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com-telma-weisz-sobre-alfabetizacao-inicial
Prática pedagógica
Telma Weisz Na verdade, isso tem a ver com a própria concepção de ensino.
Antigamente, todos tinham a ideia de que ensinar era transmitir informações.
Nos últimos 30 anos, quando começamos a descobrir que ensinar é criar
condições e situações para a aprendizagem e quando os professores ouviram
falar, sem aprofundamento, que as crianças constroem seu conhecimento,
muitos acharam que bastava o contato com as letras e o material escrito para
que o conhecimento aparecesse naturalmente, por geração espontânea.
Não sei se ainda há quem pense assim. Eu espero que não, pois é um
equívoco. O papel do professor é ser aquele que sabe mais dentro da classe
e que valida a informação que circula. Em uma sala, todos estão em atividade
intelectual, todos falam, todos elaboram ideias e constroem conhecimento.
Não ao mesmo tempo - e esse é outro equívoco -, mas todos têm a
oportunidade de expressar o que pensam. A validação deve acontecer,
porque todos os saberes que estão sendo construídos são provisórios,
elaborados por meio de um processo permanente de aproximação com o
conhecimento objetivo.
Telma Por exemplo, se você tem um aluno que está escrevendo uma letra
para cada sílaba e ele pergunta "qual é o MI", você pode dar duas respostas. A
primeira é: "MI é o M e o I". E a segunda: "O que você quer escrever?",
ajudando-o a encontrar uma resposta que caiba na estrutura teórica com a
qual ele está trabalhando. Se o menino já está escrevendo alfabeticamente, a
situação é outra, mas também tem suas características. Certa vez, um outro
me perguntou "Como se escreve lã?". E eu disse "L, A, til". Quando vi, ele
havia escrito "balãsa". Dei uma informação errada, porque não tive o cuidado
de perguntar "para escrever o quê?". Há uma quantidade enorme de
informações que cabe ao professor oferecer, mas é preciso ter condições e
critérios para saber quais estudantes podem aproveitá-las. Isso só se
consegue fazendo avaliação constante da classe.
Quais são os equívocos mais comuns na escolha das intervenções para fazer a
turma avançar nas hipóteses de escrita?
Telma Vejo duas versões sobre isso. Em uma delas, a mais tradicional e
frequente, mostra-se aos silábicos quais letras faltam, imaginando que isso
os ajuda a chegar a uma hipótese mais avançada. Há uma dificuldade
enorme de aceitar e deixar no caderno uma escrita que não esteja
ortograficamente correta. "O que os pais vão pensar?", "o aluno achará que
está certo", "vai fixar o erro". Na verdade, falta compreensão da diferença
entre trabalhar o processo de aprendizagem e trabalhar sobre o produto que
a criança está realizando. Toda a tradição de correção com caneta vermelha e
de cópia dos erros vem daí - existe o não saber, o saber errado e o saber
certo. E é claro que isso corresponde a uma concepção de aprendizagem,
para a qual o ensino, por sua vez, cuida de evitar que se fixem na memória
ideias erradas. Na visão construtivista, com uma abordagem psicogenética da
alfabetização, fica claro que aquela escrita, errada segundo os padrões
convencionais, faz parte de um processo do aluno. E que, naquele momento,
é preciso estimular o máximo possível a reflexão sobre o que se escreve. É
possível e necessário subsidiá-lo para ajudá-lo, o que é muito diferente de dar
informações para obter um produto correto.
Telma Não está clara, para quem pensa dessa forma, a importância do
trabalho com textos memorizados. Em primeiro lugar, não é qualquer texto
que pode ser utilizado. Deve ser um texto estável, não o segundo parágrafo
da história da Bela Adormecida. Existe um vasto repertório infantil,
naturalmente memorizado. São versinhos, parlendas e trava-línguas, usadas
em brincadeiras de roda e jogos verbais, que as crianças já sabem ou podem
aprender oralmente na escola, usados em dois tipos de atividades muito
interessantes. Uma é juntar duas delas (com níveis próximos de
conhecimento, de forma que uma possa contribuir com a outra) para
produzir uma escrita. Por exemplo, "a galinha do vizinho bota ovo
amarelinho". Como as duas sabem de memória, tudo o que têm de
intercambiar é que letras colocar e onde. Se estivessem redigindo um texto
inventado, não teriam um problema comum para resolver. Mas sendo um
texto estável, tomam decisões em função desse conhecimento prévio.
Outro tipo de trabalho é pedir que acompanhem, sabendo o que está escrito
em cada verso, a leitura que alguém faz. Elas sabem que, na primeira linha,
está escrito "a galinha do vizinho" e, na segunda, "bota ovo amarelinho",
porque você informou. O que está por trás disso? O fato de que ninguém
nasce sabendo que se escreve tudo aquilo que se fala, na ordem em que se
fala, sem omitir nada. No início, imagina-se que só se escreve os substantivos.
Se você tem "a galinha do vizinho", pensam que está escrito "galinha" e
"vizinho". Para "bota ovo amarelinho", os mais avançados podem achar que
está escrito "bota", "ovo" e "amarelinho", mas não necessariamente nessa
ordem. É interessante pedir para localizar e ler pedaços, que são as "palavras"
(mas, se você disser "palavras", eles procurarão as letras). Você pode
perguntar onde está escrito "vizinho". Eles acompanharão o texto e
começarão a localizar as partes do escrito e relacioná-las ao falado.
O professor ainda acredita que, ao pedir que a criança acompanhe a leitura com
o dedo, é capaz de fazê-la ler, sem observar se ela faz a relação do escrito com o
falado?
Telma Sobre esse assunto, eu gostaria de fazer um mea culpa público. Certa
vez, em um vídeo, depois de dizer muitas vezes "ler apontando com o
dedinho", eu disse "ler com o dedinho". Muita gente repete isso, mas é uma
bobagem. Ler acompanhando com o dedo serve, por exemplo, para
aproveitar as possibilidades de uma atividade em que se leia um texto
memorizado em público. Para um sarau de poesia, cada um tem um poema,
leva para casa, pede ajuda à família, estuda, decora, aponta e tenta
acompanhar, pois terá de se apresentar publicamente. Essa situação de
focalização e de achar as partes do texto para se apresentar de forma
adequada ajuda a descobrir em quem pedaço está escrito o quê. Agora,
passar o dedo embaixo, em si, não é nada. A leitura da escrita não entra pela
pele. Faz sentido apenas se houver reflexão sobre a grafia das palavras e se
quem está lendo tenta ajustar aquilo que fala ao que está escrito. A forma
adequada de organizar esse tipo de atividade é, por exemplo, todos cantarem
uma canção juntos. De repente, o professor bate palma, pára numa
determinada palavra e anda pela sala para ver se os dedos estão onde
deveriam estar. Se não estiverem, ajuda a entender a posição certa. Se
simplesmente diz "acompanhe com o dedo" e vai embora, não acontece
nada. É preciso construir uma situação de aprendizagem e não ficar alisando
papel. Para isso, é preciso estudar, buscar uma compreensão teórica que vai
muito além de apenas saber identificar uma hipótese de escrita.
Há uma escritora que escreve em espanhol e tem uma série de livros sobre
uma menina com uma amiga igualzinha a ela, mas que é gigante e aparece
sempre que a garota precisa se proteger dos adultos. Só que isso nunca é
dito explicitamente. Se você pergunta "quem é essa amiga grande?", "ela
existe de verdade?", uma discussão louca surge na classe. Porque a
personagem é, na verdade, uma representação do desejo da menina que se
salva das maldades dos adultos. Mas as crianças não têm isso claro, apenas
uma vaga intuição. Também é interessante perguntar "quem estava contando
essa história? A personagem? A mãe dela?". Em geral, respondem que "é a
escritora". E você pode questionar "mas aqui diz ?eu não gosto que me
penteiem os cabelos porque arranca e dói?. A escritora disse isso?" Aparece,
então, a ideia do narrador, que, para as crianças, é completamente misturada
à do escritor.
Mas é preciso ter a inteligência das crianças em alta conta. Quando se espera
mais, elas devolvem mais. Quando se espera pouco, elas devolvem um
pouquinho. O fato de trabalhar no limiar superior faz com que avancem
muito mais do que quando se pensa "elas não vão entender". É claro que
sozinhas elas não entendem. Tudo isso vale para enciclopédias, jornais,
textos de ficção, revistas. Mas é preciso fazer uma aposta alta. Não uma
aposta cega, sem olhar se a turma está acompanhando. E, sim, a mais alta
possível, ajustada àquilo que as crianças mostram que são capazes de pensar
e fazer.
Ainda persiste a ideia de que as crianças só podem ter contato com histórias
curtinhas, nunca lidas em capítulos?
Telma Essa mania de que tudo tem de ser pequenininho é uma deturpação
da concepção de criança e, principalmente, um desrespeito enorme. Porque
ela senta na frente da TV, vê uma novela em 180 capítulos, lembra de todos
os personagens, quem casou com quem, quem brigou com quem e o que
vestia em tal dia. As crianças não têm problemas de memória, quem tem
problemas de memória somos nós. Elas têm tudo fresquinho na cabeça.
Minha experiência pessoal é a de escolher livros pela grossura, ao contrário
do que alguns fazem. Eu sempre escolho os livros mais grossos porque, se a
história for boa, não quero que ela acabe! Esse lugar do leitor que tem prazer
na leitura é o que o professor teria de encarnar. Para elas, uma história
pequena é pobre e chata. É claro que histórias grandes podem ser pobres e
chatas. Mas elas adoram ouvir uma história grande em capítulos, contados
um por dia e, no fim da leitura: "tchan tchan tchan tchan, agora aguardem o
capitulo de amanhã! Quem que acha que elas não gostam nunca
experimentou. Elas são muito mais inteligentes do que os adultos porque,
nesse momento da vida, tudo está para ser aprendido e a disponibilidade
para a aprendizagem é enorme. Quando perdem isso é porque os adultos
destruíram. O fracasso reiterado mata essa disponibilidade.
Aprende-se a ler e a escrever ao longo da vida toda. Não basta ser alfabético
e ser capaz de ler um outdoor para ser alfabetizado. Quando entendemos
isso, ajudamos os meninos a se aproximar de textos cada vez mais
complexos. Esse trabalho os transforma em leitores cada vez melhores e de
uma gama mais ampla de gêneros. E aprender por meio dos textos é
condição para estudar os outros conteúdos na escola. Para quem não sabe
aprender a partir de um texto escrito, o destino depois da quinta série é o
fracasso.