Você está na página 1de 54

REFLEXÕES SOBRE A COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL E OS

INSTRUMENTOS PROCESSUAIS PARA SEU CONTROLE

Humberto Theodoro Júnior


Professor Titular da Faculdade de direito da UFMG.
Desembargador Aposentado do TJMG. Membro da
Academia de Direito de Minas Gerais, do Instituto dos
Advogados de Minas Gerais, do Instituto de Direito
Comparado Luso-Brasileiro, do Instituto Brasileiro de
Direito Processual, do Instituto Ibero-americano de Direito
Processual e da Internacional Association of Procedural
Law. Advogado.

Juliana Cordeiro de Faria


Professora Adjunta de Processo Civil da Faculdade de
Direito da UFMG. Mestre e Doutora em Direito Civil.
Advogada.

SUMÁRIO: 1. Intróito. 2. A coisa julgada inconstitucional: um convite à reflexão. 3. O


princípio da constitucionalidade (supremacia da Constituição) e o efeito negativo do ato
inconstitucional. 4. A noção de coisa julgada. 5. O princípio da intangibilidade da coisa julgada
e sua relatividade. 6. A intangibilidade da coisa julgada é um princípio constitucional? 7.
Compatibilização da intangibilidade da coisa julgada com o princípio da supremacia da
Constituição. 8. A doutrina brasileira recente: nulidade ou inexistência?9. A coisa julgada que
ofende diretamente os princípios constitucionais e os mecanismos de seu controle. 9.1. A ação
rescisória e ação declaratória de nulidade (querela nullitatis) 9.2. Direito processual brasileiro
recente sobre coisa julgada inconstitucional:os arts. 475-L, §2º e 741, parágrafo único do
CPC.10. Fonte da declaração de inconstitucionalidade pronunciada pelo STF: a indevida
interpretação restritiva. 11. Inconstitucionalidade ainda não reconhecida pelo STF. 12. A coisa
julgada inconstitucional e o respeito aos atos praticados sob seu império: a eficácia ex nunc do
reconhecimento da inconstitucionalidade. 13. Respostas a algumas objeções doutrinárias. 14.
Conclusões.

1. Intróito
Divulgamos nossas ideias sobre o conflito de decisões judiciais e a
Constituição Federal há alguns anos, tendo em conta casos concretos de grande
repercussão sobre o erário público, quando já operada a coisa julgada e ultrapassado o
prazo legal de cabimento da ação rescisória1.

O tema foi levado por meio de parecer ao exame do Superior Tribunal de


Justiça2 e mereceu desenvolvimento pelo Ministro JOSÉ DELGADO em instigante
trabalho doutrinário3.

Desde então, empolgante debate tem se travado entre processualistas de


renomada autoridade, ora para apoiar nosso ponto de vista, ora para rebatê-lo. Até
mesmo o legislador não lhe foi insensível, tanto que ao art. 741, do CPC se acrescentou o
atual parágrafo único, para permitir em embargos à execução definitiva de sentença
passada em julgado a argüição de inexigibilidade da obrigação assentada em sentença
inconstitucional4. No mesmo sentido, o art. 475-L, acrescentado ao CPC pela Lei nº
11.232, de 22.12.2005, franqueou ao executado impugnar o cumprimento da sentença
revestida da autoridade de coisa julgada, nos mesmos moldes antes traçados pelo parág.
único do art. 7415.

Ressalvando as posições que simplesmente negaram a coisa julgada


inconstitucional, sem dúvida que o debate promovido por aqueles que reconheceram sua
existência e os problemas práticos daí advindos tem sido salutar. Muito contribuiu para
uma melhor reflexão e amadurecimento da tese inicial divulgada, assim como para
identificação de pontos que mereciam maior clareza. O resultado dessas reflexões
encontra-se lançado nos itens que se seguem, sendo certo, porém, que as premissas
básicas do pensamento permanecem intactas, a saber:

1
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Embargos à execução contra a Fazenda Pública. In: Regularização
Imobiliária de áreas Protegidas, v. II, Governo do Estado de São Paulo, 1999, p. 119/137; THEODORO JÚNIOR,
Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro de. A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu
controle. In: VALDER, Carlos. Coisa Julgada Inconstitucional. 1.ed., Rio de Janeiro: America Jurídica, 2002, p.
123-161.
2
STJ, 1ª T., REsp 240.712/SP, Rel. Min. José Delgado, ac. 15.02.2000, DJU 24.04.2000, p. 38.
3
DELGADO, José Augusto. Pontos polêmicos das ações de indenização de áreas naturais protegidas - Efeitos da
coisa julgada e os princípios constitucionais. Revista de Processo, v. 103, p. 9-36.
4
“Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial
fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou
interpretação tidos por incompatíveis com a Constituição Federal” (Acréscimo ao art. 741 do CPC por força da
Medida Provisória nº 2.180/35, de 24.08.2001).
5
“Para efeito do dispositivo no incico II do ‘caput’ deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial
fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em
aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a
Constituição Federal” (CPC, art. 475-L, § 1º, acrescentado pela Lei nº 11.232, de 22.12.2005). Com a Lei nº 11.232,
de 22.12.2005, o art. 741 do CPC passou a disciplinar apenas os embargos das execuções contra a Fazenda Pública.
Manteve-se, porém, a possibilidade de argüir-se contra a sentença passada em julgado a inexigibilidade em virtude
de inconstitucionalidade da lei que lhe serviu de fundamento, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal

2
A) o princípio da intangibilidade da coisa julgada não é absoluto, cedendo
diante de outros igualmente consagrados como o da Supremacia da
Constituição;
B) a coisa julgada não pode servir de empecilho ao reconhecimento do
vício grave que contamina a sentença proferida em contrariedade à
Constituição. Não há uma impermeabilidade absoluta das decisões
emanadas do Poder Judiciário, mormente quando violarem preceitos
constitucionais;
C) reconhecer-se que a intangibilidade da coisa julgada pode ser
relativizada quando presente ofensa aos parâmetros da Constituição, não
é negar-lhe a essência, muito menos olvidar a importância do princípio
da segurança jurídica;
D) pensar-se um sistema para o controle da coisa julgada inconstitucional
é, ao contrário de negar, reforçar o princípio da segurança jurídica, visto
não haver insegurança maior do que a instabilidade da ordem
constitucional. E permitir-se a imunidade e a prevalência de um ato
contrário aos preceitos da Constituição, é consagrar a sua instabilidade,
provocando, isso sim, maior insegurança;
E) atos inconstitucionais são, por isso mesmo nulos e destituídos, em
conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica6.

Espera-se, assim, manter vivo o debate imprescindível para que seja


aperfeiçoado o sistema brasileiro, desenvolvendo o ideal de respeito máximo à
Constituição Federal. Somente assim, acreditamos, poderá haver Segurança Jurídica e
um Direito Justo. Não se pode jamais olvidar a lição de J. J. GOMES CANOTILHO7:

“A Constituição assume-se e é reconhecida como direito superior; como


‘lei superior’, que vincula, em termos jurídicos e não apenas políticos, os
titulares do poder. Através da subordinação ao direito dos titulares do
poder, pretende-se realizar o fim permanente de qualquer lei
fundamental – a limitação do poder”.

Negar simplesmente a relativização da intangibilidade da coisa julgada


inconstitucional, seria negar a própria Superioridade da Constituição e admitir a
existência de um poder sem limitação. Seria conferir aos juízes o poder ilimitado de
decidir, ainda que contrariamente à Constituição, visto que o vício da

6
STF, Adin 652/MA, rel. Min. Celso de Mello, RTJ 146/461.
7
Direito constitucional e teoria da constituição. 4.ed., Coimbra: Almedina, p. 1.378.

3
inconstitucionalidade seria sanável com a res iudicata e se tornaria soberanamente
irremediável após o decurso do prazo da ação rescisória.

Nessa perspectiva, os brasileiros não teríamos a certeza da estabilidade da


ordem jurídica constitucional, inerente à ideia de segurança jurídica e ao Estado de
direito.

2. A coisa julgada inconstitucional: um convite à reflexão

No Estado Democrático de Direito, e como uma conseqüência das ideias de


limitação do Poder político do Estado e do primado da lei enquanto expressão da vontade
geral trazidas pela Revolução Francesa, tem sido sempre uma preocupação constante a de
garantir a Supremacia da Constituição Federal, como único meio de assegurar aos
cidadãos a certeza da tutela da segurança e da justiça como valores máximos da
organização da sociedade. Desde que passou a ser prestigiada a ideia de primado
hierárquico-normativo da Constituição, com afirmação do princípio da
constitucionalidade, busca-se assegurar que não só os atos do Poder Público, como todo
o ordenamento jurídico esteja conforme a sua Lei Fundamental.

Exatamente por isso, os mais variados ordenamentos jurídicos contemplam


em seus sistemas mecanismos de controle da constitucionalidade dos atos emanados do
Poder Público, ora confiando apenas a uma Corte Especial a atribuição de declarar a
inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes e vinculante; ora também conferindo aos
diversos órgãos integrantes do Poder Judiciário a competência para fazê-lo, limitada,
todavia, a eficácia de suas decisões à relação processual em que proferida; ou, ainda,
admitindo a convivência harmônica de ambos instrumentos de controle8.

Porém, ao longo de mais de duzentos anos, o que se observa é que, em


tema de inconstitucionalidade, as atenções e preocupações jurídicas sempre se detiveram
no exame da desconformidade constitucional dos atos legislativos. Verifica-se, assim,
que a grande parte dos estudos produzidos desde então centra-se na análise da
constitucionalidade/inconstitucionalidade dos atos legislativos, não havendo uma maior

8
“Não é na simples promessa da lei que está a garantia, sim em sua exacta observância” (BUENO, Pimenta apud
SIDOU, J. M. Othon. As garantias ativas dos direitos coletivos. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 29). Por isso, “as
Constituições positivas não se limitam a declarar as várias liberdades; também se preocupam com a habilidade
maior ou menor de suas garantias, cometendo-as a instituições especiais, ou a preciosas sanções jurídicas” (RUI
BARBOSA. República, teoria e prática. São Paulo: Vozes, 1978, p. 22, apud SARAIVA, Paulo Lobo. Mandado de
garantia social no direito luso-brasileiro. In: Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976.
Coimbra: Coimbra Ed., 1998, v. 3, p. 240.

4
preocupação com os atos do Poder Judiciário, em especial suas decisões que, sem a
menor dúvida, são passíveis de serem desconformes à Constituição.

PAULO OTERO, constitucionalista português que desponta no cenário


jurídico, bem detectou as razões do esquecimento, consoante se depreende da seguinte
passagem de sua notável obra:

“As questões de validade constitucional dos atos do poder judicial foram


objeto de um esquecimento quase total, apenas justificado pela
persistência do mito liberal que configura o juiz como ‘a boca que
pronuncia as palavras da lei’ e o poder judicial como ‘invisível e nulo’
(Montesquieu)”9.

Com efeito, institucionalizou-se o mito da impermeabilidade das decisões


judiciais, isto é, de sua imunidade a ataques, ainda que agasalhassem
inconstitucionalidade, especialmente após operada a coisa julgada e ultrapassado, nos
variados ordenamentos, o prazo para a sua impugnação. A coisa julgada, neste cenário,
transformou-se na expressão máxima a consagrar os valores de certeza e segurança
perseguidos no ideal do Estado de Direito. Consagra-se, assim, o princípio da
intangibilidade da coisa julgada, visto, durante vários anos, como dotado de caráter
absoluto.

Tal é o resultado da ideia, data venia equivocada e largamente difundida,


de que o Poder Judiciário se limita a executar a lei, sendo, destarte, defensor máximo dos
direitos e garantias assegurados no ordenamento jurídico e, por conseguinte, na própria
Constituição. É em face do prestígio alcançado pelo postulado retro que, conforme
assinala VIEIRA DE ANDRADE, “embora os tribunais formem um dos poderes do
Estado, não há em princípio preocupação de instituir garantias contra as suas decisões”10.

Contudo, não se pode olvidar que, segundo bem lembra PAULO OTERO,
“como sucede com os outros órgãos do poder público, também os tribunais podem
desenvolver uma actividade geradora de situações patológicas, proferindo decisões que
não executem a lei, desrespeitem os direitos individuais ou cujo conteúdo vá ao ponto de
violar a Constituição”11.

9
OTERO, Paulo. Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional. Lisboa: Lex, 1993, p. 9.
10
Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Coimbra Ed., 1983, p. 332.
11
Ob. cit., p. 32.

5
Ora, deparando-se com uma decisão judicial que contempla flagrante
inconstitucionalidade quais os instrumentos para promover a sua adequação aos ditames
máximos da Constituição?

Do ponto de vista do direito processual civil brasileiro existem mecanismos


cujos contornos encontram-se bem definidos no sistema para sua correção, quais sejam,
os recursos ordinários e extraordinários12. Sob este aspecto a questão não oferece maiores
dificuldades, mormente à vista do disposto no art. 102, III, da Constituição Federal
brasileira, havendo farta literatura a seu respeito.

O problema para cuja reflexão se deseja fazer um convite é o de já não mais


ser a decisão judicial inconstitucional passível de impugnação recursal. Nesta hipótese,
existiria um mecanismo de controle de constitucionalidade da coisa julgada ou esta é
isenta de fiscalização? Ou reformulando o questionamento: verificando-se que uma
decisão judicial sob o manto da res iudicata avilta a Constituição, seja porque dirimiu o
litígio aplicando lei posteriormente declarada inconstitucional, seja porque deixou de
aplicar determinada norma constitucional por entendê-la inconstitucional ou, ainda,
porque deliberou contrariamente a regra ou princípio diretamente contemplado na Carta
Magna, poderá ser ela objeto de controle? Cuida-se, na lição de PAULO OTERO, “de
um problema central do actual momento do Estado de Direito"13.

A questão ganha relevância quando se verifica a cada vez mais freqüente


atribuição aos juízes de poderes, erigindo-os em guardiões da constitucionalidade e da
legalidade da atividade dos demais poderes públicos. Assiste-se, hodiernamente e como
bem frisa CANOTILHO, a “um trânsito silencioso de um ‘Estado-legislativo-
parlamentar’ para um ‘Estado jurisdicional executor da Constituição’”14. Trata-se de
fenômeno que se verifica diante do fato de cada vez mais as normas encerrarem
conceitos indeterminados e abertos, o que exige maior atuação dos juízes na
interpretação e criação do Direito.

Neste contexto, segundo lembra PAULO OTERO, observa-se, com efeito,


“um crescente papel protagonizador do juiz na densificação e concretização
interpretativa do sentido de tais conceitos e, consequentemente, do próprio Direito”15.
Donde advertir NEUMANN que se caminha para uma verdadeira “perversão do Estado

12
A expressão ‘extraordinários’ é utilizada no seu sentido lato, contemplando tanto o recurso especial como o
extraordinário.
13
Ob. cit., p. 32.
14
A concretização da Constituição pelo Legislador e pelo Tribunal Constitucional. In: Nos dez anos da
Constituição, Lisboa, 1987, p. 352.
15
Ob. cit., p. 34.

6
de Direito em Estado Judicial”16. Há, com efeito, uma hipervalorização do papel do juiz
que o torna supremo em relação aos demais poderes do Estado, donde dever ser maior a
preocupação com a constitucionalidade e legalidade de suas decisões, não se podendo
mais deixá-las à margem de um controle efetivo.

Sob este aspecto é que os estudiosos do direito vêm se preocupando com a


questão da constitucionalidade das decisões judiciais e dos efeitos da
inconstitucionalidade sobre a res iudicata, buscando resposta para o problema de se saber
se as decisões judiciais são ainda um feudo não sujeito a qualquer juízo ou espécie de
controle de sua conformidade com a Constituição.

Depara-se, aí, mais uma vez, com o eterno conflito, mais aparente que real
na espécie, do Direito quanto a sua preocupação com a segurança e a certeza, ao mesmo
tempo que persegue a justiça. Até bem pouco tempo sempre se buscou valorizar a
segurança, pelo que a intangibilidade da coisa julgada vinha merecendo posição de
destaque sendo poucos os que se aventuravam a questionar ou levantar o problema da
inconstitucionalidade da coisa julgada, advogando a impossibilidade de sua subsistência.
Admitir-se a impugnação da coisa julgada sob o fundamento autônomo de que contrária
à Lei Fundamental do Estado era algo que não se coadunava com o ideal de certeza e
segurança.

Todavia, estamos de acordo com PAULO OTERO, para quem “admitir,


resignados, a insindicabilidade de decisões judiciais inconstitucionais seria conferir aos
tribunais um poder absoluto e exclusivo de definir o sentido normativo da Constituição:
Constituição não seria o texto formalmente qualificado como tal; Constituição seria o
direito aplicado nos tribunais, segundo resultasse da decisão definitiva e irrecorrível do
juiz”, o que não se adequa às noções do Estado de Direito. Admitir-se como válida a
noção de Constituição ali esposada significa, ainda segundo magistralmente assinalado
por PAULO OTERO, “proclamar como divisa do Estado de Direito a seguinte ideia:
todos os poderes públicos constituídos são iguais, porém, o poder judicial é mais igual
do que os outros”17.

Neste cenário, torna-se imprescindível repensar-se o controle dos atos do


Poder Público em particular da coisa julgada inconstitucional, na busca de soluções que
permitam conciliar os ideais de segurança e os anseios de justiça, lembrando sempre,
nesta trilha, que “num Estado de Direito material, tal como a lei positiva não é absoluta,
também não o são as decisões judiciais. Absoluto, esse sim, é sempre o Direito ou, pelo

16
Uferlose Verwaltugsrsichtsbarkeit, apud SAZ, Silvia Del. Desarrollo y crisis del derecho administrativo. In:
Nuevas perspectivas del derecho administrativo, Madrid, 1992, p. 170.
17
Ob. cit., p. 35-36.

7
menos, a ideia de um DIREITO JUSTO”18. E direito justo, no sentido aqui perseguido,
não quer dizer direito afinado à eticidade ou moralidade, mas acima de tudo, direito
fielmente submisso às normas e princípios da Constituição.

3. O princípio da constitucionalidade (supremacia da Constituição) e o efeito negativo


do ato inconstitucional

Segundo lição de JORGE MIRANDA, “constitucionalidade e


inconstitucionalidade designam conceitos de relação: a relação que se estabelece entre
um coisa – a Constituição – e outra coisa – uma norma ou um ato – que lhe está ou não
conforme, que com ela é ou não compatível”19.

A Constituição é dotada de características particulares de cunho ético-


jurídico e que expressam a vontade soberana de uma Nação. Exatamente por isso se diz
ser a conformidade de uma norma ou ato com a Constituição condição para sua validade
e eficácia. Ou nos dizeres de JORGE MIRANDA,

“A concordância, a relação positiva da norma ou do acto com a


Constituição envolve validade, o contraste, a relação negativa implica
invalidade. Se a norma vigente ou o acto é conforme a Constituição
reveste-se de eficácia; se não é, torna-se ineficaz”20.

Diante da importância de que se reveste a Constituição no quadro de


organização de um Estado e de sistematização de direitos e garantias fundamentais,
tornou-se corrente sustentar-se que a validade de uma norma ou ato emanado de um dos
Poderes Públicos está condicionada à sua adequação constitucional.

Para SANTI ROMANO, “a Constituição é o ponto inicial do direito


estatal, considerado como um todo, a base de todas as demais partes, sendo,
precisamente, por isto, parte integrante dele”21.

Paralelamente à visão da Constituição como Lei Fundamental e da qual


todos os atos extraem o fundamento de sua validade, surge outra ideia: a de que a
Constituição deve ser juridicamente garantida. Assim, é hoje pacífico o entendimento

18
OTERO, Paulo. Ensaio cit., p. 10.
19
MIRANDA, Jorge. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade. Reimp., Coimbra: Coimbra Ed., 1996,
p. 11.
20
Idem, ibidem.
21
ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. Tradução de Maria Helena Diniz. São Paulo: RT,
1977, n. 4, p. 8.

8
segundo o qual “não basta que a Constituição outorgue garantias; tem, por seu turno, de
ser garantida”22.

A garantia jurídica de que é merecedora a Constituição decorre de um


princípio que é caro ao Estado de Direito: o da constitucionalidade. Aludido princípio é
conseqüência direta da força normativa e vinculativa da Constituição enquanto Lei
Fundamental da ordem jurídica e pode ser enunciado a partir do contraposto da
inconstitucionalidade, nos termos seguintes:

“Sob pena de inconstitucionalidade – e logo, de invalidade – cada acto


há de ser praticado apenas por quem possui competência constitucional
para isso, há de observar a forma e seguir o processo
constitucionalmente prescritos e não pode contrariar, pelo seu conteúdo,
nenhum princípio ou preceito constitucional”23.

Com efeito, há um princípio geral que não pode ser ignorado de que todos
os poderes e órgãos do Estado (em sentido amplo) estão submetidos às normas e
princípios hierarquicamente superiores da Constituição24.

O princípio da constitucionalidade, que exige para a validade do ato sua


conformidade com a Constituição, funciona, nas precisas lições de JORGE MIRANDA,
“como a ratio legis da garantia jurisdicional da Constituição”25. É, pois, o princípio da
constitucionalidade que resume a garantia de observância da Constituição, pois a ele se
encontra agregada a sanção para o seu desrespeito: a inconstitucionalidade do ato, o que
importa em sua invalidade.

À vista da busca sempre constante da constitucionalidade, pode-se dizer


que o ato que não a contempla tem um valor negativo. Fala-se, assim, do desvalor do ato
inconstitucional. Com isso se quer expressar, nos dizeres de JORGE BACELAR
GOUVEIA, “as conseqüências jurídicas negativas da inconstitucionalidade instrínseca de
um acto do poder político. Perante algo que contradiz a Constituição, o ordenamento
estipula efeitos que o depreciam e afirma a Supremacia daquela”26.

O princípio da constitucionalidade e o efeito negativo que advém do ato


inconstitucional não se dirigem apenas, como podem pensar os mais desavisados, aos

22
MIRANDA, Jorge. Contributo..., p. 77.
23
MEDEIROS, Rui. A decisão de inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Católica Ed., 1999, p. 168.
24
CANOTILHO, J.J. Gomes, MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra, 1993, p.
922.
25
MIRANDA, Jorge. Contributo... cit., p. 77.
26
GOUVEIA, Jorge Bacelar. O valor positivo do acto inconstitucional. Reimpressão, Lisboa: AAFDL, 2.000, p. 28.

9
atos do Poder Legislativo. Aplicam-se a toda a categoria de atos emanados do Poder
Público (Executivo, Legislativo e Judiciário):

“... podemos registrar que toda actividade jurídica (e política em sentido


estrito) se encontra subordinada ao princípio da constitucionalidade”27.

Como lei fundamental é nela que se assenta a legitimação de todas os


demais atos e regramentos de poder. É assim que a doutrina e os tribunais a
entendem:
“A Constituição assume-se e é reconhecida como direito superior,
como ‘lei superior’, que vincula, em termos jurídicos e não apenas
políticos, os titulares do poder. Através da subordinação ao direito dos
titulares do poder, pretende-se realizar o fim permanente de qualquer
lei fundamental – a limitação do poder”28.

Em sentido amplo, a inconstitucionalidade, segundo a doutrina brasileira,


“designa o juízo de identificação da incompetência entre a Constituição e o
comportamento ativo ou passivo do legislador ou de quem lhes faça as vezes, ou ainda,
em alguns casos, do administrador e mesmo do magistrado. Em outras palavras, caberia
falar em inconstitucionalidade quanto às atividades derivadas de todos os órgãos públicos
assim reconhecida pelo próprio sistema”29.

Por isso, em hipótese alguma se haverá de fazer prevalecer o ato de poder


ou a lei comum em contraposição aos ditames da Constituição. É exata a observação de
FRANCIS DELPÉRÉE:

“Enfim, a Constituição é a regra na qual os poderes ‘não podem jamais


tocar’. O princípio de ação é também limite de ação. Desde que uma
pessoa ou uma autoridade negue essa natural origem constitucional [do
poder de ação], que pretenda se libertar das regras que ela [a

27
OTERO, Paulo. Ensaio... cit., p. 31.
28
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4.ed. Coimbra: Almedina, p. 1.378.
29
ANDRÉ RAMOS TAVARES, Tratado da Argüição de Preceito Fundamental, São Paulo, Saraiva, 2.001, nº 2.2,
p. 175. No magistério de MEIRELLES TEIXEIRA, a inconstitucionalidade conceitua-se, nesses termos amplos,
como “a desconformidade da lei ou do ato governamental com algum preceito da Constituição” (Curso de Direito
Constitucional, p. 378). É a posição adotada também por CELSO RIBEIRO BASTOS, que bem observa: “A
inconstitucionalidade de uma lei, de um ato executivo ou jurisdicional, é um caso particular de invalidade dos atos
jurídicos em geral” (Curso de Direito Constitucional, p. 388). REGINA MARIA MACEDO NERY FERRARI
adota o mesmo entendimento, já que para a autora: “Os órgãos das três funções estatais - legislativa, executiva e
judiciária - podem apresentar comportamentos inconstitucionais, isto é, pode haver inconstitucionalidade por ação e
por omissão de atos legislativos, executivos e judiciários” (Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade, p. 150).
CLÈMERSON MERLIN CLÈVE lembra que se fala de “inconstitucionalidade por omissão de medida políatico-
administrativa, de medida judicial ou de medida legislativa” (A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no
Direito Brasileiro, p. 322).

10
Constituição] fixa e dos limites que ela estabeleceu para o exercício do
poder, [aquela pessoa ou autoridade] coloca-se fora do Estado como o
bandido se coloca fora da lei. Processos de controle velam geralmente
pelo respeito às injunções constitucionais. ‘Toda sociedade na qual não
é assegurada a separação dos poderes, nem é preservada a garantia dos
direitos, não tem Constituição’ (Declaração dos direitos do homem e do
cidadão de 26 de agosto de 1789, art. 16)”30.

É por prevalecer no Brasil o princípio fundamental da supremacia da


Constituição que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, na sua função de Corte
Constitucional, tem assentado que:

“Atos inconstitucionais são, por isso mesmo, nulos e destituídos, em


conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica” (grifamos)31.

Com efeito, qualquer que seja o poder responsável pela ofensa


constitucional, terá o seu ato de sujeitar-se às conseqüências do controle imposto pela
supremacia da Constituição, que se traduz, na ótica do Supremo Tribunal Federal, da
seguinte maneira:

“A declaração de inconstitucionalidade em tese encerra um juízo de


exclusão, que, fundado numa competência de rejeição deferida ao
Supremo Tribunal Federal, consiste em remover do ordenamento
positivo a manifestação estatal inválida e desconforme ao modelo
plasmado na Carta Política”32.

Em específico, quanto aos atos do Poder Judiciário, que interessam ao


presente estudo, pode-se dizer que não há a sua impermeabilidade aos efeitos da
inconstitucionalidade, estando, pois, também submetidos ao princípio da
constitucionalidade:

30
DELPÉRÉE, Francis. Le droit constitutionnel de la Belgique. Bruxelles: Bruylant, 2000, p. 15. O texto original é
o seguinte: “Enfin, la Constitution est la règle à laquelle les pouvoirs ‘ne peuvent point toucher’. Le principe
d’action est aussi limite d’action. Qu’une personne ou qu’une autorité nie cette commune origine constitutionelle,
qu’il prétende s’affranchir des règles qu’elle fixe e des borns qu’elle établit pour l’exercice du pouvouir, elle se met
hors l’Etat comme un bandit se met hors la loi. Des procédés de contrôle veillent généralement au respect des
injunctions constitutionelles. ‘Toute Société dans laquelle la separation des pouvoirs n’est pas assurée, ni la
garantie des droits préservée, n’a point de Constitution’ (Déclaration des droits de l’homme et du citoyen du 26 août
1789, art. 16)”.
31
STF, Pleno, ADin 652/MA, Rel. Min. Celso de Mello, ac. unânime de 02.04.1992, RTJ 146/461.
32
STF, Pleno, ADin 652/MA cit., RTJ 146/461 cit..

11
“... sublinhe-se que também a actividade jurisdicional se encontra
subordinada ao princípio da constitucionalidade, dependendo a validade
de seus actos da conformidade com a Lei Fundamental”33.

Nada obstante, sempre que se fala em decisão judicial, tem-se a falsa


impressão de que o seu controle de constitucionalidade, no direito brasileiro, é possível
apenas enquanto não operada a coisa julgada, através do último recurso cabível que é o
extraordinário previsto no art. 102, III, da CF. Após verificada esta última, a
imutabilidade que lhe é característica impediria o seu ataque ao fundamento autônomo de
sua inconstitucionalidade. Corresponde aludida ideia ao modelo de Supremacia da
Constituição buscado no moderno Estado de Direito?

Pensamos que não. A coisa julgada não pode suplantar a lei, em tema de
inconstitucionalidade, sob pena de transformá-la em um instituto mais elevado e
importante que a lei e a própria Constituição. Se a lei não é imune, qualquer que seja o
tempo decorrido desde a sua entrada em vigor, aos efeitos negativos da
inconstitucionalidade, por que o seria a coisa julgada?

Segundo nosso juízo é inimaginável uma franquia que viesse a colocar o


Judiciário acima da própria ordem constitucional. Um estado que consentisse que alguém
ou alguma autoridade pudesse se considerar livre para agir fora dos limites
constitucionais, seria simplesmente um Estado “que não tem Constituição”34.

Se, em nome da segurança jurídica, a coisa julgada se transformasse em


muralha sempre inexpugnável, ainda que agasalhando atentado à Constituição, ter-se-ia
criado um feudo ou uma excrescência dentro do Estado constitucional. Ou seja, ter-se-ia
delimitado uma área em que a supremacia teria se deslocado da Constituição para a
sentença judicial. Isto, obviamente, não pode ser aceito pelo moderno direito
constitucional, sob pena de negar a si próprio.

A única explicação para que se resista à ideia, resulta, ao que pensamos, de


uma visão distorcida da noção de imutabilidade/intangibilidade inerente ao conceito de
coisa julgada. Senão veja-se.

33
Idem, ibidem.
34
DELPÉRÉE, Francis. Le droit constitutionnel cit., p. 15.

12
4. A noção de coisa julgada

“Denomina-se coisa julgada material” - dispõe o art. 467 do CPC -“a


eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso
ordinário ou extraordinário”.

Muitas são as tentativas de conceituar o que substancialmente seja o


fenômeno da coisa julgada. Do ponto de vista prático, que é o mais importante para o
operador do direito, assim como para os seus destinatários finais, a coisa julgada
realmente se apresenta como “a indiscutibilidade da nova situação jurídica declarada
pela sentença e decorrente da inviabilidade recursal”35.

Com efeito, a função da jurisdição implica, em última análise, buscar uma


solução definitiva e indiscutível para o litígio que provocou o exercício do direito de
ação e a instauração do processo.

Por isso, quando já não mais caiba recurso contra ela, segundo as leis
processuais, a sentença se torna imutável e indiscutível (CPC, art. 467) e sua força será
a de lei, “nos limites da lide e das questões decididas” (CPC, art. 468).

Diz-se, então, que a sentença faz coisa julgada ou passou em julgado. E,


contra seu conteúdo lógico-jurídico não poderão reagir nem os tribunais, proibidos que
estarão de decidir novamente a mesma lide (CPC, art. 471), nem os legisladores,
impedidos que estão de legislar, retroativamente, em prejuízo da res iudicata (C.F., ar.
5o., XXXVI).

Uma vez que a res in iudicium deducta compreende uma relação jurídica
material, que se pretende afirmar ou negar, para assegurar-se um “bem de vida” (“coisa”,
“relação” ou “direito subjetivo”), “tal bem, assegurado às partes pela sentença, é que
constitui a coisa julgada. Definiu-a há muitos séculos MODESTINO, no célebre
enunciado do DIGESTO: res iudicata dicitur, quae finem controversiarum
pronuntiatione iudices accipit: vel condemnatione vel absolutione contingit (42, I, 1)”36.
Ou em vernáculo:

“Diz-se coisa julgada a que, pelo pronunciamento do juiz, alcança o fim


das controvérsias, o que acontece pela condenação ou pela absolvição”.

35
SÉRGIO GILBERTO PORTO, Coisa Julgada Civil, Rio de Janeiro, 1996, nº 6-2, p. 44.
36
MONIZ ARAGÃO, Sentença e coisa julgada, Rio, Aide, 1992, n. 140, p. 192.

13
“A coisa julgada consiste, em suma” – como bem lembra MONIZ
ARAGÃO - “não na sentença, como tal considerada, mas no julgamento (accertamento)
nela contido (BUSNELLI, Riv. Trim. di Diritto e Procedura Civile, 1961, II, 1.338), ou
na “norma jurídica concreta que deve disciplinar a situação” (isto é: a res) “submetida à
cognição judicial” (BARBOSA MOREIRA, Rev. Bras. de Direito Processual 32/47), por
ela (a sentença) revelada”37.

Mas, não basta para se ter a coisa julgada a existência de uma solução para
a controvérsia debatida em juízo, visto que, na linguagem do direito processual civil
atual, a sentença somente adquire a autoridade de coisa julgada, quando não mais
comporta recurso algum e seja, assim, irrevogável.

Há, então, no conceito de res iudicata algo mais que o pronunciamento


judicial ditando a vontade concreta da lei para pôr fim ao conflito de interesses deduzido
em juízo.

“Para o direito atual, a locução coisa julgada não designa apenas o


julgamento da res, mas, isto sim, a especial autoridade de que fica
investido quando preclui (ou se esgota) a faculdade de contra ele
recorrer, o que o torna imutável. A imutabilidade do julgamento, pois, é
que consubstancia a coisa julgada”38.

Nesse mesmo rumo de ideias, escreve VELLANI que:

“Con la expresión cosa juzgada (substancial) o más brevemente fallo


(substancial), se indica, pues, una combinación de dos elementos: la
declaración de certeza realizada por el juez más aquella autoridad o
carácter que, en un cierto momento, por voluntad de la ley (art. 2.909 del
Cód. Civ.) cubre la declaración de certeza”39.

O juiz - afirma CARNELUTTI - não faz mais do que julgar. É a lei que
manda que aquilo que tenha sido por ele julgado valha como se houvesse sido
pronunciado pelo próprio legislador40.

Por conseguinte, a expressão coisa julgada não se confunde com a


sentença como peça elaborada pelo magistrado, mas prende-se à sentença que atingiu a

37
Sentença e coisa julgada cit., n. 140, p. 193.
38
MONIZ ARAGÃO, ob. cit., nº 140, p. 194.
39
Naturaleza de la cosa juzgada, Buenos Aires, EJEA, 1958, nº 25, p. 132.
40
Cf. Istituzioni, v. I, nº 79, p. 77.

14
eficácia de imperatividade e imutabilidade, nas circunstâncias previstas em lei, para
tanto.

A sentença ao compor a lide, seja declarando, condenando ou constituindo,


não depende do trânsito em julgado para produzir seus naturais efeitos, conforme explica
LIEBMAN. Tanto é assim que em muitos casos a lei admite a execução provisória antes
da res iudicata. O que a caracteriza é tornar, em determinado momento, imutável a
matéria decidida. Por isso, LIEBMAN defende a tese de que a “autoridade da coisa
julgada não é efeito ulterior e diverso da sentença, mas uma qualidade de seus efeitos e a
todos os seus efeitos referentes, isto é, precisamente a sua imutabilidade”41.

“Nisso consiste, pois, a autoridade da coisa julgada, que se pode definir,


com precisão, como a imutabilidade do comando emergente de uma sentença. Não se
identifica simplesmente com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o
comando; é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o
ato também em seu conteúdo e torna assim imutável, além do ato em sua existência
formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato”42.

Fácil é, pois, notar que ao conceito de coisa julgada se encontra


umbilicalmente ligada a ideia de imutabilidade.

5. O princípio da intangibilidade da coisa julgada e sua relatividade

“O caso julgado é uma exigência da boa administração da justiça, da


funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, pois que
evita que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, obsta a que
sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante a
resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir.
Ela é, por isso, expresssão dos valores de segurança e certeza que são
imanentes a qualquer ordem jurídica”43.

Quantas e quantas vezes não se repetiram as noções supra que bem


sintetizam o fundamento de se conceber a coisa julgada como decisão judicial imutável:
a necessidade de segurança e certeza do Direito.

41
Eficácia e autoridade da sentença, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1981, p. 142, nota 2
42
LIEBMAN, Eficácia ... cit., nº 15, p. 54.
43
SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. Lisboa, 1997, p. 568.

15
Tal se deve ao fato de que a incerteza jurídica provocada pelo litígio é um
mal não apenas para as partes em conflito, mas para toda a sociedade, que se sente
afetada pelo risco de não prevalecerem no convívio social as regras estatuídas pela ordem
jurídica como garantia de preservação do relacionamento civilizado.

Daí a importância da função jurisdicional que é desempenhada pelo Estado


como parcela de sua própria soberania. Assim é que para realizar, a contento, a
pacificação dos litígios entendeu-se necessário dar ao provimento jurisdicional uma
condição de estabilidade, de definitividade. Do contrário, mal encerrado o processo, as
partes restabeleceriam as divergências e, indefinidamente, a jurisdição voltaria sucessivas
vezes a se ocupar da mesma divergência entre os mesmos litigantes. Em síntese, o litígio
nunca seria realmente composto.

Para que tal não ocorresse, o sistema processual, desde épocas imemoriais,
concebeu o instituto da coisa julgada, pelo qual, uma vez esgotada a possibilidade de
impugnação dentro da relação processual, a sentença assume uma força, ou autoridade,
especial: torna-se imutável e indiscutível, tanto para as partes como para o Estado.
Nenhum dos litigantes poderá propor novamente a mesma causa, nem tampouco tribunal
algum poderá julgar outra vez a causa encerrada e sob autoridade da res iudicata.

Assim é que, “em nome da tutela da segurança jurídica, verifica-se que


assume especial relevo a certeza do direito definido pelos tribunais e destinado, directa
ou indirectamente, a regular litígios resultantes de situações concretas e
individualizadas”44.

Sob este aspecto é que se compreende o fato de não se encontrarem as


decisões judiciais sob o manto da res iudicata sujeitas a um princípio de livre
modificabilidade ou revogabilidade. A pretexto de garantir a segurança e certeza
jurídicas, os ordenamentos em geral não admitem a livre revogação ou alteração do que
restou decidido com força de coisa julgada. Donde a tendência generalizada de se
conferir especial estabilidade às decisões, contrariamente ao que se passa com os atos
legislativos e administrativos. Ou seja:

“... as decisões judiciais têm um especial regime legal tendente a


proporcionar a sua estabilidade”45.

44
OTERO, Paulo. Ensaio... cit., p. 37. Consultar ainda sobre o tema: ANDRADE, Manuel. Noções elementares de
processo civil. Coimbra: Coimbra Ed., 1976, p. 305-306.
45
Idem, p. 40.

16
Todavia, a ideia de imutablidade inerente à coisa julgada deve ser
compreendida em seus reais contornos. É que a irrevogabilidade presente na noção de
coisa julgada apenas significa que a inalterabilidade de seus efeitos tornou-se vedada
através da via recursal e não que é impossível por outras vias.

Há que se sublinhar, com efeito, que a inalterabilidade da decisão judicial


transitada em julgado não exclui, ainda que em termos excepcionais, a sua
modificabilidade46. É o caso no direito brasileiro, por exemplo, da ação rescisória que
tem por objetivo, exatamente, o de desconstituir a coisa julgada (CPC, arts. 485 e segs.).
Enfim:

“... o caso julgado consubstancia a ideia de uma decisão judicial firme.


Todavia, cumpre referir que o carácter firme da decisão deve ser
entendido enquanto imodificabilidade através de recurso ordinário”47.

A coisa julgada, neste contexto, não está imune à impugnação, podendo vir
a ser desconstituída, no direito brasileiro, através da ação rescisória, uma vez configurada
qualquer das hipóteses previstas no art. 485 do CPC. São casos em que o legislador
considerou que os vícios de que se reveste a decisão transitada em julgado são tão graves
que justificam abrir-se mão da segurança em benefício da garantia de justiça e de
respeito aos valores maiores consagrados na ordem jurídica.

Em tema regido pelo processo penal, por exemplo, a revisão criminal


nunca respeitou a coisa julgada, nem se limitou a tempo ou prazo restrito, como acontece
no processo civil, com a ação rescisória. Por quê? Pela simples razão de que a lei
considera intolerável a injustiça (erro na aplicação da lei penal) cometida contra direitos
fundamentais tutelados constitucionalmente como a liberdade, o nome, a dignidade etc.,
os quais restam afetados gravemente, quando atingidos por condenação criminal
indevida.

Mesmo no plano do processo civil, as ações coletivas e as ações de estado


de família estão atualmente colocadas num regime de eficácia e revisão que se distancia
muito da tradicional intangibilidade da coisa julgada.

Até mesmo no terreno das ações civis individuais, a previsão legal da


rescisória (CPC, art. 485) é em si mesma uma demonstração de que as injustiças graves
podem ser reparadas, mesmo após a coisa julgada material, sem maior quebra da

46
REIS, José Alberto dos. Código de processo civil anotado. Reimpr., Coimbra, v. 5, 1981, p. 157.
47
OTERO, Paulo. Ob. cit., p. 41.

17
segurança jurídica ordinariamente preservada pela intangibilidade das sentenças não mais
recorríveis.

Enfim, a ideia que norteia a admissibilidade da ação rescisória é a de que


não se pode considerar como espelho da segurança e certeza almejados pelo Direito uma
decisão que contém séria injustiça. A segurança como valor inerente à coisa julgada e,
por conseguinte, o princípio de sua intangibilidade são dotados de relatividade, mesmo
porque absoluto é apenas o DIREITO JUSTO48. Vale transcrever a lição de JORGE
MIRANDA, a respeito do direito português:

“O princípio da intangibilidade do caso julgado não é um princípio


absoluto, devendo ser conjugado com outros e podendo sofrer restrições.
Ele tem de ser apercebido no contexto global”49.

Mais uma vez é conveniente esclarecer, afastando-se interpretações


distorcidas de nossas idéias iniciais feitas por alguns, que o justo de que se cogita
diante do conflito entre sentença e garantia constitucional, não é aquele aferido por
padrões morais ou éticos, mas aquele definido essencialmente pelas garantias
jurídicas consagradas nos preceitos, princípios, valores e sistema definidos pela
própria Constituição.

6. A intangibilidade da coisa julgada é um princípio constitucional?

A Constituição Federal de 1988, ao contrário da Portuguesa50, não se


preocupou em dispensar tratamento constitucional ao instituto da coisa julgada em si.
Muito menos quanto aos aspectos envolvendo a sua inconstitucionalidade. Apenas alude
à coisa julgada em seu art. 5º, XXXVI, quando elenca entre as garantias fundamentais a
de que estaria ela imune aos efeitos da lei nova. Ou seja, “a lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Como se observa, a preocupação do legislador constituinte foi apenas a de


pôr a coisa julgada a salvo dos efeitos de lei nova que contemplasse regra diversa de
normatização da relação jurídica objeto de decisão judicial não mais sujeita a recurso,
como uma garantia dos jurisdicionados. Trata-se, pois, de tema de direito intertemporal
em que se consagra o princípio da irretroatividade da lei nova.
48
OTERO, Paulo, ob. cit., loc. cit.
49
Manual de direito constitucional. 2.ed., Coimbra: Coimbra Ed., v. 2, 1983, p. 494-495.
50
A coisa julgada, na vigente Constituição Portuguesa, mereceu tratamento expresso a propósito dos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade. Em seu art. 282, n.º 3, ressalva dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade a coisa julgada. Assim, no direito português, o reconhecimento de inconstitucionalidade de
norma em que se fundou a coisa julgada não serve de fundamento autônomo para sua destruição.

18
Neste sentido, pode-se citar a lição sempre sábia e irrespondível do
Eminente Ministro JOSÉ AUGUSTO DELGADO:

“O tratamento dado pela Carta Maior à coisa julgada não tem o alcance
que muitos intérpretes lhe dão. A respeito, filio-me ao posicionamento
daqueles que entendem ter sido vontade do legislador constituinte,
apenas, configurar o limite posto no art. 5º, XXXVI, da CF, impedindo
que a lei prejudique a coisa julgada”51.

Com efeito, a regra do art. 5º, XXXVI, CF, se dirige apenas ao legislador
ordinário, cuidando-se de “sobre-direito, na medida em que disciplina a própria edição de
outras regras jurídicas pelo legislador, ou seja, ao legislar é interdito ao Poder
legisferante ‘prejudicar’ a coisa julgada. É esta a única regra sobre coisa julgada que
adquiriu foro constitucional. Tudo o mais no instituto é matéria objeto de legislação
ordinária”52. Nem mesmo cuida a proteção constitucional de uma prerrogativa típica e
exclusiva da coisa julgada, pois a irretroatividade legal prevista no inc. XXXV do art. 5º
resguarda com igual intensidade, além da res iudicata, o ato jurídico perfeito e o direito
adquirido. Nem por isso ninguém tem imaginado se possa recobrir de uma absoluta
intangibilidade, por exemplo, o contrato (ato jurídico perfeito), e seus efeitos creditícios
(direito adquirido).

Daí que a noção de intangibilidade da coisa julgada, no sistema jurídico


brasileiro, não tem sede constitucional, mas resulta, antes, de norma contida no Código
de Processo Civil (art. 457), pelo que de modo algum pode estar imune ao princípio da
constitucionalidade, hierarquicamente superior.

7. Compatibilização da intangibilidade da coisa julgada com o princípio da supremacia


da Constituição

Já se afirmou nos itens precedentes que o princípio da constitucionalidade é


informativo da validade de todos os atos emanados do Poder Público, em qualquer de
suas esferas. De modo que aqueles atos desconformes à Constituição são dotados de um
valor negativo derivado de sua inconstitucionalidade: a nulidade.

51
DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. Palestra proferida no IV
Congresso Brasileiro de Processo Civil e Trabalhista, Natal/RN, 22.09.2000.
52
LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Teoria da coisa julgada. São Paulo: RT, p. 84.

19
Por sua vez, o princípio da intangibilidade da coisa julgada, diferentemente
do que se dá no direito português, não tem tratamento constitucional, mas é contemplado
apenas na legislação ordinária. Isto significa, segundo assinalado no item anterior, que é
ele, no direito nacional, hierarquicamente inferior. Não se pode, assim, falar no Brasil, de
conflito entre princípios constitucionais, evitando-se com isso a séria angústia de se
definir aquele que prevalece sobre o outro, como se dá em Portugal, a partir do princípio
da proporcionalidade e razoabilidade.

É por essa razão que, o legislador ordinário, entre nós, tem a liberdade de
conferir ao condenado na justiça penal o direito de acesso à ação de revisão criminal para
atacar a qualquer tempo a coisa julgada gerada pela sentença condenatória, afastando,
portanto, o regime de intangibilidade cuja aplicação se dá com maior rigor no processo
civil, mas nunca com caráter absoluto.

Ainda que se trate da coisa julgada submetida ao nosso Código de Processo


Civil, a sua relatividade é uma imposição natural do sistema e que, por isso, pelas
válvulas do próprio sistema, pode atuar, quebrando, quando necessário, a rigidez de sua
intangibilidade, que é mais aparente do que real53.

A inferioridade hierárquica do princípio da intangibilidade da coisa julgada,


que é uma noção processual e não constitucional54, traz como consectário a ideia de sua
submissão ao princípio da constitucionalidade. Isto nos permite a seguinte conclusão: a
coisa julgada será intangível enquanto tal apenas quando conforme a Constituição. Se
desconforme, estar-se-á diante do que a doutrina vem denominando coisa julgada
inconstitucional.

53
“A regra jurídica, considerada em si mesma independentemente da totalidade do sistema jurídico, como regra
jurídica não existe. A regra jurídica existe enquanto embutida dentro da totalidade do sistema” (BECKER, Alfredo
A.. Teoria geral do direito tributário. 3.ed. São Paulo: Lejus, 2002, p. 212). Qualquer regra, portanto, de direito
infraconstitucional só pode ser entendida e aplicada segundo o sentido e alcance que sejam conformes às regras
maiores ditadas pela Constituição.
54
A Constituição, como já se demonstrou no item anterior, protegeu a coisa julgada apenas do efeito retroativo da
lei nova. Quem a conceituou e quem lhe conferiu, entre nós, a imutabilidade e indiscutibilidade foi a lei ordinária.
Nem se argumente com a teoria dos conceitos denotativos e conotativos para dizer que do ato de contemplar a
Constituição Federal a figura da coisa julgada estaria nisso implícito o seu caráter natural de imutabilidade. Ora, o
argumento prova demais já que se tivesse a Constituição o intuito de agasalhar o princípio da imutabilidade em toda
a sua extensão, teria ela mesma que regular as hipóteses excepcionais de rescisão e, aí, o Código de Processo Civil,
ao cuidar de eliminar os casos de Ação Rescisória, estaria invadindo a área de competência do legislador
constituinte, pois estaria diminuindo, na prática, uma garantia da Lei Maior. No entanto, o que se vê é que a
Constituição apenas se refere à competência de Tribunais para processar a rescisória. Assim, o que se pode deduzir
é que nem para a Constituição Federal nem para a lei processual comum a imutabilidade da coisa julgada é absoluta.
Simples lei infra-constitucional tem, pois, em nosso sistema jurídico o poder de definir quando a coisa julgada é
imutável e quando é rescindível (vale dizer, não imutável). Dentro desta visão, o que sobressai é simplesmente a
força da res iudicata para impedir que a sentença seja alterada por simples recurso.

20
Aludida sujeição do princípio da imutabilidade da coisa julgada ao
princípio da constitucionalidade é verdadeiro não só no direito brasileiro, mas também
naqueles em que ambos têm a sua sede constitucional, como é a hipótese de Portugal. Os
doutrinadores daquele País têm se mostrado acordes em que

“a sentença violadora da vontade constituinte não se mostra passível de


encontrar um mero fundamento constitucional indirecto para daí retirar a
sua validade ou, pelo menos, a sua eficácia na ordem jurídica como caso
julgado. Na ausência de expressa habilitação constitucional, a segurança
e a certeza jurídicas inerentes ao Estado de Direito são insuficientes para
fundamentar a validade de um caso julgado inconstitucional”55.

Com efeito, é sabido que a coisa julgada, mesmo que contemple uma
ofensa à lei ordinária, nos mais variados ordenamentos jurídicos, está sujeita a ter
validados definitivamente os seus efeitos quando ultrapassado o prazo para sua
excepcional impugnação. O fundamento para tal solução pode ser facilmente encontrado
e explicado pela segurança e certeza jurídicas. Tutela-se e empresta-se eficácia à coisa
julgada ilegal, diante da necessidade de pacificação dos conflitos e segurança dos
jurisdicionados, exatamente porque respeitam a Constituição:

“Na realidade, a certeza e a segurança são valores constitucionais


passíveis de fundar a validade de efeitos de certas soluções antijurídicas,
desde que conformes com a Constituição”56.

Nada obstante a segurança e certeza serem suficientes a justificar a validade


da coisa julgada ilegal, o mesmo já não se pode dizer a respeito da coisa julgada contrária
à Constituição. É que os valores da segurança e certeza “carecem de força positiva
autónoma para conferir validade a actos jurídicos inconstitucionais”. Ou ainda nas
palavras de PAULO OTERO:

“A segurança e a certeza jurídicas apenas são passíveis de salvaguardar


ou validar efeitos de actos desconformes com a Constituição quando o
próprio texto constitucional expressamente o admite. (...) Fora de tais
situações, repete-se, os valores da segurança e da certeza não possuem
força constitucional autónoma para fundamentarem a validade geral de
efeitos de atos inconstitucionais”57.

55
OTERO, Paulo. Ob. cit., p. 60-61.
56
Idem, ibidem.
57
Idem, p. 61.

21
Cabe neste tópico a indagação: como se falar em segurança e certeza
jurídicas se não há o mínimo de garantia de respeito à Lei Fundamental?

A diversidade de tratamentos dispensados à coisa julgada ilegal e à


inconstitucional encontra também sua justificativa a partir do princípio da separação de
poderes, uma vez que “o que verdadeiramente está em causa nas decisões judiciais
inconstitucionais não é a violação de uma vontade jurídica dotada de idêntica
legitimidade constitucional, tal como sucede nas decisões judiciais violadoras do direito
infraconstitucional: os tribunais são titulares de um poder constituído e não constituinte;
o poder judicial detém uma soberania exercível nos quadros da Constituição, não
podendo criar decisões sem fundamento directo ou em oposição ao preceituado na Lei
Fundamental”58.

Assim, nos sistemas jurídicos em que não há expressa ressalva na


Constituição, é inafastável a conclusão de que a tutela da coisa julgada e da
imutabilidade que lhe é inerente pressupõe, via de regra, o atendimento do princípio da
constitucionalidade:

“O princípio da constitucionalidade determina ... que a validade de


quaisquer actos do poder público dependa sempre da sua
conformidade com a Constituição. Por isso mesmo, as decisões
judiciais desconformes com a Constituição são inválidas; o caso
julgado daí resultante é, também ele, consequentemente, inválido,
encontrando-se ferido de inconstitucionalidade”59

A relação, portanto, que existe entre o princípio da constitucionalidade e o


da imutabilidade da coisa julgada é de antecedente e conseqüente, ou melhor, de
prejudicialidade, mormente no direito brasileiro em que se está diante de um princípio
de natureza constitucional e outro de natureza ordinária. Assim, para que se fale na tutela
da intangibilidade da coisa julgada e por conseguinte na sua sujeição a um regime
excepcional de impugnação, é necessário que antes se investigue sua adequação à
Constituição. Ou nas precisas palavras de PAULO OTERO a respeito do direito
português em que o princípio da intangibilidade tem a sua sede constitucional:

“... o princípio da imodificabilidade do caso julgado foi pensado para


decisões judiciais conformes com o Direito ou, quanto muito, decisões
meramente injustas ou ilegais em relação à legalidade ordinária. A
imodificabilidade do caso julgado apenas pode concorrer em pé de
58
Idem, ibidem.
59
Idem, ibidem.

22
igualdade com o princípio da constitucionalidade dos actos jurídico-
públicos quando essa imodificabilidade ou insindicabilidade seja
consagrada constitucionalmente...
Em todas as restantes situações, o princípio da imodificabilidade do caso
julgado não tem força suficiente para limitar ou condicionar o princípio
da constitucionalidade das decisões judiciais”60.

8. A doutrina brasileira recente: nulidade, inexistência ou rescindibilidade?

Os dispositivos que se inseriram no Código de Processo Civil para cuidar


da sentença inconstitucional a enfocam no plano da eficácia, qualificando-a como
inexeqüível por não retratar prestação exigível no processo de execução (CPC, arts. 741,
parág. único, e 475-L, § 1º).

Na doutrina, há algumas posições interessantes, que divergem quanto aos


fundamentos, mas convergem para efeitos iguais.

A primeira opinião a se destacar é a de CÂNDIDO RANGEL


DINAMARCO, para quem, à luz de precedentes da jurisprudência, e de preciosas
técnicas de hermenêutica constitucional, “os princípios existem para servir à justiça e ao
homem, não para serem servidos como fetiches da ordem processual”. Por isso, não se
pode reconhecer “caráter absoluto à coisa julgada”, nem se pode deixar de subordinar sua
autoridade aos condicionamentos dos “princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade”61.

Uma coisa é certa, dentro dessa ótica, para o processualista de São Paulo:
“a relatividade da coisa julgada como valor inerente à ordem constitucional-processual,
dado o convívio com outros valores de igual ou maior grandeza e necessidade de
harmonizá-los”62.

Da contraposição do julgado a algum preceito constitucional, decorre,


segundo DINAMARCO, uma impossibilidade de efeitos substanciais. A coisa julgada,
nesse caso, seria apenas formal. Materialmente, não se poderia reconhecer efeito algum,
porque o pedido acolhido pela sentença seria juridicamente impossível em face da ordem
constitucional. Conclui:

60
Idem, p. 120.
61
DINAMARCO, Relativizar a coisa julga - I, “in” Meio Jurídico, ano IV, nº 43, março/2001
62
Ob. cit., II, Meio Jurídico, nº 44, abril/2001, p. 20

23
“Da inexistência desses efeitos juridicamente impossíveis decorre
logicamente a inexistência da coisa julgada material sobre a sentença que
pretenda impô-los”63.

Enfim, no pensamento de DINAMARCO, a coisa julgada não é embaraço


ao reconhecimento da inconstitucionalidade de uma sentença, pela simples razão que o
vício do decisório impede juridicamente a formação da coisa julgada material. Ou seja: a
“irrecorribilidade (coisa julgada formal) de uma sentença não apaga a
inconstitucionalidade daqueles resultados substanciais política ou socialmente ilegítimos,
que a Constituição repudia”. Logo, é de ter-se como inconstitucional, e por isso
inaceitável, a leitura clássica consagradora da crença de ser absoluta a intangibilidade da
coisa julgada ainda que ofensiva à Constituição64.

Por outros caminhos de raciocínio, CÂNDIDO DINAMARCO, chega ao


mesmo resultado da doutrina lusitana já exposta, qual seja, o reconhecimento da
ineficácia ou invalidade da coisa julgada formada contra a Constituição, que, por isso,
estaria sujeita a ser reconhecida a qualquer tampo e por qualquer meio processual ao
alcance da parte, inclusive a querela nullitatis, isto é, a “ação declaratória de nulidade
absoluta e insanável da sentença”65.

NELSON NERY JÚNIOR, colocando-se em posição totalmente oposta,


não tem a sentença inconstitucional nem como nula, nem como ineficaz. Considera-a
apenas como rescindível, no prazo de dois anos, como qualquer outro julgado que ofenda
a literalidade de lei (CPC, art. 485, V). Ultrapassado o biênio do art. 495 do CPC, a
sentença revestida da autoridade da coisa julgada tornar-se-ia insuscetível de qualquer
questionamento, ainda que proferida contra a ordem constitucional. Para o referido autor,
“a coisa julgada faz do preto, branco e do quadrado, redondo”, e como é ela um dos
“elementos formadores do Estado Democrático de Direito”, não poderá mais sofrer
nenhuma espécie de contestação, sob pena de desprezar-se o próprio Estado Democrático
de Direito66.

A tese, sem embargo da autoridade de quem a defende, apóia-se em


argumento inconsistente, qual seja, o de que a coisa julgada é inviolável porque figuraria
entre os elementos formadores do Estado Democrático de Direito. Por acaso pode existir
no mundo atual Estado Democrático de Direito sem o pressuposto de supremacia da
Constituição? Se é na Constituição que a coisa julgada procura legitimação, como
63
Ob. cit., nº 44, p. 23
64
Ob. cit., nº 44, p. 23
65
Ob. cit., nº 44, p. 26
66
NERY JÚNIOR, Nelson. Coisa Julgada e Estado Democrático de Direito. Revista Forense, v. 375, p. 141-158,
set.-out./2004.

24
admitir que o julgado que se volta contra a fonte legitimadora possa superá-la? A
sentença, na doutrina em questão, acabaria ocupando posição superior à própria natureza,
porque faz do quadrado, redondo, e superior à Constituição, porque prevalece sobre esta,
ainda quando a ofenda e negue.

Para IVO DANTAS nem se há de cogitar de flexibilizar a coisa julgada,


quando inconstitucional, nem mesmo de submetê-la à ação rescisória. O ato ou a decisão
contrária à Constituição, a seu sentir, é algo que não é nem nulo nem anulável; é algo que
juridicamente, “não existe” e, pois, “nenhum efeito poderá decorrer daquilo que é
inexistente”67. O fenômeno, em sua ótica, desenvolve-se no plano da existência. Não
chega sequer ao plano da validade.

IVO DANTAS e RAFAELLA CHIAPPETTA objetam a tese de NELSON


NERY JÚNIOR com argumentos de inconteste densidade e extrema fidelidade aos
princípios dominantes na conceituação do moderno Estado Democrático de Direito. In
verbis:

“A Constituição Federal é o sustentáculo de todo o ordenamento


jurídico no qual estão garantidos os direitos dos cidadãos que não têm
nenhum tipo de condicionante. Quer dizer: não existe nem mesmo ou
principalmente por parte do Poder Judiciário um meio de reconhecê-lo ou
não, vez que não se trata de uma faculdade do juiz.
O magistrado não tem o poder de desprezar determinado dispositivo
constitucional garantidor de um direito do jurisdicionado. Por certo, em
razão da falibilidade humana ou mesmo de um erro ou de um
entendimento incompatível com a realidade normativa, pode ocorrer de o
juiz proferir uma sentença inconstitucional, seja por ferir diretamente a
Constituição, por não aplicar norma constitucional por entendê-la
inconstitucional ou ainda por não aplicar norma constitucional diante de
uma suposta inconstitucionalidade.
Quando a sentença inconstitucional adquire força de res iudicata, é
inadmissível que essa decisão prospere sob o fundamento da segurança
jurídica porque o que ocorre é exatamente o contrário, a possibilidade de
o Judiciário, seja por que motivo for, proferir decisões desse tipo que se
entranhem no ordenamento é de per si, causadora de insegurança jurídica.
Assim, é em nome da segurança jurídica que a coisa julgada
inconstitucional deve ser desconstituída, já que a paz social só será

67
DANTAS, Ivo. Constituição & Processo – Introdução ao Direito Processual Constitucional. Curitiba: Juruá,
2003, v. I, p. 216.

25
restabelecida quando o provimento jurisdicional for realizado de modo
compatível com a Constituição Federal (...).
Assim, entendemos que o mito de que a coisa julgada faz do preto,
branco, e do quadrado, redondo, deve ser, em relação à coisa julgada
inconstitucional, definitivamente afastado do nosso sistema jurídico,
porque é a própria Constituição Federal que a implementa e deve ser
resguardada de qualquer violação que traga insegurança para os
jurisdicionados”68.

Certo é que a instituição da coisa julgada está comprometida mais com a


segurança do que com a justiça, no domínio das relações jurídicas. Mas, no Estado
Democrático de Direito, não pode haver insegurança maior do que a gerada pelo
exercício do poder de maneira contrária à Constituição69.

A coisa julgada, portanto, não se sujeita a prazo nem a rescisória. A


qualquer tempo sua inexistência jurídica e sua impossibilidade de produzir efeitos
jurídicos podem ser constatados e declarados. Entende, na verdade que, o decisório, com
vício tão profundo, nem mesmo chega a fazer coisa julgada70.

Todavia, não consideramos ser a hipótese propriamente de inexistência do


ato judicial. Isto porque para ter-se um ato como inexistente, no campo do direito, é
necessário que lhe falte elemento material indispensável para sua ocorrência. Não é a
simples ilegalidade que o torna inexistente. A contrariedade à lei, qualquer que seja a sua
categoria, conduz à invalidade (nulidade ou anulabilidade) e nunca à inexistência, que é
fato anterior ao jurídico (plano do ser).

A sentença para ser tida como inexistente tem de apresentar-se como “um
mero acto material... um simples estado de facto, com a aparência de sentença, mas
absolutamente insuscetível de vir a ter a eficácia jurídica de sentença”71.

68
DANTAS, Ivo; CHIAPPETTA, Rafaella. Teoria da inconstitucionalidade. São Paulo: LTr, 2007, p. 158-159.
69
THEODORO JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro de. O tormentoso problema da inconstitucionalidade
da sentença passada em julgado. Revista de Processo, vol. 127, p. 9-53, set./2005; THEODORO JÚNIOR,
Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro de. Reflexões sobre o princípio da intangibilidade da coisa julgada e sua
relativização. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do; DELGADO, José Augusto (Coord). Coisa Julgada
inconstitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 161-194; THEODORO JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana
Cordeiro de. O tormentoso problema da inconstitucionalidade da sentença passada em julgado. In: DIDIER
JÚNIOR, Fredie (Coord.). Relativização da coisa julgada: enfoque crítico. 2.ed. Salvador: Juspodivm, 2006, p.
157-198.
70
IVO DANTAS. Constituição do Processo cit., p. 244. Em posição semelhante, ou assemelhada, TERESA
ARRUDA ALVIM WAMBIER e JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA também concluem que a sentença proferida
contra a Constituição é sem valor jurídico por ser “equivalente à proferida quando o magistrado acolhe pedido
juridicamente impossível” (O dogma da coisa julgada. São Paulo: RT, 2003, p. 36). Daí extraem a conclusão de que
tal sentença não transita em julgado (idem, p. 39).
71
REIS, José Alberto dos. Código ... V, p. 113 seg., apud OTERO, Paulo. Ensaio sobre o caso julgado cit., p. 63.

26
Obviamente, não se pode ter como mera aparência uma sentença proferida
em processo regular, e que tenha transitado em julgado, ainda que contaminada por
inconstitucionalidade. Os elementos materiais de existência, no plano do ser, estão todos
presentes. A impotência de alcançar os efeitos jurídicos decorre, não da falta de
elementos materiais, mas da situação de contraposição entre o conteúdo da sentença e o
mandamento constitucional. Inexistente seria a sentença proferida por quem não é juiz ou
lançada sem o pressuposto de um processo que pudesse sustentá-la, ou ainda aquela a
que faltasse a conclusão ou dispositivo.

Presentes os dados essenciais para a configuração de uma sentença, o ato


decisório ofensivo a algum mandamento constitucional não deixará de existir como
sentença. O seu vício ocorrerá no plano da validade apenas. De tal sorte, “os actos
jurisdicionais, isto é, que sejam praticados por um juiz no exercício das suas funções,
obedecendo aos requisitos formais e processuais mínimos, que violem direitos absolutos
ou os demais direitos fundamentais e a essência dos princípios integrantes da
Constituição material não são actos inexistentes, meras aparências, antes se assumem
como verdadeiras decisões judiciais inconstitucionais”72.

É certo que em situações extremas pode ocorrer, também no âmbito do


direito constitucional, a inexistência, como por exemplo, a sentença declaratória de
inconstitucionalidade dada por quem não é juiz ou por algum juiz sem o pressuposto do
processo judicial. Fora desses casos excepcionais, em que nem a aparência de ato válido
existe, a inconstitucionalidade da lei ou da sentença é “uma relação de desconformidade,
que acarreta, quanto aos actos e às normas de Direito interno inconstitucionais,
invalidade73”.

Logo, nossa opinião afina-se com a doutrina lusitana e com a


jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, como já se expôs, qualifica de nulo e
despido de qualquer carga de eficácia o ato inconstitucional74, qualquer que seja ele,
legislativo, administrativo ou judiciário.

72
OTERO, Paulo. Ensaio sobre o caso julgado cit., p. 64. A invalidade decorrente da inconstitucionalidade,
segundo REGINA MARIA MACEDO NERY FERRARI, “só terá lugar após o reconhecimento da mesma pelo
órgão com competência para decidir, se há ou não concordância entre o ato normativo e a Constituição”. Como a
inconstitucionalidade está sujeita ao controle jurisdicional, “a nulidade em definitivo só será admitida por via
jurisdicional”; ou seja, “a nulidade só terá lugar após o pronunciamento do órgão competente, segundo o
ordenamento jurídico, para decidir sobre a concordância ou não da norma inferior e a Constituição”. Não há que se
falar em inexistência do ato inconstitucional, já que “a nulidade de pleno direito contraria a realidade jurídica” no
campo em que se especula (Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 3. ed., São Paulo: RT, 1992, p. 88).
73
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, n. 235, p. 476.
74
RTJ, 146/461.

27
A circunstância, porém, de ter a sentença inconstitucional como nula,
inexistente, ineficaz, ou privada da autoridade de coisa julgada material, é indiferente do
ponto de vista prático, já que, afinal, chega-se a constatações de efeitos concretos iguais.
Ou seja, a sentença contrária à ordem constitucional não tem aptidão para produzir
efeitos jurídicos e o reconhecimento de tal ineficácia não se convalida com o tempo, nem
depende de ação específica para seu reconhecimento.

9. A coisa julgada que ofende diretamente os princípios constitucionais e os


mecanismos de controle

Há uma afirmação feita pelo Eminente Ministro JOSÉ DELGADO, em


Palestra por ele proferida, que se reveste de uma rara felicidade no mundo atual:

“... não posso conceber o reconhecimento de força absoluta da coisa


julgada quando ela atenta contra a moralidade, contra a legalidade,
contra os princípios maiores da Constituição Federal e contra a
realidade imposta pela natureza. Não posso aceitar, em sã consciência,
que, em nome da segurança jurídica, a sentença viole a Constituição
Federal, seja veículo de injustiça, desmorone ilegalmente patrimônios,
obrigue o Estado a pagar indenizações indevidas, finalmente
desconheça que o branco é branco e que a vida não pode ser considerada
morte, nem vice-versa”75.

As palavras do Ministro JOSÉ DELGADO são em verdade um convite à


revisitação da própria noção de coisa julgada, não podendo mais subsistir a antiga noção
de que

“a coisa julgada não assenta numa ficção ou presunção absoluta de


verdade, por força da qual, como diziam os antigos, a sentença faça do
branco preto e do quadrado redondo (...) Trata-se antes de que, por uma
fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculante ao
acto de vontade do juiz...”76.

O direito processual civil mudou e a busca da verdade real, como meio de


se alcançar a justiça e concretizar o anseio do justo processo legal, é uma exigência de
tempos modernos. Exatamente por isso as decisões judiciais devem espelhar ao máximo
essa verdade, dizendo ser branco o branco, como bem lembrado pelo Ministro JOSÉ
DELGADO. O direito moderno não pode se contentar apenas com a verdade formal, em
75
Palestra cit.
76
ANDRADE, Manuel. Noções elementares de processo civil. Reimp., Coimbra, 1979, p. 306-307.

28
nome de uma tutela à segurança e certeza jurídicas. No Estado de Direito, especialmente
no Estado brasileiro, a justiça é também um valor perseguido (Preâmbulo da
Constituição Federal). O que se busca, hodiernamente, é que se aproxime ao máximo do
Direito justo77.

E nada mais injusto que uma decisão judicial contrária aos valores e
princípios consagrados na Constituição Federal78.

A partir das considerações e reflexões formuladas pelo Ministro JOSÉ


DELGADO, fomos despertados para o trato da coisa julgada inconstitucional e, mais
ainda, em buscar traçar os mecanismos processuais de sua impugnação no intuito de
tornar efetivo o princípio da constitucionalidade.

Embora existam várias situações em que se configura a coisa julgada


inconstitucional79, interessa ao presente estudo a hipótese em que a decisão judicial viola
diretamente as regras, princípios e garantias consagrados na Constituição Federal.

Neste tópico, indispensável é sempre lembrarmos o princípio geral segundo


o qual “todos os actos do poder público, incluindo os actos jurisdicionais, são inválidos
se desconformes com a Constituição”80.

Uma decisão judicial que viole diretamente a Constituição, ao contrário do


que sustentam alguns81, não é inexistente. Não há na hipótese de inconstitucionalidade
mera aparência de ato. Sendo desconforme à Constituição o ato existe se reúne condições
mínimas de identificabilidade das características de um ato judicial, o que significa dizer,
que seja prolatado por um juiz investido de jurisdição, observando aos requisitos formais
e processuais mínimos. Não lhe faltando elementos materiais para existir como sentença,
o ato judicial existe. Mas, contrapondo-se a exigência absoluta da ordem constitucional,
falta-lhe condição para valer, isto é, falta-lhe aptidão ou idoneidade para gerar os efeitos
para os quais foi praticado.

77
LARENZ, Karl. Derecho justo – fundamentos de etica jurídica. Madrid, 1993, p. 138 e sgs.
78
“A ordem constitucional não tolera que se eternizem injustiças a pretexto de não eternizar litígios” (CÂNDIDO,
ob. cit., nº 44, p. 26
79
A doutrina comumente aponta como inconstitucionais, além das decisões que violem diretamente a Constituição,
aquelas que apliquem norma inconstitucional, tenha sido ou não objeto de declaração de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral e aquelas que deixam de aplicar norma constitucional por entendê-la, equivocadamente
inconstitucional.
80
OTERO, Paulo. Ob. cit., p. 76.
81
Cf. SOUSA, Marcelo Rebelo de. O valor jurídico do acto inconstitucional. I, Lisboa, 1988, p. 324-325.

29
Assim, embora existente, a exemplo do que se dá com a lei
inconstitucional, o ato judicial é nulo82, estando sujeito “em regra geral, aos princípios
aplicáveis a quaisquer outros actos jurídicos inconstitucionais”83.

Com efeito, entendemos que a coisa julgada inconstitucional submete-se ao


mesmo regime de inconstitucionalidade aplicável aos atos do Poder Legislativo.

É princípio geral assente o lembrado por PAULO OTERO de que “as


normas inconstitucionais nunca se consolidam na ordem jurídica, podendo a todo o
momento ser destruídas judicialmente”84. Trata-se de um princípio que decorre do
sistema geral de nulidades – vício que contamina os atos inconstitucionais -, não sujeitas
à prescrição.

Mas quais os mecanismos processuais cabíveis no direito brasileiro para se


ver reconhecida a inconstitucionalidade da coisa julgada?

9.1 – A ação rescisória e ação declaratória de nulidade (querela nullitatis)

A Constituição Federal brasileira, ao estruturar os órgãos do Poder


Judiciário, atribuiu ao Supremo Tribunal Federal competência para processar e julgar
originariamente “a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal
ou estadual” (art. 102, I, ‘a’). Isto é, revelando a tendência clássica de preocupação
apenas com o controle de constitucionalidade dos atos do Legislativo e do Executivo
dotados de força normativa, franqueia a ação direta de inconstitucionalidade apenas para
tais atos, deixando de contemplar os atos decisórios do Poder Judiciário sob o manto da
res iudicata.

Por outro lado, o Código de Processo Civil contempla a ação rescisória,


admitindo-a na hipótese de violação à literal disposição de lei (art. 485, V), inserindo-se,
aí, ofensas ao texto constitucional.

Surge, então, a indagação: o instrumento processual para a impugnação


seria a ação rescisória, sujeitando-se, assim, a coisa julgada inconstitucional ao mesmo
regime jurídico da coisa julgada ilegal, inclusive quanto aos prazos?

82
Em caso de nulidade ipso iure, o defeito pode “tornar insubsistente a própria sentença transitada em julgado”
(FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Réu revel não citado, querela nullitatis e ação rescisória, Ajuris, v. 42, p. 24). “A
sentença existe, mas é nula” (idem, p. 29).
83
OTERO, Paulo. Ob. cit., p. 85.
84
Idem, p. 120.

30
O Superior Tribunal de Justiça vem, frequentemente e sem enfrentar
diretamente o tema, admitindo a ação rescisória para desconstituir coisa julgada
inconstitucional. Trata-se de hipótese envolvendo, em regra, o direito tributário em que a
decisão judicial transitada em julgado se fundou em norma posteriormente declarada
inconstitucional:

“PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO RESCISÓRIA - INTERPRETAÇÃO


DE TEXTO CONSTITUCIONAL - CABIMENTO - SÚMULA
343/STF- INAPLICABILIDADE - VIOLAÇÃO A LITERAL
DISPOSIÇÃO DE LEI (CPC, ART. 485, V) - FNT-SOBRETARIFA -
LEI 6.093/74 - INCONSTITUCIONALIDADE (RE 117315/RS) -
DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL SUPERADA - SÚMULA
83/STJ - PRECEDENTES.
- O entendimento desta Corte, quanto ao cabimento da ação rescisória
nas hipóteses de declaração de constitucionalidade ou
inconstitucionalidade de lei é no sentido de que "a conformidade, ou não,
da lei com a Constituição é um juízo sobre a validade da lei; uma decisão
contra a lei ou que lhe negue a vigência supõe lei válida. A lei pode ter
uma ou mais interpretações, mas ela não pode ser válida ou inválida,
dependendo de quem seja o encarregado de aplicá-la. Por isso, se a lei é
conforme à Constituição e o acórdão deixa de aplicá-la à guisa de
inconstitucionalidade, o julgado se sujeita à ação rescisória ainda que na
época os tribunais divergissem a respeito. Do mesmo modo, se o acórdão
aplica lei que o Supremo Tribunal Federal, mais tarde, declare
inconstitucional".(Resp 128.239/RS)
- A eg. Corte Especial deste Tribunal pacificou o entendimento, sem
discrepância, no sentido de que é admissível a ação rescisória, mesmo
que à época da decisão rescindenda, fosse controvertida a interpretação
de texto constitucional, afastada a aplicação da Súmula 343/STF (Resp.
155.654/RS, D.J. de 23.08.99)” (RESP 36017/PE, 2ª T., Rel. Min.
Francisco Peçanha Martins, DJU 11/12/2000, p.00185)

“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. ART. 485, V, CPC.


DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE PELO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, DE PRECEITO LEGAL NO QUAL SE
LOUVARA O ACÓRDÃO RESCINDENDO.
Cabível a desconstituição, pela via rescisória, de decisão com trânsito em
julgado que "deixa de aplicar uma lei por considerá-la inconstitucional

31
ou a aplica por tê-la como de acordo com a Carta Magna. Ação
procedente.” (AR 870/PE, 3ª Seç., rel. Min. José Arnaldo da Fonseca,
DJU 13/03/2000, p.00123)

As hipóteses mais recentes de que se têm notícias cuidaram da


inconstitucionalidade da coisa julgada em uma das situações, não trabalhando
diretamente com a decisão judicial que violasse diretamente norma ou preceito contido
na Constituição Federal.

A jurisprudência, de maneira geral, afasta o cabimento da ação rescisória


quando, ao tempo da sentença rescindenda, a lei aplicada, era de interpretação
controvertida nos tribunais, mesmo que, mais tarde, o entendimento pretoriano tenha se
pacificado em sentido diverso do adotado pelo decisório impugnado85.

No entanto, para o Superior Tribunal de Justiça, essa orientação vale apenas


para a violação da lei ordinária (CPC, art. 485, V), “não, porém, de texto
constitucional”86. Em se tratando de matéria disciplinada pela Carta Magna, outrossim,
pouco importa que a decisão rescindenda tenha afirmado a inconstitucionalidade ou
constitucionalidade, em clima de interpretações controvertidas nos tribunais. A Súmula
n. 343 do STF deverá ser sempre afastada e a ação rescisória caberá, sem restrições, se a
controvérsia acabou em face de prevalência de tese contrária à da sentença impugnada87.
No mesmo sentido a orientação do Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE
328812/AM, Relator Min. Gilmar Mendes:

“No que tange à inaplicabilidade da Súmula 343/STF, tenho reiteradamente


observado nesta Corte que este verbete precisa ser revisto. Refiro-me,
especificamente, aos processos que identificam matéria contraditória à
época da discussão originária, questão constitucional, bem como
jurisprudência supervenientemente fixada, em favor da tese do interessado.
(...)

No âmbito específico do inciso V, o propósito imediato é o de garantir a


máxima eficácia da ordem legislativa em sentido amplo. Para isto, permite-

85
STF, Súmula 343;TFR, Súmula 134; STJ, 2ªSeção, AR 159/MG, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, ac. 08.11.89,
DJU 04.12.89, p. 17.872; STJ, 1ª Seção, AR 180/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, ac. 05.08.89, DJU 02.10.89, p.
15.335; STJ, 1ªT., REsp. 4.611/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, ac. 22.06.92, DJU 31.08.92, p. 13.630.
86
STJ, 1ªT., REsp. 130.886/RS, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, ac. 18.08.98, DJU 13.10.98, p. 17.
87
STJ, 1ªT., REsp. 99.425/DF, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, ac. 06.03.97, RSTJ 96/150; STJ, 1ªT., REsp.
109.474/DF, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, ac. 09.09.97, RSTJ 103/65; STJ, 2ªT., REsp. 93.965/DF, Rel.
Min. Ari Pargendler, ac. 15.09.97, RSTJ 103/115.

32
se a excepcional rescisão daqueles julgados em que o magistrado violou,
nos termos do CPC, “literal disposição de lei”.

A violação à literal disposição de lei obviamente contempla a violação às


normas constitucionais, o que poderia ser considerado como um tipo de
violação “qualificada”.

Indaga-se: nas hipóteses em que esta Corte fixa a correta interpretação de


uma norma infraconstitucional, para o fim de ajustá-la à ordem
constitucional, a contrariedade a esta interpretação do Supremo Tribunal,
ou melhor, a contrariedade à lei definitivamente interpretada pelo STF em
face da Constituição ensejaria a utilização da ação rescisória?

Penso que sim. Penso que aqui há uma razão muito clara e definitiva para a
admissão das ações rescisórias.

Quando uma decisão desta Corte fixa uma interpretação constitucional,


entre outros aspectos está o Judiciário explicitando os conteúdos possíveis
da ordem normativa infraconstitucional em face daquele parâmetro maior,
que é a Constituição.
Isso obviamente não se confunde com a solução de divergência relativa à
interpretação de normas no plano infraconstitucional. (...)
Nesse ponto, penso que é fundamental lembrar que nas decisões proferidas
por esta Corte temos um tipo especialíssimo de concretização da Carta
Constitucional. E isto certamente não equivale à aplicação da legislação
infraconstitucional.
A violação à norma constitucional, para fins de admissibilidade de
rescisória, é sem dúvida algo mais grave que a violação à lei. (...)
De fato, negar a via da ação rescisória para fins de fazer valer a
interpretação constitucional do Supremo importa, a rigor, em admitir uma
violação muito mais grave à ordem normativa. Sim, pois aqui a afronta se
dirige a uma interpretação que pode ser tomada como a própria
interpretação constitucional realizada.
Nesse ponto, penso, também, que a rescisória adquire uma feição que
melhor realiza o princípio da isonomia.

Se por um lado a rescisão de uma sentença representa certo fator de


instabilidade, por outro não se pode negar que uma aplicação assimétrica de
uma decisão desta Corte em matéria constitucional oferece instabilidade
maior, pois representa uma violação a um referencial normativo que dá

33
sustentação a todo o sistema. Isso não é, certamente, algo equiparável a
uma aplicação divergente da legislação infraconstitucional.
(...)
Ora, se ao Supremo Tribunal Federal compete, precipuamente, a guarda da
Constituição Federal, é certo que a sua interpretação do texto constitucional
deve ser acompanhada pelos demais Tribunais, em decorrência do efeito
definitivo absoluto outorgado à sua decisão não vejo como não afastarmos
a Súmula 343, nestas hipóteses, como medida de instrumentalização da
força normativa da Constituição.”

A admissibilidade da ação rescisória para a impugnação da coisa julgada


inconstitucional expressada nos julgados supra, porém, não significa a sua submissão
indistinta ao mesmo regime da coisa julgada ilegal, de modo a que, ultrapassado o prazo
de dois anos para o manejo daquela ação, impossível o seu desfazimento. Do contrário
seria equiparar a inconstitucionalidade à ilegalidade, o que é não só inconveniente como
avilta o sistema e valores da Constituição:

“... equiparar os actos jurisdicionais ilegais, conformes com a


Constituição aos actos meramente ilegais, ..., traduz uma forma indirecta
de desconstitucionalizar actos violadores da Constituição”88.

Há que serem extraídas todas as conseqüências do reconhecimento da


impossibilidade de subsistência da coisa julgada inconstitucional, de modo a que se
submeta exatamente ao mesmo regime de inconstitucionalidade dos atos legislativos,
para o qual não há prazo para sua arguição.

Deste modo a admissão da ação rescisória não significa a sujeição da


declaração de inconstitucionalidade da coisa julgada ao prazo decadencial de dois anos, a
exemplo do que se dá com a coisa julgada que contempla alguma nulidade absoluta,
como é o exemplo, do processo em que há vício de citação:

“Rescisória. Sentença nula. Defeito da Citação. Dispensa Rescisória.


Não há prazo decadencial. Para a hipótese do art. 741, I, do atual CPC,
que é a da falta ou nulidade de citação, havendo revelia persiste, no
Direito positivo brasileiro, a querela nullitatis, o que implica dizer a
nulidade independentemente do prazo para a propositura da ação
rescisória que, a rigor, não é cabível para essa hipótese” (STF, RE
97.589, Pleno, rel. Min. Moreira Alves, DJU 03/06/1982, p. 7.883).

88
OTERO, Paulo. Ob. cit., p. 80.

34
A decisão judicial transitada em julgado desconforme a Constituição
padece do vício da inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamentos jurídicos,
lhe impõe a nulidade. Ou seja, a coisa julgada inconstitucional é nula e, como tal, não se
sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais. Ora, no sistema das nulidades, os atos
judiciais nulos independem de rescisória para a eliminação do vício respectivo. Destarte
pode “a qualquer tempo ser declarada nula, em ação com esse objetivo, ou em embargos
à execução” (STJ, Resp 7.556/RO, 3ª T., rel. Min. Eduardo Ribeiro, RSTJ 25/439).

Nada obstante e porque as nulidades podem ser decretáveis até mesmo de


ofício, como é a hipótese da inconstitucionalidade89, a eleição da via da rescisória, ainda
que inadequada, para a arguição da coisa julgada inconstitucional não importa na
impossibilidade de conhecer-se do vício. O que se deve ter em mente é o fato de que a
admissibilidade da rescisória, nesta hipótese, é medida extraordinária diante da gravidade
do vício contido na sentença.

Em verdade, a coisa julgada inconstitucional, à vista de sua nulidade,


reveste-se de uma aparência de coisa julgada, pelo que, a rigor, nem sequer seria
necessário o uso da rescisória. Esta tem sido admitida pelo princípio da
instrumentalidade e economicidade. O certo é que “verificando-se a
inconstitucionalidade directa de uma decisão judicial, não deve haver qualquer
preocupação em evitar que o tribunal seja colocado na situação de contradizer a decisão
anterior desconforme com a Constituição”90. Ainda segundo PAULO OTERO:

“Admitir solução contrária, significaria reconhecer a autovinculação dos


tribunais de um Estado de Direito democrático a actos inconstitucionais
e a ausência de uma tutela processual eficaz contra as
inconstitucionalidades do poder judicial”91.

89
Impende ressaltar que o exame da constitucionalidade e legalidade da Lei Municipal é perfeitamente possível, na
espécie, visto que decretável de ofício, a teor do preconizado, entre outros, por NAGIB SLAIBI FILHO: “A
inconstitucionalidade é espécie de nulidade. Como nulidade, a inconstitucionalidade é a incompatibilidade do ato
com a Lei Maior. Se pode o juiz, de ofício, conhecer da nulidade absoluta, nos termos do art. 146 do Código Civil,
por maior razão deverá pronunciar a incompatibilidade do ato com a Constituição” (Anotações à Constituição de
1988 - Aspectos fundamentais, Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 87). Assim também pensa PONTES DE
MIRANDA: “O juiz deve decretar a inconstitucionalidade, ainda que não alegada ... O juiz não tem o arbítrio de
deixar de lado a questão constitucional, ou as questões constitucionais que as partes ou os membros do Ministério
Público levantaram. É missão sua. É dever seu. Ele mesmo as pode suscitar e resolver. Rigorosamente, é
obrigado a isso” (Comentários ao código de processo civil, v. 6, 3.ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 40-42).
90
OTERO, Ob. cit., p. 128-129.
91
Idem, p. 129.

35
Os Tribunais, com efeito, não podem se furtar de, até mesmo de ofício,
reconhecer a inconstitucionalidade da coisa julgada o que pode se dar a qualquer tempo,
seja em ação rescisória (não sujeita a prazo), em ação declaratória de nulidade ou em
embargos à execução/impugnação ao cumprimento de sentença.

A inconstitucionalidade direta da coisa julgada afasta o seu efeito positivo,


de modo que “intentada uma acção que tenha como fundamento do pedido uma anterior
decisão judicial transitada em julgado, o juiz só terá de decidir o novo pedido em
conformidade com o caso julgado se este for conforme com a Constituição”. Isto é, e
para nos valermos do exemplo de PAULO OTERO

“... se perante uma sentença condenatória transitada em julgado é


intentada uma posterior acção executiva, o juiz deverá proceder ao
exame da constitucionalidade do referido título executivo. Se concluir
que o mesmo é directamente desconforme com a Constituição, deve
considerar improcedente o pedido de execução, fundamentando a sua
decisão na inconstitucionalidade do respectivo título base”92.

Esse mecanismo de controle pode ser utilizado também no direito


brasileiro, porque, com as inovações legislativas, nas execuções de sentença e no
cumprimento de sentença, os arts.475-L, §2º e art. 741, parágrafo único, do CPC admite
embargos ou impugnação para argüir a “inexigibilidade do título”, e sendo nula a coisa
julgada inconstitucional, não se pode tê-la como “título exigível” para fins executivos.
Com efeito, a exigibilidade pressupõe sempre a certeza jurídica do título, de maneira que
não gerando certeza a sentença nula, carecerá ela, ipso facto, de exigibilidade.

Em face da coisa julgada que viole diretamente a Constituição, deve ser


reconhecido aos juízes um poder geral de controle incidental da constitucionalidade da
coisa julgada. Entendimento contrário e como muito bem lembrado por PAULO
OTERO, importaria em que se admita “que o juiz tenha o dever oficioso de recusar a
aplicação de normas jurídicas contrárias à Constituição, tendo, por outro lado, em
contradição, o dever de aplicar casos julgados inconstitucionais”93.

9.2 – Direito processual brasileiro recente sobre coisa julgada inconstitucional:os arts.
475-L, §2º e 741, parágrafo único do CPC

92
Idem, p. 129.
93
Idem, p. 129-130.

36
A primeira abordagem legal do tema da sentença inconstitucional transitada
em julgado deu-se pela Medida Provisória nº 2.180/2001, que acrescentou ao art. 741 do
CPC (dispositivo que a seu tempo disciplinava o conteúdo dos embargos à execução
definitiva do título judicial) um parágrafo para dispor que:

“Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também


inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados
inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou
interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal”
(CPC, art. 741, parág. único).

Idêntica regra foi, na mesma ocasião, introduzida na CLT, art. 884, por
meio de seu § 5º.

Mais tarde, a Lei nº 11.232, de 23.12.2005, instituiu grandes inovações no


sistema de execução das sentenças civis. O art. 741 do CPC ficou restrito à disciplina dos
embargos à execução de sentença contra a Fazenda Pública. E, para os títulos judiciais
contra particulares, aboliu-se a ação executória autônoma, substituindo-a por simples
incidente do processo onde a sentença tenha sido proferida. Para esse incidente, a que se
atribuiu o nomen iuris de “cumprimento da sentença”, a resistência do executado não
mais seria manejável pela ação de embargos, mas por meio de mera “impugnação” (CPC,
art. 475-J, § 1º).

Tanto na disciplina dos embargos do art. 741, como na da impugnação ao


cumprimento da sentença (art. 475-L), a nova sistemática do processo civil manteve, com
ligeiras alterações de texto, a possibilidade de se argüir, contra a sentença transitada em
julgado, a exceção de inexigibilidade da prestação exeqüenda, com fundamento na
inconstitucionalidade da condenação.

De fato, se a sentença a executar, malgrado seu trânsito em julgado,


fundou-se em lei inconstitucional, trata-se, sem dúvida, de julgado despido de validade,
sem eficácia alguma no mundo jurídico, como se reconhece no Estado Democrático de
Direito, em função do princípio da supremacia da Constituição.

Eis aí a consagração legislativa reiterada no campo do processo civil e


trabalhista de que a coisa julgada não escapa ao controle judicial de constitucionalidade.
O legislador brasileiro se curvou à imperiosa supremacia da Constituição e, diante de sua
violação pela sentença, franqueou ao prejudicado furtar-se à intangibilidade da res
iudicata, por via de embargos ou de impugnação, a qualquer tempo que a pretensão de

37
executar o título inválido fosse exercitada pelo credor, sem necessidade de prévia ação
rescisória e sem se sujeitar ao curto prazo decadencial desta ação.

Dos textos atuais dos dois dispositivos implantados pela Lei nº 11.232/2005
conclui-se, facilmente, que, tanto nos embargos à execução como na impugnação ao
cumprimento da sentença, a previsão é de argüição de inexigibilidade da sentença por
inconstitucionalidade apenas quando o vício que invalida a lei ou ato normativo já tiver
sido objeto de declaração pelo Supremo Tribunal Federal94.

O que se extrai da sistemática implantada pela Lei nº 11.232 é que, na via


dos embargos à execução ou da impugnação ao cumprimento, a argüição de
inconstitucionalidade produzirá efeito inibitório da execução forçada de imediato e de
forma indiscutível, se apoiada em precedente do Supremo Tribunal Federal95.

Inexistindo semelhante precedente – que tanto pode provir do controle


difuso como do controle concentrado de inconstitucionalidade praticado pelo Supremo
Tribunal – a sentença inconstitucional não deixará de ser nula, mas o reconhecimento de
seu vício terá de ser procurado em outra via processual que não os embargos à execução.
Estes representam remédio específico para funcionar como incidente da execução, e
como tal, limita-se às hipóteses previstas e autorizadas expressamente pela lei.

Terá a parte, portanto, de recorrer ao processo que lhe for acessível, fora
dos embargos, ou seja, a ação rescisória, se ainda tempestiva, ou às vias ordinárias da
querela nullitatis, já que não pode o judiciário furtar-se a garantir a supremacia da
Constituição em nenhum caso de ofensa comprovada a seus princípios e normas. Pouco
importa haja ou não prévia declaração do STF. O que não se tolera é que, a pretexto de
proteger a coisa julgada, deixe-se desprotegida a própria Constituição.

Imagine-se o caso da lei flagrantemente inconstitucional que vem a ser


revogada antes de o STF julgar a ação de inconstitucionalidade. Jamais se obterá o
pronunciamento da Suprema Corte a seu respeito, porque segundo jurisprudência
assentada a revogação da lei prejudica a apreciação da argüição de afronta à
Constituição. No entanto, em caso concreto, a lei inconstitucional foi aplicada e a

94
“O art. 741, parág. único, do CPC só incide quando o decisum se funda em lei ou ato normativo tidos como
inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. Idem quando os interpreta ou os aplica de modo incompatível
com a Carta Magna” (STJ, 1ª T., REsp 730.395, Rel. Min. José Delgado, ac. 12.04.2005, DJU 30.05.2005, p. 260).
No mesmo sentido: “Indispensável em qualquer caso, que a inconstitucionalidade tenha sido reconhecida em
precedente do STF, em controle concentrado ou difuso” (STJ, 1ª T., REsp. 791.754, Rel. Min. Teori Zavascki, ac.
13.12.2005, DJU 06.02.2006, p. 224).
95
“Trata-se de norma de caráter excepcional, pelo que se deve restringir a sua incidência, apenas às hipóteses
expressamente nela previstas” (STJ, 1ª T., REsp 730.395, Rel. Min. José Delgado, ac. 12.04.2005, DJU 30.05.2005,
p. 260).

38
sentença nela fundada se acha sob a força da coisa julgada. Seria absurdo recusar-se à
parte o direito de excepcionar a nulidade do decisório, nos moldes do parágrafo único do
art. 741, somente porque o STF não chegou a pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade
gritante na espécie. A invalidade da lei e, conseqüentemente, da sentença que a aplicou, é
irrecusável, e não pode deixar de ser reconhecida sob pena de colocar-se acima da
Constituição um simples ato judicial.

Não seria menos absurda a situação do ato administrativo que confiscasse


bens de contribuinte, afrontando a vedação constitucional e que acabasse acobertado por
sentença transitada em julgado, por falta de defesa adequada em juízo. O tema jamais
teria precedente do STF para ser argüido nos embargos de que trata o parágrafo único do
art. 741 ou na impugnação do art. 475-L, §1º, ambos do CPC. É evidente, contudo, a
invalidade do decisório a inviabilizar sua execução forçada e a justificar a exceção de
inexigibilidade.

Não é, ressalte-se, o pronunciamento do STF que constitui a nulidade da


norma ou ato inconstitucional. A invalidade decorre ipso iure do próprio ato perpetrado
ao arrepio de mandamento da Lei Maior.

É justamente essa invalidade congênita que inspira a regra legal inserida no


parágrafo único do art. 741 do CPC. Aliás, com ou sem regra legal explícita, a
inexeqüibilidade da sentença inconstitucional continuaria a prevalecer, por intermédio de
outros remédios processuais distintos dos embargos à execução. O mesmo se diga da
“impugnação ao cumprimento da sentença”, previsto no art. 475-L, cujo § 1º permite a
exceção de inconstitucionalidade do título judicial exeqüendo apenas com lastro em
pronunciamento do STF.

10. Fonte da declaração de inconstitucionalidade pronunciada pelo STF: a indevida


interpretação restritiva

Há aqueles que, em sede doutrinária, restringem a argüição de


inconstitucionalidade, no bojo da execução de sentença apenas quando fundada em
decisão do STF proferida em controle concentrado (ADIN). Não seria admissível,
semelhante resistência, senão por via de ação rescisória (CPC, art. 485, V), se a
declaração de inconstitucionalidade tiver acontecido em controle difuso ou incidental96.
96
Para Araken de Assis não é todo julgamento de inconstitucionalidade proferido pelo STF que “retirará a força
executiva do provimento judicial”. Para tanto, “impõe-se julgamento definitivo do STF, de procedência na ação
direta de inconstitucionalidade ou de improcedência na ação direta de constitucionalidade (art. 102, I, a, c/c §2º, da
CF/1988)”. A seu modo de ver, somente nesses casos a decisão do STF adquirirá força erga omnes e permitirá sua
invocação na defesa individual de qualquer executado. “Quanto ao controle incidental, ainda que resulte de

39
Uma coisa, outrossim, parece estar certa na jurisprudência que se está
formando no STJ em torno dos arts 475, § 1º, e 741, parág. único, do CPC: Não é a
declaração obtida em controle concentrado de inconstitucionalidade (ADIN) e seu efeito
erga omnes o pressuposto da inexigibilidade argüível em oposição à execução ou
cumprimento da sentença:

“Não podem ser desconsideradas as decisões do Plenário do STF que


reconhecem constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de diploma
normativo. Mesmo quando tomadas em controle difuso, são decisões de
incontestável e natural vocação expansiva, com eficácia imediatamente
vinculante para os demais Tribunais, inclusive o STJ (CPC, art. 481, §
único: ‘os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário,
ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já
houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal
Federal sobre a questão’), e, no caso das decisões que reconhecem a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, com força de inibir a
execução de sentenças judiciais contrárias, que se tornam inexigíveis
(CPC, art. 741, § único; art. 475-L, § 1º, redação da Lei 11.232/05)”97.

A tese defendida no STJ, por Teori Zavascki, encontra apoio nas posições
adotadas pelo STF, para quem a submissão dos tribunais inferiores decorre do papel
desempenhado pela Corte Constitucional na interpretação da Lei Maior e na manutenção
do princípio da supremacia da Constituição. Tanto no controle concentrado como no
difuso o STF dá a palavra final acerca da interpretação das regras e princípios
constitucionais. “Ora, se ao Supremo Tribunal Federal compete, precipuamente, a guarda
da Constituição Federal, é certo que a sua interpretação do texto constitucional deve ser
acompanhada pelos demais Tribunais, em decorrência do efeito definitivo absoluto
outorgado à sua decisão. Não se pode diminuir a eficácia das decisões do STF com a
manutenção de decisões divergentes”98.

Para o STF, “a manutenção de soluções divergentes [em tema


constitucional], em instâncias inferiores, sobre o mesmo tema, provocaria, além da
desconsideração do próprio conteúdo da decisão desta Corte, última intérprete do texto
constitucional, a fragilização da força normativa da Constituição (…). Privilegiar a

manifestações reiteradas, uniformes e convergentes do STF, somente a partir da resolução do Senal Federal, na
forma do art. 52, X, da CF/1988, suspendendo a lei ou o ato normativo, enseja-se a incidência do art. 741, parágrafo
único, do CPC” (ASSIS, Araken de. Manual da execução. 11.ed. São Paulo: RT, 2007, p. 1.111-1.112).
97
STJ, 1ª T., REsp 819.850, Rel. Min. Teori Zavascki, ac. 01.06.2006, DJU 19.06.2006, p. 125
98
STF, 2ªT., AgRg. no RE 328.812/AM, Rel. Min. Gilmar Mendes, ac. unânime de 10.12.2002, RTJ 185/347 – do
voto do Relator.

40
interpretação controvertida, para a mantença de julgado desenvolvido contra a orientação
desta Corte, significa afrontar a efetividade da Constituição”99.

Nessa linha de prestígio aos pronunciamentos constitucionais do STF,


mesmo quando editados de forma difusa em ações individuais ou coletivas, funciona o
atual sistema da necessária “repercussão geral” para que o recurso extraordinário seja
admitido, implantado pela Emenda Constitucional nº 45/2004 e regulamentado pela Lei
nº 11.418/2006.

Está muito claro que, atualmente, as causas individuais só chegarão à


Suprema Corte se tiverem repercussão que ultrapasse o interesse das partes em litígio. E,
mais, revelada a repercussão geral, o STF julgará apenas uma das múltiplas causas em
torno do mesmo tema, e seu pronunciamento deverá prevalecer para todos os demais
recursos pendentes de conteúdo similar100. Observe-se que, na espécie, não há nenhum
controle concreto e assim mesmo a eficácia do pronunciamento da Suprema Corte se
expande sobre todos os demais processos individuais de objeto igual.

Dessa maneira, não há dúvida de que para combater a sentença


inconstitucional, via embargos ou impugnação, não se exige a prévia submissão da lei à
declaração concentrada de inconstitucionalidade. Basta que já tenha se pronunciado em
tal sentido o STF, mesmo que em controle difuso.

11. Inconstitucionalidade ainda não reconhecida pelo STF

Se não houver precedente do STF acerca de inconstitucionalidade evidente


cometida pela sentença, nem por isso haverá de se negar efetividade à Constituição e ao
princípio fundamental de sua supremacia.

Estando, ainda, em curso o prazo de admissão da ação rescisória, esta


poderá perfeitamente ser manejada, pois violar a Constituição é, em linha geral, violar a
lei. E uma das hipóteses de rescisão da sentença transitada em julgado é justamente a de
violação a “literal disposição de lei” (CPC, art. 485, V).

99
STF, AgRg. no RE 328.812/AM, p. 347-348.
100
A página do STF na Internet, a título de orientação aos jurisdicionados, ressalta que a exigência da “repercussão
geral”, como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, tem as seguintes finalidades: “a) firmar o papel
do STF como Corte Constitucional e não como instância recursal; b) ensejar que o STF só analise questões
relevantes para a ordem constitucional, cuja solução extrapole o interesse subjetivo das partes; c) fazer com que o
STF decida uma única vez cada questão constitucional, não se pronunciando em outros processos com idêntica
matéria”.

41
Se já se ultrapassou o prazo do art. 495 do CPC (2 anos após a formação da
coisa julgada), dois caminhos se abrem para impedir que a ofensa à Constituição perdure:

a) ou se admite o manejo da rescisória, independentemente do limite


temporal comum;
b) ou se toma conhecimento da inconstitucionalidade em qualquer ação em
que se discutam os efeitos da sentença pronunciada contra a
Constituição, inclusive por meio de ação comum de declaração de
nulidade absoluta (querela nullitatis).

O que se não pode permitir, no Estado Democrático de Direito, é que


subsista, sem remédio, uma sentença que, passando por cima da Constituição, faça tabula
rasa de sua soberania.

Dir-se-á que nosso entendimento fragiliza a coisa julgada e compromete


seu desígnio de segurança jurídica. Não é, entretanto, a coisa julgada que se fragiliza com
a teoria que nega validade à sentença ofensiva à Constituição. A coisa julgada sempre
teve limites que, entre nós, nunca foram traçados pela Lei Maior. Todos eles foram
criados pela lei infraconstitucional, a mesma que se encarrega de definir o que é a coisa
julgada e de ressalvar os muitos casos de inoperância de sua indiscutibilidade habitual.

Quanta restrição dessa natureza se pode encontrar nas leis comuns de


processo, tanto civil como penal, e em leis especiais como as da ação popular, da ação
civil pública, do Código de Defesa do Consumidor etc.! E ninguém se aventurou, até
hoje, a qualificar tais limitações como ofensivas à garantia dedicada pela Constituição à
coisa julgada.

Quando se advoga a necessidade de a sentença amoldar-se à Constituição


para se tornar realmente imutável e indiscutível, o que se faz é apenas pesquisar
condições para que um pronunciamento judicial faça, de fato, coisa julgada, em seu
sentido material.

Assim como não faz coisa julgada, uma sentença civil dada em processo
nulo por falta de citação do réu, assim como não faz coisa julgada para o cível a sentença
penal que absolve o acusado por falta de prova, assim como não se dá a coisa julgada em
face do indivíduo que foi substituído pela entidade que atuou em seu nome e sucumbiu
na ação coletiva, assim como a própria sucumbência do autor da ação popular e do
legitimado à ação coletiva não os inibe de repropor a mesma ação com base em novas
provas, também a discussão da inconstitucionalidade pode se dar após a res iudicata
simplesmente porque não teria se formado, na espécie, a coisa julgada em toda a

42
inteireza: o que é absolutamente nulo não pode, em circunstâncias como a da ofensa à
Constituição, tornar-se imutável e indiscutível, pela simples razão de que o princípio
constitucional ofendido (a supremacia da Constituição) é maior do que a regra protetiva
da coisa julgada.

Enfim, não se está de maneira alguma buscando negar o valor da coisa


julgada no processo civil. O que se pretende é apenas e tão somente enfocar as condições
para aperfeiçoar-se a própria coisa julgada, inserindo-se nesse terreno o requisito da
conformidade com a Constituição, ao lado de tantos outros, objetivos e subjetivos, que já
vigoram sem interferir no papel desempenhado pelo instituto na ordem constitucional e
infraconstitucional.

12. A coisa julgada inconstitucional e o respeito aos atos praticados sob seu império:
a eficácia ex nunc do reconhecimento da inconstitucionalidade

Questão relevante e que sempre mereceu a consideração dos juristas diz


respeito ao efeito da declaração de inconstitucionalidade sobre os atos praticados
enquanto ainda não reconhecido o vício. Vale dizer: o vício da inconstitucionalidade da
coisa julgada - objeto de exame no presente estudo - conduziria à invalidade de todos os
atos que dela extraíram o seu fundamento (eficácia ex tunc) ou ao contrário os efeitos
apenas se produziriam para o futuro (eficácia ex nunc)?

Alfredo Buzaid, por exemplo, assevera que, quando o julgamento do


Supremo Tribunal Federal é proferido em uma ação direta de inconstitucionalidade, a sua
eficácia é retroativa, razão pela qual são atingidos todos os atos indistintamente.
Reconhece o jurista eficácia sempre ex tunc ao vício, pois do contrário se chegaria à
conclusão “verdadeiramente paradoxal de que a validade da lei si et in quantum tem a
virtude de ab-rogar o dispositivo constitucional violado, ou em outros termos, considerar-
se-iam válidos atos praticados sob o império de uma lei nula. Portanto, todas as situações
jurídicas, mesmo aquelas decorrentes de sentença transitada em julgado, podem ser
revistas depois da declaração de inconstitucionalidade...”101.

Da mesma forma Accioly Filho sustenta que “aquilo que é inconstitucional


é natimorto, não teve vida e, por isso, não produz efeitos, e aqueles que porventura
ocorreram ficam desconstituídos desde as suas raízes, como se não tivessem existido”102.

Diante da eficácia ex tunc atribuída comumente ao reconhecimento do


vício da inconstitucionalidade - efeito geralmente associado à nulidade da qual a
101
Da ação direta de inconstitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958, p. 137-138.
102
Revista de Informação Legislativa, v. 48, p. 267, out./dez. 1975.

43
inconstitucionalidade é uma espécie - surge uma preocupação quanto à sua aplicabilidade
irrestrita às hipóteses em que se reconhecer a ocorrência da coisa julgada
inconstitucional. A sentença respectiva, seja em rescisória, em embargos do devedor ou
em simples ação anulatória, teria eficácia retroativa?

Alguns menos desavisados e apegados a soluções matemáticas existentes


no passado certamente deixarão de vislumbrar, neste tópico, qualquer problemática,
limitando-se a simplesmente aplicar a fórmula definida da eficácia retroativa do
reconhecimento do vício da inconstitucionalidade. Assim, por exemplo, indagados acerca
do momento em que estaria a Fazenda Pública autorizada a exigir determinada exação
após desconstituída, na ação intentada, decisão que a considerava inconstitucional,
responderiam os matemáticos do direito: em face do efeito retroativo da sentença, desde
o momento em que criada legislativamente a exação.

Aludida postura, todavia, seria transformar o Direito em uma ciência


matemática o que, verdadeiramente, não corresponde à sua natureza. O estudioso do
direito jamais pode se contentar em, irrefletidamente, adotar conclusões assentadas em
regras gerais, como se fossem fórmulas matemáticas exatas e adequadas a toda e
qualquer situação.

Ao contrário, diante de situações novas envolvendo institutos antigos,


impõe-se a inquietação do espírito do estudioso e a reflexão acerca da solução que
melhor atenda às garantias e aos valores básicos assegurados pelo ordenamento jurídico.
A ciência do Direito, longe de adotar fórmulas matemáticas estáveis, está em constante
evolução, tornando necessário o repensar e refletir as suas instituições para amoldá-las
aos novos contornos. Exatamente por isso é que afirma OVÍDIO A. BAPTISTA que

“O pêndulo da história nos conduz, inexoravelmente, no sentido de


aproximar a ciência do Direito da história e não da geometria ou da física; e
pois as soluções de nossos problemas hão de ser buscadas nessa
pazientissima indagine caso per caso”103.

É essa acurada paciência na reflexão, caso a caso, da aplicação de regras e


princípios assentados em doutrina e jurisprudência, que se impõe na hipótese sub
examine.

103
OVÍDIO A. BAPTISTA, Sentença e coisa julgada, Porto Alegre, Sérgio Fabris Ed., p. 97.

44
Sem dúvida alguma que a admissibilidade da desconstituição da coisa
julgada que contém conclusão contrária à constituição, está a impor o repensar da tese da
irrestrita eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade.

Isto porque, a adoção pura e simples da retroatividade dos efeitos da


decisão proferida no juízo declaratório, implicará a negação de uma série de garantias e
princípios consagrados no direito.

O estudioso do direito freqüentemente se depara com situações em que se


encontram em conflito valores igualmente legítimos, de modo que, a solução da questão
importará sempre prestigiar algum deles em detrimento dos demais. Exatamente o que se
passou quando do início dos debates acerca do cabimento da ação rescisória sob o
fundamento da superveniência de decisão do Supremo Tribunal Federal fixando sua
orientação final quanto à constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinada
exigência tributária.

Na hipótese, estavam em conflito o princípio da intangibilidade e proteção


à coisa julgada, de um lado; de outro, o princípio da Supremacia da Constituição e da
igualdade tributária. A opção centrou-se no segundo, tendo ficado assentado que

“O princípio da segurança jurídica, inspirador dos efeitos da coisa


julgada, não pode ser levado ao extremo de ofender o princípio
constitucional da igualdade tributária”104.

Por sua vez, a admissibilidade de questionamento da validade e, por


conseguinte exigibilidade, da coisa julgada contrária à Constituição, traz consigo novo
conflito. É que a se prestigiar, pura e simplesmente, a eficácia ex tunc das sentenças que
reconhecem o vício da coisa julgada inconstitucional, haverá sérias e graves
conseqüências no âmbito da segurança jurídica e da garantia de não-confisco, em se
tratando de matéria fiscal, consagradas constitucionalmente. Qual deverá prevalecer?
Esta a indagação para cuja resposta necessária se faz séria reflexão, assim como a
redefinição de alguns preceitos.

Entendemos que, em hipótese alguma, poderá se emprestar efeito retroativo


à deliberação tomada em qualquer dos instrumentos processuais em que questionada a
existência de coisa julgada inconstitucional.

104
STJ, Resp 218.354/RS, rel. Min. José Delgado, RSTJ 129/146. No mesmo sentido: Resp 233.662/GO, rel. Min.
José Delgado, DJU 08/03/2000, p. 00086.

45
Primeiramente porque a eficácia ex tunc das decisões judiciais versando
sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinada norma jurídica, não
é absoluta sequer nas ações em que se exerce o controle concentrado respectivo (Ação
Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade). Isto é, nem
sempre quando o Supremo Tribunal Federal considera constitucional ou inconstitucional
determinado ato, a sua deliberação atingirá as relações já consumadas no passado.
Existem hipóteses em que razões de segurança jurídica impõem que a decisão apenas
irradie seus efeitos de forma prospectiva, atingindo as relações a ela supervenientes
(eficácia ex nunc).

Trata-se de solução adotada, no direito brasileiro, por exemplo, pelo art. 27


da Lei n.º 9.868, de 10.11.1999, lembrado por TEORI ALBINO, segundo o qual “ao
declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o Supremo Tribunal Federal,
por maioria de dois terços de seus membros e desde que haja ‘razões de segurança
jurídica ou de excepcional interesse social’, poderá ‘restringir os efeitos daquela
declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir do trânsito em julgado ou de outro
momento em que venha a ser fixado”105.

Aludida limitação se justifica à medida que, no direito brasileiro, a


segurança jurídica é um princípio da própria República Federativa, consoante
consagrado no preâmbulo da Constituição Federal. A eficácia ex nunc da declaração de
inconstitucionalidade ou constitucionalidade não é fenômeno apenas do direito brasileiro.
Idêntico preceito pode ser encontrado na Constituição portuguesa que adotou o princípio
da nulidade da norma inconstitucional, ressalvando, porém, que a decisão poderá ter
efeitos ad futurum quando o exigirem a segurança, razões de eqüidade ou interesse
público de excepcional relevo (art. 282, n. 4).

A necessidade de respeito à segurança jurídica traz consigo a


conseqüência de que a eficácia da deliberação deverá ser examinada caso a caso, não
admitindo, portanto, soluções preconcebidas. É o que lembra EDUARDO GARCIA DE
ENTERRÍA, para quem “a Suprema Corte americana, bem como os tribunais europeus,
têm renunciado buscar uma explicação em uma construção abstrata, remetendo-se a uma
estimativa ponderada, segundo as circunstâncias do caso e as conseqüências indesejáveis
da retroatividade”106. Noticia o autor, a título de exemplo, o entendimento da Suprema
Corte americana no sentido de não ordenar a devolução dos impostos inconstitucionais já
pagos, por diversas razões, tais como: a) o fato de o contribuinte ter auferido os
benefícios dos gastos públicos financiados; b) desorganização das finanças públicas; c)

105
Revista de Processo, 98/282.
106
Justiça constitucional: la doctrina prospectiva en la declaracion de ineficacia de las leys inconstitucionais,
Revista de Processo 92/5-16.

46
definitividade das transações. Enfim, a quebra da indispensável segurança das relações
jurídicas107.

A atribuição de eficácia apenas ad futurum às decisões que versam sobre a


inconstitucionalidade de determinado ato, inclusive a res iudicata, é uma técnica que se
destina a “atenuar notavelmente a contraposta doutrina da eficácia ex tunc, ou seja da
retroatividade”, permitindo “graduar progressivamente a efetividade da Constituição sem
o preço de uma comoção social a cada novo escalão”108. E aludida técnica há de ser
aplicada “principalmente naquelas hipóteses em que uma lei tenha sido, por muito
tempo, pacificamente aplicada por todos e sua nulidade pode ocasionar graves
repercussões sobre a paz social, ou seja, sobre a exigência de um mínimo de certeza e
estabilidade das relações e situações jurídicas”109.

Esta técnica que vem sendo adotada no âmbito da eficácia das ações de
controle concentrado de constitucionalidade e inconstitucionalidade da leis, haverá de ser
igualmente aplicada para solucionar a questão no âmbito das ações em que reconhecida a
existência da coisa julgada inconstitucional.

O manejo dos instrumentos processuais não pode desestabilizar a segurança


das relações jurídicas definitivamente estruturadas, cujos efeitos se consumaram antes do
reconhecimento da inconstitucionalidade.

Enfim: para que não sejam aviltadas a segurança jurídica e o princípio do


não-confisco - este último no campo tributário -, imperioso é que se adote a técnica que
vem sendo aplicada no âmbito das ações de controle de constitucionalidade, qual seja, a
atribuição de eficácia ex nunc à deliberação que reconhece a existência de coisa julgada
inconstitucional. A decisão invalidante apenas irradiará seus efeitos, neste contexto, para
atingir os atos supervenientes, jamais os pretéritos.

Trata-se em verdade de solução comum no direito administrativo no que


tange ao regime das nulidades. No âmbito do direito público, “atos nulos e anuláveis
sujeitam-se a regime igual quanto: a) à persistência de efeitos em relação a terceiros de
boa-fé, bem como de efeitos patrimoniais pretéritos concernentes ao administrado que
foi parte na relação jurídica, quando forem necessários para evitar enriquecimento sem
causa da Administração e dano injusto ao administrado”110.

107
IDEM, ibidem.
108
MYRIAN PASSOS SANTIAGO, Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no tempo e a coisa julgada
em matéria tributária, Revista de Processo, 94/118, citando Mauro Capeletti e Enterría.
109
IDEM, ibidem.
110
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo, 10. ed., São Paulo: Malheiros,
1998, p. 305.

47
Sob este aspecto é que se a coisa julgada não pode ser contrária à
Constituição; em tema de constitucionalidade, a Supremacia da Constituição não poderá
se sobrepor à segurança jurídica, à certeza que deve nortear as relações jurídicas. No
conflito, portanto, que exsurge do reconhecimento da coisa julgada inconstitucional e o
efeito de sua nulidade, haverá de prevalecer a estabilidade das relações, finalidade que
somente será atingível mediante a atribuição de eficácia ex nunc às decisões que a
declaram.

Por isso é que PAULO OTERO, admitindo a susceptibilidade de a sentença


inconstitucional ser atacada a qualquer tempo, reconhece “que razões decorrentes do
próprio decurso do tempo possam limitar os efeitos da futura decisão judicial, isto em
termos de salvaguardar certos efeitos ao caso julgado inconstitucional, tal como sucede
perante os actos administrativos feridos de nulidade”111.

13. Respostas a algumas objeções doutrinárias

Argumentam BARBOSA MOREIRA e SÉRGIO BERMUDES112 que a


abertura da querela nullitatis à discussão da inconstitucionalidade da coisa julgada criaria
o risco de repetição indefinida da argüição do tema constitucional, numa cascata ou
espiral sem fim. Esse receio, no entanto, é infundado, pois as questões já decididas
recobrem-se, ordinariamente, de preclusão ou da própria coisa julgada, que outra coisa
não é senão a preclusão máxima. É elementar, nessa ordem de idéias, que “é defeso à
parte discutir, no curso do processo, as questões já decididas, a cujo respeito se operou a
preclusão” (CPC, art. 473); e que “nenhum juiz decidirá novamente as questões já
decididas, relativas à mesma lide” (CPC, art. 471).

Na verdade, o problema aventado por BARBOSA MOREIRA e SÉRGIO


BERMUDES simplesmente não existe. O próprio sistema processual vigente impede sua
configuração prática, já que as questões solucionadas pela Justiça não se repetem e
devem ser uma única vez solucionadas em caráter definitivo. Assim, a argüição de ofensa
à Constituição, como qualquer outra, somente seria enfrentada e dirimida uma só vez em
juízo. A respeito da solução que for dada operaria a preclusão pro iudicato e a res
iudicata, tornando inviável o espiral sem fim em torno da matéria cogitada pelos
eminentes doutrinadores. O que nos inquieta é a possibilidade de a coisa julgada formada
em determinado momento representar barreira intransponível para reparação de ofensas à
111
Ensaio... cit., n. 25.5, p. 126-127.
112
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Considerações sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material.
Revista Dialética de Direito Processual, v. 22, p. 109; BERMUDES, Sérgio. Sindérese e coisa julgada
inconstitucional. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (Coord). Coisa julgada inconstitucional. 4.ed. Rio de
Janeiro, América Jurídica, 2004, p. 236..

48
Constituição que nunca chegaram a ser cogitadas na sentença que acabou assumindo a
autoridade da coisa julgada.

Urge, pois, distinguir a questão constitucional nunca examinada da que já


foi objeto de decisão judicial pelo órgão competente. Naturalmente, se a argüição já foi
repelida uma vez, por tribunal competente, e a sentença a seu respeito transitou em
julgado, somente por meio de ação rescisória poderá ser reavaliada. É que o Poder
Judiciário já terá feito, de forma definitiva, o controle de constitucionalidade que lhe
competia.

A tese do ataque à coisa julgada por embargos à execução ou por querela


nullitatis prende-se, portanto, às hipóteses de ofensa à Constituição estranhas às questões
anteriormente enfrentadas e solucionadas em juízo. Naturalmente, não teria cabimento
imaginar que, depois de o STF declarar constitucional ou inconstitucional uma lei,
pudesse a mesma argüição ser renovada perante o juiz da execução, em primeiro grau de
jurisdição. O tema, de fato, estaria sepultado pela res iudicata. Inexistiria, naquela altura,
questão aberta sobre a inconstitucionalidade, visto que direta e expressamente rejeitada
por julgamento, definitivo e indiscutível, do Poder Judiciário.

É exatamente o que se passa, também, com a falta ou nulidade da citação.


O devedor pode argüir tal causa de nulidade em embargos, perante juiz de 1ª instância,
mesmo que a condenação, tenha sido confirmada em todos os graus de jurisdição e tenha
alcançado o patamar da res iudicata. Mas, isto somente se admite no pressuposto de o
acórdão exeqüendo não ter enfrentado a questão. Se o réu apela, levando ao tribunal a
argüição de nulidade da citação, e o órgão superior decide a questão, repelindo a defesa,
é impensável aplicar-se o art. 741, para o reexame do acórdão pelo juiz da execução.

Foi nesse sentido que, no terreno da inconstitucionalidade, o STJ em


acórdão de 06.05.2004, da 1ª Turma, autorizou nova avaliação de terras expropriadas
porque o cálculo aprovado pela sentença da ação de desapropriação, transitada em
julgado, adotara equivocadamente critério ofensivo a Constituição113. Com efeito, não
teria sido com base na regra constitucional que a sentença passada em julgado havia
arbitrado a indenização impugnada. Por isso, invocando-se a garantia fundamental da
justa indenização, tornou-se admissível, nas circunstâncias concretas, instaurar-se novo
processo para ajustar a real indenização assegurada pela Lei Maior.

113
“Coisa julgada. Desapropriação. Indenização. Designação de nova perícia visando a justa indenizabilidade.
Admissibilidade, ainda que transitada em julgado a sentença que fixou o valor reparatório. Princípio da res iudicata
que não pode sobrepor-se aos princípios da moralidade pública e da razoabilidade nas obrigações indenizatórias
assumidas pelo Estado” (STJ, 1ªT., REsp 602.636/MA, ac. 06.05.2004, Rel. Min. José Delgado, DJU 14.06.2004, p.
178, Revista de Direito Privado, 19-351).

49
A tese que há bastante tempo vem sendo defendida por nós, não é, de forma
alguma, a que advoga uma abertura ilimitada para sempre manter ao alcance da parte a
rediscussão da questão constitucional. O que, desde o início, defendemos é a gravidade
extrema da ofensa à Constituição a qual, por sua própria natureza, não se compatibiliza
com prazos decadenciais para a necessária e inevitável reparação. O que, em verdade,
pensamos é que a nulidade de um decisório por motivo de ordem constitucional não pode
deixar de ser apreciada, apenas sob o pretexto de ter se esgotado o prazo legal para
propositura da ação rescisória. Em resumo, podemos responder as conspícuas objeções
dos Professores BARBOSA MOREIRA e SÉRGIO BERMUDES, com os seguintes
destaques:

a) a suma gravidade de qualquer ato contrário à Constituição (seja lei, ato


administrativo ou sentença) acarreta a inevitável sanção de nulidade;
b) cabe ao Poder Judiciário a tutela da Constituição e, por isso, não pode se
recusar a apreciar a nulidade dos atos que lhe sejam contrários;
c) se a questão nunca foi apreciada, não é possível furtar-se a Justiça ao
respectivo exame, sob argumento de exaustão do prazo decadencial da
ação rescisória; o caso é de nulidade e não de simples rescindibilidade;
d) se a questão constitucional foi posta em juízo e a seu respeito
pronunciou-se soberanamente o órgão judicial competente, não há como
reabrir discussão em outro processo a seu respeito; consumou-se o
controle judicial da constitucionalidade; somente por ação rescisória
será possível atacar a coisa julgada especificamente formada acerca da
questão constitucional;
e) se a ofensa à Constituição não foi examinada como tal, a coisa julgada
formada em torno de outras questões de direito material não representa
embaraço ao exame pelo Judiciário a seu respeito; a coisa julgada
forma-se sobre as questões decididas e se sobre o tema constitucional
não houve decisão, permanece ele argüível em embargos à execução,
ação declaratória ou qualquer outro processo, inclusive a ação
rescisória, se ainda tempestiva.
f) num só caso a lei admite o afastamento da coisa julgada, sem ação
rescisória, mesmo tendo a questão da inconstitucionalidade já merecido
rejeição expressa na sentença exeqüenda: é quando o Tribunal local
proferiu a condenação com base em lei que posteriormente o Supremo
Tribunal Federal veio a declarar inconstitucional. Em tal confronto, não
é de aceitar-se possa continuar valendo a decisão de instância inferior,
tal a natureza e a função que se reconhecem ao controle da
constitucionalidade das leis desempenhado pelo Supremo Tribunal
Federal. Daí a permissão legal a que o condenado se oponha à execução

50
da sentença inconstitucional, não obstante o seu trânsito em julgado e a
falta de ação rescisória. Os embargos à execução serão adequados e
suficientes para opor ao exeqüente a inexigibilidade da sentença
inconstitucional (CPC, art. 741, parágrafo único), o mesmo ocorrendo
com o incidente de impugnação ao cumprimento da sentença (CPC, art.
475-L, § 1º).
g) às vezes invoca-se um argumento sério de que uma decisão mesmo
inconstitucional, pode ter acobertado numerosas relações jurídicas no
meio social, como, v,g,, ocorre no campo do direito tributário, e sua
tardia invalidação provocaria abalo grave no mercado, em razão do
efeito ex nunc próprio das declarações de nulidade. Em matéria de
inconstitucionalidade, porém, o sistema do direito positivo vigente
contorna esse risco, autorizando, em nome da ordem pública e da
segurança jurídica, que o decreto de invalidação da norma
inconstitucional não tenha, em determinados casos, efeitos retroativos
(Lei n.º 9.868, de 10.11.99 [ADIN], art. 27, e Lei n.º 9.882, de 03.12.99
[Arg. desc. prec. funda.], art. 11).

O que, enfim, não se pode tolerar é que uma questão constitucional, nunca
enfrentada anteriormente, seja afastada do Poder Judiciário por simples decurso do prazo
exíguo na ação rescisória.

14. Conclusões

Em regra, as nulidades dos atos processuais, como bem observa LIEBMAN


“podem suprir-se ou sanar-se no decorrer do processo (...) ainda que não supridas ou
sanadas, normalmente não podem mais ser argüidas depois que a sentença passou em
julgado. A coisa julgada funciona como sanatória geral dos vícios do processo”114.

Adverte, outrossim, o notável processualista que “há, contudo, vícios


maiores, vícios essenciais que sobrevivem à coisa julgada”, afetando a eficácia de seus
efeitos. Assim, contemplando vício grave - como verdadeiramente o é a
inconstitucionalidade -, a res iudicata é “coisa vã, mera aparência e carece de efeitos no
mundo jurídico”115.

114
LIEBMAN. Estudos sobre o processo civil brasileiro, ed. 1947, p. 182.
115
Idem, ibidem.

51
Nestas hipóteses, dá-se o que a doutrina denomina nulidade ipso iure, “tal
que impede à sentença passar em julgado”116. E por isso que “em todo tempo se pode
opor contra ela”117.

Qualquer que seja o sistema processual contemporâneo e por maior que


seja o prestígio que se pretende conferir à coisa julgada, impossível será recusar a
possibilidade de superveniência de sentenças substancialmente nulas, mesmo depois de
esgotada a viabilidade recursal ordinária e extraordinária. À parte prejudicada pela
nulidade absoluta, ipso iure, não poderá a Justiça negar o acesso à respectiva declaração
de invalidade do julgado. Destaca, a propósito, CALAMANDREI118:

“La verdad es que ninguna legislación, ni siquiera las dominadas por el


principio germánico de la validez formal de la sentencia, ni tampoco las
modernamente inspiradas en la aceleración del término de las litis y en al
alacanzar con mayor rapidez la certeza sobre el fallo, pueden sustraerse a
las leyes de la razón y de la lógica; y en obediencia a éstas, debe la
ciencia admitir, aunque se en la medida más restringida, que aun después
de la preclusión de los medios de impugnación, subsistan sentencias
afectadas por la nulidad insanable”.

É diante dessa inevitável realidade da nulidade ipso iure, que às vezes


atinge o ato judicial revestido da autoridade da res iudicata, que não se pode, em tempo
algum, deixar de reconhecer a sobrevivência, no direito processual moderno, da antiga
querela nullitatis, fora e além das hipóteses de rescisão expressamente contemplados
pelo Código de Processo Civil. Para CALAMANDREI, há sem dúvida uma série de
casos que a lei não menciona e que nem mesmo é possível prefixá-los todos num elenco
fechado e restrito, nos quais, em verdade, “la sentenza é inidonea materialmente, si
direbbe quasi fisicamente, a passare in giudicato”119. Diante desse tipo de julgado
visceralmente nulo, - para CALAMANDREI - “il decorso del termine per esperimentare
i mezzi di impugnazione non può avere l’effetto di sanare la nullità e di precludere
l’esercizio della ordinaria azione dichiarativa della nullità insanabile”120.

Por força de igual raciocínio, OVIDIO A. BAPTISTA DA SILVA, é


levado a concluir que a virtude sanatória dos recursos e da coisa julgada “não poderia,
por exemplo, tornar uma sentença contendo dispositivo impossível ou incerto, isenta de

116
LOBÃO. Segundas linhas. I, nota 578.
117
LIEBMAN, ob. cit., p. 183.
118
Vicios de la sentencia y medios de gravamen. In: Estudios sobre el proceso civil, trad. Argentina, Buenos Aires:
EJEA, 1961, p. 463.
119
Soppravivenza della querella di nullità nel processo civile italiano. Rivista di Diritto Processuale, 1951, p. 144.
120
IDEM, ibidem.

52
uma tal nulidade”, de tal modo a tornar-se indispensável o cabimento de uma ulterior
ação ordinária de natureza declaratória. E essa nova ação, como é lógico, “não estará
sujeita a nenhum prazo preclusivo”, e, mesmo que a parte não tenha ventilado o tema no
recurso, “a omissão não impedirá o exercício da ação de nulidade, em qualquer
tempo”121. Pouco importa, portanto, que o prazo de aforamento da ação rescisória (CPC,
art. 495) tenha se exaurido antes de o interessado resolver ingressar em juízo com a
argüição de nulidade ipso iure da sentença que, como no caso sub examine, esteja
contaminada de insuperável inconstitucionalidade.

Com efeito, segundo pacífica orientação em sede doutrinária, “a parte


prejudicada pela sentença nula ipso iure ou inexistente, para se furtar aos seus devidos
efeitos, não precisa usar a via especial da ação rescisória”122. Para tanto, poderá:

a) opor embargos quando a parte vencedora intentar execução da sentença;


ou
b) propor qualquer ação comum tendente a reexaminar a mesma relação
jurídica litigiosa, inclusive uma ação declaratória ordinária, como
sobrevivência da antiga querela nullitatis123.

Muito embora não haja necessidade de se valer da ação rescisória para


obter o reconhecimento do vício sério (nulidade) que contamina a decisão judicial, força
é lembrar que “não será correto omitir-se o tribunal de apreciar a questão, se a parte
lançar mão da ação do art. 485 do Código de Processo Civil. É que as nulidades ipso iure
devem ser conhecidas e declaradas independentemente de procedimento especial para
esse fim, e podem sê-lo até mesmo incidentalmente em qualquer juízo ou grau de
jurisdição, até mesmo de ofício segundo o princípio contido no art. 146 e seu parágrafo
único do Código Civil”124.

Em semelhante conjuntura, a ação rescisória deverá ser conhecida para


declarar-lhe a nulidade absoluta e insanável, eis que, na lição de PONTES DE
MIRANDA, “é o ensejo que se lhe oferece, segundo os princípios”125.

121
Sobrevivência da querela nullitatis, Revista Forense, v. 333, p. 118.
122
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. I, Rio de Janeiro: Forense, 2.000, n. 623,
p. 593.
123
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio. Ob. cit., p. 120-122; FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Ob. cit., v. 42, p. 24-29:
“A sentença existe, mas é nula, podendo ser sua invalidade declarada mediante querela nullitatis, assim como pode
ser rescindida segundo o art. 485, V, CPC, ou ainda, neutralizada em sua execução pela via dos embargos do
executado”. No mesmo sentido: STJ, REsp 26041/SP, 3a T., DJU 13.12.93, p. 27452.
124
Idem, p. 594.
125
Tratado da ação rescisória, 5.ed., p. 148. No mesmo sentido a orientação do Superior Tribunal de Justiça, cf.
RSTJ 96/318.

53
Em suma, a respeito da coisa julgada inconstitucional podem ser extraídas
as seguintes conclusões:

1. O vício da inconstitucionalidade gera a invalidade do ato público, seja legislativo,


executivo ou judiciário;
2. A coisa julgada não pode servir de empecilho ao reconhecimento da invalidade da
sentença proferida em contrariedade à Constituição Federal;
3. Em se tratando de sentença nula de pleno direito, o reconhecimento do vício de
inconstitucionalidade pode se dar a qualquer tempo e em qualquer procedimento, por
ser insanável. O vício torna, assim, o título inexigível, nos exatos termos do parágrafo
único do art. 741 e 475-L, §2º do CPC;
4. Não se há de objetar que a dispensa dos prazos decadenciais e prescricionais na
espécie poderia comprometer o princípio da segurança das relações jurídicas. Para
contornar o inconveniente em questão, nos casos em que se manifeste relevante
interesse na preservação da segurança, bastará recorrer-se ao salutar princípio
constitucional da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, o Tribunal, ao declarar a
inconstitucionalidade do ato judicial, poderá fazê-lo com eficácia ex nunc,
preservando os efeitos já produzidos como, aliás, é comum no direito europeu em
relação às declarações de inconstitucionalidade. É o que se acha atualmente previsto,
também no direito brasileiro, para a declaração de inconstitucionalidade, seja no
processo de “argüição de descumprimento de preceito fundamental” (Lei nº 9.882/99,
art. 11), seja na ação direta de inconstitucionalidade (Lei nº 9.868/99, art. 27)126.

126
“Em nome da supremacia da Constituição como fundamento de validade dos actos surgidos na sua vigência,
logicamente a decisão de inconstitucionalidade deveria adquirir eficácia retroativa ou ex nunc. Todavia, nem sempre
o direito positivo consagra este postulado, podendo estabelecer eficácia só para o futuro ou ex nunc, por exemplo, o
art. 140º da Constituição austríaca, o art. 136º da Constituição italiana, o art. 100º, n. 4, da Constituição grega, o art.
126º da Constituição croata, o art. 161º da Constituição estoniana ou o art. 190º, n. 3, da Constituição polonesa. E
mesmo quando a eficácia é, em princípio ex tunc - pode o Tribunal Constitucional ser ou sentir-se autorizado a fixar
os efeitos com diferente dimensão temporal” (MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de
Janeiro: Foense, 2002, n. 248, p. 506-507).

54

Você também pode gostar