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o SITUAÇOES I ,
CRITI.CAS LITERARIAS
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Jean-Paul Sartre
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Esta obra foi publicada com o apoio
do Ministério da cultura francês
© Cosac Naify, 2005
(Centro NaciOnal do Livro).
© Edition s Gallimard, 1 g47
Ouvrage publié avec /e concours du
Coordenação editorial
Ministére trançais chargé de la culture
ALEXANDRE BARBOSA DE SOUZA
(Centre National du Livre).
Preparação e bibliografia
RAUL LOUREIRO
Composição
JUSSARA FINO
Imagem da capa
DANIEL SENISE
Foto do autor
312 p.
Bibliografia.
ISBN 85-7503-418-9
05-8601 CDD-809
COSAC NAIFY
Rua General Jardim, 770, 2? andar
*Originalmente em Cahiers du Sud. n. 2jj, abril de 1943, pp. 299-305, e n. 2;6, maio de 1943,
PP· 361-'71 [:>.T.].
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Assim resumidas, as intenções de Blanchot parecem bastante claras.
O que é mais claro ainda é a extraordinária semelhança de seu livro com
os romances de Kafka. O mesmo estilo minucioso e cortês, a mesma
polidez de pesadelo, o mesmo cerimonial afetado, extravagante, as mes
mas buscas vãs, pois não levam a nada, os mesmos raciocínios exaus
'
tivos e improfícuos, as mesmas iniciações estéreis, pois não iniciam a
nada. Ora, Blanchot afirma que nada havia lido nada de Kafka quando
escreveu Aminadaó. Isso nos deixa tanto mais à vontade para admirar
por qual estranho encontro esse jovem escritor, ainda inseguro de seu
estilo, achou para expressar algumas idéias banais sobre a vida humana
o instrumento que reproduzira sons inauditos sob outros dedos.
Não sei de onde vem essa conjunção. Ela me interessa tão-somente
porque permite aventar o "derradeiro estágio" da literatura fantástica.
Pois o gênero fantástico, como os outros gêneros literários, tem uma
essência e uma história, esta sendo apenas o desenvolvimento daquela.
O que deve ser então o fantástico contemporâneo para que um escri
tor francês e convicto de que é preciso "pensar em francês" 1 possa se
encontrar, ao valer-se desse modo de expressão, com um escritor da
Europa Central?
Não é nem necessário nem suficiente retratar o extraordinário para
atingir o fantástico. O acontecimento mais insólito, isolado num mundo
governado por leis, reintegra-se por si mesmo à ordem universal. Se
fizerem um cavalo falar, pensarei por um momento que está enfeitiçado.
Mas se ele persistir em discursar em meio a árvores imóveis, sobre um
solo inerte, eu lhe admitirei o poder natural de falar. Não verei mais o
cavalo, mas o homem disfarçado de cavalo. Em contrapartida, se con
seguirem me convencer de que esse cavalo é fantástico, então é por
que as árvores e a terra e o rio também o são, mesmo que nada tenha
sido dito a respeito. Não se atribui ao fantástico seu quinhão: ou ele não
existe ou se estende a todo o universo; é um mundo completo, onde
as coisas manifestam um pensamento cativo e atormentado, ao mesmo
tempo caprichoso e acorrentado, que lhe corrói por baixo as malhas do
mecanismo, sem jamais chegar a se exprimir. Nele, a matéria nunca é
totalmente matéria, já que oferece apenas um esboço perpetuamente
contrariado do determinismo, e o espírito nunca é totalmente espírito,
já que sucumbiu à escravidão e a matéria o impregna e o empasta. Tudo
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aqui faz figura de precursor, existe sem dúvida uma realidade transcen
dente, mas ela está fora de alcance e serve apenas para nos fazer sentir
mais cruelmente o desamparo do homem no seio do humano. Blanchot,
que não acredita na transcendência, certamente subscreveria esta opi
nião de [Arthur S.] Eddington:
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são fisicamente ordinários e ele os caracteriza em poucas palavras, de
passagem -, mas em sua realidade total de homofaber, de homo sapiens.
Assim, ao humanizar-se, o fantástico se reaproxima da pureza ideal de
sua essência, torna-se o que era. Despojou-se, parece, de todos seus
artifícios: nada nas mãos, nada nos bolsos. As pegadas nas margens, nós
as reconhecemos como nossas. Nada de súcubos, nada de fantasmas,
nada de fontes que choram - há apenas homens, e o criador do fantás
tico proclama que se identifica com o objeto fantástico. Para o homem
contemporâneo, o fantástico tornou-se apenas uma maneira entre cem
de fazer refletir sua própria imagem.
É a partir dessas observações que podemos buscar uma melhor
compreensão da extraordinária semelhança entre Aminadab e O castelo.
Vimos que a essência do fantástico é oferecer a imagem invertida da
união da alma e do corpo. Com efeito, em Kafka assim como em Blan
chot ele se limita a exprimir o mundo humano. Será que ele se verá
sujeito, tanto num caso como no outro, às novas condições? E o que
pode significar a inversão das relações humanas?
Ao entrar num café, percebo antes de mais nada os utensílios. Não
as coisas, os materiais brutos, mas os instrumentos, mesas, banquetas,
vidros, copos, taças. Cada um deles representa um pedaço de matéria
subjugada; seu conjunto é submetido a uma ordem manifesta e a signifi
cação dessa ordenação é um fim - um fim que sou eu mesmo, ou melhor,
o homem em mim, o consumidor que eu sou. Tal é o mundo humano em
anverso. Em vão procuraríamos nele uma matéria "prima": é o meio que
faz aqui função de matéria, enquanto a forma - a ordem espiritual - é
representada pelo fim. Agora retratemos esse café em reverso. Será preci
so mostrar os fins que seus próprios meios relegam e que tentam em vão
atravessar enormes espessuras de matéria, ou, se quisermos, objetos que
manifestam por si mesmos sua instrumentalidade, mas com um poder
de indisciplina e de desordem, com uma espécie de independência pas
tosa que subitamente nos rouba seu fim quando pensamos agarrá-lo. Eis
uma porta, por exemplo: ela está aí, com suas dobradiças, seu trinco, sua
fechadura. Está cuidadosamente trancada, como se protegesse algum
tesouro. Consigo, após várias tentativas, obter sua chave, abro-a e per
cebo que ela dá para uma parede. Sento-me, peço um café-com-creme,
o garçom me faz repetir três vezes o pedido e o repete ele mesmo para
evitar qualquer risco de erro. Ele se precipita, transmite minha ordem a
um segundo garçom que a anota num bloco e a transmite a um terceiro.
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Por fim um quarto volta e diz: "Aqui está", colocando um tinteiro sobre
minha mesa. "Mas eu havia pedido um café-com-creme ... ", digo. "Pois
bem, justamente", diz ele, retirando-se. Se o leitor puder pensar, ao ler
contos desse tipo, que se trata de uma farsa dos garçons ou de alguma
psicose coletiva, teremos perdido a partida. Mas se soubemos dar-lhe a
impressão de que falamos de um mundo onde essas manifestações insó
litas figuram a título de condutas normais, então ele se achará de golpe
mergulhado no seio do fantástico. O fantástico humano é a revolta dos
meios contra os fins, seja que o objeto considerado se afirme ruidosa
mente como meio e nos mascare seu fim pela própria violência dessa
afirmação, seja que ele remeta a um outro meio, este a um outro e assim
por diante até o infinito, sem que jamais possamos descobrir o fim supre
mo, seja ainda que alguma interferência de meios pertencentes a séries
independentes nos deixe entrever uma imagem compósita e embaralha
da de fins contraditórios.
Terei eu logrado, ao contrário, captar um fim? Todas as pontes
estão interditadas; não consigo descobrir nem inventar meio algum de
realizá-lo. Alguém marcou um encontro comigo no primeiro andar des
te café, e é preciso que eu suba com toda urgência. Vejo de baixo este
primeiro andar; entrevejo seu balcão através de uma grande abertura
circular, vejo até mesas e fregueses nessas mesas. Mas por mais que eu
dê cem vezes a volta na sala não acho a escada. Nesse caso o meio está
determinado: tudo o indica e o exige; ele é figurado implicitamente pela
presença manifesta do fim. Mas levou a malícia a ponto de aniquilar
se. Estarei aqui falando de um mundo "absurdo" como Camus em seu
Estrangeiro? Mas o absurdo é a total ausência de fim. O absurdo é o
objeto de um pensamento claro e distinto; ele diz respeito ao mundo
"em anverso" como limite efetivo dos poderes humanos. No mundo
maníaco e alucinante que tentamos descrever o absurdo seria um oásis,
um repouso, de modo que aí não há lugar algum para ele. Nesse mundo
não posso me deter por um só instante: todo meio me remete sem des
canso ao fim fantasmagórico que o assombra e todo fim me reenvia ao
meio fantasmagórico pelo qual eu poderia realizá-lo. Não posso pensar
coisa alguma, a não ser por noções escorregadias e cintilantes que se
desagregam sob meu olhar.
Não é então surpreendente que encontremos temas rigorosamen
te idênticos em autores tão diferentes quanto Kafka e Blanchot? Não
é esse mesmo mundo insólito que eles visam descrever? Um e outro
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terão como primeira preocupação excluir de seus romances "a impassí
vel natureza": daí a atmosfera sufocante que lhes é comum. O herói d' O
processo se debate em meio a uma cidade grande, atravessa ruas, entra em
casas; Thomas, em Aminadah, vagueia pelos intermináveis corredores
de um prédio. Nem um nem outro jamais verão florestas, prados, colinas.
Que descanso não teriam se se vissem diante de um torrão de tetra, de
um fragmento de matéria que não servisse para nada! Mas o fantástico
se esvairia na hora: a lei do gênero os condena a não encontrarem nada
além de utensílios. Esses utensílios, já vimos, não têm a missão de servi
los, mas de manifestar sem descanso uma finalidade fugidia e insólita:
daí esse labirinto de corredores, de portas, de escadas que não levam a
nada, daí essas tabuletas sinalizadoras que nada indicam, esses inumerá
veis signos que pontuam os itinerários e nada significam. Conviria citar
como um caso particular do tema dos signos o motivo da mensagem, tão
importante em Blanchot como em Kafka. No mundo "em anverso" uma
mensagem supõe um remetente, um mensageiro e um destinatário; ela
só tem valor de meio: seu conteúdo é que é seu fim. No mundo "em
reverso" o meio se isola e se põe para si: somos assediados por mensa
gens sem conteúdo, sem mensageiro ou sem remetente. Ou, ainda, o fim
existe mas o meio vai corroê-lo pouco a pouco; num conto de Kafka o
imperador envia uma mensagem a um habitante da cidade, mas o men
sageiro tem uma caminhada tão longa a realizar que a mensagem jamais
chegará a seu destinatário; Blanchot, por sua vez, nos fala de uma men
sagem cujo conteúdo se modifica progressivamente ao longo do trajeto:
Todas essas hipóteses tornam provável esta conclusão: malgrado sua boa von
tade, o mensageiro, quando tiver chegado em cima, terá esquecido sua men
sagem e será incapa1_ de transmiti-la; ou ainda, admitindo-se que ele tenha
conservado escrupulosamente seus termos, lhe será impossível saber qual é o
seu significado, pois o que teria um sentido aqui necessariamente deve ter um
sentido totalmente diferente lá embaixo, ou não ter sentido algum [ .. .]. O
que ele próprio terá se tOrnado eu me recuso a imaginar, pois presumo que me
pareceria tão diferente daquilo que sou quanto a mensagem transmitida deve
sê-lo em relação à mensagem recebida.
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se acumulam sobre as escrivaninhas e os empregados se conformam a
eles sem que se possa saber se essas ordens emanam de uma personali
dade qualificada, se são o produto de uma rotina anônima e secular ou
se são inventadas pelos funcionários. Seu próprio alcance é ambíguo e
jamais poderei determinar se elas se aplicam a todos os membros da cole
tividade ou se dizem respeito apenas a mim. No entanto essa lei ambígua
que oscila entre a regra e o capricho, entre o universal e o singular, está
presente em todo lugar, ela constrange, sobrecarrega, a violamos quan
do pensamos a estar seguindo e, quando nos revoltamos contra ela, des
cobrimo-nos obedecendo-a à revelia. Supõe-se que ninguém a ignore e
no entanto ninguém a conhece. Ela não tem por finalidade conservar a
ordem ou regulamentar as relações humanas; ela é a Lei, sem objetivo,
sem significado, sem conteúdo, e ninguém pode lhe escapar.
Mas é preciso fechar o círculo: ninguém pode penetrar no univer
so dos sonhos se não está dormindo; da mesma forma, ninguém pode
entrar no mundo fantástico se não se torna fantástico. Ora, sabe-se que
o leitor começa sua leitura identificando-se com o herói do romance. É
este então que, ao nos emprestar seu ponto de vista, constitui a única via
de acesso ao fantástico. A antiga técnica o apresentava como um homem
"em anverso" transportado por milagre para um mundo "em reverso".
Kafka usou tal procedimento pelo menos uma vez: em O processo, K.
é u m homem normal. Vê-se a vantagem dessa técnica. Ela coloca em
relevo, por contraste, o caráter insólito do novo mundo, e o romance
fantástico torna-se um "Erziehungsroman" [romance pedagógico]: o lei
tor compartilha os assombros do herói e o segue de descoberta em des
coberta. Só que ao mesmo tempo ele vê o fantástico de fora, como um
espetáculo, como se uma razão em vigília contemplasse placidamente as
imagens de nossos sonhos. Em O castelo Kafka aperfeiçoou sua técnica:
seu herói, ele próprio, é fantástico; desse agrimensor, cujas aventuras
e perspectivas devemos compartilhar, não sabemos nada além de sua
ininteligível obstinação em se estabelecer numa aldeia interdita. Para
atingir esse fim ele sacrifica tudo, tratando a si mesmo como um meio.
Mas ignoramos completamente o preço que esse fim tinha para ele e se
valia tanto esforço. Blanchot adotou o mesmo procedimento. Seu Tho
mas não é menos misterioso que os serviçais do prédio. Não sabemos
de onde ele vem nem por que se obstina a encontrar aquela mulher que
lhe acenou. Como Kafka, como Samsa, como o Agrimensor, Thomas
jamais se esp anta: escandaliza-se, como se a sucessão dos acontecimen-
tos aos quais assiste lhe parecesse perfeitamente natural mas reprovável,
como se possuísse dentro de si uma estranha norma do Bem e do Mal,
que Blanchot cuidadosamente se absteve de nos informar. Assim, eis
nos coagidos, pelas próprias leis do romance, a adotar um ponto de vista
que não é o nosso, a condenar sem compreender e a contemplar sem sur
presa o que nos deixa pasmos. De resto, Blanchot abre e fecha a alma de
seu herói como a uma caixa. Ora a adentramos, ora nos deixam à porta.
E quando lá entramos é para encontrar raciocínios já começados, que se
encadeiam como mecanismos e supõem princípios e fins que ignoramos.
Seguimos seus passos de perto; já que somos o herói, raciocinamos com
ele. Mas esses discursos nunca levam a nada, como se o grande negócio
fosse tão-somente raciocinar. Uma vez mais o meio deglutiu o fim. E
nossa razão, que deveria endireitar o mundo ao avesso, arrebatada por
esse pesadelo, torna-se ela mesma fantástica. Blanchot vai ainda mais
longe. Numa excelente passagem de Aminada!J, seu herói subitamente
descobre que à sua revelia se tornou empregado da casa e que cumpre
as funções de carrasco. Então interrogamos pacientemente os funcioná
rios, pois nos parece que conhecem a lei e os segredos do universo - e
eis que de repente descobrimos que éramos nós mesmos funcionários e
não o sabíamos; eis que os outros nos voltam olhares suplicantes e por
sua vez nos interrogam. Talvez conheçamos a lei de uma vez por todas.
"Saber - escreve Alain - é saber que sabemos." Mas essa é uma máxima
do mundo em anverso. No mundo em reverso, o que sabemos ignora
mos que sabemos; e quando sabemos que sabemos então não sabemos.
Assim, nosso derradeiro recurso, essa consciência de si onde o estoicis
mo buscava refúgio, nos escapa e se decompõe; sua transparência é a
transparência do vazio e nosso ser está algures, nas mãos dos outros.
Tais são, em linhas gerais, os temas principais de O castelo e de
Aminadab: espero ter mostrado que eles se impõem na medida em que
se escolheu descrever o mundo pelo avesso. Mas pode-se então pergun
tar: por que exatamente é necessário descrevê-lo pelo avesso? Que tolo
projeto esse de descrever o homem colocando-o de pernas para o ar! De
fato, é bem verdade que nosso mundo não é fantástico, já que nele tudo
está direito. Um romance de terror pode se apresentar como uma simples
transposição da realidade, uma vez que no dia-a-dia deparamos situa
ções aterradoras. Contudo, como vimos, não poderia haver ali incidentes
fantásticos, já que o fantástico só pode existir como universo. Olhemos
com mais cuidado. Se estou no avesso de um mundo pelo avesso, tudo
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me parece direito. Portanto, se eu habitasse, eu mesmo fantástico, um
mundo fantástico, não poderia de modo algum considerá-lo fantástico:
eis o que vai nos ajudar a entender o desígnio de nossos autores.
Não posso então julgar este mundo, pois meus juízos fazem par
te dele. Se o concebo como uma obra de arte ou como uma relojoaria
complicada, é por meio de noções humanas; e se o declaro, ao contrário,
absurdo, é igualmente por meio de conceitos humanos. Quanto aos fins
que nossa espécie persegue, como qualificá-los senão em relação a outros
fins? Posso esperar que um dia eu venha a conhecer com precisão o deta
lhe do mecanismo que me circunda, mas como poderia o homem julgar
o mundo total, quer dizer, o mundo com o homem dentro? No entanto
tenho a ambição de desvendar o segredo das coisas: gostaria de contem
plar a humanidade como ela é. O artista teima ali onde o filósofo desistiu.
Ele inventa ficções cômodas para nos satisfazer: Micromégas, o bom sel
vagem [de Voltaire]; o cão Riquet [de Anatole France]; o "Estrangeiro"
de Camus - olhares puros, que escapam à condição humana e podem
portanto inspecioná-la. Aos olhos desses anjos o mundo humano é uma
realidade dada: eles podem dizer que ele é isto ou aquilo e que poderia
ser de outro jeito; os fins humanos são contingentes, são meros fatos que
os anjos têm em conta da mesma forma que temos em conta os fins das
abelhas e das formigas; os progressos do homem são um mero patinhar,
já que ele não pode sair deste mundo finito e ilimitado, assim como a
formiga não pode escapar ao seu universo de formiga. Só que ao forçar o
leitor a se identificar com um herói inumano nós o fazemos sobrevoar a
condição humana; ele se evade e perde de vista essa necessidade primeira
do universo que contempla: é que o homem está dentro. Como fazê-lo
ver de fora essa obrigação de estar dentro? Eis, no fundo, o problema que
foi proposto a Blanchot e a Kafka - problema exclusivamente literário
e técnico, que não conservaria sentido algum no plano filosófico. E eis a
solução que encontraram: suprimiram o olhar dos anjos e mergulharam o
leitor no mundo, com K . , comThomas; mas no seio dessa imanência dei
xaram flutuar como que um fantasma de transcendência. Os utensílios, os
atos, os fins, tudo nos é familiar, e estamos com eles numa tal relação de
intimidade que mal os percebemos; mas no exato momento em que nos
sentimos envolvidos com eles numa cálida atmosfera de simpatia orgâ
nica eles nos são apresentados sob uma luz fria e estranha. Esta escova,
ela está aqui, na minha mão, e para escovar minhas roupas só tenho que
pegá-la. Mas no momento de tocá-la me detenho: é uma escova vista de
fora, ela está aí, em toda a sua contingência, refere-se a fins contingentes,
tal como aparece aos olhos humanos o seixo branco que a formiga puxa
estupidamente para o seu buraco. "Eles escovam suas roupas todas as
manhãs", diria o Anjo. -:\ão seria preciso muito mais do que isso para
que essa atividade parecesse maníaca e ininteligível. Em Blanchot não há
anjos, mas em compensação há um esforço para nos fazer captar nossos
fins - esses fins que nascem de nós e que dão o sentido de nossa vida
- como fins para outros; esses fins alienados, petrificados, só nos são mos
trados em sua face externa. aquela que eles voltam para fora e pela qual
são Jato s. Fins petrificados, fins por debaixo, invadidos pela materialidade,
constatados antes de serem desejados. Ao mesmo tempo o meio age por
si. Se não é mais inteiramente evidente que se deve escovar as roupas
todas as manhãs, a escova aparece como um utensílio indecifrável, des
troço de uma civilização desaparecida. Ela ainda significa alguma coisa,
como aqueles instrumentos em forma de cachimbo que foram achados
em Pompéia. Mas ninguém sabe mais o que ela significa. Esses fins imobi
lizados, esses meios monstruosos e ineficazes, o que são afinal senão jus
tamente o universo fantástico? Vê-se o procedimento: já que a atividade
humana, vista de fora, parece invertida, Kafka e Blanchot, para nos fazer
ver de fora nossa condição sem recorrer aos anjos, retrataram um mundo
ao avesso. Mundo contraditório, onde o espírito se torna matéria, já que
os valores aparecem como fatos, onde a matéria é corroída pelo espírito,
já que tudo é fim e meio ao mesmo tempo, onde, sem deixar de estar
dentro, vejo-me de fora. Nós só podemos pensá-lo mediante conceitos
evanescentes que se destroem a si mesmos. Ou melhor, não podemos
pensá-lo de forma alguma. Eis por que Blanchot escreve:
[O sentido} só pode ser captado mediante uma ficção e se dissipa assim que
procuramos compreendê-lo por si mesmo. [ ...]A história [ ...]parece misteriosa
porque di;;_ tudo a respeito daquilo quejustamente não suporta ser dito.
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os outros uma vítima e um carrasco; em vão procuraríamos transcen
der a condição humana: melhor seria adquirir um sentido nietzschiano
da terra; pois hem, a sagacidade de Blanchot parece pertencer àquelas
"transdescendências" de que falava Jean \\'ahl a respeito de Heidegger.
Mas enfim isso tudo não soa lá muito novo. Essas verdades, no entanto,
brilhavam com um estranho resplendor quando deslizavam entre duas
águas ao remontar a corrente da narração. É porque as víamos do aves
so: eram verdades fantásticas.
Nossos autores, que perfizeram juntos um caminho tão longo, se
separam aqui. De Kafka não tenho nada a dizer, a não ser que é um dos
mais raros e maiores escritores de nossa época. De resto, ele veio pri
meiro. A técnica que escolheu responde em sua obra a wna necessidade.
Se ele nos mostra a vida humana perpetuamente atormentada com uma
transcendência impossível, é que acredita na existência dessa transcen
dência. Simplesmente, ela está fora de nosso alcance. Seu universo é
ao mesmo tempo fantástico e rigorosamente verdadeiro. Blanchot cer
tamente tem um talento considerável. Mas ele vem em segundo, e os
artifícios de que se utiliza já nos são por demais familiares. Ao comentar
As flores de Tarbes [Les Fleurs de Tarbes] de Jean Paulhan ele escreve:
Temo que essa reprimenda, se é que é uma reprimenda, possa ser dirigi
da ao próprio Blanchot. O sistema de signos que ele escolheu não cor
responde totalmente ao pensamento que ele exprime. Para nos retratar
a "natureza do espírito, sua profunda divisão, esse combate do Mesmo
com o Mesmo que é o meio de sua força, seu tormento e sua apoteose"/
2. Maurice Blanchot, Commentla !ittérature est-elle possi6le?(Paris: José Corti, 19.p), p. 23.
3· Ibidem, p. 16.
era inútil recorrer a artifícios que introduzem no seio da consciência um
olhar exterior. Eu diria de bom grado de Blanchot o que [Jules] Lagneau
disse de [Maurice] Barres: "Ele roubou a ferramenta" . E esse ligeiro
deslocamento entre o signo e o significado faz que os temas viven
ciais de Kafka passem à categoria de convenções literárias. Por culpa
de Blanchot, agora há um estereótipo do fantástico "à la Kafka" , assim
como há um estereótipo dos castelos assombrados e dos monstros de
maus bofes. E sei que a arte vive de convenções, mas deve-se ao menos
saber escolhê-las. Sob uma transdescendência tingida de maurrassismo,4
o fantástico dá a impressão de estar chapado.
O mal-estar do leitor é ainda acrescido pelo fato de que Blanchot
não se mantém fiel a seu propósito. Ele deseja- diz-nos- que o sentido
de Aminadab "se dissipe tão logo se procure compreendê-lo por si mes
mo". Seja; mas nesse caso por que nos oferece uma perpétua tradução,
um abundante comentário de seus símbolos? Em várias passagens as
explicações se fazem tão insistentes que a história toma nitidamente o
aspecto de uma alegoria. Escolham ao acaso uma página da longa nar
ração que expõe o mito dos serviçais. Por exemplo, esta:
148
--
objetos desse mundo falsamente fantástico freqüentemente nos revelam
o seu sentido "em anverso" sem haver necessidade de qualquer comen
tário, caso desse companheiro de grilhão que é tão manifestamente o
corpo, o corpo humilhado, maltratado numa sociedade que pronunciou
o divórcio entre o físico e o espiritual. Ele nos parece então traduzir
uma tradução, devolver um texto à sua língua de origem a partir da sua
transposição para uma outra língua.
De resto, não pretendo ter captado todas as intenções do autor e tal
vez tenha me enganado sobre muitas delas. Para me incomodar bastou
que essas intenções, embora obscuras, fossem manifestas: nunca deixei
de acreditar que com mais aplicação ou mais inteligência eu teria escla
recido todas. Em Kafka os acidentes efetivamente se encadeiam segundo
as necessidades da intriga. Em O processo, por exemplo, não perdemos
de vista por um só instante o fato de que K. luta por sua honorabilidade,
por sua vida. Mas por que é mesmo que Thomas luta? Ele não tem cará
ter nítido, não tem objetivo, quase não tem interesses. E os acontecimen
tos se acrescentam caprichosamente. Como na vida, dirão - mas a vida
não é um romance. Assim é que tais sucessões, sem uma regra ou uma
razão que possamos inferir da própria obra, nos remetem, a despeito de
nós mesmos, aos desígnios secretos do autor. Por que Thomas perde
seu companheiro de grilhão e fica doente? Nesse mundo ao avesso nada
prepara ou explica essa doença. É que ela tem sua razão de ser fora desse
mundo, nos desígnios providenciais do autor. Também Blanchot labuta
em vão a maior parte do tempo, pois não consegue enredar seu leitor
nesse mundo de pesadelo que descreve. O leitor escapa. Ele está de fora,
de fora com o próprio autor; contempla esses sonhos como contempla
ria uma máquina bem montada, e só perde o pé em raros momentos.
Esses momentos são suficientes porém para revelar Blanchot como
um escritor de qualidade. Ele é engenhoso e sutil, às vezes profundo,
ama as palavras; só lhe falta encontrar seu estilo. Sua incursão no fan
tástico não foi sem conseqüências: fez um balanço. Kafka era inimitável;
permanecia no horizonte como uma eterna tentação. Por tê-lo imita
do sem o saber, Blanchot nos liberta dele, ilumina seus procedimentos.
Catalogados, classificados, congelados, inúteis, esses procedimentos
não mais causam medo ou vertigem: Kafka seria apenas uma etapa; por
meio dele, bem como de Hoffmann, de Poe, de Lewis Carroll e dos
surrealistas, o fantástico prossegue no progresso contínuo que deve, no
limite, confluir com aquilo que ele sempre foi.