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combinação entre ceticismo cognitivo elevado e quietude política que con­

duz à incapacidade. Na verdade, a Guerra do Golfo revelou assimetrias essen­


ciais no modo como a falta de profundidade do pós-moderno é sentida. Tais
assimetrias não se limitam somente à experiência da televisão e da guerra,
expandindo-se em direção aos combatentes e espectadores envolvidos em
lados opostos da guerra. Alguns grupos assistiram à guerra de uma distância
segura, ao passo que outros a experimentaram ao lado da morte, da mutila­
ção, da doença e da fome. A tecnologia tanto melhorou a qualidade da visão
e da audição, quanto as obliterou. Como observa Jonathan Schell, os ame­ 4. Tropos do império
ricanos travaram a guerra "em três dimensões", ao passo que o inimigo, "a
exemplo dos participantes de certos jogos geométricos, foi encurralado em
duas dimensões[...]. Nós matamos e eles morrem, como se titãs estivessem
combatendo seres humanos".85
Se o pós-modernismo disseminou pelo globo a sensação telemática da
mídia do Primeiro Mundo, mal conseguiu abalar as relações de poder que No universo do discurso colonialista, metáforas, tropos e motivos alegóricos
marginalizam, desvalorizam, e constantemente massacram povos e culturas exerceram um papel fundamental na "figuração• da superioridade européia.
diferentes.86 Radicalmente a-histórica, a explicação de Baudrillard não consi­ Segundo Hayden White, o trapo ou emprego das palavras em sentido figu ­
dera que o tempo é palimpséstico; vivemos em muitas épocas, e não apenas na rado é "a alma do discurso� mecanismo sem o qual o discurso "não pode fazer
"nova" era da propaganda e da mídia. No caso da Guerra do Golfo, tecnologia o seu trabalho ou atingir seus objetivos� 1 Embora os tropas tenham algo de
de última geração foi posta a serviço de idéias extraídas de fontes milenares, repressivo, uma vez que são mecanismos de defesa contra o sentido literal,
das Cruzadas cristãs contra os mulçumanos às "guerras selvagens" contra os eles também representam vias de contestação, pois cada um deles está sujeito
índios. Na Guerra do Golfo, o extermínio em massa e a descontinuidade ra­ à perpetuação, à rejeição ou à subversão.2 Vejamos, por exemplo, o conceito
dical entre os vivos e os mortos revelam as limitações de um mundo visto de raça, o qual pode ser compreendido não tanto como uma realidade, mas
somente através do prisma do simulacro. como um tropo. Como Henry Louis Gates Jr. observou, esse conceito seria um
tropo de diferença. A parte a associação de "raça• com metáforas de pedigree
85 Ver Jonathan Schell, "Modem Might, Ancient Arrogance, Newsday, 12 fev. 1991, p. 86. e criação de cavalos, a palavra também é empregada, de modo figurado, em
86 Para ler mais sobre a Guerra do Golfo, ver Robert Stam, uMobilizing Fictions: Toe GulfWar, uma espécie de exagero esquemático: as pessoas não são literalmente pretas,
the Media, and the Recruitment of the Spectator� Public Culture, v. 4, n. 2, primavera de 1992. vermelhas, brancas ou amarelas mas exibem, a bem da verdade, um amplo
Esta passagem foi escrita antes da publicação da obra Uncritical Theory: Postmodernism, Intel­
lectuals, and the Gulf War, Amherst, University of Massachusetts Press, 1992, de Christopher • Hayden White, Tropia of Discourse, Baltimore, Maryland, Johns Hopkins University Pttss,
Norris, que aborda o assunto de modo similar, embora não idêntico. Estamos de pleno acordo 1978, p. 2.
com a critica de Norris em relação à "cumplicidade ideológica que existe entre[...) a doutrina 1 Sobre a interpretação do caráter repressivo dos tropos. ver Harold Bloom, A Map ofMisrta­
anti-realista extrema ou irracionalista e a crise de vigor moral e politico daqueles cujas vozes ding, Nova York. Oxford Univcrsity Press, 1975, p. 91. [Em portuguls: Um mapa da deskitura,
198 deveriam ter-se levantando contra as ações executadas em seus próprios nomes� (p. 27). 199
trad. de Thdma Mtdid Nóbrega. Rio de Janeiro, Imago, 1995.j
espectro de tons nuançados. Isso, no entanto, não impediu Hollywood d através do qual o poderoso mito da "cadeia biológica" tomou-se uma questão
e
literalmente pintar as atrizes (Sarita Montiel, por exemplo, em Renegando 0 racial levou os cientistas à busca do "elo perdido" entre animais superiores, su­
meu sangue [Run of the Arrow], 1957) com maquiagem de tons avermelhados Postame nte os macacos, e seres humanos inferiores, a saber, os negros. Final­
4
,
conforme as convenções raciais. Ainda que inconfundível, a noção de cores mente, a metáfora da "sobrevivência do mais forte", criada pelo darwinismo
é - em si mesma - um tropo; na verdade, algumas pessoas "negras" são mais social, transferiu uma noção da área da zoologia para o universo do gênero e
claras que algumas pessoas "brancas': Um tropo correlato é a noção de "'des­ da raça. De modo sub-reptício, o tropa que animaliza tudo e todos continua
cendência racial sangüínea", que tem servido historicamente para significar a assombrar o discurso da mídia em relação aos pobres e sem teto, em sua
filiação religiosa ("sangue judeu"), classe social ("sangue azul"), nacionalidade maioria pessoas de cor. "Inadequadas" à sobrevivência, tais pessoas seriam
("sangue alemão") e raça ("sangue negro"). Ainda assim, a natureza figurada da merecedoras da vida miserável dos "pobres, desvalidos e desgraçados".
noção de "descendência racial sangüínea" não impediu o Exército americano O processo de animalização faz parte do mecanismo mais amplo e di­
de, durante a Segunda Guerra Mundial, separar plasma de sangue "negro" do fuso da naturalização, ou seja, a redução do elemento cultural ao biológico,
plasma de sangue "branco': Preocupações com outros tipos de miscigenações, associando assim o colonizado a fatores vegetativos e instíntivos em vez de
com a troca de outros fluidos, foram transferidas para a esfera da "descendên­ associá-lo a aspectos culturais e intelectuais. "O Homem torna-se Homem
cia racial sangüínea" propriamente dita. Apesar de sua natureza quase fictícia, em oposição à Natureza", como observa James Snead, e "o Negro representa
tropas raciais desempenham papéis efetivamente reais no mundo. 0 Homem Natural em toda sua selvageria e rebeldia:'5 Os povos colonizados
Assim, operações de caráter tropológico formam um tipo de substrato são representados como corpos em vez de mentes. A decorrência lógica da
metafórico no interior do discurso imperial. Um tropa colonial essencial foi visão do mundo colonizado como a esfera da matéria-prima, em oposição ao
o da "animalização': Enraizado em uma tradição religiosa e filosófica que tra­ universo manufaturado e da atividade mental, é considerar o sujeito coloni­
çou fronteiras bem demarcadas entre o animal e o humano, esse tropo teve a zado sob a perspectiva da atividade física, em contraposição a uma possível
função de suprimir todas as características semelhantes ou relativas ao animal atividade mental. Os trapos coloniais e topoi do discurso colonial também
que porventura constituíssem o eu. Para Fanon, o discurso colonial sempre re­ apresentam especificidades regionais. Eles associam a América Latina, e espe­
corre ao bestiário. O discurso colonial/racista representa os colonizados como cialmente as mulheres latino-americanas, a epítetos verbais que evocam calor
bestas selvagens em virtude da íncapacidade desses sujeitos de controlarem tropical, violência e paixão. Desse modo, Lupe Velez toma-se "a mexicana que
sua libido, de se vestirem apropriadamente, de construírem habitações outras cospe fogo': Acquanetta é o "vulcão venezuelano': Olga San Juan é o "pote de
que não cabanas de barro parecidas com ninhos e tocas. O discurso colonial pimenta porto-riquenha" e Maria Antonieta Pons é o "furacão cubano". Pro­
estabeleceu um elo entre "índivíduos selvagens e animais silvestres': ambos téico e múltiplo, o discurso colonial adota retóricas diversas e até contraditó­
criaturas ferozes vagando em "terras não-habitadas". O ex-presidente norte­ rias, que variam de acordo com a região, com o período histórico e com as
americano Andrew Jackson, por exemplo, incitou suas tropas a arrancarem os necessidades ideológicas do momento. Condena tanto o mundo árabe pelo
índios de suas "tocas" e matarem suas "mulheres e filhotes': 3 Os judeus, por sua
4 Ver George L. Mosse, Toward the Final Solution: A History of European Racism, Londres,
vez, foram representados pela propaganda nazista como vermes. O processo
Dent,1978.
James Snead, -Repetition as a Figure of Black Culture� em Russell Ferguson, Martha Gever,
3 Citado em David E. Stannard, American Holocaust: Columbus and the Conquest of the New Trinh T. Minh-ha e Comei West (orgs.) Out there: Marginalization and Contemporary Cul­
100 World, Nova York, Oxford University Prcss, 1992. tures, Cambridge, Massachusetts, MIT Press, 1990. 101
excesso na indumentária (o véu), quanto o universo indígena pela economia
na vestimenta (a nudez). Se por um lado esse discurso colonial representa
0 continente africano como hipermasculino, excessivamente corporal e in­
suficientemente abstrato, a Ásia é representada como sonhadora, feminina
e demasiadamente abstrata. A África seria uma criança e a Ásia, um velho
franzino, ao passo que a Europa sempre mantém uma vantagem comparativa.
Tanto a Asia quanto a África são vistas como essencialmente deficientes, ao
passo que a Europa sempre permanece no ápice dessa hierarquia de valores.
Enquanto isso, o trapo da infantilízação representa os colonizados como
se corporificassem um estágio primitivo do progresso humano individual ou
do vasto desenvolvimento cultural. Na obra de Renan há menções à "eterna
infância das raças não passiveis de perfeição�6 Racistas científicos tentaram
•provar" que negros adultos eram, anatômica e intelectualmente, idênticos às
crianças brancas.7 O negro que entra em contato com os brancos, de acordo
com um romance belga de 1868, "perde seu caráter bárbaro, mantendo so­
mente as qualidades infantis dos habitantes da floresta�ª O costume racista de
chamar homens colonizados de "meninos� bem como o tique de fala que per­
mite à alta burguesia resvalar para um discurso infantilizado quando dialoga
com negros, é a marca lingüística dessa atitude. "Quem é o garoto ao piano?�
Bergman pergunta a Bogart em Casablanca (1942), referindo-se a Dooley
Wilson, um negro adulto. Shirley Temple, a menina que dá ordens ao adulto
Bill Robinson em A pequena rebelde (1he Littlest Rehei, 1935), transforma esse
tropo em mise-en-scêne cinematográfica. (Claudia, a personagem de Toni
Morrison no livro O olho mais azul, nutre um ódio especial por Shirley Tem­
pie porque ela havia dançado com Bojangles, um amigo muito querido, um
tio, um pai.) Para os índios, o tropa da infantilização assumiu uma forma esta­
tutária; seu caráter supostamente infantil os colocou sob "custódia do Estado�
Até 1988, os índios brasileiros, em virtude do seu estatuto legal como adoles-
Animalização erótica: Josephine Baker em A Vênus negra (Zou-Zou).

6 Ernst Renan, 1ht Futurt ofScience, Boston, Roberts Robens, 1891, p. 153.
7 Ver Stephen Jay Gould, The Mismeasurt ofMan, Nova York, W. W. Nonon, 1981, p. 40.
8 Citado em Jean Pieterse, White on Black: Images of Africa and Blaclcs in Western Popular
Culture, New Haven, CoMecticut, Yale University Press, 1991, p. 89. 203
gar dos pais), supunha a necessidade da tutela branca. Termos como "subde­
senvolvimento� sinônimos diplomáticos para "infantil� projetam o tropo da
illfantilização para uma escala global. O Terceiro Mundo, um bebê - ainda
que o resultado de mil anos de civilização-, não consegue ainda controlar seu
corpo/sua psique e precisa, portanto, da mão firme de sociedades mais ªadul­
tas" e "avançadas" para conduzi-lo em direção aos tempos modernos.9
Permeando muitos desses tropos, existem binarismos reforçadores tais
como ordem/caos, atividade/passividade, estagnação/movimento. Tropos es­
paciais como, por exemplo, alto/baixo representam hierarquias simbólicas
que abarcam classes sociais (as "classes mais baixas"), estéticas ("alta" cultura),
o corpo humano (a "parte inferior do corpo"), a zoologia (espécies "inferio­
res") e a mente (as faculdades mais "elevadas" e "inferiores"). Um outro tropo
espacial apresenta a vida dentro dos limites europeus como central e a vida
fora desses limites como periférica. Na verdade, existem centros múltiplos no
mundo e a vida é considerada central em todos os lugares. Noções de profun­
Vegetalização exótica: Carmen Miranda como deusa da fertilidade em Entre o louro e o
moreno (1943). didade e superficialidade representam a cultura européia como profunda, ao
passo que a cultura não-européia é retratada como "superficial� seja devido à
centes, não podiam representar a si próprios em filmes. Foi somente a partir sua natureza excessivamente alegre ou devido à dura batalha pela sobrevivên­
dessa data que a nova Constituição brasileira reconheceu os povos indígenas cia na qual se encontra permanentemente envolvida. Finalmente, o tropo da
como cidadãos adultos. luz/escuridão - implícito no ideal de claridade racional defendido pelo Ilu­
O tropo da infantilização também pressupõe a imaturidade política dos minismo - vislumbra os mundos não-europeus como menos luminosos, re­
povos colonizados ou anteriormente colonizados, vistos como Calibans - vi­ sultando disso a teoria que considera a Af rica como o "continente escuro" e os
timas daquilo que Octave Mannoni chamou de "Complexo de Próspero", ou asiáticos como "povos do crepúsculo� Antigos maniqueismos religiosos, dife­
seja, uma dependência congênita em relação à liderança dos brancos euro­ renciadores do bem do mal, transformaram-se em binarismos filosóficos que
peus. A sessão do congresso conduzida por negros em O nascimento de uma opõem a racionalidade/luz à irracionalidade/escuridão. O olhar e a visão são
nação (The Birth of a Nation, 1915), na qual legisladores negros descalços mas­ atribuídos à Europa, enquanto ao "outro" cabe viver na "obscuridade� igno-
tigavam coxas de galinha ruidosamente e bebiam uísque em grandes goles,
projeta uma imagem de imaturidade política dos negros. Ademais, o pedido 9 Carl Pletsch observou que, no universo da cosmologia do pós-guerra, as nações do Primeiro
dos brancos aos ativistas negros, defensores dos direitos humanos, para que Mundo eram vistas como as mais desenvolvidas uma vez que forjadas a partir do conheci­
mento cientifico e racional. As nações do Segundo Mundo eram consideradas desenvolvi­
estes fossem "pacientes"- ainda que seja racista de um modo menos cruel -,
das, ainda que prejudicadas pela ideologia socialista, e os países do Terceiro Mundo eram
tinha como premissa oculta a mesma idéia de que os negros eram desprovi­ tidos como em "processo de desenvolvimento� Ver Carl Pletsch, "The Three Worlds, or the
dos de maturidade suficiente para pleitear igualdade. A ideologia do princípio Division of Social Scientific Labor, circa 1950-1970� Comparative Studies in Society and His­
204 da progressão gradual paternalística, conhecida como in loco parentis (no lu- tory, v. 23, n. 4, 1981, pp. 565-90. 205
rante em relação ao conhecimento moral. Cor, pele, e até mesmo hierarquias descreveu "um país que ainda tem uma cabeça virgem, nunca violada, modifi­
cada ou ornamentada� E Crevecoeur relatou em uma carta: "Aqui a natureza
12
climáticas ganham importância, em uma lógica que privilegia não somente a
luz e o dia em detrimento da escuridão e da noite, mas também a pele clara recebe, em seu grande colo, um número cada vez maior de visitantes novos,
em detrimento da escura. De uma maneira um tanto quanto contraditória, propiciando-lhes alimento". 13 A exaltação precoce do Novo Mundo paradisíaco
não é o Mediterrâneo de céu claro, mas o frio e nublado Hemisfério Norte amalgamou-se, gradualmente, com a figura idealizada do pioneiro. A celebra­
que constitui o lugar da racionalidade e da moralidade, enquanto a selva e a ção do jardim - o clássico locus ameonus idolatrado por escritores europeus
floresta são representadas como lugares confusos de impulso violento e luxú­ - foi substituída pela reverência ao cultivador. A partir dessa importante in­
ria anárquica. E todos esses binarismos são mapeados em relação aos outros: clusão, a metáfora do jardim passou a evocar crescimento, aumento, cultivo
lógico/insano; puro/impuro; razoável/histérico; sadio/doentio. e trabalho agrícola,•� sugerindo, desse modo, que a terra anterior à expan­

Em resumo, o papel das metáforas, ainda que contraditório, é crucial na são em direção ao Oeste era vazia (do mesmo modo que o nativo era tabula
construção das hierarquias eurocêntricas. Neste trabalho daremos ênfase em rasa), não cultivada ou domesticada, desprovida de um proprietário legítimo,

uma constelação específica de tropos, ligados à questão do gênero, que rela­ a saber, de um europeu colonizador. 's De acordo com esse tópos mais abran­
cionam o colonizado às superficies erotizadas da "terra virgem� ao imaginário gente, tropos subliminares de gêneros tais como "a conquista da desolação"
n
projetado dos "continentes escuros� aos territórios exoticamente "encobertos� e a "fecundação da selva assumem ressonâncias heróicas de fertilização das
bem como às fantasias de estupro e resgate. terras improdutivas do Oeste. Como Said sugere em relação ao Oriente, a re­
presentação metafórica da terra (não-européia) esperando timidamente pelo
Adão na terra virgem toque do colonizador sugere que os continentes não-europeus iriam de fato
se beneficiar com a prática colonial.'6 O renascimento de um solo debilitado
n
A "missão civilizatória européia muitas vezes entrelaçou narrativas opostas,
u Sir Walter Raleigh, KDiscovery of Guiana� Citado em Susan Griffin, Woman and Nature:
ainda que relacionadas, a respeito da penetração ocidental em sedutoras pai­
1he Roaring lnside Her, Nova York, Harper and Row, 1978, p. 47. Ver também Louis Mon­
sagens virginais'º e da resistência à natureza libidinosa. Samuel Eliot Mori­ trose, KThe Work of Gender in the Discourse of Discoveryw, Representations, n. 33, inverno
son, por exemplo, em Admirai of the Ocean Sea (1942), reconta a conquista da de 1991 .
América pelos europeus em linguagem sexualizada: "Nenhum mortal jamais 13 St. John de Crevecoeur, Letters from an American Farmer, 1782. Citado em Henry Nash
Smith, Virgin Land: 1he American West as Symbol and Myth, Cambridge, Massachusetts,
terá esperança de recapturar o assombro, a maravilha, a alegria daqueles dias
Harvard University Press, 1950, p. 121.
de outubro de 1492 quando o Novo Mundo entregou, graciosamente, sua vir­
14 Ver Smith, Virgin Land. Em relação à ideologia expansionista norte-americana do século
gindade aos conquistadores castelhanos� 11 Analogamente, Sir Walter Raleigh x1x, ver Richard Slotltin, 1ht Fatal Environment: lhe Myth of tht Fronlier in lhe Age oflndus­
trialization. 1800-1890, Middletown, Connecticut, Wesleyan University Press, 1985.
10 Ver também a teoria da "feminização• do Oriente segundo Edward Said em sua obra Orien­ 15 Em 1978, quando um satélite nuclear russo saiu de sua órbita e caiu na Terra. afirmou-se
talism, Nova York, Vintage, 1978; em Francis Barker, Peter Hulme, Margaret Iversen e Diana que as centenas de pequenos pedaços nos quais ele se partira haviam caldo sobre um "solo
Loxley (orgs.) Europt and lts Othm, v. 1-1, Cokhester, University of Essex, 1985; e especial­ improdutivo não-habitado e coberto por gelo� Descobriu-se, mais tarde, que se tratava de
mente Peter Hulme, "Polytropic Man: Tropes of Sexuality and Mobility ín Early Colonial uma úea "não-habitada" por 26 comunidades de lndios das tribos Dene e Inuit, que vivem
Discourse• (v. 1) e Jose Rabasa, "Allegories of the Atlas• (v. 2). no local há 20 mil anos. O relato está em Jerry Mander, ln the Absence of lhe Sacred, San
n Samuel Eliot Morison, Admirai of lhe Ocean Sea, Boston, Little, Brown & Co., 1942, v. 1, Francisco, Sierra Club Books. 1992, p.99.
206 p.308. 16 Tanto no faroeste americano quanto nos filmes pioneiros israelenses o cinema repetiu > 207
evocou um processo quase divino de atribuição de vida e significado ex nihilo. como um sinal de posse ("América", em homenagem a Américo Vespúcio) ou
Instauraram-se, portanto, como que por obra de Prometeu, ordem no caos e como índice da perspectiva européia ("Oriente Médio", "Oriente Distante").
plenitude em meio à privação. Na verdade, o "complexo de Próspero" ocidental Nomes indigenas "impronunciáveis", usados para designar lugares "periféri­
tem como premissa o retrato do leste/sul como uma ilha de Caliban, um lugar cos" e seus habitantes, foram - com o advento do colonialismo - substituídos
de privações impostas que clama por transformações engendradas pelo oeste/ por nomes que passaram a distinguir tais lugares como propriedade colonial.
norte, como na produção fálica da vida a partir da costela de Adão. 17 Muitas vezes, essas novas designações eram degradantes ou resultavam de
O herói americano, como observa R. W Lewis, foi celebrado como o Adão identificações européias equivocadas. A província mexicana hoje chamada
anterior à queda, um Novo Homem emancipado da história (a saber, da his­ de Yucatán (expressão maia que significa "não sabemos do que vocês estão
tória européia), com todo o mundo e tempo à sua disposição. 18 O Adão ame­ falando") recebeu esse nome quando os espanhóis confundiram a reação de
ricano - o homem branco sem a Eva, solitário e fundamentalmente inocente, confusão e espanto dos habitantes locais com o nome do lugar. Os sioux, que
a contemplar o oeste-, tornou-se um juiz verbal com a prerrogativa divina de se autodenominam dakota ("aliados"), foram designados por meio de urna
poder nomear. Trata-se de uma narrativa que claramente entrelaça os discur­ condensação francesa da palavra ojibwa riadowe-is-iw ("cobra," "inimigo").
sos colonial e patriarcal. No Livro de Gênesis, a criação do mundo teve como Os navajo ("ladrões"), assim chamados pelos espanhóis, estão pleiteando re­
conseqüência o surgimento de Adão. Criado a partir da terra (em hebraico, conhecimento oficial como dineh ("o povo"), seu nome original.
adama), Adão deveria controlar a natureza. Como o poder da criação está A noção do Adão americano obliterou o fato de que já havia habitantes
intrinsecamente ligado à habilidade de nomear, Deus outorga a Adão autori­ no Novo Mundo quando os colonizadores chegaram. Estimativas cautelosas
dade para dar nomes como uma marca do seu poder. Assim, Eva foi "chamada sugerem o encontro de aproximadamente 75 milhões de nativos 19 com um co­
mulher [em hebraico, ichá] porque foi tomada do homem [em hebraico, ichr lonizador que mal havia despejado sua profunda bagagem cultural do Velho
Do mesmo modo, o poder de nomear desempenhou um papel fundamen­ Mundo. Nesse contexto, a idéia de "virgindade" - que se refletiu no nome das
tal na história colonial à medida que o descobridor dava nomes aos lugares "Ilhas Virgens" - deve ser compreendida em relação diacrítica com a metáfora
da "pátria-mãe" européia. Uma terra virgem está, supostamente, disponível
para defloração e fecundação, pois, sem dono, ela se torna propriedade de
> esse discurso. Ver Ella Shohat, lsraeli Cinema: East/We:st and the Politics ofReprestntation,
Austin, Univmity ofTexas Press, 1989, para informações sobre a discussão da representação seus "descobridores" e cultivadores. A "pureza" sugerida pelo termo mascara
da Palestina no cinema israelense como representação de gênero. a desapropriação de urna terra anteriormente cultivada e de seus recursos
17 Sobre a relação entre mulheres e as fronteiras americanas, ver Annette Kolodny, 1ht Lay o/ naturais. (No México, pirâmides gigantes como La Venta, por exemplo, foram
the Land: Metaphors as Exptrimce and History in Amencan Li/e and Lettus, Chapei Hill,
descobertas sob o que parecia ser uma floresta "virgem': Atualmente, vestígios
University of North Carolina Press, 1975; e 1he Land l,efore Her: Fantasy and Experience o/
de campos agrícolas têm aparecido em regiões que haviam sido consideradas
the American Frontiers, 1630-1860, Chapei Hill, University of North Carolina Press, 1984.
18 R. W Lewis, 1he American Adam: Innocence, Tragedy, and Tradition in lhe Nineteenth Cen­ como biosferas intactas.) 2° Foi muito vantajoso para os colonizadores repre-
tury, Chicago, University of Chicago Press, 1959. Curiosamente, Hans Blumenberg observa,
em relação a Francis Bacon, que a reavaliação do paraíso como objetivo histórico deveria 19 Ver Russell lhornton,American Indian Holocaust and Survival: A Population History since
ter prometido uma facilidade mágica. Para ele, o conhecimento da natuJeza está associado 1492, Norman, University of Oklalioma, 1987, pp. 22-5, para maiores informações sobre esti­
à definição da condição paradislaca como domínio verbal. Ver Blumenberg, 1he Legitimacy mativas populacionais.
of the Modern Age, traduzido para o inglês por Robert Wallace, Cambridge, Massachusetts, 20 Ver Carol Kaesuk Yoon, •Rain Forests Setn as Shaped by Humans•, New York Times, 27 jul.
208 1993, p. Cl, 209
MIT Press, 1983.
sentar urna terra fértil - na terminologia indígena, uma "mãe" ( em kuna, abia
ção O conquistador "escreverá o corpo do outro e entalhará nele a sua pró­
ayala, "terra adulta e fértil") - como metaforicamente virgem e "intacta" à es­
pria história�
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pera de um dono/senhor.21 Uma variação romântica do tropo da virgindade A metáfora da virgem tímida e a noção da feminilidade libidinosa estão
que ainda permeia o discurso contemporâneo é a metáfora da floresta "vir­ interligadas. Essa "terra de ninguém� ou mata selvagem, pode ser caracteri­
gem� Jornalistas, inclusive aqueles providos de consciência ecológica, ainda zada como resistente, rude e violenta, um país de paisagens silvestres à espera
utilizam essa metáfora para se referir à floresta tropical amazônica, interligada de um colonizador. Existem, portanto, povos "perversos" (índios, africanos e
a culturas humanas por milênios - incluindo supremacias agrícolas de econo­ árabes) e um deserto, ambos prontos para serem domesticados e florescerem.
mia rural com 2 mil anos de existência que sustentaram milhões de pessoas.u o discurso da natureza virginal e libidinosa, semelhante à dicotomia madona/
Não deve causar estranhamento, portanto, que cientistas modernos se refiram prostituta, opera no mesmo patamar. Em última instância, esse dado está a
a epidemias que assolam comunidades sem imunidade natural como "epide­ serviço do tropo do resgate, que foi ressuscitado durante as recentes guerras
mias da terra virgem�21 neocoloniais (Granada, Panamá, Kuwait). Se a idéia da "virgindade" enfatiza,
Em sua representação visual do descobrimento da América, Jan Van der por um lado, a disponibilidade e a prontidão da terra para ser fecundada
Straet utiliza, abertamente, metáforas coloniais de gênero sexualizadas. Tais através da penetração, o aspecto libidinoso evoca a necessidade de uma ope­
metáforas mostram Vespúcio carregando emblemas europeus de poder e ração de policiamento. O discurso colonialista oscila entre esses dois trapos
direção (cruz, armadura, bússola).2' Atrás dele estão as embarcações que le­ dominantes, apresentando o colonizado ora como um ignorante feliz, puro,
varão os tesouros do Novo Mundo paradisíaco para a Europa. Diante dele, receptivo, ora como um selvagem, histérico, caótico e completamente fora de
há uma mulher despida, a América indígena, dando as boas-vindas e, ao controle, que necessita de tutela legal.
fundo, existem sinais visuais de canibalismo. A mulher nativa é mostrada Ave do paraíso, filme de King Vidor, exemplifica esse paradoxo de densos
como uma extensão harmoniosa da natureza, enquanto Vespúcio representa tons políticos. O filme consiste no romance entre um marinheiro americano
o domínio científico. 2s Como observa Michel de Certeau, nessa representa- e uma "nativa" dos Mares do Sul. A mulher (Dolores dei Rio) simboliza a
terra, o paraíso "natural" ainda não marcado pela "civilização� Contudo, à
21 Ver Leonardo Boff, América Latina: d4 Conquista à Nova Evangelização, São Paulo, Atica, medida que a natureza idílica é inundada por uma lava que engole e absorve
1992, p. 16.
22 Ver ªComplex Farming Found in Amazon� New York limes, 3 abr. 1990, p. cu.
a beleza produzida por ela mesma, esse cenário ecologicamente harmonioso
13 Alfred W Crosby, •virgin Soil Epidemies as a Factor in the AboriginaJ Depopulation in e rico em alimentos passa por uma abrupta metamorfose, transformando-se
America� William and Mary Quartely, 3• série, n. 33, 1976, pp. 289-99. em um universo mecânico e ameaçador, um corpo histérico e desordenado.
14 O modo como a América é representada por Jan Van der Straet foi citado por muitos estu­ Seguindo a relação tradicional entre natureza e mulher, a heroína dos Ma­
diosos; entre eles, Michel de Certeau, ªAvant Propos", em seu L'Ecriture de l'Histoire, Paris,
Gallimard, 1975 [Em português, A escrita d4 história, trad. de Maria de Lourdes Menezes,
res do Sul espelha os opostos da paz paradisíaca e do perigo infernal. Essa
Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1981); Olivier Richon,MRepresentation, the Despot and mulher aparece, em um primeiro momento, resgatando o herói americano
the Harem: Some Questions around an Acadernic Orientalist Painting by Lecomte-du-Nouy de um tubarão, como mostra a tomada principal na qual ela mergulha com
(1885i■, em Baker el ai. (orgs.), Europt and Jts Others, v. 1. uma faca na boca. A seguir, envolta em atmosfera erótica, ela inicia uma am­
15 Transformado em uma questão de gênero, o encontro colonial está alicerçado no discurso
pré-existente, também marcado pelo gênero, que opõe homem e natureza. Ver Griffin, Wo­
bígua coreografia aquática e terrestre, conduzindo à punição inevitável não
man and Nature; Carol MacCormack e Marilyn Strathern (orgs.), Nature, Culture and Gen­
210 der, Cambridge, Cambridge University Press, 1980. 26 De Certeau, "Avant Propos", 211
somente da iniciação feminina, mas também da miscigenação. Abrindo mão lerância, a cidade da Babilônia representa o excesso sexual, significado esse
de sua vida na esperança de que esse gesto salve seu amado, a mulher acaba que é corroborado pela descrição da cidade como "a Mãe das Meretrizes e
sendo sacrificada pelos povos que outrora dominara. (Mais tarde, Hollywood Abominações da Terra� segundo consta do Apocalipse. DeMille articula essa
baniu todo e qualquer envolvimento amoroso inter-racial, exceto no con­ visão em Cleópatra não somente ao apresentar o Oriente como o palco dos
texto do oceano Pacifico. Na verdade, a "união entre polinésios e membros prazeres carnais, mas também ao chamar a própria Cleópatra, cujo dom de
das raças aliadas pertencentes aos grupos da ilha com indivíduos da raça manipular se exercia através de artimanhas sexuais, de "Egito� Em tais filmes,
branca não é, em geral, considerada uma relação de miscigenação�)2; Da a arquitetura monumental, o detalhe doméstico e os banquetes quase porno­
perspectiva de uma tribo que adora o vulcão, como a da heroína do filme, gráficos refletem uma obsessão com a abundância material do Oriente antigo.
somente o sacrifício humano seria capaz de aplacar a fúria do deus Lava. Essa obsessão era compartilhada pela literatura colonial de viagem, sobre­
Esse tratamento da religião lembra a postura do colonizador em relação às tudo no detalhamento dos excessos sensuais orientais. O fato de que a corte
religiões primitivas, a saber, a prática da idolatria de entidades da natureza romana pareça formada por aristocratas ingleses que desprezavam, de modo
personificadas. Se as imagens iniciais associam a personagem de Dei Rio à sarcástico, a idéia de que Roma pudesse ser governada por uma Cleópatra
serenidade da água, as tomadas finais sobrepõem a imagem feminina às cha­ supostamente negra reforça ainda mais as nuanças coloniais contemporâneas
mas - uma punição infernal para o desejo sexual do marinheiro e também na conquista de Cleópatra e do Egito. Isso para não mencionarmos o fato de
para os nativos pré-científicos. que as convenções estéticas de Hollywood transformam Cleópatra - histo­
Ave do paraíso promove uma mistura de tons orientalistas, algo entre o ricamente negra - em uma mulher branca, de aparência européia. De modo
exótico e o erótico. Tal questão foi retomad� mais tarde em filmes como Sayo­ semelhante, a iconografia ocidental apagou, gradualmente, os traços semíticos
nara (1957) e O mundo de Suzie Wong (1he World of Suzie Wong, 1960). Ape­ da imagem de Cristo.
sar do feitiço e da sedução, o europeu sempre volta para casa após desfrutar Nesse sentido, ao escrever a história de outras culturas em tonalidades
a mulher/nação estrangeira, sem ao menos questionar seus próprios valores mais claras, o cinema desempenhou um papel historiográfico e antropológico.
culturais. Aquele europeu que "se tornara nativo� no final das contas, recu­ O papel de Hollywood como arquivista e historiador fica evidente quando
pera-se dessa desordem de viagem e recobra as virtudes da ciência, tecnologia observamos a predileção dos filmes mudos por significantes grafológicos tais
e modernidade. Não obstante, cumpre observar que a sexualização da relação como hieróglifos (nas diversas versões de Cleópatra), pela escrita hebraica
colonial não se restringe às narrativas do encontro colonial. Durante o sé­ (Intolerância), ou pelas páginas de um livro aberto (como no "Livro da Intole­
culo XIX, representações européias de civilizações antigas, estimuladas pelas rância", com "notas" didáticas entre os títulos). Nos seus primórdios, o cinema,
descobertas arqueológicas, também desenvolveram tropas de gênero, proje­ ao forjar relações com o mundo da escrita (e particularmente da escrita "ori­
tando o presente imperial sobre antigos encontros entre Ocidente e Oriente. ginal"), conferiu uma aura artistica e histórica grandiosa a um meio de comu­
Filmes como Intolerância (1916), de D. W Griffith, e Cleópatra (1934), de Cedi nicação até então associado a divertimentos circenses. Ao criar um elo entre
B. DeMille, ao reproduzirem a representação romântica da parte oriental da uma arte nova e os tempos antigos e lugares "exóticos� o cinema assumiu
Babilônia e Grécia antigas, projetaram o "Oriente" como feminino. Em Into- poderes quase arqueológicos, ressuscitando civilizações esquecidas tanto na
tela propriamente dita, quanto na arquitetura dos vários palácios cinemato­
27 Olga Martin, Hollywood's Movie Commandments: Handbook for Motion Picture Wrílers and gráficos pseudo-egípcios. Produzidos durante um período em que os povos
212 Revíewm, Nova York. Scribncrs, 1937. colonizados reivindicavam uma contra-identidade em relação ao colonizador, 213
esses filmes substituíram conflitos contemporâneos pela busca romântica e
nostálgica das longínquas origens orientais do Ocidente.
� só este contexto colonialista que explica uma ausência constitutiva no
modo como Hollywood representou o Egito, a Babilônia e a Terra Santa (bí­
blica), a saber: a ausência de representações pictóricas do Oriente árabe con­
temporâneo e colonizado, bem como a supressão de suas lutas nacionalistas.
Esses filmes definiram o Oriente como antigo e misterioso. resumindo-o a
uma iconografia de papiros, esfinges e múmias, cuja existência e renascimento
dependem do "olhar" e da "leitura" do sujeito ocidental que lhes revigora. Em
outras palavras, o suposto "resgate" do passado suprimiu o presente e, ao fazê­
lo, legitimou - por negligência- o ato de disponibilizar o espaço oriental para
manobras geopolíticas ocidentais. Em síntese, na era imperial, parte da repre­
sentação do papel histórico do Ocidente é formada pela zona cinematográfica
mumificada das civilizações antigas.

Mapeando a Terra Incognita

O cinema eurocêntrico, seguindo a tradição da historiografia ocidental, narra


a penetração do Terceiro Mundo pela figura do "descobridor� Na maioria
dos filmes ocidentais sobre as colônias como, por exemplo, Ave do paraíso, A
queridinha do vovô, Narciso negro (Black Narcissus, 1947), O rei e eu (1he King
and I, 1956) e Lawrence da Arábia (Lawrence ofArabia, 1962), o status de herói
recai sobre o viajante (muitas vezes um cientista) que domina uma nova terra
e seus tesouros, cujo valor os povos nativos desconheciam. Tal construção da
consciência do "valor" como pretexto para a propriedade (capitalista) legitima
o ato de apropriação do colonizador. Em Lawrence da Arábia e nas seqüências
de Indiana fones da década de 80, a câmera registra o dinamismo do movi­
mento do herói em um espaço passivo e estático, desvendando o "enigma" da
terra. Ao mesmo tempo, o explorador-protagonista permite que o espectador
tenha acesso, sob a ótica do conquistador, aos tesouros orientais. Em Lawrence
da Arábia, um "gênio" romântico inspira e conduz as multidões de árabes pas­
A iconografia de um Egito feminilizado: Cleópatra (1934).
sivos, uma interpretação histórica que os historiadores árabes têm contestado
215
vigorosamente.211 O desnudamento dos mistérios de um espaço desconhecido lhas descobertas':32 Em sua viagem pelo infinito espaço aquático dos mares,
torna-se um ritual de passagem que alegoriza a estatura heróica e viril da 0 descobridor faustiano ultrapassa as Colunas de Hércules para descobrir
conquista ocídental. 1 Terra Incognita do outro lado do oceano. Hans Blumenberg observa que a
A relação sexual forneceu um dos tropos mais comuns para a compreensão sistematização das rotas garantiu que descobertas acidentais viessem a pro­
cíentífica e filosófica: o conhecimento está relacionado a metáforas de escrutí­ mover, finalmente, uma familiaridade universal. Nesse sentido, a lógica dos
11

nio erótico, penetração e consumação.29 Existe um amplo discurso tradicional exploradores, de Robinson Crusoé a Indiana Jones, baseia-se na esperança de
que considera a natureza como feminina - para Francis Bacon, por exemplo, que a •natureza" oculte em seu "ventre" mistérios outros que aqueles conhe­
à medida que aprendem as leis da natureza através da ciência, os homens tor­ cidos pelo poder da imaginação. Tal contexto esclarece a freqüente imagem,
nam-se senhores dela, apesar de agora, devido à ignorância, os homens serem sintomaticamente cinematográfica, do herói ocidental que descobre o "desco­
"escravos dela':30 No contexto colonial, esse discurso tem, obviamente, impli­ nhecido" no interior de cavernas situadas em terras não-européias. Esse tema
cações geopolíticas. O desejo de dominar uma terra desconhecida é parte da pode ser encontrado em filmes baseados em romances tais como O livro da
filosofia dos primórdios da história colonial, período no qual a epistemologia selva, de Kipling, e Passagem para a lndia, de Forster, além de Os caçadores da
tinha como modelo a geografia. Bacon estabeleceu urna analogia que ampliou Arca Perdida e Indiana fones e o Templo da Perdição.
o conhecimento científico e a expansão geográfica européia: A aura de cientificismo criada por imagens de mapas e globos também
ajudou a legitimar as narrativas coloniais sobre ilhas do tesouro. Foi durante
Assim como as imensas regiões das 1ndias Ocidentais nunca teriam sido des­ o Renascimento que a capacidade da Europa de mapear graficamente anun­
cobertas se a humanidade não tivesse aprendido a usar a bússola, não é sur­ ciou o potencial desse continente para dominar o globo. O desenvolvimento
preendente que as descobertas e progressos artísticos estejam estagnados, urna da geografia como ciência inspirou várias narrativas sobre o mapeamento de
vez que a arte da invenção e da descoberta das ciências permanece ainda des­ novas regiões. A inscrição cartográfica européia, com a chancela da bússola,
conhecida.31 determinou o prestígio e a importância dos lugares. A história completa da
transformação do desconhecido em conhecido foi narrada por meio dos tí­
Bacon considerava "vergonhoso" o fato de que "em termos materiais, diver­ tulos e legendas, bem como por meio dos desenhos de lugares e personagens.
sas regiões do planeta [ ...] tivessem sido amplamente expostas e reveladas, Embora as convenções artísticas de tempo representem os continentes do
ao passo que o lado intelectual se restringisse aos estreitos limites das ve- mundo como mulheres, essas mesmas convenções também os individuali­
zam de maneira estereotipada. Enquanto a exuberante Ásia aparece vestida
em trajes suntuosos, a África oscila entre a elegante vestimenta dos mouros e
18 Ver, por exemplo, Suleiman Mousa, T. E. Lawrence: An Arab View, traduzido para o inglês
por Albert Butros, Nova York, Oxford University Press, 1966. 32 Ver Francis Bacon, •Novum Organum� em The Works of Francis Bacon, James Spedding,
29 Para ler mais sobre a sexualização da ci�ncia, ver Ludmilla Jordanova, Sexual Visions: lmagt.s Robert Ellis e Douglas Heath (orgs.), Londres, Longmans and Co., 1870, p. 81.
ofGender in Science and Medicine betwten the Eighteenth and Twenlielh Centurit.s, Madison, 33 "Ao longo de vários seculos, tanto a filosofia quanto a faculdade da razão foram incapazes de
University of Wisconsi.n Press, 1988. revelar uma grande quantidade de mistérios ao esplrito humano. Foi por acidente e ocasião
30 Ver Francis Bacon, Advancemenl of Learning and Novum Organum, Nova York, Colonial propicia que o espírito humano veio a conhecer tais mistérios. A diferença e distância do fa­
Pres, 1899. miliar foram os fatores que propiciaram tais descobertas pois nenhum pré-conceito (praeno­
216 31 lbid., p. 135. tio aliqua) poderia ter levado a isso". Blumenberg, The Legitimacy of the Modem Age, p. 389. 217
Assim, o cinema se apresenta como o herdeiro contem­
a quase nudez, ao passo que a América ganha a representação da nudez sel­ avanço do ocidental.
ntigo meio visual, a saber, a cartografia.
vagem. 3-1 Um mapa da América de 1586 com a legenda "Terra Septemtrionalis poràneO de um a
Incognita""escreve� de modo cartográfico, a história da "descoberta" de 1492. Muitos filme s sobrepõem mapas a tomadas de paisagens em uma espécie
Há um navio em movimento e, ao fundo, Colombo e seus homens encon­ de "reivindicação" subliminar, um "título de propriedade" óptica com relação
tram o nu artístico, basicamente mulheres "nativas". Abaixo, há uma legenda à terra. A volta ao mundo em 80 dias (1956) feminiza mapas nacionais ao
em Latim: "America annos Dm 1492 a Christophoro Colombo nomine Regis mostrar mulheres "nativas" nos planos de fundo de mapas de países espe­
Castello primum detecta" [Colombo, que no ano de 1492 foi o primeiro a cíficos (o balão da protagonista, La Coquette, também é chamado de "ela").
descobrir a América em nome do rei da Espanha). A seqüência da esquerda De maneira semelhante, As minas do rei Salomão (1937, 1950, 1985) também
para a direita nos leva da "descoberta", à esquerda, para a compreensão do transforma a relação do explorador com a topografia local em uma questão
mapa, à direita. Em outras palavras, a cartografia é contextualizada como um de gênero.35 Na segunda tomada da adaptação de 1985 de Menahem Golan,
derivado das descobertas científicas e dos heróicos descobridores. O corpo um arqueólogo analisa uma pequena escultura de mulher nua, gravada com
desnudado das "nativas� ocupando o espaço atrás de Colombo, metaforiza a sinais cananeus (do período anterior à conquista judaica da terra de Israel)
narrativa da conquista. como se essa escultura fosse um mapa que leva às montanhas gêmeas cha­
A geografia refletiu-se, de maneira microscópica, nas narrativas de viagem madas de Seios da Rainha de Sabá, em cujas cavernas estariam escondidas
e na ficção de exploração - que gira em torno do desenho ou do deciframento as minas de diamantes do rei Salomão. De modo voyeurístico, a câmera in­
de um mapa (em geral o instrumento do télos do resgate) e da autentica­ clina-se sobre o corpo feminino/mapa e o examina da perspectiva excitada
ção desse mapa através do contato com a terra "recém-descoberta". O cinema do arqueólogo e comerciante de antigüidades em cuja loja a escultura foi en­
sempre utilizou imagens de mapas para demarcar as topografias tocadas por contrada. O caminho que leva à utopia do capital envolve, ao mesmo tempo,
seus heróis aventureiros, celebrando, implicitamente, sua própria superiori­ a decifração do mapa e a dominação do corpo feminino; os lendários picos
dade tecnológica tanto em relação à característica verbal do romance quanto gêmeos e a caverna simbolizam o tão desejado objetivo de possuir. A própria
ao aspecto estático dos desenhos e dos retratos. Muitos filmes ambientados terra é sexualizada de modo a lembrar a anatomia feminina. O espectador é
na África começam suas narrativas "de compreensão" do continente obscuro iniciado nesses terrenos enigmáticos através da favorável condição erotizada
do herói e de sua companheira, a filha do professor de arqueologia. O clímax
por meio de um mapa. O filme etnográfico The Sudan {Museum of National
se dá quando a linguagem em código do mapa é decifrada e os recursos da
History, 1953), que começa com a imagem de um mapa da África denominado
terra são descobertos, sendo que ambas as conquistas correm em paralelo à
"África, o Continente Escuro� tem como narrador uma voz masculina que
fértil narrativa da constituição do casal.
afirma: "Se existe alguma coisa capaz de arruinar a fábula do Continente Es­
curo, é o cinema. O olho da câmera enxerga somente a realidade� Em filmes
recentes como Os caçadores da Arca Perdida e Indiana fones e o Templo da
Perdição,para não mencionar Columbus and the Age of Discovery (documen­
tário da PBS de 1992), setas animadas se movem sobrem mapas significando o
35 Para uma análise de As minas do rei Salomdo e a scxualização dos mapas de Haggard, con­
sultar Annc McClintock,"Maidcns, Maps, and Mines: lhe Rcinvcntion of Patriarchy in Co­
34 John Higham, "Indian Princess and Roman Goddess: lhe First Female Symbols of America�
lonial South Africa� South Allantic Quarterly. v. 8], n. 1, inverno de 1988. 219
218 Proceedings of the American Antiquarian Society, n. 100, 1990, p. 48.
Escavando o continente escuro eespetáculo. Qualquer possibilidade de representar uma interação dialógica
37

já havia sido eliminada desde o princípio.


A etnografia de Hollywood tem como premissa a capacidade do cinema de Muitas vezes, a representação de uma região do Terceiro Mundo como
introduzir o espectador ocidental em uma cultura desconhecida. Essa pre­ subdesenvolvida é reforçada por um reducionismo topográfico que apresenta
missa funciona mesmo quando filmes ambientados em terras "exóticas" e 0 Oriente como deserto e, portanto, melancólico e monótono. O deserto, um
tempos antigos nào têm personagens ocidentais como, por exemplo, os heróis motivo verbal e visual recorrente em filmes orientalistas, forma o pano de
e heroínas dos filmes Intolerância, O ladrão de Bagdá (1he 1hief of Bagdad, fundo atemporal no qual a história se exaure. Enquanto os personagens ára­
1924) e Kismet (1944). Nas cenas referentes à Babilónia, esses heróis e heroínas bes em Lawrence da Arábia, Exodus (1960) e Os caçadores da Arca Perdida são
orientais são representados por atrizes e atores brancos. Filmes orientalistas associados ao subdesenvolvimento, os ocidentais são associados não somente
convidam o espectador para uma viagem temporal/espacial em uma cultura 10 pioneirismo produtivo e criativo, mas também à redenção masculina do
preservada pelo celulóide, celebrando de modo implícito a capacidade do ci­ deserto. Conforme revelam os filmes coloniais, trata-se da esfera cultural de­
nema de promover espetáculo panorâmico e voyeurismo temporal. Citando terminando uma polaridade geográfica e simbólica no duplo eixo leste/oeste e
a teoria de André Bazin, segundo a qual o cinema possui um "complexo de sul/norte. Em uma espécie de inversão das teorias do determinismo climático
múmia�16 o modo como o desconhecido é capturado pelo cinema criou um como, por exemplo, as de Madame de Stael ou Hippolyte Taine, o cinema euro­
n
lugar tanto para a antropologização, quanto para a arqueologização popula­ cêntrico delineou uma ecologia visual "leste ou "sul" de primitivismo irracional
res. Muitas vezes, o espectador, identificando-se com o olhar contemplativo e instintos perigosos. A terra estéril e as areias ardentes metaforizam as paixões
do Ocidente ( quer personificado por um personagem masculino/feminino, "lascivas" e não-censuradas do Oriente, ou seja, o incontrolável mundo do id.
quer incorporado por um ator/atriz disfarçado de oriental), consegue domi­ O Oriente também é sexualizado por meio da figura recorrente da mulher
nar, em um período de tempo notavelmente telescópico, os códigos de uma cujo rosto é coberto por um véu. Sua inacessibilidade misteriosa, a exemplo
cultura estrangeira mostrada como simples, pouco consciente de si mesma e do próprio Oriente, torna necessário que o processo de revelação ocidental
facilmente apreensível. Assim, o cinema reproduz um mecanismo colonialista seja compreendido. Ironicamente, mulheres com o rosto coberto em pinturas,
através do qual o Oriente (representado como destituído de qualquer papel
histórico ativo ou narrativo), torna-se, nas palavras de Said, objeto de estudo 37 Said, Orientalism. Pelo menos sele subgêneros do cinema hollywoodiano orientalista po·
dem ser citados: (1) histórias sobre ocidentais contemporàncos no Oriente (O Sheik, 1921;
Road to Morroco, 1941; Ca.sablanca, 1941; O homem que Jabia demais, 1956; Os caçadores da
36 Inspirado pela afirmação de Malraux, Bazin tenta oferecer uma psicanálise parcial do ci­ Arca Perdida, 1981; Sahara, 1983; /shtar, 1987); (2) filmes sobre "orientais" no Primeiro Mundo
nema ao sugerir, na abertura de seu "Toe Ontology of the Photographic lmage� que "na ori­ (Domingo negro [Black Sunday], 1977: De volta para o futuro IBack to the Fulurel, 1985); (3)
gem da pintura e da escultura repousa um complexo de múmia" ( What Is Cinema, traduzido filmes baseados na história antiga, tais como as diversas versões de Cleópatra; (4) filmes
para o inglês por Hugh Gray, Berkeley, University of California Press, 1967, p. 9). Nesse sen­ baseados na história contemporânea (Exodus, 1960; Lawrence of Arabia, 1962); (5) filmes
tido, o ritual do cinema não é diferente dos rituais religiosos egípcios que proporcionavam baseados na Bíblia (Judith of Bethulia, 1913; Sansão e Dalila ISamson and Deli/ah], 1949; Os
"uma defesa contra a passagem do tempo", satisfazendo desse modo "uma necessidade psi­ dtz mandamentos Ilhe Ten Commandmentsl, 1956); (6) filmes baseados em As mil t uma
cológica básica do homem, pois a morte representa a vitória do tempe� Bazin oferece uma noites (O ladrdo de Bagdá, 1924; Ki.smel, 1944 e 1955); (7) filmes nos quais o Egito antigo e
interpretação existencialista para a metáfora da múmia. o que compromete os pressupostos seus enigmas são transfonnados cm mitos, servindo de pretexto para o horror-mistério e
da própria religião eglpcia, já que os egípcios antigos assumiram, de maneira axiomática, a romance contemporâneos (as várias seqüências do filme A múmia). Ver também Ella Sho­
l.20 realidade da vida após a morte, para a qual a múmia não era mais do que um meio. hat, "Gender in Hollywood's Orient� Merip, n. 162, jan./fev., 1990, pp. 40-3. 221
fotografias e filmes orientalistas mais revelam do que ocultam seus corpos.:11 A metáfora do "continente escuro" de Freud, assim como seu discurso psi­
Esse processo de exposição - praticamente um desnudamento - da mulher canalítico sobre uma "profunda penetração" nas "neuroses femininas" - graças
morena acaba alegorizando a suposta disponibilidade das terras do Oriente a uma ciência que pode fornecer uma compreensão "mais profunda e coe­
para o conhecimento e domínio penetrantes do conquistador ocidental. De rente" da essência íntima das mulheres-11 - está repleta de implicações políticas.
maneira semelhante, a metáfora freudiana do "continente escuro" funciona, A penetração, conforme Toril Moi observa, está presente nas idéias de Freud à
no arcabouço do discurso colonial, na fronteira entre o epistemológico e o se­ medida que ele se aproxima da feminilidade,43 e inclui provavelmente "o conti­
xual. Freud envolve a sexualidade feminina em metáforas da escuridão e obs­ nente escuro" da sexualidade feminina. Não raro, ele emprega uma terminolo­
curidade retiradas dos domínios da arqueologia e da exploração - a metáfora gia que evoca uma atmosfera de violência: "forçamos a penetração por cama­
do "continente escuro� por exemplo, originou-se em um livro escrito pelo "ex­ das internas, superando dificuldades o tempo todo�44 (Parece sintomático que
plorador" vitoriano Henry Morton Stanley.19 Em Estudos sobre histeria, Freud Freud nunca tenha elaborado pressupostos sobre a realidade do estupro em
compara o psicanalista ao arqueólogo e considera a si mesmo um explorador seus escritos.) A revelação do inconsciente exige um objeto obscuro para sus­
e descobridor de novos mundos. Assim, o ato de "remover o material psico­ tentar o próprio desejo de explorar, penetrar e dominar. Para David Macey, a
patogênico, camada por camada" é semelhante "à técnica de desenterrar uma psicanálise alega que a feminilidade ultrapassa o discurso racionalista e depois
cidade".40 A analogia, feita no contexto de uma discussão sobre uma paciente reclama que não consegue explicá-lo;45 tal lógica também se aplica à posição
(Elisabeth Von R.), chama a atenção para o papel do terapeuta no sentido do "outro", oriundo do Terceiro Mundo, no discurso colonial. Se retornarmos
de localizar os elos lógicos de pensamentos obscuros. Como observa Freud à figura das antigas civilizações orientais, Freud emprega os mitos da Esfinge e
em sua narrativa de primeira pessoa: "Em tais momentos, eu penetraria em de Édipo para estabelecer paralelos entre o "desenvolvimento da civilização" e
camadas mais profundas da memória dessa mulher, utilizando a hipnose ou da psique. (Embora Freud nunca tenha estudado profundamente a mitologia
alguma técnica semelhante de investigação�41 egípcia, mais da metade de sua coleção particular de antiguidades consistia
de esculturas e artefatos egípcios antigos.)46 O psicanalista que cura através
38 Mallek Alloula examina essa questão em cartões postais franceses da Argélia. Ver The Co­ da revelação do passado reprimido (a maior parte dos estudos de Freud sobre
lonial Harem, traduzido para o inglês por Myrna Godzich e Wlad Godzich, Minneapolis, histeria foram conduzidos com mulheres) assemelha-se ao arqueólogo, que
University of Minnesota Pres, 1986.
39 Freud associa África e feminilidade em A interpretação dos sonhos quando se refere ao livro 42 Sigmund Freud, On Transformations of Instinct as Exemplijied in Anal Eroticism, Toe Stan­
She, de Haggard, como "um livro estranho, porém cheio de significados obscuros [ ...). O dard Edition of lhe Complete Psychological Works of Sigmund Freud, 2• ed., v. 17, Londres,
eterno feminino [...). She descreve um caminho perigoso, muito pouco percorrido ante­ Hogarth Press, 1953-1974, pp. 129,135. [Em português, As transformações do instinto exempli­
riormente, que conduz a uma região desconhecida''. Toe Standard Edition of the Complete ficadas no erotismo anal, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Psychological Works of Sigmund Freud, James Strachey (org.), Londres, Hogarth Press Sigmund Freud (v. 17), Rio de Janeiro, Imago, 1974.)
and lnstitute of Psycho-Analysis, pp. 453-4 [Em português, Edição Standard Brasileira das 43 Toril Moi, "Representation of Patriarchy: Sexuality and Epistemology in Freud's Dora� em
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 24 v., Rio de Janeiro, Imago,1974.) Charles Brenheimer e Claire Kahane (orgs.), ln Dora's Case: Freud, Hysteria, Feminism, Lon­
40 Joseph Breuer e Sigmund Freud, Studies on Hysteria, traduzido para o inglês por James Stra­ dres, Virago, 1985, p. 198.
chey em colaboração com Anna Freud, Nova York, Basic Books, 1957, p.139. [Em português, 44 Breuer e Freud, Studies on Hysteria, p. 292.
Estudos sobre histeria, trad. de Jayme Salomão, Edição Standard Brasileira das Obras Psico­ 45 David Macey, Lacan in Contexts, Londres/Nova York, Verso, 1988, pp. 178-80.
lógicas Completas de Sigmund Freud (v. 2), Rio de Janeiro, Imago, 1974.] 46 Stephen Salisbury, "ln Dr. Freud's Collection, Objects of Desire", New York Times, 3 set.
222 41 Ibid., p. 193- 1989. 223
recupera o passado escondido ou o substrato da civilização (geralmente "en­ desord ens do corpo feminino e colonizado podem ser considera das for­
15
contrado" em terras do Terceiro Mundo). A epistemologia de Freud, a exem­ mações de reação. ou até mesmo um ato de exorcismo e transcendência em
plo da arqueologia clássica, pressupõe que o homem (branco) é o portador relaç ão às patologias patriarcais e coloniais. Na verdade, a própria prática psi­
do conhecimento, ou seja, é capaz de penetrar tanto uma mulher quanto um canalítica deve ser historicizada, levando em conta o poder que os psicanalis­
texto. A mulher, como uma região remota, permite a exploração até que a ver­ taS europeus exerciam sobre o colonizado que, além de estar mentalmente sob
dade seja revelada. Em seu estudo sobre as imagens retóricas científicas, Lud­ opressão, era orientado a se confessar com o psicanalista (colonizador) não
milla Jordanova afirma que a ciência freudiana "é um espectador masculino em árabe, mas em 1rances.-
C. • \Cl

[...] que antecipa um conhecimento integral da natureza, a qual - por sua vez A analogia estabelecida por Freud entre o desenvolvimento da psique e da
- é apresentada como um corpo feminino despido�•� civilização deve ser compreendida também em relação à cultura do império.
Como figuras da escuridão ameaçadora, a "mulher" e a "nativa" devem (Não que ela se reduza a essa cultura.) As ciências médica e biológica do sé­
ser controladas por meio da descoberta sistemática do obscuro. Enquanto a culo x1x fizeram um grande esforço para provar que certas características do
psicanálise observou os detalhes da histeria, a antropologia documentou os cérebro e dos órgãos sexuais distinguiriam as civilizações primitivas inferio­
rituais de possessão. A noção de um "corpo em desordem" demarca o objeto res, fato esse que daria prestígio científico à infantilização política de mulheres
do olhar científico em termos sexuais e raciais, bem como as modalidades brancas e povos nativos. Em determinada medida, o pressuposto psicanalítico
institucionalizadas de estudo movidas pelo poder. Tal aparato não deixou es­ do íd/superego assemelha-se à dicotomia primitivo/civilizado do discurso
paço imaginativo para aquilo que Fanon chamou de "loucura criativa•:-111 uma colonial. Esse discurso binário tem variantes na sociologia, especialmente na
possibilidade sugerida no filme etnográfico Os mestres loucos (Les Maitres escola de modernização da década de 50 de T. E. Parson, que divide as socie­
Fous, 1955) de Jean Rouch, que documenta os rituais de possessão dos hauka, dades em primitivas ou menos desenvolvidas e modernas ou mais complexas.
um culto da África Ocidental. Aqui o ritual de transe testemunha o exorcismo Nessa analogia, questões de temporalidade entre os substratos da civilização
coletivo da dominação estrangeira. A desordem física alegoriza uma desor­
dem política mais ampla. O modo paródico por meio do qual o colonizado
> de família como a principal "fonte" de investigação psicanalítica, é sugerida pela repetida
possuído imita o colonizador associa os sintomas do colonialismo ao trauma pergunta sobre a possibilidade de utilizar o modelo da "familia" com os colonizados. Se a
original dos encontros coloniais. Fanon, em uma crítica explícita ao trabalho "família" é a miniatura da nação, ele pergunta, onde então o colonizado deveria se "encai­
psicanalítico e eurocêntrico de Freud, explica a "perturbação" mental como xar"? Para maiores informações sobre as restrições de Fanon em relação à psicanálise, ver
Patrick Taylor, The Narrative of Liberalion, Jthaca, Nova York, Cornell University Press, 1989.
um sintoma de desordem política e das relações de poderes.◄� Nesse sentido,
Sobre Fanon, Freud e o "continente escuro� ver Elia Shohat, "Imaging Terra Incognita", Pu­
blic Culture, v. 3, n. 2, primavera de 1991.
47 Jordnova, Sexual Visions, p. 87. 50 A noção de arqueologia não se separa da noção de cultura. Se Freud suprimiu a cultura
48 Frantz Fanon, 1he Wretched of lhe Earth, traduzido para o inglês por Constance Farrington, patriarcal de sua discussão sobre a desordem feminina, Fanon estava envolvido com socio­
Nova York, Grove Press, 1964, p. 95. [Em português, Os condenados da terra, trad. de José terapia, que analisa qualquer patologia em termos históricos. Para compreender a loucura
Laurêncio de Melo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968,] em contexto, Fanon investiga a "arqueologia" da cultura. Isso fica evidente no artigo "Toe
49 Frantz Fanon, Rlack Skin, White Masks, traduzido para o inglês por Charles Markmann, Altitude of the Maghreb Muslim toward Madness", em co-autoria com seu colega François
Nova York, Grove Press, 1967, p. 56. [Em português, Pele negra, máscaras brancas, trad. de Sanchez. Fanon argumenta que qualquer cura deve levar em consideração a história dos
Maria Adriana da Silva Caldas, Rio de Janeiro, Fator, 1983.) Fanon afirma: "As descobertas de "nativos" e a tradição. Ver Revue Pratique de Psychologie de la Vie Social et d'Hygiene Menta/e,
224 Freud não são úteis por aqui" (p. 104). Sua crítica, especialmente em relação ao conceito > n. l, 1956. 225
e da psique são, em outras palavras, enfatizadas historicamente. O retorno a parte de uma recuperação terapêutica. A análise da ruptura provocada pelo
uma estrutura de tempo primordial determina uma apologia do domínio li­ colonialismo evidencia uma revolta contra um presente colonial de desapro-
teral (geográfico) e �etafórico (institucional) do espaço. A tarefa de decifrar priação.
os enigmas dos vários "espaços interiores" está embutida nas descobertas im­
periais e nas expansões do século x1x e implícita, portanto, nas descobertas Múmias e egiptologia
científicas que se desdobram em direção às "aberrações" do alheio.
Portanto, o termo "continente escuro" celebra, implicitamente, tanto as o entrelaçamento da arqueologia e da psicanálise remete a um tema tradicio­
descobertas geográficas quanto as psíquicas de um modo semelhante à ana­ nal do século XIX, a saber, a questão da viagem às origens do Oriente enquanto
logia de Bacon entre explorações geográficas e filosóficas. O papel da África uma viagem à essência do "eu� Como Said comenta citando Lamartine, em
na escrita anticolonial esclarece ainda mais as metáforas relacionadas à luzi sua obra Orientalismo, "Un voyage en Orient [était] comme un grand acte de
escuridão e aos tropos do descobrimento. Para Aimé Césaire e Fanon, tanto ma vie intérieure" [Uma viagem ao Oriente corresponde a um grande ato da
quanto para Marcus Garvey e Malcolm x, a África não é "escura", mas sim minha vida interior].53 Às vezes, o papel arqueológico do cinema de decifrar
fonte de "esclarecimento", sobretudo em virtude da diáspora. Desde o mo­ civilizações enterradas torna-se explícito em histórias de missões de resgate
vimento dos negros, a (re)descoberta da África pelos intelectuais de origem arqueológico. (Corno vimos, as origens disciplinares da arqueologia como a
africana e simpatizantes da diáspora tem promovido urna inversão das noções busca pelas "raízes da civilização" estão ligadas temporal e ideologicamente
da descoberta européia e da imitação colonial: à expansão imperial.) Inúmeros filmes, desde as várias versões de A múmia
(especialmente ao longo das décadas de 30 e 40) até as seqüências de Indiana
Se quisermos transformar tanto a África quanto a América em uma nova Europa, fones, reproduzem o tópos colonial segundo o qual o "conhecimento" ociden­
devemos então deixar que os europeus cuidem do destino de nossas nações[...]. tal das civilizações antigas "salva" o passado do esquecimento. Os caçadores da
Mas caso o objetivo seja contribuir para um avanço ainda maior da humanidade, Arca Perdida, por exemplo, legitima a transferência da herança egípcia para os
se quisermos elevã-la a um patamar superior àquele com o qual a Europa lhe ace­ museus metropolitanos - essa mesma ideologia também figura, de maneira
nou, nesse caso,fazer descobertas cabe somente a nós.51 (A ênfase é minha.) implícita, em Intolerância, Cleópatra e nas seqüências de A múmia. (Em geral,
tais filmes são apresentados em museus que exibem mostras egiptológicas.)
A (re)descoberta da África faz com que o intelectual anticolonial retorne ao De modo sintomático, Os caçadores da Arca Perdida pressupõe uma sepa­
terreno do trauma coletivo dos primeiros encontros com os "descobridores� ração entre o Egito contemporâneo e o antigo, separação essa que ninguém se­
As repetidas referências de Fanon às aulas de história sobre "nossos ancestrais, não o cientista ocidental pode superar, pois somente ele é capaz de compreen­
os gauleses" critica a pedagogia colonial por perpetuar a desordem neurótica der o real significado dos clássicos objetos arqueológicos. Ambientado em
do colonizado.52 Portanto, a descoberta da própria ancestralidade pode ser meados da década de 30, quando a maior parte do mundo ainda estava sob o

> Independentemente de gostarmos disso ou não, o passado não pode guiar nosso presente"
51 Fanon, 1he Wretched of the Earth, p. 315. (Black Skin, White Masks, p. 225). Contudo, esse ponto não contradiz, em última instância, a
52 Talvez nossa leitura de Fanon pareça contradizer determinados pontos centrais do seu "estrutura de sentimentos" libertadora que o simbólico retorno à África oferece aos negros
trabalho. Fanon sugere, de urna forma semimaterialista, que �a descoberta da existência de colonizados, e que o próprio Fanon discute.
226 uma civilização negra no século xv não me conferiu nenhuma patente de humanidade. > 53 Said, Orientalism, p. 177. 227
A múmia (1969): amplificando as vozes nas margens de dois textos egiptológicos.

domínio colonial, o filme naturaliza a presença colonial no Egito. A história


das revoltas nacionalistas contra a dominação estrangeira é omitida e os egíp­
cios são reduzidos a um bando de pessoas ignorantes e sem nenhuma impor­
tância. A exemplo dos árabes, que "repousam" sobre o petróleo, essa povo está
situado, por acaso, em uma terra cheia de tesouros históricos. O arqueólogo
americano de Caçadores busca, de certa forma, as raízes da civilização ociden­
tal no Oriente. Ao libertar a antiga arca hebraica do domínio egípcio ilegal e
resgatá-la da imoralidade do controle nazista, esse arqueólogo reforça, de ma­
neira subliminar, a solidariedade americana e judaica contra os nazistas e seus
ajudantes árabes.54 Os enredos paralelos e interligados do filme fazem com

54 A associação entre judeus, história, política e cultura do Ocidente deve ser entendida como
uma continuidade em relação ao discurso sionista, que omitiu, em grande medida, a história A múmia (1932) e Caçadores da Arca Perdida: o conhecimento ocidental resgata do
228 do Terceiro Mundo árabe e a cultura do Oriente Médio dos judeus sefarditas. Para uma > esquecimento o passado egípcio.
que o herói, em sua busca pela harmonia, acabe identificando a arca à prota­ ocidentais como instituições penais, "centros de detenção': nos quais artefatos
gonista feminina. Associada em um primeiro momento ao colar que conduz sagrados do Terceiro Mundo são encarcerados.)
à arca, Marion torna-se objeto de desejos rivais, masculinos e nacionalistas. A O filme egípcio Al-Mummia (1969), exibido nos EUA com o título de The
exemplo da arca, a protagonista também é seqüestrada pelos nazistas e seus Night of Counting the Years, também critica os museus por transformarem
ajudantes árabes. A seguir, ambas são libertadas, simultaneamente, pelo dr. diversos povos e suas culturas em fetiche. Baseado na descoberta de tumbas
Jones. Viagens cinematográficas - independentemente de serem mentais ou faraônicas no Vale dos Reis em 1881, um ano antes da colonização britânica no
geográficas - por regiões desconhecidas partem da premissa de que o desbra­ Egito, o filme começa com o relato de Gaston Maspero, um francês estudioso
vador ocidental não somente conhece o Oriente (tanto num sentido epistemo­ da cultura egípcia. Nesse relato, Maspero conta a seus colegas sobre o mercado
lógico quanto bíblico), mas também o resgata do seu próprio obscurantismo. negro e o tráfico de antigüidades que haviam pertencido ao reinado de faraós
Marcada por rupturas temporais e espaciais, a narrativa arqueológica sugere corno, por exemplo, Ahmose, lhutmose m e Ramsés 11. Sob sua responsabi­
uma noção de "estratos" históricos, inserida em uma "geologia" politizada. O lidade, a delegação governamental arqueológica decide que uma expedição
estrato profundo, num sentido literal e figurado, é descoberto pelos ociden­ comandada por wn ;ovem arqueólogo egípcio deveria investigar a localização
tais, enquanto o nível "superficial" e recente é associado aos árabes. das tumbas de Tebas para acabar com a pilhagem. Enquanto isso, nessa mesma
Grande parte do arquivo histórico daquilo que chamamos de Terceiro e cidade, a tribo horobbat do Alto Egito depende, para sua sobrevivência, da ex­
Quarto Mundos foi "descoberto': confiscado, transformado em commodity, tração de artefatos das tumbas faraônicas. O chefe dessa tribo acabou de mor­
transferido para instituições ocidentais e "revisto para se adaptar às neces­ rer e seus filhos deveriam, com a ajuda do tio, passar pelo ritual de iniciação
sidades econômicas, culturais, políticas e ideológicas de sociedades distan­ ao segredo da montanha. A dissecação da múmia, cujo objetivo consiste em
tes".ss Monumentos faraônicos e babilônicos foram transferidos para museus recuperar o colar de ouro que representa o sagrado Olho de Hórus, suscita
europeus e americanos, enquanto textos maias e astecas do período pré-co­ um sentimento de repulsa nos filhos, ainda de luto pela morte do pai. Aos
lombiano - o código florentino, por exemplo - ganharam nomes a partir de jovens são dadas duas opções de responsabilidade: a pilhagem (na tradição
lugares europeus atuais. Diversos filmes, sobretudo Les Statues Meurent Aussi do abutre) das tumbas antigas, com a profanação das múmias, ou a revelação
(1953), de Marker/Resnais, abordaram esse massacre cultural. No filme afri­ do segredo paterno a estranhos, acompanhada da conseqüente perda de um
cano The Mask (1980), de Ugbomah, o major Obi (agente 009) é enviado em capital essencial para alimentar as bocas famintas dos horobbat. Revelar o
missão para Londres a fim de reaver artefatos africanos que se encontram no segredo por respeito "aos mortos" - que para os anciãos horobbat não repre­
museu britânico. (Ishmael Reed, em Mumbo Jumbo, 1972, retrata os museus sentam nada além de cadáveres duros como couro - significaria sentenciar de
uma só vez suas próprias famílias e a tribo à fome. As gerações mais velhas da
> discussão completa da problemática gerada pelo discll!so sionista, ver Ella Shohat, "Se­ aldeia assassinam o irmão mais velho quando ele se recusa a vender um arte­
phardim in Israel: Zionism from the Standpoint of Its Jewish Victims� Social Text, n. 19-20, fato no mercado negro. O irmão mais jovem, Wannis, é dilacerado pelo peso
outono de 1989. Esse debate continuou, em parte, na Criticai Inquiry, v.15, n. 3, primavera de de ter sua vida atrelada aos cadáveres dos egípcios antigos ("Quantos corpos
1989, no artigo "An Exchange on Edward Said and Difference"; ver sobretudo Edward Said, meu pai violou para nos alimentar?': pergunta à mãe) e a condenação do seu
"Response� pp. 634-46.
povo à destruição. A medida que caminha pelas ruínas de Tebas e Karnak,
55 Ver Sally Price, Primitive Art in Civilized Places, Chicago, University of Chicago Press, 1989,
p. 5. [Em português, Arte primitiva em centros civilizados, trad. de Inês AJfano, Rio de Janeiro,
lembranças vivas de suas memórias infantis no parque de diversões, muito
230 UFRJ, 2000.] mais do que simples lembranças de uma civilização antiga, vão se apoderando 231
dele. Enquanto isso, movimentos de câmera em rotação registram longas to­ 00 Museu Britânico. Ao colocar em primeiro plano as vozes daqueles sujeitos
madas que traduzem sua vertigem ética, e até mesmo epistemológica, sinais à margem dos textos egiptológicos, o filme de Shadi Abdel Saiam desafia, de
do conflito entre sua responsabilidade em relação à herança egípcia e o com­ maneira implícita, essa narrativa-mestra arqueológica. Se o filme começa com
promisso imediato com a vida do seu povo no momento presente. Conven­ um projeto arqueológico e termina com a sua realização, por outro lado ele
cido de que, ao invés de saquear, os "arqueólogos efêndis" estão tentando com­ questiona essa missão ao enfocar os dilemas concretos dos egípcios contem­
preender o passado egípcio, ele revela o conhecimento secreto ao ajudante de porâneos em relação ao passado. Um motivo musical não-diegético, baseado
"'
Maspero. Antes que a aldeia consiga evitar a pilhagem, a expedição esvazia os em uma canção popular do Alto Egito ( AI Arian") e associado a um ritmo
túmulos e carrega as múmias em direção aos museus europeus. lento que evoca a atmosfera regional, reforça ainda mais a força cultural do
Al-Mummia se passa no final do século x1x, no auge da egiptologia impe­ ambiente egípcio.57 Vale a pena enfatizar que o final do filme não mostra o
rial. Em 1882, quando a Grã-Bretanha ocupou o Egito, o país já havia sido pri­ depósito seguro dos artefatos em um museu. Ao invés disso, o que temos é
vado de muitos dos seus tesouros arqueológicos, os quais ainda se encontram a partida lenta do barco que leva os egiptólogos e as múmias, vistos da pers­
em exibição em Londres, Paris e Nova York, como testemunhos inabaláveis pectiva da tribo devastada. Assim, o filme termina com o vazio deixado pelo
do progresso da ciência ocidental. A linguagem heróica (quase devota) utili­ rastro da intromissão européia. Embora conste que as mulheres da tribo ho­
zada nos relatórios arqueológicos das missões que conduziram à descoberta robbat ficaram de luto quando as múmias foram levadas, Shadi Abdel Saiam,
de 1881 descreve a maneira como os poderosos reis do Oriente antigo foram filmando em plano geral e fazendo uma edição nem um pouco psicologizada,
resgatados dos clãs árabes de tal modo que o ocidental é associado a impera­ apresenta uma comunidade unida por um silêncio contemplativo. A única
dores e dinastias reais. O pressuposto de uma ruptura entre o Egito antigo e voz de protesto que se ouve é o assobio do vento. Longe de apresentar a con­
contemporâneo legitima a reivindicação do Ocidente em relação ao passado clusão triunfante da narrativa arqueológica, o olhar silencioso revela uma
do Egito,56 naturalizando assim a presença da Pedra de Roseta, por exemplo, ruptura catadísmica na vida daquelas tribos egípcias, subvertendo, assim, a
redefinição egiptológica comemorativa da expropriação. sa
Inadvertidamente, descrições arqueológicas muitas vezes repetem metáfo­
56 A narrativa de Howard Cartcr e A. C. Mace sobre a descoberta de seus predecessores (1881),
por exemplo, associa o resgate de múmias pelos egiptólogos ao costume dos sacerdotes ras que sugerem as bases mercantis de sua própria declaração. O arqueólogo
eglpcios antigos de proteger seus reis: "Amontoados em túmulo raso, mal talhado. jaziam Howard Carter, que trabalhou na escavação da tumba de Tutancâmon, escre­
os mais poderosos monarcas do Leste antigo. reis cujos nomes eram familiares ao mundo veu em seu relato sobre a descoberta de 1881: "Por mais incrível que possa pa-
todo, que ninguém (nem no momento de maior loucura) havia sonhado ver. Lá estavam
eles, no local para onde os sacerdotes os haviam trazido em segredo e com pressa naquela
noite escura três mil anos antes; e em seus caixões - entre múmias - organizadamente lista­ 57 Em entrevista que se seguiu à apresentação de AI-Mummia na televisão egípcia, Shadi Ah­
dos, estavam os registros de suas viagens de um esconderijo para outro. Alguns haviam sido dei Saiam foi criticado por recorrer a um músico ocidental, sendo que o Egito tinha seus
embrulhados, e dois ou três - no curso de suas muitas andanças - haviam sido transferidos próprios músicos. Abdel Salam insistiu que os músicos italianos haviam sido escolhidos
para outros caixões. Em quarenta e oito horas - não fazemos coisas tão apressadamente em virtude de seu conhecimento técnico, e que sua tarefa consistia fundamentalmente cm
hoje em dia - o túmulo estava limpo; os reis haviam sido embarcados rumo ao museu.ft Ver organizar a música popular egfpcia preexistente. Hassan Aawara, "AI Mummia", AI Anba, 30
Shirley Glubok (org.), Discoveríng Tut-ankh-Amen's Tomb, resumido e adaptado de Howard out. 1983 (em árabe).
Carter e A. C. Mace, The Tomb of Tut-ankh-Amen, Nova York, Macmillan, 1968, p. 15. [Em 58 Além dos grandes ensaios crlticos de Edward Said sobre o discurso orientalista no Egito,
português, Howard Carter e A. C. Mace, A descoberta da tumba de Tul-ankh-Amon, Porto ver também Timothy Mitchcll, Colonising Egypl, Cambridge, Cambridge University Press,
232 Alegre, Mercado Aberto, 1991.) 1988. 233
tecer, o segredo foi guardado por seis anos e a família, com um saldo bancário close-up, como se estivesse olhando em direção aos irmãos (e diretamente
de quarenta ou mais faraós mortos, enriqueceu':59 O filme de Abdel Saiam, para o espectador) - com o gesto árabe do hamsa, a mão que avança contra
por outro lado, enfatiza a ambivalência das relações entre o povo egípcio e 0 olhar da maldade, vista anteriormente no barco onde o irmão mais velho

sua antiga herança. A tribo vive do roubo, contudo, suas condições precárias fora assassinado. Tomadas de um gigante punho monumental acompanham
sugerem uma crítica ao sistema imperial de classes. Na verdade, analisada em 0 diálogo entre Wannis e um trabalhador migrante sobre "a mão segurando

seu contexto histórico e cultural, a redenção arqueológica privou a tribo do um destino que ninguém consegue decifrar" e "que destino pode ser decifrado
único poder que ela tinha, sem colocar nada em seu lugar. No entanto, con­ através da mão de pedra?", sugerindo a natureza arriscada de usar as mãos de
siderar Al-Mummia corno uma simples desaprovação da egiptologia seria monumentos para interpretar o destino. Resumindo, a cultura contemporâ­
urna interpretação muito superficial. O filme elucida o teor das relações entre nea e popular do Oriente Médio que decifra o destino a partir da leitura da
as classes sociais no interior da dinâmica colonial, que obriga a tribo a lidar mão é contrastada, implicitamente, não apenas com a grandeza imortal, mas
com "pequenos" negociantes do mercado negro porque os "efêndis" do Cairo também com a inércia de meros monumentos.61
não só irão deixar de pagá-los como certamente os colocarão na prisão. As Rico em imagens, o diálogo que se estabelece entre o Egito de descendên­
condições imperiais obrigam as pequenas aldeias a considerarem os artefatos cia árabe e seu passado pré-árabe é ampliado por meio da técnica da mon­
antigos como meios de sobrevivência, um sistema no qual o segredo dessas tagem, conforme a justaposição de tomadas no seguinte exemplo nos revela.
aldeias torna-se seu único poder. Da perspectiva deles, os efêndis são estra­ A tomada de um Wannis angustiado, contemplando o monumento gigante
nhos, desligados da realidade nacional. Ao contrário das representações oci­ de uma perspectiva inferior, é justaposta a uma tomada de cima, como se ele
dentais do Egito, o filme não enfatiza a grandiosidade do antigo reino do Egito fosse visto pelo monumento, ou seja, de um patamar superior. A apresentação
em detrimento da vida árabe contemporânea. Ao invés disso, o filme expõe a da identidade nacional do Egito como uma amálgama de histórias e culturas
complexidade palimpséstica da identidade egípcia. desperta formulações (dos escritores Taha Hussein e Tawfiq al-Hakim, por
Enquanto alegoria da identidade egípcia, Al-Mummia oferece uma refle­ exemplo) acerca dessa identidade como uma síntese do passado faraônico, da
xão sobre o destino de uma cultura nacional. De acordo com Abdel Saiam: língua árabe e da religião islâmica. A citação apresentada na abertura do filme
"Nós temos uma cultura nacional, mas ela está enterrada no fundo da memó­ (tirada de O livro dos mortos) afirmando que aquele que parte não retornará,
ria do povo que nem sempre tem consciência de seus grandes valores�60 Uti­ e a citação final, que suplica pelo "despertar" dos mortos, também devem ser
lizando-se da língua árabe, em improvável tom literário (ao invés de recorrer compreendidas em relação ao contexto no qual o filme foi produzido.62 Du­
ao dialeto existente), os aldeões personificam tanto a herança cultural árabe rante o período posterior à guerra de 1967 e à derrota do Egito por Israel, o
quanto a continuidade de um passado clássico - enfatizado, por exemplo, regime Nasser perdeu muito do seu fascínio, desencadeando um desespero
através do antigo estilo egípcio usado para maquiar os olhos da atriz Nadia generalizado e uma necessidade premente de revisão crítica. Nesse sentido,
Lutfi. Em uma continuidade simbólica e sincrética do Egito faraônico e árabe, a antiga inscrição da ressurreição também é um chamado alegórico para o
o filme associa o antigo Olho de Hórus - apresentado primeiramente em renascimento nacional do Egito do fim da década de 60.

61 Essa reflexão sobre os faraós mais poderosos - MO que foi feito deles?" - relembra o MOzy­
59 Glubok (org.), Discovering Tut-ankh-Amens Tomb, p. 15. mandias» de Shelley.
60 Guy Hennebelle, MChadi Abdel Saiam Prix Georges Sadoul 1970: 'La Momie' est une Réfle­ 62 Ver Ihe Book of the Dead, E. A. Wallis Budge (org.), Londres, Arkana, 1989. [Em português,
2 34 xion sur le Destin d'une Culture Nationale� Les Lettres Françaises, n. 1366, 30 dez. 1977, p. 17. O livro egípcio dos mortos, trad. de Octavio Mendes Cajado, São Paulo, Pensamento, 1985.] 235
O estupro e a fantasia do resgate O pressuposto da escravidão sexual feminina por parte de homens negros
poligâmicos torna-se especialmente irônico quando nos recordamos da sub­
Vários filmes, tais como: O nascimento de uma nação, O último dos moicanos missão histórica das escravas afro-americanas em relação aos proprietários
(1920), Ao rufar dos tambores, Rastros de ódio (1he Searchers, 1956) perpetua­ de escravos, homens brancos de comportamento poligâmico.64 Em seu Inside
ram o tropa do estupro e do resgate, segundo o qual mulheres virgens e bran­ V,ews of Southern Domestic Life (1860), Louisa Picquet retratou a exploração
cas, e às vezes mulheres negras, são resgatadas das mãos de homens negros. sexual de mulheres negras como a essência da hipocrisia sulista branca. Os
No âmbito do discurso colonial, o tópos do resgate ocupa um lugar estratégico brancos se opuseram ao "paganismo do harém turco� ela observa, mas tais
em relação à batalha da representação. O imaginário ocidental não apenas vê haréns eram, por acaso,
metaforicamente a terra colonizada como a mulher que deve ser resgatada
da sua desordem mental e da desordem do meio ambiente, mas prioriza nar­ piores do que aquilo que é constantemente praticado, sem nenhuma palavra de
rativas de resgate mais literais, sobretudo de mulheres ocidentais e não-oci­ reprovação, em nossas terras cristãs? Nossos nobres cavalheiros do sul geram mi­
dentais - sob o domínio de árabes polígamos, negros libidinosos e "machos" lhares de escravos; e centenas de filhos desses mesmos cidadãos livres e brancos
latinos. A figura do estuprador negro, a exemplo do canibal africano, catalisa são vendidos, diariamente, nos mercados de escravos do sul.M
o papel narrativo do libertador ocidental como elemento essencial na fantasia
do resgate colonial. No caso do Oriente, existem ainda implicações teológicas Imagens de mulheres árabes/negras "fogosas" em contraposição a mulheres
quanto à inferioridade do mundo islâmico e polígamo em relação ao mundo brancas e "'frígidas" obliteram, de maneira mítica, a história da submissão das
cristão, representado pelo padre celibatário ou pelo casal monogâmico. mulheres do Terceiro Mundo em relação aos homens do Primeiro Mundo.
Nas hierarquias sexuais cromáticas das narrativas coloniais, homens e mu­ A dicotomia quente/frio sugere três axiomas interdependentes em relação
lheres brancas ocupam o centro da narrativa, sendo que a mulher branca à política sexual do discurso colonial. Em primeiro lugar, acredita-se que a
representa o objeto desejado tanto pelos protagonistas quanto pelos antago­ interação sexual entre homens negros e árabes e mulheres brancas somente
nistas masculinos. As mulheres do Terceiro Mundo - quando não são meros
símbolos eróticos de terras virgens - são marginalizadas, aparecendo basica­ > heterossexual fantasmagórica - por exemplo, em A múmia (19.32), 1he Mummy's Curse
mente como subalternas dotadas de enorme apetite sexual. Em uma cena do (1944), 1he Mummy Harul (1940) -, alegoriza, nesse sentido, os próprios mistérios da se­
filme O Sheik, mulheres árabes - algumas delas negras - literalmente lutam xualidade.
para conquistar o homem oriental. Enquanto a mulher branca tem que ser 64 Em sua autobiografia, Harriet Jacobs aborda a opressão sexual que sofreu na condição de
escrava. Sua luta diária contra o abuso racial/sexual envolveu seu dono, determinado a
seduzida, aprisionada, praticamente estuprada para que seu desejo reprimido
transformá-la em concubina; a esposa ciumenta, com seus próprios assédios; e um futuro
seja despertado, a mulher árabe/negra/latina é movida por um intenso desejo membro do Congresso que, depois de assumir a paternidade de seus filhos, não manteve a
sexual. Desse modo, um duplo discurso apresenta a terra colonizada e seus promessa de libertá-los. Incidents in the Life of a Slave Girl Written by Herself, Fagan Yellin
habitantes como objetos de desejo, ao mesmo tempo puros e obscenos. Justi­ (org.), Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1987. [Em português, Incidentes
da vida de uma escrava contados por ela mesma, trad. de Waltensir Outra, Rio de Janeiro,
fica-se assim a necessidade da repressão sexual vitoriana, sobretudo a repres­
Campus, 1988.]
são da sexualidade feminina.63
65 Louise Picquet, Louisa Picquet, the Octoroon: or Inside Views of Southern Domestic Life,
Nova York, organizado pela autora, 1860, pp. 50-1, em Manning Marahle, How Capitalism
236 63 O mistério nos filmes A múmia, que sempre envolve um tipo de Liebestod ou atração > Underdeveloped Blaclc Amtrica, Boston, South End Press, 1983, p. 75. 237
pode acontecer através do estupro (visto que, naturalmente, mulheres bran­ atores norte-americanos do porte de Alice Faye e James
1 Star", por exemplo)
cas não desejam homens negros ou árabes). O segundo axioma afirma que a E)lison como protagonistas. Em contrapartida, personagens latino-america­
interação sexual entre homens brancos e mulheres negras ou árabes não pode nos. cujo exemplo mais extravagante é Carmen Miranda, atuam em núme­
resultar em estupro (pois mulheres negras ou árabes são naturalmente "quen­ ros •espalhafatosos" que envolvem o balanço de quadris, expressões faciais
tes" e desejam o senhor branco). Finalmente, a terceira premissa sustenta que exageradas, guarda-roupa sensual e kitsch, além de elementos de cenografia
a interação entre homens e mulheres de descendência negra ou árabe não que seguem o estilo tamanho extra-grande. No número "Toe Lady with the
pode resultar em estupro visto que ambos são "quentes" por natureza. Foi exa­ Tutti-Frutti Hat", o espectador assiste a uma Carmen Miranda em miniatura,
tamente essa combinatória racista que gerou o argumento lógico (e tácito) que 1 balançar os quadris em meio às gigantescas imagens de frutas e vegetais.
serviu de base para a castração e linchamento de homens afro-americanos A imagem final da atriz, idealizada como uma verdadeira deusa da fertili­
(considerados uma ameaça às mulheres brancas). Essa combinatória racista dade, reflete a abertura do número, na qual a carga proveniente do sul - cuja
também garantiu a imunidade de homens brancos diante da acusação de es­ natureza material salta aos olhos - é descarregada nos EUA. De acordo com
tupro de mulheres afro-americanas. A negação da possibilidade de existência essa lógica, o norte celebra o sul como o princípio feminino fértil, que gera
de qualquer relacionamento erótico entre europeus e não-europeus também as mercadorias consumidas pelo norte. Além de simbolizarem o reducio­
colaborou para a manutenção do mito da "pureza" étnica do Ocidente. nismo agrícola da monocultura latino-americana, as bananas das canções de
As hierarquias nacionais e raciais do cinema alegorizam um relaciona­ Carmen Miranda também representam símbolos fálicos enrijecidos diante
mento social que vai além da esfera do discurso. No período da política da das sensuais mulheres latinas que se dispõem em formatos circulares, quase
Boa Vizinhança, Hollywood procurou fazer da América Latina sua aliada, vaginais. (No entanto, como sugere a canção, a mulher latina tirará seu cha­
visando à unidade do hemisfério contra os poderes do Eixo. Como os merca­ péu ..somente para Johnny Smith� do mesmo modo que a mulher "oriental",
dos cinematográficos europeus passaram a consumir menos filmes devido à em filmes como Road to Morocco, de 1942, removeria seu véu única e exclu­
guerra, Hollywood, de olho nos mercados da América do Sul, inundou as telas sivamente para o homem anglo-americano.) Muitas vezes, Josephine Baker
com filmes sobre temas "latino-americanos". Cumpre frisar que o tropa do vestia saias das quais pendiam bananas, comparáveis a um "pênis enrijecido
"bom vizinho" raramente envolveu as agradáveis intimidades do casamento e simpático"..66
inter-racial ou inter-nacional existentes entre bons vizinhos. Marginalizadas Os discursos coloniais e de gênero entrecruzaram-se na exploração que
no âmbito da narrativa e, muitas vezes, limitadas a papéis que visam o entrete­ Hollywood fez da Ásia, África e América Latina como pretexto para veicular
nimento, as personagens latino-americanas em Entre a loura e a morena (The imagens erotizadas, sobretudo de 1934 até meados da década de 50, período
Gang's Ali Here, 1943), Too Many Girls (1940) e Aconteceu em Havana (Week­ durante o qual o restritivo Código de Produção proibiu "cenas sensuais" e exi­
End in Havana, 1941) tendem, no final do filme, a estar exatamente no mesmo giu uma permanente defesa da santidade do casamento. Miscigenação, nudez,
ponto do início, contrastando com os protagonistas norte-americanos que danças ou trajes sexualmente sugestivos, bem como "beijos excessivos e ar­
estão em permanente evolução teleológica. Em tais filmes, os números musi­ dentes" foram proibidos, enquanto temas como adultério, sexo ilícito, sedução
cais apresentam o espetáculo da diferença exótica e funcionam, no plano da ou estupro somente poderiam ser sugeridos indiretamente, sob a condição
narrativa, para unir os casais norte-americanos. de que fossem absolutamente essenciais ao enredo e desde que houvesse uma
O processo genérico de divisão do trabalho, típico de filmes como Entre a
238 loura e a morena, colocou nos números "sérios" ou românticos ("A Journey to 66 Phyllis Rose, Jazz Cleopatra, Nova York, Random House, 1989, p. 97. 239
severa punição no fina] do filme. A obsessão ocidenta1 em relação ao harém, até O presente, como, por exemplo, nas várias tentativas de estupro de Brooke
por exemplo, permitiu não somente que Hollywood visua1izasse o Oriente, Shields em Sahara (1983). Para uma sociedade puritana e uma indústria ci­
mas também autorizou a disseminação de imagens sensuais projetadas em nematográfica ainda cercada por códigos moralistas, as terras colonizadas
um outro lugar, diferente e estranho. O Oriente, a África e a América Latina serviram de cenário para um erotismo violento.
desempenharam um papel semelhante em relação à cultura vitoriana. O nascimento de uma ,iação pode ser considerado um dos primeiros
O imaginário imperia1 conseguiu saciar suas próprias fantasias de domi­ exemplos de violência erótica, pois associa obsessivamente fobias sexuais e
nação sexua1 graças à erotização e exotização do Terceiro Mundo. Até mesmo raciais no que parece ser uma negação, alicerçada na culpa, do estupro de
a era dos filmes mudos exibiu danças eróticas, mesclas improváveis de coreo­ mulheres negras por homens brancos. Gus, o "negro" anima1esco, tenta estu­
grafias hispânicas e indígenas com um toque da dança do ventre do Oriente prar a pura e branca Flora, tanto quanto o "mulato" Lynch tenta forçar Elsie a
Médio (The Dance of Fatima, 1903; O Sheik, 1921; e The Son of the Sheik, 1926). se casar com ele; além disso, a "mulata" Lydia não somente acusa um homem
Tais mesclas evocam a freqüente superposição, em pinturas oríenta1istas, de branco inocente de abuso sexual, mas também manipula Stoneman, o poli­
traços visuais de civilizações tão diversas quanto os árabes, os persas, os chi­ tico sexualmente ingênuo. A potência sexual negra metaforiza a ameaça do
neses, e os indianos67 - uma versão pictórica das "marcas do plura1" típicas do avanço político afro-americano. Enquanto isso, a única figura negra não amea­
gênero musical. Um cenário orienta] (a maior parte dos filmes sobre a Ásia, a çadora, a mãe "fiel� é representada como totalmente assexuada. A suposta
África e a América Latina foi filmada em estúdio) permitia que os cineastas hipersexualidade negra anula e provoca o patriotismo masculino (branco),
hollywoodianos expusessem a sensualidade física sem o risco de serem cen­ e a tentativa de estupro de Flora catalisa o grande ato da "libertação" branca.
surados. Na prática, o álibi de que estavam retratando povos menos "civiliza­ A citação de abertura do filme culpa a presença africana na América por ter
dos" fez com que tais cineastas pudessem expor partes do corpo de Va1entino, plantado "a primeira semente da desunião� e o retrato de uma harmonia idea­
Douglas Fairbanks e Johnny Weissmuller; além de um grande número de mu­ lizada entre o norte e o sul (senhores e escravos) antes da abolição toma os
lheres, a saber, Myrna Loy, Maureen O'Sullivan, Marlene Dietrich (dançando negros libidinosos como bodes expiatórios responsáveis pela destruição da
com suas pernas cobertas de ouro) e até Dolores Grey (movendo os quadris). nação. O resgate de Flora e de Elsie, bem como o dos nortistas e sulistas si­
No deserto e na floresta virgem, o tradicional e lento período de namoro que tiados (unidos novamente "na defesa comum do direito hereditário ariano")
antecedia o casamento também pôde ser acelerado - por meio de vigorosas opera como uma alegoria didática cujo fundamento é a visão dos Klansmen
fantasias de domínio e "liberdade" sexua1, e sobretudo por meio de fantasias (membros da sociedade secreta Ku-Klux-Klan) a respeito da "ordem" correta
de poligamia e até mesmo de estupro de mulheres brancas supostamente re­ "das coisas': Como prova de que a única "miscigenação" possível deve ocorrer
primidas. A exibição do estupro em um ambiente despótico e natural perdura somente na esfera regional, o casamento no final do filme confirma a unidade
naciona1 e estabelece uma ordem sexua1 na qual somente o homem branco
67 Por exemplo, Ferdinand-Victor-Eugcne Ddacroix, como Lawrence Michalak afirma, pediu tem acesso à mulher branca, virgem e desejada. Finalmente, a sobreposição
a um costureiro famoso que emprestasse trajes indianos para suas modelos; adicionou al­ da figura de Cristo em relação à da família em festa concede uma bênção re­
guns motivos "assírios" tirados de livros de viagem e miniaturas persas, e inventou o resto do ligiosa ao "nascimento" da nova nação. Esse nascimento abstrato e metafísico
Magreb baseado em sua própria imaginação. "Popular French Perspectives on lhe Maghreb:
oculta um nascimento mais concreto e não menos relevante para a concepção
Orientalist Painting of lhe Late 191h and Early 20th Centuries•, em Connaissancts du Ma­
ghreb: Sciences Sociales et Colonisation, Jean-Claude Vatin (org.), Paris, Mitions du Centre da nação americana: o dos filhos de mulheres negras estupradas. De maneira
240 National dt la Recherche Scientüique, 1984. semelhante, chamar o mulato de "Lynch" (linchamento) é uma culpabilização 241
cruel das vítimas da violência dos brancos contra os negros. Em sua última Os programas contemporâneos de "namoro na Tv" aderiram, de um modo
jogada, Griffith nos mostra o homem branco manifestando seu desejo latente interessante, a uma versão revisada de segregação étnica: homens brancos na­
de estuprar mulheres brancas e inocentes através de um substituto, um ator moram mulheres brancas, homens negros namoram mulheres negras, latinos
caracterizado como negro, como se a cortiça queimada estivesse camuflando namoram latinas, asiáticos namoram asiáticas e assim sucessivamente.
a identidade do verdadeiro criminoso. O Código de Produção de 1930-4 da MPPDA [Associação de Produtores e
Mesmo na ausência de estupro, códigos raciais na tradição do apartheid Distribuidores da América] afirma de maneira explícita:"� proibido que haja
limitaram, de maneira drástica, a interação erótica em filmes anteriores à dé­ miscigenação racial, a saber, relações sexuais entre brancos e negros�69 Essa
cada de 60. A mesma indústria cinematográfica hollywoodiana que havia proibição da união amorosa entre brancos e negros está ligada a uma exclusão
projetado histórias de ..miscigenação amorosa• entre anglo-americanos e par­ mais abrangente relativa aos africanos, asiáticos e índios, a saber, a proibição
ceiros latinos, asiáticos ou árabes - representados, preferencialmente, por de participar das instituições sociais. Traduzindo a obsessão com a "pureza do
atores euro-americanos (Valentino em O Sheik; Dorothy Lamour em Road sangue" em linguagem legal, as leis de miscigenação sulista - como feministas
to Morocco; Maureen O'Hara em They Met in Argentina, 1941; ou Yul Brynner afro-americanas como Anna Julia Cooper e Ida B. Wells já haviam percebido
em O rei e eu, 1956)61 - comportou-se mais timidamente em relação a poten­ no final do século x1x - foram planejadas para manter a supremacia do ho­
ciais parceiros sexuais africanos e índios. Em melodramas como, por exem­ mem branco e para impedir que houvesse transferência de propriedades para
plo, Call Her Savage (1932), Imitação da vida (lmitation of Life, 1934, 1959), os negros na era pós-abolicionista. Segundo Hazel Carby, a "raça� categoria
O que a carne herda (Pinky, 1949), Aventura sangrenta (The Far Horizons, biológica, subordinou-se à raça, categoria politica. 70 Essa ideologia excludente
1955), The Oklahoman (1957) e Matar ou morrer (High Noon, 1952), um receio explica o manto de censura que o Código de Produção estendeu sobre a vio­
de macular o sangue impede as protagonistas ..mestiças" (índias, afro-ameri­ lência e a brutalidade sexuais apagando, desse modo, qualquer representação
canas ou mexicanas) de se casarem com homens mestiços ou de outras raças, de violência sexual e racial em relação aos afro-americanos. Implicitamente,
muito embora tais papéis sejam, em geral, representados por atrizes "brancas•. também desapareceram da memória americana as lembranças de estupro,
Nesses filmes, as protagonistas se afastam, fazendo o sacrifício de retornar às castração e linchamento.71 Em outras palavras, o Código de Produção abortou
suas tribos, aos seus povos ou países. Em outros filmes (Broken Arrow, 1950; a possibilidade de uma contra-narrativa que denunciaria a violência sexual a
Assim são os fortes [Across the Wide Missouri), 1951), as protagonistas são sa­ partir da perspectiva das vítimas, para quem o abuso dos brancos é uma expe­
crificadas em virtude de suas tentativas, a la Pocahontas, de estabelecer um riência histórica central. Por outro lado, El Otro Francisco, um filme do dire­
elo entre as diferentes raças. Até mesmo um gênero "utópico" como o musical, tor afro-cubano Sergio Girai, analisou a violência sexual do branco contra as
totalmente convencional no que tange à expectativa de união do casal, não mulheres negras durante a escravidão como um sistema de controle da famí-
poderia aceitar uma protagonista negra. Somente o melodrama forneceu um
espaço genérico para o romance inter-racial, geralmente fadado ao fracasso. 69 As citações do Código de Produção 1930--4 da MPPDA [Associação de Produtom e Dis­
tribuidores da América] foram tiradas de Garth Jowett, Film: tht Democratic Arl, Boston:
Llttle, Brown & Co., 1976.
68 Para uma análise do romance inter-racial em O rei t tu, ver Caren Kaplan, •Getting to 70 Hazel V Carby, •Lynching, Empire, and Sexuality� Criticai lnquiry, v. u, n. 1, outono de 1985.
Know You: Travei, Gender, and the Politics of Postcolonial Representations in Anna and IM 71 Sobre estupro e violência sexual ver, por exemplo, Jacquelyn Oowd Hall, -lhe Mind that
King of Siam and The King and r, em Ann I<aplan, Roman de la Campa e Michael Sprinker Burns in Each Boy': Women, Rape, and Racial Violence� em Ann Snitow, Christine Stansell
242 (orgs.), Latt lmptrial Culture, Londres. Verso, 1995. e Sharon Thompson (orgs.), Powm ofDtsire, Nova York, Monthly Review Press, 1983. 243
lia negra. De maneira análoga, Bush Mama (1975), de Haile Gerirna enfoca o no harém (Harum Scarum, 1965), que retrata
wla de escape no filme Feriado
estupro de uma mulher negra por um policial branco a partir da perspectiva um lugar parecido com Las Vegas, porém em versão oriental e carnavalizada
feminina. (situado nas areias do deserto de Nevada), com clubes noturnos que parecem
Intelectuais anticolonialistas também recorreram a narrativas de estupro haréns. Na abertura do filme, Elvis Presley - vestindo colete e turbante "orien­
e resgate. Tanto Césaire quanto Fanon inverteram o paradigma colonial ao tais• - aparece cavalgando no deserto. Ao chegar, ele salta do cavalo para sal­
comparar o próprio colonialismo ao estupro e à destruição. Fanon resumiu var uma mulher das mãos de dois árabes mal-intencionados que a haviam
os horrores do colonialismo por meio de imagens incendiárias de brutalidade amarrado a um poste. Mais tarde, o salvador triunfante canta:
contra mulheres colonizadas, as quais deveriam carregar o fardo de represen­
tar o corpo da nação: "Presa, torturada, estuprada, baleada, [a mulher argelina] Irei aonde o sol do deserto for; aonde a diversão estiver; irei aonde garotas do ha­
é o testemunho vivo da violência e da desumanidade do invasor':7J De modo rém dançam: irei aonde houver amor e romance - lá nas areias ardentes, junto a
semelhante, Césaire acusa violentamente os "aventureiros que golpearam, vio­ uma caravana qualquer. Encontrarei aventura onde conseguir. Em síntese, vá para
laram e cuspiram na África com a finalidade de facilitar a apropriação desse o Oriente, meu jovem. Você será um Sheik, rico e majestoso, com dançarinas à sua
continente':71 Assim, intelectuais nacionalistas interromperam as narrativas disposição. Quando o paraíso me chamar, vou me esconder em alguma barraca.
exemplares de violência sexual e sacrifício heróico dos colonizadores para Farei amor como havia planejado. Vá para o Oriente - beba e festeje - vá para o
recorrer à história atual de violência sexual e de expropriação, escrita contra Oriente, jovem rapaz.
as próprias mulheres do Terceiro Mundo. A construção terceiro-mundista do
"nacional� em outras palavras, modificou e subverteu a perspectiva colonial. No discurso orientalista, a abundância material, resultado da aventura im­
Se o discurso colonial recorreu à linguagem marcada pelo gênero para articu­ perial, funciona como parte da utopia genérica do musical, constituindo-se
lar sua missão de progresso, a crítica anticolonial evocou a história resumida como satisfação (da masculinidade) projetada em relação a tudo aquilo que
do estupro das mulheres do Terceiro Mundo. Portanto, ao posicionar a nação desejamos e não conseguimos alcançar em termos do status quo sociopolí­
como um abrigo para as "nossas" mulheres, o anticolonialismo agarrou-se a tico. As imagens do harém oferecem um "Abre-te, sésamo!" mágico para um
uma fantasia de resgate masculina. mundo proibido tentador e excitante, ardentemente desejado pelo homem
primitivo que moraria em todos os homens. Em Kísmet (1955), por exemplo, o
O imaginário do harém dispositivo pan-óptico que pertence ao senhor do harém permite-lhe obser­
var suas várias mulheres sem que elas tenham conhecimento disso. Ao autori­
A exemplo da tendência voyeurística da antropologia e do moralismo da li­ zar uma entrada voyeurlstica em um espaço privado inacessível, a fantasia do
teratura de viagem, o cinema dominante revelou uma obsessão puritana com harém reflete uma utopia machista de onipotência sexual.74 (A literatura eró­
a sexualidade. O desejo masculino - heróico e ocidental - encontra uma vál- tica contemporânea tem reciclado tais fantasias - Turkish Delights, The Lu.stful
Turk [As delícias turcas, O turco sensual] - que enfatizam o sadomasoquismo
inter-racial e "práticas sexuais que vão além da imaginação ocidental".)
72 Frantz Fanon, A Dying Colonialism, traduzido para o inglês por Haakon Chevalier, Nova
York, Grove Press, 1967, p. 66.
73 Aimé Césaire, •introduction� em Victor Schockher, Esclavage et Colonisation, Paris, Presses 74 Enquanto isso, Fcfüni, em Oito e meio, escarnece do protagonista e seu harém ao estilo do
244 Universitaircs de France, 1948, p. 7- rei Salomão, pois isso amplia a poligamia realmente vivida pelo protagonista. 245
o tópos do harém na cultura popular contemporânea evoca, naturalmente,
uma longa história de fantasias orientalistas. Na realidade, viajantes ocidentais
tiveram pouco acesso aos haréns pois, como esclarece a etimologia da palavra
•harémD (harim, em árabe), eles se referem a algo "proibido" e "sagrado� Não
obstante, textos ocidentais delineiam a vida no harém com absoluta precisão,
um pouco na tradição das pinturas de orientalistas europeus (por exemplo,
a tela Turkish Bath (Banho turco], 1862, de Ingres), que foram feitas sem que
os artistas sequer conhecessem o Oriente. As pinturas in loco produzidas por
artistas que realmente viajaram para o Oriente (Delacroix, por exemplo),
serviram em geral para autenticar uma visão falocêntrica que já existia a
priori. O harém era descrito segundo paradigmas fornecidos pelas traduções
européias do livro As mil e uma noites (Alf Laila wa-Laila). Em geral, essas
narrativas foram traduzidas livremente visando à satisfação da preferência
européia por um Oriente passionalmente violento.75 Salomé, cujas origens
semíticas foram destacadas pela voga etnográfica orientalista do século XIX
(como demonstram, por exemplo, os trabalhos de Hugo Von Habermann e
Otto Friedrich), foi a imagem que melhor sintetizou essa visão.
Enquanto o discurso eurocêntrico define o harém como um simples es­
paço dominado pelo homem, um sinal de "despotismo oriental� outras narra­
tivas enfatizam o harém como um espaço privilegiado de interação feminina
e até mesmo de fantasia sáfica. No romance Women of Sand and Myrhh (Misk
al-Ghazal), de Al-Shaykh, por exemplo, embora envolvidas em relações pa­
triarcais, ou seja, apesar estarem envolvidas em casamentos heterossexuais, as
mulheres também mantinham relacionamentos lésbicos. Descrições históri­
cas feitas por mulheres do Oriente Médio relatam um sistema que permitia
relações homossexuais entre mulheres, existindo até mesmo um lugar onde
elas pudessem trocar idéias e informações, longe dos olhos e dos ouvidos dos
homens.76 (No Oriente Médio contemporâneo, ainda são encontrados vestí-

75 Em relação à ideologia orientalista que embasa as traduções de As mil e uma noites para as
lfnguas européias, ver Rana Kabbani, Europe's Myth of Orient, Bloomington, Indiana Uni­
As encarnações do sheik: versity Press, 1986.
de Rodolfo Valentino a 76 Ver, por exemplo, Huda Shaarawi, Harem Years: 1he Memoirs of an Egyptian Feminist (1879-
Elvis Presley. 1924), traduzido para o inglês por Margot Badran, Nova York, Feminist Press at City > 2 47
gios dessa tradição em grupos exclusivamente femininos, nos quais as mulhe­ cenário da sexualidade lésbica, o harém fascinava narradores do sexo mascu­
res, como nos haréns, carnavalizam o poder masculino por meio de piadas lino, ao passo que viajantes do sexo feminino, que tinham mais acesso a espa­
e histórias, bem como do canto e da dança.) Basicamente um fenômeno da ços femininos, minaram e reorientaram a imaginação pornográfica do harém.
classe média alta, como observa Leila Ahmed, o harém histórico foi mais Cumpre salientar que a descrição detalhada dos corpos femininos turcos nas
surpreendente em sua domesticidade. Memórias escritas por mulheres que cartas de lady Mary Wortley Montagu, sobretudo aquelas inspiradas por sua
viviam em haréns descrevem uma vida familiar complexa e uma forte rede visita ao hammam (casa de banho), aponta para urna fascinação erótica subli­
de comunidades femininas que ultrapassam até mesmo os limites das classes minar em relação ao "outro" do sexo feminino, uma fascinação que, às vezes,
sociais. Apesar de sua subordinação, mulheres que viviam em haréns possu­ se mascara como um olhar masculino:
íam e administravam seus próprios bens e, não raro, tinham poderes políticos.
Embora fundamentalmente patriarcal em sua essência, o harém tornou-se Percebi que admirava mais as damas com contornos e pele mais delicados, embora
um claro lugar de contradições.77 Contudo, ele foi submetido a um discurso a­ tais mulheres tivessem rostos, às vezes, menos bonitos do que suas companheiras.
histórico que não questiona as próprias opressões sexuais do Ocidente exerci­ Para ser bem sincera, fui perversa o suficiente para desejar secretamente que o sr.
das, por exemplo, no sistema vitoriano de confinamento doméstico e solitário Gervase fosse invisível e pudesse estar lá.Acredito que ver tantas mulheres bonitas
das mulheres de classe média alta.7� despidas e em diferentes poses teria melhorado muito a sua arte. MO
As mulheres européias formaram um público leitor muito interessado pela
poesia orientalista do século XIX - Beckford, Byron e Moore -, antecipando Viajantes do sexo feminino foram igualmente compelidas a comparar sua
seu posterior interesse por filmes orientalistas como O Sheik e O ladrão de própria opressão com aquela das mulheres do Oriente Médio. Wortley Mon­
Bagdá. Como viajantes, no entanto, suas conversas sobre os haréns oscilavam tagu media com freqüência a liberdade das mulheres inglesas em relação à
entre narrativas orientalistas e testemunhos mais dialógicos. Muitas mulheres das turcas, apontando para os paradoxos dos haréns e dos véus:
ocidentais também partilharam do olhar colonial e contemplativo ocidental,
com textos que discorreram, de modo voyeurístíco, sobre roupas, posturas e É fácil ver que elas têm maior liberdade do que nós temos pois, independente­
gestos orientais, transformando o "outro" feminino em exótico. 79 Enquanto mente da classe social, nenhuma mulher tem permissão para sair às ruas sem ao
menos duas musselinas, uma que cobre toda sua face, exceto os olhos, e outra que
> University of New York, 1987. Ver também Mervat Hatem, "lhe Politics of Sexuality and cobre todo o vestido [ ...].Pode-se imaginar como essa indumentária lhes serve de
Gender in Segregated Patriarchal Systems", Feminist Studies, v. 12, n. 2, verão de 1986. disfarce com perfeição, pois não há como distinguir a grande dama de sua escrava;
77 Para uma crítica da representação eurocêntrica do harém ver Leila Ahmed, "Western Eth­ além disso, é impossível para o mais ciumento dos maridos reconhecer sua mu­
nocentrism and Perceptions of the Harem� Feminist Studies, v. 8, n. 3, outono de 1982. Ver
lher quando a encontra, e nenhum homem ousaria tocar ou seguir uma mulher
também Emily Apter, "Female Trouble in the Colonial Harem", Dijferences, v. 4, n. 1, 1992;
Inderpal Grewal, Home and Harem: Nation, Gender, Empire and the Cultures of Travei,
Durham, North Carolina, Duke University Press, 1996. > Boundary, v. 2, n. 12, primavera/outono de 1984; Gayatri Chakravorty Spivak, "Entering the
78 A representação artística do confinamento doméstico solitário da mulher ocidental de Third World", em ln Other Wor/d5: fasays in Cultural Politícs, Nova York e Londres, Metheun,
classe média alta foi pesquisada e analisada, de modo bem interessante, por Bram Dijkstra, 1987; Marnia Lazreg, "Feminism and Difference: lhe Perils ofWriting as a Woman on Wo­
Ido/$ of Perversity, Nova York. Oxford University Press, 1986. men in Algeria� Femini5t Studies, v. 14, n. 3, outono de 1988.
79 Para uma critica do feminismo ocidental e do discurso colonial ver, por exemplo, Chandra 80 Robert Halsband (org.), The Complete Letters of Lady Mary Wortley Montagu, v. 1, Oxford,
248 Talpade Mohanty, "Under Westem Eyes: Feminist Scholarship and Colonial Discourses", > Oxford University Press, 1965, p. 314. 249
nas ruas[ ... ). O eterno uso do disfarce lhes dá inteira liberdade para seguirem suas ualquer presença masculina visível, mas posicionam o olhar do espectador
inclinações sem nenhum perigo de serem descobertas.H 1 :omo se fosse o do déspota solitário que é entretido por um pequeno grupo
de mulheres sedutoras. Nesses números, as mulheres - praticamente idênti­
Na verdade, Wortley Montagu sugere, implicitamente, que as mulheres turcas s _ evocam a analogia entre o espetáculo musical e o harém não somente
ca
tinham consciência não somente de sua própria opressão, mas também da enquanto construção textual, mas também como prática de estúdio, sendo
opressão sofrida pelas mulheres européias. Contando sobre a perplexidade que O processo de seleção e os ensaios do elenco são concebidos como um
da dona do hammam diante da visão de seu espartilho, Wortley Montagu cita concurso de beleza (um " julgamento de Páris"). Falando dos métodos que
o comentário dessa mesma senhora a respeito do fato de que "os maridos na utiliza para escolher seu elenco, Berkeley conta que um dia entrevistou 723
Inglaterra seriam muito piores do que no Oriente, pois amarravam suas mu­ mulheres para escolher apenas três: "As dezesseis garotas que já faziam parte
lheres em caixas do formato de seus corpos•:s2 do elenco estavam sentadas ao lado esperando. Quando escolhi as três garo­
A imagem popular em relação ao Oriente internalizou os códigos das nar­ tas, eu as coloquei ao lado das dezesseis garotas especiais e elas combinavam
como pérolas':
114
rativas de viagem escritas para o público masculino. Fortes continuidades
unem a etnografia e a pornografia de Hollywood, que freqüentemente inscreve Espaços exclusivamente femininos foram representados de diversas ma­
haréns e déspotas até mesmo em textos não ambientados no Oriente. Na ver­ neiras no cinema feminista alternativo. Documentários como o egípcio
dade, o que poderia ser chamado de "estrutura de harém" permeia a cultura de Ahlam Mumkina [Sonhos possíveis] (1983), de Atteyat El-Abnoudi, e o bri­
massa ocidental. As produções de Busby Berkeley, por exemplo, projetam urna tânico Hidden Faces (1990), de Claire Hunt e Kim Longinotto, examinam o
estrutura de harém semelhante ao Oriente mítico de Hollywood. A exemplo papel feminino na sociedade egípcia. Ambos os filmes exibem seqüências em
do harém oriental, elas alojam uma multidão de mulheres que servem, nas pa­ que mulheres egípcias falam entre si sobre suas vidas na aldeia, narrando com
lavras de Lucy Fischer, como explicação do poder masculino sobre mulheres ironia seus sonhos e lutas contra o patriarcado. Hidden Faces, através do olhar
infinitamente substituíveis.8i A mise-en-scene das tomadas que envolvem ha­ crítico em relação à feminista egípcia Nawal el Saadawi, explora os comple­
réns e dos números musicais estruturam-se em torno do privilégio de expan­ xos conflitos de classe regionais e religiosos enfrentados pelas mulheres que
são do senhor para um espaço absolutamente inacessível a outros homens. A trabalham juntas para criar instituições alternativas. The Veiled Revolution
câmera de Berkeley, como um instrumento pan-óptico, associa prazer visual (1982), de Elizabeth Fernea, mostra mulheres egípcias que redefinem não ape­
à vigilância superior do movimento feminino. O olhar onipresente e móvel da nas o significado do véu, mas também a natureza da própria sexualidade. Bab
câmera, sua ronda aérea ao redor de torsos femininos confinados, personifica ai-Sarna Maftuh [Uma porta para o céu] (1989), produção da cineasta marro­
o olhar abrangente do dono ausente/presente - ou seja, do diretor/produtor e, quina Farida Ben Lyazid, oferece uma interpretação positiva da noção do es­
de forma indireta, do espectador. As produções de Berkeley tendem a excluir paço exclusivamente feminino, contrapondo o feminismo islâmico e as fanta­
sias orientalistas. O filme conta a história de Nadia, uma mulher marroquina
81 Robert Halsband (org.), The Selected Letters of Lady Mary Wortley Montagu, Nova York, St. que retorna de Paris para a casa de sua família em Fez. A total adesão de Nadia
Martin's Press, 1970, pp. 98-7. ao estilo punk, expressa no momento em que ela chega a Marrocos, faz com
82 Halsband (org.), The Complete Letters of Lady Mary Wortley Montagu, v. 1, pp. 314-5.
que esperemos uma narrativa irônica sobre uma árabe ocidentalizada enfren-
83 Para wna análise da "reprodução mecânica" das mulheres nos filmes de Busby Berkeley, ver
Lucy Fischer, "lhe Image of Woman as lmage: lhe Optical Politics of Dames� em Patricia
250 Erens (org.), Sexual Strategems: The World of Women in Film, Nova York. Horizon Press, 1979. 84 Citado em Fischer, "lhe Image ofWoman as Image� p. 44. 251
tando problemas de adaptação em sua terra natal. Contudo, Nadia redescobre s
A odisséia do de erto
o Marrocos e o islamismo e acaba apreciando tanto a convivência comllllÍtá­
ria com as mulheres de sua família, quanto a proximidade em relação ao pai. imperial seja basicamente machista, o papel ambíguo
Embo ra a nar rativa
Sua iniciação religiosa é feita por uma mulher mais velha, !Grana, que tem nas européias, como no caso do harém, complica a
das personagens femini
uma abordagem flexível em relação ao islamismo: "Cada indivíduo o inter­ análise- A intersecção dos discursos coloniais e da retórica do gênero faz com
preta através de sua própria inteligência e era históricà'. À medida que Nadia e mutável. Quer seja como
que O posicionamento do sujeito seja contraditório
personagem feminina pode
desperta espiritualmente, ela abandona a idéia do Ocidente como um lugar viajante. colonizadora, enfermeira ou cientista, a
de libertação e passa a ver a sociedade árabe/mulçumana como um possível representar, ao mesmo tempo, um ponto de vista "centralizado" e "periférico",
espaço de realização. Seguindo a tradição islâmica que orienta as mulheres a identidade e alteridade.Além disso, nas narrativas imperiais, uma mulher oci­
usarem sua riqueza para executar obras de caridade social, ela transforma a dental pode estar subordinada a um homem ocidental e ainda assim dominar
espaçosa casa da família em abrigo para mulheres que haviam sofrido algum homens e mulheres não-ocidentais. Essa racionalidade textual corresponde
tipo de violência física. Paralelamente, o filme não se omite em relação aos à posição histórica de muitas mulheres européias que representaram papéis
abusos patriarcais do islamismo como, por exemplo, as leis que consideram a ambíguos em relação aos povos colonizados (tanto homens quanto mulhe­
mulher como "meia pessoa" e que favorecem sistematicamente os homens em res).16 Em mu.itos filmes, mulheres européias tornam-se o instrumento de
relação ao casamento e ao divórcio. A estética do filme, por sua vez, privilegia visão de homens brancos e recebem a concessão de um olhar mais poderoso
os ritmos de contemplação e espiritualidade, utilizando-se de movimentos do que o de mulheres e homens não-ocidentais. Essa superioridade efêmera
de câmera lentos que enlaçam os vários contornos da arquitetura árabe em concedida a mulheres européias em um contexto colonial foi exemplificada
seus pátios e fontes, bem como nos reconfortantes espaços internos. Dedi­ no filme O Sheik. Baseado no romance de Edith Hull, o filme de George Mel­
cado a Fatima Fihra, uma histórica mulher mulçumana que - no século x ford primeiro apresenta ao espectador o mundo árabe na forma do "ritual
- fundou uma das primeiras universidades do mundo, o filme Bab ai-Sarna bárbaro" do mercado matrimonial, visto como uma loteria de cassino na qual
Maftuh é o precursor de uma estética que afirma a cultura islâmica. Dotado de os árabes selecionam mulheres para servir como "escravas e bens móveis". Ao
consciência feminista, o filme oferece uma alternativa tanto para o imaginário mesmo tempo, a personagem da mulher ocidental - geralmente o objeto do
ocidental quanto para a representação islâmica e fundamentalista das mulhe­ olhar masculino em filmes de Hollywood - é favorecida com um olhar (colo­
res muçulmanas. Enquanto alguns documentários contemporâneos mostram nial) ativo. Temporariamente, ela se torna a única representante da civilização
reuniões exclusivamente femininas como espaços de resistência ao patriar­ ocidental. As "normas do texto" (expressão de Boris Uspensky) são represen­
cado e ao fundamentalismo, Bab ai-Sarna Maftuh, por outro lado, usa espaços tadas pelo homem ocidental mas, na sua ausência, a mulher branca se torna o
exclusivamente femininos para enfatizar um projeto libertador baseado na centro da consciência civilizatória. 87
reveladora história da presença feminina no islamismo, uma história que in­
clui tanto espiritualidade feminina, profecia, poesia e criatividade intelectual, 86 Ver, por exemplo, Cynthia Enloe, Bananas, Beaches, and Bases: Making Feminist Sense of

quanto revolta, poder material e liderança social e política.8� Inteniational Politics, Berkeley, University of Califomia Press, 1989, pp. 19-41. Ver também
Nupur Chaudhuri e Margaret Strobel (orgs.), We.stern Women and Imperia/ism: Complicity
and Resistance, Bloomington, Indiana University Press, 1992; Vron Ware, Beyond the Pale:
85 Ver Fatima Mernissi, 1he Forgotten Queens of l5úim, traduzido para o inglês por Mary Jo White Women, Racism and History, Londres, Verso, 1992; Margaret Strobel, European Wo­
252 Lakeland, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1993. men and the Second British Empire, Bloomington, Indiana University Press, 1991. 253
87 A ideologia do fardo da mulher branca em O rei e eu (1956) e Entre dois amores (1985) >
Narciso negro, de Michael Powell e Emeric Pressburger, um filme sobre a detrimento da identidade sexual dos homens negros. Tais contradições en­
..missão civilizatória" de freiras britânicas na lndia, apresenta variações curio­ tre as hierarquias racial e sexual têm-se acentuado nos recentes filmes libe­
sas sobre o tema. Embora grande parte do enfoque da narrativa seja o das frei­ rais de nostalgia pelo império. Ao retratar protagonistas femininas de espírito
ras, as normas textuais são, em última instância, personificadas pelo homem empreendedor, esses filmes supostamente se dirigem a um público feminista,
britânico. Sua "profecia" inicial de que as desertas montanhas da lndia vão ainda que reproduzam uma narrativa colonial e de convenções cinematográ­
escapar da conversão dos cristãos é confirmada quando o filme termina e a ficas. A dessexualização do bom africano ou do indiano (o criado) em filmes
catástrofe física, aliada ao caos mental, enfraquece a ordem religiosa, punindo como Nas montanhas dos gorilas (Gorillas in the Mist, 1989), Passagem para a
as freiras simbolicamente. Enquanto o britânico domina os encontros intra­ lndia e Entre dois amores, na mesma tradição da dessexualização da empre­
europeus, as freiras representam filtros privilegiados e centros de consciência gada doméstica em O nascimento de uma nação e ... E o vento levou (Gone with
em relação aos ..nativos" (tanto os homens quanto as mulheres). Uma variação the wind, 1939), está associada à ocupação temporária, pela mulher branca, da
sobre o mesmo tema é oferecida em Entre dois amores, teoricamente um filme posição de "pai" em relação aos "nativos�
"feminista" sobre a própria exploração feminina, mas que transforma a prota­ Filmes "exoticizantes" também autorizam trapos transexuais subliminar­
gonista em bode expiatório ao colocá-la como representante da ideologia co­ mente, uma vez que o Oriente fornece um escoadouro para peças carnava­
lonial, enquanto seu amante (o personagem de Robert Redford) é o portador lizadas sobre identidade nacional e de gênero. Isabelle Adjani se disfarça de
das "normas do texto" liberais. rebelde árabe em Ishtar (1987) e Brooke Shields de piloto americano de carros
Em resumo, o discurso colonial sobre gênero permite que as mulheres oci­ de corrida no deserto em Sahara (1983), enquanto Rodolfo Valentino (O Sheik
dentais ocupem uma posição relativamente poderosa na superfície do texto, e The Son of the Sheik), Douglas Fairbanks (O ladrão de Bagdá), Elvis Pres­
mas somente como detentoras de um olhar mais colonial que sexual. Oca­ ley (Feriado no harém), Peter O'Toole (Lawrence da Arábia), Warren Beatty
sionalmente, os meios de comunicação contemporâneos utilizam esse tópos e Dustin Hoffman (lshtar) estão todos disfarçados de árabes. Esses disfarces
colonial como, por exemplo, nos anúncios publicitários de Ralph Lauren para manifestam um desejo latente de transcender tanto identidades nacionais fi­
"Safari� gravados em grande parte em locações africanas. Tais anúncios ape­ xas, quanto as de gênero. Em O Sheik, a personagem de Agnes Ayres, ajudada
lam à liberdade que a mulher de classe alta tem para viajar e se "realizar� As por mulheres árabes, põe um vestido "árabe" para penetrar no "mercado ma­
imagens evocativas de uma viajante branca em uma selva - vestida em um trimonial" oriental, assumindo a posição inferior da mulher árabe a fim de
conjunto de calça e casaco brancos, o rosto coberto pela renda que pende do (paradoxalmente) aguçar seu olhar sobre o despotismo oriental. A mudança
chapéu de explorador, carregando uma mala, esperando por um avião antigo, de sexo em filmes mais recentes tais como Sahara e Ishtar possibilitaram
ou cercada por corpos negros - são justapostas a anotações de diário que desvios inofensivos da linguagem corporal "feminina". Em contra-narrativas
dizem: "Um mundo de romance sem fronteiras� Nesses momentos de atrito, como A batalha de Argel, disfarces nacionais e de gênero assumem um signi­
privilegia-se relativamente a identidade nacional da "personagem" branca em ficado muito diferente: mulheres argelinas rebeldes se disfarçam usando "mo­
dernos" vestidos ocidentais, mudando a cor dos cabelos para loiro e agindo
de maneira faceira com os soldados franceses. Nesse caso, é o Terceiro Mundo
> contrasta com a visão proposta em filmes como La Noire de... (1966), de Ousmane Sem­
que veste o disfarce ocidental, não como um gesto de imitação obliterante,
bene, que apresenta a relação entre a empregada senegalesa e sua patroa francesa como
mas como um meio de sabotar o regime colonial.
opressiva. Um outro filme que destoa da ideologia do fardo da mulher branca é Maid5 and
25 4 Madams (1985), documentário de Mira Hamennesh sobre a África do Sul. 255
O'Toole modifica, na esfera do gênero, o significado daquilo que é usualmente
considerado como símbolo fálico, sobretudo ao usá-lo como espelho para ver
sua nova imagem oriental "feminina". Em termos mais gerais, a relação entre
Lawrence e o personagem de Omar Sharif progride, gradualmente, de uma
rivalidade masculina inicial para uma cumplicidade erótica subentendida,
cumplicidade na qual Sharif é associado às imagens femininas. O momento
que melhor condensa essa idéia é quando Sharif, com os olhos enevoados de
Homoerotismo e travestismo no Oriente: Lawrence do Arábio e Sohoro. lágrimas, identifica-se com o atormentado Lawrence. O subtexto do homoe­
rotismo inter-racial em Lawrence da Arábia é parte de uma longa tradição que
Visto que, desde a "Grande Renúncia Masculina�88 a indumentária do ho­ vai de Robinson Crusoé e Huckleberry Finn até A volta ao mundo em 80 dias
mem ocidental ficou limitada a trajes austeros e sem cor, o Oriente fantástico (nas figuras de Phileas Fogg e Passepartout, seu empregado negro).90 O ar­
permitiu que a imaginação se tomasse exuberantemente "nativa".. Foram as quicolonialista Trader Horn (1931) desenvolve um subtexto homoerótico que
imagens populares amplamente disseminadas em jornais e cinejornais de permeia a relação do protagonista, um aventureiro branco, e seu empregado
T. E. Lawrence vestindo trajes árabes informais que inspiraram, em parte, negro, a quem o protagonista ofende verbalmente ao longo do filme, mas a
filmes como O Sheik e The Son of the Sheik, cujo apelo bissexual reside na quem ele carrega e acaricia quando ferido. A agonia emocional do filme aflora
construção do guarda-roupa do homem ocidental como "feminino"..89 Con­ em uma homenagem triste após a morte do "garoto" negro, e é transfigurada a
tudo, a aparência "feminina" codificada é encenada no espaço seguro do oásis partir daí em uma superposição nostálgica da perda daquele que havia sido o
oriental. Se por um lado o Lawrence representado por David Lean obedece às objeto do seu amor. Entretanto, a maior parte das produções sobre o império,
normas clássicas da masculinidade heróica, por outro, ele também se banha desde o faroeste até os recentes filmes de nostalgia pelo império como, por
em uma luz homoerótica. Aceito pela tribo árabe, ele se veste todo de branco, exemplo, As montanhas da Lua, preferem o homoerotismo intra-europeu.
e uma cena posterior o mostra andando a cavalo, movendo-se delicadamente, Desse modo, privados do contato com mulheres e forçados a uma intimidade
conduzido como uma noiva. Desembainhando sua espada, o personagem de física entre si, os exploradores acabam nutrindo afeição e desejo ao longo do
árduo trabalho em terras desconhecidas e hostis. Na verdade, o homoero­
88 Ver J. C. Flugel, 1he Psychology of dothes, Londres, Hogarth Press. 1930. [Em português, A tismo pode permear até mesmo narrativas heterossexuais do império.
psicologia das roupas, trad. de Antonio Ennes Cardoso, São Paulo, Mestre Jou, 1966.) Para
No interior dessa mesma dialética sintomática, podemos encontrar dese­
uma discussão mais detalhada a respeito dos escritos de Flugel sobre moda, consultar Kaja
Silverman, ªlhe Fragments of a Fashionable Discourse� em Studies in Entertainment: Cri­ jos heterossexuais brancos deslocados para homens africanos, árabes e lati­
ticai Approaches to Mass Culture, Tania Modleski (org.), Bloomington, Indiana University nos, que representam o id para o superego ocidental masculino. No filme O
Press, 1986; consultar também Kaja Silverman, 1he Accoustic Mi"or: 1he Female Voice in Sheik, por exemplo, enquanto Valentino é mostrado ao espectador como um
Psychoanalysis and Cinema, Bloomington, Indiana University Press, 1988, pp. 24-7. árabe, ele atua como id. Entretanto, a revelação de que ele é filho de europeus
89 O jornalista americano Lowell Thomas desempenhou um papel fundamental na popula­
rização do mito de T. E. Lawrence no Ocidente; seu espetáculo, que consistia de palestra e
cena gravada em frente a uma batalha no Oriente Médio, foi logo transferido para o Madi­ 90 Leslie Fiedler observa que a amizade homoerótica entre homens brancos e negros ou indí­
son Square Garden. Ver John E. Mack, A Prince of Ou, Disorder: the Life of T. E. Lawrence, genas tomou-se central para o romance americano clássico. Ver Fiedler, Love and Death in
256 Boston, Little, Brown & Co., 1976, p. 276. lhe American Novel, Nova York, Criterion Books, 1960. 257
-0 transforma em uma imagem do superego, que arrisca sua vida para resga­ apenas engajam o espectador ocidental em uma operação nacional de resgate,
tar a inglesa dos estupradores árabes. Além disso, a mulher inglesa supera
91
mas também o convidam a participar de um voyeurismo orgíaco. O desejo
sua repressão sexual somente no deserto, depois de inúmeras provocações do pela mulher ocidental, e o medo de perder o controle sobre ela, manifestam-se
sheik. Valentino, o "amante latino� é projetado em um espaço "exótico" onde na punição de Shields através do estupro árabe. No final, entretanto, a heroína
ele pode encenar fantasias sexuais jamais imaginadas em um cenário euro­ _ uma corajosa vencedora da raça - decide por conta própria retornar para
peu ou americano. Nesse sentido, o deserto funciona, no âmbito da narrativa, 0 nobre"sheik" (branco) que arriscou sua vida para salvar a dela. Ela poderia
como o limiar da moral. Geralmente, filmes orientalistas começam na cidade ser independente, mas "voluntariamente" escolheu os antigos modos de hie­
- área do Oriente já domesticada pela civilização européia - e guardam os rarquia do gênero.
conflitos mais dramáticos para o deserto, onde mulheres brancas indefesas Na verdade, fica implícito que as mulheres, embora ofendidas pelos estu­
podem facilmente se tornar escravas de sheiks ou árabes mal-intencionados. pradores árabes/mulçumanos, preferem homens dominadores como Valen­
A atitude de colocar uma mulher branca "passível de sofrer estupro" ao lado tino.92 Após o lançamento do filme O Sheik, alguns colunistas perguntaram
de um homem luxurioso em algum lugar isolado do deserto acaba dando a Valentino: "As mulheres gostam de homens dominadores?� Ao que o astro
expressão deslocada a uma fantasia machista de controle despótico da mu­ respondeu: "Todas as mulheres gostam de um pouco daquela coisa dos ho­
lher ocidental. Portanto, a Hollywood puritana censura a ousadia da mulher mens da caverna. Não importa se são feministas, sufragistas ou aquelas co­
branca, bem como a tirania masculina dos haréns e estupros - mas, parado­ nhecidas como novas mulheres, elas gostam de ter um homem dominador
xalmente, o faz apenas como um meio de satisfazer os desejos sexuais inter­ que as obrigue a fazer aquilo que eles defendem�93 Edith Hull, a autora do
raciais ocidentais. romance, expressou opinião semelhante: "Deve haver um único chefe na casa.
A fantasia do resgate masculino e da punição da rebeldia feminina tam­ Apesar do desejo moderno de igualdade dos sexos, eu ainda acredito que
bém fortalece a narrativa de uma refilmagem mais recente de O Sheik e The flsica e moralmente é melhor que o chefe seja um homem�94 O romance de
Sono/ the Sheik: o filme Sahara, de Golan. Em Sahara, Dale (Brooke Shields) é Edith Hull e a adaptação de Monic Katterjohn satisfazem um desejo feminino
uma piloto irascível de carros de corrida e filha única de um fabricante de car­ ocidental que se projeta em direção a um amante "exótico� um desejo por um
ros da década de 10, apresentada como imprudentemente confiante em seu jogo romântico, sensual, apaixonado (mas não mortal) com a Liebestod,95 uma
desejo de penetrar o domínio masculino do deserto oriental e competir em liberação do id da mulher ocidental (isolada) de classe média. Nesse sentido,
uma corrida "exclusivamente masculina� Ela assume um disfarce masculino, o fantasma do Oriente pode ser incorporado pelas mulheres ocidentais como
adota uma profissão masculina e imita o domínio tecnológico masculino.
Capturada por uma tribo, ela se torna uma commodity valiosa, disputada por
92 Para uma análise da relação entre Valentino e as espectadoras brancas, ver Miriam Hansen,
diversas outras tribos. Contudo, o modo como a câmera fetichiza seu corpo ªPleasure, Ambivalence, Identification: Valentino and Female Spectatorship9, Cinema Jour­
denuncia ironicamente a predileção ocidental por apresentar os corpos das nal, v. 25, n. 4, verão de 1986.
atrizes como commodities. Cenas de Shields lutando com seus raptores não 93 Movie Weekly, 19 nov. 1921.
94 Ibid
95 Denis de Rougemont busca parte do motivo da Liebestod na poesia árabe. Ver de Rouge­
91 Curiosamente, a obra 1he lnadvertent Epic, de Leslie Fiedler, cita uma outra romancista mont, Love in the Western World, traduzido para o inglês por Montgomery Belgion, Nova
branca, Margaret Mitchdl, cujo ... E o vento levou foi estruturado de acordo com cenários de York, Harper and Row, 1974. [Em português, O amor e o Ocidente, trad de Paulo Brandi e
158 estupro interétnicos. Ethel Brandi Cachapuz, Rio de Janeiro, Guanabara, 1988.] 15 9
parte de um discurso colonial mais amplo sobre o "exótico", constituindo ao
mesmo tempo uma saída imaginária para desejos sexuais contidos.
Quando interpretada literalmente - como a libertação da mulher das gar­
ras do árabe lascivo -, a fantasia do resgate não somente alegoriza a salvação
do Oriente de sua própria propensão instintiva para a destruição, mas repre­
senta ainda um Bildungsroman didático para donas de casa, perpetuando, por
contraste, o mito da igualdade sexual do Ocidente. Os filmes "exoticizantes"
da década de 20, como os contemporâneos, deslegitimaram as identidades
nacionais do Terceiro Mundo e deram voz a uma reação antifeminista; ou 5. Estereótipo, realismo e luta por representação
seja, responderam à ameaça ao poder patriarcal institucionalizado represen­
tada pelos movimentos que defendiam o sufrágio feminino e a incipiente luta
feminista. Nesse sentido, as narrativas das viajantes ocidentais pelo Terceiro
Mundo podem ser lidas como urna alegoria didática que insinua a natureza
perigosa do "homem não-civilizado", saudando - por conseqüência - a li­
berdade teoricamente desfrutada pelas mulheres ocidentais. Em O Sheik e Muitos dos estudos sobre a representação étnica/racial e colonial nos meios
Sahara, a mulher ocidental primeiro se rebela contra a "tradição civilizada" do de comunicação têm sido "corretivos� ou seja, dedicam-se a demonstrar que
casamento, chamando-o de "escravidão", para logo depois tornar-se a prisio­ certos filmes, de um jeito ou de outro, "cometeram algum erro" histórico,
neira literal de homens negros libidinosos. (As mulheres do Terceiro Mundo, biográfico ou de outro tipo. Se essas análises sobre os "estereótipos e as dis­
em tais narrativas, não demonstram nenhum desejo de se rebelarem ou de ex­ torções" propõem questionamentos legítimos sobre a plausibilidade social e
plorar o mundo.} Ao transgredir o espaço masculino - penetrando o mercado acuidade mimética, sobre imagens positivas ou negativas, elas geralmente têm
matrimonial disfarçada de mulher árabe, em O Sheik, disfarçada de piloto de como premissa uma aliança exclusiva com uma estética da verossimilhança. 1
carro de corrida em Sahara -, o orgulho desmedido da protagonista branca, Uma obsessão com o "realismo" emoldura a discussão, que parece se resumir
sua incapacidade de apreciar os homens ocidentais que a protegeram contra a urna simples questão de identificar "erros" e "distorções� como se a "ver­
os árabes do deserto, tudo isso conduz a uma "quedà' e à punição "pedagógica" dade" de uma comunidade fosse simples, transparente e facilmente acessível,
representada pela tentativa de estupro. A "volta para casa" dessa odisséia no e "mentiras" fossem facilmente desmascaradas. Os debates sobre a represen­
deserto é, portanto, a punição disciplinar das fantasias femininas de liberta­ tação étnica são muitas vezes paralisados quando esbarram na questão do
ção e a apreciação renovada, por parte do espectador, da ordem sexual, racial "realismo", às vezes chegando a um impasse no qual diversos espectadores ou
e nacional-imperial. críticos defendem apaixonadamente sua própria visão do "real�

1 Steve Neale aponta que os estereótipos são julgados simultaneamente em relação ao •real"
empírico (acuidade) e um •ideal" ideológico (imagem positiva). Ver Neale, ·Toe Sarne Old
260 Story: Stereotypes and Difference", Screen Educatio11, n. 32-3, outono/inverno de 1979-80. 261

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