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Tradução

Sete teses sobre os Direitos Humanos1


Seven theses on Human Rights

Costas Douzinas

Sete teses sobre direitos humanos: parte 1

Tese 1: A ideia de “humanidade” não tem significado fixo, nem pode agir como fonte
de regras morais ou legais. Historicamente, tal ideia foi utilizada para classificar as
pessoas em plenamente humanas, menos humanas e inumanas.

Se a “humanidade” é fonte normativa de regras As sociedades pré-modernas não desenvolveram


morais e legais, sabemos o que é “humanidade”? uma ideia abrangente da espécie humana. Os ho-
Importantes questões filosóficas e ontológicas es- mens livres eram atenienses ou espartanos, roma-
tão envolvidas aqui. Deixe-me dar uma breve olha- nos ou cartagineses, mas não membros da humani-
da em sua história. dade; eram gregos ou bárbaros, mas não humanos.

1
Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado na página da “Critical Legal Thinking” no dia 30 de maio de 2013: http://criticallegal-
thinking.com/2013/05/30/seven-theses-on-human-rights-4-universalism-communitarianism-are-interdependent/. Este escrito consiste na tradução das quatro
primeiras teses sobre Direitos Humanos de autoria de Costas Douzinas, denominou-se de “Parte 1” a reunião dos textos: “(1) A ideia de humanidade”; “(2) Poder,
moralidade e exclusão institucional”; “(3) Capitalismo neoliberal e imperialismo voluntário”; “(4) Universalismo e Comunitarismo são interdependentes”. Trad. de
Daniel Carneiro Leão Romaguera, Manoel Uchôa de Oliveira, e Antonio Henrique Pires dos Santos .
Costas Douzinas

De acordo com a filosofia clássica, a natureza hu- momento em que a primeira concepção propria-
mana determinada teleologicamente distribuía as mente universalista de humanitas emergiu na
pessoas em hierarquias e papéis e as dotava de teologia cristã, capturada na declaração de São
características diferenciadas. A palavra humanitas Paulo, de que não há grego ou judeu, homem
apareceu pela primeira vez na República Romana, ou mulher, homem livre ou escravo (Epístola aos
como a tradução da palavra grega paideia. Ela Gálatas 3:28). Todas as pessoas são igualmente
foi definida como eruditio et institutio in bonas parte da humanidade porque podem ser salvas
artes (o equivalente moderno mais próximo é o pelo plano de salvação de Deus, porque com-
“Bildung” alemão). Os romanos herdaram o con- partilham dos atributos de humanidade agora
ceito do estoicismo e usaram-no para distinguir acentuadamente diferenciados entre a divinda-
entre o homo humanus, o romano educado que de transcendental e a animalidade subumana.
estava familiarizado com a cultura e a filosofia Para o humanismo clássico, a razão determina
grega e estava submetido ao jus civile, e os ho- o humano: o homem é um zoon logon echon
mines barbari, que incluíam a maioria dos habi- ou animale rationale. Por outro lado, segundo
tantes não-romanos e não educados do Império. a metafísica cristã, a alma imortal, ao mesmo
A humanidade entra no léxico ocidental como um tempo carregada e enclausurada pelo corpo, é
atributo e predicado de homo, como um termo de a marca da humanidade. A nova ideia de igual-
separação e distinção. Para Cícero, também para dade universal, desconhecida para os gregos,
o mais jovem Scipio, humanitas implica genero- chegou ao mundo ocidental pela combinação
sidade, polidez, civilização e cultura, aquilo que se das metafísicas clássica e cristã.
opõe à barbárie e à animalidade.2 “Somente aque-
A ação divisória de “humanidade” sobreviveu
les que estão em conformidade com certos pa-
à invenção da sua igualdade espiritual. Papa,
drões são realmente homens em sentido pleno e
Imperador, Príncipe, Rei, representantes e discípu-
totalmente merecedores do adjetivo “humano” ou
los de Deus na terra foram governantes absolutos.
do atributo “humanidade”.3 Hannah Arendt coloca
E seus súditos, sub-jecti ou sub-diti, receberam a
de forma sarcástica: “um ser humano ou homo
lei e seus comandos dos seus superiores políti-
no sentido original da palavra indica alguém fora
cos. Mais importante, as pessoas seriam salvas
da abrangência do direito e do corpo político de
em Cristo apenas se aceitarem a fé, uma vez que
cidadãos, como por exemplo um escravo – mas
os não cristãos não têm lugar no plano providen-
certamente um ser politicamente irrelevante”.4
cial. Estas divisão e exclusão radicais fundaram
Se agora nos voltarmos para os usos políticos e a missão ecumênica e o proselitismo da Igreja e
jurídicos de humanitas, uma história semelhan- do Império. A Lei espiritual do amor de Cristo se
te emerge. O conceito “humanidade” tem sido transformou em um grito de guerra: vamos trazer
constantemente usado para separar, distribuir e os pagãos para a graça de Deus; vamos fazer o
classificar as pessoas em governantes, governa- evento singular de Cristo universal; vamos impor
dos e excluídos. “Humanidade” atua como uma a mensagem da verdade e do amor sobre o mun-
fonte normativa à política e ao direito, contra do inteiro. A separação clássica entre o grego (ou
um pano de fundo de desumanidade variável. humano) e o bárbaro foi baseada em fronteiras
Esta estratégia de separação política entrou territoriais e linguísticas claramente demarcadas.
curiosamente para o campo histórico no preciso No império cristão, a fronteira foi internalizada e

2
Hannah Arendt, On Revolution (New York: Viking Press, 1965), 107.
3
B.L. Ullman, “What are the Humanities?” Journal of Higher Education17/6 (1946), at 302.
4
H.C. Baldry, The Unity of Mankind in Greek Thought, (Cambridge: Cambridge University Press 1965), 201.

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Sete teses sobre os Direitos Humanos

dividiu o mundo conhecido diagonalmente entre definição inicial do humanismo, Las Casas afir-
fiéis e pagãos. Os bárbaros não eram mais aque- mou “todas as pessoas do mundo são humanos
les além da cidade, já que esta se expandiu para sob uma única definição para a totalidade dos
todo o mundo conhecido. Eles se tornaram os humanos e para cada um, qual seja, são racio-
“inimigos internos” a serem devidamente corrigi- nais... Assim, todas as raças da humanidade são
dos ou eliminados, caso teimosamente recusas- uma só”.6 Seus argumentos combinam teologia
sem a salvação espiritual ou secular. cristã e utilidade política. Respeitar os costumes
O significado de humanidade após a conquis- locais não é só boa moral, mas também boa
ta do “Novo Mundo” foi vigorosamente contes- política: os índios se convertem ao cristianismo
tado em um dos debates públicos mais impor- (principal preocupação de Las Casas), mas tam-
tantes da história. Em abril de 1550, Carlos V da bém aceitam a autoridade da Coroa e enchem
Espanha convocou um conselho de estado em seus cofres, caso sentissem que suas tradições,
Valladolid para discutir a atitude espanhola para leis e culturas são respeitadas. Entretanto, o uni-
com os índios derrotados do México. O filósofo versalismo cristão de Las Casas era, como todos
Ginés de Sepúlveda e o Bispo Bartholomé de Las os universalismos, excludente. Repetidamente,
Casas, duas grandes figuras do Iluminismo es- condenou “turcos e mouros, os verdadeiros bár-
panhol, debateram em lados opostos. Sepúlveda, baros desterrados das nações”, uma vez que não
que acabara de traduzir A Política de Aristóteles podiam ser vistos como cristãos “involuntários”.
para o espanhol, argumentou que “os espanhóis O universalismo “empírico” de superioridade e
governam de pleno direito os bárbaros que, em hierarquia (Sepúlveda) e a normatividade da ver-
prudência, talento, virtude e humanidade são tão dade e do amor (Las Casas) acabam não sen-
inferiores aos espanhóis quanto as crianças aos do muito diferentes um do outro. Como Tzvetan
adultos, as mulheres aos homens, o selvagem e Todorov comenta sucintamente, há “(...) violência
cruel ao leve e suave, eu poderia dizer o maca- na convicção de que possuem a verdade em si
co ao homem”.5 A coroa espanhola não deveria mesmo, ao passo que isto não é o caso para os
sentir nenhum escrúpulo em lidar com o mal outros, e que se deve, além disso, impor esta ver-
indígena. Os índios poderiam ser escravizados e dade sobre os outros”.7
tratados como bárbaros e escravos selvagens a As interpretações conflitantes sobre a “huma-
fim de serem civilizados e convertidos. nidade” de Sepúlveda e de Las Casas permitem
Las Casas discordou. Os índios têm costumes capturar as ideologias dominantes de impérios
bem estabelecidos e modos de vida enraizados, ocidentais, imperialismos e colonialismos. Por um
argumentou ele, valorizam a prudência e têm a lado, o outro (racial) é desumano ou subumano.
capacidade de governar e organizar suas famílias O que justifica a escravidão, as atrocidades e até
e cidades. Eles têm as virtudes cristãs da bonda- mesmo a aniquilação como estratégia da missão
de, tranquilidade, simplicidade, humildade, gene- civilizadora. Do outro extremo, conquista, ocupação
rosidade e paciência, e estão esperando para se- e conversão forçada são estratégias de desenvol-
rem convertidos. Eles se parecem com nosso pai vimento espiritual ou material, do progresso e da
Adão antes da queda, são cristãos “involuntários”, integração dos inocentes, ingênuos e não desen-
escreveu Las Casas em sua Apologia. Em uma volvidos outros ao corpo principal da humanidade.

5
Ginés de Sepulveda, Democrates Segundo of De las Justas Causa de la Guerra contra los Indios (Madrid: Institute Fransisco de Vitoria, 1951), 33 quoted
in Tzvetan Todorov, The Conquest of America trans. Richard Howard (Norman: University of Oklahoma Press, 1999), 153.
6
Bartholomé de las Casas, Obras Completas, Vol. 7 (Madrid: Alianza Editorial, 1922), 536–7.
7
Todorov, The Conquest of America 166, 168.

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Essas duas definições e estratégias de lidar com a social diversificam povos não-ocidentais, socieda-
alteridade conferem suporte à subjetividade oci- des e culturas, mas não a espécie humana em
dental. O desamparo, a passividade e a inferiori- sua essência ou totalidade. Esses povos emer-
dade dos outros “subdesenvolvidos” são transfor- giram e se tornaram o objeto de observação e
mados em nossa narcisista imagem refletida no estudo pela descoberta, conquista e colonização
espelho e potencial duplo. Esses desafortunados do Novo Mundo, África, Ásia ou nas periferias da
são as crianças da humanidade, são vitimizados Europa. Nishitani Osamu afirma que a huma-
e sacrificados por seus próprios malfeitores radi- nidade e o anthropos significam dois regimes
cais; são resgatados pelo Ocidente que os ajuda assimétricos de conhecimento. A humanidade é
a crescer, a desenvolver e a se tornar a nossa a civilização, enquanto o anthropos está fora ou
semelhança. Porque a vítima é a nossa imagem antes da civilização. Em nosso mundo globaliza-
no espelho, nós sabemos qual é o seu interesse do, as literaturas menores do anthropos são exa-
e devemos impô-lo “para seu próprio bem”. Por minadas pela literatura comparada que relaciona
outro lado, os irracionais, cruéis e vitimizados são a “civilização” com culturas inferiores.
projeções do Outro de nosso inconsciente. Como
O gradual declínio do domínio ocidental está
Slavoj Žižek coloca, “há uma espécie de exposi-
modificando essas hierarquias. Da mesma forma,
ção passiva a uma alteridade esmagadora que é
a inquietação com um universalismo normativo,
a base do ser humano... [o desumano] é marcado
baseado em uma falsa concepção da humanida-
por um excesso aterrorizante que, embora negue
de, indica a ascensão de normatividades locais,
o que entendemos por humanidade, é inerente
concretas e vinculadas a um contexto.
ao ser humano”.8 Temos chamado este abismal
outro que espreita na psique e transtorna o ego Conclui-se, então, que a “humanidade”, por não
de vários nomes: Deus ou Satanás, bárbaro ou ter sentido unívoco, não pode atuar como uma
estrangeiro, a pulsão de morte ou o Real em fonte moral de normas. Seu sentido e alcance
psicanálise. Hoje, tornaram-se o “eixo do mal”, o continuam a mudar de acordo com as priori-
“Estado vadio”, o “falso refugiado” ou o imigrante dades políticas e ideológicas. As concepções
“ilegal”. Eles são herdeiros contemporâneos dos de humanidade em constante mudança são as
“macacos” de Sepúlveda, representantes épicos melhores manifestações da metafísica de uma
de desumanidade. época. Talvez tenha chegado o tempo para o an-
Uma comparação das estratégias cognitivas thropos substituir o humano. Talvez os direitos
associadas com o latino humanitas e o grego vindouros sejam antrópicos (para cunhar um
Anthropos é elucidativa. A humanidade do hu- termo), em vez de humanos, expressando e pro-
manismo (e das ciências humanas)9 unifica o su- movendo singularidades e diferenças, ao invés
jeito que conhece e o objeto conhecido seguindo da mesmice e da equivalência de identidades
os protocolos de autorreflexão. O anthropos da até então dominantes.
antropologia física e social, por outro lado, é o
objeto apenas da cognição. A antropologia física Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publi-
examina corpos, sentidos e emoções, ou seja, su- cado na página da “Critical Legal Thinking” no dia 16 de maio de
2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/05/16/
portes materiais da vida. Estudos de antropologia seven-theses-on-human-rights-1-the-idea-of-humanity/

8
Slavoj Žižek, “Against Human Rights 56,” New Left Review (July–August 2005), 34.
9
Costas Douzinas, “For a Humanities of Resistance,” Critical Legal Thinking, December 7, 2010, http://www.criticallegalthinking.com/2010/12/07/
for-a-humanities-of-resistance/

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Sete teses sobre os Direitos Humanos

Sete teses sobre Direitos Humanos: (2) Poder, moralidade e exclusão institucional
21 de Maio de 2013

Vamos explorar a forte ligação interna entre es- a construir o universalismo moderno. Mas, no co-
ses princípios aparentemente antagônicos, no ração do humanismo, a humanidade permane-
momento de seu surgimento ao final do século ceu como estratégia de divisão e classificação.
18 na Europa e também na ordem internacional
Nós podemos observar brevemente este proces-
pós-1989. Esta será analisada no próximo texto.
so contraditório, que tanto proclama o univer-
A fundamentação religiosa da humanidade foi sal como exclui o local no texto da Declaração
minada pelas filosofias políticas e liberais do iní- Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão,
cio da modernidade. A fundação da humanidade o grande manifesto da modernidade. Em seu
foi transferida de Deus para a natureza (humana). Artigo 1º – progenitor do universalismo norma-
A natureza humana tem sido interpretada como tivo – afirma: “os homens nascem e são livres e
fato empírico, um valor normativo ou ambos. iguais em direitos”, uma reivindicação reproduzi-
A ciência tem optado pela primeira abordagem. da no artigo inaugural da Declaração Universal
A marca da humanidade foi por diversas vezes dos Direitos Humanos de 1948. Igualdade e liber-
procurada na linguagem, na razão ou na evolu- dade são declaradas estatutos naturais que in-
ção. O homem como espécie surgiu do resultado dependem de governos, de época e de questões
de inovações legais e políticas. A ideia de huma- locais. Entretanto, a Declaração é categoricamen-
nidade é uma criação do humanismo, tendo o te elucidativa sobre a fonte real dos direitos uni-
humanismo legal em sua vanguarda. De fato, as versais. Em seu Artigo 2º: “A finalidade de toda
grandes revoluções e declarações do século 18, associação política é a conservação dos direitos
de forma paradigmática, expressaram e ajudaram naturais e imprescritíveis do homem (...)”, pros-

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segue por definir esta associação no artigo 3º: uso atual dos direitos humanos para legitimar
“O princípio de toda a soberania reside, essencial- a hegemonia global ocidental, cada universa-
mente, na nação”. lismo normativo decaiu em imperialismo global.
Os direitos “naturais” e eternos são declarados A divisão entre humanidade normativa e empí-
em nome do “homem” universal. No entanto, rica resiste à cura, precisamente porque a nor-
esses direitos não preexistem, mas são criados matividade universal tem sido invariavelmente
pela Declaração. Um novo tipo de associação po- definida por uma parte da humanidade.
lítica, a nação soberana e o estado, bem como A humanidade universal das constituições libe-
um novo tipo de “homem”, o cidadão nacional, rais foi a fundamentação normativa para divisão
nasceram e se tornaram beneficiários dos direi- e exclusão. Abriu-se a lacuna entre o “homem”
tos. Assim, de maneira paradoxal a declaração de universal, o princípio ontológico da modernida-
princípio universal estabelece a soberania local. de, e o cidadão nacional, com sua instanciação
A partir desse ponto, a estatalidade e seu território política e real beneficiário dos direitos. O Estado-
seguem o princípio nacional e pertencem a um nação veio à existência pela exclusão de outros
tempo dual. Se a declaração inaugurou a mo- povos e nações. O sujeito moderno atinge sua
dernidade, também deu início ao nacionalismo humanidade ao adquirir direitos políticos de ci-
e suas consequências: genocídios, guerras civis, dadania, que garantem sua admissão à natureza
limpeza étnica, minorias, refugiados e apátridas. humana universal ao excluir desse status os ou-
O princípio espacial é evidente: todo estado e ter- tros. O estrangeiro como um não cidadão é o bár-
ritório deveriam ter sua nação única e dominante baro moderno. Ele não tem direitos por não fazer
e cada nação ter o seu próprio estado – um catas- parte do estado e é um ser humano inferior por
trófico desenrolar para a paz, como mostrou sua não ser cidadão. Alguém é considerado homem
aplicação extrema desde 1989. em maior ou menor grau porque é cidadão em
O novo princípio temporal substituiu a escato- maior ou menor grau. O estrangeiro é a lacuna
logia religiosa por uma teleologia histórica, que entre o homem e o cidadão.
promete o futuro pela sutura da humanidade Em nosso mundo globalizado, não ter a cidada-
e da nação. Esta teleologia tem duas variantes nia, ser apátrida ou refugiado, é o pior destino.
possíveis: ou a nação impõe seu domínio sobre Estritamente falando, os direitos humanos não
a humanidade ou o universalismo sobrepõe-se existem: se eles são dados às pessoas em virtu-
às divisões e identidades paroquiais. Ambas as
de de sua humanidade e não por serem mem-
variantes se fizeram evidentes quando os roma-
bros de algum grupo, então os refugiados, os
nos transformaram o cosmopolitismo estoico na
imigrantes sans papier e os prisioneiros da Baía
regulamentação legal e imperial do jus gentium.
de Guantánamo e de outros centros de detenção
Na França, a primeira alternativa apareceu na
têm pouca ou nenhuma proteção legal, porém
guerra napoleônica, que, supostamente, teria
deveriam ser seus principais beneficiários. Eles
espalhado a influência civilizadora através da
têm poucos, se é que possuem algum, direitos,
conquista e da ocupação (de acordo com Hegel,
são legalmente abandonados, os “vida nua”, os
Napoleão representava o espírito do mundo
homines sacri da nova ordem mundial.
nas costas de um cavalo); enquanto a segunda
fora o início de um cosmopolitismo moderno, A mudança paradigmática sobre o tema foi con-
no qual a escravidão foi abolida e foram reco- duzida e exemplificada pela personalidade jurí-
nhecidos direitos políticos aos colonizados por dica. Como espécime, o “homem” dos direitos do
um limitado período após a Revolução. Da de- homem aparece sem gênero, cor, história ou tra-
formação imperial do cosmopolitismo estoico ao dição. Ele não tem necessidades ou desejos, é um

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Sete teses sobre os Direitos Humanos

vaso vazio unido com todos os outros por meio contrariamente a uma variável desumanidade
de três traços abstratos: o livre-arbítrio, a razão e a ou antropologia. De fato, essas “condições desu-
alma (agora, a mente) – os elementos universais manas da humanidade”, como Pheng Cheah as
da essência humana. Este mínimo de humani- chamou, funcionam como pré-condições quase
dade permite que o “homem” reivindique auto- transcendentais da vida moderna.10
nomia, responsabilidade moral e subjetividade A história contemporânea dos direitos humanos
legal. Ao mesmo tempo, o homem empírico que pode ser vista como a luta contínua e sempre fa-
efetivamente goza dos “direitos do homem” é um lível para fechar a lacuna entre o homem abstrato
homem demasiadamente homem: abastado, he- e o cidadão concreto; ou seja, adicionar carne,
terossexual, branco, homem urbano, que conden- sangue e sexo ao contorno pálido do “humano” e
sa na sua pessoa a dignidade em abstrato da hu- estender as dignidades e privilégios dos podero-
manidade e as prerrogativas reais de pertencer à sos (as características da humanidade normativa)
comunidade dos poderosos. A segunda exclusão, para a humanidade empírica. Isso não aconte-
portanto, condiciona o humanismo, a humanida- ceu, todavia, e é improvável que seja alcançado
de e seus direitos. A humanidade exclui os ho- pela ação de direitos.
mens impróprios, isto é, os homens de nenhuma
propriedade ou decoro, os seres humanos sem Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publi-
rima e razão, mulheres e minorias raciais, sexuais cado na página da “Critical Legal Thinking” no dia 21 de maio de
2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/05/21/
e étnicas. Os direitos constroem seres humanos seven-theses-on-human-rights-2-power-morality-structural-exclusion/

10
Pheng Cheah, Inhuman Conditions (Cambridge Mass: Harvard University Press, 2006), Chapter 7.

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Sete teses sobre Direitos Humanos: (3) Capitalismo neoliberal


e imperialismo voluntárioo
23 de maio de 2013

Tese 3: A ordem pós-1989 combina um sistema econômico que produz enormes


desigualdades estruturais e opressão com ideologia jurídico-política promissora de
dignidade e igualdade. Esta grave instabilidade contribui para seu desaparecimento.

Por que razão e como essa combinação de capi- De forma semelhante, os direitos humanos e sua
talismo neoliberal e humanitarismo surge? O ca- disseminação não são simplesmente o resultado
pitalismo sempre moralizou a economia e tentou da disposição liberal ou caridade do Ocidente.
conferir um brilho de justiça aos impulsos lucra- O significado predominantemente negativo de li-
tivos e concorrência desregulada, precisamente berdade como a ausência de restrições externas
porque é tão difícil de acreditar. Da “mão invisível” – um eufemismo para manter a regulação estatal
de Adam Smith à assertiva de que o egoísmo de- da economia no mínimo – tem dominado a con-
senfreado promove o bem comum, ou que efeitos cepção ocidental de direitos humanos e os trans-
benéficos ocorrerão caso os ricos tenham ainda formou no companheiro perfeito do neoliberalis-
maiores reduções de impostos, o capitalismo tem mo. A moral global e regras cívicas são os compa-
consistentemente tentado reivindicar o mais alto nheiros necessários da globalização da produção
patamar moral.11 econômica e do consumo, ainda, da conclusão

11
Jean-Claude Michéa, The Realm of Lesser Evil trans. David Fernbach (Cambridge and Malden: Polity Press, 2009), Chapter 3

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Sete teses sobre os Direitos Humanos

do capitalismo mundial que segue dogmas neo- tude neocolonial tem se estendido da periferia
liberais. Ao longo dos últimos 30 anos, temos tes- para o núcleo europeu. Grécia, Portugal, Irlanda
temunhado, sem muito comentário, a criação de e Espanha foram submetidos aos rigores do neo-
normas legais globais que regulam a economia liberal “Consenso de Washington” de austerida-
capitalista mundial, incluindo regras sobre inves- de e destruição do Estado de bem-estar, apesar
timento, comércio, ajuda financeira e propriedade de seu fracasso no mundo em desenvolvimento.
intelectual. Robert Cooper chamou este cenário Mais da metade dos jovens da Espanha e da
de imperialismo voluntário de economia global: Grécia estão permanentemente desempregados
“É operado por um consórcio internacional de e toda uma geração está sendo destruída. Mas
instituições financeiras como o FMI e o Banco este “gene-cídio”, para cunhar um termo, não ge-
Mundial ... Essas instituições ... fazem exigências, rou uma campanha por direitos humanos.
que enfatizam cada vez mais a boa governança.
Como Immanuel Wallerstein coloca, “se todos os
Os estados que desejam se beneficiar devem se
seres humanos têm direitos iguais, e todos os
abrir a interferência de organizações internacio-
povos têm direitos iguais, então não podemos
nais e países estrangeiros. Cooper conclui: “o que
é necessário, então, é um novo tipo de imperia- manter o tipo de sistema desigual que a eco-
lismo, um aceitável para um mundo de direitos nomia mundial capitalista sempre foi e sempre
humanos e valores cosmopolitas”.12 será”.13 Quando a intransponibilidade do fosso
entre as declarações missionárias sobre a igual-
A promessa (implícita) para o mundo em desen- dade e dignidade e a realidade sombria da de-
volvimento é de que a adoção violenta ou volun- sigualdade obscena se tornam aparentes, os di-
tária orientada para o mercado, o modelo neoli- reitos humanos levarão a novos e incontroláveis
beral de boa governança e os direitos limitados tipos de tensão e conflitos. Soldados espanhóis,
irá inexoravelmente levar a padrões econômicos quando do encontro dos exércitos de Napoleão,
ocidentais. Isto é fraudulento. Historicamente, a gritaram “Abaixo a liberdade!” Hoje em dia as
capacidade do Ocidente de transformar a prote- pessoas se deparam com as “forças de paz” da
ção dos direitos formais em garantia limitada de nova ordem mundial com gritos de “Abaixo aos
direitos materiais, econômicos e sociais, foi par- direitos humanos!”.
cialmente baseada em enormes transferências
das colônias para a metrópole. Enquanto a mora- Os sistemas sociais e políticos se tornaram he-
lidade universal milita a favor de fluxo inverso, as gemônicos ao transformar suas prioridades ideo-
políticas ocidentais de ajuda ao desenvolvimento lógicas em princípios e valores universais. Na
e a dívida do Terceiro Mundo indicam que isto nova ordem mundial, os direitos humanos são
não é politicamente viável. De fato, as sucessi- o candidato perfeito para este papel. Seus princí-
vas crises e rearranjos do capitalismo neoliberal pios fundamentais, interpretados negativamente
levaram à expropriação e deslocamento da agri- e economicamente, permitem a penetração ca-
cultura familiar pelo agronegócio, à migração for- pitalista neoliberal. Sob uma construção diferen-
çada e urbanização. Estes processos expandiram te, suas disposições abstratas poderiam sujeitar
o número de pessoas sem habilidades, status as desigualdades e indignidades do capitalismo
ou condições básicas para manutenção de sua tardio a ataque fulminante. Mas isso não pode
existência. Passam a ser os detritos humanos, a acontecer enquanto forem utilizados pelos po-
vida de resíduos, os bilhões de baixo. Esta ati- deres dominantes para espalhar os “valores” de

12
Robert Cooper, “The New Liberal Imperialism,” The Observer (April 1 2002), 3.
13
Immanuel Wallerstein, “The Insurmountable Contradictions of Liberalism” Southern Atlantic Quarterly (1995), 176–7.

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uma ideologia baseada no niilismo e na insacia- aqui; as ideias foram redefinidas, mas a crença na
bilidade do desejo. universalidade da nossa visão de mundo continua
Apesar das diferenças de conteúdo, o colonialis- tão forte como a dos colonizadores. Há pouca di-
mo e o movimento dos direitos humanos formam ferença entre impor a razão e a boa governança e
um contínuo, são episódios do mesmo drama, que converter para o cristianismo e direitos humanos.
começou com as grandes descobertas do novo Ambos fazem parte do pacote cultural do Ocidente,
mundo e agora é realizado nas ruas do Iraque e agressivo e redentor ao mesmo tempo.
do Afeganistão: levar a civilização aos bárbaros. O
clamor por espalhar Razão e Cristianismo deu aos Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado
impérios ocidentais seu senso de superioridade e na página da “Critical Legal Thinking” no dia 23 de maio de 2013. Link
de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/05/23/seven-theses-on-
ímpeto por universalização. O impulso ainda está -human-rights-3-neoliberal-capitalism-voluntary-imperialism/

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Sete teses sobre os Direitos Humanos

Sete teses sobre Direitos Humanos: (4) Universalismo e


Comunitarismo são interdependentes
30 de maio de 2013

Tese 4: Universalismo e comunitarismo, ao invés de serem adversários, são dois


tipos de humanismo dependentes um do outro. Ambos são confrontados pela
ontologia da igualdade singular.

O debate sobre o significado de humanidade tas e definem o significado e valor da humanida-


como fonte normativa é realizado entre univer- de sem deixar vestígios, podem achar dispensável
salistas e comunitaristas. O universalista afirma tudo o que resiste a eles.
que os valores culturais e normas morais devem
Kosovo é um bom exemplo. Os sérvios orgulho-
passar por um teste de aplicabilidade universal e
sos mataram e promoveram a “limpeza” étnica
consistência lógica e muitas vezes conclui que,
dos albaneses, a fim de proteger a integridade
se há uma verdade moral e muitos erros, cabe a
do “berço” de sua nação (curiosamente, como a
seus agentes impô-la aos outros.
maioria dos nacionalismos selvagens, celebrando
Os comunitaristas partem da observação óbvia uma derrota histórica). Os bombardeios da OTAN
de que os valores são vinculados ao contexto e mataram pessoas – a 35.000 pés de altura – em
tentam impor esses valores àqueles que não con- Belgrado e Kosovo, a fim de defender os direitos
cordam com a opressão da tradição. Ambos os de humanidade. Ambas as posições exempli-
princípios, quando se tornam essências absolu- ficam, talvez de maneiras diferentes, o impulso

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Costas Douzinas

metafísico contemporâneo: eles tomaram uma tranho, o outro. A comunidade como comunhão
decisão axiomática sobre o que constitui a essên- aceita os direitos humanos apenas na medida
cia da humanidade e seguem-na em desrespeito em que ajudam a submergir o “Eu” ao “Nós”, todo
teimoso às alternativas. Eles são as expressões o caminho até à morte, o ponto da “comunhão
contemporâneas de um humanismo que define absoluta” com a tradição morta.15
a “essência” da humanidade por todo o caminho
Ambas, moralidade universal e identidade cultu-
até o seu fim, como telos e final. Parafraseando
ral expressam diferentes aspectos da experiência
Emmanuel Levinas, para salvar o ser humano de-
humana. A sua comparação em abstrato é fútil e
vemos derrotar esse tipo de humanismo.
suas diferenças não são pronunciadas. Quando
O individualismo dos princípios universais es- um estado adota direitos humanos universais, irá
quece de que cada pessoa é um mundo e vem interpretá-los e aplicá-los, quando muito, de acor-
à existência em comum com os outros, que es- do com os procedimentos legais e princípios mo-
tamos todos em comunidade. Todo ser humano rais locais, tornando o universal servo do particu-
é um ser singular, único em sua existência como lar. O inverso também é verdadeiro: mesmo aque-
uma concatenação irrepetível de encontros pas- les sistemas legais que prezam pelos direitos e
sados, desejos e sonhos com projeções futuras, práticas culturais tradicionais contra a invasão do
expectativas e planos. Cada pessoa forma um universal, já estão por ele contaminados. Todos os
cosmo fenomenológico de significado e intencio- direitos e princípios, mesmo que paroquiais em
nalidade, considerado nas relações de desejo e seu conteúdo, compartilham do ímpeto universa-
reconhecimento com os outros. Ser em comum é lizante de sua forma. Nesse sentido, direitos car-
uma parte integrante do ser: o self é exposto ao regam a semente da dissolução da comunidade
outro, é levado à exterioridade, o outro é parte da e a única defesa é resistir à ideia de direitos como
intimidade de si mesmo. Meu rosto está “sempre um todo, algo impossível para o neoliberalismo
exposto aos outros, sempre virado em direção a global. As reivindicações de universalidade e tra-
um outro e por ele ou ela encarado, nunca enca- dição, ao invés de estarem em combate mortal,
rando a mim mesmo”.14 tornaram-se aliados inquietos, cujo elo frágil foi
sancionado pelo Banco Mundial.
De fato, ser em comunidade com os outros é o
oposto de ser em comum ou de pertencer a uma De nossa perspectiva, a humanidade não pode agir
comunidade essencial. Comunitaristas, por outro como um princípio normativo. A humanidade não
lado, definem comunidade pela comunhão da é uma propriedade compartilhada. Ela é discerní-
tradição, história e cultura, as várias cristalizações vel na incessante surpresa da condição humana
passadas cujo peso inescapável determina possi- e sua exposição a um futuro aberto e não decidi-
bilidades no presente. A essência da comunidade do. Sua função não se encontra em uma essência
comunitária é muitas vezes compelir ou permi- filosófica, mas na sua não-essência, no processo
tir que as pessoas encontrem sua “essência”, a interminável de re-definição e na necessária porém
“humanidade” comum, agora definida como o impossível tentativa de escapar a uma determina-
espírito da nação, do povo ou do líder. Temos de ção externa. A humanidade não tem fundação e
seguir os valores tradicionais e excluir o que é es- nem fim; ela é a definição de sem fundamento.

14
Jean-Luc Nancy, The Inoperative Community (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1991), xxxviii.
15
Ibid.

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Sete teses sobre os Direitos Humanos

Costas Douzinas
Professor de Direito e Pró-Vice Reitor de Relações Internacionais de Birkbeck (Universidade de Londres), Diretor
do Birkbeck Institute for the Humanities e editor da revista internacional “Law & Critique”.

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