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RESENHA DE AS ORIGENS DO TOTALITARISMO, DE

HANNAH ARENDT

Nietzsche, ao estudar as ciências naturais procurando a origem da vida concluiu que a vida surgia
da morte, e que invés de haver uma simetria de opostos perpétuas (vidas eternas distribuídas
proporcionalmente a mortes eternas), o que havia é uma dualidade como a de onda-partícula em
que a vida morre e a morte vive, e vice-versa. Ele então escreve que "a morte é a regra, e a vida
a exceção da exceção, um estado provisório estacionário a parte de sua natureza morta" e
Poincaré, matemático francês famoso pela descoberta da função automórfica, permite em seu
teorema de recorrência que haja um número infinito de posições excepcionais para qual seu
teorema não se aplique, mas mostra que há uma infinita improbabilidade de que um ponto vá
ocupar uma dessas posições. Ele compara isto à infinita improbabilidade de que um número
proveniente de números reais aleatórios vá a ser um número racional. Nestes casos, Poincaré diz
"são excepcionais por estarem na condição de mensuráveis, e estes são as exceções em séries de
números que o incomensurável é justamente a regra." e para toda forma de misantropia, o ódio é
a regra, pois preferimos, ao reconhecer que não somos capazes de amar essa espécie, de odiá-la a
assumir a completa falta de compaixão da indiferença, ignorando sua existência e assim
demonstrando a maior forma de insulto. Em todo caso, a melhor e mais bela das formas de
quebrar as regras, sejam as filosóficas, existenciais ou sociais, é elogiando a exceção. Que
façamos um hino à ela!

Hannah Arendt, ao analisar a transição do homo politicus ao homo economicus, homo clausus,
nos mostrou que o totalitarismo, não cria mas emudece as linguagens, conforme escreve "(...) a
violência é de fato a única espécie de ação humana que por definição é muda; não é medida por
palavras nem funciona através delas. Em todas as outras espécies de ação, políticas ou não,
agimos na fala e a fala é ação." (ARENDT, 2002, P. 63).

Em sua crítica a era da filosofia helenística, Arendt apresenta a tese de que a tradição da filosofia
política iniciada com Platão, e mantida até a Modernidade, é de caráter antipolítico, precisamente
porque desconsidera a primeira forma de se compreender a liberdade: um fenômeno possível de
ser testemunhado no domínio da esfera pública, e composto essencialmente de ações que
ocorriam no espaço público. E como diz Aristóteles "A natureza, que nada faz em vão, concedeu
apenas a ele (homem) o dom da palavra, que não podemos confundir com os sons da voz. Esses
são apenas a expressão de sensações agradáveis ou desagradáveis, de que os outros animais
são, como nós, capazes (ARISTÓTELES, 1998, p.5), isto é, não apenas o zoo politikon, mas o
zoon logon ekhon, ou seja, um animal político dotado de razão e fala que se adapta
dinamicamente.

O emudecimento é um dos fatores germinativos do totalitarismo, mas quais são os demais? De


acordo com Arendt, ao surgir novos modos de ser humano, representados pela ideia de uma
figura tecnológica, a quem não ocorre o autoquestionamento acerca das próprias atitudes, em um
fenômeno extremo de anticidadania exercido por este anticidadão sob uma dominação a que
corresponde uma nova configuração política e social é a efetivação do regime totalitário. Os
indivíduos, em uma crise política sem antecendentes, não mais leem os autores antigos como se
ninguém os houvesse jamais lido antes, assim redescobrindo o passado por eles mesmos, mas
reservam isso como assuntos para especialistas no caso, e aplicam uma persona na política tão,
mas tão pegajosa e grudente quanto um fluído imperfeito que serve como um preconceito
indissociável. Este preconceito moderno está na identificação de política com a violência,
dominação e corrupção, já que o governo deixou de contar com a participação dos cidadãos e
passou a ser considerado em geral como exercício de poder. Essa identificação chega às últimas
consequências com a multiplicação dos meios violentos promovidos pela revolução tecnológica
apoiada pela burocrata e a utilização desses meios na política de forma criminosa. Os cidadãos,
quando então são escolhidos para terem atuação política, no totalitarismo ficam reduzidos,
simplesmente, a funcionários ou eleitores que apenas sancionam a opinião alheia.

Junto com Heidegger, o qual escreveu que "A questão de 'o que é o homem?' deve ser
reformulada para 'quem é o homem?' pois é a história que molda o perfil do sujeito" Arendt
procura uma maneira de investigar o processo de retificação humana. Com a ascenção do
liberalismo que sucederam os governos totalitários como sombras de suas cavernas agora
soterradas em escombros, Arendt escreve "a liberdade não apenas não se encontra no agir e na
esfera política, mas, ao contrário, só é possível se o homem abre mão do agir, retira-se do
mundo em direção a si mesmo e evita a esfera política. O indivíduo não se compreende mais
como um sujeito livre através do exercício positivo da política, mas em suas atividades não
políticas (ARENDT, 1993, p. 120)" acrescentando que isso se deve, além de uma volta ao
passado mas sem a compreensão das tradições e a redescoberta de seus sentidos, de uma
satisfação ilusória com a mera sobrevivência e artifícios domésticos que representam sim o
consumismo mas não a simplicidade de vida positivista a natureza de Thoureau ou a dos astros
de Louis-Auguste Blanqui, à "crise da singularidade, que corresponde a um processo de
despersonalização dos indivíduos. Esse processo, segundo Arendt, teria se efetivado de acordo
com o desenvolvimento do domínio totalitário, que se deu em três fases: a aniquilação da pessoa
humana, a morte da moralidade e, por fim, a destruição da individualidade, implicando o fim da
capacidade humana de agir espontaneamente. Portanto, morta a individualidade, nada resta
senão horríveis marionetes com rostos de homem, todas com o mesmo comportamento do cão de
Pavlov, todas reagindo com perfeita previsibilidade, mesmo quando marcham para a morte."
(ARENDT, 1989, p. 506)

Se é a história o que molda o homem, quê é a história? Para Arendt "a História no segue um
curso retilíneo, mas se constitui por eventos inéditos, os quais representam rupturas em meio a
continuidades." à esta afirmação, considerando a forma que Maquiavel enxergava a forma ideal
de governo, governado por leis, não por homens, e a exaltação de sentimentos de compaixão à
miséria e a pobreza pelos revolucionários e o desejo de abolir as classes sociais mas esquecendo-
se da liberdade, elemento tão importante para Arendt, vale corroborar a luta de classes, a
conflagração social na tradição teórica marxista algo com um quê de novidade. Além da
sociologia e filosofia, houvera pensadores que procuraram na ciência universal formas de
corroborar seus pensamentos, uma forma de naturalizar o progresso tendo em mente que a
natureza, os astros, as galáxias, ia na mesma direção e portanto esta seria a certa. À isso Comte
deu o nome de "Positivismo". Marx usou da ciência por trás da matemática para corroborar suas
teses econômicas presentes em Grundrisse, Manuscritos Econômicos-Filosóficos, O Capital;
Hobbes, que antes estudava física e abandonou seu curso para se dedicar à filosofia e ajudar o
seu país, dedicou todo seu conhecimento da ciência da moção para dar forma ao corpo do seu
Leviatã; Nietzsche procurou em Lamarck, Boscovich, Carnot, Sioux, Kirchhoff, Huggins,
Secchi, formas de comprovar cientificamente o seu experimento mental do Eterno Retorno
Cosmológico, que tinha como base o primeiro princípio da termodinâmica, fases efêmeras que
compreendem o volume de espaço e o de temperatura, em que estes são inversamente
proporcionais, e a finitude de elementos cósmicos que representava a escassez de possibilidades.
Com o "vazio" da física, um vazio cheio, mais os raciocínios de Friedmann e Sakharov, vos
apresento o conceito do Campo de Míson, um campo social presente em toda a história registrada
e não registrada. "Míson" vem do grego "miso" que significa "ódio", "desprezo" e passa sentido
de combate raivoso perfeito para este conceito, e o acréscimo do acento deve-se a natureza dos
nomes das partículas na física. Antes do conhecido ponto singular, quê havia? Costumam nos
responder que "nada", que era o "vazio", mas trata-se de uma colisão, um encontro sucessivo de
matéria e antimatéria em explosões de energia que continuamente se anulam, e como são
distribuidas umas às outras em pares parcimônicos, simétricos, estariam condenadas a se
anularem sem possibilidades de criação. Daher, em sua tese sobre Arendt, quanto a Modernidade,
nos escreve que "O pensamento moderno tentou resolver o desconcertante problema de que,
embora a História deva a sua existência aos homens, não é propriamente feita por eles. São
conhecidos os termos usados para sugerir a submissão da ação humana a uma força maior,
condutora dos processos históricos: 'mão invisível', 'natureza', 'espírito do mundo' e 'interesse de
classe' são termos utilizados para designar algo que possa ocupar o lugar de senhor da história,
oculto por trás dos acontecimentos, mas responsável pelos destinos da humanidade. O que
caracteriza estas Histórias que emergem da teia de relações entre os homens é o fato delas
serem construídas pelos homens, e não ser o resultado de uma suposta criação, contando com
fins pré-determinados." e de acordo com Lafer "A antiguidade romana - este é um dos
importantes ensinamentos de Maquiavel - sempre tem sido vista, inclusive pela própria Hannah
Arendt, tanto no seu estudo sobre autoridade, quanto no seu livro sobre a revolução, como um
paradigma e uma lição a respeito de como conduzir os assuntos humanos sem a ajuda de um
Deus transcendente." (LAFER, 1979, p. 119) ao ponderar sobre estas duas visões, é interessante
considerar a epifania que Sakharov teve sobre o atual aspecto intocável entre matéria e
antimatéria que possibilitou a criação desse universo. Sakharov, poupando-nos de prolixidades
prosaicas, ensinou-nes que as ondas gravitacionais orquestram cada sistema entre seus
subsistemas e sobressistemas como se, invés de um Deus ou Demiurgo governando o cosmos,
seja mais próximo disso um maestro como Bach, Janâcek, Holst, evitando com as leis de suas
partituras de bramas das cordas cósmicas que antimatéria e matéria se choquem. Friedmann
observou que esse não fora um aspecto independente do ponto singular e descobriu que a
gravitação orquestrava o próprio universo assim constatando que ele fluía, não sendo
estacionário. Russel e Whitehead acreditavam que a matemática, ou a mathesis universalis de
Descartes era a forma mais lógica de raciocínio, por respeitar a geometria. Em verdade, no
cosmos há três entidades-modelo que o governam eternamente, são eles: homogeneidade
(representada pela isotropia dos fluídos perfeitos), heterogeneidade (representada pela
anisotropia das anomalias) e hegemoneidade (representada pelos aeons periódicos, ou eras de
dominação). As antinomias, compostas pela tese e antítese, são como o choque da matéria e
antimatéria na pura energia dialética. Uma vez que as ideologias totalitárias contém momentos
de repressão à maneira sístole-diástole e seus lemas, suas formas de gerenciamento são
polarizadoras no sentido de despersonificar os indivíduos, o resultado será sempre uma
neutralização de suas matérias em energia que os anula, fenômeno que Daher descreve como
"Uma vez extintas as instituições de lutas por interesses, o que sobra são interesses atomizados
dos indivíduos que, politicamente, não representam poder algum - no máximo dão conta de suas
necessidades imediatas, geralmente relacionadas à mera sobrevivência" e que devem sua causa
ao fato de, como bem Nietzsche criticou nas ciências, interpretar qualquer coisa em números que
sejam iguais é equívoco pelo fato de absolutamente nada ser igual, pois há nuances, matizes
mínimas que ainda assim diferenciam um átomo que seja de outro átomo. O totalitarismo,
persistindo nessa ilusão de iguais, sem personalidades diferentes, conduz a uma alienação que
apresenta as seguintes consequências ""A primeira e mais importante consequência disso é que
perdemos nosso senso de estar em casa no mundo e, com ele, a nossa identidade, o nosso senso
de realidade, bem como a possibilidade de dotar a nossa existência de sentido. (D'ENTREVES,
1994, p. 37-38).

O fenômeno extremo de dominação a que corresponde essa nova configuração política e social é
a efetivação do regime totalitário. Tais regimes rompem com todas as formas tradicionais de
governo, pois adotam como princípio de ação o terror, mas curiosamente não exercem seu
domínio de forma arbitráriam, pelo contrário, seguem à risca um quadro lógico e perfeitamente
organizado de ideias que, no entanto, não correspondem às contingências e contradições do
mundo real.

Por fim, a pontuar o contexto da obra e da autora, a realidade em que Arendt estava inserida na
época era típica da dos filmes de Rainer Fassbinder, fugindo com o marido de um campo de
concentração e se refugiando na América. Arendt identificou os modelos políticos passados do
mundo afim de resgatar os sentidos da tradição, reconhecendo os conselhos revolucionários de
São Petersburgo, em 1905, Munique, em 1918/1918 e Budapeste, em 1956, as contradições por
trás da União Soviética, liderada não pelos sovietes, mas pelos bolcheviques, o governo popular
quase que totalmente decidido por plebiscitos de Thomas Jefferson, um dos "pais da América",
dentre outros. O método filosófico de Arendt pressupõe que o pensamento político deve partir do
caráter concreto das experiências políticas, ou seja, emana de um ambiente constituído por uma
pluralidade de opiniões e perspectivas, a partir das quais a realidade humana se configura e a
liberdade se realiza, de modo que a amizade no sentido aristotélico permita isso. As regras, no
pensamento arendtiano, existem para tomarmos conhecimento de nossos direitos, não para os
reduzirmos, e daí vem a sua máxima, e certamente uma das mais belas frases de toda a filosofia:
"O direito de ter direitos".

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