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LARROSA, Jorge & RECHIA, Karen C. P de Professor. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018.

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Aprendizagem

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Karen.
Há certas palavras em educação que produzem em mim o efeito que sentia Alex, o
protagonista de Laranja Mecânica, que ao ser submetido a um tratamento para deixar de ser
violento, é obrigado a uma gentileza forçada, pois seu corpo produzia um mal-estar quase
excruciante a cada situação ou palavra com mínima agressividade. “Aprendizagem” é uma delas.
Não sei exatamente como, nem porquê, mas de um dia para outro, numa das universidades
privadas em que trabalhei, fomos obrigados a trocar os objetivos de ensino, por objetivos de
aprendizagem. Eu nem sabia que era possível tamanha distinção. Mas era. Lá estavam listas
infindáveis para decorar, formação de professores intensivas, chefes, sub-chefes e coordenadores
para os quais nossos planos eram enviados e... suspiros de alívio quando era o colega a ser
chamado por algum desses estafetas da instituição, para prestar explicação.
Passei a repetir os mesmos objetivos todos os anos, até que num ano, o novo coordenador
disse que havia ali, no mesmo plano repetido, objetivos de ensino e não de aprendizagem.
“Aprendi” a última lição: quando mudava o estafeta, eu os trocava de lugar.
Este breve devaneio me leva às suas aulas. Mais de uma vez você colocou que a escola não
é lugar de aprendizagem, de desenvolvimento das habilidades, mas é o lugar do estudo e da
exercitação. Aliás, nenhuma vez utilizaste a palavra “aprendizagem” para qualquer coisa que não
fosse contra ela.

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Jorge.
Talvez deveríamos dizer algo sobre nossas não-palavras. É que o problema não são as
palavras, mas o fato de que em torno de algumas delas há uma ideologia toda. Como se houvesse
palavras (e a palavra “aprendizagem” é uma delas) que condensaram todo um caminho da
compreensão da educação, as instituições educativas e, com elas, a natureza do ofício de
professor. Não é a palavra "comunicação" que rejeito, mas a ideologia comunicacional, o fato de
compreender a linguagem humana e, portanto, leitura e escrita, ao modo de comunicação, ou o
fato de entender o professor como um comunicador ou a matéria de estudo como um conteúdo.
Não é que eu não goste da palavra "profissão" (uma velha palavra, e nobre), mas compreender o
ensino universitário para o modo exclusivo de profissionalização, como se a função principal da
universidade fosse formar profissionais e, portanto, como se o professor tivesse que dirigir aos
seus alunos como futuros profissionais. Para mim, disse-o na palavra “aluno”, é essencial poder
me dirigir a eles também com estudantes e não apenas como profissionais em formação, e isso é
muito difícil quando se instala a ideologia do profissionalismo. Mas vamos à palavra
“aprendizagem”.
Não é a palavra “aprendizagem” em si que me incomoda, mas o modo como a ideologia da
aprendizagem, com toda sua carga individualista, psicológica e cognitiva, colonizou os discursos
e as práticas educativas. Alguém me contava que, em sua universidade, uma universidade do
norte da Europa, todos os departamentos, pesquisas e matérias de estudos que tinham que ver
com o “ensino” (teaching) ou com a educação (education), estavam se tornando em departamento,
em pesquisas e em disciplinas sobre “aprendizagem” (learnig). Nas escolas, do pré-escolar a
universidade, já não se ensina, mas se aprende. Qualquer programação tem que ser feita com base
nos objetivos de aprendizagem e com vistas a resultados de aprendizagem. Uma aprendizagem
que, assim, tem que ser autônoma e significativa. E concordarás comigo que uma sala de aula não
é o mesmo que um contexto de aprendizagem. A sala de aula é o lugar fundamental de trabalho
do professor e o lugar

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fundamental da escola. Mas um contexto de aprendizagem pode ser instalado em qualquer lugar
e, portanto, nele não há nada que se pareça a um professor. Há toda uma “learnification” da
educação, da escola e da universidade.
E sublinhemos já que nem sequer se trata de aprender algo, mas do assim chamado aprender
a aprender. Não precisa ser muito perspicaz para perceber a relação do aprender a aprender com
a produção de um profissional (de um sujeito) flexível, multiuso, multifuncional, adaptável,
intercambiável e, dessa maneira, completamente descaracterizado, esvaziado, dessubjetivado,
supérfluo, condenado à obsolescência e, por assim dizer, a uma aprendizagem sem fim, à
reciclagem permanente. Apenas se pode ser qualquer coisa, e fazer qualquer coisa, e se
transformar em qualquer coisa, quando não se é nada em particular, quando não se sabe nada
em particular. Por isso, o que oculta o aprender a aprender é, hoje em dia, na assim chamada
“sociedade da aprendizagem”, o que alguns preferimos chamar de “capitalismo cognitivo”,
aprender algo, saber algo, é um estorvo. E isso se pode ver também no que está acontecendo com
os professores, não só com os universitários, que têm também que ser flexíveis, multifuncionais,
intercambiáveis, permanentemente recicláveis e adaptáveis. E se sabe algo, se dedicaram sua vida
a estudar algo, se se vincularam a uma área do saber concreta ou específica, isso se torna um
problema porque, segundo dizem, criaram demasiadas rotinas, demasiados hábitos.
Em qualquer caso, não é que na universidade não se aprenda, ou que meus alunos não
aprendam, ou que não possamos seguir usando a palavra “aprendizagem”. O que não podemos
fazer ou, minimamente, o que eu não quero fazer, o que prefiro não fazer, é entender meu ofício
com algo que tenha a ver com aprendizagem. E isso me coloca em uma posição estranha,
anacrônica, cada vez mais insustentável. Há um documento oficial da minha universidade que
afirma que o perfil dos alunos mudou, agora a função do professor não é ensinar, transmitir
conteúdos, mas propiciar, organizar e facilitar a aprendizagem. Eu, pessoalmente, não sei se
alguma vez

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ensinei algo. O que sei é que nunca transmiti conteúdos. Minhas disciplinas nunca foram
pensadas e organizadas como se trouxessem pacotes de conhecimento, de coleções de saberes, de
listas de conteúdos. E também sei que meu ofício não consiste em produzir aprendizagens. Eu
trabalho com textos. Meu ofício consiste em ler e dar a ler e, quiçá, com sorte, em dar a pensar.
Os textos (palavras e imagens) com relação aos que trabalho não são nem suporte de conteúdo,
nem transporte de conhecimentos, tampouco depósito de saberes, ferramentas para obter
resultados de aprendizagem.
Na palavra “aluno” tu me perguntaste pela distinção entre estudante, discípulo e aprendiz.
A categoria de estudante aparece na universidade medieval. De fato, a universidade é herdeira
dos Studia Generalia das ordens religiosas ou das escolas catedráticas. E é a universidade que
distingue o estudante do aprendiz (daquele que exercia sua aprendizagem fazendo-se aprendiz
nas oficinas de artesanatos, isto é, no lugar de trabalho). É a universidade também que distingue
o estudante do discípulo, que é uma palavra com conotação mais dogmática. Um discípulo é um
seguidor (de um mestre, de uma doutrina, alguém que se submete a uma disciplina, de uma
ordem religiosa, por exemplo). Na universidade não há aprendizes, nem seguidores, mas
estudantes.
Quando as revoltas contra a reforma das universidades europeias, a partir do que se chamou
Plano Bolonha, os meninos e as meninas usaram um abaixo assinado em que dizia: “Somos
estudantes e não mercadorias nas mãos de políticos e banqueiros”, ou “Somos estudantes e não
capital humano”. Eu acredito que poderia ser compreendido um abaixo assinado que contivesse
“Somos estudantes e não aprendizes” (de fato, a learnification da universidade é o que mais se
parece à produção de capital humano) ou “Somos estudantes e não discípulos”.
Eu, pessoalmente, não tenho aprendizes em minhas aulas, tampouco discípulos. Não me
dirijo às pessoas que se sintam, a cada dia nas aulas, nem como alunos, nem como aprendizes,
nem como discípulos, nem sequer como capital humano ou como futuros

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profissionais. Dirijo-me a eles como estudantes, porque sigo crendo que à universidade se vai
para estudar, e que aprender, nesse sentido estúpido de “learning”, é algo que se pode fazer em
qualquer outro lugar. Seguramente, no shopping também se aprende muito, e no lugar de
trabalho, mas a universidade não é um shopping, não é lugar de trabalho ainda que cada vez
mais se pareça a esses lugares.
Se perguntássemos a meus alunos, ao terminar o curso ou ao final de uma aula, o que é que
aprenderam, sua resposta teria que ser que não aprenderam nada ou, ao menos, nada
reconhecível, objetivável, avaliável. Se me perguntassem a mim o que ensino, teria muitas
dificuldades em responder. E, então, apenas posso mentir, ou dissimular, como tu fazias nessa
universidade em que trabalhavas, quando completo as lacunas com “objetivos de aprendizagem”
e de “resultados de aprendizagem” no assim chamado “projeto docente” das disciplinas de que
dou aula. Meus cursos não estão orientados para a produção de resultados, mas para ter efeitos,
para produzir alguma movimentação, algum movimento.
Certamente, se percebeste, apenas uso as palavras “ensinar” e ”aprender” em minhas aulas,
e aí as uso enfaticamente, para as reprimendas ou para o que chamo de minhas lições morais,
meus sermões, minhas arengas. Esses breves parênteses de um professor que rosna e é casca-
grossa, esses que produzem um silêncio especial e um desconcerto maiúsculo, esses nos quais me
dirijo aos estudantes na terceira pessoa, como para dar certa solenidade irônica ao que digo, esses
nos quais me ponho sério e, concomitantemente, nos que não posso dissimular certo sorriso, esses
no quais imposto uma voz de padre, de predicador, esses momentos em começam comigo
dizendo: “O que vocês deveriam aprender...” ou “O que de verdade gostaria de ensinar-lhes...”
ou “Espero que em minhas aulas vocês tenham aprendido que...” ou “A lição mais importante
que gostaria de dar-lhes hoje...”.

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