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732 PLACCO, Vera Maria Nigro de Souza • A didática e a formação de professores:...

A didática e a formação de professores:


analogias e especificidades1

Vera Maria Nigro de Souza Placco*

À medida que, como estudiosos da Formação de Pro-


fessores, nos aprofundamos em seus conceitos e na natureza
em construção do conhecimento profissional, nos damos con-
ta, cada vez mais, da presença, do significado e da necessida-
de de discussão sobre a Didática.
As questões que envolvem o ensino nos trazem a cla-
reza de que, além da transmissão de conhecimento ou conte-
údos, múltiplos outros aspectos precisam ser considerados.
Tenho, em várias ocasiões (PLACCO, 2005a, 2005b, 2005c,
2006, 2007), mostrado as muitas dimensões que participam
da ação docente e que não são levadas em conta pelo próprio
professor e pelos processos formativos. Por outro lado, é im-
portante destacar alguns paradoxos e movimentos que carac-
terizam a ação em sala de aula: o poder do professor sobre
sua própria ação se confronta com o poder da instituição; a
autonomia do professor se confronta com a determinação
institucional ou legal sobre programas e currículos. Nesse
espaço de ações docentes, de determinações institucionais e
sistêmicas, o professor escolhe o ensino que quer fazer, mas

____________
*
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP.
veraplacco@pucsp.br
1
Muitas das reflexões apresentadas neste trabalho são fruto de discussões
do Grupo de Estudos sobre a Aprendizagem do Adulto Professor, da
PUC-SP. Participantes: Emília Freitas de Lima – UFSCar, Betania Rama-
lho – UFRN e Vera Maria Nigro de Souza Placco – PUC-SP
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também realiza o ensino que pode realizar. E é nesse âmbito


que a Didática precisa ser compreendida.
Muitos autores têm discorrido sobre a complexidade
do ser professor, a complexidade didática dele exigida e, por-
tanto, a complexidade da formação. Neste texto, não temos a
pretensão de esgotar a discussão sobre o que seja – ou deva
ser – a Didática, hoje, mas indicar algumas questões que con-
sideramos essenciais que sejam feitas ao campo da Didática e
aos estudiosos da área, assim como indicar relações possíveis
e necessárias entre Didática e Formação de Professores.

Didática – que questões?

A Prof. Drª. Hildizina Inácia Pereira Norberto Dias,


da Universidade Pedagógica de Maputo (Moçambique), em
uma exposição2 sobre a realidade de sala de aula de seu país,
dá exemplos magníficos quanto ao exercício docente de pro-
fessores, em seu país, considerando-se a diversidade cultural
do mesmo. O que é ensinar ler e escrever em Língua Portu-
guesa para alunos provenientes de etnias, culturas e religiões
diversas, além de usuários de trinta ou mais línguas banto, e
que não têm a Língua Portuguesa como primeira língua?
Segundo a Prof. Hildizina, os professores de Maputo
dizem que, após cursarem a instituição formadora, abando-
nam a didática, pois essa “não dá certo” em suas salas de au-
la, que contêm de setenta a oitenta alunos de seis e sete anos
de idade (a média, no país, é de noventa alunos por profes-
sor). Se os professores abandonam a didática, o que fazem, na
escola? Que didática abandonam e o que fazem em sala? Que
nome atribuem ao que fazem em sala de aula, se não é didáti-
ca? Esses professores mostram conformismo e resignação
com a situação social e econômica do país. Por essa mesma
____________
2
Em encontro com o Grupo de Estudos sobre Aprendizagem do Adulto
Professor, da PUC-SP.
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situação, não pensam muito no amanhã (até porque sua espe-


rança de vida não ultrapassa os 39 anos de idade). No entan-
to, esses professores conseguem êxito – mesmo que parcial –
no ensinar seus alunos. Dizem olhar seus alunos e identificar
suas necessidades e dificuldades, buscando adequar ações
docentes à realidade deles (e não seria isso didática?). Dentro
do repertório daqueles alunos, das circunstâncias sociais e
culturais da escola, conseguem alavancar a aprendizagem dos
alunos. Respondendo a esse desafio, que é semelhante ao
desafio posto a todos nós, professores, como conseguem bons
resultados? Os professores declaram sentir-se recompensados
moralmente pelo seu compromisso com os alunos. No entan-
to, é pelo compromisso com sua função educadora, pela sua
capacidade de olhar seus alunos e identificar suas necessida-
des e possibilidades que esse sucesso é alcançado? Como o
professor se constitui professor, nesse contexto? No exercício
da atividade docente, a interação do professor com a realida-
de parece lhe propiciar a aprendizagem de saberes, diferentes
talvez dos da formação – isto é, aqueles padronizados nos
livros –, mas que dão conta de melhorar sua atividade docen-
te. Enfrenta a situação não com o que é ensinado na faculda-
de, mas com saberes da experiência – que são, a meu ver,
uma intersecção do que aprende na faculdade e o que se a-
crescenta como frutos de seu próprio envolvimento como
sujeito naquela realidade.
Esses fatos, relatados pela Profª Hildizina, nos intro-
duzem na discussão de uma primeira pergunta: Que didática
é essa? Qual a “linha d’água” que separa o que é realizado
em sala de aula e aquilo que é o substrato não visível da ação
didática? Como, em sala de aula, um afeta o outro? Que co-
nexões se estabelecem? Que autoria se constrói nesse afetar-
se mutuamente? Como visualizar o processo didático, no
tempo da sala de aula e do desenvolvimento do aluno?
Se tomarmos conceituações tradicionais de Didática,
vamos nos defrontar com autores como: Comenius, Hans
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Aebli, Amélia de Castro, José Carlos Libâneo, Vera Candau,


Clodia Turra, Demerval Saviani, Aguayo e outros. Pensar a
Didática de seu ponto de vista, seja como “a arte de ensinar
tudo a todos”; como o método de ensinar, partindo do simples
para o complexo, do próximo ao distante, do particular para o
geral; como o jeito próprio de ensinar de cada um; como o
viabilizar uma boa aula; o trabalhar bem os conteúdos; quais
os métodos de “como” planejar e ensinar, seja mesmo como
saberes, nos elucida um pouco da sua história, mas, ao mes-
mo tempo, não nos diz como compreendê-la hoje, da perspec-
tiva do aluno, do professor desse aluno, da escola, como se
apresentam na contemporaneidade.
Cada uma daquelas concepções mencionadas tem
mostrado suas fragilidades, suas lacunas e incompletudes. O
que falta à Didática? Na década de 1980, Vera Candau nos
provocou com sua discussão sobre o contraponto entre didá-
tica instrumental e didática fundamental, apontando a multi-
dimensionalidade da didática, em suas dimensões técnica,
humana e política. No entanto, ainda hoje, mais de 25 anos
após, nos debatemos com os significados e a utilização desses
conceitos, na formação de professores e na sala de aula. Can-
dau e Anhorn (2000) procuram ampliar nossa compreensão,
retomando sua didática fundamental da perspectiva multicul-
tural, convocando-nos à sua ressignificação.
É a presença do sujeito contextualizado culturalmente
– seja o professor, seja o aluno – que nos oferece uma primei-
ra possibilidade de resposta à questão “que didática é essa?”.
Os saberes didáticos são a expressão dos sentidos e significa-
dos atribuídos pelo sujeito à sua prática docente. Esses sabe-
res são implicados entre si, articulados com a atividade do
professor e do aluno, com a subjetividade deles, e podem ser
considerados muito diferentes do que o senso comum chama
“didática”.
Se pensarmos, portanto, didática como espaço de ex-
pressão e troca de sentidos e significados entre os atores do
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processo de ensino e aprendizagem, incluímos, naquilo que o


senso comum propõe, uma ampliação desses significados:
não mais apenas um “como” fazer, mas um fazer que modifi-
ca a situação de sala de aula e os sujeitos nela envolvidos.
Assim, como diz Marli André (no referido Grupo de Estu-
dos), os “saberes” recuperam o humano – o sujeito que ensina
e o que aprende. O ponto de partida para essa troca de senti-
dos e significados é a sala de aula. Nela, o ensino e a aprendi-
zagem fluem quando têm significado. O desafio do professor
consiste em encontrar o que fará sentido para os outros do
processo. Na relação professor/aluno, há sentidos que podem
ser compartilhados. Ensinar e aprender têm um sentido para o
professor. E têm um sentido para o aluno. Esses sentidos os
fazem agir de determinadas formas, porque essa forma de
agir os aproxima de seus objetivos (valores e crenças permei-
am esse movimento). Se os sentidos atribuídos às atividades
por professores e alunos têm pontos em comum, há a possibi-
lidade de compreensão e troca. Assim, o professor assume o
lugar de instigar e desafiar o aluno para que este avance, isto
é, para que vá além do ponto em que está e aprenda. O pro-
fessor precisa alavancar o conhecimento do aluno e, nesse
contexto, os procedimentos didáticos em sala de aula expres-
sam a intencionalidade de colocar o outro em situação de
aprendizagem. Atribuir significados e sentidos assume um
papel transformador. E a didática precisa ser provocativa do
olhar, da atenção que promova o desenvolvimento, tirando
professor e aluno da acomodação e da rotina.
No entanto, como compartilhar sentidos? Como a es-
cola se constitui momento de compreensão? Essa é uma outra
questão que permanece, pois vemos, com freqüência, o pro-
fessor trabalhar para que o aluno se aproprie do conhecimen-
to, mas este se afasta ou não se envolve (O filme Leões e
Cordeiros mostra bem essa relação entre professor e aluno).
Educar é projetar; faz parte do processo civilizatório. No en-
tanto, os jovens de hoje, pelas condições da própria socieda-
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de, lidam com a incerteza do futuro de maneira peculiar; es-


tão ligados ao presente, buscando respostas imediatas ou qua-
se imediatas aos seus desejos. E a escola trabalha em outro
ritmo, envolvendo um tempo de desenvolvimento e de cons-
trução. Como lidar com esse aparente paradoxo? Onde en-
contrar pontos de contato para os significados da aprendiza-
gem, nesse contexto?
Uma possibilidade que temos identificado se encontra
na construção de vínculos entre alunos e professor, o que
demanda e possibilita compartilhar sentidos. Na comunica-
ção, a idéia precisa ser compartilhada em termos de perspec-
tivas comuns. Portanto, buscar a perspectiva do outro é fun-
damental, pois isso permite construir vínculos, mesmo nas
condições de trabalho que o professor enfrenta, na realidade
escolar atual. E essa busca talvez deva se iniciar partindo do
que o outro conhece, da sua experiência, daquilo que faz sen-
tido para ele. Um contraponto a essa questão se faz presente:
O professor sabe como esse aluno vê a escola? Ou como se
vê nela? Como o aluno vê o próprio professor e a relação
professor/aluno? A resposta a essas questões dará indicações
para que essa didática se concretize na sala de aula. Se o pro-
fessor consegue saber quem é esse aluno e como pensa, está
pondo em prática uma didática entendida da perspectiva que
inclui o sujeito, e pode ser o caminho para a aproximação.
Nesse contexto, é necessário relembrar a questão: co-
mo o professor se constitui professor? Qual o papel da didáti-
ca, nessa constituição? O professor é o autor de sua docência,
isto é, ele realiza, em sala de aula, a didática que sabe e que
pode. E, neste processo, expressa sua subjetividade, suas
crenças e valores, suas representações sobre educação, aluno,
escola, sobre seu próprio papel, e, ao mesmo tempo, constrói
sua identidade pessoal e profissional. Assim, a didática que
vive em sala de aula é expressão dessa identidade, dessa sub-
jetividade, desses valores e dessas representações. Que auto-
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ria tem esse professor, que lhe confere uma característica


única e diferenciada como docente?
No entanto, para pensarmos a atuação desse professor,
temos que ter clareza quanto aos seguintes aspectos: O que
destas características e valores está oculto? O que é aparente?
Lida-se com a ponta do iceberg, mas não se sabe o que está
implícito. A que necessidades, desejos e intencionalidades
estão respondendo as ações docentes desencadeadas pelo
professor? Que representações sociais tem o professor sobre
seus alunos, sobre a escola, sobre seu próprio papel como
professor? Nesse sentido, é fundamental o papel do formador
de professores, para ajudá-los na compreensão de seus pró-
prios processos, ajudá-los a desconstruir certezas, para que
outras possam ser apresentadas e repostas? É a partir desses
decursos que o professor poderá desencadear processos de
aprendizagem eficazes nos alunos, aprimorando sua capaci-
dade de gestão de pessoas e de estimulação para que elas
construam seus projetos de vida profissional.
Uma outra idéia merece ser olhada com um pouco
mais de vagar. O que é específico da didática? Tenho enten-
dido didática como a aproximação sistemática e circunstanci-
ada aos processos de ensino e aprendizagem. Com isso, quero
reafirmar a necessidade de nos re-apossarmos de alguns con-
ceitos fundamentais da área – planejamento, objetivos, conte-
údos, avaliação, relação professor/aluno, metodologia, Afi-
nal, a didática está histórica e culturalmente ligada ao saber
fazer, ao saber ensinar. São conceitos fundamentais para a
área da Educação e, por questões também históricas, permi-
timos ser desapossados deles – sob pena de sermos conside-
rados “tecnicistas”3... No entanto, no contexto do projeto po-
____________
3
Tenho dito, em inúmeras ocasiões, que temos tido muitos conceitos e
palavras “roubados” de nós, pois são usados com sentidos políticos ou
ideológicos diversos dos nossos e temos que deixar de usá-los... No en-
tanto, enfatizo também a necessidade de que nos reapossemos dessas
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lítico pedagógico da escola, da realidade sociocultural dos


alunos e do próprio professor, esses conceitos são guias fun-
damentais para o trabalho pedagógico do professor, sem os
quais corremos o risco da improvisação e da falta de rumos,
em nosso trabalho. Pelo planejamento, o professor pode esta-
belecer melhores relações com a realidade da escola, identifi-
car necessidades e obstáculos e prever ações possíveis para
enfrentá-los e superá-los. E nesse processo, diferentemente de
uma ação puramente técnica, seu olhar, sua subjetividade e
seu compromisso são importantes. Será sua mediação que
porá em ação os procedimentos que farão a articulação entre
os conteúdos da área de conhecimento e os objetivos de di-
versas ordens que estão envolvidos no processo ensino e
aprendizagem.
Por isso, revisitar os temas clássicos da didática – pla-
nejamento, objetivos, conteúdos, metodologia, avaliação deve
ser posto ao lado de: princípios, conhecimentos prévios, me-
diação do professor (linguagem, explicação, desafios, hipóte-
ses, criatividade), demonstração, experiência, serendipidade
(o que não é esperado acontece), recursos, persistência, paci-
ência (tempo), multidisciplinaridade, interdisciplinaridade,
sistemáticas (planejamento, organização), considerando as
circunstâncias – tempo, espaço, pessoas, relações, processos,
movimentos, cultura, concepções. Assim, a intencionalidade
da didática pode ser realizada: colocar o outro em processo
de aprendizagem.
Atende-se, desse modo, ao que Vera Candau e
Anhorn (2000), comentando a agenda de hoje da Didática,
propõem: responder o desafio da pós-modernidade, romper
fronteiras e articular saberes, reinventar a escola. E isso, com
certeza, acarretará a reinvenção da própria didática.

____________
palavras e conceitos e lutemos para que seu sentido possa ser ressignifi-
cado pela área da Educação.
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Nas condições encontradas nos dias de hoje para a re-


invenção da Didática, lembremos que, a partir dos anos 90,
imprimiram-se nas escolas as marcas da globalização e novas
exigências e desafios se fazem presentes para a própria escola
e para o homem, numa revolução significativa de técnicas,
tecnologias, valores e relações. E essa mesma situação, na
escola, para se enfrentar esse mundo diferente, de professores
diferentes, alunos diferentes, faz-se necessária uma didática
circunstanciada e matizada, na qual as dimensões sociocultu-
ral e psicossocial de alunos e professores sejam consideradas,
assim como revisitados os temas clássicos da didática men-
cionados.

Formação de Professores:

Em um texto sobre Didática e formação de professo-


res, apresentado no ENDIPE 2004, Curitiba, pr (PLACCO,
2005a), chamo a atenção para o fato de que
tanto a Didática quanto os processos de formação do professor
envolvem as mesmas e múltiplas dimensões – dimensões da
formação técnica, humano-interacional, ético-política, dos sabe-
res para ensinar, da formação continuada, crítico-reflexiva, esté-
tica e cultural, dentre outras. [...] Dado que didática e formação
do professor evocam processos unos e complexos, essas dimen-
sões precisam ser consideradas em suas inter-relações e co-
ocorrência, em sua dialeticidade (p. 95).
Em outra publicação, decorrente de apresentação no
ENDIPE 2006, Recife, PE, acrescento, às dimensões mencio-
nadas, a dimensão da formação identitária (PLACCO, 2006),
dado que identifico, cada vez mais, a importância da compre-
ensão de que as diferentes dimensões da formação de profes-
sores se articulam e sintetizam nessa formação identitária,
constituída no coletivo da sala de aula, com a presença e a
interferência do professor.
Trajetórias e processos de ensinar e aprender: didática e formação de professores - XIV ENDIPE 741

Nesse sentido, não se pode ignorar a importância de


que a didática também tenha um foco identitário, fato de que
já se apercebeu o meio empresarial, nas ações de formação
que empreendem.
Retomo, rapidamente, as dimensões apresentadas na-
queles textos, fazendo a relação deles com as necessidades
apresentadas quanto ao campo da didática.
As dimensões apresentadas são: técnica ou técnico-
científica, humano-interacional, política, de formação conti-
nuada, de trabalho coletivo, de saberes para ensinar, crítico-
reflexiva, avaliativa, estética, cultural, ética e de formação
identitária. “Uma delas – a dimensão ética – nos leva a ques-
tões de volição, desejos e compromissos, atitudes, valores,
intencionalidades e ações conseqüentes e, portanto, atravessa
todas as outras (PLACCO, 2006, p. 255).
Pensar a didática com relação a algumas dessas di-
mensões não apresenta dificuldades. Afinal, faz parte da vi-
são tradicional da didática trabalhar com a dimensão técnica
ou técnico-científica, dos saberes para ensinar, avaliativa.
Pode-se até mesmo dizer que há, em muitos cursos, uma pre-
ocupação com a formação crítico-reflexiva dos futuros pro-
fessores. O que não há, muito freqüentemente, é a preocupa-
ção com a formação de uma atitude investigativa, que leve o
futuro professor a se voltar para constante atualização, em
sua área de conhecimento, fato agravado pela velocidade da
transformação e evolução da ciência atual.
Embora se constate que o que se vive na escola só
ocorre pela intermediação do afetivo em relação ao cognitivo,
ancorado no ético-político e em função da sociedade e cultura
locais, embora, ainda, as dimensões humano-interacional
(interpessoal), cultural, política e ética sejam valorizadas no
discurso de muitos professores e formadores de professores,
essas dimensões não constam como tópicos de trabalho, nas
disciplinas ligadas à didática.
Quando se trata de trabalho coletivo e integrado, en-
tendemos que este possibilita a emergência de novas práticas
docentes quando ocorre uma real comunicação e integração
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entre os profissionais da escola. E essa integração pode mes-


mo permitir “que movimentos de consciência e de compro-
misso se instalem e se ampliem, e uma nova forma de gestão
e uma nova prática docente podem ser implementadas”
(PLACCO, 2006, p. 255). No entanto, mais uma vez, esses
não são temas tratados nas disciplinas ligadas à didática, nos
cursos de formação.
Finalmente, as experiências estética e cultural não fa-
zem parte da formação dos cidadãos deste país, o que cria um
círculo vicioso: se “o professor que não vive experiências
culturais e estéticas, dificilmente poderá provocá-las em seus
alunos” (PLACCO, 2006, p. 260) E mais: se os cidadãos,
alunos e professores, não têm vínculo com sua cultura e suas
produções artísticas, como podem constituir-se identitaria-
mente nessa sociedade e nessa cultura?
Em simpósio no ENDIPE de 2006, eu escrevia – e
preciso reafirmar agora:
Todas essas dimensões não são, comumente, pensadas como
áreas de formação nas quais devamos interferir, mas o são, na re-
alidade, pois fazem parte da totalidade do ser humano e do pro-
fissional. E mais: são áreas de formação extremamente delicadas
e difíceis para um trabalho formativo. Não se pode perder de vis-
ta que lidar com o desenvolvimento profissional e a formação do
educador é lidar com a complexidade do humano, com a forma-
ção de um ser humano que pode ser sujeito da transformação de
si e da realidade, realizando, ele mesmo, essa formação como re-
sultado de sua intencionalidade. (PLACCO, 2006, p. 255)
No entanto, apesar de sua importância, duas coisas
são extremamente preocupantes: a maioria das dimensões não
é considerada e reconhecida, e, portanto, sua inseparabilida-
de, sua co-ocorrência e dialeticidade não são parte da forma-
ção – o que, a nosso ver, marca uma concepção de didática e
uma limitação significativa na formação de futuros professo-
res.
Trajetórias e processos de ensinar e aprender: didática e formação de professores - XIV ENDIPE 743

Alguns indicadores de ação

Para se construir um campo de formação com maior


especificidade e menor ocultamento da pessoalidade, é neces-
sário não apenas se considerar a multidimensionalidade que
caracteriza o ser humano em formação, mas também inventar
formas de ação e inovação na área da didática.
Para isso, autores como Barros (2006), Soligo (2003)
e vários participantes do nosso grupo de Estudos indicam
caminhos e possibilidades: a utilização dos registros, na for-
mação; a reflexão sobre o lugar da pesquisadora, na docência;
a preocupação com a relação humana e o olhar para a subjeti-
vidade; o cuidado com a comunicação e com o outro; a orga-
nização e planejamento; a intencionalidade em relação à
aprendizagem do outro; a valorização da autoria; as parcerias;
os grupos de trabalho e pesquisa; as mediações.
A formação pode, pela recorrência à memória, à auto-
biografia profissional, possibilitar conexões da prática e do
vivido com os processos identitários, de modo que a reflexão
provocada seja um verdadeiro debate interno com os “outros
internalizados”.
No entanto, não podemos deixar de chamar a atenção
para a questão dos limites – não só os limites da formação,
mas também os limites da própria docência.
Com todos os questionamentos que têm sido feitos à
formação, esta – especialmente a formação inicial – carece de
instrumentos para atingir, de forma cabal e completa, toda a
complexidade que envolve a formação do ser humano.
Assim, no tempo da formação, nem sempre é possível lidar
com todos os aspectos por mim mencionados como essenci-
ais para a formação, especialmente no que diz respeito a dois
elementos fundamentais: o desenvolvimento da consciência
que o professor tem que ter dessas dimensões, em seu signifi-
cado para sua docência e o compromisso necessário com a
docência, com a própria formação e com a formação de seus
alunos.
Quando se trata do limite relativo à docência, a situa-
ção não é muito diferente. Certas expectativas são postas ao
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professor: dar conta da classe, da disciplina, dos conteúdos,


da aprendizagem, mas, na prática, nem sempre ele consegue,
seja por não ter as habilidades necessárias, seja pelas condi-
ções de trabalho e infraestrutura da escola. Não se deixa claro
o quanto ele deve dar o melhor de si, mas, com certeza, não
dará conta de tudo sozinho. Deveria contar com a equipe ges-
tora da escola, com seus pares, com familiares dos alunos e
com o próprio aluno, além de condições formadoras ofereci-
das pelo próprio sistema de ensino. Ao mesmo tempo, ao
professor não é oferecida uma formação adequada para traba-
lhar corretamente com a leitura e a interpretação de índices e
indicadores. Assim, o professor não identifica alguns dos
resultados positivos de sua sala de aula que poderiam ser res-
saltados. Ao mesmo tempo, os dados da mídia apresentam
generalizações, do tipo: os alunos chegam à 8ª série sem sa-
ber ler e escrever... Precisamos de dados estatísticos, não de
generalizações, pois a opinião pública – e o próprio professor
– passam a utilizar essas generalizações, o que distorce os
resultados obtidos.
Para enfrentar esses limites, o professor deve desen-
volver a consciência dos papéis que desempenha e recursos
interpessoais para dar conta desta diversidade de contextos.
Uma dimensão identitária que suporte a sua atuação.
Os cursos de formação desses professores deverão ter
essa função civilizatória, garantindo a abordagem da multi-
plicidade de dimensões que constituem o humano. E isso só
poderá ser atingido se os próprios cursos de formação tiverem
claras as posturas e habilidades que devem desenvolver, além
dos princípios e fundamentos que representam.
Se estas dimensões forem engendradas com a consciência e in-
tencionalidade do professor que se forma, abre-se a possibilidade
de processos formativos em que sentidos (da ordem do pessoal) e
significados (da ordem do coletivo) são construídos, por meio de
relações pedagógicas e pessoais significativas, seja cognitiva, se-
ja afetivamente. São esses sentidos e significados que possibili-
tam a estruturação de si e do outro, ampliam o desenvolvimento
da consciência, possibilitam interações e aprendizagens signifi-
cativas, possibilitam parcerias nas quais essas dimensões, simul-
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tânea e alternadamente, mobilizam a construção e constituição da


pessoa inteira. (PLACCO, 2002)
Como diz Barros (2006), aprender a ensinar é lição de
todo dia. Se os professores se utilizarem de organizadores
didáticos que tenham a referência do sujeito, em sua relação
com a sociedade e a cultura, para a concretização de sua ação
docente, realizarão o que a autora chama de o difícil possí-
vel...
E cabe a nós, formadores de professores, atender ao
que Eduardo Galeano (1991, p.15) descreve: frente à imensi-
dão do mar, me ajuda a olhar, diz a criança... Frente à com-
plexidade da sala de aula, me ensina a olhar e a agir – isto é
didática!

Referências

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