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Direito Penal I

3.º Ano – Dia – Turmas A e B


Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Sónia Moreira
Reis, António Brito Neves, Catarina Abegão Alves e Rita do Rosário, e
Licenciado Nuno Igreja Matos
Exame época normal - 7 de junho de 2021
Duração: 90 minutos

“Lady Macbeth”

Abílio vive angustiado por não ser CEO de uma empresa da família, preterido pela sua
prima, Beatriz, a preferida dos sócios. A mulher de Abílio, alcunhada de “Lady Macbeth”,
diz a Abílio que é um fraco por se deixar ultrapassar por uma mulher e que deveria arranjar
forma de a afastar. Com o auxílio de César, contabilista da empresa, Abílio faz uma denúncia
falsa de que Beatriz teria desviado dinheiro. O processo-crime vem a ser arquivado no fim
do inquérito.
Lady M, porém, insiste com Abílio para utilizar métodos mais drásticos e sugere-lhe que
contrate um assassino profissional, Duarte, com quem ela já falara sobre o assunto. Abílio
aceita pagar a Duarte vinte mil euros para fazer explodir o carro de Beatriz, estacionado na
garagem da empresa, quando ela ligar o motor. Duarte aceita o dinheiro, mas coloca os
explosivos, por engano, no carro de Lady M.
Abílio verifica, através de uma câmara de vigilância, que o carro de Lady M está a ser
armadilhado e que esta não poderá ser avisada a tempo por ter o telemóvel desligado. Assim,
manda Eduardo, segurança da garagem, disparar sobre Duarte, ferindo-o para o imobilizar.
Lady M, ao aproximar-se, pensando que Eduardo a pretende atingir, dispara na sua direção
para o afugentar, atingindo-o no tórax. De seguida, foge sem o socorrer.
Eduardo vem a morrer no hospital. Na autópsia, o ferimento é identificado como causa
da morte, mas o médico afirma que não pode garantir que Eduardo teria morrido se não
estivesse muito debilitado por ter contraído Covid-19 no hospital.

Determine a responsabilidade penal dos intervenientes, analisando,


designadamente, as questões de imputação objetiva, imputação subjetiva,
justificação, erro, omissão, tentativa e comparticipação suscitadas pela hipótese.

Cotações:
Abílio – 6 vls.; Lady M- 6 vls.; Duarte – 2 vls.; César – 2 vls.; Segurança – 2 vls.
Ponderação global: 2 vls.
Tópicos de correção

Duarte
Homicídio (art. 131.º):
- Tipo objetivo: D coloca explosivos no carro de Lady M que não chegam a causar-lhe a
morte, como projetado. Uma vez que a vítima já se aproximava do veículo e estava prestes a
ser vítima da explosão, tanto a proximidade temporal como a interferência com a sua esfera
indicam haver atos de execução de acordo com o art. 22.º, n.º 2, al. c), uma vez que se verifica
o perigo para os bens jurídicos protegidos pela norma penal, já que o facto praticado cria a
potencialidade objetiva de concretização do resultado, esperando-se a explosão, de acordo
com as regras da experiência comum.
- Tipo subjetivo: D atua representando que vai matar uma pessoa com a sua ação e com
intenção de o fazer, tendo dolo na modalidade de intenção (art. 14.º, n.º 1). O erro sobre a
identidade é irrelevante, visto não incidir sobre um elemento essencial do tipo.
- Não há causas de justificação nem de desculpa, sendo que a referência a esta inexistência não
releva para efeitos de cotação.
- A tentativa é punível, nos termos do art. 23.º, n.º 1.

Eduardo
Ofensa à integridade física (art. 143.º; ou 144.º, se grave):
- Tipo objetivo: E cria um risco proibido com o disparo, que se concretiza no resultado do
ferimento, visto este ser consequência causal direta da ação. Em alternativa, se se interpretar o
enunuciado no sentido de E não ter chegado a atingir D, deve resolver-se em conformidade.
- Tipo subjetivo: E representa e tem intenção de ferir D por meio do disparo, agindo com
dolo direto (art. 14.º, n.º 1). Em alternativa, pode abrir-se a hipótese de atuar com dolo eventual de
homicídio.
- Ilicitude: E repele a agressão atual e ilícita de D. Pode supor-se, porém, que tinha tempo
de gritar ou disparar primeiro um tiro de aviso, havendo excesso intensivo de legítima defesa.
- Culpa: não se dando nota de medo, perturbação ou susto de E, o excesso não é asténico,
restando somente a possibilidade de atenuação especial da pena, nos termos do art. 33.º, n.º
1, caso se conclua que a diminuta gravidade da culpa a impõe.

Abílio
Denúncia caluniosa (art. 365.º):
- Tipo objetivo: A denuncia falsamente B, supõe-se, às autoridades, apontando-lhe a prática
de um crime.
- Tipo subjetivo: A atua com a consciência da falsidade da imputação e movido pelo
propósito de ser aberto procedimento criminal, tendo dolo na modalidade de intenção (art.
14.º, n.º 1).
- Não há causas de justificação nem de desculpa, sendo que a referência a esta inexistência não
releva para efeitos de cotação.

Homicídio de B/Lady M (art. 131.º):


- Tipo objetivo: embora leve D a praticar atos de execução do homicídio de Lady M, uma
vez que D é responsável doloso, não pode falar-se em instrumentalização. Determinando o
autor material à prática do crime, A é instigador do homicídio, aplicando-se o art. 26.º, parte
final, devendo explicitar-se o critério de distinção entre instigação e autoria mediata.
- Tipo subjetivo: A tem (duplo) dolo direto (art. 14.º, n.º 1), tanto desejando convencer D
a matar B como pretendendo que esta morra efetivamente. Por erro do autor material sobre
a identidade da vítima, contudo, a pessoa quase atingida é Lady M. Têm-se apresentado
sobretudo duas soluções para o problema.
Alguns autores entendem que o erro sobre a identidade, irrelevante para o dolo do autor
material, confere à ocorrência, na perspetiva do instigador, uma estrutura análoga à do erro
na execução, cabendo identificar uma tentativa do crime projetado e um crime consumado
negligente, dada a multiplicidade de ações finais que compõem o facto praticado. Como,
porém, não chegou a haver atos de execução do crime projetado e o crime realizado não se
consumou (nem sendo punida a instigação negligente), A não é punido.
Noutra linha, pode defender-se que o desvio do instigado representa uma hipótese de
excesso de mandato, imputável ao instigador somente a título de dolo no caso de ele se ter
conformado com tal eventualidade (para o que o enunciado não oferece dados), ou de
negligência, em caso contrário. Ainda que se adote esta última interpretação – que se tem
como a juridicamente válida –, contudo, não se consumando o crime, a punição a título de
negligência não terá lugar.
- Supondo-se o dolo e adotando-se a última interpretação: não há causas de justificação
nem de desculpa.
- Recorrendo ao que parece ser o único meio disponível para interromper a execução, A
desenvolve um esforço sério nesse sentido, como requerido no art. 25.º Ainda assim, pode
defender-se haver aqui uma tentativa fracassada, visto que o agente recua apenas por ver que
a execução não se dirige à concretização do seu plano. Se, no entanto, se rejeitar esta figura
(que não tem sequer consagração legal), deve admitir-se haver desistência e discutir-se a sua
voluntariedade, podendo aceitar-se que na falta de forças exteriores a impedirem ou a
tornarem muito difícil a concretização do facto típico, a decisão é ainda atribuível ao agente
em condições de liberdade suficientes para se afastar a punibilidade, sendo necessária a
explicitação dos critérios de relevância da desistência adotados.

Ofensa à integridade física (art.143.º; ou 144.º, se grave):


- Tipo objetivo: embora leve E a praticar atos de execução do crime contra D, uma vez que
E é responsável doloso, não pode falar-se em instrumentalização. Determinando o autor
material à prática do crime, A é instigador da ofensa à integridade física, aplicando-se o art.
26.º, parte final. Há execução e consumação do crime pelo autor material.
- Tipo subjetivo: A tem (duplo) dolo direto (art. 14.º, n.º 1), tanto desejando convencer E a
atingir D como pretendendo que este seja efetivamente ferido.
- Ilicitude: Tendo E seguido as instruções de A, valem as indicações respeitantes ao excesso
de legítima defesa expostas quanto a E.
- Culpa: apressando-se A por temer que a mulher seja morta, pode admitir-se a existência
de medo, perturbação ou susto, sendo asténico o excesso. A sua precipitação parece poder
explicar-se pelo pânico existencial que representa a iminência do perigo para a vida de alguém
muito próximo, com quem partilha um projeto de vida, aceitando-se que a pressão de tais
circunstâncias sobre a capacidade de motivação pela norma a dificultou ao ponto de se
fundamentar a desculpa.

César
Denúncia caluniosa (art. 365.º):
- Tipo objetivo: dizendo-se que C prestou “auxílio” a A na prática da denúncia caluniosa,
deve ele ser identificado como cúmplice, nos termos do art. 27.º, n.º 1. Há consumação do
crime por parte do autor material.
- Tipo subjetivo: presume-se que C atua representando e tendo a intenção tanto de ajudar
A como de que a denúncia seja efetivamente realizada, tendo consciência da falsidade da
imputação e guiando-se pelo propósito de que seja instaurado procedimento criminal,
agindo, em suma, com (duplo) dolo direto (art. 14.º, n.º 1).
- Não há causas de justificação nem de desculpa. Sendo o facto do autor material típico e
ilícito (além de doloso), respeita-se também a acessoriedade limitada.
Lady M
Denúncia caluniosa (art. 365.º):
- Tipo objetivo: ao convencer A a “arranjar uma forma de afastar” B, Lady M determina-o
à prática da denúncia caluniosa, sendo instigadora deste crime (visto que A é responsável
doloso pelo mesmo), nos termos do art. 26.º Há consumação do crime por parte do autor
material.
- Tipo subjetivo: presume-se que Lady M, mesmo não tendo em mente este procedimento
específico, atua desejando qualquer via que produza a remoção de B da empresa, tendo, por
isto, (duplo) dolo, ao menos eventual (art. 14.º n.º 3).
- Não há causas de justificação nem de desculpa.

Homicídio de B/Lady M (art. 131.º):


- Desejando tanto a determinação da vontade de A como a provocação da morte de B, Lady
M, com dolo direto (art. 14.º, n.º 1), convence A a engendrar a morte de B, sendo instigadora
do homicídio, nos termos do art. 26.º, parte final. Vindo A, por sua vez, a instigar D, há
instigação em cadeia e vale o já referido, no que respeita às soluções da aberratio ictus e do
excesso de mandato, quanto a A.

Homicídio de E (art. 131.º):.


- Tipo objetivo: Lady M cria um risco proibido ao disparar sobre E. Há dúvidas, porém,
levantadas pelo médico, sobre se o ferimento era mortal isoladamente considerado. Ainda
que a contração do vírus no hospital não se tenha devido a uma falha de higiene anormal ou
circunstância anómala – caso em que a imprevisibilidade do contágio afastaria, desde logo, a
imputação do resultado à conduta, pela lógica da interrupção do nexo causal –, a verdade é
que o curso da contração e desenvolvimento da infeção não configura um risco controlável
por quem disparou, faltando o domínio sobre os meios de infeção, exigível em termos de
ação final, pelo que se deve afastar a imputação objetiva do resultado à conduta.
Resposta diferente apenas seria admissível caso se considerasse que, no contexto da
transmissão comunitária do vírus, fosse previsível para Lady M que E seria transportado para
um hospital em que os contágios fossem descontrolados, enquadrando-se, ainda, no
conjunto de riscos minimamente previsíveis criado por meio de disparo com arma de fogo,
ainda mais atendendo à zona atingida, diretamente relacionável com maiores riscos de
complicações no caso de contração do vírus.
- Tipo subjetivo: atendendo tanto ao meio perigoso utilizado como à zona atingida
(supondo-se que ou foi feita pontaria para essa direção, ou, no mínimo, houve
despreocupação quanto ao local que seria atingido), Lady M atua representando (ainda que
não refletidamente) que pode matar uma pessoa com a sua ação, conformando-se, ao menos,
com a possibilidade de o fazer, tendo dolo eventual (art. 14.º, n.º 3).
- Não se verificam os pressupostos de nenhuma causa de justificação, mas Lady M atua na
suposição de que E está prestes a atingi-la, representando a existência duma agressão atual e
ilícita. Pode admitir-se que na iminência de um disparo contra si, não seria requerido que
Lady M corresse perigo de vida perdendo tempo com alertas ou disparos de aviso, pelo que
o meio usado teria sido necessário no caso de haver efetivamente agressão. Assim, está
preenchido o art. 16.º, n.º 2, primeira parte, excluindo-se a culpa dolosa, cabendo ressalvar a
punibilidade por negligência, nos termos do art. 16.º, n.º 3, no caso de se ter verificado algum
descuido da parte de Lady M que explique a formação do erro.
Direito Penal II
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Sónia Moreira
Reis, António Brito Neves, Catarina Abegão Alves e Rita do Rosário, e
Licenciado Nuno Igreja Matos
Exame época normal – coincidências - 29 de junho de 2021
Duração: 90 minutos

“Teletrabalho e vingança”

Amaral e Benedita viviam num apartamento localizado no 13.º andar, com os seus
filhos, Carlitos, de 3 anos, Diana, de 10, e Emília, de 16. Por força da pandemia, Amaral
foi forçado a ficar em teletrabalho, confinado ao ambiente familiar, no qual era
frequentemente perturbado com os gritos de Carlitos. Neste contexto, desenvolveu um
profundo estado de exaustão que levou a alterações do seu comportamento, passando a ter
violentos acessos de fúria. Sem procurar ajuda médica. Amaral decidiu “acabar com a fonte
do sofrimento”. Assim, enquanto Benedita estava fora, em trabalho, Amaral preparou o
lanche para os dois filhos mais novos, envenenando os cereais de Carlitos, e pediu a Emília
que os levasse aos irmãos. Por lapso, Emília trocou os pratos, entregando o lanche
envenenado a Diana. Esta sentiu uma forte indisposição, gritando pelo pai. Percebendo que
tinha envenenado a filha, Amaral levou Diana para o hospital, onde foi salva.
Emília ficou em casa com o irmão mais novo, mas, abatida pela situação, fechou-se no
seu quarto a chorar, deixando, por esquecimento, a porta da varanda da sala aberta. Carlitos,
que estava no sofá a ver o filme do Peter Pan, tentou imitar a personagem, saltando pela
varanda e morrendo com o impacto da queda.
Quando descobriu o que tinha ocorrido na sua ausência, Benedita jurou vingar-se do
marido. Para tal, convenceu Filipe, seu amante, a espancar Amaral – que aguardava
julgamento em liberdade e se tinha mudado para uma pensão –, independentemente das
consequências. Filipe dirigiu-se ao local, forçou a fechadura e introduziu-se no quarto de
Amaral, durante a ausência deste. Contudo, Guilhermina, empregada da pensão, revoltada
porque os patrões tinham acolhido “um monstro” como cliente, tinha, nessa manhã, deitado
uma substância oleosa no chão da casa-de-banho, para que Amaral escorregasse. Enquanto
aguardava o regresso deste, Filipe foi lavar as mãos, escorregou e bateu com a cabeça no
lavatório.
Quando voltou ao quarto, Amaral foi surpreendido com Filipe deitado no chão,
sangrando profusamente da cabeça. Assustado, fugiu sem chamar ajuda. Filipe só foi
socorrido horas mais tarde, sendo submetido a uma cirurgia de urgência. Devido à demora
no socorro, Filipe já não pôde ser salvo e acabou por morrer.

Determine a responsabilidade penal dos intervenientes, analisando,


designadamente, as questões de imputação objetiva, imputação subjetiva,
justificação, erro, omissão, tentativa e comparticipação suscitadas pela hipótese.

Cotações: Amaral – 6 vls.; Benedita – 2 vls.; Emília – 6 vls.; Filipe – 2 vls.; Guilhermina
– 2 vls; Ponderação global: 2 vls.
Tópicos de correção

Emília (6 valores)

1. Homicídio de Diana (art. 131.º)


- Tipicidade objetiva: ao entregar o lanche envenenado à irmã, Emília criou um risco
proibido (concretizando a ação idónea à produção da morte e praticando, desta forma, atos
de execução nos termos do art. 22.º, n.º 2, al. b), do CP), o qual não se concretizou, porém,
no resultado, uma vez que Diana foi salva.
- Tipicidade subjetiva: Emília desconhecia a existência de veneno no lanche, pelo que
se excluía o dolo do tipo (art. 16.º, n.º 1, primeira parte, do CP). Não havia qualquer indício
de que Emília tivesse violado deveres de cuidado, pelo que não poderia ser punida por
negligência (art. 16.º, n.º 3, do CP), o que seria inviabilizado, ainda, pelo facto de o tipo não
ter sido consumado. Assim sendo, Emília não seria punida por tentativa de homicídio.

2. Homicídio de Carlitos (art. 131.º)


- Tipicidade objetiva: ao deixar o irmão de 3 anos sozinho na sala, com a porta da
varanda aberta, Emília omitiu a vigilância de Carlitos, não diminuindo o risco. Esta omissão
era impura, uma vez que incidia, sobre Emília, um dever de garante resultante da relação
familiar na qual Emília havia assumido, ainda que implicitamente, o dever de proteção do
irmão mais novo, havendo uma autovinculação nesse sentido. A morte de Carlitos poderia
ser imputada à conduta omissiva de Emília, uma vez que a ação de vigilância devida teria
evitado aquele resultado – bastava, por exemplo, que Emília tivesse fechado a porta da
varanda.
- Tipicidade subjetiva: ainda que, ao deixar o irmão sozinho, pudesse prever a
possibilidade de que este se magoasse, nada indicava que Emília representasse que Carlitos
pudesse saltar pela varanda. Ainda assim, a violação do dever de cuidado parecia sustentar a
punibilidade por negligência (art. 137.º do CP).
- Ilicitude: não se verificavam causas de exclusão da ilicitude.
- Culpa: admitir-se-ia a discussão sobre o estado emocional de Emília, que a pode ter
condicionado no sentido de não reconhecer a gravidade do perigo em que colocou o irmão.
Contudo, a circunstância de ter ficado em casa, precisamente, para vigiar o irmão parece
afastar a existência de uma perturbação de tal modo forte que impedisse Emília de se motivar
pela norma, pelo que não haveria fundamento excluir a culpa.

Amaral (6 valores)

1. Homicídio de Carlitos/Diana (art. 131.º)


- Tipicidade objetiva: instrumentalizando Emília para envenenar o filho, Amaral seria
autor mediato do homicídio deste (art. 26.º, segunda preposição, do CP), detendo o domínio
do facto executado através de um agente que não era plenamente responsável (Emília age
sem dolo). Apesar da criação de risco proibido, o resultado não se chegou a verificar, pelo
que apenas poderia ser punido por tentativa, caso se possa, ainda, afirmar o dolo de Amaral,
já que foram praticados atos de execução de homicídio e este crime é punido na forma
tentada (art. 23.º, n.º 1, do CP).
- Tipicidade subjetiva: Amaral agiu com dolo direto (art. 14.º, n.º 1, do CP). Ainda que
o autor material se tenha enganado na vítima, tal não deveria ser interpretado como um erro
de execução do autor mediato, pois, ainda que se pudesse configurar a atuação daquele como
um “mecanismo que falha o alvo”, este engano não deveria aproveitar ao autor mediato, já
que, ao entregar os dois lanches a Emília, Amaral criara um risco muito intenso de erro por
parte da filha, sendo a possibilidade de falhar o alvo previsível. Houve, por parte do autor
mediato, uma única ação dirigida à lesão do bem jurídico, à qual sucedeu um erro sobre a
pessoa, pelo que deveria ser punido por um único crime doloso de homicídio (de Diana),
não se excluindo o dolo. Carlitos, por seu turno, não chegou a estar em perigo, não podendo
identificar-se, na conduta de Amaral, uma pluralidade de ações que abarcasse,
separadamente, um curso causal relativo à morte deste. Em conclusão, Amaral poderia, caso
as restantes categorias da teoria geral da infração o sustentassem, ser punido pelo homicídio
de Diana na forma tentada.
- Ilicitude: não se verificava qualquer causa de exclusão da ilicitude. Ainda que os gritos
de Carlitos perturbassem o ambiente familiar, representando, para Amaral, uma “fonte de
sofrimento”, tal não configurava a agressão de um interesse juridicamente protegido para
efeitos de aplicação da legítima defesa: embora a saúde (auditiva e mental) constituísse um
bem jurídico protegido pelo Direito Penal, o comportamento de Carlitos não era uma
agressão ilícita do mesmo; ainda que assim não fosse, sempre haveria outros modos de a
repelir.
- Culpa: suscitava-se o problema de saber se o estado de perturbação em que Amaral se
encontrava era de tal modo intenso que o impedisse de avaliar a ilicitude da sua conduta.
Ainda que o conseguisse fazer, a sua capacidade para se determinar por essa avaliação poderia
estar suprimida – caso em que se deveria declarar a sua inimputabilidade (art. 20.º, n.º 1, do
CP), já que afastava a justa oportunidade de motivação pela norma (Fernanda Palma), ou,
noutra perspetiva, a anomalia psíquica de que sofria seria o fator que explicava o seu
comportamento, o qual não seria compreensível como facto da personalidade do agente
(Figueiredo Dias) – ou, pelo menos, fortemente condicionada. No entanto, o carácter
premeditado do envenenamento – e sem dados sobre a afetação da capacidade de
determinação provocada pela perturbação – sugeria que aquela capacidade não teria sido
absolutamente afastada, mas, talvez, apenas diminuída. Neste caso, ter-se-ia de analisar o
preenchimento dos requisitos previstos no art. 20.º, n.º 2, do CP, como a gravidade da
anomalia psíquica não acidental – que não estaria, pelos dados fornecidos no enunciado,
claramente afastada – e a ausência de domínio dos efeitos da anomalia psíquica, bem como
a não censurabilidade dessa circunstância. Embora o enunciado não explicitasse o estado
psíquico em que Amaral se encontrava, o facto de não ter procurado ajuda psiquiátrica deixa-
nos sem dados que apontem a falta de domínio dos efeitos da perturbação de que sofria,
pelo que seria de rejeitar a declaração de inimputabilidade, sendo, assim, punido pelo crime
em causa.

2. Omissão de auxílio de Filipe (art. 200.º)


- Tipicidade objetiva: ao abandonar o local sem promover o auxílio de Filipe, Amaral
não diminuiu o perigo para a vida deste, praticando uma omissão. Não tendo posição de
garante em relação àquele (salvo se se aceitasse a posição de monopólio e se explicasse a
verificação dos seus pressupostos), só poderia haver omissão de auxílio (art. 200.º, n.º 1, do
CP): numa situação em que a vida de Filipe se apresentava em grave perigo, sangrando
intensamente, Amaral praticou uma omissão de auxílio.
- Tipicidade subjetiva: decidindo abandonar Filipe sem promover o seu socorro,
Amaral agiu com dolo direto (art. 14.º, n.º 1, do CP).
- Ilicitude: não havia causas de exclusão da ilicitude.
- Culpa: não se verificava qualquer causa de exclusão da culpa, sendo punido pela
omissão.

Filipe (2 valores)

1. Ofensa à integridade física de Amaral (art. 143.º)


- Tipicidade: ainda que fosse a sua intenção (art. 14.º, n.º 1, do CP), Filipe não chegou a
praticar atos de execução do crime de ofensa à integridade física contra Amaral: a introdução
no quarto em que este se havia instalado constituía, ainda, um mero ato preparatório não
punível (art. 21.º do CP), uma vez que não criara, ainda, um perigo para o bem jurídico
protegido, não se verificando, nesta fase, a potencialidade objetiva de concretização da lesão
da integridade física de Amaral. Por conseguinte, Filipe não poderia ser punido pela prática
deste crime.

2. Violação de domicílio (art. 190.º)


- Tipicidade objetiva: Filipe introduziu-se no quarto em que Amaral residia durante
certo período de tempo, pelo que, de acordo com os critérios da interpretação em Direito
Penal, praticou a conduta descrita no tipo, violando a habitação alheia.
- Tipicidade subjetiva: Filipe representou e teve intenção de se introduzir sem
consentimento na habitação de Amaral, agindo com dolo direto (art. 14.º, n.º 1, do CP).
- Ilicitude: não havia causas de justificação.
- Culpa: não havia causas de desculpa.

Benedita (2 valores)

1. Ofensa à integridade física de Amaral (art. 143.º)


- Tipicidade objetiva: convencendo Filipe a espancar Amaral, Benedita agiu como
instigadora do crime de ofensa à integridade física, considerando que Filipe era responsável
a título doloso pelo facto que iria praticar. No entanto, o instigado não chegou a praticar atos
de execução, pelo que, por força da acessoriedade limitada (na vertente quantitativa),
Benedita não seria punida pela tentativa de instigação (art. 26.º, parte final, do CP).
- Tipicidade subjetiva: Benedita agiu com duplo dolo direto, representando e querendo
a determinação de Filipe à prática do facto típico, bem como este facto (art. 14.º, n.º 1, do
CP).
- Punibilidade: embora Benedita não tenha agido ao abrigo de qualquer causa de
exclusão da ilicitude ou culpa – uma vez que a agressão de Amaral ao seu filho já tinha
cessado, sendo apenas movida por vingança –, não seria punida, em razão da acessoriedade
limitada, como referido.

2. Violação de domicílio (art. 190.º)


- Tipicidade objetiva: considerando a determinação relativa à ofensa à integridade física,
poderia admitir-se que a mesma abrangia a violação de domicílio. Filipe introduziu-se,
efetivamente, sem consentimento na habitação de Amaral, pelo que a acessoriedade limitada
se encontra verificada, nas vertentes quantitativa e qualitativa.
- Tipicidade subjetiva: Benedita teria, pelo menos, dolo eventual de determinar Filipe
ao comportamento em causa, bem como de realização do tipo, prevendo a sua possibilidade
e conformando-se com ela. Havia, assim, duplo dolo eventual (art. 14.º, n.º 3, CP).
- Ilicitude: não se verificava qualquer causa se exclusão da ilicitude.
- Culpa: não havia qualquer causa de exclusão da culpa.

Guilhermina (2 valores)

1. Homicídio de Amaral/Filipe (art. 131.º do CP)


- Tipicidade objetiva: ao colocar a substância oleosa no chão da casa de banho,
Guilhermina criou um risco proibido, que parece ter-se concretizado no resultado morte.
Não era absolutamente claro que aquele comportamento fosse adequado a provocar uma
queda letal, mas podia aceitar-se que, à luz das regras da experiência comum, era previsível,
de acordo com um juízo de prognose póstuma, que a criação de condições para uma queda
numa casa-de-banho de uma pensão – onde haveria, normalmente, um reduzido espaço no
qual se dispunham vários móveis contra os quais poderia chocar – fosse idónea à produção
do resultado. A omissão de auxílio praticada por Amaral não interrompia o nexo de
imputação objetiva.
- Tipicidade subjetiva: embora não parecesse ser esse o desejo de Guilhermina – cuja
ação parecia dirigida, apenas, à lesão da integridade física de Amaral –, esta teria representado,
pelo menos como possível, o facto típico, conformando-se com esta possibilidade e
sobrepondo o seu interesse de vingança, agindo, assim, com dolo eventual (art. 14.º, n.º 3,
do CP). A circunstância de ter sido Filipe a sofrer a queda não relevava para efeitos de
exclusão do dolo, já que a identidade da vítima era irrelevante para o preenchimento do tipo
de homicídio. Ademais, a forma como o facto foi executado comporta elevado risco de
alteração do curso causal ou da vítima, já que Guilhermina tem diminuto controlo sobre o
curso causal, podendo Amaral receber no seu quarto qualquer pessoa e, assim, ser outra a
sofrer a queda. Por conseguinte, o dolo de Guilhermina teria, forçosamente, de abarcar, ainda
que implicitamente, esta possibilidade, com a qual se terá conformado.
- Ilicitude: não se verifica qualquer causa de exclusão da ilicitude.
- Culpa: embora se admita que Guilhermina estava perturbada com a situação descrita
no enunciado, o seu ressentimento contra Amaral não fundamenta a exclusão ou diminuição
da culpa, pelo que deveria ser punida por homicídio doloso consumado.
Tópicos de correção
Responsabilidade jurídico-penal de Daniel
Ao ser supostamente convencido por Carla à prática de um facto penalmente relevante,
surgiria em Daniel uma vontade nova de cometer um crime e seria pessoa plenamente
responsável, algo que as dificuldades financeiras que atravessa não negariam. Nesta situação
de comparticipação criminosa, Daniel surgiria como autor material de um crime de
homicídio, eventualmente qualificado (artigos 26.º, 1.ª proposição e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea
b) do Código Penal, doravante CP), caso tivesse efetivamente executado o crime e, nesse
enquadramento, o grau de ilicitude do facto gerado pelas relações especiais de Carla
transmitir-se-iam da intraneus ao extraneus (artigo 28.º, n.º 1 do CP), referência ponderada para
além da cotação da pergunta. Sucede que, verdadeiramente, a determinação não ocorre, visto
que Daniel denuncia o caso às autoridades e, consequentemente, a dimensão quantitativa da
acessoriedade não se verifica, porquanto não são praticados quaisquer atos de execução por
Daniel (artigo 22.º, n.ºs 1 e 2, do CP). Nestes termos, não há ação típica identificável, pelo
que não haveria lugar a responsabilidade jurídico-penal deste agente.

Responsabilidade jurídico-penal de Carla


Carla tentou criar em Daniel uma vontade nova de cometer um crime de homicídio, sendo
este, como referido supra, pessoa plenamente responsável, que teria o domínio do facto, i. e.,
o poder de fazer avançar a agressão acaso tivesse praticado atos de execução. Se assim fosse,
Carla seria participante instigadora (artigo 26.º in fine do CP), agindo com (duplo) dolo direto
(artigo 14.º, n.º 1), pois tanto representou e desejou convencer Daniel a matar a vítima como
o homicídio em si. Todavia, a determinação não ocorreu verdadeiramente, pois Daniel não
praticou quaisquer atos de execução e, à luz da teoria da acessoriedade limitada, a punição
do participante depende da prática de um facto pelo autor simultaneamente típico e ilícito.
Assim, a ausência de atos de execução de quem seria autor material gera atipicidade da
conduta da pessoa que assumiria a figura de instigadora. Considerando que de acordo com
o regime jurídico vigente a tentativa de instigação não é punível, Carla não é suscetível de
responsabilidade jurídico-penal.

Responsabilidade jurídico-penal de Berta


Seria de ponderar a possibilidade de Berta ser também instigadora, surgindo assim a figura
da instigação em cadeia no facto do autor. Para isso, haveria que apurar se quando
confidencia a Carla a relação extraconjugal que mantém com o marido desta o faz com o
intuito de provocar nela uma reação do foro criminal, o que apontaria para a existência de
dolo direto (artigo 14.º n.º 1 do CP) ou se ainda configura como possível tal possibilidade, o
que evidenciaria dolo eventual (artigo 14.º, n.º 3 do CP) ou se nada disso sucede, o que
afastaria a possibilidade de assumir a qualidade de participante, pois que o duplo dolo que a
figura em referência demanda implica que este exista por referência à determinação do autor
e ainda quanto ao facto por este praticado. De qualquer modo, e apelando ao que se escreveu
a propósito de Berta, a circunstância de Daniel não ter praticado atos de execução,
determinaria a mesma conclusão quanto à responsabilidade jurídico-penal de Berta nos
termos avançados quanto a Carla.
Relativamente à pedra que se preparava para lançar contra António, Berta pratica uma ação
típica, na medida em que, embora não ocorra consumação, existem atos de execução do tipo
de ofensas à integridade física simples (artigos 143.º e 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea c) do CP) com
dolo direto (artigo 14.º, n.º 1 do CP). No plano da ilicitude, apesar de a arma não estar

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municiada, estaremos perante agressão atual e ilícita, como melhor se demonstrará infra a
propósito da análise da responsabilidade jurídico-penal de António, sendo irrelevante o erro
de Berta (havia agressão, apesar de não ser a que ela representava), pelo que o facto sempre
estaria justificado por força da causa de justificação legítima defesa (artigo 32.º do CP), visto
existir agressão atual e ilícita materializada na ameaça de António, contra interesses
juridicamente protegidos de Berta, havendo, face aos dados da hipótese, necessidade de
defesa, e tendo utilizado um meio necessário, que no caso se bastava com o ato de defesa de
segurar a pedra, como efetivamente sucedeu. Subjetivamente, existiria consciência da
situação defensiva, visto que a agressão de António surge como motivo determinante do
agir de Berta. Estando o facto justificado e excluída a ilicitude, não seria necessário analisar
a não punibilidade da tentativa (artigos 143.º e 23.º, n.º 1 do CP).

Responsabilidade jurídico-penal de António


Quando António aponta a arma a Berta para a amedrontar e sem ter propositadamente
municiado a arma, homicídio na forma tentada não haverá, porquanto estaria em falta o
elemento subjetivo geral correspondente, falhando o preenchimento do tipo da tentativa
(artigos 132.º, n.º 2, alínea b) e 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do CP). No caso haveria crime de
ameaça (artigo 153.º do CP), visto que a encenação de António se afigura credível, pelo que
o efeito intimidatório da ameaça se consuma. O agente atua com dolo direto (artigo 14.º, n.º
1 do CP), sendo o facto ilícito, culposo e punível.
Já a circunstância de António não possuir licença de porte de arma constitui uma ação típica
do crime de detenção de arma proibida, realizando-se o tipo objetivo com a mera detenção.
Seria de discutir se o desconhecimento da necessidade de licença consubstancia erro
relevante sobre a proibição. António representou e quis deter a arma sem representar a
necessidade de posse de licença. Seguindo a posição de MARIA FERNANDA PALMA, que
constrói a consciência potencial da ilicitude a partir da existência de condições ou
oportunidades razoáveis de conhecimento concreto quanto ao sentido efetivo da conduta,
seria de considerar, nomeadamente, a evidência da regra que impõe a necessidade de licença,
em vigor desde 2006, a profusão de informação sobre a necessidade da mesma e a
perigosidade previsível da conduta que subjaz à proibição, o que afasta a possibilidade de
aplicação do artigo 16.º, n.º 1 in fine do CP e afirma o dolo (artigo 14.º, n.º 1 do CP). Não
existindo causas de justificação e sendo por isso a conduta ilícita, em sede de culpa poder-
se-ia ponderar a falta de consciência da ilicitude, mas o erro afigura-se aqui censurável, pois
o agente que adquire armas, ainda que de coleção, sem se inteirar das regras legais a observar
ao longo de anos (fazendo fé nos dados da hipótese), não revela fidelidade ao direito,
concluindo-se pela censurabilidade do erro. Nestes termos, o agente seria suscetível de
responsabilidade jurídico-penal pelo crime em referência.
O circunstancialismo que envolve o incumprimento da entrega fiscal consubstancia uma
omissão (pura) típica do crime de abuso de confiança fiscal, por não ter sido entregue a
contribuição referida no tipo, praticada com dolo direto (artigo 14.º, n.º 1 do CP). No plano
da ilicitude, discute-se se a causa de justificação conflito de deveres (artigo 36.º do CP) pode
ser operante, mas entende-se que no confronto entre o dever de cumprimento de interesses
próprios/de terceiros (necessidade de manutenção do negócio/pagamento aos funcionários)
e os interesses alheios (dever de entrega da quantia devida ao Estado), o cumprimento do
segundo dever assume natureza superior, por se tratar de montante destinado a assegurar a
redistribuição de riqueza entre os cidadãos. Não sendo essencial a referência, mas para
contextualizar a discussão que se trava em torno da aplicação do regime do artigo 35.º do CP
no caso vertente, temos que, ponderando a causa de justificação direito de necessidade (artigo
34.º do CP), ainda que se dessem por verificados os pressupostos respetivos, chegar-se-ia a

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idêntica conclusão no plano do requisito sensível superioridade do interesse salvaguardado
relativamente ao interesse sacrificado (artigo 34.º, alínea b) do CP). Supondo que os
ordenados provindos da empresa de António constituíam a única fonte de rendimento dos
trabalhadores e suas famílias e que o perigo para a vida/integridade física decorrente do não
pagamento não poderia ser removido de outro modo, encontrando-se por isso o agente em
situação de inexigibilidade, poder-se-ia ponderar a existência de estado de necessidade
desculpante (artigo 35.º, n.º 1 do CP), pois tomando a conceção de culpa de MARIA
FERNANDA PALMA e, em especial, a sua interpretação do regime em referência, temos
que o critério da inexigibilidade que o artigo 35.º, n.º 1 do CP encerra, não deve ser reduzido
à perspetiva do conflito (objetivo) entre bens, demandando antes ponderação quanto à
natureza do conflito, tomando as condições de existência, dignidade e liberdade pessoal do
agente (no caso, tomando em linha de conta a situação dos trabalhadores). Donde, as
condições básicas de existência pessoal seriam aqui o fator de desculpa, com base em uma
motivação existencial-pessoal. Outras perspetivas sobre o problema seriam igualmente
valorizadas.

Responsabilidade jurídico-penal de Fernando


Quando dispara letalmente sobre Berta, Fernando pratica uma ação típica de homicídio
(artigo 131.º do CP), já que criou um risco proibido, ao disparar, que levou ao resultado
morte, com dolo direto (artigo 14.º, n.º 1 do CP), mas supõe estar a repelir uma agressão
atual e ilícita, o que não corresponde à realidade fáctica, visto que Berta apenas se estaria a
tentar defender de António. Não seria por isso operante a causa de justificação legítima
defesa (artigo 32.º do CP), por não estarem reunidos os pressupostos respetivos. Também
não seria consequente invocar legítima defesa putativa, por estarmos perante um caso de
concurso entre erro e excesso, já que, mesmo que não existisse desconformidade com o real,
o agente sempre agiria em excesso intensivo, pois tratando-se de um disparo eventualmente
mortal em face de um potencial crime de dano/furto de bens não essenciais à dignidade
humana, de acordo com MARIA FERNANDA PALMA, não nos moveríamos no domínio
da defesa ilimitada, que apenas compreende um núcleo essencial de bens relativos ao valor
da dignidade da pessoa humana (cf. artigos 2.º e 19.º da CRP). Face aos dados da hipótese,
o excesso não parece fundamentar-se no erro, dado que o agente sempre estaria em excesso
mesmo não existindo erro, o que, seguindo o ensinamento de MARIA FERNANDA
PALMA, deveria determinar o afastamento da aplicação do regime do artigo 16.º, n.º 2 do
CP e a aplicação, por analogia, do disposto no artigo 33.º, n.º 1 do CP (pois o excesso, não
havendo indicação de medo, perturbação ou susto, não seria asténico), nos termos do qual a
responsabilidade jurídico-penal poderia ser atenuada. Em suma, Fernando pratica uma ação
típica, ilícita culposa e punível, de acordo com os artigos 131.º, 14.º, n.º 1, 33.º, n.º 1, 72.º e
73.º do CP.

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Direito Penal II
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Sónia
Moreira Reis, António Brito Neves, Catarina Abegão Alves e Rita do
Rosário, e Licenciado Nuno Igreja Matos
Exame de Coincidências de Recurso - 28 de julho de 2021
Duração: 90 minutos

“Prova de risco”
António, adepto do desporto ao ar livre, decidiu inscrever-se numa prova de trail e convidou o
seu colega de escritório, Bento, para o acompanhar, pois este último era muito experiente naquele
tipo de provas. Os dois dirigiram-se então ao Norte do país para participar na prova, tendo ficado
combinado que fariam sempre o percurso juntos. A meio do percurso, António escorregou na
direção de uma ravina e ficou ferido com gravidade. Todavia, Bento, que era muito competitivo e
queria ganhar a prova, começou a correr velozmente, deixando António para trás, até porque não
tinha conhecimentos de primeiros socorros e julgou que a tarefa de socorrer António deveria ficar
a cargo da equipa de paramédicos da prova de trail.
Carlos, apenas com ligeiras escoriações, mas já sem forças, viu uma bicicleta encostada a uma
árvore e apesar de crer que a bicicleta pertencia à organização da prova, utilizou-a para continuar o
percurso. Todavia, na verdade, a bicicleta pertencia a Carlos, pois este tinha-a utilizado para se
deslocar até ao local da prova e já não se lembrava onde a tinha deixado.
Já próximo da meta, Carlos visualizou ao longe Bento e também Dionísio, outro atleta que
tinha sofrido uma queda e que tinha conseguido chegar à meta a coxear. Carlos gritou então a
Dionísio que atirasse uma garrafa cheia de água na direção do rosto de Bento, alegando que este
tinha sido o culpado da sua queda. Dionísio atirou a garrafa, tendo atingido com violência o rosto
de Bento, que caiu de costas no chão. Nesse preciso momento, Carlos e Dionísio viram cair da
mão de Bento uma pedra que este se preparava para arremessar na direção da cabeça de Dionísio.
António e Dionísio acabaram por ser socorridos e foram transportados ao mesmo tempo para
o hospital. António tinha sofrido um traumatismo cranioencefálico e precisava de ser operado
urgentemente, enquanto Dionísio tinha apenas fraturado uma perna. Devido a um engano na
triagem, Francisco, único médico de serviço, operou primeiro Dionísio, julgando, erradamente,
que este se encontrava num estado mais grave, segundo a informação clínica que lhe foi fornecida.
Francisco estava com pressa para terminar o turno e não confirmou os dados clínicos dos
pacientes. António foi operado horas mais tarde, mas viria a morrer por ter esperado muito tempo
por assistência médica.

Determine a responsabilidade jurídico-penal dos intervenientes.

Cotações: Bento – 6 vls.; Carlos − 5 vls.; Dionísio – 4 vls.; Francisco – 3 vls.; Ponderação global:
2 vls.
Bento
Homicídio por omissão na forma tentada (art. 131.º):
- Tipo objetivo: B não diminui o perigo pré-existente em que se encontra o bem jurídico
vida de A, pelo que o seu comportamento pode ser qualificado como uma omissão. A
opção por este critério de distinção entre ação e omissão, assente num critério de
imputação objetiva, deve ser fundamentada à luz da forma de criação do perigo para os
bens jurídicos tutelados pela norma. Discutível neste caso é a questão de saber se nos
encontramos perante uma omissão impura, que pressupõe a existência de uma posição de
garante, ou perante uma omissão pura. Uma vez que o enunciado refere que A convidou B
para a prova de trail, pois este era muito experiente naquele tipo de provas, e que os dois
combinaram que fariam sempre o percurso juntos, pode sustentar-se aqui a existência de
uma autovinculação implícita à proteção de bens jurídicos, fundadora de uma posição de
garante e de uma equiparação da omissão à ação (art. 10.º).
Para além disso, ter-se-á de discutir a possibilidade de imputar objetivamente o resultado
morte de A à comissão por omissão de B. Apesar de ser possível afirmar que se B tivesse
socorrido imediatamente A teria diminuído o risco de produção do resultado morte deste
último, não será de afirmar o nexo entre esta não diminuição do risco e o resultado morte,
porque houve uma transferência do domínio do risco para a esfera de responsabilidade do
médico F, pelo que se poderá falar aqui de uma interrupção do nexo de imputação objetiva
por intervenção de terceiro. Ainda assim, B poderá ser punido por tentativa, na medida em
que pratica atos de execução [art. 22.º, n.º 2, alínea b)].
- Tipo subjetivo: B representa como consequência possível da sua omissão a produção do
resultado típico morte de A e conforma-se com a realização de tal facto, pelo que age com
dolo eventual (art. 14.º, n.º 3 e 22.º, n.º 1).
- Ilicitude: não há causas de justificação.
- Culpa: B age em erro sobre o âmbito e os limites de uma posição de garante, que se
encontra submetido ao regime do art. 17.º. Este trata-se de um erro de valoração, e não de
um erro de conhecimento, razão pela qual está submetido ao regime do erro sobre a
ilicitude e não ao regime do art. 16.º, n.º 1.
Não obstante, este erro será censurável, pois atendendo a uma ética das emoções não
parece existir um obstáculo emocional revelador de uma falta de sensibilização pelos
valores do Direito. Parece existir, ao invés, um desprezo pelo valor da vida humana, que é
valorada de forma inferior pelo agente, face ao seu objetivo de ganhar a prova. Deste
modo, o erro do agente apenas poderá ter como consequência uma atenuação da sua pena
(art. 17.º, n.º 2).
- Punibilidade: a tentativa é punível (art. 23.º, n.º 1).

Tentativa de ofensa à integridade física (art. 143.º ou 144.):


- Tipo objetivo: ao preparar-se para arremessar uma pedra que tinha na mão na direção da
cabeça de D, B pratica já atos de execução nos termos do art. 22.º, n.º 2, al. c) do CP, pois
tal ato revela já uma perda essencial da segurança do bem jurídico integridade física de D.
- Tipo subjetivo: B representa e tem intenção de ferir D através do arremesso da pedra,
pelo que age com dolo intencional (art. 14.º, n.º 1 e 22.º, n.º 1).
- Não há causas de justificação, nem de desculpa.
- Punibilidade: a tentativa só será punível se aplicarmos o art. 144.º (art. 23.º, n.º 1).

Dionísio
Ofensa à integridade física de B (art.143.º ou 144.º):
- Tipo objetivo: D cria um risco proibido ao atirar a garrafa na direção de B, que se
concretiza no resultado ofensa à integridade física de B, visto que o atingiu, causando-lhe
lesões.
- Tipo subjetivo: D representa e quer ofender o corpo de B, pelo que age com dolo
intencional (art. 14.º, n.º 1).
- Ilicitude: D repele uma agressão de B contra a sua integridade física e essa agressão é
atual e ilícita, pelo que estão verificados os pressupostos da legítima defesa (art. 32.º). De
igual modo, encontram-se verificados os requisitos objetivos desta causa de justificação,
porquanto a defesa é necessária e o meio utilizado por C é o necessário para repelir a
agressão, não existindo qualquer situação de excesso. Não obstante, C age sem
conhecimento da situação justificante, pelo que não será de conferir à sua conduta
merecimento justificador. Deste modo, aplicando-se analogicamente o regime do art. 38.º,
n.º 4, a conduta de C será ilícita, mas será afastado o desvalor do resultado da sua conduta,
sendo este apenas punido por tentativa. Sustentando-se, todavia, que esta norma remete
para a aplicação de todo o regime da tentativa, e não apenas para a sua pena, sempre se dirá
que neste caso C não poderá ser responsabilizado por este crime (art. 23.º, n.º 1 e 143.º, n.º
1 do CP).

Carlos
Furto de uso de veículo (art. 208.º):
- Tipo objetivo: C pratica atos de execução [art. 22.º, n.º 2, alínea a)], ao subtrair a bicicleta
(supostamente) alheia. Mas o tipo objetivo não se encontra preenchido, porquanto a
bicicleta utilizada por Carlos era sua, pelo que não foi utilizada uma bicicleta sem
autorização de quem de direito. Para que o tipo objetivo estivesse preenchido teria de ter
sido utilizada uma bicicleta cujo proprietário não fosse o próprio agente. Deste modo,
encontramo-nos perante uma tentativa impossível por inexistência do objeto essencial à
consumação do crime.
- Tipo subjetivo: C representa que está a utilizar uma bicicleta sem autorização de quem
de direito e quer fazê-lo, tendo dolo intencional (art. 14.º, n.º 1).
- Não há causas de justificação, nem de desculpa.
- Punibilidade: para efeitos de afirmação ou exclusão da punibilidade desta tentativa
impossível, verifica-se uma situação de carência do objeto. Na pressuposição de ser normal
haver por ali bicicletas da organização – ou o agente assumir que elas existem – sem sinais
distintivos a identificá-las, não é manifesta a impossibilidade da tentativa. Todavia,
seguindo a posição de Maria Fernanda Palma, em concreto, se as bicicletas não existiam
naquele local normalmente, não há nenhum mundo possível alternativo próximo em que
fosse possível utilizar sem autorização de quem de direito uma bicicleta própria, pelo que
esta tentativa impossível não é punível, nos termos do art. 23.º, n.º 3.

Ofensa à integridade física de B (art.143.º ou 144.º):


- Tipo objetivo: apesar de C ter alegado que B foi o culpado da queda de D, tendo
levado este último à prática de atos de execução, não pode falar-se em instrumentalização,
pois D é responsável a título doloso. Assim, C é meramente instigador, na medida em que
determinou o autor material, D, à prática do crime, aplicando-se o art. 26.º, parte final.
Houve execução e consumação do crime pelo autor material, pelo que a dimensão
quantitativa do princípio da acessoriedade encontra-se verificada. Também a dimensão
qualitativa da acessoriedade, numa perspetiva de acessoriedade limitada, se encontra
preenchida, na medida em que o autor material praticou um facto típico e ilícito (visto
não se ter verificado o elemento subjetivo da causa de justificação legítima defesa). Deve
ser explicado o significado da perspetiva da acessoridade limitada, que é a exigida, à luz da
ideia de que o instigador é um participante e não um autor, que participa no facto
principal típico e ilícito levado a cabo pelo autor, pelo que se tem de verificar um quid
mínimo de elementos constitutivos do facto do autor.
- Tipo subjetivo: C tem (duplo) dolo intencional (art. 14.º, n.º 1), porquanto desejou
convencer D a atingir B e pretendeu que este fosse ferido.
- Ilicitude: Aplica-se aqui o referido quanto a D, a respeito da falta de conhecimento da
situação justificante.
- Culpa: não se verificam causas de desculpa.
- Punibilidade: Uma vez que à luz do princípio da acessoriedade, o instigador é punido
nos termos do autor, apesar de C ser punido como autor, beneficiará da atenuação da
pena da qual irá beneficiar igualmente o autor, na medida em que será responsabilizado
apenas pelo crime na forma tentada, por força da aplicação analógica do art. 38.º, n.º 4.
Não obstante, sustentando-se que esta norma remete para a aplicação de todo o regime
da tentativa, e não apenas para a sua pena, sempre se dirá que neste caso C não poderá ser
responsabilizado por este crime (art. 23.º, n.º 1 e 143.º, n.º 1 do CP).

Francisco
Homicídio por omissão (art. 131.º):
- Tipo objetivo: F não diminui o perigo pré-existente em que se encontra o bem jurídico
vida de A, pelo que o seu comportamento corresponde a uma omissão. Neste caso, F
pratica uma omissão impura (art. 10.º, n.º 2), uma vez que está investido numa posição de
garante, fundada na assunção de funções de guarda e de assistência. A imputação objetiva
do resultado morte à omissão de F será de afirmar, porquanto a ação devida teria
diminuído o risco de verificação do resultado típico morte de A. Para quem sustente que é
necessária a certeza ou grande probabilidade da evitação do resultado no caso de ter lugar a
ação devida, o enunciado também admite que tal se verifica, visto que A morreu “por ter
esperado muito tempo por assistência médica”.
- Tipo subjetivo: apesar de ter havido um engano na triagem, que levou F a julgar
erroneamente que o paciente D se encontrava num estado mais grave, segundo a
informação clínica que lhe foi fornecida, não será de afastar a hipótese de F ter
representado como possível que, ao não agir, A poderia vir a morrer e, ainda assim, se ter
conformado com essa possibilidade, agindo portanto com dolo eventual (art. 14.º, n.º 3).
- Ilicitude: não se verificam os pressupostos da causa de justificação conflito de deveres,
porquanto apesar de existirem dois deveres em conflito, sendo impossível para F cumprir
simultaneamente os dois, visto ser o único médico de serviço, F devia ter satisfeito o dever
de valor superior ao sacrificado, o dever de operar primeiro A. No entanto, F atua na
suposição errónea de que está a cumprir o dever de valor superior. Neste caso, F encontra-
se então num erro do art. 16.º, n.º 2, primeira parte, o que implicará a exclusão da culpa
dolosa, ressalvando-se ainda a punibilidade por negligência, nos termos do art. 16.º, n.º 3.
Esta punibilidade seria de afirmar, não só porque está verificada a tipicidade negligente (art.
137.º), mas também porque houve violação do dever de cuidado por parte de F, ao não
confirmar os dados clínicos dos pacientes por estar com pressa para terminar o seu turno
no hospital.
Direito Penal II
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Sónia Moreira
Reis, António Brito Neves, Catarina Abegão Alves e Rita do Rosário, e
Licenciado Nuno Igreja Matos
Exame de Época Especial (Finalistas) - 6 de setembro de 2021
Duração: 90 minutos

Trocas, hesitações e crime

Arnaldo, ex-namorado de Bianca, entra de noite na casa de Bianca, para procurar ter
relações sexuais com ela, que há anos o rejeita.
Quando se aproxima, no escuro, do corpo deitado na cama, e já debruçado sobre ele,
verifica que não se trata de Bianca, mas da irmã desta, Cátia. Nesse momento, já tendo
agarrado Cátia e despido a camisa de noite, Arnaldo resolve não continuar. Cátia,
porém, aproveitando o que lhe parece ser um momento de hesitação, para evitar o
recomeço, pega no candeeiro da mesa de cabeceira e dá-lhe uma pancada na cabeça
que o deixa atordoado. Arnaldo, no entanto, pega numa faca para ferir Cátia, que foge
para a sala.
David, polícia, namorado de Cátia que chega a casa, vendo Arnaldo junto da cama onde
deveria estar Cátia, pensando que está a ser traído, atinge Arnaldo numa perna com a
arma de serviço. Arnaldo, apesar de ferido, atira a faca contra David, não o conseguindo
atingir.
Arnaldo é levado ao hospital pelo próprio David. No hospital, devido a grande afluência
por causa dos casos de COVID, por orientação de Ernesto, responsável pelo serviço,
Arnaldo não é logo socorrido pelos médicos das urgências, tendo vindo a ser necessário
amputar a perna devido ao agravamento da infeção pela demora.

Cotações: Arnaldo – 6 vls.; Cátia – 3 vls.; Ernesto − 4 vls.; David – 5 vls.; Ponderação
global: 2 vls.
Arnaldo

— Violação de domicílio: artigo 190.º, n.º 1.


Ao introduzir-se em casa de Bianca sem autorização desta, Arnaldo realiza o tipo
objetivo de violação domicílio.
Arnaldo representa a intromissão não consentida em habitação alheia e tem intenção
de a levar a cabo, atuando com dolo direto (artigo 14.º, n.º 1).
Não há causas de justificação nem de desculpa aplicáveis.

— Abuso sexual de pessoa incapaz de resistência: artigo 165.º, n.º 2.


Arnaldo não chega praticar nenhum dos actos descritos na norma. Uma vez que o seu
plano passava pela realização de cópula aproveitando-se da inconsciência da vítima,
cabe analisar a existência de tentativa.
Atendendo à iminência da concretização dos actos descritos no tipo e à situação de
perigo existencial em que já se encontrava a liberdade sexual, a al. c) do artigo 22.º, n.º
2, encontra-se realizada.
Arnaldo atua tanto com representação como com intenção de se aproveitar da
inconsciência da vítima para praticar cópula. O erro sobre a identidade da visada é
irrelevante, dado não se tratar de elemento típico, pelo que há dolo direto (artigo 14.º,
n.º 1).
Não há causas de justificação nem de desculpa.
O recuo devido à falta de coincidência entre a vítima projetada e a encontrada
representa, para alguns autores, uma hipótese de tentativa fracassada, que exclui, à
partida, a aplicação do regime da desistência voluntária. Para quem, todavia, não aceite
a figura, que não tem sequer consagração legal, deve analisar-se a voluntariedade da
desistência de Arnaldo, visto que este deixou de prosseguir na execução do crime. Ora,
na falta de motivos exteriores que impedissem ou dificultassem a concretização do facto
típico, que era ainda plenamente possível, a decisão pode dar-se por tomada em
condições de liberdade suficientes para se afastar a punibilidade. Embora Arnaldo
apenas recue por dar conta do erro sobre a identidade, não se exigindo arrependimento
moral, não parece haver constrangimentos no caso que impeçam ver a opção como
expressão da liberdade do agente, ainda senhor da decisão, de modo que não há razões
de necessidade da pena que imponham a punição. Assim, não obstante a punibilidade
da tentativa em face do artigo 23.º, n.º 1, Arnaldo não devia ser punido, por aplicação
do artigo 24.º, n.º 1, primeira parte.
Não se avaliando conhecimentos específicos de parte especial, em alternativa, aceita-
se igualmente a análise do tipo de violação (artigo 164.º, n.º 1).

— Ofensa à integridade física: artigo 143.º, n.º 1.


Ao pegar na faca para ferir Cátia sem chegar a concretizar o intento, Arnaldo pratica
atos de execução de acordo com a al. c) do artigo 22.º, n.º 2, atendendo à iminência da
agressão propriamente dita e à consequente situação de insegurança existencial para o
bem jurídico (que obriga Cátia a fugir).
Arnaldo atua tanto representando como querendo ferir Cátia, tendo dolo direto, nos
termos do artigo 14.º, n.º 1.
Admitindo que Cátia não tencionava seguir agredindo Arnaldo e pretendia fugir
independentemente de este agarrar a faca, não havendo sequer ameaça de Cátia noutro
sentido, não havia agressão atual nem representação de agressão por parte de Arnaldo.
Destarte, não há causas de justificação aplicáveis. O mesmo vale quanto a causas de
desculpa.
Assumindo que a ofensa projetada por Arnaldo não era grave (artigo 144.º), a tentativa
não era punível, como resulta do artigo 23.º, n.º 1.
No caso de se partir do princípio de que Cátia pretendia agredir novamente Arnaldo e
só fugiu depois de este agarrar a faca, deve resolver-se em conformidade.

— Ofensa à integridade física grave: artigo 144.º, al. d).


Ao atirar a faca na direção de David e supondo que não é feita pontaria para uma zona
não letal, Arnaldo pratica um ato idóneo a causar uma lesão perigosa para a vida de
David, assim realizando um ato de execução, segundo o artigo 22.º, n.º 2, al. b).
Arnaldo representa e tem de intenção de lesar David nos termos referidos, agindo com
dolo direto (artigo 14.º, n.º 1).
Supondo que David pretendia continuar a disparar contra Arnaldo, este reage contra
agressão que, como se verá infra, é atual e ilícita. Na falta de alternativa menos gravosa
para os bens de David que não envolvesse perigo acrescido para Arnaldo, o meio usado
foi necessário. Tratando-se de defender a própria vida ou a integridade física contra
lesão grave, a insuportabilidade da não defesa legitima igualmente a lesão do bem de
David em questão.
Excluindo-se a ilicitude, Arnaldo não seria punido.
Partindo-se de princípio de que David não pretendia continuar a disparar, deve resolver-
se em conformidade.

Cátia

— Ofensa à integridade física: artigo 143.º, n.º 1.


Cátia cria um risco proibido ao desferir uma pancada na cabeça de Arnaldo com o
candeeiro, que se concretiza no resultado típico, visto que a lesão sofrida foi causada
pelo ato e não há razões para negar a conexão de risco.
Cátia representa a agressão e tem intenção de a realizar, atuando com dolo direto
(artigo 14.º, n.º 1).
Uma vez que Arnaldo desiste do seu propósito, não há agressão atual e ilícita. Cátia
representa, no entanto, que se trata de mera hesitação e que o recomeço era uma
possibilidade para breve, representando o ataque. Na pressuposição de tal ser verdade,
Cátia teria recorrido a um meio necessário para se defender, não se perspetivando
alternativa suficientemente segura para os seus bens menos gravosa para o agressor.
Assim, Cátia atua representando uma situação que, a existir, excluiria a ilicitude do facto,
agindo, por isso, sem culpa dolosa, nos termos do artigo 16.º, n.º 2.
Embora se ressalve a punibilidade por negligência, de acordo com o n.º 3, e esta esteja
prevista no artigo 148.º, não parece que nas circunstâncias referidas (presença de um
homem estranho no seu quarto, de noite, muito próximo) haja violação de um dever de
cuidado, não devendo Cátia ser punida.

Ernesto

— Ofensa à integridade física grave: artigo 144.º, al. a).


A indicação de dar preferência a outros doentes redunda na omissão do tratamento de
Arnaldo em tempo devido. Enquanto responsável pelo serviço médico na situação,
Ernesto tem posição de garante assente na assunção de funções de proteção (no caso,
com vertente profissional), sendo equiparável a omissão à ação, nos termos do artigo
10.º, n.ºs 1 e 2.
A omissão traduz-se na não diminuição do risco a tempo. Uma vez que em virtude da
demora a infeção se agravou e foi preciso amputar a perna, dando a entender-se que a
amputação não seria necessária sem o atraso, esta lesão grave imputa-se objetivamente
à omissão.
Estando consciente do risco e conhecendo a situação clínica de Arnaldo, Ernesto
representa a possibilidade de o resultado se verificar e, quando menos, conforma-se
com ela, atuando com dolo eventual (artigo 14.º, n.º 3).
Assumindo a impossibilidade de atender Ernesto sem preterir o tratamento devido de
pacientes infetados com COVID, cabe analisar a possibilidade de justificação da omissão
por conflito de deveres (artigo 36.º, n.º 1). Sendo mortal o perigo corrido pelos outros
pacientes, prevalece o dever de os salvar, preferindo-se a vida em detrimento da
integridade física. Assim, o comportamento de Ernesto está justificado e ele não deve
ser punido.

David

— Ofensa à integridade física: artigo 144.º, al. a).


David cria um risco proibido ao disparar contra Arnaldo, que se concretiza na lesão da
perna. Embora o disparo seja causa igualmente da amputação, esta só ocorreu em
virtude da demora no tratamento. A atribuição do resultado agravado ao âmbito de
responsabilidade de Ernesto – e, mais concretamente, a imputação objetiva à omissão
deste – afastam a conexão de risco entre a atuação de David e o resultado agravado.
David representa a agressão e tem intenção de atingir Arnaldo, podendo admitir-se,
em face da perigosidade do meio, da falta de luz e da rapidez dos acontecimentos, bem
como das motivações hostis, que terá ao menos representado a possibilidade de realizar
uma ofensa à integridade física grave, tanto pela representação da possibilidade de
dano sério em órgão importante como pela criação de perigo para a vida da vítima, nos
termos do artigo 144.º, als. a) e d).
Visto que David pensa que está a ser traído, parece representar a prática de atos
sexuais consentidos, não a existência de uma agressão, sendo, portanto, irrelevante o
seu erro. Não há causas de justificação nem de desculpa aplicáveis.
David seria punido por tentativa de ofensa à integridade física grave.
No caso de se entender que David tinha dolo de homicídio (artigo 131.º), deve resolver-
se em conformidade.
Direito Penal II
3.º Ano – Dia – Turma B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Mestre Ricardo Tavares da Silva, António Brito Neves,
Catarina Abegão Alves, Mafalda Melim e Rita do Rosário e Licenciado
Nuno Igreja Matos
Época normal 5 de junho de 2020

TÓPICOS DE CORREÇÃO1

Questões:

1 – Analise a responsabilidade de Ana e de Bento relativamente à infeção dos utentes


e funcionários, considerando o comportamento de ambos e o atraso nos testes (6
valores).

Responsabilidade penal de Ana

Tipo: propagação de doença (art. 283.º, n.º 1, a), do Código Penal)

• Ação/omissão:
A primeira questão que se suscita é aferir, tendo em consideração o tipo-referência
‘propagação de doença’, se um tal comportamento se consubstancia numa ação ou numa
omissão. Para isso, tem de ser determinado o critério de acordo com o qual se distinguem
ações de omissões, o que se afigura como fundamental dada a limitação, operada pelo
artigo 10.º, n.º 2, do Código Penal, da equiparação da omissão à ação constante no número
1 do mesmo artigo. Isto, porque, constituindo o mencionado tipo um crime de resultado
(não obstante, em função da lesão do bem jurídico, constituir um crime de perigo,
especificamente, de perigo comum), caso tenha havido omissão, torna-se necessário
averiguar se Ana violou algum dever de garante, o associado a uma posição de garante
na qual se encontre eventualmente investida.
Tanto de acordo com um critério naturalístico-causal (KARL ENGISCH) como de acordo
com um critério normativo (STRATENWERTH), à partida, não se estará perante um caso de
propagação de doença (no caso, Covid 19) por ação, já que, no enunciado, não consta que
Ana tivesse empregue energia no sentido de infetar os (alguns dos) utentes e/ou
funcionários do Lar ou, noutra perspetiva, tivesse criado ou aumentado o perigo de tal
infeção (sendo que pode ter acontecido o inverso, ou seja, ter sido Ana a ser infetada por
algum dos utentes ou funcionários). Poder-se-ia discutir se, na perspetiva de Jakobs, se
trata do âmbito da competência geral do agente pela organização da sua própria esfera de
liberdade que tornaria indiferenciada a distinção entre ação e omissão.
Mas a hipótese de comissão por omissão adequa-se aos dados do enunciado: Ana não
empregou energia, comunicando à autoridade de saúde ou dirigindo-se aos serviços de
saúde, no sentido de serem tomadas as providências necessárias para evitar a infeção dos
utentes e funcionários do Lar ou, em alternativa, não diminuiu o perigo de uma tal infeção,
precisamente por não ter efetuado uma tal comunicação.

1
Sempre que não haja qualquer questão a tratar num dos pressupostos (nomeadamente, quanto à
ilicitude e à culpabilidade), não se exige a referência a essa ausência. Será positivamente cotada,
sim, a ponderação quando tal não seja exigível.
Para MARIA FERNANDA PALMA, “a definição da ação que importa à teoria da imputação
não é naturalística”, já que fundamental é “a determinação do quid comportamental
exigível para que a omissão possa ser uma espécie de comportamento penalmente
relevante”, sendo que a descoberta desse quid comportamental tem de se centrar na
significação dos comportamentos, tanto numa perspetiva ontológica como social – tendo
em consideração, entre outros aspetos, a evitabilidade pelo agente das consequências
(Direito Penal, Parte Geral – A Teoria da Infração como Teoria da Decisão Penal, 2020,
5.ª edição, p. 76).
Neste sentido, e como fora adiantado, deve ser convocado o critério proposto por
JAKOBS: ora, novamente em função dos dados do enunciado, não se pode concluir que
tenha havido, por parte de Ana, ingerência na esfera alheia de liberdade de organização
no âmbito de uma responsabilidade geral pela própria organização, pelo que A não violou
um dever geral de garante. Consequentemente, e para efeitos da aplicação do art. 238.º,
n.º 1, a), não há equiparação da omissão à ação.
Porém, para JAKOBS também existe equiparação nas situações nas quais a posição de
garante decorre da responsabilidade específica perante outras organizações. Será
suficiente, para esse AUTOR, que o agente esteja institucionalmente (formalmente)
investido de uma tal responsabilidade para, com a sua conduta, incumprir um dever
específico de garante. Ora, como Ana é funcionária do Lar “Nossa Senhora da Vida”, ter-
se-á de concluir que Ana possuía uma posição específica de garante relativamente aos
utentes e funcionários da instituição e, consequentemente, que se encontrava sujeita a um
dever de garante, operando-se a equiparação da omissão (impura) a uma ação nos termos
do art. 10.º, n.º 1, com a limitação presente no n.º 2, do Código Penal (com a possibilidade
uma atenuação especial da pena, conforme determina o n.º 3 do mesmo preceito).

• Tipicidade:
Chegaremos a uma conclusão semelhante, mas com um fundamento diverso, se for
mantida como substantiva ou juridicamente relevante a distinção entre ação e omissão e,
consequentemente, a distinção entre a questão da delimitação do conceito de ‘omissão’ e
a questão da tipicidade das omissões impuras. Efetivamente, uma vez assente que o
comportamento de Ana, de acordo com o critério naturalista ou com o critério proposto
por STRATENWERTH de criação/aumento ou diminuição do perigo, se consubstancia numa
omissão, deverá ser determinado se a mesma incumpre um dever de garante, possuindo
uma posição de garante, nos termos do art. 10.º, n.º 2 (em conjugação com o art. 238.º,
n.º 1, a)). E, efetivamente, sendo Ana funcionária do Lar, fica indiciada a existência de
uma proximidade existencial relativamente aos utentes (pelo menos) da instituição,
fomentadora de relações de confiança e de expectativas de vigilância e de proteção de
bens jurídicos: consequentemente, há posição de garante (assunção de funções de guarda
e assistência).
Qualquer que seja o critério adotado, terá de existir um nexo entre a omissão e o
resultado típico, isto é, entre a propagação e o perigo para a vida/perigo grave para a
integridade física dos utentes (imputação objetiva), ainda nos termos do art. 10.º, n.º 1.
Em termos metodológicos, o caminho mais seguro para resolver, em geral, os problemas
de imputação objetiva será “partir das teorias da causalidade, nomeadamente da
causalidade adequada que é pressuposta nos artigos 10º e 22º do Código Penal” (MARIA
FERNANDA PALMA, ob. cit., p. 129). Porém, perguntar-se-á se o mesmo é aplicável a esse
resultado que é a criação do perigo nos crimes de perigo concreto. Supondo que sim,
então, em termos naturalísticos, e tratando-se de uma omissão, há que determinar se, caso
Ana tivesse agido (tivesse comunicado o seu estado de saúde), a vida e a saúde dos utentes
do Lar não teria sido colocada em perigo. E, muito provavelmente, assumindo que a
Autoridade de Saúde tomaria as providências necessárias, a comunicação atempada por
parte de Ana teria, pelo menos, evitado algum do perigo criado (dado o elevado potencial
de transmissão do coronavírus e o tempo ainda necessário para a realização dos testes, a
atuação de Ana teria de ser a mais célere possível: deveria ter comunicado mal desse
conta dos sintomas, ainda que leves, compatíveis com a Covid19). Também de acordo
com a teoria da adequação existirá o nexo referido: para uma pessoa média colocada no
lugar do agente (juízo de prognose póstuma) e atendendo às regras gerais da experiência
e ao normal acontecer dos factos, seria previsível (previsibilidade ex ante) que a ação de
Ana redundasse na evitação do perigo em questão (verificável ex post). MARIA FERNANDA
PALMA, em Propagação de doença contagiosa2, discute a inteligibilidade do critério de
imputação proposto pela teoria do risco em sede de crimes de perigo (como o do tipo
‘propagação de doença’), nomeadamente no que toca à noção de ‘criação do risco de
perigo’. Não obstante, afirmado o nexo de imputação objetiva pelas teorias da
causalidade, não será necessário recorrer à teoria do risco (de maneira a estender o
domínio da imputação nos casos nos quais o critério da conditio é demasiado restritivo).
Relativamente à imputação subjetiva, há, pelo menos, por parte de Ana, dolo eventual
de propagação (representação da possibilidade de propagação da doença e conformação
com essa possibilidade) e negligência quanto ao perigo criado para a vida/perigo grave
para a integridade física dos utentes. Porém, tratando-se de um lar e conhecendo os efeitos
que a Covid 19 tem na população idosa, dificilmente se afastará a existência de dolo (pelo
menos, eventual) quanto ao perigo criado. Por outro lado, se o dolo tiver de ser aferido
em função da vontade e do conhecimento da criação do risco concreto de lesão de bens
jurídicos, haverá, mesmo, dolo necessário.

• Ilicitude:
Não existem causas de exclusão da ilicitude.

• Culpabilidade:
Não sendo de exigir, será cotada a ponderação da possibilidade de aplicação do art. 37.º
do Código Penal: porém, é discutível que Ana não conhecesse que a sua omissão conduz
à prática de um crime, assim como que isso não era evidente no quadro das circunstâncias
por ela representadas.

Responsabilidade Penal de Bento:

Tipo: propagação de doença (art. 283.º, n.º 1, a), do Código Penal)

• Ação/omissão

Aplica-se o que foi dito relativamente a Ana com uma especificidade na solução a que
se chega por via do critério de JAKOBS: por ser o proprietário do Lar, a responsabilidade
específica perante outras organizações de que o agente se encontra institucionalmente
(formalmente) investido é especialmente agravada.

• Tipicidade
Aplica-se igualmente o que foi dito relativamente a Ana com algumas especificidades.
Primeiro, no caso de Bento, dado ser o proprietário do Lar, haverá certamente assunção

2
Artigo disponível online em https://cidpcc.wordpress.com/2020/04/10/propagacao-de-doenca-
contagiosa-por-maria-fernanda-palma/.
de funções de guarda e assistência relativamente aos utentes e aos funcionários do Lar,
não só relativamente aos primeiros. Segundo, ter-se-á de equacionar a existência de
comparticipação entre Bento e Ana, nomeadamente, de co-autoria, nos termos do art. 26.º,
3.ª proposição, visto que o comportamento de cada um é essencial para o
desconhecimento, pela Autoridade de Saúde, do estado de saúde de Ana (e consequente
não-intervenção no sentido de evitar o contágio generalizado e a criação de perigo para a
vida/perigo grave para a integridade física). Tendo em conta que a co-autoria omissiva
carece de significado prático e atendendo ao entendimento segundo o qual, na omissão,
vale um conceito unitário formal de autor, Bento (tal como Ana) é autor (singular).
Para efeitos de cotação, a resposta será valorizada se for referido que, sendo Bento autor
imediato, não será instigador (isto, independentemente da questão de saber se o conselho
dado a Ana a determina à prática do facto), dada a relação de subsidiariedade (implícita)
existente entre a instigação e a autoria.

• Ilicitude:
Não existem causas de exclusão da ilicitude.

• Culpabilidade:
Não existem causas de exclusão da culpa.

2 – A morte de Diana pode ser imputada aos comportamentos de Ana, de Bento e


(ou) do chefe da equipa médica (6 valores)?

Responsabilidade penal de Ana:

Tipo: homicídio (art. 131.º do Código Penal)

• Ação/omissão:
Aplica-se o que foi dito relativamente ao tipo ‘propagação de doença’, mutatis
mutandis: estamos perante uma omissão impura cujo tipo-referência é o tipo ‘homicídio’.

• Tipicidade:
Aplica-se o que foi dito relativamente ao tipo ‘propagação de doença’ (omissão
equiparada a uma ação nos termos do art. 10.º, n.ºs 1 e 2, em conjugação com o art. 131.º)
com algumas especificidades.
Primeiro, ter-se-á de ponderar a agravação pelo resultado, no caso, pelo resultado
‘morte’. Assim, se for aplicado o art. 285.º, em conjugação com o art. 18.º, Ana sofrerá
uma pena superior à que resultaria, nos termos gerais, do concurso do crime fundamental
com o crime agravante. Para isso, a doutrina defende que tem de existir um nexo de
imputação objetiva entre os dois crimes, nomeadamente, sob a forma de causalidade
adequada. Perguntar-se-á, noutra perspetiva, se o perigo de vida em que se encontrava
Diana (tendo 90 anos, e perante as características conhecidas da Covid 19, é de concluir
que a sua vida esteve efetivamente em perigo) se concretizou na sua morte. Se bem que,
em termos naturalísticos, isso possa ser afirmado (sem a infeção pela Covid 19, Diana
não teria morrido), poder-se-á arguir que a morte de Diana se deveu a uma circunstância
posterior imprevisível, pois seria expectável que Diana fosse tratada no hospital e
sobrevivesse (houve interrupção do nexo causal). Portanto, poder-se-á apelar à teoria da
adequação para corrigir a solução dada pelo critério puramente naturalístico. Quanto a
esta hipótese, dever-se-á ter em atenção se a escassez de ventiladores é, também ela,
previsível, assim como o critério usado pelos médicos para escolher quem salvar. No pico
do surto, não seria imprevisível que Diana viesse a morrer no seguimento da infeção por
Covid 19.
Segundo, quanto à tipicidade subjetiva, exige a lei que o resultado agravante seja
imputado ao agente pelo menos a título de negligência. Não será exagerado defender,
atendendo aos fatores de risco já referidos, que Ana representou a possibilidade de Diana
(de qualquer utente do Lar) vir a morrer e que, tendo, ainda assim, omitido a ação devida,
se conformou com essa possibilidade, pelo que terá dolo eventual de homicídio. Neste
caso, então, o agente responde pelo concurso do crime fundamental (propagação de
doença) doloso com o crime agravante (homicídio) doloso, sendo desnecessária a punição
por via da aplicação do art. 285.º.

• Ilicitude:
Não existem causas de exclusão da ilicitude.

• Culpabilidade:
Novamente, não sendo de exigir, será cotada a ponderação da possibilidade de aplicação
do art. 37.º do Código Penal, com as mesmas reservas relativamente ao tipo ‘homicídio’.

Responsabilidade Penal de Bento:

Tipo: homicídio (art. 131.º do Código Penal)

• Ação/omissão:
Aplica-se o que foi dito relativamente ao tipo ‘propagação de doença’, mutatis
mutandis: estamos perante uma omissão impura cujo tipo-referência é o tipo ‘homicídio’.

• Tipicidade:
Aplica-se o que foi dito relativamente ao tipo ‘propagação de doença’ (omissão
equiparada a uma ação nos termos do art. 10.º, n.ºs 1 e 2, em conjugação com o art. 131.º)
e, com as devidas alterações, o que foi dito relativamente a Ana quanto ao tipo
‘homicídio’ (propagação de doença em concurso com homicídio).

• Ilicitude:
Não existem causas de exclusão da ilicitude.

• Culpa:
Não existem causas de exclusão da culpa.

Responsabilidade penal do chefe da equipa médica:

Tipo: homicídio (art. 131.º do Código Penal)

• Ação/omissão:
Dever-se-á aferir, atendendo ao tipo-referência ‘homicídio’, ainda um crime de
resultado, se um tal comportamento se consubstancia numa ação ou numa omissão. O
chefe da equipa médica não empregou energia no sentido causar a morte de Diana ou não
diminuiu o perigo de ela morrer pela infeção da Covid 19. Nesta perspetiva, houve uma
omissão. Seguindo o pensamento de JAKOBS, o chefe da equipa médica não violou um
dever geral de garante, pois não houve uma ingerência na esfera alheia de liberdade de
organização no âmbito de uma responsabilidade geral pela própria organização. No
entanto, incumpriu um dever específico de garante, porquanto se encontra
institucionalmente (formalmente) investido de uma posição de garante e de uma
responsabilidade específicas.

• Tipicidade:
Em alternativa a JAKOBS, dir-se-á que o agente, enquanto médico (mas não só por
possuir um vínculo contratual nem por estar sujeito a deveres legais), se auto-vinculou à
função médica de proteção de bens jurídicos fundamentais, pelo que está investido de
uma posição de garante (assunção de funções de guarda e assistência). Ao deixar morrer
Diana, incumpre o dever de garante de que estava incumbido, nos termos do art. 10.º, n.º
2, em conjugação com o n.º 1 e com o art. 131.º.
No entanto, para que haja lugar a responsabilidade penal do agente, é necessário que
exista imputação objetiva entre a omissão e a morte de Diana, ainda nos termos do art.
10.º, n.º 1. Dir-se-á que não parece exagerado afirmar que, caso o chefe da equipa médica
tivesse agido, atribuindo o ventilador a Diana, muito provavelmente esta teria
sobrevivido. Nem seria excessivo considerar que seria previsível, num juízo ex ante, o
salvamento de Diana, ou que teria sido diminuído o risco.
Há dolo, porventura direto (art. 14.º, n.º 1), se além da representação da verificação do
resultado morte, o médico tinha a intenção de que ele se produzisse.

• Ilicitude:
Em virtude da coexistência de dois deveres de garante por parte do médico responsável
(o que foi atrás referido relativamente a Diana aplica-se, com as devidas alterações, a
Caio), urge questionar se a ilicitude do facto pode ser excluída por força do art. 36.º.
Sendo impossível, para o chefe da equipa médica, salvar tanto Caio como Diana,
atendendo à escassez de ventiladores, resta aferir se aquele optou por satisfizer o dever
de valor igual ou superior ao do dever sacrificado.
É imperativo ter em consideração, tratando-se de duas vidas, fatores como a intensidade
da lesão já sofrida e, como tal, a urgência da intervenção e o potencial de diminuição do
risco. Como o enunciado não indica qualquer diferença quanto à probabilidade de
recuperação em função da diferença de idades, concluir-se-á que, sendo mais urgente
intervir sobre Diana, deveria ter-lhe sido atribuído o ventilador. Consequentemente, não
há exclusão da ilicitude, por não se verificar, igualmente, qualquer outra causa de
justificação.

• Culpabilidade:
Não existem causas de exclusão da culpa.

3 – Qual é a responsabilidade penal de Fátima e de Guilherme (6 valores)?

Responsabilidade Penal de Fátima:

Tipo: coação (art. 154.º do Código Penal)3

• Ação/omissão:

3
Não obstante a resolução apresentada, admitir-se-á a resposta que resulte de uma diferente
interpretação do enunciado, em função da ausência de vírgula após a primeira ocorrência
do termo ‘Guilherme’.
Fátima agiu, qualquer que seja o critério adotado: empregou (bastante) energia no
sentido de afastar Guilherme; criou perigo para bens jurídicos; houve ingerência na esfera
alheia de liberdade de organização no âmbito de uma responsabilidade geral pela própria
organização.

• Tipicidade:
Estão verificados os elementos constitutivos do tipo de crime em questão, constantes
do n.º 1, pois Fátima exerceu violência para obrigar Guilherme a afastar-se. Tem de se ter
em atenção o n.º 3, a), supondo que se trata de causa de exclusão da tipicidade, pois o
facto não é punível caso o meio violento tenha sido usado para alcançar um fim não
censurável: podia ser o caso, pois Fátima procurava (desesperadamente) ver o pai; porém,
é de notar que Fátima visava entrar no Lar quando este se encontrava vedado a familiares.
Há dolo direto (art. 14.º, n.º 1), pois tanto representou como teve intenção de afastar
Guilherme com violência.

• Ilicitude:
Não existem causas de exclusão da ilicitude.

• Culpabilidade:
Aceitar-se-á, desde que devidamente fundamentada, a resposta que conclua pela
exclusão da culpa de Fátima, nos termos do art. 35.º, nomeadamente, tendo em
consideração, precisamente, que o eventual desespero de ver e ter notícias do pai pode
afetar ou diminuir significativamente a capacidade de Fátima se motivar pela norma e,
consequentemente, de não lhe ser exigível outro comportamento (ter-se-á de especificar
o interesse jurídico cujo perigo atual o empurrão violento foi adequado a afastar, e que
não era removível de outro modo).
Por outro lado, também se admite a aplicação do art. 17.º, no sentido de que, ao achar-
se no direito de ver o pai, Fátima estava em erro sobre a ilicitude (erro sobre a existência
de uma causa de justificação).

Tipo: desobediência (art. 348.º do Código Penal)

• Ação/omissão:
Aplica-se o que foi dito relativamente ao tipo ‘coação’, mutatis mutandis, para a entrada
vedada no estabelecimento.

• Tipicidade:
Dever-se-á conjugar o art. 348.º do Código Penal com o art. 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto
n.º 2-A/2020, de 20 de Março. Encontrando-se os utentes do Lar infetados com Covid 19,
é aplicável o art. 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 2-A/2020, o que obriga ao confinamento do pai
de Fátima. A violação dessa obrigação, estatui o n.º 2, constitui crime de desobediência,
ao qual, de acordo com o art. 348.º do Código Penal, está associada uma pena de prisão
até 1 ano ou uma pena de multa até 120 dias, tendo sido cominada a punição da
desobediência simples (n.º 1, a)).
Se uma tal norma se aplicar (e tem sentido que se aplique), não só aos confinados mas,
também, a quem pretenda ter, com eles, contacto presencial, então Fátima incorre num
crime de desobediência se recusar, perante as autoridades, adotar o comportamento em
questão. Há, pelo menos, duas questões a tratar.
A primeira prende-se com Guilherme ter impedido Fátima de entrar e de ser segurança,
presume-se, privado. Houve um mero impedimento físico ou Guilherme ordenou a
Fátima que não entrasse? E, no primeiro, caso, ainda poderemos ter uma ordem? Por outro
lado, é Guilherme uma autoridade para efeitos do Decreto n.º 2-A/2020? Se bem que seja
aceitável considerar, em função do enunciado, que Guilherme ordenou a Fátima que não
entrasse, já não será razoável aceitar que o estatuto de Guilherme seja, para efeitos da lei,
equivalente ao da autoridade pública.
A segunda questão prende-se com a eventual inconstitucionalidade formal e orgânica
das normas referidas do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março. António Brito Neves
defende, em Crimes desobedientes – análise da base legal para as detenções por
desobediência4, que “a disposição legal referida no art. 348.º tem de ser lei da Assembleia
da República ou decreto-lei com autorização legislativa”, de maneira a respeitar-se o
princípio da legalidade (arts. 29.º, n.º 1 e 165.º, n.º 1, al. c), da CRP). Não o sendo no
caso, pois as normas em apreço emanam de um mero Decreto, também as ordens que
nelas se suportam são ilegítimas, pelo que, infere-se, podem não ser obedecidas. Outra
hipótese será a de defender que “a criminalização visa a pura desobediência, com
independência do conteúdo do comando a que cabe obedecer”, pelo que as normas do
Decreto n.º 2-A/2020 “não têm relevo suficiente para valerem em relação a eles as
exigências do princípio da legalidade”. Sendo as ordens que nelas se suportam legítimas,
têm de ser obedecidas. Uma terceira hipótese será a de apenas suportarem ordens
legítimas as normas com dignidade (material) penal.
Há dolo direto (art. 14.º, n.º 1), pois Fátima representou e teve intenção de violar a
obrigação de confinamento.

• Ilicitude:
Não existem causas de exclusão da ilicitude.

• Culpabilidade:
Aplica-se o que foi dito relativamente ao tipo ‘coação’, mutatis mutandis, para a entrada
vedada no estabelecimento.

Responsabilidade Penal de Guilherme:

Tipo: sequestro (art. 158.º do Código Penal)

• Ação:
Guilherme agiu, qualquer que seja o critério adotado: empregou energia no sentido de
prender Fátima; criou perigo para bens jurídicos; houve ingerência na esfera alheia de
liberdade de organização no âmbito de uma responsabilidade geral pela própria
organização.

• Tipicidade:
Estão verificados os elementos constitutivos do tipo de crime em questão,
nomeadamente, manter presa Fátima de forma a privá-la da sua liberdade.
Há dolo direto (art. 14.º, n.º 1), pois Guilherme representou que privava Fátima da
liberdade e teve intenção de o fazer.

• Ilicitude:

4
Artigo disponível online em https://cidpcc.wordpress.com/2020/04/29/crimes-desobedientes-
analise-da-base-legal-para-as-detencoes-por-desobediencia/.
É de ponderar a existência de legítima defesa (art. 32.º). Para isso, dever-se-á verificar
se se encontram reunidos os pressupostos e os requisitos aí estabelecidos.
Quanto aos pressupostos: há uma agressão por parte de Fátima, que é atual (há atos de
execução) e ilícita (como foi visto, Fátima não beneficia de nenhuma causa de exclusão
da ilicitude); há interesses protegidos, se bem que com uma natureza complexa, por
paridade com a complexidade do bem jurídico tutelado pelo tipo ‘propagação de doença’
– de acordo com MARIA FERNANDA PALMA, este tem tanto uma natureza pessoal (vida e
integridade física) como uma natureza coletiva (segurança da saúde pública).
Quanto aos requisitos: o meio empregado tem de ser, de entre os meios idóneos
disponíveis, o menos gravoso para o agressor. Há excesso extensivo: o sequestro foi
necessário para parar a agressão, mas prolongou-se para lá desta. Assim, aplica-se, para
MARIA FERNANDA PALMA, o art. 33.º por analogia, pelo que, nos termos do art. 33.º, n.º
1, o facto continua a ser ilícito (embora haja a possibilidade de atenuação da pena). Tendo
em consideração os dados fornecidos no enunciado, não existem razões para ser aplicado
o n.º 2 (quando muito, Guilherme teria atuado sob a influência de um estado afetivo
esténico, não asténico).

• Culpabilidade:
Não existem causas de exclusão da culpa.
DIREITO PENAL II – 3.º Ano – Dia
Coordenação e Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Mestres Ricardo Tavares da Silva, António Brito Neves, Catarina Abegão Alves,
Mafalda Moura Melim e Rita do Rosário, e Licenciado Nuno Igreja Matos
Época de Recurso – Turma B
24/7/2020. Duração: 100 minutos

“Alea jacta est”

Amigos de longa data, Júlio, Pompeu e Marco tornaram-se rivais quando se apaixonaram todos por
Romana.
Áquila deve a Júlio largas somas monetárias. Incapaz de pagar, decide visitar Júlio para lhe pedir
perdão da dívida. Já próximo da habitação, ouve gritos de discussão violenta entre Júlio e Pompeu, e
vê este sair disparado. Convencido de que Júlio lhe perdoará a dívida se matar Pompeu, Áquila usa
uma pedra para desferir sobre Pompeu uma pancada forte na cabeça, fazendo-o cair inconsciente.
Vendo-o sangrar e não sabendo se o matou, arrepende-se e foge.
Pouco depois, Júlio sai atrás de Pompeu, desejando pedir perdão, e espanta-se por encontrá-lo
inanimado e sangrando. Convencendo-se de que, durante a discussão, lhe bateu com muito mais força
do que julgou, e de que o matou, rapidamente enterra Pompeu para ocultar o crime.
Na autópsia, comprova-se que Pompeu morreu por asfixia.

1 – Analise a responsabilidade de Júlio e Áquila pela morte de Pompeu (6 v.).

Dias depois, já ciente da realidade dos factos, Júlio contrata Ganimedes para matar Áquila.
Ganimedes escolhe um ponto de mira apropriado e espera que Áquila apareça à janela de sua casa.
Quando isto acontece, Ganimedes dispara a sua espingarda, provocando-lhe morte imediata.
Ganimedes foge do local, nunca chegando a dar conta de que naquele preciso momento, Áquila se
preparava para violar Cléo, adormecida na cama por efeito de um sonífero que Áquila lhe dera.

2 – Analise a responsabilidade de Júlio e Ganimedes pela morte de Áquila (6 v.).

Sabendo que a polícia tem Júlio sob suspeita e com medo de ser denunciado, Ganimedes decide matá-
lo. Convence Marco a juntar-se ao plano e, encurralando Júlio num beco, atacam-no com várias
punhaladas. Admirado ao reconhecer o velho amigo Marco, Júlio cai, murmurando antes de morrer:
“Também tu, seu bruto!”
Apura-se em tribunal que um dos dois comparsas (Ganimedes e Marco) segurou Júlio enquanto o
outro desferiu os golpes de navalha, mas não se determina qual deles fez o quê.

3 – Analise a responsabilidade de Ganimedes e Marco pela morte de Júlio (6 v.).

4 – Ponderação Global: 2 v.
Questão 1

Júlio
- Homicídio (art. 131.º):
Júlio cria um risco proibido ao enterrar Pompeu vivo. Morrendo Pompeu asfixiado, o risco concretiza-
se no resultado.
Júlio não representa que está a matar uma pessoa, pelo que age em erro sobre a factualidade típica,
previsto no art. 16.º, n.º 1, primeira parte. Exclui-se, assim, o dolo do tipo. Fica ressalvada a punibilidade
por negligência, nos termos dos arts. 16.º, n.º 3, 13.º e 15.º, al. b), prevista no art. 137.º Pode admitir-se
a falta de cuidado do agente, supondo que um exame rápido lhe permitiria ver que a vítima ainda
respirava.
Não pode aplicar-se a solução de dolus generalis, mesmo para quem adote este caminho de resposta
em geral, visto que no caso, os seus pressupostos não se verificam: ficando Júlio admirado ao julgar
morta a vítima dada a força com que lhe batera, e só então decidindo enterrá-la, parece não ter havido
sequer dolo de homicídio por ocasião da discussão, muito menos um plano de matar a vítima e enterrá-
la de seguida. De acordo com autores como Welzel, seria essencial encontrar, naquele primeiro
momento, não só o dolo, mas o próprio plano de praticar um homicídio encoberto, capaz de estabelecer
uma conexão entre as duas acções (nesta hipótese, a agressão durante a discussão e o enterramento do
suposto cadáver) e de permitir descortinar uma unidade do comportamento global, devendo então tratar-
se o caso como de realização de um só facto típico (doloso). Não se verificando tais pressupostos, em
suma, mantém-se a separação entre os dois momentos, e o enterro constitui facto típico negligente,
como referido.
Não há causas de exclusão da ilicitude ou da culpa aplicáveis.

Perguntando-se apenas pela imputação da morte, seria somente objeto de cotação extra a análise da
responsabilidade por tentativa impossível de ocultação de cadáver [arts. 254.º, n.º 1, al. a), 22.º, n.º 2,
al. b), e 23.º, n.ºs 1 e 3].

Áquila
- Homicídio (art. 131.º):
Áquila cria um risco proibido para vida de Pompeu, ao bater-lhe com a pedra na cabeça. Visto que
Pompeu morre asfixiado, o risco criado por Áquila não se concretiza no resultado.
Áquila atua com dolo intencional de homicídio (art. 14.º, n.º 1), pois age com o propósito imediato de
matar Pompeu.
Falhando em atingir o objetivo, Áquila pratica, ainda assim, um ato de execução nos termos do art.
22.º, n.º 2, al. b), dado que a pancada violenta com a pedra na cabeça é ato idóneo, segundo juízo ex
ante e atendendo ao plano do agente, a produzir o resultado morte.
O arrependimento de Áquila não releva para efeitos de desistência, visto que, tratando-se de tentativa
acabada de homicídio, seria preciso que o agente atuasse para impedir a consumação do crime, nos
termos do art. 24.º, n.º 1, 2.ª parte.
A criação do risco proibido na esfera de Pompeu gera, por ingerência, dever de garante de evitar o
resultado, mas o homicídio doloso por omissão (tentado) cede, segundo as regras de concurso, perante
o homicídio doloso por acção (tentado).
Não há causas de exclusão da ilicitude ou da culpa aplicáveis.
Nos termos do art. 23.º, n.º 1, a tentativa de homicídio é punível.

Questão 2

Ganimedes
- Homicídio (art. 131.º):
Ganimedes cria um risco proibido para a vida de Áquila ao disparar sobre ele. Morrendo Áquila em
consequência do disparo, há concretização do risco proibido no resultado.
Atua com dolo intencional, pois representa e tem a intenção de matar Áquila (art. 14.º, n.º 1).
Uma vez que “naquele preciso momento, Áquila se preparava para violar Cléo, adormecida na cama
por efeito de um sonífero que Áquila lhe dera”, podemos deduzir que já havia atos de execução do
crime de violação praticados por Áquila, à luz dos arts. 164.º, n.º 2, al. a), e 22.º, n.º 2, als. a) e c).
Assim sendo, havia agressão atual e ilícita. Não obstante, se se admitir que Ganimedes podia ter dado
primeiro um disparo de aviso, por exemplo, falha o requisito da necessidade do meio. Não
representando Ganimedes a existência da agressão, não pode ser aplicado o regime do excesso de
legítima defesa. Se, ao invés, se entender que Ganimedes não tinha condições para alertar, ou adotar
outro meio menos gravoso, estavam respeitados os requisitos da legítima defesa, incluindo a
necessidade da defesa (dado que se tratava de agressão grave à liberdade sexual), pelo que, na falta dos
elementos subjetivos, se aplicaria, por analogia, o art. 38.º, n.º 4, sendo Ganimedes punido por tentativa
de homicídio, nos termos do art. 23.º, n.ºs 1 e 2.

Júlio
- Homicídio (art. 131.º):
Ao contratar Ganimedes para matar Áquila, Júlio criou nele a decisão de praticar o facto típico. Sendo
Ganimedes responsável a título de dolo, Júlio é instigador do facto (art. 26.º, parte final). Houve começo
de execução (e consumação) pelo autor material.
Júlio age com duplo dolo intencional (art. 14.º, n.º 1), tanto representando e querendo determinar
Ganimedes nos termos referidos como tendo por objetivo que este mate Áquila.
O comportamento de Áquila é típico e ilícito. Pela regra da acessoriedade, porém, também Júlio seria
punido apenas por tentativa de homicídio, como explicado.
Não há causas de exclusão da culpa aplicáveis.

Questão 3

Ganimedes e Marco
- Homicídio (art. 131.º):
Morrendo Júlio por ação de Ganimedes e Marco, está em causa o tipo de homicídio.
Independentemente do critério que se adote, os agentes serão tidos por co-autores deste crime.
Agindo ambos por acordo e cabendo a cada um a realização (no momento da execução) de tarefa
essencial para a consumação do facto, tanto Ganimedes como Marco têm domínio funcional do facto.
Noutra óptica, tanto o agente que esfaqueia como o que segura a vítima para possibilitar o
esfaqueamento praticam atos de execução conjuntamente, nos termos do art. 22.º, n.º 2, als. b) e c),
respetivamente.
Assim, torna-se indiferente apurar que parte coube a cada um, pois o co-autor é responsável pela
globalidade da execução e é seguro tanto que esta se traduziu na criação de um risco proibido como que
a morte resultou dela.
Ambos atuam com dolo intencional (art. 14.º, n.º 1), tanto representando como intencionando matar
Júlio.
Não há causas de exclusão da ilicitude ou da culpa aplicáveis.
DIREITO PENAL II – 3.º Ano – Dia
Coordenação e Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Mestres Ricardo Tavares da Silva, António Brito Neves, Catarina Abegão Alves,
Mafalda Moura Melim e Rita do Rosário, e Licenciado Nuno Igreja Matos
Época Especial —14.09.2020 | Duração: 100 minutos

A pagou uma certa quantia de dinheiro a B, ex-recluso, para que este matasse o seu ex-
marido, C, que era segurança e que a tinha ameaçado de morte, por ciúmes relativamente a
D, atual namorado de A.

B aceitou o dinheiro e dirigiu-se à casa de C para executar o plano de A. No entanto, quando


chegou à porta viu um carro da empresa de segurança e teve medo de não conseguir executar
o plano, porque C poderia estar armado. Deste modo, desistiu e ficou com o dinheiro.

1 – Analise a eventual responsabilidade de A e B (7,5 v.).

A, continuando a temer que o ex-marido a viesse a matar, arranjou uma arma através de uma
amiga, E, para se poder defender.

Certa madrugada, quando alguém forçava a entrada na sua porta, A, convencida de que seria
o ex-marido, disparou logo na direção da porta, ferindo, no entanto, no abdómen, o próprio
namorado D, que chegava nessa altura a casa dela sem ter avisado antes.

2 – Analise a eventual responsabilidade de A e E (7,5 v.).

Chamada a Emergência Médica, D foi levado ao hospital, onde se detetou que estava
igualmente infetado com Covid-19. D veio a morrer no hospital porque o seu estado de saúde
se agravou devido à infeção provocada pelo ferimento.

3 – Analise a eventual responsabilidade de A, considerando agora a morte de D (3 v.).

4 – Ponderação Global: 2 v.
TÓPICOS DE CORREÇÃO

Questão 1 [Analise a eventual responsabilidade de A e B (7,5 v.)]

Quanto a B:
Tentativa de homicídio de C (artigo 131.º do Código Penal):
• B é instigado por A, que cria a sua decisão criminosa mediante pagamento, nos termos do
artigo 26.º, última parte, do Código Penal. Será, por isso, eventual autor material do
hipotético crime (artigo 26.º, primeira parte, do Código Penal).
• B aceita a quantia oferecida por A para matar C e desloca-se à casa deste último, não
chegando, no entanto, a ir além no seu intento. Importa, pois, suscitar a discussão em torno
da prática de atos de execução por B, considerando o disposto nos artigos 21.º a 23.º do
Código Penal. Nesta sede, assume relevo a discussão em torno das teorias formais objetivas
e das teorias materiais objetivas, que devem ser debatidas com vista a melhor distinguir atos
preparatórios de atos de execução. Os dados da hipótese convocam em particular a análise
destas teorias a partir da alínea c) do n.º 2 do artigo 22.º do Código Penal.
De acordo com a conceção formal-objetiva, a deslocação de B até à porta de casa de C não
se afigura enquadrável com os atos previstos no tipo legal de homicídio, nem sequer à luz
de uma visão extensiva desta conceção que admita ainda a mera conexão natural com os
factos descritos no tipo, dado que esse nexo natural também não aparenta existir.
À luz das teorias materiais-objetivas, num primeiro momento, resulta que também não se
pode afirmar uma conexão causal do comportamento de B com o resultado típico. Resta,
pois, ponderar se o comportamento sob análise está numa relação de consideração natural
(fórmula de Frank), de adequação (Eduardo Correia) ou de normalidade social face à ação
típica, pois que a alínea c) do n.º 2 do artigo 22.º classifica ainda como atos de execução os
comportamentos anteriores à verificação da conexão causal quando antecedam
imediatamente os atos descritos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do mesmo artigo 22.º.
Neste sentido, sem perder de vista que o fundamento da punibilidade da tentativa se estriba
numa perigosidade objetiva, é importante ponderar a aplicação das regras da experiência e
do plano do agente para desvendar se se verifica ou não a ocorrência de ato de execução.
Assim, ainda que se possa admitir a interposição de regras de experiência no sentido de que
a deslocação a casa de C assume já contornos de perigo — em particular se se considerar
aqui o contexto social do homicídio a soldo —, não parece, porém, que a deslocação até à
porta de casa seja suficiente para afirmar uma conexão temporal e típica com os atos
diretamente idóneos a causar a morte de C. Já no que respeita ao plano do agente, importa
explicar, em linha com o pensamento da Senhora Professora Maria Fernanda Palma, que se
trata de um elemento interpretativo da conexão objetiva que pode ou não revelar a
perigosidade objetiva da conduta quando analisada sob o foco das regras da experiência. A
este propósito, a deslocação de B até à porta da casa de C, ainda que se enquadre num plano
de homicídio, não parece por si só revelar mais do que uma mera perigosidade abstrata
anterior à ação típica, que não é, como tal, passível de configurar uma atuação objetivamente
perigosa. Não parece, por conseguinte, verificar-se uma conexão de perigo suficiente sob o
prisma temporal, nem uma iminente implicação com o resultado típico. Estamos, portanto,
perante um ato preparatório, não punível (artigo 21.º do Código Penal).
Nesta senda, não carece de análise — porque em rigor não existiu sequer tentativa — a
putativa situação de desistência que o caso poderia desencadear, em especial se estaríamos
perante uma desistência voluntária ou não voluntária (como parece que seria o caso, dada a
presença de carro de empresa de segurança e o receio de que C estivesse armado, que surgem
como circunstâncias externas ao agente).

Quanto a A:
Tentativa de homicídio de C (artigo 131.º do Código Penal):
• A é instigador, nos termos do artigo 26.º, última parte, do Código Penal, pois cria a decisão
criminosa de B. Com efeito, B não tinha a determinação nem vontade para matar C, que são
criadas (incentivadas financeiramente, até) por A. A eventual responsabilidade de A depende
do início da prática de atos de execução por parte de B, autor material, e da prática por este
último de um facto típico e ilícito (acessoriedade limitada, que deve ser enunciada e
explicada).
No entanto, e como se viu já, uma vez que B não chega a praticar qualquer ato de execução,
não foi iniciada a execução do facto principal. Logo A também não é punido. Neste contexto,
poderá ser objeto de valoração adicional a referência à discussão e possíveis fundamentos
da punibilidade do aliciamento ou a formação do pacto para matar.

Questão 2 [Analise a eventual responsabilidade de A e E (7,5 v.)]

Quanto a A:
Tentativa de homicídio de D (artigo 131.º do Código Penal):
• A é autor material do crime (artigo 26.º, primeira parte, do Código Penal). A cria um risco
proibido ao disparar na direção da porta atrás da qual se encontrava D. Os dados da hipótese
não referem, no âmbito da questão 2, a produção do resultado morte, pelo que deve ser
ponderada a tentativa de homicídio. Neste sentido, assinala-se que A pratica atos de
execução do crime de homicídio, dado que o disparo de arma de fogo constitui um ato idóneo
a provocar o resultado típico (artigo 22.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal).
• A atua, pelo menos, com dolo eventual de homicídio, nos termos do artigo 14.º, n.º 3, do
Código Penal, uma vez que ao decidir disparar uma arma de fogo na direção de D,
considerando o risco muito elevado associado a esta conduta, necessariamente se conformou
com a possibilidade de atingir fatalmente o alvo. Embora os dados da hipótese não sejam
inteiramente esclarecedores, a circunstância de D ter sido atingido no abdómen permite
indiciar que A nem teve o cuidado de apontar a arma numa direção potencialmente menos
perigosa para a vida de D.
• Não se verificam os pressupostos de qualquer causa de justificação. Com efeito, ainda que
A represente a potencial iminência de uma agressão de C, a verdade é que a situação real
não tinha correspondência com essa sua convicção, pois que atrás da porta estava D, seu
namorado. Por conseguinte, não se verifica qualquer agressão ou perigo, atual ou futuro,
passível de suscitar a discussão de causa de justificação.
Em todo o caso, o facto de A ter disparado a arma de fogo na convicção de que estaria a
enfrentar uma ameaça atual, isto é, imaginando uma situação de legítima defesa, permite
valorar a sua conduta como uma situação de erro sobre as circunstâncias de facto,
concretamente um erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude (artigo
16.º, n.º 2, do Código Penal). Este erro leva à exclusão do dolo, devendo nesta sede ser
tomada uma posição fundamentada em torno da discussão em torno do tipo de dolo que deve
ser afastado, isto é, se o dolo do tipo ou o dolo da culpa, e salvaguardar-se a eventual punição
a título negligente (artigo 16.º, n.º 3, do Código Penal). No entanto, considerando a forma
tentada do homicídio ora sob discussão, e a não punibilidade da tentativa negligente, A não
seria punida.
Paralelamente, é ainda de ponderar a eventual existência de excesso de legítima defesa
putativa. Além da enunciação dos pressupostos da legítima defesa, deve ser em especial
examinado o requisito referente à necessidade do meio, que, caso esteja verificado, poderá
levar ao afastamento do regime do erro se não tiver sido por este motivado. A este respeito,
o caso vertente viabiliza a sustentação de que A, na qualidade de defendente putativa, utiliza
um meio excessivamente gravoso para o hipotético agressor, pois que poderia e deveria ter
recorrido a formas menos lesivas de repelir a putativa agressão antes de disparar, como
avisar. Verificada uma situação de excesso de legítima defesa putativa, deve aplicar-se, de
acordo com a Professora Maria Fernanda Palma, o artigo 33.º do Código Penal, por analogia.
Neste quadro, pode admitir-se, todavia, que o excesso se deveu a um medo de vir a morrer,
uma vez que C já anteriormente havia ameaçado A de morte. Afastada por essa razão a
censurabilidade do excesso, correspondente a uma situação de excesso asténico, A não seria
punida, conforme resulta da aplicação analógica do artigo 33.º, n.º 2, do Código Penal. Nem
vale a ressalva da punição por negligência na formação do erro que levou ao excesso, nos
termos do artigo 16.º, n.º 3, visto haver apenas tentativa, como referido.

Crime de ofensa à integridade física (artigo 143.º, eventualmente 144.º, do Código Penal,
em concurso aparente com o crime de tentativa de homicídio):
• A lesão à integridade física de D é causal e objetivamente imputável à conduta de A, de
acordo com as teorias da conditio sine qua non, da causalidade adequada e do risco, que
devem ser enunciadas e concretizadas. Trata-se de um risco proibido que se concretiza no
resultado típico (ferimento no abdómen de D).
• A atua com dolo direto (artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal).
• No que respeita à causa de justificação, têm aplicabilidade as considerações anteriormente
tecidas a respeito da tentativa de homicídio. Contudo, estando agora em causa um crime
consumado, seria já possível ponderar a punição de A pela prática de crime de ofensa à
integridade física negligente, nos termos do artigo 16.º, n.º 3, e 148.º do Código Penal, sem
prejuízo da tomada de posição sobre a articulação deste regime com a situação de excesso
também já examinada na resposta anterior.

Crime de detenção de arma proibida (artigo 86º, n.º 1 alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de
fevereiro):
• A ponderação do crime de detenção de arma proibida pode ser objeto de cotação extra.
Neste sentido, assumindo que A não detém licença para deter a arma de fogo em causa,
estaríamos ainda perante um crime de detenção de arma proibida, praticado com dolo direto
(artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal).
Não existem causas de justificação, nem de exclusão da culpa.

Quanto a E:
Tentativa de homicídio/ofensa à integridade física de D (artigo 131.º do Código Penal):
• E poderá ser cúmplice de A (artigo 27.º, n.º 1, do Código Penal), porque lhe presta auxílio
material. Deve ser explicado que o cúmplice não é autor e que a punição da sua atuação se
fundamenta na sua influência no facto do efetivo autor. A sua punibilidade, no entanto,
pressupõe a existência de um facto principal doloso cometido por A (acessoriedade limitada,
que deve ser enunciada e explicada), exigindo-se aqui a a articulação com a resposta
subscrita quanto à responsabilidade de A — em particular considerando a aplicação do artigo
16.º, n.º 2, do Código Penal e a posição assumida nesse contexto sobre a exclusão do dolo.
No que respeita ao duplo dolo, é de ponderar, pelo menos, a existência de dolo eventual de
E (artigo 14.º, n.º 3, do Código Penal), visto que, sendo amiga de A, teria provavelmente
conhecimento das desavenças conjugais, conformando-se com a possibilidade de A vir
efetivamente a utilizar a arma.

Crime de detenção de arma proibida (artigo 86º, nº 1 alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de
fevereiro):
• A ponderação do crime de detenção de arma proibida pode ser objeto de cotação extra.
Neste sentido, uma vez que os dados da hipótese não permitem deslindar se E tinha ou não
conhecimento de que A não possuía licença de porte de arma de fogo, não se aparenta
suscitar uma situação de comparticipação criminosa.
Em todo o caso, poderia ser discutido um dolo eventual de E a este propósito, o que abriria
a porta à sua punição como co-autora, dada a essencialidade do seu contributo para a
consumação do resultado típico, isto é, a detenção da arma de fogo (artigo 26.º, terceira parte,
do Código Penal).

Questão 3 [Analise a eventual responsabilidade de A, considerando agora a morte de D (3


v.)]

Quanto a A:
Homicídio de D (artigo 131.º do Código Penal):
• Importa agora considerar a circunstância de D vir a morrer em consequência do disparo de
A e do agravamento do estado de saúde, já anteriormente comprometido devido à infeção
com Covid-19. Com efeito — e uma vez que os dados da hipótese não sugerem que o
ferimento no abdómen fosse fatal —, o resultado típico parece ser produto destas duas
causas, sendo aparentemente cada uma por si só insuficiente para produzir a morte de A,
pelo menos nos termos em que esta veio a ocorrer. Apresentando-se assim um caso de
causalidade cumulativa, falta a base causal para o juízo de imputação. Por outro lado, de
acordo com a teoria da causalidade adequada, afigura-se que à luz do juízo de prognose
póstuma proposto por esta teoria, uma pessoa média, colocada nas circunstâncias de tempo
e de lugar de A, que tudo indica que desconhecia a infeção de D, não poderia prever que o
processo causal iniciado com o disparo da arma de fogo produziria a morte de D devido ao
agravamento de uma condição de saúde anterior. Idêntico desfecho resulta da aplicação ao
caso vertente da teoria do risco, pois que ainda que A tenha criado um risco proibido, não
foi esse risco, isoladamente considerado, que se veio a materializar no resultado, o que
impede que a morte de D lhe seja objetivamente imputada. Assim, A apenas poderia ser
responsabilizada nos termos da resposta anterior.
Direito Penal II
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Mestres João Matos Viana, Ricardo Tavares da Silva, António Brito Neves, Catarina
Abegão Alves e Mafalda Melim e Licenciada Rita do Rosário
Exame - 12 de junho de 2019
Duração: 120 minutos

Correio de droga
Adélia, desempregada, mãe solteira de duas crianças, aceitou transportar no organismo um quilograma de cocaína
que lhe foi dado por Bernardo, no Brasil, para transportar de avião para Portugal, mediante o pagamento de cinco mil
euros.
Bernardo convenceu Adélia, que fazia o primeiro transporte de droga, de que não corria perigo, embora soubesse
que os invólucros (“bolotas”) poderiam rebentar e provocar a morte (o que ele não desejava, de acordo com os seus
interesses). Na viagem, Adélia seria acompanhada por Célia, companheira de Bernardo, a quem entregaria a droga
após desembarcar em Lisboa.
No fim da viagem, Adélia sentiu-se indisposta e disse a Célia que iria pedir ajuda à própria polícia, porque tinha
medo de morrer. Temendo as consequências de uma denúncia, Célia agarrou Adélia por um braço, com violência, e
ameaçou-a de represálias sobre os filhos. Duarte, agente da PSP em serviço no aeroporto, abordou-as.
Célia começou logo a fugir. Duarte, pensando que se tratava de uma pessoa que era procurada por estar a preparar
um atentado terrorista, disparou em direção a Célia, mas atingiu Ester, que se encontrava perto dela e junto a um
grupo de passageiros. Verificou-se depois que, por acaso, Ester era a pessoa suspeita de terrorismo e que transportava
uma bomba na mala. Ester planeava fazer explodir a bomba daí a uns segundos, mas, ao contrário do que julgava, a
bomba estava desativada.
Em consequência dos factos descritos, Adélia, que correu risco para a vida, foi sujeita a uma lavagem ao estômago
e sobreviveu. Ester foi atingida pelo disparo, mas, apesar dos ferimentos graves, sobreviveu.

Determine a responsabilidade jurídico-penal dos intervenientes, considerando, além do Código Penal e da


Legislação de Combate à Droga, a Lei do Combate ao Terrorismo (Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto).
Cotações: Adélia – 4 v.; Bernardo – 3 v; Célia – 4 v.; Duarte – 4 v.; Ester - 3 v; ponderação global: 2 v.
1. Responsabilidade penal de Adélia

a) Crime de tráfico de estupefacientes (artigo 21 da Lei de Combate à Droga)

 Autora imediata do referido crime por executar diretamente os atos típicos descritos
pela lei incriminadora;

 Trata-se de um crime de perigo abstrato e de mera atividade, pelo que não existe
qualquer resultado típico que deva ser objetivamente imputado;

 Atua com dolo direto;

 Não existe qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa; a este propósito,


não existe qualquer estado de necessidade justificante ou desculpante, ainda que A
estivesse desempregada e fosse mãe solteira de dois filhos. Não existe estado de
necessidade justificante pois o tráfico de estupefacientes implica um perigo
intolerável para a saúde pública, pelo que nunca estaria preenchida a cláusula do
interesse preponderante (artigo 34.º, alínea b), CP). Não existe estado de
necessidade desculpante, pois não se encontra preenchida a cláusula de
inexigibilidade, independentemente do critério adotado (superação do limite de
resistência da pessoa normalmente fiel ao direito; sobreposição eticamente
compreensível da estrutura ético-afetiva do agente às exigências normativas, etc.).

 Coloca-se ainda o problema da eventual desistência da tentativa (artigo 31.º da Lei


do Combate à Droga). Neste caso, tratando-se de um crime de perigo abstrato e de
mera atividade, o mesmo já se encontrava consumado. Ainda assim, se o agente
desistir voluntariamente da sua atividade, poderá ter uma atenuação ou dispensa de
pena. A questão aqui relevante é saber se a decisão de A foi voluntária, não obstante
ter sido motivada pelo facto de se sentir mal-disposta e com medo de morrer. Em
particular, o aluno teria de discutir se a referência à “indisposição física” e ao “medo
de morrer” impedia, ou não, que se pudesse continuar a afirmar que tinha sido A a
controlar o se e o como da desistência da atividade criminosa. A este propósito, não
obstante a referência ao “medo de morrer” parecer indicar que o constrangimento
sobre a vontade de A era de tal forma intenso que deixava de ser possível falar de
uma decisão livre, ainda assim, seriam aceites ambas as soluções, desde que
devidamente fundamentadas.

2. Responsabilidade penal de Bernardo

a) Crime de tráfico de estupefacientes (artigo 21.º da Lei de Combate à Droga)

 Autor imediato do referido crime por executar diretamente os atos típicos descritos
pela lei incriminadora. Ao dizer-se que a cocaína “foi dada” por B a A, está-se a
afirmar que B terá, pelo menos, cedido ou, por qualquer título, proporcionado a
outrem, ou terá feito transitar ou terá ilicitamente detido o estupefaciente.

 Ainda assim, considerando que as particularidades típicas do crime em causa não


são exigíveis em Penal II, admitir-se-ia como igualmente válida a resposta de quem
discutisse a qualificação de B como autor mediato ou instigador. Considerando os
dados da hipótese, nesta linha de resposta, B seria instigador, na medida em que
determinou, mediante pagamento, outrem à prática do crime, sendo certo que o erro
em que induziu A (i.e., que o transporte não seria perigoso) não era tipicamente
relevante, por não incidir sobre um elemento constitutivo do crime de tráfico de
estupefacientes, pelo que não afastava a plena responsabilidade de A.

 Atua com dolo direto, tanto quanto à instigação como quanto à execução por parte
de A;

 Na qualidade de instigador, B seria punido pelo facto de A ter iniciado a execução


de um facto típico e ilícito (acessoriedade limitada), não beneficiando de qualquer
cause de desculpa ou limitação da culpa que a esta fosse aplicável (artigo 29.º CP).
b) Ofensa à integridade física grave (artigo 144.º, alínea d)) ou tentativa de homicídio
(artigo 131.º + artigos 22.º e 23.º do CP)

 B convenceu A de que o transporte das bolotas não era perigoso, o que não
correspondia à verdade, convencendo A, dessa forma (e para além do pagamento
dos €5.000), a realizar o referido transporte. A sentiu-se indisposta (havendo,
portanto, afetação do seu corpo e saúde) e correu perigo de vida.

 B é autor mediato do crime em causa, instrumentalizando para o efeito a própria


vítima, nos termos do 2.º inciso do artigo 26.º do CP (sendo certo que, do ponto de
vista do executante, o ato é atípico, pois A não pode praticar um ato típico de ofensa
à integridade física contra si mesmo). Com efeito, B provocou astuciosamente um
erro da própria vítima sobre um dos elementos constitutivos do facto típico: o
carácter ofensivo da integridade física do transporte das bolotas no estômago.

 Era necessário discutir, igualmente, o nexo de imputação objetiva entre o


comportamento de B e o resultado ofensa à integridade física de A. Pela
causalidade adequada, era necessário verificar se, de acordo com as regras de
experiência comum, e tomando como padrão uma pessoa razoavelmente diligente
(com os eventuais conhecimentos especiais do agente), colocado na situação
concreta do agente, no momento da prática do facto, o resultado seria previsível.
Para a teoria do risco, seria necessário verificar se o agente criou ou aumentou um
risco qualificável como proibido por contrário a uma regra de cuidado aplicável no
caso concreto e que o mesmo foi controlado pelo agente até à sua materialização
no resultado. Seguindo qualquer uma das conceções, admitia-se a existência de
imputação objetiva.

 Quem seguisse, neste caso, a via da imputação a B de uma tentativa de homicídio


de A não teria de discutir o nexo de imputação objetiva entre o comportamento do
agente e o (inexistente) resultado morte. Teria antes de discutir a existência de um
ato de execução, nos termos do artigo 22.º, n.º 2, do CP: a alínea b) segue a linha
argumentativa apresentada no bullett anterior, pois ao falar de idoneidade para a
produção do resultado típico está a remeter para uma ideia de imputação objetiva.
A alínea c) implicava a verificação de uma situação de insegurança existencial do
bem jurídico, em que, por inexistência de qualquer barreira de proteção desse
mesmo bem jurídico, a qualquer momento, e salvo situações excecionais (conexão
de perigo), poder-se-ia verificar a ocorrência do facto que iria gerar o resultado
(conexão típica).

 Quanto à imputação subjetiva, seria necessário discutir se B atuou com dolo


eventual ou negligência consciente. B não queria que as bolotas rebentassem, mas
isso nada diz sobre a referida distinção, apenas permitindo afastar o dolo direto.
Neste caso, parece existir um caso evidente de conformação, na medida em que,
embora não deseje o resultado, o agente aceita o risco de verificação do resultado,
pois esse risco está naturalmente associado ao desenvolvimento do seu projeto
criminoso, funcionando como pressuposto essencial da satisfação dos seus
interesses lucrativos. Tal como o jogador que coloca as fichas na casa vermelha,
sabe e aceita que corre o risco de sair a cor preta, pois este está naturalmente
associado à aposta (sendo um pressuposto do seu lucro), também o traficante que
coloca, através da provocação de erro, as bolotas no estomago do correio sabe e
aceita, pela mesma razão, o risco de estas poderem rebentar.

 Não existem causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.

3. Responsabilidade penal de Célia

a) Crime de tráfico de estupefacientes (artigo 21.º da Lei de Combate à Droga)

 Neste caso, ter-se-ia de começar por discutir o título comparticipativo de C no crime


em causa: co-autora ou cúmplice.
 Caso a função de C se limitasse a acompanhar A durante a viagem, poderia a mesma
ser qualificada como mero cúmplice. Isto seria assim, sob a perspetiva da teoria do
domínio (funcional) do facto, a qual atende à ponderação do significado, peso e
importância do papel do agente, no contexto do plano criminoso acordado ou
juntamente executado pelos comparsas. Isto seria também assim, sob a perspetiva
da teoria que associa execução e autoria, atendendo à conexão típica de risco
imediato com o bem jurídico, ou seja, ao facto de caber ao co-autor um contributo
para o facto global que, por si só, coloca diretamente o bem jurídico em perigo,
ultrapassando desde logo o limiar do início da tentativa.

 Contudo, segundo o enunciado da hipótese, o contributo de C para o facto global


incluía receber o estupefaciente, logo que chegassem a Lisboa, o que, de acordo
com as teorias acima referidas, transformaria C numa co-autora, seja pela
essencialidade do seu comportamento, seja pelo facto de se tratar da execução de
um segmento do facto típico.

 No entanto, a qualificação de C como co-autora não dispensava a análise do


problema do início da tentativa de C: a sua tentativa começa com o início da
tentativa de A (solução global) ou começa com a execução do seu próprio
contributo de autoria (solução individual)? Neste caso, e ainda que o contributo de
autoria seja a receção da droga – pois o mero acompanhar é um ato de cumplicidade
–, é possível sustentar que esse mesmo acompanhamento, ao abrigo do artigo 22.º,
n.º 2, alínea c), do CP, já coloca C no patamar da tentativa.

 A punição de C pelo crime tentado seria possível por C atuar com dolo direto;

b) Crime de ameaça (artigo 153.º do CP)

 C praticou um facto típico de ameaça, com dolo direto, não se verificando qualquer
causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
4. Responsabilidade penal de Duarte

a) Tentativa de homicídio de C (artigo 131.º + artigos 22.º e 23.º do CP)

 D realizou um ato de execução (artigo 22.º, n.º 2, alínea b), do CP) de um crime
que decidiu praticar (atuando, portanto, com dolo do tipo, representando e querendo
a realização do facto típico);

 Não se verifica qualquer causa de exclusão da ilicitude;

 Contudo, D supõe que C é um terrorista que se preparava para praticar um atentado


terrorista.

 Caso o aluno interprete o “estar a preparar um atentado terrorista” como algo


iminente (em que, salvo circunstâncias excecionais, de acordo com as regras de
experiência comum, se seguiria o detonar da bomba), D estaria numa situação de
erro do artigo 16.º, n.º 2, do CP, por suposição da verificação dos pressupostos da
legítima defesa, sendo certo que tal erro exclui o dolo. Contudo, ainda assim, seria
possível equacionar se o agente, nas circunstâncias concretas, poderia ter escolhido
um meio de defesa (putativa) menos gravoso para o agressor, sendo certo que, em
resposta afirmativa, o regime do excesso (artigo 33.º, n.º 1, do CP, aplicado por
analogia) consome o regime do erro, pelo que o agente seria punido pelo crime
doloso, apenas com uma eventual atenuação da pena.

 Caso o aluno interprete o “estar a preparar um atentado terrorista” como algo não
iminente, mas em que aquela seria a última oportunidade para que D exercesse a
defesa, a solução seria idêntica ao bullet anterior com as seguintes diferenças: (i)
seria uma suposição errónea de uma legítima defesa preventiva e (ii) haveria
excesso, na medida em que o disparar a matar nessa situação de (putativa) legítima
defesa preventiva ultrapassa os limites éticos da aplicação analógica (modalidade
de analogia juris) desta causa de exclusão de ilicitude.
 Caso o aluno interprete o “estar a preparar um atentado terrorista” simplesmente
como algo não iminente, a solução seria idêntica ao bullet anterior com as seguintes
diferenças: (i) a (putativa) agressão poderia resultar de um dos outros
comportamentos previstos na Lei de Combate ao Terrorismo que são prévios ao
próprio atentado (pertencer a grupo terrorista, receber formação terrorista, receber
financiamento terrorista, etc.) ou ainda do artigo 275.º do CP e (ii) considerando
que, nesse caso, a agressão seria prévia ao próprio atentado, haveria excesso, pois,
atendendo às circunstâncias concretas, o disparar a matar não seria o meio menos
lesivo, sendo exigível, por exemplo, um primeiro tiro / aviso de sinalização.

b) Crime de à ofensa à integridade física de E (artigo 143.º, n.º 1, do CP)

 A ofensa à integridade física pode ser objetivamente imputada ao comportamento


de D, independentemente da teoria que se adote.

 Dada a proximidade de E com C (e com o demais grupo de pessoas), seria de


equacionar e discutir a possibilidade de D ter atuado com dolo eventual, tendo-se
conformado com a possibilidade de acertar noutra pessoa.

 Não se verificam quaisquer causas de exclusão da ilicitude;

 Contudo, verifica-se uma situação de legítima defesa objetiva, na medida em que


E estava a realizar uma tentativa (impossível mas punível) de terrorismo, nos
termos do artigo 4.º, n.º 1, da Lei de Combate ao Terrorismo, tendo D, sem o saber,
afastado tal agressão atual e ilícita. Nesse caso, poder-se-ia equacionar duas
soluções: ou D seria punido com a pena da tentativa (aplicando-se analogicamente
o artigo 38.º, n.º 4, do CP, no sentido de apenas ser aplicada a pena da tentativa) ou
D não seria punido de todo (aplicando analogicamente o artigo 38.º, n.º 4 do CP,
no sentido de apenas ser aplicado o regime da tentativa), uma vez que a ofensa à
integridade física simples não admite a forma tentada.
5. Responsabilidade penal de Ester

Tentativa de terrorismo (artigo 4.º, n.º 1, da Lei de Combate ao Terrorismo)

 E pratica atos de execução deste crime à luz do artigo 22.º, n.º 2, alínea c),
atendendo à iminência da concretização da lesão pretendida, de acordo com o seu
plano, e à proximidade em relação às vítimas visadas;

 Atua com dolo direto;

 Tentativa impossível por inaptidão do meio utilizado, nos termos do artigo 23.º, n.º
3, do CP.

 Tal tentativa impossível era punível, por não ser manifesta, para o observador
externo, a referida inaptidão do meio, também nos termos do artigo 23.º, n.º 3, do
CP. A referida punibilidade justifica-se ainda porque, para além da referida
impressão de perigo para o bem jurídico, tal tentativa (impossível) tinha ainda
potencial de lesividade, por ser apenas relativamente impossível, ou seja, por ser
razoavelmente equacionável, em circunstâncias alternativas aproximadas das reais,
que o meio pudesse ser apto a produzir o resultado lesivo.
Direito Penal II
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Mestres João Matos Viana, Ricardo Tavares da Silva, António Brito
Neves, Catarina Abegão Alves e Mafalda Melim; Licenciada Rita do Rosário
Exame de coincidências - 26 de Junho de 2019/ Duração: 90 minutos

“Tikka masala”

O namoro entre António e Bianca vem passando tempos difíceis, com cada vez mais
discussões e ameaças de rompimento por parte de Bianca. Propondo uma pacificação, António
convida a companheira para jantar num restaurante especializado em comida indiana. São
seguidos sorrateiramente por Daniel, um ciumento ex-namorado de Bianca que a vigia
constantemente.
Instado a aconselhar algum prato, Evandro, empregado do restaurante, recomenda a António
e Bianca a especialidade da casa: “tikka masala com pó de amêndoa”. António explica a
Evandro que é alérgico a amendoins, mas Evandro garante-lhe que a receita não tem
amendoins entre os ingredientes, pelo que o casal aceita a sugestão.
Para poupar dinheiro, Carlos, cozinheiro e proprietário do restaurante, vem usando desde há
uns meses, sem mais ninguém saber, uma mistura de amendoins em vez do pó de amêndoa
indicado no menu do estabelecimento. Uma vez que ninguém notou a mudança e não tendo
conhecimento de quaisquer problemas ocorridos até ao momento em consequência da mesma,
Carlos adopta este procedimento em todas as refeições. É também o que faz hoje quando
Evandro lhe transmite o pedido de António e Bianca. Convicto de que a receita de Carlos não
inclui amendoins, Evandro não informa o cozinheiro da alergia de António.
Evandro serve a António e Bianca a refeição encomendada. Em pouco tempo e como reacção
à ingestão da mistura de amendoins usada por Carlos, surge um inchaço grande no pescoço de
António e este perde a consciência. Conhecedora das alergias do namorado e respectivos
sintomas, e recordando as discussões recentes, Bianca vê ali uma oportunidade para se livrar
de António definitivamente e vai embora.
Movido por ciúmes, Daniel, vendo o estado de António e percebendo que Evandro pretende
pedir ajuda, apressa-se a destruir o telefone do estabelecimento, impedindo assim Evandro de
usar o mesmo. Não vendo mais ninguém na sala no momento, Evandro corre à procura de
auxílio na rua. Carlos chega entretanto, atraído pela comoção. Vendo António no chão e
adivinhando os sintomas, aponta-lhe a arma que costuma ter guardada no restaurante com
intenção de o matar e de assim o impedir de processar o estabelecimento, mas, percebendo
melhor o estado grave em que ele se encontra e prevendo que ele vai morrer brevemente, não
chega a premir o gatilho. Carlos esquecera-se, de todo o modo, de carregar a arma nessa
manhã, pelo que esta não tinha balas. António, devido à demora em ser atendido, acaba mesmo
por morrer.
Com a pressa de fugir do local, Daniel embate inadvertidamente em Frederico, um meliante
que buscava aproveitar a confusão para se apoderar de carteiras deixadas no bengaleiro do
restaurante. Devido à violência do impacto, porém, Frederico cai desmaiado quando já tinha
uma mão em bolso alheio.

Cotações: Bianca – 3 v.; Carlos – 5 v.; Daniel – 5 v.; Evandro – 3 v.; Frederico – 2 v.;
ponderação global – 2 v.
Tópicos de correcção

Todas as disposições indicadas pertencem ao Código Penal (CP).

- Furto (art. 203.º, n.º 1)

Tipo objectivo: Ao introduzir a mão no bolso de outro casaco com o plano de se apoderar da
carteira de outrem, F pratica um acto de execução do crime de furto (art. 203.º, n.º 1), nos
termos da al. c) do art. 22.º, n.º 2 – já há uma inequívoca ameaça ao bem jurídico que o deixa
numa situação insegurança existencial. Uma vez que não parece ter chegado a haver
subtracção, o facto típico não se consuma, mantendo-se no estádio da tentativa.

Tipo subjectivo: F representa o carácter alheio da coisa e tem intenção de a subtrair e


apoderar-se dela, tendo, assim, dolo intencional (art. 14.º, n.º 1).

Ilicitude: Não há causas de exclusão da ilicitude.

Culpa: Não há causas de exclusão da culpa.

Punibilidade: A tentativa de furto é punível, nos termos dos arts. 23.º, n.º 1, e 203.º, n.º 2.

- Homicídio de A (art. 131.º)


Ao eliminar as possibilidades de um processo de salvamento exclusivamente alheio
(destruindo o telefone que E usaria para chamar a ambulância), D pratica uma acção.

Tipo objectivo: Embora D não tenha criado o risco que ameaçava A, a sua acção elimina um
meio de diminuição desse risco num cenário em que essa diminuição era previsível. Justifica-
se por isso a equivalência típica à criação ou aumento do risco proibido.
Este risco concretiza-se no resultado, como se conclui pelo facto de A ter morrido em
consequência da alergia e “devido à demora em ser atendido”. Assim, há base para sustentar
que na ausência da acção de D o resultado teria sido evitado com probabilidade suficiente para
a imputação.

Tipo subjectivo: Representando a possibilidade de A morrer e sendo essa a sua intenção, D


age com dolo intencional (art. 14.º, n.º 1).

Ilicitude: Não há causas de exclusão da ilicitude.

Culpa: Não há causas de exclusão da culpa.

- Ofensa à integridade física de F (art. 148.º, n.º 1)

Tipo objectivo: Ao embater em F, D cria um risco proibido que se concretiza na lesão e


desmaio sofridos por F.
Tipo subjectivo: Tendo embatido em F “inadvertidamente”, D parece estar em erro sobre a
factualidade típica por não representar a possibilidade de lesar outrem, não tendo dolo (art.
16.º, n.º 1, primeira parte).
Ressalva-se a punibilidade por negligência, nos termos do art. 16.º, n.º 3, prevista neste caso
(arts. 13.º e 148.º, n.º 1). Pode afirmar-se o descuido de D no modo como desata a correr sem
reparar noutros transeuntes [art. 15.º, al. b)].

Ilicitude: Ao impedir F de subtrair uma carteira alheia, D repele uma agressão actual e ilícita.
Perante a iminência da concretização do facto, pode defender-se que não houve excesso na
actuação, se se admitir que o aviso prévio ou ameaça envolveria o risco sério de F aproveitar a
confusão para fugir.
D não representa, porém, os elementos objectivos da legítima defesa (art. 32.º), pelo que é
aplicável o art. 38.º, n.º 4, por analogia, que impõe a punição por crime tentado. Dado que o
seu comportamento é negligente, D não poderá ser punido, pois não se pune a tentativa
negligente.

- Omissão de auxílio a A (art. 200.º, n.º 1)


Uma vez que o estado de perigo em que A se encontra não se deve a qualquer acção de B,
esta só poderá ser responsabilizada por omissão.

Tipo objectivo: B não tem posição de garante em relação a A, visto que o namoro, por si só,
não é fonte de um dever jurídico pessoal que a obrigue a ajudá-lo – ainda mais quando o período
conturbado que a relação atravessava dificulta que se possa descortinar sequer uma relação
análoga à dos cônjuges. Assim, não é possível a equiparação da omissão à acção para efeitos
do tipo de homicídio nos termos da cláusula do art. 10.º, n.ºs 1 e 2, restando apenas um dever
genérico de auxílio.
Visto que B nada fez perante o estado de perigo que ameaçava a vida de A, B realiza o tipo
objectivo do crime de omissão de auxílio (art. 200.º, n.º 1).

Tipo subjectivo: Sendo “conhecedora das alergias do namorado e respectivos sintomas”, B


representa o perigo de morte em que A se encontra e tem a intenção de recusar a ajuda que se
impunha, tendo, assim, dolo intencional (art. 14.º, n.º 1).

Ilicitude: Não há causas de exclusão da ilicitude.

Culpa: Não há causas de exclusão da culpa.

- Homicídio de A (art. 131.º)

Tipo objectivo: Ao entregar a refeição envenenada a A, E instrumentaliza a vítima, levando-


a a ingerir alimentos a que é alérgica sem consciência disso. A é, assim, autor mediato (art.
26.º, segunda parte) do homicídio de A (art. 131.º), cujo tipo objectivo está realizado, visto que
A morreu justamente em consequência do risco proibido criado quando lhe é servido o prato
em questão.
A conexão de risco não é colocada em causa pela posterior omissão de B, visto que esta não
se traduz num crime de resultado. Assim, nem mesmo a ocorrência da morte é relevante para
efeitos da punição de B, não sendo atribuível ao âmbito de responsabilidade desta. O mesmo
não vale para D, pois, como se viu, a morte é imputável à sua acção proibida. Ainda assim, a
acção de D não envolveu qualquer interrupção do nexo causal, tendo antes o significado de
possibilitar a concretização do risco pelo qual E é responsável, podendo defender-se, em suma,
a realização do tipo objectivo por E.

Tipo subjectivo: Desconhecendo a presença de amendoins na refeição que serve a A, E não


representa a possibilidade de este morrer em consequência da sua acção, pelo que actua em
erro sobre a factualidade típica, não tendo dolo (art. 16.º, n.º 1, primeira parte), ressalvando-se
a punibilidade por negligência, nos termos do art. 16.º, n.º 3.
Se se rejeitar a autoria mediata negligente, poderá defender-se que a ausência de dolo de E
faz com que ele apenas possa ser responsabilizado como autor imediato, se tiver actuado com
negligência. Na ausência de sinais que indiciem qualquer perigo, não parece, contudo, ter
havido violação de qualquer dever de cuidado por E, não podendo este ser punido por
homicídio negligente, apesar de previsto (arts. 13.º e 137.º).

- Homicídio de A (art. 131.º)

1.º momento:

Tipo objectivo: Ao incluir amendoins na refeição que vai ser servida a A, sendo este alérgico,
C cria o risco proibido que se vem a concretizar no resultado morte de A, valendo aqui as
mesmas considerações feitas a propósito da conexão de risco aquando da análise da
responsabilidade de E.
C não entrega directamente o prato a A, usando para isso o seu empregado. Deste modo, e
uma vez que se viu já que E não poderia ser responsabilizado a título de dolo pela morte de A
em virtude do erro que o leva a agir, podemos concluir que C instrumentaliza E, levando-o à
execução do facto, sendo, por isso, autor mediato (art. 26.º, segunda parte).

Tipo subjectivo: Não havendo claramente intenção de matar A ou aceitação da morte como
resultado inevitável, deverá discutir-se se C representou e se conformou com a possibilidade
de provocar este resultado.
Embora não haja dados que o apontem inequivocamente, podemos assumir que C, enquanto
dono do restaurante e cozinheiro de profissão, conhece o risco envolvido na ministração de
substâncias causadoras de alergias e está ciente da possibilidade de aparecerem no restaurante
clientes com este tipo de problemas. Relativamente ao elemento intelectual, não se exige que
C represente a concreta possibilidade de A morrer por reacção alérgica – basta que represente
a possibilidade de isso acontecer com algum cliente do restaurante, o que pode afirmar-se.
Mais dúvidas se colocam, porém, quanto à conformação. Pode defender-se que o optimismo
confiante de C – em face de repetidas actuações semelhantes sempre sem consequências – o
levou a relativizar e menosprezar o perigo, não o tendo tomado suficientemente a sério para o
incluir na sua tomada de decisão. Nesta medida, terá actuado com negligência consciente, por
clara violação de um dever de cuidado [arts. 13.º, 15.º, al. a), e 137.º, n.º 1]. Se se rejeitar a
autoria mediata negligente, poderá defender-se que a ausência de dolo de C faz com que ele
apenas possa ser responsabilizado como autor imediato do homicídio negligente.
Ilicitude: Não há causas de exclusão da ilicitude.

Culpa: Não há causas de exclusão da culpa.

2.º momento:

Tipo objectivo: Ao apontar a arma com o propósito de disparar sobre A, C pratica um acto
de execução do crime de homicídio, nos termos dos arts. 22.º, n.º 2, al. c) [visto que se seguiria
de imediato o acto de disparar, enquadrável na al. b)] e 131.º Não chega, no entanto, a disparar,
não sendo por isso esta actuação a causa da morte, mantendo-se ela no estádio da tentativa.

Tipo subjectivo: C aponta a arma com intenção de matar A, pelo que tem dolo intencional
(art. 14.º, n.º 1).

Ilicitude: Não há causas de exclusão da ilicitude.

Culpa: Não há causas de exclusão da culpa.

Punibilidade: Uma vez que a arma não estava carregada, o meio é inapto e a tentativa é
impossível. Admitindo que para um observador médio, colocado na posição do agente, não
seria claramente perceptível que a arma não tinha balas, a tentativa mantém-se punível, de
acordo com o art. 23.º, n.º 3.
Tendo C recuado no seu propósito e sendo esta uma tentativa inacabada, há desistência. Não
é aplicável, porém, o art. 24.º, n.º 1, primeira parte, por faltar a voluntariedade. Com efeito, C
só desiste por achar que não precisa de disparar, pois a vítima já iria morrer de qualquer modo.
Não há assim um abandono do propósito homicida do agente.

A punição pela tentativa de homicídio prevalece em relação ao homicídio negligente.


Direito Penal II
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Mestres João Matos Viana, Ricardo Tavares da Silva, António
Brito Neves, Catarina Abegão Alves e Mafalda Melim; Licenciada Rita do
Rosário
Exame de recurso - 19 de Julho de 2019
Duração: 90 minutos

TÓPICOS DE CORREÇÃO

Responsabilidade de Ali

1. Ofensa à integridade física de Chiang (art. 148.º do CP)

Tipo objetivo: Ao disparar na direção de Chiang, atingindo-o de raspão num braço, Ali
cria um risco proibido que se concretiza no resultado adormecimento e lesão corporal
sofridos por Chiang.
Ali é autor imediato (art. 26.º, 1.ª parte, do CP), pois executa o facto por si mesmo.

Tipo subjetivo: Ali está em erro sobre a factualidade típica por não representar a
possibilidade de lesar outrem, uma vez que pensou que estava a disparar sobre um tigre e
não sobre uma pessoa, pelo que não tem dolo (art. 16.º, n.º 1, primeira parte, do CP).
Ressalva-se a punibilidade por negligência, nos termos do art. 16.º, n.º 3, do CP, prevista
neste caso (arts. 13.º e 148.º, n.º 1, do CP). Apesar de poder afirmar-se a violação do dever
de cuidado por parte de Ali, uma vez que Chiang tinha ficado a admirar uma cascata e
Bangkok lhe disse que se tratava de um tigre, pode admitir-se que Ali nem sequer chegou
a representar a possibilidade de realização do facto [art. 15.º, al. b), do CP].

Ilicitude: Não há causas de exclusão da ilicitude.

Culpa: Não há causas de exclusão da culpa.

2. Homicídio de Dave, por omissão, na forma tentada (arts. 131.º, 22.º e 23.º do CP) ou
ofensa à integridade física grave de Dave, por omissão (arts. 10.º, n.os 1 e 2, 143.º e
144.º, alínea c) do CP)

Omissão: Uma vez que Ali não diminuiu o perigo em que já se encontrava o bem jurídico
de Dave, aquele só poderá vir a ser responsabilizado por omissão.

Tipo objetivo: Deveria ser discutida a possibilidade de existência de uma autovinculação


implícita de Ali a um dever de evitar o resultado morte ou ofensa à integridade física de
Dave. Sendo muito duvidoso a possibilidade de se ficcionar a referida autovinculação, Ali
apenas poderia ser punido pelo crime de omissão de auxílio.
Caso se considere que a posição de monopólio é fonte de dever jurídico pessoal que
obrigava Ali a ajudar Dave, pode-se falar na existência de uma omissão impura. Para tal,
teria de analisar-se os seguintes requisitos: a) domínio fáctico absoluto e próximo da fonte
de perigo, b) o perigo em que incorre o bem jurídico é agudo e iminente e c) o agente pode
levar a cabo a ação esperada sem ter de incorrer numa situação perigosa ou danosa para si
mesmo. Parece-nos que este último ponto não estaria verificado, uma vez que quando Ali
entrou na gruta o nível da água já estava muito elevado. Deste modo, Ali apenas poderia
ser punido por omissão de auxílio.
Mas, sendo Ali um nadador exímio, admitir-se-ia que se sustentasse que este conseguiria
voltar a entrar na gruta para salvar Dave, sem incorrer numa situação perigosa, pelo que
para além de ter capacidade fáctica e técnica para agir, teria também posição de garante
fundada numa posição de monopólio. Caso se adotasse a última posição, seria possível
proceder à equiparação da omissão à ação para efeitos do tipo de homicídio, nos termos da
cláusula do art. 10.º, nos 1 e 2, do CP.
Caso se considerasse verificado o dever de garante, e uma vez que não se verificou o
resultado morte de Dave, ter-se-ia de ponderar a sua punição por tentativa. Ali pratica atos
de execução reconduzíveis à alínea b) do n.º 2 do art. 22º, do CP, porquanto segundo as
regras de experiência comum, e tomando como padrão uma pessoa razoavelmente
diligente (com os conhecimentos especiais do agente), colocado na situação concreta do
agente, é previsível que a inação de Ali conduzisse ao resultado morte de Dave.
Caso, em alternativa, se optasse por punir Ali pelo crime de ofensa à integridade física
grave (art. 144.º, alínea c), do CP), por omissão, ter-se-ia de concluir que a ação esperada
da parte de Ali teria diminuído o risco pré-existente de verificação do resultado típico
ofensa à integridade física de Dave. A este respeito, o facto de Dave vir a sofrer sempre de
stress pós-traumático por ter passado muito tempo sozinho na selva asiática,
independentemente da omissão de Ali, corresponde a uma causa virtual irrelevante para
afastar a imputação objetiva do resultado típico ofensa à integridade física grave à omissão
de Ali. A causa efetiva do stress pós-traumático específico sofrido por Dave resultou da
experiência da gruta e do socorro tardio.

Tipo subjetivo: Tendo entrado na gruta para salvar Bangkok, Ali sabia que o nível da
água lá dentro tinha subido tanto que Dave não conseguiria sair de lá sozinho, pelo que Ali
representa como possível que a sua omissão pode conduzir ao resultado morte de Dave e,
ainda assim, age conformando-se com tal realização, sobrepondo o seu interesse face à
proteção do bem jurídico vida de Dave e tomando a sério o risco de produção do resultado
morte, agindo assim com dolo eventual (art. 14.º, n.º 3, do CP).
Caso se entendesse que não haveria dolo de homicídio, Ali apenas podia ser punido por
ofensa à integridade física grave de Dave (art. 144.º, alínea c), do CP). Neste caso, Ali
representou e desejou não proceder à ação de salvamento de Dave, pelo que agiu com dolo
direto (art. 14.º, n.º 1, do CP).

Ilicitude: No primeiro momento em que entra na gruta, Ali age numa situação de conflito
de deveres, pois, perante dois deveres de ação, ele satisfez dever de igual valor ao do
dever que sacrificou (art. 36.º, do CP). Estando ele a cumprir um dever de igual valor, no
quadro de uma ponderação concreta dos interesses em conflito na situação global, não se
estabelece nenhuma hierarquia para a sua escolha, pelo que é perfeitamente legítimo que
Ali tenha escolhido cumprir o dever de salvar Bangkok, uma vez que este era um dos seus
jogadores favoritos da sua equipa de futebol.

Culpa: Num segundo momento, Dave não volta a entrar na gruta para salvar Dave, e
apesar de ele ser um nadador exímio, o nível da água dentro da gruta era já bastante
elevado. Nestes termos, pode ponderar-se a aplicação do estado de necessidade
desculpante (art. 35.º, n.º 1, CP). Estamos perante um perigo atual, não removível de outro
modo, que ameaçava a sua vida ou integridade física, sendo que a cláusula de
inexigibilidade estaria preenchida, quer de acordo com o critério da superação do limite de
resistência da pessoa normalmente fiel ao direito, quer de acordo com o critério da
sobreposição eticamente compreensível da estrutura ético-afetiva do agente às exigências
normativas. Esta discussão será tida em conta apenas como elemento de valoração extra.

3. Omissão de auxílio a Dave (art. 200.º, n.º 1 do CP)

Omissão: Caso se considere que não existe posição de garante, deve ponderar-se a
punição de Ali por omissão de auxílio. Uma vez que Ali não diminuiu o perigo em que já
se encontrava o bem jurídico de Dave, este só poderá vir a ser responsabilizado por
omissão.

Tipo objetivo: Ali nada fez perante o estado de perigo que ameaçava a vida de Dave, pelo
que Ali realiza o tipo objetivo do crime de omissão de auxílio (art. 200.º, n.º 1, do CP).

Tipo subjetivo: Tendo entrado na gruta para salvar Bangkok, Ali sabia que o nível da
água lá dentro tinha subido tanto que Dave não conseguiria sair de lá sozinho, pelo que
Chiang representa a situação de perigo para a vida de Ali e de Dave e, ainda assim, atua
com intenção de deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento desse perigo,
pelo que tem dolo intencional (art. 14.º, n.º 1, do CP).

Ilicitude: A conduta de Ali está justificada num primeiro momento, pois este agiu em
conflito de deveres, como supra exposto.
No segundo momento em que Ali não volta a entrar na gruta para salvar Dave, em virtude
do elevado nível da água, sempre se poderia afirmar que se Ali tentasse salvar Dave, isso
traduzir-se-ia numa situação de grave risco para a sua vida ou integridade física (art. 200.º,
n.º 3, do CP), pelo que a ilicitude da sua conduta estaria excluída por esta via.

Responsabilidade de Bangkok

1. Ofensa à integridade física de Chiang (art. 143.º do CP)

Tipo objetivo: Ao induzir Ali em erro, dizendo-lhe que disparasse porque o vulto que
viam por detrás da vegetação não era Chiang, mas sim um tigre, Bangkok instrumentaliza
a vítima, por meio da sua indução num erro sobre a factualidade típica (art.16.º, n.º 1,
primeira parte, do CP). Bangkok é, assim, autor mediato (art. 26.º, segunda parte) da
ofensa à integridade física de Chiang (art. 131.º, do CP), cujo tipo objetivo está realizado,
visto que na sequência do risco proibido criado com o disparo com um dardo
tranquilizante, Chiang veio a sofrer lesões na sua integridade física.

Tipo subjetivo: Bangkok sabia que por detrás da vegetação se encontrava Chiang e não
um tigre e age com intenção que Ali acerte em Chiang, provocando-lhe ferimentos, pelo
que age com dolo direto, nos termos do art. 14.º, n.º 1, do CP.

Ilicitude: Não há causas de exclusão da ilicitude.

Culpa: Não há causas de exclusão da culpa.

2. Ofensa à integridade física de Dave, por omissão (arts. 10.º, n.os 1 e 2 e 143.º do CP)

Omissão: Uma vez que Bangkok não diminuiu o perigo em que já se encontrava o bem
jurídico de Dave, este só poderá vir a ser responsabilizado por omissão, como autor
imediato (art. 26.º, 1.ª parte, do CP).
Mas, devido ao nível da água dentro da gruta, poder-se-á concluir que ele estava numa
situação de incapacidade técnica e de falta de meios de auxílio, o que é equiparada à
impossibilidade fáctica de agir. Se ele não conseguia sair de dentro da gruta sozinho,
muito menos poderia voltar a entrar para salvar Dave. Assim, Bangkok não poderá ser
punido por qualquer omissão, porque a sua conduta é atípica.

3. Furto (art. 203.º do CP)

Tipo objetivo: Ao trazer consigo dardos tranquilizantes de Ali, sem que este saiba,
Bangkok subtrai uma coisa móvel alheia, pelo que o tipo objetivo do crime de furto está
preenchido. Bangkok é autor imediato (art. 26.º, 1.ª parte, do CP).

Tipo subjetivo: Bangkok representa o carácter alheio da coisa e tem intenção de a subtrair
e apropriar-se dela, tendo, assim, dolo intencional (art. 14.º, n.º 1, do CP), para além de
estar preenchido o elemento subjetivo específico do tipo incriminador de furto.

Ilicitude: Não há causas de exclusão da ilicitude.

Culpa: Não há causas de exclusão da culpa.

4. Ofensa à integridade física de Esmeralda (art. 143.º, n.º 1 do CP)

Tipo objetivo: Ao acertar com um dardo no braço de Esmeralda, Bangkok cria um risco
proibido que se concretiza na lesão da integridade física de Esmeralda.
Bangkok é autor imediato (art. 26.º, 1.ª parte, do CP), pois executa o facto por si mesmo.
Tipo subjetivo: Bangkok representa que estava a disparar sobre Esmeralda e que iria
acertar numa parte do seu corpo e agiu com intenção de provocar-lhe uma ofensa à sua
integridade física (art. 14.º, n.º 1, do CP).

Ilicitude: Ao impedir a consumação do crime de coacção já iniciado por Esmeralda contra


Chiang, Bangkok repele uma agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos
de terceiro. A atuação de Bangkok é meio necessário para repelir a agressão, pois é idóneo
e o menos gravoso para o agressor.
Porém, Bangkok não representa os elementos objetivos da legítima defesa (art. 32.º, do
CP), pelo que é aplicável o art. 38.º, n.º 4, do CP, por analogia, que impõe a sua punição
pelo crime tentado. Caso se adote a solução segundo a qual o art. 38.º, n.º 4, do CP, impõe
a aplicação de todo o regime da tentativa, Bangkok não seria punido (arts. 23.º, n.º 1 e
143.º, n.º 1, do CP). Defendendo-se a solução da aplicação da pena da tentativa, Bangkok
seria punido com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada (art. 23.º,
n.º 2, do CP).

5. Ofensa à integridade física de um membro da equipa de socorro (art. 203.º, n.º 1 do


CP)

Tipo objetivo: O facto de ter sido Bangkok a dar uma garrafa de água a Dave, com a qual
este praticou o crime de ofensa à integridade física contra um dos membros da equipa de
socorro, leva a discutir se Bangkok poderia ser considerado cúmplice material deste crime.

Tipo subjetivo: Bangkok desconhecia que a intenção de Dave era atirar a água contra um
dos membros da equipa de socorro, pois este pediu-lhe água porque estava com sede.
Bangkok atua sem o (duplo) dolo necessário à punição da cumplicidade: não há dolo
quanto ao auxílio prestado (Bangkok não representa que a garrafa que entrega a Dave será
utilizada como arma de arremesso) nem quanto ao facto praticado por Dave (Bangkok não
representa, nem quer, a ofensa à integridade física do membro da equipa de socorro), pelo
que não poderá ser punido como cúmplice deste crime praticado por Dave (art. 27.º, n.º 1,
do CP).

Responsabilidade de Chiang

1. Ofensa à integridade física de Bangkok (art. 143.º do CP)

Tipo objetivo: Ao desferir uma pancada com um pau em Bangkok, Chiang é autor
imediato (art. 26.º, 1.ª parte, do CP) e cria um risco proibido que se concretiza no resultado
lesão de Bangkok.

Tipo subjetivo: Chiang atua com dolo direto (art. 14.º, n.º 1, do CP).

Ilicitude: Não há causas de exclusão da ilicitude.


Culpa: Não há causas de exclusão da culpa.

2. Sequestro de Ali (art. 158.º do CP)

Tipo objetivo: Chiang pratica, em coautoria com Esmeralda (art. 26.º, 3.a parte, do CP),
factos típicos objetivos de sequestro: praticam ambos atos de execução (Esmeralda conduz
Ali para dentro da habitação, fechando-o lá dentro e Chiang puxa as grades das portas,
para se assegurar de que Ali não fugia) por meio dos quais é criado um risco proibido que
se concretiza no resultado típico privação da liberdade de Ali.

Tipo subjetivo: Chiang atua com dolo direto relativamente à conduta típica acima
referenciada (art. 14.º, n.º 1, do CP).

Ilicitude: Não há causas de exclusão da ilicitude.

Culpa: Não há causas de exclusão da culpa.

Responsabilidade de Dave

1. Ofensa à integridade física de um membro da equipa de socorro (art. 143.º do CP)

Tipo objetivo: Ao atirar uma garrafa de água contra um dos membros da equipa de
socorro, acertando-lhe, Dave cria um risco proibido que se concretiza no resultado lesão
da integridade física.
Dave é autor imediato (art. 26.º, 1.ª parte, do CP).

Tipo subjetivo: Dave atua com dolo direto (art. 14.º, n.º 1, do CP). O facto de Dave
confundir o membro da equipa de socorro com Ali corresponde a um error in persona,
irrelevante para a exclusão do seu dolo.

Ilicitude: Não há causas de exclusão da ilicitude.

Culpa: Não há causas de exclusão da culpa.

Responsabilidade de Esmeralda

1. Sequestro de Ali (art. 158.º do CP)

Tipo objetivo: Esmeralda pratica, em coautoria com Chiang (art. 26.º, 3.ª parte, do CP),
factos típicos objetivos de sequestro: prestam ambos um contributo para o facto global
(Esmeralda conduz Ali para dentro da habitação, fechando-o lá dentro e Chiang puxa as
grades das portas, para se assegurar de que Ali não fugia) que cria um risco proibido que
se concretiza no resultado típico privação da liberdade de Ali.
Tipo subjetivo: Esmeralda atua com dolo direto relativamente à conduta típica acima
referenciada (art. 14.º, n.º 1, do CP).

Ilicitude: Não há causas de exclusão da ilicitude.

Culpa: Não há causas de exclusão da culpa.

2. Tentativa de coacção de Chiang (arts. 154.º, 22.º e 23.º do CP)

Tipo objetivo: Esmeralda, ao levantar um pau na direção de Chiang, gritando-lhe que este
lhe desse a chave do seu jipe para que ela saísse daquele lugar, ou seja, por meio de
ameaça com mal importante, pratica atos de execução do crime de coação, nos termos do
art. 22.º, n.º 2, alínea a), do CP. Esmeralda criou um risco proibido para o bem jurídico
liberdade de decisão e ação de Chiang, mas esse risco proibido não se concretizou no
resultado típico, pois Chiang não chegou a praticar a ação pretendida por Esmeralda. Não
havendo consumação, Esmeralda só pode ser punida por tentativa.

Tipo subjetivo: Esmeralda atua com dolo direto (art. 14.º, n.º 1, do CP), pois representa
que está a ameaçar Chiang com um mal importante com o fito de levá-lo a praticar a ação
por si desejada e fá-lo com essa intenção.

Ilicitude: Não há causas de exclusão da ilicitude.

Culpa: Não há causas de exclusão da culpa.

Punibilidade: A tentativa de coacção é punível, nos termos dos arts. 23.º, n.º 1 e 154.º, n.º
2, do CP.
Tópicos de correção

Responsabilidade jurídico-penal de António


António é instigador (artigo 26.º, 4.ª proposição, do Código Penal – CP) de Bruno, porque
criou nele a vontade de praticar um crime de furto, mas também co-autor, dado que pratica
com ele atos de execução de um crime de furto qualificado (artigos 204.º, n.º 1, alíneas a) e
f), podendo também ponderar-se a aplicação do n.º 2, alíneas a) e e), 26.º, 3.ª proposição, e
22.º, n.º 2, alínea a), todos do CP). Porém, dado o princípio ne bis in idem (artigo 29.º, n.º 5 da
CRP) e a relação de subsidiariedade implícita que se estabelece entre os dois títulos
comparticipativos em causa, o regime da participação (instigação) cede a aplicação à autoria
(co-autoria). Atenta a descrição da hipótese e os termos do plano gizado por António,
nenhum outro facto típico lhe poderia ser imputado. Subjetivamente, o agente atou com dolo
direto (artigos 13.º e 14.º do CP), sendo o seu facto típico, ilícito, culposo, analisando-se a
culpa individualmente (artigo 29.º do CP), e punível.

Responsabilidade jurídico-penal de Bruno


Bruno é co-autor no crime de furto qualificado que, por acordo, executou com António
(artigos 204.º, n.º 1, alíneas a) e f), podendo também ponderar-se a aplicação do n.º 2, alíneas
alíneas a) e e), 26.º, 3.ª proposição, e 22.º, n.º 2, alínea a), todos do CP). Subjetivamente, o
agente atou com dolo direto (artigos 13.º e 14.º do CP), sendo o seu facto típico, ilícito,
culposo, analisando-se a culpa individualmente (artigo 29.º do CP), e punível.
Para além disso, quando Bruno disparou a matar sobre Carla, para não deixar testemunhas,
praticou, agora como autor material ou imediato, um crime de homicídio na forma tentada
(artigos 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea g)). Seria de rejeitar a imputação do resultado morte de Carla
à conduta de Bruno, na medida em que se dá uma interrupção do nexo causal por
intervenção de terceiro, Eduardo. Embora à luz da teoria da conditio sine qua non, de acordo
com a fórmula da supressão mental, a eliminação mental do comportamento de Bruno
ditasse a não verificação do resultado, e, por isso, a conduta de Bruno fosse causa da morte
de Carla, a verdade é que a teoria em referência não dá resposta satisfatória a situações como
a que ora se analisa. De acordo com a teoria da adequação e com o seu juízo de prognose
póstuma, chegar-se-ia à conclusão de que uma pessoa média, colocada nas circunstâncias de
tempo e de lugar do agente, com os conhecimentos do agente, não poderia prever que o
processo causal iniciado com a conduta de Bruno (disparar uma arma de fogo em direção a
Carla) produziria o resultado morte por fraturas múltiplas, em consequência de um acidente
rodoviário, quer em abstrato quer em concreto. À mesma conclusão, ausência de imputação
do resultado à conduta do agente, se chegaria por via da teoria do risco, pois que, embora
Bruno tenha criado um risco proibido, não foi essa sua conduta que se materializou no
resultado, não havendo por isso conexão de risco, dada a limitação e repartição das esferas
de competência e responsabilidade. Nestes termos, do lado da imputação objetiva, apenas se
poderia considerar um crime de homicídio na forma tentada, estando verificados os
elementos objetivos do tipo da tentativa (artigos 22.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e b) do CP).
Subjetivamente, o agente atuou com dolo direto (artigos 22.º, n.º 1, 13.º e 14.º, n.º 1, do CP).
Mesmo que se sustente que o homicídio não era o fim primeiro da atuação do agente, focado
em garantir o sucesso do furto, sempre se poderá considerar que, para garantir o anonimato,
a morte de Carla surge como um estádio intermédio para lograr aquele fim. Também quanto
ao facto agora em referência se afirma a ilicitude, a culpa e a punibilidade.
Por fim, quando Bruno lançou Daniel contra a montra da ourivesaria, que assim se partiu,
atuou como autor de um crime de dano (artigo 212.º, n.º 1, do CP). Seria de rejeitar a
possibilidade de autoria mediata, na medida em que, com o seu comportamento, Bruno não
está a dominar a vontade de Daniel, antes o seu corpo. O circunstancialismo descrito revela
que o corpo de Daniel foi utilizado como um objeto de arremesso, tal como poderia ter sido
uma pedra, por exemplo. Neste sentido, Bruno pratica uma verdadeira ação dominada pela
vontade, típica, atuando com dolo direto (artigos 13.º e 14.º, n.º 1, do CP), ilícita culposa e
punível. A eventual ofensa à integridade física contra Daniel apenas poderia ser ponderada
na forma tentada, dada a ausência de consumação, pois Daniel resulta ileso (artigos 143.º e
22.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do CP). Daniel atuaria com dolo direto (artigos 13.º e 14.º, n.º 1,
do CP) e o facto seria típico, ilícito e culposo, mas não punível, dada a moldura penal em
causa (artigo 23.º, n.º 1, do CP).
Tudo considerado, Bruno seria responsabilizado por concurso de crimes, real heterogéneo
(artigos 30.º, n.º 1, 72.º, n.º 1, 73.º e 77.º, do CP).

Responsabilidade jurídico-penal de Carla


No âmbito da tipicidade, está em causa um problema de aberratio ictus vel impetus, a execução
defeituosa do facto, aqui provocada por terceiro, António, que se desviou. Considerando
que a opção dogmática adotada quanto ao problema em referência bole simultaneamente
com a imputação objetiva e subjetiva, a continuação da resposta reflete os diferentes
entendimentos sobre o problema. Quer seguindo a teoria da equivalência, quer adotando a
teoria da concretização, a solução modular seria a mesma, dada a distonia típica entre os
objetos (143.º do CP- pessoa; 212.º do CP- coisa). Assim, relativamente ao objeto visado,
António, estaria em causa uma tentativa de ofensa à integridade física (artigos 143.º, n.º 1,
22.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 13.º e 14.º, n.º 1). Relativamente ao objeto não visado mas
efetivamente atingido, o mostruário de joias, a solução modular da teoria da concretização
ditaria a imputação de um crime negligente. Todavia, o crime de dano não está tipificado na
forma negligente, pelo que se negaria a tipicidade (artigos 212.º e 13.º do CP). Voltando ao
crime de ofensa à integridade física, chegar-se-ia à conclusão de que este tão pouco geraria a
responsabilidade jurídico-penal de Carla. Quer por a atuação da agente estar justificada ao
abrigo da legítima defesa (artigo 32.º do CP), por visar repelir uma agressão atual e ilícita,
contra interesses juridicamente protegidos de terceiro, numa situação em que a defesa seria
necessária e o meio adequado, por ter utilizado o meio menos gravoso, tendo conhecimento
da situação defensiva. Quer por, em sede de punibilidade, o crime de ofensa à integridade
física na forma tentada não ser punível, já que a esse crime não corresponde pena de prisão
superior a três anos, não estando prevista disposição em contrário (artigos 143.º e 23.º, n.º 1,
do CP).
Em suma, Carla não seria responsabilizada criminalmente.

Responsabilidade jurídico-penal de Daniel


Quando Daniel é lançado por Bruno contra a montra da ourivesaria, partindo-a com a força
do impacto, Daniel não pratica uma ação humana, dominada ou dominável pela vontade,
porquanto, dada a função seletiva negativa do conceito de ação, e por estar em causa uma
situação de vis absoluta, dever ser negada a existência de ação.
Depois, o facto de Daniel conduzir sem carta de condução consubstanciaria um crime de
condução sem habilitação legal, praticado com dolo direto (artigo 14.º, n.º 1, do CP), mas
justificado por direito de necessidade (artigo 34.º, do CP), por verificados os pressupostos e
requisitos respetivos, que deveriam ser explicados na resposta.
Em ambos os casos estaria ditada a ausência de responsabilidade jurídico-penal de Daniel.

Responsabilidade jurídico-penal de Eduardo


Considerando que Eduardo conduz um automóvel que sofre uma falha técnica devido a
falta de manutenção, é correto afirmar a imputação do resultado morte de Carla à conduta
de Eduardo, dados os motivos já expostos supra a propósito da responsabilidade jurídico-
penal de Bruno, afirmando-se agora a existência de um crime de homicídio consumado.
Subjetivamente, Eduardo atuou com negligência consciente (artigo 15.º, alínea a), do CP),
sendo valorizada a referência à violação de um dever objetivo de cuidado, baseado, pelo
menos, no princípio da confiança, que emerge do dever a que estão obrigados todos os
condutores de garantir a segurança dos automóveis que conduzem, submetendo-os a
revisões periódicas. O facto seria assim típico de homicídio negligente (artigo 137.º, n.º 1, do
CP), ilícito, culposo e punível.
EXAME DE DIREITO PENAL II
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Época Especial/Finalistas – 5 de setembro de 2019
Coordenação e Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Mestres João Matos Viana, António Brito Neves, Catarina Abegão Alves,
Ricardo Tavares da Silva, Mafalda Moura Melim e Licenciada Rita do Rosário
Duração: 120 minutos

AUGUSTO sabe que BERNARDINA, sua vizinha, levanta mensalmente todo o dinheiro da
reforma, transportando-o até casa no seu cesto de compras, de autocarro. Motivado pela
ganância, contrata CARLOS, experiente assaltante, para subtrair a referida bolsa durante a
viagem de autocarro, a fim de ficar com o dinheiro. CARLOS está a treinar o seu filho
DANIEL, de 14 anos, para seguir a mesma carreira, pelo que o instrui para fazer o “trabalho”.
No dia acordado, DANIEL senta-se ao lado de BERNARDINA no autocarro,
transportando consigo um cesto de compras idêntico ao da mesma, pousando-o no chão,
junto ao dela, com a ideia de proceder à troca dos mesmos sem que BERNARDINA dê conta.
No entanto, com o nervosismo e a confusão decorrente da grande quantidade de gente
presente no autocarro, DANIEL acaba por recolher o seu próprio cesto, em vez do de
BERNARDINA. Quando entrega o cesto vazio a CARLOS, este fica enfurecido e puxa-lhe a
orelha.
BERNARDINA acaba por sair na paragem habitual, com o dinheiro dentro do seu cesto.
No entanto, no percurso até casa, repara que um estranho a segue pelo passeio. Convencida
de que este a persegue com o objetivo de lhe tirar o dinheiro, BERNARDINA reage
repentinamente quando o estranho lhe toca no ombro, desferindo um forte golpe com a sua
bengala na cara do mesmo, partindo-lhe o nariz e ferindo-o gravemente no olho. Na verdade,
o estranho era ERNESTO, um bom rapaz que tinha visto o relógio de BERNARDINA cair no
chão do autocarro e saíra atrás desta, para o devolver. Antes de lhe tocar no ombro já havia
discretamente chamado por “minha senhora”, mas BERNARDINA não o ouvira, razão pela
qual a abordou daquela forma.
ERNESTO é prontamente transportado para o hospital, onde é encaminhado para
cirurgia, destinada a reparar as lesões no rosto. FENÍCIO, o anestesista, reconhece ERNESTO
como o novo namorado da sua ex-mulher. Enfurecido, ministra uma substância diferente da
adequada, provocando a morte do paciente. Mais tarde, FENÍCIO fica destroçado quando
descobre que não era ERNESTO o novo namorado da sua ex-mulher, mas o irmão gémeo.

Analise, de modo fundamentado, a responsabilidade jurídico-penal de AUGUSTO,


BERNARDINA, CARLOS, DANIEL e FENÍCIO.

COTAÇÕES: AUGUSTO (3 valores); BERNARDINA (5 valores); CARLOS (3 valores); DANIEL


(3 valores); FENÍCIO (4 valores); PG (2 valores).
Tópicos de correção

BERNARDINA (5 valores) – crime de ofensa à integridade física de Ernesto (art. 143.º CP)
• Ao desferir um forte golpe com a sua bengala na cara de Ernesto, Bernardina é autora
imediata (art. 26.º, 1.ª parte) da conduta a que pode ser imputado o resultado (as lesões
no rosto de Ernesto), quer pela teoria da causalidade adequada, quer pela teoria do risco;
• Representa que vai desferir o golpe no rosto de Ernesto e age com intenção de o ferir,
pelo que tem dolo direto (art. 14.º/1);
• Bernardina representa uma agressão por parte de Ernesto (“Convencida de que este a persegue
com o objetivo de lhe tirar o dinheiro”), o que não corresponde à verdade. Estamos perante
uma situação de erro sobre um pressuposto de uma causa de justificação – neste caso
sobre a existência de uma agressão para efeitos de aplicação da legítima defesa (art. 32.º).
Com efeito, o toque no ombro poderia ser interpretado como uma agressão iminente ou
um ato de execução nos termos do art. 22.º/2, al. c), da agressão correspondente ao assalto
representado por Bernardina, pelo que, se fosse esta a realidade, estaria verificado o
pressuposto da atualidade da agressão a um interesse juridicamente protegido. Ademais,
estariam também preenchidos os requisitos da legítima defesa, nomeadamente no que
respeita à necessidade do meio, uma vez que o golpe com a bengala configura um meio
adequado e necessário para que uma senhora nas condições físicas percetíveis no
enunciado (a própria utilização da bengala para se deslocar) se defenda de um assaltante;
igualmente preenchida estaria a necessidade da defesa, apesar da lesão de um bem do núcleo
essencial da dignidade da pessoa do “assaltante”, considerando a importância do
interesse protegido (a totalidade reforma). Assim sendo, a solução é – de acordo com a
maioria da doutrina – a da exclusão do dolo da culpa, nos termos do art. 16.º/2, 1.ª parte,
ressalvando-se a punibilidade por negligência, nos termos dos arts. 16.º/3 e 148.º;
• Não há causas de exclusão da culpa.

DANIEL (3 valores) – crime de furto qualificado (art. 204.º/1, al. i), CP)
• Daniel tem dolo direto (art. 14.º/1), uma vez que supõe o carácter alheio da coisa e tem
intenção de a subtrair e apropriar-se dela, pelo que está em erro-suposição irrelevante
para afastamento do dolo;
• No entanto, acaba por levar o próprio cesto, praticando uma tentativa (a sua conduta
pode ser enquadrada como ato de execução nos termos do art. 22.º/2/c)) impossível de
furto punível, uma vez que a impossibilidade não é manifesta, já que os cestos são iguais
(arts. 23.º/3 e 203.º/2). Com efeito, além da impressão de perigo para o bem jurídico
patente no caso, a tentativa seria apenas relativamente impossível;
• Não há causas de exclusão da ilicitude;
• Daniel tem 14 anos, sendo inimputável em razão da idade (art. 19.º).
CARLOS (3 valores) – crime de furto qualificado (art. 204.º/1, al. i), CP)
• Carlos é autor mediato (art. 26.º, 2.ª parte) da tentativa de furto praticada por Daniel,
pois executa o facto por intermédio deste, que não é responsável a título de culpa dolosa
(é inimputável);
• Age com dolo direto (art. 14.º/1);
• Não há causas de exclusão da ilicitude;
• Não há causas de exclusão da culpa.

AUGUSTO (3 valores) – crime de furto qualificado (art. 204.º/1, al. i), CP)
• Augusto seria instigador (art. 26.º, parte final), uma vez que determina Carlos à prática
do facto típico e este é plenamente responsável, sendo que existe, efetivamente, a prática
de uma tentativa punível. No entanto, surge a questão de saber se Augusto pode ser
punido como instigador, uma vez que aquela tentativa é executada por Daniel: Carlos
não executa o facto típico e ilícito por si mesmo, isto é, não é o autor material, embora o
pratique por intermédio de Daniel. Ainda assim, esta questão particular não se exige ao
aluno, valorando apenas para efeitos de atribuição de cotação extra;
• Age com duplo dolo direto (art. 14.º/1);
• Não há causas de exclusão da ilicitude;
• Não há causas de exclusão da culpa.

FENÍCIO (4 valores) – crime de homicídio (art. 131.º/1 CP)


• Ao ministrar uma substância inadequada, Fenício cria um risco proibido que se
concretiza no resultado morte de Ernesto, de acordo com qualquer das teorias elegíveis
para aferir a imputação objetiva. Fenício é autor imediato (art. 26.º, 1.ª parte), pois
executa o facto por si mesmo;
• Fenício age com dolo direto de homicídio (art. 14.º/1), apesar de estar em erro sobre a
identidade da vítima (error in persona), o qual é irrelevante para efeitos de afastamento do
dolo, dada a representação da factualidade típica prevista no crime de homicídio;
• Não há causas de exclusão da ilicitude;
• Não há causas de exclusão da culpa.
DIREITO PENAL II - 3.º Ano - Dia - Turma A
Coordenação e Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Mestres João Matos Viana, Sónia Moreira Reis, António Brito Neves e
Mafalda Moura Melim, e Dra. Rita do Rosário
11.09.2018
Duração: 90 minutos

“Questões de saias”

Depois de se inscreverem num site de correspondência, Aníbal e Bianca iniciaram uma troca
de cartas. Ao fim de umas semanas, decidiram agendar um encontro para finalmente se verem
e descobrirem se se entenderiam tão bem pessoalmente como por escrito. Combinaram que
estariam ambos no jardim municipal no Sábado seguinte, às 15h; Aníbal usaria uma camisa de
cor rosa e Bianca uma saia branca com flores azuis.
No Sábado, Aníbal chegou ao local quinze minutos mais cedo e avistou, sentada num dos
bancos do jardim, uma senhora usando uma saia correspondente à descrição indicada por
Bianca, pelo que julgou tratar-se desta. Vendo a senhora, que na verdade era Carla, de mão
dada com Dário, a quem dirigia sorrisos cúmplices, Aníbal convenceu-se de que Bianca teria
combinado igualmente encontros com outros correspondentes e sentiu-se enganado. Furioso,
agarrou uma pedra da calçada e atirou-a na direção de Carla. Como esta, no entanto, se inclinou
para beijar Dário, a pedra atingiu Emília, deitada na relva ali perto. Vendo Emília desmaiada
e a sangrar abundantemente, Frederico, o seu namorado de um mês, apressou-se a ir embora
do local, pois não queria meter-se em confusões. Carla, que não aguentava ver sangue,
desmaiou de imediato.
Após ter atirado a pedra, Aníbal reparou numa senhora, acabada de chegar ao parque, com
uma saia branca de flores azuis – era Bianca. Percebendo o seu erro, Aníbal correu na direção
de Carla para lhe pedir desculpa. Dário julgou que Aníbal se preparava para tentar novamente
atacar a sua companheira, pelo que o agrediu com um murro que o derrubou. Furioso com
Aníbal por este ter interrompido o seu encontro, continuou a pontapeá-lo depois de o fazer
cair, deixando-o ferido. Logo a seguir, chamou uma ambulância para vir buscar Emília.
Geraldo, o único médico disponível nas urgências do hospital, analisou a situação de Emília
e percebeu que ela não corria perigo imediato de vida, ao contrário de Hélia, acabada de chegar
e lesionada mais gravemente. Desejoso, porém, de atender primeiro Bianca, por achá-la mais
bonita, Geraldo apressou-se a ligar ao seu amigo Irnério, que tinha na conta de bom jurista,
para lhe perguntar se poderia fazê-lo. Irnério garantiu a Geraldo que, na qualidade de médico
responsável, lhe cabia liberdade de escolha. Embora Irnério tivesse muitas dúvidas de que
assim fosse, não quis mostrar insegurança a Geraldo. Geraldo optou então por tratar Emília,
e Hélia morreu minutos após ter chegado. Comprovou-se mais tarde, porém, que as lesões de
Hélia eram ainda mais graves do que o diagnóstico inicial indicava, pelo que teria sido
praticamente impossível salvá-la, mesmo que tivesse sido atendida em primeiro lugar.

Cotações: A: 4 vls; D: 4 vls; F: 3 vls; G: 4 vls; I: 3 vls. Ponderação global: 2 vls.


Tópicos de correção

Homicídio de C:
- Prática de atos idóneos (com o lançamento da pedra que poderia atingir a cabeça da vítima),
segundo um juízo ex ante, a produzir o resultado morte: art. 22.º, n.º 2, al. b); não se verificou,
todavia, o resultado.
- Ao representar a possibilidade de atingir C com risco para a vida e na medida em que o seu
propósito é precisamente o de acertar em C, A agiu com, pelo menos, dolo eventual: art. 14.º,
n.º 3. O erro sobre a identidade é aqui irrelevante, dado que não recai sobre nenhum elemento
típico.
- Não são aplicáveis quaisquer causas de justificação ou de desculpa, pelo que A deve ser
punido por tentativa de homicídio contra Carla.

- Em alternativa: pode defender-se que A teve somente dolo de ofensa à integridade física
grave: art. 144.º, al. d).

Homicídio de E:
- Prática de atos idóneos (com o lançamento da pedra que poderia atingir a cabeça da vítima),
segundo um juízo ex ante, a produzir o resultado morte: art. 22.º, n.º 2, al. b); não se verificou,
todavia, o resultado morte.
- Na falta de dados concretos em sentido contrário, A não parece ter representado a presença
de E nem, portanto, a possibilidade de a atingir. Agiu, assim, em erro sobre a factualidade típica
(art. 16.º, n.º 1, primeira parte), não tendo, por isso, dolo.
- A não pode, deste modo, ser punido por crime de homicídio contra E sob qualquer forma: não
por crime doloso consumado, visto não ter havido resultado, nem tentado, pois não há dolo;
também não por crime negligente, dada a ausência de resultado.

Ofensa à integridade física de E:


- Prática de actos idóneos (com o lançamento da pedra que poderia atingir a vítima), segundo
um juízo ex ante, a produzir a lesão corporal: art. 22.º, n.º 2, al. b); a pedra atingiu efetivamente
E, causando-lhe ferimentos.
- Na falta de dados concretos em sentido contrário, A não parece ter representado a presença
de E nem, portanto, a possibilidade de a atingir. Agiu, assim, em erro sobre a factualidade típica
(art. 16.º, n.º 1, primeira parte), não tendo, por isso, dolo.
- Implicando o comportamento de A uma violação de um dever de cuidado, não sendo
aplicáveis quaisquer causas de justificação ou de desculpa e sendo punível a ofensa à
integridade física negligente, A deverá ser punido por este crime: art. 148.º, n.º 1.

Ofensa à integridade física de A:


- Ao agredir A com um murro e pontapés, D criou um risco proibido que se concretiza no
resultado de lesões da integridade física: art. 143.º, n.º 1.
- Ao representar a possibilidade de atingir A e na medida em que esse é o seu propósito, D agiu
com dolo intencional: art. 14.º, n.º 1.
- Não obstante serem desferidos vários golpes contra A, trata-se de uma ofensa à integridade
física, não de várias: a unidade na resolução do agente, a imediatez espácio-temporal e todos
os demais fatores circunstanciais apontam para uma unidade típica de ação.
- Não se verifica qualquer agressão atual e ilícita, uma vez que A não ia de facto atacar C. Dado
que D atuou com base em tal suposição, agiu em erro sobre os pressupostos da legítima defesa
(art. 32.º). Ainda que tivesse havido agressão, contudo, A teria agido em excesso –
nomeadamente, extensivo, visto que aparentemente A já estava imobilizado quando D
continuou a pontapeá-lo. Este excesso não é provocado pelo erro referido, pelo que não é de
aplicar o art. 16.º, n.º 2. Deverá discutir-se a possibilidade de aplicação analógica do art. 33.º –
ocorrendo, neste caso, dupla analogia, visto que o dispositivo parece pensado somente para o
excesso intensivo. Mesmo que se opte pela aplicação analógica, de todo o modo, não parece
que D possa beneficiar sequer de uma atenuação da pena, visto que o seu excesso (esténico)
revela razões de censurabilidade.
- D deverá então ser punido por ofensa à integridade física de A.

Omissão de auxílio contra E:


- A relação de namoro de um mês não basta para afirmar a existência de proximidade suficiente
para sustentar uma posição de garante de F relativamente a E, pelo que, na falta de mais dados,
não é possível equiparar a omissão à ação para efeitos do art. 10.º, n.ºs 1 e 2. Perante uma
situação de grave necessidade em que se verifica perigo para a integridade física ou
eventualmente vida de E, todavia, F abandona o local, omitindo a prestação de auxílio, nos
termos do art. 200.º, n.º 1.
- F atua com dolo intencional, já que representa a situação de necessidade e opta por partir sem
prestar ajuda.
- Não sendo aplicáveis quaisquer causas de justificação ou de desculpa, F deve ser punido por
omissão de auxílio.

Homicídio de H:
- Enquanto médico de serviço com competência para tratar H, G tinha o dever de garante de
lhe prestar os devidos cuidados, derivada de uma assunção de funções de proteção. Não o tendo
feito, há uma omissão equiparável à ação para efeitos do crime de homicídio (art. 131.º), nos
termos do art. 10.º, n.ºs 1 e 2.
- Comprovando-se que a morte teria, com grande probabilidade, ocorrido sensivelmente do
mesmo modo ainda que G tivesse atuado, deve afastar-se a conexão de risco entre a omissão
típica e o resultado. Assim sendo, não pode imputar-se objetivamente a morte ao
comportamento de G. Uma vez que existe, como se viu, desvalor da omissão, resta a
possibilidade da tentativa de homicídio por omissão.
- Representando a gravidade mortal do estado de H e preferindo ainda assim abster-se do
tratamento, G atuou com, pelo menos, dolo eventual de homicídio: art. 14.º, n.º 3.
- A omissão não está justificada por conflito de deveres (art. 36.º, n.º 1), uma vez que,
atendendo aos graus de perigosidade em comparação, o dever preterido era mais vinculativo
que o preferido (o de tratar E).
- G atuou convencido da licitude da sua opção. Trata-se de um erro sobre a ilicitude
disciplinado pelo art. 17.º, e não do erro referido na parte final do art. 16.º, n.º 1, pois há uma
evidente relevância axiológica desta omissão. O erro é censurável: ainda que G tenha optado
por cuidar de outra paciente, a sua convicção (a de que enquanto médico responsável tem a
liberdade de decidir que pacientes têm preferência com independência do seu estado de saúde)
revela que a sua postura não assenta na opção por um valor alternativo também relevante para
o Direito.
- G deverá ser punido por tentativa de homicídio por omissão, nos termos do art. 22.º, n.º 2, al.
b), para além dos dispositivos já referidos.

Homicídio de H:
- A interferência de I não parece constituir verdadeira determinação do autor material à prática
do facto, uma vez que se limitou a fornecer informação (errada ou não) sobre um pressuposto
de que G fez depender a decisão que, sozinho, optou por tomar. Nesta linha, não se poderá
dizer que I é verdadeiramente o criador da decisão tomada por G, de modo que só poderá ser
considerado, no máximo, cúmplice moral (art. 27.º, n.º 1), entendendo-se que as informações
prestadas constituem já auxílio moral suficiente para este efeito.
- Tendo G praticado um facto típico e ilícito nos termos já referidos, está cumprida a regra da
acessoriedade em relação a I.
- Na medida em que foi informado por G sobre a situação em causa e as consequências da
decisão que o quis convencer a tomar, I tem, pelo menos, (duplo) dolo eventual de homicídio
(arts. 14.º, n.º 3 e 131.º).
- Não são aplicáveis quaisquer causas de justificação.
- I não está em erro sobre a ilicitude, visto que as suas dúvidas implicam que terá pelo menos
representado a possibilidade da proibição do comportamento em questão.
- I deve ser punido, enquanto cúmplice (sendo a pena atenuada nos termos do art. 27.º, n.º 2),
por tentativa de homicídio contra Carla.

- Em alternativa, poderá argumentar-se que ao convencer G de que este tem a liberdade de


optar por atender E em lugar de H, I determinou G à prática do facto típico de homicídio por
omissão. Uma vez que nada afasta a responsabilidade dolosa de G, I não pode ser considerado
autor mediato do facto, sendo mero instigador do mesmo: art. 26.º, parte final.
DIREITO PENAL II - 3.º Ano – Dia.
Coordenação e Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Prof.ª Doutora Teresa Quintela de Brito, Mestres João Matos Viana, António
Brito Neves e Catarina Abegão Alves, Licenciada Rita do Rosário
EXAME FINAL – 1.º ÉPOCA – TURMA B
22.06.2017/Duração: 90 minutos / tolerância de 15 minutos

António era instrutor da escola de condução “Ases do Volante” e pretendia pre-


judicar a carreira de Bento, um outro instrutor da mesma escola, por desavenças antigas.
Assim, António decidiu furar o tubo do óleo dos travões do carro de Bento, antes de
este iniciar uma aula com a instruenda Carla, que naquele dia seria em auto-estrada.
Para o efeito, António disse o seguinte a Daniel, responsável de segurança da re-
ferida escola: «dá-me aí as chaves do carro do Bento que eu preciso de ver uma coisa na bateria». Re-
lutante, Daniel deu-lhe as chaves.
Carla conduzia há cerca de 5 minutos na auto-estrada quando Bento recebeu
uma chamada telefónica, distraindo-se da condução da sua instruenda. Subitamente, Car-
la deparou-se com um cão que atravessava a via e chocou contra o mesmo. Bento, que
estava ao telefone, nem sequer esboçou o movimento de travagem do carro com os pe-
dais destinados ao instrutor.
Carla foi conduzida para o Hospital com traumatismo craneano, tendo sido en-
tregue aos cuidados de Ernesto, um médico que nesse dia tinha recebido um outro do-
ente craneo-traumatizado, a necessitar de cirurgia. Devido à sua inexperiência, Ernesto
trocou as radiografias dos dois doentes em causa e, com base nos exames bastante mais
graves de Carla, que supôs serem do outro doente, decidiu operar esse outro doente em
primeiro lugar. Carla não aguentou o tempo de espera e morreu.
Perante este cenário, e preocupado que Daniel fosse dizer à polícia que o tinha
visto a mexer no carro antes do acidente, António pediu ao seu amigo Francisco, segu-
rança em estabelecimentos de diversão nocturna, que desse um soco em Daniel, como
forma de o alertar para a necessidade de não contar nada a ninguém.
Francisco encontra Daniel à porta de casa, já com a chave na mão, e aplica-lhe
o soco combinado. Com a confusão gerada, a polícia aparece, Francisco foge e Daniel é
identificado e conduzido à esquadra para declarações. Pouco tempo depois, aparece na
esquadra a ex-mulher de Daniel que informa que a casa onde este se preparava para en-
trar era apenas dela, na sequência do divórcio e que Daniel pretendia retirar do interior
objectos que não lhe pertenciam.
Tendo sido feita perícia ao automóvel, percebeu-se que, em qualquer caso, no
momento do embate, os travões já não funcionariam devido à falta de óleo. Tendo tido
conhecimento do resultado desta perícia e percebendo o sucedido, Bento disse a Daniel:
«como foste capaz de dar as chaves do meu carro ao António, quando sabias que ele me odiava?».

Analise a responsabilidade individual de António (4v.), de Bento (3v.), de Dani-


el (4v.), de Ernesto (3v.) e Francisco (4v). Ponderação global (2 v.) - correcção da
escrita, clareza das ideias, sistematização das respostas e capacidade de síntese.
Nota: as respostas ilegíveis, por causa da caligrafia, não serão avaliadas.

1
GRELHA DE CORREÇÃO

1. Responsabilidade penal de António

a) Tentativa de homicídio ou tentativa de ofensa à integridade física de B


eC

• António praticou atos de execução de um crime que decidiu realizar,


considerando o teor do artigo 22.º, n.º 2, alínea c), do CP: furar o tubo
do óleo dos travões de um carro que ia iniciar a marcha em auto-
estrada, coloca os bens jurídicos integridade física / vida dos ocupan-
tes numa situação de insegurança existencial, por inexistência de bar-
reiras de protecção adicionais. Existe uma conexão de perigo (quer
em termos de significado, quer em termos de proximidade espacio-
temporal) entre o comportamento e o resultado esperado;

• Questão duvidosa era a de saber se António tinha dolo de homicídio,


ou seja, se pelo menos se conformou com a possibilidade de os ocu-
pantes do veículo morrerem. Considerando que a condução ia ser rea-
lizada em auto-estrada, seria razoável admitir tal conformação (tenta-
tiva de homicídio);

• Caso se entenda que não existe dolo de homicídio, então, apenas se


poderia punir por tentativa de ofensa à integridade física grave (artigo
144.º do CP) ou qualificada (artigo 145.º), uma vez que a ofensa à in-
tegridade física simples (artigo 143.º do CP) não é punida na forma
tentada;

• Em qualquer caso, seria sempre uma responsabilidade na forma ten-


tada pois qualquer dos resultados equacionáveis (morte ou ofensa à
integridade física) nunca seriam objectivamente imputáveis ao agente:
o acidente nada teve a ver com a falha dos travões que aliás nem se-
quer foram activados. Como tal, em especial pela teoria do risco,
sempre se poderia dizer que nenhum dos resultados em causa traduz
a concretização do risco proibido criado por António.

b) Ofensa à integridade física de D

• António é instigador do soco desferido por F em D, uma vez que


houve determinação para a prática do facto e F é plenamente respon-
sável (atua ilicitamente e com culpa dolosa);

• Está preenchida a dimensão quantitativa da acessoriedade limitada


(houve pelo menos inicio da execução), bem como da respectiva di-
mensão qualitativa (F praticou um facto típico e ilícito, sendo certo
que tais qualificativos não são afastados ainda que se entenda que F
atuou numa situação de artigo 38.º, n.º 4, do CP);

2
• António age com dolo direto (artigo 14.º, n.º 1, do CP) visto que re-
presentou e teve a intenção de criar em F a decisão de praticar o facto
e de que essa prática ocorresse.

2. Responsabilidade penal de Bento por homicídio ou ofensa à integrida-


de física de C

• Bento tinha dever de garante perante C, por força da assunção volun-


tária de deveres de protecção, tendo violado esse mesmo dever de ga-
rante, equacionando-se portanto a responsabilidade por omissão im-
pura (artigos 10.º, n.ºs 1 e 2, do CP);

• Mais uma vez, é necessário discutir se Bento agiu com dolo eventual
ou negligência consciente relativamente ao crime de homicídio ou,
pelo menos, de ofensa à integridade física. Considerando que se trata-
va de condução em auto-estrada por uma pessoa que estava a apren-
der a conduzir, admite-se que possa ser defendida a existência de con-
formação (embora se exija sempre a respectiva fundamentação, admi-
tindo-se também a posição contrária de negligência consciente, desde
que devidamente fundamentada);

• Quanto ao resultado morte, este nunca seria, em qualquer caso, impu-


tado a Bento, na medida em que houve transferência do risco para a
esfera de responsabilidade do médico E que violou de forma grave os
seus deveres de garante, interrompendo o nexo de imputação objetiva
à omissão de Bento;

• Quanto à ofensa à integridade física de C, pode-se discutir se a impu-


tação objetiva de tal resultado é admissível, por força do funciona-
mento de um comportamento lícito alternativo. Diz a hipótese que,
mesmo que o instrutor tivesse acionado os travões, estes não funcio-
nariam. A questão consiste então em saber se o resultado seria o
mesmo se Bento tivesse cumprido o seu dever de garante, de tal for-
ma que a norma de cuidado em causa seria inútil. No caso concreto, e
sem prejuízo de se atender à fundamentação de cada resposta indivi-
dual, parece que, caso B fosse atento à condução, o resultado poderia
ser diferente pois, ainda que não conseguisse acionar os travões pode-
ria conseguir dominar o carro de outra forma, nomeadamente utili-
zando o volante do instrutor ou da própria instruenda.

• No caso de se ter defendido a existência de dolo de homicídio, pode-


ria também defender-se a responsabilização de Bento por tentativa
desse crime, visto que omitiu a ação que, de acordo com um juízo de
perigosidade ex ante, seria idónea a evitar o resultado típico, podendo,
nesta medida, considerar-se realizada a alínea b) do artigo 22.º, n.º 2,
do CP.

3. Responsabilidade penal de Daniel

3
a) Cumplicidade em crime de tentativa de homicídio ou ofensa à in-
tegridade física de B e C

• Daniel auxiliou materialmente ao ato de execução de A, fornecendo-


lhe as chaves do carro de B (cumplicidade material: artigo 27.º, n.º 1,
do CP);

• Perante a frase final da hipótese, tinha de se equacionar se Daniel ti-


nha agido com dolo, nomeadamente com dolo eventual (sendo certo
que a cumplicidade é exclusivamente dolosa). Depois, adicionalmen-
te, tal como se fez em relação a A, tinha de se equacionar se se trata-
va de um dolo de homicídio ou de um dolo de ofensa à integridade
física grave ou qualificada (pois a ofensa à integridade física simples
não admite a forma tentada);

• Está verificado o princípio da acessoriedade limitada, pois o autor


imediato iniciou a execução de um facto (tentado) típico e ilícito.

b) Tentativa de furto qualificado (artigo 204.º do CP)

• Considerando que está em causa um furto qualificado por introdução


em casa alheia, parece ter-se iniciado a tentativa de furto qualificado
– artigo 22.º, n.º 2, alínea a) ou alínea c), ao qual se seguiria um acto
da alínea a): a própria introdução no domicílio. Tal solução pode ser
discutível, pelo que se aceitariam soluções diferentes, desde que devi-
damente fundamentadas;

• Também se poderia discutir a eventual existência de atos de execução


do crime de violação de domicílio (artigo 190.º do CP), nos termos
da alínea c) do artigo 22.º, n.º 2, do CP; havendo também dolo inten-
cional relativamente ao mesmo crime, Daniel não poderia, porém, ser
punido pela tentativa do mesmo, dada a medida da pena (artigo 23.º,
n.º 1, do CP).

4. Responsabilidade penal de Ernesto por homicídio por omissão

• Na qualidade de médico, Ernesto tinha o dever de garante (artigo


10.º, n.ºs 1 e 2, do CP), por assunção voluntária de deveres de pro-
tecção, tendo violado tais deveres ao não salvar C;

• Existe imputação objetiva entre a omissão de Ernesto e a morte de


C, pois parece resultar da hipótese que a intervenção médica omitida
teria possibilidades de salvamento da vida em causa, podendo discu-
tir-se qual o grau de probabilidade de sucesso exigido para efeitos de
imputação;

4
• Contudo, Ernesto estava em erro quanto ao estado de coisas que, a
existir, traduziria um conflito de deveres com cumprimento do dever
de valor superior (artigo 36. º do CP). Nessa medida, por força do ar-
tigo 16.º, n.º 2, do CP, fica excluído o dolo do agente, ressalvando-se
a negligência pelo artigo 16.º, n.º 3, do CP, a qual neste caso parece
existir.

• Ernesto poderia ser punido por homicídio por omissão negligente,


visto que pode admitir-se ter havido uma violação de deveres de cui-
dado e está expressamente prevista essa possibilidade: artigos 16.º, n.º
3, 13.º, 15.º, alínea b), e 137.º, do CP.

5. Responsabilidade penal de Francisco por ofensa à integridade física


simples

• Francisco ofende a integridade física de D com dolo;

• Contudo, com isso, e sem o saber, Francisco consegue afastar uma


agressão ilícita e atual de D:

(i) D estava a praticar atos de execução de furto qualificado ou


(ii) ainda que se entenda que os mesmos ainda não ocorreram,
pela tese do Prof. Figueiredo Dias, parece haver iminência da
agressão, conclusão que, de acordo com o entendimento da
Prof. Fernanda Palma quanto à actualidade da agressão, seria
mais difícil de sustentar ou
(iii) D estava a praticar atos de execução de violação de domicílio
da sua ex-mulher;

• Uma vez que já começara a execução por parte de D e que aquele era
o meio menos gravoso à disposição de Francisco para evitar a agres-
são, estão verificados os pressupostos e requisitos objectivos da legi-
tima defesa de terceiro, mas já não o respetivo pressuposto subjecti-
vo, podendo-se aplicar analogicamente o artigo 38.º, n.º 4, do CP.

• Aplicando-se, por força do artigo 38.º, n.º 4, do CP, o “regime da


tentativa”, o agente seria ilibado, na medida em que a tentativa de
ofensa à integridade física simples não é punida. Aplicando-se a “pe-
na da tentativa” seria aplicada a pena correspondente.

Lisboa, 22 de Junho de 2017.

5
DIREITO PENAL II - 3.º Ano – Dia.
Coordenação e Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Prof.ª Doutora Teresa Quintela de Brito, Mestres João Matos Viana, António Brito Neves e
Catarina Abegão Alves, Dra. Rita do Rosário

EXAME FINAL – COINCIDÊNCIAS - Turma B


26.06.2017/Duração: 90 minutos + 15 minutos de tolerância

A tragédia de Otelo

Iago é assistente na Faculdade, numa disciplina sob a regência de Otelo. Otelo escolheu Cássio, outro
assistente da equipa, para liderar um projecto de investigação, facto que muito irritou Iago, que esperava ser
o escolhido.
Para se vingar, Iago convence Rodrigo, seu sobrinho de 15 anos, a matar Cássio, ex-marido de
Desdémona, agora mulher de Otelo, dizendo-lhe que assim conquistará o coração desta, por quem Rodrigo
está apaixonado. Rodrigo aceita, dirige-se a uma loja de armas para comprar uma pistola com que poderá
matar Cássio. Pára, no entanto, diante de uma florista e, convencido de que as rosas lhe trarão mais sucesso
que as balas, resolve comprar flores para Desdémona, abandonando o intento homicida.
Continuando a execução do seu plano e conhecendo o carácter ciumento e violento de Otelo, Iago
convence-o de que Desdémona e Cássio são amantes. Refere como prova um lenço de Desdémona, que
supostamente foi encontrado no quarto de Cássio por Emília, mulher de Iago e decoradora de interiores. Não
desconfiando de todo da trama do marido, Emília entrega a Otelo o referido lenço quando ele lho pede.
Otelo, cheio de raiva, mata Desdémona asfixiando-a com o lenço.
Quando Emília chega ao local, vê Desdémona morta aos pés de Otelo e grita chamando-lhe diabo.
Brabâncio, pai de Desdémona, também se aproxima, ouve os gritos de Emília e, convencido de que a sua
filha está viva e de que Otelo, de quem nunca gostou, se prepara para a atacar, agarra numa pedra e atira-a na
direcção de Otelo. Este, porém, desvia-se e a pedra atinge Emília na cabeça, que fica caída no chão
sangrando abundantemente.
Segundos depois, Iago chega ao mesmo local, ansioso por assistir ao resultado dos seus planos. Vendo-o
chegar e percebendo tudo, Emília grita: "Vilania! Vilania! Vilania!". Iago, com medo de ser descoberto,
desfere-lhe um pontapé na cabeça, que lhe provoca a morte. Na autópsia comprova-se que o pontapé de Iago
não teria provocado a morte de Emília, se esta não estivesse já bastante debilitada pelas lesões sofridas com
a pedrada de que fora vítima.
Perante aquilo, Otelo compreende os motivos de Iago e avança com as mãos prontas para o estrangular.
Brabâncio, que sempre conheceu Otelo e Iago como amigos, pensa que ele o quer abraçar e, não suportando
a alegria do genro, desfere-lhe um murro que derruba Otelo. Vendo Otelo no chão e já meio zonzo, aproveita
para lhe desferir mais um pontapé, que o deixa inconsciente.

Determine a responsabilidade jurídico-penal dos intervenientes.

Rodrigo: 1,5 v.; Otelo: 2,5 v.; Emília: 2,5 v.; Brabâncio: 6 v.; Iago: 5,5 v.
Ponderação global: 2 v. - correcção da escrita, clareza das ideias, sistematização das respostas e capacidade
de síntese.

Nota: as respostas ilegíveis por causa da caligrafia não serão avaliadas. Formatada: Português (Portugal)
Tópicos de correcção

Responsabilidade jurídico-penal de Rodrigo

Rodrigo toma a decisão de matar Cássio, podendo dizer-se que há formação de dolo intencional.
Não chega a haver, porém, prática de actos de execução do homicídio (artigo 131.º), pois Rodrigo abandona
o plano numa fase claramente preparatória, em que ainda não adquiriu sequer a arma do crime nem se gerou
qualquer perigo iminente, mesmo segundo um juízo ex ante, para a vida de Cássio. Não se pode dizer
preenchida, portanto, nenhuma das alíneas do artigo 22.º, n.º 2.
Deste modo, Rodrigo não é responsabilizado por qualquer crime.
Rodrigo tem apenas 15 anos e é, por isso, inimputável, nos termos do artigo 19.º, sendo incapaz de culpa.
Uma vez que não pratica qualquer facto típico, este facto mostra-se apenas relevante para a eventual
responsabilidade de Iago, que o convenceu a praticar o facto típico.

Responsabilidade jurídico-penal de Otelo

Quanto ao homicídio (artigo 131.º) de Desdémona:

Otelo cria o risco proibido para a vida de Desdémona ao asfixiá-la, causando-lhe a morte e havendo, assim,
concretização do risco no resultado típico.
Otelo actuou com dolo intencional (artigo 14.º, n.º 1), tendo representado e desejado causar a morte da
mulher.
Não há causas de justificação nem de exclusão da culpa. A conduta é punível.

Quanto ao homicídio (artigo 131.º) de Iago:

Otelo toma a decisão de matar Iago, representando e desejando causar-lhe a morte. Tem, portanto, dolo
intencional de homicídio (artigo 14.º, n.º 1).
Dada a proximidade geográfica em relação a Iago e temporal em relação à agressão propriamente dita, o
avanço de Otelo com as mãos prontas para estrangular constitui já a prática de actos de execução, nos termos
do artigo 22.º, n.º 2, al. c), pois envolve a colocação do bem ameaçado numa situação de insegurança
existencial segundo um juízo de perigosidade ex ante.
Otelo pratica assim tentativa de homicídio punível (artigo 23.º, n.º 1).

Responsabilidade jurídico-penal de Emília

Ao entregar a Otelo o instrumento utilizado por este para praticar o seu crime, Emília prestou auxílio
material à realização do facto típico, podendo dizer-se cúmplice (artigo 27.º, n.º 1) relativamente ao crime de
homicídio.
Está cumprido o requisito da acessoriedade, tanto na vertente quantitativa (pois Otelo iniciou e até
consumou a execução do facto) como na vertente qualitativa (o facto de Otelo é típico, doloso e ilícito).
Emília está em erro-ignorância sobre a própria cumplicidade material (forma de erro sobre a factualidade
típica - artigo 16.º, n.º 1): "não desconfiando da trama do marido", parece nem representar a possibilidade de
Otelo utilizar o lenço para matar Desdémona. Emília não tem, portanto, dolo, não podendo ser punida, pois,
nos termos do artigo 27.º, n.º 1, a cumplicidade só é punida quando haja dolo.

Responsabilidade jurídico-penal de Brabâncio

Quanto ao homicídio (artigo 131.º) de Otelo:

Ao atirar a pedra na direcção de Otelo, Brabâncio cria um risco proibido para a vida deste, que, no entanto,
não se concretiza do resultado. O acto mostra-se idóneo, segundo um juízo ex ante, a produzir o resultado
típico, pelo que é já um acto de execução, nos termos do artigo 22.º, n.º 2, al. b).
Brabâncio parece actuar com dolo pelo menos eventual (artigo 14.º, n.º 3) de homicídio, dada a intensidade
do risco que opta por criar, lançando a pedra ao nível da cabeça com a motivação de evitar (a todo o custo) a
agressão contra a sua filha.
Brabâncio age na suposição de que Otelo iria agredir Desdémona nesse instante. Se tal fosse verdade, seria
de admitir a actualidade e a ilicitude da agressão, podendo admitir-se igualmente que aquele era o único
meio (não havendo, portanto, outro menos gravoso) para, com relativa segurança, evitar a agressão. Uma vez
que a agressão não existia (pois Desdémona já estava morta), Brabâncio actua em erro do artigo 16.º, n.º 2,
na medida em que supõe erradamente a verificação dos pressupostos e requisitos da legítima defesa (artigo
32.º). Por esta razão, é excluído o dolo da culpa.
Não obstante o artigo 16.º, n.º 3, ressalvar a punibilidade da negligência e ela estar expressamente prevista
no artigo 137.º, o resultado típico não se verificou e, assim, Brabâncio não pode ser punido, por ser
inconcebível a tentativa negligente.

Quanto ao homicídio (artigo 131.º) e ofensa à integridade física (artigo 143.º) de Emília:

Ao atirar a pedra que atinge Emília, Brabâncio cria um risco proibido para a vida desta. As lesões
provocadas só conduziram à morte, porém, em conjugação com a agressão de Iago. Esta concretização de
dois riscos conjugados leva a configurar o caso como um de causalidade cumulativa, não podendo, portanto,
imputar-se objectivamente o resultado morte à conduta de Brabâncio.
Já a lesão na integridade física imediatamente provocada com a pedra traduz a concretização do risco
proibido criado por Brabâncio, tendo-se assim realizado o tipo objectivo da ofensa à integridade física (artigo
143.º).
Embora se admita resposta fundamentada diversa, Brabâncio não parece ter representado a possibilidade de
atingir Emília, tendo havido erro na execução. Na falta de representação da factualidade típica (artigo 16.º,
n.º 1), exclui-se o dolo. Brabâncio não pode sequer ser punido por negligência em relação ao homicídio,
dado ter-se afastado a imputação objectiva nesse âmbito. Pode ser punido, porém, por ofensa à integridade
física negligente (artigo 148.º), se se admitir que ocorreu a violação de um dever de cuidado na sua actuação,
nos termos dos artigos 13.º e 15.º, al. b).

Quanto à ofensa à integridade física (artigo 143.º) de Otelo:

Ao desferir um soco e um pontapé contra Otelo, Brabâncio cria um risco proibido que se concretiza nas
lesões provocadas.
Brabâncio representou e desejou causar essas lesões, de modo que tem dolo intencional (artigo 14.º, n.º 1).
Uma vez que havia uma agressão actual e ilícita de Otelo contra Iago, estão verificados os pressupostos da
legítima defesa. O pontapé desferido, todavia, mostra-se um meio desnecessário, na medida em que a
agressão já cessara, verificando-se um excesso extensivo de legítima defesa objectiva (artigos 32.º e 33.º).
Deste modo, deixa de ser possível tanto a aplicação do artigo 32.º (também por faltar o elemento subjectivo:
Brabâncio não representou a agressão) como a do artigo 38.º, n.º 4.
Uma vez que Brabâncio não representou a agressão e o excesso é extensivo, não parece possível a aplicação
directa do artigo 33.º Mesmo uma aplicação analógica, de todo o modo, não conduziria à desculpa, uma vez
que a actuação de Brabâncio não parece ter resultado de medo, perturbação ou susto, únicas situações em
que a desculpa é possível.

Responsabilidade jurídico-penal de Iago

Quanto ao homicídio (artigo 131.º) de Cássio:

Iago determina Rodrigo à prática do facto típico de homicídio (artigo 131.º). Uma vez que Rodrigo é
inimputável (não sendo possível a sua responsabilidade criminal a título de dolo), a actuação de Iago
constitui uma instrumentalização de Rodrigo, podendo dizer-se que Iago é um autor mediato (artigo 26.º, 2.ª
alternativa).
Representando e desejando que Rodrigo mate efectivamente Cássio, Iago tem dolo intencional de
homicídio (artigo 14.º, n.º 1).
Rodrigo deteve-se, porém, numa fase ainda preparatória. A própria actuação de Iago sobre Rodrigo, por
outro lado, não gera, por si só, uma ameaça iminente à segurança do bem jurídico em causa, não podendo,
por isso, falar-se em actos de execução e em início da tentativa para o autor mediato.
Em conclusão, neste momento Iago não realiza qualquer facto típico..

Quanto ao homicídio (artigo 131.º) de Desdémona:

Iago determina Otelo à prática do facto típico de homicídio. Mesmo que a informação sobre a infidelidade
de Desdémona fosse falsa, tal erro não prejudicaria a responsabilidade penal dolosa de Otelo, pelo que Iago é
um instigador (artigo 26.º, última alternativa).
Está cumprido o requisito da acessoriedade, tanto na vertente quantitativa (pois Otelo iniciou e até
consumou a execução do facto), como na vertente qualitativa (o facto de Otelo é típico, doloso e ilícito).
Iago actua com dolo intencional (artigo 14.º, n.º 1), pois representa e deseja convencer Otelo a matar
Desdémona. Menos correcta será a solução do dolo eventual (art. 14º, n.º 3), pois pode ter-se dolo direto
relativamente a um resultado previsto apenas como possível. No mínimo, Iago representou a possibilidade
séria do homicídio de Desdémona pelo marido, conformando-se com esse facto, pois transmite-lhe a
informação sobre o adultério "conhecendo o carácter ciumento e violento de Otelo", querendo igualmente
que ele a mate.
Não havendo causas de justificação ou de desculpa, Iago deve ser punido por homicídio, enquanto
instigador.

Quanto ao homicídio (artigo 131.º) de Emília:

Iago cria um risco proibido para a vida de Emília ao desferir-lhe um pontapé na cabeça, tendo assim
praticado um acto idóneo, segundo um juízo ex ante, a provocar a morte (artigo 22.º, n.º 2, al. b)).
Esse risco só vem a concretizar-se no resultado em conjugação com o risco anteriormente criado por
Brabâncio. Na medida, porém, em que Emília está deitada no chão a sangrar abundantemente da cabeça e
isto é visível para Iago, deve considerar-se que a morte de Emília é ainda a concretização de um risco
inserido no quadro de riscos criados e assumidos por Iago. A morte de Emília deve, assim, imputar-se
objectivamente à sua conduta.
Iago actua pelo menos com dolo eventual de homicídio (artigo 14.º, n.º 3), pois, tendo em conta as suas
motivações – silenciar Emília a qualquer custo, incluindo o risco muito intenso de um pontapé na cabeça
sangrante desta –, parece seguro dizer que ele se conformou com a possibilidade de matar Emília.
Não havendo causas de justificação ou de desculpa, Iago deve ser punido por homicídio. Formatada: Português (Portugal)
DIREITO PENAL II
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Prof.ª Doutora Teresa Quintela de Brito; Mestres João Matos Viana, António Brito Neves e Catarina Abegão Alves;
Licenciada Rita do Rosário

EXAME DE RECURSO – 3.º Ano – Dia – Turmas A e B


19.07.2017/Duração: 120 minutos

António, caçador, resolve explorar uma floresta e acaba por se perder, já ao cair da noite. Encontra uma casa e entra para
procurar comida e carregar o telemóvel. Já quase de saída, vislumbra uma caixa dentro da qual descobre um colar de diamantes.
Resolve apropriar-se dele.
Carlos, dono da casa, regressa do seu passeio e depara-se com António dentro da mesma, a introduzir o colar na mochila. Pega
numa faca e esfaqueia António no braço. António deixa cair o colar e fica ferido, mas consegue fugir.
António não chegou a reparar que estava trancada num dos quartos Belinda, uma rapariga da aldeia que Carlos havia ali fechado
nessa tarde, para mais tarde a forçar a ter relações sexuais.
António acaba por conseguir regressar à sua aldeia com ajuda do GPS do telemóvel, que tinha carregado. Encontra Fábio e
Guilherme, também caçadores, e, cego pela vontade de vingança, oferece-lhes dinheiro para que vão à casa e matem Carlos. Estes
aceitam e seguem as instruções do caminho dadas por António.
Dalva, polícia, ouve a conversa daqueles, mas não tenta impedir Fábio e Guilherme, já que, por um lado, nunca gostou de Carlos,
e, por outro, vê nesse momento, ao fundo da rua, um sujeito, Hélder, prestes a esfaquear uma rapariga, Íris. Corre para junto destes
e esmurra Hélder. Na realidade, este e Íris eram apenas dois actores que estavam a ensaiar para uma peça de teatro.
Chegados a casa de Carlos, Fábio e Guilherme arrombam a porta e disparam para matar, sem saber que Carlos se preparava para
forçar Belinda a ter relações sexuais. Uma das balas atinge Carlos, que morre. Na perícia não se consegue perceber a qual das
armas pertencia a bala que lhe acertou.

António: 4 v.; Carlos: 4 v.; Dalva: 5 v.; Fábio: 2,5v.; Guilherme: 2,5 v.

Ponderação global: 2 v. - correcção da escrita, clareza das ideias, sistematização das respostas e capacidade de síntese.

Nota: as respostas ilegíveis por causa da caligrafia não serão avaliadas.


GRELHA DE CORRECÇÃO

I. António

António, caçador, resolve explorar uma floresta e acaba por se perder, já ao cair da noite. Encontra uma casa e entra para
procurar comida e carregar o telemóvel. Já quase de saída, vislumbra uma caixa dentro da qual descobre um colar de diamantes.
Resolve apropriar-se dele

1) Violação de domicílio

• Tipicidade: Autoria material de um crime de violação de domicílio doloso consumado (arts. 14º/1 e 190º);

• Ilicitude: Verificar-se-ia uma situação objectiva de legítima defesa de terceiro (Belinda) desconhecida de António, se
este, ao introduzir-se em casa de Carlos, tivesse permitido a libertação daquela. Como não foi esse o caso, António não
beneficiará da aplicação analógica do art. 38º/4;

• Culpa e punibilidade: Não se verificando também qualquer causa de exclusão da culpa, António será punido nos termos
referidos.

2) Furto qualificado

• Tipicidade: Autoria material do crime de furto qualificado [art. 204.º/2, al. a], na forma tentada [art. 22º/2 b) e a), pois
já tinha iniciado a subtracção, embora não a tenha completado]. António só decide praticar o furto depois de se ter
introduzido na casa com outro objectivo;
Tudo indica que terá dolo directo (art. 14º/1);

• Ilicitude, culpa e punibilidade: Não há causas de exclusão da ilicitude, nem da culpa. Logo, António será punido pela
tentativa de furto qualificado (art. 23º/1 e 2).

Encontra Fábio e Guilherme, também caçadores, e, cego pela vontade de vingança, oferece-lhes dinheiro para que vão à casa e
matem Carlos e dá-lhes as instruções necessárias para o caminho.

3) Homicídio

• Tipicidade e ilicitude: É instigador do crime de homicídio de C, uma vez que houve determinação para a prática do
facto e F/G, que são pessoas plenamente responsáveis e actuam com culpa dolosa;
Está preenchida a dimensão quantitativa da acessoriedade limitada (houve pelo menos início da execução), bem como
da respectiva dimensão qualitativa (F/G praticaram um facto típico e ilícito, sendo certo que tais qualificativos não são
afastados ainda que se entenda que actuaram numa situação de artigo 38.º/4);
António é, ainda, cúmplice material do homicídio por ter fornecido as instruções necessárias para que F/G
encontrassem o caminho para a casa de Carlos (art. 27º/1), actuando com duplo dolo directo (tanto em relação à
cumplicidade como à instigação). Todavia, sendo mais grave a instigação, consome a cumplicidade;

• Punibilidade: António será punido pelo facto praticado por F/G, como instigador, mas segundo a sua culpa (art. 29º).
II. Carlos

(…) depara-se com António dentro da mesma, a introduzir o colar na mochila. Pega numa faca e esfaqueia António no braço

1) Ofensas à integridade física

• Tipicidade: Autoria material do crime de ofensa à integridade física (art. 143º), doloso (art. 14º/1) na forma consumada

• Ilicitude: António estava a praticar uma agressão actual e ilícita contra a propriedade e a reserva da vida privada de
Carlos. Este poderá ter agido em legítima defesa contra António (art. 32º), se o meio não for excessivo (devendo o
aluno pronunciar-se, fundamentando, sobre se há ou não excesso). De contrário, o facto permanece ilícito, podendo a
pena ser atenuada (art. 33º/1);

• Culpa: Não sendo o excesso devido a perturbação, medo ou susto não censuráveis, Carlos será punido pelo crime de
ofensa simples, dolosa e consumada contra António.

Estava trancada num dos quartos Belinda, uma rapariga da aldeia que Carlos havia ali fechado nessa tarde, para mais tarde a
forçar a ter relações sexuais. (…) sem saber que Carlos se preparava para forçar Belinda a ter relações sexuais

2) Tentativa de violação

• Tipicidade: Autoria material do crime de tentativa de violação Belinda, com dolo directo (arts. 14º/1 e 164º/1);
Carlos praticou, pelo menos, actos de execução nos termos do art. 22º/2 c), logo que sequestrou Belinda com a intenção
de mais tarde a forçar a ter relações sexuais com ele (afectação da segurança existencial do bem jurídico liberdade
sexual de Belinda, ao ser colocada sob o domínio do agente);
O crime de tentativa de violação consome o crime de sequestro consumado (art. 158º/1);

• Ilicitude, culpa e punibilidade: Não há causas de exclusão da ilicitude, nem da culpa, logo Carlos seria punido pelo
crime de tentativa de violação, não fora ter morrido (art. 127º/1).

III. Dalva

(…) ouve a conversa daqueles, mas não tenta impedir Fábio e Guilherme, já que, por um lado, nunca gostou de Carlos, e, por
outro, vê nesse momento, ao fundo da rua, um sujeito, Hélder, prestes a esfaquear uma rapariga, Íris. Corre para junto destes e
esmurra Hélder. Na realidade, este e Íris eram apenas dois actores que estavam a ensaiar para uma peça de teatro

1) Quanto a Hélder: ofensas à integridade física

• Tipicidade: Autoria material de um crime de ofensa simples à integridade física, doloso e consumado (arts. 143º e
14º/1);

• Ilicitude: Dalva actua em erro sobre o pressuposto agressão actual e ilícita da legítima defesa, que exclui a
culpabilidade dolosa, ressalvando-se porém a punibilidade por negligência [arts. 13º, 148º e 15º/b)], caso Dalva tenha
violado um dever de cuidado na avaliação da realidade.
2) Quanto a Carlos: homicídio por omissão

• Tipicidade: Autoria material de um crime de homicídio por omissão doloso consumado (arts. 10º, 131º e 14º/2), caso se
admita que Dalva, em virtude da sua função de polícia, tem posição de garante (por assunção voluntária de funções de
protecção do bem jurídico) relativamente à vida de Carlos, que esta sabe irá ser alvo de uma tentativa de homicídio;
Se a pronta intervenção de Dalva tivesse conseguido diminuir, e até afastar, o perigo para a vida de Carlos, a morte
deste pode ser-lhe objectivamente imputada;

• Ilicitude: Estando Íris e Hélder a ensaiar para uma peça de teatro, Dalva não tinha qualquer dever de agir em relação a
Íris, mas somente quanto a Carlos, que muito em breve seria vítima de uma tentativa de homicídio;
No entanto, Dalva pensou que ambos necessitavam da sua pronta intervenção activa e acudiu à vítima que até lhe
parecia estar numa situação mais intensa e imediata de perigo para a vida (Íris). Dalva encontra-se, por isso, numa
situação de erro sobre conflito de deveres de acção relativamente a Carlos e a Íris (arts. 36.º e 16.º/2); exclui-se a
culpabilidade dolosa e ressalva-se a punibilidade por negligência (arts. 16.º/3, 13º, 137º e 15º). Deve determinar-se se
Dalva foi precipitada na avaliação que fez da realidade objectiva, violando assim um dever de cuidado;

• Culpa e punibilidade: Inexistindo causas de exculpação, Dalva será punida por um homicídio negligente por omissão.

IV. Fábio/Guilherme

(…) oferece-lhes dinheiro para que vão à casa e matem Carlos. Estes aceitam e seguem as instruções do caminho dadas por
António (…). Chegados a casa de Carlos, Fábio e Guilherme arrombam a porta e disparam para matar, sem saber que Carlos se
preparava para forçar Belinda a ter relações sexuais. Uma das balas atinge Carlos, que morre. Na perícia não se consegue
perceber a qual das armas pertencia a bala que lhe acertou.

1) Homicídio

• Tipicidade: Coautoria do crime de homicídio doloso consumado, pois F/G tomam parte directa na execução do mesmo
por acordo (arts. 26º/3.ª proposição, 131º e 14º/1). Precisamente por se tratar de uma situação de coautoria, na qual cada
coautor responde pelo facto global apesar de só realizar uma parte do mesmo, a morte de Carlos, inequivocamente
provocada por um deles (embora se ignore qual), será imputada a ambos;
Embora esta seja a solução preferível, há quem entenda que, nestes casos de disparos simultâneos de vários agentes
sobre a mesma vítima (v.g. “disparos no muro” que outrora separava a RFA da RDA), existem somente autorias
paralelas de homicídio, na medida em que cada um dos atiradores tem por si o domínio pleno e exclusivo do facto.
Então, a morte de Carlos não poderá ser imputada a nenhum dos agentes, por força do in dubio pro reo, já que se não
sabe a qual das armas pertencia a bala que o matou. A diversidade de soluções quanto ao problema da imputação
objectiva explica-se porque só a coautoria (já não as autorias paralelas) permite a imputação recíproca dos
comportamentos dos coautores e, por via disso, a responsabilidade pelo facto global, não obstante o coautor realizar
individualmente apenas uma parte do mesmo;

• Ilicitude: Estão verificados os pressupostos objectivos da legítima defesa de terceiro (violação de B), mas já não o
respectivo requisito subjectivo, pelo que se poderia aplicar analogicamente o artigo 38.º/4, caso se entenda inexistir
excesso nos meios empregados. O que deve ser discutido fundamentadamente;

• Culpa: Não se verificam quaisquer causas de exclusão da culpa;

• Punibilidade: Como o art. 38º/4 remete para o regime de punibilidade da tentativa, das duas uma:
a) Se se defendeu a solução da coautoria entre F/G (mais correcta), estes seriam puníveis por tentativa de homicídio
(art. 23º/1 e 2).
b) Se se sustentou a solução das autorias paralelas, a aplicação do art. 38º/4 determina uma segunda atenuação especial
da pena, que acresce à resultante do regime de punição da tentativa (art. 23º/2).

Lisboa, 26 de Julho de 2017


DIREITO PENAL II - 3.º Ano – Dia
Coordenação e Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Prof.ª Doutora Teresa Quintela de Brito, Mestres João Matos Viana, António
Brito Neves e Catarina Abegão Alves, Licenciada Rita do Rosário

EXAME DE RECURSO – COINCIDÊNCIAS – Turmas A e B


28.07.2017/Duração: 120 minutos

Viagem agitada

Após uma longa semana de trabalho, Artur voltava a casa e levava consigo um anel para
oferecer à sua mãe. Já no comboio, Artur instalou-se confortavelmente no seu assento e acabou
por adormecer uns minutos depois. Temendo perder o anel, Artur tinha-o guardado dentro de uma
caixa que trazia consigo. Sem que Artur soubesse, o seu primo Basílio viajava no mesmo
comboio. Este, ao passar pelo assento de Artur, decidiu retirar-lhe a caixa das mãos, por forma a
guardá-la até que este acordasse. No momento em que Basílio se preparava para agarrar na caixa,
o revisor Cipriano, ao ver aquela cena, e julgando que se tratava de um assalto, avançou na
direcção de Basílio, desferindo-lhe uma violenta pancada com a máquina de validar os bilhetes,
provocando o seu desmaio.
Aproveitando-se da confusão que se instalou no comboio, Diamantino, antecipando já a sua
vida de viúvo milionário, e sem que a empregada da carruagem-bar, Eduarda, estivesse a ver,
polvilhou o bolo que esta iria servir à sua mulher, Filipa, com uma dose letal de veneno.
No momento em que servia o bolo a Filipa, Eduarda desequilibrou-se com um solavanco do
comboio e deixou-o cair ao chão. Logo de seguida, o insaciável filho de seis anos de Artur,
Gaspar, que se tinha escapulido do seu assento, agarrou no bolo e degustou-o com avidez.
Ainda não satisfeito com as suas aventuras daquele dia, Gaspar correu até ao bar do comboio.
Imbuído de azáfama infantil, Gaspar desferiu um pontapé certeiro numas garrafas de vidro que se
encontravam a um canto do bar, partindo-as.
Nesse instante, Artur acordou sobressaltado e ao dar pela falta do seu filho, correu a procurá-
lo. Encontrou-o uns metros mais à frente deitado no chão do comboio, com ataques convulsivos, e
começou a gritar por ajuda. O revisor Cipriano, que sabia que Diamantino era médico, pediu-lhe
que este fosse salvar a criança. Perante a recusa de Diamantino, Cipriano agarrou nele e levou-o
até à sala do maquinista, onde já se encontrava Gaspar, mantendo-o aí fechado. Enquanto isso,
Artur assegurava-se de que a porta estava bem fechada, de que Diamantino não fugia e de que
prestava o tratamento médico devido ao seu filho.
Diamantino já não conseguiu salvar Gaspar. Veio a provar-se que Gaspar sofria
frequentemente de ataques convulsivos, pelo que não era improvável que durante aquela viagem
viesse a sofrer uma convulsão.
Quando o comboio chegou à estação de destino, Basílio acordou atordoado e, ao invés de
abandonar o comboio com a sua mala, pegou na de Artur, levando-a para casa.

Determine a responsabilidade jurídico-penal dos intervenientes.


Artur: 4 v.; Basílio: 2 v.; Cipriano: 5 v.; Diamantino: 3,5 v.; Eduarda: 2,5 v.; Gaspar:
1 v.
Ponderação global: 2 v. - correcção da escrita, clareza das ideias, sistematização das
respostas e capacidade de síntese.
Nota: as respostas ilegíveis por causa da caligrafia não serão avaliadas.
Tópicos de correcção

Quanto ao dano (artigo 212.º): destruição das garrafas no bar do comboio

Artur tem uma posição de garante que emana da autovinculação implícita à protecção de bens
jurídicos (inerente à estreita relação vital com o filho) e, ainda, um dever de vigilância e
segurança face a uma fonte de perigo – o dever de garante face à actuação de terceiros
irresponsáveis.
Contudo, o facto de Artur estar a dormir no momento em que deveria agir por forma a
salvaguardar o bem jurídico (propriedade) leva-nos a concluir que estamos perante uma situação
de impossibilidade fáctica de acção, pois este não tinha possibilidade de levar a cabo a acção
devida ou esperada ao estar a dormir, não se apercebendo assim que o seu filho tinha fugido até
ao bar do comboio. Isto consubstancia uma causa de atipicidade do comportamento de Artur,
pelo que este não será responsabilizado por este crime.

Quanto ao crime de homicídio do filho:

Artur não poderá ser responsabilizado por um crime de homicídio negligente por omissão
(artigos 10.º, 137.º e 15.º) pelas mesmas razões: impossibilidade fáctica de realização da acção
impeditiva da ingestão do bolo pelo filho, por se encontrar a dormir (exclusão de um
comportamento penalmente relevante); e, ainda, por a presença de veneno no bolo ser
totalmente imprevisível e incontrolável por ele.

Deve ser ainda exigida a referência à omissio libera in causa e a discussão sobre a
possibilidade de responsabilizar (ou não) o agente por negligentemente se ter deixado
adormecer, viajando sozinho com um filho de apenas 6 anos de idade.
Mesmo a admitir-se uma resposta positiva, Artur não seria responsável pelo crime de dano
(não previsto na forma negligente), nem pelo homicídio negligente de Gaspar, por ser
totalmente imprevisível a presença de veneno no bolo.

Quanto ao sequestro de Diamantino (artigo 158.º):

Artur é co-autor, do crime de sequestro (artigo 158.º, n.º 1) contra Diamantino, pois,
juntamente com Cipriano, tomou parte directa na execução do facto (artigo 26.º, 3.ª proposição).
Artur actua com dolo directo (artigo 14.º, n.º 1).
Contudo, o facto praticado por Artur não é ilícito, pois este actua ao abrigo de uma causa de
justificação – o direito de necessidade (artigo 34.º), cujos pressupostos e requisitos deverão ser
demonstrados.
Deve ainda discutir-se a possibilidade, necessidade e adequação de legítima defesa contra
comportamentos omissivos.

Responsabilidade jurídico-penal de Basílio

Quanto ao furto (artigo 203.º):

Basílio subtraiu uma coisa móvel alheia, mas desconhecia que a mala era de Artur. Basílio
está, assim, em erro sobre um elemento normativo do tipo incriminador – coisa móvel alheia.
Nos termos do artigo 16.º, n.º 1, primeira parte, este erro leva à não afirmação do dolo do
agente, podendo este ainda vir a ser punido a título negligente, nos termos do artigo 16.º, n.º 3.
Todavia, uma vez que não está previsto o tipo incriminador de furto negligente, Basílio não
será responsabilizado (artigo 13.º).

Responsabilidade jurídico-penal de Cipriano

Quanto à ofensa à integridade física negligente de Basílio (artigo 148.º):

Cipriano cria um risco proibido e este risco vem a concretizar-se no resultado ofensa à
integridade física de Basílio.
Cipriano toma a decisão de agredir Basílio, representando e desejando causar-lhe a lesão.
Tem, portanto, dolo intencional de ofensa à integridade física (artigo 14.º, n.º 1).
Contudo, Cipriano está em erro quanto aos pressupostos objectivos da legítima defesa, pois
representa, erroneamente, que Basílio está a furtar a caixa de Artur. Deve discutir-se se o meio
utilizado foi o necessário (idóneo e o menos gravoso) para repelir a suposta agressão. Admitindo
que sim, nos termos do artigo 16.º, n.º 2, não podemos afirmar a responsabilidade dolosa de
Cipriano, podendo este ainda vir a ser punido a título de negligência (artigo 16.º, n.º 3).
Podemos dizer que Cipriano violou um dever de cuidado e está previsto o tipo negligente
(artigo 148.º).

Quanto ao sequestro de Diamantino (artigo 158.º):

Cipriano é co-autor do crime de sequestro (artigo 158.º, n.º 1), pois, juntamente com Artur,
tomou parte directa na execução do facto (art. 26.º, 3.ª proposição).
Cipriano actua com dolo directo (artigo 14.º, n.º 1).
Contudo, o facto praticado por Cipriano não é ilícito, pois este actua ao abrigo de uma causa
de justificação – o direito de necessidade (artigo 34.º), cujos pressupostos e requisitos deverão
ser demonstrados.
Deve ainda discutir-se a possibilidade, necessidade e adequação de legítima defesa contra
comportamentos omissivos, nos mesmos termos em que a questão se coloca relativamente a
Artur.

Responsabilidade jurídico-penal de Diamantino

Quanto à tentativa de homicídio de Filipa [artigos 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, b)]:

Ao polvilhar o bolo que Eduarda iria entregar a Filipa com veneno, sem que Eduarda
soubesse, Diamantino é autor mediato, pois executou o facto por intermédio de Eduarda,
instrumentalizando-a por meio de erro sobre a factualidade típica (artigo 26.º, 2.ª proposição). O
autor imediato actua sem dolo do tipo.
Já há actos de execução por parte de Eduarda (artigo 22.º, n.º 2, c)), pois a sua actuação gera
uma ameaça iminente à segurança do bem jurídico em causa, pelo que podemos concluir que já
há início da tentativa para o autor mediato.
Representando e desejando que Eduarda mate efectivamente Filipa, Diamantino tem dolo
intencional de homicídio (artigo 14.º, n.º 1).
Filipa não é, porém, atingida, não se verificando o resultado, pelo que Diamantino será apenas
punido pelo crime de tentativa de homicídio qualificado (artigos 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, b)).

Quanto à ofensa grave negligente à integridade física de Gaspar [artigos 148.º, n.º 3 e 144.º,
d)]:

Ao polvilhar o bolo com veneno, instrumentalizando Eduarda, Diamantino cria um risco


proibido que se concretiza no resultado ofensa grave à integridade física de Gaspar.
Mas como, relativamente a Gaspar, estamos perante um erro na execução, o artigo 16.º, n.º 1,
primeira parte, leva à não afirmação do dolo, ressalvando-se a punibilidade por negligência nos
termos do artigo 16.º, n.º 3. Ao instrumentalizar Eduarda para a prática de um crime de
homicídio, colocando no bolo uma dose letal de veneno, Diamantino violou um dever de
cuidado.
Todavia, considerando, por um lado, que a autoria mediata pressupõe dolo quanto ao domínio
da vontade do executor material e ainda dolo quanto ao facto por este praticado (artigos 26.º, 2.ª
proposição, 22.º, n.º 1, e 13.º), e, por outro lado, admitindo que vale um conceito unitário ou
extensivo de autor nos crimes negligentes, Diamantino só poderá responder pela ofensa grave
negligente de Gaspar como autor imediato (artigo 26.º, 1.ª proposição), e não como autor
mediato de um crime negligente.
Embora se considere esta a solução mais correcta e conforme com o princípio da legalidade e
tipicidade das figuras comparticipativas (sendo, aliás, a posição assumida pela Professora
Regente), aceita-se como solução alternativa a autoria mediata negligente mediante discussão
fundamentada sobre a efectiva configuração legal da autoria mediata por via da exigência de um
duplo dolo do autor mediato e, ainda, sobre a vigência de um conceito unitário ou extensivo, ou
antes restritivo, de autor nos crimes negligentes.

Quanto à recusa de tratamento de Gaspar:

Não se encontrando de serviço, Diamantino não tem posição de garante, enquanto médico,
relativamente à integridade física e à vida de Gaspar.
Apenas responderia nos termos do artigo 284.º, caso tivesse conhecimento do perigo grave
para a vida ou para a integridade física de Gaspar e vontade de recusar o auxílio necessário e
imprescindível à remoção desse perigo. O que parece suceder, pois certamente Diamantino
associou o pedido de Cipriano à criança que acabara de ver ingerir o bolo envenenado destinado
a Filipa.

Todavia, tendo sido Diamantino a criar ilicitamente o perigo em que se encontra Gaspar, há
posição de garante por ingerência (precedente ilícito) e dolo (necessário ou eventual) quanto à
morte deste.
O que permite configurar um homicídio doloso por omissão (artigos 131.º, 10.º e 14.º, n.os 2 ou
3), a admitir-se que a morte resultou do atraso na prestação do auxílio por Diamantino; ou, não
sendo esse o caso, uma omissão dolosa de auxílio nos termos do artigo 200.º, n.º 2, que então
concorreria (concurso efectivo de crimes) com um homicídio negligente por acção de Gaspar,
em virtude da aberratio ictus relativamente a Filipa.

Quer se afirme um homicídio negligente por acção ou um homicídio por omissão doloso
contra Gaspar, deveria discutir-se um eventual problema de comportamento lícito alternativo
(neste último caso, admitindo a sua aplicabilidade aos crimes dolosos), partindo-se do
pressuposto de que Gaspar sofria frequentemente de ataques convulsivos, pelo que não era
improvável que durante aquela viagem viesse a sofrer uma convulsão.
O problema reside em discutir se o resultado da convulsão seria o mesmo caso Diamantino
não tivesse colocado o veneno no bolo. O que implica discutir e averiguar se as convulsões
anteriores eram ou não adequadas a provocar a morte.
Sendo positiva a resposta, o princípio in dubio pro reo imporia a exclusão da imputação
objectiva da morte de Gaspar à conduta de Diamantino. Então, Diamantino responderia (i) em
concurso efectivo por um crime de ofensas graves negligentes (arts. 148.º, n.º 3 e 15.º) e de
omissão de auxílio dolosa agravada (arts. 200.º, n.º 2 e 14.º, n.os 2 ou 3), caso se tivesse
considerado que a omissão subsequente nada acrescentou à perigosidade para a vida da acção
anterior; ou (ii) apenas por uma tentativa de homicídio doloso por omissão (artigos 10.º, 131.º,
14.º, n.os 2 ou 3 e 22.º), com consunção das ofensas graves negligentes por já terem sido
valoradas para fundamentar a posição de garante por ingerência (precedente ilícito) – artigo
29.º, n.º 5 CRP.
Não sendo as convulsões anteriores adequadas a provocar a morte, ainda que não fosse
improvável que durante aquela viagem Gaspar viesse a sofrer uma convulsão, em qualquer caso
ele teria uma convulsão da espécie que tinha normalmente, que nunca seria causa do resultado
morte. Então, Diamantino responderia, consoante a posição fundamentadamente sustentada, (i)
por um crime de homicídio negligente por acção (artigos 137.º e 15.º) em concurso efectivo com
um crime de omissão dolosa e agravada de auxílio (artigos 200.º, n.º 2 e 14.º, n.º 1), deixando de
justificar-se a autonomização de um crime de ofensas graves negligentes; ou (ii) apenas por um
crime de homicídio doloso consumado por omissão (artigos 131.º, 10.º, 14.º, n.os 2 ou 3), pelas
razões apresentadas no parágrafo anterior.

Responsabilidade jurídico-penal de Eduarda

Quanto à tentativa de homicídio de Filipa (artigo 131.º):

Eduarda pratica actos de execução do crime de homicídio (artigo 22.º, n.º 2, c)), pois a sua
actuação gera uma ameaça iminente à segurança do bem jurídico em causa.
Contudo, Filipa não foi atingida, não se verificando o resultado, pelo que Eduarda apenas
poderia ser punida pelo crime de tentativa de homicídio simples (artigo 131.º).
Todavia, Eduarda encontra-se em erro sobre a factualidade típica (artigo 16.º, n.º 1, primeira
parte) ao desconhecer que o bolo que estava a dar a Filipa continha veneno. Esta espécie de erro
leva à não afirmação do dolo, ressalvando-se a punibilidade por negligência, nos termos do
artigo 16.º, n.º 3.
No caso de se concluir pela violação de um dever de cuidado, Eduarda actua com negligência
inconsciente, nem chegando a representar a possibilidade de verificação do resultado típico
morte de Filipa (artigo 15.º, b)). Esta tentativa é, contudo, atípica, por via da não afirmação do
dolo, logo Eduarda não será responsabilizada.

Quanto à ofensa grave à integridade física [art. 144.º, d)] ou ao homicídio de Gaspar (artigo
131.º):

Eduarda criou o risco proibido, ao trazer o bolo envenenado. Todavia, a concretização desse
risco no resultado que atingiu Gaspar – a ofensa grave à integridade física ou a morte, consoante
o que tenha sido defendido anteriormente quanto à responsabilidade de Diamantino não se
deve a uma acção penalmente relevante da sua parte, pois deixou cair o bolo ao chão –
prontamente “devorado” por Gaspar – por se ter desequilibrado, não sendo este um evento por
ela controlável, ainda que abstractamente previsível.

Responsabilidade jurídico-penal de Gaspar

Quanto ao dano (artigo 212.º): destruição das garrafas

Gaspar cria um risco proibido que se vem a concretizar no resultado típico.


Gaspar actua com dolo directo intencional (artigo14.º, n.º 1).
Todavia, Gaspar é inimputável, pelo que não é capaz de culpa (art. 19.º).
Em conclusão, Gaspar não poderá ser responsabilizado jurídico-penalmente.
DIREITO PENAL II
ÉPOCA ESPECIAL DE FINALISTAS
3.º Ano – Dia Turma B
Coordenação e Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Prof.ª Doutora Teresa Quintela de Brito, Mestres João Matos Viana,
António Brito Neves, Catarina Abegão Alves e Dra. Rita do Rosário
8.09.2017/Duração: 120 minutos

António, funcionário do Banco PING, S.A, e que trabalhava na sua Sucursal de Oeiras,
foi injustamente despedido.
Revoltado, contacta Bento e Carlos, seguranças de uma discoteca, e convence-os a
realizarem um assalto à referida Sucursal, dizendo que conhecia os códigos do cofre, o que era
verdade, e que, nesse cofre, encontravam-se vários milhões de euros, o que era mentira, pois a
Sucursal, em cada momento, apenas tinha depositado em cofre cerca €20.000.
Bento e Carlos aceitaram realizar o assalto mas, à cautela, pediram a Daniel que ficasse
no telhado de um prédio da rua da Sucursal, para os avisar se aparecesse a polícia. Para o efeito,
disseram a Daniel que iam apenas entrar no prédio (em cujo rés-do-chão ficava a Sucursal) para
pintar a vermelho um aviso intimidatório, na caixa de correio do inquilino do 7.º andar, um
cliente problemático da discoteca.
Segundo o plano, Bento ameaçava os clientes e funcionários da Sucursal do Banco,
imobilizando-os, e Carlos ia ao cofre retirar o dinheiro.
Depois de entrados na Sucursal, e quando Carlos já estava junto do cofre a inserir o
código, um dos Clientes do Banco começa num choro compulsivo. Bento pede-lhe três vezes
para parar. Como o choro continuava, Bento, que era irascível e estava cheio de adrenalina
naquele momento, dispara sobre o Cliente, ferindo-o gravemente. Isso dá oportunidade a um
funcionário do Banco para carregar no botão de alarme.
Quando entra no cofre, Carlos percebe que lá dentro apenas estavam €20.000 e não os
milhões prometidos por António. Sentindo-se enganado, decide que aquele montante não
justificava os problemas, pelo que decidiu fugir sem lhes tocar.
À saída, Bento e Carlos percebem que a polícia já estava no local. Decidem então, cada um
deles, fazer um refém, apontando-lhes uma arma à cabeça e ameaçando matá-los se não lhes
fosse dado um carro de fuga. Apercebendo-se que Bento e Carlos estavam emocionalmente
descontrolados e podiam disparar a qualquer momento, é dada permissão a dois snipers da polícia,
colocados nos telhados, para disparar.
O primeiro sniper, Ernesto, dispara sobre Bento, que estava à entrada Sucursal, encolhido
atrás do refém e com o braço em redor do seu pescoço. O tiro falha e acerta no refém, matando-
o imediatamente.
O segundo sniper nem chega a disparar porque, estando num telhado contíguo ao telhado
onde se encontrava Daniel, este acertou-lhe com uma pedra na cabeça, provocando-lhe um corte
profundo. Daniel declarou mais tarde à polícia que fez aquilo porque lhe pareceu um exagero que
o polícia fosse disparar sobre Carlos, quando este estava apenas a pintar de vermelho uma caixa
do correio.
Transportado para o Hospital, em perigo agudo e iminente de vida, e com reduzidas
possibilidades de sobrevivência, o Cliente do Banco acaba por morrer. Os médicos nem sequer
tentaram o seu salvamento pois, nesse dia, houve uma falha do serviço de entrega de sangue ao
Hospital, que deixou na sala de cirurgia sacos de sangue A+ a dobrar e nenhum saco de sangue
B+, que era o da vítima.

Analise a responsabilidade penal de António (3 valores), Bento (4 valores) Carlos (4 valores),


Daniel (4 valores), Ernesto (3 valores)
Ponderação global: 2 v. - correcção da escrita, clareza das ideias, organização da resposta e
capacidade de síntese. Nota: Respostas ilegíveis por causa da caligrafia não são avaliadas.
Grelha de correcção

ANTÓNIO

Quanto ao crime de roubo qualificado (artigos 210º/2, alínea b), 204º/1, alíneas a) e e) e 202º,
alínea a))
 O facto de ter dito que o cofre tinha vários milhões de euros, o que era mentira, pois a
Sucursal, em cada momento, apenas tinha depositado em cofre cerca €20.000, poderia
levar-nos a ponderar uma situação de autoria mediata, pelo facto de existir uma
instrumentalização de Bento e Carlos. Levanta-se aqui o problema da relevância do erro
sobre o “sentido concreto da ação”, autonomizado na doutrina alemã, por exemplo,
por Roxin (Strafrecht - Allgemeiner Teil - Band II: Besondere Erscheinungsformen der Straftat, §
25, nº 96 e ss.). Bento e Carlos conhecem todas as circunstâncias necessárias à
afirmação da sua responsabilidade dolosa pelo facto que executam, mas erram sobre
outras circunstâncias igualmente juridicamente relevantes para a caracterização do
conteúdo do ilícito típico (erro provocado por António). Neste caso, estávamos perante
um erro sobre circunstâncias qualificativas do facto “valor consideravelmente elevado”,
pelo que se admitia a afirmação da punição de António como autor mediato (artigo
26º/2.ª proposição).
 Segundo outra doutrina, em sentido contrário, nestes casos não há razão para alargar a
autoria mediata. Tudo se basta com a questão de saber se o erro em que incorre o
instrumento, e foi provocado ou explorado pelo “homem de trás”, exclui ou não o dolo
do tipo. No caso concreto, o erro de Bento e de Carlos não exclui o dolo do tipo de
roubo qualificado. A variação quantitativa entre o valor real e o valor representado não
determina qualquer qualificação típica distinta. Bento e Carlos podiam ainda vir a ser
punidos pelo crime de roubo qualificado, pois, para além da coisa roubada ser de
“valor elevado” (artigo 204º/1, alínea a)), está também preenchida outra circunstância
qualificadora. Em suma, não podemos concluir que houve verdadeiramente uma
instrumentalização relevante de Bento e de Carlos. António disse-lhes que conhecia os
códigos do cofre e isto era verdade. Bento e Carlos são agentes plenamente
responsáveis. António determina Bento e Carlos à prática do facto, pelo que é
instigador (artigo 26º/4.ª proposição). O superior conhecimento do ilícito pode ser
valorado na determinação concreta da medida da pena da instigação.
 António pode ainda ser considerado cúmplice material, pois foi ele que forneceu os
códigos do cofre (artigo 27º/1).
 António deve ser punido como instigador, pois a forma mais grave de comparticipação
criminosa – a instigação – consome a forma menos grave relativamente ao mesmo facto
– a cumplicidade.
 Estão preenchidas as duas dimensões da acessoriedade (qualitativa e quantitativa).
 Tem duplo dolo (dolo direto – artigo 14º/1).
 Está preenchido o elemento subjetivo especial do tipo (“a ilegítima intenção de
apropriação para si ou para outra pessoa”).
 A desistência de Bento e de Carlos não aproveita a António (artigo 29º). Ainda que
tivéssemos concluído pela não punibilidade da tentativa de Bento e de Carlos, uma vez
que Bento e Carlos agiram em co-autoria, a conduta de António tinha de ser idónea ou
adequada à proteção dos bens jurídicos em perigo (artigo 25º), o que não sucedeu no
caso concreto. Será punido como instigador da tentativa de roubo qualificado
(acessoriedade limitada – apenas facto típico e ilícito, não tem de ser punível).
Quanto ao crime de homicídio qualificado (artigo 132º/2, alínea g)) ou ofensa à integridade
física qualificada, agravada pelo resultado (artigos 145º/1, alínea c) e 2, 144º, alínea d),
132º/2, alínea g) e 147º/1) do Cliente
 Neste caso o instigado Bento, na sua atuação, foi além do dolo do instigador. Estamos
perante um excesso de mandato na instigação. O instigador será punido apenas na
medida do seu dolo, pelo que, caso se demonstre que não podemos afirmar a sua
responsabilidade nem a título de dolo eventual, não será punido por estes crimes.

Quanto aos crimes de sequestro (artigo 158º/1) e de coacção dos dois reféns [arts. 154º e
155º/1 a)]
 Neste caso os instigados Bento e Carlos, na sua atuação, foram além do dolo do
instigador. Estamos perante um excesso de mandato na instigação. O instigador será
punido apenas na medida do seu dolo, pelo que, caso se demonstre que não podemos
afirmar a sua responsabilidade nem a título de dolo eventual, não será punido por estes
crimes.

BENTO

Quanto ao crime de roubo qualificado (artigos 210º/2, alínea b), 204º/1, alíneas a) e e) e 202º,
alínea a))
 Co-autor (artigo 26º/3.ª proposição).
 Pratica actos de execução (artigo 22º/2, alíneas a) e c)).
 Tem dolo direto (artigo 14º/1).
 Está preenchido o elemento subjetivo especial do tipo (“a ilegítima intenção de
apropriação para si ou para outra pessoa”)
 A simples desistência voluntária de Carlos não aproveita a Bento (artigo 29º). Ainda
que tivéssemos concluído pela não punibilidade da tentativa de Carlos, uma vez que
Bento e Carlos agiram em co-autoria, a conduta de Bento tinha de ser idónea ou
adequada à proteção dos bens jurídicos em perigo (artigo 25º). Bento também só se
apercebeu à saída que a polícia estava no local, pelo que, a admitir-se que a não
apropriação dos €20.000 foi voluntária (ver adiante), então, Bento também desistiu
voluntariamente ao abandonar a Sucursal juntamente com Carlos.

Quanto ao crime de homicídio qualificado (artigo 132º/2, alínea g)) ou ofensa à integridade
física qualificada, agravada pelo resultado (artigos 145º/1, alínea c) e 2, 144º, alínea d),
132º/2, alínea g) e 147º/1)) do Cliente
 Autor imediato (artigo 26º/1.ª proposição).
 Excesso na co-autoria, responde singularmente.
 Dolo eventual (artigo 14º/3) de homicídio ou negligência consciente (artigo 15º, alínea
a)) quanto à morte do Cliente. Se defendesse esta última posição, Bento seria punido
apenas pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, agravada pelo resultado
(artigos 145º/1, alínea c) e 2, 144º, alínea d) e 132º/2, alínea g)), admitindo que a
morte do Cliente no hospital lhe é objectivamente imputável.
 Quanto ao resultado morte, poderíamos concluir que este é imputado objetivamente a
Bento. Diz a hipótese que a vítima foi transportada para o Hospital, em perigo agudo e
iminente de vida, e com reduzidas possibilidades de sobrevivência, mas os médicos
nem sequer tentaram o seu salvamento pois, nesse dia, houve uma falha do serviço de
entrega de sangue ao Hospital, que deixou na sala de cirurgia sacos de sangue A + a
dobrar e nenhum saco de sangue B+, que era o da vítima. Poderíamos sustentar aqui
não ser possível concluir pela interrupção do nexo de imputação objetiva à ação de
Bento e pela transferência do risco para a esfera de responsabilidade dos médicos, em
virtude de estes terem uma incapacidade fáctica de acção (incapacidade técnica). Bento
criou um risco proibido e foi este que se materializou no resultado morte do cliente do
banco. Alternativamente, na medida em que a matéria de facto o demonstre, poder-se-
ia admitir aquela transferência do risco para a esfera de responsabilidade alheia,
considerando que, dentro dessa esfera de responsabilidade, estão incluídos também os
deveres de cuidado na manutenção das condições adequadas para a prestação dos
serviços médicos.

Quanto aos crimes de sequestro (artigo 158º, nº 1) e de coacção do refém [arts. 154º e 155º/1
a)]

 Autor imediato (artigo 26º/1.ª proposição).


 Tem dolo direto (artigo 14º/1).

Quanto ao crime de ofensa à integridade física negligente do segundo sniper (artigo 148º)
 Considerando, por um lado, que, face à lei, a autoria mediata implica dolo quanto ao
domínio da vontade do executor material e, ainda, dolo quanto ao facto por este
praticado (artigos 26º/3.ª proposição, 22º/1 e 13º) e, por outro, admitindo que vale um
conceito unitário ou extensivo de autor nos crimes negligentes, Bento só poderá
responder pela ofensa grave negligente como autor imediato (artigo 26º/1.ª
proposição), e não como autor mediato de um crime negligente.
Assim, Bento não poderia ser autor mediato, porque, apesar de ter dolo quanto ao
domínio da vontade do executor material, ele não tem dolo quanto à prática do facto
por este praticado. A Daniel cabia apenas avisá-los se aparecesse a polícia.
 Caso se admita a vigência de um conceito unitário de autor nos crimes negligentes,
poderia discutir-se se Bento é autor imediato (artigo 26º, 1ª proposição) de um crime de
ofensas corporais simples negligentes (artigo 148.º, n.º 1), desde que se comprove que
este violou um dever de cuidado.
 Embora se considere esta a solução mais correcta e conforme com o princípio da
legalidade e tipicidade das figuras comparticipativas (sendo, aliás, a posição assumida
pela Professora Regente), aceita-se como solução alternativa a autoria mediata
negligente mediante discussão fundamentada sobre a efectiva configuração legal da
autoria mediata por via da exigência de um duplo dolo do autor mediato e, ainda,
sobre a vigência de um conceito unitário ou extensivo, ou antes restritivo, de autor nos
crimes negligentes.
 A eventual autoria mediata negligente neste caso manifesta-se na indução consciente de
uma falsa representação da realidade noutra pessoa que a leva à prática de um
comportamento, sem que tenha havido representação ou conformação com a
possibilidade de realização de um facto como consequência da prática de um tal
comportamento (cf. Helena Morão, Autoria e Execução Comparticipadas, pp. 220-221).

CARLOS

Quanto ao crime de roubo qualificado (artigos 210º/2, alínea b), 204º/1, alíneas a), e) e f) e
202º, alínea a))
 Co-autor (artigo 26º/3.ª proposição).
 Tem dolo direto (artigo 14º/1) e está preenchido o elemento subjetivo especial do tipo
(“a ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa”).
 Pratica atos de execução (artigo 22º/2, alíneas a) e c)).
 Desistência voluntária (artigo 25º) – poder-se-ia equacionar se houve desistência
voluntária, caso em que se entendia que foi o agente a dominar o se e o como da não
apropriação do dinheiro ou, ao invés, uma tentativa fracassada, que apenas não se
consumou, não por decisão livre do agente, mas por impossibilidade de concretização
do resultado planificado, devido a circunstâncias externas ao próprio agente. Em
qualquer caso, o agente só se apercebeu à saída que a polícia estava no local. O que
parece reforçar a ideia de voluntariedade da desistência.
 Admitir-se-ia igualmente a solução que concluísse pela desistência não voluntária.
 Sendo 20.000€ ainda um valor relevante, é razoável entender que não existia
impossibilidade de obter o resultado planificado, antes houve uma decisão voluntária.
 Mas, como se trata de um limite dúbio, é possível deixar a solução em aberto,
admitindo ambas as soluções, desde que fundamentadas.

Quanto aos crimes de sequestro (artigo 158º/1) e de coacção do refém [arts. 154º e 155º/1 a)]

 Autor imediato (artigo 26º/1.ª proposição).


 Tem dolo direto (artigo 14º/1).

Quanto ao crime de ofensa à integridade física negligente do segundo sniper (artigo


144º/alínea a))
 Considerando, por um lado, que, face à lei, a autoria mediata implica dolo quanto ao
domínio da vontade do executor material e, ainda, dolo quanto ao facto por este
praticado (artigos 26º/3.ª proposição, 22º/1 e 13º) e, por outro, admitindo que vale um
conceito unitário ou extensivo de autor nos crimes negligentes, Carlos só poderá
responder pela ofensa grave negligente como autor imediato (artigos 26º/1.ª
proposição), e não como autor mediato de um crime negligente.
Assim, Carlos não poderia ser autor mediato, porque, apesar de ter dolo quanto ao
domínio da vontade do executor material, ele não tem dolo quanto à prática do facto
por este praticado. A Daniel cabia apenas avisá-los se aparecesse a polícia.
 Caso se admita a vigência de um conceito unitário de autor nos crimes negligentes,
poderia discutir-se se Carlos é autor imediato (artigo 26º, 1ª proposição) de um crime
de ofensas corporais simples negligentes (artigo 148º/1), desde que se comprove que
este violou um dever de cuidado.
 Embora se considere esta a solução mais correcta e conforme com o princípio da
legalidade e tipicidade das figuras comparticipativas (sendo, aliás, a posição assumida
pela Professora Regente), aceita-se como solução alternativa a autoria mediata
negligente mediante discussão fundamentada sobre a efectiva configuração legal da
autoria mediata por via da exigência de um duplo dolo do autor mediato e, ainda,
sobre a vigência de um conceito unitário ou extensivo, ou antes restritivo, de autor nos
crimes negligentes.
 A eventual autoria mediata negligente neste caso manifesta-se na indução consciente de
uma falsa representação da realidade noutra pessoa que a leva à prática de um
comportamento, sem que tenha havido representação ou conformação com a
possibilidade de realização de um facto como consequência da prática de um tal
comportamento.

DANIEL

Quanto ao crime de roubo qualificado (artigos 210º/2, alínea b), 204º/1, alíneas a) e e), e
202º, alínea a))
 Discussão acerca da eventual qualificação como co-autor ou cúmplice do vigilante.
 Caso se considere que Daniel é cúmplice, existe acessoriedade qualitativa e quantitativa
(artigo 27º/1).
 Erro sobre a factualidade típica (artigo 16º/1), na forma de erro sobre a cumplicidade
material no crime de roubo.
 Não pode ser cúmplice, pois age sem dolo.
 Ainda que se defendesse que o contributo prestado por Daniel fosse suficiente para
sustentar a co-autoria e se reconhecesse a figura da co-autoria negligente, Daniel não
podia mesmo assim ser punido como co-autor, pois o crime de roubo não está previsto
na forma negligente (artigos 13º e 16º/3).

Quanto ao crime de ofensa à integridade física negligente do segundo sniper (artigo


148º)
 Autor imediato (artigo 26º/1.ª proposição).
 A agressão do segundo sniper (já havia actos de execução, nos termos do artigo 22º/2,
alínea c), pois se considerarmos que este se preparava para disparar há já uma afectação
das condições de segurança do bem jurídico) não era ilícita, pois estava justificada por
legítima defesa de terceiros.
 A conduta de D é ilícita.
 Erro sobre os elementos do tipo justificador (artigo 16º/2), exclusão da culpabilidade
dolosa.
 Punido pelo crime negligente (artigos 148º, 16º/3 e 13º), caso se considere ter havido
violação de um dever de cuidado na avaliação da realidade objectiva por parte de D.

ERNESTO

Quanto ao crime de homicídio negligente do refém (artigo 137º)


 Autor imediato (artigo 26º/1.ª proposição).
 Aberratio ictus.
 Terá de se verificar se houve violação dos deveres de cuidado.
 Solução do concurso efetivo entre o homicídio negligente do refém (não justificado) e a
tentativa de homicídio de Bento, que só não existe porque este último facto está
justificado por legítima defesa.

Quanto ao crime de tentativa de homicídio de Bento (artigo 131º)


 Autor imediato (artigo 26º/1.ª proposição).
 Há actos de execução (artigo 22º/2, alínea b)) e dolo direto (artigo 14º/1).
 Conduta justificada pela legítima defesa de terceiro (artigo 32º). Há uma agressão,
actual, ilícita, contra interesses de terceiros, o meio é o necessário e há conhecimento
da situação de legítima defesa.
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Prof.ªs Doutoras Teresa Quintela de Brito e Inês Ferreira Leite; Mestres João
Matos Viana e Sónia Moreira Reis
21 de Junho de 2016
Duração: 90 minutos + 15 minutos de tolerância

HIPÓTESE

História de bairro

1 - ADÃO e BELMIRO, em patrulha policial num bairro “problemático”, presenciaram


um «assalto» a um armazém semiabandonado pertencente a DIOGO, de onde
CELESTINO - com ajuda de ERNESTO, que ficara à porta para arrumar os objetos numa
carrinha - retirava velharias para as vender a um sucateiro. CELESTINO, diferentemente
de ERNESTO, sabia que DIOGO dissera, dias antes, no café do bairro, que daria “aquelas
tralhas” a quem lhe esvaziasse o armazém, que tencionava vender.
2 - Saindo do carro-patrulha, ADÃO ordenou a CELESTINO e a ERNESTO que
entrassem no carro da polícia, enquanto lhes apontava a arma, receoso de que eles
estivessem armados. ERNESTO, porém, pôs-se logo em fuga e entrou na carrinha,
estacionada à porta. Arrancando a uma velocidade superior à legalmente permitida,
conduziu o veículo na direção de ADÃO, que teve de se afastar para não ser atropelado.
CELESTINO fugiu a pé, sem cumprir a ordem policial que pensava ser injustificada.
3 - ADÃO voltou ao carro-patrulha e iniciou uma perseguição, ordenando a BELMIRO,
seu subordinado, que disparasse para imobilizar a carrinha rapidamente. BELMIRO,
enervado, procurando cumprir a ordem, disparou sem êxito na direção das rodas. Depois,
por insistência de ADÃO, que lhe ordenou que parasse a viatura de “qualquer maneira”,
efetuou um segundo disparo, atingindo a traseira e ferindo FILIPE filho de ERNESTO,
que aí viajava, sem que ADÃO e BELMIRO o pudessem saber, porque a carrinha era
fechada atrás.
4 - Se não tivesse sido imobilizada, a viatura viria, muito provavelmente, a causar um
acidente, porque um pouco mais à frente, num largo, havia uma festa de crianças de uma
escola. ADÃO e BELMIRO, porém, não tinham qualquer informação sobre aquele evento.
5 – FILIPE, de 14 anos, ficou gravemente ferido e veio a morrer no hospital porque o pai,
ERNESTO, se opôs a que lhe fosse ministrada uma transfusão de sangue de que
necessitava, por ambos serem “Testemunhas de Jeová”.
Determine a responsabilidade jurídico-penal dos intervenientes, considerando as disposições pertinentes do
Decreto-Lei n.º 457/99 de 5 de Novembro (Utilização de armas de fogo e explosivos pelas
forças e serviços de segurança) transcritas em nota de rodapé1 e os seguintes tipos penais: 131.º,
137.º, 143.º, 148.º, 153.º, 203.º, 212.º, 291.º, e 348.º.

Cotações: Grupo 1 – 4 vls.; Grupo 2 – 4 vls.; Grupo 3 – 5 vls.; Grupo 4 – 3 vls.; Grupo 5
– 2 vls.; Correcção da escrita, clareza de raciocínio e capacidade de síntese: 2 vls

1
Artigo 2.º - Princípios da necessidade e da proporcionalidade
1 - O recurso a arma de fogo só é permitido em caso de absoluta necessidade, como medida ex-
trema, quando outros meios menos perigosos se mostrem ineficazes, e desde que proporcionado
às circunstâncias.
2 - Em tal caso, o agente deve esforçar-se por reduzir ao mínimo as lesões e danos e respeitar e
preservar a vida humana.
Artigo 3.º - Recurso a arma de fogo
1 - No respeito dos princípios constantes do artigo anterior e sem prejuízo do disposto no n.º 2 do
presente artigo, é permitido o recurso a arma de fogo:
a) Para repelir agressão actual e ilícita dirigida contra o próprio agente da autoridade ou contra
terceiros;
b) Para efectuar a captura ou impedir a fuga de pessoa suspeita de haver cometido crime punível
com pena de prisão superior a três anos ou que faça uso ou disponha de armas de fogo, armas
brancas ou engenhos ou substâncias explosivas, radioactivas ou próprias para a fabricação de gases
tóxicos ou asfixiantes; (...)
2 - O recurso a arma de fogo contra pessoas só é permitido desde que, cumulativamente, a respec-
tiva finalidade não possa ser alcançada através do recurso a arma de fogo, nos termos do n.º 1 do
presente artigo, e se verifique uma das circunstâncias a seguir taxativamente enumeradas:
a) Para repelir a agressão actual ilícita dirigida contra o agente ou terceiros, se houver perigo imi-
nente de morte ou ofensa grave à integridade física;
b) Para prevenir a prática de crime particularmente grave que ameace vidas humanas;
c) Para proceder à detenção de pessoa que represente essa ameaça e que resista à autoridade ou
impedir a sua fuga.
3 - Sempre que não seja permitido o recurso a arma de fogo, ninguém pode ser objecto de intimi-
dação através de tiro de arma de fogo.
4- O recurso a arma de fogo só é permitido se for manifestamente improvável que, além do visado
ou visados, alguma outra pessoa venha a ser atingida.
Artigo 4.º- Advertência
1 - O recurso a arma de fogo deve ser precedido de advertência claramente perceptível, sempre
que a natureza do serviço e as circunstâncias o permitam.
2 - A advertência pode consistir em tiro para o ar, desde que seja de supor que ninguém venha a
ser atingido, e que a intimação ou advertência prévia possa não ser clara e imediatamente percep-
tível.
3 - Contra um ajuntamento de pessoas a advertência deve ser repetida.
GRELHA de CORREÇÃO

Grupo 1

Crime de furto (art. 203.º CP) e furto qualificado (art. 204º, n.º 1, alínea f), do CP)

 C e E realizam acção típica de furto, com dolo directo;


 C e E actuam em co-autoria, na medida em que, havendo acordo, ambos realizam atos
de execução do tipo legal de crime: com o efeito, o transporte dos bens para a carrinha
é ainda ato de execução, nos termos do artigo 22.º, alínea a), do CP, pois integra-se na
subtracção enquanto constituição de uma detenção a favor dos agentes. Pode-se discu-
tir também a ideia de domínio funcional do facto, verificando se o contributo de am-
bos os agentes assumia uma importância tal que, caso esse mesmo contributo fosse
negado, a realização criminosa, tal como planeada, já não poderia ser realizada (domí-
nio negativo do facto). Segundo esta conceção, admite-se a discussão sobre o estatuto
de co-autor ou cúmplice de E, ainda que a primeira solução seja de preferir pois a na-
tureza e o peso do seu contributo parecem ser idênticos ao do comportamento de C.
 C realiza um ato lícito, nos termos do artigo 38.º, n.º 1, do CP, uma vez que D tinha
dado o consentimento e ele sabia-o.
 Caso se entenda que E é cúmplice: o mesmo vai beneficiar da licitude do comporta-
mento de C, pelo princípio da acessoriedade limitada.
 Caso se entenda que E é co-autor: mesmo que E desconhecesse o consentimento,
admite-se que a ideia de acessoriedade limitada (artigo 29.º do CP), mesmo que origi-
nariamente pensada para as situações de participação, permita que a licitude do com-
portamento de C se estenda ao facto global. Ainda assim, será possível valorar a res-
posta — embora não seja a solução preferível — de quem tenha analisado o compor-
tamento de E sob a perspectiva do artigo 38.º, n.º 4, do CP, relativa ao desconheci-
mento da situação de consentimento (sendo a tentativa de furto punível).

Grupo 2

1. Crime de ameaça (artigo 153.º do CP)

 A realiza acção típica de ameaça, com dolo directo.


 A atua erroneamente em legítima defesa de terceiro, supondo existir uma agressão
ilícita (artigos 16.º, n.º 2, e 31.º do CP). O acto é ilícito, mas exclui-se o dolo da culpa,
não podendo o facto ser punido a título de negligência, por falta de previsão legal (ar-
tigo 13.º CP). Alternativamente, aceita-se a resposta de quem, aplicando o artigo 16.º,
n.º 2, do CP, não aceite a exclusão do dolo da culpa (e a sua contraposição com o dolo
do tipo), defendendo apenas a exclusão da “imputação dolosa”.

2. Crime de condução perigosa (artigo 291.º do CP)

 E realiza acção típica de condução perigosa, com dolo directo.


 E pode invocar que se verificam os pressupostos objectivos da legítima defesa (agres-
são actual e ilícita de A contra a sua liberdade), bem como o subjectivo (conhecimento
daquela agressão). Contudo, o meio utilizado (conduzir o carro contra A) não se revela
o meio necessário, por não constituir o meio adequado menos gravoso para afastar a
agressão. Segundo o artigo 33.º, n.º 1, do CP, o comportamento continua a ser ilícito.
 Não se verificando nenhuma causa de desculpa, E poderia responder por este crime.

3. Crime de desobediência (artigo 348.º do CP)

 C e E não praticam acção típica de desobediência, uma vez que a ordem não era legí-
tima.

Grupo 3 e 4

4. Crime de dano (artigo 212.º do CP), na forma tentada, realizado por A e B

 A é instigador de uma tentativa de crime de dano (tiro falhado contra os pneus da car-
rinha). Com efeito, A determina B à prática do facto, sendo este plenamente responsá-
vel. B é autor imediato de uma tentativa de dano.
 A poderia ser punido como instigador, na medida em que:
(i) B praticou actos de execução do crime de dano, ao disparar contra os pneus
da carrinha, ainda que tendo falhado, tudo nos termos do artigo 2.º, n.º 2, alí-
nea b), do CP — acessoriedade limitada, dimensão quantitativa ou externa;
(ii) O acto de B é ilícito, uma vez que não se verificava uma situação de legítima
defesa, mas apenas de legítima defesa putativa (vide ponto 2.) que não exclui a
ilicitude — acessoriedade limitada, dimensão qualitativa ou interna.
 A propósito do carácter putativo da legítima defesa, acrescenta-se que o pressuposto
objectivo da legítima defesa que falta é o pressuposto da “ilicitude da agressão” (pois
havia consentimento) e não o pressuposto da “actualidade da agressão”, uma vez que,
no furto, a agressão mantém-se actual até ao agente conseguir a posse pacífica da coisa
ou, pelo menos, até ao agente conseguir adquirir um domínio pleno e autónomo sobre
a coisa durante um período de tempo minimamente relevante (o que não acontece nes-
te caso pois C e E foram interceptados logo à porta do armazém de Diogo).
 Contudo, a referida legítima defesa putativa (artigo 16.º, n.º 2, do CP), ao excluir o
dolo da culpa (ou a imputação dolosa), deixa ambos os agentes (A e B) impunes, por
falta de previsão do tipo de dano negligente.
 Poder-se-ia equacionar, neste cenário de legítima defesa putativa, se não haveria exces-
so de meios, pelo facto de B ter usado a arma de fogo numa perseguição policial, caso
em que o erro do artigo 16.º, n.º 2, não teria aplicação (prevalecendo o excesso). Ora,
um tiro para os pneus para deter uma carrinha, quando os respectivos condutores ain-
da estão a executar a (putativa) agressão contra terceiro parece ser, dentro dos meios
adequados a repelir a (putativa) agressão, o menos gravoso (artigo 3.º, n.º 1, alínea a),
do DL 457/99), pelo que não parece existir excesso.
 Caso se entendesse que a alínea a), do artigo 3.º, n.º 1, do DL 457/99 era inaplicável,
poder-se-ia ainda assim tentar afastar o excesso, sustentando que o mesmo teria sido
causado por erro (caso em que voltaria a ser aplicável a exclusão do dolo do artigo
16.º, n.º 2, do CP). Seria assim caso se entendesse que A supusera erradamente que C e
E estavam armados, pelo que supusera erradamente que se verificava a circunstância
que autorizava a utilização de arma de fogo ao abrigo do artigo 3.º, n.º 1, alínea b), do
DL 457/99. A hipótese diz apenas que A “receava” que C e E estivessem armados pe-
lo que dificilmente se poderia admitir a existência deste erro.

5. Crime de homicídio (artigo 131.º do CP), na forma tentada, com eventual con-
curso com crime de OIF negligentes, realizados por A e B

 A é instigador de uma tentativa de crime de homicídio (tiro disparado directamente


contra a carrinha e que acaba por acertar no menor). B é autor imediato de uma tenta-
tiva de homicídio. Para melhor explicação destas figuras comparticipativas vejam-se as
razões apresentadas no ponto 5. supra (1.º e 2.º bullett).
 É possível discutir se A atua com dolo eventual de homicídio ou apenas com negligên-
cia consciente (caso em que ficaria afastada a instigação que é necessariamente dolosa).
O facto de A ter dito a B para parar a carrinha “de qualquer maneira” parece sugerir a
existência de dolo eventual, pois aquele assume a posição intelectual de aceitar qual-
quer risco associado à acção, inclusive o de acertar em alguém.
 B realiza um acto típico de tentativa de homicídio, com dolo eventual, uma vez que, ao
disparar directamente contra a carrinha (e não apenas contra os seus pneus), leva a sé-
rio o risco de poder atingir alguém e ainda assim decide actuar.
 Relativamente a B, existe uma situação de erro na execução que gera uma situação de
concurso efectivo entre uma tentativa de homicídio com dolo eventual em relação a E
(a única pessoa que B sabia estar dentro da carrinha e relativamente à qual, portanto,
representou poder ser atingida) e uma ofensa à integridade física negligente em relação
a F (relativamente ao qual B nunca representou a possibilidade de poder ser atingido).
 Este último crime — ofensa à integridade física negligente — não cabe no dolo de A
(instigador), pelo que não o responsabiliza (razão pela qual A apenas responde pela
tentativa de homicídio).
 Ao disparar contra a própria carrinha, B continua a actuar em legítima defesa putativa,
mas agora claramente em excesso (artigo 3.º, n.º 1, alínea b), 2 e 4, do DL 457/99). O
excesso impede a aplicação do artigo 16.º, n.º 2, do CP pois, mesmo que se verificas-
sem as circunstâncias erroneamente representadas pelo agente, ainda assim, nunca se
excluiria a ilicitude. Nessa medida, permanece a culpa dolosa. Em qualquer caso, po-
der-se-ia equacionar a aplicação analógica (na medida em que, objectivamente, não se
verificam os pressupostos da legítima defesa), da parte final do artigo 33.º, n.º 1, do
CP, permitindo dessa forma, e caso o Tribunal assim entendesse, a atenuação da pena
do agente (analogia favorável ao agente).
 Não se pode aplicar o artigo 37.º do CP (obediência indevida desculpante) para excluir
culpa de B, na medida em que a prática do crime era evidente dadas as circunstâncias.
 O tiro desferido na direcção da carrinha, e que acaba por acertar em Filipe, impede um
acidente junto de uma festa de crianças. Poder-se-ia equacionar uma situação de legí-
tima defesa objectiva (artigo 38.º, n.º 4, do CP) contra E, uma vez que B desconhece a
existência da agressão iminente contra as crianças que se encontravam na festa, agres-
são essa que acaba por ser repelida pelo comportamento de B. Caso se aplicasse o arti-
go 38.º, n.º 4, do CP, ficaria afastado o desvalor do resultado, permanecendo o desva-
lor da acção, o que fundamentaria a aplicação da pena (atenuada) da tentativa. Contu-
do, a aplicação desta figura parece ser de difícil sustentação uma vez que o afastamento
da agressão é feito à custa de alguém (Filipe) que em nada estava a contribuir para essa
mesma agressão (artigo 3.º, n.º 4, do DL 457/99). A figura do estado de necessidade
objectivo (ainda com a aplicação do artigo 38.º, n.º 4, do CP), seria impossível, na me-
dida em que não se encontram verificadas as alíneas b) e c), do artigo 34.º do CP. Pa-
rece portanto que o artigo 38.º, n.º 4, do CP não seria aplicável.
 Ainda assim, e não obstante o acima referido, poder-se-ia valorar a consideração do
estado de necessidade defensivo (causa de justificação supralegal) – de qualquer forma
desconhecida do agente, pelo que sempre teria de haver remissão para o artigo 38.º, n.º
4, do CP –, à semelhança do caso dos tripulantes e passageiros do avião sequestrado
por terroristas que vai ser usado contra pessoas em terra, passageiros e tripulantes que
os terroristas incorporaram na arma (fonte objectiva de perigo) em que se tornou o
avião.

Grupo 5

 Considerando que Filipe foi entregue aos cuidados de uma equipa médica, verificou-se
uma transferência de risco para a esfera de responsabilidade alheia.
 Os médicos não poderiam ter aceite a manifestação de vontade do pai, no sentido de
não ser realizada a transfusão de sangue.
 Nessa medida, nomeadamente pela violação do dever de garante do médico, para cuja
esfera de responsabilidade o risco havia sido transferido, e sem prejuízo da violação
dos deveres de garante do pai, verificou-se uma interrupção do nexo de imputação ob-
jectiva do resultado morte ao comportamento de B.
3.º Ano – Dia – Turmas A e B

Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma / Colaboração: Prof.ªs Doutoras Teresa Quintela
de Brito e Inês Ferreira Leite; Mestres João Matos Viana e Sónia Moreira Reis
20 de Julho de 2016
Duração: 120 minutos
1. Durante uma procissão religiosa em Évora, ÁLVARO desafia o melhor amigo BRUNO a recriar o
macabro ataque de Nice com a moto4 de CARLOS, residente local e amigo de ambos. Depois de
uma hora de conversa, durante a qual Álvaro deixou claro que Bruno “só tinha garganta”, BRUNO
pede emprestada a moto4 a CARLOS, explicando-lhe que era uma brincadeira para assustar a multi-
dão e que a mota ficaria intacta. Por volta das 18h, com a praça cheia, BRUNO avança com a moto4
na direção desta gritando “Allahu Akbar” (Deus é grande).
2. Porque se tratava de uma brincadeira, BRUNO limitou-se a aproximar a moto4 das pessoas, afas-
tando-se no último minuto. Contudo, tendo-se gerado alguma confusão, não conseguiu evitar o em-
bate com uma jovem, DHALIA, que foi subitamente empurrada pela multidão. DHALIA fica no chão,
sem se poder mexer, com a perna partida.
3. Vendo DHALIA prostrada, EVAN, irmão mais velho desta, tenta pedir ajuda, já que os telemóveis
se tinham perdido na confusão. Frustrado perante a indiferença das pessoas, EVAN agarra em HO-
NORATO, que estava a filmar a cena, e arranca-lhe o telemóvel da mão para chamar o 112. Não ob-
tendo sinal, EVAN consegue ligar a moto conduzida por BRUNO, que ficara caída no solo, e trans-
porta DHALIA para o centro de saúde. De tão preocupado que estava com a irmã, EVAN coloca
distraidamente o telemóvel de HONORATO no bolso, como habitualmente guardava o seu, antes de
acelerar na moto4.
4. BRUNO tinha já iniciado a fuga a pé quando é encurralado por FILIPA e GUSTAVO, decididos a
impedir que o agressor escapasse. Em pânico, BRUNO aponta para HONORATO e grita: “Foi ele! Foi
ele!”. HONORATO, pasmado com a perda do telemóvel, quando vê Evan a arrancar com a moto
grita “Ladrão! Ladrão!”. Convencidos de que HONORATO seria o dono da moto e responsável pelo
ataque, GUSTAVO agarra-o com alguma violência, já que este resiste, estupefacto, enquanto FILIPA o
mantém no chão à força. HONORATO fica com um braço partido.
5. DHALIA, que tinha uma pequena fratura de fácil resolução, não é assistida no Centro de Saúde,
pois o médico de serviço, IGOR, recusou-se a prestar assistência, alegando que DHALIA era estran-
geira e não tinha qualquer seguro de saúde e que o SNS não tinha capacidade para assistir estrangei-
ros. Como só foi assistida no dia seguinte, DHALIA ficou com uma lesão permanente na perna.

Determine a responsabilidade jurídico-penal dos intervenientes (ponderando os seguintes


tipos penais: 143.º, 144.º, 148.º, 199.º, 203.º, 208.º e 252.º).
Cotações: Grupo 1 – 4,5 vls.; Grupo 2 – 2 vls.; Grupo 3 – 3,5 vls.; Grupo 4 – 4 vls.; .; Grupo 5 – 4 vls.;
Correcção da escrita, clareza de raciocínio e capacidade de síntese: 2 vls
Tópicos de correção

1.
B executa atos de execução do crime previsto no art. 252.º, a) do CP, pois ameaça os presentes na procissão
religiosa com um potencial atropelamento com a moto4, estando verificada a alínea a) do n.º 1 do art. 22.º,
pelo que poderá ser autor material deste crime. Contudo, não é certo que haja dolo, uma vez que B apenas
pretendia realizar um desafio, uma “brincadeira”. Sendo difícil excluir a representação, por parte de B, da
possibilidade de perturbar ou impedir a continuação da procissão religiosa, deveria analisar-se a conformação
à luz dos critérios doutrinários. Face ao sucedido recentemente em Nice e ao choque que uma moto
descontrolada facilmente provoca numa multidão, era razoável concluir pela existência de dolo eventual de
perturbação de culto religioso.
A poderia ser considerado instigador de B, colocando-se o mesmo problema no que toca ao dolo de
perturbação de culto religioso.
No que toca a C, este seria cúmplice material de B, colocando-se o mesmo problema no que toca ao dolo de
perturbação de culto religioso.

2/5.
B realiza uma ação voluntária, podendo discutir-se se houve uma omissão de travagem ou uma ação de
aceleramento, embora se trate de um caso de fungibilidade tendencial entre ação e omissão. Trata-se de uma
aberratio ictus, já que B procurou evitar a colisão com a multidão, não sendo sua intenção atingir os presentes.
Contudo, dirigir uma moto4 na direção da população gera um risco (de atingir alguém) muito intenso,
devendo analisar-se se poderá ter havido dolo eventual. Ponderados os critérios doutrinários, conclui-se que,
apesar da intensidade abstrata do risco, porque o dolo é sempre concomitante à ação e é dada indicação da
súbita presença de D à frente da moto conduzida por B, deverá excluir-se o dolo eventual. Tendo D surgido
subitamente em frente a B, é razoável admitir que B foi atuando de modo cauteloso, de molde a evitar um
embate, e que foi surpreendido pela reação da multidão, não tendo conseguido conter a moto do modo que
seria adequado a evitar o embate, face ao inesperado daquela concreta situação. Assim, B responde pelas
ofensas negligentes (148.º, n.º1).
B não responde pelas ofensas graves (148.º,n.º 2), pois houve uma interrupção do nexo de imputação
objetiva. Transportada D para o hospital ou equivalente em condições de receber com sucesso tratamento
médico, o risco transfere-se para a esfera do médico. Ora, uma vez que o médico atuou ilicitamente, apesar de
se tratar de uma omissão, considera-se interrompido o nexo gerado pela ação de B.

3.
E realiza ação voluntária dolosa de furto de uso do telemóvel de H, conduta esta que não é típica face ao
disposto nos arts. 203.º e 208.º do CP. Quando E guarda o telemóvel de H no bolso atua sem dolo de furto,
estando em erro sobre o caráter alheio do bem, nos termos do n.º 1 do art. 16.º do CP (pois o dolo é sempre
concomitante à ação, e E tinha-se esquecido de que tinha retirado o telemóvel a H, de tanta preocupação com
a irmã). Excluído o dolo, restaria ponderar a aplicação do art. 16.º, n.º 3, mas não existe tipo de furto
negligente, pelo que o agente não poderia ser responsabilizado por esse crime.
E realiza uma voluntária dolosa de furto de uso de veículo nos termos do art. 208.º, consumada. Contudo,
está atuar justificadamente, nos termos do disposto no art. 34.º do CP. Está excluída a aplicação do art. 32.º,
pois ainda que C fosse cúmplice de B na prática do crime previsto no art. 252.º do CP, a ofensa à integridade
física de D consubstanciaria um excesso de autoria de B, não sendo por isso possível afirmar a existência de
uma agressão ilícita de D. Estão verificados os pressupostos e requisitos do estado de necessidade.

4.
B é autor mediato de um crime de ofensa à integridade física de H, art. 143.º e 26.º do CP. F e G são co-
autores do crime de ofensa à integridade física, mas atuam ao abrigo do art. 16, n.º 2, excluindo-se o dolo da
culpa. F e G pensam estar a atuar em legítima defesa (de si próprios e de terceiros) perante um potencial
terrorista ou agressor (e ao abrigo do disposto no art. 255.º do CPP, relativo à detenção em flagrante delito
por qualquer cidadão). Caso tivessem razão, estariam verificados os pressupostos e requisitos da legítima
defesa, não havendo excesso de meios. Porque se encontram em erro, exclui-se a culpa dolosa, pelo que
apenas poderão responder pelas ofensas negligentes (art. 16.º, n.º 3), admitindo-se que poderiam ter sido mais
diligentes na averiguação da real identidade do agressor.
5.
I realizou uma omissão penalmente relevante, dolosa, nos termos do n.º 2 do art. 10.º do CP, já que tinha
dever de garante por assunção voluntária de deveres de proteção e cuidado. I atua com dolo eventual de
ofensas à integridade física graves, art. 144.º. O resultado é imputável à omissão de I pois o tratamento
imediato do ferimento de D seria a ação adequada e possível que I tinha a capacidade e o dever de executar
para evitar a lesão permanente.
I atua em erro sobre a ilicitude (art. 17.º), mas com consciência da censurabilidade da sua conduta. Seguindo o
critério da retitude da consciência errónea, facilmente se conclui pela censurabilidade do erro; a mesma
conclusão resulta dos critérios de Fernanda Palma, não havendo qualquer conflito emocional existencial que
afaste a censurabilidade.
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma / Colaboração: Prof.ªs Doutoras Teresa Quintela
de Brito e Inês Ferreira Leite; Mestres João Matos Viana e Sónia Moreira Reis
26 de Julho de 2016
Duração: 120 minutos

Em Rescaldos-de-cima, vila do centro do país, o Verão causa grande preocupação, devido aos
incêndios, encontrando-se a população em estado de alerta. Em Julho, António decidiu atear fogo
aos sobreiros do seu terreno, de forma a conseguir aprovar um projeto de barragem agrícola.
1. Nesse sentido, ANTÓNIO convenceu BENTO de que existia um animal perigoso no seu
sobral, pelo que seria necessário incendiar o local, de forma a evitar que o animal atacasse a vila.
BENTO sofria de uma perturbação mental grave, imaginando constantemente estar a ser perseguido
por inimigos e pelos mais variados tipos de seres hostis, pelo que aceitou realizar a tarefa. Para o
efeito, foi a casa do seu vizinho CARLOS pedir que este lhe emprestasse acendalhas e fósforos,
dizendo: “dá-me todos os que tiveres. Preciso de muitos”. Carlos achou aquele pedido muito
estranho, considerando a altura do ano em causa, mas como tinha receio de Bento, por causa da sua
perturbação mental, deu-lhe os fósforos e as acendalhas solicitadas, sem mais perguntas.
2. Contudo, BENTO enganou-se no sobral que era suposto incendiar, pelo que, em vez de se
dirigir ao sobral de António, dirigiu-se ao sobral de Ernesto. Já depois de espalhar as acendalhas, mas
ainda antes de tirar os fósforos do bolso, BENTO foi surpreendido por ERNESTO que, percebendo
o que se estava a passar, deu-lhe um empurrão, imobilizando-o de seguida no chão. BENTO
começou a gritar “socorro! socorro!”, chamando a atenção de FRANCISCO que, vendo uma pessoa com
manifesta perturbação mental a ser violentada daquela maneira, decidiu intervir dando um empurrão
em Ernesto, fazendo com que este caísse e partisse o cotovelo.
3. Vendo-se desta forma livre, BENTO tirou rapidamente os fósforos do bolso e, na ânsia de
salvar a aldeia do tal animal feroz, tentou pegar fogo às acendalhas. Contudo, nem sequer conseguiu
acender os fósforos, uma vez que os mesmos estavam completamente inutilizados pela humidade,
considerando que o filho de Carlos havia deixado os mesmos cair recentemente na piscina.
4. Irritado com o facto de Bento ter criado toda esta confusão com o seu engano, ANTÓNIO
deslocou-se ao seu próprio sobral e ateou-lhe fogo, esperando depois vir a responsabilizar Bento
também por este incêndio. Todos os sobreiros ficaram destruídos. O técnico do Instituto da
Conservação da Natureza visitou o local de seguida, tendo inscrito no seu relatório que tinha sido
uma felicidade aqueles sobreiros terem ardido, pois estavam contaminados com uma doença muito
grave que, com a época quente, se iria propagar a todos os sobreiros da região.
5. Por causa da curiosidade associada à existência do incêndio no sobral de António, alguns
condutores que circulavam na estrada que ficava a algumas centenas de metros de distância, ao
abrandarem a velocidade para verem as chamas ao longe, envolveram-se num acidente, causando um
ferido grave. Tendo sido chamadas ao local do acidente rodoviário, as ambulâncias dos bombeiros
que se encontravam a dar apoio ao combate ao incêndio não prestaram assistência ao tal ferido, que
acabou por morrer. Com efeito, GUILHERME, chefe dos bombeiros, entendeu que a estrada em
causa ficava na freguesia limítrofe de Rescaldos-de-baixo, pelo que se tratava de uma responsabilidade
dos bombeiros locais.

Determine a responsabilidade jurídico-penal dos intervenientes (ponderando os seguintes


tipos penais: 131.º, 137.º, 143.º, 144.º, 147.º, 274.º e 285.º ).
Cotações: Grupo 1 – 4 vls.; Grupo 2 – 5 vls.; Grupo 3 – 3 vls.; Grupo 4 – 3 vls.; .; Grupo 5 – 3 vls.;
Correcção da escrita, clareza de raciocínio e capacidade de síntese: 2 vls
Tópicos de correção

1. António pretende praticar o crime previsto no artigo 274.º do CP, o qual inclui a provocação
de incêndio em terreno próprio. Para o efeito, convence Bento, inimputável em razão de
anomalia psíquica (artigo 20.º do CP) a executar o facto. Verifica-se assim uma situação de
autoria mediata, uma vez que A domina a vontade de um executor não culposo.
Quanto a Carlos, poderia ser equacionada a sua cumplicidade material, na medida em que
fornece os instrumentos do crime. Contudo, o cúmplice tem de participar com dolo num
facto doloso.
Neste caso, o facto é doloso, uma vez que Bento sabe que está a incendiar uma floresta (a
inimputabilidade de Bento é um problema de culpa, e não de dolo, pois embora ele saiba que
está a incendiar uma floresta, ele não consegue compreender o desvalor do seu
comportamento e orientar-se segunda a respetiva avaliação).
Mais problemática é a conclusão de que Carlos agiu com dolo: o facto de ele ter considerado
o pedido de Bento estranho não é suficiente para preencher o dolo eventual. Com efeito,
ainda que a suspeita de Carlos possa preencher o pressuposto da “representação da
possibilidade de praticar o facto típico” nada nos diz sobre o pressuposto da
“conformação”, o qual parece não encontrar na hipótese elementos de suporte suficientes.

2. Em princípio, na autoria mediata, quando o executor atinge um objeto diferente daquele que
é visado pelo autor mediato, verifica-se, do ponto de vista do autor mediato, uma aberratio
ictus, com a solução correspondente, conforme a tese defendida (teoria da identidade: um
único crime doloso; teoria da concretização: concurso de crimes).
Considerando as particularidades deste caso, na medida em que Bento acaba apenas por
realizar uma tentativa (impossível) de incêndio florestal, António, na qualidade de autor
mediato (pois há depois um facto praticado por António na qualidade de autor imediato, que
será separadamente analisado no ponto 4.) será punido também, e apenas, por tentativa de
incêndio florestal (artigo 274.º conjugado com artigo 23.º, n.º 1).
Ao espalhar as acendalhas, preparando-se para acender os fósforos, Bento já tinha iniciado
atos de execução (artigo 22.º, n.º 2, alínea c), do CP.
Ao imobilizar Bento, Ernesto atua em legítima defesa (artigo 32.º). É certo que o agressor
era um inimputável. Contudo, tal circunstância não exclui a legítima defesa. Por um lado, o
pressuposto é a ilicitude da agressão, a qual neste caso estava verificada, ainda que não fosse
culposa. Por outro lado, e ainda que alguma doutrina sustente a existência de limites ético-
sociais (ou eventual abuso de direito) a propósito da defesa face a inimputáveis, tais limites
não foram ultrapassados neste caso.
Francisco pratica uma ofensa simples à integridade física (art. 143º), mas atua num estado de
erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação (artigo 16.º, n.º 2) pois pensa que
está a defender Bento de uma agressão ilícita. Tal disposição legal exclui o dolo da culpa (ou
exclui a imputação dolosa, para quem não aceitar a figura do dolo da culpa), ressalvando a
negligência, a qual, neste caso, estava legalmente prevista (arts. 148º/1 e 15º).

3. Verifica-se uma situação de tentativa impossível do crime de incêndio florestal [arts. 274º/1 e
22º/1 e 2 al. b)], determinada pela inaptidão do meio utilizado (artigo 23.º, n.º 3, do CP). Tal
inaptidão não é manifesta para o observador externo pelo que cria uma impressão de perigo
para o bem jurídico que coloca em crise a confiança da comunidade na validade das normas.
Para além daquela impressão de perigo, as condições de segurança do bem jurídico foram
efetivamente colocadas em causa (periclitadas), tratando-se de uma tentativa relativamente
impossível: noutras circunstâncias conjunturais (mundo paralelo), tal tentativa poderia ter
sucesso. Nessa medida, a tentativa será punível.

4. Neste caso, António pratica um novo facto típico, agora como autor imediato (trata-se de um
ataque externo ao bem jurídico completamente distinto do anterior).
O facto típico de incêndio florestal é praticado com dolo direto. Não funciona qualquer
causa de exclusão da ilicitude, uma vez que o agente não conhece a existência do perigo que
afeta toda a mancha florestal da região. Também não funciona qualquer causa de desculpa.
Ainda assim, objetivamente, António consegue afastar um perigo atual através da realização
do facto adequado a remover o mesmo. Sendo assim, é possível a aplicação analógica (por
mais favorável) do artigo 38.º, n.º 4, do CP, punindo-se o agente com a pena da tentativa,
uma vez que, embora a ação tenha sido desvaliosa, o resultado não o foi. No caso, a
aplicação do art. 38º/4 a um facto tentado traduz-se numa segunda atenuação especial da
pena do crime consumado (art. 23º/2).

5. O resultado ofensas à integridade física do condutor, e por maioria de razão a sua morte, não
podem ser objetivamente imputados à conduta de António. Com efeito, as lesões físicas, que
resultam da curiosidade de automobilistas face à existência de um incêndio, não cabem na
esfera de proteção da norma que impede que se lance fogo em zonas florestais.
Os bombeiros tinham um dever de garante de tutela dos bens jurídicos vida e integridade
física dos automobilistas sinistrados, tendo violado o mesmo.
Para além disso, a ação devida poderia reduzir eficazmente o risco de morte do automobilista
acidentado, pelo que existiria imputação desse resultado à atuação de Guilherme.
Quanto à imputação subjetiva, nada na hipótese nos indica que Guilherme tivesse sido
informado da possibilidade de existirem feridos graves no acidente, pelo que, em princípio,
tratava-se de uma atuação negligente.
Guilherme poderia assim responder por homicídio por omissão negligente.
Admitia-se que o aluno equacionasse a possibilidade de Guilherme estar em conflito de
deveres (dever de prestar assistência ao combate ao incêndio e dever de prestar assistência ao
acidente rodoviário); o que poderia excluir a ilicitude.
O facto de Guilherme entender que não tinha obrigação de assistência, devido à repartição
territorial, traduz um erro sobre a ilicitude do artigo 17.º, n.º 2, por censurável, na medida
em que não revela qualquer tipo de retidão de consciência (Prof. Figueiredo Dias), nem
qualquer conflito emocional existencial desculpante (Prof. Fernanda Palma).
Direito Penal I. Dia. Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Prof.ªs Doutoras Teresa Quintela de Brito e Inês
Ferreira Leite; Mestres João Matos Viana e Sónia Reis

Duração: 120 minutos

I
Considere os art. 387º e 388ºCP e responda às seguintes questões:
1. Estas incriminações respeitam as exigências constitucionais inerentes ao conceito material de
crime? (3 vls.)

2. Concorda com a limitação da protecção penal aos animais de companhia, tal como definidos
no art. 389º/1 e 2 CP? Os animais de companhia “errantes” (i.e. perdidos, fugidos ou
abandonados) e os “vadios” (que nunca tiveram detentor) beneficiam da tutela penal assegurada
pelos artigos 387º e 388º? (2,5 vls.)

3. Como classifica os crimes actualmente previstos nos arts. 387º e 388º quanto: (i) ao agente;
(ii) à relação entre a conduta típica e o objecto da acção, e (iii) à relação entre a conduta típica e
o bem jurídico protegido? (2,5 vls.)

4. Como deve ser punido Bento, tratador do cão “Ás”, propriedade de Carlos, que mantém o
animal permanentemente fechado numa exígua varanda ao ar livre, de verão ou de inverno,
não lhe presta quaisquer cuidados de saúde ou higiénicos, nem lhe providencia, com a
regularidade necessária, água e comida?
E se, em consequência desta conduta de Bento, o “Ás” vier a morrer? Nas suas respostas tenha
também em conta o disposto nos arts. 212º CP e 388º-A.
Poderia aplicar-se Bento alguma das sanções acessórias previstas neste último preceito? Quais,
com que fundamento(s) e objectivo(s)? (4 vls.)

5. Como apreciaria a decisão judicial de punir, com base no art. 387º/2 CP, Luíso, proprietário
do gato “Esquivo”, que causou a morte imediata do animal disparando sobre ele assim que
descobriu que este lhe tinha comido o peixe que pusera a descongelar para o jantar, com o
seguinte fundamento: “A conduta em causa insere-se no art. 387º/2 CP, porque a proibição de maus-
tratos é uma proibição de causar a morte, independentemente do sofrimento que lhe esteja associado,
porque “matar” é evidentemente a violência suprema”. (3 vls.)

II
Hipótese (3 vls.)
Adalberto, português, é proprietário da cobra “Eustáquia” que leva para todo o lado. Certo dia,
quando se encontrava de férias em Itália, “Eustáquia” atacou-o e mordeu-o quando a
alimentava no seu quarto de hotel.
Surpreendido e muito zangado com o seu animal de estimação, Adalberto resolveu deixar
“Eustáquia” no quarto do hotel quando regressou a Portugal, na esperança de que logo a
encontrassem e a recolhessem num jardim zoológico.
Todavia, “Eustáquia” escondeu-se e só veio a ser descoberta, já em muito mau estado, um mês
depois, por uns operários chamados a realizar obras no quarto do hotel.
A Itália pede a Portugal a entrega de Adalberto para o julgar pelo crime de abandono de
animais de companhia, previsto e punido pelo Código Penal italiano em termos idênticos aos
do Código Penal português. Como deve ser decidido o pedido?

Clareza das ideias, correcção da linguagem, capacidade de síntese: 2 vls.

1
TÓPICOS DE CORRECÇÃO

I
1. No que respeita à dignidade punitiva da conduta, os maus-tratos e o abandono de animais de
companhia são comportamentos dotados de prévio e inequívoco relevo ético negativo, pois
violam regras humanas e culturais básicas.
Quem maltrata, abandona e mata animais de companhia no mínimo degrada/nega a sua
própria humanidade e viola a especial responsabilidade que, enquanto homem, tem para com
estes animais.

Também é possível descortinar um claro e preciso bem jurídico como objecto da tutela penal: o
bem-estar, a integridade física e a vida dos animais de companhia, ao menos como valores
constitucionais objectivos, porventura mesmo “direitos” dos animais.

Embora a questão seja discutível, pode admitir-se que se trata de um bem jurídico sem referente
constitucional explícito, mas que se encontra implícito, designadamente nos arts. 9º/d) e e)
(promoção do bem-estar e da qualidade de vida; efectivação dos direitos e deveres económicos,
sociais e culturais das pessoas; defesa da natureza e do ambiente) e 66º/1 (direito de todos a um
ambiente de vida humano e sadio e o dever de o defender) e n.º 2/c) (criar e desenvolver reservas e
parques naturais, de modo a garantir a conservação da natureza) e g) (promover a educação
ambiental e o respeito pelos valores do ambiente), todos da CRP (art. 18º/2, 1.ª parte, CRP).
Diferentemente, há quem defenda que os “direitos” dos animais carecem de referente
constitucional (expresso ou implícito), mas que isso não seria obstáculo à sua tutela penal, à luz
de uma interpretação actualista da Constituição.

Quem entenda que a tutela penal dos animais assegura, em última análise, interesses humanos,
dirá que se está perante um bem jurídico colectivo, de que todas as pessoas gozam enquanto
cidadãs, de modo indivisível (ou seja, é insusceptível de fruição individual) e do qual ninguém
pode ser privado, nem sequer pelos proprietários/detentores dos animais de companhia.
A tutela desse bem jurídico é assegurada pela imposição de deveres fundamentais a todos os
cidadãos sem excepção, incluindo aos proprietários/detentores dos animais de companhia.

Tendo em conta que os maus-tratos, o abandono e a provocação da morte de animais de


companhia, ao menos atentam gravemente contra a dignidade humana e a responsabilidade do
homem para com os animais que maior ligação têm com ele, está assegurado, por esta via, não
só o referente pessoal do bem jurídico em causa (art. 1º CRP) como a proporcionalidade lato
sensu entre a tutela penal desse bem jurídico e a liberdade restringida pela aplicação de sanções
criminais (art. 18º/2, 2.ª parte CRP e n.º 3).

As dúvidas de constitucionalidade que estas incriminações suscitam prendem-se com os


princípios da necessidade (maxime adequação e eficácia) e subsidiariedade da intervenção penal
(art. 18º/2, 2.ª parte, CRP).
Por um lado, as penas acessórias para os crimes em causa só foram introduzidas no CP pela Lei
n.º 110/2015, de 26 de Agosto, e delas depende a efectiva protecção dos bens jurídicos em
causa, através da prevenção da reincidência do agente. Mas subsiste a falta de previsão de
medidas cautelares de protecção imediata dos animais, na pendência do processo-crime.
Por outro, a tutela penal neste âmbito prossegue sobretudo objectivos de formação de
consciências, de promoção de valores e interesses, e não apenas de estrita protecção destes
valores e interesses contra comportamentos que contra eles atentam. Mas nem por isso a tutela
penal pode deixar de ser rigorosamente subsidiária do DMOS, limitando-se à punição das
condutas insuportavelmente lesivas ou perigosas para o bem-estar, a integridade física e a vida
dos animais de companhia.

2. Se o que está em causa é, por hipótese, o bem-estar, a integridade física e a vida dos animais
sencientes (i.e., dotados de sistema nervoso central e por isso capazes de sentir dor e prazer de
modo perceptível ao Homem), então, a tutela penal não deveria limitar-se aos animais de

2
companhia, mas, porventura, estender-se a todos os animais sencientes, ou, entre estes, ao
menos aos animais vertebrados, como faz a lei alemã de protecção dos animais.

Incompreensível é, igualmente, o disposto no art. 389º/2 CP, que exclui da tutela penal todos
os animais e todos factos (mesmo de maus-tratos, morte ou abandono) relativos a animais afectos
aos fins aí referidos, ainda que esses animais sejam da mesma espécie dos animais ditos de
companhia.
A tutela penal deveria estender-se aos animais afectos aos fins referidos no art. 389º/2, pois
também eles servem o Homem e estão sob a sua responsabilidade e domínio directos.

Os animais de companhia “errantes” e “vadios” estão contemplados na definição do art.


389º/1, que se refere a todo o animal que:
(i) Independentemente da sua espécie, seja efectivamente detido pelo homem como
seu animal de companhia, designadamente no seu lar e para seu entretenimento.
(ii) Pela sua espécie, esteja destinado a ser detido por seres humanos como animal de
companhia, ainda que não se encontre efectivamente detido por ninguém.

Além disso, não faria sentido que se proibisse o abandono de animais de companhia (art. 388º)
e depois se negasse tutela penal aos animais abandonados.
Evidentemente só os animais detidos como animais de companhia podem ser abandonados.
Contudo, os outros animais de companhia “errantes” (i.e., perdidos ou fugidos) ou “vadios”
(que nunca tiveram detentor) podem ser vítimas de maus-tratos (art. 387º) e, como tal,
beneficiam de tutela penal.

3. O art. 387º/1 CP prevê um crime:


(i) Quanto ao agente: comum, pois pode ser praticado por qualquer pessoa que realize
a conta descrita na norma.
(ii) Quanto à relação entre a conduta típica e o objecto da acção: de mera actividade,
pois consuma-se com a conduta de infligir dor/sofrimento ao animal de
companhia, sem exigir um evento material (de lesão ou de perigo) para o bem
jurídico protegido, espácio-temporalmente destacado da acção. O art. 387º/2
(crime de maus-tratos agravado pelo resultado) já descreve um crime material.
(iii) Quanto à relação entre a conduta típica e o bem jurídico protegido: de dano, já
que implica a lesão efectiva do bem-estar ou da integridade física do animal de
companhia.
O art. 388º prevê um crime:
(i) Quanto ao agente: específico próprio, pois só pode ser realizado por quem seja
titular dos deveres descritos na norma e não há um “crime paralelo” para o cidadão
comum.
(ii) Quanto à relação entre a conduta típica e o objecto da acção: de resultado de
perigo, pois o abandono consuma-se somente com a efectiva colocação em perigo
da alimentação e da prestação de cuidados devidos ao animal de companhia.
(iii) Quanto à relação entre a conduta típica e o bem jurídico protegido: de perigo
concreto, porque não se exige a efectiva provocação de dor, sofrimento (lesão do
bem-estar) ou a lesão da integridade física do animal de companhia em
consequência do abandono.

4. Poderá discutir-se se há um abandono do cão “Ás”, pois Bento não se afasta definitivamente
dele para um lugar longínquo e também não o larga na rua à deriva.
Do art. 388º parece resultar (embora isso não seja inteiramente claro) que também comete o
crime de abandono o titular dos deveres típicos que não cuida do animal ao ponto de colocar
em perigo a sua alimentação ou a prestação dos cuidados que lhe são devidos, mesmo que
conserve o acesso ao animal e lhe vá prestando alguma assistência, ainda que insuficiente.

Se se admitir a tipicidade deste último comportamento, então, no caso concreto, Bento realiza,
simultaneamente, o crime de abandono e o de maus-tratos (art. 387º), pois dolosamente inflige

3
dor e sofrimento ao animal, ao mantê-lo permanentemente numa varanda exígua ao relento, de
verão e de inverno; ao não lhe prestar quaisquer cuidados de saúde e higiene; e ao não lhe dar
comida e água com a regularidade devida.

Evidentemente, Bento não poderá ser punido pelos dois crimes (art. 29º/5 CRP). Estamos
perante uma situação de unidade de lei ou norma (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS), em que
o crime de abandono (crime de perigo concreto) é subsidiário do crime de maus-tratos (crime
de dano dos mesmos bens jurídicos).

Na medida em que o cão “Ás”, propriedade de Carlos, morre em consequência dos maus-tratos,
Bento realiza tanto o crime de maus-tratos agravado pelo resultado do art. 387º/2 (art. 18º)
como o crime o crime de dano (art. 212º).
Mesmo que Bento não tenha dolo quanto à morte do cão, não deixou de actuar com dolo
quanto ao crime de dano da propriedade de Carlos. Ao maltratar o animal deste, dolosamente
“danificou ou tornou não utilizável coisa alheia”, praticando assim o crime de dano, além do crime
de maus-tratos de animal de companhia.

Uma vez que se trata de crimes diferentes, que tutelam diferentes bens jurídicos e que se não
pode punir o agente por ambos os crimes sob pena de dupla punição do mesmo facto, deverá
invocar-se a consunção (concurso aparente, impróprio ou impuro de crimes, segundo JORGE
DE FIGUEIREDO DIAS) do crime de maus-tratos pelo crime de dano.
A aplicação desta norma incriminadora esgota todo o conteúdo de ilícito social do
comportamento global de Bento, já que os maus-tratos do animal de companhia foram o meio
ou a forma de provocação do dano na propriedade de Carlos. O crime de maus-tratos servirá
para agravar a pena concreta do crime de dano.

A consunção do crime de maus-tratos pelo crime de dano torna problemática a aplicação das
penas acessórias previstas para os crimes contra animais de companhia, tendo em conta o
princípio da conexão legal entre facto típico e pena correspondente [arts. 29º/1 e 3, e 165º/1 c)
CRP].

Porém, há quem sustente que essa aplicação é possível, porque o facto típico continuaria a ser o
de maus-tratos de animal de companhia agravado pelo resultado morte (art. 387º/2), somente
se aplicando a mais grave norma de sanção do crime de dano no que concerne às penas
principais (prisão ou multa).
Por isso, nada impediria a aplicação da norma de sanção do crime de maus-tratos de animal de
companhia, na parte respeitante às penas acessórias.

Quem assim entenda, aceitará a aplicação a Bento das penas acessórias previstas no art. 388º-A,
considerando a especial gravidade do facto e da culpa do agente (corpo do n.º 1) e a particular
necessidade de prevenir a sua reincidência, atenta a profissão de tratador de animais de
companhia.

Seria então possível aplicar-lhe as penas acessórias previstas nas als. a) e/ou c) ou d), consoante a
situação de Bento.
As penas acessórias, que nunca podem ser efeito automático de aplicação de uma pena
principal (arts. 30º/4 CRP e 65º CP), pretendem combater o risco de reincidência,
prosseguindo em primeira linha finalidades de prevenção especial negativa, mas assegurando
reflexamente a tutela efectiva do bem jurídico (prevenção geral positiva para o futuro).

5. Esta decisão judicial parece corresponder a uma aplicação analógica proibida (arts. 29º/1 e 3
CRP, e 1º/3 CP) do art. 387º/2 à morte de um animal de companhia que não resultou da
prévia inflição de dor, sofrimento ou maus-tratos físicos ao animal de companhia, como exige o
tipo incriminador.

4
Luíso não provocou maus-tratos ao gato: matou-o “simplesmente”. Ninguém se lembraria de
dizer que quem mata uma pessoa também realiza o crime de maus-tratos dos arts. 152º ou 152º-
A.

Além disso, a proibição de maus-tratos não é uma proibição de matar. É uma proibição de
provocação de mal-estar (sob a forma de sofrimento e dor) e de lesar a integridade física do
animal. A morte é resultado não compreendido no tipo do art. 387º/1. Por isso, é que o n.º 2
prevê um outro tipo de crime de maus-tratos agravado pelo resultado morte.

É evidente a lacuna de punibilidade e a necessidade de tutelar a vida do animal de companhia


perante e contra o seu próprio dono. Mas a necessidade não se confunde nem substitui a
legalidade/tipicidade do comportamento.

II
Adalberto comete o crime de abandono da sua cobra de estimação em Itália: foi aí que se
verificou tanto a acção de abandonar como o resultado de perigo concreto exigido pelo art.
388º (art. 7º/1 CP).
Verdade que o abandono pode configurar-se como um crime de consumação permanente. O
agente continua a abandonar o animal de companhia de que devia tratar, colocando em perigo
a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, enquanto persistir na omissão
de cuidados. Porém, só pode falar-se de uma omissão de cuidados devidos, enquanto o garante
tiver acesso ao animal de companhia, podendo assim cumprir o dever que sobre ele recai.
O que, no caso em análise, deixa de suceder quando Adalberto inicia o regresso a Portugal.
Logo não há dúvida de que o crime foi totalmente praticado em Itália.

Itália pede a Portugal entrega de Adalberto para o julgar pelo crime de abandono de animais.
Como se trata de dois Estados-Membros da UE, este pedido deve ser apreciado ao abrigo do
art. 33º/5 CRP e da Lei n.º 65/2003 (MDE).
Apesar de se verificar o requisito da dupla incriminação (art. 2º/3 Lei n.º 65/2003), a Itália não
poderia emitir o MDE porque, para o crime em causa (punido nos mesmos termos em Portugal
e Itália), esse país comina uma pena de prisão inferior a 12 meses (art. 2º/1).
Mesmo que fosse admissível a emissão do MDE pela Itália, Portugal poderia sempre
condicionar a entrega de Adalberto nos termos do art. 13º/1 b), já que Adalberto é cidadão
português.

Coloca-se a questão de saber se, recusando a entrega, Portugal poderá julgar Adalberto ao
abrigo do critério da nacionalidade activa [art. 5º/1 e) CP].
Admite-se duas respostas diferentes.
Uma (que parece ser a mais correcta ante o princípio da estrita necessidade da pena, das
finalidades de prevenção geral positiva que se fazem sentir sobretudo no país da prática do
facto, e da subsidiariedade da jurisdição penal portuguesa quanto a factos praticados no
estrangeiro) no sentido de negar a competência extraterritorial dos tribunais portugueses neste
caso, porque, não sendo possível a emissão de MDE pela diminuta gravidade do crime, tudo se
passa como se este crime não admitisse sequer “extradição”, para usar a linguagem da condição
iii) do art. 5º/1 e) CP.
De facto, a fixação de um limite mínimo de pena privativa da liberdade visa impedir a
cooperação judiciária internacional em matéria penal nos casos de infracções de diminuta
gravidade.

Outra solução, no sentido de afirmar essa competência, ao abrigo do art. 5.º/1 e) CP,
entendendo-se que a referência a crime que admita extradição tem em vista apenas as hipóteses
de recusa de extradição em razão da natureza da infracção (art. 7º Lei n. 144/99, que é Direito
subsidiário relativamente à cooperação entre Estados-Membros da UE, por força do seu art.
3º/1), ou seja, os crimes políticos ou os crimes exclusivamente militares.
Não sendo esse o caso do crime de abandono de animais de companhia, Portugal poderia então
julgar Adalberto nos termos do art. 5º/1 e), cujas 3 condições cumulativas se verificam.

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