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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS


NÚCLEO INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS E PESQUISAS EM DIREITOS HUMANOS
PROGRAMA INTERDISICPLINAR DE PÓS–GRADUAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
FUNDAMENTOS TEÓRICOS DOS DIREITOS HUMANOS II

Prof. Dr. João da Cruz Gonçalves Neto


Goiânia, 24 de novembro de 2023

ROTEIRO DE AULA IV

LACROIX, |Justine et PRANCHÈRE, Jean–Yves. Les Procès des droits de l´homme.


Paris: Éditions du Seuil, 2016, chapitre 7.

Capítulo 7
O "direito de ter direitos"
Voltar a Hannah Arendt

Em um livro recente, Enzo Traverso ironiza a "canonização póstuma" de Hannah Arendt na


cultura europeia desde os anos 1980 – época em que seus escritos se tornaram uma "saída"
para uma geração de intelectuais "órfãos do marxismo, mas ainda não prontos para abraçar o
liberalismo clássico": “judia, exilada, mulher, filósofa, ensaísta brilhante, espírito libertário e
rebelde, discípula e depois amante de um grande pensador alemão comprometido com o
nazismo, Hannah Arendt exerce hoje um poder de fascinação irresistível, a ponto de ter se
transformado em um ícone da cultura do século xx".

Correndo o risco de parecer que estamos cedendo a essa "moda cultural", este capítulo
relembra um dos textos mais famosos da filósofa, no final do segundo volume de Origens do
Totalitarismo. Nele, Hannah Arendt destaca o paradoxo no cerne do discurso dos direitos
humanos e apresenta a "magnífica e enigmática" fórmula do "direito a ter direitos". Pois esse
capítulo – "O declínio dos Estados–nação e o fim dos direitos humanos" – e, acima de tudo,
as leituras, para não dizer apropriações, que foram feitas dele, levantam questões que estão
no centro dos debates atuais sobre o significado a ser dado aos direitos humanos.

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Esse exercício, entretanto, pressupõe o distanciamento da "captura conservadora" à qual o
pensamento de Arendt foi submetido em certas áreas do pensamento francês. A lacuna entre
a recepção de suas obras na França e no mundo de língua inglesa tem uma história, que se
deve principalmente à falta de compreensão que impediu a recepção de Origins of
Totalitarianism na França por várias décadas. "Era inevitável que, em uma época em que o
antitotalitarismo estava se tornando sinônimo de anticomunismo, o livro de Arendt fosse
interpretado como uma "bíblia da Guerra Fria" e incluído no index librorum prohibitorum de
uma esquerda que estava sujeita à hegemonia do stalinismo".

A primeira resenha em língua francesa de Les Origines (publicado em 1951) foi feita por
Raymond Aron em 1954. Depois de apontar vários erros factuais e deplorar um "tom de
superioridade arrogante em relação às coisas e às pessoas", Aron considerou que, "embora
estejamos preparados para concordar com a maioria de suas análises consideradas
separadamente, não estamos totalmente convencidos nem pelos conceitos organizadores,
nem pelas ideias que a autora considera essenciais". Apesar dessas reservas, o papel de Aron
na introdução do pensamento de Arendt na França – ele publicou The Human Condition, sob
o título La Condition de l'homme moderne, em sua coleção "La liberté de I'esprit" com
Calmann–Lévy em 1963 – foi suficiente para "classificar" Arendt permanentemente no
cenário ideológico francês. Deve–se acrescentar que a filósofa não foi menos vilipendiada na
França do que em qualquer outro lugar durante a controvérsia sobre Eichmann em
Jerusalém: em 1966, quando a versão francesa do livro foi publicada, o semanário Le Nouvel
Observateur não hesitou em publicar um dossiê com o título "Hannah Arendt é nazista?”

A descoberta francesa de Arendt ocorreu com quase trinta anos de atraso. As Origens só
foram traduzidas (como se fossem três livros separados) em 1972, 1973 e 1982 por três
editoras diferentes, e em um momento em que a França estava em uma encruzilhada da
emergência do chamado pensamento "antitotalitário". Com a notável exceção de Claude
Lefort, Miguel Abensour e alguns outros, o debate francês sobre o totalitarismo assumiu o
sabor de "restauração cultural ". Nesse contexto, a obra de Arendt poderia ser usada como
uma tábua de salvação para uma geração intelectual que havia perdido o rumo após rejeitar o
marxismo. Como Enzo Traverso aponta, seu pensamento foi, pelo menos inicialmente,
despojado de sua dimensão crítica, particularmente no que diz respeito ao imperialismo,
enquanto nos Estados Unidos, ao contrário, ela foi uma das autoras que incentivou a
radicalização política dos jovens na década de 1960. Na França, como aponta Miguel

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Abensour, ela poderia até mesmo ser estrategicamente colocada ao lado de Leo Strauss "para
as necessidades da guerra", "como se os dois pensadores estivessem de acordo sobre a
maneira de pensar a política e as diferenças entre eles dissessem respeito apenas a escolhas
políticas em sentido estrito ".

Poderíamos acrescentar que os escritos de Arendt sobre a "crise da educação" foram, a partir
do início da década de 1990, amplamente mobilizados em debates sobre a suposta
desintegração de uma escola pública que havia abandonado os requisitos de transmissão em
favor de uma demagogia que visava "dar voz aos alunos" e, assim, "deserdar a todos". Todos
esses elementos, em conjunto, podem ter nos levado a esquecer seu elogio à democracia dos
conselhos em De la révolution. Isso deu crédito a uma interpretação conservadora de uma
Hannah Arendt que estaria ligada à preservação da tradição como tal.

O objetivo aqui, entretanto, não é analisar a recepção da obra de Arendt como um todo, mas
sim a de seu pensamento sobre os direitos humanos, que desempenha um papel fundamental
em nossa tentativa de elucidar o assunto. O pensamento de Arendt pode, de fato, alimentar
duas críticas muito diferentes aos direitos humanos, ao mesmo tempo em que abre caminho
para uma concepção "política" desses direitos, capaz de responder a muitas das objeções
analisadas até agora. Arendt propõe uma crítica radical dos direitos humanos, mas também
uma possibilidade igualmente radical de repensá–los.

O paradoxo dos direitos humanos de Hannah Arendt

Em "The Decline of the Nation–State and the End of Human Rights", Arendt analisa a
situação dos apátridas no período entre guerras e mostra que, longe de ser uma invenção
diabólica do totalitarismo, o que ela chama de "aniquilação da pessoa jurídica" – a abolição
dos direitos legais de grupos humanos inteiros – foi preparada pela maneira como os
respeitáveis estados–nação europeus trataram as minorias e os apátridas após a Primeira
Guerra Mundial. Privados de um governo capaz de representá–los e protegê–los, os apátridas
se viram jogados na ilegalidade absoluta. Uma situação que ilustra o paradoxo dos direitos
humanos. Diz–se que os direitos humanos são inalienáveis e imprescritíveis, porque
supostamente são independentes de qualquer afiliação coletiva específica. No entanto, como
Arendt nos diz, foi precisamente quando os seres humanos foram privados de seu próprio
governo e não podiam mais contar com outros recursos além de seus direitos "naturais" que

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eles se viram "sem direitos". Reduzidos à sua mera condição de seres humanos, eles não
encontraram mais nenhuma autoridade para protegê–los.

Daí a insistência de Arendt sobre a importância dos empreendimentos de desnacionalização


no surgimento do fenômeno totalitário: uma das poucas regras às quais os nazistas se
referiam constantemente durante a "solução final" era que os judeus só poderiam ser
enviados aos campos de extermínio depois de terem sido destituídos de sua nacionalidade.
Os sobreviventes dos campos de concentração – nos quais todos, "em uma combinação do
horrível e do grotesco", se agarravam ao último vestígio da pessoa jurídica que era o
pertencimento a uma categoria específica de prisioneiros (criminosos comuns, políticos,
judeus) – sabem o quanto "a nudez abstrata de alguém que não é nada além de um homem
constitui o pior dos perigos".

Não somente a perda dos direitos nacionais levou à perda dos direitos humanos, mas, como
mostra o exemplo de Israel, somente o estabelecimento dos direitos nacionais tornou
possível garantir a restauração dos direitos humanos. Esse foi o caráter sem precedentes do
julgamento de Eichmann, já que, pela primeira vez desde o ano 70 (quando os romanos
destruíram Jerusalém), os judeus puderam julgar crimes perpetrados contra seu próprio povo:
"[...] pela primeira vez, eles não precisaram apelar para outros em busca de proteção e justiça
ou confiar na fraseologia banal dos direitos humanos – eles sabiam melhor do que ninguém
que as únicas pessoas que poderiam invocar esses direitos eram aquelas fracas demais para
defender seus 'direitos ingleses' e impor suas próprias leis".

O paradoxo dos direitos humanos é, portanto, que um homem que não é nada mais do que
um homem, que não pode invocar nenhum outro direito além dos direitos do homem, não
tem, na realidade, nenhum direito e nenhuma proteção legal. No entanto, embora esse
paradoxo só tenha sido revelado com o surgimento, no final da Primeira Guerra Mundial, de
grupos cada vez maiores de pessoas privadas de um Estado, ele já estava presente no final do
século XVIII, quando a questão dos direitos humanos estava indissociavelmente ligada à da
afirmação da soberania nacional. No texto da Declaração de 1789, o postulado de que toda
soberania reside essencialmente na nação (Artigo 3), que quase imediatamente segue aquela
segundo a qual todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos (Artigo 1).
Como Arendt ressalta, assim que o homem se estabeleceu como um ser emancipado e
autônomo, ele desapareceu para se tornar membro de um Estado-nação. Daí a natureza

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profundamente ambígua dos direitos humanos, que só são protegidos na medida em que
também são os direitos dos cidadãos de um determinado Estado. Isso leva à frase "o direito
de ter direitos". O primeiro direito humano, diz Arendt, aquele que condiciona todos os
outros, é o de pertencer a uma determinada comunidade política. "O homem ... pode perder
todos os seus famosos direitos humanos sem abandonar sua qualidade humana essencial, sua
dignidade humana. É apenas a perda de qualquer estrutura política que o exclui da
humanidade".

Duas possíveis interpretações ou críticas aos direitos humanos

No mundo de língua francesa, esse capítulo das Origens do Totalitarismo é regularmente


resumido como uma denúncia da natureza abstrata e formalista dos direitos humanos, que os
fatos demonstraram perder toda a eficácia assim que são dissociados dos direitos nacionais.
Duas leituras emergem aqui que têm em comum, como Étienne Tassin mostra, o fato de
constituírem uma "contra–intuição" no entendimento arendtiano dos direitos humanos. O
interessante dessa contradição é que ela fornece a estrutura para as duas críticas distintas dos
direitos humanos que já vimos no primeiro capítulo, a saber, uma crítica "comunitária" e
uma crítica "radical".

Uma repetição dos argumentos de Burke?

De acordo com uma primeira interpretação – que congela Arendt em uma posição
"conservadora" – não existe humanidade que não a nacional. Isso confirmaria "a primazia de
uma concepção comunitária de política sobre uma compreensão publicista", o que parece
endossar o ataque de Burke à ineficácia dos direitos humanos fora dos pertencimentos
nacionais e das lealdades estatais. Embora os direitos humanos devam proteger todos os
homens contra a ação arbitrária, na verdade eles nunca existem a não ser como "direitos dos
cidadãos", ou seja, como direitos dos nacionais. De acordo com Arendt, esses direitos são
uma abstração infinitamente menos valiosa do que o pertencimento em uma coletividade
política qualquer.

Na medida em que Arendt viu no destino dos apátridas do período entre guerras uma
"confirmação irônica, amarga e tardia dos famosos argumentos que Edmund Burke opôs à
Declaração francesa dos Direitos do homem”, pode parecer lógico concluir, com Philippe

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Raynaud, que ela apenas "repete a oposição de Burke entre 'direitos metafísicos' e
'verdadeiros direitos do homem’. Seguindo essa leitura, para Arendt, o grande mérito de
Burke seria o de ter redescoberto, "além da ideologia nascente, as condições de uma
experiência política autêntica, a primeira das quais é, sem dúvida, pertencer a uma
comunidade concreta, baseada em uma tradição, e que é a única capaz de garantir
efetivamente os direitos".

Se sua conclusão política for o oposto – já que ele censura Arendt por um daqueles "erros de
perspectiva que ainda hoje contribui a obscurecer o horizonte” –, o historiador das ideias
Zeev Sternhell também vê a análise de Arendt como uma mera réplica das advertências de
Burke sobre nossa natureza "nua e trêmula", que não merece nenhum respeito. Esses são
argumentos que Sternhell denuncia, argumentando que os judeus foram perseguidos "não
como seres humanos desprovidos de especificidade política", mas precisamente "como
membros de um grupo humano bem definido, como um grupo étnico para alguns, como uma
raça para outros, em virtude daqueles critérios hereditários cantados por Burke...". O
argumento é difícil de contestar em si mesmo, mas veremos que, ao mirar em Arendt, ele
erra o alvo.

Ainda nessa mesma linha interpretativa, Luc Ferry e Alain Renaut situam o pensamento de
Arendt na órbita do questionamento dos direitos humanos encontrado em autores
conservadores como Leo Strauss e Michel Villey. Em outras palavras: "Contra o desejo de
ruptura, a marca registrada da subjetividade e suas reivindicações fundadoras, expressas na
Declaração dos direitos do homem, a sabedoria da tradição; contra os direitos humanos, 'a lei
dos ingleses'". Ao reavivar "resolutamente" o pensamento de Burke, Arendt estaria atestando
sua incapacidade de pensar sobre os direitos humanos.

Essa assimilação dos argumentos de Arendt aos da Réflexions sur la Révolution en France
de 1790 não poupa um autor tão atento quanto Claude Lefort: "Para Arendt, assim como
para Burke, apenas os direitos dos cidadãos são reais, e os direitos do homem são uma
ficção". Em grande medida, essa peculiaridade da recepção francesa de Arendt torna possível
explicar a interpretação de Jacques Rancière de que Arendt nos deixa nas garras de um
dilema paralisante entre os direitos humanos (que seriam apenas um vazio, uma ilusão,
porque eles são os direitos o homem nue portanto sem direitos) e os direitos humanos (que
seriam os direitos de quem já possui direitos, sendo portanto uma tautologia).

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Os direitos do homem e a violência soberana

De acordo com uma segunda leitura – que, dessa vez, coloca Arendt no registro da denúncia
das duplicidades de um humanismo associado a uma forma de imperialismo da subjetividade
– os argumentos de Origens são um convite para decretar a obsolescência dos direitos
humanos, inextricavelmente ligados a um Estado-nação moderno em decadência. É nesse
sentido que Giorgio Agamben, ao custo de uma reconstrução particularmente complicada do
argumento de Arendt, coloca a Declaração de direitos dentro do tema mais amplo da
determinação biopolítica da soberania moderna. Segundo ele, há um "vínculo íntimo e
necessário entre o destino dos direitos humanos e o do Estado-nação". Os direitos do homem
seriam indissociáveis da afirmação da violência soberana. Um pouco separadamente, as
críticas desenvolvidas por autores como Slavoj Zizek ou Noam Chomsky contra a hipocrisia
da invocação dos direitos do homem no contexto da política externa americana também
parecem poder se basear nos escritos de Arendt, como ela observa:

[...] a incrível condição de um número cada vez maior de pessoas


inocentes era como uma demonstração prática da validade das afirmações
cínicas dos movimentos totalitários de que essa história dos direitos
inalienáveis do homem era pura invenção e que os protestos dos
democratas não passavam de álibis, hipocrisia e covardia diante da cruel
majestade de um novo mundo. A expressão mesmo “direitos do homem”
tornaram–se aos olhos de todos os interessados – tanto as vítimas quanto
os perseguidores e observadores – um sinal claro de idealismo sem
esperança ou de hipocrisia imprudente e idiota.

O texto de Arendt leva aqui a outra crítica: não mais aquela que afirma que os direitos
humanos são apenas os direitos dos nacionais, mas aquela que denuncia a hipocrisia de
nosso humanismo abstrato e detecta apenas o cálculo frio de interesses por trás da invocação
política dos direitos do homem, particularmente no caso das chamadas intervenções
"humanitárias".

Mas se essas duas interpretações – "comunitária" e "radical" – da questão dos direitos


humanos em Arendt partem de premissas e levam a conclusões muito opostas, suas leituras

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do capítulo "O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos humanos" são muito
semelhantes. Todos eles parecem pensar que Arendt dá razão às críticas feitas à abstração
dos direitos humanos. Enquanto Agamben acredita que a leitura que Arendt faz do "gracejo"
de Burke sobre os direitos dos ingleses parece adquirir uma "profundidade inesperada", o
filósofo Daniel Bensaïd também compara a análise de Arendt a de um pensador conservador:
não Edmund Burke, Leo Strauss ou Michel Villey, mas Carl Schmitt, que viu "antes de
Hannah Arendt" os perigos de uma despolitização provocada pela emissão de direitos
formais e abstratos. É nesse sentido que Bensaïd evoca, na linha da leitura de Agamben, uma
"dissolução da política no humanitarismo" e uma "instrumentalização da noção de
humanidade pela política comum".

Deve–se lembrar, no entanto, que a referência a Burke no último capítulo da parte de


Origens dedicada ao imperialismo não pode ser entendida isoladamente da seção intitulada
"O direito dos ingleses contra os direitos do homem”, que conclui o capítulo "O pensamento
da raça antes do racismo". Nessa seção, Arendt considera que os argumentos de Burke contra
os princípios abstratos da Revolução francesa – e que consiste em aplicar a noção de herança
à de liberdade – foram precursores do pensamento racial na Inglaterra. Se Arendt se esforçou
para mostrar que a oposição burkeana entre "direitos humanos e direitos ingleses" foi um
vetor na passagem do nacionalismo para o imperialismo e o racismo propriamente ditos,
certamente não foi para reabilitá-la in fine. Quando Burke é chamado novamente no final da
análise do imperialismo, não é porque sua posição precisa ser reativada; é porque ele foi uma
testemunha importante da dialética inicial que entrelaçou os direitos humanos com a
soberania nacional e levou os direitos humanos à impotência ao esmagar o "direito de ter
direitos" sob o peso do Estado-nação e do nacionalismo.

Longe de vincular os direitos humanos ao Estado-nação, como afirma Agamben, Arendt


analisa a relação entre eles como contraditória:

O conflito secreto entre o Estado e a nação veio à tona com o nascimento


do Estado-nação moderno, quando a Revolução Francesa vinculou a
Declaração dos direitos do homem à reivindicação da soberania nacional.
Ao mesmo tempo, os mesmos direitos fundamentais foram proclamados
como patrimônio inalienável de todos os seres humanos e como
patrimônio particular de nações específicas; ao mesmo tempo, a mesma

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nação foi declarada como sujeita a leis, derivadas, é claro, dos Direitos do
homem, e soberana, ou seja, não vinculada a nenhuma lei universal e não
reconhecendo nada superior a ela mesma. Na prática, essa contradição
significou que, a partir de então, os direitos humanos só foram protegidos
e consolidados como direitos nacionais...

A posição de Burke, que forneceu um dos primeiros argumentos para o racismo imperialista,
não pode ser repetida. Mas a partir dessa falsa posição, Burke viu claramente a fraqueza da
Revolução Francesa, que não deu aos direitos humanos nenhuma realidade institucional
própria e os absorveu, de fato, na soberania nacional. Burke denunciou a abstração dos
direitos humanos em nome da ideia de que todos os direitos são nacionais. Arendt observa
que a ideia de direitos humanos, assim que surgiu, fracassou no palco do Estado-nação. Essa
é uma "vitória" para Burke. Mas, como Arendt ressalta, é uma vitória "amarga" porque é um
desastre político, como mostra a questão do apátrida e seu "regulamento" totalitário. A
"vitória" de Burke não prova que ele estava certo; ela mostra que precisamos retomar a
questão dos direitos humanos no nível do "direito a ter direitos", a fim de libertar os direitos
humanos da rotina de sua inscrição exclusivamente nacional.

Três respostas "arendtianas" às críticas aos direitos humanos

Por essa razão, e contra as duas críticas que acabamos de levantar, parece possível responder
em três pontos, mostrando que os textos de Arendt não rejeitam a abstração da Declaração de
direitos, não atacam a hipocrisia da retórica dos direitos do homem, e não encerram os
direitos dos homem em uma coletividade nacional, mas apontam para um direito da
humanidade.

(1) Sobre a questão da abstração da Declaração de 1789, a suposta oposição de Arendt entre
uma "boa" Bill of Rights americana – "boa" porque pragmática e adaptada aos fins reais de
um governo limitado já estabelecido – e uma "má" Declaração de Direitos do homem –
abstrata porque supostamente anterior ao corpo político – está longe de ser tão clara como
pensam alguns intérpretes, que estão simplesmente estendendo as análises do
neoconservador americano Irving Kristol. Já em 1976, esse último invocou a autoridade do
ensaio de Arendt, On Revolution, reduzindo-o a uma oposição entre os benefícios da
Revolução Americana e os males da de 1789. É verdade que, em Da revolução, Arendt

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parece validar a crítica de Burke à Declaração de 1789, dizendo que ela não é "ultrapassada"
nem "reacionária". Entretanto, uma leitura cuidadosa dessa passagem mostra que a
preferência de Arendt pela Declaração americana tem menos a ver com uma concepção
restritiva dos direitos humanos do que com a recusa em reduzi-los a direitos naturais. Apesar
da semelhança das fórmulas, estamos muito longe de Burke: a intenção de Arendt não é
neutralizar os direitos humanos, mas dar a eles seu verdadeiro significado político, o dos
direitos, não de um "ser natural", mas de um cidadão livre.

Acima de tudo, um retorno ao texto das Origens mostra que Arendt estava longe de condenar
irrestritamente a Declaração de 1789. Sua análise do caso Dreyfus e, em particular, essa
eloquente passagem, são testemunhas disso:

Dreyfus só poderia ou deveria ter sido salvo com o uso de um único


campo de batalha. Era necessário denunciar as intrigas de um
Parlamento corrupto, o apodrecimento de uma sociedade em
declínio, a sede de poder do clero e opô-los frontalmente à
intransigente concepção jacobina de uma nação fundada nos direitos
do homem, a noção republicana de liberdade coletiva segundo a
qual (de acordo com Clemenceau) prejudicar os direitos de uma
pessoa equivalia a prejudicar os direitos de todos.

Se Origens do Totalitarismo tem heróis, eles são Bernard Lazare e, acima de tudo, Georges
Clemenceau cuja grandeza reside, escreve Arendt, no fato de que ele não estava lutando
contra um erro judiciário específico: "Ele estava lutando por ideias 'abstratas': a justiça,
liberdade, civismo, essas ideias que estavam no centro do patriotismo jacobino de outrora, e
contra as quais tanta lama e insultos já haviam sido lançados”. E ela acrescenta: "Aqueles
que seguiram homens como Barrès, que acusaram os apoiadores de Dreyfus de se perderem
em conclusões metafísicas” terminaram por compreender que as abstrações do “Tigre"'
estavam, de fato, mais próximas das realidades políticas do que as ideias limitadas de
homens de negócios arruinados ou os tradicionalismos estéreis dos intelectuais fatalistas”.

Afirmar que Arendt critica a Declaração de 1789 por sua abstração é um equívoco: o que ela
deplora explicitamente é a pusilanimidade dos intelectuais e políticos do período entre
guerras que se tornaram incapazes de defender ideias abstratas. “O colapso da França”,

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escreveu ela, "deveu–se ao fato de que ela não tinha mais verdadeiros dreyfuseanos", não
tinha mais ninguém capaz de mobilizar em seus discursos, como fizeram Clemenceau e
Jaurès, "a velha paixão revolucionária pelos direitos humanos ".

É por isso que, mais uma vez, deve ser vista à distância a aprovação de Arendt em relação a
Burke, cujo poder pragmático e "imenso senso comum" ela elogiou, mas não sua
profundidade filosófica. Acima de tudo, a distinção de Arendt entre duas ideias de direitos
humanos tinha o objetivo de identificar as causas da explosão terrorista de 1793. Ela
certamente não quis fornecer uma descrição exaustiva da dinâmica multifome que se associa
às diferentes versões dos direitos do homem. De fato, é duvidoso que exista "uma" versão
francesa dos direitos humanos: as Declarações de 1789, 1793 e 1795 trazem os traços dos
campos de força divergentes em que foram inscritas, dos debates discordantes que
presidiram suas elaborações e em relação às quais elas constituem fórmulas de
compromissos às vezes ambíguos ou tensos. É verdade que a crença em uma possível
redução do direito político ao direito natural foi uma das tentações dos revolucionários
franceses. Dessa forma, Hannah Arendt estava certa ao ver nessa tentativa a especificidade
que poderia explicar o uso terrorista dos direitos humanos. No entanto, isso não significa que
a confusão entre direitos naturais e direitos políticos daria "o" significado de uma série de
Declarações cujo título afirma elipticamente a relação entre o homem e o cidadão em termos
de ligação e de diferença.

(2) Além disso, Arendt obviamente sabia que o discurso dos direitos do homem poderia ser a
fonte de uma enorme hipocrisia. Mas, e aqui seguimos a análise desenvolvida por Jeffrey
Isaac, ela também sabia que a hipocrisia não é o pior dos vícios, e que a revelação da
hipocrisia não é o objetivo final do trabalho intelectual. Isso é confirmado por sua análise, no
terceiro volume de Origens, da irresponsabilidade dos intelectuais que, entre as guerras,
cederam à sedução do totalitarismo. Ela escreveu essas frases, que não perderam nada de sua
ressonância no contexto das denúncias contemporâneas da retórica "hipócrita" dos direitos
humanos:

[...] os porta–vozes do humanismo e do liberalismo muitas vezes se


esquecem de uma coisa: em uma atmosfera em que todos os valores
e proposições tradicionais evaporaram [ ... ] era de fato mais fácil
aceitar, em vez de velhas verdades se tornarem chavões piedosos,

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proposições manifestamente absurdas ... [...]. A vulgaridade e sua
rejeição cínica das crenças recebidas e das teorias aceitas foram
acompanhadas por uma aceitação silenciosa do pior e um desprezo
por toda a pretensão que era fácil tomar por um estilo de vida novo
e corajoso.

E ela prossegue apontando que o "desejo de desmascarar a hipocrisia" era irresistível entre a
elite, o que indicava uma "falta de senso de realidade". É claro que Arendt não nega que a
coerência seja uma qualidade intelectual importante. Ela está muito longe de demonstrar a
menor frouxidão lógica. O que ela rejeita, entretanto, é a coerência ideológica, um tipo de
coerência formal e autista alcançada pela negação da realidade e do senso comum. E, acima
de tudo, não é a denúncia da incoerência ou de possíveis contradições entre a retórica e a
prática que deve ser a prioridade de nossa reflexão e de nossa ação política, mas sim o
sofrimento infligido por seres humanos a outros seres humanos.

(3) Além disso, o que parece estar em jogo em Arendt é o esboço de uma forma de cidadania
cosmopolita. Ao contrário do que escreve Agamben – para quem o "declínio e a crise" do
Estado moderno implica necessariamente a "obsolescência" dos direitos humanos – a análise
de Arendt nos permite refletir sobre as modalidades de um direito à inclusão política ou um
"direito humano à política " além do Estado-nação. O direito de ter direitos é o direito de ter
um lugar significativo no mundo – o "mundo" sendo entendido não no sentido de uma
coletividade nacional específica, mas no sentido de uma esfera composta de vínculos entre
aqueles que se reconhecem mutuamente como iguais.

Quando Lefort critica Arendt por impedir o "reconhecimento mútuo dos homens como
semelhantes nas fronteiras da cidade", ele parece não perceber que a cidadania em Arendt
está diretamente relacionada a um ponto de vista cosmopolita. Como escreve Myriam
Revault d'Allones: "Os pertencimentos não se referem a 'lugares' no sentido geográfico do
termo, mas abrem o acesso à universalidade: opiniões significativas e ações efetivas são tais
apenas se se referirem às condições fundamentais que as atualizam na atividade de um
poder". A primeira perda enfrentada pelos "privados de direitos", escreve Arendt, foi a perda
de seu "lar", mas, acima de tudo, a impossibilidade de encontrar outro.

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Em francês, o termo home foi traduzido como "pátria", o que parece sugerir uma analogia
com a forma nacional. Entretanto, é possível argumentar que, se Arendt quisesse dizer
“pátria", ela teria usado homeland. Se homeland se refere ao lugar mais ou menos imutável
onde nascemos e onde aprendemos a falar, o home pode ser reconstruído em outro lugar:
refere–se, de forma mais neutra, a uma comunidade política organizada onde somos
reconhecidos como seres significativos. Arendt enfatiza a natureza mutável do home quando
observa que não é a perda de um pertencimento político na medida que, no período entre
guerras, constituiram um acontecimento sem precedente – “na longa memória da história, a
emigração forçada de indivíduos ou de grupos inteiros [...] pareceu como um acontecimento
quotidiano” – mas a impossibilidade de reencontrar uma. Nesse sentido, se o pensamento de
Arendt inclui elementos de aparente comunitarismo – notadamente por meio de sua
insistência na participação política –, ela se distancia de qualquer comunitarismo na medida
em que o pertencimento é, para ela, parcial, múltiplo e conflituoso, e ela está muito longe de
toda valorização de uma cultura de autenticidade ou do "eu constituído" ancorado em uma
tradição específica.

Como vimos, no centro de sua análise está a ideia de que é a "conquista do Estado pela
nação" – ou seja, a redução dos direitos humanos aos direitos dos nacionais – que acabou
sendo catastrófica. Um dos temas constantes de seus escritos sobre o sionismo e o caráter
desastroso da ambição de construir um estado nacional e a necessidade absoluta de
cooperação entre judeus e árabes, sem a qual "a aventura judaica na Palestina está
condenada". Seu argumento não é apenas prudencial, mas normativo: essa cooperação
mostraria ao mundo que "não há diferenças entre os povos que não possam ser superadas ".
Precisamos nos afastar do nacionalismo, dessa patologia da cidadania, e inventar novas
formas de associação política que não estejam estritamente indexadas ao pertencimento
nacional.

É verdade que a configuração concreta a ser dada a essas formas de associação política pode
ser desconcertante. Catherine Colliot-Thélène lembra que, para Arendt, a única alternativa ao
pertencimento nacional era pertencer à humanidade, mas que ela (Arendt) considerava isso
"impossível ". De fato, no corpo do texto de Origens, Arendt é um tanto pessimista – ou pelo
menos cautelosa – sobre a possibilidade do surgimento de tal direito da humanidade:

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A humanidade, que no século XV era, na terminologia kantiana,
não mais do que uma ideia reguladora, hoje se tornou um fato
irrefutável. Essa nova situação, na qual a humanidade efetivamente
cumpre o papel anteriormente atribuído à natureza ou à história,
significaria, nesse contexto, que é a própria humanidade que deve
garantir o direito de ter direitos ou o direito de qualquer indivíduo
de pertencer à humanidade. Não é certo, em absoluto, que isso seja
possível".

Mas, além do fato de Arendt não afirmar explicitamente que isso é "impossível", as razões
para sua cautela residem essencialmente no fato de que a instituição desse direito de ter
direitos pressupõe a invenção de novas formas políticas que não dependem da simples
reciprocidade de tratados, nem de um "governo mundial". É por isso que, em um posfácio do
livro, ela nos lembra com veemência da necessidade de um novo empreendimento e,
portanto, da necessidade de forjar o que Burke considerava impossível – novas descobertas
na moralidade e ideias de liberdade:

O conceito de direitos humanos só pode recuperar seu pleno


significado se for redefinido como o direito à própria condição
humana, que depende de pertencer a uma comunidade humana, o
direito de nunca depender de uma dignidade humana inata que, se
não for garantida de fato por outros homens, não apenas não existe,
mas é o mais recente e provavelmente o mais arrogante mito que
inventamos em toda a nossa história. Os direitos do homem só
podem ser aplicados se se tornarem o fundamento pré–político de
uma nova política, a base pré–jurídica de uma nova estrutura
jurídica, o fundamento pré–histórico por assim dizer de onde a
história da humanidade tirará sua significação essencial, como os
mitos de origem fundamental de onde a civilização ocidental tirou
sua própria significação.

Conforme indicado pela recusa explícita de se referir a uma dignidade humana "inata", essa
afirmação de Arendt não pode ser confundida com qualquer ressurreição do direito natural.
Em vez disso, trata-se de considerar os direitos humanos como práticas capazes de autorizar

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princípios políticos inéditos. Arendt não elaborou esse último aspecto de forma sistemática,
mas ela dá alguns indícios, principalmente em sua análise do crime contra a humanidade em
Eichmann em Jerusalém onde lamenta explicitamente que em nenhum momento o Tribunal
de Jerusalém não mencionou o fato de que o extermínio de grupos étnicos inteiros foi mais
do que um crime contra judeus, poloneses ou ciganos, mas um crime contra a humanidade
como um todo que, tal e tal, deveria ter sido tratado por um tribunal internacional garantido
pelo concerto das nações. Ao fazer isso, ela confirma o que escreveu dez anos antes em
Origens, quando observou que "os campos de concentração russos, nos quais vários milhões
de homens são privados até mesmo dos benefícios duvidosos da lei em seu próprio país,
poderiam e deveriam se tornar o tema de uma ação que não precisaria respeitar os direitos e
as regras de soberania".

É claro que o cosmopolitismo de Arendt não deve ser confundido com a aspiração a um
governo mundial que minaria a pluralidade de nacionalidades, culturas e identidades
políticas e que, segundo ela, marcaria o fim de "toda a vida política como a conhecemos", ou
seja, a vida política baseada no pluralismo, na diversidade e nas limitações mútuas. Arendt,
por outro lado, parecia ter em mente fórmulas políticas federadas baseadas em uma limitação
da soberania, uma proliferação de freios e contrapesos e uma limitação do poder dos estados-
nação por meio de uma combinação de iniciativas dos cidadãos e jurisdições internacionais.
Mesmo que suas concepções institucionais permanecessem vagas, seu desejo de romper a
equação automática entre nacionalidade e cidadania dificilmente pode ser questionado.
Como ela escreveu no prefácio da primeira edição de Origens, a dignidade humana
pressupõe uma "nova garantia que só pode ser encontrada em um novo princípio político, em
uma nova lei na terra, cuja validade deve, desta vez, abranger toda a humanidade, enquanto
seu poder deve permanecer estritamente limitado, enraizado e controlado por novas
entidades territoriais definidas".

Quaisquer que sejam essas implicações cosmopolíticas, vamos reiterar o ponto que é
essencial para nosso propósito: aqueles que leem em Arendt uma confirmação do fato de que
os direitos humanos são sempre os dos nacionais ou que, ao contrário, deploram a
incapacidade de Arendt de "pensar" os direitos humanos, sem esquecer aqueles que
acreditam que estão se juntando a ela para decretar a obsolescência das Declarações de
direitos, têm em comum o fato de não perceberem o caráter "aporético" de sua abordagem. O
pensamento de Arendt é aporético no sentido de que visa a compreender um conceito

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político comum, desafiar seus significados tradicionais e, ao destacar os paradoxos que o
atravessam, abrir a possibilidade de pensar de novo. Longe de nos paralisar, o pensamento
de Arendt desenha um espaço crítico que abre uma concepção "política" dos direitos
humanos.

Uma concepção "política" dos direitos humanos

No campo da filosofia política francesa, essa leitura "política" dos direitos humanos em
Arendt foi desenvolvida principalmente por Étienne Balibar desde meados dos anos 2000 e,
mais recentemente, por Étienne Tassin. Mas essa interpretação "política" dos direitos
humanos foi amplamente preparada pela releitura de Miguel Abensour do pensamento de
Hannah Arendt. Contra as simplificações de certos movimentos antitotalitários, marcados
por um "apolitismo que se degenera em uma depreciação da política e [em] uma ênfase
exagerada na ética", Abensour se propõe, a partir de 1996, a mostrar que Arendt está muito
distante da crítica liberal clássica que vê o totalitarismo como uma subjugação do privado ao
público: “De fato, a dominação totalitária não pode submeter a vida privada à vida pública,
uma vez que ela é, antes de tudo, a destruição desta última e de sua própria possibilidade”.
Muito longe da interpretação "conservadora", Abensour percebe na obra de Arendt uma
promessa libertária, sem afinidades reais com a "democracia selvagem" de Claude Lefort –
dois autores que, em um único movimento, criticaram a dominação totalitária e trabalharam
para redescobrir o político.

Abensour não lida com a questão específica dos direitos humanos. Mas na esteira de sua
interpretação estão as reavaliações da questão dos direitos humanos propostas por Balibar e
Tassin, que têm em comum a ênfase no conceito paradoxal de direitos humanos de Arendt e
sua dimensão especificamente política.

Para Étienne Balibar, o primeiro paradoxo da questão dos direitos humanos em Arendt – e a
primeira fonte dos mal-entendidos mencionados acima – está na combinação que ela faz
entre uma crítica radical de qualquer fundamento antropológico para os direitos humanos e
uma defesa intransigente de seu caráter imprescritível, que identifica sua desconsideração
com uma destruição do humano. O paradoxo é que ela parece rejeitar o que quer colocar em
prática do outro lado. Daí a possível confusão entre sua condenação do discurso dos direitos
naturais e a dos direitos humanos em geral. É difícil contestar o fato de que Arendt não

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acredita mais que seja possível basear os direitos do homem na ideia de que o homem é uma
parte do cosmos. Além do fato de que as leis da natureza são difíceis de interpretar, os
chamados direitos naturais eram, como vimos, nada mais do que baluartes patéticos da
dignidade humana contra o mal político – mesmo antes do advento do totalitarismo. Além
disso, as premissas filosóficas dos direitos naturais, já frágeis no século XVII, tornaram–se
impossíveis de justificar para os homens e mulheres do século XX.

Mas, apesar de rejeitar veementemente uma concepção "essencialista" de direitos que os


vincularia a uma essência humana universal ou formal alojada em cada indivíduo, Arendt
não conclui daí a loucura da noção:

A única condição dada para o estabelecimento dos direitos é a


pluralidade dos homens; os direitos existem porque habitamos a
terra com outros homens. Nenhum mandamento divino, derivado da
criação do homem à imagem de Deus, e nenhuma lei natural,
derivada da natureza do homem, são suficientes para estabelecer
uma nova lei na Terra, pois os direitos nascem da pluralidade
humana, ao passo que o mandamento divino ou a lei natural não são
suficientes, mesmo que houvesse apenas um ser humano.

Ser humano é fazer parte de uma pluralidade de indivíduos, todos únicos e todos capazes de
se comprometer com uma ação comum. A Condição Humana apresenta, portanto, uma visão
da existência na qual o que torna os seres humanos únicos é sua capacidade de começar,
enraizada na imprevisibilidade e na intersubjetividade. Por isso, como escreve Étienne
Balibar, o caráter não-fundado dos direitos do homem em Arendt no sentido de que, para
ela, os direitos humanos não são uma origem a ser redescoberta (ou restaurada), mas uma
invenção ou um começo contínuo. Para Arendt, os direitos humanos não são naturais: eles
são convenções, formas de reconhecimento produzidas por acordos entre pessoas, os frágeis
artefatos da vida em comum.

Isso torna possível, com Étienne Tassin, aprofundar o paradoxo: os direitos humanos, na
verdade, pressupõem a cidadania da qual se diz que eles são independentes. No entanto, essa
não é uma observação factual, como acreditam os proponentes de uma leitura "positivista"
de Arendt; os direitos humanos pressupõem a cidadania não de fato, mas de direito: "Os

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direitos do homem significam que os homens são homens somente se forem reconhecidos
como tais por homens que declaram publicamente que todo homem tem o direito de ser
reconhecido como uma pessoa perante a lei".

Embora Arendt insista, como Bentham, na importância de dar garantias institucionais à


liberdade, sua defesa da desobediência cívica está muito longe da ideia positivista de que não
há direitos fora das prescrições da lei garantida por um soberano. Ela não se enquadra na
ideia burkeana de que os direitos reais são transmitidos de uma geração para a outra em uma
comunidade política concebida como uma família. "É uma ideia muito mais radical e
filosoficamente contrária a ela": fora da instituição da comunidade (entendida como
reciprocidade de ações), "não há seres humanos". Nesse sentido, a política de direitos
humanos deve ser vista como a prática ativa e cooperativa daqueles que se reconhecem
mutuamente como iguais.

É por isso que, em vez de uma alternativa a uma forma radical ou revolucionária de política,
a "política de direitos humanos é uma de suas expressões mais importantes". Se tentarmos,
como faz Balibar, "pensar com Arendt além de Arendt", a comunidade de cidadãos não é
mais a comunidade existente ou uma comunidade ideal do passado, mas uma comunidade
"por vir", uma comunidade sem modelo que, a princípio, pode parecer uma não-comunidade,
mas que está virtualmente presente nas lutas por sua definição. Como resultado, a concepção
de direitos de Arendt está em sintonia com a de Jacques Rancière e Claude Lefort.

Para Rancière, é exatamente quando alguém reivindica direitos que não possui que se torna
um sujeito político. Ao contrastar "homem" com "cidadão", Arendt, segundo ele, deixa
escapar uma terceira possibilidade, a saber, que "os direitos humanos são direitos daqueles
que não têm os direitos que eles têm e que têm os direitos que eles não têm". Para Rancière,
esse processo foi ilustrado pela luta das mulheres durante a Revolução Francesa, que
demonstrou que elas foram privadas dos direitos de que gozavam (graças à Declaração) e
que tinham (graças à sua ação) os direitos que lhes eram negados pela Constituição.

Entretanto, à luz de uma interpretação "política" do pensamento de Arendt, podemos nos


perguntar se Rancière não é "mais arendtiano do que pensa". Também para Arendt, a
igualdade não é um dado adquirido: ela é um produto da ação humana, por meio de
negociação, luta, compromisso, derrota e vitória de todos aqueles inicialmente excluídos das

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definições legais de direitos (sejam escravos, mulheres, pobres ou homossexuais), que
obtiveram acesso à cidadania reivindicando direitos que não possuíam. Ao inverter as
fórmulas constitucionais, Arendt postula que os direitos humanos não são os fundamentos,
mas os produtos da política. Essa concepção política dos direitos humanos também se
aproxima da de Claude Lefort, para quem são os próprios atores que geram suas liberdades
ao declarar seus direitos. O objetivo aqui não é negar as diferenças substanciais que existem
entre Arendt, Lefort e Rancière, mas simplesmente mostrar que esses autores compartilham,
de forma heterogênea, a mesma concepção política dos direitos humanos.

Assim, vemos se desenhar uma leitura muito diferente de Arendt daquela que poderia ter
apoiado uma forma de ceticismo sobre o discurso e a política dos direitos humanos. O
pensamento de Arendt abriria o caminho para uma concepção "política" dos direitos
humanos, que difere de uma concepção "filosófica" pelo fato de que a preocupação é menos
determinar as formações dos direitos humanos do que questionar sua realização prática. Sob
essa perspectiva, e como resume com humor James Ingram, os direitos humanos não devem
ser comparados a "unicórnios" (como faz Alasdair Maclntyre), mas a "mulas": estas últimas
não existem na natureza, não podem se reproduzir, mas podem existir e, portanto, têm efeitos
reais. Ou ainda: não nascemos iguais, mas podemos nos tornar iguais por meio de nossa
vontade declarada de garantir os direitos uns aos outros.

O texto de Arendt sobre "O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos humanos" foi
publicado há sessenta e quatro anos, no exato momento em que teve início essa
transformação que, após dois séculos de soberania absoluta da lei, viu o surgimento dos
direitos e liberdades fundamentais como uma nova categoria jurídica, especialmente na
Europa como um todo, no contexto da Carta Europeia ou por meio das disposições do
Tratado da União Europeia. Nas palavras de Mireille Delmas–Marty no início de uma
coletânea de textos sobre direitos e liberdades fundamentais, "a lei não tem mais todos os
direitos". Vários textos internacionais mais ou menos vinculantes preveem a proteção dos
direitos humanos independentemente da nacionalidade – o modelo mais avançado é a
Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais,
assinada em Roma em 1950. Daí o interesse em examinar a relevância desse capítulo da obra
de Arendt na atualidade. Essa é uma tarefa essencial, pois sabemos que Arendt declarou que

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não era uma "filósofa". No entanto, Arendt era de fato uma filósofa, e uma das maiores. Mas
o que ela quis dizer com isso foi que rejeitava uma forma de especulação filosófica que se
distanciava da preocupação de entender e esclarecer a ação. Em seu caso, não será fiel a seu
procedimento se contentar de estudar sua obra por ela mesma, sem a colocar em ressonância
com os problemas políticos contemporâneos.

É por isso que os escritos de Arendt deram origem, nos últimos tempos, a uma importante
literatura que tenta extrair as implicações de sua concepção de direitos humanos para pensar
a cidadania além das fronteiras nacionais. Mais especificamente, alguns autores tentaram
estabelecer uma ligação mais ou menos direta entre a situação dos apátridas no período entre
guerras e a dos requerentes de asilo ou migrantes em situação irregular no período
contemporâneo. É claro que seria fácil apontar as diferenças entre as duas situações. Na
grande maioria dos casos, os solicitantes de asilo e os migrantes sem documentos não são
apátridas. Na maioria dos casos (não todos), eles não são expulsos de seu Estado: eles estão
buscando, movidos por uma necessidade multifacetada, fugir dele e se estabelecer em outro
lugar. A rigor, os solicitantes de asilo também não são "sem direitos", pois têm direitos
reconhecidos pela Convenção de Genebra de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados,
complementada pelo Protocolo de 1966, que deve abrir caminho para o reconhecimento de
um status legal para qualquer pessoa que esteja fora do país de sua nacionalidade ou
residência habitual e que tenha um "temor bem fundamentado” de ser perseguido por
motivos de raça, religião, nacionalidade, associação a um determinado grupo social ou
opiniões políticas. No espaço europeu, a Convenção Europeia de Direitos Humanos permite
que qualquer pessoa, mesmo que não seja cidadão de um Estado parte da Convenção, entre
com um processo na Corte Europeia de Direitos Humanos se considerar que seus direitos
previstos na Convenção foram violados. À primeira vista, poderia ser tentador pensar que
não há mais pessoas "sem direitos" no espaço europeu e que o texto de Arendt perdeu toda a
relevância.

Essa conclusão, entretanto, seria indecente. Por um lado, sabemos que apenas uma pequena
fração dos solicitantes de asilo contemporâneos está coberta pela Convenção de Genebra,
que não abrange as pessoas que fogem de uma guerra estrangeira ou de uma guerra civil, ou
aquelas que são vítimas de violência resultante de um clima de insegurança ou de uma
situação de "ilegalidade". Por outro lado, embora várias diretivas europeias tenham ampliado
o escopo da Convenção de Genebra, nas últimas três décadas, alguns Estados ocidentais

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continuaram a multiplicar suas estratégias com o objetivo de se livrarem o máximo possível
de suas obrigações internacionais – das quais o caso húngaro é apenas o exemplo mais
recente e mais espetacular.

Mas, acima de tudo, acreditar que a mera proclamação internacional de direitos é suficiente
para eliminar situações de "ausência de direitos" seria perder o verdadeiro significado desse
conceito em Arendt. Ser "sem direitos" não significa ser privado de qualquer direito
específico. Um criminoso pode muito bem ser privado de sua liberdade de movimento, mas
isso não o torna "sem direitos". Ser fundamentalmente privado de direitos humanos é "antes
de mais nada, ser privado de um lugar no mundo que dê importância às opiniões e dê
significado às ações". Se tentarmos, mais uma vez, pensar "com Arendt além de Arendt",
poderíamos dizer que uma pessoa sem direitos está em condições tão precárias que a
reivindicação de direitos e, portanto, o acesso à justiça, torna-se difícil, se não impossível.
Isso se aplica à pobreza, que Arendt descreveu como "um estado de necessidade constante e
miséria aguda cuja ignomínia reside em seu poder de desumanizar; a pobreza degrada
porque impõe aos homens o ditame absoluto do corpo, ou seja, o ditame absoluto da
necessidade". Esse "ditame absoluto do corpo" compromete qualquer participação na vida
pública em pé de igualdade.

Ayten Gündogdu demonstrou recentemente que a distinção de Arendt entre um princípio


moral (a compaixão) e um princípio político (a solidariedade) não é tanto uma questão de
estabelecer uma linha de demarcação rígida entre o "social" e o "político", mas sim de
insistir no fato de que as questões sociais devem ser tratadas em um contexto político. Para
Arendt, não se trata tanto de estabelecer uma linha rígida de demarcação entre o "social" e o
"político", mas de insistir no fato de que as questões sociais devem ser politizadas como
questões ligadas à igualdade e à liberdade dos participantes na arena pública, e não ser objeto
de uma política de compaixão movida pela piedade. Em outras palavras, o que Arendt
criticou nos revolucionários franceses não foi o fato de terem politizado a pobreza, mas, ao
contrário, o fato de não terem conseguido fazer isso ao reduzir os "pobres" a uma massa de
vítimas indiferenciadas: eles não conseguiram "instituir as condições que teriam permitido
aos cidadãos lidar com a pobreza de forma política ".

Entretanto, assim como as pessoas mais pobres, os solicitantes de asilo e os migrantes


irregulares raramente vivem em condições que permitam o surgimento de um sujeito

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autônomo, e há muitas outras formas de marginalidade e vulnerabilidade social cuja
fragmentação e divisão inerentes impedem a mobilização coletiva. Entendida dessa forma, a
frase "o direito de ter direitos" continua sendo uma maneira proveitosa de examinar os
obstáculos sociais concretos que restringem o acesso aos direitos e de pensar em ações que
possam dar a todos a oportunidade de fazer com que sua voz seja ouvida. Ela pode ser
estendida em um esforço para reconstituir a articulação entre a filosofia política e a filosofia
social que a arena pública das últimas décadas viu se romper como resultado da divisão
hegemônica de papéis entre uma concepção associal de direitos e uma crítica conservadora
do individualismo. Não há nada de absurdo em vincular o pensamento de Arendt aos
aspectos relevantes da tradição sociológica às interrogações de Marx sobre a capacidade de
liberdade do indivíduo real. Se a crítica ao totalitarismo nunca impediu Arendt de enfatizar a
importância que ela atribuía à tradição revolucionária-conselhista e ao pensamento de Marx,
foi porque ambos confrontaram as contradições, tensões, limites e promessas inerentes à
Declaração de direitos com a mesma preocupação emancipatória.

Talvez seja possível, então, responder à observação de Agamben de que, na expressão


"direitos do homem e do cidadão", não está claro "se os dois termos designam duas entidades
distintas ou, ao contrário, formam uma hendiadys, aquela figura na qual o primeiro termo já
está contido no segundo". Tanto Marx quanto Arendt nos convidam a pensar na relação entre
o homem e o cidadão como uma unidade dialética que não é nem a independência dos dois
termos nem uma figura de inclusão ou absorção de um termo pelo outro. Mas com a
diferença essencial de que Marx acha que pode resolver a tensão entre os dois termos na
unidade superior da sociedade sem classes, enquanto Arendt faz dela a condição frutífera da
existência política.

Perguntas de exploração do texto

1) Qual o primeiro paradoxo dos direitos humanos apontado por Arendt?


2) Qual a relação entre a desnacionalização e o totalitarismo?
3) Na Declaração de 1789 a emancipação da pessoa nasce juntamente com o
estabelecimento da soberania do estado-nação. Por que isso é um problema?
4) Segundo Arendt, qual o primeiro dos direitos humanos?
5) Qual a leitura “comunitária” de Arendt dos direitos humanos?

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6) Qual foi a crítica de Sternhell a Arendt (e também a Burke) sobre sua crítica aos
direitos humanos?
7) Qual é a crítica de Arendt sobre o império da subjetividadee por que os direitos
humanos poderiam ser obsolescentes hoje, a partir dessa leitura?
8) Em que consistea crítica de Arendt sobre o humano abstrato?
9) Os autores mostram uma concordância e uma dissensã om a crítica de Burke aos
direitos humanos. Quais são?
10) Sobre a relação entre direitos humanos eo estado-nação, os autores discordam da
interpretação que faz Agamben do pensamento de Arendt. Explique.
11) Por que o agumento de Burke foi uma justificativa para o racismo imperialista, e por
que deve-se recuperara questão o “direito a ter direitos”?
12) Como a obra de Arendt não rejeita a Declaração de direitos por ser “abstrata”?
13) Como sua obra não ataca a retórica dos direitos humanos pr ser hipócrita?
14) Como essa obra não reduz os direitos humanos à coletividade nacional?
15) Por que o nacionalismo é uma patologia da cidadania?
16) Qual a posição de Arendt sobre o sionismo?
17) O que seria a cidadania cosmopolita de Arendt? Por que ela exige uma nova
política?
18) Por que Arendt não defende um governo mundial? Que ordem jurídica deveria ser
criada para garantir os direitos humanos?
19) O que é o caráter “aporético” do pensamento de Arendt?
20) De acordo com Abensour, Arendt está muito distante da crítica liberal clássica e de
sua visão do totalitarismo. Por que?
21) Para Balibar, qual o paradoxo da questão os direitos humanos em Arendt?
22) Como Arendt caracteriza o ser humano?
23) Qual o paradoxo, em Arendt, apontado por Tassin?
24) Por que a política dos direitos humanos é uma forma radical de política?
25) Arendt: “os direitos humanos não são os fundamentos, mas os produtos da política”.
Explique.
26) A concepção política de direitos humanos de Arendt se opõe à uma concepção
filosófica. Explique.
27) Explique a afirmação de Mireille Delmas-Marty “a lei não tem mais todos os
direitos”.
28) “As questões sociais deveriam ser tratadas nno contexto político”. Explique.

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29) Por que a afirmação “direito a ter direitos” ainda tem sentido?
30) Como pensar não mais direitos humanos, mas direitos cosmopolíticos?
31) Hoje há uma proteção legal internacional à dignidade humana, todavia, há muitos
privados de direitos humanos. Como e por que/

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