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O FANTÁSTICO TRADICIONAL: DO SÉCULO XIX À

CONTEMPORANEIDADE.
Amanda da Silveira Assenza Fratucci (FCLAr - UNESP)1

Resumo: A produção de literatura fantástica foi muito fecunda na Europa durante o século XIX.
Grande parte dos estudiosos afirma que esse fantástico tradicional que se manifestou ao longo
do século XIX teve uma vida relativamente curta, não chegando ao século XX. O que temos nos
dias atuais, portanto, é uma série de estudos a respeito da manifestação mais recente da
modalidade que afirmam que há atualmente um neofantástico, principalmente nas literaturas de
língua espanhola; outros tratam o Realismo Mágico ou Maravilhoso como manifestação
fantástica atual. Assim, o que se objetiva neste estudo é mostrar que o fantástico tradicional do
século XIX ainda tem, até os dias atuais, uma permanência na literatura.
Palavras-chave: Fantástico; Literatura Contemporânea; Claude Seignolle.

Sabemos que a literatura fantástica foi muito fecunda nas produções narrativas
europeias durante o século XIX. O termo fantástico passa a ser utilizado no sentido que
tem hoje pelos românticos franceses em torno de 1830, que tentavam desvincular esse
tipo de narrativa do romance gótico inglês. Para eles, a literatura fantástica tinha
características bem distintas da literatura gótica inglesa e estava vinculada ao nome de
E.T.A. Hoffmann, embora não tenha sido ele o criador desse tipo de narrativa.
O fantástico tradicional foi alvo de várias tentativas de definição ao longo do
século XIX (com as teorias de Charles Nodier e Maupassant) e XX (com os estudos de
Castex e Todorov, por exemplo).
A teoria proposta por Tzvetan Todorov em sua Introdução à Literatura
Fantástica, publicada pela primeira vez em 1970, ganhou mais visibilidade. Ele propõe
nessa obra uma definição do fantástico que depois seria retomada e discutida por muitos
outros teóricos. Para o crítico, o fantástico representa um gênero literário, ou seja,
trata-se de um conjunto de obras, produzido em sua maioria no período que se estendeu
do fim do século XVIII ao fim do século XIX e que compartilha um determinado
sistema de propriedades comuns. Todorov discorre sobre os limites entre o estranho, o
fantástico e o maravilhoso. Sobre isso, ele diz:

Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem


diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não
pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar. Aquele que o

1
Graduada em Letras pela UNESP. Atualmente, é doutoranda em Estudos Literários pela mesma
instituição. Contato: as.assenza@gmail.com.

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percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de
uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as
leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento
realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta
realidade é regida por leis desconhecidas para nós. Ou o diabo é uma
ilusão, um ser imaginário; ou então existe realmente, exatamente
como os outros seres vivos: com a ressalva de que raramente o
encontramos. (TODOROV, 1975, p. 30)

Assim, o fantástico, segundo Todorov, ocorre na incerteza. Ao escolher uma ou


outra solução, não estamos mais no fantástico, e sim em um de seus gêneros vizinhos: o
estranho e o maravilhoso. O estranho aparece quando se encontra uma explicação real
para o acontecimento. Já o maravilhoso ocorre quando não há explicação real, quando o
sobrenatural pertence realmente à realidade da narrativa. O fantástico é, levando-se em
consideração a conceituação de Todorov, evanescente, ele aparece no instante da
dúvida. No momento exato em que essa dúvida é resolvida não temos mais o fantástico.
No entanto, para Todorov, o fantástico teve uma vida relativamente breve. O
teórico afirma que ele apareceu no fim do século XVIII com Cazotte e evoluiu durante o
século XIX culminando nos contos de Maupassant, que, em sua opinião, são os últimos
representantes satisfatórios do gênero. O crítico afirma, de maneira enfática, que o
fantástico não mais existe: “Por que a literatura fantástica não existe mais?”
(TODOROV, 1975, p. 175).
Para responder a essa pergunta que ele mesmo propõe, Todorov utiliza como
exemplo a narrativa de Franz Kafka: A metamorfose. Nessa história, o personagem
principal Gregor Samsa acorda, certa manhã, metamorfoseado em um inseto. Essa
transformação, no entanto, não causa grande estranhamento no interior da narrativa, ou
seja, os personagens da história aceitam sem questionamentos o novo estado de Gregor.
Um acontecimento que é insólito e inquietante passa a ser, no texto em questão,
gradativamente naturalizado. O estranhamento só acontece por parte do leitor, que,
sabendo que a história se passa em um mundo fictício, mas que imita a realidade, acha
no mínimo estranho um ser humano acordar certo dia transformado em um inseto.
Dessa forma, a condição proposta por Todorov de que o texto, para ser fantástico,
tem a característica da hesitação tanto por parte do leitor quando dos personagens, não é
satisfeita nessa narrativa.

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Para Tzvetan Todorov, o que acontece nesta obra é que a realidade proposta por
Kafka é uma realidade absurda, diferente desta em que vivemos. O crítico aponta que o
mundo proposto por Kafka segue uma lógica onírica:

Ele (Kafka) trata o irracional como se fizesse parte de seu jogo: seu
mundo inteiro obedece a uma lógica onírica, se não de pesadelo, que
nada mais tem a ver com o real. Mesmo que uma certa hesitação
persista no leitor, nunca toca a personagem; e a identificação como
anteriormente observada (nos estudos sobre o fantástico tradicional)
não é mais possível. A narrativa kafkiana abandona aquilo que
tínhamos designado como a segunda condição do fantástico: a
hesitação apresentada no interior do texto, e que caracteriza
especialmente os exemplos do século XIX (TODOROV, 1975, p.
181).

Todorov assinala que nessa nova literatura do século XX, o homem “normal” é
precisamente o ser fantástico. Assim, o fantástico torna-se a regra, não a exceção. Dessa
maneira, para o crítico búlgaro, a diferença essencial entre as narrativas do século XIX e
os textos de Kafka é que o que era uma exceção no início torna-se, agora, uma regra.
As reflexões de Tzvetan Todorov que mostram as especificidades da narrativa de
Kafka e se estendem, de certa forma, ao fantástico do século XX, estão relacionados a
um ensaio de Sartre, Aminadab, ou O fantástico como linguagem, publicado pela
primeira vez em 1942. Neste texto, Sartre afirma que os escritos de Maurice Blanchot
(Aminadab) e de Kafka são “o derradeiro estágio da literatura fantástica” (SARTRE,
2005, p.136). Ele atribui a esse fantástico, uma nova característica, afirmando que
quando o fato fantástico aparece na narrativa, todo o universo que o envolve passa a ser
também considerado fantástico. O estudioso acredita que o fantástico molda-se a
exigências do homem contemporâneo, deixando, dessa maneira, de explorar realidades
transcendentais e passando a transcrever a condição humana.
Dessa maneira, nos textos de literatura fantástica escritos a partir do século XX, a
temática das obras se aproxima das angústias existenciais e psicológicas, apresentando
um ser humano que se enxerga impotente diante das transformações e opressões de um
mundo que caminhava rapidamente para a modernização. Assim, a síntese do fantástico
do século XX, para Sartre, é o retorno ao humano. De acordo com o estudioso, o
fantástico do século XX, que ele chama de fantástico contemporâneo, apresenta um
homem “às avessas”. O fantástico contemporâneo de Sartre limita-se, então, a um só
objeto: o homem. Ora, mas o fantástico tradicional, como vimos, também se ocupou do

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homem. A diferença fundamental, na visão de Sartre, é a de que enquanto o fantástico
tradicional utiliza o homem apenas como construção de seu mundo, de sua matéria ou
de seus componentes, o fantástico do século XX trata o homem como o fim a ser
atingido. O paradigma é, então, invertido: a matéria será o meio pelo qual se atingirá o
ser humano. Sartre menciona:

O fantástico humano é revolta dos meios contra os fins, seja que o


objeto considerado se afirme ruidosamente como meio e nos mascare
seu fim pela própria violência dessa afirmação, seja que ele remeta a
um outro meio, este a um outro e assim por diante até o infinito, sem
que jamais possamos descobrir o fim supremo, seja ainda que alguma
interferência de meios pertencentes a séries independentes nos deixe
entrever uma imagem compósita e embaralhada de fins contraditórios
(SARTRE, 2005, p.140).

Assim, com a revolta dos meios contra os fins, as personagens estão em contato
constante com objetos ou lugares, meios e instrumentos que, por circunstâncias do
insólito, perdem seus propósitos. A ausência dos fins é nítida. É justamente neste ponto
que o mundo humano se vê representado, já que a condição do homem é absurda.
O fantástico contemporâneo de Sartre vai ao encontro das ideias de Jaime
Alazraki (2001) naquilo que o crítico espanhol chama de “neofantástico”. Essa nova
abordagem do gênero resultante do contexto da pós-modernidade, segundo o estudioso
espanhol, configura um momento em que a crença no progresso das ciências se
desvanece, resultando na sensação de incompreensão do mundo e da realidade que nos
cerca.
Para Alazraki, o neofantástico distingue-se dos textos fantásticos do século XIX
em alguns aspectos. Vejamos:

[...] propuse la denominación “neofantástico” para este tipo de


relato. Neofantástico porque a pesar de pivotear alrededor de um
elemento fantástico, estos relatos se diferencian de sus abuelos del
siglo XIX por su visión, intención y su modus operandi (ALAZRAKI,
2001, p. 276).

Ainda segundo o crítico, no que diz respeito à visão, o neofantástico assume o


mundo real como uma máscara, que oculta uma segunda realidade que é o verdadeiro
destinatário da narrativa neofantástica. Já no que tange à intenção, o neofantástico de
Alazraki busca uma perplexidade, uma inquietude, diferentes do medo provocado pelo

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fantástico tradicional. O modus operandi do fantástico tradicional diferencia-se do
neofantástico no sentido em que, enquanto o primeiro parte de uma situação natural para
alcançar gradativamente o sobrenatural, o segundo introduz, muitas vezes já no início da
narrativa, o elemento fantástico: não há uma progressão gradual, não há o pathos. Além
disso, segundo o estudioso, o neofantástico prescinde da hesitação representada no
interior do texto (ALAZRAKI, 2001, p. 279).
Essas considerações de Alazraki são baseadas em obras produzidas em língua
espanhola. Há uma tendência entre os estudiosos hispânicos em atribuir a autores como
Júlio Cortázar e Adolfo Bioy Casares narrativas de cunho neofantástico. No entanto,
tendo em vista que nossos estudos aqui têm um foco na produção fantástica em língua
francesa, é preciso expor as reflexões sobre o esse fantástico francófono do século XX.
O que temos atualmente no rol de estudos sobre essa produção engloba autores
como Irene Bessière, Georges Jacquemin e Katarzyna Gadomska. Na obra La Prose
néofantastique d’expression française aux XXe ET XXIe siècles, de 2012, Gadomska
afirma que dentre a obra crítica da prosa fantástica francesa não existe um único estudo
francês consagrado ao fantástico contemporâneo (e como contemporâneo devemos
entender, aqui, as produções dos séculos XX e XXI). Para Katarzyna, a aparição
contemporânea do fantástico é tratada, muitas vezes, como um gênero menor. Dessa
maneira, sua obra tem o importante papel de dar um tratamento mais científico a essas
obras que surgiram após o boom da literatura fantástica francesa no século XIX.
Em seu estudo, Gadomska (2012) trata como sinônimos os termos
“néofantastique” e “nouveau fantastique” para falar do fantástico contemporâneo –
logo, diferindo da conotação do termo utilizado por Alazraki –, enquanto os termos
“fantastique classique” e “fantastique traditionnel” são usados para designar os textos
produzidos antes do século XX. Ela divide os autores neofantásticos em dois grupos: a
primeira geração corresponde à primeira metade do século XX, enquanto a segunda
geração engloba autores que produziram durante a segunda metade do século XX e o
século XXI.
Os autores da primeira geração, segundo Gadomska (2012), se veem em meio a
uma “crise do fantástico”, já que os leitores, os críticos e até mesmo os próprios
escritores estão cansados do gênero. Além disso, as guerras mundiais trazem uma visão
de mundo e de literatura diferentes do que era feito até então. Quando as guerras

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terminam, a tendência dos literatos em geral é trabalhar com os estragos na humanidade
causados pelas grandes guerras. No entanto, poucos são os autores que, utilizando-se da
ambientação das guerras, escrevem textos fantásticos. Dessa forma, os autores da
primeira geração procuraram fazer algo novo, mas que ainda estava ligado à tradição
fantástica do século XIX. Os autores da segunda geração são mais conscientes de sua
identidade enquanto neofantásticos do que os da geração anterior. Eles têm uma visão
mais crítica acerca da nova produção de literatura fantástica e buscam mostrar algo mais
próximo da realidade contemporânea, situando sempre o sobrenatural no cotidiano. O
banal e o monótono lhes asseguram uma credibilidade maior.
As reflexões trazidas por George Jacquemin (1974) são muito próximas do que foi
apontado por Katarzyna Gadomska. Para Jacquemin, a literatura fantástica se apresenta
no século XX um pouco como obra marginal, já que não são, talvez, os maiores
escritores que dão vida a essa literatura no século XX. O estudioso afirma que os
fantasmas íntimos é que são explorados nessa nova literatura, ao contrário dos
fantasmas do mundo externo que eram tema da literatura fantástica tradicional. Segundo
Jacquemin, o período corresponde a uma descida às profundezas do eu. Para o crítico, a
literatura neofantástica (utilizando o sentido do termo dado por Gadomska) francesa é
influenciada por Nerval e pelos surrealistas.
Na obra Le récit fantastique: la poétique de l’incertain, de 1974, após refletir
sobre uma espécie de história literária da literatura fantástica, Irene Bessière (1974,
p.144) passa a tratar da renovação do fantástico. Sobre essa renovação, ela afirma que
“Le fantastique renouvelle ses éléments objectifs au gré des découvertes scientiques, et
reconstitue à partir du discours de l’objectivité, la convergence du thétique et du non-
thétique”.
Dessa maneira, entendemos, então, que ela não assinala a questão da contradição
nas obras fantásticas renovadas, e sim uma convergência. A estudiosa francesa define o
“retorno ao humano”, proposto por Sartre, como “antropomorfismo”. Dessa maneira, a
renovação do fantástico proposta por Bessière depende do emprego de temas do
antropomorfismo, que marca um progresso em relação à liberdade da imaginação e
permite que o jogo da razão e desrazão, a convergência do tético e do não-tético sejam
assimilados pela identificação entre o mundo e o homem, rompendo a relação
equilibrada do indivíduo com o cotidiano. Isso significa que, embora a estudiosa

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determine que haja uma convergência entre a narrativa tética e não-tética, há uma
ruptura da relação equilibrada do indivíduo com o cotidiano. Assim, se não houver essa
ruptura, segundo Bessière, não há a manifestação do fantástico, mesmo que renovado.
Explica-se, dessa maneira, por que a estudiosa não utilizou, para exemplificar suas
reflexões, o mesmo corpus escolhido por Sartre (Kafka e Blanchot), e sim algumas
narrativas de Borges e Cortázar. Portanto, Bessière se restringe aos textos que são
ambíguos, mas sem interrogações e espantos (hesitação) que marcam o
desenvolvimento do enredo.
Ana Luiza Silva Camarani, em suas reflexões sobre a literatura fantástica
publicadas em 2014 no livro A literatura fantástica: caminhos teóricos, assinala que
atualmente tem-se uma perspectiva ampla sobre o fantástico do século XX e XXI,
embora o assunto ainda se apresente como um campo vasto e fecundo a ser discutido e
desvendado. Segundo Camarani (2014, p. 193), textos literários que pertencem à
literatura fantástica tradicional apresentam como característica imprescindível a
ambiguidade que provém da hesitação (ou do espanto, interrogação, dúvida, incerteza,
questionamento) no interior do texto literário. A hesitação entre o real e o sobrenatural
pode ser determinada por diferentes alternativas, diferenciando-se, dessa forma, do
neofantástico (de Alazraki) que estabelece uma ambiguidade intencional, sem
possibilidade de explicação.
A afirmação de Camarani de que o fantástico tradicional continua a ser
desenvolvido durante o século XX, por alguns escritores, embora seu ápice tenha sido
no século XIX (2014, p. 8), é que norteia esta pesquisa. A estudiosa assinala que a obra
Aura, publicada em 1962 e escrita pelo autor mexicano Carlos Fuentes apresenta
elementos que condizem com o fantástico tradicional (2014, p. 186).
Dessa maneira, retornando ao objetivo principal deste trabalho, intencionamos,
aqui, mostrar que o fantástico tradicional oriundo do século XIX permanece ainda em
algumas narrativas produzidas ao longo de todo o século XX, não só em língua
espanhola, como exemplificou Ana Luiza Camarani, mas também na língua francesa.
Por isso, permanecendo nos estudos de literatura em língua francesa, escolhemos,
aqui, trabalhar com um autor francês contemporâneo: Claude Seignolle. Seignolle
nasceu em 1917 na cidade Périgueux e passou sua infância no campo, ouvindo as
histórias e lendas do local que sua avó lhe contava. Desde cedo se interessava por essas

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narrativas que compunham a história do local. No entanto, aos nove anos, teve de mudar
com a família para a cidade e lá, ao cursar o ensino secundário, teve contato com a
arqueologia, que viria a ser seu primeiro grande interesse na vida. Ao frequentar a
Sociedade francesa de arqueologia, Seignolle conheceu o folclorista Arnold van
Gennep, que lhe mostrou uma segunda paixão: as pesquisas folclóricas. A partir de
então, Claude e seu irmão Jacques viajaram pela região de Hurepoix por dois anos,
recolhendo tradições rurais como rituais, festas e superstições. Após esse período, em
1937, Claude e Jacques publicam Le Folklore du Hurepoix, obra muito bem recebida
que foi seguida de muitas outras consagradas à cultura popular, mas também de outras
mais pessoais, que já demonstram uma preocupação literária e ficcional. Em 1945,
Claude Seignolle publicou seu primeiro romance: Le ronde des sorciers e a partir de
então surgiram tantos outros textos literários que podem ser classificados como
fantásticos.
Há poucos estudos críticos sobre a obra de Seignolle, sendo os raros textos
encontrados, em língua francesa. George Jacquemin, Katarzyna Gadomska, Raymond
Trousson e Roger Bozzetto fazem parte do pequeno rol de autores que dão uma
contribuição ao entendimento da obra desse autor francês.
Georges Jacquemin (1974) afirma que Claude Seignolle passou de folclorista a
escritor ao longo de sua vida. Seus primeiros textos são meras transcrições do folclore
rural e urbano da região de Paris, já os textos escritos na maturidade do autor são, na
visão de Jacquemin, mais ligados à literatura, com um valor estético mais visível. Para
Jacquemin, durante muitos anos, Seignolle não fez senão pesquisas folclóricas. No
entanto, ao frequentar paisagens recheadas de crenças, ao adivinhar os mistérios de seus
pensamentos, interpretar seu próprio silêncio, tudo isso, modelou seu temperamento.
Assim, à medida que sua obra se desenvolveu, Claude Seignolle criou a habilidade de
ler sua própria alma, criando, dessa maneira, histórias fantásticas que se nutrem dos
elementos folclóricos e dos sonhos e devaneios do próprio autor.
Ainda segundo Jacquemin, o fantástico presente nas obras do autor explora o
choque entre o passado e o futuro. As duas épocas parecem reunir-se, fluir lado a lado,
sendo o passado aclarado pelo presente e o presente pelo passado. Esses encontros
criam sonhos impossíveis ou dramas irremediáveis, como se toda violação do mistério
devesse ser castigada de alguma maneira. Algumas vezes até, a redescoberta do passado

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proporciona ao herói a chave de uma aventura sobre a qual ele se interroga. A aventura
se aclara, o mistério entra em colapso, mas em detrimento desse herói que vai,
cegamente, ao encontro da morte.
Já para Raymond Trousson (2004), Seignolle é um autor que não inventa, somente
transcreve o seu fantástico, assim, o fantástico escrito por ele não seria produto de uma
imaginação, mas um fantástico herdado. O estudioso cita os diferentes temas fantásticos
que aparecem na obra seignolliana: o diabo, o vampiro, o lobisomem e os feiticeiros.
Segundo o estudioso, a figura do diabo representa, na obra de Seignolle, o Outro.
Visível ou invisível, é a representação do Mal supremo e faz, muitas vezes, as
personagens praticarem o mal consciente ou inconsciente da presença do diabo em sua
mente. Ele diz ainda que esse diabo pouco tem a ver com aquele evocado pela teologia
cristã, estando mais ligado ao que Todorov chamou de pan-determinismo, mais
relacionado aos mitos ancestrais. O lobisomem representa a o instinto primitivo, o
apetite de sangue e de carne que não pode ser saciado pelo ser humano. Ele representa
os mistérios e os ritos de conjuração do totemismo. Já o vampiro seignolliano estaria
ligado ao arquétipo de sexualidade e sadismo, representando a transgressão aos tabus
morais e sociais. O feiticeiro também é uma figura de extrema importância em sua obra,
já que mostra um poder maléfico, misterioso e antigo.
Trousson ainda assinala que o mérito de Seignolle não está somente em seu
trabalho folclórico. Está principalmente em sua arte, literária, que dá forma a suas
narrativas. Sua obra se revela simultaneamente realista e fantástica. Realista porque ela
mostra uma comunidade humana, seu modo de vida, costumes, trabalho, de uma
maneira minuciosa. Mostra-se fantástica na medida em que ela ultrapassa as descrições
dos comportamentos para encontrar os temores ancestrais e as explicações primitivas
dos fenômenos. Esse feito não nos mostra um fantástico clássico com uma visão
deformante de uma percepção individual, mas restitui uma apreensão coletiva das
coisas. Não são indivíduos diferenciados, mas ecos de um inconsciente coletivo. Esse
fantástico não é jogo gratuito nem produto de uma descrença, mas ao contrário, produto
de superstições bem vivas.
Para Roger Bozzetto (1980), à primeira vista, os textos de Claude Seignolle
possuem o maravilhoso noir que nutriu os antigos textos da literatura fantástica. Para o
crítico, os estudiosos da obra de Seignolle apresentam dois tipos de proposições:

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segundo a primeira proposição, o autor não é um escritor, e sim um mero “recolhedor”
de narrativas preexistentes na memória tradicional dos contos de fada e superstições, e
não faz nada mais que reorganizar, sem nada inventar. A segunda proposição afirma que
ele se torna um dia escritor, porque abandona os elementos do “maravilhoso noir”,
deixando de lado o folclore para explorar seu universo íntimo. Para Bozzetto os dois
casos mostram alegações reduzidas, e, para ele, isso é uma economia da análise do
universo seignolliano, naquilo que ele tem de original. Para o estudioso, a obra de
Seignolle se mostra extremamente rica, em um universo complexo e ambíguo. Esse
universo híbrido nasce de uma estranha contaminação dos dois espaços: o do folclore e
da narrativa pessoal.
Roger Bozzetto afirma que não podemos supor, como fez Jacquemin, que a
criação seignolliana não supõe a passagem ou a metamorfose de um “scripteur”
(transcritor) em um “écrivain” (escritor) em consequência de uma reorganização dos
materiais tradicionais que são substituídos por outros, mais propriamente íntimos. Não
nos esqueçamos de que o material, os temas, as imagens não são tudo. O modo de
escrita, principalmente no caso do fantástico, é essencial.
Além do mais, mesmo as histórias de fundamento folclórico são frequentemente
reconstruídas a partir de uma visão subjetiva. O “écrivain” está já presente ao dar a
forma ao material preexistente, não somente porque os textos são escritos em primeira
pessoa, mas porque há um efeito de crença subjetiva e uma vontade estética clara.
A característica essencial que Seignolle coloca em cena em suas obras fantásticas
é a maleabilidade do tempo. É um tempo informe, profundo, que surge, muitas vezes, de
uma memória gigante. A temática que envolve vampiros, mortos-vivos, ou pequenos
monstros produz efeitos de subversão, de desejo, de morte ou de melancolia.
Os textos em que pode ser verificada de maneira muita clara essa temática são os
contos de La nuit des Halles, pertencentes à coletânea denominada Les Malédictions:
integrale des romans et nouvelles, publicada em 2001. A coletânea conta com três
volumes: o primeiro reúne quatro romances: Le rond des sorciers, Marie la Louve, La
malvenue e Diable en sabots. Compõem o segundo volume quarenta e cinco contos de
Seignolle que são ambientados no antigo ambiente rural. A tradição folclórica se faz
presente nesses textos, que mostram a permanência de uma crença em antigas
superstições. O terceiro volume, que recebe o subtítulo de La nuit des Halles, e que será

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objeto de estudo deste trabalho, conta com quinze narrativas, dentre elas o estranho
romance La brume ne se levera plus, que são ambientados no espaço urbano de Paris.
São lugares reconhecíveis da cidade que são atingidos por intromissões repentinas de
algo demoníaco proveniente de tempos imemoriáveis.
O espaço dos Halles em Paris é particularmente retomado. Situado no coração de
Paris, no primeiro arrondissement, esse ambiente abrigava um mercado que vendia
alimentos frescos. O Mercado dos Halles foi criado pelo rei Filipe Augusto no fim do
século XII no lugar do antigo bairro judeu de Les Champeaux. O ambiente foi
reformado em 1858, servindo como centro principal de abastecimento para a cidade de
Paris nos séculos XIX e parte do século XX. Foi demolido em 1971 e substituído por
um moderno shopping center subterrâneo. Além do mercado de alimentos frescos, a
região dos Halles abrigava o Cemitério dos Inocentes, que rendeu lhe uma reputação
sinistra desde o século XVIII.
A superpopulação do Cemitério dos Inocentes, que já tinha quase mil anos de uso,
tornou a região foco de doenças. Até o filósofo Voltaire descreveu a situação: “Os
cachorros vêm aqui para cavoucar os ossos; um vapor grosso exala dali”. Em 1780, o
governo, depois de ouvir tanta reclamação, ordenou fechá-lo. Cinco anos depois, para
eliminar o mau cheiro da região, foi decidido que o cemitério seria destruído. O serviço
sanitário parisiense empreendeu, então, um grande rearranjo de mortos, que fechou
cemitérios mal conservados e levou toneladas de ossos para o subsolo da cidade, nas
chamadas Catacumbas de Paris. Entre 1786 e 1788, todas as noites uma procissão de
padres seguia as charretes cheias de ossos cantando o “Ofício dos Mortos”. Nesse ritual,
os restos eram cobertos por véus negros. A transferência de esqueletos dos cemitérios
para as Catacumbas acabou em 1860, com as reformas urbanísticas em Paris
promovidas pelo barão de Haussmann.
Os Halles já haviam sido explorados por Maupassant em seu conto fantástico “A
noite”, publicado pela primeira vez em 1887. Nessa narrativa, o autor nos relata a
história de um narrador-personagem que ao flanar pelas ruas de Paris durante a noite
acaba chegando à região dos Halles, onde ele tem uma terrível experiência: o tempo
parece parar e tudo some do mundo, como se ali só existisse ele e seu medo. Essa
narrativa reflete a reputação atribuída à região dos Halles e é essa reputação que Claude
Seignolle retoma em suas narrativas urbana ambientadas na região dos Halles.

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Essa ambientação, juntamente com uma temática que envolve a presença do diabo
e da morte, ajuda a caracterizar os textos fantásticos de Claude Seignolle.

Referências bibliográficas

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