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Publicado como "Introduction"em Abbot Suger


on the Abbey Church ai St-Denis and Its Art
Treasures, Princeton, Princeton University Press,
1946, pp. 1-3'1.
4. Publicado (em colaboração com F. Saxl) Como
"A Late-Antique Religious Symbol in Works by
Holbein and Titian" em Burlington Maggarlne,
XLIX, 1926, pp. 177-81. Ver também Hercules
am Scheidewege und andere antike Bildstoi]e in
der neueren Kunst (Studien der Bibliothek War-
burg, XVIII), Leipzig e Berlim, B. G. Teubner,
1930, pp. 1-35.
5. Publicado como "Das erste Blatt aus dem 'Libra'
Giorgio Vasaris; eine Studie über der Beurteilung
der Gotik in der italienischen Renaissance mit
einem Exkurs über zwei Fassadenprojekte Dome-
nico Beccafumis" em Stddel-Iahrbuch, VI, 1930,
pp. 25-72.
6. Publicado como "Dürers Stellung zur Antike" em
lahrbuch iiir Kunstgeschichte, I, 1921/22, pp.
43-92.
7. Publicado como "Et in Arcadia ego: ·On the Con-
ception of Transience in Poussin and Watteau"
em Philosophy and History, Essays Presented to
Ernst Cassirer, R. Klibansky & H. J. Paton, eds.,
Oxford, Clarendon Press, 1936, pp. 223-54. INTlÚ)DUÇÃO: A HISTÓRIA DA AI;;'lE COMO
EPíLOGO, publicado como "The History of Art" UMA DISCIPLINA HUMANÍSTICA
em The Cultural Migraiion: The European Scholar
in America, W. R. Crawford, ed., Filadélfia, Uni- I
versity of Pennsylvania Press, 1953, pp. 82-111.
Nove dias antes de sua morte, Emmanuel Kant
recebeu a visita de seu médico. Velho, doente e quase
Abreviaturas
cego, levantou-se da cadeira e ficou em pé, tremendo
de fraqueza e murmurando palavras ininteligíveis. Fi-
B: A. Bartsch, Le Peintre-graveur, Viena, 1803-1821. nalmente, seu fiel acompanhante compreendeu que ele
não se sentaria antes que sua visita o fizesse. Este
L: F. Lippmann, Zeichnungen von Albrecht Dürer in assim fez e só então Kant deixou-se levar para sua
Nachbildungen, Berlim, 1883-1929 (v. VI e VII,
F. Winkler, ed.).
cadeira e, depois de recobrar um pouco as forças,
disse: "Das Gefühl für Humanitat, hat mich noch
nicht verlassen" - "O senso de humanidade ainda

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não me deixou" 1. Os dois homens comoveram-se até entre humanitas e divinitas. Quando Mãrsílio Ficino
às lágrimas. Pois, embora a palavra Humanitiit apre- define o homem como '~/TIa alma racional, partici-
sentasse, no século XVIII, um significado quase igual pando do intelecto de Deus, mas operando num cor-
a polidez ou civilidade, tinha, para Kant, uma signi- po", define-o como o único ser que é ao mesmo tempo
ficação muito mais profunda, que as circunstâncias do autônomo e finito. E o famoso "discurso" de Pico,
momento serviram para enfatizar: a trágica e orgulhosa " bre a dignidade. do homem", é tudo menos um
consciência no homem de princípios por ele mesmo d cumento do paganismo. Pico diz que Deus colocou
aprovados e auto-impostos, contrastando com s~a t~tal O homem no centro do universo para que pudesse ter
sujeição à doença, à decadência, e a tudo o que implica consciência de seu lugar e assim ter liberdade para de-
o termo "mortalidade". cidir "aonde ir". Não afirma que o homem é o
Historicamente, a palavra humanitas tem tido dois centro do universo, nem mesmo no sentido comu-
2ignificados claramente distin uíveis, o ri~eiro oriun- mente atribuído à frase clássica, "o homem é a medida
do do contraste entre o homem e o que e menos que de todas as coisas".
êste' o se undo entre o homem e o ue é mais que Uessa con,gQç.fuL.a!l1!2Lv.a!enteAe humanitas ue
ele. No rimeire c~so, humanitas si nifica um va or, o humanismo nasceu. Não é tanto um movimento co-
no se undo uma limitação. mo.~_m~Jude, ,qu~p;de-s~ dclinid;'co~õ oo~::-
a
O conceito de humanitas como valor foi Iormu- vicção,' d~jgnjdaº~ ,.Q.Q.•.J?-om~~L !!..l!.,~~a.2..i1,.2Q,~m~s!po
lJ v w..c lado dentro do círculo que rodeava Cipião, o Moço, t(!Q1PO,n.iLJ!!~istêqdª s09~ ~~~~valor~~~"hu~n~o.s(ra-
sendo Cícero seu tardio,- porém mais explícito, deferi- çionalidade. e_.1iberdª<1e)e l,la~acçit~çã<?" d~~J.il11Ítaçõe~
1 soro Significava a qualidade que distingue o homem, hu..t!!çma§(fª1i2ili4age_e fragilidade); daíJ~sultªm. dois
~ " LM não apenas dos animais, mas também, e tanto mais, postulados: resQonsabilidade e tolerância.
,.>;r..~..."...,. .""-'-"""~
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=--:-:.""" ........, '. ,-
!:t:u. lJJ-.( ~ daquele que pertence à espécie, H omo sem ~er~c~r o
Não é de admirar que essa atitude tenha sido
l,v'-'-. nome de Homo humanus; do barbaro ou do indivíduo
atacada de dois campos opostos, cuja aversão comum
vulgar que não tem pietas e muõeia - ou seja, res- aos ideais de responsabilidade e tolerância os alinhou,
peito pelos valores morais e aquela graciosa mistura
recentemente, numa frente unida. Entrincheirados
de erudição e urbanidade que só podemos circunscre-
num desses campos encontram-se aqueles que negam
ver com a palavra, já muito desacreditada, "cultura".
os valores humanos: os deterministas, quer acreditem
Na Idade Média este conceito foi 'substituído pela na predestinação divina; física ou social, os partidários
idéia de humanidade como algo oposto à divindade do. auroritarisrno e os "insetólatras", que pregam a
mais do que à animalidade ou barbarismo. As quali- suma importância da colmeia, denomine-se ela grupo,
dades mais comum ente associadas a ela eram, portanto, classe, nação ou raça. No outro campo encontram-se
as da fragilidade e transitoriedade: humanitas [ragilis, aqueles que negam as 'limitações humanas; em favor
humanitas caduca. ..
de uma espécie de libertinismo intelectual ou político,.
Assim, a concepção renascentista de humanitas como os estetas, vitalistas, intuicionistas e veneradores
tinha um aspecto duplo desde o princípio. O novo de heróis. Do ponto de vista do determinismo, o
interesse no ser humano baseava-se tanto numa reno- humanistaé ou uma alma penada ou um ideólogo.
vação da antítese clássica entre humanitas e barbaritas Do ponto de vista do autoritarismo, ou é um herético
ou [eritas, quanto na aparição da antítese medieval ou uni revolucionário (ou um contra-revolucionário) .
1. WASIANSKI, E. A. C. Immanue! Kant in seinen !etzten
Do ponto de vista da "insetolatria", é um individua-
Lebensjahren (Ueber Immanue! Kant, 1804, v. llI). Reedl.tado lista inútil. E, do ponto de vista do libertinismo, um
em Immanue! Kant, Sein Leben in Darste!!ungen van Zeltge-
nassen, Berlim, Deutsche Bibliotek, 1912, p. 298. burguês tímido.

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Erasmo de Roterdã, o humanista par excellence, ls O porque, se era possível considerar a existência
é um caso típico. A Igreja suspeitava e, em última humana como um meio mais do que um fim, tanto
análise, rejeitava os escritos desse homem que dissera: menos poderiam os registros da atividade humana ser
"Talvez o espírito de Cristo esteja muito mais difun- , nsiderados como valores em si mesmos 3.
dido do que pensamos; e haja muitos na comunidade No escolasticismo medieval, não há, portanto,
dos santos que não façam parte de nosso calendário". 1\ snhuma distin ão básica entre ciência natural e o ue
O aventureiro Ulrich von Hutten desprezava seu ceti- ')Jamamos de humanidades studia umanLOra, ara
cismo irônico e o caráter nada heróico de seu amor .itar de novo uma frase erasmiana, O exercício de
umbas, na mêciIêiâ eillque era desenvolvido em geral,
H

pela tranqüilidade. E Lutero, que insistia em afirmar


que "nenhum homem tem poder para pensar algo de p .rmaneceu no quadro do que era chamado de filo-
bom ou mau, mas tudo lhe ocorre por absoluta necessi- nf'ia. Do p..!.~s~a!,lumaIlís!!c.o,_entretanto tomou-se
dade", era incensado por uma crença que se manifestou ruzoável, e a.!,é..inevitável, gis.!!n~i!,_ dentro E.Q .E..l!-m o
na frase famosa: "De que serve o homem como tota- ª
I, 'riação,_entrlLF esf~ra q~_nªtur:...~zaIt _e~fera~cllt
lidade [isto é, o homem dotado com corpo e alma], cultura, e defi~i!:..lLP~!'pei~~ corp r.~fEêp.cica _}L. última
i. 6, natureza como a totalidade do mundo acessível
se Deus trabalhasse nele como o escultor trabalha a
argila, e pudesse do mesmo modo trabalhar a pedra?" 2
,fi S sentidos, -ex~etuandô.:sê ósregistros"'(jé{nidos
liame!!]. -- .c_ ~. ~ . ~-.- _. ----
e.eiõ
~

O homem é, na verdade, o único animal que deixa


registros atrás de si, pois é o único animal cujos pro-
11
dutos "chamam à mente" uma idéia que se distingue
da existência material destes. Outros animais empre-
O humanista, ~nto rej~ita a autoridade; mas gam signos e idéiam estruturas, mas usam signos sem
respeita a tradição. Não apenas a respeita, mas a vê "perceber a relação da significação" 4 e idéiam estru-
como algo real e objetivo, que é preciso estudar, e, se turas sem perceber a relação da construção.
necessário, reintegrar: "nos vetera instauramus, nova
non prodimus", corno diz Erasmo. 3. Alguns historiadores parecem incapazes de reconhecer
contíriuídades e distinções ao mesmo tempo. É inegável que o
numanísmo e todo o movimento renascentista não surgiram de
A Idade Média aceitou e desenvolveu mais do r pente, 'como Atená da cabeça de Zeus. Mas, o fato de Lupus
que estudou e restaurou a herança do passado. Copiou d Ferriêres ter emendado textos clássicos, de Hildebert de
Lavardín ter um sentimento profundo pelas ruínas romanas,
as obras de arte clássicas e usou Aristóteles e Ovídio, dos eruditos ingleses e franceses do século XII terem revivido
o filosofia e mitologia clássicas, e de Marbod de Rennes ter
do mesmo modo que copiou e usou as obras dos con- scrtto um belo poema pastoral sobre sua província natal, não
SIgnifica que sua perspectiva fosse idêntica à de Petrarca, sem
temporâneos. Não fez nenhuma tentativa de interpre- rolarmos de Erasmo ou Ficino. Nenhum homem do medíevo
tá-Ias de um ponto de vista arqueológico, filosófico poderta ver a civilização da Antigiiidade como um fenômeno
ompleto em si mesmo e historicamente desligado do mundo
ou "crítico", em suma, de um ponto de vista histórico. d sua época; tanto quanto sei, o latim medieval não possui
qulvalente para o termo humanista antiquitas ou sacrosancta
vetustas. E, assim como era impossível para a Idade Média
2. Para as citações de Lutero e Erasmo de Roterdã, ver laborar um sistema de perspectivas baseado na percepção de
a excelente monografia Humanitas Erasmiana de R. PFEIFFER, uma distância fixa entre o olho e o objeto, também era impra-
Studien der Bibliotek Warburg, XXII, 1931. É significativo que ticável, para essa época, desenvolver uma concepção de disci-
Erasmo e Lutero tenham rejeitado a astronomia judicial ou plinas históricas baseada na percepção de uma distância fixa
fatalística por razões totalmente diferentes: Erasmo recusava- entre o presente e o passado ·clássico. Ver E. PANOFSKY e F.
-se a acreditar que o destino humano dependesse dos movi- SAXL, Classical Mythology in Mediaeval Art, em Studies oi the
me~tos inalteráveis dos corpos celestes, porque tal crença impor- Metropolitan Museum, IV, 2, 1933, p. 228 e ss., sobretudo a p. 263
tarta na negação do livre-arbítrio e responsabilidade humanos; . e ss., e, recentemente, o interessante artigo de W. S. HECKSCHER,
Lutero, porque redundaria numa restrição da onipotência de Relics of Pagan Antiquity in Mediaeval Settings, Journal ot
D«:us. Lutero, portanto, acreditava na significação dos terata, the Warburg Institute, I, 1937, .p. 204 e ss.
tais como bezerros de oito patas etc., que Deus poderia fazer 4. Ver J. MAruTAm,Sign and Symbol, Journal of the War-
aparecer a intervalos irregulares. burg Institute, I, p. 1 e ss.

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Perceber a relação da significação é separar a
t ntam transformar a caótica variedade dos registros
idéia do conceito a ser expresso dos meios de expres-
humanos no que se poderia chamar de cosmo da '\
são. E perceber a relação de construção é separar
.ultura.
a idéia da função a ser cumprida dos meios de cum-
pri-Ia. Um cachorro anuncia a aproximação de um Há, apesar de todas essas diferenças de temas e
estranho por um latido diferente daquele que emite pro eclimento, analogias extraordinárias entre os pro-
para dar a conhecer que deseja sair. Mas não utilizará bl 'mas metódicos que o cientista, de um lado, e o
este latido particular para veicular a idéia de que um hurnanista, de outro, precisam enfrentar 5.
estranho apareceu durante a ausência do dono da casa. Em ambos os casos, o processo de pesquisa pa-
E muito menos irá um animal, mesmo se estivesse, do I' •• começar com a observação. Mas, quer o obser-
ponto de vista físico, apto a tanto, como os macacos vndor de um fenômeno natural, quer o examinador de
indubitavelmente o estão, tentar alguma vez representar 11111 rc listra não ficam só circunscritos aos limites do
algo numa pintura. Os castores controem diques. Mas tlcnucc de sua visão e ao material disponível; ao diri-
são incapazes, ao. que sabemos, de separarem as com- 1-11r 11 atenção a certos objetos, obedecem.. consciente-
plicadíssimas ações envolvidas neste trabalho a partir 111 ute ou não, a um princípio de seleção prévia ditado
de um plano premeditado, que poderia ser posto em por uma teoria, no caso do cientista, e por um conceito
desenho em vez de materializado em troncos e pedras. g .ral de história, no do humanista. Talvez seja ver-
Os signos e estruturas do homem são registros dade que "nada está na mente a não ser o que estava
porque, ou antes na medida em que, expressam idéias nos sentidos"; mas é pelo menos igualmente verda-
separadas dos, no entanto, realizadas pelos, processos de deiro que muita coisa está nos sentidos sem nunca
assinalamento e. construção. Estes registros têm por- penetrar na mente. Somos afetados principalmente
tanto a qualidade de emergir da corrente do tempo, e p r aquilo que permitimos que nos afete; e, a~sim
é precisamente neste sentido que são estudados pelo .omo a ciência natural involuntariamente seleciona
humanista.Este é, fundamentalmente, um historiador. "quilo que chama de fenômeno, as humanidades sele-
'i nam, involuntariamente, o que chamam de fatos
Também o cientista trabalha com registros hu- históricos. Desse modo as humanidades alargaram,
. manos, sobretudo com as obras de seus predecessores. gradualmente, seu cosmo cultural, e em certa medida
Mas, ele os trata, não como algo a ser investigado e ti 'sl caram o centro de seus interesses. Mesmo aquele
sim como algo que o ajuda na investigação. Noutras '1\1', instintivamente, simpatiza com a definição sim-
palavras, interessa-se pelos registros, não à medida que -plista de humanidades como "latim e grego" e consi-
emergem da corrente do tempo, mas à medida que ti .ra essa definição como essencialmente válida desde
são absorvidos por ela. Se um cientista moderno ler que usemos idéias e expressões como, por exemp!o,
Newton ou Leonardo da Vinci no original, ele o faz "idéia" e "expressão" - mesmo tal pessoa precisa
não como cientista, mas como homem interessado na admitir que ela se tornou um pouco estreita demais.
história da ciência e, portanto, na civilização humana Além do mais, o mundo das humanidades é deter-
em geral. Em outros termos, ele o faz como humanista,
minado por uma teoria cultural da relatividade, com-
para quem as obras de Newton e Leonardo da Vinci parável à dos físicos; e, visto que o mundo dã- cultura-
possuem Um significado autônomo e um valor dura-
6 bem menor que o da natureza, a relatividade cultural
douro. Do ponto de vista humanístico, os registros
humanos não envelhecem. 5. Ver E. WIND, Das Experiment und die Metaphysik, Tübin-
li o, 1934, e idem, "Some Points of C<;mtact between Hístory
Assim, enquanto a ciência. tenta transformar a Ilord Natural Science", Philosophy and Htstory, Essays Present~d
caótica variedade dos fenômenos naturais no que se to Ernst Cassirer, Oxford, 1936, p. 255 e ss. (com uma d:scussao
multo Instrutiva sobre o relacionamento entre os feno~enos,
poderia chamar de cosmo da natureza, as humanidades O instrumentos e o observador, de um lado, e os fatos hístórtcos,
iI documentos e o historiador, de outro).

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25
I
prevalece no âmbito das dimensões terrestres e foi P nto, por uma teoria ou por uma concepção histórica

íl
observada muito antes. '
Todo ~onceito histórico baseia-se, obviamente,
cnérica. Isso é ainda mais evidente dentro do próprio
pr cesso, onde cada passo rumo ao sistema que "faça
\
~ nas categonas do espaço e tempo. Os registros, e sentido" pressupõe os precedentes e os subseqüentes.
tudo o que implicam, têm que ser localizados e data- Quando o cientista observa um fenômeno usa
dos. Mas, acontece que esses dois atos são na reali- Instrumentos que se acham, por seu turno, sujeitos às
dade, dois aspectos de uma e mesma coisa, Se eu I 'is da natureza que pretende explorar. Quando um
disser que uma pintura data de cerca de 1400, essa humanista examina um registro, usa documentos que
afirmação não teria o mínimo sentido ou importância, Rc 0, por sua vez, produzidos no decurso do processo
a. menos que pud~sse indicar, também, onde foi produ- que pretende investigar.
zida nessa data; Inversamente, se eu atribuir uma pin-
Suponhamos que eu descubra, nos arquivos de
tura à escola florentina, preciso ser capaz de dizer
urna cidadezinha do vale do Reno, um contrato, da-
quando foi produzida, por essa escola. O cosmo da
cultura, como o cosmo da natureza, é uma estrutura tado de 1471, e complementado pelos registros de
espaço-temporal. O ano de 1400 em Florença é total- pagamento, segundo os quais o pintor local "Johannes
mente diferente do ano de 1400 em Veneza, para não qui et Frost" recebeu a incumbência de executar, para
falarmos de Augsburgo, Rússia ou Constantinopla. u Igreja de St. James dessa cidade, um retábulo com
Dois fenômenos históricos são simultâneos ou apresen- n Natividade ao centro, e São Pedra e São Paulo,
tam uma relação temporal entre si, apenas na medida um de cada lado; suponhamos, ainda mais, que eu
em que é possível relacioná-Ias dentro de um "quadro ncontre, na Igreja de St. James, um retábulo corres-
de referência", sem o qual o próprio conceito de si- p ndendo a esse contrato. Este se-ia o caso em que
multaneidade não teria sentido na história assim como 11 documentação é tão boa e simples quanto se poderia

na física. Se soubéssemos, por uma certa concate- querer encontrar, melhor e mais simples do que se
nação de circunstâncias, que uma dada escultura negra precisássemos lidar com uma fonte "indireta", como
foi executada em 1510, não teria sentido dizer que se uma carta, uma descrição numa crônica, biografia,
trata de uma obra "contemporânea" ao teto da Capela diário ou poema. No entanto. ainda assim, muitos
Sistina, de Michelangelo 6. problemas se apresentariam.
Concluindo, a sucessão de passos' pelos quais o O documento pode ser um original, uma cópia
material é organizado em cosmo natural ou cultural Ou uma falsificação. Se for uma cópia, rode ser de-
é análoga, e o mesmo é verdade com respeito aos rei tuosa e, mesmo se for um original, é possível que
problemas metodológicos que esse processo implica. O algumas das informações sejam incorretas. O retábulo,
primeiro passo é, como já foi mencionado, a observa- p r sua vez, pode ser aquele aludido no contrato; mas
ção dos fenômenos naturais e o exame dos registros possível também que o monumento original tenha
humanos. A seguir, cumpre "descodificar" os registros sido destruído durante os distúrbios iconoclásticos de
e interpretá-Ias, assim como as "mensagens da natu- 1535 e substituído por outro retábulo pintado com os
reza" recebidas pelo observador. Por fim, os resul- mesmos temas, mas executado, por volta de 1550, por
tados precisam ser classificados e coordenados num um pintor de Antuérpia.
sistema coerente que "faça sentido".
Agora já vimos que mesmo a seleção do material Para chegar a um certo grau de certeza, teríamos
para observação e exame é predeterminada, até certo de "conferir" o documento com outros de data e ori-
gem similar, e o retábulo com outras pinturas executa-
. 6. Ver. e.g:. E. PANOFSKY, Ueber die Reihenfolge der vier das no vale do Rena por volta de 1470. Mas aqui
Meíster von Reíms (Apêndice). em Jahrbuch für Kunstwissens-
chajt; 11. 1927. p. 77 e' ss, surgem duas dificuldades.

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Primeiro, "conferir" é, obviamente, impossível 111 monumentos e documentos individuaisç.do mesmo
sem sabermos o que "conferir"; cumpriria, escolher modo, a compreensão dos fenômenos naturais e O em-
certos aspectos ou critérios, como certas formas de prego dos instrumentos científicos dependem de uma
escrita, ou alguns termos técnicos usados no contrato, teoria física generalizada e vice-versa. Essa situação,
ou alguma peculiaridade formal ou iconográfica do ,110 entanto, não é, de jeito algum, um beco sem saída.
r:,tábulo. Mas, já que não podemos analisar o que 'ada descoberta de um fato histórico desconhecido,
nao compreendemos, nosso exame pressupõe descodifi- toda nova interpretação de um já conhecido, ou se
cação e interpretação. "encaixará" na concepção geral predominante, enri-
Segundo, o material com o qual aferimos nosso quecendo-a e corroborando-a por esse meio, ou então
problemático caso, não se apresenta, em si, mais au- acarretará uma sutil ou até fundamental mudança na
tenticado do que o caso em questão. Tornado indivi- concepção geral predominante, lançando assim novas
dualmente, qualquer outro monumento assinado e da- luzes sobre tudo o que era conhecido antes. Em
tado é tão duvidoso quanto o encomendado a "Johan- ambos os casos, o "sistema que faz sentido" opera
nes qui et Frost", em 1471. (É por si mesmo evidente . mo um organismo coerente, porém elástico, com-
que uma assinatura aposta num quadro pode ser, e parável a um animal vivo quando contraposto a seus
muitas vezes é, tão discutível quanto um documento membros individuais; e o que é verdade nas relações
a ele relacionado.) Apenas com base em todo um .ntre monumentos, documentos e um conceito histó-
grupo ou classe de dados é que podemos decidir se rico geral nas humanidades, é igualmente verdadeiro
nosso retábulo foi, do ponto de vista estilístico e ico- lia' relações entre fenômenos, instrumentos e teoria
nográfico, "possível", no vale do Reno, por volta de nas ciências naturais.
1470. Mas, a classificação pressupõe, é óbvio, a idéia
de um todo ao qual as classes pertencem, - em outras
palavras, a concepção histórica geral que tentamos edi- IJJ
ficar a partir dos nossos casos individuais.
De qualquer lado que se olhe, o começo de nossa Referi-me ao retábulo de 1471 como "monumen-
investigação parece sempre pressupor seu fim, e os 10", e ao contrato como "documento"; ou seja, conside-
documentos que deveriam explicar os monumentos são r i O retábulo como o objeto da investigação ou
tão enigmáticos quanto os próprios monumentos. É "material primário", e o contrato como um instrumento
bem possível que um termo técnico do nosso contrato de investigação ou "material secundário". Assim pro-
seja um flí":(l~À€,yó/L'"OV tão-somente explicável por , dcndo, falei como um historiador de arte. Para um
este determinado retábulo; e o que um artista diz a paleógrafo ou um historiador das leis, o contrato seria
O "monumento", ou "material primário", e ambos po-
respeito de suas obras deve sempre ser interpretado à
luz das próprias obras. Estamos, aparentemente, num deriam usar quadros para documentação.
círculo vicioso. Na realidade, é o que os filósofos A menos que um estudioso se i~teresse exclusiva-
chamam de "situação orgânica" 7. Duas pernas sem mente pelo que- é chamado de "eventos" (nesse caso
um corpo não podem andar, e um corpo sem as pernas consideraria todos os registros existentes como "mate-
tampouco; porém, um homem anda. É verdade que rial secundário", por meio do qual poderia reconstruir
os monumentos e documentos individuais só podem s "eventos"), os "monumentos" de uns são os "do-
ser examinados, interpretados e classificados à luz de cumentos" de outros, e vice-versa. No trabalho prá-
um conceito histórico geral, ao mesmo tempo que só tico, somos mesmo compelidos a anexar "monumen-
se pode erigir esse conceito histórico geral com base tos" que, de direito, pertencem a nossos colegas.
Muitas obras de arte têm sido interpretadas por filó-
7. Devo esse termo ao Professor 'T. M. Greene. 10 s ou por historiadores de medicina; e muitos textos

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têm sido interpretados, e só o poderiam ser, por his- AlmpJ~s e totalmente ao objeto de sua percepção po-

r-- Um
toriadores de arte. d rá experimentá-Ia esteticamente 9.
historiador
de arte, portanto, é um humanista Ora, quando nos defrontamos com um objeto
1 cujo "material primário" consiste nos registros que nos nntural, a decisão de experimentá-lo ou não estetica-
L..fhegaram sob a forma de obras de arte. Mas, o que Ill.cnte é questão exclusivamente pe~soal. U~ objet(}]
é uma obra de arte? r íto pelo homem, entretanto, exige ou nao para
H r experimentado desse modo, pois tem o que os
Nem sempre a obra de arte é criada com o pro-
pósito exclusivo de ser apreciada, ou, para usar uma studiosos chamam de "intenção". Se eu decidisse,
expressão mais acadêmica, de ser experimentada este- . mo bem poderia fazer, experimentar esteticamente a
ticamente. A afirmação de Poussin de que "Ia fin luz vermelha de um semáforo em vez de associá-Ia à
de l'art est Ia délectation" era inteiramente revolucio- d ia de pisar nos freios, agiria contra a "intenção" da
nária 8 na época, pois escritores mais antigos sempre luz de tráfego.
insistiam em que a arte, por mais agradável que fosse, Os objetos feitos pelo homem, que não eXigem\
também era, de algum modo, útil. Mas a obra de arte 11 experiência estética, são comum ente chamados d: 1
tem sempre significação estética (não confundir com "práticos" e podem dividir-se em duas categorias: veí- i
valor estético): quer sirva ou não a um fim prático '1I10s e comunicação e ferramentas ou aparelhos. O I
e quer seja boa ou má, o tipo de experiência que ela v ículo ou meio de comunicação obedece ao "intuito't=-J
requer é sempre estético. de transmitir um conceito. A ferramenta ou aparelho
Pode-se experimentar esteticamente todo objeto, obedece ao "intuito" de preencher uma função (função
ssa que, por sua vez, pode ser a de produzir e trans-
seja ele natural ou feito pelo homem. f: o que faze-
mitir comunicações, como é o caso da máquina de
'mos, para expressar isso da maneira mais simples,
escrever ou da luz do semáforo acima mencionada).
quando apenas o olhamos (ou o escutamos) sem rela-
cioná-Ia, intelectual ou emocionalmente, com nada fora A maioria dos objetos que exigem experiência
do objeto mesmo. Quando um homem observa uma estética, ou seja, obras de arte, também pertencem a
árvore do ponto de vista de um carpinteiro, ele a ssas duas categorias. Um poema ou uma pintura his-
associará aos vários empregos que poderá dar à ma- tórica são, em certo sentido, veículos de comunicação;
deira; quando a olha como um ornitólogo, há de asso- O Panteão e os castiçais de Milão são, em certo sentido,
ciá-Ia com as aves que aí poderão fazer seu ninho. aparelhos; e os túmulos de Lorenzo e Giuliano de
Quando um homem, numa corrida de cavalos, acom- Mediei, esculpidos por Michelangelo são, em certo
panha com o olhar a montaria na qual apostou, asso- sentido, ambas as coisas. Mas tenho que dizer "num
ciará o desempenho desta com seu próprio desejo de certo sentido", pois há essa diferença: no caso do
que ela vença o páreo. Só aquele que se abandona que se pode chamar de "um mero veículo de comuni-
cação" ou "um mero aparelho", a intenção acha-se
8. A. BLUNT, Poussin's Notes on Paírittng, Journal ot the definitivamente fixada na idéia da obra, ou seja, na
Warburg Institute, I, 1937, p. 344 e SS., diz (p. "349) que a afirma-
ção de Poussin "La fin de l'art est Ia délectation" era, de certo mensagem a ser transmitida, ou na função a ser preen-
modo, "medieval", pois "a teoria da delectatio como símbolo chida. No caso de uma obra de arte, o interesse na
ou sinal pelo qual a beleza é reconhecida é a chave de toda a
estética de São Boaventura, e é bem possível que Poussin
tenha tirado daí, provavelmente através de uma versão popula- 9. Ver M. GEIGER, Bei trâge zur Phãnomenologíe des aesthe-
rizada, sua definição". Entretanto. mesmo se o teor da frase tischen Genusses, em Jahrbuch für Philosophie, I, Parte 2. 1922,
de Poussin foi influenciado por uma fonte medieval, há uma p. 567 e 5S. Também, E. WIND, Aesthetischer und kunstwissens-
grande diferença entre a afirmação de que delectatio é uma chaftlicher Gegenstand, Diss. phil. Hamburgo, 1923, reeditado,
qualidade característica de tudo o que é belo, quer seja natural em parte, como Zur Systematik der kunstlerischen Probleme,
ou feito pelo homem, e a assertiva de que delectato é o fim Zeitschrift für Aesthetik und allgemeine Kunstwissenschaft,
(meta) (fin) da arte. XVIII, 1925, p. 438 e ss.

30 31
!déia é equilibrado e pode até ser eclipsado por um d ssas "intenções" é, inevitavelmente, influenciada por
interesse na forma. n ssa própria atitude, que, por sua vez, depende de
Entretanto, o elemento "forma" está presente em I) BRaS experiências individuais, bem como de nossa
.todo, ?bjeto sem exceção, pois todo objeto consiste de sltuação histórica. Vimos todos, com nossos próprios
~ matena e forma; e não há maneira de se determinar olhos, os utensílios e fetiches das tribos africanas serem
com precisão científica, em que medida, num caso transferidos dos museus de etnologia para as exposi-
dado, esse elemento da forma é o que recebe a ênfase. çr cs de arte.
Uma coisa, entretanto, é certa: quanto mais a 1
Portanto, não se pode e não se deve tentar definir o
momento preciso em que o veículo de comunicação ou proporção de ênfase na "idéia" e "forma" se aproxima
ti um estado de equilíbrio, mais eloqüentemente a
J
aparelho começa a ser obra de arte. Se escrevo a um
amigo, convidando-o para jantar,minha carta é em obra revelará o que se chama "conteúdo". Conteúdo,
. . ' 1111 oposição a tema, pode ser descrito nas palavras de
pnmeiro lugar, uma comunicação. Porém, quanto
mais eu deslocar a ênfase para a forma do meu escrito, I'c I' C como aquilo que a. obra denuncia, mas não
tanto mais ele se tornará uma obra de caligrafia; e o I ·nta. É a atitude básica de uma nação, período,
quanto mais eu enfatizar a forma de minha linguagem 'Iusse, crença filosófica ou religiosa - tudo isso
(poderia até chegar a convidá-lo por meio de um qualificado, inconscientemente, por uma personalidade
soneto), mais a carta se converterá em uma obra de . ndensado numa obra. É óbvio que essa revelação
literatura ou poesia. nvoluntária será empanada na medida em que um
r
I
Assim, a esfera em que o campo dos objetos
p'ráticos termina e o da arte começa, depende da
li sscs dois elementos, idéia ou forma, for volunta-
riamente enfatizado ou suprimido. A máquina de
fiar talvez seja a mais impressionante manifestação
~intenção" de seus criadores. Essa "intenção" não
ti uma idéia funcional, e uma pintura "abstrata" talvez
pode ser absolutamente determinada. Em primeiro
lugar, é impossível definir as "intenções", per se, com sja a mais expressiva manifestação de forma pura,
mas ambas têm um mínimo de conteúdo.
precisão científica. Em segundo, as "intenções" da-
queles que produzem os objetos são condicionadas
pelos padrões da época e meio ambiente em que vivem.
IV
O gosto clássico exigia que cartas particulares, dis-
cursos legais e escudos de heróis fossem. "artísticos"
Ao definir uma obra de arte como "um objeto
(resultando, possivelmente, no que se poderia deno-
minar falsa beleza), enquanto que' o gosto moderno
r lt pelo homem que pede para ser experimentado
exige que a arquitetura e os cinzeiros sejam "funcionais" lu\r(')o da Vlnci; ver J. P. RICHTER,The' Literary Works 01
I, nardo da Vinci, Londres, 1883, n. 1445), caracterizam-se pela
(resultando, possivelmente, no que poderia ser cha- t nd ncla para estender a atitude estética a criações que são
mado de falsa eficiência) Enfim, nossa avaliação
1(}.
"Jloturalmente" práticas: nós estendemos a atitude técnica às
rlllOOcsque são "naturalmente" artístícas. Isso, também, é uma
IlItrue o, e no caso do "aerodinâmico", a arte teve sua des-
10. "Funcionalismo" significa, num sentido estrito não a t nu. "Aerodinâmica" era, originalmente, um genuíno principio
i~trodução de um novo principio estético, mas uma deIÍmitação tuo lonal, baseado nos resultados científicos de pesquisas sobre
ainda maior do campo da estética. Ao preferirmos o moderno 1\ r sístêncía do ar.. Seu campo legitimo era, portanto, a área
capacete de aço ao escudo .de Aqui/es, ou acharmos que a aos veículos de alta velocidade e das estruturas expostas a
"intenção" de um discurso legal deveria estar definitivamente I)f sões de vento de extraordinãria intensidade. Mas, quando
enfocado no tema e não deveria ser deslocado para a forma '8 dispositivo especial e verdadeiramente técnico passou a ser
("mais matéria e menos arte", COmodiz corretamente a Rainha Int rpretado como um princípio geral e estético, expressando o
G~rtrudes). exigimos apenas que armas e discursos legais não ld ai de "eficiência" do século XX ("aerodinamize-se'''), e foi
sejam tratados como obras de arte, quer dizer, esteticamente, "pllcado a poltronas e coqueteleiras, sentiu-se que o aerodina-
mas como objetos prãticos, í.é.. tecnicamente. Entretanto, pas- miamo científico original precisava ser "embelezado".; e foi,
sou-se a conceber o "funcionalismo" como um postulado em finalmente, retransferido para seu devido lugar numa forma
lugar de um interdito. As civilizações clássica e renascentista, lotnlmente não-funcional. Como resultado, hoje temos menos
1\ as e mob!lias "funcionalizadas" por engenheiros que carros
~a c~len~~ de que uma coisa meramente últil não podia ser
bela (non puô essere bellezza e utilità", como declara Leo- lr ns "desfuncionalizados" por projetistas.

33
(
\

\
esteticamente" encontramos, pela primeira vez, a dife- t ('/I intuitiva, incluindo a percepção e a apreciação da
rença básica entre humanidades e ciências naturais. O "qunlldudc", do mesmo modo que uma pessoa "co-
cientista, trabalhando como o faz com fenômenos na- 11111111" o faz, quando ele ou ela vê um quadro ou
turais, pode analisá-Ias de pronto. I '11tH uma sinfonia.
O humanista, trabalhando, como o faz, com as
ações e criações humanas, tem que se empenhar em 'orno, porém, é possível, erigir a história da arte
disciplina de estudo respeitada, se seus próprios
11
111111111
um processo mental de caráter sintético e subjetivo:
precisa refazer as ações e recriar as criações mental- 111111'101-1 11') cem de um processo irracional e subjetivo?

II mente. De fato, é por esse processo que os objetos N () se pode responder à pergunta, é claro, tendo
reais das humanidades nascem. Pois é óbvio que os 1111 V 111 os métodos científicos que têm sido, ou podem
historiadores de filosofia ou escultura se preocupam I I IItIoduzidos na história da arte. Artifícios como
com livros e estátuas, não na medida em que estes 11!t1l ( qulrnica dos materiais, raios X, raios ultraviole-
existem materialmente, e sim, na medida em que esses 111, I I li,' infraverrnelhos e macrofotografia são muito

j
têm um significado. E é não menos óbvio que este 1111 ,llIUS seu emprego nada tem a ver com o problema
significado só é apreensível pela reprodução, e portanto,
no sentido quase literal, pela "realização" dos pensa-
1111 tudol ico básico. Uma afirmação segundo a qual n
11 pi!'lIlcJ1tos usados numa miniatura pretensamente
mentos expressos nos livros e das concepções artísticas IIH1dlvai não foram inventados antes do século XIX,
que se manifestam nas estátuas. pod resolver uma questão de história da arte, mas não
Assim, o historiador de arte submete seu "mate- \IIIHIafirmação de história da arte. Baseada, como
rial" a uma análise arqueológica racional, por vezes I. 1111 análise química e também na história da química,
tão meticulosamente exata, extensa e intricada quanto
di;; I'sspcito à miniatura não qua obra de arte, mas qua
uma pesquisa de física ou astronomia. Mas ele cons-
tlbl to físico, e pode, do mesmo modo, referir-se a
titui seu "material" por meio de uma recriação 11 esté-
11111 t 'stamento forjado. O uso de raios X e macrofo-
11. Todavia, quando falamos de "rec~ação" é importante lu I' if'ias, por outro lado, não difere, sob o aspecto
enfatizar o prefixo "re". As obras de arte sao, ao mesmo tempo,
manifestações de "intenções" artls.ticas e. objetos natural~,. às IIItt di o, do uso de óculos ou de lentes de aumento.
vezes difíceis de isolar de seu ambiente fíSICOe sempre sujeitas
ao processo físico' do envelhecimento. Assim ao. experimentar
11 s artifícios permitem ao ·historiador de arte ver {~I
uma obra de arte estetic.amente perpetramos dOIS atos total- 111 li ti que poderia fazê-Ia sem eles, porém, aquilo 1\
mente diversos que, entretanto, se funde,? psicologican:ente u.~
com o outro numa única Erlebnis: construímos nosso objeto este- qUI V precisa ser interpretado "estilisticamente" como
tíco recriando a obra de arte de acordo com a "intenção" de seu rqulln que percebe a olho nu.
autor e criando, livremente, um conjunto de valores estéti<;:os
comparáveis aos que atribuímos a uma árvore ou a um por-
do-sol. Quando nos abandonamos à impressão das descoradas A. verdadeira resposta es.á no fato de a recriação
esculturas de Chartres, não podemos deixar de apreciar sua
bela maturidade e pátina como valor estético; mas, esse valor
( t ti fi intuitiva e a pesquisa arqueológica serem inter-
que implica, tanto o prazer sensual causado por um Jogo peculiar I ulus de modo a formar o que já chamamos antes
de luzes e cores, como o deleite mais sentimental, devi.do. à 11 "situação orgânica". Não é verdade que o historiador
"idade" e "autenticidade", nada tem a ver 'com o valor objetivo
ou artístico com que os autores investiram as esculturas. Do 11 urtc primeiro constitua seu objeto por meio de uma
ponto de vista do entalhador de pedra gótico, o processo de
envelhecimento não era só irrelevante como positivamente inde- 111 'sc recriativa, para só depois começar a investigação
sejável: tentou proteger suas estátuas com uma demão de cor irqucológica - como se primeiro comprasse o bilhete
que, se conservada em seu frescor original, prova.v~lment~ estra-
garia boa parte de nosso prazer estético. Justiflca-~e mtelr!l- para depois entrar no trem. Na realidade, os dois
mente que o historiador de arte, como pessoa part~cular, na.o
destrua a unidade psicológica do Alters-und-Echthetts-Erlebms pr ccssos não sucedem um ao outro, mas se interpe-
e Kunst-Erlebnis. Mas, como "prof;ssional", tem que separar, 11 itram: a síntese recriativa serve de base para a inves-
tanto quanto possível, a experiência recriativa dos valores inten-
cionais dados à estátua pelo artista- da experiência criativa d~s li ação arqueológica, e esta, por sua vez, serve de.
valores acidentais dados a um pedaço de pedra antiga pela açao base para o processo recriativo; ambas se qualificam
da natureza. Muitas vezes, essa separação não é tão fácil quanto
se supõe. se retificam mutuamente.

34 35
/
(
Quem quer que se defronte com uma obra de ti, I nulnnr seu lugar histórico e separar a contribuição
arte, seja recriando-a esteticamente, seja investigando-a Iftl vklunl de seu autor da contribuição de seus ante-
racionalmente, é afetada por seus três componentes: 1''' ItlO contemporâneos. Estudará os princípios
forma materializada, idéia (ou seja, tema, nas artes 1111111 I tlue controlam a representação do mundo vi.,
Lplásticas) e conteúdo. A teoria pseudo-impressionista VI I 11\1, m arquitetura, o manejo do que se pode
segundo a qual "forma e cor nos falam de forma e cor, 111IllItll' ti características estruturais, e assimconstruir
e isso é tudo" é, simplesmente, incorreta. Na expe- 11 li I II 11 dos "motivos". Observará a interligação
riência estética realiza-s~ a unidade desses três ele- 11'II I influências das fontes literárias e os efeitos
mentos, e todos três entram no que chamamos de gozo 111 lI! (l011e1ncia mútua das tradições representacionais,
estético da arte. 111 11111 itabelecer a história das fórmulas iconográ-
' IIi I 1111"tipos". E fará o máximo possível para se
A experiência recriativa de uma obra de arte de-
pende, portanto, não apenas da sensibilidade natural , 1111 I \I /, Ir om as atitudes religiosas, sociais e filo-
e do preparo visual do espectador, mas também de Ilr 111 li outras épocas e países, de modo a corrigir
sua bagagem cultural. Não há espectador totalmente 1111(llllpria apreciação subjetiva do conteúdo 12. Mas,
~
"ingênuo". O observador "ingênuo" da Idade Média 1111 W'I' tudo isso, sua percepção estética como tal,
tinha muito que aprender e algo a esquecer, até que IIlIltI Ir I IICSSq conformidade e, cada vez mais, se adap-
pudesse apreciar a estatuária e arquitetura clássicas, e 1111 I "intenção" origina:I das obras. Assim, o que o
o observador "ingênuo" do período pós-renascentista li lorllldor de arte faz, em oposição ao apreciador de
tinha muito a esquecer e algo a aprender até que 111 11 "ingênuo", não é erigir uma superestrutura racio-
pudesse apreciar a arte medieval, para não falarmos 11111 em bases irracionais, mas desenvolver suas expe-
da primitiva. Assim, o observador "ingênuo" não goza I 11' 111> recriativas, de forma a afeiçoá-Ias ao resultado
apenas, mas também, inconscientemente, avalia e inter- ti 1111pesquisa arqueológica, ao mesmo tempo que
preta a obra: de arte; e ninguém pode culpá-Io se o Ir It .ontinuamente os resultados de sua pesquisa
faz sem se importar em saber se sua apreciação ou 111'111 01 gica com a evidência de suas experiências re-
interpretação estão certas ou erradas, e sem compreen- I II vas 111. .
der que sua própria bagagem cultural contribui, na
I'. •• ra os termos técnicos usados neste parágrafo. ver
verda~e, para o objeto de sua experi~ncia._ _ "111 I••tr duction to E. Panofsky", Stu.dies in Iconology, reedí-
~ O observador "ingênuo" difere do historiador de I lI.. 11111 nas pp. 45-85.
I I () mesmo é válido, por certo. para a história da lite- .
urte, pois o último está cônscio da situação. Sabe que I li", outras formas de expressão artística. Segundo Dionysius
sua bagagem cultural, tal como é, não harmonizaria 1111""(AT.• GTammatica, ed. Uhlig, XXX. 1883.p. 5 e ss.; citado
111I 1I,,,r.nT MURRAY. Religio GTammatici, The:Religion oi n'Man
com a de outras pessoas de outros países e de outros '"I /. ti TN, Boston e Nova York, 1918,p. 15).,.fp9'flflOTIKIÍ (histô-
,I•• ,I;. IIt ratura, como diriamos) é uma ÉfllTE!pía"lconheCimento
.períodos. Tenta, portanto, ajustar-se, instruindo-se o I; ,I na experiência) daquilo que foi dito pelos poetas e
máximo possível sobre as circunstâncias em que os ., 111;" de prosa. Ele a divide. em seis partes. sendo possivel
""",II'Ir para cada..uma delas um. paralelo na história da arte:
objetos de seus estudos foram criados. Não apenas I) !\váyv(.)O"lç ÉVTp16"çKcrràTTpoO"c,>óíav
(leitura técnica em voz
coligirá -e veríficarâ toda informação útuaIeXlstente ••\tu I'IIIII\do~ prosódia): isso é. na verdade. a recriação estê-
t 111"IlIt itlca de uma obra de literatura e comparável á "realí-
quanto a meio, condição, idade, autoria, destino '11 O" visual de uma obra de arte. .
.) t~IÍY'1O"lçKOTàTOUÇÉVIITTÓPXOVTOÇ TTOI'1TIKOUÇTpOTTOuç
etc. .. mas comparará também a obra com outras de ( " ,tnnnç o das figuras de Iinguagem que apareçam): seria com-
mesma classe, e examinará escritos que reflitam os li'''' v I à história das fórmulas· iconográficas ou "tipos".
:1) yÀ(.)aaê.:Jv TEKOIia:roplê.:Jv
TTpÓXElpOÇ
ó:rró500lç(interpretação
padrões estéticos de seu país e época, a. fim de conse- 1111 (U"ta ou improvisada de palavras e termos obsoletos): iden-
IIrl I1C o do tema iconográfico.· .
guir uma apreciação mais "objetiva" de sua qualidade. 4) t"'UflOÀoyíoç EÜP'1O"IÇ
(descoberta das etímologtas) : deriva-
Lerá velhos livros de teologia e mitologia para poder V o dos "motivos", ..
11)6cvoÀoyíoçÉKÀOY'O"fl6ç
(explanação das formas gramaticais):
identificar o assunto tratado, e tentará; ulteriormente, 11 lia da estrutura da composição.

36 37
Leonardo da Vinci disse: "Duas fraquezas,
() '111'1' iativismo" não deve ser confundido com]
apoiando-se uma contra a outra resultam numa
ti I Imil -111I 'nto do "entendido" e a "teoria da arte".
força" 14. As metades de um arco, sozinhas, não con-
( ) I uutolssct« Ifc é o colecionador, curador de museu ou
seguem ,se.ma~ter em pé. I?o mesmo modo, a pesquisa
1" , li I q li , deliberadamente, limita sua contribuição ao
Ilarqueologlca e ceg~ ~ va~la sem a r~criação estética,
I IlIdo ti I, matéria ao trabalho de identificar obras de
Wao passo que esta e irracional, extraviando-se muitas
1I1I nru I' speíto à data, origem e autoria, e avaliá-Ias
vezes, sem a pesquisa arqueológica. Mas~ "apoiando-se
uma contra a outra", as duas podem suportar um "sis- 1111III!' Itll à qualidade e estado. A diferença existente
tema que faça sentido", ou seja, uma sinopse histórica. 111'1I It O historiador de arte não é tanto uma ques-
t 11 di prlncípio, como de ênfase e clareza, comparável
Como já afirmei antes, ninguém pode ser conde-
ti I It 111.'11 existente entre o diagnosticador (ou: clí-
nado por desfrutar obras de arte "ingenuamente" ~
por apreciá-Ias e interpretá-Ias segundo suas luzes sem
1111 u ] I 11P squisador na área da medicina. O connois-
se importar com nada mais. Mas °
humanista verá
11/ 1IIItI /I salientar o aspecto recriativo do complexo
1"" I II que tentei descrever, e considera a tarefa de
c.o~ su,~peita aquilo que se pode chamar de "aprecia-
I I I 1111111 concepção histórica como secundária; o his-
trvismo *. Aquele que ensina pessoas inocentes a
compreender a arte sem preocupação com línguas clás- tlll IIdlll I arte, num sentido mais estreito ou acadê-
sicas, métodos históricos cansativos e velhos, e empoei- 111I •I, I lide a reverter essas tônicas. Ora, o simples
rados documentos, priva a "ingenuidade" de todo ·0 ti 111111li' de "câncer", se correto, implica tudo o que
seu encanto sem corrigir-lhe os erros. 11 I' !)lIlsudor poderia nos dizer sobre a doença e pre-
I. IItI, , portanto, que é verificável por uma análise cien-
,6.l.Kpícnç nOI'lflcXT~V, Õ 5'" KcXÀÀlcrrÓV Écrr~ návrc.Jv TWV Év -riJ':n'xvIJ tllh ti IIhs qüente; similarmente, o diagnóstico "Rem-
(cr-ítica Iíterárta, cuja parte mars bela e a .ompreerrâída pela
í pa~fúXTIKIÍ ): apreciação crítica das obras de arte. 1111111I11, - rca de 1650", se correto, implica tudo o que
A expressão "apreciação crítica das 'obras de arte" suscita
uma questão interessante. Se a história da arte admite uma I 11 1IIIIIIdor de arte poderia nos dizer sobre os valores
escala de valores, assim como a história da literatura ou a tllllllll do quadro, sobre a interpretação do tema, sobre
h.istória potítíca a.d~item uma gradação por "grandeza" ou exce-
le.ncla, coI?? JustIfIcaremos o fato de os métodos aqui expostos II IIl/ldo . mo reflete a atitude cultural da Holanda do
nao perrnitír-em, ao que parece, uma diferenciação entre pri-
meira, segunda e t~rceira categoria de obras de .arte? :Orá, uma 111111 VIl, sobre a maneira como expressa a perso-
'escala de valores e em parte um problema de reações pessoais
e em parte. um problema de tradição. Esses dois padrões, dos 11ti tllld de Rembrandt; e esse diagnóstico, também
quais o. .segundo e, comparativamente, o mais objetivo, precisam
s~r .contmuame~te revistos, e cada investigação, por mais espe- 1'1111"/111sobreviver à crítica do historiador de arte,
ciahzada que seja, contribui para esse processo. Por essa mesma' 11I1 1111do mais estrito. O connoisseur poderia portan]
ra~ão. o historiador: de arte não pode fazer uma distinção a
prtort entre seu metodo de abordar urna "obra-prima" e urna til I I ti -t'inido como um historiador de arte lacônico
obra de arte "medíocre" ou "infer-ior" -'- assim 'como um estu-
dante, de literatura clássica é. obrigado a' investigar as tragédias li 11 toriador de arte como um connoisseur loquaz.
de Sofocles da mesma manerra que analisa as de Sêneca. É
verdade que os métodos da história da arte mostrarão sua efeti- N 11 VI I dudc, os melhores representantes de ambos os
vI9ade. qua métodos, quando aplicados tanto à Melencolia de t 1"' contrlbuíram, enormemente, para o- que eles pró-
Durer corno a um entalhe anônimo e desimportante. Mas
quando uma "obra-prima" é comparada e vinculada a outra~ 111" 11 O consideram assunto próprio 15.
tantas obras de "m~nor i~po!tãncia:' quantas as que se afigu-
ram no decur.s0 da Investigação como comparáveis e vinculáveis
a ela, ~. orlgma,lId~de de sua invenção, a superioridade de sua (I. palavra connoisseur, de origem francesa, tem uso
compos~,çao e ~ecmca e todas as .dem~is características que a 11'111 1111 m nossa língua por não ter equivalente exato em
fazem grande saltam .aos olhos imedíatamante - não apesar 1"11111 11., Tanto perito, técnico, conhecedor ou entendido não
mas por causa, <1:0fato de todo o grupo ter sido submetido ~ "111'" 1\111 bem a idéia do termo, (N, da T)
um mesmo e umco método de análise e interpretação.
In, V r M. J. FRIEDLANDER, Der Kenner, Berlim, 1919. e E.
14. Il co?-ice atlantico di Leonardo da Vinci neHa Biblio- W U<1I, A SLltetischer und kunstwissenschaftlicher Gegenstand,
~~oc~4:~broslana di Milano, Milão, ed. G. Piumati, 1894-1903. !til' 111\, Ifrl dliínder corretamente afirma que um bom historia-
11111 111 [l1·te é. ou pelo menos vem a ser, um Kenner wider
• Appreciationism no original' não há termo em português \ III 11, Juversamente, um bom connoisseur pode ser chamado
para essa ídéia.(N. da T.) , 11 1t1"I,ol"llldorde arte malgré lui.

38 39

Por outro lado, a teoria da arte - em oposição ,11I"1'11, «[nmato etc. que aparecein em escritos do
à filosofia da arte ou estética - é, para a. história da 11110 VI.
arte, o que a poesia e a retórica são para a história ( 111I111.10chamamos uma figura de um quadro da
da literatura.
I 1111 l' IIÇIl italiana de "plástica", enquanto desc~eve-
Devido ao fato de os objetos da história da arte 11111 1111\/1 utra, de um quadro chinês, como "tendo
virem à existência graças a um processo de síntese 11111111(, mas não massa" (devido à ausência de mode-
estética recreativa, o historiador de arte encontra-se 1111 111). lntcrpretamos essas figuras como duas soluções
diante de uma peculiar dificuldade quando tenta ca- tlll 11111 N de um mesmo problema que poderíamos for-
racterizar o que se poderia denominar de estrutura 111111111 ('OIl1 "unidades volumétricas (corpos) versus
estilística das obras com as quais se ocupa. Já que tem 1'1111 1\ ilimitada (espaço)". Ao distinguir entre o
que descrever essas obras, não como corpos físicos I1 •• tllI I Ilha como "contorno" e, para citar Balzac, o
ou substitutos de corpos físicos, mas como objetos de 11 11 !lu lluha como "le moyen par lequel l'homme se
uma experiência interior, seria inútil - mesmo que
11 IltI omptc de l'effet de Ia lumiêre sur les objets" *
fosse possível - expressar formas, cores e caracterís-
I I I 11111-11 ao mesmo problema, embora dando ên-
ticas de construção em termos de fórmulas geométricas,
111 I I li ial a um outro: "linha versus áreas de cor".
comprimento de ondas, e equações estatísticas, ou des-
I 1111 tirrnos sobre o assunto, veremos que há um
crever as posturas de uma figura humana através de
1111 11 u Io limitado desses problemas primários, inter-
uma análise anatômica. Por outro lado, já que a expe-
riência interior de um historiador de arte não é livre I 111 unudos uns com os outros, o que, de um lado,
nem subjetiva, mas lhe foi esboçada pelas atividades 1111 111l11I infinidade de questões secundárias e terciárias

propositais de um artista, não deve ele cingir-se a des- I ti outro, pode em última análise derivar de uma
crever. suas impressões pessoais a respeito da obra de IlIftl ( básica: diferenciação versus continuidade 16.
arte como um poeta poderia descrever suas impressões J'ormular e sistematizar os "problemas artísticos"
sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol. 1(11 não são, é claro, limitados à esfera dos valores
Os objetos da história da arte, portanto, só podem 11111 uucnte formais, mas incluem a "estrutura estilística"
ser caracterizados numa terminologia que é tão re- ti" ""11I e do conteúdo também - e assim armar um
construtiva quanto a experiência do historiador de arte " 11I I de Kunstwissenschaitliche Grundbegriiie (No-
é recreativa: precisa descrever as peculiaridades esti- I 01 tuudamentais da Teoria da Arte) é o objetivo da
lísticas, não como dados mensuráveis, ou, pelo menos, I I 111 11 da Arte e: não da História da Arte. Mas aqui
determináveis, nem como estímulos de reações subje- 111 ontrnmos, pela terceira vez, o que decidimos chamar -'\
tivas, mas como aquilo que presta testemunho das di ti ltuação orgânica". O historiador de arte, como II
"intenções" artísticas. Ora, as "intenções" só 'podem v mos, não pode descrever o objeto de sua expe-
ser formuladas em termos de alternativas: é mister I IH' /I rccriativa sem reconstruir as intenções artísticas ,I
supor uma situação na qual o fazedor da obra dispunha 111 1('1 mos que subentendam conceitos teóricos genéri-
de mais de uma possibilidade de atuação, ou seja, em I II, A fazer isso, ele, consciente ou inconscientemen
que ele se viu, frente a frente, com um problema da I. -oruríbuirá para o desenvolvimento da teoria da
escolha entre diversos modos de ênfase. Assim, evi-
dencia-se que os termos usados pelo historiador de • meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito
0111 11'" obre os objetos, Em francês no original. (N, da T.)
arte interpretam as peculiaridades estilísticas das obras
111 V l' ~, PANOFSKY, Ueber das Verhiiltnis der Kunstges-
como soluções específicas de "problemas artísticos" ,1111,"1:, zur Kunsttheorie, Zeitschrift für Aesthetik und a!!ge-
genéricos. Não é esse, apenas, o caso de nossa mo- """," Kunstwissenschaft, XVIII, 1925, p. 129 e 55:, e E. WIND,
li' :I l matik der kunstler'ischen Probleme, íbídem, p. 438
derna terminologia, mas também o de expressões como

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arte, que, sem à exemplificação histórica, continuaria I 11 filo têm a perspectiva não-prática daquilo que
)t'i~l
a ser apenas um pálido esquema de universais 11 11111 'os hamavam de vila contemplativa, em oposi-
abstratos. O teórico da arte, por outro lado, quer 11 11 1/1/(( activa. Mas, é a vida contemplativa menos
aborde o assunto a partir do ponto de vista da epis- I 111, 011, pura ser mais preciso, é sua contribuição para
temologia neoclássica, da Crítica de Kant, ou da Ges- 11 qlll chamamos de realidade menos importante do que
taltpsychologie 17, não pode armar um sistema de con- I ti I vida ativa?
ceitos genéricos sem se referir a obras : de arte que
nasceram em condições históricas específicas; mas, ao () h mem que aceita uma cédula de um dólar
I 111 110 'li de vinte e cinco maçãs pratica um ato de fé
proceder assim, ele, consciente ou inconscientemente
I 1111111 'le-se a uma doutrina teórica, tal como pro-
contribuirá para o desenvolvimento da história da arte'
que, sem orientação teórica, seria um aglomerado d~ I I dI\) homem medieval que pagava por sua indul-
particulares não formulados. 111' 11. homem que é atropelado por um automóvel,
111 wp 'Iudo pela matemática, física e química. Pois
Quando chamamos o connoisseur de historiador '1" 111 I VfI uma vida contemplativa não pode deixar de
de arte lacônico, e o historiador de arte de connoisseur 1I1111! uciur a ativa, como não pode impedir a vida
loquaz, a relação entre o historiador de arte e o teórico 111 11 d influenciar seu pensamento. Teorias filosó-
de arte pode comparar-se à de dois vizinhos que tenham til 11 psicológicas, doutrinas históricas e toda a espé-
o direito de caçar na mesma zona, sendo que um é I I dI spcculações e descobertas têm mudado e con-
o dono do revólver e o outro de toda a munição.
11111111111 mudando a vida de muitos milhões de pessoas;
Ambas as partes fariam melhor se percebessem a ne-
1110 aquele que simplesmente transmite sabedoria
cessidade de sua associação. Já foi dito que, se a
teoria não for recebida à porta de uma disciplina em- ,li 1111111 'imento, participa, embora de modo modesto,
pírica, entra como um fantasma, pela chaminé e põe li.. 1"111' sso de moldagem da realidade - fato este de
a mobília da casa de pernas para o ar. Mas, não é '111 tnlv Z os inimigos do humanismo estejam mais
I I 111 d que os amigos 18. É impossível conceber
menos verdade que, se a história não for recebida à
porta de uma disciplina teórica que trate do mesmo 1111 11 mundo em termos de ação, apenas. Só em Deus

conjunto de fenômenos, infiltrar-se-á no porão, como It • tulnctdêncía de Ação e Pensamento", como di-
um bando de ratos, roendo todo o trabalho de base. I 11111 11 ·scolásticos. Nossa realidade só pode ser en-
11I1 ti I • mo uma interpenetração desses dois fatores.

M I , ainda assim, por que deveríamos nos inte-


v lU p I passado? A resposta é a mesma: porque
1111 111 r sarnos pela realidade. Não há nada menos
coisa certa que a história da arte mereça um
É
lugar entre as humanidades. Mas para que servem as I" Numa carta dirigida ao New statesman and Nation,
111. lU ti junho de 1937, um tal senhor Pat Sloan defende a
humanidades; como tais? São, admitidamente discipli- • "" , I.' (I de catedráticos e professores na União Soviética
nas não-práticas que tratam do passado. Pode-se per- 11"" ,"Iu que "um catedrático que advoga uma filosofia pré-
,I 111111.11 nntlquada em detrimento de uma científica pode ser
guntar por que motivo devemos empenhar-nos em "'" tlll O reacionãria tão poderosa quanto um soldado num
investigações não-práticas e inter~ssar-nos pelo passado? • ,,'li •• ti ocupação". Verificamos que por "advogar ele pre-
I 11I1 I rnb m significar a mera transmissão do que chama de
rll"."fl" "pr6-cientifica", pois continua assim: "Quantos espí-
A resposta à primeira pergunta é: porque nos ,li"., hllJ , na Inglaterra, estão sendo impedidos de jamais entrar
interessamos pela realidade. Tanto as humanidades 'li '"11111 to com o Marxismo pelo simples processo de sobre-
, " tl)~ ao máxímo com obras de Platão e outros filósofos?
quanto as ciências naturais, assim como a matemática I. I unstAncias, tais obras não têm um papel neutro,
utunarxísta. e os marxistas reconhecem este fato". Não
11 ,'I.u dizer que, "nestas circunstâncias", as obras de "Platão
17. Cf. H. SEDLMAYlI.
"Zu einer stregen Kunstwissenschaft"
FOTschungen, I, 1931, p. 7 e ss.
Kunstwissenschaftliche '
'li"" filósofos" também têm um papel antifascista, e os fas-
I t ,"fi lua vez, "reconhecem este fato".

42 43
(

rea1 que o presente. Uma hora atrás, essa conferência I OIHnd , assim, os registros estáticos com vida
pertencia ao futuro. Dentro de quatro minutos, per- li 11 11I leu , em vez de reduzir os fatos transitórios a leis
tencerá ao passado. Quando disse que o homem atro- I 11 ',s, as humanidades não contradizem, mas com-
pelado por um automóvel o é, na verdade, pela mate- I''' 111111111I11 as ciências naturais. Na verdade, ambas se
mática, física e química, poderia também ter afirmado 1111 IIlh m e exigem uma à outra. Ciência - aqui
que o atropelamento se deve a Euclides, Arquimedes e 1IIIIIIIdll na verdadeira acepção do termo, ou seja, uma
Lavoisier. 1111 (" r na e autodependente do conhecimento e não
Para apreendermos a realidade temos que nos 111 11 '1l1 sirva, subservientemente, a fins "práticos" -
a artar do presente. A filosofia e a matemática o luuunuidades são irmãs, suscitadas como são pelo
IIlIlvllll'nl que foi corretamente chamado de desco-
fazem, construindo sistemas num meio que, por defi-
nição, não está sujeito ao tempo. As ciências naturais I'
h 11 (ou, numa perspectiva histórica mais ampla, re-
111 rnb rta) do mundo e do homem. E, assim como
e as humanidades conseguem-no, criando aquelas estru-
turas espaço-temporais que chamei de "cosmo da na- 11I1 l'( 111m e renasceram juntas, morrerão e ressurgirão
tureza" e "cosmo da cultura". E, aqui, tocamos no 1111111" se o destino permitir. Se a civilização antro-
1'111'1 ,li 'U da Renascença está dirigida, como parece
ponto que talvez seja a diferença mais fundamental
entre ciências naturais e humanidades. A ciência na- 1111', para uma "Idade Média às avessas" - uma
11111110 racia em oposição à teocracia medieval - não
tural observa os processos forçosamente temporais da
natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas 11 1\ humanidades mas também. as ciências naturais,
.quais se revelam. A observação física só é possível 111110 HS conhecemos, desaparecerão e nada restará,
quando algo "acontece", ou seja, quando uma mudança 1'( to que serve às injunções do subumano. Mas,
ocorre ou é levada a ocorrer por meio de experiências. 11 11I 111 smo isso há de significar o fim do humanismo.

E são essas mudanças que, no fim, são simbolizadas I 111111 teu pôde ser acorrentado e torturado, porém, o
pelas fórmulas matemáticas. As humanidades, por tu o aceso por sua tacha não pôde ser extinto.

l
outro lado, não se defrontam com a tarefa de prender Existe uma diferença sutil em latim entre scientia
o que de outro modo fugiria, mas de avivar o que, de ,', udttio, e em inglês, entre knowledge (conhecimento)
outro modo, estaria morto. Em vez de tratarem de lrttrning (estudo). Scientia e conhecimento, denotan-
'fenômenos temporais e fazerem o -tempo parar, pe- lIu IlIlIls uma possessão mental que um processo mental,
netram numa área em que o tempo parou, de moto li IIllficam-se com as ciências naturais; eruditio e es-
próprio, e tentam reativá-lo. Fitando esses registros, 1111111, denotando mais um processo que uma possessão,
congelados, estacionários, que segundo disse, "emer- I 1111I 11 humanidades. A meta ideal da ciência seria
gem de uma corrente do tempo", as humanidades ten- .11 11 • mo mestria, domínio, e a das humanidades algo
tam capturar os processos em cujo decurso esses regis- 1111I0 iabedoria. '
tros foram produzidos e se tornaram o que são 19.
M arsílio Ficino escreveu ao filho de Poggio Brac-
I ullui: "A história é necessária, não apenas para tornar
19. Para as humanidades, "reviver" o passado não é um Ideal
romântico mas uma necessidade metodol6gica. S6 podem expres- 11 vida agradável, mas também para lhe dar uma signi-
sar o fato de os registros A, B e C serem "ligados" uns aos
outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia r I' li; moral. O que é mortal em si mesmo consegue
estar familiarizado com os registros B e C, ou com registros do I hnortalidade através da história; o que é ausente
tipo de B e C, ou com um registro X, que seria a fonte de·
B e C; ou que devia ter conhecimento de B enquanto o' autor IlU'IIII-se presente.. velhas coisas rejuvenescem; e um
de B ·tinha que conhecer C etc. É tão inevitável que as huma-
nidades raciocinem e se expressem em termos de "influências", '.IV m logo iguala a maturidade dos velhos. Se um
"linhas de evolução" etc., 'como é inevitável que as ciências luun m de setenta' anos é considerado sábio devido' à
naturais pensem e se exprimam em termos de equações mate-
máticas. 1111 xperiência, quão mais sábio aquele cuja vida abrán-

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ge o espaço de mil ou três mil anos! Pois, na verdade,
pode-se dizer que um homem viveu tantos milênios
quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento
de história" 20.

I. ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA: UMA


INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA ARTE
DA RENASCENÇA

I xmografia é O ramo da história da arte que trata


li •• InUI ou mensagem das obras de arte em contra-

20. MARSiLro FICINO. "Carta a Giaeomo Braeciolini" (Mar-


1'11 • o à sua forma. Tentemos, portanto, definir a
smi Ficini Opera omnia, Leyden, 1676, I, p. 658): "res ipsa II I 11' o entre tema ou significado, de um lado, e for-
[seU., historiaJ est ad vitam non modo obleetandam, verum-
tamen moribus instituendam summopere neeessaria. Si quidem 11111, do outro.
per se mortalia sunt, immortalitatem ab historia eonsequuntur,
quae absentia, per eam praesentia fiunt, vetera iuveneseunt, uando, na rua, um conhecido me cumprimenta
iuvenes eito maturitatem senis adaequant. Ae si senex septua- , I IIl(JO o chapéu, o que vejo, de um ponto de vista
gínta annorum ob ipsarum rerum experientiam prudens habetur,
quanto. prudentior, qui annorum mille, et trium milium implet 1111\11\1, é apenas a mudança de alguns det~hes dentro
aetatem! Tot vero annorum milia vixisse quisque videtur quot
annorum aeta didicit ab hístorfa", I 'onfiguração que faz parte do padrao geral de

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