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Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação ano 2018 Carlos
Drummond de Andrade do Instituto Francês do Brasil, contou com o apoio do
Ministério francês da Europa e das Relações Exteriores 1 Cet ouvrage, publié dans le cadre
du Programme d'Aide à la Publication année 2018 Carlos Drummond de Andrade de l'Institut
Français du Brési~ bénéficie du soutien du Ministere de l'Europe et des Affaires étrangeres.
Este livro contou com o apoio à publicação do Institut Français 1 Cet ouvrage a bénéficié
du soutien des Programmes d'aides à la publication de l'Institut Français
BRASIL
t~Ts Llbertl•Égalllé• Fr11temirr!
RÉPUBLIQUE FRANÇAISE
AMBASSADE DE PRANCR
AU B'RÉSIL
A reprodução parcial sem fins lucrativos deste livro, para uso privado ou
coletivo, em qualquer meio, está autorizada, desde que citada a fonte.
Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato
com os editores. TRADUÇÃO Sebastião Nascimento
n-1edicoes.org
... estas cabeças humanas, estas colheitas de
orelhas, estas casas queimadas, estas invasões
góticas, este sangue que fumega, estas cidades
que se evaporam à lâmina do gládio, não é a tão
baixo preço que nos desembaraçaremos delas.
Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo
Capítulo 4
11 O devir-negro do mundo 185 O pequeno segredo
Vertiginoso conjunto Histórias do potentado
A raça no futuro O espelho enigmático
Erótica da mercadoria
1 O tempo negro
27 O sujeito racial Corpos, estátuas e efígies
Fabulação e clausura do espírito
Recalibragem Capítulo 5
O substantivo "negro" 229 Réquiem para o escravo
Aparências, verdade e simulacros Multiplicidade e excedente
A lógica do curral O farrapo humano
Do escravo e do espectro
2 Da vida e do trabalho
79 O poço dos fantasmas
Uma humanidade sustada Capítulo 6
Atribuição, interiorização e inversão 263 Clínica do sujeito
O negro de branco e o branco de negro O senhor e o seu negro
Paradoxos do nome Luta de raças e autodeterminação
O kolossós do mundo A elevação em humanidade
Partilha do mundo O grande estrondo
O nacional-colonialismo A violência emancipadora do colonizado
Frivolidade e exotismo A nuvem de glória
Autocegamento Democracia e poética da raça
Limites da amizade
Epílogo
3 309 Existe um só mundo
143 Diferença e autodeterminação
Liberalismo e pessimismo racial
Um homem como os outros?
O universal e o particular
Tradição, memória e criação
A circulação dos mundos
O SUJEITO RACIAL
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dar ao ressentimento amargo, ao irrepreensível desejo de como mais genuínos - a luta de classes ou a luta de sexos, por
vingança, isto é, à raiva daqueles que, condenados à sujei- exemplo. Em muitos casos, é uma figura autônoma do real,
ção, veem-se com frequência obrigados a sofrer uma infini- cuja força e densidade se devem ao seu carácter extremamente
dade de injúrias, todos os tipos de estupros e humilhações, móvel, inconstante e caprichoso. Aliás, há bem pouco tempo,
e incontáveis feridas. 2 Neste livro, interpelaremos a natureza a ordem do mundo fundava-se num dualismo inaugural que
desse ressentimento, dando conta daquilo que constitui a encontrava Pªf!~i~~~~~-1~~!!f~~?S2~lUlQ_y~JhQ rnito_dasupe;~--
raça, sua profundidade a um tempo ;eal e fictícia, as relações rioridade racial.s Em sua ávida necessidade de mitos desti-
por meio das quais se exprime e o papel que desempenha no nãdõsãlüiiêfâil{~~tar seu poder, o hemisfério ocidental con-
movimento que consiste, como aconteceu historicamente siderava-se o centro do globo, a terra natal da razão, da vida
com os povos de origem africana, em transformar a pessoa universal e da verdade da humanidade. Sendo o rincão mais
humana em coisa, objeto ou rnercadoria.3 "civilizado" do mundo1 só g_Q.ci.d~Jlt~_fQj,s;ªpaz.deinve11taP"um
""=·"''""~""
todas da figura animal com a qual se confundiam. No fundo inventados, escapou-lhe justamente o objeto que buscava
'···-··- .. .. '
er,a_da"8uan:ature?:ª ~briga,ro que já e~tav~morto.
, __ ,
6. Ver Pierre Larousse, Negre, Négrier, Traite des Negres. Trais articles du Grand
. meng,s,J:gn
cai:ª~tex:J.~~q,!lm"',Jl~m~om~.e~qlto
Dictionnaire universel du XIXe siecle, prefácio de Françoise Verges, Bleu autour, Paris, ~;'me próprio,
~'K%""""·'-""""'"
mas o indício de uma ausência de obra.
' ~,,_;'°"''""'"'"·'''"~'~''''i·~'.·'1'"Í~·~''"\'!·1ii:r.l~~'õf'.'<1..S.Oi:"".''''~·~lr~""..0"(~~"?sr.~z,,:f!iJi~fif~1~'"';»,::l,~{'f"]'.)2~)\';~1~ ,~,_;;·,"1,,~.·
1 '°'
2009,p.47. E vefâãiiê' que nem todos os negros sao arncanos e nem
7. Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Fenomenologia do Espírito, 9ª· edição, tradução de
Paulo Meneses, Ed. Vozes, São Paulo, 2017, p. 469.
todos os africanos são negros. Apesar disso, pouco importa
~- ~a~afraseada ~elo autor como écart sans retour, a expressão original de Valéry onde eles estão. Enquanto objetos de discurso e objetos do
e ligeiramente diversa - éloignement sans retour -, preservando porém o mesmo
sentido; ver Paul Valéry, Introduction à la méthode de Léonard de Vinci, Éditions
de la Nouvel!e Revue Française, Paris, 1919 [1894], p. 27 [Introdução ao método de 9. Pierre Larousse, op. cit., p. 68.
Leonardo da Vinci, edição bilíngue francês/português, tradução de Geraldo Gérson to. Christopher Leslie Brown, Moral Capital. Foundations of British Abolitionism,
de Souza, Ed. 34, São Paulo, 1998, p. 146-147]. [N.T.] University of North Carolina Press, Chape! Hill, 2006.
30
CRÍTICA DA RAZÃO NEGl<A O SUJEITO RACIAL 31
conhech11ento, desde o início da época moderna, a África e e suas instituições das formas autóctones de servidão. Com 11
<J têm .mergulhado numa crise aguda tanto a teoria da ;fuit~s'XWéxrx, ohori~onte espacial da
non1inação quanto o estatuto e a função do signo e da repre- Europa alargou-se consideravelmente. O Atlântico foi-se
sentação. Aconteceu o mesmo com as relações entre o ser tornando o epicentro de ~~.!1,;,!JlQ.Y~tW.Ukat~~~'!.~~~,~~.~IJllJJl
e a aparência, a verdade e a mentira, a razão e a desrazão, doST&4ugªr,à~2.~1~,,~Uf.~!filIL!::ltll.~.D,Ç?',~!!.,S2U~!;i~!lS1~tE!.~:1e
em suma, entre a linguagem e a vida. De fato, sempre que se t<iiÍt~~Esse acontecimento se segue às tentativas europeias
tratou dos negros e da África, a razão, arruinada e esvaziada, anteriores de expansão rumo às Canárias, à Madeira, aos
jamais deixou de girar em falso e muitas vezes se perdeu Açores e às ilhas de Cabo Verde, correspondentes à etapa
num espaço aparentemente inacessível, onde, fulminada a inicial da economia de plantations utilizando mão. --"-"qçDhra
-- ~~ ~ ....~~- .... ~~ ~·-•·'-"'·-·_..~
linguagem, as próprias palavras careciam de memória. Com de_~§J~:ta'l:os. af:rJ~ç-ªnos. 12 -~ --- -~~ · ~ -~~ ~ ~
a extinção de suas funções elementares, a linguagem trans- A transformação de Espanha e Portugal - de colônias
formou-se num fabuloso mecanismo cuja força vem simul- periféricas do mundo árabe em motores da expansão tran-
taneamente de sua vulgaridade, de um formidável poder de satlântica europeia - coincidiu com o afluxo de africanos à
violação e de sua proliferação erradia. Ainda hoje e quando própria Península Ibérica, º,,,1li~l2~tt\S~!,~~!;,;,,S.~,,,1:llu:!i~º
se trata dessas duas marcas, a palavra nem sempre repre- çlÇls,, · · · ' · a ós a Peste Ne a (Black Death) e a
senta a coisa; o verdadeiro e o falso tornam-se indissociáveis Grande Fome,do. .século XIV. A maioria era e escravos '
.'1<fu.~~"2ll%M.'tfi0~~)1.~;9i~i%~~W>;'.Ji·,;A.~Y:;,"',,_,;,~-;r,\:-;..t\!:H;i;4.;f!,;'.';\<~):Jl•A~'%1&\ffi5f,:;;::<>:f,.-S1.
s
e a significação do signo não é necessariamente a mais ade- nem todos: também 'havia entre eles alguns homens livres.
quada à coisa significada. Não foi só o signo que substituiu a Se, até então, o aprovisionamento de escravos na Península
coisa. Muitas vezes, a palavra ou a imagem têm pouco a dizer ocorria por meio das rotas transaarianas controladas pelos
sobre o mundo objetivo. O mundo das palavras e dos signos mouros, operou-se uma reviravolta ~tn~'"""~ec.~"""~~ nos idos de i440, quando
autonomizou-se a tal ponto que não se tornou apenas uma os ibéricos inauguraram CQI1!<l:!()§Q.Ír§.LQJ>Sº!P a ~ric~LOci-
tela para apreensão do sujeito, de sua vida e das condições d~.mªl e_C,e,ntral viaOce~~o Atlântico.'õs primeiros negros
de sua produção, mas uma força em si, capaz de se libertar c:Pt~~7i<l~~·"'~;:;,·7ãzias"'ê''ê'õnvêrfrtto~"·~ objeto de leilões
;~~.~~~i~t~~~~~i~Y~fini~~:t~~i~C1i~~::i~!![:~1!~:~~~
de qualquer vínculo com a realidade. A razão disso pode ser
atribuída em grande medida à lei da raça.
Seria errôneo pensar que saímos definitivamente desse afiicana cresceu em decorrência.cl!ssoemilhares de esêrâvos
•• ' ,_ . . . . ·-•",.. - .' .. "<-;\ ·,'.•" '"'·~···"''" ··~·~ •• - ... .. , - • '-' ••• •... , ... ~
~~~:::::tn'~1~~ff~-:~·~~
12. Sobre esses processos, ver Benjamin Thomas, Timothy Hall e David Rutherford
(eds.), The Atlantic World ín the Age of Empire, Houghton Miffiin Company, Boston,
2001; Wim Klooster e Alfred Padula (eds.), The Atlantic World. Essays on Slavery,
capital, e é justamente isso que distingue o tráfico negreiro
• • .•. •"• •. - '"' "'"" " '.' ._ .. '-·-·· "• •.• ,_,,-'.-·-~'-'"·~·~"'.""-"-"·''"'{"'"'"·'-"'·,_ '"'•"';~."'),,;;.;;;;_s<,;;{<01,W,1';-:~.;.\,;:,':-.;if,
Migration, and Imagination, Pearson Prentice Hall, Upper Saddle River, 2005, p. i-42.
36
CRÍTICA DA RAZÃO NEGRA O SUJEITO RACIAL 37
Crucial desse ponto de vista foi o caso do Haiti, cuja decla- Os primeiros escravos negros haviam desembarcado nos
ração de independência aconteceu em 1804, apenas vinte anos J:!stados Unidos em 1619. Na véspera da revolução contra os
após a dos Estados Unidos, assinalando urna reviravolta na ingleses, contavam-se mais de quinhentos mil nas colônias
história moderna da emancipação humana. No decorrer do t'~Ílcldes. Em 1776, cerca de cinco mil se enfileiraram como
século XVIII, o século das Luzes, a colônia de Santo Domingo t'JQldados ao lado dos patriotas, por mais que a maioria deles
foi o exemplo clássico da plantoçracia, urna ordem social, ;)tunais tivesse gozado do estatuto de cidadão: para a maior
política e econômica hierárquica encabeçada por um número t'>nrte deles, a luta contra a dominação britânica era indis-
relativamente reduzido de grupos brancos rivais, tendo nos sociável da luta contra o sistema escravagista. Desertando
estratos intermediários um grupo de homens livres de cor das plantações da Geórgia e da Carolina do Sul, cerca de dez
e mestiços e, na base, urna ampla maioria de escravos, mais tnil se juntaram às tropas inglesas. Outros, refugiados nos
da metade dos quais nascidos na África. 2 4 Ao contrário dos pântanos e nas florestas, engajavam-se no combate por su.a
outros movimentos de independência, a Revolução Haitiana própria libertação. No fim da guerra, cerca de catorze mil
foi o resultado de urna insurreição de escravos. A ela se deveu negros, alguns deles já livres, foram evacuados de Savan-
1 o surgimento, em i805, de urna das mais radicais Constitui- nah, Charleston e Nova York e transportados para a Flórida,
26
1
ções do Novo Mundo. Essa Constituição baniu a nobreza, ins- Nova Escócia, Jamaica e, mais tarde, para a África. A revo-
1
taurou a liberdade de culto e impugnou tanto o conceito de lução anticolonial contra os ingleses desembocou num para-
11 propriedade quanto o de escravidão - algo que a Revolução doxo:_129!_.~ laqç.,..a~xpansão,das..esferasJieJihe:i:dade_p_a:i:a..
111 Americana não ousara fazer. A nova Constituição do Haiti não os brm:iços,. po~. ºl1tr(), ~.C::.<2!1:§.2!!,g~ç~c:>.~~~.E~<:'.<::~4~E1!~.§JJQ_,
só aboliu a escravatura, corno também autorizou o confisco sisteTI?-a ~·~~~~~~iisiâ:Ern grande mecÜda, os pr~dutore~slQ
11
de terras dos colonos franceses, decapitando pelo caminho skü...ttililª-!ii~.Ç2-cÊErª~c.> ~lla.:J!~~i<iaC1e~ã:::cusrK9'.:<rrtaJ5ª11i!5..dos
grande parte da classe dominante; aboliu a distinção entre escravos,..QX;;}Ǫ~:5J-·§·sfül .mão.de,obra..s.e.tvil,-·G.s.Estados, Uni-
/1
nascimentos legítimos e ilegítimos, e levou às últimas con- dos instauraram a economia de divisão de classes no seio da
sequências as ideias, na altura revolucionárias, de igualdade população branca - divisões que conduziriam a disputas de
racial e de liberdade universal. 2s poder com consequências incalculáveis. 27
1
No decorrer do período atlântico aqui sucintamente
Rei.s, Sl~ve Rebellion in Brazil. The Muslim Uprising of 1835 in Bahia, Johns Hopkins
Umvers1ty Press, Londres, 1993 [Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos University of North Carolina Press, Chapell Hill, 2004; Robin Blackburn, The
mal~s em 1835, Companhia das Letras, São Paulo, 2003]; Colin Palmer, Slaves of the Overthrow of Colonial Slavery, 1776-1848, Verso, Londres, 1988; e Robin Blackburn,
Whzte God. Blacks in Mexico, 1570-1650, Harvard University Press, Cambridge, 1976. "Haiti, slavery, and the age of the democratic revolution", William and Mary
24. John Thornton, "African soldiers in the Haitian revolution", Journal of Caribbean Quarterly, vol. 63, nº 3, Outubro 2006, p. 643-674.
History, vol. 25, n2 1-2, 1991, p. 1101-1114. 26. Sidney Kaplan e Emma Nogrady Kaplan, The Black Presence in the Era of the
25. David Geggus (ed.), The Impact of the Haitian Revolution in the Atlantic World American Revolution, University of Massachusetts Press, Amherst, 1989.
University of South Carolina Press, Columbia, 2001; Laurent Dubois, A Colon; 27. Edmund Morgan, American Slavery, American Freedom. The Ordeal of Colonial
of Citizens. Revolution and Slave Emancipation in the French Caribbean, 1787-1804, Virgínia, W. W. Norton & Co., Nova York, 1973·
38 39
CRÍTICA DA RAZÃO NEGRA O SUJEITO RACIAL
~escrito, esta pequena província do planeta que é a Europa se rrmtieamenie as frgntç;i:r~~
' '·-·
..~ntre o crível ~ ...C:Ü~Sii~..,g
"-~"'-"'"""~"'~"""'''"~"'°·· ~· ~..,,-.""""~<;'Olc"-"'-~~"'"'-"~A'!·'-""'-''-"""'"-"'""'r'-'•-"~
o resto do mundo. Paralelamente, ao longo do século XVIII, rimeir;"g;;~<le'ciâssificação das raças levada a cabo por
entraram em cena vários discursos de verdade acerca da natu- n ocorreu num ambiente em que a linguagem acerca
reza, da especificidade e das formas de vida, das qualidades, rnundos outros fora construída a partir dos preconceitos
~raç?s e c~racterísticas dos seres .humanos, de populações s ingênuos e sensualistas, aQ,Pfl~~(1_-q.Ue,.formas.J:le...:vida
mteiras diferenciadas em termos de espécies, gêneros ou emamente _ c,g.:rnplexas. ennn:r~m~!i9ª§.~P"l:LIª~impJici-
raças, classificados ao longo de uma linha vertical. 28 ·~ d~~ ~Pft~tos.31 Chamemos a isso o momento gregário
Paradoxalmente, foi também a época em que os povos )ensamento ocidental. Nele, o negro é representado como
e as culturas começaram a ser considerados como indivi- protótipo de uma figura pré-humana incapaz de escapar de
dualidades contidas em si mesmas. Cada comunidade - e animalidade, de se autoproduzir e de se erguer à altura
cada povo - era entendido como um corpo coletivo único. seu deus. Encerrado em suas sensações, tem dificuldade
Deixava de ser dotada somente de força própria, para ser ~nn quebrar a cadeia da necessidade biológica, razão pela qual
a unidade de base de uma história movida, assim ·se cria, n~lo chega a conferir a si mesmo uma forma verdadeiramente
por forças. surgidas apenas para aniquilar outras forças, humana nem a moldar seu mundo. É nisso que se distancia
numa luta de morte cujo desenlace só pode ser a liberdade da normalidade da espécie. O momento gregário do pensa-
ou a servidão. 29 A ampliação do horizonte espacial europeu mento ocidental foi, aliás, aquele ao longo do qual, com o
seguiu, pois, lado a lado com um constrangimento e uma auxílio do instinto imperialista, o ato de captar e de apreender
retração de sua imaginação cultural e histórica, e até, em foi progressivamente se desligando de qualquer tentativa de
certos casos, uma relativa clausura do espírito. De fato, uma conhecer a fundo aquilo de que se falava. A Razão na Histó-
vez identificados e classificados os gêneros, as espécies e as ria, de Hegel, representa o ponto culminante desse momento
raças, resta apenas indicar quais diferenças os distinguem gregário. D.m:ante:v:ªr.iQ§.ê,~S~!~~,~~~-,~~~;:~:l!~--~~~~~~--~·gue
uns dos outros. Essa relativa clausura do espírito não impli- sabemos advir iniciªlm~n!~"g-~-~§f~XélJ~:nim.aL~ SG1Yil1, em
Ri~!n~i!iJiii.b.~~~E~r~~~2m~-~r-~êJ~1!l!!,~1l-t1~~~~-r,:~~. ~~rge~i~~·
32
41
40 CRÍTICA DA RAZÃO NEGRA O SUJEITO RACIAL
se pensava, a um estado de degradação e a uma defecção de O negro da plantation era, todavia, uma figura múltipla.
natureza ontológica. A noção de raça permitia representar as Caçador de quilombolas34 e fugitivos, carrasco e ajudante de
humanidades não europeias como se tivessem sido tocadas carrasco, es~ informante, doméstico, cozinheiro,
por um ser inferior. Seriam o reflexo depauperado do homem liberto que se mantém cativo, concubina, roceiro dedicado ao
ideal, de quem estariam separadas por um intervalo de tempo corte da cana, encarregado do engenho, operador de maqui-
intransponível, uma diferença praticamente insuperável. naria, acompanhante de seu senhor e guerreiro ocasional.
Falar delas era, antes de mais nad·a, assinalar uma ausência Essas posições estavam longe de ser estáveis. De acordo com
- a ausência do mesmo - ou ainda uma presença alheia, a de
as circunstâncias,JJ~ão pqg!ê~.8-;.;~~~:,rie~te ser "con-
monstros e fósseis. Se o fóssil, escreve Foucault, é "aquilo que
deixa subsistir as semelhanças através de todos os desvios que --~~~~~:.~~91~..P~,~~ar,
a natureza percorreu" e se funciona sobretudo como "uma
forma longínqua e aproximativa da identidade'', o monstro,
~~~]i~~~~ii~i:~:~~~r:ii~li%~~~~~:Rg2H~~~~~
caç.ªQ2E_cJ.e escravos. .
por sua vez, "n.a.r,~~~tw.:a,,.a.gfa;1~~~affe
re,~33 No grande quadro das espécies, gêneros,· raças e
o _negrÕ"êl'a:··:pl~!;t,cr.tf9n ..~!:éli ~cJ.~II1~~s,~q11e,1: que se havia
classes, o negro, em sua magnífica obscuridade, representa a
SQ~.liiiii4?~.n2',é,.~!2 ~2~ s~g!,2~,,.~J.:.~2.1?!~~~.~.S? (l()~.,.Q:utros
:tl.<;fil2.~: O que caracterizava a plantation, no entanto, não eram
síntese dessas duas figuras. Mas o negro não existe enquanto
apenas as formas se~entárias de sujeição, a desconfiança, as
tal. Ele é constantemente produzido. Produzi-lo é gerar um intrigas, rivalidades e ciúmes, o jogo movediço das alianças, as
vínculo social de sujeição e"um corycL!f:e~;xtra~o isto é, um táticas ambivalentes, feitas de cumplicidades e esquemas de
'""''''''''''''''''"q'''"'""' ''""'"" ' ~'"" -:J
corpo inteiramente exposto à vontade de um senhor e do qual toda espécie, assim como de canais de diferenciação decor-
nos esforçamos para obter o UJ..á:ximG,~·'fernnmt!\JJtQ. Sujeito rentes da reversibilidade das posições. Era também o fato de
a corveias de toda ordem, o B~gr_Q_éJ,ªU1QéIU,.Q.l1Q1ll~.•ds:.. uma que o vínculo social de exploração não havia sido estabelecido
inj.úrl_(l2 5?__8-f,1!1J29Jg cJ.o homem conf~çimacJ.()5~gm~Q':'~çuite e o de forma definitiva. Ele era constantemente posto em causa
sofrimentg, n~IIl ~ampo de batalha em gu~ se opõeII1[acções
e gr11pos ~ocial e r,a~ialmente se~entac1os. Er~ ~s~~,o caso
34. No original, marrons. Na língua portuguesa, o termo preferencial atribuído às
na maiofià dasplàntócracias insulares do Caribe, universos pessoas escravizadas que se evadiam do cativeiro foi tomada do quiU:-bund.o, de~c:e
se~entários onde a lei da raça se assentava tanto no con- vendo a comunidade formada pelos fugitivos (quilombo, com o sentido enmologico
de arraial, união ou_acampamento) e, por derivação, seus fundadores ou habitantes
fronto entre fazendeiros brancos e escravos negros quanto (quilombolas). As variações encontradas na língua francesa - marron, negmarron,
na oposição entre os negros e os "livres de cor" muitas vezes e _cimarron - foram adotadas a partir do espanhol címarrón, derivado por sua vez da
mulatos libertos), sendo que alguns deles eram eles próprios 'Tí;c~~~aque, e também possuem correspondentes e'.11 regionalismo~ brasileiros
-:marrano, marruá, chimarrão-, mas a derivação de sentido para se refenr aos ex-ca-
senhores de escravos. tÍwsquebuscàv~fâãd'e não se operou no uso em língua portuguesa, que se
aplica preponderantemente em referência aos animais domesticados que se desgar-
33. Michel Foucault, op. cit., p. 216-217. ram e se tornam bravios e revoltos, em consonância com o sentido original dado ao
termo pelos aruaques, também preservado no seu uso em língua espanhola. [N.T.]
42
CRÍTICA DA RAZÃO NEGRA 43
O SUJEITO RACIAL
e precisava ser incessantemente produzido e reproduzido A plantélS~<? ![.<ll]:§fü!:!llQY:..se..gr.adualmente·numa-·instituiçã:o···
por meio de uma violência de tipo molecular, que ao mesmo econômica, disciplinar e penal. Os negros e seu§ Q~§ÇeJ1Qe!l!eê,,,
tempo suturava e saturava a relação servil. ·a·'"""·%•·•····a··'"I"""""·"w······a·.,.... ,,.,,,. • ,... . ,,.... ,,."'""d. . . . .---·-··-·""'", .•.
po iam, a 1 em .1ante, ser c;ompra os para sempre.
De tempos em tempos, ela explodia na forma de levantes, Ao longo do século XVII, um imenso trabalho 'legislativo
insurreições e complôs de escravos. Instituição paranoica, a veio selar o seu destino. A fabricação dos sujeitos raciais no
plantation vivia constantemente sop o regime do medo. Em continente americano começou por sua destituição cívica e,
vários aspectos, cumpria todos os requisitos de um campo, de portanto, pela consequente exclusão de privilégios e de direi-
um parque ou de uma sociedade paramilitar. O senhor escra- tos assegurados aos outros habitantes das colônias. Desde
vagista podia muito bem fazer sucederem-se as coerções, logo, não eram mais homens como todos os outros. Ela pros-
criar cadeias de dependência entre ele e seus escravos, alter- seguiu com a extensão da servidão perpétua a seus filhos e
nar terror e benevolência, mas sua vida era permanentemente descendentes. Essa primeira fase se consolidou num longo
assombrada pelo espectro do extermínio. O escravo negro, processo de construção da incapacidade jurídica. A perda do
por sua vez, ou bem era aquele que se via constantemente no direito de recorrer aos tribunais fez do negro uma não pessoa
limiar da revolta, tentado a responder aos apelos lancinantes do ponto de vista jurídico. Agregou-se a esse dispositivo judi-
da liberdade ou da vingança, ou então aquele que, num gesto ciário uma série de códigos de legislação escravocrata, muitos
de sumo aviltamento e de abdicação radical do sujeito, pro- deles na sequência de levantes de escravo&~Co~sum~d~ ~ssa
curava proteger a própria vida deixando-se utilizar no projeto codificação, p()ge-se dizer que, por volta de ~7~§;_:a:·êfffriiiíi~a
de sujeição de si mesmo e de outros escravos. ~efztaa-m,~n-ã~~- q~eJ aêxfSira~~s1~a1~s-õci<l~I1~.él!§1J~~Qfi
Além do ma1s, entre 1620 e 1640, as formas de servidão ~ia1n1eiife·a suaapariç~o .~<?S Esta9gE;\JgfªÇ)--~; ~-~Ll2lfm&t1Qn
mantiveram-se, particularmente nos Estados Unidos, relati- erª~ª~·Çfüii"..9.ii~·fªiI?~"iiTI<:lrra dos.§eY.s. SQJltQ!n,2s. Quanto
vamente indefinidas. O trabalho livre coexistia com a servidão ao negro, passou a ser a partir de então nada além de um
temporária (que é uma forma de sujeição transitória, de dura- bem móvel, pelo menos de um ponto de vista estritamente
ção limitada) e a escravidão (hereditária ou não). No seio do legal. A partir de 1670, impunha-se a questão de....sab~x;,..com0-
colonato, havia profundas divisões de classe, opondo também p01:,pªr·ª· trabalhar uma grªn,g~ qµa,11tidad~ de mã9_ c!e ol?;ra,..,a.w
o colonato à massa de cativos. Estes, no entanto, formavam fim..Q~"Yi. ªbül~i[ ªº-çQfile_n;;iªliza4si~Ql~ngg~<i~.
.ijil.ii"Pi2g"vs.
uma classe multirracial. Foi entre 1630 e 1680 que se deu a enGrmes..distªn.das. .,,Ain:Y_en.Ç.filLç!QJ:J-g~Q""J::iln&tituLa.xesp_a.s.ta. ."",,
bifurcação. É na verdade dessa época que data o nascimento a·essa,.ques!ãQ,Q.. 11egrn .f9iç1g.fütq,odem~nmç~ntrnLq.JJ~,. aQ.... -
da sociedade de plantation. O princípio da servidão perpétua permitcir. a-criação.,,po;r meJ() daplarz.tqtf911,.de. .uma,das.formas.,"'""
de pessoas de origem africana, estigmatizadas pela sua cor, mais.. efica4e.s de.,acumulação de.riqueza..na~épocaracele.r@u,.·
tomou-se progressivamente a regrél:9s_ªfriç_aJlQ. §~~. §l!.ª.•pr,0- a iritegraç.ão do cªpita1ismo merça,ntil, dª .JJlJ~çanj2íªç.ão..e ..d0·~""
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na época uma grande inovação, e não simplesmente do ponto
~ c~.ê.cravas, eram algo corriqueiro entre as elites br~~~~ 37. Edwin Black, War Against the Weak. Eugenics and America's Campaign to Create a
Master Race, Thunder's Mouth Press, Nova York, 2003.
38. Étienne Balibar fala, ao tratar desse tema, do "regresso da raça" (Étienne Balibar,
35. No original, "petits Blancs". No contexto colonial francês, sobretudo no que se "Le retour de la race", <www.mouvements.info>, 29 de março de 2007).
refere à sociedade colonial de Santo Domingo, a população branca se dividia em 39. Peter Wade, Blackness and Race Mixture. The Dynamics of Racial Identity in
grands blancs, estrato abastado composto por proprietários e burocratas, e petits Colombia, Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1993; France W. Twine,
blancs, a camada dos artesãos e trabalhadores braçais brancos. [N.T.] Racism in a Racial Democracy. The Maintenance ofWhite Supremacy in Brazil, Rutgers
36. Acerca dos dilemas que resultam dessa mistura, ler Doris Garraway, The Libertine University Press, New Brunswick, 1998; Livio Sansone, Negritude sem etnicidade: o
Colony. Creolization in the Early French Caribbean, Duke University Press, Durham, local e o global nas relações raciais, culturas e identidades negras do Brasil, tradução de
2005 (em párticular os capítulos 4 e 5). Ver, para os Estados Unidos, Ira Berlin, Vera Ribeiro, EDUFBA, Salvador, 2004.
Slaves Without Masters. The Free Negro in the Antebellum South, The New Press, Nova 40. David Theo Goldberg, The Racial State, Blackwell, Oxford, 2002.