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R IHGB

a. 172
n. 452
jul./set.
2011
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
DIRETORIA – (2010-2011)
Presidente: Arno Wehling
1º Vice-Presidente: Victorino Coutinho Chermont de Miranda
2º Vice-Presidente: Max Justo Guedes
3º Vice-Presidente: Affonso Arinos de Mello Franco
1ª Secretária: Cybelle Moreira de Ipanema
2ª Secretária: Maria de Lourdes Viana Lyra
Tesoureiro: Fernando Tasso Fragoso Pires
Orador: José Arthur Rios
CONSELHO FISCAL
Membros efetivos: Antônio Gomes da Costa, Marilda Corrêa Ciribelli e Jo-
nas de Morais Correia Neto.
Membros suplentes: Pedro Carlos da Silva Telles e Marcos Guimarães Sanches.

CONSELHO CONSULTIVO
Membros nomeados: Augusto Carlos da Silva Telles, Luiz de Castro Souza,
Lêda Boechat Rodrigues, Evaristo de Moraes Filho, Hé-
lio Leoncio Martins, João Hermes Pereira de Araujo, José
Pedro Pinto Esposel, Miridan Britto Falci e Vasco Mariz
DIRETORIAS ADJUNTAS
Arquivo: Jaime Antunes da Silva
Biblioteca: Claudio Aguiar
Museu: Vera Lucia Bottrel Tostes
Coordenadoria de Cursos: Antonio Celso Alves Pereira
Patrimônio: Guilherme de Andréa Frota
Projetos Especiais: Mary del Priore
Informática e Disseminação da Informação: Esther Caldas Bertoletti
Relações Externas: Maria da Conceição de Moraes Coutinho Beltrão
Relações Institucionais: João Maurício Ottoni Wanderley de Araújo Pinho
Iconografia: D. João de Orléans de Bragança e Pedro Karp Vasquez
Coordenação da CEPHAS: Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal
Guimarães.
Editoria do Noticiário: Victorino Coutinho Chermont de Miranda

COMISSÕES PERMANENTES
ADMISSÃO DE SÓCIOS: CIÊNCIAS SOCIAIS: ESTATUTO:
José Arthur Rios, Alberto Ve- Lêda Boechat Rodrigues, Maria Affonso Arinos de Mello Fran-
nancio Filho, Carlos Wehrs, Al- da Conceição de Moraes Couti- co, Alberto Venancio Filho,
berto da Costa e Silva e Fernan- nho Beltrão, Helio Jaguaribe de Victorino Coutinho Chermont
do Tasso Fragoso Pires. Mattos, Cândido Antônio Men- de Miranda, Célio Borja e João
des de Almeida e Antônio Celso Maurício A. Pinto.
Alves Pereira.

GEOGRAFIA: HISTÓRIA: PATRIMÔNIO:


Max Justo Guedes, Jonas de João Hermes Pereira de Araújo, Affonso Celso Villela de Car-
Morais Correia Neto, Ronaldo Maria de Lourdes Viana Lyra, valho, Claudio Moreira Bento,
Rogério de Freitas Mourão e Eduardo Silva e Guilherme de Victorino Coutinho Chermont
Miridan Britto Falci. Andréa Frota. de Miranda e Fernando Tasso
Fragoso Pires.
REVISTA
DO
INSTITUTO HISTÓRICO
E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.
Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172, n. 452, pp. 11-622, jul./set. 2011.


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 172, n. 452, 2011

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Sumários Correntes Brasileiros

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Tiragem: 700 exemplares
Impresso no Brasil – Printed in Brazil
Revisora: Sandra Pássaro
Secretária da Revista: Tupiara Machareth

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. - Tomo 1, n. 1 (1839) - . Rio de Janeiro: o


Instituto, 1839-
v. : il. ; 23 cm

Trimestral
ISSN 0101-4366
Ind.: T. 1 (1839) - n. 399 (1998) em ano 159, n. 400. – Ind.: n. 401 (1998) - 449 (2010) em n. 450
(2011)
N. 408: Anais do Simpósio Momentos Fundadores da Formação Nacional. – N. 427: Inventá-
rio analítico da documentação colonial portuguesa na África, Ásia e Oceania integrante do acervo
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro / coord. Regina Maria Martins Pereira Wanderley
– N. 432: Colóquio Luso-Brasileiro de História. O Rio de Janeiro Colonial. 22 a 26 de maio de 2006.
– N. 436: Curso - 1808 - Transformação do Brasil: de Colônia a Reino e Império.

1. Brasil – História. 2. História. 3. Geografia. I. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Ficha catalográfica preparada pela bibliotecária Celia da Costa


Conselho Editorial
Arno Wehling – UFRJ, UGF e UNIRIO – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Antonio Manuel Dias Farinha – U L – Lisboa – Portugal
Carlos Wehrs – IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Eduardo Silva – FCRB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Humberto Carlos Baquero Moreno – UP, UPT, Porto, Portugal
João Hermes Pereira de Araújo – Ministério das Relações Exteriores e IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
José Murilo de Carvalho – UFRJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Vasco Mariz – Ministério das Relações Exteriores, CNC e IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Comissão da Revista: Editores


Eduardo Silva – FCRB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Esther Bertoletti – MinC – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Lucia Maria Paschoal Guimarães – UERJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Maria de Lourdes Viana Lyra – UFRJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Mary Del Priore – UNIVERSO – Niterói – RJ– Brasil

Conselho Consultivo
Amado Cervo – UnB – Brasília – DF – Brasil
Aniello Angelo Avella – Universidade de Roma Tor Vergata – Roma – Itália
Antonio Manuel Botelho Hespanha – UNL – Lisboa – Portugal
Edivaldo Machado Boaventura – UFBA e UNIFACS – Salvador – BA
Fernando Camargo – UPF – Passo Fundo – RS – Brasil
Geraldo Mártires Coelho – UFPA – Belém – PA
José Octavio Arruda Mello – UFPB – João Pessoa – PB
José Marques – UP – Porto – Portugal
Junia Ferreira Furtado – UFMG – Belo Horizonte – MG – Brasil
Leslie Bethell – Universidade Oxford – Oxford – Inglaterra
Márcia Elisa de Campos Graf – UFPR– Curitiba – PR
Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – UFPE – Recife – PE
Maria Beatriz Nizza da Silva – USP – São Paulo – SP
Maria Luiza Marcilio – USP – São Paulo – SP
Nestor Goulart Reis Filho – USP – São Paulo – SP – Brasil
Renato Pinto Venâncio – UFOP – Ouro Preto – MG – Brasil
Stuart Schwartz – Universidade de Yale – Inglaterra
Victor Tau Anzoategui – UBA e CONICET – Buenos Aires – Argentina
SUMÁRIO
SUMMARY
Carta ao Leitor 11
Lucia Maria Paschoal Guimarães

I ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS
Dossiê História do Direito –
Dossier on the History of Law
Apresentação 13
Presentation
Samuel Rodrigues Barbosa
Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas
pombalinas no campo jurídico 15
Pro King, with Good Reason: comments on the legal reforms
undertaken by the Marquis of Pombal
Álvaro de Araujo Antunes
Súditos del-rei na América Portuguesa. Monarquia Corporativa,
virtudes cristãs e ação judicial na Villa de Nossa Senhora
da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII 51
The King’s subjects in Portuguese America: Corporate
Monarchy, christian virtues and legal action in Vila de São José
dos Pinhais, Curitiba, during the eighteenth century
Luís Fernando Lopes Pereira
As Prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira (1746-1827):
alguns aspectos do discurso pró-absolutista na literatura
jurídica portuguesa do final do antigo regime 87
The lectures of Ricardo Raymundo Nogueira (1746-1827):
some aspects of the pro absolute power writings in the Portuguese
legal literature during the end of the ancient regime
Airton Cerqueira-Leite Seelaender
Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino
Pereira Cleto (1778-1794) 115
Native by adoption: Dr. Marcelino Pereira Cleto’s (1778-1794)
writings and route
Marco Antonio Silveira

Justiça ordinária e justiça administrativa no Antigo Regime –


O caso do brasileiro 177
Common justice and adminstrative justice in the Ancient
Regime: Brazilian Case Study
Arno Wehling e Maria José Wehling
¡VIVA LA PEPA!: A história não contada da Constitución
Española de 1812 em terras brasileiras 201
VIVA LA PEPA! The untold history of the 1812 Spanish
Constitution in Brazil
Vicente de Paulo Barretto e Vítor Pimentel Pereira
A administração da justiça nas primeiras décadas do Império
do Brasil: instituições, conflitos de jurisdições e ordem pública
(c.1823-1850) 225
The administration of justice during the first decades
of Brazilian Empire: institutions, conflicts over jurisdiction
and public order(c. 1823-1850)
Andréa Slemian
Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830: o levante
de escravos como crime de insurreição 273
From the “Statutes” to the 1830 Brazilian Criminal Code:
The uprising of slaves as crime of insurrection slave uprising as a
Monica Duarte Dantas
O Império da Moderação: agentes da recepção do pensamento
político europeu e construção da hegemonia ideológica
do liberalismo moderado no Brasil imperial 311
The Empire of Moderation: receiving agents of the European
political thinking and the construction of ideological leadership
of moderate liberalism in Imperial Brazil
Christian Edward Cyril Lynch
Teixeira de Freitas: Um jurisconsulto “traidor”
na modernização jurídica brasileira. 341
Teixeira de Freitas, a “treacherous” legal counselor in the
juridical modernization of Brazil
Ricardo Marcelo Fonseca
“Somos da América e queremos ser americanos”: Relações
Brasil-Portugal e antilusitanismo na fundação da República 355
“We are from America and wish to be americans”:
Brazil-Portugal relations and anti-Portugal feelings in the
foundation of the Brazilian Republic
José Sacchetta Ramos Mendes
A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na
industrialização brasileira 373
The “Steel Industry Issue” and the role of the State
in Brazilian industrialization
Gilberto Bercovici
Interés argentino en la cultura jurídica brasileña a mediados
del siglo XX. El caso de la revista La Ley durante
el quinquenio 1941-1945 415
Argentine interest in Brazilian juridical culture in the
mid-twentieth century: Case Study of the Journal
“La Ley” during the five-year period, 1941-1945
Ezequiel Abásolo

II COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS
Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final
do século XIX 429
The jus-phisosophical thought of Clovis Bevilaqua
at the end of the nineteenth century
Maria Arair Pinto Paiva
O Imperador da língua portuguesa 461
The Emperor of the Portuguese language
Arnaldo Niskier
O padre Antônio Vieira, um diplomata desastrado 473
Father Antonio Vieira – A clumsy diplomat
Vasco Mariz

VIEIRA, político 499


VIEIRA, the politician
José Arthur Rios
Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica
da Serra de Ibiapaba (1655-1759) 507
Father Antonio Vieira and the Jesuit mission
of Serra de Ibiapaba (1655-1759)
Cláudio Aguiar

V DOCUMENTOS
DOCUMENTS
Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios
brasileiros no século XVIII 547
Documents on “Common Judges” in Brazilian territories
in the seventeenth century
Joaquim Romero de Magalhães

IV RESENHAS
REVIEW ESSAYS
Geografias Pátrias: Portugal e Brasil 615
Luciene Carris Cardoso
• Normas de publicação 371
Guide for authors 373
Carta ao Leitor

Nos últimos anos, os dossiês temáticos passaram a ocupar espaço


cada vez maior na organização das revistas especializadas. Acompanhan-
do a tendência, mas sem perder a sua formatação original, este número
da R. IHGB publica na seção “Artigos e Ensaios” o dossiê História do
Direito. Preparado pelo Prof. Samuel Rodrigues Barbosa, da Universida-
de de São Paulo, reúne treze colaborações, assinadas por pesquisadores
de diversas instituições de ensino superior, inclusive da Argentina, que
foram convidados a se debruçar sobre temas e problemas relativos à cir-
culação das ideias e à prática do Direito, bem como a administração da
justiça, em diferentes períodos da nossa história. As contribuições, por
certo, constituem um momento de reflexão que irá potenciar o debate
sobre o campo da História do Direito.

Também no âmbito da História do Direito, porém no segmento des-


tinado às “Comunicações”, reservado à divulgação de trabalhos expostos
nos encontros da Comissão de Estudos e Pesquisas Históricas (CEPHAS),
há que se destacar a rigorosa análise da Profª Maria Arair Pinto Paiva, a
respeito do pensamento jusfilosófico de Clóvis Bevilaqua. Na sequência,
aparecem quatro intervenções apresentadas no Instituto, a propósito das
comemorações do “Ano Vieirino”, em 2008, quando se celebrou a pas-
sagem do quarto centenário de nascimento do padre Antônio Vieira. São
elas: “O Imperador da língua portuguesa”; “O padre Antônio Vieira, um
diplomata desastrado”; “Vieira, o político” e “Padre Antônio Vieira e a
missão jesuítica da Serra de Ibiapina (1655-1759)”. Redigidas, respec-
tivamente, pelos sócios Arnaldo Niskier, Vasco Mariz, José Arthur Rios
e Cláudio Aguiar, as achegas iluminam aspectos da vida e da obra do
notável religioso.

Mas a História do Direito volta se fazer presente. Desta feita, na


seção “Documentos”, com a edição de um conjunto de manuscritos do
Arquivo Histórico Ultramarino, que tratam da atuação dos “juízes ordi-
nários” nos terrítórios brasileiros no século XVIII. Vale salientar que a
transcrição das fontes vem precedida de um alentado estudo de autoria do
Prof. Joaqum Romero de Magalhães, da Universidade de Coimbra.

Arremata este número a resenha de Luciene Pereira Carris Cardoso,


sobre o livro Geografias Pátrias: Brasil e Portugal – 1875-1889, lançado
recentemente por Cristina Pessanha Mary. Centrada no estudo da história
da geografia no Brasil, a obra oferece também uma contribuição original
ao campo das relações luso-brasileiras, à medida que explora a efêmera
trajetória da Filial da Sociedade de Geografia de Lisboa, criada no Rio de
Janeiro, em 1875.

Boa leitura!

Lucia Maria Paschoal Guimarães


Diretora da Revista
Dossiê História do Direito: apresentação

I – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS

DOSSIÊ HISTÓRIA DO DIREITO

APRESENTAÇÃO
PRESENTATION
Samuel Rodrigues Barbosa 1

Gilberto Freyre, em 1942, escrevia sobre o primeiro professor de


História do Direito Nacional da Faculdade de Direito de Recife, cadeira
criada pela Reforma Benjamin Constant em 1891, “o esforço com que
Martins Júnior contribuiu para o esclarecimento do problema cultural
brasileiro através do estudo de um dos aspectos mais significativos da
nossa formação – a história do direito nacional – esse nos interessa”.
(“Martins Júnior, mestre esquecido”, Diário de Pernambuco, 30/8/1942).
Havia uma pontada de polêmica no artigo, Martins Júnior pertencia a sua
época, enquanto preocupado com o problema político, “no sentido mais
estreito da expressão”, mas enquanto intérprete da cultura, era “um de nós
desgarrado num tempo que não era ainda o seu”. No esforço de definir a
atualidade de Isidoro Martins Júnior, Gilberto Freyre anuncia um tipo de
historiografia do Direito que merecia ser escrita, ao passo que destacava
a importância do objeto, “um dos aspectos mais significativos da nossa
formação”.
A escrita da história do Direito, cultivada no espaço universitário, é,
no Brasil, um fenômeno recente. Não ganhou uma cadeira independente, à
diferença de Coimbra, na organização dos cursos jurídicos recém-criados
pela primeira legislatura do Império. A Reforma Benjamin Constant teve
um sucesso efêmero, entre 1891 e 1901. Tal circunstância não favoreceu

1 – Doutor em Teoria do Direito pela Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade


de Direito da Universidade de São Paulo.

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Samuel Rodrigues Barbosa

a formação de uma historiografia do Direito no âmbito das faculdades de


Direito, não forneceu estímulo ao trabalho de erudição, cuja acumulação
permite iniciativas interpretativas mais ambiciosas. Muito desse trabalho
foi desempenhado, fora da universidade, pelo IHGB e por historiadores
políticos e das instituições, como documenta números anteriores desta
revista. No século XX, os cursos universitários de História, por sua vez,
privilegiaram desde o início, outros problemas, abordagens e objetos,
parafraseando o título da coleção editada por Jacques Le Goff e Pierre
Nora.
Fenômeno recente, historiadores das faculdades de Direito e de His-
tória têm demonstrado expressivo interesse pelo Direito. Este número
da revista do IHGB publica uma coleção de artigos inéditos de autores
especialmente convidados para este fim. Os artigos foram organizados
cronologicamente, seguindo a temporalidade dos recortes. Os problemas
e abordagens foram deixados à discreção dos autores, o que permite olhar
o conjunto e perceber algumas ênfases.
Uma primeira ênfase, de resto comum a outros campos da historio-
grafia, está colocada nos usos da linguagem e conceitos jurídico-políticos,
com atenção para a transação entre vocabulários pré-modernos e moder-
nos e a recepção e circulação de “ideias” e modelos. Outro destaque, que
dá continuidade a uma linhagem mais antiga, são os estudos dedicados
à administração da justiça, entre 1750 e 1850, com atenção para as tra-
jetórias das autoridades, a tensão entre projetos institucionais oficiais e a
dinâmica das práticas. Uma variedade de documentação de arquivos foi
mobilizada, lançando luz ao universo dos letrados e juristas-políticos (do-
cumentação diplomática, cursos universitários coimbrãos) e ao mundo
chão da prática judicial.
Se os artigos não seguem o programa mais restrito de Gilberto Freyre,
dão por certo, no entanto, a importância da empresa. Este número da re-
vista, confrontado com os anteriores, põe em relevo alguns dos traços da
fisionomia mais recente da área e, também, sua produtividade.

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

Pelo rei, com razão: comentários sobre as


reformas pombalinas no campo jurídico
Pro King, with Good Reason: comments on the legal
reforms undertaken by the Marquis of Pombal
Álvaro de Araujo Antunes 1

Resumo: Abstract:
O artigo analisa a constituição do campo jurídi- This paper will analyze the establishment of the
co português, no reinado de D. José I, que teve Portuguese legal system during the kingdom of
como Secretário do Reino Sebastião José de D. Jose I, whose Secretary was Sebastiao Jose
Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. Por um de Carvalho e Melo, Marquis of Pombal. On the
lado, investiga as mútuas implicações das forças one hand it will investigate mutual implications
reguladoras, expressas na reforma da Universi- of regulatory forces, expressed by the reform of
dade de Coimbra e na fixação de novas diretri- the University of Coimbra and on the fixation of
zes legais pela Lei da Boa Razão. De outro lado, new legal guidelines by the Law of Good Rea-
trata da prática dos agentes da administração da son. On the other hand, it deals with the prac-
justiça, mais especificamente, os de Mariana e tice of legal administration agents, more specifi-
Vila Rica, importantes centros da Capitania de cally, those of Mariana and Vila Rica, important
Minas Gerais. centers of Colonial Minas Gerais.
Palavras-chave: Justiça, Reforma da Universi- Keywords: – Reform of the University of Coim-
dade de Coimbra, Lei da Boa Razão. bra – The Law of Good Reason.

A história do reinado de D. José I é indissociável da figura con-


troversa do seu primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo,
o Marquês de Pombal, título recebido em 1769. Historiadores atribuem
ao Marquês uma série de mudanças que buscaram a modernização de
Portugal e seus domínios. Era a época pombalina, conforme caracterizou
Francisco José Calazans Falcon e com ele outros historiadores tendem a
concordar.2 Porém, como quase tudo na história, o consenso é relativo e,
por vezes, mais exceção do que norma. Não faltam aqueles que minimi-
zam o protagonismo do Marquês, ressaltando o papel do seu gabinete, de
outros intelectuais e do próprio rei. Não faltam questionamentos sobre a
importância e o alcance das reformas empreendidas durante o ministério
pombalino.

1 – Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Profes-


sor Adjunto do DEHIS/Universidade Federal de Ouro Preto.
2 – FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: política econômica e mo-
narquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982.

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Álvaro de Araujo Antunes

Sob o risco de dizer mais do mesmo, não cabe aqui uma revisão da
extensa historiografia que gira, invariavelmente, em torno do nome de
Pombal. Não há como ignorá-lo. Mesmo entre as críticas que tendem
a desmerecê-lo, ele está lá, como o centro dos ataques. Desse eixo de
transmissão a mover polêmicas estampadas em livros e artigos sem fim,
importa ao presente estudo destacar a centralidade de Sebastião José de
Carvalho e Melo e de algumas das suas reformas no campo jurídico.

Pombal serviu a D. José I, de quem recebeu títulos de nobreza e en-


cargos administrativos, atingindo o ápice da carreira como secretário do
reino. A tragédia causada pelo terremoto de Lisboa demandou do gover-
no ações contundentes e estruturantes comandadas por Pombal. Pode-se
argumentar que foram as contingências ou a mão do rei que trouxeram
ao centro do palco político o então Conde de Oeiras. Contudo, esse argu-
mento estaria incompleto se não se considerasse a própria ação do indiví-
duo capaz de marcar uma época.

Pombal deve ser entendido como um referencial para as mudanças


amplas que tiveram lugar no reinado de D. José I. Nos livros, sua “bio-
grafia” se confunde ao governo. Ao mesmo tempo, sua pessoa é reduzida,
destituída de dúvidas, angústias e anseios... tudo encoberto por projeções
de grandeza e de predestinação.3 Enredos heroicos são construídos em
torno dessa unidade (o nome Pombal), esquecendo-se de que sua ação
envolveu todo um gabinete, intelectuais e agentes, sem os quais seria im-
possível conceber e projetar políticas para as diversas realidades do Impé-
rio português. Nesses termos, as histórias do indivíduo e da administração
portuguesa se mesclam dando forma ao pombalismo.

No ministério pombalino se verifica a criação das bases do Estado


absolutista português. Externamente, Portugal buscava maior indepen-
dência da Inglaterra, fortalecendo parcela da sua burguesia e estimulando
a manufatura, ao mesmo tempo em que adotava estratégias mercantis mo-
nopolistas. Dentro da política regalista, a nobreza passa a ser enquadrada,
3 – Sobre a ilusão biográfica ver: BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica” In: FER-
REIRA, Marieta M.; AMADO, Janaina. Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1996.

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

cerceada, em especial depois do atentado ao rei, em 1758, que identificou


como envolvidos o Duque de Aveiro, os marqueses de Távora e o Conde
de Atouguia. A mesma nobreza teria, por meio do Alvará de 1761, os gas-
tos com a ostentação limitados e, em 1770, a constituição de morgados
sujeitos à anuência régia.

A luta contra os poderes concorrentes se estendeu aos setores da


Igreja, fundamentalmente, a Companhia de Jesus, expulsos das terras
portuguesas, entre outras razões, pela alegada participação no atentado
contra D. José I. O banimento dos jesuítas trouxe graves consequências à
educação, dada a participação da ordem nos ensinos menores, contingên-
cia que não foi ignorada pelo governo que formulou um plano de secula-
rização da educação. Nas Cartas sobre a Educação da Mocidade, Ribeiro
Sanches concordava com a competência dos reis, e não dos bispos, em
regulamentar o ensino. Para este autor, só o ensino secularizado poderia
atender às finalidades da ordem civil.4

No âmbito administrativo, buscou-se um maior controle do rei so-


bre seus funcionários. Com demonstrações de força, formulou-se uma
reforma que envolvia a supressão de órgãos, uma maior normatização
dos proventos, a valorização da lei positiva e a formação de um corpo de
agentes afinados com a proposta pombalina de racionalização, ilustração
e centralização do governo.

No bojo dessas mudanças, a justiça, considerada a face mais visível


do poder régio, não passaria incólume. A transformação no campo da
Justiça se verificou, principalmente, na preocupação com a formação dos
bacharéis em cânones e leis na Universidade de Coimbra e no enquadra-
mento legal dos advogados às novas diretrizes, do qual merece destaque
a Lei da Boa Razão. O que este artigo pretende analisar é, justamente, a
constituição do campo jurídico no período pombalino, isto é, “as relações
objetivas entre os agentes e as instituições em concorrência pelo mono-
pólio do direito de dizer o direito”.5 Em boa medida, a história das mu-
4 – AVELAR, Hélio de Alcântara. História Administrativa do Brasil: administração
pombalina. 2ª ed. Brasília: Fundação Centro de Formação do Servidor Público/ Editora
UnB, 1983, p.166.
5 – BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernado Tomaz. 5ª ed. Rio de Janeiro:

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Álvaro de Araujo Antunes

danças no campo jurídico promovidas durante o reinado de D. José I foi


resultado da luta pela linguagem, pelo direito de estabelecer o direito. No
caso específico desse artigo, importa as mútuas implicações das forças re-
guladoras (a instrução e a norma), expressas pelas ideias de inovação e de
tradição, e a prática do “direito vivo”, as contingências e os agentes dos
auditórios, mais especificamente, os de Mariana e Vila Rica, importantes
centros administrativos da Capitania de Minas Gerais.

As Luzes nas águas do Mondego: considerações sobre a reforma


pombalina da Universidade de Coimbra e a Ilustração portuguesa
A difusão do Iluminismo fez parte da política pombalina de desen-
volvimento e modernização. Em Portugal, as Luzes foram propagadas,
atingiram a Universidade de Coimbra, às margens do Mondego, serviram
de inspiração à política econômica e às reformas jurídicas. Ao mesmo
tempo, as ideias ilustradas se viram controladas pela ação da Real Mesa
Censória, por exemplo. Este legado ambíguo imprimiu ao iluminismo
português contornos peculiares. Para alguns, tratava-se de um despotis-
mo ilustrado, enquanto que para outros figurava mais uma espécie de
ditadura.

Para Hélio de Alcântara Avelar, “o chamado despotismo esclarecido


pombalino foi um processo de restauração, de fortalecimento, de orga-
nização, de adequação à época [...]”.6 Este processo teria se confundido,
impropriamente, pelos “mais perspicazes analistas de Sebastião José de
Carvalho e Melo”, a uma ditadura. Em conformidade com Laerte Ra-
mos Carvalho, Avelar considerou o Iluminismo em Portugal como sendo,
essencialmente, reformista e pedagógico, sem o espírito revolucionário,
anti-histórico ou irreligioso que nutriria movimentos sociais e intelec-
tuais de outros países europeus. No campo da política, Kenneth Ma-
xwell considerou que havia algo de paradoxal em um regime absolutista
e autoritário que procurava se associar às ideias iluministas.7 Observou
Bertrand Brasil, 2002, p. 212.
6 – AVELAR, Hélio de Alcântara. História Administrativa do Brasil: administração
pombalina, p. 89.
7 – MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo.Trad. de An-
tônio de Pádua Danesi. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

Maxwell que o Iluminismo em Portugal deve ser entendido conforme


suas particularidades e as expectativas traçadas por Pombal, que visava,
sobretudo, à modernização da nação, ainda que não virasse as costas à
tradição, acrescente-se. À imagem de um passado de glória associava-se
um projeto de reforma, de aproximação às “nações polidas”. Para isso,
o Estado deveria cuidar mais diretamente da circulação dos livros e do
ensino, adequando-o às novas ideias que, desde o século XVII, embebiam
algumas nações ilustradas da Europa.8

Do que foi apresentado acerca do Iluminismo, há de se fazer algu-


mas ressalvas. Primeiro, as ideias ilustradas potencialmente perigosas,
como as difundidas pelo Abade Raynal, também circulariam entre os lei-
tores no Brasil, enquanto que Rousseau instigaria debates nas repúblicas
estudantis de Coimbra.9 As barreiras impostas às Luzes pelos órgãos de
polícia e censura português não eram intransponíveis.10

A segunda consideração diz respeito ao estigma do atraso lusitano,


cuja culpa era imputada aos eclesiásticos e escolásticos. O pensamento
especulativo, aberto pelo probabilismo escolástico, bem como o interesse
de alguns jesuítas em consumir novidades no campo das ideias, poderia

8 – Segundo Laerte Ramos, “a pedagogia pombalina foi a expressão de uma época, ex-
pressão tanto mais significativa quanto ainda hoje sugere fecundas lições proporcionadas
de perplexidades para uns e certezas para outros”. CARVALHO, Laerte Ramos. As refor-
mas pombalinas da instrução pública. São Paulo: Edusp/Saraiva, 1978, p. 191.
9 – Segundo Fernando Novais: “grosso modo, a face reformista das Luzes que incidirá
mais sobre a metrópole; na colônia, a face revolucionária. Esta a ambiguidade funda-
mental do pensar ilustrado, ao mesmo tempo reformista e revolucionário, dependendo da
situação em que se processe a sua leitura”. Os universitários de Coimbra, por exemplo,
leram e comentaram livros “anticatólicos”, entre os quais, Monstesquieu, Voltaire, Locke,
Mirabeau e a obra O Emílio, de Rousseau, “vendo nele a confissão de Fé, na qual protesta
o autor ser sectário da religião natural, como única, verdadeira e suficiente para a felici-
dade do homem”. NOVINSKY, Anita Waingort. Estudantes brasileiros ‘afrancesados’ da
Universidade de Coimbra: a perseguição de Antônio Morais e Silva: 1779-1806. In: CO-
GGIOLA, Oswaldo (org.). A revolução francesa e seu impacto na América Latina. São
Paulo: Edusp: Brasília: CNPq, 1990.” NOVAIS, Fernando Antonio. Portugal e Brasil na
crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 2ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1983,
p.158.
10 – Sobre o assunto, ver: VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e
práticas de leitura: usos do livro na América Latina. São Paulo, 1999. Tese (Doutorado
em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

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Álvaro de Araujo Antunes

relativizar a imagem negativa projetada sobre a ordem de Santo Inácio.


Esta questão será tratada mais adiante.

Outrossim, o Iluminismo, entendido, com frequência, como um con-


junto harmonioso de ideias era muito mais plural do que, normalmente,
se pressupõe.11 Hume era um conservador, enquanto Condorcet era um
democrata; Holbach criticava a religião, enquanto Lessing tentou inven-
tar uma. O potencial inconveniente dessa perspectiva é o nominalismo,
o estudo de uma espécie de Ilustração de cunho biográfico que não arti-
cularia posições comuns entre autores. Uma postura intermediária pode
ser encontrada no “jogo de escalas” ou no estabelecimento de conjuntos
menores de análises, nos quais se privilegiaria o estudo de gerações de
intelectuais ou de unidades de geográficas. 12 Nesse sentido, em se tratan-
do de ideias estimuladas e abarcadas pelo Estado, é possível caracterizar,
com alguma simplificação, o Iluminismo oficial português como sendo
eclético, cristão e católico, mais próximo do modelo italiano do que do
francês, considerado revolucionário, anti-histórico e irreligioso.13

Não se pode negar que as reformas promovidas na segunda metade


do século XVIII trouxeram a Portugal a promessa da modernização sob
os auspícios das Luzes. A ideia de modernidade que perpassava o projeto
ilustrado português remetia às nações polidas a imitar, mas não de for-
ma indiscriminada. Em Portugal, a ideia de reforma explicitava tanto a
ambição de modernidade quanto um resgate de tradições, em uma clara
tentativa de adequação. Nos termos de Francisco Falcon, a prática ilustra-
da do pombalismo movia-se “sempre entre hesitações e compromissos,
adotando em geral uma atitude eclética sempre que se defrontam o antigo

11 – Para perspectivas distintas de interpretação do evento, ver: CARVALHO, Flávio Rey


de. Um iluminismo português? A reforma da Universidade de Coimbra (1772). São Pau-
lo: Annablume, 2008. CASSIRER, Ernest. A filosofia do Iluminismo.Trad. Álvaro Cabral.
2ª ed. Campinas: Editora Unicamp, 1994, pp.65-134, e HAZARD, Paul. La pensée euro-
péenne au XVIIIe siècle: de Montesquieu à Lessing. Paris: Fayard, 1993. pp.133-147.
12 – GAY, Peter. The Enlightenment: the rise of modern paganism. New York: W. W.
Norton & Company, 1995.
13 – CARVALHO. As reformas pombalinas da instrução pública, p. 27.

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

e o moderno”.14 Tal tentativa de conciliação se evidencia em diversas di-


retrizes fixadas durante o reinado de D. José I.

“desejando eu não só reparar os mesmos estudos para que não acabas-


sem de cair na total ruína a que estavam próximos, mas ainda retribuir-
lhes aquele antecedente lustre que fez os portugueses tão conhecidos
na república das letras antes dos ditos religiosos se intrometessem a
ensiná-los com sinistros intentos e infelizes sucessos.” 15

O Iluminismo que influenciou esse governo por intermédio dos pro-


jetos maquinados no gabinete e por intelectuais ligados ao Marquês de
Pombal, não deixaria de ser cristão e nem execraria a história de Portu-
gal, à exceção daquilo que o toque jesuítico fez “podre”, conforme era
alegado.16

Remontando ao período medieval, o sistema de ensino estabelecido


pelos inacianos, segundo Jacques Le Goff, constituía-se em uma forma de
pensar com leis bem definidas. Nas leis da demonstração e do pensamen-
to, destacava-se a dialética, “conjunto de operações que fazem do objeto
do saber um problema, que expõem e defendem contra os atacantes, que
solucionam e convencem o ouvinte ou o leitor”.17 De orientação escolás-
tico-perípatética, a dialética silogística de Aristóteles transpassava quase
todas as disciplinas. O silogismo aristotélico tinha o caráter de Organum,
instrumento, tópica, método-disciplina, que partia de premissas necessá-
rias para chegar a “verdades” dadas de antemão.18

Outra característica do pensamento escolástico era o valor deposi-


tado sobre a autoridade dos textos e seus autores, em especial da Bíblia,
dos padres da Igreja, de Tomás de Aquino, Platão e de Aristóteles. Valo-
14 – FALCON. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada, p. 445.
15 – Alvará por que V. Majestade há por bem reparar os estudos das línguas latina, grega
e hebraica e da Arte da Retórica da Ruína a que estavam reduzidos. Instituto dos Arqui-
vos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT) – Leis – Livro 9.
16 – CARVALHO. As reformas pombalinas da instrução pública, p. 27.
17 – LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1988,
p.75.
18 – BLANCHÉ, Robert. História da lógica de Aristóteles a Bertrand Russel. São Paulo:
Martins Fontes, 1985, p.150.

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Álvaro de Araujo Antunes

rizavam também autores modernos, especialmente em casos de opinião


“provável”.19 Esses textos e autores eram incorporados e decorados pelos
alunos num processo continuado de “repetições” e memorizações, ele-
mento importante da pedagogia jesuítica, que poderiam levar à constitui-
ção de tópicas cristalizadas. A valorização da autoridade trazia consigo,
quando não a redundância das repetições, o zelo para com a ortodoxia.
Ângela Barreto Xavier observou que esse procedimento de análise permi-
tiu a cristalização de repertórios acerca dos mais diversos assuntos. Esse
exercício dialético-analítico tenderia, portanto, a congelar verdades asse-
guradas pelo respeito humilde dos estudantes à opinião dos comentadores
e dos intérpretes autorizados.20

Ocorre que as opiniões dos comentadores e intérpretes autorizados


não eram tão conformes, o que trazia instabilidade ao pensamento peri-
patético. Não fosse isso, não haveria combustível para as disputas, parte
da didática escolástica, e nem para as divergências judiciais, comuns aos
auditórios. Tudo seria uma monotonia de argumentos concordes às orto-
doxias e à autoridade. Diante da incerteza, as preposições tinham como
resposta a solução mais provável (probabilismo), isto é, quando era incer-
ta a aplicação de regras morais e de autoridade, para não errar, optava-se
por seguir uma “opinião provável, ainda que não fosse a mais recomen-
dável em termos de estrita doutrina”.21 Para Richard Morse, a estratégia
probabilista expressava um “espírito pluralista e não concludente” em
relação aos fenômenos observados ou experimentados.22 Tal abertura per-
19 – “A máxima era de que a opinião provável é a que tem a seu favor uma autoridade
grave, ou autoridade de um homem hábil. A autoridade de um doutor, homem honrado e
hábil, sobretudo se é moderna, faz provável uma opinião, ainda quando contra ela esteja
a opinião de outros. COMPÊNDIO Histórico do Estado da Universidade de Coimbra
(1771). Coimbra: Universidade de Coimbra, 1972, p.11.
20 – VILLALTA, Luiz Carlos. El-rei, os vassalos e os impostos: concepção corporática de
poder e método tópico num parecer do Códice Costa Matoso. Vária História: Belo Hori-
zonte: Editora UFMG, n. 28, 1999, p. 224.; VILLALTA. Reformismo ilustrado, censura
e práticas de leitura: usos do livro na América Latina. p. 50. XAVIER, Ângela Barreto.
El rei aonde póde & não aonde quer; razões da política no Portugal setecentista. Lisboa:
Edição Colibri, 1998, p. 82.
21 – VILLALTA. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na
América Latina, p. 53.
22 – MORSE. O espelho de Próspero: cultura e ideias nas Américas, pp. 35 e 53.

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

mitiria relativizar a associação da educação fomentada pelos jesuítas e do


panorama intelectual português como sendo atrasados.

De fato, havia espaço para um pensamento especulativo, aberto pelo


probabilismo ou pelo próprio interesse dos jesuítas na revolução científica
que se operava, ainda que mantivessem este saber restrito ao seu uso pri-
vado. Em meados do século XVIII, o jesuíta Inácio Monteiro descreveu
seu pensamento como “ora peripatético, ora atomista, cartesiano e newto-
niano”. Antônio Cordeiro, autor do Cursus Philosophicus Conimbricen-
sis, publicado em 1713-1714, buscou uma releitura do atomismo, teoria
objurgada pelos jesuítas.23 Havia tentativas de conjugar a emergência da
razão técnico-experimental com os pressupostos da segunda escolástica
dos jesuítas que, em alguns casos, chegaram a condescender, quando não
repreendiam duramente as “ideias dos atomistas”.24

Apesar das disposições contrárias à moderna ciência, alguns jesuí-


tas foram tocados por essas novas ideias. Mas era uma postura acanhada
perto de padres oratorianos como Luiz Antônio Verney, cujas proposi-
ções serviram de estímulo para as reformas do ensino público no reino
português, para se “formar homens que sejam úteis para a República e
religião”.25

“Se, de fato, não foi encarregado de se apropriar “das luzes do século”


foi ele próprio que tomou o encargo de as chamar a si sagrando-se
apóstolo delas e oferecendo a vida à tarefa de iluminar os portugueses.
Falamos de ‘luzes’ e de ‘iluminar’ utilizando exatamente os termos
que o século XVIII escolheu para dar vivacidade às suas expressões
sempre que pretendia caracterizar a posição racionalista do homem

23 – CARVALHO, Rômulo de. História do ensino em Portugal: desde a fundação da


nacionalidade até o fim do regime de Salazar-Caetano. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
benkian, [s.d.], p. 392. GOUVEIA, Antônio Camões. Estratégias de interiorização da
disciplina. In: MATTOSO, José (org.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa:
Editorial Estampa, 1993, p. 426.
24 – Em seu livro, Rômulo Carvalho registra a lenta inserção das ideias e métodos da cha-
mada ciência moderna entre os inacianos. CARVALHO. História do ensino em Portugal:
desde a fundação da nacionalidade até o fim do regime de Salazar-Caetano, p. 389.
25 – VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. 3ª ed. Porto: Domingos Bar-
reira, s/d., p. 57.

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Álvaro de Araujo Antunes

novo que as grandes descobertas científicas do século anterior fizeram


nascer. Verney pertenceu a este tipo de combatentes, os iluministas
[... ].” 26

As reformas do ensino promovidas na segunda metade do século


XVIII trouxeram a marca dessas Luzes que, em terras lusas e na mão de
intelectuais como Verney, ganharam cores peculiares.

Assim como são controversas as opiniões sobre o pombalismo e o


caráter da Ilustração portuguesa, também o é o tema das reformas pomba-
linas na universidade coimbrã. No horizonte de possibilidades de interpre-
tações, alguns estudos consideram que a reforma não alterou os alicerces
do sistema de ensino que a precedeu.27 O argumento é de que a reforma
não foi profunda, não fez o que se convinha fazer e que, por conseguinte,
a estrutura da “nova” Universidade continuou velha e fradesca. Outros
consideram que as reformas instituíram, de fato, um marco na história do
ensino português, que separaria a tradição jesuítica da reformada.28

Ambos os argumentos, da ruptura e da persistência, consideraram


a importância das reformas pombalinas, seja para afirmar seu sucesso e
eficiência, seja para negá-los. Invariavelmente, tais opiniões, que tendem
aos extremos, lidam com o argumento polar estabelecido pela linha da
continuidade ou ruptura. Ocorre que muitas das providências tomadas
durante o reinado de D. José I teriam efetiva repercussão apenas no sécu-
lo seguinte, em parte, devido ao peso de práticas tradicionais que não se
dissolveram com facilidade. O que a análise da prática de governo pode
revelar é que, juntamente com a ruptura promovida por uma ação legal
26 – CARVALHO. História do ensino em Portugal, p. 407.
27 – TEÓFILO, Roque. Síntese Histórica Evolutiva do ensino no Brasil. Atualidades pe-
dagógicas, ano 5, n. 28, jul./ago., 1954.; VALADARES, Virginia Maria Trindade de. Eli-
tes Setecentistas mineiras: conjugação de dois mundos (1700-1800). Lisboa, 2002. Tese.
(Doutorado em História dos Descobrimentos e da Expansão portuguesa) – Universidade
de Lisboa.
28 – Entre eles pode-se citar: AVELAR, Hélio de Alcântara. História Administrativa do
Brasil: administração pombalina, p. 161.; CARRATO, José Ferreira. Igrejas Iluministas
e escolas mineiras coloniais. São Paulo: Editora Nacional, 1968, p.131. SILVA, Maria
Beatriz Nizza. A Cultura Luso-Brasileira da reforma da Universidade à independência
do Brasil. Lisboa: Editorial Estampa, 1999, p. 22.

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

ou pela reforma estrutural, havia a resistência, a distensão, o lento afrou-


xamento das tradições assentadas.

No que tange à secularização do ensino, por exemplo, deve-se consi-


derar que não era uma proposta tão distante da realidade da Universidade
de Coimbra. Criada por Dom Diniz no século XIII, a referida universida-
de sempre foi uma instituição mais temporal do que espiritual.29 Ambos
os poderes, em graus distintos e variáveis na forma, sempre estiveram
à frente da instituição coimbrã e do sistema educativo como um todo.
Eram consortes num casamento de altos e baixos, às vezes em harmo-
nia, às vezes não, ao sabor das vagas da maré política. A instabilidade
dessa sociedade era evidente e não deixa de ficar explícita na política
de secularização do ensino promovida por Sebastião José de Carvalho e
Melo. Contudo, para além da secularização, o projeto de fortalecimento
do poder régio abrangia uma revalorização do jusnaturalismo e da razão,
impondo mudanças culturais mais profundas no sistema de ensino, como
forma de cimentar novos paradigmas científicos e jurídicos.30

Isso não implicava que a reforma do ensino de 1772 tivesse exilado


das margens do Mondego toda tradição escolástica do ensino jurídico,
fundamentada no direito canônico e romano, como era proposto por Ri-
beiro Sanches.31 Até a reforma de 1772, o direito romano consistia na
essência da formação do bacharel em leis. Nas oito cadeiras da faculdade
de leis estudavam-se, basicamente, o Digesto e o Código de Justiniano.32
Essas obras eram dissecadas com o auxílio dos comentários e glosas de
29 – CARNEIRO, Paulo E. de Berredo. L´Université de Coimbra et le Brésil. Arquivos do
Centro Cultural Português. Paris, v. 4, 1972, p. 319.
30 – GOUVEIA, Antônio Camões. Estratégias de interiorização da disciplina, p. 432.
31 – Observador perspicaz e partidário da secularização do ensino, Ribeiro Sanches con-
siderava que, com a expulsão dos jesuítas que dirigiam a Universidade de Coimbra (1759)
e com o rompimento das relações com a autoridade romana (1760), era “um absurdo ensi-
nar nas Universidades as Leis de soberano alheio”, no caso, o papa. SANCHES, Ribeiro.
Dificuldades de um reino velho para remendar-se e outros textos. 2ª ed.[S.l:]: Livros Ho-
rizonte, 1980, p. 68 e CARNEIRO. L´Université de Coimbra et le Brésil, p. 319.
32 – Segundo o Compêndio, essa profusão de cadeiras destinadas o ensino das Leis de
justiniano abria espaço para um ensino vagaroso e cansativo destinado a ensinar pela
“Instituta todo o direito civil”. COMPÊNDIO Histórico do estado da Universidade de
Coimbra (1771), p. 257.

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Álvaro de Araujo Antunes

inúmeras autoridades, dentre as quais se destacavam as figuras de Acúr-


cio e de Bártolo. No Estatuto da Universidade de Coimbra de 1598, ra-
tificado na reforma de 1653, ficava clara a influência dos glosadores no
ensino do direito civil, em especial a de Bártolo. Tais autores eram indi-
cados também pelo Regimento do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro,
de 1751, e pelo Repertório das Ordenações, que estipulava, para casos
omissos nas leis do reino ou nos cânones sagrados, o recurso às glosas e
à opinião comum dos doutores.

De “Bártolos” poderiam ser chamados os estudantes e futuros intér-


pretes do direito romano que se inspirariam nas obras do famoso glosa-
dor.33 Desde sua contribuição ao direito na Idade Média, as ideias de Bár-
tolo se expandiram impulsionadas pelas instituições de ensino da Europa
e por uma legião de doutores comentadores.34 Segundo Francisco Lemos,
a doutrina de Bártolo e Acúrcio era uma “constante de todos os livros e
tratados, apostilas, conclusões e mais papéis jurídicos que se escreveram
pelos nossos jurisconsultos ou teóricos ou práticos”.35 De fato, Francisco
Lemos considerava que nas escolas jurídicas não foi ensinada outra juris-
prudência que não a de Bártolo.

Em Portugal, a influência de Bártolo estava presente nos trabalhos


de praxistas, comentarias e causuístas. Foram representantes desses gru-
pos: Manoel Barbosa, comentador das ordenações e pai de Agostinho
Barbosa; Melquior Febo, casuísta; Manoel Lopes Ferreira, bacharel pela
Universidade de Coimbra, autor de Prática criminal na forma da praxe;
Manoel Mendes de Castro, professor da Universidade de Coimbra no sé-
culo XVI e autor de Prática lusitana; Antônio Mendes Arouca, reputado
como de “juízo profundo e coração reto”, que foi autor de livros jurídicos
33 – A arte de furtar evidencia essa denominação ao se referir aos juízes leigos que de
ignorante, “não sabem qual é a sua mão direita, mais para embolsarem com ela espórtulas
e ordenados com se foram Bártolos e Cova-Rubias,” apud. SCHWARTZ, Stuart. B. Bu-
rocracia e sociedade no Brasil colonial: a suprema corte e seus juízes: 1609-1751. São
Paulo: Perspectiva, 1979, p.62.
34 – SKINER, Quentin. Liberdade antes do Liberalismo. São Paulo: Editora da Unesp,
1990, pp. 31-33.
35 – LEMOS, Francisco. Relação geral do estado da Universidade (1777). Atlântida Edi-
tora, Coimbra, 1980, p. 41.

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

e religiosos, tendo escrito Adnotationes praticae ad librum fere primum


pandectarum juris civilis e Desejos piedosos e suspiros da alma, obra que
legou aos jesuítas do Colégio de Ponta Delgada.36 Tais autores estariam
presentes em diversas bibliotecas de advogados em Minas Gerais e figu-
rariam nas ações judiciais analisadas na segunda metade do século XVIII,
mesmo depois de condenados os usos de Bártolo e Acúrcio pela Lei de 18
de agosto de 1769.37

O ataque à autoridade dos glosadores, em especial Bártolo, não foi,


propriamente, uma novidade das reformas jurídicas e educacionais do rei-
nado de Dom José I. Precedentes podem ser encontrados em pleno século
XVI, na escola jurídica francesa fundada por Cujácio, discípulo de Antô-
nio de Gouveia, árduo crítico dos glosadores. Enquanto João das Regras,
em Portugal, valorizava o trabalho dos comentadores, Gouveia conside-
rava o recurso aos textos dos glosadores como uma prática ociosa diante
do recurso direito às fontes históricas e a sua interpretação pelo uso da
lógica. Este espírito crítico, contudo, só parece ter atingido a Universida-
de de Coimbra, séculos depois, mas não sem um referencial precedente.

As críticas ao ensino da Universidade de Coimbra identificavam na


adoção dos glosadores a “manha e a confusão” dos jesuítas, protagonistas
dos infaustos da educação portuguesa. Várias leis e publicações expressa-
vam a aversão do governo ao método jesuítico e às diretrizes contidas nos
Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1653. Os jesuítas eram acu-
sados de “vomitar [...] todo seu veneno com a maquinação e publicação
[...] do abominável Código dos Estatutos”.38 O “estrago” da Universidade
teria sido causado pelos “sinistros e façanhosos” jesuítas e seu método,
que só serviria para introduzir e excitar novas questões. Os jesuítas foram
ainda responsabilizados por tornar a jurisprudência “versátil, confusa,

36 – ALBUQUERQUE, Rui; ALBUQUERQUE, Martim. História do direito Português.


Lisboa: Faculdade de Direito, 1983, vol. 2, pp. 112-113; MACHADO, Diogo Barbosa.
Bibliotheca lusitana. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1998. CD-ROM, v.1, p. 327.
37 – ANTUNES, Álvaro de Araújo. Fiat Justitia: os advogados e a prática da justiça em
Minas Gerais (1750-1808).Campinas, SP: Pós-graduação do Departamento de História da
Unicamp, 2005 (Tese, Doutorado em História).
38 – COMPÊNDIO Histórico do Estado da Universidade de Coimbra( 1771), p. 55.

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Álvaro de Araujo Antunes

incerta, e toda dependente do arbítrio dos doutores”.39 Segundo o Com-


pendio, as faculdades de cânones e leis estavam entregues ao exame das
“sutilezas para sustentarem à força de sofismas as opiniões dos doutores”.
Em decorrência disso, as faculdades teriam formado advogados de uma
inteligência quimérica, baseada no direito romano, dados aos sofismas e
às dilapidações de qualquer “senhor e possuidor de bens”.40

As causas da falência do ensino de direito envolviam mais do que o


uso dos glosadores e comentadores. Os jesuítas eram criticados inclusive
pela formação de base dada aos estudantes, isto é, a instrução do latim, do
grego, da retórica etc. Não por menos, a reforma do ensino de línguas e da
retórica antecedeu à própria reformulação dos Estatutos da Universidade
de Coimbra. As críticas sobre a formação básica dos estudantes aponta-
vam ainda o desconhecimento das utilidades da história, “tocha luminosa
para a boa inteligência das leis”.41 Outrossim, lamentava-se a ignorância
ou desleixo com o direito natural, considerado a base das leis positivas e
das leis pátrias.42

Com as reformas, o direito natural ganhou destaque, ainda que lade-


ado por uma série de cadeiras dedicadas ao direito romano. No primeiro
ano letivo, por exemplo, ensinava-se: o “direito natural e das gentes”,
com o auxílio de um compêndio escrito por Martini, professor da Uni-
versidade de Viena; o “direito romano e direito português”, lecionado
pelo Dr. Francisco Xavier de Vasconcelos Coutinho; e as “Instituições
de Justiniano”. No segundo ano, as disciplinas previstas para os alunos
de cânones e leis eram as seguintes: “direito canônico, comum e pátrio”
e a “história da Igreja universal e portuguesa”, para qual se utilizava as
Instituições de Fleury.43 Pelo método sintético, estudava-se o pensamento

39 – LEMOS. Relação Geral do estado da Universidade, pp. 13 e 42.


40 – COMPÊNDIO Histórico do Estado da Universidade de Coimbra (1771), pp. 94 e 206.
41 – COMPÊNDIO Histórico do Estado da Universidade de Coimbra (1771), p. 146.
42 – CARVALHO. As Reformas pombalinas da Instrução pública, p. 176.
43 – CARVALHO. História do ensino em Portugal: desde a fundação da nacionalidade
até o fim do regime de Salazar-Caetano, p. 473. LEMOS. Relação geral do estado da
Universidade: 1777, pp. 56-57.

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

de Justiniano, pois nele se acha os “princípios unidos em um corpo mais


completo e sistemático”.44

Importante observar que, não obstante a permanência da instrução


do direito comum e canônico, a forma como eles eram ensinados deveria
ser drasticamente alterada. Passou-se a valorizar a “interpretação justa
dos textos jurídicos”, evitando-se as falsas interpretações dos glosadores,
conforme o usus modernus pandectarum que pregava o uso do direito
romano “naquilo que tivesse de essencial à luz do direito natural”.45 De
acordo com Antonio Resende de Oliveira, o período pombalino foi um
marco no direito português, justamente pela tentativa de modernização
conjugada à valorização do jusnaturalismo.46

Desde a antiguidade grega e romana o direito natural era conhecido,


estando vinculado ao ius gentium, isto é, às regras que decorrem da pró-
pria natureza das coisas. O termo, em uma perspectiva cristã, reaparece
em Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Por sua vez, Ulpianus, em
seu comentário ao Digesto, define do direito natural como “aquele que a
natureza ensinou aos animais”.47 Tratava-se de algo que não era próprio
do humano, embora lhe dissesse respeito, quando da procriação, da união
dos gêneros etc. Com o tempo, o direito natural teve suas competências
dilatadas. Indicativo dessa mudança, o Compêndio histórico do estado da
Universidade de Coimbra divide a história da escola do direito natural
em antes e depois de Hugo Grotius, autor que, no século XVII, escreveu
De iure belli ac pacis. Antes dele, o direito natural não seria reconhecido
como a “origem da justiça”, porém, a partir de Grotius, formou-se uma
escola de pensadores dedicados a estudar os princípios da justiça base-
ados na natureza humana.48 Outro grande expoente do jusnaturalismo,
44 – COMPÊNDIO Histórico do Estado da Universidade de Coimbra (1771), p. 379.
45 – ALBUQUERQUE e ALBUQUERQUE. História do direito Português, vol. II, p.
128.
46 – OLIVEIRA, Antonio Resende de. Poder e Sociedade. A legislação pombalina e a
antiga sociedade portuguesa. Revista de História das Ideias. Tomo I, volume IV, p. 51.
47 – GILISSEN, John. Introdução à História do Direito. 3 ed.. Trad. Antonio Manuel Hes-
panha e L.M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p.97.
48 – Entre eles, o Compêndio destacava Samuel Pufendorf, que reuniu uma série de estu-
dos referentes ao direito natural e das gentes. O Instituto de Pufendorf teria sido abraçado,

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Álvaro de Araujo Antunes

Pufendorf entendia a lei natural como aquela que era fundamentada nas
máximas da reta razão, no entendimento humano que “tem a faculdade
de descobrir clara e distintamente” uma ordem quando se debruça sobre
a natureza e a constituição dos homens.49 Neste sentido, o direito natural
passou a ser entendido como um conjunto de diretrizes morais e racionais
que se fundam na natureza do homem e são descortinadas pela razão.

A contribuição do direito natural à prática da justiça residia no reco-


nhecimento dos princípios sobre os quais se assentavam as leis positivas
e a própria ordem social. Nas palavras de Lemos, “os princípios do direito
civil se deduzem das fontes da razão natural e da constituição fundamental
das sociedades, do gênio, índole, caráter, costumes e usos dos povos”.50
Para os autores do referido Compêndio, o direito natural era a “disciplina
mais útil e mais necessária, com que os juristas devem dispor”, pois ela se
servia da razão, permitia a boa interpretação das leis positivas e era capaz
de promover a felicidade dos povos.51

A intenção de promover a felicidade dos povos não estava desasso-


ciada de uma dimensão ética, moral, divina e cristã. Isso pode ser eviden-
ciado na Lei de 18 de agosto de 1769, onde a “boa razão” era definida
como:

“os primitivos princípios, que contém verdades essenciais, intrínsecas


e inalteráveis, que a ética dos mesmos romanos havia estabelecido, e
que os direitos Divino e natural formalizaram para servirem de regras
morais e civis entre o cristianismo: ou aquela boa razão que se esta-
belece nas leis políticas, econômicas, mercantis e marítimas que as
mesmas nações cristãs tem promulgado com manifestas utilidades, do
sossego público, do estabelecimento da reputação [...].”

posteriormente, por autores como Cristiano Tomásio, Wolfio e João Barbeirac, autores
cujas obras circulariam pelo mundo português impulsionadas pela reforma. COMPÊN-
DIO Histórico do Estado da Universidade de Coimbra (1771), pp. 219-220.
49 – GILISSEN. Introdução a História do direito, p. 373.
50 – LEMOS. Relação geral do estado da Universidade: 1777, p. 48.
51 – COMPÊNDIO Histórico do Estado da Universidade de Coimbra (1771), p. 205.

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

A Lei de 18 de agosto de 1769 serviu ao projeto regalista na me-


dida em que contribuiu para o processo de reforma jurídica, que previa
regulação do uso direito civil e costumeiro e a valorização da moral, da
razão, do jusnaturalismo e das leis positivas, a exemplo das nações poli-
das e cristãs. Entretanto, a proposta modernizadora da lei, fomentada em
discussões dos ministros do Conselho e do Desembargo do Paço, possuía
limites intrínsecos e/ou próprios do jogo de forças do campo jurídico,
conforme revelaram alguns dos seus comentadores.

Pelo rei a Boa Razão: comentários de José Homem Correia Telles


Pelo conjunto das suas proposições, a Lei da Boa Razão foi respon-
sabilizada pelas alterações profundas no campo jurídico português. En-
trementes, tal lei não foi a primeira e nem seria a última a enfrentar os
entraves diagnosticados na condução da justiça. Antes dela, para citar um
exemplo, D. Manuel I estipulava restrições ao uso do direito civil, con-
forme estabelecido no livro 5, título 58 das Ordenações, publicadas em
1602. Os limites impostos ao direito romano, condenados pela Lei de 18
de agosto de 1769, também foram objetos da Lei de 3 de novembro do
mesmo ano. O direito consuetudinário, regulamentado pela Lei da Boa
Razão, teve seu uso restrito no âmbito da justiça e da fazenda pela Lei de
23 de novembro de 1770.

Por um lado, a frequência dessas leis pode indicar a inobservância


das normas fixadas pela Lei de 18 de agosto. De outro lado, sugere um
reconhecimento de parâmetros por ela estabelecidos e que deveriam ser
resguardados ou esclarecidos pela legislação subsequente. A situação,
portanto, pode levar a questionamentos quanto à eficácia da referida lei,
total ou parcialmente, como será apresentado mais adiante. Mas há de se
considerar, em contrapartida, que a referência às determinações da Lei da
Boa Razão, direta ou indiretamente, pode ser entendida como o reconhe-
cimento da sua autoridade, em grande medida por aquilo que ela propõe
de condizente com o espírito dos novos tempos.

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Álvaro de Araujo Antunes

Como foi apresentado, a indicação do direito natural como princípio


da regulamentação da sociedade não era uma inovação da Lei da Boa Ra-
zão. A novidade consistia em tornar a boa razão como o fiel da balança,
no lugar das autoridades dos glosadores e do direito romano.

“Na jurisprudência (cujo o caráter formam a verdade e a simplicidade)


as quase inumeráveis questões metafísicas, com que depois daquela
Escola Bartholina se tem ilaqueado e confundido os direitos e domí-
nios dos litigantes intoleravelmente: mando que as glosas e opiniões
dos sobreditos Acúrcio e Bártolo não possam mais serem alegadas em
Juízo e nem seguidas nas práticas dos julgadores; e que antes muito
pelo contrário em um e outro caso sejam sempre as boas razões acima
declaradas se não as autoridades daqueles e ou de outros semelhantes
doutores de mesma Escola.” 52

Como foi visto, a expressa vontade de simplificar a jurisprudência


sempre foi alvo das reformas judiciárias. Na Lei de 18 de agosto de 1769,
a culpa pela confusão nos pleitos foi atribuída às questões metafísicas
instigadas pelas glosas de Bártolo e Acúrcio. Não obstante as mudanças,
manteve-se a autoridade subsidiária do direito romano, mas apenas quan-
do estivesse conforme à “boa razão”, isto é, aos “primeiros princípios,
que contém as verdades essenciais”.53 Para Francisco Falcon, as mudan-
ças no campo jurídico tomaram a forma de uma reorientação da doutri-
na.54 Passou-se do sistema “do romanismo justinianeu” para o sistema de
“direito natural e do individualismo crítico”. Com isso, a razão passou a
ser valorizada, em detrimento das glosas, tal qual estabelecido pela Lei
da Boa Razão.55

52 – ORDENAÇÕES Filipinas, livro terceiro. v. 2. p. 730.


53 – ORDENAÇÕES Filipinas, livro terceiro, v. 2, p. 728. GILISSEN. Introdução histó-
rica ao direito, p. 373.
54 – FALCON. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada.
55 – Como já foi apresentado, o direito natural desenvolve sua vertente racional nos sécu-
los XVII e XVIII. Mas, foi com a reforma pombalina da legislação que o direito natural
passou a servir como um argumento sólido e conforme a nova doutrina. GILISSEN. Intro-
dução Histórica ao Direito, p. 364 e HESPANHA, Antonio Manuel. Panorama histórico
da cultura jurídica europeia. Portugal: Publicações Europa-América, 1997, p. 150.

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

O direito canônico, por sua vez, tem o uso limitado ao tribunal ecle-
siástico, demarcando as áreas de competências do poderes.

“deixando-se os referidos textos de direito canônico para os Ministros


e Consistórios Eclesiásticos os observarem (nos seus devidos e com-
petentes termos) nas decisões da sua inspeção e seguindo somente
meus tribunais e magistrados seculares nas matérias temporais da sua
competência as leis pátrias e subsidiárias [...].” 56

Quanto ao costume – direito não escrito e reconhecido pelo uso do


povo –, para ser considerado válido, deveria ter mais de cem anos e não
contrariar as leis positivas. Carla Anastasia acreditou que a Lei da Boa
Razão serviu de empecilho aos usos circunstanciais e as interpretações
extravagantes das leis portuguesas e dos costumes57 Em resumo, a lei de
18 de agosto de 1769 buscou rever os sistemas de fontes do direito portu-
guês proscrevendo as autoridades dos glosadores, subordinando o direito
romano, delimitando a área de competência do direito canônico.58

Pela Lei da Boa Razão procurava-se assegurar a coerência do exercí-


cio jurídico ao projeto pombalino de fortalecimento da figura do rei, ori-
gem da lei e “justiça viva”. Em seu primeiro parágrafo ficava definido que
nenhuma decisão judicial deveria ferir o direito expresso, as ordenações
do reino. Vetava-se as interpretações abusivas que ofendiam a majestade
da legislação. Como é sabido, um dos princípios que norteava a confec-
ção das leis em geral era a clareza. A interpretação de uma lei, portanto,
seria desnecessária e mais serviria a confusão, do que ao seu entendi-
mento.59 Ademais, seria punido o advogado que, em suas interpretações,

56 – ORDENAÇÕES Filipinas. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, v. 2,


p.730.
57 – Para Carla Junho Anastasia, com a lei de 18 de agosto de 1769, houve uma restrição
significativa do uso do costume, com possíveis repercussões no repertório de ações cole-
tivas, “fundado na força dos costumes e na excepcionalidade dos costumes”. Tal hipótese,
contudo, tem como condição a confirmação de que a lei foi, de fato, eficaz. ANASTASIA,
Carla Maria Junho. A Lei da Boa Razão e o novo repertório da ação coletiva nas Minas
setecentista. Vária História, Belo Horizonte: Editora UFMG, n. 28, 2002.
58 – ALBUQUERQUE e ALBUQUERQUE. História do direito Português, p.57.
59 – ALMEIDA, Candido Mendes de. Auxiliar jurídico: apêndice às Ordenações Filipi-
nas. Rio de Janeiro, 1870. Edição fac-similada de Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,

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Álvaro de Araujo Antunes

enredasse raciocínios frívolos e “ordenados mais a implicar com sofismas


as verdadeiras disposições da lei”.60 A interpretação de eventuais dúvidas
deveria ficar a cargo dos magistrados capacitados da Casa de Suplicação
que fixariam suas resoluções por meio de Assentos que teriam o valor de
lei. Os Estilos – a forma de praticar o que era estipulado por lei – também
deveriam ser determinados pela Casa de Suplicação.

Para Arno Wehling, o caráter despótico e inovador da legislação pom-


balina explicitava-se na primazia, defendida pela Lei da Boa Razão, das
decisões da Casa de Suplicação e das Ordenações.61 Este direito positivo
era, em última análise, o resultado do discernimento e da vontade régios,
condição que colocava D. José I em uma posição central no jogo de forças
do campo jurídico. Tais determinações buscavam confirmar, portanto, o
“monopólio do direito a favor da lei do soberano”.62 Um monopólio que
teria limitações bem palpáveis, conforme evidenciaram alguns autores
que analisaram a dita lei.

Arno Wehling fez um bom arrazoado de alguns pontos debatidos


pelos comentadores da Lei de 18 de agosto de 1769. Para o autor, no que
tange às intenções de Pombal, Coelho da Rocha considerou que houve,
de fato, uma nova dignificação das leis portuguesas; Paulo Merea desta-
cou a influência do pensamento estrangeiro; Cabral Moncada privilegiou
o ataque contra o direito português escolástico. Outros historiadores do
direito, como Martins Junior, Waldemar Ferreira e Bezerra Câmara, Nuno
Espinosa Gomes da Silva e Antonio Manuel Hespanha, destacaram o ca-
ráter antiaristocrático e antiteocrático da lei. No geral, tais autores tendem
a considerar a lei como responsável por uma modernização no direito
português.63
1985,v. 2, p. 446.
60 – ALMEIDA, Auxiliar Jurídico: apêndice às Ordenações Filipinas, p. 451.
61 – WEHLING, Arno. Cultura jurídica e julgados do Tribunal da Relação do Rio de
Janeiro: a invocação da Boa Razão e o uso da Doutrina: uma amostragem. In: SILVA,
Maria Beatriz Nizza. Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995,
p. 237.
62 – HESPANHA. Panorama histórico da cultura jurídica europeia, p.166.
63 – WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil colonial: o
Tribunal da Relação do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 448.

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

Para além desta concordância, o que se questiona são aspectos mais


pontuais. Embora grande parte dos autores que tratam da Lei da Boa Ra-
zão concorde com seu caráter antirromanista, Paulo Merêa relativiza o
poder da dita lei em desterrar o direito romano, que continuaria impe-
rando até, pelo menos, o Alvará de 16 de janeiro de 1805. De fato, como
observou Martins Júnior, proscrever Acúrcio e Bártolo não era o mesmo
que vetar o direito romano.64 Manoel Borges Carneiro, tratando do direito
civil português, em obra publicada em 1828, considerava que a Lei da
Boa Razão não buscava revogar as leis romanas, mas sim restringir e fixar
sua inteligência.65

Outra questão que suscita controvérsia é sobre a efetiva aplicação da


Lei de 18 de agosto de 1769. Um dos primeiros críticos da sua eficiência
e, segundo tudo indica, o responsável por nomeá-la de Lei da Boa Razão,
foi José Homem Correia Telles. Telles conhecia bem os trâmites legais.
Formou-se em cânones pela Universidade de Coimbra, foi Juiz de Fora
da Figueira e deputado nas Cortes Constituintes de 1821. Além disso, es-
creveu diversas obras de direito, entre elas: Theoria da interpretação das
leis e ensaio sobre a natureza do senso consignativo, de 1815; Doutrina
das ações acomodada ao foro de Portugal, de 1819; no mesmo ano o
Manual do tabelião, ou Ensaio de jurisprudência hermenêutica; Digesto
português ou Tratado dos direitos e obrigações civis acomodado às leis e
costumes da nação portuguesa, de 1835 entre outras obras. Seu currículo,
portanto, abaliza suas considerações apresentadas no Comentário crítico
à lei de 18 de agosto de 1769, publicado em 1824.

Os originais manuscritos do Comentário podem ser encontrados no


Arquivo da Torre do Tombo, no fundo da Real Mesa Censória. Tais ma-
nuscritos revelam um pouco do trâmite e ajustes que o autor fez antes da
sua publicação. No manuscrito, lê-se:

64 – WEHLING e WEHLING. Direito e Justiça no Brasil colonial: o tribunal da relação


do Rio de Janeiro, p. 449.
65 – AVELAR. História Administrativa do Brasil: administração pombalina, p.130.

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Álvaro de Araujo Antunes

“Este escrito teria sido estampado em 1821, se os produtos efêmeros


da assembleia constituinte (a que chamaram de Corte) não tivessem
empecido a sua publicação. Agora que os governos legítimos estão
felizmente mais seguros e os espíritos menos agitados, a lição dele
ainda pode ser útil, ao menos para convencer quanto é necessária a re-
forma da legislação civil. Desta reforma, a meu entender, pende mais
a segurança da honra e da propriedade, do que da melhor constituição
política.”

Não se sabe, ao certo, se as relatadas considerações sobre o ambiente


político são de autoria de Correia Telles ou se do responsável pela ava-
liação da obra. De qualquer maneira, estamos diante de um panorama da
época em que a obra foi escrita. Um ambiente de expectativas depositadas
sobre a reestruturação portuguesa depois das invasões napoleônicas, e
sobre as potencialidades do liberalismo e da crítica racional.

Esse espírito crítico perpassava a obra de Telles. Na introdução do


Comentário, a Lei de 18 de agosto de 1769 foi descrita como uma das
mais “notáveis do feliz reinado do Senhor D. José”. Escreveu Telles: “De-
nomino-a Lei da Boa Razão, porque refugou as leis romanas, que em boa
razão não forem fundadas.”66 Algo muito positivo à execução da justiça,
segundo julgava o autor. Mas todo o elogio não o exime de pronunciar
suas censuras à Lei da Boa Razão, parte delas voltadas à prática adminis-
trativa da justiça.

Com relação às dúvidas legais, Telles considerava que o “método da


interpretação autêntica que instaurou a nossa lei ainda não é o melhor”.67
Isto porque os desembargadores e o soberano, senhor da lei, não teriam
tempo necessário para desfazer todas as dúvidas dos advogados espalha-
dos pelos auditórios de primeira e segunda instâncias, ficando a dúvida,
no mais das vezes, resolvida pelo arbítrio do juiz ordinário. A solução
para o problema seria a constituição de um tribunal encarregado somente
da interpretação autêntica das leis, ponderou Telles.

66 – ALMEIDA, Auxiliar Jurídico: apêndice às ordenações Filipinas, v. 2, p. 444.


67 – TELLES, José Homem Correia. “Comentário Crítico à Lei da Boa Razão”. In: ALMEI-
DA, Candido Mendes de. Auxiliar jurídico: apêndice às Ordenações Filipinas. Rio de Janeiro,
1870. Edição fac-similada de Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, v. 2, p. 449.

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

Os estilos também deveriam ser confirmados por Assentos da Casa


da Suplicação para ter valor de lei. Ocorre que diversos estilos conhe-
cidos e difundidos nas obras de praxistas não eram confirmados, sendo,
portanto, “barbaridade condenar alguém pela inobservância deles, porque
pena sem lei é efeito sem causa”.68

Outro limite diretamente associado à atuação da Casa de Suplicação


foi apresentado por Telles quando tratava dos 58 Assentos que foram fir-
mados entre os anos de 1768 e 1800. Para o autor, o restrito número de
Assentos foi indicativo da pouca observância da Lei de 18 de agosto de
1768. Uma solução para este problema seria “estender a providência dela
[Lei da Boa Razão], concedendo a todos os julgadores o poderem reque-
rer Assentos”.69

As disposições da Lei da Boa Razão que subordinavam as leis ro-


manas ao direito natural também foram analisadas por Telles. Depois de
elencar diversos casos nos quais o direito romano contrariava o direito
natural, o autor ponderou sobre os limites do usus modernus pandecta-
rum. Considerando o papel dos professores de Direito em esclarecer sobre
os erros e averiguar sobre a inteligência das Novellas, Digesto e Código,
concluiu o autor que, por mais que se busque limitar as divergências de
interpretação por meio da razão, o uso moderno da legislação romana é
variado, “seguindo umas nações as decisões das Novellas e outras a do
Código e do Digesto”.70 Além disso,
“confrontando a nossa lei com os Estatutos [...], parece não ter sido
o mesmo legislador. A nossa lei exige precisamente que as leis roma-
nas subsidiárias das pátrias sejam fundadas naquelas boas razões, que
declarou: os Estatutos não exigem tanto, satisfazem-se que as leis ro-
manas não tenham oposição ou repugnância às leis naturais, divinas,
direito das gentes etc.”71
68 – TELLES, José Homem Correia. “Comentário Crítico à Lei da Boa Razão”, p. 450.
69 – Considerando o assunto, Arno Wehling pondera que o número de Assentos indicado
por Telles não era tão inferior ao do reinado de D. João V, com 63 ocorrências. WHELING
e WEHLING. Direito e Justiça no Brasil colonial: o tribunal da relação do Rio de Janei-
ro, p. 454.
70 – TELLES, José Homem Correia. “Comentário Crítico à Lei da Boa Razão”, p. 462.
71 – TELLES, José Homem Correia. “Comentário Crítico à Lei da Boa Razão”, p. 461.

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Álvaro de Araujo Antunes

Destarte, para Telles, o proposto na Lei da Boa Razão não era ob-
servado nos Estatutos da Universidade de Coimbra ou, o que poderia ser
mais aberrante, haveria um equívoco de interpretação da lei, ainda que o
suposto redator de ambos os documentos fosse a mesma pessoa! Outras
considerações são tecidas sobre a vacuidade da definição do que pode
ser entendido como “leis políticas e econômicas” ou até mesmo como
“nações polidas”, que, segundo o autor, bem poderia ser qualquer nação
cristã da Europa.

No somatório dos erros, apesar de considerar a Lei da Boa Razão


como uma das mais “notáveis do feliz reinado do Senhor D. José”, Telles
apresentava uma série de limitações internas e estruturais à lei. Nesse
sentido, o autor apontou para algumas contradições entre os mecanismos
da reforma jurídica e considerou alguns empecilhos práticos à execução
das determinações legais fixadas em 18 de agosto de 1769.

As práticas e os agentes no campo jurídico: os usos da Lei da Boa


Razão.
Avizinhar-se do “direito vivo” é uma tarefa que demanda uma extra-
polação da dimensão restrita da lei em direção à prática dos auditórios. É
possível encontrar vestígios dessa prática em alguns dos escritos jurídicos
enviados aos órgãos de censura portugueses pleiteando a concessões para
publicação. A Lei da Boa Razão, por exemplo, foi referenciada em obras
como as Alegações de João Henrique Martins, escrita em fins do século
XVIII, na qual é possível ler a seguinte nota:
“Não será necessário vestir o feio caráter de declamador, para notar o
quão pouca atenção deve merecer aos sábios Magistrados um número
infinito de causas, que inutilmente os fatigam, umas vezes por culpa
dos litigantes, outras por erro, ou por fraude dos patronos: Este é um
vício que grassava em toda a Europa, e a que quase todas as nações
iluminadas hoje se opõem. [...] Não é só a razão, quem faz evidente
a certeza e a maligna influência desses abusos: eis aqui os expressos
preceitos, com que indispensavelmente nos devemos conformar. Por-
quanto (Lei de 18 de agosto de 1769), depois de muitos anos, tem sido
um dos mais importantes objetos da atenção e cuidado de todas as

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

nações polidas da Europa o de precaverem com sábias providências as


interpretações abusivas, que ofendem a majestade das leis [...].” 72

No diagnóstico negativo da justiça, o autor das Alegações não se li-


mitava a apontar os benefícios das disposições da Lei da Boa Razão, mas
também professava a conformidade da sua postura profissional à dita lei:

“Estas razões me fizeram olhar com horror para o estilo ordinário, en-
tre nós, até aqui, praticado: eu me apartei do uso comum e segui nova
trilha. Tendo-me em primeiro lugar persuadido da intrínseca justiça da
causa que defendo procurei depois fazê-la evidente com razões sóli-
das. E para que fique manifesta, uma vez por todas, a causa de seguir
o estranho método, que me propus, eis aqui os importantes preceitos,
dos quais nunca me apartei [...].” 73

Os princípios aos quais se refere foram os mesmos apresentados pela


Lei da Boa Razão, citada pelo autor praticamente na íntegra. Se sua de-
claração é digna de crédito, é possível, então, considerar que a Lei da
Boa Razão encontrou espaço nos tribunais de justiça, servindo de norte à
conduta dos advogados e juízes.

Em outro manuscrito, localizado no Fundo da Real Mesa Censória, é


possível discernir a Lei da Boa Razão servindo aos argumentos jurídicos
que compunham o cerne do Manifesto de todos os artigos, documentos
principais e sentenças professas na célebre causa da Igreja de São Pedro
de Abacás, que denunciou no juízo da Coroa o padre José Borges de
Abreu contra a Mitra Primas e contra o pároco da mesma Igreja. A obra
foi escrita pelo padre Antônio Nunes de Figueiredo, inconformado com a
decisão da justiça sobre a causa em questão. Segundo Figueiredo,
“esta importante e desgraçada causa ensina a pouca segurança que se
pode pôr nos estabelecimentos humanos, por mais que sejam augustos
[...] Por outro lado, me parece que os governantes não deixavam de
revelar os erros da justiça, apontando-os como na Lei da Boa Razão
ou na Lei Cintra o direito consuetudinário. Ao contrário do que é feito

72 – Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) – Fundo Real Mesa Censória, Caixa
508, documento 4703.
73 – ANTT – Fundo Real Mesa Censória, Caixa 508, documento 4703.

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Álvaro de Araujo Antunes

no ensino, em que os Jesuítas são diretamente atacados e acusados


como os senhores das mazelas, aqui nas leis não há menção direta aos
mesmos, todavia podemos encontrar indiretas que acusam os antigos
como causadores de problemas jurídicos, mas que são sanados e não
maculam a imagem da justiça.” 74

A perspicaz argumentação do padre Figueiredo expõe algo mais do


que a alegada culpa do ensino promovido pelos jesuítas. A Lei da Boa
Razão, sem mencionar os jesuítas, bota às claras os limites da própria jus-
tiça, os quais, se não fossem sanados, poriam a perdê-la, mal que parece
afligir o autor do manifesto.

Diante das considerações feitas, cabe a pergunta: do que valeria a


Lei da Boa Razão se não fosse respeitada? Serviria de mero indicativo
das mazelas da justiça? Ou, se lograsse influenciar a prática da justiça,
como indica o primeiro manuscrito apresentado, não seria possível supor
que houvesse alguma resistência ao seu cumprimento? Em que medida
a Lei da Boa Razão foi respeitada ou ao menos citada nos tribunais de
primeira instância? Não haveria um hiato entre as proposições das leis e
a prática jurídica? Ou ainda, haveria um descompasso entre a pretensão
centralizadora e regalista e as dimensões cotidianas metropolitanas e co-
loniais? Que fatores intervieram para firmar esse provável distanciamento
da norma?

Para auxiliar a responder a essas questões, vale analisar as ações


judiciais de Mariana e Vila Rica, Minas Gerais, buscando os rastros da
influência da Lei da Boa Razão, em especial quanto ao uso ou desuso do
direito romano e do direito natural. No limite, trata-se de levantar alguns
dados para pensar o alcance das reformas pombalinas na reconstituição
do campo jurídico, especialmente no âmbito da justiça praticada em Mi-
nas Gerais.

É possível distinguir a evocação do direto natural em certas ações ju-


diciais de Mariana e Vila Rica. Em alguns processos, fez-se referência às

74 – ANTT – Fundo Real Mesa Censória, Caixa 508, Códice 4703.

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Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

obras do jusnaturalismo. José Pereira Ribeiro, advogado em Mariana, em


uma das ações que patrocinou no ano de 1782, citou Jean Domat, em sua
obra “Lois civiles”. Muito possivelmente tratava-se de uma versão de Les
lois civiles dans leur ordre naturel, uma das muitas obras sobre direito
natural que compunham a biblioteca do advogado. O civilista Jean Do-
mat foi considerado “o restaurador da razão humana da jurisprudência”,
asserção que não procede para John Gilissen, pois o jurista francês tinha
princípios galgados mais na religião e na filosofia escolástica do que na
filosofia racionalista.75 De qualquer maneira, trata-se de uma referência
ao direito natural, muito à moda da tradição reformista portuguesa e com-
patível com a formação recebida por Ribeiro, que estudou na reformada
Universidade de Coimbra.76

Por vezes, a menção ao direito natural vinha na forma de uma evo-


cação às “leis naturais”.77 Em uma ação envolvendo litígios acerca de
terras minerais, localizadas no córrego do São Lourenço, na Freguesia de
Guarapiranga, é possível identificar o uso que o Dr. Cláudio Manuel da
Costa fez do direito natural na estruturação de seu argumento.

No ano de 1787, “em pública audiência [...] em casas de morada do


Dr.Ouvidor-Geral e Corregedor desta Vila e Comarca Tomás Antonino
Gonzaga”, João Duarte Pinto pedia o embargo do desmonte de uma ca-
choeira que se localizava na terra do réu, Carlos Pinto Brandão, porque a
operação estava entulhando sua mineração rio abaixo.78 Cláudio Manuel

75 – Em seu livro, Jean Domat observa que “as regras de direito são expressões curtas e
claras e que exige a Justiça nos diversos casos...”. A forma com que José Pereira Ribeiro
compunha suas argumentações mostrava-se afinada com essa perspectiva. DOMAT, Jean.
As leis civis na sua ordem natural, 1689, apud GILISSEN. Introdução histórica ao direi-
to, p. 365.
76 – Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC) - Actos e graus de estudantes da Uni-
versidade por Faculdade. Curso de Direito. José Pereira Ribeiro.
77 – Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM)- 2 Ofício, Códice 211, Auto
5264.
78 – Era comum os agentes da Justiça darem audiência em suas residências, numa clara
mostra de confusão entre público e privado. Segundo Arno Wehling “a ideia de uma re-
partição pública distinta do local de residência somente se imporia no século XIX, com o
novo modelo de Estado e de administração. WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José.
“O funcionário Colonial entre a sociedade e o rei”. In: PRIORE, Mary del. Revisão do

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):15-50, jul./set. 2011 41


Álvaro de Araujo Antunes

da Costa, advogado do réu, concordou que o desmanche implicava algum


prejuízo às atividades mineradores do autor, mas ponderou que, “em di-
reito, deve o prédio inferior servidão ao superior”. Tal direito ganharia a
força da precedência do réu naquela localidade, uma vez que, por seus
antecessores, tinha a posse da data mineral há mais de 40 anos.79

José dos Santos Azevedo e Melo, advogado do autor, rebateu as con-


siderações apresentadas pelo advogado do réu, alegando que mais forte
do que a “natureza” e a “antiguidade” era a lei. Todavia, faltava uma
lei específica que regulamentasse a questão e, diante dessa falta, o ad-
vogado do autor voltou à opinião de uma série de doutores das leis e a
algumas cláusulas do “regimento mineral” e a determinações da justiça
legal quanto ao uso dos cursos de água. Cláudio Manuel da Costa, por sua
vez, considerou inadequado o recurso às leis apresentadas no arrazoado
do Dr. Azevedo Melo. Logo em seguida, apelou novamente para a anti-
guidade da posse do terreno e para a prática dos mineiros, que conhecia
bem, uma vez que possuía terras de mineração.80 E, para finalizar suas
considerações, argumentou que “seria absurdo ir contra uma regra fun-
dada no direito natural de ser cada um arbitro do que lhe é seu, enquanto
não se mostre princípio que pudesse combater esse [...] o embargo é uma
mera emulação”.81 Trata-se, portanto, de uma referência ao direito natural
paraíso: os brasileiros e o estado em 500 anos de história. Rio de Janeiro: Campus, 2000,
p.157.
79 – Quarenta anos era considerado o tempo necessário para se figurar posse do terreno.
Esse prazo aparecia frequentemente nas ações judiciais em que se contestava posse de
alguma gleba. Conforme Moncada, ao longo da Idade Media, o antigo direito português
reconheceu quatro institutos possessórios diferentes: primeiro uma posse dada após um
ano e um dia; segundo outra dada após três anos; uma terceira dada após dez anos; e uma
quarta posse dada após trinta ou quarenta anos”. MONCADA, L. Cabral de. Estudos de
história do direito. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1949, v. 2, p. 50.
ACSM. 1 Ofício. Códice 383, Auto 8385.
80 – Cláudio Manuel da Costa parecia ser um especialista no assunto, sendo escolhido
em outras ações para defender causas que envolviam a posse, demarcação e extração em
terras minerais. Na causa apresentada, há de se considerar um conhecimento acumulado
do advogado sobre assunto que possuía terras minerais em Mariana. Tal aspecto ilustra os
saberes diversos que intervinham na prática da Justiça, para além das leis e das normas
escritas. Sobre os regimentos minerais, ver, entre outros: FERREIRA, Waldemar Martins.
História do direito brasileiro. São Paulo: Freitas Bastos, 1952, p.154.
81 – Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência Mineira – Casa Setecentista do Pilar

42 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):15-50, jul./set. 2011


Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

adequada às diretrizes da Lei da Boa Razão onde se lê que, na falta de lei


específica, a Razão natural servia de direito subsidiário.

Entretanto, nas ações judiciais analisadas, a remissão ao direito cos-


tumeiro se mostrava mais frequente do que ao direito natural. Em várias
alegações, o direito costumeiro aparecia como uma referência ao “estilo
do país”. Como exemplo, pode-se citar a ação em que Pedro da Costa
Neto, em 1790, reivindicou na justiça um negro que havia vendido a João
Pereira de Queiroz. No arrazoado, alegava-se que o autor vendia os “ne-
gros novos” que trazia para Minas Gerais mediante pagamento à vista ou
“fiados, como dirão as testemunhas, o que é estilo do País”.82

Outro direito evocado nas ações, constantemente, era o romano. Tais


alegações podem ser vistas em algumas ações judiciais de Vila Rica e
Mariana que fazem referência ao Decreto de Graciano, à Lei das XII Tá-
buas e à Lei Áquila. Para citar um caso de utilização desse direito, em
1789, Antônio da Silva e Souza, advogado em Mariana, fez a seguinte
referência:
“Em uma palavra o direito que favorece ao Autor, na sua proposta
ação de reivindicação e como querem alguns Doutores, de força velha
[sic.], na praxe de se tratarem e julgarem semelhantes ações com ex-
professo, escreveu nas suas Dubitações página 20, tratado 4 de inter-
dict., é tão certo, claro e indubitável tanto pelas leis pátrias como dos
romanos que advertiu o dito Cordeiro, Pegas de Interdict., e os mais
reinícolas, até o velho Caminha de libelos [...] Costa, nas suas Res-
(AHMIM-CSP) 1 Ofício, Códice 235, Auto 3902.
82 – Remetendo a uma discussão dos Costumes em Comum, de Thompson, e da noção de
Habitus, de Bourdieu, Carla Maria Junho Anastasia afirma que o costume pode ser consi-
derado tanto como práxis como quanto uma lei. “A Lex Custumaria (1696) apresenta os
quatro pilares em que se sustenta o costume: antiguidade, perpetuação, segurança e razão.
Quando a adoção de um ato é razoável, é considerada reiteradamente e, por sua prática
contínua, o ato torna-se um costume e, sendo praticado sem interrupção, obtém força
de lei”. O costume surge da rotina, do dia a dia. Hespanha prefere falar de padrões de
conduta, ao invés de direito consuetudinário, pois “nem todas estas normas têm o caráter
explícito e externamente controlável das normas jurídicas”. ANASTASIA. Carla Maria
Junho. Vassalos rebeldes: motins em Minas Gerais no século XVIII. Vária História, Belo
Horizonte: Editora UFMG, n.13, jun. 1994. HESPANHA, Antonio Manuel. Justiça e Li-
tigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 53.
AHMIM-CSP , 1 Ofício, Códice 249, Auto 4286.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):15-50, jul./set. 2011 43


Álvaro de Araujo Antunes

pectivas Cotas às Relativas ações; que julgo desnecessário amontoar


autoridades quando são previstas pelo sábio magistrado a quem se
pede justiça.” 83

Mesmo depois da promulgação da Lei da Boa Razão, os advogados


de Mariana continuariam a fazer referências ao direito romano, nem sem-
pre em harmonia com as diretrizes da referida lei. Apesar de fazer menção
às leis pátrias, sem citá-las com precisão, Silva e Souza as associa, senão
as submetia, às autoridades dos “doutores de força velha” e ao direito
romano, apontando para uma tradição jurídica que demandaria tempo
para mudar. A ação da Lei da Boa Razão penetraria no terreno jurídico
segundo ritmos variáveis, de região para região, conforme a disposição
dos agentes da justiça.84

Nesse sentido, analisada a documentação do Tribunal da Relação do


Rio de Janeiro, Arno Wehling identificou a presença do direito romano
nos processos judiciais. A utilização desse direito, todavia, estaria ade-
quada às limitações apresentadas pela Lei da Boa Razão. Assim sendo, as
mudanças na legislação promovidas por Pombal não teriam sido inócuas
e estariam presentes na instância superior do Rio de Janeiro. O autor res-
saltou, contudo, que essa influência seria implícita, sendo identificada,
expressamente, em apenas alguns casos com menção direta à lei.

Nas ações de Mariana e Vila Rica, também foram poucos os casos


em que houve referência explícita à Lei de 18 de agosto de 1769. Pelo
que foi possível apurar, apenas dois, entre as centenas de processos anali-
sados, fizeram menção à dita lei.85 Em ambos os casos, a citação era feita
por um advogado que auto denominava-se “velho e experimentado”: o
doutor Antônio da Silva e Souza. Em uma dessas ações, de 1798, movida
83 – ACSM. 1 Ofício, Códice 383. Auto 8385.
84 – Segundo Wehling, “o direito aplicado no tribunal manifestou um notável misto de
tradicional e moderno, de causuísmo jurídico tipicamente Antigo Regime e de sistematici-
dade racionalista, prenunciando um novo momento”. Um ambiente que poderia gerar con-
flitos entre concepções racionalistas e tradição estabelecida. WEHLING e WEHLING.
Direito e Justiça no Brasil Colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, p.2.
85 – ACSM – 2 Ofício, Códice 204, Auto 5102 e ACSM – 1 Ofício, Códice 460, Auto
10100.

44 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):15-50, jul./set. 2011


Pelo rei, com razão: comentários sobre as reformas pombalinas no campo jurídico

pelo sargento Manoel Caetano Lopes de Oliveira para apurar os autores


de uma sátira contra sua pessoa, Antônio da Silva e Souza citou: diversas
leis, dentre elas “a nova e providencial extravagante de 18 de agosto de
1769”. Sobre esta lei, considerou:

“Eu com ela escrevo [...] com quantas ordenações se podiam lembrar,
advertir, entender é bem parecer, e por isso mesmo para não ser ex-
tenso, a ela me reposto, afastando-me de toda antiqualha, opiniões de
D.D. suas questões de nome e pareceres indiscretos, com direitos ecle-
siásticos, pontifícios, constituições de certos bispados, menos polidos
sistemas, sustentados com as leis imperiais, porque neste reino se acha
autorizado e proibido pela citada lei de 18 de agosto de 1769.” 86

Ao expurgar de “toda antiqualha” e opiniões dos doutores de direi-


to, estaria o advogado se adequando às diretrizes estampadas na Lei da
Boa Razão editada há mais de 30 anos? Talvez sim, talvez não. Talvez o
advogado não se enquadrasse nas novas condições da prática judiciária,
mas adequasse a referida lei às necessidades prementes de se constituir
um argumento sólido que pudesse convencer o juiz.

Entretanto, na outra ação em que cita a Lei de 18 de agosto de 1769,


Silva e Souza demonstrava um claro esforço em se ajustar às novas di-
retrizes legais, sem se desvencilhar totalmente da instrução que recebera
antes da reforma universitária e do “ranço” de uma prática enraizada nos
auditórios de Mariana e Vila Rica. O letrado procurava recorrer mais às
Ordenações e, apesar de considerar “desnecessário amontoar autorida-
des”, acabava citando a legislação por meio das leituras dos doutores João
Rodrigues Cordeiro, Gregório Martins Caminha “e os mais reinícolas”.87
86 – Vale lembrar que na Lei da Boa Razão encontra-se expresso que: “se não se possa
fazer uso das ditas alegações e Decisões de textos, ou de autoridades de alguns escritores,
enquanto houver Ordenações do Reino, Leis Pátrias e os usos dos meus Reinos legitima-
mente aprovados [...]”. ACSM, 2 Ofício, Códice 204, Auto 5102. TELES. Comentário
crítico a Lei da Boa Razão, p. 454.
87 – Cordeiro era bacharel em direito Pontifício e, em princípios do XVIII, escreveu Du-
bitationes in foro frequentes more juridico disputatae, & secunum jus nostrum resolutae
ex ver, & imn multis fortasse nova illius intelligentia... Quanto a Caminha, que foi advoga-
do da Casa de Suplicação, diz-se que foi “perito em ciência prática especulativa e prática
da jurisprudência civil e Canônica”. Escreveu, dentre outras obras, Da forma dos libelos e
da forma das alegações judiciais e a forma de proceder no juízo secular e Eclesiástico...,.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):15-50, jul./set. 2011 45


Álvaro de Araujo Antunes

Antônio da Silva e Souza serve de exemplo para se entender como


os advogados “velhos e experimentados” procuravam adequar seu co-
nhecimento e formação às novas diretrizes pombalinas que visavam à
modernização de Portugal. Tais mudanças não tiveram apenas o impacto
imediato da lei e da reforma da Universidade de Coimbra. Elas ecoaram
pelo tempo, fazendo velha a promessa de inovação, embotadas por ideias
ainda mais novas, como as do liberalismo. As mudanças promovidas por
Pombal teriam resultados a médio e longo prazo. Repercussões que es-
tiveram sujeitas a um diálogo de forças constituintes do campo jurídico.
Da prática da justiça dependeu a valorização das leis pátrias e do direito
natural sobre o direito civil, canônico... Nas primeiras instâncias de Ma-
riana e Vila Rica, o ambiente do direito vivo revela como as políticas
modernizadoras atingiram extremos do Império português, obedecendo
ao ritmo particular da administração local, sem, contudo, excluir as forças
do regalismo, em favor do rei, com razão.

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Fundo Real Mesa Censória, Caixa 508, Documento 4703.

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Álvaro de Araujo Antunes

Leis – Livro 9. Alvará por que V. Majestade há por bem reparar os estudos das
línguas latina, grega e hebraica e da Arte da Retórica da Ruína a que estavam
reduzidos.
Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC)
Actos e graus de estudantes da Universidade por Faculdade. Curso de direito.
José Pereira Ribeiro.
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM)
2 Ofício, Códice 211, Auto 5264.
1 Ofício, Códice 383. Auto 8385.
2 Ofício, Códice 204, Auto 5102
1 Ofício, Códice 460, Auto 10100.
1 Ofício, Códice 383, Auto 8385.
Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência Mineira – Casa Setecentista do
Pilar (AHMIM-CSP)
1 Ofício, Códice 235, Auto 3902.
1 Ofício, Códice 249, Auto 4286.

Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação


em maio /2011.

50 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):15-50, jul./set. 2011


Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.
ação judicial na

SÚDITOS DEL-REY NA AMÉRICA PORTUGUESA:


Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e ação
judicial na Villa de Nossa Senhora da Luz dos
Pinhais de Curitiba no século XVIII
The King’s subjects in Portuguese America:
Corporate Monarchy, christian virtues and legal
action in Vila de São José dos Pinhais, Curitiba,
during the eighteenth century
Luís Fernando Lopes Pereira1
Resumo: Abstract:
O objetivo do texto é apresentar uma nova visão The aim of this text is to present a new vi-
acerca da organização político-jurídica na Amé- sion of the political and legal organization of
rica Portuguesa, defendendo a ideia da exis- Portuguese America, to defend the idea of the
tência de um sentimento de pertencimento da existence of a feeling of belonging among the
população (elites administrativas) em relação ao population (administrative elites) in relation to
Reino, destacando a importância das Câmaras the Kingdom, focusing on the importance of the
Municipais para a Monarquia Corporativa Por- Municipal Chambers vis a vis the Portuguese
tuguesa, mergulhada ainda nos padrões medie- Corporative Monarchy, still plunged in medieval
vais e em suas virtudes cristãs que orientavam o patterns and in the Christian virtues that orient-
Rei em seu governo. Ao mesmo tempo demons- ed the King in his administration. At the same
tra a existência de uma rede de comunicação time, it demonstrates the existence of a quite so-
bastante sofisticada que determinava uma maior phisticated communications network that deter-
adaptação da Ação judicial por parte dos juízes mined that common judges should better adapt
ordinários às determinações presentes nas Orde- to legal actions present in D. Felipe’s corpus of
nações Filipinas, mesmo em uma região pobre laws, including the periphery and poor regions.
e periférica. A segunda parte do texto, que trata The second part of the text, dealing with legal
da Ação judicial, mergulhou nas fontes primá- actions, resulted from an extensive research in
rias acerca das práticas do juízo curitibano e sua primary sources regarding the practices of the
relação com a Ouvidoria de Paranaguá, com a Judiciary in Curitiba and its relationship with
Capitania de São Paulo e mesmo com o Reino. the Paranagua Ombudsman, with Colonial Sao
Paulo, as well as with the Kingdom.
Palavras-chave: cidadania, organização políti- Keywords: Citizenship – Political and Legal
co-jurídica, Câmara de Curitiba, Ouvidoria de Organization – Curitiba Chamber – Paranagua
Paranaguá, direito e justiça colonial. Ombudsman – Colonial Law and Justice.

MONARQUIA CORPORATIVA E VIRTUDES CRISTÃS


Para a melhor compreensão da América Portuguesa é preciso focar a
análise na montagem da estrutura político-jurídica do Antigo Regime e de
1 – Doutor em Historia Social pela Universidade de São Paulo. Professor de História do
Direito do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universi-
dade Federal do Paraná.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):51-86, jul./set. 2011 51


Luís Fernando Lopes Pereira

sua sociedade corporativa, profundamente vinculada aos valores cristãos


medievais.

Os clássicos que se dedicaram ao tema têm sérios problemas de aná-


lise, como atribuir à estrutura portuguesa uma centralização exagerada,
caso de Raymundo Faoro2, para o qual o sistema administrativo português
teria sido transposto com sucesso para as colônias graças a sua precoce
centralização e cooptação das elites locais. Em Caio Prado Júnior3 por
sua vez, vemos uma administração portuguesa apresentada como caótica
(sem divisão de poderes), irracional (sem legalismo), contraditória e ro-
tineira, com uma monstruosa e ineficiente máquina burocrática. Em suas
palavras: “incoerência e instabilidade no povoamento; pobreza e miséria
na economia; dissolução nos costumes; inércia e corrupção nos dirigentes
leigos e eclesiásticos.” 4 Como marxista propunha uma explicação a partir
da base material da sociedade, fundamentado no latifúndio agroexporta-
dor. Portanto, para ele, os poucos laços eram os gerados pela relação de
produção: senhor x escravo. No restante a inorganização era a regra: a
população à margem, tendia para a desagregação social (caboclização e
vadiagem nos seus termos). A mesma perspectiva é seguida por Fernando
Novais5. Embora sob outros marcos teóricos, o mesmo desleixo é aponta-
do por Sérgio Buarque de Holanda:
“A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território,
dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas
à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato
dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distan-
tes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, tim-
brando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e
hostil, somos ainda hoje desterrados em nossa terra.” 6

2 – FAORO, Raymundo. Os donos do poder; formação do patronato político brasileiro.


São Paulo: Globo, 2000.
3 – PRADO, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. In: Intérpretes do Brasil. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
4 – Ibidem, idem. p. 1444.
5 – NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777
-1808). São Paulo: Hucitec, 1983.
6 – HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995, p. 31.

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Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.
ação judicial na

As estruturas locais seriam soltas e desleixadas. Afinal, para ele “uma


digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobiliante,
a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de
cada dia”. 7

Gilberto Freyre, por sua vez, adepto da tese da descentralização e


criador da ideia da democracia racial,8 afirmava que “os interesses agrá-
rios dominavam ainda a presidência da maior parte das províncias, a jus-
tiça e a polícia”.9 Portanto, para parte significativa dos grandes clássicos
das ciências humanas do Brasil, a administração portuguesa na América
é vista a partir da dicotomia centro-periferia, intensificada pelo espírito
pós-independência. Destaca-se aqui, ao contrário, a construção na colônia
de ideias de pertencimento que montaram certa cidadania na América do
Antigo Regime Português, fundamentalmente presente nas cidades, base
da administração portuguesa colonial.

Em Portugal, e consequentemente no Brasil, o poder no Antigo Re-


gime era uma realidade compartilhada por diversos polos sociais, mar-
cando o confronto entre o modelo “honorário” e o modelo “burocrático”
de administração da justiça. Predominava uma concepção corporativa da
sociedade que possuía uma crença na ordem universal do cosmos, que
abrange homens e coisas orientados para o criador, com fim transcenden-
tal.

O Universo era visto ainda como na Idade Média, como um cosmos


ordenado, o que implica dizer que a parte, o elemento singular, não é
compreensível se não o referenciarmos a uma totalidade que o inclui e as-
sinala sua colocação e destinação. No Antigo Regime a ideia permanece,
afinal “a sociedade e a cultura do antigo regime continuam a reconhecer-
se na ideia de um cosmos harmonicamente ordenado, na ideia de uma
sociedade que, por graus, distinções e dignidades diversas se ordena re-

7 – Ibidem, idem. p.39.


8 – Ver: FREIRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o
regime da economia patriarcal. 23ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Olympio Editora, 1984.
9 – FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. In: Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2002, p.766.

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petindo em si a mesma lógica desigual da criação”.10

A multidão é, portanto, ordenada sob o governo do detentor do po-


der em uma ordem de desigualdade e hierarquia, nervatura da sociedade
de Antigo Regime, onde a hierarquia corresponde à hierarquia do corpo
humano; “a cabeça, que rege e governa o corpo físico, corresponde ao
princeps, que preside a vida do corpo político; o coração ao senado; os
olhos e os ouvidos aos juristas”.11

O grupo social como tal é investido de poder, é titular no organo-


grama político da sociedade, possuindo iurisdictio, noção desenvolvida
principalmente pelos comentadores, entre eles Bartolo de Sassoferrato e
Baldo degli Ubaldi, a partir da ideia de que a cidade teria desde os tem-
pos imemoriais o merum et mixtum imperium. Classicamente iurisdictio
(ius dicere; dizer o direito) é tido como poder (em vários níveis e âmbi-
tos) introduzido por autoridade pública com a intenção de dizer o direito
e instituir a equidade. Tal iurisdictio é evidente nas câmaras constituintes
da administração portuguesa mesmo a partir do período tardo medieval
em que passa a dominar a concepção autoritária do poder político e juris-
dicional, segundo a qual o poder era atributo do príncipe, na realidade,

“Existiam poderes diversos e de diferentes hierarquias e âmbitos, dos


quais não se podia absolutamente dizer que descendiam de uma auto-
rização do imperador. A novidade introduzida pelos comentadores foi
de afirmar que os poderes existentes na sociedade tinham uma origem
natural, independente de qualquer concessão superior, uma vez que a
existência mesmo de corpos sociais implicava naturalmente em seu
ordenamento intimo e na faculdade de autorregulação.” 12

10 – Tradução livre do autor de: “La società e la cultura di antico regime continuano a
riconoscerci a lungo nell’idea di un cosmo armoniosamente ordinato, nell’idea di una
società che per gradi, distinzioni e dignità diverse si ordina ripetendo in se stessa la logica
diseguale della creazione.” In: COSTA, Pietro. Civitas: storia della citadinanza in Europa:
Dalla civiltà comunale al settecento. Roma/Bari: Laterza, 1999. p.66.
11 – Tradução livre do autor de: “La testa, che regge e governa il corpo físico, corrispon-
de al princeps, che presiede alla vita del corpo político; il cuore al senato; gli occhi e gli
orecchi ai giudici”. In: COSTA, Pietro. op. cit. p.9.
12 – Tradução livre do autor de: “esistevano poteri diversi e di differente gerarchia e am-
bito, dei quali non si poteva assolutamente dire che discendessero da una autorizzazione

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Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
ação judicial naVilla de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.

Isso demonstra que no contexto português há a permanência do plu-


ralismo, ou seja, de várias fontes do Direito. Todos os soberanos estavam
também sujeitos às leis de Deus (lei divina) e da Natureza (lei natural),
bem como às diversas leis humanas comuns todos os povos (lei das gen-
tes). Estavam também vinculados às normas que chamaríamos de cons-
titucionais por tratarem da estrutura do Reino, além de serem obrigados
também a respeitar os pactos que estabeleceram com os súditos, não ten-
do, portanto, poder arbitrário.

Claro que assistimos em Portugal a uma centralização do poder com


a formação do Estado, mas tal centralidade deve ser matizada, pois a re-
alidade portuguesa era marcada por fortes permanências medievais. Isso
fica evidente no exame da continuidade na metrópole de um pensamento
ainda vinculado à escolástica e de forte cunho artistotélico. Em relação
aos valores cristãos, percebemos pela leitura dos que deram conselhos
aos reis, que as ideias de Hobbes em seu Leviatã estavam distantes de
Portugal e de suas colônias. Ainda, maior influência é perceptível em Por-
tugal por parte das obras de Giovanni Botero13 e Tommaso Campanella14
que a de Maquiavel.

Frei António de Beja, membro da ordem de São Jerônimo, sob influ-


ência de Pico della Mirandola, em obra intitulada Breve Doutrina e En-
sinança de Príncipes, publicada em Lisboa em 1525, afirma que “todo o
Rei Lusitano que se nega Pai dos súbditos desmerece o soberano título de
rei natural”.15 Beja qualifica sua obra como lembrança ao casamento de D.
João III com D. Catarina de Áustria, invocando o fato do rei ser regedor
e governador de Deos em ha terra. A primeira parte do livro trata da sa-
bedoria e a segunda, da justiça. Entre os capítulos da Parte 1 destacam-se

dell’imperatore. La novità introdotta daí Commentatori fu di affermari che i poteri esis-


tenti nella società avevano um’origine naturale, indipendente da qualsivoglia concessione
superiore, poiché l’esistenza stessa di corpi sociali implicava naturalmente il loro ordina-
mento intimo e la facoltà di autoregolazione”. In: BENEDICTIS, Angela De. Politica,
governo e istituzione nell’Europa moderna. Bologna: Il Mulino, 2001, p. 265.
13 – BOTERO, Giovanni. La ragion di Stato. Roma: Donzelli, 2009.
14 – CAMPANELLA, Tommaso. De Política. Napoli: Alfredo Guida, 2001.
15 – BEJA, António de. Breve doutrina e ensinança de Príncipes. Lisboa, 1525, p. 4.

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os relativos às três virtudes necessárias aos príncipes: sabedoria, justiça


e prudência, o que deixa claro que no caso Português as virtudes morais
que vêm da tradição medieval cristã continuavam a orientar as ações.

Tal visão é complementada pela Parte 2, onde se destaca a discussão


da Justiça, ainda de cunho aristotélico-tomista, com forte influência es-
colástica, dividindo a justiça em comutativa e distributiva; justiça como
base da virtude real que deve ser feita a toda pessoa, favorecendo os po-
bres agravados e castigando os malfeitores, em busca de paz. No último
capítulo, observa-se: guarda-se a paz do povo com el-rei quando ele rege
e governa mais por amor do que por temor, dado que vale mais ao rei ser
amado que temido, contrariando aqui os conselhos de Maquiavel.

A influência aristotélica e sua permanência ficam ainda mais evi-


dentes no exame da obra de Jerônimo Osório, conhecido como o Cícero
português. Osório estudou em Paris (onde teve contato com Santo Inácio
de Loyola) e em Bologna (onde tomou contato com o Ius Commune a
partir das Glosas). Foi bispo de Silves e do Algarve; sua grande obra de
conselhos aos príncipes, Da Instituição Real e Sua Disciplina (dirigida a
D. Sebastião) foi publicada no mesmo ano da primeira edição de Os Lu-
síadas e teve sucessivas edições em Colônia (1572,1574 e 1614) e Paris
(1583) e destacava os males da ambição de reinar, afinal para ele

“só devemos ter como rei o mais digno e honesto de todos. Porquanto
a honestidade só brilha em todo o seu fulgor quando a razão, a parte
mais nobre de nosso espírito, conseguir a supremacia e administrar
acertadamente o reino que a natureza lhe confiou. Assim procederá
quando, dentro da devida medida, reprime desatinos, refreia paixões,
modera afectos e deles se faz obedecer”.16 Diferencia aqui Osório o
soberano virtuoso do tirano, “aquêle que não atender a Deus, enjeitar
os ditames da razão, der guarida à impureza e ao prazer; o que violar
as leis divinas e humanas e recorrer ao dolo e à simulacro”. 17

16 – OSÓRIO, D. Jerónimo. Da Instituição Real e Sua Disciplina. Lisboa: Edições Pro-


domo, 1944, p. 6.
17 – OSÓRIO, D. Jerónimo. Da Instituição Real e Sua Disciplina. Lisboa: Edições Pro-
domo, 1944, p. 10.

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Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.
ação judicial na

Faz também um longo elogio aos monarcas lusos e sua vinculação


a uma ideia de ordem natural, centrada da natureza das coisas, de clara
inspiração aristotélica, vendo a virtude como a manutenção desta ordem
natural, afinal “é Rei o que governa e dirige ininterruptamente a repúbli-
ca, usando de justiça e equidade para com todos, e valendo-se da garantia
segura da virtude. Reger ou governar é orientar algo para o devido fim”.18
Para Osório quem não sabe governar-se a si, não saberá governar um
povo inteiro, logo é preciso que o príncipe conheça o direito e as leis para
dominar uma república usando a razão e controlando as paixões, outro
tema caro a Aristóteles.

As virtudes que os futuros soberanos devem cultivar: a magnanimi-


dade e a temperança. Deve evitar a adulação que vicia moralmente os so-
beranos, cultivando a temperança, a sabedoria e a fortaleza, afinal, “nin-
guém poderá fazer justiça se não for avisado, magnânimo e moderado”.19
Destaca também a importância da justiça e da lei:
“Nos regimes republicanos, o poder supremo está na lei, que a nin-
guém concede graças nem de ninguém recebe ofertas, não se tomando
de ira, inveja ou ódio, nem se volvendo misericordiosa. Neles geral-
mente faz-se justiça, atribuindo a cada coisa o seu valor. (…) Por fim,
uma vez que numa república livre se põe o máximo de empenho em
conservar as leis, e como é função da lei fazer justiça a todos, por
igual, não sera fácil haver um cidadão tao poderoso que despreze as
sanções legais ou pretenda extirpar os vínculos jurídicos que os ads-
tringem a todos.” 20

Assim, para Osório seria tirano e não rei o Monarca que tolhesse
a liberdade de todos. O Monarca deve ser dotado de sabedoria divina
para saber da natureza e cultivar as virtudes, ser casto, manso, modesto
e grave, afinal “se o Príncipe houver determinado dotar a república de
bons costumes, ser-lhe-á necessário não tanto fazê-lo com ameaças e san-
ções legais, como, sobretudo, com notáveis exemplos de continência e de

18 – Idem, ibidem, p. 21.


19 – Idem, ibidem, p. 176.
20 – Idem, ibidem, p. 204.

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moderação”.21 Entretanto, dentre as virtudes morais cultivadas, a princi-


pal deveria ser a justiça, pois

“não há sacrifício tanto ao agrado de Deus como a missão da justiça;


não há geração, bem cidade, nem multidao de homens, nem, por fim,
lar algum que possa salvar-se sem justiça. (…) É, pois, por força da
justiça que tão diversas coisas estão unidas entre si pelo vínculo de
uma só lei, que tão bem se harmonizam, constituindo o ornamento
tão admirável de todo o mundo, do qual tantas são as utilidades que
dimanam.” 22

O Rei justo deveria ser fiel, manso, liberal e zeloso, além de diligen-
te em seu governo. Em seu temperamento deveria ser discreto e come-
dido, corajoso e magnânimo. Para uma virtude perseverante, requer-se
morigeração e instrução adequada, incluindo Dialética, Retórica, Ma-
temática, História e Filosofia. E também o Soberano deverá sujeitar-se
às leis. Como diz Osório, ninguém pode ser bom timoneiro se não tiver
sido marinheiro durante muitos anos. Assim, destaca o império da Lei,
vista como dádiva da bondade divina, decretos de Sua sabedoria, pactos
sacrossantos da sociedade humana, às quais devem estar submetidos mes-
mo os reis, afinal,
“Elas reprimem a violência do mal; obstam a ciladas e fraudes; con-
têm as normas da honestidade; opõem-se ao mal e à torpeza e acabam
com os motivos de discórdias. Elas proporcionam os preparativos para
a guerra; constroem as bases da paz e da tranquilidade; servem de
apoio à estabilidade da república, e prendam-na com muitas riquezas
e enfeites. Portanto, quem se sujeitar às leis será escravo da sabedoria,
da honestidade, da imortalidade, do dever e da religião.” 23

Osório vê o mundo como um cosmos, um conjunto de homens uni-


dos pelo direito; onde é a lei que distingue o Rei do Tirano, pois “o poder
do Tirano é ilimitado e independente das leis; o do Rei, porém, é circuns-

21 – Idem, ibidem, p. 257.


22 – OSÓRIO, D. Jerónimo. Da Instituição Real e Sua Disciplina. Lisboa: Edições Pro-
domo, 1944.p.258.
23 – Idem ibidem. p. 371.

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Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.
ação judicial na

crito pela justiça e pela lei”.24 Quando fala em leis, destaca não apenas as
escritas, mas também os costumes admitidos por todos.

Evidente que no caso português, com a montagem de uma estrutura


monárquica, assistimos à passagem descrita por Norbert Elias de uma
sociedade de guerreiros para uma sociedade de cortesãos25, onde ao redor
da Corte Real se desenvolvem as intrigas e jogadas políticas que substi-
tuem parte da violência direta, a partir do momento em que o soberano
submete os outros nobres a seu poder, passando a distribuir privilégios
em uma economia moral do dom. Assim, a novidade com o Príncipe é o
estabelecimento de uma rede que o liga aos súditos, acrescentando aos
mesmos uma nova dimensão da cidadania, antes apenas local.

CIDADANIA E ELITES CAMARÁRIAS


A ideia é demonstrar, ao contrário das teses tradicionais acerca do
período colonial brasileiro, que havia mesmo nos cantos mais pobres e
supostamente “desleixados” do Império português uma sensação de per-
tencimento, tanto ao Reino, com elos fortes simbólicos estabelecidos
com o Rei, como com a elite local, coesa e relativamente homogênea nas
Câmaras municipais. Ainda, demonstrar que o controle institucional era
feito de forma sofisticada e bem estruturada, embora as determinações
metropolitanas fossem sempre adequadas a uma realidade que exigia do
direito soluções novas e diversas daquelas presentes no ambiente portu-
guês.

A cidadania aqui é concebida, sob inspiração de Pietro Costa, como


pertencimento, transformando-se em um termo que toca alguns pontos
nevrálgicos da sensibilidade política. O período tratado é o século XVIII,
na América Portuguesa, tributária ainda de uma concepção corporativa da
sociedade e vinculada a elementos da cultura medieval, embora agora to-
dos os súditos passem a estar vinculados ao soberano que confere unidade
à diversidade do mundo corporativo do Antigo Regime.

24 – Idem, ibidem, p. 373.


25 – ELIAS, Norbert. O processo civilizacional. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

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Logo, aqui serão fortes os vínculos entre os súditos e o soberano, que


produzirão uma nova imagem do sujeito e de seus direitos, bem como uma
nova definição de ordem. Isto ficava evidente na vasta correspondência
gerada pelas unidades coloniais portuguesas. Temos um intenso contato
entre as Ouvidorias e as Câmaras e entre estas e o Governo da Capitania
e mesmo o Reino, em que pesem todas as dificuldades de transporte ex-
perimentadas na colônia. Destaque aqui para o espaço de construção de
tal cidadania, as câmaras, “instituições fundamentais na construção e na
manutenção do Império ultramarino. Elas se constituíram nos pilares da
sociedade colonial portuguesa desde o Maranhão até Macau, pois garan-
tiam uma continuidade que governadores, bispos e magistrados passagei-
ros não podiam assegurar”.26
Isso dava a Portugal uma uniformidade institucional, pois todos os
conselhos eram dirigidos por uma câmara, composta em geral por um
juiz-presidente, dois vereadores e um procurador. Apesar disso cada câ-
mara tinha uma configuração própria, respeitando as particularidades lo-
cais, possuindo em geral uma grande autonomia em relação ao governo
central,
“Com efeito, tal como no continente europeu, também no território
brasileiro se pode falar da municipalização do espaço político local.
As câmaras municipais e as respectivas elites locais cobriam a maior
parte do território povoado da colônia e eram o principal interlocutor
das diversas instâncias sul-americanas da Coroa. Mantinham, ainda,
tal como na Europa, por meio das petições, uma comunicação polí-
tica frequente com a administração central. No fundo, constituíam o
principal instrumento de integração política da colônia e das suas eli-
tes no espaço imperial, o que pressupunha, tal como foi recentemen-
te sugerido, uma apreciável margem de negociação. Em vez de um
modelo de centralização ineficaz, talvez seja mais adequado pensar o
espaço político colonial como uma constelação de poderes, com algu-
ma capacidade para mutuamente se limitarem, na qual as elites locais
brasileiras se exprimiam politicamente, sobretudo por intermédio das
câmaras municipais.” 27

26 – BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Im-


pério. In: FRAGOSO, João (org.) O antigo regime nos trópicos; a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI - XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 191.
27 – MONTEIRO, Nuno Gonçalves F. Trajetórias sociais e governo das conquistas: Notas

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Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
ação judicial naVilla de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.

Chega a se montar mesmo uma oligarquia camarária, grupo social


de gente nobre da governança, alargando os estratos terciários urbanos
e ampliando a nobreza. Criaram um estado intermédio ou privilegiado,
equidistante da antiga nobreza e do povo, que se sentia participante do
grupo aristocrático e assumia seus valores, seus padrões de conduta,
afinal “a ocupação de cargos na administração concelhia constituíra-se,
portanto, na principal via de exercício da cidadania no Antigo Regime
português”.28

Essa centralidade da cidade nos remete à análise de Costa sobre o


termo cidadania, afinal a palavra, em diversas línguas da Europa Oci-
dental, evoca a cidade. Logo, a matriz do nexo entre indivíduo e estado
é a cidade, que se dá a partir de experiências e cultura diversas, afinal “é
um nome coletivo, que pode indicar a síntese de muitos na unidade do
ordenamento, mas também a pluralidade dos sujeitos que a compõe”.29
Representa, portanto, os habitantes da cidade, de um lado, e sua condição
de membro da comunidade, de outro. A cidade portuguesa se caracteriza
exatamente assim.

Cidade que, para Costa é uma formação política onde o momento


associativo é fundamental (associação de cidadãos). Esse elo sagrado se
verifica na América Portuguesa, em particular no século XVIII, quando
ocorre um grande surto urbanístico e mantém no Brasil a característica
ainda medieval da cidade, qual seja, a autonomia como seu aspecto prin-
cipal da Communitas civium, “autonomia como capacidade de dar-se um
ordenamento, como expressão do impulso ‘constituinte’ de um sujeito
coletivo. O livre pulular de formas associativas, das quais a cidade co-

preliminares sobre os vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos


XVII e XVIII. In: FRAGOSO, João (org.) O antigo regime nos trópicos; a dinâmica im-
perial portuguesa (séculos XVI - XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp.
282-283.
28 – BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Op. cit., p. 2004.
29 – Tradução livre do autor de: “è un nome collectivo, che può indicar nela sin-
tesi dei molti nell’unità dell’ordinamento, ma anche la pluralità dei soggetti che
la compongono”. In: COSTA, Pietro. Civitas: storia della citadinanza in Europa:
1. Dalla civiltà comunale al settecento. Roma/Bari: Laterza, 1999, p. 4.

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munal é a expressão politicamente mais significativa”.30 Essa autonomia


legislativa é perceptível na América Portuguesa na análise das Posturas
Municipais que, se de um lado eram uma tentativa clara de realização do
sonho colonial português e da imposição de um mundo de ordem lido na
natureza das coisas, era ao mesmo tempo adaptado de tal maneira que
se caracterizava como algo particular. Desta forma, o nexo forte entre
sujeito e corpo político permanece no caso Português por sua base muni-
cipalista, afinal, ensina Costa,

“o nexo forte que a cultura medieval e pós-medieval instaura entre o


sujeito e o ‘corpo’ político, entre o indivíduo e a cidade não é desti-
nado a exaurir-se com diminuição das condições históricas que lhe
gerou: é um tema de fundo do discurso da cidadania, que não para de
recriar e reformular, entre coordenadas culturais sempre diversas, o
momento de ligação vital do sujeito com o corpo político.” 31

A cidade, apesar das transformações, mantém uma vitalidade e au-


tonomia político-institucional, mantendo certas continuidades, como o
nexo que liga o cidadão à comunidade política e mesmo uma autonomia
de autogoverno, afinal passa a ter em si mesma os fundamentos de sua
legitimidade, não necessitando buscá-los fora, experimentando uma nova
valorização da ação política dos cidadãos, com uma refiguração que faz
da participação política um valor republicano. Até porque na base de uma
antropologia política, pressupõe-se o Príncipe como capaz de se apoderar
do objeto Estado, mas a cidade não pode ser esse objeto. A virtude do
príncipe e dos cidadãos se mistura com a política (manutenção do Estado)
e afirma a capacidade do sujeito; desta forma a cidadania republicana exi-

30 – Tradução livre de: “autonomia come capacita di darsi un ordinamento, come es-
pressione delo slancio ‘costituente’ di um soggetto collettivo. Il libero pullulare di forme
associative, di cui la città comunale è l’espressione politicamente piu significativa.” In:
COSTA, Pietro, op. cit., p. 5.
31 – Tradução livre do autor de: “Il nesso forte che la cultura medievale e post-medievale
instaura fra soggetto e il ‘corpo’ político, fra l’individuo e la città non é destinato ad esau-
rirsi con il venir meno delle condizioni storiche che lo hanno generato: è un tema di fondo
del discorso della citadinanza, che non cessa di ricreare e riformulare, entro cordinate
culturali sempre diverse, il momento del legame vitale del soggetto con il corpo político.”
In: COSTA, Pietro, op. cit., p. XX.

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Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
ação judicial naVilla de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.

ge uma virtude própria que coincide com a ação politicamente orientada


à salvaguarda da cidade, fazendo com que a relação se reforce.

A cidadania, percebida como ligação do cidadão com a comunidade


política, na América Portuguesa, intimamente relacionada com os conse-
lhos, busca a percepção da multiplicidade de posições subjetivas, onde a
questão central, inspirada por Costa, é verificar como isso constitui o per-
tencimento do sujeito à comunidade política, afinal, o sucesso do aparato
institucional português dependia de um forte envolvimento dos membros
da cidade na política colonial,
“Esse pertencimento não pode ser descrito simplesmente recorrendo
aos elementos de ordem e hierarquia. Na conexão da cidadania não
se confrontam apenas diferentes posições de poder: o ente hierarqui-
camente superior é uma grandeza coletiva cuja relação com o sujeito
obediente é uma conexão de comando e também de inclusão.” 32

Daí a relação entre pertencimento e inclusão. Por isso Bartolo definia


a cidade como patria singularis, distinta de uma possível patria commu-
nis. Esse zelo pela coletividade fica evidente nas funções atribuídas aos
que deveriam desempenhar os cargos públicos no Império Português, ca-
racterizando a política como arte do bom governo, como governo da coisa
pública visando ao bem comum. É da cidade que o indivíduo recebe o
dom de uma vida civil, a destinação e o alimento de seu ‘patriotismo’, a
fonte de suas obrigações e de seus privilégios. Nesse contexto histórico
“existe não o sujeito, mas uma multiplicidade de condições subjetivas
hierarquicamente conexas”33.

Entretanto, a questão do pertencimento passa a ser avaliada tam-


bém na relação que se estabelece com o soberano, em uma sociedade

32 – Tradução livre do autor de: “questa appartenenza non può essere descritta semplice-
mente ricorrendo agli elementi dell’ordine e della gerarchia. Nel rapporto di citadinanza
non si fronteggiano solo differenziate posizioni di potere: l’ente gerarchicamente supe-
riore è una grandezza collettiva il cui rapporto con il soggettto obbediente è un rapporto
di comando in quanto è anche um rapporto di inclusione.” In: COSTA, Pietro. op. cit., p.
20.
33 – Tradução livre do autor de: “Esiste non il soggetto, ma una molteplicità di condizioni
soggettive gerarchicamente connesse.” In: COSTA, Pietro, op. cit., p. 41.

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composta por corpos e poderes diversos que encontra exatamente nele


(soberano) a condição de sua unidade enquanto este em contrapartida res-
peita os limites, harmonizando as partes. Novamente em Costa,

“Todos os cidadãos são igualmente súditos do soberano, mas cada um


depende do soberano em razão do status ao qual pertence: o discurso
da cidadania e da soberania e a teoria das ordens se combinam perfei-
tamente (...) A relação direta com o soberano é aquela de um sujeito
que, na hierarquia do status, ocupa aquela posição de ‘governador da
casa’ à qual já todo o discurso medieval da cidadania se referia: status
familiae e status libertatis (o cidadão é um súdito livre) continuam a
delimitar ‘de baixo’ o âmbito da cidadania.” 34

É a lógica representativa e corporativista que a tradição medieval


reiteradamente exprimiu: os poucos representam os muitos, os poucos
são os muitos35. O corpo se realiza na hierarquia das ordens e dos Esta-
dos e vice-versa, logo a ideia corporativa prevalece. No Antigo Regime
Político não haveria, portanto, separação entre Estado e sociedade civil.
Entendia-se que a jurisdição dos órgãos periféricos (cidades, senhorios,
mas também oficiais) era sua própria (e não delegada) e inatacável pela
Coroa, mesmo através da lei. Havia uma representação do sistema po-
lítico como uma articulação (hierarquizada) de múltiplos círculos autô-
nomos de poder (corpora, communitates) – as famílias, as cidades, as
corporações (artesanais e culturais), os senhorios, os reinos, o Império. O
poder das estruturas superiores era destinado a manter o equilíbrio natu-
ral da sociedade. Tal centralização seria ainda mais irregular no Império
Ultramarino.

34 – Tradução livre do autor de: “Tutti i cittadini sono egualmente sudditi del sovrano, ma
ciascuno dipende dal sovrano in ragione dello status al quale appartiene: il discorso della
cittadinanza e della sovranità e la teorica degli ordini si combinano perfettamente (...) La
relazione diretta con il sovrano è quella di un soggetto che, nella gerarchia degli status,
occupa quella posizione di ‘governatore della casa’ cui già tutto il discorso medievale
della cittadinanza si riferiva: status familiae e status libertatis (il cittadino è un suddito
libero) continuano a delimitare ‘dal basso’ l’ambito della cittadinanza.” COSTA, Pietro,
op. cit., p.77.
35 – HESPANHA, António Manuel. A política perdida. Curitiba: Juruá, 2009.

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Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.
ação judicial na

AÇÃO JUDICIAL NA VILLA DE NOSSA SENHORA DA LUZ DOS


PINHAIS
Curitiba teve suas origens nos meados do século XVII, como resul-
tado da expansão paulista em direção ao sul. O que atraiu a população
paulista foi a descoberta de ouro de aluvião, cuja decadência fez com que
o lugarejo retrocedesse. Foi elevada à condição de vila em 4 de novembro
de 1668, com a ereção do pelourinho pelo capitão-mor Gabriel de Lara,
que desempenhava a função também de capitão povoador, alcaide-mor e
ouvidor nomeado pelo Marquês de Cascais, responsável pela Capitania
de Paranaguá desde 1660. Apenas em 1711 a Capitania (40 léguas do sul
de Superagui a Laguna), conjuntamente com as demais terras de doação
feita em 1534 a Pero Lopes de Souza, foi vendida à Coroa por 40.000
cruzados.36 Ocorre aqui a progressiva eliminação do sistema de capita-
nias hereditárias por capitanias régias.37 Determinadas famílias garanti-
ram para si o controle e acesso a certas posições, bem como o conjunto de
privilégios. A partir do século XVIII o Brasil está no ápice do quadro da
administração portuguesa, acima de Angola, Goa e Macau. O documento
da instauração do Pelourinho afirma:

“Saibão quantos este publico instrumento de poce e levantamento de


Pelourinho virem em como aos quatro dias do mez de novembro de
mil seissentos e sessenta e oyto annos, nesta vila de Nossa Senhora
da Lux dos Pinhaes estando o Capp. tam mor Gabriel de Lara nesta
vila em presença de mim Tabeleão fizerão os moradores desta dita
vila requerimento perante elle, disendo todos a húa voz que estavão

36 BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para a His-


tória do Paraná. Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume VI. Fundação da Villa de
Curytiba (1693-1735). Curitiba: Impressora Paranaense, 1927.
37 – A extinção da capitania de São Vicente em 1709 resultou no restabelecimento da ca-
pitania de São Paulo e Minas do Ouro, independente do Rio; em 1713, a Capitania do Rio
Grande de São Pedro e em 1720 o desmembramento da capitania de Minas. A capitania
de Santa Catarina foi desmembrada de São Paulo em 1738, sendo anexada à do Rio, bem
como todo o território do Rio Grande. 1748 capitanias de Goiás e Mato Grosso, desmem-
brada de São Paulo que foi anexada à do Rio. Ver: GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Po-
der político e administração na formação do complexo atlântico português (1645-1808)
In: FRAGOSO, João (org.) O antigo regime nos trópicos; a dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI - XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 285-316.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):51-86, jul./set. 2011 65


Luís Fernando Lopes Pereira

povoando estes Campos de Coritiba em terras e limites da demarcação


do Snr. Marquez de Cascais, e assim lhe requeirão como Capp. m mór
e Procurador bastante do dito Sn.r mandasse levantar Pelourinho em
seu nome por convir assim ao serviço de S. Magestade digo del-Rey
e acressentamento ao donatário e visto orrequerimento dos moradores
ser justo mandou logo levantar Pelourinho com todas as solemnidades
necessárias em paragê e lugar desente nesta praça de que mandou pa-
çar este termo por mim Tabeleão onde todos se asignarão com migo
Antonio Martins Leme que o escrevy.” 38

Entretanto a eleição do conselho da Câmara (da Justiça, vereadores,


procurador e almotacés) só se deu em 1693.39 O pedido havia sido feito a
Matheus Leme da seguinte forma:

“Os moradores todos assistentes nesta povoação de Nossa Senhora da


Lux e Bom Jesus dos Pinhaes que atendendo ao serviceo de Deos e o
de S. Magestade que Deos o guarde paz quietação e bem comum deste
povo e por ser já hoje muy crecido por pasarem de noventa homens
e quanto mais crece a gente levão fazendo mores desaforos, e bem se
vio esta festa andarmos todos com armas namão e apelourousse dous
outros mais, e outros insultos de roubos como he notorio, e constante
pelos cazos que tem sucedido e daqui em diante sera pior o que tudo
cauza o estar este dito povo tam desemparado de Governo e desiplina
da Justiça e atendendo nos que ao diante sera pior por não aver a dita
Justiça na dita Povoação, nos ocorremos a Vm. ce como Capp. m mor,
digo Capp. tam e cabeça della e por ser já decrepito e não lhe obedece-
rem seja servido premitir a que aja Justiça nesta dita Villa, pois nella
38 – Idem, ibidem, p.47.
39 – A primeira eleição das primeiras autoridades: Seis eleitores – Capitão-Mor Agosti-
nho de Figueiredo (ex-governador militar da Vila de Santos e Capitão-Mor de São Vicente
– enviado para Paranaguá em meados do XVII para administrar as minas do sul; ficou 40
anos em CWB), Luiz de Goiz (natural de São Paulo, onde se casou com Maria de Siquei-
ra Cortes; sua filha, Catharina casou em Curitiba com Antonio Fernandes de Siqueira),
Garcia Rodrigues Velho (principais famílias de São Paulo), Joam Leme da Sylva, Gaspar
Carrasco dos Reis (filho de Baltazar Carrasco dos Reis, protetor e instituidor do altar de
N.S. de Guadaloupe na matriz de Curitiba), Paulo da Costa Leme. Juramento dado pelo
padre Antonio de Alvarenga (nomeado pelo bispado do Rio para Paranaguá e depois de
Curitiba); Nomearam para juízes – Antonio da Costa Vellozo (casado com Ana Maria,
filha de Matheus Leme) e Manoel Soares (casado com Maria Paes, filha de Baltazar Car-
rasco dos Reis); Procurador do conselho – Cap. Aleixo Leme Cabral; Escrivão – João
Roiz Seyxas.

66 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):51-86, jul./set. 2011


Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.
ação judicial na

a g.t bastante para exercer os cargos da dita justiça que faz numero de
tres povos. F. pella ordenação ordena sua Magestade que avendo trinta
homens se eleja justiça e de mais de que conta que Vm. ce por duas
vezes procurou aos Cappitains mores das Cappitanias debayxo lhe
viessem criar justiça na dita povoação sendo que não era necessario
por ter avido ja justiça em algum tempo creada pello defunto Cappitão
mor Gabriel de Lara que levantou Pelourinho em nome do Donatário,
o Snr marquez de Cascaiz. Pelo que requeremos a Vm. ce da parte de
Deus e el-Rey que visto o que alegamos e o nosso pedir ser justo e
bem comum de todo este povo o mande ajuntar e fazer eleyção e criar
Justiça e Camara formada para que asim aja themor de Deus e del-Rey
e por as couzas em caminho.” 40

A cidade nasceu na atual Praça Tiradentes, entre os rios Ivo e Belém,


que determinavam uma fronteira natural ao crescimento da cidade. Com
o esgotamento das jazidas de ouro41, a agricultura precária de subsistên-
cia passou a ser a regra econômica no Planalto Curitibano42, ligado ao
litoral por três caminhos precários: Graciosa, Itupava e do Arraial. Esse
isolamento dificultou o desenvolvimento da cidade em todo o período
colonial,

“As comunicações com a villa de Curytiba se faziam naquella época


por um caminho aberto na garganta do Itupava (...) Curytiba, nos seus
primeiros dias, teve uma vida penosa, por cauza do isolamento em

40 – BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para a His-


tória do Paraná. Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume V. Fundação da Villa de
Curytiba (1693-1735). Curitiba: Impressora Paranaense, 1927, pp. 35-6.
41 – Há uma série de dados de transcrição do livro de Registro de ouro e prata entregue
ao Juízo Ordinário de Curitiba a Manoel Roiz Motta para remessa a Caza de Fundição de
Paranaguá (1730) – nessas transcrições percebe-se que algumas centenas de oitavas de
ouro mal davam para os gastos dos mineradores e muito menos da Villa. In: BOLETIM
DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para a História do Paraná.
Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume X. Resoluções, Ordens e Provizões e Termo
de Vereanças (1721-1736). Curitiba: Impressora Paranaense, 1924.
Há nesse volume também a transcrição do livro de Registro de ouro e prata entregue ao
Juizo Ordinário de Curitiba a Manoel Roiz Motta para remessa a Caza de Fundição de
Paranaguá (1730) – algumas centenas de oitavas de ouro mal davam para os gastos.
42 – Geograficamente a cidade de Curitiba se localiza em um planalto, chamado Primeiro
Planalto. Sua posição geográfica, há mais de 900 metros acima do nível do mar e cercada
de serras por todos os lados, dificultou seu contato com as outras localidades coloniais.

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Luís Fernando Lopes Pereira

que ficava e da dificuldade de comunicação com São Paulo, quer pelo


interior, quer por mar (...) O plateau de Curityba é uma zona quasi
toda de campos e de florestas de pinheiros, no meio da qual se acha a
cidade.” 43

A função de centro dessa cidade colonial era exercida pela Igreja


Matriz44, marcada pela precariedade em particular pelas instabilidades
do terreno, pela ação de um lençol freático e pela falta de forro45. A ne-
cessidade de abastecer de gado a região mineradora fez com que a vila
de Curitiba, “aparentemente destinada a situação preponderante, atraiu
pouca população, e medrou, precariamente, enquanto não lhe deu vida
o comércio de trânsito, principalmente de muares procedentes do sul”46.
Entretanto a questão da produção agrícola não se alterou e os problemas
de abastecimento eram frequentes.47

A sociedade que se forma nesse período inicial era escravocrata e


mesclada48. Em 1693 há o primeiro requerimento para a criação de Jus-
tiças que os habitantes da vila encaminharam ao capitão-povoador, pois
43 – POMBO, José I. da Rocha. O Paraná no Centenário. 1500-1900. Rio de Janeiro:
Typographia Leuzinger, 1900, pp. 64; 67-68; 71.
44 – Ermelino de Leão acreditava que a capela de Curitiba teve origem em 1654 e que
teria resistido até 1714, quando se projetou a nova matriz, concluída em 1720. Nessa ma-
triz, ainda precária e com defeitos de construção, realizavam-se tanto os ofícios religiosos
como a inumação de cadáveres, pois a cidade ainda não tinha um cemitério, construído
apenas no governo do Presidente Provincial Zacarias Góes de Vasconcelos, em 1854. Ver:
LEÃO, Ermelino Agostinho de. Curitiba. Boletim do IHGEP, V. XLVIII, 1993, p. 54.
45 – Em 1756 o Ouvidor-Geral autorizou o início dos reparos, mas as obras foram lentas
e ineficazes, pois quando se recuperava uma parte outras já estavam em ruínas, apesar
das somas gastas pois, “segundo alguns dados officiaes que encontramos nos Relatórios
da Presidência, a antiga e demolida matriz de Curytiba custara de 1853 a 1859 cerca de
25:445$890 rs.; e, posteriormente, até 1861, a verba de 17:680$620 rs; a fóra a quantia de
4:000$000 que foram doados”. ILLUSTRAÇÃO PARANAENSE, Curitiba, mar. 27, p.
21.
46 – ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Brasília: Editora da Univer-
sidade, 1963, p. 130.
47 – BURMESTER, Ana Maria de Oliveira. A população de Curitiba no século XVIII
(1751-1800) segundo os registros paroquiais. Curitiba, Dissertação, Mestrado, UFPR,
1974. Segundo Burmester, em 1800 os gêneros produzidos e utilizados incluíam o milho,
feijão, farinha de trigo, toucinho, congonha, bestas, bois, poldros.
48 – Em 1772 havia na vila 907 homens, 928 mulheres e 104 escravos (total de 1.939).
Ver: BURMESTER, op. cit.

68 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):51-86, jul./set. 2011


Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.
ação judicial na

os mesmos passavam do número de noventa.49 Cada câmara tinha uma


configuração própria, embora em geral fosse composta por um juiz-presi-
dente – ordinário, eleito localmente –, dois vereadores e um procurador.
Eleitos e confirmados pela administração central da Coroa ou pelo senhor
da terra, caso a vila ou cidade se localizasse no interior de um senhorio.

A partir do século XVIII, fruto da recuperação econômica trazida


pelo gado, Curitiba se insere no sistema colonial, passando inclusive a ter
escravos negros africanos em substituição à antiga escravidão indígena.
A câmara se estrutura e, embora o número de juízes ordinários fosse ir-
regular, não houve hiato e os processos aumentaram em número e valor.
As elites camarárias também se montam, recebendo sesmarias e casando
entre si.

49 – BOLETIM DO ARQUIVO MUNICIPAL DE CURITIBA. Documentos para a His-


tória do Paraná. Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume V. Curitiba: Impressora
Paranaense, 1906. Aos vinte e nove dias do mez de Março da era de 1693 annos, nesta
Igreja de Nossa Senhora da Lux e Bom Jesús dos Pinhais por despacho desta petissão se
ajuntou o povo todo desta villa e pellocapp.m della lhe foi perguntado o que todos res-
ponderam a voz alta lhe criasse justiça pera com isso ver si ivitavam os muitos desaforos
que nella se fazião, o que vendo o dito capitão hera justo o que pedião-lhe respondeu que
nomeassem seis omens de samconsiençia para fazerem ofiçiaes que aviam de servir, o que
logo nomearão para com o dito capitam povoador fazerem eleição, e como assim ouverão
todos por bem se asignaram com migo Antonio Rodrigues Seixas em falta do escrivão,
que o escrevi. Matheus Leme, Manoel Soares, Domingos Rodrigues Seixas, José Pereira
Quevedo, João Leme da Silva, João Pereira de Avellar, André Rodrigues da Silva, Miguel
Delgado, Diogo da Costa, Manoel Picam de Carvalho, Manoel da Silva Bayão, Agostinho
de Fiqueiredo, Gaspar Carrasco dos Reis, Nicolau de Miranda Franco, Antonio de Siquei-
ra Leme, João Álvares Martins, Miguel Fernandes de Siqueira, Braz Leme de Siqueira,
Francisco de Mello, Jerônimo Reis Side, Manoel Álvares Pedroso, Manoel Dias Cortes,
Antonio Rodrigues Cid, Salvador Rodrigues, Amador Nunes de Bulhões, Salvador Mar-
tins, Antonio Luiz Tigre Lamim, Paulo da Costa Leme, João Leme, Matheus Martins,
Luiz Rodrigues, Antonio do Couto, José Martins Leme, Pedro Gonçalves Martins, Mi-
guel Rodrigues, Caetano Leme Cabral, José Rodrigues Cid, Antonio dos Reis Cavalheiro,
Fructuoso da Costa, João de Siqueira, Gonçalo Pires, Lourenço Pinto, Pedro Moraes de
Monforte, Bartolomeu Nunes, Domingos André, Pedro Rodrigues, Balthazar Carrasco
dos Reis, Luiz Leme da Silva, Antonio da Costa, João Veloso da Costa, Garcia Rodrigues,
Innocencio de Medina, Roque Fernandes, Vicente de Góes, Plácido de Ramos, Luiz de
Siqueira, Antonio Garcia da Costa, Domingos Ribeiro de Abreu, José de Góes, Luiz de
Góes, João Félix Cavalgante.”

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):51-86, jul./set. 2011 69


Luís Fernando Lopes Pereira

Já em 1720, Rafael Pires Pardinho estimava a população do planalto


curitibano afirmando “haverá nas duas freguesias de Curitiba 200 cazaes,
mais de 1400 pessoas de confissão.”50 Ouvidor da Capitania de São Paulo,
Pardinho deixaria em Curitiba longos Provimentos que tiveram a inten-
ção de adequar os procedimentos jurídicos e administrativos da Câmara
aos intentos metropolitanos. Aqui vemos a montagem de uma rede de po-
der e de comunicação que demonstra uma coesão maior do que a suposta
pelas análises tradicionais. Os Provimentos do ouvidor são equiparados
à lei régia, a partir de uma consulta feita ao Conselho Ultramarino em
22 de maio de 1723, “Senhor, o Ouvidor geral que foi da Cappitania de
São Paulo, Raphael Pires Pardinho, em carta de 30 de agosto de 1721, e
Cappitulos que com Ella remeteo, que tudo com esta sob as reaes mãos
de Vossa Magestade, dá conta da Correição que fes na Villa de Pernagua,
cituação della, moradores de que compõem, cofre que fes para os bens
dos orphãos, devaças que tirou de Mortes atrozes que se havião feito, e
cadeya que deyxou ajustado se fizece.”51

Os provimentos foram dados aos juízes Francisco Teixeira e Balta-


zar Carrasco dos Reis, na casa do ouvidor Pardinho, e aconselhava como
visto acima, a construção de edifício para o Conselho da Câmara e para
a cadeia, já que as audiências dos juízes ordinários eram feitas em suas
residências e as reuniões da Câmara na Igreja, “Proveo que os juízes e
officiaes da Câmera disponhão fazerçe o mais breve que puder casas para
o conselho e cadea, pois não é decente que esteja esta Villa há tantos an-
nos e concervem outros mais sem as ter.”52 Para tal construção o ouvidor
deixara uma planta para os oficiais da Câmara e descreveu com precisão
como deveria ser a construção onde ficaria a arca com três chaves deixada
por ele para a guarda da documentação da Câmara e do Juízo Ordinário,
além do estandarte da mesma:

50 – MARCONDES, Moyses. Documento para a história do Paraná. Rio de Janeiro:


Typographia do Annuario do Brasil, 1923, pp. 20-23.
51 – Idem, ibidem, p. 17.
52 – Idem, ibidem, p. 17.

70 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):51-86, jul./set. 2011


Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.
ação judicial na

“Na forma da planta que ele deixa feita (sem passar para privados)
como não tem cal paredes de pedra e barro; faz uma descrição minu-
ciosa do edifício. Por fora ao menos 40 palmos de comprimento e 30
de largura; embaixo a cadeia com 20 por 13,5 (por conta da largura
das paredes) duas cadeias com duas janelas e acima dois cômodos
também: uma para as audiências e outra dentro para vereações. (...) A
casa do conselho se orne com cadeiras e bofete e a das audiências com
banca, e bancos para os officiaes e partes se sentarem: as enxovias
se proverão com troncos, grilhões, algemas e ferros necessários para
segurança dos presos.” 53

Deveria se fazer um termo de arrematação da obra da cadeia e casa


do conselho, oferecendo à população a obra, mas não houve interessados;
o alcaide Antonio da Motta de Oliveira, de acordo com as atas da Câma-
ra, cumpriu todas as formalidades para a arrematação da obra. Podemos
imaginar a figura do alcaide transitando pelo largo da Matriz com um
ramo verde em uma mão e a planta da Casa do Conselho (deixada pelo
ouvidor) na outra, oferecendo a arrematação do edifício. Isso demonstra
que mesmo os ritos mais formais e carregados de significado eram feitos
na retirada Vila de Curitiba, não havendo ali, portanto, nada de informal
ou improvisado. A obra acabou sendo arrematada para Diogo da Costa e
Joseph Palhano de Azevedo em troca de seis anos de subsídios de bebidas
por estanque e mais 150 mil-reis.54

O mesmo ouvidor Pardinho, em carta a Sua Majestade, explicava


o funcionamento da justiça e a ocupação nas Vilas do Sul da Capitania
de São Paulo, por onde passou, descrevendo ainda a vila de Curitiba em
carta de 30 de agosto de 1721,

“Senhor. Em 7 de Junho de 1720 dey conta à Vossa Majestade de


ter passado em Correyção às Villas do Rio de São Francisco, Ilha de
Santa Catherina, e a de Santo Antonio de Laguna penúltimas povoa-
ções de todo este Estado (...) Depões subi à Villa de Curithiba a fazer

53 – MARCONDES, Moyses, op. cit., pp.18-19.


54 – BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para a His-
tória do Paraná. Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume VI. Fundação da Villa de
Curytiba (1693-1735). Curitiba: Impressora Paranaense, 1927, pp. 98-99.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):51-86, jul./set. 2011 71


Luís Fernando Lopes Pereira

correyção, e voltey a fazella também nesta de Pernagua, em que tenho


consumido este anno. Fica a Villa de Curithiba nos campos por detrás
da Serra de Pernampiacaba, e desta dista 15 legoas (...) Esta povoação
se principiou haverá 80 annos por alguns moradores, que subirão des-
ta Villa, e levarão pella Serra acima alguas cabezas de gado vacum,
alguas egoas, que multiplicarão em forma (...) Ha no Termo 5 Legoas
para a parte do Sul da Villa hua freguecia de São Joseph, e Senhor
Bom Jesus do Perdão, e daqui vão correndo os campos (...) No anno
de 1693 se levantou esta povoação em Villa por aclamação dos mo-
radores: porque sendo do Termo desta Villa de Pernagua, ficando-lhe
tão distante, e com tanta difficuldade para lhe lá ir a Justiza, entre sy se
unirão, e fizerão elleyção de Juízes Ordinários, e Officiaes da Camara,
com que athe agora se governarão; mas com tantos abusos, como se
pode presumir de hua tão remota terra, e aonde não chegou Menistro
algum. Nella estive desde o mês de Settembro athe Fevereiro, que
todo este tempo foi necesario, para atrahir a mim aquelles homens, e
aos bons, que aparecerão, mostrar-lhes os erros, em que tinhão cahido,
e encaminhallos para o futuro procederem com mais acerto em utili-
dade, e bem dos maos. Fiz-lhe cofre para os bens dos Orphãos e arca
para archivo do Concelho, que ainda não tinhão. Ficou ajustada para
se fazer pelos bens do Concelho hua caza de pedra, e barro com duas
cadeias por baicho, e duas casas por cima para a Camara, que ainda
não tinhão. Deichey-lhes largos provimentos, que respeitão tanto ao
governo da Camara, como administração da Justiza Cível, e Crime, e
bens dos orphãos...” (21/22)

Pardinho destaca também que fez cinco devassas de mortes atro-


zes. Em seus Provimentos trata de temas os mais diversos, como a proi-
bição de religiosos fabricarem fazendas sem autorização expressa, ou a
necessidade de observação do regime de Ordenanças, fundamental para
a organização da população a ser controlada pela metrópole, “Seg. do a
elle devem os moradores d´esta Villa repartiremçe em comp. as e estas
em esquadras para promptamente poderem acudir, onde for necessário e
recomendandoce no d. to regim. to as cameras parte do regimen das ditas
ordenanças...”55
55 – BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para a His-
tória do Paraná. Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume VIII. Provimentos e Correi-
ções (1721-1812). Curitiba: Impressora Paranaense, 1927, p. 9.

72 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):51-86, jul./set. 2011


Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
ação judicial naVilla de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.

Proveu o ouvidor também sobre a ação dos juízes ordinários, pro-


curando aproximar o funcionamento dos mesmos ao que estava disposto
nas Ordenações Filipinas em seu título 65. Percebe-se em Curitiba, que a
Justiça começa a tomar uma forma mais adequada aos padrões portugue-
ses no momento em que a Villa passa a se submeter à Capitania de São
Paulo, com a qual mantinha intenso contato epistolar.56 O destaque é para
a necessidade de eleição dos juízes ordinários e oficiais da Câmara que
tomavam posse das terras do Rocio, “Achou elle q’ os primeiros juises e
off. es da Câmera que ouve nesta Villa, logo tomarão posse do Rocio della
sem contradição de pessoa alguã.”57

Uma das principais preocupações do mesmo era com a demarcação


das terras do Rocio e com o lavradio das mesmas, demonstrando a perma-
nência de uma visão tardo medieval da propriedade da terra, presente no
sistema de sesmaria, que privilegia a questão da posse e do uso da terra,
proibindo a ocupação daqueles que não mantiverem o uso e a produção,
em particular em uma vila onde o desabastecimento era constante ame-
aça.

Outra preocupação constante da Ouvidoria era em diminuir o iso-


lamento de Curitiba e tentar fazer com que os caminhos para Paranaguá
fossem construídos e mantidos, o mesmo valendo para o caminho que
ligava a Vila à Freguesia de São José, para onde prevê a eleição de um

56 – Não por acaso, os processos sob a guarda do Arquivo Público do Paraná deste perí-
odo começam em 1711, quando da vinculação da Vila à Capitania de São Paulo. Embora
não existisse ainda um registro em ata das audiências dos juízes (o que também está
previsto nos Provimentos do ouvidor), os processos são instruídos e formalizados desde
a segunda década do século XVIII. Os registros começam a ser feitos a partir de um dos
Provimentos: “Proveo que os Juízes ordinários obriguem ao Tabalião tenha dous livros
encadernados igualmente, em hu dos cuais tomem os autos das querellas das pessoas que
se queixarem de alguns malefícios, e no outro livro se escreverão os ditos das testemunhas
que se perguntarem as taes querellas que ham de ser até quatro testemunhas, e que vulgar-
mente se chama somarios.” BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA.
Documentos para a História do Paraná. Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume VIII.
Provimentos e Correições (1721-1812). Curitiba: Impressora Paranaense, 1927, p. 29.
57 – BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para a His-
tória do Paraná. Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume VIII. Provimentos e Correi-
ções (1721-1812). Curitiba: Impressora Paranaense, 1927, p. 14.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):51-86, jul./set. 2011 73


Luís Fernando Lopes Pereira

juiz de distrito, para a elaboração de devassas gerais anuais (janeirinha),


devassas para morte ou ferimentos com arma de fogo (mortes e casos es-
candalosos). Os Provimentos, assinados pelos oficiais da Câmara e pelas
pessoas de bem da comunidade58, tratavam, portanto, de uma tentativa de
adequação da ação judicial aos padrões metropolitanos.

Se em relação à questão das construções, da manutenção das mo-


radias e dos caminhos, a repetição é recorrente nos Provimentos poste-
riores, dos demais ouvidores, pouco se diz sobre as questões meramente
procedimentais da Câmara, o que permite concluir que em termos houve
uma adequação, o que fica visível nas comunicações entre a Vila e outros
níveis da administração e mesmo nos autos dos processos.

Existem Provimentos feitos em 1726, 1735, 1737, 1739, 1743, 1745,


1746, 1752, 1756, 1757, 1758, 1776, 1779, 1787, 1788, 1789, 1790, 1791,
1793, 1794, 1797, 1798 e 1799 e essas datas confirmam um aumento dos
registros e dos controles a partir da maior inserção de Curitiba no cami-
nho do Viamão e no transporte de muares; em todos os provimentos as
questões dos caminhos aparecem, desde o Provimento do capitão Manuel
de S. Payo, que “Proveo e mandou q’ os off.ais da Camara per curassem
58 – Pessoas da governança e povo assinam o documento: Francisco Teyxeyra, Balthazar
Carrasco dos Reis, João Cardoso, Manoel de Chaves de Almeida, João Martins Leme,
Manoel de Lima Pereira, Antonio Rodrigues Seixas, Joseph Palhano de Azavedo, Miguel
Rodrigues Ribas , Pedro Dias Cortes, Gracia Rodrigues Velho, Joseph Nicolau Lisboa,
Joseph de Paiva, Manoel Martins Valensa, Gaspar Carrasco dos Reis, Manoel de Macedo
Lobo, Lourenço de Andrade, Braz Domingues Velloso, João Ribeyro do Valle, Salvador
Pais, Antonio Ribeiro da Silva, Francisco de Siqueira Cortes, Manoel Gonçalves de Si-
queira, Antonio de Siqueira, João Baptista de Oliveira, Frutuoso de Lião, Bertholameu de
Souza, João Alvres Martins, Luiz Leme da Silva, Alexandre de Moraes Franco, Antonio
de Lara, Luiz Palhano de Azevedo, Manoel Picão de Carvalho, Quintiliano Leme da Syl-
va, Sebastião Ferreira, Francisco Rodrigues Ferreira, Fellix Fernandes Leite, Antonio Fer-
nandes de Siqueira, Francisco Nunes, Bithorino Fernandes Pais, Simão Borges, Miguel
Fernandes de Siqueira, Manoel Bonette, Gregório Martins, João de Chaves, Luiz Rosado,
Anastácio Alvres Pais, Pascoal Leite Fernandes, Joseph Leme, Luiz de Siqueira, João
Correa, Vericimo Pereira de Oliveira, Antonio Rodrigues Gracia, De Antonio Soares, Al-
berto Martins, Antonio Ribeiro Leme, De Gaspar Teyxeira, Amador Bueno da Roxa, João
Velloso da Costa, Francisco Hyeronimo, Domingos Gracia. In: BOLETIM DO ARCHI-
VO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para a História do Paraná. Sob a direc-
ção de Francisco Negrão. Volume VIII. Provimentos e Correições (1721-1812). Curitiba:
Impressora Paranaense, 1927, p. 20.

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Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.
ação judicial na

pessoa ou pessoas idôneas e sufficientes p.a q’ abrissem o Caminho da


Graciosa aos quaes será obrigada esta Camara a dar sem mil reis pello
abrir para se poder handar por elle com gado.”59 A precariedade das es-
tradas aparece também nos Provimentos de Gaspar da Rocha Pereira de
1743, 1745 e 1746, preocupado principalmente com o caminho para São
José, que também aparece nos Provimentos do ouvidor Francisco Lean-
dro de Toledo Rendon de 1786 e 1787 (detalhe curioso em relação a este
ouvidor reside no fato de o mesmo redigir de próprio punho seus Provi-
mentos). O mesmo tema dos caminhos para São José e Paranaguá apare-
cem com Manoel Lopes Branco e Silva em 1791, 1793, 1794 e 1796.

Passa a ser recorrente também a preocupação com a situação precá-


ria da Igreja Matriz de Curitiba, presente nos Provimentos de Manoel dos
Santos Lobatto, em 1735, 1737 e 1739, quando afirmou que deveriam
diminuir as festas para reforma da Igreja, pois “achou mais que as obras
da Igreja Matriz desta Villa em pouco mais de nada se tinhão adianta-
do por descuido ou negligencias das pessoas que ficarão nomeadas ...”60
Mandou também que se comprasse um sino pequeno no Rio e se cons-
truísse um campanário (para convocação para as reuniões da Câmara e
audiências dos juízes ordinários). O mesmo desleixo em relação a Matriz
é apontado pelo ouvidor Jerônimo Ribeiro de Magalhães em 1756, cha-
mando os paroquianos a contribuírem para a sua reforma, afinal destacou
o “pouco zelo e cuidado com que se trata da rehedificaçam da Igreja Ma-
triz desta Villa havendo esmollas promettidas com suficiência para se lhe
dar principio (...) todo o cuidado e vegilancia em que não fique interdicta
a Igreja do que resulta escandallo pela indevoçam e descuido de edificar
a casa de Deos nosso Senhor...”61

Um dos elementos que comprometia o orçamento da Câmara eram


as festas religiosas, como as solicitadas pelo ouvidor Pardinho, “Proveo
e mandou que fisessem as procições da ley que são Corpo de D.s, Sta
59 – BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para a His-
tória do Paraná. Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume VIII. Provimentos e Correi-
ções (1721-1812). Curitiba: Impressora Paranaense, 1927, p. 53.
60 – Idem, ibidem, p. 67.
61 – Idem, ibidem, p. 88.

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Luís Fernando Lopes Pereira

Izabel, Anjo Custodio e S. Sebastião a custa do Conc.o...”62 Festas que


custavam caro aos cofres públicos. Em 1700 gastou-se 3$200 na festa
de S. Sebastião e não se fez a de Corpus Christi pela falta de vigário.
Esta foi realizada em 1705 custando 5$120. Ainda nos Provimentos en-
contramos a determinação do ouvidor para que “os Juizes e officiaes da
camera acistão em corpo de camera a porcisão de Corpus Christi, que o
Reverendo Vigario e fregueses devem fazer conforme o sagrado Conci-
lio Tridentino”63, sob pena de duas patacas, complementando que o juiz
mais velho levará o estandarte, que custara a Câmara em 1719 a quantia
de 21$460. Por onde passasse a procissão deveriam também carpir e lim-
par as testadas e enfeitá-las com palmas.

Em relação às festas religiosas, as mesmas seriam o ponto-chave


para a incorporação de elementos simbólicos que uniram os habitantes
da pequena vila meridional ao que acontecia na Metrópole, em particular
permitiam a adesão às tradicionais festas monárquicas, reforçando o poder
simbólico do rei e a unidade do local. Ainda, em relação a tais episódios,
toda uma rede epistolar se montava e Curitiba cumpria as determinações
centrais, como no caso das festas em comemoração aos casamentos da
família real. A primeira carta, datada de 19 de janeiro de 1786, destinada
a Sebastião José Ferreira Barroco, ouvidor da Comarca, solicitando os
festejos e comunicando os matrimônios fora enviada para a Capitania de
São Paulo e dizia:

“P.a q. Vm.ce haja de participar às Camaras das Villas da sua juris-


dição a feliz noticia dos despozorios do Sereníssimo S.r Infante de
Portugal D. João com a Sereníssima D. Carlota Joaquina, filha do
Príncipe de Astúrias; e o da Sereníssima senhora infanta de Portugal
D. Mariana Vitoria com o Sereníssimo S.r Infante de Espanha D. Ga-
briel, filho de S. Mag.e C.; e haverem as mesmas de fazerem aquellas

62 – BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para a His-


tória do Paraná. Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume VIII. Provimentos e Correi-
ções (1721-1812). Curitiba: Impressora Paranaense, 1927, p. 53.
63 – BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para a His-
tória do Paraná. Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume VI. Fundação da Villa de
Curytiba (1693-1735). Curitiba: Impressora Paranaense, 1927, p.7.

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Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.
ação judicial na

demonstraçoens de alegria, q. se praticão em semelhantes ocazioens,


correspondentes a tão plauzivel objecto, remeto a Vm.ce a copia da
carta régia q. acabo de receber. Deos guarde a Vm.ce.” 64

A recepção na Vila de Curitiba desta carta se deu em 18 de abril do


mesmo ano, quando se determinaram os festejos a serem realizados, con-
forme relatos dos termos de Vereança,

“...e na mesma assim juntos e uniformes e encorporados forão asestir


na Igr.a Matriz desta v.a a festivid.e regia em aplauzo dos depositórios
feitos dos príncipes catholicos em que natal Igrj.a e Parochia houve
missa cantada Senhor esposto e Tedeum Laudamos, de que sendo as-
sim tudo feito findo se recolherão a esta Camr.a e nella despacharão
alguas Petissoes Depp.tas...” 65 (15)

Tal festividade reforçava o vínculo entre cidadãos e Rei, dando às


elites locais um peso simbólico mais reforçado por serem os representan-
tes de Sua Majestade na Vila, consolidando elos e encorpando as redes de
poder. Ainda nessa mesma perspectiva a Câmara recebera em 1767 um
ofício de D. Luiz Antonio de Souza, comunicando o nascimento de um
infante,
“Foi Sua Mag.e servido, por carta sua de 13 de mayo deste prezente
anno, firmado de Sua Real Mão, fazer-me a onra de participar a gos-
tosa noticia de ser Deus servido abençoar os seus Reynos, dando lhe
mais um infante, q’ nasceo no sobre d.o dia 13 de Mayo com bom su-
cesso da Sereníssima Snr.a Princeza do Brasil; e porq’ esta noticia de
tão plauzível nascim.to He de grande alegria p.a todos os fieis vassalos
do mesmo Snr, aparticipo a Vm.ce para q’ a festejem com todas aque-
las demonstrações de aplauzo, e contentam.to, que são de costume em
ocasiões similhantes, e tendo por certo q’ Vm.ces executarão, como
espero, Deus g.e a Vm.ces.” 66
64 – DEPARTAMENTO DO ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Secretaria da
Educação. Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo; Ofícios
do General Martim Lopes Lobo de Saldanha (Governador da Capitania). Volume 84; São
Paulo: Atena, 1961. p. 184.
65 – BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para aHis-
tória do Paraná. Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume XXXIII. Termos de Verean-
ça. Curitiba: Impressora Paranaense, 1927, p. 15.
66 – BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para a His-

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Luís Fernando Lopes Pereira

As determinações da Ouvidoria e da Capitania para a Câmara de


Curitiba tratavam de diversos assuntos. Algumas como as citadas festas
religiosas reforçavam o vínculo simbólico com a Monarquia, outras trata-
vam de temas mais jurídicos, como a proibição de circulação de pessoas
sem permissão (carta de 30 de agosto de 1775):
“Ordeno ao Dr Ouvidor-Geral da Comarca de Paranaguá faça invio-
lavelm.te observar a Ley de Policia e q. ninguém Saya da mesma Co-
marca Sem se legitimar perante o d.o Ministro, ou Justiças das Villas
donde Sahirem as quaes deve participar a formalidade da d.a Legiti-
maçam, ordenando-lhes q’ toda a pessoa que transitar sem o respec-
tivo Passaporte da legitimaçam, subpena de Ser preza pellas mesmas
Justiças ou por qualquer Auxiliar, ou Ordenança, e remetida p. a esta
Cidade: o q’ assim se executará por Serviços de S. Mag.e” 67

Ou questões relativas a práticas de polícia e controle populacional,


como neta carta de 20 de setembro de 1778, destinada a Joaquim do Ama-
ral Dias Ferraz, inspetor de registros de Curitiba,

“quando os reos tem tão abomináveis culpas, como a de Joaquim Gon-


çalves Fagundes, se não deve entrar no escrúpulo de ser mutor do
bem merecido castigo, que por aquelas se fazem dignos, antes se faz
grande serviço a Deos, ao Soberano, e ao Estado, serem ponidos para
emenda dos cumpleces, e exemplo dos mais; Pelo que Ordeno a vm.ce
mande formar lhe o sumario judicialmente dos latrocínios públicos, e
notórios e mo remeta.” 68

Tais correspondências demonstram a tentativa de padronização dos


comportamentos político-jurídicos na Vila de Curitiba, o que se intensifi-
cou a partir do momento em que a mesma foi incorporada à Capitania de
tória do Paraná. Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume XIII. Correspondências e
Actos Diversos (1721-1767). Curitiba: Impressora Paranaense, 1925, p. 27.
67 – DEPARTAMENTO DO ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Secretaria da
Educação. Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo; Ofícios
do General Martim Lopes Lobo de Saldanha (Governador da Capitania). Volume 84; São
Paulo: Atena, 1961, p. 71.
68 – DEPARTAMENTO DO ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Secretaria da
Educação. Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo; Ofícios
do General Martim Lopes Lobo de Saldanha (Governador da Capitania). Volume 81; São
Paulo: Atena, 1956, p. 37.

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Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.
ação judicial na

São Paulo em 1711. Nas comunicações da Ouvidoria houve mesmo uma


série de despachos exigindo a alteração do juiz ordinário que havia já
ocupado o cargo em anos anteriores. Tal exclusão de nomes de juízes e a
substituição de alguns que foram para São Paulo era recorrente, demons-
trando que a intervenção da Ouvidoria na Vila era maior do que se imagi-
na. Mesmo o aumento da intensidade dos Provimentos da Ouvidoria para
Curitiba mostra o maior controle. Isso demonstra também a dificuldade
experimentada por uma vila periférica em encontrar pessoas qualificadas
para o exercício dos ofícios da Câmara. Registram-se vários pedidos de
dispensa de função de almotacé, juiz e mesmo de escrivão, por moti-
vos diversos. Alguns se declaravam impedidos por questões financeiras,
como Manoel dos Santos Cardoso,
“Nobelisimos Snr.s do Conselho
Diz Manoel dos Santos Cardozo que tem sido notificado pelo Escri-
vam deste Conselho, que o sup.te saira nos pellouros que se abrio para
officiaes da Camara que haviam servir o anno vendouro de 1751 em
cuja eleiçam sahio por procurador desta Camara (...) não pode fazer
porque he homem summam.te pobre, casado com mulher pobre, sem
ter bens alem disso, para sustentar sua família estava por feitor em a
fazenda de Lucas Francisco com redndas também limitadas...” 69

As intervenções chegavam ao ponto de sugerir a exclusão de algumas


pessoas de suas funções por terem tido problemas em outras Comarcas ou
vilas, como o caso de Manoel Vieira. Em carta de 12 de agosto de 1778
o governador da Capitania de São Paulo dizia ao ouvidor da Comarca de
Paranaguá, Antonio Barbosa de Mattos Cotinho, sobre o tal Dr. Vieira,
que exercia o cargo de juiz ordinário,
“que sahio banido da Villa de Santos, e se retirou desta cidade com
mais preça, por não padecer o castigo dos seus petulantes requeri-
mentos, haja vm. ce, sendo um Ministro tão famigerado de o concen-
tir, não só no auditório dessa Villa, mas ao mesmo tempo, que Pro-
motor Eclesiástico, Juiz Ordinário, e advogado; eu bem quizera, que

69 – BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para a His-


tória do Paraná. Sob a direcção de Francisco Negrão. Volume XIII. Correspondências e
Actos Diversos (1721-1767). Curitiba: Impressora Paranaense, 1925, p. 24.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):51-86, jul./set. 2011 79


Luís Fernando Lopes Pereira

vm. ce atendendo a sua própria concervação emendace aquela dezor-


dem, porque nada sentirei, como por ella, possa vm. ce de sofrer o
mais mínimo disgosto.” 70

Em resposta, a Ouvidoria suspendeu o referido juiz,

“Fez vm.ce muito bem em suspender de Juiz Ordinário ao Dr. Manoel


Vieyra em quem espero que com este castigo e a advertência que vm.ce
lhe deve fazer, para que regule sua conduta, faça esquecerme athé aqui
praticada, e me não encite ao que com violência sempre faço, que hé o
castigalo, não só como mandar exterminar desta Capitania, mas antes
della ahi purgar o que athé agora tem feito, que não hé pouco e bastava
para ser muito a falcicima conta q’ o anno passado, como Procurador
Ecleziastico deu ao Ex.mo R.mo Snr’ Bispo Deocezano, tão falta de
verdade, como consta da informação que vm.ce me deu, e com que
moderei o animo daquele Prelado, e evitei com bastante prudência a
quebra, a que só se dirigia hua tão pernicioza entriga.” 71 (34)

Outros pedidos feitos pela Capitania ao ouvidor de Paranaguá versa-


vam sobre elementos curiosos, como a solicitação feita a Antonio Barboza
de Mattos Coutinho para que entregasse à Capitania uma certa quantidade
de nós de pinho, afinal, “na Curitiba me consta que nos muitos pinheiraes
que ali há, se achão infinitos Nós de Pinho, q. já secos andão pelo chão e
porque tenho gosto de fazer algumas obras destes, por se achar aqui pre-
zentemente hum bom ofecial do Torneiro...”72 Ou a destinada a José dos
Santos Roza, Capitão de Cavalaria em Curitiba, solicitando onças vivas:
“Com a carta de Vm.ce de 4 de Março me forão entregues os cinco couros
de onças, q. devo agradecerlhe, sem embargo deq. todo meu empenho,
era q. se apanhassem algúas vivas p. a mandar a S. Mag. e pelo que dei-
xandome obrigado o cuidado, q. Vm.ce tem tido em apanhallas vivas,
seria o mayor favor...”73
70 – DEPARTAMENTO DO ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Secretaria da
Educação. Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo; Ofícios
do General Martim Lopes Lobo de Saldanha (Governador da Capitania). Volume 81; São
Paulo: Atena, 1956, pp. 16-17.
71 – Idem, ibidem, p. 34.
72 – Idem, ibidem, p. 59.
73 – Idem, ibidem, p. 169.

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Súditos Del-Rey na América Portuguesa: Monarquia Corporativa, virtudes cristãs e
Villa de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba no século XVIII.
ação judicial na

Em relação ao conhecimento ou não das leis metropolitanas, per-


cebe-se que a Câmara de Curitiba possuía uma cópia das Ordenações
Filipinas, comprada no início do século XVIII pelo valor de 30$460. As-
sim, a elite da Câmara se fortalecia e se consolidava como elite local, ao
mesmo tempo em que realizava, na medida do possível e com adaptações
às particularidades locais, o sonho metropolitano. Como destaca Maria
Fernanda Bicalho, esses “nobres” ou cidadãos sentiam-se participantes
do grupo aristocrático e assumiam seus valores, seus padrões de conduta,
o viver ao estilo da nobreza: “a ocupação de cargos na administração
conselhia constituíra-se, portanto, na principal via de exercício da cida-
dania no Antigo Regime português.”74 Cidadãos eram aqueles que, por
eleição, desempenhavam cargos administrativos nas câmaras, bem como
seus descendentes. Muitos receberam honras, liberdades e privilégios por
atos régios.75

Às câmaras pertenciam também oficiais indicados pelos vereadores,


como os almotacés (responsáveis pela regularidade do abastecimento dos
gêneros, pela fixação dos pesos e medidas e pela vigilância sobre os pre-
ços) e os escrivães do judicial (providos pela Coroa ou pelo senhorio).

Havia também uma atividade legislativa das câmaras municipais, na


qual o juiz ordinário, em conjunto com os demais oficiais da Câmara (ve-
readores e procurador), elaborava a legislação local. Possuía também atri-
buições como as de representar a Câmara contra as ações particulares que
prejudicassem o interesse comum. Cada vila tinha também dois tabeliães
que se tornavam escrivães dos autos, cargos preenchidos em arrematação
trienal em praça pública.

74 – BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Im-


pério. In: FRAGOSO, João (org.) O antigo regime nos trópicos; a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI - XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001 (189-222),
p. 204.
75 – O que será chamado de economia moral do dom, ver: BICALHO, Maria Fernanda
Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João (org.) O
antigo regime nos trópicos; a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI - XVIII). Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, (189-222).

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Luís Fernando Lopes Pereira

A Câmara funcionava supletivamente à autoridade dos juízes ordiná-


rios e era simultaneamente judicial, legislativa e administrativa. Em épo-
cas de colonização incipiente, havia maior poder das Câmaras; quando a
colonização se consolida, há maior tendência à diferenciação de cargos:

“As posturas de interesse local realmente adotavam medidas especí-


ficas e às vezes o costume inspirava a decisão dos juízes ordinários.
Nem sempre, porém. Em 1750, Manuel Vaz Torres, comerciante de
Curitiba, alegando o costume, negou-se a pagar as licenças de aferi-
ções determinadas pela Almotaçaria. Condenado à multa máxima de
6 mil réis, pelos juízes ordinários da Câmara, agravou para o ouvidor-
geral. A Câmara recusou encaminhamento, sob a alegação de que as
Ordenações (tít. 65, parágrafo 25) determinavam a alçada dos juízes
até 6 mil réis sem recurso. Mais uma vez o comerciante agravou da
decisão, sendo o requerimento autuado e remetido à Ouvidoria.” 76

Essas ambiguidades estariam intimamente vinculadas à construção


das elites locais, que pendiam entre a fidelidade ao governo central para a
manutenção dos privilégios adquiridos e pela garantia da ordem e a busca
da realização das pretensões pessoais e dos grupos locais.

Apesar dos conflitos, a maior parte dos casos era decidida em comum
acordo e tendo em vista os interesses tanto locais quanto metropolitanos.
Embora rara seja a aplicação da lei portuguesa, em particular na primeira
instância do juiz ordinário, o sentido das decisões, mesmo com base nos
costumes ou em outras fontes, garantia as pretensões reinóis no local.

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BEJA, António de. Breve doutrina e ensinança de Príncipes. Lisboa, 1525.

76 – Ibidem, idem, p. 67.

82 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):51-86, jul./set. 2011


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Ordens e Provizões e Termo de Vereanças (1721-1736). Curitiba: Impressora
Paranaense, 1924.
BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Documentos para
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Correspondências e Actos Diversos (1721-1767). Curitiba: Impressora
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Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação


em maio /2011.

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As Prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira (1746-1827): alguns aspectos do dis-
curso pró-absolutista na literatura jurídica portuguesa do final do antigo regime

as Prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira


(1746-1827): alguns aspectos do discurso
pró-absolutista na literatura jurídica
portuguesa do final do antigo regime
The “Prelecções” of Ricardo Raymundo Nogueira
(1746-1827): some aspects of the pro absolute power
writings in the Portuguese legal literature during
the end of the ancient regime
Airton Cerqueira-Leite Seelaender 1

Resumo: Abstract:
Indicando as opções políticas disponíveis para By indicating the political options available to
a elite dos letrados portugueses no final do sé- the elite of Portuguese scholars at the end of
culo XVIII, bem como o que podia ser dito e the Eighteenth century, as well as what could be
convinha ser dito no ensino coimbrão do “Di- said and how convenient that would be for the
reito Pátrio”, a linguagem e os posicionamentos studies of the country’s Law at the University of
das “Preleções” de R.R. Nogueira legitimavam Coimbra, the language and the postures of R. R.
a expansão da atividade legislativa real e a Nogueira’s “Prelecções” authenticated the ex-
submissão do meio jurídico às leis do Absolu- pansion of the monarchy’s legal activity and the
tismo Reformador. Os conceitos de “polícia” e submission of the legal area to the laws of the
“economia” tendiam a marcar esferas em que o Reformative Absolute Power. The concepts of
monarca, implicitamente equiparado ao pai de “police” and “economy” tended to determine
família no gerir da “grande casa” do reino, po- the fields in which the monarch – implicitly seen
deria regular, ordenar e impor condutas, sem os as the paternal figure reigning over the king-
bloqueios que a tradição jurídica havia, desde a dom’s “large house” – could rule, ordain and
Idade Média, imposto na prática aos reis. impose behaviors without the blockade that the
legal tradition had imposed to the Kings’ prac-
tices since the Middle Ages.

Palavras-chave: Absolutismo – Coimbra – Keywords: Absolute Power – Coimbra – Re-


Reforma Pombalina – Direito Pátrio – Direito forms by the Marquis of Pombal – Country’s
Público – Polícia – Afrancesados – Ricardo R. Law – Public Law – Police – French manner-
Nogueira. isms – Ricardo R. Nogueira.

1. Nos últimos anos, tem-se destacado o papel dos autores do fi-


nal do Antigo Regime e das primeiras décadas do Estado Liberal para a
refuncionalização dos conceitos do direito público e para a construção
de uma nova linguagem jurídico-política fenômenos, ambos, vitais para
a compreensão do discurso jurídico (e político) posterior. Avolumam-se
1 – Doutor em Direito pela J. W. Goethe-Universität (Frankfurt), Professor de História
do Direito e de Direito Constitucional da Universidade Federal de Santa Catarina, pesqui-
sador do CNPq.

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Airton Cerqueira-Leite Seelaender

na Alemanha e no mundo anglo-saxônico relevantes estudos sobre essa


temática, cujo exame no espaço luso-brasileiro ainda está apenas se ini-
ciando. Dentro desse quadro, reler a literatura jurídica portuguesa do rei-
nado de D. Maria I parece oportuno e recomendável – quanto mais para
resgatar obras e tradições literárias usualmente desprezadas como fontes
por historiadores mentalmente aprisionados pela “Siegergeschichte” libe-
ral ou por rígidos esquemas superestrutura/infraestrutura contestados até
por historiadores marxistas como E.P. Thompson.

Nossa proposta consiste em examinar as “Preleções” de Ricardo Ray-


mundo Nogueira (1746-1827), docente coimbrão que veio a desempenhar,
na crise da monarquia portuguesa, um papel de relevo, seja participando
do governo regencial, seja elaborando projetos de constitucionalização
do regime. Sua carreira, seu percurso político e seus posicionamentos
ideológicos refletem as tensões da transição do Antigo Regime para o
Liberalismo. Nossa análise se concentrará, aqui, nos escritos produzidos
no final do século XVIII, ou seja, antes da monarquia absolutista sofrer o
impacto das invasões francesas.

Beneficiário da intervenção de Pombal na Universidade de Coimbra,


Nogueira iniciou sua carreira acadêmica como “Oppositor” no mesmo
ano da reforma dos cursos jurídicos (1772)2. Vinculando-se ao Colégio
das Ordens Militares, assumiu posições na administração financeira da

2 – Na reforma universitária, os antigos professores da Faculdade de Leis perderam suas


cátedras, o que ali facilitou, evidentemente, a ascensão de juristas mais novos. Cf., e.g.,
Manuel Paulo Merêa, “Relação dos lentes das Faculdades Cânones e Leis desde 1730 até
a reforma pombalina”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v.
34, 1958, pp. 216-21, p. 221. Segundo algumas fontes, teria sido, porém, ainda maior a
influência de Pombal sobre a carreira de Ricardo Raymundo. O secretário de Estado teria
mesmo forçado a Universidade a apressar o doutoramento deste, com o fim de produzir
um “espectaculo Literario” capaz de demonstrar o bom “estado das Artes, e das Scien-
cias em Portugal” e de assim impressionar favoravelmente um visitante da “mui culta
Alemanha”, o Conde de Schaumburg-Lippe. Ver “Prefacio do Editor”, in: Ricardo Ray-
mundo Nogueira, Prelecções de direito público interno de Portugal, Coimbra, Imprensa
da Universidade, 1858, p. III, embora Joaquim Agostinho de Macedo, Elogio historico do
illustrissimo e excellentissimo Ricardo Raymundo Nogueira, Lisboa, Impressão Regia,
1827, pp. 9-10, advirta sobre o caráter anedótico do relato. Quanto aos “Oppositores” e
sua posição nos cursos jurídicos, ver Coimbra, Estatutos..., p. 631 (II, XII, 7ss).

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As Prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira (1746-1827): alguns aspectos do dis-
curso pró-absolutista na literatura jurídica portuguesa do final do antigo regime

Universidade, na Inquisição de Coimbra e em diversas dioceses3. Le-


cionou na universidade, em períodos não coincidentes, direito romano
e direito pátrio, obtendo a cátedra desta nova matéria em 17954. Poste-
riormente, Nogueira tornou-se Reitor do Real Colégio dos Nobres (1802)
e membro da Regência (1810) que respondeu pelo governo interno do
reino, da fuga de D. João para o Brasil até a Revolução do Porto5.

A exemplo de tantos letrados ibéricos influenciados pelo Iluminis-


mo, Nogueira serviu lealmente a monarquia absolutista e defendeu-a em
seus escritos, antes das invasões napoleônicas. Ele pertencia, então, àque-
la corrente política que buscava um compromisso entre a inovação e a
preservação do existente, desejando viabilizar, através de um ativo Abso-
lutismo Reformador, a atualização da sociedade estamental e a superação
do atraso econômico e cultural português6. Como reitor do Real Collegio
de Nobres, Ricardo Raymundo envolveu-se pessoalmente nos esforços
para modernizar a educação da nobreza7. Como professor universitário e
autor de projetos de reforma dos cursos jurídicos, porém, ele ainda consi-
derava relevante, na década final do século XVIII, que se observassem as
diferenças estamentais dentro do sistema de ensino8.

3 – Cf., entre outros, Macedo, Elogio historico..., pp. 11-12, 14-15, 17 e 22; “Prefacio
do Editor” a Nogueira, Prelecções..., pp. III-IV; Innocencio Francisco da Silva, Dic-
cionario bibliographico portuguez, Lisboa, Imprensa Nacional, 1862, v. 7, p. 162;
Rodrigues, Memoria..., p. 213.
4 – Anteriormente fora Lente Substituto de Direito Pátrio em diversos períodos (1782-
1784, 1786 e 1789) e catedrático de Instituta (1790-1795). Cf. Merêa, “Notas sobre alguns
lentes...”, p. 323; e Rodrigues, Memoria..., p. 123.
5 – Cf., entre outros, Macedo, Elogio historico..., pp. 26, 28, 30 e 40-1; “Prefacio do
Editor” a Nogueira, Prelecções..., p. IV; Silva, Diccionario bibliographico..., p. 162.
6 – Para uma comparação com a análoga corrente que existia na Espanha, cf., entre
outros, Francisco Tomás y Valiente, Manual de Historia del Derecho Español, Madrid,
Tecnos, 1996, pp. 383-4 e Charles C. Noel, “Charles III of Spain”, in: H. M. Scott (org.),
Enlightened Absolutism, 4ª ed., Houndmills/London, Macmillan, 1994, pp. 119-143,
p.125, 128-130, 143, em especial.
7 – Cf. F. A. L. Vaz, “A difusão das idéias econômicas de Antonio Genovesi em Portu-
gal”, Cultura, v. 11, 1999, pp. 563-567, p. 567.
8 – Cf., por exemplo, Nogueira, Apontamentos..., f. 166, 174 e 177, assim como Noguei-
ra, Prelecções..., pp. 135 e 137.

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Airton Cerqueira-Leite Seelaender

Lidar com o “Direito Pátrio” implicava entrar em contato com temas


politicamente incômodos e potencialmente perigosos, como o significado
das chamadas “leis fundamentais”, as relações Coroa-súdito, as compe-
tências das assembleias estamentais (“Cortes”) e a situação jurídica dos
bens e privilégios da nobreza em face do poder real. Dentro desse con-
texto, um crítico do Absolutismo dificilmente teria acesso à cátedra da
disciplina na única universidade do país. Que Nogueira tenha se tornado
catedrático é um veemente indício, portanto, de sua lealdade à monarquia
absoluta. O mesmo se poderia dizer de sua nomeação como reitor do Real
Collegio de Nobres – i.e., como principal encarregado da educação da
nobreza do reino9.

À vista de escritos como “Apontamentos para a reforma do curso


de direito civil” (1787) e “Prelecções de Direito Pátrio” (1795/1796) se-
ria descabido ver Nogueira, na década de 1790, como um “liberal” ou
“protoliberal”10. Não trazendo indícios suficientes nesse sentido, tais obras
veiculam, pelo contrário, muitas ideias-condutoras da concepção absolu-
tista de Estado. As “Prelecções” proclamavam e legitimavam a suprema-
cia da Coroa em face da nobreza, da Igreja, das Cortes, dos tribunais e
dos governados em geral11. Os “Apontamentos” negavam ao “Jurista” e
ao “vassallo” mesmo o direito de questionar a justiça das leis régias: re-
9 – Sobre as “leis fundamentais” do Antigo Regime, cf. A. C. L. Seelaender, “Notas
sobre a constituição do direito público na idade moderna: a doutrina das leis fundamen-
tais”, Seqüência, v. 53, 2006, pp. 197-232, e sobretudo a precisa análise de Heinz Moh-
nhaupt, “Die Lehre von der Lex Fundamentalis und die Hausgesetzgebung europäischer
Dynastien”, in: Heinz Mohnhaupt (Hrsg.), Historische Vergleichung im Bereich von Staat
und Recht, Frankfurt am Main, V. Klostermann, 2000, pp. 1-33. Para a nomeação e ativi-
dade no colégio, cf. Macedo, Elogio historico..., pp. 26-8; Silva, Diccionario bibliogra-
phico..., v. 7, p. 162; Merêa, “Notas sobre alguns lentes...”, p. 325; Rodrigues, Memoria...,
p. 123; e Vaz, “A difusão das idéias...”, p. 567.
10 – Para o primeiro texto, utilizamos o manuscrito que se encontra na Biblioteca Nacio-
nal de Portugal entre os papéis deixados pelo canonista Ribeiro dos Santos. Mesmo des-
crevendo Nogueira como um dos primeiros liberais, Míriam H. Pereira tem de reconhecer
que as Prelecções de Direito Pátrio não veiculavam uma crítica do status quo inspirada
no ideário liberal (cf.“Estado e sociedade”, in: Míriam Halpern Pereira (org.), Mouzinho
da Silveira: Obras, Lisboa, 1989, v. 1, pp. 19-119, p. 99).
11 – Cf. Nogueira, Prelecções..., respectivamente: pp. 11, 12, 14, 50, 91 e 98-9; pp. 55
(confiram-se também pp. 96, 136-7 e 154); pp. 11-2, 14, 49-50, 90-1, 94-5, 97-99, 100-
102 e 102-104; pp. 91 e 117; e pp. 4-5, 91 e 98.

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As Prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira (1746-1827): alguns aspectos do dis-
curso pró-absolutista na literatura jurídica portuguesa do final do antigo regime

conhecer que estas refletiam “sempre [...] motivos de justiça e utilidade”


seria pressuposto de toda correta interpretação das normas12.

Dentro desse quadro, seria evidente exagero ver no uso de termos


como “cidadão” um indício de liberalismo ou protoliberalismo nessa
fase do autor. Nas “Prelecções”, o conceito de “cidadão” não apresentava
função emancipatória nem conduzia à plena igualdade político-jurídica.
Aparecendo aqui ao lado de termos como “vassallo” e “subdito”, a pala-
vra “cidadão” surgia mesmo em passagens sobre privilégios e diferenças
estamentais13.

A posição política dessas obras também era condicionada – note-se


– pelas circunstâncias de seu surgimento, por suas finalidades específicas
e pelos destinatários visados pelo autor. Dependendo para sua execução
do apoio da Coroa, a reforma curricular proposta nos “Apontamentos”
naturalmente não podia ser exposta em texto recheado de inoportunas
críticas ao Absolutismo14.

As “Prelecções” tampouco podiam ser moldadas como um texto de


referência para aulas subversivas – estas seriam, aliás, praticamente invi-
áveis no ambiente coimbrão, mantido sob rígida vigilância15. Na verdade,

12 – Cf. Nogueira, Apontamentos..., f. 181 e 182; e f. 168.


13 – Cf., e.g., Nogueira, Prelecções..., pp. 99, 106, 135, 181, 197.
14 – O texto endereçava-se justamente àquele dirigente universitário que devia atuar como
vínculo institucional entre a faculdade e a Coroa: o reitor Francisco Rafael de Castro. Cf.
[Joaquim Fernando] Teophilo Braga, História da Universidade de Coimbra, Lisboa, Aca-
demia Real das Sciencias, 1898, v. 3, p. 723, como também Coimbra, Estatutos..., p. 640
(II, XIV, I, 10).
15 – A própria estrutura universitária servia ao propósito da vigilância. As duas faculdades
de direito não estavam livres dos mecanismos intrauniversitários de repressão a opiniões
incômodas à Coroa. O conteúdo dos livros, aulas e compêndios devia ser controlado pela
congregação e por censores. Impunha-se denunciar as doutrinas que contrariassem os
direitos e regalias da Coroa ou aquilo que ela própria visse como seu legítimo âmbito de
poder. Cf. Coimbra, Estatutos..., pp. 248 (I, VI, IV, 8-10), 638 (II, XVI, I, 2), 639 (II, XIV,
I, 6), 640 (II, XIV, I, 11). A Carta Régia de 3/6/1782 também reforçou o controle sobre o
corpo discente. As informações confidenciais sobre os estudantes, que a universidade de-
via disponibilizar para o governo, também podiam ser usadas como arma política contra
dissidentes. Ver Braga, História..., p. 666ss; Manuel Paulo Merêa, “Lance de olhos”, Bo-
letim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v. 33, 1957, pp. 187-214,
pp. 208-9; e Luís Reis Torgal & Isabel N. Vargues, A Revolução de 1820 e a instrução

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Airton Cerqueira-Leite Seelaender

tanto o conteúdo das “Prelecções” como sua orientação política foram


consideravelmente condicionados pelas próprias finalidades principais da
matéria “Direito Pátrio” – a efetiva transmissão das leis régias e a con-
versão das novas gerações de juristas em instrumentos do Rei-Legislador
absolutista.

A despeito disso e do comportamento de Nogueira durante a primeira


invasão napoleônica (1807-1808), seria ir longe demais descrevê-lo como
um inimigo oculto do Absolutismo. Como reconheceu o próprio governo
fugitivo, a colaboração com os franceses, nos estratos superiores da so-
ciedade portuguesa, decorreu em parte da visão da queda dos Braganças
como um fait accompli, que implicava uma mudança definitiva de regi-
me16. Na Igreja, na Academia de Ciências, na maçonaria, na Universidade
de Coimbra, na nobreza e na alta burocracia não faltaram indivíduos de
destaque dispostos a se submeter rapidamente às forças de ocupação e a
colaborar com elas17. Nessa época até mesmo os bispos portugueses cha-
mavam Napoleão de “o Grande” e proclamavam publicamente a missão
que este “homem prodigioso” recebera de “Deus” de “amparar a religião
e fazer a felicidade dos povos”18.
pública, Porto, Paisagem, 1984, p. 193.
16 – Veja-se a “Carta do Príncipe Regente para o Bispo e Junta do Porto”, datada de 1808,
transcrita em José Viriato Capela (org.),  Política, administração, economia e finanças
públicas portuguesas (1750-1820), Braga, ICS, 1993, p. 59ss, em especial, p. 67. Ainda
indefinidas as consequências da esperada mudança, o fortalecimento de um partido aris-
tocrático francófilo e a manutenção da ordem estamental sob domínio napoleônico conti-
nuavam a representar uma das possíveis alternativas. Cf., e.g., Albert Silbert, Do Portugal
do Antigo Regime ao Portugal oitocentista, 3ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1981, pp.
65-67, 70 e 131-2; bem como Ana Cristina Bartolomeu de Araújo, “As invasões francesas
e a afirmação das ideias liberais”, in: José Mattoso (org.), História de Portugal, Lisboa,
Estampa, 1998, v. 5, pp. 21-40, pp. 30-1.
17 – Cf. Silbert, Do Portugal..., p. 64; Araújo, “As invasões francesas...”, p. 28ss; Raul
Brandão, El-Rei Junot, Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1982, pp. 139ss e
154ss, sobretudo; Jean de Pins, “Afrancesados portugais”, in: Jean Tulard (org.), Dic-
tionnaire Napoléon, Paris, Fayard, 1999, v. 1, pp. 41-2; Jacome Ratton, Recordações de
Jacome Ratton [Londres, 1813], 3ª ed., Lisboa, Fenda, 1992, pp. 281-2. Nesse contexto,
o colaboracionismo envolvia até figuras influentes da Inquisição. D. José Maria de Melo,
que antes teria desejado a excomunhão de todos os franceses, vinha agora a descrevê-los,
em 1807, como “irmãos” que deviam ser bem recebidos em Portugal. Cf. Brandão, El-Rei
Junot..., p. 141.
18 – Cf. as manifestações do Patriarca de Lisboa e do Bispo do Algarve reproduzidas em

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Como outros integrantes da camada social representada pelos ser-


vidores mais ligados ao Iluminismo, Nogueira viu a ocupação francesa
como uma oportunidade para impor reformas que, sob as condições até
então existentes, tinham parecido quase irrealizáveis19. Integrou um pe-
queno grupo que defendia, à época, o uso da organização judicial e ad-
ministrativa francesa como modelo para a reforma do Estado português.
A plataforma política desse grupo também abrangia a igualdade jurídica
entre os “cidadãos”, a tolerância na esfera religiosa, a adoção do Code
Napoléon em Portugal e a consequente liberação de todas as terras para
o comércio20.

Em período no qual as constituições se espalhavam com os exércitos


franceses na Europa, tal grupo desejava que Bonaparte convertesse o país
em uma monarquia constitucional. Uma constituição outorgada devia ga-
rantir a liberdade de imprensa, a independência da Justiça e a existência
de um órgão representativo nacional, eleito indiretamente21. Outorgando
uma constituição e tornando rei de Portugal algum de seus familiares,
Napoleão acabaria, na prática, com a sujeição do país ao general Junot,
neutralizando politicamente, assim, também os círculos de aristocratas
colaboracionistas que compunham a entourage do comandante francês.
Tratava-se aqui, portanto, não só de defender reformas liberalizantes,
Brandão, El-Rei Junot..., pp. 141-2 (n. 3). Sobre o colaboracionismo da Igreja, cf. Silbert,
Do Portugal..., p. 64 e Araújo, “As invasões francesas...”, p. 29.
19 – Segundo uma fonte “napoleônica”, poucas casas nobres portuguesas sobreviveriam
à supressão do morgadio e dos conexos mecanismos de proteção contra credores. Cf. Sil-
bert, Do Portugal..., p. 174. Para uma análise mais precisa do “endividamento aristocráti-
co”, ver, porém, Fernando Taveira da Fonseca, “Elites e classes médias”, in: José Mattoso
(org.), História de Portugal, Lisboa, Estampa, 1998, v. 5, pp. 393-407, pp. 395-6.
20 – Sobre tal grupo e seu programa político, ver Silbert, Do Portugal..., p. 131-2 e 174;
Brandão, El-Rei Junot..., p. 158; Halpern Pereira, “Estado e...”, pp. 32-3; Araújo, “As in-
vasões francesas...”, pp. 31-2; J. Joaquim Gomes Canotilho, “As constituições”, in: Mat-
toso (org.), História de Portugal..., v. 5, pp. 125-139, pp. 125-6; Zília Osório de Castro,
“O pré-constitucionalismo em Portugal”, Cultura, v. 11, 1999, pp. 389-399, pp. 396 e
399.
21 – Cf. Dieter Grimm, Deutsche Verfassungsgeschichte 1776-1866, Frankfurt am Main,
Suhrkamp, 1988, p. 56; Silbert, Do Portugal..., pp. 66, 131-2, 174; Brandão, El-Rei Ju-
not..., pp. 157-8; Halpern Pereira, “Estado e...”, p. 32; Araújo, “As invasões francesas...”,
pp. 31-2; Canotilho, “As constituições”..., pp. 125-6; e Castro, “O pré-constitucionalismo
...”, p. 397.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):87-113, jul./set. 2011 93


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

pois, em jogo, estavam, igualmente, o poder político e posições no apara-


to estatal22. Esse movimento constitucionalista lusitano, ainda que mode-
rado nas metas e nos seus canais de expressão, não teve, porém, êxito. A
resistência dos aliados de Junot, a falta de apoio do imperador francês e
a queda do governo de ocupação (agosto de 1808) selaram o seu destino.

No caso de Nogueira, suas ações durante a ocupação não o impedi-


ram de chegar, já em 1810, ao que seria o ápice de sua carreira política23.
Embora classificado por alguns como afrancesado, o jurista tornou-se
então membro de uma regência aliada à Inglaterra e como tal seguiu au-
xiliando até 1820 a mesma monarquia absoluta que tanto servira anterior-
mente24. A queda da regência e o triênio liberal (1820-1823) não puseram
termo, tampouco, à carreira desse adaptável jurisconsulto. Findo tal triê-
nio, ele ressurgiria como conselheiro de Estado, integrando a ala modera-
da do novo regime25. Foi nesse cenário que elaborou para uma comissão
especial do governo um projeto de constituição, cujo modelo foi a Charte
constitutionelle francesa de 181426.

Ainda que Nogueira invocasse reiteradamente o princípio tradicio-


nalista da representação estamental, os “usos primordiaes da Nação” e a
natureza supostamente “moderada” da “Monarquia Portugueza (...) desde

22 – Sobre o tema ver, em especial, Silbert, Do Portugal..., p. 132; e Brandão, El-Rei


Junot..., p. 157.
23 – Menções à posição política dúbia que assumiu durante a primeira invasão francesa
não cabiam em textos laudatórios como o Elogio Historico do Illustrissimo e Excellen-
tissimo Ricardo Raymundo Nogueira (1827). Nesta obra editada pela Impressão Regia, a
descrição de Nogueira como modelo ideal de servidor da Coroa, sempre fiel à dinastia e
ao absolutismo, servia manifestamente para finalidades propagandísticas. Não por acaso
seu autor era justamente uma das mais conhecidas vozes da Reação no debate político da
época: José Agostinho de Macedo.
24 – Para uma descrição do grupo de Nogueira como “grupo francês” [sic], cf. Canotilho,
“As constituições”..., p. 125. Sobre o conceito de afrancesado e sua identificação em
Portugal com as idéias de traição, ateísmo, jacobinismo ou filiação maçônica, cf. Pins,
“Afrancesados...”.
25 – Cf. Manuel Paulo Merêa (org.), Projecto de constituição de 1823, Coimbra, Coimbra
Editora, 1967, p. 7ss e Halpern Pereira, “Estado e...”, p. 64.
26 – Sobre a influência da Charte constitutionelle, cf., entre outros, Merêa, Projecto..., pp.
9 e 11, bem como Paulo Ferreira da Cunha, Para uma história constitucional do direito
português, Coimbra, Almedina, 1995, pp. 375 e 393, sobretudo.

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As Prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira (1746-1827): alguns aspectos do dis-
curso pró-absolutista na literatura jurídica portuguesa do final do antigo regime

sua origem”, seu projeto de constituição era inovador para os padrões


lusitanos27. Disfarçada de restauração daquilo que teria sido a verdadeira
constituição histórica do reino, dar-se-ia aqui a introdução, no país, de
uma nova forma de governo. Sob o nome das velhas assembleias esta-
mentais – “Cortes” – devia surgir, a rigor, um parlamento bicameral28.

Essa reconstrução nada isenta da história portuguesa se destinava,


sem dúvida, a lastrear o projeto de constituição, tornando-o mais aceitá-
vel. Para atingir tal finalidade, Nogueira também se apropriou habilmente
tanto do aparato conceitual dos liberais quanto dos lugares-comuns do
discurso político da reação absolutista.

Essa estratégia de legitimar soluções moderadas misturando os dis-


cursos dos extremos se evidenciava de forma clara em um “rascunho in-
completo” de “Carta de lei fundamental”. Aqui não era só a expressão “lei
fundamental” que remetia à revalorização dos fundamentos da autoridade
monárquica no Antigo Regime – tal papel também era desempenhado
pelas invocações do “princípio sagrado da legitimidade”, da “providen-
cia” como base do governo e mesmo do “Braço do Omnipotente” como
protetor da ordem política.

Fechada a guarda à direita, Nogueira usava contra os vintistas o pró-


prio vocabulário liberal. Já ganhavam terreno, no “Rascunho”, a crítica
ao “Despotismo” e às ofensas aos “direitos dos Cidadãos” – mas tan-
to estas quanto aquele eram imputados à “facção perfida” triunfante na
Revolução do Porto. No fundo, o projeto de constituição procurava um
caminho intermediário entre o Liberalismo de 1820 e as tendências mais
radicais da Reação. Sua meta voltava-se para a harmonização do “prin-
cípio sagrado da legitimidade” com as “opiniões do século presente”, já
27 – Cf. Ricardo Raymundo Nogueira, “Projecto da lei fundamental da monarquia por-
tuguesa”, in: Merêa, Projecto..., p. 19-31; Idem, “Rascunho incompleto de uma carta de
lei fundamental”, in: Merêa, Projecto..., p. 34; e Idem, “Bases duma lei fundamental”, in:
Merêa, Projecto..., p. 34. Comparar com a concepção veiculada pelo mesmo autor nas
Prelecções..., pp. 5, 97 e 100, de que Portugal fora desde sempre uma monarquia ilimita-
da, bem como a correspondente leitura pró-absolutismo da história nas pp. 6-7, 11, 28, 66,
70, 94-5, 98 e 103-4.
28 – Cf. Nogueira, “Projecto...”, p. 24.

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Airton Cerqueira-Leite Seelaender

se proclamando ali a igualdade dos “Cidadãos (...) perante a Lei”29. Tal


igualdade não significava, porém, a eliminação da ordem estamental.

Prevista expressamente, a liberdade de imprensa sofria limitações


consideráveis, tendentes a esvaziá-la. O mesmo ocorria com a tolerância
em matéria religiosa. Dotada de competência legislativa limitada, uma
“2ª Camara” eleita “pelo Povo” deveria conviver com uma “1ª Camara”
de clérigos e nobres. Os membros desta e os ministros seriam nomeados
apenas pelo monarca, cujo primado na estrutura estatal também seria ali-
cerçado por um irrestrito direito de veto e pela condução, pelo Trono, das
Forças Armadas e da política externa30.

O projeto de Nogueira não pôde ser posto em prática. A instabilidade


do país, a oposição de potências estrangeiras e a crescente radicalização
das forças políticas tornaram-no inaplicável31. Seu êxito não interessava
aos adeptos do Absolutismo, cada vez menos dispostos a concessões32.
Produto da Reação, o projeto tampouco podia entusiasmar os herdeiros
da Revolução de 1820. Autores de inspiração liberal chegaram mesmo a
pôr em dúvida que Nogueira e os demais integrantes da comissão hou-
vessem realmente produzido algum esboço de constituição. Como resul-
tado, o projeto caiu em esquecimento já no século XIX. Redescoberto por
volta de 1931 por um destacado juspublicista lusitano, o texto só veio a
ser publicado em 1967, por iniciativa do historiador do direito M. Paulo
Merêa33.

29 – Esses aspectos se evidenciam sobretudo em Nogueira, “Rascunho...”, p. 32. Ver tam-


bém Nogueira, “Projecto...”, p. 29 e “Bases...”, p. 34.
30 – Cf. Nogueira, “Projecto...”, pp. 19, 20, 24, 23, 26-9, 31 (impressa esta, por engano,
como “13”); Nogueira, “Rascunho...”, pp. 32 e 33; e “Bases...”, p. 34.
31 – Cf., entre outros, Merêa, Projecto..., p. 12ss; Cunha, Para uma história constitu-
cional..., pp. 376-8; Luís Reis Torgal, “Tradicionalismo absolutista e contrarrevolução”.
in: F.M. Costa/F.C. Domingues/N.G. Monteiro (org.), Do Antigo Regime ao liberalismo.
Lisboa, Vega, s/d, pp.93-103, 96 e Torgal & Vargues, A Revolução de 1820..., p. 156.
32 – Ainda em 1845 deplorava um partidário do absolutismo miguelista a iniciativa do
governo, em 1823, de prometer a outorga de uma Carta Constitucional. Cf. Maria Teresa
Mónica, “Um programa político miguelista”, Separata da Revista da Biblioteca Nacional,
2ª série, v. 6/2, 1991, pp. 19-51, p. 37.
33 – Cf. Merêa, Projecto..., pp. 5-6, e Cunha, Para uma história constitucional..., p. 374.

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As Prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira (1746-1827): alguns aspectos do dis-
curso pró-absolutista na literatura jurídica portuguesa do final do antigo regime

Isso não basta para esclarecer o interesse relativamente reduzido que


a obra de Nogueira tem despertado. Não por acaso, historiadores lusita-
nos registraram no passado, perplexos, a falta de trabalhos que examinas-
sem detidamente todo o percurso do pensamento político de Nogueira e
que considerassem a participação ativa e duradoura do jurista no governo
regencial (tema, aliás, ainda longe de esgotado). Afinal, como advertiu
Míriam Halpern Pereira, não se deu suficiente atenção ao fato de que o
Nogueira da época de Junot é o mesmo que ressurgiu em 1823-2434.

Ao menos comparadas à longa e coerente fidelidade de Mello Freire


ao Absolutismo, têm sido pouco estudadas a adaptabilidade de Nogueira
e sua trajetória do oficialismo absolutista ao “liberalismo colaboracio-
nista” de 1808 – e deste ao legitimismo regencial e ao constitucionalis-
mo moderado de 1823. Não tendo legado à posteridade tratados quase
enciclopédicos como as “Institutiones Juris Civilis Lusitani”, Nogueira
não obteve, entre os juristas, a popularidade de um Mello Freire. Classi-
ficados como “juspublicistas” no século XIX, seus escritos dos anos de
1790 logo se tornaram obsoletos em decorrência de sua vinculação ao
pensamento político absolutista. Não surpreende, portanto, o fato de que
já por volta de 1870 Nogueira não figurasse no catálogo em que Candido
Mendes elencava os mais relevantes “Jurisconsultos Portuguezes”.

Para a história do direito em Portugal, a importância dos escritos de


Nogueira é, no entanto, inquestionável35. Além disso, tais obras também

34 – Halpern Pereira, “Estado e...”, p. 33 (inclusive n. 24). Só recentemente Nogueira


recebeu um estudo monográfico mais aprofundado, em trabalho orientado por Barbas Ho-
mem. Ver também José Luís Cardoso, O pensamento económico em Portugal nos finais
do século XVIII, Lisboa, Estampa, 1989, p. 209, além de alguns trabalhos isolados, nos
quais Nogueira não era o assunto principal, como Seelaender, Polizei... e Vaz, “A difusão
das ideias...”.
35 – Confira-se, por exemplo, a “Relação dos Jurisconsultos Portuguezes que Florescerão
em Portugal” publicada em Candido Mendes de Almeida, Auxiliar jurídico, Lisboa, Gul-
benkian,, 1985, pp.771-3, p. 773. Para um levantamento recente das obras sobre Mello
Freire, cf. Seelaender, Polizei..., pp. 6 e 123ss. Sobre a delimitação mais nítida do “direito
público”, sua mudança de função e a crescente relevância da dicotomia ius publicum / ius
privatum na crise do “Ancien Régime”, cf. Michael Stolleis, Geschichte des öffentlichen
Rechts in Deutschland, München, Beck, 1992, v.2, pp. 51-53, e A. C. L. Seelaender, “O
contexto do texto: notas introdutórias à história do direito público na idade moderna”, Se-

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Airton Cerqueira-Leite Seelaender

se prestam para indicar em que medida o crescente interesse, em Por-


tugal, pela “Polícia” e pela “Economia Civil” influenciou, no reino, a
própria ciência do direito. Evidenciando como se estruturava o discurso
jurídico pró-absolutismo no final do século XVIII, as “Preleções” ainda
revelam, em muitos pontos, as tensões entre este discurso e os elementos
liberais ou protoliberais advindos de algumas vertentes do pensamento
iluminista.

2. Falamos aqui de um interesse de Nogueira pela “polícia” e pela


“economia” – termos-chave para a compreensão do pensamento político
do Antigo Regime.

Realmente, a análise do tratamento dado por ele a tais termos é tanto


mais necessária, pelo fato de que ambos desempenharam um papel muito
relevante no discurso legitimador do Absolutismo e de seu modelo de
Estado.

Corruptela do termo erudito “política”, o termo “polícia”


vinculava-se em várias línguas, no início da Idade Moderna, às ideias
de “governo” e “bom governo” dentro de um reino ou cidade – e daí às
de “boa ordem”, “ordem” e mesmo “civilidade”36. No meio urbano, a
palavra “polícia” era então frequentemente relacionada à gestão interna
quência, v. 55, 2007, pp. 253-86, pp. 254ss e a bibliografia ali indicada. Sobre a contri-
buição pessoal à história do direito dada por Nogueira como autor, bem como sobre o seu
papel e influência na formação de numerosos juristas e servidores da Coroa, ver Macedo,
Elogio historico..., pp. 20 e 51.
36 – Sobre a evolução do conceito de “polícia” no Antigo Regime, cf. o quadro geral des-
crito em A. C. L. Seelaender, “A ‘polícia’ e as funções do Estado”, Revista da Faculdade
de Direito UFPR, nº 49, 2009, pp. 73-87; bem como a recente síntese de Thomas Si-
mon, Gute Policey: Ordnungsleitbilder und Zielvorstellungen politischen Handelns in der
Frühen Neuzeit, Frankfurt am Main / M. V. Klostermann, 2004. Cf. também a bibliografia
ali citada, que inclui os dados e reflexões de Michael Stolleis, Geschichte des öffentlichen
Rechts in Deutschland, München, C. H. Beck, 1988, v.1; Michael Stolleis (org.), Policey
in Europa der frühen Neuzeit, Frankfurt / M. V. Klostermann, 1996; F. L. Knemeyer,
“Polizei”, in: O. Brunner, W. Conze, R. Koselleck, (org.), Geschichtliche Grundbegriffe,
Stuttgart, Klett-Cota, 1978, v. 4, pp. 875-97; e Hans Maier, Die ältere deutsche Staats-
und Verwaltungslehre, 2a. ed., München, C. H. Beck, 1980. Para a evolução do conceito
em Portugal, cf. A. C. L. Seelaender, Polizei, Ökonomie und Gesetzgebungslehre, Frank-
furt / M. V. Klostermann, 2003, e A. C. L. Seelaender, “A polícia e o rei-legislador”, in: E.
Bittar, História do direito brasileiro, São Paulo, Atlas, 2003, pp. 91-108.

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As Prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira (1746-1827): alguns aspectos do dis-
curso pró-absolutista na literatura jurídica portuguesa do final do antigo regime

da cidade nos aspectos que mais afetavam seu dia a dia (conservação de
ruas, abastecimento de água, limpeza urbana, prevenção de incêndios,
controle de pesos e medidas no comércio, etc.).

Fazia-se comumente uma equiparação entre governo do reino (“po-


lícia”) e governo da casa (“economia”)37. Isso permitia estender ao pri-
meiro o que se via como atributo do segundo: um amplíssimo direito de
regular a convivência e de reprimir maus comportamentos, para que se
preservassem a paz doméstica e a “boa ordem”. Tal equiparação, natural-
mente, favorecia a expansão do poder do monarca, encarado como “pai”
que governava e mantinha em ordem a “grande casa do reino”. Dentro
desse quadro, os conceitos de “polícia” e “economia” tendiam a marcar
esferas em que o monarca, como “Hausvater”, poderia regular, ordenar
e impor condutas, contornando bloqueios que a tradição jurídica havia,
desde a Idade Média, imposto aos reis.

Com o tempo, à medida que se multiplicavam as guerras na Europa,


vários governos passaram não só a expandir seus exércitos e armadas,
mas também a dar maior atenção às bases econômicas e populacionais
do poderio militar. Visando ao crescimento populacional e ao aumento da
arrecadação, esforçaram-se então para desestimular o celibato, promover
a imigração, impor padrões de higiene, estimular as manufaturas, instituir
companhias coloniais, combater o ócio, dar maior segurança aos comer-
ciantes, facilitar a circulação de bens, etc. O termo “polícia” também foi
então adotado para designar o imenso leque de atividades e opções polí-
ticas assumidas pela Coroa, na tentativa desta de multiplicar e enriquecer
seus súditos e, assim, dar ao poderio estatal bases sólidas.

Grosso modo, fenômenos semelhantes se verificaram em Portugal,


ainda que com velocidade e intensidade distintas daquelas observáveis
na França e nos territórios de língua alemã. Nestes últimos, desde o sé-
culo XVII os riscos gerados pela crônica instabilidade regional e pelas
tentativas das grandes potências de ali aumentar suas áreas de influência

37 – Sobre o tema, além das obras acima indicadas e dos estudos de A. M. Hespanha, cf.
Daniela Frigo, “Disciplina rei familiariae”, Penélope, nº 6, 1991, pp. 47-62.

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Airton Cerqueira-Leite Seelaender

empurravam alguns governos para uma escalada armamentista sem pre-


cedentes, que demandava, para ser sustentável, a contínua expansão e
aperfeiçoamento das estruturas estatais relacionadas ao alistamento mili-
tar, à arrecadação tributária e ao fomento econômico. O interesse daí ge-
rado favoreceu o desenvolvimento de novas formas de gestão, de novos
órgãos estatais e de uma nova ciência – a Policeywissenschaft – voltada
para a reflexão sobre o funcionamento do Estado, seu governo interno e
sua atuação para promover o crescimento populacional e a prosperidade.
Dotada de cátedras próprias desde 1727 na Prússia e desde 1752 na Áus-
tria, tal ciência também vicejou através de uma literatura específica – nela
se destacando autores de língua francesa (Delamare) e sobretudo alemã
(Justi, Sonnenfels).

As singularidades do mundo ibérico – e em particular de Portugal –


ajudam a explicar, talvez, o relativo atraso com que surgiram, nesse país,
os primeiros espaços institucionais para a discussão sobre a “polícia”.
Teve aqui algum peso, sem dúvida, o intenso e duradouro impacto da
Contra-Reforma e de seu aparato institucional sobre a cultura lusitana,
sobretudo quando dificultou a recepção e a evolução local de uma re-
flexão mais moderna sobre a política em geral (combatendo mesmo as
versões heterodoxas da chamada “política católica”) e sobre as funções
do Estado. Algum papel há de ter desempenhado nisso, também, a relati-
va prosperidade do reinado de D. João V (1706-1750) – mesmo porque,
suavizadas as necessidades financeiras do Absolutismo, tendia a se arre-
fecer um pouco o estímulo real ao desenvolvimento e difusão das técnicas
“policiais” de fomento à atividade econômica interna. Seria só no regime
pombalino – diante da crise financeira e da instabilidade política, econô-
mica e social da época – que surgiria em Portugal uma Intendência Geral
da Polícia (1760). E só no reinado de D. Maria I, com a criação da Real
Academia das Ciências (1779/1780), passaria a existir no país uma ins-
tituição permanente destinada a importar, transmitir e produzir técnicas
“policiais” para expandir a população e a economia.

Nesse contexto, merece atenção a inserção, no currículo de Coimbra,


da disciplina “Direito Pátrio”, pela reforma pombalina da universidade

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As Prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira (1746-1827): alguns aspectos do dis-
curso pró-absolutista na literatura jurídica portuguesa do final do antigo regime

(1772). Ainda que as referências à “polícia” tendessem a se resumir, no


âmbito dessa nova matéria, a rápidas explanações sobre a legislação nes-
se campo, o fato é que ali se criava, pela primeira vez no ensino coimbrão,
um espaço para transmitir, aos futuros servidores da Coroa, alguma coisa
a respeito da “polícia” real e suas finalidades.

A um leitor apressado, isso até pode parecer insignificante e inócuo,


em comparação com a instituição das cátedras centro-europeias. Mas é
preciso perceber, no entanto, o desproporcional impacto dessa pequena
mudança no quadro específico português, sobretudo considerando a re-
levância dos jurisconsultos coimbrões na reflexão local sobre o Estado
– e, mais ainda, a enorme importância dos juristas egressos de Coimbra
dentro do limitado universo de quadros de que dispunha a monarquia
portuguesa para compor suas elites dirigentes38.

Registre-se, a par disso, que na recepção, em Portugal, dos tratados


setecentistas sobre a “polícia” tiveram destaque docentes coimbrões que
transitavam da universidade para as esferas governamentais. Se nestas o
Traité de la police de Delamare não era de todo desconhecido, nos escri-
tos do lente Paschoal de Mello Freire já aparecia mesmo uma reflexão
própria sobre os Grundsätze der Policeywissenschaft de J. H. Justi39. Um
outro professor – o canonista Ribeiro dos Santos, desafeto de Mello e

38 – A importância dessa “recepção elitista”, envolvendo homens de Estado e docentes


coimbrões, resta ainda mais clara quando a contrastamos com um quadro mais próximo da
prática: o da literatura ligada à prática profissional. Obras como o Repertorio das Ordena-
çoens de Mendez de Castro, o Liber utilissimus de Cardoso Amaral, o Index generalis de
Solano do Vale e o Repertorio das Ordenações, e Leys de Jeronymo Pereira não traziam
verbete algum específico sobre a “polícia” ou termos próximos. Em 1743, a Arte de ba-
chareis de Jeronymo da Cunha ainda silenciava sobre a teoria da polícia e sobre os trata-
distas desse campo, quando expunha os conhecimentos e os livros que um juiz devia ter
(cf. Cunha, J. da Arte de bacharéis, ou perfeito juiz, Lisboa, J.B. Lerzo, 1743, pp.103-6 e
156ss). Na área da “polícia”, não surgiu uma literatura local específica nem mesmo acerca
das funções dos Corregedores, ainda que algumas destas pudessem parecer, ao menos à
luz dos modernos tratadistas estrangeiros, tipicamente “policiais” – nessa esfera, a obra de
referência seguiu sendo, século XVIII adentro, a velha Politica para corregidores, escrita
pelo espanhol Castillo de Bobadilla no fim do século XVI.
39 – Para o acesso de Pombal e do secretário de D. João V, Alexandre de Gusmão, à pri-
meira obra, assim como para a análise das “Provas” do Novo Código de Mello Freire e as
traduções que este poderia ter conhecido – cf. Seelaender, Polizei..., pp. 72 e 121.

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Airton Cerqueira-Leite Seelaender

amigo de Ricardo Raymundo – teve também contato com o pensamento


de Sonnenfels, citando-lhe uma “Sciencia do bom governo” que decerto
correspondia aos (Grund)sätze der Polizey-, Handlungs- und Finanzwis-
senschaft40.

Analisar a reflexão sobre a “polícia” em Portugal do Antigo Regime


implica, como vemos, estudar também os cursos de Coimbra – e em espe-
cial a disciplina “Direito Pátrio” e seus respectivos lentes, como Ricardo
Raymundo Nogueira (1746-1827).

3. Refletir sobre a definição de “Leys Politicas” e de “Leys Eco-


nomicas” era praticamente inevitável no ensino de “Direito Pátrio” em
Coimbra. Ambos os conceitos constavam do texto da mais importante
“lei de interpretação” da era absolutista em Portugal41. Considerando-se,
além disso, o crescente interesse da Coroa por matérias então vistas como
“policiais” ou “econômicas” e o surgimento de novos órgãos especiais de
“polícia” – como a já citada Intendencia Geral da Policia (1760) –, fazia
também sentido que os encarregados dessa matéria abordassem, em sua
exposição, a “polícia” e suas relações com a atividade legislativa42.

As “Prelecções de Direito Pátrio” de Ricardo Raymundo Nogueira


não se limitavam, porém, de modo algum, a expor a teoria da legislação
através das palavras da “Lei da Boa Razão”. Além disso, indicavam a
tendência do autor para lidar sistematicamente com temas no âmbito da
“polícia” e “economia” – se necessário deixando de seguir, ali, a estrutura
das Ordenações43.

40 – Cf. Seelaender, Polizei..., p. 72. Embora o jurista lusitano faça referência a uma
edição vienense de 1777, é mais provável que tenha usado uma tradução italiana (Milão,
1784).
41 – Cf. a chamada “Lei da Boa Razão” de 18/8/1769, em especial o § 9º, conforme
transcrita em José H. Corrêa Telles, “Commentario crítico à Lei da Boa Razão”, in: Can-
dido Mendes de Almeida, Auxiliar jurídico [1870], reimpressão, Rio de Janeiro / Lisboa,
Gulbenkian, 1985, pp. 443-478, p. 454.
42 – Sobre a necessidade de integrar “em um sistema” tanto o direito vindo do passado
quanto as numerosas leis novas no âmbito da “Industria, Policia, [...] etc.”, cf. as observa-
ções do jurista e estadista Tomás Antônio Villanova Portugal em Almeida, Auxiliar..., v. 1,
p. XXIX.
43 – Concluída por volta de 1795/1796, a obra somente foi publicada em 1858 pela Uni-

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As Prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira (1746-1827): alguns aspectos do dis-
curso pró-absolutista na literatura jurídica portuguesa do final do antigo regime

O tratamento desses assuntos nas “Prelecções” não refletia apenas o


dever do professor de “Direito Patrio”, de descrever todos os âmbitos do
direito produzido pelo monarca. Como muitos integrantes da Academia
das Ciências – à qual também pertencia – Nogueira tinha um especial
interesse por esse campo temático44. Ele defendeu a introdução da “Eco-
nomia Civil” no currículo da Faculdade de Leis e recomendou que a nova
matéria fosse ensinada por um ano inteiro45. Além da literatura jurídica,
Nogueira lia também os “escriptores de economia”, apreciando sobretudo
o filósofo iluminista italiano Antonio Genovesi (m. 1769), cujas Lezioni
di commercio o sia di economia civile (1765/1767) ele parcialmente tra-
duziu46.
versidade de Coimbra, sob o título Prelecções de Direito Público Interno de Portugal.
Que a estrutura das Ordenações não correspondia, no ver de Nogueira, ao “methodo
scientifico” é algo que pode ser verificado em seus Apontamentos para a reforma do curso
de direito civil da universidade, 1787, Biblioteca Nacional de Portugal, Manuscrito, cod.
4676, f. 175.
44 – Para a participação na Academia das Ciências, cf. Macedo, Elogio historico..., p.
21 e Silva, Diccionario bibliographico..., p. 162. Segundo o primeiro, p. 14, grifo nosso,
Nogueira demonstrava pelo menos desde 1772 interesse por “aquella tão util Sciencia,
que se chama Economica, e Administrativa”.
45 – Cf. Nogueira, Apontamentos..., f. 168-80. Compare-se isso com Coimbra, Estatu-
tos..., p. 277 (II, II, I, 1).
46 – Ver Nogueira, Prelecções..., p. 152. Nos anos 1820, o autor, ao que parece, valorizava
muito os “conhecimentos das Sciencias políticas, e económicas”. Cf. Nogueira, “Ras-
cunho...”, p. 32. Aliás, na Biblioteca Nacional de Portugal encontra-se um manuscrito
intitulado “Lições de Economia Civil e Politica Traduzidas das que escreveo em Italiano
o Abbade Antonio Genovesi [...] por diligência do Doutor António Ribeiro dos Santos seu
amigo e colega”, códice 2168. Essa tradução de Nogueira, jamais publicada, mostra o seu
grande interesse por questões relacionadas à educação, à economia e à evolução demo-
gráfica. Também revela sua simpatia pelo filósofo italiano, autor eclético influenciado por
ideias fisiocráticas e mercantilistas. A difusão da Economia Civile genovesiana em Portu-
gal foi favorecida por diversos fatores. A Itália funcionou como uma importante ponte na
recepção do Iluminismo no país. Outros escritos de Genovesi já eram conhecidos em Por-
tugal, tendo alguns deles servido mesmo como manuais de metafísica e lógica em escolas
locais. Por fim, as preocupações de Genovesi e seu background cultural se assemelhavam
muito aos dos portugueses que mais se incomodavam com o relativo atraso de seu país no
contexto europeu. Sobre a influência de Genovesi em Portugal, cf., e.g., António A. Banha
de Andrade, Contributos para a história da mentalidade pedagógica portuguesa, Lisboa,
Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1982, p. 624 e 635-6, sobretudo; José Esteves Perei-
ra, O pensamento político em Portugal no século XVIII, Lisboa, Imprensa Nacional / Casa
da Moeda, 1983, pp. 91ss, 179, 207-8, 336 (n. 1); José Joaquim Lopes Praça, História da
filosofia em Portugal, 3ª ed., Lisboa, Guimarães Editora, 1988, pp. 276-8, 294-5 (n. 47);
Cardoso, O pensamento económico..., p. 305; Francisco José Calazans Falcon, A época

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Airton Cerqueira-Leite Seelaender

Segundo Nogueira, a Economia Civil era a “sciencia” que ensinava


“os meios de fazer huma Nação populosa, rica, poderosa, polida, e bem
costumada”. Ela mostrava, entre outras coisas, como “promover” – “para
levar a Nação ao mais alto ponto de opulencia, força e civilização de que
ella he capaz” – “a povoação, agricultura, industria e commercio”47. Iden-
tificada com a “economia do Estado”, a Economia não se ocupava com os
“motivos de justiça” que inspiravam as decisões do Legislador, mas sim
com a “utilidade” que este buscava para o Estado48. Em última análise,
ela fornecia uma técnica para fortalecer estados, na qual o crescimento
populacional e o enriquecimento dos governados eram vistos e tratados
sobretudo como meios, não como finalidades em si49.

A Economia não deveria, porém, apenas orientar, como um saber


técnico, a gestão estatal nos quadros do Absolutismo. Também tinha por
função legitimar as leis da monarquia absoluta.

Cabia à “Economia Civil”, como matéria universitária, revelar aos


futuros legistas a “utilidade” das leis reais e esclarecer quais eram os pro-
váveis motivos de “interesse publico” a elas subjacentes. Nesse contexto

pombalina, 2ª ed., São Paulo, Ática 1993, p. 78 (n. 218); Fernando A. Novais, Portugal e
Brasil na crise do antigo sistema colonial, 6ª ed., São Paulo, Hucitec, 1995, pp. 229-30; e
sobretudo Vaz, “A difusão das ideias...”, pp. 553-4 e 561ss. Quanto à maneira de Nogueira
lidar com as ideias de Genovesi, cf., além da tradução supracitada, Vaz, “A difusão das
ideias...”, p. 563ss.
47 – Nogueira, Apontamentos..., f. 168v, grifo nosso, e 174v. O mesmo ideal de maximi-
zação das bases do poderio estatal pode ser encontrado tanto em Genovesi quanto nos
tratados de polícia disponíveis na Biblioteca da Universidade de Coimbra. Ver Antonio
Genovesi, Lições de economia civil e politica traduzidas..., s/d, trad. de Ricardo Raymun-
do Nogueira, Biblioteca Nacional de Portugal, Manuscrito, códice 2168, f. 1 e Johann
Heinrich Gottlob von Justi, “Préface”, in: Élémens généraux de police [Grundsätze der
Policeywissenschaft, 1756], Paris, Benoît Rozet, 1769, p. 3: “aumenter ses forces & sa
puissance autant qu’il en est capable”.
48 – Nogueira, Prelecções..., p. 121. A Economia Civil ensinava, no ver do autor, “noço-
ens geraes do que he util, ou prejudicial ao bem do Estado”. Já o que era justo ou injusto,
isso competia ao Direito Natural definir. Ver Nogueira, Apontamentos..., f. 168v e 173v,
sobretudo.
49 – Cf. Nogueira, Apontamentos..., f. 174 e Prelecções..., p. 136. Essa ideia de instru-
mentalidade do econômico correspondia, aliás, a uma das principais tendências do discur-
so mercantilista. Cf. Eli F. Heckscher, La época mercantilista, México, Fondo de Cultura
Económica, 1983, pp. 9, 463ss, 466, em especial.

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As Prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira (1746-1827): alguns aspectos do dis-
curso pró-absolutista na literatura jurídica portuguesa do final do antigo regime

ela devia ajudar na busca da real intenção do legislador, sem servir, no


entanto, como instrumento de crítica a este último. De acordo com os
“Apontamentos”, “o Jurista” não devia nunca declarar a lei do soberano
imprópria “para o fim a que se encaminha” – nem mesmo quando as ra-
zões de sua existência lhe parecessem insuficientes ou lhe continuassem
inapreensíveis.

Como ciência auxiliar da interpretação jurídica, a Economia devia


capacitar os juristas para identificar as prováveis razões políticas das leis,
fazendo-os observarem melhor, na aplicação do direito, a vontade do le-
gislador50. O objetivo de tal capacitação consistia, pois, no aumento da
efetividade do poder da Coroa quanto ao exercício da atividade legisla-
tiva.

Na segunda metade do século XVIII, ao acentuar-se a preocupação


da Coroa portuguesa com as bases do poderio estatal (como o número de
súditos e a situação dos diferentes ramos da economia), surgiu uma notá-
vel intensificação da atividade legislativa51. A lógica da nova legislação,
contudo, precisava ser apreendida pelas novas gerações de juristas. Nesse
contexto, a matéria “Economia” devia assumir a missão de tornar essa
lógica compreensível, impedindo o aplicar “errôneo” da nova legislação,
que podia sabotar os esforços governamentais.

Essa concepção da Economia Civil como um instrumento auxiliar da


interpretação das leis correspondia, em última análise, à tendência, então
verificada, para um influenciar recíproco, por parte dos discursos jurídico
e econômico. A mesma concepção justificava a proposta de Nogueira de
introduzir a matéria nos cursos jurídicos, e não na faculdade que devia
abarcá-la como objeto “filosófico”. Não era o lugar da Economia no sis-
tema vigente das ciências, mas sim a sua relevância como referência para

50 – v. Nogueira, Apontamentos..., f. 171. Cf. também pp. 168-9 e 181.


51 – Para uma análise do fenômeno, cf. Seelaender, Polizei..., p. 46ss. Já comprovando
sua ocorrência em comparação com o reinado de D. João V, António Manuel Hespanha,
“Nota do tradutor”, in: John Gilissen, Introdução histórica ao direito. Lisboa, Gulbenkian,
1988, pp. 321-3, que, no entanto, excluía de sua contagem um dos veículos preferenciais
da nova legislação: os alvarás.

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todos os ramos do Direito que devia determinar, aqui, a qual faculdade o


curso viria a se vincular52.

Como ciência e esfera específica da ação estatal, a Economia Ci-


vil se relacionava a todos os ramos da atividade econômica. Segundo as
“Prelecções”, ela se ocupava de assuntos como “educação”, “industria”,
“commercio”, “pureza dos costumes”, tamanho da população, cultivo
das “artes e profissões”, “segurança pública”, abastecimento de víveres e
“bom estado dos logares públicos”.

Os três últimos temas pertenciam, mais precisamente, à “policia”,


que Nogueira definia como “ramo da economia civil”. Ainda segundo
as “Prelecções”, a polícia se ocupava propriamente da “segurança dos
cidadãos”, da “bondade, abundancia, e justo preço” das mercadorias e
do “bom estado, e uso commodo das ruas, estradas e logares públicos”.
Ela competia aos “magistrados de policia” – também chamados de “ma-
gistrados politicos”. Estes seriam tanto os tradicionais representantes
da administração citadina – e.g., os almotacés, os vereadores e os juí-
zes ordinários – como também servidores da Coroa stricto sensu, como
o intendente-geral da Polícia e os intendentes “de obras públicas”, quer
dizer, por exemplo, das intendencias que se ocupavam das estradas ou
dos rios Douro e Mondego. Compreender-se-iam aqui também diversos
juízes reais (corregedores, juízes de fora, desembargadores da Casa da
Suplicação, chanceler da Relação do Porto, etc.), que, no normal exercí-
cio de seus ofícios ou com base em funções suplementares (“comissão”),
tivessem de tratar de matérias tidas por policiais (serviços de vigilância,
identificação de “clerigos travessos e revoltos”, controle de armas, obras
públicas, estalagens, inspeção de pontes, estradas e fontes, etc.)53.
52 – Traçando um paralelo entre o Direito Natural e a Economia Civil, o autor situa ambos
na Filosofia, mas defende seu ensino nas faculdades jurídicas. Ver Nogueira, Apontamen-
tos..., f. 173 (em especial, a n. ‘a’). Do ponto de vista formal, a despeito do anterior ensino
das “Artes” em Coimbra, somente em 1772 se fundou ali uma faculdade de filosofia. As
ciências naturais constituíam o núcleo do currículo, que não incluía matérias como “Polí-
tica”, “Economia” ou “Ciência da Polícia”. Cf. Coimbra, Estatutos..., p. 228f (III, III, II,
II, 1-4) e 230 (III, III, II, II, 7) e Rodrigues, Memoria..., p. 269.
53 – Ver Nogueira, Prelecções..., pp. 135-6, 143, 152-7. Segundo o autor, tal definição
correspondia ao conceito de polícia “em significação estricta”, que em regra seria aceito

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As Prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira (1746-1827): alguns aspectos do dis-
curso pró-absolutista na literatura jurídica portuguesa do final do antigo regime

Nogueira tentou classificar os “magistrados” em específicos “ramos


de jurisdicção”. Reconhecendo a existência de diferentes esferas de ativi-
dade estatal, ele não podia deixar de registrar que, em Portugal, o proces-
so de separação dessas mesmas esferas ainda não se havia completado.

Entre os “magistrados do nosso reino” – diziam as “Prelecções” –


“nenhum há, cuja jurisdicção se limite a um só gênero de negócios”. Por
não serem sempre observadas as diferenças que existiam entre os vários
“ramos de jurisdicção”, ainda competiam aos magistrados numerosas ta-
refas inapropriadas (“muitas cousas desvairadas”)54. Como percebia No-
gueira, no final do século XVIII os juízes ainda participavam da polícia e
do “governo econômico” local. O Chanceler da Relação do Porto detinha
a “comissão” de “inspector-geral das obras públicas”; juízes lisboetas
buscavam “pessoas de ruim viver” nas estalagens. Esse acúmulo de fun-
ções não era, de qualquer modo, o único obstáculo para o prosseguimento
do processo de separação das esferas de atividade estatal. Tendo diversas
finalidades ao mesmo tempo, algumas tarefas – como o combate à va-
diagem – podiam ser simultaneamente classificadas em vários “ramos de
jurisdicção”55.

Nas “Prelecções”, a análise das diferentes esferas da atividade estatal


não desembocava, contudo, em uma apologia explícita da separação de
poderes. Nogueira lera De l’esprit des lois e falava ocasionalmente de um
“poder judiciario”, mas sua imitação de Montesquieu não ia tão longe que
o levasse a contestar os próprios fundamentos da monarquia absoluta56.
Nada prenunciava, aqui, o posterior empenho de Nogueira pela indepen-

pelos “escriptores de economia”. Um conceito alternativo mais amplo, contudo, não chega
a ser mencionado nas Prelecções... (cf. p. 152). Ver também Nogueira, Apontamentos..., f.
174-174v. Também nesse ponto, não se deve excluir a possível influência de Genovesi.
54 – Nogueira, Prelecções..., pp. 121-2.
55 – Ao lado da finalidade policial da segurança – o combate à “vida livre e licenciosa”
geradora de “homens viciosos” tendentes ao crime – havia aqui uma outra finalidade,
esta meramente econômica: “fomentar a industria” das classes baixas procedendo “contra
os vadios e mendigos”. Cf. Nogueira, Prelecções..., p. 153. Ver ainda pp. 152 e 155 (em
exame conjunto), como também pp. 152-7, além de Genovesi, “Lições de Economia Civil
e Politica Traduzidas...”, f. 304.
56 – Cf., respectivamente, Nogueira, Prelecções..., p. 10 (n. 1) e p. 134.

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dência da Justiça. Segundo as “Prelecções”, a existência e autoridade dos


órgãos judiciais não se assentava nas prestigiosas “leis fundamentaes”,
decorrendo, na verdade, apenas de “leis (…) puramente civis”, passíveis
a todo momento de alteração pelo rei57.

Não faltavam nas obras de Nogueira pontos de apoio para sustentar a


superioridade do legislador em face da Justiça. Sua concepção do “direito
de legislar” real como cerne da soberania, seu conceito de lei radicalmen-
te voluntarista e sua defesa da vinculação do juiz às leis esvaziavam o
“poder judiciario”. Em caso de necessidade podia o rei-legislador neutra-
lizar este último por meio de dispensas, isenções e atos de graça58. Impor-
tante notar, aliás, que Nogueira via a concessão de dispensas e privilégios
como expressão do próprio poder de legislar: “só o legislador supremo”
podia “conceder privilegios, porque só elle” tinha “auctoridade de dis-
pensar nas leis” gerais por ele mesmo criadas59.

Por trás da concessão dos privilégios e da aplicação de sanções puni-


tivas e prêmios, Nogueira via um Legislador desejoso de dirigir “as acções
dos cidadãos” no sentido da “conservação e melhoramento do Estado”.
As “Leis Civis” editadas pelo rei visavam à prosperidade da “Nação”, ao
fortalecimento do “Corpo Politico” e à cura de suas “enfermidades”. Tais
leis refletiam, assim, não apenas a vontade do governante absoluto, mas
também nobres “motivos […] de utilidade”. Nesse contexto, a ideia de
uma resistência judicial às leis reais parecia, em última análise, destituída
de sentido. O monarca era o “primeiro motor” da “grande machina” do
57 – Veja-se, por exemplo, a proibição da demissão arbitrária de juízes no projeto de cons-
tituição de 1823 em Nogueira, “Projecto...”, p. 29, assim como Nogueira, Prelecções..., p.
91.
58 – Isso não constituía uma ideia original em Portugal do Antigo Regime. Ali já existiam,
inclusive, antigos órgãos específicos ligados à Coroa, competentes para o exame de maté-
rias inseridas no âmbito da “Graça”. Cf., por exemplo, Nogueira, Prelecções..., pp. 129 e
159ss. Segundo Nogueira, “a lei é a norma prescripta pelo soberano a seus subditos, para
por ella regularem suas acções”. Ela “recebe [...] toda a sua força da vontade do summo
imperante” (Nogueira, Prelecções..., p. 107). Ver ainda ibidem p. 106 e Nogueira, Apon-
tamentos..., f. 166.
59 – Cf. Nogueira, Prelecções..., p. 99. Sobre o tema, ver também Michael Stolleis,
“Grundzüge der Beamtenethik (1550-1650)”, in: Staat und Staatsräson in der frühen
Neuzeit, Frankfurt am Main, Suhrkamp, pp. 197-231, pp. 176-7.

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curso pró-absolutista na literatura jurídica portuguesa do final do antigo regime

Estado; dentro desta “machina” devia a Justiça, a rigor, exercer uma fun-
ção meramente instrumental60.

Todos os agentes estatais – inclusive os “magistrados economicos”


e os “magistrados de policia” – seriam instrumentos do legislador e exe-
cutores de sua vontade. Órgãos como a “Real Junta do Commercio, Agri-
cultura, Fábricas e Navegação” deviam “vigiar na execução das leis já
estabelecidas”, eventualmente propondo ao governo novas medidas mais
eficazes. Assegurar a “observância das leis” era, por sinal, um dever dos
“Deputados” das sociedades mercantis privilegiadas, da censura real,
do “fiscal dos diamantes” e de muitos outros agentes e órgãos coletivos.
Note-se, aliás, que as “Prelecções” tendiam mesmo a descrever a ação
“policial” ou “econômica” como uma simples realização da vontade do
legislador61.

Nogueira não ignorou o “governo economico” das cidades nem a


conexa atividade legislativa no âmbito local. As “Prelecções” tratavam,
por exemplo, da regulação municipal das relações de trabalho, inclusive
fixando valores máximos para este último. Abordavam o abastecimento
de víveres e assuntos próximos ou correlatos – tais como o controle e fi-
xação de preços, o combate aos monopólios e a fiscalização da qualidade
dos alimentos.
Segundo Nogueira, “sobre todos estes pontos devem as camaras fa-
zer posturas”. No entendimento do autor, as posturas eram “accordãos,
estatutos e regulamentos” do concelho como “corporação”. Elas se refe-

60 – Ver Nogueira, Prelecções..., p. 106; Nogueira, Apontamentos..., f. 168; e, no mesmo


sentido, Nogueira, Prelecções..., pp. 107, 140, 83 e 81; assim como Nogueira, Aponta-
mentos..., f. 169. No século XVIII, essa utilização concomitante das metáforas do corpo
e da máquina não parecia de modo algum contraditória. Nos textos políticos da época, o
corpo não era usualmente entendido “no sentido do moderno conceito de organismo”, mas
sim com base na “analogia do mecanismo”. Cf. Barbara Stollberg-Rillinger, Der Staat als
Maschine, Berlin, Duncker & Humblot, 1986, p.109 e 111, sobretudo.
61 – Nogueira, Prelecções..., p. 152. Para indícios do papel de magistrado como instru-
mento do monarca, cf., e.g., Nogueira, Prelecções..., p. 174. Citação na p. 143. Nas pp.
148-9, o autor salienta existir em “cada uma d’estas sociedades” um “fiscal” com o espe-
cífico dever de promover essa “observancia”. O comentário sobre a Real Mesa Censória e
o análogo órgão que a sucedeu encontra-se na pp.137-8. Ver ainda p. 145.

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riam ao “governo económico do concelho, preços de mantimentos e outras


cousas” da vida local, cabendo a servidores da administração concelhia
– como os almotacés – zelar por sua aplicação. De “tanta auctoridade”
gozariam as posturas, que somente o próprio rei poderia revogá-las, quan-
do feitas regularmente. Era, no entanto, possível que os corregedores exa-
minassem a origem das posturas, declarando-as “nullas” se verificassem
aqui a inobservância dos procedimentos legalmente exigidos. É interes-
sante registrar, aliás, que Nogueira sequer cogita de tal hipótese, quando
analisa paralelamente as leis reais sobre temas policiais e econômicos62.
Sobre o problema da eficácia das leis – aqui incluída a legislação
econômica e de polícia – não silenciam as obras de Nogueira. Ele salien-
tou a importância de rápidos processos decisórios no âmbito da polícia
e lamentou que velhas leis nessa área caíssem em esquecimento. Via na
dificuldade para aplicar certas leis uma “experiencia” digna de atenção. A
experiência também podia ser útil à hora de regular matérias então vistas
como tipicamente econômicas63.
De acordo com a legislação lusitana “magistrados politicos e eco-
nômicos”, como o Intendente Geral da Policia, podiam deixar de lado
muitas formalidades do procedimento judicial ordinário, quando se tra-
tasse de punir mendigos e vadios ou de forçá-los a trabalhar. Este proce-
dimento especial menos formalizado não se fundava apenas no direito do
“legislador” de obrigar os “cidadãos” a contribuírem “com as suas forças
e industria para a opulencia do Estado”. Nogueira também acreditava que
no âmbito da “economia” e da “polícia” deviam valer regras específicas
no campo processual. Por sua própria natureza, casos referentes a objetos

62 – Nogueira, Prelecções..., p. 155. Ver ainda pp. 146 e 155-8. Citações extraídas da
p. 156, onde também encontramos uma singela exposição do conteúdo das Ordenações
Filipinas [1603]..., v. 1, pp. 104-5 (I, LVIII, 17). Também descrevendo as posturas como
“Acórdãos”, cf. Correa da Silva, Prelecções..., v. 2, f. 71. Talvez possamos ver, nesses ter-
mos sobrepostos, uma marca da transição de Satzung para Gebot, na tipologia de Wilhelm
Ebel, Geschichte der Gesetzgebung in Deutschland, Göttingen, O. Schwartz, 1988. Para
a atitude dos corregedores quanto às posturas, cf., por exemplo, Nogueira, Prelecções...,
pp. 135ss e 152-158. Uma relativização dos aspectos formais de certos tipos de lei pode,
aliás, ser encontrada em Nogueira, Prelecções..., pp. 109-110 e 112-3.
63 – Ver, e.g., Nogueira, Prelecções..., p. 191; e Nogueira, Apontamentos..., f. 185, que
versa sobre a “cola” no âmbito da educação universitária.

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As Prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira (1746-1827): alguns aspectos do dis-
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da polícia demandavam rápidas soluções por meio de rápidos processos64.


Como vemos, aqui importava mais a efetiva aplicação das leis policiais e
econômicas do que o aprofundamento da discussão sobre a justiça de sua
aplicação em cada caso concreto.
Nem ponderações de justiça nem concessões ao ideal jusracionalista
da sistematicidade distanciavam Nogueira de sua concepção básica de
que a vontade real era a verdadeira fonte da validade das leis. Por isso
mesmo, a fiel descrição destas últimas (como ordens do soberano) lhe pa-
recia mais importante do que a “exactidão” de sua organização sistemá-
tica segundo o “methodo Mathematico”. Nas “sciencias de authoridade”
como a “Jurisprudencia Civil”, não era necessário, no ver de Nogueira,
“demonstrar tudo mathematicamente”65.
Nogueira adotava um conceito voluntarista de lei que não favorecia
o uso crítico de princípios de direito natural na análise do “direito pátrio”.
Na sua opinião, o direito natural devia mostrar que as leis eram justas –
mas questionar essa justiça era algo que não cabia ao jurista. Tratava-se,
pois, de um direito natural preponderantemente legitimador, que não vi-
sava, em última análise, a limitar realmente o poder do legislador66.
Identificando incondicionalmente a lei com a vontade mutável do
monarca absoluto, Nogueira podia também justificar, implicitamente, dis-
tanciamentos do legislador em relação aos pontos de vista tradicionais
sobre os “bons costumes”, mesmo quando estes se vinculassem a dita-
mes religiosos. Nas “Prelecções” já era perfeitamente possível descrever

64 – Cf., e.g., o Decreto de 4/11/1755 e o Alvará de 25/6/1760 , in: Appendix das Leys Ex-
travagantes, Decretos e Avisos, Lisboa, Mosteiro de São Vicente de Fora, 1760, pp. 387 e
309 (n. 19), respectivamente; além do Alvará de 15/1/1780, in: António Delgado da Silva,
Collecção da legislação portugueza, Lisboa, Typ. Maigrense, 1828, pp. 255-6. Ver ainda
Nogueira, Prelecções..., p. 140. Sobre o “processo de polícia” no Antigo Regime, com
o registro de posições discordantes sobre a funcionalidade deste conceito, ver A. C. L.
Seelaender, “A Polícia e as funções do Estado”, Revista da Faculdade de Direito UFPR,
v. 49, 2009, pp. 73-88, p. 79, e T. Simon, Gute Policey....
65 – Cf. Nogueira, Apontamentos..., f. 175. Tal entendimento correspondia, também, à
crença do autor, de que os “textos” do direito vigente continham “decisoens e não princi-
pios” (ibidem).
66 – Cf. Nogueira, Apontamentos..., f. 171 e 181-2. Neutralizava-se, nesse contexto, o
potencial crítico da ideia de que o Direito Natural esclarecia o que o legislador “podia
fazer”. Ver Nogueira, Apontamentos..., f. 169.

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como uma simples curiosidade, sem observações moralizantes, a subs-


tituição da proibição legal dos jogos de cartas por privilégios régios de
comercialização de baralhos67. O autor, aliás, não tendia a contestar nem a
mutabilidade das leis nem a possibilidade de criação de direito novo68.
Dessa possibilidade dependia em parte a crescente intervenção do
legislador no âmbito da Economia Civil – inclusive nas atividades eco-
nômicas na acepção hoje predominante desse termo. Longe de questiona-
rem tal intervenção, as “Prelecções” lançavam mesmo críticas à irracio-
nalidade do mercado69. Em tal obra figuravam, lado a lado, manifestações
favoráveis ao princípio do “justo preço” e à “liberdade dos movimentos”
na esfera econômica; nela não se atacavam nem as corporações de ofício
nem a prática de fixar normativamente o preço dos produtos e da mão de
obra70. A intervenção estatal era apresentada aqui como um fator de ra-
cionalização da economia: “enganados pela cobiça indiscreta de levarem
muito, com pouca despesa”, os “commerciantes” acabavam por arriscar
irresponsavelmente o seu próprio patrimônio, se, por exemplo, o “gover-
no” não vigiasse com rigor o comércio marítimo71.
Essa tendência das “Prelecções” de aceitar implicitamente ou mes-
mo de apoiar a intervenção estatal correspondia, à época, à orientação
dominante no discurso “econômico” português. Ela também era, por si-
nal, totalmente compatível com a defesa de um papel ativo da Coroa, na
criação do direito72.

67 – Cf. Nogueira, Prelecções..., p. 179 (n. 2).


68 – A crença de Nogueira na mutabilidade do direito refletia também a sua tendência para
analisar as instituições sociais a partir de uma perspectiva evolucionista. A conexão das
leis com o “estado de civilisação” e com o correlato “systema de governo” implicava, na-
turalmente, a mutabilidade delas próprias. Cf. Nogueira, Prelecções..., pp. 7-9. Pensando
nessa mesma conexão, o autor podia até, em princípio, ter concebido limitações fáticas ao
poder do legislador. Nogueira, contudo, não desenvolveu essa linha de argumentação no
que tange ao rei-legislador de sua época.
69 – Cf. Nogueira, Prelecções..., p. 150.
70 – Cf. Nogueira, Prelecções..., pp. 135, 152, 174-5 e 145-6.
71 – Cf. Nogueira, Prelecções..., p. 150-1.
72 – Para um exame da correspondência entre o ideal do legislador ativo e a ampla con-
cepção que Nogueira tinha dos fins do Estado, ver, e.g. Nogueira, Prelecções..., pp. 106-
107, 140 e 141-2.

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4. Os escritos de Nogueira antes das invasões napoleônicas nos


mostram, em suma, o emprego de conceitos-chave do discurso absolutis-
ta, à hora de legitimar a expansão da atividade legislativa real e de recla-
mar a submissão do meio jurídico às leis do Absolutismo Reformador.
As ideias de “polícia”, “economia” e “governo econômico” tendiam
a marcar, nessa época, espaços abertos ao rei-legislador e a seus agentes;
a indicar esferas em que o monarca, implicitamente equiparado ao pai de
família no gerir da “grande casa” do reino, dispunha de um amplíssimo
poder de regular, ordenar e impor condutas. Esferas em que perdiam força
vários limites que a tradição jurídica havia, desde a Idade Média, imposto
na prática aos reis (“iura quaesita”, ideal do rei-juiz semi-inerte, privilé-
gios estamentais).
Na fase posterior a 1807, as características de pensador de transição
se acentuaram em Nogueira, tendo ocorrido, como vimos, uma parcial
assimilação do vocabulário liberal. A este deu o autor, contudo, um uso
estratégico conveniente para a sua corrente política. Por vezes, suavizou
os significados originais, reduzindo suas implicações potencialmente sub-
versivas. Outras vezes, alargou ou deturpou habilmente tais significados,
para estender às ações dos liberais termos de carga negativa, por estes
usados no ataque ao Absolutismo.
Em autores de transição como Nogueira, Cairu e José Bonifácio,
uma análise mais detida da linguagem pode indicar a necessidade de uma
relativização de antigas classificações que acentuam demasiadamente
contrastes e rupturas entre o Antigo Regime e o Liberalismo. Aqui, seguir
a trilha dos conceitos – verificando, e.g., a adaptação de velhas palavras
a novas circunstâncias políticas – pode mostrar-se uma boa estratégia de
pesquisa.

Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação


em maio /2011.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

Nativismo por adoção: letras e percurso do


doutor Marcelino Pereira Cleto (1778-1794)
Native by adoption: Dr. Marcelino Pereira Cleto’s
(1778-1794) writings and route
Marco Antonio Silveira1

Resumo: Abstract:
Este artigo tem por objetivo reconstituir a tra- The objective of this paper is to reconstitute the
jetória e o pensamento do doutor Marcelino trajectory and the thoughts of Dr. Marcelino
Pereira Cleto, magistrado régio que atuou como Pereira Cleto, royal magistrate who acted as
juiz de fora de Santos (1779-1787), ouvidor do itinerant judge in Santos (1779-1787), as om-
Rio de Janeiro (1787-1791), escrivão da devas- budsman in Rio de Janeiro (1778-1791), as
sa fluminense sobre a Inconfidência Mineira notary for the Rio de Janeiro inquiry on the In-
(1789-1790) e desembargador da Relação da confidencia Mineira2 (1789-1790) and as judge
Bahia (1791-1794). Através da concatenação of the Court of Appeals at the Relação da Bahia3
de sua atuação administrativa e dos escritos que (1791-1794). Through the linkage of his admin-
deixou – especialmente os atinentes à história istrative action and his writings – especially
de São Paulo e à jurisdição eclesiástica no Bra- those concerning the history of São Paulo and
sil –, busca-se sugerir que, embora nascido em the ecclesiastical jurisdiction in Brazil – this
Portugal, Pereira Cleto absorveu concepções paper suggests that, though born in Portugal,
nativistas emergentes no período em que viveu Pereira Cleto absorbed the native concepts that
na América. emerged during the period he lived in America.
Palavras-chave: Marcelino Pereira Cleto; Amé- Keywords: Marcelino Pereira Cleto – Portu-
rica portuguesa; administração; historiografia. guese America – Administration – History writ-
ings.

Papéis do Brasil
A renovação dos estudos relativos à história política da América por-
tuguesa, beneficiada pelo contato mais arraigado, nas últimas décadas,
com a historiografia e os arquivos lusos, resultou em abordagens varia-
das, dentre as quais pode ser destacada a que privilegia a reconstituição
de trajetórias individuais de autoridades. Tal perspectiva coaduna-se, cer-
1 – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Adjunto
da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2
pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Agradeço
à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo financia-
mento de pesquisas decisivas para a confecção deste artigo. Agradeço às colegas Andréa
Lisly Gonçalves e Maria Eliza de Campos Souza por prestimosas informações, bem como
a Ronald Raminelli e seus orientandos por terem debatido este artigo e proposto sugestões
fundamentais.
2 –1Patriotic movement against the Portuguese domination in Brazil.
3 –1The Bahia Court of Law.

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Marco Antonio Silveira

tamente, com o impacto, no Brasil, de diferentes vertentes voltadas para


a micro-história e a prosopografia4. Nesse sentido, a investigação de ma-
gistrados como o ouvidor Caetano da Costa Matoso e o desembargador
José João Teixeira Coelho, ambos atuantes na Vila Rica setecentista, tem
permitido a melhor compreensão não apenas do funcionamento de instân-
cias locais de poder, mas também de sua inserção em estruturações mais
amplas que articulam, a um só tempo, complexas dimensões públicas e
privadas. É em tal perspectiva que se pretende avaliar aqui o percurso do
doutor Marcelino Pereira Cleto.

A trajetória de magistrados como Pereira Cleto oferece material


precioso para a realização de estudos que, partindo da renovação men-
cionada acima, desejam, contudo, superar abordagens excessivamente
localistas. Tendo-se formado em Coimbra e desenvolvido toda sua car-
reira de magistrado no Brasil, Marcelino Pereira Cleto é geralmente co-
nhecido – na verdade, pouco conhecido – por dois episódios tratados de
modo isolado: o primeiro é o discurso que escreveu, provavelmente em
1781, intitulado Dissertação a respeito da Capitania de São Paulo, sua
decadência e modo de restabelecê-la5; o segundo é sua atuação na Incon-

4 – Cf. Stuart Schwartz. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. Trad., São Paulo:
Perspectiva, 1979; Arno Wehling & Maria José Wehling. Direito e justiça no Brasil colo-
nial. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. José Subtil. O desembargo do Paço. Lisboa: UAL,
1996; Nuno Gonçalo Monteiro, Pedro Cardim & Mafalda Soares da Cunha (org.). Optma
pars. Elites ibero-americanas no Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais,
Instituto de Ciências Sociais, 2005. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. “Rapsódia
para um bacharel”. In: Luciano Raposo de Almeida Figueiredo & Maria Verônica Campos
(coord.). Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999, pp. 37-
154. Caio César Boschi. “Textos introdutórios”. In: José João Teixeira Coelho. Instrução
para o governo da Capitania de Minas Gerais (1782). Belo Horizonte: Arquivo Público
Mineiro, 2007, pp. 21-150.
5 – A Dissertação, datada de 25 de outubro de 1782, foi inicialmente publicada no núme-
ro XXI dos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em 1899, pp. 193-254. Em
1977, foi novamente editada, compondo, com outros três trabalhos, o primeiro volume
da Coleção Paulística, sob o título Roteiros e notícias de São Paulo colonial (pp. 11-52).
Enquanto a primeira publicação procurou preservar a grafia original, a segunda, aparen-
temente retirada da anterior, efetuou uma atualização por vezes problemática e deixou
de inserir as notas feitas pelo próprio Pereira Cleto. Por isso, as citações da Dissertação
neste artigo tomarão como base a edição dos Anais. As atualizações das referências aqui
citadas, tanto de grafia quanto de pontuação, são responsabilidade do autor.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

fidência Mineira como escrivão da devassa do Rio de Janeiro. Quando,


no entanto, ambos os episódios são associados, surge a imagem de um
ministro perpassado pelo reformismo ilustrado, ambiguamente vinculado
a interesses locais e inserido nas redes administrativas de troca de papéis
e informações. No que se refere a este último ponto, confirma-o a extensa
documentação de sua autoria depositada na Torre do Tombo, no fundo
denominado Papéis do Brasil.

Avaliando a composição do referido conjunto documental, a pesqui-


sadora Marta Páscoa sugeriu recentemente que seu nome fosse alterado
para “Coleção Pereira Cleto”, dada a significativa participação dos docu-
mentos produzidos ou colecionados pelo magistrado no volume total que
compõe os Papéis do Brasil6. Ao material de Cleto foram acrescidos, no
fundo, os de Matias José Ribeiro e Francisco Nunes da Costa, que, assim
como ele, trabalharam na Relação da Bahia. Porém, segundo Páscoa,
“Em conjunto, observámos que a maior parte dos códices havia sido
escrita ou compilada por Marcelino Pereira Cleto. Este homem, bacha-
rel em Letras, fez um percurso que o levou, no final do século XVIII, a
desempenhar diversos cargos em Santos, Rio de Janeiro, Minas Gerais
e Bahia. Em cada um destes lugares fazia pesquisas nos arquivos e
tirava apontamentos. Também escreveu dissertações sobre história e
sobre questões jurídicas e compilou cópias valiosas de trabalhos de
contemporâneos seus, como Fr. Gaspar da Madre de Deus7.”

A esse respeito, merecem destaque as Memórias relativas a São Pau-


lo, distribuídas em três códices, os de número 9 a 11, e as três dissertações
copiadas no códice 12: a Dissertação a respeito da Capitania de S. Paulo,
sua decadência e modo de restabelecer-se, já mencionada; a Dissertação
sobre o direito do conde de Vimieiro à Capitania de S. Vicente, datada de
23 de abril de 1783; e a Dissertação sobre a abertura de novos caminhos
na Capitania de S. Paulo e suas consequências no pagamento de direitos
com prejuízo para a Vila de Santos, datada de 11 de fevereiro de 1785.
Há ainda, no códice 13, a cópia de uma carta de Pereira Cleto, “desem-
6 – Marta Páscoa. Papéis do Brasil. A reconstituição de um percurso. Boletim. Lisboa:
Direção Geral de Arquivos, n. 6, julho a setembro de 2008, p. 9.
7 – Idem.

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Marco Antonio Silveira

bargador, ouvidor e corregedor do Rio de Janeiro”, datada de 2 de maio


de 1791, sobre o pagamento de soldos às tropas; e, por fim, no códice 1,
uma outra missiva, de 20 de fevereiro de 1788, referente a problemas de
jurisdição eclesiástica no Brasil.

Uma vez que parte expressiva dessa documentação é autógrafa, é


possível formular a hipótese de que os papéis do fundo depositado na Tor-
re do Tombo constituem o registro guardado pelo próprio doutor Marceli-
no. Seria pertinente, nesse caso, dar crédito à sugestão indicada por Marta
Páscoa, para quem os fólios gerados por Matias José Ribeiro, Francisco
Nunes da Costa e Marcelino Pereira Cleto foram levados, por algum co-
lega desembargador, ao Porto, onde caíram nas mãos do doutor Antônio
Pereira de Almeida Silva e Siqueira, lente da Universidade de Coimbra,
que neles realizou diversas anotações. Uma outra observação relativa ao
conjunto documental dos Papéis do Brasil implica a cronologia de seus
escritos, a maioria dedicada à história e à situação político-econômica da
Capitania de São Paulo. Tendo assumido o posto de juiz de fora de Santos
em 1779, o grosso da produção de Cleto deu-se entre este ano e o de 1989,
quando, já como ouvidor do Rio de Janeiro, retirou-se para as Minas em
decorrência dos trabalhos demandados pela apuração da Inconfidência.

Juiz de fora em Santos


Marcelino Pereira Cleto, filho legítimo de Silvério Pereira e de dona
Francisca Joaquina do Nascimento e Vasconcelos, nasceu no lugar da
Barreiria, freguesia de Santa Catarina da Serra, termo da Cidade de Lei-
ria, em torno de 1745. Em 1778, quando de sua primeira nomeação para
os lugares de letras, morava na Corte, na Rua Direita do Arco da Graça,
e tinha, de acordo com as testemunhas de seu processo de habilitação na
Ordem de Cristo, de 30 a 35 anos8. Os vizinhos que, em Lisboa, juraram
sobre as partes pessoais, o exercício e a reputação do habilitando atestam
algo de seu universo relacional na ocasião. Entre os seis depoentes, três
eram clérigos professos na Ordem de Cristo: o frei João Evaristo da Silva,

8 – Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Habilitações da Ordem de Cristo.


Marcelino Pereira Cleto. M – Maço 76, nº 3. Junho de 1778.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

oficial do assentamento da Real Fazenda, de 40 anos; o frei José Antônio


de Alvarenga Barros Freire, opositor aos lugares de letras, de 41 anos; e o
frei José da Silva Ribeiro, escrivão da Correição do Cível da Cidade, de
50 anos. Além deles, também depuseram Manuel Martins Seixas, oficial
da Chancelaria da Sereníssima Casa de Bragança, de 30 anos; Francisco
José de Carvalho, escrivão da Correição do Cível da Cidade, de 31 anos; e
Manuel Marques Ribeiro de Sousa, bacharel pela Universidade de Coim-
bra e opositor aos lugares de letras, de 50 anos – única testemunha que
afirmou conhecê-lo desde Leiria. O cavaleiro comissário responsável pela
inquirição, frei Caetano Escarlate, em seu relatório, ratificou o dito das
testemunhas, deixando a sensação de que Marcelino Pereira Cleto aguar-
dara durante anos a nomeação em Lisboa, sem dedicar-se regularmente a
outras atividades:
“Os seus princípios foram os estudos, seguindo os quais e formando-
se pela Universidade de Coimbra, presentemente está despachado
para juiz de fora da Vila de Santos, e por estar a partir logo que tiver
navio9.”

A família do doutor Marcelino, ao que tudo indica, compunha-se de


uma espécie de nobreza de freguesia ou termo, sem grande projeção. Pais
e avós haviam nascido no prórpio termo de Leiria, a avó materna sendo
natural da cidade. Segundo o secretário da Santa Casa da Misericórdia de
Leiria, esta última “era nobre por si e seus antepassados, e sempre se tra-
tou como pessoa nobre”. O avô materno, na qualidade de capitão, como
narrou um lavrador de 90 anos, “era nobre e como tal se tratou sempre à
lei da nobreza”. A avó paterna, segundo a informação de um velho traba-
lhador do lugar onde nascera, “era pessoa que vivia recolhida com criadas
e criados que cuidavam das suas fazendas, de que se governava”. O avô
paterno, por sua vez, de acordo com um fazendeiro, “era familiar do nú-
mero do Santo Ofício e vivia de suas fazendas, as quais cultivava com os
seus criados”. Os genitores de Pereira Cleto seguiram o mesmo caminho,
tornando-se proprietários de terras. Como contou um trabalhador de 77
anos, “sempre se trataram com criados e tendo bestas na estrebaria, e

9 – Idem.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011 119


Marco Antonio Silveira

eram as pessoas principais desta freguesia”; o pai ocupava o posto de


alferes de Ordenança10. Durante os anos de sua formação no lugar da Bar-
reiria, o jovem Marcelino teria se ocupado apenas com estudos.

Tendo crescido no termo de Leiria, estudado em Coimbra e, por fim,


se instalado em Lisboa, no Arco da Graça, sempre almejando ingressar
no serviço régio, Pereira Cleto alcançou o intento através de uma consulta
efetuada em 14 de janeiro de 1778. Nela, concorreu com dois bacharéis de
sua geração, apesar de um pouco mais novos. Indicado em primeiro lugar,
embora, assim como os colegas, houvesse apenas lido bem na Mesa do
Desembargo do Paço, obteve a nomeação11. Marcelino realizara sua lei-
tura em 1765, com algo em torno de 20 anos. Chama a atenção que tenha
sido nomeado para um lugar de primeira instância apenas treze anos após
a leitura de bacharel, e justamente em janeiro de 1778, fase marcada pela
chamada Viradeira. O período de espera, relativamente dilatado para os
padrões da época, e o ano da nomeação sugerem a hipótese de que Pereira
Cleto, não gozando da simpatia do regime pombalino, teve de esperar sua
queda para iniciar a carreira. Destaque-se ainda que suas origens, embo-
ra implicassem riqueza e reconhecimento social, não pareciam ir muito
além dos limites do termo de Leiria, ancorando-se com certa modéstia,
como se viu acima, nos títulos de familiar do Santo Ofício, capitão e al-
feres de Ordenança, ostentados, respectivamente, pelo avô paterno, pelo
materno e pelo pai do magistrado. Nesse sentido, a inserção no serviço ré-
gio e a habilitação na Ordem de Cristo devem ter representado importante
conquista ascensional para a família de Silvério Pereira e dona Francisca
Joaquina do Nascimento e Vasconcelos.

De fato, foi a nomeação do doutor Marcelino que lhe garantiu o há-


bito de Cristo, e não o contrário. A obtenção de tal honraria por parte dos
magistrados tinha, pelo menos, dois sentidos: por um lado, representava
uma recompensa aos que se dispunham a exercer postos no Ultramar; por
outro, concedia certa força simbólica a ministros que, sendo muito jovens

10 – Idem.
11 – ANTT. Desembargo do Paço. Consultas sobre propostas de nomeações para lugares
de justiça. Maço 1913.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

e oriundos de famílias lusas interioranas e de nobreza ambígua, teriam de


enfrentar, nas colônias, autoridades truculentas e potentados arrogantes.
Seguindo a trilha de muitas outras nomeações do mesmo gênero, Cleto
foi indicado juiz de fora de Santos “para servir o tempo de três anos e o
mais que decorrer”. Preparou-se, então, para viajar ao Brasil, requerendo
e alcançando um conjunto de benefícios. No dia 16 de fevereiro, obteve
a mercê de ocupar o posto de provedor dos defuntos e ausentes, capelas
e resíduos da mesma localidade, com o ordenado respectivo. Através de
provisão régia de 2 de abril de 1778, a rainha confirmou sua indicação,
feita pelo contratador, para ser juiz conservador do contrato do sal na
Vila de Santos, recebendo o mesmo salário de seus antecessores. Em 21
de maio, nova provisão lhe concedeu 200 mil-réis de ajuda de custo para
organizar sua viagem e instalação. Em 3 de julho, para “ir servir mais
condecorado”, “cuja graça se praticava com os ministros que iam servir
no Ultramar”, obteve o hábito da Ordem de Cristo e 12 mil-réis de tença,
acrescidas de mais 8 mil. Quando já exercia as funções de juiz de fora, em
27 de agosto de 1779, por meio de consulta ao Conselho Ultramarino, foi
nomeado ainda juiz da Alfândega da Praça de Santos12.

É interessante constatar a exiguidade de documentos relativos a Mar-


celino Pereira Cleto entre os avulsos do Conselho Ultramarino. Se, para o
tempo em que serviu no Rio de Janeiro, se encontram algumas consultas
ou informações, os dados sobre seu exercício no posto de juiz de fora
são nulos. Esse fato surpreende ainda mais não só por Cleto ter estado
à frente da Câmara Municipal de Santos durante quase dez anos, entre
1779 e 1787, mas também pela existência de documentos concernentes a
seu antecessor e seu sucessor. Tal aspecto não inviabiliza, evidentemen-
te, uma investigação verticalizada de sua atuação no litoral paulista, mas
a torna dependente dos arquivos regionais. Seja como for, descontadas
possíveis perdas documentais, essa ausência poderia significar tanto um
certo descaso do doutor Marcelino com os assuntos sob sua alçada, quan-
to uma aversão a contendas jurisdicionais. Essa última sugestão é ratifica-

12 – ANTT. Registro Geral de Mercês de D. Maria I. Livro 2, folhas 248 e 248v. Chance-
laria de D. Maria I. Livro 11, folha 208; livro 83, folha 366; livro 80, folha 52v.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011 121


Marco Antonio Silveira

da pelo próprio magistrado, que, em representação de 1789 ao Conselho


Ultramarino, já servindo no Rio de Janeiro, afirmaria ter obedecido a um
determinado acórdão da Relação, mesmo dele discordando, “para evitar
questões de jurisdição que sempre abominou”13. A primeira hipótese, por
sua vez, parece desmentir-se em função do próprio conjunto de papéis au-
tógrafos que, percorrendo esta ou aquela via, foram ter na Torre do Tom-
bo. Além disso, uma significativa ordem de Sua Majestade, patrocinada
pelo secretário de Estado Martinho de Melo e Castro, talvez explique o
desaparecimento dos documentos atinentes ao período em que o doutor
Marcelino serviu em Santos. Em 23 de maio de 1791, o conselheiro João
Batista Vaz Pereira dirigiu-se ao secretário nesses termos:
“Ilmo e Exmo Sr.
Em execução do real aviso de SMaj de 23 do corrente mês de maio,
remeto a VEx todos os papéis que existem na Secretaria deste Conse-
lho, dirigidos ao mesmo Conselho, pelo ouvidor da Comarca do Rio
de Janeiro Marcelino Pereira Cleto; e outrossim todas as patentes que
igualmente existem no sobredito Conselho para as suas confirmações
[...]14.”

Desse modo, é plausível aventar que a documentação gerada por Pe-


reira Cleto, sendo do interesse das autoridades da administração central, e
em particular de Martinho de Melo e Castro, acabou sendo extraviada dos
arquivos do Conselho Ultramarino. As dissertações escritas pelo doutor
Marcelino e mencionadas acima não compreendem um tipo de registro
desprezado pelos conselheiros – antes, pelo contrário. O juiz de fora de
Santos, durante o exercício de seu posto, trabalhou com afinco na recupe-
13 – Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) – Rio de Janeiro (RJ). Caixa 149, documentos
74 e 75. 22 de junho de 1791. “Consulta do Conselho Ultramarino à rainha [D. Maria I],
sobre o requerimento do ouvidor da Comarca do Rio de Janeiro, Marcelino Pereira Cleto,
solicitando provisão que declare que aos ouvidores da comarca toca a jurisdição de deli-
berarem como ação nova dentro das cinco léguas a que foram restritos pela carta régia de
10 de Dezembro de 1701”. Como dito acima, a petição de Cleto é de 1789.
14 – AHU – RJ. Caixa 149, documentos 45 e 54. 26 de maio de 1791. “Ofício do conse-
lheiro do Conselho Ultramarino, João Batista Vaz Pereira, ao [secretário de estado da Ma-
rinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, enviando os papéis dirigidos ao Conselho
Ultramarino pelo ouvidor [do Crime] da [comarca] do Rio de Janeiro, Marcelino Pereira
Cleto; e relações das patentes dos postos criados pelo [vice-rei do Estado do Brasil, conde
Resende, D. José Luís de Castro]; e uma patente da capitania do Pará”.

122 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011


Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

ração de dados sobre a Capitania de São Paulo, suas dissertações e textos


congêneres podendo ter sido enviados ao Conselho como parte previsível
de sua atuação. Nesse sentido, nos Papéis do Brasil, são hoje encontradas
coleções, memórias e escritos de Pereira Cleto, alguns dos quais certa-
mente fundamentaram, por consulta ou por cópia, o material remetido a
Lisboa, inclusive para o secretário de Estado.

Se Marcelino Pereira Cleto era ou não criatura de Martinho de Melo


e Castro, a verdade é que sua carreira esteve intimamente ligada à ativida-
de letrada, cujos resultados circularam na Corte. Esse aspecto ajuda a ex-
plicar por que o magistrado permaneceu tantos anos à frente do lugar de
juiz de fora de Santos, bem como sua ascensão como ministro. O contexto
que o doutor Marcelino encontrou na Capitania de São Paulo era bastan-
te particular. Tendo atuado sob o governo dos capitães-generais Martim
Lopes Lobo de Saldanha (1775-1782) e Francisco da Cunha e Meneses
(1782-1786) – segundo e terceiro governadores após o período em que
a Capitania ficara subalterna ao Rio de Janeiro (1748-1765) –, Pereira
Cleto teve de lidar com duas questões espinhosas: a forte militarização de
São Paulo, decorrente do conflito com os espanhóis, tanto na Colônia de
Sacramento quanto na fronteira ocidental, e as consequências do declínio
da mineração em Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais. Os anos em que
Cleto esteve à frente da Câmara de Santos compuseram o interregno en-
tre a pujança mineratória e a forte expansão agrícola da década de 1790,
beneficiada pela alta do açúcar no mercado internacional15. Uma certa
tomada de posição favorável a Lobo de Saldanha na Dissertação – que,
de resto, revela-se crítica a respeito do governo anterior do Morgado de
Mateus (1765-1775) –, coaduna-se com a certidão que aquele lhe emitiu
já em 1780:
“Atesto e faço certo que o bacharel Marcelino Pereira Cleto Cortes da
Silva e Vasconcelos, juiz de fora da Vila de Santos, desde o dia em que
tomou posse do referido emprego, tem servido com satisfação minha
e de todo aquele povo, sendo notória a sua inteligência e atividade e
zelo do real serviço, e, além disto, consta-me de ciência certa que ser-
15 – Sobre a evolução da Capitania de São Paulo, cf. Maria Beatriz Nizza da Silva (org.).
História de São Paulo colonial. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

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Marco Antonio Silveira

ve com muito desinteresse, não recebendo das partes donativo algum,


circunstâncias por que o considero merecedor da real atenção de Sua
Mejestade, o que, se necessário é, o juro pelo hábito de Cristo que
professo. São Paulo, 30 de fevereiro de 1780.16”

Da mesma forma, o doutor Marcelino retribuiu a gentileza do gover-


nador através de atestação passada pela Câmara Municipal de Santos, em
13 de julho de 178217.

Nativismo18
Se Cleto percebeu logo a necessidade de se formular um novo mo-
delo de desenvolvimento para a capitania vicentina, ancorado na redu-
ção dos gastos militares – aparentemente menos vitais após a assinatura
do Tratado de Santo Ildefonso, em 1777 – e no incentivo à agricultura,
também não lhe escapou a cristalização de um discurso nativista, expres-
so, por exemplo, na lembrança da Guerra dos Emboabas e nos trabalhos
16 – ANTT. Fundo Conde das Galveas / Condes de Povolide. Arquivo da Casa dos Condes
das Galveias. Maço 12 (pare 1 e 2). Atestações passadas pelo capitão-general. Minutas.
Uma vez que o fundo de onde foi extraída a certidão consiste de documentação privada de
Martim Lopes Lobo de Saldanha, ela se apresenta sob a forma de rascunho.
17 – ANTT. Fundo Conde das Galveas / Condes de Povolide. Arquivo da Casa dos Con-
des das Galveias. Maço 12 (pare 1 e 2). Correspondência das Câmaras dos Municípios.
Atestações passadas a favor de Martim Lopes Lobo de Saldanha.
18 – Infelizmente, não é possível, apesar de sua importância para os argumentos deste
artigo, desenvolver aqui uma discussão sobre o conceito de nativismo. Registre-se, con-
tudo, que ele não é concebido como forma pré-nacionalista, nem reduzido à expressão de
sentimentos, por parte dos colonos, contrários ao colonizador e em defesa de interesses e
costumes locais ameaçados. Este último sentido existiu durante a colonização da América
portuguesa, mas não esgota a discussão. É preciso, na verdade, pensar em nativismos,
cujos significados variam no tempo e no espaço. Sendo assim, o termo nativismo é en-
tendido neste artigo como sinônimo de valorização e reconhecimento da pequena pátria.
Na segunda metade do século XVIII, especialmente após as reformas pombalinas, era
possível pensar as relações entre os interesses de colonizadores e colonizados tanto em
termos de contradição como em termos de articulação. A apropriação nativista de Marce-
lino Pereira Cleto, nesse contexto, compõe os esforços de uma gama de magistrados lusos
no sentido de reconhecer e valorizar algumas dessas pátrias coloniais com o intuito de
inseri-las num modelo mais amplo de império. Nesse sentido, tais esforços fizeram parte
da tentativa de se elaborar um projeto de império luso-brasileiro, já gestado no pombalis-
mo e depois sistematizado com d. Rodrigo de Sousa Coutinho. Esse projeto, no entanto,
tem de ser compreendido pelo que foi: uma proposta política que, por fim, acabou arras-
tada pelas contradições do tempo.

124 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011


Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

historiográficos de Pedro Taques de Almeida Pais Leme e frei Gaspar da


Madre de Deus. Como assinalou Laura de Mello e Souza, ambos procura-
ram responder à altura o que consideravam detrações variadas à imagem
dos paulistas, elaboradas em parte por autores como André João Antonil
e Sebastião da Rocha Pitta19. Enquanto Pedro Taques dedicou-se exaus-
tivamente à preparação de sua Nobiliarquia e da Informação sobre as
minas de S. Paulo, com o intuito de defender a tese da origem nobre dos
colonizadores de São Vicente e dos prêmios que seus descendentes mere-
ceriam, frei Gaspar rechaçou com veemência os textos estrangeiros que
descreviam o surgimento de São Paulo como resultado da criação de uma
república desregrada no Planalto20. Não se sabe se o doutor Marcelino
teve a oportunidade de conhecer Pedro Taques, embora isso fosse, a prin-
cípio, possível. Afinal, nos anos de 1775 e 1776, pouco antes de falecer,
o linhagista estivera outra vez em Lisboa à procura de fontes e prêmios.
Ademais, o objetivo de sua História da Capitania de São Vicente, o de
declarar o direito do conde de Vimieiro à donataria, constituiu, como vis-
to acima, objeto de uma das dissertações de Pereira Cleto21.

Muito mais provável foi o contato com frei Gaspar, seja porque o
beneditino viveu na Vila de Santos boa parte dos dez anos em que o dou-
tor Marcelino nela serviu, seja por ter este compilado, conforme se disse
acima, trabalhos daquele. A esse respeito, não parece excessivo apontar a
19 – Laura de Mello e Souza. “São Paulo dos vícios e das virtudes”. In: O sol e a sombra.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 109-47.
20 – Cf. Pedro Taques de Almeida Pais Leme. Informação sobre as minas de S. Paulo. A
expulsão dos jesuítas do Colégio de S. Paulo. São Paulo: Cia. Melhoramentos de S. Paulo,
s.d.; História da Capitania de São Vicente. Brasília: Senado Federal, 2004. Frei Gaspar da
Madre de Deus. Memórias para a história da Capitania de S. Vicente, hoje chamada de
S. Paulo. São Paulo: Martins Fontes, s.d.
21 – Mencione-se que o subtítulo da História da Capitania de São Vicente era precisa-
mente o seguinte: “Demonstração verídica e cronológica dos donatários da Capitania de
S. Vicente, concedida a Martim Afonso de Sousa, primeiro donatário dela, desde o ano de
1581 até o de 1624, em que sua neta, a exma condessa de Vimieiro d. Mariana de Sousa da
Guerra, foi repelida da Vila de S. Vicente, capital da dita Capitania, e das Vilas de Santos e
S. Paulo, pelo exmo conde de Monsanto d. Álvaro Pires de Castro”. Sobre a vida e a obra
de Pedro Taques, cf. Afonso de E. Taunay. “Pedro Taques e a sua obra”. In: Pedro Taques
de Almeida Pais Leme. Informação sobre as minas. Op. cit., pp. 5-64; e “Pedro Taques de
Almeida Pais Leme (1714-1777). Escorço biográfico”. In: Pedro Taques de Almeida Pais
Leme. História da Capitania de São Vicente. Op. cit., pp. 15-61.

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Marco Antonio Silveira

semelhança do recurso retórico utilizado por ambos nos primeiros pará-


grafos de seus escritos. Gaspar da Madre de Deus iniciou suas Memórias
para a história da Capitania de S. Vicente com o seguinte contraponto:

“A Capitania de S. Vicente, muito famigerada noutro tempo e agora


tão desconhecida que nem o nome primitivo conserva para memória
de sua antiga existência, foi a maior entre as dez grandes Províncias
em que El-Rei D. João III dividiu a Nova Lusitânia e também a pri-
meira que se povoou, não obstante se satisfazerem alguns historiado-
res com a porem na classe das três mais antigas22.”

Pereira Cleto, por sua vez, iniciou a Dissertação a respeito da Capi-


tania de São Paulo com estratégia semelhante:

“Sendo a Capitania de S. Paulo, denominada antes de S. Vicente, a


mais antiga da América, e o povo dela, o que melhor tem servido a
SMaj, porque, à custa da própria fazenda, descobriu, em grande utili-
dade da Coroa, as minas do Cuiabá, Mato Grosso, Vila Rica, Sabará e
Goiases - quando, tendo-se intentado diversos descobrimentos à custa
da Real Fazenda, em que esta, em diferentes tempos, fez grandes des-
pesas, nunca se concluíram -, é hoje a mais decadente da América23.”

O que ressalta da comparação dos dois parágrafos é o uso da histó-


ria como instrumento político. No último quartel do século XVIII, era
possível apropriar-se da narrativa historiográfica de diversas maneiras,
haja vista a trajetória da Academia Real da História Portuguesa (1721) e
da Academia Real de Ciências de Lisboa (1779), à qual, aliás, frei Gas-
par filiou-se. Para além da antiga concepção calcada na historia magis-
tra vitae, a historiografia, mantendo ou não o ensejo de descrever ações
a serem seguidas e emuladas, achava-se associada ora ao problema da
justificação, ora ao utilitarismo. No primeiro caso, aproximava-se do dis-
curso peticionário, que, listando feitos e realizações em prol do servi-

22 – Frei Gaspar da Madre de Deus. Memórias para a história da Capitania de S. Vicente,


hoje chamada de S. Paulo. Op. cit, p. 29.
23 – Marcelino Pereira Cleto. Dissertação a respeito da Capitania de São Paulo, sua de-
cadência e modo de restabelecê-la. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, n. 21,
1899, p. 195. Como dito acima, a atualização da grafia e da pontuação é de responsabili-
dade do autor deste artigo.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

ço régio, demandava o exercício da justiça por meio da premiação e do


reconhecimento. No segundo caso, a historiografia se valia do passado
com o intuito de explicar e legitimar propostas reformistas no presente.
Esses três eixos constituintes da narrativa histórica do período, cada vez
mais amparados nas técnicas da erudição, desdobravam-se em resultados
variados, devendo-se salientar, nesse aspecto, as diferenças entre Pedro
Taques, Madre de Deus e Pereira Cleto. O linhagista, por exemplo, utili-
zou um conjunto de recursos estilísticos capazes de articular a narrativa
de ações gloriosas passíveis de emulação à necessidade de justificar a
premiação régia e o reconhecimento de seus antepassados.

O que, no entanto, aproximava os historiadores paulistas do dou-


tor Marcelino era, ademais do tributo pago à erudição, o reconhecimento
de um passado promissor, cujo declínio ou esquecimento careciam de
reparo. Esse ponto é fundamental porque, não obstante Cleto, diferente-
mente de Taques e frei Gaspar, tenha escrito um texto mais propriamente
administrativo que histórico, não deixou de nele incorporar amplamente
a perspectiva nativista e os interesses de proprietários paulistas, especial-
mente os da marinha. É curioso observar como o futuro escrivão de uma
das devassas sobre a Inconfidência de Minas Gerais mostrou-se bastante
simpático aos interesses e concepções identitárias da capitania vizinha. A
mágoa de Pedro Taques com a decadência de São Paulo e de seus descen-
dentes – expressa, para ele, na repugnante presença de homens de sangue
impuro na governança local – é mencionada por Pereira Cleto em sua
Dissertação:

“A Capitania de S. Paulo foi das primeiras que se descobriu e princi-


piou a povoar-se na América; dela se fizeram, como já se disse, todos
os descobrimentos que hoje formam diferentes capitanias, e por ela
se fazia o negócio para todas as Minas; foi este tempo de abundância
para a Capitania; porém, daqui lhe nasceu toda a decadência em que
se acha, porque os descobrimentos lhe levaram os povoadores; o ouro
das minas e o negócio, objetos interinamente mais lucrosos, os fez
[sic] esquecer da agricultura. Sirva-me de exemplo a Vila de Santos
e seu termo, em que havia mais de quatrocentos homens lavradores
hábeis para servirem na Câmara, e desta qualidade não há hoje meia

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Marco Antonio Silveira

dúzia; ainda presentemente se conhece que todo o termo era povoado


e cultivado, [e] agora quase tudo são nele ruínas e deserção; o ouro das
minas veio a diminuir, o negócio também diminuiu, porque para todas
elas se descobriram diferentes caminhos; pelo que, ao mesmo tempo,
ficaram sem minas, sem negócio e sem agricultura24.”

Assim, se o papel desempenhado pelos juízes de fora é definido pela


tarefa de ampliar o controle régio sobre as localidades, a postura de Cleto
parece, no mínimo, ambígua. A nota que acrescentou à frase terminada
com a expressão “meia dúzia” atesta sua cooptação pelo ponto de vista
das elites letradas e políticas locais:
“No livro 1º do Registro da Câmara da Vila de Santos, à f. 101v, se
acha uma carta de diligência passada em nome do sr. rei d. Pedro, na
qual, deferindo-se à representação que fez o povo da Vila de Santos
no ano de 1693, se manda que só dos homens lavradores possam ser
eleitos os oficiais da Câmara, por haver na dita vila e seu termo mais
de quatrocentos homens desta qualidade25.”

A Dissertação a respeito da Capitania de S. Paulo é, antes de tudo,


o que seu nome indica: uma disputa. Fernando Nicolazzi, analisando al-
guns escritos gerados no seio da Academia Brasílica dos Esquecidos –
fundada na Bahia em 1724 e composta pelo autor da História da América
portuguesa, tão rechaçado por Taques e Madre de Deus –, explica que a
dissertação histórica consistia numa espécie de meio do caminho entre a
organização de dados e a história propriamente dita. Era através dela que
se devia disputar de maneira erudita contra versões de outros autores,
tidas por infundadas. Dessa maneira, a dissertação, excluindo inverda-
des, implicava um passo decisivo para a escrita da história, entendida

24 – Marcelino Pereira Cleto. Dissertação. Op. cit., pp. 211-2. Como lembra Afonso de
Taunay, em “Pedro Taques e sua obra”, op. cit., p. 45, para o linhagista “viviam os seus
contemporâneos ‘amortecidos na ignorância de seus nobres progenitores e das suas hon-
rosas virtudes e ações’, muitos dos quais ‘já degenerados do mesmo esplendor dos seus
antigos ascendentes’”. Como consequência disso, “notava-se ‘nas assembléias de todas
as vilas e cidade capital de S. Paulo’ não mais se elegerem, como outrora, para oficiais
das câmaras ‘homens de maior honra, zelo e desinteresse, lamentando-se esta infeliz de-
cadência em todo o Estado do Brasil, onde já não se escolhiam os sujeitos da primeira
graduação para ornarem os corpos dos senados, à imitação dos séculos de 1500 a 1700”.
25 – Marcelino Pereira Cleto. Dissertação. Op. cit., pp. 211-2.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

como exposição cronológica de fatos verdadeiros26. Visto que coleções


e memórias significavam, como apontou Iris Kantor27, instrumentos de
pesquisa, dissertar envolvia já reflexão e cotejamento criterioso de fontes
e versões. Podiam, no entanto, essas três diferentes operações – memória,
dissertação e história – confundir-se, como demonstra o próprio título do
referido trabalho de frei Gaspar, que, sendo denominado “memórias para
a história”, compõe-se amplamente de reflexão dissertativa. O trabalho
do doutor Marcelino, embora não seja historiográfico, vale-se de memó-
ria e história com o intento de, em tom de disputa, defender um certo
modelo de reforma. Vê-se, pelos trechos citados acima, que um de seus
eixos cruciais estava na defesa da agricultura como cerne da retomada
do desenvolvimento na Capitania de São Paulo. Em que pese a possível
presença de doutrinas fisiocratas nessa argumentação, a perspectiva do
juiz de fora de Santos mais parece advir do queixume local. Que a tra-
dição oral marcou sua análise atestam as passageiras referências que faz
a informantes, como quando comenta sobre a antiga fábrica de ferro de
Afonso Sardinha, localizada nas cercanias de Sorocaba e Itu. Sobre isso,
diz o doutor Marcelino que seu dono “passou à Coroa este engenho, ou
pelo ceder nela o dito Afonso Sardinha, como dizem, ou por outro qual-
quer título”28.

O autor da Dissertação, recorrendo a informações arquivísticas, a


notas de coetâneos, à tradição oral e, especialmente, às planilhas da Al-
fândega de Santos – onde, conforme apontado acima, serviu como juiz
desde 1779 –, formulou uma tese bastante congruente com a situação
experimentada em São Paulo no início da década de 1780. Sua análise
se nutre, em boa medida, do que Fernando Novais classificou como um
mercantilismo eclético e heterodoxo29. Em linhas gerais, Pereira Cleto
26 – Fernando Nicolazzi. Entre “letras & armas”, a história como disputa. Considerações
sobre a historiografia luso brasileira no século XVIII. Almanack Braziliense. São Paulo,
n. 11, maio de 2010, pp. 40-51.
27 – Iris Kantor. Esquecidos e Renascidos. São Paulo: Hucitec, Salvador: Centro de Estu-
dos Baianos, Ufba, 2004, p. 193.
28 – Marcelino Pereira Cleto. Dissertação a respeito da Capitania de S. Paulo. Op. cit, p.
207. Grifo meu.
29 – Fernando A. Novais. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-
1808). 4ª ed., São Paulo: Hucitec, 1986, em especial o capítulo “Política colonial”. Na

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Marco Antonio Silveira

defende que a solução para a decadência paulistana achava-se no deslo-


camento do principal eixo da Capitania do “Sertão” para a “Marinha”,
devendo Santos retomar seu protagonismo, como ocorrera outrora, antes
que a mineração alterasse o rumo natural das coisas. Partindo da consta-
tação de que os dízimos pagos na costa estendida da Vila de Ubatuba à de
São Francisco do Sul superavam em muito, proporcionalmente, os arre-
cadados nas vastíssimas terras do Sertão, Cleto argumentou que o desen-
volvimento da Capitania dependia historicamente da inserção do porto
santista no mercado transatlântico. Nesse sentido, seguiu didaticamente o
receituário mercantilista, esboçando de modo analítico questões atinentes
à povoação, à agricultura, à mineração do aço e do ferro, ao comércio e
às condições dos caminhos. Considerou, acima de tudo, um equívoco de
perniciosas consequências a instalação da sede da recém-criada Capita-
nia de São Paulo no planalto, resultado das necessidades administrativas
e políticas criadas pela descoberta do ouro em áreas longínquas. Passa-
da a tormenta aurífera, desmembrados os seus territórios de São Paulo,
estabelecidas rotas diretas entre eles e o Rio de Janeiro, restara à antiga
capitania vicentina o despovoamento e a ruína dos negócios:

“Deste atual sistema tem-se seguido diminuição de agricultura na


Marinha, parte em que é mais útil, e aumento de muitas e grandes
despesas à Fazenda Real, como logo mostrarei; e tem-se animado a
povoação da Capitania por modo diametralmente oposto àquele por
que algum dia se regulava; logo no ano de 1535, em que SMaj fez
mercê a Martim Afonso de Sousa de cem léguas de costa na América,
nas quais entra a maior parte da Capitania, lhe permitiu que pudesse
fazer vilas todas as povoações que se fizessem na dita Capitania, com
declaração, porém, que esta liberdade se entenderia pelo que respei-
tava às povoações que estivessem ao longo da costa e dos rios que se
navegassem; porque, dentro da terra firme e Sertão, se não poderiam
fazer vilas sem que de uma a outra houvesse a distância de seis léguas;
nesta restrição que o sr. d. João 3º fez a respeito de criação de vilas no
Sertão, e ampla liberdade de se erigirem na Marinha, parece se deduz
bem que ele conheceu já a utilidade incomparavelmente maior de se
povoar antes a Marinha que o Sertão30.”
expressão do autor, tratava-se de um “abandono da ortodoxia mercantilista” (p. 228).
30 – Marcelino Pereira Cleto. Op. cit., pp. 201-2.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

O uso de informações históricas visando restituir o sentido mercan-


tilista dos laços entre Portugal e suas possessões na América assume, no
texto do doutor Marcelino, tons ainda mais nítidos quando propõe que os
agricultores da Marinha – e indiretamente os do Sertão – se beneficiariam
caso, em vez de carregarem sua produção em embarcações cujo destino
principal era o Rio de Janeiro, pudessem negociar com navios vindos em
direitura para Santos, somente a fim de, em seu porto, efetuar transações
comerciais. A mera condição de entreposto fluminense, sofrida pelo porto
santista, seria superada se os contratadores do estanco do sal e da pesca da
baleia, bem como os administradores da Companhia do Alto Douro, des-
pachassem diretamente para o litoral de São Paulo embarcações anuais,
que, deixando a mercadoria europeia, carregassem de volta os produtos
locais. Em outras palavras, o modelo proposto pelo doutor Marcelino ti-
nha como base conhecidas estratégias mercantilistas, tais como o aces-
so à navegação atlântica e o aproveitamento de estancos e companhias
monopolistas. Um questionamento fundamental, nesse sentido, consiste
em saber que tipo de articulação o magistrado poderia estabelecer entre,
de uma parte, sua adesão ao nativismo, por vezes ressentido, de homens
como Pedro Taques e frei Gaspar e, de outra, seu modelo de desenvolvi-
mento flagrantemente mercantilista.

Parte da resposta a essa dúvida está no fato de que, para muitos dos
homens e mulheres da época, não havia contradição entre os dois fenôme-
nos. Taques e Madre de Deus, aliás, sempre se declararam fiéis vassalos
de Sua Majestade. Ademais, a busca de inserção no mercado internacional
fora um problema crucial na história de São Paulo, dividida entre certa
autonomia e o risco da pobreza. Em poucas palavras, não era difícil para
letrados como Cleto pensarem num sistema imperial no qual as diversas
partes se articulassem e, em certa medida, se harmonizassem. Do vocabu-
lário do doutor Marcelino, como demonstra o trecho citado acima, fazia
parte o termo sistema, cujo significado implicava o conjunto de estraté-
gias políticas e econômicas voltadas ao desenvolvimento de uma região.
No caso, o sistema que privilegiou o povoamento do Sertão deveria ser
substituído pelo que privilegiava o da Marinha. Na concepção de Pereira

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011 131


Marco Antonio Silveira

Cleto, a adoção de um sistema significava tanto a conexão mercantil entre


produtores e partes do Império, quanto à inserção das instâncias políticas
locais nas estruturas mais amplas da burocracia e da economia de prêmios
e mercês típicas do Antigo Regime.

Contudo, os ressentimentos de Pedro Taques e a oscilação de mode-


los administrativos adotados em São Paulo indicam que tais sistemas, na
qualidade de pressupostos doutrinários, nem sempre funcionavam efeti-
vamente. Em vez de sistemas fechados, havia práticas recorrentes, por
vezes instáveis e cambiantes. Havia mais tentativas de estruturação do
que estruturas propriamente fixas. Daí a recorrência do tema do declínio e
de sua contraparte restauradora, cuja linguagem, herdada da Antiguidade,
era amplamente utilizada para referir a dinâmica da história e das rela-
ções de força no interior do Império. A classificação utilizada pelo doutor
Marcelino para designar o vasto território da Capitania era claramente re-
dutora, pois, a despeito da ocorrência, na Dissertação, de informes sobre
vilas e caminhos, tendia a homogeneizar realidades complexas através
das palavras Marinha e Sertão. O sistema sugerido pelo autor fundava-se
na ideia de que, incrementados a vila e o porto de Santos, os habitantes
do planalto também se beneficiariam, pois teriam motivos mais sólidos
para baixar seus produtos pelo áspero caminho da Serra do Mar. Por outro
lado, a menção à necessidade de se consertar diversas vias que ligavam
áreas sertanejas, inclusive em Minas Gerais, ao porto santista tinha como
objetivo o de nele concentrar transações comerciais na ocasião captadas
pelo Rio de Janeiro. A verdade é que o modelo mercantilista proposto
por Pereira Cleto acarretaria também perdas e desequilíbrios, cabendo
dúvidas sobre possíveis consequências relativas ao despovoamento do
interior de São Paulo e à concorrência entre interesses mercantis sediados
em Santos e no Rio de Janeiro.

A heterodoxia do sistema de Pereira Cleto aparece principalmente


na crítica às taxações excessivas e no incentivo à fabricação de ferro nas
cercanias de Sorocaba. Já ao defender a vinda de navios em direitura ao
porto de Santos, o doutor Marcelino rechaçou formas mais estritamente
monopolistas, salientando que tal comércio deveria ser feito em prol dos

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

agricultores e seus gêneros, “sem nunca lhes tirarem a liberdade de os


vender a quem bem lhes parecesse”31. No que dizia respeito ao ferro e ao
aço, embora acatasse estratégia de fomento tipicamente mercantilista, viu
como positiva a instalação de fábrica na América:

“Estas minas, visto que estes gêneros nos vêm de fora, [quando] ad-
ministrados não pela Fazenda Real, mas dadas por determinado tempo
a particular, a quem a Fazenda Real emprestasse dinheiro, e ainda
escravos dos muitos que há na Capitania, que foram dos extintos jesu-
ítas, para o estabelecimento, também por tempo certo, seriam de uma
grandíssima utilidade à Fazenda Real, e concorriam para o aumen-
to das povoações que estivessem naquela vizinhança, não só porque
o trabalho de semelhantes minas havia de trazer àquele lugar muita
gente além dos que haviam de concorrer para a compra, mas também
porque os que estão estabelecidos em agricultura haviam de ter me-
lhor saída aos seus efeitos, e, por consequência, se animariam mais a
trabalhar32.”

Frente aos excessos de impostos, criticou a nova taxação represen-


tada pelo subsídio para a reedificação de Lisboa, criado em 1759, bem
como os abusos derivados da “rigorosa passagem” colocada, em 1778, no
rio que se atravessava para ir de Santos a São Paulo, e vice-versa. Tendo
sido seu primeiro contrato arrematado em 2 mil cruzados, o segundo teve
o preço majorado, pelo mesmo período de três anos, para 12 mil, visto
que novas cláusulas trocaram o pagamento por canoa por outro baseado
no peso da carga. Diante de tais circunstâncias, Cleto asseverou que essas
novas imposições

“não parecem ser das mais legítimas, e podiam cobrar-se em toda a


Capitania para a Fazenda Real direitos que tivessem razão mais sóli-
da, que produzissem tanto ou mais como o novo imposto e passagens,
e que não oprimissem tanto o povo33.”

Talvez o esforço de Marcelino Pereira Cleto em conciliar os interes-


ses locais com o serviço de Sua Majestade, garantindo, ao mesmo tempo,
31 – Marcelino Pereira Cleto, op. cit., p. 205.
32 – Marcelino Pereira Cleto, op. cit., p. 209.
33 – Marcelino Pereira Cleto, op. cit., p. 222.

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Marco Antonio Silveira

o incremento da Fazenda Real e a eliminação de vexações geradoras de


potenciais desordens, consistisse exatamente no dever de um juiz de fora
e de outros magistrados. Porém, chama de fato a atenção o empenho des-
se ministro na recopilação exaustiva de dados que permitissem a escrita
da história de São Paulo e sua boa administração. Nesse ponto, Cleto
parece bastante próximo dos intentos do ouvidor Caetano da Costa Ma-
toso e, principalmente, do desembargador José João Teixeira Coelho. As
Memórias elaboradas por Pereira Cleto lembram repertórios congêneres
como, para citar apenas três exemplos, o Catálogo de algumas determi-
nações reais que devem saber os governadores, de Teixeira Coelho; a
Coleção sumária, obra coletiva concernente à Capitania de Minas Gerais;
e a Coleção cronológica e analítica, escrita por um futuro conhecido do
doutor Marcelino, Baltazar da Silva Lisboa34.

Os três volumes das Memórias de Cleto abarcam a apresentação de


informações e documentos variados atinentes à Capitania de São Paulo
nos séculos XVI a XVIII. Os dados encontram-se distribuídos por as-
suntos alfabeticamente dispostos, cada entrada sendo acompanhada de
referência ao arquivo consultado e por descrição sumária do conteúdo –
ainda que, em alguns casos, documentos apareçam transcritos na íntegra.
São tantos e tão diversificados os assuntos citados pelo magistrado que se
torna difícil descrevê-los em termos gerais. Mencione-se, aleatoriamente,
a entrada que diz respeito à ordem que, em 1754, mandou compilar as
decisões régias enviadas ao Ultramar:

34 – Cf. José João Teixeira Coelho. “Catálogo de algumas determinações reais que devem
saber os governadores”. In: Instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais
(1782). Op. cit., pp. 207-13. Coleção sumária e as próprias leis, cartas régias, avisos e
ordens que se acharam nos livros da Secretaria do Governo desta Capitania de Minas
Gerais, reduzidas por ordem a títulos separados. Belo Horizonte: Arquivo Público Minei-
ro, 2010. A referência ao repertório de Baltazar da Silva Lisboa, assim como à sua autoria,
encontra-se no Catálogo da Exposição de História do Brasil. Brasília: Editora Universi-
dade de Brasília, 1981, tomo I, p. 525. O título completo do trabalho é o que segue: “Co-
leção cronológica e analítica em que se compreendem recapituladas todas as providências
administrativas, políticas e econômicas que se expediram ao vice-rei e capitão-general do
Estado do Brasil por especial mandado e ordem do príncipe regente nosso senhor, desde
14 de setembro de 1796 até 20 de maio de 1800”.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

“Coleção de todas as leis, regimentos e ordens que se têm expedido


para o Ultramar: intentou fazer-se e, por esta razão, se expediu uma
ordem ao governador da Praça de Santos, Inácio Elói de Madureira,
pelo Conselho de Ultramar, aos 9 de abril de 1754, para que mandasse
ao dito Conselho o treslado autêntico de todas as ditas ordens, leis,
regimentos e alvarás, que, desde o princípio do dito Governo, se ex-
pediram para ele, tanto para a boa administração da Fazenda, como da
Justiça, ou de conservarem na Secretaria de Governo, ou no Senado
da Câmara, ou em outras quaisquer partes, cuja ordem foi aos mais
governos. Consta do livro que serviu de registro na Câmara da Vila de
Santos desde o ano de 1753 até ao de 1759, à f. 3535.”

Como se vê, o doutor Marcelino tinha plena consciência de que suas


Memórias, além de poderem contribuir para a escrita da história paulis-
ta, se inseriam num esforço mais amplo de estruturação do Estado e da
administração lusa. Nesse sentido, inúmeras entradas referentes à jurisdi-
ção de autoridades, à conquista de territórios, à caracterização dos povos
indígenas, à abertura de caminhos etc. rechearam as centenas de páginas
que escreveu.

Tamanha reunião de informes certamente corroborou a visão sistê-


mica que Pereira Cleto tinha do Império português, base do modelo apre-
sentado na Dissertação, no qual os interesses locais se viam articulados a
redes mercantis mais amplas. É o que atesta um verbete sobre Angola:

“Cavalos para o Reino de Angola: mandou SMaj que fossem obriga-


dos a conduzir de dois para cima todas as embarcações que navegas-
sem do Brasil para o Reino de Angola, preferindo-se nos despachos os
que mais conduzissem, por provisão de 6 de novembro de 1664, sus-
citando-se nela, a este respeito, o que antigamente se praticava, por ser
assim necessário para a defesa, segurança e conquista do dito Reino, e

35 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 10, p. 187v. Nos comentários introdutórios à Co-
leção sumária, Caio C. Boschi explica que a ordem de 1754, a ser remetida aos diversos
governos das conquistas, tinha como desígnio que o desembargador da Relação do Porto
Inácio Barbosa Machado elaborasse uma “coleção das leis e ordens expedidas para os do-
mínios ultramarinos”. Caio C. Boschi. “Para conservar os povos em sossego”. In: Coleção
sumária. Op. cit., p. 27.

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Marco Antonio Silveira

assim o representarem os moradores dele. Consta do dito livro [2º que


serviu de registro da Provedoria da Real Fazenda], à f. 93v36.”

Todavia, as entradas sobre fatos históricos de São Paulo, relativas,


por exemplo, à doação da donataria ou a personagens como Brás Cubas e
Martim Afonso de Sousa, são recorrentes. Constata-se mesmo uma preo-
cupação do ministro em informar com certa precisão sobre as condições
locais, conforme a menção ao vocábulo estacada:
“Estacada: é uma espécie de reparo ou fortaleza que se fez na Vila de
Santos sobre os alicerces de uma fortaleza, que se principiou na Ilha
de S. Vicente, na praia que fica fronteira à Fortaleza de Santo Amaro.
Os alicerces desta fortaleza foram feitas por planta do brigadeiro João
Macé, consta de uma provisão do Conselho de Ultramar de 30 de ou-
tubro de 1733. Na mesma provisão, se trata a Fortaleza de Bertioga
com o nome de Santo Antônio; e, igualmente, como a consignação
da Praça de Santos era só de quatro mil cruzados, que se remetiam
do Rio de Janeiro, se mandava ordem ao juiz da Alfândega da dita
cidade que remetesse mais quatro mil cruzados em cada ano para as
fortificações da dita praça, além dos quatro mil cruzados que já tinha.
Consta de um livro de provisões originais que existe na Câmara da
Vila de Santos37.”

No caso das duas últimas citações, e em muitas outras, é patente a


presença da temática da guerra e da conquista, tão importantes para os
antigos modelos historiográficos quanto para a constituição das identi-
dades regionais no interior do Império lusitano. Desse modo, Marcelino
Pereira Cleto não se limitou, seja na Dissertação, seja nas Memórias, a
recolher documentos com o objetivo de contribuir para a racionalização
burocrática e o fortalecimento da administração estatal. O juiz de fora
de Santos foi além, incorporando o nativismo paulista como elemento
legítimo e necessário no exercício da história e da política. Agindo como
uma espécie de mediador cultural, entendeu o serviço régio como meio
através do qual as várias partes do sistema poderiam integrar-se numa
narrativa única. Destoou, nesse sentido, de muitas das autoridades colo-

36 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 9, p. 20v.


37 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 11, pp. 69v-70.

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(1778-1794)

niais, cujo envolvimento em renhidas lutas faccionais só fizeram expor


aos contemporâneos as profundas contradições em jogo. Pode-se mesmo
dizer que o percurso que seguiu mostrou ao doutor Marcelino o real peso
da violência resultante do choque de interesses na América do último
quartel do Setecentos.

Ouvidor do Rio de Janeiro


Em despacho de 1º de setembro de 1786, d. Maria I nomeou, de
uma só vez, um sem-número de magistrados para ocupar, na América, os
lugares de juiz de fora, ouvidor e desembargador. Nessa leva, na qual o
baiano Baltazar da Silva Lisboa foi indicado para presidir a Câmara da
Cidade do Rio de Janeiro, Marcelino Pereira Cleto recebeu a incumbên-
cia de assumir a Ouvidoria de Porto Seguro. Contudo, por razões que não
estão claras, menos de um ano depois, uma série de mudanças o conduziu
à Ouvidoria do Rio de Janeiro. A alteração, ao que parece, teve a ver com
a necessidade de transferir o doutor Francisco Luís Álvares da Rocha,
que, embora estivesse atuando como ouvidor na capital fluminense havia
quatro anos, não fora contemplado no despacho de 1786. Em 12 de julho
do ano seguinte, um decreto de d. Maria o nomeou para o Rio das Mortes,
deslocando, então, o doutor Marcelino para o Rio. Sabe-se, porém, que
Álvares da Rocha também não foi ocupar o posto em Minas Gerais, que
acabou nas mãos de Luís Antônio Branco Bernardes38. De uma forma ou
de outra, Cleto, após um longo período de aproximadamente dois triênios,
foi, em julho de 1787, nomeado para o Rio, devendo sua residência ser
julgada na Relação e seu juramento feito perante o chanceler. Na capital
do Brasil, exerceria não apenas o posto de ouvidor, mas também, como
ocorrera em Santos, o de provedor dos defuntos e ausentes, capelas e resí-

38 – Cf. Manuel Lopes de Almeida. Notícias históricas de Portugal e Brasil (1751-1800).


Coimbra: Coimbra Editora, 1964, pp. 166-8. “Decreto alterando a nomeação dos ouvido-
res Francisco Luíz Álvares da Rocha, Marcelino Pereira Cleto e Joaquim Antônio Gon-
zaga”. In: Autos de devassa da Inconfidência Mineira. Brasília: Câmara dos Deputados,
v. 8, 1977, pp. 36-7. AHU – RJ. Caixa 140, documento 17: Decreto da rainha d. Maria I
em que ordena que a residência que se há de tirar ao bacharel Marcelino Pereira Cleto do
tempo que serviu como juiz de fora de Santos seja remetida à Relação do Rio de Janeiro,
onde servirá como ouvidor. 12 de julho de 1787.

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duos39. A alteração promovida entre 1786 e 1787 retirou Pereira Cleto de


um circuito relativamente secundário da administração colonial, expresso
pelos lugares em Santos e Porto Seguro, para fincá-lo na cidade mais
importante da América, onde, não bastassem os intrincados interesses en-
volvendo proprietários, negociantes e contratadores, os embates políticos
se complexificavam devido à presença concorrente de juiz de fora, ouvi-
dor, desembargadores da Relação, oficiais da Alfândega, funcionários da
Real Fazenda, agentes do Bispado e o próprio vice-rei do Estado. Nessas
condições, os conflitos jurisdicionais, de maneira muito especial, não sig-
nificavam tão somente a afirmação da honra ou a defesa de salários, mas
ainda a oportunidade de decidir sobre negócios os mais vantajosos.

Em 1º de abril, Pereira Cleto já desempenhava suas funções na Ou-


vidoria do Rio de Janeiro, porquanto, nesse dia, ordenou ao Senado da
Câmara a convocação de nobreza e povo para tratar de certo requerimen-
to apresentado pelo alferes Joaquim José da Silva Xavier40. O requerente
havia escrito a Sua Majestade sobre a intenção de construir moinhos que
aproveitassem as águas de vários rios da cidade e do recôncavo, espe-
cialmente os do Catete e Maracanã. Recebendo provisão do Conselho
Ultramarino, na qual se demandava ao ouvidor informar sobre o intento
escutando os camaristas, Cleto assim despachou41. Diante da reação nega-
tiva do povo, que “tumultuosamente” vinha dizendo ser a proposta “pre-
judicial ao público e ao particular”, Silva Xavier apresentou nova petição,
mais uma vez encaminhada por Cleto à Câmara42. O projeto do alferes,
que nunca seria posto em prática, apontava para o interesse despertado
por uma cidade tão populosa e ancorada em importante praça comercial.
39 – ANTT. Chancelaria de D. Maria I. Livro 20, folha 255. Registro Geral de Mercês de
D. Maria I. Livro 22, folha 104.
40 – Segundo o monsenhor Pizarro. Pereira Cleto teria tomado posse “antes de 1788”. Cf.
José de Sousa Azevedo Pizarro e Araújo. Memórias históricas do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Tipografia de Silva Porto, 1822, tomo VII, p. 170.
41 – “Registro de uma carta do doutor ouvidor geral da Comarca ao doutor juiz de fora
presidente e demais oficiais do Senado da Câmara. Rio de Janeiro, 19 de junho de 1788”.
In: Autos de devassa da Inconfidência Mineira. Op. cit., v. 11, 2001, pp. 47-9.
42 – “Requerimento do alferes Joaquim José da Silva Xavier ao doutor Marcelino Pereira
Cleto, ouvidor geral, para que informe sobre plano de construção de moinhos. Rio de
Janeiro, 19 de junho de 1788”. In: Autos de devassa da Inconfidência Mineira. Op. cit., v.
8, 1977, pp. 109-10.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

Em maio do mesmo ano, Pereira Cleto sentiu o peso da correlação


local de forças ao ser, surpreendentemente, excluído da prerrogativa de
conhecer ações novas – fato que, na prática, implicava marginalizá-lo no
jogo político. A relevância desse acontecimento é ainda mais acentuada
quando se constata que sua reversão pelo Conselho Ultramarino ocorreu
somente quando o doutor Marcelino já havia deixado o posto. O regimen-
to dos ouvidores de 1669 concedia-lhes o direito de conhecer ações novas
– isto é, receber e dar início a novos pleitos – dentro de quinze léguas.
Na primeira década do século XVIII, quando foram instalados juízes de
fora na comarca fluminense, como o da prória cidade do Rio de Janeiro
e o da Vila de Santo Antônio do Sá, o direito do ouvidor foi restringido
a cinco léguas. De fato, embora as Ordenações determinassem que os
ouvidores não deveriam conhecer ações novas em regiões onde houvesse
juízes de fora, limitando-se a receber apelações e agravos, os documentos
régios relativos à criação destes na comarca do Rio apenas limitaram,
nesse ponto, o direito daqueles. Da mesma forma, quando da instalação
do Tribunal da Relação na referida cidade, em 1751, os regimentos dos
novos ouvidores do cível e do crime, atuantes em suas dependências, não
eliminaram o direito que tinha o ouvidor da comarca de conhecer ações
novas. Caso isso tivesse acontecido, a existência da Ouvidoria fluminense
praticamente se tornaria inútil, pois, com o advento da mesma Relação, a
esta passou a caber o direito de receber apelações e agravos dos juízes de
fora. Todavia, a despeito dos cuidados adotados por aqueles que estabele-
ceram os regimentos da Relação, visando sempre garantir a jurisdição do
ouvidor comarcão, dúvidas e conflitos não tardaram a surgir. Da mesma
forma, sua jurisdição foi restringida em outros campos, como no direito
de receber apelações de decisões tomadas pelo juiz de sesmarias, que pas-
saram a ser encainhadas à Mesa da Coroa do Tribunal da Relação.

Não obstante os conflitos fossem anteriores, ganharam alento no


tempo de Pereira Cleto em função de uma contenda travada entre comer-
ciantes: Manuel Gomes da Cunha e outros moveram, na Ouvidoria da Co-
marca, um libelo cível contra Francisco José de Moraes Gonçalves, sob o
argumento de que este, através de escrituras falsas, vinha se apropriando

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dos bens de Antônio Ramalho Lisboa, importante retalhista da cidade.


Uma vez que, segundo os autores da ação, a fraqueza dos negócios de
Ramalho Lisboa os havia obrigado, anos antes, na condição de credores,
a assinar uma moratória, a interferência do réu lhes era sumamente lesiva.
Após a apresentação da contrariedade por parte de Moraes Gonçalves, os
autores, contudo, requereram a desistência da ação, talvez por temerem
que, mais cedo ou mais tarde, a jurisdição do ouvidor fosse legalmente
questionada. O doutor Marcelino, seguindo os trâmites de praxe, negou
a desistência, visto que, consultado o réu, este preferiu dar sequência à
disputa judicial. Agravando da decisão para a instância superior, os au-
tores, eles própios, se valeram da tese de que, conforme a lei, os ouvido-
res comarcãos não podiam conhecer de ações novas nos lugares em que
havia juiz de fora. O acórdão da Relação do Rio de Janeiro, inserido nos
autos do processo em 12 de agosto de 1788, ao dar razão aos agravantes,
eliminou, com uma só penada, parte expressiva da jurisdição do ouvidor
fluminense, reconhecida, como se viu, desde a elaboração de seu regi-
mento em 166943.

Cleto acatou o acórdão, mas enviou representação ao Conselho Ul-


tramarino, à qual anexou uma cópia dos autos e, consequentemente, dos
argumentos e papéis que utilizara para defender-se do agravo. Recebida
a documentação em julho de 1789, os conselheiros mostraram-se am-
plamente favoráveis ao doutor Marcelino, estranhando que a Relação se
desse o direito de prover ou desprover jurisdições por sua conta, e através
de acórdãos escritos em autos processuais. Em seu parecer, o procurador
da Coroa chegou a considerar desnecessário ouvir os desembargadores
da Relação, “por terem já dado bastantemente as suas razões, ou, para
falar mais propriamente, as suas sem razões, nos acórdãos”44. Na parte

43 – Sobre o regimento dos ouvidores do Rio de Janeiro, cf. Maria Eliza de Campos
Souza. Ouvidorias de comarcas, legislação e estrutura. Varia Historia. Belo Horizonte:
Departamento de História, UFMG, n. 21, 1999, pp. 206-19.
44 – AHU – RJ. Caixa 149, documento 74 e 75. 22 de julho de 1791. “Consulta do Con-
selho Ultramarino à rainha [D. Maria I], sobre o requerimento do ouvidor da Comarca do
Rio de Janeiro, Marcelino Pereira Cleto, solicitando provisão que declare que aos ouvido-
res da comarca toca a jurisdição de deliberarem como ação nova dentro das cinco léguas
a que foram restritos pela carta régia de 10 de Dezembro de 1701”.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

do referido acórdão em que se salientava que as decisões dos juízes de


sesmaria eram apeladas para a Relação, e não para os ouvidores, um dos
conselheiros anotou ao lado:

“Por violência, porque a provisão à f. 59v é de 7 de maio de 1763, e


posterior à criação da Relação do Rio de Janeiro; [e] manda que do
juiz das sesmarias se apele para o ouvidor, e deste para a Mesa da
Coroa da Relação; e não podia ignorar SMaj [que] havia Relação no
Rio de Janeiro quando a provisão foi requerida e remetida à Câmara
da dita cidade; informou o vice-rei dela e consultou o Conselho de
Ultramar; nem a ignorância se presume no príncipe.45”

A importância da contenda, atinente à criação ou eliminação de ju-


risdições régias, levou o Conselho Ultramarino a remeter sua consulta à
decisão da própria rainha, sustentando, porém, a argumentação favorável
a Pereira Cleto. O fato de o negócio não estar ainda decidido em maio
de 1791 pode talvez ajudar a explicar a ordem, descrita acima, em que
Martinho de Melo e Castro cobrou do conselheiro João Batista Vaz Pe-
reira o envio de “papéis” do doutor Marcelino. Que o atraso na decisão
vinha incomodando fica patente na representação do Senado da Câmara
do Rio de Janeiro concernente ao dito assunto, recebida pelo Conselho
em setembro do mesmo ano. O objetivo dos camaristas consistia em rati-
ficar o posicionamento de Pereira Cleto, salientando os prejuízos sofridos
pelo povo diante da impossibilidade de requerer, em cidade tão populosa,
ações novas na Ouvidoria. Dessa vez, repetindo os argumentos em prol
da manutenção da jurisdição do ouvidor, o Conselho Ultramarino man-
dou anexar a representação do Senado à consulta do doutor Marcelino,
concedendo, entretanto, que o ouvidor pudesse conhecer interinamente
de ações novas até que Sua Majestade decidisse afinal46.

O embate em torno da jurisdição do ouvidor fluminense, longe de


constituir mero desentendimento jurídico, permeava interesses bastante
45 – Idem.
46 – AHU – RJ. Caixa 150, documentos 47 e 72. 3 de novembro de 1791. “Consulta do
Conselho Ultramarino à rainha [D. Maria I], sobre a requerimento do Senado Câmara do
Rio de Janeiro, em que solicitava que o ouvidor da comarca continuasse na execução da
sua jurisdição naquela cidade apesar da dúvida dos desembargadores da Relação”.

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complexos dos moradores da cidade do Rio e de suas cercanias. Dois


pontos, pelo menos, envolviam o reconhecimento ou o esvaziamento da
Ouvidoria. O primeiro dizia respeito ao controle das rendas e da posse
do território citadino, alvo de disputas encarniçadas entre a Câmara, a
Relação, a Real Fazenda e o vice-rei, especialmente quando entravam
em jogo as áreas da marinha47. Pela mesma época, o juiz de fora Baltazar
da Silva Lisboa enredou-se em combates virulentos em torno de proble-
mas dessa natureza48. O segundo ponto concernia ao tratamento judicial
dos interesses dos grandes proprietários de terra da região, destacando-se
os dedicados à exploração do açúcar, gênero cuja aceitação no comércio
internacional, no final do Setecentos, havia estimulado lavradores e se-
nhores de engenho em várias partes da América. Por isso, não por acaso
a representação do Senado da Câmara em abono das razões do doutor
Marcelino ia assinada por José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho. O
futuro bispo de Pernambuco, conhecido pela apropriação seletiva que fa-
ria das ideias liberais em defesa dos interesses dos agricultores da Colô-
nia, nascera nos Campos de Goitacazes, em família enriquecida com a
produção açucareira49.

Sendo assim, mesmo que por via indireta, Marcelino Pereira Cleto
via-se novamente, agora no Rio de Janeiro, próximo do ponto de vista de
grupos dirigentes locais. Salvaguardadas as diferenças nos propósitos, as-
sim como o paulista frei Gaspar da Madre de Deus acabaria, em 1797, por
publicar suas Memórias para a história da Capitania de S. Vicente sob
os auspícios da Academia Real de Ciências de Lisboa, Azeredo Coutinho

47 – Cf. Afonso Carlos Marques dos Santos. No rascunho da nação. Rio de Janeiro: De-
partamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1992, em especial a seção
“Na Corte da América portuguesa”, pp. 119-.27. Maria Fernanda Bicalho. A cidade e o
Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; e Nireu Cavalcanti. O Rio de Janei-
ro setecentista. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
48 – Sobre os conflitos do juiz de fora Baltazar da Silva Lisboa, cf. Afonso Carlos Mar-
ques dos Santos. No rascunho da nação. Op. cit., em especial a seção “O anonimato e o
medo”, pp. 31-51; e Ronald Raminelli. Viagens ultramarinas. São Paulo: Alameda, 2008,
em especial o capítulo “Naturalistas em apuros”, pp. 177-212.
49 – Sobre a trajetória de Azeredo Coutinho, cf. Sérgio Buarque de Holanda. “Apresenta-
ção”. In: Obras econômicas de J. J. da Cunha Azeredo Coutinho. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1966, pp. 13-53.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

editaria, em 1791, a Memória sobre o preço do açúcar e, três anos depois,


em 1794, o Ensaio econômico sobre o comércio de Portugal e suas co-
lônias. É interessante constatar que Azeredo Coutinho, nascido em 1742
– e tendo, portanto, quase a mesma idade de Pereira Cleto –, só tardia-
mente dirigiu-se ao Reino, onde, em 1775, matriculou-se em Coimbra. A
Dissertação do doutor Marcelino, anterior às publicações do proprietário
nascido em Campos, tocaria, no entanto, em questões importantes nelas
presentes, podendo-se chamar a atenção para a fidelidade de ambos ao
monarca, bem como para a defesa de um tipo de vinculação entre Me-
trópole e Colônia que privilegiava o desenvolvimento da agricultura. A
demanda formulada pelos lavradores da marinha paulista, bem captada
no texto de Cleto, reapareceria nas formulações de Coutinho – até porque,
a despeito das diferenças de escala, a expansão agrícola e açucareira das
décadas de 1780 e 1790 constituía um movimento comum a São Paulo e
Rio de Janeiro.

Mesmo que as relações entre Cleto e Coutinho, indiretamente esta-


belecidas pelas duas representações enviadas ao Conselho, não fossem
minimamente próximas – visto que o último esteve em Portugal no tempo
em que o primeiro serviu no Ultramar –, não se deve negligenciar, de
modo algum, a tendência do ouvidor da Comarca do Rio de Janeiro de
nela fixar-se. Um sinal nesse sentido é a autorização dada pela rainha, em
28 de julho de 1792, ao ajuste feito pelo doutor Marcelino, quando ainda
atuava na Ouvidoria, para desposar dona Humiliana Leocádia da Silva,
filha do sargento-mor Francisco Pereira da Silva50. O episódio, comum
a tantos magistrados lusos que, passando largos anos na América, esco-
lhiam-na como novo lar, sugere a possibilidade de um certo alinhamento
de Pereira Cleto na política local. Francisco Pereira da Silva, por ocasião
do ajuste, havia desenvolvido sólida carreira militar, iniciada quando sen-
tou praça em 1757. Seis anos mais tarde, por portaria do conde da Cunha,
tornou-se tenente da Primeira Companhia do Esquadrão de Cavalaria Au-
xiliar do Rio de Janeiro, que fazia a guarda dos vice-reis. Ainda nesse
posto, dirigiu-se para o Continente do Rio Grande de São Pedro, sendo

50 – ANTT. Chancelaria de D. Maria I. Livro 41, folha 136.

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nomeado, em 1776, por patente do maquês de Lavradio, capitão do Regi-


mento dos Dragões da mesma circunscrição. Em abril do dito ano, sendo
reconquistada a Vila de São Pedro aos espanhóis, recebeu a incumbência
de explorar o campo na retaguarda do Exército castelhano. Em outubro,
foi designado para conduzir 26 desertores espanhóis até a Ilha de Santa
Catarina e, de lá, para o Rio de Janeiro. Durante o percurso, alguns deles
organizaram um levante na embarcação que os conduzia. Em 1790, Perei-
ra da Silva foi promovido pelo conde de Resende sargento-mor do Terço
Auxiliar de Infantaria da Cidade do Cabo Frio, onde serviu durante sete
meses, passando, então, com o mesmo posto, para a freguesia de Santa
Rita, servindo aí até setembro de 179651.

É curioso notar que as correições realizadas por Pereira Cleto na


Câmara fluminense em 1788 e 1791 não foram muito além do exigido
pelo protocolo. Se, na última, demonstrou preocupação com o incêndio
sofrido recentemente pela Casa do Concelho e desgostou da indelicada
ausência de dois vereadores, na primeira, não proveu uma linha sequer52.
Conquanto tais correições dependessem de fatores vários para serem bem
executadas, entre eles o tempo devido, o trabalho do doutor Marcelino,
nesse aspecto, destoou do realizado por antecessores e sucessores. Fran-
cisco Luís Álvares da Rocha – que, anos depois, atuaria como escrivão
do Tribunal da Alçada criado para sentenciar os inconfidentes de Minas
Gerais –, em correições de 1782 a 1787, apoiou a execução de foreiros
recalcitrantes, confirmou a proibição de se edificar sem critério casas da
vala para o mar, combateu a falta de água nas fontes, questionou o salário
do aferidor, exigiu a reconstituição da estrada geral de São Domingos a
São Gonçalo e queixou-se do descaminho do subsídio literário53. José
Antônio Valente, em 1792, tendo ressalvado reconhecer a “grande lite-

51 – AHU – RJ. Caixa 166, documento 58. 29 de agosto de 1797. “Auto de justificação
dos serviços do sargento-mor Francisco Pereira da Silva, despachado pelo [juiz privativo
das justificações dos serviços militares], desembargador e chanceler da Relação do Rio de
Janeiro, Antônio Dinis da Cruz e Silva”.
52 – Autos de correições dos ouvidores do Rio de Janeiro (1748-1820). Rio de Janeiro:
Arquivo do Distrito Federal, 1931, pp. 83-85. Infelizmente, não foram encontradas refe-
rências a correições dos anos de 1789 e 1790.
53 – Idem, pp. 71-82.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

ratura, probidade, prudência e mais qualidades do juiz de fora”, o dito


Baltazar da Silva Lisboa, reclamou da compra indevida de livros – pois
não deviam os camaristas se tornar “devotos de livreiros” –, rechaçou
a displicência na cobrança dos aforamentos e alertou que se não podia
permitir edificação na Barreira de Santo Antônio, por ser seu domínio
controvertido54. Quando coube ao próprio Silva Lisboa, na ausência do
ouvidor, efetuar, em 1794, a correição, também não deu descanso aos
concelheiros. Denunciou irregularidades na cobrança da renda das car-
nes; exigiu que, através dos párocos, os oficiais da Câmara fizessem o
censo da população da cidade; ordenou, dada a importância da lavoura
do açúcar na região, que os camaristas examinassem pessoas aptas a fa-
bricar moendas; demandou que se fiscalizasse a obrigação que tinham os
lavradores de produzir mantimentos; cobrou a manutenção dos caminhos
indispensáveis para a comercialização de gêneros; ralhou contra seu atra-
vessamento; e questionou o não cumprimento das provisões relativas aos
foros e à Barreira de Santo Antônio55. Em 1797, o doutor José Antônio
Valente voltou à carga, irritando-se com o desprezo dos concelheiros pe-
rante suas anteriores determinações:
“Proveu e determinou ele ministro que, examinando o cumprimento
que tem tido o sábio provimento dos seus antecessores, não era outra
coisa mais do que um errado e escandaloso modo de proceder da parte
dos vereadores e procuradores que sucessivamente têm andado nas
vereanças, porque, devendo ou dar-lhe inteiro e pronto cumprimento
ou apelar, se tem usado do sistema de se não atenderem de forma
alguma, dando por este modo um testemunho autêntico das suas de-
sobediências [...]56.”

Ainda que seja difícil, na falta de mais investigações, afirmar ca-


tegoricamente que Pereira Cleto mostrou-se leniente diante da flagrante
disposição dos dirigentes locais em fazer vistas grossas à ocupação irre-
gular de terrenos e ao dever de cobrar impostos, não parece demasiado
sugerir que, por esta ou aquela razão, o magistrado evitava confrontos

54 – Idem, pp. 86-9.


55 – Idem, pp. 90-4.
56 – Idem, p. 95.

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mais diretos. Quando se pensa na exiguidade de documentos relativos a


Cleto no Conselho Ultramarino, na maneira com que contornou ardorosas
contendas jurisdicionais, na brevidade de suas correições e mesmo na
relativamente discreta passagem que teve pelo episódio da Inconfidência,
surge a figura de um ministro prudente e avesso a enfrentamentos abertos
em relação ao status quo. É possível que levasse a sério recomendações
como a que Martinho de Melo e Castro fez a Baltazar da Silva Lisboa,
mas que ele definitivamente não cumpriu: que lhe remetesse quanto en-
contrasse sobre História Natural, “e que na Secretaria de Estado não que-
ria ver outras contas”57. Embora o doutor Marcelino estivesse longe de ser
um naturalista, deixou, de sua parte, um extenso material memorialístico.
Não se estranha, por isso, que sua única provisão efetiva nas duas correi-
ções mecionadas tivesse relação com o registro de documentos:
“Proveu e mandou que, em razão do incêndio que houve na Casa da
Câmara, em que se queimou o arquivo dela, quase todo o Senado da
Câmara, cuidassem em reformar tudo que lhe[s] era possível, tirando
por certidão de qualquer cartório onde se acharem, à vista das rendas
do Senado da Câmara, e fazendo registrar essas mesmas ordens e cer-
tidões nos competentes livros que para isso há de haver58.”

Na verdade, após o incêndio de 1790, a sede do Senado da Câmara


passou a funcionar temporariamente na casa do próprio ouvidor59.

Com o mesmo zelo arquivístico, Cleto organizou seus requerimentos


administrativos. No parecer referente à representação da Câmara sobre o
direito de os ouvidores conhecerem de ações novas, o procurador da Co-
roa não deixou de ressaltar a qualidade de sua argumentação:

57 – AHU – RJ. Caixa 144, documento 17. 11 de agosto de 1789. “Ofício do [juiz de
Fora do Rio de Janeiro], Baltazar da Silva Lisboa, ao [secretário de estado da Marinha e
Ultramar, Martinho de Melo e Castro], sobre os trabalhos que tem feito na área de Histó-
ria Natural, sendo os resultados sempre remetidos para o Reino da forma já estabelecida;
queixando-se das descomposturas feitas pelos ministros da Relação do Rio de Janeiro à
sua pessoa no que diz respeito ao envio do material juntado nas suas viagens”.
58 – Autos de correições dos ouvidores do Rio de Janeiro (1748-1820). Op. cit., p. 85.
59 – Cf. Noronha Santos. Fontes e chafarizes do Rio de Janeiro. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 10, 1946, nota, 29, p. 27.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

“acho as razões que poderiam agora lembrar ao ouvidor da Comarca


do Rio de Janeiro, deduzidas e analisadas em sua difusíssima resposta,
dada no agravo que dele se interpôs, e confirmadas com bastantes e
bem atendíveis documentos extraídos dos públicos cartórios daquela
cidade60.”

Nesse sentido, o estilo do doutor Marcelino, ainda que devesse algo


à antiga concepção de prudência, cultivada, no Antigo Regime, como
fundamento do exercício da política e da justiça, revelava também uma
mudança. Exemplo dela é o apelo à moderação, feito, décadas antes, por
membros da Academia dos Esquecidos, quando se disputassem as dife-
rentes matérias, devendo-se, nos termos de Luís de Siqueira da Gama,
a “averiguação da verdade” suplantar qualquer “capricho” ou “vaida-
de”. Tal procedimento distinguiria, nas palavras de Caetano de Brito e
Figueiredo, os “termos escolásticos” do “estilo acadêmico”61. A percep-
ção de que legítmas contendas jurídicas, administrativas ou intelectuais
descambavam facilmente em conflitos narcísicos em torno da honra não
podia ser novidade no Império português, tão caraterizado por disputas
jurisdicionais e de precedência62. Na segunda metade do século XVIII,
porém, especialmente após a contundente oposição à dialética jesuítica,
os “termos escolásticos” começaram a ser vistos de modo mais crítico
e desolador por aqueles que falavam em nome da verdade histórica, do
desenvolvimento científico e da boa administração.

No próprio Rio de Janeiro, o problema foi claramente colocado pelos


participantes da Sociedade Literária fundada sob os auspícios do marquês
do Lavradio63. Na devassa iniciada contra alguns de seus membros em
1794, momento em que já não existia, formalmente, a preocupação com

60 – AHU – RJ. Caixa 150, documentos 47 e 72. 3 de novembro de 1791.


61 – Cf. Fernando Nicolazzi. Entre “letras & armas, a história como disputa. Op. cit., p.
43.
62 – Sobre a apropriação do conceito de narcisismo para a análise da sociedade de corte,
cf. Jean Starobinski. As máscaras da civilização. Trad. São Paulo: Companhia das Letras,
2001, em especial o capítulo “Sobre a adulação”, pp. 57-85.
63 – A respeito da Sociedade Literária, cf. Afonso Carlos Marques dos Santos. No ras-
cunho da nação. Op. cit.; e Nireu Cavalcanti. O Rio de Janeiro setecentista. Op. cit., pp.
228-36.

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Marco Antonio Silveira

as consequências funestas da vaidade rendeu maus resultados ao profes-


sor régio Manuel Inácio da Silva Alvarenga. Isso porque, conquanto o
estatuto da Sociedade simplesmente fizesse “os maiores votos para que
de presente e para o futuro se conserve a mais perfeita harmonia nas as-
sembléias”, fora encontrado entre os papéis de Alvarenga um rascunho
propondo, como primeiro tópico, “a boa fé e o segredo, de forma que nin-
guém saiba do que se tratou na Sociedade”64. Questionado sobre as razões
que o teriam levado a sugerir tamanho sigilo, o professor respondeu que
“este não tinha por fim mais que o não derramar-se no público as dis-
putas que os sócios tivessem entre si, nas conferências, e que, por isso
mesmo, também recomendava junto com o segredo a boa fé; o qual era
tão necessário neste ponto, que a experiência lhes fez ver que, por ele
se não guardar, deixaram dois dos melhores sócios a Sociedade65.”

É certo que a devassa, para além de possíveis armadilhas do


vice-rei conde de Resende e de frades franciscanos incomodados com a
atuação dos professores régios, resultou de uma ambiguidade típica da-
queles anos. Na crise política vivenciada pelas autoridades imperiais em
relação à América, uma primeira inflexão certamente derivou da própria
governação pombalina. As polêmicas decisões de Pombal concernentes
à extinção do cativeiro na Metrópole, à liberdade dos índios, ao fim da
distinção entre cristãos velhos e novos, à racionalização administrativa, à
valorização dos magistrados, à expulsão dos jesuítas, à constituição das
aulas régias e à cooptação administrativa dos grupos dirigentes coloniais,
estabeleceram muitas das bases sólidas para a crítica reformista. Marce-
lino Pereira Cleto, gostasse ou não do marquês, desenvolveu parte de sua
carreira nesse novo contexto. O linhagista Pedro Taques, por exemplo,
tinha motivos de sobra para ressentir-se com Pombal, pois, além de abo-
minar o relaxamento dos critérios de pureza de sangue e de não obter a
premiação almejada, vira o contratador dos diamantes, João Fernades de
Oliveira, com o decisivo apoio do poderoso ministro, espoliar os bens de
sua benfeitora, dona Inês Pires Monteiro66.
64 – Autos da devassa. Prisão dos letrados do Rio de Janeiro – 1794. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Ed. UERJ, 2002, pp. 323 e 208.
65 – Idem, p. 205.
66 – Cf. Afonso de Taunay. “Pedro Taques de Almeida Pais Leme (1714-1777). Escorço

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

Uma segunda inflexão, contudo, ocorreu no ano de 1789, quando,


logo após a descoberta da Inconfidência Mineira, deu-se o susto da Re-
volução Francesa67. O caso dos inconfidentes fez notar a possibilidade de
apropriação da experiência das colônias inglesas na América lusa, ocor-
rendo, aliás, pouco depois da rebelião de Goa, na Índia. A Revolução,
por sua vez, seguida, em 1791, dos acontecimentos haitianos, colocou
na ordem do dia, e de modo especial, o antigo tema das qualidades e dos
defeitos das diversas formas de governo. Essa segunda inflexão criou as
condições para que algumas autoridades da última década do Setecentos,
borrando os limites entre a defesa da herança pombalina e a dos ideais
revolucionários, perseguissem e, por vezes, encarcerassem reformistas
militantes, acusando-os de jacobinos. O mesmo Silva Alvarenga, que,
com alguns colegas, permaneceu preso por muito tempo em decorrência
de uma devassa inconclusa, chegou a mencionar, em seu benefício, que
em vários de seus papéis havia “elogios não só aos vice-reis deste Estado,
mas aos nossos clementíssimos soberanos, nos quais respira o amor dos
príncipes, da pátria e da nação”68. Note-se, porém, que a própria histo-
riografia, nos séculos seguintes, reproduziu as artimanhas persecutórias
dos que se aproveitaram da ambiguidade do momento, classificando as
atividades dos acadêmicos devassados de “Conjuração Carioca”.

Uma terceira inflexão ocorreria, enfim, com a vinda da Corte para


o Brasil em 1808. Mas, àquela altura, Marcelino Pereira Cleto já havia
falecido. O cerne de sua trajetória esteve justamente no fato de ter vivido
de perto as doloridas mudanças ocorridas logo após 1789.

biográfico”. Op. cit., p. 55.


67 – Cf., acerca do período inaugurado pela Inconfidência Mineira, Kenneth Maxwell.
“The generation of the 1790s and the idea of the Luso-Brazilian Empire”. In: Dauril Al-
den. Colonial roots of modern Brazil. Los Angeles/California: University of California
Press, 1973, pp. 107-144.
68 – Autos da devassa. Op. cit., p. 199. Acerca da vinculação de Manuel Inácio da Silva
Alvarenga e outros letrados à política pombalina, cf. Ivan Teixeira. Mecenato pombalino
e poesia neoclássica. São Paulo: Fapesp, Edusp, 1999.

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Abusos eclesiásticos
Quando de sua posse como ouvidor do Rio de Janeiro, Cleto traba-
lhava num outro escrito, cujo tema envolvia os complexos embates sobre
a jurisdição eclesiástica no Brasil. O contexto em que escrevia sobre tal
assunto mostrava-se espinhoso na medida em que, aos recorrentes abusos
de clérigos na cobrança de seus serviços – cujas queixas haviam se acu-
mulado na América por todo o século XVIII –, somavam-se as críticas de
inspiração pombalina. Como indicou Afonso Carlos Marques dos San-
tos, os senhores Silva Alvarenga e João Marques Pinto, respectivamente
professores régios de Retórica e Grego na Cidade do Rio de Janeiro, re-
meteram a Martinho de Melo e Castro, pelo menos desde o ano de 1787,
algumas representações em que acusavam os frades de São Bento e de
Santo Antônio de lhes usurparem os estudantes e de reintroduzirem, em
prejuízo das determinações reais, o ensino praticado pelos jesuítas69. Na
devassa aberta em 1794, o jovem bacharel Mariano José Pereira atribuiu
sua prisão à vingança do franciscano Raimundo Penaforte, membro do
Colégio de Santo Antônio que, dois anos antes, havia assistido aos úl-
timos momentos dos inconfidentes. Por detrás do conflito, achava-se a
obra do padre Antônio Pereira de Figueiredo, Tentativa teológica, na qual
se propunham teses próximas ao regalismo e ao episcopalismo70. Tendo
Pombal expulsado os jesuítas em 1759, opondo-se ainda ao molinismo e
ao misticismo da Jacobéia – a ponto de, em 1768, levar o bispo de Coim-
bra ao cárcere –, restara, nas décadas seguintes, após a Viradeira, uma
virulenta disputa que não excluiu a América. A irritação de frei Raimundo
ocorrera porque Mariano José Pereira, não podendo suportar a crítica do
dito frade ao marquês de Pombal, inserida numa tradução que o religioso
69 – “Representação dos professores régios de Humanidades da Cidade do Rio de Janeiro
à rainha dona Maria I. Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1787”; “Representação dos profes-
sores régios de Humanidades do Rio de Janeiro, dirigida à rainha dona Maria I, em 28 de
março de1793”. In: Afonso Carlos Marques dos Santos. No rascunho da nação. Op. cit.,
pp. 160-5 e 166-70.
70 – Antônio Pereira. Tentativa teológica em que se pretende mostrar que, impedido o
recurso à Sé Apostólica, se devolve aos senhores bispos a faculdade de dispensar nos
impedimentos públicos do matrimônio e de prover espiritualmente em todos os mais casos
reservados ao papa, todas as vezes que assim o pedir a pública e urgente necessidade dos
súditos. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1766.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

fizera da obra do italiano Giovanni Marchetti, acabara por proferir al-


gumas palavras contra ele71. O livro de Marchetti, intitulado Crítica da
história eclesiástica e dos discursos do sr. abade Cláudio Fleury, atacava
não apenas o mencionado historiador francês, como também o próprio
padre Antônio Pereira72. Assim, a questão eclesiástica envolvia, pelo me-
nos, três problemas cruciais: as queixas contra as cobranças excessivas
do clero, a posição frente ao regalismo e ao episcopalismo, e a discussão
doutrinária acerca de concepções religiosas que, de um lado, acatavam o
relaxamento costumeiro e, de outro, pregavam um misticismo rigorista,
tido por hipócrita e avesso às condições práticas do serviço régio73.

A esse delicado quadro, há de se acrescentar um elemento de matriz


local. Desde a década de 1720, alguns conventos fluminenses, especial-
mente o de Santo Antônio, viram-se estremecidos pelas contendas que
opuseram, em suas respectivas províncias, os “filhos do Brasil” aos “fi-
lhos do Reino”. Na prática, a tendência de que avultassem os clérigos nas-
cidos na América, acrescida do fato de que as casas religiosas, ao fim e ao
cabo, eram sustentadas pelos moradores das localidades onde existiam,
estimulou a resistência de frades reinóis temerosos de se verem alijados
da governação das ordens. A tentativa de contornar o dilema, patrocina-
da pela Coroa, consistiu na Lei da Alternativa, segundo a qual devia-se
repartir igualmente os diversos cargos, e mesmo o ingresso de noviços,
entre gente do Brasil e do Reino74. De fato, o nativismo na América lusa
consistia num fenômeno crucial, presente em situações as mais diver-
sas; sem ele, seria difícil compreender a política pombalina de cooptação
e, mais tarde, já no contexto aberto pela segunda inflexão apontada, a
71 – Autos da devassa. Op. cit., p. 236.
72 – Giovanni Marchetti. Critica della storia ecclesiastica e dei discorsi del sig. abate
Claudio Fleury, con un appendice sopra il di lui continuatore. 2ª ed. Roma, 1784.
73 – Sobre as disputas doutrinárias no campo da religião, em Portugal, cf. Cândido dos
Santos. O jansenismo em Portugal. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
2007; Ofélia M. Caldas Paiva Monteiro. D. Frei Alexandre da Sagrada Família. Coimbra:
Coimbra Editora, 1974.
74 – Frei Ildefonso Silveira. “Partidarismo nacionalista nos claustros franciscanos no sé-
culo XVIII”. Anais do Congresso Comemorativo do Bicentenário da Transferência da
Sede do Governo do Brasil da Cidade do Salvador para o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Departamento de Imprensa Nacional, 1967, pp. 123-46.

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concepção de Império luso-brasileiro formulada por d. Rodrigo de Sousa


Coutinho. Na mesma resposta em que referia o desgaste causado pela
tradução da obra de Giovanni Marchetti, o doutor Mariano José Pereira
também atribuiu sua prisão a contendas dessa natureza. O depoente

“suspeitava que a causa de sua prisão procedia de ódio ou raiva que


contra ele tivesse concebido um frade de Santo Antônio chamado frei
Raimundo, porquanto este era inimigo dos brasileiros; de sorte que
constava haver ele dito ao atual vice-rei deste Estado que se não rece-
asse dos franceses, mas sim dos filhos do Brasil [...]75.”

As tensões entre os franciscanos certamente permaneciam na década


de 1790, coexistindo, ao lado de frei Raimundo, o botanista José Maria-
no da Conceição Veloso – o autor da reconhecida Flora fluminense que
vinculou-se à Sociedade Literária, privando, portanto, de algum contato
com os sócios Silva Alvarenga, João Marques Pinto e Baltazar da Silva
Lisboa. Seja como for, em circunstâncias tão turbulentas, as críticas revo-
lucionárias apenas acresceram alguns ingredientes a mais nas atitudes de
anticlericalismo vigentes desde muito tempo.

O rechaço ao nativismo após os acontecimentos de 1789 gerou re-


comendações enderaçadas a Martinho de Melo e Castro. Em março de
1790, quando o doutor Marcelino ainda servia de ouvidor da Comarca,
um anônimo apelidado Amador Patrício de Portugal escreveu ao ministro
para adverti-lo sobre “algumas circunstâncias da América”. Aludindo ao
desprezo dos nacionais pelos reinóis, evocou, sem o saber, uma das razões
que justificavam a concessão de títulos aos magistrados encaminhados ao
Brasil, como Pereira Cleto:

“Padecendo todos a loucura de se terem em conta de fidalgos, ape-


nas seus pais ou avós fossem almotacés, ou vereadores, eles tratam
genericamente os filhos de Portugal por marotos, galegos, mochilas
e lacaios, sem exceção dos que o não são: basta que sejam filhos de
homem pobre de alguma vila, ou cidade, ou de algum lavrador para os
honrarem com tão esbeltos títulos76.”
75 – Autos da devassa. Op. cit., p. 236.
76 – “Carta de Amador Patrício de Portugal a Martinho de Melo e Castro. Rio de Janeiro,

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

Um ano mais tarde, em maio de 1791, o chanceler da Relação Se-


bastião Xavier Vasconcelos Coutinho, informando Melo e Castro sobre a
Inconfidência em Minas, afirmou sempre ser prudente

“que SMaj use das cautelas e providências mais próprias para que,
nos empregos que podem ter influência nos povos, haja pessoas de
inteira fidelidade, porque geralmente o caráter dos brasileiros é terem
oposição aos vassalos de SMaj europeus, porque se persuadem que os
nacionais do país têm mais talento e são mais dignos de governarem,
e que os europeus lhe[s] levam a riqueza que são devidas aos filhos
deste continente, e que eles desejam insaciavelmente para sustentar o
luxo e vaidade que entre eles é sem limite77.”

Assim, enquanto os filhos do Brasil queixavam-se de perder as ri-


quezas geradas e de serem excluídos das justas premiações, os filhos do
Reino acusavam-nos de obsessão fidalga e aversão ao trabalho, caracte-
rísticas, aliás, bastante condizentes com uma sociedade fundada na mão
de obra escrava. Embora, como em qualquer debate acalorado, os este-
reótipos tendessem a escamotear nuanças que aproximariam ambos os
partidos, não seria excessivo dizer que havia uma cota de verdade em
cada lado.

Foi, enfim, nesse contexto que Marcelino Pereira Cleto elaborou seu
escrito sobre a jurisdição eclesiástica no Brasil e, algum tempo depois,
dirigiu-de às Minas com o intuito de apurar a Inconfidência. O texto en-
volvendo a atuação da Igreja na América certamente compôs um circuito
mais amplo. No caso da Capitania de Minas Gerais, desde o início da
ocupação do território, o problema dos valores a serem pagos aos cléri-
4 de março de 1790”. In; Afonso Carlos Marques dos Santos. Op. cit., p. 155. Em poema
intitulado “Obra feita aos senhores de Portugal”, atribuído ao coronel José Aires Gomes,
um dos implicados na Inconfidência Mineira, os xingamentos ao estilo dos citados pelo
missivista abundavam: “Marotos, cães, labregos, malcriados, porcos, / baixos, patifes,
presumidos, piratas no furtar / enfurecidos, piolhentos, sebosos, cusbriados. // Atende que
do Reino vens perdido / a chorar no Brasil os teus pecados. / E tanto que da sabugem o cu
cá limpam, / começam a largar com mãos largas, / sem se lembrar dos seus antigos estados
vis”. Autos de devassa da Inconfidência Mineira. Op. cit., v. 3, 1977, p. 417.
77 – [Carta de Sebastião Xavier de Vasconcelos Coutinho a Martinho de Melo e Castro,
em 30 de maio de 1791]. In: Anuário do Museu da Inconfidência. Ouro Preto/MG: Dire-
toria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ano II, 1953, p. 210.

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gos pelos seus serviços causou estranheza entre os povos. A percepção


de que os preços eram escorchantes, principalmente o da conhecenças,
aumentou à medida que o ouro de aluvião escasseava, mas a taxas perma-
neciam as mesmas dos tempos de fácil extração78. O assunto interessou
ao magistrado Caetano da Costa Matoso, que, em sua extensa compilação
documental, inseriu diversos papéis sobre emolumentos e despesas do
Bispado de Mariana79. Segundo Luciano Figueiredo, o ouvidor de Vila
Rica, cuja atuação pautou-se pela defesa da jurisdição real, chegou a acu-
sar de venalidade o primeiro prelado marianense em função de uma re-
ceita que alcançava a quantia fabulosa de 21 contos de réis80. Apesar dos
regimentos efetuados na década de 1750 por ordem da Coroa, os abusos
e as queixas permaneceram, alcançando letrados e memorialistas do úl-
timo quartel do Setecentos. José João Teixeira Coelho, além de aludir à
proibição do estabelecimento de casas religiosas em Minas, bem como à
expulsão de clérigos simoníacos e escandalosos, deplorou o “abuso dos
párocos na cobrança das conhecenças excessivas e dos outros direitos
paroquiais”81. Ademais, para o desembargador,
“A extorsão de salários injustos que fazem os ministros eclesiásticos,
e o abuso de se passarem provisões anuais até para se dizer missa,
confessar e pregar, e também para casar, é um novo motivo de escân-
dalo82.”

Ainda em relação a dificuldades envolvendo a Igreja, anotou um bre-


ve “Discurso único sobre a usurpação que os bispos do Bispado de Ma-
riana fazem dos direitos pertencentes ao Mestrado da Ordem de Cristo”,

78 – Cf. Caio C. Boschi. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986; Dom Oscar de Oli-
veira. Os dízimos eclesiásticos do Brasil. Belo Horizonte: Universidade de Minas Gerais,
1964.
79 – Luciano Raposo de Almeida Figueiredo & Maria Verônica Campos (coord.). Códice
Costa Matoso. Op. cit., pp. 660-764.
80 – Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. “Rapsódia para um bacharel”. Op. cit., p.
91.
81 – José João Teixeira Coelho. Instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais
(1782). Op. cit., p. 224.
82 – Idem, p. 224.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
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no qual sublinhava a jurisdição de Sua Majestade, como “grã-mestra e


prelada regular e ordinária”, sobre as “igrejas ultramarinas”83.

Como não podia deixar de ser, o tema apareceu com destaque na


famosa Instrução para o visconde de Barbacena, elaborada por Martinho
de Melo e Castro. Conquanto se diga que o secretário de Estado fora
míope em relação aos motivos da decadência aurífera em Minas Gerais,
não se pode negar que suas instruções resultavam do exercício crítico
fundado na recepção e análise sistemática de papéis recebidos por autori-
dades diversas do Ultramar. Visando implementar variadas reformas em
Minas Gerais através do combate a “abusos e relaxações”, indicou, como
primeiro tópico, “que os eclesiásticos e ministros da Igreja cumpram com
as obrigações que a mesma Igreja lhe[s] prescreve”84. E, adiante, com-
pletou:
“os párocos de Minas Gerais, porém, invertendo esta doutrina, a tem
apropriado em grande parte aos seus reprovados e particulares inte-
resses: dando ocasião a repetidas e multiplicadas queixas, que, desde
tempos anteriores até agora, têm sucessivamente chegado à real pre-
sença, de insuportáveis e forçadas contribuições, debaixo do pretexto
de direitos paroquiais, benesses e pés de altar, com que os mesmos
párocos obrigavam e obrigam aos seus fregueses a lhes contribuir85.”

A menção de Martinho de Melo e Castro é seguida de um longo con-


junto de quinze parágrafos, nos quais apresenta um histórico detalhado
dos acontecimentos atinentes à questão.

Quando o visconde de Barbacena, novo capitão-general das Minas,


desembarcou no Rio de Janeiro em 24 de maio de 1788, veio acompa-
nhado do também nomeado governador de São Paulo, Bernardo José de
Lorena86. Fosse ou não por sugestão do secretário de Estado, um dos dois,
ao que tudo indica, avistou-se com Marcelino Pereira Cleto, e com ele

83 – Idem, p. 225.
84 – Instrução para o visconde de Barbacena. Anuário do Museu da Inconfidência. Ouro
Preto/MG: Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ano II, 1953, p. 118.
85 – Idem, p. 118.
86 – Cf. Autos de devassa da Inconfidência Mineira. Op. cit., v 8, 1977, nota 1, p. 107.

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discutiu o assunto da jurisdição eclesiástica. É o que se depreende da có-


pia de uma carta do ouvidor, escrita em 20 de setembro de 1788, da qual
não consta o nome do destinatário:

“Ainda agora me é possível cumprir com as recomendações que VEx


se dignou deixar-me passando por esta cidade; o mesmo desejo que
tive e permanece de bem as cumprir, apesar ma[i]s as demorou. Per-
suadi-me que o melhor meio de satisfazer a VEx era fazer copiar até
ao ponto em que estava o papel que VEx aqui se dignou a ver, e,
procurando um escrevente, tive a pouca fortuna de me inculcarem um
que era atacado de erisipela e dor de peito; uma só destas moléstias o
pretextaria bastantemente para me não concluir com brevidade a cópia
que eu desejava, quanto mais ambas juntas. Enfim ela se concluiu,
e eu a remeto a VEx, que, pela grandeza e honra, se dignará, pelas
sobreditas razões, desculpar-me e persuadir-se que só as mencionadas
razões influíram para a demora87.”

Que a carta endereçava-se a um governador, não há dúvida, pois,


ademais do uso das fórmulas “Ilustríssimo e Excelentíssimo” e “Vossa
Excelência”, fazia, em seu final, após circunspecta análise dos abusos
eclesiásticos, a seguinte advertência:
VEx e os mais senhores governadores e capitães-generais podem mui-
to, e não duvido que a este respeito possam melhorar muito a sorte dos
vassalos de SMaj neste Continente; porém, ainda assim, não hão de
reduzir este negócio ao que deve ser, e por modo que permita conser-
vação, sem as sobreditas providências de SMaj88.

Não causa espanto que Cleto se dedicasse à compreensão da ma-


neira pela qual eram administrados bispados e paróquias, porquanto esta
era uma das funções dos provedores dos defuntos e ausentes, capelas e
resíduos, posto ocupado pelo magistrado tanto em São Paulo como no
Rio de Janeiro. A longa carta do doutor Marcelino, disposta em doze fó-
87 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 1, p. 52. Observe-se que a carta, sendo autógrafa,
encontra-se entre os papéis de Marcelino Pereira Cleto, constituindo, portanto, parte do
acervo de escritos que o próprio magistrado elaborou e guardou. Esse é o motivo por que
não se encontra nela o nome do remetente, informação que obviamente constou da versão
enviada – no caso, aliás, de ter sido de fato enviada.
88 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 1, p. 63.

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lios, estendeu-se porque não apenas apresentava o “papel” de interesse


do destinatário, mas também acrescentava novos dados. A missiva talvez
ajude a compreender a economia do ouvidor na correição realizada em
novembro do mesmo ano, já que, considerando o dito papel inconcluso,
Cleto desejava utilizá-la para coletar “todos os documentos” de interesse
existentes nas câmaras de sua Comarca89.

Descrevendo a constituição dos bispados na América sob o domínio


do grão-mestre da Ordem de Cristo, Pereira Cleto não demorou a introdu-
zir a questão intrincada dos excessos cometidos pelos clérigos. Uma vez
que as côngruas praticadas nas Conquistas, segundo seu ponto de vista,
não eram exorbitantes, acabavam por alimentar abusos infinitos:

“Da diminuição com que se estabeleceram, e também da ambição,


nasceu procurar cada qual, no ministério que se lhe encarregou, avan-
çar, justa ou injustamente, as suas utilidades, principiando desde o
bispo até ao sacristão, e por meios injustos têm conseguido formarem,
pela maior parte, bispados e benefícios pingues na América, quando,
pelo contrário, segundo as suas côngruas estabelecidas, deviam todos
ser moderados90.”

Como havia denunciado, havia quase 40 anos, o ouvidor Costa Ma-


toso, Cleto referiu as quantias fabulosas acumuladas pelos bispados, lem-
brando que, embora cada prelado, segundo o fixado pela Coroa, devesse
receber em torno de 1,6 contos de réis, os valores subiam a mais de vinte
mil cruzados; e mesmo o de São Paulo, de menor rendimento, chegava
a doze. Para isso, os bispos efetuavam formas variadas de extorsão. Ex-
torquiam os cônegos ao perceberem certa quantia quando lhes passavam
cartas de confirmação ou, por ocasião de seu falecimento, cobravam dos
testamenteiros o direito de lutuosa. Usavam de ambos os meios para tam-
bém extorquir os párocos, que, ademais, viam sua jurisdição desrespeita-
da, tendo de pedir licenças desnecessárias para ministrar os sacramentos
em suas freguesias. Nos batismos, exigiam-se provisões caso a cerimônia
se realizasse fora da matriz, se fosse ministrada por um clérigo indicado
89 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 1, p. 52.
90 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 1, p. 53v.

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Marco Antonio Silveira

pelo próprio vigário, ou, ainda, se algum padrinho se apresentasse através


de procurador. Mas não só:

“No matrimônio, proclamados os contraentes, ainda que estes não te-


nham saído dos limites da própria freguesia, nem tenham impedimen-
to, não os recebe o pároco sem uma provisão do bispo, sejam brancos
ou índios ou escravos. Se não é o pároco quem os recebe, se não vão
celebrar o sacramento à igreja matriz, se algum dos contraentes, ou
ambos se recebe por procuração, se casa de tarde, se casando em tem-
po que não há bençãos, e ao depois as vão receber, como devem, em
tempo competente, para tudo isto são necessárias distintas provisões
do bispo, violando-se a conhecida jurisdição dos párocos a estes res-
peitos só para que, incompetente e indevidamente, rendam as chance-
larias do ordinário. E se são parentes e querem dispensa, aqui cai sobre
eles um raio que os abrasa e devora91.”

Os párocos que não eram colados sofriam ainda “maiores pensões”,


precisando tirar anualmente licenças de encomendação. Alguns deles,
sendo nomeados pelos próprios bispos, e não pela Mesa da Consciência
e Ordens, representavam uma agressão contra o Padroado, que sempre
conferira ao grão-mestre o privilégio exclusivo de edificar igrejas, ermi-
das e capelas. Nesse sentido, conforme o doutor Marcelino, seriam dois
os objetivos dos prelados: “escurecer a jurisdição ordinária e eclesiástica
do grão-mestre, no que trabalham e não têm conseguido pouco”; e “terem
sempre igrejas prontas para darem conforme a sua eleição e arbítrio” 92. A
existência de encomendados em parte das igrejas fazia com que os bispos
não dessem conta delas na Mesa de Consciência, o sustento integral de
seus párocos tendo de ser suportado pelos fregueses em função da falta
de côngruas. Atalhar tais abusos contra o Padroado caberia, segundo o
missivista, aos ouvidores, que, na qualidade de provedores de capelas e
resíduos, deviam obstar a fundação de novas igrejas, irmandades, con-
frarias e corpos semelhantes na falta da licença apropriada – concepção,
aliás, partilhada e posta em prática por Caetano da Costa Matoso na Vila

91 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 1, p. 55.


92 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 1, p. 56.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

Rica de 175093. Pereira Cleto, porém, tinha plena consciência da virulên-


cia dos embates atinentes à jurisdição eclesiástica, mostrando-se, quanto
a isso, deveras prudente:

“Não pareça a VEx daqui que eu condeno à falta de luzes ou instrução


dos atuais ouvidores, e ainda dos seus próximos antecessores, o não
terem procedido conformemente ao que tenho dito; pois eu mesmo,
discorrendo na forma sobredita, e estando atualmente encarregado de
semelhante ministério, vacilo em reduzir à prática isto mesmo de que
estou capacitado; porque a novidade me havia acarretar inimigos e dú-
vidas, e nestas devia de ter decisões contrárias aos direitos do rei como
grão-mestre, dadas por aqueles mesmos que deveriam sustentá-los, e
ficar ultimamente com os créditos de inovador, e ainda piores94.”

Sua referência à posição duvidosa dos que deveriam defender os in-


teresses régios parece remeter ao acórdão por meio do qual a Relação
fluminense exterminou parte expressiva da jurisdição da Ouvidoria da
Comarca. O espítito acadêmico de Cleto, nesse sentido, e por razões bas-
tante concretas, realmente articulava busca da verdade e exercício da pru-
dência95. Afinal, como contou, um “sujeito” que, em caso de agravo, teria
o “direito de votar sobre os meus procedimentos”, chegara a dizer-lhe
que as usurpações deveriam ser suportadas porque Noé, feito eclesiástico,
recebera e transmitira a seus sucessores os bens temporais96. Sem querer

93 – Sobre esse ponto, afirma Luciano Figueiredo: “Assim, parece indiscutível que, à
custa de todo o desgaste que representou, Caetano da Costa Matoso foi o artífice que
concluiu a obra de conquista da jurisdição pelo Poder Real. A legislação produzida du-
rante sua atuação e nos anos imediatamente seguintes regulando a presença régia sobre a
jurisdição eclesiástica em inúmeras esferas é prova suficiente disto”. “Rapsódia para um
bacharel”. Op. cit., p. 88. A carta de Pereira Cleto, todavia, sugere que tal conclusão deve
ser relativizada.
94 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 1, p. 56v.
95 – A substância dos receios de Pereira Cleto apareceu também em Costa Matoso, que,
no início de sua atuação em Vila Rica, em conta remetida ao Conselho Ultramarino, diz
ter decidido de início “não inovar em coisa alguma”, temendo a reedição dos conflitos
jurisdicionais experimentados por seu antecessor, “de que se seguiram tão perniciosas
consequências, e talvez a morte daquele reto ministro pela defesa da jurisdição de Sua
Majestade”. Apud. Luciano Figueiredo. Op. cit., p. 85. Como ocorreria com Baltazar da
Silva Lisboa no Rio de Janeiro dos anos de 1790, Matoso também não cumpriu a promes-
sa, pagando alto preço por isso.
96 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 1, p. 56v.

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Marco Antonio Silveira

voltar a Adão, para lembrar ao interlocutor sua condição secular, o doutor


Marcelino apenas ratificou que os ouvidores da América não podiam “fa-
zer sem perigo certas coisas”, caso não alcançassem ordens expressas da
Coroa e o apoio dos governadores97.

A carta de Pereira Cleto desdobra-se ainda numa infinidade de pon-


tos que seria impossível aqui descrever. Trilhando as vertentes através
das quais os prelados sugavam recursos de clérigos, oficiais e povos –
“porque desde que nasce qualquer pessoa na América, até que morre,
sempre está tirando provisões do bispo”98 –, menciona também os abusos
cometidos na feitura de testamentos, na realização das visitas pastorais e
na cobrança das conhecenças. E, com desgosto, sintetiza:

“Isto tudo são desordens e extorções que se vêem há muitos anos e


todos os dias; o costume de as ver, e mesmo o respeito com que olham
para esta eclesiástica sede de haver dinheiro, e também a dependência
em que estão de seus prelados, os faz[em] insensíveis a estes con-
tínuos vexames, ainda quando os vêem crescer; e outros, ainda que
murmurem, não se atrevem a levantar a voz, ou porque têm filhos
e parentes clérigos, ou estão na dependência de os terem, ou temem
uma perseguição e guerra contínua dos seus prelados e párocos, o que
não poucas vezes tenho visto suceder, e assim compram com a sua
paciência o seu sossego99.”

O “remédio” proposto pelo doutor Marcelino, capaz de produzir uma


“cura radical”, dependeria de ação unívoca de Sua Majestade, e não ape-
nas do trabalho minudente das diversas autoridades100. Este mostrava-se
insuficiente frente à desunião dos ministros, à renitente desobediência dos
eclesiásticos e à inação dos povos, que sofriam “por dependência, ou por
indiscreta piedade, ou por superstição, ou por sustentarem o aparato de
uma vã grandeza e liberalidade de que não pouco se preocupam”101. Esse
remédio seria a elaboração de um regimento novo sobre o assunto, feito

97 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 1, p. 57.


98 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 1, p. 58v.
99 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 1, p. 62v.
100 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 1, p. 62v.
101 – ANTT. Papéis do Brasil. Códice 1, p. 63.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

com base nos costumes da América e no exame das ordens expedidas via
Mesa da Consiência e Conselho Ultramarino102.

Inconfidência
Em que pese a possível inocuidade da solução indicada por Mar-
celino Pereira Cleto na análise que fez sobre os excessos eclesiásticos,
sua carta, quando cotejada com a representação em defesa do direito dos
ouvidores de conhecerem ações novas, demonstra o grau de belicosidade
vivenciada no jogo de poder, no Rio de Janeiro. O desânimo de Cleto
com o desempenho de ministros da Relação era, de fato, acentuado, sen-
do pautado pelo medo de ver-se abatido. Sobre essa ameaça, teve e teria
à disposição o exemplo do colega Baltazar da Silva Lisboa, com quem
provavelmente manteve boas relações. Se, em 1791, o juiz de fora do
Rio de Janeiro requeria sua substituição, queixando-se que suas sentenças
não eram cumpridas por serem todos os negócios resolvidos na sala do
vice-rei, dois anos mais tarde, achou-se envolvido numa estranha devas-
sa, resultante de carta anônima que o conclamava a organizar uma re-
belião na cidade103. Para averiguar o incidente, o chanceler da Relação,
Sebastião Xavier Vasconcelos Coutinho, requereu ao vice-rei a participa-
ção dos escrivães já designados para o Tribunal da Alçada. A justificativa

102 – É importante ressaltar, a respeito das reflexões de Pereira Cleto sobre o tema da
jurisdição eclesiástica, que seu conjunto documental, compondo hoje o fundo Papéis do
Brasil da Torre do Tombo, passaram antes, conforme se disse, pelas mãos do doutor An-
tônio Pereira de Almeida Silva e Sequeira, lente da Universidade de Coimbra. Essa infor-
mação é relevante, dentre outros motivos, porque o códice 15 do referido fundo consiste
num texto intitulado Jurisdição eclesiástica no Brasil, cuja autoria é do prórprio Silva e
Sequeira. Assim, uma comparação cuidadosa entre a carta do doutor Marcelino e o texto
do docente de Coimbra poderá mostrar se os estudos do primeiro não constituíram a base
para a obra do último. Quanto ao “papel” enviado por Pereira Cleto junto da carta, não foi
possível, até o momento, identificá-lo.
103 – AHU – RJ. Caixa 148, documento 14. 16 de novembro de 1791. “Oficio do juiz de
Fora do Rio de Janeiro, Baltazar da Silva Lisboa, ao secretário de estado da Marinha e
Ultramar, Martinho de Melo e Castro, remetendo arbusto e cristais para o Real Gabinete
de História Natural; solicitando a sua substituição; informando que todos os negócios
são resolvidos na sala do [vice-rei do Estado do Brasil, conde Resende, D. José Luís de
Castro], desrespeitando-se as funções do lugar que ocupa”. Autos de exame e averiguação
sobre o autor de uma carta anônima escrita ao juiz de fora do Rio de Janeiro, dr. Baltazar
da Silva Lisboa. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, n. 60, 1940, pp. 260-313.

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Marco Antonio Silveira

para convocar o desembargador Francisco Luís Álvares da Rocha e o


doutor José Antônio Valente advinha de sua suposição, sincera ou não, de
que “este negócio tem uma imediata conexão com a comissão da Alçada
sobre a conjuração da Capitania de Minas Gerais”104. Embora a investiga-
ção nada concluísse de efetivo e Silva Lisboa atribuísse o ocorrido a ma-
quinações de seus muitos inimigos, tanto o chanceler quanto o conde de
Resende acusaram-no, junto à Coroa, de ter arquitetado a história visando
obter algum dividendo. O acontecimento, de toda maneira, fornece uma
pista sobre os contatos mantidos entre o juiz de fora e o ouvidor, pois, no
depoimento dado na devassa, em janeiro de 1793, Silva Lisboa afirmou
que recebia cartas “vindas da Bahia, de meu país, e do desembargador
Marcelino Pereira Cleto, e isto depois que aquele desembargador chegou
à cidade da Bahia”105.

É difícil avaliar em que medida o corporativismo, o desempenho do


serviço régio e possíveis diferenças pessoais afastaram ou aproximaram
Rocha, Valente, Cleto e Lisboa. Todos atuaram como ouvidores do Rio
de Janeiro – embora o último de maneira interina –, responsabilizando-se
por correições nas quais tenderam a elogiar e defender as provisões uns
dos outros. Uma clivagem nada desprezível está no fato de que, enquanto
os três primeiros atuaram na Inconfidência Mineira, sempre no posto de
escrivão, o futuro autor dos Anais do Rio de Janeiro tornou-se alvo de
uma devassa e, como partícipe da Sociedade Literária, teve algum vín-
culo institucional com os perseguidos de 1794. De uma maneira ou de
outra, o cenário aberto pelos acontecimentos em Minas criou motivos
novos para desconfianças e atritos. Tendo recebido a denúncia relativa à
conjuração, o visconde de Barbacena não tardou a avisar o vice-rei Luís
de Vasconcelos e Sousa por carta de 25 de março de 1789, quando pediu-
lhe apoio militar. Na ocasião, o alferes Joaquim José da Silva Xavier,
implicado na denúncia, encontrava-se de licença no Rio, onde tratava do
andamento das petições sobre o projeto dos moinhos nos rios do Catete
e Maracanã. Depois de prendê-lo em fuga, o vice-rei decidiu abrir, em 7
104 – Autos de exame e averiguação sobre o autor de uma carta anônima escrita ao juiz
de fora do Rio de Janeiro, dr. Baltazar da Silva Lisboa. Op. cit., p. 269.
105 – Idem, p. 271.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

de maio, uma devassa para apurar o caso, indicando como juiz e escrivão
dela, respectivamente, o desembargador da Relação José Pedro Machado
Coelho Torres e Marcelino Pereira Cleto. A reunião de ambos em em-
preitada tão delicada demandaria, decerto, superação de possíveis rusgas,
porquanto Torres havia sido um dos responsáveis pelo acórdão da Rela-
ção que retirara de Cleto o direito de conhecer ações novas na Ouvidoria.
Em Minas, nos dias 20 e 21 do mesmo mês, o governador mandaria pren-
der alguns suspeitos de peso: o vigário de São José, Carlos Toledo, e os
antigos ouvidores do Rio das Mortes e de Vila Rica, Alvarenga Peixoto e
Tomás Antônio Gonzaga. Algumas semanas depois, em 12 de junho, ins-
tituiu o visconde uma segunda devassa, indicando o novo ouvidor de Vila
Rica, Pedro José de Araújo Saldanha, como juiz, e o ouvidor de Sabará,
José Caetano César Manitti, para escrivão.

Com o recebimento dos referidos presos no Rio, Vasconcelos e Sou-


sa despachou Torres e Cleto para as Gerais, incumbindo-lhes de juntarem
os dois processos. O doutor Marcelino, naquele momento, encontrava-se
a sete léguas da cidade, mais precisamente na sede da freguesia de Nossa
Senhora da Piedade de Magepe, onde erigia uma nova vila106. Ao lado do
colega, entretanto, partiu para Minas no dia 26, chegando a Vila Rica em
15 de julho, logo depois da morte de Cláudio Manuel da Costa na Casa
dos Contos. Porém, embora o visconde de Barbacena tivesse prometido
suspender a devassa aberta em Minas, seguiu-se, nos meses seguintes,
um efetivo conflito jurisdicional entre os dois pares de ministros, que
terminaram por realizar trabalhos paralelos. Tendo podido acompanhar
a inquirição de algumas testemunhas realizada por Saldanha e Manitti,
Torres e Cleto, todavia, não tiveram acesso aos autos. Durante sua es-

106 – Segundo o monsenhor Pizarro, o vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa, “zelan-


do, portanto, a felicidade pública, e promovendo a civilidade nos povos do distrito, sem
pretender jamais o nome perpétuo de fundador, determinou o estabelecimento da vila
por ordem de 9 de junho de 1789, cometida ao ouvidor-geral e corregedor da Comarca
Marcelino Pereira Cleto, por quem foi executado no dia 12 seguinte, levantando-se o
pelourinho, criando-se a câmara, designando-se casa para o seu uso e para a cadeia, e
demarcando-se finalmente os limites de jurisdição”. Cf. José de Sousa Azevedo Pizarro e
Araújo. Memórias históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1820,
tomo III, p. 159.

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tada na capital mineira, estranharam ainda a leniência de Barbacena em


relação a alguns dos denunciados, recomendado-lhe a prisão do tenente-
coronel Francisco de Paula Freire de Andrada e do doutor José Álvares
Maciel, que, quando da chegada dos ministros fluminenses, achava-se
hospedado no próprio Palácio da Cachoeira. Em 12 de outubro, estavam
de volta à cidade do Rio de Janeiro, não sem antes procurarem realizar
inquirições pelo caminho107. Dois meses depois, o doutor José Pedro Ma-
chado Coelho Torres apresentou, através de ofício, um resumo de suas
atividades em Minas, destacando que o “atentado” se tinha de fato “pre-
meditado”, e que causaria “dano irreparável”, embora de curta duração108.
Queixou-se o ministro das resistências do visconde de Barbacena, con-
jecturando que “se buscavam modos de tirar sucintamente o progresso da
mesma diligência”109. Sobre tais resistências, enumerou três exemplos: o
desejo do visconde de torná-lo mero assessor dos procedimentos efetua-
dos em Minas por Saldanha e Manitti; seu intento em impedir a inquirição
do mestre de campo Inácio Correia Pamplona; e a recusa em entregar-
lhe a devassa aberta em Minas, conforme estabelecido pelo vice-rei110. O
visconde de Barbacena, por sua vez, em ofício endereçado a Martinho de
Melo e Castro que acompanhava a remessa dos autos mineiros, datado de
10 de fevereiro de 1790, acusou Coelho Torres e Pereira Cleto de realizar
apenas insignificantes diligências que em nada haviam contribuído para
o esclarecimento do caso. E vinculou sua ida a Minas Gerais à indevida
ingerência do vice-rei em sua jurisdição111.
107 – Duas sínteses dos acontecimentos relatados acima encontram-se na “Introdução
histórica” de Herculano Gomes Mathias e numa longa nota elaborada por Tarquínio de
Oliveira. Cf. Autos de devassa da Inconfidência Mineira. Op. cit., v. 1, pp. 17-30, e v. 9,
pp. 32-3. Sobre a Inconfidência no geral, cf. Kenneth Maxwell. A devassa da devassa.
Trad. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; e João Pinto Furtado. O manto de Penélope.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
108 – “Ofício do desembargador José Pedro Machado Coelho Torres ao vice-rei Luís de
Vasconcelos e Sousa, com certidão anexa. Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1789”. In:
Autos de devassa da Inconfidência Mineira. Op. cit., v. 7, 1977, p. 29.
109 – Idem, p. 32.
110 – Acerca da impossibilidade de se inquirir o mestre de Campo Pamplona, o ofício é
acompanhado de certidão emitida por Marcelino Pereira Cleto. Idem, p. 38.
111 – “Ofício do visconde de Barbacena a Martinho de Melo e Castro, secretário da Ma-
rinha e Ultramar, enviado por mão de Francisco Antônio Rebelo, com a cópia dos autos
de devassa de Minas Gerais. Vila Rica, 10 de fevereiro de 1790”. In: Autos de devassa da

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

Em Lisboa, após receber a cópia dos autos de Minas, bem como a do


processo realizado por Torres e Cleto, remetido por Luís de Vasconcelos e
Sousa, o secretário Martinho de Melo e Castro decidiu, em julho de 1790,
enviar ao Rio um Tribunal de Alçada composto por Sebastião Xavier de
Vasconcelos Coutinho, designando-lhe chanceler da Relação, e pelos de-
sembargadores Antônio Dinis da Cruz e Silva e Antônio Gomes Ribeiro.
Pela mesma época, Vasconcelos e Sousa era substituído pelo conde de
Resende no posto de vice-rei. O desembargador Francisco Luís Álva-
res da Rocha seria indicado escrivão da Alçada, sendo Marcelino Pereira
Cleto o escrivão auxiliar. Sua promoção para a Bahia, contudo, ocorrida
em outubro do mesmo ano, faria com que fosse substituído por José Ca-
etano César Manitti, também agraciado com a Intendência de Vila Ri-
ca112. Mais precisamente, dispensando-o da residência, a rainha nomeou o
doutor Marcelino desembargador da Relação da Bahia com posse de um
lugar na Relação do Porto, que ele deveria assumir depois de seis anos113.
No mesmo mês de outubro, o bacharel José Antônio Valente foi indicado
para substituí-lo na Ouvidoria do Rio de Janeiro.

Depois dos trabalhos concernentes à devassa fluminense, por-


tanto, Pereira Cleto viu diante de si dois caminhos diferentes: seguir
a carreira da magistratura em Portugal ou fixar-se no Rio de Janeiro,
casando-se com dona Humiliana. Conforme se apontou acima, Cleto não
abriu mão do matrimônio, tendo, no entanto, falecido em 1794, dois anos
antes de poder tomar posse no Porto. O aspecto interessante nessa bifurca-
ção na vida do doutor Marcelino consiste em se poder ratificar que, entre
os bacharéis dirigidos às várias partes do Império, mesmo os nascidos no
Reino, seguir carreira não constituía necessariamente a única ou melhor

Inconfidência Mineira. Op. cit., v. 8, 1977, pp. 240-4.


112 – A promoção de Pereira Cleto acompanhou perfeitamente o calendário da premia-
ção dos que serviram no episódio. O “Ofício de Martinho de Melo e Castro ao conde de
Resende, vice-rei, encaminhando relação dos agraciados por sua atuação na repressão da
Inconfidência” é datado de 23 de outubro de 1790. Cf. Autos de devassa da Inconfidência
Mineira. Op. cit., v. 8, 1977, p. 325. A carta régia que nomeia Marcelino Pereira Cleto
desembargador da Bahia, por seu turno, é de três dias depois. ANTT. Chancelaria de D.
Maria I. Livro 36, folha 339.
113 – ANTT. Registro Geral de Mercês de D. Maria I. Livro 22, folha 104.

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Marco Antonio Silveira

alternativa. Apesar de suas ambiguidades, a inserção do portuense Tomás


Antônio Gonzaga na conjuração ocorrida em Minas Gerais, quando já
estava nomeado para o mesmo lugar que seria depois ocupado por Cleto,
é um exemplo disso. Seu primo, Joaquim Antônio Gonzaga, ouvidor do
Serro, na altura da repressão à Inconfidência, teria afirmado, segundo um
denunciante, que estava “timorato”, “tinha ímpetos de deixar o lugar e
se ir embora”, podendo apenas, nesse caso, “ficar riscado do serviço”114.
De toda maneira, as trilhas que conduziam ao Reino e à América não
eram sempre excludentes. Anos mais tarde, em 1802, o parceiro de Cleto
na Inconfidência, José Pedro Machado Coelho Torres, alegando, junto
ao Desembargo do Paço, não ter sido devidamente recompensado pelos
serviços prestados em Minas, requereu a nomeação para o posto de chan-
celer da Relação do Rio de Janeiro. Segundo o peticionário, conquanto
tivesse arriscado a “vida” e a “reputação” em “caso de tanta ponderação e
consequências”, não fora premiado como os demais ministros atuantes na
dita empreitada, pois, alcançando a Relação do Porto de modo ordinário
– para o que teve de esperar dois anos –, chegara à Casa de Suplicação
por antiguidade. O escrivão da Alçada Francisco Luís Álvares da Rocha,
que na ocasião era, assim como ele, desembargador no Rio, “chegando
agora da mesma Relação a esta Corte, fora despachado para a Casa da
Suplicação em atenção a este serviço, sem passar a servir na Relação do
Porto”115. Em suma, Coelho Torres, cuja carreira se iniciara, em 1772,
com o posto de juiz de órfãos da Cidade do Porto, passando depois pela
América, desejava, no final da trajetória, já instalado na confortável posi-
ção de desembargador da Casa da Suplicação de Lisboa, retornar ao Rio
de Janeiro como chanceler.

Encaminhada a consulta ao Palácio de Queluz, o despacho foi bas-


tante expressivo: “Como parece à Mesa, ainda que a diligência alegada

114 – “Memória do sargento-mor Roberto Mascarenhas de Vasconcelos Lobo ao viscon-


de de Barbacena. Vila do Príncipe, 8 de junho de 1790”. In: Autos de devassa da Inconfi-
dência Mineira. Op. cit., v. 3, 1977, p. 398.
115 – ANTT – Desembargo do Paço. Consultas sobre propostas para lugares de justiça.
Março 1912.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

não mereça tanta contemplação”116. Àquela altura, parecia consolidada


a versão segundo a qual a repressão à Inconfidência fora um excesso re-
sultante da ineficácia política do visconde de Barbacena e de seus incon-
venientes conflitos de jurisdição com o vice-rei Luís de Vasconcelos e
Sousa. Tal versão não se deveu unicamente à ascensão de d. Rodrigo de
Sousa Coutinho na Corte, já que, em sua avaliação dos fatos, o próprio
Martinho de Melo e Castro condenara a alienação do visconde no episó-
dio e diminuíra a possibilidade de sucesso da empreitada. Melo e Castro,
aliás, voltando à tese, exposta nas Instruções dadas a Barbacena, de que a
turbulência histórica das Minas se devia a excessos praticados por cléri-
gos, ministros e magnatas, procurou relacioná-la à Inconfidência:
“Enquanto os párocos e o clero procederem nessa Capitania na forma
que os representam diferentes queixas desses povos que têm chegado
à real presença, e que se declaram a VS nas referidas Instruções [...],
não é de admirar que dos mesmos párocos e clero saíssem monstros
tais como o vigário da Vila de São José, Carlos Correia de Toledo, o
cônego Luís Vieira e o padre José da Silva de Oliveira Rolim117.”

Na verdade, quando se analisa a viagem de Torres e Cleto a Minas


Gerais, tem-se a sensação de que o visconde de Barbacena vinha per-
dendo o controle da situação e tentava recuperá-lo avidamente. Distante
das queixas cotidianas da Capitania, instalado no Palácio da Cachoeira, o
novo governador deixou de efetuar a conversação política que lhe permi-
tiria tentar mediar, junto à Coroa, as insatisfações locais. A denúncia de
inconfidência assustou-lhe e exigiu que comunicasse os fatos ao vice-rei,
pedindo-lhe inclusive socorro militar. À medida que foi se inteirando dos
meandros e das ambiguidades do negócio, tentou concentrar os esforços
no sentido de conduzir a investigação e a punição dentro dos limites que
lhe pareciam mais adequados. A nomeação de Coelho Torres e Pereira
Cleto, todavia, ameaçou-lhe o intento, exigindo que, de sua parte, apro-

116 – Idem.
117 – Carta do ministro Martinho de Melo e Castro ao visconde de Barbacena, comu-
nicando o recebimento da devassa de Minas Gerais, que é estudada em vários pontos
e analisada a atuação dos principais implicados no movimento. Anuário do Museu da
Inconfidência. Op. cit., p. 104.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011 167


Marco Antonio Silveira

fundasse e manipulasse mais de perto as investigações. Nessas circuns-


tâncias, destaque-se o fato de que a morte de Cláudio Manoel da Costa
tenha antecedido em poucos dias a chegada dos dois magistrados.

Intromissão
Tomando-se como parâmetro as reflexões do doutor Marcelino acer-
ca da decadência de São Paulo e dos abusos eclesiásticos na América,
bem como sua aversão aos conflitos jurisdicionais, não parece excessivo
sugerir que a Inconfidência consolidou alguns de seus pontos de vista.
A ideia de que uma profunda reforma nos domínios de Sua Majestade,
fundada em pressupostos regalistas, não se opunha à valorização do nati-
vismo e dos costumes locais talvez tenha, para Cleto, se reforçado com o
infortúnio dos inconfidentes punidos. Que tais reformas esbarravam nas
idiossincrasias de ministros, clérigos e governadores, eis um ponto de vis-
ta que, depois dos acontecimentos em Minas, devia continuar partilhando
com Martinho de Melo e Castro. Nesse sentido, era plausível que o com-
portamento do doutor Marcelino viesse a oscilar após as tensões deriva-
das do acúmulo de frustrante experiência no serviço régio, da tentativa
da Relação de escanteá-lo, das dificuldades no implemento da devassa
fluminense e, permeando tudo isso, do medo de ver-se abatido e desonra-
do. Sendo assim, um último conflito antes de deixar o Rio de Janeiro fez
Pereira Cleto subir o tom.

Em 28 de novembro de 1791, já nomeado desembargador, recebeu


um despacho do conde de Resende, que lhe ordenava acatar decisão sua
sobre certo assunto, a despeito de procedimentos jurídicos em andamen-
to. O episódio dizia respeito à ação desenvolvida não propriamente na
Ouvidoria da Comarca, mas na Provedoria dos Defuntos e Ausentes, ten-
do sido até então julgada por Baltazar da Silva Lisboa, como substituto
de Cleto no período de seu envolvimento nos negócios da Inconfidência.
Segundo o vice-rei, com a morte de João de Macedo Portugal, o provedor
interino, “de corrupção” e conluiado com Bento Antônio Moreira, um
“negociante rico”, arrematou-lhe os bens do inventário, desconhecendo
totalmente o direito à herança do sobrinho do defunto, João de Sousa

168 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011


Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

Lobo. Este, sentindo-se lesado, subiu aos pés do conde de Resende, do


que resultou o despacho ao doutor Marcelino, já de volta à Provedoria, no
qual se exigia a entrega dos bens ao legítimo herdeiro118. Em decorrência
da discordância sobre a questão, ambos representaram a Sua Majestade.
De sua parte, Cleto argumentou que a posse do arrematante já havia sido
disputada na própria Provedoria, onde ele obtivera sentença favorável,
confirmada depois pelo Tribunal da Relação. A causa encontrava-se, na-
quele momento, na Casa de Suplicação de Lisboa, aguardando decisão
de agravo ordinário. Desse modo, a contestação do doutor Marcelino não
dizia respeito ao julgamento da causa em si, mas, sim, ao fato de que não
cabia ao vice-rei intrometer-se em tais assuntos de justiça119.

Mas esse não era o único entrevero entre o ouvidor e o vice-rei. De


acordo com Pereira Cleto, desde a chegada de Resende ao governo, os
problemas haviam começado:
“Entraram a aparecer-me logo despachos seus que, confundindo a or-
dem do juízo nos negócios cíveis, infringiam diretamente as leis de
VMaj; uns pude eu disfarçar com prudência, outros só me instavam
por providência na futura correição, e outros pediram de mim uma
resposta pronta com que fizesse patente as leis e ordens de VMaj que
obstavam a execução do que me mandava120.”

O caso da herança de João de Macedo Portugal seria exemplo desse


último tipo de conflito. Despachos da primeira espécie estariam repre-
118 – AHU – RJ. Caixa 148, documento 35; caixa 147, documentos 13, 14, 19, 20, 25 e
31. Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 1791. “Carta do [vice-rei do Estado do Brasil], conde
de Resende, D. José Luís de Castro, à rainha [D. Maria I], sobre as injustiças que estavam
sendo cometidas contra João de Sousa Lobo, sobrinho e um dos herdeiros de João de
Macedo Portugal, pelo ouvidor da comarca do Rio de Janeiro e provedor dos Defuntos
e Ausentes, Marcelino Pereira Cleto, e pelo juiz de Fora, Baltazar da Silva Lisboa, que
permitiram a arrematação dos bens deixados pelo falecido, sem o consentimento de seus
herdeiros”.
119 – AHU – RJ. Caixa 148, documento 36; caixa 146, documento 35; caixa 149, do-
cumentos 48, 49 e 50. 24 de janeiro de 1791. “Carta do ouvidor da comarca do Rio de
Janeiro e provedor dos Defuntos e Ausentes, Marcelino Pereira Cleto, à rainha [D. Maria
I], sobre os conflitos com o [vice-rei do Estado do Brasil], conde de Resende, [D. José
Luís de Castro], acerca do processo de partilha da herança de João de Macedo Portugal e
de uma dívida da Câmara ao empresário da Casa da Ópera, Manoel Luís Ferreira”.
120 – Idem.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011 169


Marco Antonio Silveira

sentados na intenção do conde de obrigar o doutor Marcelino a prover,


em correição na Câmara do Rio, acerca de uma partilha sentenciada havia
anos pelo juiz de fora Baltazar da Silva Lisboa. Do segundo tipo, enfim,
fora a exigência de que o ouvidor arrochasse o Senado da Câmara em
contenda mantida contra o empresário da Casa da Ópera, Manuel Luís
Ferreira. Os três exemplos referidos atingiam em cheio as virulentas dis-
putas por terrenos públicos e propriedades privadas – o principal bem da
herança de Macedo Portugal constituindo-se de um engenho de açúcar –,
além de perpassarem a luta encarniçada contra Silva Lisboa. Note-se, ali-
ás, que o posicionamento de Cleto, fosse ou não por razões estritamente
legais, não descuravam as decisões do juiz de fora. O evento atinente ao
empresário da Ópera era bastante sintomático do vínculo íntimo existente
entre as disputas de autoridades e os interesses particulares. Na versão do
ouvidor, ainda na época de Luís de Vasconcelos e Sousa, por ocasião dos
festejos dos desposórios dos príncipes de Portugal e Espanha, Manuel
Luís Ferreira desejara fazer praça e palanques cercados em terreno públi-
co da marinha, com o intuito de lucrar cobrando a entrada dos que qui-
sessem assistir aos divertimentos. Para isso, contrataria com o Senado da
Câmara¸ pelo uso do espaço e pela licença para tal, o pagamento de 700
mil-réis. Parte expressiva desse montante, contudo, não teria entrado nos
cofres do Concelho, já que os camaristas haviam preferido compensá-la
através de “três óperas públicas em que o povo entrasse gratuitamente”.121
Alegando depois que o dito terreno pertencia de fato à Fazenda Real, Fer-
reira obteve uma portaria do conde de Resende, que obrigou o Senado a
devolver ao empresário o que não devia122.
121 – Idem.
122 – Segundo Nireu Cavalcanti, Manuel Luís Ferreira, natural de Bragança, viveu na
Cidade do Porto, transferindo-se, em 1772, para o Rio de Janeiro, onde casou-se. Assumiu
a administração da nova Casa da Ópera em 1775. “Competente administrador e homem
de negócios, o novo empresário da Casa da Ópera soube relacionar-se com a elite do Rio
de Janeiro, onde passou a viver. Aí fez amigos e fortuna, acumulando um patrimônio
significativo de 21 imóveis, entre os quais o prédio do teatro. O casamento de sua filha
Bernarda Luíza de Lima com o comerciante Miguel da Silva Vieira, em 1802, teve como
um de seus padrinhos o próprio vice-rei d. Fernando José de Portugal, numa inequívoca
confirmação do prestígio que alcançara”. Ferreira obteria ainda a patente de brigadeiro do
Exército português, a comenda da Ordem de Cristo e o título de moço da Câmara Real.
Cf. O Rio de Janeiro setecentista. Op. cit., pp. 174-6.

170 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011


Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

Para além dos intrincados conflitos em torno dos interesses locais,


merece destaque, nas representações de Pereira Cleto e Resende, o tom
agressivo e acusatório. O ouvidor repetiu o hábito de cuidadosamente
fundamentar sua opinião num conjunto amplo de documentos. Em mis-
siva endereçada ao conde como resposta a seu despacho, Cleto citou di-
versas fontes legais, copiando algumas delas, sempre com o intento de
demonstrar ao vice-rei a impropriedade de sua intromissão em assuntos
judiciais. Além das Ordenações, referiu três documentos régios que de-
sautorizavam governadores: a provisão de 6 de agosto de 1715, dirigida
ao ouvidor-geral de Pernambuco, em que o rei lhe mandava não obedecer
aos capitães-generais nos casos envolvendo a administração da justiça de
civis; a provisão de 29 de março de 1723, na qual o monarca declarava
ao vice-rei da Bahia que “o suspender as causas é somente regalia do
príncipe”; e a carta de 30 de setembro de 1769, que advertiu o governador
dos Açores por revogar uma sentença do juiz de fora. Amparado em tal
legislação, Pereira Cleto desafiou o conde:

“Nestes termos, eu não digo a VEx que não obedeço. Conheço a supe-
rioridade do lugar de VEx; conheço a sua representação; conheço que
da minha absoluta resistência se não seguiria utilidade nem ao serviço
de Sua Majestade, nem ao bem e quietação dos vassalos, e que é ne-
cessário, em lugar tão distante do Trono, dar a todos exemplo de obe-
diência e reconhecimento aos superiores que Sua Majestade estabe-
lece; proponho só a VEx, para desempenho do juramento que prestei
de cumprir as leis e ordens de Sua Majestade, para desonerar a minha
consciência, para que se conheça a honra do meu comportamento, as
dúvidas que tem contra si a execução do respeitável despacho de VEx,
para que em tempo algum possam atribuir-se-me as consequências e
prejuízos que dela resultam123.”

E completou, dando a entender a ignorância do vice-rei sobre os as-


suntos em pauta:

“Se a resolução de VEx ainda assim for confirmando a execução que


manda fazer, eu necessito que VEx me declare como nela comportar
123 – Cf. AHU – RJ. Caixa 148, documento 35; caixa 147, documentos 13, 14, 19, 20, 25
e 31. 24 de janeiro de 1791.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011 171


Marco Antonio Silveira

[?] a certos respeitos, se devo ou não ouvir a parte com embargos


daquela natureza que a lei manda atender; ou no próprio processo, ou
em separado; ou com suspensão, ou sem ela. Se os frutos pendentes
hão de ser entregues a João de Sousa Lobo, ou conservar-se em liber-
dade de os colher a quem os plantou. Se os bens semoventes tiverem
perecidos, por conta de quem deve ser esta mortandade, assim como
também se tiverem tido aumento, ou em lugar dos mortos, se tiverem
substituído outros, por conta de quem deve fazer-se isto tudo. Se os
escravos tiverem morrido ou fugido, ou se tiverem vendido e metido
outros de novo, como deverei comportar-me em todos estes casos, ou
em quaisquer outros de semelhante natureza que ocorram na execu-
ção124.”

O conde de Resende acusou o golpe dado pela arrogância de Pereira


Cleto, pedindo, em sua representação, que fosse punido:

“Tem o dito ouvidor a ousadia de juntar à sua representação os do-


cumentos nº 2 e 3, que não tendem a mais do que aniquilar a grande
autoridade que VMaj me confere pela minha patente e regimento, che-
gando ao excesso de dar a entender que sou inconsiderado nos meus
despachos e que transtorno a justiça das partes; sem embargo, porém,
de julgar que tinha toda a razão, à vista do exposto, de fazer executar
o meu despacho; contudo, a moderação com que sempre desejo pro-
ceder, fez com que o mandasse suspender enquanto fazia presente a
VMaj o referido para determinar o que for servida, não só ao referido
assunto, mas para que, achando VMaj justa a minha queixa do dito
ouvidor, que presentemente se acha despachado para a Relação da
Bahia, haja de ser repreendido em qualquer lugar onde estiver, como
merece o excesso que praticou contra a minha pessoa e lugar que
VMaj me confiou125.”

Não é possível saber se o conde recuou do despacho por medo ou se


o doutor Marcelino chegou a ser admoestado. Provavelmente não, pois,
mais uma vez, no Conselho Ultramarino, o parecer do procurador da Co-
roa lhe foi amplamente favorável:

124 – Idem.
125 – Idem.

172 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011


Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

“Esta conta do ouvidor está muito bem feita, e pelos documentos que
a acompanham mostra este ministro que obrou com a justiça que devia
em não cumprir a portaria que lhe dirigiu o vice-rei sobre a entrega
dos bens que se referem, por ser inteiramente oposta às leis e reais or-
dens de SMaj, como o dito ministro lhe expôs na resposta junta: pelo
que entendo se pode declarar a este ministro que fez bem em observar
as ordens de SMaj e não cumprir contra elas a referida portaria do
vice-rei 126.”

Mais do que apontar novamente o cuidado metódico de Pereira Cleto


com os documentos, assim como a relação entre seu espírito acadêmico
e o exercício da administração, tais embates revelam o ponto de conta-
to entre as orientações reformistas do magistrado luso e a difusa crítica
local que, estereotipada ou não, acusava as autoridades vindas do Reino,
especialmente naquele período, de incompetência, venalidade e falta de
caráter. Como fizera o colega Baltazar da Silva Lisboa, o doutor Mar-
celino chegou a informar ao Conselho de Ultramar que, se não estives-
se já despachado para a Bahia, pediria sucessor “para não arriscar por
mais tempo o meu crédito e reputação”127. As confusões resultantes das
atitudes despóticas dos governadores na América eram, contudo, assun-
to antigo. O desembargador Teixeira Coelho já o havia explicitado em
sua Instrução de 1782, nela arrolando quatro tipos principais de abusos,
acrescidos de um catálogo de 51 determinações régias que deviam conhe-
cer os capitães-generais128. Nesse ponto, o teor da carta de Pereira Cleto
ao vice-rei em nada destoava da perspectiva do antigo intendente do ouro
de Vila Rica.

Guerra contínua
Tendo, afinal, terminado seu período no Rio de Janeiro, o doutor
Marcelino tomou posse da Relação da Bahia em 21 de junho de 1791129.
126 – Cf. AHU – RJ. Caixa 148, documento 36; caixa 146, documento 35; caixa 149,
documentos 48, 49 e 50. 24 de janeiro de 1791.
127 – Idem.
128 – José João Teixeira Coelho. Instrução para o governo da Capitania de Minas Ge-
rais. Op. cit., pp. 201-12.
129 – Luís dos Santos Vilhena. A Bahia no século XVIII. Bahia: Itapoã, 1969, v. II, p. 311.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011 173


Marco Antonio Silveira

Faltam, no entanto, as informações sobre os três anos em que serviu nesse


tribunal. Seu nome não poderia constar da longa apreciação feita pelo go-
vernador d. Fernando José de Portugal, em 1799, a respeito de duas quei-
xas sobre os ministros da Relação, que chegaram às mãos de d. Rodrigo
de Sousa Coutinho130. Nela, o capitão-general, ainda que reconhecesse
serem públicas várias das reclamações contra os ministros, em particular
por favorecimento e falta de limpeza de mãos, argumentou que nada po-
deria fazer tendo como base rumores e desconhecendo situações precisas.
Fez ainda questão de demonstrar consciência, afetada ou não, sobre os
limites de seu papel como regedor das justiças131:

“Algumas pessoas me representam continuamente, como acontece em


todos os governos, queixando-se desta ou daquela sentença, deste ou
daquele despacho, e em regra geral lhes defiro remetendo-os para os
meios competentes, que são os que as leis têm estabelecido para deci-
são dos negócios forenses, sendo este também, e não outro, o fim por
que as criaram os magistrados, os diversos tribunais e alçadas132.”

Talvez as palavras de d. Fernando, mais do que defender-lhe da


acusação de conivência com os desmandos praticados na Bahia, signi-
ficassem a expressão de um lento e longo aprendizado. Por outro lado,
manifestavam a prática renitente dos moradores da América, que, insatis-
feitos com a ineficácia dos trâmites judiciais ou desejosos de atropelá-los,
procuravam encontrar nos generais o acolhimento devido. Conquanto os
esforços voltados à tarefa de restringir o despostismo dos governadores
fossem indispensáveis na afirmação do modelo regalista, tenderiam a
tornar-se inócuos se não se encaminhassem também os excessos de ma-
gistrados, clérigos e magnatas, apontados com clareza por Martinho de
Melo e Castro.
130 – O importante documento foi publicado por Braz do Amaral nas páginas 362-72 de
A Bahia no século XVIII. Op. cit.
131 – Embora não pudessem violentar os trâmites judiciais, cabia aos governadores o
dever de administrar seu funcionamento, seguindo, nesse ponto, além de instruções espe-
cíficas de seu cargo, o título 1 do primeiro livro das Ordenações, denominado “Do regedor
da Casa de Suplicação”.
132 – [Carta de d. Fernando José de Portugal a d. Rodrigo de Sousa Coutinho. Bahia, 20
de janeiro de 1799]. In: Luís dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII. Bahia: Itapoã,
1969, v. II, p. 370.

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Nativismo por adoção: letras e percurso do doutor Marcelino Pereira Cleto
(1778-1794)

O desembargador Marcelino Pereira Cleto faleceu na Bahia, em


1794. Nascido de uma família das redondezas de Leiria, cuja nobreza
estava longe de atingir as alturas, dedicou-se com afinco aos estudos para
poder iniciar-se numa carreira que o manteve 16 anos no Brasil e não o
devolveu mais ao Reino. Marcado fundamente pelo espírito acadêmico,
por ele norteou a produção literária e a atuação administrativa. Em certo
sentido, porém, permaneceu sempre conservador, buscando evitar con-
frontos diretos contra o status quo. Nada de relevante disse sobre a escra-
vidão, e seu modelo econômico apenas arranhava com certa heterodoxia
os princípios mercantilistas. Embora parte expressiva dos letrados de sua
geração tenha se dedicado às pesquisas no campo das ciências naturais,
movendo-se por uma orientação bastante pragmática, o doutor Marcelino
compôs um grupo distinto, mas não menos importante, voltado à erudição
e ao conhecimento crítico dos percalços administrativos do Império. No
final do século XVIII, historiadores e juristas também desempenhariam
papel decisivo no descobrimento das realidades americanas133. Defensor
da prova nos assuntos de história e política, abarcou um regalismo que,
almejando reformar instituições e extirpar abusos, deveria articular as vá-
rias partes do Império luso num sistema coerente. Nele, haveria espaço
para o reconhecimento de nativismos e costumes locais. Sua trajetória, no
entanto, parece ter indicado algo mais. A dedicação tão intensa à escrita
da história de São Paulo, o apego aos textos de frei Gaspar da Madre de
Deus, a atenção conferida às necessidades dos proprietários de terra, a
análise das vexações impostas aos povos pelos clérigos e o pedido de au-
torização para casar-se na América consistem num conjunto relativamen-
te encadeado de atitudes, cujo sentido remete à adoção deste ou daquele
lugar da América como nova pátria – um lugar, bem entendido, inserido
no Império reformado. Não deixa de causar espanto, de fato, que um dos
escrivães atuantes na Inconfidência Mineira desejasse enraizar-se no Bra-
sil – ou mesmo que seu parceiro, atingindo o topo da carreira, requerese
voltar ao Rio de Janeiro. Trajetórias desse tipo, por isso mesmo, foram
133 – Acerca do significado da atuação, nos séculos XVIII e XIX, de cientistas naturais
na descoberta das realidades do Brasil, cf. Maria Odila da Silva Dias. Aspectos da Ilus-
tração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, n.
278, jan./mar. 1968, pp. 105-170.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011 175


Marco Antonio Silveira

repletas de contradições. Atravessado pelo medo de ser abatido em meio à


“perseguição e guerra contínua”, ou de se perder na perigosa polarização
entre filhos do Brasil e filhos do Reino, o doutor Marcelino não poderia
passar incólume pelo pesado jogo das relações de poder experimentado
nas conquistas. A observação verticalizada de seu percurso ensina que, se
os modelos escolásticos ou regalistas eram capazes de mobilizar circuitos
letrados, tendo, portanto, impacto bastante concreto sobre a vida social,
eram também, por vezes, atropelados pela belicosidade que moía gente
bem ou mal intencionada.

Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação


em maio /2011.

176 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):115-176, jul./set. 2011


Justiça Ordinária e Justiça Administrativa no Antigo Regime – O caso do brasileiro

JUSTIÇA ORDINÁRIA E JUSTIÇA ADMINISTRATIVA NO


ANTIGO REGIME – O CASO DO BRASILEIRO
Common justice and adminstrative justice in the
Ancient Regime: Brazilian Case Study
Arno Wehling 1
Maria José Wehling 2

Resumo: Abstract:
O texto analisa as atividades extrajudiciais This paper will analyze the extra-judicial activi-
dos magistrados no Brasil colonial e, em sen- ties of Colonial Brazil magistrates as opposed
tido inverso, as atribuições judiciais de outros to the judicial obligations of other elements in
elementos da administração pública, como os public administration, such as those responsible
provedores da fazenda. Os autores trabalham for public finances. The authors’ hypothesis is
com a hipótese que, sobretudo em fins do século that - mostly at the end of the Eighteenth centu-
XVIII, a administração colonial brasileira era, ry – Brazilian colonial administration was, per
numa perspectiva weberiana, mistura de formas the Weberian perspective, a mix of bureaucratic
burocráticas e patrimoniais, que poder-se-ia de- and patrimonial forms that could be called
nominar “prismáticas”. “prismatic”.
Palavras-chave: Justiça colonial – justiça ad- Keywords: Colonial justice – Administrative
ministrativa – estado colonial – administração justice – Colonial state – Colonial Brazil.
colonial – Brasil colonial.

Observação conceitual preliminar


O conceito de “administração prismática” pode ser com proveito
aplicado ao Brasil do Antigo Regime, em particular no que se refere ao
século XVIII.

No livro “Administração colonial no Brasil, 1777-1808”, de 1986,


afirmou-se que o traço característico dessa administração era justamente o
seu caráter prismático, isto é, um misto de instituições, normas e práticas
e mentalidades “modernas” ou sistêmicas que conviviam, frequentemen-
te de forma harmoniosa, como o modelo “tradicional” ou empírico. 3

1 – Professor Titular de História do Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de


Janeiro (UNIRIO) e da Universidade Gama Filho. Sócio do Instituto Histórico e Geográ-
fico Brasileiro.
2 – Professora Emérita de Teoria e Metodologia da História da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Titular de História do Direito da Universidade
Gama Filho.
3 – Wehling, Arno, Administração portuguesa no Brasil, 1777-1808, Brasília, Fun-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):177-200, jul./set. 2011 177


Arno Wehling e Maria José Wehling

Aplicou-se, assim, a matriz weberiana de análise das sociedades


estamentais/tradicionais e racionais/modernas a uma época – o século
XVIII – que, no mundo euro-atlântico, evidenciava a emergência do novo
(indústria, racionalismo, direitos humanos) no contexto do velho4 – “vi-
nho novo em odres velhos”.

Recurso metodológico semelhante foi empregado por alguns soció-


logos e formuladores de políticas administrativas a países em desenvolvi-
mento, constatando a simultaneidade de situações empíricas/tradicionais
e racionais/modernas nos diferentes escalões da administração pública e,
também, privada. 5

No estudo sobre o ofício de julgar no Antigo Regime, o procedimen-


to pode revelar-se fecundo.

A questão da justiça e do seu funcionamento é dos problemas histó-


ricos mais difíceis. Há muito tempo Marcel Marion dizia a este respeito
que “não há no estudo do Antigo Regime questão mais vasta e mais im-
portante que a da justiça, e também mais complicada” 6.

cep, 1986, p. 10 ss.


4 – Na tipologia weberiana, admite-se que no âmbito da “dominação tradicional”, à qual
pertence a sociedade estamental (quer na sua versão patrimonialista, quer na feudal), a
administração pública possui um caráter concentrado, com poucos órgãos executando um
grande número de funções, o que limita ou mesmo inviabiliza a existência de funcioná-
rios profissionais, regidos por normas e critérios técnicos. Ao contrário, na “dominação
legal”, a administração pública passa a ser burocratizada com especialização de funções,
carreiras e normas de acesso e atuação; adquire, assim, um caráter difratado. As situa-
ções típicas do Antigo Regime quer pela impossibilidade metodológica de um modelo
sociológico puro adequar-se plenamente a uma situação histórica concreta, quer por se
caracterizarem como um misto das duas dominações da matriz weberiana, configuram um
terceiro modelo. Elas não são, no que diz respeito ao governo e à administração, nem ple-
namente concentradas nem difratadas, mas obedecem a um outro tipo que possui traços de
ambos: o modelo prismático, no qual convivem o acúmulo e a especialização de funções,
às vezes, – como nos tribunais – na mesma instituição. Max Weber, Economia y sociedad,
México, FCE, 1944, v. IV, pp. 130 ss.
5 – Riggs, Fred, A administração nos países em desenvolvimento, Rio de Janeiro,
FGV, 1970, p. 5 ss.
6 – Marion, Marcel, Dictionnaire des institutions de la France, XVIIe.-XVIIIe. s.,
Paris, A. J. Picard, 1993, p. 314.

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Justiça Ordinária e Justiça Administrativa no Antigo Regime – O caso do brasileiro

A introdução da categoria “prismática” pode auxiliar no enfrenta-


mento da questão. Ela é deduzida, embora não reproduzida, de Weber,
que não a empregou. Admiti-la poderá dar mais flexibilidade à tipologia
das “dominações” legal, tradicional e carismática. Ela revelou-se fecunda
em diferentes análises, inclusive naquela feita a propósito da ambivalên-
cia dos elementos que compunham o estado metropolitano e colonial, em
particular no século XVIII. 7

Nessa aplicação, ficou muito evidente a coexistência de dois univer-


sos institucionais, sociais, culturais e normativos, o primeiro atendendo à
realidade de uma sociedade estamental, agrária, predominantemente anal-
fabeta, oscilando entre a magia e a religião; o segundo, correspondendo
ao desenvolvimento da “crise da consciência europeia”, desenhando a so-
ciedade de classes, a revolução industrial, o racionalismo filosófico. Sem
deixar de perceber nuanças que desaconselhem uma rígida bipolaridade,
o modelo descreve com certa verossimilhança, as situações, conflitos e
ações singulares que lemos nos documentos da época.

Será possível aplicar o procedimento com sucesso ao ofício de julgar


no Antigo Regime ibérico e em seu mundo Colonial?

Há dois aspectos a considerar.

O primeiro é o da sucessão cronológica. À medida que chegamos


ao século XVIII e nele avançamos, distingue-se no setor profissional da
justiça o dos magistrados, que fizeram um “cursus honorum”, passando
da Universidade de Coimbra ao serviço do rei por meio de exames orga-
nizados pelo Desembargo do Paço, as “leituras de bacharéis”. No serviço
real galgavam postos hierarquicamente estabelecidos. Esses magistrados,
acompanhando uma tendência que nesse século estender-se-ia a outras
áreas da administração, tornaram-se cada vez mais profissionais, obe-
dientes a estatutos específicos e inserindo-se em carreiras predefinidas.
Tal perfil da magistratura oficial, que já vinha de antes do século XVIII,
7 – Wehling, Arno, Administração…, op. cit., pp. 142 ss. Arno Wehling e Maria
José Wehling, Direito e justiça no Brasil Colonial – o Tribunal da Relação do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, Renovar, 2004, pp. 302 ss.

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Arno Wehling e Maria José Wehling

só fez reforçar-se à luz dos argumentos iluministas a favor da racionali-


zação do estado.

A atuação desses magistrados, não obstante, completava-se pela de


outros oficiais da administração judicial que continuaram sendo selecio-
nados pelos critérios tradicionais – prebendas reais, compra dos ofícios,
inexistência de qualificação prévia.

Assim, tratava-se de um modelo prismático em funcionamento: a


elite profissional de magistrados exercia a justiça com funcionários pre-
bendariamente instituídos. Constatamos esse funcionamento no Tribunal
da Relação do Rio de Janeiro entre 1752 e 18088, mas ele se reproduzia
pelos tribunais, ouvidorias e juizados de fora do mundo português – e
também espanhol9.

Não devemos esquecer o fato primordial: o contexto em que esse


processo evolui é o de uma sociedade patrimonialista, em que os traços
inovadores vinculados ao racionalismo ilustrado caldeiam-se num movi-
mento geral (ou “estrutural”) predominantemente “tradicional”, na sua
versão patrimonialista. Este, aliás, ultrapassa o Antigo Regime e adentra,
vitoriosamente, no caso brasileiro e hispano-americano, a era constitu-
cional10.

O segundo aspecto é o que pretendemos desenvolver neste trabalho.


O caráter prismático de uma estrutura de poder não se revela, apenas, por
sua sucessão cronológica – no caso, a transição (na tipologia weberiana)

8 – Idem, Direito…, pp. 456 ss.


9 – Assinalando o fato mas sem trabalhar a categoria weberiana, Grandón, Javier
Barrientos, Guia prosopográfica de la judicatura letrada indiana (1503-1898), in
José Andrés-Gallego, “Nuevas aportaciones a la historia jurídica de Iberoameri-
ca”, Madri, FHT – FHL, 2000, CD-Rom; José Maria Mariluz Urquijo, El agente de la ad-
ministración publica em Índias, Buenos Aires, IIHDI-IIHD, 1998, pp. 151 ss. Bernardino
Bravo Lira, Oficio y oficina. Dos etapas em la historia del Estado indiano, Quito, Anuá-
rio Histórico Jurídico Equatoriano, tomo V, 1980; Michel Cassan (coord.), Lês officiers
“moyens”à l’époque moderne – France, Angleterre, Espagne, Limoges, Pulim, 1998, p.
V.
10 – VÉlEz RodrÍguez, Ricardo, Patrimonialismo e a realidade latino-america-
na, Rio de Janeiro, DHE, 2006, pp. 38 ss.

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Justiça Ordinária e Justiça Administrativa no Antigo Regime – O caso do brasileiro

entre uma sociedade e um estado “estamentais” ou de ordens e uma so-


ciedade de classes e um estado racionalmente ordenado.

Ele se revela, também, pela coexistência, nas estruturas de poder,


de uma transversalidade funcional: o ofício de julgar não era, no Antigo
Regime, exclusivo de magistrados (entendidos aqui no sentido de juízes),
mas podia ser exercido, conforme situações legalmente determinadas, por
outras autoridades, para o atendimento de situações específicas. A recí-
proca também era verdadeira: os juízes (e ouvidores, e desembargadores)
exerciam funções de administração e de governo que nada tinham a ver
com a judicatura.

A explicação dessa transversalidade funcional, prismática, da admi-


nistração do Antigo Regime estava no modelo concentrado de exercício
de poder pelo rei e sua administração ou, na terminologia da época, do
governo.

As funções executivas, judiciais e legislativas estavam concentradas


em quem exercia o poder. Na Idade Média, isso compreendia também
os senhorios leigos e eclesiásticos e as cidades, aos quais se sobrepuse-
ram – não sem conflitos e tensões – os esforços centralizadores reais11.
Essa concentração de funções, tão distante da tripartição de poderes de
Montesquieu e das concepções do racionalismo ilustrado, revelou-se cada
vez mais inadequada. Isso se evidenciou à medida que as transformações
materiais e intelectuais dos séculos XVI, XVII e XVIII foram mostrando
a necessidade de estruturas organizacionais, tanto públicas, quanto pri-
vadas, mais elaboradas e mesmo sofisticadas, especialmente nos terrenos
escorregadios e complexos da guerra e das finanças.

O caráter empírico e casuístico desse modelo de administração e


de exercício de poder gerou, sobretudo ao final do processo, no século
XVIII, tensões e conflitos de competência que enchem os arquivos.

11 – Brunner, Otto, Estrucutura interna de Occidente, Madri, Alianza, 1991, p. 102.


Emmanuel le Roy Ladurie, O estado monárquico, São Paulo, Companhia Das Letras,
1994, pp. 9 ss.

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Arno Wehling e Maria José Wehling

O propósito desde trabalho é analisar como isso ocorreu no âmbito


da justiça colonial, e por quê.

O ato de julgar no Antigo Regime e a jurisdição real

O ato de julgar, no mundo ocidental, sempre foi um dos atributos


majestáticos, mesmo quando o conceito de soberania ainda não estava so-
lidamente estabelecido. O jurista francês La Roche Flavin, nos primeiros
anos do século XVII, o considerava um dos cinco atos de suprema sobe-
rania, ao lado da elaboração das leis, da criação de ofícios, da declaração
da paz e da guerra e da emissão de moeda12.

A justiça foi considerada, aliás, usualmente, o atributo mais impor-


tante, pois, nela atuando, o rei não apenas zelava pelo equilíbrio e harmo-
nia da sociedade como exercia, no plano humano, o mesmo papel atribu-
ído a Deus no Antigo e no Novo Testamento13.

No preâmbulo das Ordenações Afonsinas, o rei Afonso VI, em 1443


afirma ser “conhecida cousa.... que o principal bem, que se requer para
ministrar justiça, assim é sabedoria, porque... é por ela que reinam os reis
e são poderosos para ousadamente com louvor e exalçamento do seu Real
Estado reger e ministrar justiça” 14.

O discurso permanece o mesmo nas Ordenações Manuelinas, em


1521: “porque assim como a justiça é a causa mais principal, porque com
a graça de Deus por ela reinamos e a ela sobre todas as coisas deste mun-
do tenhamos por isso maior obrigação, para com equidade sempre a guar-
darmos a todos...” 15.

12 – Lapeire, Henri, Le XVIe. Siècle – les forces internationales, Paris, PUF, 1967, p.
232.
13 – Eram, alias, comuns as referências bíblicas na documentação coeva, especialmente
nas acepções de retribuição (dar a cada um o que lhe é devido), como em Sab. 5, 6-9; Is.
5, 16, 56; Dn. 9; retidão do julgador, Sl. 9,9; 95, 10; Is. 11, 3; At. 17, 31; Apoc. 19, 11; e
equidade, Rs 3,6; Prov. 2,8; 8; 20.
14 – Ordenações Afonsinas, FCG, Lisboa, , 1998, v. I, p. 4.
15 – Ordenações Manuelinas, FCG, Lisboa, , 1984, v. I, p. 2.

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Justiça Ordinária e Justiça Administrativa no Antigo Regime – O caso do brasileiro

Em 1595 repete-se na lei em que se determina a elevação das Orde-


nações Filipinas: “considerando nós quão necessária é em todo o tempo a
justiça, assim na paz como na guerra, para boa governança e conservação
da República e do Estado Real, a qual aos reis convém como virtude prin-
cipal e sobre todas mais excedente...” 16.

O exercício da justiça pelo soberano confere-lhe, com base na pree-


minência moral de ser o regulador da sociedade e o corretor de seus dese-
quilíbrios, um notável poder interventor, por intermédio de seus magistra-
dos. Não surpreende, portanto, o fortalecimento da centralização ter sido
acompanhado pelo espraiamento da justiça real para campos onde ante-
riormente não se exercia (na França, a partir da subtração de elementos
do direito material ou processual à justiça senhorial e eclesiástica, com os
“cas royaux”, desde o século XII; em Portugal, pela ação sistemática dos
corregedores, também na Idade Média). Ou, ainda, quando o poder real já
se consolidava, a caracterização de uma justiça real diretamente exercida
e uma justiça concedida17, que visava compreender as anteriormente au-
tônomas – ou mesmo independentes, no caso da ausência ou debilidade
extrema do poder central – justiças senhorial, eclesiástica e municipal.

Essa caracterização implica a adoção de uma tipologia na qual temos


trabalhado para o estudo do Brasil colonial.

A grande bipartição ocorria entre a justiça real diretamente exercida


pelos magistrados e outros delegados do poder real e a justiça concedida.
No caso da primeira, ela compreendia a justiça ordinária (tribunais da re-
lação, ouvidorias de comarca e juizados de fora) e a justiça especializada
(justiça militar, juízes especializados na área fiscal, de águas e matas, de
defuntos e ausentes). As nuanças da questão e as interações entre as duas
justiças foram estudadas em outro local18.
16 – Ordenações Filipinas, FCG, Lisboa, 1985, v. I, p. LXXVIII.
17 – Sueur, Philipe, Histoire du droit public français, XVe.-XVIIIe. Siècles, Paris,
PUF, 1989,v. II, pp. 163 ss. Arlette Lebrige, La justice du Roi – la vie judiciaire dans
l’ancienne France, Paris, Complexe, 1995, pp. 24 ss.
18 – Wehling, Arno e Wehling, Maria José, Atribuições e limites da justiça
colonial, in Maria Beatriz Nizza da Silva (coord.), De Cabral a Pedro I – aspectos da
colonização portuguesa no Brasil, Lisboa, Universidade Portucalense, 2001, p. 247. Re-

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Arno Wehling e Maria José Wehling

No caso da justiça concedida, ela compreendia a justiça eclesiástica,


a justiça municipal e os vestígios (no caso da Europa) da justiça senhorial;
desta última houve traços em algumas das atribuições dos donatários de
capitanias.

diretamente exercida (magistrados diversos)

Justiça real eclesiástica


Concedida municipal
senhorial (resíduos)19

19

Fica evidente que se considera aqui um processo adiantado de cen-


tralização, ainda que não de “absolutismo” 20. Somente este fato justifica
a categorização de “justiça concedida” para a eclesiástica, a municipal e
a senhorial, que na época plena do feudalismo / regime senhorial eram
efetivamente independentes, na ausência ou fragilidade extrema do poder
real.

Primeira situação prismática: funções extrajudiciais dos magistra-


dos da justiça real diretamente exercida

Os magistrados da justiça real diretamente exercida, no Brasil co-


lonial, eram os ouvidores-gerais dos estados do Brasil e do Maranhão
(aqueles, antes do estabelecimento do primeiro tribunal da Relação na

publicado com alterações em Direito e justiça..., op cit., p. 25.


19 –1Trabalhamos este tipologia em Direito e justiça...op cit, passim.
20 – Estamos considerando as profundas diferenças entre a “monarquia clássica” absoluta
dos séculos XVI e XVII e o “absolutismo”de fins do século XVII e século XVIII. Cf.
discussões em diferentes historiografias nacionais, por exemplo, F. Cosandey e R. Desci-
mon, L’absolutisme em France, Paris, Seuil, 2002; H. L. Root, La construction de l’état
moderne em Europe – La France et l’Angleterre, Paris, PUF, 1994, p. 239; R. Bonney, O
absolutismo, Lisboa, PEN, 1991, p. 37 ss.; R. Asch e H. Durchhardt (eds.), El absolutis-
mo: um mito ? , Barcelona, Idean, 2000, pp. 43 ss.

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Justiça Ordinária e Justiça Administrativa no Antigo Regime – O caso do brasileiro

Bahia), os ouvidores de capitanias da Coroa, os juízes de fora, os ouvido-


res de comarcas e os desembargadores dos tribunais da Bahia e do Rio de
Janeiro. Todos, sem exceção, exerciam atividades extrajudiciais, além das
funções típicas da magistratura.

Essas funções podem ser classificadas em funções de governo (su-


pervisão, assessoria, substituição eventual de governantes) e funções de
administração (fomento e supervisão de atividades econômicas, super-
visão da gestão de aldeamentos indígenas, ações policiais em relação a
contrabando e descaminhos) 21.

Alguns exemplos podem esclarecer melhor a questão, a começar pe-


las próprias Ordenações: o item 68 do Livro I, que trata dos corregedores
de comarcas, atribui um extenso papel judicial e extrajudicial (inclusive
quanto à redação dos forais e preservação dos interesses políticos e fiscais
do monarca) aos ouvidores, no que foi interpretado pela historiografia
desde o liberalismo como a pedra de toque da política centralizadora da
realeza22.

No Brasil o quadro não foi distinto.

Na ausência do regimento do primeiro ouvidor, Pero de Góis, a solu-


ção encontrada pelos pesquisadores, desde Varnhagen, foi trabalhar com
inferências, a partir dos regimentos dados em 1628 ao ouvidor-geral Pau-
lo Leitão de Abreu, antigo desembargador da relação do Porto e em 1630
ao bacharel Jorge da Silva Mascarenhas23.

Ao ouvidor-geral determinava-se, em 1628, entre outras atribuições


extrajudiciais, a supervisão dos capitães de capitania e das câmaras mu-
21 – Atribuições semelhantes ocorriam na América espanhola. Wehling, Arno e
Wehling, Maria José, Audiências e relações: atividades judiciais, políticas e admi-
nistrativas, in Direito e justiça, op cit, pp.343 ss. Ricardo Zorraquín Becu, La organizaci-
ón judicial argentina em el período hispânico, Buenos Aires, Perrot, 1959, pp. 24 ss.
22 – MerÊa, Paulo, Estudos de história do direito, Coimbra, CE, 1923, pp. 50 ss.
Américo Jacobina Lacombe, O estado português no Brasil, in Digesto Econômico, 1958,
sep., p. 5.
23 – Varnhagen, Francisco Adolfo de, História geral do Brasil, São Paulo,
CEN, 1975, v. II, p. 202.

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Arno Wehling e Maria José Wehling

nicipais24. Em 1630 reiterava-se a supervisão aos governadores de capi-


tanias e acrescentava-se competência ao ouvidor para receber agravos
interpostos a decisões da justiça eclesiástica25.

No caso do ouvidor-geral do Rio de Janeiro, dava-se a ele a mesma


atribuição de corregedor de que dispunham os ouvidores portugueses,
mas estendida à supervisão dos titulares das capitanias privadas, a fim de
verificar “se os donatários usam de mais poder e jurisdição do que lhes
são concedidos por suas doações, provisões minhas e forma da Ordena-
ção” 26. Além dessa atribuição de supervisão do governo local, era tam-
bém incumbido de visitar as minas de São Paulo, “ordenando que delas
se tire ouro e se frequentem, e ponham em boa arrecadação os direitos de
minha fazenda” 27. No caso de defuntos, ausentes e órfãos, em algumas
circunstâncias, como a da ausência do respectivo provedor, era ele o en-
carregado não apenas das atuações de natureza judicial, como da própria
gestão dos bens.

A prevenção do conflito entre o ouvidor-geral e o provedor-mor da


fazenda, “querendo cada qual aumentar a sua jurisdição” 28 era fato bem
conhecido do governo. Para evitá-lo, recomendava-se no regimento do
ouvidor que as causas especificamente fazendárias seriam da compe-
tência do provedor e não da ouvidoria. Dava-se a solução, assim, para
resolver pragmaticamente conflitos frequentes e não em nome de uma
racionalização ou planejamento de natureza sistêmica.

Ao ouvidor de comarca e ao juiz de fora, quando foram sendo con-


solidados esses cargos ao longo da história colonial, coube atribuições de
natureza semelhante.

24 – Justino de Andrade e Silva, Collecção chronologica da legislação portugueza, Lis-


boa, F. X. Sousa, 1855, v. IV, pp. 124-127.
25 – Idem, v. IV, pp. 167-171.
26 – Regimento do ouvidor-geral João de Abreu e Silva, in Mendonça, Marcos
Carneiro de, Raízes da formação administrativa do Brasil, Rio de Janeiro, CFC-
IHGB, 1972, v. I, p. 83.
27 – Ibidem.
28 – Idem, v. I, p. 85.

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Justiça Ordinária e Justiça Administrativa no Antigo Regime – O caso do brasileiro

O ouvidor de comarca, sobretudo no século XVIII, foi um efetivo


governante, de direito e de fato, das extensas áreas sob sua jurisdição.
São diversos os exemplos de sua atuação, inclusive, nas atividades de
fomento econômico determinadas pelo governo português em diferentes
capitanias29.

Papel não menor coube ao juiz de fora, que frequentemente atuou


como administrador de bens de defuntos, ausentes e órfãos e como auto-
ridade civil em diferentes situações, presidindo a câmara municipal – sua
principal atribuição fora das judiciais – e atuando em ocasiões críticas,
como na ocupação francesa do Rio de Janeiro, em 1711.

Os desembargadores dos tribunais da Relação da Bahia e do Rio de


Janeiro tiveram responsabilidades semelhantes e até mais amplas, quer
definidas expressamente nos regimentos das casas, quer implementadas
na prática institucional por meio de interpretações extensivas geralmente
dadas pelos governadores-gerais e vice-reis.

Na Relação da Bahia, o regimento de 1652 determinava que as re-


sidências trienais de funcionários coubessem a um desembargador “de
muita confiança”, não apenas dos ofícios de justiça, mas também nos da
fazenda30. O desembargador promotor da justiça era o mesmo procurador
dos feitos da Coroa, fazenda e fisco, cabendo-lhe assim funções de minis-
tério público e advogado dos interesses régios31.

Ao governador-geral ou vice-rei do estado, na sua condição de pre-


sidente da Relação caberia zelar pela proteção dos indígenas amigos e da
preservação das matas. A inserção desses dois quesitos nas atribuições do
governante na qualidade de dirigente máximo do tribunal faz supor que
caberia a este órgão, por seus membros, a responsabilidade executiva ou
governativa do assunto, pelo menos sempre que acionado pelo governan-
te.

29 – O assunto foi estudado em Wehling, Arno, Administração..., pp. 142 ss.


30 – Regimento do Tribunal da Relação da Bahia, tít. I, it. 17, in Almeida, Cândido
Mendes de, Auxiliar Jurídico, Lisboa, FCG, v. I, p. 15.
31 – Idem, tít. VI.

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Arno Wehling e Maria José Wehling

Mais tarde, na Bahia e também nas Relações do Rio de Janeiro, cria-


da em 1751 e de São Luís, em 181232, além da reiteração daqueles aspec-
tos, determinou-se que a eleição dos membros das câmaras municipais
das capitais caberia aos tribunais, o mesmo ocorrendo nas cidades com
os juízes de fora, quando existissem. Esse fato foi interpretado na his-
toriografia, corretamente pelas evidências disponíveis, como meio para
acentuar a centralização política e o controle da burocracia real sobre os
“homens bons”, em algumas vilas notoriamente refratárias à ingerência
estatal nos assuntos municipais.

Ainda no âmbito expresso dos regimentos, determinava-se nos das


Relações do Rio de Janeiro e de São Luís que ao desembargador juiz
dos feitos da Coroa e Fazenda caberia, além das funções judiciais, a de
almotacel-mor das respectivas capitais “para fazer prover a cidade, ou
outro lugar sobredito, de mantimentos, expedindo por seus oficiais as di-
ligências precisas” 33. Embora não fosse atribuição do mesmo magistrado
pelo regimento da Bahia, é de supor-se que esta responsabilidade foi-lhe
acrescida em algum momento posterior, já que no regimento fluminense
basicamente repetiram-se estruturas e funções daquele.

Outros exemplos de atuação administrativa e política dos desem-


bargadores são as numerosas assessorias por eles dadas aos vice-reis e
governadores gerais, as ações diretas de natureza policial (por exemplo,
a repressão ao contrabando em navios surtos no porto) e os trabalhos de
demarcação de limites entre capitanias. Tudo isso, sem ignorar a sucessão
do próprio governador ou vice-rei em caso de vacância do cargo, em geral
em conjunto com o bispo e o militar mais graduado, como aconteceu no
Rio de Janeiro, em 1763.

Segunda situação prismática: funções judiciais exercidas por fun-


cionários administrativos

No regimento dado ao primeiro provedor-mor do estado do Brasil,


Antonio Cardoso de Barros, de 1548, determinava-se que a ele e não ao
32 – Títulos IV e IX dos respectivos regimentos.
33 – Regimento do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, op. cit., tít. VIII, it. 98.

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Justiça Ordinária e Justiça Administrativa no Antigo Regime – O caso do brasileiro

ouvidor-geral caberia o conhecimento de todas as apelações e agravos de


decisões dos provedores e mais oficiais de fazenda, tanto da Bahia quanto
das demais capitanias. Caberia, também, o conhecimento das ações novas
no lugar em que estivesse e num raio de cinco léguas. Em ambos os casos
sua alçada iria até dez mil-réis. Ultrapassando-os, deveria julgá-los na
Bahia, devendo para isso o governador Tomé de Sousa fornecer-lhe dois
letrados “e não os havendo será com duas pessoas quais lhe a ele bem
parecer” 34. Garantia-se, assim, para as causas de maior valor, o princípio
da colegialidade, não obstante a preeminência do provedor.

É de observar, também, que pelo mesmo regimento o juízo privativo


dos assuntos referentes às sesmarias e outras doações de terras e águas
cabia ao provedor-mor e não ao ouvidor-geral35.

No caso dos provedores de capitanias, que até 1548 ainda não ha-
viam recebido regimento, o princípio foi o mesmo. Cabia-lhes conhecer
por ação nova “todos os feitos, causas e dúvidas que se moverem sobre
coisas que toquem à minha fazenda” 36, quer entre os respectivos oficiais,
quer entre eles e os contribuintes. Mesmo nas situações em que não mais
estivessem em causa os rendimentos reais, os provedores constituíam-se
no juízo competente, de cujas decisões não caberiam mais apelação ou
agravo até a alçada de dez mil-réis. Nos casos excedentes, caberia recurso
ao provedor-mor37.

Como as provedorias de fazenda estenderam-se até o século XVIII,


pode-se considerar a existência, prolongada, de uma jurisdição fazendária
específica por um largo período, a maior parte da época colonial.

Esse princípio reproduzia-se38 em outros setores. No regimento das


terras minerais do Brasil, de 1603, determinou-se que havendo concor-
34 – Regimento do Provedor-Mor, in Mendonça, Marcos Carneiro de, op cit,
v. I, p. 93.
35 – Idem, v. I, p. 94.
36 – Regimento… in Mendonça, Marcos Carneiro de, op. cit., v. I, p. 102.
37 – Idem, v. I, p.103.
38 – 1. Regimento das Terras Minerais do Brasil, in Mendonça, Marcos Carnei-
ro de, op. cit., v. I, p. 300.

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Arno Wehling e Maria José Wehling

rência de descobridores de betas de metal, receberia a concessão aquele


que primeiro chegasse ao provedor das minas ou, na ausência deste, ao
“juiz da terra”, atribuindo-se a este, portanto, função administrativa, ain-
da que supletiva. Inversamente, o item 58 do mesmo regimento atribuía
ao provedor decisão irrecorrível sobre causas até 60 mil-réis, com apela-
ção e agravo em valores superiores para o provedor-mor da fazenda. Se
a sentença do provedor das minas de alguma forma embaraçasse a extra-
ção, sendo as causas superiores a 60 mil-réis, deveria providenciar para
que não se interrompesse a produção, promovendo os ajustes pecuniários
quando da decisão final39.

Em 1618 o segundo regimento das minas brasileiras tornou mais ex-


plícita a função judicial do provedor. No item 9 do regimento definia-se
o provedor como “pessoa de muita confiança... e conhecerá somente das
causas tocantes às ditas minas, nas quais procederá breve e sumariamente;
e das sentenças que der, dará apelação e agravo para a Relação da Bahia,
passando a quantia de cem cruzados em bens móveis e de cinquenta nas
de raiz, que só terá alçada” 40.

Semestralmente, também lhe cabia instituir devassas para identificar


e punir descaminhos e contrabando procedendo “contra eles na forma das
minhas Ordenações e Regimentos”, vale dizer, administrativa e judicial-
mente41.

Na área militar houve igualmente um número significativo de atri-


buições judiciais, enquanto não se caracterizou expressamente um foro
ou justiça militar. Assim, o regimento das Ordenanças, de 1574, dava
jurisdição aos capitães de companhias para punir com multas aos solda-
dos faltosos, dando disso ciência ao juiz de fora (o que não se aplicava ao
Brasil até o início do século XVIII) 42. O chefe da bandeira tinha também

39 – Idem, v. I, p. 310.
40 – 2. Regimento das Terras Minerais do Brasil, in Mendonça, Marcos Carnei-
ro de, op. cit., v. I, p. 317.
41 – Idem, v. I, p. 320.
42 – Regimento de Ordenanças, in Mendonça, Marcos Carneiro de, op. cit., v.
I, p. 175.

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Justiça Ordinária e Justiça Administrativa no Antigo Regime – O caso do brasileiro

poder de julgar os componentes da expedição, inclusive até a pena capi-


tal, como se verificou no caso do filho de Fernão Dias Pais43. O parâmetro
para isso era o próprio livro V das Ordenações, embora sejam conhecidos
alguns regimentos em que expressamente se atribui esta jurisdição44.

Quando do estabelecimento do regimento dos governadores


das armas, de 1678, mais tarde modificado pela legislação de 1763,
definiram-se as funções de auditores de guerra e delineou-se uma jurisdi-
ção especificamente militar, retirando-lhe o caráter prismático ou misto.

Cabe também lembrar, no âmbito de funções administrativas e go-


vernativas com expressão jurisdicional, o papel dos capitães de aldeias
indígenas. Na lei de 1611 que reiterou o direito dos índios à liberdade,
sempre que não hostilizassem os portugueses, o item 5 determinava a
competência do capitão da aldeia para ser “o juiz das causas dos ditos
gentios, assim das que eles moverem uns contra os outros, como das
que moverem contra outras quaisquer pessoas, ou as tais pessoas contra
eles”45. Teria alçada nos casos cíveis até 10 cruzados e nos crimes até
trinta dias de prisão. Excedida esta alçada, daria apelação ou agravo para
o ouvidor da capitania; nos casos em que não fosse sua a competência,
declinaria para o provedor-mor dos defuntos da Relação da Bahia.

Finalmente, o tribunal da bula da cruzada teve bem definida sua com-


petência exclusiva para atuar administrativa e judicialmente no regimento
que lhe foi dado em 1621. Nele deveria ser tomado o conhecimento “de
todas as causas e negócios que diretamente ou por qualquer modo toca-
rem à expedição da bula”, sublinhando-se que “em nenhum outro juízo ou
tribunal se tomará conhecimento do sobredito” 46.

43 – Ferreira, Waldemar, História do direito brasileiro, São Paulo, Max Limo-


nad, 1956, v. IV, p. 63.
44 – Cidade, Hernani, O bandeirismo paulista na expansão territorial do Brasil,
Lisboa, ENP, s/d.
45 – Lei sobre a liberdade dos índios, de 1611, in Mendonça, Marcos Carneiro
de, op. cit., v. I, p. 327.
46 – Regimento do Tribunal da Bula da Cruzada, in Mendonça, Marcos Carnei-
ro de, op. cit., v. I, p. 528.

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Arno Wehling e Maria José Wehling

Entidade meramente administrativa, com o objetivo de recolher con-


tribuições voluntárias, embora proporcionais ao patrimônio e rendimento
dos contribuintes, o tribunal da bula da Cruzada conseguiu, assim, um
espaço institucional que o isentava de qualquer supervisão jurisdicional.
Estruturado num comissariado geral e comissariados e juízos setoriais,
o tribunal admitia apelação e agravo dos interessados, porém das deci-
sões dos escalões inferiores para o comissário-geral e não para a justi-
ça comum, o que lhe dava um caráter de ente simultaneamente admi-
nistrativo e judicial, fechado sobre si próprio47. Como não dispunha de
grande máquina administrativa, o regimento de 1621 determinava que,
nas execuções e diligências, os comissários do tribunal pudessem acionar
meirinhos, alcaides, escrivães ou outros oficiais de justiça de quaisquer
órgãos, sem que estes pudessem escusar-se à convocação48. O simples
recolhimento das contribuições, após a publicação da bula, era feito nas
casas paroquiais, o que por sua vez implicava em acionar a administração
eclesiástica.

O exercício de funções judiciais por outros órgãos da administração


foi denominado, na historiografia francesa, “justiça de exceção”:

“Ao lado dos tribunais aplicando a justiça ordinária no cível e no cri-


me, o hábito constante de armar cada administração de poderes judi-
ciários, no que concernia aos objetos desta administração... levaram
ao estabelecimento de tribunais muito numerosos... A multiplicidade
extrema destes tribunais, muitas vezes inúteis, complicava singular-
mente a administração da justiça...”.49

A descrição do fenômeno certamente guarda notável semelhança


com o que ocorria no mundo ibérico e por extensão no Brasil. O conceito,
porém, que se buscou para caracterizá-lo, “justiça de exceção”, não pa-
rece feliz por pelo menos duas razões: considera “exceção” um processo
diuturno, sem interrupções e juridicamente institucionalizado; e se admite
“exceção” entende (ou subentende) que a regra é um modelo definido e

47 – Idem, v. I, pp. 528 e 531.


48 – Idem, v. I, p. 533.
49 – Marcel Marion, op. cit., pp. 318-319.

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Justiça Ordinária e Justiça Administrativa no Antigo Regime – O caso do brasileiro

perfeitamente circunscrito de justiça, quase (ou como) um poder à Mon-


tesquieu. Ora, o que se percebe é a atribuição de prerrogativas judiciais a
diferentes órgãos, fossem da justiça stricto sensu, fossem administrativos,
mas com potencial para gerar situações jurígenas em seu âmbito – e para
nele resolvê-las.

À exceção preferimos, portanto, considerar a transversalidade do


modelo prismático.

Poder-se-ia invocar, por fim, em boa lógica e num raciocínio “apo-


lítico”, que este procedimento visaria a uma economia processual, per-
mitindo decisões mais rápidas (sem o recurso à justiça comum) e mais
objetivas (decisões emanadas de conhecedores diretos do assunto).

No entanto, é preciso lembrar dois argumentos “políticos”, sempre


invocados quando se trata da existência de uma justiça administrativa,
argumentos que não ocorrem apenas no Antigo Regime, mas no sistema
constitucional, sobretudo na França.50

O primeiro é o de que uma jurisdição administrativa se justifica


como meio para proteger os demais ramos da administração de pretensas
ações monopolizadoras dos magistrados profissionais. No caso do Antigo
Regime, parece claro que, quando isso ocorria, os magistrados – juízes de
fora, ouvidores e desembargadores no caso luso-brasileiro – não estavam
defendendo um “poder” estatal distinto, como no modelo constitucional,
mas simplesmente buscando afirmar sua autoridade enquanto represen-
tantes do poder real – este, o efetivo poder. Pelo menos era o que ocorria
no plano do discurso. Na prática, foi frequente a extrapolação dessa auto-
ridade para muito além dos limites institucionais previstos.

Não foram poucos os exemplos de magistrados acusados desse tipo


de “despotismo” e mesmo de aspirarem a um poder “absoluto”, no que,
afinal, concorreriam com o próprio rei. São emblemáticas da situação as
referências, entre outras, do vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa, ele
50 – François Monnier, Justice administrative, in Denis Alland e Stéphane Rials, Diction-
naire de la culture juridique, Paris, PUF, 2003, pp. 896 ss.

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Arno Wehling e Maria José Wehling

próprio um desembargador, ao mencionar o “despotismo... quase geral


nos ministros que servem à América”51. Isso afirmava o vice-rei em 1780,
recém-empossado no governo. Dez anos depois, seu juízo não mudara,
antes se consolidou, estendendo-se ao próprio Tribunal da Relação do Rio
de Janeiro de que era Regedor:
“Mas tem chegado a tal ponto a temeridade de alguns [desembarga-
dores da relação], que infringindo as mesmas leis, tem entrado, com
grande escândalo de seu Chanceler, no presumido pensamento de se
persuadirem e inculcarem que os Vice –Reis, como Regedores das
Justiças, não tem jurisdição alguma de os repreender, quando o me-
recem, esquecendo-se, por efeito de uma crassa ignor6ancia, de que
esta é uma as providências estabelecidas no próprio Regimento dos
Regedores das Justiças e um poder inerente à superioridade.”52

Que essa percepção do Vice-Rei era largamente compartilhada por


outros funcionários do estado colonial, mormente após o período pomba-
lino, não resta a menor dúvida.

O segundo argumento é o de que a justiça administrativa existe para


defender os interesses do Estado ante aqueles dos particulares, como
ocorre em especial nos casos referentes à tributação e que o faz melhor
do que a justiça comum. Esse entendimento corresponde ao que ocorria
no Antigo Regime luso-brasileiro em esferas como a tributária e a militar,
sendo que no primeiro caso os conflitos de competência entre ouvidores e
provedores deixam bem claro o mal-estar causado por essa política.

De qualquer modo, quer se admita uma explicação funcional, quer as


explicações políticas para a existência dessa pluralidade de mecanismos
judiciais, parece justificada a pertinência de um “modelo prismático” para
dar conta dessas situações no âmbito do Antigo Regime, em contraposi-
ção ao “modelo difratado” do mundo constitucional.

51 – Ofício de 26 de agosto de 1780, do vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa. Arquivo


Nacional, Correspondência dos Vice-Reis, Cód. 69, L. 5, fls. 38ss.
52 – Luís de Vasconcelos e Sousa, Relação instrutiva e circunstanciada, para ser entregue
ao seu sucessor, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. IV, 1842, p.
33.

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Justiça Ordinária e Justiça Administrativa no Antigo Regime – O caso do brasileiro

Terceira situação prismática: coexistência de elementos burocráti-


cos e prebendários no mesmo ente estatal

Ao longo do século XVIII, com as transformações na esfera estatal e


a gradativa afirmação de atitudes influenciadas pelo racionalismo filosó-
fico e científico, foi se delineando na administração pública um quadro de
funcionários profissionais, distinto do prebendário. Neste, o cargo, con-
seguido por arrematação ou pela benesse do soberano, deveria remunerar
seu ocupante. Naquele, predominava a remuneração direta dos proven-
tos pelo poder público. Embora desde muito cedo os cargos de natureza
judicial fossem “profissionalizados”, como forma de impedir qualquer
laivo de simonia, esse procedimento foi ampliado pelo decreto de 18 de
maio de 1722, de D. João V, pelo qual se estendia aos ofícios “de recebi-
mentos”, sobretudo fazendários, a prática, deixando os demais ofícios no
sistema de “donativos” ou arrematação.53 Isso não impediu, contudo, que
convivessem no mesmo ente administrativo funções das duas naturezas.

Para a administração da justiça, tal situação ficou patente. Ao lado


das funções da magistratura, decididamente burocráticas no sentido we-
beriano, existiam os ofícios preenchidos em caráter prebendário, por “do-
nativos” devidamente regulamentados.

Nos dois tribunais de apelação existentes na colônia na segunda me-


tade do século XVIII, os magistrados recebiam seus proventos da primeira
forma, enquanto os detentores dos ofícios eram remunerados pela segun-
da. Estes ofícios eram os de guarda-mor, segundo guarda-mor, capelão,
escrivães (de apelações e agravos, da chancelaria, do merinho, da ouvi-
doria geral do cível e do juízo da Coroa), inquiridor, solicitador, meirinho
da Relação, meirinho das Cadeias, contador, médico, cirurgião e barbeiro
sangrador. Havia pequena diferença de cargos e de remuneração entre os
dois tribunais, mas nas suas linhas gerais a estrutura era a mesma.54

53 – WEHLING, Arno, Administração... op. cit., pp. 32ss.


54 – Memórias públicas e econômicas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro para
uso do Vice-Rei Luís de Vasconcelos e Sousa, in Revista do Instituto Histórico e Geográ-
fico Brasileiro, t. 47, 1884, pp. 17ss. VILHENA, Luís dos Santos, Cartas soteropolitanas
e brasílicas, Salvador, Imprensa Oficial, 1922, v. II, pp. 352ss. Comparação entre as duas

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):177-200, jul./set. 2011 195


Arno Wehling e Maria José Wehling

Como a acentuar a convivência dos dois modelos administrativos,


houve casos no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro de desembargado-
res que se tornaram proprietários de ofícios no próprio órgão, sem preju-
ízo de suas funções primárias.55

Na estrutura das ouvidorias de comarca dava-se o mesmo. Em geral,


além do ouvidor, magistrado de carreira, havia quatro escrivães (da ou-
vidoria, de órfãos, de defuntos e ausentes e do meirinho), dois meirinhos
(da correição e da provedoria), tabelião, inquiridor, contador, tesoureiro e
carcereiro, todos no regime dos ofícios. Pelos indícios de que dispomos,
o ofício de tesoureiro, neste caso, também era arrematado, mas só uma
pesquisa tópica poderá confirmar ou não essa conjetura.

A estrutura dos juizados de fora, ademais do magistrado, tinha qua-


tro tabeliães do judicial e de notas, escrivães, meirinho, porteiro dos au-
ditórios, inquiridor, contador e distribuidor, com a mesma característica
de seus congêneres.56

Nas câmaras municipais, cuja situação também será considerada no


item subsequente, em geral se exercia a justiça de primeira instância. Aí,
os juízes ordinários – exceto nas cidades e vilas onde havia juízes de fora,
que presidiam a casa e absorviam as funções jurisdicionais – conviviam
com um restrito ou vasto funcionalismo, conforme a riqueza da povoação,
que era preenchido com os mesmos procedimentos já mencionados.57 A
diferença, em matéria judicial, decorria apenas do processo de indicação
dos juízes, por nomeação do desembargo do Paço, se juiz de fora, ou por
eleição pelos homens bons, se juízes ordinários.

estruturas em WEHLING, Arno, Administração..., op. cit., pp. 154ss.


55 – WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José, Direito..., op. cit., pp. 412ss.
56 – Memórias públicas..., op. cit., p. 37.
57 – RUSSEL WOOD, A. J. R., O governo local na América portuguesa: um estudo de
divergência cultural, Revista de História, USP, n. 109, 1977, p. 28.

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Justiça Ordinária e Justiça Administrativa no Antigo Regime – O caso do brasileiro

Quarta situação prismática: o caso da justiça real concedida

No caso da justiça real concedida – a municipal e a eclesiástica –


existe uma diferença substancial em relação ao modelo misto que até aqui
temos examinado?

Parece-nos que não. O aspecto específico da justiça municipal e da


justiça eclesiástica não lhes retira o caráter tradicional, interna corporis.

A justiça municipal exercia-se nos quadros da câmara municipal,


quase sempre por dois juízes eleitos58, embora o número tenha variado na
prática do Brasil colonial. Eles administravam a vila ou cidade juntamente
com os demais oficiais eleitos da câmara, os vereadores e o procurador.

As funções desses cinco magistrados tinham características defini-


das pelas Ordenações do reino. Sem dúvida aos juízes ordinários cabia a
função precípua de julgar, mas também possuíam responsabilidades ad-
ministrativas, fiscais, de ministério público (quando representavam con-
tra alguém em nome do interesse comum) e de elaboração legislativa,
pois eram coautores das posturas e bandos municipais.

Inversamente, o conjunto da câmara poderia pronunciar-se em uma


sentença, quando funcionava como conselho ou junta, mas decidindo em
primeira instância e não como instância recursal à decisão do juiz ordi-
nário59.

Nas atividades administrativas das câmaras municipais, exercidas


por funcionários específicos, eleitos ou remunerados, a mistura de ele-
mentos judiciais e administrativos poderia ocorrer, sem maior dificulda-
de. Assim, quando o almotacel, encarregado, entre outras atividades, do
controle de pesos e medidas do comércio, impunha determinada multa,
de sua decisão previa-se recurso para o juiz ordinário. Não caberia, nesse
modelo jurídico-administrativo, perguntar se este o fazia como instância
58 – Wehling, Arno e Wehling, Maria José, Atividade judiciária das câmaras
municipais na colônia – nota prévia, in Anais do I Colóquio de Estudos Históricos Brasil-
Portugal, Belo Horizonte, PUC, 1994, p. 163.
59 – Idem, p. 172.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):177-200, jul./set. 2011 197


Arno Wehling e Maria José Wehling

administrativa ou como primeira instância judicial, já que se confundiam


as atribuições.

A justiça eclesiástica, por sua vez, fazia-se nos quadros de uma or-
ganização administrativa fortemente hierarquizada, que ia do arcebispado
à paróquia, passando pelos bispados. Às funções religiosas e administra-
tivas dos sacerdotes (fossem arcebispos, bispos ou vigários paroquiais)
acrescentavam-se as judiciais, exercidas quer individualmente, pelos vi-
gários que prolatavam suas sentenças, quer colegialmente, quando havia
câmaras em bispados ou tribunais de relação eclesiástica (neste caso, so-
mente em Salvador).

Ao contrário da justiça municipal, exercida por leigos, a justiça


eclesiástica em seu escalão superior normalmente era exercida por um
bacharel em Cânones, que não se isentava de outras funções religiosas
e administrativas. Conforme se determinava no Regimento do Auditó-
rio Eclesiástico, conjunto de normas processuais anexo às Constituições
primeiras do Arcebispado da Bahia, pertencia ao Vigário-Geral a admi-
nistração da justiça. Exigia-se do nomeado, além de excelente formação
moral, a condição de eclesiástico, preferencialmente sacerdote ou, nessa
impossibilidade, pelo menos a de detentor de ordens sacras ou ordens
menores. Era também condição sine qua non possuir título de bacharel
ou doutor em Cânones. Sua designação se dava pelo Arcebispo, tomando
posse com o Chanceler da Relação eclesiástica.60 No caso dos bispados,
o bispo deveria designar vigários da vara, com funções judiciais, sendo
que os designados seriam, preferencialmente, letrados. A escassez destes
explica a concessão. 61 Nos níveis inferiores, os vigários paroquiais sem
esta formação atuavam em todas as atribuições do governo paroquial,
inclusive a justiça. Em todas as situações, portanto, confundiam-se as
funções religiosas, administrativas e judiciais.

60 – Regimento do Auditório Eclesiástico, tít. II, par. 1, p. 13. Constituições primeiras do


Arcebispado da Bahia, Brasilia, Senado Federal, 2007 (edição fac similar da edição de
1853).
61 – Idem, tít. IX, par. 399ss., p. 90.

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Justiça Ordinária e Justiça Administrativa no Antigo Regime – O caso do brasileiro

Que motivos explicariam a razão de ser desse processo prismático?

Em primeiro lugar, o caráter casuístico da administração, que fluía


de padrões gerais de governo e administração derivados dos princípios
cristãos, do direito romano e de alguns preceitos e máximas da Antiguida-
de clássica relativos à filosofia política e, sobretudo, à prática política.

Esses padrões atribuíam singular importância ao ato de julgar, pelo


seu caráter intrínseco de corrigir a injustiça e repor a comunidade em seu
equilíbrio natural. Toda uma sanção teológica, no Antigo Testamento, no
pensamento grego, no direito romano e no cristianismo contribuía para
isso e foi recolhida como tal pelos juristas reais desde a Idade Média.

Por esse motivo a função de julgar foi privativa do monarca e este,


quanto pôde, procurou drená-la das instituições concorrentes – senhores,
Igreja, cidades. A imagem de Luís IX distribuindo ele próprio a justiça
sob o carvalho de Vincennes é emblemática dessa perspectiva – que não
deve ser entendida ao pé da letra, pois desde cedo os monarcas delegaram
a seus magistrados a função julgadora, mas sempre em seu nome e, em
última análise, em nome de Deus, o supremo e último julgador. Não por
outro motivo as sessões dos tribunais, em Portugal como no Brasil, prin-
cipiavam pela invocação religiosa, com a celebração da missa.

Um ato tão nobre e tão digno, aliás, que no Ocidente cristão os car-
gos da magistratura em geral ficavam de fora da venalidade dos ofícios
públicos, pois a sua venda poderia ser associada à simonia. O mesmo não
se aplicava aos funcionários judiciais, dos tribunais e dos juízos monocrá-
ticos, que incorriam na regra geral da venalidade.

Entretanto, ademais do casuísmo, havia o caráter empírico da ad-


ministração. Um bom governante considerava-se o administrador ativo
e bem-intencionado, com ideias gerais e objetivos relativamente claros,
ou mesmo aquele apenas reativo, mas que reagisse positivamente aos es-
tímulos que lhe chegavam. Não se conhecia a figura do planejador, nem
havia a percepção de uma ação sistêmica, integrada e projetada no tem-
po por meio de metas, como no estado ou na empresa contemporâneos.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):177-200, jul./set. 2011 199


Arno Wehling e Maria José Wehling

Por extensão, as funções públicas – executivas, judiciais, legislativas –


emanavam do monarca, o que explica haver dois tipos/conceitos de ma-
gistratura: a judicial propriamente dita e a dos demais cargos. Resquício
longínquo desse procedimento empírico na arte de governar é o título de
“primeiro magistrado” que tem o presidente da República em vários paí-
ses, não obstante ser ele o titular de apenas um dos poderes do Estado.

Embutida no múnus desses magistrados lato sensu – administradores


fazendários e eclesiásticos, comandantes militares, governantes munici-
pais – estava normalmente, além de suas funções precípuas de governo e
administrativas (“executivas”), a atribuição de julgar. No modelo casuís-
tico e empírico do Antigo Regime, assim como o julgador (o magistrado
stricto sensu) julgava e executava as decisões de seu julgamento (exceto
no caso da justiça eclesiástica, em que se encaminhava a execução ao
“braço secular”), também o administrador exercia os atos de específicos
de suas funções de governo e julgava, sempre no âmbito de suas atribui-
ções governativas, caracterizando-se uma plena justiça administrativa.

Tais situações desenhavam-se no quadro da monarquia tradicional


“patrimonialista” do modelo weberiano. Mas quando falamos dos três
séculos “modernos”, particularmente do século XVIII, nesses patrimo-
nialismo, casuísmo e empirismo já se insinua a especialização de funções
em três frações importantes do Estado – a justiça, a guerra e a fazenda.
E, logo, a experiência política inglesa e a teoria constitucional francesa
darão a solução política mais ampla para o problema, criando os poderes
“independentes e harmônicos”.

Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação


em maio /2011.

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¡VIVA LA PEPA!: A história não contada da Constitución Española de 1812
em terras brasileiras

¡VIVA LA PEPA!: A HISTÓRIA NÃO CONTADA DA


CONSTITUCIÓN ESPAÑOLA DE 1812 EM TERRAS
BRASILEIRAS1
VIVA LA PEPA! The untold History OF THE 1812 SPANISH
CONSTITUTION IN BRAZIL
Vicente de Paulo Barretto 2
Vítor Pimentel Pereira 3

Resumo: Abstract:
O texto refere-se à adoção da Constituição Es- This paper refers to the adoption by Brazil of the
panhola de 1812, alcunhada “La Pepa”, no Bra- 1812 Spanish Constitution, known as La Pepa,
sil, na segunda década do século XIX, episódio during the second decade of the Nineteenth cen-
pouco conhecido da história constitucional bra- tury. This is a rather unknown episode of the
sileira. Examina, por outro lado, a influência Brazilian Constitution history. On the other
ideológica da Constituição Espanhola na evo- hand, it will examine the ideological influence
lução constitucional brasileira, especificamente, of the Spanish Constitution on the constitutional
na primeira constituição brasileira, a Constitui- evolution in Brazil, specifically on the first Bra-
ção do Império Brasileiro de 1824. zilian Constitution, the 1824 Constitution of the
Brazilian Empire..
Palavras-chave: Liberalismo, Revolução e Es- Keywords: Liberalism, Revolution and the State
tado de Direito. of Law.

1. Introdução
¡Viva La Pepa!, exclamava o povo espanhol em Cádiz na Solenida-
de de São José do já quase bicentenário 19 de março de 1812. O brado,
saudação à promulgação da Constituição Política da Monarquia Espanho-
la (carinhosamente chamada “La Pepa”4), marcava o início de um novo
1 – Este texto foi originalmente redigido sob o título “Viva la Pepa: la historia no con-
tada de la Constitución Espãnola de 1812 en tierras brasileñas”, tendo sido apresentado
no V Simpósio Internacional, Cádiz, Hacia El Bicentenario/ Union Latina, em 2010, em
Cadiz..
2 – Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESA e professor visitan-
te da UERJ e colaborador da UNISINOS.
3 – Graduado e Mestrando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Vice-presidente Jurídico do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Perso-
nalista (CIEEP).
4 – Apenas uma curiosidade histórica: utiliza-se o apelido “pepe” (versão feminina:
“pepa”) para os homens chamados José em língua espanhola. A origem encontra-se na
abreviatura do título latino de São José, pai putativo de Jesus Cristo (pater putativus, ou,
simplesmente, P. P., “pepe”). Aí encontramos a justificativa para a alcunha da Constitui-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):201-223, jul./set. 2011 201


Vicente de Paulo Barretto e Vítor Pimentel Pereira

modo de conceber as relações políticas na Espanha, forjado pelos ideais


liberais que campearam nas Revoluções Americana e Francesa do final
do século XVIII.

Alguns anos após e do outro lado do Atlântico, mais precisamente


na noite do dia 21 de abril de 1821, esta mesma Constituição viverá um
breve momento de glória – ou de infortúnio? –, no Rio de Janeiro, então
capital do reino português, numa página do constitucionalismo brasileiro
por quase todos olvidada.5 Seja-nos permitido iniciar esta reflexão pelo
relato a respeito da presença da Pepa no Brasil, o qual nos servirá de pre-
texto para a posterior análise dos fundamentos da Constituição Espanhola
de 1812 que também estiveram presentes na confecção da Constituição
Política do Império do Brasil de 1824.

Os registros históricos relatam que, por um curtíssimo período de


cerca de 24 horas, a Constituição de Cádiz de 1812 esteve vigente no Bra-
sil. Mas de que modo isto sucedeu? E por que forma os brasileiros chega-
ram a conhecer a existência da Constituição Espanhola? Para responder
a estas perguntas, é necessário regressar a Portugal e, depois, à cidade do
Rio de Janeiro, então capital do reino, nos anos de 1820 e 1821, pouco
antes do retorno da Corte portuguesa à Europa.

ção de Cádiz de 1812.


5 – Exceção feita, por exemplo, ao constitucionalista brasileiro Paulo Bonavides, que
atesta a ocorrência do evento. BONAVIDES, Paulo. A evolução constitucional do Brasil.
Estudos avançados, vol.14, nº. 40, set.-dez. 2000. p. 156. Contudo, muito antes dele,
Aurelino de Araújo Leal, jurista, político e jornalista baiano (ademais de sócio efetivo do
IHGB), relatara este acontecimento. Após o sucesso de sua comunicação no I Congresso
de História Nacional, realizado em 1914 pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
o Conde de Affonso Celso, então Presidente Perpétuo do Instituto, convidou-o a minis-
trar, no mesmo ano, um curso de História Constitucional brasileira. Neste curso, o ilustre
baiano registrou a efêmera vigência da Constituição de Cádiz de 1812 entre nós, como se
vê em LEAL, Aurelino. Resumo das Cinco Conferências de História Constitucional do
Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, Tomo LXXVII, 1914,
Parte 1. p. 296. O conteúdo do curso pode ser encontrado em LEAL, Aurelino. História
Constitucional do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1915. Uma reimpressão da
obra foi recentemente realizada pela Editora do Senado Federal (2002).

202 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):201-223, jul./set. 2011


¡VIVA LA PEPA!: A história não contada da Constitución Española de 1812
em terras brasileiras

2. Os antecedentes portugueses imediatos


Em Portugal, rebentara, em 1820, a Revolução Constitucionalista do
Porto. Sua marcada influência liberal é inegável, patente no próprio do-
cumento de Manifesto da Nação Portugueza aos Soberanos e Povos da
Europa:
“Elles [o povo português] não eram felizes, e quizeram sêl-o. Póde
disputar-se a alguma nação este direito, e os meios de o exercitar e
pôr em prática? Póde algum povo, grande ou pequeno, alguma asso-
ciação de homens racionaes prescindir d’este direito inalienavel, para
sujeitar-se irrevogavelmente ao arbitrio de algum ou de alguns ho-
mens, para obedecer cegamente a um poder ilimitado, a uma vontade,
que póde ser injusta, caprichosa, desregrada? Foram estes os votos
de todos os portuguezes, quando proclamaram a necessidade de uma
constituição, de uma lei fundamental, que regulasse os limites do po-
der e da obediencia; que afiançasse para o futuro os direitos e a felici-
dade do povo; Se a moderna philosophia creou o systema scientifico
do direito publico das nações e dos povos, nem por isso inventou ou
creou os direitos sagrados, que a propria mão da natureza gravou com
caracteres indeleveis nos corações dos homens [...] O que hoje, pois,
querem e desejam, não é uma innovação, é a restituição de suas anti-
gas e saudaveis instituições, corrigidas e applicadas segundo as luzes
do século e as circumstancias políticas do mundo civilisado; é a resti-
tuição dos inalienaveis direitos que a natureza lhe concedeu [...]6”

O êxito da revolução liberal de Cádiz, alguns anos antes, certamen-


te impulsionara o liberalismo em terras portuguesas.7 A Espanha, após a
restauração do absolutismo monárquico de Fernando VII em 1814, con-
seguira fazer com que, em 1820, o monarca espanhol tornasse a jurar a
Constituição de 1812. As experiências vividas no país vizinho8 tornavam
6 – CÂMARA DOS SENHORES DEPUTADOS DA NAÇÃO PORTUGUESA. Docu-
mentos para a História das Cortes Geraes da Nação Portugueza. T. I. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1883, pp. 122-124.
7 – Ibidem, p. 5.
8 – “Ora, quer em termos de ideário e de manifestações culturais, quer em termos de
atitudes dominantes, quer em termos de base social e assento geográfico, como em ma-
téria de formas repressivas, o que acontece nos Estados Peninsulares guarda evidentes
analogias, não obstante peculiaridades notórias resultantes da diversa amplitude espacial
e sociocultural de cada país. Para documentar este aspecto e tomando como paradigma a
temática sobre A Revolução francesa e a Espanha, observaremos, em primeiro lugar, que

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o exemplo da revolução liberal espanhola ainda mais eloquente na busca


de reformas político-institucionais. Mesmo a proximidade de datas mostra
como corria uma maré de influências liberais que tinha na Constituição de
Cádiz seu referencial. Assim, houve apenas uma diferença de pouco mais
de cinco meses entre a revolução restauradora da Constituição de Cádiz
na Espanha (7 de março de 1820) e a Revolução do Porto, em Portugal,
datada de 24 de agosto do mesmo ano.9 Essa irmandade ideológica dos
destinos políticos de Portugal e Espanha pode ser encontrada em um dos
documentos da Revolução do Porto:

“Em todas as epochas mais assignaladas da historia da Peninsula, Por-


tugal seguia sempre a sorte das Hespanhas. Como ellas, recebeu e
sacudiu o jugo dos romanos; como ellas, obedeceu aos godos e se
sujeitou depois aos arabes; como ellas, foi invadido pelos francezes
e se desfez dos francezes. Não queiraes portanto que elle deixe de
experimentar agora com ellas o effeito do vulcão que vae abalando os
eixos do mundo político.10”

Ademais, o intercâmbio de informações entre os movimentos revo-


lucionários de ambos os países, mormente pelo intermédio de socieda-
des secretas que pretendiam fazer valer, em ambas as nações, governos

os estudos, sobre a atitude do governo português frente à Revolução mostram a similitude


de posições entre os Executivos de Madrid e de Lisboa até à Guerra do Rossilhão. Em
segundo lugar, urge acentuar que é possível tratar, quase ponto por ponto, na perspectiva
da história portuguesa, os tópicos relativos à difusão da ideologia revolucionária e às
medidas adoptadas para impedir tal difusão na Espanha. São, com efeito, muito próximas,
quando não idênticas, as determinações perfilhadas pela Coroa portuguesa, por exemplo
em relação a livros e folhetos revolucionários, ao ensino, bem como as atinentes aos resi-
dentes, transeuntes e emigrados propagadores, às vezes involuntários, de notícias e ideias
sobre a Revolução. Semelhança notória existe na política a respeito do clero francês em
fuga, embora as precauções do governo espanhol atinentes aos eclesiásticos migrantes
sejam mais radicais do que as aplicadas em Portugal. Também no referente à apreensão
de escritos anónimos e pasquins subsistem analogias.” RAMOS, Luís A. de Oliveira. A
Espanha e o advento do liberalismo em Portugal: antes e depois de Cádiz. Península:
Revista de Estudos Ibéricos, nº. 0, 2003. p. 414.
9 – LIMA, Oliveira. O movimento da independência (1821-1822). São Paulo: Melhora-
mentos, 1922.
10 – Carta dos oficiais da guarnição do Porto, datada de 6 de setembro de 1820. In: CÂ-
MARA DOS SENHORES DEPUTADOS DA NAÇÃO PORTUGUESA, op. cit., p. 36.

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¡VIVA LA PEPA!: A história não contada da Constitución Española de 1812
em terras brasileiras

representativos, certamente contribuiu para que os sucessos de Espanha


rapidamente fossem conhecidos em Portugal.11

Na ausência de uma Constituição, o movimento revolucionário


português estabelece uma Junta Provisional de Governo e a faz jurar a
Constituição Espanhola provisoriamente, até que seja elaborada uma lei
fundamental lusa. Signo emblemático da importância de tal diploma em
Portugal é a tradução feita pela Universidade de Coimbra, ainda em 1820,
em que o tradutor, em seu prefácio, louva a “Constituição sabia, em que
os nossos honrados visinhos, que vamos nesta parte imitar, fixarão os
verdadeiros limites do poder e da obediência, e recobrárão os legítimos
direitos que como homens, justamente lhes pertencião”.12

Quando da elaboração do decreto que estabelecia a forma de elei-


ção de deputados às Cortes Gerais responsáveis pela elaboração da fu-
tura Constituição portuguesa, exigiu-se a obediência ao método previsto
na Pepa, traduzido ao vernáculo e com pequenas adaptações à realidade
portuguesa.13

Todos esses fatos, em conjunto, indicam que, entre os revoltosos,


havia um conhecimento razoável dos termos da Constituição Espanhola.
E não se pode duvidar que as novas lusitanas chegassem, por meio de
navios, periódicos e pessoas, às terras brasileiras. Sendo o Rio de Janeiro
a sede provisória da monarquia portuguesa, era para lá que acorriam as
notícias mais prementes do velho Portugal.

11 – Recorde-se, por exemplo, da associação secreta portuguesa conhecida como Siné-


drio, fundada no Porto em 1818, com o objetivo de avançar as reformas liberais em Por-
tugal, fortemente influenciada pelo movimento gaditano de 1812. Alguns de seus mem-
bros lograram tomar parte na Junta Provisional do Governo Superior do Reino Português,
instalada por ocasião da Revolução Liberal do Porto. Também questionando sobre as
ligações entre maçons portugueses e espanhóis, cf. RAMOS, Luís A. de Oliveira, op. cit.,
p. 415.
12 – Constituição política da Monarquia Hespanhola promulgada em Cádiz em 19 de
Março de 1812. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1820.
13 – CÂMARA DOS SENHORES DEPUTADOS DA NAÇÃO PORTUGUESA, op. cit.,
pp. 96 e 108.

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Vicente de Paulo Barretto e Vítor Pimentel Pereira

3. A longa Sexta-Feira da Paixão de 21 de abril de 182114


É nesse caldo político que se insere a incursão da Constituição Es-
panhola em plagas brasileiras. Apesar de inspirada por ideais liberais, a
Revolução do Porto tinha como um de seus programas políticos a volta
do Pacto Colonial e seu monopólio em relação ao reino americano como
método de soerguimento econômico do combalido Portugal.15 Os brasi-
leiros temiam pela perda da posição no quadro geral do reino de Portugal
que haviam adquirido por ocasião da vinda da família real portuguesa
desde 1808.

No Rio de Janeiro, um clima de tensão instalara-se desde a chegada


da notícia de que Portugal desejava reduzir o Brasil novamente ao status
colonial, tão logo D. João VI e a Corte tornassem a Europa. Os liberais
brasileiros exigiram a formação de um conselho sem cujo consentimento
o rei não poderia deliberar acerca de questões relevantes, temerosos de
que o rei voltasse a Portugal cedendo às pressões dos liberais lusos. So-
me-se a isso algumas prisões imotivadas de alguns dignitários brasileiros,
alguns dos quais tidos em alta reputação pelo povo da capital. Em matéria
econômica, o Brasil também vivia momentos de inquietude, em que o de-
saparecimento do ouro e a insolvência do Banco do Brasil, em virtude de
o governo e a aristocracia não saldarem seus débitos, depreciava a moeda
14 – Os fatos narrados nesta seção foram extraídos de CARVALHO, Manuel Emílio Go-
mes de. Os deputados brasileiros nas Cortes Geraes de 1821. Porto: Chardron, 1912.
Cap. III. No Brasil, a obra foi recentemente reimpressa por iniciativa da Editora do Sena-
do Federal (2003), com prefácio de Pedro Calmon.
15 – “Em quatro pontos resumiu o deputado Trigoso o seu programa para o Brasil: ‘vir o
Príncipe Real, primeira cousa; vir a tropa que lá está, segunda cousa; ir a tropa que renda
aquela que lá esta, terceira cousa; extinguir-se alguns tribunais, quarta cousa’. Fernandes
Tomaz: ‘que era bom que tornassem as cousas ao seu antigo estado’. Exterminando na Eu-
ropa o estado antigo, as Cortes queriam na América o antigo estado. ‘Desça do alto grau
de corte para o de província’, é o que pretendiam, protestou o deputado baiano José Lino
Coutinho. Sucedeu o inevitável. No dia em que decidiram abolir a regência de D. Pedro,
suprimir as Repartições que davam ao Rio a categoria de capital do Brasil, determinar às
juntas locais que se correspondessem diretamente com os ministros em Lisboa, descosen-
do a unidade nacional, perderam para os de cá a aura romântica; converteram-se num duro
conselho de governo. Ao ‘sistema constitucional’ – proclamado na Europa – contrapuse-
ram o ‘sistema colonial’ – devolvido à América.” CALMON, Pedro. Introdução ao Diário
da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil. Brasília: Senado
Federal, 2003. Tomo I.

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¡VIVA LA PEPA!: A história não contada da Constitución Española de 1812
em terras brasileiras

e reduzia a fortuna particular. Por fim, o anúncio da iminente partida de D.


João para Portugal, sem que houvesse regras claras sobre as atribuições
da regência, a cargo de seu filho Pedro, a ser instituída no Brasil, sendo
mesmo desconhecidos os nomes dos ministros que auxiliariam o príncipe
nesta empreitada.

A agitação na cidade aumentava diante deste quadro e, como que


para aplacar os ânimos, Silvestre Pinheiro Ferreira, ministro do Reino,
propõe convocar os eleitores das comarcas para acorrerem ao Rio de Ja-
neiro, onde deveriam eleger os deputados brasileiros às Cortes Gerais em
Lisboa, bem como lhes seria apresentado o regulamento da regência do
Brasil, com os nomes dos respectivos ministros que nela atuariam.

Marcada a reunião para 21 de abril de 1821, uma Sexta-Feira da Pai-


xão, os eleitores reuniram-se na então Praça do Comércio.16 Inicialmente,
o objetivo de tal reunião era a escolha dos deputados brasileiros que re-
presentariam a nação perante as Cortes de Lisboa. Contudo, franqueada a
palavra aos chefes de partido, deliberaram pela imposição ao monarca de
um juramento à Constituição Espanhola sob condição resolutiva. Assim,
nos termos da decisão desta assembleia brasileira, deveria a Pepa ser a
Constituição do Brasil até o advento de uma nova constituição portugue-
sa, a ser votada em futuro breve pelas Cortes de Lisboa.

Foi composta imediatamente uma comissão, que se dirigiu ao Pa-


lácio Real da Quinta da Boa Vista, com a intenção de fazer o rei jurar a
Constituição Espanhola, uma vez que ainda não havia qualquer Constitui-
ção – brasileira ou portuguesa – a ser jurada. O rei, com a aparente con-
cordância de seus ministros, jurou a nova constituição, sendo publicado o
decreto de vigência da Constituição de Cádiz no dia seguinte.17
16 – Prédio em que hoje se situa a casa de cultura Casa França-Brasil, no centro da cidade
do Rio de Janeiro, próximo à região do porto.
17 – "Havendo tomado em consideração o termo de juramento, que os eleitores parochiaes
d’esta comarca, a instancias e declaração unanime do povo della, prestaram á constituição
hespanhola, e que fizeram subir á minha real presença, para ficar valendo interinamente a
dita constituição hespanhola desde a data do presente decreto até a installação da consti-
tuição, em que trabalham as côrtes actuaes de Lisboa, e que eu houve por bem jurar com
toda a minha côrte, povo e tropa, no dia 26 de fevereiro do anno corrente: sou servido

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Contudo, enquanto a Comissão reunia-se com o rei e arrancava-lhe


o assentimento à Constituição Espanhola, os eleitores que se haviam que-
dado na Praça do Comércio entenderam por bem, como salvaguarda de
que o monarca não deixaria o Brasil sem haver jurado a gaditana, enviar
uma comitiva de militares aos fortes para transmitir a resolução de que
não deixassem sair qualquer embarcação, nacional ou estrangeira, até que
fossem deferidos pelo rei os votos da assembleia.

Ocorre que, no Palácio da Quinta, membros da Corte – e, quem sabe,


o próprio D. João VI – quedavam-se descontentes com o juramento da
Constituição Espanhola. Na interpretação de Manuel Emilio Gomes de
Carvalho, a chegada ao Palácio da notícia de que qualquer navio estava
impedido de sair do território nacional teria sido a gota d’água, entendida
como insubordinação máxima por parte dos ministros da Corte. Estes,
por sua vez, com a honrosa divergência de Silvestre Pinheiro, delibera-
ram pela repressão imediata dos atos do eleitorado reunido na Praça do
Comércio.

Na madrugada do dia 22 de abril, tropas portuguesas cercaram a Pra-


ça do Comércio, adentrando a edificação a tiros e golpes de baioneta, num
episódio que foi denominado pela população com o sugestivo nome de “O
Açougue de Bragança”.18 Com um saldo de três mortos e diversos feridos,
a “revolta liberal carioca” fora sufocada e o rei português voltou atrás
em sua palavra, publicando um novo decreto que revogava a Pepa como
primeira Constituição do Brasil, cerca de 24 horas após sua aprovação.19
ordenar, que de hoje em diante se fique estricta e liberalmente observando n’este reino
do Brazil a mencionada constituição hespanhola, até o momento em que se ache inteira e
definitivamente estabelecida a constituição deliberada e decidida pelas côrtes de Lisboa.
Palacio da Boa Vista, aos 21 de abril de 1821.” CÂMARA DOS SENHORES DEPUTA-
DOS DA NAÇÃO PORTUGUESA, op. cit., p. 197.
18 – Segundo Manuel Emílio Gomes de Carvalho, a comoção na cidade do Rio de Janeiro
causada pelo episódio teria sido intensa, e os comerciantes teriam abandonado o edifício,
denominando-o, num cartaz afixado sobre a porta, “Açougue de Bragança”. CARVA-
LHO, Manuel Emílio Gomes de, op. cit., p. 73.
19 – “Subindo hontem á minha real presença uma representação, dizendo-se ser do povo,
por meio de uma deputação formada dos eleitores das parochias, a qual me assegurava
que o povo exigia, para minha felicidade e d’elle, que eu determinasse que de hontem em
diante este meu reino do Brazil fosse regido pela constituição hespanhola, houve então

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em terras brasileiras

Assim, de forma melancólica, terminou a brevíssima experiência consti-


tucional gaditana, com seu ideário liberal, em terras brasileiras.

4. As características da Constituição Espanhola de 1812 e sua


influência no Brasil
Mas qual a importância de tal evento histórico, brevemente relatado
acima, em uma reflexão sobre a influência do constitucionalismo espa-
nhol de 1812 na América portuguesa? De que modo indica, de forma
exemplar, que a Pepa influenciou o nascente país, a ponto de ser a primei-
ra Constituição – da perspectiva meramente formal – destas terras?

O ocorrido no dia 21 de abril de 1821 indica que não só o ideário


liberal, mas também o próprio texto da Constituição Espanhola era efeti-
vamente conhecido no Brasil. Embora essa influência não seja fartamente
documentada, não é de se pensar que os eleitores do Rio de Janeiro op-
tassem pelo juramento de uma Constituição que nem mesmo conheces-
sem. Se não era conhecida por muitos, pode-se especular que ao menos
travaram contato com ela aqueles que detinham alguma influência sobre
os destinos políticos da futura nação independente.

Ademais, deve-se recordar que tanto a elaboração do Projeto de


Constituição para o Brasil (1823) como a própria Constituição Imperial
(1824) foram precedidos no tempo pela Constituição Portuguesa de 1822,
a qual fora inspirada fortemente no texto espanhol, copiando-lhe em mui-
tos pontos a disposição de temas e mesmo o texto de alguns artigos. Tam-
bém se pode perceber que participaram nas Cortes Gerais de Lisboa, as

por bem decretar que essa constituição regesse até á chegada da constituição que sabia e
socegadamente estão fazendo as côrtes convocadas na minha muito nobre e leal cidade de
Lisboa; observando-se, porém, hoje que esta representação era mandada fazer por homens
mal intencionados e que queriam a anarchia, e vendo que o meu povo se conserva, como
eu lhe agradeço, fiel ao juramento que eu com elle, de commum accordo, prestámos na
praça do Rocio no dia 26 de fevereiro do presente anno; hei por bem determinar, decretar,
e declarar por nullo todo o acto feito hontem, e que o governo provisório, que fica até á
chegada da constituição portugueza, seja da fórma que determina o outro decreto e ins-
trucções que mando publicar com a mesma data d’este, e que meu filho o principe rea1
ha de cumprir e sustentar até chegar a mencionada constituição portugueza.”. CÂMARA
DOS SENHORES DEPUTADOS DA NAÇÃO PORTUGUESA, op. cit., pp. 197-198.

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quais elaboraram a Constituição Liberal Portuguesa de 1822, deputados


brasileiros, os quais certamente tomaram parte nos debates parlamenta-
res, tendo por pano de fundo a Constituição de Cádiz, então vigente até o
advento da nova Carta Portuguesa.20 Como exemplo, pode-se citar a figu-
ra de Antônio Carlos Andrada e Silva, relator do Projeto de Constituição
de 1823, o qual fora deputado às Cortes Gerais em Lisboa. Além disso,
em Portugal circulavam livros e escritos diversos que exaltavam as vir-
tudes da Constituição Espanhola, úteis para a reflexão portuguesa como
direcionamento político de um povo irmão, bem como traduções de obras
espanholas sobre a temática constitucional.21 Muitos destes homens, ao
regressarem ao Brasil, traziam consigo a influência dos ideais – e mesmo
do texto literal – da Constituição Espanhola.

Mas quais foram as características marcantes deste texto elaborado


em Cádiz que levaram à sua aceitação em terras portuguesas e brasilei-
ras como influência fundamental no constitucionalismo dos dois países?
Identificamos como características principais as seguintes: 1) soberania
nacional e representatividade; 2) separação de poderes; 3) monarquia
constitucional; 4) a religião oficial; 5) o direito natural racionalista.

Essas questões, presentes na Constituição de Cádiz, apareceram tam-


bém de alguma forma na Constituição Imperial brasileira. Não se quer
dizer com isto que a influência francesa não se fez sentir fortemente no
Brasil (especialmente da Charte constitutionnelle française de 1814) e na
própria Espanha: mas aqui se quer salientar o frequentemente olvidado
20 – Basta, para tanto, consultar o volume primeiro dos Documentos para a História das
Cortes Geraes da Nação Portugueza, a fim de se perceber como houve influência fortís-
sima do liberalismo espanhol na discussão da Constituição portuguesa de 1822. Ademais,
pode-se verificar que alguns deputados participantes da Constituinte brasileira de 1823
também tomaram parte nas Cortes Gerais de Lisboa, em que se desenrolaram os debates
com base na Constituição Espanhola: Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Sil-
va (relator do Projeto de Constituição brasileira de 1823) e José Ricardo da Costa Aguiar e
Andrada, ambos pela província de São Paulo; José Martiniano de Alencar, pela província
do Ceará; Francisco Moniz Tavares, pela província de Pernambuco.
21 – Tais como SALAS, Ramon (Doutor de Salamanca). Lições de Direito Público Cons-
titucional traduzidas e dedicadas por D. G. L. D’Andrade: com o mesmo objecto á Rege-
nerada Naçaõ Portugueza, e offerecidas a seus dignos representantes. Lisboa: Typogra-
phia Rollandiana, 1822.

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influxo do constitucionalismo espanhol. Poder-se-ia mesmo propor uma


hipótese: a de que certas ideias europeias – sobretudo francesas – podem
haver chegado até nós, ao menos em sua forma exterior jurídico-constitu-
cional, por intermédio da Pepa, como um meio mais acessível e pragma-
ticamente aplicado das abstratas conjecturas dos liberais europeus. Nesse
sentido, avançando ainda mais na tese, seria possível até mesmo falar na
existência de uma espécie de constitucionalismo de traços ibéricos, capaz
de digerir as ideias liberais de seu tempo e adaptá-las à realidade da pe-
nínsula ibérica, e, de certa forma, a suas colônias.

Passemos, então, a uma breve comparação destas características em


ambos os movimentos constitucionais, ressaltando suas similitudes e es-
pecificidades.

4.1 Soberania nacional e representatividade


A ideia da soberania nacional foi uma das características mais mar-
cantes e revolucionárias da Constituição de Cádiz. Esta teve o mérito de
inserir na península ibérica a experiência constitucional, de matriz fran-
cesa, especialmente como exposta na obra Qu’est-ce que le tiers état?
do Padre Sieyès, de uma soberania como poder originário, absoluto e
perpétuo, mas que agora recaía sobre a nação e não mais sobre a figura
do monarca.

O exercício primordial da soberania se dava por meio da elaboração


de uma Constituição que veiculasse a estrutura do Estado e a garantia de
direitos civis básicos. E este poder estava revestido na entidade nação.
Contudo, diferentemente da proposta de Rousseau, tornava-se virtual-
mente impraticável o exercício da soberania diretamente pelos cidadãos.
Daí surge a necessidade de se instaurar um sistema representativo: os
cidadãos elegem seus representantes, que detêm um mandato para agir
em nome dos representados. Nesta situação, pode-se realizar uma distin-
ção já clássica entre a titularidade do poder constituinte, que recaía sobre
a nação, e seu exercício, que se dava por meio de seus representantes.

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A nação era entendida como o conjunto dos cidadãos, mas entendidos


estes enquanto associação política ou corpo social e não mera reunião
física de homens.

Sendo essas as linhas-mestras do conceito de soberania assumido na


península, pode-se perceber como a influência da Constituição de 1812
espanhola foi marcante no texto brasileiro neste particular. O art. 1º da
espanhola definia que “la Nación española es la reunión de todos los es-
pañoles de ambos hemisférios”, enquanto o art. 2º expressa que “la Na-
ción española es libre e independiente, y no es ni puede ser patrimonio
de ninguna familia ni persona.” Seguindo-a de perto, o texto brasileiro
afirma que “O Imperio do Brazil é a associação Politica de todos os Ci-
dadãos Brazileiros. Elles formam uma Nação livre, e independente, que
não admitte com qualquer outra laço algum de união, ou federação, que
se opponha á sua Independencia”.

Do cotejo de ambas as redações, é interessante notar que a Constitui-


ção brasileira adota a expressão “livre e independente” da mesma forma
que no texto gaditano, o que nos leva a apontar uma influência direta não
só da ideia de soberania nacional, mas da própria literalidade do artigo da
Constituição de Cádiz no art. 1º da Constituição brasileira.

Quanto à titularidade da soberania, o art. 3 da Pepa estatui de for-


ma direta que “La soberanía reside esencialmente en la Nación, y por lo
mismo pertenece a ésta exclusivamente el derecho de establecer sus leyes
fundamentales.” Por sua vez, o texto brasileiro o faz de forma indireta,
ao dizer no art. 12 “que todos estes Poderes no Imperio do Brazil são de-
legações da Nação”. Em verdade, há uma comunhão de intentos, embora
expressos de modo distinto: a origem de ambos encontra-se no art. 3 da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que sintetiza ambas as
ideias (Le principe de toute souveraineté réside essentiellement dans la
Nation. Nul corps, nul individu ne peut exercer d’autorité qui n’en émane
expressément.).

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Nesta nova proposta constitucional, a soberania é uma emanação da


nação, e não da figura do monarca. Os representantes da Nação somente
o são por haverem recebido desta a delegação, incluindo-se aí a própria
figural real, não mais legitimada em um direito divino originário, mas em
um direito derivado por delegação da nação.

As próprias Cortes, compostas de deputados com mandato conferido


pela Nação, deveriam ser instituídas não mais como mero conselho con-
sultivo e estamental, como no regime monárquico absolutista à moda do
Ancièn Regime, mas como verdadeira Assembleia Constituinte, assem-
bleia representativa do povo que se autoconcedia direitos e um governo.

As Cortes não representavam subservientemente o Rei, representa-


vam antes a Nação. Com esta proposta, ocorre uma ruptura com o modelo
tradicional absolutista de representação política da nação exclusivamente
na figura do monarca. Embora este pudesse continuar sendo símbolo da
unidade nacional, não era dele que derivavam os poderes de ordenação
das coisas e pessoas do reino, mas da própria Nação.

Contudo, embora consubstanciada esta ideia no texto da Constitui-


ção brasileira de 1824, boa parte de sua força fora extirpada pela consa-
gração, em outro artigo da Constituição, do Poder Moderador, em termos
que serão expostos abaixo. Nas palavras de Pedro Calmon, havia, desde
a convocação da Constituinte de 1823, uma tensão latente entre a Assem-
bleia que se considerava delegada do povo e o Imperador, que, no íntimo,
considerava-a produto de sua vontade soberana.22 Este conflito será resol-
vido com a dissolução da Constituinte em novembro de 1823, seguido da
outorga de uma Constituição em 1824 pelo Imperador.23

22 – CALMON, Pedro, op. cit.


23 – BERBEL, Márcia Regina. A Constituição Espanhola no mundo luso-americano
(1820-1823). Revista de Indias, vol. LXVIII, n. 242, 2008, p. 246.

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4.2 Separação de poderes


Outra característica saliente da Constituição de 1812, tomada das
ideias de Montesquieu e da Constituição francesa de 1791, foi a separa-
ção dos poderes. Segundo o modelo espanhol consagrado no texto cons-
titucional, o poder de fazer leis residia nas Cortes com o Rei (art. 15); o
poder de executá-las recaía sobre o Rei (art. 16); o poder de aplicá-las em
causas civis e criminais residia nos tribunais estabelecidos pela lei (art.
17). Esta separação era rígida, de modo que a Constituição Espanhola
estabelecia que o poder de executar as leis residia exclusivamente no mo-
narca (art. 170) e o poder de aplicar as leis nas causas civis e criminais
pertencia exclusivamente aos tribunais (art. 242).

No Brasil, a Constituição de 1824 também seguiu o modelo de decli-


nar cada um dos poderes que compunham o Estado, mas trilhando mais
de perto o caminho da parte inicial do art. 3024 da Constituição Portuguesa
de 1822: em vez de estabelecer as funções de cada poder, simplesmente
enumerava-os. Estabelecia, por extenso, que os poderes políticos eram o
Poder Legislativo, o Poder Executivo, o Poder Judicial e o Poder Mode-
rador (art. 10). Aqui a peculiaridade da separação de poderes brasileira:
enquanto o Projeto de Constituição de 1823 somente consagrava os três
poderes clássicos, o Poder Moderador fora incluído pelo Conselho de
Ministros que elaborara a Constituição de 1824.

Tratava-se de construção do publicista francês Benjamin Constant,


o qual sustentava a existência de um quarto poder, neutro, detido pelo
rei e de caráter supremo que pudesse estar fora da estrutura dos outros
três poderes, de forma a mediar os conflitos entre cada um dos demais,
fazendo-os tornar a seus devidos limites de atuação e assim equilibrando
o exercício do poder no interior do país.25 Contudo, nem mesmo a lição
do mestre francês fora seguida à risca no Brasil: em vez de um quarto
24 – Constituição Portuguesa de 1822 – art. 10: “Estes poderes são legislativo, executivo,
e judicial. O primeiro reside nas Cortes com dependência da sanção do Rei (art. 110, 111
e 112.). O segundo está no Rei e nos Secretários de Estado, que o exercitam debaixo da
autoridade do mesmo Rei. O terceiro está nos Juízes.”
25 – CONSTANT, Benjamin. Cours de politique constitutionnelle. 3. �����������������������
ed. Bruxelles: Soci-
étés Belges de Librairie, 1837, p. 1.

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em terras brasileiras

poder externo aos outros três, o Poder Neutro e Supremo (denominado,


no Brasil, Poder Moderador) fora fundido, na figura do Imperador, com a
chefia do Poder Executivo.26 Esta característica demonstra um elemento
mais conservador e centralizador de poderes nas mãos do monarca que
nas cortes liberais de Cádiz. A elevação do Poder Moderador à dignidade
constitucional foi, certamente, um apanágio do liberalismo conservador
brasileiro, não encontrado nem mesmo nas Constituições Francesas, país
de onde nos veio a doutrina de Benjamin Constant.

Deve-se salientar também que, tanto na Constituição espanhola como


na brasileira, procurou-se cercar de garantias o Poder Judiciário, a fim de
salvaguardar o cumprimento de suas funções sem interferência do Exe-
cutivo, como fora tão corriqueiro no Antigo Regime. Afiançava-se, por
exemplo, a inamovibilidade dos juízes (art. 252 da espanhola e art. 153
da brasileira), com possibilidade de queixa ao Rei ou ao Imperador con-
tra o proceder judicial, os quais deveriam ouvir seu Conselho de Estado
antes de suspender um determinado magistrado. É interessante notar que
o procedimento de queixa ao chefe do Executivo era muito similar em
ambas as Constituições, o que indica uma influência direta da Pepa sobre
a Constituição brasileira neste ponto.27 Também somente por sentença
poderiam ser depostos (art. 252 da espanhola e art. 155 da brasileira), e
nenhuma autoridade podia avocar as causas pendentes, nem reabrir os
processos já findos (art. 243 da espanhola e art. 179, XII da brasileira).

26 – Na lição do mesmo Benjamin Constant, tal configuração de acúmulo do poder mo-


derador (por ele chamado “poder real”) com o executivo, não poderia conduzir senão ao
despotismo. Ibidem, p. 2.
27 – Para a comparação, reproduzimos aqui os textos de ambas as Constituições:
Artículo 253.- Si al Rey llegaren quejas contra algún magistrado, y formado expediente,
parecieren fundadas, podrá, oído el consejo de Estado, suspenderle, haciendo pasar inme-
diatamente el expediente al Supremo Tribunal de Justicia, para que juzgue con arreglo a
las leyes.
Art. 154. O Imperador poderá suspendel-os por queixas contra elles feitas, precedendo
audiencia dos mesmos Juizes, informação necessaria, e ouvido o Conselho de Estado.
Os papeis, que lhes são concernentes, serão remettidos á Relação do respectivo Districto,
para proceder na fórma da Lei.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):201-223, jul./set. 2011 215


Vicente de Paulo Barretto e Vítor Pimentel Pereira

4.3 Monarquia constitucional


O movimento constitucionalista e liberal na península ibérica não
redundou na dispensa da monarquia para a assunção de uma Repúbli-
ca. O liberalismo que vingou, seja na Espanha, Portugal ou Brasil, foi
de cariz moderado ou conservador. A nação queria o rei: mas este deve-
ria jurar uma Constituição. Embora
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alguns grupos mais radicais e mi-
noritários pudessem pensar em uma República, as correntes majoritárias
mantinham-se em torno da monarquia (não só como decorrente da cultura
política ibérica, mas também da eventual retaliação que a implantação de
uma República poderia desencadear por parte dos demais países membros
da Santa Aliança). Mas certamente se objetivava reduzir as prerrogativas
da aristocracia e da casa reinante, afirmando que todo o poder, inclusive
o real, provinha da Nação.

Deve-se também perceber a tendência de realizar uma harmonização


entre a história das nações ibéricas e a novidade do constitucionalismo
monárquico que se afirma. Intenta-se, com isto, conferir uma roupagem
menos radical à proposta de um poder fundado na nação, a qual teria dele-
gado, desde as monarquias da Idade Média, poderes ao monarca para ser
seu representante. Tratava-se de uma tentativa, por parte dos liberais, de
justificar premissas estrangeiras como sendo enraizadas nas melhores tra-
dições constitucionais ibéricas, de forma que pudesse ser mais palatável
ao gosto dos conservadores presentes nas Cortes.28 Percebe-se esta ten-
tativa tanto em Espanha29 como em Portugal30, quando intentam recorrer

28 – SUÁNZES-CARPEGNA, Joaquín Varela. La Constitución de Cádiz y el Liberalis-


mo Español del Siglo XIX. Revista de las Cortes Generales, n. 10, 1987.
29 – Ver, para uma síntese da tentativa de interpretar a monarquia medieval espanhola
como uma escolha da soberania nacional, ou seja, uma delegação de poder da nação ao
monarca, MUÑOZ, Manuel Ferrer. La Constitución de Cádiz y su aplicación en la Nueva
España. México, D.F.: Instituto de Investigaciones Jurídicas, 1993, pp. 49-52.
30 – Perceba-se a ênfase que o Manifesto dos Revoltosos Portuenses coloca no fato de
que foram os portugueses que sempre deram o trono aos seus monarcas: “Os portuguezes
deram o throno em 1139 ao seu primeiro inclito monarcha e fizeram nas côrtes de La-
mego as primeiras leis fundamentais da monarchia. Os portuguezes deram o throno em
1385 a el-rei D. João I, e lhe impozeram algumas condições, que elle aceitou e guardou.
Os portuguezes deram o throno em 1640 ao senhor D. João IV, que também respeitou e
guardou religiosamente os fóros e liberdades da nação. Os portuguezes tiveram sempre

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¡VIVA LA PEPA!: A história não contada da Constitución Española de 1812
em terras brasileiras

a situações políticas medievais, relendo-as à luz do liberalismo constitu-


cional vigente nos albores do século XIX. Segundo estas posturas, a for-
mação histórica do povo espanhol e português já consagraria uma espécie
de monarquia constitucional avant garde, a qual seria apenas restaurada
pelas Cortes constituintes do século XIX.

O rei e a religião católica, em união íntima de trono e altar, conti-


nuavam a ser símbolos da unidade nacional. Por isso, estas instituições
não foram rechaçadas, como se fez por ocasião da Revolução Francesa.
O liberalismo ibérico foi marcado por esta peculiaridade, em oposição ao
francês revolucionário: intentava ser liberal, mas com Deus e Rei.

4.4 A religião oficial


A manutenção da religião católico-romana era uma preocupação
constante do constitucionalismo ibérico, tanto na Espanha como em Por-
tugal e no Brasil. Desde os primórdios do movimento liberal do Porto, a
“sagrada religião catholica romana” figurava como programa de governo
a ser cumprido pelos revoltosos, sendo inclusive inserido no juramento da
Junta Provisional do Governo Supremo do Reino.31

A Pepa estabelecia o catolicismo romano como religião oficial do


Estado, proibindo o exercício de qualquer outra religião que não a católi-
ca (art. 12). Em terras brasileiras, parece ser que a semente da tolerância
religiosa caiu com mais vigor: a Constituição de 1824, embora estatuindo
que a religião católica continuaria a ser a religião do Império, permitia os
cultos de outras religiões, desde que domésticos ou particulares, em casas
para isso destinadas e sem aparência externa de templo. Assegurava-se

côrtes até 1698, nas quaes se tratavam os mais importantes negócios relativos á política,
legislação e fazenda; e n’este período, que abrange a mais de cinco seculos, os portugue-
zes se elevaram ao cume da gloria e da grandeza, e se fizeram acredores do distincto logar
que, a despeito da inveja e da parcialidade, hão de sempre occupar na historia dos povos
europeus. O que hoje, pois, querem e desejam não é uma innovação é a restituição de suas
antigas e saudaveis instituições, corrigidas e applicadas segundo as luzes do seculo e as
circumstancias politicas do mundo civilizado [...]” CÂMARA DOS SENHORES DEPU-
TADOS DA NAÇÃO PORTUGUESA, op. cit., p. 123.
31 – Ibidem, p. 8.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):201-223, jul./set. 2011 217


Vicente de Paulo Barretto e Vítor Pimentel Pereira

a hegemonia da religião da esmagadora maioria da população, mas sem


impedir de forma cabal a prática de outros cultos religiosos.

Deve-se salientar esta peculiaridade do constitucionalismo ibérico:


as hostes liberais avançaram um projeto que, em seu julgamento, repre-
sentava um processo de modernização da península. Contudo, neste cami-
nho, tiveram de fazer concessões aos conservadores. A questão religiosa
talvez seja a mais emblemática delas. Não se deve imaginar que os libe-
rais concordassem com tal restrição à liberdade religiosa (especialmente
os que participavam de círculos maçons, que aceitavam em suas fileiras
homens de tradições religiosas diferentes, desde que subscrevessem uma
crença difusa em um ente superior).

Cederam os liberais neste ponto para não verem suas posições der-
rotadas em outros temas, uma vez que não apenas as Cortes Constituintes
possuíam entre seus deputados grande numero de clérigos, mas também
o povo era majoritariamente católico, não raro de tendência mais conser-
vadora. Na Pepa, mais que na Constituição brasileira de 1824, observa-se
tal fato com maior clareza na proibição do exercício de outras religiões
que não o catolicismo romano.

É bem verdade que, mesmo na fórmula brasileira, não se está dian-


te do fenômeno a que hoje denominamos, nas democracias ocidentais,
direito fundamental de liberdade religiosa, em que a vivência do plura-
lismo religioso é vista como um valor democrático. No caso espanhol,
reafirma-se a religião católica como elemento de unidade nacional, mas
em detrimento do exercício de qualquer outra religião. No Brasil, ao re-
vés, está-se diante da aplicação do conceito de tolerância religiosa: há
uma única religião oficial, que participa das cerimônias públicas e rece-
be subvenção estatal, mas se tolera, como uma espécie de mal menor, o
exercício privado de outras religiões. O pluralismo não é desejado; é, tão
somente, tolerado.

Outro traço interessante em comum, quanto ao aspecto religioso,


refere-se ao fato de que, embora alguns liberais tenham pugnando por um

218 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):201-223, jul./set. 2011


¡VIVA LA PEPA!: A história não contada da Constitución Española de 1812
em terras brasileiras

preâmbulo que se referisse a um Ser Supremo em termos mais genéricos


e não confessionais (como o próprio Projeto brasileiro de 1823, que fala
apenas em “Sabedoria Divina”), em ambas as Constituições o preâmbulo
faz menção à doutrina católica da Trindade: na Espanha, “Dios todopo-
deroso, Padre, Hijo y Espíritu Santo autor y supremo legislador de la
sociedad”; no Brasil e em Portugal, inicia-se a Constituição “Em nome
da Santíssima Trindade”.

4.5 Direito natural racionalista


Uma das características marcantes e idêntica a todos os movimentos
constitucionalistas europeus foi a consagração em textos constitucionais
de certos direitos civis e políticos básicos aos cidadãos, direitos estes que
seriam subtraídos aos caprichos do monarca reinante. Não à toa, a Decla-
ração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão afirma, em seu art.
15, que “toda sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada,
nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição”.

Neste particular, percebe-se que a Constituição brasileira seguiu


mais de perto o modelo português de 1822 de consagração de um rol de
direitos e garantias básicos que deveriam ser afiançados a todo cidadão. A
inspiração, seja em Portugal ou no Brasil, é inequívoca: a Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Na experiência gaditana, ao
contrário, esta solução não foi seguida. Uma possível explicação para isto
nos é fornecida por Joaquín Varela Suanzes-Carpegna: o momento políti-
co vivido pelos espanhóis quando da confecção da Constituição de Cádiz
de 1812 era de resistência à ocupação francesa. Assim, rechaçou-se a lista
de direitos garantida pela Declaração francesa para se evitar uma acusa-
ção de “francesismo”, não obstante os direitos civis e políticos hajam sido
garantidos de forma difusa ao longo do texto constitucional.32

Apesar dessa característica, a Constituição de Cádiz de 1812 trazia


uma espécie de cláusula geral de proteção, ao estabelecer em seu art.
4º que a nação estava “obligada a conservar y proteger por leyes sabias

32 – SUÁNZES-CARPEGNA, Joaquín Varela, op. cit.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):201-223, jul./set. 2011 219


Vicente de Paulo Barretto e Vítor Pimentel Pereira

y justas la libertad civil, la propiedad, y los demás derechos legítimos


de todos los individuos que la componen”. De modo esparso, podemos
encontrar garantias individuais, como o direito ao juiz natural predeter-
minado por lei (art. 247), o direito de habeas corpus (art. 287 combinado
com arts. 290, 293 e 300), o direito de ser preso somente mediante ordem
escrita judicial (art. 287), o direito à fiança (art. 296), à salubridade das
prisões (art. 297), a vedação aos tormentos y apremios e ao confisco de
bens (arts. 303 e 304), a intranscendentalidade da pena em relação à pes-
soa do condenado (art. 305), o direito à inviolabilidade domiciliar (art.
306), a liberdade de expressão e imprensa (art. 371) e a igualdade dos
espanhóis perante a lei (arts. 8, 248, 258 e 339).

No Brasil, o rol de garantias individuais estende-se pelos 35 inci-


sos do art. 179, o qual se insere no Título “Das Disposições Geraes, e
Garantias dos Direitos Civis e Politicos”. Aqui ressaltamos aqueles que
possuem redação muito similar àquela do texto espanhol: a necessidade
de contribuir, sem distinção alguma, para os gastos do Estado em pro-
porção a seus haveres (art. 8 da espanhola e art. 179, XV da brasileira); a
liberdade de expressão e imprensa (art. 371 da espanhola e art. 179, IV da
brasileira); a vedação aos juízos ad hoc, devendo os cidadãos ser julgados
pela autoridade competente estabelecida em lei anterior ao fato (art. 247
da espanhola e art. 179, XI da brasileira); a possibilidade de prestação de
fiança para soltura do acusado (arts. 295 e 296 da espanhola e art. 179,
IX da brasileira); direito à salubridade das prisões (art. 297 da espanhola
e art. 179, XXI da brasileira), direito a somente ser preso mediante de-
claração por escrito da autoridade competente, com indicação dos acusa-
dores e testemunhas (arts. 287, 300 e 301 da espanhola e art. 179, VIII
e X da brasileira); a abolição da tortura e tratamentos cruéis (art. 303 da
espanhola e art. 179, XIX da brasileira); intranscendentalidade da pena e
abolição dos confiscos de bens (arts. 304 e 305 da espanhola e art. 179,
XX da brasileira).

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¡VIVA LA PEPA!: A história não contada da Constitución Española de 1812
em terras brasileiras

5. Conclusão
Como conclusão deste artigo, pode-se dizer que a Constituição de
Cádiz de 1812 era conhecida no Brasil, chegando a neste ser aplicada
fugazmente. Uma série de fatos históricos documentados, dentre os quais
um aqui foi narrado, demonstra que a influência do texto da Pepa foi mais
direta do que uma mera comunhão de ideais. Deve-se reconhecer também
um influxo da Constituição Espanhola na Constituição brasileira de 1824
por via reflexa, ou seja, por meio da Constituição Portuguesa de 1822,
diretamente influenciada pelo texto gaditano e guardando ainda mais se-
melhanças com o texto espanhol.33

A comparação de certas características comuns, bem como de al-


guns textos muito similares, põe em relevo que, em alguns pontos, houve
aproveitamento no Brasil do próprio texto da Constituição Espanhola,
ou mesmo do modo compromissório de conjugar ideário liberal e con-
servador, como fica claro na questão sobre a manutenção da monarquia
e do catolicismo como religião oficial. Estas duas questões apontam uma
linha comum do constitucionalismo ibérico, mas é imprescindível indicar
que, se podemos falar de um constitucionalismo ibérico, esta experiência
iniciou sua maturação nas Cortes de Cádiz e mesmo na movimentação
liberal que as precederam. Portugal e Brasil seguiram a vaga liberal e per-
cebe-se, tanto na Constituição Portuguesa de 1822 como na Constituição
Brasileira de 1824, que os acontecimentos em Espanha estavam bastante
presentes nas mentes dos constituintes lusos e brasileiros.

33 – “Qual a ressonância, na época, das Cortes de Cádiz no Portugal peninsular, não só


entre liberais, como, por oposição, entre os conservadores? Este aspecto é tanto mais
importante quanto depois da revolução de 24 de Agosto de 1820 a Constituição de Cá-
diz (1912) [sic] parece familiar a figuras lusitanas influentes e ganha predominância na
mente dos legisladores portugueses filhos da revolução e logo depois deputados às Cons-
tituintes de 1821-22. [...] as primeiras eleições portuguesas em 1820 fizeram-se conforme
o modelo propugnado pela Constituição de Cádiz de 1812. Além disso, a Constituição
de 1822, elaborada pelos constituintes de Lisboa, é fortemente influenciada pelo mesmo
texto espanhol. Basta lembrar que as duas Leis Fundamentais proclamam a soberania da
nação, a separação dos poderes legislativo, executivo e judicial, e outorgam um conjunto
de liberdades, entre as quais figura a liberdade de imprensa. Demais, cerceiam o poder do
monarca, concentram o grosso dos poderes numa assembleia, fomentando o parlamenta-
rismo”. RAMOS, Luís A. de Oliveira, op. cit., pp. 416-417.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):201-223, jul./set. 2011 221


Vicente de Paulo Barretto e Vítor Pimentel Pereira

Da perspectiva das ideias que inspiraram o movimento constitucio-


nalista brasileiro, inegável pensar que não somente as ideias francesas,
mas também a leitura feita destas ideias pelos deputados constituintes
em Cádiz, bem como os portugueses, diretamente influenciados pelo tex-
to gaditano, ajudaram a plasmar uma Constituição em parte liberal, em
parte conservadora. É importante perceber que o modelo constitucional
adotado no Brasil seguiu de perto as diretrizes fundamentais do projeto
espanhol: a elaboração de uma Constituição escrita e formal, garantia de
direitos civis e políticos, separação e limitação de poderes, mas tudo isto
devidamente acompanhado da mantença de características conservadoras
como a monarquia e a religião católica. Impossível, assim, negar que a
Constituição Espanhola, cuja influência é frequentemente olvidada nos
livros nacionais de História e Direito, assumiu um papel fundamental no
primeiro constitucionalismo brasileiro de 1820. Essa a história que pre-
tendemos tornar patente durante este artigo e que deve ser resgatada para
a compreensão de uma teoria de constitucionalismo ibérico com caracte-
res comuns não só entre Espanha e Portugal, mas que afetou fortemente
as ex-colônias espanholas e portuguesa deste lado do Atlântico.

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222 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):201-223, jul./set. 2011


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Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação


em maio /2011.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

A administração da justiça nas primeiras décadas


do Império do Brasil: instituições, conflitos
de jurisdições e ordem pública (c. 1823-1850)
The administration of justice during the first
decades of Brazilian Empire: institutions, conflicts
over jurisdiction and the public order (c. 1823-1850)
Andréa Slemian 1

Resumo: Abstract:
O artigo discute a administração da justiça na This paper discusses the administration of
primeira metade do século XIX no Império do justice in the Brazilian Empire during the first
Brasil a partir da análise da divisão entre os decade of the Nineteenth century, based on the
novos poderes políticos constitucionais, e dos analysis of the division between the new con-
problemas que envolveram a criação e funcio- stitutional, political powers and the problems
namento de cargos e instituições vinculados ao involving the creation and operation of offices
judiciário. Entre eles, os vários e recorrentes and institutions linked to the Judiciary. Among
conflitos de jurisdição, a amplitude de questões the latter, the various and recurring conflicts of
circunscritas na pasta da Justiça, o controle e jurisdiction, the wide range of issues circum-
manutenção da ordem pública – com a imbri- scribed within the Office of Justice, the control
cação entre as funções judiciárias e policiais, e and maintenance of public order – with the inti-
a utilização de força armada por parte de seus mate relationship between legal and police ac-
agentes. Defendemos que os impasses na imple- tions and the use of armed forces by their agents.
mentação de um modelo liberal de justiça – que In our view, the impasses on the implementation
previa, ao mesmo tempo, sua independência e of a liberal model of justice – that at the same
controle dos magistrados e tribunais –, devem time anticipated its independence and the con-
ser vistos à luz da manutenção do funcionamen- trol of magistrates and courts of law – would
to de uma cultura jurisdicional, bem como dian- demonstrate that operation of the legal culture
te da complexificação das ações para aplicação should be maintained, due to the complexity of
da lei pelos agentes da justiça. actions concerning the application of the law by
legal agents.
Palavras-chave: Império, Justiça, instituições, Keywords: Empire – Justice – Institutions -
Direito. Law.

1. Introdução
Desde meados do século XVIII é possível observar, em todo mundo
ocidental, a difusão de um programa ilustrado racionalizador das insti-
tuições e dos próprios indivíduos, aliado a uma política generalizada de
reforma nas ações dos governos (tanto no Velho como no Novo Mundo),
1 – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora Adjunta da
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):225-272, jul./set. 2011 225


Andréa Slemian

fruto de uma profunda transformação nas estruturais culturais e mentais, e


igualmente base para uma série de movimentos políticos que pretendiam
instaurar uma nova ordem política2. Do ponto de vista do direito, a univer-
salidade dos seus princípios como um campo per si supranacional seria
valorizada pelos ilustrados e por suas reformas – como se vê na própria
Lei da Boa Razão, de 1769, em Portugal, que previa a incorporação das
leis das “nações cultas e polidas”3 –, ainda que ganhasse especial sistema-
tização o campo de “direito pátrio” no que se tratava do reconhecimento
da necessidade de uma maior pragmática na sua aplicação às realidades
locais4. Isso porque, o pomo da crítica ilustrada ao direito voltava-se à
predominância dos tradicionais intérpretes e glosadores do direito (cuja
origem remontava à Baixa Idade Média), bem como do direito romano,
em nome de uma racionalização e organização das fontes, simplificação
dos procedimentos da justiça e maior transparência nas ações dos seus
agentes. Nesse sentido, as leis e normas, que acabavam por desempenhar
um papel secundário numa tradição em que se valorizava a capacidade de
sua aplicação pelo jurista a depender do contexto, ganhariam a partir de
agora um papel central na projeção de um novo ordenamento social e dos
critérios de estabelecimento dos limites entre a legalidade/ilegalidade5.

Nesse caso, a ideia de projeção não é mera metáfora. Partimos da


concepção de que se viveu, no período analisado, uma ruptura na percep-
ção de tempo – ou se quisermos usar os termos de François Hartog, do seu

2 – Reinhardt Koselleck, Crítica e crise. Uma contribuição à patogênese do mundo bur-


guês, Rio de Janeiro: Eduerj/Contraponto, 1999.
3 – Ana Cristina de Araújo (coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade, Coimbra,
Imprensa da Universidade, 2002.
4 – É fato que já era existente um campo de direito pátrio na Idade Moderna na tradição
do ius comune europeu, conforme analisa Italo Birocchi, “La formazione dei diritti patri
nell´Europa Moderna tra política dei sovrani e pensiero giuspolitico, prassi ed insegna-
mento”. Il Diritto Pátrio tra Diritto comune e codificazione (secoli XVI-XIX). Roma:
����������
Vie-
lla, 2006, pp. 17-71.
5 – Antonio Manuel Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica européia, Mem
Martins, Publicações Europa-América, 1998; sobre as formas anteriores do funcionamen-
to administrativo, ver: “Um autre paradigme d´administration: la Cour en Europe du Sud
à l´époque moderne”. Die Anfänge der Verwaltung der Europäischen Gemeinschaft (Les
débuts de l´administration de la Communauté européene), Baden Baden, Nomos Verlags-
gesellschaft, 1992, pp. 271-292.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

regime de historicidade6 – cujas repercussões podem ser também pen-


sadas ao nível das suas instituições. Tratando de estruturas mentais, sua
principal transformação implicou a crise da concepção de que o passado
poderia informar o porvir – ou seja, da dificuldade em se guiar apenas
pela Historia magistra est, a “história como mestra da vida” – à medida
que se gestava o futuro como um horizonte de possibilidades ainda não
vividas, base para construção de alternativas à ordem política vigente que
passou a ser comumente chamada de Antigo Regime7. As instituições de
direito então teriam um papel fundamental pois que se tratava de norma-
lizar, racionalizar e estabelecer, sobretudo por meio da valorização da
criação legislativa, um ordenamento a ser ainda realizado sobretudo pelos
novos regimes representativos8. Pode-se afirmar que aí assentou-se um
dos pilares de uma verdadeira crença, e mesmo utopia, liberal de que a
racionalização das formas de funcionamento dos governos poderia aten-
der aos interesses dos indivíduos na composição de uma sociedade que
igualasse os homens perante a lei, de acordo com as proposições de Pierre
Rosanvallon9.

No campo do direito, o que melhor expressaria essa mudança de


paradigma seria a importância que a criação de novas constituições ga-
nhariam a partir de fins do XVIII – como instrumento de projeção da ga-
rantia dos direitos dos cidadãos –, e a codificação como a mais completa

6 – François Hartog, “Tempo, história e a escrita da História: a ordem do tempo”. Revista


de História, USP, 148 (1o. sem. 2003), pp. 9-34.
7 – Que é o que define a modernidade em termos koselleckianos, a percepção da “ace-
leração do tempo” como experiência de ruptura em relação ao passado. Ver: R. Koselle-
ck, Futuro Passado. Para uma semántica de los tiempos históricos, Barcelona, Paidós,
1993.
8 – Uma das evidências mais contundentes desse processo está na própria mudança
de significado do termo Constituição, que, vinculado, até o século XVIII, ao sentido de
“domínio”, passava a significar uma projeção para um regime de governo. Ver: Dieter
Grimm, “Verfassung”. In: R. Koselleck (et. alii.) (orgs.). Geschichtliche Grundbegriffe.
Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland. Stuttgart,
���������������������
Klett-Cot-
ta, 1984, v.6, pp. 831-898.
9 – Pierre Rosanvallon, em O liberalismo econômico: história da ideia de mercado,
Bauru, EDUSC, 2002, discute como o liberalismo nasceu sem dissociação entre economia
e política, tendo como substrato filosófico (no caso de Adam Smith) uma utopia de que
todos os homens pudessem ser igualados na esfera do “mercado”.

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Andréa Slemian

síntese de positivação dos seus princípios. Se anteriormente os códigos


eram pensados como forma de organização da legislação sobre determi-
nada temática, eles assumiriam, sobretudo no Oitocentos, definitivamente
seu papel como fonte de direito10: a norma produzida por meio da ação
do legislador – imbuído de amplos poderes – passaria a determinar a le-
gitimidade do que seria direito, e não o contrário11. Sua implementação
previa um ataque à magistratura, o que foi especialmente contundente
nos casos das monarquias continentais e, em função da herança comum,
aos regimes ibero-americanos12: nessa concepção, deveriam os juízes e
magistrados aplicar a lei a partir da sistematização feita nos códigos e
não mais interpretá-la, função esta que ficava resguardada à supremacia
que se pretendia dar ao legislativo. Concepções que encontrariam terre-
no fértil no processo constitucional português e, consequentemente, no
brasileiro.

No entanto, é óbvio que o sentido de ruptura então vivido, a capaci-


dade de projeção de algo novo e o ideal de normalização das instituições e
seus indivíduos não se desdobrariam automaticamente para outros níveis
da realidade, já que entre norma e práxis existe sempre uma série de me-
diações que demandam análises as quais, no campo da história do direito,
devem ir além do estudo das leis. Nesse sentido, o que consideramos
ser especialmente relevante é que, sobretudo ao longo do século XIX, a
aparentemente simples mensagem iluminista da legalidade, ou seja, do
padrão de que o direito para ser válido deveria estar consolidado na lei,

10 – Bartolomé Clavero, Código como fuente de Derecho y desagüe de Constitution en


Europa. Revista Española de Derecho Constitucional, Madri, 2000, n.60, p. 11-43. Antó-
nio Manuel Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica européia, Mem Martins,
Publicações Europa-América, 1998.
11 – Matriz mimetizada sobretudo pela experiência revolucionária francesa a partir da
primazia adquirida pelas novas assembleias representativas que rompiam tanto com a
centralidade do monarca na produção das leis, perseguida pelas reformas ilustradas do
século XVIII, quanto com a tradição anglo-saxônica dos direitos concebidos como pré-
existentes. Maurizio Fioravanti, Los derechos fundamentales. Apuntes de Historia de las
constituciones, Madri, Trotta, 1998.
12 – José Reinaldo de Lima Lopes, Conferência de encerramento do Colóquio Internacio-
nal A experiência constitucional de Cádiz. Espanha, Portugal e Brasil, Universidade de
São Paulo, outubro/2010.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

complica-se na própria realização de sua sistemática13. Trata-se de uma


complexificação inerente ao próprio e novo paradigma constitucional, em
que a aplicação da justiça e funcionamento de suas instituições teriam
particularidades na circunscrição de sua jurisdição em relação a suas am-
plas e antigas atribuições.

Tradicionalmente a esfera da justiça era identificada, na Europa con-


tinental, com as próprias monarquias em função do padrão de organiza-
ção de poder em que o rei era entendido, numa acepção jurisdicionalista,
como seu grande provedor aos povos. O que se desdobrava institucional-
mente nas atribuições que o monarca concedia aos seus servidores – que
possuíam direito de resolução de conflitos, ou seja, ação contenciosa – e
na multiplicidade de agentes e jurisdições que se imbricavam como pode-
res superpostos e concorrenciais14. Os magistrados, em especial, tinham
um papel preponderante em questões que hoje consideraríamos como po-
líticas ou de Estado já que a distinção entre a administração e a justiça
era inexistente nessa lógica. Era sobretudo a ela que a agenda ilustrada
setecentista voltaria suas críticas, e que os regimes constitucionais dariam
continuidade ao tentarem estabelecer um novo padrão de controle para o
novo poder judiciário.

Aqui chegamos ao foco de nosso problema: o da construção da es-


fera da justiça no regime representativo brasileiro tendo em vista o pro-
cesso de ruptura geral nos paradigmas do direito e a complexificação no
padrão de aplicação da lei construído no século XIX, e consequentemente
na relação entre norma e prática, em todo mundo ocidental15. No Brasil,
13 – Massimo Meccarelli, Il diritto giurisprudenziale nelle strategie discorsive della
scienza giuridica in Europa tra Otto e Novecento, Texto apresentado no IV Congresso
Brasileiro de História do Direito, setembro/2009, Faculdade de Direito, Universidade de
São Paulo.
14 – Características gerais comumente invocadas para se identificar o Antigo Regime,
ver: Antonio Manuel Hespanha (coord.). O Antigo Regime. Lisboa, Lexi Cultural, 2002
(v. VII Coleção História de Portugal, dir. por José Mattoso).
15 – Nesse sentido, são extremamente eloquentes as proposições de Niklas Luhmann,
Observaciones de la modernidad. Racionalidad y contingência em la sociedad moderna,
Barcelona, Paidós, 1997. Ver a leitura de Giorgio Rebuffa, “Niklas Luhmann e il diritto
positivo”, Materiali per la storia della cultura giuridca, n.1, ano IX, giugno 1979, pp.
253-268, para utilização das proposições de Luhmann no direito.

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Andréa Slemian

seu início corresponde exatamente ao período da Independência, e sua


problemática remonta à própria tradição jurisdicional da monarquia por-
tuguesa que, a despeito de ter sido alvo de poderosas críticas desde fins do
século XVIII, além de negada pelos movimentos constitucionais que se
seguiram em Portugal e seus antigos domínios, ainda alimentaria práticas
cotidianas de suas instituições.

Nos seus primeiros anos, o Império do Brasil, antes mesmo de sua


consolidação como nova unidade política, promoveria uma série de cria-
ções institucionais no campo da administração da justiça, as quais foram
alimentadas pela crítica generalizada à magistratura, também identificada
com o passado português que se pretendia negar como “absolutista” e
“despótico”, e pelos ideais de separação de poderes nos regimes represen-
tativos16. É fato que foi a primeira instância, sobretudo, seu campo de maior
experimentação. Assim seriam criados os juízes de paz (1827), aprovados
os Códigos Criminal (1830) e o do Processo Criminal (1832) – este último
fortalecendo os juízes eletivos e também o júri, ou jurados –, bem como
um esforço ordenador de respeito à agenda liberal dos direitos dos indi-
víduos (no que tocava à propriedade e as garantias para prisão e acusação
apenas com culpa formada), mimetizado pela ação do recém-instituído
Supremo Tribunal de Justiça (1828) que seria, sobretudo, numa instância
recursal das contendas dos indivíduos entre si.

A própria pasta da Justiça, que se formaria após a Independência, tra-


ria fortes marcas de nascença: por um lado, pela tentativa de circunscri-
ção da esfera da justiça separada da administração, desde a alta cúpula; de
outro, pelas ações que estariam debaixo de sua jurisdição, as quais inclu-
íam, para além dos conflitos ordinários, a manutenção da ordem pública
em função do poder de policiamento das autoridades judiciárias (veja-se
que a Guarda Nacional seria criada sob sua jurisdição), incluindo também
16 – Andréa Slemian, “O Supremo Tribunal de Justiça nos primórdios do Império do
Brasil In: Lopes, J. R. O Supremo Tribunal de Justiça do Império, 1828-1889. São Paulo:
Saraiva, 2010, pp. 19-61; J. R. Lopes, “Governo misto e abolição de privilégios: criando o
Judiciário Imperial”. In: C. Oliveira/V. Bittencourt/ W. Costa. Soberania e conflito. Con-
figurações do Estado nacional no Brasil do século XIX. São Paulo: Hucitec/Fapesp, pp.
149-184.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

questões eclesiásticas, o que se relacionava com o amplo espectro das tra-


dicionais autoridades judiciárias até então17. Da mesma forma, o padrão
da cultura jurisdicional de matriz portuguesa se faria presente no funcio-
namento das novas instituições, em especial no que dizia respeito à ação
contenciosa das autoridades e na impossibilidade de se estabelecer uma
independência cotidiana de seus agentes, bem como pela manutenção de
um princípio de legalidade que pressupunha muito mais a confirmação da
ancestralidade das leis do que sua negação. Mas não se tratavam de meras
continuidades, pois que a necessidade de que as soluções atendessem ao
que fosse estabelecido por lei, tornavam ainda mais complicada a tarefa
de seu arbitramento, e portanto a relação entre norma e práxis.

Tendo em vista esse problema, nos centramos aqui nas primeiras e


difíceis décadas de consolidação da ordem imperial no Brasil. Do que
apresentaremos a seguir, fica evidente que, correspondente ao momento
de maior radicalização política dos últimos anos do Primeiro Reinado e
Regência, deu-se a criação de instituições de justiça mais afeitas a um
maior controle sobre a justiça e desconfiança em relação aos magistrados
de carreira, por meio da aposta nos juízes leigos e nos jurados, e na pró-
pria formação da Guarda Nacional. No entanto, mesmo que esse projeto
tenha perdido sua força desde meados dos anos 30, sendo em parte derro-
tado pela Reforma do Código do Processo em 1841, e pela própria Lei de
Interpretação do Ato Adicional (1840), ele já lançava a base do que seria
um dos maiores problemas em relação à consolidação da justiça e dos
seus agentes como independentes: a junção entre atribuições judiciais e
policiais, favorecendo o envolvimento dos mesmos nas lutas locais com a
delegação de uso de força armada aos mesmos poderes (o que incluía seus
interesses privados). Nesse ponto, as reformas previstas no funcionamen-
to da justiça feitas nos anos 40 dificultariam ainda mais a separação entre
17 – Ver, como exemplo, o amplo espectro de atividades desenvolvidas pela Intendência
Geral de Polícia, Andréa Slemian, Vida política em tempo de crise. Rio de Janeiro: 1808-
1824, São Paulo: Hucitec, 2006; também o funcionamento dos antigos tribunais, em Arno
e Maria José Wehling, Direito e justiça no Brasil colonial: o Tribunal da Relação do Rio
de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, 2004; e Guilherme
Pereira das Neves, E receberá mercê. A Mesa de Consciência e Ordens e o clero secular
no Brasil 1808-1828, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

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Andréa Slemian

justiça e administração, reforçando o poder policial das suas autoridades,


por mais que previssem uma maior centralização das decisões das con-
tendas no próprio judiciário. A essa altura, a complexidade das ações que
envolviam a justiça e sua prática já havia demonstrado ser uma quimera a
crença iluminista de simplificação das formas de aplicação do direito.

2. A justiça e a aplicação da lei


Na década de 1860, o Supremo Tribunal de Justiça encaminhava
para a Assembleia Legislativa do Império do Brasil uma solicitação: para
que ela fornecesse a “interpretação autêntica” sobre algumas leis, entre
elas, uma dúvida acerca da validade de um artigo das antigas Ordenações
portuguesas do Código Criminal de 183018. Dizia que “várias foram as
opiniões e diversos os arbítrios que se apresentavam na discussão deste
ponto” e que, por fim, o Tribunal se reconhecera “duvidoso”, e seguia o
indicado na lei de sua criação que previa o envio, para a Casa legislativa,
das matérias que sua “experiência” tiver mostrado estarem insuficientes
ou com lacunas visando à resolução mais conveniente19. Apesar de ex-
trapolar o período aqui delimitado, e de não ser incomum que órgãos e
agentes da justiça recorressem a outros poderes, a peça é significativa.
Os próprios ministros do Supremo reconheciam formalmente que não
lhes cabia a interpretação, conforme previsto no arranjo constitucional
imperial que subscrevia, desde o início, ser o judiciário o campo por ex-
celência de aplicação da lei, como forma de controlar excessos de poder
identificados com os magistrados e os antigos tribunais. Referendavam
assim o funcionamento institucional do mesmo órgão que, por mais que
tivesse a preocupação em homogeneizar práticas judiciais, era um tribu-
nal de recursos e nem sequer a última instância durante todo o Império –
vale dizer que o direito à revisão das sentenças era concedido ou não pelo
órgão, mas a decisão final cabia à Relação (segunda instância) para onde
o caso fosse encaminhado – organização esta que seria alvo de críticas,
sobretudo, a partir de meados do século20.
18 – ARQUIVO NACIONAL (AN), Manuscritos, GIFI, 6J 108.
19 – Colleção das Leis do Império do Brasil (CL). Actos do Poder Legislativo. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, lei de 18 de setembro de 1828, artigo 19o.
20 – J. R. Lima Lopes (org.). O Supremo Tribunal de Justiça do Império.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

Mas existia uma outra questão fundamental na base da reivindica-


ção dos ministros do Supremo. Trata-se do problema colocado a partir
da ideia de que a lei poderia, e deveria, ser clara para sua aplicação, sem
maiores intermediários, ainda que fossem estes os representantes da na-
ção. Essa fora a base para a supremacia do novo ideal liberal de codifi-
cação no início do século XIX. No entanto, isso também implicou lidar
com o passado, com as normas e práticas já existentes, e assim estavam
os ministros do Supremo lidando com as antigas Ordenações não sem
dificuldade de clareza na sua aplicação. O fato é que mesmo tendo exis-
tido atitudes mais inovadoras por parte dos novos governos representati-
vos sobre o princípio da legalidade, que pressionavam para modificação
das fontes herdadas dos antigos governos e monarquias, outras tendiam
a confirmá-las21.

No caso do Brasil houve, logo após a Independência, um reconheci-


mento formal da validade da legislação portuguesa como base para fun-
cionamento do Império. O que até poderia ser caracterizado como anta-
gônico, diante da proposta de ruptura com o passado português e de cons-
trução de uma ordem jurídica nacional que caracterizaram esse momento;
mas que merece ser entendido diante da própria dinâmica de moderação
dos regimes de monarquia constitucional que, sobretudo na década de
20, investiriam na transformação política de maneira mais cautelosa, sem
grandes solavancos políticos sociais.

Uma das poucas leis aprovadas pela Assembleia Constituinte insta-


lada no Rio de Janeiro em maio de 1823, e fechada pelo Imperador seis
meses depois, declarava “em vigor a legislação pela qual se regia o Brasil
até 25 de abril de 1821 e bem assim as leis promulgadas pelo Senhor D.
Pedro, como Regente e imperador daquela data em diante”, especifican-
do inclusive quais decretos das Cortes Constituintes de Lisboa deveriam
21 – Esse é um tópico fundamental para Carlos Garriga e Marta Lorente, Cádiz 1812. La
Constitución jurisdicional, Madri: Centro de Estúdios políticos y constitucionales, 2007,
defenderem que o processo constitucional iniciado na Espanha, na década de 1810, teria
sido essencialmente historicista ao manter em funcionamento, não apenas a legislação
anterior, devido ao pouco efeito derrogador praticado, como de toda uma cultura que
mantinha as antigas práticas institucionais.

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continuar a ter validade22. A derrogação não recaía sobre a legislação mais


antiga, mas sobre aquela elaborada no espaço legislativo português, entre
1821 e 1822, contra o qual o projeto de Independência do Brasil se faria,
referendando o funcionamento do sistema jurídico herdado e a preserva-
ção do legitimismo monárquico como fonte de direito. É fato que logo na
primeira década do Brasil independente, em especial, a partir da instala-
ção da Câmara dos Deputados e do Senado a partir de 1826, uma série de
novas leis, instituições e órgãos seriam criados visando à implementação
de um novo arcabouço jurídico constitucional23; mas era exatamente a
partir da implementação de um paradigma legalista que os impasses sur-
giriam.

Um dos problemas que se colocava era de qual direito deveria preva-


lecer na prática dos conflitos. Um exemplo contundente é uma provisão
da Mesa do Desembargo do Paço de 1826, em que um juiz ordinário da
Vila de Paracatu, em Minas Gerias, suplicava a imperial decisão a seu
favor na contestação que fez à escolha do vereador mais velho em função
do critério de antiguidade (comumente usado na tradição portuguesa)24.
Alegava o mesmo juiz ter experiência no cumprimento de outros cargos,
e apesar da decisão reconhecer que por essa razão estava ele respaldado
na Constituição – o artigo 179, título XIV, marcava que todo o cidadão
fosse admitido em cargos públicos “sem outra diferença, que não seja a
dos talentos virtudes” –, ordenava o governo que continuasse valendo o
critério de antiguidade enquanto não se fizessem novos regulamentos para
as Câmaras, denegando a solicitação. Como essa, acabaria por ser comum
determinar-se que, enquanto não se fizesse lei nova, enquanto não se re-
gulasse sobre determinada matéria, continuaria subsistindo o que estava
estabelecido, inclusive, no reconhecido direito das “nações polidas”.

Como garantia de direitos, erros no procedimento dos processos


também passariam a invalidá-los, mesmo quando o caso pudesse ser con-
22 – CL, Actos do Poder Legislativo, lei de 20 de outubro de 1823.
23 – Andréa Slemian, Sob o império das leis. Constituição e unidade nacional na forma-
ção do Brasil (1822-1834), São Paulo: Hucitec, 2009.
24 – Colleção das Decisões do Governo (CDG). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Ano
de 1826, 23/setembro, p. 104.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

siderado contundente e mesmo evidente. Em 1827, num caso contra o


ex-presidente da província do Pará, José de Araújo Roso, por meio “acu-
sações vagas, já públicas, já particulares, sem que tal agregado pudesse
merecer o nome de processo”, o ministro da Justiça não parecia ter dúvi-
da em invalidá-la como tal e ordenar que se procedesse a uma devassa,
diante de “crimes tão horrorosos” a ele atribuídos25. Mas a justificativa
era especialmente contundente ao defender uma “grande diferença que
mediava o caso em que não havia processo, e no caso em que ele era
errado”, já que neste último poderia ter lugar sua “abolição” e uma nova
feitura do mesmo (como se propunha), enquanto que no primeiro não.
Obviamente, pois que observar as normas da legalidade passava a ser
um princípio a ser perseguido, de início inegociável, mas que criaria suas
próprias contradições.

Uma delas apareceria no caso das revogações, em especial na década


de 40. Como é sabido, com o Ato Adicional e instalação das assembleias
legislativas provinciais em 1834, também era dada a elas a prerrogativa
da produção de leis que, a despeito de terem que ser aprovadas na Corte
do Rio de Janeiro, significava um padrão considerável de autonomia ad-
ministrativa para as mesmas províncias26. Como reação, a Lei de Interpre-
tação do mesmo Ato Adicional, de 12 de maio de 1840, procurava, entre
outras, equacionar quais matérias seriam de competência provincial numa
tentativa de evitar que a produção legislativa das províncias exorbitasse
sua esfera local. No entanto, também afirmava que as leis consideradas
infratoras pelo governo central não se entendiam automaticamente re-
vogadas sem que fossem expressamente extintas por ato do legislativo
geral (artigo 8o). O que gerava distintas aplicações, como se vê nos casos
a seguir que chegaram a ter parecer do Conselho de Estado, na Seção de
Justiça.

Um primeiro tratava de atos promulgados na Assembleia Legislativa


de Alagoas, em 1842, especificamente sobre a aprovação de uma lei, de

25 – Idem, ano de 1827, 30/junho, pp. 159-161.


26 – Miriam Dolnikhoff, O pacto imperial. Origens do federalismo no Brasil. São Paulo:
Globo, 2005.

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Andréa Slemian

18 de abril, em que autorizava o presidente da província a fazer o recruta-


mento para preencher a força de polícia27. Segundo parecer do procurador
da Coroa, a aprovação seria ilegal ao ir contra o Ato Adicional que fixava
serem as respectivas assembleias as responsáveis pela fixação das forças
policiais a partir das informações dos seus respectivos presidentes. O pa-
recer da Seção de Justiça do Conselho de Estado era diverso: argumenta
que nem a Constituição, nem o Ato Adicional teriam sido ofendidos, já
que competia às assembleias regular o corpo policial e “decretar, como
decretou, o respectivo recrutamento, ficando contudo a autorização dada
ao presidente subordinado às regras e procedimentos marcados” na pro-
víncia. Portanto, se o legislativo provincial havia autorizado o presidente
a fixar forças, o ato do presidente perdia, para o governo, seu caráter
ilegal. Olhando hoje, retrospectivamente, o caso parece simples, mas
coube consulta do Conselho de Estado – órgão consultivo e privado do
imperador, conforme já analisado por José Reinaldo Lopes28 – para sua
interpretação.

Num segundo, a Seção ao avaliar, no ano de 1844, os atos legislati-


vos da província de São Paulo, indicava que uma lei provincial, a de 23 de
fevereiro de 1836, seria contrária à da Guarda Nacional; no entanto, como
ela não teria sido ainda revogada, confirmava sua validade29. A Seção
aproveitava para indicar que fossem revogadas todas as leis provinciais
que alterassem a organização, disciplina e forma de nomeação da mesma
Guarda. Outras com o mesmo teor se seguiriam, na década de 40, basea-
das no princípio da legalidade.

No entanto, em uma consulta da mesma Seção de Justiça que viria


à tona anos depois, a complexidade que envolvia tanto a aplicação como
a interpretação da lei aparecia de forma clara. Tratava-se de um caso de

27 – Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho de


Estado. Anos de 1842 a 1846. Bellarmino Braziliense Pessoa de Albuquerque (org.). Rio
de Janeiro: Typographia Nacional, 1877, v.1. Consulta de 21/novembro/1842.
28 – O oráculo de Delfos.O Conselho de Estado no Brasil-Império. São Paulo: Saraiva/
Direito GV, 2010.
29 – Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho de
Estado. Anos de 1842 a 1846. Consulta de 28/novembro/1844, pp. 102-3.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

remoção de serventuários da justiça em que o presidente de província


do Ceará, baseado numa lei aprovada pela Assembleia de 3 de abril de
1835 e posteriormente revogada, os transferiu30. Dois dos conselheiros
votaram que o mesmo presidente teria agido por atos reconhecidamente
ilegais, em função da lei ter sido revogada. Mas o parecer dividiu a Seção.
Bernardo Pereira de Vasconcelos31 – um dos três conselheiros que olhou
o caso juntamente com Honório Hermeto Carneiro Leão32 e Caetano Ma-
ria Lopes Gama33 – teve um entendimento distinto para o caso. O ponto
principal de sua crítica recaía sobre o problema da revogação das leis:
afirmava que a extinção da supracitada lei de 1835, “longe de harmonizar
as leis provinciais com a da Interpretação, como imagina a maioria da Se-
ção, ofendera a lei interpretativa”, pois longe de “simplificar” a legislação
tendia a “emaranha-la mais” ao ser copiada pelas outras províncias34. Seu
argumento é longo e tem como um dos focos a defesa de que com a Lei de
Interpretação de 1840 não se entendiam revogadas todas as leis provin-
ciais – o que seria particular à idéia de uma “lei interpretativa” – as quais
continuariam em vigor até que pudessem ser revogadas por uma “geral”
que não caberia a nenhuma das províncias.

Diante das possíveis leituras da questão, o que é relevante notar para


nossa análise é que a chave ilustrada da lei como base para o direito e dos
juízes subordinados a ela como os aplicadores da lei configurava-se, por-
tanto, de uma complexidade especial. O que não foi um problema apenas
para o Brasil, e nem mesmo essa a única solução constitucional. Para
além dessa solução mimetizada pela experiência francesa, outra havia

30 – Idem. Consulta de 1/outubro/1846.


31 – Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850) ocupou vários cargos no governo im-
perial, entre eles o de deputado nas quatro primeiras legislaturas, o de ministro da Fazen-
da, do Império e da Justiça, o de senador a partir de 1838, e o de conselheiro de Estado.
32 – Honório Hermeto Carneiro Leão (1801-1856), futuro Visconde do Paraná, foi um
dos mais importantes estadistas do Império, tendo sido várias vezes deputado, presidente
de província, senador a partir de 1843, e de conselheiro de Estado.
33 – Caetano Maria Lopes Gama (1795-1864), posteriormente Visconde de Maranguape,
também ocupara diversos cargos no governo imperial, como deputado, ministro e, a partir
de 1839, senador.
34 – Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho de
Estado. Anos de 1842 a 1846, p. 203.

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sido representada pela tradição do governo misto norte-americano que


pregara uma maior integração dos juízes no processo, valorizando seu
papel enquanto intérpretes da lei; e outra ainda, que tomou corpo ao lon-
go do XIX, da revalorização da interpretação e crítica aos códigos como
fonte de direito, na linhagem da obra de Savigny35. No caso do Brasil,
o que se vê é que, a despeito da adoção inicial de premissas revolucio-
nárias em relação à justiça, construir-se-ia uma forma igualmente mista
para sua administração, em que não apenas órgãos conservadores como
o Conselho de Estado teriam papel fundamental, como a distribuição de
ação contenciosa para vários outros agentes, selavam, em outros níveis, a
relação intrínseca entre justiça e os cargos executivos, conforme veremos
a seguir. Resta dizer, por hora, que o parecer elaborado por Bernardo Pe-
reira de Vasconcelos para que se evitasse uma ampla revogação das leis
provinciais, com o intuito de se evitar uma maior confusão legislativa e se
valorizar o papel interpretativo do direito vigente, seria aprovado.

3. O desenho da administração da justiça, da polícia e de seus


agentes
Uma das decisões do governo, divulgadas logo após a outorga da
Constituição de 1824, previa que todos os juízes deveriam declarar cir-
cunstanciadamente as razões das sentenças “conforme o liberal sistema
ora abraçado”36. Ou seja, deveriam eles prestar esclarecimentos de seus
atos pelos quais, na lógica do novo regime, poderiam ser responsabiliza-
dos37. Além disso, houve uma clara ação no sentido de declarar a neces-
35 – José Reinaldo de Lima Lopes, O oráculo de Delfos..., p. 66 seg., analisa, faz um
amplo histórico da prática da interpretação, detendo-se na análise do caso para o Império
do Brasil.
36 – CDG, ano de 1824, 31/março/1824, p. 57.
37 – A defesa de que todos os agentes do Estado deveriam ser responsáveis por seus atos
passaria a ser fundamental como ponto de legitimidade aos novos regimes constitucio-
nais. No Brasil, ela entraria na pauta dos trabalhos legislativos logo após a abertura da
Câmara dos Deputados, sendo que uma das propostas para sua efetivação era um projeto
de lei que inclui os delitos e penas para todos empregados em geral. No entanto, também
por razões que envolveram as disputas políticas no Primeiro Reinado, a lei de responsa-
bilidade, aprovada em 15 de outubro de 1827, previa a cobrança da mesma apenas aos
ministros e secretários de Estado. Para o caso dos agentes judiciários, ela estava inscrita
na Constituição (artigo 156) mas não haveria uma lei específica para a mesma, e sim pro-

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

sidade de publicidade das mesmas ações judiciais, sendo que as conside-


radas de “maior interesse” deveriam ser publicadas pelo periódico oficial
do governo, o então Diário Fluminense38. Todas essas ações seriam ali-
mentadas pela nova agenda de direitos invioláveis dos cidadãos, o que
deveria incluir a garantia de que ninguém fosse preso sem culpa formada
e que os procedimentos para a execução dos processos fossem estabeleci-
dos o mais rapidamente39 – o que se cumpriu, ao menos normativamente,
pela aprovação dos códigos que regulavam questões judiciais.

Mas as condições de desenvolvimento da justiça tiveram suas pecu-


liaridades no tocante às continuidades e rupturas. Comecemos pelos seus
agentes imediatos, os juízes. Como se viu acima, a despeito da Cons-
tituição pregar que todos os cidadãos deveriam ser admitidos em car-
gos públicos pelos seus “talentos e virtudes”, o critério de antiguidade
continuaria a valer para progressão na carreira dos juízes, bem como a
acomodação de magistrados à nova ordem. Quando da lei de extinção
dos tribunais das Mesas do Desembargo do Paço e da Consciência e Or-
dens, em 22 de setembro de 1828, previu-se que todos os seus membros
que não fossem empregados, seriam aposentados no Supremo Tribunal
de Justiça “com o tratamento, honras e prerrogativas concedidas aos seus
membros”40. Quanto ao próprio Supremo, a antiguidade seria assegurada
como critério de escolha para seus ministros41.

Além disso, a nomeação e a progressão na carreira dos juízes e ma-


gistrados seriam atribuições do executivo – que também nomeava, de
acordo com a Constituição no seu artigo 102, os demais empregos ci-
vis e políticos. O mesmo valia para remoções e substituições, permitindo
uma significativa ingerência do governo nessas questões. Uma consulta

cedimentos previstos no Código do Processo e em seus regulamentos.


38 – Colleção das decisões do governo. Anno de 1825, 25/novembro/1825, p. 191.
39 – Um decreto de 17 de abril de 1824 (Colleção das decisões do governo. Actos do
Poder Executivo) dava providências sobre como deveria ser o processo nas causas crimes,
subscrevendo que a ordem judicial só poderia ser modificada por um código; outro, de 30
de agosto de 1828, marcava os casos em que se poderia prender sem culpa formada.
40 – CDG, Anno de 1828.
41 – Idem, lei de 28/setembro/1828.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):225-272, jul./set. 2011 239


Andréa Slemian

ao Conselho de Estado, em 1846, sobre contagem de tempo para os juízes


municipais, mostrava os limites em que se chegava nessa dependência:
sendo reconhecidas as dificuldades na regulação de sua função, e mesmo
as condições “precárias” de sua prática, era recorrente aos mesmos juízes
irem à Corte solicitar novos lugares quando estava para findar seu período
no cargo42. É verdade que a vitaliciedade nos cargos de juízes de carreira,
confirmada pela Constituição, seria a princípio uma forma de compensar,
de garantir a liberdade de sua ação na chave liberal da independência da
justiça, diante do cotidiano de disputas políticas em que os mesmos juízes
estavam submetidos.

Uma das marcas da magistratura no Império português, até o movi-


mento constitucional, era a indistinção de funções administrativas e judi-
ciais, típica de uma cultura jurisdicional em que seus agentes possuíam
amplo poder de jurisdição43. E um dos impasses do novo regime seria
exatamente a distinção entre ambos, o que se complicava diante do fato
da carreira continuar a ser uma forma privilegiada de entrada na política
imperial44. Em geral, ela continuaria marcada pela passagem por diversos
cargos na administração e na judicatura, em que além de adquirir experi-
ência, dificilmente se poderia preservar o indivíduo das disputas partidá-
rias, desde as pequenas vilas até as mais altas esferas do governo. Além
disso, havia a compatibilidade entre ocupações exercidas sob a tutela de
poderes distintos, que não apenas o judiciário45.

42 – Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho de


Estado. Anos de 1842 a 1846. Consulta de 25/06/1846, pp.168-9.
43 – Em pesquisa sobre a Relação no Rio de Janeiro, Arno e Maria José Wehling, op.cit.,
demonstram como era ampla a gama de atribuições dos magistrados no Tribunal que, para
além de sua atividade judicial constante, tratavam de questões políticas (em apoio aos
projetos do governo, e mesmo no sentido de equilibrar as várias autoridades), administra-
tivas, e mesmo de planejamento e execução de políticas públicas.
44 – Andrei Koerner (1998). Judiciário e cidadania na constituição da República brasi-
leira. São Paulo: Hucitec/ Depto. Ciência Política (USP), 1998; e
45 – Questões de (in)compatibilidades foram temas recorrentes nos atos do ministério da
Justiça devido a sua geral aceitação no regime imperial. Um dos pontos recorrentes de
dúvida, dava-se em função dos juízes de paz, função que, em geral, não era considerada
compatível com outros cargos locais. Veja-se como exemplo, Colleção das decisões do
governo. Anno de 1829, 11 e 22 de dezembro.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

Um elemento novo nesse cenário seria a criação dos juízes de paz e


também do júri (jurados), ambos eletivos. Já defendidos na Assembleia
Constituinte do Rio de Janeiro, em 1823, como garantia de direitos dos
cidadãos e antídoto contra a corrupção, parcialidade e arbitrariedades
atribuídas aos juízes e à tradição portuguesa – que se pretendia negar
após a Independência –, eles encontrariam terreno fértil nos primeiros
anos da administração da justiça imperial46. Ambos estariam previstos na
Carta Constitucional de 1824, e seriam implementados num momento
político de oposição ao novo Imperador e início de uma radicalização nas
soluções institucionais projetadas47. Os juízes de paz seriam aprovados
em 182748, quando na Câmara dos Deputados se decidiu privilegiar um
projeto para sua criação diante da apresentação de propostas de reformu-
lação na administração municipal49. Uma das polêmicas que norteou sua
criação foi a de suas atribuições, que acabariam concebidas como bem
amplas.
46 – O debate na Assembleia Constituiinte de 1823 foi pormenorizadamente discutido
por José Reinaldo de Lima Lopes, “Governo misto e abolição de privilégios: criando o
Judiciário Imperial”.
47 – Andréa Slemian, “Um Império entre repúblicas? Independência e construção de uma
legitimidade para a monarquia constitucional no Brasil, 1822-1834”. In: C. Oliveira/ V.
Bittencourt/ W. Costa, W. P., op.cit., pp. 121-148.
48 – CL, lei de 15/setembro/1827. Uma das poucas obras que se dedicou ao tema, e que
continua sendo referência sobre a questão dos juízes de paz e jurados, ainda que necessite
ser revista em vários pontos, é a de Thomas Flory, El juez de paz y el jurado en el Brasil
imperial. Control social y estabilidad política del nuevo Estado. México: Fondo de Cul-
tura Economica, 1986. Para este, ambas instituições, os juizes de paz e o júri, estavam
articuladas ao projeto dos “liberais” e teriam criado uma contradição insolúvel para os
mesmos: na prática, sua grande independência local teria debilitado os agentes potencial-
mente valiosos do Estado ao dividir com eles seus poderes tradicionais e seu prestígio,
como no caso dos magistrados e juizes de fora. A síntese de Flory é que os liberais, por
meio da ênfase excessiva que teriam dado a instituições como essas, enquanto suporte
dos poderes locais, não teriam sido capazes de assegurar a ordem interna que, só a partir
da década de 40 e com o chamado “Regresso conservador”, se concretizaria no Brasil.
Em si, tal interpretação induz a uma compreensão dos jurados e juízes de paz como um
empecilho na formação do novo Estado por não lhe permitir o controle da justiça.
49 – Um dos projetos era de Diogo Antônio Feijó para “administração e economia das
Províncias”, Anais do Parlamento Brasileiro – Câmara dos Deputados (APB-CD). Ano
de 1826, t.1, sessão de 11/julho, pp. 127-131, e outro de Nicolau Vergueiro sobre os mu-
nicípios, APB-CD, t.4, sessão de 30/agosto, pp. 312-7. Um capítulo deste último serviu de
base para o projeto sobre os juízes de paz. Ver: Andréa Slemian, Sob o império das leis,
cap. 2.

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Andréa Slemian

O projeto inicial previa que os juízes pudessem conciliar e julgar


pequenas contendas, prevenir e indagar a existência de delitos, aplicar
punições correcionais, prender os criminosos, dando parte de suas ações
às autoridades competentes50. Desde o início, houve debate entre aqueles
favoráveis a reduzi-los a meros agentes de conciliação entre as partes,
sem autoridade para julgar nenhuma contenda, e outros que defendiam
que, sem maiores atribuições, a instituição não seria proveitosa para sa-
nar a quase inexistência de “justiça” que imperava no Brasil51. Na sua
segunda discussão do projeto acrescentaram-se algumas atribuições: o
poder de usar força armada em caso de desordem, de fazer corpo de de-
lito, de impor penas à violação das posturas policiais das Câmaras, de
vigiar a conservação das matas e florestas, o direito de julgar circunscrito
a “pequenas demandas” que não ultrapassassem determinado valor52, as
quais seriam aprovadas. Definia-se também que haveria um juiz em cada
freguesia, elegível com os mesmos requisitos válidos para ser eleitor –
que pela Constituição, no artigo 94, significava ter renda anual acima de
duzentos mil-réis, com exceção dos libertos – , bem como a junção das
atividades judiciais e policiais num único agente.

Após a aprovação da lei, haveria um esforço por parte do governo


na implementação dos juízes de paz, bem como um reforço na sua ação
de policiamento. Uma ordem do governo, em 1830, declarava que eles
fossem logo eleitos em todas as capelas filiais curadas53; duas outras do
ano anterior, determinavam que fossem cessadas as funções dos comis-
sários de polícia e a existência dos comandantes-gerais quando os juízes
de paz entrassem em exercício54. Vale dizer que a função de comissário
de polícia havia sido criada poucos anos antes, em novembro de 1825,
na esteira da reformulação das ações da Intendência Geral da Polícia55 –

50 – APB-CD, 1826, t.4, sessão de 30/agosto, pp. 314.


51 – A discussão sobre esse item encontra-se nas sessões dos dias 19 e 21 de maio, e 28 e
30 de junho de 1827.
52 – APB-CD (1827), t.3, 9/julho.
53 – CDG, Ano de 1830, 11/setembro/1830, p.29.
54 – Idem, Ano de 1829, 12/janeiro e 29/abril/1829.
55 – Idem, a decisão de 04/novembro/1825 criava as funções dos comissários, e uma an-
terior, de 3/janeiro/1825, dava providência à Intendência de Polícia para manutenção da

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

órgão herdado da tradição ilustrada portuguesa, adotado no Brasil logo


após a chegada da Família Real, em que se concebia a polícia como uma
ação ampla que ia desde a manutenção da ordem pública, a “saúde” das
cidades e dos estabelecimentos, o controle social e também moral dos
habitantes, a abertura de devassas, entre outras. As atribuições dos co-
missários, por mais que representassem uma tentativa de circunscrição de
atividades policiais, mantinha um espectro amplo de ação na prevenção
de delitos, ordem pública, controle aos vadios, limpeza e saneamento das
ruas, etc. Parte de suas atribuições passariam agora para os juízes de paz,
cuja função também trazia consigo a marca de uma concepção antiga de
justiça, em que funções judiciais não deveriam ser pensadas dissociadas
do policiamento e da manutenção da ordem pública e moral da cidade e
seus indivíduos.

O momento é que era bem particular. Ao fim do Primeiro Reina-


do, observa-se uma série de desordens públicas alimentadas pela abertu-
ra de novas possibilidades políticas com a abdicação do trono por parte
do Imperador em nome de seu filho ainda criança. Intranquilidade esta
que se espalharia por várias províncias ao longo da Regência, como re-
voltas e movimentos contestatórios de grandes dimensões sociais, e que
exigiriam, por parte do governo, medidas mais urgentes56. Logo após os
motins e desordens que se seguiram à saída de D. Pedro I, aprovou-se
uma lei que fornecia providências para a pronta administração da justiça
e punição dos criminosos, a qual reforçava a autoridade policial dos juí-
zes de paz e recomendava que magistrados e ouvidores (do Crime e das
Relações) que a exercessem cumulativamente com os primeiros57. Dias
depois criava-se, em cada distrito, um corpo de Guarda Municipal, cuja
nomeação dos comandantes, divisão em esquadras e solução de dúvidas

tranquilidade pública.
56 – Referimo-nos aqui às conhecidas revoltas regenciais que, a despeito da particularida-
de de cada uma, foram recorrentes nos anos da Regência. Ver como Ilmar R. de Mattos,
“La experiencia del Imperio del Brasil”, Antonio Annino (et. alii), De los imperios a las
naciones: Iberoamerica, Ibercaja/Obra Cultural, 1994, analisa que, diante das alternativas
radicais que surgiram na esteira da abdicação de D. Pedro, a monarquia pode prevalecer
no Brasil sob a legitimidade da Constituição.
57 – CL, Actos do Poder Executivo, 6/junho/1831.

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Andréa Slemian

sobre sua administração, pertenceria aos mesmos juizes de paz58. O re-


gulamento da mesma Guarda, chamadas Municipais Permanentes, seria
aprovado meses depois59, já sob a chancela de Diogo Antônio Feijó60 na
pasta da Justiça61.

Fora no período do citado ministro que se aprovaria, em agosto de


1831, a Guarda Nacional62. Sua inspiração teria sido a guarda revolu-
cionária francesa, ou seja, uma corporação paramilitar que deveria atuar
como reforço ao poder civil, cujos oficiais seriam eleitos e seus membros
armados em nome da defesa da “Constituição, Liberdade, Independência
e Integridade do Império”63. Inicialmente, estavam elas subordinadas aos
juízes de paz e aos criminais, aos presidentes da província e ministro da
justiça, sua organização era de responsabilidade dos municípios, e aca-
bariam por exercer funções que iriam além de seu papel auxiliar – fosse
como “corpo destacado” para repressão dos movimentos de insubordina-
ção e revoltas, fosse como responsável pelo poder policial e nas rondas
promovidas nas cidades. É fato que sua criação está associada à tendência
que se convencionou chamar de liberal que, grosso modo, investiu na
permanência de forças de coerção nas mãos de poderes locais – ao apostar
na defesa que os cidadãos fariam da “causa pública”, ou seja, no papel
dos “privados”, como os próprios juízes de paz –, adequada à realidade
de uma sociedade escravista pós-colonial em que o Estado não detinha o

58 – Idem, Actos do Poder Executivo, 14/junho/1831.


59 – Idem, 22/outubro/1831.
60 – Diogo Antônio Feijó (1784-1843) teve formação religiosa e iniciou sua carreira po-
lítica em 1821 como deputado das Cortes de Lisboa. Posteriormente, seria deputado nas
duas primeiras legislaturas do Império do Brasil, estando à frente da pasta do Ministério
da Justiça entre os anos de 1831-32, senador pelo Rio de Janeiro, e regente entre os anos
de 1835-37.
61 – Ivan Vellasco, “Policiais, pedestres e inspetores de quarteirão: algumas questões so-
bre as vissicitudes do policiamento na província de Minas Gerais (1831-50)”. In: J. M. De
Carvalho, Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007, pp.237-265.
62 – O trabalho de Jeanne B. de Castro, A milícia cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a
1851. São Paulo/Brasília: Companhia Editora Nacional/INL, 1977, continua sendo uma
das referências mais importantes sobre o tema.
63 – Jeanne B. de Castro, op. cit..

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

monopólio da força armada64. A reforma pela qual a Guarda passaria em


1850 previa um aumento significativo do controle das autoridades cen-
trais sobre sua organização65, mas não tocava nessa questão de fundo que
continuaria a inviabilizar, inclusive, a dissociação entre poder judicial e
policial, uma questão central para nossa análise.

Nos mesmos conturbados anos do início da década de 30, aprova-


ram-se os dois primeiros códigos para o Império: o Criminal (1830) e o
do Processo Criminal de primeira instância (1832). A codificação, não
à toa, relacionava-se com questões judiciais diante da imperiosidade da
tarefa de controle da ordem pública por meio da prevenção e punição
dos crimes e delitos, o que era subentendido como função da justiça66. O
primeiro deles incorporava, do ponto de vista das reformas nos sistemas
criminais em todo o Ocidente desde o Setecentos, as novidades mais li-
berais da época quanto aos crimes e às formas de sua punição (notar que
havia uma parte inteira dedicada aos “crimes públicos”, onde se previa,
no seu título V, penas contra as “prevaricações, abusos e omissões dos
empregados públicos”).

Mas foi o de 1832 que tocou diretamente na administração da justiça


ao regulamentar todos os procedimentos e autoridades para execução da
primeira instância. Seguindo a tendência por uma normalização que privi-
legiava a ação das autoridades locais na resolução dos conflitos, o código
do Processo Civil delegou poderes ainda mais amplos aos juízes de paz,
reforçando suas funções judiciárias e policiais, e instituiu definitivamen-
te o júri, como todas suas regras, na primeira instância67. Aos primeiros
64 – Essa tese foi desenvolvida por Wilma Peres Costa, A Espada de Dâmocles. O Exér-
cito, a Guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo/Campinas: Hucitec/Ed. Uni-
camp, 1996; Jeanne B. de Castro, op. cit., apesar de já ter apontado para adaptação da
instituição em terras brasileiras, tende a vê-la muito mais como um produto “desvirtuado”
do que como recriação de acordo com as práticas presentes na sociedade da época.
65 – CL, Actos do Poder Legislativo, lei de 19/setembro/1850.
66 – A. Slemian, “À nação indepedente, um novo ordenamento jurídico: a criação dos
Códigos Criminal e do Processo Penal na primeira década do Império do Brasil”. In: Gla-
dys Sabina Ribeiro (org.). Brasileiros e cidadãos. Modernidade política 1822-1930. São
Paulo: Alameda, 2008, pp. 175-206.
67 – Lei de 20 de novembro de 1832. Sobre sua estrutura e impacto na ação judiciária ver
Thomas Flory, op.cit.; Jeanne B. de Castro, op.cit.; de Américo Jacobina Lacombe ver:

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):225-272, jul./set. 2011 245


Andréa Slemian

caberia, além de cuidar dos termos de bem viver, do conhecimento dos


habitantes e dos suspeitos com zelo pela segurança dos distritos, proceder
a corpo de delito, formar culpa, prender, julgar alguns pequenos crimes e
mesmo receber queixas contra juizes. Quanto aos jurados – eleitos a partir
de lista composta por junta presidida pelo juiz de paz, desde que fossem
eleitores de segundo grau, ou seja, maior de 25 anos e com renda superior
a 200 mil-réis –, cabia a eles realizar a acusação e a sentença em primeira
instância criminal, sendo os juízes de direito os responsáveis pela presi-
dência e regulação de suas sessões. O Código também determinava como
deveriam ser encaminhados os crimes de responsabilidade dos emprega-
dos públicos, cujas queixas poderiam ser feitas qualquer cidadão à assem-
bleia legislativa, ao governo, aos presidentes de província, e mesmos às
autoridades judiciárias competentes.

Nem bem o Código do Processo seria aprovado, já era comum en-


contrar queixas dos ministros da justiça contra ele. Os dois principais
pontos de crítica eram a ampla ação prevista aos juízes de paz e a inexis-
tência de uma força policial independente que pudesse ser “digna desse
nome”. Já no ano de 1833, o então ministro Honório Hermeto Carneiro
Leão, no seu relatório referente ao ano anterior, já se referia aos “defeitos
graves” do novo Código, em que:
“além da falta de ordem, método, e clareza, necessária em uma Lei,
que tem de ser executada por homens não versados em Jurisprudência
[juizes de paz], há no Código do Processo repetições, omissões gra-
ves, e até artigos inteiramente antinômicos. Em verdade, Senhores, as
melhores teorias de Jurisprudência Criminal de Inglaterra e dos Esta-
dos Unidos, eram conhecidas pelos Autores do Código, mas não posso
deixar de dizer, que a aplicação ao nosso País foi infeliz”68.

“A cultura jurídica”, Sérgio Buarque de Holanda (org.), História Geral da Civilização


Brasileira. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, tomo II, 3º v., pp. 356-368, e
História administrativa do Brasil. Organização e administração do Ministério da Justiça
no Império, Brasília: Fundação Centro de Formação do Servidor Público, 1986 (v.12); As-
tolfo Rezende, “Polícia administrativa. Polícia judiciária. O Código do Processo de 1832.
A lei de 3 de dezembro de 1841. A lei de 20 de setembro de 1871”, RIGHB. I Congresso
de História Nacional (tomo especial), Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, parte III, 1916,
pp. 399-422.
68 – Relatório do Ministério da Justiça, Ano de 1832, p. 17.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

A mesma queixa se repetiria na boca de seus sucessores durante toda


a década de 30, a qual acabaria por justificar, juntamente com a mudança
do momento político em inícios da década de 1840, sua reforma.

A esperada reforma do Código do Processo seria aprovada em


184169. Uma das suas principais novidades consistiu, sem dúvida, na cria-
ção de “chefes de polícia” por província, escolhidos pelo Imperador entre
os desembargadores e os juízes de direito, e os seus auxiliares delegados
e subdelegados que seriam igualmente nomeados após indicação, e que
poderiam ser juízes ou “cidadãos”. Essas seriam, a partir de então, as
principais autoridades responsáveis pela primeira instância – juntamente
com o júri, os juízes municipais e os de direito – além de igualmente
fundamentais para manutenção do controle policial nas localidades. In-
clusive, no longo regulamento da parte policial e criminal da reforma do
código, aprovado no ano seguinte70, constava a divisão da polícia em duas
categorias: a “administrativa”, responsável sobretudo pelas funções “mo-
rais”, de cuidado com o “bem viver” nas cidades, das contravenções nas
posturas, arrolamento da população, entre outros; e a chamada “judiciá-
ria”, encarregada mais de perto pela prisão culpados, mandados de busca
e corpo de delito. Mais suas funções continuavam imbricadas em mais de
uma autoridade. A novidade, no entanto, se faria efetiva na diminuição e
maior controle das autoridades eletivas (juízes de paz e jurados), mesmo
que os delegados e mesmo subdelegados até pudessem ser escolhidos
entre cidadãos não formados, mas nunca eleitos.

Diversas interpretações historiográficas relacionaram o processo po-


lítico a esse de transformação das instituições da justiça. A questão é que,
se por um lado, têm-se discutido o grau em que o arranjo institucional
imperial era centralizador ou manteve uma ampla esfera de ação às pro-
víncias – cujas atribuições foram legalmente criadas pelo Ato Adicional
69 – CL, Actos do Poder Legislativo, lei de 3 de dezembro de 1841.
70 – CL, Actos do Poder Executivo, lei de 31 de janeiro de 1842. Dois meses depois,
aprovou-se um regulamento para a execução da parte civil do Código do Processo (de 15
de março) em que se marcava o funcionamento dos órgãos e cargos nessa esfera. É fato
que o Código, apesar de voltado à matérias criminais, acabava ditando igualmente parâ-
metros para a formação de processo na área civil (na inexistência de um específico).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):225-272, jul./set. 2011 247


Andréa Slemian

de 183471–, por outro, é evidente que, do ponto de vista da justiça, a re-


forma de 1841 representou uma tentativa de se retirar o grande espectro
de poder conferido aos juízes eletivos e, nesse ponto, reforçar o poder dos
magistrados na primeira instância. O que nos interessa notar nesse con-
texto é que o texto da reforma do Código do Processo não apenas confir-
mou, mas consolidou, num formato ainda mais definitivo, a junção entre
as funções policiais e judiciais nas mãos dos juízes e magistrados. Se isso
se configurava como num problema na prática cotidiana dos agentes judi-
ciários – também em função do atrelamento da carreira de seus agentes ao
executivo –, a organização policial e a da própria Guarda Nacional, sujei-
tas à organização dos cidadãos comuns, pouco ajudaram na circunscrição
e independência de sua jurisdição.

O início dos anos 40 seria também o momento em que uma série


de medidas para organização de vários órgãos e secretarias do governo,
inclusive da justiça, aconteceria com intensidade. Momento de consoli-
dação de um projeto saquarema de Império, segundo interpretação de
Ilmar Mattos. Consolidação também de um projeto constitucional que,
iniciado a partir de bandeiras mais revolucionárias e radicais para a jus-
tiça, acabaria por adotar soluções um pouco mais conservadoras nesse
momento, quando os impasses para manutenção do paradigma legalista
exigiam também novas e mais complexas operações. Não à toa, voltaria o
Conselho de Estado com a Lei de Interpretação de 1841, órgão que teria
no regime brasileiro um importante papel na decodificação da lei.

4. As práticas institucionais e a justiça: poderes, jurisdições e


conflitos
Desde a Independência, não faltaram afirmações constantes de que o
poder judiciário, e consequentemente seus agentes, teriam que ser inde-
pendentes como constava na Carta Constitucional de 1824. Antes mesmo
da aprovação dessa, a questão já havia motivado polêmicas na Assembleia
71 – Ver as posições distintas de José Murilo de Carvalho, A construção da ordem. A elite
política imperial. Brasília: UnB, 1981; Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema. A
formação do Estado imperial, Rio de Janeiro: Access Editora, 1999; e Miriam Dolhnikoff,
op.cit.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

Constituinte no ano anterior, em particular na discussão acerca de um go-


verno provisório para as províncias, quando entrou em pauta os limites de
ação dos seus presidentes em relação aos magistrados72. Aprovaria-se ao
final que os mesmos presidentes, reunidos em Conselho e de acordo com
o Chanceler (onde houvesse Relação), poderia suspender o magistrado
depois que ele fosse ouvido e apenas no caso de que, em função de motins
e revoltas na província, não se pudesse esperar resolução do Imperador73.
Feita a suspensão, o caso deveria ser imediatamente encaminhado à se-
cretária da Justiça.

No entanto, a administração da questão não era fácil. Em decisão de


setembro de 1827, o ministro da Justiça assumia que aconteciam abusos
na suspensão dos magistrados pelos presidentes, pedia que se observasse
a supracitada medida, e que se evitasse “serem os juízes suspensos do
exercício de suas funções sem que se verificarem as circunstâncias” das
acusações74. Na sequência, em outra ordem emitida pelo mesmo ministro
dois meses depois, recomendava que o governo, logo que recebesse de-
núncias contra os magistrados, os mandasse rapidamente ouvir por escri-
to, encaminhando tudo ao Imperador75. Ambas medidas também falavam
na necessidade de se controlar as arbitrariedades, “vexames e falta de
justiça” que praticassem contra os mesmos agentes.

Mas no que toca à defesa da independência da justiça, vários foram


momentos de manifestação contundente do governo em seu favor; afinal,
era ela um dos pilares fundamentais de legitimidade do novo sistema. Um
caso recorrente era a tentativa de se impedir que outras autoridades in-
terferissem no andamento dos processos. Em novembro de 1824, fazia o
ministro Clemente França uma advertência ao presidente da província de
Sergipe d´El Rei de que se devia preservar a independência do judiciário,
diante de sua solicitação para revisão de uma sentença. Alegava o presi-
dente que a Relação da Bahia havia julgado nula “por falta de provas”

72 – Andréa Slemian, Sob o império da leis, cap. 1.


73 – CL, Actos do Poder Legislativo, lei de 20/outubro/1823, artigo 34.
74 – CDG, 17/setembro/1827, pp.181-2.
75 – Idem, 7/dezembro/1827, pp.208-9.

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Andréa Slemian

uma devassa a que se mandara proceder “acerca dos cúmplices da cons-


piração de 28 de abril”, e rogava por “providências necessárias contra os
males que se devem seguir da soltura dos réus”76. Por mais que existisse
uma evidente razão política, esses interesses não deveriam, a princípio,
justificar a falta de provas para o processo.

Era sintomática uma outra medida tomada em relação à ação da Câ-


mara da Vila de Valença pela suspensão do juiz de paz: os vereadores
justificavam seu “excesso de jurisdição” expondo os motivos da nulidade
da sua eleição77. O governo argumentava à câmara que “apesar de serem
legais os fundamentos que se oferecem para fazer nula a referida elei-
ção, nem por isso deixa de ter sido manifestamente legal e abusiva, e de
perniciosas consequências a ingerência que se arrogou na decisão de um
negócio que não era da sua competência”78. Assim, o fato das eleições dos
juízes de paz serem conduzidas pelas mesmas câmaras, não significava
que elas pudessem ir contra o princípio agora definitivamente estabeleci-
do de ingerência nos negócios dos mesmos juízes. Deveriam elas obede-
cer aos caminhos da legalidade, por mais complexas que essas soluções
apontassem ser.

Mas a implementação de um novo paradigma baseado na separa-


ção entre as instâncias da administração e da justiça mostraria esbarrar
em práticas típicas do funcionamento jurisdicional herdado. O que estava
relacionado com a jurisdição contenciosa que muitos órgãos e agentes
possuíam, ou seja, sua capacidade de resolver ou encaminhar conflitos,

76 – CDG, 23/novembro/1824, p.172. Veja-se também outra de 15/junho/1825, em que


diante da reivindicação do presidente da Bahia de que a ele caberiam todas as anteriores
atribuições dos governadores no que tocasse à Relação (com funções de regedor), o go-
verno declarava que as mesmas seriam dos chanceleres cuja independência deveria ser
preservada (p. 81). E também uma de 20/março/1828, em que se recomendava ao governo
provincial deixar o ouvidor seguir um processo de acusação de um vereador contra um
juiz de fora, evitando a intervenção do presidente e conselho na matéria (37-8).
77 – CDG, 17/julho/1828, pp.75-6.
78 – Idem. Da mesma forma, o governo não referendou os atos do presidente da província
de Sergipe que anulara atos da Relação (22/dezembro/1826); nem mesmo a ação do Con-
selho Geral da Província de Minas Gerais que exorbitara de suas atribuições ao dar por
acabado o tempo de exercício de um juiz (28/abril/1829).

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

configurando-se, muitas vezes, como poderes concorrenciais79. Em par-


te, essa prática seria reinventada pelas novas instituições que no próprio
arranjo constitucional previa certa interferência de alguns agentes sobre
outros. Interferência esta, queremos frisar, que tinha papel contencioso.

No caso dos presidentes de província, o problema em relação aos


agentes da justiça, conforme já citado, era evidente. Diante do fato da
Constituição marcar, no seu artigo 154, que o Imperador poderia suspen-
der os magistrados, depois que eles fossem ouvidos, a lei da Regência
– que atuou como autoridade máxima após a abdicação de D. Pedro I –,
também marcou suas atribuições sobre o assunto80. Declarava ela que a
atribuição de suspender os magistrados seria exercida por ela cumula-
tivamente com os presidentes das províncias em Conselho, ouvindo o
magistrado (artigo 17). Além disso, a inteligência do que caberia ao pre-
sidente era ainda mais incisiva: numa ordem emitida pelo ministério em
1832, defendia-se que ele nem exorbitava, nem ofendia o poder judiciá-
rio, se impusesse seu juízo sobre a criminalidade de um magistrado após
ouvi-lo81. Ou seja, seu arbítrio, ainda que não definitivo, era não só legí-
timo como esperado.

Nesse sentido, foi confirmado no regulamento para os presidentes de


província de 183482 de que caberia a eles suspender qualquer empregado
público por abuso, omissão ou erro, promovendo sua responsabilidade,
com a observação da citada lei da Regência para os magistrados (artigo
5o, parágrafo 8). Além disso, de que poderiam decidir, ainda que tempora-
riamente, sobre os conflitos de jurisdição (artigo 5o, parágrafo 11), o que
valia também para contendas entre autoridades judiciárias83. O primeiro
artigo era recorrentemente invocado pelo governo para o tema, como no
caso da dúvida do presidente de Minas Gerias de como deveriam seguir
os processos em que os magistrados foram suspensos, em que se declara
79 – Antonio Manuel Hespanha (coord.). O Antigo Regime.
80 – CL, Actos do Poder Legislativo, lei de 14/junho/1831.
81 – CDG, 20/setembro/1832, p. 287.
82 – CL, Actos do Poder Legislativo, 3/outubro/1834.
83 – Um exemplo é uma ordem do ministro da Justiça de que competia ao presidente de
província da Bahia decidir, ainda que temporariamente, sobre um conflito de jurisdição
entre um juiz de paz e um municipal. CDG, 26/janeiro/1836, p. 38.

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Andréa Slemian

tanto eles como as assembleias provinciais poderiam receber as queixas e


mesmo realizar suas suspensões, enviando à Corte84.
A questão dos conflitos de jurisdição seria, inclusive, confirmada em
1842, quando se regulamentaria a execução da reforma do Código do
Processo, afirmando que os mesmos presidentes resolveriam as dúvidas
que se suscitarem na sua execução85. Dessa forma era comum encontrar,
tanto nas decisões do governo como na Seção de Justiça do Conselho de
Estado, casos em que os presidentes resolviam previamente conflitos de
jurisdição entre autoridades judiciais. E mesmo aqueles em que se decidia
a quem caberia a competência de foro para determinadas matérias86.
A prática era tão recorrente que, em resposta a uma consulta feita à
Seção do Conselho de Estado sobre substituição do juiz de direito, em
1843, os conselheiros manifestam “apreensão” em relação ao “ânimo”
que teria produzido o supracitado regulamento de 1842, autorizando os
presidentes a resolver dúvidas na execução dos processos:
“Não é de se esperar que os presidentes de província, em quem se
não requer a qualidade de jurisconsulto, e a quem falecem muitos dos
recursos que dispõe o governo imperial, possam satisfatoriamente de-
ferir a tais representações sem perigo de emaranhar a administração
e o foro”.87
O argumento é sintomático: o problema não é somente a intervenção
do presidente nas questões de justiça, mas igualmente do “emaranhado”
de soluções que isso poderia vir a causar em função de seu posiciona-
mento.

84 – Idem, 24/setembro/1835.
85 – CL, Actos do Poder Executivo, regulamento de 2/fevereiro/1842, artigo 34 .
86 – Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho de
Estado. Anos de 1842 a 1846. Consulta de 22/outubro/1844, em que Conselho apoia a
decisão do presidente da província do Maranhão que resolveu que um conflito entre um
capitão (comandante de armas) e o desembargador chefe de polícia seria de competência
militar. De que o mesmo presidente teria ouvido as partes, bem como consultado a Rela-
ção, decidindo que as ofensas atribuídas ao comandante de armas haviam sido realizadas
quando o mesmo capitão, na qualidade de ajudante, impediu o desembargador a entrar no
palácio do governo por ordem do presidente (p. 87).
87 – Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho de
Estado. Anos de 1842 a 1846. Consulta de dezembro, p. 54.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

No que tocava à ação de suspensão dos magistrados por parte dos


presidentes, nota-se igualmente uma maior cautela e tentativa de controle
dessa ação pelo governo na década de 1840. Numa consulta feita à Seção
de Justiça do Conselho, em setembro de 1843, diante da dúvida de alguns
presidentes sobre sua competência para realizar a citada ação (conforme
prevista na lei de 1834), resolveram os conselheiros que a inteligência da
citada lei havia cessado: com o fim da Regência e volta do Imperador em
1840, este assumiria a citada disposição de suspensão dos magistrados,
como poder Moderador88. Afirmavam eles que essa seria igualmente a
inteligência da Constituição.

O fato é que a intervenção, ainda que prevista como inicial, dos pre-
sidentes nos conflitos entre autoridades judiciárias, fazia parte da lógica
de sua criação como um instrumento constitucional conservador da or-
dem – afinal, eram eles escolhidos pelo Imperador –, além de referendar
antigas práticas à nova ordem legalista89. Atividade nem sempre tranqui-
la, haja vista um ofício do presidente do Pará, em 1849, em que pedia
esclarecimento sobre o que deveria fazer no caso do procedimento crimi-
noso do juiz de direito da Comarca de Santarém pela absolvição que fez
de um réu em termos visivelmente ilegais90. O presidente reconhecera ser
o caso uma questão de partidos, mas se esquivara fazer uma ação mais
contundente. Os conselheiros, no entanto, foram categóricos, da mesma
forma que o procurador da Corte, em dizer que o magistrado incorrera em
“grave prevaricação” e deveria ser suspenso91.

Da mesma forma, quando se tratava da manutenção da ordem públi-


ca, a tendência era valorizar a ação do presidente. Em 1837, em resposta
dada ao presidente de Alagoas que narrara as desordens que se sucederam
na Vila de Atalaia – onde “povo e força policial” se uniram com o pretex-
88 – Idem, 27/setembro/1843, p. 25.
89 – Vejamos o caso em que o governo arbitra sobre a reclamação do desembargador da
Relação da Bahia acerca de uma escolha feita pelo Chanceler. CDG, 24/setembro/1828,
pp. 119-120.
90 – Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho de
Estado (de 1842 até hoje). José da Silva Caroatá (org.). Rio de Janeiro: Garnier, 1884
(parte I), 25/outubro/1849, pp.146-7.
91 – Ver outro exemplo das mesmas resoluções do Conselho de Estado, 25/janeiro/1850,
p. 205.

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Andréa Slemian

to de opor-se à sua entrada – e diante do temor de alguns criminosos com-


prometidos com os assassinatos de um reverendo, um juiz e um bacharel,
o ministro da Justiça não teve dúvida em aprovar sua medida de remo-
ção de magistrados para outros lugares92. Mesmo não sendo as remoções
de sua alçada, alegava o governo a imperiosidade da ação, “bem como
quaisquer outras medidas que possa vir a tomar em nome da tranquilidade
pública”93.

Mas era também sistemática a prática de condenar as ações dos pre-


sidentes quando se considerava alguma “usurpação do poder judiciário”,
bem como práticas não adequadas com um regime constitucional94. O que
significava, muitas vezes, tocar nos confrontos políticos que perpassavam
as ações dos agentes da justiça que, conforme já citado, acabavam por
estar envolvidos nesse jogo. Desse modo, uma ordem do governo de 1836
acusava o presidente do Sergipe de remover magistrados, “instado pelas
muitas representações e queixas que foram levadas a sua presença”, sem
averiguar até que ponto a acusação a eles imputada procedia95. Segundo a
mesma ordem, o perigo residia em:
“que não é conveniente, antes muito nocivo à tranqüilidade pública
habituar o povo a solicitar e ver satisfeitas as suas intenções quando
quer que julguem conveniente afastar um empregado com quem não
simpatizam. O Governo Imperial não desconhece que magistrados
pode haver que mereçam com justiça a desafeição dos seus comar-
cões, e a quem mesmo é arriscado, contra o bem público sustentar no
lugar”96.

92 – CDG, 1o/fevereiro/1837, pp.36-7.


93 – Vale dizer que, sobretudo ao longo da Regência, se aprovariam atos do presidente
em relação a remoção dos juízes, em função de serem eles “empregados provinciais”. Ver
também CDG, 2/maio/1836, p. 171.
94 – Vejam-se exemplos na CDG: uma de 8/novembro/1835, em que se critica a ação
do presidente do Rio Grande do Norte por haver reintegrado ao cargo um juiz municipal
suspenso daquele exercício (pp. 269-270); outras duas de 10 e 27/fevereiro/1837, em que
não se aprovam atos do presidente contrários ao Código do Processo e de “usurpação da
jurisdição do poder judiciário”; e uma de 30/janeiro/1829, em que se reprova o comandan-
te de armas pela não execução das ordens do desembargador da Bahia sob a justificativa
de não estar convencido da justiça de seus acordãos (pp. 19-20).
95 – CDG, 7/novembro/1836, pp. 359-360.
96 – Idem, p. 359.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

Diferentemente da medida citada acima para 1837, aqui era em


nome da necessidade de se resguardar os magistrados contra possíveis
ataques da população que se falava. Nestas condições, um equilíbrio entre
a defesa da circunscrição da justiça e o controle de seus agentes, também
tendo em vista a intervenção de uns sobre outros, mostrava ser irreali-
zável numa única síntese diante das soluções que possuíam um amplo e
controverso leque de decisões em nome da legalidade.

A dificuldade no resguardo institucional da atividade dos juízes fica


evidente na acusação feita ao presidente de província do Ceará, em 1845,
de que teria dado ordens para o juiz de direito de Sobral alterar uma lista
da junta de jurados eleita97. O fato é que o mesmo juiz, recém-chegado
à cidade, afirmava que já lhe havia escrito para tratar das arbitrariedades
ali encontradas, onde o “arbítrio, o rancor, a vingança e a perseguição a
mais atroz exerciam nela absoluto império”. Contra o juiz teriam sido
mobilizadas as autoridades policiais, atitude que o governo criticará ve-
ementemente por serem a ele inferiores. No ano seguinte, o caso voltaria
ao Conselho de Estado, quando se decidiu pela se cobrança de responsa-
bilidade das autoridades do subdelegado e do juiz municipal que teriam
realizado o processo contra o juiz de direito98.

Mas o discurso sobre os abusos praticados pelos magistrados tam-


bém teve realmente uma maior contundência nas práticas institucionais,
sobretudo nas duas primeiras décadas do Império do Brasil99. Nesses anos,

97 – Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho de


Estado. Anos de 1842 a 1846. Consulta de 27/setembro/1845, pp. 149-154.
98 – Idem, 7/outubro/1846, pp. 207-8.
99 – Da CDG, ver: uma decisão de 22/julho/1828, que aprovava a ação do presidente da
província que declarava nulo o ato ilegal do ouvidor interino da Comarca de São João
das Duas Barras (p. 80); outra de 24/setembro/1828, em que o governo repreendeu o
juiz conservador por ter empossado ilegalmente um ouvidor (pp. 118-9); e outra de 4/
fevereiro/1835, ordenando que o juiz de direito de Goiás mandasse imediatamente pren-
der um réu mesmo sob sua justificativa de não concordava com a decisão (p.25). Ver
também: AN, Manuscritos, GIFI:
– 6 H 13, em que o governo autorizava que se procedesse contra um juiz após acusações
do promotor, em 1830;
– 5 C 484: em que o promotor atacava vários atos de parcialidade da Relação do Rio de
Janeiro, em 1834;

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Andréa Slemian

é possível perceber uma deliberada pressão do governo central sobre as


ações judiciais, a qual não se centrava apenas na primeira instância, mas
que procurava limitar a ação dos magistrados, numa perspectiva revolu-
cionária do papel da justiça, em nome dos interesses públicos. Um exem-
plo contundente é uma decisão do governo, de janeiro de 1832, em que se
mandava ouvir por escrito os juízes que impuseram penas excessivas aos
réus por uso de armas ofensivas100. O ministro é Diogo Antonio Feijó, o
qual se destacaria, no início da Regência, nesse tipo de ação.

É do mesmo Feijó a ação movida contra o Supremo Tribunal de


Justiça, no mesmo ano de 1832, diante de uma queixa feita por João da
Cruz Alves Romana ao procedimento de um juiz, que seus ministros jul-
garam improcedente101. Alegava o governo que, dessa forma, o Tribunal
faria “irresponsáveis os juízes pelas iníquas sentenças que proferirem”, e
os mandava responsabilizar:
“Querendo o Governo que os Magistrados conheçam que, posto que
sejam independentes no exercício do seu emprego, não são contudo
absolutos, mas estão sujeitos às Leis, como qualquer outro cidadão,
e que respondem por sua conduta, como tão expressamente declara a
Constituição no artigo 156, e no supracitado Código Criminal, e que
por isso mesmo são responsáveis os juizes que deixaram de fazer efe-
tiva a responsabilidade daqueles.”

Ou seja, o governo aqui se via no direito de interferir diretamente


numa decisão dos ministros do Supremo em nome de arbitrariedades que
teriam sido cometidas102.

Contra o mesmo Superior Tribunal, o governo acataria outras quei-


xas de particulares. Em resposta a um ofício de um juiz de paz que, em

E das Consultas ao Conselho de Estado, uma decisão de 28/9/1850, em que são conde-
nados os atos arbitrários de um juiz municipal, o qual deveria ser imediatamente respon-
sabilizado.
100 – CDG, 4/janeiro/1832.
101 – Idem, 15/março/1832.
102 – Veja-se como essa postura foi comum em relação ao Supremo Tribunal de Justiça,
em especial, na ação de Diogo Antonio Feijó. Ver: Andréa Slemian, “O Supremo Tribunal
de Justiça nos primórdios do Império do Brasil (1828-1841)”.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

1836, queixava-se da denegação de revista (recurso autorizado pelo Su-


premo para revisão de sentença), ordenava o governo sua concessão103.
A alegação do juiz era de que o caso era de visível injustiça diante da
fixação de sentença, em Junta de Paz, à revelia do artigo 221 do Código
do Processo (falta de comparecimento do réu sem escusa legítima). O
que bastara ao ministro para pressionar o órgão, criando uma tensão na
relação entre o executivo e o judiciário104.

É exatamente neste período da Regência, especificamente entre os


anos de 1833 e 1834, que se pode verificar uma pressão por parte do go-
verno para que se cobrasse responsabilidade de determinadas ações, jul-
gadas arbitrárias, dos agentes judiciários. Não à toa, como já se disse an-
teriormente, tratava-se do momento em que a possibilidade de radicaliza-
ção política do projeto institucional imperial atingira seu ponto alto, com
propostas inclusive de federalização e, segundo algumas análises, até de
transformação do regime105. No Código do Processo, estava previsto um
capítulo inteiro (o “V”) para denúncia e forma de processo dos crimes de
responsabilidade dos empregados públicos, sendo que as denúncias tanto
poderiam ser encaminhadas a órgãos executivos (governo e presidentes
de província) como às autoridades judiciárias a quem competia o fato.

No ano de 1833, várias foram as ordens do governo para que se pro-


cedesse à responsabilidade: uma que mandava fazer efetiva a sua cobran-
ça no caso de um juiz de paz que concedera licença arbitrária para reali-
zação de uma rifa106; outra aos membros da Câmara de Santo Antonio de
Sá que se recusaram a dar posse ao comandante de armas do município107;

103 – CDG, 5/novembro/1836, p. 357.


104 – Do mesmo teor, veja-se uma outra de 10/dezembro/1833 (Colleção das decisões do
governo), em que a Regência pedia ao Tribunal a reavaliação de um caso de denegação de
revista alegando que ele teria sido decidido apenas por dois de seus membros.
105 – Ver: Marcello Campos Basile, O Império em construção: projetos de Brasil e ação
política na Corte Regencial. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro/
IFCS, Tese de Doutorado, 2004; e Marco Morel, As transformações dos espaços públicos.
Imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial (1820-1840), São Paulo,
Hucitec, 2005.
106 – CDG, Ano de 1833, 6/fevereiro/1833, p. 43.
107 – Idem, 13/agosto/1833, p. 298.

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Andréa Slemian

e outra a um juiz de direito de Mato Grosso, Joaquim de Almeida Falcão,


pelos seus atos arbitrários108. Algumas ordens também envolveram o Su-
premo Tribunal. A primeira lhe ordenava que informasse, nos casos de
concessão de revista, o que servira de fundamento para a questão, e se
tinham sido responsabilizados os juízes que deram causa às injustiças; em
caso contrário, o porquê de não se cumprir tal lei “providentíssima”109. A
razão era enunciada de maneira clara:
“Pois que só o remédio da concessão das revistas, que não suspende a
execução das sentenças, seria improfícuo se não fosse acompanhado
do da responsabilidade dos juizes que fizeram a injustiça, ou causaram
a nulidade”.

A fala era do ministro Aureliano Souza e Oliveira Coutinho110 que,


enquanto na pasta da Justiça, seria o responsável por essas ações, nota-
bilizando-se igualmente por medidas de maior controle à justiça111. Do
mesmo ano de 1833, era assinada uma outra ordem de Oliveira Coutinho,
em que se questionava o fato do Supremo não mandar proceder à respon-
sabilização dos juízes e escrivães: a razão também poderia estar no que
dizia ser um “defeito da legislação” em função do mesmo órgão não ser
a última instância e seus atos sempre estarem destinados ao encaminha-
mento das Relações112.

108 – Idem, 17/outubro/1833, p. 432.


109 – Idem, 11/outubro/1833, p. 424.
110 – Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho (1800-1855) ocupou por duas vezes a
cadeira de deputado na Assembleia Geral, entre 1830-33, e depois entre 1838-41. Foi se-
nador, presidente da Província, e entre 1833 e 1841, esteve à frente de vários ministérios,
entre eles o da Justiça entre junho/1833 a janeiro/1835. Obteve o título de Visconde de
Sepetiba.
111 – O mesmo ministro chegaria a propor, no ano de 1834, a formação de uma comissão
de sete membros, tirados da Câmara dos Deputados e por ela nomeados, para apurar as
queixas contra o Supremo Tribunal. A ideia era tornar “delinquente” o órgão e “responsá-
veis” seus ministros, mas não chegaria a ser levada adiante. Andréa Slemian, op.cit..
112 – Aureliano Coutinho faria a mesma crítica no seu relatório à frente da pasta da Jus-
tiça. Segundo ele, tal norma impedia a responsabilização dos atos dos seus ministros, pois
que suas decisões eram muitas vezes contrariadas pelas Relações revisoras, e enfraquecia
a autoridade do mesmo Tribunal, “destruindo a certeza dos julgados” e tornando “vacilan-
te, e incerto o direito das partes” (1834: p.24).

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conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

No ano seguinte, num caso comum de interferência do ministro na


seara do judiciário, também encontramos ordens para responsabilizar ou-
tros agentes judiciários. Um decreto de março, em que se pedia a suspen-
são de vários desembargadores do exercício de suas funções para serem
responsabilizados pelos tribunais competentes, o ministro os acusara de
abuso de jurisdição por prestarem fiança a um réu que não teria tal direi-
to113. E, em ordens de agosto e setembro, mandara responsabilizar juízes
de paz e de direito, afirmando inclusive que só assim se poderiam ser
suspensos114. Em todos os casos, era novamente Aureliano Coutinho o
protagonista.

Mas não se deve tomar a atitude do citado ministro como excentri-


cidade. É fato que nos anos que se seguem à Regência, e mesmo depois
no Segundo Reinado, os pedidos recorrentes de cobrança de responsabili-
dade dos membros do judiciário praticamente desapareceram das ordens
do governo. No entanto, a conjuntura também mudara. Com o Ato Adi-
cional, um arranjo institucional novo ganhara corpo e, por mais que se in-
corporassem demandas no sentido da transformação do regime, seria ele
fruto de um tom moderado que dominaria a cena política com a configu-
ração dos partidos a partir de 1834115. Com isso, deu-se igualmente o fim
da supremacia de bandeiras de mais revolucionárias para a justiça, pela
diminuição da interferência direta do executivo no judiciário, como se viu
que ocorrera aqui no caso das altas esferas da política. O que fica bastante
evidente no caso do Supremo Tribunal, cujos ministros não seriam mais
diretamente afrontados. É notório que, na década de 40, ganharia força a
crítica ao fato do mesmo Tribunal não ser a última instância; mas, distin-
tamente da ideia de que isso atrapalhava a cobrança da responsabilidade
dos seus agentes, o problema seria muito mais o da sua fraqueza institu-
cional e nulidade de ação face à segunda instância116. Ou seja, o discurso
113 – CL, Actos do poder executivo, 10/março/1834.
114 – Colleção das decisões do governo, 25/agosto e 24 e 30/setembro/1834, pp. 215,
246 e 248.
115 – Marco Morel, op.cit..
116 – Veja-se a crítica feita pelo magistrado Francisco Ignácio de Carvalho Moreira, Do
Supremo Tribunal de Justiça. Sua composição, organização e competência (Memória ofe-
recida ao Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros). Rio de Janeiro: Typographia

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do controle de seus ministros perdia espaço para o do seu fortalecimento


como terceira instância.

Mas a estrutura institucional que permitia uma permanente tensão


entre os agentes judiciários e os do executivo, seria uma das marcas do
regime que se consolidaria a partir da década de 40. Alguns exemplos
são contundentes. Um, em especial, tratava de um caso em que a Relação
de Pernambuco concedeu habeas corpus a um réu detido em um quartel,
cujo comandante das tropas (de 1a. linha) se recusava a cumprir por alegar
“não ser subordinado” a esse Tribunal117. Os desembargadores ordenaram
a prisão do comandante ao presidente da província que nem a executa
como leva o caso ao Imperador. Os conselheiros da Seção de Justiça dão
razão a ele: condenam a atitude do comandante que não poderia se recu-
sar a fornecer o habeas corpus – até porque o preso se encontrava sob
sua guarda apenas por falta de prisões civis –; mas também condenaram
e pediram esclarecimentos à Relação. Alegavam “ilegalidade” no fato do
habeas corpus ter sido pronunciado fora do prazo, bem como falta de
“veementes indícios” que justificassem a mesma medida. O Conselho vai
mais longe em também pedir que a mesma Relação se explicasse pela
“insistência com que ela se houve nas medidas para execução de suas
deliberações, sem que hesitasse sobre a ilegalidade delas”118. Ou seja, o
Conselho não apenas mediava a relação entre os envolvidos, como for-
necia as bases de como o caso deveria ser resolvido, em nome de uma
racionalidade legitimada pela complexidade no equacionamento das so-
luções.

Da mesma forma, revelava-se assas complicado o conflito entre o


presidente de província do Maranhão, João José de Moura Magalhães, e
o juiz municipal da 1a. vara de sua capital, Viriato Bandeira Duarte, em

Nacional, 1848.
117 – Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho
de Estado. Anos de 1842 a 1846. Bellarmino Braziliense Pessoa de Albuquerque (org.).
Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877, v.1. Consulta de 24/novembro/1843, pp. 44
seg.
118 – Idem, p. 48.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

1846119. O dito presidente acusava o agente judiciário de não cumprir seus


deveres, bem como de “manifesta ofensa do respeito” a sua autoridade,
ameaçando-o de “responsabilidade”. O juiz defendeu-se, e alegava que,
sendo ele “inimigo” pessoal do réu envolvido no caso, não poderia proce-
der à acusação conforme estaria previsto no artigo 61 do regulamento de
31 de janeiro de 1842 (que fixava que os casos revestidos de circunstân-
cias extraordinárias deveriam ser tratados pelos chefes de polícia). Diante
do juízo do presidente de que ele se valeria de “pretextos privados” para
não proceder na “indagação dos deliquentes e na execução das ordens
superiores”, Viriato Duarte rebatia:

“Outrossim não tenho ao Chefe de Polícia nem ao Presidente da Pro-


víncia por pessoas competentes para conhecer das minhas suspeições
voluntárias, nem dos seus motivos, quando ditar um debaixo de ju-
ramento. Quererem forçar o Magistrado a continuar em um processo
em que se tem reconhecido suspeito, é além de ofender a Lei, e inde-
pendência do poder judicial, estabelecer um precedente danoso à boa
administração da justiça, e dando causa a julgamentos apaixonados”.

O mesmo juiz alegava que apenas continuaria no processo por or-


dens superiores, que não permitissem que, posteriormente, ele pudesse
vir a ser acusado por responsabilidade. O caso não parece ter sido solu-
cionado, mas demonstra bem o imbróglio institucional que se instaurava
com na jurisdição contenciosa de vários agentes.

Nesse imbróglio também tinham as Câmaras papel importante. A


despeito da tendência de valorização do poder das províncias desde o
início dos trabalhos legislativos do Império, com a transformação das
municipalidades em instâncias “meramente administrativas” nos termos
da lei que as reorganizou em 1828120, elas manteriam papel significativo
na administração da atividade judiciária e policial, até pelo menos 1841.
O Código do Processo de 1832 previa que elas seriam responsáveis pelas
nomeações dos escrivães de paz e inspetores de quarteirão (ambos a partir
de proposta dos juízes de paz), que teriam papel no estabelecimento dos

119 – AN, Manuscritos, GIFI, 5 B 535.


120 – CL, Actos do Poder Legislativo, lei de 1o. de outubro de 1828.

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jurados, e que fariam as listas para nomeação dos juízes municipais e dos
promotores públicos – este último tinha por função dar parte de denún-
cias, solicitação de prisão e de punição dos criminosos – encaminhadas
ao governo da província.

Em ordem do governo de 1834, afirmava-se que as Câmaras pode-


riam constranger os juízes de paz sempre que não julgarem lícitos os seus
impedimentos, exercendo, em parte, uma atribuição contenciosa121. Ao
mesmo tempo, em outro caso em que o promotor público de Cantagalo
acusava a municipalidade pela não realização da sessão do júri no tempo
marcado, o governo autorizava não só a suspensão do juiz de paz como
pedia que se procedesse imediatamente contra os vereadores responsá-
veis122. Caso idêntico ocorreria dois anos depois, em Pernambuco, quando
novamente se acusou a Câmara de impedir que o júri trabalhasse123. O que
demonstra que o órgão tinha um papel fundamental nessa administração.
Papel este que seria diminuído com a reforma do Código do Processo, em
1841, quando se definiu que a nomeação dos principais agentes da justiça
seriam do Imperador, bem como que o exame dos objetos de polícia sob
responsabilidade das Câmaras seria de atribuição dos chefes de polícia.

Nesse sentido, é fato que passados os primeiros anos da Regência,


a tentativa de se diminuir a ação das Câmaras esteve afinada com a en-
trada em cena de posicionamentos críticos em relação à figura dos juízes
de paz. Logo após a criação destes em 1827, a tendência fora contrária:
houve um esforço por parte das autoridades em implementá-los de forma
ativa, como se pode auferir de algumas decisões dos ministros da justiça
para o período. Assim, declarava-se que os oficiais de justiça deveriam fa-
zer todas as diligências ordenadas pelos juízes de paz124; que na resolução
de um conflito que envolvia um ouvidor e os mesmos juízes, o primeiro

121 – CDG, 12/junho/1834, p. 149.


122 – Idem, 15/dezembro/1834, p. 333. O ministro Diogo Antonio Feijó já havia afirma-
do, em decisão quando ministro em 1832, que a eleição dos jurados era um “ato munici-
pal” (13/fevereiro/1832).
123 – Idem, 26/maio/1836, pp. 194-5.
124 – Idem, 12/fevereiro/1830, p. 32.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

não tinha autoridade nenhuma sobre os segundos125; também que os juízes


de paz deveriam ser os executores de suas sentenças referente à infração
de posturas municipais, a despeito da reclamação feita pela Câmara de
Macaé126. Também como já se disse anteriormente, o próprio Código do
Processo significara um reforço bastante contundente da autoridade dos
mesmos juízes de paz.

No entanto, é notório como logo após a aprovação do citado Códi-


go os próprios ministros da Justiça passaram a criticar sistematicamente
os juízes eletivos nos seus relatórios anuais. Um deles foi Manoel Alves
Branco127, que quando esteve à frente da pasta, faria uma longa crítica à
falta de polícia, pedia limitações às atribuições dos juízes de paz e de-
fendia um “governo forte” na administração da justiça. Seria ele que, em
1835, e diante de uma dúvida do presidente de Minas Gerais, assinava
uma ordem para que os mesmos juízes, juntamente com os municipais
e o de órfãos, fossem entendidos como “magistrados” e assim pudessem
ser, como os outros agentes judiciários, não só suspensos como responsa-
bilizados por seus atos128. Argumentava que a medida era urgente diante
do fato de se acharem suspensos uma série de juízes de paz à espera de
resolução do governo na mesma província.

Sua ordem respondia a uma certa confusão existente sobre o enten-


dimento do papel dos juízes de paz. Dois anos antes da medida de Alves
Branco, um dos seus antecessores na pasta da Justiça, Honório Hermeto
Carneiro Leão, marcava que os mesmos juízes não deveriam ser com-
preendidos no artigo 17 da lei de 14 de junho de 1831 que marcava a
suspensão dos magistrados129. Entendia que sua suspensão, enquanto não
se colocasse totalmente em prática o Código do Processo – que marcava
as etapas de formação de culpa para os juízes – não poderia ocorrer sem

125 – Idem, 27/fevereiro/1830, p. 40.


126 – Idem, p. 41.
127 – Manoel Alves Branco (1797-1855) foi deputado, várias vezes ministro –
entre elas da Justiça entre janeiro a outubro/1835-, presidente do Conselho de
Ministros e senador. Receberia o título de 2º Visconde de Caravelas.
128 – CDG, 7/agosto/1833, p. 168.
129 – Idem, 3/janeiro/1833, pp. 3-4.

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pronúncia. Meses depois, seria marcado por Aureliano Souza e Oliveira


Coutinho – tendo em vista as ordens expedidas pelo presidente de Góias
depois das ofensas que lhe teriam sido dirigidas pelo juiz de paz de Santa
Luiza –, que os Conselhos de Província poderia suspender os mesmos juí-
zes130. Em 1832, já se havia marcado que os juízes de paz não tinham foro
privilegiado, como outras autoridades judiciárias, tendo que responder no
“foro comum” aos crimes que lhe fossem imputados131.

O fato é que essas ordens também espelhavam a série de conflitos


que envolviam os juízes de paz desde sua criação e subsequente forta-
lecimento de sua autoridade. Grande parte delas se davam em relação a
outras autoridades judiciais e revelam como elas acabavam produzindo
poderes concorrenciais, cujas contendas acabava sendo resolvidas pela
mediação de um agente da administração. Assim foi o caso de uma acu-
sação feita pelo juiz de paz de Fortaleza ao ouvidor da região, em 1830,
que o presidente irá considerar “sem fundamento” em função da defesa
do acusado e do “ótimo desempenho” que o mesmo ouvidor demonstrava
na província132. O ouvidor também atacara o mesmo juiz de paz, alegando
que o mesmo teria promovido o melhoramento e desvio de uma estrada
apenas em função de interesses pessoais. O governo central iria arbitrar, a
partir da posição do presidente, que a queixa realmente não procedia.

Em um outro caso, um juiz de paz da freguesia de Santana, Rio de


Janeiro, provava ser improcedente a denúncia contra ele feita pelo pro-
motor público, em 1833, pela qual ele fora injustamente suspenso133. Dois
anos haviam se passado depois que o ministro havia expedido, a partir da
acusação do promotor, sua suspensão, e só nesse momento se processava
na Corte ser “legal e justa” sua inocência. Na mesma época, um outro juiz
de paz, de Mangaratiba, acusa o comandante da Guarda Nacional de “se
mostrar negligente às suas requisições de força armada a bem do serviço
público”134. O que vale igualmente notar aqui é que o ministro da Justiça,

130 – Idem, 17/julho/1833, p. 267.


131 – Colleção das Decisões do Governo, 31/março/1832, p. 253.
132 – AN, Manuscritos, GIFI, 6 D 95.
133 – Idem, GIFI, 6 D 106.
134 – Idem, GIFI, 6 D 3.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

para decidir a questão, pedira o arbítrio da Câmara que defendeu o mes-


mo juiz. Vários foram os casos de conflitos entre os próprios juízes de
paz, o que sempre dificultava o posicionamento de outras autoridades135.

Mas fica evidente que, apesar do esforço por parte daqueles envol-
vidos com o projeto liberal de sua criação, a autoridade dos juízes de paz
não era muitas vezes reconhecida em pé de igualdade com outros agentes
da justiça. Um caso sintomático é o do ex-juiz de paz da Vila de Canta-
galo, Joaquim José Soares que, em 1834, foi suspenso por ordem do pró-
prio ministro da justiça, a partir de acusações feitas pela Câmara e pelo
promotor de que ele não cumprira com suas obrigações para formação do
Conselho de Jurados136. Ele, no entanto, recorrera, alegando tanto que a
falha teria sido do órgão municipal – que não teria feito em tempo compe-
tente o sorteio dos juízes –, como que ele não fora chamado a se defender
conforme estaria marcado no artigo 154 da Constituição, na citada lei de
14 de junho de 1831, e nas formalidades do Código do Processo. Arrema-
tava, por fim, que nem se remetera a questão ao poder judiciário, e pedia
sua reintegração ao cargo.

Era igualmente comum encontrar, nas ordens emanadas da secretaria


da justiça, a desaprovação de seus atos137, bem como a lembrança aos
presidentes de província de que eles poderiam suspender juízes de paz,
juízes municipais e promotores que tiverem faltado no cumprimento de
seus deveres, formando o competente processo de responsabilidade 138.
Além disso, o entendimento de que sua autoridade, tanto distinta como
passível de suspensão, se consolidaria sobretudo a partir da década de 40,
com a visível diminuição de sua importância e atribuições. Em uma con-
sulta ao Conselho de Estado, em 1844, novamente voltava à discussão a

135 – Veja-se dois casos em AN, GIFI, 5 C 484 e 6 D 12.


136 – AN, GIFI, 6 H 8.
137 – Como exemplo, nas CDG: a desaprovação que se faz dos atos do juiz de paz de
Santa Rita (10/janeiro/1836); acusação de que o juiz de paz indeferira um requerimento
do promotor (14/março/1837); ordem para que se responsabilizasse um promotor que não
queria acusar um juiz de paz desobediente (25/abril/1837).
138 – CDG, 8/agosto/1837, p. 278.

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inteligência do termo “magistrado”139. A decisão era que o termo deveria


enquadrar apenas os juizes de “direito e estas Relações e dos Tribunais
Superiores”, mas que “todos os outros magistrados, como juízes muni-
cipais, de órfãos, chefes de polícia, delegados, subdelegados, e juízes de
paz possam ser suspensos pelo Governo Imperial”, cabendo “igual au-
toridade aos presidentes de província, que a deve[ria]m exercer com a
moderação que, em atos de tanta gravidade, é indispensável”140. Ao final
da decisão, lembravam também os conselheiros que apenas os juízes de
direito, membros das Relações e tribunais superiores que deveriam ser
inclusive considerados perpétuos.

Ficava assim evidente, por um lado, que se os juízes de paz haviam


sido criados no âmbito de um projeto mais revolucionário para a justiça,
a crítica à sua atividade ganharia corpo quando esse mesmo projeto co-
meçara a perder forças já em meados da década de 30. Por outro, temos
indícios de que tanto eles como o sistema dos jurados tiveram um forte
impacto social141, e também colocaram novos problemas do ponto de vis-
ta da administração da justiça, bem expressos pela dificuldade perma-
nente de sua definição e da urgência desses parâmetros para decisão dos
casos. Como já se salientou, é fato que a partir da década de 40 ambas
as instituições perderiam força – bem como as câmaras municipais –,
numa clara tentativa de maior controle das ações pelo poder judiciário.
Mas o que vale destacar é que, com a mesma periodização, observava-se,
ao contrário, uma diminuição das tentativas de intervenção direta do
executivo na alta cúpula do judiciário, no caso, no Supremo Tribunal. O
que soa um aparente paradoxo era, na verdade, a perda da validade do
modelo mais radical de justiça de acordo com suas distintas instâncias:
aumenta-se o controle do governo na base, mas se apregoava um modelo
de maior independência do judiciário na cúpula.

139 – Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho de


Estado. Anos de 1842 a 1846. Consulta de 24/janeiro/1844, p.68.
140 – Idem.
141 – Ivan Vellasco, As seduções da ordem. Violência, criminalidade e administração da
justiça. Minas Gerais, século XIX. Bauru/São Paulo: Edusc/Anpocs, 2004.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

Em relação ao controle sobre utilização de tropas armadas pelos


agentes da justiça, ou seja, da imbricação entre suas atividades judiciárias
com as policiais, ele não só se manteria após 1840, como seria igualmen-
te reforçado diante da dependência para manutenção de ordem pública
de organismos como o da Guarda Nacional. Analisando o tema para a
província de Minas Gerais, Ivan Vellasco argumenta como a organização
policial predominante era precária e desprofissionalizada, com imensas
dificuldades para contenção de conflitos interpessoais e manutenção da
ordem pública142. Isso porque, tanto a esfera da polícia não se constituiria
à época, nem sequer institucionalmente, como autônoma, como na sua
prática, na mesma lógica da Guarda Nacional, havia um amplo espaço
para interferência de interesses privados.

Vejamos um exemplo, de 1832, em que o ex-ouvidor da província de


Alagoas, José Emídio dos Santos Tourinho, narrava várias dos conflitos
que tivera com o presidente da mesma província, Manoel Lobo de Mi-
randa Henriques143. Dizia ele que, sendo o citado presidente seu desafeto,
vivera muitas dificuldades e desonras em Maceió, onde chegou a solicitar
ao juiz de paz uma patrulha para prender alguns indivíduos que foram a
sua própria casa para insultá-lo; o que lhe foi negado com o fundamento
de não haver rondas. De que seria inclusive condenado injustamente à
prisão e multa pelo júri, ao que decidiria enviar à Corte uma representa-
ção.

Uma outra dizia respeito à fraude nas eleições em função do contro-


le sobre as tropas armadas. O presidente da província do Espírito Santo
acusava, em 1843, dois juízes de direito da Comarca da Vitória e do Ita-
pemirim de terem empregado todos os meios a seu alcance, inclusive
violentos, para obterem triunfo nas eleições para a Assembleia provin-
cial144. Acusava o segundo de ter produzido arbitrariedades e difundido
“doutrinas anárquicas” a várias autoridades, além da pretensão de que
142 – Ivan Vellasco, “Policiais, pedestres e inspectores de quarteirão: algumas questões
sobre as vissicitudes do policiamento na província de Minas Gerais (1831-50)”, p. 254.
143 – AN, Manuscritos, GIFI, 6 H 10.
144 – Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho de
Estado. Anos de 1842 a 1846. Consulta de 8/10/1843, pp. 26-29.

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o chefe de polícia reunisse forças sem o consentimento do presidente; e


que ambos a teriam empregado sem autoridade do mesmo. Com isso não
queremos dizer que as eleições não poderiam ocorrer de fato em muitos
outros momentos, mas que as condições institucionais dadas permitiam e
legitimavam, muitas vezes, essas práticas.

Isso porque a base da concepção de justiça era que ela possuía papel
fundamental na manutenção da ordem social, onde a imbricação entre as
distintas esferas e autoridades judiciais e policiais era um fato corriquei-
ro. O mesmo acabava sendo reiterado numa ordem do ministro da Justiça
que, em 1841, encarregava o recrutamento a oficiais do Exército e aos
comandantes da Guarda Nacional debaixo da direção dos juízes de direito
e do chefe de polícia, dando-lhes instruções145. No mesmo ano, a seção de
Justiça do Conselho de Estado aprovava que o governo poderia, na falta
de voluntários, preencher o número respectivo da Guarda Municipal Per-
manente, responsável sobretudo pelo policiamento, com praças escolhi-
dos pelo Exército146. Autorizava também que se fizessem as modificações
convenientes na organização do mesmo Corpo a fim de:

“apartar a idéia, que é repugnante à maior parte da população do Bra-


sil de que a Guarda Municipal é propriamente a 1ª. linha do exército, e
como tal sujeita ao rigor das leis militares; idéia que uma vez admitida
inutilizaria o pensamento de ter-se um corpo composto de homens
voluntários e da inteira confiança do governo”.

Ou seja, reforçava-se aqui a concepção que fora fundadora da Guar-


da Nacional que o policiamento, a manutenção da ordem pública estava
a cargo de cidadãos probos. A própria Guarda Municipal, quando criada
em junho de 1831 (conforme apontado acima), previa que enquanto o go-
verno não fornecesse “armamento e munição a todos os corpos”, seriam
“obrigados os cidadãos alistados a comparecer com as armas próprias que
tiverem”147.

145 – CL, Actos do Poder Executivo, 6/abril/1841, p. 29.


146 – Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho de
Estado. Anos de 1842 a 1846. Consulta de 30/novembro/1841, p. 9.
147 – CL, Actos do Poder Executivo, lei de 14/junho/1831, artigo 6o.

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A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

Era o mesmo espírito que norteara a criação das Guardas Policiais em


cada um dos distritos (excetuando as capitais das províncias), em outubro
de 1833148. Estariam elas sob as ordens dos respectivos juízes de paz, os
quais poderiam substituir ou demitir seus componentes, dando partes às
Câmaras, sendo que apenas o ministro poderia dissolvê-las, substituí-las
ou reduzi-las. Sua despesa correria por conta dos moradores dos mesmos
distritos, pelo tempo e maneira que marcassem os vereadores. É sintomá-
tico que medidas postas em prática posteriormente repetiriam o mesmo
modelo. Em 1836, deram-se ordens ao chefe de polícia sobre como pro-
ceder com as despesas dos “Urbanos” – subscrição voluntária por distrito
para que se fizessem rondas e policiamento da Corte à noite –, as quais
previam a nomeação de uma comissão cujos membros que não contribu-
íssem seriam preferencialmente chamados à Guarda Nacional149. Ou seja,
o policiamento dependeria, em grande parte, da população. Por mais que
se possa afirmar que essas soluções foram as possíveis nos anos tão tu-
multuados como os da Regência, esse modelo de aposta na ação dos indi-
víduos para manutenção da ordem pública mostraria ter longevidade150.

Nessa mesma chave estava a Guarda Nacional, cuja lógica não seria
estruturalmente alterada com sua reforma em 1850. Desde sua criação em
1831, são frequentes as dúvidas na sua organização, em cujo processo as
Câmaras tinham um papel fundamental. Com o Ato Adicional em 1834,
também as províncias passariam a administrá-las localmente151, sob a co-
nivência do governo que, num período bastante conturbado politicamen-
te, seguia a mesma lógica de delegação aos particulares grande parte do
controle e manutenção da ordem pública. Em decreto aprovado em 1836,
fornecia o governo aos presidentes das províncias do Rio Grande do Sul,

148 – Cl, Actos do Poder Legislativo, 7/outubro/1933.


149 – CDG, 5/fevereiro/1836, p. 49.
150 – Segundo Wilma Peres Costa, op.cit., o domínio dos “privados” sobre as Forças
Armadas predominaria até a Guerra do Paraguai.
151 – Jeanne B. de Castro, op. cit., analisou como as leis aprovadas pelas assembleias
legislativas provinciais para a Guarda Nacional acabariam por exorbitar os seus limites
na administração da mesma, produzindo uma espécie de “provincialização” das suas de-
cisões durante a Regência. Segundo a autora, na década de 1840, haveria uma tendência
reversa de maior controle sobre a Guarda, que culminaria com sua reforma anos depois.

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de Santa Catarina e de São Paulo o direito de organizarem, da forma que


julgarem conveniente, as Guardas Nacionais, bem como a nomeação de
seus oficiais152. Como esta, outras se seguiriam, bem como aumentaria a
produção legislativa e atividade provincial para sua normalização e con-
trole.

Como é sabido, e já enunciado anteriormente, a Lei de Interpretação


do Ato Adicional tentaria reverter esse quadro tanto em função de um
maior controle sobre as tropas como diante dos problemas acarretados
na aplicação da legislação. Uma consulta resolvida pela Seção de Justiça
do Conselho de Estado, em 1849, permite que se veja seus impasses com
precisão153. Entre vários documentos encaminhados pelo presidente da
província de Minas Gerais, havia um exemplar de uma lei provincial que
marcava serem “perpétuos e vitalícios” os postos de oficiais da Guarda
Nacional. O mesmo presidente argumentava que sua aprovação infringia
uma outra, também provincial (n. 170, de 16/3/1840), que dizia serem
os citados postos de sua nomeação. A Seção não hesita em opinar que as
assembleias legislativas provinciais não teriam atribuição para legislar
sobre a matéria, pedia que se suspendesse a execução da mesma lei, e res-
ponsabilizava o presidente que a havia aprovado154. A matéria, no entanto,
não encontrara consenso entre os conselheiros numa outra questão: se o
Moderador (poder ao qual o Conselho de Estado era um órgão consulti-
vo) poderia suspender a mesma lei, ou se apenas o Legislativo poderia

152 – CL, Actos do poder executivo, 28/março/1836, p.18.


153 – Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho de
Estado (de 1842 até hoje), consulta de 24/01/1849, p. 128 seg.
154 – Como esta, vários outros casos que foram objeto de consulta do Conselho de Es-
tado podem ser citados como exemplos: uma de abril/1849, que defendia que a Guarda
Nacional tinha que ser objeto de uma “lei geral” (p. 139); outras de 27/maio e 6/outubro
de 1849, que tratam de problemas com as leis provinciais da Guarda Nacional; outra
que trata da extinção dos “prefeitos de comarca” criados como autoridades policiais nas
províncias, de 4/abril/1843. Uma de 31/março/1847, acusava a ação do vice-presidente
do Maranhão de decidir sobre os destinos dos oficiais “impossibilitados ou remissos”, ao
contrário da lei provincial que os tornara vitalícios. Os argumentos do presidente eram
pragmáticos: de que os Conselhos de Disciplina da Guarda Nacional não funcionavam de
maneira adequada para que os mesmos voltassem aos seus postos. O Conselho o reprovou
e pediu, inclusive, que ele fosse responsabilizado por não se tratar de matéria de sua com-
petência (pp.112-3).

270 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):225-272, jul./set. 2011


A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil: instituições,
conflitos de jurisdições e ordem pública (c.1823-1850)

fazê-lo. O parecer, no entanto, é aprovado com a justificativa que a medi-


da seria ofensiva à Constituição, além de ser recorrente prática nos outros
ministérios a “doutrina” de suspensão de leis provinciais contrárias a ela.
Com isso resolvia-se, ao menos normativamente, um quadro complexo
dos limites da legalidade nessa nova ordem.

5. Considerações finais
Do quadro de instituições, agentes e conflitos que tiveram lugar no
processo de construção de uma justiça constitucional para o Império do
Brasil, e que se apresentou aqui de maneira multifacetada, vale à pena su-
blinhar algumas relações que dão significado e moldura ao seu desenho.
Em primeiro lugar, que a complexificação das soluções institucionais que
o paradigma legalista ilustrado portava consigo, e que não foi uma es-
pecificidade no caso brasileiro obviamente, marcaria profundamente o
funcionamento das novas instituições políticas e jurídicas que tentaram
dar conta da formação de novos regimes representativos e de garantia dos
direitos dos seus cidadãos. O que tocava diretamente na questão da justiça
já que seu campo, na lógica de separação de poderes, deveria ser circuns-
crito, bem como revisto seu papel na aplicação/interpretação da lei. No
Brasil, a solução monárquica projetada apresentava uma predominância
do Executivo no arbitramento de conflitos, a legitimidade do Legislativo
como evocação da representação da nação, e um discurso mais eloquente
acerca do controle da justiça à semelhante das bandeiras mais radicais que
ganharam corpo após os movimentos revolucionários de fins do Setecen-
tos, num primeiro momento. Esse arranjo, moderado por suposto, tentara
limitar institucionalmente o amplo campo de atuação do novo Judiciário
e seus agentes para a esfera das questões ordinárias, dos cidadãos entre
si, entendendo-os sobretudo como responsáveis pela aplicação da lei e
não mais sua interpretação, à luz de outras experiências das monarquias
constitucionais europeias. Mesmo com a tentativa de reforço do poder de
justiça e de sua independência a partir da década de 40, o desenho estru-
tural de sua esfera e arbítrio continuaria.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):225-272, jul./set. 2011 271


Andréa Slemian

No entanto, para além das questões ordinárias, ficara igualmente re-


servada à justiça a manutenção da ordem pública, conforme aqui discu-
timos. Controle da ordem esta que residia estruturalmente na mão dos
privados, o que remontava à colônia e à escravidão, mas cuja lógica seria
reinventada na nova realidade constitucional a partir da criação de outros
instrumentos e agentes. Era assim que a mesma reinvenção de várias es-
feras de decisões contenciosas no âmbito de funcionamento das institui-
ções, bem como a imbricação entre questões judiciais e policiais – que se
desdobrava na solução de que os cidadãos atuavam como força policial
nas guardas, inclusive, na Nacional – faz com que a lógica da adminis-
tração da justiça não possa ser vista fora dessa mesma moldura. Projeto
geral que seria reforçado em 1841, e que só fracassaria, juntamente com
o Império, a partir dos anos 70, quando a justiça e o poder judiciário se
consolidariam sob novas bases do paradigma legalista.

Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação


em maio /2011.

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Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:


o levante de escravos como crime de insurreição
From the “Statutes” to the 1830 Brazilian
Criminal Code: The uprising of slaves as crime of
insurrection slave uprising as a
Monica Duarte Dantas 1

Resumo: Abstract:
O Código Criminal do Império do Brasil, de The Brazilian Empire’s 1830 Criminal Code
1830, previa em seus artigos 113, 114 e 115 o anticipated in its articles 113, 114 and 115,
crime de insurreição, que penalizava os escravos the crime of insurrection, that punished slaves
que tentassem obter sua liberdade por meio da who attempted to obtain their freedom through
força, bem como terceiros que os auxiliassem na force, and also third parties who helped them in
consecução de seus intentos. A partir de dicio- their attempt. Based on dictionaries and docu-
nários e documentos dos séculos XVII, XVIII ments dating from the Seventeenth, Eighteenth
e XIX (da Espanha, França, Inglaterra, Estados and Nineteenth centuries (from Spain, France,
Unidos e Brasil), e também da historiografia England, USA and Brazil), as well as pertinent
pertinente, o presente artigo visa recuperar de historical writings, this paper aims at identify-
que maneira esse tipo penal foi incoporado ao ing how that punishment was incorporated into
referido código, considerando-se que a palavra the referred Code since the word insurreição2 (in
insurreição (em português) não fora ainda dicio- Portuguese) had not yet been included in dic-
narizada até inícios do XIX, e que ela aparecia tionaries until the beginning of the Nineteenth
em documentos brasileiros da década de 1820 century and that it appeared in Brazilian docu-
com um sentido completamente distinto daquele ments in the 1820s with a totally different mean-
do código. ing than that in the Code.
Palavras-chave: Código Criminal – Insurreição Keywords: Criminal Code – Insurrection –
– escravidão – direito penal. Slavery – Penal Law.

“[...] E sendo necessario Provará que na noite do dia vinte e quatro do


mês de Janeiro proximo passado se denunciara, que numa madrugada
do dia seguinte rebentaria hua insurreição de Africanos; e pelo que,
Provará que dando-se as providencias, foi cercada hua caza a ladei-
ra da Praça, onde se achavão reunidos muitos dos Africanos os que
sentindo-se cercados, abrirão a porta, e de dentro fizerão logo fogo,
e immediatamente sahirão para a rua matando, e cutilando a quem
encontravão, e animando-se a atacar os corpos de guardas o que tudo
foi bem publico. Provará que do barbaro massacre rezultarão diversas
mortes, e ferimentos de cidadãos [...]. Provará que profligada a insur-
reiçaõ dos Africanos em aquella mesma noite muitos poderão fugir, e

1 – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professorea do Instituto


de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.
2 – Insurrection.

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Monica Duarte Dantas

acoitarem-se; porem sendo depois denunciados, forão prezos nos di-


versos lugares onde se achavão. [...] Provará que todos os Reos accu-
zados no prezente Libello tiverão parte na dita insurreição segundo as
suas proprias confissõens elles pertendião fazer hum assassino geral
em toda a gente branca [...]. Neste termos e conforme aos de Direito.
Devem ser punidos com o maximo da pena do artigo 113 do Codigo
penal, os quatro reos como cabeças de insurreição [...].
(“Devassa do levante de escravos ocorrido em Salvador em 1835”)3

Com este libelo pedia o promotor, João Alexandre de Andrade Silva


e Freitas, a punição de 21 acusados de participação na insurreição de
escravos que estourou na cidade da Bahia, na madrugada do dia 24 de
janeiro de 1835 (mais conhecida como Revolta dos Malês). Ao todo fo-
ram acusados de participarem do levante mais de 280 escravos e libertos,
incluindo os referidos pelo autor do libelo acima, sendo ao final dezesseis
condenados à pena capital, aplicada de fato a quatro deles.4

Conforme alegava o promotor, dos 21 arrolados no libelo, dezenove


deveriam ser penalizados, em grau médio ou máximo (neste caso a pena
era a morte), conforme o previsto no artigo 113 do Código Criminal do
Império do Brasil, de 1830; e outros dois como incursos no artigo 115.

O Código era bastante claro ao definir por que, dados os aconteci-


mentos de 24 de janeiro, aqueles libertos e escravos poderiam ser enqua-
drados nos referidos artigos:
“Cap. IV – Insurreição
Art. 113. Julgar-se-há commetido este crime, reunindo-se vinte ou
mais escravos para haverem a liberdade por meio da força. Penas –
Aos cabeças – de morte no gráo Maximo; de galés perpetuas no mé-
dio; e por quinze annos, no mínimo; – aos mais – açoutes.
Art. 114. Se os cabeças da insurreição forem pessoas livres incorre-
rão nas mesmas penas impostas, no artigo antecedente, aos cabeças,
quando são escravos.

3 – “Devassa do levante de escravos ocorrido em Salvador em 1835”, Anais do Arquivo


do Estado da Bahia, Salvador, vol. 38, jan.-dez., 1968, pp. 96-97.
4 – João José Reis, Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos Malês em 1835,
ed. revista e ampliada, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, cap. 14.

274 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):273-309, jul./set. 2011


Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

Art. 115. Ajudar, excitar, ou aconselhar escravos a insurgir-se, for-


necendo-lhes armas, munições, ou outros meios para o mesmo fim.
Penas – de prisão com trabalho por vinte annos no gráo Maximo; por
doze no médio; e por oito no mínimo.5”
O capítulo IV – integrante do título 4º, sobre “Crimes contra a se-
gurança interna do Império e a pública tranqüilidade”, da segunda parte
do Código (“Dos crimes públicos”) – definia então claramente que só
era crime de insurreição a associação de escravos para conseguirem sua
liberdade por meio da força, sendo puníveis também os livres ou libertos
que os secundassem, aconselhassem ou auxiliassem na consecução de seu
intento. Diferenciava-se, portanto, essencialmente dos outros tipos penais
previstos no referido título 4º – conspiração, rebelião, sedição, resistên-
cia, tirada ou fugida de presos e arrombamento de cadeias, e, finalmente,
desobediência às autoridades – que não remetiam à condição jurídica dos
envolvidos para caracterização do ocorrido.6

Considerando-se a grande população escrava existente no país


recém-independente não parece, a priori, estranho que os legisladores
brasileiros – muitos deles proprietários de escravos – tenham se preocu-
pado em incluir no Código um instituto que visava diretamente à punição
de levantes. Contudo, ao se considerar outros documentos da época, essa
opção por definir tal crime como insurreição inspira um olhar mais aten-
to.7
5 – “Código criminal do Império do Brasil”, Colleção das Leis do Império do Brasil,
1830, parte primeira, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1876, pp. 141-190, p. 158
doravante CLIB) – as coleções de leis do Império do Brasil foram consultadas no site da
Câmara dos Deputados http://www2.camara.gov.br/legislacao/publicacoes/doimperio.
6 – Para uma discussão acerca desses tipos penais no referido Código, ver Monica Du-
arte Dantas, “Introdução: revoltas, motins, revoluções”, in idem, Revoltas, motins revo-
luções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX, São Paulo, Alameda, no
prelo.
7 – As ponderações aqui postas se valem dos questionamentos e resultados de uma pes-
quisa em andamento intitulada “Poderes e práticas: poder judiciário e arranjos políticos
no Império do Brasil (1826-1889)”, que visa ao entendimento das propostas e modelos
apresentados no Parlamento brasileiro – no que tange à organização do judiciário no Im-
pério –, bem como das implicações dos códigos e reformas na organização política e nos
modelos de governo no período em questão. Essa investigação se insere nos trabalhos do
Grupo de Pesquisa (CNPq) “O Império Negociado”, por mim coordenado juntamente

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):273-309, jul./set. 2011 275


Monica Duarte Dantas

O “Projecto do código criminal” apresentado à Câmara dos Deputa-


dos, em 1827, por Bernardo Pereira de Vasconcelos, e que as comissões
designadas pelo legislativo teriam tomado por base para a redação final
do Código, aprovado em 1830, não tipificava o crime de insurreição de
escravos, ou melhor, sequer mencionava a palavra insurreição.8 Tampou-
co havia verbetes para tal vocábulo nos dicionários de Raphael Bluteau,
no século XVIII, ou de Antonio Morais Silva, já no oitocentos.9 Ainda
que não dicionarizado no período do pós-independência e ausente das
Ordenações Filipinas ou mesmo da legislação esparsa portuguesa sete-
centista10, o termo era conhecido dos contemporâneos de Morais Silva.

Em seu Typhis Pernambucano, frei Caneca se utilizou da palavra


“insurreição”, por exemplo, em 8 de janeiro de 1824:
“Depois de se ter demonstrado nos números antecedentes a falsidade
do motivo que a perversa facção portuguesa teve a habilidade de em-
pregar para iludir e violentar a s. m. i. a acabar com a soberana Assem-
bléia Constituinte brasiliense, arriscando desta feição a integridade do
império com a desconfiança e a insurreição das províncias, e abrindo o
Brasil os abismos da anarquia e guerra civil, fazia-se frustrâneo dizer
uma palavra que fosse sobre o demais conteúdo nos decretos, procla-
mação e manifesto de 16 de novembro [...]11”
com a Profa. Miriam Dolhnikoff.
8 – O legislativo imperial tomou por base dois projetos, aquele entregue por Vasconce-
los, em 1827, e outro redigido por Clemente Pereira e apresentado ao plenário em 1826.
O documento de Clemente Pereira, contudo, se assemelhava pouco a um projeto de fato,
tratando-se, mais propriamente, como indicava o próprio título, de “bases”, ou princípios,
que deveriam guiar um futuro projeto. Annaes do Parlamento Brazileiro. Câmara Dos
Srs. Deputados. Sessão de 1826, tomo segundo, Rio de Janeiro, Typographia do Imperial
Instituto Artístico, 1874, pp. 15-16 (doravante APB-CD) – os anais da câmara dos depu-
tados estão disponíveis no site http://www2.camara.gov.br/documentos-e-pesquisa/publi-
cacoes; “Projecto do código Criminal apresentado em sessão de 4 de maio de 1827 pelo
deputado Bernardo Pereira de Vasconcellos”, APB-CD, 1829, tomo 3º, Rio de Janeiro,
Typographia de H. J. Pinto, 1877, pp. 95-109; Andréa Slemian, “À nação independente,
um novo ordenamento jurídico: a criação dos Códigos Criminal e do Processo Penal na
primeira década do Império do Brasil”, in Gladys Sabina Ribeiro (org.), Brasileiros e
cidadãos: modernidade política 1822-1930, São Paulo, Alameda, 2008, p. 187.
9 – Raphael Bluteau, Vocabulário portuguuez e latino, Coimbra, Colegio das Artes da
Companhia de Jesus, 1712 (disponível no site http://www.ieb.usp.br/online/index.asp);
Antonio de Morais Silva, Diccionario da Lingua Portugueza, Lisboa, Typographia La-
cerdina, 1813.
10 – Sobre isso ver Dantas, “Introdução”, op. cit.
11 – Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, organização, introdução e notas de Evaldo

276 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):273-309, jul./set. 2011


Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

A Comissão Militar encarregada de julgar os participantes da Confe-


deração do Equador, já na primeira página do “Processo verbal e sumarís-
simo dos réus”, também declarou que “aos 20 dias do mês de dezembro do
dito ano, reunida a comissão militar [...] para o fim de processar e julgar
muito sumária e verbalmente os chefes da insurreição e rebeldia, havida
na Província de Pernambuco”12, os julgaria “pelo crime de rebellião”13.

Na sentença, diziam as autoridades que “apresentando em horroroso


quadro o estado de todas as províncias, com o que se espalhou o alarma
pelas da parte do norte, que as fez estremecer, à vista do que lhes fazia
acreditar estarem todas as outras províncias a sacudir o laço da união
nacional; e isto causou o desvairamento de uma delas a ponto de arvorar
o estandarte da insurreição, levando-se pela sedutora ideia da Projetada
Confederação do Equador [...]”14

Tal uso, de insurreição das províncias, implicando quase uma seces-


são, ou guerra civil, lembra bastante o sentido do vocábulo “insurgente”,
tal como utilizado por d. Pedro I no “Manifesto – de 10 de dezembro de
1825 [...] que justifica o procedimento da côrte do Brazil a respeito do
Governo das províncias unidas do Rio da Prata; e dos motivos que a obri-
garam a declarar guerra ao referido Governo”.

“É bem nottorio que, quando rebentou a revolução das Provincias


Hespanholas do Rio da Prata, incluindo Buenos Ayres, a Côrte do Rio
de Janeiro manifestou constantemente a mais resctricta neutralidade,
apesar de todas as prudentes considerações, que faziam receiar o pe-
rigo do contágio revolucionário. Porém os insurgentes, sem a menor
provocação da nossa parte, como que para fazer-nos arrepender do
systema pacifico, que se procurou sempre adoptar, começaram desde
logo a infestar as fronteiras da Provincia do Rio Grande de S. Pedro.
Elles convocavam os Indios ao seu partido, reuniam tropas, para in-
vadirem a Provincia visinha, e espalhavam proclamações sediciosas
para excitarem os Povos das Sete Missões á rebellião. Sua Magestade

Cabral de Mello, São Paulo, Editora 34, 2001, p. 319 (grifo nosso).
12 – Ibidem, p. 609 (grifo nosso).
13 – Ibidem, p. 612.
14 – Ibidem, p. 638 (grifo nosso).

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Monica Duarte Dantas

Fidelissima bem Reconheceu que era inevitavel, para por os seus Es-
tados a coberto das perniciosas vistas dos insurgentes, levantar uma
barreira segura, justa e natural entre elles e o Brazil [...].”15

A palavra “insurgente” era utilizada, assim, juntamente com o mais


constante vocábulo rebelião, um tipo de crime em que havia o “perigo do
contágio revolucionário” e “proclamações sediciosas”. O uso de frei Ca-
neca, da Comissão Militar encarregada de julgar os envolvidos na Con-
federação, ou mesmo do próprio d. Pedro I assemelhava-se àquele do
Codigo Penal Español, aprovado pelas Cortes daquele país em 1822.
“Es rebellion el levantamineto ó insurreccion de uma porcion mas ó
menos numerosa de súbditos de la Monarquia, que se alzan contra la
patria y contra el Rey, o contra el Gobierno supremo constitucional y
legitimo de la Nacion, negándole la obediencia debida, ó procurando-
se sustraerse a ella, ó haciéndole la guerra com las armas.16”

Ainda que utilizado pelos espanhóis no começo da década de 1820,


o termo estava ausente de outros projetos ou Códigos penais anteriores,
como o projeto de código de Pascoal de Mello Freire de 1786, e os có-
digos da Toscana (1786), do imperador José II da Áustria (de 1787), da
lei francesa de 1791, e mesmo do Código Penal napoleônico de 181017.
Contudo, os franceses ao menos pareciam conhecer a palavra, afinal a As-
sembleia Nacional do país, em 1793, na “Segunda Declaração de Direitos
do Homem e do Cidadão”, determinara que “Quand le gouvernment viole
15 – CLIB, 1825, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1885, p. 95 (grifo nosso). A palavra
insurgente aparece de novo na página 101, utilizada juntamente com os vocábulos suble-
vação e rebeldes.
16 – Codigo Penal Español, decretado pelas Cortes em 8 de junio, sancionado por El
Rey, y mandado promulgar em 9 de julio de 1822, Madri, Imprenta Nacional, 1822, pp.
55-56.
17 – Pascoal José de Mello Freire, Código criminal intentado pela Rainha D. Maria
I, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1844 (disponível no site http://www.fd.unl.pt);
Nouveau Code Criminel pour le Grand Duché de Toscane, Lausanne, François Grasset
et Comp. Libraires & Imprimeurs, 1787; The Emperor’s New Code of Criminal Laws,
Dublin, Printed by John Rea, 1787; Loi. Code Pénal. Donnée à Paris, le 6 Octobre 1791,
Saint-Flour, G. Sardine Imprimieur du Département du Cantal, 1791; “Codes des delits
et des peines (décrété le 12 février 1810. Promulgué le 22 du même mois)”, Corps de
Droit Français, civil commercial et criminel, par L. Rondonneau, Paris, Garnery Libraire,
1810.

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Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

les droits Du peuple, l’insurrection est, pour le peuple et pour chaque


portion Du peuple, le plus sacré des droits et le plus indispensable des
devoirs”.18

Assim, entre finais do século XVIII e as primeiras décadas do oi-


tocentos, circulavam ao menos três acepções distintas para o vocábulo
insurreição: aquela dos documentos brasileiros relativos à Confederação
do Equador e à Guerra Cisplatina (semelhante à espanhola de 1822), que
identificava a palavra como rebelião e guerra civil (como um crime contra
o Estado e o soberano); um segundo, existente na declaração francesa, de
insurreição como um dever e direito do cidadão contra um governo que
violasse seus direitos; e, finalmente, a do Código brasileiro de 1830, em
que insurreição era o crime de levante de escravos.

No caso espanhol, a dicionarização do termo, “Insurrección. El le-


vantamiento, sublevacion ó rebelion de algun pueblo, nacion &e”, ocor-
rera poucos anos antes de sua incorporação ao Código, apenas em 1817,
estando ausente das edições anteriores do dicionário da Real Academia
espanhola.19

O caso francês já é um pouco diferente. O Dicionário da Academia


Francesa, de 1762, que não apresentava o verbete insurreição, já trazia
a palavra insurgents, mas com uma definição curiosa, um “nom qu’on
donne à certains Corps de troupes Hongroises levées extraordinairement
pour le service de l’État”.20 Em 1820, contudo, um novo dicionário já
apresentava verbete para a palavra insurreição, remetendo, de alguma ma-

18 – “Texte de la Déclaration des Droits de l’Homme et Du Citoyen, adoptée par la


convention Nationale le 23 Juin 1793”, apud Armand Depper, Education Civique. Com-
mentaire de la Declaration dês Droits de l’Homme et Du Citoyen de 1789 et de 1793,
Paris, Gedalge, Librairie-Éditeur, 1902, p. 140 (grifo nosso).
19 – Ver, por exemplo, as edições de 1783 e 1803. Diccionario de la lengua Castellana
compuesto por la Real Academia Española. 2ª ed. Madri, D. Joaquin Ibarra, Impressor
de Cámara de S. M. y de La Real Academia, 1783; Diccionario de la lengua Castellana
compuesto por la Real Academia Española. 4ª ed. Madri, D. Joaquin Ibarra, Impressor
de Cámara de S. M. y de La Real Academia, 1803; Diccionario de la lengua Castellana
compuesto por la Real Academia Española. 5ª ed. Madri, Imprensta Real, 1817.
20 – Dictionnaire de l’Académie Françoise. 4ª ed. Paris, Bernard Brunet, Imprimeur de
l’Académie Françoise, 1762, tomo I, p. 940.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):273-309, jul./set. 2011 279


Monica Duarte Dantas

neira, ao sentido da Segunda Declaração, de 1793: “Soulevement contre


le gouvernment. Ceux qui emploient cette expression y attachent une idée
de droit et de justice. Dans le cas contraire, on dit revolte. L’insurrection
des Américains.”21 O dicionário distinguia então claramente um movi-
mento legítimo, chamado de insurreição, como aquele que ocorrera na
década de 1770 na antiga colônia britânica da América do Norte, dos
outros ilegítimos, denominados revoltas.

Não é de se estranhar, dada a referência francesa, que os ingleses não


atribuíssem ao vocábulo sentido semelhante. Para Samuel Johnson, insur-
reição era “A seditious rising, a rebellious commotion”, definição idêntica
à dada por Thomas Sheridan, em 1790.22 A despeito, contudo, da acepção
do dicionário francês de 1820, o norte-americano Noah Webster não deu
à palavra um sentido positivo, ao contrário.
“A rising against civil or political authority; the open and active op-
position of a number of persons to the execution of law in a city or
a state. It is equivalent to sedition, except that sedition expresses a
less extensive rising of citizens. It differs from rebellion, for the lat-
ter expresses a revolt, or an attempt to overthrow the government, to
establish a different one or to place the country under another juris-
diction.” 23

A definição dada por Webster, que na juventude serviu nas milícias


de Connecticut na luta pela Independência, remetia de alguma maneira ao
uso da palavra tanto na Declaração de Independência quanto na Consti-

21 – Nouveau Dictionnaire de la Langue Française. Par J.-Ch. Laveaux. Paris, Chez De-
terville, Libraire, 1820, p. 1049.
22 – Samuel Johnson, A Dictionary of the English Language, Londres, Printed for J.
Knapton; C. Hitch and L. Hawes; A. Millar; R and J. Dosley; and M. and T. Longman,
1756, vol. 1, p. (INS-INT); Thomas Sheridan, A Complete Dictionary of the English
Language. 3a. ed. Londres, Charles Dilly, 1790, vol. I, p. (INS-INT).
23 – E o verbete continua explicitando mais claramente as diferenças entre os distintos
tipos de movimentos. ����������������������������������������������������������������������
“It differs from mutiny, as it respects the civil or political govern-
ment; whereas a mutiny is an open opposition to law in the army or navy. Insurrection is
however used with such latitude as to comprehend either sedition or rebellion. [...] 2. A
rising in mass to oppose an enemy [little used.]” . Noah Webster, An American Dictionary
of the English Language, Nova Iorque, Published by S. Converse, 1828, vol. 1, p. (INS-
INT).

280 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):273-309, jul./set. 2011


Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

tuição americana, ou seja, com um sentido negativo, em tudo distinto do


uso francês de 1793 e do Nouveau Dictionnaire de la Langue Française,
de 1820.24

Considerando-se então os dicionários ingleses, franceses, espanhóis


e portugueses, fica claro que apenas a Inglaterra havia dicionarizado a
palavra no século XVIII, e com um sentido que em nada lembrava aquele
do Código brasileiro de 1830, com um sentido muito mais próximo do
atribuído no dicionário espanhol de 1817. Assim, se poderia pensar que,
dada a situação do novo Império no que tange à centralidade da escravi-
dão no país, o tipo penal insurreição como crime de levante de escravos
teria sido uma invenção pura e simples dos nossos legisladores. Porém,
mais uma vez a questão é mais complexa.

Em sua edição de 12 de outubro de 1791, a Pennsylvania Gazette,


um dos mais importantes jornais da Filadélfia, publicou um relato dos
acontecimentos em São Domingos, conforme descritos em uma carta en-
viada por um senhor então em Cape François a um amigo na capital do
estado americano. A publicação tratava dos acontecimentos ao longo de
vários dias, entre 24 de agosto e 13 de setembro de 1791.25

Em seu relato o autor se utilizava, repetidamente, da palavra insur-


reição para se referir à sublevação dos escravos na colônia francesa.

24 –������������������������������������������������������������������������������������
Logo na segunda página, ao arrolar as ações do rei britânico que justificavam a in-
dependência, os signatários culpavam-no por ter “excited domestic insurrection amongst
us, and has endeavoured to bring on the inhabitants of our frontiers the merciles Indian
savages, whose known rule of warfare is an undistinguished destruction of all ages, sexes,
and conditions”. Já na Constituição, entre os poderes do Congresso, determinava-se “To
provide for calling forth the militia to execute the laws of the Union, suppress insurrec-
tions, and repel invasions”. “The Declaration of Independence”, “The Constitution of the
United States”, in The Public Statutes at Large of the United States of America, Boston,
Charles C. Little and James Brown, 1845, disponível no site “A Century of Lawmaking
for a New Nation: U.S. Congressional Documents and Debates, 1774 - 1875”, http://me-
����������
mory.loc.gov/cgi-bin/ampage.
25 – Com a Revolução Francesa, a população livre de cor de São Domingos começara a
pleitear total igualdade jurídica com a população branca. Em agosto de 1791, em meio às
disputas entre esses grupos, os escravos da colônia se sublevaram, conseguindo o controle
de parte da ilha. Em 1804, São Domingos, doravante, Haiti, alcançaria finalmente sua
independência.

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Monica Duarte Dantas

“Several thousands of the Negroes had assembled, and committed


some ravages by burning several habitations, which they continued
doing all last night, in spite of the troops which went out to stop their
depredations. Many Negroes were yesterday killed, indeed all that
could be met with. This morning a respectable re-enforcement were
[sic] sent to the body which marched yesterday. I have not yet heard
whether the insurrection is quelled – but the damage already sustained
is immense. [...]
Since the commencement of the insurrection great numbers have been
brought prisoners to town, a few Mullatoes, and the rest Negroes.” 26

Em fins do século XVIII, portanto, ao menos nos Estados Unidos,


o movimento hoje conhecido como Revolução do Haiti era então refe-
rido como uma insurreição de escravos. No mesmo ano de 1791, em 30
de novembro, os deputados de São Domingos proferiram um discurso
perante a Assembleia Geral na França. Em seu longo discurso – impres-
so por ordem da mesma Assembleia – referiam-se aos acontecimentos
utilizando-se, quase sem variações, da palavra révolte, ou melhor, révolte
des noirs, sendo os participantes os nègres révoltés. Apenas uma única
vez lançaram mão do termo insurreição, “ils sont chargés de libelles & de
livres qui invitent les hommes de couleur & les esclaves à une insurrec-
tion générale, au massacre des blanc”.27

O Discours, juntamente com vários anexos documentais e um pos-


cript do tradutor, foi publicado em inglês, em Londres, em 1792, com o
título A Particular Account of the Commencement and Progress of the
Insurrection of the Negroes in St. Domingo. Ainda que as palavras revolt
e revolters sejam comuns ao longo do texto, o termo insurreição foi uti-
lizado algumas vezes como sinônimo do francês révolte. Mais significa-
tivo, contudo, parece ser o referido Poscript do tradutor, que, em pouco

26 – The Pennsylvania Gazette, 12 de outubro de 1791, American Slavery Debate in the


Context of Atlantic History, 1770-1865, disponível no site http://atlanticslaverydebate.
berkeley.edu/module3_library (consultado em 29/1/2011).
27 – As palavras revolte ou revoltés são mencionadas mais de 15 vezes ao longo de 30 pá-
ginas; o uso de insurreição aparece na página 22. Discours fait a l’Asssemblée Nationale,
le 30 Novembre 1791. Par MM. Les Comissaires de l’Assemblée Générale de la partie
Fraçoise de Saint-Domingue. Imprimé par ordre de l’Assemblé Nationale.

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Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

mais de uma página e meia, utilizou-se mais de sete vezes da palavra


insurrection para designar o que acontecia então na colônia francesa – o
que parece ter informado também sua seleção de palavras no título do
panfleto.28

É possível, portanto, que, frente à magnitude dos acontecimentos


em São Domingos, ingleses e americanos tenham lançado mão do termo
que, conforme descrito nos verbetes de Samuel Johnson e Thomas Sheri-
dan, remetia a um levante sedicioso ou uma comoção rebelde. O próprio
planfleto traduzido para o inglês pode ter sido responsável em parte pela
generalização do uso da palavra insurreição como qualificativo de movi-
mento escravo. O periódico The Montly Review, publicado em Londres
em 1792, em sua parte destinada a divulgar os catálogos de abril daquele
ano, arrolava em sua listagem de obras recém-lançadas o referido Ac-
count, trazendo ao final de sua breve resenha a seguinte ponderação:
“With the horrid outrages here related, we will not stain our pages, nor
distress the feelings of our readers with a recital of any part of them;
and we are farther induced to contract the article to this point, as the
pamphlet, at large, has been, since the preceding lines were written,
circulated gratis; so that, most probably, it is now in the hands of all
our readers.”29

Ainda que não se saiba quantas edições e cópias haviam de fato sido
feitas e distribuídas gratuitamente, o períodico inglês indicava sua larga
circulação.

Contudo, nos Estados Unidos ao menos, conforme referido na


Pennsylvania Gazette, o uso parecia anterior à divulgação do referido
Account. Em 24 de novembro de 1791, antes, portanto, do discurso dos
deputados de São Domingos na Assembleia Geral, Thomas Jefferson, en-
tão Secretário de Estado, escreveu a William Short, Charges d’Affaires
na França, acerca dos acontecimentos na colônia francesa, relatando-lhe

28 – A Particular Account of the Commencement and Progress of the Insurrection of the


Negroes in St. Domingo. London, J. Sewell, 1792.
29 – The Monthly Review; or, Literary Journal enlarged, Londres, R. Graffiths, 1792, v.
7, p. 455.

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Monica Duarte Dantas

que quando “the insurrection of their negroes assumed a very threatening


appearance the assembly sent a deputy here to ask assistance of military
stores & provisions”.30

O uso da palavra insurreição pelo virginiano Jefferson não era uma


invenção nova, muito ao contrário. Em 1690, a legislatura da colônia da
Virginia passara uma lei intitulada “An act for preventing Negroes Insur-
rections”. Ainda que o termo não aparecesse no texto da lei, a legislatura,
ainda no século XVII, determinava, entre outras coisas, que os negroe
slaves não poderiam portar armas, sair das propriedades de seus senho-
res sem autorização e, caso fossem encontrados em lugares distantes e
resistissem a qualquer tentativa de levá-los presos, aquele que os tentasse
prender estaria autorizado a matá-los. Dois anos depois, nova lei era apro-
vada “for the better preventing insurrections by Negroes”.31

Em 1723, a Virginia definiu mais claramente o crime que havia pre-


visto no século anterior:
“Be it enacted, by the Liutenant-Governor, Council, and Burgesses,
of this present General Assembly, and it is hereby enacted, by the au-
thority of the same. That if any number of negroes, or other slaves,
exceeding five, shall at any time hereafter consult, advise, or conspire,
to rebel or make insurrection, or shall plot or conspire the murder of
any person or persons whatsoever, every such consulting, plotting, or
conspiring, shall be adjudged and deemed felony; and the slave or
slaves convicted thereof, in manner herein after directed, shall suffer
30 – The Works of Thomas Jefferson, Federal Edition, Nova Iorque e Londres, G.P.
Putnam’s Sons, 1904-5, vol. 6, disponível no site http://oll.libertyfund.org/index.
php?option=com_frontpage&Itemid=149 (consultado em 30/11/2010).
31 –�������������������������������������������������������������������������������
Segundo Thomas Morris, no começo do século XVIII, dois escravos foram executa-
dos por high treason, o que fez com que o governador pedisse a adoção de leis mais duras,
“and as such Insurrection would be attended with Most Dreadful Consequences so I think
we Cannot be too Early in providing against it, both by putting our Selves in a better pos-
ture of Defence and by Making a Law to prevent The Consultations of Those Negroes”,
o que de fato ocorreu em 1723. Winthrop Jordan, White over Black: American Attitudes
toward the Negro, 1522-1812, Nova Iorque, W. W. Norton, 1968, p. 111, apud Thomas
D. Morris, Southern Slavery and the Law, 1619-1860. Chapel Hill/ Londres, The Univ.
of North Carolina Press, 1996, p. 267; Morris, op. cit, p. 66; The Statutes at Large being
a collection of all the Laws of Virginia, Nova Iorque, R. & W. & G. Bartow, 1823, vol. 2,
pp. 481-482.

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Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

death, and be utterly excluded the benefit of clergy, and of all laws
made concerning the same.”32

Ou seja, a mera conspiração para a realização de uma insurreição


ou rebelião escrava – palavras usadas conjuntamente no corpo do texto,
ainda que o título da lei mais uma vez mencionasse apenas insurreição
– deveria ser punida com a morte. Pouco mais de três décadas depois,
novamente o crime de insurreição escrava foi redefinido pela Assembleia
da colônia britânica; o texto era essencialmente o mesmo, a não ser pelo
fato de que doravante não havia número mínimo de escravos para quali-
ficar o crime.33

De acordo com o Revised Code of the Laws of Virginia, aprovado e


publicado em 1819, em algum momento, entre 1797 e o ano da publica-
ção, os representantes do estado haviam ampliado o crime de insurreição
de escravos de maneira a compreender também aqueles que porventura os
auxiliassem em seus intentos.
“If any free person shall advise or conspire with a slave, to rebel or make in-
surrection, or shall in any wise aid, assist or abet any slave or slaves making
rebellion or insurrection, or shall advise or assist such slave in the murder
of any person whatsoever, or shall consult, advise or conspire with any other
free person, or with any negro or other slave, to induce, entice or excite any

32 – Conforme Van Caenegem, o benefício do clero era um antigo privilegium fori que
“costumava ser um real privilégio do clero; estava enraizado no império romano cristão
e fora ocasião de ferozes lutas entre o Estado e a Igreja. Contudo, no início do século
XVIII, ele se transformara em um ‘privilégio’ que todo condenado por um crime doloso
da common law podia reivindicar e, assim, escapar à pena de morte (sendo, em vez disso,
deportado segundo a legislação de 1717)”. R. C. van Caenegem, Juízes, legisladores e
professores, Rio de Janeiro, Elsevier, 2010, p. 23; “An Act directing the trial of Slaves,
committing capital crimes; and for the more effectual punishing conspiracies and insur-
rections of them; and for the better government of Negros, Mulattos, and Indians, bond or
free”, The Statutes at Large being a collection of all the Laws of Virginia, Richmond (VA),
Franklin Press – W. W. Gray print, 1820, vol. 4, p. 126, disponível no site http://vagenweb.
org/hening/vol04-01.htm (grifos nossos).
33 – Morris destaca que essa alteração teria sido feita em decorrência de uma série de
levantes escravos e supostas conspirações no mundo colonial inglês (Antigua, 1736; Ca-
rolina do Sul, e Maryland, 1739; e Nova Iorque, 1741). The Statutes at Large being a
collection of all the Laws of Virginia, Richmond (VA), Franklin Press – W. W. Gray print,
1819, vol. 6, p. 105; Morris, Southern Slavery and the Law, op. cit., p. 267.

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slave or slaves to rebel or make insurrection, every such free person so coun-
selling, advising, plotting or conspiring, or so aiding, assisting, or abetting,
on conviction of any of the such offences, shall be held and deemed a felon,
and shall suffer death without benefit of clergy, by hanging by the neck.”34

Portanto, desde fins do século XVIII ou começo do oitocentos, os


livres que auxiliassem os escravos incorriam no crime descrito, ao qual
punia-se também com a morte.

Não foi só a colônia, e depois estado, da Virginia que, dentre as pos-


sessões inglesas na América do Norte, se preocupou em penalizar as in-
surreições escravas. Em 1690, a legislatura da Carolina do Sul aprovou
uma lei que determinava:
“[...] if any slave or slaves shall commit any murder, or make any in-
surrection, or raise rebellion against the master’s authority, or make
any preparations of arms, as powder, bullets, or offensive weapons, or
hold any conspiracies for raising mutinies or rebellions, the offender
shall be tried by two justices of the peace, and three able freeholders,
associated together as before expressed, who are hereby empowered
and required to try the said slaves so offending; and inflict death [...];
and if any person shall make away or conceal any slave or slaves
suspected to be guilty of the afore mentioned crime, and not upon
demand bring forth the suspected offender or offenders, such person
shall forfeit one hundred pounds.”35

Em 1712, mais uma vez a legislatura, em um “Act relating to Slaves”,


aprovava uma lei, agora mais claramente contra “slaves [who] shall make
mutiny or insurrection, or rise against the authority and government of

34 – Ao fim do transcrito artigo 24, do capítulo 111, “An act reducing into one, the several
acts concerning Slaves, Free Negroes and Mulattoes”, os autores remetiam aos Statutes
de 1797, 1803, 1814 e 1816. O artigo anterior do Revised Code remetia à lei passada em
1748, transcrita acima, e também a reenactements em 1769, 1794 e 1803. The Revised
Code of the Laws of Virginia, Richmond (VA), Printed by Thomas Ritchie, 1819, vol. 1,
p. 427.
35 – “Acts relating to slaves”, § 10, The Statutes at Large of South Carolina, Columbia
(SC), Printed at A. S. Johnston, 1840, vol. 7, p. 347.

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Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

this province”. Diploma legal que pouco mais de vinte anos depois foi
novamente reeditado pelos representantes da colônia.36

Contudo, ainda que em 1690 já se prescrevesse pena para as pessoas


que acoitassem escravos acusados de cometer o referido crime, somente
posteriomente, tal como ocorrera na Virginia, é que foi aprovada uma le-
gislação específica sobre livres que auxiliassem escravos em seu intento
insurrecional. No primeiro artigo de um “Act for the punishment of cer-
tain crimes against de State of South Carolina”, de 1805, determinava-se
que:
“Immediately after the passing of this Act, every person or persons
who shall or may be, either directly or indirectly, concerned or con-
nected with any slave or slaves in a state of actual insurrection within
this State, or who shall, in any manner or to any extent, excite, coun-
sel, advise, induce, aid, comfort, or assist any slave or slaves to raise,
or attempt to raise, an insurrection within this State, by furnishing
them with any written or other passport, with any arms or ammuni-
tion, or munition of war, or knowing of their assembling for any pur-
pose tending to treason or insurrection, shall afford to them shelter
or protection, or shall permit his, her or their house or houses to be
resorted to by any slave or slaves for any purpose tending to treason
or insurrection as aforesaid, shall, on conviction thereof in any court
having jurisdiction thereof by confession in open court, or by the testi-
mony of two witnesses, be adjudged guilty of treason against the State,
and suffer death.”37

Ou seja, para a Assembleia do estado da Carolina do Sul, os livres


que auxiliassem escravos a se insurgirem também seriam condenados à
morte, mas, no caso, pelo crime de traição.
36 – Segundo Morris, “[t]he statutory experimets at controlling servile insurrections were
more extensive in South Carolina than elsewhere”. Quanto ao statute de 1735, destaca que
ele trazia um elemento ausente de outros diplomas legais de conteúdo semelhante, uma
vez que ao governador ou ao council era dado escolher apenas um ou mais dos criminosos
para sofrer uma morte exemplar, sendo o restante devolvido aos seus senhores. Ainda que,
conforme a teoria retributiva, a condenação à morte de todos os escravos fosse justa, era
importante manter a produção. Cf. Morris, Southern Slavery and the Law, op. cit., pp. 267-
268; “Acts relating to slaves”, 1712; “Acts relating to slaves”, 1735, idem, pp. 356, 389.
37 – The Statutes at Large of South Carolina, Columbia (SC), Printed at A. S. Johnston,
1839, vol. 5, p. 503 (grifo nosso).

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Monica Duarte Dantas

No século XVIII, outras colônias, além da Virginia e da Carolina do


Sul, já haviam previsto o crime de insurreição escrava. Caso, por exem-
plo, de Maryland e Nova Iorque38.

Ou seja, ainda no período colonial a tipificação do crime de insur-


reição escrava era bastante comum nas colônias britânicas da América do
Norte, continuando uma constante no país independente ao menos nos
estados do sul. No oitocentos, segundo Morris, em parte por inspiração
dos statutes da Virginia, vários estados e territórios já tinham provisões
legais semelhantes, como Kentucky, Mississipi, Florida, Texas, Alabama,
e Georgia e mesmo a Carolina do Norte.39

Retornando então ao Código Criminal do Império de 1830, e con-


siderando o conteúdo, por exemplo, da legislação das colônias e depois
estados da Virginia e da Carolina do Sul, há que se atentar para o fato de
que os artigos 113, 114 e 115 do Código brasileiro lembravam bastante
não só a formulação dos crimes de insurreição escrava, mas também das
leis que penalizavam os livres que porventura se envolvessem nesse tipo
de movimento.
38 – Art. 2, “An act for the more effectual punishment of negroes and other slaves, and
for taking away the benefit of clergy from certain offenders, and a supplementary act to an
act, entitled, An act to prevent the tumultuous meeting and other irregularities of negroes
and other slaves, and directing the manner, of trying slaves”, 1751, The laws of Maryland,
Baltimore, Published Philip H. Nicklin & Co., 1811, vol. 1, p. 236; “An act preventing
Suppressing and punishing the Conspiracy and Insurrection of Negroes and other Slaves”,
1712, The Colonial Laws of New York, Albany (NY), James B. Lyon, State Printer, 1894,
vol. 1, p. 761; “An act for the more Effectual Preventing and Punishing the Conspiracy
and Insurrection of Negro and other Slaves, for the better regulating them and for repeal-
ing the Acts herein Mentioned Relating thereto”, 1730, The Colonial Laws of New York,
Albany (NY), James B. Lyon, State Printer, 1894, vol. 2, p. 679. Em 1755, em um “Act
for Regulating the MILITIA of the Colony of New York”, a legislatura determinava que
“in case of any Alarm or Invasion, the Captain or other officer commanding the Company
in each respective District, shall (unless it is otherwise provided by order of the Governor
or Commander in chief) appoint and leave such proper Detachment of his Company, as he
shall judge necessary to Guard against an Insurrection of the Negroes; always observing
to appoint for the said Detachment, such Persons who may be best spared for the Com-
pany”; The Colonial Laws of New York, Albany (NY), James B. Lyon, State Printer, 1894,
vol. 3, p. 1061.
39 – Como destaca Lawrence Friedman, “[o]n paper at least, the law of slavery grew
more severe between the Revolution and the Civil War”. O Statute da Carolina do Norte
é de 1802. Lawrence Friedman, A History of American Law, 3ª ed. revista, Nova Iorque,
Touchstone Book, 2005, p. 155; Morris, op. cit., pp. 271-272.

288 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):273-309, jul./set. 2011


Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

Contudo, como colocado anteriormente, o tipo penal e mesmo a pa-


lavra insurreição estavam ausentes do projeto de Vasconcelos. Curiosa-
mente, em 1830, o crime de insurreição escrava já parecia ter sido incor-
porado ou bem ao projeto de código então sob responsabilidade de uma
comissão mista de deputados e senadores, ou então a uma das emendas
apresentadas pelos legisladores.40

Em 31 de agosto de 1829, o parecer da comissão mista, com uma


proposta de disposição das matérias do código – já distinta do projeto
de Vasconcelos – e os princípios que haviam orientado o trabalho dos
legisladores, não mencionava o crime de insurreição, ou mesmo qualquer
outro crime. Os membros da comissão sugeriam então que o projeto por
eles redigido fosse impresso e distribuído aos deputados; que as emendas
e memoriais fossem remetidos a uma comissão ad hoc, composta de três
membros; e que, assim que a comissão apresentasse as emendas e estas
fossem impressas, fosse dado o projeto com elas à ordem do dia; pro-
pondo ainda que a discussão começasse “pela questão, se o projeto deve
ou não ser admitido? Vencendo-se que sim, serão discutidos os artigos
emendados, tendo-se os outros como aprovados.”41
40 – Em 14 de agosto de 1827 foi nomeada uma comissão de cinco deputados para estu-
dar os dois projetos de Código apresentados ao plenário. No ano seguinte, em 8 de maio
de 1828, por sugestão de Vasconcelos, foi nomeada uma comissão mista de deputados e
senadores para revisão dos projetos de código criminal oferecidos, sendo composta dos
antigos membros da comissão de 1827 e mais cinco senadores. Mais um ano se passou, e
a Câmara sugeriu ao Senado que a comissão mista fosse reduzida para seis membros, três
de cada casa. Finalmente, em 31 de agosto de 1829, chegava ao plenário das duas casas o
parecer da referida comissão, “encarregada de examinar os dois projetos do código crimi-
nal, que se aprovou para imprimir com as emendas que a comissão oferecesse”, assinado
por três deputados e dois senadores. APB-CD, 1827, tomo 4º, Rio de Janeiro, Typogra-
phia de Hypolito José Pinto & Cia, 1875, sessão de 14 de agosto de 1827, pp. 130-131;
APB-CD, 1828, tomo 1º, Rio de Janeiro, Typographia Parlamentar, 1876, sessão de 8 de
maio de 1828, pp. 24-26; Annaes do Senado do Império do Brazil, 1828, tomo 1º, Rio de
Janeiro, 1913, sessão de 12 de maio de 1828, p. 49 (doravante ASIB) – disponíveis no site
http://www.senado.gov.br/sf/publicacoes/; ASIB, 1829, v. 1, Rio de Janeiro, 1914, sessão
de 26 de maio de 1829, p. 236. APB-CD, 1829, tomo 5º, Rio de Janeiro, Typographia H.
J. Pinto, 1877, sessão de 31 de agosto de 1829, 84. Para uma discussão mais detida do
encaminhamento dos projetos e propostas de Código Criminal na Câmara dos Deputados,
ver Dantas, op. cit.
41 – Nos Anais foi impresso apenas o parecer da comissão, e não seu projeto. Idem, ibi-
dem.

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Monica Duarte Dantas

Em 6 de maio de 1830, dando-se início à discussão do projeto da co-


missão mista, votou-se a escolha da comissão ad hoc que deveria receber,
até 1º de junho daquele ano, todas as emendas substitutivas e memórias
sobre o referido projeto.42 Assim, apenas em 10 de setembro de 1830,
o presidente da Câmara colocou em discussão, conforme o parecer da
comissão mista, se o projeto deveria ou não ser admitido. No dia seguin-
te, foram aprovadas quatro emendas apresentadas pelo deputado Ernesto
Ferreira França, 1º, que se nomeasse por escrutínio absoluto uma nova
comissão de três membros; 2º, que a comissão ouvisse, mas não fosse
obrigada a aceitar os artigos propostos pelos deputados; 3º, que sua apro-
vação ou rejeição fosse global; 4º, que antes do trabalho da comissão se
decidisse se as penas de morte e galés seriam ou não conservadas.43

No mesmo dia tiveram então início as discussões sobre a manuten-


ção, ou não, das penas de morte e galés. Durante quatro dias a questão
foi debatida fervorosamente no plenário, com falas inflamadas tanto por
parte daqueles que pediam sua extinção, quanto de outros que advogavam
a necessidade de sua manutenção frente ao estado da população. Vale
destacar as opiniões de Rego Barros e Paula e Souza.

Segundo Rego Barros, em sessão de 15 de setembro de 1830,“A pena


de morte deve com efeito ser abolida nos casos políticos, porém não nos
casos de homicídio, e para se conter a escravatura, pois que esta é a única
pena que a pode conter”.44 O mesmo deputado propôs então uma emenda
com o seguinte teor: “Extinga-se a pena de morte nos erros políticos.”
Paula e Souza submeteu outra, diríamos complementar: “Que no código
só se conserve a pena de morte no grau máximo do crime de homicídio, e
de cabeças de insurreição.”45

42 – APB-CD, 1830, tomo 1º, Rio de Janeiro, Typographia de H. J. Pinto, 1878, sessão de
6 de maio de 1830, pp. 78-79; sessão de 7 de maio de 1830, p. 80.
43 – APB-CD, 1830, tomo 2º, op. cit., sessão de 10 de setembro de 1830, pp. 487-488;
sessão de 11 de setembro de 1830, p. 492.
44 – APB-CD, 1830, tomo 2º, op. cit., sessão de 15 de setembro de 1830, p. 512.
45 – APB-CD, 1830, tomo 2º, op. cit., sessão de 15 de setembro de 1830, p. 512.

290 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):273-309, jul./set. 2011


Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

Ou seja, em algum momento nos trabalhos da comissão mista ou da


comissão ad hoc nomeada para receber as emendas e memórias, o crime
de insurreição, ausente do projeto de Vasconcelos, havia sido incoporado
na discussão sobre o Código Criminal.

O crime de insurreição escrava, portanto, já extremamente comum


na legislação dos estados norte-americanos, chegara ao Brasil. Mais uma
vez, na ausência de referências diretas na documentação, é necessário
repassar com cuidado os anais do parlamento.

Em de 21 de maio de 1829, mais de três meses antes da comissão


mista apresentar – a partir das bases de Clemente Pereira e do projeto de
Vasconcelos – sua proposta de Código Criminal, o taquígrafo anotara nos
anais da câmara a seguinte informação: “A oferta feita pelo cidadão João
Clemente Vieira Souto de um exemplar da tradução do projeto de código
penal para a Luisiana, foi recebida com agrado.”46 É provável que o texto
entregue fosse uma tradução do plano para o código penal da Luisia-
na que Edward Livingston apresentou – impresso tanto em inglês como
em francês – ao legislativo daquele estado norte-americano em março de
1822.47
46 – João Clemente Vieira Souto era o editor da Astréia que, segundo Sérgio Buarque
de Holanda, “ajudou a Aurora Fluminense de Evaristo da Veiga a formar o pensamento
liberal brasileiro vitorioso no 7 de abril e predominante durante boa parte da Regência”.
Vieira Souto foi eleito deputado para a segunda legislatura, 1830-1834, pela província do
Rio de Janeiro. Ou seja, chegou ele mesmo a testemunhar as discussões que precederam
a aprovação do Código de 1830; sendo, por exemplo, um dos representantes que votou
contra a admissão da pena de morte. Sérgio Buarque de Holanda, “Prefácio”, in Jeanne
Berrance de Castro, A milícia cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850, 2ª ed., São Pau-
lo, Editora Nacional, 1979, p. xiii; APB-CD, 1829, tomo 2º, Rio de Janeiro, Typogaphia
H. J. Pinto, 1877, sessão de 21 de maio de 1829, p. 115.
47 – O plano de Livingston, ou Report made to the General Assembly of the State of Lou-
siana of the Plan of a Penal Code for the said State, foi publicado em Nova Orleans, em
1822, em inglês e francês, e teve dois anos depois uma edição na Inglaterra (mas já com
um título diferente) e, em 1825, outra na França. Além disso, foi objeto de uma nota elo-
giosa na Revue Enciclopedique, logo após sua publicação nos Estados Unidos, bem como
de uma resenha na Westminster Review, em janeiro de 1825. Edward Livingston, Report
made to the General Assembly of the State of Louisiana of the Plan of a Penal Code for
the said State, Nova Orleans, Benjamin Levy & Co, 1822; Rapport fait à l’Asssemblée
Générale de l’Etat de la Louisiane sur Le projet d’um Code Pénal por ledit Etat, Nova
Orleans, Benjamin Levy & Co, 1822; Project of a new Penal Code for the State of Loui-

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Monica Duarte Dantas

Edward Livingston, um nova-iorquino que se mudou para Nova Or-


leans no começo do século XIX, foi, em 1821, incumbido pelo legislativo
da Luisiana de revisar as leis penais do estado, apresentando, no ano se-
guinte, o referido plano ou Report made to the General Assembly of the
State of Lousiana of the Plan of a Penal Code for the said State. Em 1825
terminou sua obra, publicando-a com o título de A System of Penal Law
for the State of Lousiana, que compreendia, além de um “Code of crimes
and punishments”, no caso o código penal propriamente dito, outros três
códigos – “Code of Procedure”, “Code of Evidence” e “Code of Reform
and Prison Discipline” – e um “Book of Definitions”.48
siana, Londres, Baldwin, Cradock and Joy, 1824; M. A. H. Taillandier (ed.), Rapport sur
le projet d’un Code penal fait a l’Assemblée générale de l’état de la Lousiane, par M.
Édouard Livingston, Paris, 1825; Charles Haven Hunt, Life of Edward Livingston, Nova
Iorque, D. Appelton Company, 1864, pp. 276-277.
48 – Edward Livingston nasceu no estado de Nova Iorque, em 1764, e lá faleceu em 1836.
Graduou-se, em 1781, no College of New Jersey (depois Universidade de Princeton),
dedicando-se então ao estudo do direito. De 1795 a 1801 representou seu estado natal no
Congresso Nacional; nos dois anos seguintes foi promotor e prefeito da cidade de Nova
Iorque (em razão de uma acusação de desfalque foi condenado a restituir o dinheiro e se
afastou da política em seu estado natal). Mudou-se então para Nova Orleans, onde se dedi-
cou à prática do direito (vale destacar que era irmão do chanceler Robert Livingston, que
havia negociado com Napoleão, no começo do século, a compra, pelos Estados Unidos,
do território de Orleans). Como presidente do comitê de defesa pública de Nova Orleans,
organizou a resistência à invasão inglesa em 1814. Se, em 1821, o legislativo da Luisiana
lhe encomendou uma revisão das leis penais, em 1822 foi incumbido, desta vez juntamen-
te com os jurisconsultos Louis Casimir Moureau-Lislet e Pierre Derbigny, da revisão do
Código Civil do estado, bem como da preparação de um Código Comercial e, finalmente,
da formulação de um tratado sobre as normas das ações civis e um sistema de processo
para ser utilizado pelos tribunais. Ainda que nem seu código penal (ou qualquer dos có-
digos compreendidos na obra A System of Penal Law), e tampouco seu Código Comer-
cial tenham sido adotados pelo legislativo do estado, o Código Civil foi promulgado em
1825, seguido poucos meses depois do Code of Practise. Entre 1823 e 1829 atuou como
deputado junto ao Congresso Nacional, desta vez pelo distrito de Nova Orleans; em 1829
elegeu-se senador. Em 1831 apresentou ao Senado americano seu projeto de Código Pe-
nal para os Estados Unidos (já publicado em 1828), mas que também nunca chegou a ser
adotado. Nesse mesmo ano foi escolhido secretário de Estado, encarregado das Relações
Exteriores dos Estados Unidos, cargo que exerceu até 1833. William B. Hatcher, Edward
Livingston. Jeffersonian Republican and Jacksonian Democrat, Louisiana State Univer-
sity Press, 1940; Charles Noble Gregory, “Bentham and the codifiers”, Harvard Law Re-
view, v. XIII, n. 5, 1900. Sobre o debate da codificação nos Estados Unidos ver Jennifer
Denise Henderson, “A Blaze of reputation and the echo of a name”: the legal career of
Peter Stephen Du Ponceau in post-revolutionary Philadelphia, dissertação de mestrado,
Florida State University – College of Arts and Sciences, 2004, op. cit.; e Charles M. Cook,

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Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

Um ano depois de Vieira Souto ter entregue a tradução do plano de


código penal de Livingston à câmara, foi a vez de outro cidadão presente-
ar o plenário com mais um trabalho do jurista norte-americano. Em 12 de
maio de 1830 – quando a comissão ad hoc que deveria receber as emendas
acabara de ser nomeada (em 7 de maio) –, José Silvestre Rebello (o pri-
meiro encarregado do Império brasileiro em Washington)49, ofertou “um

The American Codification Movement. A study of Antebellum Legal Reform, Westport/


Londres, Grenwood Press, 1981; Edward Livingston, A System of Penal Law for the State
of Louisiana, Pittsburgh, John L. Kay & Brother, 1833.
49 – Em janeiro de 1824, José Silvestre Rebello foi encarregado dos negócios de Wa-
shington, chegando aos Estados Unidos em abril do mesmo ano; cargo que exerceu até
agosto de 1829. Rebello levava instruções para “obter o reconhecimento formal do Im-
pério pelo governo norte-americano; sondar as possibilidades de um tratado de aliança
defensiva e ofensiva entre os Estados Unidos e o Brasil, receoso de um conflito com
Portugal; negociar a aquisição de navios para equipar a nascente armada nacional”. Em
maio de 1824, “ao apresentar suas credenciais ao presidente James Monroe”, garantiu
o reconhecimento norte-americano da independência do Brasil. Para Costa Franco, se,
por um lado, Rebello buscava ressaltar “aos olhos das cortes européias o mérito de man-
ter um regime monárquico no hemisfério ocidental, insinuando mesmo a possibilidade
de estímulo ao surgimento de outras monarquias no continente americano”, por outro,
“revelava aos olhos de Washington uma outra face, que condenava ‘a política tortuosa
e maquiavélica da Europa’”, como escreveu em ofício de fevereiro de 1829. Por fim,
a leitura dos despachos e ofícios redigidos ou recebidos pelo primeiro embaixador traz
informações interessantes quanto à difusão das ideias de Livingston. Em 26 de junho de
1824, Rebello enviou um ofício a Luís José de Carvalho e Melo (ministro dos Negócios
Estrangeiros) em que informava que três dias antes recebera “do deputado ao Congresso
pela Louisiana Edward Levingston, um exemplar limpamente encadernado de um plano
de um código criminal, com uma carta, oferecendo-o a S. M.”, e que iria remetê-lo no
primeiro barco seguro que houvesse. Em 10 de dezembro do mesmo ano, um despacho
do ministro informava ter levado “à presença de S. M. o Imperador o plano do código que
mr. Edward Livingston apresentou à Assembleia Geral da Louisiana como seu deputado
e o mesmo senhor recebeu com especial agrado aquela oferta, dignando-se de lhe mandar
escrever a carta inclusa de agradecimento, que V. Mce. lhe fará entregar com segurança”.
Finalmente, em ofício de 25 de junho de 1825, Rebello informava que estava de posse da
“carta que S. M. I. mandou escrever ao dr. Livingston, sobre o Código Criminal, que ele
lhe ofereceu; como o não encontrei, tenho a carta em meu poder para lhe entregar quando
ele aqui se recolher, o que não será antes de dezembro; segundo creio, foi, me disseram,
para a Louisiana”. Considerando a data em que Livingston teria encontrado com o embai-
xador brasileiro, a obra em questão era o já mencionado plano de código penal; ou Report
made to the General Assembly of the State of Lousina of the Plan of a Penal Code for the
said State. É provável que o código já pronto tenha sido trazido por Rebello quando de seu
regresso ao Brasil. Brasil – Estados Unidos, 1824-1829, Rio de Janeiro, Centro de Histó-
ria e Documentação Diplomática/ Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, v. 1,
pp. 52, 107-109, 251-254; Álvaro da Costa Franco, “Apresentação”, in idem, pp. 9-13.

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exemplar do código criminal da Luiziana” que “foi recebido com agrado


e remettido à comissão respectiva”.50 Desta vez, tratava-se provavelmente
do “Code of crimes and punishments”, ou mesmo da obra completa, A
system of penal Law for the State of Lousiana, que, além do código penal,
trazia também os outros três códigos e o livro de definições.

No mesmo dia em que Rebello fez sua oferta, o deputado Ernesto


Ferreira França encaminhou à mesa um requerimento em que pedia “que
se nomeie quanto antes uma comissão de fora presidida por um membro
desta câmara, a qual se encarregue o fazer com a possível brevidade a tra-
dução da legislação penal organizada para o estado da Luisiana por Livin-
gston”. Consta dos anais que após a leitura do requerimento, o deputado
pediu urgência, no que teria sido apoiado, porém, depois de rápida discus-
são, “que não apanhou o tachygrapho, foi posta à votação e não vencida:
ficando o requerimento para delle se tratar em occasião competente”.51

Dois dias depois, em 14 de maio de 1830, a questão da tradução


voltou à discussão no plenário; Ferreira França novamente leu seu reque-
rimento. Para o deputado Ferreira de Mello a tradução deveria ser feita,
mas não por uma comissão externa, e sim, como explicado na emenda que
apresentou, por uma comissão de membros da casa, “podendo a mesma
comissão propor outra de fora para coadjuvar”. Ferreira França ponderou,
contudo, que os deputados já se encontravam muito ocupados com a or-
dem do dia e diversas comissões e que, assim, seria melhor que fossem
escolhidas pessoas de fora da casa, “sendo porém o presidente um mem-
bro della, que una aos outros conhecimentos o da legislação e o da língua
inglesa”. Hollanda Cavalcanti rejeitou ambas as propostas, sugerindo que
o governo ficasse encarregado de mandar traduzir e imprimir o “codigo
penal organisado para o estado da Luisiana por Livingston, com a maior
brevidade possível, dividindo o trabalho por differentes emprehendedo-
res e provendo ao pagamento destes, segundo fôr mais conducente ao fim
da prompta execução da presente resolução”.

50 – APB-CD, op. cit., sessão de 12 de maio de 1830, pp. 117 e 123.


51 – APB-CD, op. cit., sessão de 12 de maio de 1830, p. 123.

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Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

Vasconcelos, por sua vez – a quem parecia que dos códigos nada se
poderia tirar, pois, caso contrário “outro há de ser o resultado de todo este
trabalho” – declarou votar contra o requerimento, pois a câmara já havia
decidido “que o código vá à comissão especial sobre o mesmo, que taes
emendas sejam recebidas até o 1º de Julho [sic]” e que, portanto, caso o
trabalho de Livingston fosse encaminhado para tradução, uma tarefa de
três ou quatro meses, ficaria suspensa “a discussão sobre o código, do
que resultaria não termos um sofrível, indo atrás do optimo”. Hollanda
Cavalcanti secundou o colega mineiro, alegando desta vez que, caso fosse
para tradução, uma vez que havia um só exemplar, a comissão não pode-
ria consultá-lo; propunha então que, não existindo muitos deputados com
capacidade de traduzir o inglês, o código de Livingston fosse consultado
“naquellas cousas que forem mais precisas”. Julgando-se a matéria discu-
tida, ficou estabelecido o primeiro encaminhamento proposto, ou seja, o
envio da obra de Livingston à comissão.52

Alguns dias depois, em 26 de maio de 1830, Ernesto Ferreira França


mais uma vez apresentava um requerimento, desta vez aprovado:

“Requeiro que se encarregue a comissão criada para receber as emen-


das ao código criminal, de examinar o organizado por Eduardo Li-
vingston para a Luisiana, e interpor o seu parecer acerca do mérito
deste código comparativamente com o que serve atualmente de base
às emendas. Paço da camara dos deputados, 26 de maio de 1830 – E.
F. França.”53

Ou seja, antes de findo o prazo para entrega das emendas e memórias


ao Código à comissão ad hoc, seus três membros recebiam, para exami-
nar, o Código Penal de Edward Livingston para o estado da Luisiana.

A proposta de código de Livingston dividia-se em dois livros, um


primeiro “Containing General Provisions”, e o seguinte que tratava de
“Offences and Punishments”. Este, por sua vez, estava organizado em

52 – APB-CD, op. cit., sessão de 14 de maio de 1830, pp. 143-144.


53 – APB-CD, 1830, tomo 1º, Rio de Janeiro, Typographia de H. J. Pinto, 1878, sessão de
26 de maio de 1830, p. 234.

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quatorze títulos. O título dois, “Of offences against the sovereign Power
of the state”, dividido em três capítulos, previa os crimes de traição, se-
dição e, finalmente, “Of exciting insurrection”, definido da seguinte ma-
neira:

“Art. 115. Any free person who shall aid in any insurrection of slaves
against the free inhabitants of this state, who shall join in any secret
assembly of slaves, in which such insurrection shall be planned, with
design to promote it, or shall excite or persuade any slaves to attempt
such insurrections, shall be imprisoned at hard labour for life.
Art. 116. By “insurrection”, is meant an assembling with ARMS, with
intent to regain their liberty by force.
Art. 117. The term to “excite” in the description of this offence, means
to offer any persuasion or inducement, which has insurrection for its
immediate object. It excludes the construction that would make those
guilty who only use language calculated to render the slaves discon-
tented with their state. This, if done with design to promote such dis-
content, is an offence punishable by fine, not less than fifty, nor more
than two hundred dollars; or imprisonment, not less than thirty days,
nor more than six months, in close custody.”54

Como explicava o jurisconsulto norte-americano, em seu “Introduc-


tory Report to the Code of Crimes and Punishments” (parte da obra A
System of Penal Law), o referido crime “consists, in aiding by a freeman,
for this code extend to no others, in any insurrection of slaves against de
free inhabitants of the state or assisting at an assembly of slaves for the
purpose of promoting such insurrection, or exciting them to it”.55

Entre a introdução ao código e o código penal propriamente dito, os


legisladores brasileiros tinham, portanto, tanto um modelo para o crime
de incitação à insurreição, tal como previsto no artigo 115 de Livingston,
quanto uma descrição do crime de insurreição de escravos (tal como apa-
recia na introdução).56 Curiosamente, no entanto, o modelo vinha de uma

54 – Livingston, A system of penal law, op. cit., p. 381.


55 – Idem, pp. 148-149.
56 – Para uma análise mais detida da influência do código penal de Livingston no Código
Criminal brasileiro de 1830, no caso dos crimes contra o Estado, ver Dantas, “Introdu-
ção”, op. cit..

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Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

região recentemente incorporada aos Estados Unidos da América e que


antes disso fora possessão francesa e também espanhola, ou seja, uma
área cuja tradição era o direito civil, e não a common-law e os statutes
britânicos.

No começo do século XVIII, assim que os franceses ocuparam a


região da Luisiana, a Coroa tornou extensiva a essa colônia a aplicação
das leis da metrópole e também do Code Noir, editado originalmente em
1685 para as ilhas do Caribe. A não ser pela exclusão de alguns artigos,
o Edit du Roi Touchant l’Etat & la Discipline des Esclaves Négres de la
Lousiane, de 1724, era exatamente igual a seu congênero do século an-
terior, que, segundo Judith Shaffer, estebelecia um sistema ordenado de
trabalho escravo e relações raciais nas possessões coloniais americanas.
Porém, tanto o Code Noir de 1685 quanto o de 1724 não mencionavam
a palavra insurreição. Na verdade, a referência ao crime de levante de
escravos aparece em um Arret du Conseil d’Etat du Roi, de 1720, mas
nomeado como rebellion.57

Em 1763, a Luisiana tornou-se colônia da Espanha. Schaffer destaca


que gradualmente as leis espanholas começaram a se estabelecer na colô-
nia, especialmente no que tange ao direito de coartação, à possibilidade
dos senhores alforriarem seus escravos sem autorização do governo ou
prova de seus méritos, e à garantia da venda judicial dos escravos maltra-
tados pelos senhores.58 George Dargo, contudo, ressalta que, no que tange
à normatização da vida dos escravos durante o período espanhol, o Code
Noir continuou a vigir. 59 Fosse maior ou menor a influência do direito es-
panhol, fato é que o termo insurreição para designar sublevações escravas
também estava ausente.
57 – Le Code Noire, ou Edit du Roy servant de reglement pour le Gouvernment & l’Admi-
nistration de Justice & la Policedes Illes Françoises d’l’Amerique [...] donné à Versailles
le moins du Mars 1685, Paris, Chez Claude Girard, 1735; Recueil d’Edits. Declarations
et Arrests de As Majeste Concernant l’Administration de la Justice & la Police des Colo-
nies Françaises de l’Amérique, & les Engages. Paris, Libraires Associez, 1744, pp. 124-
127, 135-156. Judith Kelleher Schaffer, Slavery, the Civil Law, and the Supreme Court of
Louisiana. Baton Rouge/ Londres, Louisiana State Univ. Press, 1994, p. 1.
58 – Schaffer, Slavery, the Civil Law and the Supreme Court, op. cit., p. 2.
59 – George Dargo, Jefferson’s Louisiana. Politics and the clash of Legal Traditions. Edi-
ção revista. Clark (NJ), The Lawbook Exchange, 2009, p. 11.

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Pouco depois da compra da Luisiana pelos norte-americanos, em


1803, o Congresso aprovou uma lei, em 26 de março de 1804, que deter-
minava que o governador do território de Orleans seria escolhido por um
presidente e auxiliado por um conselho legislativo de 13 membros, to-
dos nomeados mediante indicação. Além disso, estabelecia a organização
para o judiciário do território, composto por uma Suprema Corte de três
juízes (também por indicação), e tantos tribunais e juízes de paz quanto
fosse determinado pelo governador e conselho. Determinava também que
os julgamentos seriam por júri em casos capitais e em outros casos de
acordo com a vontade das partes. O Congresso também determinou que,
no território, vigorariam garantias comuns ao direito norte-americano
como o writ of habeas corpus, a fiança e a proibição de punições cruéis e
incomuns; mas garantiu que as leis então em vigor continuariam vigentes
até que alteradas pelos legisladores. Ou seja, “the legal reconstruction of
Lower Louisiana began with the institutional innovations so characteris-
tic of the commom law system”.60

Em seu primeiro ano de funcionamento, em 1805 (uma vez que o


conselho se reunira pela primeira vez em 4 de dezembro do ano ante-
rior), o conselho aprovou um “Act for the punishment of Crimes and
Misdemeanors”.61 Como mostra Dargo, ainda que o embate entre as duas
tradições jurídicas tenha sido uma questão central após a compra da Lui-
siana pelos norte-americanos – questão tratada com minúcia em seu livro
–, esse embate se referia muito mais à matéria civil do que penal. Neste
último caso, ao contrário, os antigos moradores teriam sido extremamente
receptivos às normas e procedimentos de seu novo país. Assim, mesmo a
partir de 1806, quando começou a funcionar no território uma legislatura
eleita e que, ao contrário do conselho, seria composta por uma maioria de
antigos moradores, as leis referentes à matéria penal tiveram por inspira-
ção muito mais os statutes e a common law de origem britânica do que o

60 – Idem, p. 186.
61 – Louis Casimir Moreau-Lislet, A General Digest of the Acts of the Legislature of
Louisiana: passed from the year 1804, to 1827, inclusive, and in Force at this Last Period,
New Orleans, Printed by Benjamin Levy, 1828, vol. 1, pp. 362-374.

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Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

direito continental. “Virtually no opposition greeted the Americanization


of the criminal laws of Louisiana”.62

Algumas emendas à lei sobre Crimes and Misdemeanors foram


aprovadas ainda durante o funcionamento do Conselho e depois pela le-
gislatura eleita. Em 7 de junho de 1806, a terceira seção do “Act to amend
the act entitled ‘an act for the punishment of Crimes and Misdemeanors’”
determinava que:
“If any person shall, by words, action or writing, or in any other man-
ner whatsoever, persuade, encourage or advise any slave or slaves to
insurrection, against his, her or their lawful proprietor or proprietors,
or against the white inhabitants of this territory, or the government
thereof, such person on conviction thereof, shall suffer death.”63

No mesmo dia, a legislatura passou outra lei que também continha


uma seção acerca do crime de insurreição, mas, neste caso, fazia parte de
um “Act prescribing the rules and conduct to be observed with respect to
Negroes and other Slaves in the teritory”; lei que, na época, e conforme
o título que – no próprio General Digest de 1828 – antecedia o texto, era
mais conhecida como Black Code. Em sua décima seção, para além de
estabelecer a punição capital para escravos que cometessem homicídio,
os legisladores haviam determinado que
“every slave who shall make, or cause to be made, any insurrection
in this territory, and such slave or slaves, and his or their accompli-
ces, aiders and abettors, under conviction as above said, shall suffer
death”.64

62 – “American criminal law and criminal procedure, with its devices for the protections
of the individual against the arbitrary authority, had obvious advantages over the admin-
istration of criminal justice under the Spanish, and Louisianans were quick to see this”. O
direito civil, contudo, tanto substantivo quanto adjetivo, daria azo a intensas disputas. Em
1806, por exemplo, o governador vetou uma lei que visava garantir a manutenção da tradi-
ção legal continental, impossibilitando futuras leis que visassem à introdução da common
law vigente no país; em 1808, contudo, um Digest of the Civil Laws Now in Force in the
Territory of Orleans, aprovado pela legislatura e pela autoridade executiva do território
terminaria garantindo a vigência daquilo que, dois anos antes, fora motivo de veto. Dargo,
Jefferson’s Louisiana, op. cit., pp. 31-32, 191, 237, 271.
63 – Moreau-Lislet, A General Digest of the Acts of the Legislature of Louisiana, op. cit.,
p. 377. (grifo nosso).
64 – Idem, p. 116 (grifo nosso).

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Em 1806, portanto, a legislatura da Luisiana, composta em sua maio-


ria por antigos moradores, estabelecia tanto a insurreição como um crime
específico dos escravos quanto tipificava e penalizava quaisquer livres
que os auxiliassem nesse intento. O texto das referidas leis do território
pareciam remeter diretamente aos statutes das antigas colônias inglesas
ou mesmo dos estados já independentes, como, por exemplo, a Carolina
do Sul e a Virginia. Segundo Lawrence Friedman, fora comum, na his-
tória das colônias britânicas na América do Norte, que uma região em-
prestasse leis de seus vizinhos, com problemas e condições semelhantes.
Nesse sentido, destaca que a Virginia, no sul, e Massachusstes Bay, no
norte, haviam sido grandes exportadores de leis.65

Para Dargo, referindo-se à Luisiana do começo do oitocentos, “The


law of slavery, based on the French Code Noir, was unique in some re-
spects, but statutory enactments would in time bring it into harmony with
the slave codes in the other southern states”. ���������������������������
No que tange especificamen-
te ao Black Code, diz que os legisladores incorporaram parte do Code
Noir francês, “modified by spanish practice”, o que implica que, em gran-
de parte, a lei de 1806 baseava-se em statutes norte-americanos ou na
positivação da common law acerca da escravidão.66

O Penal Code de Edward Livingston, apresentado à legislatura da


Luisiana em 1825 – e que, como ele mesmo explicava, aplicava-se so-
mente à população livre –, trazia de forma muito mais sistemática, como
convinha a um seguidor de Jeremy Bentham, o direito criminal substan-
tivo que, desde, 1804, aparecera em leis aprovadas primeiramente pelo
conselho de Orleans, depois pela legislatura do território e, finalmente,
pelos representantes do estado.67 Sem dúvida, uma série de inovações
eram apresentadas pelo nova-iorquino, como, por exemplo, a crimina-
lização dos atos que visavam à restrição da liberdade de imprensa e a
abolição da pena de morte.
65 – Lawrence Friedman, A History of American Law, op. cit., p. 52.
66 – Mesmo Schaffer destaca que, com o passar do tempo, as leis concernentes à escra-
vidão tornaram-se cada vez mais americanizadas. Dargo, Jefferson’s Louisiana, p. 298;
Schaffer, Slavery, the Civil Law and the Supreme Court, op. cit., p. 13.
67 – Cook, The American Codification Movement, op. cit., 1981, p. 74.

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Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

Ainda assim, como fica evidente na tradução francesa do A System of


Penal Law, de 1872, intitulado Exposé d’um système de législation crimi-
nelle pour l’État de la Lousiane et pour les États-Unis d’Amérique, desde
1805 o legislativo do território de Orleans e depois do estado da Luisia-
na havia incorporado, ou requalificado, uma série de crimes (relativos
à população livre) que não estavam previstos até então, como “meurtre
volontaire”, “effraction”, “commettre le crime d’homicide” ou “manslau-
ghter”, “faux emprisonment”, e, obviamente, “Par peroles, écrits, actions,
ou de tout autre maniére, persuader, encourager ou exciter les esclaves à
l’insurrection contre leur maitre ou propriétaires légitimes, ou contre les
habitants, em général, de cet territoire, ou contre son government”.68

Edward Livingston havia, portanto, incorporado à sua obra uma sé-


rie de institutos “importados” dos outros estados americanos, entre eles
a insurreição escrava, e a incitação à insurreição. Fica então a questão de
como as colônias americanas, cujo fundamento legal era o direito inglês,
haviam adaptado para uma realidade distinta o crime de insurreição.69

68 – Tal lista aparece ao fim do primeiro volume da obra, em um anexo intitulado “Offen-
ses créés par Statuts, dans la Louisiane, depuis as cession aux États-Unis”. Há que desta-
car que grande parte dos tipos penais que ele destaca foram incorporados à legislação do
território de Orleans pela lei de 4 de maio de 1805, ou seja, pelo diploma legal que, se-
gundo Dargo, ele mesmo teria sido responsável por escrever. Edward Livingston, Exposé
d’um système de législation criminelle pour l’État de la Lousiane et pour les États-Unis
d’Amérique, Paris, Guillaumin et Cie Éditeurs, 1872, pp. 571-587.
69 – Lawrence Friedman, em sua obra A History of American Law, destaca que a justiça
criminal nas colônias britânicas, tal como o direito colonial em geral, era normalmente
menos formal e mais simplificada que o direito inglês, mas que, ainda assim, houve aos
poucos sua conformação à prática inglesa. Para Thomas Morris, “[t]he core of American
slave law was the common law of England, as well as the equitable principle used in
English Chancery courts. We miss this because we have not paid enough attention to the
fact that it was indeed the property element in the slave that was ‘juristically’ significant”.
Morris pondera, contudo, que é evidente que o direito inglês não forneceu “direct rules
for the policing of slaves”, mas afirma, por outro lado, que também é verdade que havia
“ample precedents in English legal traditions for the governance of lower-class people,
precedents that were easily adapted to slaves in the colonies. It is also true that some of
the colonial police regulations were responses of slave owners to particular problems in
the colonies that had no parallel in England”. Friedman, A history of American Law, op.
cit., p. 32; Morris, Southern Slavery and the Law, op. cit., pp. 38, 56-57.

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Monica Duarte Dantas

Thomas Morris, em seu livro Southern Slavery and the Law, destaca
que a primeira referência importante sobre insurreição aparecera, na In-
glaterra, no tratado de Edward Coke, de 1644:

“It was resolved by all judges of England in the reigne of king H. 8.


That an insurrection against the statute of labourers, for the enhanc-
ing of salaries and wages, was a levying of war against the king, be-
cause it was generally against the kings law, and the offenders took
upon them the reformation thereof, which subjects by gathering of
power ought not to do.”70

O que significava, segundo Morris, que havia muito os ingleses ti-


nham feito uma relação direta entre insurreição e “class strugle”. Assim,
a insurreição dos trabalhadores com vistas a um aumento de seus salários
era considerada, já durante o reinado de Henrique VIII, uma tentativa de
fazer a guerra contra o rei e como tal, “insurrection was a form of hich
treason”.71

O autor destaca que no início do século XVIII, esta ligação estava


ainda mais clara, uma vez que em seu A Treatise of the Pleas of the Cro-
wn, de 1716, William Hawkins estabelecia que:

“Those also who make as Insurrection in order to redress a public


Grievance, wheter it be a real or pretended one, and of their own Au-
thority attempt with force to redress it, are said to levy War against the
King, altho’ they have no direct Design against his Person, inasmuch
as they insolently invade his Prerogative, by attempting to do that by
private Authority, which he by public Justice ought not to do, which
manifestly tends to a downright Rebellion […].”72

“To levy war against the King” era justamente uma das cláusulas
do statute de 1352, do reinado de Eduardo III, que, segundo Alan Orr,
“was the principal statutory foundation of English treason law throughout

70 – Edward Coke, The Third Part of the Institutes of the Laws of England, Londres,
Printed for E. and R. Brooke, 1797, p. 10.
71 – Morris, Southern Slavery and the Law, op. cit, p. 266.
72 – William Hawkins, Treatise of the Pleas of the Crown, Savoy, printed by Eliz. Nutt,
1716,vol. 1, p. 37 (grifo nosso).

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Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

the seveteetn century”, e cuja interpretação, desde o século XIV, gerou


grande controvérsia quanto ao sentido e escopo de suas breves linhas.73
Tanto para Coke quanto Hawkins, insurreição era, portanto, um crime de
traição, ou melhor, high treason.74

Morris, a partir da obra de J. Bellamy sobre The Laws of Treason


in England in the Later Middle Ages, mostra que na Inglaterra medie-
val havia duas concepções de traição, uma de origem germânica e outra
romana. O ideário germânico se baseava na concepção de “betrayal or
breach of trust (treubruch), by a man against his lord, while the Roman
stemmed from the notion of maiestas, insult to those with public author-
ity”. Segundo Morris, as concepções legais inglesas perduraram por todo
o século XVIII e foram transmitidas para as colônias britânicas na forma
de high treason ou petit treason.75

Para o autor, a despeito do crime de traição implicar necessariamente,


conforme os statutes ingleses, que o acusado tivesse uma relação de “sub-
mission” ou “allegiance” ao rei (súditos de outros monarcas, por exem-
plo, caso fizessem guerra contra o rei inglês não poderiam ser julgados
por traição)76, a ideia de traição foi de fato aplicada a certos crimes co-
metidos por escravos; ainda que estes fossem normalmente considerados
outsiders, uma vez que não eram cidadãos ou membros da sociedade.77

A despeito dessa contradição, segundo Morris, traição “appeared in


the way the free used the law when slaves murderously rejected the no-

73 – De acordo com o referido statute, era traição “(1) compassing or imagining the death
of the king or queen, or eldest male heir to the throne; (2) violating the king’s ‘compan-
ion’, his eldest unmarried daughter or the eldest male heir’s wife; levying war on ‘the
king in his realm’; (4) adhering to the king’s enemies in his own realm ‘or elsewhere’; (5)
counterfeiting the great or privy seal, the king’s coin, or bringing counterfeit coin into the
realm; and (6) killing the chancellor, treasurer, or any of the king’s justices in the execu-
tion of their offices”. Alan Orr, Treason and the State: law, politics, and ideology in the
English Civil War. Cambridge, Cambridge Univ. Press, 2002, pp. 11-12
74 – Tanto em Coke, quanto em Hawkins, as referidas menções à insurreição aparecem
nos capítulos dedicados a high treason.
75 – Morris, Southern Slavery and the Law, op. cit., p. 264.
76 – Sobre essa questão ver Orr, Treason and the State, op. cit., cap. 1.
77 – Morris, Southern Slavery and the Law, op. cit., p. 265.

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Monica Duarte Dantas

tion that they owed a duty of submission or allegiance by a resort to revolt


or homicide of those who claimed a lawful authority to command their
labor – masters, overseers, and hirers”.78 E entre as acusações de traição,
ou alta traição, a mais comum foi o crime de insurreição. Assim, se o uso
de insurreição para definir um crime escravo parecia, segundo o referido
autor, trazer um problema de base, o mesmo não pode ser dito de sua
aplicação para os livres que incitavam ou auxiliavam os escravos em seus
intentos insurrecionais, uma vez que estes, sem dúvida alguma, não eram
outsiders, ao contrário.

Por fim, vale recuperar uma das considerações de J. Bellamy sobre


certos aspectos do crime de traição. Segundo o autor, a ideia de que fazer
a guerra contra o rei constituía um crime de traição tinha influência direta
da “Roman theory that the right of levying war belonged only to princes
without a secular superior”. Ainda que, segundo Alan Orr, esse tipo de
relação seja difícil de ser feita, “this probably reflected the penetration of
Roman law into northern Europe at this time”.79

De qualquer maneira, a palavra insurreição, que desde ao menos o


século XIV80 já fazia parte do arcabouço legal inglês, havia, ao longo
dos séculos, se adaptado à realidade das colônias na América do Norte,
passando a configurar também um tipo penal específico da população es-
crava. Por meio de sua inclusão no corpus legislativo da Luisiana – que
em matérias civis permaneceu profundamente vinculada a Civil Law –,
o crime de insurreição escrava chegou ao Brasil recém-independente. E,
diferentemente dos Estados Unidos, em que insurreição nomeava não só
um crime escravo (cometido por eles ou por aqueles que os auxiliassem),
mas também um tipo de ação que visava à perturbação da ordem geral
e remetia à ameaça de invasões estrangeiras (conforme a “Declaração

78 – Ibidem, p. 264.
79 – J. Bellamy, The Law of Treason in England in the Later Middle Ages, Cambridge,
Cambridge Univ. Press, 1970, p. 14, apud Orr, Treason and the State, op. cit., p. 12. “Its
inclusion in the statute of 1352 is highly significant as were the sections decreeing it trea-
son to kill a magistrate in the execution of his office or to counterfeit coin, all of which
corresponded with the Roman law of treason”. Orr, Treason and the State, op. cit., p. 12.
80 – Ver Bellamy, The Law of Treason in England, op. cit., pp. 103 e ss.

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Dos Statutes ao Código brasileiro de 1830:
o levante de escravos como crime de insurreição

de Independência” e a “Constituição” do país), no Brasil, insurreição,


ao longo de praticamente todo o Império, estaria legalmente vinculada à
instituição da escravidão.

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Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação


em maio /2011.

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O Império da Moderação: agentes da recepção do pensamento político europeu
e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado no Brasil imperial

O Império da Moderação: agentes da recepção


do pensamento político europeu e construção
da hegemonia ideológica do liberalismo
moderado no Brasil imperial
THE EMPIRE OF MODERATION: receiving agents of the
European political thinking and the construction
of ideological leadership of moderate liberalism
in Imperial Brazil
Christian Edward Cyril Lynch 1
Resumo: Abstract:
Embora surjam em lugares determinados, os Political concepts and language are essentially
conceitos e linguagens políticos são essencial- movable even though they may come forth in
mente móveis. Dado o impacto da diferente pre-established places. However, given the im-
sociedade para o qual eles são transpostos, pact on distinct societies to which they are trans-
porém, eles fatalmente apresentam uma opera- posed, they will undoubtedly become operation-
cionalidade diversa. Daí a proficuidade de se al in diverse forms. Hence the convenience of
examinar as semelhanças e eventuais diferenças examining existing similarities and differences
existentes entre as sociedades que produziram, in societies that have produced, or that served
ou que serviram de principal referência para as main references to justify its “importation”,
justificar a sua “importação”, e aquelas para as and those in which they were received, before
quais eles foram recepcionados, antes de proce- proceeding with the actual study of their recep-
der propriamente ao estudo de suas recepções. A tion. The comparison should identify the social
comparação deve identificar os setores sociais sectors in the receiving country then available
que estavam disponíveis para albergar as novas to house new political languages, thus showing
linguagens políticas no país de recepção, o que the manner and limits of its manipulation. At the
condiciona o modo e os limites de sua manipu- time of the Brazilian Independence, the main so-
lação. Na época da independência brasileira, os cial sectors available to operate the reception of
principais setores sociais disponíveis para ope- European political concepts were State bureau-
rar a recepção dos conceitos políticos europeus cracy, high trade, and large land owners. Given
eram a burocracia do Estado, o alto comércio e the frailty of urban medium sectors, as well as
os grandes proprietários de terras. Dada a fragi- the absence of inherited nobility, the Brazilian
lidade dos setores médios urbanos, mas também political debate – differently from the European
a ausência de uma nobiliarquia hereditária, o – was restricted to moderate, liberal formulae,
debate político brasileiro – diferentemente do inasmuch as the rightist Absolute Power, and
europeu – se restringiria a fórmulas liberais mo- the leftist radical, options were unviable..
deradas, inviabilizadas as opções absolutistas à
direita e radicais à esquerda.
Palavras-chave: Brasil, história do pensamen- Keywords: Brazil – History of Political and
to político e constitucional, século dezenove, Constitutional Thinkings – Nineteenth century
história dos conceitos, agentes da recepção in- – History of concepts – Intellectual receiving
telectual. agents

1 – Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Professor de Pensamento
Constitucional Brasileiro no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Gama Filho (UGF) e de Pensamento Político
Brasileiro na Escola de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Também leciona Teoria do
Estado na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Christian Edward Cyril Lynch

Introdução
O confronto entre o desenvolvimento político-ideológico brasileiro
com aquele ocorrido à mesma época na França ou na Inglaterra, ou em
Portugal e na Espanha, indica que a nossa palheta ideológica era menos
diversificada do que aquela da Europa Ocidental. Nosso debate se dá es-
sencialmente dentro dos limites da ideologia liberal em sentido lato, e,
portanto, progressista, dividida entre uma direita mais preocupada com a
ordem (“conservadora”) e uma esquerda mais ocupada da liberdade (“li-
beral” no sentido estrito). Os extremos não existem, ou se existem, são
inexpressivos. Assim, por exemplo, o discurso reacionário ultracatólico
de retorno ao Antigo Regime, brandido pela extrema direita ultra ou le-
gitimista na França, em Portugal e na Espanha, não encontra equivalente
sério no Brasil. Por suas vezes, modalidades radicais, democráticas ou so-
cialistas, ou não medram, ou surgem de modo espasmódico ou meramen-
te retórico em momentos de crises sistêmicas (antes como consequências
que como causas de tais crises). Nada há de equivalente ao cartismo,
ao socialismo utópico, ao socialismo científico, no debate político-parla-
mentar da época. Fora da arena parlamentar, apenas um manifesto pelos
direitos sociais, último suspiro de uma revolta provincial sufocada – não
por acaso, no ano de 1848. Qual a razão do predomínio esmagador desse
liberalismo centrista ou moderado no período – e que, aliás, tão pouca
atenção tem merecido, em benefício do pensamento “exaltado”, muito
menos representativo, a título de sua pretensa vacuidade ideológica? Por
que determinados conceitos ou discursos foram recepcionados pelos ato-
res da cena política e outros não? Por que alguns tiveram maior repercus-
são e outros, menor, em relação às sociedades de onde eles foram “impor-
tados”? A resposta política adequada a estas perguntas não passa por uma
explicação para a qual as idéias eram importadas indiscriminadamente
e estavam, portanto, “fora do lugar” (tal, pelo menos, como esta expres-
são é vulgarmente compreendida), mas por indagar se estava ao alcance
linguístico ou cultural dos agentes a recepção desta ou daquela “ideia”
(conceito ou linguagem); por verificar as diferenças de estrutura social
e cultural entre a sociedade importadora e a exportadora, bem como os

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O Império da Moderação: agentes da recepção do pensamento político europeu
e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado noBrasil imperial

estratos sociais dos agentes de recepção e exportação; pelo exame dos


motivos que levaram os políticos brasileiros a recepcionar determinados
conceitos ou discursos, e não outros eventualmente disponíveis, como se
verá.

1. Revoluções no centro e na periferia: a francesa de 1789 e a brasileira


de 1821
Embora surjam em lugares determinados, os conceitos e linguagens
políticos são essencialmente móveis, graças às possibilidades, simpatias
e interesses de grupos políticos de outras paragens que deles tomam co-
nhecimento. Dado o impacto da diferente sociedade para o qual eles são
transpostos, porém, eles fatalmente apresentam uma operacionalidade
diversa daquela que os marcou em seus lugares de origem. Daí a proficui-
dade de se examinar, ainda que de maneira perfunctória, as semelhanças
e eventuais diferenças existentes entre as sociedades que produziram, ou
que serviram de principal referência para justificar a sua “importação”, e
aquelas para as quais eles foram recepcionados, antes de proceder pro-
priamente ao estudo de suas recepções. Além disso, a comparação deve
identificar os setores sociais que estavam disponíveis para albergar as
novas linguagens políticas no país de recepção, o que acaba por condicio-
nar também o modo e os limites de sua manipulação. No caso em refe-
rência, a sociedade receptora é a luso-brasileira, que então se emancipava
na América, e aquela que lhe servia de principal referência em matéria
de modernidade, a francesa pós-revolucionária; motivo pelo qual refletir
sobre os acontecimentos parisienses de 1789 “equivale a refletir sobre as
origens da modernidade de toda uma área cultural” 2. De fato, a França
constituía a referência central dos demais países de uma Europa conti-
nental que ainda não falava inglês; daí que o ideário liberal se difundisse
por suas áreas de influência cultural (como a Ibéria e a América Ibérica)
por meio de releituras da experiência inglesa efetuadas por seus intelec-
tuais. Os dados abaixo são extraídos de estimativas. São contemplados
seis itens: território, população, habitantes por quilômetro quadrado, ur-
2 – GUERRA, François-Xavier. Modernidad y Independências: Ensayos sobre las revo-
luciones hispánicas. Madrid, Ediciones Encuentro, 2009, p. 38.

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banização, alfabetização e valor das exportações. Os três primeiros itens


dão uma ideia geral sobre a distribuição da população pelo conjunto do
território, “fator condicionante da distribuição do poder político no seu
interior” 3. Os dois seguintes dão uma noção do grau de autonomia e
instrução da população de cada sociedade, essencial à formação cultural
de um espaço público moderno. O último item, enfim, visa a exprimir a
expressão econômica de cada uma delas.
França (1789) Brasil (1821)
Território 500 mil km2 8.5 milhões km2

População 30 milhões 4 milhões

Hab/km2 60 2,4

Urbanização 20 % 6%

Alfabetização 20 % 6%

Valor das exportações (em libras) 40 milhões 3,2 milhões

No primeiro item, a comparação aponta para a enormidade do terri-


tório brasileiro, dezesseis vezes superior ao da França. Todavia, a parte
efetivamente povoada dele corresponde basicamente à costa atlântica, ao
centro-sul de Minas Gerais e às regiões do Mato Grosso e do Grão-Pará
alcançáveis por navegação lacustre; áreas estas que, somadas, resultavam
325 mil km2 – pouco inferiores ao total do território francês4. Além disso,
sendo a população brasileira quase 10 vezes menor que a francesa, chama
a atenção o contraste demográfico. Para agravar o quadro, não havia no
Brasil de identidade entre “população” e “povo”: de seus 4 milhões de
habitantes, formava o povo (a porção livre e branca da população) cerca
de somente um terço deles, ficando os outros dois terços por conta dos
índios e negros, a maioria escravos5. A densidade demográfica também
era extremamente rarefeita. Enquanto a França apresentava cerca de 60
hab./km2, no Brasil ela não passava de 10 hab/km2 na área efetivamente
3 – HESPANHA, Antônio Manuel. Às Vésperas do Leviathan: instituições e poder polí-
tico em Portugal no século XVII. Coimbra, Almedina, 1994, p. 63.
4 – WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. de. Formação do Brasil Colonial. Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1994, p. 336.
5 – Para uma comparação entre as diversas estimativas da população brasileira da época,
vide BALHANA, Altiva Pilatti. A População. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. O Im-
pério Luso-Brasileiro. Lisboa, Editorial Estampa, 1986.

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e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado no Brasil imperial

ocupada, sendo que, meio século depois, quando a população já era o


dobro daquela de 1820, a taxa do conjunto do território nacional ainda
patinava em 1,7 hab/km2. Como se pode imaginar, a distribuição dos ha-
bitantes pelo território também era muito irregular, atingindo um máximo
de 16 hab/km2 na Corte e na província circunvizinha do Rio de Janeiro e
um mínimo de 0,1 hab/km2 na região amazônica6. As taxas de alfabetiza-
ção e de urbanização também revelam diferenças abissais: enquanto na
França de 1800 cerca de 20% da população vivia em cidades e já sabia
ler e escrever, no Brasil de 1872 aquele índice ainda era de 6% – análogo
ao francês de 16007. Da mesma forma, o censo daquele ano indicava que,
de cada 100 habitantes livres do Brasil, apenas 23 homens e 13 mulheres
sabiam ler. Entre os escravos, a taxa era de um a cada mil8. Por fim, o
volume de riqueza exportada pelos dois países também discrepava vio-
lentamente: enquanto a França exportava cerca de 40 milhões de libras
em 1789, o Brasil exportava então pouco mais de 3 milhões – cerca de 13
vezes menos9.

Várias ilações podem efetuadas a partir dessa ligeira comparação,


de forma a explicar minimamente a operacionalidade diversa que os con-
ceitos e linguagens políticas recém-introduzidas no Brasil haveriam de
apresentar em relação à França da época. Em primeiro lugar, a imensidão
do território despovoado, por um lado, dificultava a locomoção, tornan-
do o contato humano raro e menor, e, portanto, o experimento de regras
de convivência pela quase inexistência de solidariedade grupal. Mesmo
na área efetivamente povoada do território a densidade demográfica era
baixa, refletindo o peso de uma sociedade maciçamente rural apoiada em
latifúndios de extensão muito inferior à área de cultivo e quase inacessí-
6 – LEVASSEUR, A População. In: LEVASSEUR, E. (org.) O Brasil. 1a. Edição brasi-
leira. Rio de Janeiro, Bom Texto/ Letras e Expressão, 2000.
7 – LADURIE, Emmanuel Le Roy. L’État Royal 1460-1610. De Louis XI à Henri IV. La
Monarchie de la Renaissance. Paris, Hachette, 1987, pp. 32 e 49.
8 – LEVASSEUR, E.; RIO BRANCO, José Maria Paranhos, Barão do. A Instrução. In:
LEVASSEUR, E. (org.) O Brasil. 1a. Edição brasileira. Rio de Janeiro, Bom Texto/ Letras
e Expressão, 2000, p. 110.
9 – LADURIE, Emmanuel Le Roy. L’Ancién Regime II 1715-1770. De Louis XIII à
Louis XV. L’Absolutisme Bien Tempéré. Paris, Hachette, 1991, p. 364. WEHLING; WE-
HLING. Formação do Brasil Colonial, op. cit., p. 217.

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veis aos agentes do Estado. Mantendo a maioria esmagadora da popula-


ção longe da sede da justiça ou da administração oficial, o baixo nível de
urbanização fomentava “a persistência ou criação de práticas informais
de disciplina da vida coletiva e de resolução de conflitos” 10. O analfabe-
tismo fortalecia o caráter tradicional da ordem estabelecida, o que sugere
a incidência do vocabulário político moderno importado numa sociedade
ainda esmagadoramente tradicional. Por fim, além de haver escassa popu-
lação, parte substantiva dela era composta de estrangeiros escravizados,
trazidos desde o início da colonização para suprir a carência de mão de
obra barata. O resultado era que, sendo o número de habitantes já reduzi-
do, ainda mais o era o povo propriamente dito, ou seja, o conjunto de ci-
dadãos, partícipes potenciais da esfera pública. Pior ainda: tendo em vista
que a condição de cidadão livre acarretava quase sempre aquela de senhor
de escravos, o “povo brasileiro” estava na prática reduzido, para fins cí-
vicos, àquela porção da população que era proprietária de escravos. Era,
assim, uma comunidade, isto é, um “povo”, uma “nação”, formada quase
exclusivamente de senhores ou patrões, livres e brancos: era-se luso, ou
luso-brasileiro, por oposição tanto ao estrangeiro americano (o mexicano,
o chileno, etc.) quanto ao africano, que era o escravo. Por outro lado, a
disseminação do escravismo reduzia o potencial desagregador das dis-
putas políticas no âmbito das elites. Dado o interesse prioritário que elas
tinham na preservação da ordem, a expressão das divergências políticas
era circunscrita aos limites tacitamente reconhecidos por elas (“a nação”),
impedindo a contaminação da plebe e, por extensão, os escravos de que
quase todo livre (inclusive da plebe) era possuidor.

Em síntese, a sociedade brasileira era majoritariamente pobre e ig-


norante: a maioria esmagadora da população estava fora do alcance da
ação do Estado, seguindo regras costumeiras ou tradicionais conformadas
pela prática da escravidão como modo de trabalho. Do ponto de vista
sociocultural, apresentava ainda um viés aristocrático, porque mesmo os
pobres livres eram senhores de escravos, razão por que também tinham
razões para não exagerar suas diferenças em relação às classes superio-

10 – HESPANHA, Às Vésperas do Leviathan, op. cit., p. 66.

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e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado noBrasil imperial

res para além de certos limites. No que tange ao grau de crueza da tran-
sição do Antigo Regime para o governo constitucional e representativo
(o Estado liberal) na América Ibérica, comparadas às francesas, as elites
hispânicas eram menos modernas, e suas sociedades, mais tradicionais;
havia menor incidência de direitos “feudais”; o status nobiliárquico era
mais disseminado e precário, facilitando a mobilidade social; que não
houve forte mobilização popular autônoma, nem fenômenos equivalentes
ao do jacobinismo11. Por esses motivos, o grau de violência da transição
não teria sido tão feroz quanto na França, se circunscrevendo essencial-
mente aos extratos superiores da sociedade. Acrescente-se aqui, no caso
brasileiro, por se ter operado no âmbito de uma esfera pública bem mais
diminuta, homogênea e elitizada, o processo revolucionário foi ainda me-
nos radical. A disseminação da escravidão como forma compulsória de
trabalho unificava a elite em torno de fórmulas moderadas de transição.
Além disso, a presença, antes da revolução, da Corte portuguesa, no Rio
de Janeiro, habituou boa parte da aristocracia brasileira à ideia de uma au-
toridade central na América, que exercesse jurisdição sobre o conjunto do
território. Some-se a este acidente o fato de que, ao retornar à Europa, o
Rei deixou atrás de si, na qualidade de regente, o príncipe herdeiro do tro-
no – autoridade mais que legítima, portanto. Este estava rodeado de um
núcleo de Estado unitário, formado por tribunais, secretarias de Estado,
quartéis e estabelecimentos de ensino, administrados por uma burocracia
majoritariamente brasileira que, formada em Coimbra, tendo servido a
Dom João VI, permanecera em função, agora sob as ordens do príncipe.
Assim, não houve oportunidade para o surgimento de caudilhos que dis-
putassem com chances de êxito a chefia do Estado (como no Rio da Prata)
ou que patrocinassem campanhas separatistas (como na Grã-Colômbia).

A fórmula de passagem para a monarquia constitucional indepen-


dente na pessoa do príncipe legítimo também evitou a contaminação
da esfera religiosa pelas eventuais divergências políticas. À parte pela
introdução da liberdade de credo e seus consectários (bastante liberais,
se comparados aos demais países da região), o status eclesiástico pouco

11 – GUERRA, Modernidad y Independências, op. cit., pp. 54-55.

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sofreu com a revolução. A Igreja permaneceu vinculada à Coroa pelo pa-


droado e pelo beneplácito e, tendo aderido à mudança, não foi atingida
por qualquer reforma que tocasse seus bens (ao contrário do que ocorreu
no México, fato que desencadeou uma guerra civil). Por fim, dada a maior
fraqueza demográfica e bélica de Portugal, se comparada à Espanha,
também foi menos intensa no Brasil do que na maior parte dos antigos
vice-reinados e capitanias do Império espanhol a resistência da metrópole
à independência da antiga colônia. De onde se conclui que, se as revolu-
ções hispânicas foram mais moderadas comparadas à francesa, apesar de
não incruenta, a brasileira parece ter sido, em todo o caso, a mais mode-
rada de todas elas.

2. Receptores do vocabulário político moderno (I): a aristocracia


rural
Neste quadro, os segmentos sociais disponíveis para a formação de
uma esfera pública brasileira estavam basicamente restritos à elite letra-
da, geralmente branca, formada pelos senhores rurais, pelos altos comer-
ciantes ou pela nobreza burocrática.

O começo da colonização fornecera o primeiro e mais importante


desses segmentos: a aristocracia rural ou nobreza da terra. A ordem ju-
rídica da sociedade estamental classificava os indivíduos conforme per-
tencessem a um dos três estados ou ordens: o clero, nobreza ou povo, que
correspondiam às funções clássicas da sociedade medieval: sacerdotes
(oratores), guerreiros (bellatores), trabalhadores (laboratores). Em Por-
tugal, reconhecia-se a existência de duas espécies de nobreza: a natural
ou hereditária, e a política ou civil. A primeira incluía o monarca; os ti-
tulares (duques, condes, marqueses, viscondes, barões); os fidalgos de
solar (com senhorio de terras com jurisdições); os fidalgos matriculados
da casa real e seus descendentes (“fidalgos rasos”); e os descendentes
de nobres não matriculados que vivessem conforme as leis da nobreza,
ostentando largueza de vida e não exercendo ofícios mecânicos (carac-
terística que, ao revés, eram típicos do Terceiro Estado). Os fidalgos de
segundo linha pertenciam à chamada nobreza política ou civil, que não
era hereditária e tinha quatro fontes: a ciência, que englobava os douto-

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O Império da Moderação: agentes da recepção do pensamento político europeu
e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado no Brasil imperial

res, a quem os advogados eram equiparados; os médicos; os milicianos;


e o exercício de ofícios da alta burocracia, que envolvia os magistrados
representantes diretos da Coroa (presidentes e membros de tribunais, ma-
gistrados territoriais, como corregedores, provedores, ouvidores militares
e juízes de fora). Quanto aos juízes ordinários e cargos das câmaras mu-
nicipais (escrivães, vereadores, almotacés, meirinhos e procuradores), a
aquisição da nobreza dependia de costume do lugar12. Também faziam
parte dos corpos privilegiados os desembargadores, compreendendo-se
por esta denominação todos os altos funcionários da Corte; os militares e
os universitários. No Brasil do século dezesseis, diante da extensão des-
mesurada do território e da falta de riquezas visíveis a se explorar, a terra
não poderia ser defendida em que a costa estivesse previamente ocupa-
da com fortificações e cidades cujos habitantes se dedicassem ao comér-
cio e à agricultura. Esta era uma empreitada acima das possibilidades da
Coroa, que preferiu oferecê-la a particulares, detentores de cabedais que
com seus homens, navios e capitais investissem na conquista da América
em troca de porções de terra e promessas de honras e mercês. Uma vez
que a alta nobreza, titulada, estava já ocupada com o mais lucrativo ne-
gócio das Índias orientais, a Coroa acenou aos fidalgos de segunda linha
e aos plebeus enriquecidos para que entrassem no negócio. O principal
motor da imigração portuguesa foi assim a esperança de enriquecimento
e nobilitação, isto é, de ascender na sociedade estamental portuguesa13. O
colono que vinha se fixar no Brasil ambicionava aquilo que não poderia
ter na Europa, caso pertencesse somente à classe popular: “a riqueza e a
importância que podiam advir do fato de ser dono e explorador de vastas
extensões de terra” 14. Cerca de 4% da população livre da colônia (“do
povo”) fazia parte desse grupo social – a nobreza civil ou política – em
fins do Antigo Regime15.
12 – HESPANHA, Às Vésperas do Leviathan, op. cit., pp. 344-348.
13 – RICUPERO, Rodrigo, A Formação da Elite Colonial: Brasil, c. 1530-1630. São
Paulo, Alameda, 2009, p. 83.
14 – CANNABARRO, Alice. A Grande Propriedade Rural. In: HOLANDA, Sérgio Buar-
que (org.). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I: A Época Colonial. Volume
II: Administração, Economia, Sociedade. 6a. Edição. São Paulo, Editora Difel, 1985, p.
201.
15 – SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colo-
nial – 1550-1835. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras,

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Como na Ibéria, a nobreza se faria inicialmente, no Brasil, a partir


da conquista militar e da grande propriedade rural. Se não se tratava de
uma nobreza natural ou de sangue, como era a nobreza titulada do Rei-
no, a elite brasileira constituía, porém, aquela nobreza civil ou política,
que, segundo um jurista da época, “se consegue por graça e mercê dos
reis que a dão aos que a merecem” 16. Por isso, o principal caminho para
a nobilitação era pela apropriação, a pretexto do direito de conquista e
ocupação da terra dos cargos camarários municipais, pelos senhores de
terra. As câmaras eram instituições fundamentais na construção e pre-
servação do Império ultramarino, porque asseguravam uma continuidade
administrativa e política que a burocracia nomeada diretamente pela Co-
roa, geralmente itinerante, não poderia garantir17. Além disso, deveriam
ser ocupadas justamente pela nobreza do lugar – senão titulada, como no
Reino, pelo menos a “civil ou política” da colônia. As câmaras constituí-
am assim a principal via para o exercício da cidadania no Antigo Regime
lusitano, sendo responsáveis no nível local pelo governo da república18.
A aristocracia rural da colônia justificava assim seu monopólio hereditá-
rio dos cargos de vereança no dever que a Coroa teria de reconhecê-los
como a nobreza da terra, assentados que estavam “em sesmarias rece-
bidas, destinadas a engenhos ou fazendas de criatório, e no número de
escravos possuídos os esteios de seu prestígio social” 19. Para garantir
o reconhecimento de seu estatuto de nobreza política, em consonância
com as regras que a garantiam no Reino, a aristocracia rural brasileira
recorria ao gravame de morgadios, ao recebimento de foros de fidalguia,
de hábitos de ordens militares, e de postos de oficialidade. Do mesmo
modo, portava-se conforme a lei da nobreza, rodeada de escravos, criados
e dependentes, fazendo-se transportar de carruagem e evitando o trabalho
1988, p. 230. Idem, ibidem, p. 177.
16 – Apud SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser Nobre na Colônia. São Paulo, Unesp,
2005, p. 17.
17 – BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As Câmaras Ultramarinas e o Governo do
Império. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima
(org.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2001, p. 80
18 – Idem, ibidem, p. 204.
19 – SILVA, Ser Nobre na Colônia, op. cit., p. 131.

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O Império da Moderação: agentes da recepção do pensamento político europeu
e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado no Brasil imperial

manual20. É a essa permanência dos modelos sociais conhecidos no Reino


e de suas respectivas representações na colônia a que se refere Antônio
Manuel Hespanha21.

Essa quase feudalidade social e espacial que caracterizava a socie-


dade luso-americana apresentava, todavia, algumas diferenças não des-
prezíveis em relação àquela luso-europeia, pois, se a aristocracia rural
brasileira era nobiliárquica no etos político e civil, ela também tinha de
estar às voltas com práticas capitalistas na esfera econômica22. Ao con-
trário da aristocracia do Reino, baseada nas aldeias camponesas, a nobre-
za da terra brasileira não tinha isenção tributária e dependia de fatores
como a oscilação de preços do açúcar, do tabaco e do fumo nos merca-
dos internacionais, fornecimento de escravos pelo tráfico atlântico e de
crédito abundante. Essa natureza negocial era da lógica da colonização
portuguesa, que organizava os novos territórios ultramarinos de forma a
integrá-los à economia europeia como fornecedores de mercadorias de
alto valor, como algodão, fumo e açúcar23. Daí que, em função dos afaze-
res comerciais, a possibilidade de enriquecimento ou de empobrecimento
da nobreza da colônia ocorria numa velocidade muito maior do que no
Reino24. É certo que a rigidez daqueles valores estamentais acabava aqui
temperada pela sensação de liberdade, “onde as peias sociais eram mais
frouxas, a mobilidade mais fácil, a presença do Estado mais tênue” 25.
20 – ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas.
Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
2001;VILHENA, Luís dos Santos. Recopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasílicas.
Salvador, Imprensa Oficial, 1921, p. 187; SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas
Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte, Itatiaia, 1975, p. 38.
21 – HESPANHA, Antônio Manuel. Prefácio. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; AL-
MEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Conquistadores e
Negociantes: história de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI
a XVIII. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, pp. 13-15.
22 – OLIVEIRA VIANA, Introdução à História da Economia Pré-Capitalista do Brasil,
op. cit., p. 52.
23 – Idem, ibidem, p. 177.
24 – FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO,
Antonio Carlos Jucá de. Conquistadores e Negociantes: história de elites no Antigo Regi-
me nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro, Civilização Brasilei-
ra, 2007, p. 23.
25 – WEHLING; WEHLING. Formação do Brasil Colonial, op. cit., p. 223.

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Mas essa frouxidão, como se vê, era condição mesma para a reconsti-
tuição daquela mesma sociedade estamental nos trópicos – ainda que a
partir de materiais diferentes da metrópole. Ademais, no fim das contas,
a nota social predominante era a aristocrática, haja vista que o comércio e
a acumulação de capital não eram percebidos pelos comerciantes de gros-
so trato como um fim, mas como meio para que pudessem adquirir terras
e viver como grandes senhores, ou seja, tornarem-se nobres da terra26. O
modo capitalista com que a elite rural brasileira conduzia seus negócios
conciliava-se dessa maneira sem maiores atritos com seu etos aristocrá-
tico – mesmo porque o ganho com a exportação dos produtos primários
constituía o meio de sua obtenção e manutenção. Em função da concepção
corporativa de sociedade, por meio da qual a monarquia figurava apenas
como a cabeça de um sistema político no qual o poder político era exerci-
do de modo descentralizado por todos os que possuíssem poder social de
fato, a nobreza da terra predominou durante os primeiros dois séculos do
domínio português de modo inconstrastável na colônia. Ela monopolizou
os cargos de vereança, desafiou a autoridade de governadores, expulsou
os eventuais invasores, tornou inócuos os regramentos que impediam a
escravidão indígena. A vontade da Coroa só prevalecia por meio de um
demorado processo de negociação com a aristocracia local.

3. Receptores do vocabulário político moderno (II): os negociantes de


grosso trato e a burocracia luso-brasileira
Em meados do século XVIII, porém, algumas mudanças neste cená-
rio de absoluto predomínio político da nobreza da terra começaram a ser
esboçadas, em função da emergência de dois outros segmentos sociais
de elite: os negociantes de grosso trato e os burocratas do Estado mo-
nárquico. Envolvidos principalmente com o comércio transatlântico de
rota europeia e africana, os grandes negociantes começaram a despon-
tar na cena política das principais cidades brasileiras em torno de 1720.
Foi principalmente o boom econômico provocado pela mineração que
26 – FRAGOSO, João; e FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto: mercado
atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1840. Rio de
Janeiro, Sete Letras, 1998, p. 107.

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O Império da Moderação: agentes da recepção do pensamento político europeu
e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado no Brasil imperial

fez do Rio de Janeiro o principal porto da América Portuguesa e, como


tal, epicentro do abastecimento das Gerais. Esse novo segmento da elite
luso-brasileira dedicava-se a importar e exportar produtos como escra-
vos, tabaco, fumo, açúcar, couro e prata de diversos centros do Império,
Lisboa, Porto, Luanda, Costa da Mina e a Colônia do Sacramento27. Con-
comitantemente, os grandes negociantes começaram a disputar o espaço
de poder na colônia que até então havia sido monopolizado pela nobreza
da terra – em particular, os cargos nas câmaras de vereadores. A situação
era particularmente grave no Rio de Janeiro, que nas primeiras décadas
daquele século abandonara sua antiga base agrária para se tornar uma das
principais praças comerciais do oceano28. A aristocracia rural recusou o
quanto pôde acolher as pretensões dos comerciantes a passarem a integrar
o círculo de poder local. A nobreza da terra alegava que o meio de acesso
aos cargos de vereadores não era a riqueza, mas a antiguidade decorrente
do direito de conquista e as leis da nobreza, ou seja, que reservavam os
cargos honrosos da República aos aristocratas da terra ou, pelo menos,
àqueles que os merecessem, sem jamais terem exercido ofícios mecâni-
cos. Este não era, evidentemente, o caso dos negociantes, que nem por
isso abriam mão de sua pretensão de também se nobilitarem, ascendendo
à condição de nobreza política. Além do mais, a elite rural os considerava
arrivistas, condição agravada pelo fato de serem oriundos do Reino e,
portanto, estranhos à terra. Diante das resistências da nobreza da terra,
os negociantes de grosso trato apelaram para Lisboa para vencerem as
resistências opostas pela nobreza da terra e, de um modo geral, foram
exitosos em seus pleitos.

27 – SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Os Homens de Negócio do Rio de Janeiro e sua
Atuação nos Quadros do Império Português (1701-1750). In: FRAGOSO, João; BICA-
LHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). O Antigo Regime nos Trópi-
cos: a dinâmica imperial portuguesa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, p. 80
28 – FRAGOSO, João. Fidalgos e Parentes de Pretos: notas sobre a nobreza principal da
terra no Rio de Janeiro. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Car-
valho de; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Conquistadores e Negociantes: história de
elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2007, p.38.

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O apoio da Coroa tinha razões de ser. Embora dependente da eli-


te rural constituída no Brasil depois da conquista havia duzentos anos,
incentivando-a a desbravar e colonizar a terra à sua custa, em troca de
mercês e graças, a monarquia não tinha o menor interesse em emancipar a
nobreza da terra para além de mera nobreza civil ou política. Na verdade,
depois de muito condescender e transigir com as elites rurais da colônia,
a Coroa pôs em curso no século XVIII um processo de modernização das
estruturas políticas, que impunha a superação da concepção policêntrica
do poder, típica da concepção corporativa de sociedade, superação esta
que pressupunha a racionalização e a profissionalização do Estado em
torno do Rei e de sua burocracia. Seguindo a política de conter os ba-
rões e evitar a criação de novos para acelerar o processo de centralização
do seu poder, a Coroa nunca reconheceu a aspiração da elite brasileira a
tornar-se uma nobreza de sangue (o que não impediu de intitular-se no-
breza de origem imemorial e defender seus supostos direitos estamentais)
29
. Por conseguinte, a monarquia tendia a ver a nobreza da terra, assim
como os comerciantes de grosso trato, como uma elite do Terceiro Es-
tado; estrato social intermediário entre a nobreza e o povo (o “estado
do meio”), que era “nobre”, mas não era “fidalgo” – tanto em Portugal
quanto no Brasil30. Este processo atingiria um patamar superior de cons-
ciência e aceleração com a chegada ao poder do Marquês de Pombal, que
desencadearia uma série de reformas destinadas a apressar o processo de
concentração monárquica e de consequente consolidação do Estado por-
tuguês. Uma das principais diretrizes da política pombalina consistiu em
golpear o poder da antiga nobreza titulada, formada pelos grandes pro-
prietários de terras, principal defensora da tradicional concepção corpora-
tiva de monarquia. Enquanto lhe restringia os foros, isenções e poderios,
Pombal favorecia a emergência de uma nova aristocracia ou “nobreza”
ligada ao mérito e não ao sangue, formada pelos grandes negociantes e
pelos burocratas que passavam, assim, a gozar da proteção da Coroa31.
29 – Idem, ibidem, p. 41.
30 – MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder Senhorial, Estatuto Nobiliárquico e Aristocra-
cia. In: MATTOSO, José (org.). História de Portugal. Quarto volume: O Antigo Regime.
Lisboa, Editorial Estampa, 1998.
31 – MAXWELL, Kenneth. Marquês do Pombal: paradoxo do Iluminismo. 'Tradução de

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e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado no Brasil imperial

Da nova política racionalizadora e centralizadora surgiram a Escola de


Comércio, a criação do Erário Régio, a criação do Colégio dos Nobres e,
por fim, a reforma da Universidade de Coimbra, cujo objetivo manifesto
era o de fornecer à administração um tipo igualmente novo de servidores
públicos – ilustrados, disciplinados e dedicados à Coroa.

Reforçou-se deste modo, em fins do século dezoito, o perfil de um


burocrata já delineado no período anterior, considerado como integrante
da nobreza, representante da vontade e do interesse do Coroa, e cujos
interesses identificavam-se com os dela, em qualquer parte do Império32.
Essa burocracia era visceralmente baseada na magistratura, que se tornou
a principal fonte de recrutamento e formação do corpo governativo ul-
tramarino português. A “relação simbiótica” entre Coroa e magistratura
tornava esta última a mais importante defensora da autoridade monárqui-
ca por meio da aplicação da “justiça do rei” 33. No Brasil, como alhures,
governadores, secretários, juízes, ouvidores, desembargadores, militares
de alta patente, técnicos fazendários e autoridades eclesiásticas formavam
a alta burocracia – muitos deles brasileiros de origem. Até meados do sé-
culo dezoito, os cargos administrativos eram encarados como prebendas
régias; no entanto, coincidindo com a ascensão de Pombal ao poder, eles
começaram a adquirir um caráter cada vez mais profissional e especiali-
zado, necessário à execução do programa pombalino de recuperação eco-
nômica do Império. A crescente preocupação com a melhor composição
das secretarias e escolha dos funcionários se refletiu na organização buro-
crática, cujos cargos paulatinamente deixam de ser encarados como hon-
rarias, passando a ser remunerados por vencimentos34. Do mesmo modo,
o corpo de funcionários se expandiu, se complexificou e, refletindo as

Antônio de Pádua Danesi. 2ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, p. 79. WEHLING;
WEHLING. Formação do Brasil Colonial, op. cit., p. 227.
32 – HESPANHA, Às Vésperas do Leviathan, op. cit., p. 521.
33 – GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Poder Político e Administração na Formação
do Complexo Atlântico Português. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda;
GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, p. 305.
34 – Idem, ibidem, p. 310. WEHLING; WEHLING. Formação do Brasil Colonial, op.
cit., pp. 227 e 301.

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Christian Edward Cyril Lynch

diretrizes pombalinas, tendeu a exercer maior controle sobre as relações


sociais. O crescimento dos recursos de poder nas mãos do Estado se deu
principalmente pela criação dos juízes de fora nas câmaras municipais,
respondendo à necessidade sentida pela Coroa de intervir de modo mais
efetivo na administração local, mormente em matéria tributária. A criação
de um novo Tribunal da Relação no Rio de Janeiro, em 1750, simbolizou
o fortalecimento do poder do Estado monárquico no coração daquela que
se tornava o empório comercial mais importante da América Portugue-
sa e sua futura capital35. Esse Estado fortalecido passou a trombar com
mais frequência com os interesses de uma nobreza da terra ciosa de suas
prerrogativas e habituada ao autogoverno que exercia na colônia desde os
tempos da conquista.

Entretanto, é preciso não esquecer a relatividade da força desse novo


estrato sociopolítico na colônia: o burocrático. A despeito de seu prestígio
e força, a burocracia monárquica sofria de crônica escassez de recursos,
agravada pela imensidão do país a gerir. Por isso ela estava basicamente
restrita aos grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro, Salvador,
Vila Rica e Recife, possuindo escasso controle sobre o imenso interior
– os sertões -, sendo igualmente incapaz de acompanhar a expansão da
fronteira agrícola, por meio da qual a aristocracia rural escravista se re-
produzia. Assim, a despeito dos eventuais enclaves comerciais e burocrá-
ticos que se constituíam no país, a aristocracia rural era e continuaria a ser
a força hegemônica na colônia.

4. A plebe e a escravidão
E o restante da população da América Portuguesa, que compunha
a plebe? As diferenças de estrutura social também eram bastante signi-
ficativas no campo, onde se achava noventa por cento da população. Na
Europa ocidental, o campesinato se dividia em livres e servis, sendo que
35 – SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Famílias e Negócios: a formação da comunidade
mercantil carioca na primeira metade dos setecentos. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro;
ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Conquistado-
res e Negociantes: história de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos
XVI a XVIII. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 230.

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O Império da Moderação: agentes da recepção do pensamento político europeu
e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado noBrasil imperial

muitos dos primeiros dispunham de terras próprias ou comunais, agrupan-


do-se em comunidades agrárias como os pueblos espanhóis e as villages
francesas36. Quanto aos servos, embora a servidão rural se assemelhasse
à escravidão, ela era menos nociva ao trabalhador do campo. Posto que o
servo estivesse adstrito à gleba, cultivando o solo sob a autoridade de um
senhor, o pacto feudal impunha deveres recíprocos, ainda que desiguais.
Ademais, a servidão persistia de modo muito atenuado desde que come-
çara a erodir, no século treze37. No Brasil, porém, a supremacia da escra-
vidão e a ausência de uma normatização feudal sobre a terra prejudicaram
a formação de um campesinato livre e impediam a conversão do escra-
vo em servo. Sem terras comunais, sem posses e expulsos pelos grandes
proprietários rurais, os camponeses brasileiros a eles se submetiam para
conseguir uma plantação de subsistência38. Ademais, na medida em que o
trabalho manual era exercido preferencialmente pelos escravos, os pobres
livres viviam sem fixidez, errantes, sobrevivendo nas rebarbas do sistema
escravista como agregados, vendeiros ou capangas das fazendas39.

No Brasil, tendo em vista que o sistema escravista se generaliza-


ra a ponto de ocupar o cerne de sua vida social, eram os escravos que
constituíam a mão de obra preferida e predominante no campo. Embora
compusesse uma enorme parcela dos habitantes – em torno de 30% da
população, podendo alcançar, todavia, cerca de 70%, como na Bahia40 –,
os escravos não eram vassalos da mesma comunidade que trabalhavam
num regime de dependência; eram mercadorias; “máquinas de trabalho”
estrangeiras. Os poucos direitos que a Coroa lhes reconhecia eram inefe-
tivos, porque decretados sobre o vácuo de costumes sociais dos sertões da
colônia41. Os escravos eram queimados ou chamuscados com cera quente,
36 – OLIVEIRA VIANA, Francisco José de. Instituições Políticas Brasileiras. Volume
I. Rio de Janeiro, Editora Record, 1974, p. 89. LADURIE, Emmanuel Le Roy. L’État
Royal : la monarchie de la Rennaissance: 1460-1610. Paris, Hachette, 1997, p. 28.
37 – GALLET, Jean. Servitude. BÉLY, Lucien (dir.). Dictionnaire de l'Ancién Régime.
Paris, PUF, 1996, pp. 1160-1163.
38 – FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. 4ª.
Edição. São Paulo, UNESP, p. 65.
39 – Idem, ibidem pp. 112-113.
40 – SCHWARTZ, Segredos Internos, op. cit., p. 289.
41 – Idem, ibidem p. 124.

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marcados na face ou no peito, torturados com ferros em brasa, decepados


orelhas ou nariz, abusados sexualmente42. Nas cidades, o cenário não era
melhor. Na Europa, a plebe urbana era formada pelos comerciantes e ar-
tesãos, organizados em guildas e corporações; e, no campo, pelos servos
e camponeses livres. No começo da colonização, a tendência foi a repro-
dução daquele padrão; entretanto, a ruralização da sociedade com o boom
da cana durante no século dezessete logo deslocou a maioria dos artífices
para os engenhos de açúcar. Neles, os artesãos se isolaram uns dos outros
enquanto categoria profissional e se tornaram assalariados do senhor43.
Os trabalhadores livres que permaneceram nas cidades continuaram a
sofrer a concorrência da multidão de escravos que se dedicava às mes-
mas atividades, depreciando o valor dos salários, rebaixando seu status
e rebaixando sua importância social44. O resultado foi a estigmatização
do trabalho manual entre os livres, que preferiam dedicar-se a atividades
desvinculadas da escravidão. Era o que explicava em 1798 um contempo-
râneo: como os negros cuidavam de “todas as obras servis e mecânicas,
poucos são os mulatos e raros brancos que nelas se querem empregar,
sem excetuar aqueles mesmos indigentes que em Portugal nunca passa-
ram de criados de servir, de moços de tábua e cavadores de enxada” 45.
O resultado era que os trabalhadores livres – isto é, o povo propriamente
dito – viviam em condições miseráveis46.

Na medida em que discursos e conceitos não atravessam as frontei-


ras ou oceanos juntamente com seus contextos de origem, os atores que
os recepcionam necessariamente os reinterpretam à luz da sua experiên-
cia, de sua posição social e da conformação cultural de suas sociedades.
A pergunta que daí se extrai, portanto, é: quais eram os segmentos sociais
que, no Brasil de 1820, poderiam se apropriar do vocabulário político
da modernidade, oriundo da experiência francesa, mediado, por sua vez,
pelas experiências revolucionárias espanhola e portuguesa?
42 – Idem, ibidem, pp. 289 e 123.
43 – MELLO, Evaldo Cabral de. Uma Nova Lusitânia. In: MOTA, Carlos Guilherme
(org.). Viagem Incompleta: a experiência brasileira. Volume I – Formação: Histórias. 2ª.
Edição. São Paulo, Editora SENAC, 2000, p. 83.
44 – SCHWARTZ, Segredos Internos, op. cit., p. 264.
45 – VILHENA, Recopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasílicas, op. cit., p. 140.
46 – Idem, ibidem, p. 927

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O Império da Moderação: agentes da recepção do pensamento político europeu
e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado noBrasil imperial

5. A aristocracia rural e a burocracia monárquica como principais


setores receptores do liberalismo. Fragilidade dos radicais urbanos
No caso específico do Brasil de 1820, os únicos segmentos sociais
em condição de participar do debate político nacional em posição de pri-
meira grandeza eram a aristocracia rural, o alto comércio urbano e sua
tradicional aliada, a burocracia, com seu núcleo duro de magistrados.
À primeira calharia favorecer a ideologia liberal, com seu discurso de
emancipação da sociedade e do interesse particular, da descentralização
política e administrativa, visivelmente oligárquica, contra a ingerência
do Estado. Quanto à burocracia, faria um amálgama de despotismo ou
reformismo ilustrado com o constitucionalismo conservador, favorecen-
do a hegemonia de um liberalismo mitigado em proveito da Coroa e da
centralização política. Quanto aos grupos urbanos radicais, compostos de
pequenos comerciantes, profissionais liberais e empregados, em razão de
seu pouco peso no conjunto da sociedade de então, apenas exerceriam
influência nos períodos de conflito agudo entre os setores hegemônicos,
como aqueles da independência, do começo da Regência ou do final do
Império. Essa debilidade do radicalismo se explica em parte pelo caráter
maciçamente agrário da sociedade brasileira e pela absoluta inexpressão
das cidades até a década de 1870 – o oposto do pequeno Portugal urbani-
zado e comerciante dos oitocentos que, por isso mesmo, viveu quase todo
o século sujeito aos humores dos radicais lisboetas47. Por isso mesmo, a
força dos advogados, médicos, jornalistas, poetas ou professores, ou seja,
da “sociedade civil”, ou “opinião pública” propriamente dita, por mais
barulho que tenha feito, precisa ser relativizada. As ideias progressistas
brandidas por esses setores só adquiriram importância quando suas críti-
cas serviam de cortina de fumaça aos propósitos oligárquicos da lavoura.
Na medida em que a lavoura se valia do mesmíssimo discurso liberal
“moderno” para combater o Estado nacional, as campanhas políticas pro-
movidas pelos profissionais liberais urbanos em prol da descentralização,
do parlamentarismo ou da república serviram principalmente para reves-
tir as pretensões oligárquicas da lavoura com um verniz de “aspiração

47 – BONIFÁCIO, Maria de Fátima. O Século XIX Português. 3ª. edição. Lisboa, ICS,
2007.

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popular”, “opinião pública” ou “vontade nacional”. Por outro lado, as


pretensões abolicionistas dos setores urbanos só adquiriram verdadeiro
eco na arena política quando a Coroa os encampava – aspecto que, por
desairoso, sempre fizeram questão de negar os mais intransigentes repre-
sentantes da “opinião pública”, como Rui Barbosa48.

Uma vez que a classe trabalhadora estava identificada com os escra-


vos e os libertos, a própria compreensão do conceito de povo no Brasil se
tornava extraordinariamente complexa, quando comparada àquela da Eu-
ropa ocidental. Era o fato que levava os contemporâneos a crer que, aqui,
ou o povo não existia, ou que sua importância era proporcionalmente
muito inferior a que ele detinha no contexto europeu49. De fato, por conta
da peculiar formação social do mercado de trabalho no Brasil, o conceito
de ‘povo’, enquanto Terceiro Estado na sociedade estamental e na base de
toda a sociedade, não chegou a se estabelecer. Embora as referências do
período colonial falassem de ‘pessoas de menor condição’, ‘moradores’,
‘habitantes’ e ‘povoadores’, a ideia de um ‘povo’, orgânica e constitu-
cionalmente vinculado ao corpo da política e ao rei, estava ausente em
larga medida50. Por isso mesmo, este conceito tenderia a ser identificado
com outro segmento social: a grande propriedade rural, ou seja, a velha
“nobreza da terra”. Neste ponto, se torna necessário esmiuçar a lógica
do liberalismo ou do democratismo da aristocracia rural, indispensável
para compreender mesmo por que os setores urbanos ditos “radicais”
se frustrariam em suas aspirações “democráticas” tanto em 1831 ou em
1889, perdendo a direção dos acontecimentos para os moderados e para
os conservadores. É que, em ambas as ocasiões, eles e suas ideologias de-
mocráticas serviram simplesmente de escada para que a oligarquia rural
legitimasse e realizasse o seu ideal senhorial de democracia.
48 – Idem. A Utopia Democrática: Rui Barbosa entre o Império e a República. In: Marta
de Senna (org.). Rui Barbosa em Perspectiva: seleção de textos fundamentais. Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2007.
49 – Era o que notava um ministro de Estado do final do período joanino: “No Brasil,
esta classe (o povo) é proporcionalmente muito menor do que na Europa, porque retirada
a classe dos escravos e libertos, quase todo o resto se compõe de homens que receberam
aquele grau de educação, que nos outros países, compõem certa classe acima do que se
chama povo” (Apud NEVES, Corcundas e Constitucionais, op. cit., p. 103).
50 – SCHWARTZ, Segredos Internos, op. cit., pp. 112/120.

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O Império da Moderação: agentes da recepção do pensamento político europeu
e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado noBrasil imperial

6. A aristocracia rural enquanto “povo” retórico: um ideal senhorial


de democracia
Na medida em que um terço da população era composto de negros
escravos, e outros dois quintos, de mestiços, a maior parte dos quais alija-
dos e controlados pela aristocracia rural, era esta última que, na qualidade
da nobreza da terra que conquistara o país, julgava constituir o povo da
América Portuguesa51. Como tal, amparadas no ideário liberal constitu-
cionalista, levantar-se-iam contra a Coroa sempre que esta, por intermé-
dio, afrontasse o seu poder e os interesses, qualificando-a de despótica, e
sua burocracia, de “nobreza”, “aristocracia”. Nesse ponto, é preciso en-
tender as razões que levaram as elites rurais, na condição social aparen-
temente incompatível de “nobreza da terra”, a sustentarem, na qualidade
de “povo” ou “nação”, o constitucionalismo liberal alardeado pela Revo-
lução e, por extensão, a acusarem a burocracia de fumos nobiliárquicos
(quando está claro que era ela mesma, a lavoura, a nobreza brasileira). A
explicação passa pela recordação do bifrontismo da aristocracia rural bra-
sileira, que participava ao mesmo de tempo de algumas características da
nobreza, e outras, da burguesia. A face da lavoura voltada para o Brasil e
suas terras tinha natureza nobiliárquica ou estamental de fato, quando não
de direito, ao passo que a face voltada para fora a levava a identificar-se
com as demandas da sociedade burguesa emergente na Europa, que por
conta da natureza empresarial de suas atividades se opunha ao interven-
cionismo político e econômico. Esse aparente paradoxo entre a condição
aristocrática da elite agrária e sua identificação com a ideologia liberal da
burguesia europeia se explicita no manejo por que ela manipulou durante
todo o século dezenove, em suas manifestações políticas, os dois sentidos
admitidos em latim do conceito de povo. O conceito era mobilizado pela
aristocracia rural com o sentido de populus quando se tratava de concitar
a Coroa a se comportar conforme os interesses ou aspirações da Nação,
ou seja, os seus.

51 – Idem, ibidem, pp. 112/120; VILHENA, Recopilação de Notícias Soteropolitanas e


Brasílicas, op. cit., p. 927.

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Assim, quando se dirigiam ao Estado imperial e seus funcionários


para pressioná-los, os grandes proprietários se comportavam como socie-
dade, como opinião pública, como nação, ao exemplo da burguesia euro-
peia. Eis por que o riquíssimo latifundiário e senador do Império Nicolau
dos Campos Vergueiro se definia no Parlamento como um “cidadão raso”
diante da “aristocracia fantástica” que, no seu entender, era composta pe-
los funcionários do Estado que dispunham de influência política52. Nesses
casos, identificado consigo mesmo, o povo senhorial, quando rebelado
contra o governo nacional, era qualificado por ele mesmo como “ilustra-
do” “bravo” e “virtuoso” 53, reunindo o que a “flor da sociedade brasilei-
ra” possuía “de mais honroso e eminente em ilustração, em moralidade e
riqueza” 54. Entretanto, quando os fazendeiros e senhores de engenho se
dirigiam, não à Coroa e sua burocracia, mas aos segmentos subalternos da
sociedade, eles abandonavam a autoimagem de sociedade, burguesia ou
classe média europeia para reassumirem a condição aristocrática ou es-
tamental de nobreza da terra, de famílias tradicionais, descendentes dos
primeiros ocupantes do país, etc. A lavoura era “a classe mais nobre do
país, onde está a base de seu engrandecimento futuro” 55; “aristocracia da
inteligência” sobre a qual repousava “senão toda a riqueza, pelo menos a
única segurança deste país”56. Nesse caso, o conceito de povo era maneja-
do no sentido de plebs, ou seja, de escória. As revoltas campesinas contra
o monopólio agrário da aristocracia rural – o populus – eram descritas
pelo mesmo cronista anterior como o “desencadeamento das paixões, dos
instintos grosseiros da escória da população; (...) a luta da barbaridade
contra os princípios regulares, as conveniências e as necessidades da ci-

52 – CONTIER, Arnaldo Daraya. Imprensa e Ideologia em São Paulo (1822-1842): ma-


tizes do vocabulário político e social. Petrópolis, Editora Vozes, 1979, p. 175.
53 – Apud PESSOA, Reynaldo Carneiro (org.). A Idéia Republicana no Brasil Através de
Documentos (textos para seminários). São Paulo, Editora Alfa Ômega, 1973, pp. 18/20.
54 – INHOMIRIM, Francisco Sales Torres Homem, Visconde de (1956) [1848]. O Libe-
lo do Povo. In: MAGALHÃES JR., Raimundo. Três Panfletários do Segundo Reinado:
Francisco Sales Torres Homem e o “Libelo do Povo”; Justiniano José da Rocha e “Ação,
Reação e Transação”; Antônio Ferreira Viana e a “Conferência dos Divinos”. Edição
ilustrada. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1952, p. 82.
55 – BRASIL, Atas do Congresso Agrícola de 1880, p. 136.
56 – Idem, ibidem, p. 220.

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O Império da Moderação: agentes da recepção do pensamento político europeu
e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado no Brasil imperial

vilização” 57. Em 1831, em plena afirmação do ideário liberal, o deputado


moderado Evaristo da Veiga explicava o conceito de povo em termos
pouco divergentes em seu jornal A Aurora Fluminense:

“Quando dizemos povo, claro está que não falamos da massa igno-
rante, ou destituída de interesse na ordem social, que os demagogos
adulam e de que fazem o objeto de suas especulações; mas sim dos
homens pensantes, honestos e que nada tendo a ganhar na anarquia
olham para qualquer aparência de menos prezo que se note a respeito
da Nação, do seu decoro e prosperidade.” 58

Embora as diversas insurreições da aristocracia rural contra o go-


verno imperial, no século dezenove, tenham sido vazadas no discurso
liberal-democrático para lhes dar ares de revolução, do ponto de vista da
composição social de suas lideranças, elas se assemelhavam ante às fron-
das francesas do século dezessete59. Nada disso impediria que os senhores
feudais, os aristocratas pequenos e grandes do país, adotassem frequen-
temente no século dezenove o discurso do liberalismo radical para com-
baterem a expansão do Estado Imperial, fornecendo às legislaturas até
mesmo deputados exaltados ou revolucionários, conforme o contexto. É
que, para a aristocracia rural liberal recém-emancipada, filha direta da ve-
lha nobreza da terra, a virtude pública da liberdade e da cidadania surgia
da opressão por ela exercida no âmbito privado contra a plebe, livre ou
escrava. Era o que defendia Diogo Antônio Feijó (1784-1846), fazendeiro
de tendência republicana que, Regente do Império, atribuía o “sentimen-
to de igualdade profundamente arraigado no coração dos brasileiros” ao
fato de que a escravidão lhes incutira no espírito, enquanto senhores, um
“caráter já de independência e soberania que o observador descobre no
homem livre, seja qual for o seu estado, profissão ou fortuna”. E concluía:
“Quando ele percebe desprezo ou ultraje da parte de um risco ou podero-
57 – Idem, ibidem, p. 82.
58 – BASILE, Marcello Otávio. Ezequiel Corrêa dos Santos: um jacobino na Corte Im-
perial. Rio de Janeiro, Editora da FGV, 2001, p. 56.
59 – Caso típico foi a Revolução Pernambucana de 1817, que contou com a participação
ativa da nobreza rural do centro e do norte da capitania (MELLO, Evaldo Cabral de. A
Outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo, Editora
34, 2004, p. 178).

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Christian Edward Cyril Lynch

so desenvolve-se imediatamente o sentimento de igualdade; e se ele não


profere, concebe ao menos no momento este grande argumento: Não sou
seu escravo” 60. Também presente no republicanismo norte-americano,
este era um pathos de liberdade que reivindicava para o senhor o direito
de ser juiz de seus escravos ou dependentes, sem interferências externas
oriundas do controle do Estado61.

O liberalismo ou a democracia a que eventualmente a aristocracia


rural brasileira aspiraria em seu aparente progressismo contra as arbi-
trariedades do Estado imperial deve ser considerado, assim, como uma
típica democracia para o povo dos senhores62. Tendo em vista a neces-
sidade que os senhores de terras – estes aristocratas cidadãos – tinham
de manter sob seu controle a plebe e os escravos, a maioria deles condi-
cionou sua adesão à ordem política nacional a parte que a monarquia lhe
concederia na direção do Estado e do compromisso por ela assumido de
não mexer no regime latifundiário escravista; isto é, o tráfico negreiro, o
escravismo, o monopólio dos cargos políticos locais e seu domínio pes-
soal sobre os habitantes livres de suas regiões. Isto significava, na prática,
refrear a expansão do Estado nacional e garantir a circunscrição do ideá-
rio de liberdade e igualdade política ao espaço senhorial, equivalente ao
da antiga “nobreza civil ou política” do Antigo Regime – projeto político
que, em seus resultados práticos, pouco diferia, aliás, daquele da nobreza
da terra quando, no século anterior, defendia a concepção corporativa de
sociedade contra os avanços dos negociantes e do Estado pombalino. Não
por acaso, em uma de suas passagens pelo Rio de Janeiro oitocentista,
Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) relatava grande dificuldade de
aí encontrar o cidadão brasileiro meio à multidão de escravos e estran-
geiros:
“No Rio de Janeiro, procurei em vão o brasileiro, sem poder encontrá-
lo senão por raras amostras que me fizeram desconfiar que deve existir

60 – FEIJÓ, Diogo Antônio. Diogo Antônio Feijó. Organização, introdução e notas de


Jorge Caldeira. São Paulo, Editora 34, 1999, p. 136.
61 – LOSURDO, Domenico. Contra-História do Liberalismo. Tradução de Giovanni Se-
meraro. Aparecida SP, Ideias e Letras, 2006, p. 138.
62 – Idem, ibidem, p. 137.

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O Império da Moderação: agentes da recepção do pensamento político europeu
e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado noBrasil imperial

em alguma parte. O brasileiro de origem é nobre, embora às vezes


mulato, condecorado com cruzes de diamantes, ministro, aduaneiro,
empregado ou fazendeiro, em cuja função tem a ver com o português
(...). É o sonho dourado do moderno Império, que se envaidece de ter
como Roma sete colinas na capital, escravos que lavram a terra como
antigamente e a missão de dominar a América com suas esquadras,
sua diplomacia e seu comércio”63.

Conclusão
Pelas razões acima aduzidas, não haveria espaço no Brasil oitocen-
tista para ideologias reacionárias, à direita, nem demasiado igualitárias,
à esquerda. Se sua sociedade não conhecera uma aristocracia titulada de
origem feudal juridicamente privilegiada, como na Europa, também não
possuía complexidade social, escassamente urbanizada, escravista e ma-
ciçamente analfabeta como era. Estava apenas ao alcance da elite letrada
recepcionar conceitos ou linguagens políticas ou formulá-los, e pela sua
posição dominante, ela não poderia ter inclinação a promover nenhum
tipo de radicalismo, pelo menos em períodos “normais”. Ele só prosperou
no Brasil oitocentista em épocas de crise oligárquica, ou seja, de desacor-
do das elites agrárias e burocráticas a respeito do formato institucional.
Assim, pipocando entre 1821 e 1824 e 1831 e 1834, quando aquele desa-
cordo foi saliente, o radicalismo insurrecional, tão intenso no Portugal oi-
tocentista, desapareceu no final daquela década do cenário político brasi-
leiro. Por isso, a importância concedida nos últimos vinte anos ao estudo
do radicalismo, entendido em sentido amplo, tem sido desproporcional
ao seu peso numa perspectiva de longa duração. Refiro-me ao equívoco
de alguns acadêmicos que, entusiasmados (e justamente) pelos aportes da
história social ou cultural, vêm deixando de fora de suas considerações
as estruturas empíricas da sociedade brasileira da época, como se as re-
lações de força se resolvessem exclusivamente no campo da persuasão
ideológica per se. Essa ilusão de ótica, que confere proporção exagerada
aos movimentos intelectuais urbanos da época, induz o leitor a crer que

63 – SARMIENTO, Domingo Faustino. Política. Organização de Leon Pomer. Tradução


de Vicente Cechelero. São Paulo, Ática, 1983, pp. 108-109.

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Christian Edward Cyril Lynch

a abdicação de Pedro I resultou da força dos artigos de Evaristo da Veiga


na Aurora Fluminense; ou que a monarquia caiu por causa das charges de
Ângelo Agostini na Revista Ilustrada, ou que teriam sido os editoriais de
outros jornalistas, republicanos, positivistas ou evolucionistas, que teriam
minado junto ao “povo brasileiro” a confiança no regime monárquico. Tais
autores deveriam se indagar por que, numa perspectiva mais alongada, as
críticas desses mesmíssimos setores às oligarquias rurais, depois de 1889,
levariam mais quarenta anos até conseguir derrubá-las efetivamente do
poder. Também deveriam se perguntar por que as outras gerações de 1870
foram incapazes de pôr abaixo a monarquia em Portugal, na Espanha ou
na Itália. Pior: ao colar na monarquia a etiqueta de “regime aristocrático”,
eles reconhecem implicitamente o caráter “democrático” da Primeira Re-
pública, com de cujas eleições fraudadas participavam menos de 3% da
população brasileira. Confundida a realidade com a retórica democrática
das elites, isto é, o da “democracia para o povo de senhores” (de que a
Primeira República foi a materialização), o processo de construção da
democracia brasileira se torna incompreensível. Essas considerações não
devem obstar, naturalmente, o estudo particularizado dos representantes
desse segmento social urbano e de suas manifestações; é a sua impor-
tância na correlação de forças é que precisa ser sempre adequadamente
mensurada, no quadro geral da política oitocentista brasileira.

Tendo em vista, pois, o escasso peso das classes urbanas devida à


falta de complexidade da sociedade oitocentista brasileira, rural e escra-
vista, não surpreende que sua cena política seja dominada normalmente
por um liberalismo moderado, no interior do qual se moveram, durante o
Império, os grupos políticos vinculados à aristocracia rural e à burocra-
cia cortesã, quase toda extraída da magistratura. Liberalismo que, diante
da modernidade europeia, se relevava muito mais progressista quando se
tratava de definir o desenho institucional, mas cuja prática efetiva, pos-
terior, não podia deixar de ser mais seletiva e, portanto, conservadora. A
necessidade sentida pelas elites brasileiras de acompanhar o andamento
da modernidade europeia só podia ser satisfeita formalmente, ou seja,
pela adoção de instituições político-jurídicas, quase sempre mais progres-

336 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):311-340, jul./set. 2011


O Império da Moderação: agentes da recepção do pensamento político europeu
e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado noBrasil imperial

sistas que as dos países centrais. A prática delas, porém, pressupunha uma
sociedade muito diversa da existente, muito mais urbanizada e educada.
O resultado desse hiato era um funcionamento das instituições adaptado
à realidade social do país, que passava forçosamente pelo controle das
eleições e pela restrição das garantias constitucionais ao âmbito das eli-
tes. Por essa razão mesmo, boa parte do debate da época se desenvolveu
em torno desse problema: como praticar um governo representativo num
país sem povo politicamente presente, onde apenas as elites, agrárias ou
burocráticas, tinham a capacidade de se fazer representar.

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Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação


em maio /2011.

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Teixeira de Freitas: Um jurisconsulto “traidor” na modernização jurídica brasileira

Teixeira de Freitas: Um jurisconsulto “traidor”


na modernização jurídica brasileira1
TEIXEIRA DE FREITAS, a “treacherous” legal
counselor in the juridical modernization of Brazil
Ricardo Marcelo Fonseca 2

Resumo: Abstract:
Partindo da premissa no sentido de que a histó- Based on the premise that the history of juridi-
ria dos conceitos jurídicos (ou a história do pen- cal concepts (or the history of juridical think-
samento jurídico) tem enormes potencialidades ing) has great potential of analysis, this paper
de análise, este trabalho retoma a produção do reviews the intellectual production of Brazilian
jurista brasileiro Augusto Teixeira de Freitas – jurist, Augusto Teixeira de Freitas – focusing on
e mais particularmente sua “Consolidação das his “Consolidation of Civil Laws” of 1857 – to
Leis Civis”, de 1857 – para enquadrá-lo como acknowledge him as a typical representative of
típico representante da cultura jurídica do sé- the juridical culture of Nineteenth century Bra-
culo XIX brasileiro: numa tensão e ecletismo zil: a tense and eclectic period still undefined
próprios de um período que ainda oscila en- between pre-modern and modern characteris-
tre características pré-modernas e modernas. tics. At the end, the paper also shows how the
Mostra-se, ao final, como o jurista brasileiro, Brazilian jurist, in the aforementioned work,
no trabalho referido, inclusive teve um papel de also played the role of “inventor” as he inter-
“inventor” na interpretação e compilação que preted and compiled the period’s civil legisla-
fez da legislação civil do período. tion.
Palavras-chave: Teixeira de Freitas; Brasil; Keywords: Teixeira de Freitas – Brazil – juridi-
pensamento jurídico; século XIX cal thinkings – Nineteenth century.

1. A história do pensamento jurídico: uma agenda de pesquisas


Por muito tempo, a história do pensamento jurídico tomou um lugar
bastante secundário se comparada a uma análise estritamente institucio-
nal. Estado, Poder Judiciário, parlamento, a escravidão, etc., mereceram
estudos atenciosos e competentes, especialmente da parte do que cha-
maríamos de “historiadores sociais”, que sobrepujaram enormemente a
dimensão do pensamento jurídico. As razões pelas quais esta preferência
se manifestou não serão aqui discutidas3, mas aponto somente que o mo-
1 – Numa primeira versão, este texto foi apresentado no Seminário “História e Direito:
uma agenda de pesquisa”, promovido pela “Casa de Rui Barbosa”, no Rio de Janeiro, em
18/11/2010.
2 – Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor do curso de gra-
duação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Pesquisador do CNPq.
Presidente do IBHD – Instituto Brasileiro de História do Direito.
3 – Menciono, apenas, que a desvalorização da “espessura” da dimensão jurídica (vista
equivocadamente como algo estreitamente ligado à mera força política e repressiva), de

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):341-354, jul./set. 2011 341


Ricardo Marcelo Fonseca

mento atual é culturalmente propício para que levantemos a sua relevân-


cia e pertinência das análises que mergulhem na própria reflexão dos
juristas, atentando como isso se manifesta não só no âmbito do direito
mas também como certamente impacta em todas as discussões conexas a
respeito de temas “institucionais” que, inevitavelmente, são atravessados
pelo direito. A vivacidade de reflexões de história cultural e dos concei-
tos, por um lado, e a vivacidade do momento brasileiro da produção histó-
rico-jurídica, de outro, parecem fatores importantes para que esta agenda
seja proposta. A história do pensamento jurídico, então, não se mostra
como abordagem “oposta” àquela estritamente institucional; ilumina ou-
tros focos e neste sentido aumenta a dimensão de análise e eventualmente
complementa-se com a história jurídica institucional.

Duas vertentes do ponto de vista teórico e metodológico, neste senti-


do, parecem-me bastante férteis. A primeira pela via aberta pelo historia-
dor do direito florentino Paolo Grossi, fundador, como se sabe, do Centro
di Studi per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno e de sua prestigia-
da revista, os Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico
Moderno.

A atenção ao pensiero giuridico (no Centro e na revista) não é casu-


al: segundo Grossi, entre tantos outros textos passíveis de serem citados
aqui, esse procedimento é o único capaz de “obter a real colocação da
reflexão jurídica no âmbito histórico que a gerou e motivou. Como disse
outras vezes com muita convicção, o saber técnico é uma espécie de saber
confessional para o jurista, ou seja, expressa no máximo grau a cultura,
ideologias e ideias dos próprios juristas. Em outras palavras, o instrumen-
tal técnico – se se souber lê-lo – revela com incrível pontualidade tudo
aquilo que está atrás do jurista e suas ferramentas.”4

um lado, e a circulação de uma certa leitura marxista que desencorajava que se levasse a
sério qualquer dimensão “superestrutural”, de outro, foram elementos que incidiram neste
contexto. Ver a respeito FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do
direito. Curitiba: Juruá, 2009, p. 100 e segs.
4 – GROSSI, Paolo. Scienza giuridica italiana: un profilo storico (1860-1950). Milano:
Giuffré, 2000, p. XVI. (tradução livre). Ver ainda o texto “pensamento jurídico” em GROS-
SI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

342 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):341-354, jul./set. 2011


Teixeira de Freitas: Um jurisconsulto “traidor” na modernização jurídica brasileira

Outra é aquela de Reinhart Koselleck5, referente à chamada “história


dos conceitos”, que é resumida com muita eficácia por Pietro Costa como
aquela que “tenta combinar uma análise diacrônica de conceitos políticos,
uma cuidadosa reconstrução de tradições intelectuais que se desenvolvem
em diferentes eras e sociedades, com uma forte atenção à natureza histó-
rica destes conceitos”. Além disso é peculiar a sua “atenção particular a
uma configuração específica da natureza histórica dos conceitos, isto é,
seu relacionamento com as práticas e instituições políticas e sociais den-
tro de um dado contexto”6.

Seja num caso ou em outro – e independentemente das importan-


tes diferenças existentes entre as duas abordagens – vê-se o chamado
ao resgate da dimensão do pensamento/conceito jurídico, sem, todavia,
colocá-los de modo isolado de seus respectivos contextos: o pensamento
e os conceitos são imersos nos contextos sociais, políticos, etc., de sua
produção, mostrando-se, assim, não como meros e passivos “efeitos” das
realidades “materiais”, mas como dimensões que também podem, em da-
das circunstâncias, moldar e explicar os próprios contextos institucionais
circundantes.

2. No pensamento jurídico brasileiro do século XIX: Teixeira de


Freitas, ainda
É dentro desta “agenda” de investigações que acredito que a pesqui-
sa a partir do pensamento jurídico brasileiro do século XIX pode ser um
instrumento de análise importante para que se avalie adequadamente o
processo de conformação histórica dos direitos civis e da complexa cons-
tituição das “liberdades jurídicas” no Brasil. O modo peculiar como os
conceitos jurídicos do direito privado brasileiro se moveram e se acomo-
daram ao longo do século XIX mostra características bastante próprias da
nossa conformação jurídica, com conseqüências importantes nas discus-
5 – Entre tantos outros textos, colocada programaticamente em KOSELLEK, R. Futuro
passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: contraponto/ Ed.
PUC/RJ, 2006.
6 – COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia: ensaios de história do pen-
samento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010, pp. 50-51.

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Ricardo Marcelo Fonseca

sões institucionais. Basta lembrar que o Brasil ingressa na modernidade


jurídica do século XIX pela metade, combinando, de um lado, a aplicação
da Constituição e de leis com pretensões e linguagens modernas e, de ou-
tro lado, aplicando doutrinas e referências jurídicas próprias do período
histórico pré-liberal (como as Ordenações Filipinas). Aqui, ao contrário
dos outros países da America Latina, a codificação civil não se realiza
no século XIX, o que significa que este peculiar aparato modernizador
chamado “código” (que, como se sabe, traz em si projeto de equalização
formal dos indivíduos e ao mesmo tempo dá as condições ao dimensio-
namento burguês da sociedade) não produziu aqui os efeitos de outros
lugares. Ou seja: o Brasil do século XIX, do ponto de vista jurídico, ex-
pressa uma tensão entre arcaísmo e inovação; entre pré-modernidade e
modernidade; entre a era do “ius commune” e a era legislativa.7

Neste contexto peculiar parece relevante estudar a reflexão no âmbi-


to do direito privado, estudar o pensamento jurídico. Mais propriamente,
enfocar o desejo de modernização do direito privado (expressada nas vá-
rias tentativas frustradas de realização do Código Civil) e o modo como
o labirinto jurídico oitocentista era aqui avaliado e experimentado. Não
se pode conceber que as esferas institucionais (políticas, judiciais, econô-
micas) não fossem diretamente afetadas pelo modo como efetivamente
se dava a experiência jurídica brasileira do século XIX no âmbito dos di-
reitos privados. E para dimensionar a experiência jurídica brasileira, ine-
vitável se torna passar pelo filtro da reflexão doutrinária, pela produção
“científica”, pelo pensamento jurídico produzido no Brasil do período.

Este é um trabalho quase que inteiramente a ser feito. Tomo neste


texto, como um pequeno traço indiciário deste projeto bastante mais am-
plo, a reflexão, que me parece emblemática, do jurista Augusto Teixeira
de Freitas. Emblemática porque ele de fato destaca-se como jurista em
7 – Conforme apresentação-síntese e estudos correspondentes em FONSECA, Ricardo
Marcelo e SEELAENDER, Airton (orgs.) História do direito em perspectiva: do antigo
regime à modernidade jurídica. Curitiba: Juruá, 2008. Para maiores (e melhores) refle-
xões, ver HESPANHA, António Manuel. Razões de decidir na doutrina portuguesa e bra-
sileira do século XIX: um ensaio de análise de conteúdo “in” Quaderni Fiorentini per la
storia del pensiero giuridico moderno, XXXIX (2010), p. 109 e seguintes.

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Teixeira de Freitas: Um jurisconsulto “traidor” na modernização jurídica brasileira

meados dos oitocentos: afinal, ele é o primeiro encarregado pelo impera-


dor de elaborar um projeto de código civil – o que não pode ser conside-
rado como circunstância menor. De outra parte, sua produção acadêmica,
embora passe por fases um tanto distintas, está longe de parecer desim-
portante.

Mas ao (re) tomar Teixeira de Freitas parece-me importante frisar de


que modo o faço e em que medida entendo que seja importante a ele retor-
nar, já que de fato parece que uma quantidade razoável de autores sobre
ele já se debruçou. A abordagem que concebo se afasta, em primeiro lu-
gar, daquelas meramente “celebratórias”8, onde o autor é idealizado como
gênio precoce ou incompreendido, onde o que parece querer se afirmar é
um certo “orgulho da raça” sem uma análise mais criteriosa das peculiari-
dades muito grandes de sua produção. Em segundo lugar, afasto-me tam-
bém do debate – que em certo momento parece ter-se tornado um tema
quase obsessivo – de se fazer uma análise em certa medida psicologizante
e divinatória sobre a seguinte questão: Teixeira de Freitas, enfim, era ou
não favorável à questão da escravidão9? Para os efeitos aqui pretendidos
esta é uma questão mais ou menos irrelevante (ademais do fato de, a meu
ver, ser irrespondível10). Considera-se, aliás, que seu foco não era e nunca
foi (como alguns parecem buscar que seja) posicionar-se sobre a questão
da escravidão; o seu foco era outro, científico e doutrinário.

8 – MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas: o jurisconsulto do império. Rio de Janeiro: José


Olympio, 1978; como em alguns dos estudos presentes em SCHIPANI, Sandro (a cura di)
Augusto Teixeira de Freitas e il diritto latinoamericano. Padova: Cedam, s/d; como em
RUFINO, Almir Gasquez e PENTEADO, Jaques de Camargo (orgs.) Grandes juristas
brasileiros. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 353 e segs.
9 – CERQUEIRA FILHO, Gisálio e NEDER, Gizlene. Sinfonia inacabada: Augusto Tei-
xeira de Freitas, a ‘Consolidação da legislação’ e o ‘Esboço de Código Civil’ para o Brasil
“in” NEDER, Gizlene. História & direito: jogos de encontros e transdisciplinariedade.
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Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871. Campinas: Ed. Uni-
camp, 2001.
10 – Teixeira de Freitas aduziu com clareza na ‘Introdução’ de sua ‘Consolidação das leis
civis’ seu desapreço pela escravidão. Mas perquirir até que ponto suas posições doutriná-
rias (em seus debates no IAB, como estudado por Pena), sua postura pessoal ou seu posi-
cionamento sobre o matrimônio (como estudado por Cerqueira Filho e Neder) ligam-no
a posições escravistas, parecem-me questões dificílimas de serem respondidas.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):341-354, jul./set. 2011 345


Ricardo Marcelo Fonseca

O que se pretende, então, em suma, é, tendo como premissa a centra-


lidade e a importância (inclusive metodológica) do pensamento jurídico,
tomar a reflexão de Teixeira de Freitas (a partir de sua longa “Introdução”
à “Consolidação das Leis Civis do Império”11) para avaliar que tipo de
jurista ele se mostrava diante do contexto de transição (com raízes for-
temente arcaicas e pré-modernas, mas muito desejosa de modernização
jurídica), buscando entender de que modo sua produção se inseria no pró-
prio contexto daquele momento.

3. Teixeira de Freitas “moderno” ou “pré-moderno”?

Teixeira de Freitas é um personagem de transição.

Por um lado, já neste momento (1857) ele está tomado indubitavel-


mente de uma mentalidade legalista no que diz respeito à teoria das fontes,
mostrando-se, neste sentido, como alguém sintonizado com o modo de
apreciar o direito que se inaugura na era liberal/burguesa. Desta primeira
conclusão – que serve, em grande medida, como premissa de uma visão
“moderna” do direito – podemos ainda desdobrar as seguintes percepções
subjacentes (ou, às vezes, explícitas) no seu pensamento jurídico:

a) Teixeira de Freitas não trabalha mais com a ideia de que o direito,


do ponto de vista das fontes, é um sistema complexo, até labiríntico
(como, por definição, é o sistema de fontes pré-moderno); ao con-
trário, adere à defesa da importância de se alcançar a completude do
sistema jurídico (ideia tipicamente liberal-moderna). Passa a ser fora

11 – A “Consolidação das leis civis”, como se sabe, foi um trabalho preparatório levado a
efeito por Teixeira de Freitas após a sua nomeação, pelo governo imperial, para elaborar
o projeto de código civil do Império. A ideia do autor era sistematizar a legislação vigente
no âmbito do direito civil da época, que era tremendamente labiríntica naquele momento,
já que composta pela Legislação portuguesa (que o governo após independência manteve
vigente), pelas leis brasileiras que haviam sido promulgadas desde a independência até
então, pelas leis de países estrangeiros (as leis das nações “cultas e civilizadas” que a Lei
da Boa Razão de 1769 trouxe para o arcabouço jurídico português) e pelas Ordenações
Filipinas. Foi publicada, em sua primeira edição, em 1857. Era composta de uma longa
“Introdução” e da “Consolidação” propriamente dita, que buscava expressar em artigos
sucintos (nos moldes dos documentos codificatórios do código XIX) aquilo que seria o
conjunto normativo vigente no Brasil da época.

346 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):341-354, jul./set. 2011


Teixeira de Freitas: Um jurisconsulto “traidor” na modernização jurídica brasileira

do natural que o sistema jurídico deixe margens a lacunas, incom-


pletudes, zonas de indefinição; o direito deve ser certo e claro; como
consequência, o sistema jurídico deve ser “completo”. Daí Teixeira de
Freitas aduzir na “Introdução”, por exemplo, que as “Ordenações, que
são pobríssimas, reclamavão copioso supplemento”12. O parâmetro,
para ele, passa a ser o dos recém-inventados (e plenamente embebidos
da pretensão de racionalidade e completude) códigos modernos;

b) Correlato a isso, ao longo da “Introdução” à ‘Consolidação das


leis civis’ ele faz um longo balanço do legado dos códigos europeus
promulgados até ali (parte do código da Baviera de 1756 e da Prússia
de 1794, para depois abordar o francês (1804), o austríaco (1811), o
holandês (1838)). O pleno conhecimento do novo “sistema” jurídico
da época calcado na codificação (que efetivamente era uma novidade
civilizacional) demonstra, mais uma vez, esta sintonia do codificador
com o projeto jurídico liberal-moderno.

c) Bem ao gosto dos ventos que sopravam neste momento nos países
europeus, percebe-se da parte de Teixeira de Freitas o ingresso em
algumas escaramuças contra concepções jusnaturalistas. Se no início
do período codificatório (na transição do século XVIII para o XIX) o
“positivismo jurídico”13 era visto como uma transição natural e conse-
quente do período racionalista do jusnaturalismo (ou seja: a positiva-
ção dos preceitos jurídicos nada mais significava do que a realização
da razão), a partir de agora (o momento de consolidação do mundo
burguês e a sua consequente necessidade de estabilização e endeusa-
mento do valor da segurança jurídica) positivismo jurídico e jusnatu-
ralismo passam a ser vistos como opostos e partes de uma dicotomia.
Nesse debate, adere Teixeira de Freitas aduzindo, por exemplo, que
o autor do Digesto português caminhou muito mal na medida em que
12 – TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Introdução, “in” BRAZIL. Consolidação das
Leis Civis (publicação do governo). Rio de Janeiro: Typographia universal de Laemmert,
1857, p. VII.
13 – O autor destas linhas, aqui, previne-se de qualquer acusação de anacronismo: está
ciente que, neste período, em se tratando de “positivismo jurídico”, não se formulou ainda
o “nome”, apesar de já existir a “coisa”.

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Ricardo Marcelo Fonseca

– pecado supremo – inspirou-se em princípios de um “falso direito


natural”14.

d) De maneira conexa a tudo isso, Teixeira de Freitas ainda adere


à noção de sistema (“System”) que começava a tomar corpo cien-
tífico na reflexão alemã de direito privado da época, especialmente
por Savigny e Puchta (e mais tarde pela chamada pandectística, de
Windscheidt)15. Sendo noção devedora do ambiente racionalista e per-
tencente ao ethos que permeava o surgimento das ciências do homem,
das dimensões do conhecimento sobre o homem, adequava-se com-
pletamente ao cenário oitocentista liberal. Teixeira de Freitas paga
seu tributo a tudo isso, por exemplo (que é meramente indicativo),
no seguinte trecho em que expõe seu ‘projeto’ de consolidação das
leis: “Principiaremos pela actual systema do Direito Civil, fixaremos
depois algumas noções fundamentais...”16.

e) consequentemente, enfim, no plano da teoria das fontes, ele revela


um não escondido legalismo – característica basilar do direito a partir
do século XIX (como quando aduz que “as cousas tem chegado a tal
ponto, que menos se conhece e estuda nosso Direito pelas Leis que
o constituem, do que pelos praxistas que as invadirão”17) – ao mes-
mo tempo em que aparentemente desvaloriza a outrora central ciência
(como quando aduz: “Tenhão os professores liberdade na opção do
methodo mais próprio para facilitar o ensino, porém não haja nisto
puro arbítrio. O methodo influe na theoria, em matérias de direito po-
sitivo, nunca deve contrariar o pensamento legislativo, somente deve
explicá-lo.”18

14 – TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Introdução, p. XXXVI.


15 – Como, emblematicamente, pode-se ler em CAPPELLINI, Paolo. Systema iuris II: dal
sistema alla teoria generale. Milano: Giuffré, 1985 ou em LOSANO, Mario G. Sistema
e estrutura no direito (vol. 1: das origens à escola histórica). São Paulo: Martins Fontes,
2008.
16 – TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Introdução, p. XIII.
17 – Idem, p. VIII.
18 – Idem, p. XXXIX.

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Teixeira de Freitas: Um jurisconsulto “traidor” na modernização jurídica brasileira

Isso tudo significa então que Teixeira de Freitas fosse um típico e


puro personagem legalista, típico daquilo que Grossi chama – como ca-
racterística emblemática do fenômeno jurídico a partir do século XIX
– de ‘absolutismo jurídico’19, um profeta em terras tupiniquins dos novos
tempos do direito-legalista?

A resposta a esta pergunta não pode ser dada de modo tão apressado.
Teixeira de Freitas, como personagem híbrido que é, está muito longe
de entrar nas roupas frouxas de um “tipo ideal”. E isto por uma série de
motivos:

a) Toda a vasta base doutrinária que Teixeira de Freitas cita e sobre a


qual calca boa parte de suas conclusões de sua introdução é, quase que
exclusivamente, de juristas pertencentes ao período do “ius comune”,
ou ao do humanismo jurídico quinhentista ou a de um jusnaturalismo
racionalista (ou ainda com um misto de tudo isto) que estava muito à
vontade (como peixe dentro d’água) com toda a reflexão jurídica do
período pré-liberal/pré-moderno: ver as profusas citações de autores
como Leibnitz, Althusius, Hotman, Cujacio, Domat, Bentham, Mello
Freire, Borges Carneiro, etc. Nosso autor aqui em análise cita, é claro,
alguns comentadores do código civil napoleônico – como Lassaulx,
por exemplo – mas não menos do que a doutrina alemã (a esta altura,
como sabemos, não codificada) em especial a figura do “sábio” Savig-
ny (que é um personagem para quem a ciência tem um papel cimen-
tador e central dentro do sistema jurídico, e portanto que não adere ao
legalismo cego da Escola da Exegese francesa, por exemplo).

b) De outra parte – contrabalançando o legalismo às vezes saliente –


em sua “Introdução”, aqui analisada, o papel conformador da ciência
dentro do “sistema” não pode ser desprezado. De fato, a sua longa
“Introdução” à ‘Consolidação das leis civis’ é, em grande medida,
o molde teórico que Teixeira de Freitas quer imprimir à ordem dos
preceitos. A divisão que ele propõe entre direitos reais e pessoais, en-
tre direitos absolutos e relativos, e, sobretudo, a controvérsia que ele
19 – GROSSI, Paolo. Assolutismo giuridico e diritto privado. Milano: Giuffré, 1998.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):341-354, jul./set. 2011 349


Ricardo Marcelo Fonseca

estabelece entre a divisão do direito civil em pessoas, coisas e ações


são as premissas (teóricas, científicas, frise-se) que efetivamente dão
a conformação ao modo como será estabelecida a ordem da “Conso-
lidação”. Aliás, todas estas premissas também vão inspirar posterior-
mente o seu “Esboço”: não se deve desprezar o fato de que Teixeira de
Freitas forjou no seu projeto a “parte geral” do código, que é dotada,
como sabemos, de um caráter conceitual e aplicável de modo geral
para todas as partes “especiais”. Em suma: o papel da ciência aqui é
conformador, estruturante e não meramente acessório.

4. Traduttore/traditore: Teixeira de Freitas inventor


Augusto Teixeira de Freitas, como se vê, é um personagem difícil de
ser enquadrado no molde “moderno” ou no “pré-moderno”. É, como já se
disse e repetiu, um personagem de transição, como era de transição a pró-
pria época em que ele viveu. De todo modo, para além do legado que ele
recebia e para além dos ares que ele respirava, o fato é que nosso autor pa-
rece ter protagonizado, ele mesmo, uma operação “criativa” – diria mais,
inventiva – de uma tradição jurídica. E isso numa dupla perspectiva.

Em primeiro lugar, naquilo que diz respeito à sua linguagem. Ora:


a “Consolidação” se pretendia um mero apanhado da legislação já exis-
tente nesta época, para preparar o trabalho posterior de codificação. Mas,
em termos de linguagem, há uma grande descontinuidade (um verdadeiro
hiato, um grande estranhamento) entre o modo como eram escritos os
documentos jurídicos pré-modernos (“matéria-prima” do trabalho con-
solidador de Teixeira de Freitas) e o modo como passam a ser escritos os
documentos jurídicos modernos. O que se quer dizer aqui é que a própria
operação de transposição da linguagem dos documentos jurídicos que
Teixeira de Freitas se defrontava (provenientes prevalentemente da época
pré-liberal) para o texto da consolidação já demonstrava um trabalho de
tradução/criação bastante evidente. De fato, os textos “legislativos” do
antigo regime tinham características muito diferentes do padrão legisla-
tivo pós-revolucionário: eram eles longos, argumentativos e impregna-
dos de um estilo muito próprio e peculiar. Tudo isso vai ser “traduzido”

350 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):341-354, jul./set. 2011


Teixeira de Freitas: Um jurisconsulto “traidor” na modernização jurídica brasileira

na “Consolidação” para a forma de dispositivos numerados na forma de


artigos com redação direta e clara. É, aliás o objetivo confessado do pró-
prio consolidador: “A consolidação será feita por artigos e títulos, em
os quaes serão reduzidas a proposições claras e succintas as disposições
em vigor”20. Creio que esta “transposição” lexical e de estilo não deva
ser menosprezada. A diferença na forma de exposição dos preceitos traz
também uma diferença na forma de se enxergar o próprio direito: de um
modo complexo, labiríntico, cheio de mediações e balanceamentos, para
uma forma direta, concisa e que possui a função clara de comando.

Em segundo lugar, e principalmente, não pode ser desprezado tam-


bém o modo como Teixeira de Freitas, ao aparentemente apenas “con-
solidar” a legislação preexistente, na realidade não modificava apenas
a linguagem e o estilo (como visto acima), mas aparentemente também
atribuía um sentido diferente – subvertia mesmo – aos próprios textos
que deveria apenas reunir. Em outros termos: na oportunidade da ‘conso-
lidação’ dos textos vigentes, não apenas transformava a linguagem, mas
o modo como selecionava, escrevia e expressava as matérias tinham um
forte viés de reinterpretação e recriação, exatamente nos moldes como os
juristas do “ius commune” agiam na sua atividade de “interpretatio”21.

Dou um exemplo: aquele referente ao domínio. No início do “Titulo I”


(“Do domínio”) do Livro II (“dos direitos reais”) de sua consolidação,
Teixeira de Freitas define o domínio do seguinte modo: “Art. 884. Con-
siste o domínio na livre faculdade de usar e dispor das cousas, e de as
demandar por Ações reaes”. Diz o jurista baiano que este dispositivo se
inspira em várias disposições dos livros 3o e 4o das Ordenações (que ele
cita na nota de rodapé). Mas observando com atenção os dispositivos
das ordenações não se percebe esta relação direta. Por exemplo, o títu-
lo XXXI do Livro 3o. das Ordenações (disposição que ele coloca como
fonte para seu artigo 884) trata da hipótese de demanda que envolver

20 – TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Introdução, p. VI.


21 – CALASSO, Francesco. Medio evo del diritto: 1o: Le fonti. Milano: Giuffré, 1954, p.
479 e segs. e GROSSI, L’ordine giuridico medievale. Roma/Bari: Laterza, 1995, p. 162 e
segs.

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Ricardo Marcelo Fonseca

coisa móvel e o demandado não tiver bens de raiz (parece bem mais uma
disposição de cunho processual do que de direito material); já o título X
do Livro 4o. das Ordenações trata das hipóteses de vendas e alienações de
coisas sobre as quais pendem litígios judiciais; já o título 11 do Livro 4o
das Ordenações trata da proibição de constrangimento de vender os bens
a outros (sobretudo da própria família); e, finalmente, o título XXXVI do
Livro 4o das Ordenações trata da hipótese de alguém morrer sem nomear
alguém para a propriedade de foro.

Como se pode ver, as hipóteses e disposições presentes nas Ordena-


ções Filipinas que são invocadas por Teixeira de Freitas como “fontes” do
artigo consolidado (de número 884), apesar de pertencerem às relações
dos homens com as coisas (as relações reais), estão longe, porém, daqui-
lo que Paolo Grossi chamou de paradigma “napoleônico pandectista”22
da propriedade, que constituiu, em termos de direitos reais, uma ruptura
formidável (moderna) com relação ao período anterior (pré-moderna). As
disposições das Ordenações Filipinas citadas enquadram-se perfeitamen-
te numa época pré-liberal, período reicêntrico e não individualista. Toda-
via, no texto da ‘Consolidação’, Teixeira de Freitas faz com que aquelas
disposições sejam carregadas de completo individualismo proprietário,
típicos do período posterior (em que a propriedade “é a projeção da som-
bra soberana do sujeito23”, usando novamente as palavras de Grossi). Tei-
xeira de Freitas não dirá (como está no art. 554 do código civil Francês)
que a propriedade é o direito de gozar da coisa “da maneira mais abso-
luta” e nem dirá (como o art. 17o da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão de 1789) que a propriedade é um direito “sagrado”, mas
vai dispor que o domínio é a livre faculdade de usar e dispor das coisas.
Quando ele fala em liberdade e em faculdade, desloca-se o foco presente
originalmente nas ordenações para um viés claramente centrado na figu-
ra do sujeito proprietário. Aproxima-se das definições que a maioria dos
códigos oitocentistas vai seguir com relação à propriedade no sentido de
22 – GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Trad. Luiz Ernani Fritoli
e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 10 e segs.
23 – GROSSI, Paolo. L’inaugurazione della proprietà moderna. Napoli: Guida Editori,
1980, p. 23

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Teixeira de Freitas: Um jurisconsulto “traidor” na modernização jurídica brasileira

defini-la pelos poderes (no caso, de usar e dispor) que o sujeito têm com
relação à coisa. Em suma, transfigura-se o texto das Ordenações (editado
em 1603 e que é expressão típica do “ius commune”, isto é, de uma apre-
ciação originariamente medieval da experiência jurídica) em dispositivo
individualista, moderno, à feição dos códigos oitocentistas. A operação de
‘Consolidação’, como se vê aqui, foi muito além da “reunião dos textos”
vigentes. Ocorreu sem dúvida alguma um caráter criador e conformador
(viabilizado pelo discurso “científico” do qual Teixeira de Freitas que-
ria ser o porta-voz) de um certo direito, um direito ainda não legal, não
promulgado, mas que a partir dali vai gozar de prestígio e até mesmo de
vigência24: não pode ser esquecido que após a promulgação e divulgação
da Consolidação (e em vista do malogro das tentativas de codificação até
1916), este texto serviu como guia na jurisprudência e na doutrina brasi-
leira por decênios.

Em suma: por um verso, Teixeira de Freitas é um personagem de tran-


sição e, nessa medida, representativo do período de tensão entre modelos
opostos por que passava o próprio direito privado brasileiro do século
XIX. Mostrava-se nos limites da adesão ao canto da sereia legocêntrico e
estatólatra, mas não pagava tributos a uma perspectiva meramente exegé-
tica passiva do intérprete com relação ao ordenamento jurídico. De outro
lado – e nesse ponto fazia jus à influência que teve de toda a doutrina do
“ius commune” – atribuía à ciência um papel protagonista e conformador.
Personagem complexo, como se vê.

Mas Teixeira de Freitas é mais do que um personagem de transição


(como tantos outros o foram). Na medida em que tomou para si a tarefa de
“consolidar” o direito civil brasileiro antes de produzir o projeto de códi-
24 – Em pesquisa de doutorado sobre o direito de propriedade no Brasil do século XIX,
verificou-se que num total de 56 julgados sobre o tema de domínio e propriedade, a ‘Con-
solidação das Leis Civis’ aparece como um texto citado 44 vezes, o que significa que
constava em 22 julgados (quase 40%, das decisões ali consultadas portanto). Percebe-se,
assim, o efeito que esta atividade de Teixeira de Freitas (de tradução ou de traição – como
se queira – dos textos que ele tomou como base) foi crucial em termos institucionais no
âmbito da cultura jurídica brasileira do século XIX. STAUT JR., Sergio Said. A posse
no direito brasileiro da segunda metade do século XIX ao código civil de 1916. Curitiba:
(tese de doutorado – UFPR), 2009, p. 196.

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Ricardo Marcelo Fonseca

go, cumpriu também, até algum ponto, uma tarefa de produção de um or-
denamento jurídico. Foi um verdadeiro inventor (travestido de compila-
dor de um direito supostamente vigente). Ao buscar ser o tradutor de uma
experiência jurídica que a todos parecia confusa e labiríntica, acabou por
ser dela o traidor, visto que, em alguma medida, superou-a e subverteu-a,
ao nela projetar (dizendo estar só “consolidando”) o que nela não existia.
O adágio da língua italiana que relembra como o tradutor de um texto está
sempre próximo de sua própria traição (traduttore/traditore) parece caber
como uma luva ao assim chamado “jurisconsulto do império”.

Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação


em maio /2011.

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“Somos da América e queremos ser americanos”:
Relações Brasil-Portugal e antilusitanismo na fundação da República

“SOMOS DA AMÉRICA E QUEREMOS SER AMERICANOS”:


RELAÇÕES BRASIL-PORTUGAL E ANTILUSITANISMO NA
FUNDAÇÃO DA REPÚBLICA
“WE ARE FROM AMERICA AND WISH TO BE AMERICANS”:
Brazil-Portugal relations and anti-Portugal
feelings in the foundation of the Brazilian
Republic
José Sacchetta Ramos Mendes 1

Resumo: Abstract:
Os meses que seguiram à Proclamação da Re- The months following the Proclamation of the
pública no Brasil viram recrudescer o senti- Republic in Brazil witnessed the growth of
mento antiportuguês no país. O antilusitanismo anti-Portugal feelings in the country. These
manifestou-se tanto na sua vertente popular, so- feelings were present among the lower popula-
bretudo em ações contra imigrantes portugueses tion, mostly through actions against Portuguese
radicados no meio urbano brasileiro, quanto em immigrants settled in Brazilian urban areas, as
crescentes dificuldades nas relações oficiais do well as in the growing difficulties involving the
novo Estado republicano com Portugal monár- new republican State official relations with the
quico. A correspondência diplomática entre a Portuguese monarchy. The diplomatic corre-
Legação lusitana no Rio de Janeiro e sua chan- spondence between the Portuguese Representa-
celaria em Lisboa revela episódios inusitados tion in Rio de Janeiro and its Foreign Ministry
que envolveram autoridades dos dois países. in Lisbon reveals unusual events involving au-
Em dezembro de 1889, três ocorrências de for- thorities of both countries. In December 1889,
te caráter antilusitano e xenófobo marcaram o three apparently articulated episodes of strong,
cotidiano da Capital Federal, aparentemente de xenophobic, anti-Portuguese feelings, marked
maneira articulada, levantando a suspeita de the daily activities of the Capital city. Suspicion
participação do ministro das Relações Exterio- of participation in those episodes fell on Quin-
res Quintino Bocaiúva, chanceler no primeiro tino Bocayuva, Minister of Foreign Relations
gabinete republicano. A suspeita nunca foi tor- and Chancellor in the first republican Minis-
nada pública, mas encontra-se registrada na do- try. That suspicion never became public; how-
cumentação diplomática portuguesa, apontando ever it is registered in Portuguese diplomatic
para aspecto pouco dimensionado nas relações documents, as a rather unimportant aspect in
binacionais luso-brasileiras do período. Luso-Brazilian bi-national relations during the
period.
Palavras-chave: Antilusitanismo; República; Keywords: Diplomacy – Anti-Portuguese feel-
Imigração; Imprensa. ings – Republic – Immigration – Press.

O período imediato que seguiu à Proclamação da República no


Brasil foi marcado pela intolerância aos imigrantes portugueses, a des-
peito do decreto imposto pelo novo governo, em dezembro de 1889,
que naturalizou coletivamente os estrangeiros residentes no país,
1 – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto da
Universidade Federal da Bahia.

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José Sacchetta Ramos Mendes

outorgando-lhes a cidadania.2 Desde o lançamento do Manifesto Repu-


blicano, duas décadas antes, os adversários de Dom Pedro II buscavam
identificar Portugal e seus súditos com a monarquia. “Somos da América
e queremos ser americanos”3, dizia a carta de 1870, fundadora do movi-
mento pela República, a fazer uso de um anacrônico mote anticolonial
para investir contra o Império. No mesmo sentido, após a instauração do
novo regime, propostas de reabilitar a forma monárquica passaram a ser
qualificadas de estrangeirismo lusófilo, “cujas raízes se prendem ao solo
da Europa e às suas Constituições políticas”4, no dizer do ministro das
Relações Exteriores do primeiro governo republicano, Quintino Antônio
Ferreira de Sousa (1836-1912), que adotara o nome indígena Bocaiúva
para afirmar o seu nativismo.

Quintino Bocaiúva foi um dos poucos civis a participar pessoalmen-


te da ação militar que, em 15 de novembro de 1889, depôs a família Bra-
gança de seu reinado sul-americano, tornando-se um símbolo do poder
popular da República, o novo eixo político que deveria substituir o polo
antes representado pela figura do imperador. É nesta condição que foi
alçado ao comando da chancelaria do Rio de Janeiro, responsável pela
ofensiva de convencimento internacional da novíssima situação do Bra-
sil. Jornalista de profissão e ativista republicano de longa data, Bocaiúva
enxergava os meandros da política externa por um viés distinto daquele
que tradicionalmente compunha a diplomacia brasileira com os países da
Europa.
2 – A documentação que fundamenta esta pesquisa foi consultada no Arquivo
Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal (Lisboa) e no
Arquivo Histórico do Itamaraty (Rio de Janeiro). Versão preliminar e parcial deste traba-
lho foi apresentada no âmbito das comemorações do centenário da República Portuguesa
e integra a obra República e Rrepublicanismo em Portugal, Brasil e Itália (Imprensa da
Universidade de Coimbra), no prelo.
3 – “Manifesto Republicano”, editado originalmente no jornal A Republica; Rio de Ja-
neiro, 03.11.1870; transcrito na Revista de História. São Paulo, FFLCH/USP, n.º 84.
4 – BOCAIÚVA, Quintino. “Pela República”, editorial do jornal O Paiz; Rio de Janei-
ro, 18.12.1889; recorte anexo ao ofício confidencial n.º 21 do Conde de Paço d’Arcos,
encarregado de negócios de Portugal no Brasil, ao Conde de Valbom, ministro dos Negó-
cios Estrangeiros de Portugal; Rio de Janeiro, 24.12.1891; Legação de Portugal no Rio
de Janeiro (LPRJ), correspondência recebida, 1890/1891, caixa 223, maço 1, Arquivo
Histórico-Diplomático (AHD) do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal.

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“Somos da América e queremos ser americanos”:
Relações Brasil-Portugal e antilusitanismo na fundação da República

No que tange ao relacionamento entre o Brasil e Portugal, diver-


gências até então tratadas pela via de mornas negociações, quase sempre
por meio de uma linguagem evocativa de simbólica fraternidade entre
as duas nações, na primeira fase da República viraram motivo de rusgas
sérias, cujo agravamento e evolução levariam à ruptura alguns anos mais
tarde. Com efeito, a difícil relação do Estado republicano brasileiro, em
sua fase inaugural, com Portugal monárquico, atingiu o ponto crítico em
1894-1895, quando se deu o rompimento diplomático oficial, o único na
história das relações luso-brasileiras pós-1825.

Já nos meses seguintes à Proclamação da República, na Capital Fe-


deral e em outros centros urbanos, imigrantes portugueses tornaram-se
suspeitos de favorecer a restauração do Império. A desconfiança era refor-
çada pelas notícias do exílio da família de Dom Pedro II na Corte lisboeta
de seu sobrinho-neto, o rei Dom Carlos I. O falecimento do ex-monarca
brasileiro na Europa, em 5 de dezembro de 1891, reacendeu velhos anta-
gonismos. Manifestações antiportuguesas tornaram-se mais frequentes. A
correspondência de diplomatas lusos dava mostras dos ataques sofridos
na época por seus conterrâneos no Brasil.

Chamou a atenção, em particular, o encadeamento de hostilidades


ocorridas no Rio de Janeiro nos dias seguintes à morte do imperador de-
posto: um comício em praça pública reunindo numerosa assistência con-
tra os moradores portugueses da cidade, a publicação na imprensa de um
virulento editorial antilusitano e o envio de uma carta-ameaça, com forte
caráter nacionalista e xenófobo, à Legação de Portugal, a mais alta instân-
cia da diplomacia portuguesa no Rio.

Tais gestos expressavam o recrudescimento da lusofobia – fenômeno


vivenciado noutros momentos de crise política do século XIX brasileiro
– e envolviam a figura de Quintino Bocaiúva, personagem de largo trân-
sito social na sede da República e homem próximo ao círculo do poder,
ainda que em dezembro de 1891 já estivesse fora do gabinete de gover-
no. Bocaiúva havia renunciado ao comando do Ministério das Relações
Exteriores em fevereiro daquele ano, quando a Constituição republicana

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José Sacchetta Ramos Mendes

entrou em vigor, passando a concentrar suas atividades no jornalismo, à


frente do influente diário carioca O Paiz.

O Brasil adentrava seu apogeu imigrantista, período iniciado nas úl-


timas décadas do Império e que se prolongou até a virada do século XX.
Em 1889, ano da Proclamação da República, entraram no país 65 mil
imigrantes estrangeiros; em 1890, foram 106 mil e, em 1891, o número de
adventícios aportados elevou-se a 215 mil pessoas. No decênio posterior
à instituição da República (1890-1899), desembarcaram no Brasil mais
de um milhão de imigrantes europeus, 75% dos quais provindos da Itália
e 15% de Portugal.5 Foi o ápice do movimento imigratório brasileiro, em
todos os tempos.

A entrada maciça de italianos trazia um elemento inédito para a de-


mografia brasileira, marcada pela predominância da origem portuguesa
na população branca do país. Os italianos, no entanto, dirigiam-se para as
zonas agrícolas do interior, principalmente para os Estados de São Paulo
e Rio Grande do Sul, enquanto os portugueses continuavam a afluir, na
maior parte, para as grandes cidades litorâneas, destacadamente para o
Rio de Janeiro. A capital concentrava a maior coletividade portuguesa do
país, disseminada num amplo corte social que perpassava todo o espectro
urbano, da elite ao funcionalismo de classe média e aos empregados em
funções subalternas.

É nesse contexto que deve ser compreendido o antilusitanismo dos


primeiros anos da República no Brasil. Desde o processo de emancipação
frente a Portugal, o sentimento contra os portugueses havia produzido
diferentes hostilidades, sobretudo no Rio. No fim do século XIX, tais pos-
turas já não se vinculavam a tensões pós-coloniais, e sim à presença de
uma numerosa coletividade lusa imigrada. Após a Proclamação da Repú-
blica, a onda de patriotismo que se irradiou a partir do novo eixo de poder
contrapôs a ideia de povo brasileiro à noção de pátria estrangeira, na qual
o imigrante português se encaixava como nenhum outro grupo.

5 – BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Anuário


estatístico. Séries históricas. Rio de Janeiro, 1951.

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“Somos da América e queremos ser americanos”:
Relações Brasil-Portugal e antilusitanismo na fundação da República

A suspeita contra o ex-chanceler Quintino Bocaiúva


O encadeamento de manifestações hostis ocorridas em dezembro de
1891 principiou com o ato público realizado no dia 16, no centro do Rio
de Janeiro, reunindo uma pequena multidão que investia palavras de or-
dem contra Portugal e os portugueses. A correspondência diplomática da
época expressou a indignação dos diplomatas lusos com o ataque a seus
nacionais e ao seu país. Ressaltou também o que lhes pareceu ser uma
tolerância incomum a tais atos, por parte das autoridades republicanas
brasileiras. Um relato escrito na véspera do Natal daquele ano por Carlos
Eugénio Correa da Silva, Conde de Paço d’Arcos, ministro responsável
pela Legação de Portugal na capital brasileira, dava conta de que o “me-
eting de praça pública contra os portugueses [aconteceu] com assistência
da polícia que, impassível, ou conivente, deixou que em altos berros, e
com ruidosas aclamações, os oradores vomitassem impropérios e injúrias
à França e a Portugal”6.

O relato do diplomata constava da correspondência confidencial di-


rigida ao Conde de Valbom, ministro dos Negócios Estrangeiros de Lis-
boa. A difusão do ânimo contrário ao Reino de Portugal e a imigrantes
portugueses radicados no Brasil era, do ponto de vista do ministro Paço
d’Arcos, estimulada por personalidades próximas aos poderes da Repú-
blica e trazia a marca do ex-chanceler Bocaiúva.

A opinião do diplomata luso era motivada, em parte, por um edito-


rial redigido por Quintino Bocaiúva, publicado em O Paiz, no qual pro-
palava, entre outras coisas, que os inimigos da nova forma de governo
apoiavam-se “não em elementos nacionais, que de todo lhes faltam, mas
em elementos bastardos, que socialmente e etnologicamente são e sempre
foram infensos à grandeza e à prosperidade e do Brasil livre e do Brasil
americano”7. Publicado dois dias após o comício contra os portugueses,
o artigo editorializado de Bocaiúva descreveu o ato público antilusitano
como um incidente ruidoso que “interrompeu a calma habitual de nossa
6 – CONDE DE PAÇO D’ARCOS. Ofício confidencial n.º 21 ao Conde de Valbom; Rio
de Janeiero, 24.12.1891; op. cit.
7 – BOCAIÚVA, Q. op. cit.

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José Sacchetta Ramos Mendes

cidade”, observando que nele “o que transparece é a vibração da alma


nacional, irradiando-se no entusiasmo da mocidade”8.

Ainda que Portugal e os portugueses não tenham sido expressamente


mencionados no texto de jornal assinado por Bocaiúva, os comentários
do ex-chanceler tornavam implícito que, na sua acepção, eram os monar-
quistas portugueses os inimigos históricos da República brasileira.

Conde de Paço d’Arcos comunicou às autoridades de Lisboa que, em


protesto pela ocorrência da manifestação pública antiportuguesa, emitira
uma nota oficial ao governo do Rio de Janeiro. Deixou claro, entretanto,
que fora “prudentíssimo” no uso das palavras, para evitar melindres num
período de crescente tensão, a agravar-se desde os meses anteriores. De
fato, informações originárias nas representações consulares lusitanas de
outras regiões brasileiras, enviadas à Legação de Portugal no Rio, deixa-
vam ver uma atmosfera pouco amistosa aos imigrantes lusitanos noutras
cidades, em particular nas capitais do Norte e Nordeste, como Salvador,
Recife e Belém.

Um relatório elaborado pelo Consulado de Portugal em Pernambu-


co, ainda em julho de 1890, notificava que apenas entre 15% e 20% dos
imigrantes residentes naquela jurisdição haviam feito a opção de prefe-
rência pela cidadania portuguesa – alternativa jurídica à naturalização co-
letiva imposta pelo Governo Provisório republicano em 1889, conforme
previsão definida no próprio decreto que a instituiu. O motivo da pequena
adesão à nacionalidade de origem, segundo o relatório consular, era o
receio de agravamento das hostilidades de que eram vítimas os estrangei-
ros, notadamente os portugueses.9

Na Capital Federal, o antilusitanismo verificado em dezembro de


1891 registrou outro episódio, aliás na mesma data da publicação do edi-

8 – Idem, ibid.
9 – VIANNA, Antonio Joaquim Barboza. Ofício reservado n.º 74 do encarregado do
Consulado de Portugal em Pernambuco a Manuel Garcia da Rosa, da Legação de Portugal
no Rio de Janeiro; Recife, 11.07.1890; LPRJ, correspondência recebida, 1890/1891, caixa
223, maço 1, AHD.

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“Somos da América e queremos ser americanos”:
Relações Brasil-Portugal e antilusitanismo na fundação da República

torial de Quintino Bocaiúva no jornal O Paiz. Naquele dia, a Legação de


Portugal recebeu uma insultosa carta de repúdio, com ameaça de morte a
seus concidadãos no Brasil. A justificar tamanha intransigência, o autor
incógnito da mensagem alegava “a indigna ingratidão” da comunidade
lusitana estabelecida no país, “que prosperou e enriqueceu à sombra das
nossas leis”10. A carta não era apócrifa, mas firmada por um desconhecido
e incerto Grupo Vermelho-Sociedade Irredentista, que assim se expres-
sou:
“Os portugueses pobres e desprotegidos abandonam a terra natal,
onde a miséria ou a mediocridade os aguardava e, aportando neste
país, cujo generoso povo não lhes pergunta se são fidalgos ou plebeus,
monarquistas ou republicanos, católicos ou livre pensadores, e são
acolhidos indistintamente, ou melhor, com mais benevolência do que
os outros estrangeiros, para depois abusarem tão cruelmente de nossa
magnanimidade.
(...) portugueses de todas as condições fomentam às claras, ou ocul-
tamente, o espírito de reação contra o governo constituído! Pois bem,
querem a luta, tê-la-hão. Um grupo de brasileiros patriotas, indignados
com estes fatos, deliberam responder a esta provocação organizando
represálias que chegarão até o dinamite, ao punhal e ao incêndio às
pessoas e bens dos súditos portugueses (...)
Morra a nação portuguesa! Fora esta raça de judeus do Ocidente!”11

A generalização intolerante contra os imigrantes portugueses e seu


“espírito de reação contra o governo constituído” não levou em conta
a diversidade entre eles, reconhecida, aliás, no trecho transcrito (fidal-
gos, plebeus, monarquistas, republicanos, católicos, livre-pensadores). A
carta-ameaça, sem tratar dessas diferenças, remetia seu grito de guerra e
de morte a toda a “nação portuguesa”, nela definida como “raça de judeus
do Ocidente”, expressão herdada do antissemitismo ibérico dos tempos
coloniais.12
10 – CONDE DE PAÇO D’ARCOS. Ofício confidencial n.º 21 ao Conde de Valbom; Rio
de Janeiro, 24.12.1891; anexo n.º 1; carta-ameaça anônima à LPRJ; op. cit.
11 – Idem, ibid.
12 – A analogia entre portugueses e judeus aponta para curiosa derivação do preconceito
antissemita ibérico, neste caso a investir contra a presença lusitana no Brasil. Sobre a per-
sistência do antissemitismo no meio luso-brasileiro, ver CARNEIRO, Maria Luiza Tucci.
Preconceito racial em Portugal e Brasil colônia. Os cristãos-novos e o mito da pureza de

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Alertado da existência de semelhanças entre o editorial de imprensa


e os termos da carta-ameaça recebida pela Legação, o Conde de Paço
d’Arcos comparou a grafia desta com um manuscrito do ex-ministro bra-
sileiro das Relações Exteriores. Confidencialmente, escreveu ao governo
de Lisboa: “A letra se não é, parece-me a mesma! E além da minha pró-
pria observação, quatro pessoas idôneas (...) estão bem convencidas de
que a anônima e a carta comparada são da mesma mão, que deverá, pois,
ser aquela que escreveu o artigo”13.

A suspeita do Conde de Paço d’Arcos contra Quintino Bocaiúva


não foi levada a público. O diplomata português tampouco se queixou do
incidente à chancelaria brasileira, possivelmente pelas implicações que
enxergava, naquele instante em que a tensão republicano-monárquica res-
valava para uma suposta oposição entre o nacional e o lusitano. Apesar
dos registros do episódio existentes na documentação diplomática de Por-
tugal, não se conhece menção a ele na historiografia.

Em sua avaliação confidencial feita perante a chancelaria de Lisboa,


Paço d’Arcos opinou que a atuação de Bocaiúva, ainda que lhe parecesse
“incrível, por vil e indigno, só [servia para] mostrar o rebaixamento a
que chegou a cegueira política neste país, onde não se olham os meios de
conseguir quaisquer fins que as facções desejam”14.

Quanto ao Grupo Vermelho-Sociedade Irredentista, que subscreve


a carta, não se tem notícia de quem se tratava, nem de qualquer outra
manifestação sua. Naquela única ocorrência conhecida, antiportuguesa
e republicana, a denominação que assume afigura-se imprópria. O nome
vem do movimento Italia Irredenta, destacado na política europeia do sé-
culo XIX por reclamar territórios do Império Austro-Húngaro habitados
por italianos étnicos, excluídos da Unificação Italiana. A impropriedade
do termo, no contexto brasileiro, é ressaltada pela inclinação monárqui-
ca do irredentismo europeu, em oposição à República. O nacionalismo
sangue. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
13 – CONDE DE PAÇO D’ARCOS. Ofício confidencial n.º 21 ao Conde de Valbom; Rio
de Janeiro, 24.12.1891, op. cit.
14 – Idem, ibid.

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romântico do Rissorgimento, porta-voz de populações que alegadamente


viviam sob jugo estrangeiro, fica aqui reduzido a uma estreita conotação
de xenofobia.

Centro Republicano, ‘desdouro’ da coletividade portuguesa


Quintino Bocaiúva não desconhecia a adesão de muitos imigrantes
portugueses ao republicanismo, desde os últimos anos do Império. O jor-
nal O Paiz, que comandou como redator e editor, no qual escrevia seus
libelos propagandísticos da República, pertencia ao Visconde de Matosi-
nhos, figura notória na coletividade lusitana do Rio de Janeiro.15 A sim-
patia de importantes personagens emigradas de Portugal pela nova forma
de governo do Brasil, inclusive gente com título de nobreza, chegou a
causar preocupação em Lisboa. Nos anos seguintes à queda da monarquia
brasileira, o crescimento do Centro Republicano Português, com sede na
Capital Federal, gerou intensa correspondência consular.

As difíceis relações de Portugal com o regime moviam-se em sentido


inverso ao do ativismo em torno daquele club republicano, “desdouro da
colônia portuguesa”, nas palavras do Conde de Paço d’Arcos. “A maior
parte dos membros são ex-portugueses, hoje brasileiros, e gente de ou-
tras nações”16, informava o diplomata. Agrupamentos luso-republicanos
semelhantes surgiram noutras cidades, entretanto, com fins assistenciais
e recreativos mais acentuados que o caráter político do congênere cario-
ca.17

Em novembro de 1891, após a Revolta da Armada, que levou à re-


núncia do marechal-presidente Deodoro da Fonseca, as relações entre o

15 – CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. São Paulo: Companhia das Letras,
1987.
16 – CONDE DE PAÇO D’ARCOS. Ofício confidencial n.º 22-A ao Conde de Valbom;
Rio de Janeiro, 24.12.1891; LPRJ, correspondência recebida, 1890/1891, caixa 223, maço
1, AHD.
17 – Grêmios republicanos da comunidade portuguesa foram criados, no período, em pelo
menos outras cinco cidades brasileiras: São Paulo, Santos, Belém do Pará, Recife e Pelo-
tas, além do Rio de Janeiro; sua localização em regiões diversas sugere ampla aceitação
do novo regime pelos imigrantes lusos no Brasil.

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Brasil republicano e Portugal monárquico complicaram.18 O almirante


Custódio José de Melo, líder da sublevação, era amigo pessoal de Paço
d’Arcos, principal representante do governo lusitano no Brasil.19 A docu-
mentação diplomática guarda relatos do relacionamento amistoso entre
ambos, amizade que tornava o diplomata português suspeito de envolvi-
mento direto com as questões políticas internas brasileiras.

A posse do vice-presidente Floriano Peixoto, também marechal, ain-


da em novembro de 1891, em desacordo com a Constituição promulgada
em fevereiro – e que previa a convocação de eleições em caso de vacância
da Presidência da República nos primeiros dois anos do mandato – ge-
rou novos movimentos militares, mais uma vez liderados por Custódio
de Melo. Na sequência da posse de Floriano, adiantando-se aos meios
oficiais, o Centro Republicano Português do Rio de Janeiro declarou seu
apoio:
“(...) aos correligionários brasileiros, na pessoa do ilustre e benemé-
rito cidadão Floriano Peixoto, chefe supremo do governo que tão pa-
trioticamente parece disposto a manter a ordem, a fazer respeitar a lei,
e a regularizar e moralizar a administração, tirando aos inimigos das
instituições democráticas todos os motivos de pretexto para infunda-
das agitações, condenáveis e funestos conluios, adversos à ordem e à
prosperidade do Brasil.”20

A reverência dos luso-republicanos aos correligionários brasileiros,


motivo de aborrecimento dos círculos monárquicos dos dois países, refor-
çou a ideia de existência de uma suposta dualidade de posturas no interior
da comunidade imigrante. Conforme essa visão dicotômica, que parece
ter-se renovado ao longo do século XIX, alguns portugueses estariam ao

18 – NASCIMENTO, Álvaro. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Ar-


mada Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.
19 – CERVO, Amado Luiz. MAGALHÃES, José Calvet de. Depois das caravelas. As
relações entre Portugal e o Brasil 1808-2000. Instituto Camões. Lisboa, 2000, pp. 166-
173.
20 –��������������������������������������������������������������
CENTRO REPUBLICANO PORTUGUÊS NO RIO DE JANEIRO. Ata da Assem-
bleia Geral, de 20.12.1891; anexo ao ofício confidencial n.º 22 do Conde de Paço d’Arcos
ao Conde de Valbom; Rio de Janeiro, 24.12.1891; LPRJ, correspondência recebida,
1890/1891, caixa 223, maço 1, AHD.

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lado do Brasil, de suas instituições e da nacionalidade; outros seriam ini-


migos históricos, e de longa data, da causa nacional brasileira, qual fosse
a configuração da época: o movimento da Independência, a maioridade
do imperador-menino nascido nesta pátria, a inauguração da República
ou a posse do mais recente militar ocupante da Presidência.

A segunda Revolta da Armada, desta vez contra o governo de Floria-


no Peixoto, eclodiu entre setembro de 1893 e março de 1894, novamente
tendo o almirante Custódio de Melo no comando dos rebeldes. Vencidos
pelas forças leais ao presidente, os revoltosos pediram e obtiveram asilo
político do governo português. Cerca de 500 militares brasileiros busca-
ram abrigo nas corvetas Mindelo e Afonso de Albuquerque, da Marinha
lusitana, ancoradas na baía de Guanabara, sobrecarregando ao máximo as
embarcações.21

O episódio foi compreendido por Floriano como uma afronta à sobe-


rania nacional e levou ao rompimento de relações com Portugal em maio
de 1894, situação que se manteve por dez meses, até março de 1895, já
sob a Presidência do civil Prudente José de Morais Barros (1894-1898).
Aquele foi um dos momentos críticos no relacionamento luso-brasileiro.
O desenlace diplomático anterior havia ocorrido de maneira informal e
silenciosa, em 1831, na abdicação de Dom Pedro I, quando o reino portu-
guês vivenciava um período de desorganização administrativa e sucessó-
ria, em decorrência da morte de Dom João VI.

O rompimento Brasil-Portugal dos primeiros anos da República bra-


sileira deixou como uma de suas consequências a não ratificação pelo
Rio de Janeiro do Tratado de Comércio e Navegação, assinado pelos dois
países em janeiro de 1892, mas nunca remetido ao Congresso Nacional,
que sequer o analisou. O acordo era uma antiga aspiração das autoridades
lisboetas, que anteviam em seus conacionais emigrados um elemento fa-

21 – Sobre a ruptura Brasil-Portugal, ver COSTA, Sérgio Corrêa. A diplomacia do ma-


rechal: intervenção estrangeira na Revolta da Armada. 2ª ed. Brasília: EdUnB, 1979;
ALVES, Francisco das Neves. “O rompimento diplomático brasileiro-lusitano ao final
do século XIX, um estudo de caso.” In: LEITE, Renato Lopes (org.). Cultura & poder.
Portugal e Brasil no século XX. Curitiba: Juruá, 2003, pp. 89-104.

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cilitador da venda de produtos portugueses aos brasileiros, de quem, por


sua vez, esperavam preferência comercial e isenções tributárias.22 As ne-
gociações para o tratado haviam sido iniciadas ainda durante o Império,
tomaram forma sob o mandato de Deodoro da Fonseca (1889-1891) e fo-
ram concluídas no governo de Floriano Peixoto (1891-1894). A partir daí,
o trâmite para sua ratificação legislativa emperrou, até ser definitivamente
deixado de lado após o asilo oferecido por Portugal aos participantes da
Revolta da Armada e a decorrente ruptura diplomática.

Portugal e a construção simbólica da República brasileira


O antilusitanismo brasileiro da primeira fase republicana, bem como
o esfriamento das relações bilaterais entre Brasil e Portugal após a Pro-
clamação da República, foram acompanhados por um paradoxo conco-
mitante, em âmbito intelectual e político: a retomada do debate sobre a
presença portuguesa nas bases de construção da nacionalidade. É cer-
to que se tornou notório o exacerbamento do nativismo americanista no
Brasil daquele período, entre outros aspectos, nas temáticas da literatura
e da música. Não obstante a inclinação nacionalista, antieuropeia e em
certos aspectos xenófoba, esta pode ser entendida como uma postura re-
lativa, até mesmo pela razão de que, por outras vias, no esforço por se
autolegitimar, a República renovou certos vínculos simbólicos com Por-
tugal.

Assim, o decreto de 19 de novembro de 1889, que instituiu a bandei-


ra nacional republicana – promulgado justamente quando Quintino Bo-
caiúva era ministro das Relações Exteriores e homem forte do primeiro
Governo Provisório da República – preservou a simbologia luso-brasi-
leira e o concurso de elementos de origem portuguesa, como a orla azul
com estrelas de prata e as cores da antiga metrópole colonial lusíada.23 O

22 –������������������������������������������������������������������������������
SANTOS, Fernando Mattoso. Nota do ministro extraordinário de Portugal no Bra-
sil a Manoel Deodoro da Fonseca, presidente da República do Brasil; Rio de Janeiro,
04.09.1891; Missões Estrangeiras no Brasil. Portugal/Grã-Bretanha, 1823/1922; estante
273, prateleira 1, maço 10, Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI).
23 – Decreto n.º 4 de 19.11.1889. Decretos do Governo Provisório da República dos Esta-
dos Unidos do Brasil, 1889/1891. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, v. 1, pp. 3-4.

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verde mantido no pavilhão republicano do Brasil, por exemplo, remete à


Batalha de Aljubarrota, de 1385, um momento definidor da autonomia do
Estado português, quando as tropas de Dom João I derrotaram os caste-
lhanos e evitaram a anexação do território luso por Castela.

No dia em que a bandeira definitiva da República brasileira foi ins-


tituída, substituindo a primeira versão (cujo desenho era uma cópia da
bandeira listrada norte-americana, apenas com a mudança das cores ver-
melha e branca pelo verde e amarelo), o criador do novo projeto adotado,
Raimundo Teixeira Mendes, explicou sua linhagem heráldica e a remis-
são que faz aos portugueses, num texto jornalístico de tons sentimentais,
publicado no Diário Oficial da União:

“Este símbolo [a bandeira nacional] lembra naturalmente a fase do


Brasil-Colônia, nas cores azul e branca, que matizam a esfera, ao mes-
mo tempo que esta recorda o período do Brasil-Reino, por trazer a
memória da esfera armilar.
Desperta a lembrança da fé gloriosa dos nossos antepassados, e ao
descobrimento desta parte da América, não já por meio de um sinal
que é atualmente um símbolo de divergência [a coroa], mas por meio
de uma constelação [em cruz], cuja imagem só pode fomentar a mais
vasta fraternidade. Porque nela o mais fervoroso católico contemplará
os insondáveis mistérios da crença medieval, e o pensador mais livre
recordará o caráter subjetivo dessa mesma crença e a poética imagina-
ção de nossos avós.”24

Permanências materializavam-se, daquele modo, na representação


figurativa do novo regime, nada menos do que a “fomentar a mais vasta
fraternidade” entre os povos do Brasil e de Portugal, nas palavras de Tei-
xeira Mendes. Para além do discurso aparentemente contraditório com
o estado de espírito patriótico, no auge da dissonância republicano-mo-
narquista, a evocação dos antepassados e a lembrança de “nossos avós”
reabilitavam a ideia de existência um laço familiar lusíada entre as duas
nações.

24 – MENDES, Raimundo Teixeira. “A Bandeira Nacional”. Diário Oficial da União. Rio


de Janeiro, 24.11.1889, p. 1.

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Num outro episódio, ocorrido em janeiro de 1895, durante o rompi-


mento diplomático luso-brasileiro, forças navais da Grã-Bretanha ocu-
param a ilha Trindade, situada no Atlântico Sul, em frente ao litoral do
Estado do Espírito Santo, e historicamente pertencente ao Brasil. Ao to-
mar conhecimento da ocupação, o governo do Rio de Janeiro protestou.
Londres respondeu que Trindade tinha sido abandonada, tornando-se res
nullius para o Direito Internacional.25 Os britânicos pretendiam usar a ilha
para amarração de cabos telegráficos submarinos, e como ponto de apoio
para suas embarcações na rota do extremo Sul do continente americano.
Estavam dispostos a instaurar o litígio e chamavam por um arbitramento,
a que o Brasil não admitia, considerando incontestáveis os seus direitos
sobre o território insular.

Apesar das difíceis relações bilaterais, só reatadas em março daquele


ano, a imprensa portuguesa levantou-se contra a ocupação e deu visibili-
dade ao fato. Portugal, de sua parte, ofereceu ao Brasil os bons ofícios di-
plomáticos para ajudar na resolução do caso. Como Estado neutro, expôs
documentalmente as razões histórico-jurídicas que faziam de Trindade
uma ilha brasileira. Foram apresentados documentos do Arquivo Nacio-
nal da Torre do Tombo, de Lisboa, datados a partir de 1539, com ênfase
para mapas, diários de viagem, expedições, salvamentos e outros com-
provantes do exercício da jurisdição brasileira até 1893. A demonstração
levou a Grã-Bretanha a reconhecer, em agosto de 1896, a soberania do
Brasil sobre a ilha.

O reconhecimento gerou um movimento favorável ao então presi-


dente da República, Prudente de Morais. No Congresso Nacional, a mo-
ção de cariz patriótico que felicitou o governo pelo sucesso da negocia-
ção diplomática omitiu o papel de Portugal na resolução do conflito. Um
grupo de parlamentares denunciou a omissão, destacadamente o deputado
federal paulista Francisco Glicério de Cerqueira Leite, num discurso em
que ressaltou o emprego pela diplomacia lusa da autoridade de quem co-
nhecia e podia demonstrar a extensão de seus ex-domínios.
25 – GARCIA, Eugênio Vargas. Cronologia das relações internacionais do Brasil. Brasí-
lia: Fundação Alexandre de Gusmão e Alfa Omega, 2000, pp. 80-81.

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Juntamente com Quintino Bocaiúva, Francisco Glicério havia par-


ticipado intensamente da campanha republicana da década anterior e in-
tegrou o primeiro governo da República, como ministro da Agricultura.
Pouco antes da deposição do imperador, Francisco Glicério chegou a pro-
por a realização de um plebiscito popular para definir a continuidade ou
o fim da monarquia.

É interessante que, tendo feito parte do núcleo de poder inaugural


da República, Francisco Glicério tenha se levantado em defesa da devida
menção ao papel de Portugal nas negociações com Londres acerca da
soberania brasileira sobre Trindade. Ainda mais pelo fato do ex-chanceler
Bocaiúva ter assistido àquele debate no Congresso Nacional como sena-
dor, aparentemente sem se manifestar – após um curto período de atuação
exclusiva no jornalismo, Quintino Bocaiúva retornou à política, tendo
sido eleito senador pelo Rio de Janeiro, cargo em que permaneceu de
1892 a 1900.

Em novembro de 1893, o governo de Portugal retirou o Conde de


Paço d’Arcos da Legação no Rio de Janeiro, enviando para o posto o
Conde de Paraty, mais bem relacionado aos republicanos, tanto brasilei-
ros quanto luso-emigrados. Buscavam-se normalizar os laços com a reali-
dade política vivenciada no Brasil. Noutro giro, os episódios de dezembro
de 1891 marcaram os portugueses moradores do Rio, conforme relatos
consulares posteriores. Por algum tempo, os opositores do Império con-
tinuariam a buscar nos imigrantes lusos algum ranço monárquico, sem
deixar de notar a peculiar familiaridade da sua presença na composição
populacional da capital brasileira.

Num quadro contraditório, a condição singular atribuída ao nacio-


nal português no Brasil combinou-se ao antilusitanismo, cuja expressão
pós-monarquista constituiu faceta do relacionamento com aquele grupo
imigrante. Em janeiro de 1897, o governo civil de Prudente de Moraes
enviou o navio cruzador Benjamin Constant à ilha Trindade, onde fincou-
se um marco de pedra com a inscrição “Brazil”, para assinalar a sobera-
nia sobre o território. O lugar mais propício ao assentamento humano, o

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único da ilha que viria a ser habitado, foi denominado Praia dos Portu-
gueses, numa homenagem notória acatada pelos militares e republicanos
brasileiros.

Referências Bibliográficas
BRASIL. Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do
Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, v. 1.
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CERVO, Amado Luiz. MAGALHÃES, José Calvet de. Depois das caravelas.
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Rio de Janeiro, 24.11.1889, p. 1.

Documentos de Arquivo
CENTRO REPUBLICANO PORTUGUÊS DO RIO DE JANEIRO. Ata da
Assembléia Geral, de 20.12.1891; anexo ao ofício confidencial n.º 22 do Conde
de Paço d’Arcos ao Conde de Valbom; Rio de Janeiro, 24.12.1891; Legação de
Portugal no Rio de Janeiro (LPRJ), correspondência recebida, 1890/1891, caixa
223, maço 1, Arquivo Histórico-Diplomático (AHD) do Ministério dos Negócios
Estrangeiros (MNE) de Portugal.
CONDE DE PAÇO D’ARCOS. Ofício confidencial n.º 21 ao Conde de Valbom;
Rio de Janeiro, 24.12.1891; LPRJ, correspondência recebida, 1890/1891, caixa
223, maço 1, AHD-MNE.
CONDE DE PAÇO D’ARCOS. Ofício confidencial n.º 22-A ao Conde de Valbom;
Rio de Janeiro, 24.12.1891; LPRJ, correspondência recebida, 1890/1891, caixa
223, maço 1, AHD-MNE.
GRUPO VERMELHO. SOCIEDADE IRREDENTISTA. Carta-ameaça à
Legação de Portugal no Rio de Janeiro; anexo n.º 1 ao ofício confidencial n.º 21
do Conde de Paço d’Arcos ao Conde de Valbom; Rio de Janeiro, 24.12.1891;
LPRJ, correspondência recebida, 1890/1891, caixa 223, maço 1, AHD-MNE.

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“Somos da América e queremos ser americanos”:
Relações Brasil-Portugal e antilusitanismo na fundação da República

MATTOSO, FERNANDO. Nota diplomática ao presidente da República


Deodoro da Fonseca; Rio de Janeiro, 04.09.1891; Missões Estrangeiras. Portugal/
Grã-Bretanha, 1823/1922; estante 273, prateleira 1, maço 10, Arquivo Histórico
do Itamaraty.
VIANNA, Antonio Joaquim Barboza. Ofício reservado n.º 74 a Manuel Garcia
da Rosa; Recife, 11.07.1890; LPRJ, correspondência recebida, 1890/1891, caixa
223, maço 1, AHD-MNE.

Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação


em maio /2011.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

A “Questão Siderúrgica” e o Papel do Estado na


Industrialização Brasileira
THE “STEEL INDUSTRY ISSUE” AND THE ROLE OF THE STATE
IN BRAZILIAN INDUSTRIALIZATION
Gilberto Bercovici 1

Resumo: Abstract:
O artigo analisa a implantação e consolidação This paper analyzes the implantation and con-
da siderurgia no Brasil e o papel desempenha- solidation of the steel industry in Brazil and the
do pelo Estado neste processo. O texto aborda role of the State in this process. The text will
com maior ênfase os períodos compreendidos focus on the period that goes from the initial
nas primeiras décadas do século XX, à época decades of the Twentieth century, the so-called
da chamada “República Velha”, e nos anos se- “Old Republic”, to the years following the 1930
guintes à Revolução de 1930, em que a criação Revolution, when the creation of Companhia
da Cia. Siderúrgica Nacional e da Cia. Vale do Siderurgica Nacional and Companhia Vale do
Rio Doce, durante o governo Vargas, represen- Rio Doce during the Vargas administration,
tam o ponto culminante da atuação estatal para a represented the highest point reached by State
efetiva implantação da indústria pesada no país. actions towards a positive insertion of heavy
Este recorte histórico é propício para a discus- industry in the country. This historical episode
são de temas centrais à industrialização nacio- propitiates the discussion of themes central to
nal, como a importância da iniciativa estatal no industrialization in Brazil, such as the impor-
processo de industrialização diante da ausência tance of State initiatives in the process of in-
de capital nacional e em contraposição ao con- dustrialization, given the absence of private,
trole estrangeiro sobre os recursos minerais. As- domestic financing, and also to compensate for
sim, a solução da “questão siderúrgica” revela foreign control over mineral resources. Thus,
o enfrentamento do Estado a problemas como the solution of the “steel industry issue” reveals
a exploração adequada dos recursos minerais the State confrontation of problems such as the
nacionais, o tratamento jurídico da propriedade adequate exploration of the country’s mineral
de minas e jazidas, bem como a atuação de capi- resources, the legal aspects of the ownership
tais estrangeiros na atividade industrial interna, of mines and large deposits of ore, as well as
com o intuito de efetivar políticas voltadas à in- the role of foreign capital in internal, industrial
dependência econômica, cujo pressuposto era o activities. The purpose was to establish policies
controle do Estado sobre seus recursos naturais dealing with economic independence that would
para beneficiar a economia nacional. allow for the State control of its natural resourc-
es to benefit the country’s economy.
Palavras-chave: siderurgia, industrialização, Keywords: Steel Industry – Industrialization –
estatização. State Activities.

A metalurgia no Brasil foi introduzida nos tempos coloniais. Todas


as ferramentas eram importadas, o que demonstra a necessidade de haver
fundições nas colônias americanas. O primeiro engenho de fundir ferro
erguido no continente situava-se, por volta de 1550, próximo a Soroca-
1 – Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo.

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Gilberto Bercovici

ba, no morro do Araçoiaba, pertencendo a Afonso Sardinha. Haveria um


outro engenho de fundir ferro a duas léguas da vila de São Paulo, em
Santo Amaro do Ibirapuera, na margem esquerda do rio Pinheiros, de
propriedade de Diogo de Quadros e de Francisco Lopes Pinto, que teria
funcionado de 1607 até 16292. O método utilizado era o da “forja catalã”3.
Em 1780, o Governador da Capitania de Minas Gerais, Rodrigo José de
Menezes, propõe a instalação de uma fábrica de ferro em Minas Gerais às
autoridades coloniais, iniciativa que não teria como prosperar, especial-
mente após o Alvará de 5 de janeiro de 1785, de D. Maria I, que proibia
toda e qualquer instalação de indústria ou manufatura nas colônias por-
tuguesas4.

A política portuguesa muda com o Príncipe Regente D. João e a


administração de Dom Rodrigo de Sousa Coutinho (futuro Conde de
Linhares)5. As minas passam a ser regidas pelo Regimento de 13 de maio
de 1803, que teve sua elaboração atribuída a José Bonifácio de Andrada e
Silva e a Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt Aguiar e Sá (o Intenden-
te Câmara). O Regimento de 1803 tentou modernizar a exploração das
minas brasileiras, com redução de impostos, incentivos à constituição de
companhias mineradoras, novos limites de concessão e estímulos a novos
descobrimentos, além de uma preocupação inédita com a preservação das
florestas6. Em 1808, no entanto, há um novo Regimento, de 1º de julho,
2 – Wilhelm von ESCHWEGE, Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 201-202; Sergio Buarque
de HOLANDA, Caminhos e Fronteiras, pp. 157-167; Francisco de Assis BARBOSA,
Dom João VI e a Siderurgia no Brasil, pp. 24-32; Werner BAER, Siderurgia e Desen-
volvimento Brasileiro, pp. 71-73 e Geraldo Mendes BARROS, História da Siderurgia no
Brasil – Século XIX, pp. 35-38.
3 – Para uma descrição dos métodos de fundição do ferro, desde as forjas catalã e italiana
até o alto-forno, ver Francisco Magalhães GOMES, História da Siderurgia no Brasil, pp.
24-30.
4 – Marcos Carneiro de MENDONÇA, O Intendente Câmara, pp. 71-73; Francisco de
Assis BARBOSA, Dom João VI e a Siderurgia no Brasil, pp. 32-35 e Geraldo Mendes
BARROS, História da Siderurgia no Brasil – Século XIX, pp. 38-43.
5 – Marcos Carneiro de MENDONÇA, O Intendente Câmara, pp. 38-70 e Francisco de
Assis BARBOSA, Dom João VI e a Siderurgia no Brasil, pp. 35-51.
6 – João Pandiá CALÓGERAS, As Minas do Brasil e Sua Legislação, vol. I, pp. 154-
160; Marcos Carneiro de MENDONÇA, O Intendente Câmara, pp. 118-138 e COMPA-
NHIA VALE DO RIO DOCE, A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce,
pp. 88-90. Eschwege critica o Regimento de 1803, entendendo-o como um texto europeu

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

que revoga o de 1803, preocupado com as fundições e a circulação de


ouro. As sociedades de mineração foram reguladas pela Carta Régia de 12
de agosto de 1817, endereçada ao Capitão-Geral de Minas Gerais. O ar-
tigo 8º desta Carta Régia concedia o direito de lavrar em terras particula-
res. Haveria preferência do proprietário do solo durante um determinado
prazo. Esgotado este prazo, a sociedade de mineração poderia explorar as
jazidas ou minas existentes, pagando uma compensação. Não se alterou
o direito real sobre as minas e jazidas, que continuaram de propriedade
da Coroa. A concessão sempre era da exploração, não da propriedade da
mina. Apenas excepcionalmente poderia ocorrer a transmissão de pro-
priedade, nos casos de doação explícita da Coroa7.

A implantação de uma indústria siderúrgica foi permeada de equí-


vocos e obstáculos. Foram promovidas três fábricas de ferro, isoladas e
sem comunicações: a Fábrica Patriótica, em Congonhas do Campo (MG),
sob direção do Barão Wilhelm von Eschwege, alemão que já prestara
serviços à Coroa portuguesa; a Fábrica Real do Morro de Gaspar Soares
(MG), também conhecida como Morro do Pilar, sob direção do Intenden-
te Câmara, e a Real Fábrica de São João do Ipanema, em Sorocaba (SP),
cujo grande administrador foi o também alemão Coronel Frederico Luís
Guilherme de Varnhagen8.

que não estaria adaptado ao Brasil. Ver Wilhelm von ESCHWEGE, Pluto Brasiliensis,
vol. 2, pp. 271-277. Sobre a decadência da mineração, ver, ainda, Caio PRADO Jr., For-
mação do Brasil Contemporâneo – Colônia, pp. 169-174.
7 – João Pandiá CALÓGERAS, As Minas do Brasil e Sua Legislação, vol. I, pp. 160-
163; vol. III, pp. 8-10 e COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, A Mineração no Brasil e
a Companhia Vale do Rio Doce, pp. 98-101. A necessidade da doação ser expressa estava
prevista nas Ordenações Filipinas, Livro 2º, Título XXVIII: "Por quanto em muitas doa-
ções feitas per Nós, e per os Reys nossos antecessores, são postas clausulas muito geraes
e exuberantes, declaramos, que por taes doações, e clausulas nellas cônteùdas, nunca se
entende serem dadas as dizimas novas dos pescados, nem os veeiros e Minas, de qualquer
sorte que sejam, salvo se expressamente forem nomeados, e dados na dita doação. E para
prescrição das ditas cousas não se poderá allegar posse alguma, postoque seja immemo-
rial".
8 – Francisco de Assis BARBOSA, Dom João VI e a Siderurgia no Brasil, pp. 50-52 e
Geraldo Mendes BARROS, História da Siderurgia no Brasil – Século XIX, pp. 43-47.

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Gilberto Bercovici

A primeira fundição de ferro ocorreu na Fábrica Patriótica de Con-


gonhas do Campo, em dezembro de 1812, que utilizava o método tradi-
cional da forja catalã, e não o alto-forno, como as demais. Os seus méto-
dos e a sua produção não foram suficientes e a fábrica fechou em 18229. A
Fábrica do Morro do Pilar funcionou de 1815 a 1831, sempre com muitas
dificuldades, como a escassez de água e o constante abandono de empre-
go por parte dos empregados assalariados10. Já a Fábrica de Ipanema só
terminou de ser construída e começou a funcionar quando a administra-
ção foi assumida por Varnhagen, entre 1814 e 1821, substituindo o sueco
Carl Gustav Hedberg, cuja má-gestão contribuiu para os seus percalços. A
primeira fundição ocorreu em 1818, mas as atividades declinaram até seu
fechamento em 1832. Ao contrário das outras fábricas, no entanto, a Fá-
brica de Ipanema foi reaberta e fechada algumas vezes, funcionando entre
1836 e 1842 e novamente a partir de 1864, em virtude das necessidades
da Guerra do Paraguai. As suas atividades continuaram de forma irregu-
lar, encerradas e reiniciadas de modo intermitente, até que a sua gestão foi
transferida, por meio do Decreto-Lei nº 69, de 15 de dezembro de 1937,
do Ministério da Guerra para o Ministério da Agricultura, com o objetivo
de exploração para o fornecimento de matéria-prima para a produção de
fertilizantes fosfatados11.
9 – Wilhelm von ESCHWEGE, Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 204-205 e 247-253; Hum-
berto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 44-45; Werner BAER, Siderurgia
e Desenvolvimento Brasileiro, pp. 76-77; Francisco Magalhães GOMES, História da Si-
derurgia no Brasil, pp. 79-85; Douglas Cole LIBBY, Transformação e Trabalho em uma
Economia Escravista, pp. 137-139 e COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, A Mineração
no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, pp. 95-98.
10 – Marcos Carneiro de MENDONÇA, O Intendente Câmara, pp. 160-170 e, especial-
mente, pp. 180-218; Humberto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 42-44;
Werner BAER, Siderurgia e Desenvolvimento Brasileiro, pp. 74-75; Francisco Magalhães
GOMES, História da Siderurgia no Brasil, pp. 71-79 e COMPANHIA VALE DO RIO
DOCE, A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, pp. 93-94. Para a análise
crítica do contemporâneo Eschwege, ver Wilhelm von ESCHWEGE, Pluto Brasiliensis,
vol. 2, pp. 207-213.
11 – Humberto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 40-42; Werner BAER,
Siderurgia e Desenvolvimento Brasileiro, pp. 73-76; Francisco Magalhães GOMES,
História da Siderurgia no Brasil, pp. 47-70 e 131-140 e COMPANHIA VALE DO RIO
DOCE, A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, pp. 94-95 e 125-126.
Para a crítica de Eschwege, que elogia, no entanto, o conterrâneo Varnhagen, ver Wilhelm
von ESCHWEGE, Pluto Brasiliensis, vol. 2, pp. 215-244.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

Além das experiências pioneiras de Eschwege, Câmara e Varnha-


gen, outra iniciativa relevante no campo da siderurgia foi a do engenheiro
francês Jean Antoine de Monlevade, que chegou em 1817 ao Brasil. Mon-
levade trabalhou com Eschwege e resolveu construir um alto-forno na
cidade de Caeté, interior de Minas Gerais, iniciativa que não prosperou.
Logo depois, em 1825, na localidade de São Miguel de Piracicaba, Mon-
levade construiu uma fábrica com forjas catalãs e mão de obra escrava. A
fábrica durou até sua morte, em 1872, atuando de modo intermitente, com
subsídios do Governo Provincial mineiro, até sua falência em 189712.

O problema da implantação da siderurgia no início do século XIX no


Brasil para observadores contemporâneos, como Eschwege e José Boni-
fácio de Andrada e Silva, era a falta de trabalhadores livres. A criação de
pequenas fábricas deveria estimular o trabalho livre e expandir o merca-
do interno, criando a riqueza nacional, cujos grandes obstáculos eram a
escravidão e o latifúndio voltado para a exportação. Eschwege reafirma
inúmeras vezes a inconveniência das grandes fábricas de ferro no Brasil,
pois não haveria mercado para a sua produção. A escravidão, inclusive,
era um obstáculo que afetava a própria disposição ao trabalho dos ho-
mens livres13.

O resultado desta primeira tentativa de implantação da siderurgia,


ainda que em pequena escala no Brasil, foi o abandono dos vários proje-
tos14. A pequena siderurgia que se manteve durante o século XIX, espe-
cialmente em Minas Gerais, foi fruto de contribuições africanas com al-
gumas inovações europeias, instituindo uma estrutura manufatureira bem
rudimentar e dependente da mão de obra escrava. A abundância do miné-
rio de ferro e do carvão vegetal, o nível tecnológico baixo e a escala redu-

12 – Humberto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 46-49; Werner BAER,


Siderurgia e Desenvolvimento Brasileiro, pp. 77-78; Francisco Magalhães GOMES, His-
tória da Siderurgia no Brasil, pp. 109-113 e Geraldo Mendes BARROS, História da
Siderurgia no Brasil – Século XIX, pp. 117-169.
13 – Nas palavras do próprio Eschwege: "É quase impossível, pois, no Brasil, fazer pros-
perar uma indústria, quando se depende do concurso dos homens livres" in Wilhelm von
ESCHWEGE, Pluto Brasiliensis, vol. 2, p. 249.
14 – Francisco de Assis BARBOSA, Dom João VI e a Siderurgia no Brasil, pp. 52-73.

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Gilberto Bercovici

zida de produção mantiveram a pequena siderurgia em Minas Gerais pro-


duzindo essencialmente equipamentos agrícolas de ferro, expandindo-se
apenas extensivamente. No entanto, como dependia da mão de obra es-
crava, esse setor praticamente desaparece com o fim da escravidão15. A
indústria siderúrgica no Brasil durante o século XIX e o início do século
XX limitava-se, assim, a pequenas oficinas e fundições, com poucas uni-
dades de maior porte, incapazes de suprir a demanda interna16.

No contexto do processo de Independência, a Lei de 20 de outubro


de 1823 mantém em vigor no Brasil toda a legislação portuguesa anterior
a 25 de abril de 1821, até que fosse especialmente revogada. A legislação
colonial em relação às minas e jazidas foi, portanto, mantida pelo Estado
brasileiro. A Carta Imperial de 1824, inclusive, garantia expressamente
o direito de propriedade, em seu artigo 179, XXII, mas nada menciona
sobre a propriedade das minas e jazidas. No entanto, ao instituir como re-
gime político brasileiro a monarquia representativa (artigos 3, 11 e 12 da
Carta de 1824), os bens da Coroa portuguesa no Brasil foram transferidos
para a nova Nação brasileira. A manutenção da legislação portuguesa e
do domínio real (agora nacional) sobre as minas e jazidas foi confirmada
com a expedição do Decreto de 17 de setembro de 1824, que concedia a
exploração de lavras no Rio Grande do Sul e no Espírito Santo, sob as
mesmas regras vigentes no período colonial17.

A implantação da siderurgia no Brasil e a exploração adequada dos


seus recursos minerais foram temas que ganharam destaque com a criação
da Escola de Minas, em Ouro Preto (MG), em 1875. Embora a instalação
de uma escola de engenharia de minas e de mineralogia estivesse presente

15 – Douglas Cole LIBBY, Transformação e Trabalho em uma Economia Escravista, pp.


134-137, 139-152 e 160-178.
16 – Humberto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 60-62; Werner BAER,
Siderurgia e Desenvolvimento Brasileiro, pp. 78-82; Francisco Magalhães GOMES, His-
tória da Siderurgia no Brasil, pp. 87-109 e 141-148; Wilson SUZIGAN, Indústria Brasi-
leira: Origem e Desenvolvimento, pp. 272-274 e COMPANHIA VALE DO RIO DOCE,
A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, pp. 122-125.
17 – João Pandiá CALÓGERAS, As Minas do Brasil e Sua Legislação, vol. III, pp. 16-26
e Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas, pp. 510-
511.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

desde os debates da Independência, inclusive na Assembleia Constituinte


de 1823, a sua instituição foi determinada, ainda durante a Regência, pelo
Decreto de 3 de outubro de 1832. No entanto, a Escola de Minas só foi
efetivamente criada após o convite formulado ao francês Henry Gorceix
para que se tornasse seu diretor, em 6 de novembro de 1875. A partici-
pação da Escola de Minas de Ouro Preto, por meio de seus professores e
ex-alunos, nos debates sobre a legislação minerária e na implementação
das políticas que buscavam a consolidação da indústria siderúrgica no
país no final do século XIX e início do século XX, foi extremamente
relevante18.

A Constituição Republicana de 1891 rompeu com o sistema de pro-


priedade do subsolo até então vigente no Brasil e instituiu o chamado
regime de acessão, atribuindo ao proprietário do solo também a proprie-
dade do subsolo, ou seja, tornando as minas e jazidas acessórios da pro-
priedade superficial (artigo 72, §17)19. A crítica ao modelo republicano
está presente em autores como Pandiá Calógeras, para quem o dispositivo
constitucional, além de equivocado, era um acidente em nosso percurso
histórico. A Constituição de 1891, ao não manter a distinção entre pro-
priedade do solo e propriedade do subsolo, transferiu para as minas todas
as dúvidas e litígios existentes na propriedade superficial, sobrecarregada
de ônus e questionamentos sobre a regularidade de sua titulação, o que
inviabilizaria qualquer investimento na indústria mineral20.

A partir desta crítica, Calógeras sugere um regime de “acessão mi-


18 – Ver, por todos, José Murilo de CARVALHO, A Escola de Minas de Ouro Preto, pp.
37-39, 55, 117-121 e 124-129; Geraldo Mendes BARROS, História da Siderurgia no
Brasil – Século XIX, pp. 179-246 e Wilson SUZIGAN, Indústria Brasileira: Origem e
Desenvolvimento, p. 274.
19 – Artigo 72, § 17 da Constituição de 1891: "A Constituição assegura a brazileiros e
a estrangeiros residentes no paíz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberda-
de, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: § 17 — O direito de
propriedade mantem-se em toda a plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou
utilidade pública, mediante indemnização prévia.
As minas pertencem aos proprietarios do solo, salvas as limitações que forem estabeleci-
das por lei a bem da exploração deste ramo de industria".
20 – João Pandiá CALÓGERAS, As Minas do Brasil e Sua Legislação, vol. I, pp. IX-X;
vol. II, pp. 576-577 e 600-603.

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Gilberto Bercovici

tigada”. Em sua opinião, o direito de acessão das minas é decorrente da


lei e é por esta definido, devendo traçar os seus limites. A acessão precisa
ser considerada, assim, sob o duplo aspecto do proprietário do solo e da
indústria extrativa, como o próprio texto constitucional de 1891 estabe-
leceu. Para Calógeras, a Constituição de 1891 não instituiu a acessão ab-
soluta das minas ao solo nos terrenos de propriedade particular, mas teria
tornado dependente o exercício da propriedade do dono do solo sobre as
minas da elaboração de uma lei que criasse restrições de domínio peculia-
res às terras minerais, distintas da propriedade em geral21.

O Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, vinculado ao Minis-


tério da Indústria, Viação e Obras Públicas (posteriormente, a partir de
1909, ao Ministério da Agricultura), foi criado pelo Decreto nº 6.323, de
10 de janeiro de 1907, pelo Presidente Afonso Pena, com o propósito de
estudar cientificamente a riqueza geológica do país, praticamente desco-
nhecida. A sua chefia foi inicialmente exercida pelo geólogo norte-ameri-
cano Orville Derby. Em 1910, Orville Derby enviou ao XI Congresso Ge-
ológico Internacional, em Estocolmo, um relatório sobre as descobertas
de grandes jazidas de minério de ferro na região da Serra do Espinhaço,
próxima a Itabira, em Minas Gerais. O resultado deste relatório foi ter
chamado a atenção das potências industriais para a riqueza mineral brasi-
leira, especialmente no que dizia respeito ao ferro22.

Consciente da importância do ferro para a instauração de um sistema


industrial moderno, e autorizado pelo artigo 2º, XI, nº 18 da Lei nº 2.210,
de 28 de dezembro de 1909, Nilo Peçanha editou o Decreto nº 8.019, de
19 de maio de 1910, concedendo incentivos aos empresários que desejas-

21 – João Pandiá CALÓGERAS, As Minas do Brasil e Sua Legislação, vol. III, pp. 76-
110 e 147-188 e Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das
Minas, pp. 530-532.
22 – Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas, pp.
305-311; Afrânio do AMARAL, Siderurgia e Planejamento Econômico do Brasil, pp.
272-274; Edgard J. ROGERS, “Brazil’s Rio Doce Valley Project: A Study in Frustration
and Perseverance”, Journal of Inter-American Studies, vol. 1, nº 2, pp. 124-125; Hum-
berto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 107-108; Luciano MARTINS,
Pouvoir et Développement Économique, pp. 168-169 e Marta Zorzal e SILVA, A Vale do
Rio Doce na Estratégia do Desenvolvimentismo Brasileiro, p. 131.

380 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):373-414, jul./set. 2011


A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

sem estabelecer a indústria siderúrgica no país. Além de facilidades tribu-


tárias e fiscais, o Governo Federal se comprometia a reduzir os fretes do
transporte ferroviário da matéria-prima e do produto industrializado, faci-
litar a construção da infraestrutura de transportes necessária, além de dar
preferência aos produtos da usina siderúrgica estabelecida no país. Esta
política foi reiterada pelo Decreto nº 2.406, de 11 de janeiro de 1911, já no
Governo Hermes da Fonseca, que mantinha a autorização ao Presidente
da República para promover o estabelecimento de usinas siderúrgicas no
país, com a garantia de preferência na compra dos produtos destas usinas
pelo Poder Público, redução de tarifas e impostos, entre outras medidas. É
importante salientar que a iniciativa de Nilo Peçanha, segundo Sydenham
Lourenço Neto, marca o início do processo de politização do problema
siderúrgico nacional, pois configura a descrença do Estado brasileiro em
uma solução de mercado, que até então não tinha ocorrido, e não ocorre-
ria, para esta questão23.

Os principais interessados em explorar as jazidas minerais eram in-


gleses, que organizaram uma companhia, a Brazilian Hematite Syndicate,
que pretendia explorar a mineração do ferro em Itabira, com planos de
exportar 3 milhões de toneladas de minério por ano, e adquirir o controle
acionário da Estrada de Ferro Vitória-Minas, fundamental para o trans-
porte do minério até o litoral. O Presidente Nilo Peçanha concordou em
firmar um acordo de concessão com o grupo inglês, assinado em 30 de de-
zembro de 1909. Os termos do acordo estabeleciam a concessão da Estra-
da de Ferro Vitória-Minas, que deveria ser eletrificada, para a utilização
exclusiva pelo grupo inglês na exportação de até 3 milhões de toneladas
de minério de ferro por ano. Os ingleses também se comprometiam em
instalar um estabelecimento siderúrgico. Assim que obtiveram sua con-
cessão, os ingleses, em 1910, adquiriram a propriedade das terras em que
se situavam as jazidas de ferro e 73% das ações da estrada de ferro. O

23 – Luciano MARTINS, Pouvoir et Développement Économique, pp. 167-168; Wilson


SUZIGAN, Indústria Brasileira: Origem e Desenvolvimento, pp. 275-277; Sydenham
LOURENÇO Neto, Marchas e Contra-Marchas da Intervenção Estatal, pp. 68-71 e Mar-
ta Zorzal e SILVA, A Vale do Rio Doce na Estratégia do Desenvolvimentismo Brasileiro,
p. 130.

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Gilberto Bercovici

nome do grupo foi modificado, em 1911, para Itabira Iron Ore Company,
que se tornou a companhia responsável pela execução do contrato de con-
cessão com o Governo brasileiro, autorizada pelo Decreto nº 8.787, de 16
de junho de 1911. Após os estudos iniciais, no entanto, faltaram recursos
para a Itabira Iron junto a seus financiadores externos, que desejavam
uma garantia do Estado brasileiro em relação aos empréstimos que fariam
à Itabira Iron, garantia esta que o Governo brasileiro se recusou a forne-
cer. Sem recursos externos e com o início da Primeira Guerra Mundial,
muito pouco foi realizado pela Itabira Iron, que não cumpriu nenhuma de
suas obrigações assumidas no contrato de concessão24.

Pandiá Calógeras, em seu clássico estudo sobre a legislação mine-


rária brasileira, criticou a profunda indiferença existente no país sobre
o problema da indústria mineral25. A atenção para os recursos minerais
brasileiros vai ser obtida apenas com a Primeira Guerra Mundial, seja
pelos problemas de abastecimento e consequente elevação dos preços,
especialmente de carvão, aço e combustíveis, durante o conflito, seja pelo
receio de que as riquezas do país pudessem ser alvo da cobiça de nações

24 – Edgard J. ROGERS, “Brazil’s Rio Doce Valley Project: A Study in Frustration and
Perseverance”, Journal of Inter-American Studies, vol. 1, nº 2, pp. 125-127; Humberto
BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 125-128; Werner BAER, Siderurgia e
Desenvolvimento Brasileiro, pp. 91-92; Luciano MARTINS, Pouvoir et Développement
Économique, pp. 169-170; Liana AURELIANO, No Limiar da Industrialização, pp. 50-
51; Dermeval José PIMENTA, A Vale do Rio Doce e Sua História, pp. 27-34; Wilson SU-
ZIGAN, Indústria Brasileira: Origem e Desenvolvimento, pp. 277-278; COMPANHIA
VALE DO RIO DOCE, A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, pp. 154-
156; Sydenham LOURENÇO Neto, Marchas e Contra-Marchas da Intervenção Estatal,
pp. 78-79 e Marta Zorzal e SILVA, A Vale do Rio Doce na Estratégia do Desenvolvimen-
tismo Brasileiro, pp. 130-131. Além da Itabira Iron, dois industriais brasileiros, Carlos
Wigg e Trajano de Medeiros, obtiveram do Presidente Hermes da Fonseca, em fevereiro
de 1911, a concessão para a instalação de uma grande usina siderúrgica integrada, nos
termos do Decreto nº 2.406/1911. No entanto, a Câmara dos Deputados rejeitou a apro-
vação do contrato, entendendo que se criaria um virtual monopólio com financiamento
público, autorizando a rescisão do contrato ou a extensão das vantagens obtidas a todas as
demais empresas que se propusessem a atuar na siderurgia (artigo 83 da Lei nº 2.544, de
04 de janeiro de 1912). Com o impasse instalado, o contrato não foi executado, nem ofi-
cialmente anulado, mas nunca iria obter a aprovação legislativa necessária. Vide Luciano
MARTINS, Pouvoir et Développement Économique, pp. 170-171 e Wilson SUZIGAN,
Indústria Brasileira: Origem e Desenvolvimento, pp. 278-279.
25 – João Pandiá CALÓGERAS, As Minas do Brasil e Sua Legislação, vol. II, p. 573.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

ou grupos econômicos estrangeiros, muitos dos quais, inclusive, começa-


vam a se instalar no país.

O ferro estará no centro do debate sobre a exploração de recursos


minerais no Brasil. Calógeras já havia destacado a importância do ferro
como base de toda a indústria: quem possui ferro e pode produzi-lo está
apto a todos os empreendimentos. Deste modo, Calógeras entende que
o Estado deveria incentivar a iniciativa privada e promover a siderurgia
no Brasil, substituindo os fornecedores estrangeiros. O Estado também
deveria garantir mercado ao produto siderúrgico nacional, por meio de
uma política de compras públicas, além de políticas tarifária, tributária,
cambial, de transporte, de formação de pessoal e de atração de capital
estrangeiro. Com isto, inclusive, se intensificaria o poder produtor do nú-
cleo industrial brasileiro, devendo-se evitar a exportação de minério, mas
incentivando-se a exportação de produtos elaborados que demandassem
o desenvolvimento de um parque industrial26:
“Consideramos este o ponto capital de um programma de desenvo-
lução systematica de nossas chamadas riquezas mineraes: o garantir
mercado ao producto. Feito isto, nenhuma duvida póde existir sobre o
surto da industria correspondente; e na quadra actual, em que o gover-
no, por força das circumstancias, se tornou grande proprietario de vias
ferreas, que trafega por conta propria, isto é, se tornou grande con-
sumidor de rodas de carro, de tanques de deposito, de caixas d’agua,
de tubos, de canos de todos os typos, etc., é obvia a facilidade de
intervir naturalmente no mercado no sentido de reservar as encom-
mendas para as usinas brasileiras. Si destas, desde logo, não puderem
dar vasão ás encommendas, deem-lhe destas uma parte apenas, e seja
gradativamente augmentada a fracção, até que todo o material adquiri-
do pelo governo seja indigena. Quanto a receiar não possa o producto
manufacturado nacional competir com o extrangeiro, seria vão temor,
pois não sómente as provas já foram publicamente dadas, como, em
26 – João Pandiá CALÓGERAS, As Minas do Brasil e Sua Legislação, vol. II, pp. 247-
269 e 580-600. Sobre o debate em torno da siderurgia na Primeira República, ver Luciano
MARTINS, Pouvoir et Développement Économique, pp. 165-167. O Decreto nº 12.944,
de 30 de março de 1918, editado por Wenceslau Brás, foi outra medida de maior impor-
tância para incentivar a indústria siderúrgica no Brasil, prevendo a concessão de emprés-
timos do governo federal para a instalação de siderúrgicas de pequeno porte no país. Ver
Francisco Magalhães GOMES, História da Siderurgia no Brasil, pp. 149-151.

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occasiões de aperto, foram sempre as fabricas do Brasil que solveram


as crises da E. de F. Central quanto a material de transporte. O pon-
to está apenas em iniciar resolutamente esta politica economica, sem
desfallecimentos e com o proposito firme de leval-a até suas ultimas
consequencias.”27

Para Calógeras, como a Constituição havia adotado uma solução


equivocada, ela era insuficiente para o desenvolvimento da mineração no
Brasil. A elaboração de uma legislação sobre o aproveitamento dos recur-
sos minerais era uma terefa urgente, cuja única base objetiva deveria ser
“o aproveitamento de jazidas nossas com recursos nossos”28. A sua pro-
posta se tornou a “Lei Calógeras”, o Decreto nº 2.933, de 6 de janeiro de
1915, que tentou contornar os direitos absolutos do proprietário do solo,
considerando a propriedade da mina distinta da propriedade do solo29.
Apesar dos esforços, a “Lei Calógeras” nunca foi executada, recebendo
questionamentos sobre sua constitucionalidade no tocante ao regime ju-
rídico da propriedade30.

Em julho de 1919, em nome da Itabira Iron Ore Company, Percival


Farquhar, norte-americano famoso nos meios financeiros internacionais,
propôs ao Presidente Epitácio Pessoa a exportação do minério de ferro de
Itabira (cerca de 10 milhões de toneladas por ano) e a construção simul-
tânea de uma usina siderúrgica moderna, com capacidade de, no mínimo,
150 mil toneladas. O minério seria exportado pelo porto de Santa Cruz,
no Espírito Santo, cujas instalações seriam de uso exclusivo da Itabira

27 – João Pandiá CALÓGERAS, As Minas do Brasil e Sua Legislação, vol. II, pp. 582-
583.
28 – João Pandiá CALÓGERAS, As Minas do Brasil e Sua Legislação, vol. I, p. X, vol.
II, pp. 576-577.
29 – Artigo 2º do Decreto nº 2.933/1915: "Art. 2º – A mina constitue propriedade immo-
vel, distincta do sólo, sendo alienavel isoladamente. Os accessorios permanentemente
destinados á exploração, obras d'arte, construcções, machinas e instrumentos, animaes e
vehiculos empregados no serviço da mina, bem como o material de custeio em deposito,
são considerados immoveis".
30 – João Pandiá CALÓGERAS, As Minas do Brasil e Sua Legislação, vol. III, pp. 309-
334; Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas, pp.
534-539 e Alberto VENÂNCIO Filho, A Intervenção do Estado no Domínio Econômico,
pp. 133-134.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

Iron pelo prazo de 90 anos. Os mesmos navios que levariam o minério de


ferro brasileiro serviriam para trazer carvão norte-americano e europeu de
boa qualidade para a usina siderúrgica, a ser instalada próxima ao porto.
A Itabira Iron construiria a ferrovia até o porto e a usina siderúrgica.
Em compensação, teria o monopólio sobre o uso da ferrovia e do porto
para exportar o minério. A companhia teria, ainda, isenção de impostos
de importação sobre maquinário, matéria-prima ou equipamentos ferro-
viários e portuários, além de outras facilidades tributárias. O Governo
Epitácio Pessoa conseguiu autorização do Congresso Nacional para fazer
concessões à Itabira Iron (Lei nº 3.991, de 5 de janeiro de 1920, artigo
53, XXIV), desde que não acarretassem novos encargos para o tesouro,
subvenções ou garantia de juros. Como resultado das negociações, foi
elaborado um termo aditivo ao contrato de concessão da Itabira Iron,
autorizado pelo Decreto nº 14.160, de 11 de maio de 1920. O contrato foi
celebrado em 29 de maio de 192031.

No entanto, o contrato exigia que a companhia Itabira Iron também


obtivesse a concordância do Estado de Minas Gerais. E a principal resis-

31 – Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas, pp.
308-311; Edgard J. ROGERS, “Brazil’s Rio Doce Valley Project: A Study in Frustration
and Perseverance”, Journal of Inter-American Studies, vol. 1, nº 2, pp. 127-129; Hum-
berto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 115-117 e 132-133; Osny Duarte
PEREIRA, Ferro e Independência, pp. 27-31; Werner BAER, Siderurgia e Desenvolvi-
mento Brasileiro, pp. 92-93; Edmundo de Macedo Soares e SILVA, O Ferro na História
e na Economia do Brasil, pp. 76-78; John D. WIRTH, A Política do Desenvolvimento na
Era de Vargas, pp. 59-60; Luciano MARTINS, Pouvoir et Développement Économique,
pp. 171-174; Liana AURELIANO, No Limiar da Industrialização, pp. 51-52; Dermeval
José PIMENTA, A Vale do Rio Doce e Sua História, pp. 34-40; COMPANHIA VALE
DO RIO DOCE, A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, pp. 156-158;
Sydenham LOURENÇO Neto, Marchas e Contra-Marchas da Intervenção Estatal, pp.
79-81 e Marta Zorzal e SILVA, A Vale do Rio Doce na Estratégia do Desenvolvimentismo
Brasileiro, pp. 133-134. Para a versão do Presidente Epitácio Pessoa, em que este defende
o contrato com a Itabira Iron como necessário para o desenvolvimento da siderurgia no
país, vide Epitácio PESSOA, Pela Verdade, pp. 377-399. Já Percival Farquhar teve seus
pontos de vista defendidos pelo livro, nada isento e repleto de imprecisões históricas, do
norte-americano Charles A. GAULD, Farquhar, pp. 358-369. Epitácio Pessoa, ainda, ou-
torgou a concessão para exploração de uma usina para fusão de minério de ferro e fabri-
cação e laminação de aço pelo processo de altos fornos a madeira para a Usina Queiroz
Júnior Ltda. (antiga Usina Esperança), por meio do Decreto nº 15.493, de 23 de maio de
1922. Ver Francisco Magalhães GOMES, História da Siderurgia no Brasil, pp. 151-152.

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Gilberto Bercovici

tência ao plano de Farquhar viria do então Governador de Minas Gerais,


Arthur Bernardes. Bernardes pretendia que Minas Gerais sediasse a im-
plantação da siderurgia, não apenas servisse como fonte de extração do
minério de ferro. A implementação da usina siderúrgica era, deste modo,
sua prioridade. Já para Farquhar, a questão essencial era a exportação do
minério de ferro. A construção da ferrovia e a mineração deveriam ter
prioridade sobre a siderurgia. A oposição de Arthur Bernardes concreti-
zou-se por meio da Lei Estadual nº 750, de 23 de setembro de 1919, que
elevou, com base no artigo 9º, 1º da Constituição de 189132, o imposto
estadual sobre a exportação do minério de ferro, elevando os custos do
empreendimento de Farquhar33. A intenção de Bernardes era estimular a
implantação da siderurgia, preferencialmente em Minas Gerais, o que se
pode perceber da leitura do texto da Lei Estadual nº 750:
“Artigo 1º — Fica elevado a três mil réis por tonelada o imposto de
exportação de minério de ferro. Parágrafo único – Os minérios que se
destinarem aos estabelecimentos siderúrgicos da Nação ficam isentos
do imposto de exportação. Artigo 2º — Fica o Poder Executivo auto-
rizado a conceder às empresas que explorarem o minério para exporta-
ção, a redução, a trinta réis, do imposto de três mil réis por tonelada,
criado por lei, durante o prazo de vinte anos, desde que estabeleçam,
no território mineiro, usinas que transformem em ferro e aço pelo
menos 5% do minério a ser exportado. Artigo 3º — Os produtos ma-
nufaturados pelas usinas a que se refere o artigo antecedente, gozarão
de isenção de direitos de exportação, durante os dez primeiros anos.”
(grifos meus)

O Presidente Epitácio Pessoa, em 21 de junho de 1920, encaminhou


o contrato da Itabira Iron para que o Tribunal de Contas da União o re-

32 – Artigo 9º, 1º da Constituição de 1891: "Art 9º – É da competencia exclusiva dos


Estados decretar impostos: 1º) sobre a exportação de mercadorias de sua propria pro-
ducção".
33 – Edgard J. ROGERS, “Brazil’s Rio Doce Valley Project: A Study in Frustration and
Perseverance”, Journal of Inter-American Studies, vol. 1, nº 2, pp. 128 e 130-131; Hum-
berto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 128-129 e 137-138; ������������
John D. WIR-
TH, A Política do Desenvolvimento na Era de Vargas, pp. 60-61; Dermeval José PIMEN-
TA, A Vale do Rio Doce e Sua História, pp. 36-37; COMPANHIA VALE DO RIO DOCE,
A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, pp. 156 e 158-160 e Sydenham
LOURENÇO Neto, Marchas e Contra-Marchas da Intervenção Estatal, pp. 81-83.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

gistrasse. No entanto, o Tribunal de Contas se negou a fazê-lo, em virtude


da falta de anuência entre a companhia e o Estado de Minas Gerais. Em
27 de novembro, o Presidente Epitácio Pessoa solicitou novamente o re-
gistro, no que não foi mais uma vez atendido. Desta vez, o Presidente da
República simplesmente mandou executar o contrato, em 6 de dezembro
de 1920, com base no Decreto nº 13.868, de 12 de novembro de 1919.
O Tribunal de Contas o registrou sob protesto, submetendo seu ato ao
Congresso Nacional, pois entendia que, além da falta do aval de Minas
Gerais, as cláusulas do contrato ultrapassavam a autorização legislativa
concedida e seriam prejudiciais ao patrimônio nacional, com a institui-
ção de um monopólio privado no país34, o que, nas palavras do próprio
Epitácio Pessoa, não seria condizente com a realidade: “o monopolio da
Itabira, como monopolio defeso, é pura phantasia”35.

A desconfiança de que Farquhar jamais instalaria a usina siderúrgica,


limitando-se a explorar o minério de ferro e direcioná-lo para o mercado
internacional, logo se tornou um dos motivos para justificar a oposição ao
contrato da Itabira Iron. A construção de uma usina siderúrgica no Brasil,
com certeza, não estava nos planos de nenhum industrial vinculado ao
aço na Europa ou nos Estados Unidos36.

34 – Luciano MARTINS, Pouvoir et Développement Économique, pp. 174-175; Liana


AURELIANO, No Limiar da Industrialização, pp. 52-53; Dermeval José PIMENTA, A
Vale do Rio Doce e Sua História, pp. 39-40 e Sydenham LOURENÇO Neto, Marchas e
Contra-Marchas da Intervenção Estatal, p. 81. Para a justificativa dos seus atos e a crítica
aos argumentos do Tribunal de Contas, ver Epitácio PESSOA, Pela Verdade, pp. 383-
391.
35 – Epitácio PESSOA, Pela Verdade, p. 388. Para a defesa do monopólio da Itabira
Iron como um monopólio natural, que a lei não condenaria, ver Epitácio PESSOA, Pela
Verdade, pp. 388-389.
36 – Edmundo de Macedo Soares e SILVA, O Ferro na História e na Economia do Brasil,
pp. 78-79 e John D. WIRTH, A Política do Desenvolvimento na Era de Vargas, pp. 61
e 63-66. Ver, ainda, Osny Duarte PEREIRA, Ferro e Independência, pp. 31-35. Um dos
poucos historiadores econômicos a defender a proposta de Farquhar é Carlos Manuel
Peláez. Ver Carlos Manuel PELÁEZ, História da Industrialização Brasileira, pp. 175-
194. Nas palavras de Peláez: "O nacionalismo emocional e a ignorância por parte das
autoridades, interêsses encobertos por uma campanha xenófoba da imprensa, as ambi-
ções monopolísticas iniciais do grupo Itabira e fatôres exógenos, tais como as guerras e
a Depressão, tudo contribuiu para retardar a exportação do minério brasileiro. O único
resultado do caso Itabira foram as três décadas de discussões emocionais e burocráticas.

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Gilberto Bercovici

Arthur Bernardes não se opôs, no entanto, à proposta do grupo belga


ARBED (Aciéries Réunies de Burback-Eich-Dudelange), que, em 1921,
se comprometeu com a construção de uma usina siderúrgica em Minas
Gerais, mas à base de carvão vegetal. A diferença das propostas da AR-
BED e da Itabira Iron era marcante: os belgas não constituiriam um mo-
nopólio de fato, não buscavam a exportação de minério, mas sua indus-
trialização no país, usariam carvão nacional, embora de origem vegetal,
e se associavam a grupos industriais brasileiros. Foi constituída, assim,
a Companhia Belgo-Mineira, cuja usina foi construída em Monlevade e,
até os anos 1940, embora não produzisse os produtos pesados necessários
para a infraestrutura e a indústria de construção, foi a principal fornece-
dora de aço do país37.

Uma nova tentativa de regulamentar a exploração dos recursos mi-


nerais ocorreu com a Lei de Minas de 1921 (Decreto nº 4.265, de 15 de
janeiro de 1921), elaborada por Ildefonso Simões Lopes, então Ministro
da Agricultura. Simões Lopes procurou sistematizar e ampliar as possi-
bilidades abertas com a “Lei Calógeras”, seguindo suas linhas básicas,
inclusive na tentativa de distinção entre a propriedade do solo e a proprie-
dade da mina. Outra medida importante foi a instituição da obrigação de
concessão da lavra para todo aquele que desejasse explorar as minas de
propriedade da União (artigo 60 do Decreto nº 4.265/1921)38.
A Itabira Iron foi uma das maiores frustrações desenvolvimentistas da história econômica
da América Latina" in Carlos Manuel PELÁEZ, História da Industrialização Brasileira,
p. 194, grifos meus.
37 – Afrânio do AMARAL, Siderurgia e Planejamento Econômico do Brasil, pp. 332-
341; Humberto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 110-115 e 155-157;
Werner BAER, Siderurgia e Desenvolvimento Brasileiro, pp. 82-83 e 88; John D. WIR-
TH, A Política do Desenvolvimento na Era de Vargas, pp. 70-71; Luciano MARTINS,
Pouvoir et Développement Économique, pp. 175-176; Liana AURELIANO, No Limiar
da Industrialização, pp. 47-50; Francisco Magalhães GOMES, História da Siderurgia
no Brasil, pp. 189-195; Wilson SUZIGAN, Indústria Brasileira: Origem e Desenvolvi-
mento, pp. 284-286; COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, A Mineração no Brasil e a
Companhia Vale do Rio Doce, pp. 160-161 e Sydenham LOURENÇO Neto, Marchas e
Contra-Marchas da Intervenção Estatal, pp. 89-92.
38 – Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas, pp.
539-544. A distinção entre a propriedade do solo e a da mina estava prevista no artigo 5º,
caput do Decreto nº 4.265/1921: "Art. 5º – A mina constitue propriedade immovel, acces-
soria do solo, mas distincta delle".

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

Sob a Presidência de Arthur Bernardes, é baixado o Decreto nº 4.801,


de 9 de janeiro de 1924, que assumiu a implantação da siderurgia como
um problema nacional. Deste modo, a solução deveria ser obtida por meio
de concessões às empresas brasileiras:

Artigo 1º, II, V, VI, VII e VIII do Decreto nº 4.801/1924: “Art. 1º – É o


Poder Executivo autorizado a amparar a exploração industrial siderur-
gica e carbonifera existente, a facilitar o seu maior desenvolvimento
e a fundar novas usinas adequadas á producção moderna de aço, nos
termos das bases abaixo especificadas, podendo, para esse fim, reali-
zar as necessarias operações de credito. (...)
II. Promover, mediante concurrencia publica, a construcção de tres
usinas modernas com capacidade para a producção annual de 50.000
toneladas de aço cada uma; a primeira, no valle do Rio Doce, pre-
ferindo-se ahi o emprego de altos fornos electricos; outra, no valle
do Paraopeba, para altos fornos, a coke mineral, preferindo-se o de
carvão nacional; e a terceira, nas proximidades da região carbonife-
ra de Santa Catharina, para altos fornos, consumindo coke nacional.
Paragrapho unico. Para a escolha das pessoas ou emprezas que hajam
de construir essas usinas, além da idoneidade industrial e financeira,
exigirá o Governo que o contractante seja brasileiro e possua mina de
ferro ou de carvão em logar adequado, dentro da região designada,
com os elementos necessarios ao trabalho e á vida de um centro de
industria, verificada, no primeiro caso, a capacidade necessaria a uma
longa exploração e o teor do minerio de ferro; e, no segundo caso, a
importancia da jazida carbonifera, com a possibilidade de produzir
coke metallurgico. O contractante demonstrará tambem a sua capa-
cidade financeira para contribuir em tempo opportuno, com 20% da
quantia que o Governo reconheça, mediante a approvação de planos
e orçamentos, exclusivamente para occorrer ao custo da usina, seu
apparelhamento e dependencia indispensaveis. (...)
V. No contracto será estipulado que a propriedade das usinas auxi-
liadas e demais bens hypothecados seja brasileira de direito e de fac-
to, obrigando-se os contractantes, por si, herdeiros ou successores, a
manter essa obrigação emquanto ellas existirem ou forem por qual-
quer fórma exploradas as suas minas. Os titulos de sua propriedade,
quando em acções, quinhões ou outros, serão nominativos.
VI. O Governo dará preferencia de consumo para os productos das
usinas; isenção de impostos, tarifas reduzidas de transportes terrestres

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Gilberto Bercovici

e maritimos; construirá os trechos de estrada de ferro indispensaveis;


melhorará e apparelhará os portos de embarque e desembarque de
productos siderurgicos e de combustiveis; e melhorará as vias ferre-
as existentes e regularizará a navegação fluvial e maritima ligada ao
problema da siderurgia e dos combustiveis. Promoverá, além disso,
por todos os meios ao seu alcance, facilidades ao fabrico, transporte e
consumo de productos dessas usinas.
VII. O Governo fará as desapropriações necessarias á execução do
disposto nas clausulas anteriores e outras que, por utilidade ou ne-
cessidade publica, acautelem, no presente e no futuro, os interesses
superiores da União e os da sua defesa ou que dependam da posse
de quédas de agua, jazidas de ferro, de manganez e de combustiveis
quaisquer.
VIlI. O Governo poderá construir a usina do valle do Rio Doce, di-
rectamente. providenciando ulteriormente sobre a melhor fórma de
exploração.”

O decreto autorizava o Governo Federal a contratar a construção de


três usinas siderúrgicas, com capacidade anual de 50 mil toneladas de
aço, cada (uma em Santa Catarina e duas em Minas Gerais, no Vale do
Paraopeba e no Vale do Rio Doce, sendo que esta poderia ser construí-
da diretamente pelo Estado), dava preferência ao uso do carvão nacio-
nal, prorrogava as hipóteses de financiamento previstas no Decreto nº
12.944/1918 e determinava que o Governo privilegiaria o consumo dos
produtos das usinas brasileiras, além de isenção de impostos e redução
de tarifas, e se comprometeria com a construção de trechos de ferrovias
e aparelhamento de portos. O Presidente Arthur Bernardes, ainda, conso-
lidou, no texto do Decreto nº 17.095, de 21 de outubro de 1925, todos os
incentivos governamentais para a instalação e desenvolvimento da side-
rurgia. No entanto, apesar dos esforços governamentais, não foi construí-
da nenhuma das usinas siderúrgicas previstas39.
39 – Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas,
pp. 311-313; Luciano MARTINS, Pouvoir et Développement Économique, p. 177; Liana
AURELIANO, No Limiar da Industrialização, p. 53; Dermeval José PIMENTA, A Vale
do Rio Doce e Sua História, pp. 41-42; Francisco Magalhães GOMES, História da Side-
rurgia no Brasil, pp. 159-168; COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, A Mineração no
Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, p. 159 e Sydenham LOURENÇO Neto, Marchas
e Contra-Marchas da Intervenção Estatal, pp. 84-88. Sobre o consumo e a produção de

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

Arthur Bernardes tentou, ainda, reformar o artigo 72, §17 da Consti-


tuição de 1891, obtendo, durante a única reforma constitucional ocorrida
ao longo da vigência do texto de 1891, a aprovação da Emenda Constitu-
cional de 3 de setembro de 1926. Esta Emenda Constitucional alterou par-
cialmente a redação do artigo 72, §17, deixando seu texto mais restritivo
em relação ao capital estrangeiro, mas sem eliminar o regime jurídico da
acessão em relação à propriedade do subsolo:
Art. 72: “A Constituição assegura a brazileiros e a estrangeiros resi-
dentes no paíz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade,
á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: § 17
– O direito de propriedade mantem-se em toda a plenitude, salva a
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante inde-
mnização prévia.
a) As minas pertencem ao proprietario do solo, salvas as limitações
estabelecidas por lei, a bem da exploração das mesmas.
b) As minas e jazidas mineraes necessarias à segurança e defesa na-
cionaes e as terras onde existirem não podem ser transferidas a estran-
geiros”.

Com a Presidência de Washington Luís, em 7 de dezembro de 1927,


a Itabira Iron finalmente conseguiu assinar um contrato com o Governa-
dor de Minas Gerais, Antonio Carlos de Andrada, nos termos do Decreto
Estadual nº 8.045, de 8 de dezembro de 1928. O minério de ferro teria o
imposto de exportação reduzido, desde que 5% fossem transformados em
aço. A companhia também não teria mais exclusividade de transporte de
minério em suas ferrovias e portos e deveria organizar uma empresa sob
as leis brasileiras para explorar as minas e instalar a usina siderúrgica. A
Itabira Iron assinou um termo renunciando à exclusividade outorgada
pelo Governo Federal em 10 de novembro de 1928, o que permitiu ao
Congresso Nacional referendar o contrato impugnado pelo Tribunal de
Contas, por meio do Decreto nº 5.568, de 12 de novembro de 192840.
aço no Brasil na última fase da Primeira República e as esparsas e insuficientes iniciativas
de instalação de pequenas ou médias usinas siderúrgicas privadas, ver Wilson SUZIGAN,
Indústria Brasileira: Origem e Desenvolvimento, pp. 279-284 e 286-290.
40 – Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas, pp.
313-315; Humberto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 129-130; Osny
Duarte PEREIRA, Ferro e Independência, pp. 35-36; Luciano MARTINS, Pouvoir et Dé-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):373-414, jul./set. 2011 391


Gilberto Bercovici

A política deliberada a partir de 1930 será a da expansão econômica


via mercado interno, especialmente por meio da industrialização. Esta
visão não é, no entanto, consensual entre os historiadores econômicos.
A corrente principal, representada, entre outros, por Celso Furtado, en-
tende que há uma ruptura na política econômica a partir da Revolução
de 1930, com destaque à clássica análise da política de preservação do
setor cafeeiro para a manutenção dos níveis de renda na economia, favo-
recendo a internalização dos centros de decisão econômica e o processo
de industrialização41. Outros autores, como Carlos Manuel Peláez, vão
se dedicar a tentar desconstruir a interpretação de Celso Furtado, enfa-
tizando a importância do setor industrial já existente no país em 1930
e defendendo que a política econômica do Governo Provisório foi a de
manutenção da ortodoxia monetária, destacando a continuidade, e não as
distinções, entre a política econômica brasileira antes e depois de 193042.
Na realidade, os defensores da interpretação de manutenção da ortodo-
xia econômica estão analisando os discursos das autoridades da época,
sempre favoráveis à manutenção da estabilidade econômica, e não o sen-
tido e a atuação concreta do aparato estatal brasileiro. O nacionalismo
econômico brasileiro vai justamente se caracterizar pela busca de maior
independência econômica, cujo pressuposto era o controle do Estado so-
bre seus recursos naturais para beneficiar a economia nacional. A posição
do Brasil como exportador de matérias-primas, portanto, vulnerável às
oscilações do mercado internacional, deixou de ser vista como vantajosa.

veloppement Économique, pp. 178-179 e 186-187; Dermeval José PIMENTA, A Vale do


Rio Doce e Sua História, pp. 42-45; COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, A Mineração
no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, pp. 160-161 e Sydenham LOURENÇO Neto,
Marchas e Contra-Marchas da Intervenção Estatal, pp. 83-84.
41 – Celso FURTADO, Formação Econômica do Brasil, pp. 263-285; João Manuel Car-
doso de MELLO, O Capitalismo Tardio, pp. 108-117 e 168-173; Liana AURELIANO,
No Limiar da Industrialização, pp. 129-140; Wilson SUZIGAN, Indústria Brasileira:
Origem e Desenvolvimento, pp. 25-30 e 61-63 e Pedro Cezar Dutra FONSECA, Vargas:
O Capitalismo em Construção, pp. 172-176.
42 – Carlos Manuel PELÁEZ, História da Industrialização Brasileira, pp. 35-140 e Wil-
son SUZIGAN, Indústria Brasileira: Origem e Desenvolvimento, pp. 63-66. Ver, ainda,
para a crítica a esta visão, Wilson SUZIGAN, Indústria Brasileira: Origem e Desenvol-
vimento, pp. 66-69 e Pedro Cezar Dutra FONSECA, Vargas: O Capitalismo em Constru-
ção, pp. 176-181.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

E o Estado brasileiro vai ser reestruturado e atuar decisivamente para pro-


mover as transformações estruturais julgadas necessárias para solucionar
esta questão, especialmente buscando diversificar a economia por meio
da industrialização43.

Em termos de organização administrativa, a preocupação do Estado


nacional em assumir o controle sobre os recursos minerais do país irá se
manifestar na reestruturação do Ministério da Agricultura, promovida por
Juarez Távora, a partir de 1933. Foi criada a Diretoria Geral de Pesquisas
Científicas (Decreto nº 22.338, de 11 de janeiro de 1933), que incluía o
Serviço Geológico, substituída pela Diretoria Geral de Produção Mineral
(Decreto nº 23.016, de 28 de julho de 1933) e que, finalmente, foi trans-
formada no Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM (De-
creto nº 23.979, de 8 de março de 1934). A lógica por detrás desta reforma
era fortalecer a burocracia profissional e ampliar os padrões de atuação
técnica do Estado brasileiro44.

Uma série de medidas do Governo Provisório, como o Decreto nº


20.223, de 17 de julho de 1931, o Decreto nº 20.799, de 16 de dezembro
de 1931 e o Decreto nº 23.266, de 24 de outubro de 1933, suspendeu to-
dos os atos que implicassem alienação ou oneração de jazidas minerais.

43 – Celso FURTADO, Formação Econômica do Brasil, pp. 323-335; Caio PRADO Jr.,
História Econômica do Brasil, pp. 287-300; Octavio IANNI, Estado e Capitalismo, pp.
61-63; Stanley E. HILTON, "Vargas and Brazilian Economic Development, 1930-1945: A
Reappraisal of his Attitude Toward Industrialization and Planning", The Journal of Eco-
nomic History, vol. 35, nº 4, pp. 754-762 e 769-777; Sônia DRAIBE, Rumos e Metamor-
foses, pp. 94-95; Pedro Cezar Dutra FONSECA, Vargas: O Capitalismo em Construção,
pp. 181-202; Ricardo BIELSCHOWSKY, Pensamento Econômico Brasileiro, pp. 248-
259; Francisco Luiz CORSI, Estado Novo: Política Externa e Projeto Nacional, pp. 47-49
e 56-58 e Pedro Paulo Zahluth BASTOS, "A Construção do Nacional-Desenvolvimentis-
mo de Getúlio Vargas e a Dinâmica de Interação entre Estado e Mercado nos Setores de
Base", Revista EconomiA, vol. 7, nº 4, pp. 246-253. Ver também Attilio VIVACQUA, A
Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas, pp. 37-47.
44 – Gabriel COHN, Petróleo e Nacionalismo, pp. 14-15; John D. WIRTH, A Política
do Desenvolvimento na Era de Vargas, p. 120; Sylvio Fróes ABREU, Recursos Minerais
do Brasil, vol. 2, pp. 392-394 e COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, A Mineração no
Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, p. 173.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):373-414, jul./set. 2011 393


Gilberto Bercovici

A política estatal brasileira passava a buscar a viabilização do desenvol-


vimento pelo aproveitamento das riquezas do subsolo45.

O Ministério da Guerra, em 20 de janeiro de 1931, por meio do Aviso


nº 52, criou a Comissão Militar de Estudos Siderúrgicos, que deu im-
pulso para que o Governo Provisório instituísse, em 30 de outubro do
mesmo ano, a Comissão Nacional de Siderurgia, da qual participaram,
entre outros, Euzébio de Oliveira, do Serviço Geológico e Mineralógico,
o então Capitão Edmundo Macedo Soares e Silva e o ex-Ministro Pandiá
Calógeras. A Comissão realizou um levantamento da siderurgia nacional
no início da década de 1930, demonstrando a capacidade reduzidíssima
do setor já instalado46, o que tornava o país extremamente dependente
do fornecimento externo, apesar de paradoxalmente rico em minério de
ferro47.

Ao mesmo tempo em que buscava estudar a situação e as alternativas


possíveis para a indústria siderúrgica no Brasil, o Governo Provisório
teve que lidar com o polêmico contrato da Itabira Iron. A empresa não
havia cumprido nenhum dos compromissos e prazos assumidos, acarre-
tando a caducidade do contrato. Para evitar isto, a Itabira Iron pediu ao
Governo Provisório a prorrogação dos prazos contratuais por “motivos
de força maior”. Por sua vez, o novo Governador de Minas Gerais, Ole-
gário Maciel, anulou o ato de seu antecessor e declarou a caducidade
do contrato da Itabira Iron (Decreto Estadual nº 9.869, de 4 de março
de 1931). Embora também tenha declarado a caducidade do contrato da
Itabira Iron, por meio do Decreto nº 20.046, de 27 de maio de 1931, o
45 – COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, A Mineração no Brasil e a Companhia Vale
do Rio Doce, pp. 172-173 e Marta Zorzal e SILVA, A Vale do Rio Doce na Estratégia do
Desenvolvimentismo Brasileiro, pp. 134-135.
46 –���������������������������������������������������������������������������������
Para a análise do parecer e dos dados levantados pela Comissão Nacional de Side-
rurgia, ver Edmundo de Macedo Soares e SILVA, O Ferro na História e na Economia
do Brasil, pp. 84-89 e Francisco Magalhães GOMES, História da Siderurgia no Brasil,
pp. 201-214. Ver, ainda, Liana AURELIANO, No Limiar da Industrialização, pp. 111-
112; Wilson SUZIGAN, Indústria Brasileira: Origem e Desenvolvimento, pp. 290-294 e
Sydenham LOURENÇO Neto, Marchas e Contra-Marchas da Intervenção Estatal, pp.
103-109.
47 – Sobre este paradoxo, ver Werner BAER, Siderurgia e Desenvolvimento Brasileiro,
pp. 84-89.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

Governo Provisório decidiu pela realização de estudos para a revisão do


contrato, suspendendo seu ato.

O Ministério da Viação e Obras Públicas instituiu, em setembro de


1931, uma comissão revisora para estudar este contrato. Nova comissão
foi criada no final de 1933, propondo uma nova minuta de contrato, re-
duzindo a concessão da Itabira Iron à concessão de uma estrada de ferro
para exportação do minério, com obrigação de estabelecer o tráfego públi-
co geral. Esta proposta foi encaminhada em 17 de maio de 1935 à Câmara
dos Deputados para deliberação, mas nunca foi aprovada, em virtude do
fechamento do Congresso Nacional em 10 de novembro de 193748.

A grande modificação, no entanto, seria trazida com o Código de


Minas de 1934 (Decreto nº 24.642, de 10 de julho de 1934), que separou
a propriedade do solo da propriedade do subsolo (artigo 4º do Código de
Minas) e passou para o domínio da União todas as riquezas do subsolo
que não fossem objeto, ainda, de exploração (artigos 5º, §1º e §2º e 11 do
Código de Minas). Sua exploração só poderia ser feita, a partir de então,
mediante concessão do Governo Federal (artigo 3º do Código de Minas).
A propriedade do subsolo foi, deste modo, retirada da esfera privada e
nacionalizada. Ao nacionalizar o subsolo, o Código de Minas, segundo
Sônia Draibe, consistiu no passo inicial para que o Estado brasileiro pas-
sasse a atuar diretamente sobre os recursos naturais estratégicos passíveis
de exploração industrial49.

48 – Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas, pp.
315-320; Humberto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 130-139; Osny Du-
arte PEREIRA, Ferro e Independência, pp. 36-37; Edmundo de Macedo Soares e SILVA,
O Ferro na História e na Economia do Brasil, pp. 89-98; John D. WIRTH, A Política do
Desenvolvimento na Era de Vargas, pp. 66-68; Luciano MARTINS, Pouvoir et Dévelo-
ppement Économique, pp. 188-195; Dermeval José PIMENTA, A Vale do Rio Doce e Sua
História, pp. 49-52 e COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, A Mineração no Brasil e a
Companhia Vale do Rio Doce, pp. 180-181.
49 – Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas, pp.
575-581; Afrânio do AMARAL, Siderurgia e Planejamento Econômico do Brasil, pp.
274-275; Osny Duarte PEREIRA, Ferro e Independência, pp. 43-45; Gabriel COHN,
Petróleo e Nacionalismo, pp. 16-18; Medeiros LIMA, Petróleo, Energia Elétrica, Si-
derurgia: A Luta pela Emancipação – Um Depoimento de Jesus Soares Pereira sobre a
Política de Getúlio Vargas, pp. 58-59; Luciano MARTINS, Pouvoir et Développement

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):373-414, jul./set. 2011 395


Gilberto Bercovici

A Constituição de 1934, por sua vez, consagra, definitivamente, a


distinção entre a propriedade do solo e a propriedade do subsolo, em seu
artigo 11850. A competência para legislar sobre mineração e riquezas do
subsolo foi atribuída à União (artigo 5º, XIX, j), embora admitindo-se a
legislação estadual complementar (artigo 5º, §3º). No entanto, a explo-
ração das minas e jazidas, ainda que de propriedade privada (ou seja, as
que foram devidamente cadastradas nos termos do Código de Minas), por
determinação do artigo 119 da Constituição de 193451, passa a depender
de autorização ou concessão da União, na forma da lei52.

Entre a promulgação do Código de Minas e a implantação do Estado


Novo, há uma série de disputas sobre a exploração do subsolo brasileiro,
envolvendo a Administração Pública (especialmente o DNPM), empresá-
rios privados nacionais e interesses de grupos econômicos internacionais
(abstratos ou efetivos). Os interesses vinculados às empresas concessioná-

Économique, p. 283; Sônia DRAIBE, Rumos e Metamorfoses, pp. 95-96; COMPANHIA


VALE DO RIO DOCE, A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, pp. 173-
176 e Marta Zorzal e SILVA, A Vale do Rio Doce na Estratégia do Desenvolvimentismo
Brasileiro, p. 135.
50 – Artigo 118 da Constituição de 1934: "As minas e demais riquezas do sub-sólo, bem
como as quedas dagua, constituem propriedade distincta da do sólo para o efeito de ex-
ploração ou aproveitamento industrial".
51 – Artigo 119 da Constituição de 1934: "O aproveitamento industrial das minas e das
jazidas mineraes, bem como das aguas e da energia hydraulica, ainda que de proprie-
dade privada, depende de autorização ou concessão federal, na fórma da lei. § 1º – As
autorizações ou concessões serão conferidas exclusivamente a brasileiros ou a empresas
organizadas no Brasil, resalvada ao proprietario preferencia na exploração ou coparti-
cipação nos lucros. § 2º – O aproveitamento de energia hydraulica, de potencia reduzida
e para uso exclusivo do proprietario, independe de autorização ou concessão. § 3º — Sa-
tisfeitas as condições estabelecidas em lei, entre as quais a de possuírem os necessarios
serviços technicos e administrativos, os Estados passarão a exercer, dentro dos respecti-
vos territorios, a attribuição constante deste artigo. § 4º – A lei regulará a nacionaliza-
ção progressiva das minas, jazidas minerais e quedas dagua ou outras fontes de energia
hydraulica, julgadas basicas ou essenciaes á defesa economica ou militar do paiz. § 5º
– A União, nos casos prescriptos em lei e tendo em vista o interesse da collectividade,
auxiliará os Estados no estudo e apparelhamento das estancias minero-medicinaes ou
thermo-medicinaes".
52 – A única exceção a esta exigência constitucional estava prevista no próprio artigo 119,
§6º: "§ 6º – Não dependem de concessão ou autorização o aproveitamento das quedas da-
gua já utilizadas industrialmente na data desta Constituição, e, sob esta mesma ressalva,
a exploração das minas em lavra, ainda que transitoriamente suspensa".

396 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):373-414, jul./set. 2011


A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

rias de serviços públicos, particularmente a Light e a AMFORP, e às em-


presas do setor de mineração, no entanto, sofreriam uma grande derrota.
A contestação judicial da constitucionalidade dos Códigos de Minas e de
Águas, iniciada logo após sua edição, com base no argumento da promul-
gação posterior à da Constituição de 1934, não encontrou acolhimento
no Supremo Tribunal Federal. O Procurador-Geral da República, Gabriel
de Rezende Passos, rebateu a argumentação da inconstitucionalidade em
virtude da data de publicação, relembrando que ambos os Códigos foram
editados com base nos poderes discricionários excepcionais do Chefe do
Governo Provisório em 10 de julho de 1934, antes que a promulgação
da nova Constituição encerrasse o período do governo revolucionário.
A regularidade e validade dos atos legislativos editados até 16 de julho
de 1934 foi assegurada pelo próprio texto constitucional. A publicação,
que pode ser retardada pelos mais variados motivos, teria por fim tornar
a lei conhecida e obrigatória no seu cumprimento, seria uma formalidade
essencial, mas não uma condição de validade da lei, que decorreria de sua
sanção ou promulgação pela autoridade competente. O Supremo Tribu-
nal Federal decidiu no sentido de considerar constitucionais o Código de
Águas e o Código de Minas de 1934, nos julgamentos do Mandado de Se-
gurança nº 448/DF (Relator: Ministro Eduardo Espínola, julgado em 24
de setembro de 1937); do Agravo de Instrumento nº 7.878/RS (Relator:
Ministro Costa Manso, julgado em 5 de setembro de 1938); do Agravo de
Petição nº 7.886/PE (Relator: Ministro: Laudo de Camargo, julgado em
15 de setembro de 1938); e do Agravo de Petição nº 8.094 — Embargos
(Relator: Ministro Laudo de Camargo, julgado em 26 de dezembro de
1940), entre vários outros julgados na mesma direção53.

Alguns industriais nacionais, durante a década de 1930, propuseram


outras alternativas para tentar solucionar a “Questão Siderúrgica”. Ale-
xandre Siciliano Jr., por exemplo, em 1933, propôs a construção de uma
usina siderúrgica estatal com capacidade de 150 mil toneladas, em Juiz
de Fora (MG), além de uma usina para produção de coque (uma coque-
53 – Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas, pp.
545-546; Gabriel de Rezende PASSOS, Nacionalismo, pp. 45-46 e Alberto VENÂNCIO
Filho, A Intervenção do Estado no Domínio Econômico, pp. 134-135.

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Gilberto Bercovici

ria), a partir de carvão importado da Europa e, posteriormente, do carvão


nacional, em Entre Rios (RJ), contrariando a ideia de integração produti-
va. Outro projeto foi o de Henrique Lage, proprietário da maior parte das
minas de carvão de Santa Catarina. Em 1936, Lage propôs a constituição
de um consórcio nacional de aço, cujo capital seria proveniente das ex-
portações de minério de ferro. A sua proposta incluía a construção de três
usinas siderúrgicas, cuja produção conjunta seria de 150 mil toneladas
anuais, mas que poderiam ser expandidas até 500 mil toneladas anuais.
As usinas seriam situadas em Minas Gerais (na cidade de Gandarela, com
previsão de ser uma usina à base de carvão vegetal), no Paraná (em Anto-
nina, utilizando carvão catarinense) e no Rio de Janeiro (em Niterói, com
fornos siderúrgicos elétricos)54.

Percival Farquhar enfrentou, além da oposição do Governo brasi-


leiro, problemas sérios de financiamento para seus empreendimentos.
Em 1929, quando conseguiu o apoio de um consórcio internacional de
banqueiros, empresas siderúrgicas europeias e fornecedores norte-ameri-
canos de equipamentos, a crise da bolsa de Nova York inviabilizou seus
planos. Posteriormente, no decorrer da década de 1930, as siderúrgicas
norte-americanas (especialmente a Bethlehem Steel Company e a United
States Steel) não iriam se entusiasmar com seus planos, pois haviam ga-
rantido o fornecimento de minério de ferro da Venezuela. Dentre os seus
parceiros europeus, os que vão buscar aprofundar as negociações, a partir
de 1936, serão os alemães, por meio da Vereinigte Stahlwerke, com apoio
do Estado alemão, que se comprometeram a fornecer equipamento ferro-
viário, portuário e de mineração à Itabira Iron, em troca do transporte do
minério de ferro em navios alemães. No entanto, a oposição do Ministro

54 – Humberto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 149-151; Werner


BAER, Siderurgia e Desenvolvimento Brasileiro, pp. 95-96; John D. WIRTH, A Política
do Desenvolvimento na Era de Vargas, pp. 68-70; Luciano MARTINS, Pouvoir et Déve-
loppement Économique, pp. 176-177, 193-194 e Sydenham LOURENÇO Neto, Marchas
e Contra-Marchas da Intervenção Estatal, pp. 109-116. Sobre os vários projetos apresen-
tados na década de 1930 para lidar com o problema da implantação da siderurgia no Bra-
sil, ver, ainda, Afrânio do AMARAL, Siderurgia e Planejamento Econômico do Brasil,
pp. 276-286.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, a partir de 1938, irá encerrar


as tratativas de Farquhar55.

Em 1938, no início do Estado Novo, Getúlio Vargas expôs as três


alternativas possíveis para a “Questão Siderúrgica”:

“A solução do problema está, portanto, na grande siderurgia - grande


para nós, porque não poderá ser, é claro, a grande siderurgia alemã
ou norte-americana. Falta-nos carvão? Teremos de importá-lo, pelo
menos, enquanto o nosso não se ache em condições de substituí-lo.
Encontrar-se-á uma fórmula para compensar essa importação com a
exportação de minério. Esta é que não se deve fazer pura e simples-
mente. É a única arma que possuímos para interessar os grupos me-
talúrgicos estrangeiros na instalação da siderurgia nacional. Cumpre
utilizá-la com segurança e proveito. Resumindo as nossas considera-
ções, podemos concluir que a instalação siderúrgica póde ser feita:
1) pelo Estado, com o levantamento de capitais estrangeiros ou me-
diante financiamento à base de minério exportado; 2) com capitais
mixtos, do Estado e de emprêsas particulares nacionais; 3) por em-
prêsas particulares nacionais, com capitais próprios e estrangeiros, e
contróle do Estado. O Govêrno está disposto a resolver o problema e
pronto a receber quaisquer propostas idôneas, dentro das condições
indicadas.”56.

Para Vargas, portanto, seriam possibilidades viáveis para a implan-


tação definitiva da grande siderurgia no país a construção de uma usina
siderúrgica estatal, financiada com capital estrangeiro ou recursos pro-
venientes da exportação de minério de ferro; a construção de uma side-
rúrgica em conjunto pelo Estado e pela iniciativa privada nacional ou a

55 – Edgard J. ROGERS, “Brazil’s Rio Doce Valley Project: A Study in Frustration and
Perseverance”, Journal of Inter-American Studies, vol. 1, nº 2, pp. 131-132; Werner
BAER, Siderurgia e Desenvolvimento Brasileiro, pp. 93-94; John D. WIRTH, A Política
do Desenvolvimento na Era de Vargas, pp. 62-63 e 84 e Luciano MARTINS, Pouvoir et
Développement Économique, pp. 205-206. Para a versão de Farquhar, visto como "víti-
ma" de poderosos interesses financeiros internacionais aliados a grupos brasileiros que
não desejavam o desenvolvimento do país, vide Charles A. GAULD, Farquhar, pp. 382-
495.
56 – Getúlio VARGAS, "Problemas e Realizações do Estado Novo" in A Nova Política do
Brasil, vol. V, p. 180.

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Gilberto Bercovici

construção de uma siderúrgica pela iniciativa privada nacional, com ca-


pital próprio e capital estrangeiro, mas sob supervisão estatal. A situação
política internacional, de disputa entre a Alemanha e os Estados Unidos,
por maiores esferas de influência, iria ampliar a margem de manobra do
Governo brasileiro nas negociações para a implantação da siderurgia pe-
sada no país, favorecendo a solução exclusivamente estatal57.

O exame do problema siderúrgico no Conselho Técnico de Econo-


mia e Finanças, vinculado ao Ministério da Fazenda, ocorreu entre maio e
junho de 1938. Após a análise de várias propostas, o relator do Conselho
Técnico de Economia e Finanças, Pedro Demóstenes Rache, que havia
sido vinculado aos interesses de Percival Farquhar, tentou apresentar o
contrato original da Itabira Iron como a melhor solução para a implan-
tação da siderurgia no país. A reação dos demais membros do Conselho
Técnico de Economia e Finanças não foi, no entanto, favorável a Far-
quhar. Guilherme Guinle, por exemplo, foi enfático em seus pareceres
pela inconveniência da manutenção do contrato da Itabira Iron. Após os
debates, a solução proposta foi a de manter o contrato da Itabira Iron para
exportação do minério de ferro, com algumas modificações pontuais, des-
vinculando a construção da usina siderúrgica e a exportação de minério
de ferro. Pela primeira vez, oficialmente, um órgão público separava a
questão do minério do ferro da questão do aço. Enviado o relatório para
o Presidente Vargas, este decidiu, em agosto de 1938, ouvir o Conselho
Federal de Comércio Exterior e o Conselho de Segurança Nacional. Na
prática, estava rejeitando a solução proposta pelo Conselho Técnico de
Economia e Finanças 58.
57 – John D. WIRTH, A Política do Desenvolvimento na Era de Vargas, pp. 73-80. Ver,
ainda, Liana AURELIANO, No Limiar da Industrialização, pp. 53-54 e 112-113 e Pedro
Paulo Zahluth BASTOS, "A Construção do Nacional-Desenvolvimentismo de Getúlio
Vargas e a Dinâmica de Interação entre Estado e Mercado nos Setores de Base", Revista
EconomiA, vol. 7, nº 4, pp. 253-254. Sobre a preocupação de Getúlio Vargas com a si-
derurgia, entendendo-a como um dos principais problemas da economia brasileira, ver
Pedro Cezar Dutra FONSECA, Vargas: O Capitalismo em Construção, pp. 216-218 e
Francisco Luiz CORSI, Estado Novo: Política Externa e Projeto Nacional, pp. 70-72 e
141-143.
58 – Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas, pp.
320-324; Afrânio do AMARAL, Siderurgia e Planejamento Econômico do Brasil, pp.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

Na opinião de John Wirth, o Conselho Federal de Comércio Exterior


atuou como um “biombo administrativo para o Exército”. Em fevereiro
de 1939, o Conselho Federal de Comércio Exterior aprovou o monopólio
das exportações de minério de ferro como condição para a construção
de uma usina siderúrgica estatal. Foi aprovada a instituição do Instituto
Brasileiro do Aço, que regularia a produção interna de aço e a mineração
de ferro. A proposta aprovada tinha como objetivos exportar anualmente
2 milhões de toneladas de ferro e manganês, com o intuito de compensar
a importação de carvão e equipamentos europeus, a instalação de uma
usina siderúrgica à base de coque, no Rio de Janeiro ou Vale do Paraíba,
capaz de produzir inicialmente 180 mil toneladas de aço, e o fim de todas
as concessões feitas a estrangeiros, como a concessão da Itabira Iron. A
vulnerabilidade da proposta, no entanto, estava na dependência de gran-
des exportações de minério e da importação de carvão estrangeiro, o que
impediria a autossuficiência em caso de guerra59.

Enquanto a proposta do Conselho Federal de Comércio Exterior era


levada para o Conselho de Segurança Nacional, o Major Edmundo Ma-
cedo Soares e Silva partiu em missão oficial à Alemanha para tratar do
financiamento da construção de uma usina siderúrgica, preferencialmente

286-291; Edmundo de Macedo Soares e SILVA, O Ferro na História e na Economia do


Brasil, pp. 103-111; John D. WIRTH, A Política do Desenvolvimento na Era de Vargas,
pp. 80-82; Luciano MARTINS, Pouvoir et Développement Économique, pp. 204-209;
Dermeval José PIMENTA, A Vale do Rio Doce e Sua História, pp. 53-54; Francisco Ma-
galhães GOMES, História da Siderurgia no Brasil, pp. 214-215; COMPANHIA VALE
DO RIO DOCE, A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, pp. 181-182
e Sydenham LOURENÇO Neto, Marchas e Contra-Marchas da Intervenção Estatal, pp.
117-131.
59 – Edmundo de Macedo Soares e SILVA, O Ferro na História e na Economia do Bra-
sil, pp. 111-113; John D. WIRTH, A Política do Desenvolvimento na Era de Vargas, pp.
84-86; Luciano MARTINS, Pouvoir et Développement Économique, pp. 209-214; COM-
PANHIA VALE DO RIO DOCE, A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio
Doce, p. 182 e Sydenham LOURENÇO Neto, Marchas e Contra-Marchas da Intervenção
Estatal, pp. 131-136. Stanley Hilton discorda da interpretação de John D. Wirth, que atri-
bui aos militares brasileiros a liderança no processo de implantação da grande siderurgia
no país. Para Hilton, a principal preocupação dos militares no período era a aquisição de
armamentos, não sua fabricação. Cf. �����������������������������������������������������
Stanley E. HILTON, "Military Influence on Brazil-
ian Economic Policy, 1930-1945: A Different View", The Hispanic American Historical
Review, vol. 53, nº 1, pp. 71-94.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):373-414, jul./set. 2011 401


Gilberto Bercovici

estatal, no Brasil. Por sua vez, o Ministro das Relações Exteriores, Oswal-
do Aranha, seguiu para Washington com o mesmo objetivo. O resultado
de ambas as missões foi a promessa do Export-Import Bank de financiar o
equipamento da usina siderúrgica brasileira e o início das negociações, em
abril de 1939, com a United States Steel. A empresa norte-americana se
manifestou contrária à solução estatal e propôs uma companhia de capital
misto, brasileiro e americano, além do envio de uma missão técnica ao
Brasil. Após um ano de estudos, os americanos concluíram pela viabilida-
de de utilização do carvão brasileiro60 e pela localização da usina no pró-
prio Distrito Federal, em localidade situada a uma distância próxima das
jazidas de ferro de Minas Gerais e das minas de carvão de Santa Catarina,
além de possuir instalações portuárias e ferroviárias adequadas ou que
poderiam ser mais facilmente melhoradas. A proposta norte-americana
foi vista como superior às demais e, para garantir seu êxito, cancelou-se
a concessão da Itabira Iron definitivamente em 11 de agosto de 1939, por
meio do Decreto nº 1.50761.

No entanto, a United States Steel condicionou sua participação na


implementação da siderurgia pesada no Brasil a mudanças na legislação
nacionalista, especialmente a legislação relativa à exploração do subsolo.
Não só a Carta de 1937 havia mantido a nacionalização do subsolo nos
60 – Sobre o debate em torno da viabilidade da utilização do carvão nacional, proveniente
de Santa Catarina, ver Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal
das Minas, pp. 341-351; Afrânio do AMARAL, Siderurgia e Planejamento Econômico do
Brasil, pp. 312-321 e 325-331; Werner BAER, Siderurgia e Desenvolvimento Brasileiro,
pp. 58-60; Sylvio Fróes ABREU, Recursos Minerais do Brasil, vol. 2, pp. 350-379 e
Francisco Magalhães GOMES, História da Siderurgia no Brasil, pp. 168-175.
61 – Edmundo de Macedo Soares e SILVA, O Ferro na História e na Economia do Brasil,
pp. 127-133; Werner BAER, Siderurgia e Desenvolvimento Brasileiro, pp. 99-100; John
D. WIRTH, A Política do Desenvolvimento na Era de Vargas, pp. 87-91; Luciano MAR-
TINS, Pouvoir et Développement Économique, pp. 214-223; Dermeval José PIMENTA,
A Vale do Rio Doce e Sua História, pp. 54-55; COMPANHIA VALE DO RIO DOCE,
A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, pp. 182-186; Francisco Luiz
CORSI, Estado Novo: Política Externa e Projeto Nacional, pp. 143-147 e Sydenham
LOURENÇO Neto, Marchas e Contra-Marchas da Intervenção Estatal, pp. 136-144.
Para a descrição da missão de Edmundo de Macedo Soares e Silva à Europa e aos Estados
Unidos, ver Edmundo de Macedo Soares e SILVA, O Ferro na História e na Economia
do Brasil, pp. 114-122. Para a versão de Percival Farquhar, ver Charles A. GAULD, Far-
quhar, pp. 406-414.

402 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):373-414, jul./set. 2011


A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

seus artigos 143 e 14462, como a legislação promulgada durante o Estado


Novo reforçava as restrições à atuação do capital estrangeiro no setor.
Com o Estado Novo e a outorga da Carta de 1937, o Código de Minas de
1934 foi mantido em vigor expressamente pelo Decreto-Lei nº 66, de 14
de dezembro de 1937. Este Decreto-Lei exigiu, ainda, que as sociedades
de mineração tivessem como seus sócios ou acionistas brasileiros ou pes-
soas jurídicas brasileiras (artigo 2º, §1º)63. Em 29 de janeiro de 1940, foi
promulgado um novo Código de Minas (Decreto-Lei nº 1.985), caracteri-
zando-se por seu nacionalismo. A estrutura do Código de Minas de 1940 é
bem similar à do Código de 1934, consistindo, segundo Attilio Vivacqua,
em um aperfeiçoamento deste último. Seguindo o disposto no artigo 143,
§1º da Carta de 1937, o artigo 6º do Código de Minas determinava que as
sociedades de mineração só poderiam ter brasileiros como sócios64.
62 – A Carta de 1937 atribuiu à União a competência para legislar sobre minas e sua
exploração (artigo 16, XIV), embora os Estados também pudessem legislar de forma su-
plementar, e sem contrariar a legislação federal, sobre esta matéria (artigo 18, 'a'). Além
disto, foram atribuídos ao domínio federal todos os bens que já pertencessem à União
nos termos das leis em vigor (artigo 36, 'a'). Isto incluía as jazidas desconhecidas ou não
declaradas, nacionalizadas pelo Código de Minas de 1934 (em seus artigos 5º, §1º e §2º e
11). Além disto, o artigo 144 da Carta de 1937 constitucionalizou o artigo 85 do Código
de Minas de 1934, que previa a nacionalização progressiva das minas e jazidas considera-
das básicas ou essenciais econômica ou militarmente para o país: Artigo 144 da Carta de
1937 – "A lei regulará a nacionalização progressiva das minas, jazidas minerais e quedas
dágua ou outras fontes de energia assim como das indústrias consideradas básicas ou
essenciais à defesa econômica ou militar da Nação".
63 – Artigo 2º, §1º do Decreto-Lei nº 66, de 1937: "§1º – As sociedades para fins de
mineração poderão adotar qualquer forma admitida em lei, contanto que os sócios ou
acionistas sejam brasileiros ou pessôas jurídicas brasileiras, e as ações sejam sempre
nominativas".
64 – Artigo 143 da Carta de 1937: "As minas e demais riquezas do sub-solo, bem como
as quedas dágua constituem propriedade distinta da propriedade do solo para o efeito
de exploração ou aproveitamento industrial. O aproveitamento industrial das minas e
das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica, ainda que de propriedade pri-
vada, depende de autorização federal. § 1º – A autorização só poderá ser concedida a
brasileiros, ou empresas constituídas por acionistas brasileiros, reservada ao proprietá-
rio preferência na exploração, ou participação nos lucros." Vide Attilio VIVACQUA, A
Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas, pp. 551, 558-560, 568-574 e 581-
587; Alberto VENÂNCIO Filho, A Intervenção do Estado no Domínio Econômico, pp.
135-136; COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, A Mineração no Brasil e a Companhia
Vale do Rio Doce, pp. 176-177; Francisco Luiz CORSI, Estado Novo: Política Externa
e Projeto Nacional, p. 73 e Marta Zorzal e SILVA, A Vale do Rio Doce na Estratégia do
Desenvolvimentismo Brasileiro, p. 136. A única exceção ao regime das concessões ou au-

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Gilberto Bercovici

Embora não tenham sido esclarecidos os motivos, em janeiro de


1940, a United States Steel decidiu abandonar o projeto brasileiro65. A
discordância com a legislação minerária brasileira pode ter sido um dos
motivos, ou a principal razão, mas eles nunca foram explicitados. A de-
sistência da United States Steel fez com que o Presidente Getúlio Vargas
informasse ao Presidente Franklin Delano Roosevelt que o Brasil espera-
va e confiava no apoio norte-americano para solucionar a “Questão Side-
rúrgica”, mas que, se não encontrasse este apoio nos Estados Unidos, iria
examinar quaisquer outras alternativas que surgissem66.

Após a recusa da United States Steel, o Governo brasileiro tentou,


ainda, entabular negociações com outras companhias estrangeiras, inclu-
sive a alemã Krupp. A guerra europeia prejudicou as importações de aço
europeu, o que fez com que fosse constituída em 4 de março de 1940,
pelo Decreto-Lei nº 2.054, a Comissão Executiva do Plano Siderúrgico
Nacional, presidida por Guilherme Guinle, para dar início à organização
de uma companhia siderúrgica estatal67. O financiamento seria obtido na
Caixa Econômica Federal, nos Institutos de Aposentadorias e Pensões e
do orçamento especial de Obras Públicas. Parte dos recursos, no entan-
to, seria obtida do Governo norte-americano, por meio do Export-Import

torizações estava prevista expressamente no artigo 143, §4º da Carta de 1937: "§ 4º – In-
depende de autorização o aproveitamento das quedas dágua já utilizadas industrialmente
na data desta Constituição, assim como, nas mesmas condições, a exploração das minas
em lavra, ainda que transitòriamente suspensa".
65 – Humberto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 186-187; Werner BAER,
Siderurgia e Desenvolvimento Brasileiro, pp. 100-101; Edmundo de Macedo Soares e
SILVA, O Ferro na História e na Economia do Brasil, pp. 133-134; Luciano MARTINS,
Pouvoir et Développement Économique, pp. 223-225; Francisco Luiz CORSI, Estado
Novo: Política Externa e Projeto Nacional, pp. 147-151 e Sydenham LOURENÇO Neto,
Marchas e Contra-Marchas da Intervenção Estatal, pp. 144-145.
66 – John D. WIRTH, A Política do Desenvolvimento na Era de Vargas, pp. 91-94.
67 – Attilio VIVACQUA, A Nova Política do Sub-Solo e o Regime Legal das Minas, pp.
331-340; Humberto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 188-194; Edmundo
de Macedo Soares e SILVA, O Ferro na História e na Economia do Brasil, pp. 134-136;
Francisco Magalhães GOMES, História da Siderurgia no Brasil, pp. 246-268; COMPA-
NHIA VALE DO RIO DOCE, A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce,
pp. 183-184; Francisco Luiz CORSI, Estado Novo: Política Externa e Projeto Nacional,
pp. 151-158 e Sydenham LOURENÇO Neto, Marchas e Contra-Marchas da Intervenção
Estatal, pp. 145-146.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

Bank. Embora a concordância oficial dos norte-americanos com o finan-


ciamento tenha sido enviada em 31 de maio de 1940, as negociações só
foram concretizadas após o célebre discurso que Getúlio Vargas pronun-
ciou em 11 de junho de 1940, a bordo do encouraçado Minas Gerais, no
contexto das vitórias militares alemãs na Europa Ocidental. O Governo
norte-americano percebeu que se não financiasse o reaparelhamento das
Forças Armadas brasileiras e a instalação da usina siderúrgica, os ale-
mães, às vésperas de uma nada improvável vitória na guerra, certamente
o fariam. Em 26 de setembro de 1940, os Estados Unidos, por meio do
Export-Import Bank, comprometeram-se oficialmente em financiar a usi-
na siderúrgica estatal brasileira68.

Este financiamento estrangeiro à implantação da grande siderurgia


no Brasil traz interpretações distintas. Para Francisco Luiz Corsi, a es-
cassez de recursos e a oposição da elite dominante brasileira ao projeto
nacional-desenvolvimentista teriam levado Getúlio Vargas, inicialmente
favorável a desenvolver o país com base na mobilização dos capitais na-
cionais, a optar pelo financiamento externo, o que acabaria impedindo a
possibilidade de um desenvolvimento realmente autônomo. Ao mesmo
tempo em que os recursos existentes no país não eram suficientes, a ob-
tenção de financiamento externo também não seria fácil em um período
de conflito mundial, em que a própria elite e o governo estavam divididos
sobre a formação de alianças com os Estados Unidos ou com a Alema-
nha. A Segunda Guerra Mundial desfaria o impasse da aliança externa,
mas, ao mesmo tempo, impediria uma política mais independente, com o

68 – Afrânio do AMARAL, Siderurgia e Planejamento Econômico do Brasil, pp. 322-326;


Humberto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 194-205; Werner BAER,
Siderurgia e Desenvolvimento Brasileiro, pp. 101-103; Edmundo de Macedo Soares e
SILVA, O Ferro na História e na Economia do Brasil, pp. 138-143; John D. WIRTH, A
Política do Desenvolvimento na Era de Vargas, pp. 95-99; Luciano MARTINS, Pouvoir
et Développement Économique, pp. 225-230; Francisco Luiz CORSI, Estado Novo: Polí-
tica Externa e Projeto Nacional, pp. 158-164 e Sydenham LOURENÇO Neto, Marchas e
Contra-Marchas da Intervenção Estatal, pp. 146-148. Para a tradução integral da corres-
pondência formal do pedido de financiamento estabelecida entre Guilherme Guinle, Presi-
dente da Comissão Executiva do Plano Siderúrgico Nacional, e Jesse H. Jones, diretor do
Export-Import Bank, em 25 e 26 de setembro de 1940, ver Francisco Magalhães GOMES,
História da Siderurgia no Brasil, pp. 268-270.

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país tendo que se alinhar totalmente ao lado dos Estados Unidos, embora
conseguisse pressionar os norte-americanos para a obtenção de vantagens
para a industrialização, como o financiamento da implantação da siderur-
gia estatal69.

Para José Luís Fiori, justamente o financiamento internacional da


siderurgia pesada no Brasil, opção tomada graças à resistência do empre-
sariado nacional e à escassez de recursos próprios, teria marcado a im-
possibilidade de qualquer industrialização realmente autônoma no país.
A falta de articulação entre Estado e empresariado, vetada pelas elites
econômicas brasileiras, teria condicionado a industrialização brasileira
a um desenvolvimento associado ao capital internacional, não sendo um
projeto efetivamente nacional. Esta é também a clássica interpretação de
Luciano Martins sobre os limites da autonomia da economia brasileira:
rompe-se o bloqueio à industrialização nacional, mas, ao mesmo tem-
po, abre-se o mercado brasileiro ao grande capital de origem estrangeira.
Seria a primeira etapa do que se denominaria de “internalização da de-
pendência”, um modelo de desenvolvimento associado com a hegemonia
da grande empresa privada estrangeira e a formação e consolidação si-
multânea do setor produtivo estatal, criando os dois principais setores da
economia brasileira, o estatal e o internacionalizado70.

Em julho de 1940, após estudos do Coronel Macedo Soares, a Co-


missão Executiva do Plano Siderúrgico Nacional escolheu a localidade
de Volta Redonda, no Estado do Rio de Janeiro, para a instalação da usina
siderúrgica. A localização da futura Companhia Siderúrgica Nacional foi
69 – Francisco Luiz CORSI, Estado Novo: Política Externa e Projeto Nacional, pp. 17-
19, 136-139 e 280-294.
70 – Luciano MARTINS, Pouvoir et Développement Économique, pp. 245-254; Sérgio
Henrique ABRANCHES, "Governo, Empresa Estatal e Política Siderúrgica: 1930-1975"
in Olavo Brasil de LIMA Jr. & Sérgio Henrique ABRANCHES (coords.), As Origens
da Crise: Estado Autoritário e Planejamento no Brasil, pp. 172-173; José Luís FIORI,
"Sonhos Prussianos, Crises Brasileiras – Leitura Política de uma Industrialização Tardia"
in Em Busca do Dissenso Perdido, pp. 60-70 e 80-82 e José Luís FIORI, "Para uma Eco-
nomia Política do Estado Brasileiro" in Em Busca do Dissenso Perdido, pp. 134-138. Para
uma crítica a esta visão, ver Pedro Paulo Zahluth BASTOS, “Raízes do Desenvolvimen-
tismo Associado: Comentários sobre Sonhos Prussianos e Cooperação Panamericana no
Estado Novo”, Revista EconomiA, vol. 5, nº 3, pp. 290-316.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

justificada com base em argumentos de defesa militar, distância adequa-


da tanto dos fornecedores de insumos e matérias-primas como dos dois
grandes mercados consumidores do país e facilidade de transporte e de
fornecimento abundante de água71.

Ainda no contexto da Segunda Guerra Mundial, logo após o rompi-


mento das relações diplomáticas do Brasil com os países do Eixo, os Go-
vernos do Brasil, Estados Unidos e Inglaterra assinaram, em 3 de março
de 1942, os “Acordos de Washington”, em que se garantia o financiamen-
to e o fornecimento de equipamentos norte-americanos para a construção
da usina siderúrgica estatal brasileira e para a mineração e transporte em
grande escala de minério de ferro (1,5 milhão de toneladas por ano), que
deveria ser exportado preferencialmente para a Inglaterra e Estados Uni-
dos. O Governo inglês, por sua vez, desapropriou a Itabira Iron Ore Com-
pany e cedeu seus bens e propriedades no Brasil para o Estado brasileiro
(Decreto-Lei nº 4.324, de 21 de maio de 1942), que constituiu uma so-
ciedade de economia mista, a Companhia Vale do Rio Doce (Decreto-Lei
nº 4.352, de 1º de junho de 1942), encarregada de explorar e exportar o
minério de ferro72.

O primeiro presidente da Companhia Vale do Rio Doce, ainda deno-


71 – Humberto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 227-234; Werner
BAER, Siderurgia e Desenvolvimento Brasileiro, pp. 103-106; Edmundo de Macedo So-
ares e SILVA, O Ferro na História e na Economia do Brasil, pp. 136-138 e 157-159; John
D. WIRTH, A Política do Desenvolvimento na Era de Vargas, pp. 99-105 e Sydenham
LOURENÇO Neto, Marchas e Contra-Marchas da Intervenção Estatal, pp. 148-150.
72 – Os "Acordos de Washington" envolviam uma ampla cooperação entre os 3 países não
apenas no setor mineral, mas também no fornecimento de equipamentos militares, indus-
triais, matérias-primas como borracha e outros recursos naturais estratégicos. Ver Afrânio
do AMARAL, Siderurgia e Planejamento Econômico do Brasil, pp. 309-312; Edgard
J. ROGERS, “Brazil’s Rio Doce Valley Project: A Study in Frustration and Perseveran-
ce”, Journal of Inter-American Studies, vol. 1, nº 2, pp. 135-138; Humberto BASTOS,
A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 139-145; Osny Duarte PEREIRA, Ferro e Inde-
pendência, pp. 45-49 e 53; Luciano MARTINS, Pouvoir et Développement Économique,
pp. 232-233; Dermeval José PIMENTA, A Vale do Rio Doce e Sua História, pp. 78-95;
COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio
Doce, pp. 186-188; Francisco Luiz CORSI, Estado Novo: Política Externa e Projeto Na-
cional, pp. 214-218 e Marta Zorzal e SILVA, A Vale do Rio Doce na Estratégia do Desen-
volvimentismo Brasileiro, pp. 140-144. Para o texto básico dos "Acordos de Washington",
vide Dermeval José PIMENTA, A Vale do Rio Doce e Sua História, pp. 80-86.

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minado de superintendente, foi Israel Pinheiro, que deveria administrar


os bens incorporados ao patrimônio da União e providenciar as obras
necessárias para a melhoria do transporte ferroviário e portuário e ex-
plorar as minas de ferro de Itabira, buscando estruturar adequadamente
o complexo mina-ferrovia-porto. Foi constituído um fundo de melhora-
mento e desenvolvimento da região do vale do rio Doce, mantido com
parte dos lucros líquidos da empresa, que seria aplicado em projetos de
desenvolvimento regional elaborados em conjunto pelo Governo Federal
e os Governos Estaduais de Minas Gerais e do Espírito Santo (artigo 6º,
§7º do Decreto-Lei nº 4.352/1942)73.

Já a constituição da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), socie-


dade de economia mista federal, foi autorizada pelo Decreto-Lei nº 3.002,
de 30 de janeiro de 1941, dando início à estruturação da usina siderúrgica
estatal de grande porte. A construção da usina e da cidade industrial, ape-
sar dos percalços gerados pela guerra, foi concluída em tempo razoável,
sendo a CSN oficialmente inaugurada em 12 de outubro de 194674.

Ao contrário da criação das empresas estatais nos países europeus, a


estatização no Brasil significa também a constituição da própria atuação
empresarial nos vários setores da economia, internalizando o processo
de industrialização. O Estado brasileiro vai, simultaneamente, concentrar
recursos e constituir a base produtiva do país. Neste primeiro momento da
construção do Estado industrial no Brasil, as questões referentes à mine-
ração, siderurgia e petróleo se tornaram questões de Estado, vinculando a
73 – Sobre o início das atividades da Companhia Vale do Rio Doce, vide Dermeval José
PIMENTA, A Vale do Rio Doce e Sua História, pp. 107-123; Sulamis DAIN, Empresa Es-
tatal e Capitalismo Contemporâneo, pp. 140-146; COMPANHIA VALE DO RIO DOCE,
A Mineração no Brasil e a Companhia Vale do Rio Doce, pp. 188-193 e Marta Zorzal e
SILVA, A Vale do Rio Doce na Estratégia do Desenvolvimentismo Brasileiro, pp. 144-
149.
74 – Humberto BASTOS, A Conquista Siderúrgica no Brasil, pp. 207-225 e 247-255
e Francisco Magalhães GOMES, História da Siderurgia no Brasil, pp. 274-285. Sobre
as características da sociedade de economia mista Companhia Siderúrgica Nacional, ver
Waldemar Martins FERREIRA, A Sociedade de Economia Mista em seu Aspecto Contem-
porâneo, pp. 101-104. Para o relato da construção da usina siderúrgica de Volta Redonda,
e das dificuldades encontradas durante a guerra, vide Edmundo de Macedo Soares e SIL-
VA, O Ferro na História e na Economia do Brasil, pp. 147-167.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

exploração dos recursos minerais à política nacional de industrialização.


A criação das empresas estatais nestes setores, segundo Sulamis Dain,
busca dar uma solução conjunta à implantação da base da indústria pe-
sada e ao seu financiamento. O surgimento destas empresas estatais não
se dá sem acirrados debates políticos e, como no caso da Petrobras, após
uma forte mobilização popular a seu favor, o que proporcionou a estas
primeiras empresas grande legitimidade, inclusive permitindo a obtenção
de seus recursos iniciais a partir de mecanismos de poupança forçada
(recursos da previdência social, recursos provenientes da arrecadação de
impostos setoriais, etc). A importância da iniciativa estatal no processo de
industrialização brasileiro, para Caio Prado Jr., é insubstituível, embora
o Estado não tenha assumido integralmente a responsabilidade de estru-
turar uma economia efetivamente nacional. A presença do Estado irá se
materializar diante da ausência do capital privado nacional e em contra-
posição ao controle estrangeiro sobre os recursos minerais75.

Volta Redonda se tornou um símbolo da política industrial brasileira


e da mudança estrutural da economia brasileira com o objetivo da eman-
cipação econômica do país76. Política industrial esta voltada, a partir de

75 – Caio PRADO Jr., História Econômica do Brasil, pp. 320-322; Sulamis DAIN, Em-
presa Estatal e Capitalismo Contemporâneo, pp. 267-268, 276-277, 280-281 e 283-285;
Sônia DRAIBE, Rumos e Metamorfoses, pp. 125-128 e Marta Zorzal e SILVA, A Vale do
Rio Doce na Estratégia do Desenvolvimentismo Brasileiro, pp. 52-53, 124 e 126-127.
Vide também Wanderley Guilherme dos SANTOS, O Ex-Leviatã Brasileiro, pp. 29-33.
76 – John D. WIRTH, A Política do Desenvolvimento na Era de Vargas, pp. 105-109.
Ver, ainda, Sulamis DAIN, Empresa Estatal e Capitalismo Contemporâneo, pp. 133-136
e 281-283 e Pedro Cezar Dutra FONSECA, Vargas: O Capitalismo em Construção, pp.
269-271. Afrânio do Amaral, por exemplo, em 1946, entendia que a siderurgia poderia
transformar a estrutura econômica brasileira de tal forma que sua disseminação pelo in-
terior do país poderia promover um surto de desenvolvimento que deveria ser planejado
pelo Estado, acelerando a implementação de grandes reformas na educação, saúde, estru-
tura fundiária, etc. Ver Afrânio do AMARAL, Siderurgia e Planejamento Econômico do
Brasil, pp. 385-415. Na opinião de Sydenham Lourenço Neto, o caso da implantação da
usina siderúrgica estatal no Brasil é curioso: "A junção de um virtual oligopólio privado
com um virtual monopólio estatal – que logo se converteria em virtual oligopólio estatal –
criou um mercado potencialmente competitivo. Isto é, a intervenção estatal direta, mesmo
limitada pelo poder político dos produtores de aço, gerou um modelo mais próximo do
mercado livre do que anteriormente existia" in Sydenham LOURENÇO Neto, Marchas e
Contra-Marchas da Intervenção Estatal, p. 162.

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Gilberto Bercovici

1930, para a endogeneização do desenvolvimento e a internalização dos


centros de decisão econômicos, o que constituiria, mais tarde, parcela
essencial do programa de superação do subdesenvolvimento proposto
pela CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) e que seria
incorporado ao debate da política econômica brasileira da década de
1950 e início da década de 1960. Neste contexto, a industrialização bra-
sileira, cujo símbolo fundador foi Volta Redonda, seria desafiada a lidar
com novas questões para além de sua consolidação: as reformas neces-
sárias, por meio da coordenação do Estado, para modificar as estruturas
sócioeconômicas, bem como distribuir e descentralizar a renda, integran-
do, social e politicamente, a totalidade da população no processo de de-
senvolvimento. Escrevendo em 1958, em meio a este debate, Francisco
de Assis Barbosa é muito claro neste ponto:
“Em suma, a situação não é lá muito diferente do tempo em que José
Bonifácio e o Barão d’Eschwege postulavam o problema do ferro,
relacionando-o com o trabalho livre e a expansão do mercado interno.
Apenas agora a palavra Abolição deve ser substituída por duas outras:
Reforma Agrária.” 77

A insistente permanência destas tantas outras “questões” não resolvi-


das, apesar da “Questão Siderúrgica” ter sido solucionada, contribui para
reavivar o interesse sobre os limites e possibilidades da industrialização e
da atuação do Estado na periferia do capitalismo.

77 – Francisco de Assis BARBOSA, Dom João VI e a Siderurgia no Brasil, pp. 15-16.

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A “Questão Siderúrgica” e o papel do Estado na industrialização Brasileira

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Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação


em maio /2011.

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Interés argentino en la cultura jurídica brasileña a mediados del siglo XX:
El caso de la revista La Ley durante el quinquenio 1941-1945

Interés argentino en la cultura jurídica


brasileña a mediados del siglo XX: El caso de la
revista La Ley durante el quinquenio 1941-1945
Argentine interest in Brazilian juridical culture
in the mid-twentieth century: Case Study of the
Journal, La Ley, during the five-year period, 1941-1945
Ezequiel Abásolo 1

Resumo: Abstract:
Como expresión de una línea de investigación As the expression of a line of investigation that
que el autor desarrolla en torno de la perspectiva the author develops under an Argentine per-
argentina respecto de los productos y debates de spective, concerning the intellectual production
la cultura jurídica brasileña durante la prime- and debates over Brazilian juridical culture
ra mitad del siglo XX (fenómeno que hasta el during the first half of the Twentieth century (a
momento no había sido tenido en cuenta por los phenomenon that had not yet been taken into
iushistoriadores), aquí se examina de qué ma- account by historians), this paper will examine
nera una de las más prestigiosas publicaciones ways in which one of the most prestigious, pro-
profesionales editadas en Buenos Aires consi- fessional journals published in Buenos Aires,
deró el derecho del Brasil durante el quinque- took into consideration the Law in Brazil during
nio 1941-1945. En lo fundamental, se concluye the five-year period, 1941-1945. Basically, one
que teniendo como estímulo las propuestas del may conclude that, stimulated by legal compari-
comparativismo jurídico, los autores argentinos son proposals, the Argentine authors attentively
examinaron con mucha atención la legislación y examined Brazilian legislation and doctrine.
la doctrina brasileña. Imbuidos de un marcado Inspired by strong criticism and motivated by a
espíritu crítico y motivados por la búsqueda de search for proposals that would prove useful to
propuestas que resultasen útiles para su propia their own reality, the Argentines would praise
realidad, los argentinos solían elogiar la inde- the independence of Brazilian juridical thinking
pendencia del pensamiento jurídico brasileño y and its adequacy to the challenges coming from
su adecuación frente a los desafíos que proponía an ever changing social reality.
una cambiante realidad social.
Palavras-chave: Argentina – Cultura jurídica – Keywords: Argentina – Juridical Culture – His-
Historia del Derecho – Abogados. tory of Law - Lawyers.

Introducción
Ofrezco aquí un ensayo que se integra a una línea de investigación
que ya motivó una primera contribución durante el Segundo Encuentro
celebrado por el Instituto Latino Americano de Historia del Derecho y la
Justicia (Curitiba, 2009)2: me refiero a la recreación de la imagen argen-

1 – Doutor em Direito pela Universidade de Buenos Aires. Professor da Universidad


Católica Argentina. E-mail: ezequielabasolo@gmail.com.
2 – Se trata de la ponencia titulada El derecho brasileño visto con ojos argentinos. Las

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):415-427, jul./set. 2011 415


Ezequiel Abásolo

tina de la cultura jurídica brasileña durante las primeras cinco décadas de


la centuria pasada. Dicha línea ahora se incorpora a dos programas dife-
rentes. Uno de ellos recibe por nombre “La proyección iberoamericana
de la cultura jurídica europea y el caso argentino. Sus repercusiones en
los debates y las prácticas del derecho privado (1900-1950)”, y fue pro-
puesto para su aprobación por parte de la Agencia Nacional de Promoción
Científica y Tecnológica de la República Argentina. El otro lleva por ró-
tulo “Experiencias jurídicas en el derecho privado entre América Latina
y Europa en la primera mitad del siglo XX (1901-1945)”. Este último es
dirigido y financiado por el Max-Planck Institut für Europäische Rechts-
geschichte (Frankfurt am Main) y se ejecuta en el ámbito del Instituto de
Investigaciones de Historia del Derecho con sede en Buenos Aires. Ahora
bien, en esta oportunidad mi intención vuelve a consistir en evaluar la
actitud de los juristas argentinos frente a los productos legislativos y las
discusiones académicas generadas en el Brasil, objetivo que restrinjo a la
compulsa de lo reproducido en una prestigiosa publicación forense por-
teña durante el quinquenio 1941-1945.

Atento lo señalado, entiendo oportuno dejar en claro que por aquellos


días las propuestas teóricas del derecho comparado se erigían como refe-
rencia ineludible para los operadores jurídicos dotados de mayor sensibi-
lidad. En efecto, los juristas latinoamericanos solían incursionar en esta
disciplina, en tanto asumían que sus enseñanzas proporcionaban argu-
mentos ilustrativos y estimulantes que valía la pena tener presentes para
enriquecer los respectivos debates normativos nacionales3. En particular,
en el caso argentino la preocupación por el derecho comparado resultaba
manifiesta4. Efectivamente, entre los argentinos se proclamaba que el cul-
perspectivas de la revista La Ley durante sus primeros cinco años (1936-1940).
3 – Sobre el papel asumido en la época por el derecho comparado en tanto que disci-
plina científica, sugiero la consulta de PETIT, C.. Lambert en la Tour Eiffel, o el derecho
comparado de la belle époque. In: PADOA-SCHIOPPA, A. La comparazione giuridica
tra Ottocento e Novecento. Milano, Istituto Lombardo de Scienze e Lettere, 2001. Para su
impacto en nuestra región, véase RAMOS NÚÑEZ, C. Los orígenes de la disciplina del
Derecho Comparado en América Latina. Pponencia presentada al XV Congreso Latinoa-
mericano de Derecho Romano.
4 – Véanse, entre otros, La Ley, t. 22, p. 1, sección revista de revistas. La Ley. Buenos
Aires [en adelante, La Ley]. t. 28, p. 1167. octubre-diciembre de 1942. BARCIA LÓPEZ,

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Interés argentino en la cultura jurídica brasileña a mediados del siglo XX:
El caso de la revista La Ley durante el quinquenio 1941-1945

tivo de esta orientación constituía “un medio para acrecer la experiencia


jurídica”, y que brindaba “un factor de eficacia para la unificación legis-
lativa entre los pueblos”5. También se proclamaba su importancia para
“familiarizarnos con otros sistemas de derecho” y “como un medio de lle-
gar a una mejor comprensión de nuestras propias instituciones legales”.
De allí que se le augurara “un gran futuro ... en este moderno camino en
el que se abre una perspectiva amplia por la comparación jurídica de las
leyes y los casos”6. Por otra parte, la relevancia de este tipo de saberes
se incrementaba al tiempo que para mediados de siglo XX el panorama
jurídico occidental se teñía de unas notas sombrías, en las que campeaban
la angustia y la desazón de los más empinados doctrinarios. Bien reflejan
el aludido estado de ánimo las palabras del consagrado Louis Josserand,
quien tras señalar que la vida jurídica era “creación continua”, no trepi-
daba en asegurar que los “viejos cuadros” se hundían “por todas partes”,
y que la sociedad contemporánea aspiraba “legítimamente a revestir una
armadura jurídica completamente distinta que la empleada por la Roma
de los Antoninos y los Severos”7.

Amén de lo referido, me parece necesario subrayar también que el


interés jurídico argentino por lo brasileño no era algo nuevo hacia co-
mienzos de la década de 1940. En efecto, para la época contaba con varias
décadas de preocupaciones previas. Por cierto, menudeaban los juristas
argentinos, o afincados en la Argentina, que recurrían de manera más o
menos habitual a la compulsa del derecho brasileño8. En este orden de co-
A. El estudio comparativo de los derechos privados de América para su unificación inter-
nacional. La Ley. t. 32, p. 1000 y ss. octubre-diciembre de 1943.
5 – La Ley. t. 28, p. 1167. octubre-diciembre de 1942.
6 – A.R.B. Comentario a Bartholomew Landheer, El derecho comparado en América La-
tina (American Bar Association Journal, febrero de 1941). La Ley. t. 22, pp. 1 y 2, sección
revista de revistas. Abril-junio de 1941.
7 – La Ley. t. 2, sección doctrina. 1936.
8 – Cfr. entre otros, JIMÉNEZ DE ASÚA, L. El ´delito de contagio venéreo´. La Ley. t.
24, p. 113, sección doctrina. octubre-diciembre de 1941, cita el artículo 130 del código
penal del Brasil de 1940. JIMÉNEZ DE ASÚA, L., al ocuparse del aborto. La Ley. t. 26, p.
990. abril-junio de 1942. MADUEÑO, R. La legislación forestal en las Américas. La Ley.
t. 27, p. 1035. julio-septiembre de 1942. TERÁN LOMAS, R. Definición del adulterio.
La Ley. t. 27, p. 1065. julio-septiembre de 1942. TERÁN LOMAS (citando la exposición
de motivos del código penal del Brasil), R. Beccaria y los conceptos fundamentales del

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):415-427, jul./set. 2011 417


Ezequiel Abásolo

sas, cabe señalar que las obras o los trabajos brasileños consultados solían
ser de reciente factura, lo cual nos remite a la constante actualización de
los materiales brasileños examinados en la Argentina.

Atento lo señalado hasta aquí, anticipo que en esta oportunidad mi


intención es registrar el elenco de normas, y de autores y temas brasi-
leños tenidos en cuenta por destacados expertos argentinos de la época;
indagar en los motivos que los llevaron a examinar los puntos de vista
brasileños; e identificar los criterios que aplicaron al aprobar y/o rechazar
las contribuciones normativas y las reflexiones doctrinarias elaboradas en
el Brasil.

Los materiales jurídicos oriundos del Brasil en La Ley


Lo primero a considerar es qué tipo de materiales brasileños fueron
considerados en la revista La Ley. En este sentido, es cierto que en algu-
nas oportunidades se reprodujo legislación9, y en otras, jurisprudencia10.
Sin embargo, no caben dudas que el punto focal de atención se centró en
el examen de la doctrina.

En cuanto a la normativa brasileña que más inquietudes desper-


tó en la hora no sólo corresponde hablar de la constitución de 193711,
sino también de los contenidos, alcance y filosofía del código penal bra-
sileño de 194212. Acerca de él dijo uno de sus redactores que reflejaba
una combinación “entre diversos postulados y criterios, teóricamente
inconciliables”13. En cuanto a este código, también se subrayó que su

derecho penal. La Ley. t. 32, p. 986. octubre diciembre de 1943.


9 – Cfr. La Ley. t. 23, p. 4, sección legislación, y t. 24, p. 16, sección legislación.
10 – Cfr. la reproducción de una sentencia paulista, traducida y comentada por WINIZKY,
I. La Ley. t. 34, p. 923 y ss. octubre-diciembre de 1944.
11 – La Ley. t. 25, p. 1029. enero-marzo de 1942. La Ley. t. 26, pp. 1104 y 1170. abril-
junio de 1942.
12 – La Ley. t. 24, p. 113, sección doctrina. octubre-diciembre de 1941. La Ley. t. 26, p.
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13 – La Ley. t. 27, p. 1053. julio-septiembre de 1942.

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Interés argentino en la cultura jurídica brasileña a mediados del siglo XX:
El caso de la revista La Ley durante el quinquenio 1941-1945

pragmatismo14 habría evitado que se ciñese “a las cartillas ortodoxas”,


eludiendo así caer en “compromisos incondicionales” con las “corrientes
doctrinarias que se disputa[ba]n el acierto en la solución de los problemas
penales”15. Asimismo, también resultaron merecedores del aprecio argen-
tino el código de procedimiento civil, el código de procedimiento penal,
y el anteproyecto de código de obligaciones de los doctores Nonato, Aze-
vedo y Guimaraes16.

Entre los juristas brasileños más reconocidos en las páginas de La


Ley debe mencionarse en primer lugar a Clovis Bevilaqua. Bien explica-
ba un columnista de la revista que “presentar a Clovis Bevilaqua al jurista
argentino es innecesario. En efecto, después del Brasil, es acaso en la
Argentina en donde su gran personalidad es más admirada”. A renglón se-
guido el mismo comentarista citaba a algunos de los doctrinarios riopla-
tenses que seguían la obra de Clovis con atención: Enrique Martínez Paz,
Alfredo Colmo, Eduardo Prayones, Jesús H.Paz, Héctor Lafaille, Honorio
Silgueira e Isidoro Ruiz Moreno17. Ahora bien, entre los demás expertos
brasileños también leídos frecuentemente en el Plata corresponde referir
a Eduardo Spinola18; a Adamastor Lima -profesor en Río de Janeiro y
director de la Revista do Direito Comercial-19; y a Nelson Hungría20. Este
último, ponderado en tanto que destacado integrante, junto con Alcántara
Machado, Vieira Braga, Marcelio de Queiroz y Roberto Lira, del grupo
de “ilustres penalistas brasileños” responsables de redactar el código de

14 – La Ley. t. 31, p. 1156. julio-septiembre de 1943.


15 – La Ley. t. 27, p. 1177. julio-septiembre de 1942.
16 – La Ley. t. 25, p. 1029. enero-marzo de 1942. TULLIO LIEBMAN, E. El proceso civil
en Brasil. La Ley. t. 28, p. 959 y ss. octubre-diciembre de 1942. La Ley. t. 30, p. 1101.
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17 – SILVEIRA, A. Clovis Bevilacqua frente al pensamiento jurídico actual. La Ley. t. 35,
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18 – SILVEIRA, A. La equidad frente al derecho positivo. La Ley. t. 32, p. 1065. octubre-
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19 – Cfr. M.L.D. Comentario a la quinta edición del Codigo Comercial Brasileiro. La Ley.
t. 25, p. 1011. enero-marzo de 1942.
20 – La Ley. t. 27, pp. 1146 y 1153. julio-septiembre de 1942. La Ley. t. 29, p. 988. enero-
marzo de 1943. La Ley. t. 30, p. 1128. abril-junio de 1943. TERÁN LOMAS, R. El nuevo
código penal del Brasil. cit. p. 1098. La Ley. t. 37, pp. 957 y 958. enero-marzo de 1945.

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Ezequiel Abásolo

194221. Por otra parte, en La Ley también se tomaba nota de la reproduc-


ción brasileña de artículos u obras de distinguidos autores extranjeros,
en general europeos. Esta fue la situación de algunos trabajos de Tullio
Ascarelli22 -al parecer, uno de los juristas más respetados en el Brasil-, de
Louis Josserand23, y de Leon Mazeaud24.

En la Argentina también se tenían muy en cuenta las ocasiones en las


que los brasileños se remitían a las ideas, a las instituciones, y a los auto-
res nacionales, o que actuaban en el país. Así sucedía con el proyecto de
código penal redactado por los doctores Coll y Gómez25. Algo semejante
acontecía con doctrinarios como Luis Jiménez de Asúa26, Juan Carlos Ré-
bora27, Alberto Spota y Leonardo Colombo28. Mención especial merece
la atención conferida a Antonio Dellepiane, en la medida en que su Nova
teoría da prova, traducida al portugués por Erico Maciel -miembro de la
Sociedad de Criminología de Rio Grande do Sul-, fue publicada en 1942
en Rio de Janeiro por la editorial Livraria Jacintho. Bien se aseguró en-
tonces, que “en ninguna forma se trabaja[ba] mejor por el acercamiento
espiritual de dos pueblos”29 que impulsando este tipo de ediciones.

Cuestión aparte fue la de la reseña de la producción intelectual apa-


recida en las revistas científicas y profesionales brasileñas. Durante el
período que aquí se estudia en La Ley se comentaron 137 artículos pro-
cedentes del Brasil. Esto significa un 12,7% del total de las 1075 reseñas
efectuadas durante el quinquenio. Indudablemente, la mayor atención ar-

21 – TERÁN LOMAS, El nuevo código penal del Brasil. cit. p. 1087.


22 – La Ley. t. 24, p. 16, sección revista de revistas. La Ley. t. 27, p. 1156. julio-septiembre
de 1942. La Ley. t. 28, p. 1167. octubre-diciembre de 1942. DEVEALI, M. Comentario a
la edición paulista de su Teoría geral dos titulos de credito. La Ley. t. 39, pp. 1142-1145.
abril-junio de 1945.
23 – La Ley. t. 24, p. 3, sección revista de revistas.
24 – La Ley. t. 21, p. 1, sección revista de revistas.
25 – La Ley. t. 28, p. 1176. octubre-diciembre de 1942.
26 – La Ley. t. 21, p. 1, sección revista de revistas.
27 – La Ley. t. 21, p. 6, sección revista de revistas.
28 – Los dos últimos autores mencionados fueron tenidos en cuenta por Avio Brasil en
su obra O dano moral, no direito brasileiro. Cfr. La Ley. t. 36, pp. 1170 y 1171. octubre-
diciembre de 1944
29 – La Ley. t. 29, p. 981. enero-marzo de 1943.

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Interés argentino en la cultura jurídica brasileña a mediados del siglo XX:
El caso de la revista La Ley durante el quinquenio 1941-1945

gentina recayó en los artículos de la Revista Forense, de Rio de Janeiro,


como que ellos suscitaron unos 111 comentarios (esto significa un 81 %
del total de la producción brasileña de la que se dio noticia en La Ley).
Otras publicaciones cuyos artículos merecieron difusión en la Argentina
fueron Forum (editada por la Orden dos Advogados de Bahia)30, la Revista
de Direito Comercial31 -a la que se calificaba de “conocida” en el país32-,
la Revista de Identificaçao, publicada en Minas Gerais33, la Revista da
Faculdade de Direito de Sâo Paulo34, la Revista da Faculdade de Direito
de Bahía35, Justitia de Sâo Paulo36, y la Revista do Direito Eletrico de Rio
de Janeiro37. En este orden de cosas, no está de más reparar en los temas
que abordaban los artículos sometidos al examen bibliográfico. De todos
ellos, un 30% se refería a derecho penal, un 18% a derecho civil, un 16%
a derecho procesal, un 12,4% a derecho comercial, un 6,5% a derecho
laboral y un 7,3% a derecho administrativo.

30 – La Ley. t. 21, p. 10, sección revista de revistas.


31 – La Ley. t. 24, p. 20, sección revista de revistas. La Ley. t. 36, p. 1189. octubre-diciem-
bre de 1944.
32 – Cfr. el comentario de M.L.D. a la quinta edición del Codigo Comercial Brasileiro.
La Ley. t. 25, p. 1011. enero-marzo de 1942.
33 – La Ley, t. 25, p. 1027. enero-marzo de 1942.
34 – V.gr., La Ley. t. 27, p. 1147. julio-septiembre de 1942.
35 – V.gr., La Ley. t. 27, p. 1155. julio-septiembre de 1942.
36 – La Ley. t. 38, p. 1187. abril-junio de 1945.
37 – V.gr., La Ley. t. 40, p. 1204. octubre-diciembre de 1945.

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Ezequiel Abásolo

Cabe referir, por último, que una interesante vía de introducción de la


temática brasileña en La Ley consistió en abrir las columnas de la revista
a la colaboración de juristas del Brasil. En este sentido, cabe recordar que
actuaron como colaboradores Alipio Silveira38, Helvecio Xavier Lopes39
y Rubens Gomes de Sousa40. Asimismo, también se reprodujeron trabajos
de juristas no brasileños pero que por aquel entonces residían en el Bra-
sil41. Este fue el caso del profesor Enrico Liebmann, antiguo profesor de
la Universidad de Parma con actuación docente en Sâo Paulo42.

Evaluación de los contenidos


Habitualmente, el standard de modelo de análisis aplicado al examen
de los materiales brasileños consistía en aludir a la situación contempo-
ránea de la cultura jurídica, aprovechando la orientación trazada por uno
o más expertos europeos – en general, franceses o italianos –; describir
el contenido del trabajo u obra reseñado; y concluir después con alguna
reflexión final, en la cual se solía ensayar una comparación con la Argen-
tina, o evaluar –y eventualmente, criticar- la situación jurídica existente
en el país. Así, por ejemplo, el referirse a un estudio brasileño sobre la
administración de justicia penal, el comentarista argentino afirmaba: “El
tema es viejo, pero en lo que concierne al Brasil ha dejado ya de ser un
asunto de opinión para constituir una necesidad urgente e ineludible. El
nuevo código ha planteado las cosas en forma tal que ya no puede mante-
nerse la discusión sobre lo que debe ser objeto forzoso de ejecución”43.

38 – Cfr. sus artículos La equidad frente al derecho positivo. La Ley. t. 32. octubre-di-
ciembre de 1943; y Clovis Bevilacqua frente al pensamiento jurídico actual. La Ley. t. 35.
julio-septiembre de 1944.
39 – El problema de las casas para obreros en el Brasil. La Ley. t. 32. octubre-diciembre
de 1943.
40 – Véase su artículo, traducido por Carlos Giuliani Fonrouge, Ideas generales sobre
imposición de los beneficios extraordinarios. La Ley. t. 40. octubre-diciembre de 1945.
41 – Cfr. La Ley. t. 23, p. 23, sección doctrina.
42 – La Ley. t. 23, p. 27, sección doctrina. julio-septiembre de 1941
43 – A. Comentario a J.A.César Salgado, “Especialización de la magistratura criminal”,
Revista Forense (Rio de Janeiro), diciembre de 1943. La Ley. t. 34, pp. 1211 y 1212. abril-
junio de 1944.

422 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):415-427, jul./set. 2011


Interés argentino en la cultura jurídica brasileña a mediados del siglo XX:
El caso de la revista La Ley durante el quinquenio 1941-1945

Ahora bien, es lícito preguntarse en el por qué del interés argentino


por el Brasil y su cultura jurídica. Más allá del auge del derecho compa-
rado –al cual me referí páginas atrás-, una causa principalísima estribaba
en el prestigio alcanzado por la ciencia jurídica y la producción normativa
brasileñas. En cuanto a lo primero, al tiempo que se elogiaba la “altísima
cultura jurídica del Brasil”44 – en particular de la doctrina mercantil, re-
putada de “abundante y valiosa”-, se afirmaba que la “literatura jurídica
brasileira ocupa[ba] un lugar de honor entre las del continente”45. Eran
tiempos en los que Nelson Hungría afirmaba que “la bibliografía jurídica
entre nosotros, últimamente, es de producción continua. Cada día surge
un libro nuevo”46. Por otra parte, es verdad que la atención conferida por
los brasileños a las enseñanzas de distinguidos autores europeos, como
Planiol o Ripert47, robustecía la imagen de solidez. Sin embargo, una cosa
que se ponderaba reiteradamente de los expertos del Brasil era su libertad
de pensamiento y su adecuación al medio en el cual actuaban. Así, por
ejemplo, al referirse a la obra del profesor mineiro Bilac Pinto un comen-
tarista de La Ley elogiaba el que hubiese “encarado con criterio sereno e
imbuido de un amplio espíritu de independencia, un aspecto de la función
del Estado, que preocupa y debe preocupar a los estudiosos, en esta época
de acelerada alteración de los valores, en la que ciertos conceptos, preju-
zgados como eternos, y por causas evidentemente anormales, se dejan de
lado, ante la presencia de la llamada ´crisis del derecho´”48.

Si esta era la imagen que suscitaba la doctrina, algo parecido tam-


bién acontecía respecto de los productos jurídicos impulsados por el es-
tado. De este modo, por ejemplo, se afirmaba que en materia procesal la
normativa brasileña había reflejado “muchos principios adoptados por las

44 – BARCIA LÓPEZ, A. Art. cit., p. 1005.


45 – La Ley. t. 18, p. 25, sección bibliografía.
46 – Se reproducen estas palabras en un comentario de WINIZKY, I. La Ley. t. 32, p.
1093, octubre-diciembre de 1943.
47 – La Ley. t. 28, p. 1155. octubre-diciembre de 1942.
48 DECOUD, J. Comentario a Bilac Pinto, Regulamentaçao efetiva dos serviços de utili-
dade publica, ediçao da Revista Forense, Rio de Janeiro, 1941. La Ley. t. 23, p. 4, sección
bibliografía. julio-septiembre de 1941

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):415-427, jul./set. 2011 423


Ezequiel Abásolo

legislaciones más adelantadas de los países europeos”49. Asimismo, se


aplaudían los avances brasileños en el campo laboral – entre otros, en lo
atinente a la regulación de las actividades de los trabajadores intelectua-
les, manuales y técnicos de la prensa50– y criminal51. Empero, esto no era
todo, ya que un encomio especial también suscitaba la prudencia y fino
criterio aplicados por el legislador brasileño. Así, en referencia al nuevo
código de procedimientos penales brasileño se aseveró que contaba con
“el mérito de ser obra de hombres, que no se deslumbraron con figurines
del exterior, sino que se adaptaron al ambiente, acogiendo, a la vez, los
mejores dones de la ciencia moderna”52.

Ahora bien, los frecuentes elogios no eludían las críticas. Así, al co-
mentar la obra de Alipio Silveira, Conceito e funçoes da equidade em
face do direito positivo (especialmente no direito civil), Sao Paulo, edi-
ción del autor, 1943, Lorenzo Carnelli lamentó el que prevaleciese una
confusa erudición. “Nada podría encontrarse [allí] , atinente a la equidad,
-sostiene el comentarista- que no estuviera en él referido con pertinencia,
aunque en ciertos instantes se pierde el pensamiento del autor bajo el peso
de las citas”53. Otro ejemplo del tamiz crítico al que eran sometidos los
productos jurídicos brasileños se encuentra en el análisis efectuado por
Roberto Terán Lomas al código penal de 1942. Admite este comentarista:
“Hemos indicado en cada caso nuestra opinión sobre lo que consideramos
los aciertos y los desaciertos del código penal del Brasil. Pese a algunos
criterios que conceptuamos equivocados, y en especial a la excesiva am-
plitud de las medidas de seguridad, podemos concluir que se ha brindado
al Brasil un buen código represivo, a corto plazo de la sanción de aquel
monumento jurídico que es el código penal suizo de 1937”54.

49 – LIEBMAN, E. Art. cit., p. 960.


50 – PRAPOTNIK, L. La remuneración reglamentada de la prestación de obra periodísti-
ca en los Estados Unidos del Brasil. La Ley. t. 38, p. 1048. abril-junio de 1945.
51 – L.C.G. La Ley. t. 31, p. 1151. julio-septiembre de 1943.
52 – L.C.G. Comentario a Florencio Abreu, Nuevos aspectos del proceso penal brasileño.
La Ley. t. 30, p. 1102. abril-junio de 1943.
53 – La Ley. t. 35, p. 1157. julio-septiembre de 1944.
54 – TERÁN LOMAS, R. Art. cit., p. 1098.

424 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):415-427, jul./set. 2011


Interés argentino en la cultura jurídica brasileña a mediados del siglo XX:
El caso de la revista La Ley durante el quinquenio 1941-1945

En cuanto a las cuestiones abordadas por los brasileños que susci-


taban la atención argentina, hubo varias que resultaron recurrentes. Una
de ellas fue la de la crisis del derecho55 y sus manifestaciones. Vale decir,
lo que entonces se discutía sobre el papel de los códigos56; el cambio en
la consideración de la responsabilidad civil57; la unificación del derecho
privado58; la situación de la administración de justicia59 y las facultades
que cabía atribuirle a los jueces60. Así las cosas, se le confirió un renovado
interés al estudio del derecho natural y de la equidad61. En cuanto al par-
ticular, Alipio Silveira concluyó que la noción de equidad aplicable en el
siglo XX debía ser la misma que la de Aristóteles y de Tomás de Aquino,
aunque adecuada a las nuevas condiciones económico-sociales. “No tan
adaptadas, empero, -según explicaba nuestro autor- como para someterse
pasivamente a las exageraciones de los que preconizan, en su nombre, el
derecho libre, con el inevitable reverso: la inutilidad o inutilización de
las leyes. Peor resultaría entonces, el remedio que la enfermedad, ya que
ésta, la generalidad uniforme de las leyes, tiene siempre en el instituto en
examen, un medio eficaz de reparación”62

Otro tópico álgido se vinculaba con el paulatino predicamento de ten-


dencias jurídicas “socializadoras”63, las cuales evidenciaban el creciente
predominio de los intereses colectivos sobre los de los particulares64. En
buena medida, a partir de posiciones de esta índole se consagró la acepta-
ción de una concepción sociológica del derecho que bregaba por adaptar

55 – La Ley. t. 21, p. 11, sección revista de revistas. La Ley. t. 23, p. 4, sección bibliografía.
La Ley. t. 27, p. 1155. julio-septiembre de 1942.
56 – L.C.G. Comentario a Astolfo de Resende, El anteproyecto del código de las obliga-
ciones. La Ley, t. 35, pp. 1245 y 1246. julio-septiembre de 1944.
57 – La Ley. t. 24, p. 3, sección revista de revistas.
58 – La Ley. t. 24, p. 16, sección revista de revistas.
59 – La Ley. t. 28, p. 1155. octubre-diciembre de 1942.
60 – Liebman, E. Art. cit., p. 960. La Ley. t. 31, p. 1156. julio-septiembre de 1943.
61 – Cfr. Silveira, A. La equidad frente al derecho positivo. Art. cit. p. 1060 y ss.
62 – Carnelli, L. Comentario a Alipio Silveira, Conceito e funcoes da equidade em face
do direito positivo (especialmente no direito civil). La Ley. t. 35, p. 1158. julio-septiembre
de 1944.
63 – La Ley. t. 21, p. 13, sección revista de revistas.
64 – La Ley. t. 28, p. 1172. octubre-diciembre de 1942

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):415-427, jul./set. 2011 425


Ezequiel Abásolo

las normas a los hechos65. El reverso de este tipo de actitudes consistió


en asumir la declinación del individualismo liberal66, y su principio-em-
blema: la autonomía de la voluntad. En orden de cosas, resulta ilustrativo
que al referirse a la cuestión un autor argentino sostuviese lo siguiente:
“En la actualidad … toda la doctrina de la libertad contractual sufre el
ataque constante de los autores. Bevilaqua, al examinar la teoría de los
contratos en nuestros días, ha dicho que «la reacción contra el individua-
lismo y principalmente las perturbaciones políticas y sociales embistieron
contra esa noción clásica, contra la propia figura del acto voluntario gene-
rador de las obligaciones, arreciendo en su subversión contra los propios
códigos civiles»”67.

Consideraciones finales
Para mediados del siglo XX el interés argentino en la cultura jurídica
brasileña bien puede caracterizarse como intenso y frecuente. Entiendo
que la causa de esta curiosidad respondió, en buena medida, a la común
sensibilidad con la que los juristas de ambos países asumían la proyecci-
ón social del derecho68. Así, mientras que en la Argentina esta dimensión
de lo normativo se asumía como algo insoslayable69, en la jurisprudencia
brasileña coetánea se pregonaba que “el derecho no se petrifica, ni el
juzgador puede quedar insensible a la realidad”. En definitiva, advierto
una notable sintonía entre las preocupaciones y sensibilidades jurídicas
argentinas y brasileñas del momento. Así las cosas, no resulta sorpren-
dente que un autor brasileño reprodujese las palabras del profesor argen-
tino Atienza, conforme con las cuales se preconizaba retornar “al juez de

65 – SILVEIRA, La equidad frente al derecho positivo. Art. cit., p. 1066.


66 – L.C.G. a R.Cortés de Lacerda, “De los delitos contra la familia”, Revista Forense
(Río de Janeiro), noviembre de 1941. La Ley. t. 25, p. 1028. enero-marzo de 1942.
67 – TORRES, J. La intervención del Estado en el contrato. La Ley. t. 34, pp. 1131 y
1132. abril-junio de 1944. La cita que se efectúa de Bevilaqua corresponde a Opúsculos.
Evoluçâo da teoría dos contratos en nossos dias, Rio de Janeiro, 1939.
68 – TERÁN LOMAS, R. Art. cit., p. 1092.
69 – Se alude a este rasgo en ABÁSOLO, E. Caracterización de los juristas argentinos de
la primera mitad del siglo XX. La obra de Carlos Risso Domínguez y la validación de un
modelo de análisis. Revista de Historia del derecho, Buenos Aires: Instituto de Investiga-
ciones de Historia del Derecho. nº 36 2008.

426 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):415-427, jul./set. 2011


Interés argentino en la cultura jurídica brasileña a mediados del siglo XX:
El caso de la revista La Ley durante el quinquenio 1941-1945

equidad por oposición al juez mecánico”70. Señalado lo anterior queda


claro que lo que realmente interesaba lograr a partir del fluido contacto
argentino con las experiencias foráneas no era contribuir a la unificación
del derecho. En verdad, el atractivo de las experiencias ajenas – en el
caso, brasileñas – estribaba en su potencial para iluminar los debates lo-
cales y propios. Dicho de otro modo, en examinar aquellos problemas que
no hubiesen sido adecuadamente estudiados por los tratadistas locales o
resueltos por la legislación nacional71.

Texto apresentado em setembro /2010. Aprovado para publicação


em maio /2011.

70 – SILVEIRA, A. La equidad frente al derecho positivo. Art. cit., pp. 1054 y 1067.
71 – Cfr. un ejemplo de lo dicho en La Ley. t. 34, p. 924. octubre-diciembre de 1944.

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

II – comunicações
NOTIFICATIONS

PENSAMENTO JUS-FILOSÓFICO DE CLÓVIS BEVILÁQUA


AO FINAL DO SÉCULO XIX
THE JUS-PHILOSOPHICAL THOUGHT OF CLOVIS BEVILAQUA
(1859-1944) AT THE END OF THE NINETEENTH CENTURY

Maria Arair Pinto Paiva 1

Resumo: Abstract:
O trabalho investiga o pensamento jus-filosófico This article will investigate the jus-philosophi-
de Clóvis Beviláqua (1859-1944), ao final do cal thought of Clovis Bevilaqua (1859-1944) at
sec. XIX , através da análise de sua obra Juris- the end of the Nineteenth century, through the
tas Philosophos (1897). O objetivo da análise é analysis of his work, Philosopher Jurists (1897).
detectar as principais concepções da filosofia do The purpose of this analysis is to identify the ex-
direito que, então, influenciavam o autor do an- isting, principal philosophical concepts of Law
teprojeto do 1º. Código Civil Brasileiro (1916). that influenced the author of the First Brazilian
A hipótese de trabalho se cinge ao fato de que tal Civil Code draft (1916). The hypothesis of this
conhecimento pode abrir caminhos para a com- paper deals with the fact that such knowledge
preensão de questões importantes, ligadas ao might open the way to the understanding of im-
estudo da história do direito no Brasil, da qual portant issues concerning the studies of the his-
Clóvis Beviláqua é um partícipe privilegiado. A tory of Law in Brazil, of which Clovis Bevilaqua
análise de conteúdo da obra propiciará o estu- was a privileged participant. The contents
do da evolução histórica do direito, das várias analysis of this work will facilitate the study of
escolas jurídicas que influíram nesta evolução the historical evolution of Law, of the various
e da metodologia adotada pelos diferentes jus- Law schools that influenced that evolution and
filósofos estudados por Clóvis em seu livro. O of the methodology used by the different jus-
cientificismo reinante na “Escola do Recife”, da philosophers studied by Clovis Bevilaqua in his
qual Clóvis foi um dos principais membros, vai book. The scientism dominating the “School of
dar margem a interpretações epistemológicas. O Recife”, where Clovis Bevilaqua was one of its
objetivo final – que é perseguido por Clóvis – é prime members would lead to epistemological
alcançar uma concepção científica do direito interpretations. The end purpose – pursued by
Clovis – is to reach a scientific concept of Law.
Palavras-chave: Pensamento jusfilosófico; Keywords: Jus-philosophic thought – Clo-
Clóvis Beviláqua; Século XIX (final) “Escola vis Bevilaqua – End of Nineteenth century –
do Recife”. “School of Recife”.

Preliminares
Nosso interesse em investigar o pensamento jusfilosófico de Clóvis
Beviláqua, ao final do século XIX, foi despontado por dois motivos: 1)

1 – Professora Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense


(aposentada) e ex-pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisa e Tecnologia (CNPq).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):429-459, jul./set. 2011 429


Maria Arair Pinto Paiva

observamos que, ao receber e aceitar o convite do Ministro da Justiça


Epitácio Pessoa para redigir o anteprojeto do Código Civil Brasileiro, em
janeiro de 1899, ele tinha uma obra recém-publicada – Juristas Philoso-
phos (1897); e 2) pensamos que poderíamos analisá-la com o objetivo
de conhecermos suas preocupações e ideias jusfilosóficas, através dele
próprio, pouco antes de vir do Recife para o Rio de Janeiro, a fim de se
incumbir dessa tarefa magna para o Direito no Brasil.

O presente trabalho tem uma orientação metodológica que ao invés


de privilegiar o paradigma da simplicidade – típico da ciência clássica,
perfila os princípios do paradigma da complexidade – típico da scienza
nuova2. Desenvolve-se mediante um estudo sincrônico das ideias de Cló-
vis (suas ideias ao final do sec. XIX) e se apoia em um estudo diacrônico,
por ele realizado em seu livro Juristas Philisophos. O corte temporal na
vida intelectual de Clóvis tem o propósito de possibilitar a realização de
um balanço de suas concepções jusfilosóficas, concepções hauridas no
ambiente da chamada Escola do Recife, da qual participou, a partir de
1878, quando se tornou aluno da Faculdade de Direito. Ambiente onde se
imbricavam diversas tendências científicas e filosóficas – características
do clima intelectual do século XIX.

No quadro de nossas hipóteses, destacamos a que pretende atribuir a


esse estudo a qualidade de fonte para o esclarecimento de outras questões
que podem ser levantadas e comportam aprofundamentos, não só sobre
Clóvis Beviláqua, mas sobre a história do Direito no Brasil. Por exemplo:
Clóvis aplicou, na prática profissional, as concepções filosóficas com as
quais simpatizava quando tinha 38 anos de idade? Qual a repercussão das
ideias da Escola do Recife entre os operadores pátrios do Direito, no séc.
XX? Por que a teoria pura do direito de Kelsen encontrou solo tão fértil
no Brasil, a despeito do ideário da Escola do Recife?

Além da técnica de análise de conteúdo, procedemos a pesquisas


bibliográficas, necessárias à compreensão e à explicação das hipóteses
em estudo.
2 – Ver MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Traducción: Ana Sánchez. Barcelona,
Antropos, Editorial Del Hombre, 1984.

430 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):429-459, jul./set. 2011


Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

Iniciamos o trabalho com alguns dados biográficos de Clóvis Bevi-


láqua. Depois, nosso fulcro foi Juristas Philosophos, quando nos dete-
mos, por primeiro, com a análise do Prefácio e da Introdução do livro
e, em seguida, ocupamo-nos com Os Escolhidos: Cícero, Montesquieu,
Rudolf von Jhering, Hermann Post, Tobias Barretto e Sylvio Roméro.
Após, apresentamos uma Análise Conclusiva, e, finalizando, estão as
Referências Bibliográficas.

1. Dados Biográficos
Clóvis Beviláqua nasceu em Viçosa, município do Estado Ceará, no
dia 4 de outubro de 1859 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro, então
Distrito Federal, em 26 de julho de 1944. Filho do vigário de sua cidade
natal – José Bevilacqua e de D. Martiniana de Jesus Aires. Seu avô pater-
no – Ângelo Bevilacqua – era italiano, da cidade de Trieste, que chegou
a Fortaleza como náufrago, aí fixando residência. Casou com D. Luísa
Gaspar de Oliveira, de tradicional família cearense.3

No quadro sintético, abaixo, registramos as datas mais importantes


para sua formação e vida profissional.

1859 – Nasce em Viçosa/Ceará/Brasil

____ a 1868 – aulas com o mestre-escola Marcelino Freire das Vir-


gens – em Viçosa.

1869 – aulas com o prof. Vicente Ferreira de Arruda – em Sobral.

1871 a 1873 – Ateneu Cearense – em Fortaleza.

1875 - Exames gerais de preparatórios no Liceu do Ceará – em For-


taleza.

1876 a 1878 – Preparatórios concluídos no Externato Jasper e no


Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro.

3 – MENEZES, R. & AZEVEDO, M. U. Clóvis Beviláqua, p. 29.

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Maria Arair Pinto Paiva

1878 a 1882 - Acadêmico na Faculdade de Direito do Recife. Cola


grau e viaja a Fortaleza e São Luiz do Maranhão, pleiteando nomeação ao
cargo público de promotor.

1883 – Volta a residir em Recife, onde permanece até março de 1899.


Destaca-se como membro da “Escola do Recife”. Bibliotecário e depois
professor da Faculdade de Direito.

1899 a 1944 – Mudança de residência para o Rio de Janeiro, onde


vive até seu falecimento. Esta mudança foi motivada por convite do Mi-
nistro da Justiça Epitácio Pessoa para que elaborarasse o anteprojeto do
Código Civil. Torna-se consultor do Ministério das Relações Exteriores
até sua morte. Jurista famoso.

2. Juristas Philosophos

2.1 O Prefácio e a Introdução

2.1.1 Prefácio
Ao prefaciar seu próprio livro, logo no primeiro parágrafo, Clóvis
cuida de advertir que não vai se ocupar

“de todos aquelles homens do direito que, do terreno médio da sciencia


practica, do conhecimento das leis e dos principios que fazem mover-
se a mechanica do direito, se elevaram ás generalisações superiores
que unificam os grupos particulares de phenomenos da mesma ordem
e os prendem, depois, ao conjuncto kosmico.”4

Está posta sua compreensão do que é um filósofo do direito: do co-


nhecimento parcialmente unificado da ciência do direito (campo da disci-
plina jurídica), ele alarga a área de estudos em busca de um conhecimento
unificado (filosófico), para atingir a universalidade. Nesta definição, dis-
tingue a ciência da filosofia e demonstra seu monismo filosófico.

4 – BEVILÁQUA (1897) : [IX]

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

Declara, a seguir, que não foi sua intenção escrever a história da filo-
sofia jurídica. Diz ele: “destaquei alguns nomes typicos, representativos
de uma fórma nova do pensamento jurídico, quando não creadores de
uma phase nova da sciencia”5. Aqui, Clóvis mostra sua adesão ao novo,
mergulhado que estava no ethos da Escola do Recife – demolidora do di-
reito natural – teológico e metafísico (então, ainda vigente na Faculdade
de Direito), escola formada por um grupo de estudiosos do direito, lide-
rados por Tobias Barreto, que promoveu uma desejada (pelos estudantes)
e tardia abertura às idéias filosóficas e jurídicas, ideias que, segundo Cló-
vis, já vinham sendo alicerçadas a partir do século XVII . Mostra claro,
neste ensejo, a relação da Filosofia com a Ciência, orientadas por novos
paradigmas (naturalismo, historicismo, positivismo jurídico, evolucionis-
mo e monismo).

No segundo parágrafo do Prefácio, ele trata de reiterar as limitações


de sua obra, agora em relação à história da evolução do direito. No entan-
to, em sua opinião, o livro é “inteiriço”, porque “aponcta as suas origens
obscuras [do direito], indica-lhe a marcha em traços rapidos, para accen-
tuar-lhe a feição scientifica”6. Presente, nesta assunção, o evolucionismo
histórico e científico, embasando sua proposta diacrônica da evolução do
direito.

No restante do Prefácio, Clóvis se ocupa em falar do conteúdo da


Introdução de seu livro: dos estudos sobre jusfilósofos escolhidos por ele
por serem representativos e por canalizarem suas mais fortes simpatias –
assuntos que adiante vão ser tratados.

2.1.2 Introdução
Na Introdução de Juristas Philosophos, publicado em 1897, Clóvis
faz uma análise da evolução do Direito, desde as citadas “origens obscu-
ras” até o período que lhe é contemporâneo.

5 – Ibidem, idem.
6 – Ibidem, idem.

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Maria Arair Pinto Paiva

Mostra a relação do direito com a religião, na antiguidade remo-


ta, quando o poder religioso é utilizado para obter a obediência dos ho-
mens às regras jurídicas; e, como consequência, os sacerdotes foram os
primeiros juristas e aplicadores da lei. O direito era de origem divina.
Manifesta-se, a seguir, sobre o período da antiguidade clássica, destacan-
do a inclinação dos gregos para a especulação filosófica, que os levou a
desprender o direito da religião e a proceder ao “desenvolvimento doutri-
nal do direito”. Clóvis ressalta que os sofistas, com Hippias, começaram
por distinguir

“a natureza (physis) da lei positiva (nomos) e terminaram por estabele-


cer que, perante a natureza não há direito, que o justo é condicionado
pelo tempo e pelos logares, e que, finalmente, a idéa do justo, longe de
ser innata, resulta do exercicio e do estudo.”

O erro do posicionamento dos sofistas, acrescenta Clóvis,“foi da-


rem ao direito uma feição de artificialidade que elle não tem, foi não
enxergarem a intima connexão entre o direito e a vida dos agrupamentos
sociaes”.7 Com esta crítica aos sofistas, transparece o vínculo que ele es-
tabelece entre o direito e a sociologia.

Na velha Grécia, Clóvis localiza as influências que aparecem depois


em Bentham e na ideia do direito na Alemanha (o interesse e o poder das
decisões do povo, respectivamente, na escola utilitarista e na escola his-
tórica). Sócrates lançou as primeiras sementes do jus gentium e do direito
natural. Xenofonte nos passou o conceito socrático da lei: “Lei é tudo que
a multidão reunida, apoz debate, approva e estatue, declarando o que se
deve fazer e o que não se não deve”.8

Platão e Aristóteles identificam o bem com o justo. Aristóteles de-


talha que a justiça é o bem, mas o bem social - tudo que concorre para a
prosperidade da vida social deve entrar no círculo traçado pela justiça.
O direito positivo está corporificado nas leis escritas e o direito natural
assume a forma da equidade. Os estoicos aprofundam as preocupações
7 – BEVILÁQUA, 1897: 4 .
8 – Idem: 5

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

jusfilosóficas dos helenos e são eles que vão iluminar e vivificar a juris-
prudência romana.9

O conhecimento jurisprudencial dos romanos tem atravessado os


tempos, constituindo-se em um legado precioso para o direito da mo-
dernidade. E Clóvis escolheu Cícero como representante da jusfilosofia
romana, porque ele teve a capacidade de aliar o saber prudencial dos seus
patrícios ao saber filosófico dos gregos, a inclinação pragmática dos pri-
meiros à tendência especulativa dos últimos.

Clóvis, citando Jhering, diz que “a jurisprudência foi a filosofia na-


cional dos romanos, pois os jurisconsultos, embora abeberados de idéas
philosophicas, não fôram philosophos no rigor do termo”.

Quando se refere à Idade Média, Clóvis destaca, por primeiro, o es-


tupor intelectual que se seguiu à ruína da organização política e da cultura
dos romanos.

“Lentamente e por ensaios medrosos, recomeçaram as meditações.


No dominio do direito, appareceram os glosadores, hombreando com
os pesados theologos e os escolásticos tão fecundos em subtilezas e
equivocos.”10 A jurisprudência se desenvolveu, principalmente com
Cujas, que enriqueceu a exegese dos textos com a compreensão dos
fatos históricos e dos documentos literários. Porém, se houve avanço
“no caminho da erudição illustrativa, é certo que a philosophia do
direito surgiu serodiamente.”11

Na Idade Moderna – no sec. XVI – há o surgimento da filosofia do


Direito. Clóvis lembra que Montaigne (1533-1592), em seus Ensaios, de-
dicou só algumas frases aos estudos jurídicos; e distingue Bodin (1530-
1596) como primeiro elo de uma corrente mental propiciadora do aludido
surgimento, cujos alicerces se assentaram “de um modo mais seguro”
com Leibniz, Vico e Montesquieu – no sec. XVII. Sobre a situação da fi-
losofia do Direito, no século XVIII, afirma o seguinte: “No seculo XVIII,

9 – Idem: 5 e 6 .
10 – Idem: 9 .
11 – Idem: 9 .

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Maria Arair Pinto Paiva

tres direcções differentes se abrem deante do pensamento juridico em


suas attinencias com a philosophia.”

E as discrimina:
“De um lado, é a teoria do direito natural cujas sementes fôram lan-
çadas pela philosophia grega, que dominára um momento em Roma,
e resurgira no seculo XVI com Oldendorp e Hemming, e se firmára
definitivamente no livro celebre de Grotius – De jure belli ac pacis. De
outro, a reacção positivista de Bentham pelo utilitarismo. De outro,
finalmente, a tendência histórica que iniciára Cujas e que deu nasci-
mento á brilhante eschola de Savigny.”12

Por fim, debruça as reflexões sobre sua contemporaneidade. E, como


pertencem a ela quatro dos juristas filósofos presentes no seu livro – Ru-
dolf von Jhering, Hermann Post, Tobias Barreto e Sílvio Romero – tais
reflexões vão estar presentes na próxima parte deste trabalho.

2.2 Os Escolhidos
2.2.1 Cicero (106 a.C. – 43 a.C.)

Nos estudos de Cícero e de Montesquieu, há a presença do compo-


nente político e moral e do valor da Justiça, porque o próprio pensamen-
to desses autores levam Clóvis a discutir temas de direito público, que
são escassos em Juristas Philosophos. Quando trata dos autores de sua
contemporaneidade (os outros quatro), esses temas saem do proscêncio,
dando lugar aos vários ismos dominantes no século XIX , no Brasil, e ao
conhecimento científico em ascensão.

Clóvis destaca em Cícero o orador, o político, o filósofo e o jurista.


Não se discute seus méritos como orador : sua eloqüência era reconhe-
cida por todos; como político, foi um vacilante incorrigível, cuja ultima
hesitação lhe produziu um resultado fatal; o filósofo foi uma figura que
ficou em segundo plano. “A philosophia nunca se aclimatou em Roma
sufficientemente para produzir um gênio creador e original.”. Cícero foi

12 – BEVILÁQUA (1897): 11/12.

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

eclético, um simples diletante, embora dotado de qualidades superiores e


profundamente instruído.13

Por que Clóvis o escolheu? Eis sua explicação:


“Não obstante, não é possivel desconhecer sua acção sobre o pensa-
mento jurídico dos romanos; e quem quizer conhecer como um ro-
mano instruído em philosophia applicava os princípios geraes dessa
disciplina á sciencia do direito em que era profissional, deve dirigir-se
a Marco Túlio Cícero, de preferência a qualquer outro.”14

Cícero teve como mestre Quinto Mucio Scoevola, o pontífice má-


ximo do direito em Roma, no momento em que o direito se transformava
em elaboração científica e prática. Ele se aproveitou das circunstâncias e
tornou-se o primeiro romano a lançar as bases de uma teoria filosófica do
direito e da política. Por ser eclético e por não ter sabido criar um sistema
e nem firmemente apegar-se a um dos existentes, foi posto um tanto à
margem, e o lugar, que deveria ser seu, foi ocupado pelos estoicos. Este é
um retrato que Clóvis nos desenha de Cícero.15

Cícero escreveu três tratados: De republica, De legibus e De officiis


– trabalhos jurídico-filosóficos. Em De Republica, ele trata de estabelecer
os princípios fundamentais da política, de onde chega à classificação das
formas de governo e onde se percebe a clara influência de Aristóteles.
Como este, para caracterizar o homem como um animal político, Cícero,
pelas palavras de Clóvis, afirma:
“O que sobretudo impelle o homem á reunir-se em sociedade é menos
sua fraqueza do que a necessidade imperiosa de se achar na convivên-
cia de seus similhantes. Sua natureza impõe-lhe essa norma irrecusá-
vel (Rep., liv. I, cap. 25).”16

Como consequência dessa imposição natural, os homens reunidos


em sociedade e baseados sobre um território, organizam um poder su-
premo para dirigi-los e governá-los. As formas de governo que Cícero
13 – Idem: 32.
14 – Idem: 34.
15 – Idem: 34.
16 – Idem: 36.

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apresenta são calcadas naquelas que Aristóteles nos deixou, inclusive


classificando-as, como o estagirita, em puras e impuras – simples e dege-
neradas. Diz-nos Clóvis:

“Quem quer que tenha conhecimento da politica aristotolica encon-


trará aqui a mesma theoria da sociabilidade humana, a mesma divisão
das fórmas de governo em sua normalidade e anormalidade, isto é: a
realeza ou monarchia (Basiléia), a aristocracia, a politia ou democra-
cia, e suas aberrações, a tyrania ou despotia, a olygarchia e a ochlo-
cracia.17

Quando se estuda as formas de governo de Cícero, chama-nos a


atenção o destaque e a preferência – como a melhor – que ele dá à forma
mista. Como nos ensina Clóvis, esta quarta forma estava presente em
Aristóteles, mas Cícero lhe deu mais vulto. “É essa quarta fórma compó-
sita oriunda do contubérnio irregular de elementos sociaes divergentes.”18
O sábio romano percebeu que os contrários se completam, ao invés de se
excluírem – o que é aceito na epistemologia atual.

Dos seis livros que compõem o De Legibus, só três estão preserva-


dos. Dos outros três restam fragmentos. O livro I ocupa-se com o conceito
de lei e do direito natural. Na análise que Clóvis faz dele, destaca por
primeiro, a tarefa a que se propõe Cícero: “Deduzir os princípios essen-
ciaes do direito e da moral da própria natureza humana.” O direito, pensa
Cícero, não deriva da opinião, mas sim da própria natureza humana e do
influxo dos deuses (cap. 9 e 10) e daí deriva sua universalidade; deve ser
comum a todos os homens, porque a natureza humana é uma só. Mas a
corrupção dos costumes poderá extinguir nas consciências essa centelha
divina do direito natural. (I, cap.12)

Em consequência, o justo pode não estar presente nas leis estabele-


cidas pelas instituições. Há leis tirânicas, que se afastam da boa razão e,
portanto do ideal do direito. À sã razão ele atribui a capacidade de distin-
guir o justo do injusto, o honesto do vergonhoso. E Clóvis conclui:

17 – Idem: 38.
18 – Idem: 40.

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

“Eis ahi bem formulada a theoria do direito natural a cujos tresvarios


ainda hoje devemos o atrazo e a indigência do direito ciência.”19

2.2.2 Montesquieu (1689-1755)


Ao tratar de Montesquieu, Clóvis fez um estudo mais aprofundado
em cima de sua obra mater – Do Espírito das Leis.

Para Clóvis, Montesquieu ofereceu seguras bases às construções da


filosofia por ter se apoiado na história e na legislação comparada. Seu
naturalismo científico resultou dos métodos histórico e comparativo por
ele desenvolvido para chegar às suas conclusões teóricas. 20

De suas interpretações sobre a obra de Montesquieu, vamos regis-


trar três apreciações que ele faz e que envolvem questões de natureza
teórico-política, filosófica e metodológica.

Vejamos as apreciações de Clóvis:

Quando analisa a classificação das formas de governo elaborada pelo


filósofo francês (a república aristocrática ou democrática, a monarquia
e o despotismo), reconhece, com Bluntschli, que Montesquieu fez um
esforço para encontrar o princípio fundamental de cada uma delas e, por
este meio, fez a ciência realizar um progresso notável. O princípio da re-
pública democrática é a virtude, da república aristocrática é a moderação,
da monarquia é a honra e do despotismo é o temor.

“Essa determinação de caracteres substanciaes ou, antes, de princípios


moraes predominantes nas fórmas de governo, só póde ser acceita em
parte; porque nenhum Estado poderá jamais dispensar a probidade, a
honra e a moderação, sob a pena de funccionar mal e de satis- fazer
desvantajosamente os interesses elevados da sociedade. Entretanto,
parece indubitável que a republica, para realizar o ideal que fazem
os publicistas mais liberaes, para corresponder ás predilecções queos
espíritos de elite sempre manifestaram por Ella, deve ser um governo
de justiça sempre egual prompta e segura, de gestão economica escru-
19 – Idem: 45.
20 – Idem: 11.

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pulosamente probidosa e intelligente, de uma administração politica


que se caracterise pelas franquias, pelo respeito aos direitos e aos in-
teresses bem entendidos de todos. Estão ahi mesmo condições de sua
existencia e características de sua individuação.”21 (grifo nosso)

Nesta passagem, encontramos a teoria material de direito, atinente


aos valores filosóficos fundamentais que, segundo Clóvis, devem ser vi-
gentes em uma república democrática. Mas ele teve um eventual esque-
cimento ao fazer essa crítica a Montesquieu. Como criador das ciências
sociais, o método basilar de Montesquieu era o da observação – o sein –,
o que é, e não o sollen – o que deve ser. No caso, não estava interessado
em prescrever, e sim em descrever, baseado nos fatos históricos e de sua
circunstância, que lhe eram fornecidos pelo método de observação e de
comparação.

Clóvis demonstra argúcia de interpretação quando afirma que Mon-


tesquieu, ao tratar de sua depois chamada teoria da separação dos pode-
res, embora recebendo inúmeras críticas, estas não obtiveram êxito, “des-
de que a consideremos não como uma separação de poderes differentes,
mas como uma distincção de funcções do mesmo organismo.”22 A doutri-
na organicista perfilhada por Clóvis não admitia separação, mas distinção
– pensamento epistemológico atual, característico da nova ciência.23

Em sua última apreciação, Clóvis nos dá um excelente ensinamento


sobre como interpretar o pensamento ou uma obra de um autor. Montes-
quieu, em seu naturalismo científico, atribui uma relação causal entre o
clima de uma região e as leis do direito. Metodologicamente, Clóvis dis-
corda dele, porque não se pode atribuir à ação de um só fator aquilo que é
resultado de fatores múltiplos. Posicionamento avançado para sua época!
E avança ainda mais, quando recomenda uma interpretação sistêmica,
resultante de uma leitura atenta e de ânimo desprevenido do Espírito das

21 – Idem: 55 e 56.
22 – Idem: 56.
23 – MORIN: 357 e segs.

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

leis, “completando uns trechos com outros”, e veremos “que não é tam
exclusiva a sua doutrina, como, a principio se afigura.”24

2.2.3 Rudolf von Jhering (1818-1892)


Clóvis começou a ler obras de Jhering em 1881, quando fazia o 4º
ano de Direito, ao estudar as teorias sobre a posse (Fundamentos dos
Interditos Possessórios) e no Direito das Cousas (livro de Lafayette), ha-
via, no prefácio, uma citação, feita de passagem, do Espírito do Direito
Romano. Reconhece que Tobias Barreto prestou o inestimável serviço
de divulgar, entre nós, as ideias “com que o egrégio pensador allemão ia
transformando, em sua patria, a philosophia do direito.”

Em Jhering, Clóvis encontrou a solução, há muito procurada infru-


tiferamente, para o problema do direito como fenômeno social e como
conceito filosófico. Ficou, como diz, “preso de emoção” ao ler “o vi-
goroso opúsculo que traz por titulo a Lucta pelo direito, e a meditada
construcção philosophica do Zweck im Recht [A finalidade no Direito] e
considera que:
“Toda a filosofia jurídica de Jhering, embora disseminada por seus di-
fferentes livros, póde ser estudada na Lucta pelo direito e na Finalida-
de no direito; seu método e sua lógica jurídica pódem egualmente ser
inteiramente apprehendidos no Espirito do Direito Romano com seus
geniaes complementos, entre os quês se destaca o Papel da vontade na
posse (Besitzwille). São suas obras principaes e são obras typicas.”25

Jhering concebia o direito como um organismo – o organismo ob-


jetivo da liberdade humana, no qual se podem distinguir como nos seres
vivos, uma anatomia e uma fisiologia. E este organismo anatomicamente
considerado, é um agregado de institutos, os quais, por seu turno, são
agregados sistemáticos de normas.26

24 – BEVILÁQUA (1897):58.
25 – Idem: 69.
26 – Idem: 70.

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Maria Arair Pinto Paiva

Sustenta o sábio alemão que viver é agir, é afirmar a existência por


um ato de energia pessoal. A função do direito se manifesta por sua re-
alizabilidade: “O que não se realiza não é direito.” E, como conclusão,
o agir do homem realiza o direito. Por isso, Clóvis esclarece mais essa
concepção de Jhering:
“... não é possivel conhecer o direito de um povo ou de uma epocha
‘simplesmente por sua estructura anatômica’, é preciso vel-o funccio-
nar, é preciso examinar como se applicou elle realmente ás relações
da vida.”27

Bem se vê que, ainda hoje, muitos estudiosos do direito não aprende-


ram e nem puseram em prática essa lição do jurista alemão.

Clóvis lembra de um outro aspecto do organismo jurídico, além do


anatômico e do psicológico – o morfológico –

“que Jhering deixou quasi no olvido, porém que tem tambem o seu
valor especial para merecer particular exame, como no-lo mostrou
Tobias Baretto, desenvolvendo e completando assim as doutrinas do
mestre.”28

Indaga Clóvis: Como surge e para que fim existe esse sistema de
institutos e de normas que constitui o direito?

“Nenhum direito existe que não tenha procedido do esforço individu-


al e cujas origens não se percam nas profundidades da força physica.”29

Perguntamos: Por que o homem se esforça ou emprega a força físi-


ca?

Porque há o interesse. E, para que este interesse não sucumba, de-


fendem-no, a princípio, a força individual, e, depois, a social. Assim, dois
elementos se conjugam no direito: um essencial e íntimo – o interesse; e
outro formal e exterior – a força. E o pensamento conclusivo de Jhering

27 – Idem: 70 e 71.
28 – Idem: 71.
29 – JHERING, in BEVILÁQUA ( 1897): 71 e 72.

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

é o seguinte: “E como a força social se revela e se annuncia hoje por


meio da lei, os direitos se deixam comprehender como interesses que a
lei protege.”30

As lições acima estão presentes na sua monumental obra, em quatro


volumes, do Espírito do Direito Romano. Mas Jhering ainda se dedica a
escrever os estudos complementares, quando trata da teoria da posse, no
Fundamentos dos interditos possessórios e no Papel da vontade na posse.
Com esta última obra, rebate a célebre teoria de Savigny (1779-1861)
sobre a posse.

Clóvis afirma que:


“É com a Lucta pelo direito e com a Finalidade no direito que Jhering
penetra no poncto central da philosofia jurídica. A Lucta pelo direito
é uma applicação magistral do darwinismo ao grupo de phenomenos
sociaes claramente dennunciados pelo titulo da obra, evidenciando
como o principio da lucta ahi tambem entra como elemento compo-
nente.31

A seguir, dá a palavra a Jhering:

“O direito não é uma idéa logica, mas uma idéa de força; eis porque
a justiça que soergue, numa das mãos, a balança onde peza o direito,
sustenta, com a outra, a espada para faze-lo valer. A espada sem a ba-
lança é a força bruta; a balança desacompanhada da espada é o direito
em sua impotência.” 32

Ao comentar a obra Finalidade no Direito, tece os maiores elogios à


inteligência de seu autor e sua abnegação ao trabalho de escrevê-la. Nela,
Jhering afirma que o fim é o criador do direito; na prática, o que suscitou
o nascimento do direito foi a necessidade de assegurar as condições da
existência social.

30 – Idem: 73.
31 – BEVILÁQUA (1897): 75.
32 – JHERING, in BEVILÁQUA (1897): 77.

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Maria Arair Pinto Paiva

Clóvis, ao minimizar na teleologia que entra na construção jurídica


de Jhering possíveis laivos metafísicos, pois estes lhe provocaria profun-
do desgaste, àquela época, diz:

“si a metaphysica existe neste livro, é, por certo, em dose limitada e de


bom quilate. É a metempirica [mudou até o nome!] e não a metaphy-
sica, si este nome ainda causa receios ou irritações. Tudo, realmente,
na theoria de Jhering é perfeitamente mechannico, solicitadas embora
as acções humanas por uma força superior que é a vontade ou, melhor,
que é o fim da propria sociedade.” 33

Observamos que, por influência do monismo filosófico e científico,


Clóvis faz uso do vocabulário típico desta corrente de pensamento, que a
ele chegou via Jhering e Post. O termo mechannico, presente na citação
anterior, é um exemplo.

No último parágrafo de seu texto sobre Jhering, Clóvis declara que a


ele devemos o ressurgimento da ciência do direito, embora tenham outros
trazido o contingente de seus esforços para o mesmo empreendimento. E
conclui:
“Em relação ao nosso paiz, posso afirmar que devemos a Jhering e
Hermann Post, entre juristas alienígenas, a acção principal de trans-
formação que tem ido retirando da jurispridencia essa tonalidade so-
turna de canto-chão, e esse odor enjoativo de mofo, que afastavam
della a curiosidade ávida dos moços.”34

2.2.4 Hermann Post (1693-1762)


Clóvis escolheu Hermann Post porque tinha preocupações seme-
lhantes às dele, com os fundamentos do direito e com sua evolução his-
tórica, para chegar à concepção do direito, segundo a concepção geral do
mundo.35 E tem o intuito de esboçar, em seu livro, a concepção jurídica
e o valor mental do ilustre jurista que abrilhantou o tribunal de Bremen,
na Alemanha.

33 – BEVILÁQUA (1897): 78 e 79.


34 – Idem: 83.
35 – Idem: 92 .

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

Um novo paradigma da filosofia do direito veio colocar por terra


aquele que era calcado na concepção do direito natural – divino ou meta-
físico. Como Clóvis atesta,

“era necessario cuidar em levantar, da poeira miseranda dos destro-


ços, construcções novas e mais solidas, onde o espirito philosophico
se viesse abrigar, como nos penetraes mais reconditos dos templos a
transcendental substancia divina. Era necessario e urgente, porquanto,
sem espirito philosophico, toda sciencia é simples amontoado de fac-
tos mal esclarecidos,”.36

Jhering e Post foram os construtores escolhidos por Clóvis como


representantes das novas ideias, estribadas no evolucionismo, no novel
cientificismo e no monismo haekeliano. Se Jhering aplicou o método de-
dutivo em seus estudos, Post optou pelo método indutivo, procurando ver
“a marcha seguida pelas sciencias reanimadas pelo methodo experimen-
tal, comprehendeu que se poderia fazer alguma cousa de similhante em
relação ao direito.”37

As primeiras obras de Post foram Introdução a uma ciência natural


do direito e Origem do Direito.

“O livro philosophico por excellencia de Hermann Post, aquelle em


que os princípios fundamentaes do direito são expostos mais directa-
mente á 38luz de sua concepção do mundo, é o que traz por titulo – os
Fundamentos do direito e os traços geraes de sua evolução histórica.”

Para chegar à concepção do direito, Post parte de uma concepção


geral do mundo: “O mundo sensível se nos revela como um systema com-
posto de partes interdependentes que, por sua vez, se compõem de aggre-
gações de outras partes dotadas de vida propria.”39 Depois de descrever
como se dá a organização, que é a mesma, do infinitamente grande e do

36 – Idem: 88.
37 – Idem: 89.
38 – Idem: 92.
39 – Idem: 93.

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Maria Arair Pinto Paiva

infinitamente pequeno, mostrando que uma tal morfologia cósmica de-


termina uma fisiologia correspondente, Clóvis diz que, para Post,

“cada systema de organização é dominado por duas tendencias: Uma


para conservar e desenvolver sua natureza propria, e outra para limi-
tar as tendências similhantes dos atomos, e dos systemas que lhe são
subordinados. Da acção dessa dupla tendência resulta uma repulsão
geral de todos os átomos e systemas, e uma attracção geral entre eles.
Não é sómente nas regiões da astronomia que dominam as leis da
attracção e da repulsão. É em todo o universo e em cada uma de suas
parte, por menores que sejam.”40

As duas tendências acima descritas – a de repulsão geral e a de atra-


ção geral – existem, pois, no homem e nos agregados sociais e, diz Cló-
vis, baseado em Post : “Do jogo dessa tendência dupla nascem o direito e
o dever, o delicto e a vindicta, o egoísmo e a moral.”41

A seguir, o raciocínio de Post, segundo Clóvis, é dedicado a mostrar


que a sociologia devia se fundar nos resultados da biologia. Por conse-
quência, o fenômeno jurídico, que pertence ao grupo sociológico, para
ser compreendido, implica em que se tenha conhecimento de seus enrai-
zamentos biológicos. Entramos, então, na seara dos instintos: o de con-
servação e o de reprodução, geradores do combate pela existência social
e que repetem a forma das duas tendências que devem existir em todo
organismo, acima já referidas.
“Combinadas ellas com as tendências similhantes da sociedade, pro-
duzem um modus vivendi partucular, que é o direito. É fácil de ver que
tambem dessa fonte nasceram a moral e outros systemas de normas
reguladoras da conducta humana.”42

Há aspectos do pensamento de Post que exigiram mais demorada


explicação de Clóvis, ao elaborar-lhe o perfil. Quando Post afirma que
a mente de cada indivíduo reproduz, em escorço ou miniatura, a vida

40 – POST, in BEVILÁQUA, 1897; 94.


41 – BEVILÁQUA (1897): 95.
42 – Idem: 96.

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

jurídica, o sentimento jurídico, a concepção jurídica do meio social a que


pertence, Clóvis clarifica:

“Não é que o homem, entenda-se bem, tenha uma concepção innata do


direito; mas possue a faculdade de distinguir o justo do injusto, ou, em
outras palavras, de manter sua existencia biologica e sua existencia de
membro de um corpo social.”

E diz que precisa explicar a natureza dessa faculdade, porque é este


um ponto fundamental da teoria de Hermann Post:

“O homem não possue uma idéa innata do direito, pois que este é um
phenomeno social que se transforma indefinidamente e se tem vindo
consolidando, aos poucos, laboriosamente.”43

Quanto aos aspectos metodológicos, o trabalho intelectual de Post


privilegiou o método histórico e comparativo. Ele chegou à concepção de
uma Jurisprudência Etnológica, voltada ao estudo das afinidades étnicas
e jurídicas, consistindo
“no estudo do domínio social do direito, mas que se não deve con-
fundir com a história do direito, porque esta, ainda que obedeça aos
preceitos do methodo comparativo, se tem de limitar a um grupo de
povos,”44 diz Hermann Post.

Apreciando o trabalho de pesquisa comparada de Post, Clóvis mos-


tra o cuidado metodológico que ele tinha no que se refere às fontes. Apro-
veita para lembrar que, aqui no Brasil, há desidiosos que se apressam em
falar de autores referidos por outros, “embora não se dêem ao incommodo
de ir a fonte encher tambem o seu cântaro”.45

Clóvis encerra seu estudo sobre Post, comparando sua doutrina com
a de Jhering, realçando o modo como elas se completam, uma preen-
chendo as lacunas da outra. Por exemplo: Post vê o direito agindo na so-
ciedade, acentuando suas formas diferentes e sua evolução; Jhering, por

43 – POST, in Beviláqua, 1897: 99.


44 – Idem: 103.
45 – BEVILÁQUA (1897): 87.

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sua vez, procura descobrir no direito o núcleo do interesse que o gerou.


E lhes faz o seguinte elogio: “.... traçaram belíssimos quadros parciaes
que se unem harmonicamente num estupendo panorama geral da philoso-
phia cientifica do direito.”46

2.2.5 Tobias Barretto (1839-1889)


Vejamos as apreciações feitas por Clóvis a respeito de Tobias Barre-
to, mormente aquelas referentes ao jusfilósofo.

No desenvolvimento de seu espírito, afirma Clóvis, distinguem-se


três fases sucessivas: 1ª – a de poeta; 2ª – a de crítico de literatura e de
filosofia; e 3ª – a de jurista.47

Chega à filosofia através da crítica e, filósofo ou jurista, “fôram as


idéas geraes, as syntheses que o seduziram e a que consagrou as energias
masculas de seu engenho”.48

Destaquei a citação acima, porque a partir dela, Clóvis argumenta


que Tobias não era dado a detalhes e nem a análises morosas e percu-
cientes, não inclinado a ficar, durante longos meses, dedicado ao mesmo
círculo de ideias. Em assim sendo, conclui, ele nos transmitiu uma obra
fragmentária, quando poderia nos ter oferecido uma síntese completa da
filosofia do direito.

Mas, arremata Clóvis:

“Alguma vantagem defluiu para nós de que assim fosse afeiçoado o


seu espírito, porque, tendo influído na mentalidade brazileira, preci-
puamente como transformador da concepção do direito, poude abor-
dar, com felicidade e com egual vigor de pensamento, diversas pro-
víncias dessa disciplina: a philosophia jurídica, o direito criminal, a
processualística.”49

46 – Idem: 106.
47 – Idem: 110.
48 – Idem: 112.
49 – Idem, p. 113.

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

Qual a concepção do direito de Tobias?

Ele definiu o direito como “o conjuncto das condições existencia-


es e evolucionaes da sociedade coactivamente asseguradas.”50 Definição
calcada na de Jhering, na qual acrescentou a palavra evolucionaes e des-
considerou o “poder publico” como assegurador único dessas condições.
Mas Clóvis diz que essa pequena divergência não macula o que é essen-
cial: ambos – Jhering e Tobias – concebiam o direito como um fenômeno
teleológico, utilizado pela sociedade para a realização das condições ne-
cessárias a sua existência; um processo de adaptação das ações humanas
à ordem pública, ao bem-estar da comunhão política, ao desenvolvimento
geral da sociedade. Em sua linguagem vernácula, arremata Clóvis:

“O direito é, portanto, uma creação humana que se desenvolve com a


civilização, ao contrario do que pensavam os theoristas do direito na-
tural, que no-lo apresentavam, em sua essência, como uma scentelha
divina, destinada a nos illuminar nas trevosidades da vida, ou como
uma idéa universal e necessaria, obtida pela razão, pela intelligencia
emquanto capaz de comprehender o absoluto.”51

A campanha de Tobias contra o direito natural, levou-o à veemente


afirmação:“É preciso bater cem vezes e cem vezes repetir: o direito não é
um filho do céo, é simplesmente um phenomeno histórico, um producto
cultural da humanidade”.

Tobias, reagindo a argumentos das hostes defensoras do direito na-


tural, em seus arrazoados, chegou a afirmar que não existia um direito
natural, mas uma lei natural. E Clóvis vê nesta sua assertiva
“duas idéias que não se fundem facilmente, em ambas as quaes palpita
uma verdade, porém uma verdade parcial. Tendiam ellas a uma fusão
na intelligencia do philosopho, mas a operação ainda não se achava
ultimada, quando elle nos ofereceu a ultima fórma de seu pensamento,
nas Questões vigentes de philosophia e de direito.”

50 – BARRETO, in BEVILÁQUA, 1897: 116 e 117 .


51 – BEVILÁQUA (1897) :118 .

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Conclui Clóvis que, comparando as primeiras manifestações de seu


pensamento com as posteriores, observa-se que Tobias, por primeiro, per-
cebeu a feição cultural do direito; depois, a feição naturalística acentuou-se
e tomou a forma daquela lei natural do direito, “que é uma transacção,
porém ainda não é a fusão das duas idéas apparentemente antinômicas.”52
Não podemos deixar passar sem um comentário esta ponderação de Cló-
vis, dada sua atualidade metodológica. O que ele chama de fusão, hoje
se chama de complementaridade; o “aparentemente antinômicas” cor-
responde a não aceitação epistemológica de dualismos, com alternativas
excludentes.

Segue Tobias a teoria do interesse de Jhering, interesse coletivo –


que pode coincidir com o individual, é claro, mas não prescindir de sua
harmonia com o próprio interesse da sociedade. Só assim, ele possibilita
a transformação da força em direito. Ainda explicita mais Tobias, quando
diz que
“o direito é um modus vivendi, é a pacificação do antagonismo das
forças sociaes,”. [...] “E o fito da lei, expressão mais notavel do direi-
to, é traduzir, do melhor modo, a consubstanciação desses interesses
que se contrariam, a synergia dessas forças que se chocam”.53

2.2.6 Sylvio Romero (1851-1814)


Sílvio Romero era sergipano como Tobias Barreto. Clóvis faz sua
apresentação, destacando suas qualidades de crítico literário, graças às
quais conquistou uma posição brilhante na filosofia e na história. Este tom
de apresentação se justifica porque, o texto ora analisado e que consta em
Juristas Philosophos, foi escrito quando da publicação, por Sílvio, de sua
obra Ensaios de Philosophia do Direito. Ele tinha se afastado do direito,
desde o evento acontecido por ocasião de seu concurso ao cargo de pro-
fessor da Faculdade do Recife, durante a apresentação de sua defesa de
tese, tese que contrariava as idéias dos velhos professores.

52 – Idem: 120 e 121.


53 – BARRETO, in BEVILÁQUA (1897):119.

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

Como diz Clóvis, ele e Sílvio quase sempre estão de acordo quanto
às doutrinas filosóficas que interessam ao direito. Na realidade, ambos
concebem o direito como um fenômeno social, que pode ser estudado
cientificamente, fenômeno que é uma das criações fundamentais da hu-
manidade. Ainda consideram que o direito se enquadra no campo de ob-
servação que é a sociologia. Tobias se posicionava de forma contrária aos
dois. Grandes amigos, Tobias e Sílvio se enfrentaram de maneira cortês,
quando da publicação do livro do primeiro – Variações anti-sociologicas,
quando Sílvio rebateu, um a um, os argumentos expendidos por Tobias.

Das conclusões que Sílvio Romero alcançou com seu livro Ensaios
de Philosophia do Direito, apontadas por Clóvis, cumpre registrar a preo-
cupação do autor em justificar a sociologia como ciência, para isso defen-
dendo a possibilidade da existência de leis sociais e que sua formação não
será obstaculizada pela liberdade humana – esta um fato inegável e que
não impede o estudo do direito sobre bases científicas. A sociologia
“occupa-se com os phenomenos humanos estudáveis nos diversos
grupos, raças, povos, etc., em que se acha dividida a humanidade, para
desses factos induzir os princípios geraes que se pódem applicar ao
grande todo.”54

Se é possível uma ciência do Estado, a política, deve igualmente ser


possível uma ciência da sociedade – a sociologia.

Sílvio, com seu livro, abriu um largo debate, e a sociologia dele saiu
mais revigorada e mais resistente, ainda incipiente, mas já grandiosa sín-
tese de experiência humana.

Mais uma vez, as ideias de Sílvio e Clóvis são iguais no que diz res-
peito à concepção da sociedade. Tal concepção
“depende, forçosamente, da concepção mais geral do universo, em
cujo grêmio incommensuravel ella se agita. Pede, pois, a lógica a pre-
via affirmação de uma philosophia para a orientação das pesquizas no
campo da actividade social.”55
54 – BEVILÁQUA (1897):134.
55 – Idem; 135 .

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Assim, Sílvio Romero passa em revista as quatro principais corren-


tes da philosophia: o monismo, o dualismo, o positivismo e o naturalismo
evolucionista.

Como criações fundamentais da humanidade, Sílvio organiza uma


classificação, a saber: religião, arte, ciência (compreendendo a filosofia),
política (abrangendo a moral e o direito) e a indústria. A esta classificação,
Clóvis faz dois reparos: um, sobre a natureza da relação com a ciência; e
o outro, sobre o direito e a moral como conteúdo da política.56 Portanto,
iniciam-se as discordâncias filosóficas entre os dois.

Discordâncias que se estendem aos conceitos que Sílvio apresenta a


respeito do fenômeno da moral e do direito. Para ficarmos na seara jurídi-
ca, vamos demorar sobre o conceito de direito.

O conceito do direito de Rudolf von Jhering e o de Tobias Barreto


são rejeitados por Sílvio, por não assinalarem o momento da liberdade
humana. Para este último, o conceito do direito, inspirado em Kant e em
Gumercindo Bessa, é o seguinte: “É o complexo das condições creadas
pelo espirito das varias epochas, que servem para, limitando o conflicto
das liberdades, tornar possivel a coexistência social.”57

Mas, diz Clóvis,


“si Jhering e Tobias deixaram em esquecimento o momento da liber-
dade, segundo allega o douttissimo segipano, é certo que elle tambem
esqueceu um momento essencial para o conceito do direito que é – o
da coacção social.”58

E, ao fim de seu artigo, reitera que considera

“o direito não sómente como uma das modalidades pelas quaes se


manifesta a força Kosmica, como a força especifica do organismo so-
cial, segundo a phrase de Ardigó, mas ainda julgo que o direito para
affirmar-se na sociedade não poderá dispensar o auxilio da força.” (...)

56 – Idem: 136 e 137.


57 – ROMERO, in BEVILÁQUA, 1897: 138.
58 – Beviláqua (1897): 138.

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

“...uma força disciplinada, adaptada a um fim social; não se tracta da


bruteza de qualquer regulo, contra a qual as indignações liberaes de
Sylvio têm meus applausos sinceros e calorosos.”59

3. Análise conclusiva
Nosso interesse em pesquisar o pensamento de Clóvis Beviláqua
sobre questões filosóficas e da ciência do Direito data de alguns anos e,
porque supomos que o período vivido no Recife foi o de sua formação
epistemológica fundamental, resolvemos “começar do começo”. Em Re-
cife, dedicou-se aos labores de acadêmico, bibliotecário e professor na
velha Faculdade de Direito, e, principalmente, participou do movimento
intelectual denominado “Escola do Recife”. Várias indagações povoam
nossa cabeça. Durante a elaboração deste trabalho, algumas delas foram
satisfeitas e é sobre elas que, a seguir, vamos tratar. Por primeiro, vamos
verificar os posicionamentos de Clóvis ligados a duas questões episte-
mológicas, por elas estarem muito presentes em sua obra aqui analisada.
Depois, tratamos de aspectos metodológicos e de conteúdo, e, por derra-
deiro, procuramos sintetizar sua concepção científica do direito.

1ª. Qual o posicionamento de Clóvis a respeito das relações da filosofia


do direito com a ciência jurídica e desta com as outras ciências?
Logo no primeiro parágrafo do Prefácio (ver parte 2.1. deste traba-
lho), Clóvis define o que é um jurista filósofo e justifica a escolha dos no-
mes que compõem seu livro. Sua posição fica clara: distingue a filosofia
do direito da ciência jurídica. Não as separa, mas trata de aliá-las.

No decorrer da leitura de sua obra, em diversas passagens, reitera


esse seu posicionamento. Vejamos: “...sem espirito philosophico, toda
sciencia é simples amontoado de factos mal esclarecidos, e sobre os quaes
não passa, em estremecimentos de vitalidade, a voz da unidade da exis-
tencia.” 60

59 – Idem: 139.
60 – Idem: 88.

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Clóvis escolheu Cícero como representativo da Antiguidade Clássi-


ca, por causa da junção, por ele operada, da jurisprudência romana com a
filosofia grega, do elemento dogmático, com o elemento especulativo.61

2ª. Qual o porquê desta indagação?


Nossa pergunta está voltada à ambiência intelectual – último quartel
do século XIX – quando o positivismo jurídico, baseado no positivismo
filosófico de Comte, cuidava de separar o conhecimento científico do
conhecimento filosófico e, também, implicava que cada ciência constituía
um campo de investigação independente, sem se interligar com as de-
mais. A filosofia, devido às suas ligações teológicas e metafísicas, estaria
impedindo a construção da ciência do direito. O novo paradigma filosófi-
co ainda não estava construído – para usar uma metáfora de Clóvis. Como
resultante do já exacerbado cientificismo, adotaram um outro nome para
os estudos de investigação jurídico-filosófica: Teoria Geral do Direito.

Portanto, vimos que, embora adepto e defensor do conhecimento


científico, Clóvis não desqualificava (ainda?) o conhecimento filosófico.
Observamos, no entanto, que as questões relativas a valores e princípios
que são discutidos em Cícero e Montesquieu (o justo e o injusto, a boa e
a má razão, a virtude, a honra, o temor , a probidade, etc.) vão saindo do
proscênio, ao longo de seu livro, cedendo o lugar principal aos preceitos
cientificistas, que enfrentavam a doutrina do direito natural (teológico e
metafísico), então campo privilegiado da filosofia do direito. Os dualis-
mos da ciência clássica e as alternativas que se excluíam (ou isto ou aqui-
lo) se faziam presentes.

No que diz respeito às relações entre as disciplinas científicas, Cló-


vis, ao final do sec. XIX, não se alinhava entre os juristas que aceitavam
uma teoria pura do direito – concepção que no sec. XX , graças a Hans
Kelsen (1881-1973), teve grande aplicação (e acomodação...) na Amé-
rica Latina.62 Ao contrario, ele ligava a ciência jurídica à sociologia, à

61 – Idem, p. [III].
62 – VIEHWEG, 1991: 56 .

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

psicologia, e, por influência do monismo haekeliano adotado por Post, à


biologia – matéria cujo conhecimento era necessário à compreensão do
fenômeno jurídico.

Quanto à questão metodológica, esta sobressai: a) quando elege


Montesquieu como um jusfilósofo componente de seu livro, por este ter
procedido à “applicação de um novo methodo ao estudo do direito”63; b)
principalmente quando se demora em relatar as investigações de Post e
seus métodos; e c) quando descreve a metodologia utilizada por seus es-
colhidos a fim de chegarem às conclusões de seus estudos e teorias.

Critica os estudiosos que não vão às fontes, citando autores refe-


renciados por outros estudiosos. Recomenda uma interpretação sistêmica
quando da leitura de um autor ou de uma obra. Ele, face ao novo paradig-
ma científico, criticou injustamente Montesquieu, um dos pais da ciência
clássica, num “cochilo” metodológico; queria que o mestre francês pres-
crevesse e não descrevesse a realidade que seu método de observação e
comparativo lhe tinham proporcionado.

Observamos que Clóvis, em Juristas Philosophos, não cuida de cer-


tos temas e nem de determinados autores. Temas: Constituição e constitu-
cionalismo; e declarações de direitos; socialismo – nem o utópico, nem o
científico. Autores: destacamos Hegel e Marx.

Temas de natureza política são discutidos quando Clóvis estuda Cí-


cero e Montesquieu, por força, principalmente, das classificações de for-
mas de governo apresentadas pelos mesmos. Podemos explicar sua não
alusão às constituições escritas dos Estados Unidos da América (1787)
e da França (1791) e a temas de direito público como as declarações de
direitos, com base em suas próprias palavras:
“Ruy Barbosa desvendou, aos olhos brazileiros, a sciencia do direito
publico que a America do Norte creara e nós quase ignoravamos que
existisse antes que a víssemos trasladada, em correcta e lucilante phra-
se portuguesa, pelo escriptor bahiano.”64
63 – BEVILÁQUA, 1897: [3].
64 – BEVILÁQUA, 1897: 22.

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Não devemos esquecer, portanto, que no Brasil daquela época, o Di-


reito Civil dominava e Clóvis era um civilista. Este seu condicionamento
foi depois corroborado por Pontes de Miranda, quando fala a respeito do
Código Civil:

“um direito mais preocupado com o círculo social da família do que


com os círculos sociais da nação; quando cogita de classes é com cer-
to capitalismo indisfarçável, porém ingênuamente convencido de sua
função de consolidação e justiça social”.65

Quanto aos autores, vejamos: Hegel – só faz citação do nome. O


idealismo hegeliano não casava, ao final do sec. XIX, com o positivismo
de Comte. Segundo o depoimento de Gadamer, o predomínio de Hegel,
depois de sua morte, se diluiu, e, “em uma recusa a Hegel por parte da
escola histórica, as coisas foram sendo conduzidas ao desenvolvimento
do sentido histórico e de sua legitimação teórico-científica.”66 Hegel fa-
leceu em 1831. Em 1803 e 1814, Savigny publica suas obras (Tratado da
Posse e A vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência,
respectivamente) que fazem dele, depois de Gustav Hugo, o principal
membro da escola histórica.

Quanto a não se referir às ideias de Marx, podemos ponderar o se-


guinte: Marx era um filósofo que unia seu materialismo a um idealismo
dialético, “discípulo” de Hegel; e não tratou especificamente da Filosofia
do Direito. Por outro lado, Clóvis foi professor de Economia Política e
devia conhecer alguma obra marxiana. O mais provável é ele ter aderido
à primeira reação dos intelectuais europeus em torno da obra de Marx: si-
lenciar sobre ela. Farias Brito, seu conterrâneo e coevo se localizou na se-
gunda fase do calendário antissocialista, que foi a de combate/refutação
às ideias de tal natureza. A 3ª. fase é a que considera as ideias marxistas
como ultrapassadas.67

65 – MIRANDA, Pontes de. Fontes e evolução do direito civil brasileiro, p. 489. In: GO-
MES, Orlando, 1958: 23.
66 – GADAMER, 2007: 41.
67 – Ver BONAVIDES, Paulo, 1967:203.

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Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

Mas essas omissões não comprometem sua condição de grande jus-


filósofo brasileiro. É verdade que sua contribuição teria sido mais rica e
mais completa se essas omissões não tivessem acontecido, em se tratando
de um homem com uma inteligência privilegiada e um espírito dedicado
aos labores intelectuais, como Clóvis Beviláqua.

Quanto ao conceito científico do direito, por ele procurado, depois


de traçar a evolução do fenômeno jurídico, desde a antiguidade até a épo-
ca contemporânea (sec. XIX), ele garimpa entre as ideias dos jusfilósofos
por ele escolhidos e de outros a que faz remissões, e nos deixa a seguinte
concepção do direito: é um fenômeno social, que apresenta elementos
naturais, espontâneos, tem raízes biológicas, ao lado de elementos cultu-
rais; mas não é de origem divina nem inato; como todas as criações hu-
manas sofre a ação do meio cósmico e a do meio social. O direito surgiu
para o homem como uma necessidade de sua coexistência; a sociedade
apoderou-se de instintos naturais e sobre eles, aos poucos, foi erguendo
as suas construções jurídicas; a evolução social escorchou as brutalidades
mais rebarbativas do egoísmo, e o direito, sob as suas vestes novas, não
pareceu mais o que dantes era, como a pérola não recorda o molusco em
cuja concha se gerou.68

Em sua concepção científica do direito, Clóvis mostrou, como di-


zemos em nossa linguagem atual, toda a complexidade do fenômeno ju-
rídico. Ele reuniu as tendências positivistas e, principalmente, as evolu-
cionistas e as monistas do último quartel do século XIX, escolhendo as
ideias dos mestres que mais se conformavam com seu pensamento. E
estas foram as dos jus-philosophos por ele escolhidos para retratarem a
filosofia jurídica de sua época.

“O direito é, portanto, uma creação humana que se desenvolve com a


civilização, ao contrario do que pensavam os theoristas do direito na-
tural, que no-lo apresentavam, em sua essência, como uma scentelha
divina, destinada a nos illuminar nas trevosidades da vida, ou como

68 – BEVILÁQUA, 1897:121.

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uma idéa universal e necessaria, obtida pela razão, pela intelligencia


emquanto capaz de comprehender o absoluto.”69
Ao finalizarmos este trabalho, nossas interrogações de ordem episte-
mológica e metodologia foram respondidas, mas outras restaram. Até que
ponto, por exemplo, as novas ideias recepcionadas por Clóvis se arrai-
garam em seu pensamento? Ele foi um mero divulgador de doutrinas ou
introjetou tais teorias, a ponto de aplicá-las no seu cotidiano profissional?
No entanto, o trabalho foi muito instigante e provocou agudas reflexões.
Queremos dizer que, em pleno século XXI, ainda estamos lutando, a du-
ras penas, para aplicar no Brasil, a concepção do direito que nos legaram
Clóvis Beviláqua e os demais jusfilósofos integrantes da Escola do Reci-
fe, ao final do século XIX.

Referências bibliográficas
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Universitária da UFPE, 1995.
ADORNO, Theodor. Introdução à Sociologia. Tradução Wolfgang Leo Maar.
São Paulo: Editora UNESP. 2008.
BEVILÁQUA, Clóvis. Juristas Philosophos. Bahia: José Luiz da Fonseca
Magalhães, Editor – Livraria Magalhães, 1897, [XIV] + 145 pp.
BEVILÁQUA, Clóvis. Em Defesa do Projecto de Código Civil Brasileiro. Rio
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BEVILAQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Ed. rev. e atual. Por: prof.
Caio Mário da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Ed. Rio, F. Alves, 1975, 343p.
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69 – Idem, p.118 .

458 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):429-459, jul./set. 2011


Pensamento jusfilosófico de Clóvis Beviláqua ao final do século XIX

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Texto apresentado em novembro /2010. Aprovado para publicação


em fevereiro /2011.

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O Imperador da Língua Portuguesa

O Imperador da Língua Portuguesa


THE EMPEROR OF PORTUGUESE LANGUAGE
Arnaldo Niskier 1
2

Resumo: Abstract:
Através de suas cartas e sermões antológicos, Through his memorable letters and sermons,
Padre Antônio Vieira – missionário, diplomata, Father Antonio Vieira – missionary, diplomat,
orador sem paralelo, político e gênio literário – unparalleled speaker, politician and literary
pregou a igualdade dos povos e das raças e foi genius – preached the equality of peoples and
árduo defensor de um estilo fácil e natural da races, and was a strong defender of an easy and
língua portuguesa, sem “a corrupção dos vocá- natural style of Portuguese language, “uncor-
bulos estrangeiros”. Entende-se assim por que rupted by foreign vocabulary”. Thus it is easy
ele foi exaltado por Fernando Pessoa como o to understand why Fernando Pessoa celebrated
“imperador da língua portuguesa”. Nascido em him as the “emperor of the Portuguese lan-
Portugal, Vieira defendeu o Brasil contra a pá- guage”. Father Vieira was born in Portugal but
tria-mãe, nunca deixando de criticar fortemente defended Brazil against the motherland, never
o comportamento da metrópole em relação à ceasing to strongly criticize its behavior regard-
colônia e também contra a invasão holandesa ing the Colony as well as against the invasion
em Pernambuco. Este artigo pretende mostrar of Pernambuco by the Dutch. This article aims
o discurso missionário-político de Padre Antô- at focusing on the politico-missionary speeches
nio Vieira na defesa do Brasil e sua população in defense of Brazil and its population against
diante dos desmandos da metrópole. Em parti- the excesses of the Metropolis. Particular focus
cular, relato a ligação de Vieira com os judeus e is aimed at the bond between Father Vieira and
cristãos-novos que, com grande tino comercial, the Jews and cristãos-novos2 which, with strong
tenacidade e capacidade de organização, impe- commercial vision, tenacity and organizational
diu a invasão da Bahia pelos holandeses. capacity, impeded the invasion of Bahia by the
Dutch.
Palavras-chave: Vieira – cartas – sermões – Keywords: Vieira – Letters – Sermons – Portu-
língua portuguesa – colônia – judeus. guese language – Colony – Jews.

O gênio literário do Padre Antônio Vieira foi ressaltado, de modo


enfático, na Academia das Ciências de Lisboa, quando um dos seus mais
brilhantes membros, o escritor António Valdemar, fez importante pronun-
ciamento, a propósito do IV Centenário de Nascimento do autor de Ser-
mões e Cartas antológicas.

Foi lembrado que Vieira, “contra opiniões dominantes, defendeu a


igualdade dos povos e das raças, sobretudo em relação aos judeus e ín-

1 – Membro da Academia Brasileira de Letras. Sócio do Instituto Histórico e Geográfico


Brasileiro.
2 – New Christians were Jews who were forced to convert to Christianity in order to
escape the rigors of the Portuguese Inquisition. (Translator’s note).

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Arnaldo Niskier

dios.” Quanto a normas de redação e estilo, que permanecem atuais, con-


denou a “corrupção de vocábulos estrangeiros: só mendigam de outras
línguas os que são pobres de cabedais da nossa, tão rica e bem dotada.”
Por aí se entende por que, no dizer do poeta Fernando Pessoa, Vieira pode
ser exaltado como o imperador da língua portuguesa.

No Sermão da Sexagésima, proferido na Capela Real, fez uma crí-


tica contundente ao estilo da época, repudiando a afetação e a pompa
do cultismo. Vieira sabia dar valor aos seus sermões: “Se com cada cem
deles se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora santo.” Para
uma alma se converter por meio de um sermão, deveriam existir três ver-
tentes: o pregador com a doutrina, o ouvinte com o entendimento e Deus
com a graça, alumiando. Assim, para um homem se ver a si mesmo são
necessárias três coisas: olhos, espelho e luz.

No pregador, o grande religioso enxergava cinco circunstâncias: a


pessoa, a ciência, a matéria, o estilo e a voz. A pessoa que é, a ciência que
tem, a matéria que trata, o estilo que segue e a voz com que fala. A sua
explicação para as mudanças do mundo são muito claras: “Hoje, não se
converte ninguém porque pregam-se palavras e pensamentos, antigamen-
te pregavam-se palavras e obras.”

O estilo deve ser fácil e natural, para que o sermão seja como uma
árvore, com raízes, tronco, ramos, folhas, varas, flores e frutos: “Mui-
tos pregadores há que vivem do que não colheram e semeiam o que não
trabalharam... Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversan-
do... Cito o exemplo de Moisés: desça minha doutrina como chuva do
céu, e a minha voz e as minhas palavras como orvalho que se destila
brandamente e sem ruído.”

Vieira tinha objetivos muito claros, sem se preocupar com o agrado


ou desagrado dos seus ouvintes. Segundo ele, a pregação que frutifica, a
pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela
que lhe dá pena. Quando o ouvinte, a cada palavra do pregador, treme;

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O Imperador da Língua Portuguesa

quando o ouvinte vai para casa confuso e atônito, sem saber de si, então é
a preparação que convém, então se pode esperar que faça fruto.”

Missionário, diplomata, orador sem paralelo, político e gênio literá-


rio, como afirmou António Valdemar, Vieira pregou contra os pecados,
contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as cobiças.
Com tantas ideias avançadas para a época, não é de se estranhar que tenha
sofrido perseguições e incompreensões, pelo que pagou alto preço, mas
alcançou a glória.

Portugal era a pátria do padre Antônio Vieira, “esse canteirinho da


Europa, cantinho de terra pura e mimosa de Deus”, como definiu num
sermão pregado em Roma. Mas o Brasil estava inserido na pátria maior,
por cuja glória combatia Vieira, e ele fazia questão de alardear, numa car-
ta de 1673, sua fidelidade “ao Brasil, a quem, pelo segundo nascimento,
devo as obrigações de pátria”. Numa carta escrita em seus últimos anos
de vida, ele se refere ao Brasil como “essa melhor jóia que Portugal tem
fora das correntes do Tejo”.

Mas Vieira nunca deixou de ser altamente crítico do comportamento


da metrópole em relação à colônia. Em 1641, pregando na Bahia diante
do vice-rei, o marquês de Montalvão, reclamou com dureza: “Tudo o que
se tirar do Brasil, com o Brasil se há de gastar.”

Vale transcrever a parte principal deste sermão, não só pela ousadia


de Vieira diante do vice-rei, como por sua encarniçada defesa do Brasil:

“Perde-se o Brasil (digamo-lo em uma palavra) porque alguns Mi-


nistros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm buscar
nossos bens... El-rei manda-os tomar Pernambuco e eles contentam-se
com o tomar. Este tomar o alheio é a origem da doença. Toma nesta
terra o ministro da justiça? Sim, toma. Toma o ministro da república?
Sim, toma. Toma o ministro da fazenda? Sim, toma. Toma o minis-
tro do Estado? Sim, toma. E como tantos sintomas lhe sobrevêm ao
pobre enfermo, e todos acometem à cabeça e ao coração, que são as
partes mais vitais, e todos são atrativos e contrativos do dinheiro, que
é o nervo dos exércitos e das repúblicas, fica tomado todo o corpo,

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Arnaldo Niskier

e tolhido de pés e mãos, sem haver mão esquerda que castigue, nem
mão direita que premeie; e faltando a justiça punitiva para expelir os
humores nocivos, e a distributiva para alentar e alimentar o sujeito,
sangrando-o por outra parte os tributos em todas as veias, milagre é
que não tenha expirado.”

Faz uso então Vieira de uma admirável metáfora para tornar sua ex-
posição não só mais clara e visual, mas também mais contundente:

“Com terem tão pouco do Céu os ministros que isto fazem temo-los
retratados nas nuvens. Aparece uma nuvem no meio daquela Bahia,
lança uma manga ao mar, vai sorvendo por oculto segredo da natureza
grande quantidade de água, e depois que está bem cheia, depois que
está bem carregada, dá-lhe o vento e vai chover daqui a trinta, daqui a
cinqüenta léguas. Pois, nuvem ingrata, nuvem injusta, se na Bahia to-
maste essa água, se na Bahia te encheste, por que não choves também
na Bahia? Se a tiraste de nós, por que a não despendes conosco? Se
a roubaste a nossos mares, por que a não restituis a nossos campos?
Tais como isto são os ministros que vêm ao Brasil – e é fortuna geral
das partes ultramarinas. Partem de Portugal estas nuvens, passam as
calmas da Linha, onde se diz que também refervem as consciências,
e em chegando, verbi gratia, a esta Bahia, não fazem mais que chu-
par, adquirir, ajuntar, encher-se (por meios ocultos, mas sabidos), e ao
cabo de três ou quatro anos, em vez de fertilizarem a nossa terra com
a água que era nossa, abrem as asas ao vento, e vão chover a Lisboa,
esperdiçar a Madri. Por isto nada lhe luz ao Brasil, por mais que dê,
nada lhe monta e nada lhe aproveita, por mais que faça, por mais que
se desfaça. E o mal mais para sentir de todos é que a água que por lá
chovem e esperdiçam as nuvens não é tirada da abundância do mar,
como noutro tempo, senão das lágrimas do miserável e dos suores do
pobre, que não sei como atura já tanto a constância e fidelidade destes
vassalos. O que o Brasil dá, Portugal o leva. Tudo o que der a Bahia,
para a Bahia há de ser: tudo o que se tirar do Brasil, com o Brasil se
há de gastar.”

Em 1655, já empenhado na campanha missionária que o manteria


durante nove anos no Estado do Maranhão e do Grão-Pará, Vieira vai
a Portugal lutar por medidas que pusessem um fim ao cativeiro dos in-
dígenas. Aproveita a ocasião para pregar em Lisboa o Sermão do bom

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O Imperador da Língua Portuguesa

ladrão, diante de D. João IV e sua corte. Embora no púlpito da Igreja da


Misericórdia, Vieira começa dizendo que a Capela Real seria o local mais
adequado para o seu discurso, porque pretendia tratar de questões ligadas
à majestade régia e não à piedade. Podemos bem imaginar o desconforto
do auditório – formado por juízes, ministros, conselheiros da coroa e os
mais altos dignitários do reino – forçado a ouvir Vieira falar obsessiva-
mente de ladrões e ladroeiras. Já a tese inicial é implacável:
“Nem os reis podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões, nem
os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis. O que vemos
praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis levarem
consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os
reis ao inferno. Prosseguirei com tanto maior esperança de produzir
algum fruto, quanto vejo enobrecido o auditório de tantos ministros de
todos os maiores tribunais, sobre cujo conselho e consciências costu-
mam se descarregar a dos reis.”

Depois de citar a Bíblia, Sêneca e Santo Agostinho, Vieira vai direto


ao assunto, apoiado em São Basílio:

“Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, e espreitam


os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais
própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis
encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou
a administração das cidades, os quais já com manha, já com força,
roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem,
estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco,
estes sem temor, nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados.
Estes furtam e enforcam. Diógenes que tudo via com mais aguda vista
que os outros homens viu que uma grande tropa de varas e ministros
da justiça levava a enforcar uns ladrões e começou a bradar: lá vão
os ladrões grandes a enforcar os pequenos... Quantas vezes se viu em
Roma ir a enforcar um ladrão por ter roubado um carneiro, e no mes-
mo dia ser levado em triunfo um cônsul ou ditador por ter roubado
uma província?”

Mais adiante, no mesmo sermão, Vieira, depois de uma brilhante


demonstração de pirotecnia verbal, fala especificamente do Brasil explo-
rado:

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Arnaldo Niskier

“Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a pri-


meira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados e as tercei-
ras quantas para isso têm consciência. Furtam juntamente por todos os
tempos, porque do presente, que é o seu tempo, colhem quanto dá de
si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e o futuro, do pre-
térito desenterram crimes, de que vendem os perdões e dívidas esque-
cidas, de que se pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas,
e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem
a cair nas mãos. Finalmente nos mesmos tempos não lhes escapam os
imperfeitos, perfeitos, mais-que-perfeitos e quaisquer outros, porque
furtam, furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de furtar mais, se
mais houvesse. Em suma, o resumo de toda esta rapante conjugação
vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quanto
eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias
suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grande serviços,
tornam carregados e ricos: e elas ficam roubadas e consumidas... As-
sim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, da Angola, duzentos,
do Brasil, trezentos, e até do pobre Maranhão, mais do que vale todo
ele.”

E Vieira encerra, com endereço certo, visando ao próprio rei:

“Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se la-


terones. E depois, corrompendo-se este vocábulo como afirma Marco
Varro, chamaram-se latrones. E que seria se assim como se corrom-
peu o vocábulo se corrompessem também os que o mesmo vocábulo
significa? O que só digo e sei, por teologia certa, é que em qualquer
parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de
Jerusalém: Principes tui socii furum: os teus príncipes são companhei-
ros dos ladrões. E por quê? São companheiros dos ladrões, porque os
dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são
companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e poderes; são
companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são final-
mente seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompa-
nhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo.”

Sete anos depois deste flamejante sermão, já de volta a Portugal e


prestes a enfrentar o processo que o Santo Ofício lhe movia, Vieira redige
a Resposta aos capítulos que deu contra os religiosos da Companhia,

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O Imperador da Língua Portuguesa

em 1662, o procurador do Maranhão Jorge de Sampaio. No documento,


especifica as causas da insolvência do Maranhão:

“São os interesses dos que governam, porque as rendas dos dízimos


de Vossa Majestade em todo aquele estado chegam a montar seis até
oito mil cruzados, os três dos quais toma o Governador inteiramente
e no melhor parado, e na mesma forma se pagam de seus ordenados
os procuradores e os oficiais da fazenda, com que vem a ficar muito
pouco para as despesas ordinárias das igrejas, vigários, oficiais de mi-
lícia e soldados, aos quais se não paga nem a quarta parte do que lhes
pertence, com que é força que busquem outros modos de viver e se
sustentar, que muitas vezes são violentos, e todos vêm a cair às costas
do povo. Assim também levam consigo os ditos governadores muitos
criados, que provêm nos melhores ofícios, e eles com confiança no
poder de seu amo os servem com insolência, dominando não só as
pessoas, mas as fazendas, de que se recolhem a Portugal ricos e os
povos ficam despojados.”

No ano de sua morte, 1697, envia Vieira uma carta da Bahia em que
assinala:

“Das coisas públicas não digo a Vossa Mercê mais do que ser o Brasil
hoje um retrato e espelho de Portugal em tudo o que Vossa Mercê me
diz dos aparatos de guerra sem gente nem dinheiro, das searas dos
vícios sem emenda, do infinito luxo sem cabedal e de todas as outras
contradições do juízo humano.”

Mas não foi apenas de sua pátria-mãe, Portugal, que Vieira defendeu
o Brasil. Um inimigo muito insidioso aprestava-se a conquistar o Brasil
a partir de uma invasão da Bahia: os holandeses. Quando os franceses
tomaram Dunquerque aos espanhóis em 1645, Portugal inteira vibrou e
comemorou – menos Vieira que, hábil estrategista, previu logo as terrí-
veis consequências do ocorrido. Não mais ameaçados por ataques dos
espanhóis a partir de Dunquerque, os holandeses passavam a ter várias
armadas livres para se aventurar de novo contra o norte do Brasil. Quem
relatou com riqueza de detalhes a participação de Vieira neste importante
episódio foi o historiador inglês Robert Southey:

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):461-471, jul./set. 2011 467


Arnaldo Niskier

“Previsto havia sido o perigo que ameaçava a Bahia, sendo dele ad-
vertido o rei de Portugal pelo jesuíta Antônio Vieira, homem extraor-
dinário não só pela eloqüência, mas em todas as coisas. Cantara-se na
Capela Real de Lisboa um Te Deum pela tomada de Dunquerque pe-
los franceses, e tinham os ministros e principais personagens da corte
concorrido por esse motivo ao beija-mão em grande gala. Terminada
a cerimônia, disse Vieira a el-rei que a dar-lhe por esta ocasião os pê-
sames ali fora. Perguntou-lhe D. João como assim. ‘Porque’, respon-
deu ele, ‘até agora têm-se visto os holandeses obrigados a manter nas
águas de Dunquerque uma esquadra, que lhe assegurasse a passagem
do canal aos seus próprios navios; aliados aos franceses, já disto não
carecem, e a força tornada assim disponível será empregada contra
nós, podendo agora Sigismundo Shoppe, que pela segunda vez gover-
na Pernambuco, realizar a ameaça feita no tempo de Diogo Luís de
Oliveira, isto é, assenhorear-se da Bahia sem perder uma só gota de
sangue, só com impedir-nos por meio da sua armada os suprimentos.
Mas, apontando o perigo, não se via Vieira embaraçado em inculcar o
remédio. Dizendo-lhe el-rei: ‘E que vos parece que façamos?’”

Aqui o jesuíta mostra outra faceta notável: mais do que o seu grande
tino comercial, uma imensa capacidade de organização. Southey trans-
creve as próprias palavras de Vieira:

“Que em Asmterdã se oferecia, por meio de Jerônimo Nunes [judeu,


agente do governo luso], um holandês muito poderoso a dar quinze
fragatas de trinta peças, fornecidas de todo o necessário, e postas em
Lisboa até março por vinte mil cruzados cada uma, que fora o preço da
fragata Fortuna que veio a Portugal; e tudo vinha a importar trezentos
mil cruzados e que esta quantia se podia tirar facilmente lançando Sua
Majestade um leve tributo sobre a frota, que poucos dias antes tinha
chegado, opulentíssima de mais de quarenta mil caixas de açúcar, o
qual no Brasil se tinha comprado muito barato, e em Lisboa se vendia
por subidíssimo preço; e pagando cada arroba um tostão ou seis vin-
téns, bastaria para fazer os trezentos mil cruzados.”

A proposta de Vieira não vingou porque os ministros consultados


alegaram que “aquele negócio estava muito cru”. Seis meses depois, o rei
manda chamar Vieira no meio da madrugada e diz: “Sois profeta; ontem
à noite chegou uma caravela da Bahia e traz por novas ficar Sigismundo

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O Imperador da Língua Portuguesa

fortificado em Taparica. Que vos parece que façamos?” Vieira respondeu:


“O remédio, senhor, é muito fácil. Não disseram os ministros a Vossa
Majestade que aquele negócio era muito cru? Pois os que então o acha-
ram cru, cozam-no agora.” O Conselho de Ministros finalmente admitiu
a importância de socorrer a Bahia, mas alegou que não havia meios de
conseguir o dinheiro, diante do que Vieira respondeu indignado:
“Basta, senhor, que a um rei de Portugal hão de dizer os seus ministros
que não há meio para haver trezentos mil cruzados com que acudir ao
Brasil, que é tudo quanto temos! Ora, eu com esta roupeta remenda-
da espero em Deus que hoje hei de dar a Vossa Majestade toda esta
quantia.”

Vieira foi pedir socorro a um mercador judeu que havia conhecido


na Bahia, Duarte da Silva; este, com o apoio de outro judeu, Rodrigues
Marques, conseguiu levantar o dinheiro necessário. Seu nobre gesto não
impediu que os dois fossem depois perseguidos pela Inquisição, embora
valesse muito a Duarte da Silva a proteção do rei. Assim foi que, graças às
valiosas ligações de Vieira com os cristãos-novos, D. João IV pôde man-
dar ao Brasil em 1647 o tão necessitado socorro militar. Os holandeses
conquistaram Pernambuco e ali se instalaram por muito tempo. Mas não
conseguiriam a Bahia e, neste último esforço desesperado, foram balda-
dos pela tenacidade do padre Antônio Vieira. Sem ele, a História do Brasil
poderia ter sido escrita de outra maneira bem diversa. Segundo João Lú-
cio de Azevedo, triunfou ele duplamente nesta ocasião: “Deu xeque aos
ministros, que lhe contrariavam muitas vezes os intentos, e abriu caminho
para o seu projeto das companhias de comércio.”

Antes de regressar para Portugal em 1641, Vieira já possuía uma


larga vivência do problema dos judeus e cristãos-novos perseguidos pelo
Santo Ofício até mesmo nas lonjuras do Brasil, através das famigeradas
Visitações (ele se encontrava na Bahia por ocasião da segunda). A presen-
ça dos judeus no Brasil data antes mesmo da descoberta em 1500. Como
assinalou o historiador Sérgio Paulo Rouanet,
“o converso Gaspar da Gama, fluente em línguas orientais, assessorou
Vasco da Gama (1468 (?)-1524) e a monarquia portuguesa na aventura

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Arnaldo Niskier

das grandes navegações. Mais tarde, ele acompanhou Pedro Álvares


Cabral 1467(?)-1520(?) em sua expedição às Índias, e com isso pode-
mos dizer que um judeu foi co-descobridor na Terra de Vera Cruz”.

Com efeito, Gaspar da Gama, conhecido como “o judeu da Índia”,


que sabia falar o árabe e os dialetos hindus da costa do Malabar, foi um
dos primeiros quatro homens a pisarem na terra do Brasil, a mando de
Cabral. (Além dele, desembarcaram Nicolau Coelho, que, como Gaspar,
acompanhara Vasco da Gama à Índia, um grumete da Guiné e um escravo
de Angola. Eram, pois, juntos no mesmo escaler, quatro homens dos três
continentes conhecidos na época e que sabiam falar sete línguas.)

Desde o início, o Brasil representou um refúgio para os judeus perse-


guidos pela Inquisição; infelizmente, já no final do século XVI, ela viria
atrás deles até mesmo nesta colônia remota. Na condução dos seus afaze-
res religiosos, os judeus sempre contaram com a simpatia da população
brasileira, inclusive dos escravos, que os preferiam aos outros “senhores”,
porque lhes concediam o sábado e o domingo de repouso toda semana, o
que não acontecia em nenhum outro local do mundo.

Além dos judeus que acorreram ao Brasil em busca de refúgio, se-


guiram-se aqueles que, mesmo cristãos-novos, foram condenados pela
Inquisição a viver aqui. Segundo a pesquisadora Anita Novinsky, foram
os cristãos-novos que, com sua experiência agrícola na ilha da Madeira e
em Cabo Verde, deram início ao ciclo da cana-de-açúcar. Era de origem
judaica o primeiro “revolucionário” brasileiro, Manuel Beckmann, e cris-
tão-novo foi também nosso primeiro grande poeta, Bento Teixeira Pinto
(1540 (?)-1618(?), autor da Prosopopeia; assim como judeu foi também
nosso primeiro grande autor teatral, Antônio José da Silva, “O Judeu”
(1705-1726), sacrificado nos tempos tortuosos da Inquisição.

Vale mencionar ainda uma vez os judeus que vieram para Pernam-
buco com os holandeses, entre eles o primeiro rabino da América, Isaac
Aboab da Fonseca (1605-1693): eles fundaram no Recife a primeira sina-
goga da América e, expulsos os batavos do Brasil, foram engrandecer a
recém-fundada Nova Amsterdã, na ilha de Manhattan, depois Nova York.

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O Imperador da Língua Portuguesa

Os judeus e cristãos-novos que permaneceram no Brasil ficaram ex-


postos à sanha da Inquisição portuguesa até 25 de maio de 1773, quando
o marquês de Pombal deu o golpe de misericórdia à estúpida perseguição
que chegava até a afetar economicamente Portugal e suas colônias. Hoje,
150 mil judeus vivem no Brasil, mas são incontáveis os descendentes
diretos dos cristãos-novos. Talvez seja esta a causa principal da demo-
cracia religiosa que caracteriza a vida brasileira, onde, apesar de tenta-
tivas esparsas, nunca medrou com força a semente do antissemitismo.
Não fora o terror do Santo Ofício ter estendido os seus tentáculos até nós,
certamente a contribuição dos judeus teria sido ainda mais considerável
em nosso país. Em 250 anos de Inquisição em Portugal, 25 mil pessoas
foram processadas, das quais 1.500 acabaram condenadas à morte. Cerca
de 400 cristãos-novos brasileiros foram julgados, sendo 18 condenados à
morte, notabilizando-se o caso de Branca Dias, cuja perseguição e morte
na fogueira ficaram como um sinal de repulsa à Inquisição, mas também
como uma admirável demonstração de heroísmo.

O fim do obscurantismo, promovido pelo marquês de Pombal a par-


tir de 1773, só se tornaria definitivo quando o Brasil proclamou a sua in-
dependência de Portugal, em 1822, e foram lançados os fundamentos da
atual comunidade judaica e a imigração se fez sem quaisquer restrições,
excetuando um período de turbulência e indefinição durante os anos do
nazifascismo e do Estado Novo de Getúlio Vargas (1883-1954), na déca-
da de 1930.

Coincidentemente, a nação hebraica via o seu destino ser decidido


pelas mãos de um brasileiro, Osvaldo Aranha (1894-1960), que teve uma
atuação determinante na criação do Estado de Israel em 1948, um antigo
sonho que trezentos anos antes já fora profetizado pelo padre Antônio
Vieira.

Texto apresentado em outubro /2009. Aprovado para publicação em


abril /2010.

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O padre Antônio Vieira, um diplomata desastrado

O PADRE ANTÔNIO VIEIRA, UM DIPLOMATA DESASTRADO


FATHER ANTONIO VIEIRA – A CLUMSY DIPLOMAT
Vasco Mariz 1

Resumo: Abstract:
Quando Portugal se libertou do jugo espanhol In 1640, when Portugal became free from
em 1640, não tinha meios para lutar contra a Spanish domination, the country did not have
Espanha e os Paises Baixos. O padre Vieira re- the means to fight against Spain and the Low
comendou a D. João IV negociar a compra do Countries. Father Vieira recommended that D.
Nordeste ocupado pelos holandeses, ou vendê- Joao IV should negotiate either the purchase
lo. Não conseguindo, ele negociou com o carde- of Northeastern Brazil, which was occupied
al Mazarin o casamento de D.Teodósio, herdei- by Holland, or its sale. As he was unsuccess-
ro do trono, com a Grande Demoiselle, filha do ful, Father Vieira then negotiated with Cardinal
duque de Orleans, que reinaria em Portugal até Mazarin the marriage of D. Teodosio, heir to
a maioridade do rapaz. the Portuguese throne, with the Grande Dem-
oiselle, daughter of the Duke of Orleans, who
would reign over Portugal until the young man
became of age.
Palavras-chave: A venda do Nordeste, o diplo- Keywords: Sale of Northeastern Brazil – Vie-
mata Vieira, o casamento francês de D.Teodosio, ira, the diplomat – The French marriage of D.
Vieira na Italia. Teodosio – Vieira in Italy.

Nas atuais comemorações do quarto centenário do padre Vieira, só


temos ouvido louvores bem merecidos. Cabe a mim agora fazer-lhe algu-
mas restrições em sua atuação episódica como diplomata. Ao considerar
sua atividade diplomática fracassada, devemos procurar entendê-lo, pois
atuou em um contexto desesperado, já que Portugal sofria graves amea-
ças da Espanha e da Holanda e suas possibilidades de sobrevivência como
país independente eram mínimas. Apesar de ter vivido a sua infância e
mocidade na Bahia, Vieira era um português e um patriota português,
disposto até a sacrificar o Brasil para salvar a sua pátria. Se os seus conse-
lhos a D. João IV foram por vezes descabidos, estava disposto a tudo para
evitar que Portugal voltasse a cair nas mãos da Espanha. Acertou porém
ao aconselhar o apelo aos recursos dos cristãos-novos e a criação da Com-
panhia do Brasil e Angola, cujas fragatas foram decisivas na libertação do
Nordeste brasileiro. Dito isso, vamos aos fatos que são surpreendentes.

1 – Diplomata, musicólogo e sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Vasco Mariz

Um tema ainda pouco conhecido da nossa história do século XVII


é a atuação do padre Antônio Vieira em suas missões diplomáticas na
Holanda e na França, de 1646 a 1648. No momento em que se celebra
o quarto centenário do nascimento de Maurício de Nassau, parece-me
oportuno lembrar o tragicômico episódio. O estudo do chamado “papel
forte”, com o que defendeu a sua tese, não revela tudo o que aconteceu
e que poderia ter sido tão grave para o Brasil. Recordo que o genial sa-
cerdote tentou justificar, a mando de D. João IV, a devolução das áreas
reconquistadas aos holandeses pelos luso-brasileiros. Oferecia Portugal
essa troca se os Estados Gerais assinassem um tratado de paz permanente
e não perturbassem mais o comércio internacional português. Digo que
o tema ainda é obscuro porque muitos documentos que esclareceriam os
pormenores das negociações se perderam. Entretanto, por outras fontes
e cartas do próprio padre Vieira foi possível apurar, de um modo geral,
como decorreram as negociações em Amsterdã, Haia e Paris. Muito mais
tarde, Vieira pretendeu ignorar o assunto e fez apenas referências evasi-
vas, temeroso da condenação dos contemporâneos e sobretudo da pos-
teridade. Na época das negociações em Haia e nos Conselhos de Estado
em Lisboa, ele chegou a ser chamado de “o Judas do Brasil”, não só em
Portugal, mas sobretudo em Pernambuco e na Bahia.

Lembro que se Camões fixou a forma poética da língua portugue-


sa, o padre Antônio Vieira também deu notável contribuição para fixar
a forma da nossa prosa. Não é a minha intenção diminuir a sua imagem
neste estudo, mas apenas comentar sua importante participação em fase
decisiva de nossa história comum. Ele agiu como bom português, cioso
da precária independência de Portugal e do futuro de seu país natal, sem
olhar para trás, para os anos de sua formação que ele passou no Brasil.
Por isso será excessivo considerá-lo um traidor do Brasil, para onde ele
acabou regressando para passar os últimos anos de sua velhice.

Vejamos o que foi possível concluir dentro da vultosa bibliografia


sobre o extraordinário orador, que, na primeira parte de sua longa vida,
desempenhou o importantíssimo papel de conselheiro e legado especial
do rei de Portugal. Lembro que estávamos no delicado período da Res-

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O padre Antônio Vieira, um diplomata desastrado

tauração, em que Portugal lutava desesperadamente contra a Espanha e


a Holanda, com modestos meios para manter sua frágil independência
recém-adquirida, e buscava o apoio da França, inimiga de ambos países.

O padre Antônio Vieira é talvez hoje mais lido no Brasil do que Ca-
mões. Sua obra impressa é vastíssima, destacando-se vários volumes de
sermões, que tiveram numerosas edições a partir do século XVII. Muito
apreciadas são também as suas Cartas a diversas personalidades da época,
a começar por aquelas dirigidas a el-Rei Dom João IV, o primeiro monar-
ca a governar Portugal depois da Restauração de sua independência da
Espanha, em 1640. Mas vamos limitar-nos à faixa do tema escolhido, e
eu diria que a sua correspondência com o Marquês de Niza, o superem-
baixador português em Paris, e com Sousa Coutinho, embaixador junto
aos Estados Gerais, merecem especial atenção. Lembro que no Catálogo
do acervo da nossa Biblioteca Nacional o interessado poderá ter ampla
escolha para aprofundar seus conhecimentos sobre as muitas e perigosas
andanças do genial sacerdote.

No estudo do “papel forte”, nome com que o próprio rei D. João IV


batizou o aide-mémoire de Vieira para defender as negociações em Haia
e Paris junto aos diversos Conselhos de Estado, saliento algumas obras
que são de manuseio obrigatório: a História de Antônio Vieira, de João
Lúcio de Azevedo, publicada em Lisboa pela Livraria Clássica em dois
volumes, em 1918 e 1920. Já no Brasil, nos anos cinquenta e sessenta do
século XX, lembro Aspectos do padre Antônio Vieira, de Ivan Lins, edi-
tado pela Livraria São José, no Rio de Janeiro, em 1956, com 2ª edição
em 1962. Em 1997 apareceu em Lisboa um volume da bela publicação
Oceanos, de nº 30/31, (de abril / setembro), que contém artigo de Pedro
Cardim, da Universidade Nova Lisboa, e apresenta excelente descrição da
atmosfera em que foram efetuadas as negociações em Haia e Amsterdã.
O mais importante é o notável livro de Evaldo Cabral de Mello intitulado
O Negócio do Brasil (Topbooks, 2ª edição, 2003) Outros escritores de
renome também se ocuparam dessas atividades diplomáticas do pitoresco
personagem do século XVII, entre os quais recordo Hernani Cidade, Pe-
dro Calmon, C.R.Boxer e José van den Besselaar.

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Para melhor compreensão do controvertido personagem, começo por
um rápido resumo de sua vida aventurosa, antes de focalizarmos o tema
principal de nosso estudo. Antônio Vieira nasceu em Lisboa em 1608,
filho do mulato Cristóvão Vieira Ravasco e de Maria Azevedo. No ano
seguinte seu pai viajou só para Salvador, onde arranjara um bom emprego
público. O menino só foi trazido para o Brasil em 1614, quando já tinha
seis anos. Antônio foi educado no colégio jesuíta de Salvador e lá estudou
teologia, retórica e filosofia. Seus mestres estimulavam os debates entre
alunos para desenvolver a argumentação, o que lhe seria de muita utilida-
de na carreira política e sobretudo como orador sacro.

O rapaz iniciou seu noviciado em 1623, aos 15 anos de idade, con-


tra a vontade dos pais. No ano seguinte ocorreu a invasão holandesa da
Bahia, que ele presenciou de perto; mas em 1625 uma esquadra espa-
nhola retomou a cidade. Nessa época Antônio Vieira já dominava o latim
tão bem que foi encarregado de escrever um relatório para o Geral da
Companhia de Jesus, relatando o que se passara na Bahia. Em 1627, foi
transferido para Olinda, onde lecionou retórica no colégio jesuíta, e sete
anos depois foi ordenado sacerdote. Continuou a lecionar e a proferir ser-
mões e já no ano seguinte escreveu seu primeiro livro Curso Filosófico,
adotado oficialmente. Em 1638, quando Maurício de Nassau tentou con-
quistar a Bahia, fez sermões vibrantes contra os holandeses, o que lhe deu
notoriedade na região. Lembro que na época não havia jornais e o púlpito
servia para orientar a opinião pública. Trabalhou com indígenas e negros
escravos na catequese até que, em 1641, surgiu a grande oportunidade de
projetar-se a nível internacional – ele foi convidado a integrar a comissão
baiana encarregada de levar as congratulações do Brasil ao rei D. João
IV, que acabara de assumir o trono português, após 60 anos de domínio
espanhol.

Vieira tinha então 33 anos de idade, era alto, magro e sua eloquên-
cia já havia atingido suficiente maturidade. Em Lisboa começou a pregar
na igreja de São Roque e o povo acorria para ouvi-lo. Em 1642 falou

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O padre Antônio Vieira, um diplomata desastrado

pela primeira vez na Capela Real e encantou o monarca, que passou a


convidá-lo a debater com ele os problemas nacionais. Em breve, Vieira
se tornaria o principal conselheiro do rei, que ficava magnetizado por sua
extraordinária personalidade. Em 1644, aos 35 anos, Vieira professou na
Ordem. Iniciava a sua verdadeira luta e, como escreveu Lúcio de Azeve-
do, “a vida foi-lhe sempre um campo de batalha e a passou guerreando a
todo o mundo. (...) Ele não media a estatura do adversário e não temia os
poderosos”. Pagaria bem caro por isso.

Este é o período de sua vida que nos interessa especialmente, pois


D. João IV confiou-lhe em 1646, 1647 e 1648 três missões políticas da
maior delicadeza, em Amsterdã, Paris e Haia, como veremos a seguir.
Até que ponto essas missões foram por ele mesmo inspiradas ao vacilante
soberano, caberá ao leitor avaliar e julgá-lo, já que as gestões foram de
importância extraordinária para o futuro de Portugal e do Brasil. Como
conceber que um homem de sua excepcional inteligência, possa ter suge-
rido ao soberano essas jogadas? Se bem-sucedidas, elas seriam desastro-
sas para Portugal e para o Brasil, e certamente contribuiriam para a sua
perda política e talvez até de sua vida. O duplo fracasso dessas gestões
e a animosidade que provocaram, sobretudo em Portugal, custaram-lhe,
indiretamente, nada menos de dois anos de prisão nas masmorras da In-
quisição.

Concordo plenamente com Evaldo Cabral de Mello quando escreveu,


em O Negócio do Brasil, que devemos estudar melhor a história de Portu-
gal a partir da sua emancipação da Espanha, em 1640, para entender tudo
o que se passou em nosso país até o final do século XIX. A guerra contra
os holandeses não terminou em 1654, com as duas vitórias dos Guarara-
pes e a rendição do Recife, pois a soberania portuguesa sobre o Nordeste
brasileiro só foi reconhecida pelos Estados Gerais quinze anos depois,
em 1669, e isso só foi conseguido mediante o apoio inglês e importantes
concessões comerciais. A Inglaterra exercia então verdadeira tutela sobre
Portugal, o que até seria útil ao Brasil a médio prazo.. Lembro que a luta
entre a Holanda e Portugal era sobretudo pelo valioso comércio do açúcar
brasileiro, o tráfego de escravos proveniente de Angola que assegurava o

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bom funcionamento das fazendas pernambucanas e, finalmente, o provei-


toso comércio de especiarias da Ásia. Com tais objetivos, os holandeses
ousaram até bloquear a foz do Tejo e causaram danos enormes a Portugal,
pois eles possuíam a maior frota naval do mundo, em meados do século
XVII. Lembro que os ingleses só adquiriram a supremacia nos mares no
século XVIII. E na época das guerras holandesas, o Brasil era apenas uma
rica, mas estreita faixa de terra de, aproximadamente, cem quilômetros de
profundidade, do Maranhão ao Paraná. Se a Espanha tivesse recuperado o
domínio de Portugal – e não faltou muito –, ela teria provavelmente cedi-
do o Nordeste aos holandeses e o Brasil hoje não existiria como tal, pois
a área em disputa representava a metade do território brasileiro da época.
Após tais esclarecimentos, passemos às estranhas atividades de Antônio
Vieira em Portugal e na Europa.

Recomendo especialmente aos interessados nessas atividades diplo-
máticas do padre Antônio Vieira a leitura do esplêndido livro de Evaldo
Cabral de Mello O Negócio do Brasil, que não focaliza especialmente as
andanças do sacerdote, mas analisa e comenta pormenorizadamente os
acontecimentos políticos, comerciais e militares da época com lucidez. O
autor salienta todas as marchas e contramarchas da diplomacia portugue-
sa no esforço por obter o reconhecimento do reino pelas principais po-
tências europeias e na defesa de suas colônias na América, África e Ásia.
Evaldo, que fez pesquisas recentes em fontes holandesas, nos esclarece
também sobre as dificuldades do lado batavo em sua luta contra a França
e a Espanha e, mais tarde, contra a Inglaterra, o grande poder naval e
comercial em ascenção. Ao contrário do que o leitor médio possa supor,
a política interna e externa dos Estados Gerais nada tinha de monolítica e
as províncias holandesas brigavam frequentemente entre si.

As províncias que compunham os Países Baixos tinham interesses


por vezes profundamente diferentes e mesmo conflitantes. A Holanda,
que constituía cerca de 40% do país, nem sempre teve voz preponderante
sobre as demais províncias em assuntos importantes dos problemas co-
loniais. E para complicar ainda mais, os empreendimentos comerciais da

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O padre Antônio Vieira, um diplomata desastrado

Companhia das Índias Ocidentais, a menina dos olhos do país, estavam


sempre sujeitos às vontades volúveis de seus acionistas, e nem sempre
coincidiam com os pontos de vista dos Estados Gerais. Por outro lado,
esses conflitos de interesses internos holandeses facilitaram bastante a
defesa dos objetivos lusitanos, graças à atuação brilhante do embaixador
Francisco de Sousa Coutinho, que utilizou de todos os meios possíveis,
inclusive o suborno sistemático de autoridades holandesas, para procras-
tinar as negociações e a tomada de decisões, que eram sempre adotadas
por cerca de 2.000 pessoas! Evaldo Cabral de Mello pinta em seu livro
um quadro admirável da conjuntura política interna da Holanda do século
XVII.

Por outro lado, lembro que o rei D. João IV de Portugal só dispunha


de relativa autonomia decisória: ele tinha de ouvir os diversos Conselhos
de Estado, cujos membros conheciam mal a verdadeira situação interna-
cional. Por isso as negociações iniciais para a trégua, assinada em 12 /6/
1641 e válida por dez anos, e as tratativas para o tratado de paz com os
Países Baixos, foram extremamente tortuosas, um rosário interminável de
marchas e contramarchas, agravado pelas dificuldades de comunicação
da época, em que uma carta de Lisboa a Paris ou para Haia podia levar
três meses. O rei, por natureza hesitante e inseguro, estava à mercê das
pressões dos notáveis e da Inquisição. Daí a sua constante mudança de
direção nas conversações.

Dizia Sousa Coutinho que o monarca precisava, às vezes, enga-


nar seus próprios embaixadores para poder obter bons resultados.. Por
isso veremos com surpresa a intervenção de pessoas estranhas ao métier,
como o padre Antônio Vieira, na tentativa de solucionar alguns dos pro-
blemas mais graves da política externa de Portugal. Assim, Vieira recebeu
três missões desesperadas na França e na Holanda e depois ainda teve de
redigir, a instâncias do rei, o chamado “papel forte” para tentar justificar
junto aos Conselhos de Estado a estranha e confusa política externa ado-
tada pelo soberano. No citado livro de Cabral de Mello o personagem
principal não é Vieira e sim o competente embaixador Francisco de Sousa
Coutinho, que deu todos os saltos para cumprir instruções por vezes con-

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traditórias ou inexequíveis. No entanto, o historiador menciona frequen-


temente as cartas de Antônio Vieira e seu “papel forte”, que comprovam
que o futuro do Brasil esteve várias vezes em perigo mortal.

Recordo que o embaixador Sousa Coutinho já era conselheiro do


Duque de Bragança antes de ele se tornar rei com a Restauração. Fora
também seu representante em Madri para negociar o seu casamento com
D. Luisa de Guzmán. Terminou em 1650 a sua importantíssima missão
na Haia, onde se saiu muito bem, se levarmos em conta as condições difi-
cílimas em que teve de atuar. Francisco foi também embaixador em Paris
(1651-1655) e em Roma (1655-1658). Veio a falecer em Lisboa em 1660,
quando era membro do Conselho de Estado.

Como bem comentou o grande historiador inglês C. R. Boxer, as


relações entre Vieira e o rei João IV “não eram de monarca e vassalo e
sim de dois amigos que não tinham segredos entre si”. Ambos estavam
convencidos de que Portugal não tinha meios para combater, ao mesmo
tempo, as Províncias Unidas e a Espanha. Por isso, a paz com a Holanda
devia ser obtida a qualquer preço. Vieira encantou também a rainha Dona
Luísa e o infante Dom Teodósio, mas o fato de atuar como se fora um ver-
dadeiro primeiro-ministro criou-lhe numerosos e poderosos inimigos, que
o incomodariam o resto de sua vida. Mas, curiosamente, tanto D. João IV
quanto Vieira, estavam certos em sua avaliação, pois Portugal era mesmo
um país pobre, com apenas um milhão e meio de habitantes, para assumir
a defesa de seus vultosos interesses. Boxer aponta que o Brasil estava di-
vidido em duas partes equivalentes entre os portugueses e os holandeses,
sendo que os batavos detinham o setor mais rico. Como Portugal poderia
defender o Brasil eficazmente quando necessitava de cada homem, de
cada canhão e de cada uma de suas antiquadas naus para se defender da
Espanha? A solução escolhida era mesmo desesperada, mas terá ela sido
inspirada pelo sacerdote, ou foi mesmo iniciativa do próprio rei, ou ain-
da de algum grande do reino? Se a jogada tivesse obtido sucesso, quase
certamente o Brasil de hoje não existiria. Vejamos o que planejaram o
monarca e o brilhante jesuíta e quais as providências tomadas.

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A primeira missão de Vieira foi para reavaliar a conjuntura política


na Holanda. De regresso, ele recomendou ao rei acrescentar aos 2 mi-
lhões de cruzados previstos, outro milhão para “a compra da compra”,
isto é, o dinheiro adicional para convencer os delegados holandeses. O
projeto inicial consistia em tentar comprar dos holandeses a metade do
Brasil que eles já ocupavam. Caso se recusassem e insistissem em ficar
com Pernambuco, então o rei estava disposto até a reconhecer os direitos
dos holandeses sobre toda aquela enorme e riquíssima região, em troca
de um tratado de paz firme e duradouro, e a promessa de os Países Baixos
ajudarem Portugal contra a Espanha, também inimiga dos batavos.

Além desse plano, Vieira aconselhara o monarca anteriormente, em


1647 (e isso foi realmente idéia dele), criar duas companhias comerciais,
do gênero das grandes empresas mercantes holandesas, que se ocupa-
riam, respectivamente, uma do comércio com o Brasil e Angola, e a outra
com o Extremo Oriente. Para isso seria indispensável obter significativo
apoio financeiro dos ricos judeus portugueses que haviam fugido do país,
escapando da Inquisição. Na defesa de sua tese, Vieira chegou até ao
extremo de combater qualquer tipo de auxílio da metrópole aos patriotas
luso-brasilianos, que haviam se organizado bem e se propunham expulsar
os holandeses de Pernambuco. Nessa altura, a admiração que Vieira al-
cançara anos antes em Salvador e Olinda se esgarçou rapidamente e bem
cedo começou a ser chamado de “o Judas do Brasil”.

Mas o rei D. João IV estava convencido de ser absolutamente indis-


pensável alcançar uma paz duradoura com a Holanda e a qualquer preço.
Era a única maneira de estabelecer um certo equilíbrio de forças políticas
e militares que assegurasse a sobrevivência e o futuro da independência
de Portugal. Por incrível que pareça, muita gente sensata pensava assim
em Lisboa, apesar de que os luso-brasileiros já haviam obtido seus pri-
meiros êxitos na luta contra os batavos no Brasil. O soberano confiou
então ao padre Antônio Vieira outra missão secreta junto ao embaixador
português em Haia, Sousa Coutinho, no sentido de efetuar uma tentativa
de negociação nos termos mencionados acima. Com tal objetivo, o sa-
cerdote, com status de embaixador adjunto, permaneceu na Holanda de
fevereiro a julho de 1647.

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Vieira estava no seu prime, já que tinha apenas 39 anos de idade.


Seu magnetismo pessoal e sua extraordinária lábia estavam no auge e
os judeus portugueses expatriados nos Países Baixos foram facilmente
convencidos a ajudá-lo com sua influência regional e suas riquezas, an-
tevendo já polpudos negócios a curto prazo. Mas.... o desafio era dema-
siado grande, tantos obstáculos encontraria Vieira. Falharam as gestões
dos dois enviados portugueses, Sousa Coutinho, o embaixador residente
(nada convencido da inaudita missão de Vieira) e seu misterioso ajudan-
te, disfarçado em gentilhomem, vestido de escarlate, com bigode, capa
e espada, já que na Holanda não se aceitava a presença de jesuítas ou
sacerdotes católicos.

A segunda investida de D. João IV ainda foi mais audaciosa e mais


desesperada, comportando negociações duplas: uma junto à corte france-
sa, inimiga dos holandeses e espanhóis, e outra junto aos Estados Gerais.
Os pormenores são por vezes espantosos e então veremos em ação toda
a audácia do prelado luso-brasileiro. É verdade que, na época, eram fre-
quentes as jogadas políticas duplas e até múltiplas – era uma tônica da
diplomacia no século XVII, a diplomacia barroca. Devemos dar graças
a Deus pelos percalços que encontrou, pois se os plenipotenciários ti-
vessem sido bem-sucedidos, hoje quase certamente estaríamos falando
holandês em grande parte do Brasil.

Mas antes algumas palavras sobre as condições em que atuavam os
embaixadores portugueses na Europa. Ao acontecer a Restauração em
1640, urgia organizar uma rede diplomática eficiente para defender os
interesses da coroa portuguesa contra seus numerosos inimigos. Foram
escolhidos alguns dos aristocratas mais bem preparados, fluentes em idio-
mas estrangeiros e com patrimônio pessoal para representar Portugal jun-
to às principais cortes da Europa. Mas, como escreveu Sousa Coutinho,
a diplomacia “era uma profissão adonde se entra a ser rico e adonde cada
dia mais se empobrece o que a exercita”. Sim porque os embaixadores
deviam ostentar em seus postos a imagem de seu rei e isso custava muito
dinheiro. Vieira pediu por carta a D. João IV

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O padre Antônio Vieira, um diplomata desastrado

“400 ou 500.000 cruzados para comprar as vontades e os juízos dos


ministros mais interessados e poderosos. (...) 0 certo é que sem dinheiro
se não há de fazer cousa alguma”.

Por sua vez, Sousa Coutinho escrevia:

“Confesso meu talento incapaz para negócio tão grande, que porven-
tura o não terá Portugal tamanho em muitos anos”.

Como o dinheiro enviado por Lisboa era escasso e irregular, o em-


baixador tinha de dispor de posses suficientes para manter-se no posto,
atender às despesas de seus auxiliares e sobretudo arcar com os gastos
da propaganda de D. João IV. Lembro que a diplomacia espanhola era
ativíssima na tentativa de desmoralizá-lo perante as cortes europeias. As
tipografias de Rouen foram mobilizadas para a impressão dessa contra-
propaganda e as dificuldades eram muitas para a sua difusão. Por tudo
isso, a ajuda financeira dos exilados portugueses sefarditas era essencial,
o que motivou Vieira a tentar obter o afrouxamento das drásticas medidas
contra os cristãos-novos, em um período de grande animosidade contra
eles em Portugal.

Lembro que, devido às dificuldades e à lentidão da correspondência


com Portugal, os diversos embaixadores tinham um coordenador hábil e
competente com o qual se correspondiam intensamente e recebiam ins-
truções. Era ele Vasco Luís da Gama, trineto do navegador, o Marquês
de Niza, embaixador na França, personagem importante nesse período e
junto ao qual Vieira trabalhou durante as conversações com Mazarin. Já
Francisco de Sousa Coutinho, o embaixador junto aos Estados Gerais,
estava em contato permanente com Niza, mas gozava de certa autonomia
e também se correspondia diretamente com o rei D. João IV, ou com o Se-
cretário de Estado em Lisboa. O padre Antônio Vieira recebeu instruções
bastante vagas para suas missões e tinha margem de manobra para o que
julgasse conveniente, mas isso também implicava em certo risco. Ele e
Coutinho davam-se bem, já as relações entre Vieira e o Marquês de Niza
deixaram a desejar, pois este jamais aprovou a proposta que Vieira lhe

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trouxera de Portugal e ademais se sentia desconfortável pela intromissão


do brilhante sacerdote nas negociações.

O isolamento daqueles diplomatas era muito grande, pois a corres-


pondência com Lisboa demorava meses para chegar. Vieira conta que, em
Amsterdã, frequentemente ia ao cais do porto conversar com marinheiros
chegados de Portugal, à procura de notícias que o orientassem nas nego-
ciações. Em certas ocasiões os embaixadores em Paris e Haia não foram
informados, ou propositadamente mal informados, ou ainda tardiamente,
de gestões importantes ordenadas pelo rei em outras capitais sobre o mes-
mo tema.

Vamos agora seguir de mais perto as andanças, por vezes mirabolan-
tes, do padre Antônio Vieira. O salto foi enorme: em 1641 ele ainda dava
lições de catecismo a jovens índios e negros em Salvador e, cinco anos
depois, ele já negociava com um dos homens mais poderosos do mundo
de então, o primeiro ministro da França, o cardeal Mazarin. A proposta
era debater a possibilidade do casamento do herdeiro do trono de Portu-
gal, D. Teodósio, com a “Grande Demoiselle”, filha do Duque de Orleans.
Boxer lembra que D. João IV considerava Vieira “o primeiro homem do
mundo” e isso parecia habilitá-lo a negociações vitais para o futuro de
Portugal e do Brasil. Aliás Vieira teria sido um grande pesquisador das
principais bibliotecas da Europa, a ponto de o embaixador inglês em Lis-
boa comentar que “além de sua eloqüência, ele tinha a faculdade de fazer
os documentos falarem da maneira que mais lhe agrada”.

Como orador, Vieira apelava para a emoção, o patriotismo e a ima-


ginação dos ouvintes, mas ele era um homem frio, objetivo e pragmá-
tico em seus escritos políticos. Como dizia Boxer: “Vieira tinha idéias
muito pessoais e altamente impopulares”.(...) mas “tanto ele quanto o rei
estavam convencidos de que Portugal não poderia de maneira alguma
combater a Espanha e as Províncias Unidas ao mesmo tempo”. Em prin-
cípio eles estavam certos, embora os acontecimentos posteriores viessem
a comprovar que se equivocavam.

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O padre Antônio Vieira, um diplomata desastrado

O conselho inicial do sacerdote ao monarca era no sentido de que


os holandeses deveriam vender as terras que ocupavam no Brasil contra
uma altíssima indenização a ser paga em dinheiro e em açúcar. Cerca de 2
milhões de cruzados. No entanto – e aí está o ponto nevrálgico – se os ba-
tavos insistissem em reter Pernambuco, então o rei deveria, como último
cartucho para a paz, reconhecer os seus direitos no Brasil em troca de um
seguro tratado de paz permanente. A opinião pública portuguesa e brasi-
leira se opunha vivamente a essa iniciativa, pois detestavam os calvinistas
e, em última análise, também estavam certos. Apesar disso, D. João IV
despachou Vieira para Haia e Amsterdã, onde permaneceria de fevereiro
a julho de 1647, como uma espécie de embaixador adjunto a Francisco de
Sousa Coutinho, o representante residente na Holanda. Ambos tentaram
por todos os meios a aquisição das terras do Nordeste já conquistadas
pelos holandeses. Mas, como afirmou Hernani Cidade, “Só com peitas se
poderiam ganhar votos à nossa causa, mas onde encontrar tanto dinheiro
senão no cofre dos judeus portugueses expatriados.”

Sousa Coutinho chegou a propor aos holandeses, a fim de ganhar


tempo para os revoltosos no Brasil, que Portugal e a Holanda criassem
uma espécie de protetorado conjunto. Uma “republicazinha” no Nordeste
brasileiro – como escreveu ele – que seria gerida por funcionários brasi-
leiros e holandeses, sob a direção administrativa da Companhia das In-
dias Ocidentais. Já o Marquês de Niza preferia o pagamento de uma soma
importante para prolongar o tratado de trégua em vigor. Coutinho teve
uma entrevista secreta com Nassau e convenceu-o a não voltar ao Brasil
e ele concordou, talvez porque reconhecia que a guerra já estava perdida
para os holandeses.

Ao mesmo tempo, Vieira passou a advogar junto ao rei a causa dos


cristãos-novos, isto é, o governo deixaria os seus bens livres do fisco e
seria decretada a abolição da distinção entre cristãos-novos e cristãos
velhos. Com o dinheiro deles, pensava Vieira adquirir poderosas fra-
gatas para substituir as poucas e pobres caravelas, “escolas de fugir”,
como dizia ele em suas Razões. No entanto, os católicos portugueses
e a Inquisição opuseram-se veementemente a quaisquer facilidades aos
cristãos-novos.

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Vasco Mariz

O impasse continuava quando surgiu como possível solução a ideia


de casar o herdeiro do trono, o jovem D. Teodósio, com a senhorinha de
Montpensier, a “Grande Demoiselle”, filha do Duque de Orleans. Aconte-
ce que essa moça era sete anos mais velha do que Teodósio e muito mais
alta do que ele, que era baixinho. Hernani Cidade chamou-a de “virago”,
mas o fato é que ela teve importantes pretendentes e, em relato poste-
rior, referindo-se a esses candidatos à sua mão, não incluiu o pequenino
português, o que talvez possa ser interpretado que ela nem sequer foi
consultada a respeito de D. Teodósio. O mais importante e realmente es-
petacular e inadmissível também, era que, pelo projeto de Vieira, D. João
IV abdicaria em favor do Duque de Orleans, irmão do rei de França, que
assumiria a regência de Portugal até a maioridade do herdeiro do trono,
D. Teodósio. Portugal ficaria assim nas mãos de um príncipe francês! D.
João IV se trasladaria para o Brasil, talvez para Salvador ou até mesmo
para o Maranhão, e viria reinar somente no Brasil. Acreditava Vieira que,
com essa manobra, Portugal e o Brasil estariam a salvo, pois os franceses
os protegeriam dos holandeses e dos espanhóis. Em verdade, a possibi-
lidade da regência do Duque de Orleans não seria fato tão raro assim,
pois algo semelhante já tinha acontecido em pequenos estados da Itália e
da Alemanha. Maria de Médicis e Ana d’Áustria, a primeira italiana e a
segunda espanhola, foram regentes e rainhas da França.

Se a proposta fosse aceita, o Brasil se separaria de Portugal como um


reino independente e possivelmente não voltariam a reunir-se. Mas como
conceber o modestíssimo Brasil de então, uma estreita faixa de terra com
pouco mais de cem quilômetros de largura, como um país independente?
Se o Nordeste era rico, o sul ainda era muito pobre em meados do século
XVII. Mas mesmo assim o sacerdote foi enviado a Paris, em 1647, para
negociar com o todo-poderoso Mazarin, o espertíssimo cardeal que diri-
gia a França de Ana d’Áustria, a rainha regente do país. Mas afinal quem
inventou aquela fórmula tão complicada? Vieira ou o próprio rei D. João
IV? Provavelmente o sacerdote.

O embaixador português em Paris, o Marquês de Niza, ficou boquia-


berto com a missão de Vieira e tão horrorizado estava com essa secreta

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O padre Antônio Vieira, um diplomata desastrado

negociação que, depois do seu fracasso, mandou queimar todos os docu-


mentos alusivos às tratativas feitas com os franceses. O que foi uma pena,
pois com isso perderam-se informações preciosas alusivas ao assunto.

Nas negociações para a paz de Westfália, a Espanha ameaçou retirar-se


se Portugal, que ela não reconhecia a independência, fosse admitido. A
delegação portuguesa estava incluída em outras delegações amigas. Mas
as negociações franco-espanholas estavam mesmo em um impasse e Ma-
zarin chegou a confidenciar ao Marquês de Niza que elas não passavam
de jogo de cena, à espera da campanha militar do ano seguinte. Para fe-
licidade de Portugal, a guerra franco-espanhola ainda levaria doze anos.
Comenta Cabral de Mello que Mazarin aconselhou ao Marquês de Niza.
“agir rapidamente cedendo Pernambuco a fim de evitar que os ne-
erlandeses continuassem a fazer todo o mal que já haviam feito em
Münster às pretensões portuguesas.. Embora não houvesse garantia de
que aceitassem a restituição em troca da inclusão de Portugal na paz,
era provável que o fizessem, dado o empenho que tinham na reaqui-
sição dos territórios perdidos no Brasil e as enormes despesas em que
teriam de incorrer para reconquistá-los pelas armas.”

O conselho de Mazarin ao Marquês de Niza pareceria dar a entender


que a cessão de Pernambuco aos holandeses já estava no ar antes da paz
de Westfália, o que de certo modo diminui a responsabilidade de Vieira.

O presente estudo não pretende analisar toda a complexa conjuntura
da política internacional de Portugal depois da Restauração, em 1640.
Meu objetivo é apenas relembrar um episódio curioso da vida do padre
Antônio Vieira, ainda relativamente pouco conhecido, e recordar sua atu-
ação diplomática na gestão política mais importante do período colonial
brasileiro. Por um triz todo o Nordeste, do Ceará ao rio São Francisco,
com o seu então infinito hinterland, quase foi cedido aos holandeses em
troca de um duvidoso tratado de paz. Com esta jogada, aparentemente de
mestre, D. João IV deixaria de lutar em duas frentes e poderia reforçar a
fronteira com a Espanha, sempre ameaçadora e desejosa de reconquistar
Portugal.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):473-497, jul./set. 2011 487


Vasco Mariz

Vamos continuar a concentrar-nos, portanto, naquela figura extraor-


dinária que foi Vieira, cuja integridade moral nem sempre esteve bem à
altura de seus tão louvados dotes de oratória. Lembro que ele usava o púl-
pito para seus desígnios numa época em que não havia ainda jornais. Ve-
jamos o que aprontou o sacerdote sempre tendo em mente que ele nascera
português, embora aqui tenha vivido na mocidade e na velhice. Seu sen-
timento de brasilidade era limitado e o que mais lhe interessava mesmo
era o bem de seu país natal, Portugal, como país independente. Com tal
objetivo, ele lutou denodadamente, enfrentando a hostilidade de reinóis e
brasilianos, ao preço de até tentar colocar um príncipe francês provisoria-
mente no trono de Lisboa e entregando o Brasil aos holandeses.

Em longa entrevista ao caderno “Prosa e Verso”, do jornal “O Glo-


bo”, de 20 de setembro de 2003, o historiador Evaldo Cabral de Mello, o
melhor conhecedor atual da história do Nordeste, assim comentou o papel
do sacerdote-diplomata:
“O padre Antônio Vieira exagerou a importância da atuação que teve.
Sobretudo quando não conseguiu vender a idéia da entrega do Nordes-
te aos holandeses. Ele começou a tirar o corpo fora e a dizer que não
era tão responsável assim. Afirmou que a idéia tinha sido do rei e que
ele fora apenas o executor, quando se vê que antes dessa negociação,
ele já tinha essa idéia, de que a solução do problema era entregar o
Nordeste. Mas ele enfrentou a oposição dos valentões, os portugueses
que não aceitavam a entrega do Nordeste.”

Mazarin e a regente Ana d’Áustria recusaram prontamente a oferta


do modesto rei de Portugal, pequeno país ainda não reconhecido pela
Espanha, nem pelo Vaticano ou outros reinos da época. Que pretensão!
teriam dito os arrogantes franceses. Esqueciam-se os lusos de que a rai-
nha da França era espanhola e não gostava de Portugal. Afinal de contas,
Portugal sem o Brasil era um trono que não merecia o risco. Em verdade,
Ana d’Áustria não deve ter visto com bons olhos a ideia de transferir a
Coroa portuguesa, que fora de seu pai e de seu avô, para a cabeça de uma
sobrinha, a “Grande Demoiselle”. O que teria a França a ganhar com essa
barganha? Hernani Cidade especula talvez com razão:

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O padre Antônio Vieira, um diplomata desastrado

“A entronização de um rei no Brasil seria fechar para a França as


perspectivas que ela de há muito visionava nesta colônia. Na emer-
gência, defendeu melhor os nossos interesses o cardeal francês do que
o jesuíta lusitano.”

Mazarin chegou a mencionar, nas conversações com Vieira e o Mar-


quês de Niza, a possibilidade de o Rio de Janeiro ser cedido a eles, como
parte de eventual acordo. Depois das fracassadas tentativas da França
Antártica de Villegagnon e dos ataques frontais de Duclerc e Duguay-
Trouin, até a planejada mas não realizada expedição do general d’Estaing,
o Rio de Janeiro esteve sempre na mira dos franceses. Como entender
que uma mente brilhante e organizada como a de Vieira tenha concebido
proposta tão desastrada?

Mas o curioso é que quando as coisas estavam realmente malparadas


e a perda do Brasil parecia inevitável, ocorreram dois fatos inesperados
que alteraram completamente o quadro político e militar: 1) os holandeses,
já conhecedores da proposta portuguesa e de suas tortuosas hesitações,
resolveram acabar de conquistar o Nordeste e teriam até considerado a
hipótese de dividir o Brasil com os ingleses, que ficariam com o restante
de nosso país. Armaram numerosa frota que partiu para o Brasil dias antes
da chegada de Vieira a Haia. Mas subitamente explodiu a notícia que a
irresistível flotilha havia sido dispersa, e em parte afundada, no Canal da
Mancha por uma terrível tempestade. Os gastos enormes dos holandeses
para montar aquela expedição estavam assim quase totalmente perdidos e
a Companhia das Índias Ocidentais desistiu momentaneamente de afogar
a rebelião em Pernambuco. 2) o segundo fato favorável aos portugueses
foi a surpreendente notícia chegada do Brasil de que os luso-brasilianos
haviam obtido importantes vitórias contra os holandeses, que daí para
adiante passaram a ficar na defensiva.

Outra das fórmulas de conciliação seria a compra de ações da Com-


panhia das Índias Ocidentais pela Coroa portuguesa por cerca de 3 mi-
lhões de cruzados, pois julgava Vieira que essas ações poderiam ser re-
vendidas posteriormente com lucro. Os ônus da compra ficariam dividi-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):473-497, jul./set. 2011 489


Vasco Mariz

dos entre o Reino, o Brasil e Angola, mas os impostos obviamente teriam


de ser escorchantes. Já Evaldo Cabral de Mello julga que: “Do ponto de
vista português, a revolta dos luso-brasileiros era descrita apenas como
um meio sucesso, ou um meio fracasso, o que diplomaticamente era sim-
plesmente desastroso.”

O momento, portanto, era asado para Vieira entrevistar-se com os


judeus portugueses exilados na Holanda e vizinhanças, e ele conseguiu a
promessa de vultosas contribuições para a aquisição de poderosas fraga-
tas para defender o país e abastecer Portugal com trigo. De volta a Lisboa,
como compensação talvez para a possível cessão de Pernambuco, Vieira
imaginou outras operações atraentes como o ataque a Buenos Aires, por
onde era exportada uma parte da prata boliviana de Potosí, e até mesmo
uma expedição ao Chile. Tentou ele organizar companhias mercantes bi-
nacionais, juntamente com a França e a Suécia, para arrebatar o comércio
internacional das mãos dos holandeses. No entanto, pela segunda vez,
Mazarin negou-lhes o apoio e disse ao Marquês de Niza que era urgente
ceder Pernambuco aos holandeses para garantir a inclusão de Portugal,
como país independente, na grande paz de Westfália, que encerraria fi-
nalmente a Guerra dos 30 Anos. Lembro que, nessa altura, os batavos
haviam tomado Angola e um dos argumentos do sacerdote para aquela
entrega ignominiosa era que: “Sem Angola não há negros e sem negros
não há Pernambuco.” Mais uma vez ele tinha um pouco de razão, pois se
fosse assim, o Brasil passava a valer bem menos.

Mas, no ínterim, a situação de Portugal piorava a olhos vistos, pois


pouco depois foi celebrada a paz entre a Holanda e a Espanha, que assim
em breve poderiam atacar conjuntamente Portugal, na Europa e em suas
colônias. Podemos ler pormenores jocosos dessas negociações na corres-
pondência dos embaixadores portugueses entre si, mas o formato previsto
para este estudo limita a sua inclusão. Uma coisa era certa: tanto Sousa
Coutinho, na Holanda, quanto o Marquês de Niza, em Paris, detestaram
a intromissão, por vezes desastrada, daquele padre doublé de diplomata,
com uma imaginação tão prodigiosa e tão pouco tato diplomático. Mas
desta vez D. João IV chamou-o de volta a Lisboa e a sorte começou afinal

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O padre Antônio Vieira, um diplomata desastrado

a desfavorecê-lo, pois era unânime em Portugal e no Brasil a reprova-


ção das negociações em Paris e Amsterdã. O próprio Vieira o reconhece:
“Não há conversação, em tenda ou taberna, onde o caso não se discuta.”
Nessa altura ele e Coutinho já eram chamados de “Os Judas do Brasil”.

Acuado, Vieira redigiu a pedido do rei um notável memorando, que


ficou conhecido como “Papel forte”, para defender o tratado junto aos
Conselhos de Estado (vide Obras inéditas, 3º - 125) e sua argumentação
era bastante convincente. Ele comparou a penosa situação de Portugal
com a da próspera Holanda, comentando:
“Damos-lhes por vontade o que nos hão de tomar pela força. Mas
Pernambuco não é doado, senão vendido pelas conveniências da paz,
e não vendido para sempre, para o tornarmos a tomar com a mesma
facilidade quando nos virmos com melhor fortuna. (...) Restituída à
região, a Companhia passará a ter todo interesse em cultivar a amizade
com Portugal, em vez de incorrer nos riscos e gastos da conquista do
Brasil.”

Vieira tentou salvar o texto da sua proposta mediante contrapropos-


tas destinadas a atender parcialmente aos chamados valentões e assim D.
João IV acabou por repudiar o acordo de trégua de Haia para agradá-los,
mas criou a Companhia de Comércio do Brasil, que teria excelentes re-
sultados. O jesuíta porém não esperava milagres, embora milagres às ve-
zes aconteçam e foi o que ele alegou muito mais tarde. Escreveu ele: “A
providência divina determinara fazer em Pernambuco um milagre, que
ninguém imaginou e todos reconheceram como tal.” Referia-se ele às
duas batalhas dos Guararapes, perdidas pelos batavos com milhares de
mortos.

No entanto, se os brasileiros haviam conseguido encurralar os ho-


landeses na Paraíba e no Recife, o comércio marítimo com a metrópo-
le continuava um completo desastre, 220 naus portuguesas haviam sido
apresadas pelos holandeses e os luso-brasileiros não podiam mais enviar
o seu açúcar para vendê-lo em Lisboa, nem receber armamentos ou ajuda
militar de Portugal. No fim de 1648 o rei D. João tinha realmente de tomar
alguma medida drástica ou abandonar de vez Pernambuco, sentenciou

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):473-497, jul./set. 2011 491


Vasco Mariz

Boxer. O monarca aceitou o conselho de Vieira e mandou organizar a ci-


tada companhia marítima utilizando o capital judaico português no exílio,
que ficava assim isento de confisco pelas autoridades eclesiásticas da In-
quisição, mesmo se o investidor fosse culpado de heresia. Vieira também
sugeriu ao rei a suspensão temporária da navegação e o afretamento de
naus estrangeiras para o comércio com Portugal. No ínterim, aquela nova
empresa não foi bem aceita em Portugal, nem no Brasil, devido a seus
preços de monopólio. Boxer afirma que Vieira, em parte, estava certo,
pois “graças à cooperação da armada da Companhia do Brasil, os patrio-
tas de Pernambuco foram finalmente capazes de expulsar os holandeses
do Nordeste em janeiro de 1654”.

Boxer e João Lúcio de Azevedo sugerem que o monarca nunca teria


dado o seu consentimento expresso à insurreição pernambucana e ficara
apenas ao corrente da trama de revolta para desautorizá-la depois, em
caso de seu fracasso. Evaldo Cabral de Melo julga que não foi bem assim.
O rei sempre apoiou os revoltosos, mas o fez mui discretamente. Depois
das vitórias dos Guararapes, os brasilianos não tinham ainda condições
de atacar o Recife, cujas fortificações eram excelentes. Não era possível
atacar somente por terra e os holandeses tinham o domínio do mar. Só
durante a guerra naval anglo-holandesa, de 1652 a 1654, é que D. João
IV ousou autorizar a captura de Recife. E só o fez porque as forças na-
vais portuguesas haviam aumentado sensivelmente e os holandeses não
podiam enviar reforços. Mas a guerra com os holandeses não terminou
em 1654 com a capitulação do Recife. Essa guerra naval com a Holanda,
de 1657 a 1561, causou prejuízos enormes a Portugal. O Vaticano só re-
conheceu o Reino depois que a Espanha o fez, isto é, 28 anos depois da
Restauração, em 1668. Já os Países Baixos só o fariam pelo tratado final
de paz de 1669.

Entretanto, o apoio aberto dos cristãos-novos causou a Vieira graves
problemas, a tal ponto que o Superior dos Jesuítas resolveu expulsá-lo
da Ordem. O rei, porém, impediu que a decisão do Superior fosse cum-
prida e ofereceu-lhe um bispado, que Vieira preferiu declinar. De janeiro

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O padre Antônio Vieira, um diplomata desastrado

a julho de 1650, Vieira recebeu outra missão diplomática que também


terminaria mal. Viajou a Roma para fazer sondagens com vistas a um
eventual casamento de D. Teodósio com uma princesa espanhola e, nas
horas vagas, tentou intervir na revolta de Masaniello em Nápoles, criando
dificuldades aos espanhóis. Mais uma vez ele não teve sorte e acabou
fugindo apressadamente de Roma, ameaçado de morte pelos esbirros do
embaixador espanhol. Esse fato parece haver esfriado o entusiasmo de
Vieira por missões secretas, pois pouco depois recusou-se a acompanhar
o novo embaixador português a Londres.

Antônio Vieira voltou ao Brasil em 1652, isto é, aos 44 anos de idade,


e onze anos depois de sua partida de Salvador. Era, portanto, um homem
jovem ainda. Ele passaria nove anos como Superior dos missionários je-
suítas no Maranhão, bem longe dos palácios luxuosos que frequentou
na Europa e das personalidades europeias que havia conhecido pesso-
almente. Lembro que o antigo Maranhão era uma colônia em separado
e subordinada diretamente a Lisboa e não a Salvador. Compreendia o
Ceará, o Maranhão e o Grão-Pará e só em 1774 foi incorporado ao Brasil.
Vieira atuou vigorosamente na catequese de índios e negros da região,
mas continuou a corresponder-se com seus amigos do Conselho Ultra-
marino. Vieira lá preocupou-se em melhorar as condições de trabalho dos
índios. Baeta Neves esclarece que “O plano de Vieira não é um projeto
de extinção do trabalho indígena na colônia. Não é contra a escravidão,
como acusam os senhores locais”. Escreveu Vieira:

“Só resta saber qual será o preço destes que chamamos de meio-cati-
vos e meio-livres, com que se lhes pagará o trabalho de seu serviço.
O dinheiro desta terra é o pano de algodão e o preço ordinário por que
servem os índios, e servirão cada mês, são duas varas de pano, que va-
lem dois tostões. Coisa que é indigna de se dizer e muito mais indigna
de que, por não pagar tão leve preço, haja homens de entendimento
e de cristandade, que queiram condenar suas almas e ir ao inferno”
(Vieira, 1957, t. 21:193).

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Vieira buscou no Maranhão um melhor e mais justo ordenamento do


trabalho semiescravo dos índios, enfim fez um esforço para disciplinar a
escravidão. O genial sacerdote lutou pela coordenação das atividades da
Companhia de Jesus com os interesses da Coroa portuguesa, em oposição
aos senhores da colônia. O que ele deplorava era a distância do poder po-
lítico, que considerava de “malfazeja seletividade ou atacado de miopia.”
Vieira sublinhou que a metrópole desejava reduzir a ação da Igreja: “Que-
rem que aos ministros do Evangelho pertença só a cura das almas e que a
servidão e cativeiro dos corpos seja dos ministros do Estado. Isto é o que
Herodes queria!” (Idem: 355,356) Baeta Neves insinuou que Vieira fazia
uma distinção entre índios e pretos, parecendo-lhe aceitável a escravidão
negra. Curiosamente, o sacerdote se pergunta: “... eu que hei de ser vosso
senhor porque nasci mais longe do sol e que vós haveis de ser escravo
porque nasceste mais perto (do sol)?” (Idem: 370). Baeta Neves arremata:
“A sujeição dos povos é permitida desde que legitimamente cristã e isenta
de excesso tirânico.”

Leonardo Dantas Silva esclarece que

“Os escravos eram todos vistos como mouros e, como tais, infiéis,
inimigos que o Papa Eugênio IV autorizou o direito de “cativar”. Jus-
tificava a Igreja de então, através de seus teólogos, que sobre os afri-
canos de todas as raças recaía o preceito bíblico que, descendendo de
Cã, estariam condenados à escravidão. Como acentua o padre Manuel
da Nóbrega, nasceram com esse destino, que lhes veio por maldição
de seus avós”. 2

Em 1661, aos 53 anos, Vieira foi obrigado a regressar a Lisboa e


reassumiu seus deveres na Capela Real como orador. No entanto, ele em
breve conseguiu irritar a Inquisição e acabou por ser exilado para o Porto,
onde faria a revisão de seus sermões para publicação. Mas o irrequieto
sacerdote não diminuía seus ataques contra alguns políticos e grandes da
nação e acabou preso no Colégio da Companhia de Jesus. Aproveitando
sua falta de apoio político, a Inquisição iniciou um processo contra Viei-
2 – Leonardo Dantas Silva – João Fernandes Vieira e a guerra da liberdade divina,
Recife, 2004.

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O padre Antônio Vieira, um diplomata desastrado

ra, que lhe valeria a prisão no cárcere do Santo Ofício de 1665 a 1667.
Felizmente a rainha viúva apiedou-se dele e mandou convidá-lo a pregar
novamente na Capela Real. Isso ensejou nova missão a Roma, onde espe-
rava anular o processo contra ele.

Em 1675, aos 65 anos de idade, Vieira fazia sucesso novamente em


Roma, pregando diante de dezenove cardeais. Curiosamente, lá encantou
a ex-rainha Cristina da Suécia, que havia renunciado ao seu trono e se
convertera ao catolicismo. Ela fora orientada nesse sentido pelos jesuítas,
que conseguiram do Papa Alexandre VII fosse ela recebida com toda a
pompa pelo Vaticano e pudesse instalar sua corte em Roma. Em pouco
tempo, Vieira tornou-se pregador oficial de Cristina e emocionava seus
convidados com seus sermões.

Mais do que isso, segundo informou o padre André de Barros, autor


de A Vida do Padre Antônio Vieira, publicada em Lisboa em 1742 (página
423):
“Relativamente à rainha da Suécia, ele é o guardião de tudo e nem
mais ministros nem secretários tratavam com ela, e jamais os negócios
eram tratados com embaixadores. Ele respondia a todos, ela só dava
audiência após aquiescência do padre Antônio Vieira”.

Em Roma defendeu os cristãos-novos de Portugal perseguidos pelo


Santo Ofício e intercedeu junto ao Papa contra os desmandos da Inqui-
sição portuguesa. Ainda em 1675 conseguiu ser considerado isento da
jurisdição da Inquisição e continuou sua vida de fausto em Roma durante
mais seis anos. Aos 71 anos regressou a Lisboa e foi convidado a integrar
a Junta de Conselheiros do Estado de Assuntos Ultramarinos. Já idoso e
com saúde precária, Vieira pensava retornar ao Brasil, pois andava muito
irritado com a persistente campanha contra ele devido a sua defesa dos
cristãos-novos. Os estudantes de Coimbra queimaram a sua efígie em
praça pública, aos gritos de “Padre Vieira, vendido aos judeus!”.

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Vasco Mariz

Por isso, talvez, em breve já estava em Salvador novamente, onde


continuou a revisar seus sermões para publicação. Aos 85 anos caiu de
uma escada de pedra e machucou-se seriamente. Em 1697, aos 89 anos
de idade, veio a falecer após haver revisto para publicação todos os seus
sermões. Esta é a fascinante história do padre Antônio Vieira, bom patrio-
ta lusitano que, embora amando o Brasil, tentou cedê-lo aos holandeses
para assegurar a independência e o futuro de Portugal.

Conferência pronunciada no Conselho Técnico da Confederação Na-


cional do Comércio a 4 de dezembro de 2003 e publicada na Carta Men-
sal desse órgão, nº 590, de maio de 2004. Versão sucinta deste estudo foi
lida na CEPHAS do IHGB a 16 /06/ 2004. Publicado também na Notícia
Bibliográfica e Histórica, da PUC de Campinas, nº 193, abril-junho de
2004, na Revista do IHGB nº 424, junho / setembro de 2004) e no Co-
lóquio sobre o 4º centenário do nascimento do padre Antônio Vieira, no
IHGB, em 2008.

Referências Bibliográficas
AZEVEDO, João Lúcio de. Dezanove cartas inéditas do Padre Antônio Vieira,
Academia de Ciências de Lisboa, 1916. Contém excelente estudo introdutório
sobre as negociações em Paris e Haia.
_______. História de António Vieira, Livraria Clássica, Lisboa, 2 volumes, 1918
e 1920.
BAETA NEVES, Luiz Felipe. Vieira e a Imaginação Social Jesuítica (Maranhão
e Grão-Pará no século XVII). Topbooks, Rio de Janeiro, 1997.
BARROS, Padre André de. Vida do Padre Antônio Vieira, Lisboa, 1742.
BESSELAR, José van den. Maurício de Nassau: esse desconhecido – FAPERJ,
Rio de Janeiro, 1982.
BOXER, C.R. A Great Luso-Brazilian Figure – Padre Antônio Vieira, S.J., 1608-
1697. The Hispanic and Luso-Brazilian Councils, da Universidade de Londres.
Notável resumo do tema por ilustre historiador inglês.
CABRAL DE MELLO, Evaldo. O Negócio do Brasil, 2ª edição, Topbooks, Rio
de Janeiro, 2003. Estudo pormenorizado de toda a conjuntura da época no Brasil
e em Portugal pelo melhor especialista na história do Nordeste da atualidade.

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O padre Antônio Vieira, um diplomata desastrado

CARDIM, Pedro. Oceanos, nº 30 / 31, abril / setembro de 1997, Lisboa. Número


dedicado ao padre Vieira. Excelente artigo desse professor da Universidade Nova
Lisboa sobre as missões na Holanda e França.
CIDADE, Hernani. Padre António Vieira, Estudo Biográfico e Crítico, Divisão
de Publicações e Biblioteca, Agência Geral das Colônias, Lisboa, 1940. Valioso
estudo sobre a personalidade e a obra de Vieira por importante historiador
português.
LAGO Jr., Silvio. Sondagens da Memória, Lotus Blossom Editorial, Rio de
Janeiro, 2003. Estudos sobre os diversos aspectos da vida de Vieira.
LINS, Ivan. Aspectos do padre Antônio Vieira, Livraria Editora São José, Rio
de Janeiro, 2ª edição, 1962. Também valioso estudo de conceituado historiador
brasileiro sobre o assunto.
SILVA, Leonardo Dantas. João Fernandes Vieira e a guerra da liberdade divina,
Recife, 2004.
VIEIRA, Padre Antônio. Obras Inéditas, 3 volumes, ver 3º volume para
comentários sobre o “papel forte”.

Texto apresentado em outubro /2009. Aprovado para publicação em


abril /2010.

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Vieira político

VIEIRA POLÍTICO
VIEIRA, THE POLITICIAN
José Arthur Rios 1

Resumo: Abstract:
A comunicação aborda a carreira política de This text broaches the political career of Anto-
Antônio Vieira. Conselheiro, confidente do rei nio Vieira. He was King D. Joao IV’s advisor
d. João IV, que o distingue em espinhosas mis- and confident, trusted by the latter with diffi-
sões, Vieira fez do profetismo arma política. No cult missions. Vieira was seen as a prophet and
abatimento causado em Portugal pela derrota used this quality as a political weapon. After
na África e pelo domínio Espanhol levanta um Portugal’s defeat in Africa and during Spanish
pendão de revolta e esperança, acenando para domination, Vieira raises a banner of revolt and
o povo português horizontes sobrenaturais de hope, suggesting to the Portuguese people new
glória e poder. horizons of glory and power.
Palavras-chave: Antonio Vieira – profetismo Keywords: Antonio Vieira – Political Prophet –
político – Quinto Império. Fifth Empire.

É difícil reduzir a figura de Antônio Vieira a ângulos ou aspectos par-


ciais, não só porque é difícil separá-los na atividade e no pensamento do
grande jesuíta, como porque resultam da mesma unidade de ação prática
e crença transcendente que sempre o caracterizam.

Vieira cobre o século com sua estatura (1608-1697). É a época em


que se formam os Estados modernos gestados pelo Renascimento e pela
Reforma e agora se defrontam como antes políticos rivais. A divisão re-
ligiosa é o problema crucial dessas oposições, acrescidas de competições
de mercado e contestações dinásticas. Depois das guerras ditas de religião
um poder maior dita a cidadania, o Estado centrado no Rei. Cujus régio
ejus religio.

É o século da Contrarreforma, dos jesuítas, do amor ardente que os


espalha pelos quatro cantos do mundo conhecido. Lutam pelo índio, pelo
escravo africano contra o mercador ávido e o soldado prepotente, solidá-
rios no que se chamou o capitalismo mercantilista e que veio até nós.

É o século da intriga palaciana, da emboscada, da guerrilha, do duelo


em que se aniquilam os últimos ímpetos da nobreza. Richelieu e Maza-

1 – Sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):499-505, jul./set. 2011 499


José Arthur Rios

rino procuram domesticá-la em nome do poder real, vesti-la da lebre do


cortesão. Os restos veneráveis do feudalismo vão se transformando em
fantasmas, em lacaios, como os castelos em palácios, em jardins, e até o
verso não escapa às grades do metro e da rima.

A França emerge como potência, o império espanhol declina, en-


quanto Portugal, incrivelmente, se emancipa do jugo de Felipe II e do
seu Ministro Olvares. Ardem as fogueiras da Inquisição, balbucia o livre
pensamento. Afirma-se a Holanda como singular República e potência
marítima, alimentada do leite grosso do capital dos judeus expulsos da
Península pela cobiça de mercadores e nobres. Sobre todos paira a amea-
ça do Crescente – do império turco.

Este é o cenário em que vai se desdobrar a vida de Antônio Viei-


ra. Menino ainda, ingressara no noviciado da Companhia de Jesus, no
seu Colégio em Salvador da Bahia, onde se estabelecera o pai, Cristó-
vão Vieira Ravasco, burocrata da Coroa. A invasão holandesa transfere
os jesuítas para uma aldeia perdida. Na carta Anua da Província, redigida
em latim, o adolescente Vieira descreve essas agruras. Logo participa da
defesa da cidade do Salvador contra a nova arremetida dos flamengos.
O convite para proferir sermão, na missa em ação de graças pela vitória
sobre os holandeses, na igreja de Santo Antonio, marca o início da car-
reira de orador que vai consagrá-lo no dizer de Fernando Pessoa, como
“imperador da língua portuguesa”.

Sua carreira política e diplomática começa quando é escolhido pelo


Vice-rei em 1641, para participar da delegação que vai comunicar a D.
João IV – o duque de Bragança de quem Vieira fora ardoroso partidário
– a adesão do Estado do Brasil. Aí começa um novo curso que o leva-
ria a glórias e decepções. Torna-se conselheiro, confidente do Rei que o
distingue em espinhosas missões. Ganha fama como orador sacro. Suas
cartas, densas de pensamento, refletem os grandes problemas do século,
as maiores preocupações de seu espírito, as vicissitudes de uma vida mo-
vimentada.

500 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):499-505, jul./set. 2011


Vieira político

É vão esforço enumerar suas empresas, as iniciativas que patrocina


ou sugere: a criação da Companhia do Comércio do Brasil que só se con-
cretiza em 1649; o privilegio concedido pelo monarca de exclusividade
para a Companhia de Jesus de enviar missões ao Maranhão aonde chega,
em 1953; bem como o projeto da administração das aldeias de índios
livres. Seu projeto principal – e enorme – era criar núcleos autossuficien-
tes, fora do contato predatório e corrupto dos colonos, em locais remotos,
onde fossem dirigidos, material e espiritualmente, pelos inacianos.

Sua presença junto a D. João IV é constante. Participa de várias mis-


sões na Amazônia, e na elaboração da lei de 9 de abril de 1655, sobre a
liberdade e administração dos índios – que lhe valeu e a seus companhei-
ros a ira de outras ordens religiosas e dos colonos escravistas – o que tudo
leva à expulsão dos Jesuítas do Maranhão e do Pará em 1661.

Mas sua estrela se apaga com a morte do Rei e a ascensão com D.


Afonso VI, da camarilha do Conde de Castelo Melhor, seu inimigo. Eis
que, em 1662, é preso à ordem do Tribunal do Santo Ofício sob a acusa-
ção de heresia. Permanece no cárcere até 1668, sofrendo duras privações.
Só recupera a liberdade com a deposição.

O homem é o sistema social em que vive e morre, seu alimento e sua


limitação. Vieira é, de corpo inteiro, o que o historiador italiano Rosário
Villari descreveu como “o homem barroco”. É um jesuíta, apostado nos
valores do Cristianismo e nos ideais de Santo Inácio de Loyola. É também
um estadista de larga visão dividido entre o mundo e a cidade de Deus. É
um cortesão, dedicado a seu Rei, considerado não só como personagem
de carne e osso, mas revestido de poderes naturais e sacramentais. Foi
também um místico que acreditava no destino sobrenatural do homem.
E um profeta que acreditava ou fingia acreditar, quem o poderia dizer?
– nas profecias messiânicas do Bandarra. Da prisão, escreveu a Clavis
Prophetarum onde anuncia o advento do Quinto Império, de um Portugal
transfigurado, cabeça de um mundo convertido em que reinariam a Paz
e a Justiça. “O aspecto peculiar da conflitividade barroca não está tanto,
com efeito, na oposição entre os diversos sujeitos quanto na presença

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):499-505, jul./set. 2011 501


José Arthur Rios

de atitudes aparentemente incompatíveis ou evidentemente contraditó-


rias dentro de um mesmo sujeito. A convivência de tradicionalismo, com
busca de novidades, de conservadorismo e rebelião, de amor à verdade e
culto ao dissimulo, de tranquilidade e loucura, sensualidade e misticismo,
superstição e racionalidade, austeridade e luxo, consolidação do direito
natural e exaltação do poder absoluto, – é fenômeno do qual colheremos
vários exemplos na cultura e na realidade do mundo barroco”. Impressio-
nou ainda o historiador italiano “a presença num mesmo personagem, de
atitudes aparentemente incompatíveis ou evidentemente contraditórias”.

A ideia de governo, cerne do pensamento político de Vieira, transpa-


rente nas instruções ao príncipe Teodosio de cuja tutoria fora incumbido
– é, em substância, uma teoria haurida nos clássicos antigos e uma prática
que poderia ser reduzida, – como em tantas outras instruções a príncipes,
– a máximas medievais. Esse Estado não é moderno, não é inspirado em
Maquiavel ou na razão de Estado, – mas em Santo Agostinho, em Santo
Tomás.

Até hoje se pede contas a Vieira do Papel Forte, designação dada por
D. João IV ao documento por ele solicitado aos jesuítas sobre a política
em relação à Holanda, imputando-lhe a pecha de traidor – do ponto de
vista nacionalista de sua vinculação brasileira. Isso porque nas intrincadas
negociações entre Portugal e Holanda sugeriu como medida transitória,
se vendesse Pernambuco aos flamengos. Não só as forças que opunha Ho-
landa ao pequeno país eram esmagadoras, como a Espanha estava sempre
pronta a abocanhar um torrão que havia pouco, misteriosamente, lhe fu-
gira. Vieira era um súdito do rei de Portugal e visava a salvar a monarquia
mesmo ante poderes invencíveis. Não dando Pernambuco como perdido,
mas como hoje diríamos em jargão jurídico, com cláusula de retrovenda
– a “retro aberto” como escreveu Vieira, “para o tornarmos a tomar com
uma mesma facilidade quando nos virmos em melhor fortuna”. Robert
Southry, historiador insuspeito, mais tarde lhe daria razão.

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Vieira político

O problema central, para um estadista barroco, era preservar a todo


custo a incolumidade do soberano, na época mais que um símbolo, e com
ele a sede do trono e da Coroa portuguesa, sacrificando-lhe momentane-
amente parte do Império. Julgar a questão de um ponto de vista naciona-
lista é pecado de anacronismo.

É oportuno lembrar que o mesmo Vieira, antecipando século e meio


ao nosso D. João VI, defendeu a união sob um mesmo soberano, de Por-
tugal e Brasil.

Tudo isso está nos sermões, nas cartas, vazadas em linguagem cas-
tiça. O púlpito era sua tribuna, o sermão seu instrumento. Em tempos
barrocos o sermão era de expressão de críticas e protestos. Fazia as vezes
do manifesto, do panfleto, do jornal. Do púlpito Vieira traçava estratégias
políticas, vibrava acusações, premiava e castigava. Daí sugeriu que se
estendesse o Brasil até Buenos Aires; que se aproveitasse o declínio e os
apertos da Espanha para conquistar o Chile, o Peru; que se fortalecesse
a Marinha e se vigiasse as costas extensas da colônia, os rios abertos –
problema de nossos dias, cercados que estamos de competidores, senão
de vizinhos hostis.

Do mesmo púlpito, combateu a burocracia e, pasme-se, as acumu-


lações remuneradas, os excessos da nobreza, os erros da tributação – e a
corrupção. Neste ponto não cometeu a ingenuidade dos que a viam so-
mente no suborno cru, na compra e venda de favores e privilégios – mas
no jogo das dependências familiares, dos compadrios e filhotismos, nas
proteções e padrinhagens – isto é, o próprio coração do sistema patrimo-
nialista. Numa frase candente tudo resumiu – “A maior peita de todas é
o respeito”.

Nesse sentido antecipou teses liberais, combatendo monopólios e


privilégios, a escravidão indígena e africana. Não precisava para tanto
das luzes do Iluminismo. No mais puro espírito do Evangelho, escreveu:
“as ações, a vida, o exemplo, as obras são as que convertem o mundo”.

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José Arthur Rios

Fiel a esse ensinamento, o embaixador do Rei de Portugal, o cortesão


de pera e bigode, veludos e espadim tal como nos retratos de Velásquez,
– se transmuda no missionário, veste a roupeta esgarçada, volta aos cami-
nhos da Amazônia.

Foi por aí, montado numa canoa, num igarapé perdido que, em 1959,
escreve a André Fernandes, confessor de D. João IV, depois bispo no Ja-
pão, – uma longa carta que acabaria por mudar o destino do signatário e
abrir nova e tormentosa fase nessa movimentada vida.

Nesse texto paradoxal Vieira encampava e repetia as profecias do


Bandarra, o sapateiro de Trancoso que profetizava nas suas trovas o re-
torno do rei “encoberto”, de D. Sebastião, desaparecido na batalha de Al-
cácer-Quibir, e provavelmente, àquela data, suficientemente morto. Para
Vieira, no entanto, esse fantasma ressuscitado era o Duque de Bragança,
que voltaria para reconquistar o trono e expulsar os espanhóis. Foi o que
realmente aconteceu.

Só que Vieira, agora profeta político, foi mais longe: o rei transfigu-
rado viria submeter toda a Terra, as dez tribos perdidas de Israel, realizan-
do assim a profecia bíblica. Seria então o advento do Quinto Império –
isto é depois de Assíria, Babilônia, Grécia e Roma, – o Império de Cristo
sobre o mundo.

Chegada à carta, por tortuosos caminhos às mãos do Tribunal da In-


quisição, determinou o chamado Santo Ofício a prisão de Vieira e sua con-
vocação a julgamento. Assanharam-se os inimigos do Jesuíta. Faltou-lhe
nessa crise a proteção da Coroa. Uma revolta palaciana levara ao trono
D. Afonso IV, fraco, psiquicamente instável, mero joguete nas mãos do
Conde de Castelo Melhor, chefe da facção antivieirista.

A carta, conhecida como Esperança de Portugal – e mais, as ardo-


rosas e irrespondível defesa dos judeus e dos cristãos novos, expulsos do
Reino pela cobiça e fanatismo da Inquisição – valeram a Vieira a acusação
de herege e judaizante. Durante o processo respondeu a essas imputações
alegando que tudo escrevera “a favor da fé de Jesus Cristo”.

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Vieira político

Lida a sentença perante o Colégio da Companhia, na presença do


Réu, obrigado a ouvi-la de pé por duas horas, tomou conhecimento de que
o privavam “para sempre de voz ativa e passiva e de poder preparar”, re-
cluso no Colégio ou Casa de sua Religião que o Santo Oficio lhe assinara
de onde sem ordem não sairá.

Assim permaneceu Vieira até que em novembro de 1667, nova cons-


piração palaciana leva ao trono D. Pedro, abdica D. Afonso VI e o Conde
de Castelo Melhor toma o caminho do exílio. Só meses depois Vieira
recupera a liberdade.

Vieira fez do profetismo arma política. No abatimento causado em


Portugal pela derrota na África e pelo domínio Espanhol levanta um pen-
dão de revolta e esperança, acenando para o povo português horizontes
sobrenaturais de glória e poder.

Aos noventa anos, conta um historiador, cego e quase surdo, ditava


ainda cartas onde o inquietava a morte iminente de Carlos II e alertava
para o perigo que representaria para Portugal uma aliança de Espanha
com a França; e dava sugestões sobre a situação econômica do Brasil.
Oito dias depois expirava, e a mesma nau levava à metrópole a nova do
passamento de Vieira e suas cartas.”

Texto apresentado em outubro /2009. Aprovado para publicação em


abril /2010.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

PADRE ANTÔNIO VIEIRA E A MISSÃO JESUÍTICA


DA SERRA DE IBIAPABA (1655-1759)
Father Antonio Vieira and the Jesuit mission
of Serra de Ibiapaba (1655-1759)
Cláudio Aguiar 1

Resumo: Abstract:
O texto trata, fundamentalmente, da missão evan- This text deals, essentially, with the evangeli-
gélica e catequética iniciada pelo padre Antônio cal and catechetical missions started by priest
Vieira na Serra de Ibiapaba (Ceará), a partir de Antonio Vieira in Sierra Ibiapaba (Ceará), from
1655. A Missão perdurou até 1759, quando foi 1655. The mission lasted until 1759, when it was
extinta por ordem do Marquês de Pombal. Des- dissolved by Marquis of Pombal’s order. It also
taca, também, os motivos históricos e o fervor highlights the historical reasons and the fervor
com que o famoso jesuíta enfrentou as situações of the famous Jesuit who faces adverse situa-
adversas na defesa dos indígenas tabajaras, mas, tions in the defense of Tabajaras indians, but at
ao mesmo tempo, como adverte o autor, desco- the same time as the author emphasizes, ignor-
nhecendo o mesmo rigor e desumanidade utili- ing the rigor and inhumanity used by the same
zados pelos mesmos senhores que escravizavam masters who enslaved black people. The Jesuit
negros. A Missão Jesuítica da Serra de Ibiapaba, Mission in Sierra Ibiapaba besides the beauty
além da beleza do texto escrito por Vieira, no of the text written by Vieira, which recounts his
qual narra sua experiência, reflete, ainda, o lado experience, also reflects the less known side of
menos conhecido desse significativo momento this significant moment in our history: the set
de nossa história: os assentamentos de núcleos of people, villages and nowadays towns which
e vilas, hoje, cidades, resultantes de iniciativas largely served to consolidate the settlement pro-
que, em grande medida, serviram para consoli- cess of that moutainous region of Ceará.
dar o processo de povoamento daquela região
serrana cearense.
Palavras-chave: Jesuítas. Missão. Indígenas. Keywords: Jesuits. Mission. Indians. Enslave-
Escravização. Povoamento. ment. Settlement.

Introdução
Muito se tem falado na obra literária do Padre Antônio Vieira, porém
nem sempre, com o mesmo denodo e interesse, os estudiosos se debruça-
ram sobre suas ações práticas de missionário. Talvez a dificuldade esteja
em separar o trabalho intelectual do trabalho prático, este resultante não
da leitura de um discurso escrito, mas da observação histórica de realiza-
ções concretas, visíveis e palpáveis ao longo do tempo.

A obra literária do Padre Antônio Vieira – 207 sermões, cartas, textos


exegéticos, relatórios sobre missões e ações políticas etc.–, monumental

1 – Sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Cláudio Aguiar

em todos os sentidos, sobretudo hoje, mereceu reconhecimento e louvor


de dimensão internacional. No entanto, as missões evangélicas e entradas
pelos sertões do Norte e Nordeste do Brasil, ora desbravando, ora ven-
cendo caminhos por áreas inóspitas e perigosas, são aspectos vivenciais
que podem responder à seguinte questão: até que ponto há ou não coe-
rência entre o que escreveu e as ações práticas levadas a cabo em defesa
dos índios, indiscutivelmente sua maior paixão? Além disso, não se deve
esquecer o seu permanente interesse pela vida política da época, quer na
Europa (em sete ocasiões atravessou o Atlântico em direção a Portugal),
quer no Maranhão (onde enfrentou perseguições e prisão por suas ideias
e ações práticas), quer na Bahia, onde, já no crepúsculo da existência,
tentou acomodar politicamente os efeitos de desatinos cometidos por um
parente próximo, que o indispôs e o levou à humilhação diante de um
governador.

Dentre as ações, cremos, a Missão Jesuítica da Serra de Ibiapaba,


principal sistema montanhoso do Ceará, talvez seja aquela que mais fru-
tos concretos tenha produzido, sobretudo quando observamos que o Pa-
dre António Vieira foi mais perdedor do que vencedor. Contra ele se
levantaram capitães-mores, governadores, ministros, reis, a própria or-
dem religiosa, a Companhia de Jesus, e a Inquisição, o mais poderoso
e temível órgão repressivo com claro matiz de irrecorribilidade, por se
tratar de um juízo humano que aplicava aos “pecadores” o império da
vontade de Deus.

Talvez por causa dos efeitos provocados por esse processo, a Missão
Jesuítica da Serra de Ibiapaba, no Ceará, tenha sido lembrada, até hoje,
mais em virtude da força extraordinária do texto escrito por Vieira sobre
tal experiência do que, propriamente, dos efeitos e frutos provocados pela
implementação de tão importante ação “prática” vivenciada pelos jesuítas
naquela ampla região cearense.

Além do mais, a mencionada missão não foi um feito esporádico, ou


seja, simples acontecimento de pouca duração, marcado pela presença de
alguns padres missionários. Planejada e executada, de início, sob a super-

508 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):507-546, jul./set. 2011


Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

visão direta do Padre Antônio Vieira, a partir de 1655, prosseguiu com a


participação de outros jesuítas, até 1759 – portanto, mais de um século –,
quando foi totalmente desmantelada por ocasião da expulsão da Compa-
nhia de Jesus, decretada pelo todo-poderoso Marquês de Pombal.

De como triunfar sobre os fracassos


A principal característica da personalidade do Padre Antônio Vieira
foi, sem dúvida, o desejo de triunfar.

Seu inflamado verbo, no qual privilegiava, sempre, a forma barroca


e, às vezes, um estilo mais rococó que barroco, – a lembrar o senequismo
tão do gosto de escritores do chamado século de ouro espanhol –, por si
só, significava um jeito especial de ser e de se expressar diante de coisas
mais simples, quer no âmbito do mistério divino, quer no das próprias
ações humanas. Esse viés tem sido o ponto por onde seus melhores crí-
ticos – Oliveira Martins, Camilo Castelo Branco, Eugênio Gomes, José
Fernando de Sousa, Fidelino Figueiredo, Antônio José Saraiva, Oscar
Lopes, Antonio Sérgio, João Lúcio de Azevedo, Hernani Cidade, João
Francisco Lisboa, Afrânio Peixoto etc. – apontam, com justa observação,
o lado perene da obra intelectual do ilustre jesuíta.

Esse arrevesado estilo do Padre Vieira, – lesto e nervoso, escrito para


ser ouvido, como sugeriu Hernâni Cidade –, felizmente, não foi capaz de
toldar seus pensamentos e ideias num complexo rol de textos incompre-
ensíveis, incomunicáveis. Ao contrário, parece estar aureolado pelo halo
do encantamento, que, na nossa visão, concorreu para salvá-lo e ultrapas-
sar os limites das datações. Nesse sentido, Vieira sobreviveu ao tempo e
chegou a interessar os pósteros e sempre reaparece em cada nova geração
animado exatamente pelo vigor de sua coragem, pela determinação de
seu caráter incorruptível, pela intransigência da defesa da “salvação” dos
índios brasileiros. Isso tudo, apesar do exagerado apego a reis e podero-
sos de seu tempo, talvez como ardil para retirar deles o necessário apoio
para os menos favorecidos da sorte. Tais aspectos deram à sua causa um
valor que transcendeu, inclusive, às suas intrincadas perorações, ora pe-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):507-546, jul./set. 2011 509


Cláudio Aguiar

jadas do encanto da repetição, ora reforçadas com a lógica da metáfora e


da ironia, com o arrojado equilibrismo das imagens rebuscadas e aparen-
temente impossíveis (aqui, vale lembrar, como exemplo antológico, o fa-
moso Sermão aos Peixes). Muitas vezes temos a sensação de que se trata
de improvisos, e não de discursos planejados e pacientemente escritos.

Quando ele subia ao púlpito, tinha-se a impressão de que se trans-


formava num Demóstenes. Aliciava o público em crescente voz e desen-
volvimento de lógica convincente, recursos que utilizava com maestria.
Esses artifícios concorriam para ampliar o número de admiradores em to-
das as classes sociais. Seus sermões foram ouvidos e aplaudidos por reis,
rainhas, ministros, embaixadores, escritores, poetas, pensadores, religio-
sos, mas, também, por gente do povo, inclusive, por índios habitantes dos
mais distantes rincões do Brasil.

O desejo de triunfar – notado já naquele garoto que, ao atingir 15


anos de idade, talvez por não contar com o apoio dos pais, fugira de casa
para inscrever-se no Colégio dos Jesuítas da Bahia –, denunciava não
uma vã busca, mas vocação precoce. Prenunciava ser alguém dotado de
gênio determinado, algo vindo de berço, herança natural.

Era a busca de triunfo de um zeloso jesuíta, que, em muitos momen-


tos da vida, não se importou de jogar as mais perigosas cartas sobre a
mesa e pagar, quase sempre, com a privação da própria liberdade. Punha,
assim, em risco a sua vida, sobretudo por divergir de figuras poderosas da
época. O século XVII, no Brasil, como bem lembrou Sílvio Romero, foi
um tempo crítico:
“...a fase do perigo, como o século antecedente fora o momento da ini-
ciação e da esperança. Nações estrangeiras e poderosas investem con-
tra a nova colônia; e travada a luta contra holandeses em Pernambuco
e franceses no Maranhão, e se a expulsão destes é fácil, a daqueles é
altamente embaraçosa. Vencidos uns e outros, a colonização progride
para o norte, invadindo o vale do Amazonas. No interior os paulistas
alargam também a esfera de seus descobrimentos; o país, ao fechar do
século, está plenamente constituído.”2
2 – ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Livraria José

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

Esse temperamento, difícil de ser encontrado entre tantos homens


de relevância de sua estatura intelectual e moral, em diversas ocasiões,
também chegou a praticar ações reprováveis e aparentemente medrosas.
Dizemos “medrosas” porque certos recuos de hoje tomados como ações
medrosas ou covardes, amanhã, poderão ser interpretados como atitudes
cautelares necessárias para se atingirem outros objetivos positivos. Mais
adiante, quando comentarmos uma das obsessões do Padre Vieira – a
ação missionária nos lugares caracterizados por tragédias que marcaram
historicamente as missões jesuíticas no Maranhão e no Ceará, em meio às
tribos dos canibais Nheengaíbas e dos “bárbaros” da serra de Ibiapaba –,
trataremos de mostrar algumas perigosas e aparentemente injustificáveis
atitudes do grande missionário.

A defesa de uma causa


O motivo principal da permanência de Vieira em Lisboa foram as
novidades que se anunciavam e chegavam de Portugal ao Brasil sobre a
restauração de 1640, em decorrência do fim da União Ibérica iniciada em
1580 com a dominação espanhola sobre a nação lusa.

Essa fase vivida em Portugal marcou profundamente não só a vida


na própria metrópole mas também a de suas colônias em particular o Bra-
sil. Duas significativas consequências da chamada fase da União Ibérica
se fizeram sentir de imediato no Brasil: a possibilidade de expansão das
fronteiras além dos limites estabelecidos pelo antigo Tratado de Tordesi-
lhas e, logo após o final da União, o processo de restauração instaurado,
sobretudo a partir da ascensão do reinado de D. João IV, com a consolida-
ção de um governo colonial nas diferentes regiões brasileiras. Essa fase
– considerada como de “recuperação, muitas vezes árdua, da soberania
nacional numa Europa dilacerada por conflitos políticos econômicos” –,
trouxe para o Brasil, em especial a partir da metade do século XVII, a
responsabilidade de responder econômica e favoravelmente à metrópole
com “gordas fatias” 3 de riquezas. Essa busca incessante de riquezas, em

Olympio Editora / MEC-INL, 1980, vol. II, p. 364.


3 – WEHLING, Arno e MARIA JOSÉ C. M. WEHLING. Formação do Brasil Colonial.

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Cláudio Aguiar

verdade, operava-se não apenas em relação a Portugal mas também, desde


o século anterior, a outros países europeus –França, Holanda e Inglaterra
– que tentavam levar para suas arcas, legal ou clandestinamente, grande
quantidade de pau-brasil, ouro, prata, esmeralda ou açúcar. A tal processo
a política colonial portuguesa, por essa época, teve que se adaptar em
razão das leis do mercado então vigentes, preponderantemente marcadas
pelas práticas do mercantilismo nos diferentes centros comerciais da Eu-
ropa. A propósito, assim nos lembra Wehling:

“Em consequência, os produtores precisavam disputar entre si as fai-


xas desse mercado, de modo que o crescimento de um seria feito,
obrigatoriamente, às expensas de outro. Desta concepção originou-se
a ideia de que o acúmulo de ouro e prata constituía o principal elemen-
to diferenciador da riqueza entre as nações. Era necessário, portanto,
possuir a maior quantidade possível desses metais preciosos, seja pela
exploração direta, seja pelo comércio externo.”4

Convém observar que os avanços no campo das novas ideias ou


pensamentos filosóficos de então e a correspondente implementação de
alguns princípios correlatos a eles, em Portugal, não se faziam sentir com
a mesma aceitação notada na maioria dos países europeus. Nas colônias,
mais ainda no Brasil, as diferenças se acentuavam com maior força. Nes-
se sentido, o pensamento religioso defendido pela Companhia de Jesus,
à qual pertencia o Padre Antônio Vieira, afirmava-se aos princípios mais
típicos ou caracterizadores da práxis jesuítica: defesa intransigente da re-
ligião; ambição, entendida como nobre virtude; e propagação da fé.

Como veremos, no que se refere aos exemplos do sacerdócio vivido


pelo Padre Vieira, sobretudo na fase de sua atuação como missionário,
por volta da metade do século XVII, no Maranhão, a nobre ambição que
se transmudava em virtude foi por ele mesmo secundada nas suas pala-
vras sobre o martírio sofrido por dois jesuítas que atuaram, antes dele,
naquela região: os padres Francisco Pinto e Luís Figueira, mortos pelos

3ª. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 99 e ss.


4 – WEHLING, Arno e MARIA JOSÉ C. M. WEHLING. Op. cit., 1999, pp. 101 e ss.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

índios. Esse perdão, em tese, correspondia à regra “fazer bem a quem o


pagava com o martírio e com a morte”.5

Alguns anos depois, após ser acolhido carinhosamente na corte de


D. João IV, e haver conquistado a intimidade desse rei, não lhe foi difícil
somar outros triunfos nos púlpitos das principais igrejas de Lisboa. João
Francisco Lisboa fez um retrato preciso do orador sacro:

“O todo da sua figura era grave e autorizado – estatura mais que ordi-
nária – fronte elevada e majestosa – tez morena e como crestada do sol
dos trópicos – barba espessa e crescida – cabelos negros na mocidade
e alvos e nevados na velhice – olhar vivo e cintilante”.6

A amizade de D. João IV ao orador sacro não se limitava à admiração


protocolar de seus singulares e arrebatadores sermões. Logo o levou para
a convivência privada de seus palácios, tomando-o como um dos princi-
pais conselheiros e pregador do reino. O Padre Vieira passou a opinar so-
bre os mais variados planos e projetos reais, com a autoridade de ministro
de Estado; todas as decisões importantes, sobretudo as relativas à política
exterior de Portugal, eram submetidas à sua opinião.

Com a clara e proclamada queda de Vieira pela política, em pouco


tempo, viu-se imbuído das mais complexas missões na diplomacia euro-
peia, tratando, inclusive, com figuras plenipotenciárias da Holanda, da
França, da Espanha, Itália, Inglaterra etc. Esse espírito ousado e voltado
para a realização de grandes feitos, sobretudo fora de sua natural compe-
tência – o âmbito da Companhia de Jesus –, terminou galvanizando-lhe
inimigos de toda ordem, não só na corte de D. João mas também dentro
da Companhia de Jesus. Não demorou muito: aliados da religião e da
própria ordem o tomaram como astuto cortesão, ousado negociador de
interesses exclusivamente políticos, um tipo que buscava granjear honras
e poder em proveito pessoal, esquecendo seus irmãos de hábito.

5 – LOBO, Ovídio da Gama. Os Jesuítas Perante a História. Maranhão: Typographia


Constitucional, 1860, pp. 32 e ss.
6 – LISBOA, João Francisco. Vida do Padre Antônio Vieira. Rio de Janeiro - São Paulo
– Porto Alegre: W. M. Jackson Inc., vol. XIX, p. 272.

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Certa feita, talvez para ofuscar esses aleives contra a imagem do


famoso tribuno sacro ou para melhorar seu trânsito no meio da ordem
religiosa, D. João ofereceu-lhe uma mitra opulentíssima, pois corria a
versão de que ele seria expulso da Companhia.

Vieira, talvez movido pelo sentimento de natural desapego às honras


ou a fim de desapontar aqueles que o acusavam de haver desvirtuado o
caminho da religião, recusou a oferta. E o fez, reafirmando o caráter mais
forte de sua personalidade: a humildade e a pobreza. Disse:
“Que não tinha S. M. tantas mitras em toda sua monarquia, pelas quais
houvesse ele de trocar a pobre roupeta da Companhia de Jesus; e que se
chegasse a ser tamanha a sua desgraça que a companhia o despedisse,
da parte de fora das suas portas se não apartaria jamais, perseverando
em pedir ser outra vez admitido, senão para religioso, ou mesmo para
servo dos que o eram. E que se, nem para isso o quisessem, ali estaria
sem mais alimento que o seu pranto, até acabar a vida junto daquelas
amadas portas, dentro das quais lhe tinha ficado a alma toda”.7

Quanto às acusações de natureza política, a mais grave decorreu da


circunstância de ter sido ele, como conselheiro do rei, quem apresentara
um memorial que dispunha sobre a alternativa de Portugal pôr fim à guer-
ra colonial dos pernambucanos contra os batavos, oferecendo Pernambu-
co aos holandeses, argumento sólido e interessante no entendimento de
D. João IV.

Sugeriu, ainda, o Padre Vieira outras iniciativas ao rei, inclusive al-


gumas destinadas a renovar a frota portuguesa, eliminando-se, de vez, as
antigas caravelas, medidas que o reino terminou adotando. Por essa época
e até 1650, ele desempenhou diversas missões em Roma, Londres, Haia,
Paris etc.

Animado pelas ideias proféticas e de mudanças, crente de que a


Portugal, por vontade de Deus, seria reservado o papel de condutor do
Quinto Império, dirigiu-se a Roma para missão diplomática dificílima:
intermediar o casamento entre dois jovens herdeiros das coroas lusa e ita-

7 – LISBOA, João Francisco. Op. cit., vol. XIX, p. 270.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

liana. Dessa forma, Nápoles seria incorporado a Portugal em prejuízo da


primazia da Coroa espanhola. Quando o duque do Infantado, embaixador
da Espanha em Roma, soube das manobras do Padre Vieira, imediata-
mente tomou medidas drásticas. João Francisco Lisboa resumiu assim o
episódio:
“Dizem que esta ideia adquiriu numerosos prosélitos em Roma na
facção espanhola; mas o certo é que, chegando a notícia dela, e dos
manejos do padre, à corte de Madrid, expediu estas ordens tão ter-
minantes para ser ele expulso de Roma, que o duque do Infantado,
procurando o geral da ordem, chegou a dizer-lhe que se Vieira não
despejasse incontinenti, mandaria matá-lo publicamente e onde quer
que o encontrasse.”8

Depois de arrostar tamanho fracasso diplomático – sobretudo com a


ameaça dos irmãos da Companhia de Jesus e da Santa Inquisição –, Vieira
começou a preparar a sua volta ao Brasil.

A partida não se deu de imediato; precedeu de demorada preparação:


dois anos. Durante esse período, provavelmente a Companhia de Jesus
impôs, como castigo, seu retorno não para a Bahia, mas para o Maranhão,
onde ele teria por obrigação a prática de ações espirituais junto aos índios
daquela região, que viviam carentes de todo tipo de ajuda e amparo reli-
gioso.

Castigo e vocação missionária


Padre Vieira chegou ao Maranhão em meados de janeiro de 1653.
Não deve ter sido fácil adaptar-se à vida pacata e tranquila de uma cidade
sem as agitações políticas da metrópole, nas quais ele se integrara como
um dos agentes mais envolvidos e interessados. De qualquer sorte, em
pouco tempo, ele começaria a sair de seu recolhimento para planejar e
executar os planos indispensáveis à salvação dos “bárbaros” selvagens
para o reino de Deus. Como proceder, se, entre seus planos meritórios,
interpunham-se outros planos já em plena execução, há décadas, de apre-

8 – LISBOA, João Francisco. Op. cit., p. 280.

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samento de índios destinados à venda como escravos, fonte de renda ime-


diata para governadores, demais autoridades e capitães-mores inescru-
pulosos? As investidas dos comandos de apresamento estavam cada vez
mais ousadas. A consequência era evidente: a resistência dos indígenas.
Algumas tribos mudavam-se para regiões distantes, aonde dificilmente
poderiam chegar os caçadores de “peças”, segundo costumavam denomi-
nar os seres humanos escravizados, amarrados em cordas como animais
bravos. Outras resistiam com armas nas mãos, ora em suas próprias re-
servas, ora atacando as vilas e cidades, a fim de afugentar e intimidar os
caçadores de “peças”. Outras, como os nheengaíbas e demais selvagens
da ilha de Joanes, decidiam exacerbar os costumes canibalescos, que as-
sustavam e afastavam os brancos.

Somente dois anos mais tarde, em 1655, Padre Vieira poria em prática
a planejada Missão Jesuítica à serra de Ibiapaba, no Ceará. Acabara de vi-
ver lamentáveis experiências com as missões ao Itapecuru e ao Tocantins.
As causas mais imediatas eram as graves acusações aos capitães-mores
tidos como cobiçosos e prevaricadores, que reagiam ao monopólio das
missões por parte da Companhia de Jesus, sob a exclusiva responsabili-
dade e direção do Padre Antônio Vieira. As dificuldades foram enormes e
logo o padre constatou a má vontade do capitão-mor. Mas a chegada dos
jesuítas tornara-se empecilho claro à prática constante de apresamento de
índios para escravizá-los e vendê-los nos mercados – negociações feitas
com a conivência das autoridades, quando não com a participação dire-
ta delas. Exemplo disso aparece claramente na resposta do Padre Vieira
ao rei D. João IV, a propósito de uma consulta que este lhe fizera sobre
a vantagem de dividir a região com dois capitães-mores. A resposta do
padre foi terminante:
“Digo que menos mal será um ladrão que dois; e que mais dificultosos
serão de achar dois homens de bem, que um. Sendo propostos a Catão
dois cidadãos romanos para o provimento de duas praças, respondeu
que ambos lhe descontentavam, um porque nada tinha, outro porque
nada lhe bastava. Tais são os dois capitães-mores, em que se repartiu
este governo. Baltasar de Sousa não tem nada, Inácio do Rego não lhe
basta nada; e eu não sei qual é maior tentação, se a necessidade, se

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

a cobiça. Tudo quanto há na capitania do Pará, tirando as terras, não


vale dez mil cruzados, como é notório, e desta terra há de tirar Inácio
do Rego mais de cem mil cruzados em três anos, segundo se lhe vão
logrando bem as indústrias. Tudo isto há de sair do sangue e do suor
dos tristes índios, aos quais trata como tão escravos seus, que nenhum
tem liberdade para poder servir a ele, nem para poder servir a outrem;
o que além da injustiça que se faz aos índios, é ocasião de padecerem
muitas necessidades aos portugueses, e de perecerem os pobres.”9

Essas afirmações, portanto, feitas ao próprio rei, apontavam para


outras dificuldades que se juntavam a seus novos projetos. A Missão da
Serra de Ibiapaba era um dos principais que ele sonhava realizar o mais
breve possível.

Ao se examinarem as grandes ações missionárias do Padre Antônio


Vieira nessa fase da vida, isto é, quando estava no Maranhão, a partir de
1653, observa-se uma coincidência, no mínimo, curiosa: os locais por
ele escolhidos para concentrar as ações missionárias são exatamente os
cenários históricos de tragédias ocorridas com seus irmãos religiosos: os
jesuítas.

Quando ele decidiu levar a cabo a Missão de Itapecuru, indo até à


ilha dos ferozes tapuias do Amazonas, o fez pensando na tragédia sofri-
da, décadas antes, pelos jesuítas Francisco Pinto e Luís Figueira. O pri-
meiro, “varão de grandes virtudes, e mui exercitado e eloquente na língua
da terra”, segundo as próprias palavras de Vieira, trucidado na serra de
Ibiapaba, em 1603, sob as vistas do segundo, que, então, escapou ileso.
Sobre o padre Luís Figueira, disse Vieira:

“Ficando só, e sem língua, porque ainda a não tinha estudado, se re-
tirou por ordem dos superiores para o Portugal, (mas) logo fez voto
de voltar (ao Maranhão), quando lhe fosse possível, a levar por diante
a mesma empresa, e buscar nela o mesmo gênero de morte que Deus
então lhe negara, ao que ele dizia, por indigno.”10

9 – AZEVEDO, João Lúcio de. Cartas do Padre Antônio Vieira. Coimbra, 1925. Cf.
Carta de 10 de abril de 1654, pp. 549/571.
10 – VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. Cf. vol. 24. Relação da Missão da Serra de Ibia-

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E, com efeito, como diz Vieira, por desejo de Deus, o Padre Luís
Figueira retornou ao Maranhão e, partindo em missão à “barra do
Grão-Pará no ano de 1643, com onze de quinze religiosos que trazia con-
sigo, foi cair nas mãos dos tapuias aroás, da boca do Rio das Amazonas,
onde ele e os mais foram primeiro mortos com grande crueldade, e depois
assados e comidos por aqueles bárbaros.”11

A assombrosa reação dos tapuias, em verdade, não se diferenciava


muito das ações praticadas pelos colonizadores. A empresa fundamental
da região do Amazonas, Grão-Pará, Maranhão e também da região do
Ceará – integrada formalmente ao Maranhão, mas também vinculada a
Pernambuco –, era a apreensão de índios para serem vendidos como es-
cravos. Essa a fonte de renda fundamental. Diante disso, os índios se re-
voltavam e agiam com violência contra os senhores colonizadores e seus
capitães do mato. Igualmente tratavam outras nações indígenas que, por
alguma razão, quebrassem seus códigos de convivência. Os inimigos de
guerra, como já salientamos, eram, em geral, amarrados e levados para
as malocas, a fim de serem mortos e comidos, tal qual fizeram com os
membros da missão do jesuíta Luís Figueira.

Salvação versus escravização


O grande medo e pavor das comunidades indígenas era a escravidão.
Sabia-se, de outra parte, que os índios não se adaptavam a essa forma de
vida sedentária e a grande maioria morria ou por inanição, algo parecido
com a greve de fome, ou por enfermidades contraídas com os brancos.
Além do mais, eles padeciam outras formas de humilhação e castigos que
lhes eram infligidos.

Preocupado com tal situação, Padre Vieira proclamara no Sermão


da Quinta Dominga da Quaresma do ano de 1654, proferido na matriz
de São Luís, algumas invectivas contra aqueles que começavam a criticar
suas ações. Alegavam que o padre e sua Companhia competiam ou em-
paba escrita pelo Padre Antônio Vieira, e tirada do seu mesmo original. Editora das Amé-
ricas. São Paulo, 1959, p. 190.
11 – VIEIRA, Padre Antônio. Op. cit. 1959, ibidem.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

bargavam o bom andamento dos negócios da administração civil da colô-


nia. O padre respondeu do púlpito sem recorrer ao emprego de metáforas
ou ironias: “No Maranhão não havia verdade.”

Em seguida, continuou o sermão, tecendo considerações sobre os


conceitos que os sábios faziam em várias regiões sobre a verdade e resu-
miu o argumento numa curiosa fábula. Certa feita, o Diabo caiu do céu e
se quebrou todo. Em cada região, ficou um pedaço. Na Alemanha, caiu o
ventre, por isso os alemães são dados à gula, à mesa e à taça; na França
caíram os pés, por isso os franceses são inquietos, andejos e dançarinos;
na Holanda, caíram os braços com mãos e unhas crescidas; em Argel,
outro pedaço, por isso aquele povo virou corsário; na Espanha, caiu a
cabeça, razão por que os espanhóis são altivos e arrogantes; em Portugal,
caiu a língua. Aí, o padre concluía mordaz e ferino:
“Os vícios da língua eram tantos, que já deles se fizera um grande e
copioso abecedário. O que suposto, se as letras desse abecedário se
houvessem de repartir pelas várias províncias de Portugal, não há dú-
vida que o M pertenceria de direito à nossa, porque, M Maranhão, M
murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar, M mexericar, e sobre-
tudo M mentir; mentir com os pensamentos. (...) Que no Maranhão até
o sol era mentiroso, porque amanhecendo muito claro, e prometendo
um formoso dia, de repente e dentro em uma hora se toldava o céu de
nuvens, e começava a chover como no mais entranhado inverno. E
daí, já não era para admirar que mentissem os habitantes como o céu
que sobre eles influía. (...) Estes são os dois vícios do Maranhão, estas
as duas influências deste clima; ócio e mentira. O ócio é a primeira
influência, a mentira a segunda: causa e efeito. – Não há terra no mun-
do que mais incline ao ócio ou à preguiça, como vós dizeis; e ela é a
semente de que nasce tão má erva.”12

Essa má erva crescia silenciosa e sorrateiramente entre o governa-


dor, seus capitães-mores e demais pessoas interessadas na escravização
dos índios. Ademais, ele sabia que a legislação da época apenas chance-
lava a cruel forma de escravidão.

12 – LISBOA, João Francisco. Op. cit., p. 307.

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Ao mesmo tempo, os políticos do Maranhão e Grão-Pará, por essa


época, entraram em conflito e não lhes foi possível controlar os desman-
dos de grupos interessados em auferir vantagens. Aproveitando-se da
confusão, o governador resolveu dar um golpe de misericórdia na Com-
panhia de Jesus: mandou prender os 25 padres jesuítas e mais o Padre
Vieira e os encaminhou a Lisboa como figuras comprometidas nos con-
flitos de sublevação.

O Padre Vieira, em Lisboa, aproveitou a oportunidade para con-


vencer as autoridades portuguesas a aprovarem mudanças profundas na
política de evangelização dos indígenas. O plano de Vieira consistia na
implementação de uma reforma, que ele considerava radical, no âmbito
do governo, dividida em 19 capítulos. Vejamos os pontos fundamentais:

1 – os governadores e capitães-mores não teriam jurisdição alguma


sobre os índios, mas poderiam convocá-los para a guerra e serviços par-
ticulares deles;

2 – os índios teriam um procurador, religioso, eleito anualmente pelo


povo, independente do governo e dos capitães-mores;

3 – a repartição dos índios se faria com a presença do prelado dos


índios;

4 – as bandeiras ou missões seriam feitas por padres da mesma or-


dem que dessem assistência aos índios;

5 – nas missões e bandeiras feitas ao sertão poderiam os religiosos


libertar os “índios de corda” e outros casos de cativeiro justo e lícito;

6 – feitos os resgates (dos que se achassem em corda), a repartição


dos escravos se faria pro rata entre todos os moradores, preferindo-se os
mais pobres, e, conforme o número de índios resgatados, os repartidores
seriam os mesmos procuradores da religião;

7 – haveria uma companhia de soldados brancos para escoltar os


religiosos e mais pessoas do seu séquito que se dirigissem às jornadas do

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

sertão, a qual se chamaria Companhia da Propagação da Fé cujo cabo e


soldados seriam escolhidos dentre os sujeitos de maior cristandade, sobre
os quais nenhum mando teriam os governadores e capitães-mores, salvo
em tempo de guerra;

8 – aos religiosos ficaria proibido ter fazendas ou lavouras (mais


tarde eles tiveram na Missão de Ibiapaba);

9 – por fim, várias outras medidas e providências ligadas ao resgate,


descimento, trabalho, salário dos índios e administração de suas aldeias
estavam previstas no plano do Padre Antônio Vieira.

Esses pontos consolidados no instrumento legal asseguravam a Viei-


ra as condições necessárias para empreender as missões segundo critérios
que ele julgava justos e adequados para a ocasião.

O plano, após levado ao rei, foi aprovado como lei pela provisão real
de 9 de abril de 1655. A propósito desse instituto legal, Varnhagen salien-
tou que a provisão concedera “à Companhia toda a supremacia sobre os
índios, com exclusão de outra qualquer ordem ou poder [grifo do histo-
riador], sendo o próprio Padre Vieira declarado logo chefe ou superior,
com poderes quase ilimitados.”13

O ponto fundamental era dar à Companhia de Jesus, isto é, ao pró-


prio Vieira, os poderes absolutos de doutrinador e de governo espiritual
dos índios de todo o Maranhão. Munido desses poderes, ele retornou ao
Maranhão.

Além do mais, como bem comentou Varnhagen, a nova lei não impe-
dira a escravização dos índios, mas, ao contrário, “sancionou a continua-
ção das entradas para escravizar índios. A grande inovação consistiu em
entregar tudo ao arbítrio da Companhia, ou antes do próprio padre Vieira,
de cujas mercês passavam por conseguinte a ficar dependentes todos os

13 – VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História Geral do Brasil. São Paulo: Melhora-


mentos / MEC, 1975, Tomo Terceiro, p. 193.

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moradores do Pará-Maranhão, que unicamente no maior número de bra-


ços de índios cifravam toda sua riqueza.”14

A área territorial sob a supervisão do Padre Vieira era enorme. Se-


gundo informa João Lúcio de Azevedo, estava constituída por 11 aldeias
no Maranhão e Gurupi; 6 nas vizinhanças do Pará; 7 em Tocantins e 28
no Amazonas. Mas, na verdade, Vieira sonhava estender seus tentáculos
missionários a outras regiões, como, por exemplo, à ilha de Joanes (hoje
Marajó), à região de Solimões, aos altos rios povoados por diversas gen-
tilidades indígenas e também à serra de Ibiapaba, no Ceará, cenário de
antiga tragédia jesuíta, como já salientamos. O desejo de Padre Vieira
estender sua ambição evangélica ao Ceará não atendia apenas ao antigo
episódio do massacre do padre jesuíta Francisco Pinto, mas também à
circunstância de que, pela provisão real, passara, outra vez, o Ceará a in-
tegrar a jurisdição do Maranhão, então sob o governo do capitão-general
André Vidal de Negreiros.15

Intermezzo para uma explicação: a escravidão de negros no


Maranhão
Conforme já vimos, estranhamente falou o Padre Vieira, num dos
pontos de seu plano de reforma da catequese dos indígenas, em “cativeiro
justo e lícito”. Por que uma mente esclarecida e lúcida como a do célebre
jesuíta poderia conceber a ideia de cativeiro justo e lícito? Todo cativeiro
é injusto e ilegal, desumano, arbitrário e incompatível com a condição e
os sentimentos da religião. Foi por ter o cativeiro como uma ação indigna
que ele tanto lutou e defendeu a liberdade e a não escravização dos índios
brasileiros, expondo a própria vida aos perigos naturais e às perseguições
da Santa Inquisição. E o Padre Antônio Vieira, apesar de ter defendido
no famoso Sermão da Terceira Dominga do Advento, pregado na Capela
Real, em 1650, que “a verdadeira fidalguia é a ação”, pois, “o que fazeis,
isso sois, nada mais”, na verdade, Vieira foi mais longe: concordou com a
escravização do negro. Foi incapaz de ver que ambos – o negro e o índio

14 – VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Op. cit., p. 194.


15 – VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Op. cit., p. 193.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

– eram seres humanos, filhos de Deus... Talvez levado pelas injunções


políticas da época, preferiu lutar apenas pela não escravização do índio e
conformar-se com a do negro.

Assim, ao comentar a falta de braços para o trabalho das fazendas


dos colonos maranhenses e paraenses, escreveu:

“Esta mesma quebra e incerteza das fazendas se experimentou e pa-


deceu em todas as partes do Brasil enquanto nos princípios da sua
conquista se serviam somente com índios, até que com este desengano
se resolveram a fabricar suas fazendas com escravos mandados vir de
Angola, que é gente por sua natureza serviçal, dura e capaz de todo
o trabalho, e que o atura, e vive por muitos anos, se a fome e o mau
tratamento os não acaba. Nem no Estado do Maranhão, que é parte
do mesmo Brasil, haverá remédio permanente de vida enquanto não
entraram maior força do serviço escravo de Angola”.16

Como bem salientou Lisboa, o jesuíta reeditou o mesmo absurdo


cometido pelo famoso dominicano Bartolomé de Las Casas, que, por uma
contradição e inconsequência monstruosa, “não achou meio mais azado e
pronto pra assegurar a liberdade dos seus índios do que a introdução dos
escravos africanos. Era simplesmente – continua o biógrafo maranhense
– uma raça sacrificada à outra; e pode ser que Vieira sacrificasse os índios
aos africanos com a mesma tranquilidade de consciência, se em vez de
ter vindo para o Maranhão, houvesse posto por obra aquela passageira ve-
leidade que lhe veio em Cabo Verde de fazer missão nas ilhas, nas costas
fronteiras da África.” 17

Entretanto, um século antes o Padre Manuel da Nóbrega, sobre o


mesmo tema, pensava de maneira oposta. Protestara de modo veemente
contra a vinda de negros escravizados ao Brasil. Logo depois da funda-
ção da Bahia, em 1549, durante o governo de Tomé de Souza, Nóbrega
escreveu ao Padre Prepósito, do colégio de Santo Antão, em Lisboa, quei-
xando-se da introdução de escravos negros e negras na nova povoação,

16 – LISBOA, João Francisco. Op. cit., pp. 356 e ss.


17 – LISBOA, João Francisco, ibidem.

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mescla perniciosa, – dizia o grande catequista –, inoculando-se, assim, no


Brasil, “o cancro da escravatura, fonte de imoralidade e de ruína.”18

Mesmo diante dessa advertência, Vieira, um século depois, falava


no Sermão da Terceira Dominga do Advento, pregado na Capela Real,
em 1650, em dois nascimentos para os homens. O segundo nascimen-
to dependia de um advento, um segundo tempo, entendido por Alfredo
Bosi como “um re-nascimento que se enraíza no coração da vontade e do
projeto”19, anunciado, com entusiasmo, como boa nova pelo Padre Vieira,
sobretudo aos homens humildes e desprezados do povo. E acrescentava
o jesuíta:

“Se a natureza ou a fortuna foi escassa convosco no nascimento, sabei


que ainda haveis de nascer outra vez, e tão honradamente como quiser-
des: então emendareis a natureza, então vos vingareis da fortuna.”20

Curiosamente, a sugestão do Padre Vieira encontrou eco em Lisboa


e no Brasil. Ainda que a importação de negros de África para algumas
regiões do Brasil tenha ocorrido bem antes da colonização do Maranhão
– pois, nas doações das capitanias feitas por D. João III (1532-1535) es-
tavam conferidos poderes extraordinários aos donatários, inclusive o de
morte sobre os escravos – a vinda de braços negros para substituir, redu-
zir ou amenizar os de indígenas ganhou forte incremento no decorrer do
século XVII. Para o Maranhão e Grão-Pará, em 12 de fevereiro de 1682,
foi aprovado Alvará que autorizava a entrar naquela colônia de “10.000
negros em 20 anos, a razão de 500 por ano, para serem vendidos por
100$000 cada um, peça de Índia”, para repetir a expressão constante do
referido alvará.21

O governador Gomes Freire de Andrade, diante da demora da chega-


da desses negros escravos ao Maranhão, em 1685, advertia: “Sem a per-
18 – MALHEIROS, Perdigão. A Escravidão no Brasil. Ensaio Histórico, Jurídico, Social.
Petrópolis: Vozes / MEC. Vol. II, 1976, p. 26.
19 – BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1993,
p. 124.
20 – VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. Porto: Lello. Vol. III, tomo 8, pp. 55 e ss.
21 – MALHEIROS, Perdigão. Op. cit., p. 27.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

missão de escravos nunca poderá este Estado ser nada, tendo aliás tanto
com que ser grande. Sabida coisa é que os trabalhos das suas fábricas só
escravos podem suportar.”22

Padre Vieira, apesar de seu poder absoluto sobre a Junta das Mis-
sões, preferiu ceder ou capitular diante de interesses de pessoas que de-
sejavam, a todo custo, auferir vantagens com a escravização de índios.
Quando esses interesses ficaram claramente manifestados por intermédio
dos representantes das câmaras de Grão-Pará e Maranhão, o Padre Vieira
não teve dúvida: fechou os olhos a seus escrúpulos e, ele mesmo, passou
a proceder como mediador do processo de aprisionamento e escraviza-
ção de índios durante as missões realizadas pela região amazônica. Como
observou Varnhagen, “ninguém mais do que ele dispunha dos índios que
impediam a pregação do Evangelho” [grifo nosso].23

Vale salientar que o próprio Vieira, entusiasmado com suas ações


missionárias junto aos índios inheiguaras, que considerou como “gen-
te de grande resolução e valor e totalmente impaciente de sujeição”, a
propósito de ações missionárias realizadas nas aldeias daqueles naturais,
escreveu ao Rei D. Afonso VI, em 11 de fevereiro de 1660, nos seguintes
termos:

“... tendo-se retirado com suas armas aos lugares mais ocultos e defen-
sáveis das suas brenhas, em distância de mais de cinquenta léguas, lá
foram buscados, achados, cercados, rendidos e tomados quase todos,
sem dano mais que de dois índios nossos levemente feridos. Ficaram
prisioneiros duzentos e quarenta, os quais, conforme as leis de V. M., a
título de haverem impedido a pregação do Evangelho, foram julgados
escravos e repartidos aos soldados [grifo nosso].”24

A missão da serra de Ibiapaba: avanços e recuos


A serra de Ibiapaba é o sistema montanhoso mais importante do Ce-
ará. Barão de Studart, em sua Geografia do Ceará, afirma que a “cordi-
22 – MALHEIROS, Perdigão. Op. cit., p. 29.
23 – VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Op. cit., p. 195.
24 – AZEVEDO, João Lúcio de. Op. cit., 1925, I, pp. 549/571.

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lheira da Ibiapaba contorna o Ceará de noroeste a sudeste com sua ponta


setentrional até perto da costa marítima com suas ladeiras de subida, das
quais as principais são as do Tubarão, São Pedro, Ribeiro e da Mina;
descendo do noroeste para o sul, toma as denominações de serra Grande,
Dos Cocos, Crateús, Dos Cariris Novos. Ao sul da cordilheira, latitude 7º,
estende-se a chapada do Araripe, com 190 km de comprimento e 50 km
de largura, constituída de rochas sedimentárias e tão conhecidas por seus
peixes fósseis”.25

Em geral, chamada de serra Grande, é formada por cadeia de serras


que correm ao longo do limite com o Piauí, contornando o Ceará em for-
ma semelhante à imagem de meia-lua. Não se estende de forma continua-
da: a maior baixada ocorre no profundo boqueirão causado pela erosão do
rio Poti, que corre rumo ao Parnaíba. A seguir, já perto de Jardim, surge
outra alteração do relevo: o Baixio das Bestas. Curiosamente, o sistema
da serra da Ibiapaba funciona como o divisor de águas de dois cursos po-
tâmicos: o riacho dos Porcos, afluente do rio Salgado, e o riacho Mundo
Novo, que, com nome de Brígida, deságua no São Francisco.26

As elevações, quase todas de arenito calcário em camadas irregu-


lares, chegam a 1.000 metros. Muitos riachos se precipitam pelo formi-
dável talhado, formando saltos espetaculares. A mais deslumbrante é a
queda proporcionada pelo riacho Ipuçaba, que, ao despencar da altura de
112 metros, forma a bica do Ipu, visível a muitos quilômetros de distân-
cia e semelhante a um véu de noiva, verticalmente exposto, até atingir a
vegetação e as pedras. A denominação Ipu, na linguagem dos tabajaras,
significa “água em pé”. O cenário vem descrito por José de Alencar em
seu poema em prosa Iracema.

A serra de Ibiapaba foi o primeiro lugar do Ceará visitado por ho-


mens civilizados, ou seja, os franceses, que, durante décadas, conquis-
taram a simpatia dos tapuias locais. Depois disso, a primeira expedição

25 – STUDART, Barão de. Geographia do Ceará. Fortaleza: Revista do Instituto do Ce-


ará, Tomo XXXVIII. Ano XXXVIII, 1924.
26 – PIMENTEL GOMES. Corografia Dinâmica do Ceará. Fortaleza: Departamento de
Imprensa Oficial do Ceará.s/d.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

portuguesa chefiada pelo açoriano Pero Coelho de Souza, na qualidade de


capitão-mor, iniciou a colonização do Ceará. Sua tentativa de colonização
começou pela ribeira do rio Arabê, de águas claríssimas e mansas, local
escolhido por Pero Coelho para fundar a capitania que ele chamou de
Nova Lusitânia (hoje Ceará).

Foi na serra de Ibiapaba onde ocorreram os mais aguerridos combates


entre colonizadores e indígenas, circunstância que dá razão a Capistrano
de Abreu, que lembrou ser aquela região preferida pelos ex-bandeirantes
paulistas, os quais, partindo do lado do Piauí, sempre tentaram estender
seus domínios pela região serrana, onde encontravam forte reação dos
tapuias. Por isso, lembrou ainda o grande historiador:

“Fora grave omissão calar que também os paulistas concorreram para


o povoamento do Ceará. Cansados da vida aleatória de bandeirantes,
tinham-se transformado no correr do século XVII em conquistadores,
isto é, organizaram-se em partidas obedientes a um chefe, o qual con-
tratava com o governo pacificar uma região determinada, recebendo
em paga parte dos prisioneiros feitos ou terrenos que ficavam devo-
lutos, ou postos, pensões e comendas. Dois destes conquistadores po-
dem servir de exemplo: Estevão Ribeiro Baião Parente, que pacificou
os sertões do Paraguaçu e Ilhéus, onde a obscura e decadente vila de
João Amaro, nome de seu filho, vagamente conserva sua memória, e
Domingos Jorge, que derrocou o poder quase secular dos negros dos
Palmares.”27

A seguir, o autor de Descobrimento do Brasil destacou os dois mais


importantes conquistadores paulistas no Ceará: Matias Cardoso – algum
tempo companheiro de Fernão Dias Pais na jornada das esmeraldas, da
qual decorreu o conhecimento das riquezas auríferas de Minas Gerais – e
Morais Navarro.28

Qual a população indígena existente nas aldeias da serra de Ibiapa-


ba?

27 – ABREU, Capistrano de. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. 4ª. ed., Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira / MEC, 1975, pp. 135 e s.
28 – ABREU, Capistrano de. Op. cit., 1975, p. 136.

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As informações históricas indicam a existência de 70 aldeias de ta-


bajaras, mais ou menos, cerca de 60.000 pessoas na época do início da
missão jesuítica.29 A esse contingente de indígenas serranos adicionem-se
cerca de 100.000 ameríncolas tupis, integrantes de diversas aldeias situa-
das na margem esquerda do rio São Francisco, no interior de Pernambu-
co. Aqui não estão computadas as populações dos indígenas moradores
dos sertões e serras mais distanciadas da costa atlântica.

O fato determinante para motivar a organização da missão ao Cea-


rá, em 1655, foi, sem dúvida, a nomeação de André Vidal de Negreiros
como governador do Maranhão, amigo do Padre Vieira. Além do mais, o
governador apoiou a ideia, porque, com a missão, as aldeias dos tabajaras
da serra de Ibiapaba facilitariam a construção de um pequeno forte nas
desertas praias de Camocim, destinado à defesa militar da região e ponto
de apoio às atividades mercantes de comércio de âmbar, sal e pau-violeta,
produtos constantemente contrabandeados por piratas e nativos da região.
À missão catequista, portanto, juntava-se uma ação administrativa de im-
portância para os negócios da província. A essa aliança ou colaboração,
ficava claro, o mais decisivo era a submissão dos rebeldes e truculentos
indígenas tabajaras e seus vizinhos aos benefícios pacíficos da vida civili-
zada e cristã. Daí, ter Vidal de Negreiros oferecido ao Padre Vieira todos
os meios necessários à organização da expedição.

Antes da partida, porém, como não confiasse na sinceridade dos ín-


dios para acatar a entrada e a permanência dos missionários, Vieira escre-
veu cartas aos maiorais das tribos, oferecendo, em nome do governador
e do rei, o perdão e o esquecimento de todos os delitos passados, desde
que eles concordassem, de bom grado, em receber os irmãos milicianos
de Santo Inácio de Loyola. Informava mais: aqueles padres jesuítas ti-
nham já bastante experiência no trato com seus irmãos de raça em terras
pernambucanas. Acrescentava, ainda, em estilo elevado e paternal, que
ele mesmo e seus irmãos padres, o governador e seus subordinados empe-
nhavam a palavra de que seriam leais e verdadeiros nos bons propósitos
29 – POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Povoamento do Nordeste Brasileiro. Fortaleza:
Revista do Instituto do Ceará. Tomo LI, Ano LI, 1937, pp. 109 e ss.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

em relação ao trabalho missionário naquelas aldeias. As cartas foram en-


viadas às lideranças das tribos da Serra de Ibiapaba por intermédio de um
índio natural dali chamado Francisco Murereíba, bem relacionado com as
autoridades de São Luís.

Passados vários meses, sem nenhuma resposta ou sinal do emissário


Murereíba, mas com informações de outras fontes indígenas, o Gover-
nador Vidal de Negreiros, aproveitando a ocasião favorável dos ventos
à navegação, resolveu despachar a expedição rumo a Camocim (Ceará),
ancoradouro mais próximo da serra de Ibiapaba. A sumaca levava um
capitão acompanhado por cerca de 40 soldados, materiais e instrumentos
necessários à construção do forte destinado à defesa da costa cearense. O
Padre Vieira, como superior da Companhia de Jesus, determinou que os
padres Tomé Ribeiro e Sebastião Teixeira integrassem a comitiva, a fim
de darem assistência moral e espiritual à tropa embarcada e iniciarem a
catequese dos naturais das aldeias localizadas nas redondezas do futuro
forte.

Fez mais o Padre Vieira: mandou que o Padre Manuel Nunes, noutro
veleiro, se dirigisse à sede da província do Ceará com o objetivo de pre-
gar o evangelho aos tapuias. Além do mais, ele mesmo tomou a iniciativa
de viajar à Bahia, onde pretendia conseguir discípulos da irmandade de
Santo Inácio a fim de ajudá-lo na catequese dos indígenas do Maranhão,
ora em franca expansão.

Enquanto isso, a sumaca cedida pelo governador André Vidal de Ne-


greiros, a qual partira em direção a Camocim, – o ancoradouro mais pró-
ximo do sopé da serra de Ibiapaba –, após cinquenta dias de navegação
em direção a leste, terminou desandando e chegou a outro destino: a foz
do rio das Preguiças. Ao navegar outra vez, alcançada pela forte corrente,
percorreu igual distância, mas de volta ao ponto de partida em apenas 12
horas.

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A propósito das dificuldades da navegação eólica naquela área, o


Padre Vieira escreveu, na Relação da Missão da serra de Ibiapaba, o
seguinte:

“Navega-se nestes meses pela madrugada com a bafagem dos terre-


nhos, os quais como são incertos e duram poucas horas, todo o resto
do dia e da noite, e às vezes semanas e meses inteiros se está espe-
rando sobre ferro, na costa descoberta e sem abrigo, sendo este um
trabalho e enfadamento maior do que toda paciência dos homens, e
o pior de tudo é que depois desta tão cansada tornam as embarcações
arribadas no Maranhão.”30

Assim, fracassou a primeira tentativa de chegar à serra de Ibiapaba.

Enquanto isso, o navio que levava o Padre Vieira deu fundo nas
praias de Camocim, onde foi encontrado, casualmente, o emissário Fran-
cisco Murereíba, que partira há um ano com as cartas para os maiorais dos
indígenas tabajaras da serra de Ibiapaba e que todos já o consideravam
morto.

Murereíba estava acompanhado de uma embaixada de índios taba-


jaras totalmente ataviados à feição europeia, com finíssimas sedas, luxo
que, sem dúvida, denotava o escambo com corsários de várias bandeiras,
de preferência holandeses e franceses. Curioso notar que as cartas-res-
posta que ele trazia para o governador do Maranhão também chamavam a
atenção, porque escritas em papel de Veneza e fechadas cuidadosamente
com lacres da Índia. A caligrafia, por sua vez, indicava que fora escri-
ta por índios alfabetizados e aculturados pelos missionários atuantes em
Pernambuco.31

A propósito desse episódio das cartas, Padre Vieira aproveitaria a


oportunidade para comentar, em sua Relação, que a serra de Ibiapaba,
com a chegada dos holandeses, “ficou verdadeiramente a Genebra de to-
dos os sertões do Brasil, porque muitos dos índios pernambucanos foram
30 – VIEIRA, Padre Antônio. Op. cit., 1959, p. 201.
31 – STUDART FILHO, Carlos. Estudos de História Seiscentista. Fortaleza: Thipogra-
phia Minerva, 1959, p. 130.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

nascidos e criados entre os holandeses, sem outro exemplo nem conhe-


cimento da verdadeira religião”.32 E, justificando a invasão dos batavos,
atribuía o fato a uma determinação divina:

“Entregou Deus Pernambuco aos holandeses por aqueles pecados que


passam os reinos de umas nações a outras, que são as injustiças. [...]
Os outros militavam debaixo de suas bandeiras com a disciplina de
seus regimentos, que pela maior parte são formados da gente mais per-
dida e corrupta de todas as nações da Europa. No Recife de Pernam-
buco, que era a corte e empório de toda aquela nova Holanda, havia
judeus de Amsterdã, protestantes de Inglaterra, calvinistas de França,
luteranos de Alemanha e Suécia, e todas as outras seitas do Norte, e
desta Babel de erros particulares se compunha um ateísmo geral e de-
clarado, em que não se conhecia outro Deus mais que o interesse, nem
outra lei mais que o apetite; e o que tinham aprendido nesta escola
do inferno é o que os fugitivos de Pernambuco trouxeram, e vieram
ensinar a serra, onde, por muitos deles saberem ler, e trazerem con-
sigo alguns livros, foram recebidos e venerados dos tabajaras como
homens letrados e sábios, e criam deles, como de oráculo, quando lhes
queriam meter em cabeça.”33

Nas cartas, os tabajaras saudavam, com pronunciada alegria, os mem-


bros da Companhia de Jesus e manifestavam concordância em aceitar o
trabalho de catequese, informando, ainda, que muitos deles já conheciam
o tipo de evangelização nas aldeias de Rio Grande, Paraíba e Pernambu-
co. Os embaixadores tabajaras faziam, ainda, sentidas observações aos
episódios trágicos ocorridos, décadas passadas, com o jesuíta missionário
Francisco Pinto, morto brutalmente naquela região.

Embora muitos tenham suspeitado de tanta gala e cortesia dos ta-


bajaras, circunstâncias que poderiam esconder alguma traição, ficavam
patentes os pontos de contato com os holandeses. Mesmo assim, o Padre
Vieira preferiu dar um voto de confiança e arrimar-se na esperança de
que a missão daria frutos positivos, isto é, traria os índios para a religião,

32 – VIEIRA, Padre Antônio. Op. cit., 1959, p. 195.


33 – VIEIRA, Padre Antônio. Op. cit., 1959, p. 201.

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segundo ele, a única verdadeira. Prontamente esqueceu os fracassos das


tentativas anteriores e começou a organizar nova expedição.

Dessa feita, o Padre Vieira contou apenas com dois jesuítas: padres
Antonio Ribeiro e Pedro Barbosa de Pedroso. Ribeiro, perfeito conhece-
dor do ambiente colonial e bastante versado nas línguas dos nativos; Pe-
droso, recém-chegado de Portugal, natural de Leiria, revelava crescente
interesse pela causa da catequese.

Conseguiu, ainda, que o governador enviasse na expedição 25 sol-


dados lusitanos para ajudar os sacerdotes e os demais participantes da
missão no caso de ataques de indígenas ou corsários durante o longo per-
curso. O total chegava a 60 pessoas.

A viagem seria feita parte por mar, parte por terra. O próprio Padre
Pedroso, em relato a seu superior, esclareceu as condições iniciais da ex-
pedição:

“Partimos desta ilha (São Luís) aos 26 de junho de 1656 e em breves


dias navegamos em canoa até as cabeceiras do rio Mairi, que dista
deste porto 37 a 40 léguas. Não pudemos, porém, navegar o mar dos
Lençóis por ser já verão e muito entrados os lestes que ali reinam e
dificultam a navegação aos que se arrimam à costa; pelo que, deixadas
as canoas, seguimos o restante da viagem por terra...”34

Após alguns dias, chegaram às margens do rio das Preguiças. A partir


de então, começaram aparecer os primeiros sinais do doloroso sofrimento
da expedição: caminhar por paragens inóspitas, enfrentar sol inclemen-
te e noites em claro por permanentes ameaças de perigosos tupiniquins
que infestavam a região. A seguir, os padres descobriram o pior: alguns
nativos que conduziam víveres e outros instrumentos, sem a menor previ-
dência, consumiram, sem controle, todas as rações e a água potável pre-
viamente estocadas, quando ainda faltavam ser percorridos dois terços da
viagem. Cresceram os protestos, as intrigas. Buscados os responsáveis,
houve ameaça de revolta.

34 – STUDART FILHO, Carlos. Op. cit., 1959, p. 130.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

Diante de tamanho desacerto, os integrantes da missão disseram aos


padres que preferiam retornar a São Luís. Após negociações, os padres
decidiram dar continuidade à marcha em direção à serra de Ibiapaba. De-
cisão ousada e arriscada.

Para vencer o resto do percurso, amargaram duros momentos. Ali-


mentaram-se de folhas verdes, caranguejos e, vez por outra, de peixes.
Além disso, por sorte, tiveram que vencer sérios perigos causados pelo
ardiloso chefe indígena Tatuguaçu e sua matula, os quais, ao aparecerem
no caminho, se declararam amigos e decididos a ajudar, mas, na verdade,
tramavam emboscadas mortais contra a missão.

Os detalhes da difícil viagem ficaram registrados pelo Padre Vieira,


pois os missionários atravessaram 14 rios caudalosos, na maioria das
vezes “levando às mãos por entre o rolo e a ressaca das ondas, sempre por
costa bravíssima, alagando-se a cada passo.” Noutras ocasiões, as canoas
foram levadas por terra e montes, o que exigia enormes sacrifícios de ho-
mens “que quase iam sem comer e mal podiam arrastar os corpos”.

Depois de tão ingentes sacrifícios, continuou Vieira: “mas, vencidos


todos com o favor de Deus, que da fraqueza tirava forças, aos 4 de julho
de 1656, em que se contaram trinta e cinco de viagem, chegaram os pa-
dres à sua desejada serra de Ibiapaba sem alento, nem cor, nem semelhan-
ça de vivos, que tais os tinha parado o caminho e a fome.”35

Que encontraram os missionários?

Evidentemente a enormidade da serra de Ibiapaba. Só no lugar da


primeira parada, nas principais aldeias, encontraram três grandes malo-
cas, onde viviam cerca de 1.600 habitantes, afora inúmeros agrupamentos
de índios próximos do local.

Mais tarde, quando o Padre Antônio Vieira ali chegou, assim descre-
veu a serra de Ibiapaba no seu conjunto:

35 – VIEIRA, Padre Antônio. Op. cit., 1959, p. 195.

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“Ibiapaba, que na língua dos naturais quer dizer Terra Talhada, não é
uma só serra, como vulgarmente se chama, senão muitas serras juntas,
que se levantam ao sertão das praias de Camocim, e, mais parecidas
a ondas de mar alterado que a montes, se vão sucedendo, e como en-
capelando umas após das outras, em distrito de mais quarenta léguas;
são todas formadas de um só rochedo, e em partes escalvado e medo-
nho, em outras cobertas de verdura e terra lavrada, como se a natureza
retratasse nestes negros penhascos a condição de seus habitadores, que
sendo sempre duras, e como de pedras, às vezes dão esperanças, e se
deixam cultivar. Da altura dessas serras não se pode dizer coisa certa,
mas que são altíssimas, e que se sobe, às que o permitem, com maior
trabalho da respiração que dos mesmos pés e mãos, de que é forçoso
usar em muitas partes. Mas, depois que se chega ao alto delas, pagam
muito bem o trabalho da subida, mostrando aos olhos um dos mais
formosos paineis que porventura pintou a natureza em outra parto do
mundo, variando montes, vales, rochedos e picos, bosques e campi-
nas dilatadíssimas, e dos longes do mar no extremo dos horizontes.
Sobretudo, olhando do alto para o fundo das serras, estão-se vendo as
nuvens debaixo dos pés, que, como é coisa tão parecida ao céu, não só
causam saudades, mas já parece que estão prometendo o mesmo que
se vem buscar por estes desertos.”36

As páginas que Vieira dedicou à descrição da serra de Ibiapaba, são,


indiscutivelmente, as mais precisas e belas do Ceará colonial. Sem perder
o cuidado em fixar as características físicas (e até corográficas da região),
o famoso orador descreveu, em síntese, o sítio da serra; sua dificultosa
subida, sua altura, condição dos moradores etc. Talvez seja o primeiro
texto dedicado a essa região. Ademais, teceu comentários sobre vários as-
pectos da forma de vida, os costumes dos habitantes naturais e as medidas
iniciais dos missionários etc. Escreveu:

“Os dias no povoado da serra são breves, porque às primeiras horas do


sol cobrem-se com as névoas, que são contínuas, e muito espessas. As
últimas escondem-se antecipadamente nas sombras da serra, que para
a parte do ocaso são mais vizinhas e levantadas.” Sobre as noites na
serra, disse: “As noites, com ser tão dentro da Zona Tórrida, são fri-
gidíssimas em todo o ano, e no inverno com tanto rigor, que igualam
36 – VIEIRA, Padre Antônio. Op. cit., 1959, pp. 210 e s.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

os grandes frios do Norte, e só podem passar com a fogueira sempre


ao lado.” 37

Sobre as águas, declarou:

“As águas são excelentes, mas muito raras, e a essa carestia atribuem
os naturais ser toda a serra muito falta de caça de todo o gênero; mas,
bastava para toda esta esterilidade ser habitada ou corrida há tantos
anos de muitas nações de tapuias, que, sem casa nem lavoura, vivem
da ponta da frecha, matando para se sustentar, não só tudo o que tem
nome de animal, mas ratos, cobras, sapos, lagartixas, e de todas as
outras imundícias da terra.” 38

A respeito dos hábitos e costumes dos tapuias fez curiosas e proce-


dentes observações:

“Quase na miséria vivem igualmente os tabajaras, posto que puderam,


sem muita dificuldade, suprir a necessidade da terra com os socorros
do mar, que lhe fica distante vinte e cinco léguas, e, sobre ser mui
abundante de todo o gênero de pescado, está oferecendo de graça o sal
nas praias, em uma salina natural de mais de duas léguas; mas é tão
grande a inércia desta gente, e o ócio em que excedem a todos os do
Brasil, que por milagre se vê um peixe na serra, vivendo de mandioca,
milho, e alguns legumes, de que também não têm abundância, com
que é entre eles perpétua a fome, e parece que mais se mantêm dela
que do sustento”.39

Os padres Pedro Pedroso e Antônio Ribeiro, logo ao chegarem à


serra, iniciaram os trabalhos de acomodação do restante da comitiva e a
catequese dos tapuias. Acolhidos com sincera hospitalidade, desde logo,
começaram a aplicar os métodos jesuíticos de evangelização, a fim de
atrair a atenção e a conseguir aceitação dos princípios vulgarizados, que
falavam as verdades eternas preconizadas pela religião.

As crianças e os meninos – os “curumins”, como eram chamados –


imediatamente aderiram aos cantos e às danças improvisadas pelos mis-
37 – VIEIRA, Padre Antônio, ibidem.
38 – VIEIRA, Padre Antônio. Op. cit., 1959, pp. 211 e s.
39 – VIEIRA, Padre Antônio, ibidem.

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sionários diante das malocas principais. Na prática, eles utilizavam as


recomendações do Padre Nóbrega, que, um século antes, dissera:

– Com a música e a harmonia, atrevo-me a atrair a mim todos os


índios da América.

E assim aconteceu na serra de Ibiapaba. Entre os missionários havia


um grupo de “caboclos” vindos de Pernambuco, afeitos a vários tipos de
dança, hábeis tocadores de instrumentos de sopro (pífanos e gaitas rústi-
cas) e percussão (tambores e maracás).

Ademais, foi bem acolhida pelos homens e mulheres a sugestão dos


padres no sentido de casarem dentro das regras da religião de Cristo. Para
tanto, improvisaram grandes festins em comemoração aos casamentos.
Todos os acontecimentos – esponsais das cunhas, batizados e nascimen-
tos dos curumins – constituíam motivos para as festas.

Quando se anunciou a chegada do Padre Antônio Vieira à serra de


Ibiapaba, por volta de 1660, a fim de supervisionar o andamento das
missões em franco desenvolvimento, os missionários reservaram alguns
casamentos de maiorais das tribos dos tabajaras realizados pelo famoso
visitante. As festividades, religiosas e profanas, duraram 12 dias e 12 noi-
tes ininterruptas.

A evolução das missões jesuíticas na serra de Ibiapaba, – como já


dissemos –, por mais de um século passou por várias fases. Podemos
resumi-las em função da chegada de novos missionários, já que a saída de
um ou outro ocorria em virtude de um acontecimento marcante, de reper-
cussão política ou religiosa, as duas forças que governavam a região.

1ª. – Padres Pedro Pedroso e Antônio Ribeiro (1655-1691)


Foi a fase de implantação da missão. Durante um longo período, os
trabalhos de catequese desenvolvidos pelos padres Pedro Pedroso e An-
tônio Ribeiro resultaram na construção de templos, novos aldeamentos
com entradas em locais praticamente inacessíveis e numa ampla difusão

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

de princípios práticos de hábitos e modos de convivência dos tapuias com


a nova situação.

Ao mesmo tempo, porém, ocorreram diversos fatos extremamente


sérios que, em alguns momentos, provocaram a revolta dos índios con-
tra os missionários e até a decretação da extinção da missão pelo Padre
Visitador da Companhia de Jesus no Maranhão e a decisiva interferência
do Padre Antônio Vieira no sentido de demover a decisão de seu superior
religioso.

A primeira reação dos indígenas contra os missionários ocorreu três


meses apenas após a chegada da missão, quando as aldeias da serra to-
maram conhecimento de rumores no sentido de que uma tropa militar
marchava em direção à serra de Ibiapaba. Os índios, então, temerosos de
que aquela tropa viria aprisioná-los e fazê-los escravos, conspiraram, de
imediato, o extermínio dos missionários. Os jesuítas explicaram que tais
informações não eram verdadeiras e que não passavam de boatos, mas os
tabajaras não fiaram em tais argumentos. Na verdade, os índios, em parte,
tinham razão. Seus informantes, naturalmente situados em locais estraté-
gicos da serra e noutras paragens da região, constataram a aproximação
de grande comitiva armada. Mas se tratava do Governador André Vidal
de Negreiros, que, ao deixar o governo do Maranhão, mudava-se, por
terra, com seus familiares e numeroso séquito de soldados para Pernam-
buco, onde ocuparia o cargo de governador daquela província. O próprio
Padre Antônio Vieira assim narrou o episódio:

“Sucedeu por esse tempo fazer viagem o governador André Vidal do


Maranhão para Pernambuco por terra, com aviso, que lhe fizeram os
padres, que estava seguro o caminho; e como o governador trazia
grande escolta de soldados e índios, tiveram por certo os de Ibiapaba
que aquele aparato se encaminhava a conquistá-los, e dissimulada-
mente chamaram todos os tapuias da sua confidência, e os tiveram em
ciladas enquanto o governador passou pelas suas praias; e depois que
esteve em lugar que já não podia voltar atrás, tornaram a desfazer esta
prevenção com tanta dissimulação e secreto, que não chegou á notícia
dos padres senão daí a anos.”40
40 – VIEIRA, Padre Antônio. Op. cit., 1959, pp. 215 e s

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A decretação do fim da Missão da serra de Ibiapaba ocorreu por vol-


ta de 1658, por ordem expressa do Superior Visitador da Companhia de
Jesus. Tudo começou quando o padre Antônio Ribeiro, sem autorização
superior, viajou a Pernambuco para entender-se pessoalmente com o go-
vernador daquela província, André Vidal de Negreiros. A indisciplina do
sacerdote somou-se à velha rixa entre as autoridades máximas do governo
do Maranhão e de Pernambuco em relação ao Ceará. Ambos, em diversas
ocasiões, achavam-se no direito de baixar normas e recomendações sobre
aquela província. A jurisdição formal, porém, cabia ao Maranhão.

Além do conflito institucional, o Padre Ribeiro demorou tanto em


Olinda, que os tabajaras, sempre alertas contra possíveis investidas dos
caçadores de índios, começaram a suspeitar que o religioso estivesse ne-
gociando a escravização deles. Logo iniciaram os preparativos de defesa
e até de eliminação física dos missionários. Acrescente-se o fato de que as
comunicações entre a Missão da Serra de Ibiapaba e o Maranhão, naquela
época, estavam tão difíceis, que a ordem do Superior Visitador da Com-
panhia de Jesus decretando a extinção da missão só chegou aos padres da
serra de Ibiapaba um ano e meio depois. Pior para esses missionários.

Padre Vieira, por sua vez, conquanto tivesse reprovado a atitude do


Padre Antônio Ribeiro, por ter-se afastado sem autorização de seu supe-
rior, começou a agir no sentido de revogar aquela decisão do visitador.
Enquanto isso, os padres Pedroso e Ribeiro, na serra, depois de longa me-
ditação sobre como proceder, entre a obediência à ordem e o sentimento
ou pesar da desobediência, optaram por esta última, ou seja, permanece-
ram na missão, realizando o mesmo trabalho de catequese.

A fim de resolver o impasse, o Padre Vieira, no dia 10 de junho de


1658, escreveu diretamente à regente, D. Luísa, um longo memorial em
que defendia a continuidade das missões na serra de Ibiapaba. Concluiu
com o seguinte argumento a extensa peroração à rainha regente: “Se há
tantos que vão de Roma ao Japão por uma Alma, não haverá quem vá do
Maranhão ao Camocim (Serra de Ibiapaba) por tantas? Deus nos dê muito
de seu espírito”.41
41 – STUDART FILHO, Carlos. Op. cit., 1959, p. 159.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

Como demorasse chegar de Portugal a resposta às gestões do Padre


Vieira, os índios da serra de Ibiapaba, decidiram mandar diretamente a
Lisboa um emissário para explicar à regente, D. Luisa, as razões pelas
quais eles desejavam a continuidade das missões com a presença dos je-
suítas. O escolhido foi o tabajara Ticuna, filho do maioral mais antigo da
serra, já bastante conceituado e respeitado por todos os índios.
Passaram-se dias e meses e nada de Ticuna voltar da corte. Certa
feita, começou a correr pelas aldeias, tabas e malocas da serra a versão de
que ele fora preso e reduzido ao cativeiro. A revolta começou a crescer.
Como sempre, as iniciativas de vingança e trucidamentos dos missio-
nários foram alimentadas pela ira dos tapuias, que resolveram, em suas
secretas confabulações, esperar até a Páscoa. Se Ticuna não voltasse, eli-
minariam os padres.
No entanto, antes do prazo marcado para a matança, entrou, pela al-
deia principal, Ticuna, que adotara nome de civilizado e se chamava Dom
Jorge da Silva. Vinha acompanhado do Padre Antônio Vieira e sua escolta
formada por índios, além de um padre coadjutor, o Alferes Jorge Correia
da Silva, comandante do grupo de soldados brancos, do Padre Gonçalo de
Veras, substituto do Padre Antônio Ribeiro, além de muitos outros padres
da Companhia.
Restabelecida a continuidade da Missão da Serra de Ibiapaba, Pa-
dre Vieira aproveitou sua permanência na serra para pacificar os ânimos,
refazer a união das vinte aldeias e reconquistar a confiança que estivera
ameaçada. Como de costume, os maiorais organizaram grandes festins
que se prolongaram por dias e noites.
Há registros que indicam a permanência do Padre Pedro Pedroso nas
missões da serra de Ibiapaba até o ano 1691, quando faleceu.

2ª. – Padres Ascenso Gago e Manuel Pedroso Júnior (1692-1717)


As atividades dos padres Ascenso Gago e Manuel Pedroso Júnior
tomaram corpo em princípios de 1695. A mudança fundamental, a partir
de então, foi que a responsabilidade pela assistência evangélica aos índios
da serra de Ibiapaba passava a ser dos jesuítas residentes no Ceará. Na

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Cláudio Aguiar

prática, ampliava-se a jurisdição da missão. Em vez de ser apenas na serra


de Ibiapaba, abrangia todo o território cearense. Segundo lembra o histo-
riador Carlos Studart Filho, a capacidade de realização do Padre Ascenso
Gago deu maior amplitude e eficiência aos trabalhos de evangelização
no Ceará e privilegiou as bases de catequese consolidadas na serra como
foco irradiador, procurando, inclusive, avançar para o interior do Piauí.42
Em virtude das novas atividades, agora em todo o território cearense,
Padre Gago planejou a construção de um hospício ou casa de residência,
– com cômodos adequados e um plantel de gado suficiente para dar con-
dições à realização dos trabalhos – onde os religiosos pudessem assistir,
ser tratados das enfermidades e repousar dos cansativos e angustiosos
labores missionários.
Depois de várias gestões, o pedido do atuante jesuíta foi atendido
pelo Rei D. Pedro II, de Portugal, que ordenou ao capitão-general de Per-
nambuco a fornecer, de sua real fazenda, seis mil cruzados destinados à
criação da casa e à compra do gado, além da côngrua necessária a cada
missionário durante o prazo de seis anos, tempo suficiente para o gado
começar a dar rendas suficientes ao sustento dos missionários. Mas, sur-
preendentemente, D. Francisco de Matos, Provincial da Ordem no Brasil,
entendeu que os padres da missão não deveriam iniciar a construção de
tal hospício.
Enquanto isso, em todas as aldeias da serra de Ibiapaba, reacende-
ram o temor e os preparativos de reação dos índios à escravidão, inicia-
tivas partidas de sertanistas paulistas que ocupavam boa parte das vilas
do Piauí, onde aprisionavam os tapuias. Após alguns graves conflitos,
o governador do Maranhão atuou com firmeza e reduziu os efeitos das
odiosas investidas.
Apesar disso, a missão serrana continuou a prosperar, ampliando-se,
inclusive, o cultivo de áreas agrícolas. Somente na área das missões já
viviam mais de quatro mil almas.

42 – STUDART FILHO, Carlos. Op. cit., 1959, pp. 173.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

Em função dessas atividades, começaram a surgir as concessões de


sesmarias, grandes áreas de terra destinadas a várias pessoas oriundas de
famílias com prestígio junto às autoridades governamentais da Colônia.
Às comunidades indígenas, porém, na mesma fase, não se tem notícia de
doação de terras na área da Missão da Serra de Ibiapaba.

No entanto, em 1710, à Companhia de Jesus, foi dada, em regime


de sesmaria, a Fazenda Tiaia, com quatro léguas de terras quadradas, nas
proximidades da ribeira da vila de Camocim. Para movimentar a fazenda,
o grande proprietário português Francisco da Cunha, morador da vila de
Poti, comarca do Piauí, penalizado com a situação financeira dos padres
da missão, doou-lhes 400 cabeças de gado vacum, 27 cavalos e 1 negro
chamado José, escravo acostumado ao pastoreio para zelar pelo rebanho.
Em contrapartida, coube aos padres da missão rezarem, pelo menos, três
missas anuais, em intenção da alma do generoso doador, quando ele fa-
lecesse.43

3ª. – Padres Francisco de Lira e Manuel Batista (1718-1740)


A chegada dos padres Francisco de Lira e Manuel Batista, por volta
de 1717, marcou o terceiro momento da administração geral da Missão
Jesuítica da Serra de Ibiapaba.

Uma das características principais dessa fase foi a preocupação dos


padres em ampliar as terras de propriedade da Companhia de Jesus. À Fa-
zenda Tiaia, adquirida ainda no tempo do Padre Gago, os novos jesuítas
acrescentaram, por sesmaria ou compra, as seguintes fazendas: Panacuí,
com duas léguas de extensão; Ipueira, Tiaia de Baixo e Pacoti, com três
léguas. Depois, por esmola de uma pessoa religiosa, receberam a Fazen-
da Una, com 3 léguas de extensão. Tudo somado, a Companhia possuía
uma área de terra com mais de 12 léguas quadradas, um considerável
latifúndio.

43 – STUDART FILHO, Carlos. Op. cit., 1959, p. 183.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):507-546, jul./set. 2011 541


Cláudio Aguiar

Os padres Francisco Lira e Manuel Batista continuaram a adquirir


mais fazendas em nome da ordem religiosa. Então, vieram as de Umbu-
zeiro, Pitanga, Ubaiaçu e Bananeira. Nossa Senhora da Assunção – pa-
droeira da missão, que dava nome à capela principal –, também recebeu
doações. Assim, crescia, cada vez mais, a área territorial sob o domínio
dos jesuítas.

Tudo corria na mais completa paz, quando, de novo, acenderam-se


as revoltas em diversas aldeias contra as investidas de grupos armados, a
fim de aprisionar e escravizar os índios. Os preadores não respeitavam se-
quer velhos, mulheres ou crianças. A crise cresceu quando o Padre Amaro
Barbosa, ao interferir pessoalmente em um dos ataques, foi torturado com
muita crueldade: os criminosos abriram-lhe o tórax, retiraram o coração
pulsando, o qual, a seguir, foi conduzido pela aldeia como um “sangrento
troféu”.44

De todas as violências, essa esgotou a paciência dos tapuias, que


se revoltaram e partiram para a reação violenta. Os grupos armados
contra-atacaram com maior ousadia e o conflito se estendeu por todas
as aldeias. O ambiente só se acalmou quando as autoridades resolveram
enviar uma expedição armada, sob o comando do sertanista Bernardo
Carvalho de Aguiar.

As missões continuavam e os índios da serra de Ibiapaba sempre a


dar demonstração de confiança e fidelidade às autoridades da colônia.
Fidelidade em todos os sentidos. Recebiam a ajuda espiritual, tão cara
aos desejos de salvar que moviam os jesuítas, e, em troca, na verdade, não
recebiam, materialmente, nada. A área de terra serrana onde viveram seus
ancestrais continuava sob o domínio deles, mas, estava sendo distribuída
pelo regime de sesmaria a senhores brancos e à Companhia de Jesus. Para
isso, ninguém se lembrava dos índios. Ao contrário, eles, em idade adulta,
a qualquer momento, em virtude das ordens régias, estariam sujeitos à
convocação pelo governador da província para servirem como guerreiros
flecheiros, na paz ou na guerra. Há registro apenas de um caso de doação
de terras a um tapuia, por volta de 1721, quando o Conselho Ultramarino
44 – STUDART FILHO, Carlos. Op. cit., 1959, p. 183.

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Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

doou-lhe terras situadas entra a ladeira de Uruoca e o lugar Itapiúna, “à


vista dos relevantes serviços prestados à Coroa”.45

4ª. – Padre José da Rocha (1741-1759)


A quarta e última fase corresponde aos trabalhos desenvolvidos pelo
Padre José da Rocha, a partir de 1741. Essa fase pode ser caracterizada
como a que pugnou pelo assentamento de boa parte de famílias de índios
em vilas. A medida visava a dar maior segurança à comunidade, sempre
acossada pelo fantasma dos caçadores e aprisionadores de índios para a
escravidão.

O religioso estimulou as atividades pastoris e agrícolas com o objeti-


vo de, cada vez mais, agregar e fortalecer as concentrações populacionais
em torno de vilas.

Outra preocupação do padre missionário foi admitir na missão outras


nações indígenas que, por diversas razões, migravam de suas aldeias ou
malocas para outras regiões do Ceará e buscavam a Missão da Serra de
Ibiapaba. Assim, em janeiro de 1756, quando o Visitador Padre Brewer,
esteve em Viçosa, principal centro populacional da época, constatou que
havia ali cerca de 6.000 tabajaras, mais de 600 tapuias cariris, além de
outros pertencentes às tribos dos Anacés, Irariús e Acoanaçus.

Em 1759, os missionários da serra de Ibiapaba foram surpreendidos


com o decreto de expulsão do Marquês de Pombal. Obrigados a deixar
o Brasil, a redução da Missão da Serra de Ibiapaba passou a pertencer
ao governo da capitania do Ceará. O patrimônio da missão contava com
extensa área territorial de fazendas, nas quais, além das edificações e ben-
feitorias diversas, contabilizou-se a existência de 4.700 cabeças de gado
vacum e 200 de gado comum.

Chegava ao fim a obra pastoral iniciada pelo Padre Antônio Vieira


em 1655.

45 – STUDART FILHO, Carlos. Ibidem.

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Cláudio Aguiar

Conclusão
Como vimos, as ações missionárias do Padre Antônio Vieira, a jul-
gar-se pela sua incursão à serra de Ibiapaba, no Ceará, numa época em
que mal começara a colonização daquela região, têm, no campo prático,
importantíssima significação para a história brasileira.

Às suas intervenções na diplomacia, na política, na edificação de


uma obra sacroliterária a partir dos inúmeros púlpitos onde pontificou,
deve-se somar também a ação missionária. E, no caso da Missão da Serra
de Ibiapaba, repitamos, não apenas a extraordinária fartura de seu texto,
que relata os detalhes daquela bandeira missionária, mas, sobretudo, os
resultados concretos decorrentes da missão, os quais se prolongaram por
mais de um século.

Embora se atribuam ao Padre Antônio Vieira alguns defeitos no âm-


bito de sua ação política e diplomática, a verdade é que não se pode dei-
xar de salientar, também, a circunstância de ser, antes de tudo, um ser
humano. Apesar de homem voltado exclusivamente à religião, à prática
do bem, também cometeu erros ou pecados, por exemplo, o de não ver no
negro a condição de ser humano com os mesmos direitos inerentes aos ín-
dios ou aos brancos, – equívoco que seu irmão jesuíta Manuel da Nóbre-
ga, um século antes, não cometera. Ou ainda, o rigor com que aplicou a
lei em vigor, que via, em qualquer resistência do índio à evangelização ou
ao aprisionamento para escravizá-lo, motivo suficiente para apresamento
e escravização, – expediente utilizado pelo próprio Padre Antônio Vieira,
quando, a seguir, os rateava entre os soldados de sua guarda e os colonos
das cidades de Belém e São Luís.

Vale não esquecer que as regras de obediência à Companhia de Jesus


eram rigorosamente adotadas na Missão da Serra de Ibiapaba. Seguia-se,
em primeiro lugar, a lei de Deus; depois, obediência à Igreja; e, por fim,
as leis do governo temporal. A grande contrapartida devida ao governo
era a formação de contingentes de índios guerreiros para lutarem em to-
das as “guerras justas”, assim consideradas pelos dirigentes da Compa-
nhia e do governo.

544 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):507-546, jul./set. 2011


Padre Antônio Vieira e a missão jesuítica da Serra de Ibiapaba (1655-1759)

Ao final da Relação da Missão da Serra de Ibiapaba, escrita pelo Pa-


dre Antônio Vieira, as recomendações aparecem assim resumidas:

“Enfim, que guardarão inteiramente a lei de Deus e obediência à Igre-


ja, na qual se criou um ofício de executor eclesiástico, chamado Braço
dos Padres, e se proveu em um índio zeloso, e de grande autoridade,
irmão do maior principal, para obrigar a todos a virem à igreja, e cum-
prirem com outras obrigações de cristãos, e os castigar e apenar, se for
necessário.”46

Eram ditames tutelados pelo princípio da fé exclusiva da Igreja Ca-


tólica e de severos castigos decorrentes da “guerra justa”. Mesmo assim,
não poderão escapar ao juízo dos pósteros a ação desses evangelizadores
ou catequistas, pois os princípios da religião, por mais nobres e elevados
que sejam, são atos humanos. Nesse sentido, Toynbee escreveu:
“A essência subjacente da religião, porém, é indubitavelmente tão
constante quanto a essência da própria natureza humana. De fato, a
religião é um traço intrínseco e distintivo da natureza humana. É a
resposta necessária dada pelo ser humano ao desafio do mistério apre-
sentado pelos fenômenos que encontra, em virtude de sua faculdade
de percepção consciente, humana e ímpar.”47

A evolução da Missão da Serra de Ibiapaba, após a saída do Padre


Antônio Vieira do Maranhão e durante as décadas posteriores, como vi-
mos, seguiu, por mais de um século, em atividade sob o domínio da Com-
panhia de Jesus. Num certo sentido, foi a fonte irradiadora do processo de
povoamento do Ceará.

Segundo observou Pompeu Sobrinho, “as aldeias, administradas pe-


los padres, também constituíam focos de cruzamento, cadinhos para o
caldeamento das três raças que se defrontavam. O missionário chegava
só, poucas vezes possuía um ou outro escravo africano de confiança.”48

46 – VIEIRA, Padre António. Sermões. Op. cit., 1959, p. 252.


47 – TOYNBEE, Arnold. A Humanidade e a Mãe-Terra. Uma História Narrativa do
Mundo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, p. 21.
48 – POMPEU SOBRINHO, Thomaz. O Homem do Nordeste. Fortaleza: Revista do Ins-
tituto do Ceará. Tomo LI, Ano LI, 1937, 379.

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Cláudio Aguiar

Esses cruzamentos de raças, como de resto ocorreram em todas as


regiões brasileiras, terminariam por atrair para o centro das missões ser-
ranas todas as características sociais, políticas e econômicas inerentes ao
próprio alvorecer do povoamento do Ceará.

Texto apresentado em outubro /2009. Aprovado para publicação em


abril /2010.

546 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):507-546, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

III – documentos
documents

Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos


territórios brasileiros no século XVIII
DOCUMENTS ON “COMMON JUDGES” IN BRAZILIAN
TERRITORIES IN THE SEVENTEENTH CENTURY

Joaquim Romero de Magalhães 1

Resumo: Abstract:
O estudo introduz documentos sobre a adminis- This paper introduces documents on the admin-
tração da justiça ordinária no Brasil colonial. istration of common justice in Colonial Brazil.
Nele são identificadas situações, não previstas Situations will be identified that were not antici-
nas Ordenações do Reino, referentes à designa- pated in the Kingdom’s Ordinances, referring to
ção de juízes leigos para povoações longínquas, the nomination of common judges to distant set-
com atribuições semelhantes às dos juízes de tlements with similar assignments as the juizes
vintenas, reforçadas de modo a aproximá-las de vintena2, reinforced in such ways as to bring
daquelas dos juízes ordinários das câmaras mu- them closer to those of the common judges in
nicipais. municipal chambers.
Palavras-chave: juízes ordinários – juízes lei- Keywords: Common Judges – Lay Judges – Ad-
gos – administração da justiça – Brasil colônia. ministration of Justice – Colonial Brazil.

As autoridades portuguesas consideravam indispensável a institui-


ção de municípios para a vida coletiva da população e para o exercício da
justiça no Brasil colonial. Com a instalação da câmaras concretizava-se
o quadro legal fixado nas Ordenações do Reino que a todos e em to-
dos os domínios territoriais se impunha. Justiça que era ainda práticas da
vida social que a legislação contemplava e que passava pela existência
de quem tirasse devassas e elaborasse e registasse testamentos. Por isso a
continuada política de fundação de vilas, onde o povoamento as justifica-
va. Porque não era considerado viável um concelho onde apenas subsistia

1 – Doutor em História Econômica e Social pela Universidade de Coimbra. Professor


Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Sócio do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro.
2 –1Judges in small settlements of about twenty families (Translator’s note).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 547


Joaquim Romero de Magalhães

um escasso assentamento de moradores. Não se considerava que o muni-


cípio resultasse sustentado. O que deixava em aberto, e sem intervenção
possível, todo o território que ainda escapava à malha concelhia. Vazio
com que desde cedo se preocupou a realeza. Que vai tentar solucionar o
caso tomando uma medida que não respeitava as Ordenações do Reino –
ou que pelo menos se pode dizer que nelas se não previa. Política de fato.
Todavia trata-se de uma medida legal por ser o rei, detentor da soberania,
que a determinava, sem que isso se passasse à formalização em termos
de se criar um novo instituto jurídico. Assim, ocorre a criação de “Juízes
Ordinários” em áreas que não se integravam nos concelhos existentes. E
acontece apenas por força da decisão régia impondo o seu cumprimento.

Durante longos anos não se tentou remediar esse vazio de justiça


em que viviam os pequenos núcleos populacionais que estivessem fora
das áreas onde já estavam instalados os municípios. Ter-se-á começado a
tentar preencher esse vazio como resposta ao que se passava no sertão da
Bahia, numa região designada o Sertão dos Rodelas. Talvez por sugestão
da Junta das Missões, era o remédio que se tomava “para se evitarem os
repetidos crimes, e atrozes cazos que aly sucedem que ordinariamente
ficão impunidos assim por se não ter noticia delles pella distancia em que
são cometidos, como por não haver modo de justiça naquellas partes,” o
rei decide que sendo estes distritos da jurisdição do governo da Bahia se
deve ordenar “que de sinco em sinco legoas haja hum juiz ordinario com
a jurisdição de tirar devassas tomar denunciações e querellas nos delictos
que aly se fizerem, e remetellas por treslados ao ouvidor da comarca des-
sa cidade para se proceder nesta matéria como for justiça.” Foi decisão
comunicada de Lisboa ao governador capitão general do Estado do Brasil
a 16 de Fevereiro de 1698.3

Tentou-se então montar uma rede de juízes relativamente densa, com


a qual se pretendia cobrir todo o território onde se sabia haver algum
povoamento reinol. Cinco léguas era a distância que podia ser normal-
mente percorrida em um dia de marcha pelos vizinhos, pelo que ficaria
3 –1Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), — Conselho Ultramarino. – Brasil/ B —
Cód. 246, fl. 63 r-v. Documento I.

548 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

acessível a todos o acesso a essas autoridades. Pretendia-se mesmo ins-


talar um conjunto articulado destes magistrados que abrangesse a área
já povoada, mesmo aquela em que a população, apesar de escassa, não
devia ser ignorada. Porém e desde logo esta disposição foi considerada
de difícil ou mesmo impossível aplicação, do que o governador D. João
de Lancastre dá parte para Lisboa. O que merece reposta: “Viosse a vossa
carta de 12 de Junho deste anno em que reprezentaes a deficuldade que
se vos offerece a creação que se ordenou fizésseis de Juizes ordinarios no
destricto do certão dos Rodellas de sinco em sinco legoas, por não haver
nelles homens que saybão ler nem escrever. E pareceume dizervos deveis
fazer a delligencia que se vos tem mandado, recomendando aos ouvidores
geraes que nas suas comarcas fação todo o possível porque se criem estes
Juizes que ainda que não saybão ler basta que o seu escrivão o saiba, e
mostrando o tempo esta impossibilidade que apontais se poderá então
tomar a rezolução que parecer conveniente.” Foi a posição de Lisboa em
Novembro de 1698.4

No entanto, essa ordem também não teria sido executada. Porque no


Reino teria sido considerado preferível encontrar uma outra forma de dis-
tribuição espacial desses juízes. E em vez das cinco léguas vai escolher-se
o quadro territorial da freguesia. Assim, e em conformidade, nova deter-
minação comunicada ao governador e capitão general do Estado do Brasil
a 20 de janeiro de 1699: havia, sempre, que resolver “sobre os damnos
espirituaes e temporaes que se experimentão nesse Estado por falta das
Missoens, e de quem administre Justiça, aos que vivem nos dillatados
certoens delle em sua liberdade, fazendo tão exurbitantes excessos que
obrigão aos que amão a quietação a retiraremsse, ficando as terras só
povoadas dos malfeitores.” Justificada a medida, el-rei determina: “Fuy
servido rezolver que em cada Freguezia das que tenho mandado formar
pelos ditos certoens, haja hum Juiz à semelhança dos Juizes da vintena
que há neste Reyno, o qual será dos mais poderozos da terra.”

4 –1AHU, – Cons. Ultra. – Brasil/ B – Cód. 246, fl. 73 v, Documento II; Márcio Roberto
Alves dos Santos, Fronteiras do sertão baiano: 1640-1750. São Paulo: USP – Departa-
mento de História, 2010, pp. 318-319 usa apenas os dois primeiros documentos.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 549


Joaquim Romero de Magalhães

Isso ainda não bastava para garantir a instalação e acompanhar a


atuação destes juízes. Daí acrescentar-se: “E para que este (juiz ordiná-
rio) viva seguro fazendo o seu officio. Hey por bem se criem em cada
hûa das taes Freguezias hum capitão-mor, e mais cabos de milicia, e que
nestes postos se nomeem aquellas pessoas que forem mais poderozas,
os quaes serão obrigados a socorrer, e ajudar aos Juizes, dandolhe toda
ajuda, e favor para as deligencias da justiça e cominandolhes pennas, se
faltarem a sua obrigação, e que os que rezistirem aos taes Juizes, sejão
castigados, como se o fizerão aos Juizes de fora.” E vem indicada a re-
lação hierárquica com os ouvidores da comarca que deveriam uma vez
por cada triênio “vizitar estes moradores fazendo correyção como nas
mais em que a faz todos os annos.”5 Por estes anos também as áreas mais
ocupadas da colónia iam sendo dotadas com os seus juízes de vintena,
dois por cada freguesia.6 Encontrava-se uma figura legal, constante da
legislação e da prática do Reino que se ia instalando, para dela também
se aproximar a nova criatura. Assim, invocavam-se nas atribuições destes
juízes ordinários as dos juízes das vintenas como constavam das Ordena-
ções do Reino (tít. LXV, nº 73). E se a proximidade com o juiz da vintena,
que no Reino estava há muito radicada, era uma boa referência, nem por
isso tudo se conseguia regular. Ainda, e para mais autorizar estes novos
juízes ordinários, equiparavam-se a Juízes de fora pela autoridade e pree-
minência de que se revestiam.7

Alguém influente, “pessoa muito inteligente, e de comûa opinião de


bem procedido, e zeloso do serviço de Deus nosso senhor, e do meu”
teria proposto este novo modo de encontrar uma solução que pudesse
ser posta em prática. Tratava-se de aproveitar o quadro preexistente da
freguesia, tido como preferível ao das espacialmente difíceis de marcar
5 em 5 léguas. Nem assim pareceria resolvida a questão, porque havia
locais que não estavam enquadrados em freguesia alguma, precisamente
por esses longínquos sertões onde se procurava introduzir o exercício da
justiça. Porque a dificuldade residia precisamente aí, nesses territórios
5 –1AHU, — Cons. Ultra. – Brasil/ B — Cód. 246, fl. 88; Idem, Cx. 3, doc. 277. Docu-
mento III.
6 –1AHU, Cons. Ultra. — Cartas régias – Bahia, Cód. 246, fl. 147, Documentos VI e VII.
7 –1Sugestão do Prof. Doutor Arno Wehling, a quem agradeço.

550 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

que ficavam fora do quadro municipal estabelecido e de algum modo já


dominado.

Logo cedo, por 1699, terá havido falta de respeito e veneração a


um juiz ordinário no Sertão dos Rodelas, que foi descomposto e a quem
alvejaram. Isto bem no interior da Capitania da Bahia, na freguesia de
Nossa Senhora da Victoria confinante com o Piauí. Pelo que para lá terá
sido mandada tropa de infantaria para repor a situação “segundo a despo-
sição da ley.”8 Situação que terá demorado algum tempo a resolver, tendo
exigido a devassa e castigo dos delinquentes, como “demonstração de
exemplo para refrear aos mais a que vendo imitem, em tão abominaveis
e horriveis procedimentos digno este por tantas rezões de hum exemplar
castigo.”9 Está por saber se na Bahia estes juízes ordinários continuaram
a ser eleitos e a desempenhar o seu papel essencial, mas tudo indica que
sim: nessa capitania, bem no interior, aparecem mais tarde o julgado de
Santo Antônio do Urubu (município em 1749, hoje Paratinga), o de San-
to Antônio de Pambu (município em 1832, hoje Curaçá) e o de Santusé
(também município em 1832 com o nome de Sento Sé). Mas não se segue
que a solução provisória se tenha de imediato estendido a todo o terri-
tório. E também falta averiguar se sempre os juízes ordinários surgiam
acompanhados por capitães-mores de cada uma das freguesias, tal como
se pretendera em 1699.10

Fosse como fosse, a figura deste “Juiz Ordinário” vai reaparecer


noutras bandas, sempre considerando o quadro geral que obrigava a con-
siderar que as distâncias impediam a integração de um dado núcleo de
habitantes nos domínios municipais institucionalizados. E que assim fica-
va muito difícil – ou mesmo impossível – aos moradores para se valerem
da justiça, ou para que o seu direito fosse reconhecido, ou para recorrer
de alguma sentença. Esse território era dito um julgado ou até juizado –
referiam-se-lhe assim, que não houve texto legal a declarar a circunscri-
ção como existente.

8 –1AHU, Cons. Ultra. — Cartas régias – Bahia, Cód. 246, fl. 111, Documento IV.
9 –1AHU, Cons. Ultra. — Cartas régias – Bahia, Cód. 246, fls. 125 e 147, Documentos V e VI.
10 –1AHU, Conselho Ultramarino, Cartas régias — Bahia, Cód. 246, fl. 111.

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Joaquim Romero de Magalhães

Nos confins do Piauí, na Vila da Moucha (hoje Oeiras) em 1702


também terão sido eleitos dois juízes, um para o Riacho do Parnaguá
e outro para a Parnaíba, freguesia de Nossa Senhora de Piracurucá. Te-
ria sido iniciativa da câmara, que se sentia incapaz de fazer chegar tão
longe a execução das suas ordens. O que pode mesmo ter sido mantido
até 1727, quando o ouvidor-geral pede ao rei que o autorize a tomar se-
melhantes medidas. A distância era, naturalmente o argumento invocado
para a necessária actuação. Juízes a que se deu posse na Câmara da Vila
da Moucha. Tratava-se de, “sem contradição algûa dos moradores por se
lhes insinuar o quanto se carecia de Justiça em seu provimento nas ditas
povoações.” O ouvidor-geral, que o escrivão dá como doutor, era homem
de leis e trata de dar regimento escrito a estes juízes ordinários, que “se el-
legerão para bem, e conservação dos ditos moradores lhe fizera em nome
de V. Mag.de.” Regimento que adaptou do Capítulos 3º e 8º dos ouvidores
do Maranhão pelo qual se regia o promotor da inovação.11 Isto não obs-
tante a criação ter suscitado dificuldades de delimitação de jurisdições
nesses longínquos e dilatados sertões.12 A que um sucessor no lugar, José
de Barros Coelho, entendeu objectar, pois dava aos juízes pedâneos o
“titollo de Juizes ordinarios com o conhecimento de cauzas e crimes”,
procedimento que lhe parecia “incurial”. Apesar disso ainda manterá um
desses juízes junto ao Tocantins. Sempre a distância a justificar as medi-
das que escapam à letra da lei.

Neste caso do Piauí, teriam sido juízes de vintena de freguesias exis-


tentes (Vitória e Pirarucucá) que viam reforçada a sua autoridade pelo
ouvidor-geral, que ainda os dotava com um regimento escrito. Mas o ma-
gistrado, ciente de que não tinha autoridade nem poderes para tal cria-
ção, apressa-se a comunicar o que obrara para o Conselho Ultramarino
e a pedir ratificação ou anulação do que fizera. E os conselheiros apro-
vam o que fora feito e são de parecer de que “será muy conveniente, que

11 –1AHU, Cons. Ultra. – Brasil/Pi – Cx. 1, Docs. 59, 60 e 65. Documentos VII a IX.
Magistrado com carreira longa, que terminou como Desembargador na Relação do Porto,
passando por Desembargador e Ouvidor Geral do crime na Relação da Bahia. Vd. José
Subtil, Dicionário dos Desembargadores (1640-1834). Lisboa: EDIUAL, 2010, p. 100.
12 –1AHU, Con. Ultra. — Brasil – Piauí, Cx. 1, docs. 60 e 65. Documentos VIII e IX.

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

V. Mag.de se sirva aprovar este regimento pois as distancias que se achão


estas terras necessitão muito desta providencia.” A distância e a dificul-
dade das autoridades camarárias por isso atuarem ao longe será uma vez
mais e sempre a razão invocada para esta ou semelhante solução. Mesmo
não sendo um procedimento inteiramente conforme ao previsto nas Orde-
nações: aproveitava a existente figura do juiz da vintena e acrescentava-
lhe poderes. E implicava as vereações dos concelhos por meio de actos
eleitorais e da posse que davam a esses eleitos. O que recebe clara apro-
vação do Conselho Ultramarino.

As populações precisavam de um ordenamento social e político, em


que se enquadrava esse urgente exercício da justiça que sempre aparece
invocado. Tanto mais difícil de conseguir quanto mais distante dos pode-
res constituídos se encontravam os povoados. Porque os grupos humanos,
mesmo que ainda por agregar e desenvolver uma regular vida colectiva,
queriam que sobretudo se lhes desse um pouco de segurança. Sob pena de
em organização imprevista surgirem chefes locais que sem respeitar a le-
gislação seriam eleitos e acatados. Foi o caso de Manuel Nunes Viana nas
Minas Gerais por 1709. Chefia esta que a realeza não soube a que depois
não quis marcar com alguma sanção, apesar do carácter espontâneo que
revestiu. E carente de apoio legal.13

Será também nos novos territórios das Minas onde outra vez se re-
corre a juízes ordinários sem subordinação a municípios. Terá sido cria-
ção do ouvidor-geral da comarca do Rio das Velhas, por volta de 1731, de
criação de juízes eleitos pelo povo, inovação que o rei autoriza em 1732.14
Autorização que ficou a valer, como escreve em 1746 Gomes Freire de
Andrada, governador do Rio de Janeiro tendo a seu cargo também as
Minas Gerais: “Foy V. Mag.de servido por sua real ordem de 28 de Abril
de 1732, mandar criar no certão da Capitania das Minas, dous juizes or-
dinarios, e dous escrivaens do publico, judecial e notas, hû no destricto
do Papagayo, distante de Vila Real do Sabará, cabeça da comarca, outo
13 – Joaquim Romero Magalhães, “As Câmaras Municipais, a Coroa e a cobrança dos
quintos do ouro nas Minas Gerais (1711-1750)”, in Labirintos Brasileiros. São Paulo:
Editora Alameda, 2011.
14 – AHU, – Cartas Régias – Minas Gerais, Cód. 241, fl. 155 v. Documento X.

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Joaquim Romero de Magalhães

dias de viagem, e outro no Arrayal de São Romão, em distancia da mesma


Vila, mais de vinte dias, por obviar o discomodo que aquelles moradores
exprimentavão em ter tão remota providençia, para aprovação dos tes-
tamentos, e factura de algûas escripturas.” Tinham estes extravagantes
juízes ordinários limitada jurisdição: no cível até 25 000 réis e no crime
remetem as devassas que tirarem para a ouvidoria em Sabará.15 Mas se-
gundo Martinho de Mendonça Pina e Proença, governador interino das
Minas, esses juízes já estavam em funções “de muntos (sic) annos a esta
parte, e antes que a V. Mag.de se dese esta conta.”16 Não é impossível, mas
não será fácil documentar – se bem que desejável. Mas sem dúvida que
nos anos Trinta o estabelecimento ocorreu. Sendo estes juízes de eleição
popular, é imprecisa a forma como decorre a escolha mas parece ter pre-
valecido a eleição pelos vizinhos metendo-se em pelouros os nomes dos
elegíveis que anualmente eram abertos e os sorteados para depois rece-
berem a nomeação vinda do Ouvidor.17 Pelo menos por parte do rei e do
Conselho Ultramarino há sempre insistência nesse quesito: eleição pelo
processo dos pelouros.

Será precisamente no julgado do Papagaio que no mês de Março de


1736 eclode um motim em que aparece implicado um juiz ordinário. Terá
começado por uma insurreição contra ele que tirava uma devassa – seria
um dos juízes ordinários do julgado.18 Juízes que são ditos como a viver
“nas suas fazendas, distantes daquella villa ou lugar cabeça do dito des-
trito do Papagayo, dez, vinte, e mais legoas, e por não terem o detrimento
de virem ao dito lugar fazer audiências, e mais actos de justiças, que-
rem obrigar ao Tabalião que vá assistir aonde elles moram, com muito
prejuízo…”19

15 – AHU, – Cons. Ultra. – Brasil/MG – Cx. 32, Doc. 12; Idem, Cx. 46, Doc. 14; Idem,
Cartas Régias – Minas Gerais, Cód. 241, fl. 155 v. Documentos X, XI e XII.
16 – AHU, Con. Ultra. – Brasil – MG, Cx. 32, doc. 12. Documento XI.
17 – Luiz Palacin, Goiás 1722-1822. Estrutura e conjuntura numa Capitania de Minas,
Goiânia: Departamento Estadual de Cultura, 1972, p. 118.
18 – “Motins do Sertão”, in Revista do Arquivo Público Mineiro, anno I, fasc. 4, p. 650;
Luciano Figueiredo, “Furores sertanejos na América portuguesa: rebelião e cultura políti-
ca no sertão do rio São Francisco, Minas Gerais (1736)”, in Oceanos, Lisboa, CNCDP, nº
40 – Outubro / Dezembro 1999.
19 – AHU, – Con. Ultra. – Brasil/MG – Cx. 41, doc. 30.

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

Sempre foi entendida como solução provisória esta dos juízes ordi-
nários, enquanto se não constituíssem mais povoados como vilas. Para
que a realeza nem sempre encontra boas razões. Perante uma proposta
do ouvidor-geral de Serro do Frio, em 1731, o Conselho Ultramarino não
acedeu às razões apresentadas negando a elevação do Arraial dos Fanados
a vila. O que afinal ocorrerá logo depois tomando o nome de Nossa Se-
nhora da Graça do Bom Sucesso das Minas Novas do Araçuaí, na área da
ouvidoria do Serro do Frio. Elevação talvez mal justificada, uma vez que
quinze anos passados ainda aí não havia casas de câmara nem cadeia.20

Bem tentaram idêntica promoção os moradores no Arraial de Nossa


Senhora da Conceição das Catas Altas, no termo da Vila do Carmo, co-
marca de Vila Rica. Em 1745 representam a Sua Majestade quanto isso
lhes importava: “atendendo V. Mag.de ás grandes povoações que ha na-
quella America para haver melhor administração da justiça e se evitarem
os graves damnos, e consequencias, que se não podião atalhar, nem re-
mediar pelas grandes distancias foi servido crear villas em muitos lugares
para que assim se pudesse mais prontamente acudirse ás necessidades
que precizarão de prompto remedio.” Ora o Arraial, que teria uns quatro-
centos fogos nos seus limites, não era de menos consideração, “antes he
hum dos mais antigos daquella America, ou sitio, e de grande povoação,
ficando muito distante a Villa do Carmo mais de hum dia de viagem,
de que rezulta commeterem-se no dito lugar varios e atrozes insultos
sem temor da justiça por não ser remediavel pela distancia, em forma
que sempre ficão impunes os malfeitores, alem dos enfermos que mor-
rem sem testamento por não terem oficial publico que o possa fazer.”
Tudo boas razões para se elevar o arraial a vila, passando para o seu
termo quatro freguesias situadas entre o rio Gualacho e a Barra do Caeté.
Mas o Conselho Ultramarino, consultado o Provedor da Comarca e o
ouvidor-geral, acha tal pretensão mal fundada. Aí havia já juiz ordinário,
e passaria a haver um tabelião do judicial e notas. Na opinião do Provedor

20 –�����������������������������������������������������������������������������
AHU, – Con. Ultra. – Brasil/MG – Cx. 30, doc. 55; Waldemar de Almeida Barbo-
sa, Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, Editora Saterb,
1971.

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Joaquim Romero de Magalhães

da comarca tratava-se apenas de um “desordenado apetite.”21 Nenhuma


outra fundamentação é acrescentada para melhor se entender a negativa
que os vizinhos receberam. E insistirão os moradores para que lhes seja
concedido o foral de vila ainda em 1760.22

Outro tanto terá ocorrido no distrito do Paracatu, em 1746, no arraial


de São Luís e Santa Ana, onde também residiam intendente (que era o
capitão-mor da Vila do Carmo) e escrivão da Intendência. Povoado que
passa a ser indicado como julgado.23 Neste caso seria lugar de mais de
1300 vizinhos, fora os seus subúrbios, onde mais viviam “em lavras de
ouro e roças de mantimento.” Tinha sido preciso criar essa intendência
no Arraial de São Luís do distrito de Paracatu, comarca de Vila Real do
Sabará por se encontrar a mais de cento e setenta léguas da Vila do Ribei-
rão do Carmo.24 E ter concorrido muita gente ao novo descobrimento.25
Ficava no vale do São Francisco, fronteiro ao território de Goiás. Sempre
a aguardar a possibilidade de ser criado um município, o que só ocor-
reu nos finais do século XVIII. Embora houvesse dúvidas. Por isso o rei
manda que o informem “se parecer se mostra haver de ser permanente a
freguezia de moradores no Paracatú, e se ser conveniente formarsse nelle
Villa.”26 O ouvidor-geral do Serro do Frio, em carta de 31 de outubro de
1746 invocava mais: “ser precizo crear-se de novo hûa villa em qualquer
dos três Arrayaes de Jequitahy, e Almas e Barreiras, ou haver em qualquer
delles hum Juiz ordinario com seu Tabalião, Alcayde, Escrivão e Porteiro
por ser em utilidade das partes, e boa administração da justiça.”27 Contu-
do, não terá vindo ordem para a eleição de mais esses juízes ordinários.

Já se constata que se tomava o juiz ordinário como uma solução que


podia emprestar melhoria na administração da justiça aos povos. Transi-
21 – AHU, – Con. Ultra. – Brasil/MG – Cx. 45, doc. 38.
22 – AHU, – Cartas régias, Minas Gerais, Cód. 242, fl. 78.
23 – José Joaquim da Rocha, “Memoria historica da Capitania das Minas Geraes”, in Re-
vista do Archico Publico Mineiro, Anno 2, vol. 3, Ouro Preto, Imprensa Official de Minas
Geraes, 1897, pp. 453-456.
24 – AHU, – Cons. Ultra. – Brasil/MG – Cx. 47, docs. 28, 29 33 e 46.
25 – AHU, Cartas régias – Minas Gerais, Cód. 241, fl. 306 v.
26 – AHU, Cons. Ultra.– Cartas régias, Minas Gerais, Cód. 241, fl. 322.
27 – Ibidem, fls. 306 v, 311 e 322. Documentos XXI e XXII .

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

tória que fosse, embora. Nas Minas Gerais as funções dos juízes ordiná-
rios veem-se acrescidas de outras como as de juízes dos órfãos ou de pro-
vedores das fazendas dos defuntos e auzentes. Assim era defendido pelos
próprios moradores na Campanha do Rio Verde em 1779. Rio Verde que
se incluía no distrito da Intendência de Rio Verde, Ajuruoca, Sapucahy,
Pouzo Alto e Baypendi da Comarca do Rio das Mortes.28

Na Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais de José


João Teixeira Coelho, de 1782, vêm devidamente separados os distritos
do Paracatu, São Romão e Papagaio na comarca de Sabará, os julgados
da Campanha do Rio Verde e da Aiuruoca, Sapucaí, Jacuí e Itajubá da
comarca do Rio das Mortes e o Julgado da Barra do Rio das Velhas da
comarca do Serro do Frio.29 Exceto as primeiras, todas criações ocorridas
na segunda metade de Setecentos. Outros julgados ainda depois poderão
ter sido estabelecidos, como o do Arraial de Araxá e o de Itabira.

No entanto, mantém-se a constatação que quer o Conselho Ultrama-


rino quer o rei ao decidirem qualquer nova criação nunca referem as so-
luções já encontradas para outras capitanias: não há remissão do exemplo
baiano pelo ouvidor-geral do Piauí, como este exemplo não é invocado
a propósito do que estava a fazer Gomes Freire de Andrada em Minas
Gerais. São soluções tidas como necessárias para aquele momento e para
aquela capitania, mas não se procura encontrar uma formalização ou ins-
titucionalização destinada a permanecer. Nem se invoca precedente ou
outro caso conhecido.

Todavia, não se ficarão pelo sertão da Bahia, nem na recentemente


autonomizada capitania do Piauí, nem pelas Gerais estas criações de juí-
zes ordinários. Também aparecem em outro território sertanejo: “o supe-
rintendente das Minas dos Goyaz Agostinho Pacheco Telles […] dá conta
[…] em como attendida a necessidade, que padescião os povos daquellas
Minas de administração de justiça pella distancia em que ficão humas
28 – AHU, AHU, – Con. Ultra. – Brasil/MG – Cx. 81, doc. 54. Documento XXX.
29 – José João Teixeira Coelho, Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais
1782. Edição Caio Boschi. Belo Horizonte: Governo de Minas Gerais, 2007, pp. 334-
344.

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Joaquim Romero de Magalhães

povoações das outras, se assentou em huma junta de Ministros que se


achavam naquela parte no serviço de V. Mag.de convocados pelo Gover-
nador de S. Paulo o Conde de Sarzedas, que emquanto V. Mag.de se não
servia mandar crear as villas nas povoações a que chamão Arrayaes, se
elegessem na forma da ley dous Juizes ordinarios em cada hum delles e
hum Tabalião do publico judicial e notas e hum Meirinho para servirem
com os ditos Juizes conciderandosse igualmente que estes Tabeliães se
fazião precizos para poderem sem despesa da Real Fazenda escrever nos
livros da matricula, e encher os bilhetes da capitação e do censu naquelles
Arrayaes com os Intendentes Comissarios, que nelles se nomearão sem
ordenado, propinas, nem ajuda de custo para a cobrança, e arrecadação
dos reaes quintos comutados na refferida capitação e censu […].”30 A in-
vocada participação dos escrivães nas tarefas conducentes à cobrança dos
quintos era naturalmente atrativa para a realeza...

Em Lisboa, o procurador da Coroa, o provedor da Fazenda e o pró-


prio Conselho Ultramarino aceitam esta inovação, embora sempre a con-
siderem ao arrepio dos quadros jurídicos da administração local: foi esse
o seu parecer de 7 de julho de 1739, para o território de Goiás.31 “E dan-
dosse vista ao Provedor da Coroa disse que lhe parecia se devia responder
ao Superintendente que com parecer do Governador continue per ora thé
nova ordem no provimento dos Juizes conhecendo delles por aggravo, e
appelação e dandosse tãobem para a Rellação da Bahia.” Mais: “Ao Con-
celho [Ultramarino] paresse o mesmo que ao Procurador da Coroa para
que V. Mag.de se sirva por ora de aprovar a creação destes Juizes e maes
officiaes novamente creados nestes Arrayaes por se fazerem precizos para
a boa administração da justiça.”32

30 – AHU, – Cons. Ultra. – Brasil/Go – Cx. 1, doc. 23.


31 – AHU, – Cons. Ultra. – Brasil/Go – Cx. 1, doc. 73.
32 – As primeiras criações parece terem sido as de Meia Ponte, Tocantins, Remédios,
Terras Novas e Crixás: AHU, – Con. Ultra. – Brasil/ Go, Cx. 2, doc. 178; na área a Nor-
te de Goiás, hoje Estado do Tocantins, terão sido depois S. Félix, Arraias, Conceição,
Cavalcante, Traíras e Natividade: Notícia geral da capitania de Goiás em 1783, edição
Paulo Bertran, tomo I, p. 99; algumas delimitações seriam do tempo do governador Barão
de Moçamedes (1772-1778): Luís dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII. Bahia:
Editora Itapuã, 1969, vol. III, pp. 866-872.

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

O apego ao formalismo legal nunca fica esquecido pelo Conselho.


E lá vem a afirmação: “Não se ignorou, que esta criação de Juizes, e
officiaes que com elles servissem, he só própria da regalia de V. Mag.de
mas a preciza necessidade de manter os povos em justiça e socego, e a
indigencia de meios para a arrecadação da Real Fazenda, junta à notoria
deficuldade do recurso a V. Mag.de faz parecer conveniente a seu real ser-
viço este procedimento provizional, dependente da sua Real approvação,
interpretada pela urgensia dos insidentes, a que se não podia de outra
maneira dar o remedio prompto que estavão pedindo.” E nem pela ex-
cepcionalidade da criação se podiam deixar de cumprir as formalidades
normais das eleições concelhias – pelo método dos pelouros.

Os ouvidores e superintendentes iriam dando conta do que se passa-


va. Por ordem do Conde de Sarzedas, escreve um deles, “procedi a eleição
nas Minas de S. Feliz descobertas por Carlos Marinho, de dous juizes or-
dinarios, para o resto daquelle anno de 1737. De hum para as povoaçoens
das Terras Novas na Barra da Palma, e Pernatinga, que distão do Arrayal
de S. Feliz quadro dias de viagem; de outros dous nas Minas de Tocantins
e troixe comigo as pautas para por ellas nos dous annos seguintes tirar
as pessoas, que deverão servir de Juizes ordinarios naquellas povoaço-
ens, por não haver arca de concelho em que guardassem os pelouros, e
findo que foi o anno de 1737, em que acabarão de servir os juizes para
elle eleitos, pelas ditas pautas tirei outros para o prezente ano de 1738,
e mandando-lhe expedir cartas de confirmação, tomado o juramento en-
trarão a servir.” E em seguida, e por ordem do governador Gomes Frei-
re de Andrada, o mesmo superintendente Agostinho Pacheco Telles fez
eleger juízes nos arraiais de Meia-Ponte (hoje Pirenópolis), Santa Ana,
Crixás.33 Juízes ordinários, que será de supor também aqui acumulariam
com outras funções, como juízes dos órfãos e mesmo guarda-mores dos
descobertos, como o de Meia Ponte em 1746.34 Juízes que não estavam
isentos de cometer algum crime pelo qual podiam ser condenados como o
do Arraial de Traíra (Niquelândia), em 1748, por tirar um preso das mãos

33 – AHU, – Cons. Ultra. – Brasil/Go – Cx. 1, doc. 60.


34 – AHU, – Con. Ultra. – Brasil/ Go – Cx. 4, doc. 322.

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Joaquim Romero de Magalhães

do meirinho dos dízimos.35 Ou os juízes das Minas da Natividade, que em


1748 fizeram “infinitos opróbrios” a um morador.36 Ou de arranjar confli-
tos com clérigos.37 Nada de inesperado, afinal.

Não se terá porém generalizado este procedimento de eleger juízes


ordinários fora do quadro concelhio – tratou-se de casos extraordinários.38
E em especial ocorreu nos territórios de fronteira, de expansão e povo-
amento ainda instável. Mesmo assim, os julgados serão ainda bastante
numerosos em Goiás – pelo menos cinco em 1742, dez em 1783.39 Porque
apesar da mineração, Vila Boa permanecerá como único município nes-
se sertão. A situação em Goiás ter-se-ia normalizado, sendo dada como
exemplo no Paracatú em 1750: enquanto não fosse criada a vila, “pondo-
lhe Juiz de vara branca” e emquanto assim não fosse determinado que o
monarca “houvesse por bem ordenar que se elejão dous Juizes para cada
anno na forma que se pratica nos Goyaz aonde em todos os Arrayaez ele-
gem os moradores com os Juizes de hû anno seis homens dos mais capa-
zes para Juizes do outro, e indo esta pauta ao ouvidor da Comarca aprova
dous.” Era a aplicação da legislação dos pelouros, como se generalizara a
partir do século XVII: eleição de um restrito grupo de elegíveis ficando o
apuramento e a nomeação anual a cargo da autoridade da comarca.40

Ainda nos territórios do Maranhão e do Pará vamos encontrar vestí-


gios da instituição dos mesmos juízes. Assim na Ribeira da Parnaíba e o
no Gurupá havia necessidade de juízes ordinários sem estarem ainda for-
mados os municípios. Foi esse o pedido do governador da Capitania João
de Abreu Castel-Branco, em 1738. E o mesmo o argumento apresentado,
35 – AHU, – Con. Ultra. – Brasil/ Go – Cx. 5, doc. 391.
36 – AHU, – Con. Ultra. – Brasil/ Go – Cx. 5, doc. 394.
37 – AHU, – Con. Ultra. – Brasil/ Go – Cx. 5, doc. 422.
38 – Em Graça Salgado, coordenadora, Fiscais e Meirinhos. A Administração no Brasil
colonial. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1990, não se dá notícia da
existência destes juízes ordinários.
39 – AHU, – Cons. Ultra. – Brasil/ Go, Cx. 2, doc. 178; Notícia geral da capitania de Goi-
ás em 1783. Edição Paulo Bertran. Goiânia / Brasília: Editora da Universidade Católica de
Goiás – Editora da Universidade Federal de Goiás, 1997, tomo I, p. 99.
40 – Maria Helena da Cruz Coelho e Joaquim Romero Magalhães, O poder concelhio das
origens às Cortes Constituinte. Notas de História Social. 2ª ed. Coimbra: CEFA, 2008,
pp. 45-68.

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

o da grande distância e premência em que se fizesse justiça.41 As mesmas


razões que foram sempre invocadas, e que também levaram a que em 17
de Março de 1739 em São Luís do Maranhão se tivesse criado “hum Juiz
ordinario feito em Pellouros da Camara para o destricto da Parnaiba.” O
que mereceu o parecer favorável do Conselho Ultramarino e a respectiva
autorização régia.42 Embora, porque aí as coisas se tenham complicado,
uma vez que divergiam o governador e o ouvidor-geral, assim como a
Câmara de São Luís. Em causa a criação dos Juízes ordinários em Aldeias
Altas (mais tarde município crismado Caxias) e Mearim (Vitória do Me-
arim) e os limites da jurisdição desses concelhos. E enredou-se uma cria-
ção que parecia dever apressar-se, só se efectivando em 1747.43 Também
no Piauí o mesmo tipo de questões se tornam a levantar quando em 1746
foram criados os lugares de juízes ordinários nas freguezias de Gorgueia
(hoje Colônia do Gorgueia), Catinguinha (depois município de Valença
do Piauí) e Nossa Senhora da Conceição.44 No que pegava também com
problemas de definição territorial da mais recentemente criada capitania
do Piauí. Havia que determinar a partilha de jurisdição entre a Vila da
Parnaíba da da Vila de Icatu e da Cidade de São Luís.45

Estas decisões de haver juízes ordinários sem dependência a um


município sempre foram usadas como expedientes para tentar acalmar
o ambiente de violência que se vivia nas terras mais distantes – e nada
policiadas. Os casos conhecidos mostram sempre tratar-se de soluções
pontuais, nos territórios de fronteira, de expansão ainda incerta. Teriam
sido criados outros, nestas lonjuras onde ainda a rede concelhia não fora
instalada? Interessa saber, para o que há que ir coligindo os casos que fo-
rem sendo averiguados para se avaliar o significado social e político dessa

41 – AHU, – Con. Ultra. – Brasil/Pa – Cx. 22, doc. 2026 e Cx. 25 doc. 2369.
42 – AHU, Cartas régias – Maranhão, Cód. 209, fls. 115 v – 116. Documentos XIII.
43 – AHU, Cartas régias – Maranhão, Cód. 209, fls. 187-188 v; Idem, Cód. 271, fls. 165
v-166. Documento XXIII.
44 – Nesta primeira abordagem N. S. da Conceição ficou por identificar, dado haver várias
freguesias com o mesmo orago. AHU, Cartas régias – Maranhão, Cód. 271, fls. 29 v-30,
94 v-95 e 175 r-v; Idem, Con. Ultra. – Piauí. Cx. 4, doc. 267. Documento XIV a XVI e
XIX-XX.
45 – AHU, Con. Ultra. – Maranhão, Cx. 29, doc. 2978. Documento XVII.

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Joaquim Romero de Magalhães

figura jurídica do Juiz ordinário no todo brasileiro. Os “Juízes Ordiná-


rios” vistos um pouco como Juízes de Vintenas, serviam transitoriamente,
dependendo a sua criação da só autoridade real.46 E casuisticamente se
acolhia essa solução. Não se publicou diploma – ou sequer carta régia ou
provisão, alvará ou outro instrumento legal – sobre a matéria. Sequer há
sinal de se ter aventado essa possibilidade. Caso a caso o governador ou o
ouvidor-geral pediam ao rei autorização para a excepção, para a situação
em que parecia conveniente aplicar a criação – e é sempre “criação” o
que se refere. Que seria concedida pelo monarca sempre que em Lisboa
o Conselho Ultramarino, o Provedor da Fazenda e o Procurador da Coroa
acolhessem a proposta.

A instituição esboçada não teve condições para muito alargar o espa-


ço que cobria, ficando sempre limitada e sendo sempre aplicada quando
se tratava de resolver dificuldades muito precisas e devidamente sancio-
nadas pelo soberano. Afinal, “na forma da ley” como chega a ser tabe-
lionicamente invocado, foi sempre e tão só um expediente como que le-
galizado. Provinha da vontade do soberano expresso em letra de forma,
intermediado como devia pelos pareceres dos Procuradores da Coroa e
provedor da Fazenda e do Conselho Ultramarino, mas não tinha suporte
em texto legal. Todo este percurso era considerado indispensável “em
materia tão ponderável como he crear jurisdições novas.”47 Embora a
invocação do estatuto do juiz da vintena fosse comum. Considerava-se
porém relativamente à velha instituição uma como que melhor posição
nos poderes locais porque atribuía aos juízes pedâneos “o conhecimento
de cauzas e crimes.”48

Porque o único suporte que para a instituição se podia invocar seria


mesmo a dos juízes de vintena, que já estava em bom cumprimento e se
deverá ter generalizado no espaço brasileiro. Para que por vezes as câma-
ras, como a de Sabará em 1754 pretende reforço de poderes: querem que
46 –�������������������������������������������������������������������������������������
José António Caldas, “Noticia geral de toda esta capitania da Bahia desde o seu des-
cobrimento até o prezente anno de 1759”, in Revista do Instituto Geographico e Histórico
da Bahia, nº 57. Salvador: 1931, p. 116.
47 – AHU, – Con. Ultra. – Brasil/Pi – Cx. 1, doc. 60.
48 – Ibidem, Cx. 1, doc. 65.

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

o rei seja “servido ordenar que em cada Arrayal do termo daquella Villa
em distancia de trinta até quarenta legoas haja vintenarios e Escrivão com
poder de fazer escrituras e Inventarios, tomando por avaliadores os ho-
mens bons do lugar, remetendo-os logo para a villa, e que os mesmos
vintenarios fação por mandados, não só as deligencias dos Juizos, mas tão
bem as da Fazenda Real.” A este pedido o rei, ouvido o governador, não
pode senão responder em 1754 “que eles devem observar a Ordenação.”
Assim, e “na forma della fazerem Juizes e Escrivães nos Arrayaes aonde
houver mais de vinte moradores, e como na mesma lei se acha dada a pro-
videncia da jurisdição, e exercicio que devem ter estes officiaes, se não
necessita de outra despozição, tendo elles officiaes da Camara entendido
que estes officiaes das vintenas devem fazer as deligencias que os Juizes
ordinarios, e os Ouvidores e officiaes das Câmaras seus superiores lhes
ordenarem por mandados que lhes passarem.” Quanto ao reforço de po-
deres em termos de fazenda, outra legislação fora já publicada, e devia ser
acatada. Em 1781, e para se evitarem despesas inúteis nas Minas Gerais a
Rainha determina que se cometessem certas diligências aos “vintanarios
que há por todos os Arrayaes.” Pelos juízes das vintenas passavam as ci-
tações poupando-se na deslocação de oficiais dos concelhos.49

Um processo subsistiu de Minas Gerais que permite acompanhar o


procedimento burocrático. Em 1754 o ouvidor-geral da comarca do Rio
das Mortes Francisco José Pinto de Mendonça dá conta ao soberano do
que fizera: “Pella grande necessidade que me reprezentavão havia de ha-
ver pessoa nas Minas de Itajubá que admenistrasse justiça aos seos habi-
tantes em razão de não poder administrarsselhe das villas desta Comarca
pella grande distancia com que se achão aquellas Minas; com permissão
do Governador desta Cappitania me rezolvi a pôr lá hum juiz ordinario, e
hum escrivão interinamente emquanto V. Mag.de não rezolvia, se asim o
havia por bem, e ainda que reconheço o não podia fazer sem ordem de V.
Mag.de, a necessidade que se me reprezentava, e a deficuldade do recurço
me obrigou a darlhe providencia antes da rezolução de V. Mag.de em cuja
presença ponho o que obrey, e a grande necessidade que a isso me mo-

49 – AHU, Cartas régias, Minas Gerais, Cód. 242, fl. 187.

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veo para que me determine se devo conservar o dito Juiz, e seo escrivão,
ou suspendello.” Lisboa vai responder pedindo o parecer do governador
Gomes Freire de Andrada e da câmara de São João d’El-Rei, em cujo ter-
ritório se incluíam as Minas de Itajubá. Recebidos estes pareceres – e o do
governador comenta e rebate o da câmara – são ainda ouvidos o Provedor
da Fazenda Real e o procurador da Coroa em Lisboa. Só então, e haven-
do reunido pareceres favoráveis à decisão do ouvidor-geral, o Conselho
Ultramarino se pronuncia e aprova a criação do juiz ordinário nas Minas
de Itajubá. Já se estava em 1758 quando o rei apõe o seu “Como parece”
ao processo. Tinha sido o largo período de quatro anos à espera da deci-
são final.50 Por esses anos também acrescida atenção se presta em que os
vintenarios não faltem nas distâncias entre eles de 30 a 40 léguas – não
é de excluir que alguma indistinção se fizesse com os Juízes ordinários.51

Mais tardia é a criação do juiz ordinário no Sertão do Rio de S. Fran-


cisco e Rio Verde, que “distavão mais de secenta, e setenta legoas, e por
outras mais de oitenta, tudo povoado com fazendas de gados, brejos, e
engenhos, em que há infinitos moradores, cazaes de familiares, havendo
somente em tão larga distancia hû Arrayal, que chamão a Barra do Rio
das Velhas.” Aí vai ser então criado em 1761 mais um julgado pelo ouvi-
dor do Serro do Frio, consultado o governador da Capitania, e merecendo
aprovação pelas autoridades centrais. Sempre o mesmo percurso.52

Medida casuística, nunca deixou de ser, na linguagem do Conse-


lho Ultramarino “procedimento provizional, dependente da sua Real ap-
provação, interpretada pela urgensia dos insidentes, a que se não podia
de outra maneira dar o remedio prompto que estavão pedindo.” Como
o Marquês de Penalva, presidente do Conselho Ultramarino, destacou
em 1758, “o Ouvidor não podia fazer a creação nem ainda com permi-
ção do Governador, por lhe parecer muito perjudicial ao Real serviço de
V. Mag.de e ao bem de seos vaçallos que os governadores e ouvidores
50 – AHU, Con. Ultra. – Brasil / MG, Cx. 71, doc. 74; Idem, Cartas régias – Minas Gerais,
Cód. 242, fls. 47 e 63 r-v. Documento XXVII e XXVIII.
51 – AHU, Cartas régias, Minas Gerais, Cód. 242, fl. 25. Documento XXV.
52 – AHU, Cartas régias, Minas Gerais, Cód. 242, fls. 86 r-87; Ibidem, Cód. 244, fls. 189-
192 v. Documento XXIX e XXX.

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

arroguem a si os poderes que somente são rezervados à real Pessoa de


V. Mag.de..” Poderes reservados. Assim era, porque embora sem o dizer
“dispensava na aplicação da lei” ao criar uma figura nova. Que era in-
dispensável, mas sobre que o Conselho Ultramarino nunca se propos le-
gislar, talvez porque as soluções transitórias iam servindo enquanto não
se criavam vilas nas novas povoações. E para as vilas as Ordenações do
Reino eram consideradas ainda em bom uso.

Sempre nas consultas do Conselho Ultramarino e no despacho final


se insiste em que se cumpra a legislação dos pelouros. Porque seria tenta-
dor para os magistrados, em especial para os ouvidores-gerais, proceder
a nomeações arbitrárias, como aquela de que se queixam os moradores
de Paracatu em 1750, “pois que os ouvidores de Sabará os nomeão [aos
juízes ordinários] como lhes parece sem proceder a eleição para poderem
ter jurisdição ordinaria, como o ouvidor actual o fizera nomeando a hû
seu sobrinho por Juiz com outros empregos.”53

Era o que se devia evitar, para que se mantivesse a credibilidade da


criação. Que era a de juízes de vintenas reforçados com uma designação
que os aproximava dos juízes ordinários dos concelhos. Se não havia uma
melhoria considerável pelo que tocava ao estatuto jurídico, decerto que a
designação deveria ser relevante pelo que acrescentava ao estatuto social.
E um não ia sem o outro, que a convergência dos dois era determinante
no domínio das honras que muito contava.

Documento I
Para o Governador e Cappitam General do Estado do Brasil

Dom João de Lancastro Amigo. Havendo mandado ver o que se me


reprezentou em hûa consulta da Junta dos Missões sobre o remedio
temporal que se deve dar no certão dos Rodellas, e suas povoaçoens
para se evitarem os repetidos crimes, e atrozes cazos que aly sucedem
que ordinariamente ficão impunidos asim por se não ter noticia del-
les pella distancia em que são cometidos, como por não haver modo
de justiça naquellas partes, Me pareceo que sendo estes destritos da
53 – AHU, Cartas régias – Minas Gerais, Cód. 241, fls. 342 v. Documento XXIV.

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Joaquim Romero de Magalhães

jurisdição desse governo da Bahia ordeneis que de sinco em sinco le-


goas haja hum juiz ordinario com a jurisdição de tirar devassas tomar
denunciações e querellas nos delictos que aly se fizerem, e remetellas
por treslados ao ouvidor da comarca dessa cidade para se proceder
nesta materia como for justiça. Escrita em lix.a a 16 de Fevereiro de
1698. Rey

(à esquerda)

Remedio temporal que se deve dar no Certão dos Rodellas pellos res-
pectivos crimes e atrozes cazos que sucedem, e ordenar que de 5 em 5
legoas haja hum Juiz ordinario.

AHU, Conselho Ultramarino, Cartas régias – Bahia, Cód. 246, fl. 63


r-v

Documento II
Para o Governador Cappitam General da Bahia

(à margem: Criação de Juizes ordinarios no Certão dos Rodellas)

Dom João de Lancastre Amigo. Viosse a vossa carta de 12 de Junho


deste anno em que reprezentaes a deficuldade que se vos offerece a
creação que se ordenou fizesseis de Juizes ordinarios no destricto do
certão dos Rodellas de sinco em sinco legoas, por não haver nelles ho-
mens que saybão ler nem escrever E pareceume dizervos deveis fazer
a delligencia que se vos tem mandado, recomendando aos ouvidores
geraes que nas suas comarcas fação todo o possivel porque se criem
estes juizes que ainda que não saybão ler basta que o seu escrivão
o saiba, e mostrando o tempo esta impossibilidade que apontais se
poderá então tomar a rezolução que parecer conveniente. Escritta em
Lisboa a 10 de Novembro de 1698 // Rey

AHU, Conselho Ultramarino, Cartas régias – Bahia, Cód. 246, fl. 73


v

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

Documento III
Copia da Carta de S. Mag.de que Deus guarde sobre se criarem Capita-
ens mores, e mais cabos de milícia para as freguezias do certão.

Dom João de Lancastro, Amigo. Eu ElRey vos emvio muito saudar,


mandando ver hum papel que aqui me aprezentou pessoa muito inte-
ligente, e de comûa opinião de bem procedido, e zeloso do serviço de
Deus nosso senhor, e do meu, sobre os damnos espirituaes e temporaes
que se experimentão nesse Estado por falta das Missoens, e de quem
administre Justiça, aos que vivem nos dillatados certoens delle em
sua liberdade, fazendo tão exurbitantes excessos que obrigão aos que
Amão a quietação e retiraremsse, ficando as terras só povoadas dos
malfeitores. Fuy servido rezolver que em cada Freguezia das que te-
nho mandado formar pelos ditos certoens, haja hum Juiz a semelhança
dos Juizes da vintena que há neste Reyno, o qual será dos mais pode-
rozos da terra. E para que este viva seguro fazendo o seu officio. Hey
por bem se criem em cada hûa das taes Freguezias hum capitão mor,
e mais cabos de milicia, e que nestes postos se nomeem aquellas pes-
soas que forem mais poderozas, os quaes serão obrigados a socorrer,
e ajudar aos Juizes, dandolhe toda ajuda, e favor para as deligencias
da justiça e cominandolhes pennas, se faltarem a sua obrigação, e que
os que rezistirem aos taes Juizes, sejão castigados, como se o fizerão
aos Juizes de fora, e se lhes soquestrem seus bens athe sentença final,
e que se faça execução por elles no que tocar, as pennas pecuniárias
que serão mayores por se não poderem executar as corporaes, e os que
recolherem os delinquentes serão castigados na forma do direyto dos
que auxilião ex post facto, e os corregedores, e ouvidores das Comar-
cas serão obrigados hûa vez em seu Trienio vizitar estes moradores
fazendo correyção como nas mais em que a faz todos os annos. De
que vos avizo para que nesta conformidade ponhaes em execução o
que sobre este particullar tenho rezoluto; e por esta vos ordeno me
deis conta de tudo o que se for obrando. Escrita em Lisboa a vinte de
Janeyro de mil seiscentos noventa e nove. /Rey/ Para o governador do
Estado do Brazil, Cumprasse como ElRey meu Senhor manda, e regis-
tasse nos livros da Secretaria do Estado, e fazenda Real delle. Bahia, e
Julho seis de mil setecentos e dezoito / Marquês de Angeja/

Gonçalo Ravasco Cavalcanty e Albuquerque

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Joaquim Romero de Magalhães

(à margem: A falta das missões e de quem admenistre justiça)

(à margem: Conselho. Nesta forma escreveo ao Governador de Per-


nambuco)

AHU, Conselho Ultramarino, Cartas régias – Bahia, Cód. 246, fl. 88


v; AHU, — Con. Ultra. – Brasil/ Ba — Cx. 3 doc. 277

Documento IV
Para o Governador Geral do Brasil

(à margem: Haver nas Aldeas que se mandarão formar pellos certões


hum juiz e hum Capitão mor.)

Dom Joam de Lancastro Amigo (Etc.): Mandando ver o que escre-


vestes sobre a rezolução que fui servido tomar para effeito de haver
em cada Freguesia das que mandei formar pellos certões desse estado
hum Juiz a semelhança dos Juizes da vintena, e hum capitão mor com
seus cabos para socorrerem, e ajudarem aos ditos Juizes nas delligen-
cias da Justiça Me pareceodizervos, executeis o que neste particular
se vos tem ordenado pois nelle se deo toda aquella providencia que se
entendeo ser necessaria para se evitarem os repetidos insultos, e mor-
tes que custumavão haver no certão por falta de quem o averiguace, e
procedede com aquella Justiça que era necessaria, o que se conhece se
evitará muy facilmente com a creação dos Juízes da vintena, e capitães
mores em cada freguesia dos certoes, e porque o caso que se refere na
Carta que vos escreveo Francisco Pereira de Lima, cuja copia envias-
tes, se faz digno de hum exemplar castigo pois se faltou com o respei-
to e veneração devido a justiça passando ao excesso de descomporem,
e atiraremn a hum Juiz. Me pareceo ordenarvos mandeis ao ouvidor
da comarca passe ao Piahui Freguesia de Nossa Senhora da Victoria
com a gente que for conveniente o acompanhe a esta deligencia, e tire
devaça deste ecesso, e proceda contra os culpados, segundo a despo-
sição da ley, e que merece a gravidade do seu delicto: e para milhor
administração da Justiça sendo necessario algua infantaria paga para
milhor direcção das deligencias que se emcarregão aos capitães mores
das taes Freguezias. Me pareceo avizarvos lha deis, como tambem
os administradores das Aldeas todos os Indios que forem necessarios

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

para ellas para que por este caminho se possa milhor obrar o meu
serviço na execução dellas . Escritta em Lisboa aos 11 de Fevereiro
de 1700 // Rey

AHU, Conselho Ultramarino, Cartas régias – Bahia, Cód. 246, fl. 111

Documento V
Para o Governador Geral do Brasil

(à margem: Sobre se dar a infantaria que for necessaria ao Bacharel


Diogo Pacheco de Carvalho)

Dom Joam de Lancastro Amigo. Etc. Por ter rezoluto que o Bacharel
Diogo Pacheco de Carvalho passe ao Rio Grande do Sul cituado no
Certão dos Rodellas, a devaçar do escandalozo sucesso que padeceo
o Juiz ordinario daquella villa. Me pareceo ordenarvos lhe deis toda
a gente, e infantaria que lhe for necessaria declarandolhe que hão de
estar a ordem deste Ministro para executar em tudo o que elle lhes
mandar, e poder povoar com toda a segurança no dito certão certão
dos Rodellas, sem temor da oppozição, que lhe possão fazer os dellin-
quentes, e tirar devaça deste sucesso, pernunciando, e prendendo aos
culpados, e tirada a dita devaça voltar para essa cidade, e com os cul-
pados que puder prender para serem sentençeados nessa Rellação,
como por Justiça, para que sirva a esta demonstração de exemplo para
refrear aos mais a que vendo imitem, em tão abominaveis, e horriveis
procedimentos digno este por tantas rezões de hum exemplar castigo.
Escrita em Lisboa a 3 de Março de 1701 // Rey

AHU, Conselho Ultramarino, Cartas régias – Bahia, Cód. 246, fl.


125

Documento VI
Para os officiaes da Câmara da Cachoeira

(à margem: sobre os Juizes da vintena)

Os Officiaes da Camara da Cachoeira etc. Viosse o que escrevestes em

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Joaquim Romero de Magalhães

Carta de 13 de Agosto do anno passado, sobre o que se vos ordenou


por outra de 20 de Dezembro de 1700 aserca de não haver mais que
dous officeaes em cada Freguezia com a jurisdição que tem os Juizes
da vintena e sem embargo das vossas rezões vos ordeno observeis
neste particular o que tenho ordenado, sem alteração algûa. Escrita em
Lix.a a 23 de Janeiro de 1702.

AHU, Conselho Ultramarino, Cartas régias – Bahia, Cód. 246, fl.


147

Documento VII
Senhor

O Ouvidor Geral da Capitania do Piauhy Antonio Marquez Cardozo


em carta de 29 de Junho do anno de 1727 dá conta a V. Mag.de de que
já no mesmo anno reprezentára a V. Mag.de que pelos officiaes da Ca-
mera da Villa da Moucha da dita Capitania se elegerão dous Juizes,
hum para o Riacho do Parnaguá, vindo à freguesia de Nossa Senhora
da Victoria da mesma Villa em o anno e mil settecentos e dous (sic)
e outro para a Villa da Parnahiba, e freguezia de Nossa Senhora do
Carmo de Piracurucá, pelas cauzas que na mesma conta expos; E que
a estes Juizes se deu posse na Camara da ditta Villa; Ao do riacho do
Parnaguá em o mez de Mayo, e ao da Parnaiba em o mez de Junho de
1727, cujos cargos evitarão sem contradição algûa dos moradores por
se lhes insinuar o quanto se carecia de Justiça em seu provimento nas
ditas povoações. E que para se poder logo mostrar que os ditos Juizes
se ellegerão para bem, e conservação do ditos moradores lhe fizera em
nome de V. Mag.de o regimento que remeteu tirado do Cap. 3º e 8º dos
Ouvidores do Maranhão, de que se lhe mandou uzar com o mais que
do dito regimento consta, mas não permitindo aos ditos Juizes alçada
nos cazos crimes na forma do dito capitulo 8º para se não dar occazião
a excederem o que conthem, ou uzarem sem termo das penas de que
nelle se fas menção, e consta da certidão que enviou. Que estes Jui-
zes na forma em que se crearão, lhe parecia se devião conservar para
quietação dos moradores das ditas povoações aonde, tendo o recurso
da Justiça para as suas cauzas, se evitavão […] respeito os delictos,
que se podião cometer, […] mais que se cometião por outros respeitos
sem grande cauza em distancia de mais de cem legoas daquella Villa

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

aonde não chegavão á noticia senão passados muitos mezes, tendo


os criminozos tempo para se auzentarem sem molestia algûa, o que
cauzava grande escandalo. E que tambem para servirem com os ditos
Juizes passara provimento a dous Tabaliães do Judicial, e Notas, que
se crearão para esse efeito; e ao Juiz do Parnaguá o provimento de
Provedor dos defuntos, e auzentes para naquella povoação não haver
falta na arrecadação de seus bês; tendo também feito outro Provedor
para a freguezia de Santo Antonio do Sorobim e de Nossa Senhora do
Carmo de Piracuruca para o mesmo efeito; creando juntamente outro
Tabalião para lhe escrever nos Inventários, e fazer os testamentos; e o
mais, que respeitasse ao seu officio aos moradores da dita Freguezia
de S. Antonio distante daquella Villa dés dias de jornada; e que assim
á vista do que tinha obrado, por lhe parecer conveniente aos morado-
res das ditas povoações mandaria V. Mag.de o que fosse servido.

Apresentou os documentos de que faz menção.

E dandose vista ao Procurador da Coroa, respondeu que se podia


aprovar tudo o que refere este Ouvidor tem obrado; e só se lhe deve
ordenar notifique aos providos nestes officios, que para continuarem
hande requerer provizão deste Concelho Ultramarino; e do officio de
Provedor dos defuntos, e auzentes na Meza da Consciência, e o seu
escrivão, e Thezoureiro.

Parece ao Concelho o mesmo, que ao Procurador da Coroa, e que será


muy conveniente, que V. Mag.de se sirva aprovar este regimento pois
as distancias que se achão estas terras necessitão muito desta provi-
dencia. Lisboa occidental quinze de Julho de mil settecentos e trinta.

Jozeph Carvalho de Abreu Manuel Fernandez Varges

Gonçalo Manuel Galvão de la Cerda Alexandre Metello de Souza


Menezes

Antonio Gameyro da Cruz escrivão da Ouvidoria geral nesta Villa da


Moucha certifico que o doutor Antonio Marques Cardozo Ouvidor ge-
ral desta Cappitania de Piauhy me deu hum Regimento dos Juizes das
povoações de Parnaguá e Parnahiba da Freguezia de Nossa Senhora
do Carmo para lhe passar por certidam cujo theor há o seguinte//

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Joaquim Romero de Magalhães

Os Juizes das Povoações do Parnagoá, e Parnahiba da freguezia de


Nossa Senhora do Carmo observaram na forma do Capitulo terceyro,
e oittavo do Regimento que me foi concedido em quanto Sua Mag.de
que Deos guarde não mandar o contrario, o seguinte.

Tomarão conhecimento os juizes das ditas povoações de quaisquer


cauzas civeis que perante elles se tractarem das quais daram appella-
ção e aggravo para o juizo desta ouvidoria geral da Villa da Mocha
passando a quantia de vinte mil reis, ou sua valia, e athé a dita quantia
teram alçada os ditos juizes na forma do capitulo terceyro do dito
Regimento.

Tomarão outrossi conhecimento dos cazos crimes que nam forem de


morte e de todos daram appellação e aggravo para este juizo da Ouvi-
doria geral querendo as partes appellar, ou aggravar e nam querendo
appellarão os ditos juizes por parte da Justiça nos cazos em que na
forma da ley se deve appellar.

Tirarão os ditos juizes na forma da ley as devassas de todos os cazos


que acontecerem nas povoações digo nas ditas povoações as quais
pronunciarão precedendo a prizam contra os culpados que a custa de
seus bens remeterão para a cadea desta villa aonde poderam de seus
livramentos tractar, avocando as culpas para o juizo desta Ouvidoria
geral. Porem nos cazos de morte poderão os ditos Juizes logo prender
as pessoas que se disser fizerão as ditas mortes, e na mesma forma
e nam na forma nos delictos cometidos que pella ley mereção morte
natural antes de pronunciarem os culpados a prizão que remeterão se-
guros a cadea desta Villa. E das ditas devassas remeteram as proprias
a este juizo da Ouvidoria geral para se pronunciarem por mim ou por
quem o mesmo cargo servir ficando sempre em poder do Escrivão os
treslados das devassas.

Nam levarão os ditos juizes asignatura alguma de sentença ou man-


dado que asignarem, por se lhes não ser asim permetido pella ley e
somente poderão levar de cada dia que fora do destricto em que as-
sistirem forem fazer alguma deligencia per razam do seu officio, dez
tostões na forma em que se determina no Regimento dos officiais de
justiça desta Cappitania.

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

Os ditos juizes farão nas ditas povoações inventários de todas as pes-


soas que falecerem que tenhão filhos menores de vinte e cinco annos,
ficando nesta forma servindo tambem de juizes dos orphãos das mes-
mas povoações no que guardarão o seu Regimento e o contheudo na
forma da ley e o dito Cappitulo terceyro do Regimento, se observará
por ser util proveremse as ditas povoações com justiça emquanto Sua
Magestade que Deus guarde nam mandar o contrario no dia de Junho
o primeyro de mil setecentos e vinte e sete // Antonio Marques Car-
dozo//

Treslado do Cappitullo 3º de que atras se faz menção

Conhecereis das appellações e aggravos das cauzas civeis dos feitos


que se tractarem perante os cappitães e seus ouvidores asim da Ca-
ppitania em que estiverdes como de todas as outras Cappitanias das
outras partes que forem sobre quantia que passe de vinte mil reis, e sua
valia, porque da dita quantia somente Hey por bem que os ditos cappi-
tães e seus ouvidores tenhão alçada nas ditas cauzas civeis emquanto
asy fordes ouvidor geral das ditas partes, posto que por suas doações
lhe tinha concedido alçada athé cem mil reis, sem appellação, ou ag-
gravo, tereis a mesmo alçada de cem mil reis que asima hé declarado
que tinhais nas cauzas que conhecerdes per acção nova.

Treslado do Cappitullo 8º de que tambem se faz menção

Emquanto ahy fordes Ouvidor geral das ditas partes Hey por bem que
os Cappitães e Ouvidores das ditas Cappitanias em que vos não es-
tiverdes tenham somente alçada nos feitos crimes em que a alguns
escravos ou gentios forem acuzados de cazos em que por direito, e
minhas Ordenações hé posto penna de asoutes, ou cortamento de ore-
lhas, e assim nos cazos em que piães e christãos livres pello mesmo
modo hé posto pena de asoutes, ou degredo athé tres annos, e nos
cazos de pessoas de mais qualidade terão somente alçada athé hû anno
de degredo para fora da Cappitania, e nas pennas pecuniárias athé
vinte cruzados.

E nam se continha mais em o dito Regimento dos ditos juizes, e cap-


pitulos que eu sobredito escrivão bem e fielmente tresladey do proprio
a que me reporto que entreguey ao dito doutor ouvidor geral em fé de

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Joaquim Romero de Magalhães

que passei a prezente certidão nesta villa da Moucha aos vinte e sete
dias do mes de Junho de mil e setecentos e vinte e sette annos

António Gameyro da Cruz

AHU, Con. Ultra. — Brasil – Piauí, Cx. 1, doc. 59

Documento VIII
Como parece ao Conselho Lx.ª occidental 16 de Agosto de 1730

Senhor

O Ouvidor geral da Capitania do Piauhy António Marques Cardozo em


carta de 2 de Janeiro de 1727 deu conta a V. Mag.de por este Concelho
em como por hûa provizão de 13 de Março de 1702 de que remetia a
copia que com esta se envia ás reais mãos de V. Mag.de; constava haver
V. Mag.de rezoluto pertencerem os dizimos de Pernaguá á Freguezia
de N. Sra. da Victoria daquella Capitania do Piauhy, e mandarlhe com
o Provedor da fazenda real da Villa da Moxa dar á execução o que na
dita provizão se reprezentou por parte dos contratadores dos dizimos
da dita Capitania fazendolhes cobrar os dizimos do Riacho do Perna-
guá na forma em que na dita provizão se mandão, na consideração de
não haver duvida, que sendo Provedor da fazenda real da dita Villa da
Moxa do Piauhy da freguezia de N. Sra. da Victoria, tinha jurisdição
no dito Riacho de Pernaguá, que a dita Freguezia se achava unido, a
qual jurisdição, como Ouvidor geral devia tambem exercitar no mes-
mo Pernaguá; e nesta forma as justiças ordinarias da mesma villa da
Moxa pela dita rezolução, em que o refferido se determinou, succedeu
que no anno de 1724, em que tomara posse no dito lugar de Ouvidor
geral, creado de novo, fora hum dos juizes daquella Villla, e Freguezia
de N. Sra. da Victoria tirar varias devaças ao dito Riacho de Pernaguá,
unido á jurisdição daquella Villa do que tendo noticia o Juiz Ordinario
da Barra do Rio Grande do Sul fizera prezente a elle Ouvidor, que
não pertencia á jurisdição daquella Villa e capitania o dito Riacho do
Pernaguá, por se acharem de posse dos Juizes seus anteccessores em
administrarem justiça no mesmo Riacho: ao que respondera o dito
Menistro, que V. Mag.de na dita provizão declarára pertencer o dito
Riacho de Pernaguá a Freguezia de N. Sra. da Victoria daquella Villa

574 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

da Moxa; tanto assim que a esse Menistro, como Provedor da fazenda


real da dita Villa se cometera a execução da dita Provizão, por ser da
mesma jurisdição do dito Riacho de Pernaguá, em que como Ouvidor
geral devia entrar em correyção e administrar justiça, como o fazia a
mesma Villa; e que na mesma forma o devião fazer os Juizes da dita
Villa no mais que lhes pertencesse, como se praticava no destricto da
Capitania: em cujos termos se devia attender à posse que allegava,
por ter V. Mag.de determinado o contrario na dita Provizão que se de-
via guardar sem duvida algûa; e tendo o Vice-Rey do Estado passado
provimento ao dito Juiz do Rio Grande, lhe fizera o dito Menistro
puzesse o seu avizo remetendolhe o traslado da dito provizão, em vir-
tude da qual escrevera o mesmo Vice-Rey ao Juiz se não intrometesse
na jurisdição do Pernaguá, que pertencia só áquella Capitania, e não
a outra, o que se ficou observando sem mais controversia algûa. E
ponderando o mesmo Menistro que para se administrar justiça no dito
Riacho de Pernaguá pelos Menistros, e Juizes daquella Villa da Moxa,
se não podia fazer em termos sem grande opressão das partes, por ficar
o dito Riacho para a parte do Sul, distante da dita Villa mais de cem
legoas, fizera com a Camera se ellegesse hum Juiz para o dito Riacho,
por ser povoação que constava de muitos vezinhos, os quaes por não
irem áquella Villa, deixavão muitas vezes perder as suas cauzas; e
quando lhes era precizo tratar de algûas, tinhão grande discomodo na
assistencia da dita Villa, aonde tambem lhes custava muito conduzi-
rem testemunhas, e na mesma forma ficava deficil ás justiças trazelas
á mesmaVilla para as devaças em que muitas se devião tirar, que o
tempo das diligencias que no dito Riacho se fazião, não se achavão
na terra; e que fazendose a mesma ponderação a respeito da distancia,
que daquella Villa se fazia á da Parnahiba de cento e dez legoas, para
a parte do Norte, se elegêra outro juiz para a dita Villa e Freguezia
de N. Sr.a do Carmo de Piracuruca, ao que se não pusera duvida al-
gûa, nem elle Menistro entende a haverá em aceitarem os Juizes que
se ellegerão porque elle disporia este particular com os termos que a
experiencia lhe tem mostrado, e se requerem naquelles certões, sem
embargo da negação, que considerava ainda a justiça, e em tal for-
ma que não haja pessoa que o encontre; e que determinando ja em o
anno de 1724 em que fora a huma diligencia á dita Villa da Parnahiba
para nella assistir, de que dera conta no anno de 1725 por Pernambu-
co, fazendo prezente será assy precizo, e antes que fosse para aquelle
certão o tinha já reprezentado pela informação que alcançara neste

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 575


Joaquim Romero de Magalhães

Reyno daquella Capitania, apontando tambem varios particulares, que


lhe parecêrão convenientes, se praticassem naquelle lugar, de que não
tinha lembrança, e assim só reprezentava se attendesse com o melhor
parecer, ao que desse conta com a experiencia, que hoje tinha. E que a
esses Juizes se deve dar Regimento na forma do Cap. 3º e 8º do Regi-
mento dos Ouvidores do Maranhão de que se mandára uzar naquelle
lugar, permitindolhes das cauzas civeis a alçada que se concedeo aos
Ouvidores das Capitanias anexas, de que trata o dito Cap.º e das cau-
zas crimes, de que trata o Cap.º 8º do mesmo Regimento; somente
tornarem conhecimento quartandolhes a alçada, dando apellação, e
agravo para o Juizo daquella Ouvidoria em quaesquer cazo por lhe pa-
recer assim acertado, e que não só se conservem estes Juizes na forma
referida; mas que também se criem outros com o mesmo predicamen-
to na freguezia de S. Antonio do Sorovim distante daquella Villa dez
dias de viagem; e na freguezia de S. Antonio de Puruguca (sic) para
se evitarem os escandalozos delictos que por falta de Justiça se fazem
naquellas partes, porque quando delles chega a noticia áquella Villa,
já os criminozos tem tido tempo para se poderem auzentar com todo
o socego, o que he ocazião de não cessarem os absurdos gravíssimos
que ainda sucedem sem temor da Justiça; e que na passagê do Rio da
Parnahiba, que faz caminho para o Maranhão, se carece de vara de
Justiça com jurisdição especial para devaçar dos crimes que acontece-
rem, sendo dessa qualidade e de receberem querellas, para se evitarem
algûas dezordês, que podem suceder com o concurso de homês de
negocio que de prezente o vão fazer ao Maranhão, aonde conduzem
os panos de algodão com que tratão naquelle certão e fora delle the
dentro das Minas.

E dandose vista ao Procurador da fazenda respondeu que lhe parecia


bem o que o Ouvidor tem disposto sobre a administração da Justiça; e
que se lhe deve aprovar a creação que fez de Juizes, facultandoselhe
os ponha em as mais terras, em que se verificao a mesma necessidade;
havendoselhe por bom o Regimento que lhes deu na conformidade do
que no seu se dispõem.

E dandose tambem vista ao Procurador da Coroa, respondeu que lhe


parecia o mesmo que ao Procurador da Fazenda, e se devia repetir esta
ordem ao outro Ouvidor.

576 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

Parece ao Concelho fazer prezente a V. Mag.de a carta do Ouvidor


geral da Capitania do Piauhy; e suposto o que este Menistro informa
da necessidade que há da confirmação destes Juizes, para com elles se
poderem evitar os crimes, que comummente sucedem nestes dilatados
certões, e a larga demora que há de haver em se mandar buscar esta
informação, se conforma este Concelho com o que respondem os Pro-
curadores da Coroa, e fazenda.

Ao Concelheiro Alexandre Metello de Souza e Menezes parece que


V. Mag.de mande a Duarte Sodre Pereira Governador de Pernambuco,
que tome neste particular hûa exacta informação, e com ella interpo-
nha o seu parecer; porque esse Governador mostra ter boa idéa para
o governo politico, E está em parte que póde tomar as informações
necessarias, e não parece dezacertada esta informação em hûa materia
tão ponderavel, como he crear jurisdições novas; nem com esta deli-
gencia se dá detrimento algum, pois por hora se não reprova o que tem
feito o Ouvidor, e somente se demora a confirmação de V. Mag.de para
o tempo em que estiver mais certificado destes particulares. Lisboa
occidental em vinte e quatro de Julho de mil, settecentos e trinta.

Jozeph de Carvalho Abreu

Joaquim ???

Manoel Fernandez Varges

Alexandre Metello de Souza e Menezes

AHU, Con. Ultra. — Brasil – Piauí, Cx. 1, doc. 60

Documento IX
Haja vista o Procurador da Coroa Lx.a occidental 22 de Novembro de
1731

Deve juntar a conta que deo o Ouvidor do Piauhy sobre a creação


destes juizes com jurisdição ordinaria porque poderá estar aprovada
por S. Mag.de

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 577


Joaquim Romero de Magalhães

Vay incluzas (escrita elegível ass. Manoel Caetano Lopes de


Lavre)

Os Juizes que forão creados pelo antecessor deste Menistro e S. Mag.


de
approvou tem jurisdição ordinaria para o conhecimento das cauzas
civeis e crimes, e assim obrou muito mal este Ouvidor em mandar hir
para o destricto que aponta hû dos Juizes que deve rezidir na villa. E
sendo neste para a boa administração da Justiça crearemse mais Juizes
dê disso conta apontando os lugares em que são necessarios.

Senhor

Asim que tomey posse deste lugar dey conta a V. Mag.de do que nel-
le achey, e agora o fasso prezenciando, e o como o meu Antecessor
meteu justissas em os ramos desta Capitania por serem algûs em dis-
tancias de cento e sincoenta legoas deu aos Juizes pedanos (sic) o
titollo de Juizes ordinarios com o conhecimento de cauzas e crimes, e
porque me pareceu este procedimento incurial mandey, que hum dos
Juizes assistisse no meyo, digo que hum dos Juizes ordinarios desta
villa asistisse o meyo de hum dos ramos, e que nelle diferisse a todas
as cauzas, e somente deyxey ficar no Parnaguá o mesmo Juiz pedano
(sic) com a jurisdição que exercia em rezão de ser grande o povo e
differente Capitania a que se lhe agregou de novo a Povoação de Ter-
ras Novas junto aos Tocantins, e me parece Senhor ser muito precizo
meter nesta Capitania do Parnagoá (sic) Juiz ordinário assim pela dita
rezão de ser grande a Povoação como por se achar em distancia de 25
dias de jornada desta Villa, em que he emposivel poderê vir os mora-
dores da dita Capitania requerer a esta Villa o que seja subordinado a
Camera desta dita Villa donde poderão vir fazer a elleyção de três em
três annos para as Justiças da dita Capitania na forma da Ordenaçam,
e porque não posso proceder ao tal efeyto sem faculdade de V. Mag.de
dou esta conta para que me conceda sendo servido. Mocha do Piauhy
de Mayo o 01º de 1731.

Escrevasse ao Ouvidor que esta matteria se acha defendida por S. Mag.


de
de que se lhe tem expedido ordens deve cumprir e se lhe remettem
as copias das mesmas ordens. Lix.a occidental 10 de Julho de 1732

Rubricas

578 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

Do Ouvidor Geral do Piauhy Jozesph de Barros Coelho

AHU, Con. Ultra. — Brasil – Piauí, Cx. 1, doc. 65

Documento X
Para o governador das Minas

(Sobre informar com seo parecer se he precizo crearemse no certão de


sua commarca dous Juizes com seos Tabaliães para o Judicial)

Dom João Etc. Faço saber a vos Conde das Galveas Governador e Ca-
pitão General da Capitania das Minas, que o Ouvidor Geral da Com-
marca do Rio das Velhas me reprezentou em carta de 22 de Agosto do
anno passado da qual com esta se vos remete a Copea asignada pelo
Secretario do meu Conselho Ultramarino o quanto se faz precizo para
a boa admenistração da justiça que eu mande crear no certão da sua
Commarca dous Juizes elleitos pelo povo na forma que aponta com
seos Tabaliães para o Judicial repartindoselhes destrictos competentes
hum no Papagayo, e outro em São Romão. Me pareceo ordenarvos
informeis com vosso parecer o que fareis, ouvindo pessoas praticas
daquelle certão. El Rey Nosso Senhor o mandou pelo Doutor Manoel
Fernandez Varges, e Gonçalo Manoel Galvão de Lacerda Concelhei-
ros do seo Concelho Ultramarino. E se passou por duas vias. Dionizio
Cardozo Pereira a fez em Lix.a ocidental em 28 de Abril de 1732.

AHU, Cartas régias — Minas Gerais, Cód. 241, fl. 155v

Documento XI
Junta a Carta haja vista o Procurador da Coroa. Lix.ª occidental 10 de
Dezembro de 1737 (Lavre?)

Senhor

Como o Conde das Galveas sahio deste Governo, antes de tomar as


ultimas informaçoens nesta materia, ponho na prezença de V. Mag.
de
, que por informação das pessoas mais praticas, e do Ouvidor geral
do Rio das Velhas, que no anno de trinta e quatro, foi em correição ao

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 579


Joaquim Romero de Magalhães

certão, me consta que de muntos (sic) annos a esta parte, e antes que
a V. Mag.de se dese esta conta, há na vizinhanças do Papagayo, e São
Romão, Juizes e Tabaliaens, os Juizes recebem querelas e tirão devas-
sas, remetendoas para livramentos à ouvidoria do Sabará, e quanto ao
civel, conhecem athé quantia de vinte e cinco mil reis, e executão as
sentenças que se lhe cometem da Ouvidoria ou deprecão de outros juí-
zos. O sitio do Papagayo fica distante dés jornadas da vila do Sabará, e
o de São Romão quazi dezouto; e suposta esta distancia, me parecia se
não devia inovar na matéria nada, mais que aumentarlhe a jurisdição
até trezentos mil reis, com apelação e agravo para a ouvidoria, porque
esta quantia se reputa modica no País, e que quanto ao crime se dese
jurisdição ao Ouvidor, que achando por agravo de injusta pornum-
ciação, ou por apelação que algua pessoa fora pornunciada, contra a
forma de direito, por impericia do Juis, podese darlhe provimento e
mandalo soltar, sem ser necessario esperar a decizão da Relação da
Bahya, em gráo de apelação, para deste modo se evitarem as vexações
que as vezes cauza, a grande distancia dos recursos, ou que a pronun-
cia do Juis durase só athé os autos subirem a Ouvidoria, aonde procun-
ciandose de novo ficase sem vigor algû a pronuncia do Juis.

V. Mag.de rezolverá o que achar ser mais conveniente a seu real ser-
viço.

Deos Guarde a V. Mag.de Vila Rica 22 de Julho de 1736

Martinho de Mendonça de Pina e Proença

AHU, Con. Ultra. — Brasil – Minas Gerais, Cx. 32, doc. 12

Documento XII
Dom João por graça de Deos Rey de Portugal, e dos Algarves daquém
e dalem mar em Africa Senhor de Guiné Etc. Faço saber a vós Gover-
nador e Capitão General da Capitania do Rio de Janeiro, com o gover-
no das Minas, que por parte de António Francisco Lima, se me fés a
petição de que com esta se vos remete a Copia asignada pelo Secreta-
rio do Conselho Ultramarino, em que pede lhe faça mercê determinar
que sem embargo de hûa vossa Portaria, as Justiças ordinarias aceitem
os requerimentos do suplicante contra a Provizão porque separaste

580 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

parte do officio de Escrivão dos orfãos, e seos anexos do Arrayal de


São Romão, e a pessoa que exercer o officio novamente creado; e
visto o seu requerimento me pareceo ordenarvos informeis com vosso
parecer. ElRey Nosso Senhor o mandou por Thome Joaquim da Costa
Corte Real, e o Doutor Antonio Freyre de Andrade Henriques Conse-
lheiros do seu Conselho Ultramarino, e se passou por duas vias. Pedro
Jozé Correa a fés em Lix.a a 20 de Abril de 1746. O Secretario Manoel
Caetano Lopes do Lavre a fes escrever. Thome Joaquim da Costa Cor-
te Real // Antonio Freyre de Andrade Henriques.

Juntta de requerimento torne ao Conselho (rubrica Lavre)

Senhor:

Foy V. Mag.de servido por sua real ordem de 28 de Abril de 1732,


mandar criar no Certão da Capitania das Minas, dois Juizes ordina-
rios, e dous Escrivães do publico, judecial e notas, hû no destricto do
Papagayo, distante de Vila Real do Sabará, cabeça da comarca, outo
dias, de viagem, e outro no Arrayal de São Romão, em distancia da
mesma Vila, mais de vinte dias, por obviar o discomodo que aque-
les moradores experimentavão em ter tão remota providencia, para a
aprovação dos testamentos, e factura de algûas escripturas; Qualquer
dos dous officios forão sempre de tão tenue rendimento, que ainda a
homens asistentes naquelas partes se não rematarão em tempo algum,
por mais de setenta mil reis de donativo em cada hû anno, para a Real
fazenda de V. Mag.de, e por esta lemitada porção lhe fazia tão pouca
conta, que não tiverão lanço algûas vezes, nem havia quem requerece
o provimento delles, ainda anexandocelhe o dos orphãos por relaxação
do tempo, que verdadeiramente não houve criação delle, e o servião
huns chamados comissarios do Escrivão da Cabeça da Comarca, com
a aprovação do Ouvidor, cuja introdução fez tolerável a necessidade
que havia de prover de remedio aquelles certões:

Com esta certeza rematou o Suplicante Antonio Francisco Lima nessa


Corte, o officio de Tabalião de São Romão, e mais anexos, para com
esta simulação se apegar ao dos órfãos, sem aumento de donativo, e
isto antes de se descubrir o Paracatú dous annos, tendo em todo este
tempo em seu poder a Provizão sem servir, nem nomear serventuário,
por lhe não fazer conta hir exercelo em tão grande distancia, sugeito

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 581


Joaquim Romero de Magalhães

a perigos de vida, sem conveniência, nem achar quem lhe desse, pela
serventia que pedia para fazer nomeação.

Feito o descobrimento (que dista outo dias de viagem do Arrayal de


São Romão) em paragens tão despovoadas, naquele tempo, que em
distancia de trinta, e quarenta legoas, se encontravão pouco mais de
seis fazendas de gados, muy apartadas dias de outras, quis o suplicante
com este piqueno numero de povo, e tenue dispendio que havia feito
na rematação do officio (quando não podia prever o futuro) introduzir-
ce em Tabalião do Paracatú, aonde se juntarão de todas as Comarcas
das Minas Geraes, Goyáz, e São Paulo, Bahia, e Ryo, mais de dês mil
almas, por cuja cauza, e pelas que já exprecei o antecedente anno a V.
Mag.de, criey os officios que me parecerão necessários naquele des-
coberto, em que entrou o de Tabalião que agora se rematou em outo
mil cruzados e cem mil reis de donativo, por hû anno, e fazendome o
suplicante requerimento, fundado em lhe pertencer o destricto, pelas
rezoens que expõem, lhe deferi recorrece a V. Mag.de e ao Juiz ordina-
rio de Vila Real do Sabará escrevi dizendolhe devia tomar o mesmo
expediente nas suplicas que sobre a mesma materia se lhe fizessem.

Pareceme se deve escuzar o requerimento do Suplitante, e que para


satisfazerce, lhe sobra o acrescimo que teve nos emolumentos, pelo
numeroso povo que concoreo a todo o certão, como que lhe tocarão
muitas dependencias que não teria no cartorio, não haver esta ocazião;
e como V. Mag.de por ordem de seis de Mayo do prezente anno, ex-
pedida pela Secretaria de Estado há por bem aprovar inteiramente as
providencias que dei aquele descobrimento emquanto o tempo mostra
sessão ou não verdadeiras as noticias, e esperanças que se conceberão
da opulência das ditas Minas, recomendandome dê as mais providen-
cias que julgar convenientes, para se regularem as mais dependencias,
especialmente as que tocão a admeninistração da justiça, e sucego
publico, sou obrigado a dizer a Vossa Magestade executarei com o
mayor zello tudo o que entender conveniente para o sucego, pax e
estabelecimento daqueles povos.

V. Magestade mandará o que for servido. A Real pessoa de Vossa Ma-


gestade Guarde Deos muitos annos como seus leais vassalos dezeja-
mos.

582 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

Ryo de Janeiro a vinte hû de Septembro de mil e setecentos e quarenta


e seis

Gomes Freire de Andrada

AHU, Con. Ultra. — Brasil – Minas Gerais, Cx. 46, doc. 14

Documento XIII
Esta a conta que dá o Governador do Estado do Maranhão a respeito
de ser necessário na Ribeira da Parnahiba hum Juiz Ordinario, e de
haver a mesma necessidade na Capitania do Gurupá

(à margem: Como parece Lix.a Occidental 7 de Março de1739. Com


a rubrica de S. Mag.de)

O Governador e Cappitam General do Estado do Maranhão João de


Abreu Castello Branco em carta de 30 de Setembro do anno proximo
passado reprezenta a V. Mag.de por este Conselho que os moradores
da Ribeira da Parnahiba da parte do Maranhão se achão tão distantes
dos Menistros de justiça, que pella falta delles tem succedido mor-
tes, e outros crimes, de que pella grande distancia se não tem toma-
do conhecimento, e necessitão muito de que a real providencia de V.
Mag.de mande estabellecer naquella parte hum Juiz Ordinario eleito
em pellouros na Camara do Maranhão para que com o seu Tabalião
possa tomar querellas, e tirar devaças dando appellação para o Ouvi-
dor Geral e fazer justiça às partes; e que esta mesma e ainda mayor
necessidade se acha na cappitania do Gorupá da jurdição daquella ci-
dade aonde se achão mais de sincoenta moradores divididos por suas
roças, aonde vão dar quantos criminozos andão fugidos das justiças, e
repetindo diferentes insultos de sorte que praticando elle esta matéria
com os Ouvidores do Maranhão, e Pará ambos concordarão em que
seria do serviço de V. Mag.de mandar criar Juizes Ordinarios na forma
refferida para hum, e outro destricto.

E dandosse vista ao Procurador da Coroa disse que lhe parecia o mes-


mo que ao Governador, nem havia, ou podia haver prejuizo algum em
asim se ordenar.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 583


Joaquim Romero de Magalhães

Ao Conselho parece o mesmo que ao Procurador da Coroa. Lix.a Oc-


cidental 8 de Janeiro de 1738. Abreu // Arouche // Moreyra // Men-
donça // Lavre.

AHU, Cartas régias — Maranhão, Cód. 209, fls. 115 v - 116

Documento XIV
Para o mesmo (Governador do Maranhão)

(à margem: se informar na conta que deu o ouvidor do Maranhão aser-


ca de se deverem crear Juizes ordinarios nas partes, que aponta)

Dom João etc. Faço saber ao Governador e Cappitam General do Es-


tado do Maranhão, que vendosse o que me escreveo o Ouvidor Geral
da Cappitania de S. Luis na carta de que com esta se vos remete copea
sobre ser precizo crearsse nos destrictos da Parnahiba e na freguesia
das Aldeas Altas como também na Ribeira do Rio Mearim, hum Juiz
ordinario em cada huma destas partes com seu escrivão, e Meyrinho
sendo todos os taes Juizes ordinarios eleytos em Pelouro e que os
escrivães sirvão tambem de Tabaliames para fazerem escripturas, e
aprovarem testamentos, e que na parte onde parecer mais conveniente
se erija huma cadea segura para se recolherem os malfeytores, e crimi-
nozos, e della serem remetidos para a Cadea da Correyçam. Me pare-
ceo ordenarvos imformeis com vosso parecer se essas novas creações
de Juizes ordinarios declarando se são necessarios ou convenientes,
ouvindo os officiais da Camara neste particular. ElRey N. S. man-
dou por Alexandre de Gusmão e Thome Joaquim da Costa Corte Real
Conselheiros do seu Conselho Ultramarino e se passou por duas Vias.
Caetano Ricardo da Silva a fez em Lx.a a 20 de Junho de 1744.

AHU, — Cartas Régias, Maranhão, Cód. 271, fls. 29 v-30

Documento XV
Para o governador do Maranhão

Dom João Etc. Faço saber a vos Governador e Cappitam General do


Estado do Maranhão, que se vio o que respondestes em carta de 10

584 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

de Novembro do anno passado a ordem, que vos foy a respeito da


reprezentação que me fez o Ouvidor Geral da Cappitania de São Luis
na carta de que se vos torna a remeter a copea de ser preciso crear-
se nos destrictos da Parnahiba e na freguesia das Aldeas Altas, como
tambem na Ribeira do Rio Mearim, hum Juiz ordenario em cada hûa
destas partes com seu Escrivão e Meyrinho, sendo todos os taes juizes
ordinarios eleytos em pelouro e que os escrivaens sirvão tambem de
Tabaliaens, e na parte onde parecer conveniente se erija hûa cadea
para se recolherem os malfeytores, e della serem remetidos para a
cadea da correyção, e visto dizeres, que não será preciza a creação de
Juizes ordinarios para os destrictos das Aldeas Altas, e do Mearim,
em rezão de que pela minha ordem de 17 de Março de 1739 se creara
hum Juiz ordinario feito em Pellouros da Câmara para o destricto da
Parnaiba (sic), e que ainda que as distancias delle serão grandes os
seus moradores estavão situados em lugares tão separados huns dos
outros que atendendo ao numero dos habitantes se considerava bastar
hum Juiz ordinario para tomar conhecimento de todos os negócios,
e cazos pertencentes à justiça dando recurso para o Ouvidor Geral
do Maranham só vos parece conveniente o mandar eu determinar a
separação dos destrictos entre o da Parnahiba, e o da Vila do Icatú, e
o da Cidade do Maranhão para evitar as duvidas que pode haver entre
huns e outros Juizes sobre a extenção da sua jurisdição, e vendose o
maes que insinuáveis nesta matéria Me pareceo ordenarvos torneis a
informar com o vosso parecer ouvindo aos officiaes da Camara, como
se vos tem ordenado, aos quais ouvireis também por escripto sobre a
demarcação dos limites, que apontaes. ElRey Nosso Senhor o man-
dou por Alexandre de Gusmão e Thome Joaquim da Costa Corte Real
Conselheiros do seu Conselho Ultramarino, e se passou por duas vias
Caetano Ricardo da Silva a fez em Lx.a a 9 de Julho de 1745

AHU, — Con. Ultra. – Cartas Régias, Maranhão, Códice 271, fl. 175
r-v.

Documento XVI
Satisfasce ao que S. Mag.de ordena sobre a conta, que deu o Ouvidor
geral da Capitania de S. Luiz do Maranhão, a respeito de ser precizo
criarse em cada hum dos destritos da Parnahiba, Aldeias Altas e Mea-
rim hum Juiz ordinario com seu escrivão, e Meirinho. E Vista.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 585


Joaquim Romero de Magalhães

(à margem: Como parece Lix.a 27 de Setembro de 1746. Com rubrica


de S. Mag.de)

O Ouvidor Geral da Capitania de S. Luiz do Maranhão, em carta de


quinze de Setembro de mil setecentos, e quarenta e trez, expõem a V.
Mag.de por este Conselho em como ordenando V. Mag.de aos Ouvidores
geraes daquella Capitania, que no fim do seu trienio vizitem em forma
da correição a toda ella, não achava observada esta ordem pellos seos
antecessores, por medo da grande distancia e trabalhos, que consigo
trazia tão grande viagem, deixando nesta omissão hum notorio pre-
juizo na administração da justiça, e dos vassallos de V. Mag.de; pondo
na sua real prezença que naquella cappitania se achava o destrito da
Parahiba, que comprehendia o melhor de cem legoas com hum Juiz de
vintena, o qual lhe parecia a elle Ouvidor geral, devia ser ordinario, e
ter escrivão, e seu Meirinho, para se acodir a administração da justiça
pellos muitos insultos, e mortes, que se cometião no dito destrito. Que
na freguesia das Aldeas Altas, a qual comprehendia mais de sincoenta,
ou sesenta legoas, e tem mais de cem moradores, divididos nas suas
roças, vivendo alguns juntos aonde se acha a Igreja, e no mesmo citio
hûa caza, ou hospicio dos Padres da Companhia, lhe parecia dizer a
V. Mag.de se devia criar tambem hum Juiz ordinario com seu Escri-
vão //187 v// e Meirinho, para acodir a varias mortes e insultos aly
sucedidos por ser escalla de todos os homens, que comerçeão para os
Certões do Pyauhy, Rio de S. Francisco e Bahia; cujo destricto confina
com o da Parnahiba, e que a estes dous Juizes Ordinarios, se lhe podia
dar por destricto, o que comprehende cada hûa das suas freguezias,
acrescentando-se ao da Parahiba a freguezia das Balças por ficar mais
confinante com a dita Parnahiba. Que a Ribeira do Rio Mearim, o
destrito daquella Cidade, e distante della, mais de trinta legoas, hera
hûa das mayores povoações que tinha o destricto daquella Cidade de
S. Luiz por comprehender a sua freguezia mais de duzentos vezinhos,
onde se achava hum Juiz de Vintena, eleito em Câmara todos os an-
nos, por ficar muito distante da dita Cidade, e não poderem os Juízes
ordinários della, acudir com prestreza, e deligencia necessária a tirar
devaças, e outras couzas, que necesitão de promta execução, por se
haver de fazer a dita viagem por mar, e haver falta de canoas, e negros
naquella cidade, por cujo motivo sucedia deixar de se acodir aos re-
fferidos cazos, ficando nesta forma a administração da justiça, sem se
executar , e os delictos sem serem castigados, pello que lhe parecia,

586 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

que nesta freguezia se devia por tão bem hum Juiz Ordinario com seu
escrivão, e Meirinho, sendo todos os Juizes ordinários elleytos em
pellouro, e que os escrivães sirvão tão bem de Tabaliães para fazerem
as Escripturas, e aprovarem os testamentos, de que havia necessidade
urgente; e porque os Ouvidores como Corregedores são obrigados a
vizitar aquella Capitania havendo os ditos Juizes ordinarios, poderão
com mais formalidade fazer correição; e outro sim, que na parte onde
lhe parecer mais conveniente se possa mandar erigir hûa cadea segura
para nella se recolherem os malfeitores, e creminozos, de della serem
remetidos para a Cadeya da correição.

E ordenandose por Provizão de vinte de Junho de mil e setecentos,


e quarenta e quatro, ao Governador, e Cappitam General do Estado
do Maranhão informasse com seu parecer sobre estas novas creações
de Juizes ordinarios, declarando se erão necessarias, ou convenientes,
ouvindo os officiaes da Camara neste particular; Respondeo em carta
de dez de Novembro do mesmo anno, dizendo; Que não se persuadia
fosse preciza a criação de Juizes ordinarios para os destrictos das Al-
deas Altas, e do Mearim, em razão de que pella Ordem de V. Mag.de
de dezassete de Março de mil setecentos, e trinta e nove se creara hum
Juiz ordinario feito em pellouros da Câmara para o // 188 // destricto
da Parahiba, e que ainda que as distancias delle erão grandes como
apontava o mesmo Ministro, os moradores delle estão cituados em
lugares tão separados huns dos outros, que atendendo ao numero dos
habitantes se considerava bastar hum Juiz ordinario para tomar co-
nhecimento de todos os negocios, e cazos pertencentes à justiça dando
recurso para o Ouvidor geral do Maranhão, e que só lhe parecia a
elle Governador, que seria conveniente mandar V. Mag.de determinar
a separação dos destrictos entre o da Parahiba, o da villa do Icatú, e o
da Cidade do Maranhão, para evitar as duvidas, que pode haver entre
huns e outros, Juizes, sobre a extenção da sua jurisdição. Que pello
que respeitava ao Mearim, como este destricto ficava maes vizinho da
cidade do Maranhão de sorte, que daquella parte vão os gados para o
asogue da cidade, e havia hum continuo comercio, entendia ser menos
necessária a creação de hum Juiz do que o das Aldeas Altas; mas que
sem embargo deste seu parecer, como o Ouvidor geral hera homem
letrado, poderia ter fundamentos mais attendiveis, para que V. Mag.de
deffira a sua reprezentação.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 587


Joaquim Romero de Magalhães

E sendo vista a refferida carta, se tornou a escrever ao dito Governa-


dor por Provizão de nove de Julho do anno passado, para que tornasse
a informar com o seu parecer, ouvindo aos officiaes da Câmara, como
se lhe tinha ordenado, aos quais ouvisse tão bem por escrito sobre a
demarcação dos limites que apontava; o qual respondeo em carta de
treze de Janeiro deste prezente anno, dizendo; que como sobre a ma-
téria, que continha esta real ordem de V. Mag.de se lhe não offerecia
acresentar couza algûa a conta que dera na refferida carta de dez de
Novembro de mil setecentos, e quarenta e quatro, pertendia satisfazer
cabalmente ao que V. Mag.de hera servido ordenarlhe com a informa-
ção que lhe derão os officiaes da Camara do Maranhão, cuja copia re-
metia e com esta sobe à real prezença de V. Mag.de para o que V. Mag.
de
seja servido ordenar o que for maes conforme a seu real serviço.

E dandosse de tudo vista ao Dezembargador Pedro Gonçalvez Cor-


deiro, que serve de Procurador da Coroa respondeo: Que, quem tem
experiencia do Brazil, e andou ja alguns dos seus Certões, somente
poderá saber a necessidade que há de se multiplicarem as povoações, e
de se criarem justiças, para melhor cómodo dos moradores, e se evita-
rem os muitos insultos, que nelles se cometem quotidianamente; sem
haver remédio para tanto mal, e que se havia algum hera somente o de
se criarem villas, e poremse justiças, a que com mayor comodidade se
possa acudir; que elle Procurador da Coroa fallava como experimenta-
do, e lhe parecia que neste particular, não só hera util, mas necessario
criaremse villas, e fazeremse justiças, e que se o Governador assim o
não informava hera porque a sua asistençia hera na Cidade, e não sabe
o que se padesse // v // nos certões; e assim que convinha em tudo com
a resposta dos officiaes da Camara do Maranhão, que vem por copea,
e lhe parecia se devião passar as provizões necessárias para as ditas
creações, que fará o Ouvidor do mesmo Maranhão e as devizões na
forma que apontão os vereadores.

O que visto

Parece ao Conselho o mesmo, que ao Procurador da Coroa.

Lisboa, sinco de Julho de mil settecentos, e quarenta e seis.

Metello // Moreira // Lavre // Pardinho // Corte Real.

588 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

AHU, Cartas régias — Maranhão, Cód. 209, fls. 187 – 188 v

Documento XVII

Cópia:

Exmo. Senhor // Por carta de quatro de Outubro deste prezente anno,


nos ordena V. Ex.a informemos com nosso parecer, sobre o que contem
a Copea da Provizão de 9 de Julho deste mesmo anno, que tambem V.
Ex.a nos remette a carta da separação dos destrictos dos Juizes ordi-
narios da V.ª do Icatú, Ryo Parnaiba, e desta Cidade, sobre que há ou
se podem mover duvidas de jurisdiçoens. Primeiramente os destrictos
do dito Ryo Paranaibá, para esta banda do Maranhão são extencissi-
mos; pois da beyra mar the a altura da Villa da Moxa tem mais de 40
// 60 // 80 // e 120 legoas de longitude, ainda que as povoaçoens, e
moradores distem de huns a outros hûa, duas, e tres legoas, asim pello
cumprimento (sic), como pella largura. § Com hû Juiz ordinario com
seu escrivão que de novo se criou por ordem de S. Mag.de que Deos
Guarde para os refferidos destrictos, parece não ser bastante para acu-
dir com prompto remedio ás occurrencias da justiça, e se faz penozo,
e inconveniente áquelles moradores que distão 40 e mais de 60 legoas
do lugar, e assistencia daquelle dito Juiz ordinario de novo criado,
acudirem a elle ou elle ir provellos de remedio. § Assim que nos pa-
rece ser precizo, que o dito Senhor mande criar outro Juiz ordinario
com seu escrivão do judicial e notas, e meyrinho nas povoaçoens das
Aldeas Altas, e que a este lhe confira o dito Senhor por jurisdição os
destrictos e povoaçoens que pegão da mata do Iguará para fóra, cor-
rendo pelo dito Ryo Paranaíba asima, e Ryo Itapicurú the os fins dos
ditos habitadores, ficando todas as mais povoaçoens da dita matta para
esta parte do Maranham the a caza forte do Iguará inclusive, e Ryo
abayxo do Paranaiba the beyra-mar por destrictos daquele dito juiz já
de novo criado, a que chama hoje o vulgo o juiz da Paranaíba. § Que
ao Juizes da Villa do Icatú, que alem da dita Villa se lhes consinou
confine por destricto dasua jurisdição todos os moradores contoguos
á mesma Villa, e os do Ryi Moni asima the a dita caza forte do Iguará
exclusive, e da outra banda do mar em fronte os moradores do Mo-
nimirim, Piraiussára, Nazareth, e Tuxa, the as povoaçoens antigas do
Ryo Otapucurú, e sua freguezia exclusive, por quanto a tal freguezia
he, e sempre foi destricto, e do termo desta cidade não ouve em tempo

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 589


Joaquim Romero de Magalhães

algum duvida, que alem da dita freguezia ao Itapicurú, tem mais por
termo todos os dos Ryos Miarim, e Pindaré, correndo the os Pirizes;
com tudo nos parece util, e necessario ao serviço de Deus, e do dito
Senhor, que nos ditos ryos Miarim, e Pindaré tão somente, se crie de
novo hum Juiz ordinario, com seus officiaes, e Meyrinho, por ser mui-
to dificil virem aqueles moradores, que são bastantes a esta cidade, e
os juizes della o hirem aquelles ditos ryos às ocorrencias dos negocios
da sua justissa, e penozo o hirem estes dittos juizes da cidade a elles às
devaças de mortes, e roubos, que continuamente se estão cometendo
nos ditos Ryos, tanto pelo longe, e perigos de mar, quanto pela diffi-
culdade da condução, e gastos para elles de canoas, e remeiros, que
he o mais difficil de achar. He o que nos parece informar a V. Ex.a por
menos informados nesta matéria; para o dito Senhor ordenar o que for
servido. Deos Guarde a V. Ex.a muitos annos. S. Luiz em Camera de
26 de Novembro de 1745 // De Vossa Ex.a // Affectuozos subdittos e
veneradores. Hilário Pereira de Caceres//Brás de Souza Sá//Balthazar
Pereira dos Reys//Theodoro Amado Annes//João Mendes da Sylva. E
eu Jozé Gonçalvez da Fonseco secretario do Governo a fiz escrever da
própria que fica na Secretaria do Estado a que me reporto.

Jozé Gonçalvez da Fonseca

AHU, Con. Ultra. – Maranhão, Cx. 29, doc. 2978

Documento XVIII
(Para o Governador do Rio de Janeiro com o governo das Minas Ge-
raes) Para o mesmo

Dom João & Faço saber a vos Gomes Freire de Andrade Governador e
Capitam General do Rio de Janeiro com o governo das Minas Geraes
que se vio a vossa carta de outo de Outubro de 1745, sobre a conta
que vos dera o Ouvidor que foi do Rio das Velhas Simão Caldeira
da Costa Mendanha do grande numero de povo que havia concorrido
para o novo descubrimento do Paracatú, e as providencias que dera
para ali se não experimentar falta na administração da justiça creando
hum Juiz ordinario e hum Tabalião; o que vos precizara a convocar
hûa junta em Villa Rica sobre esta matéria, na qual se asentara, que
se conservasse o mesmo Juiz ordinario e Tabalião, e que se nomeasse

590 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

outro Juiz, que alternativamente servisse sendo necessário, e que o


Tabalião se puzesse na pauta dos officios, e se rematasse juntamente
com o da Almotaçaria, e da mesma sorte se rematassem os officios de
Meirinho do campo, seu escrivão, e Porteiro por ser preciza esta pro-
videncia thé determinação minha; e visto o que sobre este particular
responderão os Procuradores de minha fazenda e Coroa. Fui servido
por rezolução de vinte e sete de Junho deste prezente anno em consul-
ta do meu Conselho Ultramarino aprovar inteiramente a creação dos
referidos officios, e mais providencias do assento feito por voz em
Vila Rica, ordenandovos informeis com vosso parecer se mostra haver
de ser permanente a freguezia de moradores no Paracatú, e se ser con-
veniente formarsse nelle Villa apontando o mais que a este respeito se
vos offerecer. El Rey Nosso Senhor o mandou pelo Dezembargador
Rafael Pires Pardinho, e Thome Joachim da Costa Corte Real, Con-
selheiros do Seu Conselho Ultramarino, E se passou por duas vias.
Theodoro de Abreu Bernardes a fez em Lx.a a 4 de Agosto de 1746.

AHU, Cartas régias — Minas Gerais, Cód. 241, fl. 306 v

Documento XIX
Na creação desta Capitania se mandaram fazer tres juizes ordinarios
hum para a freguezia do Pernaguá, outro para a Freguezia do Serobim,
e para a Piracuruca outro, que eram as três freguezias de que se com-
punha esta comarca; foy crescendo o povo em forma que já os Prella-
dos Ecleziasticos tem devidido estas em mais tres, hûa no districto da
Goroguca, outra na Catinguinha e N. Sr.a da Conceição outra: à cabeça
de cada hûa destas tres ultimas, e novas freguezias se tem acumulado
muito povo, e como vivem distantes os juízes mais de sincoenta, e
sessenta legoas, sam os distúrbios, e insolências continuas, sem que a
justiça por conta das distancias possa dar a providencia necessaria à
boa ademenistração della; pello que se me fez precizo dar conta a V.
Mag.e para me determinar o poder meter nos pellouros mais três juízes
que acomodem as três freguezias ultimamente devedidas. Moucha 30
de Agosto de 1746.

O ouvidor geral do Piauhy Mathias Pinheiro da Silveira Botelho

(à margem: Parece que será muito conveniente ao bem publico, e ser-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 591


Joaquim Romero de Magalhães

viço de S. Mag.de se criem mais de novo os tres Juizes ordinarios nesta


capitania a porporção, e augmento do numero de mais tres freguezias,
e sendo necessario proceder mayor averiguação se deve mandar in-
formar o Governador ouvindo os officiaes da Camara da mesma Ca-
pitania.

Informe o Governador e Cappitão General com seo parecer, ouvindo


por escrito os officiaes da Camara da Mocha.

Haja Vista o Procurador da Coroa Lxª 15 de Outubro de 1748

AHU, Con. Ultra. – Piauí, Cx. 4, doc. 267

Documento XX
Para o mesmo (Ouvidor Geral do Estado do Maranhão)

Dom João Etc. Faço saber a vos Ouvidor geral da Cappitania de S. Luiz
do Maranhão, que se vio a conta que me destes em carta de quinze de
Setembro de 1743 aserca da necessidade, que havia de se crearem em
cada hum dos destrictos da Parnahiba, Aldeas Altas, e Mearim hum
Juiz ordinario com seu escrivão, e Meirinho, sobre cuja materia man-
dando informar o Governador desse Estado satisfez a isso, e em tudo
foi ouvido o Procurador da minha Coroa, o que visto attendendo eu a
que os destrictos do Rio Pernahiba para essa parte do Maranhão são
muito extenços, e que com hum Juiz ordinario, e seu escrivão, que de
novo mandei crear para elles não hé bastante para acudir com prompto
remedio ás ocurrencias da justiça por distarem aquelles moradores,
quarenta e mais de sessenta legoas do lugar, e assistencia do dito Juiz;
sou servido por rezolução de 27 de Setembro de 1746 em Consulta
do meu Conselho Ultramarino ordenar se crie outro Juiz ordinario,
com seu Escrivão do judicial, e notas, e Meirinho nas povoações das
Aldeas Altas; o qual terá por jurisdição os destrictos, e povoações que
pegão da matta do Jaguará para fora correndo pelo dito Rio Parnahi-
ba assima, e Rio Itapecurú the os fins dos ditos habitadores, ficando
todas as maes povoações da dita mata para essa parte do Maranhão
the a caza forte do Iguará incluzive e Rio abaixo da Parnahiba the
beiramar, por destricto do Juiz ja de novo creado, a que hoje o vulgo
chama o Juiz da Parnahiba; ordenando tãobem que os Juizes da Vila

592 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

do Itacú alem da dita Vila tenhão por destricto da sua jurisdição todos
os moradores contiguos á mesma vila e os do Rio Moni asima thé a
dita Caza forte do Iguará exclusive; e de outra banda do mar em fronte
os moradores do Monimirim, Parajussara, Nazareth, e Tuxa thé as po-
voações antigas do Rio Itapecurú, e sua Freguezia exclusive em razão
da tal Freguezia ser, e sempre ter sido destricto, e do termo dessa ci-
dade de S. Luiz do Maranhão, e por me ser prezente que a respeito do
destricto, e termo dessa Cidade não houvera em tempo algum duvida
de que alem da dita Freguezia ao Itapecurú tem mais por termo todos
os dos Rios Mearim, e Pindaré correndo the os Pirizes, com tudo por
ser conveniente ao serviço de Deos e meu, e util a meos vassalos, sou
outro sim servido, que nos ditos Rios Mearim e Pindaré são somente
se crie de novo hum Juiz ordinario com seus officiaes, Escrivão e Mei-
rinho por ser muito difícil virem aquelles moradores a essa Cidade, e
os Juizes della irem àquelles Rios aos negocios da justiça, devaças de
mortes, e roubos commetidos nos ditos Rios, tanto pelo longe, e peri-
gos do mar, como pela deficuldade da condução, e gastos para elles de
canoas, e remeiros; pelo que se vos ordena façaes as ditas creações, e
devizões na forma apontada nesta minha ordem. ElRey Nosso Senhor
por Thome Joaquim da Costa Corte Real, e o Doutor Antonio Freire
de Andrade Conselheiros do seu Conselho Ultramarino, e se passou
por duas vias. Pedro Alexandrino de Abreu Bernardes a fez em Lx.a a
10 de Março de 1747

AHU, — Cartas régias, Maranhão — Cód. 271, fls. 94 v-95

Documentos XXI
Para o mesmo (Governador do Rio de Janeiro)

Dom João & Faço saber a vós Gomes Freire de Andrade Governador e
Cappitam General da Cappitania do Rio de Janeiro com o governo das
Minas Geraes, que se vio o que me escreveo o Ouvidor Geral do Serro
do Frio em carta de 31 de Outubro do anno passado de que com esta
se vos remete copea sobre ser precizo crear-se de novo hûa villa em
qualquer dos três Arrayaes de Jequitahy, e Almas e Barreiras, ou haver
em qualquer delles hum Juiz ordinario com seu Tabalião, Alcayde, Es-
crivão e Porteiro por ser em utilidade das partes, e boa administração
da justiça. Me pareceu ordenarvos informeis com vosso parecer de-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 593


Joaquim Romero de Magalhães

clarando o numero de moradores que tem cada hum destes Arrayaez.


ElRey Nosso Senhor o mandou por Thome Joachim da Costa Corte
Real e o Doutor António Francisco de Andrade Conselheiros do seu
Conselho Ultramarino e se passou por duas vias. & Alexandrino de
Abreu Bernardes a fez em Lx.a a 1º de Mayo de 1747.

AHU, Cartas régias — Minas Gerais, Cód. 241, fl. 311

Documentos XXII
Para o mesmo (governador do Rio de Janeiro)

Dom João & Faço saber a vos Gomes Freire de Andrade Governador
e Cappitam General do Rio de Janeiro com o governo das Minas, que
vendosse o que me escreveo o Ouvidor do Serro do Frio em carta de
5 de Setembro de 1747 de que com esta se vos remete copia sobre
ser precizo crearse no certão daquella comarca dous Juizes pedaneos
assim como os há nos Arrayaez de S. Romão, e Papagayo da Comarca
de Sabará para supprirem a falta da Justiça e a distancia do Recur-
so. Me parece ordenarvos informeis com vosso parecer. ElRey Nosso
Senhor o mandou por Thome Joachim da Costa Corte Real, e pello
Doutor Antonio Francisco de Andrade Illustres Conselheiros do seu
Conselho Ultramarino; e se passou por duas vias. Luiz Manoel a fez
em Lx.a a 17 de Junho de 1748.

AHU, Cartas régias — Minas Gerais, Cód. 241, fl. 322

Documento XXIII
Para o Ouvidor Geral da Cappitania do Maranham

Dom João Etc. Faço saber a vos Ouvidor Geral da Cappitania de S.


Luiz do Maranham, que se vio a vossa carta de 20 de Outubro de 1747
em que insinuaveis que por ordem minha de nove de Julho do dito
anno vos mandara creaces de novo dous Juizes ordinarios com seu
Escrivão e Meirinho nas Aldeas Altas e Mearim para assim se ocorrer
a muita necessidade que há em se praticarem as deligencias da Justiça
pella muita extenção dos certões e grande quantidade de gente que
nelles com estabalecimento reprezentandome que hirieiz logo pôr em

594 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

execução o referido, porem como tinheis noticia que das Aldeas Altas,
e freguezia de S. Bento das Balsas que tem hoje mais de outo centos
fogos, vay grande distancia a que com facilidade não poderá acudir o
Juis do dito destricto, e continuamente estejão sucedendo cazos em
que he preciza a sua assistencia, me expunheis que seria conveniente
a meu serviço, e ao bem dos povos crease outro na dita freguezia para
assim ficarem os destrictos mais proporcionados para se acodir com
prompto remedio aos insultos que continuamente sucedem nos cer-
tões. O que visto Me pareceu ordenarvos informeiz com vosso parecer
com toda a clareza neste parecer, dando conta de como preticastes a
creação destes dous Juizes, declarando a que villas ficarão pertencen-
do ou se ficarão separadas as suas jurisdições, ou se há capacidade
de se crearem villas em cada hûa dellas com vereadores, e mais offi-
ciaes competentees para o governo da Républica, e da mesma sorte
informeis se será conveniente crear villas nos destrictos donde ellas
se hão de examinar, e que rendimentos poderão ter estas camaras para
as suas despezas. ElRey Nosso Senhor o mandou pelos Conselheiros
do seu Conselho Ultramarino abaixo asignados, e se passou por dias
vias. Caetano Recardo de Sousa a fez em lx.a a 20 de Abril de 1750. O
Secretario Joaquim Miguel // Andrade // Borges

AHU, — Cartas régias, Maranhão — Cód. 271, fls. 165 v-166

Documento XXIV
Para o mesmo (Gomes Freire de Andrade)

Dom Jozé etc. Faço saber a vos Gomes Freire de Andrada Governador
e Cappitam General da Cappitania do Rio de Janeiro, com o governo
das Minas Geraes, que vendosse o que me reprezentou José Roiz Fro-
es Descobridor das Minas do Paracatú em carta de dez de Março do
prezente anno de que com esta se vos remette copea sobre as grandes
opreções que tem experimentado aqueles povos por falta de adminis-
tração de justiça porque sendo precizo crearemse Juizes ordinarios
na forma da ley, os ouvidores de Sabará os nomeão como lhes parece
sem proceder a eleição para poderem ter jurisdição ordinaria, como o
ouvidor actual o fizera nomeando a hû seu sobrinho por Juiz com ou-
tros empregos, pello que esperavão que eu fosse servido para os livrar
dos vexames que apontavão, mandar crear naquelle continente villa

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 595


Joaquim Romero de Magalhães

pondolhe Juiz de vara branca e emquanto eu assim o não determinasse


houvesse por bem ordenar que se elejão dous Juizes para cada anno na
forma que se pratica nos Goyaz aonde em todos os Arrayaez elegem
os moradores com os Juizes de hû anno seis homens dos mais capazes
para Juizes do outro, e indo esta pauta ao ouvidor da Comarca aprova
dous e sendo ouvidos nesta matéria os Procuradores de minha Fa-
zenda e Coroa. Me pareceo ordenarvos informeiz com vosso parecer,
mandando logo dar as providencias necessarias que vos parecerem
precizas para se evitarem as dezordens que se referem nesta conta.
ElRey nosso Senhor o mandou pellos Conselheiros do seu Conselho
Ultramarino abaixo asignado, e se passou por duas vias. Luiz Ma-
nuel???? A fez em Lx.a a 17 de Novembro de 1750. O secretario Joa-
quim Miguel // Pardinho // Bacalhao.

AHU, Cartas régias — Minas Gerais, Cód. 241, fl. 342 v

Documento XXV
Copea Senhor

Pella grande necessidade que me reprezentavão havia de haver pessoa


nas Minas de Itajubá que admenistrasse justiça aos seos habitantes em
razão de não poder administrarsselhe das villas desta Comarca pella
grande distancia com que se achão aquellas Minas; com permissão do
Governador desta Cappitania me rezolvi a por lá hum juiz ordinário,
e hum escrivão interinamente emquanto V. Mag.de não rezolvia, se
asim o havia por bem, e ainda que reconheço o não podia fazer sem
ordem de V. Mag.de, a necessidade que se me reprezentava, e a deficul-
dade do recurço me obrigou a darlhe providencia antes da rezolução
de V. Mag.de em cuja presença ponho o que obrey, e a grande necessi-
dade que a isso me moveo para que me determine se devo conservar o
dito Juiz, e seo escrivão, ou suspendello.

Taobem ponho na prezença de V. Mag.de que seria conveniente pôr-se


outro Juiz ordinario na Jeruoca, porque ainda que esta paragem fica
com menos distancia desta Vila; por apenas serão sinco ou seis dias de
jornada a ella chegão os offeciaes de justiça desta Vila, com tudo com
muita defficuldade lá fazem as deligencias, e são continuas as mortes,
e outras insolências que lá se fazem, que poderiao atalharce havendo

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

lá i dito Juiz; corem como ainda chegão os officiaes de justiça desta


Villa a dita paragem sem resolução de V. Mag.de não faço o que fiz
para as Minas do Itajubá. V. Mag.de resolverá á vista do que exponho
o que julgar mais conveniente ao seo real serviço. São João de ElRey
17 de Abril de 1754// o ouvidor do Rio das Mortes Francisco José
Pinto de Mendonça//

2ª via

Dom Jozé por graça de Deos Rey de Portugal e dos Algarves daquém
e dalém mar em África, Senhor de Guiné Etc. Faço saber a vós Go-
vernador e Cappitam General da Cappitania das Minas Geraes, que
vendose a conta, que me deo o Ouvidor geral da Comarca do Rio das
Mortes, em carta de dezassete de Abril do prezente anno de que com
esta se vos remete copia sobre os motivos que o obrigarão a pôr hû
Juiz ordinário, e hû Escrivão nas Minas de Itajubá, e a necessidade que
há de se crear outro na Jeruoca. Me pareceu ordenarvos informeis com
vosso parecer, declarando a necessidade que há de se estabalescerem
Juizes nestes destrictos, e a que villas elles pertencem, e em que dis-
tancia ficao das ditas villas, ouvindo por escrito os officiaes das Cama-
ras dellas. ElRey Nosso Senhor o mandou pellos Concelheiros do seu
Concelho Ultramarino abaixo assignados, e se passou por duas vias,
Antonio Ferreira de Azevedo a fez em Lixboa a trinta de Dezembro de
mil setecentos sincoenta e quatro.

O secretario Joaquim Miguel Lopes de Lavre a fez escrever

Thome Joachim da Costa Corte Real Antonio Lopes da Costa

Por despacho do Conselho Ultramarino de 29 de Agosto de 1754

Copea

Dom Jozé por graça de Deos Rey de Portugal e dos Algarves daquem
e dalem mar, em Affrica, Senhor de Guine Etc. Faço saber a vos Go-
vernador, e capitão General da Capitania das Minas Geraes, que ven-
dose a conta que me deu o Ouvidor geral da Comarca do Rio das
Mortes em carta de dezasete de Abril do prezente anno de que com
esta se vos remete copea sobre os motivos que obrigarão a pôr hû

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 597


Joaquim Romero de Magalhães

Juiz ordinário, e hû escrivão nas Minas de Itajubá, e a necessidade,


que há de se criar outro na Jeruoca. Me pareceo ordenarvos informeis
com vosso parecer declarando a necessidade que há de se estabele-
cerê Juizes nestes destrictos, e a que villas elles pertencem e em que
distancia ficão das ditas Villas, ouvindo por escripto os Officiaes das
Camaras dellas. Elrey Nosso Senhor o mandou pelos conselheiros do
seu Conselho Ultramarino abayxo asinados, e se passou por duas vias.
Antonio Ferreira de Azevedo a fez em Lisboa a trinta de Dezembro
de mil setecentos cincoenta e quatro // O secretario Joaquim Miguel
Lopes do Lavre a fez escrever // Thomé Joaquim da Costa Corte Real
// António Lopes da Costa //

Copia

Senhor Governador

Em 22 do corrente recebemos a carta de V. Senhoria de 6 do mesmo


mez acompanhada do transumpto da conta de 17 de Abril de 1754 que
deo a Sua Mag.de o Dezembargador Corregedor desta Comarca, sobre
ter posto intirinamente aquelle Ministro nas Minas do Itejobá, hum
Juiz Ordinario com seu Escrivam attendendo à reprezentação que os
habitantes daquelle Paiz lhe avião feito da grande falta que tinhão de
quem lhe administrace justiça pela muita distancia em que se achavão
aquelas minas, das villas desta Comarca. Expondo mais o dito De-
zembargador na prezença do dito Senhor, que tãobem havia a mesma
percizão de se crear outro Juiz ordinario nas Minas da Joruoca, para
milhor se executarem as deligencias das justiças desta Villa, e se evi-
tarem as continuas mortes, e outras insolências, que naquele destrito
continuamente se cometião sem embargo de ficar mais perto aquelle
continente desta Villa e hirem os Officiaes de Justiças desta Comar-
ca àquelle lugar sobre o que mandou S. Magestade informar a V. Sª.
ouvindo as Câmaras daquelles destritos pela sua real ordem de 30 de
Dezembro de 1754 de que tão bem recebemos a copia. § Não há duvi-
da que aquelles destritos se comprehendem no termo, e juisdição desta
villa e o do Itejobá fica distante desta mesma villa, seis ou sette dias
de jornada e por esta razão se não pode com promptidão administrar
aos moradores daquelle certão justiça, motivo porque se fáz preciso
conservarsse naquelle pahiz o Juiz, e Escrivam, que o dito Dezembar-
gador e Corregedor da Comarca presentemente tem posto nas ditas

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

Minas do Itejobá concedendoselhe somente a jurisdição de conhecer


nas cauzas sumarias cíveis, e as mais proporemce perante as justiças
desta villa; e emquanto ao crime poderão prender en todo o caso, to-
mar querellas, e proceder a devassas remetendo os prezos a cadeya
desta Villa, e aos Juizes ordinarios della, as querellas, e devassas, para
efeito de as asentiarem (sic) e correrem perante elles os livramentos, e
mais processos criminaes, attendendo ao grave prejuízo que do Con-
trario se pode seguir às partes em razão de não haver território, cadeya
e homens professores de Direito.

E no que respeita a se dar a mesma providencia nas Minas da Juruo-


ca, parece desnecessaria; porque aquele destrito fica muito mais perto
daquella villa, não passsando onde mais se estende de trez dias e meio
de viagem comûa aonde comodamente vão os Juizes ordinarios desta
Villa, e ainda a outras mayores distancias tirar Devassas e os Officia-
es fazer deligencias, tendo já esta Camara provido a annos naquela
freguezia Almotaceis officiaes da Vintena, e pessoas para aprovar tes-
tamentos, para melhor comodidade daquelles moradores; providencia
de que só se carecia.

Como tãobem nos reprezenta o Tabaliam desta Villa, e seu termo, o


prejuizo que lhe pode cauzar o estabelecimento do dito Juiz com seu
Escrivão naquelle continente da Joruoca em razão de se lhe extur-
quirem muitos emolumentos do dito Officio porque deo a S. Mag.de
donativo avultado; e hé certo não será izento do gravemen, por asoma-
rem semelhantes Juizes a si todas as dependências que occorrem, sem
remeterem couza algûa para o ordinário, e Geral desta dita Villa o que
actualmente estão praticando os Juizes do Sapucahy, e o da Campanha
do Rio Verde, que sendo deste termo não querem reconhecer superio-
ridade senão ao Ouvidor Geral desta Comarca; e o que mais he tendo
escrivaens com livros de nottas aonde tomão instrumentos publicos
sem que té o prezente nos conste, que para a sua conservação tenha
avido approvação real.

Isto he o que se nos ocorre dizer aos dous pontos da conta do Dezem-
bargador Corregedor desta Comarca mas como a innata prudência de
V. Sª. he de mais superior esphera, a ella nos remetemos para que com
milhor expectação ponha na prezença de Sua Mag.de o mais acerta-
do.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 599


Joaquim Romero de Magalhães

Deos guarde a V. Sª. Sam João d’ElRey em Câmara de 30 de Março


de 1757 // Sebastiam Ferreyra // Leytão // Jozé de Souza Gonçalvez //
Jozeph Garcia // Brás Alves Antunes//

Manoel Francisco da Costa Barros

Senhor

Nesta real ordem de 30 de Dezembro de 1754, hé V. Mag.de servido


ordenarme informe com o meu parecer a conta que a V. Mag.de deu
o Ouvidor geral da comarca do Rio das Mortes, em carta de 17 de
Abril do dito anno, sobre haver posto com primissão minha, hû Juiz
ordinario, e hû Escrivão nas Minas do Itajubá, como também da ne-
cessidade que havia de se criar outro na Jeruoca, e que por escripto
ouvisse eu os Officiaes das Camaras dellas. Hé certo que nas ditas
Minas do Itajobá se necessitava muito da providencia que deo o dito
ouvidor, em por nellas hû Juiz ordinario, e seu Escrivão para conter
aquelles Povos na obediencia das justiças de V. Mag.de, e que a mes-
ma necessidade se dava de se crearem semilhantes na Jeruoca, cujos
destrictos pertencem ao termo da Villa de Sam João de ElRey, e distao
della ao do Itajobá, mais de quarenta legoas, e ao da Jeruoca mais
de trinta: e Supposto que estes digão no referido destricto da Jeruoca
parece desnecessária a mesma providencia por ficar muito mais perto
daquella Villa, donde comodamente vão os Juizes ordinarios, e ainda
a outras mayores distancias tirar devaças, e os officiaes de justiça fa-
zer deligencias, parece não devem ser attencidas as suas razoens, por
me ter a experiencia feito ver, que as justiças de V. Mag.de naquella
capitania só pelos seus interesses cuidão na sua administração; porque
sendo tantos os cazos de mortes sucedidas, com conhecimento mui-
tas vezes dos cúmplices, não lhe sentindo cabedaes, para o embolço
dos seus emolumentos nem hum passo dão fora das villas, excepto
quando há parte, que lhe segurem os ditos emolumentos; sucedendo
por falta da prompta administração de justiça cometerem os mesmos
opressores repetidas morte, e tumultos, que só servem de impedir, que
os officiaes de justiça executem os seus mandados; pelo que me pare-
ce muy conveniente ao serviço de V. Mag.de, que não só se conserve o
Juiz e Escrivão posto pelo Ouvidor no desticto das Minas do Itajobá,
mas que tambem V. Mag.de mande crias semelhantes no da Jeruoca, na
forma da conta dada pelo dito Ministro.

600 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

E pelo que respeita á reprezentação, que dizem os officiaes da Cama-


ra, lhe fizera o Tabalião daquella Villa, sobre o prejuizo, que lhe pode
cauzar o dito Juiz, com seu escrivão no continente da Jeruoca, por
se lhe extorquirem muitos emolumentos do seu officio, tambem me
parece se não deve attender, perterindo o bem comum de tantos, ao
particular de hû.

A Real pessoa de V. Mag.de Guarde Deos como havemos mister, Rio


de Janeiro a 25 de Abril de 1757//

Junta aos mais papeis haja vista o Provedor da Fazenda Lisboa 10 de


Dezembro de 1757

Haja vista o Procurador da Coroa Lisboa 6 de Abril de 1758

Vista a necessidade de que informa o governador parece justo per-


mittirem os juizes ordinarios com seus escrivães para os destrictos
referidos.

Ao Conselho parece que V. Mag.de seja servido, criar hum Juiz ordi-
nario para as Minas de Ittajubá que seja elleyto com os mais officiaes
da Camara da Villa de S. João DelRey na forma da Ordenação, e mais
Leys que as declarão establecidas para a elleyção das justiças e tirará
sua carta de uzança pelo Corregedor da Comarca, e terá a mesma ju-
risdição no destricto das ditas Minas, excepto nas cauzas crimes em as
quaes poderá prender os culpados tomar querellas, proceder a devasas
e pronunciar as deligencias e remetter estes proceços crimes ao juizo
da Ouvidoria com os reos que forem prezos para nelle se senticiarem
as suas culpas e com seu tabalião do judicial e notas para com este
escrever. E pelo que toca ao Juiz que pede o Ouvidor para as Minas da
Jeruoca, parece ao Concelho que por hora se escuze esta providencia
sopposto o que respondem os officiaes da Camara e pelo seu expedien-
te manda o Conselho informar ao Ouvidor da Comarca sobre o abuso
da jurisdição que a Camara diz que praticão os Juizes de Sapucahy e
da Campanha do Rio Verde, para que este faça praticar a estes juízes o
mesmo que dispoem a Ordenação a respeito dos Juizes de Vintena não
se achando ordem de V. Mag.de para que a altere porque sem ella não
podem uzar da jurisdicão que a Camara lhes concidera e com a sua
informação intreporá a Câmara o seu parecer nesta matteria.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 601


Joaquim Romero de Magalhães

Ao Marquez Prezidente parece o mesmo que ao Conselho quanto a


nomeação do Juiz ordinario das Minas de Itajubá acrescentando que
V. Mag.de seja servido declarar que o Ouvidor não podia fazer a cre-
ação nem ainda com permição do Governador, por lhe parecer muito
perjudicial ao Real serviço de V. Mag.de e ao bem de seos vaçallos que
os governadores e ouvidores arroguem a si os poderes que somente
são rezervados à real Pessoa de V. Mag.de e quanto a nova creação de
Juiz do destricto da Jeruoca lhe parece o mesmo que ao Ouvidor e
Governador no que convem os Procuradores regios e a impugnação
da Camara entenda que não tem força, porque sendo so tres dias de
jornada, como diz a mesma Camara e não sinco como informa o Ouvi-
dor sempre lhe parece grande a distancia daquelle logar para se poder
evitar os muitos crimes de mortes e roubos que o dito Ouvidor reffere
mas que não obstante o seu parecer entendia que o Conselho pelo seu
expediente mandasse informar ao novo Ouvidor desta creação das jus-
tiças. Lx.a de Abril 21 de 1758 José Antonio de Azevedo (rubricas)

AHU, — Con. Ultra. – Brasil/MG – Cx. 71, doc. 74

Documento XXVI
Para o mesmo (Governador das Minas Geraes)

Dom José Etc. Faço saber a vós Governador das Minas Gerais que
vendose o que me reprezentarão os officiaes da camara de Vila Real
do Sabará em carta de 20 de Novembro de 1754 de que com esta se
vos remete copia, em que pertendem seja servido ordenar em cada
Arrayal daquele termo em distancia de trinta até quarenta legoas, haja
ventanarios, e Escrivães com poder de fazer escritura, e Inventarios,
tomando por avaliadores os homens bons do lugar, remetendo-os logo
para a Villa e que os mesmos ventanarios fação por mandados não só
as deligencias dos Juizos mas tambem as da Fazenda Real, para deste
modo se evitarem os danos que reprezentão os ditos officiaes da Ca-
mara. Me pareceu ordenarvos informeis com vosso parecer ouvindo
por escrito os Ouvidores das Comarcas dessas Minas. El Rey Nosso
Senhor o mandou pellos Conselheiros do seu Conselho Ultramarino
abaixo asignados, e se passou por duas vias. Theodoro de Abreu Ber-
nardes a fez em lx.ª a 19 de Fevereiro de 1756. O Secretario Joaquim
Miguel // Andrade // Costa

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

AHU, Cartas régias, Minas Gerais, Cód. 242, fl . 25

Documento XXVII
Para o mesmo (Para o Governador interino da Cappitania do Rio de
Janeiro, e Minas Gerais)

Dom José Etc. Faço saber a vós Governador da Cappitania das Minas
geraes que havendo visto o que informastes em carta de 25 de Abril do
anno proximo passado sobre a conta que me deo o Ouvidor geral da Co-
marca do Rio das Mortes, de que pella necessidade que se lhe expuzera de
haver nas Minas de Itajuba, quem administrasse Justiça aos seus habitan-
tes se vira obrigado, sem ordem minha, a pôr nella hû juiz ordinario, e hû
escrivão interinamente té eu lhe determinar se devia ou não conservarsse,
reprezentandome seria tão bem conveniente porse outro Juiz ordinario na
Jeruoca para com elle se poderem atalhar as mortes, e outras insolencias
que são continuas naquelle citio; e vendo o que sobre esta materia respon-
derão os Procuradores de minha Fazenda e Coroa. Fuy servido por minha
real rezolução de dezanove do corrente mez, e anno, tomada em consulta
do meu Conselho Ultramarino; permitir os Juizes ordinarios com seus Es-
crivães para os destritos referidos. ElRey Nosso Senhoro mandou pellos
Conselheiros do seo Conselho Ultramarino abaixo asignados, e se passou
por duas vias, Caetano Ricardo da Silva a fez em Lx.a a 26 de Setembro
de 1758. O Secretario Joaquim Miguel // Andrade // Costa

AHU, Cartas régias, Minas Gerais, Cód. 242, fl . 47

Documento XXVIII
Para o Ouvidor geral da Comarca do Sabará

Dom Jozé Etc. Faço saber a vós Ouvidor Geral da Comarca do Sa-
bará que vendosse o que me reprezentarão os officiaes da Camara
de Villa Real dessa Comarca, para que eu fosse servido ordenar que
em cada Arrayal do termo daquella Villa em distancia de trinta até
quarenta legoas haja vintenarios e Escrivão com poder de fazer es-
crituras e Inventarios, tomando por avaliadores os homens bons do

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 603


Joaquim Romero de Magalhães

lugar, remetendo-os logo para a villa, e que os mesmos vintenarios


fação por mandados, não só as deligencias dos Juizos, mas tão bem
as da Fazenda Real, para deste modo se evitarem os damnos de que
me daveis conta; e vendosse as informações que mandei tomar nesta
materia; e o que sobretudo responderão os Procuradores da Fazen-
da e Coroa. Me parereceu dizervos, que aos officiaes da dita Camara
mando responder que eles devem observar a Ordenação, e na forma
della fazerem Juizes e Escrivães nos Arrayaes aonde houver mais de
vinte moradores, e como na mesma leu se acha dada a providencia da
jurisdição, e exercicio que devem ter estes officiaes, se não necessita
de outra despozição, tendo elles officiaes da Camara entendido que
estes officiaes das vintenas devem fazer as deligencias que os Juizes
ordinarios, e os Ouvidores e officiaes das Câmaras seus superiores
lhes ordenarem por mandados que lhes passarem, em que se declara a
forma por que as deligencias se devem fazer; e pello que toca aos offi-
ciaes da Fazenda se acha dada a providencia na ordem de dezoito de
Fevereiro de mil setecentos e sincoenta e seis, como tão bem se acha
dada a forma porque os Juizes dos orfãos devem fazer os Inventarios
pello novo regimento dos Selarios, publicado em quinze de Outubro
de mil setecentos sincoenta e quatro, o que se vos participa para que
pella vossa parte o façais executar. ElRey Nosso Senhor o mandou
pellos Conselheiros do seu Conselho Ultramarino abaixo asignados e
se passou por duas vias. Manuel Antonio da Rocha o fez em Lix.a a 21
de Agosto de 1760. O Secretario Joaquim Miguel // Tavares // Souto
Mayor

AHU, Cartas régias, Minas Gerais, Cód. 242, fl. 63 r-v

Documento XXIX
Para o Ouvidor da Comarca do Serro do Frio

Dom Jozé Etc. Faço saber a vós Ouvidor da Comarca do Serro do


Frio, que me foi prezente a vossa carta de 30 de Janeiro de 1761, em
que me daveis conta de que por parte dos moradores do Certão do Rio
de S. Francisco; e Rio Verde destricto dessa Comarca, até os ultimos
confins della por humas partes distavão mais de secenta, e setenta le-
goas, e por outras mais de oitenta, tudo povoado com fazendas de
gados, brejos, e engenhos, em que há infinitos moradores, cazaes de

604 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

familiares, havendo somente em tão larga distancia hû Arrayal, que


chamão a Barra do Rio das Velhas, que fica quazi em meyo dos ditos
certões; e por não haver quem lhes administrasse justiça naquelles
destrictos vivião os seus habitantes quazi à ley da natureza, e da sua
vontade sem regra, nem regimen civil, pello que se vião em grande
consternação por não poderem recorrer às justiças dessa comarca, e
menos os officaes della irem àquelle certão; e por estas circunstancias
e outras mais que vos reprezentão, vos pedirão lhes nomeásseis e cre-
aceis de novo hû juiz ordinario, que assistisse na dita Barra do Rio das
Velhas com seo Escrivão, conhecendo no civel e crime, assim como se
tinha praticado nos que se elegerão, e crearão na comarca do Sabará e
no do Rio das Mortes em a Jeruoca, e Itajuba por factura dos Ouvido-
res dellas, que houvera por bem approvar; e posto conhecieis, que sem
ordem minha se não devião prover, e crear semelhantes Juizes, com
tudo atendendo a necessidade, que havia de se administrar justiça nos
ditos certões aos seus habitantes, e a que em outras comarcas se tinha
praticado semelhante creação procedereis em eleger novamente hû
Juiz ordinario, e hû Escrivão, que interinamente administrasse justiça,
emquanto me daveis parte e a deste primeiro ao Governador dessa
Cappitania; o qual não duvidara da eleyção, provendo logo o officio
de Tabalião á vista do que vos determinaria eu se hão de conservarsse
o Juiz ordinario com o seu Escrivão com os mais officiaes que forem
precizos no dito destricto que tão bem lhe destinastes por balizar cer-
tas das suas longetudes, segundo as informações, que conseguistes,
e sendome tão bem prezente a conta que sobre esta materia me deo
o Governador interino que foi dessa cappitania Jozé Antonio Freire
de Andrade; e vendo o que sobre tudo responderão os Procuradores
de minha Fazenda e Coroa. Fuy servido por minha real rezolução de
vinte e sete de Novembro de 1761 em Consulta do meu Conselho Ul-
tramarino mandar approvar esta creação a exemplo das que se fizerão
pelos mesmos motivos nas Minas de Itajuba, e em Juruoca: Do que
vos avizo para que asim o fiqueis entendendo. ElRey Nosso Senhor
o mandou pellos Conselheiros do seo Conselho Ultramarino abaixo
asignados, e se passou por duas vias, Manuel António da Rocha a
fez em Lix.a a 20 de Abril de 1763. O Secretario Joaquim Miguel //
Tavares // Soto mayor.

AHU, Cartas régias, Minas Gerais, Cód. 242, fl . 86 r-87

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 605


Joaquim Romero de Magalhães

Documento XXX
Segue a conta que fazem os moradores do Continente e Campanha
do Rio Verde Comarca do Rio das Mortes, em que pedem a S. Mag.
de
se digne por piedade dar as providencias necessarias para evitarem
os grandes incomodos e prejuizos que padecem, sendo obrigados a
hir propor as acçoens novas na cabeça da comarca perante o ouvidor,
devendo-o fazer no Juizo ordinario daquele Continente aonde se expe-
rimentão iguaes damnos e extorçoens das sismarias, e cobranças das
dividas da Real Fazenda pelos officiaes que se mandão de Vila Rica.
E vão os documentos que se anexão

Como parece Palacio de Queluz em 21 de Julho de 1779 com a rubrica


de S. Mag.de

Por este Conselho reprezentarão a V. Mag.de os moradores do Con-


tinente e Campanha do Rio Verde, comarca do Rio das Mortes: Que
havendo naquela paragem havia 24 anos Juiz ordinario com alçada no
civel e crime confirmado por S. Mag.de os officiaes pagavão donativo,
e comtando a sobredita freguezia de 534 fogos, e estando outrosim
cituada a dita povoação na longa distancia de 35 legoas da villa de S.
João de ElRey cabeça da comarca como se patenteava dos documen-
tos que juntavão athe o nº 4º costumavão os credores demandar por
acçoens novas aos seos devedores, existentes naquele destrito pelo
juizo da Ouvidoria da preditta Camera tirando-os do seo foro, em que
erão domiciliarios, e obrigando-os a deixarem as suas cazas, familias,
officios e serviços de minerar em que actualmente estavão occupa-
dos na extracção do ouro; de cuja digressão e devertimento não só
rezultava concideravel prejuizo ao publico, se não ainda ao mesmo
Erario Real, devendo os ditos Menistros só conhecer por appellação
e aggravo na conformidade da lei do Reino, alem de lançar os suppli-
cantes no meio de lastimozas ruinas, e perigos evidentissimos, sendo
aquelas ocazionadas pelos negros foragidos, chamados vulgarmente
canhambolas, e estes manifestos nas passagens de seis rios, dous dos
quaes erão excessivamente caudalozos e só a embarcaçoens permetir
o seu tranzito, e principalmente no tempo das agoas, mas engrossa-
vão o seo caudal de que se tinha originado a morte a algum dos su-
pplicantes, como se fazia certo pelo juramento das testemunhas que
deposerão na justificação que se aprezentava no 5º; alem tãobem dos
excessivos emolumentos que costumavão levar os officiaes de Justiça

606 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

da dita cabeça de Comarca nas citações e mais deligencias que hiam


fazer áquelle Continente; em cuja concideração succedia muitas ve-
zes os devedores condescenderem com a demaziada cobiça dos seos
credores pagando a estes mais do que na verdade lhes devião, só a
fim de evitarem sumptuozas custas e despesas que indubitavelmente
lhes hade vir na deficultozissima custiação da demanda agitada em
parte tão longínqua; o que tãobem sucedia a respeyto dos Juizes das
sesmarias e dos orphãos, os quaes nos seos avultados emolumentos
e dos seos officiaes, que os acompanhavão, fazião odiozas as suas
deligencias, absorvendo a dos orphãos muitas vezes na facção dos
inventarios quazi toda a herança que aos ditos orphãos acontecia por
morte dos seus progenitores; que isto mesmo acontecia simultanea-
mente com os officiaes da Fazenda Real expedidos de Vila Rica, os
quaes pela maior parte por lemitadas quantias de dividas, ou penhoras
costumavão vencer, e contar grossissimas custas que vinhão a exceder
em dobro ao mesmo principal sendo que devião tão somente contar
da freguesia em que entravão; e que finalmente procedia o referido
a respeito dos Provedores das Fazendas dos defuntos e auzentes que
tãobem na factura dos Inventarios dos bens dos que morrião ab intes-
tado no referido destricto consumião as heranças em notavel prejuizo
dos herdeiros a quem competião como asim se achava justificado por
parte dos suplicantes e como estes se vião vexados quotidianamente
com as preditas exorbitâncias de selarios e mofinaçoens fora das suas
cazas, cauzando as mesmas hum continuo e geral clamor em todos
aqueles povos; razão porque recorrião ao muito alto poder de V. Mag.
de
para que com entranhas de May e Senhora os atendesse em tão jus-
tos e successivos clamores conferindo em negocio tão importante a
providencia que estava exigindo.

Pedem a V. Mag.de se digne conferirlhe a pertendida providencia pois


de outra forma vivirião os ditos povos aflictos com hum continuo ve-
xame incessantemente ocazionado por tantos julgadores asima espe-
cificados.

Os documentos mencionados na referida reprezentação sobem com


esta a Soberana Prezença de V. Mag.de.

O Provedor da Fazenda a quem se deo vista disse que devia informar o


Governador e Capitam General com o seo parecer, interpondo exacta

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Joaquim Romero de Magalhães

e destintamente sobre cada hûa das matérias que fazião o objecto da


prezente reprezentação. Pela Real ordem de 7 de Abril de 1772 se
ordenou ao Governador e Capitam General da Capitania de Minas Ge-
raes informasse na conformidade da resposta do Provedor da Fazenda
a que satisfez o Conde de Valladares em carta de 29 de Dezembro do
sobredito anno, dizendo: que V. Mag.de lhe ordenava na dita Real or-
dem informasse destinctamente de cada hûa das materias conteudas na
reprezentação que na Real e Augusta Presença de V. Mag.de puzerão os
moradores da Campanha do Rio Verde comarca do Rio das Mortes.

Que neste Arraial e destricto da Campanha havia Juiz ordinario com


os necessarios officiaes. Que era certo haver nelle a grande quantidade
de gente como se via da Campanha no termo e ser a distancia a Villa
de S. João cabeça da Comarca com pouca diferença a que os suplican-
tes dezião tendo de passar rios caudalozos, citios ermos, e solitários,
devendo pagar as passagens em portos estabelecidos a este fim.

Que a creação deste juizado não fora por outra rezão que não fosse
de aliviar aos povos de proporem as suas acçoens na ouvidoria ou
ordinario de S. João. Que a ley do Reyno Livro 2º ttº quarenta e cinco
§ 50 defendia interporemse as acçoens novas nas ouvedorias excepto
dos Poderozos; que naquella Capitania era estillo, diria melhor abuzo
pois não julgava estillo que se devesse praticar / aquele que era dia-
metralmente oposto à ley / o poremse acçoens novas perante o ouvi-
dor e por isso justamente se queixavão os Supplicantes moradores na
Campanha do Rio Verde dos exorbitantes gastos que os officiaes da
Ouvidoria lhes fazião.

Que nos julgados de S. Romão, Papagaio da Comarca do Sabará erão


os Juizes ordinarios ao mesmo tempo de orphãos, e parecia que se
dava a mesma rezão para o serem os da Campanha do Rio Verde; que
nestes julgados costumavão haver SubProvedores com seus respec-
tivos officiaes o que na verdade parecia util e praticavel naquele da
Campanha.

Que os officiaes da Real Fazenda fazião extorçoens honrrozas (sic) e


já em reprezentação de 28 de Março de 1771 o puzera na Real Presen-
ça de V. Mag.de. Que proximamente succedera pedirse auxilio para se
cobrar hûa divida que a Real Fazenda devia naquele destricto que era

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

o seo principal de 4 partes e fizerão de custas quarenta e semelhante-


mente tinha succedido e succede a todos os devedores; ao mesmo tem-
po que se podia evitar este prejuizo tão grave mandandose executar os
devedores pelo Juiz ou pelo Intendente da Comarca como Menistro da
Fazenda e que seguindo o seu Juizo o geral Regimento e que não fosse
o da Provedoria já suavizavão as despezas às partes maiormente não
tendo a Real Fazenda o prejuízo.

Que na conformidade da ordem de V. Mag.de de 7 de Maio de 1763


em beneficio dos povos rezolveo V. Mag.de que houvesse e cada ter-
mo Juiz das Sesmarias; Que as rezoens que os supplicantes alegavão
a respeito do Juiz dos orphãos erão as mesmas que para o Juiz das
Sesmarias havendo Letrados no Arraial, podia a Camera propor a elle
Governador informante três, como succedia para os Juizes das Villas e
não havendo servir o juiz ordinario tãobem de Juiz das Sesmarias.

Que desta forma julgava certa a reprezentação dos Supplicantes que


necessitavão que V. Mag.de ordene que em observância da ley as ac-
çoens novas / não sendo poderozos / se interponhão perante o Juiz
ordinario e que este seja tãobem dos orphãos; que o mesmo Juiz seja
SubProvedor da fazenda dos defuntos, e auzentes servindo na arreca-
dação de seos bens os officiaes do ordinario e que as execuçoens da
Real Fazenda se fação por officiaes do mesmo Juizo.

Que desta sorte se executavão as leys de V. Mag.de e não tinhão os


supplicantes os prejuizos que reprezentavão, e que se verificavão, sen-
do este o seu parecer sobre o qual Decretaria V. Mag.de o que fosse
servida.

Os documentos que se declarão na referida informação, sobem tam-


bem incluzos.

Sobre esta informação, a que se mandou juntar o requerimento dos


moradores da Campanha do Rio Verde, foi outra vês ouvido o Pro-
curador da Fazenda o qual respondeo: Que á vista da qualidade das
providencias, que pedião os Supplicantes nas differentes materias, a
que dirigião o seu requerimento, e do que sobre tudo informava o
Governador, e Cappitam General, parecia, que devião a elles requerer
imediatamente a V. Mag.de.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 609


Joaquim Romero de Magalhães

Dando-se tambem vista ao Procurador da Coroa, disse: Que diferentes


erão os pontos, e as materias, que os Supplicantes propunhão no pre-
zente Requerimento; todos porem tão dignos de serem attendidos, pe-
las justas razoens, que allegavão, e comprovavão com os documentos,
que juntavão, que ainda quando não interviesse o parecer do Governa-
dor que informava serem todas verdadeiras, e justamente expendidas
sempre merecerião as mesmas providencias, que por este Conselho se
tinhão dado, já em cazos identicos, a favor dos moradores de outras
similhantes povoaçoens.

Que sem duvida os ouvidores e corregedores das comarcas tinhão ju-


risdição comulativa com os Juizes ordinarios para conhecerem das
acçoens novas, mas a dita jurisdição só lhes competia nos termos em
que os ditos ouvidores tinhão actual rezidencia, e fora dos seos lemites
só podião exercitar a mesma jurisdição em diferentes termos na dis-
tancia de duas legoas, como expressamente dispunha a Ordenação no
Livro 1º ttº 58, § 23. Que os supplicantes estavão distantes do lugar de
rezidencia do Ouvidor daquella Comarca 35 legoas; em consideração
desta grande distancia lhes fora concedido hum juiz ordinário, com
termo proprio e destincto do da Villa de S. João. E que se o Ouvidor
continuar a conhecer ainda das acçoens novas do dito termo, depois
se separado, ficaria sendo inutil a dita providencia, com que V. Mag.de
atende aos incomodos e prejuizos que padecião os Supplicantes com
o necessario; e oportuno remedio de lhes dar hum Juiz proprio para o
conhecimento das suas cauzas; que era pois clara e manifesta a vio-
lencia, e opressão que lhes fazia o Ouvidor em obrigallos a responder
perante elle nas acçoens novas, extrahindoos para esse fim dos seos
domecilios, e justamente requerião os mesmos superiores a este con-
celho as providencias necessarias para que houvessem de cessar as
vexaçoens, que pelo referido motivo padecião.

Que tãobem era conforme à ley do Reyno que o Juiz ordinario da-
quele termo, separado e proprio sirva juntamente de Juiz dos orphãos
emquanto no dito termo, e povoação não houver tantos menores que
possa ter lugar crearse hum juiz dos orphãos separado e diverso do
Juiz ordinario; asim como era repugnante à mesma ley, que esteja o
Juiz dos orphãos da Villa de São João exercitando ainda jurisdição no
termo dos Suplicantes depois de separado do da dita Vila, e que aos
mizeraveis orphãos do referido termo, que estão na mesma grande dis-

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Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

tancia se estejão denegando aqueles como dos que recebem os outros


moradores de terem dentro dos lemites do seo termo hum Juiz que
conheça das suas cauzas.

Quanto ao Juiz das Sesmarias para o termo dos Suplicantes se devião


propor ao Governador os que nelle havião de servir, conforme a Pro-
visão de 7 de Maio de 1763, expedida por este Concelho para aquela
mesma Capitania; e se juntava por copia neste requerimento e como
estava já dada esta providencia, nada mais restava sobre este artigo
que apertar a execução della.

Pelo que respeitava aos meirinhos, e officiaes da Fazenda Real, se lhes


devião contar os mesmos sellarios que o Regimento determinar para
os outros officiaes de justiça da mesma qualidade; e graduação com a
declaração porem de que se lhes não devião contar os dittos caminhos
de Vila Rica para qualquer parte onde vão fazer as deligencias por que
isso seria intolerável as partes a que respeitassem as ditas deligencias,
suposta a grande distancia de Vila Rica, em que muitas são maneiras.
E conteria hûa grande opressão dos povos, principalmente suposto o
grande trem com que os ditos officiaes costumão marchar e se lhes
ouvessem de contar os ditos caminhos de Vila Rica athe os lugares das
deligencias de cada hûa das partes.

Pelo que sahindo os ditos officiaes de Vila Rica se lhe deverá contar
hum só caminho da dita Vila athé a capital do termo aonde forem
fazer as deligencias, a que forem mandados, o qual caminho lhes será
satisfeito por todas as partes a que respeitarem as ditas deligencias,
rateandose a despesa delle por todas; e da Vila Cabeça do termo das
deligencias athé os lugares dellas, se contará o vencimento delles na
forma costumada; havendo cuidado de se não mandarem officiaes de
Vila Rica a termos remotos, a hûa só deligencia; mas indo encarrega-
dos de muitas para ficar mais suave a despeza do caminho, que se deve
contar às partes.

Que o melhor porem seria que as ditas deligencias se não mandassem


fazer por officiaes de Vila Rica, mas sim que em cada hûa das Vilas ca-
pittaes dos diferentes termos e comarcas, haja alguns officiaes nellas
rezidentes, que sejão deputados para as deligencias que se deverem
fazer nos seos respectivos termos, e que a elles somente se comet-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 611


Joaquim Romero de Magalhães

tão as deligencias dos ditos termos, porque por este modo cessará a
grande despeza do caminho que se costuma contar de Vila Rica, salvo
somente os cazos em que forem taes as deligencias que para ellas se
faça precizo mandar officiaes de que a Junta da Fazenda tenha maior
conhecimento e faça mais confidencia. O que assim seria muito con-
veniente se praticasse quando, a este Concelho não parecesse melhor,
que nem esses officiaes houvesse rezidentes nas Vilas capitaes dos
termos e comarcas, e deputados para as deligencias das ditas comar-
cas, e que as deligencias se mandem fazer pelos officiaes das respec-
tivas ouvidorias, e cabeças de comarcas dirigindose as ordens para
ellas, aos Ouvidores e Juizes de Fora das ditas Comarcas e termos,
para elles as mandarem executar pelos ditos seos officiaes ou pelo
menos encarregandoselhes que vigiem sobre a execução dellas, e das
cobranças a que se dirigirem, sob penna de se lhes dar em culpa nas
suas rezidencias toda a omissão em que nisso incorrerem; e porque
adoptandose este meio, evitarsehá o infinito numero de officiaes da
Fazenda espalhados por diferentes comarcar, os continuos roubos que
costumão cometer fiados na longa distancia que vivem da rezidencia
da Junta, e as dezordens que costumão haver por esta cauza entre os
Menistros da dita Junta, e os Ouvidores das respectivas comarcas da
rezidencia daqueles officiaes, querendo a dita Junta por ouvidores não
possão autualos e prendellos pelos furtos, e extroçoens que notoria-
mente fazem nas suas comarcas, e que nellas fazem de impunidade
e não obstante as continuas vexaçoens, e opressoens dos mizeraveis
Povos, os quaes pela grande distancia em que vivem de Vila Rica ou
não podem recorrer a dita Junta da Fazenda ou a ella recorrem debalde
pela prepotencia dos ditos officiaes, e tem por menor mal sofrerem
silenciosamnte as violencias dos ditos officiaes, em cujas nomeaçoens
athe se pratica o abuzo de serem excessivas e por se passarem cartas
de semelhantes officiaes a todos, ou a grande parte dos que o pedem
por intersses particulares sem a indispensavel atenção que se devia
ter a não se concederem se não aos precizos, e necessários para a boa
arrecadação da Fazenda Real, e execução das deligencias para ella
necessárias, e sem se attender que com a supeflua concessão de seme-
lhantes cartas se faz conservar na ociozidade a numeroza multidão de
individuos a que ellas se concedem e se habelita hum igual numero de
vadios para chuparem livremente o sangue e a substancia dos povos, o
que praticão, fingindo ordens, e fazendo deligencias que lhe faz con-
ta, e não executando as que se lhes encarregão quando as partes lhes

612 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Documentos sobre “Juízes Ordinários” nos territórios brasileiros no século XVIII

cortão as mãos, resultando dahi padecerem os aflitos e consternados


vassallos, fazeremse as execuçoens somente nos pobres, e darse aos
ricos todo o tempo que querem athé o ponto de se perderem as dividas
por fallirem pendente elle de bens ou devedores, com o manifesto
prejuízo que a Fazenda Real se segue das abominaveis e insofriveis
manobras dos sobreditos officiaes de cujo excessivo numero tenho por
muitas vezes ouvido repetidas queixas, e se lembrava terselhe ditto,
que havendose extrahido hûa porçam de officiaes se achara sobir elle
ao de mil e outtocentos homens na Capitania de Minnas Geraes, cou-
za na verdade exorbitante, e que quando não fosse verdade e exacta
/ pois a não abonava / sempre fazia ver que ao dito respeito havia
hum grande abuzo, que se devia cohibir, e fazer desterrar, pelos meios
sobreditos ou por aquelles que este Concelho julgasse mais próprios
para pôr freio ás apontadas dezordens, e dignos de se proporem a V.
Mag.de para que se dignasse acudir a tantos males, com promptos e
competentes remédios.

E sendo tudo Visto.

Ao Conselho parece o mesmo que ao Procurador da Coroa, e só pello


que respeita aos tres Arbítrios, que o mesmo propoem para evitar as
insoportaveis extorçoens, que aos Povos das Minnas fazem os officia-
es nas execucçoens das ordens e cobranças da Real Fazenda adopta o
Conselho o de se fazerem as referidas execuçoens dos devedores da
Fazenda Real pelos officiaes respectivos dos destrictos e termos dos
mesmos devedores, dirigindose as ordens da Junta aos Ouvidores os
Juizes de Fora dos referidos destrictos (sic); e quando os executados
sejão moradores em termos em que só hajão Juizes ordinarios, que
os Ouvidores das Comarcas, que os comprehender lhes fação expedir
as ordens necessarias ficando sujeitos estes às rezidencias, e aqueles
às correiçoens por qualquer omissão em que hajão incorrido a este
respeito; suprimindose todos os provimentos de simplices officiaes
da Fazenda que não sejão os que servem com os menistros della, e os
indispensavelmente necessarios nas suas respectivas estaçoens; salvo
porem aqueles cazos em que a quantidade da divida, e a qualidade
do devedor fizer necessaria maior actividade, e officiaria que a dos
officiais sobstituhidos, a que poderá prudentemente regular, segundo a
exigencia dos mesmos cazos, a mesmo Junta da Real Fazenda. Lx.ª 11
de Março de 1778 // Miguel Serrão Denis // José Carvalho de Andrade

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011 613


Joaquim Romero de Magalhães

// João Baptista Vás Pereira // Manoel da Fonseca Brandão // Forão


vottos os Conselheiros Diogo Rangel de Almeida Castel Branco, e
Luis Diogo Lobo da Silva

AHU, Consultas do Conselho, Minas Gerais, Cód. 244, fls. 189-192 v

Texto apresentado em janeiro /2011. Aprovado para publicação em


abril /2011.

614 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):547-614, jul./set. 2011


Geografias Pátrias: Brasil e Portugal – 1875/1889

IV – RESENHAS
REVIEW ESSAYS

MARY, Cristina Pessanha.


Geografias Pátrias: Brasil e Portugal – 1875/1889
Niterói: Editora da UFF, 2010.
(Coleção Biblioteca da UFF, 2004). 192 p. ISBN 978-85-228-0533-4
Luciene Pereira Carris Cardoso 1

O livro “Geografias Pátrias” foi concebido, inicialmente, como tese


de doutorado defendida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em
História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a orien-
tação do saudoso professor Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães. A
obra constitui uma valiosa contribuição à bibliografia sobre a história da
geografia brasileira, bem como para a história das instituições e das rela-
ções luso-brasileiras, uma vez que examina a trajetória efêmera da Seção
Filial da Sociedade de Geografia de Lisboa, sediada na capital da Corte
Imperial em fins dos Oitocentos. A publicação, estruturada em quatro ca-
pítulos, além da introdução e da conclusão, foi prefaciada pelo já citado
Manoel Salgado e a orelha assinada pelo geógrafo Antônio Carlos Robert
de Moraes. Complementam-na os apêndices que apresentam os quadros
administrativos da matriz portuguesa e da filial brasileira, bem como a
listagem com o perfil sócio-profissional de seus associados do lado de cá
do Atlântico.

No primeiro capítulo, a autora analisa o conjunto de ações expan-


sionistas das nações civilizadas européias a regiões consideradas como
inóspitas ou bárbaras, denominado pelos estudiosos de “movimento ge-
ográfico”. É neste período que as sociedades geográficas aumentaram
expressivamente, desempenhando papel de destaque na engrenagem do
sistema colonial. Tais entidades forneciam conhecimentos necessários à

1 – Doutora em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):615-618, jul./set. 2011 615


Luciene Pereira Carris Cardoso

aventura expansionista, além de formar quadros ligados à administração


das colônias, bem como promoviam expedições de reconhecimento a ter-
ras distantes. De todo modo, Cristina adverte que as relações entre tais
instituições e as esferas de poder eram sempre ambíguas e tensas para
compreendê-las apenas como agentes do imperialismo, pois exerciam
forte influência cultural, contribuindo para reforçar identidades nacionais
das ex-colônias.

Logo após a apreciação da crônica do movimento geográfico euro-


peu ao longo do século dezenove, a autora investiga, no segundo capítulo,
a conjuntura da criação da Sociedade de Geografia de Lisboa em 1875.
Entre outras razões, o sentimento de declínio, ou até mesmo de decadên-
cia, impulsionou o Governo português a reforçar o seu predomínio no
continente africano, almejando defender sua posição em relação às ou-
tras nações européias. O estado português havia perdido a sua ex-colônia
no continente americano nas primeiras décadas daquele século, portanto,
não abriria mão de outros territórios.

A instituição lusa articularia um poderoso programa de pressão junto


às esferas governamentais a favor de uma ação mais efetiva na África, ao
mesmo tempo em que instigava a valorização do sentimento patriótico,
por meio de homenagens aos grandes heróis dos descobrimentos e de
comemorações de seus feitos. Para tanto, a história e a geografia aparece-
riam entrelaçadas, uma vez que ainda não havia uma associação dedicada
aos estudos históricos, nas palavras da estudiosa: “(...) se o espaço colo-
nial figurou como promessa para o futuro nacional, a história não deixou
de transformá-lo em monumento da civilização lusa” (p.48).

Evidenciava-se também que a conjuntura de aflição demandava ou-


tras medidas extremas como a criação de Fundo Africano, lastreado em
subscrições nacionais e destinado a promover incursões na África. Parale-
lamente, se previa o estabelecimento de filiais da Sociedade de Geografia
de Lisboa em diversas localidades, com o objetivo de reunir um número
significante de sócio-correspondentes comprometidos com os interesses
portugueses.

616 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):615-618, jul./set. 2011


Geografias Pátrias: Brasil e Portugal – 1875/1889

O capítulo seguinte é dedicado ao exame da trajetória da Seção Fi-


lial da Sociedade de Geografia de Lisboa no Rio de Janeiro entre 1878 e
1889. Segundo a autora, acreditava-se que em prol das ciências antigas
rivalidades existentes entre portugueses e brasileiros seriam abrandadas,
tal argumento funcionaria por um curto período, aproximando inclusive
para os seus quadros sociais diversas personalidades de destaque do ce-
nário intelectual e político da época.

Seguindo as recomendações da matriz portuguesa, as atividades


transcorreram normalmente até 1881, quando sucedeu uma espécie de
cisma entre os seus associados. Com o movimento republicano, os inte-
grantes da Seção viram estreitarem-se seus horizontes. Assim, uma parte
se nacionalizou com a criação da Sociedade de Geografia do Rio de Janei-
ro em 1883, enquanto outro grupo permaneceu fiel a proposta original. As
duas instituições conviveriam com objetivos distintos: a nacional estaria
desde a sua fundação comprometida com as necessidades do Estado bra-
sileiro e o instituto português nos trópicos envolvido com o sonho de um
Império luso-brasileiro.

Ao levantar o perfil sócio-profissional dos seus associados e os te-


mas publicados na coleção do periódico da sucursal lusitana, a autora
averigua algumas particularidades partilhadas entre aqueles letrados Oi-
tocentistas, tais como a existência de diversas filiações ideológicas e a
boa convivência com outras agremiações. Outra revelação significante
incide na constatação de uma complexidade das idéias de geografia no
Brasil daquele período, ou seja, a existência de variadas tradições da dis-
ciplina, no seu entender: “(...) muito mais um mosaico de concepções e
muito menos uma idéia absoluta de geografia” (p.117). Conviviam na
Seção Filial figuras do porte de Emílio Zaluar, um dos primeiros autores a
escrever ficção científica no Brasil, do ramo dos exploradores, o Barão de
Teffé e o Barão de Ladário, responsáveis por demarcações de fronteiras
do Império, assim como os nomes ligados a astronomia e a geologia.

O último capítulo aborda uma dessas trajetórias, a de Antônio Luiz


Von Hoonhlotz, o Barão de Teffé, ao lado do exame das atividades da

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):615-618, jul./set. 2011 617


Luciene Pereira Carris Cardoso

Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro nos seus primeiros anos de


funcionamento. Cristina observa que no momento em que ocorreu o im-
bróglio separatista, o Barão resignou-se à sua função de presidente da
filial, passando a integrar a congênere carioca, tornando-se um de seus
membros mais atuantes. Desde a sua criação em 1883, a entidade carioca
se dedicou ao estudo da geografia centrada nos territórios do Império e
exercida por brasileiros, envolvida com os projetos do Governo brasilei-
ro. Tais propósitos haveriam de ser compartilhados também pelo Barão.
Neste sentido, o engajamento no projeto de um Brasil como continuidade
ibérica, atrelou definitivamente a sorte da Seção Filial à do Império, le-
vando ao encerramento de suas atividades na Corte Imperial. Além disso,
Cristina Pessanha revela como o tema nação ocupa um lugar de destaque
na cultura política Oitocentista, uma vez que a construção da idéia de na-
ção como uma invenção moderna articulou saberes distintos, neste caso,
a geografia e a história.

Texto apresentado em dezembro /2010. Aprovado para publicação


em março /2011.

618 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 172 (452):615-618, jul./set. 2011


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
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• Capítulo ou parte de livro: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome. Título
do livro: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. nn-nn.
• Artigo em periódico: SOBRENOME, nome. Título do artigo. Título do periódico, Cidade: Editora, v.
nn, n.nn, p. nn-nn, ano.
• Trabalho acadêmico: SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo. Tese (Doutorado em...)- Instituição.
Cidade, ano, nnnp.
• Texto obtido na internet: SOBRENOME, Nome. Título. Data (se houver). Disponível em: www......
Acesso em: dd.mm.aa.

Somente serão aceitos os trabalhos encaminhados de acordo com as normas


acima definidas.

Endereço para correspondência:


Revista do IHGB/IHGB
Avenida Augusto Severo, 8 – 10º andar – Glória
20021-040 – Rio de Janeiro – RJ
E-mail: revista@ihgb.org.br
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
GUIDE FOR THE AUTHORS
1. The Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro is a scientific publication, focusing on
historical knowledge diffusion, as well as other subjects and related areas, in the scope of Brazilian
Studies. It receives contributions, such as: articles, essays, notifications, review essays, research notes, as
well as documents of historical value with critical comments. It can also publish thematic and selective
dossier, organized by Brazilian and foreign specialists.
2. The management organs of the Revista are the Editorial Board, the Advisory Board and Editorial
Committee.
3. The Advisory Board is responsible for the evaluation about the contributions submitted for publication.
4. The publication of each and every collaboration will depend on the editorial rules compliance and the
evaluation of the Editorial Board, the Editorial Committee and/or advisors ad hoc. The articles are
submitted to two reviewers who are always asked to express any impediment that precludes the issuance
of the respective feedback. In case of conflicting judgments, the editor will send the text to a third
appraiser. All feedbacks are confidential.
5. The concepts expressed in works published are entirely the authors’ responsibility.
6. The texts will be published through the authors’ cession of publication copyright given to the Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, both through print and electronic.
7. The Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publish the following kinds of contributions:
7.1. Articles: it includes analytical texts or essays which are resultant of studies and researches
concerning the themes that are interesting to the R.IHGB. (up to ten thousand words).
7.2. Notifications: is destined to the publication of brief interventions, made by partners or guests
in the sessions of the IHGB (up to four thousand words).
7.3. Research Notes: it focuses on preliminary reports and partial results of ongoing investigations
(up to five thousand words).
7.4. Documents: it publishes sources, preferably unpublished or the ones which have been
improved recently (up to ten thousand words).
7.5. Bibliography: besides the publication of review essays, bibliographic balances, thematic,
selective and commented bibliographies are emphasized, (up to two thousand words,
summary and/or abstract are not necessary).

EDITORIAL RULES
• The contributions must be unpublished and exclusively written to R.IHGB, in Portuguese, English,
French, Spanish or Italian.
• Except works addressed to bibliography section, the authors must, mandatorily, present titles and
abstracts in Portuguese and English, independently of the language of the original text. If it is not in
Portuguese or English, it will be necessary to add the abstract in the original language as well. The
abstract cannot have more than 250 (two hundred and fifty) words, followed by the keywords, minimum
3 (three) and maximum 6 (six), in English and Portuguese, representing the content of the work.
• Documents sent to publication have to be transcribed and have the codex or archival indication from
where they were copied, followed by an explanatory introduction.
• The R. IHGB limits the opportunity of publication according to its schedule and interest, notifying the
• approval or disapproval of the publication to the author. The original texts will not be returned.
• If the contribution is approved, the author will have fifteen days to give the authorization term back,
from the date R.IHGB has posted it .
• The authors will receive 10 volumes of the Revista when the publication is supported by the Gráfica
do Senado Federal.

TEXTS PRESENTATION
• Original typing in high density disk or CD, properly identified with the title of the text and name(s) of
the author(s), and three printed copies, including tables and references; in format A4, margins 2,5cm,
space between lines 1,5cm, on one side of the paper, font Times New Roman size 12, and consecutive
numbering. The Microsoft Word text editor or a compatible one should be used. If there are images,
identify in the text the places of the pictures and other types of illustration.
• Illustrations and captions have to be put in separate sheets of paper. The images have to be scanned in
300 dpi in format jpg and approximately dimensioned in format 5 x 5 cm;
• Front page: all the articles should have a front page with the title, the author’s whole name and the
institution they come from. The footnote has to mention the complete address and e-mail of the author, to
whom the mail will be sent. Only on this page the author’s identification will appear, for the secrecy.
• The translations, preferably unpublished, should have the author’s authorization and the respective
original text.
• The notes should be put in the footnote and the bibliography at the end of the texts. Both have to follow
ABNT standard. Norms for presenting footnotes:
• Books: LAST NAME, First Name. Title of the book in italics: subtitle. Translation. Edition. City:
Publisher, year, p. or pp.
• Chapters: LAST NAME, First Name. Title of the chapter. In: LAST NAME, First Name (ed.). Title of
the book in italics: subtitle. Edition. City: Publisher, year, p. nn-nn.
• Article: LAST NAME, First Name. Title of the article. Title of the jounal in italics. City: Publisher.
Vol., n., p. x-y, year.
• Thesis: LAST NAME, First Name. Title of the thesis in italics: subtitle. Thesis (PhD in …..) Institution.
City, year, p. nn-nn.
• Internet: LAST NAME, First Name. Title. Available at: www….., consulted dd.mm.yy.

Only the texts presented accordingly to the rules defined above will be ac-
cepted.

Address:
Revista do IHGB/IHGB
Avenida Augusto Severo, 8 – 10º andar – Glória
20021-040 – Rio de Janeiro – RJ
E-mail: revista@ihgb.org.br
ESTA OBRA FOI IMPRESSA
PELA GRÁFICA DO SENADO,
BRASÍLIA/DF,
EM 2011, COM UMA TIRAGEM
DE 700 EXEMPLARES

A Gráfica do Senado limitou-se a executar os serviços de impressão e acabamento desta obra.

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