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Esta obra foi publicada com o apoio
do Ministério da cultura francês
© Cosac Naify, 2005
(Centro NaciOnal do Livro).
© Edition s Gallimard, 1 g47
Ouvrage publié avec /e concours du
Coordenação editorial
Ministére trançais chargé de la culture
ALEXANDRE BARBOSA DE SOUZA
(Centre National du Livre).

Preparação e bibliografia

ALEXAN ORE MORALES

Projeto gráfico da coleção

RAUL LOUREIRO

Composição

JUSSARA FINO

Imagem da capa

DANIEL SENISE

Foto do autor

BRUNO BARBEZ, MAIO 68 I MAGNUM PHOTOS

Dados Internacionais de Catalogação na P ublicação (CIPl

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Sartre, Jean-Paul, 1 gos-1 gso.

Situações, I: Jean-Paul Sartre

Titulo original: Situations, I


Tradução: Cristina Prado; prefácio de Bento Prado Jr.

São Paulo: Cosac N ai fy, 2005.

312 p.

Bibliografia.

ISBN 85-7503-418-9

1. Crftica literária 2. Li teratura- História e crítica


I. Prado Júnior, Bento. I!. Título.

05-8601 CDD-809

Í ndices para catálogo sistemático:


1. Literatura: História e crítica 809

COSAC NAIFY
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Capítulo rr

AMINADAB, OU O FANTÁ STICO CONSIDERADO


COMO UMA LINGUAGEM
Aminadab, ou o fantástico considerado
como uma linguagem

"O pensamento tomado ironicamente como objeto,


por outra coisa que não o pensamento."

�laurice Blanchot, Thomas o 06scuro

Thomas atravessa um vilarejo. Quem é Thomas? De onde vem? Para


onde vai? Jamais saberemos. Cma mulher acena para ele de uma casa.
Ele entra e bruscamente se encontra numa estranha república de locatá­
rios onde todos parecem ao mesmo tempo suportar e impor a lei. Sub­
metem-no a ritos de iniciação incoerentes, acorrentam-no a um compa­
nheiro quase mudo e, nessa parelha, anda a esmo de quarto em quarto,
sobe de andar em andar, muitas vezes esquecendo o que procura, mas
sempre relembrando convenientemente quando querem retê-lo. Depois
de muitas a\·enturas ele se transforma, perde seu companheiro, adoece.
É então que recebe as últimas advertências. Um velho empregado lhe
diz: "É a si mesmo que você deve fazer as perguntas"; uma enfermeira
acrescenta: "Você foi vítima de uma ilusão, pensou que o chamavam
mas ninguém estava lá e o chamado vinha de você mesmo". No entan­
to ele se obstina, chega aos andares superiores, encontra a mulher que
acenou para ele. Mas para ouvir: "l\enhuma ordem o convocou, era um
outro que estava sendo esperado". Pouco a pouco Thomas se debilitou;
ao anoitecer seu antigo companheiro de grilhão vem vê-lo e lhe explica
que ele errou o caminho. "Faltou-lhe reconhecer o seu rumo [ ... ]. Eu
era como um outro você. Conhecia todos os itinerários da casa e sabia
qual você deveria seguir. Bastava que me interrogasse". Thomas faz
uma última pergunta mas ela fica sem resposta, e o quarto é invadido
pela noite exterior, "bela e apaziguadora [ ... ], vasto sonho que não está
ao alcance daquele que ela recobre".

*Originalmente em Cahiers du Sud. n. 2jj, abril de 1943, pp. 299-305, e n. 2;6, maio de 1943,
PP· 361-'71 [:>.T.].

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Assim resumidas, as intenções de Blanchot parecem bastante claras.
O que é mais claro ainda é a extraordinária semelhança de seu livro com
os romances de Kafka. O mesmo estilo minucioso e cortês, a mesma
polidez de pesadelo, o mesmo cerimonial afetado, extravagante, as mes­
mas buscas vãs, pois não levam a nada, os mesmos raciocínios exaus­
'
tivos e improfícuos, as mesmas iniciações estéreis, pois não iniciam a
nada. Ora, Blanchot afirma que nada havia lido nada de Kafka quando
escreveu Aminadaó. Isso nos deixa tanto mais à vontade para admirar
por qual estranho encontro esse jovem escritor, ainda inseguro de seu
estilo, achou para expressar algumas idéias banais sobre a vida humana
o instrumento que reproduzira sons inauditos sob outros dedos.
Não sei de onde vem essa conjunção. Ela me interessa tão-somente
porque permite aventar o "derradeiro estágio" da literatura fantástica.
Pois o gênero fantástico, como os outros gêneros literários, tem uma
essência e uma história, esta sendo apenas o desenvolvimento daquela.
O que deve ser então o fantástico contemporâneo para que um escri­
tor francês e convicto de que é preciso "pensar em francês" 1 possa se
encontrar, ao valer-se desse modo de expressão, com um escritor da
Europa Central?
Não é nem necessário nem suficiente retratar o extraordinário para
atingir o fantástico. O acontecimento mais insólito, isolado num mundo
governado por leis, reintegra-se por si mesmo à ordem universal. Se
fizerem um cavalo falar, pensarei por um momento que está enfeitiçado.
Mas se ele persistir em discursar em meio a árvores imóveis, sobre um
solo inerte, eu lhe admitirei o poder natural de falar. Não verei mais o
cavalo, mas o homem disfarçado de cavalo. Em contrapartida, se con­
seguirem me convencer de que esse cavalo é fantástico, então é por­
que as árvores e a terra e o rio também o são, mesmo que nada tenha
sido dito a respeito. Não se atribui ao fantástico seu quinhão: ou ele não
existe ou se estende a todo o universo; é um mundo completo, onde
as coisas manifestam um pensamento cativo e atormentado, ao mesmo
tempo caprichoso e acorrentado, que lhe corrói por baixo as malhas do
mecanismo, sem jamais chegar a se exprimir. Nele, a matéria nunca é
totalmente matéria, já que oferece apenas um esboço perpetuamente
contrariado do determinismo, e o espírito nunca é totalmente espírito,
já que sucumbiu à escravidão e a matéria o impregna e o empasta. Tudo

I. Blanchot seria, creio eu, discípulo de Charles Maurras.


é desgraça: as coisas sofrem e tendem à inércia sem jamais atingi-la; o
espírito humilhado, em escravidão, se esforça para obter a consciência
e a liberdade sem alcançá-las. O fantástico oferece a imagem invertida
da união da alma e do corpo: a alma toma o lugar do corpo e o corpo o
da alma. E para pensar essa imagem não podemos usar idéias claras e
distintas; precisamos recorrer a pensamentos embaçados, eles mesmos
fantásticos, deixar-nos levar em plena vigília, em plena maturidade, em
plena civilização à "mentalidade" mágica do sonhador, do primitivo, da
criança. Assim, não é necessário recorrer às fadas; as fadas tomadas em
si mesmas são apenas mulheres gentis; o que é fantástico é a nature­
za quando obedece às fadas, é a natureza fora do homem e no homem,
apreendida como um homem ao avesso.
Enquanto se acreditou possível escapar à condição humana pela
ascese, pela mística, pelas disciplinas metafísicas ou pelo exercício da
poesia, o gênero fantástico foi solicitado a exercer um ofício bem defi­
nido. Ele manifestava nosso poder humano de transcender o humano:
buscava-se criar um mundo que não fosse este mundo, seja porque se
tivesse, como Poe, uma preferência de princípio pelo artificial, seja
porque se acreditasse, como [Jacques] Cazotte, como Rimbaud, como
todos os que se exercitavam em "ver um salão no fundo de um lago",
numa missão taumatúrgica do escritor, seja ainda porque se quisesse,
como Lewis Carroll, aplicar sistematicamente à literatura esse poder
incondicionado que o matemático possui de engendrar um universo a
partir de algumas convenções, seja enfim porque se tivesse reconhecido,
como [ Charles] Nodier, que o escritor é antes de tudo um mentiroso e
se quisesse alcançar a mentira absoluta. O objeto assim criado se refe­
ria apenas a si mesmo, não visava retratar, queria tão-somente existir,
impunha-se apenas por sua própria densidade. Se ocorria a certos auto­
res tomar de empréstimo a linguagem fantástica para expressar algumas
idéias filosóficas ou morais sob a aparência de ficções agradáveis, eles
reconheciam de bom grado que haviam desviado esse modo de expres­
são de seus fins costumeiros e apenas criado, por assim dizer, um fantás­
tico em trompe-l'oeil.
Blanchot começa a escrever numa época de desilusão: depois da
grande festa metafísica do pós-guerra, que acabou em desastre, a nova
geração de escritores e de artistas, por orgulho, por humildade, por espí­
rito de seriedade, operou com grande pompa um retorno ao humano.
Essa tendência repercutiu sobre o próprio fantástico. Para Kafka, que

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aqui faz figura de precursor, existe sem dúvida uma realidade transcen­
dente, mas ela está fora de alcance e serve apenas para nos fazer sentir
mais cruelmente o desamparo do homem no seio do humano. Blanchot,
que não acredita na transcendência, certamente subscreveria esta opi­
nião de [Arthur S.] Eddington:

Encontramos estranhas pegadas nas margens do Desconhecido. Para explicar


sua origem, edificamos teorias sobre teorias. Finalmente conseguimos recons­
tituir o ser que deixou essas pegadas, e descobrimos que esse ser somos nós
mesmos.

Daí o esboço de um "retorno ao humano" do fantástico. É certo que


não se empregará isso para demonstrar nem para edificar. Blanchot,
particularmente, defende-se de ter escrito uma dessas alegorias cujo
sentido, diz ele, "corresponde sem ambigüidade à anedota mas também
pode ser expresso completamente fora dela". Só que para encontrar
lugar no humanismo contemporâneo o fantástico vai se domesticar tal
como os outros gêneros, renunciar à exploração das realidades trans­
cendentes, resignar-se a transcrever a condição humana. Ora, por volta
da mesma época- por efeito de fatores internos - esse gênero literário
prosseguia sua evolução própria e se livrava das fadas, gênios e duendes
como de convenções inúteis e caducas. Dalí e De Chirico nos faziam
ver uma natureza assombrada e no entanto liberta do sobrenatural: um
nos pintava a vida e os infortúnios das pedras; o outro ilustrava uma
biologia maldita, mostrava-nos o horrível germinar de corpos humanos
ou metais contaminados pela vida. Por uma curiosa contrapartida, o
novo humanismo precipita essa evolução: Blanchot, na esteira de Kafka,
não mais se preocupa em contar os feitiços da matéria; os monstros em
carne viva de Dalí certamente lhe parecem um estereótipo, assim como
os castelos assombrados pareciam um estereótipo a Dalí. Para ele já
não há senão um único objeto fantástico: o homem. Não o homem das
religiões e do espiritualismo, engajado no mundo apenas pela metade,
mas o homem-dado, o homem-natureza, o homem-sociedade, aquele
que reverencia um carro fúnebre que passa, que se barbeia na janela,
que se ajoelha nas igrejas, que marcha em compasso atrás de uma ban­
deira. Esse ser é um microcosmo, é o mundo, toda a natureza: é somen­
te nele que se mostrará toda a natureza enfeitiçada. Nele: não em seu
corpo - Blanchot renuncia às fantasias fisiológicas; seus personagens

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são fisicamente ordinários e ele os caracteriza em poucas palavras, de
passagem -, mas em sua realidade total de homofaber, de homo sapiens.
Assim, ao humanizar-se, o fantástico se reaproxima da pureza ideal de
sua essência, torna-se o que era. Despojou-se, parece, de todos seus
artifícios: nada nas mãos, nada nos bolsos. As pegadas nas margens, nós
as reconhecemos como nossas. Nada de súcubos, nada de fantasmas,
nada de fontes que choram - há apenas homens, e o criador do fantás­
tico proclama que se identifica com o objeto fantástico. Para o homem
contemporâneo, o fantástico tornou-se apenas uma maneira entre cem
de fazer refletir sua própria imagem.
É a partir dessas observações que podemos buscar uma melhor
compreensão da extraordinária semelhança entre Aminadab e O castelo.
Vimos que a essência do fantástico é oferecer a imagem invertida da
união da alma e do corpo. Com efeito, em Kafka assim como em Blan­
chot ele se limita a exprimir o mundo humano. Será que ele se verá
sujeito, tanto num caso como no outro, às novas condições? E o que
pode significar a inversão das relações humanas?
Ao entrar num café, percebo antes de mais nada os utensílios. Não
as coisas, os materiais brutos, mas os instrumentos, mesas, banquetas,
vidros, copos, taças. Cada um deles representa um pedaço de matéria
subjugada; seu conjunto é submetido a uma ordem manifesta e a signifi­
cação dessa ordenação é um fim - um fim que sou eu mesmo, ou melhor,
o homem em mim, o consumidor que eu sou. Tal é o mundo humano em
anverso. Em vão procuraríamos nele uma matéria "prima": é o meio que
faz aqui função de matéria, enquanto a forma - a ordem espiritual - é
representada pelo fim. Agora retratemos esse café em reverso. Será preci­
so mostrar os fins que seus próprios meios relegam e que tentam em vão
atravessar enormes espessuras de matéria, ou, se quisermos, objetos que
manifestam por si mesmos sua instrumentalidade, mas com um poder
de indisciplina e de desordem, com uma espécie de independência pas­
tosa que subitamente nos rouba seu fim quando pensamos agarrá-lo. Eis
uma porta, por exemplo: ela está aí, com suas dobradiças, seu trinco, sua
fechadura. Está cuidadosamente trancada, como se protegesse algum
tesouro. Consigo, após várias tentativas, obter sua chave, abro-a e per­
cebo que ela dá para uma parede. Sento-me, peço um café-com-creme,
o garçom me faz repetir três vezes o pedido e o repete ele mesmo para
evitar qualquer risco de erro. Ele se precipita, transmite minha ordem a
um segundo garçom que a anota num bloco e a transmite a um terceiro.

I39
Por fim um quarto volta e diz: "Aqui está", colocando um tinteiro sobre
minha mesa. "Mas eu havia pedido um café-com-creme ... ", digo. "Pois
bem, justamente", diz ele, retirando-se. Se o leitor puder pensar, ao ler
contos desse tipo, que se trata de uma farsa dos garçons ou de alguma
psicose coletiva, teremos perdido a partida. Mas se soubemos dar-lhe a
impressão de que falamos de um mundo onde essas manifestações insó­
litas figuram a título de condutas normais, então ele se achará de golpe
mergulhado no seio do fantástico. O fantástico humano é a revolta dos
meios contra os fins, seja que o objeto considerado se afirme ruidosa­
mente como meio e nos mascare seu fim pela própria violência dessa
afirmação, seja que ele remeta a um outro meio, este a um outro e assim
por diante até o infinito, sem que jamais possamos descobrir o fim supre­
mo, seja ainda que alguma interferência de meios pertencentes a séries
independentes nos deixe entrever uma imagem compósita e embaralha­
da de fins contraditórios.
Terei eu logrado, ao contrário, captar um fim? Todas as pontes
estão interditadas; não consigo descobrir nem inventar meio algum de
realizá-lo. Alguém marcou um encontro comigo no primeiro andar des­
te café, e é preciso que eu suba com toda urgência. Vejo de baixo este
primeiro andar; entrevejo seu balcão através de uma grande abertura
circular, vejo até mesas e fregueses nessas mesas. Mas por mais que eu
dê cem vezes a volta na sala não acho a escada. Nesse caso o meio está
determinado: tudo o indica e o exige; ele é figurado implicitamente pela
presença manifesta do fim. Mas levou a malícia a ponto de aniquilar­
se. Estarei aqui falando de um mundo "absurdo" como Camus em seu
Estrangeiro? Mas o absurdo é a total ausência de fim. O absurdo é o
objeto de um pensamento claro e distinto; ele diz respeito ao mundo
"em anverso" como limite efetivo dos poderes humanos. No mundo
maníaco e alucinante que tentamos descrever o absurdo seria um oásis,
um repouso, de modo que aí não há lugar algum para ele. Nesse mundo
não posso me deter por um só instante: todo meio me remete sem des­
canso ao fim fantasmagórico que o assombra e todo fim me reenvia ao
meio fantasmagórico pelo qual eu poderia realizá-lo. Não posso pensar
coisa alguma, a não ser por noções escorregadias e cintilantes que se
desagregam sob meu olhar.
Não é então surpreendente que encontremos temas rigorosamen­
te idênticos em autores tão diferentes quanto Kafka e Blanchot? Não
é esse mesmo mundo insólito que eles visam descrever? Um e outro

I40
terão como primeira preocupação excluir de seus romances "a impassí­
vel natureza": daí a atmosfera sufocante que lhes é comum. O herói d' O
processo se debate em meio a uma cidade grande, atravessa ruas, entra em
casas; Thomas, em Aminadah, vagueia pelos intermináveis corredores
de um prédio. Nem um nem outro jamais verão florestas, prados, colinas.
Que descanso não teriam se se vissem diante de um torrão de tetra, de
um fragmento de matéria que não servisse para nada! Mas o fantástico
se esvairia na hora: a lei do gênero os condena a não encontrarem nada
além de utensílios. Esses utensílios, já vimos, não têm a missão de servi­
los, mas de manifestar sem descanso uma finalidade fugidia e insólita:
daí esse labirinto de corredores, de portas, de escadas que não levam a
nada, daí essas tabuletas sinalizadoras que nada indicam, esses inumerá­
veis signos que pontuam os itinerários e nada significam. Conviria citar
como um caso particular do tema dos signos o motivo da mensagem, tão
importante em Blanchot como em Kafka. No mundo "em anverso" uma
mensagem supõe um remetente, um mensageiro e um destinatário; ela
só tem valor de meio: seu conteúdo é que é seu fim. No mundo "em
reverso" o meio se isola e se põe para si: somos assediados por mensa­
gens sem conteúdo, sem mensageiro ou sem remetente. Ou, ainda, o fim
existe mas o meio vai corroê-lo pouco a pouco; num conto de Kafka o
imperador envia uma mensagem a um habitante da cidade, mas o men­
sageiro tem uma caminhada tão longa a realizar que a mensagem jamais
chegará a seu destinatário; Blanchot, por sua vez, nos fala de uma men­
sagem cujo conteúdo se modifica progressivamente ao longo do trajeto:

Todas essas hipóteses tornam provável esta conclusão: malgrado sua boa von­
tade, o mensageiro, quando tiver chegado em cima, terá esquecido sua men­
sagem e será incapa1_ de transmiti-la; ou ainda, admitindo-se que ele tenha
conservado escrupulosamente seus termos, lhe será impossível saber qual é o
seu significado, pois o que teria um sentido aqui necessariamente deve ter um
sentido totalmente diferente lá embaixo, ou não ter sentido algum [ .. .]. O
que ele próprio terá se tOrnado eu me recuso a imaginar, pois presumo que me
pareceria tão diferente daquilo que sou quanto a mensagem transmitida deve
sê-lo em relação à mensagem recebida.

Também é possível que uma mensagem nos chegue e seja parcialmente


decifrável. Mas depois descobrimos que ela não nos era destinada. Em
Aminadah Blanchot revela uma outra possibilidade: chega-me uma men-
sagem, que é naturalmente incompreensível; empreendo uma investi­
gação a seu respeito e descubro que eu mesmo fora o seu remetente.
É claro que essas eventualidades não representam algumas más sortes
em meio a tantas outras: elas fazem parte da natureza da mensagem. O
remetente o sabe, o destinatário não o ignora e no entanto continuam
incansavelmente, um a enviar cartas, o outro a recebê-las, como se o
grande negócio fosse a mensagem em si e não o seu conteúdo: o meio
absorveu o fim como o mata-borrão absorve a tinta.
Pela mesma razão que os fez banir a natureza de suas narrativas,
nossos dois autores também baniram o homem natural, quer dizer, o
homem isolado, o indivíduo, aquele que Céline chama de "homem sem
importância coletiva" e que só poderia ser um fim absoluto. O impera­
tivo fantástico inverte o imperativo kantiano. "Age de tal maneira - diz­
nos - que trates o humano em ti mesmo e na pessoa dos outros como um
meio e nunca como um fim". Para mergulhar seus heróis no seio de uma
atividade febril, extenuante, ininteligível, Blanchot e Kafka devem cercá­
los de homens-instrumentos. Remetido do utensílio ao homem como do
meio ao fim, o leitor descobre que o homem, por sua vez, é apenas um
meio. Daí esses funcionários, esses soldados, esses juízes que povoam
os livros de Ka±'ka, esses serv-içais, também chamados de "empregados",
que povoam Aminadab. Assim é que o universo fantástico apresenta­
rá o aspecto de uma burocracia: com efeito, as grandes administrações
têm estreita semelhança com uma sociedade "em reverso". Thomas vai
de repartição em repartição e de empregado em empregado sem nunca
encontrar o empregador ou o chefe, assim como os cidadãos que têm
uma requisição a fazer num ministério e são reenviados indefinidamente
de seção em seção. Ademais, os atos desses funcionários se mantêm rigo­
rosamente ininteligíveis. No mundo "em anverso" eu discrimino facil­
mente o espirro deste magistrado, que é acidente, ou o seu assobio, que
é capricho, de sua atividade jurídica, que é aplicação da lei. Revertamos
a cena. Os empregados fantásticos, minuciosos, escrupulosos, me pare­
cerão a princípio exercer diligentemente sua função, mas logo descobri­
rei que esse zelo é desprovido de sentido ou mesmo culpável: é apenas
um capricho. Já um gesto precipitado, que me escandaliza por sua incon­
gruência, revela-se, num exame mais amplo, perfeitamente conforme à
dignidade social do personagem: ele foi realizado segundo a lei. Assim,
a lei se desagrega em capricho e o capricho subitamente deixa entrever a
lei. Em vão eu exigiria códigos, estatutos, decretos: velhos regulamentos

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se acumulam sobre as escrivaninhas e os empregados se conformam a
eles sem que se possa saber se essas ordens emanam de uma personali­
dade qualificada, se são o produto de uma rotina anônima e secular ou
se são inventadas pelos funcionários. Seu próprio alcance é ambíguo e
jamais poderei determinar se elas se aplicam a todos os membros da cole­
tividade ou se dizem respeito apenas a mim. No entanto essa lei ambígua
que oscila entre a regra e o capricho, entre o universal e o singular, está
presente em todo lugar, ela constrange, sobrecarrega, a violamos quan­
do pensamos a estar seguindo e, quando nos revoltamos contra ela, des­
cobrimo-nos obedecendo-a à revelia. Supõe-se que ninguém a ignore e
no entanto ninguém a conhece. Ela não tem por finalidade conservar a
ordem ou regulamentar as relações humanas; ela é a Lei, sem objetivo,
sem significado, sem conteúdo, e ninguém pode lhe escapar.
Mas é preciso fechar o círculo: ninguém pode penetrar no univer­
so dos sonhos se não está dormindo; da mesma forma, ninguém pode
entrar no mundo fantástico se não se torna fantástico. Ora, sabe-se que
o leitor começa sua leitura identificando-se com o herói do romance. É
este então que, ao nos emprestar seu ponto de vista, constitui a única via
de acesso ao fantástico. A antiga técnica o apresentava como um homem
"em anverso" transportado por milagre para um mundo "em reverso".
Kafka usou tal procedimento pelo menos uma vez: em O processo, K.
é u m homem normal. Vê-se a vantagem dessa técnica. Ela coloca em
relevo, por contraste, o caráter insólito do novo mundo, e o romance
fantástico torna-se um "Erziehungsroman" [romance pedagógico]: o lei­
tor compartilha os assombros do herói e o segue de descoberta em des­
coberta. Só que ao mesmo tempo ele vê o fantástico de fora, como um
espetáculo, como se uma razão em vigília contemplasse placidamente as
imagens de nossos sonhos. Em O castelo Kafka aperfeiçoou sua técnica:
seu herói, ele próprio, é fantástico; desse agrimensor, cujas aventuras
e perspectivas devemos compartilhar, não sabemos nada além de sua
ininteligível obstinação em se estabelecer numa aldeia interdita. Para
atingir esse fim ele sacrifica tudo, tratando a si mesmo como um meio.
Mas ignoramos completamente o preço que esse fim tinha para ele e se
valia tanto esforço. Blanchot adotou o mesmo procedimento. Seu Tho­
mas não é menos misterioso que os serviçais do prédio. Não sabemos
de onde ele vem nem por que se obstina a encontrar aquela mulher que
lhe acenou. Como Kafka, como Samsa, como o Agrimensor, Thomas
jamais se esp anta: escandaliza-se, como se a sucessão dos acontecimen-
tos aos quais assiste lhe parecesse perfeitamente natural mas reprovável,
como se possuísse dentro de si uma estranha norma do Bem e do Mal,
que Blanchot cuidadosamente se absteve de nos informar. Assim, eis­
nos coagidos, pelas próprias leis do romance, a adotar um ponto de vista
que não é o nosso, a condenar sem compreender e a contemplar sem sur­
presa o que nos deixa pasmos. De resto, Blanchot abre e fecha a alma de
seu herói como a uma caixa. Ora a adentramos, ora nos deixam à porta.
E quando lá entramos é para encontrar raciocínios já começados, que se
encadeiam como mecanismos e supõem princípios e fins que ignoramos.
Seguimos seus passos de perto; já que somos o herói, raciocinamos com
ele. Mas esses discursos nunca levam a nada, como se o grande negócio
fosse tão-somente raciocinar. Uma vez mais o meio deglutiu o fim. E
nossa razão, que deveria endireitar o mundo ao avesso, arrebatada por
esse pesadelo, torna-se ela mesma fantástica. Blanchot vai ainda mais
longe. Numa excelente passagem de Aminada!J, seu herói subitamente
descobre que à sua revelia se tornou empregado da casa e que cumpre
as funções de carrasco. Então interrogamos pacientemente os funcioná­
rios, pois nos parece que conhecem a lei e os segredos do universo - e
eis que de repente descobrimos que éramos nós mesmos funcionários e
não o sabíamos; eis que os outros nos voltam olhares suplicantes e por
sua vez nos interrogam. Talvez conheçamos a lei de uma vez por todas.
"Saber - escreve Alain - é saber que sabemos." Mas essa é uma máxima
do mundo em anverso. No mundo em reverso, o que sabemos ignora­
mos que sabemos; e quando sabemos que sabemos então não sabemos.
Assim, nosso derradeiro recurso, essa consciência de si onde o estoicis­
mo buscava refúgio, nos escapa e se decompõe; sua transparência é a
transparência do vazio e nosso ser está algures, nas mãos dos outros.
Tais são, em linhas gerais, os temas principais de O castelo e de
Aminadab: espero ter mostrado que eles se impõem na medida em que
se escolheu descrever o mundo pelo avesso. Mas pode-se então pergun­
tar: por que exatamente é necessário descrevê-lo pelo avesso? Que tolo
projeto esse de descrever o homem colocando-o de pernas para o ar! De
fato, é bem verdade que nosso mundo não é fantástico, já que nele tudo
está direito. Um romance de terror pode se apresentar como uma simples
transposição da realidade, uma vez que no dia-a-dia deparamos situa­
ções aterradoras. Contudo, como vimos, não poderia haver ali incidentes
fantásticos, já que o fantástico só pode existir como universo. Olhemos
com mais cuidado. Se estou no avesso de um mundo pelo avesso, tudo

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me parece direito. Portanto, se eu habitasse, eu mesmo fantástico, um
mundo fantástico, não poderia de modo algum considerá-lo fantástico:
eis o que vai nos ajudar a entender o desígnio de nossos autores.
Não posso então julgar este mundo, pois meus juízos fazem par­
te dele. Se o concebo como uma obra de arte ou como uma relojoaria
complicada, é por meio de noções humanas; e se o declaro, ao contrário,
absurdo, é igualmente por meio de conceitos humanos. Quanto aos fins
que nossa espécie persegue, como qualificá-los senão em relação a outros
fins? Posso esperar que um dia eu venha a conhecer com precisão o deta­
lhe do mecanismo que me circunda, mas como poderia o homem julgar
o mundo total, quer dizer, o mundo com o homem dentro? No entanto
tenho a ambição de desvendar o segredo das coisas: gostaria de contem­
plar a humanidade como ela é. O artista teima ali onde o filósofo desistiu.
Ele inventa ficções cômodas para nos satisfazer: Micromégas, o bom sel­
vagem [de Voltaire]; o cão Riquet [de Anatole France]; o "Estrangeiro"
de Camus - olhares puros, que escapam à condição humana e podem
portanto inspecioná-la. Aos olhos desses anjos o mundo humano é uma
realidade dada: eles podem dizer que ele é isto ou aquilo e que poderia
ser de outro jeito; os fins humanos são contingentes, são meros fatos que
os anjos têm em conta da mesma forma que temos em conta os fins das
abelhas e das formigas; os progressos do homem são um mero patinhar,
já que ele não pode sair deste mundo finito e ilimitado, assim como a
formiga não pode escapar ao seu universo de formiga. Só que ao forçar o
leitor a se identificar com um herói inumano nós o fazemos sobrevoar a
condição humana; ele se evade e perde de vista essa necessidade primeira
do universo que contempla: é que o homem está dentro. Como fazê-lo
ver de fora essa obrigação de estar dentro? Eis, no fundo, o problema que
foi proposto a Blanchot e a Kafka - problema exclusivamente literário
e técnico, que não conservaria sentido algum no plano filosófico. E eis a
solução que encontraram: suprimiram o olhar dos anjos e mergulharam o
leitor no mundo, com K . , comThomas; mas no seio dessa imanência dei­
xaram flutuar como que um fantasma de transcendência. Os utensílios, os
atos, os fins, tudo nos é familiar, e estamos com eles numa tal relação de
intimidade que mal os percebemos; mas no exato momento em que nos
sentimos envolvidos com eles numa cálida atmosfera de simpatia orgâ­
nica eles nos são apresentados sob uma luz fria e estranha. Esta escova,
ela está aqui, na minha mão, e para escovar minhas roupas só tenho que
pegá-la. Mas no momento de tocá-la me detenho: é uma escova vista de
fora, ela está aí, em toda a sua contingência, refere-se a fins contingentes,
tal como aparece aos olhos humanos o seixo branco que a formiga puxa
estupidamente para o seu buraco. "Eles escovam suas roupas todas as
manhãs", diria o Anjo. -:\ão seria preciso muito mais do que isso para
que essa atividade parecesse maníaca e ininteligível. Em Blanchot não há
anjos, mas em compensação há um esforço para nos fazer captar nossos
fins - esses fins que nascem de nós e que dão o sentido de nossa vida
- como fins para outros; esses fins alienados, petrificados, só nos são mos­
trados em sua face externa. aquela que eles voltam para fora e pela qual
são Jato s. Fins petrificados, fins por debaixo, invadidos pela materialidade,
constatados antes de serem desejados. Ao mesmo tempo o meio age por
si. Se não é mais inteiramente evidente que se deve escovar as roupas
todas as manhãs, a escova aparece como um utensílio indecifrável, des­
troço de uma civilização desaparecida. Ela ainda significa alguma coisa,
como aqueles instrumentos em forma de cachimbo que foram achados
em Pompéia. Mas ninguém sabe mais o que ela significa. Esses fins imobi­
lizados, esses meios monstruosos e ineficazes, o que são afinal senão jus­
tamente o universo fantástico? Vê-se o procedimento: já que a atividade
humana, vista de fora, parece invertida, Kafka e Blanchot, para nos fazer
ver de fora nossa condição sem recorrer aos anjos, retrataram um mundo
ao avesso. Mundo contraditório, onde o espírito se torna matéria, já que
os valores aparecem como fatos, onde a matéria é corroída pelo espírito,
já que tudo é fim e meio ao mesmo tempo, onde, sem deixar de estar
dentro, vejo-me de fora. Nós só podemos pensá-lo mediante conceitos
evanescentes que se destroem a si mesmos. Ou melhor, não podemos
pensá-lo de forma alguma. Eis por que Blanchot escreve:

[O sentido} só pode ser captado mediante uma ficção e se dissipa assim que
procuramos compreendê-lo por si mesmo. [ ...]A história [ ...]parece misteriosa
porque di;;_ tudo a respeito daquilo quejustamente não suporta ser dito.

Há como que uma existência marginal do fantástico: olhe-o de frente,


tente exprimir seu sentido por palavras e ele se desvanece, pois afinal é
preciso estar dentro ou fora. Mas se você ler a história sem tentar traduzi­
la ele o assaltará pelos flancos. As poucas verdades que você pescará em
Aminadab perderão suas cores e sua vida assim que saírem da água: pois
bem, o homem está só, ele decide sozinho o seu destino, ele inventa a lei
à qual se submete; cada um de nós, estranho a si mesmo, é para todos

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os outros uma vítima e um carrasco; em vão procuraríamos transcen­
der a condição humana: melhor seria adquirir um sentido nietzschiano
da terra; pois hem, a sagacidade de Blanchot parece pertencer àquelas
"transdescendências" de que falava Jean \\'ahl a respeito de Heidegger.
Mas enfim isso tudo não soa lá muito novo. Essas verdades, no entanto,
brilhavam com um estranho resplendor quando deslizavam entre duas
águas ao remontar a corrente da narração. É porque as víamos do aves­
so: eram verdades fantásticas.
Nossos autores, que perfizeram juntos um caminho tão longo, se
separam aqui. De Kafka não tenho nada a dizer, a não ser que é um dos
mais raros e maiores escritores de nossa época. De resto, ele veio pri­
meiro. A técnica que escolheu responde em sua obra a wna necessidade.
Se ele nos mostra a vida humana perpetuamente atormentada com uma
transcendência impossível, é que acredita na existência dessa transcen­
dência. Simplesmente, ela está fora de nosso alcance. Seu universo é
ao mesmo tempo fantástico e rigorosamente verdadeiro. Blanchot cer­
tamente tem um talento considerável. Mas ele vem em segundo, e os
artifícios de que se utiliza já nos são por demais familiares. Ao comentar
As flores de Tarbes [Les Fleurs de Tarbes] de Jean Paulhan ele escreve:

Aqueles que por prodígios de ascetismo tiveram a ilusão de se afastar de toda


literatura, por terem desejado livrar-se das convenções e das formas para tocar
diretamente o mundo secreto e a profunda metafísica que queriam revelar, [ ... ]
acabaram por se contentar em servir-se desse mundo, desse segredo, dessa
metafisica como convenções e formas que eles apresentaram com complacên­
cia e que ao mesmo tempo constituíram a estrutura visível e o fundo de suas
obras. [. ..] Para esse tipo de escritor, a metafísica, a religião e os sentimentos
ocupam o lugar da técnica e da linguagem. São sistemas de expressão, gênero
literário -numa palavra, literatura. 2

Temo que essa reprimenda, se é que é uma reprimenda, possa ser dirigi­
da ao próprio Blanchot. O sistema de signos que ele escolheu não cor­
responde totalmente ao pensamento que ele exprime. Para nos retratar
a "natureza do espírito, sua profunda divisão, esse combate do Mesmo
com o Mesmo que é o meio de sua força, seu tormento e sua apoteose"/

2. Maurice Blanchot, Commentla !ittérature est-elle possi6le?(Paris: José Corti, 19.p), p. 23.
3· Ibidem, p. 16.
era inútil recorrer a artifícios que introduzem no seio da consciência um
olhar exterior. Eu diria de bom grado de Blanchot o que [Jules] Lagneau
disse de [Maurice] Barres: "Ele roubou a ferramenta" . E esse ligeiro
deslocamento entre o signo e o significado faz que os temas viven­
ciais de Kafka passem à categoria de convenções literárias. Por culpa
de Blanchot, agora há um estereótipo do fantástico "à la Kafka" , assim
como há um estereótipo dos castelos assombrados e dos monstros de
maus bofes. E sei que a arte vive de convenções, mas deve-se ao menos
saber escolhê-las. Sob uma transdescendência tingida de maurrassismo,4
o fantástico dá a impressão de estar chapado.
O mal-estar do leitor é ainda acrescido pelo fato de que Blanchot
não se mantém fiel a seu propósito. Ele deseja- diz-nos- que o sentido
de Aminadab "se dissipe tão logo se procure compreendê-lo por si mes­
mo". Seja; mas nesse caso por que nos oferece uma perpétua tradução,
um abundante comentário de seus símbolos? Em várias passagens as
explicações se fazem tão insistentes que a história toma nitidamente o
aspecto de uma alegoria. Escolham ao acaso uma página da longa nar­
ração que expõe o mito dos serviçais. Por exemplo, esta:

Eu lhes tinha advertido que a criadagem ficava invisível a maior parte do


tempo. Que tolice uma tal frase, tentação orgulhosa à qual cedi e pela qual
enrubesço. Invisível, a criadagem? Invisível a maior parte do tempo? Mas não
a vemos nunca, nunca a percebemos, mesmo de longe; não sabemos sequer o
que pode significar a palavra ver quando se trata dela, nem se há uma pala­
vra para exprimir sua ausência, nem se o pensamento dessa ausência não é
um supremo e desolador recurso para nos ja1_er imaginar sua aparição. O esta­
do de negligência em que ela nos mantém é sob certos aspectos inimaginável.
Poderíamos então nos queixar de sabê-La tão indiferente aos nossos interesses,
já que muitos viram sua saúde arruinada ou pagaram com a própria vida
pelos erros de serviço. lvo entanto estaríamos prontos a tudo perdoar se de vei'
em quando ela nos desse uma satisfação.

Substituam nesse trecho a palavra "criadagem" por "Deus" , a palavra


"serviço" por "providência", e terão uma exposição perfeitamente inteli­
gível de um certo aspecto do sentimento religioso. Da mesma forma, os

4· Transpôs-se aqui o neologismo ["maurrassisme"] com que Sartre se refere à influência de


Charles Maurras (cf. nota 1) [:\.E.).

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--
objetos desse mundo falsamente fantástico freqüentemente nos revelam
o seu sentido "em anverso" sem haver necessidade de qualquer comen­
tário, caso desse companheiro de grilhão que é tão manifestamente o
corpo, o corpo humilhado, maltratado numa sociedade que pronunciou
o divórcio entre o físico e o espiritual. Ele nos parece então traduzir
uma tradução, devolver um texto à sua língua de origem a partir da sua
transposição para uma outra língua.
De resto, não pretendo ter captado todas as intenções do autor e tal­
vez tenha me enganado sobre muitas delas. Para me incomodar bastou
que essas intenções, embora obscuras, fossem manifestas: nunca deixei
de acreditar que com mais aplicação ou mais inteligência eu teria escla­
recido todas. Em Kafka os acidentes efetivamente se encadeiam segundo
as necessidades da intriga. Em O processo, por exemplo, não perdemos
de vista por um só instante o fato de que K. luta por sua honorabilidade,
por sua vida. Mas por que é mesmo que Thomas luta? Ele não tem cará­
ter nítido, não tem objetivo, quase não tem interesses. E os acontecimen­
tos se acrescentam caprichosamente. Como na vida, dirão - mas a vida
não é um romance. Assim é que tais sucessões, sem uma regra ou uma
razão que possamos inferir da própria obra, nos remetem, a despeito de
nós mesmos, aos desígnios secretos do autor. Por que Thomas perde
seu companheiro de grilhão e fica doente? Nesse mundo ao avesso nada
prepara ou explica essa doença. É que ela tem sua razão de ser fora desse
mundo, nos desígnios providenciais do autor. Também Blanchot labuta
em vão a maior parte do tempo, pois não consegue enredar seu leitor
nesse mundo de pesadelo que descreve. O leitor escapa. Ele está de fora,
de fora com o próprio autor; contempla esses sonhos como contempla­
ria uma máquina bem montada, e só perde o pé em raros momentos.
Esses momentos são suficientes porém para revelar Blanchot como
um escritor de qualidade. Ele é engenhoso e sutil, às vezes profundo,
ama as palavras; só lhe falta encontrar seu estilo. Sua incursão no fan­
tástico não foi sem conseqüências: fez um balanço. Kafka era inimitável;
permanecia no horizonte como uma eterna tentação. Por tê-lo imita­
do sem o saber, Blanchot nos liberta dele, ilumina seus procedimentos.
Catalogados, classificados, congelados, inúteis, esses procedimentos
não mais causam medo ou vertigem: Kafka seria apenas uma etapa; por
meio dele, bem como de Hoffmann, de Poe, de Lewis Carroll e dos
surrealistas, o fantástico prossegue no progresso contínuo que deve, no
limite, confluir com aquilo que ele sempre foi.

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