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Hipótese
ALVIM, que morava num bairro perigoso, havia já sido assaltado várias vezes.
Adquirira, por isso, um spray altamente tóxico com que pretendia defender-se caso
algum ladrão voltasse a importuná-lo. Certa noite, quando ALVIM caminhava de
regresso a casa, saltou-lhe ao caminho um vulto saído de uma esquina mal iluminada.
Tratava-se de BERNARDIM, um sem-abrigo, que pretendia apenas pedir a ALVIM que
lhe desse algum dinheiro. Julgando que ia ser novamente assaltado, ALVIM tirou do
bolso o spray e pulverizou-o directamente para os olhos de BERNARDIM, que perdeu
a visão e ficou desorientado, aturdido pelas dores intensas. ALVIM, então, desferiu-lhe
vários socos e pontapés, terminando por empurrar BERNARDIM contra um carro
estacionado. Em consequência do embate, o alarme do carro disparou, assustando
CRISPIM, ladrão de automóveis que, dois quarteirões mais abaixo, estava prestes a
arrombar um carro alheio: temendo que a polícia pudesse aparecer, CRISPIM
escondeu a gazua no casaco e desistiu do seu propósito. Entretanto, ALVIM afastou-se
rapidamente a caminho de casa.
BERNARDIM, que ficara definitivamente cego, ergueu-se com dificuldade e
cambaleou durante uns instantes sem saber por onde ia. Encontrava-se no meio da
estrada quando as forças lhe faltaram e perdeu os sentidos. Segundos depois, foi
atropelado por um carro, conduzido por DELFIM. Este tinha visto BERNARDIM caído
na estrada, mas, por vir em excesso de velocidade, não conseguira travar a tempo de
evitar o acidente. Dada a intensidade da colisão, DELFIM achou que o mais provável
seria que BERNARDIM tivesse morrido; apreensivo, acelerou e abandonou o local.
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O presente documento contém uma mera proposta de resolução da hipótese, e não dispensa a frequência às
aulas teóricas e a consulta dos manuais de referência.
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BERNARDIM, contudo, estava ainda vivo, apesar de gravemente ferido. Viria a morrer
ao fim de uma hora. Apurou-se que a morte fora consequência do atropelamento, mas
que BERNARDIM teria sobrevivido se tivesse sido prontamente transportado ao
hospital mais próximo.
Aprecie a responsabilidade jurídico-penal de ALVIM e DELFIM.
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Admite-se ainda a classificação deste excesso como intensivo, perante argumentação de que o meio utlizado
não seria o meio menos gravoso para repelir a putativa agressão.
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Neste ponto, poder-se-ia discutir a divergência doutrinária existente acerca do nível de probabilidade exigido
para a imputação do resultado típico nos casos de omissão. Todavia, uma vez que o enunciado afirma que
“Bernardim teria sobrevivido se tivesse sido prontamente transportado ao hospital mais próximo” a análise
deste ponto não seria determinante.
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B precisar de ajuda e decidido prosseguir a sua vida, é nítido que o agente coloca os seus
interesses à frente dos de B, sobrevalorizando-os. Para além disso, o agente não toma
qualquer tipo de precauções para evitar o resultado e o grau de probabilidade da lesão revela-
se bastante elevado, desde logo se pensarmos que D conduzia em excesso de velocidade.
Sumariamente, estamos perante um caso de homicídio por acção negligente (artigo
137.º do Código Penal) e um homicídio por omissão doloso (artigos 131.º e 10.º do Código
Penal). Observa-se, assim, uma relação de subsidiariedade entre estes crimes, determinando
a punibilidade a título de homicídio doloso por omissão, porque mais grave. Deste modo, a
pena de D poderá ser especialmente atenuada, nos termos do artigo 10.º, número 3 do Código
Penal.