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O paradigma do campo na filosofia de

Hannah Arendt e Giorgio Agamben:


uma análise a partir do Ensaio sobre a
cegueira, de José Saramago

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth


Doutor em Direito Público (UNISINOS). Professor do Curso de Direito da UNIJUÍ. Coordenador
do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado e Doutorado em Direitos
Humanos – da UNIJUÍ. Líder do Grupo de Pesquisa Biopolítica & Direitos Humanos
(CNPq). Pesquisador Gaúcho – Edital FAPERGS nº 05/2019. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/0354947255136468. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7365-5601. E-mail:
madwermuth@gmail.com.

Humberto Acacio Trez Seadi


Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. Doutorando em Direito pelo
Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UNIJUÍ/RS. Professor no Curso de
Direito da Faculdade CNEC – Santo Ângelo Procurador Federal/AGU. Lattes: http://lattes.
cnpq.br/7671604851112427. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7176-5890. E-mail:
humberto.seadi@gmail.com.

Resumo: O artigo analisa a obra de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, sob a perspectiva do
pensamento de Hannah Arendt e Giorgio Agamben, a fim de estabelecer parâmetros comparativos entre
a perspectiva ficcional e o pensamento filosófico-político dos dois autores citados. Busca responder
ao seguinte problema: o livro Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, publicado em 1995, aporta
elementos ficcionais que podem ser utilizados como referência para a compreensão de algumas categorias
filosóficas da obra de Hannah Arendt e Giorgio Agamben, tais como o totalitarismo, a produção de
cadáveres vivos, o estado de exceção e o campo? O método empregado na investigação é o qualitativo,
com técnica de pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: Ensaio sobre a cegueira. José Saramago. Hannah Arendt. Giorgio Agamben. Paradigmas.

Sumário: 1 Considerações iniciais – 2 José Saramago e o Ensaio sobre a cegueira: aportes fictícios
para uma releitura de Arendt e Agamben – 3 Totalitarismo e o projeto dos campos em Hannah Arendt: o
preparo de cadáveres vivos – 4 Giorgio Agamben e o paradigma do campo em seu projeto filosófico – 5
Considerações finais – Referências

O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilé-


gio exclusivo do historiador convencido de que tampouco os mortos
estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem
cessado de vencer.
(Walter Benjamin)

R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 18, n. 28, p. 11-35, jul./dez. 2020 11
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, Humberto Acacio Trez Seadi

1 Considerações iniciais
O presente artigo busca na literatura a base fictícia para revisitar a obra de
dois pensadores basilares do período pós-Segunda Guerra. Nessa linha, por meio
do método qualitativo e valendo-se da técnica de pesquisa bibliográfica, pretende-se
responder ao seguinte problema: o livro Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago,
publicado em 1995, aporta elementos ficcionais que podem ser utilizados como
referência para a compreensão de algumas categorias filosóficas que permeiam as
obras de Hannah Arendt e Giorgio Agamben, tais como o totalitarismo, a produção
de cadáveres vivos, o estado de exceção e o campo?
Desde já, a fim de rebater uma primeira possível crítica, a de que as obras de
Arendt e Agamben seriam mais bem confrontadas se vistas sob o prisma do real,
e não da ficção, compreende-se que seja relevante esclarecer o uso analógico da
literatura na investigação que se propõe.
Uma das justificativas para essa proposta pode ser buscada na obra de
François Ost (2004), que, em Contar a lei – as fontes do imaginário jurídico,
estabelece paralelos por semelhança ou por dessemelhança entre o direito e a
literatura. É Ost (2004) quem afirma, no prólogo de seu trabalho, que o direito,
além de defender posições instituídas, igualmente exerce funções instituintes,
ou seja, cria imaginariamente novas significações histórico-sociais e desconstrói,
ao reverso, formas preteritamente instituídas. Essa característica, argumenta o
autor, pode ser encontrada por simetria na literatura, que exerce seu papel sobre a
vertente instituinte do imaginário, baseando-se, por outro lado, também nas formas
instituídas da realidade social e histórica.
Portanto, é na intersecção entre tais perspectivas que se situa o presente texto,
na medida em que o aporte literário serve para pensar sobre situações passadas
e estabelecidas e, também, para contar novas distopias, que nos sirvam para
fixar a amarga lembrança do que já ocorreu e ainda como alerta de uma realidade
imaginável e, portanto, sempre à espreita.
É aqui, também, que se apresenta o “conceito de história” a partir do qual
a abordagem será realizada: trata-se de uma abordagem que considera a história
como caracterizada por períodos de avanços e retrocessos (pendular), e não por
uma ideia de tempo histórico evolutivo e progressista (linear). De acordo com Turini
(2004, p. 97), a concepção linear de história consolida “a representação de um
tempo contínuo que determina a relação entre passado e presente: busca-se no
primeiro as origens do segundo para justificá-lo e legitimá-lo”. Essa “imagem de
um tempo vectorial, tempo flecha, é por demais eloquente no sentido de consolidar
a ideia de um tempo único, contínuo, homogêneo e irreversível”, que, por essas
características, tende a identificar o presente sempre como uma “etapa que
avança para melhor, em relação a um passado visto como ultrapassado, atrasado.

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Coloca-se, então, a perspectiva de que a humanidade evolui inexoravelmente para


um fim ‘superior’ ou ‘adiantado’” (TURINI, 2004, p. 98).
Entende-se, neste trabalho, por perspectiva “pendular” de história aquela
que decorre das teses benjaminianas. Para o filósofo judeu, a tarefa do historiador
consiste sempre em “trazer à tona novas identidades, fazer uma outra leitura dos
documentos, colocar possibilidades novas de diálogo entre presente e passado”, o
que significa “romper com a concepção mecanicista e linear da história”. Trata-se,
em síntese, de compreender a história como algo “aberto” e, em virtude disso,
como algo que suscita diversas interpretações, de modo que nada do que aconteceu
possa ser considerado “perdido” para a história (TURINI, 2004, p. 110).
A partir da análise do conceito de história de Walter Benjamin (2012),
parte-se da ideia de que o totalitarismo – um dos temas centrais da presente
investigação – não representou apenas um “intervalo” provisório que se destinava
a desintegrar-se à medida que o progresso retomasse seu curso “natural”; pelo
contrário, “a opressão e a exclusão, representadas no contexto histórico vivido por
Benjamin pelo fascismo, mas de maneira nenhuma estranhas em outros contextos
históricos, são a regra e não a exceção na história dos oprimidos” (TURINI, 2004,
p. 111). Para Benjamin (2012), o totalitarismo não representou uma “aberração”
fadada ao ocaso pelo “progresso” inexorável. Esse progresso como “norma histórica”,
pelo contrário, era justamente a arma que fortalecia os regimes totalitários. Daí
a leitura alegórica que Benjamin (2012) faz da obra Angelus Novus, de Paul Klee.
Também não se olvida, dentro do presente estudo, do fato de existirem obras
de caráter não ficcional que retratam de forma bastante fidedigna todo o terror
dos campos erguidos por governos totalitários,1 mas utilizar a narrativa de um dos
grandes dramaturgos de nossa época parece ser um recurso pertinente para a
análise de fenômenos específicos, talvez nunca repetidos de forma tão intensa na
história contemporânea. Pode-se lembrar aqui, também, da advertência de Hannah
Arendt sobre a dificuldade de retratar os horrores dos campos:2 “Não há paralelos
para comparar com algo a vida nos campos de concentração. O seu horror não
pode ser inteiramente alcançado pela imaginação justamente por situar-se fora da
vida e da morte” (ARENDT, 2012, p. 589).

1
Mencionem-se, aqui, as obras de Primo Levi, É isto um Homem?, e de Aleksandr Soljenítsyn, Arquipélago
Gulag, ambas relatos pessoais sobre as experiências dos campos, respectivamente, na Alemanha e na
União Soviética totalitárias.
2
A leitura da obra de Arendt permite inferir que ela alterna a utilização das expressões campos de concen-
tração e campos de extermínio, porque a solução em relação à questão judaica pelos nazistas “evoluiu”
da expulsão, à concentração e, por final, ao extermínio. No presente trabalho, sempre que viável, utiliza-se
a expressão campo(s), que abarca tanto uma quanto outra das situações e se identifica também com o
paradigma analisado por Agamben ou se faz referência genericamente a campos de concentração e exter-
mínio sem distinguir entre uma situação ou outra.

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No mesmo sentido, Giorgio Agamben (2008, p. 43) aborda a questão da


impossibilidade do testemunho relacionado aos horrores dos campos de concentra-
ção. Para o filósofo, o testemunho “contém, no seu centro, algo intestemunhável,
que destitui a autoridade dos sobreviventes”. Nesse sentido, “as ‘verdadeiras’
testemunhas, as ‘testemunhas integrais’ são as que não testemunharam, nem teriam
podido fazê-lo. São os que ‘tocaram o fundo’, os muçulmanos,3 os submersos”.
A partir disso, os sobreviventes seriam, nessa ótica, “pseudotestemunhas”, que
falam no lugar daqueles que efetivamente sucumbiram por mera “delegação”,
ou seja, “testemunham sobre um testemunho que falta”, testemunham “pela
impossibilidade de testemunhar”.
Feitas essas observações, o recurso à literatura na construção do presente
artigo envolve uma tentativa de encontrar, senão um paralelo, ao menos uma
narrativa também impactante, que, ao desconectar o leitor da realidade (ou levá-lo
mais próximo a ela), permita perceber o quanto de indizível – de intestemunhável,
na léxica agambeniana – existe na memória dos campos.
Assim, o uso da literatura como um parâmetro de investigação justifica-se
essencialmente pelo fato de que a ficção talvez permita, àqueles que não viveram
o momento histórico em sua crueza, uma melhor compreensão sobre o elaborado
projeto de desconstrução das pessoas levado a efeito pelo regime totalitário nazista
em seus campos, como retratado por Arendt e Agamben. Parece viável também,
por meio da literatura, pensar criticamente a obra agambeniana, mirando os riscos
de uma nova escalada autoritária que leve à instauração de um Estado abusivo e
supressor dos direitos mais elementares.
Feitos estes esclarecimentos, cumpre salientar que, no presente texto, adota-se
o seguinte desenvolvimento: em primeiro lugar, busca-se situar o leitor no contexto
da obra Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, que doravante é utilizada como
um guia literário para a análise, compreensão e interpretação de conceitos-chave
elaborados por dois pensadores da filosofia contemporânea, quais sejam, Hannah
Arendt e Giorgio Agamben. Na sequência, empreende-se uma abordagem acerca de
algumas categorias filosóficas elaboradas por esses pensadores, sempre buscando
a interlocução com a obra de Saramago.

O muçulmano, abordado por Agamben, faz referência ao modo como eram chamados os prisioneiros dos
3

campos de concentração nazistas que, devido à situação de absoluta privação de dignidade, curvavam-se
sobre o próprio corpo, morrendo, não raramente, de desnutrição. O muçulmano – refere Agamben (2008,
p. 62) – “é não só, e nem tanto, um limite entre a vida e a morte; ele marca, muito mais, o limiar entre o
homem e o não-homem”, evidenciando que existe “um ponto em que, apesar de manter a aparência de
homem, o homem deixa de ser humano. Esse ponto é o muçulmano, e o campo é, por excelência, o seu
lugar”.

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2 José Saramago e o Ensaio sobre a cegueira: aportes


fictícios para uma releitura de Arendt e Agamben
Ao receber o prêmio Nobel, em 1998, José Saramago assim justificou o porquê
de haver escrito o Ensaio sobre a cegueira, então uma de suas mais recentes obras:

[...] para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente


a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano
é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a
mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem
deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia
ao seu semelhante (SARAMAGO, 1998).

As palavras do próprio Saramago, muito além de ilustrarem perfeitamente um


desconforto existente naquele fin de siècle, que se aprofunda até os dias atuais,
apontam também ao âmago das análises de diversas questões por Hannah Arendt e
Giorgio Agamben, autores estes que trilham caminhos de certa forma paralelos – na
medida em que Agamben se propõe, fundamentalmente, a preencher “espaços”
deixados “em branco” na filosofia arendtiana (e também foucaultiana, o que foge
à análise aqui empreendida).
Pois bem, na referida obra do autor português, uma doença denominada
“cegueira branca” atinge parte da população de um país e por ele se alastra
rapidamente. A doença não escolhe classes sociais: são atingidos todos (ladrão,
médico, prostituta, criança) e não se sabe a causa da doença nem a forma de
contágio, embora se perceba que é altamente transmissível.
O governo, mobilizado para o combate à moléstia, opta por confinar os que
foram acometidos pela cegueira e que sejam potencialmente perigosos à população
sã, bem como aqueles suspeitos de contágio, em um antigo manicômio, o qual
foi escolhido, entre outras opções, porque, segundo os burocratas responsáveis:

[...] é o que apresenta melhores condições, porque a par de estar mu-


rado em todo o seu perímetro, ainda tem a vantagem de se compor de
duas alas, uma que destinaremos aos cegos propriamente ditos, outra
para os suspeitos, além de um corpo central que servirá por assim
dizer, de terra-de-ninguém, por onde os que cegarem transitarão para
irem juntar-se aos que já estavam cegos (SARAMAGO, 1995, p. 46).

Logo que são recolhidos àquela instituição, os doentes, forçosa e absoluta-


mente desconectados do mundo exterior, ficam cientes das regras da internação,
algumas aqui destacadas: morte imediata àqueles que tentarem abandonar o
edifício; os restos de comida, deixada três vezes ao dia, devem ser queimados,
sendo os internos responsáveis por acidentes que decorram dessa queima; no

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caso de incêndio, fortuito ou intencional, os bombeiros não intervirão; em caso


de morte, os internados enterrarão o cadáver, sem formalidades, junto à cerca do
prédio (SARAMAGO, 1995).
Desde o início, percebe-se que os internados estão naquele local totalmente
desprovidos de mínimos recursos médicos, o que faz com que um dos personagens
reflita em determinado momento da obra: “Provavelmente é disso mesmo que
eles estão à espera, que acabemos aqui uns atrás dos outros, morrendo o bicho
acaba-se a peçonha” (SARAMAGO, 1995, p. 64).
Também os militares que fazem a segurança do local passam a aceitar o local
que vigiam como um ambiente excepcional, no qual não habitavam semelhantes
seus, mas seres que não mais podiam ser considerados pessoas, dadas as suas
condições de internação: “A vontade dos soldados era apontar as armas e fuzilar
deliberadamente, friamente, aqueles imbecis que se moviam diante dos seus olhos
como caranguejos coxos, agitando as pinças trôpegas à procura da perna que lhes
faltava” (SARAMAGO, 1995, p. 105).
O aumento do número de internos faz com que alguns dos militares cogitem
a solução mais simples: “Temos aqui um coronel que acha que a solução era ir
matando os cegos à medida em que forem aparecendo. Mortos em vez de cegos
não alteraria muito o quadro” (SARAMAGO, 1995, p. 111).
O ambiente nesse confinamento torna-se cada vez mais insustentável à medida
que se passam os dias. A falta de medicamentos, alimentação e as péssimas
instalações sanitárias, ao mesmo tempo, abatem os ânimos individuais e acirram
o ânimo coletivo. As misérias da internação tornam-se mais e mais evidentes. Nada
obstante, as regras apresentadas aos cegos no momento da internação continuam
sendo apresentadas cotidianamente, sem alterações.
Não demora para que novas regras, que não as ditadas de fora, passem a
ser postas por um dos grupos de cegos, os quais monopolizam a comida, pois
armados de paus e pedras e também pelo fato de possuírem uma pistola. Isso,
todavia, não sensibilizou aos guardas do complexo, por motivos bastante evidentes
em meio ao caos:

Impelida pela esperança absurda de uma autoridade que viesse


restaurar no manicómio a paz perdida, fortalecer a justiça, devolver
a tranquilidade, uma cega chegou-se conforme pôde à porta principal
e gritou para os ares, Ajudem-nos, que estes estão a querer roubar-
-nos a comida. Os soldados fizeram de conta que não tinham ouvido,
as ordens que o sargento recebera de um capitão que por ali havia
passado em vi sita de inspecção eram peremptórias, claríssimas, Se
eles se matarem uns aos outros, melhor, menos ficam (SARAMAGO,
1995, p. 139).

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O passar do tempo leva o grupo dominante também a reivindicar e impor o


domínio sexual das mulheres do grupo subjugado. O trágico ato final da primeira
parte do livro é um incêndio de grandes proporções, que destrói as instalações
daquele manicômio convertido em prisão, que devolve o grupo isolado às ruas,
pois, ao tentarem fugir, percebem que já não mais havia a vigilância dos guardas.
Pois bem, a partir desses registros iniciais da obra de Saramago, considera-se
possível articular, nos tópicos seguintes, uma relação entre o mundo imaginado pelo
autor português e o mundo percebido por dois filósofos essenciais à compreensão
das mazelas da (pós) modernidade, a seguir comentados.

3 Totalitarismo e o projeto dos campos em Hannah Arendt: o


preparo de cadáveres vivos
Hannah Arendt, judia-alemã nascida em Hannover, Alemanha, em 1906,
presenciou, em função dessas circunstâncias de tempo e lugar, a ascensão do
regime nazista e o advento da Segunda Guerra Mundial. Inicialmente, fugiu da
Alemanha para a França, estabelecendo-se em Paris, e chegou a ser recolhida a
um campo sob o governo de Vichy, em 1940. Ao fugir do campo, emigrou para
Nova Iorque, onde se estabeleceu pelo restante de sua vida e recebeu a cidadania
americana em 1951 (FRY, 2010).
Essas circunstâncias da biografia de Arendt podem muito bem indicar a sua
especial predileção por um tema, que permeia a história de seus escritos. Com
efeito, “a obra de Arendt pode ser compreendida como uma resposta ao que ela
considerava o problema mais importante do seu tempo: o totalitarismo” (FRY,
2010, p. 11). Essa predileção de Arendt pela análise do totalitarismo, desde suas
causas até os seus efeitos devastadores na segunda metade do século passado,
está presente em duas obras que serão adiante mais analisadas: Origens do
totalitarismo (1951) e Eichmann em Jerusalém (1963).
É indiscutível a influência de certos pensadores sobre a filosofia de Arendt,
embora ela mesmo negasse a condição de filósofa e manifestasse preferir ser
chamada de teórica política (FRY, 2010). Podem-se encontrar, todavia, aportes,
entre outros, da fenomenologia de Husserl e Hegel, da abordagem prática de
Kant e Jaspers, das preocupações de Nietzsche e Heidegger com a linguagem e a
origem que subjazem aos fenômenos políticos e com os métodos de Aristóteles e
de Benjamin4 (FRY, 2010).
Um primeiro paralelo cabível entre a literatura de Saramago e o pensamento
filosófico que trata do estado de exceção pode ser encontrado em Hannah Arendt,

Uma descrição mais pormenorizada desse amplo rol de influências filosóficas desbordaria os limites do
4

presente trabalho.

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que, ao escrever sobre as origens do totalitarismo, aborda, para além da gênese do


fenômeno totalitário, como o próprio título poderia indicar, o ápice desse fenômeno,
o qual ocorreu, segundo a autora, “[...] na Rússia, em 1929, ano que se costuma
chamar de ‘segunda revolução’, e na Alemanha em 1933” (ARENDT, 2012, p. 415).
Em Origens do totalitarismo, Hannah Arendt examina o fenômeno totalitário
e tenta compreendê-lo sob três eixos interconectados – o antissemitismo, o
imperialismo e o próprio totalitarismo –, em sua vertiginosa ascensão na União
Soviética e na Alemanha. Segundo Fry (2010, p. 24), não se trata de examinar
antissemitismo e imperialismo como concausas no estabelecimento do totalitarismo,
pois a própria Arendt partia da premissa de que “as ações humanas são livres”, e
pensar em termos causais levaria à equivocada conclusão de que o totalitarismo
não poderia ter sido evitado. Adverte Arendt, no prólogo da obra:

[...] deve ser possível [...] encarar e compreender o fato, chocante


decerto, de que fenômenos tão insignificantes e desprovidos de impor-
tância na política mundial como a questão judaica e o antissemitismo
se transformaram em agente catalisador, primeiro, do movimento
nazista; segundo, de uma guerra mundial; e finalmente da construção
dos centros fabris de morte em massa (ARENDT, 2012, p. 12-13).

A instituição do regime totalitário que mais severamente representou, em


termos de experiência, o cerne das concepções autoritárias e a crença de que em
tal regime tudo é possível foi justamente o campo de concentração e extermínio
(ARENDT, 2012). Nesse sentido, para Arendt, “os campos são a verdadeira instituição
do poder organizacional totalitário” (ARENDT, 2012, p. 583).
A leitura de Arendt deixa claro que, na sua concepção, a experiência dos campos
surgia a partir de uma estrutura muito bem organizada e racionalmente articulada
pelos regimes, em especial pelos nazistas, aos quais a autora se refere de forma
mais contundente na referida obra, mais do que aos soviéticos e seus gulags.
Um óbice que se pode estabelecer entre o campo do Ensaio sobre a cegueira
e o campo de concentração e extermínio totalitário é justamente esse caráter
organizado dos campos nazistas, construídos como uma máquina articulada
em prol do assassinato, ao passo que, na obra de Saramago, o caos advém da
desorganização, do abandono e, obviamente, da própria cegueira.
Pode-se perguntar, portanto, se é possível reconhecer um ponto de convergência
entre duas situações que se revelam díspares nesse aspecto essencial. A resposta
é positiva, conforme se defende a seguir.
Antes de mais nada, deve-se ter em mente, aqui, que a própria obra de
Saramago não aborda de forma pormenorizada o quanto de estrutura organizada em
favor da morte existe no campo criado para os cegos. Em princípio, o que a obra nos
conta é que foram lá abandonados à própria sorte, recebendo um mínimo necessário

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à sobrevivência. Talvez não haja, como na realidade dos campos, estruturas criadas
e utilizadas para dar cabo à vida dos internos até o último fio,5 mas há diversos
momentos no livro de Saramago em que fica cristalina a condição frágil da vida
daqueles internos, uma situação limítrofe em que o preço de uma vida equivale,
ou é inferior, a uma bala disparada por um soldado. Trata-se o campo, em suma,
tanto na ficção de Saramago quanto na análise de Arendt, de um espaço voltado,
antes de qualquer coisa, à modulação da vida: nesses espaços, “o prolongamento
de suas vidas é devido à caridade e não ao direito”, na medida em que se cria, no
campo, “uma condição de completa privação de direitos antes que o direito à vida
fosse ameaçado” (ARENDT, 2012, p. 402-403).
Nesse ponto, parece haver uma maior relação entre o campo dos cegos de
Saramago e os campos de concentração implantados pelos nazistas antes de
se optar pelo extermínio via solução final, mas é possível perceber também uma
rudimentar estrutura de extermínio que exigia a participação decisiva dos cegos no
enterrar aqueles que morriam, fosse por causa natural ou por tiros dos soldados:
em um dos momentos da obra, um cego ferido busca socorro junto ao portão, mas
lá chegando é morto por um soldado assustado. Sucede o seguinte:

Então o sargento gritou, Quatro homens daí que venham buscar o


corpo. Porque não se podiam ver nem contar, foram seis os cegos que
se moveram, Eu disse quatro, berrou o sargento histericamente. Os
cegos tocaram-se, tornaram a tocar-se, ficaram dois deles. Os outros
começaram a andar ao longo da corda (SARAMAGO, 1995, p. 81).

Portanto, essa estrutura de extermínio aos poucos também se implanta no


manicômio, pois, conforme a própria narrativa esclarece, os próprios guardas não
tinham coragem de se aproximarem do local da internação sob pena de cegarem e
serem recolhidos ao mesmo local que vigiavam. Assim, os cegos foram claramente
incorporados ao processo de “descarte dos corpos”, porque os guardas não
pretendiam fazê-lo.
Outro paralelo entre o campo dos cegos e a análise de Hannah Arendt sobre
os campos de concentração e extermínio pode ser buscado em outra obra da
filósofa alemã, qual seja, Eichmann em Jerusalém, texto focado na cobertura do
julgamento de Adolf Eichmann, acusado de crimes de guerra cometidos enquanto
responsável pela supervisão da estrutura de extermínio.
Na mencionada obra, Arendt elabora o conceito de banalidade do mal como
uma forma de explicar o comportamento de Eichmann, que nunca questionou a
legalidade ou moralidade das ordens que recebia. A ideia de banalidade do mal,

A expressão “solução final” utilizada pelos nazistas é bem ilustrativa dessa realidade.
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embora constitua uma construção original e também controversa de Arendt, pode


muito bem ser justaposta a diversos tipos de comportamento pessoal e social nos
quais não se questionam os padrões de regras estabelecidos de cima para baixo,
justificando, ao menos sob o ponto de vista do executor da ordem, qualquer tipo de
comportamento, ainda que obscenamente atentatório às mais comezinhas noções
de civilidade e/ou dignidade.
Na obra de Saramago, chama atenção o seguinte trecho:

Sabiam o que no quartel tinha sido dito essa manhã pelo comandante
do regimento, que o problema dos cegos só poderia ser resolvido
pela liquidação física de todos eles, os havidos e os por haver, sem
contemplações falsamente humanitárias [...]. A alguns soldados [...]
a palavra de um comandante de regimento [...] vale quanto pesa,
ninguém chega tão alto na vida militar sem ter razão em tudo quanto
pensa, diz e faz (SARAMAGO, 1995, p. 105).

Por outro lado, Arendt esclarece como Eichmann distorceu o imperativo


categórico kantiano, adaptando-o à sua realidade e cadeia de comando: a notável
formulação de Kant transmutou-se naquilo que Hans Frank, citado por Arendt,
denomina “imperativo categórico do Terceiro Reich”, ou seja, “aja de tal modo que
o Führer, se souber de sua atitude, a aprove” (ARENDT, 2002, p. 153). É o mesmo
tipo de imperativo considerado pelo soldado na obra ficcional.
Fica claro, portanto, tanto na situação fictícia quanto na análise do caso real,
que a autoridade hierárquica e a ideia de uma razão superior atuam de forma muito
incisiva na formação de uma consciência legitimadora do estado de exceção, o que
se revela no comportamento daqueles que se consideram meros cumpridores de
ordens, estas consubstanciadas na figura de um líder pretensamente mais sábio,
um verdadeiro senhor da razão.
Essas, enfim, algumas razões que autorizam a pretensão de estabelecer um
paralelo entre as duas situações. Feito esse esclarecimento, faz-se a seguir uma
análise de um aspecto específico da obra de Arendt sobre o totalitarismo, que é
o que Hannah Arendt denomina de “preparo de cadáveres vivos”, ou seja, aquela
situação em que se dá o ápice da dominação totalitária, com a concentração e
posterior extermínio dos que foram subjugados na medida em que inseridos no
contexto de um estado de exceção e se busca traçar um paralelo, também quanto
a esse aspecto, com a obra de Saramago.
Uma das abordagens mais chocantes realizadas por Arendt em Origens do
totalitarismo diz respeito a um procedimento usualmente adotado nos campos que
parece não ter colhido, dos comentadores da sua obra, a necessária e merecida
atenção.

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O paradigma do campo na filosofia de Hannah Arendt e Giorgio Agamben: uma análise a partir...

Trata-se daquilo que Arendt denomina como o “preparo de cadáveres vivos”,


ou seja, o processo de desconstrução dos seres humanos levado a efeito pelos
regimes totalitários dentro dos campos de concentração e extermínio. Os campos
serviam, sob essa perspectiva, como uma verdadeira linha de produção ou, melhor
dizendo, de desconstrução de seres humanos:

Os campos destinam-se não apenas a exterminar pessoas e degradar


seres humanos, mas também servem à chocante experiência da elimi-
nação, em condições cientificamente controladas, da própria esponta-
neidade como expressão da conduta humana, e da transformação da
personalidade humana numa simples coisa, em algo que nem mesmo
os animais são; pois o cão de Pavlov que, como sabemos, era treinado
para comer quando tocava um sino, mesmo que não tivesse fome, era
um animal degenerado (ARENDT, 2012, p. 582).

Para Arendt, serviam tais campos como verdadeiros laboratórios nos quais se
leva a efeito a crença totalitária de que tudo é possível, o que, sob uma perspectiva
racional-liberal, não é fácil de aceitar e compreender. Todavia, argumenta Arendt,
deter-se nos horrores dos campos “é indispensável para compreender o totalitarismo”
(ARENDT, 2012, p. 583).
Da leitura de Saramago pode-se chegar a outro ponto de dissonância entre o
que veicula a obra do português e a narrativa de Arendt: não há, no Ensaio sobre a
cegueira, um estado totalitário perfeitamente caracterizado, mas pode-se observar na
seguinte manifestação de Arendt que o fenômeno do campo não é uma exclusividade
daquele contexto. Há certo grau de aprofundamento nos horrores, que, sustenta
ela, encontra paralelo na distinção ocidental entre limbo, purgatório e inferno:

Os campos de concentração podem ser classificados em três tipos


correspondentes às três concepções ocidentais básicas de uma vida
após a morte: o Limbo, o Purgatório e o Inferno. Ao Limbo correspon-
dem aquelas formas relativamente benignas, que já foram populares
mesmo em países não-totalitários, destinadas a afastar da sociedade
todo tipo de elementos indesejáveis — os refugiados, os apátridas, os
marginais e os desempregados —; os campos de pessoas desloca-
das, por exemplo, que continuaram a existir mesmo depois da guerra,
nada mais são do que campos para os que se tornaram supérfluos
e importunos. O Purgatório é representado pelos campos de trabalho
da União Soviética, onde o abandono alia-se ao trabalho forçado e
desordenado. O Inferno, no sentido mais literal, é representado por
aquele tipo de campos que os nazistas aperfeiçoaram e onde toda a
vida era organizada, completa e sistematicamente, de modo a causar
o maior tormento possível (ARENDT, 2012, p. 591).

Ou seja, Arendt admite a existência de campos em formas “relativamente


benignas”, que corresponderiam ao limbo, o que não deixa de causar certo espanto

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Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, Humberto Acacio Trez Seadi

quando não se toma essa expressão como ironia ou de um ponto de vista comparado
às demais modalidades de vida pós-morte. Com efeito, é o que parece ter ocorrido
no presente caso, pois, logo a seguir, Arendt afirma que:

Os três tipos têm uma coisa em comum: as massas humanas que


eles detêm são tratadas como se já não existissem, como se o que
sucedesse com elas não pudesse interessar a ninguém, como se já
estivessem mortas e algum espírito mau, tomado de alguma loucura,
brincasse de suspendê-las por certo tempo entre a vida e a morte,
antes de admiti-las na paz eterna (ARENDT, 2012, p. 591).

Fato é que não parece haver, o que uma primeira leitura desse trecho de Arendt
leva a acreditar, uma cisão rígida entre tais modalidades, como se o “limbo” não
pudesse transformar-se em “purgatório” ou em “inferno” em uma rápida deterioração
das condições. Em Saramago, isso fica bem claro pela degradação do ambiente
frequentado pelos cegos, desde a alimentação até as condições de higiene. No
tempo do livro, vai-se celeremente do limbo ao inferno, ainda que não se saiba se
há um projeto totalitário do lado de fora do manicômio.
O inferno, a que correspondem os campos nazistas, adotava uma forma muito
peculiar e calculada de eliminar pessoas, o que Arendt denomina, em sua obra,
como “preparo de cadáveres vivos”, um intrincado e elaborado processo que se
iniciava na destruição dos direitos, passava pela eliminação da condição de mártires
e atingia a morte da identidade dos indivíduos nos campos.
Segundo Arendt, portanto, o domínio total (pretensão última do totalitarismo)
apenas se dá por meio das várias mortes impostas aos internos dos campos. Primeiro
mata-se a pessoa sob aspecto jurídico, excluindo-a da lei do país ou desnacionalizan-
do-a. Os reais prisioneiros dos campos eram misturados a criminosos de verdade,
“medida necessária para emprestar credibilidade à alegação propagandística do
movimento de que a instituição existe para abrigar elementos fora da sociedade”
(ARENDT, 2012, p. 594). Passo seguinte no preparo de cadáveres vivos, esclarece
Arendt, é “matar a pessoa moral do homem” (ARENDT, 2012, p. 599), o que se faz
tornando impossível que as pessoas atinjam a condição de mártires. A morte selava
o fato de que os prisioneiros jamais haviam existido e, antes da morte, o sistema
totalitário submetia tais presos a dilemas morais em face dos quais a consciência
não apresentava respostas lógicas e razoáveis, como, por exemplo, a escolha entre
a morte dos amigos e a morte dos familiares, de modo que a escolha “já não é entre
o bem e o mal, mas entre matar e matar” (ARENDT, 2012, p. 600). Finalmente, o
transporte aos campos, as grotescas roupas, as torturas inimagináveis cumpriam
a última parte do roteiro, qual seja, a destruição da individualidade, que consiste
em “destruir a espontaneidade, a capacidade do homem de iniciar algo novo com

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O paradigma do campo na filosofia de Hannah Arendt e Giorgio Agamben: uma análise a partir...

seus próprios recursos, algo que não possa ser explicado à base de reação ao
ambiente e aos fatos” (ARENDT, 2012, p. 603).
Esse processo deliberado para o “desmanche” dos seres humanos pode ser
percebido também na ficção. Consulte-se novamente Saramago para verificar que
todo campo possui o potencial para a produção de tais cadáveres. Basta perceber
que, logo recolhidos ao manicômio, os cegos recebem uma série de instruções que
deixam claro o absoluto desapossamento dos direitos mais elementares, bem como
a mera imposição de deveres com a seguinte exortação: “O Governo e a Nação
esperam que cada um cumpra o seu dever. Boas noites” (SARAMAGO, 1995, p.
51). Pode-se notar, claramente, uma clara cisão entre os que estão recolhidos e
os que ficaram do lado de fora. Chamam-se os compulsoriamente recolhidos ao
cumprimento de seus deveres, mas a estes não se reconhecem quaisquer direitos,
como se já não compusessem o mesmo corpo social, excluídos da lei do país e
da nação.
O preparo de cadáveres segue pela decomposição moral dos internos. As
escolhas trágicas também se fazem presentes aqui, como no derradeiro ato da
primeira parte do livro, em que uma interna ateia fogo a uma camarata na qual
se abrigavam cegos, que, por meio da violência, pretendiam monopolizar os
suprimentos de comida direcionados ao manicômio. Encontra-se na narrativa a
seguinte consideração:

Felizmente, como a história humana tem mostrado, não é raro que uma
coisa má traga consigo uma coisa boa, fala-se menos das coisas más
trazidas pelas coisas boas, assim andam as contradições do nosso
mundo, merecem umas mais consideração do que outras, neste caso
a boa coisa foi precisamente terem as camaratas uma única porta,
graças a isto é que o fogo que queimou os malvados se demorou por lá
tanto tempo, se a confusão não se tornar maior, talvez não tenhamos
que lamentar a perda doutras vidas (SARAMAGO, 1995, p. 207-208).

Ou seja, em certo momento já não se lamentam mortes como “danos


colaterais”, o que torna evidente que as perspectivas morais já se perderam durante
o processo de internação. Não há mais mártires, conforme se deixa claro logo a
seguir, quando se reflete sobre as mortes das pessoas e se as compara com as
árvores: “Que bonito seria poder ver as árvores do bosque a fugir ao incêndio”
(SARAMAGO, 1995, p. 208).
Por fim, a morte da individualidade se percebe nas circunstâncias progres-
sivamente mais precárias da internação, o que leva, em determinado momento,
apenas para ficar neste exemplo, ao colapso sanitário:

[...] há que reconhecer que os primeiros cegos trazidos a esta qua-


rentena foram capazes, com maior ou menor consciência, de levar

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com dignidade a cruz da natureza eminentemente escatológica do ser


humano. Mas agora, ocupados como se encontram todos os catres,
duzentos e quarenta, sem contar os cegos que dormem no chão, nenhu-
ma imaginação, por muito fértil e criadora que fosse em comparações,
imagens e metáforas, poderia descrever com propriedade o estendal
de porcaria que por aqui vai. Não é só o estado a que rapidamente
chegaram as sentinas, antros fétidos, como deverão ser. No inferno,
os desaguadoiros das almas condenadas, é também a falta de respei-
to de uns ou súbita urgência de outros que, em pouquíssimo tempo,
tornaram os corredores e outros lugares de passagem em retretes
que começaram por ser de ocasião e se tornaram de costume. Os
descuidados ou urgidos pensavam, Não tem importância, ninguém me
vê, e não iam mais longe. Quando se tornou impossível em qualquer
sentido, chegar aonde estavam as sentinas, os cegos passaram a
usar a cerca como lugar para todos os desafogos e descomposições
corporais (SARAMAGO, 1995, p. 133-134).

Portanto, encontram-se na obra de Saramago todos aqueles elementos que


Arendt define como preparo de cadáveres vivos, e a descrição do que se faz com
aqueles cegos, personagens do autor português, ilustra muito bem essa realidade, da
mesma forma como a sua transição do limbo ao inferno, passando pelo purgatório.
O inferno dos campos – seja o literário, sejam os reais – traz consigo um
elemento especialmente peculiar de angústia e crueldade: ao contrário da tradicional
concepção de inferno, os habitantes dos campos hodiernos não esperam por um
julgamento final que traga a misericórdia ou restitua o senso de justiça (ARENDT,
2012). Eles sabem que provavelmente sairão dali mortos, e não perdoados.

4 Giorgio Agamben e o paradigma do campo em seu projeto


filosófico
Giorgio Agamben, italiano nascido em Roma no ano de 1942, era uma criança
à época da Segunda Guerra. Formado em direito e filosofia, lecionou na Itália, mas
fez uma trajetória semelhante à de Arendt, embora sob circunstâncias totalmente
diferentes: passou por Paris e chegou aos Estados Unidos, lecionando em diversas
universidades nesses países.
Agamben é autor de uma obra profusa, que, conforme esclarece um de seus
biógrafos, Edgardo Castro (2012), transita inicialmente pelos campos da obra de
arte, da melancolia, da poesia estilonovista e da relação da linguagem com a história
e com a morte. Todavia, atinge sua proeminência em 1995, após a publicação de
Homo Sacer, obra na qual redireciona sua abordagem para a relação entre a política
e a vida (CASTRO, 2012) e que se transforma em uma série de livros desenvolvida
sob a forma de tetralogia, contidos alguns em mais de um volume: Homo Sacer: o
poder soberano e a vida nua (1995); O que resta de Auschwitz (1998); Estado de

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exceção (2003); O reino e a glória: por uma genealogia teológica da economia e


do governo (2007); Altíssima pobreza: regras monásticas e formas de vida (2011);
Opus dei: arqueologia do sacrifício (2012) e O uso dos corpos (2014). Dentre esses
volumes, tomam-se para análise, no presente texto, Homo Sacer: o poder soberano
e a vida nua, O que resta de Auschwitz e Estado de exceção.
Quanto aos pontos de contato entre as obras de Agamben e Arendt, pode-se
encontrá-los, entre outros, na predileção dos autores pela análise e crítica da
política na modernidade e, muito especialmente, a partir do advento do fenômeno
totalitário. Comenta Fry (2010, p. 10-11) que “[...] o leitor deve considerar a obra de
Arendt como um sistema para compreender a política, o qual dá início a um diálogo,
em vez de fazer alegações conclusivas que suprimem qualquer dissensão”. Isso
parece efetivamente ser uma característica da obra da filósofa judia-alemã, até hoje
frequentemente revisitada por autores mais modernos que bebem daquela fonte e
buscam desenvolver novas perspectivas. Não se discute, por exemplo, a influência
do pensamento arendtiano sobre Agamben, o que o próprio autor reconhece em
sua obra em diversos momentos e é ressaltado por Castro (2012) quando este
refere que a publicação de Homo Sacer, em 1995, é uma retomada da herança de
Hannah Arendt e Michel Foucault acerca da politização moderna da vida biológica.
Na introdução da obra Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, Agamben
(2002, p. 12) salienta que sua obra se situa numa interseção entre Arendt e Foucault
ao afirmar que, “em The human condition, a autora curiosamente não estabelece
nenhuma conexão com as penetrantes análises que precedentemente havia dedicado
ao poder totalitário (das quais está ausente toda e qualquer perspectiva biopolítica)”.
Por outro lado, o italiano afirma levar em consideração, em seu projeto filosófico,
o fato “de que Foucault jamais tenha deslocado a sua investigação para as áreas
por excelência da biopolítica moderna: o campo de concentração e a estrutura dos
grandes estados totalitários do Novecentos”.
Em entrevista concedida ao German Law Journal, Giorgio Agamben faz algumas
considerações importantes sobre seu trabalho e obra que podem ser aqui exploradas
a título de esclarecimento prévio sobre alguns pontos que serão a seguir abordados.
Chama atenção, de início, que Agamben se apresenta como alguém que trabalha
com paradigmas, ou seja, algo exemplar, fenômenos históricos singulares, tais
como o panóptico foucaultiano, ou ainda, na obra do próprio entrevistado, o homo
sacer, o muselmann e o estado de exceção. Comenta Agamben: “[…] I use this
paradigm to construct a large group of phenomena and in order to understand an
historical structure, again analogous with Foucault, who developed his ‘panopticism’
from the panopticon” (RAULFF, 2004a, p. 610).
A questão dos paradigmas no âmbito do pensamento agambeniano é analisada
de forma mais profunda no livro Signatura rerum, datado de 2008, livro que contempla
três ensaios de Agamben, dentre os quais, o primeiro deles, denominado justamente

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O que é um paradigma. No aludido texto, Agamben ressalta o caráter analógico


dos paradigmas, os quais, segundo ele, entre outras características peculiares,
não constituem uma forma de conhecimento dedutiva ou indutiva.6 Ressalta
Agamben, sob essa mesma perspectiva e baseando-se em Aristóteles, que “[...]
o gesto paradigmático não vai do particular ao todo e do todo ao particular, mas
do individual ao individual. O fenômeno, exposto no meio da sua cognoscibilidade,
mostra o conjunto do qual é paradigma” (AGAMBEN, 2019, p. 36).
A análise dos paradigmas encontrados na obra de Agamben e também de
Arendt, embora a autora alemã não fizesse um uso explícito desse tipo de abordagem,
vai se mostrar muito útil no desenvolvimento de uma crítica focada na literatura de
Saramago. Como Agamben ressalta, aliás, uma de suas preocupações ao tratar de
paradigmas é “[...] tornar inteligível uma série de fenômenos, cujo parentesco poderia
escapar ou passar despercebido ao olhar do historiador” (AGAMBEN, 2019, p. 42).
Como já salientado, Agamben chama atenção ao fato de que, nas obras
em que Michel Foucault e Hannah Arendt abordam os fenômenos da biopolítica e
dos Estados totalitários, haveria um déficit na confluência das análises dos dois
pensadores para que compreendessem o contexto dos Estados totalitários como
o exemplo por excelência da prática biopolítica. Com o conceito de vida sacra, ou
vida nua, Agamben diz pretender fazer convergir os pontos de vista de Foucault e
Arendt (AGAMBEN, 2002).
É justamente a ambiguidade que se estabelece entre zoé (vida nua considerada
anonimamente) e bíos (vida qualificada de cidadão) no processo de nascimento da
democracia europeia que interessa a Agamben, pois, “[...] se é possível falar [...]
do ‘desejo da lei de ter um corpo’, a democracia responde ao seu desejo obrigando
a lei a tomar sob seus cuidados este corpo” (AGAMBEN, 2002, p. 130).
Nesse sentido, regimes autoritários, como o nazismo e o fascismo, seriam
exemplos de movimentos biopolíticos, na medida em que fazem da vida natural o
lugar onde se estabelece a decisão soberana. A perspectiva agambeniana, nesse
ponto, ressalta a práxis inerente à biopolítica, de continuamente redefinir incluídos
e excluídos, o que pode também ser percebido na ficção de Saramago, na qual
resta clara a oposição entre quem está dentro do manicômio e quem está fora dele,
ou, inversamente, entre quem ainda possui algum direito e quem foi abandonado
à vida nua.
Outra analogia pertinente entre o pensamento de Agamben e a literatura está
no conceito de “vida indigna de ser vivida”, conceito este tomado da obra de Karl
Binding e Alfred Hoche, na qual os autores defendiam possível o aniquilamento
de vidas que perderam a qualidade de bem jurídico, pessoas “que não são mais

O caráter analógico dos paradigmas explica a opção que se faz no presente texto de alternar entre as
6

expressões analogia e paradigma, ainda que dando preferência a esta última.

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do que a espantosa imagem ao avesso (Gegenbild) da autêntica humanidade”


(AGAMBEN, 2010, p. 145). O conceito proposto por Binding e Hoche é claramente
“[...] um conceito político, no qual está em questão a extrema metamorfose da vida
matável e insacríficável do homo sacer, sobre a qual se baseia o poder soberano”
e que “assinala o ponto em que a biopolítica converte-se necessariamente em
tanatopolítica” (AGAMBEN, 2002, p. 148-149).
Existe exemplo mais bem acabado da transição entre a biopolítica pelo controle
dos corpos e a tanatopolítica pela eliminação da vida do que o seguinte trecho de
Saramago, no momento posterior à repressão pelos soldados de uma imaginada
revolta dos cegos internados quando se lhes alcançava caixas de comida? Leia-se:

A partir de agora deixamos as caixas a meio caminho, eles que as


venham buscar, mantemo-los debaixo de olho, e ao menor movimento
suspeito, fogo. Dirigiu-se ao posto de comando, ligou o microfone e,
juntando as palavras o melhor que soube, recorrendo à lembrança
doutras semelhantes escutadas em ocasiões mais ou menos pareci-
das, disse, O exército lamenta ter sido obrigado a reprimir pelas armas
um movimento sedicioso responsável pela criação duma situação de
risco iminente, da qual não teve culpa directa ou indirecta, e avisa
que a partir de hoje os internados passarão a recolher a comida fora
do edifício, ficando desde já prevenidos de que sofrerão as conse-
quências no caso de se manifestar qualquer tentativa de alteração
da ordem, como aconteceu agora e a noite passada tinha acontecido
(SARAMAGO, 1995, p. 89).

Ora, a partir desse momento fica evidente, inclusive pela fala do personagem,
que todos os internos passam a ser, conforme Agamben, homines sacri, ou seja,
uma “vida que pode ser morta sem que se cometa homicídio” (AGAMBEN, 2002,
p. 166), pois se trata de pessoas excluídas da comunidade política, na medida em
que são inseridas em um campo.
O conceito de campo, aliás, é outro dos paradigmas lançados por Agamben
que possuem plena compatibilidade com a analogia literária de Saramago. Agamben
trata, ao longo do homo sacer, especialmente dos campos de concentração e
extermínio, mas não apenas deles, senão também dos campos de refugiados, das
prisões, isto é, de todas aquelas situações em que o estado de exceção assume
o protagonismo:

O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa


a tornar-se a regra. Nele, o estado de exceção, que era essencialmente
uma suspensão temporal do ordenamento com base numa situação
factícia de perigo, ora adquire uma disposição espacial permanente
que, como tal, permanece, porém, estavelmente fora do ordenamento
normal (AGAMBEN, 2002, p. 175-176).

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Trata-se do espaço por excelência da vida nua, pois os habitantes se


encontram totalmente despojados do pertencimento a uma comunidade política.
De acordo com Agamben (2008, p. 60), “Auschwitz é o lugar de um experimento
ainda impensado, no qual, para além da vida e da morte, o judeu se transforma
em muçulmano, e o homem em não-homem”. Nesse ponto, um paralelo com a
obra de Arendt é inevitável: também Agamben (2008, p. 78) considera o campo
uma verdadeira “fábrica de cadáveres” ao afirmar que:

A expressão ‘fábrica de cadáveres’ implica que aqui já não se possa


propriamente falar de morte, que não era morte aquela dos campos,
mas algo infinitamente mais ultrajante que a morte. Em Auschwitz não
se morria: produziam-se cadáveres. Cadáveres sem morte, não-homens
cujo falecimento foi rebaixado a produção em série. É precisamente
a degradação da morte que constituiria, segundo uma possível e
difundida interpretação, a ofensa específica de Auschwitz, o nome
próprio do seu horror.

O manicômio no qual se reúnem os cegos no livro de Saramago também ilustra


de forma bastante veemente como se estabelece o dispositivo em questão. Do
ensaio de Monica Figueiredo (2006, p. 185) retira-se, a propósito, uma perspectiva
interessante sobre a ideia de concentração, que também auxilia a refletir sobre a
extensão e significado das reclusões. Diz ela, acerca de Ensaio sobre a cegueira:
“Esse romance se constrói num tempo limite, num tempo sem lei – ou pior ainda,
regido por outra lei –, que leva tudo aquilo que somos a um nível insuportável de
concentração”.
A concentração, portanto, não é apenas a de pessoas dentro de um campo,
mas uma concentração de sofrimentos, angústias, maldades, como se, comprimidas
todas as experiências dolorosas da existência, surgisse outra perspectiva de espaço
e tempo, um espaço delimitado por poucos e delimitados caminhos, um tempo
lento e “pesado” para os ombros daqueles que o vivenciam.
Nesse ponto, cumpre, ainda, estabelecer uma correlação entre Ensaio sobre
a cegueira e a noção agambeniana de estado de exceção, conceito que o autor
italiano aprofunda na obra homônima, parte da tetralogia homo sacer, que veio a
público no ano de 2003.
Agamben trata o estado de exceção como um fenômeno paradoxal, que, ao
mesmo tempo, liga e abandona o vivente ao direito – daí seu aspecto biopolítico – e
que ocorre mesmo no âmbito dos Estados contemporâneos democráticos, como,
por exemplo, na “military order” promulgada no pós-11 de setembro de 2001 nos
Estados Unidos e que Agamben compara com as regras dos campos de concentração.
Diversos outros países de base democrática, tais como França, Alemanha, Suíça,
Itália e Reino Unido, valeram-se do paradigma do estado de exceção em determinados

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períodos (AGAMBEN, 2004). Para a doutrina de Carl Schmitt, que Agamben se


preocupa em examinar no segundo capítulo da sua obra, seria possível a articulação
entre estado de exceção e ordem jurídica e, aí, novamente evidencia-se o paradoxo,
“pois o que deve ser inscrito no direito é essencialmente algo exterior a ele, isto é,
nada menos do que a suspensão da própria ordem jurídica” (AGAMBEN, 2004, p. 54)
Essa concepção do estado de exceção enquanto suspensão do direito
remonta, demonstra Agamben, a um antigo instituto do direito romano, denominado
iustitium, a partir do qual se admitia uma suspensão do direito, deixando-se de
lado as prescrições jurídicas. Todavia, não se pode confundir estado de exceção
com ditadura, esta caracterizada por plenitude de poderes, ao passo que aquele é
justamente uma lacuna, um vazio. Refere Agamben (2004, p. 75-76):

O que caracteriza tanto o regime fascista quanto o nazista é, como


se sabe, o fato de terem deixado subsistir as constituições vigentes
[...] fazendo acompanhar [...] a constituição legal de uma segunda
estrutura, amiúde não formalizada juridicamente, que podia existir
ao lado de outra graças ao estado de exceção [...] a estrita oposição
democracia/ditadura é enganosa para uma análise dos paradigmas
governamentais hoje dominantes.

A anomia que caracteriza o estado de exceção é facilmente compreensível


a partir da perspectiva da vida no manicômio. A obra de Saramago permite fazer
essa distinção a partir de limites bem definidos: há um estado de exceção dentro
do espaço a que confinados os cegos: “vige” ali a ausência de regras básicas de
convivência que não sejam aquelas diariamente repetidas de fora dos muros, mas
que servem apenas ao controle biopolítico dos corpos aprisionados. O que resta de
estado de direito – se é que resta, conforme os desdobramentos da obra deixam
claro mais adiante – fica do lado de fora do manicômio convertido em depósito/
concentração/prisão.
Inevitável aqui deixar de traçar um paralelo entre o manicômio no Ensaio
sobre a cegueira com aquilo que descreve outra obra, o perturbador filme do
diretor italiano Pier Paolo Pasolini, Saló ou 120 dias de Sodoma, o qual conta a
história de um grupo de jovens aprisionados por um grupo de fascistas em uma
casa durante 120 dias, período no qual sofrem as mais severas violências. Ao
invés de estar em um manicômio convertido em prisão, os jovens estão em uma
grande casa; ao invés de serem abandonados à própria sorte, como os cegos de
Saramago, os jovens são submetidos à estrita vigilância e controle de suas vidas,
o que permite argumentar, diante dessas diferentes perspectivas, que a exceção
pode estabelecer-se mediante graus e tipos diferentes de controle.
Na obra de Pasolini também está presente a principal característica do estado
de exceção, qual seja, a criação de um espaço no qual a vida humana e a norma

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entram em um limiar de indistinção: o ordenamento “normal” é suspenso de modo a


permitir todo e qualquer tipo de atrocidades. Com efeito, o filme apresenta imagens
de grande impacto, principalmente quando retrata a violência sexual sistemática
à qual as vítimas são submetidas: como nos filmes anteriores de Pasolini, os
corpos nus (perfeitos, sedutores) ainda povoam a tela, mas, em Salò, o sexo está
dissociado da alegria, do prazer, porque relacionado à obrigação e à morte – em
uma das cenas, dois jovens, logo após o “casamento”, são obrigados a copular
diante de todos os “convidados”. Em outras cenas, assistem-se às mais cruéis
formas de humilhação humana: os prisioneiros são obrigados a andarem nus e
como cães, bem como a comer qualquer coisa, até mesmo pregos e, em primeiro
plano, praticar coprofagia.
O filme retrata uma situação de campo – espaço por excelência do estado de
exceção – no qual os habitantes são despojados de seus direitos e reduzidos a meros
“objetos” de uma ação política, reduzidos a zoé, ou seja, mera vida natural. A morte
não acontece nos primeiros estágios porque, ao matar, o poder se autossuprime.
No entanto, à medida que as vítimas são submetidas a uma situação de fome e
degradação, o poder ganha tempo e, com isso, o poder funda um terceiro reino
entre a vida e a morte, atestando o seu triunfo sobre a humanidade do homem
(AGAMBEN, 2008). Privados de todos os direitos e expectativas que habitualmente
são atribuídos à existência humana, mas ainda vivos biologicamente, os jovens
capturados na mansão vivem em uma zona limite entre a vida e a morte, entre o
interno e o externo. Nessa situação, são apenas vida nua. É por isso que esses
jovens são submetidos a sucessivos processos de cesuras (o filme é dividido em
três partes: o ciclo das manias, o ciclo da merda e o ciclo do sangue), até o ponto
em que chegam ao estado de meros homines sacri. Esse período de tempo que
medeia a condenação à morte e a execução delimita um limiar extratemporal e
extraterritorial, no qual o corpo humano é desligado de seu estatuto político normal.
Na exceção, esse corpo é abandonado ao poder: o experimento, como um rito de
expiação, pode restituí-lo à vida ou entregá-lo definitivamente à morte – à qual já
pertence desde o momento da captura no limbo da exceção.
Na sequência final do filme, Pasolini coloca os espectadores na posição de
observadores privilegiados das mais terríveis e escatológicas cenas de violências e
mutilações contra o corpo e a vida humanos, ao som de O Fortuna, da obra Carmina
Burana, de Carl Orff. Os corpos das vítimas, depois de usados à saciedade pelos
seus algozes, são agora descartados. E não causa espanto o fato de o filme terminar
com a chacina de todos os jovens, em um chocante contraste com a alegria e a
dança grotesca dos quatro oficiais diante dos gritos agonizantes de suas vítimas.
Afinal, após o limite, só a morte, como nos campos de concentração nazistas. O
último estágio é a câmara de gás.

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O paradigma do campo na filosofia de Hannah Arendt e Giorgio Agamben: uma análise a partir...

Resta então perguntar: o que há de semelhante entre as situações fictícias


apresentadas no livro e na obra cinematográfica a caracterizar que, em ambos os
casos, há um estado de exceção? Pode-se retomar aqui a lição de Agamben, para
quem “a tarefa essencial de uma teoria não é apenas esclarecer a natureza jurídica
ou não do estado de exceção, mas, principalmente, definir o sentido, o lugar e as
formas de sua relação com o direito” (AGAMBEN, 2004, p. 80).
Pois bem, o que une as narrativas do livro e do filme é a exceção produzida
pela suspensão da aplicação da norma naqueles espaços predeterminados
(campo), o que leva Agamben a dizer que tal anomia se caracteriza como sendo
força-de-lei-sem-lei (AGAMBEN, 2004). Uma descrição precisa da relação entre
estado de exceção e o campo como o lugar em que a exceção é perpetrada pode
ser buscada na precisa definição de Raulff (2004b, p. 15):

The state of exception signifies a temporary (zeitliche) abrogation (Auf-


hebung) of the rule of law, and the camp gives a spatial expression
to this state of exception, even if this expression remains outside of
the normal order. As the camp renders the state of exception steady,
it creates the paradox of normality which is identical with the anomy:
the camp brings about a new juridical-political paradigm in which the
norm becomes indistinguishable from the exception.

Na obra Ensaio sobre a cegueira, a ampliação espacial do campo e, conse-


quentemente, do estado de exceção resta devidamente demonstrada pelo que
conta um personagem chamado “o velho da venda preta”:

(...) o Governo não teve outro remédio que fazer marcha atrás em acele-
rado, ampliando os critérios que estabelecera sobre lugares e espaços
requisitáveis, do que resultou a utilização imediata e improvisada de
fábricas abandonadas, templos sem culto, pavilhões desportivos e
armazéns vazios, Desde há dois dias que se falava em montar acam-
pamentos de barracas de campanha (...) (SARAMAGO, 1995, p. 125).

Eis aí um trecho bastante ilustrativo da expansão do estado de exceção sobre


o campo do direito ou, nos termos pensados por Agamben, da violência sobre a
norma. De acordo com Agamben (2008, p. 57), “Auschwitz é exatamente o lugar em
que o estado de exceção coincide, de maneira perfeita, com a regra, e a situação
extrema converte-se no próprio paradigma do cotidiano”.
Diante dessa realidade, a única solução por ele articulada é operar no sentido
inverso, separando a artificial e violenta ligação entre violência e direito. Segundo
Agamben (p. 133), “verdadeiramente política é apenas aquela ação que corta o
nexo entre violência e direito”, e um eventual uso do direito apenas se coloca em

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Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, Humberto Acacio Trez Seadi

questão “após a desativação do dispositivo que, no estado de exceção, o ligava à


vida” (AGAMBEN, 2004, p. 133).

5 Considerações finais
Quase ao final da obra, Saramago ilustra um diálogo entre dois personagens,
que avaliam as razões da cegueira (a qual se revelara temporária): “Por que foi
que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te
diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos
que vêem, Cegos que, vendo, não vêem” (SARAMAGO, 1995, p. 310). Raciocínio
semelhante ao mencionado por Saramago, extraído do Livro dos conselhos e que
consta da epígrafe da obra: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (SARAMAGO,
1995, p. 10).
Sob o ponto de vista dessa personagem, portanto, não se trata de cegueira
o que ocorreu, mas de incapacidade de ver ou, ainda, de reparar. Não se sabe,
contudo, se a cruel lição da cegueira mudou essa perspectiva e desatou os nós
que amarravam direito e violência naquele mundo imaginário.
É perceptível que o uso da literatura, bem como das artes em geral, na
interpretação de autores como Arendt e Agamben, os quais são reconhecidos
pelo refino e complexidade do pensamento, mostra-se uma alternativa viável a
fim de resgatar nuances e conceitos que, pensados abstratamente, sem qualquer
conexão do ponto de vista histórico ou literário, talvez até parecessem irrelevantes.
Pode-se mencionar aqui a abordagem feita por Nussbaum (2017), ao defender que
a educação voltada para um projeto sólido de democracia deve ser pensada a partir
das humanidades, e não como um processo de capacitação que contribua apenas
com o incremento de riqueza material da nação. Refere, a respeito, Nussbaum
(2017, cap. VI):

Os cidadãos não conseguem se relacionar de maneira adequada com


o mundo complexo que os rodeia unicamente por meio do conhecimen-
to factual e da lógica. A terceira qualidade do cidadão, intimamente
relacionada às outras duas, é o que podemos chamar de imaginação
narrativa. Isso significa a capacidade de pensar como deve ser se en-
contrar no lugar de uma pessoa diferente de nós, de ser um intérprete
inteligente da história dessa pessoa e de compreender as emoções,
os anseios e os desejos que alguém naquela situação pode ter.

Observa-se uma espantosa simbiose entre a genial elaboração fictícia de


Saramago e o pensamento complexo e baseado no estabelecimento de paradigmas,
como o que é desenvolvido por Agamben, de forma mais explícita, mas também por

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O paradigma do campo na filosofia de Hannah Arendt e Giorgio Agamben: uma análise a partir...

Arendt, o que se assume no presente texto como uma decorrência da abordagem da


autora sobre certos fenômenos, como o totalitarismo e o preparo de cadáveres vivos.
Enfim, talvez a obra literária do português possa ser encarada como veiculadora,
também ela, de paradigmas, mesmo que fictícios, e que o relato ora examinado
se possa pretender denominar como paradigma da cegueira, o qual abre espaço,
na obra do autor português, ao (res)surgimento, naquele contexto paradigmático,
do Estado totalitário, do preparo de cadáveres vivos, do homo sacer e do estado
de exceção, para relembrar aqui as categorias de Arendt e Agamben que foram
abordadas no presente texto.
E esse paradigma da cegueira segue replicando-se, quotidianamente, também
fora dos campos, mas principalmente dentro deles, ou seja, nas prisões, nos campos
de refugiados, nos Estados com tendências totalitárias que fazem vir à tona os
paradigmas analisados por Arendt e Agamben, mais ainda na ignorância e silêncio
daqueles que perderam a capacidade de ver ou reparar à sua volta.

The paradigm of the field in the philosophy of Hannah Arendt and Giorgio Agamben: an analysis from
the “blindness”, by José Saramago
Abstract: The article analyzes the work of José Saramago, Essay on Blindness, from the perspective
of the thinking of Hannah Arendt and Giorgio Agamben, in order to establish comparative parameters
between the fictional perspective and the philosophical-political thought of the two authors mentioned. It
seeks to answer the following problem: Blindness, book by José Saramago, published in 1995, provides
fictional elements that can be used as a reference for understanding some paradigms conveyed by
Hannah Arendt and Giorgio Agamben, such as totalitarianism, production of live corpses, the state of
exception and the field? The method used in the investigation is the qualitative one, with bibliographic
research technique.

Keywords: Blindness. José Saramago. Hannah Arendt. Giorgio Agamben. Paradigms.

El paradigma del campo en la filosofía de Hannah Arendt y Giorgio Agamben: un análisis de la “ensayo
sobre la ceguera”, por José Saramago

Resumen: El artículo analiza el trabajo de José Saramago, Ensayo sobre la ceguera, desde la perspectiva
del pensamiento de Hannah Arendt y Giorgio Agamben, con el fin de establecer parámetros comparativos
entre la perspectiva ficticia y el pensamiento filosófico-político de los dos autores mencionados. Busca
responder al siguiente problema: el libro Ensayo Sobre la Ceguera, de José Saramago, publicado en
1995, proporciona elementos ficticios que pueden usarse como referencia para comprender algunas
categorías filosóficas del trabajo de Hannah Arendt y Giorgio Agamben, como el totalitarismo, la producción
de cadáveres vivos, el estado de excepción y el campo? El método utilizado en la investigación es
cualitativo, con técnica de investigación bibliográfica.

Palabras clave: Ensayo sobre ceguera. José Saramago. Hannah Arendt. Giorgio Agamben. Paradigmas.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

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Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, Humberto Acacio Trez Seadi

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O paradigma do campo na filosofia de Hannah Arendt e Giorgio Agamben: uma análise a partir...

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi; SEADI, Humberto Acacio Trez. O paradigma


do campo na filosofia de Hannah Arendt e Giorgio Agamben: uma análise a
partir do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica – RIHJ, Belo Horizonte, ano 18, n. 28, p. 11-35, jul./
dez. 2020.

Recebido em: 13.06.2020.


Aprovado em: 26.08.2020.

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