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Vladirnir Safatle

Só mais
um esforço
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EDITOR Alcino Leite Neto


EDITORA-ASSISTENTE Rita Palmeira
PRODUÇÃO GRÁFICA Iris Polachini

CAPA Roman lar


FOTO DA CAPA Policiais militares na Esplanada dos Ministérios, durante protesto
contra o governo, em Brasília, em 24/5/20171 Marcelo Camargo/Agência Brasil
6 Prefácio Michael Lõwy
PROJETO GRÁFICO DO MIOLO Mayumi Okuyama
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Jussara Fino
PREPARAÇÃO Fernanda Guimarães
14 O último capítulo, ou História sucinta da
REViSÃO Ana Cecília Agua de MeIo, Isabel Cury e Carmen T. S. Costa
decomposição de um país
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Cll') 40 Um problema de imagem
(Câmara Brasileirado Livro, SP, Brasil)

Safatle, vladimir 58 O esgotamento da Nova República


Só mais um esforçol V1adimirSafatle. -
São Paulo: Três Estrelas, 2017. 78 O esgotamento do lulismo
ISBN 978-85-68493-42-7
106 Junho de 2013 e o esgotamento da esquerda brasileira
1.Análise (Filosofia)2. Brasil- História 3. Brasil- Política
e governo 4. Democracia - Brasil 5. Direita e esquerda (Política) 120 Para além da melancolia: em direção ao grau zero
6. Filosofiapolítica 7. Política- Brasil- História J. Título.
da representação
COO-320.01

Índices para catálogo sistemático:


Filosofiapolítica
1. 320.01
135 Anexos
Sem medo 137
Este livro segue as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990),
em vigor desde ,. de janeiro de 2009 . Nós acusamos 140

...,JTRÊS
JESTRELAS
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CEP 01202-900, São Paulo, SP
Tel.: (li) 3224-2186/2187/2197
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www.edítorajestrelas.com.br

320·01
sn.,~
Prefácio
Michael Lõwy

Vladimir Safatle, professor de filosofia na Universidade de São


Paulo, é um pesquisador internacionalmente reconhecido; seus
livros sobre Lacan, Hegel e Adorno foram traduzidos em várias
línguas e têm sido objeto de seminários e debates na França e
nos Estados Unidos.
Mas Safatle não é apenas um acadêmico de primeira ordem.
Ele é também - o que não é tão frequente - um pensador com-
prometido com a causa dos oprimidos e dos explorados, um
homem de esquerda autêntico, que usa sua pluma para denun-
ciar os crimes e as injustiças do sistema capitalista e para propor
alternativas radicais. Este livro, Só mais um esforço - título que
homenageia o Marquês de Sade, participante ativo da Revolução
Francesa -, é uma notável contribuição a uma futura refundação
da esquerda brasileira em novas bases, críticas, subversivas e
antissistêmicas. Safatle desenvolve uma análise e um ponto de
vista que se destacam nitidamente do conformismo ambiente
c da velha e sempre repetida política de conciliação de classes,
que tanto estrago fez à história da esquerda - e não só brasileira.
Temos na Europa, lembra Safatle, uma longa lista de capi-
tulações da social-democracia. Tony Blair, Gerhard Schrõder,

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Massimo d'Alema e, finalmente, François Hollande são algu- os documentos constitutivos do PT [...] já advogavam a superação

mas das figuras típicas desse reformismo sem reformas. No do capitalismo como indispensável à plena democratização da

Brasil, o fenômeno tomou a forma de um populismo sui gene- vida brasileira.

ris, não sem certas analogias com o de Getúlio Vargas. Com


suas medidas sociais, Lula elevou o nível de vida de amplas E O documento acrescenta:
camadas sociais desfavorecidas, em um modelo de integração
da população pelo consumo que não mexeu com o consenso Semelhante convicção anticapitalista, fruto da amarga experiên-

neoliberal e não diminuiu em nada o caráter profundamente cia social brasileira, nos fez também críticos das propostas social-

desigual da sociedade brasileira. Essa política de conciliação -democratas. As correntes social-democratas não apresentam, hoje,

e ajustes gradualistas acabou se esgotando, e tivemos então o nenhuma perspectiva real de superação histórica do capitalismo.

golpe parlamentar contra Dilma Rousseff, seguido por uma


sucessão de medidas ultrarreacionárias, que constituíram um Crítica acertada, que se aplica perfeitamente aos governos
verdadeiro pesadelo neoliberal. Nesse modelo cada vez mais do PT de 2003 a 2016, cuja prática se encontra a muitos anos-
autoritário, a gestão pelo medo substitui a democracia libe- -luz desse radicalismo originário de 1990.
ral. Aplica-se aqui plenamente o dito do milionário americano Safatle acredita que o lulismo foi o último modelo de con-
Warren Buffett: "Quem disse que não há luta de classes? É claro iliação de classes; esse ciclo populista acabou definitivamente.
que há uma, e estamos vencendo". Tenho opinião um pouco diferente: se houver no futuro eleições
Safatle observa que o Partido dos Trabalhadores (PT), em diretas no Brasil- uma hipótese nada segura, considerando a
sua origem, era antipopulista e crítico do nacional-desenvol- alergia à democracia das classes dominantes brasileiras -, não se
vimentismo. Eu acrescentaria: era mesmo anticapitalista. No pode excluir a possibilidade de uma vitória de Lula ou de outro
encontro nacional do partido em 1990 - pouco depois da representante da centro-esquerda. O lulismo só será superado
queda do Muro de Berlim e do anunciado "fim do socialismo" -, c seu espaço político for ocupado por uma força de esquerda
o PT aprovou um documento intitulado "O socialismo petista", radical, disposta a assumir o conflito social.

em que afirmava o seguinte: Uma das contribuições mais importantes deste livro é
precisamente a proposta de refundação da esquerda, a par-
Esse compromisso de raiz com a democracia nos fez igualmente tir de um programa efetivamente antissistêmico: democra-
anticapitalistas - assim como a opção anticapitalista qualificou de ia direta, gestão coletiva dos recursos públicos, de sistemas
modo inequívoco a nossa luta democrática. [...] Por isso mesmo, I crédito e do patrimônio ecológico, confisco de aparelhos

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produtivos para serem geridos pelos próprios trabalhadores,
salário máximo, restrição do direito à propriedade privada. Só
uma esquerda que não tem medo de dizer seu próprio nome,
que assume a luta de classes e se identifica com o proletariado
como sujeito político com força revolucionária - principal tese
da teoria marxista da revolução -, será capaz de superar os
impasses a que nos levou um "reforrnísmo fraco", que confun-
diu política com gestão.
Este livro corajoso, polêmico, instigante é não apenas uma
análise, um estudo e um diagnóstico da atual conjuntura his- Franceses, só mais um esforço
tórica do Brasil, mas um chamado à ação: "Agora não é hora Se quiserdes ser republicanos.
de medo. Agora é hora de luta". SADE

Michael Lii1ry éfilósofo franco-brasileiro, diretor de pesquisas emérito do


CNRS (Centre National de Ia Recherche Scientifique), em Paris. É autor, entre outros, de
A teoria da revolução no jovem Marx (2012) e A jaula de aço: Max Weber e o
marxismo weberiano (2014), ambos publicados pela Boitempo.

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Aos que estão a ponto de emergir
o último capítulo,
ou História sucinta
da decomposição de
,
um paIS Ele falava como se mata
O animal selvagem
Oua piedade
Seus dedos tocaram o outro rio.
RENÉCHAR

Deixai os mortos enterrarem seus mortos.


DEUS (AO QUE PARECE)

Para muitos, o Brasil parece ter se transformado em uma incóg-


nita. Um país que, depois de elevado pela imprensa mundial à
ondição de potência emergente, virtual quinta economia do
mundo, é visto agora como um território em desagregação
ti elerada. Um país completamente à deriva depois de um gol-
I parlamentar. Para outros, ele simplesmente expressa hoje,
ti forma mais brutal, os impasses de um processo que deve
s r compreendido em sua dinâmica global. Reconstruir o sen-
ti 10 dessa dinâmica aparece como condição necessária para

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entendermos de que forma um país pode chegar a impasses tão na América Latina, onde a descolonização ocorrera ainda no
espetaculares em um prazo tão curto de tempo. Pois a história século XIX. Isso permitiu que os embates populares não fossem
brasileira é, na verdade, o último capítulo de outra história. logo inscritos como lutas eminentemente nacionais, ganhando
Ela é o setor mais influente da história latino-americana, que, assim, de forma mais clara, a configuração de conflitos sociais
por sua vez, está vinculada, nas últimas décadas, à ascensão em que questões transnacionais de classe e desigualdade pu-
da esquerda ao poder. dessem aparecer na linha de frente.
A experiência da esquerda latino-americana no governo, Lembremos, então, como a experiência latino-americana
nos primeiros anos do século XXI, também faz parte de outra conheceu, nestas últimas décadas, dois eixos principais. No pri-
história. Na verdade, ela é o último capítulo da história da es- meiro, encontramos um modelo de polarização social normal-
querda mundial no século xx. O que podemos chamar de "ex- mente marcado por reformas estruturais nas instituições do
periência latino-americana de governo de esquerda", ocorrida poder e por processos de incorporação popular populista. Foi o
nos últimos vinte anos em países como Brasil, Argentina, Chi- que ocorreu em países como Venezuela, Equador, Bolívia e Ni-
le, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua, arágua. Esse modelo, autodenominado "bolivariano", vendeu-
Peru, EISalvador, Haiti e Honduras, foi o término de uma longa -se como "o socialismo do século XXI", mas foi em larga medida
história mundial marcada pela tentativa de consolidar políticas dependente de dinâmicas de constituição de corpos políticos
redistributivas, regulação dos agentes econômicos e integração lue remetem ao populismo do século XX, com o consequente
das massas aos jogos eleitorais. Que essa história tenha encon- investimento libidinal maciço em figuras personalizadas do po-
trado na América Latina um de seus terrenos fundamentais;' eis der, como na Venezuela. Essas dinâmicas identificatórias foram
algo a ser creditado a uma conjunção de dois fatores. sua força momentânea e sua fraqueza final. O caso mais com-
Primeiro, a América Latina teve, até a década de 1990, plexo desse grupo, por ser o mais bem-sucedido, é o da Bolívia,
um déficit contínuo de integração popular aos processos de m sua organização institucional inovadora, seu crescimento
decisão política, pois essa integração se deu normalmente , onômico ininterrupto (média de 5,1% entre 2006 e 2014, 4,2%
de forma frágil, pelas vias do populismo, e intermitente, tendo '111 2016: um dos maiores crescimentos da América Latina),
sido rompida várias vezes pela ascensão de ditaduras militares, s 'LI conceito de "Estado plurinacional" e seu aprofundamento
em especial de meados dos anos 1970 até o fim dos anos 1980. ti ' participação popular nos processos decisórios do Estado
Segundo, enquanto a luta pela integração popular aos pro- (mesmo os juízes do Supremo Tribunal são agora eleitos).
cessos de decisão política em continentes como Ásia e África No segundo eixo, encontramos um modelo de gestão
foi travada no âmbito de lutas coloniais, o mesmo não ocorreu so ial marcado, ao contrário, pela conservação de estruturas

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institucionais próprias à democracia liberal e por processos principalmente, para expor as dinâmicas de esgotamento de
de incorporação popular também caracterizados como popu- modelos globais que apenas começam a ser sentidas em países
listas. Esse é o modelo que vigorou no Brasil e na Argentina, d centro do capitalismo.
principalmente, mas em menor grau no Uruguai, no Chile, Nesse sentido, o fracasso da experiência latino-americana,
no Peru, em EI Salvador e, por algum tempo, no Paraguai. Tal m especial em seu setor mais avançado - capitaneado pelo
modelo representou uma experiência retardatária que procu- Brasil-, não é apenas algo que diz respeito a uma região perifé-
rou realizar políticas de redistribuição respeitando o espaço rica do capitalismo mundial: ele representou a paulatina toma-
político próprio à democracia liberal, acreditando que poderia, da de consciência de que o tempo da democracia liberal e seus
de alguma forma, repetir certas estratégias de gestão da social- a ordos não mais existia. Nós havíamos chegado tarde demais.
-democracia europeia do pós-Segunda Guerra Mundial. Esse Por isso, a experiência latino-americana expôs, de forma mais
modelo entrou em colapso mais ou menos ao mesmo tempo xplícita, o que o resto do mundo começará a descobrir de
em todos os países, à exceção do Uruguai, que soube mobi- ~ rma dramática. Ela trouxe como saldo a consciência de que
lizar pautas de reconhecimento e liberalização de costumes uma política de conciliação impulsionada por ajustes gradua-
para consolidar a adesão popular, e do Paraguai, que sofreu listas, facilmente anulados no primeiro retorno ao poder dos
um golpe de Estado parlamentar em 2012. Resultado de polí- núcleos dirigentes tradicionais (como vemos claramente no
ticas pós-ditadura, ele foi uma paradoxal e única articulação Brasil desde o golpe parlamentar de 2016), não tem mais lugar.
entre horizonte reformista social-democrata e modelo de in-
tegração política populista. O que não deveria impressionar
ninguém, pois pensar a América Latina é algo que exige saber NÃO HÁ LÁGRIMAS PELO FIM DA DEMOCRACIA LIBERAL

operar com paradoxos e contradições sem superação.


Seria bom começar nossa análise assim. O Brasil tende a Nesse contexto, lembremos como a democracia liberal, tal
se ver como a maior ilha do mundo, procurando desenvolver orno a conhecemos, é uma invenção recente, consolidada
análises de seus processos político-sociais como se sua estru- a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Ela respondia a
tura causal fosse completamente endógena. Melhor seria, no um sistema de acordos e equilíbrios entre setores sociais an-
entanto, se procurássemos perceber como se dá nosso modo tagônicos e vitoriosos ao final da guerra. Sua base de sobre-
de integração a movimentos globais, não apenas para denun- vivência foi a capacidade de orientar a política na direção de
ciar como, em certos momentos, acabamos por mimetizar, uma espécie de "luta pela conquista do centro". Assim, por
com atraso, processos socioeconômicos transnacionais, mas, exemplo, os partidos de esquerda europeus foram moderando

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seus horizontes de ruptura institucional para acabarem como representou nenhuma modificação substancial na detenção de
gestores do chamado Estado de Bem-Estar Social. Mesmo os meios de produção, mas um compromisso frágil com quem es-
partidos comunistas europeus, fortes até o final dos anos 1970, perava pôr o sistema abaixo. Tal oportunidade veio em meados
com votações que podiam chegar a 30% (como no caso do dos anos 1970, por meio de uma conjunção improvável entre
Partido Comunista Italiano), seguiram essa lógica de respeito crise econômica e crítica cultural. Uma crise provocada não pelo
ao horizonte institucionalliberal, retirando de circulação a luta custo da Previdência Social, mas, por um lado, pelo desmante-
por mutações institucionais profundas, agindo no esquadro de lamento do colonialismo que sustentava a social-democracia
uma "coexistência pacífica", até o momento em que perderam (principalmente em países como França e Reino Unido), garan-
de vez sua força e sua relevância. tindo acesso monopolista a mercados, além de mão de obra
Da mesma forma, os partidos de direita foram levados imigrante barata, seguindo uma lógica colônia-metrópole. Seria
a aceitar a conservação de uma espécie de mínimo social a difícil o Estado de Bem-Estar Social sobreviver sem sua solida-
ser respeitado, mesmo agindo com vista a promover a libe- riedade ao colonialismo e suas facilidades econômicas. Por ou-
ralização da economia e a desregulamentação gradativa das tro lado, a crise do sistema encontraria seu segundo elemento
defesas trabalhistas contra a espoliação. Há de se lembrar que impulsionador no conflito Israel-mundo árabe, ou seja, ainda
a constituição do Estado de Bem-Estar Social foi, de certa for- um fator ligado às consequências das ambivalências das políti-
ma, uma criação conjunta de esquerda e direita. Não é possível cas coloniais no Oriente Médio. A crise do petróleo de 1973, que
contar a história da formação do Estado-Providência alemão, representará a primeira crise global do pós-guerra, quebrou o
por exemplo, sem passar pelas políticas implementadas pelos iclo mais constante de crescimento no século xx, produzindo
democratas-cristãos, nem contar a história do seu símile fran- uma insegurança econômica profunda, que seria aproveitada
cês sem passar pelo gaullismo. r novos discursos de reforma social.
Exatamente por ser uma formação de compromisso, a de- Alguns podem achar estranho o papel da crítica cultural
mocracia liberal e seus gestores do Estado de Bem-Estar Social neste processo de esgotamento da democracia liberal, mas ele é
estavam fadados a durar pouco. Não porque ela produziria letar- real, Para tanto, foi necessária uma inversão peculiar, dessas que
gia econômica e baixa competividade, mas porque o patronato, o capitalismo se mostrou hábil em operar. Maio de 68 produziu
intocado em suas posses, aproveitaria a primeira oportunidade no Ocidente a ascensão da crítica à estrutura disciplinar do Es-
para aumentar rendimentos, reduzindo os elementos do custo tudo e das instituições, a recusa da sociedade do trabalho com
salarial e criando condições para uma verdadeira reedição dos SCllS processos extensivos de alienação social e a consciência
processos de acumulação primitiva. A social-democracia não do proliferação de dispositivos de controle social nas esferas

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da reprodução material, do desejo e da linguagem. Tratava-se Valelembrar como, cinco anos depois de assumir o governo do

de uma crítica totalizante ao capitalismo como sistema econô- Reino Unido, Thatcher produzira simplesmente o declínio da

mico e como modo de existência, que devia ser lida no âmbito produção industrial, o fim de fato do salário mínimo, dois anos

de uma sequência histórica ligada à Comuna de 1871 e à Revo- de recessão e o pior índice de desemprego da história britânica

lução Russa de 1917.1 Maio de 68 esperava, com isso, permitir a desde o fim da Segunda Guerra (11,3%, em abril de 1984).

emergência de sujeitos políticos com força para produzir trans- Os arautos do modelo econômico atual gostam de se ver

formações globais na forma de vida, em direção a modelos ca- como vencedores de um embate no qual teriam demonstrado

pazes de recusar tanto o sistema burocrático soviético quanto a ao mundo que o capitalismo neoliberal era a melhor forma, até

democracia liberal. Esses sujeitos emergiram, mas com menos mesmo a única, de produzir riqueza, inovação e bem-estar. As

força do que se imaginava. Com eles também emergiram tanto experiências de esquerda teriam falhado por criarem apenas

sujeitos claramente reativos, dispostos a lutar pela preservação uma sociedade letárgica, presa na sustentação de um Estado

da ordem e de suas tradições, quanto simulacros de revolta. Este ineficiente e pesado. Ou seja, tais experiências teriam sido ul-

é o ponto mais importante: analisar tais simulacros de revolta, trapassadas pela lei inexorável da eficiência econômica, lei que

que, mesmo sem expor sua natureza de forma clara, usavam a desconhece ideologias, que conheceria apenas "resultados".

potência da sedição para empurrar o mundo para fora da de- Entretanto, os "resultados" mostram outra coisa. Mostram,

mocracia liberal. Não para além dela, mas para aquém. por exemplo, como o nível de pobreza nos EUA caiu progres-

Nesse sentido, lembremos como o primeiro tremor no ivamente até meados da década de 1970, voltando a subir exa-

pacto que sustentou a democracia liberal se deu com; leva tamente com a ascensão das políticas neoliberais, nunca mais

neoliberal de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, no início dos tendo novamente caído de forma sustentada. Em 2015, ele atin-

anos 1980. Nos Estados Unidos, o pacto criado pelo New Oeal, gia 13,5% da população," mais do que em 2007. Os índices de

de Franklin O. Roosevelt, conservado por décadas, foi desmon- desigualdade, por sua vez, aumentaram exponencialmente nos

tado por uma política de retração do Estado, de desregulação últimos trinta anos. No período 1910-20, a renda dos 10% mais

progressiva da economia e redução de impostos para os mais ri- ricos representava entre 45% e 50% da renda nacional norte-

cos. O mesmo foi feito no Reino Unido, sob o fogo de uma luta -americana. Essa porcentagem cai para 35% em 1950, chegando

incessante contra os sindicatos e as categorias profissionais.

Dados do us Census Bureau, Current Population Survey. Disponível em:

1 Para uma discussão adequada da significação política de Maio de 68, ver,


h ttps:llwww.census.gov/data/tables/time-series/demo 1income-poverty 1cps-
povjpov-oi.html. Acesso em: 17/6/2017.
principalmente: Badiou, Alain.A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo, 2015.

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a 33% em 1970. A partir de então, volta à casa de 45% a 50% 11 qual as decisões econômicas estariam submetidas à orien-
entre 2000 e 2010.3 A isso, alguns chamam de "sucesso". Tal tação política das deliberações de gestão e limitação da força
fenômeno só pode ser chamado de sucesso se lembrarmos da de transformação dos conflitos de classe. Pollock chega a falar
afirmação do milionário Warren Buffet: "Quem disse que não irn uma substituição de problemas econômicos por problemas
há luta de classes? É claro que há uma, e estamos vencendo". administrativos, criando um horizonte "racional" de gestão de
. nflitos sociais graças às promessas de integração da classe tra-
balhadora pela consolidação de uma lógica da providência e da
o NEOLIBERALISMO É UM DISCURSO MORAL a sistência social generalizada que teria a capacidade de limitar
o processos de espoliação econômica.
A verdade é que essa política de choque e fim de padrões mí- Nesse sentido, Maio de 68 demonstrará a fragilidade dessa
nimos de solidariedade social só poderia ser sustentada pela .rença na possibilidade de regulação de conflitos no interior
doutrinação estatal de uma nova moral. No fundo, é isso que le um capitalismo de Estado, evidenciando como as formas de
o neoliberalismo sempre foi: mais do que uma doutrina eco- r gulação da classe trabalhadora não foram capazes de impe-
nômica de resultados miseráveis, um discurso moral capaz de dir a consolidação de revoltas nos países centrais - revoltas
fundamentar novas formas de sujeição social. que visavam ao caráter disciplinar desse mesmo Estado-Provi-
Lembremos como, durante certo tempo, o modelo do Es- dência outrora visto como o modelo perfeito de gestão social.
tado de Bem-Estar Social, com seu capitalismo de Estado, fora u seja, as revoltas de Maio de 68 e a força de sedição de seus
visto como uma espécie de modelo perfeito de gestão de éo?fli- .onflítos mostraram os limites das promessas de integração
tos sociais." Friedrich Pollock, em um ensaio clássico, insistia na 1.0 capitalismo de Estado e de suas estratégias de providência.
tese da passagem inexorável de um "capitalismo privado" para s próximos modelos de gestão nas sociedades capitalistas,
um capitalismo de alta regulação estatal, fosse ele totalitário (na- li quisessem ter eficácia real, deveriam operar de outra forma.
zifascismo) ou democrático (social-democracia) - capitalismo E tava evidente a impotência do discurso de integração atra-
vés da identificação com a figura do cidadão do Estado-Nação
omum. Seria necessário deslocar os processos de regulação
3 Ver: Piketty, Thomas. Capital in the Twenty-First Century. Belknap: Harvard,
social para uma outra cena. De onde se seguia o fortalecimen-
2014, p. 26 [ed. bras.: O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014].
t de um modelo de gestão social por meio da expropriação
4 Ver: Pollock, Friedrich. "State Capitalism: its Possibilities and Limitations".
In: Arato, Andrew; Gebhardt, Eike. The Essential Frankfurt School Reader. Nova Ia economia pulsional e da regulação psíquica, em uma lógica
York: Continuum, 1983, pp. 71-93. prevista décadas antes pela Escola de Frankfurt.

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um sintomático estudo mostrando como os sobrenomes das
Saía assim de cena o capitalismo de Estado para que um
pessoas ricas em Florença eram, em larga medida, os mesmos
capitalismo de expropriação libidinal ganhasse hegemonia. Ele
havia quase quinhentos anos, desde 1427 até 2011.5 Deve ser por
saía de cena para que a economia como design psicológico e
mérito e pela capacidade dessas famílias de educar seus filhos
injunção moral pudesse tomar a frente do trabalho de sujeição
para ter coragem diante do risco.
social. E é nesse ponto que começa a história da ascensão da
Atualmente, conhecemos estudos que defendem a tese de
era neoliberal.
que a ascensão do neoliberalismo no final dos anos 1970 é um
Nesse sentido, notemos como é de sua natureza de discur-
peculiar desdobramento dos impulsos de Maio de 1968.6 Essa
so moral que vem a verdadeira força do neoliberalismo, longe
tese deve ser levada a sério. De fato, nunca entenderemos o
das pretensas "evidências de sucesso".
neoliberalismo sem nos perguntarmos o que ele tem (ou tinha)
A necessidade do neoliberalismo foi imposta a nós como
de utopia realizada. Ideais de flexibilidade, de fim do emprego, de
uma injunção moral, como uma moral baseada em uma ver-
crítica ao Estado, de aumento da capacidade individual de
são muito particular da coragem como virtude. Coragem para
decisão estavam presentes na revolta estudantil de Maio de 68.
assumir o risco de viver em um mundo no qual pretensamente
À sua maneira, o neoliberalismo fornecia uma versão para to-
só se sobreviveria através da inovação, da flexibilidade e da
dos esses ideais, mas agora esvaziando-os de seu fundamento
criatividade. Todos esses valores colocados em circulação por
na crítica social ao capitalismo e coordenando-os no interior de
Maio de 68 contra o caráter alienante da sociedade do trabalho
uma lógica de generalização da forma-empresa e da gramática
assumiram, nas mãos dos arautos do neoliberalismo, uma fei-
do "empreendedorismo". Essa ilusão baseada na construção de
ção completamente inesperada. ,
um símile da revolta - essas histórias de empreendedores com
Assumir riscos no livre-mercado apareceu, assim, como a
'ara de hippies que começam em garagens e terminam no topo
expressão maior de maturidade viril, como saída da minorida-
do processo produtivo global- durou décadas, impulsionada,
de a que estariam submetidos aqueles pretensamente infanti-
no final dos anos 1980, pelo colapso do socialismo real no Leste
lizados pela demanda de amparo do Estado-Providência. Esse
mantra levava os sujeitos a acreditar que, se eles fracassassem
economicamente, seria por culpa absolutamente individual,
') Barone, Guglielmo; Mocetti, Sauro. "Intergenerational Mobility in the Very
por culpa da minha incapacidade de me reinventar, de me l.ong Run: Florence 1427-2011". Bank ofltaly Temi di Discussione (Working Paper),
"reciclar" como uma garrafa PET. Enquanto essa moral do risco 11.1.060, abro 2016.

simulado era brandida em voz alta, dois economistas italia- () Ver, principalmente, o clássico de Luc Boltanski e Eve Chiapello: O novo
I'splrito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
nos (Guglielmo Barone e Sauro Mocetti) divulgaram, em 2016,

27
26
Europeu. Essa é a especialidade do capitalismo: criar símiles de sua terceira via, o novo centro de Gerhard Schroeder, os ex-
revolta, vampirizar a força de transformação global. -comunistas de Massimo D'Alema, a volta dos democratas com
Mas o fato fundamental só agora fica visível: a ascensão Bill Clinton e seu neoliberalismo misturado com discursos de
do neoliberalismo como política de Estado e discurso moral reconhecimento de minorias e grupos identitários," demons-
representou a destruição contínua da democracia liberal e de traram ser outra coisa. Na verdade, tratava-se de uma capitu-
seus pactos. Restringindo paulatinamente o horizonte de polí- lação. O que se viu foi apenas a consolidação da falência da
ticas públicas, impondo a versão de que, no que diz respeito à social-democracia, seu enterro pelos próprios atores que, de
economia, "não há escolha", mesmo diante do caráter suicida certa forma, deveriam representá-Ia. A França de Lionel Jospin
do sistema financeiro internacional, explícito desde a crise dos parecia um ponto fora da curva, já que foi nesse país que, em
subprimes, o neoliberalismo conseguiu esvaziar a política e suas 1995, ocorreu a última grande greve geral de defesa do Estado
instituições. Seu mundo é a reedição de um mundo pré-politico, de Bem-Estar. A social-democracia francesa ainda tentou um
no qual as relações sociais se resumem à gestão militarista da último suspiro, criando reduções da jornada de trabalho sem
segurança e às garantias da perpetuação dos modos atuais de redução salarial (35 horas), políticas de intervenção estatal na
circulação de riqueza. Aos poucos, ficou evidente como a po- economia, mostrando como a Previdência não era deficitária,
lítica mundial, depois de esvaziada da possibilidade de decidir mas sua capitulação final foi ainda mais brutal pelas mãos do
modificações efetivas na esfera da economia, tornara-se uma neoliberalismo militarista de François Hollande, o mais impo-
mera pantomima, composta de personagens exímios em de- pular presidente da Quinta República.
monstrar sua impotência. " É nesse horizonte de capitulação que a experiência brasilei-
ra se insere. Colaborava para isso um fantasma a assombrar a es-
querda latino-americana: o da via chilena abortada. O Chile, sob
A ESQUERDA BRASILEIRA EM UM HORIZONTE o governo Allende, foi uma das mais impressionantes experiên-
MUNDIAL DE CAPITULAÇÃO cias da esquerda latino-americana na tentativa de constituição
de um socialismo democrático. Seu modelo único conjugava
É verdade que os anos 1990 pareciam, inicialmente, implicar mudanças estruturais e procurava garantir uma sociedade po-
certa retração desse horizonte neoliberal com a ascensão do liticamente plural. Sabotado de forma sistemática pelos Estados
que se chamou à época de "onda rosa". Era a volta da "esquer-
da" europeia em países centrais corno França, Reino Unido,
7 Ver, por exemplo: Fraser, Nancy. "Feminism, Capitalism and the Cunning
Alemanha e Itália. Mas o novo trabalhismo de Tony Blair, com f History". New Left Review, n. 56, mar.fabr. 2009·

28 29
Unidos (o que levou o governo Clinton a pedir desculpas ao públicos, o desmonte de mecanismos de distribuição de renda
Chile pela política de destruição implementada pelo Departa- e a elevação dos interesses do sistema financeiro mundial à
mento de Estado sob o comando de Henry Kissinger), o modelo condição de dogma ínquestíonável. Esse processo, que agora
naufragou em meio a locautes e desabastecimento. mostra sua face mais completa, começa de maneira evidente
Esse fracasso foi um dos maiores golpes contra a esquer- no segundo governo Dilma Rousseff (2015-16). Por isso, há de
da latino-americana, um golpe que dura até hoje. O diag- se reconhecer a responsabilidade maior do setor governista da
nóstico corrente insistia no isolamento da Unidad Popular esquerda brasileira por seu próprio colapso. As políticas im-
e sua incapacidade de estabelecer alianças com o centro (a plementadas depois da derrubada de Dilma Rousseff, como a
Democracia Cristã) tendo em vista a governabilidade. As limitação de gastos públicos pelos vinte anos seguintes, com
novas gerações da esquerda, assim como os que viram de a decomposição anunciada do Estado brasileiro, a reforma pre-
perto o colapso da via chilena, cresceram acreditando que videnciária e o desmonte dos direitos trabalhistas, aproveita-
uma segunda experiência evitaria tal cenário, gerenciando ram-se de uma guinada neoliberal do próprio governo petista
"concertações" e conciliações. que, ao entregar sua política econômica a alguém como Joa-
Mas coalizões não significam apenas partilha de cargos de quim Levy, permitiu a consolidação do discurso de que a única
governo. Significam simbioses e partilhas de modos de gestão saída para a situação de crise seria adotar o mesmo modelo de
social, assim como respeito a interesses que os membros de sua políticas econômicas que havia falhado no resto do mundo.
coalização representam. Em um horizonte mundial de conver-
são da "esquerda" à gestão de um neoliberalismo "com rosto
mais humano", os resultados tendiam a empurrar a esquerda, o MEDO É NOSSO ÚNICO LEGADO

como formuladora de políticas, à irrelevância,


Isso ficou evidente com a crise de 2008 e com a ausên- Nesse processo global de capitulação, os partidos de esquerda
cia de alternativas ao modelo econômico falimentar. O Brasil foram simplesmente dizimados, já que eles perderam de vez
podia anunciar ter ultrapassado o primeiro impacto da crise sua função de contraponto, sem coragem para trilhar outra
operando políticas proto-keynesianas e de consolidação de via. O que ocorreu no Brasil nos últimos anos não está fora
seu capitalismo de Estado, mas o caminho posterior seria ou- dessa história geral, foi apenas uma versão mais trágica de um
tro. Paulatinamente, seu destino foi se revelando o mesmo de processo global. Nesse sentido, a ascensão política contem-
todos os atores políticos mundiais forçados a aplicar a mesma porânea de Donald Trump, de Marine Le Pen e do Alternativa
política de "austeridade", com as contenções de investimentos para a Alemanha, além da vitória do Brexit, são partes de um

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mesmo fenômeno. Essas escolhas expressam o desconforto Reagan e Thatcher, o neoliberalismo aparecia em sua novida-
com a ausência de escolha no âmbito da democracia liberal. de como um novo bloco ideológico, com seu ideário de que,
Elas demonstram, na verdade, que a democracia liberal acabou, como dizia Thatcher: "Não existe esse negócio de sociedade,
que seu acordo não existe mais. De fato, a crise econômica le- existem apenas indivíduos e famílias". Ora, a crise de 2008 era
vou populações a ir em direção ao extremo, em vez de aceitar a prova final de como esse ideário produzira apenas catástrofe
as normas e a dogmática econômica que vigoravam no centro econômica e uma sociedade desigual e injusta; por isso, daque-
do espectro político. le momento em diante, a adesão social a tal bloco ideológico
Deve-se assumir que a extrema direita foi capaz de cons- não poderia mais ser feita a partir do compartilhamento de
tituir uma resposta política, ouvindo o descontentamento sistemas de crenças, de convicções comuns. Ninguém acredita
social, a insegurança produzida por um sistema econômico mais (a não ser algumas sumidades intelectuais brasileiras) que
de pauperização e aumento da vulnerabilidade. Ela não acre- o futuro projetado pelo modelo neoliberal seja algo melhor do
ditou no conto do fim da sociedade do trabalho. Ao contrário, que o presente. No máximo, nos vendem um futuro de condo-
falou ao povo como "trabalhadores", mesmo que sob a con- mínio fechado fortemente vigiado.
dição de "trabalhadores nacionais", tendo clara compreensão Ou seja, o neoliberalismo não vende mais promessas,
e se aproveitando do fato de o Estado-Nação ser atualmente como fazia ainda nos anos 1980. Ele vende o medo, ou antes a
apenas uma máquina paranoica de gestão do medo através distopia de uma sociedade militarizada, cuja brutalidade será
da lógica da fronteira e do território. Em uma era de intensi- escondida pela circulação em larga escala de frivolidade mi-
ficação brutal dos regimes de trabalho, de achatamento/dos diática, pelo culto de celebridades industrialmente produzidas
salários e de precarização, não haveria como falar em fim da e de violência asséptica estilizada. Por isso, nesse seu estágio
sociedade do trabalho. A baixa produção de empregos está- distópico, o modelo neoliberal encontrará na extrema direita
veis, com a proliferação de arranjos sazonais, não eliminou o seu aliado preferencial. Sua gestão social será a de uma guer-
vínculo social fundamental entre reconhecimento e trabalho. ra civil contínua. Ele aprimorará sua incitação do terrorismo
Ele apenas deixou tal vínculo mais precário, mais intermitente para criar alguma forma de coesão social. Pois nossos governos
e desesperador. produzem o terrorismo através de sua lógica militarista e inter-
Essa associação entre neoliberalismo e protofascismo não vencionista, através da naturalização do racismo ordinário, que
deveria nos surpreender. O retorno do neoliberalismo como ganha cada vez mais direito de circulação, ampliando os efeitos
política de Estado, a partir de 2008, não tinha as mesmas ca- do ressentimento social. Dessa forma, os governos atuais são os
racterísticas da primeira ascensão, no final dos anos 1970. Com verdadeiros estimuladores da consolidação da extrema direita,

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pois assim seus gestores liberais podem aparecer, em uma a fonte de nossa revolta, dar um rosto preciso à nossa falta é a
batalha milimetricamente desenhada contra um inimigo per- estratégia principal de construção de adesão social. São certas
feito, como guardiães da razão e da tolerância. A eleição fran- leis, certos políticos corruptos, certas empresas gananciosas,
cesa de 2017 demonstrou isso de forma muito clara. O medo . certos grupos privilegiados por políticas de Estado, certos parti-
maior do mundo financeiro e de seu aparato midiático não era dos, certas relações de poder que devem ser o objeto da revolta.
a ascensão de Marine Le Pen, mas a possibilidade de vitória do Essa localização é uma forma de gestão da revolta, fornecendo
candidato de esquerda [ean-Luc Mélenchon, com seu discurso pautas locais e figuras sazonais de ira e catarse coletiva.
de reinstauração política e luta contra o poder econômico. Foi
contra ele que, por fim, o sistema de gestão do medo se voltou.
Ele era o verdadeiro problema, pois quebrava a polaridade forja- OS IMPASSES DA POLÍTICA DAS DIFERENÇAS

da entre extrema direita "nacional" e liberalismo "cosmopolita".


Lembremos, a esse respeito, como o capitalismo, em sua Nesse contexto, o que antes era a esquerda aparece como uma
fase atual, não pode ser descrito como uma sociedade da sa- força política supérflua, pois incapaz de organizar um discur-
tisfação administrada, como era sua versão social-democrata o de alternativa econômica global. Ela não conhece mais
para os teóricos da Escola de Frankfurt. Ele é atualmente uma crítica estrutural alguma, o que nada tem a ver com a distin-
sociedade da insatisfação administrada. O descontentamento e ão arcaica entre reforma e revolução. Uma crítica estrutural
o desencanto quanto às possibilidades de realização de si ofere- pode, inclusive, impulsionar processos cada vez mais amplos
cidas pela vida social são atualmente os afetos fundamenta~s de de reformas. É ela que impedirá a paralisia. Mas o fato é que
socialização. Somos socializados por meio não da partilha não há sequer reformas efetivas no horizonte da esquerda, ou
de expressões positivas de expectativas de realização social, .eja, depois de abandonar a noção de revolução, a esquerda abandonou
mas da produção de nosso desencanto e de sua inscrição no até mesmo o horizonte das reformas. Mais ainda: em países como
imaginário social. Trata-se de controlar a gramática de nossa França, Espanha, Grécia, Alemanha (já que o Partido Social-
revolta, estabelecer os objetos de nossa indignação. O poder -Democrata da Alemanha - SDP - governa há anos com a
não funciona mais através da enunciação dos objetos de nosso União Democrata-Cristã - CDU) foi ela quem levou a cabo os
desejo: ele funciona através da gestão da nossa falta; é uma boques de austeridade. Tudo o que restou à esquerda, por
máquina de inscrição social do desencanto. enquanto, foi apoiar-se em políticas de reconhecimento de
Isso é feito, por exemplo, por meio de estratégias que esva- lireitos de setores vulneráveis da população, como mulheres,
ziam a crítica estrutural em prol de "críticas locais". Localizar negros, comunidades LGBT, entre outros.

34 35
Este é um ponto maior de impotência: a luta por reconhe- Notemos que essa força de implicação genérica não é
cimento funciona atualmente como uma espécie de compen- necessariamente o resultado de alguma forma de univer-
sação à inexistência de um discurso econômico de esquerda salidade positiva fundada na crença na possibilidade de
com clara força de transformação e com capacidade de im- atribuição extensiva de predicados gerais. Ela não é obriga-
plicar as classes empobrecidas. Conseguimos transformar toriamente produzida por uma universalidade por partilha de
tais pautas, profundamente justas em si, na única modifi- atribuição. Ela é a possibilidade de nós organizarmos as lutas
cação concreta que a esquerda é capaz hoje de oferecer, já sociais emergindo como sujeitos não saturados por determi-
que estamos todos comprometidos com a gestão do mesmo nações predicativas. Ela é a possibilidade de permitir a cons-
modelo econômico, divergindo apenas sobre a intensidade tituição de corpos políticos no interior dos quais os usos de
da aplicação das mesmas políticas. Nossas lutas, entretanto, identidades serão apenas estratégicos.
não devem ser organizadas a partir de tais pautas; devem ser Várias consequências de enfraquecimento político vêm
geradas a partir delas, o que é algo totalmente diferente do dessa impossibilidade de implicação genérica. Primeiro, por
que vemos hoje. não sermos mais capazes de constituir corpos políticos, as
Na verdade, tais embates funcionam atualmente como demandas políticas tendem a perder sua dimensão funda-
compensação pela incapacidade da esquerda de lutar pela mental de persuasão retórica para se transformarem em
emergência de um sujeito político com força de implicação experiências linguísticas de autoexpressão. Falo apenas em
genérica, ou seja, com capacidade de implicar todo e qualquer meu nome, expresso minhas demandas devidas de reparação
sujeito em um mesmo movimento de emergência de corpos sem preocupar-me muito com a constituição de campos de
políticos. Insisto nesse ponto há anos, ao afirmar a necessidade fala que possam ser incorporados por todos e por qualquer
de passarmos de uma política das diferenças a uma política da um, o que sempre foi a base fundamental da força política de
indiferença." Não é estranho que tenhamos hoje grande força implicação. Opero por bloqueios, paralisias e pela expressão
de mobilização por pautas específicas, mas nenhuma capaci- da minha revolta, sem nenhuma preocupação sobre como
dade de criar constelações capazes de colocar todas essas lutas criar implicações genéricas ou como evitar a emergência de
em processo de unificação. sujeitos reativos.
Nesse sentido, a ação política se transforma em mera
experiência de auto expressão, reduzindo-se à realização de
8 Remeto ao primeiro capítulo de A esquerda que não teme dizer seu nome (São
Paulo: Três Estrelas, 2012) e ao manifesto Quando as ruas queimam: manifesto pela demandas de reparação e compensação. O que, no fundo,
emergência (São Paulo: N-l edições, 2016), ambos de minha autoria. é uma redução da política à gestão social de demandas de

37
amparo. Mesmo que tais demandas se expressem de forma apresentado ao mundo como o grande modelo bem-sucedido
violenta, elas se fundamentam na constituição e procura de de conciliação e crescimento, a ponto de ser vendido, pela
poderes capazes de ampará-Ias, de garantir o exercício do imprensa conservadora mundial, como paradigma de novas
meu poder devido, paradoxalmente reforçando o poder cons- tentativas de gestão da esquerda (a ser seguido, por exemplo,
tituído. Por isso, são sempre demandas locais de modificação pela Grécia do Syriza). A história recente do Brasil será, pois,
na estrutura legal, nunca exigências globais de transformação a história do colapso do último grande modelo de conciliação
dos modos de reprodução material da vida. Para tanto, deve- da democracia liberal. Coube ao Brasil a honra duvidosa de
riam ser demandas de um sujeito político capaz de se colocar terminar um ciclo mundial de forma catastrófica. Coube ao
como agente global, o que é impossível quando se começa Brasil realizar o que dizia T. S. Eliot: "É desta forma que o mun-
fazendo a defesa de seu próprio lugar de fala. do termina, não com um estrondo, mas com um lamento".
Nesse contexto, o que a América Latina mostrou, e o Bra-
sil em primeiro lugar, é que, para a esquerda ter um sentido
de existência, ela não deve ter medo de dizer seu nome. Aque-
les que procuram reeditar a esquerda pregando uma política
conciliatória de conquista do centro do espectro político, que
temem introduzir novos temas políticos - como o esvazia-
mento do Poder Legislativo e do Poder Executivo em prol de
mecanismos de democracia direta -, que temem introd'U~ir
novos temas econômicos - como justiça tributária radical,
confisco de aparelhos produtivos para que sejam geridos pe-
los próprios trabalhadores, salário máximo, gestão coletiva
de recursos públicos, de sistemas de créditos e patrimônios
ecológicos, renda mínima, restrição do direito à propriedade
privada - têm os olhos voltados para um tempo que não existe
mais. Eles já erraram demais para acreditarem, daqui para a
frente, poder liderar qualquer processo político efetivo.
É no interior desse contexto que devemos procurar
compreender o caso brasileiro. Durante anos, o Brasil foi

39
Um problema
de imagem

Quem aprendeu inicialmente a se curvar


e a inclinar a cabeça diante do "poder da história"
acaba, por último, dizendo "sim" a todo poder.
NIETZSCHE

Cada época tem a sua imagem. Há momentos nos quais a es-


sência de tempos históricos determinados encontra sua figura
sensível. A ditadura militar teve, por exemplo, a figuração pre-
cisa de sua barbárie na foto de Vladimir Herzog enforcado em
uma cela, com os joelhos dobrados quase no chão. Demons-
trava-se, assim, o descaso com qualquer princípio elementar
de verossimilhança. O arbítrio não precisa ser verossímil, ele
pode dizer que alguém morreu enforcado, mesmo sendo mate-
rialmente impossível enforcar-se a uma distância tão pequena
do chão. Na verdade, essa é a essência mesma de uma ditadu-
ra: um regime no qual você deve acreditar que alguém mor-
reu enforcado, mesmo que uma foto demonstre exatamente
o contrário.

41
Os primeiros quinze anos do século XXI também têm sua
imagem paradigmática, ao menos no Brasil. Essa imagem é,
paradoxalmente, uma repetição. Trata-se de Lula encarnando
a figura de Getúlio Vargas, repetindo a foto que sintetizou o
desejo de instauração do Brasil como Estado-Nação econo-
micamente independente. Lula vestido com um macacão da
Petrobras, sorrindo com as duas mãos sujas de petróleo. Mãos
que prometiam aos brasileiros e ao mundo a emergência de
uma potência reconciliada consigo mesma e com a sua histó-
ria. A autossuíiciência em energia era apenas uma ocasião para
\
,fi. o Brasil dobrar o tempo sobre si mesmo e recuperar uma de
suas maiores fantasias sociais: a da reconciliação social através
do crescimento, da unidade e do progresso. Não foram poucos
aqueles que anunciaram que o Brasil chegaria ao final de 2020

como a quinta economia do mundo, embalado por grandes


investimentos feitos à ocasião da Copa do Mundo e das Olim-
píadas. O sorriso de Lula reencarnando Vargas era a expressão
máxima desse anúncio.
Que a primeira experiência de longa duração da esquer-
da brasileira no poder tenha afinal se realizado como uma
reencarnação, eis algo que deveria nos dizer muito. Alguém
deveria ter atentado para esse paradoxo aparente. Ao final, a
história da esquerda brasileira no poder terá sido a história de
uma mutação paulatina na qual toda a sua força de transfor-
mação foi se esvaindo, para se transmutar na força de ressur-
reição de espectros, como se acabássemos por nos encontrar
no interior de um tempo no qual o passado nunca passa. Há
o jornalistaVladimir Herzog, morto nas dependências do DOI/Codi, em
São Paulo, em 25 de outubro de 1975, aos 37 anos. de se lembrar sempre deste ponto: o Brasil é um país no qual

42 43
mesmo as notícias de jornal parecem, muitas vezes, repetir
notícias passadas. Um país preso à repetição compulsiva de
seus próprios impasses.
É preciso, então, enunciar claramente: a primeira expe-
riência da esquerda brasileira no poder foi a repetição de uma
estratégia populista de governo de extração getulista. Seu fim
melancólico e catastrófico é, na verdade, a expressão da im-
potência não da esquerda como horizonte de transformação
social, mas do espectro que a colonizou quando ela alcançou
o governo. Na verdade, tal história da esquerda no poder,
que acaba por se encontrar no populismo, mas em um po-
pulismo estranham ente adaptado aos limites da democracia
liberal, é ~ prova maior da premissa freudiana de que o tem-
po histórico é um tempo de espectros que ganham vida nos
gestos de sujeitos que não sabem o que fazem porque repe-
tem gestos imemoriais, assumem vestimentas antigas, falam Em abril de 2006, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mostra as mãos
com petróleo em plataforma da Petrobras na Bacia de Campos (RJ).
como se estivessem em outra cena. Os atores podem achar
que estão apenas a fazer uma "citação" histórica, a usar a his-
tória como mera estratégia para aumentar decisões banais o que realmente queremos dizer com ele. Pois é fácil reduzir o
de governo e dar-lhes o ar de grandiosidade. No entanto, tais populismo a uma espécie de injúria, como se fosse a expres-
atores não estão usando nada, eles estão sendo inconscien- são da irracionalidade e do primado das identificações afetivas
temente usados por um processo de repetição histórica que personalistas em política. Os liberais gostam de descrever o po-
reencenará batalhas e reconstruirá impasses. Se a esquerda pulismo como a explosão do irracional e do afeto em política,
quiser voltar a ter relevância no cenário nacional, há de se como se a democracia corriqueira fosse o domínio desencanta-
esconjurar certos espectros. do da razão. Eles precisam chamar de "populistas" todos os que
Mas uma afirmação como essa corre o risco de ficar sem expõem a irracionalidade da pretensa racionalidade econômica
sentido, já que "populismo" é um desses termos que podem di- que vendem como inquestionável, criando assim um amálgama
zer muitas coisas. Será necessário qualificá-lo melhor, explicar entre todas as forças novas no interior do espectro político,

44 45
seja ele à esquerda ou à direita. Os liberais precisam dar a im- De fato, na Proclamação da República, o Brasil conseguiu rapi-
pressão de que todo apelo a um poder anti-institucional, a uma damente tecer um pacto de oligarquias locais que transformava
emergência da soberania popular, é convite ao autoritarismo, a democracia em um regime de fachada. O afastamento do
como se as instituições que eles defendem não fossem a prova· núcleo positivista da República e seus militares permitiu ao
maior da impotência da vontade popular e do autoritarismo Brasil se consolidar como um país de oligarcas, com seus votos
das oligarquias financeiras que as controlam. A maneira como de cabresto, seus coronéis que passavam cargos públicos de pai
se usa o conceito de "populismo" atualmente é a comprovação para filho, sua gestão da inércia, da concentração de riquezas
de que eles anseiam por um povo mudo, prisioneiro de institui- e do imobilismo social através da violência bruta contra toda
ções que funcionam sob uma lógica de interesses muito clara, emergência possível de lutas populares. Greves tratadas como
normalmente interesses daqueles que financiam as campanhas crime, manifestações populares vistas como distúrbios da or-
eleitorais dos "representantes" do povo. dem pública: parece que estamos falando dos dias de hoje, mas
Precisamos de análises mais complexas, pois, por nunca isso era a República Velha. Enquanto isso, a imprensa cobria
ter sido capaz de pensar o populismo de forma adequada, em toda a pantomima como se aquela associação de latifundiários
sua verdade e em sua falsidade, em sua potência e em sua fra- fosse uma verdadeira república.
queza, em sua economia libidinal e em seu circuito de afetos, O compositor francês Jacques Offenbach compôs no fi-
o Brasil nunca foi capaz de compreender a si mesmo, com- nal do século XIX uma ópera-bufa chamada A vida parisiense.
preender onde o país sempre fracassa e onde ele sempre perde Mais do que uma opereta razoável, a peça de Offenbach é um
a enorme energia de transformação que é capaz de acumúl~r. documento sobre os brasileiros e como nossas oligarquias im-
Voltaremos outras vezes a esse tema, a fim de esclarecer periais eram vistas na época. Em dada altura da peça, que é uma
o que devemos entender por populismo nesse contexto, mas história de festas e amores da alta burguesia francesa, aparece
comecemos por uma hipótese: falar da história política brasi- um brasileiro, que canta: "Eu sou brasileiroj Eu tenho ouroj
leira é, necessariamente, falar da permanência de um pêndulo. Venho do Rio de Janeiroj Mais rico que antesj Paris, retorno
Esse pêndulo tem uma força inaudita e conseguiu puxar todos mais uma vez". Ouro na mala, diamantes na camisa, o brasi-
os atores políticos para um de seus polos, transformando-os leiro conta como passou seis meses na esbórnia, esbanjando
em repetições de atores passados. até não ter mais nada. "Pobre e melancólico", ele retoma à sua
Tal movimento pendular pode ser descrito através do jovem América para roubar mais uma fortuna e gastá-Ia nova-
par oligarquia-populismo. Ou seja, a história brasileira é uma mente em Paris. De fato, nada melhor do que uma ópera-bufa
oscilação contínua entre governos oligárquicos e populistas. parisiense para explicar o que era o Brasil: um país cujo Estado

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tinha como única função real conservar os rendimentos de Digamos então que a especificidade da emergência do
uma elite rentista e perdulária, com seu consumo conspícuo povo como sujeito político no populismo vem do fato de sua
a chocar o mundo exterior, enquanto sua população perma- incorporação ser feita através de um pacto frágil entre várias
necia paralisada em meio à miséria. Não é surpreendente que demandas sociais contraditórias, vindas de setores antagô-
tal imagem pareça tão atual. nicos. Tais demandas contraditórias são integradas em uma
Foi o populismo varguista que quebrou essa República série cujo "ponto de basta", ou seja, cujo eixo de significação,
de oligarcas e fez o pêndulo da história brasileira ir para seu será dado pelo líder populista. Assim, por exemplo, Vargas
outro polo. Para o bem ou para o mal, foi Vargas quem fez, integrou várias camadas da população ao campo dos atores
pela primeira vez, a incorporação de massas populares ao políticos, mas colocando suas demandas no interior de uma
processo político. O filósofo argentino Ernesto Laclau foi um série de significantes na qual se encontravam também deman-
dos poucos a conseguir escapar da desqualificação genérica do das da burguesia nascente, das oligarquias descontentes com
populismo, ao mostrar como este descrevia uma característica os pactos paulistas, entre outras. Consolidava-se, assim, outra
fundame~tal da democracia, a saber, a capacidade de incor- pendularidade, na qual demandas populares e exigências de
poração, através da construção do "povo", de classes sempre oligarcas precisavam agora conviver. Seus conflitos precisavam
expulsas do poder.' O populismo é uma forma de emergên- naquele momento ser procrastinados através de um impressio-
cia do povo como sujeito político, de constituição de corpos nante balé político feito de avanços e recuos. Não por outra ra-
políticos populares, mas não é a única forma. Na verdade, na zão, dizia Vargas: "Meu problema não são meus inimigos, mas
lógica do populismo, esse processo cobra um preço alto,q1.fe meus aliados". Por ser o ponto de convergência de demandas
é constantemente diferido até chegar o momento no qual a contraditórias, o poder deve ser ocupado por um significan-
conta simplesmente não pode ser paga. E, quando fica claro te vazio que parece poder ser preenchido pelos mais diversos
a todos que a conta não pode ser paga, o sentimento de frus- conteúdos por não denotar nenhuma referência específica. Isso
tração e agressividade contra as próprias lideranças no poder permitia que Vargas se transformasse em referência tanto para
torna-se insuportável. a esquerda quanto para conservadores, tanto para democratas
quanto para simpatizantes do fascismo.
Mas é claro que há um limite da estratégia. Enquanto há
1 Laclau, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013. Discuto espaço para crescimento, o conflito entre demandas pode
mais detidamente a hipótese de Laclau nos dois primeiros capítulos de: Safatle,
Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo
ser adiado e todos têm a sensação de estarem ganhando algo.
Horizonte: Autêntica, 2016. Quando o crescimento trava, a inércia cresce até a implosão

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do consórcio de governo. Uma implosão que, normalmente, e exclusivamente a partir de si mesmo. Mas ele depende do
é capitaneada pelo próprio setor oligarca, incorporado à série espírito do mundo para conseguir, de fato, avançar. E foi isso
populista. Ao sair do governo em 1945, Vargas dará lugar a seu que ocorreu no período pós-Segunda Guerra. A dinâmica dos
próprio ministro da Guerra, representante da ala conservadora processos mundiais levou o pacto populista brasileiro a um
que negociara com o nazismo, Eurico Gaspar Outra. Já Lula ponto de não retorno, algo que o Chile conseguiu realizar no
verá o projeto que ele representava ser golpeado pelo próprio começo da década de 1970, com o governo Salvador Allende e
vice-presidente de Dilma Rousseff. a combinação inovadora de socialismo e democracia.
Se aceitarmos tal leitura, diremos que a grande carac- Foi contra a realização possível desse horizonte de
terística dos anos 1945-64 foi a autonomia lenta e crescente transformação que as oligarquias se associaram aos militares
das demandas populares em relação ao quadro de controle para impor uma ditadura civil-militar. Durante vinte anos, o
e de paralisia do populismo, mesmo que o Brasil sempre te- Brasil foi submetido a uma política econômica de alta con-
nha sofrido da incapacidade de constituir processos de forte centração de renda, de crescimento da desigualdade, e a um
densidade eleitoral fora do esquadro do populismo. Cabe ob- regime corrupto, no qual a classe empresarial financiava apa-
servar como o possível candidato da esquerda mais radical à relhos de tortura e terrorismo de Estado e cargos públicos
eleição abortada de 1965 era Leonel Brizola, herdeiro direto do eram distribuídos a banqueiros e empresários (por exemplo,
getulismo. Era o problema da emergência das organizações Olavo Setúbal, o banqueiro do Itaú, foi prefeito de São Paulo,
de larga escala fora do modelo populista de incorporação que se cargo que lhe foi dado pelos militares por sua participação ati-
mostrava (e que até hoje se mostra) como limite da imaginà'ç~o va na ditadura). Ou seja, a ditadura militar brasileira não era
política brasileira. exatamente uma ditadura militar, mas uma associação civil-
De toda forma, essa autonomia lenta se alimentou do ce- -militar para o retorno do sistema de coronel ato e oligar-
nário mundial de radicalização das lutas populares, com suas quias locais.
revoluções vitoriosas, assim como da hegemonia mundial da E então veio a Nova República. Nada de nossa situação
esquerda no campo cultural das ideias, do abalo constante do atual é compreensível sem reanalisarmos o que foi o modelo de
sistema de formas tradicionais de vida pela continuidade das redemocratização infinitamente diferida da Nova República,
experiências artísticas de vanguarda e das fortes relações de como ela dizimou a força de transformação acumulada desde
associação entre intelectuais e classes populares. Como disse o golpe militar. Proponho fazer isso no próximo capítulo, até
anteriormente, o Brasil age muitas vezes como se fosse a maior porque se trata de defender a tese de que nos encontramos hoje
ilha do mundo, tentando explicar sua dinâmica política única diante de um triplo esgotamento: um esgotamento da Nova

50 51
República, como era histórica, um esgotamento do lulismo, a anunciar o fim da democracia liberal. No Brasil, a revolta
como modelo de desenvolvimento econômico e social, e um pegou a esquerda desprevenida, enfraquecida e acomodada à
esgotamento da esquerda brasileira, em sua tentativa de cons- ilusão de perpetuação infinita no poder. Por isso, uma parte
tituir uma saída para além do pêndulo oligarquia-populismo. da esquerda preferiu abraçar o discurso de desqualificação da
revolta, o que a livraria de ter de encarar sua própria obsoles-
cência e envelhecimento. O preço de tal covardia, travestida da
A TERCEIRA IMAGEM ideia de que apenas o que pode ser representado pode existir
politicamente, foi alto.
Antes de entrarmos nessa proposta de diagnóstico, há de se A foto tem sua ironia. Pouco antes, a massa estivera enfu-
lembrar que os últimos quinze anos da história brasileira ti- recida diante do Congresso Nacional, ameaçando quebrá-lo.
veram ainda uma segunda foto paradigmática e ela talvez re- A Polícia Militar tentou impedir, mas não conseguiu fazer nada
presente o prenúncio de uma história que ainda não existiu. melhor do que empurrar a massa para o lado, fazendo com
Essa foto não é uma repetição, não é o retorno de um espectro que sua fúria destruísse o primeiro edifício público à frente: o
a colonizar o presente. Ao contrário, é a imagem do que nunca Palácio Itamaraty. Como eu disse, a foto não deixa de ter sua
fora visto na história brasileira, do que sempre esteve em latên- ironia. Ela mostra a destruição de um substituto. Para salvar o
cia sem nunca subir à cena principal do político. De certa for- Congresso com seus oligarcas, outro objeto é oferecido para
ma, a história brasileira, para além da repetição infindável de ser sacrificado em um ritual de expiação da revolta. Essa estra-
seus impasses, passará necessariamente por esta foto: tratá-se, tégia será utilizada uma segunda vez, de maneira simbólica e
da foto do Palácio Itamaraty em chamas. Nesse momento, as bem-sucedida, no golpe de 2016.

ruas das principais cidades brasileiras começaram a queimar. Mas essa imagem não será apenas a expressão de uma ar-
Essa foto representa, pela primeira vez na história brasi- madilha criada de forma astuta por uma oligarquia exímia na
leira, a emergência de uma revolta sem comando ou controle arte de se perpetuar. Ela será o eixo dos últimos anos da histó-
com força suficiente para destituir o poder. Lembremos mais ria brasileira em outro sentido, mais forte. Pois a fúria popular
uma vez daquele momento: estam os em 2013 no meio da maior contra o Itamaraty era a encarnação do verdadeiro medo que
manifestação de revolta popular da história brasileira. À sua sempre assombrou este país, a saber, o medo da insurreição
maneira, ela repete uma sequência de revoltas populares que de uma massa amorfa e descontrolada, de força negadora bru-
ocorreram no mundo, de Túnis a Santiago, de Istambul a Nova ta, que encarnaria todas as décadas e séculos de revolta muda
York, de Madrid a Tel Aviv, do Cairo à Islândia - as primeiras e surda. Uma força que não se submeteria mais ao poder do

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Essa insurgência, com sua negação bruta, que pareceu ser
uma ferida aberta que poderia não mais parar de sangrar, foi
o motor que levou parcelas da população brasileira, depois de
2013, a reagir e abraçar de forma cada vez mais descomplexada
os discursos protofascistas de ordem e de justificação da vio-
lência estatal. Pode parecer paradoxal esse resultado, mas não
será a primeira vez na história que as latências de uma revolta
popular dão espaço à emergência de um sujeito reativo. Já em
outras manifestações de junho, a saber, as de 1848, Marx perce-
bera como a revolta popular produzira ao final a incorporação
de parcelas do povo não em um proletariado com força revo-
lucionária, mas em um símile obscuro, um lumpemproletariado.3
Esse lumpemproletariado, longe de ser um verdadeiro sujeito
de transformações, como alguns teóricos políticos atuais pro-
Manifestantes invadem o Palácio Itamaraty, em Brasília, em 20 de junho de
2013, dia em que uma série de protestos ocorreu no país. curam acreditar, será responsável por transformar a negação e
sua força de abertura em direção ao que ainda é impredicado
em demanda de uma ordem mais brutal e cínica, que iria emer-
gir com a ascensão de Napoleão III.

Estado, à lógica de suas representações. Em outras palavras, Nesse sentido, notemos como foi o medo da potência
uma expressão acabada da clássica ideia de Maquiavel: quan- de abertura de uma negação bruta que deu carta de alforria
do o povo fala e sobe à cena da política, ele diz simplesmente ao fascismo nacional. Até 2013, a adesão a figuras como Jair
"não", sem nenhum atributo a mais.' Uma negação sem predicações Bolsonaro, ao culto da ditadura militar e ao discurso aberta-
é e sempre será o começo da verdadeira política. mente violento era residual. A força que tal adesão ganhou é
resultado de uma reação; ela é a constituição de um sujeito
2 "Porque o objetivo do povo é mais honesto do que o dos grandes: es- reativo que emerge como efeito colateral de todo verdadeiro
tes querem oprimir, aquele não quer ser oprimido" (Maquiavel, Nicolau.
O príncipe. São Paulo: Atena Editora, 1957, p. 60). Ou seja, a emergência do de-
sejo popular é negativa, trata-se do desejo de não ser oprimido. Uma negação
que, se incorporada, pode ser portadora de transformações. 3 Ver: Marx, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2017.

54 55
acontecimento." Que seja apenas um sujeito reativo aquele que e frivolidade que invade a vida de todos via consumo maciço
até agora emergiu, isso significa apenas que a esquerda brasileira de produtos da indústria cultural, de abandonar suas estru-
não estava pronta para a revolta. Ela não foi capaz de nomear novos turas de organização dirigistas, centralistas, hegemonistas.
sujeitos políticos diante do colapso evidente do lulismo. Por Essa esquerda, o último ator a confiar no sistema moribundo
tal razão, por mais que isso possa soar a alguns como uma de gestão de conflitos próprio à democracia liberal, precisava
constatação dolorida, essa esquerda precisava morrer. morrer. Ela acabou.
A esquerda que tínhamos até então (e tal diagnóstico
não se resume a um partido específico, mas a todos os ato-
res constituídos) não estava à altura das exigências do tempo
presente. Cabe qualificar melhor essa afirmação, pois sempre
que alguém insiste no descompasso entre a esquerda e o pre-
sente é para expressar um sentimento inconfesso de demissão,
um desejo incontrolável de abraçar os pressupostos liberais e
garantir seu lugar na fila das benesses dos que aprenderam o
que alguns chamam de "os fundamentos da economia". Não, a
esquerda não estava à altura das exigências do tempo presente
porque ela tinha medo de dizer seu nome, de operar no interior
de conflitos de classes (já que o lulismo representou apenas a
transformação do conflito de classe em discurso estratégico
a ser mobilizado em momentos de fraqueza do poder), de cons-
tituir o campo genérico de identificação proletária, de romper
com o modelo de acumulação baseado na predominância dos
interesses financeiros, de sair das dinâmicas de representação
e avançar em direção à implementação de mecanismos de
democracia direta, de fazer a crítica da cultura da anestesia

4 Sobre a noção de sujeito reativo, ver principalmente: Badiou, Alain. Logiques


des mondes. Paris: Seuil, 2010.

57
o esgotamento da
Nova República
o pavor é muito maior com o desaparecimento do que com a morte.
A morte, não, você vê o cadáver do cara, acabou.
Não tem mais que pensar nele.
O meu destino, se eu falhar, vai ser esse.
Já quando você desaparece - isso é ensinamento estrangeiro-
você causa um impacto muito mais violento no grupo.
Cadê o fulano? Não sei, ninguém viu, ninguém sabe.
Como? O cara sumiu como?
PAULO MALHÃES1

GOVERNAR É FAZER DESAPARECER

o Brasil é, acima de tudo, uma forma de violência. Nunca en-


tenderemos o Brasil se não compreendermos o tipo de vio-
lência que funda seu Estado. Pois entender como o Estado

1 Depoimento à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, em


18/2/2014. Arquivo CNV, 00092.002760/2014-83. Por estranha coincidência
(mas deve ter sido mera coincidência mesmo), o coronel e torturador Paulo
Malhães morreu assassinado dias depois desse seu depoimento.

59
brasileiro funciona é entender como ele administra o desapa- invulneráveis, mesmo em tempos de "redernocratização", Este
recimento e o direito de matar. Essa é sua verdadeira forma é um dos pontos mais impressionantes dos últimos trinta anos
de governo, uma atualização do secular poder soberano e seu no Brasil, a saber, a maneira como suas políticas de desapa-
direito de vida e morte. recimento permaneceram intocadas, seja nos governos FHC,

Com uma mão, ele massacra parte da população através seja nos governos Lula e Dilma. Não foi apenas uma lógica
de seu aparato policial, a encarcera em um espaço de não direi- de "segurança nacional" que ficou imune a toda revisão. Foi a
to, permite a criação de zonas urbanas e rurais de anomia nas natureza do Estado brasileiro e de seu direito de vida e mor-
quais a violência e a morte são invisíveis, nas quais os corpos te sobre a população que pairou para além das modificações
desaparecem sem deixar rastos. Sobre essa parte da população, político-eleitorais. Os governos passaram, mas a gestão do
o Estado não tem apenas o direito de vida e morte, ele tem o desaparecimento ficou.
direito de desaparecimento. Porque o eixo fundamental do Não foram poucos os teóricos que perceberam a neces-
processo de gestão é gerir a invisibilidade. Sobre essa violência, sidade de as reflexões sobre a biopolítica contemporânea se-
não haverá marcas, não haverá nomes, não haverá imagens, não rem complementadas por uma "necropolítica'? ou por uma
haverá afeto nem identificação. "tanatopolitica".' Pois não se trata apenas de descrever as re-
Com outra mão, o Estado brasileiro promete a uma parce- lações entre instauração do poder e modos de administração
la amedrontada reunida em condomínios fechados que ele será dos corpos e de gestão da vida. Trata-se de insistir na rela-
ainda mais duro contra o crime. Assim, governa-se gerindo ção entre poder e políticas do desaparecimento e da morte.
a invisibilidade e alimentando uma dinâmica de guerra civil. Não são apenas regimes totalitários que se fundam a partir da
Alguns países criam unidade através da guerra e da constitui- administração do extermínio e do assassinato de Estado. Prin-
ção do inimigo externo. O Brasil cria coesão através da cons- cipalmente em países da América Latina e da África, e também
tituição de inimigos internos. Desde o tempo em que ele se no Brasil, não é possível compreender o poder sem passar pela
constituiu através de genocídios indígenas nunca reconhecidos consolidação das forças policiais e parapoliciais como aparatos
como tais, ficou claro que ele próprio já era o seu pior inimigo.
Essa lógica encontrou sua forma mais bem-acabada de
governo na ditadura militar (1964-85). Pois a ditadura militar 2 Mbembe, Achille. "Necropolitics", Public eulture 15:1,2003.

brasileira foi a consolidação de um modelo de gestão sempre 3 Ver: Esposito, Roberto. Bíos: Biopolitics and Philosophy. Minneapolis: lJniversity
ofMinnesota Press, 2008. O uso do termo que sugeri em O circuito dos afetos vai
presente na história nacional, mas que a partir de então ga- em outra direção, já que visa pensar o lugar das experiências de desintegração
nharia estruturas e aparatos institucionais que se mostraram no interior de uma biopolítica positiva.

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de execução extrajudiciária constante e sobretudo sem passar democracia ateniense começava a chegar ao fim, o espírito do
pelo Estado como instância de desaparecimento. povo produziu uma das mais belas reflexões a respeito dos
Nesse sentido, lembremos como os fascistas fizeram de limites do poder. Ela é o verdadeiro núcleo do que podemos
Auschwitz o paradigma da catástrofe social. Contra isso, o sé- encontrar nesta tragédia que não cessa de nos assombrar, a
culo xx cunhou o imperativo "fazer com que Auschwitz nunca saber, Antígona.
mais ocorra". Mas podemos nos perguntar o que exatamente Muito já foi dito a respeito dessa tragédia, em especial de
aconteceu em Auschwitz que sela esse nome com o selo do que seu pretenso conflito entre as leis da família e as leis da polis.
nunca mais pode retomar. Todos conhecem a resposta-padrão. Mas eu diria que no seu seio pulsa a seguinte ideia: o Estado
Auschwitz é o nome do genocídio industrial, do projeto de deixa de ter qualquer legitimidade quando mata pela segunda
eliminação de todo um povo. Infelizmente, a história conhece vez aqueles que foram mortos fisicamente, o que fica claro na
a recorrência de barbáries dessa natureza. interdição legal a todo e qualquer cidadão de enterrar Polinices,
A dimensão realmente nova de Auschwitz não está no de- e a todo e qualquer cidadão de reconhecê-Io como sujeito, a
sejo de eliminação, mas no desejo sistemático de apagamento despeito de seus crimes. Pois não o enterrar só tem um signi-
do acontecimento, de desaparecimento. Há de se ouvir mais ficado: não acolher sua memória através dos rituais fúnebres,
uma vez esta frase trazida pela memória de alguns sobreviven- anular os traços de sua existência. Uma sociedade que trans-
tes dos campos de concentração, frase que não terminava de forma tal desaparecimento em política de Estado, como dizia
sair da boca dos carrascos: "Ninguém acreditará que fizemos Sófocles, prepara sua própria ruína, elimina sua substância
o que estam os fazendo. Não haverá traços nem memória". Um moral. Não tem mais o direito de existir como Estado. E é isto
crime perfeito, sem rastros, sem corpos, sem memória. Só a que acontece a Tebas: ela sela seu fim no momento em que
fumaça que se esvai no ar das câmaras de gás. não reconhece mais os corpos dos "inimigos do Estado" como
Nesse sentido, Auschwitz teve o triste destino de expor corpos a serem velados.
o núcleo duro de todo totalitarismo. Pois o totalitarismo não É dessa forma que algo de fundamental do projeto nazista
é apenas fundado na violência estatal contra setores da po- e de todo e qualquer totalitarismo mais brutal alcançou sua
pulação que questionam a legalidade do poder. Ele é fundado realização plena na América do Sul. A Argentina forneceu uma
nesta violência muito mais brutal do que a eliminação física: imagem perfeita dessa catástrofe social: o sequestro de crianças
a violência da eliminação simbólica. Como dizia Lacan, a de desaparecidos políticos. Porque a morte física só não basta.
morte simbólica pode ser mais dura que a morte física. Não Faz-se necessário apagar os traços, impedir que aqueles capa-
é por outra razão que, no momento em que a experiência da zes de portar a memória das vítimas nasçam. E a pior forma

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de impedir isso é entregar os filhos das vítimas aos carrascos. internacionais contra a tortura, que apaga os rastos, que opera
Não são apenas os corpos que desaparecem, mas os gritos de por desaparecimento e continuará a operar, seja sob uma di-
dor que têm a força de cortar o contínuo da história. tadura, seja sob uma "democracia". Uma estrutura imóvel no
Mas há uma situação ainda pior. Pois podemos lembrar tempo, resistente a toda e qualquer mudança, indestrutível. Um
como a Argentina conhecerá uma extensa justiça de transição. Leviatã descontrolado sob a capa do Estado de Direito.
Da mesma forma, no Chile, carrascos como Manuel Contrera O resultado é inapelável. Nenhum outro país protegeu
foram condenados à prisão perpétua, e as Forças Armadas se tanto seus torturadores, permitiu tanto que as Forças Arma-
viram obrigadas a fazer um mea-culpa pela implementação das conservassem seu discurso de salvação através do porrete,
de uma ditadura militar. O único país que realizou de maneira integrou tanto o núcleo civil da ditadura aos novos tempos -
bem-sucedida esta profecia foi o Brasil: a profecia da violência de redemocratização quanto o Brasil. Há de se lembrar, por
sem trauma aparente. exemplo, que o Brasil é o único país da América Latina onde os
É importante lembrar disso mais uma vez, porque nossa casos de tortura aumentaram em relação à ditadura militar,"
"redernocratização", a constituição do que chamamos de "Nova Prova maior da generalização de um modus operandi de exceção
República", foi baseada na tese de que o esquecimento dos "ex- agora aplicado de maneira extensiva à gestão social da popula-
cessos" do passado seria o preço doloroso, mas necessário, a ção. Por isso, nenhum outro país latino-americano teve um co-
ser pago para garantir a estabilidade democrática eliminando o lapso tão brutal de sua "democracia" como o nosso, com uma
trauma da violência estatal. Uma violência que aparentemente polícia militar que age como manada solta de porcos contra a
não teria recorrido à morte sistemática, haja vista os números própria população que paga seus salários. Nenhum outro país
menores de mortos e desaparecidos se comparados aos de ou- latino-americano precisa conviver com um setor protofascista
tras ditaduras latino-americanas. No entanto, esses números da classe média a clamar nas ruas por "intervenção militar", a
escondem uma violência ainda mais brutal. Pois não signifi- ponto de invadir o plenário do Congresso Nacional com suas
ca nada dizer que a ditadura brasileira teria matado menos do bandeiras. Tudo isso demonstra algo claro: a ditadura brasileira
que várias de suas congêneres latino-americanas. Ela matou venceu. Como um corpo latente sob um corpo manifesto, ela
menos porque havia alcançado um grau de violência que fez se conservou e a qualquer momento pode novamente emergir.
desse tipo de brutalidade algo desnecessário. Ou seja, foi capaz
de aprimorar um regime de violência que outras nem mesmo
imaginaram ser possível: a violência da certeza da onipotência
4 Ver: Sikkink, Kathryn. The Justice Cascade: How Human Rights Prosecutions Are
de um Estado que administra a morte enquanto assina tratados Changing World Politics. Nova York: w.w. Norton, 2011.
ACORDOS NACIONAIS DE SI PARA CONSIGO MESMO esse bloqueio político que paralisou as possibilidades sociais
e econômicas brasileiras.
Toda retomada da imaginação política no Brasil passa por uma Esse sistema de travas tinha como um de seus fundamen-
meditação sobre a Nova República como expressão das ilusões tos a Lei de Anistia imposta pelos militares em uma votação
nacionais de uma sociedade capaz de superar seus conflitos, na Câmara dos Deputados, na qual o governo contou apenas
sem nunca encará-I os de fato. A volta da imaginação política com os votos de seu próprio partido. Lembremo-nos deste
no Brasil passa pelo fim das ilusões de conciliação e pela com- fato: a lei proposta pelo governo recebeu 206 votos favoráveis
preensão das causas do fracasso de nossa "redemocratização (todos da Arena) e 201 votos contrários de um Congresso cuja
infinita". Pois há de se lembrar como o fim da ditadura foi feito composição era resultado de uma série de casuísmos e que
através não de um acordo, mas de uma verdadeira capitulação era formado por vários parlamentares biônicos (escolhidos de
das forças democráticas a um modelo de conciliação políti- forma indireta) - 206 contra 201: a isso se chamou "conciliação". Eis
ca que serviu para paralisar todo ímpeto mais profundo de algo tipicamente brasileiro: uma conciliação baseada em uma
mudança. Modelo que serviu apenas para degradar todo ator lei imposta, que recebeu votos apenas dos membros do partido
político que ganhasse o comando do país, qualificando-se elei- que a propôs. Essa lei, que nunca mais seria questionada, livra-
toralmente como gestor dos novos consórcios de poder. va da cadeia aqueles que haviam participado de terrorismo de
Lembremos os momentos principais desse processo his- Estado, enquanto lá deixava os membros da luta armada que
tórico. Com a derrota das Diretas-Já e a confirmação de um haviam se envolvido em "crimes de sangue". É sempre bom
pacto entre PMDB e PFL, estava selada a "governabilidade" entre lembrarmos que vários participantes da luta armada não fo-
nós. Ela se fundaria na conciliação contínua com um setor ram beneficiados pela Lei de Anistia, tendo permanecido pre-
de trânsfugas da ditadura, na gestão de seus interesses fisio- sos mesmo depois de 1979. A maioria desses presos começou
lógicos locais, na conservação de seus direitos oligárquicos a ser liberada a partir de 1981 devido a uma decisão judicial de
e, principalmente, no bloqueio de toda tentativa de julgar o comutação das penas. O que significa que, de maneira precisa,
que eles fizeram e continuariam a fazer. A Nova República foi a Lei de Anistia simplesmente não existiu para os participantes
fundada na exigência de integrar o arcaísmo ao poder, com da luta armada envolvidos em crimes de sangue.
suas relações empresariais espúrias e suas blindagens midiá- Na verdade, a Lei de Anistia tinha como finalidade maior
ticas. Definida essa exigência de conciliação, criou-se uma criar no país a ideia de que ações "revanchistas" deveriam ser
espécie de centro de gravidade do poder que tragava todos desqualificadas, já que a "conciliação" havia sido "negocia-
os ocupantes do Palácio do Planalto para o mesmo lugar. Foi da". Isso significava, entre outras coisas, que deveríamos nos

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acostumar com a presença dos que geriram o país durante Em seu governo no Rio de Janeiro, entre 1982 e 1987, Brizo-
o período ditatorial. Eles não iriam desaparecer, suas ações Ia foi capaz de algumas realizações notáveis, mesmo que não
não seriam alvos de julgamento. Na verdade, eles seriam os tenha conseguido fazer seu sucessor, o então vice-governador,
grandes fiadores da Nova República. Ou seja, a Lei de Anistia Darcy Ribeiro. Na eleição presidencial de 1989, Brizola chegou
foi o fundamento normativo dos modelos de gestão social e a ser um dos favoritos, mas sua dificuldade para entrar em São
governabilidade que nos acompanharam nas últimas décadas. Paulo e sua campanha antiquada, ainda ligada à era do rádio,
Sua perpetuação foi a chave da paralisia social brasileira. Mas excluíram-no do segundo turno. Seu personalismo afastou
lembremos mais urna vez corno a colonização das forças de sistematicamente todos os que poderiam colaborar para a
transformação social se deu, pois foi um processo lento, corno consolidação de seu partido. Não lhe restou outra coisa senão
urna sequência de dominós que caem, urna peça após a outra. o ocaso. Entretanto, corno eu gostaria de insistir, seu traba-
lhismo, ou ao menos o populismo ao qual ele dava sequência,
será paradoxalmente o horizonte último da Nova República.
PEQUENA HISTÓRIA DA DESINTEGRAÇÃO DA Com o processo de impeachment de ColIor e sua renúncia
ESQUERDA BRASILEIRA (1992), parecia que a ascensão da esquerda ao poder era inevitá-
vel. Dois anos depois da eleição de ColIor, a população se unia
Nos primeiros anos da Nova República, três grupos acabaram para pedir seu afastamento. Mas eis que o modelo de concilia-
por ocupar o espaço da esquerda nacional: o trabalhismo de Bri- ção da Nova República falou mais alto, e a aliança PMDBfpFL,

zola e seu PDT; a "social-democracia" tucana; e o PT e sua aliança que levou Sarney ao poder, reencarnou na figura de Fernando
com intelectuais, sindicalistas e setores progressistas da Igreja Henrique Cardoso, com sua esquizofrenia crônica capaz de
Católica, vinculados à Teologia da Libertação. Durante certo tem- misturar discursos aprendidos no Seminário Marx com prá-
po' foi Brizola quem apareceu corno o setor eleitoralmente mais ticas neoliberais e alianças com Antônio Carlos Magalhães e
consistente da esquerda, com seu enraizamento no Rio de Janei- Jorge Bornhausen.
ro e no Rio Grande do Sul. Ele representava o maior medo dos Era cômico ver citações de Gramsci e Hegel serem por ele
militares, pois a vitória significaria recompor certa conexão com utilizadas para justificar a miséria política da Nova República,
o movimento trabalhista dos anos 1960, o mesmo que a ditadura mas, bem, desde Memórias póstumas de Brás Cubas qualquer ob-
quis dizimar. Isso implicaria retorno a um modelo de incorpora- servador da realidade nacional sabe que amansar contradições,
ção das massas à cena política baseado na força do populismo de transformando-as em urna informidade sem gosto, é nossa
Vargas e sua desestabilização do governo das oligarquias. especialidade. Para um país que tivera liberais escravocratas,

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não era realmente surpreendente se deparar com alguém que Lei de Responsabilidade Fiscal) que estabelecia urna hierarquia
dizia ser Marx o melhor intérprete do capitalismo enquanto nos gastos públicos, dando ao pagamento dos credores finan-
alegremente empurrava seu país para as mais predatórias po- ceiros predominância sobre os investimentos públicos, algo
líticas neoliberais. que chegou ao paroxismo com a lei de 2016 de congelamen-
De fato, a ascensão do PSDB ao poder representou o aban- to dos gastos públicos para garantir o pagamento de juros e
dono de um momento de ensaio de políticas econômicas he- serviços da dívida pública.' Nesse sentido, não será estranho
terodoxas que se mostraram incapazes de impor sua dinâmica descobrir que, de 1995 a 2004, a participação dos salários na
em governos, corno o de José Sarney (1985-90), que nunca es- renda nacional caiu 9%, enquanto a participação das rendas de
tiveram de fato engajados nos conflitos que urna visão neo- propriedade subiu 12,3%.6
keynesiana representaria para os interesses da elite financeira O resultado da era FHC não poderia ser mais claro: além
brasileira. A experiência inflacionária dos anos 1980 legitimou de se deparar com mares de lama periódicos, escândalos de
que o PSDB impusesse ao país um programa de ajustes (o Plano corrupção que explodiam a todo momento, compras de votos
Real) que preparou o país para ser um entreposto de valoriza- e financiadores de campanha se transformando em beneficiá-
ção do capital internacional através de urna política de choque rios de privatizações, o Brasil viu-se diante de racionamento e
internacionalmente utilizada. Ela se baseava em abertura co- apagão, desindustrialização, dependência em relação ao Fundo
mercial e financeira, o que impediu o Brasil de criar qualquer Monetário Internacional (um dos maiores empréstimos forneci-
forma de lei para conter a circulação de capital especulativo, dos pelo FMI havia sido para o Brasil), desigualdade persistente
sem falar nas privatizações generalizadas, cujo dinheiro foi em e crescimento pífio. Tudo isso forneceu as bases para o cenário
larga medida gasto para conter ataques especulativos. Há certa dos últimos anos FHC, que, não por acaso, fizeram dele urna
ironia em lembrar corno as privatizações foram inicialmente das figuras mais impopulares da política nacional durante bom
vendidas à população corno esforço de capitalizar o Estado tempo, a despeito do esforço propagandístico da imprensa bra-
para investir nos setores sociais, isso em um governo que, ao sileira para fornecer de seu governo urna imagem mais positiva.
final, entregou ao país universidades sem dinheiro para pagar
conta de luz.
Tais políticas eram ainda seguidas por taxas de juros entre 5 Ver: Santos, Fábio Luis. Além do PT: a crise da esquerda brasileira em perspectiva
latino-americana. São Paulo: Elefante, 2016; e, principalmente: Paulani, Leda.
as mais altas do mundo, que destruiriam de vez o parque in-
Brasil delivery. São Paulo: Boitempo, 2008.
dustrial brasileiro e transfeririam renda do Estado para o setor
6 Ver: Pochmann, Márcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social
financeiro nacional, assim corno por urna política fiscal (via brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012.

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Eliminado Brizola, eliminado o tucanato, sobrava o PT. foram uma armadilha autoconstruída para pegá-Io no primei-
Uma análise honesta mostraria que a última coisa a fazer seria ro escândalo, que foi o do Mensalão. O modelo do escândalo já
procurar reeditar mais uma rodada da política conciliatória dizia tudo: um sistema de financiamento de campanhas cons-
da Nova República. O final não seria diferente daquele que truído a partir do mesmo modelo utilizado anteriormente pelo
tragou o governo FHC, só que muito mais brutal e dramático. PSDB. OS estrategistas do PT devem ter imaginado que estavam
O caminho indicava, desde o início, que seria preciso mo- diante de um sistema blindado. Estourá-Io equivaleria a colocar
dificar a estrutura política brasileira, combatendo a relação em risco todos os atores da Nova República. Por isso, ele seria
promíscua entre o capital, o empresariado e a casta política, deixado intacto.
e fortalecer mecanismos de democracia direta, reformando a Sabemos que não foi o que aconteceu. Os setores hegemô-
função do Congresso como caixa de ressonância dos interesses nicos da imprensa brasileira têm o dom de apagar informações,
oligárquicos. O programa mais urgente era uma refundação de reconstruir narrativas do dia para a noite, de um modo que
política da institucionalidade nacional através do aumento da deixaria morto de inveja George Orwell com seu 1984. Afinal,
participação popular nos processos decisórios e administrati- alguém se esqueceu de que o fato de o próprio presidente do
vos do Estado. Isso permitiria mobilizar a força popular para partido de oposição aparecer como o criador do esquema
retirar o país do sistema de travas que lhe havia sido imposto do Mensalão (Eduardo Azeredo e seu PSDB) foi simplesmente
pela "redernocratização". Mas a primeira reforma apresentada ignorado por revistas e jornais em campanha declarada contra
foi a previdenciária: um modo de mostrar ao mercado que o o governo, como fez a Veja? Em qualquer lugar do mundo, a des-
Brasil não seria uma Venezuela, que o PT estava lá para ser visto coberta de que o maior escândalo envolvendo o governo fora a
como mais um ator na grande história da conciliação nacio- adaptação de um esquema gestado pela própria oposição seria
nal. Desde aquele momento, já anunciado na "Carta ao povo uma notícia bombástica. No Brasil, ela é irrelevante.
brasileiro", com seu tom de capitulação geral, a sorte estava Assim, foi por pouco que tudo não acabou entre 2005

lançada. Sobrou espaço apenas para tentar reeditar a lógica e 2006. Salvou o governo o fato de a direita temer, naquele
nacional-desenvolvimentista, cujo sucesso momentâneo será momento, mobilizações populares. Elas ainda eram uma ex-
analisado no próximo capítulo deste livro. clusividade da esquerda. Toda tentativa da direita de ir às ruas,
Só que, com o PT, a complacência da imprensa e do Ju-· como no caso do movimento Cansei, demonstrou-se fraca,
diciário com a corrupção do Estado, tão clara nos governos mesmo a despeito de doses maciças de auxílio da imprensa,
anteriores, não funcionaria da mesma forma. A rendição do que noticiava como fato maior manifestações de cinquenta
PT ao modelo de conciliação nacional e seu pacto de corrupção pessoas no centro das capitais brasileiras.

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Com a reeleição de Lula e sua popularidade consistente, sacrossanto ao patrimonialismo da nossa elite ociosa bloquea-
não foram poucos os que acreditaram que a lição tinha sido vam o desdobramento do crescimento e nunca foram tocados.
aprendida, que era hora de enfim escapar do sistema de travas Por causa desses bloqueios, as promessas não realizadas de
das conciliações da Nova República. Mais uma vez, nada mais uma sociedade rica e de pleno emprego gerariam uma frustra-
falso. A convivência com os arcaísmos da política nacional ção relativa (como dizia Tocqueville) insuportável. Ela explodiu
provocou uma regressão duradoura das práticas políticas de em 2013, nas mãos de Dilma Rousseff.
todos. De tanto conviver com a oligarquia, você acaba por se
parecer com ela, pensar como ela. Não haveria transformação
política alguma. EU TERIA PREFERIDO ROBESPIERRE
Lula compensava tudo isso com a crença de que ele agora
era a reencarnação de Vargas, capaz de operar em um modelo Faltava, no entanto, um elemento que faria com que o es-
extenso de unificação de interesses. O trabalhismo morto com gotamento do modelo fosse também o desejo irresistível
Brizola ressuscitava pelas mãos de uma esquerda, como a do de abandonar os ocupantes do novo condomínio do poder.
PT, que, em seu nascedouro, era não trabalhista e crítica do E, nesse ponto, entra a corrupção. Talvez um dia a esquerda
nacíonal-desenvolvimentisrno. Não eram apenas os sonhos brasileira, ou ao menos aquela que operou no governo, en-
do nacional-desenvolvimentismo que se reencarnavam na es- tenda que a política é indissociável de julgamentos morais.
querda, mas também a crença de que o sistema de conciliação A razão é relativamente simples: mais do que um embate a
da Nova República expressava o lugar natural da política bra-' respeito da partilha do poder e da riqueza, a política é uma
sileira desde sempre, de que a esquerda poderia, no máximo, luta a respeito de formas de vida e modos de existência. Ela não
levar essa política na direção do modelo varguista de grandes é apenas um problema de redistribuição, mas um problema
alianças, mesmo que não compactuasse com seu militarismo ligado à possibilidade de criar formas de vida novas.
autoritário. Esse era nosso horizonte final. E assim Lula saiu De maneira astuta, o filósofo italiano Giorgio Agamben
do governo com a maior aprovação da história recente do país. afirmou: "O verdadeiro problema da esquerda italiana é que
Tudo isso, porém, tinha prazo de validade. Podia-se per- seus membros, no fundo, gostariam de ter a vida que leva Ber-
ceber que o crescimento provocado pelo lulismo tinha limi- lusconi". Era sua maneira de dizer: não é possível combater
tes claros. Como pretendo mostrar no próximo capítulo, a Berlusconi se você não recusar radicalmente uma forma de
desigualdade brasileira persistente, a transformação do país vida baseada na fixação doentia às ideias de propriedade, pos-
em polo de rentabilização do sistema financeiro e o respeito se, bens e primado do indivíduo. Uma vida que alguém como

74 75
Berlusconi representa tão bem. Pois se você se deixa afetar da Entender isso nos pouparia de ouvir aqueles que tratam a
mesma forma que aqueles contra os quais combate, se você corrupção corno um "fato social" inerente ao funcionamento
no fundo deseja da mesma forma, então chegará o dia em que do capitalismo. Pois, mais do que um fato social, ela tem urna
você fará as mesmas coisas. Esse é o verdadeiro sentido de urna dimensão irredutível de deliberação individual. A norrnativi-
bela frase de Pepe Mujica: "O poder não muda as pessoas, ele dade dos fatos sociais opera, em larga medida, na inconsciência
apenas mostra quem elas realmente são". Assim, em um país dos sujeitos. No entanto, ninguém ainda mostrou a possibi-
corno o Brasil- que sempre teve de aturar urna elite rentista e lidade de alguma forma de corrupção inconsciente, feita à
ociosa, que vive de "patrimônios" e é especializada em tornar revelia dos próprios sujeitos agentes. Por isso, em vez de um
de assalto o bem público corno se fosse posse privada, socia- discurso vergonhoso e muitas vezes complacente, travestido
lizando dívidas e privatizando ganhos -, ser revolucionário de análise sociológica, a respeito de casos sistemáticos de cor-
começa por ter decência em relação à função pública e respeito rupção, valeria mais a pena apresentar urna dessolidarização
absoluto pelo bem comum. absoluta com os responsáveis por urna das mais imperdoáveis
O mínimo que se pode dizer a respeito é que a esquerda no práticas criminosas, a saber, a privatização do bem comum
poder não entendeu nada quanto a esse ponto. Ela deveria ter e a destruição das possibilidades de criação de adesão social
apresentado, em vez das políticas de austeridade contra a po- devido à corrupção do Estado.
pulação pregadas pelo neoliberalismo, urna política de governo
austera, ou seja, um governo formado por aqueles dispostos
a ter absoluta virtude jacobina e desapego material. Aos que
acham que algo dessa natureza soa corno pregação religio-
sa, sugiro a leitura de O Estado e a revolução, de Lênin, a fim de
descobrirem o que se fala no livro a respeito da corrupção do
Estado e de seus funcionários. Não há atenuantes, não há "con-
textualizações". Pois toda e qualquer corrupção é destruição
da noção de bem comum e, ao mesmo tempo, destruição da
possibilidade de falar em nome do bem comum. Ela destrói o
éthos do enunciador que se quer anunciado r do novo. Na políti-
ca, tão importante quanto o que você fala é a sua legitimidade.
Portanto, a corrupção é sempre o começo do fim da política.

77
o esgotamento
do lulismo

Governo popular, ministério reacionário.


Por muito tempo, terá de ser assim.
GETÚLIO VARGAS

Entre 2003 e 2014, o Brasil foi o laboratório de um modelo de


desenvolvimento socioeconômico que parecia extremamente
bem-sucedido não apenas para os propagandistas do governo,
mas para toda a imprensa mundial. No entanto, esse modelo
se esgotou de forma brutal, em uma reversão de expectativas
ocorrida em um prazo extremamente curto.
Antes de o governo Dilma cair, o modelo, que recebeu a
alcunha de "lulismo", tinha terminado. Já a política econômica
do segundo mandato da presidente se movia fora do modelo
lulista, atualizando os fundamentos de uma teoria neoliberal
do choque de austeridade que será radicalizada por aqueles que
lhe tomaram o poder. Mas, em um paradoxo que deveria nos
fazer pensar, as figuras políticas que comandaram o desmonte
final do lulismo haviam sido, em vários momentos, operadores

79
centrais do próprio consórcio governista petista. Ou seja, os personalidade carismática (como vemos no caso venezuela-
atores do pós-golpe parlamentar de 2016 não eram outros no, com Hugo Chávez, ou equatoriano, com Rafael Correa), a
senão os próprios negociadores do consórcio governista nos esquerda brasileira pôde experimentar-se nos governos locais
governos Lula-Dilma, agora associados aos oposicionistas der- durante tempo suficiente para moderar suas aspirações e ope-
rotados nas urnas, nas quatro últimas eleições presidenciais. rar uma transformação importante. Formado por uma frente
Diante de uma revolta popular contra o poder, eles simples- constituída de grupos que reuniam de trotskistas a liberais de
mente usaram a tática milenar de sacrificar o sócio mais novo esquerda, de sindicalistas a representantes da esquerda católica
do consórcio do poder (a saber, o PT) para que pudessem con- e intelectuais, o PT chegou à eleição de 2002 como um partido
tinuar gerindo o Estado como nunca deixaram de fazer. muito próximo da social-democracia europeia.
Mas retomemos o sentido do movimento de ascensão da Isso não estava claro para muitos, que ainda tinham do
esquerda ao governo a partir do seu setor até então mais orga- PT a imagem de um partido que prometia romper com o FMI,
nizado: o Partido dos Trabalhadores. Sua ascensão se deu por reverter todas as privatizações e implementar conselhos po-
movimento gradual e contínuo, conquistando paulatinamente pulares para a discussão do orçamento. Mas as primeiras me-
prefeituras e estados da federação, ampliando sua bancada de didas econômicas, todas de cunho liberal, como a reforma da
deputados em um movimento sempre ascendente (8 deputa- Previdência e o aumento do superávit primário, indicavam um
dos em 1982, 16 em 1986, 35 em 1990, 49 em 1994, 58 em 1998 governo de continuidade com relação às políticas econômicas,
e 91 em 2002). Seu candidato a presidente, Luiz Inácio Lula da embora com um pouco mais de sensibilidade social e de inter-
Silva, participou de cinco eleições, sempre aumentando sua vencionismo econômico do que seus antecessores - modelo
quantidade de votos (16,08% dos votos em 1989,27,07% em que cientistas políticos, como André Singer, chamaram de "re-
1994,31,71% em 1998, 46,44% em 2002 e 48,61% em 2006 - formismo fraco",' ou seja, baseado em reformas pontuais da
números do primeiro turno). estrutura social, sem quebra da ordem institucional vigente.
Esse movimento ascendente contínuo expressou a conso- Outra vez, diferentemente de outros países latino-ame-
lidação do setor mais organizado e permeável a movimentos ricanos que passaram por governos de esquerda, o Brasil não
sociais da esquerda brasileira como alternativa de governo. reformou sua Constituição nem mudou as regras dos proces-
Mas colocar-se como alternativa de governo implicou, ao me- sos eleitorais (como Venezuela, Equador, Bolívia). Da mesma
nos nesse caso, moderar paulatinamente as promessas de rup- forma, não quebrou contratos (como a Argentina) ou impôs
tura institucional. Por não ser o resultado de um impulso de
transformação capitaneado pela ascensão fulgurante de uma 1 Ver: Singer, André. Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

80
restrições à circulação de capitais. Nesse sentido, talvez seja o
observar como eles falam sempre a mesma coisa em qualquer
Chile o país mais próximo da experiência brasileira na Amé-
lugar do mundo, independentemente do país e da realida-
rica Latina.
de local. Seu discurso será o mesmo na Grécia, na Islândia,
Apesar disso, ao final do governo de dois mandatos de Lula,
na Letônia, na Espanha. Tal repetição mostra, na verdade,
em 2010, o Brasil havia conhecido um forte processo de ascen-
como essa "análise" é apenas um mantra ideológico entoado
são social e de fortalecimento de seu mercado interno. Segun-
para esconder processos reais, nada mais que isso. Vejamos
do o Instituto Data Popular, 42 milhões de pessoas entraram
onde estão, de fato, tais processos.
na chamada "nova classe média", na última década. O salário
mínimo foi elevado em 50% acima da inflação, o crédito passou
de 25% para 45% do PIE, a economia brasileira chegou a ser a
o TRIPÉ DO LULISMO
sexta maior do mundo, deixando para trás (por um momento)
a Grã-Bretanha. Foram inauguradas catorze novas universida-
Tentemos inicialmente descrever o sistema de acordos que pro-
des federais e realizados mais de 7 mil concursos públicos para
duziu o lulismo. No campo econômico, consistiu na transfor-
professores universitários. Todos lembrarão a maneira como o
mação do Estado em indutor de processos de ascensão através
modelo brasileiro era saudado pela imprensa mundial como
da consolidação de sistemas de proteção social, de aumento
uma das mais eficazes invenções de gestão social das últimas
real do salário mínimo e de incentivo ao consumo (graças a
décadas, capaz de conjugar respeito aos princípios da econo-
políticas como a criação do crédito consignado e do Bolsa
mia liberal, crescimento e inserção social.
Família). Tais ações demonstraram-se fundamentais para o
Revendo tais números, hoje, é o caso de se perguntar
aquecimento do mercado interno, com a consequente consoli-
onde e como esse processo quebrou. Ou talvez devêssemos
dação, por um momento, de um nível de quase pleno emprego.
nos perguntar se ele podia, de fato, perdurar por muito tempo.
A esse respeito, lembremos que a taxa de desemprego chegou
Que tipo de contradição interna ele mobilizava, qual era sua
a ser de 4,6% em dezembro de 2012, a menor da série histórica.
fragilidade estrutural? Seria bom levantar essa discussão para
Na outra ponta do processo, o governo Lula se autocom-
sabermos se, afinal, algo semelhante poderia ser reeditado ou
preendia como estimulador da reconstrução do empresariado
se seu destino era mesmo o colapso, pois atualmente vemos
nacional em seus desejos de globalização. Para tanto, a função
a pletora de economistas e simpatizantes liberais apontar os
de bancos públicos de investimentos como grandes financiado-
gastos excessivos do Estado, o "estatismo", a "irresponsabilida-
res do capitalismo nacional, por exemplo, o Banco Nacional de
de fiscal" como causa da crise atual do modelo. É interessante
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), consolidou-se
de vez, além de o Estado brasileiro tornar-se "parceiro" de em única condição possível de "governabilidade", retirando
empresas nacionais em via de globalização, em especial na da pauta dos debates políticos toda e qualquer modificação
América Latina. Dessa forma, o lulismo representou o projeto estrutural nos modos de gestão do poder. Uma das grandes
de um verdadeiro capitalismo de Estado brasileiro, retoman- peculiaridades de Lula foi ser capaz de estabilizar tal círculo de
do um modelo proto-keynesiano adotado no Brasil nos anos alianças, recorrendo, inclusive, de forma sistemática, às tradi-
1950 e 1960 sob o nome de "nacional-desenvolvimentísrno". cionais práticas de corrupção imanentes ao Estado brasileiro.
Nesse modelo, o Estado aparece como principal investidor da Esse é um ponto central. A ilusão fundamental do lulis-
economia, transformando-se em parceiro de grupos privados mo consistiu em acreditar que seria possível a sua conserva-
e orientando o desenvolvimento através de grandes projetos ção no poder através da mera gestão do processo de ascensão
de infraestrutura. O Brasil conseguiu chegar a 2017 como um social. No entanto, a eliminação da tarefa de transformação
país onde dois dos principais bancos de varejo são públicos, da institucionalidade política brasileira significava a conser-
onde as duas maiores empresas são estatais (Petrobras e BR vação de núcleos de poder e modelos de negociação que não
Distribuidora) e a terceira maior é uma companhia de mine- apenas paralisariam o governo, mas preservariam a estrutura
ração privatizada (Vale), mas com grande participação estatal oligárquica do Congresso Nacional e do Poder Judiciário, assim
via fundos públicos de pensão. Não são muitos os países entre como a capacidade de intervenção dos setores econômicos no
os do G20 que têm configuração semelhante. processo político.
Sendo assim, podemos dizer que a expectativa produzida Como disse anteriormente, o lulismo acreditou superar
por essa nova versão do capitalismo brasileiro de Estado basea- tal problema repetindo um modo de gestão de conflitos po-
va -se, por um lado, no fortalecimento do mercado interno por líticos que encontra suas raízes brasileiras na era Vargas. Lula
meio da introdução de massas de cidadãos pobres no universo aprimorou tal modelo ao governar através da transposição
do consumo. Ou seja, uma integração da população através da dos conflitos entre setores da sociedade civil para o interior
ampliação da capacidade de consumo. Por outro lado, baseava- do Estado. Sua estratégia consistia em integrar ao Estado
-se na associação entre Estado e burguesia nacional, por meio todos os atores que potencialmente poderiam representar
do que o governo esperava consolidar uma geração de empre- conflitos sociais complexos. Assim, durante o seu governo,
sas capazes de se transformar em multinacionais brasileiras o conflito entre economistas monetaristas e desenvolvimen-
com forte competitividade no mercado internacional. tistas encontrou guarida nas disputas entre o Banco Cen-
No campo político, o acordo produzido pelo lulismo ba- tral e o Ministério da Fazenda. A luta entre agronegócio e
seou-se na transformação de grandes alianças heteróclitas ecologistas incrustou-se nos embates entre o Ministério da
Agricultura e o do Meio Ambiente. Do mesmo modo, as que- operação no Estado brasileiro. Tais grupos se aproveitariam

relas entre os militares e os defensores dos direitos humanos da primeira crise popular de frustração para colocar abaixo

expressaram-se na colisão entre o Ministério da Defesa e a o governo, operando em seu próprio interior, usando sua

Secretaria Nacional de Direitos Humanos. própria base.

O que seria, em situações normais, sintoma de esquizo- Em catorze anos de governo de esquerda no Brasil, não

frenia política foi visto como astúcia de conciliação, graças foi dado um passo sequer em relação à constituição de me-

à posição de Lula como "mediador universal", um presiden- canismos de democracia direta, a não ser a proliferação de

te capaz de ser reconhecido por todas as partes em conflito conselhos consultivos sem poder deliberativo ou vinculante

como alguém que estava do seu lado. Isso deu ao governo uma nenhum. Ou seja, eram meros espaços formais de gestão de

oportunidade momentânea de "ganhar em todos os tabulei- um simbolismo vazio de efetividade. O preço que a esquerda

ros", fazendo-se, ao mesmo tempo, governo e oposição. Um pagaria por abandonar a pauta central da transformação dos

exemplo paradigmático disso foi a visita ao Brasil de George regimes de governabilidade, abraçando o discurso do "respeito

w. Bush. Ao ser recebido no Palácio da Alvorada, o presiden- à estabilidade democrática", uma estabilidade na desagregação, ou

te americano pronunciou um discurso no qual tecia fortes seja, o preço de pura e simplesmente abandonar a política para

elogios a Lula, descrevendo o Brasil como o mais importante se dedicar à gestão, seria a morte. Ela repetiria o mesmo pro-

parceiro dos Estados Unidos na região. Enquanto isso, grandes cesso que destruiu o Estado de Bem-Estar Social em solo eu-

manifestações ocorriam nas ruas contra a presença de Bush, ropeu. Como os detentores dos aparelhos de produção e seus

organizadas pelo partido ... do presidente Lula. A alguns, Luíci representantes no interior da gestão do Estado permaneceram

fornecia a ação; a outros, fornecia o discurso e a promessa de intocados, eles se aproveitariam da primeira instabilidade es-

que, "assim que a correlação de forças permitisse", decisões trutural para colocar abaixo o modelo.

diferentes seriam tomadas.


Do ponto de vista eleitoral, a estratégia parecia eficaz e
insuperável, criando a imagem de que seria possível avançar o ESGOTAMENTO DO TRIPÉ

continuamente sem rupturas e sem grandes modificações na


ordem institucional. No entanto, essa eficácia era apenas uma De fato, eis que chegou aquilo que Tocqueville chamou um dia

ilusão. O populismo lulista conservava o poder de oligarquias de "frustração relativa". O conceito tentava explicar por que as

dissidentes que haviam se associado ao consórcio governista. revoltas populares e revoluções, muitas vezes, não são feitas

Da mesma forma, deixava intocados núcleos de poder em pelos mais desfavorecidos, mas por grupos que esperavam

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mais do que conseguiram. Não são os mais pobres que fazem Por outro lado, a despeito dos avanços ligados à ascensão
revoluções, mas aqueles que se encontram no interior de um social de uma nova classe média, o Brasil continuava um país
processo de ascensão social incompleto. Ou seja, há uma ten- com níveis brutais de desigualdade. Na verdade, o lulismo não
são que impulsiona a ação de revolta. Tensão entre a satisfação representou uma política de combate à desigualdade, mas uma políti-
esperada e a satisfação realmente conseguida. Isso talvez expli- ca de capitalização dos pobres, o que é algo totalmente diferente.
que por que Tocqueville afirma: "O regime que uma revolução A posição brasileira no índice Gini, que mede a desigualdade,
destrói tem um valor quase sempre melhor que o do regime era clara. Em 2013, havíamos enfim chegado ao nível de 52,9
imediatamente anterior, e a experiência ensina que o momento (quanto mais próximo de zero, menos desigual). Mas esse era
mais perigoso para um mau governo é comumente aquele em o mesmo nível que o Brasil tinha em 1960. Ou seja, tudo o que
que ele começa a se reformar". havíamos conseguido foi retomar o nível de desigualdade de
Nesse sentido, poderíamos utilizar tal raciocínio e dizer 1960, continuando mais desiguais do que países como Índia,
que o governo Dilma não foi capaz de realizar as expectativas China, Rússia, Argentina, México e Peru. Eis a verdadeira di-
de desenvolvimento social produzidas por Lula, criando uma mensão do movimento feito nessas últimas décadas.
profunda frustração relativa. Mas, mesmo que isso seja verda- De fato, é preciso lembrar que os rendimentos do setor
de, fica a questão de saber de onde viria tal incapacidade e o que mais rico da população brasileira, com sua característica pa-
exatamente se esperava desse segundo momento da esquerda trimonialista e rentista, não só continuaram intocados como
brasileira no poder. conservaram seu ritmo de crescimento. Isso criou problemas
No plano econômico, tudo se passou como se o governá típicos de países emergentes de rápido crescimento, como
acreditasse que a continuidade bastaria. Dilma acreditava poder Rússia, Angola etc. Como uma larga parcela da nova riqueza
ser uma espécie de "Brejnev do lulismo", simplesmente geren- circula pelas mãos de um grupo bastante restrito com deman-
ciando a inércia. Já a composição do ministério de seu primei- das de consumo cada vez mais ostentatórias, como o governo
ro governo era um sintoma claro: ausência de formuladores de fora incapaz de modificar tal situação através de uma rigorosa
política, inexistência de horizonte de aprofundamento de refor- política de impostos sobre a renda (como taxação de grandes
mas. Sua tentativa de enquadrar o sistema financeiro através da fortunas, de consumo conspícuo, de herança etc.), criou-se um
redução dos spreads bancários se demonstrará pífia, sua políti- quadro no qual a parcela mais rica da população pressionava o
ca de desoneração, procurando acender o "espírito animal" do custo de vida para cima. Não por acaso, entre as cidades mais
empresariado nacional, se mostrará não apenas ineficaz, mas caras do mundo naquele período estavam Luanda, Moscou
nociva ao Estado brasileiro, devido à perda de receitas. e São Paulo. Basta lembrar, por exemplo, como o preço dos

88 89
imóveis brasileiros triplicou entre 2004 e 2013, o que não de- educação, saúde e transporte. "Queremos escolas padrão Fifa",

veria nos impressionar, já que a especulação imobiliária éo foi o que ouvimos nas ruas brasileiras.'

investimento preferido de elites patrimonialistas ociosas. No entanto, esse era o verdadeiro limite do modelo lulista.

Acrescentava-se a isso o fato de os salários brasileiros Não se trata apenas de um limite relacionado à justiça distri-

continuarem baixos e sem previsão de grandes modificações. butiva, mas de um verdadeiro problema econômico. Por ter

Como mostrou Ruy Braga, a remuneração de 93% dos novos praticamente metade de seu salário corroído por gastos com

empregos criados na primeira década do século XXI chega até educação, saúde e transporte, a nova classe média precisava li-

um e meio salário mínimo. Em 2014, 97,5% dos empregos cria- mitar seu consumo, recorrendo muitas vezes ao endividamento.

dos estavam nessa faixa. Ou seja, não deveríamos nos deixar O endividamento das famílias brasileiras em 2015 era de 45%. Em

enganar pelo fato de os membros da "nova classe média" terem 2005, era de 18%. Por outro lado, o dinheiro gasto com educa-

iniciado seu acesso ao consumo. Eles continuavam a ser tra- ção e saúde não volta para a economia, mas apenas alimenta a

balhadores pobres, generalizando o fenômeno bem descrito concentração de renda na mão de empresários de um setor que
como "produção do precariado".' paga mal a seus funcionários e tem baixo índice de investimen-

Uma alternativa para a melhoria da renda das famílias se- to. Empresários que preferem aplicar no mercado financeiro do

ria a redução dos itens que devem ser pagos por elas, graças país, com suas taxas de juros entre as mais altas do mundo.

à criação de serviços sociais públicos e gratuitos. Mas uma Mas podemos dizer que a constituição de um núcleo de

família da "nova classe média brasileira" devia gastar quase serviços públicos é o limite do modelo brasileiro tentado pelo

metade de seus rendimentos com educação e saúde privada', lulismo porque se trata de algo que só poderia ser feito através

além de transporte público de péssima qualidade. As famílias de uma reforma fiscal capaz de capitalizar o Estado. Lembremos

que passaram a fazer parte da nova classe média precisaram que, no Brasil, a maior alíquota de imposto de renda é de 27,5%,

começar a pagar por educação e saúde, a fim de escapar dos porcentagem mais baixa do que a de países de economia liberal,

péssimos serviços do Estado e garantir a continuidade da as- como os Estados Unidos e a Inglaterra. Se realizasse uma re-

censão social para seus filhos. Não por outra razão, uma das forma fiscal com aquele objetivo, o governo acabaria acirrando

bandeiras fundamentais das manifestações de junho de 2013


foi exatamente a inexistência de bons serviços públicos de 3 Segundo o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde, os gastos da classe
média com saúde aumentaram 54% entre 2002 e 2012. O gasto da dita nova
classe média com educação foi de 28 bilhões de reais em 2012, dos quais

2 Braga, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: 76,16% foram apenas com matrícula (Instituto Data Popular) - e aumentou
11% em 2013.
Boitempo, 2012, p. 34; A rebeldia do precariado. São Paulo: Boitempo, 2017.

90 91
conflitos de classe e quebraria a aliança política que o sustentava. esquecido que os países que mais crescem, como China, Rússia

Ou seja, o avanço em políticas de combate à desigualdade invia- e Índia, são aqueles com forte intervenção estatal na econo-

bilizaria a governabilidade ou, para ser mais claro, inviabilizaria mia). Melhor seria se esses economistas se perguntassem sobre

essa governabilidade que, de toda forma, nunca poderia servir à esquerda o impacto da desigualdade e dos processos de oligopolização

brasileira, pois era simplesmente um sistema de gestão da paralisia social. no baixo crescimento brasileiro.

Como se não bastasse, a política lulista de financiamento


estatal do capitalismo nacional levou ao extremo as tendências
monopolistas da economia do país. O capitalismo brasileiro é A NARRATIVA DO "DESASTRE"

hoje um capitalismo monopolista de Estado. O Estado é, aqui,


o financiador dos processos de oligopolização e cartelização da Neste ponto, vale um adendo. Pois, dentro da narrativa hege-

economia. Exemplo pedagógico disso foi a incrível história do


môníca construída para explicar a crise brasileira, encontra-se
setor de frigoríficos. O Brasil era, em 2017, o maior exportador a tentativa de afirmar que o grande vilão foi o Estado. Em todos

mundial de carne, graças à constituição do conglomerado ]Bsl os meandros dos cadernos de economia dos jornais diz-se, pela

Friboi, com dinheiro do BNDES. Entretanto, o mercado de frigorí- boca de seus analistas, que o primeiro governo Dilma teria

ficos era, até há pouco tempo, altamente concorrencial, dispondo "feições estatistas e intervencionistas", responsáveis pelo des-

de vários players. Hoje, ele é monopolizado, pois uma empresa calabro final das contas públicas e orçamentos com previsão

comprou todas as demais, utilizando-se de dinheiro do BNDES. Em


de déficit. A crise brutal a partir de 2015 seria, assim, a prova

vez de impedir o processo de concentração, o Estado o estimulou .. do fracasso gerencial do capitalismo de Estado brasileiro, não

Com isso, atualmente não há setor da economia (telefonia, avia- restando outra solução senão aceitar, de vez, a boa e sã cartilha

ção, produção de etanol etc.) que não seja controlado por cartéis. do liberalismo.
O que significa serviços de péssima qualidade, carnes com pape- Há, no entanto, várias ilusões de ótica nesse raciocínio.

lão, ausência de concorrência e baixos índices de inovação. Primeiro, chamar o governo Dilma de estatista e intervencio-

Sugiro procurar nesses dois fatores uma das causas do bai- nista é dificilmente defensável. Como insisti antes, seu governo

xo crescimento da economia brasileira nos últimos anos. Ou privatizou (com o estratagema da "privatização branca" das

seja, economistas pagos regiamente por bancos e consulto rias concessões) aeroportos, rodovias, portos e ferrovias. Ele tam-

entoam, de maneira infinita, o mantra do alto custo da produ- bém abriu a exploração do pré-sal para empresas estrangeiras,

ção devido a impostos, do alto custo da mão de obra devido aos entregando 60% da maior reserva de petróleo da camada sali-

direitos trabalhistas e da intervenção estatal (como se tivessem na para quatro empresas estrangeiras e contrariando, com isso

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(para variar), promessas de campanha. Acrescente ao bolo uma ser mais estruturais, basta perguntar sobre a origem da dívida
política de desoneração e redução de impostos que produziu pública brasileira, cuja parte substancial é resultado da trans-
uma renúncia fiscal de 327,16 bilhões de reais entre 2011 e 2015. formação de dívidas privadas de empresas e bancos em dívidas
Em outro lugar do mundo, um conjunto de políticas dessa natu- públicas. Quer dizer, no capitalismo, o Estado sempre inter-
reza dificilmente seria chamado de estatista e intervencionista. vém. A única questão real é: a favor de quem?
Na verdade, esse debate procura esconder o que realmente Nesse sentido, mais honesto seria lembrar que o que entrou
entrou em crise a partir de 2015. A dicotomia liberalismo versus em crise com o fim do lulismo foi a crença de que seria possí-
estatismo que parece comandar boa parte do nosso debate é vel "gerenciar" o capitalismo brasileiro com ajustes pontuais
uma falácia. O capitalismo nunca foi liberal. Ele simplesmen- que permitiriam recuperar um modelo de "pacto no interior
te oscila em sua história, respondendo a pressões de conflitos do Estado" entre empresários, sistema financeiro e sindicatos.
sociais e da força de interesses setoriais, sobre como regular e Modelo cujas raízes se encontram no sistema de equilíbrio de
mediar demandas. Nenhum desses economistas que trazem moldes getulistas. Se a bomba explodiu na mão da esquerda na-
Adam Smith no coração reclamou quando o governo norte- cional é por terem os seus setores hegemônicos acreditado que
-americano, em plena crise de 2008, usou dinheiro público para era seu destino ressuscitar tal modelo. Melhor teria sido escapar
salvar bancos privados, como o Citibank. Também não consta da falsa dicotomia entre capitalismo estatista e capitalismo li-
que algum deles tenha reclamado quando a Comunidade Euro- beral e fazer aquilo que a esquerda brasileira sempre prometeu
peia despejou dinheiro público em seu combalido sistema fi- fazer: recusar-se a operar no interior da lógica do capitalismo,
nanceiro, permitindo que tal dinheiro fosse usado até para pagar " fortalecendo alternativas de confisco de aparelhos produtivos,
stock-options de executivos cujo maior feito gerencial fora quebrar práticas de autogestão e pulverização de agentes econômicos.
bancos. O que não é de se estranhar, já que a questão liberal Acrescente-se a isso, ainda, o fato de o segundo governo
nunca foi "como diminuir o Estado", mas "como privatizar o Dilma, depois de fazer uma guinada neoliberal que apenas
Estado, colocando-o a serviço dos interesses do empresariado aprofundou o processo recessivo ao aplicar a política que seus
nacional ou da classe de financistas". opositores de direita sonhavam, ter sido alvo de um impressio-
Nós já vimos isso ocorrer milhares de vezes em terras nante terrorismo econômico. O Brasil foi obrigado a conviver
brasileiras. Basta lembrar como o "liberal" governo FHC usou com uma sistemática sedição no Congresso, capitaneada por
dinheiro do contribuinte para salvar bancos falidos através do seu então presidente, que, por meio de pautas-bomba, simples-
Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortale- mente sabotou o que restava da economia. No interior desse
cimento do Sistema Financeiro Nacional). Ou, se quisermos processo, a crise cresceu em proporções exponenciais. Nesse

94 95
sentido, as análises liberais que lemos hoje são simplesmen- e movimentos sociais ligados à esquerda. Essa foi a consequên-
te desonestas. Elas atribuem ao esgotamento de um modelo cia de seu atrelamento ao governo, mesmo que o resultado
conciliatório (e longe de ser claro representante de políticas concreto de tal atrelamento tenha sido mínimo já que os movi-
econômicas de esquerda) a conta de um processo multifatorial, mentos tiveram suas pautas muito pouco atendidas e perderam
no qual, além dos equívocos internos do modelo, havia urna quase toda a sua força. Essa integração de tais movimentos no
política sistemática de destruição da economia tendo em vista núcleo de gestão do Estado era um fenômeno que simplesmente
a aceleração da queda do governo. repetia as dinâmicas clássicas do populismo latino-americano.
O que ocorreu depois foi simplesmente a realização das O segundo fenômeno foi a demissão da classe intelectual
políticas de desmonte do Estado brasileiro com que os liberais de sua função histórica de responsável pelo tensionamento de
tanto sonhavam, mas que nunca seriam capazes de apresen- processos políticos. A classe intelectual contemporânea tende a
tar em um processo eleitoral, pois seriam rechaçados pelos esconder sua demissão política por meio da pretensa crítica
eleitores. Um ano depois da implementação mais brutal que a desejos de "dirigisrno" e a urna política baseada na crença
o Brasil conheceu de urna política de choque neoliberal, os da força indutora de "vanguardas letradas". Não há, no entan-
números eram claros: 14 milhões de desempregados, 3,6 mi- to, processo político sem um ato de nomeação do aconteci-
lhões de pessoas voltando à pobreza apenas no ano de 2017, mento - ato que exige a mobilização da capacidade da classe
setores da economia com capacidade ociosa de até 60% e um intelectual de criar ressonâncias espaçotemporais e, assim,
setor da imprensa nacional tendo alucinações e delírios com redimensionar dinâmicas sociais. Urna nomeação não é sim-
urna "retomada" da economia cuja realidade só se fazia sentir' plesmente urna descrição, ainda mais quando estamos a falar
em um universo paralelo. de processos políticos populares. Ela é um ato performativo
que redimensiona a capacidade de transformação dos agentes.
No entanto, a demissão política dos intelectuais foi o re-
A PRODUÇÃO DO VAZIO POLÍTICO sultado da convergência de três fatores. Primeiro, vivemos em
um movimento global de bloqueio das relações entre univer-
Já no plano social, o modelo lulista trouxe corno saldo final um sidade e sociedade civil. Isso se deve a urna forma de gestão
vazio vindo da decomposição do corpo político brasileiro e do social que promete aos intelectuais a ascensão ao posto de con-
esgotamento da esquerda. Dois fenômenos foram importantes sumidores de serviços globais, graças à internacionalização
para chegarmos a esse ponto. O primeiro foi o esvaziamento da das universidades e à submissão delas a processos de avalia-
legitimidade de associações (corno sindicatos, centrais sindicais) ção cujos métodos são tão opacos quanto dignos do Pai Ubu.

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Aos poucos, as universidades foram se transformando em intelectuais se transformar em presidentes da República, pre-
"guetos de luxo": um misto de agências de viagens para coló- feitos, ministros e secretários de Estado. Normalmente, eram
quios internacionais e consumo de produtos culturais globais intelectuais que se serviam do discurso do "é necessário fazer
com espaço para a produção especializada de um saber cujos alguma coisa", "temos uma responsabilidade para com o país".
resultados, muitas vezes, não são sequer publicados na língua Entretanto, isso nunca significou entrar no Estado para implo-
local de seus países, já que a transformação do inglês em língua dir por dentro sua estrutura arcaica. Na verdade, tratava-se de
franca implica retornar a uma situação medieval na qual a classe fornecer ao Estado um melhor discurso de justificação de seus
intelectual não pode mais ser lida pela população nacional da arcaísmos, além de produzir ajustes em seu funcionamento e,
qual ela faz parte. Com isso, seus intelectuais foram, cada vez posteriormente, garantir benesses de consultorias e assessorias.
mais, perdendo relevância como referências para a reflexão da Os intelectuais não transformaram o Estado brasileiro, eles se
sociedade sobre si mesma. integraram a ele. Com isso, ficou cada vez mais clara a impotên-
O Brasil, que conheceu no passado gerações de intelec- cia da classe intelectual como classe de transformação política.
tuais públicos de forte capacidade de influência no interior Por fim, do ponto de vista político, o esforço do setor
da vida social, viu seus professores universitários, em larga hegemônico da classe intelectual brasileira pareceu ter se es-
medida, se demitirem dessa função, como se sustentá-Ia fosse gotado com a eleição de Lula. Boa parte dos descaminhos do
expressão de alguma forma de "ausência de rigor" e diversio- governo foi colocada na conta da legitimidade dos intelec-
nismo em relação às atividades acadêmicas. Melhor teria sido tuais que um dia o apoiaram ou que continuaram a apoiá-lo.
se a classe intelectual tivesse sustentado o tripé político que O simples abandono do apoio não foi uma operação bem-
a ela compete, a saber, trabalho de base com setores desfavo- -sucedida. Como os intelectuais não tiveram discernimento
recidos e vulneráveis, luta pela conquista da opinião pública suficiente para imaginar o que poderia ocorrer? Teria sido
através da ocupação da imprensa e articulação internacional necessário fazer uma auto crítica que nunca aconteceu. Por
em redes de pesquisa, tendo em vista a análise de processos outro lado, a repetição reiterada do lado bem-sucedido do
político-sociais globais. governo soava, para muitos, como estratégia para diminuir a
Um segundo fator foi a relação profunda entre classe inte- força crítica diante dos erros, que não eram mais comentados
lectual e gestão do Estado brasileiro. A Nova República serviu- no espaço público, devido ao medo de instrumentalização
-se da classe intelectual como um dos setores mais importantes pela mídia conservadora.
para o fornecimento de seus quadros de gestão. O Brasil viu, Aos poucos, parte da mídia criou seus próprios intelec-
nos últimos vinte anos, uma impressionante quantidade de tuais conservadores, repetindo, algumas dezenas de degraus

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abaixo, um fenômeno que os franceses viram nos anos 1970, hora, bastando lembrar do antigo PL e da Igreja Universal do
com os nouveaux philosophes. Como se não bastasse, o próprio Reino de Deus, presentes no consórcio governista desde o iní-
governo foi paulatinamente se afastando da órbita dos intelec- cio), assim como ao legitimar a indústria cultural (afinal, era
tuais de esquerda. Assim, reduzindo a força dos movimentos hora de abandonar a prática "elitista" de criticar o que se vende
sociais e a capacidade crítica e de mobilização da classe inte- como "popular", era hora de uma política cultural de simples
lectual, a esquerda só poderia ficar à deriva. adesão), foi a expressão de uma concepção de política própria
Dessa forma, o fim não poderia ter se dado de outra ma- da lógica de negociação sindical.
neira. O movimento eleitoral que iniciou prometendo a es- Tal lógica se resume à gestão do modo atual de trabalho e
perança ("A esperança venceu o medo", era o que se dizia) produção, buscando produzir uma redistribuição um pouco
passou seu tempo de existência gerindo expectativas através mais extensa do "serviço dos bens", como dizia Lacan. Ou seja,
de compensações simbólicas e terminou tentando sobreviver trata-se de uma lógica de extensão do modelo atual de sociali-
mobilizando apenas o medo como afeto político central; da zação e de produção de subjetividades, não de sua transforma-
esperança ao medo como afeto político. Medo de quem diz, ção. "Que o operário da Volkswagen tenha também seu carro
em momentos eleitorais: "Sei que você está decepcionado, e suas férias" e, se possível, que suas lideranças façam parte
mas, se eu estiver fora do poder, as coisas serão muito piores". dos novos fundos de pensão: podemos ver nisso o resultado
No entanto, quem termina por ser o gestor do medo social, máximo da generalização de lógica sindical. Não é de hoje que
depois de ter prometido a emergência de um novo corpo polí- sabemos como o sindicalismo tem um flerte irresistível com
tico através da esperança, só pode acabar por levar os que um a conservação.
dia nele acreditaram à melancolia, à paralisia e à mais simples Que ao final desse processo tenhamos tendências conser-
e completa demissão. vadoras-religiosas produzindo a hegemonia ideológica de seto-
Essa primeira experiência da esquerda brasileira no poder res pobres da população, eis algo que não deveria surpreender
pode ao menos servir para deixar claro como não há instaura- ninguém, pois, como não houve de fato instauração política,
ção política que não seja acompanhada de dinâmicas de trans- a reinscrição social de sujeitos foi feita pelos setores conser-
formação de sujeitos. Política é um processo de transformação vadores que já trabalhavam havia anos à espera apenas de um
de sujeitos que redimensionam sua capacidade de ação e ima- momento mais propício para constituir hegemonia. Insista-
ginação. O lulismo, ao se associar, por um lado, a processos de mos neste ponto. Processos efetivos de instauração política
integração social via consumo e, por outro, a relações inces- produzem transformações na maneira como os sujeitos com-
tuosas com grupos evangélicos (que foram aliados de primeira preendem a si próprios, na maneira como eles se relacionam

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com a história, como se relacionam com a sua própria po- Há várias formas de apresentar esse ponto, cuja elaboração
tência. Um corpo político que emerge traz no seu bojo novos sistemática ultrapassaria os limites de um livro de intervenção
sujeitos. Nada disso aconteceu no Brasil, e deveríamos começar como este. Mas talvez seja possível introduzi-Io lembrando
por pensar a partir da discussão a respeito desse ponto. que, como ocorre em nosso tempo, o século XIX conheceu
uma sequência impressionante de revoltas, movimentos e in-
satisfação social oriundos de crises econômicas profundas em
SER PROLETÁRIOS todos os lados da Europa. Tal como agora, as ruas queimaram
em sequência. Mineiros da Silésia, operários ingleses, tecelões
Há uma lição de Marx que a esquerda brasileira deveria tirar franceses: todos pararam fábricas, quebraram máquinas, mon-
desse seu primeiro fracasso. A teoria marxista da revolução taram barricadas, desafiaram a ordem instituída. No entanto,
é, mais do que uma teoria das crises, uma teoria da emergên- essa multiplicidade de revoltas só se transformou em um fan-
cia de sujeitos políticos com força revolucionária. Crises as tasma que assombrava aquele tempo quando todas as ruas em
mais profundas do capitalismo podem ocorrer, mas se não chamas foram vistas como a expressão de um só corpo políti-
houver a realização política de processos de emergência de co, um só sujeito em marcha compacta pelo desabamento de
novos sujeitos, nenhuma crise será a porta para a superação um mundo que teimava em não cair.
do capitalismo. Um sujeito político só emergiu quando os mineiros deixa-
No caso de Marx, tais sujeitos têm nome: proletários. ram de ser mineiros, os tecelões deixaram de ser tecelões e se
Como insisti em outro lugar, o conceito de proletário não está' viram como um nome genérico, a saber, "proletários", a descri-
presente no pensamento marxista apenas como a categoria ção de quem é totalmente despossuído, de quem é ninguém. Foi
sociológica dos trabalhadores que têm somente sua força de quando a multiplicidade das vozes apareceu como a expressão
trabalho. Ele é uma categoria ontológica que diz respeito a cer- da univocidade de um sujeito presente em todos os lugares, mas
to modo de existência com grande força revolucionária, é um com a consciência de sua ausência radical de lugar, que a revolta
modo que depõe regimes de existência baseados na proprie- deixou de ser apenas revolta. Pois essa força de síntese de outra
dade, no individualismo possessivo e na identidade, com seus ordem que aparece através da univocidade da nomeação era a
sistemas defensivos e projetivos." condição para que a imaginação política entrasse em operação,
permitindo a emergência de um novo sujeito. De certa forma,

4 Para uma discussão mais detalhada desse ponto, remeto ao capítulo VII
é isto que nos falta: precisamos ser, mais uma vez, proletários.
de: Safatle, Vladimir, O circuito dos afetos. op. cit. Lembremos destas frases de Marx e Engels:

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o proletário é desprovido de propriedade (eigentumslos); sua Sendo assim, podemos dizer que ser proletário significa,
relação com mulheres e crianças não tem mais nada a ver principalmente, "vincular-se ao que não tem nome". Em 2013,

com as relações da família burguesa; o trabalho industrial quando no Brasil as ruas começaram a queimar e setores pro-
moderno, a moderna subsunção ao capital, tanto na Ingla- tofascistas apareceram envoltos na bandeira nacional, uma
terra quanto na França, na América como na Alemanha, reti- jornalista, após entrevistar um manifestante, perguntou o seu
raram dele todo caráter nacional. A lei, a moral, a religião, nome. Ele respondeu: "Anota aí, eu sou ninguém". De fato, a
são para ele preconceitos burgueses que encobrem vários frase não poderia ser mais clara. Como um Ulisses redivivo
interesses burgueses.' diante de gigantes Polifemos que parecem vir atualmente de
todos os lados, ele encontrou na negação de si a astúcia maior
Como vemos, o proletariado não é definido apenas a par- para conservar seu próprio destino. Por mais paradoxal que
tir da pauperização extrema, mas da anulação completa de possa inicialmente parecer, "eu sou ninguém" é a mais forte
vínculos a formas tradicionais de vida. Tais vínculos não são de todas as armas políticas. Pois quem controla o modo de
recuperados em um processo político de reafirmação de si, visibilidade e nomeação controla o que vai aparecer e como
não se trata de permitir que os proletários tenham uma na- se construirão circuitos de afetos. Por isso, a negatividade sem-
ção, uma família burguesa, uma moral e uma religião. Tais pre foi uma astúcia daqueles que compreendem que a liberdade
normatividades são negadas em uma negação sem retorno. passa pela capacidade de destituir o Outro da força da enun-
O proletariado é uma heterogeneidade social que simples- ciação dos regimes de visibilidade possíveis. "Eu sou ninguém"
mente não pode ser integrada sem que sua condição passiva' . é, na verdade, a forma contraída de: "Eu sou o que você não
se transforme em atividade revolucionária. Por isso, ao ser des- nomeia e não consegue representar". Foi isto que faltou à ex-
provido de propriedade, de nacionalidade, de laços com modos periência brasileira: permitir a emergência de proletários. Esse
de vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais que era ninguém continua até agora sem possibilidade de se
estabelecidas, ele pode transformar seu desamparo em força incorporar em um corpo político.
política de transformação radical das formas de vida.

5 Marx, Karl; Engels, Friedrich. Manifest der Kommunistischen Partei. Disponível


em: http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx -engels /1848/ manifestji-
bourprol.htm. Acesso em: 18/6/2017.

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Junho de 2013 e
o esgotamento da
esquerda brasileira
Eu vi fermentar pântanos enormes, nassas
Nas quais nos juncos apodrecia todo um Leviatã.
RIMBAUD

Nada que se refere ao destino e às dificuldades da esquerda bra-


sileira pode ser compreendido sem uma meditação a respeito
das manifestações de junho de 2013: Tais manifestações são
certamente o conjunto mais importante de revoltas populares
da história brasileira recente, não por aquilo que elas produzi-
ram, mas por aquilo que elas destruíram. A partir delas, todo o
edifício da Nova República entrou paulatinamente em colapso.
Mas, além disso, algo mais terminou: a primeira parte da longa
história da esquerda brasileira chegou ao fim.
Durante décadas, desde a criação do Partido Comunis-
ta Brasileiro, nos anos 1920, a esquerda brasileira procurou
governar o país criando hegemonia popular. Mesmo con-
tando com lideranças de forte capacidade de mobilização,
como Luís Carlos Prestes, até os anos 1960, o máximo que

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a esquerda conseguira fora fazer composições no interior demonstra como as narrativas que procuram vincular 2013 a
de um governo "getulista de esquerda", que já nascera frágil uma sedição das classes médias não se sustentam.'
(Ioão Goulart). Durante toda a ditadura militar, a esquer- Então vieram as manifestações de maio, iniciadas em
da conseguiu conservar-se como legatária das promessas Porto Alegre e coordenadas por movimentos autonomistas
de transformação social e chegou ao final da ditadura com contrários ao aumento nas tarifas de transporte público. Ma-
vários grupos com capacidade de governo, além de clara nifestações contra as condições abusivas dos transportes pú-
hegemonia cultural. Com o esgotamento do lulismo, no en- blicos são uma constante na história brasileira, assim como
tanto, os últimos atores políticos da Nova República se viam é constante a reação violenta do braço armado do poder. No
testados no governo. Os resultados desse teste se mostravam entanto, naquele momento estava em marcha um descolamen-
distantes da expectativa popular. Havia, porém, uma chance to da enunciação do descontentamento em relação a seus re-
de reorientação, de ruptura da esquerda com seu núcleo go- presentantes tradicionais, todos eles comprometidos com o
vernista e de consolidação de uma aliança de outro tipo com consórcio governista e com a gestão de sua paralisia. Daí o
setores descontentes. Ela se daria com uma revolta popular movimento de greves espontâneas e a ascensão de estruturas
de larga escala. Esse era o sentido das manifestações de 2013. autonomistas. Ou seja, o horizonte social estava marcado, ao
Uma chance que não foi aproveitada. mesmo tempo, por uma frustração relativa com a paralisia
Notemos inicialmente como tais manifestações já haviam produzida pelo lulismo e por uma crítica à representação po-
sido anunciadas. Depois de um número baixo de greves no lítica (incluindo aí partidos, sindicatos, associações, movimen-
período 2003-08, um processo crescente se inicia entre 2010 tos, meios de comunicação etc.).
(445 greves no ano) e 2012 (877 no ano). O processo explode Há ainda de se lembrar que, diferentemente do que acre-
em 2013, que conhecerá o maior número de greves desde o ditam alguns, o Brasil não está fora do mundo. Não é possível
fim da ditadura (quando se inicia a série histórica), ou seja, entender junho de 2013 sem seu contexto mundial. Lembre-
2.050 greves, sendo 1.106 apenas no setor privado. Taisgreves mos que os jovens que iniciaram as manifestações em maio
começaram no início do ano, com movimentos de grevistas foram os mesmos que fizeram os movimentos de ocupação
autônomos em relação a seus sindicatos e centrais, como ocor- em 2011 em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador.
reu nas greves de garis e de bombeiros dos primeiros meses
de 2013. Talfenômeno era sintomático: tratava-se de trabalha-
1 Ver, principalmente, a interpretação de Ruy Braga em A revolta do precariado,
dores que não reconheciam mais suas "representações" e que em que defende a tese de as revoltas de 2013 estarem organicamente vinculadas
procuravam deixar claras sua insatisfação e precariedade. Isso à emergência do precariado e dos limites das promessas de ascensão social.

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Movimentos inspirados nos Occupy ocorreram em várias cida- ser compreendida sem o engajamento daqueles que agiram
des do mundo. Esses movimentos, todos eles, impulsionados em diversos movimentos de ocupação nas principais cidades
pela Primavera Árabe, voltaram-se contra a associação entre norte-americanas.
democracia liberal e políticas de espoliação econômica poten- No Brasil, o movimento cindiu-se rapidamente em dois.
cializadas a partir da crise de 2008. Eles tiveram uma dimensão Sua ampliação se dá principalmente a partir de 17 de junho,
profundamente espontânea em seu início e mostraram duas quando massas de manifestantes saem às ruas em resposta à
vias possíveis de consolidação. Em um primeiro caso, a incor- violência policial que ferira mais de cem pessoas em São Paulo.
poração política se deu através dos atores mais estruturados no A partir desse momento, aparecem também grupos ligados a
momento da eclosão da revolta e de seu adensamento popular. discursos nacionalistas e a uma pauta anticorrupção, focada,
Foi o caso da Tunísia, com o Ennahda, e do Egito, com a Irman- basicamente, no consórcio governista. Começam lutas internas
dade Muçulmana: grupos islâmicos com forte penetração po- e brigas nas próprias manifestações entre grupos de esquerda
pular devido à prática de políticas de assistência. Nesses casos, e direita. Seria o início de um processo de embate político nas
houve um aggiornamento conservador do movimento, o que ruas que posteriormente exporá as clivagens ideológicas do
levou tais grupos ao poder. Mas tal processo não seria capaz país. Clivagens que muitos gostariam de dizer inexistentes.
de constituir hegemonia e levaria, nos dois casos, tais grupos Mas no Brasil, ao contrário da Tunísia ou do Egito, não
a serem alijados por novas mobilizações populares. Se o Egito havia grupo conservador claramente organizado, a não ser os
entrou em uma via ditatorial, com o retorno dos militares ao partidos tradicionais (rechaçados pelas manifestações) e os se-
poder, a Tunísia conhecerá um processo efetivo de ampliação tores hegemônicos da imprensa. Tais setores começaram um
da participação popular no governo. processo de constituição de hegemonia através de narrativas
Em um segundo caso, a incorporação política se dará atra- que procuravam ora caracterizar as manifestações a partir da
vés da constituição imanente de novos modelos de organiza- violência e do "vandalismo", ora construir lideranças fictícias
ção e programas. Foi assim, principalmente, na Espanha, com e focar as pautas múltiplas (mais serviços públicos, fim da vio-
a criação do Podemos, a partir dos Indignados, e sua rápida lência policial, recusa da representação, contra a PEC 37 e as
ascensão à condição de terceiro partido nacional, responsável políticas discriminatórias, entre outras) no tópico exclusivo da
pela gestão de cidades como Madri e Barcelona. Mas foi algo corrupção. Mas, para que tal processo de organização de um
que ocorreu também nos Estados Unidos, com a candidatura- símile de revolta funcionasse, era necessário afastar a popula-
-movimento do socialista Bernie Sanders, que abriu uma nova ção do núcleo originário dos manifestantes. Havia uma que-
porta à esquerda americana. Uma candidatura impossível de bra de adesão popular a operar para que o setor conservador

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tomasse a frente, o que ele finalmente fará em março de 2015, de 2013, foi alcançado quando manifestantes foram responsáveis
nas manifestações mais preparadas pela imprensa e mais in- pela morte involuntária de um cinegrafista, no início de 2014.

fladas em números da história da república (graças à ajuda da Mas essa quebra do ímpeto das manifestações de 2013 não
"contabilidade criativa" da polícia). seria possível sem a decomposição da esquerda. Ao se confron-
Para quebrar a adesão popular, o cerne da estratégia seria tar com manifestações sem comando definido, as organizações
utilizar o braço armado do poder. Ou seja, tratava-se de ope- da esquerda brasileira descobriram subitamente que estavam
rar, de forma extensiva, no interior de uma tática de incitação quarenta anos atrasadas, pelo menos. Suas estruturas eram
policial da contraviolência dos manifestantes, de infiltração, profundamente dirigistas, hegemonistas, centralizadas e hie-
de prisões arbitrárias (em 2017 ainda havia presos pelas mani- rárquicas, sem condição de produzir a incorporação política
festações de 2013) e de lógica de exceção. Como dizia a polícia do processo de revolta. Seu sistema de representação, com seus
de Gênova, por ocasião dos confrontos com manifestantes sindicatos, movimentos, uniões de estudantes, havia entrado
antiglobalização no início dos anos 2000 e da morte do ma- em um processo de cooptação por aparelhos de governo, o que
nifestante Carlo Giuliani: "A função da polícia não é impor a levou a uma desqualificação de sua legitimidade pelas manifes-
ordem, mas gerir a desordem". Ou seja, a função da polícia é tações e a uma posição esquizofrêníca, na qual tais instituições
gerar e gerir zonas de anomia. Frase que vale para a realidade tentavam equalizar demandas de manifestações sem se colocar
brasileira, em especial para o momento pós-junho de 2013. claramente em oposição ao governo. Por esse motivo, 2013 foi
A prática policial, no Brasil inteiro, mostrou desde o início não inicialmente produzido por movimentos autonomistas e sem
apenas sua brutalidade e seus traços dignos da ditadura mili- vínculo partidário explícito. A força de transformação de 2013

tar, mas também a sua função de produzir desordem e geri-Ia só poderia ser incorporada por movimentos políticos de es-
no interior de uma lógica de desqualificação de demandas, de trutura aberta e horizontal, imunes à lógica do controle e da
atores e de produção do medo social. adesão inoculada em tantas estruturas de esquerda. Até hoje,
Há de se lembrar que mesmo o governo dito esquerdista e nada disso foi tentado no Brasil.
seus aliados não temeram responder à indignação popular com No entanto, ficou evidente, também, a inoperância da clas-
a criminalização, através da aprovação de uma lei antiterrorista se intelectual para potencializar a revolta. A grande maioria
em um país cuja única prática terrorista efetiva até agora foi o dos intelectuais brasileiros ficou entre o discurso do choque
terrorismo de Estado. O objetivo de quebrar o ímpeto de uma ("não estamos entendendo nada e será necessário muito tempo
revolta que vinha produzindo ao menos uma manifestação por para compreender") e o discurso de desqualificação do movi-
dia em cidades brasileiras, entre os meses de junho e novembro mento, por não saberem o que fazer diante de um povo que

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não aceitava mais ser representado e que se voltava contra o descontrole, sem existência de cúpula, mas com disciplina de
próprio "governo do povo". Um povo que se volta contra adesão a decisões.
o governo do povo não poderia ser um povo. Para tais intelec- Em vista da paralisia completa do governo diante de tais
tuais, até hoje, 2013 não foi uma revolta popular, mas o início revoltas e da incapacidade de todo o setor da esquerda de se
do fascismo brasileiro. constituir como um intérprete qualificado das novas demandas,
Ficava clara, entretanto, a inadequação de seus esquemas de foi a direita que soube captar o momento, absorvendo de vez
pensamento a processos históricos que operam através da emer- um discurso anti-institucional. Pela primeira vez desde 1984, a
gência de acontecimentos. Estávamos diante de acontecimentos direita voltava às ruas, procurando mobilizar a força anti-ins-
que irrompiam de forma imprevista em situações aparentemente titucional da política, enquanto a esquerda brasileira havia se
estabilizadas, forçando o início de um movimento de procura transformado no mais novo partido da ordem. Com tal força, a
por processos de incorporação em corpos políticos ainda por vir. direita, mesmo não tendo ganhado as eleições de 2014, impôs
Movimentos que tendiam a destituir todos os atores constituídos uma dinâmica acelerada de desabamento do governo e de inci-
até então, dando forma a uma soberania pensada como poder tação a um golpe parlamentar travestido de legalidade, capita-
destituinte, pois tais acontecimentos não eram produzidos no neado por um processo jurídico capaz de práticas criminosas
interior de um trabalho de ação política contínua realizada por como grampear advogados de réus (o que implica quebra de
atores claramente definidos e representáveís.' Eles eram fruto da todo princípio elementar de defesa dos cidadãos contra o Esta-
acumulação muda de expectativas não realizadas e da tentativa do) e divulgar tais grampos em cadeia nacional. Enquanto isso,
de forçar situações em direção a dinâmicas políticas ainda não tudo o que os setores majoritários de esquerda fizeram foi cla-
constituídas e sem nenhuma garantia de controle. Para quem se mar pela legalidade e pela ordem. As cartas tinham se invertido.
acostumou a pensar a partir da lógica do "necessitarismo" his- Lembremos de um ponto fundamental: a política é indis-
tórico, isso significava andar de cabeça para baixo. sociável da capacidade de incorporar forças anti-institucionais.
Assim, faltava mais do que organização prévia. Faltava Faz parte de certa ilusão liberal, partilhada por vários setores
capacidade de criar atores políticos e produzir organizações do que antes foi chamado de "esquerda", confundir sistemati-
com força de implicação genérica a partir de acontecimentos. camente política e gestão. Isso pressupõe aceitar que vivemos
Para tanto, seria necessário aceitar a emergência de espaços de em sociedades que já teriam alcançado consenso em relação
a seus valores normativos fundamentais. Mais importante,
que já teriam alcançado consenso em relação a sua gramática
2 Sobre o conceito de "poder destítuinte", ver, principalmente: Agamben,
Giorgio. O uso dos corpos. São Paulo: Boítempo, 2017, pp. 295-311. de conflitos sociais. Ou seja, que já teriam definido quais as

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condições para a regulação de conflitos no interior de um ho- Nesse sentido, só há política onde é possível ouvir forças
rizonte de "Estado de Direito". É fundamental que tal consenso anti-institucionais, que colocam em questão os modos de re-
gramatical seja imposto à força, pois é ele que define os limites gulação institucionalizados de conflitos. Essas forças podem
da política em sua capacidade de transformação. Não há nada romper o pacto frágil que sustenta a democracia liberal de duas
mais autoritário do que dizer: "Posso ouvi-lo, mas desde que formas: empurrando a experiência social para uma reconfigu-
você fale minha língua, que compartilhe meus valores". ração, tendo em vista o fortalecimento da soberania popular, a
Pois há de se lembrar que podemos ter duas formas gerais incorporação de um poder popular continuamente reprimido,
de conflitos sociais. A primeira refere-se à disputa sobre a apli- ou produzindo o contrário, ou seja, levando a experiência so-
cação de normas já partilhadas. Por exemplo, podemos admi- cial a regredir em direção ao esvaziamento da soberania popu-
tir a igualdade como valor normativo fundamental e produzir lar e ao fortalecimento de um poder autárquico de comando.
conflitos, por entender que tal valor não é aplicado da forma Esse é o limiar no qual a vida política brasileira se encontra.
devida como ocorre quando mulheres saem às ruas por com-
preender que seus salários mais baixos são um desrespeito ao
princípio constitucional de igualdade. Nesse caso, operamos DEPOIS DO FIM

no interior de uma gramática social de conflitos aceita por to-


dos os lados do embate. Diante desse cenário, a tendência brasileira agora é de desagre-
No entanto, podemos também ter conflito exatamente a gação. Com uma casta política que bloqueou todo processo
respeito da gramática de conflitos. Podemos dizer que ela define de renovação, com uma paralisia em relação à compreensão
uma forma de regulação social que elimina certas possibilidades de processos de emergências de novas modalidades de corpos
de enunciado, que joga na invisibilidade certas formas de sujeitos, políticos, o país tende a deslocar-se paulatinamente para um
que impede a escuta de certas formas de demanda. Não é a falta modelo cada vez mais autoritário e desprovido de qualquer le-
de comunicação que nos coloca problemas, mas a incapacidade gitimidade. Os sistemas de pactos ruíram e não é mais possível
de ouvir o que não se submete à estrutura de legitimação e poder reeditá-los. Todas as "reformas" apresentadas em 2016 e 2017

que a comunicação impõe. Como diz Jacques Ranciêre: "O que visam à destruição das defesas trabalhistas e ao fortalecimento
faz da política um objeto escandaloso é ela ser a atividade que das dinâmicas de produção da desigualdade, no pior dos pe-
tem por racionalidade própria a racionalidade do díssenso".' sadelos neoliberais. Nesse cenário, não é surpreendente que,
diante do crescimento da resistência contra a espoliação, a elite
3 Rancíêre, Jacques. La Mésentente: politique etphilosophie. Paris: Galilée, 1995. dirigente brasileira jogue todas as suas forças na brutalização

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do discurso social, na criminalização da oposição e no uso suas ações disponíveis visando "regular" o desenvolvimento
recorrente de seu braço armado para gerir conflitos. monopolista do capitalismo.
É claro que sempre pode haver algum setor da esquerda Nesse sentido, o Brasil repete o momento histórico mun-
nacional disposto a contrapor-se a tal cenário através da regres- dial, quando vemos, de maneira cada vez mais clara, a política
são à fixação em um horizonte populista perdido, tentando tendendo em direção aos extremos, depois do colapso da de-
reeditar atores políticos que terão a consistência de fantasmas, mocracia liberal. Até agora, foi a direita que compreendeu isso
um pouco como ocorre na Argentina e seu peronismo infinito. mais rapidamente, sabendo deslocar-se sem muita dificuldade
No entanto, é mais seguro acreditar que estamos a entrar em em direção ao extremo. Podemos imaginar dois cenários: um
uma era histórica de acirramentos de conflitos sociais, sem a deles é a radicalização do autoritarismo de Estado brasileiro,
ilusão de que existiria uma espécie de gramática social parti- em que seu poder já não esconde a ausência completa de legi-
lhada que poderia mediá-Ios. timidade e seus expedientes de defesa de processos cada vez
Note-se ainda que não deve ser descartada a incorporação mais brutais de espoliação e de concentração. Em um hori-
do descontentamento social por um populismo conservador zonte de brutalização dos conflitos sociais e trabalhistas, não
baseado em um "radicalismo residualmente individualista" que será surpresa para ninguém uma guinada final em direção a
se organiza discursivamente a partir da "luta contra os privi- um autoritarismo ainda mais explícito.
légios" (em geral apenas os "privilégios" do Estado, inclusive O segundo cenário passa pela reconfiguração da esquer-
aqueles supostamente oferecidos a grupos mais vulneráveis da brasileira em sua capacidade de enfrentamento, de pensa-
do ponto de vista social) e da "igualdade perante a lei" con- mento, de polarização e de vitória. Tal reconfiguração teria de
jugado na forma da meritocracia liberal- modelo cujo eixo começar por uma refundação. Se isso está longe ou perto, não
paradigmático no Brasil se deu através do populismo de [ânio cabe a nós dizer. Na verdade, nem sequer é importante sabê-lo.
Quadros." Tal populismo baseia-se na captura conservadora
do processo de empobrecimento dos estratos médios, mas é
incapaz de impedir tal empobrecimento devido à limitação de

4 O modelo desse processo foi descrito de forma extensiva por: Weffort,


Francisco. O populismo na política brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1978. É dele a
caracterização desse populismo conservador como "um radicalismo pequeno-
-burguês que mistifica um reformismo operário" (p. 37).

118
119
Para além da
melancolia: em
direção ao grau zero
da representação
Por que não introduzir uma desconfiança na desconfiança
e não temer que o medo de errar já seja o próprio erro?
[...] Pois o assim chamado medo do erro
é, antes, medo da verdade.
HEGEL

o esgotamento da esquerda brasileira depois do colapso do


lulismo é algo a ser encarado diretamente. Ele pode aparecer
como um momento privilegiado para uma inflexão em direção
a práticas políticas mais condizentes com o tamanho das lutas
e desafios que temos pela frente. Em um cenário mundial no
qual as ilusões das conciliações da democracia liberal foram
desfeitas e onde a política tende a ir para os extremos, cabe à
esquerda não temer recuperar sua radicalidade.
Para tanto, antes de qualquer discussão a respeito de prá-
ticas de governo, faz-se necessária uma análise de psicologia
social. Em situações como essa, é fácil percebermos sujeitos e
forças políticas em posição melancólica, como se estivessem

121
paralisados pela perda de um objeto do qual parece impossível Por isso, há de se desconfiar dessa desconfiança em relação
fazer o luto. Freud descrevera muito bem a melancolia como à nossa força e começar por nos perguntarmos se o medo da
"amor por objetos perdidos". Esse amor internaliza tais obje- perda não seria exatamente aquilo que deveria ser perdido.
tos, transformando investimentos de objetos em identificações Há de se recusar toda forma de amparo e de cuidado, afirmar
e, com isso, levando tais objetos internalizados a jogarem uma nosso desamparo, um desamparo reativo a toda colonização.
sombra sobre o Eu, paralisando-o através de autorreprimen- Um desamparo que é condição inicial da verdadeira criação, pois
das ("como deixei o objeto ser perdido?") ou de reversões do é afirmação de um desabamento que nos joga para fora das for-
amor pelo objeto em ódio pelo mesmo. Nos dois casos, temos mas de vida que se impuseram a nós de maneira hegemônica.
apenas fixação e, no máximo, ressentimento. Nesse sentido, lembremos de um ponto central. Do ponto
Ora, é certo que o poder age em nós utilizando-se dessa de vista da governabilidade atual, uma das estratégias maiores
lógica da melancolia.' Ele gere a experiência da fixação em um de gestão da paralisia social é a dissociação entre economia
objeto perdido, impede que o luto seja feito, alimenta nossas e política. Ela visa alimentar essa ilusão de impotência que
dinâmicas de ressentimento e a crença em nossa própria im- nos faz acreditar que as decisões a respeito de nossas vidas
potência, pois os modos de coerção do poder não são apenas são muito complexas para serem geridas por nós mesmos. Tal
externos e físicos. Eles são principalmente psíquicos. Trata- dissociação parte da defesa de que decisões econômicas não
-se, sobretudo, de paralisar a imaginação, levar sujeitos a des- poderiam se submeter ao desejo político da mesma forma que
confiarem de sua própria força, aderindo ao poder não por a razão não poderia se submeter aos interesses e crenças. Ao
convicção, mas por mera impotência. Uma experiência de menos é isso que gostariam de nos levar a acreditar. Assim,
impotência que deixa sujeitos vulneráveis a figuras de autori- no que chamamos atualmente de "democracia", as instâncias
dade que prometem cuidado e amparo, que rompe, por isso, econômicas exigem "autonomia", ou seja, exigem poder operar
toda instauração possível de sujeitos políticos. Pois, lá onde há a partir de sua própria lógica. O que significa: operar a partir
demanda de amparo, nunca há política, há apenas a reiteração dos interesses de seus próprios atores, como se estivéssemos
de estruturas de poder já em operação que encontram, dessa a lidar com um império no interior do império. É assim, sob a
forma, uma nova chance de perpetuação. capa de um discurso tecnocrata, que assistimos à reedição de
processos de acumulação primitiva, de concentração, de pau-
perização de camadas cada vez mais extensas da população
1 Para uma análise das relações entre melancolia e poder, ver: Butler, Judith.
e de precarização absoluta que visam criar um nível de inse-
The Psychic Life af Pawer: Thearies in Subjectian. Stanford: Stanford University
Press, 1996.
gurança capaz de deixar todo e qualquer sujeito inadaptado à

122 123
ordem econômica no limiar da morte social. Uma verdadeira porque opera com a corrupção do Estado, com a opacidade
reedição bancária do poder soberano de vida e morte. das decisões, com a sabotagem contínua da soberania popular.
Na verdade, temos aqui uma guerra civil contra setores Ela só pode ser superada através da instauração de uma ver-
pauperizados, mas guerra travestida de racionalidade eco- dadeira democracia direta, algo que ainda não conhecemos.
nômica, de "remédio amargo, porém necessário". E há de se A democracia real é o melhor remédio contra as juntas finan-
perceber a recorrência estratégica de um discurso de infan- ceiras que procuram governar nossas vidas e nos acostumar
tilização da crítica, último capítulo de um autoritarismo que à impotência.
só pode se impor através da invisibilidade de toda oposição Insistamos no ponto que a esquerda do final do século xx
efetiva. Pois quem critica tal racionalidade só poderia ser como fez questão de esquecer, a saber, que a soberania popular não
uma criança que crê na onipotência do pensamento, incapaz se representa. Um povo livre nunca delega sua soberania para
de lidar com o princípio de realidade que ensina que só posso quem quer que seja. Ele a conserva sempre junto de si. Passar
gastar o que ganho, criança que vive em um mundo de fanta- sua soberania para outro é perdê-Ia. É como passar minha von-
sias, em vez de encarar a virtude moral da austeridade. tade a outro e esperar que a vontade de outro tenha alguma for-
Nunca a economia apareceu de forma tão evidente como ma de identidade absoluta com a minha vontade. Deputados
aquilo que ela sempre foi: um modo de gestão social, modo de e presidentes não são "representantes" do povo: no máximo
organização disciplinar das minhas vontades, do meu tempo, são seus "comissários", como dizia Jean-Jacques Rousseau.
das minhas atividades e cuja força não vem do que ela seria Por isso, uma verdadeira democracia deveria ter, ao lado dos
capaz de realizar, mas do medo que é capaz de gerir. Atual- poderes Executivo e Legislativo, a figura da assembleia popular
mente, o discurso econômico é o principal gestor de nossa a ratificar leis ligadas a orçamentos, reformas constitucionais,
melancolia social. situações de emergência, guerras, assim como apor seu aceite
ou sua recusa a tudo aquilo que uma minoria qualificada da
população percebe como objeto de discussão em assembleia.
UMA SOCIEDADE DESCONTROLADA Ela deve ainda ser mais do que um poder de ratificação ou des-
tituição. As estruturas de assembleia devem ser um poder de
Contra isso, a esquerda deve compreender que o horizonte deliberação, como eu gostaria de mostrar mais à frente. O povo
de transformações econômicas só pode se ampliar a partir do deve ter as estruturas institucionais que lhe permitam conti-
momento em que garantirmos uma esfera de reinvenção po- nuamente se defender de quem procura lhe usurpar o poder.
lítica. A economia que conhecemos hoje só pode prosperar Ele deve se expressar através do grau zero da representação.

124 125
Na verdade, essa ideia implica insistir que o Estado deve ao mesmo tempo. Quanto mais representações diversas,
deixar de ser um espaço de deliberação política para ser um mais plural a sociedade. No entanto, por mais diversas que
mero espaço de implementação de deliberações que ocorrem tais representações sejam, elas devem partilhar algumas coi-
em seu exterior. Tais deliberações políticas deixam de se dar sas. Pois a representação tem suas regras, tem seus modos de
no interior do Estado e de seu corpo de gestão para se darem contagem, tem sua gramática, tem seus acordos. Aceitar sua
em assembleia popular. Insistiria nesse ponto porque nenhum gramática significa aceitar como as lutas se darão e em qual
programa de esquerda digno desse nome pode retirar de seu espaço, como os conflitos serão resolvidos. Nesse sentido,
eixo central o fim da representação política. Acreditar que po- existir politicamente é, ao menos para tal forma de pensar,
demos "governar" respeitando os marcos institucionais da go- aceitar se submeter a essas regras, a esses modos de conta-
vernabilidade atual é a pior de todas as ilusões. A "democracia" gem, gramáticas e acordos. A essa submissão chamamos nor-
atual é ingovernável, a não ser através da violência policial e malmente "democracia".
da anestesia cultural. Mas o que aconteceria se abandonássemos a noção de
Insistamos mais nesse ponto. Uma das ideias fundamen- representação? Não são poucos os que clamam que isso ge-
tais da política moderna é a noção de representação. Apren- raria o caos completo, a tirania, a desordem e todas as figuras
demos a compreender o espaço político como um espaço imagináveis da catástrofe. Um pouco como esses cartógrafos
de conflitos organizado a partir de uma dinâmica específica de medievais que desenhavam o mundo até certo ponto e depois
constituição de atores. Essa dinâmica estaria necessariamente dele colocavam monstros e abismos. Maneira de levar os na-
ligada aos processos de representação. Assim, só poderiam vegadores a não querer ir mais longe.
participar do campo de conflitos políticos aqueles que se sub- No entanto, a representação é hoje um arcaísmo político
meteram à representação, ou seja, aqueles que representam que visa apenas nos afastar de uma democracia real. Na verda-
algo, que falam em nome de um "lugar" que representam, de, quem defende a representação, seja a direita, seja a esquer-
seja esse "lugar" um grupo, um setor de interesses, um parti- da, encontra nela um bom álibi para esconder seus desejos de
do, uma associação. Em suma, o pressuposto central aqui é: controle, para filtrar a sociedade construindo uma imagem da
uma multiplicidade não se apresenta de forma imediata, ela emergência popular mais fácil de controlar. Pois, definindo as
só pode existir como algo representado. condições de representação, sou capaz de controlar a fronteira
Várias consequências se seguem daí. Por exemplo, dentro entre a existência e a inexistência política. Mas a verdadeira
dessa visão, uma sociedade plural serià aquela que permiti- tarefa política hoje não é consolidar mecanismos de controle.
ria a emergência de vários representantes e representações É criar uma sociedade descontrolada.

126 127
Pensemos um pouco a respeito de dois pontos. Primeiro, ocorrer. Além do que, a respeito da "ignorância popular", há
temos atualmente todas as condições técnicas para criar uma de se lembrar o que disse Espinosa:
sociedade de deliberação contínua baseada em uma democra-
cia digital. Em sociedades que têm nível quase total de conexão Não é de se admirar que não exista na plebe nenhuma verdade
virtual, não há mais dificuldades técnicas em imaginar proces- ou juízo, quando os principais assuntos de Estado são trata-
sos decididos através de uma espécie de ágora virtual. Dessa dos nas suas costas e ela não faz conjecturas senão a partir
forma, o Estado pode paulatinamente deixar de ser um Estado das poucas coisas que não podem ser escondidas. Suspender
cuja função é a deliberação para ser um cuja função central o juízo é, com efeito, uma virtude rara. Querer, portanto,
serão o reconhecimento e a implementação de processos de- tratar de tudo nas costas dos cidadãos e que eles não façam
cisórios que se dão no seu exterior. No fundo, algo já acontece sobre isso juízos errados e interpretem tudo mal é o cúmulo
dessa maneira no pensamento liberal, mesmo que de maneira da estupidez."
velada. No entanto, a exterioridade do Estado que delibera eo
obriga a implementar suas decisões é o mercado: uma instân- Esses que a democracia tecnocrata vê como incapazes de
cia antipolítica, anti-igualitária e organizada a partir da lógica decidir "questões técnicas" são os que têm a inteligência prática
da concentração e do monopólio. Em uma verdadeira demo- necessária para as decisões corretas. Não por acaso, na "demo-
cracia, tal exterioridade é recuperada pela soberania popular cracia" atual as decisões sobre políticas de saúde nunca consi-
direta. Pela soberania dos que não existem apenas sob a con- deram a inteligência prática daqueles que estão efetivamente
dição de proprietários. envolvidos nos processos cotidianos (como os enfermeiros,
Quando falamos isso, sempre há os que dizem: mas como médicos e usuários constantes). As políticas educacionais nun-
passar decisões técnicas sobre orçamento, gastos etc. para um ca são decididas levando em conta professores, estudantes e
povo despreparado e desinteressado? Como se nossos políti- aqueles que podem saber o que realmente funciona ou não.
cos fossem a imagem mais acabada do preparo e do conheci- Não há nada de democracia em um sistema dessa natureza.
mento. No entanto, vale observar que o desinteresse popular Por outro lado, lembremos como durante um bom tem-
é diretamente proporcional à consciência da irrelevância de po houve um embate entre dois modelos de democracia: um
sua opinião. Ou seja, desinteresso-me porque sei que, no fun- baseado no sufrágio universal e outro baseado no acaso, quer
do, minha opinião não conta, que nada vai mudar. Quando
percebo que estou de fato investido de poder de decisão e in-
2 Espinosa, Baruch de. Tratado político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009,
fluência, um processo de transformação subjetiva começa a pp.80-1.

128 129

rt
dizer, baseado na escolha de cidadãs e cidadãos ao acaso para Isso exige uma outra forma de organização da produção que
desempenhar funções públicas. Esse segundo modelo era só pode emergir quando a deliberação política voltar às mãos
muito mais imanente do que o primeiro. O que significaria, da imanência da soberania popular. Seria estéril e vão pensar
por exemplo, se os membros do parlamento, ao menos uma que a imaginação social necessária para tanto estará disponível
parte deles, fossem escolhidos ao acaso dentre a generalidade a nós antes da efetivação de nosso desejo de reinstauração da
de cidadãs e cidadãos brasileiros, evitando com isso a consti- vida política. Tal imaginação é uma consequência da transfor-
tuição de uma casta profissional de políticos que acabarão por mação política, e não sua causa.
pensar apenas em sua própria sobrevivência? Muitos dizem Por outro lado, o Estado deve garantir processos de desins-
que, antes, seria necessário "educar o povo". Como se o povo titucionalização resultantes do retraimento do direito em re-
real ainda não existisse, como se fosse necessário criá-lo. Mas lação à vida. Uma sociedade realmente democrática não é uma
melhor seria se perguntar quem então educará os educadores, sociedade na qual todas as suas possibilidades estão já legisladas
como já se perguntava Marx em seu tempo, diante de tais ím- e previstas sob a forma do direito. Uma sociedade realmente
petos pedagógicos. democrática tende à abolição do direito prescritivo, para que
Notemos que, nesse contexto, governar não pode aparecer as múltiplas formas de constituição da experiência social, de
mais como dirigir, muito menos operar na "governabilidade" produção de modos de existência, possam se dar de forma plás-
que nos é imposta como a única possível. Governar aparece tica e imprevista. Mas para que a abolição do direito prescritivo
como uma forma de garantir as condições para que os sujeitos não seja um convite ao fortalecimento da espoliação, o Estado
se dirijam a si mesmos.' Para tanto, o Estado deve passar por deve acompanhar tal desinstitucionalização das suas estruturas
uma mutação. Ele deve tender a uma forte regulação dos pro- biopolíticas por uma forte regulação das relações econômicas,
cessos econômicos até a abolição da sociedade do trabalho, tendo em vista a garantia da igualdade e da liberdade social. Uma
sociedade que submete a atividade humana ao mero processo sociedade democrática é uma sociedade na qual as formas de
de valorização do valor, pois os processos regulatórios não laços familiares, afetivos, modos de existência e determinação
devem visar apenas à limitação da concentração e das estru- são completamente plásticos, enquanto as relações econômicas
turas de monopólio. Eles devem liberar a atividade humana da são profundamente reguladas até que a atividade humana possa
sua colonização pelas formas do trabalho produtor de valor. se liberar de sua condição atual de trabalho como produção do
valor. Nessa sociedade, o Estado não prescreve, ele reconhece o
que a sociedade produz de forma soberana.
3 Note-se que se trata aqui de sujeitos, não de indivíduos. Para essa distinção,
remeto a Safatle, Vladimir. O circuito dos afetos, op. cito

130 131
NÃO MAIS CERTAS PERGUNTAS pelo igualitarismo radical. É tendo isso em vista que a política
se recusa a ser a mera prática degradada de ajustes diante das
Neste ponto, não é difícil ouvir o desejo de perguntas como: impossibilidades do presente. Como disse Adorno, e isto vale
"Mas o que fazer?". Sim, pois tudo o que foi dito se refere a para a política, "a dialética se corrompe em sofística quando
como decisões devem ser tomadas, não ao que fazer. Este livro se fixa pragmaticamente no passo mais próximo". Na verdade,
poderia então terminar com uma espécie de programa econô- e isto não podemos nunca esquecer, a política é a crença im-
mico que visasse mostrar a falácia do velho mantra neoliberal provável e aparentemente louca de podermos ser outros, viver
de que não há saída possível a não ser através de nosso sacri- de outra forma. Nada de realmente grande no mundo foi feito
fício no altar da espoliação final. Terminaríamos discutindo sem essa paixão. Há de se deixar para trás o culto da finitude e
como, por exemplo, os números do rombo da Previdência são não temer o que é desmedido em nós.
majorados, como seria possível conservá-Ia através de outras Nada da força concreta da política retornará a nossas vidas
políticas, como a justiça tributária que impõe "sacrifícios" a se não formos capazes de escutar a pressão por outros modos
quem pode pagar (através de impostos sobre grandes fortunas, de existência. Talvez a boa questão comece por tentar enten-
sobre lucros e dividendos, sobre herança etc.) ou a auditoria der por que perdemos a capacidade de escutar tais pressões,
e a moratória do pagamento dos serviços da dívida pública. o que nos faz achar atualmente que a única forma possível de
Pois todas as respostas a perguntas do tipo "o que fazer?" são existência é essa que nos oprime. Ou seja, a boa questão não
reflexões estratégicas que avaliam contextos locais e imediatos. é "o que fazer?", mas "o que aconteceu com nossa imaginação
Tais reflexões, sem dúvida, têm sua importância. Mas há política para que perguntemos desesperadamente a outros so-
outra dimensão do problema que fica normalmente intocada, bre o que fazer?". Por isso, se me permitem, a respeito dessas
talvez a mais relevante, pois a política não é apenas a abertura questões, como dizia Bartleby, eu preferia não. Sim, eu preferia
a alternativas produzidas por pensamentos estratégicos imer- não. Que um poeta fale então em nosso lugar:
sos na análise de situações que exigem ações e reações. Ela é
também a insistência em coordenar ações a partir da pressão Você diz:
por outros modos de existência. Toda traição política começa Nossa causa vai mal.
com o esquecimento de tal insistência, com sua desqualifica- A escuridão aumenta. As forças diminuem.
ção como mera "abstração" ou "utopia". No entanto, essa é a Agora, depois que trabalhamos por tanto tempo
dimensão mais concreta da política, pois é daí que ela tira sua Estamos em situação pior que no início.
força para continuar a ser "política", com seu impulso de luta

132 133
Mas o inimigo está aí, mais forte do que nunca.
Sua força parece ter crescido. Ficou com aparência de invencível.
Mas nós cometemos erros, não há como negar.
Nosso número se reduz. Nossas palavras de ordem
Estão em desordem. O inimigo
Distorceu muitas de nossas palavras
Até ficarem irreconhecíveis.

Daquilo que dissemos, o que é agora falso:


Tudo ou alguma coisa? Anexos
Com quem contamos ainda? Somos o que restou, lançados fora
Da corrente viva? Ficaremos para trás
Por ninguém compreendidos e a ninguém compreendendo?
Precisamos ter sorte?

Isto você pergunta. Não espere


Nenhuma resposta senão a sua."

Essa resposta existe, ela só espera sua fala.

4 Brecht, Bertolt. "Não espere nenhuma resposta". In: Poemas 1913-1956. Seleção
e tradução de: Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2003.

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Sem medo

Não haverá mais política brasileira como conhecemos até ago-


ra. Daqui para a frente, ela irá em direção aos extremos. Uma
sociedade, quando passa por mobilizações populares como
as que vimos nas últimas semanas, fica para sempre marcada,
mesmo que pareça, durante certo tempo, retomar aos trilhos
normais. Como uma ferida que nunca cicatriza completamen-
te, os gritos populares voltam a todo momento fragilizando
os acordos políticos conquistados.
Nesse sentido, devemos nos preparar para um embate de
outra natureza. Quando a política popular ganha as ruas em uma
reação em cadeia, todo o espectro de demandas sobe à cena. Uma
contradição de exigências que pode dar a impressão de estarmos
em um buraco negro da política. No entanto, não há que temê-Ia,
pois tal contradição é a primeira manifestação de um novo con-
flito de ideias que servirá, a partir de agora, de eixo de combate.
Por isso, a política brasileira não se dará mais no interior de par-
tidos que há muito perderam sua função de caixa de ressonância
dos embates sociais. Ela será decidida nas ruas.
Foi assim em países como Tunísia e Egito. As manifesta-
ções foram engendradas por jovens estudantes esquerdistas

137
e sindicatos com demandas muito parecidas com as nossas: da "nossa terra". É verdade. Não temos problemas em nos
democracia direta, reconstrução de serviços públicos gratui- declararmos sem nação, sem pátria, sem identidade, porque
tos e de qualidade, Estado de Bem-Estar Social, luta contra nos apegamos a um desejo de igualdade que desconhece fron-
corrupção e corruptores. No entanto, rapidamente o des- teiras. Mas, e isto eles verão, nosso desejo é mais forte. Agora
contentamento social mobilizou também salafistas e setores não é hora de medo. Agora é hora de luta.'
muçulmanos nacionalistas-conservadores de toda ordem. Por
serem mais organizados, eles conseguiram se impor em um
primeiro momento, dando a impressão de que os frutos das
manifestações foram parar no colo errado.
De fato, há uma luta em torno do rumo da maior mobi-
lização popular recente do país. Por exemplo, setores conser-
vadores da imprensa nacional, amigos até a hora da morte do
imaculado são Demóstenes Torres, tentam impor sua velha
pauta de sempre, a saber, indignação seletiva contra corrup-
tos, mas silêncio tumular contra os corruptores (empreiteiras,
bancos e empresários). Mas que os que lutaram durante todos
esses anos por universidades mais democráticas, mais impos-
tos para os ricos e mais serviços sociais para os pobres, direitos
iguais aos homossexuais e causas ecológicas radicais recolham
suas bandeiras, eis algo que a história nunca perdoará. Não
haverá perdão para os que baixam os braços no momento em
que a luta começa.
De fato, agora é hora de compreender que o verdadeiro
embate começou e será longo. Mas nada disso poderia ser di-
ferente. Um dia teríamos que nos confrontar duramente com
aqueles que têm o despudor de se chamarem "nacionalistas"
em uma época onde a "nação" só significa fronteira, limite, ex- 1 Texto originalmente publicado como: "Política não se dará mais dentro dos
pulsão da diferença e defesa dos bons valores preconceituosos partidos, mas nas ruas". Folha de S.Paulo, 22/6/2013, Cotidiano, p. 02.

139

________________________________________
~.i _
Nós acusamos políticas oligárquicas e palacianas só poderiam redundar em
um golpe parlamentar denunciado no mundo inteiro. Por isso,
eles temem toda possibilidade de eleições gerais. Eles gover-
narão com a violência policial em uma mão e com a cartilha
fracassada das políticas de "austeridade" na outra. Políticas que
nunca seriam referendadas em uma eleição. Com tais persona-
gens no poder, não há mais razão alguma para chamar o que
temos em nosso país de "democracia".
Diante da gravidade da situação nacional e da miséria das al- Nós acusamos o governo Dilma de ter colocado o Brasil
ternativas que se apresentam: na maior crise política de sua história. A sequência de es-
Nós acusamos o governo interino que agora se inicia de cândalos de corrupção não foi uma invenção da imprensa,
já nascer morto. Nunca na história da República brasileira um mas uma prática normal de governo. De nada adianta dizer
governo começou com tanta ilegitimidade e contestação po- que essa prática sempre foi normal, pois a própria existência
pular. Se diante de Collor o procedimento de impeachment foi da esquerda brasileira esteve vinculada à possibilidade de
um momento de reunificação nacional contra um presidente expulsar os interesses privados da esfera do bem comum,
rejeitado por todos, diante do governo Dilma o impeachment moralizando as instituições públicas. Que os setores da es-
foi o momento em que tivemos de construir um muro a sepa- querda brasileira no governo façam sua auto crítica implacá-
rar a Esplanada dos Ministérios em dois. Esse muro não cairá, vel. Por outro lado, a busca de uma conciliação impossível
ele se aprofundará cada vez mais. Aqueles que apoiaram Dil- apenas levou o governo a se descaracterizar por completo,
ma e aqueles que, mesmo não a apoiando, compreenderam a abraçar o que ele agora denuncia, distanciando-o de seus
muito bem o oportunismo de uma classe política à procura próprios eleitores. O caráter errático deste governo foi a mão
de instrumentalizar a revolta popular contra a corrupção para que cavou sua própria sepultura. Que essa errância sirva de
sua própria sobrevivência não voltarão para casa. Este será o lição à esquerda como um todo.
governo da crise permanente. Nós acusamos aqueles que nunca quiseram encarar o
Nós acusamos os representantes deste governo interino dever de acertar contas com o passado ditatorial brasileiro e
de serem personagens de outro tempo, zumbis de um passado afastar da vida pública os que apoiaram a ditadura como res-
que teima em não morrer. Eles não são a solução da crise po- ponsáveis diretos pela instauração desta crise. A crise atual é a
lítica, mas são a própria crise política no poder. Suas práticas prova maior do fracasso da Nova República. Que um candidato

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fascista (e aqui o termo é completamente adequado) como política que este país viveu nos últimos tempos, que lembre
Jair Bolsonaro tenha hoje 20% das intenções de voto entre os que o Brasil sempre surpreendeu e surpreenderá. Este não é o
eleitores com renda acima de cinco salários mínimos mostra país de Temer, Bolsonaro, Cunha, Renan, Malafaia, Alckmin.
quão ilusória foi nossa "conciliação nacional" pós-ditadura. Este é o país de Zumbi, de Prestes, Pagu, Lamarca, Francisco
O fato de nossas cadeias não abrigarem nenhum torturador [ulião, Darcy Ribeiro, Celso Furtado e, principalmente, nosso.
deveria servir de claro sinal de alerta. Tal fato apenas serviu Há um corpo político novo que emergirá quando a oligarquia
para preservar os setores da população que agora abraçam um e sua claque menos esperarem.'
fascista caricato e saem às ruas com palavras de ordem dignas
da Guerra Fria. Por isso, a cada dia que passa, percebe-se como
esse setor da população se julga autorizado a cometer novas
violências de toda ordem. Isso está apenas começando.
Nós acusamos setores hegemônicos da imprensa de regre-
direm a um estágio de parcialidade há muito não visto no país.
Diante de uma situação de divisão nacional, não cabe à imprensa
incitar manifestações de um lado e esconder as manifestações de
outro, transformar-se em tribunal midiático e parcial, julgando,
destruindo moralmente alguns acusados e preservando outros,
deixando mesmo de se interessar por vários escândalos quando
estes não atingem diretamente o governo. Essa postura apenas
servirá para explodir ainda mais os antagonismos e para reduzir
a imprensa à condição de partido político.
Neste momento em que alguns se inclinam a uma posição
melancólica diante dos descaminhos do país, há de se lem-
brar que podemos sempre falar em nome da primeira pessoa
do plural, e esta será nossa maior força. Faz parte da lógica do
poder produzir melancolia, nos levar a acreditar em nossa
fraqueza e isolamento. Mas há muitos que foram, são e serão 1 Texto originalmente publicado um dia após o golpe parlamentar em: Folha
como nós. Quem chorou diante dos momentos de miséria de S.Paulo, 13/5/2016, Ilustrada, p. c8.

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