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PRIMEIRA PARTE - A escolarização da leitura literária 117

A ESCOLARIZAÇÃO DA
LITERATURA INFANTIL E JUVENIL

Magda Soares

Comecemos por analisar o tema desta exposiçao. que


relações existem entre o processo de escolarização e a lite-
ratura infantil? Sob que perspectivas podem essas relações
ser analisadas?
Numa primeira perspectiva, podem-se interpretar as rela-
ções entre escolarização, de um lado, e literatura infantil, de
outro, como sendo a apropriação, pela escola, da literatura
infantil: nesta perspectiva, analisa-se o processo pelo qual a
escola toma para si a literatura infantil, escolariza-a, didatiza-
a, pedagogiza-a, para atender a seus próprios fins - faz dela
uma literatura escolarizada.
Uma segunda perspectiva sob a qual podem ser conside-
radas as relações entre escolarização, de um lado, e literatura
infantil, de outro, é interpretá-Ias como sendo a produção,
para a escola, de uma literatura destinada a crianças: nesta
perspectiva, analisa-se o processo pelo qual uma literatura é
produzida para a es~a, para os objetivos da escola, para ser
consumida na escola, pela clientela escolar - busca-se lite-
ratizar a escolarização infantil.
Uma e outra dessas duas perspectivas suscitam a questão,
tão debatida e nunca resolvida, do conceito de literatura infan-
til: quer se pense em uma literatura infantil escolarizada, quer
se pense em uma literatização da escolarização infantil, ou seja,
quer se considere a literatura infantil como produzida indepen-
dentemente da escola, que dela se apropria, quer se considere a
literatura infantil como literatura produzida para a escola, o que
caracteriza uma determinada literatura como infantil?
181 A.~_~,.,.;w~,_,;.- o jogo dollvrolnfantjl
e ]uven" PRIMEIRA PARTE - A escolarização da leitu~ literária 119
À primeira perspectiva está subjacente o conceito de que educativa e formadora de crianças e jovens; lembre-se, por
há uma literatura que é destinada a, ou que interessa a crian- exemplo, que Monteiro Lobato, quando publicou A menina
ças, da qual a escola lança mão para incorporá-Ia às suas do nariz arrebitado, em 1921, caracterizou-o, na capa, como
atividades de ensino e aprendizagem, às suas intenções edu- "livro de leitura para as segundas séries", o livro foi anuncia-
cativas. Não cabe aqui discutir se literatura infantil é uma do como "um novo livro escolar aprovado pelo governo de
literatura destinada a crianças ou uma literatura que interes- São Paulo", e a edição foi realmente vendida para o governo
sa a crianças, mas vale a pena recordar a questão que Carlos de São Paulo para que o livro fosse adotado nas escolas.
Drummond de Andrade tão bem formulou já no início dos Nessa mesma linha de raciocínio, é interessante observar
anos 40, e que ainda hoje permanece irrespondida: como o desenvolvimento da literatura infantil e juvenil no
o gênero "literatura infantil" tem, a meu ver, existência duvidosa. Brasil acompanha o ritmo do desenvolvimento da educação
Haverá músic~ infantil! Pintura infantil! A partir de que ponto uma escolar; basta citar o chamado boom da literatura infantil e
obra literária deixa de constituir alimento para o espírito da criança
juvenil, que coincide, não por acaso, com o momento da
ou do jovem e se dirige ao espírito do adulto! Qual o bom livro para
crianças, que não seja lido com interesse pelo homem feito! Qual o multiplicação de vagas na escola brasileira. Parece. mesmo
livro de viagens ou aventuras, destinado a adultos, que nào possa ser que, ao longo do tempo, a literatura infantil e juvenil foi-se
dado 1l criança, desde que vazado em linguagem simples e isento de •aproximando cada vez mais da escola. Há autores que vêm
matéria de escândalo? Observados alguns cuidados de linguagem e
decência, a distinção preconceítuosa se desfaz. Será a criança um ser
apontando (ou denunciando?) a clara vinculação, atualmen-
à parte, estranho ao homem, e reclamando uma literatura também à te, da literatura infantil e juvenil à escola: Marisa Lajolo fala
parte! Ou será a literatura infantil algo de mutilado, de reduzido, de do "pacto da literatura infantil com a escola", um pacto que
clesvitalizado - porque coisa primária, fabricada na persuasão de que
a imitação da infância é a própria infância?
se traduz em "pacto entre produtores e distribuidores'", isto
é, entre os autores que produzem e a escola que distribui, e
(Carlos Drummond de Andrade, Literatura Infantil, em Confissões Nelly Novaes Coelho afirma que, a partir de meados dos anos
de Minas) 70, o livro infantil se tornou "uma leitura que, mais do que
A pergunta de Carlos Drummond de Andrade - "Será a simples divertimento, é um fecundo instrumento de forma-
criança um ser à parte, reclamando uma literatura também à ção humana, ética, estética, política, etc.", e ainda diz que a
parte?" - conduz à mencionada segunda perspectiva sob a literatura infantil "oferece matéria extremamente fecunda para
qual podem ser analisadas as relações entre escolarização e formar ou transformar as mentes", pois é "um dos mais efica-
literatura infantü: quando se pensa em uma literatura infantil zes instrumentos de formação dos imaturos'". Fica claro esse
como uma literatura produzida para crianças e jovens, o que "pacto" da literatura infjnto-juvenil com a escola quando se
significa produzida para a clientela escolar, portanto, produzi- lembram: as fichas de ~itura que atualmente acompanham
da para consumo na escola ou através da escola, a expressão quase todo livro infantil e juvenil; a presença freqüente e
escolarização da literatura infantil toma o sentido de literati- maciça de escritores de literatura infantil e juvenil na escola;
zação do escolar, isto é, de tornar literário o escolar. o grande número de escritores de literatura infantil e juvenil
Este conceito de literatura infantil pode parecer, aos mais que são professores.
radicais, uma heresia - talvez seja, mas deve-se também reco- Esta exposição, que tem por tema a escolarização da
nhecer que sempre se atribuiu à literatura infantil (como tam- literatura infantil, poderia, pois, desenvolver-se a partir
bém à juvenil) um caráter educativo, formador, por isso ela da interpretação das relações entre literatura infantil e es-
quase sempre se vincula à escola, a instituição, por excelência, colarízação como sendo a produção de literatura para a
2D I A escolarização da leitura literária - o jogo do livro infantil e juvenil
PRIMEIRA PARTE - A escolarização da leitura literária I 21

escola, para a clientela escolar, poderia discutir a literatiza- revolução do espaço de ensino: locais dispersos mantidos por
ção do escolar. 3 professores isolados e independentes foram substituídos por
Mas a opção aqui é analisar o tema escolarização da lite- um prédio único abrigando várias salas de aula; como conse-
ratura infantil sob a outra perspectiva apontada, isto é, to- qüência e exigência dessa invenção de um espaço de ensino,
mando as relações entre literatura infantil e escolarização como uma outra "invenção" surge, um tempo de ensino: reunidos
sendo a apropriação, pela escola, para atender a seus fins os alunos num mesmo espaço, a idéia de sistematizar o seu
específicos, de uma literatura destinada à criança, ou que in- tempo se impunha, idéia que se materializou numa organiza-
teressa à criança. ção e planejamento das atividades, numa divisão e gradação
No quadro dessa opção, comecemos por discutir o ter- do conhecimento, numa definição de modos de ensinar cole-
mo escolarização. tivamente. É assim que surgem os graus escolares, as séries,
as classes, os currículos, as matérias e disciplinas, os progra-
mas, as metodologias, os manuais e os textos - enfim, aqui-
Escolarização lo que constitui até hoje a essência da escola.
Assim, a escola é uma instituição em que o fluxo das tare-
fas e das ações é ordenado através de procedimentos forma-
o termo escolarização é, em geral, tomado em sentido lizados de ensino e de organização dos alunos em categorias
pejorativo, depreciativo, quando utilizado em relação a co-
Cidade, grau, série, tipo de problema, etc.), categorias que
nhecimentos, saberes, produções culturais; não há conota-
determinam um tratamento escolar específico (horários, na-
ção pejorativa em "escolarização da criança", em "criança
tureza e volume de trabalho, lugares de trabalho, saberes a
escolarizada", ao contrário, há uma conotação positiva; mas
aprender, competências a adquirir, modos de ensinar e de
há conotação pejorativa em "escolarização do conhecimen-
aprender, processos de avaliação e de seleção, etc.). É a esse
to", ou "da arte", ou "da literatura", como há conotação
inevitável processo - ordenação de tarefas e ações, procedi-
pejorativa nas expressões adjetivadas "conhecimento esco- mentos formalizados de ensino, tratamento peculiar dos sa-
larizado", "arte escolarizada", "literatura escolarizada". No beres pela seleção, e conseqüente exclusão, de conteúdos,
entanto, em tese, não é correta ou justa a atribuição dessa pela ordenação e seqüenciação desses conteúdos, pelo modo
conotação pejorativa aos termos "escolarização" e "escolari- de ensinar e de fazer aprender esses conteúdos - é a esse
zado", nessas expressões. processo que se chama escolarizaçâo, processo inevitável,
Não há como ter escola sem ter escolarização de conhe- porque é da essência me~ma da escola, é o processo que a
cimentos, saberes, artes: o surgimento da escola está indis- institui e que a constitui.
sociavelmente ligado à constituição de "saberes escolares", Portanto, não há como evitar que a literatura, qualquer
que se corporificam e se formalizam em currículos, matérias e literatura, não só a literatura infantil e juvenil, ao se tornar
disciplinas, programas, metodologias, tudo isso exigido pela "saber escolar", se escolarize, e não se pode atribuir, em tese,
invenção, responsável pela criação da escola, de um espaço como dito anteriormente, conotação pejorativa a essa escola-
de ensino e de um tempo de aprendizagem. rização, inevitável e necessária; não se pode criticá-Ia, ou negá-
A diferença fundamental entre o aprendizado corporati- Ia, porque isso significaria negar a própria escola.
vo medieval e o aprendizado escolar que se difundiu no Disse em tese porque, na prática, na realidade escolar essa
mundo ocidental, a partir sobretudo do século XVI, foi uma escolarização acaba por adquirir, sim, sentido negativo, pela
221 A~_'""-m.,w_".""._.;.~,.,~ '"M'" 0;_"" PRIMEIRA PARTE. A escolarização da leitura literária I 23

maneira como ela se tem realizado, no quotidiano da escola. leitura e o estudo de textos, em geral componente básico de
Ou seja: o que se pode criticar, o que se deve negar não é a aulas de Português. Esta última instância é que será aqui pri-
escolarização da literatura, mas a inadequada, a errônea, a im- vilegiada, mas, para contextualizá-Ia, é importante desenvol-
própria escolarização da literatura, que se traduz em sua detur- ver algumas considerações sobre as outras duas.
pação, falsificação, distorção, como resultado de uma
pedagogização ou uma didatização mal compreendidas que, ao
A biblioteca como instância de escolarizaçâo da literatura
transformar o literário em escolar, desfigura-o, desvirtua-o, fal-
seia-o. (É preciso lembrar que essa escolarização inadequada
pode ocorrer não só com a literatura, mas também com outros Na biblioteca, escolariza-se a literatura infantil (aliás, a
conhecimentos, quando transformados em saberes escolares.) literatura em geral) através de diferentes estratégias.

Esta exposição poderia, assim, discutir a inevitável e neces- A primeira estratégia é o próprio estabelecimento de um
sária escolarização da literatura infantil e juvenil, e como fazê- local escolar de guarda da e de acesso à Iíteratura", um local
Ia de forma adequada; na verdade, toda a bibliografia prescritiua escolar a que se atribui um estatuto simbólico que constrói
sobre a literatura na escola é uma bibliografia sobre como pro- uma certa relação escolar com o livro, fundadora da relação
mover uma escolarização adequada da literatura: como se deve posterior do aluno com a instituição social não escolar "biblio-
ensinar literatura, como se deve trabalhar o texto literário, como teca" (biblioteca pública, ou biblioteca de instituição não es-
se deve incentivar e orientar a leitura de livros. colar, ou mesmo biblioteca particular).

Mas não é essa a discussão que se pretende desenvolver Uma segunda estratégia é a organização do espaço e do
aqui; o que se pretende é discutir como a literatura infantil tem tempo de acesso aos livros e de leitura - onde se pode ou se
sido inadequadamente escolarizada, erroneamente escolariza- deve ler (na própria biblioteca escolar? em que lugar da bi-
da; discutindo isso, implicitamente se estará apontando como blioteca?), quando e durante quanto tempo se pode ler (du-
ela poderia ser adequadamente escolarizada. Sendo assim, o rante a "aula de biblioteca"? quando se pode ir à biblioteca
tema desta exposição deveria, talvez, ganhar um adjetivo, e buscar um livro? quanto tempo se pode ficar com o livro?).
tornar-se: A inadequada escolarização da literatura infantil. Uma outra estratégia é a seleção dos livros - quais livros
Antes, porém, de desenvolver assim o tema, é necessá- a biblioteca oferece à leitura, que livros exclui ou "esconde",
rio lembrar as principais instâncias de escolarização da li- que livros expõe mais abertamente.
teratura infantil e, assim, contextualizar aquela que será Há ainda as estratégias de socialização da leitura: quem indi-
aqui privilegiada. ca ou orienta a escoIl~ do livro a ler - a professora? a bibliote-
cária? que critérios definem a orientação seletiva de leitura para
uma série ou outra, para meninos ou para meninas? a orienta-
Instâncias de escolarização da literatura infantil ção seletiva de tipos e gêneros de leitura, de autores?
Também a determinação de rituais de leitura constitui es-
São três as principais instâncias de escolarização da lite- tratégia de escolarização da literatura no âmbito da bibliote-
ratura em geral, e particularmente da literatura infantil: a biblio- ca - desde as fichas que é preciso preencher e respeitar, até
teca escolar; a leitura e estudo de livros de literatura, em geral como se deve ler (em silêncio, sem escrever no livro, passan-
determinada e orientada por professores de Português; a do as páginas de certa maneira, não dobrando o livro, etc.) e
24 I A escoJarização da leitura literária- o jogo do livro infantil e juvenil PRIMEIRA PARTE - A escolarização da leitura literária 125

em que posição se deve ler (sentado adequadamente, segu- sempre e inevitavelmente escolarizada, quando dela se apro-
rando o livro de certa maneira, etc.) pria a escola; o que se pode é distinguir entre uma escolarí-
zação adequada da literatura - aquela que conduza mais
eficazmente às práticas de leitura que ocorrem no contexto
A leitura de livros como instância de
social e às atitudes e valores que correspondem ao ideal de
escolarização da literatura
leitor que se quer formar - e uma escolarização inadequa-
da, errônea, prejudicial da literatura - aquela que antes afasta
A leitura e estudo de livros de literatura - a segunda que aproxima de práticas sociais de leitura, aquela que de-
instância mencionada - escolariza a literatura também por senvolve resistência ou aversão leitura.
á

diferentes estratégias. Assim, é contraditória e até absurda a afirmação de que


Em primeiro lugar, a leitura é determinada e orientada, como "é preciso desescolarizar a literatura na escola" (como tornar
já foi dito, por professores, em geral os de Português, portan- não escolar algo que ocorre na escola, que se desenvolve na
to, configura-se como tarefa ou dever escolar, sejam quais fo- escola?), ou a "acusação" de que a leitura e o leitor são esco-
rem as estratégias para mascarar esse caráter de tarefa ou dever larizados na e pela escola (como não escolarizar na escola?
- jamais a leitura de livros no contexto escolar, seja ela im- Como pode a escola não escolarizar?). O que, sim, se pode
posta ou solicitada ou sugerida pelo professor, seja o livro a afirmar é que é preciso escolarizar adequadamente a literatu-
ser lido indicado pelo professor ou escolhido pelo aluno, ja- ra (como, aliás, qualquer outro conhecimento).
mais ela será aquele "ler para ler" que caracteriza essencial-
O mesmo se pode dizer com relação à terceira instância
mente a leitura por lazer, por prazer, que se faz fora das paredes
de escolarização da literatura: a leitura e o estudo de textos,
da escola, se se quer fazer e quando se quer fazer.
em geral componente básico de aulas de Português, instân-
Além disso, a leitura é sempre avaliada, por mais que se cia privilegiada na discussão que se faz neste texto.
mascarem também as formas de avaliação - que se dê uma
prova, que se peça preenchimento de ficha, que se promova
trabalho de grupo, seminário, júri simulado, enfim, que se A leitura e estudo de textos como
use seja qual for a estratégia, das muitas que a bibliografia de instância de escolarização da literatura
uma pedagogia renovadora vem sugerindo, sempre a leitu-
ra feita terá que ser demonstrada, comprovada, porque a
situação é escolar, e é da essência da escola avaliar (o sim- Ao lado do acesso ao livro na biblioteca escolar, ao lado da
ples fato de se estar sempre discutindo que é preciso não leitura de livros pr<QP1ovida
em aulas de Português, a literatura
avaliar explicitamente, de se criarem estratégias as mais en- se apresenta na esc~a sob a forma de fragmentos que devem
genhosas para verificar se a leitura foi feita, e bem feita, ser lidos, compreendidos, interpretados. Certamente é nesta
evidencia como a leitura é escolarizada). Lembre-se que, instância que a escolarização da literatura é mais intensa; e é
fora da escola, nunca temos de demonstrar, comprovar que também nesta instância que ela tem sido mais inadequada.
lemos, e que lemos bem, um livro. Consideraremos quatro aspectos principais da leitura de
Com esses breves comentários sobre essas duas instâncias textos na escola: a questão da seleção de textos: gêneros, au-
de escolarização da literatura - a biblioteca escolar e a leitu- tores e obras; a questão da seleção do fragmento que consti-
ra de livros - o que se quer deixar claro é que a literatura é tuirá o texto a ser lido e estudado; a questão da transferência
2f51 A escolartxaçãc da leitura literária - o jogo do livro infantil e juvenil PRIMEIRA PARTE-Aescolarização da leitura literária 171

do texto de seu suporte literário para um suporte didático, a lEIAo TEXTO ESUBLlNHE TODOS OS
ORTOGRAFIA
SUBSTANTIVOS COMUNS:
página do livro didático; e, finalmente, e talvez o mais impor- Sílabas terminadas em s
tante, a questão das intenções e dos objetivos da leitura e QUE BORBOLETA! LEIA OS VERSOS E SUBLINHE TODAS AS PALA·

estudo do texto. Que borboleta é aquela VRAS COM síLABAS TERMINADAS EM 5:

Que não gosta de flor


Para discutir cada um desses aspectos, vão ser tomados E que vive perseguindo mos- o PASTELEIRO
Nem todo japonês é pasteleiro
exemplos de livros didáticos de 1ª a 4ª séries do primeiro quitos,
mas todo pasteleiro é japonês
Dando piruetas no ar?
grau, com o objetivo de ilustrar e caracterizar a escolarização fazendo garapa e pastel
- É uma lagartixa maluca
inadequada da literatura infantil na instância da leitura e es- à espera do freguês.
Que se vestiu com uma gra-
tudo de textos; não serão mencionados títulos e autores dos vata-borboleta
E conseguiu voar.
o pastel aparece na hora
livros de que são extraídos os exemplos, já que estes são estufa, surge do nada
apenas modelares - indicar título e autoria significaria não surpresa quente e boa
NANI. Cachorro quente ui-
junto à garupa gelada.
só individualizar o que é genérico, mas também penalizar vando pra lua. Belo Horizon-
te: Formato Editorial, 1987.
uma determinada obra e um determinado autor por falhas (seguem-se duas outras estrofes)
que são freqüentes nos livros didáticos em geral."
FLORA, Ana. Em volta do quarteirão.
Rio de Janeiro: Salamandra, 1986.
A seleção de gêneros, autores e obras
É desnecessário apontar a inadequação do uso de poemas
Os gêneros literários nos livros didáticos para identificar substantivos comuns ou para encontrar pala-
vras com determinado tipo de sílaba; a poesia é aqui pretexto
para exercícios de gramática e ortografia, perde-se inteiramen-
No quadro da grande diversidade de gêneros literários, te a interação lúdica, rítmica com os poemas, que poderia le-
há, na grande maioria dos livros didáticos destinados às var as crianças à percepção do poético e ao gosto pela poesia.
quatro primeiras séries do primeiro grau, nítida predomi-
nância dos textos narrativos e poemas, embora estes te-
nham quase sempre papel secundário e subsidiário; o teatro
Seleção de autores e obras
infantil está quase totalmente ausente; o gênero epistolar,
a biografia, o diário, as memórias, gêneros que têm pre- Também aqui se verifica a inadequada escolarização da
sença significativa na literatura infantil, estão também quase literatura infantil. ~m primeiro lugar - aspecto que é, certa-
totalmente ausentes. mente, o menos gi\ve - há uma grande recorrência dos mes-
Dos textos narrativos se tratará adiante, ao discutir a de- mos autores e das mesmas obras nas coleções didáticas para
sestruturação a que é submetida a narrativa nos livros didáti- as quatro primeiras séries do primeiro grau. Poemas são re-
cos; cabe aqui apontar o tratamento que neles é dado à poesia, petidamente buscados, ao longo das quatro séries, em obras
quase sempre descaracterizada: ou se insiste apenas em seus de larga divulgação, como Ou isto ou aquilo, de Cecília Mei-
aspectos formais - conceito de estrofe, verso, rima, ou, o que reles, A Arca de Noé, de Vinicius de Moraes, ou em autores
é mais freqüente, se usa o poema para fins ortográficos ou mais amplamente conhecidos, como Elias José, Sérgio Capa-
gramaticais. Vejam-se dois exemplos (os grifos são meus): relli, Roseana Murray. A mesma recorrência de autores e obras
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ocorre na seleção de textos narrativos: Ruth Rocha, Ana Ma- a inclusão de textos do próprio autor do livro didático; veja-se,
ria Machado, Pedro Bandeira, Ziraldo são autores que apare- por exemplo, a escolarização - inadequada - da poesia, pela
cem repetidamente; os livros Marcelo, marmelo, martelo, O apresentação à criança do seguinte poema:
menino rnaluquinbo, Afada que tinha idéias têm lugar cati-
vo nos livros didáticos. São, inegavelmente, bons poemas,
Pare! Atenção!
boas narrativas, excelentes poetas e excelentes escritores;
entretanto, oferece-se à criança uma gama restrita de auto- o ]oãozinho é distraído.
res e obras, quando a literatura infantil brasileira, em prosa Em nada presta atenção.
e em verso, é bastante rica e diversificada. O resultado será Mas Totó, o seu amigo,
é um excelente cão.
ou tem sido aquele mesmo que ocorreu com gerações ante-
riores, já que parece ser antiga esta característica da escola- Lá vêm os dois na calçada.
rização da literatura: quem, entre aqueles que freqüentaram E agora, olhem só!
Na hora de atravessar,
a escola nos anos 50 e 60, não se lembra de Visita à casa
vejam o que faz Totó:
paterna, de Luís Guimarães]r., de As pombas, de Raimundo
Correia, de Ouvir estrelas, de Olavo Bílac, de Um apólogo, Morde a calça do menino'
de Machado de Assis? "Ficou louco este meu cão?'
Não, )oãozinho! O amarelo
Uma seleção limitada de autores e obras resulta em uma mostra: Pare! Atenção!
escolarização inadequada, sobretudo porque se forma o con-
ceito de que literatura são certos autores e certos textos, a tal
ponto que se pode vir a considerar como uma deficiência da A finalidade "instrutiva" do poema, a estrutura elemen-
escolarização o desconhecimento, pela criança, daqueles au- tar e a precariedade dos aspectos rítmicos e das rimas certa-
tores e obras que a escola privilegia ... quando talvez o que mente distorcem o conceito de poesia e a caracterização de
se devesse pretender seria não o conhecimento de certos poema - é sem dúvida uma inadequada escolarização da
autores e obras, mas a compreensão do literário e o gosto literatura (?) infantil.
pela leitura literária (voltando às gerações que freqüentaram Ainda um último aspecto que convém mencionar, no que
a escola nos anos 50 e 60: é considerado "falta de cultura" o se refere à seleção de autores e obras, é a muito freqüente
desconhecimento, por aqueles pertencentes a essas gerações, ausência, nos livros didáticos, de referência bibliográfica e
de "Ora direis, ouvir estrelas ... certo perdeste o senso ... " ou de informações sobre o autor do texto: o texto torna-se inde-
de "Vai-se a primeira pomba despertada ... ", mas não se con- pendente da obra a que pertence, desapropria-se o autor de
sidera "falta de cultura" a insensibilidade para o literário e o seu texto - mais uma forma de escolarização inadequada da
"desgosto" pela leitura literária). literatura; uma escolat,zação adequada desenvolveria no alu-
Um outro aspecto que revela a inadequada escolarização da no o conceito de autoria, de obra, de fragmento de obra.
literatura infantil é que, excetuados os autores e obras recorren-
temente utilizados, porque amplamente conhecidos, como dito A seleção do fragmento que constituirá o texto
acima, verifica-se a ausência de critérios apropriados para a se-
leção de autores e textos; na verdade, ou se lança mão de obras
e autores muito conhecidos, ou de autores pouco representati- Em livros didáticos encontram-se, em geral, como textos
vos e obras de pouca qualidade. É muito comum, por exemplo, para leitura, fragmentos de textos maiores, já que é preciso
3D1 A escolarização da leitura literária - o jogo do livro infantil e juvenil
PRIMEIRA PARTE- A escolarização da leitura literária 131

que as atividades de desenvolvimento de habilidades de lei- Nem se trata de exploração de nonsense, ou de jogo lúdico com
tura tenham por objeto textos curtos, para que possam ser as palavras; na verdade, o objetivo foi apenas juntar palavras
analisados e estudados em profundidade no tempo limitado em que aparecem as letras j e g representando o mesmo fone-
imposto pelos currículos e horários escolares - esta é mais ma - para não restar dúvida, as sílabas que o "texto" perseguiu
uma das características (exigências") da inevitável escolariza- são destacadas ao fim dele. Apresenta-se esse "ajuntamento" de
ção da literatura. Entretanto, ao selecionar o fragmento de palavras ao aluno como se fosse um texto narrativo, levando-o
um texto, este tem de constituir-se, ele também, como texto, a formar um conceito falso de texto, de leitura - um claro exem-
plo de escolarização inadequada da literatura.
isto é: uma unidade de linguagem, tanto do ponto de vista
semântico - uma unidade percebida pelo leitor como um Por outro lado, quando se lança mão de um fragmento de
todo significativo e coerente - quanto do ponto de vista for- texto da literatura infantil, muito frequentemente não se cui-
mal - uma unidade em que haja integração dos elementos, da de que o fragmento apresente, também ele, textualidade,
que seja percebida como um todo coeso. isto é, que apresente as características que fazem com que
uma seqüência de frases constitua, realmente, um texto. A
Para escapar à dificuldade desta tarefa, muitas vezes são
freqüência com que isso ocorre nos livros didáticos tem rela-
forjados "textos", na verdade, pseudotextos. o próprio autor
ções com a predominância, neles, da narrativa. Esta tem uma
do livro didático produz o "texto", e em geral o faz não pro-
estrutura textual (uma rnacroestrutura") que se organiza em
priamente com o objetivo de desenvolver atividades de leitu-
ciclos seqüenciais: começa com uma exposição, em que o acon-
ra, mas de ensinar sobre a língua - ensino de gramática, de
tecimento que será narrado é "emoldurado", com a apresen-
ortografia; eis um exemplo:
tação da situação inicial (tempo e lugar, personagens, etc.),
prossegue trazendo um desequilíbrio que vem perturbar a
A jibóia e a girafa situação inicial, isto é, uma complicação; evolui para um clí-
Uma jibóia gigante estava de boca Pajé jeitoso sentado na sarjeta max, em que o desequilíbrio chega a seu ponto máximo; fi-
aberta, pronta para engolir a gira- comendo jerimum. Megera rabu- nalmente caminha para o restabelecimento do equilíbrio, pela
fa, quando esta, sabendo que a co- genta com cara ele gengibre e resolução da complicação. Torna-se, assim, difícil retirar, de
bra tinha medo de injeção, disse: com gosto ele jejum. Tem pintas
uma narrativa, um fragmento que conserve, em si, todos os
- Se me comer, vai ficar com de ferrugem e apanha tangerina
indigestão. Vem o guarda da flo- na laranjeira ela Oscarlina. Vi an- ciclos de uma narrativa; a conseqüência dessa dificuldade é
resta e lhe enfia na boca uma ti- jinho guiar jipe e um outro imitar que os fragmentos de narrativas apresentados nos livros di-
gela de jiló. E, ainda, lhe aplica gorjeio elo sabiá do rodeio. Gira- dáticos são quase sempre pseudotextos, em que um ou al-
uma injeção. fa que não corre, fica, e comê-Ia
A jibóia se encolheu toda. Daí, será canjica.
guns ciclos da seqüência narrativa são apresentados, faltando
começou a cantar trovas: A girafa fugiu. aqueles que os precedem ou os seguem. Alguns exemplos
comprovarão essa aifmação.
I je ji • ge gi I Há "textos" que a)resentam apenas o ciclo inicial da se-
qüência narrativa, a exposição, e interrompem aí a narrativa,
que, portanto, não se realiza, deixando o leitor na expectati-
Desnecessário comentar a falta de coerência deste pretenso
va: o que acontecerá neste lugar? com estes personagens?
"texto": uma jibóia, por gigante que seja, jamais poderia engo-
lir uma girafa... jibóia com medo de injeção?!e por que a tigela Assim, em um livro didático, propõe-se à criança, como
de jiló? e onde estão as "trovas" que a jibóia se pôs a cantar? e texto de leitura, fragmento do livro Menina bonita do laço de
a absoluta falta de sentido das trovas que não são trovas ... fita, de Ana Maria Machado; eis o fragmento:
321 A escolarização da leitur~ literária - o jogo do livro infantil e juvenil PRIMEIRA PARTE - A escolarização da leitura literária 133
aconteceu? e, não obtendo respostas a essas perguntas, irá
Menina bonita do laço de fita
construindo um conceito inadequado de texto, de narrativa,
Era uma vez urna menina linda, lin- fazer trancinhas no cabelo dela e en- de leitura literária. Uma segunda conseqüência, estreitamente
da, linda. feitar com laço de fita colorida. Ela ligada à primeira, é que se desfigura o sentido da obra dos
Os olhos dela pareciam duas azeito- ficava parecendo uma princesa das
nas pretas, daquelas bem brilhantes. Terras da África, ou uma fada do rei-
autores: no caso do livro de Ana Maria Machado, os parágra-
Os cabelos eram enroladinhos e bem no do luar. fos iniciais só ganham significado em função da história que se
negros, feito fiapos de noite. A pele desenvolve entre a menina negra e o coelho branco, e que tem
era escura e lustrosa, que nem o MACHADO, Ana Maria. Menina
por tema as diferenças de cor; no caso do conto de Érico Verís-
pêlo da pantera negra quando pula honita do laço defita. São Paulo:
na chuva. Melhoramentos, 1986, p.4-5.
simo, a cumplicidade que os parágrafos iniciais buscam criar
Ainda por cima, a mãe gostava de entre o autor-mágico e o leitor-criança só se explica no desen-
volvimento da narrativa. Acrescente-se que os livros didáticos
Em um outro livro didático, o "texto" apresentado à crian- nem mesmo lançam mão de estratégias para compensar a frag-
ça é o seguinte fragmento da história "Rosa Maria no castelo mentação que impõem à história, como por exemplo: levar a
encantado", do livro Gente e bichos, de Érico Veríssimo: criança a imaginar o que acontecerá em seguida, anunciar e
apresentar a continuidade da história nos textos seguintes ...

o castelo encantado Ainda mais frustrante e inadequada é a fragmentação que,


indo um pouco além da exposição, apenas anuncia a compli-
Eu sou um mágico. Moro num cas- vestidos de verde. Os trincos das cação, como o seguinte "texto" de um livro didático, que apre-
telo encantado. Os homens grandes portas, vocês pensam que são de
senta os parágrafos iniciais de uma das histórias do livro de
não sabem de nada. Só as crianças é metal' Nada disso. São de marmela-
que conhecem o segredo.,. da, de goiabada, de cocada. Ruth Rocha Pedrinbo pintor e outras histórias:
Quando um homem passa pela mi- Quando um homem grande entra
nha casa, o que vê é uma casa COlTIO na minha casa, tem de subir toda a
as outras: com portas, janelas, telha- escada, degrau por degrau. Quando o coelho que não era de Páscoa
do vermelho, sacada de ferro ... uma criança entra no meu castelo, é
Vivinho era um coelhinho. Branco, como meu bisavô.
Só as crianças é que enxergam o a escada que sobe com ela.
redondo, fofinho. E todos queriam ser coelhos de
meu castelo encantado. Com torres
Todos os dias Vivinho ia à escola Páscoa, como o trisavô, o tatara-
de açucar e chocolate. Pontes que VERÍSSIMO, Érico. "Rosa Maria
com seus irmãos. vô, como todos os avôs.
sobem e descem, puxadas ou em- no castelo Encantado." Aprendia a pular, aprendia a correr.. Só Vivinho não dizia nada,
purradas por anõezínhos barrigudos Em: Gente e hichos. Aprendia qual a melhor couve Os pais perguntavam, os irmãos
para se comer. indagavam.
Os coelhinhos foram crescendo, - E você, Vivinho? E você?
Como se vê, os "textos" são apenas o início das histórias, a chegou a hora de escolherem uma - Bom - dizia Vivinho - eu não
exposição- no primeiro exemplo, a apresentação da persona- profissão. sei o que quero, Mas sei o que não
gem central, a menina bonita de laço de fita; no segundo exem- Os irmãos de vivinh~á tinham quero: ser coelhinho de Páscoa.
resolvido: O pai de Vivinho se espantou, a mãe
plo, a apresentação de um dos personagens, o mágico, e,
- Eu vou ser coelho de Páscoa, se escandalizou:
sobretudo, do cenário em que se passará a história. Uma pri- como meu pai. - OOOOOHHHHH!!!
meira conseqüência dessa fragmentação inadequada, que apre- - Eu vou ser coelho de Páscoa,
C01110 meu avô. ROCHA, Ruth. Pedrinha pintor
senta apenas a exposição que precede os acontecimentos, é
- Eu vou ser coelho de Páscoa, e outras histórias.
que a criança, que tem internalizada em si a "linguagem uni-
versal da narrativa", cuja estrutura conhece bem, das histórias Como se vê, apresenta-se à criança o início da história, a expo-
que conta e que ouve, há de se perguntar: e depois? o que sição- personagens, situação - e anuncia-se a complicação-
3'11 A escolartxação da ,<'W~
llter-át-ia - o jo~ 'o livr-o 'oM" 'J"~" PRIMEIRA PARTE - A escolarização da leitura literária 135

um problema é criado pelo personagem. E depois? Como se a falta de sentido das coisas que na escola são dadas a ler ... E
resolverá o problema? O fragmento não é um texto, pois pode sentir-se autorizada a escrever assim, ela também.
não é um todo significativo e coerente, nem é uma narrati- Veja-se este outro exemplo, de um outro livro didático:
va, pois apenas apresenta a situação e o fato que desenca-
deará os acontecimentos.
o sapo Batista
Mas há, nos livros didáticos, formas mais desastrosas de
fragmentação de narrativas. Nos exemplos anteriores, porque No dia seguinte, de manhã, os Quando chegaram ao pé da ro-
se tomam os parágrafos iniciais de uma história, pelo menos bichos acordaram escutando uma cha, uma surpresa. Olha só quem
música que vinha de longe. Curi- estava lá! O sapo vozeirão.
contextualiza-se a ação e apresentam-se os personagens; nos
osos, os sapos foram devagar Linho Quando Batista viu que estava
exemplos apresentados a seguir, toma-se um fragmento do meio
para ver o que estava acontecen- sendo observado ficou todo ver-
da história: falta a exposição, e apenas se anuncia a complica- do. Eles queriam saber de quem melho e encabulado.
ção. A mesma Ruth Rocha é de novo penalizada em outro livro era aquela voz tão bonita. KAI.II., Vanessa. O sapo Batista.
didático, em que se propõe à criança, como um "texto", o se-
guinte fragmento do livro Procurando firme: No dia seguinte ... seguinte a qual dia? os bichos... que
bichos? quem estava lá era o sapo uozeirào ... que sapo é este?
e por que era chamado vozeirãcl. E depois, o que aconteceu?
Procurando firme
O que fizeram os bichos? o que fez o vermelho e encabulado
Mas a princesa estava desaponta- quiseram consertar as coisas, disfar- sapo Batista?
da! Aquele não era o príncipe que çar o nariz (alto ela princesa, é que
ela estava esperando: Até que ele eles estavam achando o príncipe Mais um exemplo. O fragmento abaixo, apresentado à
não era feio, tinha umas roupas bem bem jeitoso. Afinal ele era o prín- criança como um "texto" de leitura, começa por mencionar o
bonitas, sinal que devia ser meio ri- cipe da Petrolândia, um lugar que personagem O júnior, que não se sabe quem é. Será um me-
quinho, 111as era meio grosso, tinha tinha um óleo fedorento e que todo
um jeitão de quem achava que esta- mundo achava que um dia ia valer
nino? Só por inferência, ao longo da leitura, poderá o aluno
va abafando, muito convencido! muito dinheiro. descobrir quem é o Júnior:
A princesa torceu o nariz.
O pai e a mãe da princesa fi- ROCHA, Ruth. Procurando firme,
caram muito espantados, ainda I~: Nova Fronteira, 1984, p.17. Por que não?

O ]únior passava cada vez me- mas também gostavam de falar em


Observe-se que o "texto" se inicia com um mas. Esta con- nos tempo em casa. coro.
junção introduz uma sentença que contraria algo que terá Até que um dia ele apareceu com - Pois é - respondeu o júnior.
a cara mais marota do mundo: - Por que é que um pombo pode
sido dito em sentença anterior: o quê? E menciona-se a prin-
- Minha gente, estão todos I{fn- trabalhar no correio e um passari-
cesa, não uma princesa; portanto, um personagem que já foi nho não pode'
vida dos para a minha formatur,~
antes apresentado: de que princesa se fala? E mais: Aquele - Formatura! - perguntaram to- - Ah, porque os pombos-cor-
não era o príncipe que ela estava esperando/ Qual é o referen- dos em coro. reio nascem sabendo ..
te para o anafórico aquele E por que, desde quando, para - Formatura! - confírmou o ]ú- - Por isso é que eu tive de
nior. - Estou me graduando na aprender. Mas uma pessoa esperta
quê, a princesa estava esperando um príncipe? E depois, o aprende qualquer coisa que ela
Escola dos Pombos-correio.
que aconteceu? A princesa terá aceitado o príncipe ou não? E - Pombos-correio' - tornaram a queira muito.
por que o texto se chama Procurandofirmei Perguntas que a perguntar em coro os Bicudos, que Esta história foi retirada do livro
criança se fará, fará à professora, ou terá de se conformar com não só gostavam de cantar em coro, Por que nào? de Ruth Rocha.
36 I A escolarização da leitura literária - o jogo do livro infantil e juvenil
PRIMEIRA PARTE - A escolarização da leitura literária /37
De novo, fragmento retirado de livro de Ruth Rocha, o da literatura infantil nas atividades de leitura e estudo de
que confirma o que foi dito anteriormente: a recorrência, nos textos, propostas nos livros didáticos, é a distorção que o
livros didáticos para as quatro primeiras séries, dos mesmos texto sofre, ao ser transferido de seu suporte literário para a
autores (esclareça-se que os fragmentos de obras de Ruth página do livro didático.
Rocha citados até aqui foram retirados de diferentes livros
didáticos). O "texto" apresenta a história já em curso; sem
Transferência do texto de seu suporte
conhecer seu início, o aluno há de pensar, até certa altura
dele, que o Júnior é um menino; ao longo da leitura é que
literário para a página do livro didático
poderá inferir que o Júnior é um passarinho, um bicudo, que
resolveu aprender a ser pombo-correio ... e que comunica isso Ao ser transportado do livro de literatura infantil para o
a outros bicudos (seus irmãos? seus amigos? seu bando? ) Se livro didático, o texto tem de sofrer, inevitavelmente, trans-
as questões sobre o texto propostas aos alunos procurassem formações, já que passa de um Suporte para outro: ler direta-
levá-los a fazer essas inferências e recuperar o não-dito, tal- mente no livro de literatura infantil é relacionar-se com um
vez se justificasse a narrativa sem início (e também sem fim), objeto-livro-de-literatura completamente diferente do objeto-
mas não é isso que acontece, como se verá mais adiante. livro-didático: são livros com finalidades diferentes, aspecto
Cabe ainda uma observação sobre o título do "texto", que material diferente, diagramação e ilustrações diferentes, pro-
apenas repete o título do livro de onde foi retirado (o mesmo tocolos de leitura diferentes. Se a necessidade de escolarizar
recurso é utilizado nos exemplos apresentados anteriormen- torna essas transformações inevitáveis, é, porém, necessário
te - é a forma usual, nos livros didáticos, de dar títulos aos que sejam respeitadas as características essenciais da obra
fragmentos retirados de livros de literatura infantil): nem sem- literária, que não sejam alterados aqueles aspectos que cons-
pre o título do livro é um título adequado para o fragmento tituem a literariedade do texto.
escolhido (como já se observou anteriormente, com referên- Freqüentemente, não é isso que acontece. Um caso exem-
cia ao fragmento retirado do livro Procurandofirme), e é tam- plar é o de uma coleção didática que apresenta o mesmo texto
bém só por meio de inferências que se pode encontrar no Livro 1 e no Livro 4 (o que já é surpreendente), impondo-
justificativa para que este "texto" se denomine Por que não? lhe, no Livro 1, alterações de paragrafação, de estruturas lin-
(por que um bicudo não pode ser um pombo-correios) güísticas, de vocabulário, até mesmo de título; embora no Livro
Em síntese, e concluindo este item sobre a fragmentação 1 se indique que se trata de uma "adaptação", as alterações
da narrativa em "textos" propostos à leitura em livros didáti- feitas são inteiramente dispensáveis, não se justificam pela ne-
cos, pode-se afirmar que a escolarização - inevitável, repita- cessidade de adaptação do texto (que, às vezes, é realmente
se o adjetivo - da literatura infantil faz-se freqüentemente necessária - mais um"das estratégias que a escolarização
de forma inadequada e, mais que isso, prejudicial mesmo, impõe, mas que pode ser feita sem ferir a literariedade do tex-
pois abala o conceito que a criança tem, intuitivamente, da to). É um texto de Érico Veríssimo, também este retirado de
estrutura da narrativa, dá-lhe uma idéia errõnea do que é um Gente e bichos (de novo a recorrência de autores - o outro
texto e pode induzi-Ia a produzir ela mesma pseudotextos, já texto retirado deste mesmo livro, anteriormente citado, "O cas-
que estes é que lhe são apresentados como modelo. telo encantado", está incluído em outro livro didático, não neste
Um outro aspecto que evidencia a escolarização inadequada que agora se menciona). Compare-se:
381 A escolarização da leitura literária - o jogo do livro infantil e juvenil M'M8~'~-A.oo.,_, aleicur-a liter-ár-ia 139
UVRO I UVR04 e não Não me amole, galo bobo. Por que, para que as elimi-
Que Dor de Dente! o Céu e a Terra na Escuridão nações? Também o elemento coesivo então, que aparece no
texto do Livro 4 - Então o cachorro ... desaparece, desneces-
Anoiteceu. Apareceu no céu Érico Veríssimo
uma lua de cara inchada.
sariamente, no texto do Livro 1.
O galo saiu para o meio do Anoiteceu. Apareceu no céu uma Mais numerosas e menos justificáveis são as alterações de
quintal e cantou: Lua de cara inchada. O galo saiu
- Có-ró-có-có, boa noite, dona
vocabulário: por que o cachorro xereta substitui o cachorro,
para o meio do quintal e cantou:
lua I - Có-ró-có-có , boa noite, que era muito intrometido? é a falsa suposição de que a crian-
A lua fez careta e respondeu: Dona Lua! ça na primeira série não saberá ler orações adjetivas? E por
- Nào me amole! Estou com A Lua fez uma careta e res- que ladrou é substituído por latiu? não seria uma boa opor-
dor de dente. pondeu:
O cachorro xereta latiu: - Não me amole, galo bobo.
tunidade para enriquecer o vocabulário das crianças, se fos-
- Au! Au! Áu! Se a senhora está Estou com dor de dente. se o caso, com o verbo ladrati e mais: gritou a Lua foi
com dor de dente, por que não Então o cachorro, que era mui- substituído por disse a lua, botou o chapéu na cabeça trans-
vai ao dentista' to intrometido, ladrou:
formou-se em colocou o chapéu na cabeça - qual a razão
- É mesmo! Eu não me lem- - Au! Au! Au! Se a senhora está
brei disso! - disse a lua admirada. com dor de dente por que não vai
para essas "adaptações"?
Ela colocou o chapéu na cabe- ao dentista! Finalmente, também o título do texto é alterado: O Céu e a
ça e foi para o dentista. - É mesmo - gritou a Lua, ad-
mirada. - Eu não me lembrei disso'
Te1Ta na escuridão é alterado para Que dor de dentel, que
O céu e a terra ficaram muito
escuros. Botou o chapéu na cbeça e foi pouco tem a ver com a idéia central do texto.
Sozinhas, as estrelas não tinham para o dentista. O Céu e a Terra
O que acontece é que o texto do autor é desnecessaria-
força para alumiar. E mesmo co- ficaram muito escuros. Sozinhas) as
meçaram a tremer de medo e aca- estrelas não tinham força para lu- mente alterado, perde algumas de suas qualidades, é mes-
baram entrando para dentro de miar. E mesmo começaram a tre- mo, de certa forma, distorcido - uma escolarização
suas casas. mer ele medo e acabaram entrando inadequada, fundamentada em pressupostos errôneos.
para dentro de suas casas.
VERÍSSIMO, Érico (adaptação) Uma segunda forma de distorção do texto, no processo de
Gente e bichos. P. Alegre: sua transferência de seu suporte - o livro de literatura infan-
Editora Globo
til - para o suporte escolar - o livro didático - é a altera-
ção do contexto textual, isto é, da configuração gráfica do
Há diferenças de paragrafação: os três últimos parágrafos texto na página, de suas relações com a ilustração. Exemplos
do texto tal como apresentado no Livro 1 constituem um só que ilustram bem essa forma de escolarização inadequada da
parágrafo no texto tal como apresentado no Livro 4: qual a literatura são aqueles casos em que o livro didático apresen-
razão? A hipótese será que textos para crianças de primeira ta apenas o texto de um livro infantil em que texto e ilustra-
série devem ter parágrafos curtos? Por quê? ção são indissociáveis, p<r{que mutuamente dependentes; o
No Livro 4, a personificação da lua, do céu, da terra é texto, separado da ilustraçãb, perde seu sentido e seu impac-
enfatizada pelo uso de maiúsculas: apareceu uma Lua de cara to. É o que tem ocorrido, por exemplo, com a escolarização,
inchada; boa-noite, Dona Lual, O Céu e a Terraficararn mui- em livros didáticos para as séries iniciais, de textos da muito
to escuros; no Livro 1, as maiúsculas desaparecem, empobre- conhecida Coleção Gato e Rato, de Mary e Eliardo França.
cendo desnecessariamente o texto. Nessa coleção, voltada para a criança em fase de alfabetiza-
Palavras e expressões são eliminadas no texto do Livro 1: ção, há uma ou duas frases em cada página, esta tomada qua-
a lua fez careta, e não a Lua fez uma careta; Não me amolei se inteiramente por ilustração que completa o significado da
40 I A escolarização da leitura literária - o jogo do livro infantil e juvenil
PRIMEIRA PARTE - A escolarização da leitura literária 141

frase, acrescenta-lhe informação e, muitas vezes, humor. deu essa bota ao rato? por que, então, duas botas, uma para
A despeito disso, um livro didático toma frases do livro cada um? e o gato não sumiu na bota? como, então, lá está
A bota do bode, que nele estão apresentadas em cinco pági- ele, bem visível dentro da bota?"
nas, cada uma com ilustração indispensável à construção da Ainda uma outra forma, esta talvez mais grave, de distorção
textualidade, e faz delas o seguinte texto: do texto, no processo de sua transferência do livro de literatu-
ra infantil para o livro didático, é a alteração do gênero do
texto: poemas se transformam em textos em prosa, textos lite-
A bota do bode
rários são interpretados como textos informativos, textos jor-
o bode viu uma bota. nalísticos como textos literários ... Talvez o exemplo mais
O bode colocou a bota numa pata.
desconcertante disso seja a transfiguração do poema "A cháca-
E ficou muito gozado!
Uma bota numa pata e três patas ra do Chico Bolacha", de Cecília Meireles, no livro Ou isto ou
sem botas! aquilo, em uma história em quadrinhos! Recorde-se o poema:
O bode deu a bota para o rato.
E o rato sumiu na bota.

Mary França e Eliardo França.


A Chácara do Chico Bolacha
A bota do bode.
Cecília Meireles

Observe-se que, também aqui, verifica-se aquela caracte- Na chácara do Chico Bolacha
o que se procura
rística de escolarização inadequada já apontada: apresenta- nunca se acha!
se apenas o início da história, interrompida quando mal se
anuncia o ciclo da complicação. Mas o que se deseja aqui Quando chove muito,
o Chico brinca de barco,
destacar é a incoerência e inconsistência do texto, se lido porque a chácara vira charco.
assim desligado das ilustrações. Só a representação visual
das situações, tal como feita no livro A bota do bode, dá sen- Quando não chove nada,
Chico trabalha com a enxada
tido às frases e acrescenta ao texto o tom humorístico que ele e logo se machuca
tem. Tanto assim que, na indicação da dupla autoria do livro e fica de mão inchada.
(e de toda a Coleção Gato e Rato), não há distinção entre
Por isso, com o Chico Bolacha,
autor do texto e autor da ilustração; aliás, em livros de litera- o que se procura
tura infantil, freqüentemente o ilustrador é tão autor quanto nunca se acha.
o escritor, dada a complementaridade entre texto e ilustra-
Dizem que a cl~ara do Chico
ção. É bem verdade que, no livro didático, o texto vem tam- só tem mesmo chuchu
bém acompanhado por ilustração, mas a relação entre texto e e um cachorrrinho coxo
que se chama Caxambu.
ilustração, tão absoluta no livro, aqui ames distorce que com-
plementa o texto: é o desenho de um bode com uma bota Outras coisas, ninguém procure,
numa pata, tendo ao lado uma outra bota com um rato den- porque não acha.
Coitado do Chico Bolacha!
tro: mas o texto não se refere a uma bota só? e o bode não
421 A escolarização da leitura literária - o jogo do livro infantil e juvenil ,mM"~'Am_A~~~_m,_,;~;.143

A sonoridade, o ritmo, a musicalidade, a disposição gráfi- Mas há ainda, em livros didáticos, uma outra forma de
ca próprios do texto poético são inteiramente perdidos quan- distorção do literário, que se revela na maneira como textos
do o poema se transforma, num livro didático, no seguinte retirados da literatura infantil são estudados, interpretados
texto dialogado e quadrinizado. - é o que se discute no item seguinte.

Objetivos da leitura de textos da


literatura infantil nos livros didáticos

Aos textos (ou pseudotextos) propostos à leitura dos alunos,


nos livros didáticos, seguem-se sempre exercícios de "estudo do
texto" - mais uma exigência cio processo de escolarização da
leitura: a escola deve conduzir o aluno à análise do texto e à
explicitação de sua compreensão e interpretação.
Entretanto, os exercícios que, em geral, são propostos aos
alunos sobre textos da literatura infantil não conduzem à
análise do que é essencial neles, isto é, à percepção de sua
literariedade, dos recursos de expressão, cio uso estético da
linguagem; centram-se nos conteúdos, e não na recriação que
deles faz a literatura; voltam-se para as informações que os
textos veiculam, não para o modo literário como as veiculam.
Assim, ao ser transferido do livro de literatura infantil para
o livro escolar, o texto literário deixa de ser um texto para
emocionar, para divertir, para dar prazer, torna-se um texto
para ser estudado. O "estudo" que se desenvolve sobre o tex-
to literário, na escola, é uma atividade intrínseca ao processo
É preciso reconhecer e reafirmar o que se disse anterior- de escolarização, como já foi dito, mas uma escolarização
mente: não há como não alterar o texto, ao transportá-Io de adequada da literatura será aquela que se fundamente em
seu suporte próprio - neste caso, o livro de literatura infan- respostas também adequadas às perguntas: por que e para
til - para o suporte escolar - o livro didático; no entanto, é que "estudar" um texto litellj.ário? o que é que se deve "estu-
preciso fazê-lo respeitando o que é a essência caracterizado- dar" num texto literário? O~bjetivos de leitura e estudo de
ra do texto, é preciso fazê-lo sem distorcer, desvirtuar, desfi- um texto literário são específicos a este tipo de texto, devem
gurar; em síntese: se é inevitável escolarizar a literatura infantil, privilegiar aqueles conhecimentos, habilidades e atitudes
necessários ;\ formação de um bom leitor de literatura: a análi-
que essa escolarização obedeça a critérios que preservem o
se do gênero do texto, dos recursos de expressão e de recria-
literário, que propiciem à criança a vivência do literário, e
ção da realidade, das figuras autor-narrador, personagem,
não de uma distorção ou uma caricatura dele.
441 A escolarização da leitura literária" o jogo do livro infantil e juvenil PRIMEIRA PARTE" A escolarização da leitura literária I 45

ponto-de-vista (no caso da narrativa), a interpretação de ana- fragmentação do texto, já comentada, poderia, por exemplo,
logias, comparações, metáforas, identificação de recursos es- ser de certa forma superada se as perguntas levassem o alu-
tilísticos, poéticos, enfim, o "estudo" daquilo que é textual e no a fazer inferências, como por exemplo: Em que parte do
daquilo que é literário. texto se descobre com quem Júnior está conversando? Como
Não é o que fazem, em geral, os livros didáticos. Quase é que se descobre que Júnior é um pombo? ou a estabelecer
sempre, os exercícios propostos aos alunos ou são exercícios relações entre idéias, como: Por que Júnior teve de aprender
de compreensão, entendida como mera localização de infor- a ser pombo-correio? ete.
mações no texto, ou são exercícios de meta linguagem (gra- Um outro exemplo, lançando mão de novo de texto já
mática, ortografia), ou são exercícios moralízantes.Relembre-se anteriormente citado, são os exercícios propostos para o tex-
o texto já citado anteriormente, Por que não? e vejam-se as to "A bota do bode"; comece-se por observar como se anunci-
perguntas propostas sobre ele: am os exercícios: "Vamos entender melhor a poesia?" Além
da inadequação do uso de poesia por poema, verifica-se que
Entendendo o texto
a prosa de Mary e Eliardo França foi aqui transformada em
poesia. Na reprodução abaixo, os desenhos que aparecem no
1. Responda: livro estão representados simbolicamente.
a) Qual é o título da história'
b) Qual é o nome da autora'
c) Quem é o personagem principal! vamos entender melhor a poesia?

2. Copie as frases, substituindo a 91 pela palavra correta: 1. Copie as frases, trocando os desenhos por palavras:

a) júmor passava tr tempo em casa. a)O m viuuma~.

b) Um dia ele tr com uma novidade. b) O [1U deu a I M I para o Itrtrtrl.

2. Escreva os fatos na ordem em que aparecem no texto:


c) Os Bicudos gostavam de cantar e tr em coro. E o rato sumiu na bota.
O bode viu uma bota.
O bode colocou a bota numa" pata.
3. Complete de acordo com o texto:
Os pombos podem trabalhar no correio porque nascem tr. Mas uma pes- 3. Copie apenas as frases que estão de acordo com o texto:
soa tr aprende qualquer coisa que ela tr muito. O rato colocou a bota numa pata.
O bode colocou a bota numa pata.
Uma bota numa pata e três patas sem botas!
Não se pede ao aluno mais que localizar informações no Uma bota em três patas e uma pata sem bota'

texto e copiá-Ias: o título do texto, o nome da autora, frases


com lacunas que deve preencher com palavras do texto (ob-
serve-se, ainda, que a alternativa à palavra do texto para pre-
enchimento da lacuna é inteiramente destoante do sentido
4. Procure o livro
história toda.
"
A bota do bode de Mary e Eliardo

[TI Desenho da cabeça de um bode, no original.


França e leia a

do texto, o que torna ainda mais maquinal a resposta do alu- I tr tr I Desenho de uma bota, no original.
no). No entanto, haveria outras possibilidades: a inadequada I~I Desenho da cabeça de um rato, no original.
461 A escolarização da leitura literária - o jogo do livro infantil e juvenil PRIMEIRA PARTE - A escolarização da leitura literária /47
Também aqui, exercícios de cópia de frases do texto: no Tudo que se disse pretende comprovar a afirmação feita
exercício 1, apenas a tradução em palavras de desenhos; no inicialmente de que, das três instâncias de escolarização da
exercício 2, ordenação de "fatos", que, ordenados, não se literatura infantil na escola, a mais freqüente, a mais regular,
organizam com coerência nem coesão; no exercício 3, mera e também a mais inadequada, é a leitura e estudo de frag-
identificação de frases no texto. Cabe uma observação sobre mentos de textos da literatura infantil. Inadequada porque
o "exercício" 4 que, parece, tenta solucionar a já comentada há uma seleção limitada de tipos e gêneros, porque há uma
fragmentação do "texto" (na verdade, pseudotexto): exercício escolha pouco criteriosa de autores e obras, e, sobretudo,
inócuo, se a escola ou a professora ou algum aluno não tive- porque os textos são quase sempre pseudotextos, isto é, frag-
rem o livro - aguça-se a curiosidade do aluno e, conseqüen- mentos sem textual idade, sem coerência; e ainda porque as
temente, aumenta-se sua frustração. atividades que se desenvolvem sobre os textos não se voltam
Uma análise, ainda que superficial, dos exercícios pro- nem para a textualidade nem para a literariedade do texto.
postos para textos da literatura infantil, em livros didáticos Não será excessivo afirmar que a obra literária é desvirtuada,
das séries iniciais, revela que são recorrentes os seguintes quando transposta para o manual didático, que o texto literá-
tipos de exercícios: copiar o título do texto, o nome do autor, rio é transformado, na escola, em texto informativo, em texto
o nome do livro de onde foi tirado o texto; copiar a fala de formativo, em pretexto para exercícios de metalinguagem.
determinado personagem do texto; escrever quem falou de-
terminada frase; escrever o nome dos personagens; copiar as
Conclusão
frases que estão de acordo com o texto; copiar frases na or-
dem dos acontecimentos apresentados no texto; completar
Retomemos os pressupostos e conceitos que orientaram
frases do texto. Exercícios, como se disse, de mera localiza-
essa exposição.
ção de informações no texto, adequados, por exemplo, para
a leitura de verbete de enciclopédia, ou de determinados ti- Consideramos como escolarização da literatura infantil a
pos de texto informativo, não para a leitura de texto literário. apropriação dessa literatura pela escola, para atender a seus
fins formadores e educativos.
Há ainda, com freqüência, exercícios de opinião sobre o
texto, vagos - O que achou? Gostou do texto? - e exercícios Defendemos que essa escolarização é inevitável, porque
que pretendem buscar no texto um ensinamento moral - o é da essência da escola a instituição de saberes escolares,
que o texto nos ensina? Nestes casos, é sempre interessante que se constituem pela didatização ou pedagogização de co-
observar a resposta que, no Livro do Professor, sugere-se nhecimentos e práticas culturais.
como resposta "correta": freqüeritemente, informa-se ao pro- Distinguimos entre uma escolarização adequada e uma
fessor o que o aluno deve achar. .. deve aprender do tex- escolarização inadequada da literatura: adequada seria aquela
to ... Por exemplo, após um texto de Malba Tahan, em que e.scolarização que conduzi~e eficazmente às práticas de lei-
um príncipe condena um criado à morte, por ter quebrado tura literária que ocorrem ~ contexto social e às atitudes e
um vaso precioso, pergunta-se: O que você acha sobre con- valores próprios do ideal de leitor que se quer formar; inade-
denar um ser humano à morte por causa de um bem mate- quada é aquela escolarização que deturpa, falsifica, distorce
rial? No Livro do Professor, a resposta indicada como correta a literatura, afastando, e não aproximando, o aluno das prá-
é: Acho um absurdo. Ou seja: o que o aluno deve "achar" já ticas de leitura literária, desenvolvendo nele resistência ou
está pré-estabelecido ... aversão ao livro e ao ler.
48 I A escolarização da leitura literária - o jogo do livro infantil e juvenil

De tudo isso conclui-se que a questão fundamental das


relações entre literatura infantil e escola é que é necessário
saber (ou descobrirê) como realizar, de maneira adequada, a
inevitável escolarização da literatura.

NOTAS

I Jornal O Tempo, Belo Horizonte, 24 de agosto de 1997, Suplemento Engenho e Arte.


z Idem.

, Um aspecto interessante que poderia ser desenvolvido


sob esta perspectiva é a
produção de uma literatura, destinada assumidarnente
a crianças e jovens, com
conteúdos escolares - como fez Lobato em Emilia no país da gramática, Ernilia no
país da aritmética, Viagem ao céu, etc. - produção que se vem intensificando
atualmente, sobretudo através dos chamados "paradidáticos" - um tema que está
merecendo estudo.
, Mesmo quando a biblioteca é "de classe", há sempre um lugar na sala de aula,
ainda que, ;15 vezes, apenas uma caixa, de guarda do livro e de acesso ao livro.
S Há, é óbvio, livros que escapam ;15 inadequaçóes apontadas nesta exposição,
lTIaSconstituem a minoria dos manuais destinados ~lS quatro primeiras séries do
primeiro grau.
(, É bastante complexa a questão, aqui apenas mencionada, da macroestrutura da
narrativa, e é muito rica 'l bibliografia a respeito; USalTIOS apenas, de forma bastante
simplificada, os conceitos necessários ;1 argumentação desenvolvida para os fins
desta exposição.
, Este exemplo remete" importante questão, não discutida neste texto, por fugir a seus
objetivos, das ilustrações nos livros didáticos em suas relações com os textos e a leitura.

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