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JOSÉ DUARTE COIMBRA

2.2 Ainda há recursos hierárquicos necessários?

A contraposição entre recursos hierárquicos necessários e facultativos


releva sobretudo no plano processual; a norma definitória que atualmente
se extrai do CPA/2015 a esse respeito é, aliás, bem ilustrativa da dimensão
essencialmente adjetiva da distinção92. A opção global entre a necessidade
ou a facultatividade do recurso hierárquico não é, no entanto, neutra sob
o ponto de vista da configuração das relações entre órgãos superiores e
órgãos inferiores, não sendo assim neutra sob o ponto de vista da
estruturação dos próprios modelos de desconcentração administrativa sob
forma hierárquica. Na realidade, (i) o estabelecimento do recurso
hierárquico como via necessária de reação perante atuações ou omissões
dos órgãos subalternos, embora torne a atividade destes estatisticamente
mais permeável ao controlo dos órgãos superiores, otimiza em menor
medida o imperativo de desconcentração administrativa, por reservar aos
órgãos de topo da Administração Pública a vontade juridicamente relevante

p. 332); só que, como ela era então «compensada» pela atribuição dessa mesma
competência revogatória em sede de recurso hierárquico, talvez se pudesse admitir – como
no texto agora se identificou – a legitimidade da ponderação abstrata efetuada pelo
legislador e, portanto, a diferenciação entre o modo espontâneo e provocado como o
superior pudesse vir a exercer, ou não, tal competência. Perante o CPA/2015, e diante a
eliminação por completo dessa competência revogatória do superior, não parece que haja
forma de salvar da inconstitucionalidade nem mesmo o disposto no n.º 2 do artigo 169.º,
pela razão essencial de, como também já se avançou no texto, por essa via se contribuir
para a criação de uma amplíssima zona de incontrolabilidade (quanto ao mérito) e de
irrecorribilidade das atuações dos subalternos.
92
Alude-se ao disposto no n.º 1 do artigo 185.º, em cujos termos a necessidade ou
facultatividade do recurso hierárquico (ou, em geral, de qualquer meio de impugnação
administrativa) assenta na indispensabilidade ou dispensabilidade da sua utilização em
relação à mobilização dos meios processuais de tutela impugnatória ou condenatória sobre
atos ou omissões dos subalternos. Classicamente entendido como predicado da
recorribilidade (= impugnabilidade) dos atos administrativos (cfr., v.g., D. FREITAS DO
AMARAL, Direito Administrativo, IV, 1989, pp. 147-148), o esgotamento das vias administrativas
de reação tem sido entretanto reconduzido, em termos de enquadramento processual, ou
a um pressuposto processual ad hoc relativo ao objeto do processo (cfr., v.g., J. C. VIEIRA
DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 16.ª ed., 2017, pp. 298-300), ou a uma
manifestação de interesse processual, na dimensão de utilidade no recurso à tutela
contenciosa (cfr., v.g., M. AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 3.ª
736 ed., 2017, pp. 299-301).
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em termos de controlo judicial; (ii) já a colocação do recurso hierárquico


como via tão-só facultativa de reação, para além de se revelar mais
optimizadora do princípio da desconcentração administrativa, por distribuir
por vários órgãos as vontades administrativas juridicamente relevantes
para efeitos de controlo jurisdicional, torna a atividade dos subalternos
estatisticamente menos exposta ao controlo superior, pese embora sem
beliscar minimamente – e, num certo sentido, até reforçar – os seus poderes
de intervenção oficiosa93. Para além disso, não pode também ignorar-se
que (i) a previsão de recursos hierárquicos de utilização necessária encontra
maior justificação nos casos em que as razões para o estabelecimento de
cadeias hierárquicas «rígidas» se revelem mais atuantes (v.g., em contexto
militar ou policial), e que, reversamente, (ii) a previsão de recursos
hierárquicos tão-só facultativos seja, em regra, a solução que gera maior
concordância prática entre a unidade de ação e a desconcentração
administrativa, por um lado, e entre a garantia da eficiência da Administração
Pública, o imperativo – mais político do que jurídico, diga- se – de
descongestionamento da atividade dos Tribunais e a tutela jurisdicional
plena e efetiva dos particulares, por outro94.

Os termos do dissenso – mais doutrinal do que jurisprudencial – em torno da


admissibilidade da previsão legal de recursos hierárquicos de utilização
necessária, aberto com a revisão constitucional 1989 e renovado com
a aprovação e entrada em vigor do Código de Processo dos Tribunais
Administrativos, em 2002/2004, são bem conhecidos: (i) se, a partir de 1989,
a elevação da lesividade a critério constitucional de referência para a
impugnação dos atos administrativos fez suscitar a mais do que legítima dúvida
sobre a validade de um modelo legal – o da LPTA – ainda assente no
pressuposto da «tripla definitividade» (material, horizontal e, no que agora
interessa, vertical) como critério de recorribilidade dos atos administrativos
e, por isso, na exigência transversal da prévia interposição de recurso

93
Cfr. P. OTERO, Conceito, pp. 377-378; O Poder, II, pp. 728-731.
94
Cfr. L. SOUSA DA FÁBRICA, § 6.º, pp. 514 e 517-518; A. SALGADO DE MATOS,
‘Recurso Hierárquico Necessário e Regime Material dos Direitos, Liberdades e
Garantias’, Scientia Ivridica L:289 (2001), pp. 97-98. 737
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hierárquico sobre a generalidade dos atos dos subalternos95, (ii) já com a


aprovação e entrada em vigor do CPTA – e com a inequívoca eliminação
dessa exigência como «regra geral» (cfr. o n.º 1 do artigo 51.º e, sobretudo,
os n.os 4 e 5 do artigo 59.º) –, a dúvida passou a colocar-se essencialmente ao
nível da admissibilidade da previsão de recursos hierárquicos necessários em
legislação especial e, quando e se firmada essa admissibilidade, ao nível dos

95
No sentido da inconstitucionalidade material da exigência transversal de
interposição de recurso hierárquico necessário previamente ao recurso contencioso de
anulação após a revisão constitucional de 1989, cfr., v.g., M. TORRES, ‘A Garantia
Constitucional do Recurso Contencioso’, Scientia Ivridica XXXIX (1990), pp. 48-49; P.
OTERO, Conceito, p. 377; IDEM, ‘As garantias’, pp. 58-61; IDEM, O Poder, II, pp. 724-728;
V. PEREIRA DA SILVA, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, 1996, pp. 667 e ss.; IDEM,
O Contencioso Administrativo como «Direito Constitucional Concretizado» ou «Ainda
por Concretizar», 1999, pp. 31 e 39 e ss.; M. A ROSO DE A LMEIDA , ‘Os direitos
fundamentais dos administrados após a Revisão Constitucional de 1989’, Direito e Justiça
VI (1992), pp. 320-321; M. T. MELO RIBEIRO, ‘A eliminação do acto definitivo e
executório na Revisão Constitucional de 1989’, Direito e Justiça VII (1993), pp. 221 e
ss.; J. MIRANDA, ‘Em defesa da inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário’,
CJA 9 (1998), pp. 45-47; D. DUARTE, ‘A propósito’, p. 37. Em sentido inverso, admitindo
como genericamente admissível o «condicionamento» ao acesso à justiça administrativa
por essa via, mesmo apesar da nova fórmula constitucional da lesividade, cfr., v.g., R.
SOARES, ‘O Acto Administrativo’, Scientia Ivridica XXXIX (1990), pp. 33-34; R.
MEDEIROS, ‘Estrutura e âmbito da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse
legalmente protegido’, sep. da RDES XXXI:IV [2.ª série: n.os 1/2] (1989), pp. 89-90; J.
C. VIEIRA DE ANDRADE, ‘Em defesa do recurso hierárquico’, CJA 0 (1996), pp. 18-20; P.
COSTA GONçALVES, Relações entre as impugnações administrativas necessárias e o
recurso contencioso de anulação de actos administrativos, 1996, pp. 42-51; M. ESTEVES
DE OLIVEIRA/P. COSTA GONçALVES/J. PACHECO DE AMORIM, Código, pp. 758 e 774. E no
sentido intermédio de considerar que a admissibilidade constitucional de recursos
hierárquicos dependeria do concreto regime associado e das potenciais justificações
materiais para o seu estabelecimento, cfr. L. SOUSA DA FÁBRICA, § 6.º, pp. 517 e ss.; IDEM,
Reconhecimento de Direitos e Reintegração da Esfera Jurídica, II, 2003, pp. 541 e ss.; e,
sobretudo, A. SALGADO DE MATOS, ‘Recurso Hierárquico’, pp. 78 e ss. Como é sabido, a
jurisprudência – constitucional e administrativa – alinhou-se unanimemente no sentido
da não-inconstitucionalidade, essencialmente com base na premissa – cientificamente
pouco apurada, mas que aqui não interessa discutir –de que a exigência de esgotamento
das vias administrativas de reação configurava apenas um «condicionamento» ou uma
«regulamentação» do direito fundamental de acesso à justiça administrativa: cfr., v.g., o
Acórdão do TC n.º 499/96, de 20.03.1996 (Proc. n.º 383/93), ou o Acórdão do STA de
15.05.1997, Proc. n.º 032831; e para uma recensão panorâmica sobre a primeira, cfr. A.
R. GONçALVES MONIz, ‘O direito de impugnação judicial de actos administrativos na
Constituição de 1976 e na jurisprudência do Tribunal Constitucional’, Jurisprudência
738 Constitucional 6 (2005), pp. 68-73.
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critérios de identificação normativa desses recursos hierárquicos sectoriais


como sendo, efetivamente, necessários96.

Por muito que a discussão em torno da (in)constitucionalidade da previsão


– mesmo que avulsa e circunstancial – de recursos hierárquicos necessários
continue a ter total cabimento em termos teóricos, é difícil deixar de reconhecer
que as recentes opções do legislador infra-constitucional se fundaram, a este
propósito, em dois eixos pragmáticos fundamentais: (i) por um lado, na
aceitação genérica da previsão sectorial de recursos hierárquicos necessários;
(ii) por outro, no reconhecimento de que essa previsão deve revestir, ainda
assim, natureza excecional: não é senão esse o significado do que,
atualmente, e termos gerais, se dispõe no n.º 2 do artigo 185.º do CPA/201597.

96
No sentido da não-inconstitucionalidade material da previsão sectorial de recursos
hierárquicos necessários em legislação especial após a aprovação e entrada em vigor do
CPTA, cfr., v.g., M. ESTEVES DE OLIVEIRA/R. ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos
Tribunais Administrativos Anotado, I, 2004, p. 347; M. AROSO DE ALMEIDA/C. A. FERNANDES
CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª ed., 2010,
pp. 402-403; M. AROSO DE ALMEIDA, ‘Implicações de direito substantivo da reforma do
contencioso administrativo’, CJA 34 (2002), pp. 71-73; Manual de Processo Administrativo,
1.ª ed., 2010, pp. 303-305; J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 13.ª
ed., 2014, pp. 280-284; A. R. GONçALVES MONIz, ‘O direito’, p. 71. Em sentido inverso,
mantendo e renovando a tese da inconstitucionalidade e aditando a conclusão de que essas
previsões especiais sempre se haveriam por ter agora «caducadas» em função da eliminação
da «regra geral», cfr., sobretudo, V. PEREIRA DA SILVA, ‘De necessário a útil: a metamorfose
do recurso hierárquico no novo contencioso administrativo’, CJA 47 (2004), pp. 25-30; IDEM,
O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª ed, 2009, pp. 354-363; e
também P. OTERO, ‘Impugnações administrativas’, CJA 28 (2001), p. 52, nota 5. Quanto
à jurisprudência, alinhou unanimemente no primeiro sentido: cfr., v.g., o Acórdão do STA
de 6.05.2010, Proc. n.º 01255/09.
97
Para esse reconhecimento, cfr. M. AROSO DE ALMEIDA, Teoria, pp. 387-388; e,
embora criticamente, V. PEREIRA DA SILVA, ‘«O Inverno do nosso descontentamento» –
As impugnações administrativas no projeto de revisão do CPA’, CJA 100 (2003), p. 126.
Importa ainda ter em conta que a manutenção dos elementos normativos provindos do
CPTA na sua versão revista pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 outubro, não tem em
si mesma qualquer impacto a este nível e, muito menos, qualquer efeito normativo de
«revogação» sobre as normas – do CPA e, sobretudo, de legislação avulsa – que pressupõem
ou pressuponham a existência circunstancial de recursos hierárquicos necessários. Ou
seja: tal como na sua versão originária, a atual versão do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos continua a revelar-se totalmente neutra em relação à questão de saber se,
em determinados casos, pode ou não a lei configurar determinado recurso hierárquico
como necessário e de, por essa via, condicionar o acesso à justiça administrativa à prévia 739
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Significa isto que, mais do que quanto ao se, a questão da persistência de


recursos hierárquicos de natureza necessária se coloca atualmente, no
essencial, quanto ao quando e quanto ao como. E se não há dúvidas de
que, por restringirem o direito fundamental de acesso aos Tribunais, os
recursos hierárquicos necessários só podem ser estabelecidos por ato
legislativo que respeite os parâmetros constitucionais que, em geral, balizam
as interferências restritivas sobre normas de direitos fundamentais,
designadamente em matéria de proporcionalidade98, menos evidente pode
ser o apuramento das condições que precisam de estar reunidas para que
determinado recurso hierárquico previsto em legislação especial possa ser,
na prática, qualificado como necessário.
As disposições contidas no n.º 1 do artigo 3.º do diploma preambular do
CPA/2015 (Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro) fornecem, é certo,
relevantes indicações a esse respeito; mas a verdade é que a sua aplicação
pode não ser totalmente linear, em razão da talvez demasiadamente ambiciosa
rigidez com que o legislador pretendeu regular a matéria, recortando de forma
aparentemente exclusiva um elenco também aparentemente estanque de
formulações linguísticas de que os intérpretes se devem agora servir no
momento de qualificar como necessárias ou facultativas as impugnações
administrativas previstas em legislação sectorial. As dificuldades de aplicação
do preceito não resultam, porém, da circunstância – logicamente inultrapassável

interposição de recurso para o superior do órgão responsável pelo ato a impugnar ou pela
omissão contra a qual se pretende reagir (cfr., já a essa luz, M. AROSO DE ALMEIDA/C. A.
FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos,
4.ª ed., 2017, pp. 342-345; M. AROSO DE ALMEIDA, Manual, 3.ª ed., pp. 296-299; J. C. VIEIRA
DE ANDRADE, A Justiça, 16.ª ed., pp. 298-300). Essa neutralidade não deve, no entanto,
ser confundida com abertura incondicionada: as normas do CPTA não têm naturalmente
o condão de eliminar a natureza rigorosamente excecional da previsão de impugnações
administrativas necessárias e, também naturalmente, a necessidade de essa previsão
respeitar, sempre, as exigências de balanceamento constitucional pertinentes nesta matéria.
98
Cfr., sobretudo, A. SALGADO DE MATOS, ‘Recurso Hierárquico’, pp. 88 e ss.; também,
A. R. GONçALVES MONIz, ‘O direito’, p. 71; e no sentido de que a previsão de meios de
impugnação administrativa (hierárquicos ou de outro tipo) de natureza necessária em atos
regulamentares viola a reserva de lei – o «princípio da primariedade da lei» –, cfr., na
jurisprudência constitucional, os Acórdãos de n.º 161/99, de 10.03.1999 (Proc. n.º 813/98)
740 e n.º 44/03, de 29.01.2003 (Proc. n.º 363/2002).
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– de ele apenas condicionar a interpretação de enunciados de atos legislativos


anteriores à data de entrada em vigor do CPA de 201599; tudo assenta,

99
O enunciado do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015 é, a esse título,
suficientemente claro, com a referência às “impugnações administrativas existentes à
data de entrada em vigor do presente decreto-lei” a não consentir outra interpretação que
não seja a de que estão em causa as impugnações administrativas que, nesse momento, já
se encontrassem previstas (em legislação especial). A proposta alternativa segundo a qual
as impugnações administrativas existentes à data seriam apenas as já intentadas no
momento de entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 4/2015, entretanto avançada na literatura
portuguesa (cfr. J. PACHECO DE AMORIM, ‘Sobre os conceitos de ato administrativo e ato
administrativo impugnável no CPA e no CPTA’, in Comentários ao Novo Código do
Procedimento Administrativo, I, 4.ª ed., 2018, pp. 103 e 110-111), não tem, assim, e segundo
se julga, qualquer cabimento: (i) desde logo por não ter a mínima correspondência com o
enunciado da disposição em causa, que aponta – clara e inequivocamente – para o facto
de a qualificação de certas impugnações administrativas como sendo de utilização
necessária depender do facto de elas se encontrarem “previstas em lei que utilize uma
das seguintes expressões (...)”, o que faz com que seja a utilização de alguma dessas
expressões na lei o elemento relevante para que opere essa qualificação; (ii) por outro
lado, porque semelhante proposta desconsidera totalmente a dimensão interpretativa que
o n.º 1 do artigo 3.º possui (assim, J. SILVA SAMPAIO/J. D. COIMBRA, ‘Os procedimentos’,
p. 553 e, na mesma linha, C. CADILHA, ‘Implicações do novo regime do CPA no direito
processual administrativo’, Julgar 26 (2015), p. 32), só assim se compreendendo, de resto,
a forma como se encontram redigidas as suas diversas alíneas, que recortam certo tipo de
formulações linguísticas que, por definição, apenas poderão encontrar-se nos regimes
legais em que essas impugnações administrativas especiais se encontrem previstas e
reguladas; (iii) por outro lado ainda, porque contraria frontalmente o resultado que se
extrai da aplicação das disposições – essas sim transitórias – contidas no artigo 8.º do
Decreto-Lei n.º 4/2015 em matéria de procedimentos administrativos de segundo grau,
já que as soluções a esse respeito introduzidas pelo CPA/2015 apenas podem incidir sobre
reclamações apresentadas ou recursos interpostos após a data de entrada em vigor do
novo diploma (para a justificação desta conclusão, cfr. A. SOUSA PINHEIRO/T. SERRãO/M.
CALDEIRA/J. D. COIMBRA, Questões Fundamentais, pp. 52-54); (iv) por fim, porque
redundaria numa artificial, arbitrária e, sobretudo, impraticável solução, não se alcançando
(i) por que razão os critérios interpretativos agora elencados naquele n.º 1 do artigo 3.º
do Decreto-Lei n.º 4/2015 incidiriam apenas sobre impugnações já intentadas (supondo-se
estarem em causa, nessa hipótese, as impugnações pendentes à data de entrada em vigor
do CPA/2015), que assim beneficiariam de um regime especialíssimo de qualificação em
comparação com outras que, não obstante se acharem previstas em idênticos termos em
legislação sectorial, viessem a ser intentadas em momento posterior, ou (ii) em que termos
é que a qualificação como necessária por força de alguma das alíneas deste n.º 1 do artigo
3.º poderia incidir sobre o regime de impugnações administrativas que já tivessem sido
intentadas – e admitidas – como facultativas, bastando por exemplo ter em conta que o
prazo para a sua apresentação, sendo justamente um dos fatores que varia consoante a
natureza facultativa ou necessária que elas revistam, já não poderia sofrer variações em
relação a impugnações... já apresentadas e já admitidas. 741
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antes, na particular – e em última análise algo infeliz – técnica legislativa


utilizada na redação de cada uma das suas três alíneas.

Em relação à alínea a), que individualiza como fórmula identificadora de


impugnações administrativas necessárias a utilização do adjetivo «necessária»,
no género feminino, pode desde logo colocar-se a questão de saber se ela se
repercute sobre enunciados que utilizem esse mesmo adjetivo, embora no
género masculino, como aliás é frequente quando se trate de recursos
hierárquicos100. Não obstante a variação de género, casos deste tipo não
oferecem, como se compreende, dificuldades de maior: os recursos hierárquicos
– que são, a par da reclamação e hoje dos recursos administrativos especiais,
uma das subespécies dos meios de «impugnação administrativa» – são nesses
casos expressamente configurados como sendo de interposição necessária,
devendo-se a utilização do adjetivo «necessário» no masculino ao simples
facto de ele predicar o recurso concretamente em causa.

Já em relação à alínea b), que identifica como necessários os recursos em


relação a cujos atos se estabeleça que «existe sempre» recurso, outras e mais
complexas questões se podem suscitar: (i) por um lado, porque, tanto quanto
se conhece, nenhum enunciado de nenhum ato legislativo do ordenamento
jurídico português, anterior – ou mesmo posterior – à entrada em vigor do
CPA/2015, utiliza a fórmula «existe sempre recurso» (o mesmo valendo, aliás,
para a locução «existe sempre reclamação»), o que em rigor faz com que a

100
É o que ocorre, por exemplo: (i) no n.º 3 do artigo 129.º do Regulamento de Disciplina
da Guarda Nacional Republicana (aprovado em anexo à Lei n.º 145/99, de 1 de setembro,
alterada e republicada pela Lei n.º 66/2014, de 28 de agosto), em cujos termos se estabelece
que da decisão do Comandante-Geral sobre a admissibilidade da interposição de recurso
extraordinário de revisão em matéria disciplinar cabe “recurso necessário para o Ministro da
Administração Interna”; (ii) no artigo 121.º do Regulamento de Disciplina Militar (aprovado
em anexo à Lei Orgânica n.º 2/2009, de 22 de julho), que estabelece que das decisões em
matéria disciplinar cabe “recurso hierárquico necessário” para o Chefe do Estado-Maior-
General das Forças Armadas ou para o Chefe de Estado-Maior de cada um dos seus ramos;
(iii) no n.º 5 do artigo 21.º da Lei n.º 14/2002, de 19 de fevereiro, que determina que das
decisões do diretor nacional da PSP em matéria de exercício de certos direitos associados a
processos eleitorais no âmbito daquele corpo policial cabe “recurso hierárquico necessário”
para o Ministro da Administração Interna; ou, ainda, (iv) no artigo 32.º do Decreto-Lei n.º
267/2002, de 26 de novembro, que pressupõe que as decisões da Direção-Geral de Energia e
Geologia em matéria de licenciamento de instalações de armazenamento de combustíveis
742 sejam objeto de “recurso hierárquico necessário” (para o Ministro da Economia).
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previsão desta disposição interpretativa careça, à partida, de objeto; (ii) por


outro lado, porque, também tanto quanto se conhece, não há sequer casos em
que expressões não totalmente coincidentes a essa, mas semanticamente
equivalentes (v.g., «há sempre» ou «cabe sempre»), sejam utilizadas na
legislação portuguesa, no contexto de relações hierárquicas, a pretexto do
regime dos recursos dos atos ou omissões de órgãos subalternos para órgãos
superiores101; (iii) por fim, porque se pode questionar se a fórmula «existe
sempre» abrange ou não outras – essas sim mais frequentes – em que se refira
apenas que «cabe recurso» (para um órgão superior) ou que «cabe recurso
hierárquico» 102. Se a colocação das duas primeiras questões serve

101
Diferentemente do que sucede em diversos recursos administrativos especiais, sejam
eles interpostos de atos de membros, comissões ou secções para o respetivo órgão colegial
ou de órgãos tutelados para órgãos tutelares – cfr., v.g., (i) o artigo 46.º do Regime Jurídico
das Federações Desportivas (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro,
alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23 de junho), através do qual se
determina que dos atos administrativos praticados por membros dos órgãos colegiais das
federações desportivas “há sempre recurso” para o respetivo órgão colegial; ou (ii) o n.º 9
do artigo 7.º do Estatuto do Bolseiro de Investigação (aprovado em anexo pela Lei n.º
40/2004, de 27 de agosto, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 202/2012), em cujos termos se
estabelece que das decisões da FCT de recusa ou de revogação da aprovação de regulamentos
de bolsas que lhe sejam submetidos por entidades financiadoras “cabe sempre recurso” para
o membro do Governo responsável pela área da ciência. Não obstante a não-equivalência
literal destas formulações («há sempre»; «cabe sempre») com a recortada na alínea b) do n.º
1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, não há contudo dúvidas de que, por equivalência
semântica com a expressão «existe sempre», esses recursos (administrativos especiais) devem
ser (agora) entendidos como necessários – já assim, J. SILVA SAMPAIO/J. D. COIMBRA, ‘Os
procedimentos’, p. 556-557, nota 30 e A. SOUSA PINHEIRO/T. SERRãO/M. CALDEIRA/J. D.
COIMBRA, Questões Fundamentais, pp. 39-40.
102
É o que ocorre, por exemplo: (i) no artigo 166.º do Regime Jurídico de Entrada,
Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional (aprovado pela
Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, por último alterada pela Lei n.º 102/20017, de 28 de agosto),
que prevê que das decisões do Diretor do SEF que determinem o reenvio de cidadãos
estrangeiros para o Estado requerido “cabe recurso” para o membro do Governo responsável
pela área da administração interna; (ii) nos n.os 2 e 3 do artigo 5.º do Estatuto do Pessoal da
Polícia Marítima (aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 248/95, de 21 de setembro, por
último alterado pelo Decreto-Lei n.º 235/2012, de 31 de outubro), em cujos termos se
estabelece que de certos atos do comandante-geral “cabe recurso hierárquico” para a
Autoridade Marítima Nacional ou para o Ministro da Defesa; (iii) no n.º 1 do artigo 13.º do
Decreto-Lei n.º 82/2009, de 2 de abril, que determina que dos atos praticados pelos delegados
de saúde regionais e seus adjuntos, ou pelos delegados de saúde e seus adjuntos no exercício
de poderes de autoridade “cabe recurso hierárquico” para a autoridade de saúde nacional;
ou, ainda, (iv) no n.º 8 do artigo 46.º do Estatuto do Serviço Regional de Saúde dos Açores 743
JOSÉ DUARTE COIMBRA

sobretudo para demonstrar o relativo «falhanço» do legislador na redação


desta disposição interpretativa, a terceira e última pode gerar, efetivamente,
algumas dúvidas; em qualquer caso, a resposta não pode ser senão negativa,
embora a questão seja aqui, mais uma vez, de palavras: a expressão «existe/cabe
sempre recurso», que no contexto específico das impugnações administrativas
significa que, para efeitos de reação contenciosa, o ato (ou omissão) em causa
tem de ser – sempre – submetido a recurso administrativo prévio, não pode
ser semanticamente reconduzida à fórmula simples «existe/cabe recurso»,
que apenas sinaliza que, em relação a certo ato ou omissão, pode haver lugar
à interposição de recurso103.

Mas as dúvidas podem adensar-se, ainda mais, em relação à alínea c), com
base na qual devem agora ser tidas como necessárias as impugnações
administrativas cujo regime preveja a atribuição de efeito suspensivo sobre
os atos recorridos (ou reclamados). A atribuição de efeito suspensivo à
interposição de recursos administrativos (hierárquicos ou de outro tipo)
constitui, como é sabido, um elemento tradicionalmente caracterizador do
regime dos recursos necessários no ordenamento jurídico português, podendo
aliás ser lido como uma espécie de contra-garantia da «imposição» da sua

(aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 28/99/A, de 31 de julho, por último alterado
pelo Decreto Legislativo Regional n.º 1/2010/A, de 4 de janeiro), nos termos do qual se
prevê que das decisões das autoridades (regionais ou concelhias) de saúde “cabe recurso
hierárquico” para o membro do Governo Regional com competência em matéria de saúde.
103
Recorde-se no entanto que, fora de contextos hierárquicos, a expressão «cabe
reclamação», prevista no n.º 5 do artigo 29.º do Estatuto do Ministério Público (aprovado
em anexo à Lei n.º 60/98, de 27 de agosto) a respeito da reação contra decisões das secções
do Conselho Superior do MP para o respetivo plenário, já foi entendida como suficiente
para caucionar a tese de aí residir uma impugnação administrativa necessária: cfr., neste
sentido, o paradigmático – mas polémico – Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso
Administrativo do STA de 4.06.2009, Proc. n.º 0377/08 e, para uma anotação discordante,
aliás na linha dos três votos de vencido com que contou o aresto, C. CADILHA, ‘Excepções
ao princípio da facultatividade das impugnações administrativas’, CJA 85 (2011), pp. 24
e ss. Em face do que dispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015 e
da forma como essa disposição deve ser interpretada, a conclusão firmada pelo STA, já
bastante discutível à época, não pode hoje, seguramente, manter-se: a «reclamação»
prevista no n.º 5 do artigo 29.º do EMP (que é, em rigor, um recurso administrativo
especial para o órgão colegial: cfr. a alínea a) do n.º 1 do artigo 199.º do CPA) é
744 facultativa.
ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA: NOVOS ACTORES, NOVOS MODELOS

utilização prévia como forma de acesso à justiça administrativa104; não se


trata, porém, de um aspeto exclusivo do regime dos recursos necessários105,
sendo frequentes as previsões sectoriais de recursos hierárquicos, alguns dos
quais até agora indiscutivelmente tidos por facultativos, em relação aos quais, por
razões atinentes à matéria em causa (v.g., aplicação de sanções disciplinares),
a lei também associa, mais ou menos absolutamente, esse efeito suspensivo106.

104
Para o reconhecimento desta relação de «contrapeso» entre a atribuição de efeito
suspensivo à interposição do recurso hierárquico e a sua instituição como meio necessário
de reação, cfr. I. C. FONSECA, ‘Repensar as impugnações administrativas entre a efectividade
do processo a unidade da acção administrativa’, CJA 82 (2010), pp. 79-80 e nota 15; na
jurisprudência, v.g., os Acórdãos do STA de 1.01.1996, Proc. n.º 38909 e de 18.03.1997, Proc.
n.º 34327. O CPA/2015 só veio, aliás, reforçar esta associação, e por duas vias: (i) por um
lado, em sede de regime geral, por ter eliminado a possibilidade de o autor do ato recorrido
invocar que a não execução imediata do ato provocaria grave prejuízo para o interesse público
(cfr. o n.º 1 do artigo 189.º do CPA/2015, que assim se afasta do que a esse respeito dispunha
a parte final do n.º 1 do artigo 170.º do CPA/1991); (ii) por outro lado, em relação a recursos
(ou reclamações) necessários previstos em legislação especial anterior, por ter determinado
a revogação de quaisquer previsões que habilitassem o afastamento casuístico desse efeito
suspensivo (cfr. o n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015; sobre o alcance desta
disposição, cfr. J. SILVA SAMPAIO/J. D. COIMBRA, ‘Os procedimentos’, pp. 555-556, nota 28
e, na mesma linha, M. AROSO DE ALMEIDA, Teoria, p. 389, nota 572).
105
A ideia de que “da previsão em lei especial de que a impugnação administrativa de
determinado tipo de ato «suspende» ou «tem efeito suspensivo» dos efeitos do ato impugnados
[se pode extrair] a intenção, ainda que implícita, de instituir essa impugnação como necessária”
(M. AROSO DE ALMEIDA, Teoria, pp. 388-389), que aliás parece ter sido a justificação para a
redação da alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, não pode, assim, aceitar-
-se a título geral: a previsão de efeito suspensivo associado à interposição de certo tipo de
impugnações administrativas pode dever-se – apenas – à especial «sensibilidade» da matéria
em causa e, por isso, ser entendida simplesmente como um elemento de garantia para os
particulares que a elas pretendam recorrer, sem que daí se possam retirar quaisquer conclusões
definitivas em torno da sua natureza facultativa ou necessária, sendo precisamente isso o que
parece suceder – ou que, pelo menos, parecia suceder – em relação aos casos (i) e (iv) referidos
nas duas notas seguintes. Invertendo um pouco a ordem dos fatores, porém, o que a disposição
interpretativa contida naquela alínea c) vem agora protagonizar é justamente que desse aspeto
de regime (atribuição de efeito suspensivo) se retire a natureza (necessária) das impugnações
em causa, dando por isso origem a um curioso – e discutível – caso de consunção da
classificação através do efeito. Assinalando já o ponto, cfr. J. SILVA SAMPAIO/J. D. COIMBRA,
‘Os procedimentos’, p. 554, nota 27; também criticamente sobre esta opção, cfr. J. PACHECO
DE AMORIM, ‘Sobre os conceitos’, p. 105.
106
É o que ocorre, por exemplo: (i) no n.º 4 do artigo 225.º da Lei Geral do Trabalho em
Funções Públicas (aprovada em anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, por último alterada
pela Lei n.º 73/2017, de 16 de agosto), em cujos termos se estabelece que a interposição de
recurso hierárquico (ou tutelar) de atos proferidos em processo disciplinar que não sejam de 745
JOSÉ DUARTE COIMBRA

Pois bem: em face desta alínea c), qualquer uma dessas previsões sectoriais
vale agora como requisito suficiente para a qualificação do recurso hierárquico
em causa como necessário, independentemente do modo como essas
impugnações fossem entendidas até ao momento e também independentemente
da concorrência de elementos interpretativos que, eventualmente, até
pareçam apontar em sentido inverso107. Não é por isso difícil de compreender

mero expediente “suspende a eficácia do despacho ou da decisão recorridos”; (ii) no n.º 2


do artigo 95.º do Regulamento Disciplinar da PSP (aprovado pela Lei n.º 7/90, de 20 de
fevereiro), em cujos termos se estabelece que a interposição de recurso hierárquico de decisões
aplicativas de sanções “tem efeito suspensivo” (assinale-se no entanto que, de acordo com o
projeto do novo Estatuto Disciplinar da PSP [constante da Proposta de Lei n.º 47/XIII, já
aprovada em votação na generalidade pela AR], este efeito suspensivo apenas se manterá em
relação aos recursos dirigidos ao diretor nacional, passando os recursos [de atos do próprio
diretor nacional] dirigidos ao Ministro da tutela a não dispor de efeito suspensivo: cfr. os n.os
7 e 8 do artigo 104.º do referido projeto); (iii) no artigo 124.º do Regulamento de Disciplina
da GNR (aprovado em anexo à Lei n.º 145/99, de 1 de setembro, alterado e republicado pela
Lei n.º 66/2014, de 28 de agosto), em cujos termos se estabelece que a interposição de recurso
hierárquico “suspende a decisão recorrida” em matéria disciplinar; ou, ainda, (iv) no n.º 8 do
artigo 33.º do regime jurídico-laboral dos trabalhadores recrutados para exercer funções nos
serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros (Decreto-Lei n.º
47/2013, de 5 de abril), em cujos termos se estabelece que da decisão final do secretário-geral
do MNE em matéria disciplinar “cabe recurso hierárquico (...), com efeito suspensivo”, o
mesmo podendo ser dito, aliás, em relação ao disposto no n.º 5 do artigo 10.º do mesmo
diploma, em cujos termos se estabelece que a interposição de recurso hierárquico de atos de
exclusão em procedimentos concursais para o recrutamento de trabalhadores dos serviços
administrativos e consulares “suspende, relativamente ao recorrente, os efeitos do ato”.
107
Retomando os exemplos referidos na nota anterior, veja-se que: (i) no caso do recurso
hierárquico de decisões proferidas em matéria disciplinar no âmbito da LGTFP, apontam no
sentido da sua facultatividade os enunciados do artigo 224.º (“os atos proferidos em processo
disciplinar podem ser impugnados hierárquica ou tutelarmente, nos termos do Código do
Procedimento Administrativo, ou jurisdicionalmente”) e do n.º 1 do artigo 225.º (“o trabalhador
e o participante podem interpor recurso hierárquico ou tutelar (...)”), não sendo por isso de
estranhar que se encontre relativamente estabilizada a conclusão em torno da sua natureza
facultativa (assim, antes do CPA/2015, cfr. P. VEIGA E MOURA/C. ARMAR, Comentários à Lei
Geral do Trabalho em Funções Públicas, 1.º vol., 2014, p. 628 e R. CARVALHO, Comentário ao
Regime Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas, 2014, pp. 257-258, nota 117; já
depois, e considerando em particular o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015,
cfr. V. CAVALEIRO, O Poder Disciplinar e as Garantias de Defesa do Trabalhador em Funções
Públicas, 2018, pp. 49 e 93-94), de resto na linha do que já se entendia em face dos equivalentes
artigos 59.º e 60.º do anterior Estatuto Disciplinar da Função Pública, aprovado pela Lei n.º
58/2008, de 9 de setembro (cfr., nesse sentido, R. CARVALHO, Comentário ao Estatuto Disciplinar
dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, 2012, p. 163 e, na jurisprudência, v.g., o
Acórdão do TCA Norte de 19.04.2013, Proc. n.º 00716/11.6BEBRG); (ii) no caso do recurso
746 hierárquico previsto nos artigos 90.º e ss. do Regulamento Disciplinar da PSP, para a sua natureza
ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA: NOVOS ACTORES, NOVOS MODELOS

que, de entre as disposições interpretativas contidas no n.º 1 do artigo 3.º do


diploma preambular do CPA/2015, é a contida na alínea c) a mais «perigosa»,

facultativa parece apontar o enunciado do n.º 1 do artigo 90.º, ao dispor que “o funcionário ou
agente que considere ilegal ou injusta a decisão que lhe tiver imposto qualquer sanção pode
interpor recurso da mesma”, isto sem prejuízo dos subsequentes artigos 93.º e 94.º, que
determinam que das decisões do comandante-geral “cabe recurso hierárquico” para o Ministro
da Administração e que das decisões deste último (é que) cabe “recurso contencioso”, indiciarem
estar aí em causa um recurso necessário, tendo sido aliás neste último sentido que se encaminhou
a prática jurisprudencial portuguesa, antes ou depois da aprovação do CPTA (cfr., v.g., o Acórdão
do STA de 17.01.1995, Proc. n.º 034713, o Acórdão do TCA Norte de 6.11.2015, Proc. n.º
0059/12.4BECBR ou o Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 37/2014, de 15.01.2015) e
já mesmo perante o CPA/2015 (expressamente no sentido da natureza necessária do recurso
hierárquico ali previsto, tendo em vista a alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015,
cfr. o Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 5/2017, de 23.03.2017); (iii) quanto ao recurso
hierárquico previsto no Estatuto Disciplinar da GNR, recorde-se ter sido o mesmo objeto de
qualificações jurisprudenciais frontalmente contraditórias quanto à sua natureza necessária ou
facultativa, à luz da versão originária desse diploma (cfr., no primeiro sentido, o Acórdão do TCA
Norte de 28.10.2010, Proc. n.º 00064/09.1BECBR; no segundo, o Acórdão do TCA Sul de
18.11.2010, Proc. n.º 06326/10; sobre estas duas decisões, e a favor da facultatividade, muito por
via da previsão, à época constante do respetivo artigo 124.º, de que a sua interposição não
suspenderia os efeitos do ato recorrido, cfr. A. SALGADO DE MATOS, ‘Recursos hierárquicos
necessários previstos em leis especiais: o recurso em matéria disciplinar no âmbito da GNR’, CJA
87 (2011), pp. 54-58); as modificações entretanto introduzidas neste diploma pela Lei n.º 66/2014
e a superveniente entrada em vigor do novo Estatuto dos Militares da Guarda Nacional
Republicana (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 30/2017, de 22 de março), vieram alterar os dados
da questão: (i) por um lado porque, em relação ao recurso das decisões do Comandante-Geral
para o Ministro da Administração Interna, é agora inequívoca a indicação de se tratar de um
“recurso hierárquico facultativo” (cfr. a redação atual do artigo 120.º do Regulamento e, no
mesmo sentido, o n.º 2 do artigo 193.º do Estatuto, em cujos termos se estabelece que, “em
alternativa à impugnação contenciosa de um ato administrativo, o militar da Guarda pode
apresentar recurso hierárquico facultativo de ato praticado pelo comandante-geral, para o
membro do Governo responsável pela área da administração interna”); (ii) por outro lado porque,
em relação aos recursos de atos praticados por outros órgãos da cadeia hierárquica da GNR para
o comandante-geral, não obstante se manter a previsão geral de que o arguido ou outros
interessados “podem recorrer da decisão” (n.º 1 do artigo 118.º do Regulamento), a atribuição
de efeito suspensivo ex vi n.º 1 do artigo 124.º, interpretada à luz da alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º
do Decreto-Lei n.º 4/2015, basta para a sua qualificação como necessário, num aspeto que o n.º 1
do artigo 193.º do Estatuto veio, aliás, confirmar inequivocamente, ao estabelecer que “sempre
que o ato administrativo não tenha sido praticado pelo comandante-geral, o recurso hierárquico
é necessário” – dedicadamente sobre estes casos, distinguindo a natureza facultativa do primeiro
e a necessária do segundo, cfr. L. ALVES, ‘As impugnações administrativas no Estatuto da GNR:
o outro lado do espelho do CPA (breves notas)’, Julgar Online (2017), esp.te pp. 12 e ss.; (iv)
quanto, finalmente, aos recursos previstos no Decreto-Lei n.º 47/2013, parece apontar à sua
natureza tão-só facultativa, em ambos os casos, a circunstância de a lei referir apenas que “cabe
recurso hierárquico” (cfr. o n.º 4 do artigo 10.º e o n.º 8 do artigo 33.º). 747
JOSÉ DUARTE COIMBRA

por ser a que possui maior potencial para «converter» em necessários recursos
hierárquicos de cuja facultatividade, até então, não se duvidaria e, desse modo,
voltar a despertar a discussão em torno da (in)constitucionalidade da necessidade
de alguns desses recursos previstos em legislação especial108. Seja como for, a

108
O caso é particularmente sensível em relação ao recurso hierárquico em matéria disciplinar
previsto nos artigos 224.º e 225.º da LGTFP, não sendo por isso de espantar o tratamento dedicado
que já mereceu na literatura portuguesa (cfr. J. PACHECO DE AMORIM, ‘Sobre os conceitos’, pp.
105-111), embora em termos que não se podem acompanhar integralmente, tanto mais que,
segundo se julga, não é nem na maior ou menor inovatoriedade da alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º
do Decreto-Lei n.º 4/2015, nem sequer no facto de os recursos ali em causa terem de ser
interpostos, em regra, num prazo de 15 dias, que se deve centrar a discussão. Sendo inafastável
a conclusão de que, em face da alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, e em
virtude do efeito suspensivo associado à sua interposição que resulta do disposto no n.º 4 do
artigo 225.º da LGTFP, os recursos (hierárquicos ou tutelares) ali previstos passam agora a ter
de ser lidos como necessários (contra, com o argumento de que a parte final do n.º 4 do artigo
225.º da LGTFP estabelece um efeito suspensivo tão-só «relativo», mas desconsiderando por
completo que a hipótese de afastamento do efeito suspensivo aí prevista se deve considerar
revogada em virtude do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, cfr. V.
CAVALEIRO, O Poder, pp. 93-94), tudo está em saber se há ou não há razões materiais que
permitam justificar essa solução e, portanto, a restrição ao direito fundamental de acesso aos
Tribunais que dela emerge, sendo certo que, à partida, essas razões parecem de facto não existir
– ao contrário do que sucede, por exemplo, em relação à impugnação decisões disciplinares
aplicadas a militares ou polícias, tendo justamente em conta que, nesses contextos, o imperativo
de preservação e respeito pela hierarquia militar ou policial, indiretamente resultante de normas
constitucionais (cfr. o n.º 4 do artigo 272.º e o n.º 2 do artigo 275.º da Constituição, que consagram
os princípios de unidade de organização das forças de segurança e das forças armadas,
respetivamente) pode, de facto, servir de fundamento para a previsão legal de impugnações
administrativas necessárias. Sem grandes preocupações em discutir o problema neste plano,
porém, o Supremo Tribunal Administrativo já caucionou entretanto a tese de que, justamente
em função do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, os recursos
administrativos previstos e regulados naqueles artigos da LGTFP são, agora, e efetivamente, de
entender como necessários: veja-se o Acórdão de 8.06.2017, Proc. n.º 0647/17, através do qual
não se admitiu a revista de um Acórdão do TCA Sul (de 16.12.2016, não publicado) em cujos
termos se havia entendido, na linha aliás da decisão de primeira instância, que, em face daquela
disposição preambular, da decisão de aplicação de uma pena disciplinar de demissão, praticada
por um órgão de um Instituto Público, caberia recurso tutelar necessário. Embora o STA se tenha
limitado a não admitir a revista, não deixou de sublinhar que, “como decorre da simples leitura
do art. 225.º, n.º 4 [da LGTFP], o recurso ali previsto «suspende» os efeitos da decisão
impugnada, o que, portanto, torna a decisão do TCA Sul fundamentada e juridicamente
plausível”, afirmação essa que, não obstante ter tido por referência, in casu, a qualificação de
um recurso tutelar (de um ato praticado por um órgão dirigente de um Instituto para o Ministro
da tutela) também pareceria ter de valer – e, aliás, até a fortiori – se o caso fosse relativo a um
recurso hierárquico dentro do Estado ou de outra entidade pública. E tendo em conta o sentido
748 da consolidadíssima jurisprudência – administrativa e constitucional – nesta matéria, parece
ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA: NOVOS ACTORES, NOVOS MODELOS

ambição «literalista» do legislador enfrenta, também aqui, algumas limitações


endémicas, tendo em conta que a previsão desse efeito suspensivo pode resultar
da utilização de formulações não totalmente coincidentes, sob o ponto de
vista lexical, com as aí identificadas («suspende»/«tem efeito suspensivo»),
mas sim de outras semanticamente equivalentes 109, sem que dessa não

difícil de prognosticar que, num futuro e mais dedicado exame sobre o problema, os Tribunais
portugueses venham a inverter o entendimento já caucionado pelo STA, isto é, o entendimento
de que, agora, os recursos previstos e regulados nos artigos 224.º e 225.º da LGTFP são de
entender como necessários. A solução é, no entanto, e como se disse, bastante discutível, por
não serem descortináveis razões materiais capazes de justificar a «imposição» da utilização do
recurso (hierárquico ou tutelar) no contexto geral dos procedimentos disciplinares da função
pública e, por isso, razões capazes de justificar, neste domínio, a restrição do direito fundamental
de acesso (tendencialmente e à partida imediato e incondicionado) à justiça administrativa; para
além de que a qualificação deste tipo de recursos administrativos como necessários representa,
importa notar, um curioso – mas, volta a sublinhar-se: bastante discutível – regresso ao passado:
com efeito, (i) nos termos do Estatuto Disciplinar/1984 (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84,
de 16 de janeiro), as decisões de aplicação de penas disciplinares que não fossem da exclusiva
competência de um membro do Governo eram efetivamente de “recurso hierárquico
necessário” (n.º 8 do artigo 76.º); só que, como já se viu, (ii) já desde o Estatuto Disciplinar/2008
que a natureza do recurso hierárquico neste domínio se havia indiscutivelmente modificado de
necessária para facultativa. Apesar de tudo, o caso só não é mais grave porque, precisamente por
força do que se dispõe no n.º 4 do artigo 225.º da LGTFP, a interposição de recurso hierárquico
(ou tutelar) tem efeito suspensivo sobre o ato recorrido, sendo também certo que, em face do n.º
3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, se deve ter por revogada a possibilidade de afastar esse
efeito suspensivo “quando o seu autor considere que a sua não execução imediata causa grave
prejuízo ao interesse público”, o que faz com que a sua utilização seja particularmente favorável
para os particulares, sobretudo se se tiver em conta que, em termos processuais, a suspensão
imediata dos efeitos do ato, para além de não se encontrar diretamente associada à propositura
de uma ação principal de impugnação (cfr. o n.º 2 do artigo 50.º do CPTA), mas apenas ao
requerimento de uma providência cautelar (cfr. a parte inicial do n.º 1 do artigo 128.º do CPTA),
pode ser, neste último contexto, unilateralmente afastada pela própria entidade requerida, através
do conhecido mecanismo da resolução fundamentada (cfr. a parte final do n.º 1 do artigo 128.º
do CPTA). Este último dado não é no entanto suficiente para afastar a conclusão da
inconstitucionalidade material, pelos motivos já assinalados: segundo se entende, não há razões
materiais constitucionalmente fundadas que permitam condicionar de forma generalizada o
acesso aos meios de impugnação contenciosa de decisões emitidas no âmbito de (todos os)
procedimentos disciplinares da função pública; lidos agora em conjugação com o disposto na
alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, os artigos 224.º e 225.º da LGTFP, na
parte em que tornam necessários os recursos hierárquicos e tutelares aí previstos são, por isso,
materialmente inconstitucionais.
109
É o que ocorre, por exemplo, e para referir novamente o caso da LGTFP, no n.º 4
do respetivo artigo 225.º, que estabelece que o recurso hierárquico (ou tutelar) “suspende
a eficácia” do despacho ou da decisão, não que «suspende os efeitos» ou que «tem efeito
suspensivo», embora não haja naturalmente dúvidas quanto à equivalência semântica da 749
JOSÉ DUARTE COIMBRA

coincidência lexical se possa extrair, naturalmente, qualquer consequência:


desde que acompanhados da previsão legal de que a sua interposição tem
efeito suspensivo, os recursos hierárquicos em causa são – agora, mas sempre
sem prejuízo de se poder discutir a sua (in)constitucionalidade material – de
entender como necessários. Por fim, importa ainda ter em conta que a
qualificação decorrente da aplicação desta alínea c) enfrenta duas outras
limitações: (i) por um lado, incide apenas sobre recursos em relação aos quais
o efeito suspensivo associado à respetiva interposição resulte diretamente da
lei, mas já não sobre aqueles em relação aos quais o efeito suspensivo possa
ser atribuído pelo órgão ad quem, oficiosamente ou a requerimento do
recorrente; (ii) por outro lado, incide apenas sobre recursos em relação aos
quais a suspensão se repercuta efetivamente sobre o ato recorrido, ao ponto
de bloquear a produção dos respetivos efeitos, mas já não sobre aqueles aos
quais se encontre associado um efeito de «suspensão» do procedimento em
que o ato recorrido se insira, isto é, um efeito de «inibição» da prática de atos
ou da realização de formalidades procedimentalmente subsequentes110.

formulação da LGTFP com qualquer uma das enunciadas na alínea c) do n.º 1 do artigo
3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015 e, por isso, quanto à recondução do recursos ali previstos à
categoria dos recursos necessários – já assim, J. SILVA SAMPAIO/J. D. COIMBRA, ‘Os
procedimentos’, p. 556, nota 30 e A. SOUSA PINHEIRO/T. SERRãO/M. CALDEIRA/J. D.
COIMBRA, Questões Fundamentais, p. 39; e para o acolhimento da ideia geral de que esta
alínea c) não pode ser lida num sentido puramente literal, de modo a dar cobertura a
formulações semanticamente equivalentes entre si, cfr. M. AROSO DE ALMEIDA, Teoria, p.
388, nota 571, e J. PACHECO DE AMORIM, ‘Sobre os conceitos’, p. 106, nota 18.
110
É o que ocorre, paradigmaticamente, nas impugnações administrativas em matéria
de formação de contratos públicos previstas no CCP: é certo que, nos termos do disposto
no n.º 2 do artigo 272.º, a pendência da impugnação preclude a possibilidade de serem
praticados atos de relevo como sejam a decisão de qualificação ou, sobretudo, a decisão
de adjudicação, e ainda de dar início à fase de negociação, para os procedimentos que a
contenham; mas basta ter em conta o disposto no n.º 1 dessa mesma disposição, em cujos
termos se estabelece que a interposição de quaisquer impugnações administrativas “não
suspende a realização das operações subsequentes do procedimento em causa” para
compreender que, em rigor, elas não são acompanhadas de nenhum efeito suspensivo.
Ainda quanto este regime especial de impugnações administrativas – nas quais se podem
inserir, naturalmente, recursos hierárquicos –, importa ter em conta que, ao contrário do
que foi entretanto sugerido (cfr. J. PACHECO DE AMORIM, ‘Sobre os conceitos’, p. 110), o
prazo de cinco dias previsto no artigo 270.º do CCP não sofreu qualquer alteração em
virtude do disposto no n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, muito simplesmente
porque a imposição aí contida – de o prazo de apresentação ou interposição ter de ser, no
mínimo, de dez dias – apenas se repercute sobre impugnações necessários, não sendo
750 esse o caso, como se acabou de ver, das previstas no CCP.
ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA: NOVOS ACTORES, NOVOS MODELOS

Tudo isto ainda apenas a propósito da identificação de recursos hierárquicos


necessários sectoriais anteriores ao CPA/2015. Mas o certo é que dúvidas
semelhantes podem também surgir em relação a recursos hierárquicos previstos
em legislação especial posterior à entrada em vigor do CPA/2015.

É verdade que, nos termos do n.º 2 do artigo 185.º, as exceções ao princípio da


facultatividade das reclamações ou recursos parecem depender da circunstância
de “a lei os denominar como necessários”, referência que vem sendo entendida
com o significado de estabelecer – para o futuro – a necessidade de, em querendo
qualificá-las desse modo, o legislador que preveja impugnações administrativas
as denominar, expressa e formalmente, como «necessárias»111. Não é, no entanto,
assim: para além de as normas do CPA não possuírem evidentemente qualquer
valor reforçado capaz de condicionar o conteúdo de normas legislativas
posteriores em que se instituam e regulem recursos hierárquicos, é também
meridianamente claro que uma referência como a contida na parte final daquele
n.º 2 do artigo 185.º não pode logicamente valer como disposição interpretativa
de... leis futuras. E se já é possível identificar exemplos de normas especiais
posteriores ao CPA/2015 nos termos das quais se qualificam expressamente
certos recursos hierárquicos como sendo «necessários»112, a verdade é que
também já há igualmente exemplos de enunciados legais através dos quais,
não obstante faltar essa qualificação expressa, não pode duvidar-se terem sido
previstos recursos que, por condicionarem o acesso direto aos meios contenciosos
de reação, devem ser entendidos como necessários113. Ou seja: por muito

111
Cfr., claramente nesse sentido, J. C. VIEIRA DE ANDRADE, sub Artigo 185.º, in
Comentários, p. 399; IDEM, A Justiça, 16.ª ed., p. 298; M. AROSO DE ALMEIDA, Teoria, p.
288; IDEM, Manual, 3.ª ed., p. 398; M. AROSO DE ALMEIDA/C. A. FERNANDES CADILHA,
Comentário, 4.ª ed., p. 412; e J. PACHECO DE AMORIM, ‘Sobre os conceitos’, pp. 98 e 100;
só implicitamente, D. FREITAS DO AMARAL, Curso, II, p. 624.
112
É o que ocorre, por exemplo, no n.º 1 do artigo 110.º do Estatuto dos Militares das
Forças Armadas (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 90/2015, de 29 de maio), em cujos termos
se estabelece que o recurso hierárquico de quaisquer atos lesivos dos direitos subjetivos
ou interesses legalmente protegidos dos militares “é necessário e deve ser dirigido ao
mais elevado superior hierárquico do autor do ato”.
113
É o que ocorre, por exemplo, nos n.os 3 e 4 do artigo 119.º do Estatuto da Ordem
dos Médicos Dentistas (aprovado pela Lei n.º 110/91, de 29 de agosto, por último alterado
e republicado pela Lei n.º 124/2015, de 2 de setembro, que nele introduziu a referida
disposição), em cujos termos se estabelece que os recursos contenciosos de atos ou
omissões de órgãos da Ordem no exercício de poderes públicos, embora sujeitos à 751
JOSÉ DUARTE COIMBRA

que se aceite a ideia de que, de ora em diante, a previsão sectorial de recursos


hierárquicos necessários deve ser – desde logo por imperativo constitucional
– tendencialmente excecional, o que não pode negar-se é que a tarefa de
identificação da sua natureza «necessária», agora como antes, da mobilização
de critérios interpretativos que podem ser mais ou menos consensuais114.

Em suma: para além das clássicas questões constitucionais que a este


respeito se podem continuar a suscitar, e em alguns casos com renovada
pertinência, o que os elementos anteriores revelam é que a qualificação

jurisdição administrativa, “não podem ser interpostos antes de serem esgotados os


recursos internos previstos no Estatuto, designadamente os recursos para o conselho
deontológico e de disciplina”, com esta previsão a significar, no fundo, que todo e
qualquer recurso (hierárquico ou de outro tipo) previsto naquele diploma reveste natureza
necessária.
114
Volta a sublinhar-se que o n.º 2 do artigo 185.º do CPA não pode valer como
disposição interpretativa de leis futuras; para além disso, as disposições interpretativas
contidas no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015 só se repercutem, como também já se
assinalou, sobre enunciados anteriores à entrada em vigor do CPA/2015. Não obstante,
isso não significa que os critérios a esse propósito recortados pelo legislador do Decreto-
Lei n.º 4/2015 não possam ser, na prática, mobilizados pelo intérprete que se veja
confrontado com a previsão de recursos hierárquicos em legislação sectorial posterior ao
CPA/2015. Desse modo, e por exemplo, a circunstância de a respetiva interposição não
possuir efeito suspensivo será seguramente um forte indício da natureza facultativa do
recurso em questão – é o que ocorre atualmente, v.g., (i) nos n.os 1 e 2 do artigo 11.º e nos
n.os 3 e 4 do artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 148/2015, de 4 de agosto, que estabelece o
regime da classificação e da inventariação dos bens móveis de interesse cultural; ou (ii)
no artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 103/2017, de 24 de agosto, que estabelece o regime de
atribuição de apoios financeiros do Estado às artes visuais e performativas. E o mesmo
se diga, agora já sem apelo aos critérios recortados pelo legislador do Decreto-Lei n.º
4/2015, dos casos em que a possibilidade de interposição de recurso hierárquico seja
referida na lei em relação de expressa alternatividade com os meios de impugnação
contenciosa – é o que ocorre, para dar também apenas um exemplo, no artigo 9.º do
Decreto-Lei n.º 201/2015, de 17 de setembro, que aprovou o modelo de contabilidade
dos erviços de registo do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P., regulando os
respetivos fluxos financeiros. E o mesmo parece poder vir a dizer-se, no futuro, em relação
a aos recursos hierárquicos de decisões disciplinares no âmbito da PSP, se e na medida
em que venha a ser aprovado o projeto de novo Estatuto Disciplinar constante da Proposta
de Lei n.º 47/III: (i) a não atribuição de efeito suspensivo aos que sejam interpostos (de
atos do diretor nacional) para o Ministro da tutela (cfr. a alínea a) do n.º 3 e o n.º 7 do
artigo 104.º) é um forte indício da sua natureza facultativa; ao passo que (ii) a atribuição
de efeito suspensivo aos interpostos para o diretor nacional (cfr. a alínea b) do n.º 3 e o
752 n.º 8 do artigo 104.º) é, inversamente, um forte indício da sua natureza «necessária».
ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA: NOVOS ACTORES, NOVOS MODELOS

de determinado recurso hierárquico como facultativo ou necessário pode


ser, ainda hoje, uma questão relativamente em aberto. E desse facto não
resulta apenas alguma ambiguidade quanto aos meios de reação mobilizáveis
pelos particulares perante atuações ou omissões de órgãos subalternos;
resulta também a conclusão de que os esquemas de relacionamento entre
órgãos superiores e órgãos inferiores e, portanto, os concretos modelos
verticais de organização instituídos pelo legislador podem não ser, em
alguns casos, unívocos. Mais do que simplesmente variável consoante os
contextos e consoante a concreta distribuição de competências entre
superiores e subalternos diretamente resultante da lei, a estrutura das relações
hierárquicas previstas no ordenamento jurídico português pode afinal ser,
por esta via, verdadeiramente «flutuante» em função de puras opções
interpretativas.

753

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