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O Judiciário como Superego da Sociedade

A Jurisdição na "Sociedade Órfã dé Pai"

H á 25 anos, H erb ert M arcu se d iagn osticava o "en v elh ecim en to d a


psicanálise" ou , m ais exatam en te, o envelhecim ento de seu ob jeto.1 N a
fam ília, com o h a sociedade, a im p ortân cia d a figura d o p ai p a ra a cons­
tituição d o eu e das "m a ssa s" retroced e. U m a con sciência in d iv id u al n ão
m ais se form a n a con frontação com o pai dom inante, m âs, em seu lu gar,
entram diretrizes sociais d iretas. A sociedade é cad a v ez m enos in teg rad a
pelo p od er pessoal a cujo titu lar ainda se possa tran sm itir um su p ereg o
de form ação clássica. Os dois p rocessos conduzem a relações em que o
poder n ão é m ais claro e p alpável n a m edida em que, ao m esm o tem p o , a
capacidade de exam e autônom o dos m andam entos sociais to rn a-se cad a
vez m enos evoluída n a socialização individual.
P or isso, a "socied ad e ó r f ã " / de m an eira p arad o xal, p ro m o v e a
infantilização dos sujeitos, cuja consciência de suas relaçõ es d e d ep en ­
dência tam bém d esvanece. A ssim , indivíduos e coletivid ad es p o d em ser
ainda m ais facilm ente d irigid os e tran sform ad os em objetos ad m in istra­
dos p ela legalidade objetiva e pelos m ecanism os funcionais d a so cied ad e
in du strial evoluída.
À prim eira vista, a essa análise de M arcuse p arece se co n trap o r a as­
censão do "terceiro p o d e r" no século X X , no q u alé possível recon h ecer to ­
dos os traços da im agem p atern a clássica. Aqui, não se tra ta sim plesm ente
da am pliação objetiva da função d a justiça pela expansão de seu p o d er dé
interpretação, por um crescen te entusiasm o processual e, esp ed alm en te,

1 H erbert M arcuse, Das Veralten der Psychoanalyse. In: id ., Kultur und Gesellschaft 2 , Frankfurt
a. M . 1965, pp. 85 e ss. Essa análise já se apoia nos trabalhos em M ax H orkheim er (org.),
Autorität und Familie, Paris 1936. N o m esm o sentido, A lexander M itscherlidv A u f dem W eg
zur vaterlosen Gesellschaft, M unique 1973, espedalm ente pp. 307 e ss,
2 M arcuse, loc. d t., p. 96. - Em todo caso, esse excesso de confiança depositado n o Judiciário
tam bém pode ser quantificado em sondagens (nesse caso, relativas à jurisdição constitudo-
nal). Dentre as instituições políticas e sodais da Alem anha, a confiança depositada pela po-
. pulação no Tribunal Constitudonal alem ão atinge a exorbitantem ente taxa de 62% . Para fins
de com paração: as universidades têm apenas 2% e m esm o a televisão recebe apenas 34% da.
confiança da população. Cf. a reprodução da tabela do Instituto de C iêh áas Sodàis A plicadas
em Klaus von Beyme, Institutionentheorie in der neueren Politíkxoissensdutft. Im G erhard Göhler
(org.), Grundfragen der Theorie politischer Institutionen, Opladen 1987, pp. 4 8 -6 0 ,5 5 ,

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Coleção Conexões Jtuidicas OP

pela imposição do controle de constitudonalidade da atividade legislativa


em muitas partes do continente depois da Prim eira e da Segunda Guerras.»
Esse processo também é acom panhado por um entendimento do aflO, %
Judiciário por parte da população que assum e traços de uma veneração
religiosa. Somente em poucos países é possível identificar posições "de es­
querda" e "de direita" diante desse fenôm eno na discussão sobre a justiça. s ^ ie
Assim, na Finlândia, onde o processo de form ação da vontade política, do
mesmo modo que na Grã-Bretanha, até agora, acontece sem nenhum con­
? -£ £ £

U
a
trole de constitudonalidade das norm as, os conservadores reivindicam,
atualmente, a introdução dessa função, enquanto os esquerdistas reúnem
P oEstadolf í
L sa p o sto p W ^
7 todos os esforços argumentativos pará im pedir esse processo. É de conhe­
personalidade do juiz-
a
si cimento geral que a República Federal d a A lem anha não está entre esses [ Na teoria do ctiieitc
1 raros países. Na Alemanha, qualquer crítica d a jurisdição constitudonal dentes exatos nas muitai
u em relação ao legislado
S' realmente existente atrai para si a suspeita de estar situada fora da demo-
1 crada e do Estado de Direito e constitui um a posição exótica mesmo entre por toda aparcela cons
í que, "indubitavelmente
os membros da "Esquerda".4

ill. . As outras funções da justiça tam bém encontram , na Alemanha, paia símbolo de unidade im
I
i além de críticas isoladas de alguns resultados de decisões, uma aprovação titativo", oferecem-se c
geral, que não tem tanto o caráter de u m a ap red ação tímida da garantia seus intérpretes, os juiz
fundamental da liberdade por parte de u m ju did ário hierarquicamente A ascensão do "jui
argumentativasiparaa
7 independente, mas remete àquéles investim entos libidinosos que, de acor­
1 natural raáonalista dc
do com Marcuse, não existem m ais em sè tratan do de titulares de funções
L(
fa despersonalizadas do poder tecnocrático.5
dé*justiça" que impli
ti O retom o mais pronundado da im agem do país parece se delinear
•t (.„) mas um ordenam
na apredação norte-americana dã jurisdição constitudonal. Nos EUA, que
ii mento em plena discu
estabeleceram os fundamentos de um p rocesso esp ed al com a imposição discussão-nãopodei
de um controle de constitudonalidade d a lei já no in íd o do século XIX, o imq
desenvolvimento moderno de toda u m a categoria literária de biografia aripio
de juízes dá indídos desse retom o. A p a rtir d a retrospectiva do século superior; igualmente
XX, a jurispm dênda da Suprem a C orte am erican a estrutura-se após a se revela no "redpie
:a
r sucessão de grandes personalidades de ju ízes que fizeram a história da dade do jurista", prc
Constituição.6
a
e
a
,i 3 A esse respeito, vide infra,
i 4 ("A Esquerda"), partido político alem ão que defende o socialism o democrático e que, atual­
e mente, é o maior representante dos ideais d eesq u crd a n a país.- -
•i 5 Marcuse, h c, citi, pp. 97 e ss.
( 6 Nesse sentido, p. ex., Leon Friedm an e Fred L . Israel (o rg .), The Justices of tlie United St
Supreme Court 1789*1969, Their Lives and M ajor Opinions, N ova York e Londres 1969.

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O Judiciário com o Superego da Sociedade

Os juízes dos tribunais su p erio res ap arecem co m o p ro p h ets, com o


olym pians of the law.7 N as d escriçõ es evid en cia-se m ais d o que a ten­
dência ao biografismo, igu alm en te crescen te em o u tro s cam p os, que n ão
representa senão um a reação im p oten te à fu n gib ilid ad e d a p erson ali­
dade em um a sociedade d om in ad a p o r m ecan ism os objetivos. Õ tra ço
característico dessas b iografias d e ju ízes p arece re sid ir m ais em u m a re­
presentação que, como u m a rep rise d o antigo "esp elh o s d os p rín cip e s",
típica do Estado judicial, d á a im p ressão de que realm en te existiria um
pressuposto para decisões sen satas e ju stas n a fo rm ação esp ecífica d a
personalidade do juiz.
N a teoria do direito do período de W eim ar, en con tram -se corresp on ­
dentes exatos nas muitas fundam entações a um d ireito de controle d o juiz
em relação ao legislador h á pouco dem ocratizado. E rich K aufm ann fala
por toda a parcela conservadora de então dessa d iscu ssão quando julga
que, "indubitavelmente, com a supressão da m onarqu ia, p erd eu -se um
símbolo de unidade im portante p ara o povo alem ão" e que, com o "su b s­
titutivo", oferecem-se os direitos fundam entais d a n ov a C onstituição - e
seus intérpretes, os juízes.8
A ascensão do "juiz re a T *é alcançada p or m eio d as seguintes etap as
argum entativas: para a com preensão dos direitos fundam entais, o D ireito
natural radonalista do ILuminismo estaria u ltrap assad o. O p rin cíp io d a
igualdade dos direitos fundam entais, sobretudo, rem eteria a u m con ceito
d e'"ju stiça" que im plicaria "n ão apenas (...) u m m éto d o p a ra d iscu ssões,
(...) m as um ordenamento m aterial".10 A té aqui está claro que u m p arla­
m ento em plena discussão - e m enos ainda um a op in ião pública em plena
discussão - não poderá, em nenhum caso, servir d e "su b stitu tiv o " p a ra a
figura paterna do im perador. D e acord o com K aufm ann, a ju stiça reivin ­
dicada pelo princípio d a igu ald ad e é, antes, u m a ju stiça d o orden am en to
superior, igualmente p reexisten te à ética e à "co n sciên cia ju ríd ica ", que
se revela no "recipiente im acu lad o" do juiz ju sto. A "in sign e person ali­
dade do jurista", produto d a "ed u cação m o ral", é in d ício até m esm o d a

7 Esses conceitos encontram-se no título e na dedicatória de A lan B arth, Prophets with Honor.
Great Dissents and Great Dissenters in the Supreme Court, N ova York 1974. A dedicatória refere-
-se a Hugo L. Black e a Felix Frankfurter.
8 Erich Kaufmann, Die Gleichheit vor dem Gesetz im Sinne des A rt. 109 der Reichsverfassung. In:
W D StR L 3 (1927), pp. 2 -2 4 ,8 - aqui, baseando-se nas form ulações de Friederich N eum ann.
9 Quanto a esse topos, espedalm ente quanto a teoria do D ireito livre, vide infra.
10 Kaufmann, be. cit., pp. 13 e ss., 11.

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/■iT

Coleção Conexões Jurídicas

existência real de um ordenamento axiológico ju sto, em resum o: "uma


decisão justa só pode ser tomada por um a personalidade justa".»
Nessa via de escape da com plexidade de um a sociedade em que va­
lores objetivos estão sendo questionados, não h á dificuldade em se reco­
nhecer o modelo clássico da delegação do superego. O alívio da discussão
e do processo nos processos sociais e políticos de fo rm ação do consenso,
nos quais, em geral, somente seria possível fazer um julgam ento sobre
normas e representações axiológicas, é alcançado p o r m eio da centraliza­
Í£ ção da "consciência" social no Judiciário.
U O fato de jurisdição e adm inistração da m oral serem aproximadas
Cl
uma da outra nas modernas teorias da tom ada de d ecisão judicial tam­
y
a bém se confirma em conceitos muito m ais exigentes d a atual formação
31 teórica. Ronald Dworkin enuncia o entendim ento totalm ente dominante
•1
U de que, na jurisdição, direito e m oral não podem ser sep arad os. Segundo
5 ' ele, concepções e princípios morais também são diretam en te imanentes ao
1 conceito de direito, ainda que não encontrem nenhum p on to de referenda
í
em textos legais, e devem guiar o trabalho de dedisão ju d irial desde o iní­
cio.12A razão de uma teoria desse tipo, não obstante su a m elh or intenção:
prestar-se a mascarar moralmente um dedsiònism o ju d id a l, é, em gèral, a
indeterminação muito maior de aspectos m orais em com p aração com nor­
mas jurídicas, mas também a relação inexplicada en tre a m oral vinculada
7
ao direito, as convicções morais em píricas de u m a so d ed ad e e a mofai
a pessoal do juiz.
L< Sob a condição expressa de que não se deve ju lg ar nenhum outro
b
grupo sodal, a não ser o dos juízes, com m elhores cap ad d ad es para a
1! argumentação moral, Dworkin acredita poder re so lv e r o dilem a apresen­
li tado transformando o próprio entendim ento do ju iz sob re o que seria o
teor objetivo da moral sodal (com m unity m orality) n o fato r determinante
C
da interpretação judidal.13Assim , contudo, a "m o ra l" que deve diredonar
I. a interpretação do juiz tom a-se produto de su a in terp retação . Assim, a
ti 'V
indusão da moral no direito im uniza a jurisdição co n tra a crítica a qual ela
í i"
a deveria ser tom ada acessíyèl. Ela tem sem pre ao seu la d o u m conceito de
direito ampliado por suas próprias p onderações m o rais.14

£
i 11Kaufmann, loc. cit., pp. 12,22.
i. \ 12Ronald Dworkin, Laws Empire, Cam bridge 1986, pp. 3 e ss.; id ., Taking R ight Seriously,
] 4;,■1 « Cambridge/Mass. 1978, pp. 7 ,8 1 e ss.
* •! T 3‘ Dworkin, Taking Right Seriously, loc. cit., pp. 128 e ss.
í :í 14 A esse respeito e sobre a m oralização da jurisdição em geral, vid e Ingeborg Maus, The
i i;’.i Differentiation between Law and Morality as a Limitation of Law. In: A . A am io et al. (ed.), law and
i Legitimacy, 1989.
■Vt' i
O Judiciário com o Superego da Sociedade

Se a própria justiça eleva-se, desse m odo, à condição de instância


m oral superior da sociedade, ela é subtraída aos m ecanism os sociais de
controle aos quais - no cam p o id eal - tod os os aparelhos estatais de u m a
form a de organização p olítica d em ocrática deveriam se subm eter. N a do­
m inância de um a justiça que exerce um D ireito "su p erio r" m oralm ente
enriquecido em relação a outros poderes estatais que se ocupam u n ica­
m ente-com o D ireito ordinário - e em relação ao resto d a sociedade - é
notória a regressão ào m odelo so d a l pré-dem ocrático de integração.
N a reconstituição desse processo e de suas razões, em que as con ­
dições sociais estruturais devem ser contem pladas do m esm o m odo que
sua sustentação em m ecanism os psíquicos, h á que se analisar, tod avia,
se, neste caso, se trata de um a regressão social com um ou se, antes, n esse
processo, não existe tam bém um a adequação às condições do E stad o ad ­
m inistrativo anoním izado m oderno, que obrigou todas as figuras p ater­
nas à abdicação. Poderia ser que, n o fórum interno daquela in stãn áa que
se entende com o m oral e que é récon h edd a tão incontestavelm ente com o
con sd ên d a de toda a sod edad e, surgissem justam ente os p rindpios do
Estado adm inistrativo, de m odo que a resistente im agem paterna fu n d o -
ne, ao m esm o tem po, com o ponto de referen da da d ássica delegação d o
superego e com o representação de-novos m ecanism os despersonificados
de integração.
Logo, há que se perguntar tam bém : é a justiça, em seu atual m odo d e
fundonam ento, não apenas um a substituta imperial, m as tam bém u m a
substituta dó im perador?

I
O sólido conceito da regressão com o qual se m arca, aqui, o processo
estatal-judidal do século X X na relação com os ideais de autonom ia das
concepções constitudonais do século XVHI necessita, antes de tudo, de
um esdaredm ento a p artir da confrontação histórica. O construtor cons-
titudonal da Revolução Francesa, Em m anuel Sieyès, na fase prim itiva de
sua teoria, enundou exigên d as liberais burguesas ao colocar o "dom ínio
da lei" no lugar da divindade paterna absolutista a ser destituída. Sieyès,
no ano de 1788, argum entou de form a bem expressa que o povo, após
"longa escravidão m ental", p areria não saber que os direitos de liberdade,

existiam antes de todos o s outros, (...) que somente eles-criaram o


Poder Estatal paterno protetor; que este não lhes concede sua p ro­
priedade, m as deve protegê-la; e, p or fim, que todo ddadão tem um
C oleção C onexões Ju ríd ica s

direito inviolável não àquilo que a lei p e rm ite , p o is a lei não tem que
permitir nada, mas a tu d o que ela n ã o p ro íb e . (...) T u d o que a lei não
proft&pncontra-se no âm bito d a lib e rd a d e d o d d a d ã o (.«).“

Entre essas form ulações ap aren tem en te a d itiv a s existe um a relação


íntima. Ela tem por base a p rem issa ce n tra l d e S ieyès d e que somente é
'lei" aquilo que o povo decidiu sob re si m e sm o - u m a pretensão que é
atenuada na teoria de Sieyès, m uito re p re se n ta tiv a , a ce rca d a votação da
lei pelos representantes escolhidos p elo p o v o . E m to d o ca so , a autoridade
protetora, também visada p or Sieyès, é d e sp o ja d a d e se u s traços paternos
clássicos ao coinddir, em geral, com a "p ro te çã o d a le i": e la se tom a "man­
datária" da soberania legislativa d o p o v o .“ A ssim , o "p o d e r estatal pater­
nalmente protetor", do qual Sieyès fala, n ã o é m a is d o ta d o de prioridade,
de moda que os direitos e liberdades d o s "s ú d ito s " se ria m tão somente
decretados por ele.
Pelo contrário, esse poder estatal ap en as d e riv a d o s direitos de liber­
dade prévios dos cidadãos e p or eles é lim ita d o . P o r conseguinte, a rela­
ção entre o poder estatal e os cidadãos é co n stru íd a d e fo rm a exatamente
oposta à família, ainda durante m u ito tem p o d o m in a d a p elo pai.17A con­
cepção democrática de Estado vira d o av esso a s re la çõ e s "naturais": nela,
os "filhos" vêm primeiro, o "p ai" é d eriv ad o d eles.
Essa reestruturação tam bém tem co n seq u ên cias d ecisivas para ape­
lação entre Legislativo e Judiciário. Q u an d o S ieyès afirm a que a lei não
tem "que permitir nada", que, pelo co n trá rio , o âm b ito d a liberdade do
ddadão amplia-se a tudo "que ela n ão p ro íb e ", e stá expressando assim,
antes de tudo, mais uma vez, a p resu n ção d e lib e rd a d e em benefído do
ddadão que, em relação à qual, tod a e q u alq u er a çã o e sta ta l aparece como
intervenção posterior e, p or conseguinte, n a fo rm a n e g a tiv a da' proibição.
Com isso, o âmbito original de lib erd ad e d o d d a d ã o to m a -se tanto maior
quanto menos for "proibido". P or co n seg u in te, d a s p roib içõ es legais deve
se exigir o máximo em precisão, p orq u e q u a lq u e r am b igu id ad e aumenta a
margem de ação do aparelho estatal n a a p lica çã o d as leis. Assim , o poder
de interpretação dos tribunais em relação às leis d e v e se r restringido tanto
quanto possível. M ontesquieu já tem ia q u e, c a so co n trá rio , pudéssemos

15 Emmanuel Sieyès, Ábhandlung ilber ãie Prw ilegien, ed itad o p o r R olf H . Foerster, Frankfurt *•
M. 1968, pp. 23-53.
16 .Sieyès, loc. cil., p. 40,
17 Isso também constitui o núcleo, p .ex., da p olêm ica d e L o ck e com a o b ra Patrutrchia, d eFil^ '

*%n
O Ju d iciário com o Superego da Sociedade

"viver n a sociedade" sem con h ecer exatam ente as obrigações que nela
assum im os".“
D esse m odo, na R evolu ção Francesa, introduziu-se, de fato, o (im pra­
ticável) référé législatif: em caso de obscuridade da lei, os juízes deviam
buscar a interpretação au tên tica d o Legislativo. Por m ais ilusória que a
ideia d a rigorosa vin culação à lei ainda parecesse na p rática ju rídica até
o início deste século, n esse m odelo enundava-se um a ideia enfática de
liberdade, novam ente form ulad a p ór M ontesquieu:

N os Estados despóticos, não existem leis: o próprio juiz é a lei. N a


form a republicana de governo, é condizente com a essên da d a cons­
tituição que os juízes atenham -se à letra da lei.“

E ssa ideia de liberdade n ão pode ser nem reduzida exd usivam en-
te a interesses econôm icos, nem entendida com o m eram ente "n eg ativ a".
Franz N eum ann já m ostrou que a exigênda protoburguesa de rigorosa
vinculação à lei dos aparelhos estatais provém , n a verdade, da necessi­
dade de um a sodedade liberal de concorrênda por previsibilidade das
intervenções estatais que, além da segurança da propriedade, tam bém
garanta a calculabilidade de investim entos econôm icos e de relações de
m ercado, m as que ela con tém u m forte elemento excedente de p roteção da
liberdade não específica de Uma dasse.30 Essa ideia de liberdade só não é
negativa porque, independentem ente de sua variante defídtária rio cons-
titudonalism o alem ão, d a n ão exd u i m eram ente esferas de liberdade de
intervenções estatais, m as tam bém contém a determ inação m aterial dos
d d ad ãos sobre essas intervenções. A ideia de identificar o dom ínio d a lei
com a soberania do poyo (ainda m uito lim itada p or restrições do D ireito
Eleitoral) transform ou o dom ínio em autolegislação.
A rigorosa vinculação dos aparelhos estatais (executivos e) ju d id -
ários à lei,' que é realçad a pela prim azia do Poder Legislativo n a teoria
d ássica da divisão dos p od eres,21 tinha o sentido exdusivo de subm eter
esses aparelhos à vontade d o povo legislador. Assim , desenvolveu-se um
conceito de autonom ia social que encontra seu equivalente individual na

18 Monstesquieu, Vom Geist der Gesetze, org. por Em st Forsthoffc Tübingen 1951, livro XI, cap. 6.
19 Montesquieu, loc. dt., livro VT, cap. 3.
20 Franz Neumann, Der Funktionswandel des Gesetzes im Recht der bürgerlichen Gesellschaft, ln: id.,
P anokratischsMind-autorítãreF Staat, Frankfurt a. M ., 1967, pp. 3 1 -8 1 ,4 8 ,5 0 , entre outras.
21 Nesse sentido, p. ex., John Locke, Two Treatises c f Civil Government, org. por Carpenter,
Londres e Nova York 1966, § 134, ou Immanuel Kant; Die Metaphysik der Sitten, org. por
W eischedd, obras com pletas, vol. 8, p. 431. - Além disso, Franz Neumann, loc. e it, p. 46.

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Coleção Conexões Jurídicas

concepção m oral do Huminismo. A qui, tam bém / sua versão específica das
funções de superego vira do avesso as conclusões do processo "natural"
de socialização. Este último é descrito p or Freu d da. seguinte maneira:

Assim, o superego da criança (...) é estru tu rad o com base no modelo


(...) do superego dos pais; ele se tom a p ortad or da tradição, de todas
as valoraçÕes que resistem ao tem po, que, p or essa via, são perpetua*
dos através das gerações.22

Kant deixa ao critério da "an trop ologia em pírica" a faticidade des­


sa form ação da m oral social e, com o princípio do imperativo categóii-
co, desenvolve, em sua filosofia m oral, u m procedim ento de exame da
possibilidade de universalização de m áxim as d a ação, que deve ser ma­
nejado por cada indivíduo de form a autônom a. N esse sentido, a institui­
ção de um a instância m oral pretende in terrom p er a linha tradicional da
aquisição em pírica da m oral jústàm ente n ão qualificando as expectativas
com portam entais, as norm as m orais e os m odelos éticos socialmente esta­
belecidos como vinculantes e não recom endando sua imitação, mas sub­
m etendo eles m esm os, com o "m áxim as", ao procedim ento de exame do
im pèrativo categórico.23 O sujeito autônom o da filosofia iluminista deve
ser libertado da puerilidade da aquisição da consciência, do mesmo modo
que da orientação paterna no processo p olítico de decisão. De acordo com
essa ideia, ele se com porta em relação aos m andam entos da moral Con­
vencional, com o instância autônom a de "exam e d a lei",24 do mesmo modo
que é conclam ado, nos processos políticos d e criação jurídica, a praticar a
autolegislação.
Ambos os conceitos de em ancipação são fundam entalm ente compro­
m etidos pela elevação do Judiciário à con dição de adm inistração pública
da m oral. A m encionada introd u ção de asp ectos m orais e de "valores"
na jurisdição dota esta últim a n ão ap enas com u m a legitimação supe­
rio r e priva suas decisões de to d a e q ualquer crítica, m as leva também a
u m a liberação do Judiciário em relação a to d as as vinculações legais que,

22 Sigmund Freud, Die Zerlegung der psychischen Persönlichkeit, ln : edição acadêmica, vol. 1, org.
por A lexander M itscherlich et alii, Frankfurt a. M . 1969, p p . 4 9 6 -5 1 6 ,5 0 5 .
23 A esse respeito, com referências correspondentes: Ingeborg M aus, Zur Theorie kt
lnstitutianalisierung.]?ei Kant. In: G erhard G öhler et alii (o rg ,), Politische Institutionen imgesell-
schaftlichen Umbruch. Ideengeschichtliche Beiträge zu r Theorie politischer Institutionen, Opladen
1989, pp. 358-386,364 e ss.
24 Quanto á função da "razão exam inadora da lei" em K ant e H egel, vidè Jürgen Habermas»
Moralität und Sittlichkeit. Treffen Hegels Einwände gegen Kant auch auf die Diskursethik zu? fc
W blfgàng Kuhlm ann (org.), Moralität und Sittlichkeit, Frankfurt a. M . 1986, pp. 16-37.

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O Ju d iciário com o Superego da Sociedade

outrora, d eviam g aran tir o con trole de su a conform idade com a vonta­
de popular. Toda in vocação de u m p rin cip io "su p e rio r" que preceda o
D ireito escrito - se a ju stiça estatal dela se serve - acarreta a derrubada das
disposições legais in divid u ais e a d ecisão d o caso em tela de acordo com
aspectos n ão exp ectáveis.
A ssim , enriquecido p o r asp ectos m orais, o âm bito das "proibições"
legais p od e ser am pliado ao b el-p razer p ara o âm bito das esferas extra-
jurídicas de liberdade. Som ente m ais tard e, p or ocasião de um processo
judicial, é que o cid ad ão tom a conhecim ento do que lhe era "p roibid o"
e aprende, p ara o futuro, a d ed u zir (de form a extrem am ente incerta) das
decisões judiciais o que é "p erm itid o ". Os âm bitos prévios de liberdade
do indivíduo transform am -se, assim , em um produto da atividade decisó­
ria judicial, fabricado caso a caso.
E ssa inversão dos polos das expectativas jurídicas é intensificada n ão
apenas p o r usurpações dos tribunais, m as tam bém pela própria estrutura
da lei. N o D ireito m oderno, é típica a m ultiplicação de conceitos de teo r
m oral, com o "d e m á fé", "inconsciente" ou "con d enável",25 que se tom am
pontos de acesso de representações m orais do juiz nem sem pre racionais,
mas extrem am ente tradicionalistas (ou, no caso da jurisprudência sobre as
m anifestações de bloqueio:26politicam ente arbitrárias).
A expectativa externa que se apresenta ao Judiciário, de que ele fun­
cione com o instância m oral, se expressa não apenas nas demandas de cláu­
sulas jurídicas, m as tam bém na confiança reinante d a população na justiça.
Mesmo um a pessoa que, por exem plo, seguindo um entendimento antiau-
toritárip de educação, evita ao m áxim o um a solução paternalista precipita­
da de conflitos no quarto das crianças, favorece com grande naturalidade
essa m esm a estrutura autoritária de decisão quando se trata da solução de
conflitos sodais. Aqui, o Judidário aparece com o um a instituição que, da
perspectiva do terceiro im pardal superior, propordona um a decisão objeti­
va, neutra e, por conseguinte, "justa" às partes litigantes envolvidas em si­
tuações e interesses concretos. O puerilismo da crença na justiça se expressa
da form a mais d ara nos casos em que se espera do Tribunal Constítudonal
alemão um a correção do próprio com portam ento "cívico". Frequentemente^

25 Àesse respeito, detalhadam ente, W olfgangNaucke, Über Generalklauçeln undRechtsanwendung


im Strafrecht, Tübingen 1973.
26 Trata-se, aqui, de jurisprudência assentada no Tribunal Constitucional alemão, segundo a
qual as manifestações de bloqueio, de vias de-tráfego constituem um a forma de vjolênda
contra a dedsão e a atuação de vontade dos ocupantes dos veículos impedidos de continuar
viagem contemplada no tipo penal do a r t 240, § 1® do Código Penal alemão e podem, por
conseguinte, acarretar a punibilidade nos term os desse dispositivo.

23
Coleção Conexões jurídicas

as exigências de justiça social e de proteção do meio ambiente expressam^


menos no próprio comportamento eletivo, e menos ainda na partídpa^o
em processos sodais não institucionalizados de form ação da-vontade, ma$
na esperança de distribuição desses bens pelo Tribunal Superior.
Mesmo os movimentos dem ocráticos de base, que, segundo seu auto.
entendimento, não renunciam a seus aspectos m orais em prol de aparelhos
estatais, mas os desenvolvem de form a autônom a e os fazem valer contra
estes últimos, participam do crescente entusiasm o processual. Ainda que
não haja dúvida quanto ao fato de processos administrativos, por (exem­
plo, conterem a possibilidade de lim itar os excessos do Executivo, coma
ampliação quantitativa das form as judiciais de arbitragem de conflitos, i
fácü desconhecer de que form a ela atende aos interesses altamente autô­
nomos do aparelho judicial, que tam bém sem pre concorrem . A perspecti­
va severa e branca sobre contextos funcionais frequentemente desenvolvi­
da por teorias tecnocráticas conservadoras, com o a de Luhmann, abrange
este problema:

N a alocação do Direito e do não-D ireito tam bém existe sempre um


elemento de reprodução do sistem a jurídico, um tipo de "excedente"
que - poder-se-ia dizer: explorando a anim osidade das pessoas? -é
absorvido para o sistema.27

N as demandas sociais por um a justiça pronta a expandir-se, encerra*


-se o círculo da delegação do superego coletivo.
A ascensão do Tribunal Constitucional alem ão à posição, por sua
vez, de censor do legislador dá-se através do m ecanism o descrito por
Luhmann. Requisitado sem lim ites pela oposição do momento e, sobretu­
do, inundado p or agravos constitucionais, o Tribunal pratica sua própria
reprodução e, com isso, realiza ú m "exced en te" que vai muito além de
suas já não pequenas com petências constitucionais.
Sobretudo n a fase inicial de sua jurisdição, o Tribunal Constitucional
alemão ocuppu-se prim ordialm ente consigo m esm o ao tratar dos confli­
tos que lhe eram subm etidos. Q uestões litigiosas relativamente insignifi­
cantes, como, p or exem plo, a sincronização úrüca de períodos legislati­
vos ná form ação do "E stad o Sul-O este", são ocasiões aproveitadas pelo
Tribunal para discutir as próprias com petências e os próprios métodos de

27 Niklas Luhmann, Die Einheit des Reditssystems. In: Rechtstheorie 14 (1983), pp. 129-154,144*
- Luhmann fala de "sistem a jurídico" no sentido m ais am plo; o contexto esdaréce, todavA
que, aqui, trata-se espedalm ente da justiça.
O Judiciário como Superego da Sodedade

interpretação constitucional de um a form a que escarnece de toda e qual­


quer lim itação da jurisdição constitucional. O Tribunal afirma com toda a
seriedade que seus critérios de exam e da cohstitudonalidade das leis (ou
de atos relevantes p ara o direito constitucional) não precisam ser obtidos
a partir da Constituição em vigor, m as podem exceder seus horizontes:

O Tribunal Constitucional alem ão reconhece a existência de um di­


reito suprapositivo que tam bém vincula o legislador constitucional e
tem com petência p ara aferir p or ele o direito posto.

Dessa form a, a p róp ria Lei Fundam ental pode se tom ar objeto do
exame de sua própria cónstitucionalidade ou, ao menos, objeto de um a
interpretação "constitucional":

O fato de um a disposição constitucional ser ela mesma nula não está


conceitualm ente excluído, porque ela mesma é parte com ponente da
constituição. Existem preceitos constitucionais tão elem entares e ex­
pressivos de um direito que antecede também a Constituição, que
eles vinculam o próprio legislador constitucional, e outras disposi­
ções constitucionais às quais não cabe tal posição podem ser nulas
porque os infringem .28

Dessa form a, a "com petência" do Tribunal Constitucional alem ão


- como a de qualquer outro órgão constitucional - não deriva m ais da
Constituição, m as a precede. Ela decorre diretamente dos princípios jurí­
dicos suprapositivos que o próprio Tribunal desenvolve em seus critérios
de exam e pré-constitucionais, e, por conseguinte, rompe os limites de toda
"com petência" constitucional.

por ele interpretada e aos princípios jurídicos suprapositivos p or ele afir­


mados, enquanto ele m esm o isenta-se de todas as vinculações jurídico-
-constitudonais.
Legibus solutus, com o um a vez o foi apenas o m onarca absoluto, o
Tribunal Superior, com um conceito de Constituição assim m eneado, está
livre para tratar quaisquer questões litigiosas sodais sobre as quais já exis­
te uma decisão m aterial na Constituição "corretam ente interpretada" e

28 BVerfGE 1 ,14,3 2 e LS 27 (destaque da autora). Com essa opinião, o Tribunal Constitucional ale­
mão adere a decisões do Tribunal Constitucional da Baviera, das quais retoma a última passagem.

25
Coleção Conexões Jurídicas

para disfarçar o próprio decisionism o in vocan d o um "ordenamento de


valores"29tomado como base da Lei Fun dam ental.
Assim, por exemplo, o Tribunal C onstitucion al alem ão, na decisão so­
bre a universidade30sim plesmente deduz, a p a rtir do princípio da igualda­
de e da liberdade científica da Lei Fundam ental, a com posição percentual
"constitucional" de grêmios universitários,31 ou estatu i, na decisão sobre o
aborto, unicamente com base nos princípios con stitucion ais: "A dignidade
do homem é inviolável" (art. Ia, § 1Gda Lei Fun dam ental alem ã), "todos
têm direito ao livre desenvolvim ento de su a p erson alid ad e" (art. 2a, § Ia
da Lei Fundamental alemã) e "todos têm d ireito à v id a ..." (art. 2a, § 2a da
Lei Fundamental alemã) sobre a sutil d istinção entre a regra do prazo e
a regra da indicação: a prim eira é conhecidam ente "inconstitucional" a
última, "conforme a Constituição".32
A desapropriação, por parte do Tribunal Suprem o, dos processos
de decisão dos interesses sociais e de form ação d a von tad e política, bem
como dos discursos morais é alcançada p o r m eio de u m a transformação
fundamental do conceito de Constituição: a C onstituição h ão é mais en­
tendida, como nos tempos da fundam entação racion al e jurídico-natural
da democracia, como prova da institucionalização de processos e de ga­
rantias jurídico-fundamentais de espaços d e liberdad e que afiançam to­
dos esses processos sociais e políticos, m as com o u m texto fundamental,
a partir do qual "escribas" deduzem , com o d a Bíblia ou do Corão, os va­
lores e comportamentos corretos. Em m uitos de seus votos p or maioria, o
Tribunal Constitucional alem ão pratica a "teo lo g ia d a L ei Fundamental".35
Dessa forma, enquanto o quase religioso cu lto do Judiciário por parte
da população corresponde a um a atividade quase religiosa da justiça, o
superego da jurisdição constitucional vai assu m in do cad a vez mais traços

29 A interpretação dos direitos fundamentais com o um "ordenam ento de valores objetivos" é


encontrada desde a BVerfGE 7 ,198. Quanto à crítica, vid e H elm ut Ridder, Die soziale Ordnung
des Grundgesetzes. Leitfaden zu den Grundrechten einer demokratischen Verfassung, Opladen
1975, pp. 50 e ss.; Erhard Mehdi Tohidipur (org.), Vetfassung, Verfassungsgeriditbarkeit, Politik,
Frankfurt a.-M. 1976, pp. 163 e ss.; id., Staatsrecht 2 , Reinbek 1979, pp. 150 e ss., 184; Emst-W.
Böckenförde, Grundreditstheorie und Grundrechtsinterpretation. In: id„ Staat - Gesellschaß *
Freiheit, Frankfurt a. M. 1976, pp. 221 e ss.
30 Em sua "dedsão sobre a universidade" (BVerfGE 3 5 ,7 9 ,1 2 0 e ss.), o Tribunal Constitucional
alemão afirma que o legislador deve tom ar todas as p recauções organizatórias apropriadas
para, na medida do possível e do exigível, evitar decisões que sejam prejudiciais à função ou
que atentem de forma inadmissível contra a livre atividade científica.
31 BVerfGE 35,79. 1
32 BVerfGE 39 ,1 . .
33 Esse conceito foi empregado por Jürgen Seifert, Grundgesetz und.Restauration, Darmstadt e
.Neuwied 1974, p. 12.

26
O Judiciário como Superego da Sociedade

que correspondem ao desenvolvim ento natural da consciência: ele está


se tom ando um portador da tradição, no sentido que Freud dá ao termo.
Em virtude de seus m étodos específicos de interpretação constitucional,
ele atua menos como "guardião da Constituição" e mais como conservador da
história de sua própria jurisprudência, à qual se reporta verdadeiramente de
forma "autorreferendal". H á muito que ela lhe fornece aquelas abreviaturas
de fundamentações que não precisam mais ser prontamente fabricadas, mas
apenas retrospectivamènte indicadas no sistema remissivo. O tradidonalismo
do Tribunal aparece de form a ainda mais dara naquelas argumentações em
que ele se refere à história real sodaL Como ficou demonstrado recentemente,
nas fundamentações das decisões do Tribunal Constitudonal alemão existe
uma ampla recepção da história pré-cònstitudonal "antiga", a "força de vali­
dade do passado" aparece no plano jurídico-constitudonal.34
A preservação da Constituição era tão conciliável com os ideais de
autonomia da Revolução Francesa quanto o direito prim ordial do povò de
modificar a Constituição. Todavia, a preservação da Constituição orienta­
va-se contra a volta do passado (pré-revoludonário), e os próprios rída-
dãos mobilizavam-se com o "guardiões da Constituição". As constituições
revoludonárias francesas, de 1791 e 1793, em última instânda, são confia­
das à "vigilância", ao "am o r" e à "coragem " dé seus ddadãos, ou melhor,
entregues ao cuidado de "todas as virtudes".35 Seja lá o que for que isso
queira dizer exatamentè, de acordo com essas concepções da Constituição,
a função do superego sod al ainda estava nas mãos do povo. Que a prática
revoludonária do poder jacobino levasse,'não obstante, a um a concentra­
ção da "virtude" nas lideranças políticas não era algo que devia decorrer
da Constituição jacobina, m as, inversamente, somente era conciliável com
a suspensão3* efetiva e form al dessa Constituição.

n
No século XX, a evid ên da democrática de que os aparelhos estatais,
como o parlamento, não ppdem ser controlados por um aparelho estatal'

34 Alexander Blankenagel, Tradition u n i Vèrfassung. Neue Vetfassung u n i alte Geschichte in der


Rechtspredmng des Bundesverfassmgsgerichts, Baden-Baden 1987.
35 Título VD, art.8“,§4°da Constituição Francesa de 1791 e art 123 da Constituição Francesa de 1793.
36 O argumento conservador e antirradonalista que, entrementes, também imigrou para a dis­
cussão dè esquerda, quê im puta ào terror das .virtudes da Revolução Francesa.suas estrutu­
ras constitucionais dem ocráticas, menoscaba o simples fato histórico de que a Constituição
Jacobina foi suspensa imediatam ente após sua redação por.representar um obstáculo à real
prática revoludonária.

27
Coleção Conexões Jurídicas

ainda mais superior, mas apenas "de baixo", pela base social, recaiu em
um processo de recalque coletivo. .
Para tanto existem razões que residem também em necessidades eco-'
nômicas vigentes, em deslocamentos do poder político e em condições
funcionais do próprio Judiciário, que se associam a mecanismos sociais li­
bidinosos. A ascensão do Judiciário à posição de últim a instância dácons-
ciência social é acompanhada em todos os ram os jurisdidonais por um
método de aplicação'do direito que não apenas corrige as representáções
de Montesquieu quanto a seus elementos ilusórios, m as também as trai
forma em seu exato inverso. As leis, a despeito de suas respectivas de
sidades regulatórias, são reconheddas apenas com o predições altamei
improváveis e como premissas da atividade dedsória judidal.
Nas teorias metodológicas jurídicas atualm ente dominantes, os pi
cedimentos teleoíógico, analógico, tipológico ou tópico, as orientaçí
pelo objetivo, pélas consequêndas e pelos valores e, por fim, a respectj .
"escolha metodológica" do juiz, entre as concepções concorrentes, fazeir^
praticamente desaparecer a program ação legal da justiça.37 J.
EsSa evolução (cujas determinantes sodais reais ainda estão por ^er
tratadas) é sustentada pôr uma apredação do Judidário por parte da pg-
pulação que parece provir de tempos m uito rèm òtos de um
tipatriarcal da justiça. A confiança ainda existente na funçã i
Judidário de garantir a liberdade, que tinha um últim o ponto, de-eoiítato
real na primeira metade do século XDC, tom ou-se nula em termos objeti­
vos com o disdplinamento brutal e bem -sucedido (!) da justiça feito por
Bismarck e foi negada de forma totalm ente fundam ental pelo tenor extre­
mamente autônomo do Judidário do sistem a nazista. M as era justamente
na fase inidal gloriosa do judidário alem ão que ainda vigorava intacto o
prindpio de sua aplicação formalista do Direito.
Max Weber esboçou com grande d areza essa relação inidal entre in-
dependênda material do Judidário, garantia da liberdade por parte da
jurisdição e aplicação formalista do direito:

Sob determinadas drcunstândas, os juízes, p or razões ideológi­


cas, por solidariedade corporativa, algum as vezes, também por ra­
zões m ateriais, form aram um a oposição m uito forte contra poderes

37 Dentre as num erosas abordagens da m etodologia jurídica, vide apenas Karl Larenz,
- Methodenlehre der Rechtsioissenduift, Berlim, H eidelberg e N ova York 1969, ou Josef Esser,
Vorverständnis -und Methodenwahl in der Rechtsfindung, Frankfurt a.‘ M . 1970. Quanto à cri­
tica dos défices das atuais teorias m etodológicas sób o aspecto do Estado de Direito, vide
Friederich Müller, Juristische Methodik, Berlim 1976.

28
O Judiciário como Superego da Sociedade

patriarcais. A sólida e regrada certeza de todos os direitos e deveres


externos parecer-lhes-á um bem desejável em seu próprio interesse,
e essa base especificam ente "burguesa" de seu pensamento condicio­
nava seu respectivo posicionam ento nas lutas políticas pela conten­
ção da arbitrariedade e da benevolência patrim oniais autoritárias.3*
i

Contra as tendências patriarcais de toda justiça patrim onial-princi­


pesca descritas por M ax W eber, o form alism o jurídico constituía o recurso
de poder autônomo da oposição judiciária. Contra as pretensões de um a
"justiça de gabinete", que se baseava em intervenções principescas diretas
relativas a "princípios m ateriais do ordenam ento social" e produzia deci­
sões "segundo a livre discridonariedade, de acordo com aspectos ligados
à m odiddade, à conveniênda e à política",39 o Judidário somente podia
impor sua independênda m aterial apelando para sua "vinculação legal".40
Sejam lá quais fossem os interesses próprios do Judidário nesse em bate,
seu form alism o jurídico lim itava a arbitrariedade patrimonial do príndpe.
Em contrapartida, com o constatou M ax Weber, "o vigoroso ren asd-
mento condidonado por fatores econôm icos" dos ideais jurídicos m ateriais
no século XX levou ao "enfraquecim ento da posição de oposição dos juris­
tas enquanto tais"; a d asse dos juristas pesa "m ais do que nunca no prato
da balança do ordenam ento".41 N a atualidade, esse fenômeno com pletou-
-se com a assunção por parte do Judidário, com a manipulação autônom a
de aspectos axiológicos m ateriais, até mesmo daquelas funções patriarcais
contra as quais ela outrora se opôs em nom e do formalismo jurídico.
A p artir da introdução tardia do parlam entarism o, na República
de W eimar, a. relação interna, entre vinculação legal e independênda do
Judidário ganha um a dim ensão ainda m ais nítida, que se evidenda jus­
tamente em sua diluição. O Judidário "fetichiza" sua independênda no
sentido de exigêndas político-còrporativas42 e, ao mesmo tem po, exige
a independênda tam bém do legislativo recém -dem ocratizado ao negar

38 M ax Weber,' Wirtschaft und Gesellschaft, Tübingen 1956, p. 643.


39 Weber, loc. d t., p. 622.
40 Essa situação destacada por M ax Weber aparece na literatura atual, em parte, como histori­
cam ente superada - nesse sentido: Dieter Simon, Die Unabhängigkeit des Richters, D arm stadt
1975; em parte, em dimensão atual - nesse sentido: Eeatrice Caesar-Wolf, Der deutsche Richter
am Kreuzweg zwischen Professionalisierung und Deprofessionälisierung. In'. Stefan Breuer e
Hubert Treiber (org.), Zur Rechtssoziologie Max Webers, Opladen 1984,. pp. 199 e ss., 214 e ss.,
onde as pretensões político-coiporativas de autonomia do Judiciário, validamente criticadas-
por Simon, são tratadas de m aneira m ais afirmativa.
41 Weber, loc. dt., p. 643.
42 Vide Dieter Simon, loc. d t., pp. 47 e ss.

29
Coleção C onexões Jurídicas

fundamentalmente a "vin cu lação le g a l" d este ú ltim o .43 Enquanto, nessa


época, a teoria jurídico-positivista e fo rm alista d a a p lica çã o .d o direito é
defendida apenas pelos poucos d efensores "re p u b lica n o s" da discussão
metodológica de W eim ar,44a teoria d om in an te d efen d e a liberdade do juiz
perante a lei em dois aspectos: ela ap oia com g ra n d e d isp ên d io argumen-
tativo as decisões do Tribunal do R eich n os an os 1 9 2 0 , n as quais este, pela
primeira vez na história da ju stiça alem ã, co n ce d e u -se u m direito de exa­
me judicial em relação às leis d o R eich e d efen d eu , d e fo rm a geral, um
direito de exame "difuso", p or p arte d e to d o s o s trib u n ais, d a constitudo-
nalidade das leis (uma função que, n a A lem an h a, foi, a o m esm o tempo,
legalizada e centralizada no Tribunal C on stitu cion al).. .
Além disso, a teoria dom inante d efende - e d e fo rm a ain d a mais sig­
nificativa - uma nova am pliação do cânone m e to d o ló g ico jurídico, que
permite à justiça decidir ela m esm a, em ca d a ca so , se q u er se reportara
uma lei (inclusive reconhecida com o "co n stitu cio n a l") o u a prem issas e a
aspectos autônomos. Com a com binação de to d o s esse s asp ectos de "inde­
pendência", esta se converte em absolutism o d o Ju d iciá rio - predsamente
no momento a partir do qual o Ju d iciário d eve ju d ica r n ã o m ais "em nome
do rei", mas "em nome do p o v o ".45
Contudo, o posicionam ento d a m aioria e sm a g a d o ra dos juízes ale
mães contra o parlam ento, con tra a p olítica p a rtid á ria e, m ais ainda, con­
tra organizações de interesses sociais vem sen d o p re p a ra d a desde o inído
do século. Ainda nos anos do Im pério com eça u m a d ecad ên cia dos juizes,
sobretudo ao serem cada vez m ais p reterid os em seu s vencim entos, fican­
do atrás de m ilitares e de funcionários da a d m in istra çã o , enquanto, ao
meámo tempo, a im portância da ciência d o d ireito e d a ju risd ição decresce
perante a crescente influência d o P arlam en to n a e ra pós-bism arckiana.«
Os juízes sentem -se d esap rop riad os n ã o ap en as d o p on to de vis­
ta social, mas tam bém fu n d on àl, e reag em e x a sp e ra d o s à exigênda de
servirem de "serviçais de artig o s" à co d ificação d o C ó d ig o C ivü alemão,
que entrara em vigor em 19Ó0, m as, sob retu d o , a leis iso lad as de matizes
"político-partidários". N esse in teresse p o lítico -co rp o ra tiv o harmonizam o
"m ovimento do D ireito liv re ", d o lib eral ao d e e sq u erd a, e a Assodaçao

43 A esse respeito, Karl F. Kübler, D er deutsche Richter und das dem obatische Gesetz, Im AcP 162
(1963), pp. 104-128; Bernd Rüthers, D ie unbegrenzte A u slegun g, F ran k fu rt a, M . 1973.
44 A esse respeito, Ingeborg M aus, Bürgerliche Rechtstheorie und Faschism us, Z u r sozialen Funktion
und aktuellen Wirkung der Theorie Carl Schmitts, M unique 1980, p p . 2 7 e ss.
45 Em st Fraenkel, Z ur Soziologie der Klassenjustiz. In: id ., Z u r Soziologie der Klassenjustiz uni
Aufsätze zur VerfassungskriBe 1931-32, D arm stad t 1968, p. 8.
46 Cf. a esse respeito Kübler, loc. d t.

30
O Judiciário com o Superego da Sociedade

dos Juízes alem ães, q uan do o prim eiro, em 1906, por exem plo, serve-se
da mais alta cu ltu ra p olítica dos juízes contra "os agentes partidários que
atuam com o legislad o res"0 ou a últim a, quando, em 1912, entre outros,
declara: "q u and o a m açan eta d o Legislativo é mais facilmente alcançada
pelo m aior agitador, com o ainda h á de ser a lei considerada com o algo
que se deve ter em alta con ta ou m esm o respeitada como algo sagrad o".4*
Por conseguinte, am bos os grupos reivindicam um a ampla liberdade do
juiz em relação à lei assim constituída: os teóricos do direito livre, ao ca­
racterizarem de form a bastan te aberta a possibilidade de relacionar a de­
cisão judicial com um a n orm a jurídica positiva mais como uma exceção
improvável;49os protagonistas da A ssociação dos Juízes alemães, ao redefi­
nir o conceito da vinculação legal, atribuindo à própria lei a desejada flexi­
bilização do D ireito.50N o âm bito dessas reflexões, a Associação dos Juízes
vai cedendo cad a vez m ais em sua reticência em entender-se com o um a
organização profissional de interesses, e os partidários do movim ento do
direito livre aspiram a um "rei-juiz" que não apenas atue legibus solutus,
como tam bém seja singularizado por "u m salário totalmente diferente".51
Essas argum entações contêm um a dimensão metafórica em que a
"tópica" psíquica dos m ecanism os de integração política é redeterm inada.
Embora os próprios interesses m ateriais dos profissionais da justiça sejam
discutidos de form a direta, apenas o parlamento aparece como represen­
tante dás m oções pulsionais contra cujo transbordamento o Judiciário'é
empregado com o censor. !
Os lam entados d efid ts de com petência técnica do Parlamento, a es­
trutura com prom issórià de suas leis, ria qual se reproduz o antagonismo
dos interesses sodais> a consequente particularização das m atérias jurídi­
cas individuais um as em relação às outras, que ameaça, cada vez mais, a
conectividade interna e a unidade do sistem a jurídico: tudo isso desafia a
um autoentendim ento do Ju d idário segundo o qual ele deve produzir a
síntese sodal, para além da "querela partidária", e a unidade do direito,
independentemente das leis conectadas a interesses. Dessa forma, o juiz
toma-se juiz d a própria lei, que, em seu aspecto real, é "desm ascarada

47 Hermann Kantorowicz, Der Kampf um die Rechtswissenchaft (1906), In: Rechtswissenschaft und
Soziologie. Ausgewählte Schriften zur Wissenschaftslehre, Karlsruhe 1962, p. 38.
48 Hesse sentido, no jom al da Associação dos Juízes Alemães, o Deutsche Richterzeitung (DriZ),
1912, col. 1; dtado em K üblet loc, d l., p. 111.
49 Emst Fuchs, Was will die Freirech tsschule? (1929). In: id., Gerechtigkeitswissçnschaft- Ausgewählte
Schriften zur Freirechtsschule, Karlsruhe 1965, pp. 21 e ss. (27).
50 DRiZ 1909, col. 91; 1913, col. 569 e ss., 693 e ss.
51 Fuchs, loc cif., p. 35.

31
C oleção Conexões Jurídicas

com o produto e instrum ento técn ico de u m acord o de interesses"9 e


sum o sacerdote de um a n ova "sacralid ad e" d o d ireito supraposítivo não
escrito. N essa qualidade, está en carregad o d a fu n ção central da síntese da
heterogeneidade social.
D a d iscu ssão m eto d o lóg ica ju ríd ica d e e n tã o até a atual mantém*
-se firm e a p ersp ectiva d e que a ciê n cia d o d ire ito e a prática jurídica
ju d icial, d ian te do. caos d a p ro d u çã o ju ríd ica in filtrad a pela sociedade
e d a d iferen ciação in tern a e d a in co n sistê n cia d a lei, são chamadas a
fom en tar a unidade p or m eio do m éto d o ju ríd ico . Sob as fórmulas da
"u n id ad e do d ireito" è d a "u n id ad e d a C o n stitu içã o ", que, cada uma
p or si, n ão constituem a som a d as n o rm as ju ríd ica s individuais, mas
o p ro d u to d a sistem ática axio ló g ica ju ríd ica ,53 sã o exp ostas as reivin*
dicaçÕes de que se dê um fim aos an tag o n ism o s de interesses sodaís
que estão n a base do asp ecto real d a lei. N e ssa fu n ção de ordenação
da ju stiça é possível id en tificar u m a sim b ó lica que rem ete à integração
p síq u ica d as pulsões p arciais.
A s reivindicações dirigidas ao Ju d iciário no sistema- nazista conec­
tam -se im ediatam ente ao autoentendim ento que a justiça desenvolveu
antes de 1933. A própria acum ulação, no d ireito n azista, de fórmulas li­
gadas à com unidade e ao bem -estar com um que perm item , conforme a
necessidade, desconsiderar dispositivos ju rídicos individuais em prol de
finalidades com unitárias "su p eriores" já é a exp ressão da ideologia déque
o povo alem ão form aria, no n ad o n al-sod alism o , um a nação em que as
antigas clivagens sodais e os antigos conflitos entre grupos estariam abo­
lidos.54 Foi tam bém nesse sentido que se exp ressou um a autêntica auto-
co n sd ên d a da justiça alem ã quando, já em 19 de m arço de 1933, em uma
declaração d a direção da A ssociação dos Juízes alem ães, que depositava
"to tal confiança" em HiÜer, form ulou-se:

"O juiz alem ão sem pre foi n ad o n alista e con sd en te de sua respon­
sabilidade (...) ele julgou apenas segu nd o a lei e (!) a consdênda (!).
(...) Possa a grande obra da con stru ção do E stad o dar logo ao povo
alem ão o sentim ento de p erten ça in co n d id o n al!"55

52 M ax Weber, loc, cit., p, 642; vide tam bém p. 656. ■


53 Para a atualidade, d ., quanto a esse problem a, Friederich M üller, Die Eirikeit ier Verjassmfr
Berlim 1978. ........................... " ..................... .........
54 Cf. M ichael Stolleis, Gemeinwóhlformdn im natiomlsozialistischen Recht, Berlim 1974.
55 DRiZ 25 (1933), pp. 121 e s s ,‘~ R eproduzido em M artin H irsch, Diemut Majer e Jürgen
Meinck (org.), Recht, Vem altung und Justiz im Nationcilsozialismus, Colônia 198, pp. 171 e s®>
O Ju d iciário com o Superego d a Sociedade

A ssim , m ais tard e, n o in teresse de u m a p rática ju ríd ica consistente, a


dênda do direito alem ão sau d o u a "cria çã o d e u m sistem a axiológico uni­
tário" p or parte d o N ad o n al-S o cialism o que pun ha fim à an terior con cor-
rênda so d al entre diferen tes sistem as axiológicos, con sid eran do esse ato
como um a confirm ação d as fu n ções do Ju d id ário an teriores a 1933: "E ssa
busca do direito ap licável co n stru iu (...), p or trás das cláu sulas gerais dos
bons costum es, do sentim en to d e tod os aqueles que pensam de form a ju s­
ta (...)" in du sive nos tem p os d a n eu tralid ad e axiológica, u m sistem a axio­
lógico que, b aseando-se n u m a atitu d e fundam ental nacional-liberal-con-
servadora concretizou, em u m p ovo doente, um a boa p arte de sentim ento
nacional sadio. A o m esm o tem p o, nessas form ulações m oralizadoras fica
daro que o critério do "sen tim en to n ad o n al sad io ", introduzido no direito
poial n azista com con seq u ên d as d evastadoras, não é, acaso, um critério
empírico. O juiz não tem que atu ar com ó p orta-voz de u m sentim ento
nadonal qualquer, m as en sin ar a u m povo "d oen te" um sentim ento "sa ­
dio" - é justam ente n isso que consiste sua função de superego. N em o
próprio conceito p ressu posto d e p ovo é em pírico: quando o juiz - com o
formulam as "C artas aos Ju ízes", publicadas pelo M inistério da Justiça do
Reich desde 1942 - é em p regad o com o "p ro tetor dos valores de um povo e
(...) destruidor dos d esv alo res",* o povo tom a-se, com o "u n id ad e", com o
povo "verd ad eiro", o objetivo e o p rod u to d a atividade d ed só ria judidal.
O antipositivism o e o antiform alism o rudes da doutrina nazista jde
aplicação do direito57 coad u n am -se com a lógica de tais descrições de
funções. ÍJm a correta ap licação m esm o do recém -criado direito nazista -
contanto que ele, de fato, contivesse diretrizes "ap licáveis" p ara a justiça
- seria apenas im peditiva p a ra o desenvolvim ento do terro r judidal n o
sistema nazista.51
D iscrim inações politicam ente m otivadas no tratam ento de cada caso
individual, com o se pedia en tão, h ão são conciliáveis com a vinculação a
uma "lei", de qualquer n atu reza que seja, que esteja em vig or h á m ais de
um dia. A ssim , n as "C a rta s aos Ju ízes" nazistas, a personalidade do juiz
surge, com grande firm eza, com o u m a im portante garantia para a juris­
dição "co rre ta ": suas tarefas "som en te podem ser cum pridas p or pessoas

56 Richterbrieß. Dokumente zur Beeinflussung der deutschen Rechtsprechung 1942-1944, org. por
Heinz Boberach, Boppard am Rhein 1975, p . 5.
57 For razões que ainda serão tratad as, esse fenômeno ainda é am plam ente desconhecido na
atualidade. A esse respeito, com rem issões: Ingeborg M alis, "Gesetzesbindung" der Justiz und
die Struktur nationalsozialistischer Rechtsnormen. In: Ralf D reier e W olfgang Sellert (org.), Recht
und Justiz im "Dritten Reich", Frankfurt a. M . 1989,
58 A respeito de que esse tam bém não era o caso, vide M aus, "Gesetzesbindung". .

33
Coleção Conexões Jurídicas

livres, interiormente d aras e decentes, sustentadas p or um a grande cons-


d ên d a de responsabilidade e por um a grande satisfação com a responsa­
bilidade", o corpo de juízes deve rep resen tar u m a "seleção da nação"»
N á literatura jurídico-dentífica dos tem pos do N azism o afirma-se de
m odo lapidar: O "juiz real (...) no povo de A dolf H itler, deve sair da es­
cravidão das letras do direito p ositivo"." A s "C artas aos Juízes" também
advertem a visada elite dos juízes para "n ão se servirem escravízadamen-
te das muletas da le i"/1 todavia, elas tam bém estatuem que o juiz assim
singularizado é o "auxiliar direto do govern o".62
N a realidade, aqui, à relação lógica entre vin culação legal e indepen­
dência do Judiciário é evidenciada precisam ente em su a completa des­
truição. Somente uma justiça que não pode m ais d edu zir a legitimação ,
de suas decisões a partir da lei em vigor é que se to m a absolutamente de­
pendente de necessidades políticas e situacionais e degenera-se em apên­
dice do aparelho adm inistrativo. Esse p rocesso foi conduzido por meio
de um a m oralização problem ática dos conceitos jurídicos. Assim, também
em 1942, quando da pior perversão da justiça alem ã, pronundava-se a ’
bela frase:

"O juiz é a encarnação da consciência viva d a n a çã o ".63

m '

Entre os processos mais notáveis do p ós-gu erra está o daquele grupo


profissional, em que cada consciência individual tinha sido recalcada de
form a espedalm ente bem -sucedida, ter podido reforçar su a posição como
instânda central da con sd ênd a sodal.
Nem durante as deliberações sobre a L ei Fundam ental, nem mais
tarde, é possível identificar um a ten d ên d a em se d ar im portânda à sub­
missão voluntária do Ju d idário nazista, quanto m enos às suas condi­
ções fundonais específicas. De qualquer m odo, isso chegou a tal ponto
que m esm o o M inistério da Justiça do R eich, em 1942, n as mendonadas
"C artas aos Juízes", censurou cerca de u m terço das d ed sões da justiça da

59 Richterbriefe, loc. cit., p. 6.


60 Anônimo, Ein neues Regiment hat ein altes und krankes Zeitalter beseitigt. I«: JW 63 (1934), pp.
1881-1883,1882. '. ~ .
61 Richterbriefe, loc. cit., p. 6; do mesmo m odo, pp. 5 ,2 9 ,3 9 ,4 2 ,4 7 ,8 8 e outras vezes.
62 Richterbriefe, loc. cit., p. 6. ’
63 Richterbriefe, loc. cit., p. 6.
O Judiciário com o Superego da Sodedade

época discutidas a título de exem plo, porque o quantum das penas estipu­
ladas era dem asiado alto.
Após 1945,64 a vigorosa continuidade pessoal do Judiciário alem ão
explica a forte influência das n oções antigas nas deliberações sobre a
Lei Fundam ental. Os anseios do Judiciário encontraram acesso n a L ei
Fundam ental, diretam ente, p o r m eio da grande participação de juris­
tas nas deliberações da A ssem bleia de H errenchlem see e do Conselho
Parlam entar, e, indirètam ente, p o r m eio de um lobby regular das org a­
nizações de interesses jurídicos, dentre outros, da renascida A ssociação
dos Juízes alem ães.45A com petência do Judiciário para exam inar a con stí-
tudonalidade das leis, introduzida na C onstituição pela prim eira v ez n a
história da Constituição álem ã, e a centralização dessa com petência n o
Tribunal Constitucional alem ão fazem parte das m atérias tratad as "co m
unanim idade" na Assem bleia de H errenchiem see.
.Até mesmo nas form ulações individuais da Lei Fundam ental, a
Assembleia de Herrenchiemsee tinha a preocupação de que "justam ente a
personalidade do juiz devia ser espedalm ente evidenciada (em relação à ins­
tituição do Judiciário)",“ e, sobretudo, despertou-se o interesse do. Conselho
Parlamentar para a ideia da independênda pessoal do juiz por meio de pe­
tições, dedarações e audições de juízes. Suas módicas tentativas inidais de
garantir não apenas a "proteção do povo através da independênda da jurisdi­
ção", m as também uma "proteção do povo em relação ao abuso da indepen-
dênda dos tribunais"47submetiam-se às exigências do lobby dos j u í z e s . *
Essas exigêndas foram fundam entadas com a surpreendente refe-
rênda ao Estado de não D ireito d o N azism o, con tra o qual havia que se
restaurar u m Estado de D ireito, que seria idêntico com à garantia de u m
judidário livre de todo controle e vinculaçao - sob essas d rcu n stân d as, a
mera continuidade do entendim ento m etodológico jurídico após 1945 era
inevitável.“ Hoje, ele pode ser resum ido na seguinte frase con du den te:

"A lei obriga seus d estinatários, n ão os seus intérpretes".“

64 A esse respeito, recentem ente, Ingo M üller, Furchtbare Juristen<Die unbm&tigte Vergangenheit
Unserer Justiz, Munique 1987.
65 Quanto ao que se segue, vide W erner Sörgel, Konsensus und Interessen. Eine Studie zur
Entstehung des Grundgesetzes fü r die Bundesrepublik Deutschland, Stuttgart 1969, pp. 134 e ss.
66 Citado em Sörgel, loc. d t., p . 150.
67 Quanto a essas formulações, vide S ö rg e l,/o c.rit., p. 150. ... . . ..
68 A esse respeito, IngeborgM aus, Juristische Methodik und JustizJunktion im Nationalsozialismus.
In: ARSP, suplemento 18 (1983), pp. 176*196, com referências.
69 Klaus Adom eit, artigo Juristisdie Methode. In: A xel Görlitz (org.), Handlexikon zur
Rechtswissendiafl, Munique 1972, p . 217-222-220; vide também nota 34.

35
C oleção Conexões Jurídicas

Esse processo tam bém foi su stentad o p ela continuidade pessoal nas
Faculdades de Direito. A queles que ali lecionam , assim com o os profissio-
nais d o Judiciário, continuaram tendo o p o d er de su p erar o próprio pas­
sado, e, dessa form a, con seguiram , depois d e 1945, im p u tar a submissão
da justiça sob o regim e n azista à m esm a d ou trin a jurídico-positivista de
ap licação do D ireito que eles h aviam com b atido en tre 1933 e 1945 como
sendo um substitutç do E stad o.7®A ssim , foi ain d a m ais fácil justificar a
extrap olação efetiva da d ou trin a an tifon ü alista com o u m a "retomada ca­
racterística do Estado de D ireito ".
Esse processo de recalque b em -su cedid o n ão p od e ser esclarecido de
form a definitiva por m eio de situ ações p essoais, nem tam pouco está limi­
tad o à ciência do direito e à ju stiça n a assu nção da defesa de interesses cor­
porativos; ele faz parte da atitu d e de tod a a socied ad e alem ã. Na medida
em que os conhecim entos sobre o ju diciário n azista continuam sendo, em
geral, vagos, os argum entos ap resentad os p elo Ju d iciário e pela dênda do
d ireito após a guerra são aceitos p o r u m p úb lico am plo; eles fazem parte
dos princípios centrais d a rèligion d v ile do atu al ente estatal.
E m razão de um a certa h erm ética d as m atérias jurídico-científicas,
p raticam ente não é possível ob ter u m p oten cial crítico d e outras disci­
plinas científicas. O psicanalista, sobretudo, faz q uestão de não susdtar
nenhum interesse pelo D ireito: pois ele é gu arn ecid o, justam ente em sua
estru tu ra form al, com um a sim bólica p síq uica que rem ete às abstrações da
socialização "an al-cap italista". T odavia, o fato de as abstrações do direito
form al funcionarem , em seu m o d u s op eran d i real, de m odo a manter o
ap arelh o estatal a distância e a im p ed ir in terven ções "con cretas" e, por
conseguinte, arbitrárias, em âm bitos sociais d a v id a,71 perm anece mais fe­
chad o a um a p erspectiva fixad a em d im ensões sim bólicas.
Tipicam ente, essa visão d as coisas é com b in ad a com a noção de que
u m a estru tu ra jurídica form al d om in a ain d a hoje, enquanto, no século XX,
ela, d e fato, sucum be aos p ro cesso s exp o sto s de extrem a erosão. A par­
tir d essa perspectiva, fica m a sca ra d o o fato d e que, sob as drcunstândas
atu ais, a exigência da v in cu lação ju ríd ico -fo rm al d os aparelhos estatais
assu m e u m caráter quase an arq u ista. M u itas d iscu ssões dentífico-sodais
e in terd isd p lin ares sobre "a lte rn a tiv a s a o d ire ito "71 tam b ém supõem que,

70 A esse respeito, em detalhes, M aus, Gesetzesbindung,


71 À esse respeito e sobre o que se segúé, m ais detalhes em. M aus, Rechlstheorie und politisch*
Theorie im Industriehtpitalismus, M unique 1986, pp. 2 7 7 e ss„ 300 e ss.
72 E rhard Blankenburg, entre ou tros, (o rg .), Alternative Rechtsformen und Alternativen zum ReM
Jahrbuch fü r Rechtssoziologie und Redhtsthearie, vol. 6, O pladen 1980,

36
0 Judidário com o Superego dã Sodedade

na verdade, poder e domínio, na realidade, não emanam dos aparelhos


estatais, m as da própria lei escrita.
Por conseguinte, seria possível, sem perda da liberdade, adaptar as
funções estatais a mecanismos extrajurídicos de integração ou m esm o es­
gotar os potenciais estatais de poder privando-os de suas "bases" legais.
Aqui, desconsidera-se o simples fato de que o desenvolvimento do poder
estatal não depende em absoluto de norm as legais de,autorização. Com o
bem m ostra o desenvolvimento do sistem a nazista, o terror político aberto
é impedido justamente pelo direito form al. Todas essas distorções da atual
discussão fazem , afinal, com que os componentes da m encionada religion
civüe também sejam encontrados nos conceitos alternativos. Assim, p or
vezes, o Judiciário, a mais autêntica de todas as funções estatais, que deci­
de sobre o emprego real dos recursos físicos do poder do Estado, aparece
como instituição "sodal".73
Essa conclusão inclina à suposição de investimentos libidinosos. Se,
na República de Weimar, o presidente do Reich ainda funcionava com o
imperador substituto visível, na República alemã o recém -criado Tribunal
Constitucional parece ter ocupádò o lugar do imperador. À ascensão do
Judiciário, desde a metade dos anos 1920, teria chegado, assim, a um a
conclusão provisória. Consequentemente, a libido social transform ar-se-
-ia de chefe do aparelho executivo em líder do judiciário. Se a evolução
da consciência política deve ser descrita desse modo, todavia, ela tem p o r
base condições sociais objetivas que atenuam essas inequivoddades. !
Contra o "domínio despersonificado da lei" e sua base dem ocrática,
o Judiciário havia novamente valorizado fortes elementos do domínio pa­
triarcal e da decisão autônoma situadonal ao relativizar m atérias de leis
individuais envolvendo convenções m orais e "valores". N a autoencena-
ção, com o instânda moral, está sua oferta para a delegação do superego,
por assim dizer, seu lado voitadò para a libido sodal. Todavia, o output
decisório fático sequer chega perto de corresponder a esse autoentendi-
mento e às expectativas sodais. Isso se aplica não apenas a dedsões im o­
rais, mas tanjbém no que diz respeito à ambivalência dos conceitos m of ais
do repertório de fundamentação das dedsões dos tribunais.
Nas norm as do direito "liv re", invocadas pelo movim ento do direito
livre contra o direito positivo, já se esboçava uma dubiedade. Elas foram
empregadas, por um lado, com o norm as da justiça sodal, m as, por outro,

73 Karl-Heinz Ladeur, Vom Gesetzesvollzug zur strategisdien Rechtsfortbildung. In: Leviathan 7


(1979), pp. 339-375; id., "Abw ägung*-ein neues Rechtsparadigma?. In: ABSP 69 (1983), pp. 463-
483,473.

37
Coleção Conexões Jurídicas

também como prindpios im anentes às relações sod ais fáticas” e até com
a im portânda de m eros m ecanism os fundonais: assim / em Emst Fuchs,
o corretivo superior das leis do D ireito já constitui o "efeito natural das
leis econôm icas" ou, com o ele form ula de m odo lapidar: "A jurisdição &
vre consum a-se de m odo tão legal quanto a livre form ação do mercado".*
Aqui, já se encontram legalidades m ateriais que, segundo Marcuse, ocu­
param o lugar de com petêndas m orais de orientação pessoal como dire­
trizes diretas da sodedade industrial arionim izada.
Esses imperativos fundonais penetram n a jurisprudênda do Tribunal
Constitudonal alemão justam ente p or estarem diretam ente ligados a con­
ceitos jurídicos moralmente enriqueddos. A conversão da Constituição em
um "ordenam ento de valores" confere a cad a um a das disposições consti*
tudonais (além da "abertura" das form ulações") u m a im predsão que per­
m ite com plem entar os princípios constitudonais positivados ao bel-pra­
zer com outros aspectos. Assim , nas ponderações de valores do Tribunal
C onstitudonal, surgem , de form a bastante n atural, critérios de efidàida
que nãó encontram o mínimo ponto de referên d a no texto constitudonal:
a constitudonalidade das leis e dos atos constitudonalm ente relevantes,
por exem plo, é exam inada segundo o critério da "cap add ade fúndonal
das em presas e da econom ia com o u m to d o ",76 da "cap ad d ad e fúndonal
das Forças Arm adas Federais", do "p oten rial fúndonal da defesa territo­
rial m ilitar"77 ou do "poteridal funcional da ju risd ição penal",7»enquánto,
p or outro lado, disposições individuais jurídico-constitudonais pòdem
p erd er im portânda. A s garantias de liberdade escritas da Constituição
são subm etidas, desse m odo, à reserva das legalidades próprias não escri­
tas dos aparelhos econôm icos e políticos. C om esses e outros critérios de
exam e, m as também ao insistir continuam ente nos fundamentos de suas
d ed sões, em que as lim itações dos direitos fundam entais pela pondera­
ção de valores são válidas unicam ente considerando-se as circunstândas
esp ed ais do caso concreto em tela,79 ou seja, tam bém podem , sob outras
d rcu n stân d as, ser determ inadas de ou tro m o d o , o Tribunal adapta &es­
tru tu ra jurídica, em geral, ao m odo de fu n d on am en to adequado a cada
situ ação dos aparelhos adm inistrativos.

74 Kantorow icz, loc. d l.


75 Fuchs, loc. ciL, p, 50.
.76 BVerfGE 5 0 ,2 9 0 ,3 3 2 .
77 BVerfGE 2 8 ,2 4 3 ,2 6 1 . - - •
78 BVerfGE 5 1 ,3 2 4 ,3 4 5 .
79 BVerfGE 7 ,1 9 8 ,2 1 2 ; E 3 9 ,3 3 4 ; 353. - Esses são exem plos de um a figura de argumartaÇ*0
bastante constante do tribunal.

38
O Judiciário com o Superego da Sociedade

Essa desform alização fundam ental do direito, a "dinam ização da


proteção dos bens jurídicos",*0 abre cad a vez m ais setores sociais aos aces­
sos orientados para os casos concretos de um Estado que, na adm inistra­
ção ou na prevenção de crises, põe em risco a autonom ia dos clássicos
"sujeitos de direito" p ara garantir a autonom ia dos sistem as funcionais.
Com a moralização da jurisdição, servindo, ao m esm o tem po, à fundona-
lização jurídica, o Ju d idário ganha um duplo significado. De fato, a nova
imagem paterna realça os princípios da "sod ed ad e órfã de p ai". N esta,
não obstante, a dissim ulação m oral é exigida para repelir concepções m o­
rais autônomas apresentadas p or m ovim entos sod ais de protesto.
Os parlamentos p od em se desincum bir da pressão dessas concepções
vindas "d e baixo" tão m ais fadlm enté quanto m ais tenham internalizado,
eles mesmos, os critérios funcionalistas de controle de constitudonalidade
pelo Judidário.
Mas mesmo quando a justiça - em todos os ram os judidais - decide
questões penais realm enté reladonadas com a m oral p or m eio da ótica
moral, ela "expropria"81 a base sod al. O form alism o jurídico clássico ainda
havia garantido espaços im unes ao direito: o que não era abarcado p or um
tipo legal no respectivo direito vigente, situava-se, de fato, fora do direito
e estava privado do acesso estatal - em todo caso, considerando-se u m
contexto de Estado de D ireito.
Somente quando a jurisdição trata suas próprias concepções m prais
como regulações jurídicas é que todo fato im aginável pode ser identificado
como um fato juridicam ente relevante e transform ado em objeto de u m a
decisão contenciosa. C om isso, o poder estatal de sanção é am pliado a rei­
vindicações que, segundo o entendim ento dássico de E stado de D ireito,
somente eram válidas com o reivindicações m orais e que continuavam in­
cumbidas ao tratam ento de problem as im anentem ente sociais.® Q ue, dessa
forma, desaparecem os espaços autônom os isentos do D ireito, é tão m ais
duvidoso quanto continuam existindo, n a sociedade atu al, de form a to ­
talmente independente u m a da ou tra, a in tegração jurídica dos aparelhos
estatais e a integração m o ral das relações so d ais concretas em si.
N ão obstante os crescen tes p rocessos de ju rid id zação , as norm as ju­
rídicas nesses âmbitos so d a is são, com efeito, p raticam en te desconhecidas

80 Erhard Denninger, Der Präventions-Staat. In: KJ 21 (1988), pp. 1 e ss.


81 Nesse sentido - ainda que com outras conclusões quanto a concepção de-justiça - N ils
Christie, Konflikte als Eigentum . Informationsbrief der Sektion Rechtssoziologie der deutschen
Gesellschaftfü r Soziologie, n B 12 (1976), pp. 12 e ss.
82 Cf. M aus, The Differentiation between Law and Morality.

39
*
f
Coleção Conexões Ju ríd icas

e, por essa razão, em seu caráter im ed iato, n ão têm consequências para o


comportamento dos indivíduos.
Á teoria do direito livre já h avia fu n d am en tad o su as reivindicações
problemáticas com a correta con statação de q ue os ch am ad os "destinatá­
rios do direito", de todo m odo, não se orien tam p ela lei, m a s comportam-
-se segundo o direito "liv re", que corresp on d e a n orm as sociais ou a con­
venções morais,*» A s pessoas não se abstêm ,, p o r exem p lo, d e furtar, roubar
ou m atar p or conhecerem os artigos de lei corresp on d en tes, m as porque
obedecem às convenções m orais p raticad as d esd e a in fân cia (e quiçá, mais
tarde, verificadas de form a autônom a). E m co n trap artid a, as norm as jurí­
dicas contêm instruções destinadas aos ap arelh os estatais de como e em
que proporção eles devem reagir a tran sgressões de u m a fração (!) das
norm as morais, definida de m odo exato e feita d e form a juridicamente
vinculante (somente intervêm diretam ente n o com p ortam en to do indi­
víduo as regras jurídicas "n ovas", con dicion adas pela evolu ção técnico-
-dentífica e que, anteriorm ente, não estavam sub m etid as a nenhum a con­
venção, comõ norm as técnicas ou regras do tráfeg o viário).
Com a desapropriação dos espaços im unes ao d ireito p or parte de
um Judidário que faz das norm as "liv re s" e d as con ven ções morais os
pontos de referenda de suas atividades, to m a -se id entificável a parte de
coação estatal existente na delegação do su p erego so d al à administração
contendosa da moral. A o m esm o tem po, a u su rp ação p olítica da consdên-
d a tom a pouco provável que as norm as m o rais m an ejad as conservem seu
caráter original. Elas não levam á um a só d a liz a çã o da ju stiça, mas a uma
fundonalização das relações sodais con tra as q u ais as estru tu ras jurídico-
-form ais formavam, outrora, um a b arreira.
O fato de as concepções m orais n ão serem d elegad as p ela base sodal
parece ser a única proteção contra sua p erv ersão e, ao m esm o tempo, ou­
tro obstáculo no cam inho p ara a unidim ensionalidade fundonalística.

S3 R ex., Kantorowicz, loc. cif., pp. 17 e ss. A esse resp eito, M aus, Rechtstíieom m i
Theorie, pp. 300 e ss.

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