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Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE

DELEUZE: O APRENDER COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

Maria dos Remédios de Brito*


Dhemersson Warly Santos Costa **

Resumo: Deleuze não se debruçou sobre a pedagogia, porém é possível encontrar em suas obras
filosóficas uma potência para pensar a educação e o aprender. A intenção do ensaio é capturar do
pensamento filosófico de Deleuze aberturas para pensar o aprender como uma experiência estética,
uma experiência que se dá quando o corpo é afetado pelos encontros, pelos signos, pelos blocos de
sensações, produzindo uma abertura vital para os processos de criação, pois não se aprende reprodu-
zindo, mas fazendo de outro modo, com o corpo aberto às experiências do sensível, às experiências
de um pensamento violentado pelas forças do fora, formando clarões desabadores do pedagógico e
ao mesmo tempo destacando o aprender como criação ou mesmo invenção de uma vida.
Palavras-chave: Deleuze; Aprender como experiência estética; Diferença.

Resumen: Deleuze no se centró en la pedagogía, pero es posible encontrar en sus obras filosóficas un
poder para pensar sobre la educación y el aprendizaje. La intención de este ensayo es capturar aper-
turas en el pensamiento filosófico de Deleuze para pensar en el aprendizaje como una experiencia
estética, una experiencia que ocurre cuando el cuerpo se ve afectado por encuentros, signos, bloques
de sensaciones, produciendo una apertura vital para los procesos de creación, porque no se aprende
reproduciendo, sino haciéndolo de otra manera, con el cuerpo abierto a las experiencias de lo sensi-
ble, a las experiencias de un pensamiento violado por las fuerzas del exterior, formando destellos de
lo pedagógico y al mismo tiempo destacando el aprendizaje como creación o incluso invención de
toda una vida.
Palabras claves: Deleuze; El aprendizaje como experiencia estética; Diferencia.

Do que dar a pensar na educação 12 contida o intelecto, todas as Ideias, por isso
Não há como negar que a base da o conhecimento é uma função da alma raci-
educação formal é delineada por uma ima- onal, a alma como única possível para o sa-
gem dogmática. Nela, o aprender remete ao ber. O corpo, por sua vez, é mero instrumen-
exercício da recognição e está calcado em to de aperfeiçoamento, recipiente da alma
uma matriz platônica que convoca uma ima- (AZEREDO, 2010). Sendo eterna e superior,
gem abstrata do pensamento (RAMOS; BRI- a alma pertence ao mundo inteligível, mun-
TO, 2018). Em breves linhas, pelo pensa- do das Ideias, ao passo que o corpo é pere-
mento da tradição, o homem é perspectiva- ne, desprezível, está encarcerado no mundo
do pela dicotomia corpo e mente, valorando dos sentidos, imperfeito como a sua própria
a alma em detrimento da carne. A alma é condição de humano, como sugere a leitura
como uma bússola para o corpo e nela está platônica. A questão, explica Gallo (2017, p.
2), “é quando a alma se encarna em um
*
Professora da Universidade Federal do Pará no corpo que nasce, dadas as limitações do ma-
Programa de Pós-graduação em Educação em Ciên-
cias e no Programa de Pós-graduação em Artes. E- terial, ela se esquece de todas as ideias. Ao
mail: mrdbrito@hotmail.com. longo da vida, a alma vai, aos poucos, se
**
Doutorando em Educação em Ciências e Matemáti-
‘recordando’ daquilo que já sabia”. O
cas pela Universidade Federal do Pará. E-mail:
dhemerson-santos@hotmail.com. aprender, nessa perspectiva, apresenta-se

BRITO, Maria dos Remédios de; COSTA, Dhemersson Warly Santos. Deleuze: o aprender como ex-
periência estética. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 32/33: nov. 2019 – out.
2020, p. 120-135. DOI: https://doi.org/10.26512/resafe.v1i32/33.35117
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como um ato de recognição, isto é, alma isso, uma espécie de cientificismo no proces-
(mente) retorna a saber aquilo que outrora so pedagógico (CARDOSO JR, 2006).
sabia. Tal processo de recordar-se pode ser
Dessa concepção, surgem os currí-
modelado, aperfeiçoado e acelerado com o culos fechados, os planos de aula imutáveis,
treino. os modelos pedagógicos estruturados, os
livros e as sequências didáticas que remetem
Na perspectiva da recognição platô- à ideia de que é possível, através do ensino,
nica que é o submundo do aprendi- controlar o processo de aprendizagem, to-
zado na pedagogia ocidental, o que mando como prisma que todos aprendem
importa é o saber. Isto é, aprender é
adquirir, é colocar-se de posse de da mesma forma e ao mesmo tempo, exclu-
um saber. É esse saber que pode ser indo, assim, o perfil que atravessa os corpo
verificado, quantificado pelos pro- na experiência do aprender é universalizan-
cessos avaliativos que dedicam-se a te.
afirmar se um aluno aprendeu ou
não, o quanto aprendeu. No âmbito Sobre o ensino, existem alguns en-
da recognição pura, adquirimos, frentamentos, porém o que sobressai é o
com o aprendizado, algo que já pos-
suíamos; aprendemos para recupe- modelo a ser seguido, seja em práticas edu-
rar, em nós, algo de que já estáva- cativas, como na forma didático-
mos de posse, mas não sabíamos metodológica, ou mesmo na postura daque-
(GALLO, 2017, p. 5). le que tem em mãos a tarefa de ensinar.
Na figura do professor, é erigida a
Na história da educação, muitas teo- mentalidade da transmissão, na qual a ima-
rias sobre a aprendizagem foram lançadas, gem do erro se torna um fantasma, portanto
algumas consolidadas, outras refutadas; con- a recomendação é desconfiar das influên-
tudo, o aprender como recognição retorna, cias, pois elas podem ser capazes de tomar o
em certa medida, aos processos pedagógi- falso como verdadeiro. Além disso, o saber
cos, ainda que a visão platônica e dos pen- assume um lugar de verdade, sendo esta a
sadores da tradição pareça muito diferente sancionadora daquilo que pode oferecer
do mundo que testemunhamos contempo- respostas ou soluções. Esse procedimento
raneamente (GALLO, 2017). em sua forma dogmática parece ser susten-
Condizentes com essa proposta, in- tando por uma maquinaria identitária que
troduziu-se na Educação a relação entre “en- não deixa de ser fundamental para o apare-
sino e aprendizagem” como elementos indis- lho de poder. Essa imagem deseja procurar
sociáveis entre si: “é preciso que alguém en- o rosto. Sua obsessão é tatuar a marca, o
sine” e “aprende-se aquilo que é ensinado”. que é adequado para assumir o melhor pa-
Este último ponto, em especial, é fundamen- pel no campo social e político. Por exemplo,
tal às teorias pedagógicas, pois quando se se exige um tipo de rosto para o professor,
aprende somente aquilo que é ensinado, contudo, se esse rosto tiver um desvio, é co-
logo é possível modelar o que, quando e locado como esquisito, fora de lugar, fora da
como o aluno aprende, instaurando, com ordem, fora do respeitável, pois saiu do mo-

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delo de base, que seria uma racionalidade por outro lado, não tem nenhum domínio
moral e disciplinar. sobre o seu processo de aprender. A institui-
ção educativa organiza a forma de materiali-
Aliado à feitura do rosto, há um có-
zação hierárquica que possa levar ao seu
digo de postura, um código de linguagem
objetivo primordial: formar o aluno como se
que esse professor deve assumir, porque a
este não estivesse imerso no processo de
linguagem passa pelo modelo do rosto. Se-
singularização.
gundo Deleuze, “quando a professora expli-
ca uma operação às crianças, ou quando Ora, permanecer nas regularidades,
lhes ensina sintaxe, não lhes dá a própria nas uniformidades, nas dualidades, nas iden-
informação, comunica-lhes injunções, tidades, para Deleuze (2006), não será rele-
transmite-lhes palavras de ordem, produzir vante, pois ele pensa a favor de uma reali-
enunciados corretos, ideias ‘adequadas’, dade díspare; há alguma coisa que o filósofo
necessariamente conforme as significações chama de um “precursor sombrio” no atra-
dominantes” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. vessamento de qualquer tipo de experiência
19). das relações em interconexão com o vivo.
A educação aparece como esse em- A noção de forma como organizado-
pedramento do corpo, do pensamento, co- ra da matéria não tem tanto significado, pois
mo se ambos estivessem asfixiados e amare- os arranjos não são configurados a partir de
lados pelos rituais instalados pelo aparelho uma hierarquia, mas a partir dos encontros,
de estado que os conduzem a ordens prees- das forças e das intensidades; isso não quer
tabelecidas, pois a postura do aparelho de dizer que Deleuze fale de uma dissolução
poder também passa pela educação, pelo das formas.
comunicar, solicitando o bom método, a boa Com isso, é possível dizer que se
postura, a boa vontade para procurar a ver- Deleuze não trabalhou diretamente com a
dade. questão educativa, como salienta Gallo
Se pensarmos no cenário educativo, (2003), assim como Gilles Boudinet (2012) o
o aluno é visto como motor primordial do seu pensamento pode ser perfeitamente des-
ensinar e do aprender. Com isso, “formar” o locado para desafiar a ideia de transmissão,
bom cidadão é a meta do ato educativo. O a ideia do educador como aquele que tem o
professor, ao assumir o rosto racionalizador suposto saber ou a verdade como saber ab-
do processo de aprendizado, deve desenvol- soluto, bem como o aprender como trans-
ver habilidades, competências, práticas, me- missão.
todologias que formem o aluno envolvendo O presente ensaio argumenta que é
o saber junto às exigências da instituição. O possível dialogar com a filosofia da diferença
que se observa nesta imagem é que há pou- de Gilles Deleuze, com aberturas para pensar
ca atividade na ação educativa proposta ao o aprender como experiência estética. De-
aluno, o que faz com que o professor, então, leuze pode ser considerado como um dos
assuma uma posição ativa, devendo domi- grandes pensadores contemporâneos da filo-
nar o modo de condução do rosto. O aluno, sofia da educação, seu pensamento dão a
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pensar problemas educativos de primeira plinar, mas configuraria uma espécie de teo-
ordem, como afirma Sébasten Charbonnier ria da sensibilidade. Assim, a estética seria
(2017). compreendida em um sentido específico li-
gado à sensação, ao sensível, aesthêsis. O
argumento cotejado pela autora retromenci-
Notas sobre a estética em deleuze onada pressupõe que é necessário articular
O interesse de Deleuze pela arte é essa questão com outro projeto filosófico de
explícito ao longo das suas obras, fazendo Deleuze, o qual:
passagens pela literatura, pelo teatro, pela
poesia, pela pintura e pelo cinema, amplian-
do nossas concepções acerca da experiência [...] inclui a construção de um pen-
estética. Roberto Machado (2009) argumen- samento em que a teoria da sensibi-
lidade e a teoria da arte sejam traça-
ta que todo esse trabalho de investigação e
das, conceitualmente, juntas por
análise se fez em proveito da sua filosofia da meio das mesmas operações. Este
diferença. projeto, portanto, inclui a ideia de
partir de alguns conceitos que permi-
A respeito da problemática da estéti- tam reunificar a estética como teoria
ca, em Deleuze há uma discussão entre seus da sensibilidade, por um lado, e a
intérpretes se há ou não uma perspectiva vertente que se dedicaria a uma teo-
ria da arte, por outro (VIEIRA DA
estética em suas obras. Há aqueles que de-
SILVA, 2017, p. 19).
fendem sua presença, pois na obra do filóso-
fo existe um real interesse pelas artes e por
alguns artistas, bem como ele monta e re- Em semelhante esteira, Nabais
configura esse saber para o seu próprio pen- (2010) destaca que Deleuze movimenta a
samento, mas talvez ele não só tome das problemática da estética resgatando Kant e
artes, mas ofereça aos artistas contribuições suas questões sobre esta, restaurando uma
para suas produções. dualidade nesse pensador, não para fundar
Rancière (2000) destaca a existência uma teoria, mas para quebrá-la, fragmentá-
de uma estética deleuziana, porém isso im- la e, quem sabe, superá-la, o que corrobora
plica pensar a própria redefinição do concei- com uma das passagens sobre estética em
to que não estaria restrito ao regime histórico Lógica do Sentido (1974):
que determina o que é uma obra de arte, A estética sofre de uma dualidade di-
pois Deleuze não pensaria a estética como lacerante. Designa de um lado a teo-
um saber sobre arte, mas um modo de pen- ria da sensibilidade como forma da
experiência possível; de outro, a teo-
sar que se dilata nas obras de artes, estas
ria da arte como reflexão da experi-
sendo uma espécie de testemunho do sensí- ência real. Para que os dois sentidos
vel. se juntem e preciso que as próprias
condições da experiência em geral se
Vieira da Silva (2017) afirma que tornem condições da experiência re-
toda a filosofia de Deleuze é uma estética, ou al; a obra de arte, de seu lado, apa-
seja, não seria algo setorizado e nem disci- rece então realmente como experi-

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mentação (DELEUZE, 1974, p. Vieira da Silva (2015, p. 38) destaca
262). que o pensamento deleuzeano tem o projeto
de “unificar os dois sentidos de estética, for-
mulado em Diferença e repetição, de pensar
A estética em Deleuze pressupõe,
as obras de arte de modo imanente, ou seja,
então, superar essa dualidade kantiana, “de
buscando mostrar que novas maneiras de
partir o coração”, que atravessa os dois sen-
sentir elas produzem, quanto no que se refe-
tidos da estética: ora como uma “teoria do
re à ontologia da diferença”.
sensível”, ora como uma “teoria da arte”. No
primeiro sentido, conforme lembra Araujo Uma materialidade artística, seja na
(2017, p. 146), há uma noção de estética literatura, no cinema, na música, pintura,
transcendental - a qual floresce na Crítica da seria aquela que em os dois sentidos da esté-
Razão Pura - que está calcada “na represen- tica se encontram, “se confundem a tal pon-
tação, na medida em que permanece apenas to que o ser do sensível se revela na obra de
no campo da experiência possível”, a estéti- arte ao mesmo tempo que a obra de arte
ca perspectivada a partir da investigação do aparece como experimentação” (DELEUZE,
espaço-tempo e das formas de sensibilidade 2006, p. 108). Com isso, a estética não bus-
que conduzem a experiência. ca pelo fundo do objeto artístico, pois não se
deseja responder o que isto é, mas o que ela
No segundo sentido, a estética é tida
é capaz de mobilizar no corpo, na experiên-
como uma teoria da arte - a qual aparece na
cia, daí o caráter experimental imprescindí-
Crítica do Julgamento - e traduz-se como um vel que Deleuze insiste em afirmar: “[..] é
ato de reflexão que afasta a experiência pos-
necessário que as condições da experiência
sível em prol da experiência real com o obje-
em geral, se tornem condições de experiên-
to artístico, produzindo, com isso, uma sen-
cia real; a obra de arte, por outro lado, apa-
sação do que é o belo e o sublime (VIEIRA
rece realmente como experimentação” (DE-
DA SILVA, 2017). Em outras palavras, esse
LEUZE, 1974, p. 262).
segundo sentido fundaria uma espécie de
análise categórica que determinaria o que Vieira da Silva (2017), inspirada na
efetivamente é a arte e se está em conformi- leitura de Lógica do sentido (1974) e seus
dade com a dada teoria. É certo que a no- apêndices, Platão e o simulacro, Lucrécio e
ção de estética em Deleuze se afasta dessas o simulacro, nos coloca que Deleuze se põe
miríades, uma vez que o projeto filosófico do a pensar um projeto contemporâneo da filo-
autor não passa por um sentido ou outro, sofia, do qual estamos de acordo. Deleuze
mas os faz se unirem, conforme se vê na (1974) toma Nietzsche como seu aliado, pois
seguinte passagem: “[...]Para aqueles dois este defende a revirada do Platonismo. Con-
sentidos se encontrarem é necessário que as tudo, é importante destacar que isso não
condições da experiência em geral, se tor- implica somente inverter o modelo e a cópia,
nem condições de experiência real (DELEU- pois antes pontua a importância de se ofere-
ZE; 1974, p. 262). cer uma dignidade ao mundo dos simula-

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cros, pois este rejeita qualquer tipo de mode- Guattari, de algum modo, foi um
lo, já que não depende da semelhança. personagem conceitual para Deleuze, e vice-
versa. É exatamente por isso que a potência
Partindo dessa leitura, a arte e a
verdade assumem uma configuração com- do falso remete a um processo fabulatório.
Ao invés de se buscar uma verdade dentre
pletamente diferente daquela posta pela
as imagens-simulacros, sua defesa será pela
tradição3. Com essa aliança, Deleuze (2006),
potência dos efeitos que delas possam ema-
fala de uma potência do falso, que não re-
nar, passando não somente pela arte, mas
mete ligações com as veracidades, mas com
pela a filosofia, pela ciência e pelo aprender.
as transformações, com as mutações e com
as metamorfoses. A potência do falso substi- Então, é possível dizer que há uma
tui a forma do verdadeiro, do bom e o reto montagem do sensível com elementos sensí-
pensamento, restando um trabalho efetivo veis (envolvendo a sensibilidade como em
de criação do pensar como seus atravessa- um processo de sentir, experimentar), que
mentos, com as intensidades, com as afec- remete também aspectos de subjetivação no
ções e com os encontros. Importa, para De- envolvimento do sentir, do estar imerso aos
leuze, a força que essa potência produz, o signos, pelo qual o ato de pensar se desdo-
que faz desmontar, rasgar, arrastar em suas bra em objeto de uma sensibilidade, o que
variações. levaria a outro modo de exercitar o aprender
junto ao sensível, nada de reproduzir, mas
A própria filosofia deleuzeana não é
criar em estado de latência, em experimen-
elaborada por um pensamento da seme-
tação. Essa operação exige uma desmonta-
lhança, da cópia, da reprodução. Por isso,
gem do que parece dado e interpretado. É
há em seu trabalho filosófico a importância
todo um trabalho de entrar no meio, fazer
do roubo, da captura. Não se trata de imitar,
com e não como o outro.
repetir o mesmo, mas fazer de outro modo,
dizer de outra forma. Daí a ideia de criação, Deleuze, agora ao lado de Guattari,
invenção de outros horizontes. Esse parece retoma a questão da estética em O que é
ser o campo da experimentação e não da filosofia? (1992), quando traz à baila ques-
recognição. tões sobre a função da arte. Esta, na esteira
desses autores, produz no corpo uma espécie
Assim, para Deleuze não existe ne-
de “bloco de sensações” capaz de modificar
nhuma verdade que não se falseie, pois a
nossas percepções sobre o mundo, ainda
“verdade é uma criação” (DELEUZE, 1992,
que em pequenas partículas, arrastando a
p. 157). A operação da verdade constitui
vida para mundos nunca antes habitados,
uma série de falsificações que constitui um
instaurando modos outros de existência.
movimento, um trabalho, por isso, o seu
Ainda nessa obra, os autores ponderam que
trabalho com Félix Guattari produziu uma
a arte trabalha com a criação de afectos e
série de falsificações, no sentido de produção
perceptos (blocos de vida são abertos junto
criativa.
ao corpo sensível).
3
Não é a intenção da pesquisa se debruçar sobre
essas questões.

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Quando Deleuze convoca a arte em Por isso, pensar a estética em Deleu-
suas obras não é para tecer uma reflexão ze é perspectivar a heterogeneidade no pen-
sobre uma teoria da arte, também não é samento que se afasta da representação
uma mera exemplificação de conceitos ou (moral), aproximando-se das “diferenças no
legitimação, mas para se contagiar com o sensível que escapam a fixação em percep-
que há de mais potente e pedagógico na arte ções ordinárias” (ARAUJO, 2017, p. 36).
para fazer pensar. A arte, com seus blocos de Superadas estas considerações sobre
afectos e perceptos (DELEUZE; GUATTARI, a estética em Deleuze, é interesse pontuar,
1992), é uma travessia que leva o pensa- ainda que brevemente, o que se entende por
mento a pensar, uma experiência que instiga experiência estética, uma vez que para o
o impensável do pensamento, o indizível da autor “obra de arte, por outro lado, aparece
palavra, o inaudível dos sons (DELEUZE, realmente como experimentação” (DELEU-
1992). Essa captura que Deleuze elogia no ZE, 1974, p. 262).
procedimento dos artistas, como produzem
seus objetos de arte em variações, possibili- Para Deleuze (1992), a experimen-
tando aberturas sensíveis para a sua filosofia. tação é um processo vital regado pelos en-
contros e pelos afetos. Experimentar não é
Por essas veredas, então, é possível uma simples redução aos protocolos científi-
pensar o projeto filosófico deleuzeano, em cos, tão pouco tocar um objeto, empunhar
certa medida, a partir dos encontros com a pincéis e tintas sobre uma tela, dançar ao
arte, uma experiência estética na qual o au- som de uma música, encenar um persona-
tor não deseja, efetivamente, explicar o que gem... Experimentar é se deixar afetar pelos
a obra quer dizer, tão pouco o seu significa- encontros com a vida, com as forças que nos
do, mas o que ela produz, o que faz funcio- atravessam rotineiramente e nos arrastam
nar no corpo sensível. Assim, a estética no para outros lugares, que instauram um caos
pensamento deleuzeano funcionaria como interior, que nos provoque de tal forma que
uma espécie de húmus, um adubo orgânico seja insustentável retornar para o lugar ante-
que, quando misturado no solo filosófico (e rior, para o que se era. Experimentar é se
quem sabe o educacional), potencializa a abrir aos encontros, deixar que algo passe,
vida, florescendo conceitos, problemas para repasse, transpasse..., que faça a vida se
o pensamento, para o aprender. abrir em multiplicidades, na diferença.
Assim, falar em estética não é refletir O aprender como estética é um caso
sobre uma materialidade artística, mas o que de experimentação quando o corpo é afeta-
dilata, os blocos de sensações que ela pode do por forças, desejos e encontros capazes
instaurar, pois “não existe uma formulação de mobilizar a criação de uma vida. Uma
de um método de interpretação de obras de obra de arte é como uma abertura vital para
arte em Deleuze: o que importa é como mundos impossíveis, como possibilidade de
acessar as linhas de intensidade de que o experimentar vidas dissonantes, marginais.
novo de uma obra é composto” (GALLO; Por essas linhas, a estética aparece
MARTINEZ, 2015, p. 09). na filosofia da diferença em aliança com o

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pensamento. A estética como um modo de É certo que não se sabe o que pode
pensar no sensível que se dilata, e o apren- afetar um corpo, como ou quais obras de
der sendo uma espécie de testemunho do arte, ou quaisquer outras coisas do mundo
sensível, do jogo, da partilha, do imaginar, podem, efetivamente, instigar o pensamento,
como uma experiência criadora, a promover pois isso se trata de um processo singular,
o novo, bem com um saber não abstrato, uma travessia a qual devemos nos lançar,
assim como novas subjetivações vão sendo por isso Deleuze (1974) afirma a imprescin-
desenhadas, pois o corpo singular também é dibilidade da experimentação. Já dissemos
modificado diante dos processos criativos, que para esse autor não se pensa sozinho,
corpo vivo, corpo imanente. O pensamento, trata-se de um acontecimento, um lampejo.
dirá Deleuze (2006, p. 210), não é um ato Um escritor, por exemplo, não senta na ca-
natural, pois não se pensa a todo tempo; o deira e instantaneamente tece a sua obra
pensamento é uma conquista, uma busca completa; igualmente, o pintor, o desenhista
que se dá pela violência com os signos, pois ou o músico não são arrebatados imediata-
“o pensamento só pensa coagido e forçado, mente com uma “ideia”, há todo um proces-
em presença daquilo que ‘dá a pensar’, da- so, um ecossistema é mobilizado no ato cria-
quilo que existe para ser pensado – e o que dor... riscar, apagar, rabiscar, rasgar o papel,
existe para ser pensado é do mesmo andar, conversar, tomar uma taça de vinho,
modo o impensável ou o não-pensado, retornar. O que se quer ponderar com isso é
isto é, o fato perpétuo que ‘nós não pen- que nem sempre se chega a uma gênese do
samos ainda’”. pensamento, ao instante em que a ideia
lampeja, sem antes passar por certos movi-
Deleuze (2006) mobiliza todo um
mentos preparatórios, por um processo ex-
enfrentamento com a filosofia da tradição
perimental e corporal, uma espécie de des-
em prol de um pensamento sem imagem,
montagem dos órgãos, de agitação do corpo
um pensamento imanente e inventivo. Pen-
ou mesmo um desassossego.
sar não é reproduzir ou representar, antes é
criar algo novo, e só criamos diante de um Uma experiência estética, portanto,
acontecimento da ordem do problemático. atravessa essas zonas de vizinhanças, essas
alianças com materialidades artísticas, ou
Segundo Araujo (2017, p. 150),
não artísticas, com a materialidades das cria-
somente “os encontros violentos no mundo
ções, capazes de instaurar blocos de sensa-
com certos signos a serem decifrados pode-
ções, alargando nossas visões de mundo
riam produzir o pensamento”, nos levando a
calcadas na representação e no senso co-
ultrapassar o senso comum que limita nossa
mum, abrindo o corpo e a vida para a cria-
percepção de mundo. Podemos dizer que
ção. Nesse processo, há toda uma abertura
uma experiência estética instaura um pro-
do corpo e do pensamento, convocando
blema que solicita sempre uma resposta,
novas formas de interação com a vida, reme-
esta, porém, é sempre inovadora, única e
tendo, por outro lado, novas formas de
singular.
aprender, de ver, de sentir, de perceber, le-
vando a pensar novas maneiras de lidar com

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a educação, com os processos educativos O aprendizado não vem ligado a
para além do pensamento dogmático. uma boa vontade do professor. Por exem-
plo, qualquer aluno pode ser um disparador
sombrio por meio de uma pergunta ou
Clarões desabadores do pedagógico mesmo uma leitura, um filme, um passeio, a
O aprender se tornou o fim último observação de uma obra artística. Desse
do projeto educacional instaurado no oci- modo, o aprender está ligado à força do sen-
dente moderno, este pautado na concepção sível, retirando o corpo e as faculdades de
de mundo (sensível) recheado de informa- uma suposta inércia ou acumulação de um
ções que precisam ser (re)conhecidas para saber morto, sem ligação com o mundo.
então ser reproduzidas na sociedade. No
Nas teorias pedagógicas contempo-
entanto, em Deleuze (2006), podemos en-
râneas, muito se discute sobre ensino e
contrar uma oposição entre aprender e co-
aprendizagem a partir de uma relação de
nhecer. Aprender está mais próximo dos
causa e efeito, em que o professor, detentor
movimentos mínimos, dos problemas que
de todo o saber, transmite um dado conhe-
instigam o pensamento, da experiência com
cimento ao aluno (KASTRUP, 2001).
o ato criador, ao passo que o conhecer está
Aprender por essas linhas impõe duas ques-
imbricado na generalidade do conceito.
tões demasiadamente problemáticas para
Embora Deleuze não tenha, efeti- Deleuze: a primeira quando se pressupõe
vamente, elaborado questões propriamente que só aprendemos quando alguém, com
educacionais, é possível encontrar nesse au- uma boa vontade, ensina algo; a segunda
tor algumas chaves que podem ser colocadas quando se vislumbra que somente aprende-
para o aprender e que confere abalos para a mos aquilo que é ensinado. Contra esses
educação posta pela imagem dogmática, axiomas, Deleuze dirá que “nunca se sabe
clarões derrubadores do pedagógico (OR- com antecedência como alguém aprenderá”
LANDI, 2018). (DELEUZE, 2006, p. 252), ou seja, não se
Em uma entrevista intitulada sobre a pode determinar se aquilo que estamos ensi-
filosofia (1992, p. 190), “dá-se um curso nando está, efetivamente, sendo aprendido.
sobre aquilo que se busca e não sobre o que Clarice Lispector, uma escritora con-
se saber”. A passagem em questão desloca o sagrada na literatura brasileira, embora não
professor do suposto saber, pois é claro que tenha se debruçado pelos problemas da
ele é iniciado em algum saber, mas o que educação, lança-nos alguns enigmas em seu
Deleuze (1992) levanta é que o professor romance Uma Aprendizagem ou O livro dos
compõe para si mesmo uma experiência prazeres (1998), sobre o aprender. Em certa
incessante no seu próprio aprendizado, em passagem, a personagem principal, Lori,
que ultrapassa o imediato para tornar o seu declara ao seu professor de Filosofia, Ulisses:
campo de atuação uma busca, desafiando a “Aprendo contigo mas você pensa que eu
si mesmo, promovendo uma abertura para o aprendi com tuas lições, pois não foi, apren-
desconhecido em si, fomentando no seu sa-
ber um campo problemático.
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di o que você nem sonhava em me ensinar” tros intensivos, indicando que o aprender diz
(LISPECTOR, 1998, p. 157). respeito a esse encontro com os afetos, com
o fortuito, que arrasta o corpo para lugares
Aprender com o outro, mas não
desconhecidos e instaura uma estranheza,
aquilo que foi efetivamente ensinado, é o
uma agitação, um desamparo, um seguir
mistério que Clarice propõe aos seus leitores,
pelas forças das sensações em que o corpo é
o qual, em certa medida, apresenta-se como
lançado por afetos velozes, lentos, disposi-
clarões desabadores do pedagógico, uma
ções, indisposições, independentemente de
vez que coloca em dúvida o aprender como
quem tenha emitido os signos, todo um cor-
resultado do fenômeno causa e efeito imbri-
po jogado ao sensível é instaurado.
cado na relação ensino e aprendizagem. No
romance em questão, Clarice se aproxima de
Deleuze, ainda que não o tenha lido, quan- Aprender diz respeito essencialmente
do expõe para Úlisses que não se pode pre- aos signos. Os signos são objeto de
ver de antemão como Lóri aprende, igual- um aprendizado temporal, não de
um saber abstrato. Aprender é, de
mente, que é possível pensar em um apren- início, considerar uma matéria, um
der que não é conduzido ou orientado pela objeto, um ser, como se emitissem
boa vontade do professor. Que aprendiza- signos a serem decifrados, interpre-
gem seria essa que se efetiva “com” o outro? tados. Não existe aprendiz que não
seja “egiptólogo” de alguma coisa.
Deleuze (2006) nos coloca uma Alguém só se torna marceneiro tor-
questão interessante sobre o aprender que nando-se sensível aos signos da ma-
deira, e médico tornando-se sensível
mobiliza o deslocamento do conectivo “co-
aos signos da doença. A vocação é
mo” em direção ao “com”. Lori aprendeu sempre uma predestinação com re-
“com” Ulisses, mas não “como” ele deseja- lação a signos. Tudo que nos ensina
va. Em Diferença e Repetição (2006, p. 48), alguma coisa emite signos, todo ato
de aprender é uma interpretação de
Deleuze afirma “nada aprendemos com signos ou de hieróglifos (DELEUZE,
aquele que nos diz: faça como eu. Nossos 2010, p. 4).
únicos mestres são aqueles que nos dizem
“faça comigo” e que, em vez de nos propor
O signo, como diz Deleuze, “nos
gestos a serem reproduzidos, sabem emitir
rouba a paz” (2010, p.15), colocando em
signos a serem desenvolvidos no heterogê-
perigo o coerente, provocando um despra-
neo”. Nessa passagem, encontramos abertu-
zer, uma insatisfação. De certa maneira,
ras para um aprender com os signos.
mostra que a ideia do aprender implica em
Em Proust e os signos (2010, p. 31- uma experiência do desassossego, fora da
32), Deleuze comenta: “quem sabe como forma, da estrutura organizadora do ensino.
um estudante pode tornar-se repentinamente Aqui não há uma natureza causal que reme-
bom em latim, que signos (amorosos ou até te a uma causa final, mas alguma coisa pas-
mesmo inconfessáveis) lhe serviram de sa pelo casual, pela exterioridade das rela-
aprendizado?”. A passagem vem implicando ções, não podendo mais ser deduzida dos
o corpo com os signos, corpo e seus encon- termos que a elas são ligadas. Como não

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dizer que isso seria um grito a toda e qual- sensivelmente o corpo para esferas desco-
quer uniformização dos corpos? Um grito nhecidas, implicando olhar o caos, assim
para a educação? Destacamos o heterogê- como pensar e o sentir e o fabular. Com is-
neo e a diferença como vetor fundamental so, o aprender remete a uma experiência
para o aprender. dinâmica e estética de maior envergadura,
pois promove a possibilidade de se entender
Em Diferença e Repetição (2006, p.
que o processo é caótico, heterogêneo, ina-
37), capítulo III, Da imagem do pensamento,
cabado, exigindo uma agitação permanente
Deleuze comenta:
instauradora de experiências criadoras frente
Fazem-nos acreditar que a atividade
à possibilidade do novo, lançando tanto o
de pensar, assim como o verdadeiro
e o falso em relação a esta atividade aluno quanto o professor a uma experiência
só começa com a procura de solu- criadora, pois pensar é criar.
ções, só concerne às soluções (...)
como se não continuássemos escra- Isso não remete a uma conexão com
vos enquanto não nos dispusermos o dado, com a fidelidade, com a adequação,
dos próprios problemas, de uma par- nem mesmo com o identificar, o reconhecer,
ticipação nos problemas, de um di- o universalizar, uma vez que implica em per-
reito aos problemas, de uma gestão
aos problemas. correr atos paradoxais que não emanam
necessariamente de uma inteligência e não
ocorre por relações de similaridades, de uni-
Na passagem anterior, o aprender formidades, de significante-significado, de
avança em uma complexa rede de pensar, linearidade, recusando um método predefi-
sendo que essa atividade não está reduzida a nido, sendo este um problema de cultura e
solucionar, mas diz respeito àquilo que nós de sensibilidade.
somos capazes de problematizar, formular O corpo é lançado em um precursor
problemas, inventar os próprios problemas, sombrio, “por isso, quando pensamos que
politizando nossas atitudes, escolhas, assim perdemos nosso tempo, seja por esnobismo,
como produzindo ações éticas e também seja por dissipação amorosa, estamos muitas
estéticas diante de nossa imersão nos cam- vezes trilhando um aprendizado obscuro, até
pos problemáticos. a revelação final de uma verdade desse tem-
O campo problemático tem relação po que se perde” (DELEUZE, 2010, p. 21).
efetivamente com os signos, pois eles dão Qualquer encontro com forças da ordem do
problemas, formam problemas, abrem nossa problemático tem potencial para mobilizar,
sensibilidade para o outro e para o mundo e no corpo, o aprendizado, “ainda que ele seja
são complexidades díspares que pulsam obscuro, isso é, algo de que não temos cons-
anarquicamente, variando infinitamente. ciência durante o processo” (GALLO, 2017,
Aprender, para Deleuze, está em uma com- p. 7).
plexa relação com o que difere no corpo O aprender não diz respeito ao
violentado pelas disparações do fora, insu- acúmulo do conhecimento, não depende de
flado em meios aos perceptos que arrastam uma verdade simples em oposição ao erro,

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mas tem ligações com os sentidos de quem outro modo, remetendo a uma eterna agita-
atribui o que é verdade. O aprender não é ção dos sentidos.
mera transmissão, tampouco vem como pre-
Aprender demanda algo a mais, exi-
enchimento de lacunas ou de estados de ge do corpo uma violência que force o pen-
ignorância, pois para ignorar é necessário samento, reivindica um exercício ético e es-
perceber, sentir os signos. Por isso, Lori tético; o ato de aprender exige que se aban-
aprendeu com Ulisses não necessariamente done essa aprazibilidade que conforta o su-
a matéria que o professor ministrava, mas jeito moral e metódico, forçando-o a pensar.
todos os signos que o homem emitia.
No conto Amor (1982), Clarice Lis-
pector nos apresenta a história de Ana. Mu-
Nunca se sabe como uma pessoa lher, mãe de família e dona de casa. Ana é
aprende; mas, de qualquer forma uma mãe comprometida com a educação
que aprenda, é sempre por intermé- dos seus filhos e o cuidado do marido. Seus
dio de signos, perdendo tempo, e
não pela assimilação de conteúdos dias são preenchidos com tarefas domésti-
objetivos. Quem sabe como um es- cas. Entre uma tarefa e outra, Ana vai à fei-
tudante pode tornar-se repentina- ra, ao supermercado, à farmácia. Cumpre
mente “bom em latim”, que signos fielmente com o destino de sua existência.
(amorosos ou até mesmo inconfes-
sáveis) lhe serviriam de aprendiza- Certa vez, voltando da feira, Ana avista, da
do? Nunca aprendemos alguma coi- janela do bonde, um homem cego, mascan-
sa nos dicionários que nossos profes- do chicletes e olhando em direção ao hori-
sores e nossos pais nos emprestam. zonte “sem sofrimento, com os olhos aber-
O signo implica em si a heterogenei-
dade como relação. Nunca se tos” (LISPECTOR, 1982, p. 24). Os olhos de
aprende fazendo como alguém, mas Ana estão fixados nessa imagem, paralisados
fazendo com alguém, que não tem em uma espécie de transe, a qual só é rom-
relação de semelhança com o que se pida com a “arrancada súbita” do bonde. A
aprende (DELEUZE, 2010, p. 21).
sacola de compras, depositada em seu colo,
cai no chão. As frutas se espalham. Os ovos
quebram revelando toda sua viscosidade ao
Aprender diz respeito aos modos in-
mundo. Ana também é “quebrada”. Esse
ventivos (ZOURABICHVILLI, 2016), não se
acontecimento, demasiadamente banal, des-
encontra plasmado em livros, em modelos,
perta um monstro que habita seu interior,
isso tudo pode até ajudar, mas não se consti-
um animal feroz até então adormecido. O
tui na experiência do aprender, que não se
caos se instaura em seu corpo. Enfurecida,
dá com a ação de extrair, de retirar, de copi-
Ana abandona suas compras, passa a pe-
ar, de imitar, mas como um signo que se
rambular, sem destino certo, o mundo.
afirma, que se escolhe, que se demarca em
O corpo de Ana é atravessado por
sentidos e preferências. A relação com o sig-
um projeto de educação configurada pelo
no implica o trabalho, implica problematizá-
processo civilizatório e erigido por uma boa
lo, atribuir valores, pois aprender é fazer de
moral, porém, o encontro com o cego ins-

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taura um desassossego, seu corpo sereno é Se aprendemos com contágios esté-
estilhaçado. Ana se vê diante de um apren- ticos, é porque existe um corpo. Segundo
dizado vital, instigado por um acontecimento Deleuze (2006, p. 37), “não há ideomotrici-
da ordem do problemático. Seu processo de dade, mas somente sensório-motricidade”.
aprendizado é uma travessia, pois para De- Ou seja, aprender não se pressupõe, efeti-
leuze (2006, p. 238), “aprender é tão- vamente, um movimento na ideia, mas agi-
somente o intermediário entre não-saber e tações de sensibilidades no corpo.
saber, a passagem viva de um ao outro” O que pode surgir desse encontro
(2006, p. 238). entre o corpo e a experiência estética? Não
Nesse sentido, aprender está ligado se sabe ao certo, não há como prever de
aos encontros com os signos, pois são eles antemão! Por isso, muitos tratados pedagó-
que exercem uma violência no pensamento. gicos falham na tentativa de impor uma teo-
São esses encontros que abrem possibilida- ria do aprender calcada em percursos meto-
des existenciais à vida, e isso só é possível dológicos que tomam a premissa de que to-
porque existe um corpo sensível que se dei- dos aprendem da mesma forma: “essa im-
xa afetar por essa força estranha, pelas expe- previsibilidade do aprender joga por terra
riências, pelos problemas que saltam a or- toda a pretensão da pedagogia moderna em
dem dos acontecimentos cotidianos: “Deleu- ser uma ciência, a possibilidade de planejar,
ze defende a noção de um aprender que não controlar, medir os processos de aprendiza-
é recognição, mas criação de algo novo, um gem” (GALLO, 2017, p. 37). Por essas li-
acontecimento singular no pensamento” nhas, não existem métodos que nos levem
(GALLO, 2017, p. 8). ao aprender, assim como não há um plane-
O aprender como experiência estéti- jamento fechado. O aprender floresce de
ca é um mergulho do corpo nas águas pro- modo singular em cada corpo, sensivelmente
fundas e misteriosas, ao mesmo tempo que afetado (KASTRUP, 2001).
se coloca à exposição do sensível, dos en- Não se sabe o que pode um corpo,
contros, que podem vir por todos os lados, assim como não se sabe como alguém
na leitura de um livro, na ida ao cinema, ao aprende. Como diria Deleuze (2006), a
teatro, o encontro com uma poesia…, con- aprendizagem é um percurso sombrio, é
tagiando-se com materialidades inventivas, uma experiência singular. O que sabemos é
não para explicar o que elas querem dizer, que na experiência estética podemos encon-
mas para experimentar, em seus corpos, blo- trar uma força insólita capaz de alargar nos-
cos de sensações. Estes encontros não se sas visões demasiadamente conservadoras,
traduzem apenas nas relações entre corpos nossas concepções fundamentadas na re-
vivos, mas também “entre corpos físicos; produção do senso comum, instigando o
corpos vivos e físicos. Mas para Deleuze, o corpo a pensar, levando-nos a questionar o
que se encontra não são corpos totalizados e que está posto e, quem sabe, fazer da vida
sim pontos notáveis dos corpos, que geram uma obra de arte, mas para isso é preciso
signos” (BARROS; MUNARI; ABRA- um envolvimento, uma experimentação.
MOWICZ, 2017, p. 108).

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Tamanha é a importância do apren- signos, que faz de toda educação alguma
der como experimentação estética com os coisa amorosa, mas também mortal (DE-
signos, que Deleuze nos apresenta um LEUZE, 2006, p. 31). O nadador é aquele
exemplo a partir do nadador: que cria um relacionamento de amor, mas
que também é um perigo inevitável de mor-
O movimento do nadador não se as- te.
semelha ao movimento da onda; e,
Aprender como experiência estética
precisamente, os movimentos do
professor de natação, movimentos é um acontecimento. O corpo é esse que
que reproduzimos na areia, nada são aprende a nadar, nadando, sentindo as par-
em relação aos movimentos da on- tículas das águas, percebendo como essas
da, movimentos que só aprendemos
partículas engendram o corpo e o conduzem
a prever quando os apreendemos
praticamente como signos (DELEU- para outro lugar. Esse aprender não diz res-
ZE, 2006, p. 31). peito ao universal, mas aos processos singu-
lares. Assim, aprender como experiência
Como o nadador aprende a nadar? estética é abrir o corpo para blocos de sen-
Deleuze (2006) dirá que o nadador aprende sações que, sendo atravessado por estes blo-
quando seu corpo sensível experimenta os cos, cria campos sensíveis, não como campo
signos da água. O nadador não aprende ao modelar, pois cada corpo, singularmente,
reproduzir as instruções de seu professor, emerge a partir dos seus encontros, permi-
pois se pode conhecer a técnica e ainda as- tindo dizer o quando a filosofia Deleuziana
sim não saber nadar. Só houve aprendizado faz desabar clarões de uma pedagogia dog-
porque o nadador se permitiu à aventura mática.
vital de entrar na água, de deixar seu corpo Contudo, se não é para seguir ao menos
contagiar-se com as suas micropartículas variar suas condições, pois não se trata de
aquosas. progresso, mas encontrar maneiras de entrar
Se falamos em um aprender (a na- no meio dos processos de experiência do
dar) como uma aventura é porque esta pode aprender, daí suas possibilidades estéticas
ser uma experiência amorosa e igualmente como alargamento do sensível.
mortal e estética. “Eis por que é tão difícil
dizer como alguém aprende: há uma familia-
ridade prática, inata ou adquirida, com os

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Recebido em: 23/07/2020


Aprovado em: 17/10/2020

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