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Podemos afirmar que existem três diferen­ mas não suficiente. Então, por quê mais?

tes formas de representar a relação ensino/a­ Penso que o professor age assim porque
prendizagem escolar ou, mais especificamente, ele acredita que o conhecimento pode ser
a sala de aula. Falaremos, inicialmente, de transmHldo para o aluno. Ele acredita no mHo
modelos pedagógicos e, na falta de terminologia da transmissão do conhecimento - do conheci­
mais atualizada, ou adequada, falaremos em mento enquanto forma ou estrutura; não só
pedagogia diretiva, pedagogia não-dlretlva e, enquanto conteúdo. O professor acredita, por­
talvez criando um novo termo, pedagogia rela­ tanto, numa determinada epistemologia. Isto é,
clonal. Mostraremos como tais modelos são, por numa "explicação" - ou, melhor, crença - da
sua vez, sustentados, cada um deles, por deter­ gênese e do desenvolvimento do conhecimento,
minada epistemologia. Epistemologia que se "explicação" da qual ele não tomou consciência
mostrou refratária a toda exuberante crítica da e que, nem por isso, é menos eficaz. Diz um
sociologia da educação que se desenvolveu no professor (Becker, 1992): O conhecimento "se
país, do final dos anos 70 até agora. dá à medida que as coisas vão aparecendo e
sendo introduzidas por nós nas crianças... ".
Outro professor diz: o conhecimento "é transmi­
A) Pedagogia diretiva e seu pressuposto tido, sim; através do meio ambiente, família,
• epistemológico percepções, tudo". Outro, ainda: o conhecimen­
to se dá "na medida em que a pessoa é estimu­
Pensemos no primeiro modelo. Para lada, ela é perguntada, ela é incitada, ela é
configurá-lo é só entrar numa sala de aula; é questionada, ela é, até, obrigada a dar uma
pouco provável que a gente se engane. O que resposta... ". Como se configura esta epistemolo­
encontramos aí? Um professor que observa gia?
seus alunos entrarem na sala, aguardando que Falemos, como na linguagem epistemoló­
se sentem, que fiquem quietos e silenciosos. As gica, em suJeHo e objeto. O sujeito é o elemen­
carteiras estão devidamente enfileiradas e to conhecedor, o centro do conhecimento. O
suficientemente afastadas umas das outras para objeto é tudo o que o sujeito não é. -O que é o
evitar que os alunos troquem conversas. Se o não-sujeito? -O mundo onde ele está mergulha­
silêncio e a quietude não se fizerem logo, o do: isto é, o meio físico e/ou social. Segundo a
professor gritará para um aluno, xingará outra epistemologia que subjaz à prática desse pro­
aluna até que a palavra seja monopólio seu. fessor, o indivíduo, ao nascer, nada tem em
Quando isto acontecer, ele começará a dar a termos de conhecimento: é uma folha de papel
aula. em branco; é tabula rasa. É assim o sujeito na
Como é esta aula? O professor fala e o visão epistemológica desse professor: uma folha
aluno escuta O professor dita e o aluno copia. em branco. Então, de onde vem o seu conheci­
O professor decide o que fazer e o aluno execu­ mento (conteúdo) e a sua capacidade de conhe­
ta. O professor ensina e o aluno aprende. Se cer (estrutura)? Vem do meio físico e/ou social.
alguém observasse uma sala de aula na década Empirismo. é o nome desta explicação da gêne­
de 60 ou de 50, ou, quem sabe, de dois séculos se e do desenvolvimento do conhecimento.
atrás, diria, provavelmente, a mesn1a coisa: Sobre a "tabula rasa', segundo a qual "não há
falaria como Paulo Freire, no Pedagogia do nada no nosso intelecto que não tenha entrado
Oprimido. Por que o professor age assim? lá através dos nossos sentidos', diz Popper
Muitos dirão, porque aprendeu que é assim que (1991): "Essa idéia não é simplesmente errada,
se ensina. Para mim, esta resposta é correta, mas grosseiramente errada ... •(p. 160). Volte-

EDUCAÇÃO E REALIDADE. Porto Alegre, 19(1): 89-96, jan./jun. 1994 89


mos ao prof88$Of' na sala de aula. tantas vftimas já produziu - é exercida com todo
O prof88$Of' considera que seu aluno é rigor, sem nenhum sentimento de culpa, pois há
tabula rasa não somente quando ele nasceu uma epistemologia, uma psicologia (da qual n ão
como ser humano, mas frente a cada novo falamos, aquQ e uma pedagogia que a legiti­
conteúdo estocado na sua grade curricular, ou mam. O aluno, egresso dessa escola, será bem
nas gavetas de sua disciplina A atitude, nós a recebido no mercado de trabalho, pois apren­
conhecemos. O alfabetizador considera que seu deu a silenciar, mesmo discordando, perante a
aluno nada sabe em termos de leitura e escrita autoridade do professor, .a não reivindicar coisa
e que ele tem que ensinar tudo. Mais adiante, alguma, a submeter-se e a fazer um mundo de
frente à aritmética, o professor, novamente, vê coisas sem sentido, sem reclamar. O produto
seu aluno como alguém que nada sabe sobre pedagógico acabado dessa escola é alguém
somas e subtraçOes. No segundo grau, numa que renunciou ao direito de pensar e que,
aula de física, o professor vai tratar seu aluno portanto, desistiu de sua cidadania e do seu
como alguém sem nenhum saber sobre espaço, direito ao exercício da política no seu mais pleno
tempo, relação causal. Já, na universidade, o significado: qualquer projeto que vise a alguma
professor de matemática olha para seus alunos, transformação social escapa a seu horizonte,
no primeiro dia de aula e "pensa": "60% já está pois ele deixou de acreditar que sua ação seja
reprovado!" Isto porque ele os concebe, não capaz de qualquer mudança. O cinismo é seu
apenas como folha em branco na matemática jargão. Traduzindo o modelo epistemológico em
que ele vai ensinar, mas, devido à sua concep­ modelo pedagógico, temos a seguinte relação:
ção epistemológica, considera-os estruturalmen.
te incapazes de assimilar esse saber.
Como se vê, a ação desse professor não A .- P
é gratuita. Ela é legitimada, ou fundada teorica­
mente, por uma epistemologia. Segundo esta, o
sujeito é totalmente determinado pelo mundo do O professor (P) representante do meio social,
objeto ou �io flSico e social. Quem representa determina o aluno (A) que é tabula rasa frente a
este mundo, na sala de aula, é, por excelência, cada novo conteúdo.
o professor. No seu imaginário, ele, e somente Nesta relação, o ensino e a aprendizagem
ele, pode produzir algum novo conhecimento no são pólos dicotÔmicos: o professor jamais
aluno. O aluno aprende se, e somente se, o aprenderá e o aluno jamais ensinará. Como diz
professor ensina O professor acredita no mito um professor ao responder à pergunta "qual o
da transferência do conhecimento: o que ele ·papel do professor e qual o do aluno?": "O pro-
sabe não importa o nível de abstração ou de
, fessor ensina e o aluno aprende; qual é a tua
formalização, pode ser transferido ou transmitido dúvida?". Ensino e aprendizagem não são pólos
para o aluno. Tudo o que o aluno tem a fazer é complementares. A própria relação é impossível.
submeter-se à fala do professor: ftcar em silên­ É o modelo, por excelência, do fixismo, da
cio, prestar atenção, ficar quieto e repetir tantas reprodução, da repetição. Nada de novo pode -

vezes quantas forem necessárias, escrevendo, ou deve - acontecer aqui.


lendo, etc, até aderir em sua mente, o que o
professor deu. Epistemologicamente esta rela­
ção pode ser assim representada: B) Pedagogia nio-dlretlva e seu pressuposto
epistemológico

Pensemos no segundo modelo. Não é


fácil detectar sua presença. Ele está mais nas
concepçoes pedagógicas e epistemológicas do
Como se vê, esta pedagogia, legitimada pela que na prática de sala de aula porque esta é
epistemologia empirista, configura o próprio dificil de viabilizar. PeQsemos, então, como seria
quadro da reproduçlo da Ideologia; reprodu­ a sala de aula de acordo com esse modelo. O
ção do autoritarismo, da coação, da heterono­ professor é um auxiliar do aluno, um facllltador
mia, da subserviência, do silêncio, da morte da (CarI Rogers). O aluno já traz um saber que ele
critica, da criatividade, da curiosidade. Nessa precisa, apenas, trazer à consciência, organizar,
sala de aula, nada de novo acontece: velhas ou, ainda, rechear de conteúdo. O professor
perguntas são respondidas com velhas respos­ deve interferi� imo possível. Qualquer ação
.
tas. A certW.8 do futuro está na reprodução pura que o aluno fazer é, a priorI, boa, instruti­
e simples do passado. A disciplina escolar - que va É o regime do lala88z-falre: "deixa fazer"

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que ele encontrará o seu caminho. O professor poder que é exercido sem reservas, com legiti­
deve "policiar-se" para interferir o mínimo posSí­ midade epistemológica, no modelo anterior, é
vel. Qualquer semelhança com a "liberdade de aqui escamoteado. Ora, a tram� de poder, em
mercado" do neo-liberalismo é mais do que qualquer ambiente humano, pode ser disfarça­
coincidência da, mas não eliminada Acontece que, na esc0-
O professor não-diretivo acredita que o la, há limites disciplinares intransponiveis. O que
aluno aprende por si mesmo. Ele pode, 1')0 acontece, então, com o pedagogo não-diretivo?
máximo, auxiliar a aprendizagem do aluno, Ou ele arranja uma forma mais "subliminar" de I

despertando o conhecimento que já existe nele. exercer o poder ou ele sucumbe. Freqüentemen­
-Ensinar? -Nem pensar! Ensinar prejudica o te, o poder, exercido deste modo, assume
aluno. Como diz um professor (Becker, 1992): formas mais perversas que na forma explícita do
"Ninguém pode transmitir. É o aluno que apren­ modelo anterior. Assim como no regime da "livre
de." Outro professor afirma: "Tu não transmite iniciativa" ou de "liberdade de mercado" o
o conhecimento. Tu oportuniza, propicia, leva a estado aumenta seu poder para garantir a
pessoa a conhecer". Outro, ainda: ... acho que
• continuidade e, até, o aumento cios privilégios
ninguém pode ensinar ninguém; pode tentar da minoria rica utilizando, não a perseguição
transmitir, pode tentar mostrar. .. acho que a política, mas a expropriação dos salários e a
pessoa aprende praticamente por si... ". Que desmoralização das instituições representativas
epistemologia sustenta este modelo pedagógi­ dos trabalhadores, assim também, por mecanis­
co? mos indiretos exerce-se, por vezes, numa sala
A epistemologia que fundamenta essa de aula não-diretiva, um poder tão predatório
postura pedagógica é a aprlorlsta e pode ser como o da sala de aula diretiva .. Por isso, Celma
assim representada, a nível de modelo: (1979) afirma que os alunos tinham pavor de
sua professora não-diretiva
Como vimos, uma pedagogia desse tipo
s -+ O não é gratuita Ela tem legitimidade teórica:
extrai sua fundamentação da epistemologia
apriorista O professor parece, no entanto, não
":Apriorismo" vem de a prior&, isto é, aquilo que tomar consciência disso. Esta mesma epistemo­
é posto antes como condição do que vem logia, que concebe o ser humano como cIotacIo
depois. -O que é posto antes? -A bagagem de um saber "de nascença", conceberá, tam­
hereditária Esta epistemologia acredita que o bém, dependendo das conveniências, um ser
ser humano nasce com o conhecimento já humano desprovido da mesma capacidade,
programado na sua herança genética. Basta um "deficitário". Este "déficit", porém , não tem
mínimo de exercicio para que se desenvolvam causa externa; sua origem é hereditária. -Onde
ossos, músculos e nervos e assim a criança se detecta maior incidência de difICUldades ou
passe a postar-se ereta, engatinhar, caminhar, retardas de aprendizagem? -Entre os miseráveis,
correr, andar de bicicleta... assim também com os mal-nutridos, os pobres, os (l18I'ginalizaclos...
o conhecimento. Tudo está previsto. É suficiente Está, aí, a teoria da carência cultural para garan­
proceder a ações quaisquer para que tudo tir a interpretação de que marginalização econô­
aconteça em termos de conhecimento. A interfe­ mico-social e "déficit" cognitivo são sinônimos.
rência do meio - físico ou social - deve ser A criança marginalizada, entregue a si mesma,
reduziãa ao mínimo. É só pensar no Emfllo de numa sala de aula não-diretiva, produzirá, com
Rousseau ou nas crianças de Summerhill (Sny­ alta probabilidade, menos, em termos de conhe­
ders, 1974). As ações espontâneas farão a cimento, que uma criança de classe média ou
criança transitar por fases de desenvolvimento, alta Trata-se, aqui, de acordo com o apriorismo,
cronologicamente fIXas, que são chamadas de de "défICit" herdado; epistemoJogicamente
"estágios" e que são, freqüentemente, confundi­ legitimado, portanto.
dos com os estágios da Epistemologia Genética Traduzindo em relação pedagógica o
piagetiana; nesta, os estágios são, ao contrário, modelo epistemológico apriorista, temos:
cronologicamente, variáveis. Voltemos ao papel
do professor.
O professor, imbuído de uma epiStemolo­ A -+ P
gia apriorista - inconsciente, na maioria das
vezes - renuncia àquilo que seria a caracteristica
fundamental da ação docente: a intervenção no
processo de aprendizagem do aluno. Ora, o

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o aluno (A), pelas suas condiçOes prévias, este material; este processo far-se-á por refle­
determina a ação - ou inanição - do professor xlonamento e reflexão (Piaget, 1977), a partir
(P). das questOes levantadas pelos próprios alunos
Nesta relação, o pólo do ensino é desau­ e das perguntas levantadas pelo professor, e de
torizado e o da aprendizagem é tornado absolu­ todos os desdobramentos que daí ocorrerem. O
to. A relação vai perdendo sua fecundidade na professor não acredita no ensino em seu sentido
exata medida em que se absolutiza um dos convencional ou tradicional, pois não acredita
pólos. Em outras palavras, a relação torna-se que um conhecimento (conteúdo) e uma condi­
impossível na medida mesma em que pretende ção prévia de conhecimento (estrutura) possa
avançar. Ensino e aprendizagem não conse­ transitar, por força do ensino, da cabeça do
guem fecundar-se mutuamente: a aprendizagem professor para a cabeça do aluno. Não acredita
por julgar-se auto-suficiente e o ensino por ser na tese de que a mente do aluno é tabula rasa,
proibido de interferir. O resultado é um processo isto é, que o aluno, frente a um conhecimento
que caminha inevitavelmente para o fracasso, novo, seja totalmente ignorante e tenha que
com prejuízo imposto a ambos os pólos. O aprender tudo da estaca zero, não importa o
professor é despojado de sua função, "sucatea­ estágio do desenvolvimento em que se encon­
do". O aluno guindado a um status que ele não tre. Ele acredita que tudo o que o aluno cons­
tem e sua não-aprendizagem explicada como truiu até hoje em sua vida serve de patamar
"déficit" herdado; impossível, portanto, de ser para continuar a construir e que alguma porta
superado. abrir-se-á para o novo conhecimento - é só
questão de descobri-Ia; ele descobre isto por
construção. "Aprender é proceder a uma síntese
C) Pedagogia relaciona I e seu pressuposto indefinidamente renovada entre a continuidade
epistemológico e a novidade" (Inhelder et alii, 1977, p.263);
aprendizagem é por excelência, construção;
O professor e os alunos entram na sala de ação e tomada de consciência da coordenação
aula. O professor traz algum material - algo que, das ações, portanto. Professor e aluno determi­
presume, tem significado para os alunos. Propõe nam-se mutuamente. Como vemos, a epistemo­
que eles explorem este material - cuja natureza logia deste professor mostra diferenças funda­
depende do destinatário: crianças de pré-escola, mentais com relação às anteriores. Como se
de primeiro grau, de segundo grau, universitá­ configura ela? A nível de modelo, podemos
rios, etc. Esgotada a exploração do material, o representá-Ia assim:
professor dirige um determinado número de
perguntas, explorando, sistematicamente, dife­
rentes aspectos problemáticos a que o material s ... O
dá lugar. Pode solicitar, em seguida, que os
alunos representem - desenhando, pintando,
escrevendo, fazendo cartunismo, teatralizando, O professor tem todo um saber construí­
etc. - o que elaboraram. A partir daí, discute-se do, sobretudo numa determinada direção do
a direção, a problemática, o material da(s) saber formalizado. Este professor, que age
próxima(s) aula(s). segundo o modelo pedagógico relacional,
Por que o professor age assim? Porque professa uma epistemologia também relacional.
ele acredita - melhor, compreende (teoria) - que Ele concebe a criança (o adolescente, o adulto),
o aluno só aprenderá alguma coisa, isto é, seu aluno, como tendo uma história de conheci­
construirá algum conhecimento novo, se ele agir mento já percorrida: a aprendizagem da língua
e problematizar a sua ação. Em outras palavras, materna é um fenômeno que absolutamente não
ele sabe que há duas cOlldições necessárias pode ser subestimado; eu ousaria dizer que a
para que algum conhecimento novo seja cons­ criança que fala uma língua tem condições,
truído: a) que o aluno aja (assimilação) sobre o respeitado o nível de formalização, de aprender
material que o professor presume que tenha qualquer coisa. Aliás, o ser humano, ao nascer,
algo de cognitivamente interessante, ou melhor, não é tabula rasa. Antes, ao contrário, ele traz
significativo para o aluno; b) que o aluno uma herança biológica que é o oposto da "folha
responda para si mesmo às perturbações (aco­ de papel em branco". Diz Popper, lembrando
modação) provocadas pela assimilação deste que a afirmação de que "nada há no intelecto
material, ou, que o aluno se aproprie, neste que não tenha passado primeiramente pelos
segundo momento, não mais do material, mas sentidos· é grosseiramente errada: "basta que
dos mecanismos íntimos de suas ações sobre nos lembremos dos 10 bilhOes de neurônios do

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nosso córtex cerebral, alguns deles (as células por outro prisma teórico, também de Piaget. A
piramidais do córtex) cada um com um total teoria da ab8traçlo reftexlonant., uma teoria
estimado em 10 mil sinapses- (p. 160) . Para explicativa que é mais competente que a teoria
Piaget, mentor por excelência de uma epistemo­ da equilibração para explicar o qlle acontece ao
logia relacionaJ, não se pode exagerar a impor­ nível das trocas simbólicas, ao nfvel da -manipu­
tância da bagagem hereditária nem a importân­ lação" dos simbolos, das relações sociais e não
cia do meio social. só ao nfvel da manipulação dos objetos do
O que ele rejeita, no entanto, é a crença mundo físico, com sua gama interminável de
de que a bagagem hereditária já traz, em si, aspectos expioráveís. Deixemos, no entanto, a
programados os instrumentos (estruturas) do teoria da abstração - já referida acima - para
conhecimento e segundo a qual bastaria o outra ocasião (Cf. Becker, 1993).
processo de maturação para estes instrumentos O professor' acredita que seu aluno é
manifestarem-se em Idades previsíveis, segundo capaz de aprender sempre. Esta capacidade
estágios cronologicamente fixos (apriorismo). precísa, no entanto, ser vista sob duas dimen­
Rejeita, de outro lado, que a simples pressão do sões, entre si, complementares. A estrutura, ou
meio social sobre o sujeito determinaria nele condição prévia de todo o aprender, que indica
mecanicamente, as estruturas do conhecer a capacidade lógica do aluno, e o conteúdo.
(empirismo). Para Piaget, o conhecimento tem Lembremos que, para Piaget (1967), a estrutura
início quando o recém-nascido age assimilando é orgânica, antes de ser formal. A dinamização
alguma coisa do meio físico ou social. Este ou dialetização do processo de aprendizagem
conteúdo assimilado, ao entrar no mundo do exige, portanto, dupla atenção do professor. O
sujeito, provoca, aí, perturbações, pois traz professor, além de ensinar, precisa aprender o
consigo algo novo para o qual a estrutura que seu aluno já construiu até o momento -
assimiladora não tem instrumento. Urge, então, condição prévia das aprendizagens futuras. O
que o sujeito refaça seus instrumentos de aluno precisa aprender o que o professor tem a
assimilação em função da novidade. Este refazer ensinar (conteúdos da cultura formalizada, por
do sujeito sobre si mesmo é a acomodação. É exemplo); isto desafiará a intencionalidade de
este movimento, esta ação que refaz o equilibrio sua consciência (Freire, 1979) ou provocará um
perdido; porém, o refaz em outro nível, criando desequillbrio (Piaget, 1936; 1967) que exigirá do
algo novo no sujeito. Este algo novo fará com aluno respostas em dU8$ dimensões comple­
que as próximas assimilaçOes sejam diferentes mentares: em conteúdo e em estrutura Para
das anteriores, sejam melhores: equilibração Freire, o professor, além de ensinar, passa a
majorante, isto é, o novo equilibrio é mais con­ aprender; e o aluno, além de aprender, passa a
sistente que o anterior. O sujeito constrói - daí, ensinar. Nesta relação, professor e alunos
conatrutlvlsmo - seu conhecimento em duas avançam no tempo. As relações de sala de aula,
dimensões complementares, como conteúdo e de cristalizadas - com toda a dose de monotonia
corno forma ou estrutura; como conteúdo ou que as caracteriza - passam a ser fluídas. O
como condição prévia de assimilação de qual­ professor construirá, a cada dia, a sua docência,
quer conteúdo. dinamizando seu processo de aprender. Os
No mundo interno (endógeno) do sujeito, alunos construirão, a cada dia, a sua discência,
algo novo foi criado. Algo que é síntese do que ensinando, aoS colegas e ao professor, novas
existia, antes, como sujeito - originariamente, da coisas. Mas, o que avança mesmo nesse pro­
bagagem hereditária - e do conteúdo que é cesso é a condição prévia de todo aprender ou
assimilado do meio social. O sujeito cria um de todo conhecimento, isto é, a capacidade
outro, dentro dele mesmo, que não existia construída de, por um lado, apropriar-se critica­
originariamente. E cria-o por força de sua ação mente da realidade física e/ou social e, por
(assimiladora e acomodadora). A ação do outro, de çonstruir sempre mais e novos conhe­
sujeito, portanto, constitui, correlativamente, o cimentos. Traduzindo pedagogicamente o
objeto e o próprio sujeito. Sujeito e objeto não modelo epistemológico, temos:
existem antes da ação do sujeito. A consciência
não existe antes da ação do sujeito. Porque a
consciência é, segundo Piaget, construída pelo A ++ P
próprio sujeito na medida em que ele"'S8 apro­
pria dos mecanismos íntimos de suas ações, ou,
melhor dito, da coordenação de suas ações. A tendência, nessa sala de aula é a de
Este processo constitutivo não tem fim, e superar, por um lado, a disciplina poIicialesca e
nem começo absoluto. Ele pode ser explicado a figura autoritária do professor que a represen-

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ta, e, por outro, a de ultrapassar o dogmatismo passado porque ai se encontra o embrião do
do conteúdo. Não se tr� de instalar um regime futuro. VIVe-se intensamente o presente na
de anomia (ausência de regras ou leis de convi­ medida em que se constrói o futuro, buscando
vência), ou o laaaez-falr., nem de esvaziar o no passadosua fecundação. Dos escombros do
conteúdo curricular; estas coisas são caracteris­ passado delineia-se o horizonte do futuro;
ticas do segundo modelo epistemológico com o origina-se, dai, o significado que dá plenitude ao
qual confunde-se, freqQentemente, uma propos­ presente. Para quem pensa que estou dese­
ta construtivista Trata-se, antes, de criticar, nhando um mar de rosas, alerto que, para
radicalmente, a disciplina policialesca e construir grande número de indivíduos, configura-se
uma disciplina intelectual e regras de convivên­ como extremamente penoso mexer no passado.
cia, o que permite criar um ambiente fecundo de Como diz a mãe de um menino de rua: Para
aprendizagem. Trata-se, também, de recriar que vou lembrar o passado se ele não tem nada
cada conhecimento que a humanidade já criou de bom? Aqui, os conceitos, muito próximos
(pois não há outra forma de entender-se a entre si, de tomada de consciência de Piaget e
aprendizagem, segundo a psicologia genética de conscientização de Freire são excepcional­
piagetiana - só se aprende o que é (re)criado mente fecundos para dialetizar o processo
para si e, sobretudo, de criar conhecimentos passado-presente-futuro. A convicção que a
novos: novas respostas para antigas perguntas epistemologia genética nos traz é a de que este
e novas perguntas refazendo antigas respostas; é o caminho para jogar-se para o futuro, para
e, não em última análise, respostas novas para adiantar-se aos acontecimentos. Para não andar
perguntas novas. Trata-se, numa palavra, de a reboque da história, mas para fazer história;
construir o mundo que se quer, e não de repro­ para ser sujeito, portanto.
duzir/repetir o mundo que os antepassados
construíram para eles ou herdaram de seus
antepassados.
O resultado dessa sala de aula é a cons­ CONSID ERAÇOES FINAIS
trução e a descoberta do novo, é a criação de
uma atitude de busca, e de coragem que esta Ajuntemos, num todo, os vários modelos,
busca exige. Esta sala de aula não reproduz o epistemológicos e pedagógicos, que deixamos
passado pelo passado, mas. debruça-se sobre o para trás:

QUADRO I
Comparação dos modelos pedagógico e epistemológico

EPISTEMOLOGIA PEDAGOGIA
Teoria Modelo Modelo Teoria
Empirismo S �O A�P Diretivismo
Apriorismo S�O A�P Não-Diretivismo
Construtivismo SMO AMP Ped. Relacional

Se sobrepusermos as duas colunas disciplinaridade, se este n\vel não estiver con­


"modelos·, estaremos mais próximos da repre­ templado. Vamos apontar, sem desenvolver, as
sentação desejada Isto é, a mesma relação possibilidades que são abertas por esta forma
existente entre S e O a n\vel epistemológico está de análise, ampliando a tabela acima Para isto,
presente na relação A e P ao estabelecer-se, em incluamos três disciplinas que, de formas dife­
sala de aula, uma relação cognitiva. Encontra­ renciadas, pretendem interferir na tarefa de
se, aqui, o motivo mesmo de nossa análise: teorizar o quefazer educacional: a biologia, a
desvendar as relações epistemológicas que psicologia e a sociologia, ao lado da epistemolo­
ocorrem no âmago das relações pedagógicas. gia e da pedagogia:
De acordo com Piaget, não se pode fazer inter

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QUADRO 11
Comparação dos modelos biológico, psicológico e sociológico

Biologia Psicologia Sociologia

Modelo Teoria Modelo Teoria Modelo Teoria

Or �M Lamarckismo R �E Associac. I �Ms Positivismo


Behavior
Or ....M Darwinismo/Néo-Darwinismo R .... E Gestalt I ....Ms Idealismo
earl Rogers
Or -M Biolog� Relacionais R -E Psicologia I -Ms Dialética
Genética

Or = Organismo M = Meio R = Resposta E = Estímulo I = Indivíduo Ms = Meio social

Por falta de espaço não colocamos neste epistemologias do senso comum, tornando-o
quadro os modelos epistemológico e pedagógi­ incapaz de tomar consciência das amarras que
co. Para fazer isso é só trazer o QUADRO I e pó­ aprisionam seu fazer e seu pensar. Pudemos
lo ao lado do QUADRO 11. experienciar o quanto de fecundidade te6rico­
critica - aliás, inesgotável - a epistemologia
Em nossas pesquisas, ou em observaçOes genética piagetiana possibilita. O �nsamento
informais, detectamos o seguinte comportamen­ de Paulo Freire tem mostrado, em alguns mo­
to: professores que participavam de greves do mentos, uma fecundidade similar, em termos
magistério público estadual ou federal, como pedagógicos [e, também, em termos epistemoló­
·militantes progressistas·, mostrando compreen­ gicos (Cf. Andreola, 1993)).
são - a nível macro - do que acontecia na eco­ Uma proposta pedagógica, dimensionada
nomia e na polftica, ao retornar à sala de aula pelo tamanho do futuro que vislumbramos, deve
(nível micro) , após o término da greve, voltavam ser construída sobre o poder constitutivo e
a ser professores plenamente sintonizados com criador da ação humana - "é a ação' que dá
o modelo A. Sua critica sociológica, freqüente­ significado às coisas!·. Mas não a ação aprisio­
mente lúcida, exercida, via de regra, segundo nada: aprisionada pelo treinamento, pela mono­
parâmetros marxistas, mostrava-se incapaz de tonia mortífera da repetição, pela predatória
atingir sua ação docente (prática); também não imposição autoritária. Mas sim, a ação que, num
atingia seu modelo pedagógico (teoria) . Por primeiro momento, realiza os desejos humanos,
quê? suas necessidades e, num segundo momento,
Não se desmonta um modelo pedagógico apreende simbolicamente o que realizou no
arcaico, somente pela critica sociológica, por primeiro momento: não só assimilação, mas
mais importante que seja esta. Segundo nossa assimilação e acomodação; não só reflexiona­
hipótese, a desmontagem de um modelo peda­ mento, mas reflexionamento e reflexão; não só
gógico só pode ser realizada completamente ação de primeiro grau, mas ação de primeiro e
pela critica epistemológica. Em outras palavras, de segundo graus - e de enésimo grau; numa
a critica epistemológica é insubstituível para a palavra, não só prática, mas prática e teoria. A
superação .de práticas pedagógicas flXistas, acomodação, a reflexão, as açOes de segundo
reprodutivistas, conservadoras - sustentadas por grau e a teoria retroagem sobre a assimilação,
epistemologias empirista ou apriorista. Note-se o reflexionamento, as açOes de primeiro grau e
que estas epistemologias fundam, por um lado, a prática, transtormando-os. Poder-se-á, assim,
o positivismo e, de forma menos fácil de mos­ enfrentar o desafio de partir da experiência do
trar, o néo-positivismo, e, por outro, o idealismo educando, recuperando o sentido do processo
ou o racionalismo. pedagógico, isto é, recuperando e (re) constituin­
Pensamos, também, que a formação do o próprio sentido do mundo do educando...
docente precisa incluir, cada vez mais, a critica e do educador.
epistemológica. Nossa pesquisa sobre a episte­ Uma proposta pedagógica relacional visa
mologia do professor (Becker, 1992) mostrolfo a sugar o mundo do educando para dentro do
quanto esta critica está ausente e o quanto seu mundo conceitual do educador. Este mundo
primitivismo conserva o professor prisioneiro de conceitual do educador sofre perturbações, mais

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ou menos profundas, com a assimilação deste teórica, pêra e reflete, perguntando-se pelo
conteúdo novo. A alternativa é: responder ou significado de suas açOes futuras e, progressiva­
sucumbir. A resposta abre um novo mundo de mente, das açOes do coletivo onde ele se Inse­
criaçOes. A não-resposta çpndena o professor re? Esta, parece-me, é a pergunta fundamental
às velhas fórmulas que deScrevemos, acima e, que pennlte iniciar o processo de r....ur.çlo
conseqüentemente, à perda do significado de do algnlftcado e da construção de um mundo
-

sua existência A condição para que o professor de significaçOes futuras que justificarão a vida
responda.está. como vimos, numa critica radical individual e coletiva
não só de seu modelo pedagógico, mas de sua
concepção epistemológica.
***
Para enfrentar este desafio, o professor
deveria responder, antes, a seguinte questão:
que cidadão ele quer que seu aluno seja? Um Nota
individuo subserviente, dócil, cumpridor de
1. VersAo simplificada deste texto foi publicada na
ordens sem perguntar pelo significado das
revista Palxlo de Aprender, da Secretaria Munlcl­
mesmas, ou um individuo pensante, critico, que,
paI'de Educação de Porto Alegre.
perante cada nova encruzilhada prática ou
***

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Femando Becker é professor da Faculdade de Educaçao e


atual coordenador do Programa de P6s-GraduaçAo em Educaç40 da UFRGS.

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