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aprendizagem sob véus (idioma: portugués)

A aprendizagem sob véus

Palmyra Medeiros Araújo

Pedagoga /  Especialista em Psicopedagoga Institucional e Clínica

Ensinar não é transmitir informações, nem recitar conteúdos. Ensinar


tampouco é mostrar-se conhecedor, permanecendo, exibicionisticamente
alheio ao aprendente.

(FERNANDEZ, 2001)

A dinâmica pedagógica da sala de aula é muito importante para o processo de ensino e aprendizagem.
Nesse sentido, gostaria de ressaltar algumas questões que no meu entender, tornam-se geradoras de
problemas que merecem ser discutidos em favor de que chegue a bom termo.

Neste texto pretendo apresentar concepções teóricas e práticas de alguns autores sobre a dinâmica de
sala de aula, como também, fazer uma análise reflexiva dos dados que coletei através de pesquisa com
professores e alunos em quatro escolas públicas da cidade de João Pessoa (PB).

A escola sempre foi e ainda continua sendo uma instituição uniforme, encarregada de veicular norma,
transmitir conhecimentos construídos culturalmente, que pressupõem a disciplina e a hierarquização.
Esse modelo já não responde às necessidades atuais. O mundo moderno é instável e dinâmico e por
isso, o ensino não pode ser um conjunto de conhecimentos que serve para a vida inteira negando com
isso, a concepção de aprendizagem enquanto processo.

Numa análise da dinâmica de sala de aula, percebe-se que esta determina que o aluno desde a educação
infantil deva permanecer horas a fio sentadas, quietas e concentradas nas explicações do professor, na
realização de tarefas. Aqueles que não conseguem cumprir ou se opõem, e não as realiza, são
consideradas crianças que não se adaptam porque são desatentas, hiperativas, apresentam distúrbios
emocionais, ou coisas parecidas.

Diante dessa realidade de sala de aula, comparo o aluno como um pássaro com um par de asas
perfeitas, plumas reluzentes, coloridas e maravilhosas, que carrega em si a capacidade de realizar um
vôo livre e solto. Quando colocado em uma gaiola sente-se aprisionado sem realizar o sentido de sua vida
nem seu desejo de voar. Impedido na sua capacidade de experimentar novas descobertas de vôos
começa a perder o brilho e a energia, ficando sem conseguir mais cantar. É aí que começam a vê-lo,
como diferente e incapaz porque não canta como os outros pássaros.

Muitas vezes, é assim que acontece quando o aluno entra na escola. Cheio de vontade de fazer algo
novo trazendo consigo essa energia desejante, terreno fértil que o impulsiona para aprender. Querendo
ter autonomia, se sentir autor do seu pensamento, experimentar novas descobertas, expressar suas
experiências, seus conhecimentos, seus saberes, de repente, sente-se tolhido, aprisionado, sem
liberdade para experimentar novos vôos. O professor por sua vez, percebendo que aquele alunonão
corresponde às suas expectativas de aluno ideal, começa a vê-lo como incapaz de uma aprendizagem
satisfatória. Pode-se observar isto quando chegamos perto dessas crianças, ouvindo-as e atendendo-as
nas suas necessidades.

Neste momento revivo uma experiência com uma criança, na qual ela foi solicitada a fazer um desenho
apresentando sua sala de aula. O desenho mostrava uma sala de aula com umas aberturas (fendas) nas
paredes e algo que vinha de cima do teto e descia. Explicando, ele revelou: “Isto é uma cachoeira de
letras e palavras e isto é para entrar ar, pois eu fico sufocado”. É assim que muitas crianças se sentem
com o excesso de informações. Informações muitas vezes dissociadas da realidade, sem utilidade para a
vida prática. Sendo assim, o aluno começa a perder a sua espontaneidade, a sua naturalidade, o prazer
de aprender, se percebendo como incapaz porque não consegue entender e assimilar todos os conteúdos
dados em sala de aula. Assim vai nutrindo o sentimento de incapacidade, de baixa auto-estima,
acarretando conseqüências muitas vezes graves para ele.

É interessante refletir sobre a escola ideal, direcionando nosso pensar para torná-la na escola dos sonhos
possíveis, considerando o contexto cultural e a dimensão da singularidade do sujeito.

De acordo com a concepção de Bossa (2002), “considerar a dimensão da singularidade do sujeito requer
um referencial teórico que, estando fora do campo da educação, possa pontuar algo de dentro, sem
pretensão de transformar-se em instrumental pedagógico: o sujeito como sujeito desejante”.

A escola poderia se constituir em um ambiente favorável e bom para trabalhar levando em conta as
necessidades do aluno, oferecendo condições de usar seus sentidos, percepções, movimentos,
sensações, impressões, pensamentos e o seu potencial criativo. Enfim, priorizaria os aspectos corporais,
afetivos e sócio-culturais, propiciando a participação ativa dele, de forma que todos estes fatores estariam
intimamente relacionados ao processo de aprender.

Já há algum tempo tornou-se corriqueiro, no ambiente dos professores, comentários do tipo: tal criança é
hiperativa, aquela tem déficit de atenção, não presta atenção às explicações da professora; aquela outra
não para na sala de aula, está sempre andando de um lado para outro, conversa com um, conversa com
outro, atrapalhando constantemente as explicações; já aquela provavelmente tem algum tipo de
deficiência porque não consegue aprender e passar de ano. No entanto, não se ouve alguém questionar
porque todas aquelas crianças estão se comportando assim? O que podemos fazer para que elas tenham
mais interesse pelas aulas? Para que participem, interajam mais e consigam aprender? Porque não
investigar? Será que não existem necessidades que precisam ser atendidas? Como chegar mais perto
para escutar esses gritos mudos? Mas, infelizmente não é isso que acontece. As crianças são
rapidamente rotuladas.

O que parece é que o professor não querendo assumir as suas falhas e insatisfações profissionais, não
querendo refletir sobre suas fragilidades, coloca sobre o aluno o peso de um fracasso que também é seu.
Porém, é preciso ter claro que não basta transferir “a culpa” da criança para o professor. Convém levar
em consideração, que vários fatores têm contribuído para que aconteça tal insucesso. Tais fatores são
como véus que encobrem o processo de aprender e impedem que este aconteça de forma transparente e
positiva. Um deles é a falta de formação adequada e de qualidade.

Outros fatores contribuem para a ineficiência do trabalho pedagógico, tais como: A dissociação entre
teoria e prática, a utilização de um modelo pedagógico voltado para as respostas prontas, para “o êxito”,
entendendo que na prática pedagógica a dúvida e o desequilíbrio devem ser evitados, a falta de
compromisso social, a ausência de um trabalho criativo, a onipotência, o autoritarismo, as relações
transferenciais estabelecidas entre professores/alunos, dentre outros. Como consequência dessas
posturas inadequadas dos professores, aumentam, a cada dia, os diagnósticos de ADD/ADHD.

Muitos comportamentos inquietos são por vezes respostas a procedimentos bloqueadores na dinâmica de
sala de aula ou na dinâmica familiar. Esses comportamentos, porém podem ser minimizados ou até
solucionados quando oferecemos espaços de vivências, nos quais as crianças possam manifestar e
expressar não só seus conflitos, suas angústias, seus medos, mas também seus saberes, através de um
ambiente facilitador em que possam experimentar autorias de pensamento.

Considero pertinente colocar aqui uma pergunta do Prof. Jorge Gonçalves de Cruz, (2007, p.12) “No será
que esos niños y jóvenes nos hablan, com sus gestos, de una sociedad, unas instituciones de salud, unas
escuelas y unas familias que padecen um severo ‘transtorno por déficit atencional’ a sus niños, sus
ancianos, sus jóvenes, sus adultos?” O rótulo provoca um impasse que gera sofrimentos tanto para a
criança como para a família e requer, portanto, um trabalho com docentes na instituição de re-significação
de sua prática e, um trabalho clínico com a criança que possibilite reconstruções para que ela se
reconheça capaz de realizar atividades nas quais, resgate a sua capacidade de pensar.

É tarefa do professor, ensinar e dominar conteúdos e dar oportunidades para o aluno pensar. Como
afirma Vygotsky (1995) “O conteúdo deve estar contextualizado e relacionado com o sujeito, aqui e agora,
pois é essa possibilidade de valorizar o que é sócio-cultural, o que é do sujeito e a mediação.” Se o
conteúdo for transmitido de forma pronta, somente com aula expositiva, sem mais comentários, não
podemos saber como o outro está aprendendo.

A utilização do trabalho com as artes (cênicas, plásticas) e com jogos no contexto educacional é para mim
o caminho para uma verdadeira aprendizagem significativa, na qual o aluno está usando além da
inteligência, o organismo a corporeidade e o desejo. Isso importa, a meu ver na apropriação do professor
de estratégias de ensino diferenciadas das dominadas e transmitidas através de gerações.

Na transmissão do conhecimento também estão presente as nossas formas de ser e de crer, as


estruturas simbólicas. Transmitem-se ao mesmo tempo em que o conhecimento científico. “No processo
ensino/aprendizagem, tão importante quanto os conteúdos ensinados é o molde relacional que se
imprime sobre a subjetividade do sujeito”. Scoz (2000, p. 18). Fernandez (1998) exemplifica isso
mencionando suas conversas com professores, quando pede que relembre suas experiências como
alunos ou alguma situação escolar importante. Eles relembram não dos conteúdos ensinados, mas de
alguma cena, no qual o professor reconhecia o aluno como sujeito pensante ou, ao contrário,
desqualificava-o, colocando-o em um lugar no qual era incapaz de aprender. (SCOZ, 2000, p. 19).

É importante reconhecer que o processo de ensino e aprendizagem é indissociável porque internalizamos


modelos de aprendizagem em reciprocidade aos modelos de ensino com os quais interagimos durante a
vida nos grupos aos quais pertencemos. Daí ser de fundamental importância, o professor trabalhar com a
subjetividade. A maioria trabalha os conteúdos, os assuntos que estão nos livros didáticos dando apenas
o enfoque objetivo, deixando de lado os aspectos subjetivos de temas importantes para a vida como a
ética, a violência, o amor, entre outros. Como a escola pode formar pessoas críticas, cidadãos
conscientes, atuantes e participantes, se apenas utilizar textos objetivos? É necessário o trabalho com
textos subjetivos, e a escola precisa trazê-los para junto dos alunos.

As instituições de ensino fazem abordagens de apenas um aspecto da vida, enquanto que os que
envolvemas relações humanas são justamente àqueles deixados de lado. Os assuntos que não estão nas
disciplinas escolares, raramente são abordados na escola ou são trabalhados informalmente. Foi
constatado através de uma pesquisa realizada com professores e alunos, em quatro escolas públicas da
cidade de João Pessoa (PB), que estes até consideram importante esse trabalho, mas não estão
preparados pra isso (ARAÚJO, 2006). Não se trata de enfatizar o trabalho com a subjetividade excluindo
as questões objetivas, mas sim de se pensar por uma integração de ambas. “Ao ter um papel
fundamental como ensinantes, eles também têm um papel como agentes subjetivantes. Podem intervir
solidificando aspectos patógenos que vêm da família, da criança, ou pelo contrário, propiciando
movimentos saudáveis”. Fernandez, (2001).

A partir dos estudos realizados pela Psicopedagogia, podemos inferir que a origem dos problemas de
aprendizagem não se encontra exclusivamente na estrutura individual, mas na trama particular dos
vínculos familiares e naqueles que o aluno estabelece com a escola e mais especificamente com os
professores, constituindo assim, o significado da aprendizagem no espaço escolar.

Pude constatar através da pesquisa com os depoimentos dos alunos, que a gênese de um problema de
aprendizagem pode estar ligada a situações onde se observa o não desejo de aprender, que requer uma
análise da história da criança, uma avaliação da dinâmica familiar, e de forma relevante das
circunstâncias ligadas à instituição escolar. O aluno deseja aprender, mas não lhe oferecem
oportunidades de vivenciar experiências que favoreçam uma aprendizagem significativa, e, ainda
estabelecer vínculos com a escola e especialmente com o professor. (ARAÚJO, 2006).

Foi constatada também nos resultados da pesquisa, uma discrepância entre as respostas dos professores
e dos alunos, quando eles se referem a situações de sala de aula. Os professores apontam em seus
depoimentos que os alunos são agressivos, inseguros, não se relacionam bem uns com os outros. Por
outro lado, os alunos declaram com bastante clareza e freqüência que professores não apresenta uma
postura de respeito em relação à maneira de ser de cada um, uma atitude estimuladora e manifestam
dificuldades de relacionamento afetivo com esses alunos, deixando-se levar por preferências ou antipatias
o que repercute na auto-estima destes. Esses são fatores importantes não só para o relacionamento
social como para uma boa aprendizagem.

Em Psicopedagogia o conceito de alteridade é fundamental para a compreensão dos processos de


aquisição de conhecimento. Fernandez (2001) ressalta a importância do professor “reconhecer o outro
como um sujeito pensante/desejante e levá-lo a reconhecer-se como tal e sentir o prazer da produção de
sua autoria e libertá-lo do reconhecimento de sua produção através do olhar do outro”.

A posição da autora citada está intimamente ligada à relação professor/aluno onde o professor com
alteridade, reconheça legítimos outros. Revelar a eles seus pensamentos, pensando em apenas mostrar
como é possível pensar, sem esperar que eles pensem como ele.

Percebe-se que é urgente a necessidade de um trabalho psicopedagógico de formação com docentes e


se possível com toda a comunidade escolar para viabilizar movimentos relacionais na sala de aula,
processos objetivo-subjetivos do aprender e ensinar, transformando o espaço educativo em um espaço
onde professores e alunos possam ensinar e aprender com satisfação, possibilitando o resgate do desejo
de aprender e de constituir-se como sujeito, dessa forma o aluno dará um novo sentido a sua vida e
perceberá o mundo de forma diferente com uma visão caleidoscópica, livre para sonhar, imaginar, criar e
transformar.

Para que a aprendizagem possa vislumbrar novos horizontes, sair de uma realidade imobilizadora e
alienante em vários aspectos, o professor precisa assumir uma atitude positiva e decisiva de rasgar todos
aqueles véus que ocultam a essência do processo de ensino e aprendizagem, para fazê-lo despontar com
uma nova roupagem. Como? Revertendo as bases ideais em que está firmada a educação, tentando
modificar o tipo de vínculo professor/aluno, criando um movimento em sala de aula, com intervenções
pertinentes, atento às necessidades, faltas e desejos dos alunos, possibilitando a potência criativa do
brincar e do aprender da criança, transformando o espaço de aprendizagem em um local de confiança, no
qual professores e alunos possam ensinar e aprender com satisfação e prazer.

Seria importante que esses profissionais que atuam diretamente com o processo de aprender tivessem
um espaço para re-significar suas próprias histórias. A minha sugestão seria o referencial teórico de
Fernandez (1994), utilizado para o trabalho com as modalidades de aprendizagem em uma perspectiva
objetivante/subjetivante.

O dispositivo da autora pode ser utilizado para analisar a relação entre aprendente e ensinante como
indivíduos, para interpretar o grau de saúde ou de enfermidade de um sujeito em relação à aprendizagem
e para analisar a circulação do conhecimento em um grupo social. (SCOZ, 2001, p.29).

De acordo com essa proposta a formação dos professores vai além da aquisição de habilidades e
competências. Os relatos de histórias de vida parecem ter o poder de potencializar movimentos de
transformações que se traduzem em compromissos maiores com suas profissões.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Palmyra Medeiros. Movimentos afetivos nas dificuldades de aprendizagem. Monografia


(Especialização) – UFPB/CE. João Pessoa, 2006. 90p.

BOSSA, Nadia A. Fracasso escolar: um olhar psicopedagógico. Porto Alegre: Artmed, 2002.

CRUZ, Jorge Gonçalves da. Niños y jóvenes com “Déficit Atencional”: Desatentos ou Desatendidos?


“Nuevos aportes de la psicopedagogia clínica ante el cuestionado diagnóstico de ADD/ADHD
(TDA/THDA); Modulo I.

FERNÁNDEZ, Alicia. O saber em jogo: a psicopedagogia proporcionando autorias de pensamento. Porto


Alegre: Artmed, 2001.

_______. A inteligência Aprisionada. Porto Alegre. Artmed, 1991.

REGO, T. C. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petrópolis: Vozes, 1995.

SCOZ, Beatriz J. L. (Por) Uma educação com alma. São Paulo: Vozes, 2000.

_______. Psicopedagogia – um portal para a inserção social. Petrópolis: Vozes, 2003.

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