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A ESCOLARIZAÇÃO DA
LITERATURA INFANTIL E JUVENIL
Magda Soares
escola, para a clientela escolar, poderia discutir a literatiza- revolução do espaço de ensino: locais dispersos mantidos por
ção do escolar. 3 professores isolados e independentes foram substituídos por
Mas a opção aqui é analisar o tema escolarização da lite- um prédio único abrigando várias salas de aula; como conse-
ratura infantil sob a outra perspectiva apontada, isto é, to- qüência e exigência dessa invenção de um espaço de ensino,
mando as relações entre literatura infantil e escolarização como uma outra "invenção" surge, um tempo de ensino: reunidos
sendo a apropriação, pela escola, para atender a seus fins os alunos num mesmo espaço, a idéia de sistematizar o seu
específicos, de uma literatura destinada à criança, ou que in- tempo se impunha, idéia que se materializou numa organiza-
teressa à criança. ção e planejamento das atividades, numa divisão e gradação
No quadro dessa opção, comecemos por discutir o ter- do conhecimento, numa definição de modos de ensinar cole-
mo escolarização. tivamente. É assim que surgem os graus escolares, as séries,
as classes, os currículos, as matérias e disciplinas, os progra-
mas, as metodologias, os manuais e os textos - enfim, aqui-
Escolarização lo que constitui até hoje a essência da escola.
Assim, a escola é uma instituição em que o fluxo das tare-
fas e das ações é ordenado através de procedimentos forma-
o termo escolarização é, em geral, tomado em sentido lizados de ensino e de organização dos alunos em categorias
pejorativo, depreciativo, quando utilizado em relação a co-
Cidade, grau, série, tipo de problema, etc.), categorias que
nhecimentos, saberes, produções culturais; não há conota-
determinam um tratamento escolar específico (horários, na-
ção pejorativa em "escolarização da criança", em "criança
tureza e volume de trabalho, lugares de trabalho, saberes a
escolarizada", ao contrário, há uma conotação positiva; mas
aprender, competências a adquirir, modos de ensinar e de
há conotação pejorativa em "escolarização do conhecimen-
aprender, processos de avaliação e de seleção, etc.). É a esse
to", ou "da arte", ou "da literatura", como há conotação
inevitável processo - ordenação de tarefas e ações, procedi-
pejorativa nas expressões adjetivadas "conhecimento esco- mentos formalizados de ensino, tratamento peculiar dos sa-
larizado", "arte escolarizada", "literatura escolarizada". No beres pela seleção, e conseqüente exclusão, de conteúdos,
entanto, em tese, não é correta ou justa a atribuição dessa pela ordenação e seqüenciação desses conteúdos, pelo modo
conotação pejorativa aos termos "escolarização" e "escolari- de ensinar e de fazer aprender esses conteúdos - é a esse
zado", nessas expressões. processo que se chama escolarizaçâo, processo inevitável,
Não há como ter escola sem ter escolarização de conhe- porque é da essência me~ma da escola, é o processo que a
cimentos, saberes, artes: o surgimento da escola está indis- institui e que a constitui.
sociavelmente ligado à constituição de "saberes escolares", Portanto, não há como evitar que a literatura, qualquer
que se corporificam e se formalizam em currículos, matérias e literatura, não só a literatura infantil e juvenil, ao se tornar
disciplinas, programas, metodologias, tudo isso exigido pela "saber escolar", se escolarize, e não se pode atribuir, em tese,
invenção, responsável pela criação da escola, de um espaço como dito anteriormente, conotação pejorativa a essa escola-
de ensino e de um tempo de aprendizagem. rização, inevitável e necessária; não se pode criticá-Ia, ou negá-
A diferença fundamental entre o aprendizado corporati- Ia, porque isso significaria negar a própria escola.
vo medieval e o aprendizado escolar que se difundiu no Disse em tese porque, na prática, na realidade escolar essa
mundo ocidental, a partir sobretudo do século XVI, foi uma escolarização acaba por adquirir, sim, sentido negativo, pela
221 A~_'""-m.,w_".""._.;.~,.,~ '"M'" 0;_"" PRIMEIRA PARTE. A escolarização da leitura literária I 23
maneira como ela se tem realizado, no quotidiano da escola. leitura e o estudo de textos, em geral componente básico de
Ou seja: o que se pode criticar, o que se deve negar não é a aulas de Português. Esta última instância é que será aqui pri-
escolarização da literatura, mas a inadequada, a errônea, a im- vilegiada, mas, para contextualizá-Ia, é importante desenvol-
própria escolarização da literatura, que se traduz em sua detur- ver algumas considerações sobre as outras duas.
pação, falsificação, distorção, como resultado de uma
pedagogização ou uma didatização mal compreendidas que, ao
A biblioteca como instância de escolarizaçâo da literatura
transformar o literário em escolar, desfigura-o, desvirtua-o, fal-
seia-o. (É preciso lembrar que essa escolarização inadequada
pode ocorrer não só com a literatura, mas também com outros Na biblioteca, escolariza-se a literatura infantil (aliás, a
conhecimentos, quando transformados em saberes escolares.) literatura em geral) através de diferentes estratégias.
Esta exposição poderia, assim, discutir a inevitável e neces- A primeira estratégia é o próprio estabelecimento de um
sária escolarização da literatura infantil e juvenil, e como fazê- local escolar de guarda da e de acesso à Iíteratura", um local
Ia de forma adequada; na verdade, toda a bibliografia prescritiua escolar a que se atribui um estatuto simbólico que constrói
sobre a literatura na escola é uma bibliografia sobre como pro- uma certa relação escolar com o livro, fundadora da relação
mover uma escolarização adequada da literatura: como se deve posterior do aluno com a instituição social não escolar "biblio-
ensinar literatura, como se deve trabalhar o texto literário, como teca" (biblioteca pública, ou biblioteca de instituição não es-
se deve incentivar e orientar a leitura de livros. colar, ou mesmo biblioteca particular).
Mas não é essa a discussão que se pretende desenvolver Uma segunda estratégia é a organização do espaço e do
aqui; o que se pretende é discutir como a literatura infantil tem tempo de acesso aos livros e de leitura - onde se pode ou se
sido inadequadamente escolarizada, erroneamente escolariza- deve ler (na própria biblioteca escolar? em que lugar da bi-
da; discutindo isso, implicitamente se estará apontando como blioteca?), quando e durante quanto tempo se pode ler (du-
ela poderia ser adequadamente escolarizada. Sendo assim, o rante a "aula de biblioteca"? quando se pode ir à biblioteca
tema desta exposição deveria, talvez, ganhar um adjetivo, e buscar um livro? quanto tempo se pode ficar com o livro?).
tornar-se: A inadequada escolarização da literatura infantil. Uma outra estratégia é a seleção dos livros - quais livros
Antes, porém, de desenvolver assim o tema, é necessá- a biblioteca oferece à leitura, que livros exclui ou "esconde",
rio lembrar as principais instâncias de escolarização da li- que livros expõe mais abertamente.
teratura infantil e, assim, contextualizar aquela que será Há ainda as estratégias de socialização da leitura: quem indi-
aqui privilegiada. ca ou orienta a escoIl~ do livro a ler - a professora? a bibliote-
cária? que critérios definem a orientação seletiva de leitura para
uma série ou outra, para meninos ou para meninas? a orienta-
Instâncias de escolarização da literatura infantil ção seletiva de tipos e gêneros de leitura, de autores?
Também a determinação de rituais de leitura constitui es-
São três as principais instâncias de escolarização da lite- tratégia de escolarização da literatura no âmbito da bibliote-
ratura em geral, e particularmente da literatura infantil: a biblio- ca - desde as fichas que é preciso preencher e respeitar, até
teca escolar; a leitura e estudo de livros de literatura, em geral como se deve ler (em silêncio, sem escrever no livro, passan-
determinada e orientada por professores de Português; a do as páginas de certa maneira, não dobrando o livro, etc.) e
24 I A escoJarização da leitura literária- o jogo do livro infantil e juvenil PRIMEIRA PARTE - A escolarização da leitura literária 125
em que posição se deve ler (sentado adequadamente, segu- sempre e inevitavelmente escolarizada, quando dela se apro-
rando o livro de certa maneira, etc.) pria a escola; o que se pode é distinguir entre uma escolarí-
zação adequada da literatura - aquela que conduza mais
eficazmente às práticas de leitura que ocorrem no contexto
A leitura de livros como instância de
social e às atitudes e valores que correspondem ao ideal de
escolarização da literatura
leitor que se quer formar - e uma escolarização inadequa-
da, errônea, prejudicial da literatura - aquela que antes afasta
A leitura e estudo de livros de literatura - a segunda que aproxima de práticas sociais de leitura, aquela que de-
instância mencionada - escolariza a literatura também por senvolve resistência ou aversão leitura.
á
do texto de seu suporte literário para um suporte didático, a lEIAo TEXTO ESUBLlNHE TODOS OS
ORTOGRAFIA
SUBSTANTIVOS COMUNS:
página do livro didático; e, finalmente, e talvez o mais impor- Sílabas terminadas em s
tante, a questão das intenções e dos objetivos da leitura e QUE BORBOLETA! LEIA OS VERSOS E SUBLINHE TODAS AS PALA·
ocorre na seleção de textos narrativos: Ruth Rocha, Ana Ma- a inclusão de textos do próprio autor do livro didático; veja-se,
ria Machado, Pedro Bandeira, Ziraldo são autores que apare- por exemplo, a escolarização - inadequada - da poesia, pela
cem repetidamente; os livros Marcelo, marmelo, martelo, O apresentação à criança do seguinte poema:
menino rnaluquinbo, Afada que tinha idéias têm lugar cati-
vo nos livros didáticos. São, inegavelmente, bons poemas,
Pare! Atenção!
boas narrativas, excelentes poetas e excelentes escritores;
entretanto, oferece-se à criança uma gama restrita de auto- o ]oãozinho é distraído.
res e obras, quando a literatura infantil brasileira, em prosa Em nada presta atenção.
e em verso, é bastante rica e diversificada. O resultado será Mas Totó, o seu amigo,
é um excelente cão.
ou tem sido aquele mesmo que ocorreu com gerações ante-
riores, já que parece ser antiga esta característica da escola- Lá vêm os dois na calçada.
rização da literatura: quem, entre aqueles que freqüentaram E agora, olhem só!
Na hora de atravessar,
a escola nos anos 50 e 60, não se lembra de Visita à casa
vejam o que faz Totó:
paterna, de Luís Guimarães]r., de As pombas, de Raimundo
Correia, de Ouvir estrelas, de Olavo Bílac, de Um apólogo, Morde a calça do menino'
de Machado de Assis? "Ficou louco este meu cão?'
Não, )oãozinho! O amarelo
Uma seleção limitada de autores e obras resulta em uma mostra: Pare! Atenção!
escolarização inadequada, sobretudo porque se forma o con-
ceito de que literatura são certos autores e certos textos, a tal
ponto que se pode vir a considerar como uma deficiência da A finalidade "instrutiva" do poema, a estrutura elemen-
escolarização o desconhecimento, pela criança, daqueles au- tar e a precariedade dos aspectos rítmicos e das rimas certa-
tores e obras que a escola privilegia ... quando talvez o que mente distorcem o conceito de poesia e a caracterização de
se devesse pretender seria não o conhecimento de certos poema - é sem dúvida uma inadequada escolarização da
autores e obras, mas a compreensão do literário e o gosto literatura (?) infantil.
pela leitura literária (voltando às gerações que freqüentaram Ainda um último aspecto que convém mencionar, no que
a escola nos anos 50 e 60: é considerado "falta de cultura" o se refere à seleção de autores e obras, é a muito freqüente
desconhecimento, por aqueles pertencentes a essas gerações, ausência, nos livros didáticos, de referência bibliográfica e
de "Ora direis, ouvir estrelas ... certo perdeste o senso ... " ou de informações sobre o autor do texto: o texto torna-se inde-
de "Vai-se a primeira pomba despertada ... ", mas não se con- pendente da obra a que pertence, desapropria-se o autor de
sidera "falta de cultura" a insensibilidade para o literário e o seu texto - mais uma forma de escolarização inadequada da
"desgosto" pela leitura literária). literatura; uma escolat,zação adequada desenvolveria no alu-
Um outro aspecto que revela a inadequada escolarização da no o conceito de autoria, de obra, de fragmento de obra.
literatura infantil é que, excetuados os autores e obras recorren-
temente utilizados, porque amplamente conhecidos, como dito A seleção do fragmento que constituirá o texto
acima, verifica-se a ausência de critérios apropriados para a se-
leção de autores e textos; na verdade, ou se lança mão de obras
e autores muito conhecidos, ou de autores pouco representati- Em livros didáticos encontram-se, em geral, como textos
vos e obras de pouca qualidade. É muito comum, por exemplo, para leitura, fragmentos de textos maiores, já que é preciso
3D1 A escolarização da leitura literária - o jogo do livro infantil e juvenil
PRIMEIRA PARTE- A escolarização da leitura literária 131
que as atividades de desenvolvimento de habilidades de lei- Nem se trata de exploração de nonsense, ou de jogo lúdico com
tura tenham por objeto textos curtos, para que possam ser as palavras; na verdade, o objetivo foi apenas juntar palavras
analisados e estudados em profundidade no tempo limitado em que aparecem as letras j e g representando o mesmo fone-
imposto pelos currículos e horários escolares - esta é mais ma - para não restar dúvida, as sílabas que o "texto" perseguiu
uma das características (exigências") da inevitável escolariza- são destacadas ao fim dele. Apresenta-se esse "ajuntamento" de
ção da literatura. Entretanto, ao selecionar o fragmento de palavras ao aluno como se fosse um texto narrativo, levando-o
um texto, este tem de constituir-se, ele também, como texto, a formar um conceito falso de texto, de leitura - um claro exem-
plo de escolarização inadequada da literatura.
isto é: uma unidade de linguagem, tanto do ponto de vista
semântico - uma unidade percebida pelo leitor como um Por outro lado, quando se lança mão de um fragmento de
todo significativo e coerente - quanto do ponto de vista for- texto da literatura infantil, muito frequentemente não se cui-
mal - uma unidade em que haja integração dos elementos, da de que o fragmento apresente, também ele, textualidade,
que seja percebida como um todo coeso. isto é, que apresente as características que fazem com que
uma seqüência de frases constitua, realmente, um texto. A
Para escapar à dificuldade desta tarefa, muitas vezes são
freqüência com que isso ocorre nos livros didáticos tem rela-
forjados "textos", na verdade, pseudotextos. o próprio autor
ções com a predominância, neles, da narrativa. Esta tem uma
do livro didático produz o "texto", e em geral o faz não pro-
estrutura textual (uma rnacroestrutura") que se organiza em
priamente com o objetivo de desenvolver atividades de leitu-
ciclos seqüenciais: começa com uma exposição, em que o acon-
ra, mas de ensinar sobre a língua - ensino de gramática, de
tecimento que será narrado é "emoldurado", com a apresen-
ortografia; eis um exemplo:
tação da situação inicial (tempo e lugar, personagens, etc.),
prossegue trazendo um desequilíbrio que vem perturbar a
A jibóia e a girafa situação inicial, isto é, uma complicação; evolui para um clí-
Uma jibóia gigante estava de boca Pajé jeitoso sentado na sarjeta max, em que o desequilíbrio chega a seu ponto máximo; fi-
aberta, pronta para engolir a gira- comendo jerimum. Megera rabu- nalmente caminha para o restabelecimento do equilíbrio, pela
fa, quando esta, sabendo que a co- genta com cara ele gengibre e resolução da complicação. Torna-se, assim, difícil retirar, de
bra tinha medo de injeção, disse: com gosto ele jejum. Tem pintas
uma narrativa, um fragmento que conserve, em si, todos os
- Se me comer, vai ficar com de ferrugem e apanha tangerina
indigestão. Vem o guarda da flo- na laranjeira ela Oscarlina. Vi an- ciclos de uma narrativa; a conseqüência dessa dificuldade é
resta e lhe enfia na boca uma ti- jinho guiar jipe e um outro imitar que os fragmentos de narrativas apresentados nos livros di-
gela de jiló. E, ainda, lhe aplica gorjeio elo sabiá do rodeio. Gira- dáticos são quase sempre pseudotextos, em que um ou al-
uma injeção. fa que não corre, fica, e comê-Ia
A jibóia se encolheu toda. Daí, será canjica.
guns ciclos da seqüência narrativa são apresentados, faltando
começou a cantar trovas: A girafa fugiu. aqueles que os precedem ou os seguem. Alguns exemplos
comprovarão essa aifmação.
I je ji • ge gi I Há "textos" que a)resentam apenas o ciclo inicial da se-
qüência narrativa, a exposição, e interrompem aí a narrativa,
que, portanto, não se realiza, deixando o leitor na expectati-
Desnecessário comentar a falta de coerência deste pretenso
va: o que acontecerá neste lugar? com estes personagens?
"texto": uma jibóia, por gigante que seja, jamais poderia engo-
lir uma girafa... jibóia com medo de injeção?!e por que a tigela Assim, em um livro didático, propõe-se à criança, como
de jiló? e onde estão as "trovas" que a jibóia se pôs a cantar? e texto de leitura, fragmento do livro Menina bonita do laço de
a absoluta falta de sentido das trovas que não são trovas ... fita, de Ana Maria Machado; eis o fragmento:
321 A escolarização da leitur~ literária - o jogo do livro infantil e juvenil PRIMEIRA PARTE - A escolarização da leitura literária 133
aconteceu? e, não obtendo respostas a essas perguntas, irá
Menina bonita do laço de fita
construindo um conceito inadequado de texto, de narrativa,
Era uma vez urna menina linda, lin- fazer trancinhas no cabelo dela e en- de leitura literária. Uma segunda conseqüência, estreitamente
da, linda. feitar com laço de fita colorida. Ela ligada à primeira, é que se desfigura o sentido da obra dos
Os olhos dela pareciam duas azeito- ficava parecendo uma princesa das
nas pretas, daquelas bem brilhantes. Terras da África, ou uma fada do rei-
autores: no caso do livro de Ana Maria Machado, os parágra-
Os cabelos eram enroladinhos e bem no do luar. fos iniciais só ganham significado em função da história que se
negros, feito fiapos de noite. A pele desenvolve entre a menina negra e o coelho branco, e que tem
era escura e lustrosa, que nem o MACHADO, Ana Maria. Menina
por tema as diferenças de cor; no caso do conto de Érico Verís-
pêlo da pantera negra quando pula honita do laço defita. São Paulo:
na chuva. Melhoramentos, 1986, p.4-5.
simo, a cumplicidade que os parágrafos iniciais buscam criar
Ainda por cima, a mãe gostava de entre o autor-mágico e o leitor-criança só se explica no desen-
volvimento da narrativa. Acrescente-se que os livros didáticos
Em um outro livro didático, o "texto" apresentado à crian- nem mesmo lançam mão de estratégias para compensar a frag-
ça é o seguinte fragmento da história "Rosa Maria no castelo mentação que impõem à história, como por exemplo: levar a
encantado", do livro Gente e bichos, de Érico Veríssimo: criança a imaginar o que acontecerá em seguida, anunciar e
apresentar a continuidade da história nos textos seguintes ...
um problema é criado pelo personagem. E depois? Como se a falta de sentido das coisas que na escola são dadas a ler ... E
resolverá o problema? O fragmento não é um texto, pois pode sentir-se autorizada a escrever assim, ela também.
não é um todo significativo e coerente, nem é uma narrati- Veja-se este outro exemplo, de um outro livro didático:
va, pois apenas apresenta a situação e o fato que desenca-
deará os acontecimentos.
o sapo Batista
Mas há, nos livros didáticos, formas mais desastrosas de
fragmentação de narrativas. Nos exemplos anteriores, porque No dia seguinte, de manhã, os Quando chegaram ao pé da ro-
se tomam os parágrafos iniciais de uma história, pelo menos bichos acordaram escutando uma cha, uma surpresa. Olha só quem
música que vinha de longe. Curi- estava lá! O sapo vozeirão.
contextualiza-se a ação e apresentam-se os personagens; nos
osos, os sapos foram devagar Linho Quando Batista viu que estava
exemplos apresentados a seguir, toma-se um fragmento do meio
para ver o que estava acontecen- sendo observado ficou todo ver-
da história: falta a exposição, e apenas se anuncia a complica- do. Eles queriam saber de quem melho e encabulado.
ção. A mesma Ruth Rocha é de novo penalizada em outro livro era aquela voz tão bonita. KAI.II., Vanessa. O sapo Batista.
didático, em que se propõe à criança, como um "texto", o se-
guinte fragmento do livro Procurando firme: No dia seguinte ... seguinte a qual dia? os bichos... que
bichos? quem estava lá era o sapo uozeirào ... que sapo é este?
e por que era chamado vozeirãcl. E depois, o que aconteceu?
Procurando firme
O que fizeram os bichos? o que fez o vermelho e encabulado
Mas a princesa estava desaponta- quiseram consertar as coisas, disfar- sapo Batista?
da! Aquele não era o príncipe que çar o nariz (alto ela princesa, é que
ela estava esperando: Até que ele eles estavam achando o príncipe Mais um exemplo. O fragmento abaixo, apresentado à
não era feio, tinha umas roupas bem bem jeitoso. Afinal ele era o prín- criança como um "texto" de leitura, começa por mencionar o
bonitas, sinal que devia ser meio ri- cipe da Petrolândia, um lugar que personagem O júnior, que não se sabe quem é. Será um me-
quinho, 111as era meio grosso, tinha tinha um óleo fedorento e que todo
um jeitão de quem achava que esta- mundo achava que um dia ia valer
nino? Só por inferência, ao longo da leitura, poderá o aluno
va abafando, muito convencido! muito dinheiro. descobrir quem é o Júnior:
A princesa torceu o nariz.
O pai e a mãe da princesa fi- ROCHA, Ruth. Procurando firme,
caram muito espantados, ainda I~: Nova Fronteira, 1984, p.17. Por que não?
frase, acrescenta-lhe informação e, muitas vezes, humor. deu essa bota ao rato? por que, então, duas botas, uma para
A despeito disso, um livro didático toma frases do livro cada um? e o gato não sumiu na bota? como, então, lá está
A bota do bode, que nele estão apresentadas em cinco pági- ele, bem visível dentro da bota?"
nas, cada uma com ilustração indispensável à construção da Ainda uma outra forma, esta talvez mais grave, de distorção
textualidade, e faz delas o seguinte texto: do texto, no processo de sua transferência do livro de literatu-
ra infantil para o livro didático, é a alteração do gênero do
texto: poemas se transformam em textos em prosa, textos lite-
A bota do bode
rários são interpretados como textos informativos, textos jor-
o bode viu uma bota. nalísticos como textos literários ... Talvez o exemplo mais
O bode colocou a bota numa pata.
desconcertante disso seja a transfiguração do poema "A cháca-
E ficou muito gozado!
Uma bota numa pata e três patas ra do Chico Bolacha", de Cecília Meireles, no livro Ou isto ou
sem botas! aquilo, em uma história em quadrinhos! Recorde-se o poema:
O bode deu a bota para o rato.
E o rato sumiu na bota.
Observe-se que, também aqui, verifica-se aquela caracte- Na chácara do Chico Bolacha
o que se procura
rística de escolarização inadequada já apontada: apresenta- nunca se acha!
se apenas o início da história, interrompida quando mal se
anuncia o ciclo da complicação. Mas o que se deseja aqui Quando chove muito,
o Chico brinca de barco,
destacar é a incoerência e inconsistência do texto, se lido porque a chácara vira charco.
assim desligado das ilustrações. Só a representação visual
das situações, tal como feita no livro A bota do bode, dá sen- Quando não chove nada,
Chico trabalha com a enxada
tido às frases e acrescenta ao texto o tom humorístico que ele e logo se machuca
tem. Tanto assim que, na indicação da dupla autoria do livro e fica de mão inchada.
(e de toda a Coleção Gato e Rato), não há distinção entre
Por isso, com o Chico Bolacha,
autor do texto e autor da ilustração; aliás, em livros de litera- o que se procura
tura infantil, freqüentemente o ilustrador é tão autor quanto nunca se acha.
o escritor, dada a complementaridade entre texto e ilustra-
Dizem que a cl~ara do Chico
ção. É bem verdade que, no livro didático, o texto vem tam- só tem mesmo chuchu
bém acompanhado por ilustração, mas a relação entre texto e e um cachorrrinho coxo
que se chama Caxambu.
ilustração, tão absoluta no livro, aqui ames distorce que com-
plementa o texto: é o desenho de um bode com uma bota Outras coisas, ninguém procure,
numa pata, tendo ao lado uma outra bota com um rato den- porque não acha.
Coitado do Chico Bolacha!
tro: mas o texto não se refere a uma bota só? e o bode não
421 A escolarização da leitura literária - o jogo do livro infantil e juvenil ,mM"~'Am_A~~~_m,_,;~;.143
A sonoridade, o ritmo, a musicalidade, a disposição gráfi- Mas há ainda, em livros didáticos, uma outra forma de
ca próprios do texto poético são inteiramente perdidos quan- distorção do literário, que se revela na maneira como textos
do o poema se transforma, num livro didático, no seguinte retirados da literatura infantil são estudados, interpretados
texto dialogado e quadrinizado. - é o que se discute no item seguinte.
ponto-de-vista (no caso da narrativa), a interpretação de ana- fragmentação do texto, já comentada, poderia, por exemplo,
logias, comparações, metáforas, identificação de recursos es- ser de certa forma superada se as perguntas levassem o alu-
tilísticos, poéticos, enfim, o "estudo" daquilo que é textual e no a fazer inferências, como por exemplo: Em que parte do
daquilo que é literário. texto se descobre com quem Júnior está conversando? Como
Não é o que fazem, em geral, os livros didáticos. Quase é que se descobre que Júnior é um pombo? ou a estabelecer
sempre, os exercícios propostos aos alunos ou são exercícios relações entre idéias, como: Por que Júnior teve de aprender
de compreensão, entendida como mera localização de infor- a ser pombo-correio? ete.
mações no texto, ou são exercícios de meta linguagem (gra- Um outro exemplo, lançando mão de novo de texto já
mática, ortografia), ou são exercícios moralízantes.Relembre-se anteriormente citado, são os exercícios propostos para o tex-
o texto já citado anteriormente, Por que não? e vejam-se as to "A bota do bode"; comece-se por observar como se anunci-
perguntas propostas sobre ele: am os exercícios: "Vamos entender melhor a poesia?" Além
da inadequação do uso de poesia por poema, verifica-se que
Entendendo o texto
a prosa de Mary e Eliardo França foi aqui transformada em
poesia. Na reprodução abaixo, os desenhos que aparecem no
1. Responda: livro estão representados simbolicamente.
a) Qual é o título da história'
b) Qual é o nome da autora'
c) Quem é o personagem principal! vamos entender melhor a poesia?
2. Copie as frases, substituindo a 91 pela palavra correta: 1. Copie as frases, trocando os desenhos por palavras:
do texto, o que torna ainda mais maquinal a resposta do alu- I tr tr I Desenho de uma bota, no original.
no). No entanto, haveria outras possibilidades: a inadequada I~I Desenho da cabeça de um rato, no original.
461 A escolarização da leitura literária - o jogo do livro infantil e juvenil PRIMEIRA PARTE - A escolarização da leitura literária /47
Também aqui, exercícios de cópia de frases do texto: no Tudo que se disse pretende comprovar a afirmação feita
exercício 1, apenas a tradução em palavras de desenhos; no inicialmente de que, das três instâncias de escolarização da
exercício 2, ordenação de "fatos", que, ordenados, não se literatura infantil na escola, a mais freqüente, a mais regular,
organizam com coerência nem coesão; no exercício 3, mera e também a mais inadequada, é a leitura e estudo de frag-
identificação de frases no texto. Cabe uma observação sobre mentos de textos da literatura infantil. Inadequada porque
o "exercício" 4 que, parece, tenta solucionar a já comentada há uma seleção limitada de tipos e gêneros, porque há uma
fragmentação do "texto" (na verdade, pseudotexto): exercício escolha pouco criteriosa de autores e obras, e, sobretudo,
inócuo, se a escola ou a professora ou algum aluno não tive- porque os textos são quase sempre pseudotextos, isto é, frag-
rem o livro - aguça-se a curiosidade do aluno e, conseqüen- mentos sem textual idade, sem coerência; e ainda porque as
temente, aumenta-se sua frustração. atividades que se desenvolvem sobre os textos não se voltam
Uma análise, ainda que superficial, dos exercícios pro- nem para a textualidade nem para a literariedade do texto.
postos para textos da literatura infantil, em livros didáticos Não será excessivo afirmar que a obra literária é desvirtuada,
das séries iniciais, revela que são recorrentes os seguintes quando transposta para o manual didático, que o texto literá-
tipos de exercícios: copiar o título do texto, o nome do autor, rio é transformado, na escola, em texto informativo, em texto
o nome do livro de onde foi tirado o texto; copiar a fala de formativo, em pretexto para exercícios de metalinguagem.
determinado personagem do texto; escrever quem falou de-
terminada frase; escrever o nome dos personagens; copiar as
Conclusão
frases que estão de acordo com o texto; copiar frases na or-
dem dos acontecimentos apresentados no texto; completar
Retomemos os pressupostos e conceitos que orientaram
frases do texto. Exercícios, como se disse, de mera localiza-
essa exposição.
ção de informações no texto, adequados, por exemplo, para
a leitura de verbete de enciclopédia, ou de determinados ti- Consideramos como escolarização da literatura infantil a
pos de texto informativo, não para a leitura de texto literário. apropriação dessa literatura pela escola, para atender a seus
fins formadores e educativos.
Há ainda, com freqüência, exercícios de opinião sobre o
texto, vagos - O que achou? Gostou do texto? - e exercícios Defendemos que essa escolarização é inevitável, porque
que pretendem buscar no texto um ensinamento moral - o é da essência da escola a instituição de saberes escolares,
que o texto nos ensina? Nestes casos, é sempre interessante que se constituem pela didatização ou pedagogização de co-
observar a resposta que, no Livro do Professor, sugere-se nhecimentos e práticas culturais.
como resposta "correta": freqüeritemente, informa-se ao pro- Distinguimos entre uma escolarização adequada e uma
fessor o que o aluno deve achar. .. deve aprender do tex- escolarização inadequada da literatura: adequada seria aquela
to ... Por exemplo, após um texto de Malba Tahan, em que e.scolarização que conduzi~e eficazmente às práticas de lei-
um príncipe condena um criado à morte, por ter quebrado tura literária que ocorrem ~ contexto social e às atitudes e
um vaso precioso, pergunta-se: O que você acha sobre con- valores próprios do ideal de leitor que se quer formar; inade-
denar um ser humano à morte por causa de um bem mate- quada é aquela escolarização que deturpa, falsifica, distorce
rial? No Livro do Professor, a resposta indicada como correta a literatura, afastando, e não aproximando, o aluno das prá-
é: Acho um absurdo. Ou seja: o que o aluno deve "achar" já ticas de leitura literária, desenvolvendo nele resistência ou
está pré-estabelecido ... aversão ao livro e ao ler.
48 I A escolarização da leitura literária - o jogo do livro infantil e juvenil
NOTAS