Você está na página 1de 11

Endereço da página:

https://novaescola.org.br/conteudo/934/entrevista-
com-telma-weisz-sobre-alfabetizacao-inicial

Publicado em NOVA ESCOLA 01 de Março | 2009

Prática pedagógica

Entrevista com Telma


Weisz sobre alfabetização
inicial
Para especialista, o professor alfabetizador precisa
apostar alto na capacidade de seus alunos
Luiza Andrade

Ela é a mais respeitada especialista em


alfabetização do país. Em sua trajetória
profissional, Telma Weisz viveu o conflito de
ter trabalhado durante anos numa perspectiva
mais tradicional, até ter contato com as ideias
da psicogênese da língua escrita. "Aí fiquei
furiosa comigo mesma", revela a educadora.
Desde então, mudou seu olhar sobre os
alunos, percebeu que não se pode subestimar
a capacidade intelectual de nenhuma criança,
aprofundou-se como ninguém no assunto e,
dona de uma generosidade sem igual,
dedicou-se a transformar a prática de milhares
TELMA WEISZ. Foto: Daniel Aratangy
de professores alfabetizadores por meio do
principal curso de formação em Alfabetização
do Brasil, o Profa. Hoje, ela supervisiona a
versão paulista do programa, o Ler e Escrever, da Secretaria Estadual da
Educação. Nesta entrevista a NOVA ESCOLA, Telma abusa de exemplos
cotidianos para mostrar equívocos, muitos deles cometidos no passado por
ela mesma, que ocorrem na árdua tarefa de ensinar a ler e escrever. E, o
mais importante, explica por que eles acontecem, com a autoridade de quem
soube, por meio do conhecimento científico, refletir sobre a própria prática
para melhorá-la.
NOVA ESCOLA: Ainda há professores que não transmitem informações às
crianças por pensar que elas aprendem sozinhas? Qual é a origem dessa
dificuldade?

Telma Weisz Na verdade, isso tem a ver com a própria concepção de ensino.
Antigamente, todos tinham a ideia de que ensinar era transmitir informações.
Nos últimos 30 anos, quando começamos a descobrir que ensinar é criar
condições e situações para a aprendizagem e quando os professores ouviram
falar, sem aprofundamento, que as crianças constroem seu conhecimento,
muitos acharam que bastava o contato com as letras e o material escrito para
que o conhecimento aparecesse naturalmente, por geração espontânea.

Não sei se ainda há quem pense assim. Eu espero que não, pois é um
equívoco. O papel do professor é ser aquele que sabe mais dentro da classe
e que valida a informação que circula. Em uma sala, todos estão em atividade
intelectual, todos falam, todos elaboram ideias e constroem conhecimento.
Não ao mesmo tempo - e esse é outro equívoco -, mas todos têm a
oportunidade de expressar o que pensam. A validação deve acontecer,
porque todos os saberes que estão sendo construídos são provisórios,
elaborados por meio de um processo permanente de aproximação com o
conhecimento objetivo.

A interpretação enviesada do construtivismo também tem a ver, em parte,


com o fato de que a teoria da psicogênese foi popularizada no Brasil por um
conjunto de vídeos de entrevistas com as crianças. O entrevistador, que no
caso era eu, buscava tornar visíveis as hipóteses que elas formulam quando
estão aprendendo a ler e a escrever. Como o objetivo era deixar que os
professores vissem-nas pensando em voz alta, a intervenção era pequena. O
que foi mal compreendido é que aquilo não era uma situação de ensino nem
de pesquisa. Era uma tentativa de ilustrar o que estava no livro [Psicogênese
da Língua Escrita, de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky] e que não era de fácil
compreensão. Esses mal-entendidos fizeram com que muitos tivessem
dúvidas não só sobre informar ou não, mas sobre o que informar. E essa é
uma questão delicada porque não há um guia de coisas permitidas ou
proibidas. Depende das circunstâncias e daquilo que as crianças pensam em
cada momento.

Como essas dúvidas se revelam na prática?

Telma Por exemplo, se você tem um aluno que está escrevendo uma letra
para cada sílaba e ele pergunta "qual é o MI", você pode dar duas respostas. A
primeira é: "MI é o M e o I". E a segunda: "O que você quer escrever?",
ajudando-o a encontrar uma resposta que caiba na estrutura teórica com a
qual ele está trabalhando. Se o menino já está escrevendo alfabeticamente, a
situação é outra, mas também tem suas características. Certa vez, um outro
me perguntou "Como se escreve lã?". E eu disse "L, A, til". Quando vi, ele
havia escrito "balãsa". Dei uma informação errada, porque não tive o cuidado
de perguntar "para escrever o quê?". Há uma quantidade enorme de
informações que cabe ao professor oferecer, mas é preciso ter condições e
critérios para saber quais estudantes podem aproveitá-las. Isso só se
consegue fazendo avaliação constante da classe.

Há muitos anos, em um trabalho de pesquisa, observei uma menina que


estava repetindo a 1ª série havia cinco anos. A professora, naquele dia,
apresentava à classe o alfabeto (para aquela aluna, pela primeira vez). A
garota teve uma crise descontrolada de choro e, quando se acalmou, disse
"eu sempre saio da escola no meio do ano porque não consigo aprender as
letras. Mas eu não sabia que eram tão poucas. Se eu soubesse, não teria
ficado tanto tempo aqui até aprender." É uma informação simples, mas se
não é dita, como ela vai saber? Outro exemplo: uma criança pergunta
"cozinha é com S ou com Z?" O que você faz? Diz a ela "pense para
descobrir?" Não tem como pensar para descobrir. Você tem duas alternativas:
mandá-la ao dicionário, o que, em determinadas circunstâncias, é uma perda
de tempo, ou aproveitar a situação para explicar que é com Z, mas que,
muitas vezes, o mesmo som pode ser com S, ainda que entre vogais. Assim, é
introduzida uma série de informações que nem todos talvez possam utilizar,
dependendo das condições do grupo. Mas, de qualquer maneira, se isso não
vier do professor, de onde virá?

O que acontece quando não nos colocamos na perspectiva do aluno?

Telma "Cegamos" o aluno. É porque somos alfabetizados que ouvimos e


vemos coisas que, para os que ainda não sabem ler e escrever, não estão lá.
Um exemplo simples: muitos professores estão convencidos de que o branco
entre as palavras é uma coisa que se pode escutar. Isso só pode acontecer a
uma pessoa cuja percepção da relação entre escrita e leitura está de tal
maneira organizada em cima da sua própria competência leitora que nem
passa por sua cabeça que a fala é um contínuo e que jamais as crianças vão
encontrar no falado os elementos que permitirão separar as palavras. E é
claro que, dessa perspectiva, ao vê-las escrevendo tudo grudado, imagina-se
que há uma disfunção, um problema. Não há. Trata-se de um momento
necessário do processo. É preciso aprender a escrever assim para depois
pensar na questão das separações.

Colocar-se no lugar do aprendiz é essencial para ensinar. Muitos falam em


"palavras", como se as crianças soubessem o que é isso. Mas só gente
alfabetizada, que já escreve e segmenta o texto, pode saber o que são
palavras. E, às vezes, mesmo quando já fazem isso, recusam a ideia de que os
artigos sejam palavras. Não estou dizendo para não usar a terminologia, mas
é preciso ter claro que o que se está nomeando não é exatamente o que as
crianças pensam que é. Certa vez, perguntei a uma menina o que era
"palavra". Ela respondeu: "É o que está escrito na Bíblia." E eu insisti: "Por
quê?". "Por que a Bíblia é a palavra de Deus". Imaginar que é obvio
escrevermos exatamente como falamos, na mesma ordem, só acontece se
não nos colocamos no lugar de quem está aprendendo. Porque, ao assumir
essa perspectiva, somos obrigados a olhar de outro jeito. Intuitivamente,
ninguém é capaz de fazer isso.

Só com pesquisa cientifica é possível compreender o outro que pensa


diferente de você. A vida inteira, vi meninos escreverem coisas que, para
mim, não eram escrita, não eram nada. Nunca parei para refletir sobre o que
eles estavam pensando. Até o dia em que li sobre a psicogênese. E aí fiquei
furiosa comigo mesma, porque já tinha visto aquilo tudo. Qualquer
alfabetizador já viu crianças escrevendo com uma letra para cada sílaba ou
com menos letras. Na verdade, não dávamos importância. Não olhávamos
para isso como uma ação inteligente delas. Sem a ajuda da ciência, não se
pode recuperar uma visão que já se teve, mas que foi apagada, numa espécie
de esquecimento cognitivo.

Há muitos anos, quando trabalhei com professores indígenas no Acre, estava


explicando a eles as hipóteses sobre a escrita e dizendo que, no inicio, as
crianças pensam que, para escrever um pedaço do que se fala, basta um
pedaço de escrita, que para eles é a letra. Eles me olhavam com estranheza,
pois essa ideia de hipótese era muito estranha à cultura local. Até que um
deles puxou uma folha antiga de sua pasta. Ele se chamava Norberto, havia
feito um desenho e assinado NBT. Era recém-alfabetizado e ainda tinha o
documento de suas próprias hipóteses. Foi uma situação interessante ver um
adulto recuperar esse esquecimento. Nós não nos lembramos de quando
não sabíamos calcular, escrever, ler. Nós não temos a memória viva do que é
ser alguém que tem de aprender, que não sabe nada sobre determinada
coisa. E os professores, como tais, só podem recorrer ao conhecimento
cientifico para recuperar isso. Porque, via bom senso ou afetividade, não se
chega a lugar algum.

Quais são os equívocos mais comuns na escolha das intervenções para fazer a
turma avançar nas hipóteses de escrita?

Telma Vejo duas versões sobre isso. Em uma delas, a mais tradicional e
frequente, mostra-se aos silábicos quais letras faltam, imaginando que isso
os ajuda a chegar a uma hipótese mais avançada. Há uma dificuldade
enorme de aceitar e deixar no caderno uma escrita que não esteja
ortograficamente correta. "O que os pais vão pensar?", "o aluno achará que
está certo", "vai fixar o erro". Na verdade, falta compreensão da diferença
entre trabalhar o processo de aprendizagem e trabalhar sobre o produto que
a criança está realizando. Toda a tradição de correção com caneta vermelha e
de cópia dos erros vem daí - existe o não saber, o saber errado e o saber
certo. E é claro que isso corresponde a uma concepção de aprendizagem,
para a qual o ensino, por sua vez, cuida de evitar que se fixem na memória
ideias erradas. Na visão construtivista, com uma abordagem psicogenética da
alfabetização, fica claro que aquela escrita, errada segundo os padrões
convencionais, faz parte de um processo do aluno. E que, naquele momento,
é preciso estimular o máximo possível a reflexão sobre o que se escreve. É
possível e necessário subsidiá-lo para ajudá-lo, o que é muito diferente de dar
informações para obter um produto correto.

A segunda versão é uma leitura parcialmente equivocada do que chamamos


de conflito cognitivo. Ou seja, o que faz um menino, que está lá, bem
satisfeito da vida, escrevendo uma letra para cada sílaba e conseguindo se
virar assim, abandonar essa hipótese que, do ponto de vista teórico, é tão
elegante? Como é que ele avança? Além da hipótese de que, para cada vez
que abrimos a boca, usamos uma letra, ele tem outras, como a de que não
pode escrever uma mesma letra repetida, escrever com poucas letras e, de
forma alguma, escrever com uma letra só. Mas, para alguns, duas letras
também é muito pouco. A média estatística da exigência é em torno de três
letras. O que acontece com uma língua como o português, com uma
quantidade enorme de palavras dissílabas? Toda vez que a criança escreve
um dissílabo, tem um problema, pois precisa colocar alguma coisa para não
cometer um "sacrilégio". Essa contradição entre os esquemas explicativos que
ela tem para a leitura e a escrita é que dá origem e espaço ao que chamamos
de conflito cognitivo.

A partir dessa explicação, os professores fazem uma assimilação de que é


preciso produzir situações conflitivas o tempo todo. Mas o conflito ou é do
aprendiz ou vira uma conversa sem nexo para ele. Uma das atitudes
equivocadas mais clássicas nessa linha é mandar contar os pedaços de uma
palavra falada. Por exemplo, para "borracha", bater três palmas, uma em
cada sílaba. Então, o professor escreve a palavra, pergunta quantas letras
tem e diz: "Você pensa que abrimos a boca três vezes e que é preciso colocar
três letras, mas eu estou mostrando que não é, e que borracha, no papel,
tem oito letras". Dependendo de em que nível os meninos estejam, isso não
faz o menor sentido. E certamente não fará quando estão colocando três
letras. Pode ser em uma transição, mas aí não é necessário ficar contando
quantas vezes a boca abre ou quantas letras a palavra tem. A própria criança
começa a batalhar para colocar as letras. Ou você pode - e para isso é preciso
conhecê-la intelectualmente - dizer: "Você sabe fazer melhor do que isso.
Pense mais um pouco".

É comum a ideia de que, na leitura de textos memorizados, o importante é


guardar a grafia das palavras. Isso está certo?

Telma Não está clara, para quem pensa dessa forma, a importância do
trabalho com textos memorizados. Em primeiro lugar, não é qualquer texto
que pode ser utilizado. Deve ser um texto estável, não o segundo parágrafo
da história da Bela Adormecida. Existe um vasto repertório infantil,
naturalmente memorizado. São versinhos, parlendas e trava-línguas, usadas
em brincadeiras de roda e jogos verbais, que as crianças já sabem ou podem
aprender oralmente na escola, usados em dois tipos de atividades muito
interessantes. Uma é juntar duas delas (com níveis próximos de
conhecimento, de forma que uma possa contribuir com a outra) para
produzir uma escrita. Por exemplo, "a galinha do vizinho bota ovo
amarelinho". Como as duas sabem de memória, tudo o que têm de
intercambiar é que letras colocar e onde. Se estivessem redigindo um texto
inventado, não teriam um problema comum para resolver. Mas sendo um
texto estável, tomam decisões em função desse conhecimento prévio.

Outro tipo de trabalho é pedir que acompanhem, sabendo o que está escrito
em cada verso, a leitura que alguém faz. Elas sabem que, na primeira linha,
está escrito "a galinha do vizinho" e, na segunda, "bota ovo amarelinho",
porque você informou. O que está por trás disso? O fato de que ninguém
nasce sabendo que se escreve tudo aquilo que se fala, na ordem em que se
fala, sem omitir nada. No início, imagina-se que só se escreve os substantivos.
Se você tem "a galinha do vizinho", pensam que está escrito "galinha" e
"vizinho". Para "bota ovo amarelinho", os mais avançados podem achar que
está escrito "bota", "ovo" e "amarelinho", mas não necessariamente nessa
ordem. É interessante pedir para localizar e ler pedaços, que são as "palavras"
(mas, se você disser "palavras", eles procurarão as letras). Você pode
perguntar onde está escrito "vizinho". Eles acompanharão o texto e
começarão a localizar as partes do escrito e relacioná-las ao falado.

Esse tipo de atividade tem um papel extremamente importante e não


aprendemos isso com a psicolinguística ou com a didática. Mas com a história
da leitura, com investigações sobre como as populações antigas se
alfabetizaram. Descobriu-se que, nos países nórdicos, por exemplo, toda a
população era alfabetizada antes de haver escolas. Protestantes de
orientação calvinista, eles tinham uma prática sistemática de acompanhar
nos textos o que se falava nos cultos. Todos eram incorporados a esse
universo em que a palavra escrita nos textos religiosos era tratada como uma
coisa básica, essencial. As pessoas acompanhavam e decoravam para se
aproximar desse objeto sagrado que era a escrita. Isso também aconteceu
nas escolas religiosas judaicas e ocorre nas escolas religiosas muçulmanas -
mas nessas duas instituições o aprendizado é apenas para os homens. Essa é
a origem do trabalho que fazemos com textos memorizados. Já a
memorização da forma escrita produz um efeito contrário. Sempre que os
professores insistem na memorização da forma, os alunos, no esforço de
lembrar como as palavras são escritas, produzem uma escrita caótica, e não a
que produziriam se estivessem pensando em como se escreve.

O professor ainda acredita que, ao pedir que a criança acompanhe a leitura com
o dedo, é capaz de fazê-la ler, sem observar se ela faz a relação do escrito com o
falado?

Telma Sobre esse assunto, eu gostaria de fazer um mea culpa público. Certa
vez, em um vídeo, depois de dizer muitas vezes "ler apontando com o
dedinho", eu disse "ler com o dedinho". Muita gente repete isso, mas é uma
bobagem. Ler acompanhando com o dedo serve, por exemplo, para
aproveitar as possibilidades de uma atividade em que se leia um texto
memorizado em público. Para um sarau de poesia, cada um tem um poema,
leva para casa, pede ajuda à família, estuda, decora, aponta e tenta
acompanhar, pois terá de se apresentar publicamente. Essa situação de
focalização e de achar as partes do texto para se apresentar de forma
adequada ajuda a descobrir em quem pedaço está escrito o quê. Agora,
passar o dedo embaixo, em si, não é nada. A leitura da escrita não entra pela
pele. Faz sentido apenas se houver reflexão sobre a grafia das palavras e se
quem está lendo tenta ajustar aquilo que fala ao que está escrito. A forma
adequada de organizar esse tipo de atividade é, por exemplo, todos cantarem
uma canção juntos. De repente, o professor bate palma, pára numa
determinada palavra e anda pela sala para ver se os dedos estão onde
deveriam estar. Se não estiverem, ajuda a entender a posição certa. Se
simplesmente diz "acompanhe com o dedo" e vai embora, não acontece
nada. É preciso construir uma situação de aprendizagem e não ficar alisando
papel. Para isso, é preciso estudar, buscar uma compreensão teórica que vai
muito além de apenas saber identificar uma hipótese de escrita.

O que leva o professor a passar questionários em vez de promover comentários


sobre as histórias lidas - como fazemos com amigos, quando lemos um livro?

Telma Ou pedir que façam um desenho, o que é ainda pior... O intercâmbio


de ideias a partir de uma situação de leitura é algo que se faz apenas quando
se tem uma experiência significativa e intensa como leitor. Quando lemos
com ou para as crianças, tentamos constituir bons comportamentos leitores.
Mas, para que você funcione como um modelo desses comportamentos,
também precisa ser um leitor. Essa prática de ler uma história e depois pedir
um desenho não tem nada a ver com a ideia de que o que se lê pode ser
aprofundado, explorado, re-elaborado e compartilhado. Quando se tem a
concepção de que a leitura não é simplesmente fazer barulho com a boca
diante das marcas gráficas, sabe-se que ela produz em mim um impacto
diferente do que em você, e que eu posso ter observado mais um aspecto do
que outro e que podemos nos interessar por coisas diferentes. Esse espaço
de intercâmbio é um espaço de trocas. Eu tenho visto perguntarem "de que
pedaço você gostou mais?", "E você?". Assim, podam o intercâmbio real, que
seria "quem achou uma coisa interessante que gostaria de contar aos
amigos?". Se não souberem como fazer isso, você dá o modelo: "Lendo esse
texto, eu pensei nisso, me lembrei daquilo, achei muito interessante a forma
com que o autor escreveu, parecia que ele queria dizer uma coisa, mas
queria dizer outra". É interessante fazer perguntas sobre aspectos de uma
história que talvez poucos tenham entendido.

Há uma escritora que escreve em espanhol e tem uma série de livros sobre
uma menina com uma amiga igualzinha a ela, mas que é gigante e aparece
sempre que a garota precisa se proteger dos adultos. Só que isso nunca é
dito explicitamente. Se você pergunta "quem é essa amiga grande?", "ela
existe de verdade?", uma discussão louca surge na classe. Porque a
personagem é, na verdade, uma representação do desejo da menina que se
salva das maldades dos adultos. Mas as crianças não têm isso claro, apenas
uma vaga intuição. Também é interessante perguntar "quem estava contando
essa história? A personagem? A mãe dela?". Em geral, respondem que "é a
escritora". E você pode questionar "mas aqui diz ?eu não gosto que me
penteiem os cabelos porque arranca e dói?. A escritora disse isso?" Aparece,
então, a ideia do narrador, que, para as crianças, é completamente misturada
à do escritor.

O professor já compreendeu a importância dos livros na alfabetização. Mas ele


oferece variedade de materiais de leitura?

Telma A variedade dos gêneros ultrapassa a ideia dos livros. Só no jornal e


nas revistas há uma variedade enorme de gêneros. Se o professor não
entende isso, usa esses portadores para recortar letras. Se entende, aprende
como explorar os gêneros que há dentro deles. Os livros infantis, em geral,
não têm uma grande variedade de gêneros. Têm, eu diria, subgêneros. São
todos livros de ficção, mas alguns falam de mistério, outros de assombração
ou de fadas. Mas acho que o problema é anterior: o professor tem de ler para
si mesmo, para selecionar o texto, com critérios, antes de levá-lo para as
crianças.

Eu acompanhei uma classe de alfabetização em que todos estavam


envolvidos com os livros de histórias, menos um menino. Quando se falava
em leitura e escrita, ele saía de perto e ia fazer outra coisa. Aparentemente,
não tinha interesse. Até o dia em que chegou uma enciclopédia de
dinossauros. Nesse dia, o menino ficou absolutamente fascinado, agarrou a
enciclopédia. Ele não tinha alma de ficcionista, ele tinha alma de cientista.
Precisamos reconhecer essas diferenças. Ele não tinha vontade de aprender a
ler para ler sozinho as histórias infantis. Mas ele tinha muita vontade de
aprender a ler para classificar os dinossauros, saber de que época eram e o
que faziam. Aprendeu a ler em dias. É uma mudança de gênero, mas foi
também uma mudança de mundo para o garoto.

Variar os gêneros é importante, mas não é uma ideia mecânica. Quando


introduzimos um gênero novo, é preciso ter um sentido para isso. Para ler
poemas, tenho um foco, se vou ler histórias, tenho outro. O que os diferentes
gêneros permitem é abrir o leque das possibilidades de leitura e oferecer o
discurso escrito em suas diversas formas. Porque, na verdade, quando as
crianças ouvem o adulto ler, não aprendem só o enredo, mas também sua
linguagem, que não é igual a dos outros. A variedade tem de ser selecionada
em função daquilo que a turma pode aprender, das diferenciações que os
alunos já têm condições de fazer e que você se sente em condições de
oferecer.
Por que ainda é pequeno o acesso a materiais que favoreceriam, na produção de
um texto, a busca de informações em diversas fontes?

Telma Há um medo mortal de trabalhar verdadeiramente com jornais


porque se pensa que é um texto adulto. Isso não é verdade. Certa vez, vi uma
professora fazer um trabalho muito interessante. Os meninos tinham de
assistir o noticiário da TV e, no dia seguinte, ela levava o jornal impresso para
a sala, para que encontrassem as informações sobre os fatos do dia anterior.
Ler os títulos, o subtítulo da reportagem, uma parte inicial do texto é algo
muito possível de fazer, especialmente quando se tem sensibilidade para
escolher o quê. Você não vai, por exemplo, propor a leitura de uma
reportagem sobre uma chacina. Mas pode ler sobre quem jogou no domingo,
quem ganhou o campeonato ou a corrida. Quando alguém relata algo que
viu, você pode perguntar se a turma deseja escutar a história contada no
jornal impresso, mais detalhada. Eu sou uma defensora convicta da presença
do jornal na sala de aula porque os fatos são a fonte da história. Nele, lemos
sobre acontecimentos de países distantes. Com um mapa múndi na classe
você aponta, por exemplo, onde ocorreu uma avalanche e aborda questões
como o que é isso, por que acontece. Esse trabalho é fascinante.

Mas é preciso ter a inteligência das crianças em alta conta. Quando se espera
mais, elas devolvem mais. Quando se espera pouco, elas devolvem um
pouquinho. O fato de trabalhar no limiar superior faz com que avancem
muito mais do que quando se pensa "elas não vão entender". É claro que
sozinhas elas não entendem. Tudo isso vale para enciclopédias, jornais,
textos de ficção, revistas. Mas é preciso fazer uma aposta alta. Não uma
aposta cega, sem olhar se a turma está acompanhando. E, sim, a mais alta
possível, ajustada àquilo que as crianças mostram que são capazes de pensar
e fazer.

O professor encontra dificuldades em dar atividades diferenciadas para os que já


estão alfabéticos e também precisam avançar? Como agir nesses casos?

Telma Isso é o mais fácil. Os já alfabéticos podem ler, escrever, produzir


textos, ser envolvidos em projetos mais complexos. Estes não são o
problema. O problema são os que ainda não compreenderam o sistema. Às
vezes, há alfabéticos que não são leitores. Nesse caso, é preciso construir
situações que ajudem a desembaraçar a leitura, que não é algo que vem
sozinho. Não é porque uma criança colocou todas as letras que ela já sai
lendo. Poucas fazem isso. A maioria precisa construir uma prática de leitura
para se soltar. Tenho uma experiência recente com uma que estava
escrevendo silabicamente com valor sonoro. Quando ela já sabia todas as
letras, foi possível pensar em trabalhar questões como "essa letra serve para
escrever esse som, mas é só essa? Tem mais? Você poderia colocar outra no
lugar?" Então, ela avançou rapidamente para uma escrita alfabética, cheia de
erros de ortografia, mas alfabética. Mas dizia "eu não sei nada porque
escrevo, mas não sei ler. Eu escrevo nessa letra e tudo o que eu vejo está
escrito numa letra que eu não conheço". Então, fiz uma tira de
correspondência, com as letras de forma e de imprensa. Todas as vezes que
não conseguia reconhecer uma letra, o menino via na tira. Mas isso empacava
a leitura. Quando ele terminava a segunda palavra, já não sabia mais sobre o
que era o texto. Passei a propor que lesse desse jeito e, depois de destrinchar
todo o texto, voltasse a estudá-lo para ler rápido, pois só se entende o que se
lê quando se lê rápido. Sozinho, ele se treinou, voltou e disse: "Estou lendo
tudo". E estava mesmo. Porque, na verdade, ele não tinha se soltado da ideia
de que era necessário ler todas as letras. Na medida em que pedi para que
avançasse além dessa leitura letra por letra, ele teve de usar as estratégias de
leitura. Isso fez com que ganhasse velocidade e compreensão. Conforme
passou a compreender o que lia, a vontade de ler cresceu e a leitura
melhorou. Esse é um ciclo virtuoso.

Ainda persiste a ideia de que as crianças só podem ter contato com histórias
curtinhas, nunca lidas em capítulos?

Telma Essa mania de que tudo tem de ser pequenininho é uma deturpação
da concepção de criança e, principalmente, um desrespeito enorme. Porque
ela senta na frente da TV, vê uma novela em 180 capítulos, lembra de todos
os personagens, quem casou com quem, quem brigou com quem e o que
vestia em tal dia. As crianças não têm problemas de memória, quem tem
problemas de memória somos nós. Elas têm tudo fresquinho na cabeça.
Minha experiência pessoal é a de escolher livros pela grossura, ao contrário
do que alguns fazem. Eu sempre escolho os livros mais grossos porque, se a
história for boa, não quero que ela acabe! Esse lugar do leitor que tem prazer
na leitura é o que o professor teria de encarnar. Para elas, uma história
pequena é pobre e chata. É claro que histórias grandes podem ser pobres e
chatas. Mas elas adoram ouvir uma história grande em capítulos, contados
um por dia e, no fim da leitura: "tchan tchan tchan tchan, agora aguardem o
capitulo de amanhã! Quem que acha que elas não gostam nunca
experimentou. Elas são muito mais inteligentes do que os adultos porque,
nesse momento da vida, tudo está para ser aprendido e a disponibilidade
para a aprendizagem é enorme. Quando perdem isso é porque os adultos
destruíram. O fracasso reiterado mata essa disponibilidade.

Como deve ser o trabalho do 3º ano em diante no que se refere ao


aprimoramento da leitura e da escrita?

Telma Você já disse a palavra: aprimoramento. Em primeiro lugar, ninguém


deveria chegar ao final da segunda série sem compreender o sistema de
escrita e sem ler. Daí pra frente, todo o trabalho é de estabelecer objetivos
cada vez mais complexos para a mesma coisa, que é ler e escrever. O nome
do conteúdo não muda e, sim, o que está lá dentro. O que acontece é que
muitos imaginam que, quando se é capaz de colocar todas as letras e ler
alguma coisa, ainda que silabando, está encerrada a aprendizagem da leitura
e da escrita. Uma prova de que isso não é verdade é que os meus alunos na
pós-graduação estão aprendendo a ler textos acadêmicos, porque
infelizmente as faculdades onde estudaram, em vez de deixá-los ler textos
acadêmicos adequados à competência deles, criam as apostilas, simplificando
o conteúdo, no pior sentido da palavra. Isso os impediu de construir a
capacidade de ler textos de certo grau de complexidade, de um determinado
gênero.

Aprende-se a ler e a escrever ao longo da vida toda. Não basta ser alfabético
e ser capaz de ler um outdoor para ser alfabetizado. Quando entendemos
isso, ajudamos os meninos a se aproximar de textos cada vez mais
complexos. Esse trabalho os transforma em leitores cada vez melhores e de
uma gama mais ampla de gêneros. E aprender por meio dos textos é
condição para estudar os outros conteúdos na escola. Para quem não sabe
aprender a partir de um texto escrito, o destino depois da quinta série é o
fracasso.

Você também pode gostar