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Revista Lugar Comum n.º 48 – 2016.

Sete teses sobre direitos humanos:


parte 1

Costas Douzinas1

Tradutores
Daniel Carneiro Leão Romaguera2, Fernanda Frizzo Bragato3, Manoel Carlos Uchôa de
Oliveira4 e Antonio Henrique Pires dos Santos5

Nesta edição, será publicada a tradução das quatro primeiras teses sobre Direitos
Humanos de autoria de Costas Douzinas6, denominou-se de “Parte 1” a reunião dos textos:
“(1) A ideia de humanidade”; “(2) Poder, moralidade e exclusão institucional”; “(3)
Capitalismo neoliberal e imperialismo voluntário”; “(4) Universalismo e Comunitarismo são
interdependentes”. As “Seven Theses on Human Rights” foram publicadas no site da Critical
Legal Thinking7. No presente escrito, os textos traduzidos estão dispostos integralmente em
sequência, no intuito de preservar o formato de publicação original.

1
Costas Douzinas é professor de direito e diretor do Instituto de Ciências Humanas de Birkbeck, na
Universidade de Londres. Também é professor visitante nas Universidades de Atenas, Paris, Tessalônica e
Praga. Traduzido ao português, tem publicado O fim dos direitos humanos (Unisinos: 2009).
2
Doutorando em Direito da PUC-RIO e Mestre em Jurisdição e Direitos Humanos pela UNICAP/PE, tendo
feito Mestrado-Sanduíche na UNISINOS/RS. Membro dos Grupos de Pesquisa Jurisdição Constitucional,
Democracia e Constitucionalização de Direitos e Pós-colonialidade e Integração Latino-Americana. E-mail:
danielromaguera@hotmail.com
3
Mestre e Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, com período de estágio doutoral na
University of London (Birkbeck College) (2009) e pós-doutorado na University of London (School of Law -
Birkbeck College) (2012). Atualmente é professora do Programa de pós-graduação e graduação em Direito da
Unisinos e Coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos.
4
Doutorando no PPGCJ-UFPB. Professor Assistente I na Unicap. E-mail: manoel.cuo@gmail.com
5
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Mestrando em Ciência Política pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Bolsista FACEPE. E-mail: antonio.hps26@gmail.com
6
Professor de Direito e Pró-Vice Reitor de Relações Internacionais de Birkbeck (Universidade de Londres),
Diretor do Birkbeck Institute for the Humanities e editor da revista internacional “Law & Critique”.
7
http://criticallegalthinking.com/
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Sete Teses sobre os Direitos Humanos (1) A ideia de humanidade1

Tese 1: A ideia de "humanidade" não tem significado fixo, nem pode agir como fonte de
regras morais ou legais. Historicamente, tal ideia foi utilizada para classificar as pessoas em
plenamente humanas, menos humanas e inumanas.

Se a “humanidade” é fonte normativa de regras morais e legais, sabemos o que é


“humanidade”? Importantes questões filosóficas e ontológicas estão envolvidas aqui. Deixe-
me dar uma breve olhada em sua história.
As sociedades pré-modernas não desenvolveram uma ideia abrangente da espécie
humana. Os homens livres eram atenienses ou espartanos, romanos ou cartagineses, mas não
membros da humanidade; eram gregos ou bárbaros, mas não humanos. De acordo com a
filosofia clássica, a natureza humana determinada teleologicamente distribuía as pessoas em
hierarquias e papéis e as dotava de características diferenciadas. A palavra humanitas
apareceu pela primeira vez na República Romana, como a tradução da palavra grega paideia.
Ela foi definida como eruditio et institutio in bonas artes (o equivalente moderno mais
próximo é o “Bildung” alemão). Os romanos herdaram o conceito do estoicismo e usaram-no
para distinguir entre o homo humanus, o romano educado que estava familiarizado com a
cultura e a filosofia grega e estava submetido ao jus civile, e os homines barbari, que
incluíam a maioria dos habitantes não-romanos e não educados do Império. A humanidade

1
Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado na página da “Critical Legal Thinking”
no dia 16 de maio de 2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/05/16/seven-theses-on-human-
rights-1-the-idea-of-humanity/
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entra no léxico ocidental como um atributo e predicado de homo, como um termo de


separação e distinção. Para Cícero, também para o mais jovem Scipio, humanitas implica
generosidade, polidez, civilização e cultura, aquilo que se opõe à barbárie e à animalidade2.
“Somente aqueles que estão em conformidade com certos padrões são realmente homens em
sentido pleno e totalmente merecedores do adjetivo “humano” ou do atributo “humanidade” 3.
Hannah Arendt coloca de forma sarcástica: “um ser humano ou homo no sentido original da
palavra indica alguém fora da abrangência do direito e do corpo político de cidadãos, como
por exemplo um escravo - mas certamente um ser politicamente irrelevante”4.
Se agora nos voltarmos para os usos políticos e jurídicos de humanitas, uma história
semelhante emerge. O conceito “humanidade” tem sido constantemente usado para separar,
distribuir e classificar as pessoas em governantes, governados e excluídos. “Humanidade”
atua como uma fonte normativa à política e ao direito, contra um pano de fundo de
desumanidade variável. Esta estratégia de separação política entrou curiosamente para o
campo histórico no preciso momento em que a primeira concepção propriamente
universalista de humanitas emergiu na teologia cristã, capturada na declaração de São Paulo,
de que não há grego ou judeu, homem ou mulher, homem livre ou escravo (Epístola aos
Gálatas 3:28). Todas as pessoas são igualmente parte da humanidade porque podem ser
salvas pelo plano de salvação de Deus, porque compartilham dos atributos de humanidade
agora acentuadamente diferenciados entre a divindade transcendental e a animalidade
subumana. Para o humanismo clássico, a razão determina o humano: o homem é um zoon
logon echon ou animale rationale. Por outro lado, segundo a metafísica cristã, a alma imortal,
ao mesmo tempo carregada e enclausurada pelo corpo, é a marca da humanidade. A nova
ideia de igualdade universal, desconhecida para os gregos, chegou ao mundo ocidental pela
combinação das metafísicas clássica e cristã.
A ação divisória de “humanidade” sobreviveu à invenção da sua igualdade
espiritual. Papa, Imperador, Príncipe, Rei, representantes e discípulos de Deus na terra foram
governantes absolutos. E seus súditos, sub-jecti ou sub-diti, receberam a lei e seus comandos
dos seus superiores políticos. Mais importante, as pessoas seriam salvas em Cristo apenas se
aceitarem a fé, uma vez que os não cristãos não têm lugar no plano providencial. Estas
divisão e exclusão radicais fundaram a missão ecumênica e o proselitismo da Igreja e do
Império. A Lei espiritual do amor de Cristo se transformou em um grito de guerra: vamos

2
Hannah Arendt, On Revolution (New York: Viking Press, 1965), 107.
3
B.L. Ullman, “What are the Humanities?” Journal of Higher Education17/6 (1946), at 302.
4
H.C. Baldry, The Unity of Mankind in Greek Thought, (Cambridge: Cambridge University Press 1965), 201.

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trazer os pagãos para a graça de Deus; vamos fazer o evento singular de Cristo universal;
vamos impor a mensagem da verdade e do amor sobre o mundo inteiro. A separação clássica
entre o grego (ou humano) e o bárbaro foi baseada em fronteiras territoriais e linguísticas
claramente demarcadas. No império cristão, a fronteira foi internalizada e dividiu o mundo
conhecido diagonalmente entre fiéis e pagãos. Os bárbaros não eram mais aqueles além da
cidade, já que esta se expandiu para todo o mundo conhecido. Eles se tornaram os “inimigos
internos” a serem devidamente corrigidos ou eliminados, caso teimosamente recusassem a
salvação espiritual ou secular.
O significado de humanidade após a conquista do "Novo Mundo" foi vigorosamente
contestado em um dos debates públicos mais importantes da história. Em abril de 1550,
Carlos V da Espanha convocou um conselho de estado em Valladolid para discutir a atitude
espanhola para com os índios derrotados do México. O filósofo Ginés de Sepúlveda e o Bispo
Bartholomé de Las Casas, duas grandes figuras do Iluminismo espanhol, debateram em lados
opostos. Sepúlveda, que acabara de traduzir A Política de Aristóteles para o espanhol,
argumentou que “os espanhóis governam de pleno direito os bárbaros que, em prudência,
talento, virtude e humanidade são tão inferiores aos espanhóis quanto as crianças aos adultos,
as mulheres aos homens, o selvagem e cruel ao leve e suave, eu poderia dizer o macaco ao
homem”5. A coroa espanhola não deveria sentir nenhum escrúpulo em lidar com o mal
indígena. Os índios poderiam ser escravizados e tratados como bárbaros e escravos selvagens
a fim de serem civilizados e convertidos.
Las Casas discordou. Os índios têm costumes bem estabelecidos e modos de vida
enraizados, argumentou ele, valorizam a prudência e têm a capacidade de governar e
organizar suas famílias e cidades. Eles têm as virtudes cristãs da bondade, tranquilidade,
simplicidade, humildade, generosidade e paciência, e estão esperando para serem
convertidos. Eles se parecem com nosso pai Adão antes da queda, são cristãos
“involuntários”, escreveu Las Casas em sua Apologia. Em uma definição inicial do
humanismo, Las Casas afirmou “todas as pessoas do mundo são humanos sob uma única
definição para a totalidade dos humanos e para cada um, qual seja, são racionais... Assim,
todas as raças da humanidade são uma só”6. Seus argumentos combinam teologia cristã e
utilidade política. Respeitar os costumes locais não é só boa moral, mas também boa política:

5
Ginés de Sepulveda, Democrates Segundo of De las Justas Causa de la Guerra contra los Indios (Madrid:
Institute Fransisco de Vitoria, 1951), 33 quoted in Tzvetan Todorov, The Conquest of America trans. Richard
Howard (Norman: University of Oklahoma Press, 1999), 153.
6
Bartholomé de las Casas, Obras Completas, Vol. 7 (Madrid: Alianza Editorial, 1922), 536–7.

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os índios se convertem ao cristianismo (principal preocupação de Las Casas), mas também


aceitam a autoridade da Coroa e enchem seus cofres, caso sentissem que suas tradições, leis e
culturas são respeitadas. Entretanto, o universalismo cristão de Las Casas era, como todos os
universalismos, excludente. Repetidamente, condenou “turcos e mouros, os verdadeiros
bárbaros desterrados das nações”, uma vez que não podiam ser vistos como cristãos
“involuntários”. O universalismo “empírico” de superioridade e hierarquia (Sepúlveda) e a
normatividade da verdade e do amor (Las Casas) acabam não sendo muito diferentes um do
outro. Como Tzvetan Todorov comenta sucintamente, há “(...) violência na convicção de que
possuem a verdade em si mesmo, ao passo que isto não é o caso para os outros, e que se deve,
além disso, impor esta verdade sobre os outros”7.
As interpretações conflitantes sobre a “humanidade” de Sepúlveda e de Las Casas
permitem capturar as ideologias dominantes de impérios ocidentais, imperialismos e
colonialismos. Por um lado, o outro (racial) é desumano ou subumano. O que justifica a
escravidão, as atrocidades e até mesmo a aniquilação como estratégia da missão
civilizadora. Do outro extremo, conquista, ocupação e conversão forçada são estratégias de
desenvolvimento espiritual ou material, do progresso e da integração dos inocentes, ingênuos
e não desenvolvidos outros ao corpo principal da humanidade.
Essas duas definições e estratégias de lidar com a alteridade conferem suporte à
subjetividade ocidental. O desamparo, a passividade e a inferioridade dos outros
“subdesenvolvidos” são transformados em nossa narcisista imagem refletida no espelho e
potencial duplo. Esses desafortunados são as crianças da humanidade, são vitimizados e
sacrificados por seus próprios malfeitores radicais; são resgatados pelo Ocidente que os
ajuda a crescer, a desenvolver e a se tornar a nossa semelhança. Porque a vítima é a nossa
imagem no espelho, nós sabemos qual é o seu interesse e devemos impô-lo “para seu próprio
bem”. Por outro lado, os irracionais, cruéis e vitimizados são projeções do Outro de nosso
inconsciente. Como Slavoj Žižek coloca, "há uma espécie de exposição passiva a uma
alteridade esmagadora que é a base do ser humano... [o desumano] é marcado por um excesso
aterrorizante que, embora negue o que entendemos por humanidade, é inerente ao ser
humano”8. Temos chamado este abismal outro que espreita na psique e transtorna o ego de
vários nomes: Deus ou Satanás, bárbaro ou estrangeiro, a pulsão de morte ou o Real em

7
Todorov, The Conquest of America 166, 168.
8
Slavoj Žižek, “Against Human Rights 56,” New Left Review (July–August 2005), 34.
Costas Douzinas, “For a Humanities of Resistance,” Critical Legal Thinking, December 7,
2010,http://www.criticallegalthinking.com/2010/12/07/for-a-humanities-of-resistance/

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psicanálise. Hoje, tornaram-se o “eixo do mal”, o “Estado vadio”, o “falso refugiado” ou o


imigrante “ilegal”. Eles são herdeiros contemporâneos dos “macacos” de Sepúlveda,
representantes épicos de desumanidade.
Uma comparação das estratégias cognitivas associadas com o latino humanitas e o
grego Anthropos é elucidativa. A humanidade do humanismo (e das ciências humanas)
unifica o sujeito que conhece e o objeto conhecido seguindo os protocolos de
autorreflexão. O anthropos da antropologia física e social, por outro lado, é o objeto apenas
da cognição. A antropologia física examina corpos, sentidos e emoções, ou seja, suportes
materiais da vida. Estudos de antropologia social diversificam povos não-ocidentais,
sociedades e culturas, mas não a espécie humana em sua essência ou totalidade. Esses povos
emergiram e se tornaram o objeto de observação e estudo pela descoberta, conquista e
colonização do Novo Mundo, África, Ásia ou nas periferias da Europa. Nishitani Osamu
afirma que a humanidade e o anthropos significam dois regimes assimétricos de
conhecimento. A humanidade é a civilização, enquanto o anthropos está fora ou antes da
civilização. Em nosso mundo globalizado, as literaturas menores do anthropos são
examinadas pela literatura comparada que relaciona a “civilização” com culturas inferiores.
O gradual declínio do domínio ocidental está modificando essas hierarquias. Da
mesma forma, a inquietação com um universalismo normativo, baseado em uma falsa
concepção da humanidade, indica a ascensão de normatividades locais, concretas e
vinculadas a um contexto.
Conclui-se, então, que a "humanidade", por não ter sentido unívoco, não pode atuar
como uma fonte moral de normas. Seu sentido e alcance continuam a mudar de acordo com
as prioridades políticas e ideológicas. As concepções de humanidade em constante mudança
são as melhores manifestações da metafísica de uma época. Talvez tenha chegado o tempo
para o anthropos substituir o humano. Talvez os direitos vindouros sejam antrópicos (para
cunhar um termo), em vez de humanos, expressando e promovendo singularidades e
diferenças, ao invés da mesmice e da equivalência de identidades até então dominantes.

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Sete teses sobre Direitos Humanos: (2) Poder, moralidade e exclusão institucional1

Vamos explorar a forte ligação interna entre esses princípios aparentemente


antagônicos, no momento de seu surgimento ao final do século 18 na Europa e também na
ordem internacional pós-1989. Esta será analisada no próximo texto.
A fundamentação religiosa da humanidade foi minada pelas filosofias políticas e
liberais do início da modernidade. A fundação da humanidade foi transferida de Deus para a
natureza (humana). A natureza humana tem sido interpretada como fato empírico, um valor
normativo ou ambos. A ciência tem optado pela primeira abordagem. A marca da
humanidade foi por diversas vezes procurada na linguagem, na razão ou na evolução. O
homem como espécie surgiu do resultado de inovações legais e políticas. A ideia de
humanidade é uma criação do humanismo, tendo o humanismo legal em sua vanguarda. De
fato, as grandes revoluções e declarações do século 18, de forma paradigmática, expressaram
e ajudaram a construir o universalismo moderno. Mas, no coração do humanismo, a
humanidade permaneceu como estratégia de divisão e classificação.
Nós podemos observar brevemente este processo contraditório, que tanto proclama o
universal como exclui o local no texto da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do
Cidadão, o grande manifesto da modernidade. Em seu Artigo 1º – progenitor do

1
Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado na página da “Critical Legal Thinking”
no dia 21 de maio de 2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/05/21/seven-theses-on-human-
rights-2-power-morality-structural-exclusion/
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universalismo normativo – afirma: “os homens nascem e são livres e iguais em direitos”, uma
reivindicação reproduzida no artigo inaugural da Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948. Igualdade e liberdade são declaradas estatutos naturais que independem de
governos, de época e de questões locais. Entretanto, a Declaração é categoricamente
elucidativa sobre a fonte real dos direitos universais. Em seu Artigo 2º: “A finalidade de toda
associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem (...)”,
prossegue por definir esta associação no artigo 3º: “O princípio de toda a soberania reside,
essencialmente, na nação”.
Os direitos “naturais” e eternos são declarados em nome do “homem” universal. No
entanto, esses direitos não preexistem, mas são criados pela Declaração. Um novo tipo de
associação política, a nação soberana e o estado, bem como um novo tipo de "homem", o
cidadão nacional, nasceram e se tornaram beneficiários dos direitos. Assim, de maneira
paradoxal a declaração de princípio universal estabelece a soberania local. A partir desse
ponto, a estatalidade e seu território seguem o princípio nacional e pertencem a um tempo
dual. Se a declaração inaugurou a modernidade, também deu início ao nacionalismo e suas
consequências: genocídios, guerras civis, limpeza étnica, minorias, refugiados e apátridas. O
princípio espacial é evidente: todo estado e território deveriam ter sua nação única e
dominante e cada nação ter o seu próprio estado – um catastrófico desenrolar para a paz,
como mostrou sua aplicação extrema desde 1989.
O novo princípio temporal substituiu a escatologia religiosa por uma teleologia
histórica, que promete o futuro pela sutura da humanidade e da nação. Esta teleologia tem
duas variantes possíveis: ou a nação impõe seu domínio sobre a humanidade ou o
universalismo sobrepõe-se às divisões e identidades paroquiais. Ambas as variantes se
fizeram evidentes quando os romanos transformaram o cosmopolitismo estoico na
regulamentação legal e imperial do jus gentium. Na França, a primeira alternativa apareceu
na guerra napoleônica, que, supostamente, teria espalhado a influência civilizadora através da
conquista e da ocupação (de acordo com Hegel, Napoleão representava o espírito do mundo
nas costas de um cavalo); enquanto a segunda fora o início de um cosmopolitismo moderno,
no qual a escravidão foi abolida e foram reconhecidos direitos políticos aos colonizados por
um limitado período após a Revolução. Da deformação imperial do cosmopolitismo estoico
ao uso atual dos direitos humanos para legitimar a hegemonia global ocidental, cada
universalismo normativo decaiu em imperialismo global. A divisão entre humanidade
normativa e empírica resiste à cura, precisamente porque a normatividade universal tem sido
invariavelmente definida por uma parte da humanidade.

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A humanidade universal das constituições liberais foi a fundamentação normativa


para divisão e exclusão. Abriu-se a lacuna entre o "homem" universal, o princípio ontológico
da modernidade, e o cidadão nacional, com sua instanciação política e real beneficiário dos
direitos. O Estado-nação veio à existência pela exclusão de outros povos e nações. O sujeito
moderno atinge sua humanidade ao adquirir direitos políticos de cidadania, que garantem sua
admissão à natureza humana universal ao excluir desse status os outros. O estrangeiro como
um não cidadão é o bárbaro moderno. Ele não tem direitos por não fazer parte do estado e é
um ser humano inferior por não ser cidadão. Alguém é considerado homem em maior ou
menor grau porque é cidadão em maior ou menor grau. O estrangeiro é a lacuna entre o
homem e o cidadão.
Em nosso mundo globalizado, não ter a cidadania, ser apátrida ou refugiado, é o pior
destino. Estritamente falando, os direitos humanos não existem: se eles são dados às pessoas
em virtude de sua humanidade e não por serem membros de algum grupo, então os
refugiados, os imigrantes sans papier e os prisioneiros da Baía de Guantánamo e de outros
centros de detenção têm pouca ou nenhuma proteção legal, porém deveriam ser seus
principais beneficiários. Eles têm poucos, se é que possuem algum, direitos, são legalmente
abandonados, os “vida nua”, os homines sacri da nova ordem mundial.
A mudança paradigmática sobre o tema foi conduzida e exemplificada pela
personalidade jurídica. Como espécime, o "homem" dos direitos do homem aparece sem
gênero, cor, história ou tradição. Ele não tem necessidades ou desejos, é um vaso vazio unido
com todos os outros por meio de três traços abstratos: o livre-arbítrio, a razão e a alma (agora,
a mente) – os elementos universais da essência humana. Este mínimo de humanidade permite
que o "homem" reivindique autonomia, responsabilidade moral e subjetividade legal. Ao
mesmo tempo, o homem empírico que efetivamente goza dos “direitos do homem” é um
homem demasiadamente homem: abastado, heterossexual, branco, homem urbano, que
condensa na sua pessoa a dignidade em abstrato da humanidade e as prerrogativas reais de
pertencer à comunidade dos poderosos. A segunda exclusão, portanto, condiciona o
humanismo, a humanidade e seus direitos. A humanidade exclui os homens impróprios, isto
é, os homens de nenhuma propriedade ou decoro, os seres humanos sem rima e razão,
mulheres e minorias raciais, sexuais e étnicas. Os direitos constroem seres humanos
contrariamente a uma variável desumanidade ou antropologia. De fato, essas "condições

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desumanas da humanidade", como Pheng Cheah as chamou, funcionam como pré-condições


quase transcendentais da vida moderna2.
A história contemporânea dos direitos humanos pode ser vista como a luta contínua e
sempre falível para fechar a lacuna entre o homem abstrato e o cidadão concreto; ou seja,
adicionar carne, sangue e sexo ao contorno pálido do "humano" e estender as dignidades e
privilégios dos poderosos (as características da humanidade normativa) para a humanidade
empírica. Isso não aconteceu, todavia, e é improvável que seja alcançado pela ação de
direitos.

2
Pheng Cheah, Inhuman Conditions (Cambridge Mass: Harvard University Press, 2006), Chapter 7.

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Sete teses sobre Direitos Humanos: (3) Capitalismo neoliberal e imperialismo


voluntário1

Tese 3: A ordem pós-1989 combina um sistema econômico que produz enormes


desigualdades estruturais e opressão com ideologia jurídico-política promissora de dignidade
e igualdade. Esta grave instabilidade contribui para seu desaparecimento.

Por que razão e como essa combinação de capitalismo neoliberal e humanitarismo


surge? O capitalismo sempre moralizou a economia e tentou conferir um brilho de justiça aos
impulsos lucrativos e concorrência desregulada, precisamente porque é tão difícil de
acreditar. Da "mão invisível" de Adam Smith à assertiva de que o egoísmo desenfreado
promove o bem comum, ou que efeitos benéficos ocorrerão caso os ricos tenham ainda
maiores reduções de impostos, o capitalismo tem consistentemente tentado reivindicar o
mais alto patamar moral2.
De forma semelhante, os direitos humanos e sua disseminação não são simplesmente
o resultado da disposição liberal ou caridade do Ocidente. O significado predominantemente
negativo de liberdade como a ausência de restrições externas – um eufemismo para manter a
regulação estatal da economia no mínimo – tem dominado a concepção ocidental de direitos

1
Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado na página da “Critical Legal Thinking”
no dia 23 de maio de 2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/05/23/seven-theses-on-human-
rights-3-neoliberal-capitalism-voluntary-imperialism/
2
Jean-Claude Michéa, The Realm of Lesser Evil trans. David Fernbach (Cambridge and Malden: Polity Press,
2009), Chapter 3
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humanos e os transformou no companheiro perfeito do neoliberalismo. A moral global e


regras cívicas são os companheiros necessários da globalização da produção econômica e do
consumo, ainda, da conclusão do capitalismo mundial que segue dogmas neoliberais. Ao
longo dos últimos 30 anos, temos testemunhado, sem muito comentário, a criação de normas
legais globais que regulam a economia capitalista mundial, incluindo regras sobre
investimento, comércio, ajuda financeira e propriedade intelectual. Robert Cooper chamou
este cenário de imperialismo voluntário de economia global: "É operado por um consórcio
internacional de instituições financeiras como o FMI e o Banco Mundial ... Essas instituições
... fazem exigências, que enfatizam cada vez mais a boa governança. Os estados que desejam
se beneficiar devem se abrir a interferência de organizações internacionais e países
estrangeiros. Cooper conclui: “o que é necessário, então, é um novo tipo de imperialismo,
um aceitável para um mundo de direitos humanos e valores cosmopolitas”3.
A promessa (implícita) para o mundo em desenvolvimento é de que a adoção violenta
ou voluntária orientada para o mercado, o modelo neoliberal de boa governança e os direitos
limitados irá inexoravelmente levar a padrões econômicos ocidentais. Isto é fraudulento.
Historicamente, a capacidade do Ocidente de transformar a proteção dos direitos formais em
garantia limitada de direitos materiais, econômicos e sociais, foi parcialmente baseada em
enormes transferências das colônias para a metrópole. Enquanto a moralidade universal
milita a favor de fluxo inverso, as políticas ocidentais de ajuda ao desenvolvimento e a
dívida do Terceiro Mundo indicam que isto não é politicamente viável. De fato, as sucessivas
crises e rearranjos do capitalismo neoliberal levaram à expropriação e deslocamento da
agricultura familiar pelo agronegócio, à migração forçada e urbanização. Estes processos
expandiram o número de pessoas sem habilidades, status ou condições básicas para
manutenção de sua existência. Passam a ser os detritos humanos, a vida de resíduos, os
bilhões de baixo. Esta atitude neocolonial tem se estendido da periferia para o núcleo
europeu. Grécia, Portugal, Irlanda e Espanha foram submetidos aos rigores do neoliberal
"Consenso de Washington" de austeridade e destruição do Estado de bem-estar, apesar de
seu fracasso no mundo em desenvolvimento. Mais da metade dos jovens da Espanha e da
Grécia estão permanentemente desempregados e toda uma geração está sendo destruída. Mas
este “gene-cídio”, para cunhar um termo, não gerou uma campanha por direitos humanos.
Como Immanuel Wallerstein coloca, “se todos os seres humanos têm direitos iguais,
e todos os povos têm direitos iguais, então não podemos manter o tipo de sistema desigual

3
Robert Cooper, “The New Liberal Imperialism,” The Observer (April 1 2002), 3.

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que a economia mundial capitalista sempre foi e sempre será”4. Quando a intransponibilidade
do fosso entre as declarações missionárias sobre a igualdade e dignidade e a realidade
sombria da desigualdade obscena se tornam aparentes, os direitos humanos levarão a novos e
incontroláveis tipos de tensão e conflitos. Soldados espanhóis, quando do encontro dos
exércitos de Napoleão, gritaram "Abaixo a liberdade!" Hoje em dia as pessoas se deparam
com as “forças de paz” da nova ordem mundial com gritos de “Abaixo aos direitos
humanos!”.
Os sistemas sociais e políticos se tornaram hegemônicos ao transformar suas
prioridades ideológicas em princípios e valores universais. Na nova ordem mundial, os
direitos humanos são o candidato perfeito para este papel. Seus princípios fundamentais,
interpretados negativamente e economicamente, permitem a penetração capitalista
neoliberal. Sob uma construção diferente, suas disposições abstratas poderiam sujeitar as
desigualdades e indignidades do capitalismo tardio a ataque fulminante. Mas isso não pode
acontecer enquanto forem utilizados pelos poderes dominantes para espalhar os "valores" de
uma ideologia baseada no niilismo e na insaciabilidade do desejo.
Apesar das diferenças de conteúdo, o colonialismo e o movimento dos direitos
humanos formam um contínuo, são episódios do mesmo drama, que começou com as
grandes descobertas do novo mundo e agora é realizado nas ruas do Iraque e do Afeganistão:
levar a civilização aos bárbaros. O clamor por espalhar Razão e Cristianismo deu aos
impérios ocidentais seu senso de superioridade e ímpeto por universalização. O impulso
ainda está aqui; as ideias foram redefinidas, mas a crença na universalidade da nossa visão de
mundo continua tão forte como a dos colonizadores. Há pouca diferença entre impor a razão
e a boa governança e converter para o cristianismo e direitos humanos. Ambos fazem parte
do pacote cultural do Ocidente, agressivo e redentor ao mesmo tempo.

4
Immanuel Wallerstein, “The Insurmountable Contradictions of Liberalism” Southern Atlantic
Quarterly (1995), 176–7.

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Sete teses sobre Direitos Humanos: (4) Universalismo e Comunitarismo são


interdependentes1

Tese 4: Universalismo e comunitarismo, ao invés de serem adversários, são dois tipos de


humanismo dependentes um do outro. Ambos são confrontados pela ontologia da igualdade
singular.

O debate sobre o significado de humanidade como fonte normativa é realizado entre


universalistas e comunitaristas. O universalista afirma que os valores culturais e normas
morais devem passar por um teste de aplicabilidade universal e consistência lógica e muitas
vezes conclui que, se há uma verdade moral e muitos erros, cabe a seus agentes impô-la aos
outros.
Os comunitaristas partem da observação óbvia de que os valores são vinculados ao
contexto e tentam impor esses valores àqueles que não concordam com a opressão da
tradição. Ambos os princípios, quando se tornam essências absolutas e definem o significado
e valor da humanidade sem deixar vestígios, podem achar dispensável tudo o que resiste a
eles.
Kosovo é um bom exemplo. Os sérvios orgulhosos mataram e promoveram a
“limpeza” étnica dos albaneses, a fim de proteger a integridade do "berço" de sua nação

1
Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado na página da “Critical Legal Thinking”
no dia 30 de maio de 2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/05/30/seven-theses-on-human-
rights-4-universalism-communitarianism-are-interdependent/
Revista Lugar Comum n.º 48 – 2016.2

(curiosamente, como a maioria dos nacionalismos selvagens, celebrando uma derrota


histórica). Os bombardeios da OTAN mataram pessoas – a 35.000 pés de altura – em
Belgrado e Kosovo, a fim de defender os direitos de humanidade. Ambas as posições
exemplificam, talvez de maneiras diferentes, o impulso metafísico contemporâneo: eles
tomaram uma decisão axiomática sobre o que constitui a essência da humanidade e seguem-
na em desrespeito teimoso às alternativas. Eles são as expressões contemporâneas de um
humanismo que define a “essência” da humanidade por todo o caminho até o seu fim, como
telos e final. Parafraseando Emmanuel Levinas, para salvar o ser humano devemos derrotar
esse tipo de humanismo.
O individualismo dos princípios universais esquece de que cada pessoa é um mundo e
vem à existência em comum com os outros, que estamos todos em comunidade. Todo ser
humano é um ser singular, único em sua existência como uma concatenação irrepetível de
encontros passados, desejos e sonhos com projeções futuras, expectativas e planos. Cada
pessoa forma um cosmo fenomenológico de significado e intencionalidade, considerado nas
relações de desejo e reconhecimento com os outros. Ser em comum é uma parte integrante do
ser: o self é exposto ao outro, é levado à exterioridade, o outro é parte da intimidade de si
mesmo. Meu rosto está "sempre exposto aos outros, sempre virado em direção a um outro e
por ele ou ela encarado, nunca encarando a mim mesmo”2.
De fato, ser em comunidade com os outros é o oposto de ser em comum ou de
pertencer a uma comunidade essencial. Comunitaristas, por outro lado, definem comunidade
pela comunhão da tradição, história e cultura, as várias cristalizações passadas cujo peso
inescapável determina possibilidades no presente. A essência da comunidade comunitária é
muitas vezes compelir ou permitir que as pessoas encontrem sua "essência", a "humanidade"
comum, agora definida como o espírito da nação, do povo ou do líder. Temos de seguir os
valores tradicionais e excluir o que é estranho, o outro. A comunidade como comunhão aceita
os direitos humanos apenas na medida em que ajudam a submergir o “Eu” ao “Nós”, todo o
caminho até à morte, o ponto da "comunhão absoluta" com a tradição morta3.
Ambas, moralidade universal e identidade cultural expressam diferentes aspectos da
experiência humana. A sua comparação em abstrato é fútil e suas diferenças não são
pronunciadas. Quando um estado adota direitos humanos universais, irá interpretá-los e
aplicá-los, quando muito, de acordo com os procedimentos legais e princípios morais locais,
tornando o universal servo do particular. O inverso também é verdadeiro: mesmo aqueles

2
Jean-Luc Nancy, The Inoperative Community (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1991), xxxviii.
3
Ibid.

101
Revista Lugar Comum n.º 48 – 2016.2

sistemas legais que prezam pelos direitos e práticas culturais tradicionais contra a invasão do
universal, já estão por ele contaminados. Todos os direitos e princípios, mesmo que
paroquiais em seu conteúdo, compartilham do ímpeto universalizante de sua forma. Nesse
sentido, direitos carregam a semente da dissolução da comunidade e a única defesa é resistir à
ideia de direitos como um todo, algo impossível para o neoliberalismo global. As
reivindicações de universalidade e tradição, ao invés de estarem em combate mortal,
tornaram-se aliados inquietos, cujo elo frágil foi sancionado pelo Banco Mundial.
De nossa perspectiva, a humanidade não pode agir como um princípio normativo. A
humanidade não é uma propriedade compartilhada. Ela é discernível na incessante surpresa
da condição humana e sua exposição a um futuro aberto e não decidido. Sua função não se
encontra em uma essência filosófica, mas na sua não-essência, no processo interminável de
re-definição e na necessária porém impossível tentativa de escapar a uma determinação
externa. A humanidade não tem fundação e nem fim; ela é a definição de sem fundamento.

102
Sete teses sobre direitos humanos: parte 2

Costas Douzinas1

Tradutores
Daniel Carneiro Leão Romaguera2, Antonio Henrique Pires dos Santos3Fernanda Frizzo
Bragato4 e Manoel Carlos Uchôa de Oliveira5

Nesta edição, será publicada a tradução das últimas três teses sobre Direitos
Humanos de autoria de Costas Douzinas, denominou-se de “Parte 2” a reunião dos
textos: “ (5) Despolitização”; “ (6) Desejo”; “ (7) Cosmopolitismo, igualdade &
resistências”. As “Seven Theses on Human Rights” foram publicadas originalmente no
site da Critical Legal Thinking. No presente escrito, os textos traduzidos estão dispostos
integralmente em sequência, no intuito de preservar o formato de publicação original.
Quanto as quatro primeiras teses, estão publicadas na edição de nº 48, 2016.2, da
Revista Lugar Comum.

1
Costas Douzinas é professor de direito e diretor do Instituto de Humanidades de Birkbeck, na
Universidade de Londres. Também é professor visitante nas Universidades de Atenas, Paris, Tessalônica e
Praga. Traduzido ao português, tem publicado O fim dos direitos humanos (Unisinos: 2009).
2
Doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-RIO e Mestre em Jurisdição e
Direitos Humanos pela UNICAP/PE, membro dos Grupos de Pesquisa Jurisdição Constitucional,
Democracia e Constitucionalização de Direitos, Pós-colonialidade e Integração Latino-Americana e
Teoria Crítica do Direito. E-mail: danielromaguera@hotmail.com.
3
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Mestrando em Ciência Política
pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Bolsista FACEPE. E-mail: antonio.hps26@gmail.com.
4
Mestre e Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, com período de estágio
doutoral na
University of London (Birkbeck College) (2009) e pós-doutorado na University of London (School of
Law - Birkbeck College) (2012). Atualmente é professora do Programa de pós-graduação e graduação em
Direito da Unisinos e Coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos.
5
Doutorando no PPGCJ-UFPB. Professor Assistente I na Unicap. E-mail: manoel.cuo@gmail.com.
Sete Teses sobre Direitos Humanos: (5) despolitização 1

Tese 5: Nas sociedades capitalistas avançadas, os direitos humanos despolitizam a


política.

Os direitos formam o terreno em que as pessoas são distribuídas entre


governantes, governados e excluídos. O modo de operação do poder é revelado se
observarmos quais pessoas são agraciadas ou privadas de quais direitos em qual lugar
específico e momento. Nesse sentido, os direitos humanos escondem e afirmam a
estrutura dominante de um período tanto quanto ajudam a combatê-la. Marx foi o
primeiro a perceber a natureza paradoxal dos direitos. Os direitos naturais surgiram
como um símbolo de emancipação universal, mas foram ao mesmo tempo uma arma
poderosa nas mãos da classe capitalista em ascensão, assegurando e naturalizando as
emergentes relações dominantes econômicas e sociais. Eles foram usados para retirar do
desafio político as instituições centrais do capitalismo, como a religião, a propriedade,
1
Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado na página da “Critical Legal
Thinking” no dia 31 de maio de 2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/05/31/seven-
theses-on-human-rights-5-depoliticization/
as relações contratuais e a família, proporcionando assim a melhor proteção possível. As
ideologias, os interesses privados e as preocupações egoístas aparentam ser naturais,
normais e vocacionadas ao bem público quando encobertos pelo vocabulário dos
direitos. Como disse Marx, de forma inigualável, “liberdade, igualdade, propriedade e
Bentham”2.
Os direitos humanos inicialmente foram vitórias históricas de grupos e
indivíduos contra o poder do Estado, mas ao mesmo tempo promoveram um novo tipo
de dominação. Como Giorgio Agamben argumenta, eles “simultaneamente prepararam
uma inscrição tácita, mas crescente, da vida dos indivíduos dentro da ordem estatal,
oferecendo assim uma base nova e mais terrível para o mesmo poder soberano do qual
eles queriam se libertar”3. No capitalismo tardio, com seu regulamento biopolítico
proliferante, a multiplicação sem fim de direitos paradoxalmente aumentou o poder
investido nos corpos.
Se os direitos naturais clássicos protegiam a propriedade e a religião tornando-as
"apolíticas", o principal efeito dos direitos hoje é despolitizar a própria política.
Permitam-me introduzir uma distinção fundamental na filosofia política recente entre a
política (la politique) e o político (le politique). De acordo com Chantal Mouffe, a
política é o terreno da vida política rotineira, da atividade de debater, dos lobbys e das
negociatas que são realizadas ao redor de Westminster e Capitol Hill4. O “político”, por
outro lado, refere-se à forma pela qual o laço social é instituído e concerne às fendas
profundas da sociedade. O político é a expressão e articulação da irredutibilidade do
conflito social. A política organiza as práticas e instituições pelas quais a ordem é
criada, normalizando a co-existência social no contexto do conflito fornecido pelo
político.
Esse antagonismo profundo é o resultado da tensão em meio ao corpo social
estruturado, onde cada grupo tem seu papel, sua função e seu lugar, e o que Jacques
Rancière chamou de "a parte de nenhuma parte”. Os grupos que foram radicalmente
excluídos da ordem social; eles são invisíveis, estão fora do senso estabelecido do que
existe e é aceitável. A política própria irrompe somente quando uma parte excluída
demanda ser incluída e devem mudar as regras de inclusão para se alcançar isso.
Quando possuem sucesso, um novo sujeito político é constituído, em excesso ao grupo

2
Karl Marx, Capital, Volume One (Harmondsworth: Penguin, 1976), 280
3
Giorgio Agamben, Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life (Stanford University Press, 1998), 121.
4
Chantal Mouffe, On the Political (London: Routledge, 2005), 8–9.
de grupos hierarquizado e visível, e uma divisão é colocada no senso comum pré-
existente5.
Qual é o papel dos direitos humanos nessa divisão entre a política e o político? A
demanda de direitos reforça mais do que desafia os arranjos estabelecidos. O requerente
aceita o poder estabelecido e as ordens de distribuição e transforma sua reivindicação
política em uma demanda de admissão à lei. O papel da lei é transformar as tensões
sociais e políticas em um conjunto de problemas solucionáveis regulados pelas leis e
entregá-los aos especialistas da lei. O requerente de direitos é o oposto do
revolucionário das primeiras declarações, cuja tarefa era mudar o arranjo geral da lei.
Nessa medida, suas ações abandonam o compromisso inicial de direitos, de resistir e de
se opor à opressão e à dominação. Os sujeitos “excessivos”, que representam o
universal de uma posição de exclusão, foram substituídos por grupos sociais e
identidades em busca de reconhecimento e redistribuição limitada.
Na nova ordem mundial, as reivindicações de direitos dos excluídos são
enclausuradas por meios políticos, jurídicos e militares. Migrantes econômicos,
refugiados, prisioneiros da guerra ao terror, os sans papiers, habitantes de
acampamentos africanos, esses “humanos de um só uso" são a precondição
indispensável aos direitos humanos, mas, ao mesmo tempo, são as provas vivas, ou
melhor, mortas, de sua impossibilidade. As lutas bem-sucedidas de direitos humanos
sem dúvida melhoraram a vida das pessoas pelos rearranjos marginais das hierarquias
sociais e redistribuições não ameaçadoras do produto social. Mas seu efeito despolitiza
o conflito e remove a possibilidade de mudança radical.
Podemos concluir que as demandas de direitos humanos e suas lutas trazem à
superfície a exclusão, a dominação e a exploração, e também a inescapável contenda
que permeia a vida social e política. Mas, ao mesmo tempo, escondem as raízes
profundas da contenda e da dominação ao enquadrar a luta e a resistência em termos de
remédios legais e individuais, que, se bem-sucedidos, levam a pequenas melhorias
individuais e ao rearranjo marginal do edifício social.
Podem os direitos humanos reativar uma política de resistência? A ligação
intrínseca entre direitos naturais, transcendência (religiosa) e radicalismo político abriu

5
Jacques Rancière, Disagreement. trans. Julie Rose (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1998);
“Who is the Subject of the Rights of Man?” in “And Justice for All?” Ian Balfour and Eduardo Cadava,
special issue, eds., South Atlantic Quarterly, 103, no. 2–3 (2004), 297.
essa possibilidade. Ela ainda está ativa em partes do mundo não integralmente
incorporadas pelas operações biopolíticas de poder. Mas é só isso. A metafísica de nossa
época é a desconstrução da essência e do significado, o fechamento da divisão entre o
ideal e o real, a sujeição do universal ao particular dominante. A globalização
econômica e o monolinguismo semiótico estão realizando essa tarefa na prática; seus
intelectuais apologistas o fazem na teoria. O dever político e moral da crítica é manter
aberta a fenda e descobrir e lutar pela transcendência na imanência.
Sete Teses sobre Direitos Humanos: (6) Desejo 1

Tese 6: Nas sociedades capitalistas avançadas, os direitos humanos funcionam como


estratégias para a publicização e legalização do (insaciável) desejo individual.

As teorias liberais, de Immanuel Kant a John Rawls, apresentam o self como


uma entidade solitária e racional, dotado de características e direitos naturais e com o
controle total de si mesmo. Os direitos à vida, à liberdade e à propriedade são
apresentados como parte integrante do bem-estar da humanidade. O contrato social (ou
sua atualização heurística pela "posição originária") cria sociedade e governo, mas

1
Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado na página da “Critical Legal
Thinking” no dia 03 de junho de 2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/06/03/seven-
theses-on-human-rights-6-desire/
preserva esses direitos e os torna obrigatórios para o governo. Os direitos e os atuais
direitos humanos são pré-sociais, pertencem aos seres humanos precisamente porque
são seres humanos. Nós usamos esse patrimônio natural como ferramentas ou
instrumentos para enfrentar o mundo exterior, para defender os nossos interesses e
perseguir nossos planos de vida.
Essa posição é fortemente contrastada pela dialética hegeliana e marxista,
hermenêutica e psicanálise. O self humano não é uma entidade estável e isolada que,
uma vez formada, vai para o mundo e age de acordo com motivos e intenções pré-
estabelecidos. O self é criado pelas interações constantes com outros, o sujeito é sempre
intersubjetivo. A minha identidade é construída em diálogo contínuo e luta por
reconhecimento, na qual os outros (tanto pessoas como instituições) reconhecem certas
características, atributos e feições como meus, ajudando a criar minha própria noção de
self. A identidade emerge dessa conversa e luta com os outros, que segue a dialética do
desejo. A lei é uma ferramenta e efeito dessa dialética; os direitos humanos reconhecem
o papel constitutivo do desejo.
A ideia básica de Hegel pode ser colocada de forma simples. O self é distinto e
também dependente do mundo externo. A dependência em relação ao não-Eu, tanto o
objeto quanto outra pessoa, faz com que o self perceba que ele não é completo, mas
carente e constantemente conduzido pelo desejo. A vida é uma luta contínua para
superar a estranheza da outra pessoa ou coisa. A sobrevivência depende de ultrapassar
essa divisão radical do não-Eu, mantendo a sensação de unicidade do self2.
A identidade, portanto, é dinâmica, sempre em movimento. Estou em diálogo
contínuo com os outros, numa conversa que modifica os outros e redesenha minha
própria autoimagem. Os direitos humanos não pertencem aos seres humanos e não
seguem os ditames da humanidade; eles constroem os seres humanos. Um ser humano é
alguém que pode reivindicar com êxito direitos humanos e o grupo de direitos que
determina o quão "humano" nós somos; nossa identidade depende da quantidade de
direitos que podemos mobilizar com sucesso nas relações com os outros. Se este for o
caso, os direitos devem estar vinculados a funções e necessidades psicológicas
profundas. Do alto da dialética hegeliana, passemos ao muito mais obscuro território da
psicanálise freudiana.

2
Costas Douzinas, “Identity, Recognition, Rights or What Can Hegel Teach Us About Human
Rights?” Journal of Law and Society 29 (2002), 379–405.
Jus institutare vitam, a lei constitui a vida, diz uma máxima romana. Para a
psicanálise isso permanece verdade. Nós nos tornamos independentes e sujeitos falantes
quando inseridos na ordem simbólica da linguagem e da lei. Mas esta primeira
"castração simbólica" deve ser suplementada por uma segunda que nos faz sujeitos
legais. Ela nos introduz no contrato social, deixando para trás a vida familiar de
proteção, amor e cuidado. A ordem simbólica nos impõe as exigências da vida social.
Deus, Rei ou o Soberano atuam como pais universais, representando um poder social
onipotente e unitário que nos coloca na divisão social do trabalho. Se, de acordo com
Jacques Lacan, o nome do pai nos faz sujeitos falantes, o nome do Soberano nos
transforma em sujeitos legais e cidadãos.
Esta segunda entrada na lei denega, como a castração simbólica, a totalidade
percebida de intimidade familiar e a substitui por reconhecimentos parciais e direitos
incompletos. Os direitos, por sua natureza, não podem atingir a totalidade da pessoa. Na
lei, uma pessoa nunca é um ser completo, mas uma persona, ritual ou máscara teatral,
que esconde seu rosto sob uma combinação de direitos parciais. O sujeito legal é uma
combinação de direitos e deveres sobrepostos e conflitantes; eles são a bênção e a
maldição da lei. Os direitos são manifestações de desejo individual, assim como
ferramentas de integração social. Seguindo a divisão lacaniana padrão, os direitos têm
aspectos “simbólicos”, “imaginários” e “reais”. A função simbólica nos coloca na
divisão social do trabalho, na hierarquia e na exclusão, o imaginário nos dá uma (falsa)
sensação de totalidade e o real rompe os prazeres do simbólico e as falsificações do
imaginário. A Psicanálise oferece a explicação mais avançada sobre o constitutivo e
contraditório trabalho dos direitos.
A função simbólica dos direitos esculpe a personalidade jurídica e traz as
pessoas para a independência, longe da intimidade da família. Leis e direitos constroem
uma estrutura formal que nos dá um lugar em uma matriz de relações estritamente
indiferentes às necessidades ou desejos das pessoas de carne e sangue. Os direitos legais
oferecem o reconhecimento mínimo de humanidade abstrata, de equivalência formal e
de responsabilidade moral, independentemente das características individuais. Ao
mesmo tempo, colocam as pessoas em uma grade de papéis e funções distintas e
hierarquizadas, proibições, direitos e exclusões. Os direitos sociais e econômicos
adicionaram uma camada de diferença à semelhança abstrata; eles reconhecem gênero,
raça, religião e sexualidade, em parte movendo o reconhecimento da igualdade abstrata
da humanidade para as diferentes qualidades, características e predicações. Os direitos
humanos podem prometer a felicidade universal, mas sua existência empírica e
aplicação dependem de genealogias, de hierarquias de poder e de contingências que
alocam os recursos necessários ignorando expectativas e necessidades. O sujeito legal
que os direitos e deveres constroem se assemelha a uma caricatura do self humano real.
Sua face foi substituída por uma imagem de estilo cubista; o nariz sai da boca, os olhos
salientes nas laterais, testa e queixo estão invertidos. Projeta-se um objeto
tridimensional em uma tela plana.
A integridade do self negada pela ordem simbólica dos direitos retorna no
imaginário. Os direitos humanos prometem o fim do conflito, a paz social e o bem-estar
(a busca por felicidade foi uma promessa inicial da Declaração de Independência
americana). Uma sociedade de direitos oferece um lugar ideal, um palco e um
suplemento para o ego ideal. Como um homem de direitos, eu me vejo como alguém
com dignidade, respeito e respeito próprio, em paz com o mundo. Uma sociedade que
garanta direitos é um bom lugar, pacífica e próspera, uma ordem social feita para o
indivíduo que está em seu centro. Um sistema legal que protege os direitos é
racionalmente coerente e fechado (Ronald Dworkin chama de "rede sem costura"),
moralmente bom (ele tem princípios e as consequentes respostas "certas" para todos os
problemas “difíceis”) e pragmaticamente eficiente.
O domínio imaginário dos direitos cria um vínculo imediato,
visualizado/pintado/visto como uma imagem e imaginado entre o sujeito, o seu ego
ideal e o mundo. Os direitos humanos projetam uma fantasia de completude, que une
corpo e alma em um self integrado. É um self belo que se encaixa em um mundo bom,
uma sociedade feita para o sujeito. A completude antecipada, a integridade futura
projetada que sustenta a atual identidade é no entanto inexistente e impossível, e, além
disso, difere de pessoa para pessoa e de comunidade para comunidade. Nossa
identificação imaginária com uma boa sociedade aceita muito facilmente que a
linguagem, os signos e as imagens dos direitos humanos são (ou podem tornar-se) a
nossa realidade. As pessoas afirmam que o direito ao trabalho existe uma vez que está
escrito na Declaração Universal, nos Pactos Internacionais, na Constituição, na lei e nos
pronunciamentos de políticos. Bilhões de pessoas não têm comida, emprego, educação,
ou atendimento a saúde – mas esse fato brutal não enfraquece a afirmação do ideal. A
substituição necessária da materialidade por sinais, das necessidades e desejos por
palavras e imagens faz com que as pessoas acreditem que a mera existência de textos e
instituições legais, com pouco desempenho ou ação, afeta e completa seus corpos.
O imaginário promovido pelos entusiastas dos direitos humanos apresenta um
mundo feito para minha proteção, em que a lei encontra (ou deve e vai atender) meus
desejos. Essa identificação feliz com o sistema social e jurídico é baseada em um falso
reconhecimento. O mundo é indiferente ao meu ser, a minha felicidade ou as minhas
angústias. A lei não é coerente ou justa. A moralidade não é o negócio da lei e a paz é
sempre temporária e precária, nunca perpétua. O estado de eu zein ou bem-estar, o ponto
final dos direitos humanos, é sempre diferido, sua promessa postergada e seu
desempenho impossível. Para as classes médias, sem dúvidas, os direitos humanos são
direitos de nascimento e patrimônio. Para os desafortunados do mundo, por outro lado,
são apenas vagas promessas, suportes falsos para oferecer obediência, com sua entrega
permanentemente frustrada. Como o céu do cristianismo, os direitos humanos
constituem um horizonte recuado que permite que as pessoas suportem humilhações e
subjugações diárias.
O imaginário dos direitos está substituindo gradualmente a justiça social. As
lutas pela descolonização, os movimentos de direitos civis e contracultura lutaram por
uma sociedade ideal baseada na justiça e igualdade. Na era dos direitos humanos, a
busca pelo bem-estar material coletivo deu lugar à gratificação individual e à
necessidade de evitar o mal. O imaginário dos direitos vai à exaustão quando transforma
imagens em “realidade”, quando cláusulas legais e termos substituem comida e abrigo,
quando as palavras de doninhas se tornam a feição e a garra do poder. Os direitos
enfatizam o indivíduo, a sua autonomia e o seu lugar no mundo. Como todas as
identificações imaginárias, eles reprimem o reconhecimento de que o sujeito é
intersubjetivo e de que a ordem econômica e social é estritamente indiferente ao destino
de qualquer indivíduo em particular. De acordo com Louis Althusser, a ideologia não é
"falsa consciência", mas é feita de formas de vida, de práticas e de experiências que
reconhecem erroneamente o nosso lugar no mundo. É “a relação imaginária dos
indivíduos com suas condições reais de existência”. Nesse sentido, os direitos humanos
são ideologia em seu ponto mais forte, mas muito diferente daquela de Michael
Ignatieff3.
Finalmente, a operação simbólica e imaginária dos direitos encontra seu limite
no real. Nós circulamos em torno do vórtice do real: a falta no núcleo da subjetividade
tanto faz com que os nossos projetos falhem como cria o impulso para continuar o

3
Michael Ignatieff, Human Rights as Politics and Ideology(Princeton and Oxford: Princeton University
Press, 2001).
esforço. Quando fazemos uma demanda, não só pedimos para que o outro satisfaça uma
necessidade, mas também que nos ofereça amor sem reservas. Uma criança que pede
pelo seio da mãe precisa de comida, mas também pede atenção e amor da mãe. O desejo
é sempre o desejo do outro e significa precisamente o excesso de demanda sobre a
necessidade. Cada vez que a minha necessidade de um objeto entra na linguagem e
endereça ao outro, há a exigência por reconhecimento e amor. Contudo, essa demanda
por totalidade e reconhecimento irrestrito não pode ser satisfeita pelo grande Outro (a
linguagem, a lei, o Estado) ou por outra pessoa. O grande Outro é a causa e o símbolo
da falta. A outra pessoa não pode oferecer o que o sujeito não tem porque ela também
está em falta. Em nosso apelo para o outro, nós nos deparamos com a falta, uma falta
que não pode ser suprida nem totalmente simbolizada.
Os direitos nos permitem expressar nossas necessidades pela linguagem ao
formulá-las enquanto demandas. A reivindicação de direitos humanos envolve duas
demandas endereçadas ao outro: um pedido específico em relação a um aspecto da
personalidade ou do status do requerente (tal como ser deixado em paz, não sofrer
violação de sua integridade física e ser tratado de forma igualitária), mas, além disso,
uma demanda muito mais ampla de ter uma identidade completa reconhecida em suas
características específicas. Quando uma pessoa de cor alega, por exemplo, que a
rejeição de um pedido de emprego configura uma negação de seu direito humano a não
discriminação, ela faz duas afirmações relacionadas, mas relativamente independentes.
A rejeição é, simultaneamente, uma negação injusta da necessidade de emprego do
candidato e uma violação da sua identidade mais ampla. Cada direito, portanto,
relaciona a necessidade de uma parte do corpo ou da personalidade com o que excede a
necessidade, o desejo do reclamante ser reconhecido e amado como uma pessoa inteira
e completa.
O sujeito dos direitos tenta encontrar o objeto perdido que irá preencher a falta e
transformá-lo em um ser integralmente completo no desejo do outro. Mas esse objeto
não existe e nem pode ser possuído. Os direitos oferecem a esperança de que o sujeito e
a sociedade possam se tornar um todo: “Se apenas aos meus atributos e características
fosse conferido reconhecimento legal, eu seria feliz”; “Se ao menos as exigências de
dignidade humana e igualdade fossem plenamente aplicadas, a sociedade seria justa”.
Mas o desejo não pode ser preenchido. Os direitos se tornam um suplemento fantástico
que estimula, mas nunca sacia o desejo dos sujeitos. Os direitos sempre provocam mais
direitos. Eles levam a novas áreas de reclamações e reconhecimento que sucessivamente
se provam insuficientes.
Hoje os direitos humanos se tornaram a marca de civilidade, porém seu sucesso
é limitado. Nenhum direito pode me dar o pleno reconhecimento e o amor do outro.
Nenhuma declaração de direitos pode completar a luta por uma sociedade justa. De fato,
quanto mais direitos são introduzidos, maior a pressão para que se legisle mais, para que
os aplique melhor, para transformar a pessoa em um coletor infinito de direitos e a
humanidade em um mosaico interminavelmente proliferante de leis. A lei continua a
colonizar a vida e o mundo social, enquanto a espiral sem fim de mais direitos,
aquisições e posses alimenta a imaginação do sujeito e domina o mundo simbólico. Os
direitos se tornam a recompensa pela falta psicológica e impotência política. Direitos
plenamente positivados e os desejos legalizados extinguem o potencial de autocriação
dos direitos humanos. Passam a ser o sintoma de um desejo que tudo devora - sinal do
Soberano ou do indivíduo - e ao mesmo tempo a sua cura parcial. Em uma virada
estranha e paradoxal, quanto mais direito temos, mais inseguros nós nos sentimos.
Entretanto, há um direito que está intimamente ligado com o real de desejo
radical: o direito à resistência e à revolta. Este direito está perto da pulsão de morte, da
chamada reprimida de transcender as distribuições da ordem simbólica e os prazeres
gentis do imaginário, para algo mais próximo de nosso destrutivo e criativo núcleo
interior. Assumir riscos e não desistir de seus desejos é a chamada ética da psicanálise.
A resistência e a revolução são seus equivalentes sociais. Da mesma forma que o real
impossível e repudiado organiza a psique, o direito de resistência forma o vazio no
coração do sistema de direito, protegendo-o da esclerose e da ossificação4.
Nós podemos concluir que os direitos versam sobre reconhecimento (simbólico)
e distribuição (imaginária); exceto que há um direito à resistência/revolta.

4
Costas Douzinas, “Adikia: On Communism and Rights,” in The Idea of Communism Costas Douzinas
and Slavoj Žižek eds (London: Verso, 2010), 81–100. Also available on Critical Legal
Thinking: http://criticallegalthinking.com/2010/11/30/adikia-on-communism-and-rights/
Sete Teses sobre Direitos Humanos: (7) Cosmopolitismo, igualdade &
resistência 1

Tese 7: Por um cosmopolitismo por vir (ou a ideia de comunismo).

László Moholy-Nagy (1927)

Contra a arrogância imperial e a ingenuidade cosmopolita, devemos insistir que


o capitalismo neoliberal global e os direitos humanos para exportação fazem parte do
mesmo projeto. Os dois devem ser desacoplados; os direitos humanos podem contribuir
pouco para a luta contra a exploração capitalista e a dominação política. A sua
promoção pelos Estados ocidentais e humanitários os transforma em um paliativo: útil

1
Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado na página da “Critical Legal
Thinking” no dia 13 de junho de 2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/06/13/seven-
theses-on-human-rights-7-cosmopolitanism-equality-resistance/
para uma proteção limitada dos indivíduos, mas que pode enfraquecer a resistência
política. Os direitos humanos podem retomar o seu papel redentor nas mãos e
imaginação de quem os remete à tradição de resistência e de luta contra os pregadores
do moralismo, da humanidade sofredora e da filantropia humanitária.
A igualdade liberal como princípio regulador falhou em fechar a lacuna entre
ricos e pobres. Equidade deve se tornar um pressuposto axiomático: as pessoas são
livres e iguais; igualdade não é o efeito, mas a premissa da ação. Aquilo que denega esta
verdade simples gera um direito e dever de resistência. A equidade de direitos legais
constantemente apoiou a desigualdade; a igualdade axiomática (cada pessoa conta como
uma em todos os grupos relevantes) é a fronteira impossível da cultura de direitos. Isso
significa que a assistência à saúde é devida a todos que dela precisam,
independentemente dos meios; os direitos de residência e trabalho pertencem a todos
que se encontrem em qualquer parte do mundo, independentemente da nacionalidade; as
atividades políticas podem ser livremente realizadas por todos, independentemente da
cidadania e contra as proibições explícitas da lei de direitos humanos.
A combinação do direito à resistência e igualdade axiomática projeta uma
humanidade em oposição ao individualismo universal e ao fechamento comunitário. Na
era da globalização e da mundialização, sofremos de uma pobreza de mundo. Cada um
de nós é um cosmos, mas já não temos um mundo, apenas uma série de situações
desconexas. Cada um é um mundo: um nó de eventos passados e histórias, pessoas e
encontros, desejos e sonhos. Este é também o ponto de ekstasis, de se abrir e afastar,
imortais em nossa mortalidade, simbolicamente finita, mas com imaginação infinita. Os
capitalistas cosmopolitas prometem nos fazer cidadãos do mundo sob uma soberania
global e uma humanidade bem definida e terminal. Esta é a universalização da falta de
mundo, o imperialismo e o empirismo nos quais todo cosmopolitismo recai.
Contudo, não devemos desistir do impulso universalizante do imaginário, do
cosmos que arranca a polis, que perturba toda filiação e contesta toda soberania e
hegemonia. A resistência e a igualdade radical mapeiam o domínio imaginário dos
direitos que é estranhamente próximo da utopia. De acordo com Ernst Bloch, o presente
prenuncia um futuro que ainda não é, e que, acrescenta-se, nunca será possível. A
projeção futura de uma ordem em que o homem não é mais um “ser degradado,
escravizado, abandonado ou desprezado” liga as melhores tradições do passado a uma
poderosa "reminiscência do futuro"2. Isso perturba o conceito linear do tempo e, como a
psicanálise, imagina o presente na imagem de um belo futuro prefigurado, o qual, no
entanto, nunca virá a ser. Nesse sentido, o domínio imaginário é necessariamente
utópico e não-existente. No entanto, este não lugar ou este nada são a base da nossa
noção de identidade, da mesma forma que a utopia ajuda a criar uma noção de
identidade social. Nós redescobrimos na Tunísia e na Praça Tahrir, na Puerta del Sol de
Madri e na Praça Syntagma de Atenas o que vai além e contra o cosmopolitismo liberal,
o princípio do seu excesso. Esta é a promessa do cosmopolitismo por vir - ou a ideia de
comunismo3.
O cosmopolitismo por vir não é o terreno das nações, nem uma aliança de
classes, embora seja desenhado a partir do tesouro da solidariedade. A insatisfação com
a nação, com o Estado e com o inter-nacional vem de um vínculo entre singularidades, o
que não pode ser transformado em essência de humanidade, nação ou Estado. O cosmos
por vir é o mundo de cada um único, de qualquer um; a polis, o infinito encontro de
singularidades. O que me liga a um palestino, a um migrante sans papiers ou a um
jovem desempregado não é pertencer à humanidade, à nação, ao Estado ou à
comunidade, mas um vínculo que não pode ser contido nas interpretações dominantes
da humanidade, do cosmos, da polis ou do estado.
A lei, princípio da polis, prescreve o que constitui uma ordem razoável, ao
aceitar e validar algumas partes da vida coletiva, enquanto proíbe e exclui outras,
tornando-as invisíveis. A lei e os direitos são o elo da linguagem com as coisas ou seres;
nomeiam o que existe e condenam o resto à invisibilidade e à marginalidade. Enquanto
decisão formal e dominante sobre a existência, a lei carrega um enorme poder
ontológico. O desejo radical, por outro lado, é a saudade do que foi banido e declarado
impossível pela lei; o que confronta catástrofes passadas e incorpora a promessa de um
futuro.
O axioma da igualdade e o direito à resistência preparam sujeitos militantes na
luta permanente entre justiça e injustiça. Esse estar junto de singularidades em
resistência é construído aqui e agora, com amigos e estranhos, em atos de hospitalidade,
nas cidades de resistência, Cairo, Madri, Atenas.

3
Ernst Bloch, Natural Law and Human History trans. J.D. Schmidt (Cambridge Mass.: MIT Press, 1988),
xxviii.

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