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a) A Crise da Modernidade
Vivemos hoje no Brasil uma enorme crise socioambiental e cultural. Desde o início do
crise revertendo o quadro anterior onde ocorreu um processo, ainda que não suficiente,
Esta crise que foi provocada para que os setores mais privilegiados, juntamente com o
econômico excludente, que mata pessoas e destrói a natureza, na linha denunciada pelo
Papa em seu Magistério. Este movimento logrou ser vitorioso na medida em que
encontrou suporte em uma crise da Cultura Moderna presente entre nós e na medida em
que os setores políticos progressistas não conseguiram manter sua conexão com os setores
populares e de classe média, perdendo Capital Político e Simbólico devido a seus erros
durante os anos de governo, mas também devido a uma incapacidade de enfrentar esta
entre nós ganhe dimensões particulares. A Modernidade, enquanto cultura, tem suas
2
Homem1 na qual afirma que o ser humano encontra-se colocado por Deus no centro do
mundo para que com o seu livre arbítrio possa escolher a meta de suas aspirações e viver
conforme sua opção a vida dos brutos ou a dos seres divinos. Enquanto a grandeza dos
anjos consiste em ser constituído de uma natureza imutável, ao ser humano foi dado uma
grandeza ainda maior, pois este pode com a ajuda da Graça Divina tornar-se filho de
Deus2. Para expressar isto Pico della Mirandola, faz Deus falar ao ser humano: “Não te
fizemos nem celeste, nem terreno, nem imortal, nem mortal, para que como livre,
que terá preferido”. E afirma então: “Oh suma liberdade de Deus Pai, suma e admirável
felicidade do homem! ao qual é dado ter aquilo que deseja e ser aquilo que quiser”3.
Aqui se encontra já um dos pilares centrais da Modernidade: uma vez que “o homem é
possibilidades de auto realização. Cabe a cada indivíduo tornar-se sujeito de seu porvir,
plasmando-se segundo a sua vontade, possuindo e sendo aquilo que deseja. Este ponto
virá a se constituir na promessa central da Modernidade: que cada sujeito possa realizar-
1
G. Pico dela Mirandola. Discurso sobre a dignidade do homem, Edições 70. Lisboa, 2006.
2
Veja-se B. Lacerda, A dignidade humana em Giovanni Pico della Mirandola em Revista Legis
Augustus (Revista Jurídica) Vol. 3, n. 1, p. 16-23, setembro 2010.
3
Pico dela Mirandola, op. cit, §5, 22; §6, 24-25.
4
Ibidem, §9, 46.
3
O encontro com os ameríndios trouxe uma nova questão. Até então todos os homens e
seres humanos pelo seu enquadramento na descendência Adâmica. Isto é, eram de algum
genitores, Adão e Eva, primeiros humanos, criados diretamente por Deus. A descendência
primeiras décadas após o descobrimento e subsistiu até mesmo a Bula Sublimus Dei,
promulgada pelo Papa Paulo III em 2 de junho de 1537, onde o Papa afirma que
desta Declaração Pontifícia não cessou de haver quem defendesse a não plena
vida de alguns grupos indígenas como os tupis-guaranis é compreendido por uns como
sendo paradisíaco, um estado de natureza endêmico, e por outros como sendo selvagem,
5
K. Woortmann, O selvagem e o novo mundo. Ameríndios, humanismo e escatologia, UNB,
Brasília, 2004, p.219-236. Também D. Livingstone , Adam’ ancestors: race, religion, and the politics of
human origins, Johns Hopkins Paperback Editions, Baltimore, 2011, especialmente p. 19-23.
6
Cf. K. Woortmann, op. cit, 2004. P.57-196.
4
Afirma-se a partir de então cada vez mais o valor da razão autônoma, não
tecnologia. Assim ocorre na obra póstuma de Francis Bacon, Nova Atlântida, publicada
pela primeira vez em 16277. Na obra de F. Bacon a organização ideal de sua sociedade
imaginária é dada por uma instituição científica, a Casa de Salomão, onde a ciência é
a todos uma vida melhor. Estes depois levam seus produtos tecnológicos às cidades que
compõem uma ilha desconhecida no Oceano Pacífico. O progresso trazido pela ciência,
a abundância de bens produzidos, e a felicidade de todos daí decorrente faz com que os
negligenciados por Bacon. É a promessa de felicidade trazida pela razão científica que
se faz aqui presente. Este processo de crença na razão autônoma como portadora de
verdade e felicidade prossegue até se chegar a Descartes, que em sua obra Discurso do
Método, publicada em 1637, elabora a formulação lapidar, “penso logo existo” que
configuração cultural que chamamos de Modernidade de matriz Iluminista que pode ser
7
Para o texto em edição brasileira veja-se F. Bacon, Novum Organum, Os Pensadores, Abril, São
Paulo, 1984; Para um estudo da obra: G. Schiavone, Introduzione em F. Bacon, Nuova Atlantide, RCS
Libri, Milão, 2015, p. I-LXXXVI. Também B. J Oliveira, Francis Bacon e a Fundamentação da Ciência
como Tecnologia, UFMG, Belo Horizonte, 2002; Pra o estudo da Nova Atlântida no contexto da história
do pensamento utópico: V. Comparato, Utopia, Il Mulino, Bolonha, 2005, p. 105-108; também L.
Mumford, Storia dell’Utopia, Donzelli Ed, Roma, 2008, p.77-79.
8
Veja-se Descartes, Discuso do Método, Os Pensadores, Abris, São Paulo, 1983, p. 46.
5
caracterizada como uma formação cultural centrada na ideia-força de que o futuro será
sempre melhor desde que homens e mulheres se deixem guiar pela razão que se auto
ilumina e razão esta que é identificada simplesmente com a razão científica. Esta Cultura
reproduzia na terra a Hierarquia Celeste e que propunha como ideal social a continuidade
técnico e a revolução social e dos costumes avançavam no século XIX esta cultura
ganhava cada vez mais legitimidade. Nela, um discurso historicamente determinado sobre
da verdade. Este acesso exclusivo à verdade reivindicado pela razão moderna acaba por
gerando, assim, liberdade e a exigência de igualdade, uma vez que todo ser humano é
reconhecido como ser dotado de razão autônoma. De outro, a razão, que na Cultura
Moderna de matriz iluminista, exclui toda verdade que nela não cabe e anula as diferenças
afirmando-se que todo ser humano é ser de razão, considera-se que nem todos a
9
Veja-se S. Best e D. Kellner, Postmodern Theory. Critical interrogations, Macmillan, London,
1994, p.181-214.
6
diplomacia. A violência seria parte dos instintos animais, domados pela razão e a
civilização. De fato, por quase cem anos a Europa viu-se livre de grandes guerras ou de
grandes conflitos entre as grandes potencias civilizadas. Alguns conflitos que ocorreram
nos cem anos que antecedem a Primeira Grande Guerra, em 1914, foram não só
localizados, mas também breves, tal como ocorreu na Guerra da Criméia (1854-56)11. O
advento da Primeira Grande Guerra (19414-18) foi um duro golpe nesta convicção. Esta
Guerra foi uma guerra total, produzindo uma devastação sem precedentes pela sua
extensão e profundidade12. Nela pela primeira vez foram usadas armas modernas de
muitas vidas. Desde esta guerra, chamada pelos europeus simplesmente de A Grande
10
Veja-se A. Badiou, Il século, Feltrinelli, Milano, 2006.p.25-47.
11
Veja-se E. Hobsbawn, Era dos extremos, O breve século XX, 1914-1991, Companhia das Letras,
São Paulo, 2013, p.30-31.
12
Ibidem, p. 52.
13
Ibidem, p.58.
7
A ruptura no imaginário social provocada pela Grande Guerra abre uma crise no
percurso da Cultura Moderno Iluminista verso sua hegemonia. Nos anos 20 e 30 surge
seja nos ambientes de vanguarda artística e cultural, seja no ambiente popular uma forte
afirmação do indivíduo feita a partir de uma redução do mesmo à dimensão racional havia
humana. A redução de toda a verdade ao racional leva a considerar tudo o que não é
racionalizável e passível de ser controlado pela razão moderna como falso ou ao menos
de montagem e de sua racionalidade. Este novo homem e mulher industrial eram também
grande Outro, de que nos fala Lacan), é bem expressa na figura do operário ideal
14
Ibidem, p 178-197.
15
Veja-se R. Bodei, Geometria delle passioni. Paura, speranza, felicita: filosofia e uso político.
Feltrinelli, Milano, 1992.
16
Veja-se Z. Bauman, O mal estar na pós-modernidade, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998.
Idem, Modernidade e ambivalência, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1999.
8
experiências vividas nos Estados Unidos e nas principais Capitais Europeias nos anos
após a primeira Grande Guerra, de modo especial na Paris dos anos 20, os chamados anos
loucos, com sua explosão de gozo e de subjetividades onde as paixões se rebelam e saem
do controle racional e o princípio enunciado por Pico della Mirandola ganha novo
significado, parecendo dar outro rumo à Modernidade: que cada um possa se auto realizar
segundo o seu desejo, sem nenhuma barreira, nem a da religião nem a da razão18.
racionalismo pode ser também opressor, sem dúvida também nela já estão presentes
historiador holandês J Huizinga escreveu em 1935 um ensaio sobre a crise da cultura nos
progresso típica dos séculos XVII e XVIII que associou uma “noção puramente
17
Para R. Owen, veja-se T. Paquot, A Utopia. Ensaio acerca do Ideal, Difel, Rio de Janeiro, 1999,
p. 39-44; Sobre A. Olivetti veja-se F. Ferrarotti, La concreta utopia di Adriano Olivetti, EDB, Bologna,
2013, especialmente p. 81-90
18
Veja-se aqui W. Wiser, Os anos Loucos. Paris na Década de 20, José Olympio, Rio de janeiro,
1994.
19
Esta obra foi traduzida por Manuel Vieira e publicada no Brasil em 1946: J. Huizinga, Nas
Sombras do Amanhã; Diagnóstico da Enfermidade Espiritual do nosso Tempo, Saraiva & Cia editores, São
Paulo, 1946. Atualmente existe uma nova edição, traduzida por Sérgio Marinho: J. Huizinga, Nas Sombras
do Amanhã; Diagnóstico da Enfermidade Espiritual do nosso Tempo, Caminhos, Goiânia, 2017. Usaremos
aqui nas citações a edição brasileira de 1946.
J. Huizinga foi Reitor da Universidade de Leyden e tornou-se conhecido como um dos mais
importantes historiadores da Cultura no século XX. Sua obra Homo Ludens, sobre o jogo como elemento
da Cultura, (J. Huizinga, Homo Ludens, Ed.Perspectiva, São Paulo, 2014) é considerada um dos mais
fundamentais estudos em filosofia da história.
9
que uma cultura pode soçobrar no meio de um progresso real e palpável” 20. Em outras
palavras não existe para este autor nenhuma relação direta entre a evolução da hegemonia
por crises, mas o mesmo não se dá nas outras dimensões da cultura, e segundo J. Huizinga,
pode-se mesmo afirmar que “na verdade, há motivos suficientes para se falar duma crise
tempo, que dificilmente se poderá encontrar igual em qualquer época do passado nossa
conhecida”21
Alguns anos depois, quando cumpria prisão domiciliar em Steeg, perto de Arnhem,
e pouco antes de sua morte ocorrida em 1945, ainda antes do fim da Grande Guerra, este
autor retomou o tema em uma obra que foi publicada postumamente22. Nesta segunda
fascismo se deveu a uma decadência da modernidade e dos valores éticos que permeavam
crise da razão23.
Nos anos que se seguem a Segunda Grande Guerra e que correspondem ao ápice do
dos anos de ouro, seja do Fordismo Capitalista, seja do Sovietismo, a Cultura Moderno-
20
J. Huizinga, Nas Sombras do Amanhã...(1946) p 44.
21
Ibidem p.52
22
Veja-se a edição italiana: J. Huizinga (a cura di Lucio Villari), Lo scempio del mondo. Bruno
Mondadori, Milão, 2004
23
Ibidem, p 69-105.
10
Iluminista reafirma-se esteira da experiência de bem estar trazida pela tecnologia e pela
ciência nos anos 50, tornando-se muito difícil colocar em dúvida o valor do pensamento
década de 60, nos movimento de vanguarda, na Contra Cultura Norte Americana, nos
torna-se avassaladora no final dos anos 80 com a crise do Fordismo, o colapso do Estado
capitalismo. A nova Ordem Simbólica instituída pelo Mercado convoca o sujeito ao gozo
que por sua vez ofertam seus produtos a outros sujeitos reduzidos a consumidores. Nesta
perspectiva, emerge também o caráter fetichista das relações de mercado que se supõem
regidas por uma lei cega, mecânica e autômata (a mão invisível do mercado), onde cada
um deve buscar, antes de tudo, seu próprio interesse e ao fazê-lo se produz um equilíbrio
que resulta em um bem maior para todos. Na medida em que o mercado se torna
24
Veja-se S. Zizek, The ticklist subject, Verso, New York, 2000.
11
colocado na posição do sujeito perverso e tem dificuldade de constituir laços que não
existo”, sendo a razão trocada pela sensação. Nega-se, nesta tendência, a possibilidade da
moderna, afirma-se uma radical relativização dos valores e das ideias. Se nada tem
sentido, tudo também pode ter, e a tolerância se transforma em indiferentismo, onde não
vale a pena nenhum debate e nenhuma idéia deve ser discutida, pois os argumentos não
têm valor. Só possuem valor os sentimentos e afetos que são confundidos e identificados
Modernidade que eclodiu no entre Guerras. Em sua obra de 1935 ele afirma algo de
incrível atualidade: “desde há muito que todos nós deixamos de viver sob a férula dum
25
Veja-se aqui M. Fleig, O desejo perverso, CMC editora, Porto Alegre, 2008. Também E. Pulcini,
L’individuo senza passione. Individualismo moderno e perdita del legame sociale. Bollati Boringhieri,
Torino, 2005.
26
Veja-se S. Zizek, Violence, Picador, New York, 2008.
27
Usamos aqui o conceito de idéi- força no sentido de significantes que servem como princípio
estruturante e suporte de uma particular formação do imaginário social. Veja-se C. Taylor, Modern Social
Imaginaries, Duke University Press, London, 2004. Idem, A Secular Age, The Belknap Press of Havard
University Press, Cambridge, 2007.
12
raciocínio tiranicamente consistente. Sabemos que nem tudo pode ser avaliado pela
razão. O próprio progresso do pensamento nos fez compreender a sua insuficiência. Uma
intuição mais rica e mais profunda do que simplesmente racional, concedeu um maior
capacidade mais vasta e mais livre para ajuizar, um sentido mais profundo nas coisas da
moderno tornou-se suscetível a absurdos de que durante muito tempo estivera imune”28.
A disseminação hodierna das Fake News que mesmo sem qualquer verossimilhança são
cujo conhecimento constitui o patrimônio cientifico básico de nossa civilização tais como
negacionismo histórico, difundidos pelas redes sociais como verdades concorrentes com
outras verdades, e a redução de toda a ciência à mera opinião nos assombram. Os novos
meios de comunicação e de difusão das ideias tais como a Internet não criaram este
dominação, não é menos verdade que “o sonho da razão produz monstros” como escreveu
Goya em uma de suas gravuras que compõe a série Los Caprichos de 1899.
Caminha-se por esta estrada rumo ao mais radical individualismo, onde a pessoa se
dobra sobre si mesma já que fora de si nada é seguro, objetivo ou não ambíguo. Na década
28
J. Huizinga, Nas Sombras do Amanhã...(1946) p 68-69.
13
descreve o surgimento de uma nova atitude comum a muitos norte americanos na década
valores sociais prevalentes na década de 60. Ele mostra como este novo sujeito encontra
uma base para esta nova atitude. O tema foi posteriormente aprofundado por Christopher
mercado tornam-se matriz de todas as relações acaba por dar lugar a uma Cultura onde
leva em alguns casos a uma dissociação total entre esfera pública e privada com a
outro aspecto trágico deste novo modo se subjetivização prevalente, a partir do final dos
anos 70, em muitos lugares é que, em última instância, a atitude indiferentista e a recusa
29
Publicado originalmente na revista New Yorker Magazine em agosto de 1976 com o título “The
“Me” Decade and the Trird Great Awakening”. Seguimos aqui a edição brasileira publicada em T. Wolfe,
Décadas Púrpura, L&PM Editores, Porto Alegre, 1989, p. 339-374 com o título A Década do Eu e o
Terceiro Grande Despertar. O ensaio havia sido publicado em parte já anteriormente em 1973 na revista
The Critic.
30
Veja-se aqui a edição italiana, La Cultura del Narcisismo,. L’individuo in fuga dal sociale in
un’età di disillusione colletive, Bompiani, Milão, 1992
31
Veja-se R. Sennett, O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. Companhia das
Letras, São Paulo, 1999.
14
gozo é acolhido por um sujeito que ao buscar realizá-lo aliena o seu desejo e perde
função de um ideal e de amar. Dito de outro modo, o sujeito se torna entorpecido e por
Modernidade de que cada um possa ser aquilo que quiser ser e ter o que quiser ter,
articulada com a injunção superegóica ao gozo sem limite impossível de ser alcançado
abre no sujeito contemporâneo um ferida narcísica que produz um sofrimento tanto maior
quanto menor for sua capacidade de resiliência e de enfrentar a falsidade de tal promessa
assume em si de modo radical a culpa por não conseguir cumprir tal injunção superegóica
e por não conseguir ser aquilo que corresponde a seu ideal do Eu, termina por cair em
uma quadro de depressão crônica muitas vezes grave que constitui na contemporaneidade
32
Veja-se C. Melman, O homem sem gravidade. Gozar a qualquer preço. Companhia de Freud, Rio
de Janeiro, 2008.
33
Veja-se M R Khel, O Tempo e o Cão. A atualidade das depressões, Boitempo, São Paulo, 2009,
de modo especial, p. 273-298.
15
do sujeito que assim busca sustentar uma integralidade narcísica independente do sucesso
de seus empreendimentos. Como mostrou Lacan o sujeito se constitui tendo em seu centro
uma falta fundamental, e esta falta é condição para a autonomia do mesmo e para a
imaginária da falta fundamental é interpretada como prejuízo. Alguém tira alguma coisa
qualquer avanço social dos setores populares é feito em detrimento de sua situação de
classe, de seu bem estar35. Estes indivíduos ressentidos nos fazem lembrar a observação
feita por Santo Ambrósio em uma homilia sobre As vinhas de Nabot (1 Reis 21) em torno
ao ano de 395: Vocês Ricos...estimam que é uma injuria feita a vocês se o pobre possui
algo que vocês julgam digno apenas da posse de um rico. Creem que é um prejuízo
infringido a vocês tudo aquilo que pertence aos pobres36. Assim, as dificuldades que estes
superegoico do gozo sem limites são quase sempre vividas como uma injúria, como se
alguém estivesse tirando algo deles, impedindo-os de serem o que desejam e terem o que
34
Veja-se aqui também de M R Khel, Ressentimento, Casa do Psicólogo, São Paulo, 2015. P. 13.
Para o desenvolvimento do conceito de ressentimento em Nietzsche, veja-se F. Nietzsche, A Genealogia
da Moral, Vozes, Petrópolis, 2017. Veja-se também a importante contribuição de Max Scheler para o
ulterior desenvolvimento deste conceito em M. Scheler, O Ressentimento na Construção das Morais em
M. Scheler, Da reviravolta dos valores, Vozes, Petrópolis, 2012, p. 43-182.
35
J Souza, Subcidadania Brasileira, Leya, Rio de Janeiro, 2018, p. 153-178.
36
Veja-se o texto completo em Restituto Sierra Bravo, Doctrina Social y Economica de los Padres
de la Iglesia, COMPI, Madri, 1967. P.660-682; p.663; ML 14, 765 ss.
16
São eles, os petistas e todos os esquerditas e comunistas, que através da política de cotas,
da bolsa família, e de outras políticas sociais de promoção da igualdade estão tirando algo
dos que trabalham e merecem, para dar a pobres que são pobres por serem vagabundos,
preguiçosos, incapazes, a ralé. Aeroportos cheios, pobres que frequentam lugares que
deixam de ser exclusivos, que têm acesso à Universidade, tudo isto é causa de profundo
ressentimento. E os culpados estão ali, nos que governam e roubam o país, ou melhor me
roubam, para continuar no poder, pois sem isto não se explica, nesta perspectiva, como
b) O Libertarianismo
austríaca que cria uma interpretação da sociedade, da economia e da ética que serve
nos Estados Unidos, Ludwing von Mises. Entre os principais ideólogos desta corrente de
37
Para uma melhor compreensão desta corrente de pensamento veja-se: L. Von Mises, As seis lições,
Reflexões sobre o hoje e amanhã, LVM Editora, São Paulo, 2017 ; H-H Hoper, Uma Teoria do Socialismo
17
próprio corpo e que inclui todos os bens que possa adquirir. Deste direito fundamental
defender minha propriedade através de qualquer meio, revidando qualquer ataque com os
propriedade. Por isto esta corrente é conhecida seja como libertarianismo seja como
anarcocapitalismo. O livre mercado é tido como sendo a única instituição ética. Qualquer
contrato entre dois indivíduos no mercado livre é considerado como sendo essencialmente
ético. Todos devem ser compreendidos como portadores dos mesmos direitos em um
mercado livre, isto é, como portadores do único direito fundamental: dispor de sua
propriedade como achar melhor, segundo seus objetivos e as estratégias adotadas para
News nas últimas eleições em diversos países, é que M. Rothbard, defende a sua
legitimidade ética em todo um capítulo de sua obra Ética da Liberdade38. Segundo este
autor para que cada indivíduo possa melhor traçar suas estratégias para atingir seus
objetivos, ele deve poder dispor de todas as informações possíveis e ninguém tem o
direito de selecionar quais informações ele deva receber, mesmo baseado em um critério
conceito utilitarista da verdade, que de fato elimina qualquer relação objetiva entre uma
e do Capitalismo, Instituto Ludwig Von Mises Brasil, São Paulo, 2013; M. Rothbard, Anatomia do Estado,
LVM, São Paulo, 2018 e M. Rothbard. A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig Von Mises Brasil, São
Paulo, 2010.
38
M. Rothbard. A Ética da Liberdade...,p.187-195.
18
ninguém pode ser responsabilizado. Assim, se alguém consumir todo o seu capital para
gozar a vida na juventude e não poupar para a velhice, morrerá na miséria coerentemente
com seus objetivos e estratégias e ninguém deve ser obrigado a socorrê-lo. O mesmo se
tabaco, por exemplo, não deve ter nenhum socorro social se adoecer por causa deste uso.
Temos aqui uma concepção do Estado Mínimo muito mais radical do que a
promulgada pelo Neoliberalismo. Nem saúde, nem educação, nem previdência, nem
segurança pública, nem justiça. O Estado é sempre ineficiente e todo imposto é uma
agressão à propriedade. Todo grupo político que chega ao poder no estado passa a usar o
isto. A segurança deve estar na mão de seguranças privados contratados inclusive para
exercer a justiça criminal, o exército deve ser composto por pouco homens e a defesa
garantida por grupos mercenários especializados. A justiça civil deve ser exercida por
No Brasil, este pensamento é produzido e divulgado pelo Instituto Mises Brasil, onde
Livre entre outros. Um partido no Brasil assumiu esta ideologia como sua: o partido
individuo ressentido das classes médias brasileiras aprende como nomear o autor da
modo especial os de esquerda, categoria que passa a incluir todos os que de algum modo
expropriando a propriedade da classe média. Os pobres são vistos como indivíduos que
serem vagabundos ou por outro vício moral, e exigem posteriormente serem socorridos.
Estes devem ser abandonados à própria sorte, arcando com as consequências de suas
escolhas. O mérito deve ser o único critério de ascensão social e ele inclui
mimimi de perdedores, onde são incluídos afrodescendentes, mulheres, e lgbts que não
Esta ideologia conflita em sua raiz com a Doutrina Social da Igreja. Desde a
Rerum Novarum até a Laudato Si’, o Estado é compreendido com um bem, pertencendo
à ordem da criação, pois os homens foram criados para a vida social e esta exige um
social é compreendida não como caridade opcional, mas como dever de justiça e
20
toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos
como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical:
o que é a justiça?” (DCE 28). A Justiça tem por base a Ética e também Bento XVI afirma:
específico para dar, que se funda na criação do homem « à imagem de Deus » (Gn 1,
27), um dado do qual deriva a dignidade inviolável da pessoa humana e também o valor
transcendente das normas morais naturais. Uma ética econômica que prescinda destes
mesmos. Além do mais, acabaria até por justificar o financiamento de projetos que não
são éticos” (CV 45). A defesa dos direitos dos pobres e das minorias é central na Doutrina
direito absoluto à propriedade privada, como único principio e valor universalizável que
legitima inclusive qualquer forma de violência para sua defesa. Esta concepção é
a propriedade privada nunca foi compreendida como sendo um princípio absoluto, antes
21
pelo contrário, sempre se afirmou sua subordinação ao Bem Comum. Desde a Patrística
se afirma o Princípio da Destinação Universal dos Bens segundo o qual Deus criou os
bens da terra para satisfazer a necessidade de todos os homens e mulheres. Baseado neste
princípio São Basílio Magno escreveu, no século IV, em sua famosa homilia sobre Lucas
12, 16-21 as seguintes palavras, que traduzem a doutrina comum dos Padres da Igreja:
“O que faço de errado, diz ele, guardando o que é meu? Dize-me, de que modo é teu?
Donde tiraste, tomando-o para teu sustento? É como alguém que, indo ao teatro, se
seu aquilo que é comum a todos os que se apresentam, conforme lhes parece bem. Assim
são os ricos. Pois, apoderando-se primeiro do que é de todos, tudo tomam para si por
uma falsa ideia. Se cada um tirasse para si o que lhe é necessário e entregasse ao
indigente o que sobra, ninguém seria rico, ninguém pobre. Não saíste nu do útero e não
retornarás nu para a terra (cf. Jó 1,21)? Os bens que possuis, de onde vêm? Se dizes que
provêm do acaso, és ímpio, não reconhecendo o Criador e não dando graças ao doador.
Se, ao invés, admites que são de Deus, dize-me por que os recebeste. É talvez injusto
Deus, que nos distribui os meios de subsistência de modo desigual? Por que tu és rico e
quando procuras abarcar tudo nos insaciáveis ventres da avareza, julgas não fazer
que não se contenta com aquilo que lhe é suficiente. Quem é o ladrão? Quem tira aquilo
que é de outro. Não és avaro? Não és ladrão, tu que fazes tua a propriedade que recebeste
para administrar? Quem espolia alguém que está vestido é tido como ladrão; e quem,
podendo fazê-lo, não reveste quem está nu merecerá outro nome? O pão que tu reténs
pertence ao faminto, o manto que guardas no armário é de quem está nu; os sapatos que
22
necessitado. Porque tantos são aqueles aos quais fazes injustiças, quantos aqueles que
poderias socorrer.39”
São Tomas de Aquino na Suma Teológica, trata da questão da propriedade dos bens
na questão LXVI, da IIa IIae. No primeiro artigo dessa questão São Tomás afirma o
princípio da Destinação dos Bens e a legitimidade da posse dos mesmos pelos homens e
mulheres para que estes possam satisfazer a necessidade de todos, citando o Salmo 8,8.
Trata-se aqui não da posse privada, mas do ato de possuir. No segundo artigo defende a
porque como cada um trata melhor o que é seu do que é comum, os bens destinados a
todos podem ser melhor aproveitados se cada um possui uma parte dos bens de modo
privado. Fala-se então que a propriedade privada é de Direito Natural secundário, pois
sua legitimidade está condicionada e subordinada à Destinação Universal dos Bens. Isto
é, segundo São Tomás, os bens destinados a satisfazer a necessidade de todos são melhor
se torna um obstáculo a que estes bens possam satisfazer a todos, ela não é legítima. Este
recordar mais uma vez o principio típico da doutrina social cristã: os bens deste mundo
necessário, mas não anula o valor de tal principio. Sobre a propriedade, de fato, grava
«uma hipoteca social»” (SRS 42). Não há nenhuma compatibilidade possível entre os
39
Para o texto completo veja-se Restituto Sierra Bravo, Doctrina Social..., p.169-178, p. 177. M.G.,
31,261-277.
23
c) O Neopentecostalismo no Brasil
Como já referido, Tom Wolfe em seu ensaio a “Década do Eu” já havia percebido
com clareza em meados da década de 70 o papel que o cristianismo carismático iria ter
nas próximas décadas a partir da Crise da Modernidade. Neste ensaio ele escrevia: Hoje
em 1960 Walter Robert Maclister funda a Igreja Pentecostal de Nova Vida, de onde saem
depois para fundar suas Igrejas Neopentecostais tanto Edir Macedo (Igreja Universal do
40
T. Wolfe, op cit, p.361
24
Reino de Deus, 1977) como Romildo Ribeiro Soares (Igreja Internacional da Graça de
Deus, 1980). Também são Neopentecostais as Igrejas Comunidade Sara Nossa Terra,
adeptos, através de uma massiva programação nas televisões e nas rádios o que tem sido
logrado é uma grande transformação na cultura brasileira que parece substituir seu ethos
católico por um ethos neopentecostal. Esta mudança também tem sido possível graças ao
como “Só Jesus no comando”, “Deus está te dando um manto”, “Eu calcei sapatos de
fogo”, “Irmão vai soprar um vento na sua vida”, “Estou contigo neste decai”, “Deus vai
amassar vasos nesta noite”, “Dar Livramento” tornam-se comuns. Trata-se de uma nova
visão de mundo que tem em seu fundamento a Teologia do Domínio, também conhecida
41
Veja-se A. Gouvêa Mendonça e P. Velasques Filho, Introdução ao Protestantismo no Brasil,
Loyola, São Paulo, 1990, p. 46-60; Também Ari Pedro Ouro, A. Corten, J-P Dozon (orgs) A Igreja
Universal do Reino de Deus. Os novos conquistadores da fé, Paulinas, São Paulo, 2003.
42
Veja-se M Bingemer e P Andrade (orgs), O Censo e as religiões no Brasil , ED Reflexão, 2014.
43
Veja-se C. Steil Renovação Carismática Católica: porta de entrada ou de saída do Catolicismo?
Uma etnografia do Grupo São José, em Porto Alegre (RS), Religião e Sociedade, v 24, n 1, 2004, p. 11-
36.
25
o Evangelho de Bartolomeu (que incorpora parte da Vida de Adão e Eva)44. Nestes textos
é narrado que após criar a Terra e ao homem, à Sua imagem e semelhança, Deus convoca
a corte celeste para prestar homenagem a Adão. Os Arcanjos Miguel, Gabriel e Uriel
prestam homenagem a Adão, mas Satanás, também um poderoso Arcanjo, se recusa fazê-
lo afirmando: “Eu fui feito de fogo e água e com anterioridade a esta criatura; eu não
adoro o barro da Terra” e então se coloca contra Deus ameaçando-o. Deus se enfurece e
Terra junto com os anjos que o seguiam e que também se recusaram a prestar homenagem
a Adão. Satanás, agora inimigo de Deus torna-se inimigo de Adão, causa de sua queda.
Seduz a Adão e Eva que caem na sedução e desobedecem a Deus. Deste modo o demônio
ganha domínio sobre a Terra e sobre os homens e mulheres e usa este domínio para fazê-
los sofrer. Deus, porém, envia Jesus para salvar os homens e mulheres, retirando para
batalhas tendo de um lado Deus e seus Anjos e do outro Satanás e seus Companheiros, os
44
Para A Vida de Adão e Eva veja-se o texto em Daniel-Rops, La Bible Apocryphe em marge de
lÁncien Testament, Cerf-Fayard, Paris, 1975 p. 215-221. Para o Evangelho de Nicodemos veja-se M
Craveri, I Vangeli Apocrifi, Einaudi, Turim, 1976, p. 299-377. Para O Evangelho de Bartolomeu veja-se
A. Santos Otero, Los Evangelios Apocrifos. Edición Critica y Bilingüe, BAC, Madri, 1983, p.530-566
26
mulheres, tem domínio sobre as nações, famílias, pessoas e usa as chamadas brechas, isto
é, atos de rebeldia à vontade de Deus feito pelos homens e mulheres, para ter poder sobre
eles e dominá-los. A Guerra um dia será vencida por Deus e seus Anjos. Deus oferece
tomem a decisão de se colocar ao lado de Deus nesta Guerra aceitando a salvação trazida
por Jesus. O modo de se colocar do lado de Deus é tornar-se seu sócio, renunciando a
Satanás e entregando através da Igreja seus bens a Deus45. É neste ponto que a Teologia
dízimo dou parte dos meus ganhos a Deus, este se torna meu sócio e tira o poder do
Demônio de minha vida. Sem o demônio para me prejudicar, prospero na vida. Meus
negócios correm bem e tenho sucesso na vida profissional e afetiva, obtenho saúde, etc...
Note-se que a noção de conversão é reduzida a aceitar Jesus e tornar-se sócio de Deus
modo diminuída, pois os atos contrários à vontade de Deus que cometo são frutos da
influência do demônio que me domina. Deus ao retirar este domínio faz com que os atos
que pratico sejam bons. A noção de moralidade é ambígua, pode-se mesmo cometer atos
ilícitos se estes forem colocados à serviço de Deus na Batalha Espiritual. Christina Vital
que frequentam as Igrejas Neopentecostais, pagam dízimo e têm seu trabalho abençoado.
45
Para justificar esta posição nas Igrejas Neopentecostais são referidas de modo especial algumas
citações bíblicas Antigo e Neotestamentárias tais como: Gn 3,15; Mt 4, 1-112Cor 10,3-5;Rm 13.12-14; Is
52,7-9, Is 59,17; Efe 4,15; Ef 6,13-18.
46
C. Vital da Cunha, Oração de Traficante. Uma etnografia, Garamond, Rio de Janeiro, 2015.
27
Em sua etnografia Christina recolhe uma oração feita na época da pesquisa na rádio
comunitária de Acari, todos os dias, as 5:30 da manhã, por um traficante: “Senhor: Fazei
com que a vida torta que eu vivo sirva para ajudar as pessoas a viver uma vida melhor e
direita. Senhor: Eu te peço Senhor, que neste dia, nesta manhã, como em todos os dias,
proteja os trabalhadores que saem agora para o trabalho. Proteja as crianças que saem
comunidade. Que o Senhor ilumine suas cabeças e toque seus corações e os livre da
ganância e do egoísmo e olhem para o bem que busquem o melhor para nosso moradores
sofridos e pesados pelos governantes poderosos. Senhor: eu te peço proteção não para
mim, mas para meus amigos. Que os livre da morte, Senhor que eles não sejam mortos
covardemente e que não matem nenhum polícia ou inimigo que venham atacar nossa
favela. Em nome de ti, Senhor é só o que peço. Agora vamos orar uma oração que todos
conhecem e que serve para todas as religiões: Pai Nosso que estais no Céu...”47. Dentro
brasileiras como demoníacas, a violência dos traficantes evangélicos tem sido usada para
religiões de matriz africana do território das Comunidades. Este é um outro modo como
territorial de Satanás.
classes populares. Segundo os dados do Censo de 2010, 63,7% de seus fiéis ganham
47
Ibidem, p.381-382.
28
Existem hoje Igrejas neopentecostais voltadas para a classe média e até mesmo para
ao seu modo também um forte suporte para o ressentimento e de certo modo sua
instituição dominada pelo demônio que o usa para prejudicar e subjulgar as pessoas. Os
políticos são instrumentos dos demônios para exercer este domínio. Quando meu filho
entra para a Universidade por meio da política de cotas vejo nisto apenas um dom, um
presente de Deus que afastou o demônio de minha vida, e não uma oportunidade gerada
Desta maneira aqui também se aprende a nominar aquele que me prejudica, me injuria:
inclusive perversões morais e sexuais aos políticos para demonstrar como estes estão
ligados aos demônios e são seus instrumentos. As Fake News amplamente utilizadas nas
campanhas eleitorais são aceitas como verdade a priori, pois se encaixam plenamente na
lógica narrativa mais ampla da Batalha Espiritual. Elas apenas confirmam o que já se
sabia.
se eleger homens e mulheres que sendo Pastores e pessoas da Igreja sabem lidar com os
demônios e conter seu poder. Tudo se resume à Batalha Espiritual, ao cuidado das pessoas
nesta Batalha, conforme a campanha para prefeito do Bispo Crivella no Rio de Janeiro.
Estado é visto como intrinsicamente mau, produz alianças no Congresso entre a bancada