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Análise do Acórdão 059/20 de 24/06/2021

O Acórdão em análise diz respeito a um recurso de revista para o Supremo Tribunal


Administrativo.
A intentou uma ação administrativa de contencioso pré-contratual contra MUSAMI, e
tendo como contrainteressada AMISH, tendo como pedido a anulação de um ato
(pretensão impugnatória) consubstanciado na deliberação do conselho de
administração da entidade demandada mediante a qual foi aberto um concurso
público para a construção /fornecimento de uma central de Valorização energética de
resíduos, deliberação a qual a autora afirma assentar numa declaração de impacte
ambiental de 2011, e por isso desatualizada, fundamentando-se em pressupostos de
facto e de direito desatualizados, originando potenciais prejuízos para o ambiente. O
autor apresenta a ação como uma ação popular para a defesa do ambiente, tomando-
se como sujeito legitimado para tal.

Tendo em primeira instância, por despacho saneador, o TAF da Ponta Delgada julgado
procedentes as exceções de falta de legitimidade ativa e interesse processual do autor,
absolveu os demandados da instância.

Não satisfeito, o autor A interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, o
qual decidiu, com um voto vencido, conceder provimento ao recurso e revogar a
decisão recorrida, favorecendo o A.

MUSAMI interpôs então recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo. O


recurso de Revista encontra-se previsto no art.º 150 do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos (CPTA) e concretiza-se excecionalmente (uma vez que se
trata de uma válvula de escape do sistema) em relação a decisões proferidas em
segunda instância por um Tribunal Central Administrativo, sendo operado pelo
Supremo Tribunal Administrativo, desde que se verifique uma de duas situações (Art.º
150 nº1 CPTA): a) Quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua
relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental; ou b) Quando a
admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
A apreciação da verificação destes pressupostos, de modo a apurar se está aqui em
causa um recurso excecional, cabe a um grupo de três juízes da secção de contencioso
administrativo do STA. Este recurso é relevante para processos que tenham como
objeto interesses ou valores de maior relevância e litígios cuja resolução possa de
alguma forma influenciar outros casos para além daquele concretamente em análise.
Conforme o artigo 150 nº2, o recurso de revista apenas pode ter como fundamento a
violação de lei substantiva ou processual, tratando essencialmente questões de direito.

Dito isto, no que toca à admissibilidade deste recurso excecional, a recorrente alega
que a questão a apreciar << é suscetível de se replicar, com frequência, no futuro, em
inúmeros processos de contencioso pré-contratual urgente decorrentes de
procedimentos de contratação pública e no âmbito dos quais venham a ser defendidos
interesses difusos ao abrigo de Acão popular, mostrando-se necessária a garantia de
uniformização do direito.>> e ainda que << a questão a apreciar não foi ainda objeto
de apreciação pelo Supremo Tribunal Administrativo, pelo que a admissão do presente
recurso é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.>>.

Legitimidade Processual

A Legitimidade não diz respeito à pessoa do autor ou do demandado, mas afere-se


antes em função da relação que se estabelece entre as partes e uma concreta ação
com determinado objeto. Esta constitui um pressuposto processual e não uma
<<condição de procedência da ação, cuja titularidade se afere, portanto, por referência
às alegacões produzidas pelo autor>>1 .
Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, o pressuposto da legitimidade <<constitui
o elo de ligação entre a relação jurídica substantiva e a processual, destinando-sé a
trazer a juízo os titulares da relação material controvertida, a fim de dar sentido útil às
decisões dos tribunais.>>2

O art.º 9 do CPTA estabelece um regime geral de legitimidade ativa. O número dois


deste artigo concretiza o fenómeno de extensão da legitimidade para os casos de
quem não alegue ser parte numa relação material, consagrando o direito de exercício
da ação popular destinada à defesa de interesses difusos, conforme o artigo 52 nº3 da
CRP. A expressão “nos termos previstos na lei” remete para os artigos 2º e 3º da Lei n.º
83/95 de 31 de Maio, lei que regula em termos gerais o direito de Ação Popular.

A Ação Popular é configurada como uma forma de legitimidade processual ativa dos
cidadãos, a ser exercida perante qualquer tribunal, e que se configura autónoma em
relação ao interesse pessoal do autor e quanto à existência de uma relação específica
com os bens ou interesses difusos em causa.3 Esta não é um meio processual, mas uma
forma de legitimidade que permite que sejam intentados diversos tipos de ações
(todas as espécies processuais que integrem o contencioso administrativo) que se
afigurem necessárias à defesa de interesses difusos4.
De acordo com os artigos 2º e 3º da Lei 83/95 poderão ser autores populares os
“cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos”, não sendo exigindo qualquer
elemento de conexão ou qualquer apropriação individual do interesse do lesado.

Os Interesses difusos consistem em interesses que dizem respeito à comunidade


globalmente considerada ou a um grupo de cidadãos (grupo indivisível e
indeterminável) que se expressa através da relação com um certo bem jurídico, no
caso em questão o ambiente, e que podem ser representados pelas pessoas/entidades
dispostas no artº9 nº2 mediante a ação popular. Esses bem jurídicos são bens públicos,
pelo que não são suscetíveis de apropriação, a sua satisfação de um dos seus titulares
implica necessariamente a satisfação de todos, assim como a lesão de um só, implica a
lesão da coletividade.
Diferente dos Interesses difusos são os interesses individuais homogéneos, os quais
consistem em <<interesses individuais que respeitem a uma multiplicidade de pessoas
1
ALMEIDA, Mário Aroso – “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, Coimbra, 2010
2
SILVA, Vasco Pereira – “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2ª edição, Almedina
3
Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I
4
Comentário ao código de processo nos tribunais administrativos, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2021
que se deparam com uma mesma situação lesiva, proveniente quer de uma atuação
administrativa, quer de uma prática imputável a uma entidade empresarial.>>5

O artigo 55 nº1 f), o qual diz respeito ao alargamento da legitimidade ativa para a ação
impugnatória vem reforçar o direito de ação popular destinada à defesa de interesses
difusos.

O artigo 55 nº2 diz respeito à ação popular corretiva, a qual pode ser exercida por
qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos para a impugnação de
deliberações dos órgãos autárquicos na circunscrição em que se encontre recenseado.
Trata-se de um meio de fiscalização da gestão das autarquias que diz respeito às
atuações ilegais praticadas sob a forma de ato administrativo com vista à reposição da
legalidade objetiva.6 Neste caso, a legitimidade advém apenas da qualidade de
cidadão, que representa a manifestação de um direito político, e não na invocação de
um interesse individual ou difuso, o que distingue esta legitimidade da disposta no
artigo 9 nº2 e 55 nº1 f).

Legitimidade ativa no contencioso pré-contratual

O Contencioso pré-contratual (artigo 100º a 103º CPTA) constitui um processo urgente


que se funda na ideia de que os atos praticados no âmbito da formação do contrato
sobre os quais é pedido que o tribunal aprecie o mérito da causa deverão ser dirimidos
com especial celeridade.
Um primeiro impulso sobre essa matéria foi a transposição de Diretivas da União
Europeia em matéria de contratação pública (Diretiva nº 89/665/CEE do Conselho, de
21 de dezembro de 1989, e a Diretiva 92/13/CEE, de 25 de fevereiros de 1992, fazendo
surgir o Decreto-Lei nº 134/98, de 15 de Maio).
A doutrina tem defendido que no contencioso pré-contratual a legitimidade pertence
aos participantes no procedimento relativamente a atos lesivos dos seus direitos ou
interesses legalmente protegidos. Segundo o professor Mário Aroso de Almeida “O
regime especial do contencioso pré-contratual urgente é aplicável a todas as ações
relativas aos atos mencionados no artigo 100, n.º 1 e 2, independentemente do
concreto título de legitimidade em que a propositura da ação se baseie, de entre os
vários que constam do artigo 55.°.” 7

Interesse Processual

O Interesse processual (Interesse em Agir) consiste, segundo o Professor Miguel


Teixeira de Sousa, no <<interesse da parte ativa em obter tutela judicial de uma
situação subjetiva através de um determinado meio processual e o correspondente
interesse da parte passiva em impedir a concessão dessa tutela>>.8

Este pressuposto distingue-se da legitimidade na medida em que aqui se trata em que


circunstâncias podem as partes recorrer a tribunal, sendo necessário que haja utilidade
5
Comentário ao código de processo nos tribunais administrativos, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2021
6
Comentário ao código de processo nos tribunais administrativos, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2021
7
ALMEIDA, Mário Aroso – “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, Coimbra, 2010
8
“As partes, o objeto e a prova na ação declarativa” Lisboa Lex, 1995
específica na ação, enquanto que na legitimidade se afere quem poderá ser parte na
ação concreta.

Problema

A questão analisada no acórdão em apreço será a eventual aplicação de uma de duas


vias.
Por um lado, a aplicação do artigo 55 nº1 alínea f) que remete para o art.º 9 nº2,
legitimidade esta que é conferida a “qualquer pessoa” (<<qualquer cidadão no gozo
dos seus direitos civis e políticos>> art.º 2 da Lei nº83/95) sendo necessário que seja
densificado/especificado como é afetado o interesse difuso que se pretende defender,
constituindo uma Ação Popular para a defesa de interesses difusos. Só desta forma,
admitindo que o recorrido/autor A densificou/especificou a ofensa para o interesse
difuso em causa, poderia eventualmente a decisão ser favorável ao mesmo.

Por outro lado, a aplicação do artigo 55 nº2, na qual o elemento constitutivo da


legitimidade é a qualidade de eleitor recenseado na circunscrição, constituindo uma
ação popular corretiva. Uma vez que o autor não é, de facto, recenseado na
circunscrição em questão, a decisão seria favorável ao recorrente, sendo procedente a
exceção de falta de legitimidade processual.

O STA optou pela aplicação do art.º 55 nº2, que diz respeito a uma ação popular
corretiva, tomando-a como uma norma especial de legitimidade (que diz respeito às
ações de impugnação de decisões de órgãos autárquicos) e procedendo à aplicação
desta sobre a norma geral de legitimidade (princípio de que a norma especial
prevalece sobre a norma geral). Aplicando esta norma o autor/recorrido não terá
legitimidade.
O STA admite que mesmo que se optasse pela cumulação das normas, solução que
considero mais acertada, o art.º 55 nº1 f) (que remete para o 9º nº2) exige que seja
identificada/especificada a lesão do concreto interesse fundamental que se pretende
defender, considerando o tribunal que o mesmo não foi concretizado pelo recorrido,
limitando-se este a invocar um vício de natureza procedimental no procedimento pré-
contratual.

Quanto à questão de saber se a legitimidade para a defesa de interesses difusos é


compatível com o regime do contencioso pré-contratual, o qual tem um objeto muito
bem delimitado, aliado com o seu carácter de urgência, o Doutor Paulo Linhares Dias 9
admite como incompatível, posição com a qual concordo, discordando da posição de
Rodrigo Esteves de Oliveira, que exclui a aplicação da regra prevista no art.º 9 nº2 a
certos procedimentos (por serem contrários à sua natureza), e não incluindo em tal
lista o contencioso pré-contratual. Deste modo, a delimitação da legitimidade ativa
passa pela definição do interesse pessoal e direto constante no art.º 55 nº1 alínea a)
(que será o caso dos participantes nos procedimentos de contratação, relativamente a
atos lesivos dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos).

9
Paulo Linhares Dias - O contencioso pré-contratual no Código de Processo nos Tribunais
Administrativos

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