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RESUMO
O sistema processual passa por uma importante mudança pautada pelo repúdio ao formalismo e pela
necessidade de entrega efetiva e adequada da tutela jurisdicional para aquele que confia na atividade
jurisdicional e no Estado de Direito. A simples prolação de uma decisão não atende ao interesse das partes.
Exige-se que esta decisão seja de mérito para que a pacificação e estabilidade das relações sociais possa ser
alcançada. Este estudo examina a primazia do mérito na seara recursal e com foco voltado para os recursos
de estrito direito que também permitem a sanação de vícios processuais para propiciar o exame do mérito.
O enfrentamento do tema encontra relevância em razão da necessidade de efetivo cumprimento do princípio
da primazia do mérito. O constructo argumentativo se perfaz pelo método dedutivo de pesquisa, discorrendo
sobre a legislação em vigor, jurisprudências e doutrinas sobre a temática.
ABSTRACT
The procedural system undergoes an important change based on the repudiation of formalism and the need
for effective and adequate delivery of judicial protection to those who rely on jurisdictional activity and the
rule of law. The mere delivery of a decision does not serve the interests of the parties. It is required that this
decision be of merit so that the pacification and stability of social relations can be achieved. This study
examines the primacy of merit in the appeal area and focuses on the strict right appeals that also allow the
remedy of procedural defects to facilitate the examination of the merits. Tackling the issue is relevant due
to the need to effectively comply with the principle of primacy of merit. The argumentative construct is
made up of the deductive method of research, discussing the legislation in force, jurisprudence and
doctrines on the subject.
INTRODUÇÃO
As alterações mais importantes que foram implantadas pelo CPC/2015 não são de ordem
positivista, ou seja, a modificação das normas de processo e de procedimento. A mudança de
maior impacto foi de ordem sistêmica ao reconhecer-se que o sistema legal deve ser iluminado
pelos princípios constitucionais e infraconstitucionais (arts. 1 a 12 CPC).
Constitucional com a resposta para toda e qualquer pedido de tutela jurisdicional sendo vedado
em nosso sistema, a solução non liquet (art. 5º XXXV, CF/88 e art. 140 CPC).2
O CPC/2015 reflete o princípio da primazia do mérito sob diversas óticas que são derivadas
do art. 4º do CPC. É importante lembrar que a legislação processual possui um sistema próprio e
peculiar para o reconhecimento das invalidades processuais (nulidades e anulabilidades).
A invalidação da relação processual não segue as regras do direito material porque a função
do processo civil é garantir que a aplicação das normas materiais seja eficaz, a despeito de
eventuais vícios que possam ocorrer durante o trâmite da relação processual. Privilegiar a matéria
de fundo (direito material) sobre a matéria de forma (direito processual) é um meio de projeção
da finalidade, conforme estatuído pelo art. 277 do CPC.A leitura dos artigos 276 a 283 do CPC
merece leitura atenta e com os olhos voltados para a Constituição Federal (art. 5o, XXXV).4
O CPC procura aplicar o comando constitucional pela previsão do art. 282, § 2o, quando
impõe comando negativo de invalidação do ato processual: “Quando puder decidir o mérito a
favor da parte a quem aproveite a decretação da nulidade, o juiz não a pronunciará nem mandará
repetir o ato ou suprir-lhe a falta”. Devemos observar que esta previsão está em absoluta sintonia
com a previsão do art. 1029, §3º do CPC que determina que as Cortes Superiores devem
desconsiderar vícios formais que não impeçam o conhecimento do juízo de mérito recursal.
2 Em alguns sistemas, a decisão non liquet é admitida, como nos julgamentos civis que são submetidos ao
júri no sistema norte-americano. Caso a solução dos jurados termine em um impasse (deadlock), o júri deve
ser dissolvido e não existe a possibilidade de obrigá-lo a um veredicto. Sobre o ponto, Jack H. Fridenthal,
Mary Kane and Arthur Miller, Civil Procedure, pp. 516 e ss.
A dicção do art. 282, §2º do CPC revela o compromisso com a solução efetiva do
processo. A não repetição de atos processuais revela o comprometimento com a duração razoável
do processo (art. 5o, LXXVIII, da CF/1988). A solução de mérito com atraso poderá ser ineficaz.
Especificamente na fase recursal, sabe-se que o esgotamento das vias excepcionais reflete
caminho árduo e que delonga um caminho estreito na acepção literal do termo. Apenas advogados
bem preparados e experientes conseguem interpor recursos para as Cortes Superiores, em virtude
da complexidade da interposição dos recursos especial e extraordinário. Acontece que em
algumas situações, a Corte Federal ou Constitucional devem abrir concessão aos aspectos formais,
em vista da importância da matéria de fundo que possa estar sendo discutida.
A existência e a incidência assumem aspecto peculiar no processo civil, pois, ainda que a
nulidade seja evidenciada, nem sempre ela será decretada. Essa compreensão exige a análise dos
princípios legais que informam seu regime: (a) princípio da utilidade (art. 282, § 2o, do CPC); (b)
princípio do prejuízo (art. 282, § 1o, do CPC); (c) princípio da boa-fé (art. 276, in fine); (d)
princípio da fungibilidade (art. 277, in fine); (e) princípio da instrumentalidade. A mera leitura
destes princípios permite concluir que o sistema processual está comprometido, em grau máximo,
com a solução efetiva do processo por meio do rendimento máximo dos atos processuais. Este
conjunto de princípios condensam meios para que os atos processuais praticados pelas partes
possam ser aproveitados e convalidados na relação processual (Die Heilung fehlerhafter
Parteihandlungen).5
O princípio do prejuízo é conhecido pela máxima pas de nullité sans grief. Por meio deste
princípio não se decreta a nulidade quando não há efetivo prejuízo para as partes. Sua previsão
concomitante com o princípio da utilidade no art. 282 do CPC forma um importante escudo para
que processos não sejam extintos por mero defeito de forma, o que poderia trazer prejuízo para a
própria parte que seriam formalmente beneficiadas com a extinção pelo art. 485 do CPC. Esta
advertência é expressamente mencionada pelo art. 488 do CPC: “Desde que possível, o juiz
resolverá o mérito sempre que a decisão for favorável à parte a quem aproveitaria eventual
pronunciamento nos termos do art. 485”.
Estas considerações permitem concluir que o sistema processual inaugurado pelo CPC/2015
busca a satisfação do mérito como meio de finalizar de modo estável a disputa entre as partes.
Este compromisso deve orientar o próprio CNJ na fixação de suas metas, as quais não devem
priorizar apenas o mero estoque de processos. Isto pode incentivar inadvertidamente a prolação
de decisões terminativas (prozessurteil).
O direito brasileiro possui peculiaridades quando comparado com modelos dos países
europeus ou mesmo em face do sistema norte-americano e anglo-saxão. Não estamos fazendo
referência ao sistema de precedentes (art. 927 CPC), embora também exista uma nota de sensível
diferença quanto a este ponto em relação ao modelo brasileiro. Referimo-nos ao fato de que o
Brasil é um país de dimensões continentais e com grande carência econômica e social, o que acaba
gerando reflexos inevitáveis quanto ao acesso ao poder judiciário para a busca de tutela e
salvaguarda de direitos essenciais.
Outro ponto de notável avanço no direito brasileiro, desde a Constituição Federal de 1988
foi no aperfeiçoamento dos mecanismos de tutela coletiva e na criação dos juizados especiais para
a tutela das small claims.6
6 Como ensinam Mauro Cappelletti e Bryan Garth (Access to Justice – A World Survey, cit., vol. I, pp. 6-
7), em primoroso estudo sobre o acesso à justiça, o sistema deve propiciar o acesso para que todos possam
exercer suas vindicações em juízo, caso necessária a via litigiosa.
7 Sobre esta classificação, Alcides Mendonça Lima, Introdução aos Recursos Cíveis, p. 166.
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de 8560 processos no ano de 2022.8 O STJ julgou impressionantes 577.707 processos no ano de
2022.9 Pela amostragem destes números torna-se compreensível, o motivo de enrijecimento das
Cortes Superiores quanto aos requisitos formais para o acesso pela via recursal.
A questão assume grande complexidade. Há uma tensão natural entre o acesso à justiça e a
necessidade de julgamento adequado dos recursos excepcionais.10 O recurso não consiste em um
direito fundamental, embora o duplo grau esteja na base de nosso sistema constitucional.11
Nada impede que filtros sejam criados como requisitos de acesso para as Cortes Superiores
que devem se ocupar de litígios que assumam importância para a uniformização do Direito
Federal e para a integridade da Constituição Federal.
Na tentativa de resolver esse impasse o CPC/ 2015 estabeleceu uma grande evolução em
relação ao ponto ao prever no art. 1025 do CPC o pré-questionamento implícito. Por meio dele,
ainda que os embargos sejam inadmitidos ou rejeitados, consideram-se incluídas as matérias
suscitadas nos embargos, para fins de prequestionamento.
8Vide:https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=498637&ori=1#:~:text=A%20P
rimeira%20e%20a%20Segunda,em%20pauta%20em%20sess%C3%B5es%20virtuais
(consultado,28/06/2023, às 9h:52m).
9Vide:https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2022/19122022-Tribunal-
encerra-2022-com-recorde-de-julgamentos-e-reduz-estoque-processual-pelo-quinto-ano
seguido.aspx#:~:text=Em%202022%2C%20a%20corte%20recebeude%20triagem%20feito%20pelo%20t
ribunal (consultado em 28/06/2023, às 10h:10m).
O art. 1025 do CPC também representa uma forma de valorizar a matéria de fundo em
detrimento da forma e está absolutamente alinhado ao art. 4º do CPC no que tange à primazia de
mérito.
Deve ser ressaltado que a importância da matéria subjacente ao recurso não pode ser
obstaculizada por defeito formal quando sua solução representar questão de interesse público,
coletivo e social, tanto em relação ao direito federal ou constitucional. Há uma tendência de
aceitação desta modalidade de prequestionamento pelo STJ, que exige apenas a necessidade de
menção expressa da violação do art. 1022 do CPC, referente aos embargos de declaração na
formulação do recurso especial.12 De modo paradoxal, o STF, que anteriormente ao CPC/2015
aceitava o prequestionamento implícito, passou a exigir o prequestionamento explícito.13 Para o
STF a mera oposição dos embargos sem a efetiva omissão, erro, obscuridade ou contradição é
inoperante, pois a matéria deve ser ventilada antes e não depois por meio dos embargos. Trata-se
de posicionamento rígido e que dificulta o acesso pela via do recurso extraordinário.
Outros dois importantes filtros dizem respeito à repercussão geral para o recurso
extraordinário e a relevância da questão federal para o recurso especial.
Isto não significa que os processos a serem admitidos pela repercussão sejam processos
marcados pela multiplicidade. De modo algum. Um recurso extraordinário relacionada a uma
questão particular sobre a identidade de gênero, por exemplo, ainda que assuma caráter subjetivo
em um primeiro momento, poderá ser conhecido pela sua importância social e jurídica. O STF
poderá modelar o tratamento de temas sensíveis e formar o entendimento constitucional para o
regramento da questão.
Este é um dos motivos de suam importância do art. 1029, §3º do CPC porque a existência
de um vício de forma em recurso tempestivo deve permitir a correção para que o exame de
12 STJ, AgInt no AREsp n. 1.888.593/RN, relatora Ministra Assusete Magalhães, 2ª T., julgado em
21/2/2022, DJe de 2/3/2022.
13 STF, RE 1118678 AgR, Rel. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em 08/06/2018, processo
eletrônico, DJe-123, divulg 20-06-2018, Public 21-06-2018.
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matérias importantes possa ser realizado pelo STF. Há uma natural aplicação do art. 4º do CPC
por meio do art. 1029, §3º, o que se revela excepcional, em vista do princípio do formalismo na
interposição dos recursos de estrito direito.
O STJ por meio da emenda constitucional 125/2022 obteve a criação de mecanismo de filtro
representado pela relevância da questão federal que foi incorporado ao art. 105 da CF/88, mas
que ainda não se aplicará aos recursos especiais, enquanto não promulgada a lei federal que
discipline seus requisitos objetivos de aplicação, conforme decisão plenária do STJ
consubstanciada pelo Enunciado Administrativo nº 08: “A indicação no recurso especial dos
fundamentos de relevância da questão de direito federal infraconstitucional somente será exigida
em recursos interpostos contra acórdãos publicados após a data de entrada em vigor da lei
regulamentadora prevista no art. 105, § 2º, da Constituição Federal”.
Como já apontado anteriormente, o art. 1029, §3º do CPC representa uma mudança radical
quanto ao processamento dos recursos de estrito direito. Preliminarmente deve ser observada
que sua inserção está nas disposições gerais do recurso extraordinário e especial. Logo, sua
aplicação refere-se a ambas as formas de interposição, como princípio de observância
obrigatória e que privilegia a matéria de fundo sobre os erros formais de interposição.
Por outro lado, isto não impede que o STF e o STJ devam enfrentar matérias importantes
que já possam, inclusive, prevenir futuros recursos sobre questão similar ou idêntica. Neste
ponto revela-se importante a aplicação do art. 1029, §3º do CPC que já encontra eco na
jurisprudência das Cortes Superiores quando a matéria transcender o interesse subjetivo e
privilegiar a decisão de mérito que assuma interesse coletivo e social.14 Por meio do art. 1029
14 RE 710293, Relator(a): Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 16/09/2020, processo eletrônico com
repercussão geral -mérito DJe-263, divulg 03-11-2020 public 04-11-2020.
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§3º, permite-se função similar àquela prevista pelo art. 932, parágrafo único do CPC. A bem da
verdade nem seria necessária a previsão do art. 1029, §3º, pois o art. 932, parágrafo único está
inserido na parte geral de tratamento dos recursos. Acontece que, historicamente, os Tribunais
Superiores sempre foram resistentes em reconhecer seque matérias de ordem pública, quanto
inexistente o prequestionamento. Logo, a previsão do art. 1029, §3º é importante para realçar
que mesmo perante as Cortes Superiores, a primazia do mérito representa um compromisso
sistêmico e permite a convalidação de vícios processuais, com exceção da tempestividade.
CONCLUSÃO
O processo civil do século XXI está comprometido com a solução efetiva dos conflitos, o
que resulta até na possibilidade de utilização meios alternativos para a solução das disputas. A
fase atual é marcada por um autêntico sistema multiportas (Multi-door Corthouse). Entretanto,
em quaisquer um dos meios a serem utilizados pelo jurisdicionado, há de ser obtida a solução
adequada para que o conflito de interesses possa ser pacificado. Isto exige uma nova postura dos
atores processuais e de suas posturas evitando-se a prolação de decisões terminativas (art. 485
CPC) que não estão comprometidas com a solução do mérito.
No que toca à fase recursal houve marcante alteração quanto ao processamento dos recursos
de estrito direito que sempre foram marcados pelo princípio do formalismo e pela rigidez de
filtros para a sua admissibilidade. A previsão do art. 1029, §3º revela o comprometimento
sistêmico com a primazia do mérito, na medida em que defeitos formais de recursos especiais e
extraordinários tempestivos podem e devem ser sanados para fins de análise do juízo de mérito.
Em vista da importância quanto ao resultado do julgamento e pela função nomofilática dos
Tribunais Superiores, o art. 1029, §3º merece especial atenção como meio de permitir o
enfrentamento de temas cruciais, sem o que o formalismo consista em obstáculo intransponível.
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REFERÊNCIAS
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ROSENBERG, Leo, GOTTWALD, Peter, e SCHWAB, Karl H. Zivilprozessrecht. 16a
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