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WILLIAM L.

SHIRER

VOLUME I

tradução de
PEDRO POMAR

5. a edição.

EDITõRA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S. A.


RIO DE JANEIRO
dade ou escapado disfarçadamente para a Rússia. Pilhas de
material de propaganda, contudo, tinham sido deixadas no
porão, o suficietite para fazer que Goering anunciasse num co-
municado oficial que os "documentos" apreendidos provavam
que os comunistas estavam prestes a desencadear uma revolução.
A reação do público, e mesmo de alguns conservadores do go-
vêmo, foi de ceticismo. Estava claro que algo de mais sensacio-
nal devia ser encontrado para impressionar a opinião pública
antes que se realizassem as eleições de 5 de março.

o incêndio do Reichstag

Na noite de 27 de fevereiro, quatro dos mais poderosos


homens da Alemanha achavam-se reunidos em dois jantares
separados. No seleto Herrenklub da Vosstrasse, o Vice-Chan-
celer von Papen entretinha-se com o Presidente von Hindenburg.
Na casa de Goebbels, o Chanceler Hitler havia chegado para
jantar en famille. Segundo Goebbels, estavam à vontade, tocando
música no gramofone e contando histórias. "De repente", contou
mais tarde em seu diário, "uma chamada telefônica do Dr.
Hanfstaengl: "O Reichstag está em chamas!" Tinha certeza de
que dizia uma grande mentira e recusei-me até mesmo a men-
cionar o fato ao Führer. 4
Mas o jantar do Herrenklub ficava exatamente perto da
esquina do Reichstag.

Sübitamente [Papen escreveu mais tarde] notamos um fulgor


vermelho nas janelas e ouvimos gritos na rua. Um dos criados
correu para mim e murmurou: "O Reichstag está em chamas!", o
que repeti ao Presidente. Êle ergueu-se e da janela pudemos ver o
edifício do Reichstag, que aparecia como se estivesse iluminado por
holofotes. A todo momento uma explosão de chamas e um rede-
moinho de fumaça apagavam seus contornos. 5

O Vice-Chanceler carregou o idoso Presidente para casa


~m seu próprio carro e dirigiu-se apressadamente para o edifício
cm chamas. Nesse ínterim, Goebbels, de acôrdo com seu relato,

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que voltara a pensar na "grande mentira" de Putzi Hansfstaengl,
tinha efetuado alguns chamados telefônicos e verificado que o
Reichstag se incendiava. Dentro de poucos segundos êle e seu
Führer saíram correndo "a sessenta milhas a hora, pela Chaussee
Charlottenburger, em direção ao local do crime".
Isto era um crime, um crime comunista, proclamaram tão
logo chegaram ao incêndio. Goering, transpirando e bufando,
completamente fora de si pela excitação, ali mesmo diante dêles
clamava aos céus, como depois recordou Papen, que "êste é um
crime comunista contra o nôvo govêrno". Para o nôvo chefe
da Gestapo, Rudolf Diels, Goering gritava: "Isto é o princípio
da revolução comunista! Não devemos esperar um minuto. Não
teremos piedade. Todo funcionário comunista deve ser morto,
onde fôr encontrado, todo deputado comunista deve nesta mes-
ma noite ser enforcado. G
A verdade completa sôbre o incêndio do Reichstag provà-
velmente nunca virá a ser cO,nhecida. Quase todos que a conhe-
ciam estão agora mortos, a maioria chacinada por Hitler, nos
meses que se seguiram. Mesmo em Nuremberg o mistério não
pôde ser inteiramente desenredado, embora haja bastante evi-
dência para que se estabeleça, além de qualquer dúvida razoável,
que os nazistas é que planejaram o premeditado incêndio e o
utilizaram para seus próprios fins políticos.
Do Palácio do Presidente do Reichstag, uma passagem
-subterrânea, construída para canalização do sistema de aque-
cimento central, levava ao edifício do Reichstag. Através dêste
túnel Karl Ernst, um antigo empregado do hotel que se havia
tornado líder das S. A. em Berlim, dirigiu, na noite de 27 de
fevereiro, um pequeno destacamento das tropas de assalto ao
Reichstag, espalharam gasolina e substâncias químicas de auto-
combustão e regressaram ràpidamente ao Palácio pelo mesmo
caminho. Ao mesmo tempo, um comunista holandês idiota, com
a mania incendiária, Marinus van der Lubbe, havia penetrado
no imenso, escuro e para êle desconhecido edifício, e riscou ali
alguns de seus fósforos ~ O piromaníaco imbecil foi um verda-
deiro achado para os nazistas. Pôra prêso pelas S.A. poucos dias
antes, por ter se gabf).do num bar de que tentara incendiar alguns
edifícios l?úblicos e de que o próximo seria o Reichstag.

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A coincidência de que os nazistas tenham encontrado um
comunista demente e incendiári.O, que saía para realizar exata-
mente .O que êles mesmos tinham decidido fazer, parece incrível,
mas, apesar disso, é verossímil, havend.O indícios de que isso
realmente .Ocorreu. A idéia do incêndi.O quase com certeza sur-
giu de Goebbels e Goering. Hans Gisevius, funci.Onário do Mi-
nistério d.O Interior da Prússia na época, afirmou em Nurem-
berg que "foi Goebbe1s o primeiro a pensar em atear fog.O n.O
Reichstag". E Rudolf Diels, o chefe da Gestap.O, acrescentou
num depoiment.O que "G.Oering sabia exatamente como o fog.O
iria começar" e lhe ordenara preparar, antes do incêndio, uma
lista de pessoas que deviam ser prêsas em seguida". O general
Franz Halder, chefe do Estado-Mai.Or Alemão durante a pri-
meira parte da II Guerra Mundial, recordou, em Nuremberg,
com.O Goering certa ocasião tinha alardeado seu feito.

Num almôço comemorativo do aniversário do Führer, em


1942, a conversação girou para o tema do edifício do Reichstag e
de seu valor artístico. Ouvi com meus próprios ouvidos quando
Goering interrompeu a conversação e gritou: "O único que real-
mente conhece o Reichstag sou eu, pois o incendieill" Dizendo isto,
bateu com a palma da mão em sua coxa. *

Van der Lubbe, parece evidente, f.Oi um joguete dos nazis-


tas. Foi encorajado a pôr fogo no Reichstag. Mas a principal
tarefa f.Oi executada - sem seu conhecimento, naturalmente -
pelas tropas de assalto. Realmente, ficou provado no subseqüen-
te julgamento de Leipzig que o idiota holandês nã.O possuía os
meios necessários para atear fogo em tão enorme edifíCio tão
ràpidamente. Dois minutos e meio após ter entrado, o grande
salão central ardia furiosamente. Tinha apenas sua camisa para
atear ó fogo. Os foc.Os mais importantes, de acôrdo com .O tes-
temunh.O dos técnicos n.O julgamento, foram ateados com c.On-
siderável quantidade de substâncias químicas e de gasolina. Era
evidente que um só homem não podia tê-los levado para .O edi-

'" Tanto nos interrogatórios como no julgamento de Nuremberg, Goe-


ring negou até o fim que tivesse participado, 'de qualquer forma, no
incêndio do Reichstag.

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fício, nem lhe teria sido possível começar tantos incêndios, em
tantos lugares espalhados, e em tão curto tempo.
Van der Lubbe foi prêso no local e Goering, como poste-
riormente contou ao tribunal, queria enforcá-lo imediatamente.
No dia seguinte Ernst Torgler, líder parlamentar dos comunistas,
apresentou-se à polícia quando soube que Goering o acusara.
E poucos dias depois Georgi Dimitroff, um comunista búlgaro
que mais tarde se tornou Primeiro-Ministro da Bulgária, e dois
outros comunistas búlgaros, Popov e Tanev, foram presos pela
polícia. O julgamento subseqüente dos mesmos pela Suprema
Côrte de Leipzig converteu-se em algo como um revés para os
nazistas, e sobretudo para Goering, a quem Dimitroff, atuando
como seu próprio advogado, irritou-o fàcilmente, transforman-
do-o num bôbo com uma série de perguntas. Num determinado
ponto, segundo a ata do tribunal, Goering gritou para o búlgaro:
"Fora daqui, seu miserável!"
Juiz (para o oficial da polícia): Conduza~o para fora.
Dimitroff (sendo conduzido para fora pela polícia): Tem mêdo
das minhas' perguntas, Herr Ministerpraesident?
Goering:" Espere que ainda o pegaremos fora dêste tribunal,
seu miserável!

Torgler e os três bulgaros foram absolvidos; entretanto, o


líder comunista alemão foi imediatamente "pôsto sob custódia"
até sua morte, durante a segunda guerra. Van der Lubbe foi
julgado culpado e decapitado. 7
O julgamento, apesar da subserviência do tribunal para com
as autoridades nazistas, lançou uma grande dose de suspeita
sôbre Goering e os nazistas, mas isto veio demasiado tarde para
ter algum efeito prático. Pois Hitler não tinha perdido tempo
em explorar ao máximo o incêndio do Reichstag.
No dia posterior ao incêndio, 28 de fevereiro, êle persuadiu
o Presidente Hindenburg a assinar um decreto "pela Píoteção
do Povo e do Estado", suspendendo as sete seções da Constitui-
ção que garantiam as liberdades individuais e civis. Apresen:'
tado como "medida denfensiva contra os atos de violência dos
comunistas que punham em perigo o Estado",\ o decreto esta-
belecia que:
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Restrições à liberdade pessoal, ao direito de livre manefestação
de opinião, inclusive à liberdade de imprensa; aos direitos de reu-
nião e associação; as violações das comunicações privadas telefô-
nicas, telegráficas e postais; e autorizações para buscas domiciliares,
ordens para confiscos, bem como restrições à propriedade, são
também permissíveis além dos limites legais prescritos em outras
circunstâncias.

Adicionalmente, o decreto autorizava o govêrno do Reich


a assumir o .contrôle total dos Estados da Federação, quando ne-
cessário, e impunha a sentença de morte para certo número de
crimes, inclusive «graves perturbações da paz" por pessoas
armadas. 8
Dessa forma, de um golpe, Hitler foi capaz não apenas. de
arrolhar legalmente seus adversários, mas prendê-los à vontade,
ao tornar "oficial" a ameaça comunista, levando milhões de
elementos da classe média e do campo a um frenesi de mêdo;
mêdo .de que, se não votassem nos nacional-socialistas. nas
eleições da semana vindoura, os bolchevistas assumissem o
poder. Uns quatro mil funcionários comunistas' e um grande
número de socialdemocratas e líderes liberais foram presos, in-
clusive membros do Reichstag, os quais, de acôrdo com a léi,
gozavam de imunidades. Foi a primeira experiência que os ale-
mães tiveram do terror nazista apoiado no govêrno. Caminhões
carregados de tropas de assalto rugiam pelas ruas de tôda a
Alemanha, invadindo lares, arrebanhando vítimas e carregan-
do-as para os· quartéis das S.A., onde eram torturadas e espan-
cadas. A imprensa e os comícios políticos dos comunistas foram
suprimidos. Os jornais socialdemocratas e muitos periódicos
liberais foram suspensos e os comícios dos partidos democráticos
foram ou proibidos ou interrompidos. Somente os nazistas e seus
alia~os nacionalistas tinham permissão para fazer a campanha
sem serem molestados.
Com todos os recursos dos governos nacional e da Prússia
à sua disposição, e com abundância de dinheiro dos grandes
magnatas em seus cofres, realizaram uma propaganda eleitoral
como jamais a Alemanha tinha visto antes. Pela primeira vez
a cadeia de radioemissoras do Estado transmitiu as vozes· de
Hitler, Goering e Goebbels para todos os cantos da terra. As

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ruas, ornadas de bandeiras suásticas, ecoavam sob os passos das
tropas de assalto. Havia comícios populares, paradas de archotes,
o ruído dos alto-falantes nas praças. Os espaços a isso destina-
dos ficavam cobertos de brilhantes cartazes nazistas e à noite
fogueiras iluminavam as montanhas. Por sua vez, .o eleitorado era
iludido com promessas de um paraíso germânico, intimidado
pelo terror pardo nas ruas e atemorizado pelas, "revelações" a
respeito da "revolução" comunista. Um dia antes do incêndio
do Reichstag o govêrno prussiano publicou uma longa exposi-
ção, declarando que havia encontrado "documentos" comunistas
que provavam:

Os edifícios governamentais, os museus, as mansões e as fábri-


cas deviam ser incendiados ( ... ) As mulheres e as crianças deve-
riam ser entregues aos grupos terroristas ( ... ) O incêndio do
Reichstag deveria ser o sinal para uma insurreição sangrenta e a
guerra civil ( ... ) Ficou apurado que hoje deveriam ser vistos
através da Alemanha atos terroristas contra pessoas isoladas, contra
a propriedade privada, e contra a vida' e os membros da população
pacífica, e também o início da guerra civil geral.

A publicação dos "documentos provando a conspiração


comunista" foi prometida, mas jamais cumprida. O fato, entre-
tanto, de que o próprio govêrno prussiano certificasse sua auten-
ticidade impressionou muitos alemães . Os vacilantes também
ficaram impressionados, talvez com as ameaças de Goering. Em
Francforte, a 3 de março, nas vésperas das eleições, êIe bradou:

Companheiros alemães, minhas medidas não serão invalidadas


por nenhuma decisão judicial ( ... ) Não tenho de preocupar-me
com a justiça; minha missão consiste apenas em destruir e exter-
minar, nada mais! ( ... ) Certamente, utilizarei o poder do Estado
e da Polícia até onde fôr possível, meus caros comunistas; portanto,
não tirem falsas conclusões. Mas a luta de morte, na qual meu punho
agarra vossos pescoços, a levarei avante com aquêles que ali estão
- os camisas-<pardas. o

Quase não foi ouvida a voz do antigo Chanceler Bruening,


que também falou naquele dia, proclamando que o Partido do
Centro resistiria a qualquer subversão da Constituição, exigindo

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uma investigação sôbre o suposto incêndio do Reichstag e con-
vocando o Presidente Hindenburg "para proteger os oprimidos
contra seus opressores". Apêlo inútil! O idoso Presidente man-
teve seu silêncio. Agora era a hora de o povo, convulsionado,
falar.
A cinco de março de 1933, dia das últimas eleições demo-
cráticas de que teriam notícia durante a vida de Hitler, êle falou
com suas cédulas eleitorais. Apesar de tôda a intimidação e de
todo o terror, a maioria repudiou Hitler. Os nazistas alcançaram
17.277.180 votos ----:- um aumento de cinco e meio milhões, -
mas representavam sàmente 44 por cento da votação total. Uma
clara maioria ainda evitava Hitler. Tôda a perseguição e a re-
pressão das semanas antecedentes não impediram que o Partido
do Centro elevasse efetivamente sua votação de 4.230.600 para
4.424.900 votos. Com seu aliado, o Partido Bávaro Católico do
Povo, obteve um total de cinco e meio milhões de votos. Inclu-
sive os socialdemocratas mantiveram sua posição de segundo
maior partido, atingindo 7. 181 .629 votos, com uma queda de
apenas 70.000. Os comunistas perderam um milhão de aderen-
tes, mas ainda contaram com 4. 848 .058 votos. Os nacionalistas,
dirigidos por Papen e Hugenberg, ficaram amargamente desa-
pontados com sua própria contagem de 3. 136. 760 votos, sim-
plesmente oito por cento dos votos computados e um ganho de
menos de 200. 000 . .
Com as 52 cadeiras dos nacionalistas somadas às 288 dos
nazistas, obtinha o govêrno uma maioria de 16 lugares no
Reichstag. Suficiente, talvez, para enfrentar os assuntos governa-
mentais do dia-a-dia, mas bastante longe da maioria de dois
terços de que Hitler necessitava para empreender um nôvo e
audacioso plano de implantação de uma ditadura com o consen-
timento do Reichstag.

Gleichschaltung: A "coordenação" do Reich

O plano era aparentemente simples e possuía a vantagem


de disfarçar a tomada do poder absoluto dentro da legalidade.
Solicitar-se-ia ao Reichstag que promulgasse um "ato de autori-·
zação", conferindo ao ministério de Hitler podêres legislativos
exclusivos por quatro anos. Ou, mais simplesmente: o Parla-

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mento Alemão seria solicitado a transferir suas funções consti-
tucionais a Hitler e a tomar longas férias. Desde, porém, que
isto exigia uma alteração na Constituição, seriam necessários
dois terços para aprová-lo.
Como obter essa maioria foi o mais importante item da
ordem-do-dia da reunião de 15 de março de 1933, cuja ata foi
apresentada em Nuremberg. lO Parte do problema seria resolvido
pela "ausência" dos oitenta e um mebros comunistas do
Reichstag. Goering tinha certeza de que o problema restante
seria fàcilmente removido "pela recusa da admissão de alguns
social democratas," . Hitler estava alegre, de bom-humor confiante.
Afinal de contas, com o decreto de 28 de fevereiro, que êle
induzira Hindenburg a assinar um dia após o incêndio do
Reichstag, podia prender tantos deputados oposicionistas quan-
tos fôssem necessários para assegurar a sua maioria de dois
terços. Havia alguma dificuldade com o Centro Católico, que
exigia garantias, mas o Chanceler estava seguro de que êste par-
tido o acompanharia. Hugenberg, o líder nacionalista, que não
tinha nenhuma vontade de colocar todo o poder nas mãos de
Hitler, exigiu que o Presidente fôsse autorizado a participar da
elaboração das leis decretadas pelo ministério, durante a vigên-
cia do decreto. O Dr. Meissner, Secretário de Estado na Chan-
celaria Presidencial, que já tinha confiado seu futuro aos
nazistas, respondeu que "a colaboração do Presidente do Reich
não seria necessária". Percebeu logo que Hitler não tinha ne-
nhuma vontade de ser manietado pelo teimoso e velho Presidente,
como os chanceleres republicanos haviam sido.
Mas Hitler desejava, nessa fase, homenagear o idoso Ma-
rechal-de-Campo e o Exército, bem como os conservadores na-
cionalistas, ligandO' seu turbulento e revolucionário regime ao
venerando nome de Hindenburg e a tôdas as glórias militares da
Prússia. Para realizar o plano, êle e Goebbels, que a 13 de março
se convertera em Ministro da Propaganda, conceberam um golpe
de mestre. Hitler abriria o nôvo Reichstag, que êle mesmo estava
prestes a destruir, na Igreja da Guarnição de Potsdam, o grande
santuário do Prussianismo que despertava em tantos alemães as
lembranças da grandeza e das glórias imperiais, pois nela re-
pousavam os restos de Frederico, o Grande, nela os reis
Hohenzollerns foram venerados, nela Hindenburg havia ido pela
primeira vez em 1866, numa peregrinação, quando regressava

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como jovem oficial de Guarda da guerra Austro-Prussiana, guer-
ra que dera à Alemanha sua primeira unificação.
A data escolhida para a cerimônia de instalação do pri-
meiro Reichstag do Terceiro Reich, 21 de março, também era
significativa, pois correspondia ao aniversário do dia em que
Bismarck havia inaugurado o primeiro Reichstag do Segundo
Reich, em 1871. Quando os velhos marechais, generais e almi-
rantes dos tempos do império se reuniram em seus resplande-
centes uniformes, na Igreja da Guarnição, tendo à frente o ex-
Príncipe Herdeiro e o Marechal von Mackensen em imponente
vestimenta e com o capacete dos Hussardos, as sombras de Fre-
derico, o Grande, e do Chanceler de Ferro pairaram sôbre a
assembléia.
Hindenburg estava viSIvelmente comovido e, a certa altura,
Goebbels, que estava dirigindo a cerimônia e a sua irradiação
para a nação, observou - e anotou em seu diário - que o
velho Marechal tinha lágrimas nos olhos. Ladeado por Hitler,
que parecia pouco à vontade em seu fraque de cerimônia matu-
tina, o Presidente, envergando seu uniforme cinza-escuro com o
grande alamar da Águia Negra e portando um capacete belíssimo
numa das mãos e o cetro de marechal na outra, marchou va-
garosamente para a nave, deteve-se para saudar a cadeira vazia
do Kaiser Guilherme II, na galeria imperial e, depois, defronte
do altar, leu um curto discurso de consagração ao nôvo govêrno
de Hitler.
Possa o velho espírito dêste ilustre santuário impregnar a gera-
ção atual, possa êle nos libertar de egoísmos e disputas partidá-
rias e manter-nos unidos numa consciência nacional para abençoar
uma Alemanha orgulhosa e livre.

A resposta de Hitler destinou-se hàbilmente a ganhar as


simpatias e a confiança da Velha Ordem tão brilhantemente
representada.
Nem o Kaiser, nem o govêrno, nem a nação queriam a guerra.
Foi unicamente o colapso da nação que compeliu uma raça ("n-
fraquecida a assumir, contra suas mais sagradas convicções, a culpa
dessa guerra.
E depois, voltando-se para Hindenburg, que estava rigida-
mente seJ?tado em sua cadeira, a poucos passos diante dêle:

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Graças a um inaudito esfôrço nestas últimas semanas, a honra
nacional foi restaurada. E graças à VOssa compreensão, Herr Ge-
neralfeldmarschall, a união dos símbolos da antiga grandeza com a
nova fôrça foi exaltada. Nós vos rendemos homenagem. Uma pro-
vidência protetora vos colocou à frente das novas fôrças da nação'!!

Hitler, demonstrando profunda humildade para com o Pre-


sidente, e com a intenção de roubar-lhe o poder político antes
que a semana terminasse, caminhou em sua direção, inclinou-se
ante o Presidente e apertou sua mão. Ali, entre .os flashes das
máquinas fotográficas, em meio ao ruído das câmaras cinemato-
gráficas que Goebbels estrategicamente dispusera no local com
microfones, o solene apêrto de mão do marechal alemão e do
cabo austríaco, unindo a nova Alemanha à velha, foi registrado
para que a nação e o mundo o vissem e ouvissem sua descrição.
"Após o deslumbrante compromisso feito por Hitler em
Potsdam", escreveu mais tarde o embaixador francês, presente
à cena, "como podiam tais homens - Hindenburg e seus ami-
gos, os Junkers e magnatas monarquistas, Hugenberg e seus na-
cionalistas, os oficiais do Reichswehr- como podiamêles dei-
xar de relaxar a apreensão com que tinham começado a ver os
excessos e abusos, de seu partido? Podiam agora hesitar em
garantir-lhe sua inteira confiança, atender a todos os seus pedi-
dos, conceder os plenos podêres que reclamava?"12
A resposta foi dada dois dias mais tarde, a 23 de março,
no Teatro da Ópera Kroll, em Berlim, onde o Reichstag se reu-
niu. Achava-se em discussão o chamado Ato de Autorização -
A "Lei para a eliminação do perigo contra o povo e o Reich -
(Gesetz zur Behebung der Not von Volk und Reich)", como
ficou oficialmente conhecida. Seus cinco breves parágrafos
abrangiam o poder de legislar, inclusive o contrôle do orça-
mento do Reich, a sanção de tratados com Estados estrangeiros,
a iniciativa de emendas constitucionais, sem a audiência do Par-
lamento, e entregavam o poder ao ministério do Reich por qua-
tro anos. Mais ainda, o ato estipulava que as, leis decretadas
pelo ministério deviam ser redigidas pelo Chanceler e "podiam
afastar-se da Constituição". Nenhuma lei poderia "afetar a po-
sição do Reichstag" - o, que constituía, sem dúvida, o mais do-
loroso dos gracejos" - e os podêres do Presidente permanece-
riam "inalterados".13

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Hitler reiterou êsses dois últimos pontos num discurso de
inesperado comedimento aos deputados reunidos no engalanado
teatro da ópera, casa há muito tempo especializada na apresen-
tação de operetas e cujos corredores laterais agora estavam
repletos de camisas-pardas das tropas de assalto, todos de sem-
bla~te arrogante, como a indicar que nenhuma insensatez da·
parte dos representantes do povo seria tolerada.

o govêrno [prometeu Hitler] somente fará uso dêsses podêres


quando forem indispensáveis à execução de providências vitalmen-
te necessárias. Não se encontra ameaçada a existência do Reichstag,
e tampouco a do Reichsrat. Permanecem inalterados a posição e
os direitos do Presidente ( ... ) Não será modificada a situação
de autonomia dos Estados federais. Não serão restringidos os di-
reitos das igrejas e suas relações com o govêrno não serão altera-
das. Na verdade, o número de casos em que se justificaria o em-
prêgo de tal lei é muito limitado.

o veemente líder nazista falava de modo bastante modera-


do, quase modesto. Mal começava a vida do Terceiro Reich, de
modo que mesmo os membros da oposição ainda não podiam
avaliar com segurança o valor das promessas de Hitler. Otto
Wells, líder dos sOcialdemocratas, de cuja bancada uma dúzia
de deputados fôra "detida" pela polícia, levantou-se - em meio
ao rugido das tropas de assalto que lá fora gritavam "Poder total,
ou nadaI" - para desafiar o futuro ditador. Falando calma-
mente, e com grande dignidade, WeIls afirmou que o govêmo
talvez pudesse privar os socialistas de sua fôrça, mas jamais de
sua honra.

Nós, socialdemocratas alemães, nesta hora histórica nos celo-


camos solenemente ao lado dos pri,ncípios de humanidade e justiça,
de liberdade e socialismo. Nenhuma lei vos poderá dar poder su-
ficiente para destruir idéias que são eternas e indestrutíveis.

Hitler levantou-se, furioso, e nesse momento a assembléia


teve diante de si o verdadeiro homem.

Chegastes tarde, mas sempre chegaStes! [gritou] ( ... ) Já não


sois necessário ( ... ) A estrêla da Alemanha está em ascensão,

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e a vossa em declínio. Soou a hora de vossa morte. ( ... ) Não
desejo vossos votos. A Alemanha se libertará, sim, mas não por
vosso intermédio! [aplausos ensurdecedores].

Os socialdemocratas, que carregavam uma pesada respon-


sabilidade pelo enfraquecimento da República, manter-se-iam
pelo menos fiéis a seus princípios e cairiam - desta ,vez - em
atitude de desafio. Mas não o Partido do Centro, que certa vez
havia enfrentado com êxito o Chanceler de Ferro na Kultur-
kampf. Monsenhor Kaas, o líder do partido, exigira um com~
promisso escrito de Hitler de que êle respeitaria o poder de
veto do Presidente. Embora o tivesse prometido antes da vota~
ção, o compromisso jamais foi assinado. Apesar disso, o líder
do Centro levantou-se para anunciar que seu partido votaria pelo
projeto. Bruening permaneceu em silêncio. A votação foi ime-
diatamente verificada: 441 a favor e 84 (todos os socialdemo~
cratas) contra. Os deputados nazistas ergueram-se, gritando,
sapateando delirantemente. Depois juntaram-se às tropas de
assalto e entoaram a canção de Horst Wessel, que não tardou
em ocupar o lugar, ao lado do "Deutschland ueber AlIes", de um
dos dois hinos nacionais:

Desfraldemos bem alto as bandeiras! Ombro com


ombro permanecemos unidos.
As tropas de assalto marcham firmes, com passos
tranqüilos. ( ... )

A democracia parlamentar foi, assim, enterrada na Ale-


manha. A não ser pela prisão dos comunistas e de alguns dos
deputados socialdemocratas, tudo foi feito de forma completa~
mente legal, se bem que acompanhado pelo terror. O Parlamen-
to .entregara sua autoridade constitucional a Hitler e, assim,
.suicidara-se, embora sobrevivesse, como uma recordação, até
o fim do Terceiro Reich, servindo esporàdicamente como caixa
de ressonância para alguns dos estrondosos pronunciamentos de
Hitler; seus membros, daí em diante, foram escolhidos, pelo
Partido Nazista, pois não houve mais eleições de verdade. Foi
êsse Ato de Autorização, e nada mais, que constituiu a base legal
para a ditadura de Hitler. A partir de 23 de março de 1933,
Hitler tornou-se o ditador do Reich, liberto de qualquer restrição
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