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O fenômeno crossover fiction na obra As Crônicas de Nárnia, de C.S.

Lewis

Juliana Garcia de Mendonça Hanke


(Universidade Estadual de Maringá - UEM)

Resumo: Em 1949, C.S. Lewis escreveu o livro O leão, a feiticeira e o guarda-roupa,


posteriormente escreveu outros seis livros que juntos formam a obra As Crônicas de Nárnia,
uma obra repleta de aventuras, viagens, criaturas fantásticas e batalhas. O último livro que
compõem as crônicas, A última batalha, ganhou a Carnegie Medal, uma medalha estabelecida
no Reino Unido em 1936 para premiar livros escritos para o público infantil e juvenil. É mais
do que claro que essa se trata de uma obra destinada a esse público, entretanto ela traspôs os
limites de seu público e alcançou o público adulto. Sandra Beckett (2009) afirma que livros
capazes de desfocar as linhas entre crianças e adultos são chamados de livros crossover, obras
que cruzam as fronteiras entre públicos. Esse é apenas um dos exemplos dessa literatura e umas
das formas de manifestação do fenômeno crossover fiction. A partir de aspectos textuais,
buscamos apontar que se trata de uma narrativa escrita para jovens, mas permeadas de alegorias
e relações com a vida real que tem cativado muitos leitores adultos, levando-os a inferências e
reflexões.
Palavras-chave: Crossover fiction; Literatura juvenil; Público juvenil.

Introdução
Por volta de 1956, o último livro que compõe As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, foi
publicado. As Crônicas formam uma obra repleta de fantasia com aventuras vivenciadas por
crianças em um mundo diferente do nosso, a famosa Nárnia. Inserida em um mundo
característico do público infantil, essa é uma narrativa considerada crossover não apenas pela
eloquência e escrita do autor, mas também pelo fato de apresentar um encontro intrigante entre
fantasia e realidade capaz de cativar leitores de todas as idades. As histórias, cheias de encanto,
magia, dragões, dríades, faunos, heróis, vilões, Aslam e crianças como protagonistas, apontam
diretamente para o mundo da fantasia, infantil e juvenil, entretanto, ao nos debruçarmos
atentamente ao texto, compreendemos que não se trata de uma obra apenas para esse público.
Essa obra atravessa a fronteira entre públicos ao se mostrar uma verdadeira alegoria da vida
real, com ensinamentos sobre integridade, ética e moral e com um fundo cristão despercebido
por muitos, sendo, portanto, necessário um conhecimento prévio para se fazer as inferências
necessárias e não ficar apenas na superfície dessa obra.
O último livro que compõem as crônicas, A última batalha, ganhou a Carnegie Medal, uma
medalha estabelecida no Reino Unido em 1936 para premiar livros escritos para o público
infantil e juvenil. Essa medalha vem para comprovar que esse livro é uma literatura para jovens
e crianças. Além disso, logo no início, o livro pode apresentar marcas textuais com relação ao
público a que se dirige. Por exemplo, as primeiras edições de O leão, a feiticeira e o
guardaroupa apresentavam na capa a seguinte inscrição: “A Story for Children” (Uma história
para crianças). Estamos lidando, então, com uma obra cujo alvo são crianças e jovens, mas
como o próprio autor do livro diz “[i]nclino-me quase a afirmar como regra que uma história
para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim. As boas permanecem” (LEWIS,
2009, p.743). As Crônicas de Nárnia é, pois, um texto crossover – aquele que transpõe a
barreira entre os públicos tradicionalmente separados, a saber, crianças e adultos. Sandra
Beckett (2009) é a maior expoente em se tratando de literatura crossover e, em seu livro
intitulado Crossover fiction: global and historical perspectives, a autora faz a seguinte
afirmação: “Literatura crossover (...) se refere a ficção que cruza de criança para adulto ou de
adulto para audiências de criança”1 (BECKETT, 2009, p.4 – tradução da autora do artigo).
Desse modo, esse artigo procura, a partir da leitura sobre o fenômeno crossover fiction
discutido por Sandra Beckett (2009), investigar as marcas presentes na obra que a permitem ser
considerada uma literatura crossover e ser destinada não apenas ao aparente público-alvo –
crianças e jovens –, mas também ao público adulto. A partir de construções textuais que exigem
uma inferência por parte de um leitor que possua uma maior experiência de vida e de leitura, é
possível comprovar que esse é um texto que busca, também, por leitores adultos. Para alcançar
tal objetivo, lançou-se mão da metodologia de caráter bibliográfico, e o trabalho foi dividido
em dois capítulos além da introdução e das considerações finais – o primeiro discute a teoria
do fenômeno de cruzamento das fronteiras entre públicos, com base em Sandra Beckett (2009);
e o segundo centra-se na discussão e análise dos aspectos que fazem de As Crônicas de Nárnia
uma crossover fiction.

1 Crossover Fiction – de criança para adulto

Sandra Beckett (2009) afirma que livros capazes de desfocar as linhas entre crianças e
adultos são chamados de livros crossover, obras que cruzam as fronteiras entre públicos. Os
anos 2000 têm sido um ponto de marco para a literatura crossover, apesar de não se tratar de
um fenômeno novo. O fenômeno Potter fez com que editores e mídia voltassem seus olhos para
essa literatura. Antigamente, as publicações não eram especialmente destinadas ao público

1
“’Crossover literature’ (...) refers to fiction that crosses from child to adulto or adult to child audiences”
(BECKETT, 2009, p.4).
infantil ou juvenil, a obra encontrava sua própria audiência (BECKETT, 2009). Alguns dos
livros crossover mencionados pela própria autora são O Senhor dos Anéis, de Tolkien, escrito
entre os anos de 1954 e 1955; Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, 1865; O mágico
de Oz, de L. Frank Baum, 1900, e inclusive o objeto de estudo desse artigo, As Crônicas de
Nárnia, de C.S. Lewis – o primeiro livro das crônicas foi escrito em 1949. Antes desses ainda,
as fábulas de La Fontaine, lidas por crianças, jovens e adultos e publicadas em 1668.
Melina Galete Braga Pinheiro (2015) afirma que, por se tratar de um fenômeno antigo,
mas só considerado recentemente, é um conceito ainda aberto, no entanto aponta sempre para
o texto que rompe as barreiras entre os diferentes leitores. Ademais, a autora afirma que ironias
e referências presentes em um texto considerado infantil e juvenil podem exigir uma leitura
adulta, com mais experiência de mundo, “sem que, no entanto, coloquem entraves sérios à
fruição da obra” (PINHEIRO, 2015, p.68), pelo fato de tal texto apresentar referências próximas
ao universo juvenil. Segundo Ana Margarida Ramos e Diana Navas (2015), um texto que
apresenta uma riqueza em termos e referências intertextuais e simbólicas se aproxima do
universo crossover, quando tais referência forem dirigidas a leitores com experiência de vida e
de leitura.
Existem alguns gêneros que nunca se limitaram a um determinado público, fábulas,
apólogos, contos de fadas e contos orientais são exemplos de tais textos. É muito comum,
também, que um autor tenha escrito seu texto com certa audiência em mente, no entanto, ser
comercializado para outro público. A literatura que rompe as barreiras é oriunda de uma
tradição secular e permite seu compartilhamento entre crianças e adultos, sendo obras que
migram da audiência infantil para adulta, ou da adulta para o público infantil – apesar de
Beckett (2009) afirmar que essa segunda é a mais comum, nossa análise se centrará em um
livro que transmigra do público infantil e juvenil para o adulto, como já mencionado
anteriormente. Além disso, a teórica afirma que existe uma tendência em equiparar textos
crossover à fantasia, todavia todos os outros gêneros podem cruzar as linhas que separam as
audiências.
Sandra Beckett (2009) nos aponta Alice no País das Maravilhas (1865) como um
exemplo desse fenômeno. A autora afirma que esse livro “tem um lugar incontestado no cânon
ocidental da literatura infantil, mas, na verdade, raramente é lida, pelo menos em sua forma
integral, pelos filhos de hoje. Os fãs entusiastas dos livros de Alice tendem hoje a ser adultos”2
(p.103 – tradução da autora do artigo). Dessa maneira, podemos compreender o que muitos
autores e críticos dizem com relação a categorização rígida entre literatura adulta e literatura
infantil e juvenil estar intimamente ligada a questões mercadológicas e não a necessidades
psicológicas e sociais. C.S. Lewis (2009) afirma que a classificação dos livros em faixas etárias
de forma rígida tem uma relação superficial com os hábitos dos leitores reias, e profunda com
os editores. Reiteramos essas afirmações com as palavras de Sandra Beckett (2009, p.9 –
tradução da autora do artigo), “muitos autores e críticos tem sustentado que a boa literatura
infantil deve atrair também a adultos”3. Em outros termos, a boa literatura deve ser crossover.
É importante apontar que Sandra Beckett (2009) estuda esse fenômeno em dois níveis,
a saber, o crossover de Adulto-para-criança e o crossover de Criança-para-adulto, além de
apontar os aspectos gráfico-editoriais de um livro e a atuação das editoras como responsáveis
por facilitar a transposição dos limites entre públicos. Visto que analisamos uma obra
considerada literatura infantil e juvenil e que também é consumida por adultos, focamos no
crossover de Criança-para-adulto. Recentemente, os livros infantis têm ganhado posições
importantes nas listas de best-seller, antes ocupada apenas por livros adultos. Ademais, Beckett
(2009) afirma que adultos leem sem medo ou vergonha tais livros. Aqui destacamos a formação
do mercado crossover.
Embora os livros crossover não sejam novos, o mercado de crossover como tal era
virtualmente inexistente até o final da década de 1990 (BECKETT, 2009). A partir de então,
editores passam a ser muito mais sofisticados na maneira como embalam um livro (FIGURA
1). Para não ter o custo de duas edições, editores procuram capturar um público crossover – a
circulação do livro entre os públicos nas duas direções – a partir de uma embalagem que seja
semelhante para adultos e jovens leitores. Dessa maneira, editores reembalam um texto infantil
de modo a cativar um adulto, da mesma maneira, um texto adulto é projetado graficamente para
atrair o jovem e a criança. “Para posicionar um livro como um crossover, os editores geralmente

2
“(...) has an uncontested place in the Western canon of children’s literature but, in actual fact, it is seldom read,
at least in its integral form, by today’s children. The enthusiastic fans of the Alice books tend nowadays to be
adults” (BECKETT, 2009, p.103).
3
“(...) many authors and critics have maintained that good children’s literature must also appeal to adults”
(BECKETT, 2009, p.9).
especificam em algum lugar no paratexto que é destinado a uma audiência diversa” 4
(BECKETT, 2009, p. 232 – tradução da autora do artigo). No caso da edição analisada de As
Crônicas de Nárnia, trata-se de um livro volume único, contendo todas as sete crônicas, e na
orelha do livro encontramos a seguinte informação: “Enganosamente simples e diretas, As
Crônicas de Nárnia continuam cativando os leitores com aventuras, personagens e fatos que
falam a pessoas de todas as idades, mesmo cinquenta anos após terem sido publicadas pela
primeira vez”, no paratexto do próprio livro existe essa marcação que revela sua intenção de
alcançar as “pessoas de todas as idades”.

Figura 1 diferentes edições de As Crônicas de Nárnia

2 As Crônicas de Nárnia à luz do fenômeno crossover fiction

4
“In order to position a book as a crossover, publishers often specify somewhere in the paratext that it is meant for
a diverse audience” (BECKETT, 2009, p.232).
Alguns dos livros que compõem as crônicas foram adaptados para diversos meios como
rádio, televisão e cinema. O lançamento da adaptação cinematográfica de O leão, a feiticeira e
o gurada-roupa pela Disney só fez crescer o interesse do público pela obra. A popularidade
duradoura desse livro
entre os adultos foi claramente demonstrada quando ficou na nona posição na
Big Read 2003 da BBC, a maior pesquisa de ficção popular já realizada entre
os adultos, com o objetivo de encontrar o " Best-Loved Book" da
GrãBretanha. O fato de que o livro infantil de Lewis apareceu no top dez
prova que suas histórias de fantasia atraem uma ampla audiência de adultos”5
(BECKETT, 2009, p.105 – tradução da autora do artigo).

O autor de As Crônicas de Nárnia afirma “[e]screvi o que eu gostaria de ter lido quando
criança e que ainda gosto de ler agora, com mais de cinquenta anos (C.S. LEWIS, 2009, p.
741). Deixa claro, pois, a sua intenção de sua obra ser um texto que alcance todos os públicos.
Ele dá seu próprio exemplo dizendo que, quando criança, apreciava os contos de fadas e, depois
de adulto, seu gosto não mudou, ele apenas cresceu, passando, assim, a gostar de contos de
fadas e também de Tolstói, Jane Austen e Trollope. O autor começou a escrever para crianças
apenas após completar 50 anos de idade, apesar disso, suas crônicas são o trabalho mais
conhecido e apreciado do autor. A primeira de suas crônicas foi publicada em 1950 e a última,
em 1956, todas elas ilustradas por Pauline Baynes. Antes da saga Harry Potter, As Crônicas de
Nárnia eram os livros de fantasia mais consumidos, em especial o livro intitulado O leão, a
feiticeira e o guarda-roupa (1950), o segundo livro das crônicas, mas o primeiro a ser escrito.
Beckett (2009) afirma que

[o]s livros de Nárnia são lidos por estudantes universitários e outros adultos,
bem como por crianças e adolescentes. Enquanto alguns adultos leem os
livros como ficção cristã alegórica, as crianças apreciam principalmente as
histórias como fantasias emocionantes6 (BEKETT, 2009, p.105 – tradução da
autora do artigo).

5
“(...) among adults was clearly demonstrated when it placed ninth in the BBC’s 2003 Big Read, the largest survey
of popular fiction ever conducted among adults,with the goal of finding Britain’s ‘Best-Loved Book’. The fact
that Lewis’s children’s book appeared in the top ten proves that his fantasy stories appeal to a wide audience of
adults” (BECKETT, 2009, p.105).
6
“The Narnia books are read by college students and other adults as well as by children and adolescents. While
some adults readthe books as allegorical Christian fiction, children mainly appreciate the novels as exciting
fantasies” (BECKETT, 2009, p.105).
O fato de ser considerado uma ficção alegórica cristã é em decorrência de o Grande
Leão Aslam ser uma representação de Cristo, ele é o único personagem que está presente em
todas as crônicas, desde de a criação de Nárnia até sua destruição. Muitas referências bíblicas
são encontradas no decorrer das histórias, e essa é uma importante marca que categoriza esse
livro como crossover. Tais referências requerem de seus leitores inferências a nível não
superficial, que exigem experiência de vida e de leitura. Na segunda crônica, O leão, a feiticeira
e o gurada-roupa, esse retrato fica claro ao percebermos a alusão que o autor faz a crucificação
de Cristo. A seguir, alguns excertos dessa referência:

(...) Um momento antes de desferir o golpe, a feiticeira inclinou-se e disse,


vibrando com a voz:
– Quem venceu, afinal? Louco! Pensava com isso poder redimir a traição da
criatura humana?! Vou mata-lo, no lugar do humano, como combinamos, para
sossegar a Magia Profunda (...). Consciente disso, desespere e morra.
(...)
O sol dera a tudo uma aparência diferente, alternando de tal maneira as cores
e as sombras, que por um momento não repararam na coisa de fato importante.
Até que viram. A Mesa de Pedra estava partida em duas por uma grande fenda,
que ia de lado a lado. E de Aslam, nem sombra. (...)
Olharam. Iluminado pelo sol nascente, maior do que antes, Aslam sacudia a
juba. (C.S. LEWIS, 2009, p. 171 e 174).

Esse nível de leitura só é possível a um leitor que já tenha um conhecimento prévio com
relação à história aludida. No entanto, como a literatura permite diferentes níveis de leitura, o
leitor que não possui esse conhecimento prévio não terá sua leitura truncada. Outrossim, essa
história pode ser considerada pesada para crianças, visto que se trata de um assassinato e é
descrito com riqueza de detalhes. Nessa mesma cena, um pouco antes de a feiticeira sacrificar
Aslam, o autor escreve o seguinte:

Vou lhe contar o que elas viram.


Uma imensa multidão estava reunida em torno da Mesa de Pedra. Embora o
luar clareasse tudo, muitos traziam tochas, que ardiam com sinistras chamas
vermelhas e fumo negro.
Que bicharada! Ogres de dentes monstruosos! Lobos! Homens com cabeça de
touro! Espíritos de árvores más e de plantas venenosas! Não falo de outros
seres porque, se fizesse isso, as pessoas adultas não o deixariam ler este livro:
vulpinos, bruxas, íncubos, fúrias, horrores, espectros, sátiros, lobisomens...
Estavam ali todos os que eram do partido da feiticeira, convocados pelo lobo
(C.S. LEWIS, 2009, p.169-170).
Júlia Zuza (2014) afirma que temas considerados desadequados para crianças são por
vezes abordados em livros crossover. Beckett (2009) lembra que temas mais sombrios estão na
literatura infantil há séculos; por exemplo, os contos de fadas de Perrault, dos irmãos Grimm e
de Andersen, entremeados com cenas de crueldade, violência e morte. Assim também acontece
na obra analisada, temas considerados para adultos são abordados e trabalhados de maneira a
levar o leitor (seja qual for sua idade) à reflexão. É interessante destacar no trecho acima o fato
de C.S. Lewis afirmar que não vai mencionar outros seres porque os adultos não permitiriam
que as crianças lessem tal livro, mas logo em seguida, ele continua elencando os seres, como
uma maneira de preparar o leitor infantil e juvenil para o que estaria por vir, mas, também,
como uma forma de provocar e brincar com seu leitor adulto – visto que, apenas lendo o livro,
o adulto poderia saber do que se trata e, então, não permitir a leitura.
C. S. Lewis faz algumas considerações quanto a essa temática em seu ensaio Três
maneiras de escrever para crianças, compilado ao final do livro As Crônicas de Nárnia
(volume único, 2009). O escritor assevera que se o adulto não permitir que seu filho leia
histórias em que coisas assustadoras aconteçam, prendendo-o apenas a historinhas inocentes
sobre a vida infantil, não conseguirá eliminar os terrores da vida e tirará da vida dele tudo aquilo
que possa tornar esses terrores respeitáveis ou suportáveis. A última batalha, último livro das
crônicas, que ganhou a Carnegie Medal, é um exemplo de temática considerada desapropriada
para um público infantil, além de trazer descrições de momentos considerados terríveis. A
história se desenrola a partir das trapaças de um rei macaco que tem um fim terrível nas mãos
de um deus impiedoso (FIGURA 2).
Figura 2 - deus Tash, ilustração original de Pauline Baynes

Ademias, o capítulo catorze dessa história conta sobre o fim das maravilhosas terras de
Nárnia, lugar em que os protagonistas viveram as maiores aventuras de suas vidas, enfrentaram
dificuldades, perigos e inimigos, mas cresceram e aprenderam com tudo o que viveram. O fim
de Nárnia requer inferências de uma leitura adulta, novamente o escritor faz aqui uma alusão
bíblica, ao apocalipse, o fim do mundo, um grande julgamento:

– Que agora haja um fim!


O gigante lançou ao mar sua trombeta. Depois esticou um braço (era negro e
parecia ter milhares de quilômetros de comprimento) através do céu, até que
sua mão alcançou o Sol. Ele o pegou e espremeu com a mão como quem
espreme uma laranja. E, no mesmo instante, fez-se total escuridão (C.S.
LEWIS, 2009, p.722).

Lutas e mortes são temas muito recorrentes na obra de C.S. Lewis, no entanto, são, por
vezes, apresentados de maneira sublime, proporcionando ao leitor o contato com etapas da vida
e desafios que nela encontramos, sem deixá-lo na redoma da literatura que mostra apenas “o
lado bonito da vida”. Uma das características da literatura crossover é a abordagem desses
temas de cariz existencial, segundo Ramos e Navas (2015), temas como vida, morte, perdas.
Tais temáticas “são trazidas à tona, convidando o leitor não apenas a contemplá-las, mas a
refletir e a compreendê-las como situações integrantes do seu contexto” (RAMOS; NAVAS,
2015, p.246). A habilidade de escrita e de linguagem e a narrativa de estrutura sofisticada, além
da qualidade estética do texto são elementos presentes nos textos que cruzam a fronteira e
permitem o alcance de públicos diversos.
Existem algumas reflexões presentes no texto que apontam para pessoas de todas as
idades, tanto pela questão da eloquência e da construção da tessitura textual, como também,
por levar seu leitor a uma reflexão mais profunda acerca do que está sendo dito
superficialmente, ou seja, é necessária uma leitura entrelinhas. Segundo Pinheiro (2015), tal
leitura não se mostra um entrave para os jovens leitores por permitir diferentes interpretações,
variando segundo a capacidade de interpretação de cada leitor. Esse é um dos aspectos da
literatura crossover, a qual possibilita a

interpretação ‘por camadas’ ou em diferentes níveis de profundidade, desde


uma leitura ‘superficial’, a outras mais profundas, decorrentes da relação de
cada leitor com o texto, dos objetivos de leitura específicos, da maturidade
leitora e da própria experiência de vida (PINHEIRO, 2015, p.69).

A terceira crônica, O cavalo e seu menino, é um exemplo claro do que foi dito acima.
Os excertos apresentados a seguir revelam a intenção do autor de ensinar a seus jovens leitores
lições que considera preciosas, assim como lembra-las a seus leitores adultos que podem tê-las
esquecido, ou até mesmo nunca terem se dado conta delas. Referindo-se ao jovem protagonista
da história, Shasta, o autor escreve “[a]inda não aprendera que a recompensa de uma boa ação
é geralmente ter de fazer uma outra boa ação, mais difícil e melhor” (C.S. LEWIS, 2009, p.255).
Com relação ao enfrentamento das dificuldades que o protagonista vive, “[m]as de repente
pensou que ter medo naquele momento era sentir medo em todas as outras lutas de sua vida”
(C.S. LEWIS, 2009, p.271). O último trecho que destacamos dessa história para mostrar que se
trata de um texto que busca ambas as audiências se trata de um diálogo entre o grande Leão e
o cavalo de guerra Bri, que se envolve em uma grande aventura com o jovem Shasta: “ – Aslam
– disse, Bri, com voz estremecida –, acho que sou um estúpido. – Feliz o cavalo que sabe disso
ainda na juventude. Ou o humano” (C.S. LEWIS, 2009, p.278 – grifos da autora do artigo).
Existe um outro trecho de As Crônicas de Nárnia que merecem destaque nesse sentido
de ser uma consideração que requer de seu leitor um aprofundamento na leitura, com
referências e inferências oriundas de uma experiência de vida. Da crônica O Príncipe Caspian:
“[n]ão seria medonho se um dia, no nosso mundo, os homens se transformassem por dentro em
animais ferozes, como os daqui, e continuassem por fora parecendo homens, e a gente assim
nunca soubesse distinguir uns dos outros?” (C.S. LEWIS, 2009, p.349). Para o leitor mirim, se
trata apenas de uma reflexão sobre como seriam os homens se fossem como animais, mas o
leitor adulto tem conhecimento da crítica que existe por detrás dessas palavras e alude a todos
aqueles seres humanos que agem de maneira impulsiva, quase como animais.
Para finalizar as discussões acerca de As Crônicas de Nárnia, retomamos brevemente o
que Beckett (2009) afirma sobre o trabalho sofisticado dos editores que embalam os livros e,
assim, facilitam o cruzamento das obras. É importante mencionar que essa elaboração não se
resume a capa do livro, mas envolve todos os paratextos que pode apresentar e todo o projeto
gráfico-editorial de um livro. De acordo com Alice Áurea Penteado Martha (2010), tal
composição passa por vezes despercebida ao leitor, mas os editores lançam mão dele na
intenção de “atrair leitores para um texto pouco adequado ao público pretendido” (MARTHA,
2010, p.68). Quando se trata de um texto destinado ao público infantil e juvenil, vê-se um
grande investimento na materialidade do texto – qualidade do papel, tipografia, encadernação,
ilustração, design gráfico.
Em geral, o público infantil e juvenil é alcançado por meio do trabalho gráfico-editorial
elaborado pelas editoras, em especial, “alicerça-se na ilustração e no convencimento, com o
auxílio dos paratextos (MARTHA, 2010, p.68). No caso, da edição que compõe o corpus desse
trabalho, fica clara a intenção do mercado em fazer circular tal livro nos dois âmbitos: infantil
e juvenil e adulto. Beckett (2009) afirma que o mercado embala um único livro para alcançar
públicos diversos. A obra selecionada é composta por páginas carregadas de textos
apresentando ilustrações apenas em algumas poucas páginas, como por exemplo na primeira
página dos capítulos (FIGURA 3) e alguns mapas de Nárnia no decorrer dos livros para que o
leitor compreenda o percurso feito pelas personagens. Essa é uma característica marcante de
literaturas para jovens adultos e adultos – extensas manchas textuais por páginas com pouca ou
nenhuma ilustração. Mais uma característica que coloca a obra como um livro crossover.
Figura 3 - ilustração original de Pauline Baynes na primeira página do capítulo 12 do livro O leão, a feiticeira e
o guarda-roupa

Considerações finais

Esse artigo objetivou investigar algumas das marcas textuais e gráficas presentes no livro As
Crônicas de Nárnia que o permitem ser considerado uma ficção crossover e, portanto, circular
e ser consumido por audiências diversas e não apenas por aquela à qual é destinado a princípio.
Tal investigação foi baseada nos estudos de Sandra Beckett (2009) sobre o crossover fiction.
As construções textuais analisadas exigem inferências por parte do leitor e fazem referências
que estabelecem uma leitura mais adulta e madura, comprovando que esse texto vai à procura
de leitores adultos.
Diante disso, concluímos que a rígida separação entre literatura infantil e juvenil e adulta
tem sido cada vez mais colocada em xeque. Os interesses mercadológicos que antes lucravam
e muito com essa separação, hoje, dão vez para e investem na literatura crossover. O livro As
Crônicas de Nárnia, de C.S. Lewis, é, pois, uma ficção crossover, que ultrapassa as barreiras e
vai ao encontro dos leitores adultos. A construção da narrativa aponta para uma fantasia repleta
de aventuras, com um narrador que se dirige a seus jovens leitores, mas que traz conceitos,
ideias e referências que exigem uma leitura adulta, capaz de ler nas entrelinhas do texto. Além
disso, o fato de o aspecto gráfico do livro analisado ser composto quase que unicamente por
textos, é característica marcante dos livros destinados aos jovens adultos e adultos.
Finalmente, esperamos que esse artigo contribua em alguma medida para os estudos
sobre o fenômeno crossover fiction que, apesar de ser um fenômeno antigo, foi conceituado
recentemente, por volta dos anos 2000, e, por isso, trata-se um conceito ainda muito aberto que
merece ser estudado e está longe de ser uma temática exaurida.

Referências

BECKETT, S. Crossover fiction: global and historical perspectives. New York: Routledge,
2009.

LEWIS, C. S. As Crônicas de Nárnia. volume único. Tradução Silêda Steuernagel, Paulo


Mendes Campos. 2. ed., 2009.

MARTHA, A. A. P. Mercado editorial e efeméride: Machado de Assis para jovens leitores. In


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia
(CIELLA); organização Myriam Crestian Chaves da Cunha, Jorge Domingues Lopes. Belém:
Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA, vol. 1, 2010. p.67-75.

PINHEIRO, M. G. B. Uma leitura do romance A vida no céu, de José Eduardo Agualusa,


à luz do conceito de crossover fiction. 2015. 79f. (Dissertação Mestrado em Línguas,
Literaturas e Culturas) – Universidade de Aveiro, Aveiro. 2015.
RAMOS, A. M.; NAVAS, D. Narrativas Juvenis: o fenómeno crossover nas literaturas
portuguesa e brasileira. In Elos. Revista de Literatura Infantil e Xuvenil. ISSN 2386-7620.
n. 2, 2015. P. 233-256.

ZUZA, J. O fenômeno crossover fiction e as obras editadas para crianças e jovens de Mia Couto
e Luandino Vieira: uma discussão sobre o público leitor. In Impossibilia. ISSN 2174-2464. n.
8, 2014. p. 86-103.
.

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