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Resumo: O artigo analisa a obra de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, sob a perspectiva do
pensamento de Hannah Arendt e Giorgio Agamben, a fim de estabelecer parâmetros comparativos entre
a perspectiva ficcional e o pensamento filosófico-político dos dois autores citados. Busca responder
ao seguinte problema: o livro Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, publicado em 1995, aporta
elementos ficcionais que podem ser utilizados como referência para a compreensão de algumas categorias
filosóficas da obra de Hannah Arendt e Giorgio Agamben, tais como o totalitarismo, a produção de
cadáveres vivos, o estado de exceção e o campo? O método empregado na investigação é o qualitativo,
com técnica de pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: Ensaio sobre a cegueira. José Saramago. Hannah Arendt. Giorgio Agamben. Paradigmas.
Sumário: 1 Considerações iniciais – 2 José Saramago e o Ensaio sobre a cegueira: aportes fictícios
para uma releitura de Arendt e Agamben – 3 Totalitarismo e o projeto dos campos em Hannah Arendt: o
preparo de cadáveres vivos – 4 Giorgio Agamben e o paradigma do campo em seu projeto filosófico – 5
Considerações finais – Referências
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1 Considerações iniciais
O presente artigo busca na literatura a base fictícia para revisitar a obra de
dois pensadores basilares do período pós-Segunda Guerra. Nessa linha, por meio
do método qualitativo e valendo-se da técnica de pesquisa bibliográfica, pretende-se
responder ao seguinte problema: o livro Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago,
publicado em 1995, aporta elementos ficcionais que podem ser utilizados como
referência para a compreensão de algumas categorias filosóficas que permeiam as
obras de Hannah Arendt e Giorgio Agamben, tais como o totalitarismo, a produção
de cadáveres vivos, o estado de exceção e o campo?
Desde já, a fim de rebater uma primeira possível crítica, a de que as obras de
Arendt e Agamben seriam mais bem confrontadas se vistas sob o prisma do real,
e não da ficção, compreende-se que seja relevante esclarecer o uso analógico da
literatura na investigação que se propõe.
Uma das justificativas para essa proposta pode ser buscada na obra de
François Ost (2004), que, em Contar a lei – as fontes do imaginário jurídico,
estabelece paralelos por semelhança ou por dessemelhança entre o direito e a
literatura. É Ost (2004) quem afirma, no prólogo de seu trabalho, que o direito,
além de defender posições instituídas, igualmente exerce funções instituintes,
ou seja, cria imaginariamente novas significações histórico-sociais e desconstrói,
ao reverso, formas preteritamente instituídas. Essa característica, argumenta o
autor, pode ser encontrada por simetria na literatura, que exerce seu papel sobre a
vertente instituinte do imaginário, baseando-se, por outro lado, também nas formas
instituídas da realidade social e histórica.
Portanto, é na intersecção entre tais perspectivas que se situa o presente texto,
na medida em que o aporte literário serve para pensar sobre situações passadas
e estabelecidas e, também, para contar novas distopias, que nos sirvam para
fixar a amarga lembrança do que já ocorreu e ainda como alerta de uma realidade
imaginável e, portanto, sempre à espreita.
É aqui, também, que se apresenta o “conceito de história” a partir do qual
a abordagem será realizada: trata-se de uma abordagem que considera a história
como caracterizada por períodos de avanços e retrocessos (pendular), e não por
uma ideia de tempo histórico evolutivo e progressista (linear). De acordo com Turini
(2004, p. 97), a concepção linear de história consolida “a representação de um
tempo contínuo que determina a relação entre passado e presente: busca-se no
primeiro as origens do segundo para justificá-lo e legitimá-lo”. Essa “imagem de
um tempo vectorial, tempo flecha, é por demais eloquente no sentido de consolidar
a ideia de um tempo único, contínuo, homogêneo e irreversível”, que, por essas
características, tende a identificar o presente sempre como uma “etapa que
avança para melhor, em relação a um passado visto como ultrapassado, atrasado.
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Mencionem-se, aqui, as obras de Primo Levi, É isto um Homem?, e de Aleksandr Soljenítsyn, Arquipélago
Gulag, ambas relatos pessoais sobre as experiências dos campos, respectivamente, na Alemanha e na
União Soviética totalitárias.
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A leitura da obra de Arendt permite inferir que ela alterna a utilização das expressões campos de concen-
tração e campos de extermínio, porque a solução em relação à questão judaica pelos nazistas “evoluiu”
da expulsão, à concentração e, por final, ao extermínio. No presente trabalho, sempre que viável, utiliza-se
a expressão campo(s), que abarca tanto uma quanto outra das situações e se identifica também com o
paradigma analisado por Agamben ou se faz referência genericamente a campos de concentração e exter-
mínio sem distinguir entre uma situação ou outra.
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O muçulmano, abordado por Agamben, faz referência ao modo como eram chamados os prisioneiros dos
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campos de concentração nazistas que, devido à situação de absoluta privação de dignidade, curvavam-se
sobre o próprio corpo, morrendo, não raramente, de desnutrição. O muçulmano – refere Agamben (2008,
p. 62) – “é não só, e nem tanto, um limite entre a vida e a morte; ele marca, muito mais, o limiar entre o
homem e o não-homem”, evidenciando que existe “um ponto em que, apesar de manter a aparência de
homem, o homem deixa de ser humano. Esse ponto é o muçulmano, e o campo é, por excelência, o seu
lugar”.
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Uma descrição mais pormenorizada desse amplo rol de influências filosóficas desbordaria os limites do
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presente trabalho.
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à sobrevivência. Talvez não haja, como na realidade dos campos, estruturas criadas
e utilizadas para dar cabo à vida dos internos até o último fio,5 mas há diversos
momentos no livro de Saramago em que fica cristalina a condição frágil da vida
daqueles internos, uma situação limítrofe em que o preço de uma vida equivale,
ou é inferior, a uma bala disparada por um soldado. Trata-se o campo, em suma,
tanto na ficção de Saramago quanto na análise de Arendt, de um espaço voltado,
antes de qualquer coisa, à modulação da vida: nesses espaços, “o prolongamento
de suas vidas é devido à caridade e não ao direito”, na medida em que se cria, no
campo, “uma condição de completa privação de direitos antes que o direito à vida
fosse ameaçado” (ARENDT, 2012, p. 402-403).
Nesse ponto, parece haver uma maior relação entre o campo dos cegos de
Saramago e os campos de concentração implantados pelos nazistas antes de
se optar pelo extermínio via solução final, mas é possível perceber também uma
rudimentar estrutura de extermínio que exigia a participação decisiva dos cegos no
enterrar aqueles que morriam, fosse por causa natural ou por tiros dos soldados:
em um dos momentos da obra, um cego ferido busca socorro junto ao portão, mas
lá chegando é morto por um soldado assustado. Sucede o seguinte:
A expressão “solução final” utilizada pelos nazistas é bem ilustrativa dessa realidade.
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Sabiam o que no quartel tinha sido dito essa manhã pelo comandante
do regimento, que o problema dos cegos só poderia ser resolvido
pela liquidação física de todos eles, os havidos e os por haver, sem
contemplações falsamente humanitárias [...]. A alguns soldados [...]
a palavra de um comandante de regimento [...] vale quanto pesa,
ninguém chega tão alto na vida militar sem ter razão em tudo quanto
pensa, diz e faz (SARAMAGO, 1995, p. 105).
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Para Arendt, serviam tais campos como verdadeiros laboratórios nos quais se
leva a efeito a crença totalitária de que tudo é possível, o que, sob uma perspectiva
racional-liberal, não é fácil de aceitar e compreender. Todavia, argumenta Arendt,
deter-se nos horrores dos campos “é indispensável para compreender o totalitarismo”
(ARENDT, 2012, p. 583).
Da leitura de Saramago pode-se chegar a outro ponto de dissonância entre o
que veicula a obra do português e a narrativa de Arendt: não há, no Ensaio sobre a
cegueira, um estado totalitário perfeitamente caracterizado, mas pode-se observar na
seguinte manifestação de Arendt que o fenômeno do campo não é uma exclusividade
daquele contexto. Há certo grau de aprofundamento nos horrores, que, sustenta
ela, encontra paralelo na distinção ocidental entre limbo, purgatório e inferno:
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quando não se toma essa expressão como ironia ou de um ponto de vista comparado
às demais modalidades de vida pós-morte. Com efeito, é o que parece ter ocorrido
no presente caso, pois, logo a seguir, Arendt afirma que:
Fato é que não parece haver, o que uma primeira leitura desse trecho de Arendt
leva a acreditar, uma cisão rígida entre tais modalidades, como se o “limbo” não
pudesse transformar-se em “purgatório” ou em “inferno” em uma rápida deterioração
das condições. Em Saramago, isso fica bem claro pela degradação do ambiente
frequentado pelos cegos, desde a alimentação até as condições de higiene. No
tempo do livro, vai-se celeremente do limbo ao inferno, ainda que não se saiba se
há um projeto totalitário do lado de fora do manicômio.
O inferno, a que correspondem os campos nazistas, adotava uma forma muito
peculiar e calculada de eliminar pessoas, o que Arendt denomina, em sua obra,
como “preparo de cadáveres vivos”, um intrincado e elaborado processo que se
iniciava na destruição dos direitos, passava pela eliminação da condição de mártires
e atingia a morte da identidade dos indivíduos nos campos.
Segundo Arendt, portanto, o domínio total (pretensão última do totalitarismo)
apenas se dá por meio das várias mortes impostas aos internos dos campos. Primeiro
mata-se a pessoa sob aspecto jurídico, excluindo-a da lei do país ou desnacionalizan-
do-a. Os reais prisioneiros dos campos eram misturados a criminosos de verdade,
“medida necessária para emprestar credibilidade à alegação propagandística do
movimento de que a instituição existe para abrigar elementos fora da sociedade”
(ARENDT, 2012, p. 594). Passo seguinte no preparo de cadáveres vivos, esclarece
Arendt, é “matar a pessoa moral do homem” (ARENDT, 2012, p. 599), o que se faz
tornando impossível que as pessoas atinjam a condição de mártires. A morte selava
o fato de que os prisioneiros jamais haviam existido e, antes da morte, o sistema
totalitário submetia tais presos a dilemas morais em face dos quais a consciência
não apresentava respostas lógicas e razoáveis, como, por exemplo, a escolha entre
a morte dos amigos e a morte dos familiares, de modo que a escolha “já não é entre
o bem e o mal, mas entre matar e matar” (ARENDT, 2012, p. 600). Finalmente, o
transporte aos campos, as grotescas roupas, as torturas inimagináveis cumpriam
a última parte do roteiro, qual seja, a destruição da individualidade, que consiste
em “destruir a espontaneidade, a capacidade do homem de iniciar algo novo com
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seus próprios recursos, algo que não possa ser explicado à base de reação ao
ambiente e aos fatos” (ARENDT, 2012, p. 603).
Esse processo deliberado para o “desmanche” dos seres humanos pode ser
percebido também na ficção. Consulte-se novamente Saramago para verificar que
todo campo possui o potencial para a produção de tais cadáveres. Basta perceber
que, logo recolhidos ao manicômio, os cegos recebem uma série de instruções que
deixam claro o absoluto desapossamento dos direitos mais elementares, bem como
a mera imposição de deveres com a seguinte exortação: “O Governo e a Nação
esperam que cada um cumpra o seu dever. Boas noites” (SARAMAGO, 1995, p.
51). Pode-se notar, claramente, uma clara cisão entre os que estão recolhidos e
os que ficaram do lado de fora. Chamam-se os compulsoriamente recolhidos ao
cumprimento de seus deveres, mas a estes não se reconhecem quaisquer direitos,
como se já não compusessem o mesmo corpo social, excluídos da lei do país e
da nação.
O preparo de cadáveres segue pela decomposição moral dos internos. As
escolhas trágicas também se fazem presentes aqui, como no derradeiro ato da
primeira parte do livro, em que uma interna ateia fogo a uma camarata na qual
se abrigavam cegos, que, por meio da violência, pretendiam monopolizar os
suprimentos de comida direcionados ao manicômio. Encontra-se na narrativa a
seguinte consideração:
Felizmente, como a história humana tem mostrado, não é raro que uma
coisa má traga consigo uma coisa boa, fala-se menos das coisas más
trazidas pelas coisas boas, assim andam as contradições do nosso
mundo, merecem umas mais consideração do que outras, neste caso
a boa coisa foi precisamente terem as camaratas uma única porta,
graças a isto é que o fogo que queimou os malvados se demorou por lá
tanto tempo, se a confusão não se tornar maior, talvez não tenhamos
que lamentar a perda doutras vidas (SARAMAGO, 1995, p. 207-208).
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O caráter analógico dos paradigmas explica a opção que se faz no presente texto de alternar entre as
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Ora, a partir desse momento fica evidente, inclusive pela fala do personagem,
que todos os internos passam a ser, conforme Agamben, homines sacri, ou seja,
uma “vida que pode ser morta sem que se cometa homicídio” (AGAMBEN, 2002,
p. 166), pois se trata de pessoas excluídas da comunidade política, na medida em
que são inseridas em um campo.
O conceito de campo, aliás, é outro dos paradigmas lançados por Agamben
que possuem plena compatibilidade com a analogia literária de Saramago. Agamben
trata, ao longo do homo sacer, especialmente dos campos de concentração e
extermínio, mas não apenas deles, senão também dos campos de refugiados, das
prisões, isto é, de todas aquelas situações em que o estado de exceção assume
o protagonismo:
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(...) o Governo não teve outro remédio que fazer marcha atrás em acele-
rado, ampliando os critérios que estabelecera sobre lugares e espaços
requisitáveis, do que resultou a utilização imediata e improvisada de
fábricas abandonadas, templos sem culto, pavilhões desportivos e
armazéns vazios, Desde há dois dias que se falava em montar acam-
pamentos de barracas de campanha (...) (SARAMAGO, 1995, p. 125).
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5 Considerações finais
Quase ao final da obra, Saramago ilustra um diálogo entre dois personagens,
que avaliam as razões da cegueira (a qual se revelara temporária): “Por que foi
que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te
diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos
que vêem, Cegos que, vendo, não vêem” (SARAMAGO, 1995, p. 310). Raciocínio
semelhante ao mencionado por Saramago, extraído do Livro dos conselhos e que
consta da epígrafe da obra: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (SARAMAGO,
1995, p. 10).
Sob o ponto de vista dessa personagem, portanto, não se trata de cegueira
o que ocorreu, mas de incapacidade de ver ou, ainda, de reparar. Não se sabe,
contudo, se a cruel lição da cegueira mudou essa perspectiva e desatou os nós
que amarravam direito e violência naquele mundo imaginário.
É perceptível que o uso da literatura, bem como das artes em geral, na
interpretação de autores como Arendt e Agamben, os quais são reconhecidos
pelo refino e complexidade do pensamento, mostra-se uma alternativa viável a
fim de resgatar nuances e conceitos que, pensados abstratamente, sem qualquer
conexão do ponto de vista histórico ou literário, talvez até parecessem irrelevantes.
Pode-se mencionar aqui a abordagem feita por Nussbaum (2017), ao defender que
a educação voltada para um projeto sólido de democracia deve ser pensada a partir
das humanidades, e não como um processo de capacitação que contribua apenas
com o incremento de riqueza material da nação. Refere, a respeito, Nussbaum
(2017, cap. VI):
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The paradigm of the field in the philosophy of Hannah Arendt and Giorgio Agamben: an analysis from
the “blindness”, by José Saramago
Abstract: The article analyzes the work of José Saramago, Essay on Blindness, from the perspective
of the thinking of Hannah Arendt and Giorgio Agamben, in order to establish comparative parameters
between the fictional perspective and the philosophical-political thought of the two authors mentioned. It
seeks to answer the following problem: Blindness, book by José Saramago, published in 1995, provides
fictional elements that can be used as a reference for understanding some paradigms conveyed by
Hannah Arendt and Giorgio Agamben, such as totalitarianism, production of live corpses, the state of
exception and the field? The method used in the investigation is the qualitative one, with bibliographic
research technique.
El paradigma del campo en la filosofía de Hannah Arendt y Giorgio Agamben: un análisis de la “ensayo
sobre la ceguera”, por José Saramago
Resumen: El artículo analiza el trabajo de José Saramago, Ensayo sobre la ceguera, desde la perspectiva
del pensamiento de Hannah Arendt y Giorgio Agamben, con el fin de establecer parámetros comparativos
entre la perspectiva ficticia y el pensamiento filosófico-político de los dos autores mencionados. Busca
responder al siguiente problema: el libro Ensayo Sobre la Ceguera, de José Saramago, publicado en
1995, proporciona elementos ficticios que pueden usarse como referencia para comprender algunas
categorías filosóficas del trabajo de Hannah Arendt y Giorgio Agamben, como el totalitarismo, la producción
de cadáveres vivos, el estado de excepción y el campo? El método utilizado en la investigación es
cualitativo, con técnica de investigación bibliográfica.
Palabras clave: Ensayo sobre ceguera. José Saramago. Hannah Arendt. Giorgio Agamben. Paradigmas.
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