corrigidos os erros da liquidação – que podem, inclusivamente, constituir
produz efeitos na esfera jurídica de quem o emite como a pró- uma infração fiscal – fica liberado, transformando-se então a liquidação,
pria liquidação administrativa, já que tanto o contribuinte como que anteriormente era como que apenas provisória ou condicional, em
a Administração são partes da relação jurídico-tributária, biu- verdadeira liquidação definitiva.”. Não obstante numa primeira aná-
nívoca por natureza. Assim, se tivermos em conta a quantidade lise possa parecer que BRAZ TEIXEIRA adira à tese do ato provisório
de pagamentos antecipados, sejam eles retidos na fonte ou sujeito a posterior homologação, este Autor rejeita tout cour à au-
pagos por conta da prestação devida a final, torna-se evidente toliquidação o carácter de ato administrativo, ainda que provisó-
que da autoliquidação tanto pode resultar uma obrigação de pa- rio. Aderindo a esta posição, PAMPLONA CORTE-REAL, Direito Fiscal,
gamento a favor do contribuinte como um crédito e a correspe- policop., 1980, pp. 61-62.
tiva obrigação de pagamento a cargo da Administração. (20) ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário,
(17) LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, “A autoliquidação: con- Coimbra, Almedina, 1972, pp. 57-58.
tributo para uma análise da sua natureza jurídica”, cit., p. 38. (21) Ibidem, p. 59.

28
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 33 • Julho/Setembro 2021

ponto de vista lógico, é idêntica à efetuada pela adminis- também os que veem na autoliquidação um mero
tração fiscal”, refere que tal operação “não é dotada conjunto de operações materiais executadas em cum-
de qualquer relevância jurídica”, sendo o produto “de primento de deveres de colaboração não consegui-
simples operações mentais” sem efeitos jurídicos pró- ram distanciar-se da evidência de que, nela, o
prios (22). Reconhece que “muitas vezes a liquidação particular procede a simples operações de registo
não é uma simples operação mental, por se dever corpori- em suporte próprio previamente elaborado e dis-
zar num documento (…) cuja elaboração é rigorosamente ponibilizado pela Administração.
disciplinada por lei, de tal modo que a sua inobservância Como refere ANA PAULA DOURADO, mais do que
produz efeitos jurídicos próprios”. No entanto, a auto- uma mera declaração de ciência, a autoliquidação é
liquidação não constitui um ato jurídico, mas antes uma manifestação de vontade através da qual são
“a simples realização de um dever tributário acessório, im- tomadas decisões, das quais resultam efeitos jurídi-
posto por lei para meros efeitos de fiscalização ou controlo cos concretos, incluindo sancionatórios (25), con-
da legalidade dos pagamentos efetuados”. Conclui, por cluindo que, “juridicamente, basta qualificar a autoli-
isso, tratar-se de “uma atividade de registo em documen- quidação como ato jurídico” (26). Mas não é menos certo
tos próprios (…), de natureza análoga à dos lançamentos que essas operações materiais, conjugadas com o su-
na escrita dos comerciantes” (23). porte concedido pela Administração para colocar o
Para este Autor, apenas existirá ato tributário nos ato em condições de ser como tal rececionado, dão-
casos em que a Administração intervenha em mo- -lhe qualidades em tudo semelhantes às atribuídas
mento posterior, no exercício dos seus poderes de ao ato tributário praticado pela Administração. O
fiscalização, verificando se a obrigação foi bem ou problema da sua qualificação como ato administra-
mal declarada, e procedendo, neste último caso, à li- tivo ainda poderia colocar-se ao abrigo da anterior
quidação corretiva ou adicional correspondente (24). definição legal de ato administrativo (art. 120.º do
Nestas situações, o ato tributário não será a impro- anterior CPA), que os via como “decisões dos órgãos
priamente chamada autoliquidação, mas sim a even- da Administração” (27). No entanto, tal objeção já não
tual determinação da prestação de imposto feita pela procederia em face da nova definição legal de ato
Administração. administrativo, que dispensa a integração do seu
autor na Administração Pública.
3. Pontos atendíveis nas duas teses em con- Por outro lado, note-se que apesar da volunta-
fronto riedade que caracteriza a conduta do particular que
procede à autoliquidação, esta apresenta um con-
Apesar de as duas grandes conceções atrás des- teúdo estritamente vinculado e condicionado.
critas não terem conseguido encontrar uma solução Como bem assinala ALBERTO XAVIER, a autoliquida-
satisfatória que refletisse adequadamente tanto as
semelhanças como as diferenças entre a autoliqui-
(25) ANA PAULA DOURADO, “A natureza jurídica da autoliqui-
dação e o ato de liquidação administrativa, não
dação”, cit., pp. 180 e 190.
pode ignorar-se a existência de pontos atendíveis (26) Quanto a esta qualificação parecem não existir dúvidas,
entre os argumentos esgrimidos pelos autores que já que para a autoliquidação ser perfeita apenas se exige que o
agente tenha querido a conduta, independentemente do resul-
as defendem. Do mesmo modo que os que pro-
tado jurídico alcançado. Ver JOÃO DE CASTRO MENDES, Teoria
curam enquadrar a autoliquidação como um verda- Geral do Direito Civil, vol. II, AAFDL, 1995, p. 22.
deiro e próprio ato administrativo não puderam (27) Mesmo assim, já então MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/PEDRO
COSTA GONÇALVES/JOÃO PACHECO DE AMORIM, Código do Procedi-
alhear-se da circunstância de que ela produz os
mento Administrativo Comentado, vol. II, Edições Almedina, 1995,
mesmos efeitos que a liquidação administrativa, pp. 63-64, procediam a uma interpretação extensiva do art. 120.º
do CPA, considerando que as decisões “de particulares nos casos
em que eles apareçam legalmente investidos da prerrogativa de auto-
(22) Ibidem, p. 60. ridade administrativa, são também decisões que – preenchidos os res-
(23) Ibidem, p. 63. tantes elementos da noção do art. 120.º – consubstanciam atos
(24) Ibidem, p. 64. administrativos”.

29
A natureza jurídica da autoliquidação

ção é um ato de registo em documentos próprios, o peticionado pelo particular e emite a correspon-
de natureza análoga à dos lançamentos na escrita dente licença. A mediação entre o conteúdo das
dos comerciantes (28), realizado sobre um docu- normas atribuidoras de competência (normas de
mento cuja elaboração é rigorosamente disciplinada organização administrativa) e das normas que dis-
pela Administração, de tal modo que a sua inobser- ciplinam o seu exercício (normas de decisão mate-
vância pode inviabilizar, como muitas vezes sucede, rial), por um lado, e o conjunto das circunstâncias
a produção dos efeitos normalmente resultantes da de facto sobre as quais a decisão irá incidir, por
sua receção na ordem jurídica. outro, é feita única e exclusivamente pelo órgão
competente para a prática do ato. Pode dizer-se
4. Tomada de posição: uma nova forma de en- que, através do ato, o seu autor passa da lei para a
tender a autoliquidação decisão sem qualquer outra condicionante que o
próprio entendimento que faz da lei e dos factos
4.1. A criação do mecanismo da autoliquidação sobre os quais deve decidir. De igual modo, a auto-
é motivada por razões de boa administração que liquidação seria um ato inteiramente praticado por
facilmente se compreendem: trata-se de um meca- particulares caso lhes fosse permitido declarar os
nismo em tudo igual ao ato de liquidação adminis- factos com relevância fiscal e liquidar o imposto de-
trativa do imposto, exceto na circunstância de ser vido nos termos que resultassem da sua particular
completado pelos sujeitos com um conhecimento interpretação das normas aplicáveis. Isto é, se a cada
mais próximo das informações relevantes a prestar um fosse dada a possibilidade de apresentar um ato
(at arm’s length). Com este ato realiza-se não só a de liquidação elaborado de acordo com o seu enten-
eficácia funcional fiscal como ainda a eficiência fis- dimento individual quanto ao sentido das normas
cal, já que se substitui a liquidação administrativa fiscais materialmente aplicáveis e em resultado da
por uma forma de liquidação expedita e que im- sua concretização nas suas próprias situações indi-
plica o mínimo de custos associados (29). Ora, se a viduais lhes fosse dada a possibilidade de por si rea-
figura da autoliquidação foi criada por estas razões, lizar as operações materiais de cálculo em seu
para valer como ato semelhante ao ato de liquidação entender devidas, com vista à determinação da pres-
administrativa de imposto, se é enquadrável na tação de imposto correspondente.
noção legal de ato administrativo e se produz os Mas não é isso que encontramos na autoliquida-
mesmos efeitos, quer sobre a obrigação de imposto ção: esta é realizada sobre uma ferramenta especí-
quer sobre as relações formais que se desenvolvem fica (outrora um impresso, hoje uma aplicação de
a partir da declaração dos direitos tributários, então software) disponibilizada pela Administração aos
só não deverá ter a mesma natureza caso exista particulares. A construção desse impresso ou apli-
algum motivo atendível que a isso obste. cação obedeceu a uma prévia destilação das normas
Imagine-se que um particular requer uma li- jurídicas aplicáveis segundo o particular entendi-
cença a uma autarquia. Depois de cumpridos os mento da Administração Fiscal, que delas retirou as
procedimentos legais, o órgão competente aprova consequências necessárias à construção da plata-
forma declarativa que resolve uma parte impor-
tante das questões interpretativas que se poderiam
(28) A intervenção dos particulares na autoliquidação tanto
não diverge daquela que encontramos na declaração de rendi- colocar aos contribuintes aderentes.
mentos feita pelos contribuintes ao abrigo das regras do Im- Por outro lado, a criação, por parte da Adminis-
posto sobre os Rendimentos das Pessoas Singulares, que no art. tração, do meio exclusivo através do qual o parti-
91.º-A, n.º 7, do Código do IRC o legislador refere-se à autoli-
quidação como “declaração periódica de rendimentos”. cular autoliquida o seu tributo, envolve a suficiente
(29) Sobre o tema, ver SUZANA TAVARES DA SILVA, “O princípio predeterminação que permita reduzir o contributo
(fundamental) da eficiência”, in Revista da Faculdade de Direito do particular a um mínimo imposto pelo princípio
da Universidade do Porto, n.º 7, Porto, 2010, pp. 519-544. Também
JOSÉ CASALTA NABAIS, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Al-
da eficiência fiscal. Mas mais do que isso: esta fer-
medina, 1997, pp. 373-374 e 620-621. ramenta ou plataforma condiciona profundamente

30
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 33 • Julho/Setembro 2021

a intervenção dos particulares e o resultado final na autoliquidação a impugnação do ato deve, em


dessa intervenção, já que lhes fornece não só o qua- determinadas situações, ser precedida obrigatoria-
dro dos elementos relevantes a declarar, como o mo- mente de reclamação graciosa a apresentar no prazo
delo de apuramento do imposto. No fundo, este de dois anos [art. 131.º, n.º 1, do Código de Procedi-
especial condicionamento é a tecnologia que torna mento e de Processo Tributário (CPPT)]. No entanto,
possível o resultado extraordinário de um ato vin- é preciso notar que nos casos em que estiver exclu-
culado ser realizado em massa por particulares. sivamente em causa matéria de Direito e a autoliqui-
Aliás, a circunstância de existir um ato com estas dação tiver sido efetuada de acordo com orientações
características e sem especial aumento da litigiosi- genéricas emitidas pela Administração Tributária,
dade associada constitui precisamente a prova do não haverá lugar a essa reclamação necessária (art.
profundo condicionamento no seu exercício. 131.º, n.º 3, do CPPT). E como todas as autoliquida-
E se antes ainda era possível afirmar-se, como ções submetidas de acordo com as instruções de
o faziam a generalidade dos autores (30), que é o pró- preenchimento dos formulários existentes em im-
prio sujeito passivo a calcular, com base numa declara- pressos e aplicações utilizados na sua realização
ção, o valor do imposto devido, sem qualquer intervenção devem considerar-se como efetuadas em conformi-
da Administração Tributária (31), hoje parece ser ainda dade com as orientações genéricas emitidas pela Ad-
mais claro que tal afirmação não corresponde ao ministração Tributária, nos frequentes casos em que
que na realidade se passa. Hoje o particular intro- estiver exclusivamente em causa matéria de Direito,
duz os dados (32) que resultam da sua contabili- tais atos serão suscetíveis de impugnação judicial di-
dade ou das suas faturas nos campos próprios da reta, não havendo lugar a reclamação necessária.
plataforma disponibilizada para o efeito e é a pró- A obrigatoriedade de reclamação necessária nos
pria aplicação que executa automaticamente os cál- casos em que, no âmbito da discussão da legali-
culos correspondentes, sem que o contribuinte dade da autoliquidação, se pretendam pôr em
realize qualquer operação aritmética e sem que causa factos nela refletidos, é perfeitamente com-
tenha qualquer intervenção ou controlo sobre os lo- preensível e não resulta de qualquer tomada de po-
garitmos subjacentes às ferramentas disponibiliza- sição da parte do legislador quanto à natureza
das pela Administração, essas sim, responsáveis jurídica da autoliquidação. Resulta, isso sim, de a
pelo cálculo do imposto autoliquidado. autoliquidação não ter sido precedida de um pro-
cedimento de recolha de material probatório con-
4.2. Na doutrina, RUI DUARTE MORAIS é um dos duzido pela Administração, norteado pelo prin-
autores a considerar que a previsão legal de recla- cípio do inquisitório e da necessidade de, por esta-
mações necessárias do ato de liquidação seria evi- rem em causa factos, entre o ato e a discussão da
dência de não estarmos de facto perante verdadeiros sua legalidade dever interpor-se uma instância de
atos administrativos (33). É certo que em caso de erro averiguação da verdade material em que a Admi-
nistração participe, orientada pelo dever de cola-
(30) SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Conten- boração recíproca (art. 59.º, n.os 1 e 3, da LGT) e pelo
cioso Tributário, vol. I, cit., p. 459. No mesmo sentido, DIOGO LEITE dever de investigação que sobre si impende (art.
DE CAMPOS/BENJAMIM DA SILVA RODRIGUES/JORGE LOPES DE SOUSA,
58.º da LGT).
Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada, Lisboa, Encontro da
Escrita, 2012, p. 739. LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, “A autoliqui- Por seu turno, JOAQUIM FREITAS DA ROCHA dis-
dação: contributo para uma análise da sua natureza jurídica”, cit., corda da caracterização da autoliquidação como
pp. 19 e 24. ato administrativo praticado por particular, antes
(31) Não sem algum esforço de conformação, já que o per-
curso decisório do ato, incluindo as operações de cálculo sim-
preferindo falar em atos privados com efeitos públicos
ples, está previamente delineado no impresso a entregar. aos quais não se aplicam as exigências constitucio-
(32) Ou verifica a sua introdução, caso as declarações se nais e legais aplicáveis aos atos administrativos,
apresentem previamente preenchidas.
(33) RUI DUARTE MORAIS, Manual de Procedimento e Processo
uma vez que se trata de obrigações dos privados
Tributário, cit., p. 136. cujo incumprimento os faz incorrer nas sanções

31
A natureza jurídica da autoliquidação

previstas na lei (34). Esta posição, em rigor, não se actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos
enquadra em qualquer uma das posições anterior- princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça,
mente identificadas na medida em que o Autor se da imparcialidade e da boa fé” (art. 266.º, n.º 2), não se
limita a afastar a qualificação da autoliquidação vendo qualquer razão para que atos sujeitos à fisca-
como ato administrativo, não esclarecendo verda- lização da Administração não devam respeitar tam-
deiramente o seu entendimento quanto à natureza bém estes parâmetros de atuação.
dos atos privados com efeitos públicos que refere.
O principal problema que encontramos nesta ex- 4.3. Face ao exposto, entendemos que a autoli-
pressão, e, em geral, em todas as teses que negam quidação não pode deixar de ser entendida como
que os particulares pratiquem atos administrativos um ato administrativo partilhado, praticado mediante
tributários, são os efeitos imediatamente produzidos a conjugação dos contributos da Administração e do
pelo ato de autoliquidação, e que apenas se podem particular, assim se revelando como uma codecisão
reconduzir aos efeitos do ato administrativo (35). A em que, nas palavras de VIEIRA DE ANDRADE, o su-
este propósito, a lei determina expressamente que, jeito que o pratica “não é obrigado a aceitar o conteúdo
nos casos de autoliquidação, a competência para a avalia- da proposta, mas depende dela para tomar a decisão” (36).
ção direta é do sujeito passivo (art. 82.º, n.º 1, da LGT), A predeterminação do meio ou da plataforma em
ato que, de resto, produz efeitos substancialmente que o ato deve ser praticado corresponde à fixação
idênticos aos da liquidação administrativa, já que das condições em que o mesmo pode ser rececio-
“[h]avendo lugar a autoliquidaçaõ de imposto e não sendo nado qua tale na ordem jurídica, isto é, como verda-
efetuado o pagamento deste até ao termo do respetivo deiro e próprio ato tributário, praticado no exercício
prazo, começam a correr imediatamente juros de mora e a de poderes jurídico-administrativos, nos mesmos
cobrança da dívida é promovida pela Autoridade Tribu- termos dos demais atos da Administração (37).
tária e Aduaneira” (art. 109.º do Código do IRC). Por Não deve, por isso, atribuir-se ao contribuinte
outro lado, é preciso ter em conta que não só a pró- todo o crédito pela autoliquidação do imposto, já que
pria lei equipara a autoliquidação à liquidação ad- é precisamente este carácter de codecisão que explica
ministrativa para efeitos de qualificação do ato como as suas especialidades quando confrontada com a
lesivo [art. 95.º, n.º 2, alínea a), da LGT], como o de- decisão de apuramento da prestação de imposto ex-
curso do prazo de pagamento subsequente à autoli- clusivamente tomada pela Administração (38). É o
quidação constitui imediatamente a Administração
no poder-dever de proceder à cobrança da prestação (36) JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Admi-
de imposto. nistrativo, cit., p. 181. Só assim julgamos possível distinguir,
como refere ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributá-
Além disso, sendo certo que “as entidades priva-
rio, cit., p. 63, “aí onde se verifica a prática de um acto de aplicação da
das que exerçam poderes públicos podem ser sujeitas, nos norma material pela Administração dali onde um simples particular,
termos da lei, a fiscalização administrativa” (art. 267.º, cumprindo um dever instrumental, regista em documentos adequados
os factos sujeitos a imposto e o tributo que lhes corresponde”.
n.º 6, da Constituição da República Portuguesa), não
(37) Desde logo para efeitos do art. 68.º, n.º 1, do CPPT, nos
pode deixar de entender-se serem aplicáveis aos termos do qual “[o] procedimento de reclamação graciosa visa
atos de autoliquidação as exigências constitucionais a anulação total ou parcial dos actos tributários por iniciativa
e legais aplicáveis aos atos administrativos, sob pena do contribuinte”, em linha, aliás, com o art. 97.º, n.º 1, alínea a),
onde se estabelece que a impugnação da liquidação dos tributos
de cairmos no casuísmo incompatível com o Direito inclui os atos de autoliquidação. E em linha, também, com o art.
(art. 3.º, n.º 1, do CPA). Aliás, da Constituição resulta 95.º, n.º 2, alínea a), da LGT, que considera os atos de autoliqui-
expressamente que “[o]s órgãos e agentes administra- dação como atos imediatamente lesivos.
(38) E não se diga que a autoliquidação não é antecedida por
tivos estão subordinados à Constituição e à lei e devem um procedimento prévio porque desde o momento da verifica-
ção dos factos tributários inúmeras obrigações acessórias vão
(34) JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, Lições de Procedimento e Pro- sendo desencadeadas, cumpridas e rececionadas pela Adminis-
cesso Tributário, 6.ª ed., Almedina, 2018, p. 54. tração, todas elas a ter em conta no momento final da apresen-
(35) JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Admi- tação da declaração de apuramento correspondente, com
nistrativo, cit., p. 165. impacto direto sobre os montantes a pagar ou a receber.

32
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 33 • Julho/Setembro 2021

que explica, por exemplo, que nos casos em que da autoliquidação que consiste no cumprimento pelo
está exclusivamente em causa matéria de Direito e sujeito passivo das condicionantes legais e regula-
a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com mentares aplicáveis é imputável à Administração (40).
orientações genéricas emitidas pela Administração
Tributária, o contribuinte, ao impugnar atos de au-
toliquidação, não estará, em rigor, a proceder a um JOSÉ AVILEZ OGANDO
venire contra factum proprium. Nestes casos, a im-
pugnação ou tem por objeto exclusivamente maté-
ria de Direito, ou aspetos vinculados do ato a que
o contribuinte obedeceu nos termos previamente
definidos pela Administração, segundo detalhadas
instruções de preenchimento ou outras orientações,
e submetida a verificação prévia de erros ou diver-
gências automaticamente detetáveis.
Esta solução parece ser também a que melhor ex-
plica as situações em que a impugnação do ato tri-
butário de autoliquidação não se encontra sujeita a
prévia reclamação necessária, uma vez que estas
serão precisamente aquelas em que os erros na au-
toliquidação podem ser considerados imputáveis
aos serviços. Aliás, também o legislador parece ver
na autoliquidação uma certa forma de codecisão,
como se depreende do art. 43.º, n.º 2, da LGT, ao re-
ferir que “[c]onsidera-se também haver erro imputável
aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser
efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter
seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas
da administração tributária, devidamente publicadas”.
Nestes casos, em que o dever de reembolsar com
juros pagamentos indevidos resulta de erro come-
tido em autoliquidação na qual foram seguidas as (40) Aqui, JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de
Processo Tributário – Anotado e Comentado, vol. I, 6.ª ed., Áreas
orientações genéricas da Administração Tributária, Editora, 2011, p. 536-537, vai mais longe e considera mesmo que,
a doutrina dominante vai no sentido de que na au- não obstante a norma do n.º 2 do art. 43.º da LGT consagre exis-
toliquidação o sujeito passivo atua como Administra- tir erro imputável aos serviços quanto a elementos da autoliqui-
dação resultantes da obediência a orientações genéricas da
ção Fiscal (39). O que equivale a afirmar que a parte
Administração, não poderá deixar de entender-se existir ainda
erro imputável aos serviços mesmo nos casos em que o contribuinte
recebe da Administração instruções não incluídas em orientações ge-
néricas. Nestes casos, o direito do contribuinte à indemnização
pelo pagamento indevido da prestação tributária resultante de
erro imputável aos serviços depende de ser feita prova das ins-
truções incorretas da Administração cujo acatamento conduziu
ao pagamento da dívida tributária em montante superior ao le-
galmente devido. Em sentido diferente, PAULO MARQUES, A Re-
visão do Acto Tributário, cit., p. 246, considerando que “as
orientações genéricas devem ser entendidas num sentido restrito, sem
prejuízo de em outras situações de deficiente informação pelo fisco, es-
teja acautelada a aplicação das regras gerais de indemnização, que não
(39) RUI DUARTE MORAIS, Manual de Procedimento e Processo propriamente mediante juros indemnizatórios, sendo que só neste úl-
Tributário, cit., p. 367. timo caso se presume o dano sofrido pelo contribuinte”.

33
PREFÁCIO

A feliz evolução da dogmática na Ciência do Direito Fiscal nas últimas duas


décadas tem permitido dotar os respectivos intérpretes (juízes, advogados,
Fazenda Pública e Ministério Público) de instrumentos de apoio que atenuam
a alta dificuldade técnica tipicamente associada à legislação fiscal. E isso tem
sido tão mais evidente quanto o sistema fiscal teve, fruto da evolução da Eco-
nomia mundial e da bancarrota nacional, uma enorme transformação, com o
aparecimento de novos tributos e novos cenários de tributação; tal evolução,
acaso não fosse acompanhada de produção científica abundante e de quali-
dade, teria tornado a tarefa do intérprete, certamente, ainda mais complexa.
A exceção a esta evolução dogmática situa-se na área do Procedimento
e do Processo Tributário.
É aqui que, com honrosas exceções para alguns autores (na maioria, aca-
démicos) que persistem em tentar aperfeiçoar os quadros de pensamento da
Ciência Jurídica nesta área, se situa as maiores ausências de apoio da dogmá-
tica jurídica. Com efeito, são – naturalmente, por comparação com as res-
tantes áreas do Direito Fiscal – raras as obras que se têm debruçado sobre as
inúmeras questões que se levantam nesta sede, as quais têm a relação mais
imediata com o contribuinte, interagindo com o mesmo ao longo do processo
de formação e quantificação do facto tributário e, depois, em sede da tutela
judicial (ou arbitral) das suas posições jurídicas.
A existência, até há poucos anos, de apenas um punhado de obras de refe-
rência sobre o Procedimento e Processo Tributário é, simultaneamente, o tes-
temunho da enorme qualidade destas e dos seus autores mas, e é este o ponto
que queremos realçar, da falta de investigação nesta sede.

5
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO

É por isso que a presente obra se vem juntar a uma muito recente vaga de
estudos sobre esta área e merece o nosso efusivo aplauso.
A partir de um tema tido por plenamente sedimentado pela doutrina
e jurisprudência, o autor decide disputar a correcção desta posição e argu-
menta, com coragem e o devido enquadramento, que a nulidade existe – e com
uma dimensão não devidamente ponderada pela jurisprudência – e merece
a devido tutela pelo Processo Tributário.
Cabe registar, a este propósito, que a construção dogmática conducente à
tese em que culmina a obra é de natureza piramidal, pretendendo preencher
a globalidade dos pressupostos em que a mesma assenta, com o devido deta-
lhe e qualidade técnica, como o leitor compreenderá pela análise da mesma.
Trata-se, indiscutivelmente, de um contributo sólido para a dogmática fis-
cal nacional e que força a Doutrina e a Jurisprudência a reabordar a tese ora
proposta pelo autor, mesmo que não necessariamente merecedora do apoio
de todos (ou, sequer, da maioria) os intervenientes na relação jurídica fiscal
formal. Mas, e se bem o fomos conhecendo ao longo do acompanhamento
da sua investigação, o autor não tem pretensões de ser conservador nas suas
posições, antes ousando reequacionar o (até agora, absolutamente margi-
nal) papel da sanção da nulidade no ato tributário. E, não sobrem dúvidas,
fá-lo com inegável qualidade, como o leitor terá oportunidade de comprovar.

Gustavo Lopes Courinha


Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal Administrativo
Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

6
APRESENTAÇÃO

O presente texto corresponde, com poucas alterações, à dissertação por


mim apresentada a provas de mestrado em Direito, na especialidade de Direito
Financeiro e Fiscal, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Apesar do título provocador, este estudo é antes de mais uma reflexão
sobre o atual estado da arte do contencioso tributário português e sobre as
relações entre a administração e os contribuintes, tendo como ponto de par-
tida e de chegada o instituto da nulidade do ato tributário, tida como pedra de
toque da subordinação da administração fiscal ao poder legislativo. Trata de
um tema que se encontra em grande medida por tratar, e cuja maior virtude
parece ser o conduzir-nos forçosamente a uma reflexão sobre o contencioso
tributário visto na sua globalidade, sobre a sua relação com direitos resis-
tentes a atos de autoridade que os afetem e sobre a adequada aplicação das
ferramentas existentes para a reposição da legalidade violada.
Mas não é só o título que é provocador: propõe-se uma nova forma de
pensar o contencioso tributário, com novas respostas a questões antigas e
sugerindo soluções a problemas que ainda o afligem, sobretudo no campo
do relacionamento direto dos atos da administração com a Constituição.
Pretende-se oferecer uma visão atual e desempoeirada destes temas, com
especial atenção sobre os desconsiderados limites aos poderes da adminis-
tração, na zona de fronteira entre o Direito Fiscal, o Direito Administrativo
e o Direito Constitucional. Temas como a estrutura das relações jurídico-tri-
butárias, o princípio reforçado da juridicidade tributária, a natureza jurídica
da autoliquidação, a ambivalência do ato tributário, a dupla valoração norma-
tiva dos atos tributários e o verdadeiro sentido da expressão erro imputável aos

7
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO

serviços são instrumentais à compreensão da atividade de aplicação das leis


fiscais. E permitem contextualizar a aplicação subsidiária do Direito Admi-
nistrativo geral no domínio dos impostos, em especial das normas que nele
regulam a matéria das invalidades dos atos da administração.
No que em especial diz respeito ao tema da nulidade, pretende-se con-
tribuir para o diálogo conducente ao seu conhecimento como instrumento
efetivamente integrante do sistema imunitário da ordem do Direito Fiscal.
Aqui discutem-se as formas de invalidade da liquidação de imposto e o seu
relacionamento com o direito de resistência, a necessidade de uma cláusula
geral de nulidade dos atos da administração e as posições jurisprudenciais
que sobre a matéria têm feito curso no sistema. Termina-se com a identifi-
cação dos possíveis casos de atos tributários nulos por ofensa ao conteúdo
essencial do direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garan-
tias a não ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da
Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não
façam nos termos da lei, e uma análise tipológica de casos graves e evidentes de
violação da juridicidade tributária.
Este livro pode ser lido de diferentes formas por diferentes leitores, mas
foi escrito para ser percorrido da primeira à última página, assentando cada
capítulo nas questões abordadas nos capítulos anteriores. Mais do que um
contributo para a aplicação do instituto da nulidade aos casos-limite a que
se destina em matéria de impostos, pretende-se contribuir para o debate
sobre as garantias dos contribuintes, suscitando o característico não enfra-
quecimento dos seus direitos face a atos de autoridade ilegais que os afetem.
Debate que nos parece essencial à formação de uma renovada dogmática dos
vícios dos atos tributários, que se espera venha a ser aproveitada por futuras
gerações de juristas interessados no estudo destas questões.
Por fim uma palavra de agradecimento aos que me acompanharam neste
caminho, em especial à Maria, à Constança, ao Francisco e à Maria João,
ao meu amigo mestre João Chaves (AT) e às Senhoras Professoras Doutoras
Ana Paula Dourado e Paula Rosado Pereira e ao meu estimado orientador,
Professor Doutor Gustavo Lopes Courinha, com quem aprendi mais do que
as lições dadas no plano curricular.

Lisboa, 27 de dezembro de 2021


José Avilez Ogando

8
ÍNDICE

prefácio 5
apresentação 7
abreviaturas 15

INTRODUÇÃO 17
1. Exposição do problema jurídico 17
2. Objeto de investigação 24
3. Metodologia 27
4. O contexto atual das relações jurídico-tributárias 29
5. O contribuinte como destinatário das leis fiscais 31
6. Plano de exposição 34

PARTE I
O ATO TRIBUTÁRIO 37

CAPÍTULO I 
ESTRUTURA DAS RELAÇÕES JURÍDICO-TRIBUTÁRIAS 39
1. Preliminares 39
2. A relação jurídica de imposto 41

9
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO

3. As relações jurídico-tributárias 46
4. Efeitos próprios da obrigação fiscal 49
5. Características da obrigação fiscal 52
6. Razão de ordem 57

CAPÍTULO II 
O PRINCÍPIO REFORÇADO
DA JURIDICIDADE TRIBUTÁRIA 59
1. O Estado fiscal como Estado de Direito 59
2. Os três problemas do Estado fiscal 63
3. A insuficiência do princípio da legalidade administrativa 66
4. Reserva de lei parlamentar 69
4.1. Concretização do princípio 69
4.2. A extensão da reserva formal 71
4.3. Consentimento como garantia de transparência e clareza normativa 74
5. Reserva material de lei: o princípio da tipicidade 75
5.1. Concretização do princípio 76
5.2. As teses da tipicidade fechada 79
5.3. A abertura dos tipos imposta pela praticabilidade 81
5.4. A segurança jurídica como limite à abertura dos tipos 83
5.5. A concretização ativa do princípio 85
6. O primado da lei e do Direito 86
6.1. A presunção de constitucionalidade 87
6.2. A crise da legalidade estrita 88
6.3. A subordinação da administração à juridicidade 90
6.4. O princípio da tributação na medida da capacidade contributiva 93
6.5. O dever de exame da constitucionalidade dos atos normativos a aplicar 94
6.6. O direito fundamental a um certo exercício dos poderes tributários 98
7. Conclusões e sequência 100

CAPÍTULO III 
O PROCEDIMENTO TRIBUTÁRIO 103
1. Carácter procedimental da atividade tributária 103
2. O procedimento como uma certa forma de tomada de decisões 105
3. A natureza dos poderes e o específico interesse público prosseguido
pela administração 107
4. O princípio da descoberta da verdade material como extensão da reserva
de lei parlamentar 112

10
ÍNDICE

5. Consequência da natureza processual da atividade tributária 115


6. Panorâmica geral dos procedimentos tributários 117
7. Tipos de atos conclusivos dos procedimentos 118

CAPÍTULO IV 
O ATO TRIBUTÁRIO 123
1. Noção 123
2. Natureza jurídica do ato tributário 126
3. As funções do ato tributário 129
4. A autoliquidação 132
4.1. As posições na doutrina 133
4.2. Posição adotada 137
5. A ambivalência do ato tributário 145

CAPÍTULO V 
TUTELA GERAL DA LEGALIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO 147
1. A dupla valoração normativa dos atos tributários e suas consequências 147
2. O caso paradigmático do erro imputável aos serviços 153
2.1. A posição da doutrina e da jurisprudência 154
2.2. Tomada de posição 156
3. Limites à estabilização dos atos tributários 160
4. A impugnação administrativa dos atos tributários: em especial sua
finalidade 162
5. A impugnação contenciosa dos atos tributários: em especial os seus
fundamentos 166
6. A oposição à execução: em especial, o fundamento de ilegalidade
da liquidação da dívida exequenda 167
7. A revisão dos atos tributários: justificação da reapreciação extraordinária
do ato 173

PARTE II
A NULIDADE 179

CAPÍTULO VI 
A NULIDADE DOS ATOS DA ADMINISTRAÇÃO 181
1. Fundamento e sentido da invalidade 181
2. A sede da disciplina jurídica da invalidade do ato tributário 184

11
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO

3. As formas de invalidade 186


4. Nulidade e inexistência 195
5. O regime da nulidade 200
5.1. A improdutividade jurídica independentemente de declaração 200
5.2. A regra da invocação, conhecimento e declaração a todo o tempo 205
5.2.1 A invocação da nulidade e direito de resistência 205
5.2.2. O conhecimento da nulidade 208
5.2.3. A declaração da nulidade 208
5.3. O poder-dever de atribuição de efeitos a situações de facto decorrentes
de atos nulos 210
6. As consequências da nulidade 211
7. A tipificação dos casos de nulidade 214
7.1. Ilegalidades de natureza orgânica 216
7.2. Ilegalidades de natureza formal 218
7.3. Ilegalidades de natureza material 219
8. A admissibilidade da nulidade em casos não previstos 225
8.1. A necessidade de uma clausula geral de nulidade 225
8.2. O relacionamento direto dos atos da administração com a Constituição 229
8.3. Posição adotada quanto à imposição da nulidade a certos casos não previstos 235

CAPÍTULO VII 
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO 239
1. Nulidade e contencioso tributário: possíveis objeções 239
1.1. A execução prévia da obrigação tributária 239
1.2. Os prazos alargados de reapreciação dos atos tributários 242
2. A posição do STA 244
3. O direito fundamental de natureza análoga à legalidade na tributação 256
4. Atos que ofendem o conteúdo essencial do direito fundamental
à legalidade da tributação 260
4.1. Atos impositivos de “impostos que não hajam sido criados nos termos
da Constituição” 262
4.2. Atos impositivos de impostos “que tenham natureza retroativa” 266
4.3. Atos impositivos de impostos “cuja liquidação e cobrança se não façam
nos termos da lei” 268
5. Casos graves de violação da juridicidade tributária 271
5.1. Os atos tributários desprovidos de base legal 271
5.2. Os atos tributários baseados em factos inexistentes 275
5.3. A liquidação feita com recurso a ato estranho às atribuições da AT 279

12
ÍNDICE

5.4. A violação do conteúdo essencial do princípio da tributação


na medida da capacidade contributiva 282
6. Possíveis efeitos do decurso do tempo sobre atos tributários nulos 285

CONCLUSÕES 289

jurisprudência 303
bibliografia 309

13
INTRODUÇÃO

1. Exposição do problema jurídico

1.1. Considere-se a seguinte decisão do STA1:


Uma sociedade anónima impugnou judicialmente atos de liquidação de
taxas urbanísticas praticados com base em despacho nulo do presidente da
câmara municipal. O tribunal de primeira instância julgou a impugnação pro-
cedente com fundamento na nulidade daqueles atos, em virtude de terem sido
praticados com absoluta ausência de suporte legal. Dessa decisão foi interposto
recurso para o STA, que o julgou procedente por intempestividade da impug-
nação, por considerar que, não obstante a nulidade do despacho que criou as
referidas taxas, os atos de liquidação nele fundados eram meramente anulá-
veis e não nulos. Apesar de o STA concordar “que os atos que ferem princípios cons-
titucionais são nulos”, considera que devem merecer essa sanção “só aqueles que
contendem com o núcleo duro de (…) direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Mas já
não aqueles que contendam com o princípio da legalidade tributária”, que assim não
podem ser impugnados a todo o tempo, mas antes dentro dos prazos legais
de anulação2. A impugnante interpôs recurso deste aresto para o plenário do

1
 Acórdão do Plenário do STA de 30/05/2001 (proc. 22251).
2
 Idêntica argumentação pode encontrar-se em diversos acórdãos do STA, entre os quais se contam
os acórdãos do STA de 10/30/2002 (proc. 026390), de 28/01/2004 (proc. 01709/03), de 29-06-2005,
(proc. 0117/05), de 06/29/2005 (proc. 0117/05), de 06/22/2005 (Pleno) (proc. 01259/04), de
10/11/2006 (proc. 0676/06), de 11/23/2005, (proc. 0612/05), de 11/02/2011, (proc. 0158/11),
de 11/21/2012, (proc. 0210/12), de 05/07/2014, (proc. 01412/12), de 12/12/2013, (proc. 07025/13),
de 02/05/2015, (proc. 01775/13), e de 04/06/2016, (proc. 08/16).

17
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO

STA, com fundamento em oposição de acórdãos. A oposição de acórdãos era


manifesta, já que o acórdão fundamento3 havia considerado nulos atos admi-
nistrativos de liquidação de taxas urbanísticas não expressamente autorizados
por norma prévia que as previsse. A questão a decidir era assim a de saber se a
liquidação e cobrança de taxa urbanística sem qualquer cobertura legal que a
sustente, procedendo por isso por si mesma à criação de um tributo, é nula ou
meramente anulável. Decidindo, o STA negou provimento ao recurso com o
fundamento de que o ato que a lei fulmina com a nulidade é a deliberação atra-
vés da qual se procedeu à criação “da taxa ou do imposto não previstos na lei e não
os atos que, com base naquele, procederam à liquidação e cobrança dos referidos tributos”.
Por isso, os atos tributários em causa não são nulos mas meramente anuláveis,
acrescentando ainda que “a liquidação e cobrança de um imposto ou taxa com funda-
mento num despacho nulo não ofende o conteúdo essencial de um direito fundamental,
antes viola o mero princípio da legalidade tributária”4.
A reação a este acórdão não se fez esperar e veio logo nos seus seis votos
de vencido, dos quais se destaca a declaração do juiz conselheiro BENJA-
MIM DA SILVA RODRIGUES. Aqui pode ler-se que “não tem assim qualquer
sentido (…) a tese que fez vencimento segundo a qual a aplicação, em concreto, de uma
deliberação nula (…), apenas determina a anulabilidade do ato impositivo de um tri-
buto com as características de um imposto”, que conduz, pura e simplesmente,
“a permitir a que entre pela janela o que o legislador não quis deixar entrar pela porta”.
Este voto de vencido salienta que a nulidade é a sanção que visa obstar a
que certos atos jurídicos produzam os seus efeitos, quaisquer que eles sejam,
de maneira a proteger a segurança jurídica dos sujeitos a que respeitam e
impedindo a sua consolidação por decurso do tempo. Neste sentido, refere
que a sanção da nulidade para estes atos “é fundada num princípio estruturante
da nossa Lei Fundamental, qual seja o do auto-consentimento da tributação através
dos representantes nacionais eleitos pelo Povo — princípio do parlamentarismo dos
impostos ou da auto-tributação —, e numa obstinada intenção legislativa de impedir
aos órgãos locais a criação de impostos (e agora também de taxas) ao arrepio daqueles
representantes nacionais, conhecida, como é historicamente, a apetência das comuni-
dades locais para aumentarem as suas receitas mediante a imposição de tributos.”5.

3
 Acórdão do STA de 24/11/1983 (proc. 17640).
4
 Acórdão do Plenário do STA de 30/05/2001 (proc. 22251).
5
 Sem prejuízo da análise que será feita oportunamente, neste caso, em que o ato tributário pro-
cede à criação de uma obrigação pecuniária em razão da improdutividade jurídica do despacho
em que se baseou, podem levantar-se duas sub hipóteses. A de vir a apurar-se que afinal o tributo
liquidado tem a natureza de imposto, caso em que o ato é claramente nulo, não só por se tratar de

18
INTRODUÇÃO

1.2. Em comentário a este acórdão, VIERA DE ANDRADE6 qualifica o


seu percurso cognoscitivo como “imediatamente chocante ou, pelo menos, impró-
prio, constituindo, como salientam os votos de vencido de vários conselheiros, uma
patente fraude à lei que pretende estabelecer uma proibição absoluta da imposição
de tributos ilegais aos cidadãos pelas autarquias locais.”. Para este autor, deveria
ter-se concluído pela nulidade do ato em causa por ofensa do conteúdo essen-
cial do direito fundamental a não pagar impostos ilegais (artigo 103º nº. 3 da
CRP), que como adiante veremos, é reconhecido pela generalidade da dou-
trina como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, não só por
se revelar como um imposto não criado nos termos da Constituição, como
por a sua liquidação não ter sido feita nos termos da lei. Com efeito, a criação
de impostos por um órgão absolutamente incompetente, não só se configura
como uma restrição ilegítima do direito de propriedade, como constitui uma
ofensa ao conteúdo essencial daquele outro direito fundamental, “de conteúdo
mais exigente, que constitui um direito de cidadania, de algum modo correspetivo do
dever de contribuição para as despesas públicas”. Para VIEIRA DE ANDRADE,
num Estado de Direito, a criação unilateral de obrigações pecuniárias encon-
tra-se fora da esfera própria da autoridade administrativa, pelo que a falta de
base legal não pode ser causa de mera anulabilidade. Pelo que, tratando-se
de ato criador de um tributo, deveria ser julgado substancialmente nulo por
falta da imposição legal correspondente, que é seu elemento essencial, e ainda

um ato estranho às atribuições da pessoa coletiva em que se integra o seu autor (artigo 161º nº. 2
al. b) do CPA), como por se tratar de um ato ferido de usurpação de poderes (artigo 161º nº. 2 al. a)
do CPA), já que a criação de impostos é uma atribuição exclusiva do poder legislativo (artigo 165º
nº. 1 al. i) da CRP). A segunda consiste em pretender-se enquadrar como taxa este tributo liquidado
sem qualquer base legal. Neste caso, não se estará perante um ato estranho às atribuições da pessoa
coletiva em que o seu autor se insere porque as autarquias locais dispõem de poder regulamentar
próprio (artigo 241º da CRP), que inclui o poder de criar as taxas cobradas pela utilização dos
seus serviços (artigo 238º nº. 4 da CRP), cuja aprovação é da competência das respetivas assem-
bleias municipais (artigo 25º nº. 1 al. b) do RJAL). No entanto, , dado que o esquema de repartição
de competências no âmbito das autarquias locais baseia-se numa rígida separação de poderes,
será possível reconduzir esta situação (como em situação análoga defende DIOGO FREITAS DO
AMARAL, Curso de Direito Administrativo, 4ª ed., 2018, pp. 348-349, citando o igualmente seu O
caso do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol (parecer jurídico), 2008, pp. 51-52) à figura
de usurpação de poderes, caso em que o ato de liquidação deve entender-se nulo. Seja como for,
a questão ficaria hoje ultrapassada com a aplicação do artigo 161º nº. 2 al. k) do CPA, nos termos
do qual são nulos os atos que criem obrigações pecuniárias não previstas na lei, que inclui todos
atos tributários desprovidos de base legal.
6
 JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, “Nulidade e anulabilidade do acto administrativo – Ac. do STA de
30.5.2001, P. 22 251”, CJA, nº. 43, jan/fev. 2004, pp. 46-48.

19
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO

por ofender, não o princípio da legalidade administrativa, mas antes o prin-


cípio reforçado da legalidade tributária, que se associa à proteção da esfera
privada dos cidadãos face ao poder tributário do Estado7.

1.3. O STA não se manteve alheio à anotação de VIEIRA DE ANDRADE:


meses depois da sua publicação nos CJA, foi dada resposta no acórdão de
25/05/2004 (proc. 0208/04), versando sobre questão substancialmente idên-
tica e relatado pelo conselheiro JORGE LOPES DE SOUSA. Neste acórdão
sustenta-se a tese de que, nos casos em que não houve pagamento voluntário,
a invocação da ilegalidade do ato de liquidação baseado em norma inexistente
ou inválida por inconstitucionalidade ou ofensa de qualquer norma de cate-
goria superior8 deve ser feita, não a todo o tempo, mas apenas até ao termo
do prazo de oposição à execução fiscal, ainda que esteja esgotado o prazo
para a impugnação de atos anuláveis. Donde, não se reduzindo os vícios do
ato de liquidação necessariamente às categorias típicas de nulidade e anula-
bilidade previstas no CPA, havendo lugar a cobrança coerciva, entende que
as situações de ilegalidade abstrata do ato de liquidação, como é o caso dos
atos que apliquem deliberações autárquicas nulas, conduzem a uma forma
de invalidade mista.
Mas como se referiu, este acórdão vai mais longe, respondendo direta-
mente às objeções levantadas na anotação que apelida de “crítica desfavorável
do Senhor Prof. VIEIRA DE ANDRADE”. Refere que o direito de resistência
fiscal previsto no artigo 103º nº. 3 da CRP apenas diz respeito à proibição de
cobrança coerciva de impostos que não hajam sido criados nos termos da
Constituição, esgotando-se na possibilidade que o legislador reconhece de
invocar a inaplicabilidade de norma em que o ato se baseia durante a penden-
cia do processo de execução fiscal, possibilidade que em seu entender afasta
a impugnabilidade a todo o tempo dos atos feridos com tais ilegalidades.
Por fim, argumenta que o entendimento de VIEIRA DE ANDRADE, segundo
o qual, do artigo 103º, n.º 3, da CRP resulta a nulidade da imposição de impos-
tos sem base legal por ofensa do conteúdo essencial do direito de não pagar
impostos ilegais, levaria “a que fossem nulos todos os actos de liquidação ilegais, pois
qualquer acto de liquidação ilegal afectaria o conteúdo garantístico desse direito, se ele
pudesse ser enunciado naqueles termos absolutos”. Para o STA, esta posição levaria

7
 JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, “Nulidade e anulabilidade do acto administrativo – Ac. do STA de
30.5.2001, P. 22 251”, CJA, nº. 43, jan/fev. 2004, p. 48.
8
 Resultante dos artigos 285º e 286º, n.º 1, al. a) do CPT, hoje artigos 203º e 204º nº. 1 al. a) do CPPT.

20
INTRODUÇÃO

à criação de “uma insustentável incerteza generalizada e perpétua no domínio das


finanças públicas, cujos reflexos negativos se produziriam permanentemente nesse sector
de relevo primacial para o funcionamento global do Estado e das instituições públicas
que se veriam impossibilitados de qualquer programação financeira consistente a médio
prazo (…) sendo muito mais sensato e equilibrado, ponderando os interesses conflituantes
do contribuinte e da administração tributária, estabelecer como regra o regime da anu-
labilidade, complementado com as outras formas procedimentais e processuais garantís-
ticas próprias do direito tributário. Neste contexto, aquela generalização da cominação
de nulidade, sendo uma solução legislativa desacertada, não se pode presumir ter sido
adoptada (art. 9.º, n.º 3, do Código Civil)”.
Esta orientação jurisprudencial foi posteriormente reafirmada em diver-
sos acórdãos9, cujos fundamentos abordaremos oportunamente.

1.4. Transcendendo este debate, apesar de ser repetidamente afirmado em


inúmeros acórdãos dos nossos tribunais superiores, que os atos tributários
devem ser sancionados com a nulidade quando haja lei que preveja expres-
samente essa forma de invalidade ou quando ofendam o conteúdo essencial
de direitos fundamentais10, a verdade é que, com exceção de atos tributários
ofensivos de casos julgados11, a jurisprudência do STA continua a não tomar
conhecimento de quaisquer atos tributários nulos. Para o ilustrar, atente-se
por fim às duas seguintes decisões do STA:

1.4.1. Uma pessoa singular impugnou judicialmente ato de liquidação, ale-


gando total ausência de realidade subjacente à tributação, aliás reconhecida
pela Administração Tributária, que o tributa por rendimentos inexistentes

9
 Pelo menos cinco dos quais proferidos pelo Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA
(acórdãos de 07/04/2005 (proc. 1108/03), de 22/06/2005 (proc. 1259/04), de 16/11/2005 (proc.
019/04), de 16/12/2010 (proc. 0396/10), de 16/10/2013 (proc. 0412/13)), o primeiro destes também
relatado pelo conselheiro JORGE LOPES DE SOUSA e com seis votos de vencido expressos na
declaração de voto do conselheiro JOSÉ SANTOS BOTELHO.
10
 Acórdãos do STA de 21/05/2008 (proc. 0220/08), de 16/09/2009 (proc. 0418/09), de 22/03/2011
(proc. 0749/10), de 25/05/2011 (proc. 091/11), de 02/11/2011 (proc. 0158/11), de 16/05/2012
(proc. 0275/12), de 21/11/2012 (proc. 0210/12), de 24/10/2012, (proc. 0501/12), de 07/11/2012,
(proc. 0824/12), de 28/11/2012, (proc. 01038/12), de 25/06/2013, (proc. 0611/12), de 26/06/2013,
(proc. 0231/13), de 14/05/2014, (proc. 01644/13), de 18/06/2014, (proc. 0417/14), de 10/09/2014,
(proc. 01681/13), de 05/11/2014, (proc. 0371/13), de 06/04/2016, (proc. 08/16), de 06/04/2016,
(proc. 07/16), de 03/05/2017, (proc. 0924/16), de 31/05/2017, (proc. 0975/16), de 05/12/2018, (proc.
0780/17).
11
 Acórdão do STA de 07/03/2007 (proc. 01150/06).

21
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO

e não suportados por qualquer elemento de prova, pretensamente auferidos


no âmbito de atividade empresarial não exercida. O impugnante alega que
desse circunstancialismo resulta a nulidade do ato tributário por violação
do núcleo essencial do direito fundamental a ser tratado pela administração
em condições de igualdade, expresso nos artigos 13º e 266º nº. 2 da CRP, que
no tocante à tributação se exprime pelo direito a ser tributado na medida
das suas forças económicas. Invoca que, ocorrendo tributação não obstante
a ausência dos seus pressupostos, esta traduz-se num confisco e não num
imposto, violando o conteúdo essencial do direito de propriedade que é atin-
gido quando o impugnante é tributado por atividade jamais exerceu. O tri-
bunal de primeira instância rejeitou liminarmente a impugnação judicial
deduzida por intempestividade, já que o impugnante não aproveitou o prazo
de 90 dias contados do termo do prazo de pagamento voluntário. Também
não colheu a invocada possibilidade de impugnação a todo o tempo em razão
da nulidade da liquidação, por se entender que nenhum dos fundamentos do
seu pedido é gerador de nulidade. O STA negou assim provimento ao recurso,
pois que “independentemente das roupagens com que o impugnante, ora recorrente, o
queira “vestir”, é manifesto, como decidido, que o vício que atribui ao acto de liquida-
ção impugnado se reconduz a vício de violação de lei, por inexistência do facto tributá-
rio, vício este gerador da respectiva anulabilidade, e não da sua nulidade, que constitui
uma forma de invalidade excepcional (sendo a sanção regra da invalidade dos actos a
sua anulabilidade – artigo 125.º do CPA) porquanto, contrariamente ao alegado, não
se vislumbra ofensa do conteúdo essencial de direitos fundamentais (artigo 133.º, n.º 2,
alínea d) do CPA) ou qualquer outro motivo determinante de nulidade do acto de liqui-
dação (artigo 133.º do CPA)”12.

1.4.2. Um sujeito passivo pessoa singular impugnou liquidação adicional


de IRS em que a Administração Tributária exerceu, no seu lugar, opção pelo
englobamento, assim afastando o regime-regra segundo o qual esses rendi-
mentos seriam tributados à taxa de 20%, e conduzindo a uma tributação à
taxa de 40%. Refere o impugnante que nunca mandatou a Administração
Tributária para em seu nome exercer qualquer opção quanto ao engloba-
mento dos seus rendimentos, nem manifestou a vontade de não ser tributado
de acordo com o regime-regra de tributação então vigente. Refere ainda que
o exercício daquela opção por parte da Autoridade Tributária, integrando-
-se no ato tributário, é causa da sua nulidade, desde logo por implicar a

12
 Acórdão do STA de 18/06/2014 (proc. 0417/14).

22
INTRODUÇÃO

prática de ato estranho às suas atribuições. Além disso, o exercício por parte
da Administração Tributaria de opção reservada por lei ao contribuinte na
escolha do regime tributário aplicável constitui uma inaceitável ingerência
na sua esfera privada, sendo ofensivo do conteúdo essencial de direitos fun-
damentais, mormente o direito do impugnante a não pagar impostos cuja
liquidação se não faça nos termos da lei e o direito fundamental a ser tratado
em condições de igualdade. Servindo a norma violada o propósito de con-
cretizar e proteger especificamente este último direito, a sua violação privou
absolutamente o impugnante da proteção por ela conferida. Entende assim
que a tributação feita nestes termos corresponde a um inaceitável confisco,
um esbulho arbitrário e uma expropriação sem indemnização, proibidos pela
Constituição material e fiscal formal, conducentes à nulidade do ato impug-
nado. Sendo esta forma de invalidade invocável a todo o tempo, constitui
a Administração Tributária no dever de abster-se de insistir na ilegalidade
de substituir-se aos contribuintes no exercício de opções compreendidas no
âmbito da liberdade gerir a sua esfera privada.
Decidindo, o STA considerou que “A apontada ilegalidade, a verificar-se não
é geradora de nulidade, invocável a todo o tempo, mas de mera anulabilidade que há-de
ser suscitada e graciosa ou contenciosamente declarada dentro dos prazos legais (…) que
se mostram manifestamente excedidos. (…) Pese embora a Administração Tributária
esteja estritamente vinculada ao princípio da legalidade, isso não significa que qual-
quer acto que pratique e que se afaste da lei, ou da melhor interpretação dela, se possa
qualificar como um ato estranho às atribuições da Autoridade Tributária para efei-
tos do disposto no artigo 161º do CPA, ou todas as ilegalidades praticadas na elabora-
ção de actos de liquidação estariam assim convertidas em vícios geradores de nulidade
do acto e invocáveis a todo o tempo, não sendo, manifestamente intenção do legisla-
dor, seja no direito tributário, seja em qualquer ramo de direito, banalizar o insti-
tuto da nulidade dos actos estendendo-o a quase todas as situações de ilegalidade. (…)
Do mesmo modo não se verifica uma violação do direito constitucional de igualdade por-
que a ilegalidade cometida não consistiu num tratamento discriminatório do recorrente
face a outros contribuintes em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de
origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, con-
dição social ou orientação sexual, proibida pelo art.º 13.º da Constituição da República
Portuguesa.”13.

 Acórdão do STA de 05/12/2018 (proc. 0780/17).


13

23
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO

2. Objeto de investigação

2.1. Estas decisões revelam por si os paradoxos em que o STA se tem colo-
cado no que diz respeito à nulidade dos atos tributários: ao mesmo tempo em
que o ato que liquida imposto inexistente nas leis em vigor é meramente anu-
lável, declara-se que os vícios dos atos tributários devem ser sancionados com a
nulidade nos casos previstos na lei, como sucede quando esses atos ofendam o
conteúdo essencial de um direito fundamental. Isto, sem que, com exceção dos
atos que ofendam o caso julgado14, sejam conhecidos pelo STA quaisquer atos
tributários nulos ao abrigo do artigo 161º do CPA. A nulidade é a consequência
normal dos atos que violem o conteúdo essencial de direitos fundamentais ou
sejam afetados por ilegalidades de tal modo graves e evidentes, que o legislador
as identifique como não podendo produzir efeitos provisórios nem beneficiar
do efeito estabilizador do decurso do tempo, próprio da generalidade dos atos
da administração. Trata-se de um prolongamento da especial vinculatividade
de certas normas legais face às demais, ou um reflexo da especial intensidade
do insulto que certos comportamentos representam para o sistema jurídico.
O ato tributário é o ato mais vezes praticado pela administração pública,
sendo ainda um dos atos administrativos que mais diretamente restringem
ou afetam a esfera jurídica privada. Daí que os poderes concedidos para a
prática de atos tributários sejam especialmente marcados pela subordinação
à lei, ordenada por um princípio de juridicidade, reforçado tanto por uma
exigente reserva de lei formal e material, como pela atribuição aos particu-
lares de um direito fundamental a não pagar impostos inconstitucionais ou
ilegalmente liquidados e pagos (artigo 103º, nº. 3 da CRP)15. Além disso, deve
ser visto como um exemplo paradigmático das relações entre administra-
ção e administrados, tanto pelo volume de atos praticados, como porque
nele o interesse publico se manifesta pelo permanente compromisso entre
o interesse público primário de satisfação das necessidades financeiras do
Estado, e o respeito pela juridicidade que dá corpo aos direitos resultantes da
obrigação de imposto, entre os quais se contam relevantes direitos subjetivos
públicos carecedores de tutela efetiva.

 Acórdão do STA de 07/03/2007 (proc. 01150/06).


14

 Ver adiante, maxime número 3 do capítulo VII. No mesmo sentido, JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE
15

Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ª ed., 2012, p. 81, GOMES CANOTILHO,
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 2003, p. 405, JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, tomo IV, 3ª ed., 2000, p. 151, JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar
impostos, 1997, p. 186, nota 5, SALDANHA SANCHES, O ónus da prova no processo fiscal, Lisboa, 1987, p. 5.

24
INTRODUÇÃO

2.2. O estudo das garantias de controlo e repressão dos atos tributários


ilegais impõe-se no atual contexto de acelerada evolução dos fenómenos
tributários, que gera inevitáveis crises de crescimento, às quais não são estra-
nhos fenómenos, como: (i) a conhecida inundação de normas no ordenamento
tributário, que tem suscitado problemas de compatibilidade com as garantias
dos contribuintes além de criar toda a espécie de ineficiências que reclamam
controlo jurisdicional; (ii) a crescente voracidade do Estado na obtenção de
receita a todo o custo, seja através do alargamento da base de incidência dos
impostos ou dos cada vez mais sofisticados instrumentos e ficções jurídicas
destinados ao combate da evasão fiscal, que não têm contribuído para redu-
zir as situações de cobrança fora dos casos previstos na lei ou para impedir a
criação de obrigações pecuniárias nela não previstas16; (iii) a dessensibilização
dos funcionários da administração relativamente aos direitos fundamentais
e às garantias dos contribuintes, que corre em paralelo com (iv) o crescente
protagonismo da tecnologia na definição da sua situação tributária.
O ato tributário apresenta-se cada vez mais como resultado de um con-
junto de operações automáticas realizadas em massa, que devem assegurar a
incorporação dos elementos relevantes e a obtenção da informação necessária
à apreensão da situação individual e concreta objeto da tributação. É possível
antever que num futuro próximo os meios informáticos permitam à admi-
nistração proceder à recolha e tratamento sem precedentes de informação
sobre a ocorrência de fatos tributários, inclusive conduzindo à fixação ordi-
nária da matéria tributária através de métodos indiretos. Estes consideráveis
avanços tecnológicos a que vamos assistindo, com relevância para a produ-
ção de atos tributários — que o Legislador tem prontamente acompanhado
com sucessivos pacotes de legislação — suscita uma atenção particular no
que toca ao controlo da legalidade dos atos tributários, já que a menor inter-
venção humana na liquidação dos tributos pode originar situações de mais
difícil sindicabilidade por parte dos contribuintes.

2.3. Como se viu, tem havido forte resistência dos tribunais superiores
à aplicação do instituto da nulidade às ilegalidades mais graves praticadas
em atos tributários, exigindo que se determine os traços específicos do seu
regime nesta sede. Ora, nem nós, nem o próprio legislador desconsideramos

 Como são exemplo paradigmático os casos de pretensas taxas com natureza de imposto criadas
16

pelas autarquias, muitas vezes para fazer face ao aumento de despesa inerente às transferências de
competências, não acompanhadas dos correspondentes meios financeiros.

25
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO

à partida a possibilidade de o ato tributário ser nulo, como dão testemunho


o artigo 102º nº. 3 do CPPT, nos termos do qual “se o fundamento for a nulidade,
a impugnação pode ser deduzida a todo o tempo” ou o artigo 124º nº. 1 do CPPT,
que manda as decisões judiciais nos processos de impugnação apreciar “prio-
ritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto
impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.”.
Devemos por isso questionar-nos sobre as razões da inoperância do regime
da nulidade, que se assemelha a uma negação de justiça pela via concep-
tual17, reconstruindo a partir dos textos legais a especificidade da aplicação
do regime da nulidade no domínio dos atos tributários. É este o ponto de
partida do presente trabalho, que exige o tratamento de um vasto conjunto
de problemas, pelo que, sem prejuízo de outras questões que se venham a
impor, procurar-se-á responder às seguintes perguntas de investigação: quais
as relações entre a obrigação de imposto e o ato tributário e quais os efeitos
especificamente decorrentes de um e de outro? Qual a caracterização par-
ticular do princípio reforçado da juridicidade tributária face ao princípio da
legalidade da administração? O que é o ato tributário e quais os seus traços
distintivos face ao ato administrativo? O que é a autoliquidação e poderá ela
considerar-se incluída no tipo legal de ato administrativo? Em que medida
a natureza e especificidades do ato tributário podem afetar a aplicação do
regime da nulidade como parte do regime substantivo de controlo da vali-
dade dos atos da administração pública? Qual o fundamento jurídico-cons-
titucional para o regime da nulidade? Qual o sentido do direito fundamental
à legalidade na tributação previsto no artigo 103º nº. 3 da CRP, atribuído aos
cidadãos em matéria fiscal e seus possíveis efeitos ao nível da validade dos
atos tributários? E finalmente, quais os casos específicos de nulidade dos atos
tributários?
Neste sentido, o campo de análise parte da estrutura dos fenómenos tribu-
tários, a natureza do ato tributário, as suas particularidades e os meios tute-
lares da sua legalidade, para depois se apurar a função do regime da nulidade
e aferir-se da sua aplicação aos atos tributários. Em particular, explora-se a
constatação de que o exercício do poder tributário está balizado por um con-
junto de princípios fundamentais que atribuem aos particulares verdadei-
ros direitos subjetivos públicos carecedores de tutela efetiva e diferenciada,
17
 Porventura motivada, como refere MIGUEL PRATA ROQUE, Acto nulo ou acto anulável? – A
jus-fundamentalidade do direito de audiência prévia e do direito à fundamentação – anotação ao acórdão do
Tribunal Constitucional nº. 594/2008, de 10.12.2008, P.1111/07, CJA, 78, p. 31, pelo receio de com isso
abrir-se uma caixa de Pandora dos vícios invocáveis a todo o tempo.

26
INTRODUÇÃO

destacando-se os casos de violações particularmente graves e evidentes com


os quais a juridicidade tributária não pode conviver, nem mesmo perante
o especial protagonismo que os valores da segurança e da estabilidade têm
sobre as situações definidas no exercício de poderes de autoridade18.

3. Metodologia

3.1. Desencadeando a nulidade os contra efeitos mais gravosos dos atos da


administração, a sua consideração científica não dispensa a determinação do
objeto sobre que incide e seus efeitos, pelo que aspetos como o ato tributário,
o procedimento de onde ele emerge e os meios tutelares da sua legalidade,
não podem ser dados como adquiridos. A apreciação da nulidade do ato tribu-
tário exige que se distingam os efeitos que resultam da relação obrigacional
de imposto daqueles que decorrem dos atos tributários eventualmente nulos.
Por outro lado, a dinâmica do ato tributário e das estruturas em que a sua
gestação e desenvolvimento tem lugar é uma essencialidade hermenêutica,
possibilitando ao intérprete o reconhecimento dos seus traços distintivos e
habilitando-o a proceder às necessárias adaptações, na aplicação do regime
dos demais atos da administração.
A compreensão do regime da nulidade enquanto quadro de controlo
substancial da legalidade de atos tributários, pressupõe assim uma análise da
vinculação do ato aos seus pressupostos normativos, do ambiente no qual ele
se desenvolve e os meios de tutela da sua legalidade. Análise que permitirá
concluir se estes elementos combinados justificarão ou não a nulidade dos
atos tributários como mecanismo de ultima ratio destinado a afastar a força
estabilizadora dos atos da administração portadores dos vícios geradores de
graves quebras de coerência interna do sistema jurídico. Estamos a referir-
-nos a casos, que não podemos deixar de conceber, de um tal desvalor da
atividade administrativa, que imponha, entre outros efeitos, a sua improdu-
tividade jurídica ab initio, a sua invocação sem dependência de prazo, o dever
de indemnizar pelas operações de execução ilegais, e a possibilidade e o dever
do seu conhecimento pelos tribunais e a administração19.

 VIEIRA DE ANDRADE, “A nulidade administrativa, essa desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 339.
18

 VIEIRA DE ANDRADE, “A nulidade administrativa, essa desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 336.
19

27
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO

3.2. Por força de equívocos originados pelo atual contexto de aparente


desadministrativização das relações jurídico-tributárias, o ato tributário tem
sido injustamente relegado para segundo plano no estudo da fenomenologia
jurídico-fiscal. No entanto, o papel que desempenha tanto no desenvolvi-
mento da relação jurídica de imposto como no fornecimento à administração
e aos contribuintes de uma base que lhes permita exercer os seus direitos,
tornam-no no centro de interseção de normas, tanto substantivas como
instrumentais20.
Os fenómenos tributários encontram assim expressão a vários níveis e
devem ser compreendidos nas suas diferentes dimensões. Para os fins deste
estudo destacam-se como nucleares, a dimensão das relações materiais sub-
jacentes, em que podem estar em jogo efeitos integrados numa relação obri-
gacional e a dimensão das relações jurídicas instrumentais. Estas são as que
legitimam o recurso, por parte da administração, a poderes-deveres com vista
à prossecução dos interesses públicos específicos que lhe estão confiados, e
que possibilitam aos contribuintes o exercício de direitos de participação nas
decisões que lhes dizem respeito e o recurso às garantias de defesa dos seus
direitos. Somente com a compreensão do fenómeno nestas suas duas dimen-
sões poderemos tratar da nulidade, como regime material de controlo da
validade dos atos tributários. Trata-se não só de um importante garante da
conformidade dos atos com os princípios fundamentais da ordem jurídica,
mas também da sua conformidade com as situações jurídicas subjacentes,
cuja identidade estrutural o ato tributário não pretende modificar, mas antes

20
 As realidades instituídas pelas normas instrumentais estão na base da distinção que fez escola
na doutrina alemã, entre Direito Tributário material, que compreende as normas reguladoras dos
elementos da relação tributária e dos direitos e obrigações dela resultantes, e o Direito Tributário
formal ou instrumental onde se integram as normas reguladoras da atividade de aplicação das leis
de imposto e dos instrumentos de garantia dos direitos dos particulares. Para ALBERTO XAVIER,
Manual de Direito Fiscal, I, Lisboa, 1974, p. 20 e Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 14, esta
distinção terá afetado a unidade sistemática do Direito Fiscal, chegando a imputar-lhe a subalter-
nização do Direito Tributário formal e sua consequente atrofia doutrinária, dado o seu carácter
meramente acessório ou auxiliar, preferindo a designação de Direito Tributário instrumental.
Donde, a par das normas que selecionam os factos suscetíveis de despoletar a obrigação fiscal a
cargo dos sujeitos passivos e as regras de apuramento do conteúdo da prestação dela resultante,
encontramos ainda variadíssimas normas de carácter instrumental, que estabelecem a forma como
a administração fiscal deve exercer a sua atividade e relacionar-se com os contribuintes, de modo
a facilitar a descoberta da verdade material e a assegurar os espaços de defesa das garantias dos
contribuintes. É por intermédio destas normas que se desenvolvem os procedimentos com vista à
declaração dos direitos tributários (artigo 54º nº. 1 da LGT), através de uma atividade reveladora
da vontade funcional do legislador.

28
INTRODUÇÃO

desenvolver e reforçar o seu conteúdo, tornando a obrigação certa e exigível


para as partes principais da relação imposto21.
Não se pretende com isto enveredar por uma teoria da validade do ato tri-
butário, que nos levaria muito para além do objeto deste estudo. Pretende-se
sim desvendar os seus traços mais característicos, suscetíveis de condicionar
a aplicabilidade do regime dos valores negativos dos atos ilegais da adminis-
tração. Com a investigação que aqui se propõe pretende-se estudar a admis-
sibilidade, o regime e as possíveis situações de nulidade do ato tributário22
como peça fundamental do regime substantivo de controlo da sua legalidade,
à luz do princípio reforçado da juridicidade tributária.

3.3. O que ao longo deste estudo foi surpreendendo o percurso inicial-


mente delineado, foi a convocação que a diferentes propósitos foi sendo
feita do direito fundamental de natureza análoga previsto no artigo 103º
nº. 3 da CRP. Esta convocação contribuiu para uma concretização progres-
siva do mesmo direito fundamental, permitindo colocar a descoberto a
dupla valoração normativa a que os atos tributários estão sujeitos. Como vere-
mos, este direito fundamental conduz a uma importante originalidade do
ato tributário face aos demais atos da administração, na medida em que
impede que em resultado do ato praticado no exercício de poderes jurídico-
-administrativos, o direito dos contribuintes se degrade em mero interesse
legalmente protegido. Além das suas importantes implicações para o conten-
cioso tributário em geral, este direito fundamental vincula imediatamente
o ato tributário, devendo por isso averiguar-se em que condições pode ele
ofender o seu conteúdo essencial.

4. O contexto atual das relações jurídico-tributárias

4.1. O estudo destas questões também não pode afastar-se do contexto


das relações Estado-contribuinte, que atualmente atravessa um autêntico
processo revolucionário em curso. O desenvolvimento de ferramentas

 ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 434.


21

22
 Apesar de este trabalho se debruçar sobre a nulidade do ato tributário entendido em sentido
estrito, entendemos que as suas conclusões pensadas para as suas significativas especificidades
deverão aplicar-se ainda aos atos em matéria tributária e aos atos administrativos em matéria
tributária.

29
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO

tecnológicas ao dispor da administração, associado ao aprofundamento


dos deveres de colaboração acessórios à obrigação principal, têm facultado
um acesso sem precedentes da administração a informação relevante. Este
fator, aliado ao aumento da literacia fiscal da parte dos contribuintes permi-
tiram abandonar o modelo de predominante intervenção administrativa na
atividade de gestão fiscal, em favor de uma forte aproximação aos modelos
baseados no cumprimento voluntário23 das suas obrigações fiscais. Com este
movimento de maior participação dos particulares pretende-se a libertação
dos recursos administrativos necessários ao combate mais eficaz à fraude
e à evasão fiscais, acorrer às irregularidades praticadas pelos contribuintes
menos esclarecidos ou menos diligentes no cumprimento das suas obriga-
ções ou simplesmente a tornar a liquidação e a cobrança dos tributos, mais
eficiente e económica, conforme aliás impõe o princípio da boa administra-
ção (artigo 5º do CPA).

4.2. Esta alteração do eixo de atuação da administração traz consigo


importantes transformações quanto à função que desempenha no âmbito
do procedimento tributário. São progressivamente deixadas tarefas como o
acompanhamento da generalidade dos contribuintes no cumprimento das
suas obrigações e na prática de atos tributários primários, em favor da concen-
tração de meios em intervenções fiscalizadoras, seja nas situações em que os
contribuintes falham a entrega das declarações a que estão obrigados, proce-
dendo-se à correção das declarações entregues e eventualmente a liquidações
oficiosas, ou na prática de atos de inspeção eventualmente desencadeadores
de liquidações adicionais ou corretivas.
Passa-se por conseguinte de um modelo de babysitting fiscal, em que a
administração assume as despesas do apoio ao cumprimento das obrigações
declarativas a cargo dos particulares, assegurando a regularidade declarativa
e material dos atos tributários primários24, para um modelo mais evoluído

23
 A expressão “cumprimento voluntário” é um oximoro frequentemente utilizado pela Autoridade
Tributária significando cumprimento espontâneo ou não provocado dos comportamentos impostos
pelas leis fiscais. Ver por todos o relatório de atividades desenvolvidas pela Autoridade Tributária
“Combate à Fraude e Evasão Fiscais e Aduaneiras”, 2020, Gabinete do SEAF, Junho de 2021.
24
 Como refere SALDANHA SANCHES, “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento
Administrativo e a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio
Galvão Teles, I, 2003, p. 870, criticando a ineficiência deste modelo de gestão fiscal “a possibilidade de
uma pronúncia expressa e clara da administração fiscal em todas as relações sujeito ativo/sujeito passivo se tinha
um carácter utópico mesmo na época do Estado mínimo é completamente impensável na época do Estado fiscal”.

30
INTRODUÇÃO

de responsabilização dos contribuintes, em que a atuação administrativa rela-


tivamente aos atos primários de liquidação surge como excecional e reservada
aos desenvolvimentos patológicos da reação jurídica de imposto. Seguindo
este movimento, que continuará a informar futuros desenvolvimentos no
enquadramento jurídico das relações Estado-contribuinte, a administração
passa em regra a atuar a posteriori, na medida em que faltem as declarações dos
contribuintes ou em que as declarações apresentadas revelem discrepâncias
que imponham uma intervenção corretiva.

5. O contribuinte como destinatário das leis fiscais

5.1. À medida que a atividade pública de gestão fiscal vai assumindo um


carácter sucessivo, eventual e fiscalizador, a liquidação de impostos passa
a estar confiada sobretudo aos sujeitos passivos, através de um procedi-
mento estruturado em torno de um sistema de autoavaliação de imposto que
permite uma certa medida de gestão privada do risco fiscal25, mantendo-se o pro-
cedimento subsequente especialmente marcado pelo dever de investigação
da administração com vista à descoberta da verdade material.
Para além de diminuir os custos inerentes ao sistema de liquidação e
cobrança dos tributos, libertando recursos para a fiscalização de casos suspei-
tos, este aumento da responsabilização dos particulares tem conduzido, como
aliás acontece no sistema norte americano, à atribuição ao sujeito passivo
cumpridor dos deveres de cooperação, do direito a ser tributado de acordo com
a sua própria declaração (self-assessment), contribuindo para reduzir a excessiva

25
 SALDANHA SANCHES “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento Administrativo e
a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles, I,
2003, pp. 854-856. Deste modo, as empresas elaboram o seu balanço comercial calculam o lucro
fiscal e as tributações autónomas, liquidam o imposto, comunicam-no à administração e entregam-
-no nos cofres do Estado através de várias formas de pagamento antecipado, a maior parte das vezes
sem qualquer intervenção da administração. Além disso, ainda servem de serviços periféricos da
administração retendo na fonte vários tributos relativos às operações em que intervêm: às remu-
nerações que pagam aos seus trabalhadores retêm o IRS, às transmissões de bens e prestações de
serviços cobram o IVA que depois de deduzir o suportado nas aquisições entregam nos cofres do
Estado, liquidam o imposto de selo devido pelas suas operações, o IUC das suas viaturas e o IMI
dos seus imóveis. Com o imposto quase sempre pago antecipadamente, a regra passa a ser o reem-
bolso dos montantes avançados à cabeça pelo sujeito passivo. Com o aumento da complexidade das
declarações a entregar, este reembolso tende a aumentar ou a diminuir à razão da familiaridade
dos contribuintes com o preenchimento dos formulários e com as leis fiscais.

31
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO

intromissão da administração sobre o particular cumpridor da lei (law-abiding


citizen). Mais do que uma condição de eficácia do sistema, a autoavaliação da
matéria tributável por parte dos particulares permite uma mais efetiva tutela
dos seus direitos, com o aumento da determinabilidade e previsibilidade da
lei fiscal, fornecendo todas as coordenadas necessárias ao cálculo da prestação
de imposto em termos de favorecer o cumprimento voluntário sem necessi-
dade da intermediação da administração. E fá-lo com a segurança reforçada
pela noção de que, enquanto o contribuinte continuar a cumprir esponta-
neamente as suas obrigações fiscais, principais e acessórias, não será objeto
de controlos injustificados por parte da administração26.
A adequada aplicação da lei fiscal vai assim tornando-se cada vez mais
numa tarefa e num direito do contribuinte, implicando a deslocação da inter-
venção autoritária da administração para os casos em que exista controvér-
sia no âmbito da relação jurídico-tributária. Esta alteração de paradigma,
ao exigir que a aplicação normal da lei fiscal seja cada vez menos feita por
especialistas, exige que o legislador adeque o conteúdo das leis fiscais à sua
aplicação massificada e as revista de acrescidas exigências de clareza e coerên-
cia interna, de maneira a impedir que o aumento exponencial de aplicadores
das normas de imposto corresponda a um aumento na mesma proporção dos
sentidos atribuídos aos textos legais27.

5.2. Esta evolução foi possibilitada em termos dogmáticos pela supera-


ção da controvérsia sobre a natureza da obrigação de imposto28 que ao longo
do século passado ocupou a doutrina durante o processo de emancipação do
Direito fiscal face ao Direito financeiro. Sem entrar nessa análise, que escapa
ao âmbito deste estudo, dir-se-á que a utilização dos conceitos fundamen-
tais de Direito das obrigações e da teoria da relação jurídica29 veio oferecer

26
 SALDANHA SANCHES “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento Administrativo
e a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles I,
2003, p. 855.
27
 Como refere SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, p. 36, a clareza das
leis fiscais é uma expressão da reserva de lei parlamentar.
28
 SALDANHA SANCHES “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento Administrativo
e a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles I,
2003, p. 857.
29
 Como acentua JOÃO DE CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 1978, p. 67,
citando LUIGI BANGOLINI, “O conceito de relação jurídica tem sido considerado como uma categoria
central da ciência jurídica, na qual se exprime aquele elemento de relação que parece estar sempre presente em
toda a manifestação da realidade jurídica”.

32
INTRODUÇÃO

um enquadramento suficientemente maleável para acolher as transforma-


ções impostas pela modernização das relações Estado-contribuinte. Permitiu
ao legislador fiscal unificar num mesmo esquema as várias realidades que
convergem para o fenómeno objeto do Direito fiscal e apetrechar-se de uma
linguagem e de uma sistemática própria compatíveis com as especiais exigên-
cias de clareza, certeza e segurança que o carácter massificado da tributação
necessariamente requer30. Mas mais do que isso: o esquema da obrigação civil
abre ainda a via essencial para este estudo de permitir distinguir a natureza
dos vínculos que se estabelecem antes e depois da prática do ato tributário, de
modo a fazer-se a necessária separação entre os efeitos resultantes da consti-
tuição da relação jurídica de imposto, daqueles que especificamente decorrem
do ato tributário.
Por outro lado, o estudo do ato tributário como ferramenta metodoló-
gica do Direito fiscal exige que a aplicação da lei aos casos concretos seja
ainda enquadrada por um princípio da legalidade entretanto evoluído para
um princípio da juridicidade, que reclama tanto da administração como do
próprio legislador respeito pelos princípios fundamentadores do sistema jurí-
dico-fiscal e uma análise crítica das normas a aplicar31. Apenas assim é facul-
tada uma visão global ou de sistema, essencial a uma interpretação conforme
com os preceitos constitucionais, até há poucos anos arredada das análises
doutrinais e jurisprudenciais rigidamente ancoradas na aplicação silogística
da lei formal32.

30
 Deste modo, os vários códigos fiscais seguem o mesmo figurino, definindo primeiro a incidên-
cia objetiva e subjetiva, as isenções, o facto gerador da obrigação, depois a definição da matéria
tributável e as taxas e finalmente as obrigações acessórias e as garantias das obrigações. Também a
LGT acolhe expressamente este esquema no seu título II, distribuindo por cinco capítulos os seus
elementos e vicissitudes: os sujeitos, o objeto, a constituição, a extinção e a garantia da prestação
tributária. SÉRGIO VASQUES, Manual, de Direito Fiscal, 2ª ed., 2018, pp. 71-72.
31
 Apesar da obrigação de imposto nascer como uma obrigação ex lege a partir da verificação, na esfera
privada, de factos previstos na lei e de o conteúdo da prestação resultante desse encontro entre factos
e lei, resultar igualmente de critérios nela contidos, é com o ato tributário que a obrigação de imposto
ganha uma nova vida, por via da abstração que a sua função tituladora lhe dá (MÁRIO ESTEVES
DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM, Código do Pro-
cedimento Administrativo comentado, Vol. II, 1995, p. 58). É com base nos elementos ao dispor das
partes, convocados ao procedimento pelos deveres de colaboração dos contribuintes e informados
pelos princípios do inquisitório e da descoberta da verdade material, que a situação material subja-
cente é revelada e cristalizada no ato tributário, permitindo finalmente à administração executá-la
e aos contribuintes cumprir as suas obrigações e ou recorrer às garantias de defesa dos seus direitos.
32
 Como sintetiza SÉRGIO VASQUES, Manual, de Direito Fiscal, 2ª ed., 2018, p. 73, referindo-se
à marginalização dos princípios fundamentadores do sistema pela doutrina do século passado,

33
A NULIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO

Sendo verdade que a crescente valorização da figura da relação jurídico-


-tributária como recurso sistemático e integrador dos fenómenos tributários
foi uma conquista da ciência do Direito fiscal, permitindo ultrapassar con-
trovérsias doutrinais em torno das conceções constitutivas do ato tributário,
os movimentos no sentido do incremento da gestão privada do sistema de
liquidação e cobrança têm conduzido a uma melhor compreensão do fenó-
meno tributário, baseada, como veremos, não na perda de relevância do ato
tributário, mas ao seu reposicionamento no âmbito de uma realidade global,
que é a relação jurídico-tributária.

6. Plano de exposição

A investigação sobre as hipóteses colocadas neste estudo começará por


abordar, na primeira parte, o ato tributário, partindo da estrutura elementar
e complexa no seio da qual ele emerge, identificando a obrigação de imposto
no plano das relações jurídico-tributárias. Neste capítulo primeiro, além de
ser abordada a estrutura destas relações, serão ainda detetados alguns efeitos
próprios da obrigação de imposto, insuscetíveis de ser afetados pela nulidade
do ato tributário, bem como algumas das características próprias daquela
obrigação, que não devem, de igual modo, ser atribuídas a este ato.
No segundo capítulo, partimos do princípio do Estado fiscal para com-
preender o carácter estruturante do princípio reforçado da juridicidade tri-
butária como seu corolário, distinguindo-o do princípio da legalidade da
administração e descrevendo-o nas suas três dimensões, de maneira a isolar
as suas diferentes funções.
No terceiro capítulo, passamos ao papel da administração na condução do
procedimento tributário com vista à manifestação da vontade funcional do
legislador, em que consiste o interesse público por ela especificamente prosse-
guido e as principais decorrências procedimentais desse papel e dessa função,

decorrente da utilização exclusiva da figura relação tributária como ferramenta metodológica.


Refere que “Absorvida pela escalpelização da norma tributária e da relação jurídica de imposto, a doutrina
tendia assim a marginalizar os princípios materiais do sistema, no que seria acompanhada pela jurisprudência,
mesmo depois de aprovada a Constituição da República de 1976, centrando o exame dos tributos públicos no
respeito pelo princípio da legalidade e pela reserva de lei parlamentar. Ao mesmo tempo, esvaziava -se o alcance
[do] princípio da igualdade tributária representando-o como a mera proibição do arbítrio e facultando assim
ao legislador uma liberdade ilimitada na escolha dos factos a sujeitar a imposto e na escolha dos contribuintes
que hão-de ser dispensados do seu pagamento.”.

34
INTRODUÇÃO

estruturantes da configuração das relações administração-contribuintes.


Por último, serão ainda delimitados os tipos de atos conclusivos dos proce-
dimentos tributários e identificados aqueles que constituem o nosso objeto
de investigação.
No quarto capítulo, serão abordados a natureza jurídica do ato tributário, as
suas características principais e as suas funções e responderemos à importante
questão sobre se devemos ou não nele considerar incluída a autoliquidação.
No quinto capítulo procederemos à análise dos meios gerais de tutela da
legalidade dos atos tributários, abrindo com a identificação da dupla valora-
ção normativa dos atos tributários, com importantes consequências para a
estruturação destes meios e para a compreensão da figura do erro imputável
aos serviços. Passaremos depois a uma breve análise dos limites à estabilização
dos atos tributários, que analisaremos em paralelo com os diferentes meios
de tutela da sua legalidade.
Abriremos a segunda parte deste trabalho com a análise do regime da
nulidade dos atos da administração, partindo dos fundamentos para um tal
regime e identificando a sede da disciplina jurídica da nulidade dos atos tri-
butários. Passaremos pela identificação das formas de invalidade, a identifi-
cação do diferente plano em que a se encontra a figura da inexistência, que
o regime da nulidade pretende assimilar, passando depois à análise deste
regime, separando os seus caracteres essenciais das consequências deles
resultantes. Este capítulo será fechado com uma análise, não completamente
exaustiva das causas de nulidade previstas na lei geral da administração,
e ainda com uma análise sobre as nulidades por natureza e a necessidade
de reintrodução de uma cláusula geral de nulidade, sobretudo nos casos em
que existe um relacionamento direto entre a Constituição e certos atos da
administração — entre os quais se destaca o ato objeto da nossa investigação.
Por fim no sétimo capítulo será abordada a nulidade dos atos tributários,
começando por problematizar-se a compatibilidade do tipo de invalidade
mais grave com a estrutura e as realidades próprias do contencioso tribu-
tário, passando de seguida a uma descrição panorâmica das posições que o
STA tem manifestado relativamente à invocação da nulidade dos atos tribu-
tários. E encerraremos por fim, com a determinação do sentido e alcance do
direito fundamental de natureza análoga à legalidade da tributação, e a uma
aproximação aos atos nulos por ofensa ao seu conteúdo essencial, à análise
de casos graves de violação da juridicidade tributária e aos possíveis efeitos
do decurso do tempo sobre atos tributários nulos.

35
Não ver ou não querer ver? O estranho caso do “pagamento voluntário da coima”
determinado por ato de condenação em infração contraordenacional
– Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo,
proferido no Processo n.º 030/20.6BEBJA, de 9 de junho de 2021*

José Avilez Ogando


Advogado

Anotação** *** esse ato conclusivo (no dia 31 de dezembro de 2019),


o chefe do serviço de finanças de Mourão veio a
I. Em traços sintéticos, no caso em análise estava convenientemente proferir “despacho de extinção”
em causa o seguinte: por decisão datada de 4 de do processo contraordenacional. Não o fez por ter
dezembro de 2019, o chefe do serviço de finanças sido tomada a decisão condenatória, mas antes em
de Mourão proferiu decisão final em processo de virtude da posterior realização do “pagamento
contraordenação, verificando a existência de infração voluntário da coima”.
e aplicando a coima correspondente. Tendo em vista Chegados até aqui, constatará o leitor que no
o exercício do seu direito à tutela jurisdicional efetiva, processo de contraordenação podem ocorrer dois
na vertente de direito de acesso à justiça1, a sociedade pagamentos, aos quais, apesar de erróneo, é comum
visada por essa decisão tempestivamente apresentou, atribuir-se indistintamente a designação de “pagamento
junto do mesmo serviço de finanças de Mourão, recurso voluntário”: (i) temos aquele pagamento feito no
judicial de contraordenação, nos termos do n.º 1 do decurso do procedimento, previamente à imputação
artigo 80.º do Regime Geral das Infrações Tributárias de qualquer responsabilidade delitual, e ao qual o
(doravante, “RGIT”)2. Na data dessa apresentação (27 legislador associa uma aceitação da responsabilidade,
de dezembro de 2019), a mesma sociedade procedeu conduzindo – e bem – à extinção do procedimento
ao pagamento espontâneo da coima que lhe foi aplicada (pagamento voluntário de coima não fixada); (ii) e
pela decisão administrativa que a condenou em temos depois aquele pagamento feito em obediência
responsabilidade contraordenacional. de decisão tomada no exercício de poderes de
Não obstante o processo de contraordenação já autotutela declarativa, definidor da responsabilidade
se encontrar encerrado pela prática do ato a que contraordenacional numa situação individual
afinal de contas se dirigiu, a verdade é que logo após e concreta (cumprimento espontâneo de coima
aplicada). Ora, o pagamento a que este Acórdão se
*
Disponível em: www.dgsi.pt.
refere é o da segunda espécie: trata-se de pagamento
**
ordenado por decisão final e executória que, juntando
Texto escrito segundo o novo acordo ortográfico.
a lei aos factos, apurou a ocorrência concreta
1
Cfr. n.os 1 e 5 do artigo 20.º, n.os 1 e 10 do artigo 32.º e de uma infração, definindo com efeitos externos
n.º 4 do artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa a responsabilidade pela sua prática, e o comportamento
(doravante, “CRP”). apto a extingui-la por cumprimento.
2
De acordo com o n.º 1 do artigo 144º do Código de Processo Também terá o leitor notado que o procedimento
Civil, aplicável ao Regime Geral de Contraordenações de contraordenação tipicamente se extingue com
(doravante, RGCO) por força do assento n.º 1/2001, de um de dois atos: com a prática do ato definitório
03/03/2001, e ás infrações tributárias por força da al. b)
da responsabilidade contraordenacional, que
do artigo 3º do RGIT, n.º 1 do artigo 41º do RGCO, e artigo
4º do Código de Processo Penal, o recurso jurisdicional procede à aplicação de coima, ou – o que também
de contraordenação considera-se apresentado na data da frequentemente sucede – com o ato de arquivamento
sua expedição ou registo postal. do procedimento, seja por ocorrência de morte do
131
José Avilez Ogando RDA

arguido, prescrição, por não ser apurada a ocorrência se formou. Já quanto à segunda consequência, deverão
de infração, ou em resultado do “pagamento voluntário igualmente existir mecanismos de mitigação dos atos
da coima no decurso do processo de contraordenação executórios do ato e ofensivos do património dos
tributária”3. Pagamento este que a lei faz equivaler particulares afetados, sob pena de verificar-se na sua
à admissão de culpa, levando o processo a parar nos esfera prejuízos que prejudicariam uma efetiva tutela
seus carris e a tornar desnecessária a adoção de do direito a invocar a invalidade do ato praticado pela
uma decisão condenatória ou absolutória, e por isso administração. Daí que os particulares que virem ser
conduzindo imediatamente à extinção do procedimento. levantado contra si processo de execução fiscal por
Acontece que, aparentemente, o procedimento falta de pagamento da coima em que hajam sido
concreto a que o aresto em análise se refere ter-se-á condenados, podem sempre proceder – como aliás
extinto das duas formas: extinguiu-se primeiro por frequentemente sucede – ao pagamento da quantia
morte natural, no dia 4 de dezembro de 2019, dia exequenda e acrescidos, assim extinguindo a execução.
em que por ter sido proferida a decisão final atribuidora Em alternativa poderão ainda obter a suspensão da
de responsabilidade contraordenacional conducente execução mediante prestação de garantia idónea ou
à aplicação de coima, foi atingido o seu fim típico; obtenção de dispensa da sua apresentação em razão
e extinguiu-se depois por morte assistida, no dia 31 de insuficiência de meios económicos4, sem que fique
de dezembro de 2019, dia em que o chefe de finanças prejudicada a discussão a que possa haver lugar quanto
de Mourão proferiu despacho de arquivamento do à legalidade do ato que lhe deu origem5.
processo, com fundamento na sua “extinção por Garantir o recurso à tutela jurisdicional do ato sem
pagamento”. que, paralelamente, seja dado ao particular abundantes
Passemos então à abordagem, que o carácter do meios de evitar que o seu património seja afetado
presente texto exige necessariamente sucinta, dos por diligências de cobrança, conduz a uma garantia
argumentos utilizados para fundamentar a decisão de tutela meramente formal e não efetiva. Porque
sob análise. permite que esta cobrança coerciva necessária funcione
como instrumento de inaceitáveis pressões sobre os
II. Em primeiro lugar, considera o STA que a extinção particulares afetados – pressões que se agravam
do procedimento de contraordenação em virtude do fatalmente com as indignas demoras processuais – o
pagamento voluntário da coima determinada no termo que mesmo em termos técnicos corresponde a uma
do mesmo procedimento, retira ao arguido o necessário autêntica tomada de reféns pela via administrativa.
interesse em agir no recurso judicial daquela decisão. Este efeito que a imediata execução pode ter sobre
Com essa falta de interesse em agir, o arguido careceria a discussão da legalidade do ato é resolvido no
de legitimidade para o recurso impugnatório do ato, domínio tributário pelo artigo 9.º da Lei Geral Tributária
o que obstaria à sua admissão, ficando o tribunal (doravante, “LGT”), que garante o acesso à justiça
impedido de apreciar o pedido nele formulado. tributária “para a tutela plena e efectiva de todos os
Mas será mesmo assim? Será que o particular direitos ou interesses legalmente protegidos”, e que
condenado em contraordenação que cumpra o prazo “todos os actos em matéria tributária que lesem direitos
de pagamento a que está vinculado, perde o interesse ou interesses legalmente protegidos são impugnáveis
legalmente protegido em ver jurisdicionalmente discutida ou recorríveis nos termos da lei”. As condições
a legalidade da decisão que a determina? Para responder subjetivas para esta ampla impugnabilidade são ainda
a esta pergunta é preciso dar um passo atrás para notar garantidas pelo n.º 3 do mesmo artigo, o qual assegura
que uma decisão desta natureza comporta sempre para que “[o] pagamento do imposto nos termos de lei
o seu destinatário duas consequências negativas: (i) que atribua benefícios ou vantagens no conjunto de
define imperativamente o carácter censurável da sua certos encargos ou condições – como é o caso de
conduta como a pena destinada a dissuadir a potencial obstar- se a pendência de processo de cobrança
reincidência; e (ii) dado o seu carácter executivo e
executório, não só serve de base a uma execução como
4
habilita a administração a conduzir a mesma e a obter, Cfr. artigo 52.º da LGT e artigos 169.º e 199.º do CPPT.
5
pelos seus próprios meios, a satisfação do crédito O que o STA parece não ter presente é que a maior parte
correspondente. das coimas segue este caminho e são em grande parte
A primeira destas consequências negativas pode pagas antes de transitar em julgado a decisão judicial que
ser atacada pelo recurso ao mecanismo de tutela apreciar da sua legalidade. Sendo que, nos casos de
jurisdicional, justificada pelo interesse juridicamente procedência dos recursos de contraordenação, redundam
na obrigação de reembolso dos montantes cobrados
protegido do destinatário do ato a ver apreciada a sua
coercivamente por parte da administração, no âmbito da
legalidade e a do procedimento no âmbito do qual obrigação de “plena reconstituição da situação que existiria
se não tivesse sido cometida a ilegalidade” (n.º 1 do artigo
3
Cfr. al. c) do artigo 61.º do RGIT. 100.º da LGT).
132
Não ver ou não querer ver? O estranho caso do “pagamento voluntário da coima”
determinado por ato de condenação em infração contraordenacional

coerciva – não preclude o direito de reclamação, condenados em procedimentos de contraordenação8,


impugnação ou recurso, não obstante a possibilidade que para não verem o seu património ser atingido a eito
de renúncia expressa, nos termos da lei”. pelas diligências de cobrança coerciva ordenadas pela
administração, devem assim aguardar a instauração de
III. Outra questão que pode eventualmente colocar-se execução, e no âmbito da mesma pagar, prestar garantia
é a de saber se existirá alguma razão ponderável para ou obter a sua dispensa, com o acréscimo de custos daí
que, aos particulares que pretendam lançar mão do decorrentes, tanto para os próprios como para a administração.
direito de recurso dos atos que os condenem em Donde é grosseiramente desproporcionada a
contraordenação6, seja impedido o seu exercício interpretação da al. c) do artigo 61.º do RGIT – nos
sempre que procedam ao pagamento da coima fixada termos do qual “[o] procedimento por contra-ordenação
dentro do prazo atribuído pela própria decisão que extingue-se nos seguintes casos: [...] c) Pagamento
os condenou. Ou ainda: de saber se existe alguma voluntário da coima no decurso do processo de
razão ponderável para que esse pagamento atempado contra-ordenação tributária” – que ao cumprimento
impeça os tribunais de conhecer a ilegalidade do ato espontâneo da decisão condenatória associe uma
que o determinou, mesmo que – como neste caso presunção inilidível de aceitação do ato, conducente
sucede – o particular, previamente ou simultaneamente à preclusão do direito de a impugnar. Entendimento
a esse pagamento, remova quaisquer dúvidas que que remove, sem qualquer razão atendível, as proteções
possam existir quanto às suas intenções, mediante conferidas pelos direitos de acesso à justiça e à tutela
declaração expressa ou apresentação de recurso judicial jurisdicional efetiva dos cidadãos 9, criando- se
de contraordenação. discriminações injustificadas, designadamente face
A resposta a essa questão deve ser respondida no àqueles destinatários de atos semelhantes que vêm a
âmbito do segundo fundamento invocado pelo STA, dívida por eles constituída ser saldada duas semanas
de acordo com o qual o artigo 61.º al. c) do RGIT, ao depois, já depois de instaurada a cobrança coerciva
fixar a extinção do procedimento como efeito do oficiosamente promovida pela administração10.
pagamento voluntário da coima no decurso do processo Mas mais: o pagamento da coima aplicada é querido
de contraordenação, está a referir- se tanto aos pelo legislador como resultante da própria força jurídica
pagamentos ocorridos antes da decisão definitiva de do ato que a determina e não como contrapartida da
aplicação da coima, como aos ocorridos posteriormente, discussão da sua legalidade. Não faz por isso sentido
mas fora do âmbito de execução fiscal. que ao mesmo tempo em que (i) o particular está
Além das considerações atrás expendidas, que legalmente obrigado a pagar dentro de um determinado
mereceriam aqui ser renovadas, é preciso referir que prazo; e (ii) a administração vinculada a acionar os
a diferença entre o pagamento que antecede a decisão mecanismos de cobrança coerciva caso o mesmo
e o pagamento da coima já depois de esta estar fixada não seja feito11, o cumprimento do imperativamente
por ato administrativo, é que até à decisão condenatória determinado no ato – aliviando a administração do
nada obriga à sua realização7. E por isso não repugna dispêndio de recursos com vista a essa cobrança coerciva
que esse pagamento voluntário faça presumir a – impeça o particular de proceder à sua impugnação12.
aceitação da responsabilidade que no mesmo se
pretende apurar, conduzindo à imediata extinção 8
do procedimento. Já o pagamento posterior ao ato Necessariamente implicando que a coima deva ser
acrescida de juros, o que é um absurdo. Aos quais acrescerão
definitório da responsabilidade contraordenacional,
ainda as inescapáveis custas que assim se tornam, juntamente
corresponde ao cumprimento espontâneo de comando com aqueles, a necessária contrapartida pelo exercício do
imperativo emitido pela administração no uso dos direito a lançar mão do recurso judicial de contraordenação.
seus poderes de autoridade. A sua realização não 9
Cfr. n.os 1 e 5 do artigo 20.º, n.os 1 e 10 do artigo 32.º e
pode prejudicar o direito a suscitar a discussão da sua n.º 4 do artigo 268.º da CRP.
legalidade junto dos tribunais, e a obter em prazo 10
Cfr. artigo 13.º e n.º 2 do artigo 266.º da CRP.
razoável e mediante o processo equitativo, uma decisão
11
jurisdicional que a aprecie, com a força de caso Cfr. al. b) do artigo 162.º do CPPT. Dispõe o n.º 1 do artigo
julgado, a menos que o seu titular renuncie a esse 65.º do RGIT “[a]s coimas aplicadas em processo de contra-
direito. Caso contrário estamos face a uma autêntica ordenação tributário são cobradas coercivamente em processo
de execução fiscal.”, estatuindo ainda o seu n.º 2 que “[q]uando
cominação legal de pagamento forçado dos sujeitos
as coimas, sanções pecuniárias e custas processuais não
sejam pagas nos prazos legais será extraída certidão de dívida
ou certidão da conta ou liquidação feita de harmonia com
6
E aos quais é permitido extinguir por pagamento os o decidido, a qual servirá de base à execução fiscal.”
processos de cobrança coerciva das mesmas coimas ou 12
No caso em análise o pagamento da coima fixada teve
alternativamente, obter a sua suspensão. lugar no dia em que foi apresentada a impugnação da
7
Cfr. n.º 2 do artigo 32.º da CRP. decisão que a determinou.
133
José Avilez Ogando RDA

Aliás, por força deste entendimento sistematicamente afetados a uma sequência predeterminada de atos
plasmado em jurisprudência consolidada no STA, o dirigidos à sua adequada produção, como ainda porque
principal efeito do ato é afinal vincular juridicamente a sua emissão a final é o evento conclusivo dessa
o particular a um comportamento (pagar a coima mesma sequência de atos. Depois, o ato desempenha
aplicada), cujo acatamento atempado extingue direitos uma função concretizadora da lei geral e abstrata,
que a Constituição pessoalmente lhe atribui. Neste proporcionando uma expressão da vontade funcional
caso, o destinatário do ato que lhe imputou uma do legislador16. A especial força jurídica que a lei
contraordenação caiu no erro de cumprir o respetivo associa a estes atos permite ainda que desempenhem,
prazo de pagamento – ainda que simultaneamente com entre outras, uma função definitória imperativa, por
a apresentação do recurso jurisdicional – perdeu forma a que a definição jurídica nele contida vincule
legitimidade em agir porque o órgão responsável pela a administração, os destinatários e quaisquer terceiros17,
condução do procedimento decidiu, posteriormente em termos tais que só possa ser mais tarde alterada
à prática do ato, emitir despacho de extinção do com base em elementos novos ou numa nova valoração
procedimento de contraordenação13. O que significa dos elementos de prova até então obtidos. Poder que
que, aparentemente, a legitimidade processual do aliás reclama as garantias proporcionadas pelo
responsável contraordenacional encontra- se na procedimento no âmbito do qual o ato se formou, em
disponibilidade do autor do ato, que, posteriormente especial pela sua natureza contraditória, intervindo a
à decisão final, pode, por via de um simples despacho, administração como agente imparcial encarregue da
ordenar o arquivamento ou a extinção do procedimento. descoberta da verdade material e da correta expressão
O que não deixa de ser extraordinário, até porque da da vontade funcional do legislador relativamente ao
mesma forma que algo não pode ser e não ser ao mesmo caso concreto18.
tempo, também um processo não pode extinguir-se Para a impugnação da decisão com vista à discussão
em dois momentos distintos: no momento em que é da sua legalidade, é irrelevante que o processo se
praticado ato de condenação em responsabilidade mantenha ou não aberto, até porque o objeto do
contraordenacional e posteriormente também, com o recurso judicial de contraordenação não é a legalidade
afinal soberano despacho de extinção. do procedimento, mas antes a legalidade da decisão
Ora, como é sabido, o procedimento administrativo, que lhe põe termo19, aquela que define com carácter
é um método de coordenação dos diversos contributos definitivo a responsabilidade contraordenacional
com vista à tomada de decisões ordenadas pelo interesse e se mantém em vigor mesmo depois de aquele ser
público14, no que é afinal uma atividade reveladora extinto, dizendo o direito sobre o caso concreto que
destinada a habilitar a administração a produzir o ato é seu objeto.
decisório a que se destina e que lhe põe termo. O Como a propósito escreve I NÊS F ERREIRA L EITE ,
procedimento administrativo é assim uma forma “[o] processo contraordenacional é, na sua fase
disciplinada de aplicação do Direito substantivo, administrativa, ainda um processo tendente à prática
aberta à participação dos interessados, fornecendo o de um ato administrativo: a decisão de aplicação da
enquadramento necessário a habilitar a administração coima”20. Também o Tribunal Constitucional no seu
a proferir uma decisão conforme à lei15. A sua especial Acórdão n.º 19/2011 reconheceu que “as decisões
força jurídica é precisamente o que permite à decisão administrativas que aplicam determinada sanção não
de aplicação da coima desempenhar um conjunto de podem deixar de ser consideradas como «actos
funções, a começar por uma função procedimental, administrativos», na medida em que visam produzir
já que não apenas sujeita o seu autor e os particulares efeitos jurídicos, numa situação individual e concreta”.

16
13
MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e J.
Procedimento que, repita-se, ficou concluído com a decisão PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo
que declarou verificada a infração e condenou no pagamento Comentado, vol. II, 1995, p. 44.
de coima. 17
14
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo,
Cfr. n.º 1 do artigo 266.º da CRP. 5.ª ed., p. 2017, p. 165.
15
SALDANHA SANCHES, O ónus da prova no processo fiscal, 18
ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário,
Lisboa, 1987, p. 8. Como refere ALBERTO XAVIER, Conceito 1972, p. 569.
e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 144, a principal 19
consequência da natureza processual da atividade tributária Que inclui eventuais ilegalidades formais cometidas no
é a distinção entre os atos preparatórios e o ato conclusivo procedimento em que se formou.
20
do processo, aquele que declara o Direito do caso concreto, Cfr. INÊS FERREIRA LEITE, “A autonomização do direito
cristalizando, para as futuras relações entre sujeitos sancionatório administrativo, em especial, o direito
da obrigação de imposto, os elementos abstratamente contraordenacional”, in Regime Geral das Contraordenações
descritos nas normas substantivas, neste caso as normas e as Contraordenações Administrativas e Fiscais, CEJ, 2015,
incriminadoras de carácter contraordenacional. p. 55.
134
Não ver ou não querer ver? O estranho caso do “pagamento voluntário da coima”
determinado por ato de condenação em infração contraordenacional

O carácter impugnatório do recurso judicial de cumprir a pena administrativamente fixada. Caso que
contraordenação relativamente ao ato de fixação da ademais é o daquele que pretende efetuar um pagamento
coima resulta de diversas normas legais, entre as quais nos termos de lei “que atribua benefícios ou vantagens
se destacam o n.º 1 do artigos 55.º, o n.º 1 do 59.º do no conjunto de certos encargos ou condições”24, sendo
RGCO e o artigo 53.º e n.º 1 do artigo 80.º do RGIT, o benefício em causa o da não sujeição às operações
daí resultando que não existe qualquer incompatibilidade de cobrança coerciva da decisão que o condenou,
entre (i) a extinção do procedimento contraordenacional; além da virtualidade de dispensar a administração da
(ii) a manutenção na ordem jurídica da decisão que alocação de recursos para a sua cobrança25.
dele resulta; e (iii) a manutenção do interesse em A posição defendida pelo STA receciona uma solução
apresentar pedido de tutela jurisdicional quanto à que além de não ser pretendida pelo legislador, é
legalidade de tal decisão. Seguindo o critério do objeto ineficaz, ineficiente e dispendiosa do ponto de vista
da ação impugnatória em que consiste o recurso judicial da boa administração (que é aquela que gasta o
de contraordenação, no caso em apreço a legitimidade mínimo de recursos para realizar os seus fins). Além disso,
particular afetado resultou naturalmente do seu interesse como é desproporcionada porque não existe qualquer
direto e pessoal à legalidade da decisão que sobre justificação para que esse pagamento – feito entre
si dizia respeito21, interesse cuja proteção legal é o dia em que a decisão é tomada e o dia em que é
assegurada pela norma atribuidora do direito a invocar instaurada a execução para a sua cobrança – conduz
a sua invalidade. à ilegal preclusão do direito de impugnação do ato
Donde o claro sentido da norma contida na al. c) que define a responsabilidade contraordenacional26.
do artigo 61.º do RGIT é apenas e só o de incluir, entre Além desta gratuita desproporção, condena os
os factos extintivos do procedimento, o pagamento particulares que pretendam ver discutida a legalidade
feito no seu decurso, que dispense a administração do da decisão que os condenou, à violência de serem
poder-dever de se pronunciar sobre o respetivo caso obrigatoriamente executados pela Autoridade
concreto22. É por isso compreensível que o pagamento Tributária. Execução que os coloca perante o dilema27
feito nessas condições deixe o particular sem interesse de alternativamente ver o património afetado no âmbito
em agir no âmbito de qualquer recurso judicial de das diligências de cobrança coerciva ordenadas pelo
impugnação, que sempre seria aliás desprovido de órgão de execução fiscal, ou efetuar o pagamento do
objeto23. Pelo que nas situações em que o particular, montante devido para a sua extinção da execução,
ao invés de esperar pelo ato a que o procedimento se prestar uma garantia para a sua suspensão ou a obter,
dirige, antecipadamente opte por efetuar o pagamento sendo disso caso, a sua dispensa. Pagamento e garantias
aproveitando os benefícios – que se traduzem em que nesta fase são calculados tendo por base a coima
autênticos convites transacionais – de pagamento aplicada, acrescida de juros, porque realizada fora de
antecipado da coima, fica a entidade administrativa prazo e das custas que o desplante da sua pretensão
competente desonerada do dever de decisão, assim impugnatória necessariamente deu causa.
se extinguindo o procedimento sem que haja pronúncia
quanto à responsabilidade contraordenacional. IV. O STA afasta por fim qualquer ofensa aos
Situações que não se podem confundir com direitos constitucionais do acesso ao direito e à tutela
a do particular a quem essa responsabilidade jurisdicional efetiva28, por considerar que “a arguida
contraordenacional já foi imputada por decisão com deixou de ter qualquer interesse juridicamente atendível
carácter definitivo, e que pretenda espontaneamente no resultado do recurso interposto. É que, ainda que
a decisão jurisdicional que viesse a ser proferida no
recurso lhe fosse favorável, a mesma não repercutiria
21
Cfr. al. a), n.º 1 do artigo 55.º do Código do Processo qualquer efeito útil na sua esfera jurídica, sendo certo
nos Tribunais Administrativos (doravante, “CPTA”).
22 24
Trata-se, por conseguinte, do pagamento voluntário a Cfr. n.º 3 do artigo 9.º da LGT.
que se refere o n.º 1 do artigo 70.º do RGIT, o qual comina 25
Cfr. artigo 5.º do CPA.
que, na notificação ao arguido para apresentar a defesa, 26
deve ainda ser-lhe comunicado “as possibilidades de Sem prejuízo da possibilidade de renúncia expressa,
pagamento antecipado da coima nos termos do artigo 75.º nos termos do n.º 3 do artigo 9.º da LGT.
27
ou, até à decisão do processo, de pagamento voluntário Autisticamente imposto face à realidade do país, já que
nos termos do artigo 78º”. como é sabido, são frequentemente objeto de processos
23
Trata-se do pagamento voluntário a que se refere o artigo de contraordenação aqueles que têm menos recursos e
50.º-A do RGCO, que declara “admissível em qualquer apresentam mais baixos níveis de instrução e menos
altura do processo, mas sempre antes da decisão, o conhecimentos sobre as suas próprias obrigações e meios
pagamento voluntário da coima, a qual, se o contrário não de reação processual.
28
resultar da lei, será liquidada pelo mínimo, sem prejuízo Cfr. n.os 1 e 10 do artigo 20.°, n.os 4 e 5 do artigo 32.° e
das custas que forem devidas.”. artigo 268.° da CRP.
135
José Avilez Ogando RDA

que o interesse em recorrer se define pela utilidade vícios susceptíveis de gerar a antijuridicidade desses
derivada da procedência do recurso. Ora, extinto que actos, têm de ser havidas como inconstitucionais,
está o procedimento contra-ordenacional por motivo e, por via de consequência, como inteiramente
do pagamento voluntário acima referido, a arguida irrelevantes” (JOSÉ MANUEL CARDOSO DA COSTA,
colocou-se voluntariamente na situação de já nada “A tutela dos direitos fundamentais”, Boletim
poder fazer relativamente à coima aplicada”. do Ministério da Justiça – Documentação e Direito
O extraordinário desta argumentação é que, como Comparado, n.º 5, 1981, p. 209). Ou, na formulação
é evidente, nos casos descritos, a “utilidade derivada de J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA
da procedência do recurso” é a anulação do ato e o (Constituição da República Portuguesa Anotada,
dever que dessa anulação resulta para a administração 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 938): “A garantia
“de reconstituir a situação que existiria se o ato anulado constitucional do recurso impede a isenção contenciosa
não tivesse sido praticado”29, ou nas palavras da LGT, de certos actos, ou partes de actos, ou a exclusão do
a “plena reconstituição da situação que existiria se não conhecimento de certos vícios, de modo a conferir
tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo direito à impugnação contenciosa de todos os actos
o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e em todos os aspectos juridicamente vinculados”.”.
condições previstos na lei”30.
Mas recuemos um pouco: nestes autos, o particular Conclusão
invocou o Acórdão do Tribunal Constitucional (doravante,
TC) n.º 135/2009 que considerou inconstitucional A decisão em análise exprime uma jurisprudência
norma que impedia o arguido que pagasse a coima, de pacífica que falha ao basear-se no errado entendimento
discutir mais tarde a existência da infração, mediante a de que a utilidade para os particulares da procedência
apresentação de recurso judicial da decisão administrativa do recurso de contraordenação – que exprime o seu
que aplicou sanção acessória de inibição de conduzir. interesse direto em demandar – consiste em evitar o
Mais uma vez, o STA não soube ou não quis ver o dispêndio do valor da coima. Mas como todos devem
facto lógico de que a inconstitucionalidade verificada reconhecer, o objeto dos recursos de contraordenação
pelo TC decorre do impedimento legal resultante do não são as coimas pagas, mas antes as decisões que
pagamento da coima, de impugnação de decisão posterior declaram infrações concretas por estes praticados e
a esse pagamento, declarativa de infração e fixadora da valoram e aplicam as sanções correspondentes. A primeira
responsabilidade contraordenacional. utilidade da garantia de tutela jurisdicional efetiva é
Como muito bem pressentiu o TC, o que estava em assegurar aos particulares a discussão da legalidade
causa era, “não apenas a faculdade de questionar a das decisões administrativas que lhes digam respeito.
correcção da qualificação jurídica dos factos, mas a Nesta decisão não é tida em conta a grosseira
própria verificação dos factos”. Mais: “não surge como desproporção que consiste em cominar o cumprimento
razoável impor como contrapartida à “vantagem” que espontâneo posterior à prolação da decisão que condena
o arguido terá obtido, ao decidir proceder ao pagamento na prática de contraordenação, com a preclusão do
voluntário da coima, [...] o inconveniente de não poder direito a ver jurisdicionalmente discutida a legalidade
discutir a efectiva verificação dos factos [...]. Ora, da decisão administrativamente tomada quanto à prática
como a jurisprudência deste Tribunal (cf., entre outros, de infração, sobretudo quando anteriormente ou
os Acórdãos n.ºs 429/89 e 8/99) e a mais relevante simultaneamente a esse cumprimento tenha sido
doutrina têm reiteradamente afirmado, “o artigo 269.º, apresentado recurso jurisdicional da mesma decisão.
n.º 2 [actual artigo 268.º, n.º 4], da Constituição, pode Acresce que não são igualmente ponderadas as
e deve ser interpretado como estabelecendo uma inaceitáveis porque injustificadas diferenças de
garantia completa de recurso, quer dizer, uma garantia tratamento31 que se estabelecem entre os particulares
que assegura aos particulares a possibilidade de que procedam ao pagamento da coima dentro do
impugnarem judicialmente todos os actos singulares prazo de pagamento fixado pelo órgão administrativo
e concretos da Administração Pública que produzam que aplica a coima, e aqueles que o fazem no âmbito
efeitos jurídicos externos e sejam susceptíveis, portanto, do processo de execução fiscal. Discriminações
de lesar os seus direitos”, pelo que “quaisquer normas que são além do mais contrárias ao princípio da boa
legais que excluam esta possibilidade de impugnação administração que obriga a favorecer as soluções menos
relativamente a certos actos ou a certas categorias de burocráticas e mais eficientes do ponto de vista da
actos administrativos ou que restrinjam os possíveis menor litigiosidade e melhor gestão dos recursos
fundamentos de tal impugnação apenas a alguns dos públicos32.

29
Cfr. n.º 1 do artigo 172.º do CPA e n.º 1 do artigo 173.º
31
do CPTA. Cfr. artigo 13.º da CRP.
30 32
Cfr. n.º 1 do artigo 100.º da LGT. Cfr. artigo 5.º do CPA.
136
Não ver ou não querer ver? O estranho caso do “pagamento voluntário da coima”
determinado por ato de condenação em infração contraordenacional

A decisão em análise, apesar de exprimir


jurisprudência reiterada, contém assim um manifesto
erro de aplicação do Direito, contrário a jurisprudência
com força obrigatória e geral do Tribunal Constitucional.
Jurisprudência que rejeita quaisquer soluções jurídicas
conducentes ao efeito preclusivo do pagamento
antecipado, nos procedimentos onde o particular visado
venha afinal a ser condenado na prática de infração,
porque suscetível de impedir os particulares afetados
de suscitar as ilegalidades dessa mesma decisão em
sede de recurso jurisdicional.
A interpretação da al. c) do artigo 61.º do RGIT feita
pelo STA no aresto em análise representa uma denegação
do direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva,
que terá porventura alguma origem no indigno
congestionamento da jurisdição administrativa e fiscal,
mas que evidencia um equívoco grosseiro. Equívoco
que consiste em confundir a noção jurídica de
“pagamento antecipado da coima” – que é o “pagamento
voluntário da coima no decurso do processo de
contraordenação tributária”, conducente à imediata
extinção e arquivamento do procedimento sem que
seja formalmente imputada a responsabilidade
contraordenacional33 – com o pagamento que o respetivo
destinatário realizará em cumprimento espontâneo da
obrigação constituída pelo ato administrativo que o
condenou em responsabilidade contraordenacional.
Ato de autoridade este, que não só procede à aplicação
a um caso concreto da coima resultante da lei, como
ainda põe fim – ele mesmo e não qualquer outro –
ao respetivo procedimento.
O leitor que chegou até aqui pode agora apreciar
como a pretensa falta de interesse em agir apontada
pelo aresto anotado, estabelece a favor da administração
uma verdadeira presunção inilidível de renúncia à
impugnação das suas decisões em matéria de
contraordenações. Solução que diariamente vai
sendo distribuída à discrição aos que, com base em
interpretação plausível e de boa-fé que fazem da lei,
vão recorrendo à tutela jurisdicional das decisões da
administração. E que continuamente é adotada e por
isso está à vista de todos, sem que o STA veja ou queira
ver o que verdadeiramente está em causa. Porque a
questão só pode ser vista como aquilo que é: um
expediente de geração jurisprudencial, dirigido ao
descongestionamento processual às custas de direitos
fundamentais dos sujeitos pagantes.

33
Cfr. artigo 61.º, 70.º e 78.º do RGIT à semelhança, aliás,
do disposto no artigo 50.º-A do RGCO.
137
A dupla valoração normativa dos atos tributários
e o caso paradigmático do erro imputável aos serviços

JOSÉ AVILEZ OGANDO * 1

Sumário: 1. A dupla valoração normativa dos atos tributários. 2. O caso paradigmático do


erro imputável aos serviços: 2.1. A posição da doutrina e da jurisprudência; 2.2. Tomada
de posição. 3. Conclusões.

Resumo: Este texto integra a dogmática do Direito Constitucional e do Direito


Administrativo revelando a especialidade da atividade de aplicação de normas subs-
tantivas de Direito Fiscal face às demais atuações da administração. Pretende-se
mostrar como a maior exigência do princípio reforçado da legalidade tributária face
ao princípio geral da legalidade administrativa – constitutivo aliás do princípio tipi-
cidade e em certa medida justificador da autonomia do Direito Fiscal – conduz à
não degradação dos direitos dos contribuintes não afetados pelo dever fundamental
de pagar impostos, em meros interesses legalmente protegidos. Por fim analisa-se
a consequência desta constatação ao nível do procedimento e processo tributário,
em especial no que diz respeito à adequada compreensão da expressão legal “erro
imputável aos serviços”.

Abstract: This text integrates the dogmatic from Constitutional Law and Admi-
nistrative Law, to reveal the peculiarities of the activity of application of subs-
tantive Tax Law norms in relation to other activities of the administration. It is
intended to show how the greater requirement of the reinforced principle of tax
legality with respect to the general principle of administrative legality – constitu-
tive of the typicality principle and to a certain extent justifying the autonomy of
Tax Law – leads to the non-degradation of the rights of taxpayers not affected by
the fundamental duty to pay taxes, into mere legally protected interests. Finally,

* 
Advogado na SGFC Advogados. Mestre em Direito. Doutorando em Direito.

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


542   José Avilez Ogando

the consequence of this finding at the level of the tax procedure and process is
analyzed, especially with regard to the adequate understanding of the legal expres-
sion “error attributable to the services”.

1. A dupla valoração normativa dos atos tributários

1.1. Um dos aspetos essenciais à apreensão da relação jurídico-fiscal con-


siste na integração das ligações existentes entre a malha de normas que produ-
zem efeitos no plano substantivo (normas de decisão material) com as normas
que regulam o exercício dos poderes-deveres procedimentais da administração
(normas de ação). Neste contexto devemos reconhecer a existência de uma
dupla vinculação no plano da atividade administrativa de imposição de tributos.
É que esta deve não só respeitar a precedência e preeminência de lei (n.º 2 do
artigo 103.º e al. i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP) e ser orientada com vista
à realização do interesse público da juridicidade da tributação (n.º 2 do artigo
266.º da CRP), entendido como critério geral de exercício dos poderes-deve-
res da administração, como deve ainda respeitar os direitos subjetivos e inte-
resses legalmente protegidos dos particulares, direitos e interesses que aquela
atividade é suscetível de enfraquecer (n.º 1 do artigo 266.º e n.º 3 do artigo
103.º da CRP).
Com efeito, o pagamento de impostos assenta num dever fundamental que
dá resposta a um conjunto de decisões tomadas pelo Estado quanto à prepon-
derância de certas necessidades públicas sobre as necessidades privadas. A satis-
fação das necessidades financeiras do Estado fiscal, por realizar-se à custa de uma
parcela do produto da economia, baseia-se no regular funcionamento do sis-
tema económico. Sistema que como é sabido, tem como pilares fundamentais
os direitos à propriedade privada e à livre iniciativa económica sintetizados no
direito à livre disposição dos bens próprios como garantia da liberdade econó-
mica e pessoal. Ora, foi precisamente para proteger estes bens que entre o dever
fundamental de pagar impostos e a necessidade de proteção da esfera privada se
interpôs o direito em matéria fiscal, de natureza análoga aos direitos, liberdades
e garantias a não “ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos
da constituição, que tenha natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam
nos teros da lei” (n.º 3 do artigo 103.º da CRP).
Não será assim de estranhar que as situações jurídicas instrumentais que
se desenvolvem no campo do procedimento tributário, visem tutelar, não só
as posições ativas da administração, mas também o respeito pelos direitos dos
administrados, a começar pela proteção da sua esfera patrimonial contra quais-

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


A dupla valoração normativa dos atos tributários e o caso paradigmático do erro…    543

quer imposições que excedam o legalmente exigido1. No centro destes inte-


resses temos o ato tributário, que não obstante ter, como condição de validade
a sua conformidade com a relação material subjacente, a verdade é que para o
futuro, é ele que passa a valer. É a sua abstração2 que permite a centralização
dos elementos da obrigação de imposto necessários à determinação da prestação
dela resultante, num único suporte por todos conhecido, que daí em diante
passa a servir de referente do exercício de direitos3.

1.2. Ora, como é sabido, em geral o legítimo exercício dos poderes da


administração através de atos administrativos envolve uma declaração sobre o
Direito do caso concreto, que frequentemente implica a compressão ou a degra-
dação dos direitos subjetivos dos particulares no mero interesse juridicamente
protegido quanto à legalidade desses atos4. Nesse sentido fala-se em direito
enfraquecido ou comprimido para designar o fenómeno de degradação de um
direito subjetivo num interesse protegido por lei à legalidade da decisão5.
Nestes casos, tais interesses tornam-se na posição jurídica simétrica ao ato de

1 
Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 475-476.
2 
Como ensinam Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 537 citando A.
Ferrer Correia em Lições de Direito Comercial, Vol III, 1975, p. 47, o ato tributário apresenta-se
como um ato abstrato, que ao cristalizar os direitos e deveres emergentes da obrigação de imposto
aos termos por ele declarados, ganha uma existência independente da situação material que lhe deu
origem. Esta qualidade, própria dos demais atos da administração, é-lhe atribuída, tanto na vertente
de abstração formal, traduzida na sua aptidão para desempenhar uma multiplicidade de funções, como
na sua vertente de abstração material, por via da qual o ato, uma vez praticado, passa a valer inde-
pendentemente dos factos que lhe deram origem e do fim por ele visado. A abstração material do
ato tributário é o que explica que depois da definição imperativa da tributação a realizar, a potencial
fluidez dos diferentes entendimentos que possam existir quanto aos elementos da relação material de
imposto passa a apenas poder ser invocada por referência à situação por ele declarada, que assim passa
a servir de centro de intersecção das diferentes posições jurídicas em jogo.
3 
É como ato administrativo que a natureza instrumental do ato tributário releva, concretizando a
previsão legal abstrata nos casos individuais. O traço distintivo deste ato está na sua capacidade de
proceder, com efeitos jurídicos externos, à fixação global da situação jurídica complexa emergente
da obrigação tributária individual e concreta. Através dele, ambas as partes da relação tributária ficam
vinculadas aos termos por ele declarados, possibilitando aos contribuintes o comportamento libera-
tório das suas obrigações e a abertura das vias impugnatórias que visam assegurar a tutela jurisdicional
efetiva dos seus direitos e habilitando a administração a desencadear a execução coerciva do direito
de crédito à prestação nele fixada.
4 
José Robin de Andrade, A Revogação dos Actos Administrativos, 2.ª ed., 1985, pp. 98-104.
5 
A este propósito Paulo Otero Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 240, refere-se a
direitos subjetivos perfeitos, que serão aqueles que não podem ser condicionados ou enfraquecidos
por via de uma atuação administrativa preventiva ou condicionante, por oposição aos direitos enfra-
quecidos que designa por direitos subjetivos imperfeitos.

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


544   José Avilez Ogando

autoridade exercido, garantindo apenas aos particulares o recurso a instrumen-


tos que de controlo da legalidade do exercício dos poderes da administração6.
Acontece que, como nos ensina Alberto Xavier, sendo o ato tributário,
por força do princípio da tipicidade, estritamente vinculado, nele não se mani-
festa qualquer poder de disposição que possa provocar o enfraquecimento ou
a degradação de direitos subjetivos em meros interesses legalmente protegi-
dos. Isto porque, formando-se a obrigação de imposto instantaneamente com
a verificação dos factos tributários, a dívida de imposto está constituída muito
antes de o ato tributário ser praticado7.
No entanto – dizemos nós – isto será assim se a factualidade declarada no
ato corresponda à verdade material e tanto as normas aplicadas, como as ope-
rações realizadas de acordo com as mesmas, estiverem conformes com a lei e o
Direito e forem compatíveis com as demais normas do bloco legal.
A verdade é que isto nem sempre acontece, sendo concebível que o ato
declarativo de factos desconformes com a situação material subjacente venha a
estabilizar-se na ordem jurídica pelo decurso dos prazos de recurso aos meios
de tutela da sua legalidade, consolidando a obrigação de imposto erradamente
declarada no ato. Nestes casos, o ato tributário, ao produzir, por via da abstra-
ção, um efeito de descolamento entre a realidade subjacente e a realidade decla-
rada8, pode atingir a esfera jurídica do contribuinte na parte que vai para além
do recorte anteriormente feito no âmbito da obrigação fiscal, em resultado da
interseção entre facto e norma. Nestas situações, pode dizer-se que o ato tri-
butário terá um efeito potencialmente constitutivo, na medida em que – salvo nos
casos de nulidade – produzirá “efeitos jurídicos, que podem ser destruídos com eficácia
retroativa se o ato vier a ser anulado por decisão proferida pelos tribunais administrativos
ou pela própria Administração” (n.º 2 do artigo 163.º do CPA), efeitos estes que
o decurso dos prazos de impugnação graciosa e contenciosa em regra permite
consolidar.
Sucede que, mesmo nestes casos, esta degradação de direitos dos parti-
culares não ocorrerá como dá testemunho a possibilidade de acionamento da
responsabilidade civil do Estado9 imposta pelo artigo 22.º da CRP, no caso

6 
Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 456. Um exemplo clássico desta
compressão ou enfraquecimento de direitos é o direito do funcionário ao vencimento que resultará
enfraquecido face ao exercício do poder disciplinar de suspensão.
7 
Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 521-522.
8 
Que para todos os efeitos é a que passa a valer, exceto no domínio da discussão da legalidade do
ato tributário.
9 
Cfr. ainda o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei n.º
67/2007 de 31 de dezembro.

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


A dupla valoração normativa dos atos tributários e o caso paradigmático do erro…    545

por violação do seu artigo 103.º n.º 3. É certo que, com o decurso do prazo de
pagamento, a prestação de imposto torna-se imediatamente exigível, proceden-
do-se desde logo à sua execução coerciva, em conformidade com a estrutura
solve et repete do contencioso tributário. No entanto não só não existe qualquer
interesse público na tributação ilegalmente obtida, como a arrecadação ilegal de
tributos é contra esse mesmo interesse público, já que rompe o consentimento
estruturalmente necessário à sustentabilidade do Estado fiscal, colocando em
causa a paz social e o status quo político e prejudica valores essenciais da Cons-
tituição económica10.
Além disso, resultando o imposto num fenómeno impositivo de natureza
obrigacional, logo situado no plano do deve e do haver, a limitação do seu exer-
cício não deve ser feita através de uma passiva e genérica remissão ao direito de
propriedade privada, mas antes mediante o estabelecimento de limites ao exer-
cício desse mesmo poder. Apenas com a interposição, entre o direito de prote-
ção da esfera privada e o dever fundamental de pagar impostos, de um direito
fundamental11, como aquele formulado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, pode
adequadamente impedir-se que o direito do particular confrontado com uma
liquidação ilegal de imposto que decidiu pagar para obstar ao desencadear da
cobrança coerciva da dívida, se torne num direito enfraquecido, e se transforme
em interesse legalmente protegido.
Daí que o direito dos particulares a não serem tributados ilegalmente se
apresente estruturalmente como um direito subjetivo público, por se traduzir num
poder para a prossecução de interesses simultaneamente públicos e privados12
– já que nele se alinham a juridicidade ínsita no Estado de Direito e a neces-
sidade de proteger a esfera privada de abusos cometidos pela administração
no exercício de poderes fiscais13 –, que além do mais figura na Constituição
como direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garan-
tias previstas no catálogo (artigo 17.º da CRP) a não ser obrigado a pagar impostos

10 
Como refere Alberto Xavier, Aspetos Fundamentais do Contencioso Tributário, 1972, pp. 100, o
abuso do poder tributário tem por efeito colocar uma parcela do património do particular em condi-
ções de não ser aproveitado em virtude do pagamento do imposto e consequentemente na privação
das utilidades decorrentes da subtração dessa parcela patrimonial.
11 
Como defendem José Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, 5.ª ed., 2012, p. 81, Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed.,
2003, p. 405, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 3.ª ed., 2000, p. 151, José
Casalta Nabais, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, p. 186, nota 5, Saldanha Sanches,
O ónus da prova no processo fiscal, Lisboa, 1987, p. 5.
12 
Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 6.ª ed., 1951, p. 168.
13 
Esfera privada que, como vimos, é um pilar fundamental do princípio do Estado fiscal já que assenta
por sua vez na estruturação da economia como uma economia de mercado, livre e concorrencial.

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


546   José Avilez Ogando

inconstitucionais ou ilegalmente liquidados e pagos (n.º 3 do artigo 103.º e artigo 17.º


da CRP).

1.3. Donde, ao contrário do que muitas vezes sucede perante o exercício


de poderes de autoridade, de degradação de direitos subjetivos em interesses
legalmente protegidos, o exercício de poderes tributários não degrada ou enfra-
quece os direitos subjetivos dos particulares à proteção da parcela da sua esfera
privada não afetada pelo conteúdo do dever fundamental de pagar impostos.
Porque limitando-se o ato tributário a proceder ao natural desenvolvimento da
obrigação de imposto previamente constituída, revelando e declarando a pres-
tação apta a extingui-la por cumprimento, a esfera privada permanece em geral
intacta. Além disso, o exercício de poderes tributários não degrada o direito
subjetivo dos particulares não abrangido pelo seu dever fundamental de pagar
impostos, porque aquele se encontra protegido por um limite constitucional ao
exercício dos poderes tributários, instituído mediante atribuição aos particula-
res do direito fundamental a não pagar impostos que não hajam sido criados
nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquida-
ção e cobrança se não faça nos termos da lei. Direito que, além de possuir um
conteúdo imediatamente vinculante da administração, em termos idênticos às
demais normas que informam a sua atividade, permanece intacto perante qual-
quer ato de autoridade que o pretenda comprimir.
Pelo que além do limite interno em que a juridicidade da tributação se
traduz, o exercício dos poderes tributários encontra ainda um limite externo
que será o direito fundamental previsto no n.º 3 do artigo 103.º da CRP. Esta
constatação conduz-nos a reconhecer a existência de dois níveis de vinculação
dos atos tributários: o da sua submissão à juridicidade tributária com vista à
correta manifestação da vontade funcional do legislador expressa no âmbito da
sua reserva de lei parlamentar (n.º 2 do artigo 266.º e al. i) do n.º 1 do artigo
165.º e n.º 2 do artigo 103.º da CRP); e o nível do dever de respeito pelos
direitos subjetivos dos particulares, onde se inclui a direta aplicação do direito
fundamental à legalidade na tributação (n.º 1 do artigo 266.º, n.º 3 do artigo
103.º, artigo 17.º e n.º 1 do artigo 18.º da CRP).
Apesar de ambas estas realidades constituírem afinal expressões do mesmo
princípio, mantendo entre si inegáveis zonas de sobreposição, elas funcionam
como perspetivas parcelares da mesma realidade. A primeira perspetiva está ao
nível da prossecução das atribuições da administração fiscal na medida em que
a parcela de interesse público que a lei lhe incumbe de prosseguir implica,
como competência das competências, a aplicação das normas de que depende
a prossecução dessa mesma parcela de interesse público e consequentemente
a conformidade e compatibilidade da sua atuação com a juridicidade. Neste

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


A dupla valoração normativa dos atos tributários e o caso paradigmático do erro…    547

nível de vinculação, a administração deve exercer os seus poderes-deveres tri-


butários no quadro de um procedimento imparcial marcado pelo inquisitório
com vista à descoberta da verdade material, de modo a que possa exprimir a
necessária adesão do conteúdo dos seus atos às situações materiais subjacentes a
que se dirigem. A segunda perspetiva está ao nível do exercício das competências
do autor do ato, na medida em que os poderes funcionais da administração
devem ser exercidos com respeito pelos deveres legais que sobre si impendem,
entre os quais se conta o dever de respeito pelos direitos subjetivos e interesses
legalmente protegidos dos particulares, que em matéria de impostos incluem o
direito fundamental a apenas pagar impostos aprovados por leis válidas e cons-
titucionais e cuja liquidação e cobrança seja feita nos termos da lei.

1.4. Note-se que o ato tributário pode ser visto como conduta objetivamente
desconforme com o quadro legal que lhe corresponde, caso em que se diz que o
ato é ilegal. Mas a contradição do ato com a lei pode resultar de ele ser praticado
com violação de algum dever legal de com ela se conformar – seja ele um dever
instrumental ou o dever de respeito por direitos não enfraquecíeis dos particu-
lares – e nesse caso se diz que o ato além de ilegal é ainda ilícito14. Trata-se de
duas valorações autónomas da maior importância que podem incidir sobre o
mesmo ato: ao passo que a ilegalidade traduz um juízo de reprovação pela des-
conformidade do ato com a lei, a ilicitude é um juízo relativo a uma conduta
marcada por uma violação de um dever legal do agente que a praticou15. Pelo
que os atos ilegais da administração podem ser também ilícitos quando na sua
execução ocorreu preterição de algum dever legal.
A distinção entre os juízos de valor autónomos de ilegalidade e ilicitude
tem interesse quanto ao ato tributário por produzirem em regra consequências
diferentes: ao passo que a ilegalidade conduz à anulabilidade ou à declaração
de nulidade, a ilicitude conduz à responsabilidade civil e consequentemente à
obrigação de indemnizar. Assim, pode o ato ser desconforme com o quadro
legal que lhe corresponde e essa desconformidade não se dever à violação de
qualquer dever por parte do órgão que o pratica. No entanto, é preciso ter em
conta que, como se viu, os atos tributários ilegais são frequentemente ainda

14 
Como a propósito se pode ler no n.º 1 do artigo 9.º do Lei 67/2007, de 31 de dezembro, “Con‑
sideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou
princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de
cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos”.
15 
Alberto Xavier, Aspetos Fundamentais do Contencioso Tributário, 1972, pp. 99-101. No nosso orde-
namento a distinção resulta desde logo do artigo 9.º da Lei n.º 67/2007 de 31 de dezembro. Ver
ainda Soares Martinez, Filosofia do Direito, 2003, p. 555.

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


548   José Avilez Ogando

ilícitos por violação do dever de respeito pelo direito subjetivo público dos
particulares (n.º 1 do artigo 266.º da CRP), com a estrutura de uma liberdade
e natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (artigo 17.º da CRP), a
não pagar impostos inconstitucionais ou cuja liquidação e cobrança se não faça
nos termos da lei.
É este fenómeno de dupla valoração normativa dos atos tributários que permite
explicar a difícil consolidação dos atos anuláveis e o frequente dever de revisão
oficiosa do ato tributário16, mesmo depois de esgotados os meios previstos na
lei para a sua impugnação graciosa e/ou contenciosa. Este meio, a ser despo-
letado tanto a pedido dos contribuintes como por iniciativa da administração
permite reparar situações de injustiça grave ou notória, além de outras, em que
a administração pretenda ilegitimamente fazer-se prevalecer da consolidação de
situações originadas pela sua própria violação de deveres legais de conduta a que
se encontra adstrita no exercício da atividade administrativa.

2. O caso paradigmático do erro imputável aos serviços

Das considerações que antecedem resulta que o ato tributário pode ser des-
conforme com o quadro legal que lhe corresponde, sendo por isso ilegal, e essa
desconformidade não se dever à violação de qualquer dever por parte do órgão
que o pratica, não sendo por isso ilícito. É o caso dos atos praticados sem erro
imputável aos serviços, cuja desconformidade com a lei não resulta da inobser-
vância de qualquer dever por parte da administração (n.º 1 do artigo 43.º da
LGT). Por isso devem ser considerados ilegais, mas não ilícitos, os atos rela-
tivamente aos quais a administração não tenha violado qualquer dever, tendo
cumprido todas as formalidades exigidas por lei e procedido à sua aplicação de
acordo com o material probatório disponibilizado ao longo do procedimento,
e ainda assim, o seu ato conclusivo não reflete a situação material subjacente
resultando num ato discordante com a obrigação de imposto constituída.
É o que acontece nas situações de erro de facto na autoliquidação ou naque-
las em que esta não tenha sido efetuada de acordo com orientações genéricas
emitidas pela administração tributária, em que não haverá erro imputável aos
serviços, mas antes erro imputável ao contribuinte. Em ambos os casos, além
de a impugnação do ato dever ser obrigatoriamente precedida de reclamação
graciosa que permita o posterior reconhecimento e correção do erro praticado
pelo contribuinte (n.º 1 do artigo 131.º do CPPT), não haverá naturalmente

16 
Como veremos adiante, “no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda
não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços” (n.º 1 do artigo 78.º da LGT).

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


A dupla valoração normativa dos atos tributários e o caso paradigmático do erro…    549

lugar a juros indemnizatórios. O legislador vai neste mesmo sentido ao deter-


minar, no n.º 2 do artigo 43.º da LGT que se considere “haver erro imputável aos
serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do
contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da adminis‑
tração tributária, devidamente publicadas”17.

2.1. A posição da doutrina e da jurisprudência

Apesar da proposição com a qual concordamos, de que o conceito de erro


deve ser entendido por contraposição ao conceito de vício, este abrangendo
quaisquer ilegalidades formais e substanciais na ação da administração, que
sejam suscetíveis de conduzir à anulação do ato18, tem-se entendido19, quanto a
nós erradamente, que o erro imputável aos serviços que fundamenta o direito a
juros indemnizatórios refere-se apenas ao erro sobre os pressupostos de facto ou
ao erro sobre os pressupostos de Direito. Assim, têm os nossos tribunais supe-
riores entendido que a anulação de um ato de liquidação unicamente fundada
em vício formal da responsabilidade da administração, não implica a existência
de erro de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior
ao devido. Deste modo têm ficado excluídos do direito a juros indemniza-

17 
Aliás nestes casos, em que se considera haver erro imputável aos serviços, e em que a ilegalidade da
autoliquidação decorre de matéria exclusivamente de Direito, os particulares são muito justamente
dispensados de apresentar reclamação graciosa necessária, pois não se justifica uma pronuncia obriga-
tória prévia da administração (n.º 3 do artigo 131.º do CPPT). A anterior redação do n.º 2 do artigo
78.º da LGT revogada pela al. h) do n.º 1 do artigo 215.º da Lei n.º 7-A/2016 de 30 de março, esta-
tuía que “Sem prejuízo dos ónus legais de reclamação ou impugnação pelo contribuinte, considera-se imputável
aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação”. Tratava-se de uma redação criticável
na medida em que naturalmente nem todos os erros da autoliquidação devam ser considerados erros
imputáveis aos serviços, mas apenas aqueles que possam ser reconduzidos à parcela do ato imputável à
administração. Por isso, somos de opinião que, de iure condendo, deverá a lei considerar expressamente
como imputável aos serviços para efeitos da sua revisão, a ilegalidade da autoliquidação nos casos
previstos no n.º 3 do artigo 131.º do CPPT, sem prejuízo desse entendimento ser atualmente possí-
vel à luz de uma defensável interpretação extensiva do artigo 78.º da LGT, como também entende
Paulo Marques, A Revisão do Acto Tributário, 2017, pp. 185-196.
18 
José Maria Fernandes Pires (coord.), Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 2015, p. 360.
19 
Ver jurisprudência assente do STA dos acórdãos de 29/10/2008 (proc. 622/08), de 21/01/2009
(proc. 0945/08), de 09/09/2009 (proc. 0369/09), de 04/11/2009 (proc. 665/09), de 08/06/2011
(proc. 0876/09), de 20/01/2010 (proc. 0942/09), de 07/09/2011 (proc. 416/11), de 30/05/2012
(proc. 410/12), de 02/12/2015 (proc. 01610/13), de 11/28/2018 (proc. 087/18.0BALSB). Veja-se
também o acórdão do TC n.º 83/2014, que sobre esta matéria também se pronunciou.

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


550   José Avilez Ogando

tórios, casos como os de violação do direito de participação dos particulares


ou de desconsideração dos elementos novos carreados para o procedimento
pelo particular, em violação do principio da descoberta da verdade material.
Trata-se de casos em que, quanto a nós, verificam-se ilegalidades que são tam-
bém ilicitudes, porque imputáveis a condutas realizadas em violação de deveres
de conduta por parte da administração e do dever de respeito pelas garantias
dos contribuintes, todos naturalmente com potencial influencia direta sobre o
resultado do procedimento.
Em defesa daquela tese, Jorge Lopes de Sousa20 refere que dos vícios de
forma resultantes da violação de normas que regulam a atividade da adminis-
tração “não implica que tenha havido lesão da situação jurídica substantiva”. Para
este autor, nos casos em que há a certeza que a prestação patrimonial foi inde-
vidamente exigida, isto é, naqueles em que ocorre a anulação de um ato tri-
butário por não se verificarem os pressupostos de facto ou de direito em que
deva assentar, compreende-se que a LGT atribua uma indemnização baseada
em presunção e não faça idêntica atribuição nos casos em que a ilegalidade
cometida não implique a ilegalidade material da própria prestação. Isto sem que,
acrescenta, “na sequencia de uma anulação derivada de vicio procedimental ou de forma
ou incompetência o contribuinte que se sinta lesado nos seus direitos patrimoniais, esteja
legalmente impedido de exigir judicialmente a reparação a que se julgue com direito”, em
ação destinada a efetivar a responsabilidade civil extracontratual do Estado21.

20 
Jorge Lopes de Sousa, Código do Procedimento e de Processo Tributário, I, 2011, p. 532.
21 
Artigo 22.º da CRP e Lei n.º 67/2007 de 31 de dezembro. A nosso ver, remeter os contribuin-
tes para a ação destinada a efetivar a responsabilidade civil extracontratual do Estado corresponde a
declarar a incapacidade do contencioso tributário para resolver os seus próprios problemas, além de
ser um entendimento contrário ao princípio da plenitude dos meios processuais, nos termos do qual
a todo o direito de impugnar corresponde o meio processual mais adequado de o fazer valer em
juízo (artigo 97.º n.º 2 da LGT). Além disso, é igualmente contrário ao princípio da tutela jurisdi-
cional efetiva (artigo 9.º da LGT, 96.º da CPPT e n.º 4 do artigo 268.º da CRP), pois não só impõe
custos acrescidos aos particulares, como leva aqueles que confiaram no procedimento tributário e
num sentido razoável da lei e mesmo assim as suas pretensões de juros indemnizatórios improcede-
ram com aquele fundamento, a verem mais tarde esgotado o prazo legal de recurso à ação, dado o
atual tempo de decisão dos tribunais administrativos e fiscais. Segundo José Manuel Sérvulo Cor-
reia e Mafalda Carmona, “O princípio pro actione no procedimento administrativo – Ac. do STA de
22.1.2004, p. 2064/03”, CJA, pp. 38 e segs., o princípio pro actione ou do favorecimento processual
impõe que, sendo as leis processuais um instrumento para a realização da justiça, devam evitar-se as
situações de denegação de justiça por excessivo formalismo. Além disso, como reiteram por diver-
sas vezes e muito bem ao longo da sua obra, Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade,
Contencioso Tributário, Vol. I, 2017, por exemplo a p. 518, a subsistência da dicotomia existente no
procedimento e processo tributário entre os meios administrativos e os meios formais tributários típi-

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


A dupla valoração normativa dos atos tributários e o caso paradigmático do erro…    551

No mesmo sentido, vão Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade


entendendo que “não faz sentido indemnizar o contribuinte que sempre teria de proce‑
der ao pagamento do tributo e só tem direito à devolução da quantia paga por razões que
ultrapassam o ato subjacente”22. Segundo estas autoras, serão de afastar quaisquer
dúvidas relativas à constitucionalidade desta solução, porque apesar do direito
previsto no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, a não atribuição de juros indem-
nizatórios não constitui uma aceitação da legalidade de atos de liquidação que
padecem de vícios formais. Estas autoras citam ainda Jesuíno Alcântara Martins
e Costa Alves, referindo que a anulação de um ato tributário com fundamento
em caducidade do direito à liquidação “não implica a existência de qualquer erro
sobre os pressupostos de facto ou de direito”23. No mesmo sentido, Paulo Marques
entende que o erro imputável aos serviços “cinge-se às situações em que está afetada
a definição da relação tributária entre as partes, designadamente a existência de casos em
que fisco cobra uma prestação tributária com carácter indevido, o que não será o caso de
existir o vício de incompetência ou de forma”24.

2.2. Tomada de posição

2.2.1. Não podemos acompanhar estas teses. O exercício de um poder


depois de decorrido o prazo de caducidade, além de ser ilegal e por isso anu-
lável por vício de incompetência relativa, é ainda ilícito e por isso gerador de
responsabilidade pelos danos causados, por violar o dever de respeitar o direito
subjetivo público do contribuinte (artigos 55.º da LGT, 4.º do CPA e n.º 1
do artigo 266.º da CRP) a apenas pagar impostos cuja liquidação seja feita nos
termos da lei (n.º 3 do artigo 103.º da CRP). Além disso, a culpa é presumida
na prática de atos jurídicos ilícitos (n.º 2 do artigo 10.º da Lei 67/2007, de 31
de dezembro), presunção que é precisamente função do n.º 1 do artigo 43.º da
LGT assegurar.
Mas recuemos um pouco: a determinação do sentido e alcance da expres-
são erro imputável aos serviços não tem que ver com a conveniência ou falta dela

cos, dificulta a ação dos intervenientes incluindo a administração tributária e não adianta na proteção
dos contribuintes, bem pelo contrário.
22 
Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade Contencioso Tributário, Vol. I, 2017, pp.
219-222.
23 
Jesuíno Alcântara Martins e Costa Alves, Procedimento e Processo Tributário: uma perspetiva
prática, 2015, p. 69.
24 
Paulo Marques, A Revisão Oficiosa do Acto Tributário, 2017, pp. 246-247.

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


552   José Avilez Ogando

quanto ao pagamento de juros indemnizatórios nos casos de pagamento inde-


vido da prestação tributária por força de atos anulados por vícios formais.
O erro consiste numa forma incorreta de tomar uma decisão. Não se trata de
uma qualidade do ato em si, da declaração do Direito nele contida, mas antes
do modo como ele é praticado. O erro tem lugar quando no decurso de um
procedimento de tomada de decisão, o seu autor viola um qualquer dever a
que esteja obrigado. Nestes casos, o ato não só é desconforme com a lei, como
deve sofrer a consequência associada à circunstância de ter sido produzido com
violação de um dever legal.
E do ato ilegal por vício de forma não se diga não produzir desconformi-
dade entre a prestação por ele declarada e a relação jurídica tributaria que lhe
serve de base, por duas ordens de razão: primeiro, porque as formalidades legal-
mente exigidas servem para assegurar adequados padrões de segurança jurídica,
mas também para que exista concordância entre a prestação declarada no ato e
a relação tributaria subjacente. Defender que a sua preterição não significa que
a prestação tributária não seja indevida, equivale a declarar a irrelevância da sua
integração no procedimento legal de produção de atos tributários. Em segundo
lugar, porque basta a simples possibilidade de a preterição de tais formalidades
influir na decisão final, para que a receção dos mesmos na ordem jurídica deva
ser pura e simplesmente rejeitada, uma vez que não estão asseguradas as míni-
mas condições de fidedignidade exigidas por lei. É o que resulta do regime da
anulabilidade, aplicável aos atos praticados com ofensa dos princípios ou outras
normas jurídicas aplicáveis (artigo 163.º n.º 1 do CPA) e da própria Constitui-
ção, ao declarar no n.º 3 do seu artigo 103.º que ninguém pode ser obrigado
a pagar impostos cuja liquidação se não faça nos termos da lei. E se o contri-
buinte, confrontado com um ato praticado nestas condições, pagar a dívida de
maneira a evitar a sua cobrança coerciva, estará em todo o caso a realizar um
pagamento indevido da prestação tributária (n.º 1 do artigo 43.º da LGT).
Ora, os poderes-deveres de natureza formal estão ligados ao procedimento
precisamente devido à sua natureza instrumental quanto ao seu ato conclusivo.
É para garantir que o ato tributário reproduza fielmente a situação material
subjacente, que o legislador nele integra determinadas formalidades que reputa
de essenciais. E reputa-as de essenciais pela relevância potencial que essas forma-
lidades podem ter no apuramento de casos concretos, sem as quais a fiabilidade
dos seus atos conclusivos, sobretudo em procedimentos massificados como é o
caso dos procedimentos tributários, não pode ser garantida25.

25 
A afirmação fácil de que a inobservância de formalidade essencial em determinado procedimento não
teve qualquer influencia no ato tributário, não deve levar-nos a esquecer que a concreta relevância
de formalidades essenciais apenas pode ser verdadeiramente avaliada depois de elas serem cumpridas.

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


A dupla valoração normativa dos atos tributários e o caso paradigmático do erro…    553

Como exemplos desta relevância temos o direito dos contribuintes à parti-


cipação nas decisões que lhes digam respeito, que se justifica a luz do princípio
do contraditório, mas também do princípio da descoberta da verdade mate-
rial, já que ninguém se encontra em melhor posição do que o contribuinte
para aportar ao procedimento elementos relevantes ao completo apuramento
da obrigação de imposto. Temos ainda o prazo de caducidade do poder-dever
de liquidação de tributos26, porque além do direito que os particulares devem
ter a alguma estabilização das suas relações com a administração, devem ainda
ter a segurança de saber que não lhes serão exigidos impostos muitos anos
após a verificação dos factos que lhes deram origem. É que o decurso de um
determinado prazo torna inaceitáveis os factos apurados, desde logo pela maior
dificuldade da sua contraprova.
Todas estas exigências legais têm finalidades bem definidas, a começar pelo
objetivo de garantir que o ato resultante do procedimento reflita a factuali-
dade efetivamente verificada, e assim exprima realmente a vontade funcional
do legislador. Pelo que, ainda que se pretenda defender, segundo um juízo de
prognose póstuma, que a preterição destas formalidades não afeta o resultado final
da atividade administrativa de gestão fiscal, bastará a mera suscetibilidade ou
potencial de afetar a decisão final tomada no procedimento, para que a mesma
deva ser rejeitada tout court, além de ser qualificada como aquilo que é: um erro
imputável aos serviços.

2.2.2. Além disso, o risco da ilegalidade dos atos da administração, por


preterição de formalidades consideradas essenciais27, influir substancialmente no
ato conclusivo do procedimento, deve correr por conta da administração e não
dos particulares. Como nota Rui Duarte Morais, o entendimento doutrinal e
jurisprudencial atrás descrito tem por efeito a antecipação ilegal e artificial do
vencimento da obrigação tributária nos casos em que o pagamento tenha sido
realizado com vista a obstar a diligências de cobrança, uma vez que, vindo a
liquidação a ser anulada por vicio de forma, o imposto apenas se tornará exi-
gível depois de emitido um segundo ato tributário sem a parte viciada28. Esta

Além de que em procedimentos de massa as formalidades essenciais são estabelecidas precisamente


para obstar aos elevados custos associados ao estabelecimento de procedimentos que não as observem.
Finalmente, como escrevem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de
Processo Civil, 2.ª ed., 1985, p. 390, o erro na forma de processo deve envolver uma inutilização de
todos os atos praticados na medida em que dela resulte uma diminuição das garantias de defesa.
26 
Que como vimos, constitui uma garantia dos contribuintes sujeita a reserva de lei parlamentar.
27 
Pela lei, pela Constituição e por resultarem de direitos dos particulares.
28 
Rui Duarte Morais, Manual de Procedimento e de Processo Tributário, 2016, p. 372.

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


554   José Avilez Ogando

antecipação do momento em que se vence a prestação tributária declarada em


ato produzido com erro exclusivamente imputável à administração é evidente-
mente uma restrição ilegítima do direito dos contribuintes a não pagar impostos
cuja liquidação se não faça nos termos da lei (n.º 3 do artigo 103.º da CRP),
sendo causadora de prejuízos (artigo 22.º da CRP), que devem naturalmente
ser ressarcidos.
Assim, o erro é uma qualificação que se refere ao modo como o ato é produzido,
e será imputável aos serviços quando esse erro lhes deva ser atribuído. Enten-
der esta expressão de outro modo implica desconsiderar a presunção de que
o legislador se soube exprimir em termos adequados (artigo 9.º n.º 3 do CC,
aplicável ex vi do n.º 1 do artigo 11.º da LGT). Mas mesmo aqui, aquelas teses
falham o alvo, porque a ratio que se encontra por detrás do uso da expressão
“erro imputável aos serviços” que encontramos no procedimento tributário resulta
da distinção entre atos que apenas são ilegais e os atos que além de ilegais são
ainda ilícitos por violação de um dever legal a cargo da administração. Pois ao
passo que a ilegalidade é causa de invalidade, a ilicitude conduz ao dever de
indemnizar29.
Não temos dúvidas que, violando a administração um dever a que está
obrigada na produção de um ato tributário, comete um erro que pode ser impu‑
tado aos serviços. Se na sequência desse erro for realizado o pagamento indevido
da dívida tributária, então deve o contribuinte ser indemnizado pelo período
que o montante prestado esteve indevidamente entregue a quem a ele não
tinha, nessa altura, direito. Não indemnizar os contribuintes que paguem inde-
vidamente imposto cuja liquidação se não faça nos termos da lei corresponde a
obrigar os contribuintes a proceder ao seu pagamento, em clara violação do n.º
3 do artigo 103.º da CRP. É a administração e não os contribuintes quem deve
suportar o custo resultante das ilicitudes que lhe são imputáveis. Se a ilicitude
não influi na exigibilidade a final da prestação tributária, a administração terá
a possibilidade de o demonstrar quando praticar o ato sem a parte viciada, e
será então, tarde e não cedo, devido a erro imputável aos serviços, que a dívida
tributária deverá ser exigida.
Do mesmo modo que, quando retardada a liquidação de parte ou da tota-
lidade do imposto devido por facto imputável ao sujeito passivo, são devidos
juros compensatórios (n.º 1 do artigo 35.º da LGT), quando por alguma razão

29 
Só fará sentido que o efeito da anulação respeite apenas ao reembolso em singelo do imposto inde-
vidamente prestado, sem que se admita a constituição do dever de indemnizar, caso se reconheça a
ilegalidade do ato, mas não a ilicitude da conduta imputável à administração, por violação de algum
dever legal a que esteja adstrita por ser a entidade legalmente encarregue da condução do procedi-
mento tributário. Ver Alberto Xavier, Aspetos Fundamentais do Contencioso Tributário, 1972, p. 100.

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


A dupla valoração normativa dos atos tributários e o caso paradigmático do erro…    555

imputável à violação de um dever legal da administração haja de restituir-se ao


contribuinte algum montante por este indevidamente pago, deve entender-se
existir erro imputável aos serviços gerador da obrigação de pagamento de juros
indemnizatórios (artigo 43.º da LGT)30. A não ser assim, o direito do con-
tribuinte à proteção da sua esfera privada perante a atuação da administração
violadora de deveres legais que sobre si impendem, tornar-se-ia num direito
enfraquecido, em violação do n.º 3 do artigo 103.º da CRP e do direito ao
ressarcimento do prejuízo causado pela restrição ilegítima do seu direito (artigo
22.º da CRP, aplicável por remissão do seu artigo 17.º).
Constatamos assim que uma das particularidades do Direito dos impostos é
a circunstância de este ser em grande medida informado pelo direito fundamen-
tal previsto no n.º 3 do artigo 103.º, da CRP. Particularidade de tal modo sig-
nificativa que impede o direito dos particulares à proteção da sua esfera privada
e à livre disposição dos seus bens de se converter em direito enfraquecido em
consequência do exercício de poderes de autoridade administrativa na decla-
ração de direitos tributários, transformando-o em simples interesse legalmente
protegido, e sujeitando as condutas que os violem ou restrinjam ao regime geral
e particular aplicável aos direitos, liberdades e garantias.

3. Conclusões

Podemos agora apreciar como o exercício de poderes tributários não


degrada o direito subjetivo dos particulares à proteção da parcela da sua esfera
privada não afetada pelo conteúdo do dever fundamental de pagar impostos.
Primeiro, porque limitando-se o ato tributário a proceder ao natural desen-

30 
Por esta mesma razão são assimilados a erro imputável aos serviços, as situações previstas no n.º 3 do
artigo 43.º da LGT, em que são devidos juros indemnizatórios: “a) Quando não seja cumprido o prazo
legal de restituição oficiosa dos tributos; b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração
tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito; c) Quando a
revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se
o atraso não for imputável à administração tributária. d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que
declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a
liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.”. Nos dois primeiros casos está em
causa a violação do dever de imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida
a ilegalidade (artigo 100.º da LGT), no terceiro caso temos um atraso de tal ordem do cumprimento
do prazo legal de decisão, que o legislador a partir de certa altura começa a considerar injustificável,
passando por isso a ligar a erro imputável aos serviços (n.º 1 do artigo 56.º e n.º 1 do artigo 57.º da LGT).
Finalmente, no último caso o que está em causa é evidentemente a violação do dever de respeito
pelo direito subjetivo público dos contribuintes a apenas pagar impostos que hajam sido criados nos
termos da Constituição (n.º 3 do artigo 103.º da CRP).

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


556   José Avilez Ogando

volvimento da obrigação de imposto previamente constituída, a esfera privada


permanece em geral intacta. Depois, porque esta encontra-se protegida por um
limite constitucional ao exercício dos poderes tributários, instituído mediante
atribuição aos particulares do direito fundamental que, além de possuir um
conteúdo imediatamente vinculante da administração, em termos idênticos às
demais normas que informam a sua atividade, permanece intacto perante atos
de autoridade que o pretendam comprimir.
Pelo que os atos tributários estão condicionados por dois níveis de vincula-
ção: o da correta expressão da legalidade tributária com vista à correta manifes-
tação da vontade funcional do legislador expressa no âmbito da sua reserva de
lei parlamentar (n.º 2 do artigo 266.º, al. i) do n.º 1 do artigo 165.º e n.º 2 do
artigo 103.º da CRP); e o nível do cumprimento das vinculações legais de que
depende o exercício das posições jurídicas ativas da administração, seja as que
se impõem por força do interesse público no exercício da função administra-
tiva31, sejam as que decorram da obrigação de respeito pelos direitos subjetivos
dos particulares, onde se inclui a aplicação direta do direito fundamental a não
pagar impostos inconstitucionais ou ilegalmente liquidados e cobrados (n.º 1 do
artigo 266.º, n.º 3 do artigo 103.º, artigo 17.º e n.º 1 do artigo 18.º da CRP).
O ato tributário está assim sujeito a duas valorações autónomas de descon-
formidade face ao quadro legal que lhe corresponde: o ato será ilegal por estar
em contradição com a lei, vício que conduz à anulabilidade ou à declaração de
nulidade, e será ainda ilícito se for praticado com violação de algum dever legal
a que a administração estiver sujeita, caso em que a desconformidade é con-
ducente à responsabilidade civil e à obrigação de indemnizar32. O erro con-
siste numa forma incorreta de tomar uma decisão e será imputável aos serviços
quando lhes deva ser atribuído. A ratio que se encontra por detrás da expressão
“erro imputável aos serviços” que encontramos na lei resulta da distinção entre atos
que apenas são ilegais e os atos que além de ilegais são ainda ilícitos por violação
de um dever legal a que a administração está adstrita.
O encerramento por decurso do tempo dos diferentes meios impugnató-
rios dos atos tributários em geral pode ter o mesmo efeito que a constituição
de direitos sobreponíveis às relações jurídicas previamente constituídas ou na
ausência destas, a direitos dos particulares. Mas como a juridicidade tributária
é reforçada por um direito de natureza análoga, repugna-lhe que a sanação da
ilegalidade dos atos tenha lugar por mero decurso do tempo. Sendo por isso

31 
Vinculações em que, dada a sua natureza de poderes-deveres, a administração não é livre no seu
exercício.
32 
Estamos em crer encontrar-se por construir uma dogmática própria da ilegalidade dos atos tribu-
tários, tema que pensamos terá interesse ser abordado em texto autónomo.

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


A dupla valoração normativa dos atos tributários e o caso paradigmático do erro…    557

que no procedimento tributário, o esgotamento dos prazos previstos na lei para


o recurso a certos meios impugnatórios em muitos casos não preclude o direito
a mais tarde suscitar a apreciação da ilegalidade dos atos tributários.
Não significa isto qualquer aproximação ao regime da nulidade já que, ape-
sar de em certos casos a ilegalidade dos atos tributários poder ser arguida muito
depois de decorrido o prazo de reclamação ou impugnação, a regra continua
a ser a da sua anulabilidade, o que significa que em regra os atos em discussão
produzirão efeitos jurídicos, que podem ser destruídos com eficácia retroativa,
caso venham a ser anulados por decisão proferida pelos tribunais ou pela pró-
pria administração. Além disso, o pedido de revisão oficiosa do ato tributário
está condicionado à existência, não de ilegalidade, mas de erro imputável aos
serviços, duplicação de coleta ou de injustiça grave ou notória33.
Nestes termos, o prazo de consolidação definitiva dos atos tributários não
coincide com o esgotamento dos prazos para a sua impugnação administrativa
ou contenciosa, sempre que a ilegalidade resulte de erro imputável aos serviços
ou dê origem a situações de injustiça grave ou notória, caso em que a discussão
da legalidade do ato ainda pode ter lugar no âmbito do acionamento da revisão
oficiosa do ato tributário, em regra desencadeado antes do decurso de quatro
anos após a liquidação, ou a todo o tempo, se o tributo ainda não tiver sido
pago.
Esgotados estes prazos, a relação material de imposto, tal como se encontra
configurada no ato tributário ilegal, em princípio consolida-se, em virtude da
caducidade do poder de praticar o ato tributário sem a ilegalidade cometida,
exceto nos casos de nulidade (n.º 3 do artigo 102.º do CPPT).

33 
Apesar do paralelismo evidente da expressão “injustiça grave ou notória” com a cláusula alemã das
nulidades por natureza, nenhuma das qualificações desencadeadores da revisão dos atos tributários
constitui causa de ilegalidade, não podendo por isso servir de base a qualquer teoria de invalidades
mistas. A primeira por se referir a “injustiça” e não a ilegalidade; e as expressões “erro imputável aos
serviços” e “duplicação de coleta” por serem na verdade causas de ilicitude, referindo-se à violação de
deveres de conduta por parte da administração no exercício das suas funções. Não obstante se con-
ceda que este tipo de violação pode não estar presente nos casos da “duplicação de coleta”, sempre que
esta se deva a negligencia do contribuinte, estamos em crer que mesmo nestes casos esta acabe por
se reconduzir a evidentes injustiças graves ou notórias.

O Direito 154.º (2022), III, 541-557


A dupla valoração normativa dos atos tributários
– e o caso paradigmático do erro imputável aos serviços

1. A dupla valoração normativa dos atos tribu- como garantia da liberdade económica e pessoal.
tários Ora, foi precisamente para proteger estes bens que
entre o dever fundamental de pagar impostos e a
1.1. Um dos aspetos essenciais à apreensão da necessidade de proteção da esfera privada se inter-
relação jurídico-fiscal consiste na integração das li- pôs o direito em matéria fiscal, de natureza análoga
gações existentes entre a malha de normas que aos direitos, liberdades e garantias, a não “ser obri-
produzem efeitos no plano substantivo (normas de gado a pagar impostos que não hajam sido criados nos
decisão material) e as normas que regulam o exer- termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva
cício dos poderes-deveres procedimentais da Ad- ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da
ministração (normas de ação). Neste contexto, lei” (n.º 3 do art. 103.º da CRP).
devemos reconhecer a existência de uma dupla Não será assim de estranhar que as situações ju-
vinculação no plano da atividade administrativa rídicas instrumentais que se desenvolvem no campo
de imposição de tributos. É que esta deve não só do procedimento tributário visem tutelar não só as
respeitar a precedência e preeminência da lei [n.º posições ativas da Administração, mas também o
2 do art. 103.º e alínea i) do n.º 1 do art. 165.º da respeito pelos direitos dos administrados, a começar
Constituição da República Portuguesa (CRP)] e ser pela proteção da sua esfera patrimonial contra
orientada com vista à realização do interesse pú- quaisquer imposições que excedam o legalmente
blico da juridicidade da tributação (n.º 2 do art. exigido (1). No centro destes interesses temos o ato
266.º da CRP), entendido como critério geral de tributário, que, não obstante ter, como condição de
exercício dos poderes-deveres da Administração, validade, a sua conformidade com a relação material
como deve ainda respeitar os direitos subjetivos e subjacente, a verdade é que, para o futuro, é ele que
interesses legalmente protegidos dos particulares, passa a valer. É a sua abstração (2) que permite a cen-
direitos e interesses que aquela atividade é susce-
tível de enfraquecer (n.º 1 do art. 266.º e n.º 3 do art.
103.º da CRP). (1) ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário,
1972, pp. 475-476.
Com efeito, o pagamento de impostos assenta
(2) Como ensina ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto
num dever fundamental que dá resposta a um con- Tributário, cit., p. 537, citando A. FERRER CORREIA em Lições de Di-
junto de decisões tomadas pelo Estado quanto à reito Comercial, vol. III, 1975, p. 47, o ato tributário apresenta-se
preponderância de certas necessidades públicas como um ato abstrato, que, ao cristalizar os direitos e deveres
emergentes da obrigação de imposto aos termos por ele decla-
sobre as necessidades privadas. A satisfação das ne- rados, ganha uma existência independente da situação material
cessidades financeiras do Estado fiscal, por realizar- que lhe deu origem. Esta qualidade, própria dos demais atos da
se à custa de uma parcela do produto da economia, Administração, é-lhe atribuída, tanto na vertente de abstração
formal, traduzida na sua aptidão para desempenhar uma mul-
baseia-se no regular funcionamento do sistema eco- tiplicidade de funções, como na vertente de abstração material,
nómico. Sistema que, como é sabido, tem como pi- por via da qual o ato, uma vez praticado, passa a valer indepen-
lares fundamentais os direitos à propriedade dentemente dos factos que lhe deram origem e do fim por ele
visado. A abstração material do ato tributário é o que explica
privada e à livre iniciativa económica sintetizados que depois da definição imperativa da tributação a realizar, a
no direito à livre disposição dos bens próprios potencial fluidez dos diferentes entendimentos que possam

15
A dupla valoração normativa dos atos tributários – e o caso paradigmático do erro imputável aos serviços

tralização dos elementos da obrigação de imposto Acontece que, como nos ensina ALBERTO XAVIER,
necessários à determinação da prestação dela resul- sendo o ato tributário, por força do princípio da ti-
tante, num único suporte por todos conhecido, que picidade, estritamente vinculado, nele não se mani-
daí em diante passa a servir de referente do exercício festa qualquer poder de disposição que possa pro-
de direitos (3). vocar o enfraquecimento ou a degradação de direi-
tos subjetivos em meros interesses legalmente pro-
1.2. Ora, como é sabido, em geral, o legítimo tegidos. Isto porque, formando-se a obrigação de
exercício dos poderes da Administração através de imposto instantaneamente com a verificação dos fac-
atos administrativos envolve uma declaração sobre tos tributários, a dívida de imposto está constituída
o Direito do caso concreto, que frequentemente im- muito antes de o ato tributário ser praticado (7).
plica a compressão ou a degradação dos direitos No entanto – dizemos nós –, isto será assim se a
subjetivos dos particulares no mero interesse juri- factualidade declarada no ato corresponder à ver-
dicamente protegido quanto à legalidade desses dade material e tanto as normas aplicadas como as
atos (4). Neste sentido, fala-se em direito enfraque- operações realizadas de acordo com as mesmas es-
cido ou comprimido para designar o fenómeno de tiverem conformes com a lei e o Direito e forem
degradação de um direito subjetivo num interesse compatíveis com as demais normas do bloco legal.
protegido por lei à legalidade da decisão (5). Nestes A verdade é que isto nem sempre acontece,
casos, tais interesses tornam-se na posição jurídica sendo concebível que o ato declarativo de factos des-
simétrica ao ato de autoridade exercido, garan- conformes com a situação material subjacente venha
tindo apenas aos particulares o recurso a instru- a estabilizar-se na ordem jurídica pelo decurso dos
mentos de controlo da legalidade do exercício dos prazos de recurso aos meios de tutela da sua legali-
poderes da Administração (6). dade, consolidando a obrigação de imposto errada-
mente declarada no ato. Nestes casos, o ato tribu-
tário, ao produzir, por via da abstração, um efeito
existir quanto aos elementos da relação material de imposto de descolamento entre a realidade subjacente e a rea-
passa a apenas poder ser invocada por referência à situação por
ele declarada, que assim se torna no centro de interseção das di- lidade declarada (8), pode atingir a esfera jurídica do
ferentes posições jurídicas em jogo. contribuinte na parte que vai para além do recorte an-
(3) É como ato administrativo que a natureza instrumental do teriormente feito no âmbito da obrigação fiscal, em
ato tributário releva, concretizando a previsão legal abstrata nos
casos individuais. O traço distintivo deste ato está na sua capaci-
resultado da interseção entre facto e norma. Nestas
dade de proceder, com efeitos jurídicos externos, à fixação global situações, pode dizer-se que o ato tributário terá um
da situação jurídica complexa emergente da obrigação tributária efeito potencialmente constitutivo, na medida em que
individual e concreta. Através dele, ambas as partes da relação
jurídica tributária ficam vinculadas aos termos por ele declarados,
– salvo nos casos de nulidade – produzirá “efeitos ju-
possibilitando aos contribuintes o comportamento liberatório das rídicos, que podem ser destruídos com eficácia retroativa
suas obrigações e a abertura das vias impugnatórias que visam se o ato vier a ser anulado por decisão proferida pelos tri-
assegurar a tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos e habili-
bunais administrativos ou pela própria Administração”
tando a Administração a desencadear a execução coerciva do di-
reito de crédito à prestação nele fixada. [n.º 2 do art. 163.º do Código do Procedimento Ad-
(4) JOSÉ ROBIN DE ANDRADE, A Revogação dos Actos Adminis- ministrativo (CPA)], efeitos estes que o decurso dos
trativos, 2.ª ed., 1985, pp. 98-104.
prazos de impugnação graciosa e contenciosa em
(5) A este propósito, PAULO OTERO, Manual de Direito Admi-
nistrativo, vol. I, 2013, p. 240, refere-se a direitos subjetivos per- regra permite consolidar.
feitos, que serão aqueles que não podem ser condicionados ou Sucede que, mesmo nestes casos, esta degrada-
enfraquecidos por via de uma atuação administrativa preven-
ção de direitos dos particulares não ocorrerá, como
tiva ou condicionante, por oposição aos direitos enfraquecidos
que designa por direitos subjetivos imperfeitos.
(6) ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, cit.,
p. 456. Um exemplo clássico desta compressão ou enfraqueci- (7) ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, cit.,
mento de direitos é o direito do funcionário ao vencimento, que pp. 521-522.
resultará enfraquecido face ao exercício do poder disciplinar de (8) Que para todos os efeitos é a que passa a valer, exceto no
suspensão. domínio da discussão da legalidade do ato tributário.

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JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 35 • Janeiro/Março 2022

dá testemunho a possibilidade de acionamento da Daí que o direito dos particulares a não serem
responsabilidade civil do Estado (9) imposta pelo tributados ilegalmente se apresente estruturalmente
art. 22.º da CRP, no caso, por violação do seu art. como um direito subjetivo público, por se traduzir
103.º, n.º 3. É certo que, com o decurso do prazo de num poder para a prossecução de interesses simul-
pagamento, a prestação de imposto torna-se ime- taneamente públicos e privados (12) – já que nele se
diatamente exigível, procedendo-se desde logo à alinham a juridicidade ínsita no Estado de Direito e
sua execução coerciva, em conformidade com a es- a necessidade de proteger a esfera privada de abu-
trutura solve et repete do contencioso tributário. No sos cometidos pela Administração no exercício de
entanto, não só não existe qualquer interesse pú- poderes fiscais (13) –, que, além do mais, figura na
blico na tributação ilegalmente obtida, como a ar- Constituição como direito fundamental de natureza
recadação ilegal de tributos é contra esse mesmo análoga aos direitos, liberdades e garantias previstas
interesse público, já que rompe o consentimento es- no catálogo (art. 17.º), a não ser obrigado a pagar im-
truturalmente necessário à sustentabilidade do Es- postos inconstitucionais ou ilegalmente liquidados e pagos
tado fiscal, colocando em causa a paz social e o (n.º 3 do art. 103.º e art. 17.º da CRP).
status quo político e prejudica valores essenciais da
Constituição económica (10). 1.3. Donde, ao contrário do que muitas vezes
Além disso, resultando o imposto num fenó- sucede perante o exercício de poderes de autori-
meno impositivo de natureza obrigacional, logo si- dade, de degradação de direitos subjetivos em in-
tuado no plano do deve e do haver, a limitação do teresses legalmente protegidos, o exercício de
seu exercício não deve ser feita através de uma pas- poderes tributários não degrada ou enfraquece os
siva e genérica remissão ao direito de propriedade direitos subjetivos dos particulares à proteção da
privada, mas antes mediante o estabelecimento de parcela da sua esfera privada não afetada pelo con-
limites ao exercício desse mesmo poder. Apenas teúdo do dever fundamental de pagar impostos.
com a interposição, entre o direito de proteção da Porque limitando-se o ato tributário a proceder ao
esfera privada e o dever fundamental de pagar im- natural desenvolvimento da obrigação de imposto
postos, de um direito fundamental (11), como aquele previamente constituída, revelando e declarando a
formulado no n.º 3 do art. 103.º da CRP, pode ade- prestação apta a extingui-la por cumprimento, a es-
quadamente impedir-se que o direito do particular fera privada permanece, em geral, intacta. Além
confrontado com uma liquidação ilegal de imposto disso, o exercício de poderes tributários não de-
que decidiu pagar para obstar ao desencadear da grada o direito subjetivo dos particulares não
cobrança coerciva da dívida se torne num direito abrangido pelo seu dever fundamental de pagar
enfraquecido, e se transforme em interesse legal- impostos, porque aquele se encontra protegido por
mente protegido. um limite constitucional ao exercício dos poderes
tributários, instituído mediante atribuição aos par-
ticulares do direito fundamental a não pagar im-
(9) Cfr. ainda o Regime da Responsabilidade Civil Extracon-
tratual do Estado, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31/12. postos que não hajam sido criados nos termos da
(10) Como refere ALBERTO XAVIER, Aspectos Fundamentais do Constituição, que tenham natureza retroativa ou
Contencioso Tributário, 1972, p. 100, o abuso do poder tributário
cuja liquidação e cobrança se não faça nos termos
tem por efeito colocar uma parcela do património do particular
em condições de não ser aproveitado em virtude do pagamento da lei. Direito que, além de possuir um conteúdo
do imposto e consequentemente na privação das utilidades de- imediatamente vinculante da Administração, em
correntes da subtração dessa parcela patrimonial.
(11) Como defendem JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fun-
damentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª ed., 2012, p. 81; (12) MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 6.ª
GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ed., 1951, p. 168.
7.ª ed., 2003, p. 405; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitu- (13) Esfera privada que, como vimos, é um pilar fundamen-
cional, tomo IV, 3.ª ed., 2000, p. 151; JOSÉ CASALTA NABAIS, O Dever tal do princípio do Estado fiscal, já que assenta, por sua vez, na
Fundamental de Pagar Impostos, 1997, p. 186, nota 5; e SALDANHA estruturação da economia como uma economia de mercado,
SANCHES, O Ónus da Prova no Processo Fiscal, Lisboa, 1987, p. 5. livre e concorrencial.

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A dupla valoração normativa dos atos tributários – e o caso paradigmático do erro imputável aos serviços

termos idênticos às demais normas que informam tos aprovados por leis válidas e constitucionais e
a sua atividade, permanece intacto perante qual- cujas liquidação e cobrança sejam feitas nos termos
quer ato de autoridade que o pretenda comprimir. da lei.
Pelo que, além do limite interno em que a juridi-
cidade da tributação se traduz, o exercício dos po- 1.4. Note-se que o ato tributário pode ser visto
deres tributários encontra ainda um limite externo como conduta objetivamente desconforme com o qua-
que será o direito fundamental previsto no n.º 3 do dro legal que lhe corresponde, caso em que se diz
art. 103.º da CRP. Esta constatação conduz-nos a re- que o ato é ilegal. Mas a contradição do ato com a
conhecer a existência de dois níveis de vinculação lei pode resultar do facto de ele ser praticado com
dos atos tributários: o da sua submissão à juridici- violação de algum dever legal de com ela se con-
dade tributária com vista à correta manifestação da formar – seja um dever instrumental ou o dever de
vontade funcional do legislador expressa no âmbito respeito por direitos não enfraquecíeis dos particu-
da sua reserva de lei parlamentar [n.º 2 do art. 266.º, lares – e, neste caso, diz-se que o ato, além de ilegal,
alínea i) do n.º 1 do art. 165.º e n.º 2 do art. 103.º da é ainda ilícito (14). Trata-se de duas valorações au-
CRP]; e o do dever de respeito pelos direitos subje- tónomas da maior importância que podem incidir
tivos dos particulares, onde se inclui a direta aplica- sobre o mesmo ato: ao passo que a ilegalidade tra-
ção do direito fundamental à legalidade na tribu- duz um juízo de reprovação pela desconformidade
tação (n.º 1 do art. 266.º, n.º 3 do art. 103.º, art. 17.º e do ato com a lei, a ilicitude é um juízo relativo a
n.º 1 do art. 18.º da CRP). uma conduta marcada por uma violação de um
Apesar de ambas as realidades constituírem afi- dever legal do agente que a praticou (15). Pelo que
nal expressões do mesmo princípio, mantendo entre os atos ilegais da Administração podem ser tam-
si inegáveis zonas de sobreposição, elas funcionam bém ilícitos quando na sua execução ocorreu pre-
como perspetivas parcelares da mesma realidade. A terição de algum dever legal.
primeira perspetiva está ao nível da prossecução das A distinção entre os juízos de valor autónomos
atribuições da Administração fiscal na medida em de ilegalidade e de ilicitude tem interesse quanto ao
que a parcela de interesse público que a lei lhe in- ato tributário por produzirem em regra consequên-
cumbe de prosseguir implica, como competência cias diferentes: ao passo que a ilegalidade conduz
das competências, a aplicação das normas de que à anulabilidade ou à declaração de nulidade, a ili-
depende a prossecução dessa mesma parcela de in- citude conduz à responsabilidade civil e consequen-
teresse público e consequentemente a conformidade temente à obrigação de indemnizar. Assim, pode o
e compatibilidade da sua atuação com a juridici- ato ser desconforme com o quadro legal que lhe
dade. Neste nível de vinculação, a Administração corresponde e essa desconformidade não se dever
deve exercer os seus poderes-deveres tributários no à violação de qualquer dever por parte do órgão
quadro de um procedimento imparcial marcado que o pratica. No entanto, é preciso ter em conta
pelo inquisitório com vista à descoberta da verdade que, como se viu, os atos tributários ilegais são fre-
material, de modo a que possa exprimir a necessária quentemente ainda ilícitos por violação do dever de
adesão do conteúdo dos seus atos às situações ma- respeito pelo direito subjetivo público dos particu-
teriais subjacentes a que se dirigem. A segunda pers-
petiva está ao nível do exercício das competências do (14) Como a propósito se pode ler no n.º 1 do art. 9.º da Lei
autor do ato, na medida em que os poderes funcio- n.º 67/2007, “[c]onsideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titula-
nais da Administração devem ser exercidos com res- res de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princí-
pios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de
peito pelos deveres legais que sobre si impendem, ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa
entre os quais se conta o dever de respeito pelos di- de direitos ou interesses legalmente protegidos”.
reitos subjetivos e interesses legalmente protegidos (15) ALBERTO XAVIER, Aspectos Fundamentais do Contencioso Tri-
butário, cit., pp. 99-101. No nosso ordenamento, a distinção re-
dos particulares, que, em matéria de impostos, in- sulta, desde logo, do art. 9.º da Lei n.º 67/2007. Ver, ainda, SOARES
cluem o direito fundamental a apenas pagar impos- MARTINEZ, Filosofia do Direito, 2003, p. 555.

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JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 35 • Janeiro/Março 2022

lares (n.º 1 do art. 266.º da CRP), com a estrutura de É o que acontece nas situações de erro de facto
uma liberdade e natureza análoga aos direitos, li- na autoliquidação ou naquelas em que esta não
berdades e garantias (art. 17.º da CRP), a não pagar tenha sido efetuada de acordo com orientações ge-
impostos inconstitucionais ou cujas liquidação e co- néricas emitidas pela Administração Tributária, em
brança se não façam nos termos da lei. que não haverá erro imputável aos serviços, mas
É este fenómeno de dupla valoração normativa dos antes erro imputável ao contribuinte. Em ambos os
atos tributários que permite explicar a difícil con- casos, além de a impugnação do ato dever ser obri-
solidação dos atos anuláveis e o frequente dever de gatoriamente precedida de reclamação graciosa
revisão oficiosa do ato tributário (16), mesmo depois que permita o posterior reconhecimento e a corre-
de esgotados os meios previstos na lei para a sua ção do erro praticado pelo contribuinte [n.º 1 do art.
impugnação graciosa e/ou contenciosa. Este meio, 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tri-
a ser despoletado tanto a pedido dos contribuintes butário (CPPT)], não haverá naturalmente lugar a
como por iniciativa da Administração, permite re- juros indemnizatórios. O legislador vai neste mesmo
parar situações de injustiça grave ou notória, além sentido ao determinar, no n.º 2 do art. 43.º da LGT,
de outras, em que a Administração pretenda ilegi- que se considere “haver erro imputável aos serviços nos
timamente fazer-se prevalecer da consolidação de casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com
situações originadas pela sua própria violação de base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no
deveres legais de conduta a que se encontra ads- seu preenchimento, as orientações genéricas da adminis-
trita no exercício da atividade administrativa. tração tributária, devidamente publicadas” (17).

2. O caso paradigmático do erro imputável aos 2.1. A posição da doutrina e da jurisprudência


serviços
Apesar da proposição com a qual concordamos,
Das considerações que antecedem resulta que o de que o conceito de erro deve ser entendido por con-
ato tributário pode ser desconforme com o quadro traposição ao conceito de vício, este abrangendo
legal que lhe corresponde, sendo por isso ilegal, e quaisquer ilegalidades formais e substanciais na
essa desconformidade não se dever à violação de ação da Administração, que sejam suscetíveis de
qualquer dever por parte do órgão que o pratica,
não sendo por isso ilícito. É o caso dos atos pratica-
dos sem erro imputável aos serviços, cuja descon- (17) Aliás, nestes casos, em que se considera haver erro im-
formidade com a lei não resulta da inobservân- putável aos serviços, e em que a ilegalidade da autoliquidação de-
corre de matéria exclusivamente de Direito, os particulares são
cia de qualquer dever por parte da Administração
muito justamente dispensados de apresentar reclamação gra-
[n.º 1 do art. 43.º da Lei Geral Tributária (LGT)]. Por ciosa necessária, pois não se justifica uma pronúncia obrigatória
isso, devem ser considerados ilegais, mas não ilíci- prévia da Administração (n.º 3 do art. 131.º do CPPT). A anterior
redação do n.º 2 do art. 78.º da LGT revogada pela alínea h) do
tos, os atos relativamente aos quais a Administração
n.º 1 do art. 215.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30/3, estatuía que, “[s]em
não tenha violado qualquer dever, tendo cumprido prejuízo dos ónus legais de reclamação ou impugnação pelo contri-
todas as formalidades exigidas por lei e procedido buinte, considera-se imputável aos serviços, para efeitos do número
anterior, o erro na autoliquidação”. Tratava-se de uma redação cri-
à sua aplicação de acordo com o material probatório
ticável na medida em que naturalmente nem todos os erros da
disponibilizado ao longo do procedimento, e, ainda autoliquidação devem ser considerados erros imputáveis aos
assim, o seu ato conclusivo não reflete a situação serviços, mas apenas aqueles que possam ser reconduzidos à
material subjacente, resultando num ato discor- parcela do ato imputável à Administração. Por isso, somos de opi-
nião que, de iure condendo, deverá a lei considerar expressamente
dante com a obrigação de imposto constituída. como imputável aos serviços, para efeitos da sua revisão, a ile-
galidade da autoliquidação nos casos previstos no n.º 3 do art.
131.º do CPPT, sem prejuízo de esse entendimento ser atual-
(16) Como veremos adiante, “no prazo de quatro anos após a li- mente possível à luz de uma defensável interpretação extensiva
quidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com do art. 78.º da LGT, como também entende PAULO MARQUES, A
fundamento em erro imputável aos serviços” (n.º 1 do art. 78.º da LGT). Revisão do Acto Tributário, 2017, pp. 185-196.

19
A dupla valoração normativa dos atos tributários – e o caso paradigmático do erro imputável aos serviços

conduzir à anulação do ato (18), tem-se entendido (19), Geral Tributária atribua uma indemnização baseada
quanto a nós erradamente, que o erro imputável aos em presunção e não faça idêntica atribuição nos
serviços que fundamenta o direito a juros indemni- casos em que a ilegalidade cometida não implique
zatórios refere-se apenas ao erro sobre os pressupos- a ilegalidade material da própria prestação. Isto sem
tos de facto ou ao erro sobre os pressupostos de que, acrescenta, “na sequência de uma anulação deri-
Direito. Assim, têm os nossos tribunais superiores vada de vício procedimental ou de forma ou incompetên-
entendido que a anulação de um ato de liquidação cia, o contribuinte que se sinta lesado nos seus direitos
fundada unicamente em vício formal da responsa- patrimoniais esteja legalmente impedido de exigir judi-
bilidade da Administração não implica a existência cialmente a reparação a que se julgue com direito”, em
de erro de que resulte pagamento da dívida tribu- ação destinada a efetivar a responsabilidade civil ex-
tária em montante superior ao devido. Deste modo, tracontratual do Estado (21).
têm ficado excluídos do direito a juros indemniza- No mesmo sentido vão SERENA CABRITA NETO e
tórios casos como os de violação do direito de parti- CARLA CASTELO TRINDADE, entendendo que “não faz
cipação dos particulares ou de desconsideração dos sentido indemnizar o contribuinte que sempre teria de
elementos novos carreados para o procedimento proceder ao pagamento do tributo e só tem direito à de-
pelo particular, em violação do princípio da desco- volução da quantia paga por razões que ultrapassam o
berta da verdade material. Trata-se de casos em que, ato subjacente” (22). Segundo estas Autoras, serão de
quanto a nós, se verificam ilegalidades que são tam- afastar quaisquer dúvidas relativas à constitucio-
bém ilicitudes, porque imputáveis a condutas reali- nalidade desta solução, porque apesar do direito
zadas em violação de deveres de conduta por parte
da Administração e do dever de respeito pelas ga- (21) Art. 22.º da CRP e Lei n.º 67/2007, de 31/12. A nosso ver,
rantias dos contribuintes, todos naturalmente com remeter os contribuintes para a ação destinada a efetivar a res-
ponsabilidade civil extracontratual do Estado corresponde a de-
potencial influência direta sobre o resultado do pro- clarar a incapacidade do contencioso tributário para resolver os
cedimento. seus próprios problemas, além de ser um entendimento contrário
Em defesa daquela tese, JORGE LOPES DE SOUSA (20) ao princípio da plenitude dos meios processuais, nos termos do
qual a todo o direito de impugnar corresponde o meio processual
refere, quanto aos vícios de forma resultantes da vio- mais adequado de o fazer valer em juízo (art. 97.º, n.º 2, da LGT).
lação de normas que regulam a atividade da Admi- Além disso, é igualmente contrário ao princípio da tutela juris-
nistração, que deles “não implica que tenha havido lesão dicional efetiva (n.º 1 do art. 9.º da LGT, n.º 1 do 96.º do CPPT e
n.º 4 do art. 268.º da CRP), pois não só impõe custos acrescidos
da situação jurídica substantiva”. Para este autor, nos aos particulares, como leva aqueles que confiaram no procedi-
casos em que há a certeza que a prestação patrimo- mento tributário e num sentido razoável da lei, e mesmo assim
nial foi indevidamente exigida, isto é, naqueles em as suas pretensões de juros indemnizatórios improcederam com
aquele fundamento, a verem mais tarde esgotado o prazo legal
que ocorre a anulação de um ato tributário por não
de recurso à ação com aquele fundamento, dado o atual prazo
se verificarem os pressupostos de facto ou de Direito de decisão dos tribunais administrativos e fiscais. Segundo JOSÉ
em que deva assentar, compreende-se que a Lei MANUEL SÉRVULO CORREIA/MAFALDA CARMONA, “O princípio pro
actione no procedimento administrativo – Ac. do STA de
22.1.2004, P. 2064/03”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 44,
Março/Abril de 2004, pp. 38 e segs., o princípio pro actione ou do
(18) JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES (coord.), Lei Geral Tributária favorecimento processual impõe que, sendo as leis processuais
Comentada e Anotada, 2015, p. 360. um instrumento para a realização da justiça, devam evitar-se as
(19) Ver jurisprudência assente do Supremo Tribunal Admi- situações de denegação de justiça por excessivo formalismo.
nistrativo nos Acórdãos de 29/10/2008 (proc. 0622/08), de 21/1/2009 Além disso, como reiteram por diversas vezes e muito bem ao
(proc. 0945/08), de 9/9/2009 (proc. 0369/09), de 4/11/2009 (proc. longo da sua obra SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRIN-
0665/09), de 20/1/2010 (proc. 0942/09), de 8/6/2011 (proc. 0876/09), DADE, Contencioso Tributário, vol. I, 2017, por exemplo, na p. 518,
de 7/9/2011 (proc. 0416/11), de 30/5/2012 (proc. 0410/12), de a subsistência da dicotomia existente no procedimento e processo
12/2/2015 (proc. 01610/13), e de 28/11/2018 (proc. 087/18.0BALSB) tributário entre os meios administrativos e os meios formais tri-
(disponíveis em www.dgsi.pt). Veja-se ainda o Acórdão do Tribunal butários típicos dificulta a ação dos intervenientes, incluindo a
Constitucional n.º 83/2014, que sobre esta matéria também se pro- Administração Tributária, e não adianta na proteção dos contri-
nunciou (disponível em www.tribunalconstitucional.pt). buintes, bem pelo contrário.
(20) JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Pro- (22) SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Conten-
cesso Tributário, I, 2011, p. 532. cioso Tributário, vol. I, cit., pp. 219-222.

20
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 35 • Janeiro/Março 2022

previsto no n.º 3 do art. 103.º da CRP, a não atribui- em si, da declaração do Direito nele contida, mas
ção de juros indemnizatórios não constitui uma antes do modo como ele é praticado. O erro tem
aceitação da legalidade de atos de liquidação que lugar quando, no decurso de um procedimento de
padecem de vícios formais. Estas Autoras citam tomada de decisão, o seu autor viola um qualquer
ainda JESUÍNO ALCÂNTARA MARTINS e JOSÉ COSTA dever a que esteja obrigado. Nestes casos, o ato não
ALVES, referindo que a anulação de um ato tributá- só é desconforme com a lei, como deve sofrer a con-
rio com fundamento em caducidade do direito à li- sequência associada à circunstância de ter sido pro-
quidação “não implica a existência de qualquer erro duzido com violação de um dever legal.
sobre os pressupostos de facto ou de direito” (23). No E do ato ilegal por vício de forma não se diga
mesmo sentido, PAULO MARQUES entende que o não produzir desconformidade entre a prestação
erro imputável aos serviços “cinge-se às situações em por ele declarada e a relação jurídica tributária que
que está afetada a definição da relação tributária entre lhe serve de base, por duas ordens de razão. Em
as partes, designadamente a existência de casos em que primeiro lugar, porque as formalidades legalmente
o fisco cobra uma prestação tributária com carácter in- exigidas servem para assegurar adequados pa-
devido, o que não será o caso de existir o vício de incom- drões de segurança jurídica, mas também para que
petência ou de forma” (24). exista concordância entre a prestação declarada no
ato e a relação tributária subjacente. Defender que
2.2. Tomada de posição a sua preterição não significa que a prestação tri-
butária não seja indevida, equivale a declarar a ir-
2.2.1. Não podemos acompanhar estas teses. O relevância da sua integração no procedimento legal
exercício de um poder depois de decorrido o prazo de produção de atos tributários. Depois, porque
de caducidade, além de ser ilegal e por isso anulá- basta a simples possibilidade de a preterição de tais
vel por vício de incompetência relativa, é ainda ilí- formalidades influir na decisão final, para que a re-
cito e por isso gerador de responsabilidade pelos ceção de tais atos na ordem jurídica deva ser pura
danos causados, por violar o dever de respeitar o e simplesmente rejeitada, uma vez que não estão
direito subjetivo público do contribuinte (arts. 55.º asseguradas as mínimas condições de fidedigni-
da LGT, 4.º do CPA e n.º 1 do art. 266.º da CRP) a dade exigidas por lei. É o que resulta do regime da
apenas pagar impostos cuja liquidação seja feita anulabilidade, aplicável aos atos praticados com
nos termos da lei (n.º 3 do art. 103.º da CRP). Além ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas
disso, a culpa é presumida na prática de atos jurí- aplicáveis (art. 163.º, n.º 1, do CPA) e da própria
dicos ilícitos (n.º 2 do art. 10.º da Lei 67/2007, de Constituição, ao declarar no n.º 3 do seu art. 103.º
31/12), presunção que é precisamente função do que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos
n.º 1 do art. 43.º da LGT assegurar. cujas liquidação e cobrança se não façam nos ter-
Mas recuemos um pouco: a determinação do mos da lei. E se o contribuinte, confrontado com
sentido e do alcance da expressão erro imputável aos um ato praticado nestas condições, pagar a dívida
serviços não tem que ver com a conveniência ou de maneira a evitar a sua cobrança coerciva, estará
falta dela quanto ao pagamento de juros indemni- em todo o caso a realizar um pagamento indevido da
zatórios nos casos de pagamento indevido da pres- prestação tributária (n.º 1 do art. 43.º da LGT).
tação tributária por força de atos anulados por Ora, os poderes-deveres de natureza formal estão
vícios formais. ligados ao procedimento precisamente devido à sua
O erro consiste numa forma incorreta de tomar natureza instrumental quanto ao seu ato conclusivo.
uma decisão. Não se trata de uma qualidade do ato É para garantir que o ato tributário reproduza fiel-
mente a situação material subjacente que o legisla-
(23) JESUÍNO ALCÂNTARA MARTINS/JOSÉ COSTA ALVES, Procedi- dor nele integra determinadas formalidades que
mento e Processo Tributário: uma perspetiva prática, 2015, p. 69.
reputa de essenciais. E reputa-as de essenciais pela re-
(24) PAULO MARQUES, A Revisão Oficiosa do Acto Tributário, cit.,
pp. 246-247. levância potencial que essas formalidades podem ter

21
A dupla valoração normativa dos atos tributários – e o caso paradigmático do erro imputável aos serviços

no apuramento de casos concretos, sem as quais a rejeitada tout court, além de ser qualificada como
fiabilidade dos seus atos conclusivos, sobretudo em aquilo que é: um erro imputável aos serviços.
procedimentos massificados como são os procedi-
mentos tributários, não pode ser garantida (25). 2.2.2. Ademais, o risco da ilegalidade dos atos
Como exemplos desta relevância temos o direito da Administração, por preterição de formalidades
dos contribuintes à participação nas decisões que consideradas essenciais (27), influir substancial-
lhes digam respeito, que se justifica à luz do princí- mente no ato conclusivo do procedimento, deve
pio do contraditório, mas também do princípio da correr por conta da Administração e não dos parti-
descoberta da verdade material, já que ninguém se culares. Como nota RUI DUARTE MORAIS, o entendi-
encontra em melhor posição do que o contribuinte mento doutrinal e jurisprudencial atrás descrito
para aportar ao procedimento elementos relevantes tem por efeito a antecipação ilegal e artificial do
ao completo apuramento da obrigação de imposto. vencimento da obrigação tributária nos casos em
Temos ainda o prazo de caducidade do poder-dever que o pagamento tenha sido realizado com vista a
de liquidação de tributos (26), porque além do direito obstar a diligências de cobrança, uma vez que,
que os particulares devem ter a alguma estabiliza- vindo a liquidação a ser anulada por vício de
ção das suas relações com a Administração, devem forma, o imposto apenas se tornará exigível depois
ainda ter a segurança de saber que não lhes serão de emitido um segundo ato tributário sem a parte
exigidos impostos muitos anos após a verificação viciada (28). Esta antecipação do momento em que
dos factos que lhes deram origem. É que o decurso se vence a prestação tributária declarada em ato
de um determinado prazo torna inaceitáveis os fac- produzido com erro exclusivamente imputável à
tos apurados, desde logo pela maior dificuldade da Administração é evidentemente uma restrição ile-
sua contraprova. gítima do direito dos contribuintes a não pagar im-
Todas estas exigências legais têm finalidades postos cuja liquidação se não faça nos termos da lei
bem definidas, a começar pelo objetivo de garantir (n.º 3 do art. 103.º da CRP), sendo causadora de pre-
que o ato resultante do procedimento reflita a fac- juízos (art. 22.º da CRP), que naturalmente devem
tualidade efetivamente verificada, e assim exprima ser ressarcidos.
realmente a vontade funcional do legislador. Pelo Assim, o erro é uma qualificação que se refere ao
que, ainda que se pretenda defender, segundo um modo como o ato é produzido, e será imputável aos servi-
juízo de prognose póstuma, que a preterição destas for- ços quando esse erro lhes deva ser atribuído. Enten-
malidades não afeta o resultado final da atividade der esta expressão de outro modo implica descon-
administrativa de gestão fiscal, bastará a mera sus- siderar a presunção de que o legislador se soube ex-
cetibilidade ou potencial de afetar a decisão final to- primir em termos adequados (art. 9.º, n.º 3, do Có-
mada no procedimento para que a mesma deva ser digo Civil, aplicável ex vi do n.º 1 do art. 11.º da
LGT). Mas mesmo aqui, aquelas teses falham o alvo,
porque a ratio que se encontra por detrás do uso da
(25) A afirmação fácil de que a inobservância de formalidade
essencial em determinado procedimento não teve qualquer in- expressão erro imputável aos serviços que encontra-
fluência no ato tributário não deve levar-nos a esquecer que a con- mos no procedimento tributário resulta da distinção
creta relevância de formalidades essenciais apenas pode ser
entre atos que apenas são ilegais e atos que além de
verdadeiramente avaliada depois de elas serem cumpridas. Além
de que, em procedimentos de massa, as formalidades essenciais ilegais são ainda ilícitos por violação de um dever
são estabelecidas precisamente para obstar aos elevados custos legal a cargo da Administração. Pois ao passo que a
associados ao estabelecimento de procedimentos que não as ob-
servem. Finalmente, como escrevem ANTUNES VARELA/J. MIGUEL
BEZERRA/SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 1985,
p. 390, o erro na forma de processo deve envolver uma inutilização
de todos os atos praticados na medida em que dela resulte uma di- (27) Pela lei, pela Constituição e por resultarem de direitos
minuição das garantias de defesa. dos particulares.
(26) Que, como vimos, constitui uma garantia dos contri- (28) RUI DUARTE MORAIS, Manual de Procedimento e de Processo
buintes sujeita a reserva de lei parlamentar. Tributário, 2016, p. 372.

22
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 35 • Janeiro/Março 2022

ilegalidade é causa de invalidade, a ilicitude conduz à proteção da sua esfera privada perante a atuação
ao dever de indemnizar (29). da Administração violadora de deveres legais que
Não temos dúvidas que, violando a Adminis- sobre si impendem tornar-se-ia num direito enfra-
tração um dever a que está obrigada na produção quecido, em violação do n.º 3 do art. 103.º da CRP e
de um ato tributário, comete um erro que pode ser do direito ao ressarcimento do prejuízo causado
imputado aos serviços. Se na sequência desse erro for pela restrição ilegítima do seu direito (art. 22.º da
realizado o pagamento indevido da dívida tributá- CRP, aplicável por remissão do seu art. 17.º).
ria, então deve o contribuinte ser indemnizado pelo Constatamos, assim, que uma das particulari-
período que o montante prestado esteve indevida- dades do direito dos impostos é a circunstância de
mente entregue a quem a ele não tinha, nessa al- este ser em grande medida informado pelo direito
tura, direito. Não indemnizar os contribuintes que fundamental previsto no n.º 3 do art. 103.º da CRP.
paguem indevidamente imposto cuja liquidação se Particularidade de tal modo significativa que im-
não faça nos termos da lei corresponde a obrigar os pede o direito dos particulares à proteção da sua
contribuintes a proceder ao seu pagamento, em esfera privada e à livre disposição dos seus bens de
clara violação do n.º 3 do art. 103.º da CRP. É a Ad- se converter em direito enfraquecido em conse-
ministração e não os contribuintes quem deve su- quência do exercício de poderes de autoridade ad-
portar o custo resultante das ilicitudes que lhe são ministrativa na declaração de direitos tributários,
imputáveis. Se a ilicitude não influi na exigibili- transformando-o em simples interesse legalmente
dade a final da prestação tributária, a Administra- protegido, e sujeitando as condutas que os violem
ção terá a possibilidade de o demonstrar quando ou restrinjam ao regime geral e particular aplicável
praticar o ato sem a parte viciada, e será então, aos direitos, liberdades e garantias.
tarde e não cedo, devido a erro imputável aos ser-
viços, que a dívida tributária deverá ser exigida. 3. Conclusões
Do mesmo modo que, quando retardada a liqui-
dação de parte ou da totalidade do imposto devido Podemos agora apreciar como o exercício de po-
por facto imputável ao sujeito passivo, são devidos deres tributários não degrada o direito subjetivo
juros compensatórios (n.º 1 do art. 35.º da LGT), dos particulares à proteção da parcela da sua esfera
quando, por alguma razão imputável à violação de privada não afetada pelo conteúdo do dever funda-
um dever legal da Administração, haja de restituir- mental de pagar impostos. Primeiro, porque limi-
se ao contribuinte algum montante por este indevi- tando-se o ato tributário a proceder ao natural
damente pago, deve entender-se existir erro impu- desenvolvimento da obrigação de imposto previa-
tável aos serviços gerador da obrigação de paga-
mento de juros indemnizatórios (n.º 1 do art. 43.º da
LGT) (30). A não ser assim, o direito do contribuinte nota de crédito; c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do
contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o
atraso não for imputável à administração tributária; d) Em caso de de-
(29) Só fará sentido que o efeito da anulação respeite apenas cisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitu-
ao reembolso em singelo do imposto indevidamente prestado, cionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que
sem que se admita a constituição do dever de indemnizar, caso se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respec-
se reconheça a ilegalidade do ato, mas não a ilicitude da conduta tiva devolução.”. Nos dois primeiros casos está em causa a violação
imputável à Administração, por violação de algum dever legal a do dever de imediata e plena reconstituição da situação que existiria se
que esteja adstrita por ser a entidade legalmente encarregue da não tivesse sido cometida a ilegalidade (n.º 1 do art. 100.º da LGT); no
condução do procedimento tributário. Ver ALBERTO XAVIER, As- terceiro caso temos um atraso de tal ordem do cumprimento do
petos Fundamentais do Contencioso Tributário, cit., p. 100. prazo legal de decisão, que o legislador, a partir de certa altura,
(30) Por esta mesma razão são assimiladas a erro imputável começa a considerar injustificável, passando por isso a ligar a erro
aos serviços as situações previstas no n.º 3 do art. 43.º da LGT, imputável aos serviços (n.º 1 do art. 56.º e n.º 1 do art. 57.º da LGT);
em que são devidos juros indemnizatórios: “a) Quando não seja finalmente, no último caso, o que está em causa é, evidentemente,
cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos; b) Em caso a violação do dever de respeito pelo direito subjetivo público dos
de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, contribuintes a apenas pagarem impostos que hajam sido criados
a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nos termos da Constituição (n.º 3 do art. 103.º da CRP).

23
A dupla valoração normativa dos atos tributários – e o caso paradigmático do erro imputável aos serviços

mente constituída, a esfera privada permanece em pressão legal erro imputável aos serviços resulta da dis-
geral intacta; depois, porque esta encontra-se prote- tinção entre atos que apenas são ilegais e aqueles
gida por um limite constitucional ao exercício dos que além de ilegais são ainda ilícitos por violação de
poderes tributários, instituído mediante atribuição um dever legal a que a Administração está adstrita.
aos particulares do direito fundamental que, além O encerramento por decurso do tempo dos di-
de possuir um conteúdo imediatamente vinculante ferentes meios impugnatórios dos atos tributários
da Administração, em termos idênticos às demais em geral pode ter o mesmo efeito que a constitui-
normas que informam a sua atividade, permanece ção de direitos sobreponíveis às relações jurídicas
intacto perante atos de autoridade que o pretendam previamente constituídas ou, na ausência destas, a
comprimir. direitos dos particulares. Mas como a juridicidade
Pelo que os atos tributários estão condicionados tributária é reforçada por um direito de natureza
por dois níveis de vinculação: o da correta expressão análoga, repugna-lhe que a sanação da ilegalidade
da legalidade tributária com vista à correta manifes- dos atos tenha lugar por mero decurso do tempo.
tação da vontade funcional do legislador expressa Sendo por isso que, no procedimento tributário, o
no âmbito da sua reserva de lei parlamentar [n.º 2 esgotamento dos prazos previstos na lei para o re-
do art. 266.º, alínea i) do n.º 1 do art. 165.º e n.º 2 do curso a certos meios impugnatórios em muitos
art. 103.º da CRP]; e o do cumprimento das vincula- casos não preclude o direito a mais tarde suscitar a
ções legais de que depende o exercício das posições apreciação da ilegalidade dos atos tributários.
jurídicas ativas da Administração, sejam as que se Não significa isto qualquer aproximação ao re-
impõem por força do interesse público no exercício gime da nulidade, já que, apesar de em certos casos
da função administrativa (31), sejam as que decorram a ilegalidade dos atos tributários poder ser arguida
da obrigação de respeito pelos direitos subjetivos muito depois de decorrido o prazo de reclamação
dos particulares, onde se inclui a aplicação direta ou de impugnação, a regra continua a ser a da sua
do direito fundamental a não pagar impostos in- anulabilidade, o que significa que, em regra, os atos
constitucionais ou ilegalmente liquidados e cobra- em discussão produzirão efeitos jurídicos, que
dos (n.º 1 do art. 266.º, n.º 3 do art. 103.º, art. 17.º e podem ser destruídos com eficácia retroativa, caso
n.º 1 do art. 18.º da CRP). venham a ser anulados por decisão proferida pelos
O ato tributário está, assim, sujeito a duas valo- tribunais ou pela própria Administração. Além
rações autónomas de desconformidade face ao qua- disso, o pedido de revisão oficiosa do ato tributário
dro legal que lhe corresponde: o ato será ilegal por está condicionado à existência, não de ilegalidade,
estar em contradição com a lei, vício que conduz à mas de erro imputável aos serviços, de duplicação
anulabilidade ou à declaração de nulidade, e será de coleta ou de injustiça grave ou notória (33).
ainda ilícito se for praticado com violação de algum
dever legal a que a Administração estiver sujeita,
caso em que a desconformidade é conducente à res-
ponsabilidade civil e à obrigação de indemnizar (32). (33) Apesar do paralelismo evidente da expressão injustiça
O erro consiste numa forma incorreta de tomar uma grave ou notória com a cláusula alemã das nulidades por natu-
reza, nenhuma das qualificações desencadeadores da revisão
decisão e será imputável aos serviços quando lhes
dos atos tributários constitui causa de ilegalidade, não podendo,
deva ser atribuído. A ratio que está por detrás da ex- por isso, servir de base a qualquer teoria de invalidades mistas.
A primeira por se referir a injustiça e não a ilegalidade; e as ex-
pressões erro imputável aos serviços e duplicação de coleta por serem,
na verdade, causas de ilicitude, referindo-se à violação de deve-
(31) Vinculações em que, dada a sua natureza de poderes- res de conduta por parte da Administração no exercício das suas
-deveres, a Administração não é livre no seu exercício. funções. Não obstante se conceda que este tipo de violação pode
(32) Estamos em crer encontrar-se por construir uma dog- não estar presente nos casos da duplicação de coleta, sempre que
mática própria da ilegalidade dos atos tributários, tema que esta se deva a negligência do contribuinte, estamos em crer que
pensamos haver interesse desenvolver em trabalho a publicar mesmo nestes casos esta acabe por se reconduzir a evidentes in-
futuramente. justiças graves ou notórias.

24
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA n.º 35 • Janeiro/Março 2022

Nestes termos, o prazo de consolidação definitiva Esgotados estes prazos, a relação material de
dos atos tributários não coincide com o esgotamento imposto, tal como se encontra configurada no ato
dos prazos para a sua impugnação administrativa tributário ilegal, em princípio consolida-se, em vir-
ou contenciosa, sempre que a ilegalidade resulte de tude da caducidade do poder de praticar o ato tri-
erro imputável aos serviços ou dê origem a situações butário sem a ilegalidade cometida, exceto nos casos
de injustiça grave ou notória, caso em que a discus- de nulidade (n.º 3 do art. 102.º do CPPT).
são da legalidade do ato ainda pode ter lugar no âm-
bito do acionamento da revisão oficiosa do ato
tributário, em regra desencadeado antes do decurso JOSÉ AVILEZ OGANDO
de quatro anos após a liquidação, ou a todo o tempo,
se o tributo ainda não tiver sido pago.

25
ESTRUTURA E CONTEXTO ATUAL DAS RELAÇÕES
JURÍDICO-FISCAIS

STRUCTURE AND CURRENT CONTEXT OF LEGAL TAX RELATIONSHIPS

José Avilez Ogando 1


DOI: https://doi.org/10.34628/9t8m-5y89

Resumo: Com este texto pretende dar-se uma perspectiva geral sobre a
complexa estrutura das relações jurídico-fiscais, identificando os seus principais
traços característicos e contextualizando os diversos fenómenos que se verificam
no seu âmbito. Identifica-se direitos e obrigações integrados no núcleo material
dessas relações, e na sua periferia um âmbito mais amplo de natureza formal,
onde podem ser identificadas três ordens de múltiplos outros direitos e deveres.
Proceder-se-á por fim a uma breve análise da atual alteração de paradigma
quanto a estas relações, originada pelos avanços tecnológicos e dos próprios
desenvolvimentos técnicos do moderno Direito Fiscal.
Palavras-chave: Relações jurídico-fiscais; Obrigação de imposto; Gestão do
risco fiscal.

Abstract: This text intends to provide a general perspective on the complex


structure of legal tax relationships, identifying its main characteristic features and
contextualizing the various phenomena that occur within its scope. It identifies
rights and obligations integrated in the material core of these relationships,
and in its periphery a broader scope of a formal nature, where three orders of
multiple other rights and duties can be identified. Finally, a brief analysis is made
on the current paradigm shift regarding these relationships, originated by the
technological advances and the technical developments of modern Tax Law.
Keywords: Legal tax relationships; Tax obligations; Tax risk management.

1
Mestre em Direito. Advogado na “SGFC e Associados”. Doutorando em Direito.

Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022) 125

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José Avilez Ogando

Sumário: 1. Preliminares. 2. A relação jurídica de imposto. 3. As


relações jurídico-tributárias. 4. O contexto atual das relações jurídico-
-tributárias. 5. O reposicionamento da intervenção administrativa.

1. Preliminares

1.1. As relações que se estabelecem entre os contribuintes e o Fisco são dos


fenómenos mais antigos na zona de fronteira que separa as esferas pública e
privada. O dever de pagar impostos integra o lado passivo da relação jurídica
fundamental em que assentam os modernos Estados fiscais. O desenvolvimento
desta relação envolve a definição da pretensão pública à custa de restrições diretas
e imediatas à esfera privada dos indivíduos e das organizações. A sua realização
efetiva é necessariamente mediada pelo legislador2, a quem cabe a concretização
normativa do poder tributário, a partir de critérios que garantam a justiça dos
casos concretos. Mas ela também mediada pela atividade da administração, a
quem é atribuído um conjunto de poderes-deveres necessários à prossecução do
interesse público secundário que lhe é confiado de administrar os impostos3, de
acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça,
da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais
obrigados tributários (artigo 55º da LGT).
A apreensão dos fenómenos fiscais pelos conceitos nunca se mostrou fácil,
e foi-se complicando na medida da evolução e do aumento da complexidade dos
sistemas fiscais, em prejuízo das garantias de certeza e previsibilidade que devem
ser asseguradas pelo legislador, em concretização do princípio da segurança
jurídica, ínsito ao princípio do Estado de Direito. Esta crescente complexidade
teve várias causas4, das quais se destaca a modernização dos sistemas fiscais,
que trouxe consigo um enorme reforço da malha de deveres instrumentais.
Deveres que estão sobretudo relacionados com as necessidades de assegurar a
disponibilização da informação necessária à definição das obrigações tributárias,
à verificação dos elementos declarados, à assistência na cobrança dos tributos e

2
JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, p. 148 e segs..
3
Artigo 2º nº. 1 do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de dezembro, que aprova a orgânica da
Autoridade Tributária e Aduaneira.
4
Esta evolução e aumento de complexidade coexistem com a proliferação legislativa que se
faz sentir particularmente em matérias fiscais, que resultam tanto de causas internas ao fenómeno
tributário, tais como o combate à fraude e evasão fiscais e às inovações no campo das práticas de
planeamento fiscal, como de causas que lhe são externas, tais como a incorporação de normas im-
postas no contexto da integração europeia e as crises financeiras recentemente sentidas pelos Estados
pressionando os sistemas fiscais a serem mais eficazes e produtivos. Estes fatores contribuíram para
o aumento da densidade dos regimes legais existentes, como para a necessidade de coexistência de
tributos cada vez mais numerosos.

126 Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022)

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Estrutura e contexto atual das relações jurídico-fiscais, p. 125-138

a permitir, sempre que possível, aproximar o momento da verificação dos factos


constitutivos da obrigação fiscal ao da arrecadação da receita correspondente.

1.2. A problemática da natureza e estrutura dos fenómenos tributários


suscitou no século passado fortes clivagens na doutrina, tendo percorrido um
longo caminho até aos nossos dias. Muitos procuraram descrevê-lo através de
um sistema que integrasse todas as realidades heterogéneas que o compõem,
desde as obrigações principais de imposto às demais situações jurídicas com ela
conexas, como as obrigações acessórias e os vários procedimentos tributários.
Começou por defender-se que a relação de imposto era uma pura relação
de Direito Público, essencialmente dominada por considerações de interesse
coletivo, sendo por isso inconciliável com a relação obrigacional oriunda do
Direito Civil, forçosamente ligada ao pano de fundo da autonomia da vontade.
A partir de meados do século passado foram surgindo vozes defendendo
que a figura da obrigação civil podia ser ajustada a situações jurídicas informadas
por poderes de autoridade5. Aqueles que seguiram por este caminho começaram
por notar que as obrigações civis podem surgir de outras fontes que não apenas
a vontade das partes, como acontece nos casos de obrigações resultantes da
responsabilidade objetiva, estatuída por puras razões de justiça. Assim o Direito
fiscal, como Direito de sobreposição, apropriou-se do conceito de obrigação que
é património comum do Direito, adaptando-o às particularidades dos interesses
por si regulados6.

2. A relação jurídica de imposto

2.1. Como nota VIEIRA DE ANDRADE, a figura da relação jurídica tem


ganho força no Direito Público com a consolidação do moderno Estado de Direito
Democrático e o aprofundar da proteção dos particulares como titulares de
verdadeiros direitos subjetivos públicos perante a administração7. Não só facilita

5
Como refere OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil Teoria Geral, Vol. III, 2002, p. 51, “a relação
jurídica não é fenómeno privativo do Direito das Obrigações”. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em
Geral, vol. I, 9ª ed., 1996, p. 29, reconhece a influência dos quadros lógicos do direito das obrigações
na fixação e fundamentação das soluções, na sistematização das matérias e principalmente na trans-
posição dos elementos facultados pela interpretação e integração das leis para o plano dogmático em
vários setores do Direito, incluindo no Direito Público, “especialmente no Direito Fiscal, quanto à relação
tributária”.
6
SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 1995, 7ª ed., p. 161 e ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, Princí-
pios de Direito Fiscal, 3ª ed., 1985, p. 170.
7
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2012, p. 67. Contra a
utilização deste conceito para explicar o fenómeno tributário insurgiu-se PESSOA JORGE, Curso de
Direito Fiscal, Lisboa, 1964, pp. 134-136, afirmando não ver “que esse conceito possa ser de utilidade na
técnica jurídico-fiscal, por reunir realidades profundamente heterogéneas: não há uma relação jurídica fiscal,

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a articulação de situações jurídicas contrapostas com a obrigação de imposto,


correspetiva do direito de crédito da entidade de Direito Público competente
para exigir o seu cumprimento (artigo 18º, nº. 1 da LGT), como permite acomodar
numerosos deveres acessórios, conexos com o vínculo principal.
A opção pelo acolhimento desta figura é clara no nosso Direito positivo.
O título II da LGT, com a epígrafe “Da relação jurídica tributária”, inclui
desenvolvimentos das matérias relativas aos elementos da relação tributária
de natureza substantiva: os sujeitos, objeto, facto e garantia. Trata-se aqui da
relação material ou subjacente que corresponde à obrigação de imposto, entendida
como o nexo de recíproca atribuição do dever de realizar certa prestação e do
direito de crédito à sua satisfação. Por escaparem ao âmbito deste estudo, não nos
deteremos sobre cada um dos elementos da relação tributária, nem sobre as suas
manifestações e regime no Direito tributário, limitando-nos aqui a uma remissão
para os capítulos indicados.
Mas a relação jurídica tributária é ainda mencionada em várias disposições,
como é o caso do artigo 1º, nº. 1 da LGT, nos termos do qual esta lei “regula as
relações jurídico-tributárias”, definidas como “as estabelecidas entre a administração
tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades
legalmente equiparadas a estas”8 (artigo 1º, nº. 2 da LGT). Esta noção, que ultrapassa
em muito o âmbito da obrigação de imposto, que é aquela que se constitui “com
o facto tributário” (artigo 36º, nº. 1 da LGT)9, e cujos elementos essenciais “não podem

há várias, tantas quantos os vínculos que ligam o Estado aos contribuintes e a todas as outras pessoas que
tenham deveres de carácter fiscal.”. Apesar de reconhecer que “a aplicação da técnica da relação jurídica à
obrigação de imposto teve (…) vantagens, pois permitiu mostrar que ela obedece, nas suas linhas fundamentais,
à estrutura da relação jurídica creditória e que, consequentemente, é possível aplicar-lhe, em larga medida,
as conclusões do estudo científico desta (…) a técnica da relação jurídica, contemplando a obrigação numa
perspetiva estática, não permite apreender a sua verdadeira fisionomia, que é essencialmente dinâmica, porque
não permite acompanhá-la na sua evolução, surpreendê-la no seu desenvolvimento e compreender as fases por
que atravessa, e que, justamente no campo do Direito Fiscal, apresentam especialidades de assinalar.”. Não
obstante concordar-se com PESSOA JORGE, quando refere que não existe uma relação jurídica fiscal
mas sim várias, julga-se que a relação obrigacional de imposto é útil para enquadrar uma certa zona
do fenómeno fiscal, não dispensando a sua arrumação no quadro mais vasto daquilo a que o legisla-
dor designa genericamente por relações jurídico-tributárias (artigo 1º da LGT), onde já será possível
compreender a integração das suas dimensões obrigacional e administrativa.
8
Como notam JOAQUIM FREITAS DA ROCHA e HUGO FLORES DA SILVA, Teoria Geral da
Relação Jurídica Tributaria, 2017, p. 31, além de ampla, esta noção não define o conceito, limitando-se a
referir o que se deve considerar como relações jurídico-tributárias. Por outro lado não é rigorosa porque
nem todas as relações “estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singula-
res e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas” devem considerar-se em rigor, relações
jurídico-tributárias, como parece ser o caso da obrigação a cargo da Autoridade Tributaria de forne-
cer dados informativos relativos à liquidação e cobrança de impostos municipais e às transferências
de receitas à Associação Nacional de Municípios (artigo 17º, nº. 6 da RJAFL).
9
Esta norma põe fim à antiga controvérsia que ocupou a doutrina no século passado e que já
estava em grande medida ultrapassada quando em 1972 ALBERTO XAVIER publicou a sua disserta-
ção Conceito e Natureza do Ato Tributário.

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Estrutura e contexto atual das relações jurídico-fiscais, p. 125-138

ser alterados por vontade das partes” (artigo 36º, nº. 2 da LGT)10, pretende alargar
o conceito às relações tributárias instrumentais ou adjetivas, estabelecidas entre a
administração fiscal e os particulares, no âmbito dos diversos procedimentos
previstos nas normas de Direito tributário formal.

2.2. Ainda assim, a relação jurídico-tributária identifica-se usualmente


com a relação material de imposto que resulta da obrigação fiscal, entendida
pela doutrina11 como um vínculo jurídico obrigacional complexo12 de Direito
Público, instituído por lei com vista à satisfação das necessidades financeiras
do Estado. Esta relação diz-se complexa, por compreender diferentes posições de
poder ou dever juridicamente organizadas de forma unitária, nela intervindo
frequentemente mais de dois sujeitos13, implicando, além da obrigação principal

10
Ver ainda na LGT, as disposições relativas aos regimes subsidiariamente aplicáveis (artigo
2º), à personalidade tributária (artigo 15º), à legitimidade no procedimento tributário (artigo 65º). En-
contramos ainda referências à relação tributária na Constituição, onde se estabelece que aos tribunais
administrativos e fiscais compete dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e
fiscais (artigo 212º, nº. 3), no CPPT, a respeito da legitimidade para desencadear certos procedimentos
(artigo 95º-B), no ETAF a propósito da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal
para decidir sobre questões suscitadas no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo
4º, nº. 1, al. a)), no RJAT onde a relação tributária é referida a propósito dos efeitos da decisão arbitral
(artigo 24º, nº. 1, al. a)) e no RGIT onde se faz referência a obrigações emergentes da relação jurídico-
-tributária (artigo 124º).
11
ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, Lições, 2ª ed., 2017, p. 90; SALDANHA SANCHES,
Manual de Direito Fiscal, 2ª ed. pp. 129 e segs.; SÉRGIO VASQUES, Manual, de Direito Fiscal, 2ª ed., 2018,
p. 379 e segs.; JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, pp. 231 e segs.; MANUEL PIRES e
RITA CALÇADA PIRES, Direito Fiscal, 4ª ed., 2010, pp. 217 e segs.; AMÉRICO BRÁS CARLOS, Impostos,
Teoria Geral, 2006, p. 53 e segs.; MANUEL FREITAS PEREIRA, Fiscalidade, 3ª ed., 2009, pp. 249 e segs.;
ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, Princípios de Direito Fiscal, vol. I, 3ª ed., 1985, pp. 167 e segs.; VASCO
VALDEZ, “A Constituição e as normas fiscais. Noção de imposto e taxa. A relação jurídica tributária”, Lições de
Fiscalidade, vol. I – princípios gerais e fiscalidade interna, coord. João Ricardo Catarino/Vasco Branco
Guimarães, 6ª ed., 2018, pp. 179 e segs.; JÓNATAS MACHADO e PAULO NOGUEIRA DA COSTA,
Manual de Direito Fiscal, Perspetiva Multinível, 2016, pp. 227 e segs.; SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal,
1995, 7ª ed., p. 162; VÍTOR FAVEIRO, Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, I. Vol., Introdução
ao Estudo da Realidade Tributária, Teoria Geral do Direito Fiscal, 1984, p. 356 e segs..
12
Como ensina JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil Teoria Geral, Vol. III, 2002, p.
48, as relações jurídicas complexas são aquelas cujo conteúdo é composto por múltiplas posições de
poder ou dever. A generalidade da Doutrina vê porém a relação jurídica complexa como conjunto
de vínculos emergentes do mesmo facto jurídico ou, como refere JOÃO DE CASTRO MENDES, Teo-
ria Geral do Direito Civil, vol. I, 1978, p. 77, um “conjunto de relações travadas entre as mesmas pessoas,
unificadas por um fator especial, maxime o derivarem do mesmo facto jurídico”. No mesmo sentido, JOÃO
ANTURES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 1996, p. 65 e MÁRIO ALMEIDA COSTA, Direito
das Obrigações, 12ª ed., 2013, p. 73. Estamos com JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil Teoria
Geral, Vol. III, 2002, p. 49, que considera este critério insuficiente, já que um mesmo facto pode dar
origem a mais de uma relação e uma relação pode ser originada por mais de um facto, preferindo
caracterizar a relação jurídica complexa como aquela em que múltiplas posições de poder ou dever
são juridicamente organizadas de modo unitário.
13
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2012, p. 68. Como muito

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de efetuar o pagamento da dívida tributária (artigo 31º nº. 1 da LGT), um sem


número prestações instrumentais ou auxiliares a que o legislador designa por
acessórias, “que visam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto, nomeadamente
a apresentação de declarações, a exibição de documentos fiscalmente relevantes, incluindo
a contabilidade ou escrita, e a prestação de informações”14.
Estas obrigações vinculam frequentemente terceiros que nelas intervêm,
designadamente assumindo, como encargo inerente à atividade económica
por si prosseguida, a obrigação de realizar parte da prestação tributária,
mediante a retenção, a título definitivo ou provisório, de quantias devidas
aos sujeitos passivos originários15. Este mecanismo de substituição tributária16
tem inclusivamente reflexos ao nível procedimental, com a consagração da
possibilidade de reclamação ou impugnação do ato de retenção por parte do
substituto (artigo 132º do CPPT). Outro exemplo da vinculação de terceiros é o da
obrigação potencialmente emergente da responsabilidade subsidiária, constituída
em razão da atuação como representante fiscal, gestor de bens ou substituto
tributário do devedor principal (artigos 24º a 28º da LGT)17. A natureza complexa

recentemente considerou o Pleno do STA no seu acórdão de 04/18/2018 (proc. 046/18), na sua essên-
cia, a relação jurídica tributária é uma subespécie da relação jurídica administrativa, “conclusão que
resulta do facto de um dos sujeitos daquela relação estar integrado na Administração e de, por isso, ao menos
mediatamente, a mesma ter natureza administrativa e ser, subsidiariamente, regulada por normas de direito ad-
ministrativo (art.º 2.º/c) da LGT). Por ser assim é que, por um lado, a lei fala em competências administrativas
no domínio tributário (n.º 3 do art.º 1.º da LGT) e, por outro, o legislador teve grande preocupação em definir
com rigor o conceito de relação jurídica tributária e de identificar as entidades que, em nome da Administração,
nelas podiam intervir”.
14
Como é exemplo clássico a obrigação de entrega de declaração periódica de rendimentos (ar-
tigos 60º do código do IRS e artigo 120º do código do IRC). Para um apanhado destas obrigações, ver
JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, pp. 236 e segs.; FREITAS PEREIRA, Fiscalidade,
3ª ed., 2009, pp. 253-260. De notar ainda que a al. c) do nº. 2 do artigo 8º da LGT, inclui a definição das
obrigações acessórias como igualmente abrangida pelo princípio reforçado de legalidade tributária,
juntamente com diversos outros aspetos definidores da obrigação fiscal, como a incidência, a taxa,
os benefícios fiscais, as garantias dos contribuintes, a definição dos crimes fiscais, o regime geral das
contraordenações fiscais, entre outros.
15
Artigo 71º, nº. 1, al. a) e artigo 99º, nº. 1 do código do IRS. Outro exemplo é a obrigação a
cargo de notários, conservadores, secretários judiciais, secretários técnicos de justiça e entidades e
profissionais, de comunicar a relação dos atos por si praticados e das decisões transitadas em julgado no mês
anterior dos processos a seu cargo que sejam suscetíveis de produzir rendimentos sujeitos a IRS (artigo 123º
do código do IRS) e as obrigações previstas no artigo 49º do código do IMT a cargo dos notários e
outros profissionais.
16
Artigo 20º da LGT, em que “por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente
do contribuinte” e se efetiva “através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido” pelo devedor
principal, sempre que a lei assim o determine.
17
Como refere ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, Lições, 2ª ed., 2017, p. 73, no direi-
to alemão a responsabilidade tributária distingue-se claramente da obrigação tributária. Segundo
ANTUNES VARELA isto deve-se à conceção em tempos corrente na doutrina daquele país quanto
à natureza das obrigações, vendo-a como uma relação complexa integrada por dois elementos: o
débito (Schuld) e a responsabilidade (Haftung). Para uma apreciação crítica sobre as teorias Schuld und

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Estrutura e contexto atual das relações jurídico-fiscais, p. 125-138

da relação tributária material torna-se ainda mais evidente se pensarmos que


dela se desprendem ainda inúmeros outros deveres, tais como os deveres de
prestar declarações, de emitir faturas, de manter a contabilidade organizada, de
se sujeitar a inspeções tributárias, de proceder à entrega das quantias retidas,
informar sobre a realização de operações, restituir pagamentos recebidos em
excesso, etc. (artigo 30º nº. 1 da LGT)18.

2.3. Porém, estas considerações não nos devem levar a qualificar como
acessórios da obrigação de imposto, todos os deveres de colaboração instituídos
pelas leis fiscais19. Neste sentido, devem ser considerados como deveres formais
autónomos da obrigação principal, os deveres gerais de colaboração e os deveres
funcionais de comunicação, sobretudo nos casos em que o não cumprimento
desses deveres não implique qualquer responsabilidade fiscal substantiva20. São
disso exemplo as obrigações fiscais acessórias sem correspondência direta com
a obrigação fiscal, a cargo do próprio sujeito passivo, que apenas apresentam

Hafung, e refutação de tais conceções no contexto da discussão sobre a natureza jurídica da obrigação,
ver ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª ed., 1996, pp. 148-157.
18
Não se diga, como parece defender JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, p.
242, que a relação jurídica fiscal se desdobra na relação de imposto e em várias relações jurídicas acessó-
rias de carácter formal, com diversos conteúdos e diferentes intervenientes, pois como ensina SOARES
MARTINEZ, Direito Fiscal, 7ª ed., 1995, p. 170, na linha aliás de ANTUNES VARELA, Das Obrigações
em Geral, vol. I, 9ª ed., 1996, p. 125, a relação obrigacional de imposto permite acomodar toda a sorte
deveres secundários destinados a preparar o cumprimento, a assegurar a realização da prestação ou
ainda os relativos às prestações substitutivas (responsabilidade subsidiária) ou complementares (juros
moratórios), pelo que os deveres acessórios se integram, juntamente com a obrigação principal, na
relação material de imposto.
19
SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 1995, 7ª ed., p. 169. Para a confusão terminológica con-
tribuem diversas disposições legais, sobretudo da LGT, que além de procurar encobrir sob o mesmo
manto da relação jurídica tributária, simultaneamente realidades integradas na obrigação de imposto e
outras que não o estão. Um claro exemplo disso é a noção legal de obrigações acessórias (artigo 31º, nº.
2 da LGT), que parece abranger simultaneamente obrigações secundárias e muitas outras que não o
são, já que todas elas visam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto.
20
Não fornecendo o legislador uma definição legal de imposto que é entre nós um conceito desenvolvido
pela doutrina e pela jurisprudência, e admitindo como o fazem DIOGO LEITE DE CAMPOS e MÓNICA
LEITE DE CAMPOS, Direito Tributário, 1996, p. 23, SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 1995, 7ª ed.,
pp. 29-29, ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, Princípios de Direito Fiscal I, 3ª ed., 1985, pp. 36-37 e ALBERTO
XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p 38, que o imposto possa envolver prestações de
facere e de non facere, dever-se-á questionar até que ponto muitas destas prestações deverão ser con-
sideradas acessórias, sobretudo quanto àquelas que, não sendo integráveis no esquema da obrigação
de imposto, consistam na prestação de um serviço, logo sendo suscetíveis de avaliação pecuniária.
Nestes casos estaremos certamente perante verdadeiras e próprias prestações de carácter patrimonial,
unilaterais, definitivas, coativas e sem carácter de sanção, destinadas a satisfazer as necessidades financeiras do
Estado e outras entidades públicas. Apesar de poder argumentar-se em sentido contrário com a redação
do artigo 40º da LGT, onde se estabelece que “as prestações tributárias são pagas em moeda corrente ou
por cheque, débito em conta”, a verdade é que essa disposição não parece excluir a possibilidade de
existirem outros tipos de prestações.

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relevância para o sistema fiscal no seu conjunto e que por isso não podem, sem
algum contorcionismo, integrar-se na figura da relação jurídico-fiscal21; e ainda
as obrigações a cargo de terceiros sem correspondência direta com a obrigação
fiscal22, relativamente às operações em que intervenham no exercício da sua
atividade.
Como veremos de seguida, as situações jurídicas emergentes do fenómeno
tributário são de vária ordem, não sendo possível reconduzi-las a todas a uma ou
a várias obrigações de imposto23, mas antes serem entendidas como integrantes
de uma atividade que envolve procedimentos de fiscalização e aplicação das
normas fiscais, a que se designa por atividade de gestão fiscal.

3. As relações jurídico-tributárias

3.1. A relação jurídica de imposto pode ainda dizer-se complexa por se


desenvolver na dependência funcional de procedimentos sem os quais não se
revela nem ganha plena operância. A constatação de que existem situações
jurídicas que se constituem e desenvolvem fora do estrito âmbito da obrigação
de imposto, revela que esta representa apenas o núcleo central de um círculo
mais vasto a que a lei designa genericamente por relações jurídico-tributárias.
Integram este círculo as obrigações acessórias autónomas das obrigações
principais e os diversos procedimentos tributários, onde sobretudo imperam
o poder-dever de investigação a cargo da administração (artigo 58º da LGT),
o direito dos contribuintes à participação na formação das decisões que lhes
digam respeito (artigo 60º da LGT) e o dever geral de colaboração a cargo dos

21
São exemplos destas obrigações acessórias sem correspondência direta com a obrigação tributária
a cargo do próprio sujeito passivo, a obrigação de obtenção de número de identificação fiscal (artigo 3º do
Decreto-Lei nº. 14/2013 de 28 de janeiro), a obrigação de comunicação da mudança de domicílio fiscal (nº. 3
do artigo 19º LGT e nº. 1 do artigo 43º do CPPT) e a obrigação de nomeação de representante fiscal (nº. 6 do
artigo 19º da LGT).
22
É o caso da obrigação do notário de exigir ao cedente em operação de trespasse, certidão
comprovativa da inexistência de dívidas tributárias ou do comprovativo da comunicação da opera-
ção de trespasse ao serviço periférico (nºs. 1 e 2 do artigo 82º do CPPT).
23
Como notam a propósito MANUEL PIRES e RITA CALÇADA PIRES, Direito Fiscal, 4ª ed.,
2010, p. 218, a relação jurídico-tributária, com a obrigação tributária no seu centro não permite en-
quadrar todos os deveres de colaboração resultantes das leis fiscais, designadamente aqueles que não
apresentam uma ligação direta a uma obrigação tributária específica. Referem que ao passo que a re-
lação jurídica será o esquema indicado para situações jurídicas correspondentes, o procedimento per-
mite a concatenação de situações jurídicas não correspondentes, como com grande frequência sucede
no Direito tributário. De acordo com os mesmos autores, a “relação jurídica parece não poder compreender
o fenómeno do imposto na sua globalidade. Para esse efeito, o conceito de procedimento é mais adequado. Não
se afirma que não deva ser estudada a obrigação fiscal, visto não poder esquecer-se a sua importância (…) mas
não se pode também esquecer todas as outras situações subjetivas resultantes do imposto e a visão unitária que
o procedimento permite.”.

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Estrutura e contexto atual das relações jurídico-fiscais, p. 125-138

contribuintes na recolha de material probatório necessário à descoberta da


verdade material, compreendendo o dever de prestar esclarecimentos solicitados
pela administração, designadamente sobre a sua situação tributária e sobre as
relações económicas que mantenham com terceiros (artigo 59º nºs. 1 e 4 da LGT).
Com efeito, na atividade de aplicação da lei ao caso concreto torna-se
muitas vezes necessária a cristalizar as componentes relevantes da relação
jurídica de imposto, o que deve ser feito através de um ato de carácter decisório.
Este ato unificador exprime o desenvolvimento de uma situação preexistente,
cuja identidade se mantém inalterada, servindo para eliminar situações de
incerteza potencialmente geradoras de controvérsias entre a administração e os
particulares quanto à apreciação que cada um faz sobre a existência e o conteúdo
da obrigação de imposto24. A eliminação ou redução drástica desse potencial
de indeterminação que se possa interpor entre a verificação dos pressupostos
fiscais e o cumprimento das prestações que a lei lhes faça corresponder resulta
de uma atividade processual. Esta atividade, prosseguida com os contributos
dos contribuintes e a administração e informada por critérios de legalidade e
verdade material, culmina com o ato tributário que vem tornar a dívida líquida
e exigível, vinculando as partes da situação jurídica subjacente à posição nele
declarada, não só para efeitos do seu cumprimento e cobrança, mas também
para efeitos do recurso aos meios impugnatórios.

3.2. Em razão destas considerações podemos agora apreciar que cada


contribuinte é titular de um sem número de relações tributárias substantivas,
independentes entre si, algumas delas dinâmicas e em curso, que se desenvolvem
relativamente a uma multiplicidade de realidades manifestadoras da sua
capacidade contributiva, tanto no rendimento que recebem, nos consumos que
fazem ou do património que detêm. Cada uma destas relações tem um conteúdo
jurídico próprio, composto por obrigação principal e obrigações acessórias
diretamente associadas à dívida de imposto, como é o caso das obrigações de
manter a contabilidade organizada, de cumprir as formalidades da faturação e
de apresentar oportunamente as suas declarações.
Paralelamente a cada uma destas obrigações de imposto desenvolve-
se ainda uma relação agregada e conexa de carácter procedimental25, que
SALDANHA SANCHES designa por relações jurídicas tributárias em sentido

24
ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 544.
25
Para FREITAS PEREIRA, Fiscalidade, 3ª ed., 2009, pp. 249-250, é possível ver neste conjunto
de direitos e deveres em que se desdobra a relação jurídica fiscal, duas áreas bem distintas: uma zona
central ou nuclear e uma outra circundante ou periférica. A primeira diz respeito à obrigação de im-
posto e integra o direito à prestação pecuniária em que essa obrigação se concretiza e o corresponden-
te dever de a prestar bem como outros direitos e deveres dela derivados sem autonomia em relação
àquela. Na zona periférica, encontram-se os direitos e deveres destinados a garantir e a controlar a
obrigação principal e a que designamos por obrigações ou deveres fiscais acessórios.

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lato ou compreensivo26, simultaneamente dirigida à tutela das posições da


administração fiscal e do contribuinte, com vista à determinação do conteúdo
da prestação tributária, à verificação da informação prestada pelo contribuinte,
a assegurar o direito dos contribuintes de participar nas decisões que lhes digam
respeito e a cobrar as prestações tributárias correspondentes.
Além destas, devemos ainda considerar a existência de uma terceira
ordem de relações de fundo, também ela de natureza formal, não diretamente
conexa com qualquer tributo individualmente considerado, mas que todos os
contribuintes mantêm com a administração fiscal com carácter de permanência,
ligada apenas à personalidade tributária e à qualidade de sujeitos fiscais. É no
âmbito desta relação formal de conteúdo genérico que surgem certas obrigações
instrumentais com relevância para o sistema fiscal no seu conjunto, predispondo
o sujeito ativo a detetar a constituição de obrigações tributárias, a manter
atualizada a informação sobre as circunstâncias específicas de cada contribuinte
ou a declarar os direitos individuais dos contribuintes com base nos elementos
ao seu dispor. Do lado dos sujeitos passivos, esta relação formal genérica
permite-lhes estabelecer uma via facilitadora da comunicação da ocorrência de
factos tributários, como o cumprimento de obrigações genéricas transversais a
diversos tributos.
Todos estes deveres, os resultantes de relações obrigacionais e aqueles que
se integram em relações instrumentais, resultam do reconhecimento de que
o cumprimento do dever de pagar impostos não depende simplesmente dos
comportamentos voluntários dos cidadãos cumpridores27, carecendo ainda de
um contexto fornecido por um quadro protocolar específico a que designamos
por procedimento28.

26
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed. p. 132.
27
Exceto nos casos dos impostos sem liquidação, caracterizados pela ausência de um ato ad-
ministrativo que determine o montante do imposto a pagar, por este estar fixado na lei, como era o
caso do antigo imposto de selo pago por estampilha. ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, Finanças Públicas e
Direito Financeiro, 1990, pp. 281-282, fala em três momentos em que se realiza a aplicação do imposto:
a determinação da matéria coletável, a liquidação e a cobrança: “Se estes três momentos existem em todos
os impostos, nalgum deles, porém, devido à mecânica adoptada na sua aplicação, os dois primeiros como que se
confundem no tempo, por se efectuarem simultaneamente a determinação da matéria coletável e a liquidação.
Noutros ainda, quando a lei fixa directamente o montante eventual do imposto, não há, propriamente, lugar
a tais operações, porquanto as mesmas foram realizadas pelo legislador, ao estabelecer ele próprio o montante
concreto e efectivo da colecta.”.
28
Como referem JÓNATAS MACHADO e PAULO NOGUEIRA DA COSTA, Manual de Direito
Fiscal, Perspetiva Multinível, 2016, p. 65, isto deve-se ao problema do “free rider” ou do parasitismo
social, em que as partes no contrato social procuram maximizar os seus benefícios, minimizando
ao mesmo tempo os seus custos procurando evitar ou evadir o cumprimento das suas obrigações
tributárias.

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Estrutura e contexto atual das relações jurídico-fiscais, p. 125-138

3.3. Nas relações que estabelece com os contribuintes, a administração


desempenha assim um duplo papel29: o que estabelece com o devedor do imposto
no âmbito da relação obrigacional de direito público, e aquele que desempenha na
relação de direito administrativo, em que se apresenta munida de poderes funcionais
na condução do procedimento e na aplicação das leis fiscais. Enquanto que
no primeiro caso a administração assume uma posição de paridade30, sendo
unicamente titular de um direito de crédito especialmente garantido, na relação
procedimental a administração surge investida dos poderes de autoridade que
lhe permitem exercer a função de executora da legalidade tributária, praticando os
atos tributários correspondentes.
A visão unitária dos fenómenos tributários depende do adequado
encadeamento entre relações tributárias materiais e formais, entre a obrigação
fiscal e o procedimento tributário. Interligação que nos permite observar
e compreender os termos em que o mesmo ato tributário protagoniza
simultaneamente relações fiscais subjacentes e instrumentais, vindo resolver
a equação pendente entre as normas gerais e abstratas e as situações
individuais e concretas evidenciadas pelos contribuintes, declarando com o
grau de fidedignidade praticável os factos de que resulta a obrigação jurídica
preexistente, desenvolvendo-a com vista à realização do seu fim típico.

4. O contexto atual das relações jurídico-tributárias

4.1. O contexto das relações Estado-contribuinte atualmente atravessa um


forte processo de transformação. O desenvolvimento de ferramentas tecnológicas
ao dispor dos serviços, associado ao aprofundamento dos deveres de colaboração
acessórios à obrigação principal, têm facultado um acesso sem precedentes
da administração a informação relevante. Este fator, aliado ao aumento da
literacia fiscal da parte dos contribuintes permitiram abandonar o modelo de
predominante intervenção administrativa na atividade de gestão fiscal, em favor
de uma forte aproximação aos modelos baseados no cumprimento voluntário31
das suas obrigações fiscais. Com este movimento de maior participação dos
particulares no procedimento tributário pretende-se a libertação dos recursos

29
JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 2017, p. 233. No mesmo sentido, DIOGO LEITE DE
CAMPOS e MÓNICA LEITE DE CAMPOS, Direito Tributário, 1996, p. 178-179 e ALBERTO XAVIER,
Conceito e natureza do Acto Tributário, 1972, p. 510.
30
DIOGO LEITE DE CAMPOS, As três fases dos princípios fundamentantes do direito tributário,
ROA, I, 67, (2007), p. 73.
31
A expressão “cumprimento voluntário” é um oximoro frequentemente utilizado pela Autori-
dade Tributária significando cumprimento espontâneo ou não provocado dos comportamentos impostos
pelas leis fiscais. Ver por todos o relatório de atividades desenvolvidas pela Autoridade Tributária
“Combate à Fraude e Evasão Fiscais e Aduaneiras”, 2017, Gabinete do SEAF, Junho de 2018.

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José Avilez Ogando

administrativos necessários ao combate mais eficaz à fraude e à evasão fiscais,


acorrer às irregularidades praticadas pelos contribuintes menos esclarecidos ou
menos diligentes no cumprimento das suas obrigações ou simplesmente a tornar
a liquidação e a cobrança dos tributos, mais eficiente e económica, conforme
aliás impõe o princípio da boa administração (artigo 5º do CPA).

4.2. Esta alteração do eixo de atuação da administração traz consigo


importantes transformações quanto à função que desempenha no âmbito
do procedimento tributário. São progressivamente deixadas tarefas como o
acompanhamento da generalidade dos contribuintes no cumprimento das suas
obrigações e na prática de atos tributários primários, em favor da concentração de
meios em intervenções fiscalizadoras, seja nas situações em que os contribuintes
falham a entrega das declarações a que estão obrigados, procedendo-se à
correção das declarações entregues e eventualmente a liquidações oficiosas, ou
na prática de atos de inspeção eventualmente desencadeadores de liquidações
adicionais ou corretivas.
Passa-se por conseguinte de um modelo de babysitting fiscal, em que a
administração assume as despesas do apoio ao cumprimento das obrigações
declarativas a cargo dos particulares, assegurando a regularidade declarativa
e material dos atos tributários primários32, para um modelo mais evoluído
de responsabilização dos contribuintes, em que a atuação administrativa
relativamente aos atos primários de liquidação surge como excecional e
reservada aos desenvolvimentos patológicos da reação jurídica de imposto.
Seguindo este movimento, que continuará a informar futuros desenvolvimentos
no enquadramento jurídico das relações Estado-contribuinte, a administração
passa em regra a atuar a posteriori, na medida em que faltem as declarações dos
contribuintes ou em que as declarações apresentadas revelem discrepâncias que
imponham uma intervenção corretiva.

5. O reposicionamento da intervenção administrativa

5.1. À medida que a atividade pública de gestão fiscal vai assumindo


um carácter sucessivo, eventual e fiscalizador, a liquidação de impostos passa
a estar confiada sobretudo aos sujeitos passivos, através de um procedimento
estruturado em torno de um sistema de autoavaliação de imposto que permite

32
Como refere SALDANHA SANCHES, “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento Admi-
nistrativo e a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão
Teles, I, 2003, p. 870, criticando a ineficiência deste modelo de gestão fiscal “a possibilidade de uma
pronúncia expressa e clara da administração fiscal em todas as relações sujeito ativo/sujeito passivo se tinha um
carácter utópico mesmo na época do Estado mínimo é completamente impensável na época do Estado fiscal”.

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Estrutura e contexto atual das relações jurídico-fiscais, p. 125-138

uma certa medida de gestão privada do risco fiscal33, mantendo-se o procedimento


subsequente especialmente marcado pelo dever de investigação da administração
com vista à descoberta da verdade material.
Para além de diminuir os custos inerentes ao sistema de liquidação e
cobrança dos tributos, libertando recursos para a fiscalização de casos suspeitos,
este aumento da responsabilização dos particulares tem conduzido, como aliás
acontece no sistema norte americano, à atribuição ao sujeito passivo cumpridor
dos deveres de cooperação, do direito a ser tributado de acordo com a sua própria
declaração (self-assessment), contribuindo para reduzir a excessiva intromissão da
administração sobre o particular cumpridor da lei (law-abiding citizen).
Mais do que uma condição de eficácia do sistema, a autoavaliação da
matéria tributável por parte dos particulares permite uma mais efetiva tutela
dos seus direitos, com o aumento da determinabilidade e previsibilidade da lei
fiscal, fornecendo todas as coordenadas necessárias ao cálculo da prestação de
imposto em termos de favorecer o cumprimento voluntário sem necessidade
da intermediação da administração. E fá-lo com a segurança reforçada pela
noção de que, enquanto o contribuinte continuar a cumprir espontaneamente
as suas obrigações fiscais, principais e acessórias, não será objeto de controlos
injustificados por parte da administração34.
A adequada aplicação da lei fiscal vai assim tornando-se cada vez mais numa
tarefa e num direito do contribuinte, implicando a deslocação da intervenção
autoritária da administração para os casos em que exista controvérsia no âmbito
da relação jurídico-tributária.

5.2. Esta alteração de paradigma, ao exigir que a aplicação normal da lei fiscal
caiba cada vez mais aos particulares, exige que o legislador adeque o conteúdo
das leis fiscais à sua aplicação massificada e as revista de acrescidas exigências de

33
SALDANHA SANCHES “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento Administrativo
e a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles, I,
2003, pp. 854-856. Deste modo, as empresas elaboram o seu balanço comercial calculam o lucro fiscal
e as tributações autónomas, liquidam o imposto, comunicam-no à administração e entregam-no nos
cofres do Estado através de várias formas de pagamento antecipado, a maior parte das vezes sem
qualquer intervenção da administração. Além disso, ainda servem de serviços periféricos da adminis-
tração retendo na fonte vários tributos relativos às operações em que intervêm: às remunerações que
pagam aos seus trabalhadores retêm o IRS, às transmissões de bens e prestações de serviços cobram
o IVA que depois de deduzir o suportado nas aquisições entregam nos cofres do Estado, liquidam
o imposto de selo devido pelas suas operações, o IUC das suas viaturas e o IMI dos seus imóveis.
Com o imposto quase sempre pago antecipadamente, a regra passa a ser o reembolso dos montantes
avançados à cabeça pelo sujeito passivo. Com o aumento da complexidade das declarações a entre-
gar, este reembolso tende a aumentar ou a diminuir à razão da familiaridade dos contribuintes com
o preenchimento dos formulários e com as leis fiscais.
34
SALDANHA SANCHES “Do Acto à Relação: o Direito Fiscal entre o Procedimento Administrativo
e a Teoria Geral das Obrigações”, Estudos em Homenagem Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles I, 2003,
p. 855.

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clareza e coerência interna, de maneira a obstar a que ao aumento exponencial de


aplicadores das normas de imposto não corresponda a um aumento na mesma
proporção dos sentidos atribuídos aos textos legais35.
O reposicionamento do lugar da administração no âmbito das relações
fiscais coloca assim pressão sobre o órgão de soberania incumbido da produção
legislativa em matéria de criação de impostos e sistema fiscal, na medida em
que impõe limites à complexidade admissível das leis fiscais. Não é concebível
nem expectável e menos ainda admissível que um órgão como a Assembleia da
República aprove normas fiscais cuja complexidade as torne apenas acessíveis a
especialistas. Por outro lado, uma normação mais densa e complexa das normas
fiscais tenderia a desresponsabilizar o parlamento, diminuindo o seu papel de
fórum representativo de diferentes grupos sociais, e indiciando aprovações
meramente formais.
Além de um consentimento transparente e alargado, a reserva de lei
parlamentar deve cada vez mais realizar ainda uma função de garantia de um
mínimo de clareza, imposta pela necessidade de permitir que os contribuintes
tenham pelo menos uma ideia dos seus encargos fiscais atuais e esperados,
compatível com a proteção da sua confiança. Como refere lapidarmente
SALDANHA SANCHES, os eventuais objetivos de justiça prosseguidos por
normas fiscais hipertrofiadas em complexidade e em permanente mutação podem
ser anulados pelo seu baixo nível de aplicação, o que prejudica o fim pretendido
já que não haverá justiça se não houver um elevado grau de cumprimento da lei36

35
Como refere SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, p. 36, a clareza
das leis fiscais é uma expressão da reserva de lei parlamentar.
36
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2002, pp. 36-37.

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Da necessidade de uma cláusula geral
de nulidade. Dos atos da administração

O problema jurídico consolidação por decurso de tempo se revelem in-


1.1. o instituto da nulidade é um corolário do toleráveis ou incompatíveis com a juridicidade e as
princípio do estado de direito (art. 2.º e n.º 3 do art. necessidades de segurança (2). Porque como tem
3.º da CrP), funcionando como mecanismo prote- sido defendido, a anulabilidade só serve os fins da
tor da integridade interna do sistema jurídico, atra- segurança jurídica se, ultrapassado o prazo para a
vés do controlo substantivo que repele as mais impugnação do ato anulável, todos os operadores
grosseiras atuações contra legem da administração. jurídicos, a começar pela administração e a acabar
trata-se do único instrumento que, ao rejeitar a nos particulares, puderem agir como se o ato fosse
produção provisória de efeitos dos atos grosseira- legal, independentemente de o ser ou não (3).
mente ilegais (1), dispensa os órgãos da administra- Pode assim dizer-se que a defesa da legalidade
ção do dever de os respeitar enquanto não forem face aos atos da administração assenta sobre dois
revogados ou anulados, desse modo garantindo pilares essenciais: o da tutela jurisdicional efetiva
atuações consentâneas com o princípio da boa ad- dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
ministração (art. 5.º do CPa). Por outro lado, é o sujeitos afetados por atos anuláveis e o da efetiva-
que e impede a consolidação desses atos por de- ção do valor negativo da nulidade, que determina
curso do tempo, nessa medida assegurando a inte- a improdutividade total, ab initio dos atos que a lei
gridade e a tutela jurisdicional efetiva de direitos assim determine, em razão da ilegalidade neles co-
fundamentais e outros valores estruturais do sis- metida ser incompatível com a produção provisó-
tema jurídico – maxime, o princípio da separação de ria de efeitos e a possibilidade de consolidação por
poderes – mesmo depois do decurso dos curtos decurso do tempo, resultantes das ponderações
prazos de impugnação. atrás referidas, de favorecimento da capacidade
esta forma de invalidade é por conseguinte a operativa da administração e da segurança e esta-
que permite a resolução das tensões entre os prin- bilidade das relações jurídicas em que é parte. o
cípios da legalidade e da segurança jurídica nos instituto da nulidade funciona assim como uma
casos em que aquela produção de efeitos ou a sua resposta imunitária especialmente severa já que se
trata do “desvalor da atividade administrativa com o

(1) trata-se fundamentalmente dos atos viciados por ile-


galidade tão grave que a respetiva produção de efeitos prejudi- (2) Como refere José Vieira de andrade, “a nulidade admi-
caria a mesma segurança e certeza jurídica que o regime da anu- nistrativa, essa desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 336, a
labilidade pretende assegurar. ou como refere José Vieira de nulidade é a resposta normativa reservada a situações em que
andrade, “nulidade e anulabilidade do acto administrativo – o desvalor da atuação administrativa reveste de uma tal gravi-
ac. do sta de 30.5.2001, P. 22 251”, CJA, n.º 43, 2004, p. 47, “Deve dade que o respeito pela legalidade deva prevalecer sobre a se-
entender-se que, para além dos casos expressamente previstos na lei, gurança e a estabilidade jurídicas.
devem ser nulos todos os atos que sofram de vícios de tal modo graves (3) andré salgado de Matos e João taborda da gaMa, “o
que tornem inaceitável, em princípio, a produção dos respetivos efei- prazo para exercício do direito à restituição de emolumentos
tos”. notariais indevidamente cobrados”, Fiscalidade, 2002, 9, p. 128.

3
da necessidade de uma cláusula geral de nulidade. dos atos da administração

qual o princípio da legalidade não pode conviver, mesmo descendência dos nossos tribunais, aliás documen-
em nome da segurança e da estabilidade, como acontece tada por diversos autores (9), não só impede uma
com o regime-regra da anulabilidade” (4). operância minimamente consistente do regime da
Como igualmente refere Vieira de andrade, a nulidade nos casos em que ela se impõe, como tem
construção legal da nulidade foi criada a pensar permitido, em virtude dos potenciais efeitos cons-
nos atos administrativos que regulam situações ju- titutivos das decisões ilegais da administração, a
rídicas que envolvem direitos e interesses legal- distribuição de efeitos provisórios à discrição,
mente protegidos dos particulares. neste âmbito, assim erigindo a atuação contra legem da adminis-
visa assegurar a proteção de importantes interesses tração em autêntica fonte de direito.
substantivos individuais como forma de consolidar
valores do estado de direito democrático no con- 1.2. a isto acresce a eliminação da cláusula geral
texto das relações jurídicas de direito Público (5). que permitia considerar nulos por natureza os atos
donde, apesar de ser por todos apontada como um administrativos viciados por ilegalidades especial-
tipo excecional de invalidade, ela deve ser vista mente graves, fora das situações tipificadas na lei.
como a resposta normal da lei quanto a condutas daqui resulta que, dando-se o caso de ser praticado
decisórias invulgarmente grosseiras e ilegais (6), ex- ato portador de vício de ilegalidade de tal modo
primindo a intolerância da produção de efeitos grave que ponha em causa os fundamentos do sis-
quanto a atos contendo vícios graves que ponham tema jurídico (10) e não se preenchendo qualquer
em causa os fundamentos do sistema jurídico (7). das cláusulas de nulidade taxativamente previstas
acontece que, apesar do repetido reconheci- na lei, o intérprete seja fatalmente conduzido à
mento que os nossos tribunais fazem, em abstrato, aplicação do regime regra da anulabilidade (n.º 1
do regime da nulidade, continuam a revelar uma do art. 163.º do CPa) (11). donde resultaria a pro-
incapacidade patológica para a sua aplicação aos
casos concretos que o justifiquem, em favor de um
desproporcional e generalizado favorecimento da
regra da anulabilidade, suscetível de vulnerabili- (9) Paulo otero, Legalidade e Administração Pública, 2003, pp.
zar, de forma desrazoável, interesses dignos de 532 e segs., dinaMene de Freitas, O Acto Administrativo Incons-
proteção, cuja violação pode pôr em causa os fun- titucional, 2010, pp. 207 e segs., andré salgado de Matos e João
taborda da gaMa, “o prazo para exercício do direito à resti-
damentos do sistema jurídico. neste sentido, deve- tuição de emolumentos notariais indevidamente cobrados”, Fis-
mos ter em conta o reverso daquilo a que Vieira de calidade, 2002, 9, p. 131, tiago serrão, “a nulidade do acto
andrade apelida de dureza do regime puro da nuli- inconstitucional”, Estudos de Direito Público, 2011, pp. 231 e 239
e segs.
dade (8), e considerar antes a dureza que a generali- (10) deve colocar-se a questão da constitucionalidade desta
zação da regra da anulabilidade pode representar solução, desde logo pela sua incompatibilidade com vários as-
para a administração da justiça. esta excessiva con- petos do princípio reforçado da juridicidade tributária, na me-
dida em que o interesse público da proteção da integridade da
ordem jurídica do estado de direito pode exigir que aquele
deva sobrepor-se aos valores da segurança jurídica e das neces-
sidades de estabilização dos atos da administração. Por outro
lado, como chama à atenção José Casalta nabais, “a respeito
(4) Como nota José Vieira de andrade, “a nulidade admi- da invalidade do ato tributário”, RLJ, ano 148, n.º 4013, p. 90, a
nistrativa, essa desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 339, ci- tal pode exigir princípio da igualdade, na medida em que o di-
tando o ac. do sta de 17/2/2004 (proc. 1572/02). reito a uma tutela jurisdicional efetiva resulte degradado em re-
(5) José Vieira de andrade, “a nulidade administrativa, essa lação a atos que apesar de materialmente afetados por uma
desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 338. ilegalidade muito grave, o legislador não os qualifique expres-
(6) excecionais serão as condutas grosseiramente ilegais da samente como tais.
administração e não as respostas da lei para as repelir. (11) Como refere liCínio loPes Martins, “a invalidade do
(7) Paulo otero, Direito do Procedimento Administrativo, vol. acto administrativo no novo Código do Procedimento admi-
i, 2016, p. 633. nistrativo: as alterações mais relevantes”, Comentários ao Novo
(8) José Vieira de andrade, “a nulidade administrativa, essa Código do Procedimento Administrativo, vol. ii, Carla aMado
desconhecida”, RLJ, 3957, 138 (2009), p. 344. goMes, ana Fernanda neVes e tiago serrão (coord.), 3.ª ed.,

4
Justiça adMinistratiVa n.º 147 • Julho/setembro 2021

dução de efeitos provisórios desse ato e a susceti- no entanto, a Constituição projeta efeitos vin-
bilidade, durante um curto espaço de tempo, de culativos sobre as opções do legislador em matéria
tais efeitos serem destruídos com eficácia retroativa de regulamentação das invalidades da conduta ad-
(n.º 2 do art. 163.º do CPa), período findo o qual o ministrativa (14). entre estes destaca-se a nosso ver
ato poderia tornar-se inimpugnável, estabilizando- a existência de uma cláusula que permita estender
-se definitivamente. a nulidade a atos que, pela agressão que represen-
ora, o estabelecimento da anulabilidade como tam, não mereçam outra forma de invalidade, o
desvalor-regra sem que exista um critério de segu- que se impõe por em casos-limite ser a única que
rança, que permita reconduzir as ilegalidades mais permite à administração rejeitar “soluções manifes-
graves e evidentes com as quais o princípio da le- tamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de
galidade não possa razoavelmente conviver, signi- Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das
fica atribuir à partida efeitos jurídicos a todos atos normas jurídicas e das valorações próprias do exercício
ilegais da administração não previamente confi- da função administrativa” (art. 8.º do CPa) (15).
gurados expressamente pelo legislador como casos donde a eliminação da cláusula geral da nuli-
de nulidade, independentemente da sua gravida- dade, ainda que justificada por uma indemons-
de (12). não parece que isto seja sustentável do trada e genérica ponderação em favor dos estafa-
ponto de vista da proteção do estado de direito, já dos princípios da segurança jurídica e da tutela da
que a nulidade dos atos administrativos em casos confiança, introduz rigidez ao sistema, retira aos
não expressamente previstos não pode ser excluída tribunais poder de conformação do direito aos
à partida (13), concebendo-se decisões administra- casos concretos a que se impõem, e cria desigual-
tivas de tal modo incompatíveis com a ideia de di- dades de tratamento em casos de semelhante gra-
reito, que mesmo os valores da segurança e da vidade. não é aliás admissível que a atribuição de
certeza se oponham à possibilidade de produção efeitos a condutas administrativas contrárias à ju-
de efeitos provisórios e à sua consolidação por de- ridicidade fique exclusivamente ao critério do le-
curso de tempo, próprios da anulabilidade. gislador, sem que seja dado aos tribunais a possibi-
lidade – e por via dela, a responsabilidade – de
ponderar a solução mais adequada sobretudo em
casos excêntricos, em que a atribuição de efeitos
2016, pp. 295-296, seria desejável a manutenção de uma cláusula
geral de último recurso para resolver eventuais lacunas legais provisórios e a sua estabilização sejam inadmissí-
relativamente a situações em que a sanção da nulidade se justi- veis e conduzam a resultados incongruentes e in-
fique, sobretudo tendo em conta que vários dos casos de nuli- toleráveis (16).
dade hoje constantes do art. 161.º foram precisamente o resul-
tado de experiências jurisprudenciais e contributos doutrinais aliás uma das condições elementares de coerên-
em torno da interpretação da cláusula geral de nulidade. cia do sistema jurídico é a de que o controlo subs-
(12) não obstante a eliminação da cláusula geral de nulidade
ter sido acompanhada da inclusão de vários novos casos de ví-
cios conducentes à nulidade, José Casalta nabais, “a respeito
da invalidade do ato tributário”, RLJ, ano 148, n.º 4013, p. 90,
considera juridicamente inaceitável a possibilidade de existirem
situações de extrema gravidade cuja única resposta aceitável à (14) Paulo otero, Direito do Procedimento Administrativo, vol.
luz do princípio do estado de direito seria a nulidade e pelo i, 2016, p. 615.
facto de não se enquadrarem no elenco de vícios descritos no (15) liCínio loPes Martins, “a invalidade do acto adminis-
art. 161.º, n.º 2, do CPa, devam ser reconduzidos à consequência trativo no novo Código do Procedimento administrativo: as al-
precária da anulabilidade. terações mais relevantes”, Comentários ao Novo Código do
(13) Como defendem andré salgado de Matos e João ta- Procedimento Administrativo, vol. ii, Carla aMado goMes, ana
borda da gaMa, “o prazo para exercício do direito à restituição Fernanda neVes e tiago serrão (coord.), 3.ª ed., 2016, p. 293.
de emolumentos notariais indevidamente cobrados”, Fiscali- no mesmo sentido, andré salgado de Matos, “a invalidade
dade, 2002, 9, p. 127, a sanação dos atos anuláveis por decurso do acto administrativo no projecto de revisão do Código do Pro-
do tempo característica da anulabilidade é proibida pela Cons- cedimento administrativo”, CJA, n.º 100, 2013, p. 50.
tituição quanto aos atos administrativos que aplicam normas (16) Paulo otero, Direito do Procedimento Administrativo, vol.
inconstitucionais. i, 2016, p. 614.

5
da necessidade de uma cláusula geral de nulidade. dos atos da administração

tantivo dos atos da administração não apresente li- blico e com respeito pelos direitos e interesses le-
mitações formais, permitindo ao julgador reconhe- galmente protegidos dos cidadãos.
cer a nulidade de atos portadores de vícios que, no que em particular diz respeito ao relaciona-
apesar de não expressamente previstos, sejam de mento dos atos da administração com a Constitui-
tal modo graves que não possam ser rececionados ção, a realização do direito envolve a interpretação
pelo sistema jurídico. Pelo que uma cláusula geral das disposições legais aplicáveis em conformidade
de nulidade assente no princípio da proporciona- com a lei Fundamental (n.º 3 do art. 3.º da CrP), a
lidade ou no critério da gravidade e evidência, sua execução com respeito pela vinculação direta
constante da lei alemã (17), permitiria o acesso a um aos direitos, liberdades e garantias (n.º 2 do art. 18.º
instrumento jurídico impeditivo da produção de da CrP), e a ponderação de soluções à luz dos
efeitos provisórios. além disso, permitiria impedir princípios jurídicos fundamentais, à cabeça dos
a consolidação desses atos por efeito do decurso do quais se encontram os da proporcionalidade e da
tempo, nos casos em que estes possam revelar-se igualdade (art. 13.º e n.º 2 do art. 266.º da CrP).
mais danosos do que a insegurança jurídica even- apesar de o sistema de fiscalização da consti-
tualmente provocada pela aplicação do regime da tucionalidade apenas abranger normas que infrin-
nulidade. jam o disposto na Constituição ou os princípios
nela consignados (n.º 1 do art. 277.º da CrP) (18),
O relacionamento direto dos atos da adminis- isso não significa que os atos da administração
tração com a Constituição não possam violar diretamente a Constituição (19).
2.1. ora, a validade dos atos da administração tal sucederá quando os atos da administração vio-
funda-se na Constituição, como nela se funda o re- lem princípios caracterizadores da ordem jurídico-
gime das invalidades. Já a subordinação da admi- constitucional (20), ou normas preceptivas de con-
nistração à juridicidade envolve em primeiro lugar, teúdo suficientemente determinado a vinculá-la di-
uma subordinação primária da atividade administra- reta e imediatamente, sem necessidade de concre-
tiva à lei, com respeito pelos princípios da compe- tização normativa (21), que preceituam a disciplina
tência e da reserva de lei, no âmbito da qual a imediata e vinculante de determinada conduta (22).
administração nela deve encontrar o pressuposto e entre estas normas imediatamente vinculantes dos
o fundamento das suas atuações. num segundo atos da administração, estão as que constam do tí-
nível, deve assegurar a compatibilidade da sua con- tulo ii da parte i consagrando direitos, liberdades
duta com as demais manifestações do bloco legal, e garantias e os demais direitos constitucionais do-
com respeito pelo primado da Constituição, em tados de idêntica completude estrutural (art. 17.º
particular das normas constitucionais diretamente
aplicáveis e de acordo com os princípios gerais
operativos do estado de direito; devendo, num ter-
(18) não obstante o sistema de fiscalização da constituciona-
ceiro nível, conduzir à prossecução do interesse pú- lidade ter por objeto atos normativos desconformes com a cons-
tituição, dinaMene de Freitas, O Acto Administrativo
Inconstitucional, 2010, pp. 190-195, nota que o tribunal Consti-
tucional tem adotado uma noção funcional de norma que em
(17) Pensamos que, de iure condendo, o legislador deveria abrir determinados casos inclui atos que visem produzir efeitos em
a porta para a nulidade dos atos especialmente graves e evidentes situações individuais e concretas.
numa formulação semelhante à da lei alemã, de tal forma que (19) goMes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Cons-
além das ilegalidades incluídas no catálogo de nulidades, fosse tituição, 7.ª ed., 2003, p. 939.
possibilitada a cominação da nulidade por aplicação de um teste (20) Como os princípios da constitucionalidade, da legali-
de proporcionalidade e caso essa solução se afigurasse consentânea dade, da proibição do excesso ou da imparcialidade.
com a consciência jurídica geral. Contra esta solução, embora sem (21) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es-
apresentar uma formulação alternativa, andré salgado de tudos de Direito Público, 2011, p. 243, e José de Melo alexan-
Matos, “algumas observações críticas acerca dos actuais qua- drino, Direitos Fundamentais, 2.ª ed., 2011, p. 94.

dros legais e doutrinais da invalidade do acto administrativo”, (22) goMes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da
CJA, n.º 82, 2010, pp. 64-65. Constituição, 1991, p. 50.

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Justiça adMinistratiVa n.º 147 • Julho/setembro 2021

da CrP) (23). tanto uns como outros gozam de apli- retamente atinente à desconformidade com a Cons-
cabilidade direta, vinculando diretamente a ad- tituição (29).
ministração a respeitá-los e a torná-los efetivos, di- ora, o que impõe a não consolidação dos atos
zendo-se por isso imediatamente eficazes (24). Já os di- administrativos que desrespeitem diretamente a
reitos económicos, sociais e culturais, sendo direi- lei Fundamental não é o regime administrativo
tos a prestações do estado e tendo como destinatá- das invalidades, mas própria força normativa da
rio direto o legislador, são estruturalmente incom- Constituição (30). a falta de correspondência que o
pletos não sendo por isso imediatamente exequí- regime das invalidades administrativas vota à su-
veis (25), exceto na sua componente negativa, premacia da Constituição coloca a questão da sua
quando e na medida em que traduzam um dever constitucionalidade, já que além de facilitar a con-
de abstenção por parte da administração (26). solidação de atuações administrativas com ela con-
trárias por decurso de pouco tempo, não prevê a
2.2. dependendo a validade de todos os atos do realização das ponderações necessárias à adoção
estado e outras entidades públicas da sua confor- de decisões constitucionalmente conformes (31).
midade com a Constituição (n.º 3 do art. 3.º da não faz por isso sentido, à luz da desejável
CrP) (27), então por maioria de razão, os atos pro- unidade e coerência do sistema jurídico, que as
duzidos sob a sua regulação direta não devem ter- atuações ilegais da administração pública mereçam
-se por consolidados na ordem jurídica se inquina- igual tratamento, quer tenham ou não violado a
dos de inconstitucionalidade (28). um dos sinais Constituição pois as violações da lei e da Consti-
deste primado são as situações em que a lei admite tuição não têm a mesma gravidade. também não
– e até impõe – a reapreciação de atos da adminis- faz sentido, à luz dos mesmos valores responsáveis
tração muito depois de esgotados os prazos da sua por fazer do direito um sistema, que as atuações in-
impugnação contenciosa (art. 78.º da lgt e n.º 1 do constitucionais da administração pública mereçam
art. 168.º do CPa). a reintegração da ilegalidade um tratamento mais favorável do que a conduta le-
provocada por ato administrativo violador da gislativa inconstitucional. a administração pública
Constituição acaba ainda por ser imposta pela lei não deve poder fazer o que a Constituição proíbe
geral administrativa através do sistema de invali- ao legislador (32). a solução da mera anulabilidade
dades, assente numa tipificação dos vícios dos atos dos atos administrativos com vício de inconstitu-
administrativos apesar de, com exceção de referên- cionalidade consequente, que apliquem normas in-
cia ao “conteúdo essencial de um direito fundamental”, constitucionais conduz aliás a uma dupla insegu-
nele não constar qualquer causa de invalidade di- rança jurídica, na medida em que o ato administra-
tivo contrário à Constituição tornado inimpugná-
vel ao abrigo do regime das invalidades da lei geral

(23) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es-


tudos de Direito Público, 2011, p. 247.
(24) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es- (29) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es-
tudos de Direito Público, 2011, p. 245. tudos de Direito Público, 2011, p. 250.
(25) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es- (30) Pois como refere José Vieira de andrade, “nulidade e
tudos de Direito Público, 2011, p. 247. anulabilidade do acto administrativo – ac. do sta de 30.5.2001,
(26) goMes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da P. 22 251”, CJA, n.º 43, 2004, p. 47, os casos identificados como
Constituição, 1991 p. 127. nulidade devem ser interpretados de acordo com o juízo valo-
(27) Como refere tiago serrão, “a nulidade do acto incons- rativo de gravidade que pressupõem, “e não como meras decisões
titucional”, Estudos de Direito Público, 2011, p. 173, a inconstitu- de qualificação formal, produtos da autoridade legislativa”.
cionalidade é a relação de desconformidade jurídica que se (31) dinaMene de Freitas, O Acto Administrativo Inconstitu-
verifica entre um determinado ato jurídico-público e a Consti- cional, 2010, p. 250, tiago serrão, “a nulidade do acto inconsti-
tuição. tucional”, Estudos de Direito Público, 2011, p. 255.
(28) dinaMene de Freitas, O Acto Administrativo Inconstitu- (32) Paulo otero, Direito do Procedimento Administrativo, vol.
cional, 2010, p. 229. i, 2016, pp. 615-616.

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da necessidade de uma cláusula geral de nulidade. dos atos da administração

administrativa, estaria a qualquer momento sujeito quente, que tem lugar sempre que a desconformi-
a ser retroativamente eliminado pela ordem jurí- dade com a Constituição resulte de o ato ser prati-
dica (33) (n.º 3 do art. 282.º da CrP, a contrario) (34). cado mediante aplicação de normas inconstitucio-
daí a advertência feita por goMes Canotilho, nais. sendo a norma aplicada inconstitucional e por
de que a pressão da superior força normativa das isso nula ou inexistente (37), designadamente por
normas constitucionais eventualmente conduzirá ter sido declarada inconstitucional ou por não ter
à revisão da dogmática dos vícios dos atos admi- sido promulgada (art. 137.º da CrP), a atribuição
nistrativos e do respetivo regime, adaptando-o de de efeitos ao ato que a aplica contraria a Constitui-
maneira a responder adequadamente aos atos que desa- ção, já que o seu resultado será atribuir efeitos a
fiem abertamente a Constituição, desde logo impondo uma norma por ela expressamente rejeitada. a sim-
a possibilidade de anulação de atos administrati- ples admissão de que o ato aplicador de norma in-
vos inconstitucionais tornados inimpugnáveis (35). constitucional possa produzir efeitos provisórios e
consolidar-se num curto espaço de tempo atribuem
2.3. a este propósito cumpre distinguir as rela- à administração uma capacidade inovatória à mar-
ções de desconformidade que se estabelecem entre gem da Constituição e contrária ao direito, facili-
atos administrativos e o parâmetro normativo da tadora da prepotência e do arbítrio da justiça do
Constituição (36): a inconstitucionalidade será indi- caso concreto, devendo por isso, ser em regra pura
reta quando, resultando da violação da lei, implicar e simplesmente rejeitada.
o afastamento do padrão de legalidade a que a ad- neste sentido, apesar de conceder-se que a so-
ministração está adstrita de acordo com a Consti- lução deve ser encontrada no regime das invali-
tuição (n.º 2 do art. 266.º da CrP), caso em que dades administrativas, em certos casos a nulidade
esses atos merecerão naturalmente a forma de in- parece apresentar-se como a única resposta ade-
validade que em cada caso for imposta pela aplica- quada à gravidade da ofensa cometida (38), devendo
ção do regime constante dos arts. 161.º e segs. do por isso o ato ser qualificado como praticado com a
CPa. total ausência de base legal característica da incom-
Por outro lado, os atos da administração podem petência absoluta. nestes casos, a nulidade parece ser
ainda resultar em inconstitucionalidade conse- a única resposta necessária e adequada a não per-
mitir que a administração produza o preciso efeito
que a lei quis impedir: a aplicação da norma des-
conforme. nestes casos, a perturbação eventual-
(33) andré salgado de Matos e João taborda da gaMa, “o mente criada pela improdutividade ipso jure será
prazo para exercício do direito à restituição de emolumentos
ultrapassada pela rejeição do exercício de um poder
notariais indevidamente cobrados”, Fiscalidade, 2002, 9, p. 128.
estes atos mesmo quando meramente anuláveis parecem dever não consentido e contrário à lei Fundamental.
admitir sempre impugnação contenciosa, mesmo depois de es-
gotados os prazos previstos na lei para o efeito.
(34) a declaração da inconstitucionalidade com força obri-
gatória e geral prevista no art. 282.º da CrP produz efeitos
desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional (37) Como ensina goMes Canotilho, Direito Constitucional e
e afeta as decisões administrativas tomadas com base em norma Teoria da Constituição, 7.ª ed., 2003, pp. 940, 953, 956, a lei incons-
declarada inconstitucional (n.º 3 do art. 282.º a contrario da CrP), titucional “é uma lei ferida de nulidade ou invalidade absoluta”. de
exceto se por razões de segurança jurídica, equidade ou inte- igual modo, a violação de uma diretiva com efeito direto não
resse público de excecional relevo, conduzirem à fixação de di- produz um simples vicio de violação de lei, mas antes a sua de-
ferentes efeitos da inconstitucionalidade. saplicação total, andré salgado de Matos e João taborda da
(35) goMes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Cons- gaMa, “o prazo para exercício do direito à restituição de emo-
tituição, 7.ª ed., 2003, p. 941. no mesmo sentido, andré salgado lumentos notariais indevidamente cobrados”, Fiscalidade, 2002,
de Matos e João taborda da gaMa, “o prazo para exercício do 9, p. 117.
direito à restituição de emolumentos notariais indevidamente (38) neste sentido, andré salgado de Matos, A Fiscalização
cobrados”, Fiscalidade, 2002, 9, p. 129. Administrativa da Constitucionalidade, 2004, pp. 426 e segs., e di-
(36) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es- naMene de Freitas, O Acto Administrativo Inconstitucional, 2010,
tudos de Direito Público, 2011, p. 231. pp. 235 e segs.

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Justiça adMinistratiVa n.º 147 • Julho/setembro 2021

Por tudo isto, ainda que se admita poderem não existe um princípio da legalidade autónomo
existir casos concretos menos graves de inconstitu- da obediência à Constituição, como o princípio da
cionalidade consequente relativamente aos quais constitucionalidade é a premissa maior de toda a su-
deva ser de concluir pela anulabilidade, somos de bordinação administrativa à legalidade. Por isso,
opinião de que, em regra, o princípio da constitu- atendendo ao papel desempenhado pela Constitui-
cionalidade (n.º 3 do art. 3.º da CrP) será incompa- ção como fonte primária de validade material in-
tível com a estabilização do ato que aplique norma terna dos atos de direito Público e fonte direta-
inconstitucional por decurso do prazo de impug- mente vinculante de direito (n.os 2 e 3 do art. 3.º da
nação contenciosa. nestes casos, deve aceitar-se o CrP), exprimindo consequentemente a dependên-
alargamento dos prazos de impugnação por todo cia substancial do estado em todas as suas formas
o tempo em que o ato puder ser removido ex tunc à legalidade democrática fundada na Constituição
da ordem jurídica, em virtude da declaração de in- (39), alguns autores entendem que os atos adminis-
constitucionalidade da norma aplicada, com força trativos diretamente desconformes com a Consti-
obrigatória e geral, nos termos do n.º 3 do art. 282.º tuição devem necessariamente ser considerados
da CrP, a contrario. nulos (40). autores como tiago serrão, para quem
Finalmente, se o ato for desconforme com a nulidade, tal como configurada na lei geral admi-
norma constitucional imediatamente condicio- nistrativa, visa tutelar o interesse público da prote-
nante da atividade da administração, ocorrerá uma ção da integridade da ordem jurídica, traço
inconstitucionalidade direta. nesta violação ime- determinante para a definição da barreira que se-
diata de parâmetro normativo de nível superior, para nulidade e anulabilidade. sendo o interesse
que pode ser uma violação de direitos, liberdades público da tutela da integridade da ordem jurídica
e garantias ou outros direitos de natureza análoga, sempre colocado em causa quando ocorre ativi-
ocorre o equivalente a uma alteração legislativa por dade administrativa contrária à Constituição (41), a
ato da administração. esta alteração, além de não interpretação conforme ao princípio da constitucio-
consentida pela Constituição, é com ela incompa- nalidade permitirá concluir pela nulidade dos atos
tível, desde logo porque restrita à situação indivi- que a violem direta e imediatamente (42).
dual e por isso arbitrária e contrária ao princípio
da igualdade. também aqui, a aceitar-se a forma-
ção de caso decidido contra a Constituição, estar-
se-ia a facilitar a instrumentalização do regime das (39) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es-
invalidades para restringir direitos fundamentais tudos de Direito Público, 2011, pp. 255-256.
(40) tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucional”, Es-
ou violar normas constitucionais com carácter pre- tudos de Direito Público, 2011, pp. 256-258. em sentido seme-
ceptivo. isto, além de gravemente desconforme lhante, dinaMene de Freitas, O Acto Administrativo Inconstitu-
com a Constituição, fonte de validade de todos os cional, 2010, p. 251.
(41) Como referem andré salgado de Matos e João ta-
atos do estado (n.º 3 do art. 3.º da CrP), resultaria borda da gaMa, “o prazo para exercício do direito à restituição
numa utilização flagrantemente desproporcional de emolumentos notariais indevidamente cobrados”, Fiscali-
do regime de invalidades, e permitiria afinal efeitos dade, 2002, 9, p. 130, a nulidade dos atos administrativos basea-
dos em ato normativo inconstitucional constitui aliás “prova da
que a Constituição não autoriza.
sobrevivência da figura da nulidade por natureza enquanto categoria
ontologicamente ineliminável”.
2.4. ao contrário do entendimento tradicional- (42) Para tiago serrão, “a nulidade do acto inconstitucio-
nal”, Estudos de Direito Público, 2011, pp. 257-258, os preceitos
mente sustentado pela doutrina, que aponta para
relativos a direitos, liberdades e garantias e outros de assento
o n.º 2 do art. 266.º da CrP para sustentar a afirma- constitucional e natureza análoga detêm uma completude es-
ção de que a administração deve antes de tudo obe- trutural e ocupam uma posição privilegiada no ordenamento
jurídico constitucional português que lhes confere suficiente
diência primária à lei, a realidade é que para esta
força jurídica a resistir aos atos desconformes da administração
disposição “os órgãos e agentes administrativos estão que se lhe devem submeter, o que não pode deixar de implicar
subordinados à Constituição e à lei”, pelo que não só a nulidade dos atos administrativos que ofendam tais preceitos,

9
da necessidade de uma cláusula geral de nulidade. dos atos da administração

Tomada de posição Com efeito, apesar da diversidade dos vícios


3.1. não obstante concordarmos genericamente conducentes à nulidade dificultar a formulação de
com esta tese, julgamos que a violação da Consti- um critério substancial satisfatório, o elemento que
tuição não deve ser valorada autonomamente, mas uniformemente a convoca é fundamentalmente o
antes ser complementada com uma valoração da da elevada gravidade da violação cometida, inde-
intolerabilidade concreta dessa violação, segundo pendentemente da extensão dos danos provoca-
um teste de proporcionalidade (43), na sua tripla di- dos. donde, sempre que a produção de efeitos
mensão. À luz deste critério devem ser ponderados jurídicos provisórios e a consolidação por decurso
a gravidade da ofensa, a possibilidade de ao ato do tempo se revelem intoleráveis, a inexistência de
serem consentidos efeitos provisórios, e a possibi- uma cláusula geral de nulidade deve ser ultrapas-
lidade de consolidação dos seus efeitos por decurso sada quando por força de um teste de proporcio-
de tempo. nestes termos, o ato administrativo vio- nalidade, ela se revele como a única solução capaz
lador da Constituição deve ser considerado nulo, de assegurar, entre a ilegalidade cometida e a con-
mesmo na ausência de disposição legal, sempre tramedida que lhe corresponde, uma tripla dimen-
que a sua eficácia potencial seja logica ou axiologi- são de adequação, necessidade e equilíbrio.
camente repudiada pela ordem jurídica (44) e a nu- de acordo com esta cláusula geral, que cremos
lidade se imponha por ser a resposta adequada, implícita na Constituição e na lei (45), de resto ba-
necessária e equilibrada face à violação cometida. seada, à semelhança da cláusula que figura na lei
alemã, no princípio da proporcionalidade, a comi-
nação da nulidade deve revelar-se como a sanção
e não apenas daqueles que violem o seu conteúdo essencial. de mais adequada à gravidade da ilegalidade cometida.
acordo com este autor, “assim o exige o princípio da constituciona-
além disso, esta solução deve ser aplicada quando
lidade e, de modo particular, o critério do tipo de ato e da gravidade do
vício, que deverá nortear o interprete na sua tarefa de concretização do se revele necessária a impedir a produção de efeitos
disposto no primeiro segmento do n.º 1 do artigo 133.º do CPA”. Con- provisórios inaceitáveis ou a possibilidade da sua
clui que resulta não só da força normativa da Constituição que consolidação a breve trecho. deve por fim apresen-
resulta do princípio da constitucionalidade, mas também e de
modo especial da eficácia e vinculatividade imediatas dos pre- tar-se como uma solução equilibrada, na medida em
ceitos que integram a categoria dos direitos, liberdades e garan- que o sacrifício que potencialmente implica à segu-
tias, que toda e qualquer violação a tais disposições configura rança jurídica seja ultrapassado pelo benefício que
uma transgressão de tal modo grave, que reclama o imediato
restabelecimento do interesse público desse modo preterido, o
a imediata rejeição da ilegalidade cometida traria
que só pode ser conseguido com a sua nulidade. não só à estabilidade e previsibilidade das situa-
(43) trata-se de um princípio operativo da ordem constitu- ções, como pelo efeito consequente de proteção da
cional portuguesa e um corolário densificador do princípio
constitucional do estado de direito democrático. o princípio da
coerência e integridade do sistema jurídico.
proporcionalidade releva no tocante a restrições a direitos fun- nem faria aliás sentido que o juiz ou a adminis-
damentais (n.º 2 do art. 18.º da CrP), sendo desde a lC 1/89 um tração pudessem, com base nos princípios da boa-
princípio materialmente constitutivo da atuação da administra-
fé, da proteção da confiança e da proporciona-
ção pública, postulando o uso moderado do poder (n.º 2 do art.
266.º da CrP) e desempenhando uma importante função nega- lidade ou outros princípios jurídico-constitucio-
tiva nos casos em que emerge com perigo o excesso de poder. nais, atribuir efeitos jurídicos a situações de facto
acresce que, nota goMes Canotilho, Direito Constitucional e Teo-
decorrentes de atos nulos (n.º 3 do art. 162.º do
ria da Constituição, 7.ª ed., 2003, pp. 271, 920 e 1163, citando os
acs. do tC n.os 176/2000 e 1202/2000, este princípio tem sido in- CPa), e já não tivessem a possibilidade de, com
vocado para alicerçar o próprio juízo de inconstitucionalidade.
(44) Como defendem MarCelo rebelo de sousa e andré
salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, tomo iii, 2.ª ed.,
2009, p. 180. no mesmo sentido, diogo Freitas do aMaral,
Curso de Direito Administrativo, vol. ii, 4.ª ed., 2018, p. 367, as nu- (45) Como nota Paulo otero, Direito do Procedimento Admi-
lidades por natureza são aquelas em que, por razões de lógica nistrativo, vol. i, 2016, p. 635, não se pode aliás excluir que a des-
jurídica, “embora não previstas na lei, não podiam deixar de ser como conformidade da atuação administrativa com normas do direito
tais consideradas, porque seria totalmente inadequado o regime da sim- da união europeia nos venha a obrigar ao reconhecimento de
ples anulabilidade”. nulidades por natureza.

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Justiça adMinistratiVa n.º 147 • Julho/setembro 2021

base em juízo semelhante e por aplicação dos mes- normativos sobre as valorações próprias do exercí-
mos princípios, declarar a nulidade de ato admi- cio da função administrativa, que vinculam a ad-
nistrativo, nos casos em que essa consequência se ministração a atuar em obediência à lei e ao Direito (n.º
apresente para o homem médio e de acordo com a 1 do art. 3.º do CPa), a prosseguir o interesse público,
consciência jurídica geral, como a única solução ad- no respeito pelos direitos e interesses legalmente prote-
missível. gidos dos cidadãos (art. 4.º do CPa), sendo que as de-
Julgamos por isso que, apesar da falta de previ- cisões que colidam com direitos subjetivos ou interesses
são legal expressa de uma cláusula geral de invali- legalmente protegidos dos particulares só podem afetar
dade, a autoridade competente para proceder à essas posições na medida do necessário e em termos pro-
anulação ou declaração de nulidade deve concluir porcionais aos objetivos a realizar (n.º 2 do art. 7.º do
por esta última sempre que, na sequência de um CPa). e permite ainda a rejeição das soluções mani-
teste de proporcionalidade que abranja as suas três festamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de
dimensões, conclua que o tipo de invalidade não Direito (art. 8.º do CPa) (46).
possa ser outro. e não se diga que a nulidade, por Quando, pela gravidade e alarme social de cer-
operar imediatamente – não produzindo quaisquer tas ilegalidades praticadas em atos administrati-
efeitos jurídicos, independentemente da declaração vos, não possam ser tolerados os seus efeitos pro-
de nulidade (n.º 1 do art. 162.º do CPa) – não pode visórios e a possibilidade da sua consolidação por
ficar dependente de um teste de proporcionalidade decurso de tempo, por serem mais gravosos e con-
porque a declaração de nulidade é sempre uma de- trários à unidade do sistema jurídico do que as per-
cisão de carácter declarativo que, até ser tomada turbações eventualmente causadas pela aplicação
pelos tribunais ou pelo órgão administrativo com- do regime da nulidade, tais atos devem ser decla-
petente, implicará sempre divergências de enten- rados nulos. o que se verificará quando o tipo mais
dimento. radical de invalidade se revele como o mais ade-
quado à gravidade da ilegalidade cometida, seja
3.2. esta parece-nos ser a única solução compa- necessário à proteção de princípios estruturais do
tível com o regime das invalidades, por via do qual sistema jurídico ou de relevantes direitos subjetivos
são necessariamente nulos os atos que padecem de ou interesses legalmente protegidos, e a sua prote-
invalidades de tal modo graves que não possam ser ção através do regime da nulidade justifique, de
anuláveis, o que acontece quando a anulabilidade acordo com uma ponderação de equilíbrio, a per-
conduzir a resultados incompatíveis com o sistema turbação à segurança jurídica a que eventualmente
a que pertencem. é para onde apontam os dados possa dar lugar.

José aVilez ogando

(46) além disso, deve adotar os comportamentos adequados


aos fins prosseguidos (n.º 1 do art. 7.º do CPa), recusando atua-
ções burocratizadas, ineficientes e a utilização supérflua dos re-
cursos do estado, pautando-se por critérios de eficiência,
economicidade e celeridade (art. 5º do CPa), o que significa o
dever de avaliar a litigiosidade da sua atuação, a proibição de
insistência em soluções ilegais ou desconformes com o princípio
da proporcionalidade, geradoras de uma litigiosidade indese-
jável do ponto de vista da realização dos fins do estado.

11
REVISTA ELECTRÓNICA DE FISCALIDADE DA AFP (2022) ANO IV – NÚMERO 1

__________________________________________________________________________________________________________________

O PRINCÍPIO REFORÇADO DA JURIDICIDADE TRIBUTÁRIA

THE REINFORCED TAX LEGALITY PRINCIPLE

JOSÉ AVILEZ OGANDO1

RESUMO

Neste texto procedemos à caracterização do princípio reforçado da juridicidade tributária,


desvendando o seu significado a partir da natureza do Estado Fiscal e detetando as
particularmente intensas exigências de estabilidade e previsibilidade neste domínio.
Identificamos os três problemas a serem resolvidos por este princípio e a insuficiência da
proteção oferecida pelo princípio da legalidade administrativa. E analisaremos a forma
como esse fim é atingido através da reserva de lei parlamentar, do princípio da tipicidade
e do primado da lei e da Constituição, reforçados por um direito fundamental de natureza
análoga a não ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da
Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não
façam nos termos da lei, autêntico limite imanente ao dever fundamental de pagar
impostos, que aqui abreviadamente designaremos por direito fundamental à legalidade da
tributação.

Palavras chave: juridicidade, princípio reforçado, legalidade, direito fundamental,


reserva de lei, Estado Fiscal.

ABSTRACT
In this text, we characterize the reinforced principle of tax legality, revealing its meaning
from the nature of the Tax State and then detecting the particularly intense demands for
stability and predictability in this area. We then proceed to identify the three problems
called to be solved by this principle and the insufficiency of protection offered by the

1
Advogado. O autor pode ser contactado em jaogando@sgfc-law.pt .

REVISTA ELECTRÓNICA DE FISCALIDADE DA AFP (2022) I:3


1 || 45
O PRINCÍPIO REFORÇADO DA JURIDICIDADE TRIBUTÁRIA

__________________________________________________________________________________________________________________

principle of administrative legality. And we then pass on to analyse how this end is
achieved through the parliament’s exclusive competence in tax matters, the legal type
principle and the primacy of law and the Constitution, reinforced by a fundamental right
not to be forced to pay taxes that have not been created in the terms set out in the
Constitution, which are retroactive in nature or whose settlement and collection are not
carried out in accordance with the law, an authentic intrinsic limit to the fundamental
duty to pay taxes, which we shall call a fundamental right to the legality of taxation.

Keywords: juridicity, reinforced principle, legality, fundamental right, reserve of law,


Tax State.

ÍNDICE

1. O ESTADO FISCAL, SEGURANÇA JURÍDICA E ESTADO DE DIREITO .................................. 3


2. OS TRÊS PROBLEMAS DO ESTADO FISCAL .......................................................................... 6
3. A INSUFICIÊNCIA DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ADMINISTRATIVA ............................. 10
4. RESERVA DE LEI PARLAMENTAR ...................................................................................... 13
5. RESERVA MATERIAL DE LEI: O PRINCÍPIO DA TIPICIDADE ............................................. 19
6. O PRIMADO DA LEI E DO DIREITO ..................................................................................... 30
7. CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 44

REVISTA ELECTRÓNICA DE FISCALIDADE DA AFP (2022) I:1


2 || 45
O PRINCÍPIO REFORÇADO DA JURIDICIDADE TRIBUTÁRIA

__________________________________________________________________________________________________________________

1. O ESTADO FISCAL, SEGURANÇA JURÍDICA E ESTADO DE DIREITO

1.1. O Estado fiscal 2 define-se como aquele cujas necessidades financeiras são
essencialmente asseguradas por impostos3, que assim funcionam em termos figurativos
como o preço que pagamos por uma sociedade civilizada4. Esta visão dos impostos
reflete a noção de que, ainda que não estejamos a receber os benefícios correspondentes
aos tributos que pagamos, estaremos ainda assim dispostos a pagá-los pois apenas desse
modo poderemos proteger a esfera privada das agressões do Estado ou de terceiros.
A história demonstra que a forma como o Estado se financia traduz uma escolha,
tanto quanto às suas funções, como quanto à própria organização social, já que as
alternativas no financiamento do Estado são dificilmente compagináveis com o sistema
de direitos liberdades e garantias. Ao passo que o Estado patrimonial não sabe distinguir
entre esfera pública e privada, tendendo a ser incompatível com a ideia de propriedade, o
Estado prestador ou tributário, ao fornecer todos ou a maioria dos bens e serviços, dita as
regras do mercado, tendendo a impedir ou a condicionar fortemente a livre iniciativa e a
construção de um mercado concorrencial.
Pelo contrário, para o Estado fiscal participar, pela via do imposto, nos resultados
das atividades prosseguidas pelos agentes económicos, tem de reconhecer a sua liberdade
para prosseguir essas atividades como entenderem, garantindo-lhes respeito pelos seus
direitos à propriedade privada e à livre iniciativa económica. Donde, a opção tomada com
as revoluções liberais e que até hoje mantemos aponta para uma organização que além da
separação dos poderes, observa também a separação entre Estado e economia5,

2
O princípio do Estado fiscal infere-se a partir de diversas disposições da Constituição portuguesa, das
quais se destacam o nº. 1 do artigo 103º e os artigos 80º, 81º, 82º e 83º da CRP.
3
JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, p. 192. Em particular sobre a
caracterização do Estado português como Estado fiscal, ver na mesma obra pp. 210-216.
4
OLIVER WENDELL HOLMES JR. Compañia General de Tabacos de Filipinas vs. Collector of Internal
Revenue, 1927, 275 US 87, 88: “It is true, as indicated the last cited case, that every exaction of money for
an act is a discouragement to the extent of the payment required, but that which its immediacy is a
discouragement may be part of an encouragement when seen its organic connection with the whole. Taxes
are what we pay for civilized society, including the chance to insure. A penalty on the other hand (…)”.
5
Isto, sem prejuízo do principio da subordinação do poder económico ao poder politico democrático,
previsto no artigo 80º al. a) da CRP, expresso nas exceções ao principio da neutralidade fiscal, impostas
pelo caracter social do Estado de Direito, como previsto no artigo 81º, al. b) da CRP: “Incumbe
prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social: (…) b) Promover a justiça social, assegurar a
igualdade de oportunidades e operar as necessárias correções das desigualdades na distribuição da
riqueza e do rendimento, nomeadamente através da política fiscal; (…)”, e ainda na al. h) do nº. 2 do artigo

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reservando a política, entendida como a atividade que se ocupa dos assuntos coletivos, ao
Estado, enquanto que a economia, entendida como o conjunto de atividades destinadas à
satisfação das necessidades individuais, é reservada à sociedade em geral e aos indivíduos
em particular6. Naturalmente que, extraindo-se da economia de mercado os recursos
necessários à produção de bens públicos, o seu bom funcionamento é do interesse do
Estado fiscal, o que implica necessariamente uma adequada articulação do sistema fiscal
com o sistema económico em vigor.

1.2. O sistema económico em vigor num dado tempo e lugar condiciona a


configuração jurídica do sistema utilizado pelo Estado para extrair os seus recursos. O
sistema rececionado pela Constituição de 1976 aponta para a construção de uma
economia social de mercado, baseada na conceção personalista da dignidade da pessoa
humana como fundamento da ordem social (artigo 1º da CRP), que favorece uma ordem
económica aberta, onde opera uma multiplicidade de agentes económicos com igual
dignidade (nº. 1 do artigo 13º da CRP), e atuando em livre concorrência 7. É o que resulta
do artigo 2º da CRP, que apresenta como objetivo do Estado de direito democrático “a
realização da democracia económica”, assente na “liberdade de iniciativa e de
organização empresarial no âmbito de uma economia mista” (artigo 80º al. c) da CRP).
A Constituição estabelece ainda como incumbência prioritária do Estado no âmbito
económico e social, “assegurar a igualdade de oportunidades”, “o funcionamento
eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as
empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de
posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral” (artigo 81º, al. b) e f) da
CRP), devendo a política comercial ter como objetivo “a concorrência salutar dos
agentes mercantis” (al. a) do artigo 99º da CRP). Em termos microeconómicos o sistema
garante a propriedade privada (nº. 1 do artigo 62º da CRP), a retribuição pelo trabalho (al.

66º da CRP: “assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e
qualidade de vida”, ou no nº. 1 do artigo 103º da CRP: “o sistema fiscal visa, (…) uma repartição justa
dos rendimentos e da riqueza”.
6
Ver por todos JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, pp. 191 e segs..
7
MANUEL AFONSO VAZ, Direito Económico, A Ordem Económica Portuguesa, 4ª ed., 1998, p. 132.

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a) do nº. 1 do artigo 59º da CRP) e a livre iniciativa económica (nº. 1 do artigo 61º da
CRP), no quadro de um mercado concorrencial (al. f) do artigo 81º da CRP).
Mas a formação e o desenvolvimento da economia de mercado não se bastam com
a consagração de direitos instrumentais à efetiva e livre participação dos agentes
económicos8. Exige-se ainda que estes possuam condições para adotar comportamentos
racionais e possam ajustar-se aos riscos e às incertezas razoavelmente espectáveis num
mercado eficiente. Isto implica a eliminação de fatores de incerteza externos, como são
aqueles que possam ter origem nas intervenções do legislador ou da administração 9.
Porque se aos riscos normais do mercado forem acrescentados fatores externos de
incerteza, estes impedirão a capacidade dos agentes económicos se determinarem pelo
funcionamento normal do mercado, a ponto de tornar os comportamentos de investimento
menos racionais que os de desinvestimento.
Torna-se assim necessário que o Estado seja capaz de eliminar incertezas externas,
como aquelas que resultam do sistema fiscal, de maneira a assegurar que os agentes
económicos fiquem, tanto quanto possível, apenas entregues aos riscos do mercado, assim
garantindo as necessárias condições para a racionalidade económica dos seus
comportamentos.
A segurança jurídica deve assim ser entendida como autêntica condição
existencial do Estado fiscal, alicerçando um ambiente de certeza, favorecedor da
estabilidade do valor dos ativos e de confiança dos indivíduos e das empresas quanto aos
encargos esperados em resultado das suas atuações. A estabilidade proporcionada por este
princípio é o que permite aos indivíduos formar (ex post) expectativas quanto à
continuidade das posições que ocupam (princípio da certeza do Direito), além da

8
Neste contexto, ADAM SMITH na sua obra Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações,
identificou quatro qualidades desejáveis dos sistemas fiscais: a certeza (os impostos que os indivíduos
devem ser obrigados a pagar, bem como os momentos e as respetivas formas de pagamento devem ser
certos e não arbitrários para os contribuintes e para os demais sujeitos obrigados), a igualdade (os
contribuintes devem contribuir para a manutenção do governo, tanto quanto possível na proporção das suas
capacidades) a neutralidade (devem ser lançados nos tempos e modos de pagamento mais convenientes
para os contribuintes a eles obrigados), e a eficiência (devem ainda ser configurados em termos de
maximizar os resultados para o erário público com o mínimo de sacrifícios possível para os contribuintes).
9
Como refere ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 305-306, “um sistema
que autorizasse a Administração a criar tributos ou a alterar os elementos essenciais de impostos já
existentes, viria do mesmo passo a criar condições adicionais de insegurança jurídica e económica,
obrigando a uma constante revisão dos planos individuais, à qual a livre iniciativa não poderia resistir.”.

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confiança necessária a, com base nessas expectativas (ex ante), apoiar as ações adequadas
às posições que esperam ocupar no futuro (princípio da proteção da confiança).

1.3. Mas é preciso reconhecer que previamente à fundamentalidade que o


princípio da segurança jurídica assume para o Estado Fiscal, ela decorre já do princípio
do Estado de Direito, entendido como aquele que tem a justiça por fim e as formas
jurídicas como meio da sua realização10. Este apresenta assim uma dimensão formal, que
consiste na regra da sua expressão através do Direito vertido em leis gerais e abstratas
como forma de eliminar os arbítrios do poder, e uma dimensão material por se dirigir à
realização da justiça, pressupondo o respeito pela esfera individual privada dos cidadãos.
Neste contexto o princípio da segurança jurídica, sendo conducente à ideia de legalidade,
revela-se ainda no seu conteúdo, garantindo um certo grau de estabilidade das opções
tomadas pelo legislador.
No domínio dos impostos, a dimensão formal do Estado de Direito é o primeiro
garante da possibilidade de previsão objetiva dos encargos esperados, ao reservar à lei a
expressão do poder de tributar. Além disso, impõe que as leis tributárias sejam elaboradas
em termos que permitam aos cidadãos orientar os seus assuntos com a confiança que
advém da possibilidade de conhecer e calcular com um certo grau de aproximação e pelos
seus próprios meios, os encargos fiscais esperados, futuros ou potenciais 11.
Por outro lado, o princípio do Estado de Direito obriga a que o fim de realização
de justiça se exprima em termos materiais através do princípio da igualdade e da proibição
das discriminações que não tenham por base razões objetivas válidas. Esta dimensão
material do princípio do Estado de Direito parece exigir um critério material intrínseco
de justiça na tributação, que sirva de elemento estruturante das decisões tomadas pelo
legislador na distribuição dos encargos tributários 12.

2. OS TRÊS PROBLEMAS DO ESTADO FISCAL

10
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p. 105. Sobre o tema, ver ainda GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional, 6ª ed, 1993, pp. 548 e segs..
11
ALBERTO XAVIER Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 295-298.
12
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, p. 50.

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2.1. A configuração jurídica dos sistemas fiscais deve assentar num conjunto de
pressupostos normativos que garantam a sua integridade intra-sistemática, solucionando
essencialmente três problemas. O primeiro é o da legitimação da lei de imposto, que se
coloca no momento da criação da norma, exigindo a necessária anuência daqueles a
quem as obrigações incumbem; depois, o problema da manifestação da vontade funcional
do legislador, que se verifica no momento da aplicação da lei aos casos concretos,
condicionando o exercício do poder tributário por parte da administração; por fim temos
o problema do critério material intrínseco de repartição dos encargos fiscais que diz
respeito ao conteúdo das normas de imposto.
Representando os impostos para os contribuintes restrições à livre disposição dos
seus bens, torna-se antes de tudo necessário assegurar a legitimação da norma de imposto,
o que é feito através da ideia — mais antiga que o próprio Estado de Direito — de
13
autotributação , mediada pelo parlamento eleito democraticamente. Nem podia ser de
outro modo uma vez que, estando em causa a substituição de necessidades privadas por
necessidades coletivas14, na distribuição dos encargos tributários é dada uma dupla
garantia: a que é dada aos contribuintes, de que os termos da delimitação da sua esfera
privada será sempre precedida de discussão e autorização por parte dos seus
representantes; e a garantia que os contribuintes dão ao Estado, de que a cobrança
decorrerá em termos pacíficos e sem quebras de paz social.
Parece-nos aliás que, mais do que uma garantia dos administrados, a tributação
depende explícita ou implicitamente da obtenção de consensos junto dos contribuintes15,

13
ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 275 e segs..
14
ARMINDO MONTEIRO, Introdução ao Estudo do Direito Fiscal I, Separata da Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, Vol. VI, 1949 e Vol. VII, 1950, p. 66.
15
Parte da doutrina considera, como JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997,
p. 327, que “a função do consentimento estamental dos impostos era exclusivamente garantística. Tratava-
se de proteger a liberdade pessoal e garantir a segurança jurídica, evitando uma tributação arbitrária dos
membros das comunidades estamentais”. Não podemos concordar com esta caracterização. Antes mesmo
de o consentimento surgir como uma garantia dos administrados, ele representou, pelo contrário, uma
garantia de cobrança, um sinal confirmatório dado ao soberano sobre a aceitação generalizada dos encargos
que daí em diante seriam impostos. Neste sentido, ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto
Tributário, 1972, p. 277, refere que o princípio surgiu ligado à ideia de autotributação, ou seja, à ideia de
que os impostos só podiam ser eficazmente criados se aceites pelas assembleias representativas dos sujeitos
a eles obrigados, e portanto, à ideia de sacrifício coletivamente consentido. Ver ainda DIOGO LEITE DE
CAMPOS e MÔNICA LEITE DE CAMPOS, Direito Tributário, 1996, pp. 76-78. Assim, muito mais do que um
salto civilizacional resultante da instituição precoce de um percursor dos direitos fundamentais, o
consentimento auto ordenador dos administrados foi o percursor da legalidade tributária. Nessa medida,
terá inicialmente servido mais os interesses do governante do que propriamente dos governados. Em

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que os soberanos aproveitam para obter uma relegitimação do seu poder. Tendo em conta
que a partir de um certo nível de incumprimento torna-se materialmente impossível impor
prestações coativas individuais a todos os sujeitos passivos incumpridores 16, torna-se
claro que a sustentabilidade dos Estados fiscais depende de uma anuência generalizada
por parte dos cidadãos obrigados17, quanto aos encargos que lhes são impostos. Esta
anuência começa precisamente com a aprovação das leis fiscais por órgãos
representativos dos cidadãos, transmitindo-lhes uma legitimidade democrática própria18.

primeiro lugar, por uma razão lógica: a consagração do direito a impostos é de tal modo intrusiva que não
se vê como poderia, sobretudo naquele tempo, ser eficazmente instituída sem a colaboração dos obrigados.
Com efeito, antes de qualquer imposto ser instituído, o direito dos contribuintes sobre os seus próprios bens
está mais garantido para o seu titular do que a expectativa do futuro credor em vir a receber o imposto
(melior est conditio possidentis), ainda que investido em poderes de autoridade. Por isso, será este o
primeiro interessado em obter esse consentimento. Conforme descrevem D IOGO LEITE DE CAMPOS e
MÔNICA LEITE DE CAMPOS, Direito Tributário, 1996, p. 75, a propósito das experiências fiscais na Roma
antiga, o tributo cuja cobrança se baseia puramente em poderes de autoridade torna-se num instrumento de
opressão, dificultando a sustentabilidade dos regimes impositores. Pelo contrário, o sucesso do Estado fiscal
reside na circunstância de as imposições fiscais decorrerem num clima de relativa paz social. Depois,
porque como é sabido, as monarquias medievais não assentavam no poder absoluto do rei, mas sim em
apoios de diferentes grupos sociais. Como salienta VASCO BRANCO GUIMARÃES, Princípios Gerais da
Fiscalidade, Lições de Fiscalidade, Vol I – Princípios gerais e fiscalidade interna, coord. João Ricardo
Catarino e Vasco Branco Guimarães 6ª ed., 2018, pp. 84-91, “por detrás de cada decisão tributaria” do
soberano na Idade Média “está uma consulta e negociação com os interessados”; os tributos eram por vezes
utilizados como “contrapartida pela não desvalorização da moeda”, podendo defender-se que “em
Portugal o lançamento dos impostos gerais era uma concessão das Cortes”. O mesmo autor refere ainda
que “a necessidade de cartas de confirmação indicia o seu não cumprimento” e que no foral de Pontével
de 1194 D. Sancho I colocou-se mesmo na posição de cumpridor dos direitos que ele próprio determinou,
concluindo que “a aplicação pura do princípio do consentimento e a extração das consequências exatas
da sua não verificação provocaram crises financeiras graves. As crises advinham da impossibilidade da
arrecadação dos réditos orçamentários nomeadamente os fiscais”.
16
Por se tornar impraticável alocar um inspetor tributário a cada contribuinte potencialmente incumpridor.
17
Se isto é assim hoje, terá sido ainda mais assim nos tempos do Estado patrimonial em que os impostos
começaram a ser lançados como contribuições extraordinárias pedidas pelo rei e consentidas pelos seus
súbditos. Como refere neste sentido ARMINDO MONTEIRO, Introdução ao Estudo do Direito Fiscal I,
Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. VI, 1949 e Vol. VII, 1950,
pp. 54-63, “A vontade do soberano teve de adaptar-se frequentemente às exigências das populações, que
entendiam os impostos na sua origem, como concessões feitas, pelo indivíduo ou pelas coletividades
menores, ao poder mais alto; e a regra tributária refletia esta formação, em que havia fortes elementos de
acordo, visto que surgiu depois de discussão entre representantes dos interesses e opiniões opostos. Esta
adaptação de vontades — que, como fórmula jurídica atual, aparece na exigência, expressa em quase todas
as Constituições, da votação da lei de imposto e da autorização anual de cobrança dada pelos órgãos
legislativos eleitos, como condição essencial de validade do tributo — é elemento fundamental da criação
da norma tributária: e serve para afirmar o direito fiscal como força anterior ao Estado”.
18
Como refere ainda SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos
Administrativos, pp. 196-197, não só o poder deve fundar-se no povo como o corte da ligação entre a
emissão de normas e a vontade popular colocaria em causa a bondade do seu conteúdo, o que deve evitar-
se, sobretudo em matéria de impostos em que cada norma representa um acordo celebrado entre o Estado
e os contribuintes quanto à produção dos bens públicos, e nessa medida, quanto aos termos em que as
necessidades devem ter prioridade sobre as necessidades privadas.

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Em segundo lugar, temos o problema do exercício do poder tributário por parte


da administração. Esta questão revela-se fundamental porque os espaços de arbitrariedade
no exercício do poder tributário ameaçam a eficácia dos sistemas fiscais e afetam a base
de legitimação dos titulares do poder. A solução para este problema passa pela sujeição
da atividade administrativa a comandos precisos, que tornem as decisões de aplicação dos
critérios legais menos guiadas por casuísmos e mais por regras claras e evidentes,
assegurando uma razoável previsibilidade das obrigações fiscais. A especial densificação
das normas fiscais permite o favorecimento da lei como principal instrumento de
tributação, de maneira a que todos nela possam encontrar em cada momento, não só os
pressupostos desencadeadores da tributação, mas também os critérios que traduzem a
concreta pretensão tributária.
Finalmente, temos o terceiro problema, relativo ao conteúdo das normas fiscais.
Trata-se de saber da existência de um critério material intrínseco19 que se imponha ao
legislador na sua criação. Esta questão relaciona-se com o exercício do poder tributário
por parte da administração que, estando subordinada à Constituição e à lei (nº. 2 do artigo
266º da CRP), pode encontrar-se perante a aplicação de leis fiscais não informadas por
critérios materiais de justiça20. Se imaginarmos uma cobrança de impostos inteiramente
desligada do princípio da generalidade da tributação na medida da capacidade
contributiva21, facilmente se representarão situações em que, por total ausência de
capacidade contributiva sejam exigidos impostos incobráveis, ou em que a inerente
injustiça da tributação de sujeitos com insuficiente capacidade contributiva ocasionaria a
resistência dos contribuintes ou mesmo a dissidência fiscal generalizada. Até a cobrança
de impostos pouco ligada à capacidade contributiva dos sujeitos passivos conduz a

19
SÉRGIO VASQUES, Manual, de Direito Fiscal, 2ª ed., 2018, p. 76.
20
A estrutura interna das normas fiscais exige ainda a resolução de outros problemas, tratados pelos
economistas e cuja solução apenas se pode encontrar no modo como se encontra estruturada a arquitetura
do sistema fiscal. Estamos a referir-nos aos problemas económicos da neutralidade fiscal, que se refere à
qualidade dos impostos que não interfiram nem perturbem a melhor distribuição dos recursos pela economia
e ao problema da eficiência fiscal que exige impostos adequados à prossecução dos seus objetivos
económico-sociais. Neste sentido ver SOUSA FRANCO, Finanças Públicas e Direito Financeiro, 1980,
pp. 198-199 e 289-291.
21
Na expressão do §14º do artigo 145º da Carta Constitucional de 1826, que a tributação dos cidadãos seja
feita “em proporção dos seus haveres”. Disposição semelhante pode ser encontrada no artigo 28º da
Constituição de 1933. Ver JORGE MIRANDA, As Constituições Portuguesas, de 1822 ao texto actual da
Constituição, 6.ª ed., 1977.

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injustiças sobre os sujeitos pagantes, e produz ineficiências conducentes ao surgimento


de economias paralelas22.

3. A INSUFICIÊNCIA DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ADMINISTRATIVA

3.1. Da exigência atrás abordada de que o Estado se exprima através da lei decorre
o princípio da legalidade administrativa, que como se referiu, subordina todos os atos dos
órgãos e agentes da administração à Constituição e à lei (nº. 2 do artigo 266º da CRP).
Ao contrário dos sujeitos de Direito Privado que se determinam num quadro de autonomia
(sendo permitido tudo o que não for proibido)23, a administração rege-se por princípios
de competência e reserva de lei (sendo proibido tudo o que não for permitido), impondo
que a capacidade de atuação de cada órgão se restrinja à parcela de interesse público
colocada a seu cargo e que a sua atuação seja prevista por lei. A autonomia pública resulta
da permissão legal concedida ao autor do ato para atuar no âmbito das suas competências
e das normas que estabelecem os termos em que ela deve ser exercida, o que geralmente
o vincula a examinar, ponderar e decidir24. Quando os poderes de atuação são concedidos
sem a predeterminação do comportamento do órgão da administração, este fica com uma
certa margem de livre decisão na aplicação da norma a casos concretos 25. Daí que onde
ali se fala em liberdade, aqui se fale em margem de livre decisão.
A vinculação da administração à prossecução do interesse público definido
heteronomamente (nº. 1 do artigo 266º da CRP), determina que as posições ativas da
administração tenham a natureza de poderes-deveres, vinculando-a a encontrar na lei os
pressupostos da sua ação e exercer os poderes que lhe são concedidos dentro dos limites

22
O respeito pela capacidade para contribuir é imposto tanto pela necessidade de manter intacto o
consentimento prestado pelos contribuintes, como pela exigência de neutralidade do sistema imposta pela
separação entre Estado e economia, permitindo que a tributação não afete qualquer das condições em que
assentou a realização das manifestações de riqueza tributadas.
23
JOÃO DE CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, II, 1995, p. 284; JOÃO ANTUNES VARELA, Das
obrigações em geral, I, 9ª ed., 1996, p. 238.
24
BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa,
1995, pp. 26-27.
25
BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa,
1995, pp. 31-32.

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por ela impostos26. Pois mesmo nos casos em que é admitido o uso de poderes de livre
decisão ou apreciação, estes devem ser exercidos “em obediência à lei e ao direito, dentro
dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos
fins” (nº. 1 do artigo 3º do CPA).
É assim comum dizer-se que o princípio da legalidade tanto impõe o princípio da
reserva de lei habilitante (legalidade-fundamento), estabelecendo limites internos à
atividade administrativa27, como o princípio do primado da lei (legalidade-limite), que
estabelece limites externos de legalidade à sua atuação28. Numa formulação positiva, o
princípio da legalidade exprime-se através do princípio da reserva de lei ou regra de
conformidade29. De acordo com esta, toda a atuação da administração deve encontrar na
lei o seu fundamento, exigindo-se que os seus atos estejam autorizados por lei e sejam
praticados de acordo com essa autorização. Esta vertente do princípio da legalidade traduz
uma concordância dos atos da administração com as determinações previamente vertidas
em letra de lei e apresenta-se como uma garantia formal, já que as leis hão de ser
executadas como expressão da vontade funcional do poder legislativo. Por outro lado,
este princípio também funciona como uma garantia material, na medida em que os
comandos legais validamente produzidos fazem presumir que os atos praticados em sua

26
DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª ed, 2018, pp. 40, FERNANDA
PAULA OLIVEIRA e JOSÉ FIGUEIREDO DIAS, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, 5ªa
ed, 2017, p.123, BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão
Administrativa, 1995, p. 80.
27
Chama-se no entanto à atenção com PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I,
2016, pp. 141-142, que esta reserva de lei, que define tipicamente um espaço de regulação exclusiva do
poder legislativo, exprime-se do ponto de vista da administração pela precedência de lei, nos termos da
qual todo o poder da administração tem de se basear numa norma legal habilitante.
28
GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 6ª ed, 1993, p. 371.
29
ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, Erro e ilegalidade no acto administrativo, 1962, p. 38, ALBERTO
XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 282, PAULO OTERO, Direito do Procedimento
Administrativo, Vol. I, 2016, pp. 141-142. Não obstante concordarmos com V ASCO BRANCO GUIMARÃES,
Princípios Gerais da Fiscalidade, Lições de Fiscalidade, Vol I – Princípios gerais e fiscalidade interna,
coord. João Ricardo Catarino e Vasco Branco Guimarães 6ª ed., 2018, p. 97, quando afirma que “a
formulação do princípio da legalidade em direito fiscal mantém sempre o seu carácter próprio não se
confundindo com a formulação administrativa” entendemos que esse carácter próprio não se refere a
qualquer discordância na dogmática e no sentido dos conceitos utilizados em ambos os ramos do Direito,
que deve ser concordante, sob pena de cairmos na completa desarmonia de conceitos o que nos conduziria
a ter duas administrações. Com efeito, apesar de ambos os ramos de Direito partilharem as mesmas
formulações do princípio da legalidade, é inegável que em Direito fiscal este apresenta um conteúdo próprio
e reforçado, adiante ilustrado.

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execução são portadores de valorações materiais de justiça e são conformes com a


Constituição.
Por outro lado, o princípio da legalidade exprime-se ainda numa dimensão
negativa, através do princípio do primado ou preeminência da lei ou regra da
compatibilidade das atuações da administração com o sistema jurídico. Aqui a lei surge
como limite externo à atuação da administração, que deve respeitar os princípios jurídicos
aplicáveis e subordinar-se ao “respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos
dos cidadãos” (nº. 1 do artigo 266º da CRP). Assim, além da necessária base legal, os
atos praticados no exercício da atividade administrativa devem estar numa relação de
coexistência com as demais parâmetros legais e constitucionais aplicáveis, sendo
inválidos se e na medida em que os contrariarem (artigo 2º e nºs. 2 e 3 do artigo 3º da
CRP).
Portanto este princípio traduz a exigência que os atos praticados pela
administração sejam conformes à lei e à Constituição, mas também que a atuação das
entidades públicas seja coerente com o sistema jurídico considerado no seu conjunto,
respeitando os princípios jurídicos aplicáveis e os direitos individuais dos cidadãos, em
particular os seus direitos fundamentais.

3.2. O princípio da legalidade administrativa obriga a administração a agir


simultaneamente de acordo com os comandos que lhe conferem poderes de atuação, e
com respeito pelo bloco de legalidade30, obrigando a ponderações necessárias ao
alinhamento dos atos praticados com o sistema a que pertencem. Com este princípio
pretende-se assegurar que a administração concretize a vontade do legislador, e as suas
decisões contribuam para a unidade ao sistema jurídico, repelindo as soluções
manifestamente iníquas e rececionando o princípio do Estado de Direito simultaneamente
nas suas dimensões formal e material.
Sucede que o princípio da legalidade administrativa não é suficiente para resolver
as questões que se colocam ao Estado fiscal, carecendo ainda de uma feição própria que
lhe permita assegurar os níveis de segurança e de igualdade adequados às exigências dos
interesses próprios deste ramo de Direito. Daí que tenha sofrido algumas adaptações

30
MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, Lisboa, I, 1994/95, p. 100.

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destinadas a resolver cada um dos problemas atrás descritos, dando lugar a um princípio
mais exigente, que com VIEIRA DE ANDRADE31 podemos designar por princípio reforçado
da juridicidade tributária.

4. RESERVA DE LEI PARLAMENTAR

A reserva de lei postula que toda a atuação da administração seja conforme com a
norma que lhe serve de fundamento. No entanto, ela assume vários graus e pode ser
entendida tanto quanto à distribuição da competência para a produção de atos normativos
que servem de fundamento da atividade administrativa, como quanto ao grau de
determinação e concretização normativa das condutas, de que essa reserva deve
revestir32.
Atendendo ao critério da fonte de produção normativa, a reserva poderá ser
formal, quando se exige que o exercício do poder administrativo seja baseado em lei
regularmente emitida por um órgão com competência legislativa normal, ou uma simples
reserva material quando apenas se exige que determinada atuação administrativa se
baseie em norma geral e abstrata, independentemente da sua natureza, seja ela legislativa
ou regulamentar33.

4.1. Concretização do princípio

Apesar da administração se bastar em regra com a simples reserva de lei material,


fundamentando-se a sua atuação em norma geral e abstrata, seja ela legal ou regulamentar
(nº. 2 do artigo 266º da CRP), em matéria de impostos a legitimidade da pretensão do
sujeito ativo na relação de imposto subordina-se a uma rigorosa exigência de lei formal 34.

31
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, “Nulidade e anulabilidade do acto administrativo – anotação ao Ac. do STA
de 30.5.2001, P. 22 251”, CJA, 43 (2004), p. 48.
32
ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 285.
33
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p. 110.
34
Já não somente imposta pelo princípio do Estado de Direito, que implica que o Estado se exprima
utilizando formas jurídicas e por isso normas gerais e abstratas, mas também pelo princípio Democrático
(artigo 2º e nº. 2 do artigo 3º da CRP). Neste sentido, JÓNATAS MACHADO e PAULO NOGUEIRA DA
COSTA, Manual de Direito Fiscal, Perspetiva Multinível, 2016, p. 68-70.

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Só a Assembleia da República — com ou sem a colaboração do Governo, mediante


decreto-lei autorizado — tem o poder de fixar os factos concretos reveladores de
capacidade contributiva dos sujeitos e as estatuições correspondentes determinadoras do
conteúdo das suas obrigações tributárias. É o que resulta da al. i) do nº. 1 do artigo 165º
da CRP, que reserva a competência exclusiva da Assembleia da República a produção
legislativa sobre criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas35 e demais
contribuições financeiras a favor das entidades públicas, salvo autorização legislativa
concedida ao Governo36. Quando a autorização é concedida, a respetiva lei deve definir o
objeto, o sentido, a extensão e a duração da autorização (nº. 2 do artigo 165º da CRP)37
e, quando incidam sobre matéria fiscal e sejam concedidas na lei do orçamento, só
caducam no termo do ano económico a que respeitam (nº. 5 do artigo 165º da CRP)38.
De salientar que as Assembleias Legislativas regionais têm ainda exclusiva
competência para exercer em nome das regiões autónomas, poder tributário próprio,
incluindo o de adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais, nos termos
de lei-quadro da Assembleia da República (al. i) do nº. 1 do artigo 227º e nº. 1 do artigo
232º da CRP)39. Embora em menor medida, a Constituição reserva ainda poderes
tributários às autarquias locais, nos casos e nos termos previstos na lei (nº. 4 do artigo
238º da CRP)40.

35
Os princípios gerais aplicáveis às taxas estão previstos na Lei nº. 53-E/2006, de 29 de dezembro, que
aprovou o RGTAL.
36
A estas matérias acrescenta-se a competência exclusiva para legislar em assuntos relacionados com
crimes e contraordenações de natureza fiscal e o respetivo processo (al. c) e d) do nº. 1 do artigo 165º da
CRP).
37
Sobre o conteúdo mínimo destas autorizações, ver o acórdão do TC nº. 358/92, exigindo que cumpram a
sua “tripla função”: conteúdo material bastante da lei de autorização, linha de orientação do legislador
delegado e informação genérica das inovações a introduzir no ordenamento para os particulares.
38
Como nota NUNO DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, 9ª ed., 2000, p. 41, o decreto lei
autorizado tem sido a principal fonte de Direito Fiscal, como sucede na generalidade dos países
desenvolvidos. Sobre as leis de autorização legislativa ver ANA PAULA DOURADO, O Princípio da
Legalidade Fiscal, 2007, pp. 58-59 e 84-103.
39
Ver o regime da Lei Orgânica nº. 2/2013 de 2 de setembro, que aprova a LFRA, designadamente o seu
artigo 56º prevendo que os órgãos regionais têm competências tributárias de natureza normativa e
administrativa, a exercer pelas Assembleias Legislativas respetivas, compreendendo os poderes de criar e
regular impostos, apenas vigentes nas respetivas regiões autónomas, definindo a incidência, a taxa, a
liquidação, a cobrança, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes, e o poder de adaptar os
impostos de âmbito nacional às especificidades regionais, dentro dos limites fixados na lei. Ver ANA PAULA
DOURADO, O Princípio da Legalidade Fiscal, 2007, pp. 60-66.
40
Ver o regime da Lei nº. 73/2013 de 3 de setembro, que aprova o RFALEI e o acórdão do TC nº. 711/2006
de 29/12/2006. Ver ainda ANA PAULA DOURADO, O Princípio da Legalidade Fiscal, 2007, pp. 66-68.

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Seguindo o critério da fonte de produção normativa, o princípio que vigora em


matéria de impostos é o da reserva de lei formal. Este visa assegurar a intervenção
necessária do parlamento, sem prejuízo da intervenção flexibilizante e subordinada 41 do
Governo. É que apesar do parlamento ser um órgão dotado de legitimidade democrática
direta, que assegura uma discussão publica transparente e alargada, permitindo o
conhecimento da origem dos vários contributos dos diferentes representantes dos
cidadãos, a sua composição e modo de funcionamento podem conduzir a uma menor
capacidade decisória e técnica. Pelo contrário, apesar de o Governo ser dotado de uma
representatividade meramente indireta, dando menos garantias de transparência e de
discussão alargada dos assuntos, apresenta uma composição, um processo decisório e
uma proximidade com os serviços da administração que permitem maior rapidez de
decisão e capacidade técnica de elaboração. Seja como for, sempre que neste âmbito
ocorra produção legislativa levada a cabo pelo Governo, as grandes opções políticas sobre
as matérias autorizadas foram já tomadas pelo parlamento, por via de lei de autorização
legislativa, sob pena de inconstitucionalidade.

4.2. A extensão da reserva formal

A esta reserva de lei formal acresce a enumeração que o nº. 2 do artigo 103º da
CRP faz dos elementos essenciais necessariamente por ela abrangidos: a incidência dos
impostos que constitui a previsão dos pressupostos objetivos e subjetivos de cuja
verificação depende o nascimento da obrigação fiscal, a taxa, que é a principal decisão
quantitativa da lei fiscal integrando por isso a sua estatuição, os benefícios fiscais,
importantes derrogações ao princípio da generalidade da tributação, e as garantias dos
contribuintes, que visam a proteger a efetividade dos seus direitos. Neste sentido, esta
disposição distingue as normas a que se refere das demais, nomeadamente das normas
meramente procedimentais ou de execução, como as normas instrumentais relativas à

41
Esta configuração da reserva de lei formal como reserva exclusiva de competência legislativa impõe uma
subordinação dos interesses representados pela maioria parlamentar que sustenta politicamente o governo,
à vontade parlamentar que implica sempre uma discussão alargada para a qual concorrem os representantes
de todos os eleitores, assegurando a participação das minorias na produção legislativa em matéria de
impostos. SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2018, p. 328.

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liquidação e cobrança dos tributos42, relativamente às quais a aludida reserva de lei formal
não se aplica43.
Esta norma constitucional introduz uma importante clarificação dirigida ao
legislador quanto à extensão da reserva de lei formal, no sentido em que ela abrange os
elementos estruturantes dos impostos, selecionados em função da sua influência direta
sobre a repartição dos encargos tributários. Deve ter-se como elemento interpretativo
neste sentido, a epígrafe do artigo 103º da CRP, “sistema fiscal”, e por essa via admitir-
se a reserva de lei formal (al. i) do nº. 1 do artigo 165º da CRP), como abrangendo os
benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes como sendo de igual modo integrantes
do sistema fiscal. Aliás outro entendimento não faria sentido, sobretudo se atendermos à
influência direta que cada um destes elementos pode ter na distribuição dos encargos
fiscais. De facto, as decisões contidas na lei sobre as realidades sujeitas a tributação e as
taxas a aplicar tanto têm potencial para afetar a distribuição dos encargos e o nível global
de tributação, como as isenções e outros benefícios instituídos em atenção a interesses
atendíveis do Estado. De igual modo, a definição dos termos em que as garantias dos
contribuintes podem ser exercidas têm o potencial de impor sacrifícios tão ou mais
significativos que os da própria tributação44. Além disso, sendo o seu papel efetivar os
outros direitos, uma oneração no seu exercício teria o efeito prático de comprimir os

42
Como entende a generalidade da doutrina, designadamente SALDANHA SANCHES, Manual de Direito
Fiscal, p. 33, em argumentação a que se adere, o nº. 3 do artigo 103º da CRP, ao garantir que ninguém será
obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição e cuja liquidação e
cobrança se não faça nos termos da lei não está a incluir necessariamente estas regras de execução (quando
não se ocupem de regular as garantias dos contribuintes) no âmbito de aplicação do 165º, mas antes a exigir
que, além de os impostos serem criados nos termos da Constituição, a sua liquidação e cobrança seja feita
nos termos das leis materiais, gerais e abstratas que as regulam. Note-se que esta posição colide com o
vertido na al. a) do nº. 2 do artigo 8º da LGT, nos termos da qual “Estão ainda sujeitos ao princípio da
legalidade tributária: a) A liquidação e cobrança dos tributos, incluindo os prazos de prescrição e
caducidade”.
43
Estamos no entanto com JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, p. 342, quando refere que
“embora a disciplina jurídica da liquidação e cobrança dos impostos esteja, por via de regra, excluída da
reserva de lei decorrente do principio da legalidade fiscal, ela não está naturalmente excluída da reserva
de lei constante da al. b) do nº. 1 do art. 165º da Constituição.”.
44
As normas de liquidação e cobrança podem trazer sérios encargos para os contribuintes, sobretudo
quando impuserem deveres de cooperação autónomos da obrigação de imposto, cada vez mais impostos
pelos movimentos de privatização do sistema fiscal. Nestes casos, poderão suscitar-se questões sobre se
esses deveres não estarão nos limites da noção de imposto ou no mínimo nos limites da reserva de lei
parlamentar, na medida em que implicarem uma decisão efetiva quanto à distribuição dos encargos
tributários. SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed. 2018, p. 336 e SALDANHA SANCHES, Manual
de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, p. 35.

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direitos sujeitos a reserva de lei formal. Todos estes elementos são qualificados como
elementos essenciais do sistema fiscal, de maneira a que as decisões sobre a maior ou
menor produção de bens públicos ou sobre qualquer aspeto que possa afetar diretamente
a distribuição de sacrifícios pelos contribuintes sejam sempre reservadas ao parlamento 45.
Assim, do ponto de vista do princípio da reserva de lei formal, o nº. 2 do artigo
103º da CRP faz incluir na noção de sistema fiscal matérias que de outro modo poderiam
ficar de fora da competência exclusiva do parlamento, como os benefícios fiscais 46 e as
garantias dos contribuintes47. Também por força desta disposição, mesmo quando o
parlamento delegue no Governo a função de legislar sobre estas matérias, deve ainda
assim tomar uma posição sobre o conteúdo de cada um daqueles elementos essenciais,
fazendo constar essas decisões da respetiva lei de autorização legislativa. Ao impor que
as normas de Direito Fiscal material constem de atos formais legislativos, o princípio de
reserva de lei formal postula padrões mínimos de certeza e segurança jurídicas,
conduzindo afinal a uma estrita vinculação da administração ao poder legislativo,
implicando o afastamento definitivo tanto do costume como dos regulamentos como
fontes de Direito fiscal substantivo48.

4.3. Consentimento como garantia de transparência e clareza normativa

4.3.1. Apesar de o âmbito deste trabalho não permitir um maior desenvolvimento


do tema, impõem-se algumas observações sobre este ponto.

45
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, pp. 33-36.
46
Além da óbvia implicação que os benefícios fiscais têm na distribuição dos encargos tributários, que a
nosso ver justificam por si só a inclusão dos benefícios fiscais entre os elementos essenciais dos impostos
sob pena de deixar-se entrar pela janela o que não se deixou entrar pela porta, devem ainda ser
considerados como tal uma vez que a exigência de legalidade não se limita à administração agressiva e
ainda porque de outro modo os benefícios fiscais poderiam ficar excluídos desse princípio por visarem em
regra a realização de finalidades extrafiscais, que hão de ser proporcionais à receita que com esses
benefícios fiscais se deixa de cobrar. ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal – Lições, pp. 144-146. Ainda,
JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, pp 363-364.
47
Tem sido entendido por alguns autores, como JOSÉ CASALTA NABAIS, “Os direitos fundamentais na
jurisprudência do tribunal constitucional”, BFDC, nº. 65, 1989, pp. 18 e segs e Direito Fiscal, p. 143, que
esta reserva não será exigível quanto às garantias dos contribuintes, quando forem objeto de ampliação ou
alargamento, mas apenas nos casos da sua restrição ou condicionamento.
48
ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 286-287, MANUEL PIRES e
RITA CALÇADA PIRES, Direito Fiscal, 4ª ed., 2010, p. 103.

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A reserva de produção legislativa em matéria de criação de impostos e sistema


fiscal, impondo a lei parlamentar como fonte das normas de decisão a serem aplicadas
pela administração (nº. 2 do artigo 266º e nº. 2 do artigo 103º da CRP), deve ainda ser
entendida, com SALDANHA SANCHES, como um limite para a complexidade admissível da
lei fiscal. Não é concebível nem expectável e menos ainda admissível, que um órgão
como a Assembleia da República aprove normas fiscais cuja complexidade as torne
apenas acessíveis a especialistas. Além de um consentimento transparente e alargado, a
reserva de lei parlamentar deve servir como uma garantia de um mínimo de clareza,
imposta pela necessidade de permitir que os contribuintes tenham pelo menos uma ideia
dos seus encargos fiscais atuais e esperados, compatível com a proteção da sua confiança.
Uma normação mais densa e complexa das normas fiscais tende a desresponsabilizar o
parlamento, diminuindo o seu papel de fórum representativo de diferentes grupos sociais,
e indiciando aprovações meramente formais. Como refere lapidarmente aquele autor, os
eventuais objetivos de justiça prosseguidos por normas fiscais cada vez mais complexas
e em permanente alteração podem ser anulados pelo seu baixo nível de aplicação, o que
pode prejudicar o fim pretendido já que não haverá justiça se não houver um elevado grau
de cumprimento da lei49.

4.3.2. O princípio da reserva de lei parlamentar condiciona diretamente a


administração, que na aplicação das leis de imposto a casos concretos exprime as decisões
previamente tomadas pelos representantes parlamentares eleitos pelos contribuintes 50.
Além do consentimento dos administrados, a discussão pública alargada entre os
vários grupos que compõem o substrato social, assegura ainda a transparência do processo
legislativo imposta pelo princípio democrático (artigo 2º e nº. 2 do artigo 3º da CRP),
permitindo uma maior ponderação na definição das questões relevantes, dando por essa
via maiores garantias de justiça material. A exigência de lei da Assembleia da República
ou decreto lei autorizado do Governo, dá-nos assim a resposta ao primeiro problema a

49
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2002, pp. 36-37.
50
Ao contrário do que faz a generalidade da doutrina, VASCO BRANCO GUIMARÃES, Princípios Gerais da
Fiscalidade, Lições de Fiscalidade, Vol I – Princípios gerais e fiscalidade interna, coord. João Ricardo
Catarino e Vasco Branco Guimarães 6ª ed., 2018, p. 92, integra a analise da reserva de lei formal no
princípio do consentimento, expresso pela regra da aprovação anual do orçamento.

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resolver pelo legislador, impondo os necessários consensos prévios em torno da


distribuição dos encargos tributários, bem como do nível de tributação. Para além disso,
e correspondendo à evolução entretanto ocorrida com a instalação e o desenvolvimento
do moderno Estado de Direito democrático e social, este consentimento assume hoje
ainda uma função garantística, acolhendo-se, em termos análogos ao Direito penal, o
princípio “nullum tributum sine lege”.

5. RESERVA MATERIAL DE LEI: O PRINCÍPIO DA TIPICIDADE

Mais do que impor que a atuação da administração seja conforme com a norma
que lhe serve de fundamento, a reserva de lei imposta pelo princípio reforçado da
legalidade tributária é um espaço de regulação exclusivamente reservado ao parlamento.
Esta reserva que como vimos se designa por reserva de lei formal51, traduz-se na
exigência de que a criação das leis sobre criação de impostos e sistema fiscal seja da
competência exclusiva da Assembleia da República, salvo decreto-lei autorizado do
Governo. Vimos ainda que a reserva de lei, como aspeto do princípio da legalidade, tanto
pode ser entendida segundo o critério da fonte de produção normativa quanto ao do grau
de determinação da conduta fornecido pela lei. Neste último sentido fala-se na existência
de uma reserva relativa quando da lei não se exige uma regulamentação detalhada sobre
as condições em que a atuação da administração pode ter lugar, confiando à administração
os critérios de atuação sobre cada caso concreto. Nestes casos, cabe à administração
escolher, de entre as várias atuações possíveis, todas elas em princípio juridicamente
equivalentes, aquela que segundo o seu critério melhor realiza o interesse público.
Quando isto acontece, diz-se estarmos perante poderes discricionários, que são aqueles
que atribuem à administração uma certa margem de livre decisão.
Fala-se por outro lado em reserva absoluta, sempre que da reserva de lei se exigir
uma densificação tal que, além da atribuição de um poder para atuar, nela se deva

51
Embora se tenha preferido a designação de reserva parlamentar pois o que está em causa é, mais do que
uma mera reserva lei formal, uma reserva de lei da competência exclusiva da Assembleia da República
(artigo 165º da CRP).

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igualmente encontrar os próprios critérios de decisão dos casos individuais 52. Os poderes
assim atribuídos serão, por conseguinte, vinculados, na medida em que todos os critérios
de decisão são predeterminados por lei, sem prejuízo de ser atribuída à administração uma
certa margem de livre apreciação quanto aos pressupostos de exercício dos seus poderes.

5.1. Concretização do princípio

5.1.1. Ao contrário do que sucede com a atividade administrativa geral, em que o


princípio da legalidade se basta por via de regra com uma simples reserva conteudística
de carácter relativo, frequentemente confiando-se à administração poderes de decisão
sobre casos concretos que ficam ao critério do órgão competente, em matéria de impostos
as exigências de legalidade vão mais longe. Isto acontece não só porque o imposto
representa uma restrição direta e imediata à livre disposição dos bens dos particulares,
mas também como instrumento destinado a impedir potenciais arbítrios da parte do órgão
aplicador do Direito, que em regra será o próprio sujeito ativo da relação de imposto.
Deste modo, as normas substantivas de Direito fiscal devem incluir uma previsão
compreensiva, que inclua não só as manifestações de capacidade contributiva sujeitas a
tributação, os deveres acessórios e os pressupostos de oportunidade na atuação do credor
tributário, mas que defina também com elevado grau de precisão os termos em que os
tributos devem ser aplicados aos casos concretos evidenciados pelos contribuintes.
Previsão compreensiva que deve abranger desde as deduções admissíveis aos prazos de
cumprimento, passando pelas regras de determinação da matéria coletável, pelas taxas
aplicáveis e pelas deduções à coleta53, tudo de maneira a que a atividade de liquidação e

52
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p. 110.
53
Como ensina ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, Lições 2ª ed., 2017, pp. 90-92, este conjunto de
pressupostos descritos na lei cuja concretização dá origem ao nascimento da obrigação tributária principal,
são o que a doutrina alemã designa tatbestand (factos ou factualidade). De acordo com a mesma autora,
pode ainda falar-se em tatbestand sistemático para designar não apenas a noção de tatbestand de ALBERT
HENSEL, como o “conjunto de pressupostos abstratos contidos nas leis fiscais cuja concretização dá
origem a certas consequências jurídicas”, mas abrangendo ainda essas mesmas consequências jurídicas,
incluindo as regras de cálculo da matéria tributável, de apuramento do montante da prestação tributária e
sua eventual conjugação com deduções aplicáveis por força de isenções ou de pagamentos realizados
antecipadamente. Esta noção de tatbestand sistemático que identifica na lei a cadeia normativa de previsão
e estatuição aplicável a cada caso permite uma melhor sistematização da relação jurídica de imposto e
orientar o procedimento tributário em ordem ao fim pretendido pelo legislador quanto a cada caso

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cobrança dos impostos seja, tanto quanto praticável, subtraída a considerações de


conveniência e oportunidade, garantindo que a imposição dos tributos decorra, não
apenas do exercício de um poder, mas do exercício de um poder vinculado.

5.1.2. Esta exigência legal de densidade normativa acrescida, impõe que as


estatuições aplicáveis sejam conformadas pelo legislador, que define os critérios legais
de decisão, numa manifestação ainda mais intensa da reserva de lei parlamentar 54. Como
se referiu, este reforço das exigências de legalidade visa impedir potenciais arbítrios no
momento da aplicação das leis fiscais, traduzindo-se, do ponto de vista da administração,
numa exigência particularmente intensa de precedência de lei. Em resultado, em matéria
de impostos, não só: (i) a atuação da administração encontra o seu fundamento no
estipulado na lei habilitante55, como (ii) essa mesma lei habilitante deve em regra conter
os próprios critérios legais de decisão sob pena de inconstitucionalidade da norma
aplicável (nº. 1 do artigo 13º e nº. 2 do artigo 103º da CRP)56, sendo certo que (iii) a
inexistência de estatuição corresponde à proibição de ação administrativa (nº. 3 do artigo
103º da CRP)57.
A acrescida densificação conteudística da lei estabelece uma distinção entre as
normas de decisão material com efeito direto sobre a repartição dos encargos tributários,
das normas de ação ou instrumentais58, como as de liquidação e cobrança que não
envolvam diretamente garantias dos contribuintes, que não estão por isso sujeitas àquela
regra de legalidade material. Esta fronteira é reforçada pela norma constitucional
diretamente aplicável à administração que consta do nº. 3 do artigo 103º da CRP, que ao
determinar que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados

individual. Mais desenvolvidamente sobre o tema, ANA PAULA DOURADO, O Princípio da Legalidade
Fiscal, 2007, pp. 292 e segs..
54
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2012, p. 51.
55
Como ensina PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, p. 144, a precedência
de lei postula uma densidade normativa suficiente para impor que a aplicação da lei tenha uma
previsibilidade mínima e garanta igualdade de tratamento sem deixar margem para o arbítrio disfarçado de
justiça do caso concreto proporcionada pela administração, e afastando a existência de normas legais em
branco em matérias sujeitas à reserva de lei.
56
Isto resulta do citado nº. 2 do artigo 103º da CRP, mas também do princípio que declara todos os cidadãos
como iguais perante a lei (nº. 1 do artigo 13º da CRP), tornando juridicamente intolerável que uma
consequência aplicada a um contribuinte seja diferente da aplicada a um outro que esteja na mesma situação.
57
PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, p. 142.
58
ALBERTO XAVIER, citando WERNER FLUME, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, p. 293.

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nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e


cobrança se não façam nos termos da lei, impõe à administração o dever de observar
apenas aquelas normas materiais que hajam sido criadas nos termos da Constituição, e
a limitar-se a liquidar e cobrar impostos dentro dos parâmetros estabelecidos por lei. Ao
mesmo tempo, a expressão “ninguém pode ser obrigado” sugere a ausência de
vinculatividade daquelas condutas ilegais, e a atribuição aos particulares do direito de
resistência fiscal, que se traduz num poder para a prossecução direta e imediata de um
interesse próprio, aliás coincidente com o interesse público da legalidade na tributação.
Como veremos adiante, esta norma atribui aos particulares um direito fundamental de
natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias à legalidade na tributação 59.
Naturalmente que não nos referimos somente à exigência de que as normas de imposto
se mostrem conformes à Constituição no momento em são criadas e aplicadas, mas
também que essa aplicação não conduza a resultados manifestamente injustos ou
atentatórios dos demais parâmetros e princípios operativos do Estado de Direito 60.

5.1.3. Assim, além da reserva parlamentar, exige-se ainda no domínio dos


impostos uma reserva material ou conteudística de lei, geralmente designada por
princípio da tipicidade que impede o legislador de, ao elaborar as normas fiscais, limitar-
se a autorizar o exercício do poder tributário, vinculando-o a estipular não só as condições
em que a lei deve ser aplicada mas também, tanto quanto praticável, os critérios de decisão
para cada caso concreto. Esta exigência de uma especial densidade na formulação dos
elementos essenciais da tributação vincula não só o legislador, mas também o aplicador
do direito, que na subsunção dos factos apurados à norma aplicável, deve nela encontrar
o regime de cada caso concreto, de maneira a que a aplicação da lei seja feita sem recurso
a valorações subjetivas e externas às que se encontram refletidas nos textos legais. Pelo
que este princípio da tipicidade, exprime ainda uma qualidade das normas de imposto61

59
No mesmo sentido, JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, 5ª ed., 2012, p. 81, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed.,
2003, p. 405, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 3ª ed., 2000, p. 151, JOSÉ
CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, p. 186, nota 5, SALDANHA SANCHES, O
ónus da prova no processo fiscal, Lisboa, 1987, p. 5.
60
Entre outros, os resultantes dos artigos 12º, 13º, 18º, 20º, 21º, 22º e 266º da CRP.
61
Como refere ANA PAULA DOURADO, O Princípio da Legalidade Fiscal, 2007, p. 225 e segs., a reserva
de material das leis fiscais é comum a vários ordenamentos e a sua observância caracteriza os estados de

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que as tornam incompatíveis com a discricionariedade e a integração analógica (nº. 4 do


artigo 11º da LGT), sendo nessa medida uma importante garantia da sua certeza e
previsibilidade.

5.2. As teses da tipicidade fechada

Até ao fim do século passado foi corrente na doutrina o entendimento de que


vigoraria neste ramo do Direito uma tipicidade rigorosamente fechada 62. Neste sentido, o
princípio da legalidade tributária foi caracterizado por A LBERTO XAVIER como uma
reserva absoluta de lei formal, de que resultaria ainda uma tipicidade fechada, entendida
como a exigência de que a lei deva conter todos os elementos à tomada de decisões nos
casos concretos, sem recurso a valorações de ordem subjetiva. De acordo com este
entendimento, a eleição das manifestações mais adequadas de capacidade contributiva
sujeitas a tributação ficaria exclusivamente entregue ao legislador, cabendo à
administração traduzir a vontade funcional do parlamento quanto aos casos concretos,
com exclusão de todas e quaisquer considerações exteriores à lei. Deste princípio da
tipicidade seriam corolários o princípio da seleção, proibindo as cláusulas gerais de
tributo; a tipicidade ou numerus clausus, impondo que apenas fossem tributados os factos
expressamente previstos na lei, com exclusão dos demais63; o exclusivismo, postulando
uma descrição completa dos tipos legais de imposto cuja verificação é condição
necessária e suficiente para desencadear a tributação; e a determinação, sujeitando os
factos sujeitos a tributação a uma definição feita apenas com recurso a conceitos

Direito, de tal forma que, mesmo que não existindo uma disposição como a do nº. 2 do artigo 103º da CRP,
ainda assim se entenderia que os aspetos como o objeto do imposto, os sujeitos passivos e os elementos de
quantificação do imposto devessem considerar-se a ela submetidos.
62
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p. 116; NUNO DE SÁ GOMES, Manual de
Direito Fiscal, Vol. II, 9ª ed., 2000, p. 63, MANUEL PIRES e RITA CALÇADA PIRES, Direito Fiscal,
4ª ed., 2010, pp. 111 e 119, VÍTOR FAVEIRO, Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, I. Vol.,
Introdução ao Estudo da Realidade Tributária, Teoria Geral do Direito Fiscal, 1984, pp. 187-190,
SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 1995, 7ª ed., p. 108; PAMPLONA CORTE-REAL, Direito Fiscal,
Apontamentos, policop., 1980, p. 126; NUNO DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, 9ª ed., 2000,
pp. 39-40.
63
Para NUNO DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, 9ª ed., 2000, pp. 63-64, daqui decorre que
o silêncio da lei nas normas de incidência tem um sentido normativo preciso que é o de delimitar
negativamente a incidência. Assim, não havendo verdadeiramente lacunas no domínio das normas de
incidência, também não pode haver integração analógica relativamente aos factos nelas não previstos.

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determinados e de sentido unívoco, não sendo admitidos os conceitos vagos ou


indeterminados e as normas fiscais em branco64.
Por consequência destes corolários, à administração restaria uma atividade
meramente subsuntiva da lei aos factos 65, ficando o legislador impedido de empregar
conceitos vagos ou indeterminados, a concretizar pela administração 66 e pelos tribunais.
Integração que afinal até ALBERTO XAVIER admite seja levada a cabo pela administração,
quando refere que os conceitos indeterminados permitem a esta uma certa margem de
livre apreciação, não só na fixação e valoração dos factos, mas também na concretização
do seu conteúdo67, o que não pode confundir-se com o exercício de uma margem de livre
decisão que resultaria da atribuição à administração de poderes discricionários 68.
Este autor não ultrapassou a contradição entre a exigência de determinação estrita
das normas que estabelecem os elementos essenciais dos impostos exigida por uma
tipicidade fechada, e a atribuição à administração de uma margem de livre apreciação na
concretização de conceitos indeterminados. Como tem vindo a ser defendido pela melhor
e mais recente doutrina69, a exigência de legalidade material já não pode ser entendida

64
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, pp. 123 e 124. No mesmo sentido, NUNO
DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, 9ª ed., 2000, p. 54 e MANUEL PIRES e RITA CALÇADA
PIRES, Direito Fiscal, 4ª ed., 2010, p. 111. Estaremos perante uma norma fiscal em branco no caso de se
entender, como facto tributável “a permanência do veículo no território nacional em violação das
obrigações previstas no presente código” (al. d) do nº. 2 do artigo 5º do código do ISV), sobretudo se
tivermos em consideração a liquidação de ISV relativa a um veículo não destinado a matrícula relativamente
ao qual não tenha sido processada a declaração prevista no artigo 24º do código do ISV dentro do prazo de
dez dias aí previsto. Neste caso, além de norma fiscal em branco, estaremos ainda perante uma tributação
com carácter de sanção, o que entendemos nós, pode inclusivamente constituir ilegalidade geradora de
nulidade por ofensa ao conteúdo essencial do direito fundamental de natureza análoga previsto no nº. 3 do
artigo 103º da CRP (al. d) do nº. 1 do artigo 161º do CPA, aplicável ex vi do artigo 2º al. c) da LGT).
65
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, pp. 123-124, e Conceito e Natureza do Acto
Tributário, 1972, pp. 320-335.
66
Para NUNO DE SÁ GOMES, As Garantias dos Contribuintes: Algumas Questões Em Aberto, CTF, 371, pp.
25 e 104, e O Principio da Segurança Jurídica na Criação e Aplicação do Tributo, CTF, 371, pp. 143 e
segs., o princípio da legalidade em matéria fiscal, com os seus corolários da tipicidade fechada,
indisponibilidade do tipo, exclusivismo e determinação, implicam a proibição, quer da discricionariedade
administrativa, quer do emprego, pelo legislador fiscal, de conceitos vagos ou indeterminados, a
concretizar por interpretação da AT, sem que a lei defina os respetivos pressupostos.
67
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p. 128.
68
Entendida como a liberdade que o órgão de aplicação do Direito tem, com vista à realização de um fim
definido por lei, de optar num quadro de decisões possíveis, todas elas juridicamente válidas e equivalentes
ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, Lisboa, 1974, p. 125.
69
Sobre o princípio da tipicidade em especial, ver por todos A NA PAULA DOURADO, O Princípio da
Legalidade Fiscal, 2007, delimitando as exigências de determinação da lei fiscal e conjugando a eventual
margem de liberdade decorrente da inevitável indeterminação legal, permitindo ao mesmo tempo o controlo
judicial efetivo das decisões da administração.

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em termos de tal modo restritivos que imponham ao legislador e à administração a


observância exclusiva de uma rigorosa tipicidade fechada da lei que pretensamente
assegure um grau de previsão absolutamente exaustivo e preciso de todos os factos
sujeitos a tributação70.
A determinação exclusiva das normas de incidência em termos que proibissem o
recurso a conceitos indeterminados veio a apresentar diversos inconvenientes que
tornaram inevitável a abertura dos tipos, entretanto operada pelo legislador 71. Desde logo,
uma completa determinação da lei fiscal implicaria uma excessiva rigidez das soluções,
acabando por conduzir à criação espontânea de espaços de não tributação, favorecedores
da fraude e evasão fiscais, em prejuízo daqueles que cumprem as suas obrigações. Por
outro lado, a inclusão de todas as situações concebíveis no âmbito de um esforço de
determinação exclusiva das leis fiscais conduziria a uma excessiva complexificação das
leis fiscais, dificultando a sua aplicação e tornando-as apenas acessíveis a especialistas,
como de resto já vai acontecendo.

5.3. A abertura dos tipos imposta pela praticabilidade

Não sendo possível nem aconselhável exigir-se do legislador uma


determinabilidade total das leis de imposto, a doutrina e a jurisprudência têm colocado a
questão de saber até onde deve a lei levar a disciplina dos elementos essenciais dos
impostos, e em que medida deve admitir-se o recurso a conceitos indeterminados. Por
escapar ao âmbito deste estudo, limitamo-nos a enunciar a questão, que se coloca na linha
de tensão entre o princípio da eficiência fiscal e o princípio da legalidade tributária e deve
ser resolvido a favor desta última até ao limite do possível. Estas soluções são expressões
da necessária praticabilidade da lei fiscal que impõe a abertura da tipicidade, levando por
vezes a assumir como regra o que é provável ou normal, em detrimento da situação
individual, reveladora da concreta capacidade contributiva72.

70
JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, p. 356.
71
Razão porque à expressão reserva absoluta de lei formal, prefere-se a de reserva material de lei
parlamentar.
72
Mais do que margem de livre apreciação, JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, p. 145-146 e O dever
fundamental de pagar impostos, 1997, p. 378 e segs., admite que por interferência de outros princípios

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É neste contexto que os conceitos indeterminados têm sido admitidos73 como


expedientes de fácil aplicação a situações cujo grau de diferenciação não é possível ser
acompanhado pela administração74, desde logo permitindo que se tribute o rendimento
normal nos casos em que o apuramento do rendimento real se revele difícil ou mesmo
inviável75. Nestes casos, a preponderância que é dada às situações presumidas sobre as
situações efetivamente ocorridas é tolerada por razões de eficiência e na estrita medida
em que aos visados é dada a possibilidade de afastar a tributação feita naqueles termos.
Assim, sempre que a aplicação destes mecanismos provoque resultados inteiramente
desligados do critério de justiça material que informa a tributação, é deixada aberta a
possibilidade de tributar com base na situação individual e concreta evidenciada pelo
contribuinte76. Trata-se por conseguinte de expedientes simplificadores, impostos pelo
princípio da praticabilidade, utilizados sobretudo no desenvolvimento patológico das
relações tributárias, que permitem dar respostas a questões prévias à tributação, sem
sacrificar a justiça material e sem cair em excessivos custos, suscetíveis de pôr em causa
os fins da tributação.

constitucionais como o da praticabilidade, à administração seja atribuída uma certa margem de livre
decisão, logo discricionariedade, incluindo a possibilidade de recurso à analogia.
73
Contêm conceitos indeterminados, entre outras, as normas que concedem à administração a possibilidade
de “efetuar as correções adequadas” a rendimentos e gastos dos inventários, sempre que a utilização de
determinados critérios “conduza a desvios significativos” (nº. 3 do artigo 26º do CIRC); decidir o que
entende por “realizações de utilidade social” para efeitos de dedutibilidade de gastos (nº. 1 do artigo 43º
do CIRC); efetuar as correções consideradas necessárias para a determinação do lucro tributável em virtude
de relações especiais com outro sujeito passivo e proceder aos “ajustamentos adequados” na determinação
dos lucros tributáveis das entidades envolvidas (nº. 11 do artigo 63º do CIRC); definir o que considera ser
“atividades suscetíveis de originar distorções de concorrência ou aquelas que são exercidas de forma não
significativa” para efeitos da não consideração do Estado e demais pessoas coletivas de direito público
como sujeitos passivos do imposto (nº. 2 do artigo 2º do código do IVA); a dedução de prejuízos de períodos
anteriores nos casos em que tenha havido alteração da titularidade de mais de 50% do capital social ou da
maioria dos direitos de voto, “em casos de reconhecido interesse económico” (nº. 12 do artigo 52º do
CIRC); a utilização de gastos de financiamento nos casos em que tenha havido alteração da titularidade de
mais de 50% do capital social ou da maioria dos direitos de voto, “em caso de reconhecido interesse
económico” (nº. 8 do artigo 67º do CIRC); a dedução ao lucro tributável do novo grupo pela a nova
sociedade dominante, dos prejuízos fiscais verificados durante os períodos de tributação anteriores quando
esta opte pela continuação da aplicação do regime especial de tributação do grupo, “em casos de
reconhecido interesse económico” (nº. 3 do artigo 71º do CIRC); etc..
74
JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, p. 621.
75
Segundo JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, p. 148 a rigorosa exigência de
determinação da lei fiscal só é exigível face a normas de tributação efetiva e já não no campo das normas
de tributação fictícia ou aparente, aplicáveis quando a aplicação as primeiras não forem possíveis.
76
JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, pp. 376-377.

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5.4. A segurança jurídica como limite à abertura dos tipos

Para além da margem de livre apreciação resultante da indeterminação de alguns


conceitos utilizados pelo legislador, encontramos ainda na lei disposições que parecem
atribuir à administração verdadeiros poderes discricionários 77. Referimo-nos às
disposições legais que aparentemente autorizam a administração a optar de entre duas ou
mais soluções possíveis, todas elas juridicamente equivalentes 78.
Sobre isto deve referir-se que a atribuição à administração de uma certa margem
de livre decisão resulta do reconhecimento por parte do legislador da sua própria
incapacidade para resolver no plano abstrato todas as questões concebíveis, sobretudo no
quadro do moderno Estado social de Direito que vê no sistema fiscal um meio de proceder
a uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza (nº. 1 do artigo 103º da CRP).
Incapacidade que resulta da constatação dos limites da capacidade de direção da norma,
ditada pela pluralidade e diversidade de situações e pela acelerada evolução das realidades
a regular, e da constatação da utilidade da diluição normativa para a melhor realização do

77
A abertura dos tipos conduz a um paradoxo do Estado fiscal atual: ao mesmo tempo se reconhece intensa
vinculação da administração à lei como forma de melhor garantir as posições subjetivas dos particulares
perante os poderes públicos, defende-se a indispensabilidade de apetrechar a administração de novos e
renovados poderes, concedendo-lhe uma crescente margem de livre decisão. Este paradoxo é ainda
ampliado pelo processo de transição do Estado-fiscal atual para um Estado de tal forma endividado que a
lógica da tributação passa a reger-se pela necessidade de satisfazer com maior eficiência os compromissos
financeiros do Estado, conduzindo a uma deterioração da legitimidade democrática do sistema fiscal. Como
refere ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, lições, 2ª ed., 2017, p. 109, “no quadro da União Económica
e Monetária (…) a legitimação dos impostos e os limites da carga fiscal estão agora ligados a um binómio
Estado-dívida, e servem a estabilidade da moeda única. Neste contexto, a estabilidade da carga fiscal não
está já relacionada com o conceito de representação popular na escolha de bens e serviços públicos (e o
princípio da reserva de lei), mas com a necessidade de cumprir os compromissos assumidos junto dos
credores.”.
78
A ausência de um critério de decisão abre via para o arbítrio, com o consequente tratamento diferente de
situações equiparáveis, em violação do direito fundamental previsto no artigo 13º da CRP. São exemplos
de poderes desse tipo, entre outros, os de decidir “o critério considerado mais adequado” à determinação
da “parte dos gastos comuns a imputar” (nº. 2 do artigo 54º do código do IRC); os de “discordar dos
elementos declarados”, e de fixar nesse caso “os que entender adequados” (nº. 4 do artigo 35º do código
do IVA), de autorizar ou não a utilização de critérios de mensuração de rendimentos e gastos dos inventários
diferentes dos previstos na lei (nº. 6 do artigo 26º do código do IRC); de autorizar ou não a alteração dos
critérios de mensuração de rendimentos e gastos dos inventários face aos utilizados em anteriores períodos
de tributação (nº. 2 do artigo 27º do código do IRC); de autorizar ou não a sujeição a deperecimento de
ativos ainda não entrados em funcionamento ou utilização (nº. 4 do artigo 29º do código do IRC); de
autorizar ou não a adoção pelo sujeito passivo de métodos de depreciação e amortização, de que resulte a
aplicação de quotas de depreciação ou amortização superiores às previstas na lei (nº. 3 do artigo 30º código
do IRC); de autorizar ou não a alteração de métodos de depreciação e amortização (nº. 2 do artigo 31º-A
do código do IRC), etc..

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interesse público79. Daí que por vezes o legislador, face à maior capacidade técnica e de
meios da administração e à sua natural proximidade aos casos concretos, diminua
intencionalmente a densidade da norma, reconhecendo implicitamente por essa via a
existência de um núcleo essencial da função administrativa 80.
Como a obscuridade das leis fiscais afeta o cálculo do montante dos rendimentos
líquidos dos particulares e o valor dos seus ativos, as diminuições intencionais no grau de
predeterminação das leis devem ser excecionais e respeitar os princípios da reserva de lei
parlamentar e da segurança jurídica, de modo a assegurar pelo menos um grau mínimo de
determinação quanto aos encargos futura ou potencialmente esperados. Essencial é que
seja garantido um grau de determinação das normas fiscais que deixe os agentes
económicos, tanto quanto possível entregues apenas aos riscos do mercado, evitando que
os riscos fiscais anulem a racionalidade económica das suas escolhas. Por isso tem-se
entendido que o legislador fiscal deve pelo menos assegurar que os contribuintes possam
entender e prever81, ainda que de forma aproximada, o valor das posições que ocupam, e
formar uma razoável expectativa quanto aos encargos e os benefícios inerentes ao valor
dos seus ativos, e aos tribunais a possibilidade de controlar a sua legalidade 82. Nestas
condições, o princípio da legalidade tributária ficará violado se uma menor determinação
das normas implicar incertezas quanto aos encargos fiscais que contaminem ou dificultem
a capacidade de os agentes económicos avaliar e assumir os riscos normais do mercado,
a ponto de tornar os comportamentos de desinvestimento mais atrativos que os de
investimento.
A criação destes espaços de livre apreciação, e em certos casos de livre decisão,
são um sintoma de uma maior agressividade da luta contra a fraude e evasão fiscais,

79
BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa,
1995, pp. 31-32.
80
Como refere BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão
Administrativa, 1995, pp. 42-65, as razões para esta reserva de administração não se ficam por aqui,
encontrando ainda fundamentos na Constituição, seja no conceito material de lei por ela perfilhado,
tendencialmente material ou normativo (nº. 2 do artigo 18º e nº. 1 do artigo 49º da CRP), no princípio da
separação de poderes (artigos 2º e 111º da CRP), na conceção de uma administração prestadora e eficiente
(artigo 5º do CPA e al. c) do artigo 81º, nº. 2 do artigo 198º, al. c) do artigo 199º, nº. 2 do artigo 267º e no
nº. 2 do artigo 266º da CRP) e na legitimidade democrática, direta e indireta, de alguns órgãos da
administração (nº. 2 do artigo 235º, nº. 1 e 2 do artigo 239º, nº.2 do artigo 245º e 251º da CRP).
81
ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal – Lições, 2ª ed., 2017, p. 136.
82
Citando jurisprudência do TC, ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, 2ª ed., 2017, pp. 150-157.

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suscitando questões quanto à potencial diminuição das garantias de certeza quanto à


aplicação da lei fiscal. Por isso, a introdução destes conceitos indeterminados deve ser
sempre justificada por especiais razões de interesse público, como forma de impedir as
possibilidades de fraude e evasão fiscal proporcionadas pela diversidade de situações a
regular e pela rápida evolução da realidade e criatividade dos contribuintes. A realização
do Direito por via destes conceitos indeterminados deve ainda ser acompanhada por
critérios de defensabilidade das posições assumidas pela administração83, no quadro da
prossecução do interesse público, subordinar-se à Constituição e à lei e ser exercida com
respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes (nº. 1 do
artigo 266º da CRP) e pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça,
da imparcialidade e da boa-fé (nº. 2 do artigo 266º da CRP).

5.5. A concretização ativa do princípio

Ao assumir o encargo da seleção tanto dos factos pressupostos da tributação como


dos próprios critérios definidores da prestação exigível em cada caso concreto, o
legislador reforça a função garantística do princípio da legalidade como garantia do
consentimento exigido por todos os obrigados ao pagamento de impostos. Por outro lado,
subtrai à administração, nos limites do praticável, a possibilidade de impor considerações
ou valorações subjetivas, tanto quanto ao an como ao quantum da obrigação tributária a
cargo dos sujeitos passivos. No entanto, hoje aceita-se que a flexibilização dos tipos
fiscais possibilita o recurso por parte da administração de meios de realização
metodologicamente ativa do Direito, concedendo-lhe por essa via uma certa autonomia
decisória face ao poder legislativo84. A utilização destes meios deve conjugar-se com o
princípio da igualdade85 e impedir a criação de incertezas que prejudiquem a livre
determinação dos sujeitos económicos.

83
ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal – Lições, 2ª ed., 2017, p. 155, defendendo que as exigências de
praticabilidade e da igualdade possível implicam que os tribunais devam aceitar a concretização ou
interpretação da administração desde que ela seja uma interpretação plausível de conceitos indeterminados
relativos a normas de quantificação de elementos da matéria tributável,
84
PAULO OTERO Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, p. 144.
85
Como ensina ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal: Lições, 2ª ed., 2018, p. 96, a propósito da
indeterminação legal das regras sobre preços de transferência, “os acordos entre o fisco e contribuinte,
nestes casos, são importantes para evitar o prolongamento do litígio e o desfecho incerto, se o caso for a

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É deste modo que atualmente o princípio reforçado da legalidade tributária resolve


o segundo problema, relativo à eliminação das arbitrariedades no momento da aplicação
das normas que delimitam a esfera particular face à pretensão financeira do Estado fiscal.
A eliminação do arbítrio é uma função da lei, realizada tanto no momento do seu
nascimento, através da exigência do consentimento auto ordenador dos contribuintes,
como no momento da sua aplicação, através da exigente densificação normativa da
vontade do parlamento. Para o efeito, o legislador deve recorrer a uma formulação precisa
nos limites do praticável, dos critérios de tributação aplicáveis a cada uma das
manifestações da capacidade contributiva. Nos casos em que tal não seja possível, a
densificação dos conceitos indeterminados deve ser progressivamente feita pela
intervenção dos sujeitos envolvidos nas relações jurídico-tributárias, que contribuem para
a sua aplicação tipificante86.

6. O PRIMADO DA LEI E DO DIREITO

Como atrás se referiu, o Estado de Direito exprime-se através de normas gerais e


abstratas, e segundo critérios de justiça material. O princípio reforçado da legalidade
tributária manifesta-se em termos particularmente exigentes por uma reserva material de
lei parlamentar que se estende aos elementos essenciais dos impostos. Esta reserva, tendo
origem da ideia de autoimposição, compreende a garantia a que mutuamente se dão o
Estado e os cidadãos no âmbito do fenómeno de substituição de necessidades privadas
por necessidades públicas em que a tributação se traduz. Além disso, abrangendo a
reserva de lei parlamentar todos os elementos essenciais dos impostos, incluindo os
critérios de determinação das prestações tributárias, assegura ainda que o consentimento

tribunal, dada a indeterminação legal e a grande margem livre apreciação existente. Mas dado que todas
as soluções devem ser encontradas dentro dessa margem de livre apreciação, não se pode dizer que haja
uma alteração dos elementos essenciais da relação jurídica pelas “partes”. Em caso de litígio não
resolvido por acordo entre o fisco e o contribuinte, cabe aos Tribunais controlar os limites internos e
externos da margem de livre apreciação e ir criando uma jurisprudência constante que concretize o
princípio (por tipificação)”. Ver ANA PAULA DOURADO, O Princípio da Legalidade Fiscal, 2007, pp. 571
e segs. e JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, pp 336-337.
86
ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, Lições, 2ª ed., 2017, p. 117.

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parlamentar não seja descaracterizado87 por atuações arbitrárias da administração,


conduzindo a que as imposições tenham lugar através do exercício de poderes vinculados.
Resta-nos por isso resolver o terceiro problema que inicialmente formulámos: o
de assegurar que as normas de imposto sejam em geral informadas por critérios de justiça
material que atendam à capacidade dos visados para contribuir. Nas palavras certeiras de
SÉRGIO VASQUES, mais do que um mero conglomerado de soluções avulsas, trata-se de
conseguir que o Direito fiscal assegure um verdadeiro “sistema de normas que, desde o
topo até à base, possam ser reconduzidas com coerência ao princípio da igualdade”88.

6.1. A presunção de constitucionalidade

Poder-se-ia desde logo afirmar em resposta a esta questão que, sendo a tributação
um espaço de regulação reservado ao parlamento, a constitucionalidade das normas
fiscais é assegurada pelo próprio funcionamento do processo legislativo e pelos
mecanismos de controlo dessa atividade. A produção normativa em ambiente de reserva
de lei parlamentar criaria a presunção de que as soluções consagradas foram
adequadamente ponderadas de acordo com os parâmetros constitucionais e com os
princípios que dão coerência ao sistema. Segundo este raciocínio, a administração
presumirá que cada norma a aplicar já inclui em si mesma uma ponderação individual
excludente da iniquidade e conforme ao quadro jurídico-constitucional no âmbito da qual
se formou.
É verdade que a reserva material de lei parlamentar legitima politicamente a
administração e esclarece os termos da sua intervenção, conferindo-lhe previsibilidade e
fazendo presumir que a lei a aplicar é um critério ordenador axiologicamente conforme
com a Constituição89. No entanto, esta reserva de lei desacompanhada de princípios

87
Como refere JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2017, p. 51, o princípio
da determinidade de conteúdo, sendo manifestação específica da reserva parlamentar, ao exigir uma
densidade legal acrescida e por conseguinte, uma vinculação mais intensa da atividade administrativa, tende
a excluir a atribuição de poderes discricionários.
88
SÉRGIO VASQUES, Manual, de Direito Fiscal, 2ª ed., 2018, p. 76:
89
PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, p. 138. A administração está
vinculada ao acatamento da lei sendo que só a título excecional, como é o caso o das leis que violem
ostensivamente direitos fundamentais diretamente aplicáveis, poderão os órgãos administrativos desaplicar
as normas que servem de fundamento à sua ação por inconstitucionalidade, o que pode implicar a prática
de atos feridos de ilegalidade derivada por inconstitucionalidade.

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materiais não chega para assegurar a justiça material dos casos concretos 90, sobretudo nos
tempos que correm, em que a administração assume um papel cada vez mais relevante na
conformação da textura aberta das normas fiscais aos casos concretos.

6.2. A crise da legalidade estrita

Acresce que ao longo das últimas décadas temos assistido a um conjunto de


movimentos no sentido da obsolescência do entendimento tradicional do princípio da
legalidade tributária concebido como uma simples reserva absoluta de lei formal.
Falamos do aumento exponencial da produção normativa91, com introdução de constantes
alterações legislativas em pacote, seja por via dos Orçamentos de Estado ou através de
decretos-lei autorizados, procedendo a constantes alterações introduzidas sem a reflexão
que os processos legislativos parlamentares necessariamente exigem, com evidente
prejuízo para a sua coerência sistemática. Estes movimentos, conjugados com a
pluralidade de fontes normativas92, ainda que mediadas pela ação de órgãos legislativos
internos que por vezes limitam-se a traduzir acriticamente diretivas da UE, tem conduzido
a maior complexidade e ao surgimento de quebras na unidade do sistema 93.
O aumento da instabilidade resultante da incomportável produção legislativa cria
uma diversificação das relações entre a administração e o Direito 94, que aliada à crescente
necessidade de receita, tem conduzido à uma maior intromissão do Estado na esfera dos
cidadãos e a um movimento de ampliação das garantias dos contribuintes95. Vulgariza-se

90
DIOGO LEITE DE CAMPOS e MÔNICA LEITE DE CAMPOS Direito Tributário, 1996, p. 88; JOSÉ CASALTA
NABAIS, Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, p. 141.
91
Nas palavras de JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2017, p. 25,
“multiplicação exponencial de normas jurídicas”; ROGÉRIO SOARES referia-se a “motorização” ou
“inflação” legislativa, Direito Público e Sociedade Técnica, 2008, pp. 134 e segs.
92
O nºs. 2 e 3 do artigo 8º da CRP aceita a primazia do direito comunitário, originário e derivado sobre a
legislação interna. Neste sentido GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª
ed., 2003 pp. 825 e segs.; FAUSTO DE QUADROS, Direito da União Europeia, 2008, p. 400 e segs,
JOÃO SÉRGIO RIBEIRO Direito Fiscal da União Europeia, p. 29. Ver ainda o acórdão do STA de
29/02/2012 (proc. 01017/11), onde se refere que “desta primazia resulta então que não podem ser aplicadas
normas de direito interno que contrariem normas de direito comunitário”.
93
Trata-se de contradições de valores e princípios que perturbam a unidade e a adequação do sistema
CLAUS WILHELM CANARIS Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito, 1989
pp 200-201.
94
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2017, p. 50.
95
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed. p. 31.

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o recurso a conceitos indeterminados atribuidores de cada vez mais amplas margens de


livre apreciação e decisão, que parecem desenhados com o intuito específico de garantir
que nada escapa à voracidade do Estado. Além disso, introduzem-se soluções
conflituantes, como o recurso a mecanismos de tributação de rendimentos normais, num
sistema assente na tributação de rendimentos reais, o que além de testar a compatibilidade
das soluções legais com as normas da Constituição e os direitos fundamentais dos
cidadãos, exige a força unificadora dos princípios gerais de Direito no sentido de
assegurar a consistência das soluções alcançadas com os diferentes planos da juridicidade.
Todos estes movimentos têm criado quebras e rompido com a necessária
identificação entre lei e Direito96, expondo a insuficiência das anteriores conceções do
princípio da legalidade como pressuposto e fundamento exclusivo da atividade
administrativa. Além das garantias proporcionadas pela reserva material de lei
parlamentar, reclama-se agora que as normas de Direito fiscal substantivo sejam
informadas por critérios de justiça material, conducentes a soluções dotadas de coerência
sistemática. A tudo isto acresce a inoperância dos tribunais administrativos e fiscais, cujas
decisões tanto tardam que pouco mais asseguram que uma mera aparência de justiça,
reclamando que a administração descubra o sentido da sua subordinação à Constituição e
a “força irradiante” das suas normas e princípios97, sempre que as soluções consignadas
na lei conduzam a resultados manifestamente iníquos ou injustos.
A consequência desta perda do significado da lei como expressão racional e
permanente da vontade funcional do Estado98, é a de que se exija cada vez mais da
administração que seja capaz de realizar ponderações sobre a compatibilidade não
meramente formal entre fontes de Direito, e nessa medida se transforme numa primeira
instância de fiscalização da constitucionalidade99.

96
Para GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 2003 p. 1159, o sistema
jurídico deve hoje ser entendido como um sistema normativo aberto de regras e princípios.
97
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2017, p. 26.
98
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2017, pp. 50 e 25.
99
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 343. Um claro sinal deste movimento
foi recentemente protagonizado pelo legislador na alteração introduzida no artigo 43º nº. 3 da LGT, feita
através da Lei nº. 9/2019 de 1 de fevereiro e comentada por I ARA MARQUES FREITAS e MARIANA
MENDONÇA SARAIVA em “O direito a juros indemnizatórios em caso de inconstitucionalidade da norma
aplicada e o erro imputável aos serviços”, in Revista Eletrónica de Fiscalidade da AFP (2019) Ano I-1.

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6.3. A subordinação da administração à juridicidade

6.3.1. A criação destes espaços de livre apreciação em matéria fiscal e a atribuição


à administração de poderes conformadores das suas relações com os particulares —
sujeitando muitas vezes o exercício de direitos à autorização da administração — exige
um novo entendimento da subordinação administrativa à legalidade. Um entendimento
mais apropriado aos atuais níveis de intromissão do Estado na esfera dos particulares e às
suas expectativas de proteção, que esperam hoje ser administrados por uma boa
administração (artigo 5º do CPA), que “deve tratar de forma justa todos aqueles que com
ela entrem em relação e rejeitar as soluções manifestamente desrazoáveis ou
incompatíveis com a ideia de Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das
normas jurídicas e das valorações próprias do exercício da função administrativa” (nº.
1 do artigo 8º do CPA).
Numa ordem jurídica baseada em preocupações de justiça material, ancoradas no
valor essencial da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da CRP) e vinculadas a valores
emergentes da consciência jurídica geral que “resultam das tradições constitucionais
comuns aos Estados-Membros”100, o princípio da juridicidade impõe-se como resposta às
demonstradas insuficiências da obediência acrítica à legalidade estrita, fazendo a
preferência de lei ceder perante a preferência pelo Direito101. Esta exige a constante
compatibilização da atuação administrativa com os direitos liberdades e garantias, com a
Constituição e seus princípios, e em particular com o princípio da igualdade. É o que

100
Como estabelece o nº. 3 do artigo 6º do TUE: “Do direito da União fazem parte, enquanto princípios
gerais, os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos
do Homem e das Liberdades Fundamentais e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos
Estados-Membros”. E o seu artigo 2º: “A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana,
da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem,
incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros,
numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a
solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.”.
101
PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, p. 141. Aliás, como refere JOÃO
CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, 10ª. ed., 2009, pp. 91-92, a vinculação da administração
à juridicidade é materialmente feita por duas vias: através de vinculações absolutas ou rígidas, estabelecidas
através de normas jurídicas que, quando contrariadas, invalidam a decisão; e as vinculações relativas ou
flexíveis tendo como parâmetro princípios jurídicos que funcionam como padrões de otimização da
atividade administrativa, envolvendo a necessidade de soluções de ponderação tais como o princípio da
prossecução do interesse público, do respeito por direitos e interesses protegidos dos cidadãos, os princípios
da igualdade, da proporcionalidade, da imparcialidade, da boa fé e da justiça.

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resulta do citado nº. 2 do artigo 266º da CRP, que coloca os órgãos e agentes
administrativos em subordinação “à Constituição e à lei” e do nº. 1 do artigo 3º do CPA,
ao impor que os órgãos da Administração Pública atuem “em obediência à lei e ao
direito”102.
Assim, da administração não se exige apenas que entenda os textos legais, mas
que tome conhecimento da legalidade das suas atuações. Como protagonista ativo na
realização do Direito, da administração exige-se que assuma como primeiro momento do
exercício da sua atividade a interpretação da lei e da Constituição, para delas extrair o
programa de realização do interesse público que fundamenta e orienta a sua atuação. O
carácter absoluto da lei como vetor da atividade administrativa depende da sua
conformidade com os parâmetros e princípios gerais da atividade administrativa de nível
superior, tais como os da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade
e da boa-fé (nº. 2 do artigo 266º da CRP), o que obriga à desaplicação da lei sempre que
as soluções nela contidas conduzam a resultados inconstitucionais103, manifestamente
iníquos ou injustos104, sem prejuízo do controlo judicial da constitucionalidade das
soluções legislativas e da validade das atuações da administração 105.

6.3.2. Neste contexto, o princípio da juridicidade surge-nos como regra de


compatibilidade imposta pelo primado da lei e da Constituição, como limites externos à
atuação administrativa, subordinando-a ao bloco legal, onde a lei surge como um dos seus
parâmetros vinculativos106. Donde a atuação da administração deve contribuir ativamente
para a realização do Direito, através de uma metodologia decisória baseada em

102
A Autoridade Tributária e Aduaneira, que de acordo com o nº. 1 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º
118/2011, de 15 de dezembro, “é um serviço da administração direta do Estado dotado de autonomia
administrativa”, que nos termos da al. a) do nº. 1 do artigo 7º do mesmo diploma, rege-se, entre outros,
pelo “princípio da legalidade, que implica que a prossecução das suas atribuições deve pautar-se pela
rigorosa observância das disposições legais e no respeito pelas garantias dos contribuintes”.
103
JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5ª ed., 2017, p. 51.
104
Para PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 321 a valorização de uma
conduta administrativa alicerçada no principio geral da justiça é uma decorrência indispensável da conceção
personalista de interesse público, implicando que todas as decisões da administração tenham em conta os
resultados concretos da sua atuação, exigindo-se, por via dessa ponderação, que seja assegurada a
compatibilidade dos seus atos com os princípios de justiça material do Estado de Direito, tais como a
proporcionalidade, a tutela da confiança, a igualdade ou a proibição do arbítrio.
105
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 361.
106
PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, pp. 137-138.

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ponderações107. Neste sentido, assiste-se a uma necessária reconfiguração do primado da


lei que não limita a sujeição da atividade administrativa à lei habilitante, mas antes a todo
o bloco de legalidade108. E na medida em que este se compõe de normas constitucionais,
de normas de direito internacional e europeu, de leis, regulamentos, cláusulas imperativas
resultantes da atividade contratual da administração, de situações jurídicas resultantes de
atos administrativos constitutivos de direitos e interesses legalmente protegidos e dos
princípios gerais de Direito, deve antes falar-se em princípio da juridicidade 109.
Podemos por isso concluir que este princípio vem oferecer uma subordinação da
administração à juridicidade a três níveis: uma subordinação primária da atividade
administrativa que consiste na sua subordinação à lei, implicando como vimos, respeito
pelos princípios da competência e da reserva de lei, no sentido de que a administração
deve nela encontrar o pressuposto e o fundamento das suas atuações. Depois, temos, num
segundo círculo, o dever de assegurar a unidade sistemática da sua conduta com as demais
manifestações do bloco legal, procurando sempre, de acordo com o primado da
Constituição uma interpretação conforme das normas aplicáveis 110. Finalmente, num
terceiro nível temos a subordinação da administração ao Direito, o que implica
nomeadamente que, independentemente da validade da norma legal habilitante, a atuação
da administração seja consentânea com os princípios que devem orientar a sua atuação,
postulados como princípios gerais operativos do Estado de Direito tais como os princípios
da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.

6.4. O princípio da tributação segundo a capacidade contributiva

107
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 435
108
MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, Lisboa, I, 1994/95, p. 105, FREITAS DO
AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2001, p. 48, BERNARDO AYALA, O (Défice de) Controlo
Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa, 1996, p. 74, PAULO OTERO, Direito do Procedimento
Administrativo, Vol. I, 2016, p. 146.
109
Apesar da juridicidade conformar toda a atividade do Estado, focar-nos-emos ao longo deste estudo na
vinculatividade da atividade de gestão fiscal a este princípio, que é a atividade de Direito Público que em
primeira linha procede à aplicação das normas de Direito fiscal material, independentemente de tal
aplicação ser realizada pela administração ou por particulares.
110
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, pp. 181-182. Como veremos, a
supremacia da Constituição implica que a validade dos atos do Estado e de quaisquer entidades públicas
depende da sua conformidade com a Constituição (nº. 3 do artigo 3º da CRP).

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6.4.1. No quadro jurídico-constitucional da Constituição de 1976, a igualdade é


um princípio jurídico fundamental que funciona como critério elementar informador de
toda a ordem jurídico-constitucional. Trata-se de um corolário do princípio da dignidade
da pessoa humana em que o Estado se baseia (artigo 1º da CRP), que na sua relação com
os demais conduz ao reconhecimento da mesma dignidade social de todos os cidadãos,
justificadora da sua igualdade perante a lei (nº. 1 do artigo 13º da CRP). Mesmo que da
aplicação da lei não resulte este princípio, ele informa a atividade da administração e deve
ser por ela assegurada (nº. 2 do artigo 266º da CRP).
No domínio fiscal, este princípio manifesta-se como igualdade na repartição dos
encargos públicos111 ou da generalidade da tributação segundo a capacidade
contributiva112. Não se trata de um princípio constitucional implícito, resultando da tarefa
fundamental do Estado de promover a “igualdade real entre os portugueses” (artigo 9º
al. d) da CRP), função que, podendo naturalmente ser prosseguida tanto pela forma como
utiliza os seus recursos como pelo modo como os obtém, deve ser prosseguida
“nomeadamente através da política fiscal”, com o fim de “promover a justiça social,
assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correções das
desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento” (artigo 81º al. b) da CRP).
Particularmente na Constituição fiscal, ele resulta expressamente dos seus artigos 103º e
104º, nos termos dos quais o sistema fiscal visa tanto a satisfação das necessidades
financeiras do Estado quanto “uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza” (nº. 1
do artigo 103º da CRP), e contribui para a igualdade entre os cidadãos, promovendo a
diminuição das desigualdades e a justiça social (nºs. 1, 3 e 4 do artigo 104º da CRP).

6.4.2. O dever fundamental de pagar impostos encontra-se sujeito a algumas


regras equivalentes às dos direitos fundamentais, devendo nessa medida ser configurado
pelo legislador de maneira a respeitar e assegurar a generalidade (nº. 1 do artigo 12º da
CRP) e a igualdade (nº. 1 do artigo 13º da CRP) entre os contribuintes, como critérios

111
GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 2003, pp. 431-432.
112
Ideia que já constava da carta constitucional de 1826, cujo § 14 do artigo 145º determinava que as
contribuições dos cidadãos para as despesas do Estado, devia ser feita “em proporção dos seus haveres”.

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materiais intrínsecos da ordem jurídica do Estado fiscal113. E deve fazê-lo nas suas três
vertentes: (i) na vertente universal ou solidarista, na medida em que, salvaguardado o
mínimo existencial e sem prejuízo da consideração fiscal da família 114, todos devem
contribuir, (ii) na vertente da uniformidade, porque tendo todos a mesma dignidade, todos
devem contribuir segundo o mesmo critério, assim se excluindo a existência de diferentes
classes de pagadores; e (iii) na vertente garantística ou da capacidade contributiva, na
medida em que a tributação deve respeitar a capacidade de cada um para contribuir. Esta
regra da tributação na medida da capacidade contributiva é aliás uma decorrência lógica
da conjugação da regra da igualdade de todos os cidadãos perante a lei aplicada aos
impostos, com a sua vertente negativa de não-discriminação (nº. 2 do artigo 13º da CRP),
já que tributar a todos segundo um mesmo critério e sem discriminação em razão da
situação económica ou condição social, é tributar na medida da capacidade
contributiva115.
O princípio reforçado da juridicidade fiscal impõe assim a igualdade como critério
material intrínseco, ordenador de toda a tributação, princípio que podemos designar por
princípio da generalidade da tributação segundo a capacidade contributiva 116.

6.5. O dever de exame da constitucionalidade dos atos normativos a aplicar

Estas considerações conduzem-nos à problemática relação da administração com


a Constituição, sobretudo resultante da constatação de que, apesar de as leis

113
JOSÉ CARDOSO DA COSTA, “O Princípio da Capacidade Contributiva no Constitucionalismo Português
e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, BCEUC, Vol. LVII tomo I, 2014, p. 1169. Sobre este
princípio ver, entre outros, JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, 1997, pp. 435
e segs., e Direito Fiscal, 10ª ed., 2017, pp. 154 e segs., e NUNO DE SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal,
Vol. II, 9ª ed., 2000, pp. 200 e segs..
114
A salvaguarda de um mínimo de existência económica abaixo do qual não é legítimo ao Estado tributar
é uma decorrência do primado da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da CRP) e do princípio da
consideração fiscal da família, resultante do nº. 1 do artigo 104º da CRP.
115
Para GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed.,
2007, p. 1093, constituindo a obrigação fiscal um sacrifício legalmente imposto à esfera patrimonial dos
cidadãos, pode colocar-se o problema da sua imposição dever respeitar, por analogia os limites às restrições
a direitos fundamentais, e obedecer por isso a um critério de proporcionalidade, que impede a criação de
impostos arbitrários.
116
Este princípio encontra-se formulado no nº. 1 do artigo 4º da LGT nos seguintes termos: “Os impostos
assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento
ou da sua utilização e do património”.

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inconstitucionais serem em princípio eficazes até a sua invalidade ser declarada pelo
TC117, sendo a administração responsável pela juridicidade da sua atuação, não deveria
ser obrigada a aplicá-las.
Tradicionalmente tem-se argumentado, na linha da supremacia do poder
legislativo, que a administração está vinculada a uma estrita obediência à lei, não estando
na sua disponibilidade o exercício de uma competência genérica de desaplicação de
normas inconstitucionais, salvo em situações manifestamente excecionais 118. Os autores
que defendem esta posição baseiam-na na circunstância de a desaplicação das normas
inconstitucionais ser uma competência atribuída aos tribunais (artigo 204º da CRP), sendo
por isso vista como uma reserva absoluta de fiscalização da constitucionalidade, que a ser
exercida pela administração, implicaria uma violação do princípio da separação de
poderes (nº. 1 do artigo 111º da CRP)119. De acordo com este entendimento, a
administração está impedida de recusar a aplicação de uma norma contida num ato
legislativo com fundamento na sua inconstitucionalidade, encontrando-se por isso por
vezes vinculada a praticar atos inválidos120.
Ainda assim, a maioria da doutrina nacional tem optado por uma posição
intermédia121, considerando que em certos casos a desaplicação de lei inconstitucional
deve ter-se por compreendida na genérica subordinação da administração à Constituição,
à lei e ao Direito (nº. 2 do artigo 266º da CRP e nº. 1 do artigo 3º do CPA). Neste sentido,
é defendida a teoria da competência de rejeição limitada, por via da qual aos órgãos da
administração é permitido o acesso à Constituição, com o consequente poder de rejeição

117
De notar que a Constituição habilita que atos inconstitucionais praticados pela administração publica
produzam alguns efeitos quando a isso obrigarem razoes de segurança jurídica, equidade ou interesse
público de excecional relevo o exigirem (nº. 4 do artigo 282º da CRP.
118
Neste sentido, BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre decisão
Administrativa, 1995, p. 76. Como exemplos de autores que defendem este entendimento, PAULO OTERO,
Legalidade e Administração Pública, 2003, p. 668, cita MARCELO REBELO DE SOUSA, MÁRIO ESTEVES DE
OLIVEIRA e FERNANDO ALVES CORREIA. No mesmo sentido vai o Parecer da PGR nº. 20/2010-C de
15/03/2013.
119
De acordo com a o princípio da separação de poderes, cada um dos poderes do Estado não pode invadir
o núcleo essencial do sistema de competências caracterizador de outra função. A violação do princípio da
separação de poderes dá origem a atos com vicio de usurpação de poderes, que serão então nulos (al. a) do
nº. 2 do artigo 161º do CPA).
120
PAULO OTERO Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 377 e Direito do Procedimento
Administrativo, Vol. I, 2016, p. 147.
121
Apenas RUI MEDEIROS, A Decisão de Inconstitucionalidade, 1999, p. 149 e segs. e ANDRÉ SALGADO DE
MATOS, A Fiscalização Administrativa da Constitucionalidade, 2004, pp163 e segs. admitem a existência
de um poder genérico de fiscalização da constitucionalidade a cargo da administração.

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da lei desconforme, quando a inconstitucionalidade da norma a concretizar por um ato


administrativo for evidente122. Neste sentido, PAULO OTERO123 esclarece que esta
desaplicação pode ter lugar na medida do necessário a afastar (i) leis configuradas como
injustas ou que conduzam a resultados manifestamente iníquos e atentatórias do principio
da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da CRP); (ii) normas cuja aplicação importe a
violação ostensiva do conteúdo essencial de normas constitucionais diretamente
aplicáveis, conforme sucede com as normas atribuidoras de direitos liberdades e garantias
e direitos fundamentais de natureza análoga (nº. 1 do artigo 16º, artigo 17º e nº. 1 do 18º
da CRP); e (iii) leis cuja inconstitucionalidade seja expressamente sancionada pela
Constituição com a inexistência ou ineficácia jurídicas (artigo 137º e nº. 2 do artigo 140º
da CRP) ou declaradas ilegais ou inconstitucionais com força obrigatória e geral (artigo
282º da CRP)124.
Não fazendo parte do objeto deste estudo proceder à análise aprofundada desta
matéria, diremos apenas que pela nossa parte, julgamos que não podem os intérpretes da
lei estar obrigados a conhecer da sua invalidade, enquanto a administração está
desvinculada dessa mesma verificação relativamente às normas que aplica. Segundo
cremos, a aplicação tipificante das normas a casos concretos supõe que, entre o aplicador
e as normas a aplicar, exista um permanente diálogo norteado pela evidência de que a

122
Neste sentido, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 2003, p.
941. Em sentido semelhante, JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição de
1976, 5ª ed, 2012 pp. 200-205, admitindo a desaplicação irrestrita da lei inconstitucional em caso de
inconstitucionalidade evidente, em casos de inconstitucionalidade material quando resulte de um equilíbrio
ponderado dos interesses em jogo, devendo o órgão ponderar o equilíbrio da decisão de desaplicação e
decidir-se pela que considere menos onerosa. Para este autor, a administração não deverá desaplicar a norma
inconstitucional se a sua suspensão for viável e reservar a desaplicação aos órgãos superiores. Também
JOSÉ CASALTA NABAIS, “Os direitos fundamentais na jurisprudência do tribunal constitucional”, BFDC,
nº. 65, 1989, p. 23, admite a competência de desaplicação no que diz respeito a normas evidentemente
inconstitucionais.
123
PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, 2003, p. 671, Manual de Direito Administrativo,
Vol. I, 2013, p. 377 nota 1221 e Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, p. 139, nota 569.
124
A este respeito, merece nota a posição que, como nota ANDRÉ SALGADO DE MATOS, A fiscalização
administrativa da constitucionalidade, 2004, p. 159, foi manifestada pelo TC nos seus acórdãos nºs. 24/85
e 304/85. Para este Tribunal, se por um lado, do nº. 2 do artigo 266º da CRP decorre a “adstrição da
administração à lei fundamental, quando ela se lhe refere imediatamente, e à lei, quando esta se coloca
como parâmetro de referência entre a própria constituição e a atividade regulamentar”, sustentando por
isso que “à administração é proibido desobedecer à lei por inconstitucionalidade”, parece por outro lado
nos mesmos acórdãos defender mais adiante a teoria da desaplicação limitada, ao afirmar que “a
Constituição, ao dispor sobre a atividade regulamentar da administração, e sempre que esta não tenha de
a aplicar diretamente (…), exige, pois, que os seus órgãos e agentes tomem por vetor da jurisdicidade dos
seus atos pura e simplesmente a lei”.

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validade de toda a atuação administrativa depende da sua conformidade com a


Constituição (nº. 3 do artigo 3º da CRP).
É preciso ter presente que, tendo as pessoas coletivas públicas integradas na
administração por função a prossecução da parcela de interesse público colocada a seu
cargo pela lei definidora das suas atribuições, e envolvendo ela a aplicação das normas
vigentes necessárias a essa prossecução, a interpretação e a integração das mesmas
normas e logicamente a aferição da sua validade, não podem deixar de considerar-se
incluídas na sua esfera de atuação como a primeira das suas competências, aquela sem a
qual não é possível exercer as demais. Pelo que o exame da constitucionalidade dos atos
normativos a aplicar apresenta-se como uma tarefa inseparável da atividade
administrativa, como o serão igualmente a aplicação de clausulas de resolução de
conflitos entre atos jurídicos que exprimem imposições decorrentes dos primados do
Direito Internacional Público (nºs. 1, 2 e 3 do artigo 8º da CRP), bem como de Direito da
União Europeia (nº. 4 do artigo 8º da CRP), mesmo quando exista norma interna
aplicável125, e ainda a observância de direitos fundamentais e outros preceitos
constitucionais diretamente aplicáveis (nº. 1 do artigo 18º da CRP) incluindo a aplicação
dos princípios constitucionais sobre a atividade administrativa (nºs. 1 e 2 do artigo 266º
da CRP)126.
Além disso, nos casos em que a inconstitucionalidade seja invocada pelos
particulares perante a administração e esta, na sequência do exame de constitucionalidade
conclua pela atendibilidade da pretensão do contribuinte, a desaplicação da norma em
contradição com a Constituição não só pode ter lugar, como é exigida pelo princípio da
boa administração, que impõe o desenvolvimento da atividade administrativa segundo
critérios de eficiência, economicidade e celeridade (nº. 1 do artigo 5º do CPA). É que do
mesmo modo que o conteúdo dos conceitos indeterminados vai progressivamente
assentando na sua aplicação tipificante em termos partilhados pelos contribuintes, a
administração e os tribunais, sem invasão das funções dos demais, também os contributos

125
O Direito da União Europeia tem como destinatários não só os Estados Membros mas igualmente os
seus nacionais, de acordo com a teoria do ato claro, como decidido nos casos Van Gend & Loos (de 05-02-
1963, proc. C-26/62) e Van Duyn (de 04/12/1974, proc. C-41/74), e jurisprudência subsequente do TJUE.
126
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 378 nota 1223.

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atinentes à constitucionalidade das normas a aplicar deve desenvolver-se como parte


integrante da função específica de cada um.
A interpretação da lei e da Constituição deve assim ser entendida como o primeiro
momento do exercício da atividade administrativa, no qual a administração extrai o
programa de realização do interesse público que serve de base e orienta a sua atuação.
Deste modo, o dever de exame que neste primeiro momento necessariamente tem lugar
não constitui uma invasão do núcleo essencial da função jurisdicional (artigo 204º da
CRP), devendo rejeitar-se a existência de um dever de aplicação de normas
inconstitucionais ou de violar a Constituição quando seja esse o resultado de conduta
ordenada pela lei (nº. 2 artigo 266º da CRP). É indiscutível a existência de um dever de
rejeição de todas as soluções que conduzam a resultados manifestamente desrazoáveis ou
incompatíveis com a ideia de Direito (artigo 8º do CPA), na medida em que isso
represente uma grosseira ineficiência da atividade administrativa, sobretudo quando à luz
daqueles critérios de boa administração (eficiência economicidade e celeridade), seja
possível evitar os custos resultantes da litigância e fiscalização da constitucionalidade,
tanto para os particulares como para o próprio Estado.

6.6. O direito fundamental a um certo conteúdo da lei fiscal

6.6.1. Será porventura devido a estas perplexidades resultantes das relações entre
lei e Constituição, ainda não completamente resolvidas pela reconfiguração do princípio
da legalidade em princípio da juridicidade, que a Constituição fiscal formal tenha
procedido à qualificação deste princípio, promovendo-o a um princípio reforçado de
juridicidade tributária, ao associar-lhe o direito subjetivo público127 de carácter análogo
aos direitos, liberdades e garantias dos particulares a um certo conteúdo da lei fiscal128.
Em matéria de impostos a Lei Fundamental constitui a administração no dever de
desaplicar as normas de Direito fiscal material129 que não tenham sido criadas nos termos

127
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed, 2002, p. 31.
128
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, p. 55.
129
Como refere SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª ed., 2002, p. 55, estamos perante
“princípios constitucionais que vão também criar, do ponto de vista metodológico, um sistema interno no
ordenamento jurídico-tributário (…) estes princípios de justiça material que devem estrutural a lei fiscal,
dão uma nova e reforçada expressão ao princípio da legalidade.”.

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da Constituição (nº. 3 do artigo 103º da CRP), sob pena de legitimar-se o exercício do


direito de resistência fiscal130, em termos análogos ao previsto para os direitos, liberdades
e garantias (artigo 21º da CRP). Nestes casos, o dever de proceder à desaplicação
normativa não decorre diretamente da circunstância de estas serem contrárias à
Constituição, mas antes da aplicabilidade direta e imediatamente exequível deste direito
fundamental que os contribuintes têm perante a administração (artigo 17º e nº. 1 do artigo
18º da CRP). Este direito não atinge apenas a zona de controlo formal da legalidade na
tributação, tendo também implicações ao nível do controlo material do conteúdo da norma
fiscal, afetando a sua validade e constituindo a administração na obrigação de proteger a
coerência do sistema, promovendo a desaplicação das normas desconformes131.

6.6.2. Não faz por conseguinte sentido que, ao mesmo tempo em que
reconhecemos à administração a função de dizer o Direito dos casos concretos, hesitemos
em aceitar a sua capacidade para tomar posição sobre a conformidade das normas que
servem de base legal à sua atuação. A vinculação da atividade administrativa ao Direito
exige que a administração transcenda a metodologia subsuntiva, acriticamente presa a
uma legalidade subordinante, reclamando o seu papel de executora da lei e do Direito e
resolvendo eventuais antinomias normativas e valorativas, com respeito pelas posições
jurídicas dos particulares e o recurso a critérios de otimização que conferem unidade ao
sistema132. Deve ser este o paradigma de uma administração pública submetida ao poder
legislativo e comprometida com a implementação das imposições constitucionais,

130
Como refere PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 120, o direito de
resistência investe os particulares na faculdade de não acatarem ordens que ofendam os seus direitos
liberdades e garantias bem como de repelirem pela força qualquer agressão, sempre que o recurso à
autoridade pública não for possível ou eficaz.
131
SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, p. 31. No mesmo sentido, caracterizando o direito a
apenas pagar impostos criados nos termos da Constituição e cuja liquidação e cobrança se faça nos termos
da lei como direito fundamental de natureza análoga, ver JOSÉ VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ª ed., 2012, p. 81, GOMES CANOTILHO, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 2003, p. 405, JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, tomo IV, 3ª ed., 2000, p. 151, JOSÉ CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar
impostos, 1997, p. 186, nota 5, SALDANHA SANCHES, O ónus da prova no processo fiscal, Lisboa, 1987, p.
5.
132
JOÃO CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, 10º ed., 2009, p. 92; PAULO OTERO, Manual de
Direito Administrativo, Vol. I, 2013, p. 436. Ao contrário das normas que se excluem mutuamente os
princípios baseiam-se numa convivência conflitual sem pretensão de exclusividade.

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exercendo, sob controlo jurisdicional, uma função integradora dos princípios


constitucionais que informam a tributação, assegurando as garantias dos contribuintes.
Deste modo, ao resolver as crescentes desconexões entre as leis fiscais e a
Constituição, o princípio da juridicidade soluciona o terceiro problema do Estado fiscal,
na medida em que o primado da Constituição e da lei exigem que as decisões fiscais
incorporem critérios materiais de justiça que assegurem a coerência interna do sistema
jurídico.

7. CONCLUSÃO

7.1. Podemos agora apreciar nesta caracterização do princípio reforçado da


legalidade (ou da juridicidade) tributária a sua tripla função: a função de dupla garantia
a que mutuamente se dão os contribuintes e o Estado, de que os impostos não implicam
quebra do consenso em torno da legitimidade do Estado e que a sua cobrança decorrerá
num clima de relativa paz social; e a garantia de que a limitação da esfera particular será
previamente discutida e aprovada no quadro de órgãos democraticamente legitimados.
Em segundo lugar, ao assegurar o primado do poder legislativo sobre o poder
administrativo, o princípio reforçado da legalidade tributária desempenha uma função de
orientação política, resolvendo o problema da aplicação das leis fiscais por parte da
administração conferindo legitimidade à sua atuação em termos excludentes do arbítrio
potencialmente gerado pela instabilidade na sua aplicação, assim garantindo a certeza do
Direito e a igualdade na distribuição dos encargos gerados.
Finalmente, este princípio desempenha ainda uma função racionalizadora ou de
garantia de prossecução do interesse público133: sendo a lei o resultado de decisões
políticas tomadas pelo órgão detentor do poder legislativo, ela exprime o que deve
entender-se como interesse publico a prosseguir. Esta função é-nos dada pelo nº. 1 do
artigo 103º da CRP: a satisfação em termos sustentáveis das necessidades financeiras do
Estado e outras entidades públicas, implica necessariamente uma repartição justa dos
rendimentos e da riqueza, tendo como matriz ou critério material intrínseco a igualdade

133
BERNARDO DE AYALA, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa,
1995, pp. 78-80.

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fiscal, materializada no respeito pelo direito fundamental à tributação na medida da


capacidade contributiva (artigo 13º e nºs. 1 e 3 do artigo 103º da CRP).

7.2. Não há dúvidas que o Estado fiscal reclama um princípio da legalidade


robusto, que assegure o prévio consentimento dos destinatários quanto às imposições
necessárias à satisfação das necessidades financeiras do Estado, que a aplicação dos
critérios de tributação assim criados seja feito em linha com o previamente consentido, e
ainda que toda a tributação se sujeite a critérios de justiça material que garantam a
coerência interna do sistema. Este princípio, entretanto evoluído para um princípio da
juridicidade, postula assim uma submissão não só à lei, mas também à Constituição, em
termos de favorecer a aplicação das normas legais com respeito por direitos fundamentais
e informada por critérios excludentes do arbítrio e garantidores da estabilidade, da certeza
e da confiança dos contribuintes134.
Constatámos ainda que, mesmo antes dessa evolução, já o legislador constituinte
havia reforçado o princípio da legalidade tributária, elevando a direito fundamental dos
particulares o direito de não pagar impostos que violem a Constituição fiscal, ou outros
direitos fundamentais dos contribuintes, que tenham eficácia retroativa ou cuja liquidação
e cobrança se não faça nos termos da lei.
Este direito diretamente aplicável e imediatamente exequível é o padrão
Constitucional mínimo a partir do qual opera o dever fundamental de pagar impostos,
sendo à luz da grelha de relações impostas por uma juridicidade reforçada pelo conjunto
de garantias constitucionais encabeçadas por este direito que deve ser entendida toda a
atividade de aplicação das leis fiscais135.

134
A subordinação da atividade administrativa à lei e ao Direito imposta pelo princípio da juridicidade
implica uma vinculação à ideia de Direito e a uma conceção social de justiça excludente da prepotência, do
arbítrio e da atuação administrativa injusta, da invalidade da atuação contrária à juridicidade e a obrigação
de proceder à reposição da legalidade violada. PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I,
2013, p. 352.
135
Nas palavras de ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª ed., 1996, pp. 18 e 68, “A
obrigação, com todos os poderes e deveres que se enxertam no seu tronco, pode mesmo considerar-se como
um processo (conjunto de atos logicamente encadeados entre si e subordinados a determinado fim)
conducente ao cumprimento”.

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