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O estatuto processual dos contra-interessados

nas acções impugnatórias e de condenação


à prática de acto administrativo (*)

I. Introdução: a singularidade da figura do relação material em causa ou dos documentos con-


contra-interessado tidos no processo administrativo (n.º 2 do art. 68.º).
Em aparente sintonia com estas disposições, esta-
O contra-interessado é uma figura típica do belece o n.º 1 do art. 10.º do CPTA, referente à legi-
Contencioso Administrativo, cujos exactos contor- timidade passiva em geral, que cada acção deve ser
nos sempre têm estado envolvidos numa conside- proposta contra a outra parte na relação controver-
rável obscuridade (1). O Código de Processo nos tida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou en-
Tribunais Administrativos (CPTA) prevê expressa- tidades titulares de interesses contrapostos aos do autor.
mente a participação dos contra-interessados nos De facto, consideram consensualmente a doutrina
processos impugnatórios, estatuindo que, para e a jurisprudência que a lei tem neste preceito por
além da entidade autora do acto, são obrigatoria- escopo, embora não exclusivamente, a atribuição
mente demandados os contra-interessados a quem de legitimidade passiva aos contra-interessados, os
o provimento do processo impugnatório possa di- quais, segundo a doutrina maioritária, devem for-
rectamente prejudicar ou que tenham legítimo in- mar um litisconsórcio necessário passivo com a
teresse na manutenção do acto impugnado e que Administração (2).
possam ser identificados em função da relação ma-
terial em causa ou dos documentos contidos no (2) Entre outros, cfr. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Admi-
processo administrativo (art. 57.º). Não deixa tam- nistrativa (Lições), 15.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, p. 265; ELI-
ZABETH FERNANDEZ, “A propósito e a pretexto da reconvenção nas
bém de prever a participação destes sujeitos pro- ações administrativas”, in C. A. Gomes/A. F. Neves/T. Serrão
cessuais nas acções de condenação à prática de acto (coord.), Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, Lisboa,
administrativo devido, preceituando que, para AAFDL, 2016, p. 397; MIGUEL GALVÃO TELLES, “Âmbito subjectivo
atribuído ao objecto do processo, nomeação das partes e legiti-
além da entidade responsável pela situação de midade processual”, in Escritos Jurídicos, vol. I, Coimbra, Alme-
omissão ilegal, são obrigatoriamente demandados dina, 2013, p. 678, fazendo um paralelismo entre a intervenção
os contra-interessados a quem a prática do acto dos contra-interessados e as acções de Estado, embora expres-
sando dúvidas; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Ad-
omitido possa directamente prejudicar ou que te- ministrativo, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 261 e segs.; na 3.ª
nham legítimo interesse em que ele não seja prati- edição desta obra (p. 255) o Autor levanta já dúvidas sobre esta
cado e que possam ser identificados em função da posição, referindo que a aplicação da figura do litisconsórcio ne-
cessário passivo ao contra-interessado neste tipo de acções não
tem sido objecto de reflexão aprofundada; RUI MACHETE, “A le-
gitimidade dos contra-interessados nas acções administrativas
(*) Por vontade expressa do Autor o texto segue a grafia an- comuns e especiais”, in Estudos em Homenagem ao Professor Mar-
terior ao novo acordo ortográfico. cello Caetano, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 623; SÉR-
(1) Entre nós, para uma visão geral desta figura, por todos, VULO CORREIA, Direito do Contencioso Administrativo, Lisboa, Lex,
cfr. PAULO OTERO, “Os contra-interessados em contencioso ad- 2005, p. 752, qualificando-o como uma forma específica de litis-
ministrativo: fundamento, função e determinação do universo consórcio necessário passivo; MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RO-
em recurso contencioso de acto final de procedimento concur- DRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais
sal”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais,
Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p. 1073. Anotados, Coimbra, Almedina, 2004, p. 376. Num sentido diver-

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Uma dúvida, desde logo, nos assalta o espírito. é ela que tem de desencadear os efeitos materiais
Com efeito, segundo a letra da lei, os contra-inte- desejados pelo autor.
ressados, não obstante serem demandados na Por conseguinte, neste tipo de acções, não é ad-
acção e figurarem do lado passivo da relação pro- missível que o autor da acção formule pedidos di-
cessual, não fazem parte da relação material con- rigidos a uma actuação do contra-interessado mas
trovertida. Mas como se explica que alguém seja apenas a condutas que possam ser praticadas pela
demandado processualmente se não pertence à re- Administração. Assim, numa acção de anulação de
lação material que vai ser apreciada em juízo? Pre- uma licença urbanística, o vizinho pode apenas
cisamente a legitimidade consubstancia-se no facto pedir a eliminação desse acto e, eventualmente, so-
de as partes serem os sujeitos da relação material licitar a condenação da Administração na adopção
controvertida – do direito e da correlativa obriga- dos actos e operações necessárias para reconstituir
ção (dever jurídico ou sujeição) –, ou seja, posicio- a situação que existiria se o acto não tivesse sido
nam-se de um lado um demandante (titular de um praticado [alínea a) do n.º 2 do art. 4.º do CPTA],
direito), do outro lado um demandado (o sujeito mas não pode pedir, na sequência da anulação, que
da obrigação) que se supõe na verdade existirem. o proprietário da edificação construída ao abrigo
Suspeitamos que estas incertezas resultam do da licença, e contra-interessado na lide, proceda à
facto de o legislador se confrontar com dificuldades demolição de tal construção. Isto é, o autor não
de enquadramento da posição do contra-interes- pode, aproveitando a vinculação do terceiro ao
sado, atendendo a que este é uma figura específica caso julgado, “saltar por cima” da Administração
do processo administrativo que não se encaixa nos e pedir uma condenação imediata do contra-inte-
moldes estudados pela teoria geral do processo. Na ressado. Até porque tal hipótese iria redundar, na
verdade, parece que a intenção do legislador terá maioria dos casos, num esvaziamento da margem
sido, por um lado, equiparar o contra-interessado à de livre decisão administrativa que eventualmente
entidade demandada, encontrando-se ambos do couber à entidade demandada em sede de execu-
lado passivo da relação processual, equiordenando- ção de sentença.
-se este sujeito privado às outras partes processuais A forma encontrada para expressar esta circuns-
(autor e Administração), sendo também deman- tância terá sido, assim, perspectivar a legitimidade
dado e ficando vinculado ao caso julgado. Mas, por em face da concepção que vê no objecto do processo
outro lado, sentiu o legislador a necessidade de ex- uma relação jurídica, ressalvando que apenas uma
cluir essa equiparação no plano material, aten- das partes (a entidade demandada ou a Adminis-
dendo, nomeadamente, a que o objecto do processo tração) poderá dispor desse objecto, pelo que só ela
nas acções impugnatórias ou de condenação à prá- se encontra numa relação material com o autor. Daí
tica do acto devido centra-se no exercício do poder que a outra parte na relação material controvertida,
público, exercido ou omitido. Com efeito, o art. 50.º, neste tipo de acções, só possa ser a Administração
n.º 1, do CPTA dispõe que a impugnação de um e não outros sujeitos particulares, titulares de inte-
acto administrativo tem por objecto a anulação ou resses contrapostos aos do autor. Os contra-interes-
declaração de nulidade desse acto. Embora formu- sados, pessoas com interesses contrapostos aos do
lado em termos diversos, estabelece o n.º 2 do art. autor, encontram-se, portanto, ligados à relação ma-
66.º do CPTA que o objecto do processo é a preten- terial estabelecida entre demandante e Administra-
são do interessado, mas essa reivindicação tem ção mas nela não podem considerar-se incluídos (3).
sempre a Administração como destinatária, ou seja,
(3) Cremos ser esta a posição de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA,
gente pronunciou-se MAFALDA CARMONA, “Relações jurídicas po- Manual de Processo Administrativo, cit., p. 256, que esclarece não
ligonais, participação de terceiros e caso julgado na anulação de se definir o objecto destes processos por referência às situações
atos administrativos”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor subjectivas dos contra-interessados, titulares de interesses con-
Sérvulo Correia, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 750, trapostos aos do autor, mas à posição em que a Administração
que recorre à figura da coligação. se encontra colocada no quadro do exercício dos seus poderes

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Esta explicitação foi realizada, no entanto, de forma tração, remetendo-se essencialmente a respectiva re-
inadequada, pois, se assim era, os contra-interessa- gulação, atendendo à sua importância secundária,
dos não deveriam ser realmente demandados e, para o processo civil. é o que sucede ainda no con-
nessa medida, qualificados como partes legítimas tencioso administrativo francês, já que estes tercei-
da acção, e, menos ainda, como partes necessárias. ros detêm o estatuto de meros intervenientes aces-
Ainda de forma mais enigmática surgem certas ex- sórios, isto é, o sujeito nestas condições será um sim-
plicações jurisprudenciais que afirmam serem os ples intervenant en soutien à l´acte e, por definição, en-
contra-interessados, na verdade, titulares da relação contra-se ao serviço da entidade demandada (4). Esta
material controvertida, muito embora aí não se en- intervenção tem objectivos modestos, servindo ape-
contrem directamente envolvidos, justificando-se a sua nas para atenuar os efeitos absolutos do caso julgado
presença em juízo para fazer coincidir a relação e garantir a discussão contraditória (5). Mesmo ad-
substantiva com a relação processual. mitindo-se que o interveniente pode desenvolver as
suas próprias pretensões, estas não podem ser dife-
II. As incertezas sobre o estatuto processual rentes das partes originárias, apenas sendo admiti-
dos contra-interessados no CPTA e nas leis pro- das caso o seu autor se associe às conclusões da
cessuais estrangeiras defesa, pelo que se o defensor não produzir conclu-
sões de rejeição do recurso, ou se declarar estar de
Tal como a maioria das principais ordens jurídi- acordo com as pretensões do recorrente (6), a inter-
cas, o CPTA nada diz sobre o estatuto processual venção em defesa deve ser inadmissível (7). De outra
dos contra-interessados, preocupando-se essencial- parte, em sistemas em que esta concepção foi ultra-
mente com a definição dos critérios relativos à legi- passada, garante-se aos terceiros um estatuto de
timidade processual destes sujeitos. Pensamos que igualdade com as outras partes no processo, pelo
este fenómeno tem a explicação seguinte. De uma que não será necessária uma regulação processual
parte, nos sistemas em que estes terceiros são enca- específica, uma vez que, em todos os casos em que
rados como meros assistentes processuais, a sua par- a lei se referir a estes sujeitos processuais, entende-
ticipação processual reduz-se a uma mera inter- -se que os terceiros (contra-interessados) aí também
venção acessória, enquanto auxiliares da Adminis- estão incluídos. É o que parece ocorrer nas ordens
jurídicas portuguesa e italiana, cujas leis processuais
de autoridade; esta linha de pensamento pode não se considerar
consideram, pacificamente, que os contra-interessa-
totalmente coincidente com o defendido na sua dissertação, dos são partes necessárias no processo administra-
Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes, tivo, devendo estes, inclusivamente, formar um litis-
Coimbra, Almedina, 2002, pp. 502-503, quando nota que a sen-
tença de anulação não é proferida apenas contra a Administra-
consórcio necessário passivo com a Administração.
ção mas também contra o beneficiário do acto anulado, o qual, Na ordem jurídica italiana, pelo menos os que sejam
por isso, fica vinculado ao caso julgado. E, mais ainda, declara contra-interessados em sentido formal (destinatários
o Autor, em termos que nos merecem inteira concordância, que
do acto administrativo impugnado) (8) são partes
se o acto anulado tinha duplo efeito, o papel do beneficiário do
acto anulado é verdadeiramente crucial, não podendo ser, por
isso, neutralizado no âmbito da relação jurídica administrativa,
nem sequer podendo a seu respeito falar-se, em rigor, de um (4) Cfr. BERNARD PACTEAU, Traité de Contentieux Administratif,
terceiro (p. 501). Já VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Paris, PUF, 2008, pp. 280-281.
cit., p. 278, embora sem especificar, parece introduzir uma dife- (5) Cfr. VINCENT TOMKIEWICZ, “La Protection du Tiers dans
renciação que se afiguraria promissora, quando refere que a le- le contentieux de la legalité des actes individuals créateurs de
gitimidade passiva caberá em princípio à parte que seja titular droit”, in RDP, 2006, p. 1285.
do dever na relação material controvertida, em regra uma pessoa co- (6) Cfr. RENÉ CHAPUS, Droit du Contentieux Administratif, 12.ª
lectiva pública, e também aos terceiros contra-interessados, en- ed., Paris, Montchrestien, 2006, p. 758.
quanto prejudicados directos com a procedência do pedido (7) Cfr. VINCENT TOMKIEWICZ, “La Protection du Tiers dans
(itálico nosso). Nesta medida, far-se-ia a diferenciação entre o le contentieux de la legalité des actes individuals créateurs de
titular do dever na relação material controvertida e outros su- droit”, cit., p. 1286.
jeitos prejudicados pela procedência do pedido, mas ambos es- (8) Em geral, cfr. MARIO NIGRO, Giustizia Amministrativa, 6.ª
tariam integrados nessa relação. ed., Bolonha, Il Mulino, 2002, pp. 253 e segs.

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necessárias no processo, encontrando-se numa po- principais apenas são admissíveis no caso de parti-
sição de paridade com o autor e a entidade deman- cipação obrigatória no processo (notwendige Beila-
dada por força do princípio do contraditório (9). dung). Consequentemente, o terceiro não auxilia
Entre nós, de acordo com a opinião unânime da nenhuma das partes, afastando-se da condição de
doutrina nacional, sendo os contra-interessados par- um mero assistente (Streithelfer), defendendo uma
tes necessárias no processo, têm estes de estar incluí- posição autónoma no processo (Selbständigkeit),
dos nas referências que o CPTA faz às partes (10). Por muito embora continue a ser terceiro, não lhe sendo
conseguinte, os contra-interessados têm a possibili- reconhecido o estatuto de parte tal como à entidade
dade de contestar a acção (art. 83.º) podendo ainda demandada e ao autor (12). A doutrina considera
indicar os actos cuja prova se propõem fazer (art. que os terceiros detêm poderes iguais às partes,
83.º, n.º 1), anuir ou opor-se ao conhecimento do mé- apenas não lhes sendo reconhecidas as prerrogati-
rito da causa no despacho saneador [alínea b) do n.º vas processuais que, pela sua natureza, estejam reser-
1 do art. 88.º], prestar depoimento em audiência pú- vadas a esses participantes processuais (Haupt-
blica [art. 91.º, n.º 3, alínea a)], devendo o juiz sub- beteiligten) (13). Nesta medida, as questões mais es-
meter-se às questões por eles suscitadas no respei- pinhosas que se colocam na ordem jurídica alemã,
tante ao objecto e aos limites da sua decisão (n.os 1 e quanto à delimitação exacta dos poderes proces-
2 do art. 95.º). suais dos terceiros, centram-se na determinação do
Não surpreendentemente, a lei processual ad- que deve entender-se por prerrogativas processuais
ministrativa alemã (VwGO) é a única lei processual que, pela sua natureza, apenas estejam reservadas às
que regula especificamente os poderes de confor- partes.
mação processual dos contra-interessados, pois, se-
gundo a ordem jurídica alemã, eles são verdadeiros III. A inadmissibilidade da figura do litiscon-
terceiros no processo (Dritter in einem frendem Ver- sórcio necessário passivo como figura enquadra-
fahren) e, nessa medida, teria de esclarecer-se qual dora da relação Administração/contra-interessado
a posição destes sujeitos que não são partes mas
simples participantes processuais. Ademais, avisa- A omissão do regime processual aplicável aos
damente, sublinhou esta lei a destrinça que deve contra-interessados por via da sua equiparação às
existir entre os poderes reconhecidos aos terceiros partes necessárias no processo é enganadora e ge-
que têm obrigatoriamente de participar no processo radora de múltiplos equívocos. Na verdade, deve
e os outros terceiros, cuja participação é facultativa ter-se presente que este suposto litisconsórcio ne-
e que serve apenas propósitos funcionais de exten- cessário, do lado passivo da relação processual,
são do caso julgado (11). Sobre esta questão dispõe abrange dois sujeitos de natureza muito diversa,
o § 66 da VwGO, estabelecendo que o terceiro pode dado que a entidade demandada é um sujeito titu-
fazer valer pretensões processuais autónomas e pra- lar de poder público. De facto, independentemente
ticar todos os actos jurídicos válidos, ressalvando das concepções que se possam perfilhar sobre o ob-
que pretensões materialmente distintas (abweichende jecto do processo, tem de reconhecer-se que ele tem
Sachanträge) em face das partes ou dos participantes de estar, em grande medida, centrado no exercício,
ou na omissão do exercício, de competências jurí-
(9) Cfr. ENRICO FOLLIERI, “Le parti”, in F. G. Scoca (coord.),
dico-públicas, e, nessa medida, diversas disposi-
Giustizia Amministrativa, Turim, Giapichelli, 2013, pp. 224 e segs. ções processuais do contencioso administrativo
(10) Neste sentido, cfr. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Admi-
nistrativa, cit., p. 263, salientando não haver dúvidas que hoje os
contra-interessados são legalmente concebidos como partes; M. (12) Cfr. WOLFGANG BIER, “§ 66 [Prozessuale Rechte des Bei-
ESTEVES DE OLIVEIRA/R. ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo geladenen]”, in F. Schoch/J. P. Schneider/W. Bier, Verwaltungsge-
nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administra- richtsordnung- Kommentar, 25.ª ed., Munique, Beck, 2013, par. 6.
tivos e Fiscais, Anotados, cit., p. 376. (13) Cfr. FERDINAND KOPP/WOLF-RÜDIGER SCHENKE, Verwal-
(11) Recentemente, um desenvolvimento desta destrinça no tungsgerichtsordnung- Kommentar, 12.ª ed., Munique, Beck, 2012,
acórdão do BVerwG de 19/5/2008, NVwZ, 2008, pp. 916-917. p. 770.

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têm obrigatoriamente de acolher essa especifici- autor propõe a acção não só contra a entidade de-
dade. Estamos a referirmo-nos, por exemplo, às re- mandada mas também contra os sujeitos que se
gras especiais sobre ónus da prova (n.º 4 do art. 83.º apresentem como titulares de interesses contrapos-
e n.º 6 do art. 84.º), ao envio do processo administra- tos aos seus – os contra-interessados – mas estes não
tivo (n.º 1 do art. 84.º), ou à prática de novos actos são partes na relação material controvertida de
na pendência do processo (n.º 1 do art. 63.º, n.º 1 do acordo com o n.º 1 do art. 10.º do CPTA. Ora, assim
art. 64.º, n.º 1 do art. 65.º, e n.os 1 e 3 do art. 70.º, todos sendo, como admitir que estes sujeitos façam parte
do CPTA). Por conseguinte, a conduta processual de um litisconsórcio, e ainda para mais necessário,
que a Administração vai adoptar no processo possui sendo esta uma figura que se destina a assegurar a
uma dimensão e um alcance incomparavelmente unidade do caso julgado em face da existência de
maiores que os poderes reconhecidos aos contra-in- uma pluralidade de sujeitos que são titulares da re-
teressados, sendo que a forma como ela vai conduzir lação material controvertida? Por conseguinte, os
o processo (Prozessführungbefugnis) irá assumir uma contra-interessados não fazem parte da relação ma-
geometria muito variável em face da posição defen- terial controvertida, logo também não fazem parte
dida por estes sujeitos na lide. Assim, longe de se ve- do litígio, e, consequentemente a sua posição não
rificar uma identidade entre partes, existe antes uma está contida no objecto do processo, pelo que a sen-
assimetria funcional estruturante no lado passivo da tença é insusceptível de sobre as suas esferas jurídi-
relação processual administrativa. cas incidir, o que, afinal, torna a figura do litiscon-
Efectivamente, o estatuto de que a Administra- sórcio, neste contexto, totalmente desajustada.
ção goza no processo é significativamente diferente Acresce que a figura do litisconsórcio necessário
do das restantes partes, uma vez que ela possui es- visa impedir que a sentença proferida se trans-
peciais prerrogativas e especiais deveres inerentes forme em inutiler data, isto é, a natureza una ou in-
à sua condição de entidade demandada. É certo divisível da relação subjacente ao litígio obriga a
que não é admissível qualquer tratamento proces- que todos os sujeitos que a ela pertençam sejam
sual privilegiado da Administração Pública, uma chamados ao litígio sob pena de o julgado não pro-
vez que o seu papel na defesa do interesse público duzir o seu efeito útil normal. Ora, e independen-
muda quando passa de parte condutora do proce- temente da polémica que suscita este conceito
dimento administrativo para o de uma simples acerca do seu exacto alcance (14), não pode traçar-
parte no processo administrativo. Apenas será de -se um paralelismo perfeito entre o processo civil e
aceitar o reconhecimento de determinadas prerro- o processo administrativo. Na verdade, o facto de
gativas, ou, correlativamente, de certos ónus, deve- a Administração ser o sujeito responsável pela exe-
res ou encargos, decorrentes das especificidades cução das sentenças administrativas, sendo um
próprias inerentes à conformação ex ante ou ex post ente dotado de autotutela declarativa, com respon-
da relação jurídica administrativa material. Ora, é sabilidade geral de conformação da realidade nor-
precisamente neste ponto que entronca a proble- mativo-social, faz com que, à partida, tenha de
mática respeitante à posição dos contra-interessa- aceitar-se que a sentença administrativa produza
dos no processo. Detendo estes sujeitos, tendencial- sempre efeitos, mesmo que possa, a posteriori, ser
mente, um interesse idêntico à entidade deman- atacada pelos sujeitos que deveriam ter sido cha-
dada, beneficiam eles das especiais prerrogativas mados ao processo e nele não tomaram parte.
reconhecidas à Administração? E, inversamente, Nesta medida, o facto de a Administração ser um
podem eles vir a ser prejudicados por força dos es- ente especialmente legitimado a adoptar decisões,
peciais ónus, deveres ou encargos que oneram a
Administração? (14) Sobre esta questão, cfr. RUI PINTO, Efeitos e Regime da Pre-
No nosso ordenamento jurídico, a importação terição de Litisconsórcio Necessário – Contributo para o Estudo do
Efeito Útil Normal e dos Limites Subjectivos do Caso Julgado (disser-
desta figura, pela quase totalidade da doutrina,
tação de mestrado inédita), vol. I, Faculdade de Direito da Uni-
mostra-se totalmente incongruente. É certo que o versidade de Lisboa, 1994, pp. 55 e segs.

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geradoras de uma multiplicidade de complexos mais elevado se encontra a Administração, deten-


efeitos, faz com que as situações jurídicas daí emer- tora de uma competência jurídico-pública de con-
gentes não possam ser equiparáveis às situações formação desses mesmos interesses, situação que
que no processo civil reclamam um enquadra- não encontra paralelo nas relações jurídico-priva-
mento através de um litisconsórcio natural (15). das. Em segundo lugar, se esta figura fosse aplicá-
Assim, cremos ser diametralmente diversa a situa- vel, tal significaria que a Administração ficaria
ção de anulação de um acto administrativo, mesmo tolhida quanto ao exercício de certos poderes pro-
que existam vários interessados na regulação da si- cessuais na pendência do processo, porquanto o re-
tuação adoptada, e a anulação de uma partilha, na gime do litisconsórcio necessário implica que a
qual têm de intervir todos os co-herdeiros, ou a eficácia de certos actos processuais só seja adqui-
anulação ou declaração de nulidade de um testa- rida quando praticados por todos os litisconsortes.
mento, em que têm de ser demandados como réus A fisionomia judiciária do litisconsórcio necessário
todos os beneficiados, herdeiros ou legatários. A fi- é significativamente diversa do litisconsórcio volun-
gura do litisconsórcio necessário passivo não é tário, pois só neste último se verifica a independên-
aplicável à ligação processual que se verifica entre cia das relações processuais que se estabelecem
a Administração e os contra-interessados, quer por entre cada um dos litigantes (17). De facto, a aplica-
uma razão dogmática, ou de natureza da relação ção do regime do litisconsórcio necessário levaria a
jurídica material, quer por uma razão prática ou de que a Administração não pudesse celebrar qualquer
regime. No que respeita à primeira, a relação jurí- transacção com o autor nem sequer proceder à re-
dica administrativa possui uma morfologia subs- vogação ou anulação do acto impugnado, dado
tancialmente diversa da relação jurídica civil, que, nos termos do n.º 2 do art. 288.º do Código de
apresentando-se de forma mais complexa do que Processo Civil (CPC), a confissão, a desistência ou
uma mera pluralidade de sujeitos activos e passi- a transacção de algum dos litisconsortes só produz
vos (16). Assim é porque estas relações jurídicas efeitos quanto a custas. Assim é porque, atendendo
podem ser expressas através da figura do triân- à natureza da relação jurídica, não é possível cir-
gulo, em cuja base se confrontam dois ou mais in- cunscrever o efeito do acto ao interesse do seu
teresses privados em colisão e no respectivo vértice autor, dado que o efeito útil da decisão teria sempre
de produzir-se perante todos os litisconsortes (18), o
(15) Parece agora concordar com esta posição, que defende- que não seria possível porque o contra-interessado
mos na nossa dissertação de doutoramento, MÁRIO AROSO DE AL-
MEIDA, “Apontamento sobre a legitimidade particular nas ações
nunca daria assentimento ao exercício de uma com-
de impugnação de atos administrativos”, in Nos 20 anos dos Ca- petência administrativa que fosse beneficiar a sua
dernos de Justiça Administrativa, Braga, Cejur, 2017, p. 293, dado contraparte particular, isto é, o autor da acção.
que numa acção de impugnação nem autor nem contrainteres-
Já a doutrina germânica, sem recorrer à figura do
sado seriam titulares do objecto do processo, pelo que no caso do
contrainteressado devia pôr-se em causa o entendimento de que litisconsórcio, adopta como paralelo, nesta matéria,
ele interviria na acção de impugnação em regime de litisconsórcio o acto com eficácia em relação a terceiros (Doppel-
necessário passivo com a Administração. Como explicaremos de
wirkung ou Drittwirkung), muito embora deixe por
seguida, no que respeita à disponibilidade do objecto do pro-
cesso, não concordamos inteiramente com esta conclusão no que explicar uma série de implicações que esta asserção
respeita ao contra-interessado e, ainda menos, no que respeita ao
autor da acção.
(16) Neste sentido, cfr. MAFALDA CARMONA, “Relações jurídicas (17) Neste sentido, cfr. ADELINO DA PALMA CARLOS, Ensaio
poligonais, participação de terceiros e caso julgado na anulação sobre o Litisconsórcio, Lisboa, Tipografia Colonial, 1956, pp. 219
de atos administrativos”, cit., p. 750. Já não podemos acompanhar e segs.
a Autora quando recorre à figura da coligação para enquadrar a (18) Neste sentido, cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXAN-
figura dos contra-interessados porque não existe a pluralidade DRE, Código de Processo Civil Anotado, 3.ª ed., vol. I, Coimbra,
de relações materiais controvertidas que justifica o recurso àquela Coimbra Editora, 2014, p. 567; também JOSÉ ALBERTO DOS REIS,
figura processual. A relação entre a Administração, o autor da Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra
acção e os contra-interessados é uma relação jurídica administra- Editora, 1948 (reimp. 1982), p. 403, assinala o facto de a lei pro-
tiva multipolar que tem de ser concebida unitariamente, mas que teger os interesses dos litisconsortes, restringindo muito mais os
não encontra paralelo em nenhuma figura do processo civil. efeitos do acto por comparação com o litisconsórcio voluntário.

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O estatuto processual dos contra-interessados nas acções impugnatórias e de condenação à prática de acto administrativo

acarreta. Isto é, segundo tal doutrina, para que uma arroga (22). Ora, a esfera jurídica do contra-interes-
sentença constitutiva pudesse produzir efeitos não sado foi desde logo conformada pela actuação ad-
poderia eliminar-se apenas a face lesiva do acto, ministrativa sob escrutínio, com prejuízo para a
tendo também de ser eliminada do ordenamento a esfera jurídica do autor, que agora busca protecção
sua face favorável (19). E essa face favorável apenas jurisdicional. O litígio é unitário, originado por uma
poderia ser destruída mediante a chamada ao pro- única relação material, não se tratando da interven-
cesso do terceiro que era beneficiário do acto. Mas, ção de um terceiro num processo alheio. Daí que os
por um lado, se assim é, não se percebe a razão para contra-interessados tenham desde logo de ser iden-
se defender que a posição de tal terceiro não está in- tificados na petição inicial [alínea b) do n.º 2 do art.
cluída no objecto do processo, entendendo a dou- 78.º], e citados quando a instância se constitui (n.º 1
trina germânica maioritária que apenas o autor e a do art. 81.º), nunca se tratando de uma intervenção
Administração dispõem desse objecto. Por outro meramente eventual, produzindo ainda a sentença
lado, esta posição decorre da teoria da duplicidade efeitos sobre as respectivas esferas jurídicas, de-
estatutária formal, pois entende que apenas o desti- vendo aqueles reagir através de recurso ordinário
natário do acto é terceiro em sentido processual, (n.º 3 do art. 141.º) ou extraordinário (n.º 2 do art.
sendo apenas este que tem necessariamente de ser 155.º, todos do CPTA) quando não devidamente ci-
chamado ao processo (20). tados. Ao invés, na oposição, a forma do opoente
Cremos, assim, que nenhuma figura do processo reagir à sentença lesiva dos seus direitos será atra-
civil é idónea a explicar a posição do contra-interes- vés da propositura de uma nova acção (23), dado
sado no contencioso administrativo e o respectivo que a sua eventual intervenção seria sempre efecti-
estatuto processual. Nesta medida, a figura do con- vada num processo alheio para fazer valer um di-
tra-interessado também não pode assemelhar-se à reito que julga incompatível com a pretensão dedu-
oposição prevista nos arts. 333.º e segs. do CPC (21). zida pelo autor.
A oposição pressupõe uma acção própria num pro-
cesso alheio, isto é, o opoente atravessa-se como IV. O contra-interessado como sujeito da rela-
autor num processo que está a ocorrer entre outras ção jurídica administrativa multipolar
pessoas, reivindicando, por exemplo, ser o verda-
deiro titular do direito de crédito de que o autor se As relações jurídicas multipolares podem ser de-
finidas como as relações jurídicas administrativas
(19) Cfr. KONRAD REDEKER/HANS-JOACHIM VON OERTZEN, Ver- nas quais se confrontam dois ou mais interesses pri-
waltungsgerichtsornung- Kommentar, 14. ª ed., Estugarda, Koh- vados (plano ou vertente horizontal), e cuja confor-
lhammer, 2004, p. 430. mação do respectivo exercício cabe à Administração
(20) Cfr. FRANCISCO PAES MARQUES, As Relações Jurídicas Admi-
nistrativas Multipolares – Contributo para a sua compreensão substan-
Pública, mediante a adopção de um acto jurídico-
tiva, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 198 e segs., onde identificamos público (plano ou vertente vertical) (24). As incerte-
na elaboração dogmática das relações jurídicas administrativas zas e os equívocos gerados em torno da figura do
multipolares esta distorção que designamos por teoria da duplici-
dade estatutária formal, assente na matriz essencial da relação bi-
contra-interessado resultam de uma compreensão
polar Estado-cidadão. A teoria da duplicidade estatutária formal inadequada da vertente horizontal da relação jurí-
tem como matriz essencial a relação bipolar Estado-cidadão, dica administrativa multipolar. Verifica- -se,
adoptando como centro gravitacional a posição do destinatário
essencialmente, um desprezo pela colisão de inte-
do acto administrativo, da qual se infere, de forma necessária, a
existência dos sujeitos reflexamente afectados (posição jurídica
reflexa do “terceiro”), não atendendo à forma como a lei disci-
plina o conflito de interesses subjacente àquela relação jurídica (22) Cfr. JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Ano-
(inversão da reserva de lei). tado, cit., p. 485.
(21) Esta ideia foi expressa pela Senhora Professora Paula Costa (23) Cfr. JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Ano-
e Silva no debate que se seguiu à nossa comunicação no XVIII Se- tado, cit., p. 488.
minário de Justiça Administrativa, em Braga, devendo reconhe- (24) Cfr. FRANCISCO PAES MARQUES, As Relações Jurídicas Ad-
cer-se que a oposição é a figura da intervenção de terceiros que ministrativas Multipolares – Contributo para a sua compreensão subs-
mais semelhanças tem com a figura dos contra-interessados. tantiva, cit., pp. 47 e segs.

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JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.º 124 • Julho/Agosto 2017

resses privados subjacente ao litígio, situação que se os da entidade demandada, também têm de variar
afigura jurídico-constitucionalmente inadmissível, em função de tal intensidade. Daí que não faça sen-
pois, prima facie, todos os sujeitos da relação jurídica tido averiguar, de forma unitária, quais os poderes
administrativa multipolar material, desde que sejam que devem ser reconhecidos aos contra-interessa-
titulares de direitos subjetivos públicos em face do dos, pois a resposta a essa questão dependerá do
objecto do litígio, devem também ser, correspectiva- tipo de relação jurídica multipolar em causa. Esta
mente, partes processuais, com estatuto equivalente, problemática não tem sido adequadamente consi-
na relação jurídico-processual. Por conseguinte, tal derada porque as construções ligadas à teoria da
como no plano material, em nome da igualdade dos duplicidade estatutária formal e, mais concreta-
sujeitos da relação jurídica multipolar, a designação mente, à reversibilidade assimétrica paradoxal (27),
de “terceiro” deve ser rejeitada (25), também no consideravam existir uma convergência necessária
plano processual essa terminologia deve ser abolida, de interesses entre a Administração e o terceiro em
pois todos esses sujeitos são, à partida, partes do sentido processual, aplicando-se, sem mais, a figura
processo contencioso-administrativo. do litisconsórcio necessário passivo. Mas o estatuto
Neste sentido, defendemos que o terceiro em do opositor particular não é o mesmo em todas as
sentido processual não devia ser considerado um relações jurídicas administrativas multipolares, de-
contra-interessado, porque ele é sujeito da relação vendo atender-se à natureza dos interesses presen-
jurídica multipolar, cuja posição jurídica foi consi- tes em cada tipo de relação. Neste sentido, conce-
derada pelo legislador quando fixou o programa nor- bemos três tipos de relações jurídicas multipolares
mativo multipolar (26). Por conseguinte, a relação em função da natureza dos interesses (28):
jurídica material tem de ser plenamente transposta
para o plano processual, pelo que o sujeito que não i) Relação jurídica multipolar arbitral: na qual a in-
se conformou com o exercício do mandato de con- terposição do poder estadual assume um carácter
formação multipolar, ao reagir jurisdicionalmente, neutro, tratando-se do exercício puro dos deveres de
ocupa a posição de autor, enquanto o sujeito que protecção dos direitos fundamentais a cargo do Es-
encontrou um benefício em tal conformação, ou que tado [alínea b) do art. 9.º da Constituição da Repú-
se opõe aos efeitos pretendidos pelo autor, ocupará blica Portuguesa (CRP)]. Na verdade, o conflito em
a posição de opositor particular. Nesta medida, o causa diz, essencialmente, respeito aos sujeitos par-
conflito de interesses privado estará sempre in- ticulares, pois o Estado visa, através do exercício
cluído no objecto do processo, e, consequente- desta competência, regular o exercício de direitos
mente, os direitos subjectivos destes opositores fundamentais em colisão, tudo se resumindo a uma
particulares terão sempre de ser considerados na re- arbitragem entre liberdade contra liberdade. De
solução ou no desfecho da lide. Sucede porém que facto, quando a Administração intervém para garan-
o conflito de interesses privados pode assumir di- tir o gozo de luz solar numa habitação, reprimindo
versos níveis de intensidade no contexto global do a violação das normas que determinam as distân-
objecto do litígio, pelo que os poderes dispositivos cias mínimas entre construções, ou age para impedir
das partes, quer os dos sujeitos particulares, quer a construção de um murete que divide a varanda
comum às habitações de dois particulares (29), não
(25) Cfr. FRANCISCO PAES MARQUES, As Relações Jurídicas Ad-
ministrativas Multipolares – Contributo para a sua compreensão subs- (27) Defendemos esta construção na nossa dissertação de
tantiva, cit., p. 207. doutoramento, Conflitos entre Particulares de Oposição Reversível
(26) Ou seja, o conteúdo da norma contida no acto da função no Contencioso Administrativo (inédita), vol. II, Faculdade de Di-
legislativa, através da qual o legislador democraticamente legi- reito da Universidade de Lisboa, 2015, pp. 649 e segs.
timado regula, com carácter primário, a situação abstracta de (28) Cfr. FRANCISCO PAES MARQUES, Conflitos entre Particulares de
colisão de interesses privados, cuja titularidade pertence a uma Oposição Reversível no Contencioso Administrativo, cit., pp. 886 e segs.
pluralidade indeterminada de destinatários, cfr. FRANCISCO PAES (29) Acórdão do STA de 17/4/2007, proc. 06107 (São Pedro).
MARQUES, As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares – Con- Muito elucidativo de uma situação multipolar arbitral é a des-
tributo para a sua compreensão substantiva, cit., pp. 287 e segs. crita no acórdão do STA de 10/3/1992, proc. 30 280-A (Farinha

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O estatuto processual dos contra-interessados nas acções impugnatórias e de condenação à prática de acto administrativo

há como negar que a sua função se esgota numa re- um estatuto diferenciado para os opositores parti-
solução de um conflito de interesses privados; culares que seja susceptível de atender à natureza
dos interesses subjacentes a cada relação jurídica
ii) Relação jurídica multipolar parcial: na qual a in- multipolar sub iudice. Deixando de lado, por ora, as
terposição do poder estadual assume um carácter relações jurídicas multipolares infra-estruturais, cujo re-
interessado, pois, para além da existência de um flexo no campo processual respeitará sobretudo ao
conflito entre interesses privados, a Administração estatuto dos contra-interessados no controlo da le-
agiu com vista à prossecução de uma tarefa pública galidade dos regulamentos administrativos (30), ve-
que visa a tutela de bens da comunidade, ainda que rificamos que o estatuto geral do contra-interes-
essa acção possa, em alguma medida, coincidir com sado, previsto no CPTA, peca por defeito mas tam-
um dos interesses privados em disputa. A coinci- bém por excesso. Por um lado, peca por defeito,
dência entre o interesse da Administração e o inte- porque se o litígio disser estruturalmente respeito
resse privado pode assumir intensidades variáveis, aos particulares envolvidos não poderá a lei conce-
desde a exploração de um bem do domínio público der-lhes um estatuto processual secundário ou aces-
que, no entanto, lesa outros particulares, ou, sim- sório em face da entidade demandada. Por outro
plesmente, o financiamento de uma actividade pri- lado, a ânsia de valorização da posição dos oposi-
vada cuja prossecução é considerada de importância tores particulares, em face do moderno direito ad-
fundamental pelo Estado mas que se vai traduzir ministrativo, não deve conduzir à solução de equi-
num prejuízo para outros sujeitos privados; paração da Administração e dos contra-interessa-
dos em todas as situações. A afirmação de que a
iii) Relação jurídica multipolar infra-estrutural: na existência de contra-interessados no processo de-
qual a interposição do poder estadual, assumindo a monstra que, muitas vezes, o litígio respeita aos su-
autoria plena da acção, cria as condições jurídicas jeitos particulares não é, sem mais, verdadeira. De
ou materiais de produção potencial de conflitos facto, num caso, a interposição do poder estadual
entre particulares. Por conseguinte, já não estamos assume um carácter neutro, esgotando-se o objecto
perante uma actividade privada agressora de bens do processo, materialmente, num conflito entre di-
jus-fundamentais, a qual teria sido autorizada, reitos fundamentais dos sujeitos interessados, ao
apoiada ou licenciada pelo Estado, sendo antes o passo que, no outro caso, a interposição do poder
próprio poder público a estabelecer as condições estadual tem um carácter interessado, sendo legí-
propiciadoras da eclosão do conflito de interesses timo que a Administração ocupe uma posição pro-
privados. Será o caso da construção de uma grande cessual proeminente e o particular uma posição
obra pública, que vai lesar interesses de certos par- adjuvante.
ticulares mas da qual outros sujeitos privados vão Assim, nas relações jurídicas multipolares arbitrais,
colher benefícios, ou do planeamento urbanístico, a neutralidade da interposição do poder estadual
através do qual, desde logo, serão sopesados inte- não admite que o particular contra-interessado
resses privados divergentes. possua uma posição processual adjuvante em face
da entidade demandada, pois o desinteresse da
Esta tipologia conduz-nos à conclusão sobre a Administração na defesa da posição do opositor
necessidade de o contencioso administrativo prever particular elevaria o risco processual (perda do di-
reito em virtude da procedência do pedido do
autor) a níveis insuportáveis.
Ribeiras), bem como os termos utilizados pelo tribunal, em que
se discutia a suspensão do exercício da actividade de despa-
chante oficial por parte de outro despachante, reconhecendo-se
que a Administração desenvolve uma actividade marginal e es- (30) Cfr. ALEXIS VON KOMOROWSKI, “Beiladung im Normkon-
sencialmente fiscalizadora, de prevenção do interesse público, trollverfahren- Der neue § 47 II, 4, VwGO und seine grundge-
figurando como partes o requerente e o recorrido da medida setzliche Fundierung”, in NVwZ, 2003, pp. 1458 e segs., no que
cautelar, numa relação próxima da relação processual civil. respeita a esta problemática na ordem jurídica alemã.

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JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.º 124 • Julho/Agosto 2017

Já nas relações jurídicas multipolares parciais, o es- cular de uma relação multipolar arbitral. Não se ad-
tatuto do particular interessado deveria aproximar- mite sequer, com esta solução, que possa ocorrer
se mais da posição de um assistente processual, qualquer violação do princípio da tutela jurisdicio-
sem que, todavia, essa figura da teoria geral do nal efectiva (arts. 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP), porque
processo se adeque totalmente ao que é requerido esta garantia constitucional tem de ser perspecti-
para lidar com esse tipo de relações jurídicas. Neste vada à luz do princípio da igualdade de armas e
sentido, é questionável a opção de eliminação da gestão do risco processual. Trata-se do balancea-
figura do assistente do nosso contencioso adminis- mento externo do risco, admitindo-se a existência
trativo, tal como se encontrava prevista no art. 49.º de determinados mecanismos, essencialmente pro-
do antigo Regulamento do Supremo Tribunal Ad- cessuais, que condicionam o direito de acesso ao
ministrativo (RESTA), constante do DL n.º 41 234, processo ou de influenciar o curso da lide, tendo
de 20/8/1957. Assim, no que respeita à legitimi- por objectivo assegurar o equilíbrio entre os inte-
dade, exigia aquele preceito que poderiam intervir resses substantivos em confronto. Dir-se-á que
como assistentes as pessoas que demonstrassem estes sujeitos serão os verdadeiros ou os contra-in-
possuir interesse legítimo idêntico ao da parte as- teressados em sentido próprio do Contencioso Ad-
sistida ou com ele conexo, o que se assemelha à ministrativo. Daí que, muito recentemente, tenha
convergência de interesses que se verifica entre a sido defendido que ao contra-interessado, numa
Administração e os particulares nas relações jurí- acção de impugnação de acto administrativo, devia
dicas multipolares parciais. E, no que tange aos po- reconhecer-se o estatuto de assistente necessário no
deres processuais, dispunha-se que a intervenção processo (32).
do assistente não perturbava o andamento regular
do recurso e a sua posição subordinava-se à da V. Dos poderes de conformação processual
parte principal, não modificando os direitos desta dos contra-interessados em função da natureza
para livremente confessar ou desistir, com as con- dos interesses presentes na lide
sequências legais, o que se afigura adequado para
lidar com este tipo de relações porque o interesse Decorre assim do exposto que os interesses par-
público a defender pela entidade demandada, em ticulares integrados no objecto do processo assu-
tais processos, não poderá ficar dependente da con- mem intensidades diferentes no contexto do litígio.
duta processual de outrem. Daí que, mesmo tendo o objecto do processo de ad-
De qualquer forma, não poderá assimilar-se to- quirir um alcance multipolar, tem de examinar-se
talmente a figura do assistente à dos contra-inte- se o autor tem o monopólio da sua configuração,
ressados, nestas situações, porquanto estes são bem como se ele e a entidade demandada podem
detentores de direitos subjectivos que se conexio- dispor livremente de tal objecto, ou se, ao invés,
nam directamente com o objecto do litígio, pelo essa disposição apenas pode ocorrer com a concor-
que a sua participação processual será sempre ob- dância de todos os sujeitos participantes na relação
rigatória e não meramente facultativa. A especifi- jurídica multipolar, aqui se incluindo o contra-in-
cidade do contencioso administrativo leva a que teressado. A resposta a esta questão não pode ser
estes sujeitos não estejam dotados de uma legitima- unívoca, dependendo da natureza dos interesses
tio minor, como na assistência do processo civil (31). subjacentes à relação jurídica multipolar em causa,
A diferença estaria no facto de o vício da sentença pois será inadequado aplicar-se o mesmo regime a
não ser tão gravoso e de os poderes processuais casos em que a interposição do poder estadual as-
que lhe são reconhecíveis não possuírem a mesma
amplitude por comparação com o opositor parti-
(32) Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Apontamento sobre a le-
gitimidade particular nas ações de impugnação de atos adminis-
(31) Cfr. JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, vol. trativos”, cit., p. 293, seguindo, nesta parte, o que defendemos
II, Lisboa, AAFDL, 1987, p. 234. na nossa dissertação de doutoramento.

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O estatuto processual dos contra-interessados nas acções impugnatórias e de condenação à prática de acto administrativo

suma um carácter neutro (relação jurídica multipolar considerada nula por usurpação de poder jurisdi-
arbitral), um carácter interessado (relação jurídica cional [alínea a) do n.º 2 do art. 161.º do Código do
multipolar parcial) ou já um carácter longínquo ou Procedimento Administrativo (CPA)], precisa-
de conformação geral, apesar de interessado, em mente porque a prossecução do interesse público
face dos interesses privados conflituantes (relação se encontrava cristalizada em função da transferên-
jurídica multipolar infra-estrutural). Consideremos cia do dever de protecção dos direitos fundamen-
então quatro domínios diversos, no sentido de ave- tais dos particulares em conflito para o campo
riguarmos o concreto estatuto do contra-interes- jurisdicional. Resposta diferente terá de ser dada
sado no contencioso administrativo: (i) transacção; caso a relação jurídica multipolar for parcial ou infra-
(ii) reconvenção; (iii) modificação objectiva da ins- estrutural. A natureza dos interesses presentes
tância; (iv) domínio probatório. nesse tipo de relações legitima a celebração de um
No que respeita à transacção (i), esta surge de- tal contrato entre a entidade demandada e o autor,
finida no Código Civil como “o contrato pelo qual sem que os contra-interessados tenham de figurar
as partes previnem ou terminam um litígio me- também como partes nesse negócio jurídico. Su-
diante recíprocas concessões (art. 1248.º). Deve re- cede apenas que esse contrato não vincula esses su-
ferir-se que a admissibilidade da transacção no jeitos particulares, pelo que os contra-interessados
contencioso administrativo é ainda controversa, podem intentar uma acção relativa à validade deste
defendendo, inclusivamente, certa doutrina, que a contrato [alínea g) do n.º 1 do art. 77.º-A do CPTA]
sua aceitação seria uma contradição lógica na pers- ou impugnar os actos administrativos adoptados
pectiva da prossecução do interesse público por pela Administração na execução do contrato de
parte da Administração Pública, muito particular- transacção (n.º 1 do art. 50.º do CPTA).
mente quando esteja em causa o exercício dos seus No que respeita à reconvenção (ii), esta assume-
poderes de autoridade. Contudo, não há dúvidas -se como fundamental para se entender a extensão
que, actualmente, o nosso contencioso administra- do estatuto de autonomia processual conferido ao
tivo admite a transacção, pois a alínea e) do n.º 1 do contra-interessado. A natureza da reconvenção bas-
art. 27.º do CPTA admite-a expressamente quando ta, por si só, para se compreender a importância da
se refere aos poderes do relator. Esta é, no entanto, dilucidação desta questão quando estamos a tratar
uma referência incidental e não directa, nada dis- de uma figura como o contra-interessado no conten-
pondo a lei sobre o conteúdo, os limites ou as par- cioso administrativo. De facto, a reconvenção é uma
tes que integram a transacção judicial administra- acção autónoma do réu contra o autor, ampliando o
tiva. Ora, precisamente no que respeita às partes objecto do processo da acção já pendente mas com
que têm obrigatoriamente de celebrar o contrato de ela mantendo uma relação de conexão, sendo uma
transacção, coloca-se a questão de saber se os con- espécie de contra-acção (Widerklage) (33). Por conse-
tra-interessados terão de aí figurar para que este guinte, a possibilidade de o contra-interessado de-
possa ser válido. A resposta é claramente positiva duzir uma reconvenção no processo administrativo
no caso de estarmos perante uma relação jurídica colocá-lo-ia numa posição de plena paridade com o
multipolar arbitral. Dúvidas não podem existir que,
neste caso, todas as partes principais presentes em
(33) Sobre a reconvenção, cfr. JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito
juízo (entidade demandada, autor, contra-interes- Processual Civil, cit., pp. 249 e segs., considerando-a o pedido au-
sado) têm de figurar como partes no contrato de tónomo do réu contra o autor, sendo autónomo porque é de sen-
tido diferente do pedido normal da absolvição; MANUEL DE
transacção, porque o objecto desse negócio jurídico
ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, Coim-
reporta-se, precisamente, a um objecto do processo bra Editora, 1979, pp. 146 e segs. – “Na reconvenção, portanto,
que se consubstancia num conflito de interesses o Réu não se limita a sustentar o mal fundado da pretensão do
particulares. Ora, uma transacção, referente a uma Autor, pedindo que isso mesmo seja reconhecido na decisão
final, mas deduz contra o Autor uma pretensão autónoma (hoc
relação jurídica multipolar arbitral, celebrada apenas sensu). Trata-se de uma espécie de contra-acção (Wiederklage),
entre o autor e a entidade demandada, deve ser passando a haver no processo um cruzamento de acções”.

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JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.º 124 • Julho/Agosto 2017

autor e a entidade demandada, sendo-lhe permitido pode, sponte sua, desencadear tais efeitos de forma
dispor do objecto do processo. Mais ainda, sendo a mais expedita), deve esta possibilidade considerar-
reconvenção, por definição, uma acção do réu contra se inadmissível, pois iria resultar numa renúncia da
o autor, se esta faculdade for reconhecida aos con- Administração ao exercício da sua competência (n.º
tra-interessados terá de admitir-se que o contencioso 1 do art. 36.º do CPA). De facto, não é legítimo que a
administrativo dirime litígios entre meros particu- Administração renuncie ao exercício dos seus pode-
lares, com o traço de originalidade de, nesta contro- res de autotutela, mesmo que, numa determinada
vérsia, nenhum deles se encontrar investido de situação, lhe seja mais conveniente que a declaração
poderes de autoridade. do Direito, num caso concreto, seja deixada aos tri-
Com a reforma de 2015, o CPTA passou a pre- bunais. Assim sendo, a utilidade, e admissibilidade,
ver expressamente a possibilidade de serem formu- da reconvenção nos pedidos que seguiam a antiga
lados pedidos reconvencionais no contencioso acção administrativa especial só pode ser equacio-
administrativo (art. 83.º-A). O instituto da recon- nada nos casos em que a entidade demandada não
venção já tinha porém plena aplicação nos casos disponha de poderes de autotutela susceptíveis de
previstos no título II do CPTA que seguiam a forma conformarem a relação jurídica material em causa,
de acção administrativa comum, pois aí, aplicando- designadamente quando se estiver perante relações
-se o processo de declaração previsto no Código de inter-administrativas (34).
Processo Civil (n.º 1 do art. 35.º da versão anterior Já faz plenamente sentido, no entanto, discutir-
do CPTA), nenhuma dúvida se colocava sobre a -se a admissibilidade da figura da reconvenção no
aplicação desta figura ao nosso processo adminis- que respeita à posição e aos poderes de conforma-
trativo. As incertezas surgiam apenas do facto de ção processual que devem ser reconhecidos aos
a reconvenção não se encontrar expressamente pre- contra-interessados. Porém, os contra-interessados
vista na acção administrativa especial, circunstân- posicionam-se ao lado da Administração, no lado
cia que conduzia, legitimamente, à conclusão de passivo da relação processual, consistindo a recon-
que esta teria sido uma omissão deliberada do le- venção, nos termos da teoria geral do processo,
gislador. Isto é, neste tipo de acções, relativas ao num pedido autónomo do réu contra o autor. Este
controlo da legalidade de actos e regulamentos, pedido reconvencional atípico deve ter-se por ad-
não se justificaria admitir a reconvenção porquanto missível, desde que satisfaça os seguintes requisi-
a Administração conserva o poder de modificar tos: a) pedido processual; b) dirigido contra a enti-
unilateralmente a relação jurídica sem necessidade dade demandada; c) que não modifique substan-
de obtenção de uma pronúncia jurisdicional ten- cialmente o objecto do processo; d) realizado no
dente à produção dos mesmos efeitos. prazo da contestação.
Actualmente, o desaparecimento da matriz bipo- Em primeiro lugar (a), teremos de estar perante
lar das formas de processo, seguindo a tramitação a formulação de um verdadeiro pedido processual,
processual uma forma única regulada no capí- distinto do realizado pelo autor, exprimindo uma
tulo I do título II (art. 37.º do CPTA), implica teori- pretensão própria. Naturalmente que o contra-in-
camente a admissibilidade da reconvenção em to- teressado tem a faculdade de desenvolver uma ar-
das as acções, inclusivamente as respeitantes à fisca- gumentação autónoma em face dos restantes sujei-
lização da legalidade de actos e regulamentos. Não
nos parece, porém, que desta unificação das formas (34) Em sentido diverso, cfr. ELIZABETH FERNANDEZ, “A pro-
pósito e a pretexto da reconvenção nas ações administrativas”,
de processo possa retirar-se esta conclusão. De facto,
cit., pp. 389 e segs., admitindo diversas situações em que tais
com excepção dos litígios entre entidades públicas, pedidos podem ser deduzidos, os quais não nos merecem con-
não vemos de que forma possa ser admissível a re- cordância porque são casos em que ou falta interesse processual
à Administração, ou que apenas incidentalmente respeitam ao
convenção nos processos relativos à fiscalização da
exercício de poderes de autoridade, ou ainda que não configu-
legalidade de regulamentos e actos administrativos. ram verdadeira reconvenção, quadro que, todavia, merece aná-
É que, para além de inútil (porque a Administração lise noutra sede.

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O estatuto processual dos contra-interessados nas acções impugnatórias e de condenação à prática de acto administrativo

tos processuais, designadamente alegando vícios para alterar constitutivamente a ordem jurídica num
diversos daqueles que o autor imputa ao acto im- sentido favorável aos seus interesses, designada-
pugnado. Mas se a essa alegação não corresponder mente praticando actos administrativos que benefi-
um pedido diverso do formulado primitivamente ciem a sua esfera jurídica. A jurisprudência parece,
pelo autor não estaremos perante uma reconven- no entanto, ainda renitente quanto ao reconheci-
ção. Assim, se o segundo classificado num con- mento da faculdade de deduzir pedidos reconven-
curso (B) impugnar o acto de adjudicação do qual cionais por parte dos contra-interessados (35).
o primeiro classificado é beneficiário (A), pode este, Em terceiro lugar (c), o pedido autónomo do
sendo contra-interessado na acção, alegar outros contra-interessado não pode modificar substancial-
vícios do acto impugnado, designadamente por en- mente o objecto do processo, ou seja, deve respeitar
tender que a classificação obtida ficou abaixo da- o objecto do litígio fixado no pedido inicial dedu-
quela que lhe seria devida. No entanto, apenas se zido pelo autor, assemelhando-se nessa medida à
dessa dedução o contra-interessado extrair um pe- reconvenção simples, que pressupõe uma conexão
dido diverso do do autor (condenação da Adminis- jurídica entre pretensão e contra-pretensão emer-
tração à prática de um acto de adjudicação em que gente da mesma relação jurídica (36). Nesta medida,
lhe seja atribuída a pontuação que lhe entende ser é admissível que o contra-interessado possa im-
devida) é que estaremos perante uma reconvenção. pugnar um acto diverso daquele impugnado pri-
Em segundo lugar (b), quando se escrutina juris- mariamente pelo autor da acção e que lhe tenha
dicionalmente o exercício de poderes de autoridade, atribuído uma específica vantagem. Será o caso da
não faz qualquer sentido que o contra-interessado impugnação do acto prévio através do qual o autor
deduza pretensões contra o autor ou contra outros foi admitido a concurso, cujo resultado final este
terceiros, externos à demanda, pois nenhum destes sujeito decidiu impugnar, alegando o contra-inte-
sujeitos tem competência dispositiva sobre o objecto ressado, todavia, que essa admissão, antes do mais,
dos litígios em causa. O objecto do processo, numa foi realizada à margem da lei. Deve inclusivamente
acção de impugnação de acto administrativo, é a aceitar-se que o contra-interessado solicite ao tri-
anulação ou a declaração de nulidade desse acto (n.º bunal uma regulação num sentido completamente
1 do art. 50.º do CPTA), enquanto nas acções de con- diverso daquele levado a cabo pela Administração,
denação à prática de acto administrativo devido o de forma a que o resultado final da lide acabe por
objecto é a pretensão do interessado em que a Ad- ser totalmente contrário ao pretendido pelo sujeito
ministração pratique um acto administrativo (n.º 1 que procurou tutela jurisdicional. É o que pode su-
do art. 66.º do CPTA). Por conseguinte, da mesma ceder se o autor, impugnando uma cláusula aces-
maneira que o autor, neste tipo de acções, não pode sória aposta a uma licença, for confrontado com o
formular pedidos contra o contra-interessado (v. g., pedido do contra-interessado visando a anulação
pedido de anulação de uma licença de construção e total desse acto administrativo. Na verdade, é a fi-
condenação do contra-interessado a demolir o cons- gura da relação jurídica administrativa multipolar
truído ao abrigo desse acto), também o contra-inte- que permite explicar esta admissibilidade em ter-
ressado não pode reconvir contra o autor (v. g., mos tão amplos. Este poder processual tem por re-
pedido de demolição de parte da moradia do autor
construída ilegalmente e a partir da qual este sus- (35) Equacionando a questão, muito embora dando a enten-
tentava que a edificação erigida pelo contra-interes- der a opção por uma visão não ajustada ao contencioso admi-
nistrativo, o acórdão do TCA Sul de 12/3/2015, proc. 11 884/15
sado violava as distâncias mínimas de construção).
(Paulo Gouveia), afirmando que a reconvenção que o contra-in-
Nesta medida, a aplicação do instituto da reconven- teressado pretende deduzir não é admissível nos processos cau-
ção ao contra-interessado será sempre atípica, pois telares mas que este mecanismo deve ser dirigido contra o autor
e foi dirigido contra a entidade requerida.
não lhe interessa formular qualquer pretensão con-
(36) Cfr. ULRICH JOERES, Die Rechtsstellung des notwendig Bei-
tra o autor mas apenas contra a entidade deman- geladenen im Verwaltungsstreitverfahren, Berlim, Duncker & Hum-
dada, pois é esta que tem a competência dispositiva blot, 1982, pp. 117-118.

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JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.º 124 • Julho/Agosto 2017

ferência uma única relação jurídica, integrada na blico, que se tenham constituído como contra-interes-
sua vertente horizontal pelo autor e pelo contra-in- sados num processo movido por algum dos sujeitos
teressado, cujas esferas jurídicas foram conforma- à compita, mesmo quando não tenham sido vencedo-
das pela Administração Pública tendo por parâ- res ou visto os seus interesses satisfeitos, podem de-
metro uma norma jurídica administrativa contendo duzir pedidos reconvencionais em face da entidade
um programa normativo multipolar. demandada. Esta é, de resto, a única solução con-
Por último (d), a reconvenção, de acordo com o gruente com o respeito pelo princípio da economia
estipulado no CPC, deve ser realizada no prazo da processual e do caso julgado, pois, a não ser assim, não
contestação (art. 583.º, n.º 1, do CPC ex vi art. 83.º- poderia negar-se-lhes o direito, em violação do prin-
-A do CPTA). cípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.º e 268.º,
Pode ainda questionar-se quanto à reconvenção n.º 4, da CRP e 2.º do CPTA), de intentarem acções au-
do contra-interessado, na sequência do que já foi dito tónomas que lhes permitam exercer as suas preten-
quanto à necessidade de distinguir os respectivos po- sões substantivas. Estar-se-ia, no entanto, a dar azo à
deres em função do tipo de relação jurídica multipo- multiplicação de acções sobre a mesma relação mate-
lar, se este concreto poder processual pode ser pra- rial controvertida, pois a discussão centrar-se-ia sem-
ticado quando o contra-interessado seja sujeito de pre sobre a decisão administrativa que, uniforme-
uma relação jurídica multipolar parcial. A possibilidade mente, estatuiu sobre a atribuição de um bem escasso
de deduzir pedido reconvencional não deve oferecer ao qual concorreram diversos sujeitos particulares.
dúvidas perante uma relação jurídica multipolar ar- Trata-se de uma única relação jurídica multipolar,
bitral, pois aí o objecto do litígio esgota-se essencial- neste caso uma relação multipolar de concorrência de atri-
mente na dirimição de um conflito entre particulares buição, situações em que se confrontam diversos inte-
realizado por via administrativa. Mas esta possibili- resses privados colidentes, os quais aspiram a uma
dade deve encontrar-se também ao dispor dos contra- decisão de escolha, ou repartição de recursos, relati-
interessados numa relação jurídica multipolar parcial, vamente escassos, cuja competência pertence à Admi-
pois, apesar de estes não poderem dispor do objecto nistração Pública (Wechselbezüglichkeit) (37).
do litígio, são também titulares de direitos subjectivos Quanto à modificação objectiva da instância (iii),
que se encontram contidos em tal objecto. Assim, deve dúvidas podem colocar-se quanto ao posiciona-
ser admitido em nome do princípio da tutela jurisdi- mento dos contra-interessados perante as vicissitu-
cional efectiva do contra-interessado (arts. 20.º e 268.º, des que podem ocorrer na pendência do processo,
n.º 4, da CRP, e 2.º do CPTA) e da igualdade de armas as quais são susceptíveis, inclusivamente, de pro-
em face dos outros sujeitos processuais (art. 6.º do vocar uma alteração do universo desses sujeitos
CPTA), sendo que a prática deste acto processual não processuais. Na pendência do processo pode a Ad-
colide nem com o poder que deve ser reconhecido ao ministração praticar actos administrativos que im-
autor de configurar o litígio (desde que observado o pliquem uma modificação do objecto do processo,
limite da não modificação substancial do objecto do pelo que o CPTA regula as várias hipóteses de ocor-
processo), nem com o da entidade demandada de
prossecução do interesse público (prática de actos ad- (37) Cfr. FRANCISCO PAES MARQUES, As Relações Jurídicas Ad-
ministrativas Multipolares – Contributo para a sua compreensão subs-
ministrativos na pendência do processo). Daí termos
tantiva, cit., pp. 90 e segs., onde explicamos que os interesses
defendido que a figura do contra-interessado, mesmo privados que se defrontam, neste tipo de relações, são de natu-
numa relação jurídica deste tipo, não podia ser assi- reza homogénea, pois ocorrem nos casos em que diversos con-
correntes pretendem obter idêntica vantagem, a qual, não
milada à figura do assistente no processo civil, pois
obstante, só poderá ser conseguida por algum ou alguns desses
este deve ter o poder de influir autonomamente no particulares, ou seja, apresentam-se como as clássicas situações
objecto do processo, não valendo a limitação de serem de soma nula (Nullsumme-Situation). Este tipo de situações ve-
auxiliares de uma das partes ou estarem subordina- rifica-se, por exemplo, nos concursos para atribuição de licenças
de táxis, nos concursos de admissão à universidade ou nos con-
dos à parte principal (art. 328.º, n.os 1 e 2, do CPC). cursos de escolha do co-contratante com vista à celebração dos
Assim, os diversos concorrentes num concurso pú- diversos contratos administrativos de colaboração.

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O estatuto processual dos contra-interessados nas acções impugnatórias e de condenação à prática de acto administrativo

rência de tais situações, disciplinando o respectivo constituição da instância, pelo que a tarefa de pro-
enquadramento processual. Assim, o objecto do tecção dos direitos fundamentais que lhe servia de
processo pode ser ampliado para contemplar a im- fundamento transferiu-se definitivamente para o
pugnação de novos actos que venham a surgir na poder jurisdicional. Por conseguinte, o exercício do
sequência do procedimento administrativo (art. direito de acção, exprimindo a rejeição do autor
63.º), ou anulação, sanação e revogação do acto im- sobre o exercício do mandato de conformação mul-
pugnado com efeitos retroactivos (art. 64.º) ou re- tipolar, traduz-se, simultaneamente, no esgotamen-
vogação do acto impugnado sem efeitos retroa- to do exercício das competências multipolares deti-
ctivos (art. 65.º). Estas situações são também objecto das pela Administração Pública, fazendo emergir as
de tratamento na acção de condenação à prática de competências referentes ao exercício da prerrogativa
acto administrativo devido (art. 70.º). de sindicabilidade multipolar. Assim sendo, o man-
O exercício de competências jurídico-administra- dato de conformação multipolar apenas recobra a
tivas na pendência do processo tem implicações de sua potência em sede de execução de sentenças, a
grande alcance no que respeita aos contra-interessa- partir do trânsito em julgado da decisão jurisdicio-
dos. É susceptível de, por um lado, modificar a res- nal ou da notificação à Administração no caso da in-
pectiva posição jurídica que estes detinham no mo- terposição de recurso com efeitos meramente devo-
mento de constituição da instância, e de, por outro lutivos (art. 160.º, n.os 1 e 2, do CPTA). Naturalmente
lado, provocar um alargamento significativo do uni- que, nesse domínio, as competências administrati-
verso dos contra-interessados que têm de ser cha- vas terão de ser exercidas nos limites ditados pela
mados ao processo, caso os actos praticados afectem autoridade do caso julgado (art. 173.º, n.º 1, do
a esfera jurídica de novos sujeitos para além daque- CPTA), encontrando-se a discricionariedade admi-
les que foram identificados e tenham intervindo no nistrativa especialmente comprimida.
momento da constituição da instância. Não pode- Ora, esta cristalização do interesse público por
mos analisar nesta sede as implicações que resultam força da constituição da instância não tem aplicação
do exercício de tais competências na esfera dos con- nas relações jurídicas multipolares parciais e infra-estru-
tra-interessados (38). turais. Nestes domínios, poderá a Administração,
O que nos interessa aqui destacar é a circunstân- por razões de mérito ou de legalidade, proceder a
cia de estes poderes praticados pela Administração uma nova regulação da situação em causa, con-
na pendência do processo não assumirem um al- quanto o exercício de tal competência se reporte a
cance idêntico perante todo o tipo de relações jurí- um motivo de interesse público, ligado ao objecto
dicas multipolares. Nesta medida, perante uma rela- do litígio, que se diferencie ou que extravase o con-
ção jurídica multipolar arbitral, a partir do momento flito entre interesses privados. De qualquer forma,
em que se tenha constituído a instância, não mais tais motivos devem ser suficientemente fundamen-
poderá a Administração influir na regulação da re- tados (art. 152.º do CPA), não devendo o tribunal ad-
lação material controvertida, designadamente pro- mitir a inutilidade superveniente da lide em face da
vocando a inutilidade superveniente da lide através não demonstração convincente da prossecução de
da prolação de uma nova decisão de fundo sobre o tais fins. De qualquer modo, deveria prever-se um
objecto do processo que substitua o acto impug- qualquer mecanismo, em nome do princípio da eco-
nado. Com efeito, a resolução do conflito entre inte- nomia processual, que permitisse ao contra-interes-
resses privados, no qual se consubstanciava exclusi- sado impugnar o novo acto, assumindo a posição de
vamente o interesse público all things considered, cris- autor, invertendo-se, nesses termos, os papéis pro-
talizou-se substantivamente a partir do momento da cessuais das partes na acção (39).

(38) Que analisámos na nossa dissertação, cfr. FRANCISCO (39) Como já tínhamos notado em FRANCISCO PAES MARQUES,
PAES MARQUES, Conflitos entre Particulares de Oposição Reversível A Efectividade da Tutela de Terceiros no Contencioso Administrativo,
no Contencioso Administrativo, cit., pp. 558 e segs. Coimbra, Almedina, 2007, p. 112.

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JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.º 124 • Julho/Agosto 2017

No que respeita ao domínio probatório (iv), en- sivamente, em termos materiais, aos sujeitos priva-
tende a doutrina nacional, na senda da doutrina dos. De facto, as considerações expostas anterior-
germânica, que a regra geral segundo a qual quem mente quanto à inaplicabilidade das regras gerais
invoca um direito tem o ónus da prova dos respec- sobre esta matéria apenas fazem sentido quando o
tivos factos constitutivos, cabendo à contraparte a Estado se limitou a regular o exercício de direitos
prova dos factos impeditivos, modificativos ou ex- fundamentais em colisão, tudo se resumindo a uma
tintivos (art. 342.º do Código Civil), não tem apli- arbitragem entre liberdade contra liberdade. Neste
cação nos processos de impugnação de actos e de sentido, numa relação jurídica multipolar arbitral não
normas. Assim, deveria ser a Administração a su- é aplicável, pura e simplesmente, a inadmissibili-
portar a desvantagem de não ter sido feita prova dade da ficta confessio (n.º 4 do art. 83.º do CPTA),
da verificação dos pressupostos legais que lhe per- quer a factos que respeitem autonomamente ao
mitem agir com autoridade. O autor está investido contra-interessado, quer mesmo àqueles que que
de uma posição diferente consoante mova uma de- respeitem apenas à Administração. Assim, tem o
fesa por impugnação ou uma defesa por excepção, contra-interessado de impugnar todos os factos ale-
sendo que no primeiro caso a pretensão anulatória gados pelo autor sob pena de eles se considerarem
será fundada desde que se verifique que não se provados e, mesmo em relação aos factos de que só
preenchem os factos constitutivos da posição da a Administração tenha conhecimento, tem também
Administração, enquanto no segundo caso tal de- esta de os contestar, não sendo aplicável o disposto
penderá da verificação da existência de factos im- no referido n.º 4 do art. 83.º. Com efeito, e não obs-
peditivos, modificativos ou extintivos dessa posi- tante tal situação ir-se traduzir num prejuízo para
ção (40). Mas, precisamente, certa doutrina germâ- o contra-interessado não susceptível de lhe ser im-
nica nota que estas regras de distribuição do ónus putável, e em face do qual não dispõe de meios para
da prova no contencioso administrativo (Materielle o evitar, outra solução não pode defender-se em
Beweislast), fazendo todo o sentido no domínio das virtude de, numa relação jurídica multipolar arbitral,
relações bipolares entre a Administração e os par- a indisponibilidade dos interesses envolvidos no
ticulares, não deveriam ter aplicação quando a re- exercício da competência administrativa não ter a
lação jurídica é multipolar, pois deixa de se veri- mesma amplitude quando está em causa um inte-
ficar o fundamento que lhes serve de base: o prin- resse público em sentido estrito. Nestas situações
cípio in dubio pro libertate (41). Neste tipo de proces- há uma autonomia total das posições da Adminis-
sos verifica-se uma colisão de interesses privados tração e dos opositores particulares, pelo que ape-
que foi objecto de regulação administrativa. nas quando se esteja perante uma relação jurídica
Deverá, no entanto, aceitar-se que as regras que multipolar parcial ou infra-estrutural beneficiam estes
oneram, ou privilegiam, a Administração em maté- das vantagens que constituam o reflexo incindível,
ria probatória no contencioso administrativo são na respectiva esfera jurídica, do exercício das prer-
inaplicáveis em face de toda e qualquer relação ju- rogativas processuais da entidade demandada.
rídica multipolar? A resposta deve ser negativa por- De resto, numa relação jurídica multipolar arbitral
que tais regras apenas são de afastar, em bloco, também não pode verificar-se essa incindibilidade
perante uma relação jurídica multipolar arbitral, pois no que tange à situação prevista no n.º 1 do art. 84.º
apenas neste caso o objecto do litígio respeita exclu- do CPTA, que ao prescrever o dever de a entidade
demandada remeter ao tribunal o processo adminis-
trativo determina que, na falta desse envio, os factos
(40) Neste sentido, cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Sobre as
regras de distribuição do ónus material da prova no recurso
alegados pelo autor se consideram provados se essa
contencioso de anulação de actos administrativos”, in CJA, n.º falta tiver tornado a prova impossível ou de consi-
20, Março/Abril de 2000, pp. 49 e segs. derável dificuldade (n.º 6 do art. 84.º). Em primeiro
(41) Neste sentido, cfr. M. SCHMIDT-PREUSS, Kollidierende Pri-
vatinterressen im Verwaltungsrecht, 2.ª ed., Berlim, Duncker &
lugar, porque o objectivo desta disposição é sancio-
Humblot, 2005, p. 620. nar a Administração por uma conduta que lhe é im-

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O estatuto processual dos contra-interessados nas acções impugnatórias e de condenação à prática de acto administrativo

putável, desincentivando a sonegação administra- de um conflito entre particulares, não podem os


tiva de elementos fundamentais necessários à reali- opositores particulares ficar irremediavelmente pre-
zação da prova em juízo. Em segundo lugar, porque judicados por esta inversão do ónus da prova, espe-
se neste tipo de conflitos a Administração não é di- cialmente quando não contribuíram para esta con-
rectamente interessada, a probabilidade da ocorrên- duta administrativa nem possuem meios para suprir
cia de tal conduta é consideravelmente menor. Em esta omissão.
terceiro lugar, porque, tratando-se substancialmente

FRANCISCO PAES MARQUES

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