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POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Cidadania, democracia associativa e metodologias participativas

MANUEL CARLOS SILVA


JOÃO TEIXEIRA LOPES Sociólogo, Doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação, é Professor Esta obra coletiva, organizada no âmbito do projeto de investigação «Modos de Vida e Formas de Habitar: MANUEL CARLOS SILVA Sociólogo, Doutorado em Ciências Sociais, Culturais e Políticas na Universidade

POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA


FERNANDO MATOS RODRIGUES
Catedrático do Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Coordena- ‘ilhas’ e bairros populares no Porto e em Braga», financiado pela FCT e enquadrado no Centro Interdisci- de Amesterdão, Diretor do Centro de Investigação em Ciências Sociais (2002-2014) e Presidente da Asso-
dor do Instituto de Sociologia da mesma universidade e Presidente da Associação Portuguesa de Sociolo- plinar de Ciências Sociais (CICS.Nova) da Universidade do Minho, resulta da realização de vários seminá-
JOÃO TEIXEIRA LOPES ciação Portuguesa de Sociologia (2010-2012), é Professor Catedrático e investigador do Centro Interdisci-
gia desde 2016, tendo investigado e publicado nas áreas da cultura, da cidade, da juventude e da educa- rios e encontros a nível regional, nomeadamente no Porto e em Braga, com a colaboração do Laboratório ANTÓNIO CEREJEIRA FONTES plinar de Ciências Sociais (CICS.Nova), Universidade do Minho, e do Centro de Estudos Avançados Multidis-
ção, bem como na da museologia e em estudos territoriais. de Habitação Básica (LAHB) e com a participação de cidadãos/ãs, associações de moradores, membros TERESA MORA (ORGS.) ciplinares da Universidade de Brasília, sendo o rural-urbano, o desenvolvimento e as desigualdades sociais
da equipa e outros especialistas nacionais e internacionais em metodologias participativas, tendo como as suas principais áreas de investigação.
foco nuclear a questão da Habitação Básica. Nesta obra é evidenciado o relativo abandono por parte do
ANTÓNIO J. CEREJEIRA FONTES Engenheiro Civil desde 1992 e Arquiteto desde 2000, é Especialista Estado português de bairros populares carenciados em termos de condições objetivas de vida e habita-
em Planeamento Urbano. Doutorando na Universidade do Minho, é Docente Convidado na Universidade do ção, uma considerável insatisfação dos seus moradores/as e, simultaneamente, um ensaio de explicação FERNANDO MATOS RODRIGUES Mestre em Antropologia e com Curso de Doutoramento em Teoria da
Minho e em várias instituições de ensino superior na Europa. Sócio-fundador da Cerejeira Fontes Archi- sobre o porquê da débil ou mesmo ausente ação coletiva, sem ignorar casos excecionais bem sucedidos Arquitetura e Projeto Arquitetónico pela Universidade de Valladolid, Doutorando em Sociologia e investi-
tects, foi vencedor de diversos prémios (inter)nacionais e selecionado para várias exposições internacio- como o da Bela Vista no Porto. São avançadas reflexões de cariz interdisciplinar sobre democracia e o gador no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.Nova) na Universidade do Minho, docente de
nais, além de (co)autor em diversas publicações sobre espaço urbano e habitação. sistema associativo no quadro de um horizonte ecossocialista colorido para o século XXI, a sociopraxis Antropologia do Espaço no Curso de Arquitetura da ESAP (1991-2013), é Diretor do Laboratório de Habita-
com uma malha de metodologias participativas em vista da transformação e emancipação social, o ção Básica e tem investigado e publicado em áreas da antropologia do espaço, da cidade, da habitação e
direito à habitação no quadro do direito à cidade e à justiça espacial, postos em causa pela financiarização das metodologias participativas.
TERESA MORA Socióloga, Doutorada em Sociologia pela Universidade do Minho (2006), Professora Auxi- dos mercados e fenómenos de especulação imobiliária, gentrificação e turistificação em prejuízo das
liar de Sociologia no Departamento de Sociologia e Investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências classes populares e mesmo intermédias. Estas reflexões são permeadas por análises geo-históricas e
Sociais (CICS.Nova), Universidade do Minho, sendo as suas áreas de investigação e publicação a arte polí- empíricas, ensaios sobre registos fotográficos (e subjacentes reivindicações), abordagens etnográficas,
tica e social e os estudos sobre utopias. instrumentos de participação inclusive digitais, estudos de caso e metodologias participativas em ‘ilhas’
e bairros no Porto, em Lisboa e em Braga, um estudo sobre influências brasileiras entre arquitetos portu-
gueses sobre habitação básica e, por fim mas não menos importante, uma reflexão amadurecida sobre a
marca da arquitetura e o relevante papel dos arquitetos/as no desenho das cidades, posicionando-se con-
tra a predominante lógica mercantil, o ‘pânico moral’ e eventuais atitudes derrotistas e pugnando pela
redução de assimetrias socioespaciais, pelos direitos humanos, nomeadamente pelo direito à habitação,
ao habitat, à cidade e à justiça espacial.

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a www.edicoesafrontamento.pt

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POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA Cidadania, democracia associativa e metodologias participativas
POR UMA
HABITAÇÃO BÁSICA
Cidadania, democracia associativa
e metodologias participativas

Manuel Carlos Silva


Fernando Matos Rodrigues
João Teixeira Lopes
António Cerejeira Fontes
Teresa Mora
[orgs.]

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Índice

Introdução | 9
Manuel Carlos Silva, Fernando Matos Rodrigues, João Teixeira Lopes, António Cerejeira Fontes, Teresa Mora

Capítulo I
Privação relativa, habitação precária e «consentimento»: mercado especulativo,
omissão do Estado e debilidade da ação coletiva nos bairros populares | 23
Manuel Carlos Silva
I.1. Introdução | 25
I.2. Habitação precária e comportamentos socio-políticos de «consentimento»:
em busca de uma explicação | 28
I.2.1. Breve panorama e posicionamentos sobre relação entre economia e política | 28
I.2.2. «Passividade»: breve resumo dos modelos explicativos | 31
I.3. Por uma habitação básica: presentes as precondições de ação coletiva nas «ilhas»
e nos bairros populares no Porto e em Braga? | 38
I.4. Conclusão | 42

Capítulo II
Democracia associativa: ainda a real Terceira Via | 49
Veit Bader
II.1. Introdução | 51
II.2. Democracia associativa: uma melhor proposta teórica face às tradições teóricas
concorrentes | 52
II.3. Democracia associativa promete novos caminhos de mudança política | 55
II.4. Notas finais: recentes contributos relevantes | 57

Capítulo III
A sociopraxis como malha de diversas metodologias participativas e instituintes | 63
Tomás R. Villasante
III.1. Introdução | 65
III.2. A construção da sociopraxis | 66
III.3. Caminhos que acreditamos que se estão a abrir… | 73
III.3.1. Transduções | 73
III.3.2. Conjuntos de ação | 75
III.3.3. Tetrapraxis | 77
III.3.4. Emergentes de valor | 79
III.3.5. (Eco)organização | 81
III.3.6. Reversões | 84
III.4. Os tempos e o que cabe aprender | 86
III.5. Notas finais | 92
Capítulo IV
Direito à habitação e à cidade justa:
Críticas e contribuições à Nova Geração de Políticas de Habitação em Portugal | 97
Fernando Matos Rodrigues, Elena Tarsi
IV.1. Introdução | 99
IV.2. O direito à cidade e à justiça espacial | 99
IV.3. A Metrópole do Porto em transição | 102
IV.3.1. As propostas metodológicas do Laboratório de Habitação Básica
na Cidade do Porto | 106
IV.3.2. As «ilhas» no Porto | 109
IV.3.3. A reabilitação da «ilha» da Bela Vista | 113
IV.4. As críticas salientes à Nova Política de Habitação | 115
IV.5. Conclusão | 120

Capítulo V
Alta de Lisboa: Avanços e recuos de um plano de urbanização | 125
Gonçalo Antunes, Nuno Pires Soares, José Lúcio
V.1. Introdução | 127
V.2. O Alto do Lumiar como Musgueira | 127
V.3. Apontamentos sobre a vivência nos bairros precários do Alto do Lumiar | 132
V.3.1. O Plano de Urbanização do Alto do Lumiar (PUAL) | 135
V.3.2. PUAL – o desenvolvimento de um Plano | 139
V.3.3. PUAL – novos desenvolvimentos | 143
V.4. Apontamentos finais | 144

Capítulo VI
O que dizem os muros do Porto?
Ensaio visual sobre o direito à habitação e o direito à cidade | 149
Inês Barbosa, João Teixeira Lopes
VI.1. Introdução | 151
VI.2. Nota metodológica: sociologia andante e a descodificação da cidade | 153
VI.3. Que espaço? Breve digressão sobre a mediação dos terceiros espaços | 155
VI.4. «O Porto não se vende e o povo não se rende»: imagens e discursos de contestação | 156
VI.5. Espaço público: arena disputada e heterotopias realizadas | 168

Capítulo VII
Metodologias participativas: o caso exemplar da «ilha» da Bela Vista (2013-2017) | 173
Fernando Matos Rodrigues, Manuel Carlos Silva, António Cerejeira Fontes, André Cerejeira Fontes
VII.1. Introdução: o problema | 175
VII.2. Uma experiência singular: metodologias participativas num processo de construção
coletivo | 181
VII.3. A investigação-ação no processo de reabilitação e renovação da «ilha» da Bela Vista | 188
VII.4. Conclusão | 198

Capítulo VIII
Trabalho de campo num bairro social de Braga
Questões metodológicas e o envolvimento participante como estratégia | 203
Joana Teixeira, Fernando Bessa Ribeiro
VIII.1. Introdução | 205
VIII.2. Um lugar para habitar: o bairro social das Andorinhas | 205
VIII.3. Entrada e permanência no bairro: da aproximação ao terreno à emergência
de uma questão de partida | 209
VIII.4. O envolvimento participante: uma estratégia implicada para a pesquisa
em contextos urbanos | 217

Capítulo IX
Transformar o território com investigação-ação, colaboração e participação –
contributos a partir de Marvila, Lisboa | 223
Henrique Chaves
IX.1. Introdução: a entrada em Marvila | 225
IX.2. Investigação | 227
IX.3. Ação | 229
IX.4. A comunidade constrói | 232
IX.5. Concluindo | 234

Capítulo X
Narrativas e práticas participativas nos programas habitacionais em Portugal:
Trajetória e influência da experiência brasileira | 239
Mariana Cicuto Barros
X.1. Introdução: aproximação ao debate Brasil-Portugal em arquitetura participada | 241
X.2. Influências: Grupo Quadra e o Processo SAAL | 243
X.3. Narrativas participativas: do SAAL à Iniciativa Bairros Críticos | 245
X.4. Bairro do Lagarteiro | 253
X.5. Reflexões finais | 257

Capítulo XI
Modos digitais e formas de participar híbridas na cidadania de ação | 259
David Leite Viana, Isabel Cristina Carvalho, Maria Raquel Sousa
XI.1. Introdução e enquadramento | 261
XI.2. Apropriação dos espaços e cidadania de ação | 263
XI.3. Mediação digital e aculturação espacial | 266
XI.4. Empoderamento (digital) e cidadania de ação | 270
XI.5. Notas finais | 272

Capítulo XII
Pânico ou Plano – Arquitetura num mundo em mudança | 277
Graeme Bristol
XII.1. Introdução | 279
XII.2. Mudança na arquitetura | 280
XII.3. Mudança na educação arquitetónica | 282
XII.4. Respostas | 283
XII.5. Conclusão | 287
Introdução
Manuel Carlos Silva*
Fernando Matos Rodrigues**
João Teixeira Lopes***
António Cerejeira Fontes****
Teresa Mora*****

Este livro é, a par de um considerável número de artigos em revistas nacionais


e internacionais, livros e capítulos de livros já publicados, mais uma publicação
coletiva no quadro do projeto «Modos de Vida e Formas de Habitar: ilhas e bairros
populares no Porto e em Braga» (PTDC/IVC-SOC/4243/2014). Este projeto, tendo
sido aprovado primeiro pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e, posterior-
mente, no âmbito do Programa Horizonte 2020, ao abrigo do Aviso do Sistema de
Apoio à Investigação Científica e Tecnológica (SAICT) de 30 de Outubro de 2015,
foi realizado entre Setembro de 2016 e 31 de Maio de 2020.
O coordenador e demais membros da equipa puderam contar com o apoio do
Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.Nova), designadamente dos ser-
viços de apoio no pólo da Universidade do Minho. Por iniciativa do coordenador
e demais membros da equipa, a que se associou o Laboratório de Habitação Básica
(LAHB) coordenado por Fernando Matos Rodrigues e a equipa técnica desta diri-
gida pelo arquiteto António Cerejeira Fontes, foram planeados e organizados nove
seminários e colóquios a nível local-regional e (inter)nacional, quer na Universi-
dade do Minho, quer no Auditório da Ordem dos Arquitetos, no Auditório da Junta
de Freguesia do Centro Histórico do Porto e noutros locais da cidade do Porto, com
a participação de cidadãos/ãs e, em particular, com a colaboração e participação
de Associações de Moradores/as de Braga e sobretudo do Porto e, por vezes, com
a participação de representantes de partidos políticos. Se os principais Colóquios
a nível (inter)nacional, um primeiro realizado na Universidade do Minho, designa-
damente «Cidade, Habitação e Direito à Habitação» de 2 a 4 de Novembro de 2017

* Sociólogo, Professor Catedrático e Investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.


Nova/UMinho) e, atualmente, Professor visitante do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares
(CEAM), Universidade de Brasília.
** Antropólogo, Investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.Nova/UMinho) e Dire-
tor do Laboratório de Habitação Básica (LAHB).
*** Sociólogo, Professor Catedrático e Investigador do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.
**** Arquiteto e Engenheiro Civil, vogal do LAHB e coordenador da Imago.
***** Socióloga, Professora Auxiliar e Investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.
Nova/UMinho).
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e um outro a 7 e 8 de Outubro de 2019, deram lugar a uma publicação intitulada


«Espaço Urbano e Habitação Básica como Primeiro Direito» com a participação de
autores a nível (inter)nacional, entre os quais membros do projeto, neste livro,
ainda sobre o tema da habitação básica, mas mais centrado na democracia asso-
ciativa, na cidadania e nas metodologias participativas, foram compilados diversos
textos não só de membros da equipa mas doutros especialistas a nível nacional e
internacional. Com efeito, diversos foram os colóquios e seminários em torno das
metodologias participativas, sendo de destacar, entre outros, os seguintes Seminá-
rios: (i) «Cidade da participação» a 4 de Fevereiro de 2017; (ii) «Como reabilitar
“ilhas” na cidade do Porto», designadamente a da Bela Vista, a 17 de Junho de 2017;
(iii) sobre o bairro caboverdiano do Riobom a 2 de Março de 2019; (iv) «Cinema,
Documentalismo e Reportagem na Cidade», de cariz mais específico e enquadrado
pelo Laboratório de Habitação Básica (LAHB) a 17 de Fevereiro de 2018; (v) «Para
uma Carta da Habitação do Porto» a 30 de junho de 2018, sendo de relevar a dis-
cussão e aprovação do Manifesto Para uma Carta da habitação do Porto, entregue
mais tarde à Comissão de Ordenamento, Infraestruturas e Habitação na Assem-
bleia da República. A compilação de diversas intervenções nestes Seminários, rea-
lizados sobretudo no Porto, deu lugar à publicação deste livro intitulado «Por uma
habitação básica: cidadania, democracia associativa e metodologias participativas»,
para o qual convidámos também, como referido, outros especialistas nacionais e
internacionais sobre estas matérias.
Com efeito, o capítulo I por Manuel Carlos Silva começa por situar os proble-
mas da habitação a nível nacional e, em particular, nas «ilhas» e nos bairros popu-
lares no Porto e em Braga. Um vez evidenciada a demissão e o abandono por parte
do Estado português em relação a moradores/as carenciados/as em termos de
condições objetivas de vida e habitação, a política habitacional do Estado orien-
tou-se mais a financiar a banca com crédito bonificado para a compra de casa por
parte de considerável número de famílias portuguesas, deixando todavia sem qual-
quer investimento público os alojamentos e as habitações precárias de morado-
res/as a viver em «ilhas» e bairros ditos sociais. Por outro lado, as relativas melho-
rias verificadas nas próprias habitações e aquisição de equipamentos nestas «ilhas»
e bairros populares foram-no, como foi possível comprovar na investigação, não
tanto devido à intervenção dos governos ou das câmaras municipais mas mais
graças às pequenas poupanças das próprias famílias. Não sendo satisfatórias as
condições de vida e de habitação destes moradores/as, o autor questiona como é
que, salvo alguns casos esporádicos e pontuais de contestação, se explicam com-
portamentos de relativa passividade, assentimento e/ou acomadação dos morado-
res/as em termos coletivos, verificando-se quando muito estratégias individuais ou
familistas no sentido de obter uma melhor posição ou solução do «seu» problema
por via clientelar ou patrocinal.
INTRODUÇÃO | 11 |

A esta questão, após a exposição sintética de vários modelos – o ontológico-


-moral, o socio-psicológico, o de poder e o marxista – Manuel Carlos Silva tenta
responder, do ponto de vista teórico-metodológico, trazendo com pertinência para
primeiro plano a relevância da economia moral combinada com as abordagens
weberiana e marxista. Por fim, o autor constata a não verificação de algumas das
necessárias precondições de ação coletiva, tal como as colocou teoricamente, na
esteira do pensamento de Veit Bader (1991).
Um segunto tópico central deste livro é o de democracia associativa, para o
que conseguimos traduzir e disponibilizar um texto de Veit Bader a partir de dois
textos introdutórios de duas obras do autor (2001 e 2020), em que a proposta teó-
rica sobre democracia associativa é por ele sintetizada como uma real terceira via
em relação quer à corrente (neo)liberal defensora da lei da oferta e da procura no
quadro do laissez faire e do individualismo de livre-mercado, quer do real socia-
lismo de Estado, assente no controlo estatal centralizado da economia e da socie-
dade, cuja experiência, a par de conquistas importantes, conheceu degenerações
e desvios do próprio programa socialista com repercussões internas e externas
negativas que acabaram por contribuir para o colapso e a implosão da própria
URSS e demais países do Leste alinhados com este modelo. Por isso, nomea-
damente perante a falência do modelo (neo)liberal e o horizonte longínquo de
um novo modelo ecossocialista – que o autor pugna para que seja plural e colo-
rido e, portanto, não monocolor nem centralista –, esta proposta realista em torno
da democracia associativa é de uma importância extraordinária não só nos pro-
cessos e lutas sociais a nível local-regional, mas inclusive a nível (inter)nacio-
nal como um modelo inovador. Sem deixar de relevar o papel do Estado, o foco
orienta-se, para além da renovação da democracia representativa, na democra-
tização da economia, na governança socio-económica, no impulso de coopera-
tivas e pequenas e médias unidades produtivas autorreguladas no quadro do
referido socialismo colorido para o século XXI. Esta proposta teórica, inspirando-
-se e tendo raízes conceptuais e experimentos associativos no passado, não se
confunde com a miscelânea acomodatícia da terceira via de Giddens (2005) no
quadro da social-democracia gestora do capitalismo, mas tem um alcance inova-
dor e de ruptura em relação às correntes teóricas e esquemas políticos tradicio-
nais, propondo um sistema associativo de governança. O autor, além de funda-
mentar e caraterizar de modo sucinto esta proposta teórica, evidencia soluções
democráticas para a prevenção e resolução de problemas não só a nível local-
-regional como (inter)nacional, tais como a pobreza e as desigualdades sociais
(territoriais, de classe, étnicas e de género), o desastre ecológico, os conflitos mili-
tares e as guerras civis, entre outros. Por fim, o autor avança alguns tópicos que
são desenvolvidos por ele e outros autores nas diversas obras (Bader, 2001 e 2010;
Westall, 2011).
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No capítulo III Tomás R. Villasante desenvolve o relevante conceito de socio-


praxis como malha de uma série de metodologias participativas e instituintes com
base em diversas experiências em comunidades, associações e ONG’s como modos
de prosseguir os diversos passos metodológicos, de diagnosticar e enfrentar diver-
sos problemas sociais concretos, assim como intervir também a nível macrosso-
cial, de modo a transformar a sociedade à qual seriam inerentes determinadas desi-
gualdades sociais. A construção da sociopraxis conheceu diversas fases que o autor
designa de diversos transbordos presentes nos anos 1970-80 (vg. oficinas e reuniões
participadas), na prossecução de passos para a complexidade nos anos 1980-90 (vg.
mapeamentos estratégicos, sociogramas), na construção de esquemas coletivos nos
anos 1990-2000 (vg. fluxogramas, ideias-força), no acompanhamento de movimen-
tos alternativos (vg. redes de acompanhamento, cronogramas) com suas pedago-
gias emancipadoras e transformadoras em onda curta (diálogo pessoa-grupos), em
onda média (relação grupos-comunidades) e onda larga (relação comunidades-
-sociedade). Estes conceitos elaborados ou desenvolvidos pelo autor são produzi-
dos a partir de processos e práticas sociais. Por sua vez, os diagnósticos não obe-
decem a esquemas lineares de causa-efeito, as avaliações e as propostas de solu-
ção são construídas não a partir de fora mas dos cidadãos/ãs envolvidos/as, em
que são rejeitados liminarmente princípios hierárquicos e patriarcais, o sectarismo
e o dogmatismo, assim como dilemas tradicionais políticos como reforma versus
revolução ou mesmo dicotomias teóricas de priorizar ora a estrutura ora a agên-
cia. Ou seja, no plano processual e prático, o que conta não é o princípio hierár-
quico, a autoridade ou o estatuto de quem o diz, mas o que cada um diz e a sua
validade e/ou confirmação pelo coletivo. São assim seguidas metodologias e pro-
postas de movimentos de inspiração «freiriana» de «aprender conjuntamente»,
«aprender para transformar» e «transformar para aprender». Por sua vez, são utili-
zadas técnicas tais como «diagnósticos rápidos participativos», «jogos de encena-
ção» ou «sociodramas». O autor advoga a «análise de redes» não descontextualiza-
das mas enquadradas em condicionantes socio-económicas e «conjuntos de ação»
sem avaliações apriorísticas, em que «o real é relacional» e a «política no quoti-
diano» pressupõe uma «democracia de iniciativas» com «sujeitos vivos e criativos»,
em que o «dissenso» faz parte dos processos de participação e transformação nas
comunidades locais e, num sentido mais amplo, na própria sociedade.
No capítulo IV Fernando Matos Rodrigues e Elena Tarsi empreendem uma fecunda
reflexão sobre o direito à habitação – aliás reconhecido em diversas Constituições
dos Estados nacionais –, interligando este direito e reivindicação não só com o
direito à cidade, bem assinalado desde Henri Lefebvre (1968), mas também com
o direito a uma cidade justa na base de uma justiça espacial, tal como o têm defen-
dido diversos autores desde Ana Carlos (1992), David Harvey (1996, 2008), Edward
Soja (2010) e Elena Tarsi (2018), conceitos estes que os autores desenvolvem, tendo
INTRODUÇÃO | 13 |

como pano de fundo de análise a cidade do Porto. Com efeito, os autores eviden-
ciam como o direito à habitação e à cidade justa são postos em causa pelo sistema
financeiro e pela financiarização dos mercados globais, visíveis particularmente
nos novos fenómenos de gentrificação e turistificação, em que as classes popula-
res e inclusive as ditas classes intermédias são deslocalizadas para os subúrbios e
para as periferias da cidade.
Seguidamente, os autores caraterizam a metrópole do Porto (a cidade e as duas
coroas de concelhos em torno do Porto) como uma metrópole em transição e ofe-
recem, de modo particular e específico, um panorama geral histórico sobre as
«ilhas» e bairros populares do Porto, evidenciando como umas e outros se carate-
rizam nos seus traços identitários e como historicamente se foram formando desde
o século XIX, mas incidindo particularmente a análise desde os ditos Planos de
Melhoramentos ao tempo do Estado Novo até à atualidade. Com efeito, evidenciam
de modo pertinente como nos últimos tempos o fenómeno do Alojamento Local
se vai multiplicando e penetrando nestas «ilhas» e bairros populares num processo
de desagregação das mesmas, tal como diversos relatórios o demonstram sobre-
tudo nos últimos anos. O processo de deslocação dos moradores do centro da cidade
do Porto, iniciado na última fase do regime ditatorial sob o Estado Novo, viria a ser
incentivado e propulsionado nas últimas décadas pela Sociedade Gestora de Rea-
bilitação Urbana com a cumplicidade dos responsáveis dos sucessivos mandatos
camarários, particularmente de Rui Rio e, mais recentemente, de Rui Moreira. Por
fim, os autores dão conta de como o Laboratório de Habitação Básica se propôs
empreender projetos de reabilitação urbana, nomeadamente no bairro Riobom e,
em especial, na «ilha» da Bela Vista, cuja reabilitação foi bem sucedida como um
caso excepcional graças à conjugação de vários fatores, como é evidenciado neste
capítulo e no capítulo VII.
De modo complementar à metrópole do Porto, embora focalizados no caso
específico do plano de urbanização na Alta de Lisboa, Gonçalo Antunes, Nuno
Pires Soares e José Lúcio debruçam-se no capítulo V sobre os avanços e recuos
deste plano conhecido por Plano de Urbanização do Alto do Lumiar (PUAL), dis-
cutindo de modo notável, em termos teóricos e histórico-empíricos, a intervenção
urbana assente em pressupostos de mistura social alegadamente interclassista. Os
autores analisam este processo em três períodos desde o pre-PUAL com bairros
informais dos anos 1960 até meados da década de 1990, seguido de avaliação do
próprio PUAL entre 1998 e 2015, até ao tempo presente em que são traçadas as
principais tendências e uma perspetiva para o futuro.
Os autores referem como o Alto do Lumiar até aos anos 1960 era um espaço
rural da então designada Musgueira, ocupado por palácios e palacetes da «bucó-
lica» elite lisboeta, mas, simultaneamente, sobretudo com o arranque industrial a
partir dos anos 1960, viria a dar lugar à formação de «bairros provisórios», sem con-
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dições infraestruturais, e ao bairro da Cruz Vermelha, perpassado de uma visão assis-


tencialista. Os autores, baseando-se em análises de Margarida Sousa Lobo e Nuno
Teotónio Pereira, evidenciam como tais espaços viriam a ser ainda mais povoados
quando o regime salazarista, por altura da inauguração da Ponte então baptizada
como Ponte Salazar, necessitou de encobrir para o mundo exterior a miséria extrema
das populações nos bairros pobres do Vale de Alcântara, deslocando-as coerciva-
mente para esta zona do Alto do Lumiar, situado mais nas costas da Segunda Cir-
cular e do Aeroporto de Lisboa. Nesta zona se foram formando os diversos bair-
ros informais como Calvanas, Sete Céus, Quinta Grande, Quinta do Louro e Quinta
da Pailepa, bairros estes ora «clandestinos» ora «espontâneos», com alojamentos
ora «abarracados» ora em autoconstrução, nos quais se foram instalando ex-rurais
migrantes tornados operários e, mais tarde, a partir de 1974, portugueses «retorna-
dos» e imigrantes, dando lugar a uma fusão étnico-socio-cultural (melting pot).
Sustentando-se em vários estudos, particularmente de Socka et al. (1985, 1987
e 1991) e outros estudos sociodemográficos do LNEC, os autores apresentam um
retrato bem informado das caraterísticas socio-demográficas dos moradores/as
destes bairros precários nos anos 1980-90, voltando, num segundo momento, a
fazer nova caracterização socio-demográfica com base nas conclusões de dois estu-
dos à população: um da Fundação Aga Khan em 2004 e um outro pelo K’Cidade –
Programa de Desenvolvimento Comunitário Urbano em 2009, relevando a neces-
sidade de complementar as necessidades habitacionais com outras dimensões (edu-
cativa, cultural) e serviços.
Na sequência de concurso aberto pela Câmara criou-se a Sociedade Gestora da
Alta de Lisboa (SGAL) nos anos 1980, a qual, tendo fracassado na responsabiliza-
ção do consórcio vencedor pela conclusão de obras, infraestruturas e equipamen-
tos coletivos, deu lugar à publicação do Programa Especial de Realojamento (PER)
em 1993 e à concepção e aprovação do Plano Municipal de Lisboa em 1994 sob
a tutela da Câmara Municipal de Lisboa.
Com a crise financeira de 2008 e a subsequente relativa estagnação imobiliária
que se manteve até 2015, apenas nos últimos anos a procura reanimou, elevando-
-se exponencialmente o preço por m2 não só no centro de Lisboa mas também na
Alta de Lisboa. Em síntese, os autores evidenciam que o PUAL permitiu uma melho-
ria do sistema urbano e habitacional nesta zona da cidade de Lisboa, mas a lenta
e inacabada operacionalização do PUAL tem contribuído para manter descontinui-
dades urbanas e distâncias sociais. Apesar de as intervenções sucessivas e os rea-
lojamentos terem sido operados sob a retórica da miscigenação social, a relativa
contiguidade dos prédios de moradores/as de casas obtidas pela via do mercado
imobiliário e dos bairros ditos sociais de moradores/as com alojamentos públicos
não deu lugar a convivências de real miscigenação social, indicando que essa con-
tiguidade física não é suficiente para anular áreas, arquiteturas e mobiliários dife-
INTRODUÇÃO | 15 |

rentes e sobretudo superar distâncias sociais e comunicacionais entre os diferen-


tes grupos sociais, graças, por um lado, às descontinuidades urbanas, aos espaços
excluídos ou segregados e sua degradação pela não finalização do PUAL e, por
outro, à emergência de «condomínios privados», sendo necessários, segundo os
autores, novos modelos e respostas a desafios de uma cidade do século XXI.
Voltando à cidade do Porto, Inês Barbosa e João Teixeira Lopes elaboram um
interessante ensaio visual sobre os registos, mormente por via de graffitis e picha-
gens, de portuenses sobre os crescentes problemas de habitação na cidade do Porto
em grande parte devido ao fenómeno da turistificação na cidade, assim como as
diversas (contra)visões sobre este fenómeno e outros correlativos como a gentri-
ficação e deslocação de residentes em freguesias do centro da cidade para os subúr-
bios e as periferias por razões da especulação dos preços na compra e sobretudo
arrendamento de casas. Por detrás dos registos fotográficos encontram-se, tal como
o enunciam os autores no próprio título do texto, reivindicações ora implícitas ora
mesmo explícitas sobre o direito à habitação e o direito à cidade.
Os autores, após uma breve referência histórica ao surgimento das «ilhas» do
Porto como forma de acomodar e controlar os operários recém-chegados em con-
texto de industrialização desde o século XIX, à Lei do Inquilinato ao tempo da I
República a fim de conter despejos e valores de rendas e à criação de alguns bair-
ros sociais nas periferias sobretudo nas últimas décadas do Estado Novo, sinalizam
a inovadora mas limitada operação SAAL durante o PREC no 25 de Abril de 1974.
Por fim, destacam as políticas de limpeza e marginalização de populações sob uma
alegada regeneração ou reabilitação urbana nas áreas centrais da cidade, expulsando
destas moradores/as, pequenos/as comerciantes e coletivos associativos.
Partindo do pressuposto de que o espaço público, designadamente a cidade,
é uma arena de disputas entre os diversos grupos sociais, tal pressuposto é eviden-
ciado através dos diversos dizeres expressos nos graffitis e pichagens nos muros,
portões de garagens, postes de eletricidade e em espaços intersticiais ou abando-
nados da cidade do Porto, nos quais, segundo os autores, tais mensagens são expres-
sas para sensibilizar, denunciar e mobilizar. Para tal os autores, no quadro de uma
metodologia sociológica designada de andante, calcorrearam as ruas da cidade, a
fim de explorar e descodificar as mensagens contra-hegemónicas expressas nas ima-
gens fotográficas, descontruindo assim as representações, imagens e narrativas do
espaço produzido e construído por peritos e burocratas e veiculadas para o senso
comum, às quais são contrapostas as memórias e identidades da cidade autêntica
e do povo e seus horizontes de reivindicações e heterotopias. A estas visões os
autores, com base na recolha das diversas imagens fotográficas, salientam os dua-
lismos e respetivos interesses entre proprietário-inquilino, residente-viajante, gover-
nante-povo e evidenciam as contravisões de moradores contestatários dessas ima-
gens hegemónicas sobre o Porto, procurando com elas, como referido, sensibilizar,
| 16 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

denunciar e mobilizar. Ou seja, os diversos autores destes graffitis e stencils visam


sensibilizar nomeadamente os turistas, chamando a atenção, amiúde de modo
pedagógico, dos próprios turistas, comparando salários e rendas dos portugueses,
invetivar, por vezes num estilo anarquizante, as ganâncias rentistas dos proprie-
tários e especuladores e, por fim mas não menos importante, lançar farpas, críti-
cas, denúncias e acusações a políticos responsáveis pela desregulação da situação
urbana e habitacional que ora reprimem ora absorvem as reivindicações e queixas
dos cidadãos/ãs.
Como caso exemplicativo de aplicação de metodologias participativas num pro-
cesso de reabilitação de uma «ilha» na cidade do Porto, Fernando Matos Rodrigues,
Manuel Carlos Silva, António Cerejeira Fontes e André Cerejeira Fontes descrevem
e analisam de modo fino e detalhado o processo da reabilitação da «ilha» da Bela
Vista na cidade do Porto. De facto, tal como os autores assinalam, trata-se de um
caso exemplar e excepcional no quadro geral de políticas de especulação imobiliá-
ria e de deslocação de populações residentes nas freguesias do centro do Porto
para os subúrbios e periferias, para cujo sucesso contribuiu a conjugação de diver-
sos fatores e circunstâncias assinalados argutamente pelos autores que apontam
igualmente este caso como um exemplo de investigação-ação e participação (IAP).
Os autores começam por afastar e criticar uma visão positivista e pretensa-
mente neutra que tenta separar a análise dos factos sociais e dos valores, nomea-
damente em processos de intervenção e reabilitação urbana, ocultando os interes-
ses que se escondem sob as diversas perspetivas teóricas, políticas e ideológicas.
Os autores, após terem sintetizado a origem da «ilha» no século XIX, descre-
vem como a «ilha» da Bela Vista viria a ser um dos casos de mobilização no pro-
jeto SAAL no pós-25 de Abril e evidenciam a frustração dos moradores/as pela não
conclusão do processo de reabilitação, como desenhado e participado pelos pró-
prios moradores/as. No entanto, a Associação de Moradores refundou-se, foi resis-
tindo a várias investidas dos interesses imobiliários, sobretudo a partir dos man-
datos de Rui Rio defensores da demolição da «ilha». Mais, a Associação de Mora-
dores, não obstante as diversas dificuldades e obstáculos referidos pelos autores,
irá conseguir com sucesso a reabilitação da “ilha” graças à conjugação de vários
fatores, a saber, o LAHB e empenho dos arquitetos, de ativistas, do projeto Modos
de Vida e Formas de Habitar e de cientistas sociais do CICS.Nova_UMinho e sobre-
tudo a mobilização dos moradores/as e o compromisso do então candidato em
campanha eleitoral e futuro Presidente da Câmara Rui Moreira e vereadores sobre-
tudo do Urbanismo e da Cultura.
Dado que Braga era uma outra cidade objeto de estudo do projeto Modos de
Vida e Formas de Habitar, Joana Teixeira, enquanto colaboradora do projeto, e
Fernando Bessa Ribeiro, como membro do projeto de investigação e orientador da
tese de mestrado de Joana Teixeira, trouxeram uma notável reflexão sobre ques-
INTRODUÇÃO | 17 |

tões metodológicas e o envolvimento participante como estratégia de trabalho de


campo no bairro social das Andorinhas em Braga. Para além da recolha de dados
por inquérito e entrevistas, Joana Teixeira focalizou-se na sua tese de Mestrado
sobre questões de género, nomeadamente as formas de desigualdades de género.
Porém, no que concerne a metodologia aplicada, esta foi a razão e a ocasião de
uma reflexão mais detalhada, juntamente com o seu orientador, sobre a estraté-
gia de aproximação ao terreno, procurando a investigadora colocar-se no lugar do
outro/a e interagir com as mulheres do bairro e, através destas interações, aceder
às motivações e analisar os sentidos dos seus discursos.
Antes, porém, de desenvolver as questões metodológicas associadas, os auto-
res dão conta dos diversos fatores que conduziram à implantação de bairros sociais
como primeira resposta à proliferação de barracas em Lisboa e no Porto a partir
sobretudo dos anos 1950-60 por efeito da industrialização, o que levou o regime
salazarista, particularmente desde os Planos de Fomento, a elaborar Planos de
Melhoramentos e a criar o Fundo de Fomento de Habitação. Com uma resposta
tímida, inadequada e insuficiente às necessidades habitacionais surgidas desde
então, o impacto da industrialização faz-se sentir sobretudo em Lisboa e no Porto
e, posteriormente, noutras cidades médias à escala nacional, como Braga. Entre
esses factores os autores referem o êxodo rural desde os anos 1950-60, o cresci-
mento demográfico, a descolonização de países africanos no pós 25 de Abril de
1974 e a subsequente vinda de parte dos mais 500.000 portugueses «retornados»
e imigrantes para os diversos setores de atividade, nomeadamente serviços, indús-
tria e, em particular, obras públicas nos anos 1980, conjuntura esta na qual se criou
justamente o bairro das Andorinhas, entre outros. Os autores, após terem dado
conta da origem deste bairro social e procedido a uma caraterização socio-demo-
gráfica do mesmo e a uma visualização dos prédios do bairro, referem como as
mulheres entrevistadas percebiam estas habitações como considerável melhoria
em condições de habitação e saneamento em relação aos locais muito mais pre-
cários donde provinham.
Voltando às questões metodológicas e considerando as narrativas das mulhe-
res, elas davam conta do seu papel marginal no espaço público e sobretudo a sua
não presença no exercício de funções diretivas na própria Associação de morado-
res/as do bairro como uma realidade naturalizada. A elas restava-lhes o espaço
privado da casa, os cuidados da casa, do marido e dos filhos/as e, inclusive nas
festas do bairro, a vertente dos preparativos e dos cuidados mas não a liderança.
Para além da aplicação do inquérito no âmbito da pesquisa mais geral do projeto,
nesta pesquisa sobre as mulheres no bairro das Andorinhas foram aplicados diver-
sos métodos e técnicas de ordem qualitativa tais como a entrevista, adicionada
com questões mais focalizadas sobre a situação das mulheres nas suas relações
sociais, a análise do discurso, a observação participante no quadro de uma abor-
| 18 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

dagem etnográfica, para a qual foram convocados, ao longo do texto, diversas e


importantes reflexões e contributos de autores clássicos e especialistas mais recen-
tes sobre metodologias qualitativas.
Um outro importante registo e análise de uma experiência de investigação-ação
e de aplicação de métodos participativos e colaborativos é trazida por Henrique
Chaves, que nos oferece um notável contributo a partir de um trabalho realizado
na Associação Rés do Chão entre 2017 e 2019, abarcando os bairros do Condado,
Marquês de Abrantes, Alfinetes e Salgadas na freguesia de Marvila em Lisboa, onde
se tem verificado um desinvestimento não só privado como público. Segundo o
autor, integrando o coletivo da Associação Rés do Chão, criada em 2013, o obje-
tivo desta consiste em ativar pisos térreos desqualificados e lojas desocupadas,
assim como valorizar e dinamizar o espaço público envolvente que se encontre
degradado, estendendo esta Associação o seu raio de ação não só a freguesias de
Lisboa mas também do Algarve e da Ilha da Madeira.
O autor evidencia os modos de aproximação e até de criação de laços com
moradores, comerciantes e outras entidades através do trabalho quotidiano da
Associação e, por fim, explica as razões do mapeamento dos pisos térreos (des-
continuidades e exclusões socio-territoriais) e aplicação do inquérito, o que viria
a permitir inferir os aspetos positivos (ofertas educativas, transportes e acessibi-
lidades) e negativos (descampados, falta de jardim, de ciclovias e de equipamen-
tos urbanos desportivos, recreativos e de lazer) por parte das pessoas inquiridas e
sobretudo os seus desejos. Mais, o autor demonstra de modo inovador como, atra-
vés da ação e participação comprometidas das pessoas em torno de certas propos-
tas como a construção de jardim, parques infantis e ciclovias, a comunidade cons-
trói, não fechando a própria Associação Rés do Chão sobre si própria, trabalhando
através do Grupo Comunitário 4 Crescente, onde se destaca a participação de mora-
dores e de entidades locais. Do trabalho coletivo destacam-se projetos como C.
Bairrista, Cicloficina Crescente e Transformar Marvila com Jardins e Ciclovias, cujas
reivindicações lograram inclusive em reunião descentralizada” com o Presidente da
Câmara, ganhando o seu apoio quanto à construção de jardim e de ciclovias, dando
assim alguma expressão ao direito de habitar, ao direito ao lugar e ao direito à cidade.
Convocando narrativas e práticas participativas nos programas habitacionais
em Portugal, mas salientando a influência de processos da experiência brasileira
nalguns arquitetos portugueses, a arquiteta Mariana Cicuto Barros evidencia essa
influência nas políticas habitacionais em Portugal no processo Serviço Apoio Ambu-
latório Local (SAAL) nos anos 1974-75. No entanto, a autora evidencia como os
programas habitacionais PIMP e PER, criados nos anos 1980 e 1990 caracterizam-
-se por lacunas nos processos participativos e como, numa fase posterior, no pro-
grama experimental específico, a Iniciativa Bairros Críticos (IBC) em 2005, é reto-
mado o debate na interface com arquitetos portugueses, demonstrando a possibi-
INTRODUÇÃO | 19 |

lidade de o Estado, para além instituição central nas normativas e nos financia-
mentos no quadro de uma outra política de habitação, ser coordenador de inicia-
tivas de participação no campo da habitação.
No penúltimo capítulo David Leite Viana, Isabel Cristina Carvalho e Maria
Raquel Sousa, cruzando saberes de arquitetura e de ciências sociais e de comuni-
cação, contribuem de modo notável para refletir sobre um tema ainda pouco tra-
balhado mas cada vez mais relevante sobre modos digitais e formas de participa-
ção híbrida no campo da cidadania de ação. Começando por constatar um fosso
entre os direitos legislados e as normas e práticas sociais, os autores evidenciam
os impactos que tais situações têm no eventual não exercício da participação cívica,
particularmente entre cidadãos/ãs com modos de vida e formas de habitar mais
precárias e degradadas, presentes sobretudo entre determinados grupos que são
objeto de segregação socio-espacial, mais vulneráveis e infoexcluídos, e onde os
direitos humanos não são garantidos. Os autores constatam deste modo que a Pla-
taforma de Ação de Pequim em 1995 não é uma realidade como tão pouco é reali-
zado o objetivo 11 do Millenium das Nações Unidas sobre cidades e assentamentos
humanos inclusivos, seguros e sustentáveis. Por isso, os autores, com base numa
escala de participação cidadã desenhada por Arnstein (1969), consideram relevante
criar condições, instrumentos e modos diversos, entre os quais os digitais, para que
a participação e o controlo dos cidadãos/ãs seja uma realidade. O contributo refle-
xivo do autor e das autoras, recorrendo a inspirações diversas sobre os conceitos
de modos de vida e formas de habitar – aliás o título do projeto coordenado por
Manuel Carlos Silva e do qual o primeiro autor é membro integrante –, aponta para
a necessidade de implicar modos digitais e formas híbridas de participação que
impliquem a intervenção e inteligência coletiva em processos colaborativos e de
co-criação de lugares de convivência e partilha que potenciem modos de vida e
formas de habitar dignos, mais conectados e integrados e que possibilitem, na
esteira de Távora (1999) e Castells (2000), apropriar-se individual e comunitaria-
mente dos espaços, gerar fluxos comunicacionais e partilhar conhecimentos para
organizar a vida. Para tal os autores propõem a mediação digital e a «aculturação
espacial» a partir da gestão da complexidade, mas também do que os autores desig-
nam de «transição do conceito de lugares em estrutura de rede para a postulação
de lugares de convivência », apoiada no desenvolvimento tecnológico (por exemplo,
tecnologias móveis como equipamentos GPS) e suportada por fluxos e formas fle-
xíveis de sociabilização e interação entre vizinhos e visitantes e de participação
cívica no quadro dos diversos graus de cidadania de ação avançados por Arnstein
(1969). Embora o processo de empoderamento de cidadãos/ãs implique a presença
de outras condições para além da mediação digital, a convocação do empodera-
mento digital para a cidadania de ação constitui nos tempos atuais um requisito
imprescindível para possuir a capacidade crítica e, através dela, questionar o statu
| 20 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

quo e as relações de poder e, assim, dar um contributo para obter conhecimento


fundamentado e capacidade de decisão, assim como lutar para reduzir assimetrias
socio-espaciais, gerar mais bem-estar e qualidade de vida, começando justamente
pelos direitos à habitação e ao habitat, ao lugar e à cidade.
Por fim, atendendo a que a arquitetura, assim como os seus profissionais, à
escala não só a nível local-regional como nacional e (inter)nacional, desempenham
um papel nuclear no desenho das cidades, na conservação e/ou reabilitação de
edifícios, nomeadamente de habitações, consideramos muito relevante, do ponto
de vista da disciplina e do papel dos arquitetos, a reflexão de Graeme Bristol no
seu artigo «Pânico ou Plano – A Arquitetura num mundo em mudança». Com efeito,
o autor chama a atenção para o fenómeno da mudança, designadamente nas cida-
des, como algo inerente às sociedades e, em especial, às suas configurações urba-
nas, as quais evidenciam obras de arte ou edifícios – desde o genial, passando pelo
bom, até ao mau ou mesmo feio –, os quais comportam a marca secular dos pro-
fissionais do desenho e/ou da arquitetura, caraterizada, em regra, por um tripla
natureza: firmitas (firmeza), utilitas (utilidade) e venustas (beleza). Por um lado,
o autor assume que uma das bases nucleares de um bom desempenho dos arqui-
tetos reside justamente no ensino da Arquitetura, a qual, se, segundo Schumacher
(2019), deveria ir ao encontro das «realidades e necessidades societais» por via
de encomendas dos clientes públicos ou privados, para o autor – que replica que
tais necessidades societais procedem mais pelas notícias veiculadas pelos media do
que pelas encomendas dos clientes – a formação em Arquitetura deveria pautar-
-se, para além das técnicas, em abordagens centradas na luta contra a degradação
ambiental e na defesa dos direitos humanos. Por outro lado, constatando o autor
que há aspetos ou variáveis macrossociais, ambientais ou económicas que, em
maior ou menor medida, estão fora do controlo do arquiteto, designadamente a
ameaça de catástrofe climática – já alertada desde o Relatório Brundtland – ou os
interesses das corporações e fundos financeiros especulativos, outras há, porém,
como a tecnologia e determinadas mudanças em que o arquiteto poderá e deverá
gerir e controlar de modo a que a mudança seja incorporada e até saudada mas
sem desencadear ansiedade e, muito menos, provocar sentimentos de pânico. Pelo
contrário, o arquiteto pode e deve ter orgulho de ser agente de mudança e de ser
co-promotor de melhorias das condições de vida, nomeadamente no campo do edi-
ficado, da habitação. Mais, contrariamente a posições como a de Paola Antonelli
que reserva para a arquitetura e o arquiteto a possibilidade de desenhar um «belo
epitáfio» no processo de extinção da espécie humana, o autor rebela-se contra este
posicionamento defetista e derrotista e propõe, mesmo no quadro do processo de
globalização e fenómenos como a gentrificação – benéfica para alguns e desas-
trosa para a grande maioria –, a luta pela justiça ambiental e a defesa intransigente
dos direitos humanos. O autor, rejeitando qualquer neutralidade axiológica e polí-
INTRODUÇÃO | 21 |

tica, designadamente perante as mudanças tecnológicas, económicas, ambientais


e políticas, chama a atenção para as responsabilidades sociais e éticas do arquiteto
e, nesta perspetiva, é de uma transparência cristalina no sentido de afirmar como
fundamental o papel do arquiteto, nomeadamente quando assume a sua profissão
como um compromisso cívico e ético na defesa dos direitos humanos. E é justa-
mente pelo facto de tais direitos não estarem assegurados nos padrões migratórios,
por exemplo, para os emigrantes na fronteira entre o México e os Estados Unidos,
ou ainda entre povos indígenas que sofrem o menosprezo do poder político pelos
seus direitos ao saneamento e à água potável, por exemplo, num país com tantos
recursos físicos e financeiros como o Canadá – justamente o próprio país de Graeme
Bristol – que este texto do autor é relevante nesta série de trabalhos sobre a cida-
dania, a democracia associativa e os processos de participação das próprias popu-
lações na construção do seu bem-estar social, a começar pelo direito à habitação
como um primeiro direito básico humano.

Siglas
GPS = Global Positioning System – Sistema de Localização Global
LNEC = Laboratório Nacional de Engenharia Civil
ONG = Organizações não Governamentais
PER = Processo Especial de Realojamento
PIMP = Plano de Intervenção a Médio Prazo
PREC = Processo Revolucionário em Curso
SAAL = Serviço Ambulatório de Apoio Local
URSS = União das Repúblicas Soviéticas Socialistas

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Capítulo I

Privação relativa,
habitação precária
e «consentimento»:
mercado especulativo, omissão
do Estado e debilidade da ação
coletiva nos bairros populares

Manuel Carlos Silva*

* Sociólogo, Professor Catedrático e Investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.


Nova), Universidade do Minho e, atualmente, Professor visitante no Centro de Estudos Aprofundados Mul-
tidisciplinares (CEAM), Universidade de Brasília.
1. Introdução
O colapso dos mercados financeiros, iniciado nos Estados Unidos em 2007-08
e seguidamente replicado na Europa, consubstanciou-se na conjugação da espe-
culação financeira e do colaboracionismo institucional político-estatal. Diversos
Estados vieram em socorro dos bancos em detrimento do dinheiro dos contribuin-
tes, que tiveram de suportar não só as dívidas a privados como um aumento expo-
nencial da dívida pública, ao ponto de certos Estados, designadamente a Irlanda
e outros no Sul de Europa (Grécia, Portugal), serem constrangidos e pressionados
a solicitar assistência financeira à chamada Troika (FMI, BCE e CE), de modo a
fazer face a encargos correntes.
É conhecido de especialistas e da opinião pública geral que em Portugal, no
quadro de condições objetivas de vida severas, quer para as classes mais despro-
vidas, quer inclusive para as classes intermédias, não se verificaram levantamen-
tos maciços ou movimentos sociais organizados e persistentes, de modo a travar
a austeridade e inverter o rumo político no país, verificando-se, pelo contrário,
sobretudo desde 2013, uma relativa capacidade de resiliência e «passividade» da
população. Como se compreende e explica que o governo do PSD/CDS, apesar de
fragilizado por diversas crises internas e conjunturais contestações em manifesta-
ções de rua em 2011-12,1 não só se tenha mantido relativamente incólume sem per-
sistentes manifestações de contestação, como, de acordo com os resultados eleito-
rais de 2015, tenham sido os partidos vencedores, ainda que em maioria relativa?
Mais, problematizando em termos marxistas, como se explica que «classes em si»
exploradas e oprimidas, empobrecidas e dependentes, justamente através das suas
organizações e, em particular, partidos de esquerda não se tenham organizado e
gizado durante a crise uma alternativa através duma coligação ou plataforma polí-
tica? Por fim, como se explica que, não obstante as sucessivas críticas à política de
austeridade do PSD/CDS por parte do PCP, do BE e inclusive do próprio PS – ainda
que este num registo mais moderado por sua natureza e porque comprometido
com o pedido de assistência financeira à Troika –, estes partidos, só após a derrota
de 2015 e, em particular por necessidade de sobrevivência do PS, nomeadamente
do seu Secretário Geral António Costa, a par de algum realismo por parte do BE e
do PCP/PEV em apoiar o PS para afastar a direita do poder, tenham compreendido
a necessidade de construir uma opção alternativa à política neoliberal de austeri-

1. Com efeito, o anúncio da medida social e politicamente imoral de transferência de contribuição dos
trabalhadores para o capital por via da Taxa Social Única (TSU) despoletou uma maciça manifestação a
15 de Setembro de 2011, assim como o acumular de descontentamentos e frustrações conduziu a uma
outra onda de indignação a 15 de Março de 2012 sob o lema «Que se lixe a Troika. Queremos de volta
as nossas vidas».
| 26 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

dade imposta pela Troika e caninamente seguida e até acentuada pela política ultra-
liberal e socialmente insensível do governo PSD/CDS?
Com o estabelecimento de um acordo entre PS, BE e PCP/PEV para a legislatura
de 2015-2019, foram de facto retirados os efeitos mais nefastos da política de aus-
teridade e empobrecimento: recuperação de salários e pensões, aumento do salá-
rio mímino, reposição de subsídios de férias e de Natal, assim como restabeleci-
mento de dias feriados retirados, aumento de escalões e outras conquistas sociais.
Esta política foi conseguida não tanto pelo PS – que em 2015 apresentava um pro-
grama socialmente mais recuado e com traços neoliberais – mas mais pelos par-
ceiros em sede parlamentar que, em sucessivos orçamentos de Estado e dossiers
específicos (habitação, cuidadores informais, apoios escolares, aumento de pen-
sões, etc.), obrigaram a cedências do PS. Porém, o espantoso da situação foi que
quem ganhou na nova disputa eleitoral de Outubro 2019 não foram o BE e, em
particular, o PCP – o primeiro porque perdeu votos e o segundo porque perdeu
votos e eleitos – mas o PS, que aumentou a sua votação relativa e o número de
deputados, para além de outros ganhos como os do PAN (de um para quatro depu-
tados), o Livre com uma deputada, a direita pela Iniciativa Liberal e a extrema direita
do Chega com um deputado cada. É certo que a direita, composta basicamente pelo
PSD e CDS, foi derrotada, perdendo votos e deputados em favor do PS, não só por
política errática e problemas de liderança, mas simplesmente porque o PS, apesar
de ter aliviado o programa de austeridade e ter feito certas concessões ao BE e ao
PCP/PEV, não deixou de ser fiel, em última instância, à política macroeconómica
determinada a nível supraestatal e supranacional e às políticas do FMI, da CE e do
BCE ou, mais precisamente, das diretrizes de Bruxelas-Berlim, mais ainda tendo à
cabeça do Eurogrupo o próprio Ministro das Finanças português. Em suma, o elei-
torado em Portugal, em vez de reforçar os partidos de esquerda, nomeadamente o
BE e o PCP/PEV, oscila ainda, alternadamente, entre dar a maioria, pelo menos rela-
tiva, ao PSD/CDS em 2015 e reforçar o PS em 2019, o qual, não obstante ter melho-
rado ligeiramente algumas políticas redistributivas, prossegue grosso modo as polí-
ticas macroeconómicas dominantes a nível nacional e supracional.
Uma das consequências mais gravosas desta política neoliberal da Troika e do
PSD/CDS consistiu na liberalização e na especulação do mercado imobiliário, tor-
nando inacessíveis os preços de compra e sobretudo de arrendamento de casa, agra-
vado por processos de gentrificação e turistificação. Por outro lado, não obstante
as reais carências e necessidades de habitação condigna para dezenas de milhares
de cidadãos/ãs, o Estado ainda mais se alheou de implementar adequadas políti-
cas de habitação para as classes mais pobres e destituídas. Por fim, perante as inves-
tidas especulativas do mercado e as omissões e cumplicidades do Estado, têm sido
praticamente inexistentes movimentos de moradores pobres a reivindicar coletiva-
mente o seu direito a habitação digna, havendo apenas, quando muito, pequenas
CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 27 |

iniciativas isoladas ou locais sem impacto a nível nacional. Ou seja, como explicar
o mesmo problema de discrepância entre as reais condições objetivas de vida e de
habitação degradadas de moradores/as pobres e a ausência de movimentos políti-
co-ideológicos que reivindiquem o seu direito à habitação como primeiro direito?
Com efeito, não obstante a consagração deste primeiro direito constitucional,
a habitação pública está reduzida a 2% e as políticas públicas do Estado têm-se
limitado a subsidiar bonificações de juros basicamente favoráveis à banca. Ora o
que se exige de um Estado Social é a existência de políticas públicas de habitação
que reduzam as assimetrias socio-espaciais, económicas e culturais no acesso e na
fruição do direito à habitação. Mesmo depois da viragem operada pelos acordos do
PS com o BE e PCP/PEV, manteve-se a escalada de subida de preços para a compra
ou arrendamento de casa por efeito da especulação e do aumento do turismo e
sobretudo continuaram a verificar-se sucessivos processos de despejos de morado-
res pobres dos centros das cidades para as periferias, com o subsequente processo
de gentrificação e segregação socio-espacial. Não obstante os esforços do BE e do
PCP, da ala esquerda do PS e sobretudo de deputados independentes como Helena
Roseta na bancada do PS, foi-se arrastando a aprovação da Lei de Bases da Habi-
tação. Finalmente, passados 45 anos da implantação da democracia em Portugal,
o Parlamento, graças não só a alguns poucos e frágeis movimentos de moradores/
as como ao denodado esforço da Comissão do Ambiente, Ordenamento do Terri-
tório, Descentralização, Poder Local e Habitação – de resto sempre aberta a diver-
sas audições junto de associações de moradores/as e outros coletivos – aprovou,
apesar de resistências e ziguezagues do governo e das contrapropostas liberaliza-
doras do PSD/CDS, a Lei de Bases da Habitação (LBH), com os votos favoráveis
do PS, do BE, do PCP/PEV e do PAN. Com esta LBH Portugal e os portugueses pela
primeira vez têm uma lei de bases que consagra no artigo 3.º o direito à habitação
(art. 65 da CRP), de modo a ser promovida uma política nacional de habitação.
Quer nos processos anteriores, quer em tempos posteriores à aprovação da
LBH, salvo pequenas iniciativas ora espontâneas ora organizadas por algumas asso-
ciações ou comissões de moradores, não se tem verificado, como referido, qual-
quer movimento significativo para reivindicar junto do poder central a concreti-
zação de uma Política de Habitação que vá ao encontro das necessidades e carên-
cias de populações vulneráveis e pobres.
Ora, dada a recorrência comprovada destes comportamentos socio-políticos de
conformação e «consentimento» não só por parte de classes como o campesinato
em diversos períodos históricos mas também doutras classes nalgumas situações
durante o regime democrático (cf. Silva, 1998, 2012, 2012a), surgem com pertinên-
cia as seguintes questões: primeiro, como se compreende que classes exploradas
e dominadas apoiem partidos cujos programas e práticas recorrentemente imple-
mentam políticas favoráveis a classes mais providas de recursos; segundo, como
| 28 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

é que, perante partidos que não cumprem promessas, os eleitores/as voltem a


apoiá-los e a votar neles? Em suma, quais as razões da recorrente discrepância
entre o ser social («classe em si») e a ausência de consciência de classe («classe
para si»)? Qual ou quais os mecanismos e fatores susceptíveis de explicar este desa-
justamento em termos de classe? De modo mais claro, como se compreende e
explica que a maioria ou uma parte considerável dos membros de classes explo-
radas e/ou dominadas continue a dar o seu apoio e a votar em partidos e organi-
zações com políticas contrárias aos seus interesses fundamentais?
Focalizando-nos no problema da habitação, se bem que, nos estudos de caso
realizados nas «ilhas» e nos bairros populares do Porto e de Braga, não seja cons-
tatável uma anuência nem às lógicas das classes proprietárias de imóveis nem con-
cordância maioritária com as autoridades camarárias e outras, o que sim consta-
tamos é, salvo alguns esporádicos ou pontuais protestos ou denúncias e não raro
mediadas por atores sociais ou políticos exteriores, comportamentos de resigna-
ção, aquiescência, relativa «passividade» e/ou ausência de ação coletiva a nível
nacional e inclusive a nível local. E tal comportamento socio-político exige uma
explicação, pelo que procurar-se-á introduzir a questão, em termos teóricos, e con-
vocar de modo resumido os principais modelos explicativos, já largamente traba-
lhados por Silva (1998, 2012a) respetivamente ora sobre o recorrente «conservado-
rismo camponês», ora aquando da relativa «passividade» das classes exploradas e
dominadas ao tempo da política de austeridade imposta pela Troika e ampliada
pelo Governo PSD/CDS respetivamente de Passos Coelho e Paulo Portas.

2. Habitação precária e comportamentos socio-políticos de


«consentimento»: em busca de uma explicação
Perante o problema colocado, após a apresentação do panorama e posiciona-
mento das diversas correntes sobre economia e política, darei conta dos principais
modelos explicativos do comportamento socio-político das pessoas em privação
relativa no que concerne o acesso e a fruição de uma habitação básica decente.

2
 .1. Breve panorama e posicionamentos sobre relação entre econo-
mia e política

Fazendo uma análise sobre os comportamentos socio-políticos de aparente


consentimento no passado e atualmente, podemos, na esteira de Scott (1976:203
ss), realçar, antes de mais, que o comportamento de aquiescência e mesmo sub-
missão por parte de populações em relação aos diversos tipos de poderes (eclesiás-
CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 29 |

tico, civil, militar), ora em sociedades tradicionais agrário-camponesas,2 ora em


sociedades urbano-industriais, em tempos ora de democracia ora sobretudo de dita-
dura, constitui a regra, enquanto as situações de revolta, sublevação ou revolução
são excecionais e raras. Mais, contrariando uma tradicional tese marxista e supos-
tamente leninista de que quanto piores as condições objetivas de vida das classes
e/ou grupos sociais explorados e dominados, maior a tendência para a contesta-
ção, a revolta ou a revolução, de novo a tese dos economistas morais como Thomp-
son (1978), Wolf (1974) e Scott (1990) se afigura mais apropriada na medida em
que as classes sociais mais desprovidas confrontam-se com maiores obstáculos
para organizar-se e alcançar os seus objetivos. E mesmo quando haja sentimen-
tos de descontentamento, indignação e raiva, estes, sendo ingredientes necessá-
rios, não são fator suficiente para a mobilização e organização, não sendo tais res-
postas tão diretas, espontâneas ou automáticas. Acresce, por outro lado, que, a par
de elementos comuns de solidariedade perante situações de exploração e domina-
ção em termos de classe, etnia e género, há situações de segmentação laboral, pre-
conceitos ou clivagens também em termos de género, nacionalidade e raça/etnia
que tornam mais difícil e/ou improvável uma ação coletiva ampla e concertada,
não sendo de excluir inclusive episódios de concorrência entre autóctones e migran-
tes em torno de trabalho, educação, habitação e demais direitos sociais, sobretudo
alimentados por grupos de extrema-direita. Por outro lado, tal como Bourdieu
(1979) constata e analisa diversas situações empíricas, a luta pelo melhor lugar pos-
sível no quadro de classificação competitiva faz com que os atores se orientem mais
para a acentuação das pequenas diferenças específicas entre classes dominadas ou
intermédias do que para os traços comuns entre classes exploradas e/ou domina-
das e eventual confronto com os interesses antagónicos das classes dominantes.
Não só em Portugal como em diversos países, nomeadamente europeus (vg.
França, Áustria, Holanda, Inglaterra), assiste-se com frequência ao facto intrigante
de membros das classes exploradas e oprimidas, não obstante sofrerem impactos
negativos de políticas macroeconómicas neoliberais, manifestarem, em termos elei-
torais, as suas preferências não só em torno de programas e partidos (neo)liberais,
democratas-cristãos ou sociais-democratas, mas inclusive de extrema-direita. Com
efeito, os (neo)liberais (cf. Dahl, 1989), separando propositadamente economia e
política, sociedade e Estado, sustentam que, enquanto a economia se ocuparia dos

2. São diversas as sociedades agrário-camponesas em que têm prevalecido, aliás como uma constante
secular, as atitudes de aparente consentimento, aquiescência ou, quando muito, de resistência passiva
(cf. Silva, 1998). Por sua vez, também nas sociedades industriais e modernas, em contexto urbano, embora
seja possível constatar um maior número de protestos, manifestações e greves, predominam não só
situações de negociação entre trabalhadores/as e empresários, como processos de relativa passividade
e contenção perante medidas de austeridade, como ainda de divisão e dificuldade em agregar forças e
mobilizar (por exemplo, desempregados, precários, minorias étnicas).
| 30 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

interesses individuais ou de grupo mas desligados da e externos à política, o poder


político constituiria um campo à parte e/ou neutro sem qualquer relação com ou
interferência dos interesses de classes/grupos sociais presentes na economia. Ou
seja, os agentes ou atores sociais, no âmbito da democracia representativa, seriam
todos iguais e livres nas suas decisões conformes com os seus respetivos interes-
ses e, como tal, saberiam mobilizar os seus recursos materiais e cognitivos e ter
as mesmas oportunidades de influenciar pelo voto a política e, assim, realizar os
seus objetivos e, por extensão, os interesses gerais da sociedade.
Em sentido diametralmente oposto, a concepção marxista (Marx e Engels,
1976/1846; Lenine, 1975/1899), pressupondo a interrelação entre economia e polí-
tica, não separa de modo algum uma e outra esfera, sustenta que a natureza do
Estado, refletindo a correlação de forças entre as classes sociais, constitui um con-
junto de instrumentos em benefício das classes dominantes e, como tal, o Estado
não é de modo algum um árbitro neutro acima das classes sociais. Esta tradicional
concepção instrumental do Estado tem prevalecido ao longo do tempo, tendo sido
todavia reequacionada por alguns marxistas como Poulantzas (1975) no sentido
de que o Estado, embora seja, em última instância, uma entidade defensora das
classes dominantes, exerce mediações, tem uma relativa autonomia e faz conces-
sões menores a outras classes intermédias ou dominadas, de modo a manter a
hegemonia das classes dominantes, posição esta partilhada por outros autores como
Santos (1993) e Silva (1989, 1998, 2005).
Tentando responder ao problema da descoincidência entre as condições obje-
tivas e as não correspondentes condições político-ideológicas, Marx (1975/1869:143;
1991/1857:152) constatou com pertinência o problema justamente em relação ao
campesinato que, na conjuntura política da França do século XIX, era uma «classe
em si» mas de modo algum uma «classe para si», ou seja, ela, no seu funcionamento
atomístico, constituía «um saco de batatas», não formando de modo algum uma
classe consciente, organizada. Embora tal concepção de Marx sobre o campesinato
se devesse a uma incompleta ou inadequada definição do campesinato por rela-
ção à burguesia e ao proletariado (cf. Silva, 1998) – de resto mais tarde corrigida
em final de vida por correspondência com a populista russa Vera Zassoulitch, con-
vergente com o pensamento de Chayanov (1976/1924) – o problema de ontem e
sobretudo de hoje é que tal discrepância entre a «classe em si» e a «classe para si»
ocorre não apenas em relação ao campesinato mas também em relação a outras
classes sociais como trabalhadores/as assalariados em vários setores desde o ter-
ciário e inclusive ao setor industrial. Mais, porque é que tais situações de passivi-
dade, acomodação ou resistência passiva são mais a regra que a excepção?
Para quem como os marxistas tradicionais e ortodoxos que assumem que as
classes exploradas e dominadas não têm nada a perder e, por isso, estão mais pre-
dispostas à contestação, levantamento ou revolução, são todavia recorrentemente
CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 31 |

constatadas situações que embaraçam os pressupostos lineares já referidos. De facto,


se sobre revoltas e revoluções é possível compilar um largo legado teórico nas ciên-
cias sociais, nomeadamente na História, na Ciência Política e na Sociologia, sobre
as atitudes e comportamentos de aquiescência ou mesmo «consentimento», de
esquivamento e relativa passividade são mais raros os trabalhos. Como referido,
não deixa todavia de ser reconhecido o problema por determinados teóricos com
particular ênfase entre os economistas morais como Thompson (1978) sobre a classe
operária, Wolf (1974), Scott (1976) e Silva (1998) em relação aos camponeses e
Burawoy (1979) e Estanque (1999) em relação ao operariado em contexto urbano.
A este respeito, enquanto a teoria da escolha racional de raiz (neo)liberal con-
sidera que os agentes e atores sociais dão a melhor resposta ou optam pela solu-
ção mais conveniente em função dos seus interesses individuais ou de grupo, a
tradicional resposta marxista tem remetido esta questão para processos de aliena-
ção e de manipulação político-comunicacional, identificando-os, enfim, como mani-
festações de «falsa consciência». Ora bem, se este é um elemento amiúde presente
mais ainda na atual era manipulatória da sociedade comunicacional e das notícias
falsas (fake news), nomeadamente em processos políticos recentes em diversos
países (vg. EUA, Reino Unido, Brasil), a discrepância entre a condição objetiva e a
subjetiva (consciência de classe) não poderá ser tratada deste modo expedito, mas
exige uma reflexão mais cuidada e uma análise dos vários fatores em jogo, sendo
provavelmente mais ajustada a assunção da necessidade de uma abordagem plu-
ricausal de inspiração weberiana a ser articulada com a posição marxista e com a
economía moral (Thompson, 1978; Wolf, 1974; Scott, 1976), assim como contri-
butos mais recentes weberiano-marxistas desde Bourdieu (1979, 1980) a Bader
(1991) e Silva (1998). Se a concepção marxista tradicional tem sustentado de modo
determinante a dimensão técnico-económica, secundarizando os fatores de ordem
político-ideológica, reproduzindo um velho esquema mecânico-economicista defen-
dido mais por teóricos revisionistas da II Internacional (Bernstein, 1964/1899;
Kautsky, 1974/1897) e sobretudo pelo estalinismo (cf. Estaline, 1971/1938) do que
por Marx e Engels (1976/1846), talvez devam ser revalorizados fatores de ordem
político e cultural-ideológica, os quais são amiúde mediados e incorporados, na
esteira de Bourdieu (1979, 1980) e Bader (1991), pelo habitus como forma incor-
porada e eficaz de legitimar a dominação. Mas resumamos as teorias correntes sobre
a ação coletiva, ou melhor, a eventual ausência de ação coletiva por parte de clas-
ses e grupos sociais explorados e dominados.

2.2. «Passividade»: breve resumo dos modelos explicativos


Tendo por base e referência a exposição das principais correntes ou modelos
explicativos do desfasamento entre as condições objetivas de vida severas e de
| 32 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

habitação degradada ou com condições insuficientes para se considerar habitação


básica decente e o não correspondente movimento social urbano reivindicativo e
organizado, serão de seguida expostos de modo resumido os quatro modelos desen-
volvidos noutro lugar a propósito do comportamento conservador, esquivo e aco-
modatício dos camponeses nortenhos (Silva, 1998), quer a respeito do atitude de
relativa resiliência (endurance) e não levantamento coletivo na conjuntura política
de austeridade e empobrecimento levado a cabo pelo governo do PSD/CDS, rele-
vando, em particular, a atitude relativamente passiva dos moradores das «ilhas» e
dos bairros populares no Porto e em Braga. São eles o modelo ontológico-moral e
cultural funcionalista, o sociopsicológico, particularmente da corrente behaviorista,
o modelo de poder e o modelo materialista histórico, seguindo-se um breve balanço
crítico e desenho duma abordagem pró-teórica plural, combinando e articulando
de modo crítico a chamada economia moral com as perspetivas weberiana e mar-
xista, como referido.

(i) o modelo ontológico-moral de cariz funcionalista e culturalista


Segundo este modelo ontológico-moral e cultural, os comportamentos de con-
tenção e a relativa passividade explicar-se-iam através de um ethos, arquétipo ou
personalidade-base de teor moralizante e culturalista, essencialista ou mesmo de
raiz metafísica e, em sociologia, em pressupostos funcionalistas. Os protagonistas
sociais teriam tendencialmente uma personalidade-base3, ora individualista e cal-
culista, ora comunitarista e solidária, sendo fator determinante a consciência cole-
tiva, a cultura num quadro de diferenciação social mas complementar e totalidade
coesa e harmónica em termos durkheimianos (solidariedade mecânica na socie-
dade tradicional e orgânica na moderna) (cf. Durkheim, 1977), prosseguida no
modelo sistémico, normativista e culturalista parsoniano (Parsons, 1988: 494 ss;
Smelser, 1962: 12 ss), gratificando os conformistas e cumpridores de normas da
ordem estabelecida e penalizando os dissidentes, os desviantes ou transgressores.

(ii) o modelo sociopsicológico e a teoria da privação relativa


Dentre os diversos modelos socio-psicológicos,4 um dos modelos deriva da
influência da Escola de Francoforte nomeadamente Horkheimer e Adorno (1979:
37 ss) e, posteriormente, Reich (1972) e Marcuse (1963), os quais, por sua vez
influenciados por interpretações psicanalíticas de cariz freudiano e junguiano,

3. Os autores sobre personalidade-base que, na esteira de autores funcionalistas e conservadores como


Le Play (1982) e adeptos de estudos comunitários pelo chamado método de natureza psicocultural e con-
figuracionista, são Linton (1952:21ss) e Kardiner (1961: 922, 76 ss).
4. Embora mais estritamente psicológica e mais antiga, uma das explicações tradicionais da ação coletiva,
por influência de Tarde (1903), residiria no facto de os indivíduos, em contextos de manifestações maci-
ças e gregárias, agirem por contágio de modo explosivo e «irracional» em contraste com formas racionais
em situação isolada.
CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 33 |

assumiam que determinados comportamentos, designadamente autoritários, assen-


tariam em determinado tipo de personalidade, a qual traduzir-se-ia em preconcei-
tos, na pseudocultura, na burocracia e na tecnocracia. Uma segunda moderna teoria
psicológica, nomeadamente behaviorista (Watson, 1913), em contraponto a teorias
introspeccionistas provindas do século XIX, avança um modelo baseado na rela-
ção estímulo-resposta. Por fim, outros cientistas sociais como Davies (1962: 6 ss)
e Gurr (1970: 13 ss), reconhecendo uma maior variabilidade do comportamento
humano, procuraram estabelecer uma relação causal entre expectativas e gratifi-
cações ou entre maior ou menor grau de privação relativa e (in)capacidade de rea-
lizar determinadas necessidades, desejos e/ou objetivos. Partindo do raciocínio
subjacente de que o lugar de cada ator social no sistema de estratificação estaria
na base da medida de satisfação-insatisfação, apatia-rebeldia, frustração-agressi-
vidade, quanto mais baixo for o estatuto de determinado indivíduo maior a pro-
babilidade de motivação, (pre)disposição psíquica, «ethos» ou «estado mental» para
a indignação, revolta, protesto ou ação coletiva, podendo dar lugar a protótipos
psicossociais ou culturais: vg. «amoral-familista» (Banfield, 1958:83) ou «invejoso»
(Foster, 1972:162).

(iii) o modelo de poder: virtualidades e limites


Um dos modelos mais sustentados e com longa tradição na sociologia e na
ciência política é aquele que considera o poder como o fator explicativo dos com-
portamentos sociais, das relações clientelares, da ação sociopolítica das classes
sociais, assim como das diferentes configurações políticas a nível local, regional
ou nacional. À ação, ora contestatária, revoltosa ou revolucionária, ora resignada,
passiva e conformista de determinados grupos/classes sociais, subjaz na arena
política uma estratégia de poder consciente, cuja realização estaria dependente dos
recursos de poder, do grau do próprio «poder tático» (recursos económicos, orga-
nizacionais e outros) de cada classe ou bloco social em relação a outras classes/
grupos sociais, eventualmente cada um deles coligado com outros e/ou articulado
com fatores externos.5

(iv) a abordagem materialista histórica


Segundo a abordagem materialista histórica, as ações das classes e dos grupos
sociais são explicadas a partir do(s) respetivo(s) modo(s) de produção, dos con-
ceitos e categorias daí derivados, nomeadamente do grau de desenvolvimento das

5. Cf. Dahrendorf (1959: 165 ss), Moore (1966:453 ss), Wolf (1974), Blok (1974: 6 ss), Aya (1979: 30 ss) e
Skocpol (1979: 11 ss). Sobre o conceito de poder, cf. Weber (1978: 53). Acerca do patrocinato, enquanto
mecanismo de mediação e poder, cf. Bailey (1970: 41 ss, 167 ss), Weingrod (1977: 41-51), Boissevain (1966:
18-33 e 1977: 89-90). Sobre o poder, mas apenas como uma das fontes de desigualdade social, tendo
por base o conceito de controlo sobre recursos sobretudo indiretos, cf. Bader e Benschop (1988: 149 ss),
Silva e Van Toor (1984) e Silva (1994 e 1998).
| 34 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

forças produtivas, relações de produção e conteúdos das instâncias político-ideo-


lógicas, ou seja, determinado modo de produção, eventualmente em articulação
com outros, estaria na base da explicação dos vários comportamentos sociais e
políticos. Todavia, não obstante os diferenciados posicionamentos, a interpretação
tradicionalmente dominante, podendo ser extraída também a partir de textos de
Marx (1974/1859), Marx e Engels (1976/1846 I: 21 ss) e Lenine (1977/1899), assu-
miu contudo um carácter mecanicista e determinista, quando codificada e ossifi-
cada pelo estalinismo, mas foi contrariada por outros autores marxistas desde
Lukacs (1976/1945), passando por Gramsci (1974), Vergoupolos (1978) e Llobera
(1979: 252). Com efeito, o fator económico, na conceção marxista da história, seria,
entre outros, um fator prevalecente, devendo o determinismo tecno-económico ser
mais justamente imputado, como referido, à tendência revisionista do marxismo
presente designadamente em Bernstein (1964/1899) e Kautsky (1974/1897) e na
versão vulgar e mecanicista do marxismo pelo estalinismo (cf. Estaline, 1971/1938).
Aplicado à questão da ação coletiva, segundo a tradicional abordagem marxista-
-leninista, quanto mais pobres, explorados ou deserdados os atores, mais coeren-
temente contestatários e revolucionários seriam e maior seria a probabilidade de
aderirem ou mesmo liderarem processos revolucionários.

(v) balanço crítico


Não obstante a dimensão cultural e simbólica ser inerente a qualquer socie-
dade e ser central na formação e na organização de classe (Thompson, 1978; Pereira,
2005), tal não significa nem valida assumir uma posição culturalista ou resvalar
para um posicionamento subjetivista ou idealista, contra a qual se revelam não só
marxistas como autores doutras correntes (cf. Weber, 1978/1920: 4 ss; Geertz, 1973:
10 ss; A. Silva, 1994: 20 ss; Sobral, 2006 e 2012).
A pertinente objeção ao modelo funcional-culturalista reside mais na petição
apriorística sob a forma de arquétipos ou protótipos fixos e na sua pretensa pers-
petiva integradora de carácter cultural-mental com leve ou mesmo nula referência
a constrangimentos económicos ou à polarização de classes e grupos sociais ou da
sua relação com o Estado. E mesmo quando se assista a certa convergência cul-
tural, ou a aparentes formas de aceitação das diferenças socioeconómicas e de
«assentimento» sociopolítico, tal não significa nem uma convergência de perce-
ções, nem um assentimento cordial, nem sequer uma homogeneização cultural6

6. Tal como respetivamente o demonstraram Black (1972: 624 ss), Scott (1985: 284 ss) e Silva (1998), em
espaços rurais e Burawoy (1979) e Estanque (1999) em espaços industrial-urbanos, sem retirar força ao
argumento, desenvolvido por Burawoy (1979) na estruturação do consentimento, de que os dominados
interiorizam determinadas narrativas justificativas de formas de dominação e mesmo de exploração. Sobre
estudos mais recentes sobre bairros populares, para além de casos registados em vários trabalhos da
equipa (Rodrigues et al., 2015; Silva et al., 2020), importa registar as conclusões dos trabalhos de Cachado
CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 35 |

e, muito menos, consensualidade em torno dum alegado «sistema de valores


comuns», como pretende Parsons (1988, 1966:240 ss).
Relativamente aos modelos centrados em síndromas ou protótipos sociopsico-
lógicos,7 os acérrimos defensores da monocausalidade sociopsicológica, assumindo,
amiúde implicitamente, premissas do modelo liberal e cognitivista e tendo amiúde
como pano de fundo a análise da transição em torno dos modos de orientação do
tradicional para o moderno, tendem a explicar as condutas dos atores sociais a partir
da representação ou imagem (emic) que estes possuem acerca da escassez ou fini-
tude de bens valiosos. Tais modelos, embora não apresentem um carácter essen-
cialista e metafísico como no modelo ontológico-moral, conduzem a elaborar certos
protótipos psicossociais ou psicoculturais sobre os comportamentos dos atores
sociais, sem atender à sociogénese desses protótipos e conceções simbólicas, igno-
rando as bases materiais (económicas, organizacionais) ou relegando para segundo
plano as causas estruturais da ação social cristalizada em síndromas ou protótipos
sociopsicológicos, apresentando como factor explicativo (explanans) dos compor-
tamentos sociais o que justamente deve ser explicado (explanandum). Com efeito,
embora a situação de privação relativa e a eventual (pre)disposição ou motivação
para a ação coletiva seja um fator relevante, do ponto de vista analítico e estru-
turante da ação social, torna-se necessário priorizar os níveis societal e organiza-
cional. Doutro modo, não é compreensível nem explicável porque é que situações
social e economicamente semelhantes ou composições sociais similares geram
movimentos e reações divergentes ou até contrárias em diferentes países, regiões,
comunidades locais. Mais ainda, como é que em situações de extrema desigual-
dade e injustiça, elevadas taxas de desemprego e pobreza e carências sociais nomea-
damente habitacionais, há fortes descontentamentos e sentimentos de indignação,
mas não há levantamentos socio-políticos, sendo pelo contrário de relevar frequen-
tes sentimentos de resignação fatalista ou atitudes defensivas por receio de perder
posições mínimas, direitos ou pequenas conquistas sociais. Em suma, não há uma
relação direta de causa-efeito entre pobreza ou privação relativa e revolta ou revo-
lução, nem esta é resultante da soma de indivíduos insatisfeitos, descontentes e
ressentidos. Como sustenta Scott (1976:4), se o ressentimento fosse suficiente para
a revolta, todo o chamado Terceiro Mundo estaria a arder em chamas.
Comparativamente aos modelos ontológico-moral e psicossocial, o modelo de
poder apresenta uma base mais realista na medida em que, analisando processos

e Baía (2012) e Cachado (2013) e, muito em particular, primeiro a saída de moradores/as dos bairros de
Ribeira/Barredo para o bairro do Aleixo e, mais recentemente, na demolição do bairro do Aleixo no Porto
(Queirós, 2015 e 2019), nomeadamente em processos de despejo e realojamento.
7. Cf. como exemplos o «encolhido» (cf. Erasmus, 1968: 69 ss), o «invejoso» (Foster, 1972), o «modesto-
-invejoso» (Tolosana, 1973:833), o «camponês minhoto» (J.P. Cabral, 1989: 59 ss), o português como «não
inscrito» ou «invejoso» (cf. Gil, 2004). Para uma crítica, cf. Silva (2002).
| 36 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

históricos e atuais, se constata que o maior ou menor grau de recursos de poder é


decisivo para compreender e explicar a ação social, assim como os diferenciados
resultados e reconfigurações políticas. Porém, tais relações de força não são inde-
pendentes dos lugares «impessoais», como refere Almeida (1984: 585 ss), ocupa-
dos na estrutura económica. Por outro lado, o modelo de poder, como salienta
Bader (1991:32 ss), na sua perspetiva antieconomicista, não só subestima a ver-
tente cultural e identitária dos grupos sociais como substancializa o poder e cir-
cunscreve ou reduz o conflito em torno do conflito político, descurando outros
tipos de conflito e outros fatores relevantes para explicar situações e comportamen-
tos sociais. Este modelo enfatiza em demasia as intenções ou estratégias dos atores
sociais, partindo do pressuposto – aliás também presente na visão (neo)liberal,
na teoria da escolha racional ou no modelo de jogos – de que os atores sabem bem,
do ponto de vista tático e estratégico, quais os seus interesses e como mobilizar
recursos para alcançar os seus objetivos; tal contudo nem sempre acontece,
podendo os atores, por insuficiente conhecimento ou bloqueio de fatores de ordem
ideológica e normativa, equivocar-se sobre a natureza dos movimentos que apoiam
ou dos partidos que legitimam com o seu voto.
No que concerne a abordagem marxista, esta refere e com justeza a relevân-
cia das condições sociais, nomeadamente económicas, as quais constituem um
fator necessário mas, em regra, insuficiente para explicar os comportamentos
sociopolíticos. São conhecidos na história exemplos de que, quanto mais pobres,
desprovidos e dependentes forem os membros de classes sociais exploradas e/ou
dominadas, mais urgentes e constrangentes são as suas prioridades face à subsis-
tência e também maior a sua aversão ao risco em termos políticos e, portanto,
maior a probabilidade de apoiarem e mesmo votarem em favor dos seus «prote-
tores» locais e «salvadores» nacionais conservadores e de (extrema)direita: por
exemplo, os jornaleiros e/ou camponeses no Norte do país (Bennema, 1992: 112
ss; Silva, 1998). Do mesmo modo, em determinadas situações históricas, tal como
sustenta Wolf (1974: 71ss), são os atores de classes sociais com alguns recursos
que em melhor situação se encontram para organizar ou liderar processos sociais
de mudança, revolta ou revolução, tese esta contrária à já alegada tradicional tese
marxista-leninista. Não obstante os esforços de marxistas para entender a discre-
pância entre «classe em si» e «classe para si» relativamente às classes intermédias,
o problema que hoje se coloca com premência é que este desajustamento ocorre
também em setores das classes trabalhadoras, inclusive no seio do próprio ope-
rariado e, com particular incidência, entre os mais desprovidos, vulnerabilizados
e precarizados da sociedade. A resposta marxista dominante é a de que se trata
de «falsa consciência» de sujeitos alienados, mas tal «explicação» traduz uma fór-
mula circular e expedita, porque, sendo «falsa» consciência ou não, ela tem obvia-
mente consequências políticas e necessita ela própria de explicação, a não ser que,
CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 37 |

a este respeito, se pretenda suspender a argumentação dialética e de base materia-


lista e histórica. O pressuposto estrutural e economicista na análise tradicional mar-
xista em torno das classes sociais não só ontologiza a dimensão estrutural-econó-
mica, como ignora ou subestima as vertentes organizacional-política e interativa
e menospreza a dimensão cultural-normativa nos processos identitários. Por outro
lado, ignora, menoriza ou reduz indevidamente outras linhas de oposição ou rutura
na base étnica, de género, idade, nacionalidade, entre outras, ao conflito de clas-
ses. Por fim, para além da necessidade de ter presente o modelo dos pré-requisi-
tos de ação coletiva avançados por Bader (1991), tal como veremos em seguida,
torna-se intrigante constatar como, perante a não-coincidência entre o fator de
ordem económica e o comportamento político, se aliam na tradicional perspetiva
marxista um economicismo apriorístico e a remissão para o campo ideológico como
fator explicativo sob a expressão «falsa consciência».
O modelo ontológico-moral culturalista e o modelo sociopsicológico foram reba-
tidos pela sua unilateralidade conceptual e/ou generalização não empiricamente
comprovada, embora bastante menos o segundo que o primeiro. Por seu turno, o
modelo de poder e o modelo marxista, apresentando fatores explicativos relevan-
tes, foram objeto de crítica pela sua monocausalidade e, por isso, devem ser arti-
culados com a perspetiva da «economia moral». A convocação da abordagem da
economia moral pode, a este respeito, constituir um contributo decisivo, desde que
se entenda economia moral no sentido dado por Thompson (1978, 1979), Wolf
(1974) e Scott (1976, 1990), enquanto conjunto de motivações, experiências e sen-
timentos de (in)justiça partilhados e enraizados nas condições materiais de exis-
tência. Aos diferentes posicionamentos sociopolíticos dos membros das classes
exploradas e/ou dominadas (resignação, retraimento defensivo, repulsa, contesta-
ção ou revolta) subjaz, numa linha weberiana, a ausência ou presença dum deter-
minado grau de efetivo poder de disposição (Verfügungsgewalt ou tactical power),
quer quanto aos recursos diretos, ou seja, as condições de produção e seus resul-
tados, nomeadamente o grau de privação, quer quanto aos recursos indiretos,
nomeadamente os relacionados com as oportunidades de prestígio e poder. Tal
constitui um requisito fundamental e indispensável para a segurança e a sobrevi-
vência dos atores sociais, assim como, eventualmente, para a melhoria da sua posi-
ção social e/ou alteração do statu quo.
| 38 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

3. Por uma habitação básica: presentes as precondições de


ação coletiva nas «ilhas» e nos bairros populares no Porto e
em Braga?

Na problematização em torno do binómio classe-classe em acção, importa rele-


var outros contributos críticos e complementares a Bourdieu (1979, 1980), nomea-
damente os de Bader (1991) e Benschop (1993), os quais, para além de sistemati-
zarem o conjunto de recursos susceptíveis de definir as classes e respectivas posi-
ções de vida dos atores sociais, em termos coletivos e individuais, salientam, numa
visão pluricausal, os diversos patamares de análise e as precondições e fatores
explicativos da emergência e sustentabilidade (ou não) da ação colectiva. Com
efeito, não basta ocupar-se apenas de definir classe ao nível mais abstrato de modo
de produção ou delimitar o lugar ou a função de cada classe em determinada for-
mação social, mas importa também indagar sobre quais as condições para a emer-
gência e a consolidação da consciência, da organização e mobilização de classe,
sem descurar a questão de saber quais as classes com as quais determinada classe
ou grupo social pode (e deve) construir alianças.
Bader (1991), ao gizar um modelo de ação colectiva, sistematiza as precondições
da mesma – de resto aplicável a diversas formas de acção coletiva (de classe, étnica,
de género, habitacional, entre outras). A fim de aferir até que ponto e em que medida
houve reivindicações e ações coletivas em prol da concretização do direito à habi-
tação básica, temos como pano de fundo as situações nas «ilhas» e nos bairros popu-
lares no Porto e em Braga – a ser objeto de posterior desenvolvimento – conside-
rando, na esteira de Bader (1991), quais as precondições da ação coletiva a preen-
cher, cujo grau de presença ou ausência poderá ser entendido como hipóteses de
trabalho em parte já evidenciadas em trabalhos publicados (e a publicar) do pre-
sente projeto e a ser confirmadas em futuras pesquisas. Para tal torna-se necessário:

(i) que haja uma relativa homogeneidade de posições objectivas de vida de


determinado grupo/comunidade, ou seja, que os respectivos atores da(s)
classe(s) dominada(s) sejam, de facto, vítimas de processos de explora-
ção e/ou dominação por parte de instituições (inter)estatais e classes/
grupos dominantes em contextos específicos (colonial, fascista-nazi, impe-
rialista, formação de Estados-Nação, urbanização, migrações, gentrifica-
ção), impondo-se a necessidade de analisar a componente histórica, bem
como o número e sobretudo o peso político de cada classe ou grupo social,
a natureza e o grau de dominação e, eventualmente, de exploração, assim
como os eventuais movimentos sociais de contestação, oposição e luta,
que são, antes de mais, produtos sociais das estruturas, mudanças e con-
CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 39 |

textos específicos das sociedades. A este respeito, no contexto histórico


de implantação de «ilhas» e bairros populares no Porto e em Braga, em
regra, estão presentes estas condições objetivas de vida de moradores/as
explorados/as e dominados/as, atendendo aos seus tipos de trabalho, ren-
dimentos e privações.
(ii) que haja desequilíbrios e injustiças no acesso e no grau de controlo de
recursos e recompensas e que grupos dominantes, pelo lugar ocupado
nas situações de desigualdade adstritiva e posicional e nas relações de
poder assimétrico, sejam percebidos como «ameaçadores» ou «usurpado-
res» de direitos básicos. A este respeito, na situação das «ilhas» e bairros
populares no Porto e em Braga há, em regra, desequilíbrios, desigualda-
des e injustiças em prejuízo dos moradores/as por parte de entidades
empregadoras, senhorios e autoridades camarárias e outras no que diz
respeito ao acesso e à fruição de recursos, nomeadamente no campo da
habitação, infraestruturas e equipamentos.
(iii) que determinadas estruturas sociais específicas possibilitem ou contri-
buam para o aparecimento e/ou reforço de determinada classe e/ou cate-
goria social, enquanto potencial ator colectivo, cujas auto e heterocate-
gorizações estejam sedimentadas e concretizadas em determinadas situa-
ções históricas concretas. Com efeito, nas «ilhas» e nos bairros populares
no Porto e em Braga, em consequência dum processo desigual de indus-
trialização e urbanização, os moradores/as têm também sofrido impac-
tos negativos inclusive nas suas condições de vida objetiva, na autoes-
tima e inclusive em processos de estigmatização provinda da sociedade
envolvente e sobretudo das instituições.
(iv) que a formação de grupos/classes sociais, assente em experiências vivi-
das pelos próprios atores sociais, se transmita através da cultura e do
habitus8 específico, ou seja, através dos discursos políticos e retóricos, já
dominantes, já dominados, o que implica que um conjunto de pessoas
com certas características sociais só se torna classe em acção quando

8. Este conceito, nuclear na definição da identidade (étnica, de classe, de género ou outra), é tributário
do contributo de Bourdieu (1972, 1979, 1980) no sentido da mediação da dicotomia estrutura-acção, tal
como atrás foi definido. Cf. também Pinto (1991) e Wacquant (2004). O conceito de habitus constituiu um
esforço notável no sentido de superação das teorias estruturalista e acionalista/interacionista, do nível
macro e micro, sem que, como foi salientado, haja completa homologia entre macro-micro e estrutural-
-interativo, dado que no nível micro opera também o estrutural e vice-versa (cf. Giddens, 1984). Em Por-
tugal, Almeida (1981:239) converge no mesmo sentido, quando refere que «por força dos específicos con-
dicionamentos objectivos que, para além duma infinita variedade de modulações, produziram determi-
nados e importantes elementos comuns de socialização e de experiência, os membros de uma mesma
classe que os incorporam e cristalizaram em habitus têm entre si maior probabilidade de pensar e agir de
forma semelhante do que em relação a membros de outras classes».
| 40 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

elas detêm uma relativa homogeneidade de hábitos e estilos de vida, cos-


tumes e tradições específicas, uma identidade e interesses específicos e
distintos (por exemplo, enquanto operários, empregados ou trabalhado-
res qualificados) e que, como tal, são percebidos, interpretados e enten-
didos como relevantes e diferentes, seja no contexto de grupo dominante,
seja do grupo dominado. Embora pelos dados recolhidos se possam infe-
rir experiências e vivências, hábitos e modos de vida relativamente comuns
e homogéneos nas «ilhas» e nos bairros populares sob estudo, nem sempre
tais vivências e modos de vida são entendidos nem relevados por todos
num processo de partilha de experiências e, muito menos, com o obje-
tivo de ação coletiva.
(v) que as classes/grupos sociais não sejam apenas potenciais entidades em
conflito mas reais grupos de conflito que, num quadro de diferenças e
concorrência de interesses, possuam, assumam e partilhem uma identi-
dade de classe, atendendo a que as culturas e respetivas linguagens de
classe representam expressões e veículos da cultura e da consciência de
classe, as quais, uma vez articuladas com o respetivo poder político e
económico, constituem propriedades co-estruturantes que facilitam a
adesão e alimentam e consolidam o processo de identificação com a res-
petiva classe/grupo social. Relativamente a esta precondição, verifica-se,
no caso dos moradores/as das «ilhas» e dos bairros populares no Porto e
em Braga, um certo sentimento de pertença de grupo social esquecido,
abandonado pelos poderes locais e nacionais, nomeadamente os grupos
étnicos ciganos, mas não se infere daí uma forte identidade e consciên-
cia de classe e, no caso da etnia cigana, ações de reivindicação coletiva e
organizada em base étnica.
(vi) que a(s) classe(s) social(is), enquanto tal, detenha(m) interesses objec-
tivos (materiais, legais e simbólicos) próprios, interesses esses que devem
ser percebidos e tornar-se perceptíveis aos demais com base na cultura,
nos costumes, nos hábitos e nos estilos de vida e inclusive noutros aspe-
tos inconscientes ou preconscientes das culturas de grupo/classe (soli-
dariedades, história, símbolos, rituais, valores). Sobre este ponto, apesar
da existência de elementos objetivos materiais comuns, traços de cultura,
costumes, alguns hábitos e estilos de vida relativamente homogéneos
entre os moradores/as das «ilhas» e bairros populares no Porto e em
Braga, não há uma percepção de interesses comuns a ser defendidos em
base organizada e política.
(vii) que as respectivas classes sociais dominadas, no processo de formação
da sua cultura, identidade e interesses específicos, articulem objetivos,
estratégias e táticas para a ação, o que exige, em contraposição à ideo-
CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 41 |

logia definida pelo grupo dominante (no sentido de naturalizar a explo-


ração, a discriminação, a opressão), a elaboração, de modo direto e
mediado, de uma utopia específica na acepção de Mannheim (1976), ou
seja, no sentido de libertação das normas cognitivas dominantes, polari-
zação dos conflitos e luta pela emancipação contra as formas de explo-
ração, discriminação e opressão. Quanto a esta precondição, apesar da
existência de elementos materiais e culturais comuns ou relativamente
homogéneos, não há articulação de objetivos e táticas para ação e, muito
menos, a construção de utopias no sentido de libertação de narrativas
ideológicas dominantes.
(viii) que cada uma das classes dominadas, para alcançar os objetivos enun-
ciados, consiga alcançar um grau considerável de organização social, o
que implica associar-se, superar eventuais diferenças internas e organi-
zar-se numa linha ampla e com base nos interesses comuns, não obstante
a diversidade e a heterogeneidade de quadros e líderes e respetivos grupos
de apoio, dimensão esta que remete para as questões organizacionais e
de poder (formação de organizações, partidos, movimentos e respetivas
lideranças). Em relação a este prerrequisito para ação coletiva, não obs-
tante a presença de alguns elementos de defesa dos interesses imediatos
em Associações ou Comissões de moradores/as em determinados bairros
populares, os moradores/as das «ilhas» e dos bairros populares no Porto
e em Braga não estão nem estratégica nem taticamente organizados de
modo não só a reivindicar a satisfação dos seus interesses comuns como,
de modo algum, a alterar as relações de poder em termos locais e nacio-
nais face aos interesses de classes dominantes e elites políticas.
(ix) que na ação coletiva sejam mobilizados recursos de poder disponíveis,
não só os recursos internos (cultura, habitus, identidade, organização,
liderança) como externos (aliados, instituições estatais, princípios jurídi-
cos e políticos), podendo estes últimos ser decisivos, quer nos processos
negociais, quer nos resultados dos conflitos. No que concerne esta pre-
condição, apesar de haver alguns elementos de recursos de poder inter-
nos e externos em termos culturais (associações, declarações retóricas de
partidos em seu favor), não há efetivamente mobilização e conjugação
de suficientes e adequados recursos internos e externos para tornar eficaz
a ação coletiva, não havendo, em regra, nas «ilhas» e nos bairros popu-
lares no Porto e em Braga, nem organização nem liderança capazes de
negociar, enfrentar os poderes locais e de aliar-se a outras forças e enti-
dades na luta contra classes e elites dominantes.
(x) que sejam ponderadas e incluídas na estratégia as oportunidades de ação
externa, a fim de atrair potenciais aliados, neutralizar terceiros indecisos
| 42 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

e responder a contramobilizações dos adversários e, deste modo, nego-


ciar, conciliar e/ou fazer face ao confronto. De modo similar ao ponto
anterior, tão pouco se verifica nas «ilhas» e nos bairros populares no Porto
e em Braga a construção de estratégias de oportunidades de ação externa
no sentido de buscar aliados, neutralizar grupos terceiros e responder e
confrontar a ações dos adversários.

Estes dez pontos, constituindo (pre)condições susceptíveis de permitir com-


preender e explicar a emergência, a polarização ou a diminuição do conflito social,
devem levar em linha de conta o curso do processo e outras consequências inten-
cionais e não intencionais, pelo que estas terão de ser vistas não apenas como efei-
tos mas também como causas que afetam, alteram ou transformam as estruturas
sociais e políticas existentes, nomeadamente a nível local, regional e nacional-esta-
tal. Por outro lado, além da necessidade de forjar uma unidade entre as várias clas-
ses e/ou grupos explorados e oprimidos e do imperativo de compromissos histó-
ricos e a superação de diferenças internas em cada fase política, as associações de
classe, sindicatos e outros movimentos sociais com base na pertença de classe não
poderão desligar-se de outros movimentos emancipatórios – feminista, antirracista,
ecológico –, dado que, no contexto da globalização em curso, só uma estratégia
interseccional, concertada e global permite pensar e realizar um outro mundo social.
Donde, todas as formas de resistência e todos os movimentos e práticas sociais que
ponham em causa o statu quo representam graduais melhorias que não devem
a priori ser consideradas como formas de reprodução e estabilização do sistema e,
neste sentido, contaminadas só porque, numa visão dogmática e sectária, não se
enquadram na estratégia do partido ou da organização alegadamente revolucioná-
ria e, como tal, apresentada como única e lídima representante da classe operária
e demais classes exploradas e oprimidas.

4. Conclusão
A crise económica e financeira despoletada nos Estados Unidos replicou-se na
Europa e afetou particularmente as economias mais débeis do Sul como Portugal,
tendo levado o então governo do PS a solicitar uma assistência financeira pela
Troika com a subsequente política de austeridade exacerbada e mesmo desumana
por parte do PSD/CDS. No campo da habitação, tal refletiu-se na liberalização dos
mercados da habitação e subsequente dificuldade de acesso a casa por parte das
classes mais destituídas e inclusive de classes intermédias. Por outro lado, o Estado,
omisso ao longo dos 45 anos do pós-25 de Abril na garantia de habitação condigna
a todos os cidadãos/ãs, foi cúmplice da manutenção de situações de privação e
degradação das condições habitacionais para centenas de milhares de pessoas.
CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 43 |

Sem negar a travagem dos efeitos mais nefastos da política neoliberal do governo
PSD/CDS e a recuperação de rendimentos e pensões e algumas melhorias com o
governo PS a partir de 2016, a política de liberalização no mercado de arrenda-
mento manteve-se e arrastou-se durante o governo do PS. Se, por um lado, final-
mente a Lei de Bases da Habitação foi aprovada mais pela pressão do BE, PCP/
PEV e a deputada independente Helena Roseta pelo PS, por outro continuou a haver
um baixo investimento na política pública de habitação e não foram contrariados
os processos de especulação imobiliária, gentrificação e turistificação.
A configuração socio-política resultante das últimas eleições em 2019, refor-
çando o PS e debilitando outras forças à esquerda, particularmente o PCP/PEV,
não augura mudanças significativas neste campo, e mais ainda agora, no contexto
da crise sanitária do Covid19 e concomitante grave crise económica a nível nacio-
nal, europeu e internacional. Porém, o mais intrigante é que, entre as classes e
grupos sociais mais atingidos pela especulação e omissão/cumplicidade do governo,
nomeadamente os moradores das «ilhas» e dos bairros populares do Porto e de
Braga, não se têm vislumbrado processos de protesto e ação coletiva. Tal nos con-
duziu a expor de modo breve os principais modelos explicativos destes comporta-
mentos socio-políticos resignados, conformados, esquivos ou, quanto muito, resi-
lientes e passivamente resistentes, enveredando, após um balanço crítico, pela
combinação da economia moral articulada com elementos das abordagens mar-
xista e weberiana. Por fim, assumindo, na esteira de Bader (1991), a necessidade
de determinadas precondições para a ação coletiva, aferimos que de facto, apesar
de algumas condições objetivas estarem presentes, outras, sobretudo de caráter
organizativo e de liderança, assim como a utopia como alavanca de transformação
social, não estão presentes. Ou seja, apesar de o conjunto de moradores/as destas
«ilhas» e bairros populares deter posições relativamente homogéneas, interesses e
objetivos semelhantes e mesmo incorporando alguns hábitos e modos de vida simi-
lares, não possui as condições político-organizacionais e simbólico-culturais para
desencadear uma ação coletiva, designadamente por baixo grau de politização, não
obstante a sua situação de privação relativa em termos de condições de vida e habi-
tação precárias.
A ação política concreta, se, por um lado, não deve ser interpretada a partir de
um modelo monocausal, designadamente quando impregnado de uma conotação
ontológico-metafísica, tão-pouco pode sê-lo a partir de uma simples soma eclética
de diversos fatores. Tal como foi referido, a ação factual depende e é determinada
pela acumulação e a articulação dos diversos níveis de estruturação: socioestru-
tural ou societal, organizacional e interaccional. Por outro lado, o apelo a um enfo-
que pluridimensional não exclui certamente a necessidade de situar prioridades
nos níveis e fatores em análise, reconstruí-los, validá-los teoricamente e testá-los
empiricamente.
| 44 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Siglas
BCE = Banco Central Europeu
BE = Bloco de Esquerda
CDS = Centro Democrático e Social
CE = Comissão Europeia
CEAM = Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares
CICS.Nova_UMinho = Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Universidade do Minho
EUA = Estados Unidos da América
FMI = Fundo Monetário Internacional
PAN = Pessoas, Animais e Natureza
PCP = Partido Comunista Português
PEV = Partido Ecologista os Verdes
PS = Partido Socialista
PSD = Partido Social Democrata

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Capítulo II

Democracia associativa:
ainda a real Terceira Via

Veit Bader*

* Sociólogo, Professor Emérito da Universidade de Amesterdão. Este capítulo é baseado em Introduções


a obras de Bader (2001 e 2020). O texto foi traduzido do inglês por Manuel Carlos Silva com revisão de
Joel Felizes. Email: v.m.bader@uva.nl e veitbader@gmail.com
1. Introdução
A democracia associativa é uma teoria política cuja tese nuclear é a de que o
maior número possível de atividades sociais deve ser delegada em associações
voluntárias autogeridas. Tem um lastro intelectual que remonta a meados do século
XIX, mas tem sido recentemente reavivada sob novos moldes. O associativismo
pode ser descrito como a Terceira Via original, entre o individualismo de livre-mer-
cado e o controlo estatal centralizado. Os defensores do associativismo argumen-
tam que o laissez-faire deixa desgovernadas largas áreas da vida social.
A maioria dos cidadãos/ãs não pode realizar plenamente os seus objetivos
agindo como indivíduos isolados, mas apenas poderá fazê-lo unindo-se àqueles
com quem partilha esses objetivos. Por outro lado, o controlo centralizado do Estado
não só restringe a liberdade individual mas também se baseia na premissa de que
o Estado pode efetivamente abranger os diferentes interesses e preferências pre-
sentes na sociedade no seio de um único esquema de provisão coletiva. O socia-
lismo de Estado era apenas um caso especial e excessivo desse tipo de controlo
centralizado. Todavia, apesar do colapso do socialismo estatal, os Estados conti-
nuam a organizar amplas áreas da vida social, ao disporem de orçamentos que
envolvem uma significativa proporção do rendimento nacional e ao assegurarem
diversos serviços públicos padronizados a toda a população.
Os associativistas argumentam que existem diferentes conceções do que será
uma boa vida na sociedade, as quais são acompanhadas por diferentes conteúdos
e estilos de prestação de serviços públicos. Os serviços deveriam ser públicos e
publicamente financiados, abertos a todos, mas não estatais. As associações deve-
riam ser livres para competir entre si por membros e pelos serviços que prestam,
e os membros trariam fundos públicos com eles de acordo com uma fórmula per
capita comum. Assim, em vez de haver um único Estado de bem-estar social, have-
ria tantos quantos os cidadãos desejassem organizar, atendendo aos diferentes
valores dos indivíduos, mas assentes em direitos comuns. Tais organizações seriam
democraticamente autogovernadas. Algumas poderiam ser altamente participati-
vas, outras com níveis mínimos de participação, mas todos/as teriam o direito
básico de eleger os órgãos de governo e todos os membros teriam, periodicamente,
a opção de sair, se estivessem insatisfeitos.
Em tal sistema, seriam as associações, em vez do Estado ou do setor privado,
quem controlaria a maior parte das prestações sociais e uma boa parte da ativi-
dade económica. O Estado e o mercado continuariam a existir, mas em paralelo
haveria um sistema associativo de governança. Assim, o Estado e o mercado esta-
riam limitados aos papéis que podem desempenhar de forma mais eficaz, mas esta-
riam sujeitos a controlo democrático e à soberania do consumidor. A autoridade
| 52 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

seria o mais descentralizada e plural possível, mas com um Estado central para
garantir a paz pública e o Estado de direito.
A democracia associativa desenvolveu-se mais uma vez como um novo para-
digma na teoria política nas décadas de 1980 e 1990. Ela tem sido avançada pri-
mariamente como uma resposta ao colapso de duas tradições intelectuais e políti-
cas que dominaram a esquerda durante o século XX: primeiro, o marxismo-leni-
nismo e o colapso do socialismo de Estado realmente existente; e segundo, a social-
-democracia estatizante, assim como o declínio do bem-estar de inspiração keyne-
siana. Como corrente teórica, a democracia associativa, comparada com as suas
principais correntes rivais na teoria política recente, apresenta-se melhor, ou seja,
com soluções moralmente mais satisfatórias e mais adequadas e viáveis para pro-
blemas urgentes das sociedades contemporâneas. O seu experimentalismo radical,
democrático e institucionalista promete abrir novos caminhos de mudança polí-
tica, por comparação com os paradigmas políticos dominantes mais recentes: as
diferentes variantes do neo-liberalismo e a tímida Terceira Via da moderna social-
-democracia. Nos seus primeiros anos, a democracia associativa evidenciou um
enviesamento distintivamente anglo-saxónico, negligenciando infelizmente impor-
tantes tradições teóricas e experiências práticas de associativismo na Europa conti-
nental, particularmente as do austro-marxismo e do amplo movimento cooperativo.

2. Democracia associativa: uma melhor proposta teórica face


às tradições teóricas concorrentes
As atuais sociedades-Estado, competindo entre si numa arena globalizada, têm
sido confrontadas com uma série de problemas estruturais bem conhecidos, mas
bastante difíceis. Como combater a pobreza e as desigualdades estruturais profun-
damente enraizadas, tanto a nível global como no interior das sociedades? Como
podem ser prevenidos desastres ecológicos, conflitos militares e guerras civis, lim-
pezas étnicas e genocídios? Como podemos responder de forma moralmente defen-
sável às crescentes pressões migratórias e à incorporação de migrantes heterogé-
neos no seio das atuais sociedades-Estado? Como se pode resistir, com sucesso, ao
nivelamento para baixo das políticas sociais e de bem-estar, num cenário de con-
corrência entre regimes políticos? Como podemos responder aos desafios da diver-
sidade cultural sem perder os níveis mínimos necessários de unidade política, con-
fiança e solidariedade? Como podemos lidar com o facto de que as burocracias
governamentais e estatais carecem cada vez mais de eficácia e responsabilidade
democrática? (cf. a introdução e o capítulo 1 em Bader, 2020).
A afirmação de que o repertório institucional e político existente disponível para
enfrentar esses problemas evidencia sérias deficiências não é muito contestada.
CAPÍTULO II. DEMOCRACIA ASSOCIATIVA: AINDA A REAL TERCEIRA VIA | 53 |

As principais razões para este facto preocupante são igualmente bem conhecidas:
um grave desajustamento entre problemas cada vez mais globais e uma estrutura
institucional inadequada e não democrática a nível supra-estatal; a completa inca-
pacidade e a relutância de Estados periféricos fracos, combinada com a relutância
e crescente falta de capacidade e poder de Estados fortes; e uma grave falta de
capacidades de governança económica e social de governos que dependem de um
conjunto limitado de mecanismos de governança política. Muito mais contestada
é a nossa tese de que as teorias e paradigmas políticos predominantes são incapa-
zes de apresentar formas moralmente legítimas e viáveis para sairmos destes dile-
mas. Neste texto, por uma questão de simplicidade, focamo-nos nos principais
estrangulamentos teóricos, indicando apenas de passagem quais os paradigmas
em teoria política que são particularmente tolhidos por eles. Também reduzimos
a complexidade dos paradigmas existentes e referimo-nos apenas ao neolibera-
lismo, ao republicanismo e às teorias da sociedade civil (para uma revisão crítica
mais extensa, ver o capítulo 2 em Bader, 2020).
Os principais estrangulamentos teóricos, na nossa opinião, são os seguintes:

1. As filosofias concorrentes do liberalismo político, do republicanismo, do
comunitarismo e das teorias da sociedade civil mostram uma falta de con-
cretude institucional e, portanto, são incapazes de inspirar uma teoria polí-
tica institucionalmente saturada e imaginativa.
2. A maioria das filosofias políticas e das teorias políticas predominantes não
tiveram em conta que nós, cada vez mais, vivemos em realidades políti-
cas multinível. O federalismo teve algum impacto sobre o liberalismo e o
republicanismo a nível subestatal, mas a nível supra-estatal ambas as tra-
dições evidenciam falta de imaginação, aderindo a noções já não defensá-
veis sobre a soberania do Estado. A nível subestatal, o liberalismo e o repu-
blicanismo são caraterizados por uma visão parcelar e distorcida de uni-
dade institucional, particularmente quando se trata da integração de repre-
sentantes de diferentes grupos sociais e culturais em processos de tomada
de decisões e respetiva execução. Se as realidades políticas multinível
chegam a ser discutidas, então são-no sobretudo enquanto ameaças e peri-
gos (competências nebulosas, armadilhas de decisão conjunta, políticas
do mais baixo denominador comum e assim por diante), e não como pers-
petivas interessantes e promissoras. Se a representação dos grupos e as
formas institucionalizadas de pluralismo social e cultural são em qualquer
caso discutidas, elas são vistas principalmente como ameaças à unidade
social, política e cultural, à solidariedade e à confiança, e não como pro-
messas para o desenvolvimento de uma política democrática culturalmente
diversa e mais equilibrada.
| 54 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

3. Todos os paradigmas dominantes traçam retratos bastante defeituosos e


simplistas das atuais sociedades, governadas ora pelo Estado, ora pelo mer-
cado, ou ainda pela «sociedade civil». Numa perspetiva descritiva, eles não
conseguem captar o facto de que todas as sociedades atuais são misturas
complexas de diferentes mecanismos de coordenação (hierarquias estatais
e organizacionais, mercados, associações e redes) e, numa perspetiva nor-
mativa, eles dependem demasiado de receitas simplistas e exclusivas: o
neoliberalismo da privatização e do mercado; o republicanismo da hierar-
quia estatal (governo democrático); o comunitarismo e a sociedade civil das
associações.
4. No seu foco sobre o governo, tanto o liberalismo quanto o republicanismo
não levam em conta que as capacidades de governança dos governos estão
seriamente ameaçadas por três fenómenos: pela erosão da soberania legal
e, mais importante, pela crescente limitação dos poderes efetivos de gover-
nança, por um lado, e, por outro lado, pelo facto de que as burocracias esta-
tais nas sociedades modernas (perante ambientes turbulentos, novas formas
de flexibilidade, individualização e diversidade cultural) carecem cada vez
mais de informações, competências e conhecimentos locais relevantes neces-
sários para a configuração, a execução e o controlo de políticas bem-suce-
didas. Eles esperam demasiado do governo e da administração. As teorias
da sociedade civil, inversamente, esperam demasiado de associações e redes
livremente contratualizadas e consentidas.
5. Ao centrarem-se na governança política e na democracia política, o libera-
lismo e o republicanismo negligenciam o papel e a importância da gover-
nança económica e da governança social. As estratégias neoliberais de pri-
vatização conduziram a um novo e significativo reforço de um poder eco-
nómico que não é democraticamente contestado (capital e gestão) e têm
diminuído seriamente as possibilidades de governança económica por atores
políticos (municípios, regiões, estados e instituições supra-estatais). Os neo-
-republicanos reconheceram que as profundas desigualdades económicas e
sociais representam em si uma ameaça à democracia política, mas falharam
em criar instituições de democracia e de cidadania económicas, de gover-
nança empresarial democrática e assim por diante.
6. A noção enviesada de uma unidade institucional, seja implícita (liberalismo)
ou explícita (republicanismo), ao combinar-se com a ideologia de um Estado
neutro, ou cego face às diferenças, tem efetivamente impedido o desenvol-
vimento de instituições e políticas igualitárias que não negligenciem, mas
reconheçam, as diferenças de género, culturais, étnicas e religiosas, e sejam
favoráveis a políticas explicitamente multiculturais de incorporação de imi-
grantes. O comunitarismo (de modo explícito), bem como o liberalismo e
CAPÍTULO II. DEMOCRACIA ASSOCIATIVA: AINDA A REAL TERCEIRA VIA | 55 |

o republicanismo (de modo implícito), têm defendido noções genéricas de


culturas políticas nacionais e de comunidades que são incompatíveis com
uma política minimamente justa de acolhimento nos tempos atuais das
migrações (forçadas).

3. Democracia associativa promete novos caminhos de


mudança política

Em geral, as teorias políticas dominantes estão desfasadas da realidade das


sociedades-Estado funcional e culturalmente diferenciadas num contexto global:
as suas representações da sociedade simplesmente não encaixam e as suas reco-
mendações políticas não colhem. Parecem estar a tornar-se cada vez mais uma
política desenraizada de ação simbólica, contribuindo para uma prevalecente visão
negativa da política como algo que não faz qualquer diferença.
A democracia associativa abre novas perspetivas de pensamento e de ação. A
democracia associativa é a mais recente variante de uma corrente mais alargada
de pluralismo institucional. Comparada com tradições anteriores do pluralismo ins-
titucional, ela é explicitamente liberal e democrática. A democracia associativa
deverá ser claramente distinguida do pluralismo feudal, do pluralismo de ordens
ou grupos sociais, do subsistema jurídico otomano dos «millets», das sociedades
plurais coloniais e pós-coloniais e do corporativismo fascista e católico.
A democracia associativa está criticamente ligada a diferentes correntes teóri-
cas do pluralismo institucional dos séculos XIX e XX, como a Escola Histórica Alemã
(cf. Gierke, Kern e, em parte, Max Weber), o institucionalismo francês no Direito
e na Sociologia (Duguit, Hauriou e Durkheim) e o pluralismo inglês (Maine, Mait-
land, Figgis, Cole e Laski), baseando-se igualmente em teorias contemporâneas do
federalismo e do consociativismo democrático, no pluralismo jurídico crítico e em
estudos jurídicos críticos. A sua principal vantagem, face a filosofias e teorias polí-
ticas concorrentes, reside contudo nas suas ligações com contributos recentes da
pesquisa científico-social, como, por exemplo, estudos sociológicos de novas formas
de corporativismo, a nova economia política de diferentes tipos de capitalismo, da
especialização flexível e de outras tentativas de reconceptualizar e reorganizar o
trabalho e as organizações, assim como em estudos de governança corporativa,
governança negociada e entidades políticas multinível na sociologia da adminis-
tração e na ciência política.
Este contexto intelectual pode ajudar a explicar porque é que a democracia
associativa tem melhores ferramentas conceptuais e teóricas em três aspetos. Em
primeiro lugar, critica as noções simplistas, unitárias, homogéneas e estáticas dos
| 56 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

conceitos de Estado, soberania, nacionalidade, cidadania, cultura, identidade polí-


tica e compromisso, substituindo-as por conceitos mais flexíveis e dinâmicos,
incluindo muitas camadas e níveis. Em segundo lugar, é muito mais rica numa
perspetiva histórica e comparativa. Em terceiro lugar, numa perspetiva normativa,
os seus conceitos críticos, em combinação com seu conhecimento de ampla diver-
sidade institucional, formam uma base mais firme para uma avaliação prática
complexa e informada das instituições existentes, assim como para o desenho
de alternativas.
Por conseguinte, em nossa opinião, a democracia associativa está melhor pre-
parada para enfrentar os problemas estruturais urgentes acima mencionados.

1. A democracia associativa desloca a sua perspetiva para longe de um olhar


exclusivamente orientado por princípios morais e legais, focando-se na
ampla variedade histórica e comparativa de instituições económicas, sociais,
políticas e jurídicas compatíveis com os princípios do Estado constitucio-
nal democrático e social. Ela liga-se ao recente renascimento do institucio-
nalismo nas ciências sociais, criticando as falsas necessidades das teorias
da modernização e do estruturalismo profundo. Ela entafiza a diversidade
institucional, a contingência e a dependência histórica dos desenvolvimen-
tos e a estabilidade precária das estruturas incrustadas. Ela abre novas formas
de aprender com as melhores práticas. Ela supera o hiato entre a avaliação
dos cenários institucionais vigentes e a projeção de novos cenários.
2. A democracia associativa critica o enviesamento do unitarismo institucional
do liberalismo e do republicanismo, mas também tenta explicitamente proje-
tar realidades políticas democráticas multinível, a nível infra e supraestatal.
3. A democracia associativa critica as receitas simplistas de tipo genérico
(catch-all) por parte do neoliberalismo (privatizar e desregulamentar), do
republicanismo (fortalecer o governo democrático) e da sociedade civil
(deixar as associações fazerem o seu trabalho), mas também tenta conce-
ber arranjos alternativos de mercados, hierarquias, redes e associações que
tenham em conta os diferentes requisitos da enorme diversidade de bens
e serviços nos diferentes campos societais. Não há uma única fórmula que
sirva para tudo, mas isto não quer dizer que qualquer fórmula serve.
4. A democracia associativa tenta desenvolver modelos alternativos de Estado,
de administração e governança pública, privada, ou pública-privada, pro-
metendo enfrentar a sobrecarga, a ineficiência e a falta de responsabiliza-
ção democrática do governo mediante uma descentralização democrática,
criando espaço para uma enorme variedade de associações voluntárias na
provisão de todos os tipos de serviços, distinguindo claramente entre a pro-
visão de serviços e sua regulação, controlo e escrutínio, restringindo assim
CAPÍTULO II. DEMOCRACIA ASSOCIATIVA: AINDA A REAL TERCEIRA VIA | 57 |

o Estado às suas funções essenciais, tornando-o simultaneamente mais del-


gado e mais forte.
5. A democracia associativa critica o mito da globalização, a forma negativa
ou desenquadrada como se opera a integração dos mercados na União Euro-
peia e o reforço das hierarquias privadas, mas também tenta desenvolver
modelos democráticos de governança económica local, regional, nacional
e supranacional, juntamente com modelos de governança empresarial demo-
crática e eficiente.
6. A democracia associativa critica as conceções e as práticas da neutralidade
estatal que ignoram as diferenças, bem como as versões restritivas do plu-
ralismo puramente político, mas também concebe alternativas para a inte-
gração institucional das minorias religiosas, étnicas e nacionais que respon-
dam de modo mais produtivo às muitas tensões e dilemas políticos que
advêm de uma verdadeira incorporação da diversidade cultural.

4. Notas finais: recentes contributos relevantes


Sobre todos os aspetos referidos encontram-se respostas mais ou menos desen-
volvidas no volume editado por Paul Hirst e Veit Bader em 2001, para o qual este
texto constituiu uma introdução minha, devendo assinalar uma série de relevan-
tes contributos de outros autores.9 Desde então apareceu uma enorme quantidade
de outros novos contributos, podendo apenas ser mencionados alguns deles em
livro editado por Andrea Westall (2011).10 Dado que o espaço neste texto introdu-
tório não permite desenvolver todos os contributos presentes nestas duas obras,
apresento uma breve visão geral do meu artigo de 2019 sobre «Democracia Asso-
ciativa: “Da real ‘Terceira Via’”: de volta ao utopianismo ou por um socialismo
colorido para o século XXI», que também forma a base do capítulo 8 de um livro
meu (em curso de publicação em 2020) e intitulado Alternativas Institucionais ao
«Capitalismo como o conhecemos»: Democracia Associativa.
Neste texto reitero a minha tese de que a democracia associativa é, mesmo
após a Grande Crise do Capitalismo Financeirizado, uma real e promissora terceira
via que evita as armadilhas do socialismo de Estado e do capitalismo neoliberal

9. Cf., na lista de referências, as contribuições de Achterberg (2001), Bader (2001), Engelen (2001), Hirst
(2001), Hoekema (2001), Kaspersen e Ottesen (2001), Perczynski (2001), para além de Cooke e Morgan
(1998).
10. Cf., por exemplo, o volume editado por A. Westall (2011) com contributos de Barnett (2011), Bechler
(2011), Christie (2011), Glasman (2011), Maddock (2011), Mauger (2011), Shepherd (2011), Smith (2011),
Michie (2011), Westall (2011) e White (2011).
| 58 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

após o declínio das variantes social-democratas do capitalismo democrático. Repen-


sar o socialismo democrático requer tanto a renovação radical da democracia polí-
tica quanto a do socialismo. Aqui, o foco é repensar o socialismo. Na primeira
secção, começo por desenhar algumas lições das acaloradas controvérsias entre
as muitas tradições do socialismo sobre princípios, bem como sobre instituições
e política.
Seguidamente, abordo alguns princípios básicos do socialismo democrático –
que inerentemente tem de combinar a democracia política com a socioeconó-
mica – e foco as tensões entre esses princípios socialistas democráticos e os vários
princípios liberais, democráticos e realistas.
A parte seguinte do texto trata de questões complexas tais como o «porquê» e
o «como» democratizar a economia, indagando sobre as diversas propostas insti-
tucionais para a organização do trabalho e de outros aspetos da regulação política
a todos os níveis territoriais, desde o local ao internacional. Em relação à organi-
zação do trabalho, discuto a diversidade de formas de propriedade (e sua combi-
nação), a diversidade de formas de produção e seu impacto na eficiência e demo-
cratização da organização do trabalho.
Em seguida, abordo questões de governança socioeconómica, ou de formas
não estatais e não-mercantis de coordenação e regulação pública, que não estão,
na tradição da democracia associativa, destinadas a substituir, mas a complemen-
tar, mercados e Estados (tipos de economias mistas). Analiso a enorme variedade
de órgãos e conselhos auto-reguladores, alguns de seus problemas estruturais (rigi-
dificação, seletividade e exclusão) e princípios para a constituição democrática
desses arranjos de governança por órgãos democraticamente responsáveis (os prin-
cípios do limiar mínimo, do mandato democrático, da participação dos envolvidos
e do contraditório), que ajudam a enfrentar esses problemas. Depois, volto ao papel
da política (a todos os níveis) na governança socioeconómica associativa. A demo-
cracia associativa exige políticas institucionalistas densas do lado da oferta, mas
favorecendo cooperativas, pequenas e médias empresas (PME) e uma governança
mais participativa e descentralizada, assim como uma regulação municipal e regio-
nal mais forte. Ela defende o pluralismo institucional territorial em oposição a
velhos ou novos nacionalismos e globalismos. Os Estados-nação ainda têm e devem
ter importantes poderes, todavia limitados, para influenciar e coordenar as econo-
mias (tributação, políticas macroeconómicas, etc.). Há também um espaço de legi-
timidade para as políticas socioeconómicas de organizações supraestatais como a
União Europeia (em oposição às ainda dominantes e perniciosas políticas de des-
regulamentação e de austeridade) e para os arranjos de governança económica
transnacional.
Nas observações finais do citado texto, argumento que o socialismo tem de ser
liberal e democrático, bem como pluralista e colorido; as economias socialistas
CAPÍTULO II. DEMOCRACIA ASSOCIATIVA: AINDA A REAL TERCEIRA VIA | 59 |

democráticas e uma renovada democracia representativa são interdependentes,


reforçando-se mutuamente. A efetiva democratização da governança socioeconó-
mica, assim como a renovação (urgentemente necessária) da democracia represen-
tativa com base nos partidos políticos, dependem tanto do poder das organizações
relacionadas com este universo partidário quanto da mobilização de seus eleito-
rados e movimentos sociais. Finalmente, há muitos velhos e novos projetos para
a democratização da economia: podemos deixar mil flores florescerem, mas pode-
mos e devemos aprender uns com os outros e agir de forma coordenada. No entanto,
o grande paradoxo é o seguinte: mesmo que tais alternativas institucionais socia-
listas sejam plausíveis e, nalguns aspetos, realistas (contrariando o slogan de
Thatcher de que «não há alternativa»), o impacto social e político do neolibera-
lismo e a profunda crise do capitalismo fazem com que essas alternativas pareçam
de novo utópicas enquanto as condições políticas para a concretização de tais ins-
tituições e políticas não mudarem.

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Capítulo III

A sociopraxis
como malha de diversas
metodologias participativas
e instituintes

Tomás R. Villasante*

* Professor Honorífico da Universidade Complutense de Madrid. Este texto é uma tradução de um capí-
tulo do livro do autor, cujo título em espanhol é Desbordes creativos. Estilos y Estrategias para la trans-
formación social. Madrid: Catarata, publicado em 2006, pp. 303-333. A tradução deste texto foi realizada
por António Cardoso. Não obstante o autor não referir nos quadros os anos das referências bibliográficas,
estas foram feitas na parte final por referência do livro do autor e tendo em conta os conteúdos do capí-
tulo. E-mail: tvillasante@hotmail.com
1. Introdução
Tanto nas ciências sociais como nas ciências naturais avançamos por genera-
lização de algumas experiências que resultam interessantes em pequena escala.
A própria natureza nos seus processos evolutivos demonstra continuamente solu-
ções alternativas perante os fenómenos que surgem e, quando encontra uma boa
solução que encaixa em vários aspetos, esta generaliza-se com certa rapidez. Cer-
tamente que para a evolução natural essa certa rapidez é o tempo de algumas déca-
das ou séculos. Nisto os humanos podemos fazer melhor e, passando de uma a
outra geração, podemos aprender do que fazemos à escala local para adequá-lo a
muitas outras situações de forma mais criativa e complexa.
É esta lógica que nos tem levado a trabalhar na vida comunitária, não apenas
para resolver casos concretos com problemas mais ou menos agudos, mas também
para transformar a estrutura de uma sociedade com a qual discordamos. Tanto na
natureza como na sociedade, para muitos de nós não há uma teoria que explique
tudo; parece-nos, contudo, haver construções práticas e reflexões sobre estas que
nos fazem ir avançando, simultaneamente, tanto no entendimento como na trans-
formação e solução dos problemas que nos surgem.
Nas últimas décadas temos aprendido numa rede de grupos em que trabalha-
mos, a nível local ou comunitário, algumas estratégias de fundo que nos estão ser-
vindo para dar passos criativos e não só a nível local. É isto que queremos colocar
aqui em debate e, se possível, em experimentação. Além disso, vamos colocar num
quadro 12 posições prático-teóricas de numerosos autores, em que o arranque dos
grupos que estão na rede ocorre a partir das nossas experiências. Operamos com
diversas metodologias a partir dos caminhos práticos que trilhamos nos bairros,
nomeadamente com os movimentos, as organizações não-governamentais (ONG’s)
e as câmaras municipais, com os/as quais trabalhamos. Estamos aprendendo com
as experiências do Equador, do Peru, do Chile, do Uruguai, do Brasil, das Canárias,
da Andaluzia, de Madrid, do País Basco e da Catalunha. Em cada lugar existem
algumas equipas que fazem trabalhos comunitários ou, em geral, assumem como
lema a participação social. Os quadros deste texto servem para retroalimentar estes
mesmos debates e abrir estas práticas, bem como para animar a dar os passos cria-
tivos que queremos propor, para transformar as situações nas quais vivemos.
Nalguns grupos as referências metodológicas têm-se centrado em Paulo Freire
e nas «pedagogias populares»; noutros na «investigação-ação participativa» (IAP)
de Fals Borda; ou, ainda noutros, na «co-investigação ativista», em diversos tipos
de militâncias ou na «planificação estratégica situacional» (PES) de Carlos Matus
ou nos «diagnósticos rurais participativos» (DRP), entre outros. O que aqui preten-
demos é uma articulação de todas estas metodologias e mais algumas, nas suas
| 66 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

diferenças e nos seus elementos mais criativos, para que cada um possa optar pela
sua própria combinação, não ficando bloqueado apenas num destes contributos,
embora cada um deles seja relevante, tal como se nos apresenta. Esta é certamente
uma das possibilidades, aquela que alguns de nós estamos seguindo a partir das
nossas práticas e reflexões, a qual não pretende ser mais do que uma referência
nos debates com outros. Pretendemos apenas mostrar que há possibilidades de dar
passos criativos a partir de alguns movimentos práticos que, refletidos em con-
junto, poderão oferecer alguns contributos teóricos.

2. A construção da sociopraxis
No Quadro 1 aparecem epistemologias e metodologias que, desde os anos setenta
até à atualidade, nos têm alimentado na medida em que as temos vindo a aplicar.
E nas colunas aparecem os âmbitos de aplicação principal, desde o nível micro
(individual e grupal), passando pelo comunitário, até ao nível macro-societal. Há
uma pluralidade de autores, sejam os sobejamente reconhecidos a nível interna-
cional, sejam outros a nível nacional, com os quais, por estarem vivos, ainda pode-
mos estabelecer debates. Procurei dar maior visibilidade a uma série de autoras e
não apenas a autores mais reconhecidos, que justamente abranjam os diversos
contributos científicos. Além disso, procurei articular os contributos das ciências
naturais com os das ciências sociais, os contributos socialistas com os dos libertá-
rios, os mais básicos com os mais eruditos. As doze posições de referência têm
diferente grau de concretude, à medida que nos foram chegando e as fomos apli-
cando. O quadro que se apresenta pode servir para distingui-las como para con-
jugá-las, servindo-nos para chegar aos seis passos criativos que queremos propor.
Mas cada um pode construir o seu esquema de referência, com autores mais locais,
de outras tradições científicas, militantes ou artísticas, entre outras. Assim o fize-
mos nalguns seminários de «escolas de cidadania», quer no Brasil, quer no Uru-
guai, convidando cada um a construir o seu próprio quadro de influências, de modo
a discuti-lo e compartilhá-lo de forma participada a partir do seu círculo de ami-
zades ou da sua organização.
Começamos por estabelecer doze «distinções fundadoras» para, em seguida,
passar aos seis «passos criativos» que pretendemos debater. A primeira distinção
consiste em dar prioridade aos «Analisadores Situacionais e Instituintes» perante
os analistas académicos instituídos. O «analisador» é um ato, um sucesso, que
geralmente costuma contribuir com mais complexidade e realidade que qualquer
«analista» com os seus textos académicos. A prioridade consiste em partir de, ou
criar, «situações» que implicam análises mais profundas, que mostram o que está
instituído e/ou é institucional em qualquer grupo ou situação. Os processos insti-
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 67 |

tuintes podem sê-lo em diversos graus, estando sempre em contraposições dialó-


gicas com o que está instituído. Para se avançar ora no entendimento ora na trans-
formação da realidade importa situarmo-nos nesses processos e não tratar de os
definir academicamente. Distinguir e dar mais importância aos «factos analisado-
res» que aos textos dos analistas não quer dizer que não os leiamos ou debatamos,
mas fazermos a prática teórica a partir de alguma situação instituinte como refe-
rente para qualquer reflexão.
Também começámos há anos a estabelecer distinções com os que tomavam
distâncias entre os sujeitos e o objeto de uma investigação ou de um processo
social. Nem os investigadores podem ser sujeitos plenos sem condicionantes, nem
os investigados podem ser objetos para serem observados. As pessoas e os grupos
têm as suas próprias estratégias perante aqueles que lhes fazem perguntas e sabem
analisar para quê lhes pode interessar cada conversação particular ou social.
Guiam-se por emoções e por subculturas, sejam os que afirmam estar a conduzir
um processo, sejam os que se sentem conduzidos. Perante a relação sujeito-objeto
que se pretende «cientificamente objetiva», há sempre estratégias pessoais e gru-
pais de sujeitos-sujeitos que estão em luta por construir ações e explicações que
interessa a cada uma das partes. As investigações são sempre ações participativas,
quer se queira ou não reconhecer isso. Por exemplo, seja num inquérito ou num
grupo de discussão, quem toma parte de forma mais passiva pode querer ludibriar
consoante as perguntas que lhe sejam formuladas ou de acordo com a forma de
vestir-se ou de falar por parte do próprio investigador.

Distinções e articulações entre contributos práticos e teóricos recebidos nas últimas


décadas para a construção da sociopraxis, em diferentes ondas de envolvimento

Em Onda Média: Em Onda Larga:


Na Onda Curta:
grupos-comunidades. comunidades-
pessoa-grupos.
ONDAS -sociedade.
HOLOGRAMAS
POSIÇÕES DIALÓGI-
MICRO-MACRO DEVOLUÇÕES
FASES CAS (combinando
(combinando a Deusa CRIATIVAS
Sócrates e Freud,
Terra, Einstein, (combinando Lao Tse,
Von Foerster, etc.)
V. Shiva, etc.) Marx, Baktin, etc.)

Perante os «analistas
Perante as «distâncias Perante o «ver, julgar,
instituídos»,
sujeito-objeto», atuar»,
PRIMEIROS ANALISADORES
ESTRATÉGIAS ENVOLVIMENTO
transbordos SITUACIONAIS
SUJEITO-SUJEITO, AÇÃO-REFLEXÃO-
práticos INSTITUINTES, da
da Investigação (Ação) -AÇÃO, da Filosofia
(anos 70-80) Socio-Análise
Participativa (K. Lewin, da Praxis (A. Gramsci,
Oficinas e reuniões Institucional
O.F. Borda, A. Sánchez Vásquez,
participativas (G. Debord, R. Lourau,
C.R. Brandão, M. Sacristán, Barnet
F. Guattari,
Colectivo IOE, etc.) Pearce, F.F. Buey, etc.)
I.F. de Castro, etc.)
(cont.)
| 68 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Em Onda Média: Em Onda Larga:


Na Onda Curta:
grupos-comunidades. comunidades-
pessoa-grupos.
ONDAS -sociedade.
HOLOGRAMAS
POSIÇÕES DIALÓGI-
MICRO-MACRO DEVOLUÇÕES
FASES CAS (combinando
(combinando a Deusa CRIATIVAS
Sócrates e Freud,
Terra, Einstein, (combinando Lao Tse,
Von Foerster, etc.)
V. Shiva, etc.) Marx, Bakhtin, etc.)
Perante «leis e éticas
Perante as «estruturas
exemplares»
do poder», Perante a «simplifica-
PARA DAR ESTILOS
ESTRATÉGIAS ção da dialética»
PASSOS PARA COOPERATIVOS
COM CONJUNTOS PARADOXOS
A COMPLEXIDADE e TRANSDUTIVOS,
DE AÇÃO, das Teorias E TETRALEMAS,
(anos 80-90) do Paradigma
da Análise de Redes Da Crítica Linguística
Mapas da Complexidade
(N. Elias, E. Bott, Pragmática (Bakhtin,
estratégicos. (Von Foerster, H.
E. Dabas, L. Lomnitz, J. Galtung, F. Jameson,
Sociogramas, Maturana, L. Margulis,
T.R. Villasante) J. Ibáñez, G. Abril, etc.)
Tetralemas, etc. F. Capra, etc.)
2. CONJUNTOS 3. TETRA-PRAXIS
1. TRANSDUÇÕES/
DE AÇÃO
TRANSOLUÇÕES
Perante os «indicado-
Perante os «debates Perante os «determi-
res dominantes»,
endogâmicos» nantes causa-efeito»,
CONSTRUÇÂO SUSTENTABILIDADE
PROCESSOS SATISFACTORES
DE ESQUEMAS COM RECURSOS
COM GRUPOS PÚBLICOS,
COLETIVOS INTEGRAIS,
OPERATIVOS, Da Planificaçãao
(anos 90-2000) desde a Agroecologia
Da Teoria do Vínculo Estratégica Situacional
Fluxogramas e o DRP» (J.M.
e ECRO (W. Reich, (PES) (Max Neeff,
Ideias-Força, Naredo, J. Martinez-
F. Varela, R. Penrose, C. Mateus, J.L.
Esq. Recursos, etc. -Alier, R. Chambers,
E. Pichón-Rivière, Coraggio, L.E. Alonso,
I. Thomas, M. Ardon,
M. Sorin, etc.) etc.)
E. Sevilla, etc.)
Perante os «estilos
Perante as «avaliações Perante a «sectoraliza-
patriarcais»,
Académicas», ção e os sectarismos»,
DEMOCRACIAS
TRANSBORDOS dos Equivalentes
ACOMPANHAR PARTICIPATIVAS E
E REVERSÕES Gerais de Valor,
MOVIMENTOS (ECO)ORGANIZADAS,
POPULARES, EIXOS EMERGENTES
ALTERNATIVOS Dos Eco-Feminismos
Autoformação da Dos movimentos Alter-
(atuais) e outros Movimentos
Pedagogia Libertadora -mundialistas (Fórum
Redes de alternativos (Movimen-
(Movimento dos Sem Social Mundial,
Acompanhamento, tos de Mulheres
Terra, P. Freire, H. Habermas, B.S.
Cronogramas, Esq. Chipko, V. Shiva,
S. Marcos, Santos, J. Holloway,
Tetra-Praxis, etc. E. F. Keller, D. Juliano,
J.L. Rebellato, J. A. Roy, etc.)
J.L. Sampedro, etc.)
Ibáñez, C. Núñez (etc)
4. EIXOS
5. (ECO)-
6. REVERSÕES EMERGENTES
ORGANIZAÇÃO

O terceiro transbordo prático que vivemos desde há anos é a importância do


envolvimento para qualquer conhecimento. Em primeiro lugar, porque se está
sempre envolvido; e se não se é consciente ainda pior, porque não se controla
onde se está. Não se pode «ver ou julgar a partir de fora da sociedade, porque faze-
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 69 |

mos parte dela. Mas também não podemos ficar paralisados por esta falta de dis-
tanciamento em relação àquilo em que estamos envolvidos. Qualquer coisa que
façamos, ou não, também nos envolve praticamente e, por isso, a reflexão está
sempre no meio de duas ações. Fazer esta reflexão, muito consciente destes pro-
cessos envolventes, é o que chamamos «praxis». Isto prende-se com as tradições
de movimentos militantes, sendo consciente de que «a paixão não tira conheci-
mento», se bem que o tira a quem não sabe onde está metido nem toma um mínimo
de distanciamento sobre as suas condicionantes. Por exemplo, se eu conheço o
legado marxista, é importante tomar distanciamento dos erros cometidos histori-
camente com as diversas experiências realmente existentes, mas, se não sabemos
«de que pé coxeamos», é mais difícil que possamos prevenir.
Depois vieram os passos para a «complexidade» das coisas e das relações.
Perante a posição de tratar de encontrar a «lei que explica tudo» ou a «ética exem-
plar» pela qual se conduzir, mais modesto e realista nos parece aceitar os «para-
digmas da complexidade». As leis da gravidade universal ou da seleção das espé-
cies têm aplicações concretas nas quais elas se comprovam, mas há outros âmbi-
tos que necessitam de outras lógicas mais complexas. A lógica dos mercados ou
dos direitos humanos não é tão simples como enunciar uma lei; as motivações
nas diferentes culturas variam substancialmente, assim como os estilos coopera-
tivos também. Nas ciências naturais aparecem o simbiótico e o sinérgico tanto
ou mais que o competitivo e a sua conjugação permite dar passos transdutivos.
Ou seja, os passos de umas energias a outras verificam-se, tanto para ver com os
nossos olhos por conexões entre luz e neurónios, como para que uma planta
cresça pelas ações de enzimas ou de catalisadores. Os estilos catalíticos, trans-
dutivos, também se dão nas relações sociais e é a esses que nos referimos mais
à frente.
As análises do poder têm sido frequentemente demasiado simplificadas,
incluindo algumas das «análises de redes sociais». Perante a tentativa de localizar
o poder nalgum lugar, instituição ou pessoa, existe a possibilidade de o estabele-
cer como um jogo de relações ou de estratégias. As diversas posições mostram-se
assim em função do tipo e da intensidade de vínculos que se estabelecem em cada
caso. Isto é o que temos vindo a chamar «conjuntos de ação» para concretizar na
vida quotidiana as condicionantes de classe ou de ideologias em jogo em cada
situação. As relações vão-se construindo através de confianças e desconfianças
entre as distintas posições, entre medos e agradecimentos, mas não desde um ponto
de vista psicologista individual, mas desde a constatação coletiva e participativa
da análise concreta de cada situação concreta. Desta maneira os quadros de rela-
ções permitem-nos entender as estratégias que se confrontam ou se articulam, em
cada momento, pelos seus interesses ora económicos ora sociais, ora inclusive
emocionais, historicamente construídos.
| 70 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

O terceiro passo para a complexidade tivemos que o dar ao trabalhar com as


próprias expressões paradoxais dos sujeitos implicados nos processos. Tanto as
palavras como os gestos das pessoas não nos indicam posições únicas e distintas.
E não está claro que tudo se reduza a uma dialética de dois temas contrapostos.
Além disso, existem as posições intermédias, havendo também posições que são
um e outro ao mesmo tempo, inclusive as posições que se situam à margem, em
que não são nem uma nem outra coisa. As análises linguísticas têm ido mais além
dos dilemas, elas colocam-nos «tetra-lemas» ou duplos dilemas que todos utiliza-
mos no dia a dia, mesmo sem nos darmos conta. A crítica pragmática não se fica
pela «semântica» sobre como são as expressões, mas implicam formas de comu-
nicação, gestos em seus contextos, nas suas relações práticas, situacionais. Este
tipo de abordagem dá abertura para maiores aprofundamentos e novas alternati-
vas. Não apenas para que se possa ganhar um ou outro programa, ou o intermé-
dio, mas que se ponham em jogo outros programas que sejam o somatório dos
aparentes contrários, ou que os neguem a ambos, abrindo novos caminhos e solu-
ções. Tudo consiste em passar do superficial, ou daquilo que parece que se diz, ao
aprofundamento do que se pode construir para além das primeiras impressões.
A partir dos anos noventa temos vindo a construir novos esquemas coletivos.
Pensamos com esquemas que por vezes nos fecham em processos «endogâmicos»,
que não nos permitem sair daquilo que o grupo de referência debate. Não vemos
mais porque não estamos treinados a ver mais do que aquilo que encaixamos no
que previamente queremos ver, para manter uma «segurança» na qual fomos edu-
cados. Por exemplo, desde as novas teorias cognitivas («em ação»), a partir da psi-
cologia social do «vínculo» ou do ECRO (esquemas conceptuais relacionais e ope-
rativos), não se pensa que cada um possa resolver os seus problemas somente com
introspeção ou com tomada de consciência. Planeia-se abrir com os «grupos ope-
rativos» processos de envolvimento e con-vivência, que assumem outras práticas
vinculativas e situacionais. Transbordos operativos sobre os esquemas conceptuais
que nos fazem viver com mais criatividade. A «criatividade social» aparece como
uma construção coletiva que se preocupa por sair do fechamento dos pequenos
grupos que apenas se olham a si próprios. Ela beneficia chegando a outras pessoas
e grupos e aproveitando para transmitir todas as emoções e pensamentos que nos
podem fazer viver melhor. Não contrapõe o interesse particular ao interesse geral,
mas antes acaba por construí-los a ambos, articulando-os nas suas expressões
mais inovadoras.
Diversas técnicas e metodologias que fomos conhecendo nos permitiram baixar
à terra conceitos muito abstratos que por vezes se perdem em puras conversas sem
sentido. Por exemplo, a «sustentabilidade» dos processos pode querer dizer quase
qualquer coisa conforme quem a interprete. Inclusive se considerarmos alguns
«indicadores dominantes» de nossas estatísticas, para precisar a que nos queremos
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 71 |

referir, podemos escolher de tal maneira que sempre teremos razão, se o fizermos
com certa astúcia. Mas alguns movimentos camponeses alternativos ensinaram-
-nos que os «diagnósticos rurais participativos» (DRP) pressupõem formas práti-
cas muito mais fiáveis e operativas de construir a sustentabilidade. Por exemplo,
a «agroecologia» constrói com os «recursos integrais» que há à mão em cada comu-
nidade, podendo demonstrar-se que há formas ecológicas e económicas para viver
melhor a partir destas metodologias de tipo participativo. A sustentabilidade não
se justifica por alguns números macroeconómicos que alguns peritos nos podem
fornecer, mas sim por critérios e indicadores de «qualidade de vida» que cada
comunidade queira proporcionar em cada momento, marcando assim o ritmo do
seu estilo de vida.
Nas análises convencionais da «planificação estratégica» aparecem processos
de «causa-efeito», nos quais se baseiam para predizer o êxito daquilo que estão
desenhando os peritos acreditados. Porém, na realidade, o que acontece é muito
diferente, dado que a acreditação de quem deve opinar costuma ser restrita e muito
tendenciosa de acordo com os interesses de quem manda. Além disso, costuma
haver imprevistos que não encaixam com o que dizem desde os pressupostos de
quem tem podido intervir. Perante os «determinismos» interessados é melhor acei-
tar as «causalidades recursivas», ou seja, condicionantes cruzadas entre si, não tão
lineares e mais participativas, que permitam ir retificando e monitorizando no cami-
nho os processos a partir dos próprios interesses populares. O «desenvolvimento
endógeno» terá sempre em conta as mudanças, as circunstâncias externas e os
«efeitos indesejáveis» das políticas postas em marcha. Para tal existe a «planifica-
ção estratégica situacional» (PES) como boa prática. Importa ainda contar com os
«satisfactores» de desenvolvimento como horizonte, construídos publicamente,
sendo estes elementos muito importantes para fazer políticas de transformação
social eficientes com e para as pessoas.
Alguns movimentos alternativos atuais nos estão fornecendo orientações para
prosseguir com estas formas de pedagogias libertadoras e transformadoras. Perante
as «avaliações académicas» convencionais que tratam de definir desde a «comu-
nidade científica» sobre o que está bem e o que está mal, parecem-nos, contudo,
ser mais interessantes os movimentos «freirianos» de «aprender conjuntamente»,
«aprender para transformar» e «transformar para aprender». Trata-se de movimen-
tos que «revertem» e movimentos que invertem e/ou transbordam as abordagens
iniciais porque a sua criatividade não lhes permite ser previsíveis ou sujeitar-se a
nenhum programa predefinido. Não porque a «reversão» vá explicitamente em
contra do que está instituído, mas porque, ao ser mais consequente com as decla-
rações formais que as mesmas autoridades, transborda-as e põe em prática o que
outros dizem mas não fazem. É precisamente nestas práticas que todos aprende-
mos do que nos sai das mãos, da grande complexidade da vida e dos processos
| 72 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

emergentes. Por isso, o primeiro indicador será o que todos os grupos e pessoas
possamos aprender das inovações criativas que vamos construindo e, para isso,
não é possível seguir moldes ou canais predefinidos.
Os «estilos patriarcais» estão presentes em todas as formas hierarquizadas e
autoritárias que estão a bloquear a emergência da criatividade da humanidade.
Temos de poder aproveitar as iniciativas que surgem constantemente das relações
entre as pessoas, dado que é a partir da energia construtiva dos grupos e das pes-
soas que podemos construir «democracias participativas». Não só as democracias
para as quais a maioria dos que votam se sintam representados, mas também para
que os grupos que se auto-organizam na vida quotidiana vejam que as suas ini-
ciativas podem contribuir para melhorar a sua vida. Umas democracias «(eco)orga-
nizadas», ou seja, que aproveitam, tal como os ecossistemas, os contributos de
todos os seres que as compõem, sejam grandes ou pequenos, sejam energias ou
seres vivos. A organização ecológica dos sistemas de relações, entre todos os ele-
mentos, é uma boa referência perante o que supõe a delegação dos sistemas elei-
torais burocratizados. Muitos movimentos de mulheres em todo o mundo nos ensi-
nam a lutar com esses estilos democráticos desde a vida quotidiana, desde o
pequeno detalhe, e como se pode transformar o mundo desde o micro ao macro.
Para complementar o quadro, há a relevar os movimentos «altero-mundialis-
tas» atuais, que, comportando distintos sentidos entre si, contribuem para a cons-
trução de potencialidades «emergentes» perante os valores dominantes. Não sabe-
mos qual possa ser a melhor alternativa ou qual é a que seguirá em frente, mas
sabemos que «outros mundos são possíveis» a partir da crítica radical dos «equi-
valentes gerais de valor» existentes: a circulação do capital, a hierarquia patriarcal,
o desperdício tecnológico ou os dogmas inquestionáveis – eis o que precisamente
está em questão. Não são apenas os dilemas dentro do sistema, mas também a
construção de outros eixos («tetralemas») e planos emergentes com outras referên-
cias de valores fora do sistema. Importa insurgir-se também, por um lado, contra
a sectorização temática, contribuindo para a «integralidade» dos processos e, por
outro, contra os sectarismos de tipo ideológico, pois não há pressa em ter uma
alternativa acabada. Considera-se «traduzir» os «gritos» de umas e outras partes
do mundo para aprender a «fazer caminhos» emergentes perante a degradação do
«império». Que haja pluralidade de «transbordos reversivos», de diferentes formas
de «democracias (eco)organizadas» ou caminhos «emergentes» diversos perante
os equivalentes de valor dominantes é algo que nos entusiasma, seja a nível comu-
nitário, seja a nível e no sentido de transformação global que necessitamos.
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 73 |

3. Caminhos que acreditamos que se estão a abrir…


Este quadro que comentamos é apenas uma forma de separar aspetos que,
logicamente, se relacionam entre si. Para explicar as articulações entre as doze
células que, de maneira prática e teórica, nos proporcionam a construção de uma
«sociopraxis», será pertinente permanecermos nos seis passos que julgamos estar
a abrir novos caminhos. No final concluiremos com uma proposta operativa para
a construção coletiva nos processos comunitários, de modo que estes seis passos
criativos que propomos se incorporem nas metodologias habituais. É uma forma
de articular e integrar o que temos vindo a apresentar como contributos distintos,
pois, ainda que pensemos que pertencem a um mesmo paradigma de fundo e a
uma epistemologia comum, têm-se vindo a construir desde metodologias e espa-
ços muito diferenciados, sendo deste modo que os temos vindo a aprender e a
reconstruir. Antes de passar a propor uma forma operativa de processo comunitá-
rio, é necessário esclarecer algo sobre estes seis conceitos, tal como os utilizamos
nos grupos de trabalho em rede. Pelo menos importa, mais do que estabelecer
definições, fazer algumas distinções, para que se possa entender em que âmbitos
nos movemos ou em outros que não nos movemos. Não se trata de acabar, fechar
ou definir cada expressão, mas de delimitar um campo no qual possamos comu-
nicar com certa eficiência.

3.1. Transduções
Consideremos primeiro o que não são. Não são posições «neutrais» para a par-
ticipação comunitária, como se alguma vez fosse possível a neutralidade. Precisa-
mente, por se saber da não neutralidade de nenhuma posição, é que se está vigi-
lante com os sectarismos, atuando como facilitador(a) de acordos. Mas tão pouco
se trata de as maiorias esmagarem as minorias, não se é mais participativo por
afluir mais gente a uma assembleia, por exemplo, mas porque se podem debater
mais propostas e mais inovadoras. Se há mais criatividade, mesmo que haja menos
pessoas, um processo pode ser mais participativo com «oficinas» do que uma
assembleia onde pouca gente se disponibiliza ou atreve a falar. Porem, tão pouco
basta que se «traduzam» uns e outras, para se fazer mais inteligíveis nas multi-
culturalidades, as quais se podem converter em «guetos». É necessário ser-se capaz
de superar as «autoestimas grupais» e as «identidades narcisistas», onde o parti-
cipativo ignora as dores e os prazeres dos grupos ou setores. Há que aceitar entrar
na construção de «identificações mestiças», tratando de se minimizar as imposi-
ções de umas ou outras culturas. Também não se trata de propor um modelo resumo,
por sistematização, pois os estilos criativos não se podem basear numa «ética exem-
| 74 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

plar», nem de mínimos nem de máximos. Têm-se que aceitar alguns critérios porque
os processos de complexidade nunca são puros, mas sim híbridos ou mestiços e
onde não pode valer tudo. Nem na selva vale tudo, e muito menos quando que-
remos construir de forma participada com as comunidades e com rigor crítico.
Relativamente aos contributos das transduções, elas são conceitos que se usam
em ciências naturais e sociais com um sentido semelhante, ou seja, visam trans-
formar, dando passos de um tipo de energia a outro. Por exemplo, passar da ener-
gia calorífica à elétrica, ou de uma ação hormonal a uma enzimática nas proteí-
nas, ou de uma vivência psíquica a uma psico-somática. São transformações que
ocorrem continuamente nas nossas vidas e nos envolvem, ainda que não sejamos
muito conscientes disso. Podem-nos conduzir no comunitário e social a uma auto-
reflexão ou autocrítica sobre a importância das formas e procedimentos para a
construção dos processos. Observar-nos a nós próprios como «instrumentos» de
comunicação e transdução, ou que nos observem e critiquem nossos companhei-
ros/as. Descobrir que as formas não são uma mera questão formal, mas elemen-
tos muito importantes para a ética das relações. Que a ética não há que discutí-la
tanto nos fins que se proclamam, mas antes nos estilos e nas metodologias que
se aplicam. A análise das transduções que estamos a aplicar torna-se nuclear para
começar qualquer processo comunitário, social ou grupal em que estejamos empe-
nhados. Pequenas variações nos estilos de transduzir energias ou informações no
princípio de um processo podem fazer variar substancialmente os caminhos a per-
correr no mesmo.
Por isso, deve-se aplicar muito rigor crítico (e, se se quiser, também cientí-
fico) para que a preparação dos dispositivos de envolvimento seja a melhor pos-
sível. As transduções baseiam-se em dispositivos para criar situações peculiares
de transformação, provocações com certa transparência, ao estilo de questões de
tipo socrático, permitindo que o rigor crítico esteja na forma e no fundo das per-
guntas e deixando em liberdade os caminhos que se possam ou queiram trilhar
a partir delas. Em primeiro lugar, o próprio «grupo perito» do qual partimos deve-
ria submeter-se a práticas críticas do que possa ter de preconceitos nas suas pri-
meiras questões ou abordagens. Além disso, avançaremos melhor se os outros
grupos que participam estão numa predisposição não dogmática desde um deter-
minado princípio. Para que estes estilos transdutores sejam cooperativos, deve-
mos submeter as perguntas iniciais a um filtro participativo e plural, por exem-
plo, com aquelas pessoas que acorram às primeiras convocatórias. Não é apenas
uma questão do início de um processo, mas sim uma questão permanente; e
não só do próprio processo, mas de toda a vida. Não é fácil às pessoas viver e
mover-se criativamente, mas é antes o contrário o que costumamos constatar.
Por isso, assumir este posicionamento desde o início parece-nos substancial para
começar bem.
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 75 |

Há várias técnicas ou práticas que podem ilustrar as formas de tornar opera-


tivo este princípio. Os simples «jogos de encenação» ou «sociodramas» podem ser
mecanismos para que outras pessoas vejam, ou vermo-nos a nós próprios, nas
expressões gestuais de nossas representações, muitas das coisas que não diríamos
que as pensamos. Também algumas técnicas de «diagnóstico rápido participativo»
(DRP) como o «transecto» ou «perfil histórico» ou a «linha do tempo» podem ensi-
nar-nos aspetos dos processos de que não éramos conscientes. O importante não
é a técnica em si mesma, mas sim para que a queremos e, nesse sentido, insisti-
mos no papel de perguntas reveladoras de preconceitos ocultos ou criativas de uma
maior profundidade e reflexividade dos processos. Por exemplo, com um «tran-
secto» ou passeio de peritos com os camponeses, designando e qualificando cada
elemento que aparece no campo, não apenas se produz uma troca de informação,
mas também vivências e estilos transdutores. Os «situacionistas» no meio urbano
europeu o que faziam eram «derivas» que igualmente serviam para perder-se e
deixar que as intuições próprias e alheias pudessem aflorar e mostrar os precon-
ceitos para os males urbanos de nossas cidades. A partir da criação deste tipo de
«situações» não quotidianas o interessante é ver como adotamos uns ou outros
estilos transdutores e como nos relacionamos com os de outras pessoas.

3.2. Conjuntos de ação


Do nosso ponto de vista, importa aqui distinguir conjuntos de ação daquilo
que não o são. Não é, desde logo, a mitificação da comunidade como uma identi-
dade a recuperar ou como uma unidade, mas sim como uma espécie de pequenas
redes sociais, em muitos casos contrapostas entre si, e em processos muito varia-
dos. Partir da «análise de redes» não significa que adjudiquemos papéis determi-
nantes a cada grupo ou coletivo, estando longe de nossas intenções julgar posi-
ções (que estão sempre em processos e costumam geralmente ter comportamen-
tos paradoxais). A análise de redes costuma amiúde aparecer descontextualizada
como uma variável suficientemente explicativa em si mesma, mas tal não é o que
defendemos, pois enquadramos as redes nas condicionantes socioeconómicas e
culturais de cada situação concreta. Tão pouco nos passamos para o outro lado,
ou seja, não consideramos as redes como sinónimo de «movimentos sociais» com
as respetivas descrições das suas características estruturais (sobretudo externas),
tal como costumam fazer os sociólogos. As tentativas de definir os «movimentos
sociais», encaixando-os numa das formas ou processos sociais, não costumam ter
em conta as suas características criativas internas, assim como a sua variabilidade,
tanto em relação à acumulação de forças como à sua degeneração. Por isso, pre-
ferimos falar de conjuntos de ação, pois à partida não revestem avaliações aprio-
| 76 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

rísticas sobre os seus sentidos transcendentes, mas antes sobre momentos e poten-
cialidades perante cada transformação concreta.
Não basta a boa vontade de querer aprender com os movimentos ou associa-
ções. O que os conjuntos de ação, tal como os entendemos, trazem é a integração
de três variáveis ou três elementos-chave, que se têm mostrado elucidativos nos
próprios processos. São as redes de confianças e de medos internos nas comuni-
dades, são as condicionantes de classe social e são as posições ideológicas perante
cada problema concreto em disputa. Os analistas têm vindo a debater e escrever
sobre a «classe em si» e a «classe para si» e nós este quadro cruzamo-lo com a
«classe assim», ou seja, como ela é na vida quotidiana de cada lugar, como se foram
construindo as relações e os vínculos entre grupos, setores, etc. Não é suficiente
falar de «estrutura e agência», pois o habitus das redes não é uma variável assim
tão dependente mas é muito capaz por si mesma. Poderemos construir tipologias
de relações internas aos movimentos e também às comunidades, assim como a
campos sociais inteiros, não tanto para descrever como são, mas antes para que
se possam autoanalisar a partir de dentro. O que construímos com os próprios
sujeitos envolvidos é o instantâneo de um processo, são radiografias ou fotogra-
mas de um filme, que estão sempre em mudança contínua, sendo, por vezes, muito
pouco previsíveis. «Todo o real é relacional» e, por isso mesmo, interessa-nos mais
os vínculos e o que podem ser as suas dinâmicas do que as definições dos grupos
ou setores que suportam as relações. Não é possível um sem o outro, mas é mais
possível mudar as relações que os sujeitos por si mesmos e é para isto que preten-
demos contribuir.
Com os conjuntos de ação trazemos também uma forma concreta de susten-
tar que o «político está no quotidiano», tanto nas relações mais microssociais como
nas macrossociais. É possível ver a correlação entre a família patriarcal com a sua
estrutura vinculativa, característica de determinada cultura, a qual aparece asso-
ciada com a hierarquia da escola, as relações de trabalho, ou a dominação sim-
bólica no conjunto da sociedade. Quer no micro, quer no macro, reproduzem-se
estruturas vinculativas semelhantes. É o que se tem chamado «holograma social»
ou estruturas «fractais», que em cada parte contêm o essencial de todo o conjunto.
E isto é que é possível fazer a partir do comunitário, ou desde campos concretos:
estratégias e alianças para poder transformar a sociedade a partir de qualquer
lugar. A dinâmica dos conjuntos de ação atua, tanto por dentro de cada um mudando
os seus elementos, como na comunidade considerada ao tentar transformar as rela-
ções entre uns e outros conjuntos (alianças, isolamentos etc.), como inclusive em
relação à sociedade em geral ao poder constituir-se em elemento pedagógico
demonstrativo de que poderá chegar a generalizar-se em escalas maiores. As rela-
ções de poder que podemos perceber a partir de qualquer forma de conversação
podem ser a base para construir, de forma participativa com membros de diver-
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 77 |

sos conjuntos de ação locais, algumas estratégias sociopolíticas que vão mais além
de cada caso concreto.
Tal como utilizamos nas nossas práticas os sociogramas, queremos ir para além
dos «diagramas de Venn» ou dos «mapeamentos» ou, ainda, da análise de redes
convencionais. Em primeiro lugar, ao torná-los participativos com alguns grupos
locais, tal representa e serve como «autocrítica» para que os próprios grupos cons-
tatem até onde conhecem ou desconhecem as relações da sua própria comuni-
dade. É curioso constatar como muitos dos líderes mal conhecem o entorno dos
seus próprios grupos e como se dão por supostas muitas posições em que, à hora
de defini-las com coordenadas, emergem debates muito interessantes entre mem-
bros de grupos afins. Certamente que isto obriga a muito mais do que seria uma
simples entrevista a alguns dos líderes locais, trazendo-nos muita mais e com-
plexa informação. Em segundo lugar, ao fazê-lo por eixos (por exemplo, classe
social e ideologia) e cruzando as três variáveis referidas, podemos aproveitar o
desenho participativo como uma amostra mais completa para nos orientar sobre
a quem fazer as entrevistas, quais os grupos, as oficinas, a documentação, etc.
Em terceiro lugar, teremos uma primeira radiografia que, ainda que difusa por
ser a primeira, já nos serve para poder comparar mais à frente com entrevis-
tas e outras formas dialogantes e ir verificando assim (através de sucessivos
mapeamentos estratégicos) o que estamos a construir no que concerne as rela-
ções no processo.

3.3. Tetrapraxis
Não se trata de «tetralemas» de tipo linguístico estruturalista como os que se
costuma fazer na análise de novelas ou doutras narrativas já dadas. Primeiro,
porque nos nossos casos os sujeitos estão vivos e participam nas tomadas de deci-
são, não de forma metafórica, mas real. Em segundo lugar, porque também ten-
tamos superar a simples «escuta» dos problemas ou construir «dinâmicas socio-
culturais». O estilo de «praxis» que utilizamos é mais do que a militância de escu-
tar e interpretar. Não acreditamos que alguém nos tenha autorizado a fazer de
juízes a partir de auscultações e de opiniões que possamos recolher. Abordamos
uma «praxis» que devolva o que recolhe, para que sejam os próprios grupos, como
«sujeitos em processo», os que vão criando novas situações e dando contributos.
Mas não se trata tão pouco de qualquer devolução, simplesmente porque etica-
mente obtivemos uma informação que pertence a quem a deu. Se apenas devol-
vermos dilemas ou posições intermédias, ainda não teríamos saído dos discursos
dominantes, continuaríamos fechados dentro do que o próprio sistema preconiza,
incluída a sua oposição. Os tetralemas vão um pouco mais além dos dilemas,
| 78 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

quando abrem novos planos de interpretação da realidade, mas nem por isso supe-
ram sempre interpretações dialéticas deterministas.
Pelo facto de poder fazer protagonistas de criatividade os próprios sujeitos,
chamamos-lhes por vezes «tetra-praxis». A seleção de frases ou de posturas para
serem devolvidas não é algo que apareça espontaneamente: encontrar mais do que
um eixo de contraposições e de contradições é uma tarefa que necessita de certa
intencionalidade. Por isso, é uma tarefa que exige estar atentos a estes enfoques
e um certo rigor lógico, de modo a aparecerem claros dissenssos e não só os con-
sensos das maiorias. Para desbloquear os dilemas dominantes é interessante que
se devolvam também as frases e as posições minoritárias, de maneira que possam
abrir novos eixos ou planos alternativos. Estas posições convertem-se em pergun-
tas ou dispositivos para a criatividade, para além dos que a tenham formulado.
Com devoluções deste tipo, estes processos ajudam a construir «sujeitos coletivos»
e novos em certa medida, dados que as próprias pessoas se sentem envolvidas na
tarefa de criar as suas próprias análises e de construir as prioridades por si pró-
prias. O que parece muito difícil a muitos académicos não o costuma ser assim
tanto para as pessoas sem elevada preparação linguística. Simplesmente preparar
e devolver algumas frases claras, em linguagem textual da gente, por exemplo, e
sem dizer quem disse tal ou tal coisa. Em seguida, os que participam não apenas
interpretam o porquê de se ter dito tais ou tais coisas, mas também costumam
acrescentar novos contributos de muita maior profundidade.
São processos que se retroalimentam a si mesmos. Quando se encontra o estilo
de passar da posição encaixada entre dois opostos a posições que contemplam
outros eixos ou planos de debate e alternativas, então abre-se um campo muito
fecundo. É o que por vezes se tem chamado «reflexividade de segunda ordem ou
de segundo grau», mas que quase nunca se materializa em formas operacionais
de fácil execução, e menos ainda em propostas participativas abertas. O que aqui
abordamos são precisamente formas variadas em que estas reflexividades se podem
colocar em prática quase como um jogo, onde qualquer pessoa ou grupo que
queira participar durante umas horas pode sair depois bastante satisfeito sobre o
que consegue por si mesmo. Tal ocorre tanto pela clareza do que consegue cons-
truir com outras pessoas perante o projeto que esteja em andamento, quanto em
relação a ter descoberto metodologias (ou parte delas) que vão mais além do que
convencionalmente se chama participação. Preparar estas devoluções criativas
requer um certo rigor metodológico, sobretudo na hora de abrir as mentes a partir
das próprias posições e frases que se escutam ou se sentem. É muito positivo
aprender a viver e a mover-se em questionamentos paradoxais não só para estes
exercícios de processos sociais, mas também para a própria vida de cada um.
Se se pratica quotidianamente, então é mais fácil estar atento para descobrir os
novos planos.
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 79 |

Um exemplo que se pode entender bem é o das respostas dadas num bairro
perante a violência e a insegurança que se percebe. Através de umas quantas pri-
meiras perguntas, colocadas de forma rápida, é provável que surja um considerá-
vel número de petições no sentido de uma maior presença policial nas ruas. Mas
se falarmos mais devagar e com uma certa confiança com algumas dessas mesmas
pessoas, é possível que contem como, em certas ocasiões que a polícia chegou ao
bairro, o seu comportamento não foi nada eficaz. Ainda mais, haverá até quem
possa relatar que afinal não detiveram quem deviam e assustaram boa parte das
pessoas inocentes. O especialista ficará com a dúvida se deve pôr no relatório, que
no bairro querem ou não a polícia na comunidade. Mas por que é que há de ser
ele quem dita o veredito? Porquê não devolver essas posições às mesmas pessoas
que se pronunciaram? Com certeza que a gente nos dirá que na realidade o que
queriam dizer é que querem a polícia, mas não a convencional, do tipo mais puni-
tivo, mas uma outra de tipo preventivo e comunitário. Esta resposta em princípio
talvez possa ser de tipo minoritário, mas numa Oficina de Criatividade é fácil que
saia como muito valorizada, se lhe dermos a oportunidade de a considerar junto
ao dilema sim ou não quanto à vinda da polícia. Porém, além disso, podem também
ter lugar outras respostas, tais como serem os próprios vizinhos a organizar-se para
aplicar a própria justiça ou para vigiar em rondas. A questão é de não fechar dema-
siado cedo e em falso a análise antes que a gente possa construir explicações e
propostas mais complexas e concretas.

3.4. Emergentes de valor


Não se trata da chamada «educação pelos valores», pelo menos tal como se
costuma abordar e que consiste em explicar uma série de valores abstratos, todos
muito bem-intencionados, com palavras e frases de muita carga moral, próximo
dos direitos humanos. Costumam repetir-se os slogans da modernidade «liberdade,
igualdade e fraternidade», aos quais se juntam solidariedade, sustentabilidade
ambiental, transparência nas comunicações, etc. São expressões com as quais quase
todo o mundo pode estar de acordo, ainda que na hora da prática cada qual as
entende como quer e as justifica desde ideologias para todos os gostos. Tratamos
de detetar esses «dilemas de valores» dominantes precisamente para não perma-
necer na sua utopia abstrata ou no cinismo de os enunciar e, ao mesmo tempo,
não os praticar por serem considerados impossíveis ou por ficarmos a meio cami-
nho. Existem uns «equivalentes gerais de valor» que marcam quais são os referen-
tes nos quais nos devemos fixar os humanos designadamente na economia, na
ecologia, na democracia, cultura, mas nas nossas propostas tendemos a demar-
camo-nos destes critérios e indicadores prefixados. Interessam-nos pouco as pla-
| 80 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

nificações convencionais com índices tais como o PIB. Interessam-nos pouco causas
lineares e setoriais (económicas, tecnológicas ou outras) que pretendam ser a prio-
ridade para a geração de valor, porque assim se reclama na globalização e nas contas
macroeconómicas. Não se desconhece que há setores importantes que não se deve
descuidar tais como a comercialização ou o financiamento, mas preferimos prio-
rizar a «integralidade» concreta e participada dos processos perante a setorização.
O nosso contributo, portanto, é uma crítica operativa dos «equivalentes de
valor» dominantes, não tanto do ponto de vista ideológico geral, mas mais da sua
concretização nas práticas locais. Nas práticas comunitárias e dos movimentos
sociais não bastam os «satisfactores» opostos aos que se proclamam institucional-
mente, mas há que concretizá-los em cada situação particular. Entrar nessa com-
plexidade significa ir mais além da causa-efeito linear e contribuir para a constru-
ção «recursiva» dos processos (como o anúncio de algo que pode suceder se con-
verte noutra causa). Ou seja, contribuir, em primeiro lugar, para identificar quais
são os possíveis bloqueios, nós críticos ou estrangulamentos que obstaculizam as
complexas relações entre as várias causas e os diferentes efeitos num processo.
Esta abordagem de causas cruzadas entre si e de previsíveis efeitos também nos
coloca perante uma malha complexa de relações causais para poder estabelecer
quais são as principais prioridades para a ação. Pode ser que, antes de atuar sobre
a causa última (a que talvez não possamos chegar de forma imediata e contun-
dente) ou conseguir rapidamente alguns efeitos muito brilhantes (pondo alguns
remédios urgentes, mas pouco profundos), seguramente deveríamos priorizar o
desbloqueamento de processos em «nós críticos» onde possamos atuar em cada
momento com as forças de que dispomos. Podemos fazer isto de modo participado
e, deste modo, integramos visões maioritárias e minoritárias, correlações entre varia-
das causas e efeitos e os seus passos intermédios, com referências aos diferentes
subtemas a considerar e às diferentes possíveis alianças entre setores sociais.
Podemos construir assim, com rigor crítico e participativo, em primeiro lugar,
as «prioridades» de ação nas quais se baseia o «sujeito coletivo» que se está cons-
truindo com estas práticas. E, de seguida, se pode construir alguma «ideia-força»
que vá mais além e que una ainda mais os setores participantes. A estes proces-
sos chegam variados setores, sobretudo se são de certa dimensão, trazendo cada
um as suas análises e propostas, que em parte têm bases bem fundadas. A ques-
tão principal é como se podem articular e priorizar coletivamente, umas e outras
para poder ir construindo os acordos que nos dêem maior profundidade e unidade
para as ações que devemos empreender. Além disso, contribuímos com a forma
de debater e acordar com base na proposta pelo que ela significa em si mesma e
não por quem a propõe. Trata-se de superar os pessoalismos e as lutas de grupos
com formas participativas que favoreçam, com uns dispositivos que desbloqueiem
as ideias preconcebidas, o podermos entrar desta forma em processos de criativi-
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 81 |

dade coletiva. São sistemas democráticos de debates em pequenos grupos e em


plenários, onde se trata de recorrer por escrito aos contributos de todas as pessoas
para depois ir articulando e debatendo tais contributos em grupos mistos, sem pôr
em causa o prestígio de ninguém. Ideias ou propostas minoritárias podem demons-
trar-se ser muito mais construtivas do que outras mais generalizadas. Inclusive, caso
seja necessário chegar a algum sistema de votação, este pode fazer-se de forma
ponderada, tratando-se de não excluir umas ou outras propostas, mas fazendo-se
refletir o seu apoio entre os participantes (com os pontos que podem ser dados a
cada uma), para depois articular entre si as que tenham tido maior aceitação.
Os fluxogramas parecem-nos melhor do que os DAFO’s (debilidades, ameaças,
fortalezas e oportunidades) que se têm generalizado com os planos estratégicos
convencionais, já que permitem correlacionar os diferentes «conjuntos de ação»
que podem intervir na resolução dos processos concretos, também porque podem
aprofundar-se nas relações causais (para além de afirmar o positivo ou negativo
de qualquer fator, que não costuma ser o mais importante). Praticamos diversas
maneiras de estabelecer estas relações dependendo das características das comu-
nidades ou dos movimentos, mas sempre para tratar que os «emergentes» sejam
uma construção coletiva, e que vão para além dos «equivalentes gerais de valor».
Por exemplo, para a construção de indicadores de «qualidade de vida» não serve
tomar o disponível em qualquer estatística (construído com critérios de «níveis de
vida» para ser comparado em todo o mundo), senão que deverá ser feito um Fórum
Cívico que proponha critérios para cada situação e que se possam ir renovando
segundo a comunidade em cada determinado número de anos. Interessa-nos partir
de quais são os valores emergentes em cada momento e situação, para que cada
comunidade possa dar valor por si mesma sobre o que avança e não decretar «equi-
valentes gerais» que regem em todo o mundo (como se fosse desejável alcançar
os níveis de contradições dos mais poderosos). A criatividade local pode ir gene-
ralizando desta maneira, em âmbitos culturais muito amplos, novos valores emer-
gentes, assim como formas de acompanhamento e verificação prática que os con-
cretizem e tornem operacionais.

3.5. (Eco)organização
Não estamos a considerar uma hierarquia «natural» na sociedade como a que
poderia haver na natureza, ou seja, algo assim como «sempre houve pobres e ricos».
Na própria natureza, embora com grandes diferenças existentes, o que prevalece
são as relações ecossistémicas que se têm construído ao longo da evolução de
milhares de anos mais que a aniquilação de umas espécies por outras, onde os sis-
temas mais complexos e sinérgicos têm vindo a mostrar-se mais competentes que
| 82 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

os sistemas mais simples ou setoriais. E, entre os seres vivos, com maior razão
devemos aproveitar ao máximo as capacidades que dispomos, organizando-nos de
tal maneira que todos possamos contribuir na melhoria da vida. Não estamos a
falar de um modelo de coordenação de «recursos» (técnicos, económicos, ecoló-
gicos, etc.) que dê mais sustentabilidade aos processos, pois com isto manter-nos-
-íamos em abordagens defensivas perante a indolência burocrática da qual parti-
mos e que não conseguimos superar. E, perante a manifesta insuficiência dos sis-
temas democráticos eleitorais e as burocracias profissionais que as acompanham
na gestão (pública e privada), não nos colocamos apenas para que haja um com-
plemento participativo para remediar os males maiores. Isto seria o mínimo para
evitar explosões mais violentas na sociedade (como o sucedido no passado nos
bairros de Caracas ou de Los Angeles ou, ainda mais recentemente, nas periferias
das cidades francesas). Isto ainda segue sendo o «fundo de medo» com o qual nos
seguimos governando de modo defensivo para evitar males maiores. Com algumas
formas de participação comunitária não se resolvem os problemas de fundo, mas
pelo menos se mitigam os efeitos mais desastrosos do sistema em que vivemos.
O que queremos é contribuir para que se vá mais além de um complemento
à democracia e à gestão habitual, inclusive à coordenação de recursos. Uma (eco)
organização coloca-se a cooperar de baixo e não apenas a coordenar desde cima,
integrando no processo todas as iniciativas e capacidades dos seres de cada um
dos ecossistemas onde estamos. A «sinergia» que se trata de produzir não é uma
simples soma das partes, mas sim a multiplicação das iniciativas que surgem na
vida quotidiana. Ou seja, passar a marcar a agenda dos sistemas representativos
desde as propostas populares e comunitárias. E não esperar que sejam os poderes
económicos e mediáticos a organizar-nos a vida, perante os quais tenhamos apenas
de estar em contínua defesa (com mais protestos que propostas). Esta (eco)orga-
nização parte desde logo dos problemas mais sentidos e urgentes, não para per-
manecer neles, mas sim para aproveitar o possível entusiasmo da mobilização e
passar a fazer propostas construtivas, integrais e sinérgicas, tal como nos têm ensi-
nado alguns movimentos sociais, sobretudo alguns movimentos de mulheres, de
camponeses e de indígenas. A (eco)organização não tem que esperar a autoriza-
ção de todo o sistema de poderes, pois à escala local já se podem ir proporcionando
bons resultados para as pessoas e para os grupos que tomem estas iniciativas.
Desde o comunitário se pode considerar a agenda de autogestão e de cogestão de
sistemas com metodologias participativas que alcancem milhões de pessoas, tal
como se tem demonstrado em diversos casos na Índia, na América Latina e, mais
recentemente, na Europa.
Tudo isto não só apenas para superar a pobreza ou os flagelos mais evidentes
da sociedade, mas sim para que todos e todas possamos sentir-nos criativos nela.
Uma «democracia de iniciativas», onde o protagonismo pode ser de qualquer grupo
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 83 |

e habitualmente o é de vários, que irão, por sua vez, coordenar os seus esforços.
Para tal é necessário outro tipo de práticas, que se prendem com técnicas de prio-
rização e de rigor tanto na transparência como nos critérios sociais distributivos,
muito distintas das brigas para ver quem manda nos governos. Critérios tais como
«de cada quem segundo a sua capacidade e a cada qual segundo as suas necessi-
dades» traduzem-se em propostas a que já podemos aspirar em muitas formas
comunitárias. E que os delegados ou gestores sejam mandatários das decisões cons-
truídas coletivamente e não intérpretes caprichosos das mesmas. Tudo isto implica
uma mudança nos processos, a qual demorará anos com novas práticas, com uma
nova cultura, com os seus novos «ritos» e procedimentos de metodologias parti-
cipativas. Tal como a prática de delegação e controlo a cada quatro anos através
do voto das autoridades representativas tardou bastantes décadas a consolidar-se
como referente democrático, também as oficinas e as assembleias, as redes sociais
de iniciativas, as votações ponderadas, o mandato aos gestores, os planos de tipo
integral comunitário, entre outras práticas, terão que seguir um processo de melho-
ria, com avanços e recuos, dando resultados para que cheguem a consolidar-se.
O nosso contributo é assinalar que esses processos já se iniciaram, demonstrando
que se estão a conseguir mudanças.
Por exemplo, os Orçamentos Participativos não são algo revolucionário na
medida em que não implicam uma mudança radical das classes sociais ou do sis-
tema económico. Simplesmente introduzem, com maior ou menor coerência, uns
sistemas mais transparentes e participativos, para fazer propostas de iniciativas
que o governo se comprometa a realizar no ano seguinte. Tanto os planos comu-
nitários como outras formas de processos com «ações integrais» tão pouco signi-
ficam mais do que melhorias consequentes com os sistemas de cogestão social
que qualquer partido proclama. As «Iniciativas Legislativas Populares», os Fóruns
Cívicos para o acompanhamento com «índices de qualidade de vida» ou tantas
outras novas formas que se ensaiam em diversas cidades e municípios são o caldo
de cultivo para que venham amadurecendo as democracias participativas e sua
«(eco)organização». Consideramos que algumas Redes de Acompanhamento dos
processos em marcha são mais operacionais na medida em que tratam de articu-
lar entre si várias destas metodologias e, sobretudo, fazem-no a partir de alianças
estratégicas de vários «conjuntos de ação». A «(eco)organização», que supõe uma
Rede de Acompanhamento, tem as suas diretrizes relacionais entre mesas de tra-
balho por temas ou de grupos motores, com seus «cronogramas» de atuação e pres-
tação de contas pelas tarefas realizadas. E tudo isto supõe práticas muito diferen-
ciadas conforme as localidades e culturas, mas sempre com alguns elementos comuns
que é bom considerar e desenvolver.
| 84 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

3.6. Reversões
As «reversões» não são, tal como as utilizamos, nem posições intermédias nem
gradualismos entre dilemas opostos que se nos apresentam. É importante escla-
recer isto, porque a tendência perante os dilemas de opostos é a de procurar posi-
ções a meio caminho. E com as «reversões» o que se considera é «transbordar» e
superar tais oposições. Por exemplo, trata-se de não aceitar o debate entre o «refor-
mista» e o «revolucionário» como uma abordagem anterior à ação, que em geral,
no século XX, paralisou mais do que mobilizou para a transformação social. Na
prática muitos processos revolucionários acabaram por fazer reformas e alguns
processos visando reformas acabaram por radicalizar-se em revoluções. Por isso,
tratamos de fugir de dilemas um tanto sectários que servem para muito pouco nos
processos comunitários da vida quotidiana das pessoas. As «reversões» equacio-
nam o transbordar dos debates endogâmicos de muitos grupos, seja dos acadé-
micos, seja dos ativistas ou basistas. Não é uma abordagem académica na medida
em que é necessária uma certa densidade prática com os movimentos para poder
viver e experimentar o que se está passando: não é um conceito que se possa captar
apenas na teoria. Não é uma posição ativista na medida em que necessita de escu-
tar muito o ritmo das pessoas e dos movimentos e trazer metodologias quando os
«conjuntos de ação» vão coalhando. Tão pouco é «basista» na medida em que não
se dá razão a tudo o que fazem os setores populares, ainda que se tenha de partir
das suas contradições, de tal forma que assim podem aparecer mais enraizados
estes transbordamentos dos processos transformadores.
Ainda que se parta de «grupos operativos» e o objetivo seja resolver proble-
mas concretos, não se pode saber nunca como podem acabar estes processos. Pre-
cisamente esta «reversão» pode ser um indicador de que se superaram os primei-
ros pressupostos equacionados pelas próprias pessoas que participam, um indi-
cador da envolvência e da confiança na sua própria força por parte dos setores que
se tenham mobilizado. Transbordar as primeiras suposições com que se começa
não é um erro de planificação, mas sim serve para demonstrar a capacidade de ir
conseguindo que grupos e setores sociais venham a ser ganhos para se proporem
objetivos mais avançados para eles mesmos. Sempre se parte de algum esquema
mental prévio, mais ou menos explícito, mas isso não quer dizer que se tenha que
ficar nele, sobretudo quando são muitos os contributos novos de outras pessoas
e grupos, assim como as vivências próprias destes processos. Reverter tais esque-
mas é aprender de estímulos «geradores» que a vida nos vai colocando à frente, os
quais construímos coletivamente. Neste sentido a autoformação das pessoas e dos
grupos é uma retroalimentação constante desde as próprias práticas vividas. E é
uma demonstração de que a melhor forma de superar falsos dilemas teóricos é
através destas práticas, onde a criatividade das pessoas abre novos canais que
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 85 |

implicam tanto o que dizem uns como o que dizem outros. A maior parte dos deba-
tes preconceituosos dos grupos solucionam-se ao colocar-se em marcha algum dos
caminhos, com o ritmo das pessoas que hão de participar.
Não se trata de fazer «reversões» para tudo, mas sim, se as considerarmos, esta-
remos abrindo novas perspetivas para o dialógico. O contributo de que o dialógico
não fica confinado aos dilemas entre um e outro polo, ainda que estes continuem
a existir e a ser necessários, é o facto de se dar mais amplitude e possibilidades
ao que podemos chamar «transversalidade” das alternativas. Sair das «dialéticas
fechadas» significa que em cada momento se pode optar por uma complexidade
de alternativas (mais ou menos radicais, mais previsíveis ou mais transbordantes,
segundo as circunstâncias) e isto é colocar mais profundidade e rigor nos proces-
sos comunitários e sociais. Nem sempre se está em condições de os «transbordos
reversíveis» poderem ser operativos, mas incluí-los como referente possível, quando
as pessoas estiverem dispostas, abre-nos a outros planos de potencialidades. O
que chamamos «monitorização» passa então a ser um elemento-chave que não se
limita a uma avaliação, tal como costumam fazer os planificadores, mas sim resulta
num exercício de acompanhamento e retificação nalguns pontos que a metodolo-
gia participativa tem assinalado como mais sensíveis. O facto de poder haver um
cronograma é só um referente, não tanto para o cumprir, mas mais para saber por
onde a realidade nos está transbordando ou por onde nós mesmos não consegui-
mos chegar às abordagens previstas. O que ocorre é sempre mais complexo e dinâ-
mico do que possamos planear. A «monitorização» pode articular-se com o esquema
de (eco)organização e com as «ideias-força» ou «emergentes», para que os con-
teúdos e os sujeitos que os põem em marcha sejam um todo mais sinérgico em
cada caso.
Por exemplo, um caso de pedagogia libertadora não é que os «grupos operati-
vos» se consciencializem de que os conteúdos do processo comunitário sejam muito
bons, por muito que expliquemos as coisas a partir do que chamamos «grupos
motores». Trata-se antes que os grupos operativos e motores negoceiem como
«reverter» os opostos neste processo, encontrando as incoerências e contradições
que tenham e jogando com elas para poder gizar estratégias com «conjuntos de
ação» suficientemente amplos. Criar situações onde os opostos se vejam «reverti-
dos» na prática é a melhor consciencialização. Ou seja, transbordados, porque, em
primeiro lugar, boa parte dos grupos locais negociaram alianças de participação
conjunta. Em segundo lugar, revertidos porque se tornam explícitas as contradi-
ções que pudemos analisar e fazer emergir nestas situações. E, em terceiro lugar,
porque conseguimos persuadir ou seduzir boa parte das pessoas alheias à nossa
causa, a fim de se sentirem envolvidas no que estamos a fazer, o que supõe o iso-
lamento ou o transbordo daqueles que se opõem. Além disso, estas apostas estra-
tégicas transbordam-nos a nós próprios, sobretudo nos idealismos em que ainda
| 86 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

possamos continuar a pensar que tínhamos feito uns planos perfeitos. Desta maneira
também podemos seguir aprendendo. E este costuma ser o indicador mais próximo
e fiel de como vai o processo.

4. Os tempos e o que cabe aprender


Tudo o que temos vindo a dizer deverá baixar à prática comunitária com os
seus tempos ou a qualquer prática social com os seus ritmos particulares de vivên-
cias culturais. Para não ficarmos, como costuma suceder, em generalizações mais
ou menos académicas, propomos um quadro com alguns tempos aproximados. É
preferível ser criticado por calendarizar e esquematizar os períodos de cada ativi-
dade ou passo criativo do que ficarmos na inconcretude das grandes palavras.
Não nos cansaremos de recomendar não tomar como receitas os tempos que aqui
se propõem, dado que são retirados de experiências muito diversas. Podem servir
como referência para algumas práticas em localidades onde não tenham muita
experiência. Desde logo, entre nove a doze meses, uma equipa de cinco ou seis
pessoas com certa dedicação pode realizar as tarefas e conseguir alguns resultados
iniciais. Evidentemente, se o tempo que podem dedicar e a capacidade for elevada,
todo o processo pode acabar antes e até se pode fazer com mais calma, em função
das capacidades ou do tempo, conseguindo que o processo seja mais assumido,
pois não será pela pressa que resultará melhor. As diferenças de tamanho da comu-
nidade, cidade ou região, e a cultura participativa também são variáveis para modi-
ficar tudo o que aqui estamos propondo e com esse entusiasmo estamos a apre-
sentar este quadro para que se lhe possam fazer todo o tipo de emendas. É impor-
tante saber se há no processo trabalhadores públicos e quantificar quantas horas
lhe podem dedicar, sem confundir o «voluntarismo» com o rigor das metodologias
que se necessitam para empreender bem estes passos ou períodos. E ter em conta
que os horários são os disponíveis basicamente pelas pessoas que trabalham nou-
tras atividades e que queiram participar, dado que são os grupos motores e opera-
tivos os que terão de ir assumindo as iniciativas e a direção do processo.
Em primeiro lugar, devemos ter em conta um tempo preliminar, muito variá-
vel e não quantificável, que nos possa situar nas experiências precedentes das quais
se parte. Não é o mesmo chegar a estes processos a partir do impulso de um movi-
mento social que por voluntarismo de uma equipa técnica ou de um político com
boa vontade. Há uma série de características básicas, e não apenas a boa vontade,
para que se possa iniciar com certas garantias de poder cumprir com o que se pre-
tende. A primeira coluna mostra-nos algumas das predisposições que se devem
ter para além da vontade de querer envolver-se em metodologias participativas.
Depois há quatro colunas para fazer um plano de trabalho, realizá-lo, fazer devo-
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 87 |

luções e propostas operacionais (mais à frente comentaremos algo de cada uma).


E, na última coluna, abre-se o processo sem tempos-limite, ainda que se recomende
que se tenha cronogramas para poder fazer os seguimentos e as monitorizações
oportunas. Existe uma certa lógica na disposição nesta ordem das fases ou passos
a realizar, mas isto não quer dizer que não se possa alterar, ou que se possa ace-
lerar ou retardar qualquer dos elementos em função das condições de cada situa-
ção. Este quadro serve para poder justificar o porquê das mudanças que se podem
fazer. Seria bom que se pudesse refletir sobre o porquê, seja do que se propõe,
seja das mudanças que se introduzem e que não sejam o fruto de decisões não
debatidas ou de oportunismos alheios à própria lógica participativa. Desde logo o
quadro não deveria ter esta linguagem, que aqui se pretende com certo rigor con-
ceptual, mas estar ciente de que o que se pretende é envolver pessoas não habi-
tuadas a estas terminologias. Em qualquer caso, será bom que se construa algo
mais concreto e específico para cada situação.
Os «saberes» que pretendemos desenvolver podemo-los dividir em cinco sec-
ções (que entre si estão sempre muito imbricadas), para poder distinguir melhor
o concreto de cada momento e cada pretensão. O primeiro é «saber estar», ou seja,
uma série de capacidades pessoais ou grupais que se podem e devem ter previa-
mente a partir das experiências vividas. Também se podem adquirir no processo,
mas sempre costumam ocupar mais tempo do que uns meses a um ano. O ter «sedi-
mento» vital sobretudo para dirigir um processo metodológico, umas oficinas ou
uma assembleia, não é algo que se possa aprender nos livros ou num curso mais
ou menos acelerado. O saber «para quê», «para quem» do conjunto do que faze-
mos (o que chamamos «episteme») e o saber «porquê» de cada fase (o que se chama
«metodologia»), e que dão sentido às técnicas e aos resultados, são os elementos
fundamentais daquilo que propomos. Os seis passos da «epistemologia» já foram
comentados anteriormente como algo fundamental para o que chamamos «socio-
praxis». E a «metodologia participativa» que indicamos apenas trata de ser coe-
rente com o que temos vindo a postular, refletindo sobre como articular esses passos
da maneira mais conveniente a partir do que nos ensina a nossa experiência. Quanto
ao «saber fazer» (as técnicas, o «como»), não nos parece tão importante o facto de
aplicar umas ou outras, sempre que se justifique o «porquê» fazê-lo. E sobre «o
quê» ou resultados (os documentos e as práticas que vão ficando), que se consi-
gam o mais ou menos completos, pois é uma questão de tempo e de participação
para que sejam melhores, sempre que não se renuncie a aspirar a conseguir os
objetivos propostos.
Comentando estas colunas podemos ver uma certa lógica de desenvolvimento
do que temos vindo a abordar. Na primeira coluna há alguma predisposição que
parece necessária para poder começar qualquer processo. Ainda que não sejam
imprescindíveis todas ao mesmo tempo, não nos resta dúvida de que surgem pro-
| 88 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

blemas, se não se cumprirem alguns destes pré-requisitos. Por exemplo, que as


pessoas que se envolvem já saibam «estar» por terem participado antes noutras
experiências, ou que tenham um mínimo de capacidade de autocrítica, ou seja,
que não sejam arrogantes ou prepotentes. Para não ficarmos nas vivências e pas-
sarmos aos «estilos transdutivos», é necessário estar dispostos a algo, ainda que
não se saiba completamente do que se trata. Para isso há que pelo menos saber
distinguir entre metodologias participativas e outras das ciências sociais (ainda há
profissionais que pensam que um inquérito ou um grupo de discussão são parti-
cipativos). Se de modo algum se conhecem previamente as distinções, tal não tem
importância, mas haverá que esclarecer quanto antes do que estamos falando e ao
que nos comprometemos, para que ninguém se meta enganado onde não conhece.
Por exemplo, o estar disposto a sair à rua e a trabalhar com grupos, que são ques-
tões muito claras para algumas pessoas mas que a outras lhes resultam muito difí-
ceis de assumir, ou pelo menos lhes dá algum embaraço antes de fazê-lo. Nada
disto é algo impossível de realizar e, de facto, geralmente fazemos isso noutros
aspetos das nossas vidas, embora não o designemos desta maneira. O importante
é que sejamos capazes de esclarecer e distinguir em que momento estamos a ini-
ciar um processo, para que possamos começar a calibrar bem as nossas forças.

Perfil para a programação cidadania sustentável


(saberes em seis passos – tempos nos processos socio-práxicos)

Processo
Predis- Construção Trabalho
Devoluções Propostas de realiza-
posição do plano de campo
Tempos criativas e integrais ções e
desde de trabalho e análises
priorização e sustentá- acompa-
as expe- negociado abertas
Saberes (2 a 3 veis (2 a 3 nhamento
riências (2 a 3 (2 a 3
meses) meses) com moni-
anteriores meses) meses)
torização

Dirigir
· Experiên- (Eco)avaliar Ouvir todas Facilitar (Eco)dirigir
oficinas
QUEM? cias sociais precon- as posições. as alianças. metodologi-
e encontros.
Saber · Capacida- ceitos. Facilitar a Planificar camente.
Provocar
estar de auto- Conversar dinâmica de participada- Monitorizar
os passos
crítica com grupos grupos. mente situações.
criativos.

Das causali-
· De vivên- Da boa Da análise Dos grupos
dades Dos i às
cias com vontade ação-refle- operativos
PARA «recursivas» «Redes
analisadores dos sujeitos- xão aos aos «Trans-
QUÊ? à constru- (eco)orga-
à predispo- -sujeitos às paradoxos bordos
Conheci- ção de refle- nizadas.
sição para estratégias e à reflexi- criativos»
mentos xividades Indicadores
«Estilos com vidade e processos
Episteme com «Eixos de sustenta-
Transdu- «Conjuntos da «Tetra- de «Rever-
Emergen- bilidade»
tivos» de ação» praxis». são».
tes».
(cont.)
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 89 |

Processo
Predis- Construção Trabalho
Devoluções Propostas de realiza-
posição do plano de campo
Tempos criativas e integrais ções e
desde de trabalho e análises
priorização e sustentá- acompa-
as expe- negociado abertas
Saberes (2 a 3 veis (2 a 3 nhamento
riências (2 a 3 (2 a 3
meses) meses) com moni-
anteriores meses) meses)
torização

Complexi- Planificação
Fases de um
dade de estratégica Ideia-força e
· Distinções processo. Articulação
PORQUÊ? conjuntos situacional. dispositivos.
entre outras Problemá- de projetos.
Metodo- de ação. Criatividade Democracia
metodolo- tica inicial Avaliação
logias Temáticas com os participativa
gias e o e análise e monitori-
comuns grupos e recursos.
participativo de redes zação.
e contra- hetero-
sociais.
-propostas. géneos.

Mapeamen-
tos estraté-
gicos.
Cronograma
Transectos Fluxo- Votações
COMO? das tarefas
(DRP = Entrevistas. gramas. ponderadas
Saber Trabalho em e projetos.
diagnóstico Oficinas. Oficinas (EASW).
fazer, grupos. Campanhas
rápido parti- Análise. para Quadros de
ferramen- Sair à rua. de difusão e
cipativo). Tetralemas. devoluções organização
tas (eco)auto-
Socio- criativas. e recursos.
formação.
gramas
e amostras.
DAFO.

Saturar
Delimitação Acompa-
as posições
do sintoma. Nós críticos Relatório nhamento
QUÊ? dos conjun-
Formação Grupo priorizados. operativo: cronogra-
Resulta- tos de ação.
de grupos motor Construção propostas, mas.
dos ope- Quadros
envolvidos e amostra. da rede de organização Rearticu-
rativos temáticos
Plano seguimento. e recursos. lação de
com tetra-
de trabalho. estratégias.
lemas.

1 2 3 4 5 6

Na segunda coluna já se começa com as tarefas e o melhor é fazê-las com os


primeiros grupos que se inscrevam no processo. Não basta ter boa vontade e tra-
tarem-se uns e outras como sujeitos. Não basta a simples conversa, porque sempre
estamos carregados com preconceitos que sem dúvida acumulamos (de teorias e
de experiências das quais cada um vem). Por isso é bom que nos «(eco)avaliem»
(que possamos ver como nos vêem outras pessoas) desde o primeiro momento.
Dentro das fases de um processo parece também conveniente começar por reco-
nhecer as redes sociais que possam haver num mapa local de relações, que pode-
mos construir com alguns grupos envolvidos do modo participado. A ideia é chegar
| 90 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

a poder pôr nesse mapa de relações os diferentes «conjuntos de ação» e suas estra-
tégias particulares, contraditórias ou afins, alheias ou simplesmente diferentes das
nossas. Há técnicas para saber como fazer no início dos processos. Fazer uma DAFO
(debilidades, ameaças, fortalezas e oportunidades) para delimitar os sintomas dos
quais partimos, ou fazer um «transecto» (caminhadas de profissionais e utentes
que partilhem os seus conhecimentos sobre o terreno) para comentar as distintas
perceções dos sintomas. Também um mapeamento estratégico ou um «desempe-
nho de um papel» para reconhecer os juízos de valor dos quais partimos. Depois
o que abordamos é algum «mapeamento estratégico» que, tal como o fazemos, é
um mapa de relações local, com várias finalidades: a) que os grupos locais envol-
vidos demonstrem até onde conhecem os outros sujeitos que tenham a ver com o
assunto (descobrem-se surpresas muito interessantes); b) que também nos possa
servir como «amostra» para saber como focar o plano de entrevistas, grupos, ofi-
cinas, documentação, etc.); c) que fique uma radiografia inicial do processo.
Uma vez abertos ao trabalho de campo, resta ouvir todas as posições que se
possa e adotar um estilo de facilitador(a). Não basta refletir pessoalmente ou em
grupo sobre as ações e sobre a recolha de informação que estejamos a fazer atra-
vés de entrevistas, oficinas, análises profissionais, porque, ainda que tal esteja
bem e seja interessante, a «hipercomplexidade» dos paradoxos sociais que encon-
tramos dá para um processo que precisa de maiores aprofundamentos. É por isso
que procuramos realizar «reflexibilidades de segundo grau», a ser possível com os
mesmos coletivos ou setores sociais que nos informaram nas entrevistas ou nas
oficinas, fazendo com que se analisem eles mesmos por que é que disseram o que
disseram e que outras coisas se lhes ocorrem neste segundo momento. Os «tetrale-
mas» (sobre questões referidas pode construir-se um quadro de quatro posições)
e os «tetrapraxis» (outro quadro de quatro posições sobre as atitudes ou posições
que adotam os grupos envolvidos) são instrumentos que facilitam o saber fazer
estas análises sem necessidade de ser necessariamente profissionais do tema. O
melhor é que haja grupos mistos de profissionais e voluntários locais que façam
a tarefa de simplificar os paradoxos encontrados mais significativos em cada
momento, sobretudo para que não apareça a coisa mais complicada do que real-
mente é. Com o debate voltam então a construir-se novos paradoxos e aparecem
propostas muito criativas. Mas deve-se começar por «saturar» (ou seja, completar
no mapa ou sociograma) o recolhido por todas as principais posições que se possa
verificar à volta de um tema (não costumam ser menos de nove, nem superar os
doze, mais ou menos) e é então quando já podemos cruzar as informações de um
ou de outro tipo e elaborar esses quadros de várias posições contrapostas para estas
análises participativas.
A quarta coluna mostra-nos precisamente os momentos para «devolver criati-
vamente» essas frases e posições que vêm da fase anterior. Devemos estar dispos-
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 91 |

tos a dirigir oficinas que permitam provocar passos criativos nos seus participan-
tes, ou seja, tal como vimos dizendo, que as pessoas possam refletir sobre o que
disseram e porquê e, possivelmente, juntar algumas novas razões que tinham dentro
de si mas que não apareceram numa primeira conversa. Assim, podem aparecer
os «eixos emergentes», que nos mostram que estamos no bom caminho da criati-
vidade participativa. Para estes passos socorremo-nos de alguma técnica da «pla-
nificação estratégica situacional» como é o «fluxograma», a fim de priorizar de
modo participado (em grupos de 10 a 20 pessoas e depois ir a plenário) sobre quais
são os principais «nós críticos» ou estrangulamentos que estão dificultando os pro-
cessos. Aparecem causas e efeitos relacionados entre si «recursivamente» (ou seja,
não de modo linear, mas sim de forma cruzada, assim como também os modos
como os possíveis efeitos influenciam nas causas), podendo ver onde confluem
mais relações e onde se deve atuar prioritariamente. É interessante nesta fase e nas
seguintes que os grupos de trabalho comecem a ser «heterogéneos», ou seja, mis-
turados entre diferentes tipos de procedências, tanto vicinais como profissionais,
pois quanto maior seja a pluralidade de cada grupo maior a probabilidade de não
se repetirem tanto os hábitos herdados e se animar a criatividade do grupo. Também
é importante que se possam discutir as análises causais ou as propostas mais pelas
ideias em si mesmas do que por quem as disse e, por isso, dividir as oficinas em
grupos «heterogéneos» também contribui para ir construindo «sujeitos coletivos»
(identificações de quem criou coletivamente algo), no caminho de que se vá cons-
truindo uma «rede de seguimento» do processo.
Depois vêm as propostas, numa coluna na qual há que saber facilitar as alian-
ças para que a planificação acabe por ser operacional. Não bastará um processo
técnico com indicadores para fazer acompanhamento do que se vai realizando,
mas sim que sejam as «redes (eco)organizadas» a manter o controlo em cada passo
que haja que dar-se. Ou seja, as redes de acompanhamento com a sua democracia
interna e operativa e, por isso, com relações «ecossistémicas» na sua organização.
Não é a hierarquia de autoridade a que manda, mas sim a «ideia-força» que é capaz
de reunir as vontades e animar o processo. Estes esquemas de «democracias par-
ticipativas» para gerir os recursos disponíveis podem ser muito operativos, não
tanto pelas técnicas que utilizem, mas pela «ideia-força» e a sua capacidade de
mover dispositivos voluntários no seu meio. Não só por crer que a democracia seja
um fim em si mesma, mas porque pode servir para conseguir também algum fim
concreto e sobretudo para ir construindo um futuro no qual as pessoas sentem que
contam. Desde logo que haja novas formas ou estilos de fazer as coisas de modo
mais participado e com mais transparência é muito melhor: por exemplo, realizar
votações ponderadas e não tanto o enfrentamento frontal de uns contra outros.
Ainda resta avançar muito mais nestes dispositivos para que as pessoas possam
participar e que também possam sentir-se protagonistas, mesmo que seja em peque-
| 92 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

nas coisas. Nesta altura do processo já se teve que construir coletivamente quais
são as principais propostas, como é a melhor organização interna e para fora e de
onde há que conseguir os recursos de inversões, tempos de dedicação que se neces-
sitam para continuar.
Na última coluna o processo já não tem tempo definido porque está aberto a
todo o tipo de novas eventualidades e, para isso, deve ter como referência o seu
próprio cronograma. Saber fazer nestes momentos já é mais complexo, porque há
que «monitorizar» situações às vezes não previstas e, ainda, que se tenha em conta
que para uma organização democrática e participativa não basta a boa vontade
dos grupos operativos. Há que ser capazes de ecodirigir com metodologias que
tenham em conta o eco do imprevisto e saibam atender aos «transbordos» que se
produzam. Por isso, falamos de «(eco)dirigir» para estar à altura de algumas «rever-
sões» que possam transbordar muitas partes daquilo que se tenha equacionado,
ou que simplesmente levam mais além as mesmas abordagens que se pretendem,
mas a maior ritmo (ou talvez que se paralisam). A questão é como articular os dis-
tintos projetos equacionados desde a «ideia-força» e fazê-lo mediante cronogramas
que vão pondo os tempos e as responsabilidades para a sua execução. Isto inclui
campanhas de difusão e uma «eco-autoformação» (ou seja, não tanto aulas forma-
tivas, mas antes a formação que cada grupo ou pessoa adquire pelas suas relações
com o ecossistema onde opera, fazendo-o com certa consciência). Para isso há o
acompanhamento, a avaliação e a «monitorização» dos cronogramas que se tenham
previsto, que facilitem os cruzamentos sinérgicos entre si. Os transbordos sociais
que podem provocar as «reversões» obrigam-nos também a rearticular as estraté-
gias previstas e, para isso, necessitamos justamente da «monitorização» e da «eco-
-auto-formação», já referida neste texto.

5. Notas finais
Os processos comunitários e sociais têm sempre as suas próprias lógicas que
nos surpreendem e, por isso, consideramos que é mais inteligente estar prepara-
dos para tal, em vez de confiar que temos tudo previsto. O rigor metodológico que
pretendemos com o quadro de saberes e tempos referidos não é para cumprir tal
e qual, mas sim para ver quanto se modifica e que haja um referente para poder
debater retificações. A criatividade não é tratar de inventar do nada, o qual aliás
seria impossível, mas sim para ser capaz de responder a novas situações que ine-
vitavelmente vão aparecendo, tanto por dispositivos nossos de «reversão», como
por causas menos previsíveis. Isto é precisamente o que torna muito interessante
para as ciências sociais o que é comunitário, pelo que tem de condensação das
relações complexas da sociedade, podendo operar nelas de forma participada com
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 93 |

mais facilidade do que noutros âmbitos. A partir do que podemos conseguir em


experiências locais também podemos atrever-nos a equacioná-las com maior cre-
dibilidade a escalas maiores. Tão pouco temos certezas de que este seja o melhor
caminho, ou de que não haja outros, mas pelo percorrido não parece tão mau e
até resulta criativo.

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Capítulo IV

Direito à habitação
e à cidade justa:
Críticas e contribuições
à Nova Geração
de Políticas de Habitação
em Portugal*
Fernando Matos Rodrigues**
Elena Tarsi***

* Este texto é resultado do trabalho e das reflexões conjuntas de ambos os autores, embora as rubricas
1 e 4 tenham sido mais elaboradas por Elena Tarsi e as rubricas 2 e 3 mais por Fernando Matos Rodrigues.
Elena Tarsi agradece o financiamento da Fundação da Ciência e Tecnologia do Governo Português no
âmbito da norma transitória, referência DL57/2016/CP1341/CT0016.
** Antropólogo, Investigador no CICS.Nova_Universidade do Minho, Diretor do Laboratório de Habita-
ção Básica (LAHB); email: mat.rodrigues@sapo.pt
*** Investigadora do Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra; email: elenatarsi@ces.uc.pt
1. Introdução
O direito à habitação representa neste momento histórico um dos direitos menos
garantidos e mais em risco. O sistema financeiro que encontra nas cidades o seu
terreno de acumulação e especulação, os cortes nacionais às políticas do Estado
de bem-estar, os fenómenos de gentrificação e turistificação aos quais são sujeitas
as cidades estão pondo em crise o acesso a uma casa digna não somente por parte
da população vulnerável, mas também das classes médias. A área metropolitana
de Porto é um exemplo evidente destas dinâmicas. As reflexões propostas neste
texto começam por proceder a um avanço teórico que vai da defesa do direito à
habitação ao direito à cidade e a sua releitura através da justiça espacial. Dentro
deste quadro teórico movem-se as críticas à Nova Geração de Políticas de Habita-
ção do governo português e as propostas concretas, defendidas e implementadas
pelo Laboratório de Habitação Básica (LAHB), conectando a qualidade do projeto
arquitetónico com a participação dos habitantes e a importância do processo, com
a defesa do direito ao lugar e a qualidade do espaço urbano.

2. O direito à cidade e à justiça espacial


O direito à habitação constitui uma parte substancial dos direitos sociais defen-
didos e garantidos pelos Estados nacionais europeus. A contingência histórica
em que nasceram muitas das Constituições destes países assistia a processos de
urbanização maciça, caracterizados por condições de habitação amiúde espon-
tâneas e precárias. Nos primeiros decénios depois do segundo conflito mundial,
o papel do Estado tem sido substancial, tanto na criação de um sistema de habi-
tação social para a população social e economicamente mais vulnerável, como na
promoção de um mercado privado da habitação e do arrendamento urbano. Em
Portugal, onde a Constituição da República Portuguesa garante através do artigo
65.º o direito à habitação, este processo de intervenção do Estado aconteceu com
bastante atraso.
O programa de habitação social maciça, o Programa Especial de Realojamento
(PER)11 foi lançado somente em 1993 com objetivo de resolver as carências habi-
tacionais nas periferias das duas metrópoles de Lisboa e do Porto e garantir uma

11. O Programa Especial de Realojamento (PER), promulgado pelo Decreto-Lei 163/93 que definiu o maior
programa público de habitação em Portugal, tinha como objetivo erradicar as barracas das áreas metro-
politanas de Lisboa e do Porto e proceder ao realojamento em habitações municipais. Este programa
implicou a construção de aproximadamente 45 mil novos alojamentos em contextos de forte segregação
e atomização socio-espacial.
| 100 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

casa digna para as populações vulneráveis que viviam em barracas. Como eviden-
ciado por muitos estudos do final do século passado até aos mais recentes (Guerra,
1994; Cachado e Baía, 2012; Cachado, 2013; Raposo e Jorge, 2013; Lages e Braga,
2016; Allegra et al., 2017), o PER contribuiu para um processo de polarização da
população de baixo rendimento nas áreas mais afastadas dos serviços urbanos e
com menos valor. Sem ter aprendido das experiências dos outros países europeus,
o PER concentrou as vulnerabilidades sociais em prédios sem qualidade e sem ser-
viços e espaços públicos, cortou laços familiares e económicos sem prestar aten-
ção aos aspetos ligados ao processo de realojamento.
Porém, antes do PER, a partir de 1987 e até 2011, a maior política de habitação
foi de facto gerida pelo governo através do apoio aos juros para compra da habi-
tação própria: o Estado investiu cerca de 9 mil milhões de euros (73,3% do total
de recursos para política de habitação) em 25 anos com objetivo de dinamizar o
sistema financeiro.
Com a mudança do capitalismo como sistema de produção para uma econo-
mia neoliberal da «financiarização dos mercados globais»,12 assistimos a uma trans-
formação substancial, seja do mercado da habitação, seja do papel do Estado como
regulador do mercado.13 A crise económica e a pressão dos processos de gentrifi-
cação, financiarização e turistificação sobre as duas metrópoles portuguesas tor-
naram o acesso à habitação um dos maiores problemas e desafios para as políticas
do governo.
Este ensaio visa contribuir para o debate sobre o direito à habitação através do
caso português e de una leitura crítica da Nova Geração de Políticas de Habitação,
recentemente aprovada pelo Governo depois de muitas discussões e de uma grande
participação dos partidos políticos e da sociedade civil. O texto concentra-se na
metrópole do Porto, apresentando uma sintética análise das principais dinâmicas
que estão a impactar o seu tecido sócio-económico e espacial e as consequências
sobre o acesso à habitação. Como contribuição a esta nova estação de reflexão e
de elaboração de instrumentos para garantir o acesso à habitação e a uma cidade
justa, sugerimos algumas trajetórias possíveis a partir da experiência do Laborató-
rio de Habitação Básica na cidade do Porto.
As reflexões apresentadas inserem-se dentro de um debate maior relativo ao
direito à cidade. As leituras críticas das políticas de habitação inspiradas na arqui-

12. Cf. Brown (2016). O autor refere que a governança neoliberal fez a privatização dos Bens Públicos,
acentuou a exclusão e a discriminação das mulheres e das minorias, subordinou o Estado aos interesses
dos mercados, reduziu a participação dos cidadãos na vida pública, rasgou o contrato social do trabalho,
aumentando de forma exponencial a precariedade e a injustiça social, transformou as cidades em negó-
cio rentável para os Fundos Imobiliários.
13. Cf. ideias já expostas por Fernando Matos Rodrigues e Marco Kamiya (2018) «Uma Política de Cidade
para Todos». In Semanário O Sol de 15 de Setembro, pp. 36-37.
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 101 |

tetura modernista enfatizaram a necessidade da extensão do simples direito à habi-


tação ao direito à cidade, conceito definido por Lefebvre (1968) nos anos 1960 e
reatualizado nos anos 1990 pelos críticos do sistema neoliberal e seus efeitos nas
áreas urbanas (Harvey, 2008; Silva, 2012; Smith, 2012; Aalbers e Gibb, 2014; Rodri-
gues e Silva, 2015). O direito à cidade identifica mais um slogan do que a garantia
individual do acesso a um bem, como no caso da habitação. O direito à cidade é
então mais a garantia de uma liberdade e é essencialmente coletivo mais que indi-
vidual: trata-se da liberdade de imaginar e de transformar a cidade. Este slogan foi
e continua sendo inspirador de muitas lutas para uma cidade mais democrática,
onde os cidadãos/ãs possam contribuir nas definições das politicas urbanas e nos
projetos de transformação física e social.
Ainda mais radical é o conceito de justiça espacial, introduzido pela primeira
vez por Pirie (1983), mais recentemente adotado por vários autores (Harvey, 1996
e 2008; Fainstein, 2009; Soja, 2009; Marcuse, 2009; Marcuse et al., 2009) que reco-
nheceram sua importância e potencial não só para a construção teórica e análise
empírica, mas também para ações políticas e sociais. Em linha com o conceito de
justiça ambiental, a justiça espacial ganha sua força reivindicativa neste especí-
fico momento histórico que tornou as cidades o lugar da acumulação e da espe-
culação com efeito de elitizar o acesso à cidade (Harvey, 1996: 430 e ss; Jameson,
2000: 170-173). Neste sentido, podemos afirmar que a nova luta de classes se
encontra inscrita no espaço com todas as suas contradições. Uma grande parte da
população vive sem direito à cidade, isto é, ocupa as áreas desurbanizadas e os
espaços mais desvalorizados em termos de infraestrutura pública (Gomez, 1998:
47-51).
Edward Soja (2010) sublinha a importância de se adotar uma específica pers-
petiva espacial na construção da justiça social, porque cada geografia é expressão
de justiça e injustiça. Segundo este autor, na análise dos processos urbanos, a
perspetiva espacial tem sido pouco explorada, se comparada com a perspetiva his-
tórica e considerando a natureza tanto espacial como temporal da sociedade. Por
sua vez, as reflexões de Fainstein (2010) são particularmente interessantes porque
saem da esfera teórica e entram nos méritos da disciplina do spatial planning (pla-
neamento espacial). Com efeito, esta autora salienta que não basta que os proce-
dimentos de elaboração de políticas e planos sejam democráticos e participativos
para que o sejam os seus resultados. Por isso, ela aponta para considerar e incluir
também, entre os parâmetros de eficácia das intervenções urbanas, o grau de jus-
tiça espacial que estas produzem. À mesma conclusão chega Sennet (2018), ques-
tionando a insuficiência da adoção das metodologias participativas como garantia
de justiça no uso e na transformação do espaço urbano. Se o conceito de justiça é
relativo à sociedade que o produz, o conceito de justiça espacial tem o potencial
de mostrar a distância entre a visão defendida pelas Constituições dos Estados
| 102 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

nacionais (até mesmo pela União Europeia) e a realidade de controlo e proveito do


capital privado (amiúde supranacional) sobre as cidades.14

3. A Metrópole do Porto em transição


A Área Metropolitana do Porto é uma região relativamente jovem no contexto
nacional e europeu. Constitui um espaço com um único centro, o concelho do
Porto, rodeado por um conjunto de concelhos e cidades emergentes do ponto de
vista, quer económico-social, quer demográfico. A cidade central e os concelhos
da primeira coroa (Matosinhos, Vila Nova de Gaia, Maia, Gondomar e Valongo)
formam um contínuo urbano. Existe uma segunda coroa que é composta pelos
concelhos mais periféricos, como o caso de Espinho, Arouca, Vila do Conde e Póvoa
de Varzim. Podemos falar de uma metropolitização não apenas das zonas perifé-
ricas, mas de territórios cada vez mais afastados do Porto-cidade. Os territórios
periféricos ao Porto dependem dele na saúde, na educação, na cultura e no traba-
lho. A modernização das vias de transporte individual levou a um aumento con-
siderável de movimentos pendulares dependentes de uma economia carbonizada.
Com o aparecimento do metro e das linhas metropolitanas, o centro do Porto e
alguns dos centros periféricos ganharam mais mobilidade, mais copresença e maior
dinâmica social, económica e cultural. Contudo, estamos ainda numa fase embrio-
nária e muito ainda falta por fazer para dotar esta área metropolitana de uma rede
de transportes com a densidade que a região necessita.
Em 2011 residiam no Grande Porto cerca de 1.300.000 indivíduos, com deslo-
cações pendulares para a cidade do Porto (mas também para outras cidades emer-

14. Com a crise económica de 2008, que se iniciou com a bolha imobiliária e o subprime nos Estados
Unidos da América, alguns autores, na esteira de Lefebvre (1968), tais como Carlos (1992), Harvey (1996,
2008), Soja (2009, 2010) ganham outra visibilidade e dimensão com o ressurgimento do direito à cidade
como forma crítica perante a espacialização do capitalismo financeiro. Regressamos à urgência de conju-
gar análise teórica com ação política, o que permitiu ver a cidade como uma possibilidade de criação cole-
tiva para a realização da vida comum. Agora é possível intuir os conflitos urbanos no contexto da nova
luta de classes. Claro que a mercantilização da vida urbana conduziu a uma maior segregação espacial,
expulsando os moradores com menor rendimento familiar para a periferia, contribuindo desta forma para
uma maior consciência de luta e de resistência pelo direito à cidade. Já não estamos perante o anunciar
do direito à cidade de Lefebvre com o retorno da classe operária à cidade mas da afirmação do direito à
cidade, enquanto estratégia de construção de uma sociedade não capitalista (Harvey, 2008; Soja, 2009 e
2010). A luta anti-capitalista não se esgota nas possibilidades da reivindicação do direito à cidade, mas na
afirmação de novas reivindicações que escapam à análise de classe, de género, de etnicidade e de cul-
tura que evidenciam a enorme e complexa diversidade de formas de experimentar a cidade e de alcan-
çar a justiça espacial. Soja (2010) reivindica assim a luta por uma justiça espacial que transcende o con-
teúdo de classe do marxismo e se afirma nas possibilidades culturais, simbólicas e sociais que surgem nos
interstícios da pós-metrópole. O direito à cidade para este autor deve ser estruturado com base em três
elementos que passamos a identificar: (i) a construção social do espaço; (ii) a cidade entendida como pós-
-metrópole; e (iii) as lutas pela justiça espacial e a democracia regional (Soja, 2010).
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 103 |

gentes como Maia, Matosinhos, Vila Nova de Gaia e outras) que, de acordo com os
Censos de 2011, contavam diariamente cerca de 114.000 pessoas com o objetivo de
trabalhar e cerca de 40.000 pessoas para frequentar o ensino (secundário, profis-
sional, politécnico e universitário). A Área Metropolitana do Porto em 2001 con-
centrava cerca de 12,2% do total da população em Portugal, resultando uma den-
sidade populacional 14 vezes superior à nacional e quase dupla em relação à Área
Metropolitana de Lisboa. A Área Metropolitana do Porto apresentava em 2001 um
parque habitacional envelhecido, muito concentrado nos concelhos do Porto e de
Vila Nova de Gaia, caracterizados por elevadas densidades, quer de edifícios, quer
de alojamentos. Segundo o mesmo Censo, cerca de 540.000 alojamentos resultavam
vagos, 46,1% dos quais concentrados nos concelhos do Porto e de Vila Nova de Gaia.
O Porto desde os finais do século XVIII até à atualidade passou por profundas
e complexas transformações com consequências na morfologia e na imagem urbana
da cidade. A população na Área Metropolitana do Porto tem acompanhado as
dinâmicas de crescimento da população portuguesa nestes últimos 50 anos, com
a exceção da cidade do Porto que desde 1981 tem visto a sua população a diminuir
e a envelhecer.
O Porto sofreu uma forte redução da população jovem, acompanhada pelo
aumento da população idosa. As freguesias que fazem parte do chamado Centro
Histórico do Porto apresentam valores demográficos muito preocupantes, com índi-
ces de envelhecimento e de dependência que já ultrapassam os 170%. O Porto-
-cidade apresentava no Censo de 2011 uma população residente de 237.591 indiví-
duos, o que se traduz num decréscimo de 25.540 indivíduos em relação ao Censo
anterior. Os decréscimos mais significativos da população ocorreram nas fregue-
sias do Centro Histórico (São Nicolau, Vitória, Sé e Miragaia). Nos últimos anos,
esta realidade acentuou-se, com uma degradação induzida do edificado histórico
que levou à criação da Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) com competências
na área da reabilitação e renovação urbana no casco velho da cidade do Porto.15
Em relação à habitação e à oferta de arrendamento na cidade do Porto assis-
tiu-se a uma mudança de paradigma de arrendamento devido à situação criada
pela crise financeira de 2008-2013: a desregulação do Novo Regime de Arrenda-
mento Urbano com a chamada «Lei das rendas», que desprotegeu os inquilinos e
liberalizou a política de arrendamento urbano, por um lado e, por outro, o cresci-
mento da atividade turística e do Alojamento Local (AL) que esvaziou a oferta de
habitações para o arrendamento urbano, enfim, a pressão mobiliária por agentes
financeiros, tal como referiu e desenvolveu Jameson (2000:182-184).

15. Cf. Fernando Matos Rodrigues (1999) «A Cidade dos Excluídos». In Revista CUBO, Porto, Edição Escola
Superior Artística do Porto, Ano I, n.º 1: pp. 4-5. A Revista contém um portfólio fotográfico da autoria de
José M. Teles que faz a cartografia da pobreza e da exclusão na cidade do Porto, especificamente nos bair-
ros das Eirinhas, Lagarteiro, Cerco e Pego Negro, bem como nos barracos na freguesia de Campanhã.
| 104 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

No Porto os registos do Alojamento Local (AL)16 quase triplicaram entre 2017


e 2018, situação que veio agravar o acesso à habitação. Importa realçar que a maio-
ria dos AL se concentra no Centro Histórico do Porto17. Por exemplo, 71% dos AL
registados estão localizados na União de Freguesias de Cedofeita, Santo Ildefonso,
Sé, Miragaia, São Nicolau e Vitória. A freguesia de Bonfim já apresenta 13% de
AL, o que também se traduz em pressão sobre o custo do arrendamento e do
aumento explosivo do m2 de habitação para venda (Fernandes et al., 2018: 33).
Num pequeno estudo sobre a realidade do Airbnb na cidade do Porto (Fernandes
et al., 2018), os seus autores afirmam que «o turismo no Porto tem registado recorde
atrás de recorde, incluindo o novo máximo de um milhão de passageiros registado
no aeroporto em Junho de 2018» (Fernandes et al., 2018: 49); em relação à carga
turística (num concelho pequeno com cerca de 41,4 Km2, metade da área de Lisboa)
consideram estes autores que «o crescimento do número de utilizadores da cidade
traz ganhos económicos, sociais e físicos», não especificando a natureza desses
ganhos, o que seria importante para compreendermos a sua dinâmica na econo-
mia da cidade. Reconhecem também que a atividade turística «contém outros efei-
tos e riscos. Entre estes últimos estão os da gentrificação residencial – com alugue-
res que aumentam e expulsam residentes para a criação de mais uma unidade de
alojamento» (Fernandes et al., 2018: 23-24).
Por outro lado, a cidade do Porto, no que concerne o número de alojamentos
familiares clássicos para arrendamento ou venda, excede largamente as carências
da sua população. Inclusive a proporção de alojamentos familiares clássicos vagos
é relativamente superior no Porto (de 19,3%), comparativamente com a outra uni-
dade de referência (Grande Porto com 12,5%) segundo dados do INE para o ano
de 2011. Então o que explica esta distorção do mercado de arrendamento? Qual a
causa deste problema grave de acesso a uma habitação digna na cidade do Porto?

16. Cf. Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto que estabelece o regime jurídico da exploração dos
estabelecimentos de alojamento local. Cf. posteriormente o Decreto-Lei n.º 63/2015 de 23 de Abril que
procede à primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto. É com a Portaria n.º 517/2008,
de 25 de Junho que se veio a prever os três tipos de estabelecimento de alojamento local: apartamento,
moradia e estabelecimentos de hospedagem. Com esta Portaria procurou-se enquadrar uma série de rea-
lidades que ofereciam serviços de alojamento a turistas sem qualquer formalismo e à margem da lei; acau-
telando, ao mesmo tempo que alguns empreendimentos extintos pelo Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de
Março (nomeadamente, pensões, motéis, albergarias e estalagens) e que não reuniam condições para
serem empreendimentos turísticos, pudessem ainda assim continuar a prestar serviços de alojamento.
17. Cf. Relatório Final sobre o Alojamento Local no Concelho do Porto, Abril de 2019, coordenado por
Alberto Castro, Porto: Católica Porto Bussiness School/Centro de Estudos de Gestão e Economia Apli-
cada em parceria com a Câmara Municipal do Porto. Cf. também o documento Estratégia Local de Habi-
tação (ELH) com vista à apresentação de Candidatura ao 1.º Direito, coordenado por Paulo Conceição,
Isabel Breda Vasquez e Jorge Afonso, Porto: Instituto de Construção/Centro de Investigação do Territó-
rio, Transportes e Ambiente (CITTA) da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), com
a colaboração da Câmara Municipal do Porto/Domus Social (Empresa Municipal) e Porto Vivo, Sociedade
de Reabilitação Urbana (SRU), Porto, Novembro de 2019.
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 105 |

Estas questões podem explicar-se pelo elevado preço dos alojamentos, pelo acesso
ao crédito, pelas deficiências de funcionamento do mercado de arrendamento, pela
especulação imobiliária e pela expansão do Alojamento Local. Estas são algumas
das variáveis que mais contribuíram para o desequilíbrio entre a disponibilidade
de fogos vagos e a dimensão das carências existentes.18

Fotografias 1 e 2. Deslocalização dos moradores do Bairro do Nicolau e Destruição das Casas pelo
processo de «destelhar, entaipar e demolir» pela CMP, Fontainhas, 2013.
Fonte: Arquivo do LAHB.

O Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional


(IHRU, 2018) para o concelho do Porto identifica 2100 famílias em situação de grave
carência habitacional. Esta realidade tem uma expressão espacial diferenciada,
sendo mais intensas em Campanhã, na União de Freguesias de Cedofeita, Mira-
gaia, Santo Ildefonso, São Nicolau, Sé e Vitória; e também no Bonfim.19 Refere o
problema das «ilhas» de Campanhã, mas esquece milhares de «ilhas» que se encon-
tram noutras zonas da cidade do Porto. Refere que existem dificuldades de acesso
à habitação por parte de uma parcela significativa da população da cidade. No con-
texto da Área Metropolitana do Porto (AMP), o Porto é o município com maior
número de famílias a realojar em contexto de tipologia urbana consolidada e degra-
dada e construção predominantemente convencional.

18. Cf. Fernando Matos Rodrigues, Manuel Carlos Silva, António Jorge Fontes e Diana Silva (2018) «Para
uma Carta da Habitação do Porto». In Semanário O Sol, 4 de Julho de 2018, pág. 34.
19. Cf. Fernando Matos Rodrigues, Manuel Carlos Silva, António Cerejeira Fontes, «A Carta do Porto: as
ilhas e a pressão do turismo». In Semanário O Sol, 3 de Fevereiro de 2018, pág. 39. Este texto constitui-
ria uma das bases de reflexão para a discussão e a aprovação de uma Carta sobre as Ilhas do Porto numa
assembleia de várias Associações de moradores e inúmeros cidadãos/ãs na Freguesia do Centro Histórico
do Porto.
| 106 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

3.1. As propostas metodológicas do Laboratório de Habitação Básica


na Cidade do Porto

O Laboratório de Habitação Básica (LAHB) nasceu na cidade do Porto a partir


de 2013 da necessidade de experimentar e apoiar processos de reabilitação urbana
que considerassem como componente substancial o envolvimento das associações
e comissões de moradores presentes e com o objetivo de implementar soluções
que respondessem perante os problemas reais das pessoas e da cidade. As expe-
riências-piloto em programas de habitação básica participativa foram principal-
mente o projeto da «ilha» da Bela Vista, os Okupas do Riobom e o Bairro D. Leonor.
A experiência maturada no âmbito dos processos de investigação-ação-participa-
ção, coordenados pelo referido Laboratório em projetos de reabilitação urbana,
permite avaliar as vantagens e as desvantagens da aplicação de metodologias e téc-
nicas participativas, o que foi feito em várias publicações (cf. Rodrigues, 2014; Rodri-
gues et al., 2015; Rodrigues et al. 2016; Tarsi, 2018).

Fotografias 3, 4 e 5. Bairro de Okupas do Riobom, apresentação do projecto de arquitectura básica


participada para a reabilitação das casas.
Fonte: Arquivo do LAHB.

A problemática da habitação, não sendo um problema isolado da cidade ou das


famílias, deve ser enquadrada no contexto mais geral dos problemas da cidade e
das suas áreas metropolitanas, nomeadamente no âmbito das políticas de habita-
ção e da coesão social, tendo sempre como referência uma política de solo e de
planeamento integrado para a cidade. A planificação urbana deve ser definida
também em função de políticas integradoras de acesso à cidade e à habitação, regu-
lando as contradições sócio-espaciais, valorizando a transformação espacial e as
mobilidades residenciais, possibilitando que todos sem exceção possam ter direito
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 107 |

à cidade e, consequentemente, a uma habitação digna (de acordo com as aspira-


ções e as necessidades da vida contemporâneas), em torno da implementação de
um sistema mais participativo e menos burocrático.20
Na «ilha» da Bela Vista e no bairro operário do Riobom foram implementados
dois programas de arquitetura básica participada, por parte do Laboratório de Habi-
tação Básica/ Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.Nova_UMinho)/
Imago, Gabinete de Arquitetura Cerejeira Fontes, com a participação da Associa-
ção de Moradores da Bela Vista e da Comissão de Moradores do Riobom, de forma
a encontrar uma solução-colaborativa-participativa para a renovação das suas habi-
tações. O objetivo principal destas duas operações centrou-se nas questões da reno-
vação, da qualificação do espaço-ilha e do espaço-bairro, da inclusão social e da
participação, evitando, assim, as políticas municipais de realojamento e de segre-
gação socio-espacial, aliás na esteira de políticas nacionais de habitação nestas últi-
mas três décadas21.
As «ilhas» e os pequenos bairros operários, como o caso do Bairro Operário do
Riobom onde se integrou a comunidade cabo-verdiana (desde 1974 até à atuali-
dade), foram ao longo da sua existência vítimas de um olhar panóptico (Foucault,
1979) por parte daqueles que aplicavam a lei e zelavam pela higiene e salubridade
pública22. Foi a partir deste olhar institucional que se foram construindo classifica-
ções deterioradas das «ilhas» e dos bairros operários, numa sequência de «Inqué-
ritos às ilhas e bairros», tendo como base a sua identificação e classificação em
termos de higiene e de salubridade públicas23. Aliás, como se pode facilmente cons-
tatar, a sua classificação pode ser em função dos valores higienistas e da salubri-
dade, bem como em função da sua legalidade ou ilegalidade construtiva. Todos
estes lugares de habitar foram vítimas da agressão institucional, com ações de vigi-

20. Cf. Dossier-Imobiliário por Fernando Matos Rodrigues «A Cidade do Porto: reabilitação, turismo dife-
renciador e direito à cidade». In Semanário Vida Económica, 16 de Dezembro de 2016.
21. Cf. Fernando Matos Rodrigues (2015), «Nova Vida para as Ilhas do Porto». In O Tripeiro, 7.ª Série, Ano
XXXIV, n.º 3, Março de 2015, pp. 86-87.
22. Reproduzindo, nos tempos atuais, velhos pressupostos presentes em relatórios produzidos no pas-
sado mais longínquo: cf. Relatório do Inquérito sobre as «ilhas» das freguesias do Bonfim, Paranhos, Santo
Ildefonso e Campanhã,1928; bem como o Relatório do Inquérito às 36 «ilhas» da Rua de S. Victor, 1930.
23. O último Inquérito às «ilhas» da cidade do Porto data de 2015 e foi promovido pela vereação socia-
lista da Câmara Municipal do Porto e com a colaboração da Domus Social – Empresa Municipal de Habi-
tação. Este estudo foi encomendado a Isabel Breda Vazquez e a Paulo Conceição (2015) do Instituto da
Construção da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Aliás, a realização de inquéritos e sub-
sequentes relatórios às «ilhas» da cidade tem sido prática política corrente. Já a própria Câmara socialista
anterior durante o mandato do Presidente Fernando Gomes promoveu um outro inquérito levado a cabo
pela Vereadora do Pelouro de Habitação e Acção Social Maria José Azevedo (cf. Pimenta e Ferreira, 2001).
Em todos os relatórios e inquéritos se alimenta assim uma classificação negativa das formas de viver e de
habitar nas «ilhas». No último relatório do mandato socialista ressalta como primeira leitura que «nas ilhas
é aconselhável o desenvolvimento de um modelo de demolição e realojamento, em outros locais, acom-
panhado do encerramento do núcleo habitacional» (Breda e Conceição, 2015: 218).
| 108 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

lância, de intimidação, de inquirição, de demolição e destelhamento de casas por


parte das entidades municipais, para submeter estas minorias a um realojamento
forçado e indesejado24.

Fotografia 6 e 7. Bairro da Sé.


Fonte: Arquivo Municipal da Casa do Infante.

Nestes «inquéritos» as «ilhas» aparecem-nos classificadas como insalubres e


com tuberculose; ou ainda, as ilhas escondidas, «ilegais», silenciosas e «clandesti-
nas» que se construíam nos lotes traseiros das casas burguesas da cidade. Claro
que estes «inquéritos» contribuíram essencialmente para uma construção de «iden-
tidade deteriorada»25 das «ilhas» da cidade do Porto, que assentou em estigma e
excesso de zelo sanitário, contribuindo para o aparecimento de uma narrativa que
diabolizou as «ilhas» e as classes que aí construíam a sua morada de habitar26.
Hoje, as «ilhas» são espaços donde os seus habitantes não querem sair e nos
quais mantêm, em geral, uma relação de vizinhança assente em valores de frater-
nidade, de solidariedade e de boa vizinhança (Rodrigues & Silva, 2015).

24. Cf. Fernando Matos Rodrigues (2018), «O Porto já não é o que era». In O Semanário O Sol, de 17 de
Novembro de 2018, p. 38.
25. Cf. Goffman (1973), nomeadamente em relação ao conceito de identidade negativa ou deteriorada.
Sobre o conceito de panóptico, cf. Foucault (1979). Consideramos importante que estes dois autores
desenvolvem conceitos e teorias que nos permitem estudar e compreender respetivamente a dimensão
ora interacionista ora holística e de controlo do habitar nas «ilhas» da cidade do Porto. Mais, acima de
tudo, tais conceitos permitem-nos, para além dos nevoeiros morais e sociais, encontrar a explicação social
e económica para esta forma negativa de classificar as «ilhas».
26. Cf. Relatório sobre Higiene das Habitações. Ilhas e Bairros Insalubres, Porto, Câmara Municipal do
Porto, 1930. Neste relatório pode-se ler que «As “ilhas” encontram-se espalhadas por toda a parte do
Porto, não só na parte antiga, mas até nas próprias zonas de extensão. Não há pátio, terreno livre, por mais
exíguas que sejam as dimensões, onde elas não se edifiquem; nas próprias traseiras de prédios de certa
aparência. Vê-se, então, disfarçada na fachada uma porta abrindo para um comprido e escuro corredor
de comunicação».
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 109 |

3.2. As «ilhas» no Porto


As «ilhas» da cidade do Porto são uma espécie de tipologia versátil, básica ao
serviço de uma população recém-chegada à cidade, que procura na emergência da
industrialização uma possibilidade de emprego que lhes abra a porta para uma
desejada mobilidade ou pelo menos melhoria social que o lugar de origem rural
lhes negava por condição. Com o assalariamento da população rural, a concentra-
ção industrial nos centros urbanos, o consequente êxodo rural, as condições de
habitação dos operários/trabalhadores que afluem à cidade levam o Estado desde
os finais da monarquia constitucional até ao Estado Novo a uma necessidade de
definir novas políticas de intervenção estatal na habitação27. A população que habi-
tava nas «ilhas» pertencia, em grande parte, ao operariado assalariado que veio do
campo para as fábricas que se instalaram na cidade.

Fotografias 8 e 9. Ilha da Bela Vista.


Fonte: Arquivo do LAHB.

Este tipo de alojamento permitia viver próximo das fábricas onde trabalhavam
de manhã até ao fim da tarde: sem poder económico suficiente, as «ilhas» garan-
tiam essa possibilidade mínima de ter uma habitação para a família perto da fábrica,
possibilitando assim uma melhor gestão do rendimento familiar. O morador da

27. Por exemplo, a Câmara Municipal do Porto considera ser necessário intervir nos «milhares de casas
insalubres, denominadas «ilhas», que se pretendem substituir por moradias condignas da condição
humana». Pode destacar-se a publicação do Decreto-Lei n.º 40616, de 28 de Maio de 1956, onde se lê:
«Torna-se assim indispensável consagrar à resolução do problema específico das ilhas novo e decisivo
esforço, ajustado à envergadura da tarefa e ao propósito da sua execução em prazo limitado». As «ilhas»
aparecem definidas como sendo agrupamentos de duas filas de casas, térreas, insalubres, separadas por
um estreitíssimo arruamento, com uma única fachada, em regra com três ou quatro divisões, duas das quais
sem iluminação e ventilação diretas, sem sol, com instalações sanitárias exteriores. Esta descrição corres-
ponde ao pensamento higienista e de salubridade dos técnicos camarários, tirando a exceção do Eng.º
Jácome de Castro. A questão do saneamento da cidade começara a ser uma preocupação que envolvia
higienistas e sanitaristas da cidade, o que levou o município do Porto a encomendar um estudo para resol-
ver este tão grave problema a uma empresa inglesa a Casa Hughes & Lencaster em 16 de Agosto de 1897.
| 110 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

«ilha» estabelece uma relação muito próxima com o espaço-ilha no sentido em que
tem tendência para ocupar o território-ilha, de forma a exercer nele uma espécie
de direito de posse, de controlá-lo. Esta dominância territorial dá origem a reações
mais ou menos agressivas à invasão de um determinado espaço. Aliás, essa inva-
são será sentida de maneira tanto mais forte e insuportável quanto o território inva-
dido tem um carácter privado.
Na «ilha» da Bela Vista cada habitante tem a sua própria marca de diferencia-
ção e de ocupação do espaço-casa e do espaço-ilha, em relação com o vizinho do
lado ou da frente. Cada um tem um ritmo e um tempo de ação próprio e persona-
lizado, identificado pelo outro que vive a seu lado ou que habita na casa do outro
corredor. São territórios diferenciados, com ritmos e sentidos diferentes. Estamos
perante horários de ocupação e deslocação tão próprios e definidos que a «ilha»
parece ser comandada por uma máquina que marca o compasso e o ritmo social
do coletivo para o individual.

Fotografias 10 e 11. Ilha da Bela Vista.


Fonte: Arquivo do LAHB.

A maneira de sinalizar o espaço na «ilha» da Bela Vista obedece aos usos nor-
mais do espaço no seu quotidiano, desde as funções do estar e circular, dos usos
da convivência e da socialização, das relações entre familiares e vizinhos. Não exis-
tem registos ou marcações agressivas e marginais no espaço-ilha. Cada um tem
uma forma própria de marcar o seu espaço sem, contudo, o transformar num mar-
cador agressivo do seu «Eu» em afirmação perante um «Outro». Existe uma perso-
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 111 |

nalização do espaço interior da casa que se prolonga para o exterior no espaço


coletivo, espaço este mais de circulação do que de ocupação.
Há contudo, no topo dos corredores da «ilha» marcações fortes e identifica-
doras, na forma como se demarca o espaço e se prolonga o espaço-interior da
casa para o exterior da mesma e, consequentemente, como se ocupa o espaço-
-ilha. Assim, desde a utilização de tapetes que marcam uma fronteira entre as
duas linhas de fachada, a colocação de cadeiras entre as fachadas das casas, os
vasos, as bacias de água para os pombos, as malgas com leite para os gatos, as
cordas do estendal da roupa, a ocupação sistemática do espaço, a linguagem mais
ou menos agressiva para com os potenciais intrusos, o olhar agressivo e territo-
rial, etc.
A «ilha» é assim um espaço-vivido que se faz de experiências, de relações, de
afetos, de significações, de valores individuais e coletivos. A «ilha» é também um
espaço-arquitetónico que não se reduz às suas propriedades materiais e físicas,
mas que se afirma como uma linguagem mais ou menos interativa que nos dá a
conhecer que estamos perante um lugar de habitar.
No fundo, a «ilha» é um espaço essencialmente delimitado por espaços de
fronteira e muros que são elementos ligantes entre o mundo exterior e a própria
casa e a casa dos outros. Estabelece uma oposição-complemento entre um dentro
e um fora em função da própria «ilha» e da própria rua-cidade. Com uma porta
sempre fechada à rua. E um muro que separa a própria «ilha» das outras «ilhas».
Esta segmentação é simbólica no sentido em que a ilha comunica com a rua, com
as outras «ilhas», com o quarteirão e com a cidade na economia, na cultura, no
social, nos afetos e nas convivências alargadas. A ilha-cidade é também uma ilha-
-casa própria e de todos aqueles que habitam aí por essas traseiras que se fizeram
um dia em direito à habitação na cidade.
As «ilhas» foram sempre classificadas como uma espécie de periferia da cidade.
A cidade das «traseiras» e silenciosa em oposição à cidade pública e canónica. Con-
tudo, se casos existem onde as «ilhas» estão integradas no interior de pátios e nas
traseiras dos quarteirões, outras, pelo contrário, estão localizadas em zonas de
grande exposição perante os olhares públicos e são, nalguns casos, fachadas monu-
mentais da cidade.
Os sucessivos inquéritos municipais contribuíram para uma visão diabolizada
da «ilha», isto é, a «ilha» como uma espécie de cancro social e ambiental da cidade.
Esta construção provinha de um pensamento burguês que encontrava nas ideias
higienistas e sanitárias, muito divulgadas a partir dos finais do século XIX pelo
médico portuense Ricardo Jorge, uma fundamentação moral que permitia camu-
flar a exploração e a miséria a que estava condenada a classe operária portuense.
Segundo este higienista no Porto, a «ilha», enquanto género especial de habitações
coletivas, vulgarizou-se de tal forma que se multiplicou e prosperou numa espécie
| 112 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

de «criação caseira do proprietário indígena», «não melhorou por certo de constru-


ção nem d’aluguer, mas piorou na acumulação, porque as há que albergam deze-
nas de famílias» (Jorge, 1899: 152).
Na cidade do Porto, desde as décadas de 30 e 40 do século XX até à atualidade,
a política de habitação se centrou na deslocalização e na concentração dos mora-
dores/as das «ilhas» da cidade para os bairros novos instalados nas periferias da
cidade, em função de programas «ditos» de renovação e de melhoramentos. A reno-
vação e os melhoramentos servem de ponta de lança à transformação da cidade
do Porto, justificando deslocalizações e entaipamentos na cidade velha, dando
origem a uma Nova Cidade e a uma Nova Política de Habitação. Pelo Decreto-Lei
n.º 40616, de 28 de Maio de 1966, o Estado Novo, pelo Ministro das Obras Públi-
cas, Engenheiro Eduardo Arantes e Oliveira, faz aprovar o Plano de Melhoramen-
tos para a Cidade do Porto, a executar pela Câmara Municipal, o qual previa a cons-
trução no prazo de dez anos, a partir de 1 de Janeiro de 1957, de prédios urbanos
com a capacidade de alojamento de 6.000 fogos, de rendas módicas, destinados
exclusivamente a habitação das famílias provenientes das construções a demolir
ou a beneficiar (CMP, 1956).28 Nesta época todo o discurso sobre o problema da
habitação na Cidade do Porto ainda se centrava num ataque violentíssimo contra
as «ilhas» da cidade, cuja fundamentação assentava nas teses higienistas e sanitá-
rias que vinham de Ricardo Jorge (1858-1939) e que serviam os interesses de classe,
próprios de uma burguesia capitalista insensível aos direitos sociais, mais preocu-
pada pela implementação de uma retórica assistencialista de pendor católico.
Durante este período de experimentalismo e de consolidação de políticas e prá-
ticas em torno da habitação, houve certamente períodos em que o direito à habi-
tação na cidade do Porto foi garantido a partir de programas que se incorporaram

28. No mesmo Relatório pode ainda ler-se que o «problema habitacional é de todos os tempos e de todas
as latitudes, mas agrava-se tragicamente nas principais cidades pela atração que exercem sobre a popu-
lação rural e os habitantes dos pequenos centros, que acorrem a fixar-se nos maiores. Esse êxodo inten-
sificou-se com a industrialização e constitui talvez o mais grave aspeto desse aliás imprescindível instru-
mento do progresso humano. Na Cidade do Porto o fenómeno, ligado diretamente ao desenvolvimento
da indústria, revestiu carácter específico e apresentou-se sob a forma das horríveis “ilhas”… Apesar de ser
assim, e de tantas e tão autorizadas vozes se terem erguido contra a existência desses focos de insalubri-
dade, a questão, de suma importância na ordem moral, social e política, não se resolvia». Neste Relatório
do Plano apresenta-se uma tipificação das «ilhas» do Porto: agrupamentos de construção, constituídos
por casas térreas, sem as dimensões mínimas legais, em regra apenas três divisões, das quais apenas uma
com iluminação e ventilação diretas, com sanitários exteriores e comuns a vários moradores, situadas no
interior dos quarteirões e, em geral, agrupadas em série e com exíguo e comum acesso. Insalubres como
são, constituem verdadeiros focos de imundície e de doença e não permitem que os seus ocupantes
adquiram os hábitos que a civilização atual impõe para todas as classes. Este raciocínio escamoteia e ignora
as péssimas condições de trabalho e os salários de miséria que davam a estes agregados familiares a pos-
sibilidade de verem a suas vidas melhoradas e a partir daí terem acesso à dignidade que a vida moderna já
impunha. A crítica que se fazia às «ilhas» sobre as suas áreas mínimas não tem grande sentido, pois o pro-
grama para as novas moradias estabelecia como áreas de superfície útil uma variação que ia desde o
T1 com 30 m2 – 35,70 m2; o T2 com 36 m2 – 43,00 m2; o T3 com 46,50 m2 – 54,00 m2; T4 com 57,50 a 65 m2.
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 113 |

na malha apertada e densificada da cidade velha. Temos os exemplos da Colónia


do Comércio do Porto com 26 moradias em 1905, da Colónia de Antero de Quen-
tal com 28 moradias em 1917, do Bloco da Rua Duque de Saldanha com 115 mora-
dias em 1940, entre outros. Se no início das políticas de habitação do Estado Novo
tivemos como modelo a casa individual, em total oposição ao imóvel coletivo que
era condenado por razões ideológicas e estéticas pelo regime, a partir dos anos ‘50
e ‘60 do século passado temos o aparecimento de blocos como solução padrão para
a habitação social. Aliás, os técnicos da altura consideravam este modelo como o
que melhor se adaptava à modernização emergente do país, consequência da sua
industrialização e urbanização.

3.3. A reabilitação da «ilha» da Bela Vista


A renovação da «ilha» da Bela Vista centra-se num programa e num conceito
de habitação básica participada, capaz de se adaptar ao programa da sua pré-exis-
tência, de forma a valorizar as noções espaciais de densidade, os ritmos da com-
posição das suas colunas, os princípios da conceção do habitat e a composição
social. A compreensão da relação das células com o espaço exterior, com as outras
células, e com o seu próprio espaço interno, foram determinantes para compreen-
der a importância da morfologia dos tipos habitacionais, de forma a incorporar todo
este imenso conhecimento na definição do novo programa arquitetónico.29

Fotografias 12 e 13. Casas na Ilha da Bela Vista, depois da reabilitação. Com os novos moradores.
Fonte: Arquivo do LAHB.

Esta operação de renovação da «ilha» da Bela Vista teve como objetivo a valo-
rização da morfologia das pré-existências, a sua estrutura, a sua densidade e os
materiais construtivos. O programa de habitação básica participada desenvolveu

29. Cf. Fernando Matos Rodrigues (2015) «Novo paradigma nas políticas de habitação para a cidade
do Porto. A reabilitação da Ilha da Bela Vista». In O Tripeiro, 7.ª Série, Ano XXXIV, N.º 1, Janeiro de 2015,
pp. 8-9.
| 114 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

uma ampla discussão entre a equipa técnica do LAHB/IMAGO e os moradores/as,


de forma a identificar patologias e apresentar soluções. Foi um programa que per-
mitiu de forma amplamente participada com a comunidade de vizinhos e respe-
tiva Associação de Moradores encontrar as melhores soluções, de modo a resolver
as deficiências das casas dentro e fora de portas.
Neste processo de renovação, qualificação e de inclusão da «ilha» da Bela Vista,
participaram como promotores a Câmara Municipal do Porto, o Laboratório de
Habitação Básica (LAHB), o Gabinete de Arquitetura e Engenharia IMAGO, a Asso-
ciação de Moradores da Bela Vista e todos os moradores/as que diariamente entra-
vam portas adentro do LAHB para assistir, discutir, levantar dúvidas, discordar,
concordar, olhar e no seu silêncio interiorizar o novo habitar, o novo espaço-ilha,
processo este que, num segundo momento, pôde beneficiar da colaboração de
investigadores/as do CICS.Nova, pólo da Universidade do Minho. Este foi um pro-
cesso de intervenção-ação-participação, que envolveu todas as partes na discus-
são, problematização, conceção de programas e de soluções, de forma a encontrar
uma resposta arquitetónica que fosse sustentável, eficiente, inclusiva e fosse de
encontro às expectativas dos seus moradores/as.

Fotografias 14 e 15. Ilha da Bela Vista reabilitada.


Fonte: Arquivo do LAHB.

Neste programa a parte económica, não sendo determinante em exclusivo é,


contudo, estruturante, uma vez que estamos perante um programa de casas bási-
cas, de custos muito reduzidos, mas que se querem muito eficientes em conforto,
segurança e durabilidade. A poética arquitetónica não é consequência de estilos,
mas incorporada a partir das soluções estruturais do desenho e da morfologia das
células, de forma a resolver as velhas patologias construtivas das «ilhas» e a poten-
ciar um habitar digno em conforto ambiental e espacial. Integradas em zonas de
elevado valor económico, social e cultural, zonas infraestruturadas, equipadas e
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 115 |

de elevada mobilidade e de acessibilidades a transportes públicos, rede do metro


e rede complementar dos autocarros públicos e privados, as «ilhas» tornam-se
uma tipologia muito apreciada e requisitada por novos casais que querem voltar
à cidade.

4. As críticas salientes à Nova Política de Habitação


Com a entrada de Portugal na União Europeia (UE) e os eventos internacionais
hospedados em Lisboa (Capital Europeia da Cultura 1994, EXPO 1998) e no Porto
(2001), as duas cidades começaram a sofrer um forte processo de transformação
baseado sobre a ideia da «modernização», de alcançar os outros países europeus
no caminho para o «progresso». Uma série de projetos de renovação interessaram
os centros históricos das duas cidades, cujos edifícios e espaços públicos vertiam
em estado de abandono e degradação. Mas os eventos que têm contribuído para
uma maior transformação das duas metrópoles do país, a começar da década de
2010, têm sido, por um lado, as consequências da crise económica e das medidas
de austeridade impostas a Portugal pela UE, nomeadamente a Troika, e, por outro,
a entrada de Lisboa e do Porto na economia internacional do turismo de massa.
Estas duas dinâmicas profundamente contrastantes sob o plano económico têm-se
manifestado sobre o tecido urbano e social de forma marcante. Por um lado, a crise
económica tem tido um impacto sobre as rendas de muitas famílias, as quais têm
causado um aumento exponencial de insolvências para o crédito para habitação,
o qual tinha sido nas décadas anteriores, como vimos, a forma mais ampla de
acesso a casa apoiado pela política pública de acesso ao crédito para habitação.
Por outro lado, a economia do turismo global tem oferecido novas oportunidade
de rentabilidade de imóveis do centro das cidades através das plataformas como
Airbnb, com duas consequências substanciais: (i) ter criado uma economia forte
baseada sobre os short rental (aluguer de curta duração), representando quase 10%
do PIB em 2017; (ii) ter contribuído para retirar do mercado de habitação local a
maioria dos imóveis, de facto mudando o tecido social e económico do centro his-
tórico (Allegretti et al., 2019). Estes processos, definidos como gentrificação e turis-
tificação, têm sido apoiados por intervenções públicas, mesmo que não direta-
mente, através, por exemplo, da não alteração substancial da contestada Lei das
Rendas que, com o objetivo de apoiar a requalificação de imóveis degradados das
áreas históricas das cidades, de facto teve como consequência o despejo e o des-
locamento da população vulnerável (especialmente idosos) que ali morava.
A leitura das consequências do turismo e das plataformas de home sharing
sobre os tecidos urbanos é um processo em curso a nível global e ainda são poucas
e pontuais as propostas realmente eficazes para conter ou regular o fenómeno,
| 116 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

especialmente num momento histórico em que o planeamento tem vindo a ser


considerado como um resíduo do Estado de bem-estar e um impedimento ao mer-
cado livre. Em Lisboa e no Porto, os impactos do turismo sobre o tecido social e
económico das áreas centrais históricas têm sido particularmente evidentes e mesmo
invasivos. Os preços mensais para a locação de imóveis têm subido acima da renda
da maioria da população, de facto excluindo a possibilidade de morar no centro
e tendo repercussões também no mercado imobiliário das periferias.
De acordo com o Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento
Habitacional (IHRU, 2018) temos na Área Metropolitana de Lisboa cerca de 13.828
e na Área Metropolitana de Porto 5.222 famílias para realojar, respetivamente. Neste
relatório, as tipologias urbanas que prevalecem de forma mais substantiva são os
acampamentos clandestinos, as áreas de risco, os bairros clandestinos (AUGI), os
bairros sociais, as barracas e as construções precárias, assim como os conjuntos
urbanos consolidados, mas em estado de degradação, do qual salientamos as «ilhas»
na Área Metropolitana de Porto.
A Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH), aprovada em Maio de 2018,
tem entre os seus objetivos resolver as graves carências habitacionais da popula-
ção mais vulnerável e, ao mesmo tempo, reforçar o acesso à habitação da popula-
ção afetada pelas recentes dinâmicas do mercado imobiliário e da crise. A NGPH
incorpora os princípios do Plano Estratégico de Habitação 2008/2012 (Guerra et al.,
2007) e do Sentido Estratégico, Objetivos e Instrumentos de atuação da NGPH
(República Portuguesa, 2017) aprovado em Outubro de 2017, na qual têm partici-
pado ativamente setores dos ambientes académicos e da sociedade civil: a resposta
é principalmente fundada na promoção da requalificação do património existente
e no fortalecimento de um mercado habitacional de arrendamento. O escasso papel
da locação em Portugal é historicamente o resultado tanto da falta da procura
quanto de uma oferta reduzida: a primeira é a substancial consequência dos sub-
sídios estatais para o acesso ao crédito para compra da habitação própria que per-
mitiu às famílias pagar uma taxa mensal parecida à que pagariam por uma loca-
ção; a segunda dependia da legislação que regulamentava os contratos de arren-
damento e de um sistema judicial que não protegia o risco assumido pelos proprie-
tários (Guerra et al., 2007). Com a crise económica, os pesos dos créditos contraí-
dos por muitos cidadãos/ãs portugueses/as se tornaram insustentáveis e as taxas
de insolvências registaram uma subida repentina.
A NGPH é estruturada segundo quatro objetivos principais a alcançar, os quais
são potenciados ou criados por novos instrumentos, que lhe permitam a sua imple-
mentação, como a seguir desenvolveremos. O importante trabalho realizado pelo
governo para a construção de uma nova política habitacional produziu, sem dúvida,
resultados interessantes: primeiramente por ter realizado um levantamento nacio-
nal sobre as necessidades de realojamento que faltava há muito tempo e, em segundo
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 117 |

lugar, por ter elaborado uma série de programas e ferramentas que abordam os
principais problemas de acesso à casa.

Fotografia 16. Ilha da Bela Vista, obras da 2.ª Fase de Reabilitação.


Fonte: Arquivo do Lahb.

Neste ensaio procuramos refletir criticamente sobre os três primeiros eixos 30:
1) «Dar resposta às famílias com graves carências habitacionais»; 2) Garantir o
acesso a habitação a quem não consegue aceder através do mercado privado; 3)
Criar as condições para que a reabilitação seja a principal forma de intervenção
mais a nível do construído que do desenvolvimento urbano.
Para alcançar o primeiro objetivo a NGPH cria o programa «Primeiro Direito:
Programa de Apoio ao Direito a Habitação», aprovado pelo governo em 2018 com
uma alocação de cerca de 1700 milhões de euros até 2024 (dos quais 700 milhões
a fundo perdido) para coordenar-se com a Estratégia Nacional para a Integração
das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), 2017-2023.
O Primeiro Direito prevê o financiamento dos municípios para a requalificação
de imóveis de sua pertença, aquisições e reabilitação de imóveis ou aluguer para
fim de habitação, aquisição de terras e construção de novas unidades em caso de

30. O quarto «Promover a inclusão social e territorial» não será tratado nesta sede.
| 118 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

insuficiência de habitações disponíveis. Um aspeto positivo é que as situações vul-


neráveis são descritas com cuidado no documento, sem nunca as associar a carac-
terísticas ou estilos de vida estigmatizantes: são chamados núcleos precários (artigo
11). Uma outra inovação interessante é, por exemplo, as pessoas que vivem em
situações informais poderem aceder a soluções habitacionais individualmente ou
na forma de uma Associação de Moradores ou de Cooperativas de habitação ou de
construção. Estes podem propor as soluções desejadas, o Município deve dar o seu
parecer e, se este for negativo, deve propor, sempre que possível, caminhos para
a solução proposta, a fim de torná-la aprovável: no caso em que as limitações digam
respeito ao marco legal, o município deve tomar as medidas necessárias para
alterá-lo.31 No caso de se optar pela reabilitação de áreas informais, esta deverá ser
acompanhada de um processo de legalização, enquanto no caso de se optar pela
construção de novas habitações, o Município poderá solicitar financiamento para
a compra de terrenos, mas garantir a demolição de anteriores. No caso específico
de habitantes que vivem em condições degradadas em áreas residenciais defini-
das com «identidade própria», como as «ilhas» (artigo 12), o programa afirma o
direito à sua permanência e à reconstrução dos edifícios. No caso de a propriedade
dessas áreas ser privada, o Município tem o dever de acompanhar a reabilitação
através da criação de um comité de gestão; se o proprietário se opuser, o comitê
de gestão poderá aplicar a detenção administrativa ou até a desapropriação para
uso público, de acordo com o Regime Jurídico de Reabilitação Urbana (RJRU)
(Decreto-Lei n.º 307/2009). Apesar dessas avaliações positivas do programa Pri-
meiro Direito, não é possível saber como a política será realmente aplicada pelas
administrações locais e, consequentemente, qual será sua eficácia para alcançar os
objetivos. De facto, se a estratégia se baseia no reconhecimento dos limites do PER,
ela deixa, porém, espaço para a reprodução de processos semelhantes, não na
forma, mas na substância. Os Municípios usaram o PER32 para colocar no mercado

31. A Estratégia Local de Habitação do Porto é aprovada em Assembleia Municipal do Porto no dia 11
de Setembro de 2019. A sua aprovação permitirá a candidatura ao Programa de Apoio ao acesso à Habi-
tação – Primeiro Direito. Este documento estratégico tem como objetivo eliminar as situações de grave
carência habitacional no Porto. Refere o documento que as «ilhas» são uma grande aposta mas sem deixar
de fora a habitação social. Lembramos que nesta altura as «ilhas» estavam a ser gentrificadas pela turisti-
ficação onde o m2 já atingia valores superiores a 1500 euros em freguesias como Bonfim e Campanhã.
Esta situação impedia qualquer política municipal de reabilitação das «ilhas» para arrendamento acessível
e controlado. Aliás, não é por acaso que o vereador da habitação da Câmara do Porto, em entrevista ao
jornal Público (16 de dezembro de 2019), reconhece que «o objectivo de recuperar 720 das 995 ilhas da
cidade afinal não é exequível. Era preciso que o Primeiro Direito atraísse os privados». Esta afirmação
enquadra-se claramente na agenda neoliberal de forte desregulação do mercado habitacional na cidade
do Porto pela actual governança local liderada por Rui Moreira.
32. O Programa Especial de Realojamento (PER) criado em 1993 tinha como objetivo central a erradica-
ção das «barracas» e dos «barracos» nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto. Os municípios e os
organismos da administração central do Estado assinaram um acordo de adesão com o compromisso de
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 119 |

áreas inteiras para alegados novos desenvolvimentos; de facto, não parece absurdo
pensar que os processos de requalificação estarão novamente ligados ao desloca-
mento de moradores/as. Vale a pena lembrar, mais uma vez, que o deslocamento
de famílias e comunidades de proximidade é sempre uma perda em termos de vín-
culos sociais e económicos, memória e resiliência.
Para garantir o acesso a casa a quem não consegue aceder através do mer-
cado privado (segundo objetivo) o governo define uma estratégia baseada no
envolvimento do mercado privado e no estímulo à oferta de imóveis para alu-
guer através de incentivos de diferente natureza. O «Programa de Renda Acessí-
vel» é o instrumento central e tem como objetivo promover uma oferta alargada
de casas a preços reduzidos, compatíveis com os rendimentos das famílias. O
objetivo nesse sentido refere-se a taxas de arrendamento até ao máximo de 80%
do valor do mercado do aluguer para um período mínimo de três anos. A taxa
de esforço para as famílias não deveria ser inferior a 10% nem superior 35% do
próprio salário. Os proprietários que aderirem ao programa beneficiam de uma
isenção total das taxas sobre estas rendas (IRS e IRC) e de 50% das taxas de
imposto sobre imóveis ou propriedades (IMI). O Conselho de Ministros aprovou
também um pacote de seguros para garantir os proprietários/as em caso de even-
tuais insolvências e para conseguir que inquilinos/as continuem a pagar, em caso
de problemas de renda. Entre os instrumentos para estimular a oferta de habita-
ção no mercado são introduzidos a eliminação das taxas de transferência de uso
para residência e um regime fiscal regulatório para as sociedades de investimento.
No que diz respeito ao parque público de habitações em aluguer está previsto o
«Fundo Nacional de Reabilitação do Construído» para a reabilitação de bens públi-
cos não utilizados. A crítica mais importante que movemos à estratégia proposta
para alcançar o segundo objetivo é que os ganhos conseguidos através do aloja-
mento breve para fim turístico são muito maiores que as isenções propostas: a
distância entre o salário mínimo português e as rendas que permite a economia
turística não são minimamente comparáveis. Até que não seja definido claramente
um limite para a locação turística, será difícil estimular o arrendamento para as
famílias portuguesas.

efectuar um recenseamento de todos os núcleos de alojamento precário nos respetivos territórios e dos
agregados familiares neles residentes. Assumiam ainda o compromisso de realojar essas famílias mas num
quadro de demolição dos alojamentos em que residiam. Foi um pretexto para as Câmaras mais conser-
vadoras implementarem as políticas do «demolir, entaipar e deslocar» sem o mínimo respeito pelas famí-
lias que aí residiam, negando-lhes o direito ao lugar e ao habitar. Promoveram-se as demolições dos bair-
ros da Corujeira, S. João de Deus, Nicolau, Leal e muitas das «ilhas» municipais que foram totalmente arra-
sadas, promovendo-se a atomização, a dispersão e a guetização destas famílias pelos blocos periféricos
da cidade do Porto. A «ilha» da Bela Vista foi a única «ilha» municipal que resistiu a esta política de destrui-
ção e de deslocalização do centro da cidade para a periferia pelo empenho dos seus moradores/as na
luta contra a deslocalização no seio da sua Associação de Moradores.
| 120 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Finalmente, para alcançar o terceiro objetivo, ou seja, o de criar as condições


para que a reabilitação seja a principal forma de intervenção mais que a nível de
construção, em termos de desenvolvimento urbano, foi criado, antes de mais, o
«Projeto reabilitar como regra» para estimular o desenvolvimento do setor privado,
através da adequação do marco legal das obras de requalificação. Por outro lado,
o lema «Reabilitar para arrendar» constitui um programa de financiamento dire-
cionado às operações de reabilitação de unidades residenciais para ser incluídas
no mercado de aluguer. Dentre as ferramentas existentes, encontramos o “Instru-
mento Financeiro para Reabilitação e Revitalização Urbana (IFRRU, 2020)”, um
canal de financiamento para a reabilitação de edifícios com mais de 30 anos em
áreas estratégicas ou sociais, assim como outras duas ações de financiamento pre-
vistas pelo Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano (PEDU) e pelo Plano de
Ação de Reabilitação Urbana (PARU), dois planos elaborados pelos Municípios que
identificam as áreas prioritárias para a regeneração urbana. Para as áreas identifi-
cadas no PEDU como áreas desfavorecidas também está previsto o «Plano de Ação
Integrado para Comunidades Desfavorecidas» (PAICD), com o objetivo de finan-
ciar o desenvolvimento económico, físico e social dos distritos de habitação social
ou áreas degradadas, como bairros informais. É uma ferramenta interessante devido
à forte natureza integrada das intervenções de inclusão e tem sido utilizada por
muitos Municípios por ser parte integrante do PEDU. Importa ainda sinalizar que
o PAICD, na maioria dos casos, é aplicado a bairros resultantes de prédios públi-
cos e sem espaços e serviços comunitários. Estes instrumentos, de facto, já exis-
tiam e têm sido todavia formas para requalificar as áreas urbanas dos municípios,
de resto mais para dinamizar a economia financeira, do que para garantir o direito
a habitação.

5. Conclusão
A partir das reflexões elaboradas sobre os limites da nova política de habitação
e das experiências maturadas através do trabalho do Laboratório de Habitação
Básica, sugerimos algumas sintéticas contribuições para que as políticas a ser imple-
mentadas no país sejam realmente inclusivas e garantam não somente o direito a
habitação, mas também a justiça espacial.
Primeiro, apontamos para a necessidade de garantir o direito à habitação e ao
lugar das comunidades urbanas, como foi recentemente introduzido na Lei de Bases
para Habitação. Na Área Metropolitana de Porto as «ilhas» poderão significar a
adoção de soluções no âmbito do programa Primeiro Direito em função das situa-
ções concretas. Segundo, urge implementar a participação real dos cidadãos dentro
das políticas urbanas, através de construção de laboratórios permanentes (Rodri-
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 121 |

gues, 2016). Por fim, importa centrar a política de habitação basicamente a nível
dos órgãos de soberania e, em particular, do governo e retirar a principal respon-
sabilidade dessa política aos municípios que, embora possam colaborar, na prá-
tica, tal como foi comprovado na implementação do PER e da sua «revitalização»
dos últimos anos (Tarsi, 2018), têm sido muitas vezes mais guiados por interes-
ses diferentes dos da garantia do direito à casa, do direito à cidade e do direito à
cidade justa.

Siglas
Airbnb = Vacation Rentals, Homes, Hotels, Experiences & More
AUGI = Área Urbana de Génese Ilegal
CITTA = Centro de Investigação do Território, Transportes e Ambiente (FEUP)
CMP = Câmara Municipal do Porto
FEUP = Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto
IFRRU = Instrumento Financeiro para Reabilitação e Revitalização Urbana
IHRU = Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana
INE = Instituto Nacional de Estatística
IRC = Imposto sobre Rendimento de Pessoas Coletivas
IRS = Imposto sobre Rendimento de Pessoas Singulares
ENIPSSA = Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo
LAHB = Laboratório de Habitação Básica
NGPH = Nova Geração de Políticas de Habitação
PAICD = Plano de Ação Integrado para Comunidades Desfavorecidas
PEDU = Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano
PER = Programa Especial de Realojamento
PIB = Produto Interno Bruto
RJRU = Regime Jurídico de Reabilitação Urbana

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Capítulo V

Alta de Lisboa:
Avanços e recuos de
um plano de urbanização

Gonçalo Antunes*
Nuno Pires Soares**
José Lúcio***

* Geógrafo, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA); email: goncalo.antunes@fcsh.unl.pt


NOVA FCSH, Portugal.
** Geógrafo, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA); email: nhpsoares@fcsh.unl.pt NOVA
FCSH, Portugal.
*** Geógrafo, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA); email: jm.lucio@fcsh.unl.pt NOVA
FCSH, Portugal.
1. Introdução
O presente trabalho pretende avaliar o desenvolvimento do Plano de Urbaniza-
ção do Alto do Lumiar (PUAL) numa ótica teórica e histórico-empírica, através da
discussão das intervenções socio-urbanas operacionalizadas no espaço atualmente
conhecido como «Alta de Lisboa». A relevância do trabalho prende-se com a ava-
liação de como uma intervenção urbana baseada nos pressupostos de mistura social
induzida é capaz de minorar, de forma efetiva, os problemas dos seus residentes,
através de processos de apropriação culturais e socio-espaciais. Os objetivos – e
estrutura do trabalho – passam pela abordagem dos seguintes pontos: (i) o período
pré-PUAL, o qual consistirá na caracterização dos bairros informais existentes até
meados da década de 1990; (ii) o período PUAL-2015, em que é feita uma avalia-
ção do desenvolvimento do PUAL entre 1998 e 2015 (data apontada inicialmente
para a finalização do plano) e uma análise dos resultados da recomposição socio-
-urbanística pressuposta; (iii) na atualidade, apontando as tendências mais recen-
tes no território da Alta de Lisboa e traçar qual poderá ser o futuro do PUAL.

2. O Alto do Lumiar como Musgueira


Na transição entre os séculos XIX e XX o «Alto do Lumiar» era dominado pela
paisagem rural, consubstanciada em diversas quintas, palácios e palacetes, que
eram utilizados de forma permanente ou sazonal para as elites descansarem da
azáfama da cidade de Lisboa. Tratava-se, na altura, de um espaço rural bucólico,
distante do centro da cidade e do tecido urbano consolidado. As ligações viárias
eram maioritariamente realizadas por velhos caminhos intersticiais de ligação à
Alameda das Linhas de Torres, Paço do Lumiar, rua do Lumiar, núcleo primitivo
da Ameixoeira, Campo das Amoreiras e Campo Grande.
Entre 1960 e 1990, este território passou de área de matriz rural para dar lugar
a bairros de habitações precárias. Em meados da década de 1960 a Câmara Muni-
cipal de Lisboa (CML) promoveu a construção dos «bairros provisórios» da Mus-
gueira Sul e da Musgueira Norte,33 destinados à receção de famílias desalojadas
coercivamente do Vale de Alcântara, na sequência da construção da ponte sobre o
Tejo em 1966 (Pires, 1967; Pereira, 2011; Lôbo, 2013; Antunes, 2015).34

33. Os terrenos em que foram construídos estes bairros foram adquiridos pela CML anos antes ao abrigo
do regime dos centenários.
34. As famílias desalojadas coercivamente foram colocadas em bairros espalhados por toda a cidade,
entre os quais Musgueira Sul, Musgueira Norte, Bairro do Relógio e da Célula F de Olivais Sul. Embora em
menor número, a população foi, ainda, dispersa por habitações disponíveis nos bairros desmontáveis da
Boavista e da Quinta da Calçada (Antunes, 2018).
| 128 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

A instalação desta população e a consolidação dos bairros provisórios muni-


cipais transformaram a paisagem do Alto do Lumiar, que passou de rural, agrária
e bucólica para urbana, operária e precária. Sobre o realojamento da população
que residia no Vale de Alcântara e que foi transferida para a «Musgueira»35, Mar-
garida Souza Lôbo refere:

«a consciência sobre a má imagem da cidade que os extensos bairros de lata poderiam


dar parece ter despertado em 1966, por ocasião da inauguração da ponte sobre o Tejo.
(…) à medida que se aproximava o dia 6 de Agosto, dia da cerimónia da inauguração
para a qual tinham sido convidadas altas individualidades nacionais e estrangeiras,
levantou-se uma polémica entre o Ministério das Obras Públicas, promotor da obra, e
a Câmara Municipal de Lisboa (CML), que seria a proprietária do terreno, sobre a res-
ponsabilidade de deslocalização das barracas que cobriam a encosta nascente do Vale
de Alcântara, bem visível dos acessos à nova ponte. Nenhuma das duas entidades assu-
miu a resolução da situação, nem se alcançou uma solução concertada, e apenas nas
vésperas do dia da cerimónia foi a população residente neste bairro de lata avisada da
sua transferência para outro local, sendo, simultaneamente, proibidos “ajuntamentos”
de mais de duas pessoas nas vielas do bairro. As famílias foram transportadas, com
os materiais das barracas desmontadas e os seus pertences, em veículos de carga cama-
rários para um terreno na Musgueira, a poente do aeroporto da Portela, terra chã, mas
local bastante ruidoso» (Lôbo, 2013:80-81).

Para Nuno Teotónio Pereira, este realojamento coercivo constituiu:

«uma gigantesca operação de cosmética destinada a limpar a paisagem, tanto mais que
a ponte (que depois se veio a chamar Salazar) seria uma obra emblemática de enalte-
cimento do regime (…); as populações desalojadas foram transferidas na sua maioria
para a quinta municipal da Musgueira, entre o Lumiar e o aeroporto, o que revoltou
ainda mais os moradores, atirados para o extremo oposto da cidade, em local ermo e
sem transportes. Para o efeito, as famílias eram prevenidas pela polícia com dois ou
três dias de antecedência de que teriam de proceder elas próprias à demolição das suas
barracas – o que faziam, pois de outro modo estas seriam destruídas pelo pessoal cama-
rário, não podendo assim ser aproveitados os destroços indispensáveis, para a sua
reconstrução na Musgueira» (Pereira, 2011:82).

Paralelamente, Lôbo indica:

«as consequências [do realojamento] para a organização da vida quotidiana desta popu-
lação e, consequentemente, para o seu processo de inserção na cidade foram brutais.

35. O nome dos bairros promovidos pela CML, Musgueira Sul e Musgueira Norte, derivava da antiga Quinta
existente no local, de nome Musgueira. Note-se, também, que, à data, ainda não existia o topónimo Alto
do Lumiar.
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 129 |

A escola primária da zona da Musgueira ficou superlotada, passando a funcionar em


quatro turnos, de duas horas e meia; os estivadores que trabalhavam em Alcântara pas-
saram a dormir no cais, indo apenas passar o fim-de-semana com a família à Musgueira.
Face à acusação de que a CML estava a promover novos bairros de lata, ou de que
estava a eternizá-los, a operação Musgueira teve alguns desenvolvimentos. (…) [Depois
de construções de cariz essencialmente precário na Musgueira Norte, na Musgueira
Sul] foram construídas longas casamatas, com um telhado de duas águas, as quais eram
divididas ao meio, no sentido longitudinal, e, transversalmente, com comprimento
variável de acordo com a dimensão da família. Desta proposta, gizada pela Polícia
Municipal, resultaram habitações sumaríssimas, “back to back”, com uma só fachada,
que eram entregues às famílias como um espaço único, sem quaisquer paredes divisó-
rias, com uma fuga de chaminé num canto e uma retrete no outro. Da posterior sub-
divisão deste espaço interno resultavam, como regra, alguns compartimentos sem janela,
nomeadamente a retrete. Estes alojamentos não tinham água canalizada, mas tinham
uma retrete dentro da habitação, situação que se tornou insustentável por ocasião de
sucessivos surtos epidémicos de cólera, o que obrigou à instalação de uma sumária
rede de abastecimento de água nas habitações. Desenraizada e marginalizada, a popu-
lação originária do Casal Ventoso, após a sua transferência para a Musgueira, tornou
este bairro num foco de delinquência juvenil» (Lôbo, 2013:81).

Posto isto, constata-se que, durante a década de 1960, os bairros da Musgueira


Sul e Musgueira Norte foram impulsionados pela CML, numa situação precá-
ria considerada, à data, como temporária e provisória (Pires, 1967; Pereira, 2011;
Lôbo, 2013).
No que se refere às habitações municipais construídas para o realojamento da
população que residia no Vale da Alcântara, os alojamentos originais consubstan-
ciavam-se em espaços unifamiliares, de alvenaria e de piso térreo. Com o decorrer
dos anos, surgiram novas habitações na Musgueira Norte, muitas delas construí-
das em madeira (ou outros materiais módicos) no modelo de arquitetura chã. Mais
tarde, entre 1971 e 1975, a CML construiu, na Musgueira Norte, 21 blocos de apar-
tamentos com 223 fogos. Foi também neste período que surgiram propostas muni-
cipais para a construção da rede de saneamento básico, balneários e lavadouros
públicos nos bairros da Musgueira Sul e Musgueira Norte. Em 1981, o município
procedeu a nova ampliação do bairro da Musgueira Norte, com a construção de
172 apartamentos em blocos sociais e 72 casas pré-fabricadas (GTH, 1981; Soczka
et al., 1985). Ao longo da década de 1970 deram-se intervenções realizadas pela
CML que expandiram o bairro da Musgueira Norte, destacando-se a adição de casas
térreas de alvenaria, mas também de edifícios coletivos em banda (mais tarde,
demolidos) e de edifícios a poente, na Rua Pedro de Queirós Pereira (Figura 1).
Para além dos bairros da Musgueira Sul e da Musgueira Norte, viria ainda a ser
construído o bairro da Cruz Vermelha, inaugurado contemporaneamente em 1966
| 130 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

e promovido numa ótica eminentemente assistencialista (Figura 1). O modelo ado-


tado para o desenvolvimento deste bairro passava pela cedência do terreno pela
CML36 e construção e distribuição das habitações pela Cruz Vermelha Portugue-
sa.37 Na primeira fase, o bairro da Cruz Vermelha era constituído por pequenas
casas térreas de alvenaria e, mais tarde, essas habitações foram substituídas por
edifícios coletivos, aumentando, assim, a capacidade, a volumetria e o perímetro
do bairro.38
Ao contrário do que sucedeu na restante freguesia do Lumiar, o Alto do Lumiar
(ou Musgueira, como era então denominado este território periférico) foi deixado
na sombra da cidade, oculto nas costas de vários elementos antrópicos tais como
a Segunda Circular, o Aeroporto de Lisboa, a Quinta da Conchas e os edifícios de
grande crescimento vertical construídos ao longo da Alameda das Linhas de Torres
nas décadas de 1970 e 1980. Por essa razão, este território permaneceu como local
atrativo para a localização de novos bairros informais, como foram os casos dos
bairros das Calvanas, Sete Céus, Quinta Grande, Quinta do Louro e Quinta da Pai-
lepa (Figura 1).
Os bairros das Calvanas (demolido) e Sete Céus podem ser considerados como
bairros clandestinos (atualmente designados de Áreas Urbanas de Génese Ilegal
[AUGI]), ou seja, pequenos núcleos de moradias construídas sem as devidas licen-
ças camarárias, mas nos quais as habitações unifamiliares apresentavam con-
dições habitacionais razoáveis. No caso do bairro das Calvanas, em particular,
deverá assinalar-se que a sua consolidação se deu após a Revolução de 1974, e
que o seu desenvolvimento esteve arrolado com a instalação de retornados das
antigas colónias portuguesas. Os retornados ocupavam os terrenos municipais de
forma informal e construíam as habitações no modelo de autoconstrução, de forma
relativamente semelhante ao que sucedeu no outro lado da Segunda Circular no
bairro Pote d’Água.39 Por sua vez, o bairro dos Sete Céus, também AUGI, surgiu
entre 1980 e 1985, numa construção que foi, em certa medida, apoiada pela CML40
(GTH, 1986).

36. Anos antes, o terreno foi explorado como areeiro (na chamada Quinta da Pedreira) e, posteriormente,
utilizado como vazadouro.
37. Para o efeito, a Cruz Vermelha Portuguesa lançou o apelo nacional «dez tostões para uma casa», no
Diário de Notícias, para angariar fundos para a construção das primeiras habitações.
38. O bairro da Cruz Vermelha, constituído por edifícios coletivos construídos nas décadas seguintes, sub-
siste até hoje.
39. Segundo Manuel Meirelles, retornado e presidente da Associação de Moradores do Bairro das Cal-
vanas (AMBC), aproximadamente 80% dos residentes eram provenientes dos Países Africanos de Língua
Oficial Portuguesa (PALOP).
40. Nomeadamente pelo Núcleo Técnico de Apoio e Ligação, conhecido como NUTAL, e integrado no
Gabinete Técnico de Habitação (GTH). Situação relativamente idêntica ocorreu no Alto do Chapeleiro
(Santa Clara) e na Travessa Sargento Abílio (Benfica) (GTH, 1986).
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 131 |

Figura 1. Bairros informais e de habitações precárias até meados da década de 1990. Elaboração
própria.

Os restantes bairros, nomeadamente a Quinta Grande, Quinta do Louro e Quinta


da Pailepa (todos demolidos), tiveram uma génese espontânea, derivada da neces-
sidade urgente de construir alojamentos abarracados. No caso da Quinta Grande,
| 132 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

as habitações eram maioritariamente de alvenaria e outros materiais leves e pobres.


O bairro, de planta irregular (ou orgânica), era constituído por ruelas estreitas,
becos, azinhagas e várias construções em vertentes. Como nos restantes bairros
informais, o saneamento básico era, ao início, praticamente inexistente. Na década
de 1970, a Comissão de Moradores instalou uma rede de saneamento básico, uti-
lizando os residentes o balneário público construído em 1976 (Gebalis, 2000, 2001).
Já os bairros Quinta do Louro e Quinta da Pailepa eram compostos por diversas
etnias e culturas que se misturavam. As famílias residentes eram, na sua maioria,
desfavorecidas economicamente, de origem predominantemente africana e cigana
(Possidónio, 2006). Deve ainda salientar-se a proximidade geográfica com outros
bairros precários fora do âmbito deste estudo, como é o caso do bairro das Gali-
nheiras, na antiga freguesia da Ameixoeira (atual Santa Clara, Lisboa), e de diver-
sos bairros no concelho de Loures.

3. Apontamentos sobre a vivência nos bairros precários do


Alto do Lumiar
Os bairros informais do Alto do Lumiar divergiam na sua génese, podendo
encontrar-se bairros que tiveram a promoção do poder local (e.g. bairros da Mus-
gueira Sul e da Musgueira Norte), de entidades assistencialistas (e.g. bairro da Cruz
Vermelha), áreas urbanas de génese ilegal de autopromoção (e.g. bairro das Cal-
vanas, bairro dos Sete Céus) e bairros de estrutura mais orgânica e espontânea (e.g.
Quinta da Grande, Quinta da Pailepa e Quinta do Louro).
As famílias residentes nestes bairros eram compostas, sobretudo, por desalo-
jados coercivamente, desalojados por catástrofes naturais e recém-chegados à capi-
tal por via do êxodo rural e êxodo dos PALOP. Apesar de origens geográficas, cul-
turais, étnicas e sociais díspares, todos convergiam num ponto: ausência de rendi-
mentos suficientes para comprar ou arrendar uma habitação no centro da cidade,
pelo que restava a opção de construir um alojamento abarracado às portas de Lisboa.
Paralelamente, a divergente génese conceptual, organizacional e temporal dos bair-
ros acabou por criar um fenómeno excecional de fusão étnico-socio-cultural (melting
pot), residindo, neste espaço, agregados familiares oriundos de áreas rurais (i.e.
êxodo rural), mas também dos PALOP (e.g. imigrantes e retornados) e elementos
de etnia cigana (Antunes, 2015; AAVV, 2000, 2001; Gebalis, 2000, 2001; GTH, 1981).
Tal como ocorreu em várias grandes cidades europeias, os bairros informais
que constituíam o Alto do Lumiar consolidaram-se num curto espaço de tempo
(neste caso, entre as décadas de 1960 e 1980), de forma fragmentada e não pla-
neada. Partilhavam o facto de os recém-chegados procurarem um local periférico,
baldio e marginal à cidade, onde pudessem viver e construir uma habitação mesmo
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 133 |

que abarracada (CML, 1967). Note-se, também, que, até meados da década de
1990, o topónimo Alto do Lumiar não existia, sendo que toda esta área da cidade
era normalmente identificada depreciativamente como «Musgueira». De acordo
com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a população deste território poderia
ser caracterizada da seguinte forma:

«[o território da actual Alta de Lisboa conheceu] a partir do final da II Guerra Mundial
uma inflexão dramática do modo de vida rural para uma estrutura populacional de ope-
rários não qualificados, vendedores ambulantes, prestando as mulheres serviços de
limpeza na zona de Alvalade. Esta alteração é acompanhada por um aumento extraor-
dinário do número de habitantes, que passa de 3 302 no Censo de 1960 para 7 538 no
Censo de 1970, agrupando, já nessa década, migrantes vindos de outras zonas de Lisboa
(em virtude da Ponte 25 de Abril), das Beiras e das ex-colónias africanas» (SGAL, 2005:28).

Nas décadas de 1980 e 1990, o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC)


realizou um conjunto de estudos sociodemográficos sobre a população residente
nos bairros informais do Alto do Lumiar (Soczka et al., 1988; Cunha, 1988; Maia
et al., 1993), mas, sobretudo, sobre os bairros da Musgueira Sul e Musgueira Norte
(Soczka et al., 1985, 1987, 1988, 1991), devendo-se ainda aditar os estudos que
incidiram nas populações jovens destes bairros e respetivos percursos escolares
(Lima et al., 1990; Soczka et al., 1990; Castro et al., 1990; Castro, 1991).
Com base nos questionários realizados aos agregados familiares, o trabalho
concretizado pelo LNEC chegou aos resultados sumarizados no Quadro I.

Quadro I. Caracterização da população residente nos bairros Musgueira Sul


e Musgueira Norte. Adaptado de Soczka et al. (1985)

• Distrito de origem dos residentes: Lisboa (55%), Viseu (12%), Vila Real (6%), Castelo Branco (5%)
e outros (22%);
• O bairro da Musgueira Sul, em particular, tinha valores muito idênticos para os originários do distri-
to de Lisboa e de Viseu;
• Peso significativo da população jovem e da população em idade ativa;
• Índice de fecundidade superior à média da cidade de Lisboa;
• Elevado número de agregados familiares com quatro ou mais filhos;
• Agregados familiares compostos maioritariamente por quatro elementos (22,3%), seguindo-se três
(20,8%), dois (18,2%), cinco (12,9%), um (9,9%), sete ou mais (8,6%) e seis (7,3%);
• Número médio de ocupantes por fogo de 3,9 habitantes;
• Existência de desemprego (pelo menos um indivíduo desempregado) em 16,3% das famílias;
• A atividade profissional das mulheres era de 50%;
• Elevada precariedade socioprofissional;
• Entrada precoce no mercado de trabalho;
• Elevado abandono escolar;
• Níveis de instrução: analfabetos (27,9%), ensino primário (55,6%), ensino preparatório (10,7%),
ensino secundário (5,5%) e outros (0,3%).
| 134 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

No que se refere aos alojamentos, o trabalho do LNEC chegou aos resultados


indicados no Quadro II.
Quadro II. Caracterização dos alojamentos nos bairros Musgueira Sul
e Musgueira Norte. Adaptado de Soczka et al. (1985)

• Categorias habitacionais: habitação municipal térrea de alvenaria e tijolo (35,1%); habitação muni-
cipal em apartamento (13,6%); habitação municipal pré-fabricada (3,2%); barracas (48,1%);
• Cerca de 20% dos alojamentos não tinham eletricidade;
 levado número de habitações sem ligação à rede de saneamento básico, sem retrete e sem
•E
instalações de banho ou duche;
• O bairro da Musgueira Norte registava piores condições habitacionais quando comparado com o
da Musgueira Sul.
• Esta situação advinha do desenvolvimento do bairro Musgueira Sul em estreita dependência com
a CML (habitações municipais provisórias), sendo que o bairro Musgueira Norte apresentava um
maior número de construções de particulares.

No que respeita ao habitat, a equipa responsável pela análise indicava:

«pode-se observar que em termos de equipamentos básicos a Musgueira apresenta-se


como sendo um espaço altamente carenciado, onde mais de metade dos alojamentos
não faculta aos seus residentes as instalações necessárias à satisfação das necessida-
des básicas» (Soczka et al., 1985:46).

Verificava-se, assim, uma situação cumulativa e complexa, na qual estavam


presentes fenómenos de pobreza, exclusão, segregação e estigmatização em tudo
semelhantes ao que ocorria noutros pontos da cidade de Lisboa, como os bairros
do Relógio ou do Casal Ventoso – associados indiretamente à delinquência, toxi-
codependência e prostituição (Chaves, 2013). As circunstâncias económicas funes-
tas conduziam a dificuldades de acesso a bens materiais e imateriais. As referidas
necessidades materiais, além de fundamentais para a sobrevivência e o bem-estar
individual e familiar, funcionavam como indicadores de condição social (neste
caso, indicadores de pobreza), reveladores da posição social do agregado/indiví-
duo na sociedade. Os bairros informais do Alto do Lumiar caracterizavam-se por
ser espaços segregados, estando as comunidades relativamente isoladas e margi-
nalizadas em relação à cidade de Lisboa. Construídos numa perspetiva provisó-
ria, clandestina e instalados na terra de ninguém, os bairros apresentavam baixos
níveis de bem-estar, estabelecendo interações com vários domínios de pobreza,
exclusão e estigmatização. Poderá considerar-se que os bairros precários funcio-
navam como buracos de pobreza, locais ideais para a assimilação da cultura de
pobreza,41 pequena criminalidade e marginalidade (Lôbo, 2013; Antunes, 2015).

41. O conceito de cultura de pobreza foi originalmente criado por Lewis (1970) e é, conforme Silva (2013),
o sublinhar dos modos de ser, sentir e agir dos próprios pobres, que reproduzem e exprimem represen-
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 135 |

Sobre esta situação o documentário «Vizinhos», de 2008 (Tiago Figueiredo)42,


apresenta depoimentos de antigos moradores que realçam o panorama de aban-
dono a que os bairros estavam expostos, indicando que as habitações estavam ins-
taladas num mar de lama, envoltas por baldios, bicharada e muito lixo, sendo
necessário percorrer carreiros de lama até alcançar o tecido urbano consolidado
que se iniciava no Lumiar. Trabalhos realizados pelo LNEC, referenciados ante-
riormente, faziam também alusão a este cenário de abandono pelo poder político
(Soczka et al., 1985, 1987, 1989, 1991).
Note-se que este fenómeno de pobreza urbana – visível, desde logo, pela exis-
tência de bairros de habitações precárias – não era, obviamente, exclusivo do Alto
do Lumiar, sendo possível encontrar um cenário idêntico noutros pontos da peri-
feria de Lisboa e também do Porto. No início da década de 1990, cerca de 150 000
indivíduos residiam em núcleos de habitações precárias («bairros de barracas») nas
duas áreas metropolitanas do país, o que levou a que, em 1993, fosse criado um
programa específico para resolver esse problema urbano: o Programa Especial de
Realojamento (Guerra, 1994; Freitas, 1994; Cachado, 2013; Antunes, 2018, 2019;
Catela, 2019).

3.1. O Plano de Urbanização do Alto do Lumiar (PUAL)


Os primeiros projetos para realojar os residentes dos bairros provisórios e infor-
mais do Alto do Lumiar datam de meados da década de 1980. Neste período a CML
organizou um concurso público para a criação de uma parceria público-privada
(PPP), tendo saído como vencedor o consórcio de empresas que se viria a desig-
nar como Sociedade Gestora da Alta de Lisboa SA (SGAL). Conforme estabelecido
no Contrato Inominado celebrado entre a CML e o consórcio vencedor, a PPP tinha
como objetivo responsabilizar o consórcio das obras necessárias, desde os realo-
jamentos aos espaços públicos, infra-estruturas e equipamentos coletivos. A receita
da operação para o consórcio privado adviria da construção e da comercialização
das novas habitações colocadas no mercado imobiliário.
Contudo, com o passar dos anos, o Plano de Urbanização não saiu do papel e
a conjuntura holística foi-se gradualmente transformando, destacando-se, por exem-
plo, a conceção e aprovação do Plano Diretor Municipal de Lisboa (PDM – 1994)
e a publicação do Programa Especial de Realojamento (PER – 1993). Por um lado,
o PDM estabeleceu de forma vinculativa determinados usos para o Alto do Lumiar

tações e crenças, experiências e hábitos culturais enraizados perante as situações de carência e susceptí-
veis de criações laços de solidariedade, autodefesa e resistência perante mundividências estranhas e/ou
grupos forâneos opressivos (Silva, 2013).
42. Disponível em: https://vimeo.com/25717591.
| 136 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

que o Plano de Urbanização (em desenvolvimento desde o final dos anos 80) deve-
ria respeitar; por outro, o PER admitiu novos esquemas de financiamento para as
operações de realojamento nas duas áreas metropolitanas do país, pelo que, ao
contrário do que estava inicialmente previsto no Contrato Inominado, os realoja-
mentos do Alto do Lumiar passaram para a esfera da CML (DCH, 2000, 2001).

Figura 2. Área de intervenção do Plano de Urbanização do Alto do Lumiar.

A conceção do plano de urbanização foi relativamente conturbada e a versão


final do Plano de Urbanização do Alto do Lumiar (PUAL) apenas foi ratificada em
Resolução do Conselho de Ministros em 23 de Setembro de 1998 e, por fim, publicada
em Diário da República a 27 de Outubro do mesmo ano (Figuras 2 e 3).43 Saliente-
-se, a este propósito, que o Plano de Urbanização foi ratificado em Conselho de
Ministros porque não estava totalmente de acordo com o PDM em vigor, de 1994.

43. Resolução do Conselho de Ministros n.º 126/98, Diário da República, I Série-B, n.º 248, pp. 5556-5569.
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 137 |

A publicação do PUAL em 1998 permitiu o início da recomposição social e


urbana do Alto do Lumiar. Nos anos seguintes, os cerca de 10 000 residentes em
habitações precárias foram realojados pela CML em habitações municipais (ao
abrigo do PER) e foram construídos novos equipamentos coletivos, assim como
espaços públicos. Paralelamente, a SGAL iniciou a construção de edifícios destina-
dos ao mercado imobiliário para uma população nova no Alto do Lumiar estimada
em cerca de 50 000 residentes. Destaca-se, também, que o realojamento previsto
no PUAL se desenvolveu numa perspetiva de mistura social induzida, ou seja, con-
jeturava-se a mistura de populações socioeconomicamente diferenciadas no mesmo
espaço geográfico.

Figura 3. Esquema do Plano de Urbanização do Alto do Lumiar (SGAL, 2005:49).

Para fomentar o modelo de negócio associado ao PUAL foi criada a marca regis-
tada «Alta de Lisboa» – nome comercial pelo qual atualmente é conhecida esta área
da cidade. Tal acontece num contexto de marketing territorial agressivo que dili-
genciou a alteração do topónimo popular «Musgueira» para «Alto do Lumiar» (topó-
nimo oficial), tendo, por fim, surgido a denominação «Alta de Lisboa», promovida
pelo consórcio privado e comercialmente mais apelativa.
O PUAL tinha como data de finalização inicialmente prevista o ano de 2015.
Contudo, nesse mesmo ano, a intervenção ainda se encontrava em cerca de 50%
(Figura 4). Em 2012, o PUAL foi revisto e, atualmente, estima-se que o projeto
estará finalizado em 2030/2035.
| 138 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Figura 4. Alto do Lumiar na actualidade (Antunes, 2015:215).


CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 139 |

3.2. PUAL – o desenvolvimento de um Plano


O desenvolvimento do PUAL, iniciado em 1998, decorreu com diversas dificul-
dades, pelo que cedo se percebeu que não seria possível terminar o projeto em
2015, tal como estava originalmente previsto. No Quadro III são apresentados alguns
pontos sumários sobre a evolução do PUAL entre 1998 e 2015.

Quadro III. Evolução do PUAL. CML (2009, 2013), Antunes (2015) Antunes et al.
(2012, 2013, 2014, 2015)

• Fogos: em 2008, dos 18 700 fogos previstos, estavam concretizados 7 751, correspondendo a 41%
do total. Destes, 3 060 fogos (39,5%) foram construídos ao abrigo do PER (para realojamento) e
4 691 (60,5%) para o mercado imobiliário;
• Analisando de outra forma estes dados, a construção ao abrigo do PER estava terminada, e a cons-
trução para o mercado imobiliário correspondia a 30% do previsto;
• População: a estimativa populacional no final do projeto era de 55 000 habitantes a residir na área
intrínseca ao PUAL, divididos na proporção de 23% a residir no edificado municipal e 77% morado-
res por via do mercado imobiliário;
• Em 2008, a população na área do PUAL era de 23 701 habitantes (41% do previsto). Destes, 10 098
respeitavam ao PER (45%) e 13 603 ao mercado imobiliário (55%);
• Equipamentos: o PUAL previa a concretização de 163 equipamentos coletivos de várias valências,
sendo a taxa de execução de 22% em 2008;
• Em 2014, a programação de equipamentos foi revista;
• Transportes: as principais ligações rodoviárias fazem-se pelo Eixo Norte-Sul e pela Segunda Circu-
lar, existindo ainda duas ligações de menor relevância à Alameda das Linhas de Torres e outras duas,
mais a norte, de ligação ao núcleo urbano da Ameixoeira e a Loures;
• Devido aos atrasos no desenvolvimento do PUAL, a rede viária apenas foi parcialmente construída,
provocando descontinuidades urbanas prejudiciais à mobilidade;
• O denominado Eixo Central (avenida principal) apenas foi concluído parcialmente;
• A Av. Santos e Castro, que acompanha o limite Este do plano, foi inaugurada em 2013;
• Os transportes públicos são assegurados pela Carris;
• Espaços verdes: destaca-se a existência da Quinta das Conchas (preexistente) e do Parque Oeste
(construído no âmbito do PUAL);
• Prevê-se a construção do Parque Sul;
• Comércio: estão previstos cerca de 500 000m² de áreas comerciais e de serviços;
• Atualmente, o comércio que se pode encontrar na área da Alta de Lisboa é sobretudo de pequena
escala, de proximidade, como pequenos cafés, restaurantes, mercearias, talhos e outras lojas de
necessidades e bens imediatos;
• Parte substancial dos espaços comerciais de rés-do-chão encontra-se por ocupar;
• O novo comércio localiza-se relativamente clusterizado em dois arruamentos (Rua Helena Vaz da
Silva e Av. Sérgio Vieira de Mello), ambos com predomínio de edifícios colocados no mercado
imobiliário;
• Recentemente foram inauguradas superfícies comerciais de média dimensão;
• Embora estejam previstos no PUAL, ainda não existem, no local, edifícios de escritórios ou centros
comerciais;
• Agentes locais: deve destacar-se as diversas entidades comunitárias e associativistas que congregam
indivíduos em grupos recreativos, de assistência, de valorização ambiental, de moradores, etc.
| 140 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Como se constata através do Quadro III, a evolução do PUAL encontra-se atual-


mente atrasada em relação ao previsto em 1998, pelo que ainda não é possível ana-
lisar as repercussões finais do plano na plenitude.
Olhando em concreto para o processo de realojamento, a relocalização da popu-
lação foi finalizada em 2007 e levou ao desaparecimento dos traços dos antigos
bairros (Pinho, 2011).44 Como referido, o realojamento da Alta de Lisboa foi con-
cretizado apostando no modelo de miscigenação. Dito de outro modo, verifica-se
a existência de edifícios de habitação pública e, paralelamente, habitações coloca-
das no mercado imobiliário dirigidas a classes de maior poder económico. De certa
forma, «do ponto de vista retórico e do desenho urbano, a Alta de Lisboa potencia
a mistura social induzida, promovendo o fortalecimento do tecido social através
do convívio quotidiano num bairro que é comum a todos» (Antunes, 2012:120).
Nos anos subsequentes ao processo de realojamento foram realizados dois estu-
dos à população realojada: em 2004, pela Fundação Aga Khan; e, em 2009, pelo
K’Cidade – Programa de Desenvolvimento Comunitário Urbano. As conclusões dos
trabalhos são sumarizadas no Quadro IV.

Quadro IV. Caracterização da população realojada

Fundação Aga Khan (2004) | Adaptado de Fonseca et al. (2007)

• Elevado peso da população jovem (por comparação com os valores do concelho de Lisboa);
• Cerca de 8% de população estrangeira, em particular dos PALOP;
• Taxa de desemprego de 22,8% (o nível nacional era de 7,1%);
• População vulnerável à exclusão social;
• Rendimento mensal reduzido na generalidade e próximo da linha de pobreza nacional;
• Maior risco de pobreza para a população imigrante.

K’Cidade – Programa de Desenvolvimento Comunitário Urbano (2009) | Adaptado de «Inquérito


em painel aos agregados familiares (2004-2009)», K’Cidade e Cedru.

• Redução da população ativa;


• Aumento da população idosa;
• Índice de dependência de jovens elevado;
• Aumento das situações de mães solteiras;
• Redução do número de indivíduos nascidos em país estrangeiro;
• Dimensão média das famílias de 3,4 indivíduos;
• Aumento do desemprego;
• Aumento dos trabalhadores não qualificados;
• Redução do analfabetismo (embora de 8,1%, sobretudo feminino);
• Apenas 2,9% da população com ensino superior;
• Cerca de 30% dos indivíduos entre 18 e 24 anos não concluiu o terceiro ciclo;
• Maior dependência de apoios sociais para indivíduos com qualificação escolar reduzida;
• Aumento de crimes violentos e de outros tipos de crime.

44. Embora o realojamento tenha terminado em 2007, estava praticamente concluído em 2001, com a
excepção do bairro das Calvanas, que foi alvo de um realojamento díspar, que envolveu a construção de
moradias unifamiliares geminadas e não de apartamentos como ocorreu nos restantes bairros.
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 141 |

Ainda no que respeita ao processo de realojamento, parece ser possível afirmar


que ocorreram alterações significativas, ligadas, sobretudo, às condições higiénico-
-sanitárias das habitações. Contudo, como é reconhecido, num processo de realo-
jamento não basta melhorar e resolver a dimensão habitacional. Pelo contrário, é
indispensável assegurar uma visão multidimensional, material e imaterial que
acompanhe as populações na fase pós-realojamento (Rémy & Voyé, 2004; Pelletier
& Delfante, 2000; Silva, 2012).
O processo de realojamento no Alto do Lumiar apostou na integração interclas-
sista em concentração geográfica. Do ponto de vista geográfico e material, é pos-
sível assinalar que esse objetivo foi concretizado – embora com exceções, como
referido adiante –, ou seja, coexistem no mesmo quarteirão ou na mesma rua,
edifícios municipais (habitação pública) construídos ao abrigo do PER e edifícios
alocados ao mercado imobiliário, propriedade de particulares (Figura 5). Contudo,
do ponto de vista imaterial, é possível indicar que a mistura social induzida pres-
suposta ainda se encontra por afirmar, sobretudo no que respeita às relações comu-
nicacionais entre os grupos de residentes (cf. Antunes, 2015).

Figura 5. Exemplo de coexistência de edifícios municipais (ao fundo), equipamentos coletivos de


apoio à população (ao centro) e edifícios construídos para o mercado imobiliário (esquerda e direita).
Foto própria.

Na Alta de Lisboa a comunicação entre os dois grupos (isto é, habitantes do


PER e do edificado de venda-livre) tem permanecido incipiente, o que é especial-
mente visível nos diferentes usos do espaço público, do comércio local, dos ser-
viços de apoio à população, etc. (Antunes, 2015). Em certa medida, existe um
espaço parcialmente requalificado do ponto de vista urbanístico, não tendo atual-
mente a proximidade geográfica correlação com a proximidade social. No futuro
afigura-se como desafio operacionalizar a retórica integracionista no terreno, colo-
cando-a verdadeiramente em prática. A integração social apenas é exequível par-
tindo de interações pessoais que, em grande medida, têm permanecido bloquea-
| 142 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

das. Significa isto que, na Alta de Lisboa, a concentração de populações social-


mente heterogéneas não se traduziu, ainda, num quadro global de harmonia e con-
vivência pacífica (Antunes, 2015).
Para este cenário diferenciado devem realçar-se alguns fatores. Desde logo, a
existência de grandes descontinuidades urbanas, por efeito direto da não finali-
zação do PUAL. Estas descontinuidades urbanas geraram «espaços excluídos», isto
é, áreas onde apenas existem edifícios de habitação pública e para os quais as liga-
ções rodoviárias são escassas (por vezes, apenas com uma estrada de acesso). Esta
situação leva, obviamente, a fenómenos de segregação espacial e promove a gue-
tização e exclusão destes locais em relação ao restante plano e cidade (Figura 6).

Figura 6. Exemplo de conjunto de dois quarteirões de habitação social (municipal) isolados da res-
tante malha urbana. Foto própria.

Para além dos «espaços excluídos», outro fenómeno visível na Alta de Lisboa
é o crescimento de «espaços exclusivos», nomeadamente condomínios privados.
Segundo estudo de Tulumello & Colombo (2018), a Alta de Lisboa é a área da cidade
de Lisboa que mais concentra condomínios privados e, nos concelhos envolven-
tes, este cenário apenas tem paralelo nalguns bairros específicos no município de
Cascais. Como é reconhecido, a tendência contemporânea de «condominização» é
a manifestação do encolhimento da esfera pública (Bindé, 2000; Lopes, 2002; Koga,
2003; Bauman, 2006), fenómeno manifestamente presente na Alta de Lisboa (Tulu-
mello & Colombo, 2018). Os referidos condomínios privados contribuem para o
isolamento dos residentes nas suas habitações, situação que contribui para a não
utilização do espaço público envolvente, assim como do comércio local e dos ser-
viços criados para a população.
Paralelamente, é igualmente importante mencionar que os edifícios munici-
pais mostram frequentemente sinais de deterioração, com pichações e danos nas
fachadas, ou no seu interior, sobretudo, nos elevadores. Esta situação acarreta uma
discrepância visual perante os edifícios no mercado imobiliário, que têm uma arqui-
tetura sofisticada, áreas verdes bem conservadas e fachadas preservadas de forma
satisfatória. A esta questão é ainda possível acrescentar a dualidade no mobiliário
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 143 |

urbano (e.g. iluminação, calçada, passadeiras, paragens de autocarro, etc.), por


norma mais requintado e conservado na presença de edifícios de propriedade hori-
zontal e mais desqualificado na proximidade dos edifícios municipais. Embora
esses elementos possam frequentemente ser considerados triviais, são extrema-
mente relevantes da perspetiva das experiências sensoriais e simbólicas que pro-
duzem aos residentes e visitantes.

3.3. PUAL – novos desenvolvimentos


A crise financeira que assolou Portugal desde 2009, com a intervenção finan-
ceira entre 2011 e 2014, teve impactos significativos no mercado imobiliário. Esta
situação teve fortes repercussões no PUAL, que fundamentava o seu desenvolvi-
mento urbano na manutenção de premissas imobiliárias típicas da década de 1990,
ou seja, num contexto de crescimento urbano e de grande pressão imobiliária.
A estagnação do mercado imobiliário durante a crise económica portuguesa
trouxe novos desafios para o desenvolvimento do PUAL, ou seja, para o projeto
urbano desenhado para a Alta de Lisboa (Camelo, 2013). Veja-se, a este propósito,
que, no período 2008-2015, as operações de construção de edifícios foram acentua-
damente reduzidas no Alto do Lumiar, sendo que, nalguns casos, a construção
chegou a estar paralisada durante vários anos, ficando as estruturas à mercê dos
elementos, designadamente num conjunto de edifícios próximos do Parque Oeste
(Condómino do Parque e Condomínio do Lago).
Contudo, nos últimos anos, o mercado imobiliário português voltou a animar-
-se, sendo conhecida a valorização do metro quadrado no centro das principais
áreas metropolitanas portuguesas e, no caso da Área Metropolitana de Lisboa, com
especial incidência nos concelhos de Lisboa, Oeiras e Cascais (Seixas & Antunes,
2019). Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, na freguesia do Lumiar,
o valor do metro quadrado era de 1 993 € no primeiro trimestre de 2016, tendo
aumentado para 2 711 € no último trimestre de 2018 (taxa de variação de 36%);
por sua vez, na freguesia de Santa Clara, para o mesmo período temporal, o valor
do metro quadrado evoluiu de 1 518 € no início de 2016 para 1 969 € no final de
2018 (taxa de variação de 29,7%).
No Alto do Lumiar, parte dos edifícios, cuja construção havia sido paralisada,
foi recentemente concluída e avançaram-se com novas operações para a constru-
ção de edifícios habitacionais e também de novas áreas comerciais. Recentemente,
foi noticiada a venda de apartamentos em edifícios que ainda não começaram a
ser construídos, existindo apenas em projeto, situação demonstrativa de que existe
uma grande procura por habitações no município de Lisboa, o que, indiretamente,
poderá contribuir para a finalização do projeto traçado para o Alto do Lumiar.
| 144 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

4. Apontamentos finais
Atualmente é indiscutível que o PUAL permitiu a melhoria de um sistema
urbano que se encontrava enfraquecido e desequilibrado, por via da concentração
de bairros de habitações precárias e vários fenómenos usualmente correlaciona-
dos com a pobreza urbana. A intervenção iniciada em 1998 permitiu a transição
para um sistema mais equilibrado, demonstrativo da importância de decisões polí-
ticas para a coesão do sistema urbano e metropolitano, assim como para a melho-
ria da qualidade de vida das pessoas e da sua dignidade habitacional, conforme
consagrado na Constituição Portuguesa.
No entanto, persistem algumas questões subjacentes ao PUAL. Desde logo, o
facto de o desenvolvimento meramente parcial não permitir avaliar as repercus-
sões urbanas e sociais do Plano de Urbanização, mas apenas analisar as transfor-
mações que foram concretizadas até ao momento. A lenta operacionalização do
PUAL tem contribuído para a conceção de descontinuidades na malha urbana, o
que tem dificultado a comunicação entre as diferentes comunidades e permitido
a manutenção de um status de marginalidade para determinados locais. Paralela-
mente, a intervenção urbana na Alta de Lisboa ainda não demonstrou repercus-
sões visíveis no sistema urbano do resto da cidade, em grande medida, porque não
foram criados espaços ou edifícios-âncora, ou seja, com elevada atratividade, e
porque os elementos antrópicos existentes no perímetro da Alta de Lisboa ainda
subsistem como um obstáculo.
Tendo passado mais de 20 anos do início da operação, aos pontos positivos e
negativos apontados deverá acrescentar-se que o PUAL, desenhado em meados da
década de 1990, se encontra condicionado por opções datadas, próprias de mode-
los de desenvolvimento das décadas de 1980 e 1990, que podem já não responder
aos desafios urbanos, sociais, económicos e culturais de uma cidade do século XXI.

Siglas
AMBC = Associação de Moradores do Bairro das Calvanas
AUGI = Áreas Urbanas de Génese Ilegal
CML = Câmara Municipal de Lisboa
DCH = Departamento de Construção e Habitação
GEBALIS = Gestão do Arrendamento Social em Bairros Municipais de Lisboa
GTH = Gabinete Técnico da Habitação
LNEC = Laboratório Nacional de Engenharia Civil
PALOP = Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
PDM = Plano Diretor Municipal de Lisboa
PER = Programa Especial de Realojamento
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 145 |

PPP = Parceria Público-Privada


PUAL = Plano de Urbanização do Alto do Lumiar
SGAL = Sociedade Gestora da Alta de Lisboa

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Capítulo VI

O que dizem os muros


do Porto?
Ensaio visual
sobre o direito à habitação
e o direito à cidade

Inês Barbosa*
João Teixeira Lopes**

* Doutorada em Sociologia da Educação, Investigadora no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.


Email: inesbarbosa83@gmail.com
** Sociólogo, Professor Catedrático e Investigador no Instituto de Sociologia, Universidade do Porto.
Email: jmteixeiralopes@gmail.com
1. Introdução
Uma cidade é uma arena de disputas. Se assim não fosse, teria vencido a disto-
pia de uma narrativa unificada, absoluta e excludente, em que o poder seria uma
espécie de soma-zero. Essa narrativa, ainda que eventualmente doce e até cativante,
serviria os interesses das classes dominantes no afã de transformar o seu modo de
relação com a urbe numa universal panaceia de relações sociais hierarquizadas em
sistemas de classificação através dos quais cada um incorporaria o seu lugar no mundo.
Ora, este artigo dá conta, ao invés, de como emergem, ainda que nos interstí-
cios pouco ocupados e na fímbria de espaços liminares, conflitos sobre as visões
de cidade no Porto do turismo, da gentrificação e do fachadismo cultural através
da produção, mais espontânea ou mais organizada, mais individual ou mais cole-
tiva, de uma contra-visualidade. Não se pense, contudo, que este é um combate
entre iguais. A governação e as classes dominantes difundem com astúcia e ampla
reverberação no senso comum a ideia de um destino grandiloquente, moldado por
um patriotismo de cidade que despoticamente impõe uma narrativa de glorifica-
ção do rumo que a urbe trilha, uniformizando, num misto de força e sedução, as
apropriações do espaço urbano. Além do mais, sustentam-se num percurso já longo
em que a evolução das «cidades do capitalismo avançado apostadas na revitaliza-
ção das suas áreas centrais torna legítimo pensar na reabilitação urbana como estra-
tégia global de recentramento político e económico das cidades e de reconfigura-
ção do seu papel enquanto palcos de extração de valor» (Queirós, 2007: 113). Por
outro lado, a domesticação dos atores públicos e privados, oferecendo ampla visi-
bilidade aos inefáveis proveitos deste destino de turismo «generoso» e negócio gene-
ralizado, torna quase impensável discutir as regras do jogo, uma «bizarria cujos
riscos as cidades não estão dispostas a correr» aos olhos do poder instalado (Quei-
rós, 2007: 112). O governo das cidades, numa tendência cada vez mais global,
reprime, enquadra e/ou absorve as forças dissidentes, à luz da imperiosa vitória
do urbanismo genérico e da cidade de serviços, coreografada e encenada. A sua
estratégia consiste no cansaço e no desgaste do olhar, que «toma nota e não vê»,
como escreveu a poeta Sophia de Mello Breyner Andersen, pela banalização do
estereótipo e da inevitabilidade da cartilha turística.
Nos últimos anos, o tema da habitação voltou a preencher a agenda mediá-
tica, política e académica (Antunes et al., 2019). Não só não deixaram de existir
os problemas clássicos, como a falta ou degradação da habitação social ou a exis-
tência de população, maioritariamente cigana, a viver em acampamentos sem o
mínimo de condições básicas45, como somos hoje confrontados com novos desa-

45. https://www.portaldahabitacao.pt/opencms/export/sites/portal/pt/portal/habitacao/levantamento_
necessidades_habitacionais/Relatorio_Final_Necessidades_Realojamento.pdf
| 152 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

fios, provocados, em grande medida, pela especulação imobiliária e pela desregu-


lação do turismo.
«No Porto, urbanização capitalista e desigualdade urbana caminharam, desde
cedo, a par e passo» (Queirós, 2007: 91) A história da cidade e do país evidencia
os ciclos, as tensões e os embates que têm sido travados pelo direito à cidade. No
período industrial, o aumento drástico da população nos centros urbanos levou à
construção em massa de ilhas,46 sem condições de salubridade, com o objetivo de
acomodar (e controlar) a classe operária. Em 1910, logo após a implantação da
República, foi publicada a Lei do Inquilinato que visava proteger os arrendatários,
controlando o valor das rendas e restringindo os despejos. Por essa altura, surgiram
também os primeiros bairros de habitação social no Porto, atingindo o seu pico
durante o Estado Novo (Matos, 1994) e dando início ao processo de expulsão das
classes populares para as periferias. Com a revolução de Abril de 1974 o problema
da habitação ganhou visibilidade na praça pública. Durante o PREC, ocupações e
modelos participados de gestão do espaço urbano – em particular o projeto
S.A.A.L.47 – pressupunham, precisamente, o retorno dos pobres ao centro da cidade.
Nos anos oitenta dá-se novo retrocesso nas políticas urbanísticas, assistindo-
-se ao desenvolvimento da periferia e a uma viragem para o setor imobiliário e o
crédito bancário. Em 1994, com a atribuição pela UNESCO do estatuto de Patrimó-
nio Mundial da Humanidade ao centro histórico do Porto, verifica-se uma recon-
figuração da cidade, assente sobretudo nos eixos do turismo, cultura e património.
Com a entrada no governo local da coligação de direita, em 2002, a reabilitação
urbana da baixa portuense e a aposta no turismo adquire novo fôlego, concomi-
tantemente com processos de limpeza e erradicação da marginalidade das ruas.
(Queirós, 2007; 2016) O Porto passa a ser vendido como uma cidade moderna,
europeia, cosmopolita. A gentrificação entra no universo vocabular dos portuen-
ses. Desde 2012 – coincidindo com o período de crise e austeridade em Portugal –
o Porto passa a ser visto como destino turístico de eleição, recebendo sucessivas
distinções e inúmeros visitantes.48
Um estudo recente mostra que, entre 2011 e 2018, as propriedades listadas na
Airbnb, no Porto, passaram de 100 para mais de 11 mil! (Fernandes et al., 2018).
Apesar desta velocidade sem precedentes, a administração local e nacional não
dispõe ainda de meios eficazes de regulação, fiscalização e monitorização (Calor

46. Ilhas são bairros clandestinos construídos nas traseiras dos prédios, durante o período industrial,
no Porto.
47. SAAL é a abreviatura de Serviço de Apoio Ambulatório Local, um projeto que envolveu arquitetos/as
e cidadãos/ãs em processos participativos de reabilitação urbana com um forte impacto na cidade do Porto.
48. Em 2012, 2014 e 2017 «Melhor Destino Europeu» (European Consumers Choice); em 2013, «Melhor
Destino de férias na Europa» (Lonely Planet); 2015 Top 10 polos turísticos (the Guardian); 2018, Melhor
destino europeu e segundo melhor mundial (Culture Trip).
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 153 |

& Magarotto, 2019). A intensificação da turistificação caminhou lado a lado com


a gentrificação, uma vez que os investimentos imobiliários em edificado degra-
dado e ocupado pelas classes populares proporcionam um rent gap (diferencial de
renda) que aumenta exponencialmente o valor das casas e terrenos, expulsando
os habitantes para lugares que não desejam e recompondo, a um ritmo vertiginoso,
a composição social da urbe. Assim se, por um lado, este processo contribuiu para
a reabilitação urbana, para a criação de postos de trabalho e para a revitalização
de parte do comércio e serviços; por outro lado, deparamo-nos com a concorrên-
cia desleal entre estabelecimentos turísticos; o encerramento de espaços associa-
tivos e do comércio tradicional; a precarização do emprego ligado ao sector; e, prin-
cipalmente, o aumento do preço da habitação, afetando não apenas as classes
baixas e a população envelhecida, mas também a juventude e uma franja signifi-
cativa das classes médias.
Nos tempos que correm a habitação – direito consagrado na Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos e na Constituição da República Portuguesa – tem-se
vindo a transformar, cada vez mais, num bem de consumo a que nem todos têm
capacidade de aceder. É por este direito que se travam disputas: no debate político,
nas ruas, nas paredes.

2. Nota metodológica: sociologia andante e a descodificação


da cidade
A cidade é indissociavelmente constituída pela mediação que se estabelece
entre práticas, discursos e representações. Desde tempos imemoriais que as nar-
rativas e os conflitos se expressam por imagéticas, autênticas condensações de sen-
tido e comunicação. Dito de outro modo, tais imagens são práticas espacializadas
e inscrevem na geografia os conflitos de uma sociedade desigual. Assim, os docu-
mentos visuais que aqui analisaremos são uma expressão, também, das inusitadas
formas através das quais ação e pensamento se unem através da linguagem ins-
crita no texto urbano. Desse modo, carregam uma pulsão para vencer qualquer
ideia de «patriotismo de cidade» (Delgado, 2007) e apostam tudo na transição e
na transação, caraterísticas distintivas de espaços públicos. Assim, questionam a
legitimidade de qualquer pretenso monopólio sobre as visões da cidade e suas ima-
gens e, através do seu simbolismo, convocam identificações e repulsas, ativismos
e comunalidades, vontade de comunicar e de produzir efeitos nos outros.
A recolha decorreu entre Abril e Agosto de 2019 com um único critério: foto-
grafar qualquer manifestação visual pública relacionada com o direito à cidade e
à habitação: cartazes, autocolantes, grafitis, pichagens, stencils, etc. Sendo regis-
tos produzidos fora do âmbito de qualquer intencionalidade de pesquisa, a utili-
| 154 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

zação destas imagens enquadra-se na mobilização de métodos não interferentes


(Lee, 2003), uma vez que, na génese de tais documentos, não existe uma relação
social de pesquisa do tipo observador/observado, escapando, por isso, a poten-
ciais construções de honra ou prestígio social.
Enquanto exercício de sociologia visual (Ferro, 2005; Pink, 2013), a captação
destes registos exige uma contextualização espacio-temporal e, em particular, uma
relação densa com o momento histórico e o feixe de relações sociais em que inter-
vém. Esse vaivém entre a imagem e o contexto confere inteligibilidade e sentido
aos documentos visuais, abrindo, em diálogo com a perspetiva teórica, um esti-
mulante campo de indagação (Becker, 1995).
Muitos fenómenos e dinâmicas urbanas conflituais, assim o entendemos,
podem ser melhor interpretados sociologicamente através das imagens fotográfi-
cas, captadas ou construídas para efeito de pesquisa, desde que entendidas como
ferramentas de acesso às estórias que indivíduos e grupos contam a respeito de
si próprios e das cidades onde vivem. É este o desafio a que nos propomos neste
ensaio visual.
Durante cinco meses calcorreamos as ruas do Porto, à maneira de um flanêur49,
explorando os seus recantos, seguindo por caminhos inesperados, prestando aten-
ção ao que não se oferece à vista desarmada, estranhando a cidade como se ela
fosse outra que não a nossa. De olhos postos nos muros, mas também nos postes
e nas caixas de eletricidade, nos portões das garagens, nos vidros das casas por
vender. Sem destino, mas com intenção: ouvir o que as paredes nos dizem sobre
a recente crise da habitação e sobre a gentrificação.
Trata-se aqui de uma sociologia andante (Lopes, 2007; Ingold & Vergunst, 2008;
Brown & Shortell; 2015), metodologia que vem beber de autores clássicos como Guy
Debord (1958), Walter Benjamim (1973) ou Michel de Certeau (1980). Nessa pers-
petiva, «andar» assume-se enquanto método de investigação, uma forma de imer-
são e exploração da cidade que possibilita captar e interpretar os seus sinais. No
entender de Léfébvre (1996), a cidade emite e recebe mensagens que devem ser des-
codificadas a partir de uma análise em diferentes planos e dimensões, de modo a
dar conta das ideologias, das hierarquias, das interações, dos discursos, das práticas
quotidianas, dos ritmos, da sua pulsão. A descodificação e tradução da mensagem
urbana é, porém, criativa, subjetiva, parcial, porque depende da formação do inves-
tigador, do seu posicionamento político e da sua experiência50 (Canevacci, 2004: 37).

49. A figura do flanêur (vadio, errante, investigador da cidade), explorada pelo escritor francês Charles
Baudelaire, influenciou grandemente o trabalho de Walter Benjamim.
50. A co-autora deste artigo – responsável pelo trabalho empírico – tem vivenciado vários dos problemas
relacionados com a habitação aqui referidos, tem participado em grupos ativistas, em manifestações e
debates públicos.
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 155 |

3. Que espaço? Breve digressão sobre a mediação dos tercei-


ros espaços

Partiremos de uma conceção de cidade enquanto espaço-tempo que supera a


ilusão fetichista denunciada por Lefèbvre (2000), isto é, avessa às conceções aprio-
rísticas, puras, abstratas, reificadas e absolutas de um espaço-rei ignorante das suas
concretizações, usos e apropriações. Deixar falar as práticas sociais não significa
que ignoremos a materialidade do espaço, os seus pesados constrangimentos e as
suas esperançosas possibilidades. Ao invés, entraremos na lógica dialética da media-
ção que estuda os processos de construção da espacialidade, em que tanto o espaço
como os agentes que nele inscrevem as suas práticas se transformam mutuamente,
um sendo a condição e o produto do outro.
Assim, será pertinente a relação fecunda e comunicante entre o espaço perce-
bido (conjunto de incrustações físicas e materializadas que impregnam as práticas
espaciais, simultaneamente forma e processo), o espaço produzido (as represen-
tações do espaço que se encontram nas intencionalidades de peritos (experts) e
burocratas que planeiam, racionalizam e modificam, mas também a imaginação
das utopias e dos ativismos contra-hegemónicos e, de um modo geral, as ideolo-
gias teóricas e práticas que nos permitem pensar o espaço) e, finalmente, o espaço
vivido, ou terceiro espaço, na aceção de Soja (1996).
Chamamos a atenção para este último, o locus da interseção quotidiana das
práticas, fazendo constantes sínteses e mediações entre o objetivo e o subjetivo,
a estrutura e a ação, a realidade e a imaginação, o existente e a potencialidade,
os constrangimentos e as margens de liberdade, enfim, a experiência que nos
permite pensar as quotidianas concretizações das regras e recursos da estrutura
(Giddens, 2000).
O terceiro espaço é a perspetiva que abre pistas à interpretação da cidade como
algo mais do que um urbanismo de formas fixas (a-espaciais e a-históricas), «uma
força impulsora que afeta todos os aspetos de nossa vida» (Soja, 2000), um quadro
onde sociologia, história, antropologia e geografia se cruzam no repensar crítico das
condições materiais que, no tardo capitalismo, forjam a diferença que o espaço faz.
A sua singularidade pode ainda ser percebida através do conceito de sinekismo
(Soja, 2000), através do qual ganham centralidade as relações sociais lubrificadas
pela cidade, enquanto economia e sociedade de aglomeração e proximidade, onde
uma dada e heterogénea dinâmica socio-espacial se forma, criando uma particu-
lar configuração de interdependências.
Os espaços públicos ganham especial centralidade na óptica dos terceiros espa-
ços, uma vez que, pela sua intersticialidade, possuem a potencialidade de desafiar
os usos monolíticos, estandardizados e comercializados do urbanismo liberal, quer
| 156 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

na sua vertente especializada, elitista e modernista, quer nas suas feições popu-
listas de teor pós-moderno, quer ainda nas suas declarações monumentais, dirigis-
tas e barrocas. Neles, a contra-hegemonia favorece a localização da esfera pública,
esse conceito tão abstrato e desespacializado que Jürgen Habermas (1986) propõe
como avatar da razão dialógica, crítica, argumentativa e comunicativa.
Deste modo, enquanto espaços-tempo de materialização da esfera pública,
excitam a politização das práticas socio-espaciais, alargam as alamedas do debate
e, nesse (re)fazer perpétuo, contestado e conflitual, evidenciam os limites da
cidade-empresa e desocultam as encenações da cidade mentirosa (Delgado, 2007).
Como veremos neste texto, não há espaços sem contra-espaços, usos que dispen-
sem contra-usos (Leite, 2004), barreiras que excluam a sua permanente porosidade,
embate e negociação.

4. «O Porto não se vende e o povo não se rende»: imagens e


discursos de contestação
«Escrevemos nas paredes porque nas paredes o povo comunica», lê-se num
muro na rua da Formiga, numa das freguesias – Campanhã – que é parente pobre
de um Porto cada vez mais projetado para os seus visitantes. Quem nos leva lá é
Margarida Castro Felgas, arquiteta ativista que há dez anos se dedica a organizar
tours pela cidade esquecida51: as fábricas e os terrenos abandonados, os circuitos
que não aparecem nos mapas, os lugares onde a oposição aconteceu. Junto dessa
inscrição, o slogan «Lula Livre» – remetendo para o internacionalismo das lutas –
é rasurado para que, afinal, sejamos todos livres. Ao lado, um outro traçou o tag
«Team Podre». Este é um exemplo daquilo que procurávamos, andando pela cidade.
As contra-visualidades, com as quais nos fomos deparando, atuam como um
grito que se expressa nas paredes, que se ressignifica pela ação dos outros, que é
riscado, rasgado, adulterado, pintado de branco, desgastado pelo tempo, numa
contínua emenda, como vozes que se sobrepõem produzindo ruído. Na Figura 2,
dois autocolantes sobre a gentrificação são colados numa parede junto à Facul-
dade de Belas Artes do Porto, num lugar de afixação proibida. Para Ricardo Campos
– que tem aprofundado estas práticas no contexto português – os grafittis e picha-
gens são «armas expressivas» marginais, «sem lugar na cidade disciplinada», «lin-
guagens de resistência, de afronta, de crítica ou simples gozo, desafiando as con-
venções e a ordem visual da paisagem urbana», desempenhando «funções de natu-
reza estética, política, ideológica ou cultural, ao abrigo do espaço público de comu-
nicação mais democrático: a rua» (Campos, 2012: 75). Há nestas expressões, não

51. https://theworsttours.weebly.com/
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 157 |

apenas um impulso comunicativo, mas também uma intenção «subversiva, infor-


mal ou ilegal, que lhe confere uma condição singular no ecossistema comunica-
cional urbano» (idem, 2008:3) e uma oportunidade de dar palco aos sem-poder:
os pobres, os jovens, o povo.

Figura 1. Rua da Formiga, foto de Inês Barbosa Figura 2. Avenida Rodrigues de Freitas (IB).
(IB).

Em cinco meses recolhemos quase uma centena de manifestações visuais insur-


gentes, dispersas em vários locais da cidade e fazendo uso de diferentes meios
(stencil, autocolante, marcador, spray, etc.)52. No esforço de as interpretar, procu-
ramos descortinar – dentro do possível – o seu emissor, o seu recetor e a sua men-
sagem. Numa leitura transversal é-nos evidente que as imagens reunidas traduzem
um discurso polifónico, nelas estão subjacentes diversos agentes, destinatários e
reivindicações, ainda que todas elas expressem uma crítica comum relativamente
ao rumo que a cidade tem vindo a tomar no plano urbanístico, social e político.
Tendo presente que a grande maioria dos registos são anónimos, as reflexões
que aqui apresentamos estão mais próximas de deambulações interpretativas do
que de afirmações irrefutáveis. Contrariamente à grande maioria dos estudos sobre
arte urbana, os autores destas inscrições não se parecem limitar ao segmento etário
jovem. Também não aparentam estar circunscritos a determinada classe social,
espelhando a heterogeneidade que atravessa a luta pelo direito à habitação no
Porto. De facto, entre os grupos sociais mais afetados pela gentrificação está a
população envelhecida, intimada a abandonar as suas casas no centro urbano,
ainda que, por lei, tenham o direito a manter-se nelas; a população com rendimen-
tos reduzidos que, não tendo a salvaguarda dos contratos vitalícios, é despejada
e encaminhada para bairros sociais e/ou zonas menos prestigiantes do Porto; os
jovens – estudantes ou precários – que não têm rendimentos suficientes para supor-

52. A recolha deu origem ao projeto visual (A)Briga: 112 imagens pelo direito à habitação. www.facebook.
com/ABriga112.
| 158 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

tarem uma casa sozinhos e que se vêem na condição de partilhar casa ou até mesmo
quarto; e, por fim, alguns segmentos da classe média trabalhadora – com ou sem
família a cargo – cujos baixos salários ou ausência de um vínculo laboral estável
lhes impede de pagar um aluguer ou um empréstimo bancário.53Entre a centena
de mensagens analisadas podemos observar três grandes objetivos: sensibilizar,
denunciar ou mobilizar. A sensibilização é a que ocupa menor fatia. No conjunto
de imagens que se seguem podemos observar alguns exemplos.
Na Figura 3 encontra-se um fragmento das cartas dirigidas aos turistas denun-
ciando os despejos dos residentes do centro da cidade a favor do AirBnB ou os ele-
vados preços das habitações comparativamente aos salários dos habitantes locais.
Escritas em inglês, para que possam ser lidas por uma grande percentagem de pes-
soas, as cartas apoderam-se dos símbolos e até mesmo dos contatos da agência ofi-
cial de turismo, conferindo-lhes credibilidade ou, pelo menos, chamando a atenção
de quem lê. O uso da fórmula de saudação «Dear Tourist» e o emprego de pergun-
tas ou afirmações diretas – «Está a ficar num lindo apartamento renovado listado
no AirBnB?» ou «Pergunta ao teu recepcionista como é que ele/a vive» – parece ter
como objetivo, por um lado, gerar empatia e, por outro, responsabilizar os turistas.

Figura 3. Rua do Almada (IB). Figura 4. Quinta do Covelo (IB).

53. Algumas notícias: https://www.jn.pt/economia/interior/habitacao-no-porto-esta-55-mais-cara-10491863.


html https://observador.pt/2019/03/15/100-familias-sao-despejadas-todos-os-anos-pelas-camaras-de-
-lisboa-e-porto/
https://www.tsf.pt/sociedade/interior/portugueses-saem-tarde-da-casa-dos-pais-mas-nao-e-porque-nao-
-querem-9409614.html
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 159 |

Figura 5. Rua de Santa Catarina (IB). Figura 6. Rua da Restauração (IB).

A utilização da emoção foi observada noutras manifestações visuais com o


objetivo de sensibilizar não só os turistas, mas os responsáveis políticos e a popu-
lação em geral. As faixas e slogans – também utilizados nas manifestações – «O
meu nome é Maria, fui para a periferia», «Nasci na Vitória, posso morrer na Vitó-
ria?» ou as inscrições «Porto Nosso» são disso exemplo. O stencil «sem-abrigo»,
com o desenho de uma silhueta prostrada, numa das ruas mais frequentadas do
Porto; o grafitti «Ó turista, não me compres o meu ninho», encontrado no banco
de um parque urbano; ou a colagem de uma rua repleta de turistas acompanhada
da figura do Sandoku e da frase «Deixem-nos respirar!» parecem querer surtir o
mesmo efeito. A utilização de nomes próprios e de pronomes pessoais, expressões
afetuosas como «ninho», a referência à situação marginal dos sem-abrigo ou à morte
(eventualmente de alguém idoso em situação de despejo) geram proximidade entre
emissor e recetor, provocando sentimentos de culpa em quem os lê.
A denúncia da gentrificação é o elemento mais presente nos murais, assen-
tando sobretudo em duas principais consequências: a crise da habitação e a perda
de uma certa identidade portuense. Em ambos os casos é notória a referência à
ideia de «povo», terminologia que parecia datada nas últimas décadas. «Habitação
ao povo com rendas para nós sem roubo», «Um povo sem habitação», «Habitação
para o portuense», «Direito à habitação: todos!», «Porto dos portuenses» são muitas
as variantes encontradas pela cidade. A referência a esse conceito reflete uma neces-
sidade de distinguir entre o povo que reside e o turista que visita. A Figura 7 aponta
especificamente essa distinção, denunciando o crescimento das disparidades sociais:
a cidade atrai cada vez mais turistas, mas torna-se inacessível aos seus residentes
que não têm poder de compra para usufruir e apropriar-se dela plenamente.
| 160 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Figura 7. Rua do Bonjardim (IB).

Para além da desigualdade, a destruição da cidade e da «essência» do povo por-


tuense é o assunto que mais ocupa os registos coletados, aspeto aliás presente nou-
tras manifestações culturais como músicas, filmes ou performances.54 As figuras
que se seguem representam isso mesmo, mostrando a força desse discurso. Utili-
zando metáforas, trocadilhos e a subversão de imagens publicitárias ou munici-
pais, os seus autores criticam a perda de identidade provocada pela intensificação
do turismo. O autocolante «O Porto já não são tripas»55 disseminado em vários
lugares da cidade é talvez o exemplo mais paradigmático. O slogan «Make Porto
Podre again», criado por um coletivo anónimo e divulgado em vários formatos
(autocolantes, cartazes, tags, faixas) teve também um alcance significativo, tendo
inclusive sido referido numa das edições da Time Out,56 conhecida agenda de even-
tos. Em ambos, a imagem da cidade é associada às tradições e àquilo que é autên-
tico, ao «Porto podre» e abandonado, mas verdadeiro dos tempos idos.
A expressão «Porto Morto», «Morto: Best European Gentrification» ou, simples-
mente, «Morto» projeta também a extinção da cidade genuína. Foi criada a partir
de uma recomposição da imagem publicitária do município, Porto, ponto,57 marca
estabelecida no decorrer de um plano estratégico de promoção do turismo. Para-

54. Por exemplo, a música Porto Arder, dos Grito! https://www.youtube.com/watch?v=RVcLHq7Ku34;


ou o documentário «Porto is not for sale»:
http://www.acordesdequinta.com/2019/01/docs-porto-is-not-for-sale-de-laura.html
55. Tripas à moda do Porto é uma receita tradicional portuense.
56. http://www.assalto.pt/PDF/TimeOutPorto_201701.pdf, Janeiro de 2017.
57. https://noticias.up.pt/marca-porto-ponto-distinguida-como-a-melhor-da-europa/
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 161 |

doxalmente, no Manual de Identidade,58 publicado pela Câmara, os responsáveis


políticos afirmam que a marca surgiu com o propósito de espelhar não só o seu
património ou a sua nova tendência cosmopolita, mas também a alma portuense,
as suas gentes, a sua capacidade de resistência, cidade-invicta.

Figura 8. Avenida de França (IB). Figura 9. Inscrição no bar 77, foto de Zu Rabaçal.

Figura 10. Rua dos Caldeireiros (IB). Figura 11. Rua Dr. Magalhães Lemos (IB).

O slogan «Porto Morto» granjeou também alguma projeção pública e mediática,


ao ponto de merecer uma intervenção do presidente Rui Moreira, em 2017.59 Indig-

58. http://www.cm-porto.pt/assets/misc/documentos/Logos/01_Manual_14_digital_2017.pdf
59. https://observador.pt/2017/08/07/morto-em-vez-de-porto-camara-apresenta-queixa/
| 162 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

nado com expressão, o edil expressou publicamente o seu desagrado e apresentou


queixa contra autor desconhecido. Num post no facebook lançou acusações duras,
associando esse ato à proximidade das eleições autárquicas:

«Não conheço os autores que se dispuseram a produzir numa gráfica milhares deles.
Não conheço quem os financia nem qual o fim que perseguem. Podemos presumir que
isto tem a ver com as eleições e são meus adversários. Ou achar que não, e que são,
simplesmente, cobardes que nada têm a fazer ao dinheiro. Em qualquer dos casos,
quem o faz odeia o Porto. E odeia uma marca que procura maltratar por puro ódio e
por aversão ao sucesso. (…) Esta é a nossa marca. Made in Porto. Adorada no Mundo,
odiada por cá».

Em resposta a declarações como essas, outro stencil difundiu-se pela cidade:


«A cidade não é uma marca, ponto». A sujeição do Porto aos interesses imobiliá-
rios reflete-se também noutras intervenções. «Porto? Já era» impresso em autoco-
lantes ou escrito em mupis da agência «Era» é disso exemplo. O texto (Fig. 9),
escrito na casa-de-banho de um bar da baixa, 77, evidencia estas tensões: «Porto
não é Oporto», ou seja, não é uma cidade dirigida apenas a turistas; «não é Porto
(ponto)», isto é, não é uma marca criada pelo município; «Porto não está morto»
que indica que ainda há resistência. O enigmático «está só mal frequentado» tanto
pode ser dirigido aos seus visitantes como ao poder político.
Parece-nos que o discurso de idealização e valorização da identidade do Porto
e do seu povo, associado ao crescimento da turistofobia, corre o risco de acionar
discursos xenófobos. Em período de ascensão de políticas conservadoras e de
extrema direita, não deixa de ser preocupante esta nova tendência por ideais iden-
titários (regionalistas ou nacionalistas), numa defesa contra os estrangeiros que
«invadem» a cidade invicta.
De facto, nalguns grafittis, a crítica à gentrificação é expressa num tom agres-
sivo, explicitamente dirigido ao presidente da câmara, aos turistas ou aos proprie-
tários das casas. «Deixa-te de turismo, qualiphica 1.º o povo do Porto»60, «Fuck CMP»
[câmara municipal do Porto]; «CMP, Rui vai dar banho ao turista» ou «Deixa-te de
turistas, meu FDP [filho da puta]» são algumas das inscrições com as quais colidi-
mos. Outras, como «Tourists go home», «Fuck Tourists», «Fuck Hotel» ou «Turismo
não», escritas em letras garrafais em muros, portões ou janelas são também indí-
cio da crescente tensão.

60. Depreendemos que os autores da pichagem quereriam dizer algo como «privilegia o povo do Porto».
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 163 |

Figura 12. Rua da Alegria (IB). Figura 13. Rua da Picaria (IB).

Figura 14. Fontainhas, foto de Ruca Peixoto Figura 15. Rua Monte dos Congregados (IB).

Em menor número, encontrámos referências aos senhorios, «Fuck Landlord»


(associado ao universo anarquista) e «Contra os despejos, chulos si[e]nhorios».
Esse último são, na verdade, muitos. Numa só rua – Rua dos Mercadores – situada
junto à Ribeira, numa das freguesias da baixa do Porto, encontrámos mais de uma
dezena de grafittis, todos escritos de uma forma semelhante, sugerindo um mesmo
autor e uma incomensurável indignação. «Senhorios corruptos», «Lutamos pelas
nossas casas», «Despejos não» ocupam toda a dimensão das portas e paredes de
casas em ruínas, numa rua escura e apertada, criando um cenário devastador. Com
| 164 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

uma importância que remonta ao período medieval – tendo sido um dos principais
eixos de comunicação da cidade – a rua fora, em tempos, umas das zonas mais
ricas da cidade, onde se concentravam os melhores estabelecimentos e a vida aris-
tocrata. Enfrentando, desde cedo, problemas de conservação das casas, a Rua dos
Mercadores é também ícone dos processos de requalificação urbana associados à
intensificação do turismo e ao despejo da população autóctone.

Figura 16. Sequência de imagens, Rua dos Mercadores (IB).

A crítica à especulação, enquanto «inimigo» vago e difuso, fruto da neolibera-


lização do Estado, preenche também algumas das paredes do Porto. «Proibido espe-
cular» ou «Especulador é uma carraça, a cidade vira carcaça» são dois dos exem-
plos. Esta última inscrição, fotografada junto ao Palácio do Bolhão, é interessante,
não só pelo conteúdo, mas também pela sua forma. Em primeiro lugar, porque ao
acrescentar o parêntesis «apagam, volto a escrever», contraria a efemeridade pró-
pria destas expressividades, passando uma mensagem de insistência. Além disso,
utiliza um jogo de palavras e rimas (carraça e carcaça), visível em várias mani-
festações visuais. Tal como noutros exemplos anteriores, a ironia e os trocadi-
lhos são uma constante: «Hostil not Hostel», «(Des)alojamento Local», «Weapon
of mass tourism»; «Love the tourists», «Hey, look I’m not a hostel yet», «Tourist
only, locals not allowed on this area» são alguns deles. Provocadores, diretos,
quase sempre escritos em inglês para que possam ser lidos por toda a gente que
por eles passa.
«Portopólio» (Fig. 17), um autocolante espalhado por vários pontos da cidade,
é outro exemplo de subversão. Simulando um jogo de monopólio, com o subtí-
tulo «edição burguesa», caricatura o presidente Rui Moreira, de cartola e bengala
em punho, acompanhado da legenda «vendido/sold out», associando-o diretamente
à exploração imobiliária.
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 165 |

Figura 17. Rua do Bonfim (IB). Figura 18. Avenida dos Aliados (IB).

Figura 19. Rua das Flores, foto de José Silva. Figura 20. Rua Duque da Terceira (IB).

Figura 21. Rua Formosa (IB).


| 166 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

A última das categorias – mensagens que visam a mobilização – tem algum


peso, ainda que esta seja sobretudo através dos resquícios de cartazes, autocolan-
tes, faixas ou grafittis, colados na parede para anunciar os momentos de protesto.
Os primeiros grupos ativistas, especificamente sobre o direito à habitação, surgi-
ram no Porto em meados de 2016, alguns com um carácter somente virtual, outros
com dinâmica e participação física.61 Em Setembro de 2017 deu-se a primeira mani-
festação pública, organizada por plataformas informais. Em doze meses, conta-
bilizaram-se sete episódios (concentrações, manifestações, marchas) com maior
ou menor adesão. Desde então não se assistiu a um mais nenhum evento similar
e a generalidade dos coletivos desfez-se.62 Os cartazes são agora memórias das
lutas que se têm travado, reservando-lhes a possibilidade de poderem de inspirar
as próximas.
Tal como nos anos que se seguiram à revolução, as palavras de ordem grita-
das nas manifestações são transpostas para as paredes. Se em tempos se cantou
«Casas sim, barracas não / as casas são do povo, abaixo a exploração»63, hoje
slogans como «Não aos despejos, resistência popular»; «Assembleia Popular, Vitó-
ria é nossa» ou «Minha casa me abriga, minha casa, minha briga» ecoam nos
megafones e nos muros. A experiência multi-sensorial e corporizada da cidade
torna-se evidente: numa mesma praça, pelos mesmos motivos, ouve-se, lê-se,
sente-se.
Essa transposição é particularmente visível na Figura 24, no cartaz de divul-
gação da Marcha LGBT+ do Porto de 2019. Procurando conferir à marcha uma
dimensão interseccional, o poster inclui reivindicações feministas, antirracistas,
estudantis e pelo direito à habitação: «O Porto não se rende e o orgulho não se
vende», «a cidade está catita mas não é pra nossa guita», «machistas, racistas, fas-
cistas não passarão», «amo quem quiser tenha o género que tiver», «pagar para
estudar, democracia a falhar», «mexeu com uma, mexeu com todas» ou «Marielle,
presente» preenchem o espaço cénico, junto com bandeiras e símbolos diversos.
Na verdade, a questão da habitação – sendo neste momento um problema gene-
ralizado – torna particularmente vulneráveis determinados grupos sociais: as
mulheres, as pessoas racializadas, os imigrantes, os estudantes, etc. Nesse sentido,
apesar de não existir atualmente movimentação significativa e organizada em
torno do direito à habitação no Porto, a luta não está esquecida, atravessando outros
grupos ativistas.

61. Nojentrificação, Porto Não se Vende, Cartas ao Rui, Porto, Direito à cidade…
62. Em Junho de 2019, surgiu o Grupo de Apoio à Habitação que se reúne regularmente no espaço auto-
-gerido A Gralha.
63. Canção do GAC (Grupo de Ação Cultural), https://www.youtube.com/watch?v=PTuRPA4ySrE
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 167 |

Figura 22. Travessa das Carvalhosas (IB). Figura 23. Rua de Cervantes (IB).

Figura 24. Rua das Fontainhas (IB). Figura 26. Praça do Marquês (IB).
Figura 25. Rua da Firmeza (IB).
| 168 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

5. Espaço público: arena disputada e heterotopias realizadas


Os muros do Porto trouxeram para a praça pública o debate sobre o direito à
habitação e o direito à cidade. De forma mais espontânea ou mais organizada ocu-
param-se paredes para brandir as críticas e desafiar o poder dominante. Nelas estão
contidas as aspirações e inquietações da população, ora sensibilizando e denun-
ciando, ora mobilizando outros e outras para uma mesma luta. São expressões de
cidadania insurgente, desordenando, ressignificando e desafiando uma visão de
cidade mercado. Elas marcam o território, povoando-o de memórias coletivas, tra-
çando uma história de resistência, instigando novas oposições. São também um
barómetro das tensões que se dão neste embate, revelando contradições entre centro
e periferia, residente e viajante, proprietário e inquilino, governantes e povo. O
palco destas contra-visualidades é a rua: o lugar por onde andamos para regressar
às nossas casas, onde nos deslocamos para os nossos empregos, onde nos reuni-
mos nos tempos de lazer, onde nos manifestamos por mais e melhor justiça. São,
portanto, mensagens permanentes e quotidianas.
A vitalidade de um espaço público reside, nesta linha, na sua potencialidade
para estabelecer mediações, trânsitos, ligações e conflitos: entre visões do mundo
e interesses contraditórios; entre assentamento e movimento; entre «dentro» e
«fora»; entre o espaço imediatamente presente e espaços ausentes; entre margens
e centro. Assim, os espaços públicos com virtualidades contra-hegemónicas não
se deixam capturar por barreiras fixas e imutáveis (Massey, 1993). Eles são, então,
constituídos e constituintes de relações sociais e, por isso, irredutíveis a simplifi-
cações identitárias e portadores de impulsos multivocais, glocais e híbridos, locus
privilegiado de terceiras culturas (Featherstone, 1997), aquelas que se formam como
algo mais do que um somatório ou uma mistura eclética, na e pela diferença, resul-
tado conflitual e provisório de interações tensas, «articuladores, espécies de rótu-
las ou nós que combatem a tendência para a cidade esquartejada, pericial, hipe-
respecializada, social e culturalmente segregada» (Lopes, 2007).
As políticas do espaço são tradução da busca pelo reconhecimento da diferença,
evidenciam as condições para uma interculturalidade real (de classe, género, etnia,
orientação sexual), necessariamente conflitual, que não seja mera festividade bran-
dizada, ocasião celebratória ou encenação da condescendência do poder. Do mesmo
modo, transportam uma prática rebelde, não domesticada, simultaneamente pes-
soal e pública, poética e política, insurgindo-se contra a ideia da disciplina e vigi-
lância dos corpos (Foucault, 2000) ou, ainda, contra as visões outorgadas de cida-
dania. Ao reivindicarem uma voz – e o direito e a legitimidade de falarem no seu
tempo, espaço e modo – cravam um espinho na cidade temática e estandardizada
e acumulam uma experiência e memória para além da tirania da hegemonia. O
poder é uma totalidade que fecha o discurso, controlando as práticas através da
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 169 |

sua previsibilidade convencional e da imposição simbólica de uma narrativa que


ignora explicita ou dissimuladamente a alteridade.
Ao invés, as dinâmicas sinuosas, oblíquas, feitas de apropriações e inversões
de sentido, jogando com a surpresa e a polissemia, criam uma «consciência do
olhar» (Sennett, 1991), que se demora e se surpreende; abrem interpretações, ques-
tionando e difundindo leituras alternativas. Em certo sentido, são heterotopias prá-
ticas e realistas, colocações «absolutamente outras», «contestadas e invertidas»,
«espécie de utopias efetivamente realizadas» (Foucault, 1995), que nos obrigam a
ter em conta diferentes mundos da vida e a repelir qualquer colete de forças de
homogeneidade. Em suma, abrem a possibilidade de outra (des)ordem no espaço,
para além do sistema de classificações e diferenciações hegemónico e binário. São
uma forma de fazer lugar, ocupando os espaços vazios da cidadania (Lopes, 2007:
79). Descodificar a cidade estará, portanto, também nesta subtileza de saber ler e
escutar os seus muros.

Figura 27. Rua Joaquim António de Aguiar (IB).

Siglas
EUA = Estados Unidos da América
LGBT+ = Lésbicas, Gays, Bisexuais, Transexuais e Transgéneros +
PREC = Período Revolucionário em Curso
UNESCO = Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
| 170 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

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Capítulo VII

Metodologias participativas:
o caso exemplar da «iIlha»
da Bela Vista (2013-2017)
Fernando Matos Rodrigues*
Manuel Carlos Silva**
António Cerejeira Fontes***
André Cerejeira Fontes****

* Antropólogo, Investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.Nova_UMinho) e Diretor


do Laboratório de Habitação Básica (LAHB). Email: mat.rodrigues@sapo.pt
** Sociólogo, Professor Catedrático e Investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.
Nova_UMinho); atualmente, Professor Visitante no Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM)
da Universidade de Brasília. Email:mcsilva2008@gmail.com
*** Arquiteto e Engenheiro Civil, vogal do LAHB e Arquiteto do Projeto de Arquitetura Básica Ilha da
Bela Vista, coordenador da Imago. Email: ajfontes@imago.com.pt
**** Arquiteto e Professor na Escola de Arquitetura da Universidade do Minho, membro do LAHB.
1. Introdução: o problema
Uma primeira observação a anotar é que o conceito de metodologias participa-
tivas implica, contrariamente aos pressupostos positivistas, de que não há no pro-
cesso de investigação-ação neutralidade axiológica e política, pressupondo inclu-
sive a criação de uma base de confiança, envolvimento e participação de todos/as
e cada um dos sujeitos sobre os quais incidem as metodologias participativas, tal
como o apontam Villasante et al. (2000:35): «Hay que estar en las relaciones de
confianza para que se pueda construir desde el saber de todos y de cada uno. Solo
así la complejidad puede ser creativa, y así también las alteridades reflexivas van
construyendo su camino». Por outras palavras, o processo de objetivação deve estar
presente para captar os diversos aspetos da realidade, mas, por outro lado, não
pode separar-se das suas condições materiais, tal como refere Lefebvre (1975:11 ss):
«A objectividade aprofundada liga entre si todos os elementos ou aspectos do conhe-
cimento, juntando-os à atividade humana como um todo. Mas esta própria ativi-
dade não pode separar-se da natureza (objetiva, material) na qual se insere, nela
penetrando». Mais, tão pouco a ciência se pode alhear ou afastar dos debates e
correntes teóricas, dos valores e das mundividências, ligadas, por sua vez, aos dife-
rentes e, não raro, antagónicos interesses das classes e grupos sociais que acom-
panham um desenvolvimento desigual em termos ora locais-regionais, ora (inter)
nacionais numa democracia em perda (cf. Silva, 2005 e 2019). Ou seja, se os posi-
tivistas assumem, para além dos alegados cânones formais de metodologia tecni-
cista, a dualidade e/ou a separação entre factos sociais e valores, aqui assumimos
que, não obstante o esforço de procurarmos objetivar a realidade social nas «ilhas»
e nos bairros sob estudo, de modo algum poderemos ser axiológica e politicamente
neutros perante situações de injustiça social. De resto, tão pouco os positivistas são
neutros, apenas se afirmam como tal, pois não deixam de injetar de modo camu-
flado ou implícito os pressupostos teóricos e ideológicos, amiúde não explicitados.
A «ilha» da Bela Vista, sendo propriedade da câmara municipal do Porto, está
localizada no centro e seus moradores/as são detentores de um contrato de arren-
damento, mantendo com esta «ilha», originária de meados do século XIX, uma
identidade e forte identificação com a mesma nos seus inícios e persistência sob
o Estado Novo até ao pós 25 de Abril.64 Algumas destas famílias já vão na terceira,
quarta e quinta geração. A comunidade da Bela Vista fundou a sua Associação de

64. Sobre os problemas de habitação em meados do século XX e as formas de ocupação e autoconstru-


ção sob o Estado Novo, cf. Fernando Matos Rodrigues (2012), «O Problema da habitação em meados do
século XX. O movimento nacional de auto-construção durante o Estado Novo» in O Tripeiro, 7.ª Série,
Ano XXX, n.º 5, Maio de 2012, pp. 139-141. Sobre estes processos de formação das «ilhas» e bairros desde
o século XIX e XX, cf. também, a nível nacional, nomeadamente de Lisboa, Baptista (1999), Antunes (2020)
e do Porto, Cruz (1975), Coutinho (1982), Rodrigues e Silva (2015) e Queirós (2015).
| 176 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Fotografia 1. Fotomontagem da Localização da Ilha da Bela Vista, Rua D. João IV, 832.
Fonte: Arquivo do LABH.

Fotografia 2. Apresentação do Programa de Arquitetura Básica Participada na ilha da Bela Vista,


2015.
Fonte: Arquivo do LAHB.
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 177 |

Moradores em pleno clima do PREC. Com o fracasso da operação SAAL na Bela


Vista a Associação de Moradores foi perdendo a chama. Mais tarde, os morado-
res, para fazerem valer os seus direitos, mas com base no Decreto-Lei 594/74 de
7 de Novembro, vão refundar a Associação de Moradores com nova escritura e
novos estatutos. 65 Selecionamos no terreno a «ilha» da Bela Vista no Porto como
um caso exemplar não só de metodologias participativas, como também de inves-
tigação-ação. Dado o interesse que tal experiência tem para os especialistas e para
o público em geral, faremos uma breve apresentação do trajeto de pesquisa na
«ilha» da Bela Vista.
No Porto a governança local liderada pela Câmara tem promovido, ao longo de
décadas e, inclusive, no momento presente, alegadamente programas de regenera-
ção e reabilitação urbana dentro e fora do centro da cidade (ARU do Centro Histó-
rico, a ARU de Campanhã, a ARU do Bonfim, ARU da Lapa, ARU dos Aliados). Tais
programas, promovendo um aumento de renda urbana com base na dita lei da oferta
e da procura mas sem justificação económica e social, sem justiça e equidade fiscal,
incendiaram o solo urbano, colocando em causa a cidade como construção cole-
tiva. No caso particular da política da habitação, esta tem sido entendida mais como
um negócio do que como um bem público a partilhar. As políticas (neo)liberais do
governo da cidade do Porto, guiadas pelo interesse da renda e do lucro imediato,
bem como pelo conceito de cidadão/ã como homo oeconomicus, têm transformado
a vida da cidade, não em função dos bens públicos e dos interesses coletivos, mas
em função das rendas e preços especulativos do mercado de habitação e da finan-
ceirização da vida económica. Esta gestão política da cidade, refém dos parâmetros
económicos da ideologia neoliberal, remete-nos para a eliminação daquilo que Arendt
(2006) designou como «vida normal» e para o confinamento de vida pautada pela
“necessidade”(cf. Marx e Engels (1976/1846). A questão que que pertinentemente
se coloca é a seguinte: sendo esta não só uma prática recorrente nos mandatos ante-
riores desde os anos 1980 até ao presente, como se compreende e explica o relativo
sucesso de reabilitação e renovação da «ilha» da Bela Vista, passados 45 anos após
a primeira experiência realizada pelo SAAL? Que fatores contribuíram para este
caso excepcional de relativo sucesso, o qual, perante o panorama geral no país e
na cidade, foge à política dominante na atual Câmara Municipal do Porto e, em
particular, na empresa pública da Domus Social, ocupada com a gestão da dita
habitação social mas entrelaçada com outros interesses (semi)ocultos?

65. Cf. Decreto-Lei n.º 594/74 de 7 de Novembro que vem reconhecer o direito à livre associação, susten-
tando, aliás pela primeira vez, que o «direito à livre associação constitui uma garantia básica de realiza-
ção pessoal dos indivíduos na vida em sociedade. O Estado de Direito, respeitador da pessoa, não pode
impor limites à livre constituição de associações. (…) No processo democrático em curso, há que suprimir
a exigência de autorizações administrativas que condicionavam a livre constituição de associações e o seu
normal desenvolvimento». Cf. ainda a publicação dos Estatutos da Associação de Moradores em Diário
da República, n.º 501, III.ª Série, de 1 de Outubro de 1975.
| 178 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Neste texto procuramos descrever e analisar este processo, tendo em conta os


diversos atores e instituições que, de algum modo, colaboraram numa operação
de reabilitação que não seguiu os cânones ou padrões estabelecidos de cima para
baixo, mas implicou a envolvência dos próprios moradores/as, técnicos, políticos
e gestores. A operação da Bela Vista (2013-2017) na cidade do Porto, implemen-
tada por membros do LAHB/CICS.Nova_UMinho, pela Imago e pela Associação
de Moradores, associando-se mais tarde o Pelouro de Habitação da Câmara Muni-
cipal do Porto, teve por base um processo de aproximação teórico-prático a partir
de uma experiência de investigação-acção, na qual participaram os vizinhos da
«ilha» da Bela Vista e os membros da equipa multidisciplinar em torno da imple-
mentação de um programa de arquitectura básica participativa no quadro de um
processo de renovação e reabilitação66.

Fotografias 3 e 4. Reúnião de trabalho com os moradores/as e equipa técnica do LAHB/CICS.Nova_


UM, 2014.
Fonte: Arquivo do LAHB.

66. O Laboratório de Habitação Básica (LAHB) foi instalado na Sede da Associação de Moradores da
«ilha» da Bela Vista durante o período em que decorreu a operação de renovação da Bela Vista entre finais
de 2013 até finais de 2017. Para aí instalar o LAHB foi preciso demolir algumas paredes interiores e intro-
duzir algumas precondições infraestruturais básicas como, por exemplo, água canalizável, luz eléctrica e
melhorias nos telhados. As obras foram realizadas com a colaboração dos membros da direcção da Asso-
ciação de Moradores, sendo de destacar a colaboração e o empenho de António Fontelas Lopes, Aloísio
Pinto e Mário Pinto da Direção da Associação e do morador Luís Pinto. Salvo quando estejam em causa
factos que merecem reserva por parte das pessoas envolvidas, a quem atribuímos iniciais ou nomes fictí-
cios, em regra nomeamos os nomes dos moradores e sobretudo responsáveis da Associação, atendendo
não só a não colocarem qualquer objeção, como inclusive terem brio de serem resistentes e resilientes
neste processo e na vitória alcançada.
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 179 |

Este projeto de renovação e reabilitação de uma «ilha» degradada, tendo por


base uma componente de participação dos moradores/as e uma outra de compro-
misso social de técnicos e cientistas sociais no quadro de um projeto de investiga-
ção,67 visou igualmente um processo de empoderamento duma comunidade. Embora
habitualmente neste tipo de processos seja frequente o uso de termos como parti-
cipação, participante e participativo não raro como conjunto de «palavras mági-
cas», consideramos que a participação constitui um processo complexo que implica
envolvimento e compromisso entre os diversos atores (especialistas, moradores/as
e políticos) desde o início da operação até à conclusão do processo, convergindo
e traduzindo uma faseada metodologia de investigação-acção.

Fotografias 5 e 6. Estaleiro/Obra – 1.ª Fase – colocação dos moradores nas habitações para o início
de obra.
Fonte: Arquivo do LAHB.

No caso da «ilha» da Bela Vista a equipa de pesquisa e intervenção, integrada


no CICS.Nova_UM/LAHB, acompanhou todo o processo desde o início da opera-
ção, passando pelo realojamento interno no seio da «ilha», a instalação do estaleiro
e a construção em duas fases. Neste contexto, os técnicos, investigadores e mora-
dores/as não aceitaram o realojamento e a deslocação dos moradores/as para o
exterior durante a execução da obra. Os moradores/as da «ilha» da Bela Vista vive-
ram dentro de um estaleiro, o que obrigou a desenhar um plano faseado mas par-
ticipado com os moradores/as, a equipa do LAHB e a equipa da fiscalização de obra

67. Trata-se do projeto aprovado e financiado pela FCT intitulado «Modos de vida e Formas de Habitar:
as ilhas e bairros populares no Porto e em Braga» (PTDC/IVC-SOC/4243/2014/), sob coordenação cientí-
fica do Investigador Manuel Carlos Silva, da Universidade do Minho, posteriormente resubmetido em
Dezembro de 2015 ao abrigo do Aviso do Sistema de Apoio à Investigação Científica e Tecnológica (SAICT)
de 30 de Outubro de 2015, sendo iniciado em Setembro de 2016 após nova aprovação das entidades euro-
peias no quadro do Programa Horizonte 2020.
| 180 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

e a construtora. Realizou-se um plano de realojamento interno numa parte da ilha,


enquanto se reconstruia noutra parte, estabelecendo um programa de regras e de
prevenção e acautelamento sobre os riscos. Felizmente não houve um único acidente
nem qualquer problema que envolvesse moradores/as e operários ou máquinas.68
Tendo por base as metodologias aplicadas e as experiências práticas, como
veremos de seguida, foi possível construir um projecto de habitação básica parti-
cipada para a comunidade da Bela Vista. O programa começou em 2013 com a pre-
paração da instalação do LAHB na «ilha» e terminou em 2017 com a obra de reno-
vação concluída.69

Fotografias 7 e 8. Estaleiro/Obra – 1.ª Fase de Reabilitação da ilha da Bela Vista, 2016.


Fonte: Arquivo do Lahb.

68. Importa realçar a excelente colaboração dos fiscais de obra nas pessoas de Sidónio Oliveira, Ilda Duarte
e Rosa Costa da COTEFIS na forma como acompanharam as obras nas casas de realojamento e durante
as duas fases de obra, bem como no excelente relacionamento com a equipa do LAHB/Imago, a Associa-
ção de Moradores e comunidade em geral.
69. Cf., por exemplo, o livro-catálogo A Cidade da Participação, organizado por Rodrigues et al. (2017)
e publicado pelo LAHB/CICS.Nova_UMinho e pelas Edições Afrontamento com a colaboração da fotó-
grafa Susana Varela.
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 181 |

2. Uma experiência singular: metodologias participativas num


processo de construção coletivo
Pelo que concerne o processo de reabilitação e renovação da Bela Vista houve
desde a primeira hora a preocupação de levar a cabo um trabalho antropológico e
etnográfico com base numa abordagem qualitativa, nomeadamente na observação
participante dentro e fora da «ilha», mas sem nunca perder de vista o propósito no
quadro de uma investigação-ação, que exige a maior proximidade possível entre
moradores/as, especialistas e investigadores/as não só do ponto de vista cognitivo
mas também afetivo (cf., a este respeito, Almeida e Pinto, 1990; Hannerz, 1993:19;
Signoreli, 1999; Caria 2003:37 ss; Silva, 2003 e 2012:198).

Fotografias 9 e 10. Trabalho colaborativo entre moradores/as e a equipa do LAHB.


Fonte: Arquivo do LAHB.

Foi neste contexto socio-espacial e urbano que a operação da Bela Vista se foi
construindo, enquanto processo participativo, fazendo uso das metodologias da
investigação-ação e participação (IAP), tal como grosso modo desenhado por Vil-
lasante et al. (2000: 11-18, 35-37) e tendo em conta a tipologia de Arnstein (1969),70

70. Cf., por exemplo, a Escada da Participação Cidadã (Ladder Of Citizen Participation), da autoria da
especialista Sherry R. Arnstein (1969), a qual apresenta oito tipos de participação na sua obra, os quais,
por sua vez, são categorizados em três compartimentos: (i) Poder do Cidadão: Controle do Cidadão, Poder
| 182 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

que insiste na importância dos processos participativos para benefício coletivo,


considerando a participação a chave que garante a justiça espacial, estreitamente
ligada ao direito à cidade. De resto, este princípio da participação vem consagrado
no artigo 53 da recém aprovada Lei de Bases da Habitação.71

Fotografias 11 e 12. Trabalho colaborativo entre moradores/as e equipa do LAHB.


Fonte: Arquivo do LAHB.

Tendo em conta estes princípios, a equipa organizou-se, tendo como base os


princípios da IAP. E foi a partir de finais de 2013 que construímos uma estratégia
e um programa de arquitectura básica participada para a «ilha» da Bela Vista com

Delegado e Parceria; (ii) Tokenism: Colocação, Consulta e Informação; (iii) Não Participação: Terapia e
Manipulação. Define a «Participação do cidadão» como a redistribuição do poder que permite aos cida-
dãos/ãs que se encontram excluídos dos processos políticos e económicos de participarem na sua elabo-
ração e gestão.
71. Cf. Lei de Bases da Habitação, Lei n.º 83/2019 de 3 de Setembro publicada em Diário da República,
1.ª Série, n.º 168, pp. 11-33, aprovada graças à determinação da Comissão do Ambiente, Ordenamento
do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação e por pressão do BE, do PCP e do PEV que con-
taram com o empenho da deputada independente Helena Roseta pelo PS e a ala esquerda deste, colo-
cando, em plena crise habitacional sobretudo nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, o problema de
carência habitacional na agenda política, agravada com a legislação ultraliberal ao tempo do governo do
PSD/CDS. O referido artigo 53 vem inserido no Capítulo VIII – Informação, participação, associativismo e
tutela de direitos: Artigo 53.ª – Direito à Participação. No primeiro item é referido que «os cidadãos têm
o direito de participar na elaboração e revisão dos instrumentos de planeamento público em matéria de
habitação, ao nível nacional, regional e local». No segundo item se afirma que o «Estado, as regiões autó-
nomas e as autarquias locais promovem a participação ativa dos cidadãos e das suas organizações na con-
ceção, execução e avaliação dos programas públicos de habitação».
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 183 |

o envolvimento dos moradores/as e a Associação de Moradores, como referido.


Perspetivando uma abordagem holística da comunidade, foram criadas unidades
de observação com uma certa regularidade, permitindo compreender as relações
de dentro e de fora e o que se passava dentro da «ilha», quem vivia na «ilha» e
quem vivia longe dela mas mantinha uma relação com os de dentro. Foram cons-
truídas grelhas de parentesco de forma a compreender os vínculos entre os de
dentro e os de fora, acabando por constatar que havia laços muito fortes entre as
famílias que residiam dentro da «ilha» e fora dela.
O processo também teve o apoio metodológico e teórico do trabalho de inves-
tigação desenvolvido no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.Nova),
da Universidade do Minho, tendo por base um olhar focado na investigação-acção,
bem longe de investigações que vêem os moradores/as como simples «objectos»
de estudo, negando-lhes o estatuto de sujeitos e protagonistas em tais processos
em contextos de pesquisa ora rural ora urbana.72 A equipa coordenadora do pro-
jecto de habitação básica participada73 desenvolveu todo o processo de renovação
da «ilha» da Bela Vista, tendo como base as metodologias aplicadas e as experiên-
cias práticas que foram sendo testadas ao longo dos anos de programação e imple-
mentação. Em suma, foi assumido que os moradores/as são cidadãos/ãs atores e
protagonistas neste processo de construção do projeto de arquitetura básica da
«ilha» da Bela Vista, aliás em conformidade com várias declarações a nível nacio-
nal e internacional.74
Este processo de renovação da «ilha» da Bela Vista assenta num trabalho de
campo traduzido não só em inquéritos mas sobretudo em entrevistas e observa-
ção participante e diversas conversações mais aprofundadas de modo a conhecer,

72. Cf. Silva, 1998 e 2003; Ribeiro, 2010 e 2017; Rodrigues e Silva, 2015; Rodrigues et al., 2017. Cf. também
trabalho de campo noutros contextos: Rabinow (1992), Rahnema (2012), Guber (2004). No caso concreto
do processo da «ilha» da Bela Vista o desenho contou também com a experiência dos trabalhos teórico-
-práticos, desenvolvidos ao longo de vários anos por Fernando Matos Rodrigues na cadeira de Antropo-
logia do Espaço integrada no Curso de Arquitetura da Escola Superior Artística do Porto (ESAP) (cf. Rodri-
gues, 2005, 2014 e 2015), assim como por António Fontes na docência e investigação em Cursos de Enge-
nharia e Arquitetura, nomeadamente em Engenharia de Estruturas e Construção, por um lado e, por outro,
por Manuel Carlos Silva (2012), cuja obra «Socio-Antropologia rural e urbana» utilizada em disciplina do
curso de Sociologia na Universidade do Minho foi igualmente útil.
73. A equipa coordenadora do projeto de habitação básica participada foi constituída por Fernando Matos
Rodrigues, Manuel Carlos Silva, António Cerejeira Fontes e André Cerejeira Fontes, que simultaneamente
desempenham funções na direção do Laboratório de Habitação Básica (LAHB). Durante a operação da
«ilha» da Bela Vista também fizeram parte da equipa do LAHB os jovens arquitetos/estagiários Fábio Filipe
Rodrigues Azevedo e Catarina Pires, nomeadamente entre 2014 e 2016.
74. Cf. a Carta Mundial do Direito à Cidade, UNESCO. Com a aprovação da Lei de Bases da Habitação
ficou consignado o direito ao lugar, à participação e à habitação digna: cf. Lei n.º 83/2019 de 3 de Setem-
bro, Diário da República, 1.ª série – N.º 168, 3 de Setembro de 2019, pp. 11-33. Cf. também a Carta do
Porto. Para a Reabilitação das Ilhas da Cidade, aprovada em Seminário no dia 17 de Junho de 2017 e edi-
tada pelo Laboratório de Habitação Básica no mesmo ano.
| 184 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

compreender e interpretar os «modos de vida e formas de habitar» desta comuni-


dade, tendo por base, a par da construção de cartografias sobre o habitat e o habi-
tar da comunidade, o processo de arquitetura básica participada (cf. Rodrigues
et al., 2017).

Fotografias 13 e 14. Trabalho Etnográfico na ilha da Bela Vista.


Fonte: Arquivo do LAHB.

Com o tempo e a confiança que se foi construindo, foi possível entrar nas casas
dos moradores/as, os quais foram abrindo as arcas e as gavetas para dar vida e
uso às fotografías antigas, onde se identificam parentes que já partiram, parti-
lhando memórias, dores e afetos. As recordações – umas boas e outras nem por
isso – vêm ao de cima com certa cumplicidade, a pequena casa transforma-se num
espaço de partilha. Recordam-se «estórias», trajetos de vida, vidas longas e cheias,
outras curtas e injustas. Arquivos de memórias, álbuns de familia, segredos bem
guardados pelo tempo e pelo silêncio, as conversas convocam memórias, em que
o silêncio profundo do olhar habita neste pequeno mundo que se revela de forma
tão poética e tão sentida.75 A palavra dá sentido, organiza e identifica as imagens

75. Sobre a relevância da memória na reconstrução da identidade das famílias e da comunidade, cf. Candau
(2006). No caso concreto do estudo sobre a comunidade da «ilha» da Bela Vista e, em particular, sobre as
memórias da senhora Ana ou, mais carinhosamente «Aninhas», a descoberta dos seus escritos poéticos –
que posteriormente a equipa, designadamente o Fernando Matos Rodrigues se empenhou em publicar –
foi possível reconstruir graças ao convívio de membros da equipa com a senhora Ana, a qual passava a
maior parte do seu tempo na sala. Sentava-se sempre no mesmo lugar, um lugar com grande valor afetivo
para ela, pois era ali que se sentava o seu marido. É na sala que fazia as suas refeições, lia o jornal e via
televisão. Ultimamente, não utilizava o sofá, pois encontrava-se já degradado, querendo adquirir um novo
e mais pequeno (dois lugares) para a nova habitação, quando reabilitada. Em relação ao mobiliário exis-
tente, a senhora Ana apenas queria levar um móvel grande que se dividia em duas partes, podendo dis-
pensar a parte de cima, dependendo do estado em que se encontrasse. Nesta divisão a idosa tem foto-
grafias em que está com o seu marido. Ainda como decoração tem um quadro da equipa do Futebol Clube
do Porto no ano em que se sagrou campeão europeu e um quadro de Nossa Senhora de Fátima, os seus
dois símbolos de ordem afetiva e religiosa. Este quarto funciona como quarto de arrumos, onde a senhora
Ana aproveita para ter o frigorífico e um armário com arrumos e, como tal, é uma divisão pouco utilizada.
O quarto onde a senhora Ana dormia era composto por uma cama, duas mesinhas de cabeceira e uma
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 185 |

que, num fluir de partilha e de compromisso, vão revelando as suas histórias de


vida e de suas famílias na comunidade de pertença.
As nossas cartografias centraram-se no espaço coletivo e no espaço doméstico.
Este é composto por uma sala pequeña, geralmente com uma mesa ao centro, redonda
ou rectangular, com varias cadeiras à volta, um sofá, um móvel onde são coloca-
dos pratos decorativos. A sala tem ainda um frigorífico que suporta a televisão.76
Foi neste contexto que apreendemos e descodificamos formas de pensar e o
modus operandi dos moradores/as na procura de «soluções», ainda que precárias,
em auto-construção para problemas concretos tais como, por exemplo, a ausência
de saneamento, de iluminação pública, problemas construtivos, a falta de espaço
nas células, a ausência de ventilação dentro do habitáculo, a ausência de sanitá-
rios, de cozinhas e de aquecimento nas casas.77 O uso do tempo, o deles em even-
tual confronto com o nosso, permitiu-nos compreender os espaços relacionais entre
os seus e o dos outros, contribuindo para aceder ao sentido das coisas, dos obje-
tos no espaço, das suas formas de habitar e organizar a vida. Por outro lado, a
co-presença na «ilha» permitiu-nos interpretar e conhecer as suas identidades, a
relação entre o espaço público ou «região frontal» e o privado ou «região de reta-
guarda», a apropriação do próprio espaço, sendo este o ponto de partida para conhe-
cer o espaço do outro-ausente ou presente (cf. Goffman, 1973; Remy, 1973; Giddens,

cómoda. Todo o mobiliário é pretendido para levar para a nova casa reabilitada. Assim como na sala, desde
o falecimento do seu marido, esta senhora idosa optou por dormir no lugar que lhe pertencia. O quarto
era composto por uma cama de solteiro e armário pertencentes ao seu falecido sobrinho, quarto esse tão
pouco utilizado. Este mobiliário possivelmente será cedido à sua vizinha e comadre, a senhora Rita, também
chamada de Ritinha. Quando à cozinha, no momento que a entrevistamos, desde que se magoara na
perna, a senhora Ana não cozinhava, sendo a senhora Rita, sua vizinha, quem lhe fornecia as refeições. Os
móveis existentes na cozinha estavam deteriorados, não os querendo para a nova casa. Desta divisão
apenas queria levar a mesa para a futura sala da nova casa. Reservou um espaço nesta divisão para cuidar
da sua higiene, dispondo de um balde com suporte e uma pequena estante na parede onde colocava os
produtos de higiene. Quanto ao penico, era de metal, uma vez que, não tendo saneamento em casa, a
senhora Ana tinha que posteriormente deitar os resíduos na casa de banho comum na «ilha».
76. Por exemplo, antes da reabilitação da «ilha», a Ritinha realizava as refeições para a sua família (marido
e filha Carla e, por vezes, os filhos Luís e o António e os netos) e para as suas vizinhas. Nesta divisão eram
visíveis os canos nas paredes, assim como a humidade. O quarto do piso inferior era ocupado pelo senhor
Armando, o qual passava grande parte do tempo lendo o jornal, vendo televisão e tomando as refeições.
No piso superior existiam dois quartos: um ocupado pela filha Carla e outro pelo filho Luís. O quarto da
filha era composto por uma cama de solteiro e um pequeno móvel que suportava a televisão. Nesta divi-
são era visível também a humidade. A cozinha, pintada de cor verde, de pequena dimensão, tinha um fogão,
uma mesa com uma bacia que funcionava como banca de lavar a louça e preparação de alimentos. Nesta
divisão existía ainda a máquina de lavar roupa. Esta casa não tinha quarto de banho nem água quente.
77. Cf. Rodrigues (2014). Cada um foi resolvendo as deficiências do seu habitáculo conforme a sua pos-
sibilidade. O senhor MP foi fazendo as obras com a ajuda de amigos e familiares que trabalhavam na cons-
trução civil. Outros pelas suas próprias mãos. Poucos recorriam a mão-de-obra de fora da «ilha». O sanea-
mento e a iluminação das vielas e dos corredores da «ilha» foram realizados com a mão-de-obra dos mora-
dores/as e com a ajuda em materiais por parte da Junta de Freguesia do Bonfim em finais do século XX
(cf. Rodrigues et al., 2015a, 2015b).
| 186 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

1989). A observação direta com momentos de grande interação, conversação e par-


tilha com os moradores/as permitiu recolher informação, em termos de quantidade
e qualidade, de modo a potenciar um bom uso da mesma no projeto e sua imple-
mentação e responder aos problemas de carência habitacional e às aspirações dos
moradores/as desta comunidade-«ilha». Estamos assim perante a implementação
de processos de investigação-acção com forte envolvimento e participação dos
moradores/as e, mormente, da sua Associação na definição dos respetivos progra-
mas e desenho dos projectos, a partir dos quais é possível a construção de reali-
dades alternativas-activas (Chambers, 2012: 157 ss).
A riqueza da experiência etnográfica e a co-presença na comunidade, sendo
extremamente relevante não só para compreender e interpretar a realidade de deter-
minada «ilha» ou bairro popular, contribuem, tal como referem Bourdieu et al.
(2002:2), para desconstruir retóricas apriorísticas ou narrativas descontextualizadas.

Fotografias 15 e 16. Trabalho colaborativo no Lahb.


Fonte: Arquivo do LAHB.

Porém, por outro lado, tal como advertem os mesmos autores, a dimensão prá-
tica e empírica não pode nem deve alhear-se das questões epistemo-metodológicas
e das abordagens teóricas, considerando necessária uma prática de pesquisa cen-
trada na construção de um conhecimento que tem por base justamente a proble-
matização teórica e a procura de rigor método-técnico na investigação empírica.
Assim, a prática sociológica e o saber comprometido (Bourdieu et al., 2002) não
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 187 |

pode abdicar da «mediação e do aparato teórico e técnico», não devendo «desva-


lorizar nenhum dos instrumentos conceptuais ou técnicos que dão rigor e força à
verificação experimental». Com efeito, todo o processo de trabalho de investigação-
-ação e participação na «ilha» da Bela Vista teve sempre presente essa procura e
fundamentação teórica e conceptual sem ignorar não só o conhecimento empírico
da realidade da «ilha», como ainda a dimensão participativa78 da comunidade num
quadro de compromisso com esta (Silva, 2003: 177-82).
Este processo não pode nem deve ignorar os movimentos de resistência e de
luta pelo direito à habitação na cidade do Porto, os quais, ainda que incidentais, par-
celares e nem sempre coordenados e eficazes na ação, são certamente relevantes79.

78. No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001:2762-63), edição da Academia das Ciên-
cias de Lisboa, Participação vem do latim participatio, isto é, ação ou resultado de intervir, de tomar parte
em alguma coisa, igual a intervenção. Mas é acima de tudo entendida como ação ou resultado de cola-
borar ativamente, de se solidarizar e associar a outrem na realização de alguma coisa. O participante é
aquele que está presente, intervém, toma parte. Participar significa tomar parte, estar presente e intervir,
ter participação. A partir desta complexidade linguística, podemos declarar que todo o projeto participa-
tivo exige das pessoas um envolvimento e um compromisso muito maior do que outras formas de traba-
lho. Neste sentido, os projetos participativos têm um efeito catalisador na forma como reforçam a voz da
comunidade na defesa dos seus direitos. Participação não se circunscreve a informação e consulta, que,
mesmo quando necessária na pesquisa, não se confunde com participação ou, pretendendo-a aparentar
como tal, redunda em «falsa participação». Por exemplo, Lefebvre (1976) sobre o problema da «falsa» par-
ticipação insistia muito na ideia de que pode haver uma participação ilusória: por exemplo, «reunir duzen-
tas pessoas numa sala e apresentar-lhes um programa, afirmando que este é o plano que se elaborou. Isto
nem sequer é uma consulta, isto é publicidade, é uma falsa participação» (1976:4 e ss.). Pineda (2006) con-
sidera que a «participação deve ser entendida como governança, compreendendo esta a forma como faz
a redistribuição do poder desde o Estado aos atores sociais e, nalguns casos, como parte do processo da
produção social do habitat, vinculando a auto-gestão aos processos de baixo para cima» (2006: 51). Este
autor reconhece a existência de diferentes maneiras de abordar a questão participativa: por exemplo, no
desenho e na definição das políticas públicas, na planificação urbana e na configuração dos bairros, assim
como no desenho da habitação. Considera também que a participação pode dar-se em distintas etapas
dos processos: participação nos diagnósticos, nos objetivos, na programação e na planificação, nos dese-
nhos, na realização até à operação e gestão dos projetos. Estamos em plena sintonia com o autor porque
só podemos falar de participação quando os moradores se transformam em atores e os investigadores a
colocar-se no lugar dos «moradores/as», isto é, quando os habitantes deixam de ser apenas beneficiários
e passam a ser atores com poder de decidir sobre o programa e o processo, a obra e a sua execução.
79. Sobre os novos movimentos urbanos de luta pelo Direito à Habitação realçamos a concentração no
dia 7 de Abril de 2018, pelas 15 horas na Praça da Batalha sob o lema «Mais Habitação, Menos Especu-
lação!» e a marcha na cidade do Porto, no dia 22 de Setembro de 2018 sob o lema «Pelas Nossas Vidas.
Pelas nossas. Lutamos». É de referir também a concentração no Largo de São Pedro de Miragaia dos mora-
dores do centro histórico do Porto que estavam a ser expulsos de suas casas, de seus bairros pela aplica-
ção da Lei Cristas (também conhecida como a Lei «Caracol») e da pressão do Alojamento Local. Sobre estas
lutas nalgumas ilhas e bairros sociais, nomeadamente em anos anteriores, Fernando Matos Rodrigues,
enquanto antropólogo e ativista, foi dando expressão pública em diversos artigos seus publicados em
diversos jornais, nomeadamente sobre a «ilha» aqui em estudo, sendo de destacar entre outros, os seguin-
tes: «Para uma antropologia do habitar. As Ilhas do Porto» in O Tripeiro, 7.ª Série, Ano XXX, n.º 11, Novem-
bro de 2011, pp. 326-327; «Em defesa do direito à habitação no Bairro Nicolau do Porto» in O Público,
2 de Agosto de 2013; «A reabilitação da Ilha da Bela Vista. Novo paradigma nas políticas de habitação
para a cidade do Porto» in O Tripeiro, 7.ª Série, Ano XXXIV, N.º 1, Janeiro de 2015, pp. 8-9; «A propó-
sito da reabilitação da Bela Vista. A importância das Ilhas do Porto» in O Tripeiro, 7.ª Série, Ano XXXIV,
| 188 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Nestes últimos anos foi possível acompanhar várias comunidades que fizeram da
sua resistência a sua luta pelo direito ao lugar e à habitação. Destacamos os casos
da comunidade africana do Riobom, da comunidade da «ilha» da Tapada, do bairro
do Nicolau, do bairro D. Leonor, da comunidade de «ocupas» do Gama, do bairro
da Lomba, das ilhas da Póvoa (cf. Rodrigues e Fontes, 2018), os quais exigem planos
de reabilitação/renovação das casas que, atendendo aos seus baixos recursos,
possam ser realizados a baixo custo, com apoio do próprio Estado central e/ou da
Câmara, preenchendo as condições necessárias para um habitar digno. A partir
desta ação pelo direito ao lugar e à habitação a equipa do Laboratório de Habitação
Básica foi construindo um caminho de compromisso, de confiança e de solidarie-
dade para e com as comunidades que se encontram em situação de forte vulnera-
bilidade social e habitacional na cidade do Porto80.
Em suma, não só a aplicação dos métodos e técnicas usuais em ciências sociais,
mas também a investigação-ação, a observação participante e a utilização de méto-
dos participativos com os membros da comunidade, enquanto atores e construto-
res, nos permitiram conhecer a «ilha» e seus moradores/as numa dimensão simul-
táneamente holística e compreensiva.

3. A investigação-ação no processo de reabilitação e renova-


ção da «ilha» da Bela Vista
Nos últimos anos, particularmente desde os processos de despejo de morado-
res das «ilhas» e dos bairros sociais por parte do Presidente da Câmara Rui Rio,
foram emergindo, sobretudo na parte final do seu último mandato, formas de resis-
tência aos despejos, tendo reaparecido novas formas de luta pelo direito à cidade,
traduzido em slogans tais como, por exemplo, «O Porto não se vende» numa clara
demarcação e contestação da expansão espacial e económica do capital financeiro
nacional e internacional, expressa nos processos de gentrificação e na prévia espe-
culação do solo urbano. Foi neste contexto que, na proximidade das eleições autár-
quicas de 2013, cidadãos/ãs, originários ou não das «ilhas» e dos bairros popula-

n.º 2, de Fevereiro de 2015 pp. 46-51; «Nova Vida para as Ilhas do Porto. A propósito da reabilitação da
Bela Vista na freguesia do Bonfim» in O Tripeiro, 7.ª Série, Ano XXXIV, N.º 3, Março de 2015, pp. 86-87.
Cf. ainda Rodrigues et al., (2017a).
80. A equipa do Laboratório participou na 11.ª Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Des-
centralização, Poder Local e Habitação na Assembleia da República em 8 de Fevereiro de 2018, pelas
14 horas em Audição com representantes dos moradores das «ilhas», nomeadamente a Pró-Federação
das Ilhas e Bairros Populares do Porto. Estiveram presentes pelo Laboratório Fernando Matos Rodrigues,
Manuel Carlos Silva, António Cerejeira Fontes e os membros da Associação de moradores da «ilha» da
Tapada. No quadro e na sequência desta Audição participou também Rui Moreira, Presidente da Câmara
Municipal do Porto.
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 189 |

res, entre os quais o da Bela Vista, condicionaram o apoio ao candidato indepen-


dente Rui Moreira a um compromisso de reabilitação e renovação deste bairro. Par-
tiam do princípio de que a concretização de tal desígnio só seria possível, se fossem
implementadas políticas económicas sólidas, contendo a expansão urbana e pla-
neando e desenhando a cidade com base no território, suas idiossincracias topoló-
gicas e sobretudo com o envolvimento dos seus moradores/as como co-constru-
tores da cidade e seus projetos de reabilitação das «ilhas» e bairros populares (cf.
Rodrigues et al., 2017 e, em geral, Salat, 2017:31 ss; Bourdic e Kamiya, 2017:69 ss).
Nesta parte retratamos fragmentos do processo de reaproximação aos morado-
res/as da «ilha» da Bela Vista, procurando identificar os constrangimentos e ter pre-
sente as memórias dos moradores/as sobre o anterior processo do SAAL, cujo desen-
lace acabou por gerar uma enorme frustração. Se, por um lado, importava ter pre-
sente os constrangimentos e superar essa recordação negativa não quanto ao pro-
cesso de participação mas quanto ao resultado nulo, por outro era necessário partir
das potencialidades, realidades e idiossincrasias dos moradores/as na construção
e no desenho de soluções. Impunha-se aprender, ao mesmo tempo que se traba-
lhava e se fazia parte do processo de desenhar a renovação das casas e dos espa-
ços exteriores na «ilha» da Bela Vista, a tentar realizar a necessária transformação
espacial e arquitectónica para um habitar digno dos moradores/as da «ilha».

Fotografia 17. Trabalho Colaborativo no LAHB.


Fonte: Arquivo do Lahb.

Ao tentar resumir em escrita o processo de construção de um plano de habita-


ção básica, damo-nos conta que o trabalho de projeto e reabilitação era diverso e
complexo, mas também exigente não só para nós, enquanto técnicos e cientistas
| 190 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

sociais, mas mais ainda para os moradores/as, cuja memória da primeira expe-
riência de participação no processo em 1975-76 não tinha dado qualquer fruto. Se,
por um lado, foi necessária uma reflexão meticulosa e comprometida sobre o caso,
por outro tornava-se fulcral que um novo fracasso não afetasse ainda mais pro-
fundamente esta comunidade em risco ou em situação de vulnerabilidade social
e psíquica. Por exemplo, vale a pena trazer à colação uma das primeiras entrevis-
tas com o morador Mário Pinto, membro da Direção da Associação de Moradores,
em que ele, com os seus 82 anos, lembrando a frustração do período SAAL em
1975/76, descreve a enorme desilusão da comunidade pela não concretização do
projeto do arquiteto Mário Moutinho:

«Foi um descrédito para toda a gente, uma grande frustração. A Associação come-
çou a desintegrar-se, perdemos quase tudo… Ficou sempre essa marca de dúvida em
qualquer promessa de renovação… e vinha logo, vai acontecer como nas outras vezes.
Nunca ninguém cá veio explicar nada, nem o porquê do processo ter ficado parado. A
Arquiteta F.A. fazia muito barulho, discutia muito com os moradores, mas nunca expli-
cou, nem nunca deu nada. Passados quatro anos, apareceu cá na “ilha” o Arquiteto M.T,
os habitantes queriam matá-lo, ele explicou todo o processo, dizendo que elas (as arqui-
tetas F.A. e M.C. do Fundo de Fomento da Habitação) não gostavam do projeto e o
assunto ficou resolvido. Enquanto decorreu o processo da Bela Vista o arquiteto S. V.
vinha cá muitas vezes, falar com a equipa dos arquitetos. Mas nunca mais cá voltou.
As pessoas foram desistindo e foram-se mudando para os bairros. A Câmara vinha cá,
quem quiser ir pode ir. O único que fez alguma coisa por nós foi o Dr. P.M.. Claro que
agora começamos a acreditar que vai ser desta vez».

Destes primeiros contatos com a comunidade, ficou bem claro que não havia
espaço para o fracasso na nova tentativa de relançar o projeto de habitação básica
participada na Bela Vista, doutro modo a comunidade ficaria totalmente desilu-
dida, o que levava Mário Pinto a dizer: «Não podemos voltar a ser a chacota da
rua». De facto, nas conversas, nas assembleias com os moradores, sentia-se este
clima de drama, de medo, de insegurança face à possibilidade de o projeto de habi-
tação básica participada não se concretizar. Por exemplo, a senhora C.P. sempre
teve muito receio de não se reabilitar a «ilha» da Bela Vista. Foram muitas as vezes
em que ela criticou A.F., o atual Presidente da Associação, acusando-o que ele
«andava enganado. Que tudo isto não passava de uma mentira». Só quando se
instalou o Laboratório de Habitação Básica na sede da Associação de Moradores,
na Casa 42 da «ilha» e sobretudo após a visita do Presidente da Câmara Rui Moreira
com o compromisso por parte deste com os moradores/as é que a «coisa» acalmou.
Estávamos em finais de Setembro de 2013 quando se realizou esse encontro entre
o Rui Moreira, os membros do Laboratório e os moradores/as no largo da entrada
da «ilha» da Bela Vista. Estávamos em plena campanha eleitoral autárquica, em que
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 191 |

um dos membros do LAHB colocou como condição de apoio eleitoral ao candidato


independente Rui Moreira e provável vencedor do cargo de Presidente da Câmara
de que fosse cumprida a promessa de reabilitação da «ilha» da Bela Vista, o que,
com o contributo de outros intervenientes, como referiremos, veio a acontecer.
Porém, para tal foi necessária a conjugação de vários atores a operar fora e dentro
do espaço institucional da Câmara Municipal, nomeadamente após a vitória de Rui
Moreira como Presidente de Câmara. Tendo sido alcançado um acordo entre o
movimento de Rui Moreira e o PS, foram necessárias várias assembleias e reuniões
entre Associação de moradores, a equipa do LAHB e investigadores do CICS-Nova.
Porém, neste quadro, para além de alguma abertura de Manuel Pizarro, como
Vereador do Pelouro da Habitação ao ponto de a Câmara apostar num apoio de
diagnóstico da situação das famílias, foram sobretudo dois outros Vereadores que
se empenharam afincadamente neste processo, a saber: Paulo Cunha e Silva, Verea-
dor da Cultura e Manuel Correia Fernandes, Vereador do Urbanismo. Apesar de
haver algumas pressões a partir da Domus Social para malograr o processo, a inter-
venção destes dois vereadores e, em particular, diversas reportagens dos meios de
comunicação social com a presença do Vereador da Cultura e a equipa tornaram
irreversível a aprovação concreta do projeto com a chancela do próprio Presidente
da Câmara que se tinha comprometido com esta promessa eleitoral de reabilitar a
«ilha» da Bela Vista.
Neste contexto o assunto que mais preocupava os membros da Associação de
Moradores da «ilha» da Bela Vista era o desalojamento e o problema dos valores
das rendas depois das casas reabilitadas. Nas últimas décadas a «ilha» tivera sido
vítima de processos de desalojamento forçado por parte da empresa municipal
Domus Social, colocando sob forte tensão e criando grande desconfiança perante
os poderes municipais responsáveis pela habitação.
Sujeitos a pressões institucionais e outras de vária ordem, os moradores/as
confrontam-se com a presença da equipa do LAHB a todo o momento, o que com-
porta vantagens e desvantagens, riscos e potencialidades para a implementação de
um programa de participação. Nem sempre era fácil terminar um trabalho, dar
andamento a uma situação mais técnica ou burocrática, mas aquilo que se ganhava
em termos de conhecimento, de envolvimento e compromisso era muito mais forte
e determinante para o caminhar deste processo do que aquilo que se podia «perder»
em termos de eficiência. Esta situação de negociar permanentemente com os mora-
dores/as e, em particular, com necessidade de ter a participação da Direção da
Associação resultou ser a maior força desta operação, sendo de destacar Mário Pinto,
António Fontelas, Domingos Aloísio Moreira, Conceição Pinto e Manuel Ferreira.
Eram fonte de estímulo e de motivação para todos/as, na medida em que a parti-
cipação dos moradores/as fazia desta operação uma obra coletiva para benefício
de todos/as.
| 192 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Como se pode ver, na descrição deste processo estão presentes, para além da
participação dos próprios moradores/as e, em particular, do empenho da Associa-
ção de moradores/as, mais dois fatores fulcrais para a verificação das precondições
básicas necessárias para o sucesso da ação coletiva da comunidade: a participação
de técnicos e cientistas sociais capazes de garantir a apresentação da proposta e
o compromisso político dos sucessivos atores políticos que viriam a deter os ins-
trumentos de poder para aprovar e implementar o projeto.

Fotografias 18 e 19. Seminários no âmbito da Operação Bela Vista.


Fonte: Arquivo do LSHB.

A operação da Bela Vista foi precedida por um conjunto diversificado de even-


tos, tais como seminários, palestras, debates, encontros, assembleias, reuniões entre
a comunidade, os membros do Laboratório, investigadores do CICS.Nova_UMinho,
políticos locais e dirigentes associativos da cidade. Em 2014 organizamos o Semi-
nário Sobre Antropologia do Espaço, com a participação dos moradores/as e dos
representantes políticos locais, especialmente do Vereador do pelouro da Habita-
ção da Câmara Municipal do Porto, Manuel Pizarro e do Vereador do Urbanismo,
Manuel Correia Fernandes, realizado no Palácio da Bolsa. Ambos os seminários
tiveram como coordenação científica a equipa do LAHB e investigadores do CICS.
Nova_UMinho, contando com a presença de investigadores nacionais e especialis-
tas internacionais nestes temas da habitação participada81.

Na «ilha» da Bela Vista foi possível colocar em ação todo um conjunto de solu-
ções participativas, desde o momento em que o Laboratório de Habitação Básica
(LAHB) se instalou em inícios de 2014 na sede da Associação de Moradores da Bela

81. Participaram nestes seminários especialistas nacionais e estrangeiros de várias organizações e insti-
tuições universitárias como, por exemplo, Sílvia Ferreira, Manuel Carlos Silva, Fernando Bessa Ribeiro, Elena
Tarsi, Marco Kamiya, Javier Poyatos Sebastián, Graeme Bristol, Taís Sousa, entre outros.
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 193 |

Vista a convite do seu presidente António Lopes Fontelas, permitindo assim uma
maior proximidade com os moradores e seus problemas, seus modos de vida e
formas de habitar. Com a deslocação da equipa do LAHB para a «ilha» da Bela Vista
foi possível aumentar o índice de envolvimento e o coeficiente de presença e inte-
ração, interconhecimento e partilha de forma acentuada, de tal maneira que os
moradores/as e os corpos sociais da associação participaram ativamente na cria-
ção de condições físicas para aí se instalar o LAHB, pintando paredes, colocando
lâmpadas, instalando os sanitários, a água pública, derrubando paredes interiores
para aumentar o espaço disponível para aí se instalarem máquinas, estiradores,
mesas de reunião, computadores e plotter para impressões. Mas a participação dos
moradores/as e, em particular, dos membros da Associação não se circunscrevia
a tarefas manuais mas estes dispunham-se, amiúde por iniciativa própria, a entrar
na discussão e no desenho de novas propostas e novas soluções, nomeadamente
para resolver algumas patologias de construção, assim como deficiências do habi-
tat e do habitar na «ilha» da Bela Vista. Os moradores/as e, em particular, os mem-
bros da Associação não só discutiam ideias e opções, de modo quente e animado,
aberto e crítico, como por vezes riscavam sobre o papel. Estávamos perante um
contexto muito singular e um espaço de portas abertas, em que toda a gente batia
à porta e entrava.
Assim, começaram os trabalhos participados entre os membros do LAHB e os
moradores/as. O envolvimento entre comunidade e especialistas permitiu a cons-
trução de um espaço de partilha de saberes e competências e de forte compromisso,
necessários à implementação da operação de renovação da Ilha da Bela Vista. Cada
morador/a colaborava de acordo com as suas possibilidades e as suas habilidades
e competências, desde a moradora que ajudava na limpeza e arrumos, passando
pelo morador que colaborava em obras para adequar o espaço aos novos usos, até
à organização do laboratório, na eficiência das suas atividades e na instalação da
tecnologia e mobiliário. O laboratório era, assim, um espaço aberto, plural, ser-
vindo os moradores/as e possibilitando à equipa do LAHB desenvolver a sua ati-
vidade para benefício dos moradores/as da «ilha» da Bela Vista. Os espaços eram
partilhados pela comunidade, pela Associação de moradores/as e pelos membros
do LAHB. Não havia portas fechadas nem espaços de exclusão. O LAHB era, por
natureza e função, um prolongamento da comunidade, com a qual interagia e com
a qual se identificava, enfim, um espaço de trabalho mas também e essencialmente
um lugar de encontro, discussão e partilha, em que todos/as depositavam a espe-
rança de serem bem sucedidos.
Construída uma base de confiança e, por vezes, cumplicidade, tal permitiu aos
investigadores/as, como referido, entrar nas casas dos moradores/as, de modo a
falarem sobre as suas vidas, os seus problemas e suas aspirações. A partir de um
certo momento, as pessoas começaram, como referido, a partilhar fotografias anti-
| 194 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

gas da família, da «ilha», das festas, dos casamentos, os nomes dos pais, dos filhos,
dos parentes ausentes, dos que já tinham morrido e daqueles que ninguém já
queria falar; possibilitaram-nos o acesso a correspondência familiar e de amigos,
a diários, a poemas, inclusive documentos pessoais. Desta forte e densa relação
foi possível, por exemplo, recuperar e recolher um conjunto de poemas da D. Ani-
nhas, uma das moradoras na Bela Vista, os quais, com sua autorização, foram,
como referido, posteriormente editados em livro pela Editora Afrontamento em
parceria com o Pelouro da Cultura da Câmara Municipal do Porto e do Laborató-
rio de Habitação Básica.82 A partir desta etnografia prática fomos entrando nas
memórias dos moradores/as da Bela Vista, estabelecendo diálogos entre o passado
e o presente, habitando o silêncio das genealogias e dos parentescos próximos ou
longínquos, «escavando» um pouco o seu passado, mas caminhando juntos no pre-
sente numa caminhada construída passo a passo. Com efeito, a habitação, exer-
cendo diversas funções, é abrigo, espaço de lazer, espaço de segurança e privaci-
dade, espaço de posse e apropriação do território, espaço de organização da vida
individual, familiar e social, mas também é um fator estruturante na definição da
sua posição social e identidade familiar. Em suma, a habitação é o espaço onde a
pessoa se permite estabelecer relações de vizinhança e relações sociais (Giddens,
1989; Silva, 2012), um espaço onde, no contexto urbano envolvente de forte desi-
gualdade socio-espacial, se pode, embora de modo limitado, realizar o direito
ao lugar e o direito à cidade e ao sentido de justiça espacial (cf. respetivamente,
Lefebvre, 1968; Harvey, 1992 e 2018; Soja, 2010; Tarsi, 2018).
A participação e a presença de moradores/as, particularmente da Associação
de moradores, foi fulcral não só na preparação e na mobilização de pessoas no
início do processo como durante a realização das obras para o realojamento e a
preparação para a instalação do estaleiro, garantindo a participação de todos/as
nas sucessivas fases de reabilitação. O processo de planeamento da execução das
obras foi pensado e desenhado de forma a garantir a segurança, a estabilidade e o
conforto possível dos moradores/as, sem escamotear os problemas específicos de
mobilidade, de dependência e de fragilidade na doença por se tratar de uma comu-
nidade muito envelhecida e doente. Procurou-se minimizar os problemas ineren-
tes ao processo de (re)construção, estudando em conjunto e em cada momento as
soluções possíveis.

82. Cf. Ana Ribeiro (2015). No prefácio da autoria de Fernando Matos Rodrigues lê-se: «Com a edição
deste trabalho poético de uma das mais antigas moradoras da Bela Vista pretende-se valorizar os terri-
tórios criativos, os imaginários simbólicos de quem nasceu e vive há 86 anos nesta ilha, com um sentimento
de pertença e de comunidade muito forte, refletindo e pensando a sua vida, a sua ilha e a sua comunidade
através de uma linguagem fortemente poética e sentimental».
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 195 |

Fotografia 20. «Ilha» da Bela Vista – trabalho colaborativo com a comunidade.


Fonte: Arquivo do Lahb.

Fotografia 21. Auditório Palácio da Bolsa, Seminário, 2015.


Fonte: Arquivo do LABH.
| 196 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Foi elaborado um «Programa de Atribuição de Casas em Contexto de Obra83»


em duas fases. A primeira fase teve início a 1 de Junho de 2016, com uma duração
prevista de 7 meses. A segunda fase de obra teve início a 1 de Janeiro de 2017 com
duração prevista de 12 meses de obra. Inicialmente foram realojados alguns
dos moradores/as que viviam no segundo corredor da «ilha», deslocando-se durante
o período de obra, isto é, durante a fase de transição. Neste caso foram necessá-
rias 6 habitações para realojar os moradores e suas respetivas famílias, tendo sido
destinadas quatro habitações T1, uma habitação T2 e uma T3.

Fotografia 22 e 23. Auditório Palácio da Bolsa, Seminário de Antropologia do Espaço no âmbito


da Operação da Bela Vista (2014). Fonte: Arquivo do LAHB.

Foi realizado com a participação dos moradores/as e a equipa do LAHB um


levantamento sobre o mobiliário a levar para a habitação temporária e a ceder a
outros moradores ou instituições. Com este processo pretendeu-se que os morado-
res/as levassem para a habitação temporária apenas o mobiliário essencial para o
seu dia-a-dia, ficando o restante guardado num contentor cedido pela Câmara Muni-
cipal do Porto. Foram importantes as reuniões de preparação com os moradores/
as, tendo em vista a mudança para a habitação temporária («casa reabilitada»), na
qual o espaço era muito reduzido, confinado a um quarto, cozinha e banhos, o
que não permitia albergar os seus móveis antigos, por vezes herdados e com grande
valor afetivo e familiar. Esta foi sem dúvida alguma uma das fases mais críticas e
complexas, porque implicou a saída da casa onde se nasceu e viveu durante déca-
das para uma outra, ainda que temporária, de dimensões muito reduzidas.

83. Este programa foi desenhado com a participação de todos os moradores/as, dos membros do LAHB
e, posteriormente, colocado em discussão com o representante da Domus Social – Engenheiro José Fer-
reira. A construção deste «Programa de Realojamento» no seio da «ilha» implicou uma forte negociação
com os moradores/as e com os representantes da Associação. Ao fim dum processo que se prolongou por
mais de três meses foi possível chegar a um compromisso entre as partes e à construção de um programa
que desse resposta a todas as dúvidas levantadas nas reuniões de trabalho, nas assembleias com todos
os moradores/as e fosse garante de todos os bens materiais e imateriais e, acima de tudo, protegesse os
moradores/as de qualquer tipo de risco.
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 197 |

No plano de realojamento foi decidido em reunião entre os elementos da equipa


do LAHB, dos moradores e dos representantes políticos que, após as obras de rea-
bilitação/renovação das casas na Bela Vista, cada um dos moradores regressasse às
suas casas de origem. Esse era aliás o seu desejo. Desde o início da operação os
moradores/as, de forma geral, não queriam trocar de casa nem de lugar na ilha. No
entanto, alguns poucos manifestaram vontade em trocar a sua casa (tipologia T3)
por uma casa com apenas um quarto no piso do rés-do-chão. Foram identificados
dois casos para desdobramento de agregados. Os dois casos de desdobramento per-
tencem à família que vive na casa 15 (T2). Assim, foi determinado em reunião
propor o desdobramento para JC, homem solteiro, desempregado com 42 anos de
idade e para MC, auxiliar num dos hospitais da cidade, mulher com 43 anos de
idade. Em ambos os casos o ambiente familiar era muito tenso, sem espaço digno
para habitar com privacidade e dignidade84.
Depois de terminadas as obras nesta primeira fase, os moradores/as puderam
regressar definitivamente para as suas habitações reabilitadas. Aliás, como acon-
teceu com os moradores/as do corredor inferior, também os moradores do pri-
meiro corredor tiveram de mudar temporariamente de habitação, passando deste
modo para as casas temporárias do segundo corredor, no qual as casas já se encon-
travam reabilitadas.
Inicialmente foram integrados os velhos moradores/as na Bela Vista em habi-
tações adequadas às suas necessidades de acordo com o programa estabelecido.
Também foi discutido e elaborado um programa de realojamento para a inclusão de
novos moradores/as. Esse programa apresentou cinco critérios a ser tidos em conta:
(i) que a Associação de moradores/as tenha uma participação ativa na seleção dos
novos inquilinos; (ii) que seja dada prioridade a antigos moradores/as que por qual-
quer motivo ou razão tenham saído da «ilha» para outro bairro; (iii) que sejam imple-
mentadas ações de intervenção e acompanhamento sobre a preparação e formação
dos moradores/as relativamente ao uso e manutenção da habitação, dos espaços
comuns e espaços exteriores; (iv) que seja diversificado o acesso às novas casas, pro-
movendo diversidade e coesão social; (v) que, para além da participação dos mora-
dores/as, a gestão e (auto)organização da ilha seja feita pela Associação de mora-
dores/as em todo o processo desde a preparação do realojamento, passando pela
distribuição de fogos, até à gestão e conservação da «ilha» (cf. Rodrigues et al., 2015a).

84. O caso de JC era mais complexo e urgente, pois era do conhecimento de todos que o JC desde 2014
tinha vindo a viver em casas desocupadas da «ilha», mas que nos últimos anos dormia num sofá velho
depositado nas casas de banho do corredor de baixo na «ilha» da Bela Vista. O motivo de ter deixado a
casa dos pais tinha origem em conflitos recorrentes com os outros elementos do agregado. O JC tem pro-
blemas graves de saúde. O facto de o espaço do Laboratório estar aberto 24 horas dentro da «ilha» da
Bela Vista permitiu incluir e aproximar pessoas com as suas diferentes idiossincrasias no centro da opera-
ção e do processo de habitação básica participada.
| 198 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Perante a especulação imobiliária e a mercantilização da cidade é crucial a valo-


rização dos processos de resistência expressos em reivindicações como estas pre-
sentes também entre moradores/as da Bela Vista: «Não queremos mudar de bairro»;
«Daqui ninguém nos tira». Só com uma real participação organizada e com apoios
técnicos e políticos podem ser evitadas dinâmicas da degradação induzida e a des-
locação para a periferia de moradores, que, tal como na Bela Vista, exigem viver
com qualidade nos centros das cidades.

4. Conclusão
Neste texto foi constatada a política de alheamento e de abandono por parte
do Estado e das Câmaras das «ilhas» e dos bairros sociais, nomeadamente no Porto,
sendo mesmo pela omissão cúmplices da estratégia agressiva dos interesses finan-
ceiros e imobiliários. Contrariando esta lógica, embora como caso excepcional, foi
possível reabilitar e renovar com sucesso a «ilha» da Bela Vista graças à combina-
ção de vários fatores: conjugação da ação coletiva dos moradores/as e, em parti-
cular, da sua Associação, duma equipa de técnicos especialistas e investigadores/
as e sobretudo o compromisso político duma candidatura à Câmara, que viria a
ser vencedora, embora tal se situasse mais no cumprimento de uma promessa espe-
cífica e não como uma política habitacional generalizada a nível municipal por
parte da Câmara e do seu Presidente.
Depois de expor as linhas das metodologias participativas, foi relatada a ten-
tativa de um velho processo de reabilitação desenhado no pós-25 de Abril no quadro
do SAAL, cujo fracasso levou a uma certa descrença e desmotivação entre os mora-
dores/as. A resistência de moradores/as, apesar do inicial cepticismo de alguns,
combinada com a persistência da Associação de moradores/as que, perante amea-
ças de despejo resultantes de políticas camarárias, acolheram a colaboração de téc-
nicos e investigadores/as e criaram algumas condições iniciais para comprometer
o candidato e futuro Presidente da Câmara a cumprir a sua promessa eleitoral de
reabilitação da «ilha». Foi assim feita a descrição e a análise do processo, tendo
como protagonistas os moradores/as, a equipa do LAHB e os investigadores/as e,
por fim, mas não menos importante, as figuras de vereadores, particularmente do
Urbanismo e da Cultura, e o próprio Presidente da Câmara.
Ficou evidente que pensar a habitação na e para a cidade implica o reforço dos
instrumentos de democracia participativa, isto é, não é possível pensar e projetar
a cidade sem integrar tudo e todos no processo de realização e de implementação
dos documentos estratégicos que definem o mapa, a imagem e a visão de futuro
da cidade. No caso concreto da «ilha», esta realidade permitiu a utilização dos méto-
dos participativos e das técnicas etnográficas e antropológicas na construção das
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 199 |

«cartografias» da «ilha» e do habitar, cujo processo de desenho e implementação


do projeto de reabilitação conseguiu conjugar vários fatores internos e externos
para o sucesso do mesmo.
Em síntese, perante as ameaças de despejo resultantes de políticas camarárias,
os moradores/as conseguiram com a colaboração de técnicos e investigadores/as
comprometer o poder político de forma a cumprir a promessa eleitoral de reabi-
litação da «ilha». A operação na «ilha» da Bela Vista (2013-2017) permitiu um con-
junto de experiências que ultrapassam a simples produção de receitas arquitetó-
nicas, na medida em que possibilitou o uso de metodologias interdisciplinares
sobre as práticas participativas e colaborativas focadas numa vertente social.

Siglas
ARU = Área de reabilitação urbana
COTEFIS = designação da empresa de construção
PREC = Período Revolucionário em curso
SAAL = Serviço Ambulatório de Apoio Local

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Capítulo VIII

Trabalho de campo
num bairro social
de Braga
Questões metodológicas
e o envolvimento
participante como
estratégia

Joana Teixeira*
Fernando Bessa Ribeiro**

* Doutoranda em Sociologia, Universidade do Minho. Email: jofteixeira@gmail.com


** Professor Associado com Agregação e Investigador no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais
(CICS.Nova), Universidade do Minho. Email: fbessa@ics.uminho.pt
1. Introdução
O texto tem por base a tese de mestrado da primeira autora, orientada pelo
segundo autor, realizada no quadro do projeto de investigação «Modos de vida e
formas de habitar: ilhas e bairros populares no Porto e em Braga» (PTDC/IVC-
-SOC/4243/2014), financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, sendo
a responsabilidade científica de Manuel Carlos Silva. No caso desta tese de mes-
trado procurou-se conhecer e compreender os quotidianos de vida das mulheres
no bairro das Andorinhas, no presente e no passado, sendo a principal fonte de
informação os discursos das moradoras, enunciados através da interação com a
investigadora durante o trabalho de campo. Tratou-se de uma investigação cen-
trada no género e na forma como as desigualdades neste campo se exprimem na
vida concreta de mulheres das classes populares, com diversas vulnerabilidades,
nomeadamente as decorrentes da posse escassa de capitais, nomeadamente eco-
nómico e escolar. Estas desigualdades estão também presentes no acesso e uso dos
espaços públicos por parte das mulheres. Historicamente confinadas à casa e aos
seus espaços privados, ainda hoje, sobretudo nos meios populares, a presença femi-
nina em espaços como os do bairro das Andorinhas, nomeadamente no café da
associação de moradores e suas discussões políticas, não se faz nem é reconhe-
cida, o que é visto como parte integrante da ordem «natural» das coisas.
O trabalho de campo foi efetuado pela primeira autora, tendo ocupado aproxi-
madamente dezoito meses de permanência no bairro das Andorinhas, ainda que
com intensidade variável em função da disponibilidade dos observados e de outros
compromissos profissionais que implicaram uma gestão cuidadosa do tempo pas-
sado no terreno. Começando por fazer uma breve caracterização do bairro, pros-
segue-se com a reflexão em torno da metodologia utilizada. Tendo presente os argu-
mentos de Layton (1997: 20) – o conhecimento dos factos sociais, tal como foi
estabelecido por Durkheim (1998/1895) numa das regras do método como a obser-
vação, exige que o investigador se desloque ao terreno para observar como uma
determinada sociedade se organiza e os indivíduos vivem –, procurou-se demons-
trar que a opção escolhida não só está em linha com uma longa mas atual tradi-
ção sociológica e antropológica no campo dos estudos urbanos, como é a melhor
forma de conhecer o social se o objetivo é, como foi o caso da presente investiga-
ção, conhecer o quotidiano de vida num bairro social.

2. Um lugar para habitar: o bairro social das Andorinhas


A habitação é uma velha questão social, inseparável das dinâmicas do capita-
lismo e das inúmeras alterações económicas e políticas delas decorrentes, às quais
| 206 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

o país não ficou indiferente. Assim, ao longo do século XX, foram numerosas as
políticas públicas no domínio da habitação (cf. Ferreira, 1987; Baptista, 1999; Rodri-
gues e Silva, 2015; Queirós, 2015). Na década de 1960, o governo iniciou um plano
de desenvolvimento nacional, o chamado Plano de Fomento, que tinha como obje-
tivo desenvolver os diversos setores de atividade, nomeadamente a indústria. Tal
contribuiu para o crescimento das migrações internas, com grande foco nas cida-
des de Lisboa e Porto, nas quais se dá um incremento significativo da procura habi-
tacional (Matos, 1994). No III Plano de Fomento (1968-1973) a questão do aloja-
mento da população em maior vulnerabilidade é enfatizada, sendo criado o Fundo
de Fomento da Habitação (FFH), que tinha como um dos seus pilares a promoção
de habitação social. Já após o 25 de Abril de 1974, a descolonização implicou o
regresso praticamente imediato, num curto intervalo de meses nesse ano e sobre-
tudo em 1975, ao chamado «continente» de mais de meio milhão de pessoas. Em
concreto, o total de migrantes das ex-colónias, comummente denominados de retor-
nados, foi de 505.078 até 1981 conforme os dados do Instituto Nacional de Estatís-
tica (INE). Destacam-se como principais fluxos os 309.058 provenientes de Angola
e 164.065 de Moçambique, com uma forte fixação na área metropolitana de Lisboa.
Ao mesmo tempo, o país apresentava fluxos relevantes de migração interna, nomea-
damente do campo para a cidade, acentuando a procura por alojamentos. Em
apenas uma década, a população passou de 8,6 milhões em 1970 para 9,8 milhões
em 1981, um crescimento que jamais se voltaria a registar até ao presente.85 Com
este elevado crescimento da população portuguesa, a habitação torna-se numa ques-
tão de emergência social.
Não tendo ficado à margem destas dinâmicas, o bairro das Andorinhas surgiu
também como resposta ao crescimento demográfico da cidade de Braga na década
de 1980, ocorrido num contexto marcado por condições precárias de habitação.
Daí que as políticas urbanas tenham procurado realojar a população que vivia em
situação de maior vulnerabilidade habitacional, construindo para o efeito comple-
xos habitacionais com um grande número de alojamentos familiares.
Foi o caso do bairro das Andorinhas, localizado na freguesia de São Vicente,
cuja construção foi concluída em 1983. Foi um grande projeto habitacional, com-
posto por um conjunto de 33 prédios que permitiram o alojamento de cerca de
duas mil pessoas em 224 fogos, com 32 entradas, distribuídas por seis blocos de
apartamentos, predominantemente de tipo T3 (ver Fotografia 1: Vista aérea do
bairro das Andorinhas e Fotografias 2 a 6: Bairro das Andorinhas aquando da che-
gada dos primeiros moradores). Foram ainda reservados espaços para comércio e
serviços no total de treze lojas. Resultante da ação do Instituto de Gestão e Aliena-

85. Disponível em www.pordata.pt/DB/Portugal/Ambiente+de+Consulta/Tabela, acedido em agosto


de 2019.
CAPÍTULO VIII. TRABALHO DE CAMPO NUM BAIRRO SOCIAL DE BRAGA | 207 |

ção do Património Habitacional do Estado (IGAPHE), o bairro foi posteriormente


adquirido, em 1999, pela Câmara Municipal de Braga (CMB), tendo posteriormente
a sua propriedade passado para a BragaHabit – Empresa Municipal de Habitação
de Braga (BragaHabit, 2013:3). Aquando da realização do trabalho de campo, 127
habitações permaneciam na posse desta empresa municipal, estando as restantes
97 na posse privada de moradores/as.86

Fotografia 1. Vista aérea do bairro das Andorinhas.


Fonte:https://earth.google.com/web/@41.5575676,-8.42859129,160.80409458a,424.
84210505d,35y,0h,0t,0r (acesso em outubro de 2019).

Nas habitações propriedade e administração da BragaHabit residem quase 400


pessoas, sendo que, em termos de perfil étnico, e contrariamente ao que ocorre
noutros bairros sociais da cidade, apenas 25 são de etnia cigana. Quanto às habi-
litações, 8,6% são analfabetos e 9,2% não conseguiram completar o 1.º ciclo do
ensino básico. Grande parte dos residentes (40%) possui habilitações ao nível do
1.º ciclo e 16,3% do 2.º ciclo. A população desempregada (30,2%) é quase propor-
cional à que exerce profissão (31,7%). Os reformados representam 22,2% da popu-
lação residente e os restantes 15,9% estão na condição de estudantes.

86. Informações disponíveis em www.bragahabit.pt/pt/parque-habitacional-bragahabit. Acedido em agosto


de 2019.
| 208 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Fotografias 2 a 6: Bairro das Andorinhas aquando da chegada dos primeiros moradores.


Fonte: Arquivo pessoal dos moradores.

O novo bairro proporcionou alojamento para pessoas manifestamente caren-


ciadas, vivendo em habitações muito precárias. Como afirmou uma moradora, «nós
viemos de uma casa, que eram casas velhas… uma vez a escada de madeira caiu,
tínhamos que pôr barrotes nas escadas, para segurar as escadas. […] Eram casas
antigas» (Fátima, 59 anos, 33 anos no bairro). Nos relatos sobressai recorrente-
mente a falta de sanitários, saneamento e mesmo água canalizada, dando rosto
aos dados estatísticos conhecidos: segundo o II Recenseamento Geral de Habita-
ção de 1981, em Portugal 28% das habitações não possuíam sistema de água cor-
rente, 22% não tinham retrete e 41% das residências não tinham instalações sani-
tárias completas.
CAPÍTULO VIII. TRABALHO DE CAMPO NUM BAIRRO SOCIAL DE BRAGA | 209 |

3. Entrada e permanência no bairro: da aproximação ao ter-


reno à emergência de uma questão de partida
A ida para o terreno permite responder simultaneamente ao problema do como
fazer e ao problema de chegar às pessoas (M. Ribeiro, 2002). Como foi já aflorado
na introdução, fez-se uma clara opção por uma estratégia metodológica, tendo no
seu centro a abordagem etnográfica. Não se trata, de modo algum, de uma esco-
lha guiada por um qualquer tipo de fundamentalismo metodológico, aliás há muito
justamente criticado por, entre outros, Portela (1985: 158), Silva (1998: 31-32) e
Grawitz (1996: 446 ss), mas porque se entendeu ser a opção mais adequada para
responder ao problema a investigar. Aplicada em diálogo permanente com outros
recursos metodológicos, a abordagem etnográfica permite aproximar o investiga-
dor dos investigados segundo o sugerido por Bourdieu (2008/1993) em A miséria
do mundo, seguindo de muito de perto os argumentos de Max Weber (1993/1922):
colocarmo-nos, em pensamento, no lugar dos outros observados, para assim melhor
compreendermos as motivações e os sentidos dados à ação social dos atores sociais
inscritos em determinada realidade social, assim como procurar as causas desta.
Trata-se de um esforço que se inscreve no âmago da sociologia, ao procurar-se
captar a dimensão carnal da existência, como defende Wacquant (2002:11), mobi-
lizando a ideia de «um ser que sofre» (leidenschaftlich Wesen) segundo o sentido
dado por Marx (1971 [1844] nos Manuscritos de 1844.
A deslocação ao terreno é o ato inicial (e não raro iniciático para quem dá os
primeiros passos na pesquisa social) da prática de investigação. Antecedida, em
regra, pela elaboração preparatória do quadro teórico e do modelo de investigação
a utilizar, os primeiros momentos no terreno são sempre marcantes, mesmo quando
não implicam a deslocação para um lugar situado a milhares de quilómetros de
distância do local habitual de residência, não deixando de gerar ora desconforto,
ora espanto, sempre curiosidade pelo que é novo ou, mesmo quando o contexto
já é razoavelmente familiar, por permitir ver de um outro modo o que, sendo fami-
liar, não deixa de possuir dimensões mal conhecidas.

Novembro, dia chuvoso e frio. Era outono em Braga, prenúncio do inverno. Pensei:
então, é assim um bairro social em Portugal? Confesso que fui surpreendida. Mesmo
num dia cinzento o local tinha muitas cores. As árvores estavam secas, mas uma
relva verde contrastava com os prédios alaranjados. Talvez algumas fachadas este-
jam degradadas, mas é um espaço bonito e aparentemente organizado (v. Fotogra-
fia 7: Vista parcial do bairro social das Andorinhas [Outono de 2017]).
Cheguei ao bairro das Andorinhas acompanhada por colegas do projeto e alguns
rostos curiosos me olharam. Imagino que retribui olhando da mesma forma. Já me
tinham falado do acolhimento das/os moradoras/es deste bairro, mas fui surpreen-
| 210 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

dida novamente. O dia estava escuro, mas havia muita vida na cafetaria central,
local onde os moradores se encontram. Vi alguns homens bebendo e jogando cartas
e não pude deixar de notar que as únicas mulheres no local éramos eu e minha
colega. Fui acolhida calorosamente por um dos diretores da Associação de Morado-
res, que me contou um pouco da história do bairro e me apresentou às pessoas. Cada
detalhe saltava aos olhos.

Fotografia 7. Vista parcial do bairro social das Andorinhas (Outono de 2017).


Fonte: Foto de Joana Teixeira.

A investigadora que me acompanhava ajudou-me a identificar a realidade a ser


observada e analisada com maior profundidade, sendo que inicialmente realizei
algumas entrevistas com ela e conheci vários responsáveis da Associação de Mora-
dores. Dado que nesta fase as nossas visitas ao bairro obedeciam ao mesmo horá-
rio, poucas eram as mulheres que conhecia. Porém, um dia fui apresentada a uma
moradora que acabou por se revelar central no contato com outras mulheres. Tra-
tava-se de Cristina. Com postura firme e discurso empoderado, desde o início deixou
claro o seu posicionamento político e as suas críticas à organização da Associação,
fortemente masculinizada, o que acabava por se traduzir nas assimetrias de género
observáveis naquele espaço. Nesse mesmo dia, informalmente, conversámos bas-
tante, embora não soubesse que seria ela a abrir as portas de uma outra realidade
que ainda não conhecia: as vivências das mulheres do bairro das Andorinhas.
Logo nesta primeira conversa a moradora contou um pouco da sua história de
vida, permeada por violência, trabalhos precários e uma forte luta política através
dos sindicatos. Expus-lhe o meu interesse em realizar uma entrevista com ela mas
também com outras mulheres e, rapidamente, ela se articulou com as demais para
que eu travasse conhecimentos nesse sentido. A primeira entrevista facilitada por
CAPÍTULO VIII. TRABALHO DE CAMPO NUM BAIRRO SOCIAL DE BRAGA | 211 |

ela foi com uma mulher residente no bairro desde o seu início, sendo que me foi
enfatizado por aquela a necessidade de conhecer um outro lado do bairro, para além
da Associação, onde há pobreza e exclusão. Agendei dia e hora para este encontro
que seria a minha primeira entrevista sozinha. Neste dia não chovia, após vários
dias de chuva persistente. Cheguei ao café mais cedo do que o normal e deparei-
-me com uma realidade oposta à habitual, observando-se várias mesas com mulhe-
res, falando e gargalhando alto. Face à minha surpresa, me explicaram que após
o almoço as mulheres costumavam se encontrar para conversar e tomar café. Fiquei
com elas por alguns minutos e quando tive oportunidade apresentei o projeto. As
moradoras rapidamente se organizaram para que fossem realizadas entrevistas com
todas, sendo agendadas para os dias seguintes. Em pouco tempo levantaram-se
falando das inúmeras tarefas que ainda tinham de realizar em casa e o café ficou
vazio e silencioso.
Fui acompanhada até à casa de uma moradora, já que seria a primeira vez que
entraria num apartamento no bairro, pois todas as outras entrevistas foram reali-
zadas na Associação. Fomos recebidas pela própria moradora, muito sorridente e
acolhedora, uma senhora que cuidava de sua neta, que desde logo me direcionou
para a cozinha de modo a que pudesse observar a humidade no teto e o estado
degradado dos armários. O cheiro a mofo era forte. [Excertos do caderno de campo].

Após uma primeira aproximação ao bairro social das Andorinhas, mediante


sucessivas visitas e contatos informais, bem como com base em reflexões alicer-
çadas numa pesquisa bibliográfica inicialmente mais ampla e voltada para as ques-
tões da habitação e do género, emergiram diversas questões. Também influencia-
das pela relação estabelecida com as moradoras do bairro e com as suas vivências
como habitantes do bairro, as questões direcionaram-se para a forma como se
tecem e afiguram as relações de género no bairro e os desafios enfrentados pelas
mulheres neste contexto. Tal implicou considerar as vivências, as perspetivas e as
expetativas em torno da parentalidade, da conjugalidade e do trabalho, sem des-
curar as possibilidades e dificuldades decorrentes do quotidiano no bairro. Num
esforço de afunilamento, uma delas acabou por conduzir a investigação: qual a
situação social das mulheres que habitam o bairro das Andorinhas, em especial no
que se relaciona com as desigualdades de género na vida quotidiana?
Partindo desta indagação, formularam-se os principais objetivos da pesquisa,
a saber: (i) identificar os marcos históricos da urbanização e das políticas de habi-
tação em Portugal, para assim compreender o processo de construção dos bairros
sociais; (ii) resgatar, ainda que parcialmente, a história da construção do bairro da
Andorinhas, com uma especial atenção ao perfil socioeconómico dos primeiros
moradores; (iii) mapear o processo histórico das conquistas das mulheres em Por-
tugal com o objetivo de refletir sobre as mudanças nos direitos que impactaram na
| 212 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

vida quotidiana; (iv) conhecer os principais problemas que atingem a vida das
mulheres que habitam o bairro das Andorinhas; (v) analisar a intersecção entre
as questões relativas às desigualdades de género e, de forma mais ampla, as de
índole social.
Para responder aos três primeiros objetivos revelou-se fundamental a revisão
bibliográfica e a pesquisa documental que se centraram nos domínios da habita-
ção, tendo-se mobilizando autores como Baptista (1999 e 2006), Bandeirinhas
(2011), Ferreira (1987), Matos (1994), Mendes (1998), Wacquant (2005), Rodrigues
et al. (2017), bem como, já na área de estudos sobre o género e as mulheres,
Amâncio (1992, 1999 e 2003), Arruzza (2010), Beauvoir (2008 e 2018), Bourdieu
(1979, 1986, 1989, 1990, 2011 e 2012), Brandão (2010), Connell (1987), Saffioti
(1987, 1999, 2000, 2004, 2009), Schouten (2011) Scott (1992 e 1990), Studart
(1974), Tavares (2011), Silva (2016) e Zirbel (2017). No que se refere aos dois últi-
mos objetivos, fortemente ancorados no terreno, assume-se que «toda pesquisa é
intervenção» (Passos e Barros, 2015:30). Quer dizer, estar inserido no território,
além de afetar – no sentido de ternura – a pessoa que investiga, também interfere
e pode desestabilizar a ordem das coisas. Quem pergunta faz pensar… sobretudo
quando, como assinala F. B. Ribeiro (2010), as relações estabelecidas entre quem
quer saber, o indivíduo que pergunta, e os indivíduos que sabem, as pessoas obser-
vadas, no sentido etnográfico, isto é, de alguém que se imiscui na vida de um
dado grupo social para conhecer as suas vidas através dos seus discursos, não se
resumem a uma simples partilha de informação, antes implicando um relaciona-
mento humano afetivo e socialmente significativo.87 Neste sentido, a neutralidade
é interpelada.
Foi considerando este quadro metodológico que se desenvolveu uma pesquisa
de caráter qualitativo que, na esteira de Bourdieu (2008 [1993], procurou superar
o aparente para compreender e conhecer subjetividades, valores, crenças, repre-
sentações, hábitos, atitudes dos sujeitos e do território investigado. Se é certo que
se assumiu que «[…] a realidade do sujeito é conhecida a partir dos significados
que por ele lhe são atribuídos» (Martinelli, 1999: 25), não basta conhecer bem as
narrativas dos atores observados. Como Bourdieu (2008 [1993]) nos sugere, é
necessário que este esforço intelectual se cumpra considerando os princípios apli-

87. Martinelli (2000: 53 ss) designa esta relação como empatia, cujas origens remontam à Grécia clássica.
Para os gregos empatheia (Έμ-πάθος) significava afectado, comovido, apaixonado, uma identificação
emocional com um outro indivíduo. Etimologicamente ligada ao páthos (Πάθος) – estado agitado de
alma – possuía para eles, tal como nós também o entendemos hoje, um sentido mais forte do que o vocá-
bulo simpatia. No século XIX os alemães reintroduzem-na no pensamento ocidental: a einfühlung foi tra-
duzida pelos ingleses por empathy, tendo dado origem à palavra francesa empathie. Desenvolvendo-se
no interior do romantismo alemão, a empatia é para os alemães desta corrente a possibilidade de sentir os
batimentos do coração do povo, algo mais profundo do que se introduzir na «pele» do povo (Martinelli,
2000: 72-76).
CAPÍTULO VIII. TRABALHO DE CAMPO NUM BAIRRO SOCIAL DE BRAGA | 213 |

cados pela medicina grega: procurar as doenças invisíveis, o que corpo não exibe
nem os sinais revelam. Quando aplicado ao social, é não ficar amarrado às evi-
dências mais explícitas: os atores sociais e os seus acontecimentos, obliterando
a força que as estruturas produzem sobre os indivíduos sem que estes, muitas
vezes tenham sequer consciência, como acontece com as desigualdades fundadas
no género.
No âmbito desta abordagem qualitativa, foram mobilizados instrumentos já
validados e parcialmente coletados no âmbito do projeto em que a investigação se
inseria, como foi acima referido, em particular o guião de entrevista. Efetivamente,
embora também tenha sido trabalhado um inquérito por questionário direcionado
para uma análise de cariz quantitativo, deste apenas foram selecionados dados
relacionados à escolaridade (habilitações literárias) dos/as primeiros/as residen-
tes. Estes dados foram sujeitos a um tratamento meramente descritivo para enqua-
dramento contextual da pesquisa. Privilegiou-se, assim, a técnica da entrevista,
sendo que ao guião-base desenvolvido no âmbito do referido projeto se acrescen-
taram outras questões, mais direcionadas para a questão de partida deste estudo
e, em concreto, incidentes no domínio do género. De facto, o guião-base dava
ênfase a questões relativas às origens e à socialização familiar na infância e juven-
tude; vivências e relações intra e interfamiliares e namoro/casamento; trajetória
escolar; trajetória profissional e condições de vida; habitações e experiências de
vida antes da entrada no bairro; experiências de vida; identidade e identificação
com o bairro; modos presentes de viver, de sentir e de habitar no bairro; perceções
dos/as moradores/as; relações com as autoridades (Estado/governo/partidos,
Câmara, Junta de Freguesia, Empresa Municipal de Habitação); perceções dos
moradores/as sobre a Associação de Moradores.
Mereceram aprofundamento as perguntas relacionadas com as habilitações lite-
rárias, o trabalho, a política e os estereótipos de género resultantes dos processos
socio-histórico e cultural, aplicadas a treze mulheres, com idades distintas (cf.
Quadro 1. Caracterização das entrevistadas). Para a seleção das entrevistadas foi
mobilizada a chamada técnica de «bola de neve»,88 ainda que se tenha sempre
procurado chegar a uma relativa (ou possível) heterogeneidade em termos de perfil
etário, estado civil e habilitações literárias, de forma a apurar não só regularidades
mas também eventuais particularidades.

88. Conforme Vogt, Gardner e Haeffele (2012: 129) a «bola de neve» é uma técnica que a partir de con-
tatos iniciais possibilita indicações de contatos posteriores. Citando-os, «o principal pressuposto da amos-
tragem de bolas de neve é ​​que os membros de sua população-alvo se conhecem». (idem, 129).
| 214 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Quadro 1. Caracterização das entrevistadas

Nome Idade Estado civil Habilitações literárias Filhos Etnia

1. Vera 74 Viúva 4.° classe Sim Caucasiana

2. Lúcia 68 Casada 4.° classe Sim Caucasiana

3. Ana 60 Viúva 4.° ano Sim Caucasiana

4. Fátima 59 Casada 4.° classe Sim Caucasiana

5. Inês 59 Casada 4.° classe Sim Caucasiana

6. Cristina 54 Casada 10.° ano Sim Caucasiana

7. Filipa 42 Casada 4.° classe Sim Caucasiana

8. Sofia 40 Viúva 9.° ano Sim Caucasiana

9. Mónica 38 Casada 9.° ano Sim Caucasiana

10. Helena 38 Casada 9.° ano Sim Caucasiana

11. Emília 33 Solteira 9.° ano Não Caucasiana

12. Daniela 21 Solteira 12.° ano Não Caucasiana

13. Manuela 16 Solteira 5.° classe Não Cigana

Nota: Os nomes das entrevistas são fictícios, de modo a preservar o anonimato.


Fonte: Elaboração própria.

Em associação a esta técnica optou-se por uma amostragem definida conforme


a saturação das informações, constituída no processo contínuo de análise dos dados,
não perdendo o foco no objetivo da pesquisa e as questões feitas às entrevistadas.
Este tipo de análise preliminar permitiu, pois, identificar o momento em que as
informações se repetem e não aparecem mais novas questões substanciais (Fonta-
nella, Ricas e Turato, 2008: 20), ressaltando que a pesquisa não está vinculada à
procura de uma representação estatística, mas sim a uma representação social da
realidade estudada, de modo a permitir «ver» como o social se incorpora e é mobi-
lizado pelos atores sociais e estes atuam sobre aquele (M. V. de Almeida, 1995: 14).

As entrevistas seguintes foram realizadas no café e não tive dificuldade em


encontrar participantes, já que elas se incentivavam referindo a importância da par-
ticipação de todas para que fossem visibilizados os problemas do bairro, por meio
de suas perceções. No decorrer das entrevistas foi possível notar que as mulheres
que frequentavam o café tinham maioritariamente algum parentesco com os dire-
tores da Associação, o que se traduzia numa proximidade ao quotidiano delas. Já
no caso das mulheres entrevistadas na própria residência verifiquei algum afasta-
CAPÍTULO VIII. TRABALHO DE CAMPO NUM BAIRRO SOCIAL DE BRAGA | 215 |

mento em relação à Associação, aspeto referenciado em alguns casos de forma mais


evidente e noutros de forma mais discreta. Normalmente, os momentos de entre-
vista que fluíam de forma mais espontânea e profunda eram os relativos ao passado,
nomeadamente à infância, permeados por histórias de violência e pobreza.
Foi possível notar, tanto nas conversas informais, quanto no decurso das entre-
vistas, uma tensão quanto à presença (ou, melhor dizendo, ausência) e participa-
ção (ou, falta dela) das mulheres na Associação, sendo que, segundo as moradoras,
essa conjuntura estava alterando-se devido às suas próprias resistências. Relatava-
-se que há bem pouco tempo as mulheres não frequentavam o café da Associação,
verificando-se atualmente a sua presença frequente. Efetivamente, o café afigura-se
um local de convívio diário entre as mesmas, no qual emerge a partilha de expe-
riências e vivências cotidianas e inclusive se tecem redes de apoio. A minha presença
frequente foi neste contexto pessoalmente percebida como também geradora de vín-
culos afetivos, passando eu própria a partilhar da troca de culturas e experiências.
Quando a chuva e o frio do inverno acabaram e o calor da primavera chegou, outras
dinâmicas se instalaram no bairro. O café começou a ficar mais movimentado e a
esplanada, com os guarda-sóis, ficava sempre cheia, facilitando a minha presença
no bairro e a aproximação ainda maior com as/os moradoras/es (Fotografia 8. Vista
parcial do bairro social das Andorinhas [Primavera de 2018]).
Durante o período em que estive no bairro pude perceber que um dos grandes
motivos de orgulho da população é a festa comemorativa da Páscoa, organizada
pela Associação de Moradores e foco de grande mobilização coletiva. Denota-se um
grande empenho da maioria na realização de uma festa que intenta extravasar os
limites do próprio bairro, justificando-se que esta é a forma por excelência das pes-
soas externas ao mesmo conhecerem o bairro e diminuírem os estereótipos a ele asso-
ciados. Realmente, fiquei surpreendida com a dimensão do evento e consegui com-
preender o porquê de tanta expetativa e investimento, tal como sublinha uma das
moradoras, com 38 anos de idade): «Como você vê, temos uma festa da dimensão
que é [Páscoa] e vem mais pessoas de fora do que propriamente do bairro». [Excer-
tos do caderno de campo].

Na condução das entrevistas foi utilizado o princípio da entrevista narrativa,


que parte da crítica metodológica ao modelo tradicional de perguntas e respostas,
visando possibilitar uma perspetiva mais compreensiva do universo de experiência
do sujeito. A entrevista narrativa propõe, pois, dar visibilidade aos processos da
vida quotidiana, compreendendo como «realmente as coisas se passaram», conside-
rando os argumentos de Flick (2005: 100103) sobre como explorar os processos bio-
gráficos em termos analíticos. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra,
procedendo-se de seguida a correções ortográficas e sobretudo de clarificação dos
discursos, sem adulterar o sentido nem o modo como foi dito pelas entrevistadas.
| 216 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Fotografia 8. Vista parcial do bairro social das Andorinhas (Primavera de 2018).


Fonte: Foto de Joana Teixeira.

A análise de conteúdo é sempre uma fase crucial, pretendendo-se com ela «des-
crever as situações, mas também interpretar o sentido do que foi dito» (Guerra,
2010: 69). Diferentemente das pesquisas com um pendor mais quantitativo, que
necessitam da recolha de todos os dados para iniciar a análise, a pesquisa quali-
tativa inicia este processo no próprio tempo do trabalho de campo, não havendo
necessariamente a separação entre o conjunto de dados e a análise dos mesmos,
sendo possível utilizar as primeiras análises para refletir sobre novas questões e
perguntas para pesquisa. Assume-se, assim, a pesquisa qualitativa como mais fle-
xível (Gibbs, 2009:18). Segundo Laville e Dionne (1999:214-231), não há um método
rígido a ser desenvolvido na análise de conteúdo, sendo possível descrever alguns
momentos para facilitar o desenrolar deste processo. Conforme os autores, a aná-
lise de conteúdo inicia-se com o recorte de conteúdo em elementos e o agrupa-
mento em função da sua significação. Posteriormente, definem-se as categorias
analíticas, que serão organizadas por parentesco de sentido para iniciar propria-
mente dito o processo de análise, procurando fazer a construção do sentido dos
discursos estudados e alcançar os objetivos da pesquisa. Este estudo obedeceu,
assim, ao modelo de análise categorial que, segundo Bardin (2011), consiste em des-
membrar o texto em categorias de agrupamentos analógicos, seguindo temas recor-
rentes, para assim fazer a interpretação dos resultados. Note-se que, ao longo da
sua execução, esta tarefa de análise foi sempre cotejada com a literatura teórico-
-metodológica, de modo a melhor fundamentar a discussão crítica do problema de
investigação e dos dados recolhidos.
CAPÍTULO VIII. TRABALHO DE CAMPO NUM BAIRRO SOCIAL DE BRAGA | 217 |

4. O envolvimento participante: uma estratégia implicada para


a pesquisa em contextos urbanos
Foi acima dito que se optou por uma abordagem etnográfica em termos meto-
dológicos, considerando que ela é a que melhor respondia ao trabalho de obter os
dados e outras informações necessários para esclarecer a questão de partida, mobi-
lizando para o efeito diversas técnicas de investigação. Deste modo, é evidente que
a opção metodológica se afasta de qualquer forma, mesmo que mais ou menos
disfarçada, de «monoteísmo metodológico», considerando que, como justamente
sublinha Silva (1998: 31-32), analisando a metodologia utilizada na sua investiga-
ção sobre camponeses no noroeste português, abordagens deste tipo permitem
«superar algumas (pseudo)dicotomias, oposições ou insuficiências de qualquer das
dimensões tomada isoladamente».
Como denunciam os excertos do caderno de campo, a observação dos quoti-
dianos de vida e as conversas informais ocuparam um lugar relevante na prática
de terreno, fornecendo um manancial muito apreciável de informação. Esta foi sis-
tematicamente fixada no caderno de campo, procurando-se dar conta das vivên-
cias no bairro, relações sociais, perceções sobre o espaço físico, afetos e sentimen-
tos dos atores sociais observados. Este trabalho minucioso de recolha de informa-
ção mostrou que, «definitivamente, a produção da realidade no texto começa com
o registo de notas de campo. Esta produção é essencialmente marcada pela per-
cepção e apresentação selectiva do investigador» (Flick, 2005: 172). De igual modo,
também os registos fotográficos se incorporam nesta abordagem etnográfica, con-
tribuindo em especial para o resgate do processo histórico do bairro, mostrando
que a «fotografia adquire um pouco mais da dignidade que lhe falta quando deixa
de ser uma reprodução do real e nos mostra coisas que não existem mais» (Brassaï,
2004: 40).
Esta escolha metodológica coloca-se em contramão às teses positivistas do
conhecimento sociológico dever ser fundado na neutralidade axiológica, segundo
as quais deve proceder-se na pesquisa de acordo com este pressuposto metodo-
lógico. Não raro, mesmo no campo weberiano, alguns argumentam que Weber
(1993/1922) defendeu a neutralidade axiológica. Abordada já em outros textos (Silva
e Ribeiro, 2000 e 2015; Ribeiro, 2011 e 2017), a neutralidade axiológica é uma ques-
tão magna no conflito teórico e metodológico que opõe marxistas e outros teóricos
críticos a positivistas, no qual participam também os weberianos. Se uma análise
muito parcial do pensamento do teórico alemão pode sugerir que defendeu uma
ciência social livre de juízos morais, Weber (1993/1922) não pode ser classificado
como positivista. Como sublinha Bourdieu,
| 218 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

«Max Weber realmente falou de neutralidade axiológica [– que Löwy (2014: 47)
considera tratar-se de uma tradução imprecisa do conceito de Wertfreiheit, “ciência livre
de julgamentos de valor” –], querendo dizer que não deveriam fazer julgamentos de
valores; mas nunca disse que se deveria ser indiferente ao mundo social. Ele foi um pen-
sador engajado em tempo integral» (apud Loyola 2002: 38),

aliás algo também salientando por Giddens (1997), quando nos lembra as suas
aspirações conflituantes, entre académico e cientista social, por um lado, e a sua
vocação como político, por outro. Daí que, como defende Löwy, «felizmente, Weber
não conseguiu “neutralizar” suas opiniões e crenças; ele exprimiu uma visão radi-
calmente crítica e bastante pessimista do presente e do futuro da civilização
moderna» (2014:47), muito em particular os fenómenos da burocracia e da tecno-
cracia como desvirtuadoras da democracia.
Convocando Bourdieu (2008/1993), trata-se de rejeitar a ideia positivista de
uma inocência epistemológica em favor de uma opção por uma abordagem meto-
dológica que admite que todo ato de conhecer é perpassado por preferências, afei-
ções e interesses particulares, implicando assim escolhas, incluindo no campo da
teoria e da metodologia (cf. Laville e Dionne, 1999). Não sendo possível, nem epis-
temologicamente desejável, «a neutralidade é esvaziada pelas próprias dinâmicas
relacionais que se estabelecem durante o trabalho de campo» (Ribeiro, 2010: 45).
Dito de outro modo, quem pesquisa é também parte integrada e interessada da
sociedade em que vive, pelo que o conhecimento de uma dada realidade social não
se faz de modo exterior a ela, como se a ela lhe fosse indiferente:

[…] conhecer a realidade é acompanhar seu processo de constituição, o que não pode
se realizar sem uma imersão no plano da experiência. Conhecer o caminho de cons-
tituição de dado objeto equivale a caminhar com esse objeto, constituir esse próprio
caminho, constituir-se no caminho (Passos e Barros, 2015: 31).

Aqui chegados e de certo modo lesando os cânones da escrita académica, isto


é, prescindindo da conclusão, resta relevar a importância da etnografia nos estu-
dos urbanos e da vida social nas cidades. Devendo ser entendida como uma con-
clusão em defesa das abordagens qualitativas – sem excluir, sublinhe-se, o recurso
a dados de natureza quantitativa – na investigação sobre questões urbanas e os
quotidianos dos homens e das mulheres nos seus lugares de vida e de trabalho,
a etnografia e as técnicas mobilizadas ao longo do trabalho de campo aqui des-
crito escrevem-se numa velha e longa tradição metodológica que encontra na
chamada Escola de Chicago um dos contributos pioneiros. Esta corrente notável
da sociologia, cuja figura maior foi Park (1987), produziu um manancial pratica-
mente inesgotável de estudos urbanos com forte cariz etnográfico, primeiro sobre
a grande cidade na orla do lago Michigan, mais tarde sobre outros lugares, à medida
CAPÍTULO VIII. TRABALHO DE CAMPO NUM BAIRRO SOCIAL DE BRAGA | 219 |

que os alunos formados em sociologia na Universidade de Chicago foram ocupando


posições noutras universidades (cf. Becker, 1996). Podemos recuar ainda mais à
primeira metade do século XIX e ao estudo pioneiro de Engels (2010/1845) sobre
as condições de vida da classe trabalhadora na Inglaterra, nomeadamente em
Manchester, centro da industrialização e cidade em expansão. Na longa dedica-
tória dirigida às classes trabalhadoras, originalmente escrita em inglês, em lugar
do alemão, língua escolhida para redigir A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra, e destinada a publicação autónoma a ser enviada a dirigentes políticos
e outras figuras relevantes da luta social inglesa, o teórico revolucionário alemão
fixa com precisão, avant la lettre, o trabalho de campo etnográfico que, rejeitando
a neutralidade, se faz de modo implicado:

Trabalhadores!
É a vós que dedico uma obra na qual me esforcei por apresentar aos meus compa-
triotas alemães um quadro fiel de vossas condições de vida, de vossos sofrimentos e
lutas, de vossas esperanças e perspectivas. Vivi entre vós tempo bastante para alcan-
çar o conhecimento de vossas condições de existência, às quais consagrei a mais séria
atenção, examinando os inúmeros documentos oficiais e não oficiais que tive a opor-
tunidade de consultar. Contudo, não me contentei com isso: não me interessava um
conhecimento apenas abstrato de meu tema – eu queria conhecer-vos em vossas casas,
observar-vos em vossa vida cotidiana, debater convosco vossas condições de vida e
vossos tormentos; eu queria ser uma testemunha de vossas lutas contra o poder social
e político de vossos opressores. Eis como procedi: renunciei ao mundanismo e às liba-
ções, ao vinho do Porto e ao champanhe da classe média, e consagrei quase exclusiva-
mente minhas horas vagas ao convívio com simples operários – e estou, ao mesmo
tempo, feliz e orgulhoso por ter agido assim. Feliz, porque vivi muitas horas alegres
dedicando-me a conhecer vossa verdadeira existência, horas que, de outro modo, seriam
dissipadas em conversas fúteis e em cerimônias entediantes; e orgulhoso, porque desse
modo pude fazer justiça a uma classe de homens oprimidos e caluniados e à qual, apesar
de todos os seus defeitos e de todas as dificuldades de sua situação, só podem recusar
estima aqueles que têm alma de negociante inglês; orgulhoso, também, porque assim
tive oportunidade de defender o povo inglês do inelutável e crescente desprezo produ-
zido no continente pela política brutalmente egoísta, bem como pela conduta geral, de
vossa classe média dominante.

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Capítulo IX

Transformar o território
com investigação-ação,
colaboração
e participação –
contributos a partir
de Marvila, Lisboa

Henrique Chaves*

* Mestre em Sociologia, Associação Rés do Chão. Email: henrique.chaves.costa@gmail.com


1. Introdução: a entrada em Marvila
Este texto é fruto do trabalho desenvolvido na Associação Rés do Chão89 entre
os anos 2017 e 201990. O trabalho foi desenvolvido nos bairros do Condado, Mar-
quês de Abrantes, Alfinetes e Salgadas na freguesia de Marvila,91 em Lisboa.
A Associação Rés do Chão foi fundada em 2013 com o objetivo de ativar pisos
térreos não habitacionais/lojas desocupados/as e o seu espaço público envolvente.
O projeto teve início no centro histórico lisboeta, mais especificamente na Fregue-
sia da Misericórdia. No entanto, a Associação alargou os seus horizontes, com inter-
venção noutras freguesias lisboetas, assim como no Algarve e na Ilha da Madeira.
O centro histórico lisboeta atualmente apresenta-se como um espaço de turis-
tificação, ludificação, onde se sentiu mais o forte impacto da pressão imobiliária
na habitação e no comércio local – espaço este que não há muitos anos se encon-
trava desvalorizado e degradado (Baptista, Nofre e Jorge, 2018). Quando a Rés do
Chão foi fundada, este território apresentava um forte desinvestimento público e
privado, sendo um espaço de grande potencial para a atuação da Associação, já
que grande parte das lojas estavam fechadas e o espaço público envolvente estava
desqualificado.
O trabalho desenvolvido por esta Associação partiu de um ponto de vista inte-
grado, ou seja, da necessidade de conhecer o lugar onde se pretender intervir antes
de realizar qualquer intervenção. No trabalho realizado na freguesia da Misericór-
dia partiu-se da metodologia de investigação-ação, procurando realizar-se um diag-
nóstico sobre o local onde se ia intervir e pensar atividades em consonância com
o trabalho de investigação, estruturando a metodologia através do trabalho parti-
cipativo e colaborativo.
Em poucos anos, o centro histórico lisboeta transformou-se e pouco a pouco a
intervenção da Associação naquele território foi perdendo sentido. Porém o muni-
cípio de Lisboa está a passar por este processo de forma desigual; se, por um lado,
o seu centro e as zonas de interesse imobiliário estão rapidamente a transformar-
-se, por outro lado, há uma série de territórios onde o investimento não chega, ou
chega tardiamente.
Os bairros de habitação de propriedade municipal são demonstrativos do desin-
vestimento tanto público como privado. Estes bairros estão espalhados pela cidade
e, na sua grande parte, foram construídos entre a década de noventa e o início do

89. Link: http://resdochao.org/


90. Nesta Associação trabalhei com Margarida Marques, Manuel António Pereira, João Carlos Martins e
Luís Matos. A problematização que me levou a escrever este texto deriva em grande parte do trabalho
desenvolvido em conjunto e da partilha de conhecimento – o meu agradecimento a todos os colegas.
91. Neste texto o Bairro do Condado não irá ser alvo de reflexão, uma vez que não contou com o mesmo
tipo de intervenção da Rés do Chão dos restantes bairros considerados.
| 226 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

novo século através do Programa Especial de Realojamento (Cachado, 2011, 2012,


2013; Alves, 2013; Chaves, 2019). Grande parte do edificado destes territórios, com
ocupação habitacional e comercial, é de propriedade pública.
Neste momento destacam-se dois programas de apoio à habitação no municí-
pio de Lisboa, que visam facilitar o acesso ao parque habitacional: o Programa de
Arrendamento Apoiado,92 destinado aos residentes do município com rendimen-
tos mais baixos; e o Programa Renda Acessível,93 orientado aos residentes da Área
Metropolitana de Lisboa com rendimentos intermédios. Porém, estes programas
têm uma oferta menor que a procura e, por outro lado, podem até ser conflituan-
tes entre si, podendo identificar-se disputas entre as classes que concorrem aos
programas, como alerta Rita Silva (in Cachado, Estevens e Ascensão, 2019). Um
outro lado das contradições na política de habitação no município de Lisboa (entre
outros) relaciona-se com os despejos de famílias que ocupam ilegalmente habita-
ções devolutas, sem lhes apresentar outras soluções. Vejam-se, por exemplo, os
recentes despejos que estão a acontecer no Bairro Alfredo Bensaúde na freguesia
dos Olivais e o trabalho desenvolvido por associações como a Habita na denúncia
e luta contra estes despejos (Moreira, 2020).
Relativamente às políticas de cedências de espaços não habitacionais presen-
tes nestes edificados municipais, assinala-se no presente o programa geral de atri-
buição de lojas municipais Loja no Bairro.94 A partir do trabalho realizado pela
Rés do Chão sobre estas questões, foi possível perceber que este programa é muito
criticado entre as pessoas que procuram este tipo de espaços, devido à morosidade
na resposta, a respostas contraditórias ou mesmo ausência de respostas. Assinala-
-se, também, a Iniciativa Piloto Loja para Todos,95 programa piloto que está a ser
testado no Bairro Horta Nova na freguesia de Carnide.
A freguesia de Marvila é composta por uma série de bairros onde predomina
o edificado municipal; na generalidade, os edifícios apresentam pisos térreos não
habitacionais. Contudo, uma grande parte dessas lojas nunca chegou a ser atri-
buída. No trabalho de mapeamento destes espaços realizado pela Rés do Chão,
ficou muito evidente a existência de numerosas lojas vazias, para além de lojas
atribuídas a entidades que não estavam relacionadas com aquele lugar e que sim-
plesmente precisavam de um espaço para a sua sede.

92. Link: https://www.lisboa.pt/fileadmin/cidade_temas/habitacao/documentos/ProgramaArrendamen-


toApoiado_v3.pdf
93. Link: https://www.lisboa.pt/fileadmin/cidade_temas/educacao/documentos/ProgramaRendaAcessi-
vel_v3.pdf
94. Link: https://www.lisboa.pt/fileadmin/cidade_temas/habitacao/documentos/Guia_de_Apoio_Candi-
datura_Loja_no_Bairro.pdf
95. Link: https://www.lisboa.pt/fileadmin/cidade_temas/habitacao/documentos/Guiao_Iniciativa_Pilo-
to_H_Loja_Para_Todos_Ultima_.pdf
CAPÍTULO IX. TRANSFORMAR O TERRITÓRIO COM INVESTIGAÇÃO-AÇÃO, COLABORAÇÃO E PARTICIPAÇÃO… | 227 |

Esta freguesia é um dos importantes exemplos da necessidade de se pensar no


parque habitacional do município como um todo, sem descurar o papel que os
espaços não habitacionais cumprem para bem viver o lugar. As lojas vazias e o
espaço público envolvente desqualificado e/ou expectante destes territórios foram
decisivos para a Rés do Chão escolher Marvila para desenvolver o seu trabalho.
A Associação alicerçou as suas respostas de forma pragmática nos desafios do
território, a partir de contributos interdisciplinares da sua equipa – arquitetos, soció-
logos, antropólogos e pedagogos – e de investigação-ação. À semelhança do tra-
balho desta Associação noutros territórios, a intervenção com vista à abertura de
lojas ao serviço da comunidade local e à qualificação do espaço público permite
uma maior dinâmica de rua, com efeitos secundários como maior sentimento de
segurança, maior defesa do espaço público e maior sentimento de pertença ao lugar
(Jacobs, 2014; Gehl, 2017; Brandão e Brandão, 2019; DGAI, 2013).
Através do programa de financiamento municipal Bairros e Zonas de Interven-
ção Prioritária de Lisboa – BIP/ZIP96, e em parceria com entidades do território e
do meio académico, a Associação começou a intervir em Marvila em meados de
2017. Foi estruturada uma intervenção inicial para um ano de duração, partindo
dos pressupostos da investigação-ação, colaborativa e participativa. De forma posi-
tiva, devido ao aprofundamento do trabalho de intervenção, a atividade da Asso-
ciação em Marvila dura até hoje.

2. Investigação
O desenho do trabalho de investigação da Rés do Chão sobre o território mar-
vilense foi focado nos pisos térreos e no espaço público. Os métodos e técnicas uti-
lizados foram distintos e complementares, nomeadamente contemplando inqué-
rito por questionário, entrevistas, recolha documental, recolha de imprensa, reco-
lha de material censitário, observação de usos e comportamentos no espaço público,
mapeamento do mobiliário urbano e das lojas existentes, etnografia e participação
da Associação nas redes locais, como o Grupo Comunitário 4 Crescente (GC4C).
O objetivo geral é perceber qual a perceção das pessoas sobre os pisos térreos não
habitacionais e o espaço público, bem como quais os desejos dos residentes para
o território. Estes métodos também permitem contextualizar o território, seja o
tecido comercial e associativo, seja a composição sociodemográfica e caracteriza-
ção do mobiliário urbano e dos pisos térreos não habitacionais.
Apresentam-se, de seguida, alguns resultados desta fase de investigação que
estruturou a intervenção da Associação no território. Estes resultados estão siste-
matizados em relatórios da Associação (Rés do Chão, 2018a, b, c, d, e; 2019).

96. Link: http://bipzip.cm-lisboa.pt/


| 228 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

A população destes bairros, à data dos censos de 2011 realizado pelo INE, per-
fazia cerca de 3800 pessoas. A distribuição das faixas etárias da população era de
23% (entre 0 e os 19), de 64% (dos 20 aos 64) e 13% (com mais de 65) anos de
idade. Verifica-se uma percentagem de apenas 1% da população com ensino supe-
rior completo e, aproximadamente, 7% da população não sabe ler nem escrever.
A grande maioria das pessoas (perto de 82%) está em situação de arrendamento,
num contexto em que, como já foi dito anteriormente, grande parte da propriedade
habitacional é municipal.
Para o primeiro contato com moradores/as, comerciantes e entidades locais
foi pensado um pequeno instrumento de trabalho para a realização dos inquéri-
tos, que se mostrou determinante para a criação de laços iniciais. O instrumento
era um folheto simples onde se explicava o que era projeto do Rés do Chão em
Marvila, os seus parceiros e a sua fonte de financiamento.
Foram realizados inquéritos a moradores/as, comerciantes e entidades locais
onde se procurou conhecer as suas perceções sobre o território. Destaca-se aqui,
por um lado, a avaliação negativa da higiene urbana, dos equipamentos culturais,
desportivos e recreativos e os eventos de lazer. Por outro lado, de forma positiva
foram avaliadas as ofertas educativas, os transportes e as acessibilidades.
Na altura do mapeamento dos pisos térreos existiam aproximadamente 104 pisos
térreos não habitacionais nestes bairros, dos quais 53% estavam a ser utilizados e
47% estavam desocupados. Os tipos de ocupação que se podiam encontrar na gene-
ralidade destes pisos térreos eram cafés, restaurantes, mercearias, serviços de esté-
tica e associações. A partir dos inquéritos realizados foi possível perceber que o maior
desejo para a ocupação dos pisos térreos não habitacionais que se encontravam
fechados era com atividades de assistência social e uma diversidade de serviços.
Em relação ao espaço público, notou-se que estes bairros estão circundados e,
em certa medida, isolados devido aos vários acessos viários e terrenos descampa-
dos expectantes (na sua maioria de propriedade municipal) existentes entre eles.
Além disso, há vários elementos de descontinuidade urbana tais como muros,
desníveis, taludes e declives que criam dificuldades no acesso e na circulação das
pessoas. Estas descontinuidades urbanas promovem exclusão (física, social e visual)
nos territórios (Ferreira, Brandão e Prudêncio, 2019b), bem como transformam os
núcleos habitacionais em «ilhas» urbanas. A pensar nas possibilidades dos terre-
nos expectantes, questionou-se em inquérito quais eram os principais desejos e
expectativas para estes terrenos. As respostas que reuniram maiores consensos
foram os espaços desportivos, jardim e espaços para crianças; porém, em termos
negativos, apurou-se a hipótese de construção de mais habitação.
As interações no espaço público são diversas e complexas, podendo gerar coe-
sões e conflitos (Ferreira, Brandão e Prudêncio, 2019a). Para compreender as inte-
rações no espaço público e a sua relação com o mobiliário urbano existente, foi
CAPÍTULO IX. TRANSFORMAR O TERRITÓRIO COM INVESTIGAÇÃO-AÇÃO, COLABORAÇÃO E PARTICIPAÇÃO… | 229 |

desenvolvido um trabalho de investigação sobre espaço público, a partir de reco-


mendações técnicas do Gehl Institute,97 inquirindo as pessoas para conhecer as
suas impressões sobre o espaço público à sua volta. Nesse sentido mapeou-se todo
o mobiliário urbano e observaram-se os usos e comportamentos das pessoas em
espaço público. As conclusões desta investigação foram muito importantes para a
continuidade do trabalho da Associação neste território. Destaca-se, em termos
gerais, a avaliação generalizada do espaço público como tendencialmente razoá-
vel e, em termos específicos, a avaliação negativa dos terrenos descampados, ao
contrário das ruas e avenidas, que são tendencialmente avaliadas como positivas.
Em termos de usos e comportamentos em espaço público, foi observado que os
espaços públicos de maior utilização no território localizam-se nas imediações dos
comércios onde as pessoas procuram estar em convívio, a circulação e a concen-
tração de pessoas no território dá-se em relação aos equipamentos existentes, como
a escola e a biblioteca. Do mapeamento do mobiliário urbano ressaltam-se os par-
ques infantis (dois parques que no momento da pesquisa se encontravam quali-
ficados e três que se encontravam danificados) e a existência de uma série de pila-
res e pilaretes, alguns em forma circunferência e em cubo (na generalidade com
o objetivo de inibir o estacionamento em cima dos passeios; contudo também difi-
cultam as acessibilidades a pessoas com mobilidade reduzida).
Os resultados desta investigação permitiram que a Associação construísse fer-
ramentas para um trabalho de ativação do espaço público e pisos térreos de forma
mais consciente dos desafios do território. No fim desta recolha a Associação pre-
tendeu devolver às pessoas o resultado do seu trabalho. Para tal selecionou uma
série de resultados da investigação e criou um folheto ilustrativo a partir destes
resultados que foi distribuído pelos bairros. Para além disso, realizou uma apre-
sentação pública do seu trabalho ao Grupo Comunitário 4 Crescente, com a pre-
sença de moradores/as, entidades locais e da Junta de Freguesia de Marvila. Tanto
o folheto como a apresentação pública tinham como objetivo convidar as pessoas
a participarem nas atividades que a Associação iria dinamizar.

3. Ação
O envolvimento dos atores/utilizadores na produção e gestão do espaço público
é fundamental – estes atores sociais apresentam as suas complexidades em rela-
ção ao espaço público e é preciso considerá-las (Partidário, 2019). Como já foi refe-
rido, uma das primeiras ações que a Associação empreendeu ao chegar ao territó-

97. Foram utlizadas as ferramentas de trabalho: «People moving count», «Age+gender count», «Twelve
quality criteria», «Intercept survey worksheet», «Stationary activity mapping», «Social space survey», «Build-
ing facade activation», «Place inventory worksheet», «Familiar stranger survey». Link: https://gehlinstitute.org/
| 230 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

rio foi participar no Grupo Comunitário 4 Crescente (GC4C), fórum local dos bair-
ros Marquês de Abrantes, Quinta da Chalé, Alfinetes e Salgadas, onde estão pre-
sentes diversas entidades, desde associações locais, departamentos da Câmara
Municipal de Lisboa, Junta de Freguesia de Marvila, entidades como a Santa Casa
da Misericórdia de Lisboa e a Gebalis98 (empresa municipal de gestão da habita-
ção), bem como moradores/as. Um dos principais objetivos deste grupo comuni-
tário era responder aos problemas locais com o envolvimento coletivo do máximo
de parceiros. Nos últimos anos, a sua atuação tem vindo a ganhar cada vez mais
importância localmente, primeiro porque têm vindo a agregar mais moradores/as
e, em segundo lugar, porque têm vindo a defender uma série de iniciativas impor-
tantes para o território, onde se salienta o projeto Transformar Marvila com Jardim
e Ciclovias (explorado de seguida neste texto). O envolvimento da Rés do Chão
neste grupo foi importante para se ter um maior contato com o território e maxi-
mizar as atividades da Associação, sendo que o contributo da Associação também
foi importante na maximização da atuação do GC4C.
O sucesso de algumas atividades dá-se sobretudo pelo trabalho colaborativo
e participativo, onde se destaca o envolvimento de várias entidades e moradores/
as na sua conceção, estruturação, dinamização e tomando parte do projeto (Falanga
e Carvalho, 2016; Gouveia, 2016).
Um dos grandes exemplos deste tipo de trabalho é o projeto «C Bairrista».99 O
sucesso deste projeto dá-se por vários fatores, com destaque para a junção de várias
atividades que as entidades já estavam a planear realizar no território. A Gebalis
iria promover a requalificação do edificado habitacional de vários bairros com pro-
priedade municipal em Lisboa, incluindo Marvila. Nos lotes C do Bairro dos Alfi-
netes havia interesse da Gebalis em realizar o Programa Lotes ConVida100 em con-
junto com a intervenção estrutural no edificado. O objetivo seria dinamizar mora-
dores/as mais ativos/as no cuidado e na gestão dos seus prédios e espaço público
envolvente. A Associação Rés do Chão tinha como uma das suas atividades pro-
gramadas para o ano de 2018 a qualificação e ativação de um espaço público local.
Por outro lado, a Biblioteca de Marvila tinha interesse em continuar a realizar ati-
vidades no espaço público na área envolvente da biblioteca, como já tinha reali-
zado no ano anterior com o projeto Noites no Pátio101, desenvolvendo um conjunto
de sessões de cinema. A Associação Serve The City também tinha atividades pen-
sadas para o espaço público e vontade de mobilizar os moradores/as. Juntou-se,

98. Link: http://www.gebalis.pt/


99. Link do evento: https://www.facebook.com/events/azinhaga-dos-alfinetes-1950-438-lisboa-portugal/
c-bairrista/471478556594923/
100. Link: http://www.gebalis.pt/Instituicoes/ProjetosGEBALIS/Paginas/Lotes-ComVida.aspx
101. Link: https://nit.pt/coolt/cinema/noites-no-patio-proposta-cinema-ao-ar-livre-marvila
CAPÍTULO IX. TRANSFORMAR O TERRITÓRIO COM INVESTIGAÇÃO-AÇÃO, COLABORAÇÃO E PARTICIPAÇÃO… | 231 |

por fim, com apoio financeiro, a Junta de Freguesia de Marvila. Com o objetivo de
qualificar e ativar o espaço público e dinamizar a comunidade local, estas entida-
des uniram os seus esforços e deram os primeiros passos para o que viria ser o
«C Bairrista» nos lotes C do Bairro dos Alfinetes.
Este projeto começou pela organização de assembleias de moradores dos lotes
C que tiveram uma grande participação dos residentes. Um dos objetivos destas
assembleias era apurar quais os desejos dos moradores/as para o espaço público
à sua volta, como também se eles estavam motivados em concretizar estes dese-
jos. A partir desta assembleia foram organizadas várias reuniões de trabalho com
uma periodicidade regular onde se foi afinando com os moradores/as como se
poderiam concretizar estes desejos, bem como a organização de uma festa para
comemorar o processo. Devido à necessidade de existência de espaços infantis,
surgiu o interesse em qualificar uma praceta envolvente aos prédios dos lotes C
com desenho de jogos para a infância; esta intervenção foi contemporânea a obras
no edificado para a qualificação estrutural da praceta. A discussão de cada tipo de
jogo a ser realizado, bem como a criação de pequenas estruturas para estes jogos
e a pintura do chão são demonstrativas do trabalho coletivo com envolvimento das
entidades, moradores/as e especialmente das crianças residentes neste território.
De forma semelhante, a organização da festa foi estruturada de forma participativa
e colaborativa: sugestões de nomes de artistas, dia da festa, pensar em cada ativi-
dade a ser organizada para aquele dia e até a decisão de ser uma festa sem álcool
foram questões pensadas e discutidas coletivamente. O projeto contou ainda com
várias atividades realizadas no espaço público da praceta com o objetivo de se ir
criando o hábito de uso do lugar. A festa aconteceu em finais de setembro de 2018,
contudo os resultados do C Bairrista são evidentes a médio e talvez longo prazo.
Atualmente, muitos moradores/as que foram mobilizados/as para a primeira assem-
bleia, em Maio de 2018, continuam envolvidos até hoje, muitos deles/as partici-
pam regularmente no GC4C, estiveram envolvidos/as na estruturação da exten-
são do C Bairrista para Ser Bairrista (alargamento do projeto para outros lotes vizi-
nhos) e vários destes moradores/as têm sido protagonistas no projeto Transformar
Marvila com Jardim e Ciclovias (TMJC).
Um outro projeto demonstrativo da importância do trabalho colaborativo é a
Cicloficina Crescente – Marvila. As cicloficinas são projetos comunitários e volun-
tários de assistência a ciclistas, onde se procura, além de consertar as bicicletas,
ensinar e aprender de forma coletiva. Em Portugal102 existe uma dezena de proje-
tos desta tipologia. Em Marvila a cicloficina foi criada durante o processo do C
Bairrista, pela Associação Rés do Chão e pelo Centro de Promoção Social da Prodac
(CPS-P) da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), juntando-se posterior-

102. Link: https://cicloficina.pt/


| 232 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

mente a Junta de Freguesia de Marvila e o Grupo Recreativo Janz e Associados. A


sua atividade começou a ser desenvolvida na praceta dos lotes C e atualmente têm
uma sala no espaço do CPS-P, para além de desenvolverem atividades no espaço
público destes bairros marvilenses. Este projeto tem como principal público-alvo
as crianças dos bairros, com atividades de arranjo de bicicletas e passeios pela fre-
guesia e cidade. Trata-se de um projeto que serve como estrutura para a discussão
de outros problemas envolvendo bicicletas e cidade em Marvila e que tem sido
basilar na defesa da criação de ciclovias na freguesia que pudessem melhorar o
espaço público, ligar-se aos equipamentos marvilenses e potenciar a intermodali-
dade com conexões aos vários tipos de transportes públicos.

4. A comunidade constrói
A zona histórica e ribeirinha de Marvila (bairros Marvila Velha e Poço do Bispo)
está em grande processo de transformação urbana, associado a grandes investi-
mentos privados e públicos, à nova urbanização com projeto de arquitetura do
Renzo Piano (Pinheiro, 2017), à chegada das indústrias criativas (Malta e Bourgard,
2016), do Hub Criativo do Beato (Faustino, 2020) e de cervejarias artesanais (Sapo24,
2017), bem como a criação de espaços de lazer, com destaque para o Parque Ribei-
rinho Oriente, que liga esta zona ao Parque das Nações (CML, 2020). Do ponto de
vista urbano, pode dizer-se que a freguesia está dividida em dois territórios: por
um lado, os bairros Marvila Velha e Poço do Bispo, abaixo das duas linhas férreas,
que estão a passar por estas transformações; por outro lado, os bairros acima destas
duas linhas férreas, na sua grande maioria bairros de habitação de propriedade
municipal, onde se encontram os bairros em que a Rés do Chão intervém. Acima
das linhas férreas existe pouco investimento privado e o público. Um dos grandes
investimentos públicos previstos para estes bairros é a construção de parques
habitacionais de cariz municipal, através do Programa Renda Acessível,103 no qual
parte do parque habitacional se destina ao mercado livre de habitação (a divisão
difere de bairro para bairro, mas nalguns contextos entre 1/3 e 1/2 do parque
habitacional é destinado ao mercado livre de habitação, sendo o restante a preço
controlado para pessoas com rendimentos intermédios). No caso dos bairros Mar-
quês de Abrantes, Alfinetes e Salgadas pretendia-se construir aproximadamente
500 fogos de habitação104 em vários edifícios habitacionais espalhados pelos vários
terrenos expectantes.

103. Link: http://www.lisboarendaacessivel.pt/


104. Link: http://www.lisboarendaacessivel.pt/localizacoes/quinta-marques-de-abrantes/
CAPÍTULO IX. TRANSFORMAR O TERRITÓRIO COM INVESTIGAÇÃO-AÇÃO, COLABORAÇÃO E PARTICIPAÇÃO… | 233 |

Como demonstrado nos resultados de investigação da Rés do Chão, os morado-


res/as destes bairros, provindos/as em sua maioria de processos de realojamento,
assumem a necessidade de se qualificar os bairros onde vivem através da existên-
cia de serviços diversificados, de espaço público qualificado, da melhoria dos trans-
portes públicos e da diversidade na oferta comercial. A grande reivindicação destes
moradores, em linhas gerais, é o direito a habitar no lugar onde habitam.
Alicerçados nesta reivindicação começaram a sonhar com um jardim nestes
terrenos expectantes junto às suas habitações. Contudo, grande parte destes ter-
renos estavam destinados à construção dos referidos projetos habitacionais.105 Uma
líder local decidiu avançar com uma proposta em Orçamento Participativo de Lisboa
(OPL) para este tão sonhado jardim e pediu ajuda a várias entidades locais, inclu-
sive à Rés do Chão. Reuniram-se entidades com a moradora para discutirem a pro-
posta e pensarem todos os contratempos, caso a proposta fosse recusada em ava-
liação preliminar do júri do OPL, bem como se a proposta não chegasse a ser ven-
cedora em votação. Tiveram-se em conta algumas questões, nomeadamente que
a proposta dos moradores/as nunca poderia passar por «não queremos mais gente
aqui», mas sim «queremos ter condições para todos viverem aqui»; e que esta pro-
posta não poderia ser de uma moradora isolada e entidades cooperantes, mas sim
que deveria ampliar-se ao máximo entre os seus vizinhos. A Cicloficina Crescente
aproveitou a oportunidade e juntamente com outros moradores/as começou a dis-
cutir uma proposta de construção de ciclovias de bairro na freguesia. A ideia seria
levar as duas propostas a voto, em categorias competitivas diferentes.
Fizeram-se reuniões e assembleias tentando chegar a mais gente e rapidamente
se ultrapassaram as quatro dezenas de participantes. Prepararam-se as duas pro-
postas ao OPL (Pedalar Por Marvila106 e Transformar com Jardim107) e através do
GC4C em dezembro de 2018 as propostas foram submetidas a concurso. Em Feve-
reiro de 2019, ambas foram chumbadas pelo júri: as ciclovias porque a CML defen-
dia que já iria construir ciclovias na cidade, inclusive na freguesia (contudo os
planos em construção, que viriam a ser consultados posteriormente, não incluem
aqueles bairros marvilenses); o jardim por causa dos projetos de habitação previa-

105. O presente texto não tem dimensão compatível com o aprofundamento de outros projetos de cons-
trução em Marvila. Destaque-se, porém, que neste local em específico (descampado onde se prevê cons-
truir o jardim) também se planeava a construção de uma terceira via sobre o Tejo, que obrigou ao fecho de
equipamentos públicos (tais como a Escola Secundária Afonso Domingues). No território mais amplo de
Marvila também se discute a provável construção do Hospital de Todos os Santos, uma esquadra da PSP,
um centro de saúde, pavilhões desportivos e zona de ligação com Corredor Verde Oriental. Uma das cons-
truções que não avançou foi a Fundação Luso-Brasileira, com projeto para o local por Oscar Niemeyer.
106. Link: https://op.lisboaparticipa.pt/edicoes-anteriores/5bd6e21ddad1a00009480435/propostas/
5c12aa84663b01000b6ea489
107. Link: https://op.lisboaparticipa.pt/edicoes-anteriores/5bd6e21ddad1a00009480435/propostas/
5c12a669663b01000b6ea47d
| 234 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

mente referenciados. Todavia, ainda no mesmo mês o Presidente da autarquia faz


uma visita à freguesia em preparação de uma reunião descentralizada, e morado-
res e entidades locais encheram a Biblioteca de Marvila para lhe apresentar em
co-presença estas duas propostas. O Presidente respondeu afirmativamente às exi-
gências dos presentes, dizendo que iria avançar com o desejo dos moradores. A
partir deste momento, começou uma intensiva campanha colaborativa e partici-
pativa, que deu origem ao projeto Transformar Marvila com Jardim e Ciclovias108
(TMJC). Os moradores do GC4C voltaram a apresentar as propostas em reunião
descentralizada da CML, multiplicaram-se as reuniões de trabalho e de estrutura-
ção das ideias do que poderiam ser o jardim e as ciclovias, exigiu-se que desde o
projeto de arquitetura até à gestão do futuro jardim todo o processo fosse feito de
forma participativa, com envolvimento de moradores/as, foram feitos inquéritos
de auscultação a todos os moradores/as dos bairros e realizaram-se reuniões de
trabalho com vereadores e técnicos da autarquia para discutir as propostas. Até ao
momento, tanto o jardim como as ciclovias não estão construídos, e negoceia-se
que os moradores façam parte do júri de concurso do jardim.

5. Concluindo
Os processos previamente referenciados, em particular no caso do TMJC, mos-
tram-nos a importância de envolver moradores/as em processos de decisão e na
construção coletiva dos projetos. Pode dizer-se que estes bairros estão em movi-
mento, lutando pela sua transformação (Ne-lo, 2018) e pela defesa do seu direito à
cidade, a construir e a viver o lugar (Lefebvre, 2008; Harvey, 2012 e 2013) e demons-
trando a importância de partir das bases na reivindicação da transformação do
lugar (Thörn, 2011; Siebier e Centeio, 2011).
Destaca-se a importância de valorizar o processo, porque nem sempre os resul-
tados imediatos de um processo participativo e colaborativo podem ser avaliados
como positivos. Quando as equipas se mantêm atentas ao processo e permanece
o envolvimento das pessoas, já se observa um resultado positivo.
Projetos como o C Bairrista, o TMJC e a Cicloficina Crescente – Marvila impul-
sionaram o sentimento de lugar e o envolvimento dos moradores/as e deram-lhes
ferramentas para reivindicar mais. A atividade da Rés do Chão nestes territórios,
partindo de uma metodologia ampla, que vai desde a investigação à intervenção,
foi importante para ajudar no impulsionamento do engajamento das pessoas. Em
Marvila, o contributo da Associação está focado no espaço público e nos pisos tér-
reos não habitacionais, mas os seus resultados vão muito para além deste propó-

108. Link: https://www.facebook.com/transformarmarvila/


CAPÍTULO IX. TRANSFORMAR O TERRITÓRIO COM INVESTIGAÇÃO-AÇÃO, COLABORAÇÃO E PARTICIPAÇÃO… | 235 |

sito; desde o princípio que se reclamou a necessidade de se fazer um trabalho par-


ticipativo e colaborativo, onde os agentes da transformação do território são os
moradores/as e a rede local. Este trabalho não seria possível se moradores/as e
entidades locais não tomassem os projetos como seus.
Da pesquisa à intervenção, da luta à transformação, estes processos mostram
a importância de pensar, fazer e viver a cidade em coletivo.

Siglas
BIP/ZIP = Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa
CML = Câmara Municipal de Lisboa
CPS-P = Centro de Promoção Social da Prodac
GC4C = Gupo comunitário 4 Crescente
Gebalis = Gestão do Arrendamento da Habitação Municipal de Lisboa, EM, SA
INE = Instituto Nacional de Estatística
PSP = Polícia de Segurança Pública
TMJC = Transformar Marvila com Jardim e Ciclovias
OPL = Orçamento Participativo de Lisboa
SCML = Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

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Capítulo X

Narrativas e práticas
participativas nos
programas habitacionais
em Portugal:
Trajetória e influência
da experiência brasileira

Mariana Cicuto Barros*

* Arquiteta, Professora na Universidade Nove de Julho e no Instituto Federal de São Paulo, Pesquisadora
em Políticas Públicas em Habitação de Interesse Social. Email: marianacicuto@gmail.com
1. Introdução: aproximação ao debate Brasil-Portugal em
arquitetura participada
Este artigo busca apresentar as narrativas e práticas dos processos participati-
vos no campo habitacional da realidade portuguesa, com vista a revelar possíveis
influências dos processos brasileiros nas concepções de métodos participativos de
moradores e arquitetos a partir da década de 1970 e seus desmembramentos até o
lançamento do programa nacional «Iniciativa Bairros Críticos» (IBC) em 2005, em
especial a experiência do Bairro do Lagarteiro. É possível considerar certa influên-
cia de experiências brasileiras nas políticas habitacionais em Portugal no processo
Serviço Apoio Ambulatório Local (SAAL), criado em 1974. No entanto, os progra-
mas habitacionais criados a partir da década de 1980 caracterizam-se por lacunas
nos processos participativos e, numa fase posterior, no programa experimental
específico, a IBC, observa-se a retomada do debate e ações que tratam da partici-
pação no processo do projeto habitacional. A prática da IBC revela que o Estado
pode atuar além da instituição de normativas e financiamentos e ser um coorde-
nador das iniciativas de participação.
As discussões dos processos participativos no campo habitacional em Portugal
podem ser apresentadas a partir do período pós-guerra na década de 1950, não obs-
tante os fortes condicionalismos dos regimes políticos, nomeadamente em Portugal.
Esse período revela um grupo de arquitetos que «acreditava que a arquitetura tinha
a capacidade de transformar o comportamento das pessoas e de melhorar as con-
dições de habitação para a população de menor renda» (Sanches, 2015: 80). Segundo
esta autora, é nesse contexto que se iniciam debates e experiências de participação
dos futuros moradores em projetos habitacionais no atelier de arquitetura de Nuno
Teotónio Pereira109. Nuno Portas, outro arquiteto fundamental na história da habi-
tação em Portugal, relata que o seu interesse por habitação social se iniciou no
contato com o atelier de Teotónio Pereira e «que aquele era o local da discussão da
política da habitação daquele momento no país» (Sanches, 2015:86).
Posteriormente, na década de 1960, é realizado o colóquio sobre o problema
da habitação «Aspectos sociais na construção do Habitat» pelo Sindicato Nacional
dos Arquitetos, em Lisboa. Segundo José António Bandeirinha (2014), nesse coló-
quio o arquiteto Nuno Portas apresentou o texto «Problemas da célula familiar»,
que destacou o campo da sociologia e a crítica espacial dos projetos. A principal
recomendação do colóquio foi a de que os novos projetos de habitação fossem pro-
gramados em função das exigências particularizadas de cada um dos grupos huma-
nos a que se destinam (Bandeirinha, 2014:66).

109. Ao longo da década de 1960, Nuno Teotónio Pereira será o principal impulsionador da constituição
de uma política habitacional em Portugal.
| 242 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Entre as décadas de 1960 e 1970, ao observar e denunciar realojamentos e demo-


lição de «barracas»110 que impediam o acesso à construção de uma nova ponte sobre
o Rio Tejo, Teotónio Pereira questiona a forma como as remoções foram realizadas:
«a violenta mudança de um local mais central, onde os moradores tinham já a sua
vida e as suas raízes, para uma zona mais periférica, mais complicada do ponto de
vista das acessibilidades» (Bandeirinha, 2014:67). Também denuncia a falta de coor-
denação, assistência às famílias e discriminação relativa ao tipo de realojamento.
Na sequência desse acontecimento, Teotónio Pereira participa de mais dois coló-
quios e apresenta o texto intitulado «Habitações para o maior número» que trata
«sobre as inaproveitadas possibilidades de resolução do problema da habitação».
Esclarece quem é o «maior número», para quem é necessário construir: «a cres-
cente mole dos mal alojados, mantidos à margem do meio urbano que os atraiu;
sem recursos para obter uma habitação adequada dentro dos esquemas conven-
cionais» (Bandeirinha, 2014:67).
No que se refere à participação dos moradores na construção das habitações,
o texto destaca o não aproveitamento do potencial da autoconstrução. Para o autor,
há «recursos não aproveitados» nessa modalidade, a qual, erguida como processo
marginal aos sistemas convencionais de mercado, não é aproveitada como alter-
nativa de resolução do problema habitacional. Aponta ainda que há a preferência
por parte do Estado de resoluções do tipo «paternalista ou autoritário» em detri-
mento do incentivo ao empenho da população. Além disso, embora de um modo
genérico, apresenta as experiências realizadas no Norte de África, no Médio Oriente
e na América Latina, citando a experiência do Brasil na urbanização da favela
Brás de Pina, no Rio de Janeiro. É nesse contexto que se iniciam, ou se fortale-
cem, os contatos com as realidades brasileiras e portuguesas, visto que, de acordo
com Sanches (2015:95), a experiência do Brás de Pina já era conhecida pelo Arqui-
teto Nuno Portas desde a década de 1960. É, porém, na década de 1970 que a expe-
riência do Grupo Quadra é apresentada de maneira mais significativa em Portugal.
Nesse período Teotónio Pereira recebeu em Lisboa, em conferência no Laborató-
rio Nacional de Engenharia Civil (LNEC)111, o arquiteto brasileiro Carlos Nelson
Ferreira dos Santos, representante do Grupo Quadra de Arquitetos Associados, que

110. Segundo Rita Ávila Cachado (2013: 137), a partir da década de 1970, a construção clandestina aumen-
tou em toda a área metropolitana de Lisboa. Um dos fatores que contribuiu para este crescimento foi um
vazio da promoção legal da habitação. Em face da ausência de alternativas e programas habitacionais,
a construção dos bairros clandestinos permitiu satisfazer as necessidades familiares. Uma parte dos bair-
ros clandestinos é conhecida pela designação «bairros de barracas», que cresceram muito nesse momento,
não só em virtude da crise financeira, como também devido ao afluxo de imigrantes na sequência da inde-
pendência das ex-colónias africanas.
111. O LNEC teve papel importante na pesquisa sobre cidade e habitação e, entre 1963 e 1980, contava
com a presença de Nuno Portas como funcionário e investigador do laboratório, que estudava a questão
do habitat.
CAPÍTULO X. NARRATIVAS E PRÁTICAS PARTICIPATIVAS NOS PROGRAMAS HABITACIONAIS EM PORTUGAL | 243 |

apresentou as experiências participativas realizadas na favela Brás de Pina na


década de 1960 no Rio de Janeiro.

«Esteve por diversas vezes em Portugal e, em Janeiro de 1972, veio ao Laboratório


Nacional de Engenharia Civil apresentar algumas das suas experiências enquanto arqui-
tecto consultor da Federação das Associações de Favelados do Estado de Guanabara
(FAFEG), e enquanto “executor” de planos de infraestruturação de favelas para a Com-
panhia de Desenvolvimento de Comunidades (Codesco)» (Bandeirinha, 2014:48).

O contato com a experiência na favela Brás de Pina na década de 1970 repre-


sentou um momento importante para o fortalecimento da influência brasileira nos
processos participativos nas políticas habitacionais que se sucederam em Portugal.

2. Influências: Grupo Quadra e o Processo SAAL


É possível considerar certa influência da experiência do Grupo Quadra nas polí-
ticas habitacionais em Portugal, como no processo Serviço Apoio Ambulatório
Local (SAAL), criado em 1974, logo após o período da Revolução dos Cravos e que
teve duração até 1976.112 O SAAL constituiu-se como um programa de realojamento
baseado em princípios da arquitetura participativa, destinado às camadas popula-
res residentes em bairros de habitações precárias.
No que diz respeito às referências internacionais relacionadas às teorias e prá-
ticas dos processos participativos do SAAL, Bandeirinha (2014) menciona, entre
outras referências, o trabalho desenvolvido na favela Brás de Pina pelo Grupo
Quadra: «Pela importância da sua obra e pela sua proximidade pontual com a situa-
ção portuguesa destaca-se a de Carlos Nelson Ferreira dos Santos» (Bandeirinha,
2014:48). Perante este tema, Bandeirinha refere-se à aproximação do trabalho desen-
volvido por Carlos Nelson Ferreira dos Santos e John Turner (1976), proximidade
essa que se centrava na vertente social como forma de compreensão e resposta à
situação, uma vez que os dois autores divergiam na interpretação e respectiva pro-
posta. Enquanto John Turner defendia total liberdade na construção das moradias,
Carlos Santos reconhecia que a atuação do arquiteto poderia servir como acompa-
nhamento e distribuição de conhecimento aos moradores, mas sem a finalidade
de estabelecer soluções rígidas. Durante a construção das habitações na favela Brás
de Pina, sempre que moradores solicitavam os arquitetos, havia a postura de deixá-

112. Passados dois anos desde o início oficial do processo, em 27 de outubro de 1976, um despacho con-
junto do Ministro da Administração Interna e do Ministro da Habitação, Urbanismo e Construção deter-
mina o fim à metodologia do processo SAAL e à sua estrutura orgânica de intervenção.
| 244 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

-los livres para construir – dentro dos limites da compatibilidade do plano urba-
nístico desenvolvido – e não de inibir ou criar proibições.

Turner advogava a inteira liberdade de opções na construção da moradia própria, prin-


cípio ao qual correspondia também uma certa demissão da função do arquitecto, inca-
paz de introduzir mais-valias técnicas ou arquitectónicas no desenrolar do processo
construtivo (...) Carlos Nelson, por seu lado, e talvez pelas especificidades sociológicas
que identificava nos «seus» moradores, reconhecia ao seu trabalho e ao dos seus cole-
gas a possibilidade de se assumir como um processo de acompanhamento e de intro-
dução de benefícios racionais que não pressupunha, de forma alguma, a imposição de
soluções ou a rigidez normativa, nem por razões de ordem funcional, sobretudo jamais
por razões de ordem estética. A infraestruturação urbana foi, em Brás de Pina, a razão
primeira e última do intervencionismo técnico, mas a possibilidade de intervir ao nível
das opções de conformação e de construção dos fogos nunca foi imposta nem rene-
gada. Era uma assistência a que os moradores tinham direito e à qual recorreriam de
livre arbítrio (Bandeirinha, 2014:51).

Ao desenvolver o plano da favela Brás de Pina, o Grupo Quadra privilegiou a


relação «arquiteto-morador» e a gestão do processo revelou-se «transgressora»
(Pulhez, 2008:111). No decorrer desse projeto, Carlos Nelson desviou a sua aten-
ção das questões práticas, projetuais e construtivas e empenhou-se na compreen-
são das vontades dos futuros moradores.

[...] ficou decidido que os próprios moradores trabalhariam em campo sob nossa orien-
tação e nos forneceriam o material bruto que interpretaríamos no escritório [...]. Ainda
que parecesse lógico o contrário, é muito raro que urbanistas tenham contatos face a
face com as pessoas para quem fazem planos. Vivíamos com o escritório cheio de fave-
lados que o invadiam para ver o que fazíamos e ficavam para discussões que varavam
a noite. Era emocionante ir recebendo aqueles pedaços dos mais diversos papéis e ir
vendo um trabalho que surgia aos poucos (Santos apud Pulhez, 2008:112).

Segundo Carvalho (2012:197), esse processo foi defendido pelo arquiteto Nuno
Portas, um dos responsáveis pela implementação do SAAL. Enquanto esteve no
LNEC, viajou por países como Brasil, Colômbia, Peru, entre outros e, nesse período,
conheceu Carlos Nelson e John Turner. O arquiteto mencionou essa metodologia
no seu relatório «Habitação Evolutiva» desenvolvido em 1970 em conjunto com o
arquiteto Francisco Silva Dias e, posteriormente, chegou a testá-la no SAAL. Além
disso, Sanches (2015:102) salienta que Portas refere-se à favela Brás de Pina como
modelo para a organização, descentralização de poderes, comunicação das pessoas
e autogestão dos moradores nas etapas de diagnóstico, projeto e obra SAAL.113

113. Entrevista de Nuno Portas concedida a Sanches (2015).


CAPÍTULO X. NARRATIVAS E PRÁTICAS PARTICIPATIVAS NOS PROGRAMAS HABITACIONAIS EM PORTUGAL | 245 |

Porque comecei a perceber, depois de uma viagem que o LNEC me fez ir ao Brasil, eu
comecei a perceber que no Brasil havia as soluções, que se iam tornar problemas, que
eram as do dinheiro americano para fazer bairros sociais, portanto Cidade de Deus, um
caso típico. E que havia problemas que podiam vir a ser a solução, porque no Brasil
conheci o Carlos Nelson dos Santos, que era uma espécie John Turner do Brasil. Depois
conheci o John Turner, andei pela América Latina, tudo isso devo ao LNEC. Essa é a
terceira fase que atirava para o problema dos bairros de lata/clandestinos e que vai
formar o SAAL (Portas apud Carvalho, 2012:314).

A participação incorporada pelo SAAL pareceu, assim, uma alternativa teórica


e prática para um novo processo de política de habitação em Portugal. Gonçalo
Antunes (2018:494) destaca que o SAAL «pressupunha alterar o modo como a habi-
tação social era conceptualizada no nosso país» e que a metodologia «rejeitava os
processos top-down e privilegiava a abordagem bottom-up»114 e pretendia fomentar
o empoderamento (empowerment) da população residente em bairros com habita-
ções precárias. No entanto, a abordagem bottom-up implementada no SAAL, assim
como as discussões dos processos participativos não obteve continuidade signifi-
cativa nos programas habitacionais posteriores. Segundo Antunes (2018:503), após
o SAAL, «Portugal percorreu um longo período em que o Estado demonstrou difi-
culdades em compreender o problema da habitação para a população mais pobre».
Desde o final da década de 1980 até 2005 foram lançados programas, mas sem a
participação significativa de moradores e arquitetos. O Plano de Intervenção a
Médio Prazo (PIMP) foi realizado entre 1987 e 1993, com o objetivo de erradicar
os «bairros de barracas» nos municípios do país. Em 1993 o PIMP foi ampliado com
a «necessidade de o poder central criar uma política alargada, de escala metropo-
litana ou regional, que permitisse realojar toda a população residente nos bairros
de barracas» (Antunes, 2018:438). Foi nesse contexto que se deu a criação do Pro-
grama Especial de Realojamento (PER) que previa apoio financeiro para os muni-
cípios para a construção ou aquisição de habitação, destinadas ao realojamento na
Área Metropolitana de Lisboa e Porto.

3. Narrativas participativas: do SAAL à Iniciativa Bairros


Críticos
A retomada das discussões sobre processos participativos na promoção habi-
tacional também pode ser apresentada a partir do lançamento do programa nacio-
nal «Iniciativa Bairros Críticos» (IBC) em 2005. Segundo Paulo Tormenta Pinto, arqui-

114. As relações «top-down» monopolizaram as operações de realojamento habitacional entre 1933 e


1974, durante o Estado Novo português (Antunes, 2018).
| 246 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

teto português que atuou numa das intervenções da IBC,115 os programas habita-
cionais promovidos a partir da década de 1980 foram alvos de críticas pela ausên-
cia de processos participativos.

Com a entrada de Portugal na União Europeia em 1986, a partir daí os programas habi-
tacionais realizados e promovidos pelos governos são criticados por técnicos mais rela-
cionados com as áreas da economia, sociais, sociologia etc., por uma falta, certa lacuna
no fator participativo (Pinto, 2017).

A IBC buscava, entre outros objetivos, «compensar algumas das deficiências


dos processos anteriores, principalmente em termos de participação dos habitan-
tes» (Pinto, 2013:1447). O arquiteto menciona o artigo publicado em 1980 de Gian-
carlo de Carlo116 «An Architecture of the Participation» como uma das referências
ao processo de intervenção da IBC realizado no Bairro do Lagarteiro, na cidade do
Porto, com a participação da população residente. Segundo o autor, a contribuição
de Carlo constituiu uma base importante na reflexão sobre o papel dos arquitetos
nos processos de intervenção urbana, na medida em que este arquiteto enfatizava
a importância do envolvimento do arquiteto na fase da definição dos objetivos
específicos da operação para que o plano fosse desenhado de acordo com as neces-
sidades dos usuários e a importância da adaptação às especificidades de cada caso
(Pinto, 2013:1448). Mais, Pinto (2013) ressalta ainda a discussão do editorial «Archi-
tecture is not a Voting Matter!» publicado no «Jornal dos Arquitectos» em 2009 pelo
arquiteto português Manuel Graça Dias117, que apresenta os processos participati-
vos na dimensão populista118. Segundo este autor, os debates da participação em
relação à arquitetura «enunciam meias verdades que podem exaltar assembleias,
mas que, na realidade, se levadas à letra, se mostrariam completamente inconse-
quentes e inúteis». No entanto, Dias (2009) aponta que para «lutar contra todas as
formas de populismo que cercam a nossa atividade» os arquitetos devem conse-
guir provar a fundamentação das suas opções e eliminar a arbitrariedade para que
a defesa das escolhas não fique «encurralada no pântano dos gostos». Pinto

115. A IBC contou com três intervenções: Bairro do Lagarteiro (Porto), Vale da Amoreira (Moita, Lisboa)
e Cova da Moura (Amadora, Lisboa). O arquiteto atuou na intervenção no Bairro do Lagarteiro.
116. O arquiteto italiano Giancarlo de Carlo, durante as décadas de 1960 e 1970, foi um dos pioneiros
na reflexão sobre a importância da «Arquitetura Participativa» e na criação de procedimentos de traba-
lho que incorporassem a participação do usuário no processo de elaboração de projetos.
117. Disponível em: http://arquivo.jornalarquitectos.pt/en/234/editorial/. Acesso em: 15 mar. 2019.
118. Segundo Dias (2009), «o populismo manifesta-se de muitos modos. Na maior parte das vezes, con-
siste numa espécie de facilitação da complexidade do real que propicia respostas extraordinariamente
simplificadas, as quais, depois, servem vários fins – quase sempre não confessadas proposições de poder –,
garantidos pelo reconhecimento imediatista e quase só emocional que o mecanismo de despojamento
da presença de contradições torna aparentemente evidente».
CAPÍTULO X. NARRATIVAS E PRÁTICAS PARTICIPATIVAS NOS PROGRAMAS HABITACIONAIS EM PORTUGAL | 247 |

(2013:1449) destaca que essas posições não refutam a importância e uso dos deba-
tes públicos na medida em que fornece o «alimento ao projeto», não retirando o
papel do arquiteto como mediador, uma vez que ele é responsável pela compreen-
são, interpretação, processamento e adaptação do projeto.
O debate em Portugal aponta as influências das experiências brasileiras na década
de 1960 para a constituição de programas habitacionais participativos e, numa fase
posterior, com um programa experimental específico, apresenta outras referências
teóricas que tratam da participação dos usuários no processo do projeto. Um con-
junto de diversos debates é suscitado, apontando para a inter-relação das narrati-
vas sobre modelos de participação com as práticas desenvolvidas em Portugal. Essas
constatações auxiliam no entendimento de como essas reflexões influenciaram o
trabalho dos arquitetos e equipas multidisciplinares, desde as ações na década de
1970 em Portugal, assim como na constituição dos formatos e perfis das equipas
técnicas na experiência da IBC.
Em Portugal, como referido, a partir da década de 1970 são inaugurados pro-
jetos habitacionais construídos no âmbito do Programa Habitacional Serviço de
Apoio Ambulatório Local (SAAL). Criado a partir da Revolução dos Cravos,119 o
SAAL era destinado à população residente120 que se encontrava alojada em situa-
ções precárias. O arquiteto Paulo Tormenta Pinto, em entrevista concedida à autora,
destaca que os problemas habitacionais em Portugal surgem na década de 1950
decorrentes do êxodo rural.121 A partir da década de 1970, é possível identificar a
continuidade do processo de pressão demográfica impulsionada pelo êxodo rural
e a vinda dos imigrantes das antigas colónias:

Os problemas habitacionais em Portugal iniciam-se nos anos 50. Quando chegamos


ao período da Revolução nos anos 70 houve um desinvestimento muito grande na agri-
cultura e começou a haver um investimento nas áreas das indústrias e das cidades. E
as pessoas, a partir da década de 50, começaram a vir às cidades. Quando chegamos à
década de 70 aí sim havia aglomerados de favelas muito grandes em volta das cidades.
Depois quando se deu a Revolução se deu também a disponibilização de muitas pes-

119. A Revolução dos Cravos pôs fim ao período ditatorial do Estado Novo, dando origem ao «Programa
dos três D: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver». Em 25 de abril de 1975, ocorreram eleições livres
para a Assembleia Constituinte, que elaborou uma nova Constituição, com fortes características socialis-
tas e instituiu o regime de democracia parlamentar, no qual a habitação digna foi apresentada como um
direito da população, inscrevendo o direito à habitação e ao urbanismo entre os direitos e deveres sociais.
120. Nuno Portas (1986:636) salienta que as ideias do SAAL já estavam delineadas alguns anos antes da
Revolução desde o final da década de 1960, aguardando condições políticas para despoletar a vontade
dos próprios interessados – as populações – de aceitarem um contrato com o aparelho do Estado deten-
tor de parte de meios imprescindíveis.
121. Na década de 1950 a população de Lisboa aumentou em razão do êxodo rural. A ausência de infraes-
trutura e de transporte resultou na proliferação dos bairros de barracas nas periferias (Antunes, 2018:260).
| 248 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

soas que viviam em África, duplicou a população e os problemas de carência habita-


cional (Pinto, 2017).

De acordo com Bandeirinha (2014:250), o SAAL, que surgiu como uma resposta
aos graves e acumulados problemas da crise de alojamento que explodiram súbita
e espontaneamente, foi uma instituição paralela menos burocrática e, sobretudo,
preenchida com funcionários identificados com a revolução. Sobre a atuação dos
técnicos, o autor destaca que era considerada a cumplicidade com a resolução dos
problemas da população, embora tenham atraído também profissionais mais dis-
postos a um papel de neutralidade técnica. Desta forma foi criada uma estrutura de
elevada autonomia que pretendia contornar a burocracia (Antunes, 2018:357) por
meio de equipas técnicas – em sua maioria compostas por arquitetos, engenheiros
e estudantes, denominadas brigadas técnicas –, as quais prestavam apoio local e
faziam a identificação das áreas de intervenção, a definição das ações, o projeto e
a construção. Os residentes dos bairros de habitações precárias deveriam se orga-
nizar, discutir os problemas e deliberar as possíveis soluções. As brigadas eram cha-
madas ao local e, caso as propostas fossem exequíveis, iniciava-se a intervenção.
Esse método possibilitava a participação da população na construção, com mão de
obra, recursos monetários ou combinações de ambos. O Estado, tanto central como
local, era responsável pela organização e gestão do SAAL, pela aquisição de terre-
nos e materiais de construção e realização de obras de infraestrutura.
Bandeirinha (2014:238) identifica um pouco mais de 90 projetos, dos quais 73
foram parcialmente construídos. Vários arquitetos e engenheiros participaram na
elaboração dos projetos e nas brigadas e cada operação do programa manifestava-
-se com métodos e projetos diversos entre si. Segundo o autor, essa diversidade, se,
por um lado, revelava certa dificuldade de expressão de uma intenção coletiva, por
outro, comprovava que a participação dos moradores, o grau de convicção no pro-
cesso e a pluralidade dos seus desejos foram determinantes para uma parte signi-
ficativa dos resultados obtidos.
Além dos atributos sobre os processos participativos com uma perspectiva
transformadora e além das predefinições tipológicas (Bandeirinha, 2014:251), o pro-
grama também é caracterizado pela presença de uma geração de arquitetos que,
posteriormente, tornaram-se referências para a arquitetura portuguesa e mundial,
com destaque para Álvaro Siza Vieira e Fernando Távora.

Este plano se constitui como uma espécie caso de referência relativamente a vários fato-
res, não só aos fatores participativos, com uma rapidez Vale da Amoreira (Moita, Lisboa)
e Cova da Moura (Amadora, Lisboa) neste programa de arquitetos que eram novos na
altura e que vieram mais tarde a revelar-se e, a partir deste plano, a consagrar e refor-
çar ainda mais a sua relevância no panorama da arquitetura (Pinto, 2017).
CAPÍTULO X. NARRATIVAS E PRÁTICAS PARTICIPATIVAS NOS PROGRAMAS HABITACIONAIS EM PORTUGAL | 249 |

De certa forma, a experiência do SAAL revela o protagonismo dos técnicos com


a população, por meio da aproximação na resolução dos projetos, com uma «nego-
ciação dialéctica» (Bandeirinha, 2014:252) potencializada pela virtude de «se tra-
balhar com o povo» na concepção das casas «para o povo» (Bandeirinha, 2014:253).
Conforme já apresentado, após a experiência do SAAL, nos programas habita-
cionais implementados na década de 1980, como o PIMP e o PER, não houve a par-
ticipação e a colaboração significativa entre a população e arquitetos.

Já passado mais ou menos uma década, dada a entrada de Portugal na União Europeia
em 86, há um programa que virá logo a seguir, que é o PIMP, que é um programa onde
se constrói muita habitação, mas que também é um programa relativamente curto no
tempo e depois aparece o PER, que começa em 1993 para as principais cidades Porto
e Lisboa, nas regiões Metropolitanas. Houve ao longo do PER uma interação social rela-
tivamente curta. Ou seja, os projetos na maior parte dos casos foram desenvolvidos
pelos próprios municípios, portanto não houve tanta participação de uma classe de
arquitetos com relevância. Os projetos foram desenvolvidos nos próprios municípios,
eu próprio trabalhei nestes projetos ainda como arquiteto muito jovem e que tive a opor-
tunidade de trabalhar neste período (Pinto, 2017).

O arquiteto ainda destaca que no PER122 houve uma «lacuna» do processo par-
ticipativo e que poderia ter sido uma oportunidade para criar mecanismos de maior
integração social para a população:

Mas de facto houve essa lacuna naquilo que foi uma oportunidade de lançar uma polí-
tica também de desenvolvimento social, ou seja, há todo um desenvolvimento baseado
nas questões físicas, dar uma boa qualidade de casa, um melhorar o ambiente para as
pessoas morarem, mas todo o projeto de realojamento das pessoas foi feito de certa
maneira, ou por ordem de chegada ou simplesmente realojando as pessoas sem um
acompanhamento de proximidade que pudesse ser visto como uma espécie de oportu-
nidade para que estas intervenções fossem também não só melhorias de condições do
território ou acabar com a habitação de barracas e aproveitar também para lançar alguns
mecanismos para que estas pessoas pudessem se integrar socialmente, ter mais acesso
ao emprego, por exemplo, que são fatores relevantes (Pinto, 2017).

Nesse contexto a retomada das práticas participativas no campo habitacional


pode ser verificada com a implementação do programa nacional experimental e

122. Vale destacar o projeto de investigação «Experts» realizado desde 2016 por meio da parceria entre
o ICS-ULisboa, o IGOT-ULisboa e o CIES-IUL, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia
(FCT). A pesquisa pretende compreender o papel dos técnicos nas políticas públicas por intermédio
do Programa Especial de Realojamento (PER). Para detalhes sobre a pesquisa, ver: https://expertsproject.
org/about/.
| 250 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

interministerial123 «Iniciativa Operações de Qualificação e Reinserção Urbana de


Bairros Críticos»124 (IBC). A IBC foi criada em 2005 (RCM n.º 143/2005, de 2 de
Agosto), no quadro da Política de Cidades, com o objetivo de «estimular e testar
práticas institucionais, procedimentais e tecnológicas inovadoras em termos de con-
cepção, implementação e avaliação da acção pública em áreas urbanas críticas».
Respeitando a sua natureza experimental, duração e âmbito territorial limitado,
a IBC foi circunscrita a dois bairros na Área Metropolitana de Lisboa (Vale da Amo-
reira, na Moita, e Cova da Moura, na Amadora) e um bairro na Área Metropolitana
do Porto (Lagarteiro, no Porto). Embora o facto de terem em comum a vulnerabi-
lidade crítica e alguma estrutura organizacional preexistente, constituem realida-
des com diferentes especificidades. O Vale da Amoreira e o Lagarteiro são bairros
de habitação social de promoção pública e a Cova da Moura125 é um bairro de cons-
truções ilegais em terrenos privados e do Estado.
De acordo com Sousa (2008:69), a IBC procurou capitalizar experiências ante-
riores de programas nacionais e comunitários (como o Programa de Iniciativa
Comunitária Urban (I e II), o Polis ou Programa de Reabilitação Urbana, entre
outros),126 e ser um passo em frente no desenvolvimento da «governança multiní-
vel», com modelos de intervenção inovadores, que passam «pelo reforço das dinâ-
micas locais para o desenvolvimento e pelo encorajamento de fortes parcerias entre
a administração central, regional e local, mas também entre organizações governa-
mentais e não governamentais».
Segundo Freitas (2017), «o nível local estava em conflito nos três bairros» e a
IBC funcionaria como uma «administração central» para mediar os atores envolvi-

123. Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, Ministério


do Trabalho e da Solidariedade Social, Ministério da Educação, Ministério da Cultura, Ministério da Admi-
nistração Interna, Ministério da Saúde, Presidência de Conselho de Ministros e Ministério da Justiça.
124. Verifica-se também a atuação dos agentes (técnicos, arquitetos e população) no Programa de recon-
versão de Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGI) criado em 1995 para a intervenção nas áreas de constru-
ção clandestinas, existentes desde a década de 1960. De acordo com Sílvia Branco Jorge (2011:145), os
loteamentos de génese ilegal constituem «alternativas às insuficiências ou incapacidades da administra-
ção pública em responderem ao crescimento urbano e ao afluxo à cidade dos migrantes e mais tarde,
dos imigrantes».
125. Segundo a socióloga Maria João Freitas, que acompanhou o processo de implementação da IBC,
em entrevista concedida à autora em 06/04/2017, havia no Bairro Cova da Moura um «nível de maturi-
dade participativa presente, com associações de moradores» (Freitas, 2017). Apesar disso, havia dificul-
dades de diálogo entre os moradores e a câmara municipal e a IBC «atua na intermediação desse diálogo
para implementar o projeto de intervenção». De acordo com o relatório «Registo do Processo» (Sousa,
2012), a intervenção no bairro correspondia às ações de: realização de diagnóstico pelo LNEC, desenho
do Plano de Pormenor, melhorias nos equipamentos sociais existentes e viário, projeto artístico, experi-
mentação de um modelo de empregabilidade, entre outras.
126. A Iniciativa Comunitária Urban foi realizada em dois períodos, entre 1994 e 1999 e entre 2000 e 2006,
em diversas cidades europeias. O Polis XXI é a designação que a Política de Cidades assumiu em Portu-
gal entre 2007 e 2013.
CAPÍTULO X. NARRATIVAS E PRÁTICAS PARTICIPATIVAS NOS PROGRAMAS HABITACIONAIS EM PORTUGAL | 251 |

dos. A Iniciativa distinguia-se, assim, pelo seu caráter interministerial, pela estru-
tura de agentes que envolvia – desde o nível ministerial a um nível mais informal –,
pelo seu modelo de gestão, modelo de financiamento e ativação de recursos e pela
metodologia de desenvolvimento e participação. Dessa forma, a intervenção de cada
bairro obedeceu a um modelo organizacional (Barros e Campos, 2017:14):

– Constituição de grupo de trabalho integrando a Administração central (repre-


sentantes dos ministros de tutela das áreas de política setorial pertinentes para
a intervenção), a Administração local (câmara municipal e junta de freguesia)
e outras entidades com experiência de trabalho relevante no bairro;
– Identificação das ações e projetos a desenvolver e preparação de um «proto-
colo de parceria» entre as entidades relevantes para a operação, estabelecendo:
os objetivos e metas a atingir e o programa de ação a desenvolver; os com-
promissos assumidos por cada parceiro; os meios financeiros; e o modelo e
composição de uma «unidade de ação estratégica local», estrutura de ani-
mação e acompanhamento das ações a desenvolver e órgão técnico local da
operação;
– Assinados os «protocolos de parceria», constituição de uma «comissão de
acompanhamento», com os representantes dos ministros e da câmara muni-
cipal, incumbida de acompanhar e emitir parecer na execução do programa
de ação e avaliar a operação;
– Coordenação geral e apoio metodológico das operações pelo INH/IHRU, res-
ponsável por apoiar a elaboração dos «protocolos de parceria» e as «unida-
des de ação estratégica local»; assegurar os procedimentos administrativos
para obtenção de financiamentos, o relacionamento com as entidades finan-
ciadoras127 e a articulação com os serviços da Administração central; avaliar
as experiências e incorporar os resultados nas políticas de qualificação e rein-
serção urbana.

O Instituto Nacional de Habitação (INH) e, atualmente, Instituto da Habitação


e da Reabilitação Urbana (IHRU) coordenoou a montagem do plano de ação para
cada território (Freitas, 2017), que esteve no Instituto entre 2005 e 2010, relata sua
experiência inicial no processo de implementação da IBC:

Estive no INH e IHRU entre 2005 e 2010. No quadro da IBC o meu papel foi receber a
Resolução de 2005 e eu não tive nada a ver com a elaboração da Resolução. Lá dentro
me deram essa tarefa de que atribuem ao INH naquela altura a responsabilidade de
montar dentro daqueles princípios e objetivos. Portanto coube a mim fazer o primeiro
documento e depois acompanhei o processo todo. O processo teve basicamente duas

127. Incluindo o envolvimento de financiadores privados.


| 252 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

fases, a primeira foi a de preparação que culminou com uma carta de compromissos
entre os parceiros para cada um dos territórios. E a carta de compromisso era o que se
iria privilegiar, o que se iria fazer, como buscar o dinheiro, quem é que fazia o quê, era
no fundo o plano de ação. E depois, a partir da assinatura da carta de compromisso, foi
pôr isto a andar. E há claramente, e é importante perceber que a IBC teve claramente
essas duas fases, teve uma fase que foi de preparação, até porque o modelo de gestão
antes da carta de compromisso é um e depois da carta de compromisso é outro. Há este
marco. O meu papel foi ajudar a montar a carta de compromisso e ajudar a concretizar
(Freitas, 2017).

Em relação à obtenção de financiamento, vale destacar que a Iniciativa tinha


a especificidade de não contar com uma fonte de recurso já estabelecida. De acordo
com Sousa (2008:72), essa abordagem traduz a intencionalidade da metodologia
adotada, «de fazer depender os planos de intervenção locais da focalização no diag-
nóstico do território, em lugar de os fazer depender de planos e montantes de finan-
ciamento previamente delimitados». Nesse sentido, o plano experimental tinha
várias fontes de financiamento e a articulação para a captação de recursos exigia
também a participação e responsabilidade do conjunto de agentes envolvidos.
No que se refere ao caráter das intervenções, deveria ser dada prioridade: a
novas formas de organização para a prestação de serviços essenciais (incluindo
a gestão e a manutenção do espaço público e do edificado); à criação de oportu-
nidades de emprego para os residentes e integração social de crianças e jovens;
ao desenvolvimento de ações de formação e acompanhamento no acesso ao
emprego; à disponibilização de espaços para atividades dos residentes (incluindo
as económicas); a iniciativas arquitetónicas, urbanísticas e ambientais inovado-
ras; e à reinserção funcional e urbanística do bairro na cidade envolvente (Barros
e Campos, 2017:17).
Já a ação dos técnicos na IBC foi incumbida às «unidades de ação estratégica
local» com apoio dos serviços técnicos do IHRU. Estas «unidades» eram, todavia,
estruturas reduzidas, cuja função primordial foi a dinamização, facilitação e coor-
denação dos processos locais. A elaboração de estudos e projetos de maior enver-
gadura foi normalmente contratada a técnicos particulares na modalidade de pres-
tação de serviços de consultoria.
A estrutura das intervenções, composta principalmente por Comissão de Acom-
panhamento, que integra representantes dos oito Ministérios, entidades governa-
mentais e não governamentais, foi responsável: pelo monitoramento na implemen-
tação do projeto; pela Comissão Executiva com representantes do IHRU, Câmara
Municipal, Ministérios e entidades; e pelas Equipas Locais de Projeto, que incluem
um chefe de projeto, equipa técnica local e parcerias executivas, que trabalham
conjuntamente com a equipa técnica.
CAPÍTULO X. NARRATIVAS E PRÁTICAS PARTICIPATIVAS NOS PROGRAMAS HABITACIONAIS EM PORTUGAL | 253 |

Em 2012 cessaram as operações ao abrigo da IBC por iniciativa unilateral do


IHRU, tendo as ações no terreno prosseguido de forma limitada, nos bairros do Vale
da Amoreira e do Lagarteiro, por vontade e iniciativa dos moradores e das autori-
dades locais.

4. Bairro do Lagarteiro
O destaque para a operação no Bairro do Lagarteiro tem por objetivo apresen-
tar as relações estabelecidas entre o corpo técnico, em especial o arquiteto, com o
poder público e a população. Trata-se de um modelo de estrutura organizacional
participativa, que, construída em dois momentos no Bairro, revela a atuação dis-
tinta nos programas anteriores já citados (SAAL, PER E PIM) e a importância da
aproximação dos técnicos com a população.

E tudo isso era necessário reconstruir. Isto que chamamos de participação obviamente
tem muitos contornos e eu considero que, no momento atual, no momento que nós
vivemos, este fator participativo tem muito que ser visto neste prisma, ou seja, tentar
encontrar mecanismos para diluir esta fragmentação que esta população tem, que foi
desmotivada por processos anteriores (Pinto, 2017).

Ao contrário das ações no Vale da Amoreira128 e na Cova da Moura129, o Bairro


do Lagarteiro tem dois eixos principais de intervenção. O primeiro concentra a
intervenção de caráter urbanístico e o segundo foca no desenvolvimento de um con-
junto de dinâmicas imateriais. De acordo com Pinto (2017), as «intervenções sociais»
realizadas com a população concentraram-se mais nos grupos jovens, tentando apro-

128. A intervenção no Vale da Amoreira foi dividida em cinco eixos principais, com enfoque em inserção
de hortas urbanas, intervenções artísticas, formação profissional, empreendedorismo juvenil e requalifica-
ção do bairro. A atuação de arquitetos e engenheiros no Vale da Amoreira é realizada principalmente nos
Eixos 1 e 2, com intervenções cromáticas para as edificações, desenvolvida pelo Laboratório da Cor da
Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, assim como a introdução de rede viária no interior
do Bairro e inserção de estacionamento. Além disso, foi realizado o projeto para instalação de um Centro
de Experimentações Artísticas (Sousa, 2012).
129. A intervenção na Cova da Moura foi dividida em oito eixos principais, a maioria com enfoque em
medidas de integração social, questões ambientais, experiências artísticas e apoio ao emprego. A partici-
pação de arquitetos e engenheiros na Cova da Moura é realizada principalmente na operacionalização do
Eixo «Levantamento e caracterização do edificado e da ocupação: residencial, associativa e comercial/
empresarial» do Plano de Ação do Bairro. O plano iniciou-se pelo LNEC em 2007. Foram constituídas
equipas mistas compostas por técnicos do IHRU, mas também por alguns técnicos juniores (estudantes
universitários de Arquitetura e/ou Engenharia), coordenadas e supervisionadas por técnicos do LNEC
(Arqt.º António Batista Coelho, Arqt.º João Branco Pedro e Eng.º António Vilhena) e coordenadas por um
técnico do IHRU e pela Chefe de Projeto. A intervenção na Cova da Moura também tinha como objetivo
a elaboração do Plano de Pormenor e a resolução da questão fundiária (Sousa, 2012).
| 254 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

ximá-los por meio de uma variedade de workshops como jornalismo, fotografia,


música e outros relacionados a desportos e treinamentos para inclusão social.
O arquiteto ressalta a importância de as intervenções sociais realizadas pelo
Gabinete do IHRU130 terem ocorrido antes das intervenções físicas, o que foi «fun-
damental para montar esse grupo», pois resultou no conhecimento dos morado-
res sobre as alterações futuras no bairro e «teve como função agregar a população»:

O IHRU nesta altura, antes do projeto de reabilitação física se iniciar, montou um gabi-
nete de bairro com uma técnica do próprio IHRU que esteve no interior do bairro e que
esteve a fazer trabalho com a população, portanto um trabalho de proximidade, essen-
cialmente um trabalho feito com as crianças. Houve um trabalho de reconhecimento
daquela população e eu considero que a existência deste gabinete foi essencial para a
preparação da população com o quadro de mudança que iria ocorrer (Pinto, 2017).

A intervenção física no Bairro do Lagarteiro foi composta por alterações nas


áreas públicas, com um novo sistema viário para articular o bairro com seu entorno,
por meio de novas conexões viárias para automóveis e pedestres; o redimensiona-
mento das áreas verdes com novo desenho para permitir maior área disponível
entre os arruamentos e os edifícios; a construção de muros de contenção devido à
topografia irregular do terreno e também como recurso para ordenar os espaços e
equipamentos existentes e a reabilitação e conservação dos edifícios.
Após a intervenção social realizada pelo gabinete local do IHRU, são lançados
concursos para a escolha de arquitetos e projetos no Bairro do Lagarteiro. Nesse
caso, o agente contratante foi a Câmara Municipal do Porto,131 que atuou como
mediadora dos arquitetos e das ações do bairro.
Conforme já apresentado, o arquiteto Paulo Tormenta Pinto participou na maio-
ria das intervenções físicas realizadas no Bairro do Lagarteiro. Após vencer o con-
curso, as ações concentraram-se na requalificação do espaço público, e, em momento
posterior, após o cancelamento da IBC, na reabilitação e conservação dos edifícios.
O concurso para a reabilitação dos edifícios foi dividido em duas fases: a primeira,
prevista para iniciar entre 2010 e 2011 e a segunda, que deveria ocorrer em 2012,
foi cancelada devido à finalização da Iniciativa. A intervenção nas edificações só
foi possível após o financiamento do projeto pela Câmara Municipal.

130. Segundo Freitas (2017), os funcionários dos gabinetes locais eram formalmente contratados pelo
IHRU, mas respondiam à Comissão Executiva. Pinto (2017) também afirma que eram funcionários públicos:
«Embora a ação mais visível na preparação do bairro para a intervenção corresponde essencialmente a pre-
sença deste gabinete, o nome é Gabinete do IHRU com técnicos sociais e que tiveram durante um período
a fazer este trabalho». (entrevista concedidas à autora em 06/04/2017 e 24/04/2017, respectivamente).
131. Vale destacar a este respeito as diferenças entre o Brasil e Portugal. Em Portugal, é eleito um presi-
dente da Câmara Municipal e uma equipe executiva. O presidente é eleito com uma equipe de vereado-
res, portanto, os vereadores não são votados separadamente como no Brasil. Além disso, há na Assem-
bleia Municipal debates sobre as ações da Câmara.
CAPÍTULO X. NARRATIVAS E PRÁTICAS PARTICIPATIVAS NOS PROGRAMAS HABITACIONAIS EM PORTUGAL | 255 |

Os edifícios nós não ganhamos na primeira parte. Eu fiz o espaço público todo e depois
ganhamos a segunda parte dos edifícios. A parte edificada foi dividida em dois concur-
sos. E depois há um dado que é muito interessante, quando nós fizemos o segundo
concurso para o Edificado já é a última fase de reabilitação do bairro e aí houve a crise
financeira de Portugal, o IHRU cancelou todo o financiamento. O espaço público foi
construído, a primeira parte do edificado foi construída e a segunda fase da reabilitação
dos edifícios houve o concurso, entregamos os projetos e, neste momento, cancelou
a IBC, foi radical, acabou. O Gabinete de bairro fechou e os projetos ficaram na gaveta.
Depois houve eleições para a Câmara do Porto e o executivo municipal decidiu com
fundos da própria câmara financiar o projeto (Pinto, 2017).

Pinto (2017) destaca que, nesse segundo momento da intervenção, houve maior
possibilidade de participação da população no projeto desenvolvido, facto que não
ocorreu no momento da intervenção dos espaços públicos.

O que é muito interessante, que depois não existindo mais o gabinete de bairro, houve
um contato promovido pela Câmara, agora do arquiteto com a população. E aí nós dis-
cutimos com a população as questões arquitetónicas e aí já foi um debate mais parti-
cipativo. Antes não tínhamos nenhum contato com a população, somente no dia a dia
da execução da obra, etc, mas não houve discussão do projeto (Pinto, 2017).

A intervenção no Bairro do Lagarteiro revela algumas diferenças de atuação dos


técnicos, em especial do arquiteto, relacionadas às experiências anteriores em Por-
tugal, como o SAAL, PIMP e PER. De acordo com Pinto (2017), ao contrário da pro-
ximidade entre arquitetos e a população no SAAL, no Bairro do Lagarteiro os arqui-
tetos foram convocados numa fase posterior, no «segundo momento» do processo,
após o desenvolvimento do trabalho social. Já no caso dos programas PIMP e PER,
a diferença é ainda maior, a interação entre arquitetos e a população foi pratica-
mente inexistente.

Aqui nós percebemos uma grande diferença da ação, por exemplo, no caso do SAAL,
o que se verifica nos relatos que existem são os arquitetos junto à população a debater
as questões arquitetónicas, a fazer maquetes para a população perceber como vão a ser
as casas, etc., isto é significante. No caso dos outros programas como o PIMP e o PER,
o arquiteto está completamente afastado, mas ele de certa maneira é um protagonista,
é uma figura «iluminada», que com seu conhecimento disciplinar sobre a arquitetura,
sobre a história da arquitetura, sobre as experiências arquitetónicas, sua cultura arqui-
tetónica, é-lhe dada a confiança para desenhar o quadro da mudança. E, portanto, pas-
samos para um «terceiro estágio», onde o arquiteto está fora e há todo um debate sobre
a implementação deste modelo que está na esfera da economia social, da sociologia e
da geografia (Pinto, 2017).
| 256 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

A participação dos arquitetos na fase posterior no Bairro do Lagarteiro é ana-


lisada por Pinto (2017) como uma «certa lacuna» que está ligada, de certo modo,
com «o efeito de uma ressaca» do protagonismo dos arquitetos estabelecido prin-
cipalmente na década de 1990 na Europa, com grandes nomes da arquitetura mun-
dial. Assim, em eventos como o Congresso da UIA em Barcelona, em 1996, por
exemplo, «as pessoas na altura queriam tocar na Zaha Hadid, era uma coisa arqui-
teto um pouco estrela do rock». Dessa forma, «a IBC seria certo efeito desta res-
saca em Portugal, um processo onde é altamente criticado este certo protagonismo
dos arquitetos».

Eu acho que na IBC a ação dos arquitetos num momento secundário não é uma ação
deliberada, é toda uma discussão que se vai iniciando dentro de outro setor que não
reconhece a necessidade e a relevância. E também porquê? Porque deixou de haver da
parte dos arquitetos uma afirmação social e ideológica sobre o problema que eles pró-
prios tratam. Por exemplo, no caso do SAAL, há arquitetos que estão muito na linha da
frente do debate político, são figuras intransponíveis que, para além da sua atividade
como arquiteto, são pessoas que estão na linha da frente de toda a ideologia que envolve
a Revolução de 25 de Abril. De certo modo, o sucesso de «disciplinaridade» que a pro-
fissão foi adquirindo nos anos que seguiram acabou por potenciar um discurso muito
mais «para dentro», da própria profissão do que «para fora». Não quer dizer que os
arquitetos não tivessem uma opinião, não tivessem estas preocupações, não fossem sen-
síveis. Mas o que é certo é que tem a ver com o próprio posicionamento, digamos, cívico
em torno destas matérias (Pinto, 2017).

Nesse contexto, o arquiteto afirma que essa «lacuna» estabelecida na IBC reve-
lou a necessidade de aproximação com a população. O contrato do trabalho com a
Câmara do Porto não previa a intervenção de trabalho social e a ação limitada nas
intervenções físicas foi considerada insuficiente como prática participativa.

Aquilo que me foi dado a observar, por uma curiosidade pessoal, pois estava como
arquiteto, mas queria ver e queria saber como estava a ser feito, etc., embora não esti-
vesse nas competências do meu contrato me envolver nestes processos. No meu con-
trato estava para eu desenvolver o estudo da intervenção física, precisamos de você
«assim e assim» e pronto. «Você é arquiteto e faz o projeto e responda às nossas neces-
sidades». Para mim era pouco. Foi importante um envolvimento, ainda que não tenha
resultado num primeiro momento, num envolvimento direto com a população, que
eu acho que aqui pode ser considerada certa lacuna da IBC que foi esta integração dos
arquitetos numa fase posterior (Pinto, 2017).
CAPÍTULO X. NARRATIVAS E PRÁTICAS PARTICIPATIVAS NOS PROGRAMAS HABITACIONAIS EM PORTUGAL | 257 |

5. Reflexões finais
A análise das narrativas e práticas em Portugal revela que uma importante
experiência – SAAL – obteve interlocução com o trabalho desenvolvido pelo Grupo
Quadra no Rio de Janeiro na década de 1970. Nesse contexto inauguram-se espa-
ços de debates a partir das proposições apontadas pela luta dos movimentos sociais
pelo direito à cidade e pelas novas formas de intervenção do Estado. A metodolo-
gia do trabalho desenvolvida pelo SAAL integrava um modelo pioneiro de processo
participativo entre técnicos e moradores.
De certa forma, as experiências após o SAAL revelam que os processos parti-
cipativos e o protagonismo dos técnicos com a população vão-se alterando ao longo
do tempo. Este artigo busca apontar o distanciamento do arquiteto com a popula-
ção nos programas posteriores ao SAAL como o PIMP e o PER e sugere que a reto-
mada dos processos participativos pode ser apresentada a partir de 2005, com o
lançamento da «Iniciativa Bairros Críticos».
Na IBC a administração local e os seus técnicos buscaram uma intervenção
proativa e próxima no processo participativo e no diálogo com a população e a
suas organizações. Essa prática evidencia como o Estado pode ir além do papel nor-
mativo e financiador e ser um coordenador e catalisador das iniciativas socioterri-
toriais e da organização e participação. Os mecanismos de cooperação institucio-
nal e de «governança multiníveis» ensaiados na IBC podem ser um exemplo da
valorização do trabalho dos técnicos de vários âmbitos e da interlocução para a
distribuição de conhecimento técnico com a população. O que também se coloca
como virtude é a atuação dos técnicos em distintas escalas (administração central,
regional, local e entidades), como um modelo de intervenção na tentativa de con-
vergência horizontal dos agentes e a participação da população como condição para
viabilizar positivamente as experiências.

Siglas
CIES-IUL = Centro de Investigação e Estudos Sociais – Instituto Universitário de Lisboa
ICS-UL = Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa
IGOT = Instituto de Geografia e Ordenamento do Território
LNEC = Laboratório Nacional de Engenharia
RCM = Resolução de Conselho de Ministros
UIA = União Internacional de Arquitetos
| 258 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

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Nova Iorque: Pantheon Books.
Capítulo XI

Modos digitais e formas


de participar híbridas
na cidadania de ação

David Leite Viana*


Isabel Cristina Carvalho**
Maria Raquel Sousa**

* Arquiteto, Investigador, Centro de Investigação em Ciências da Informação, Tecnologias e Arquitetura,


ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Email: david.viana@iscte-iul.pt
** Arquiteta, Investigadora, Centro de Investigação em Artes e Comunicação, Universidade Aberta. Email:
icarvalho@ciac.uab.pt
*** Engenheira agrónoma, Bolseira FCT de Doutoramento, Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeco-
nómica e o Território, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. Email: biosite.cabazes@gmail.com
1. Introdução e enquadramento
Vive-se uma disparidade entre direitos legislados e normas sociais quotidia-
nas com impacto no exercício da participação cívica e no fosso existente entre
modos de vida estruturados e vulneráveis. Persistem comportamentos que fragi-
lizam as formas de habitar, perpetuando a referida disparidade (discriminação de
género, discursos sexistas, de ódio). Este quadro é também acompanhado pela
exclusão social, segregação espacial, estigmatização cultural e infoexclusão – fato-
res que inibem a concretização do objetivo 11 da Agenda 2030 da Organização das
Nações Unidas (ONU), relativo a tornar as cidades e os assentamentos humanos
inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. Decorre uma prática de cidadania
que não é nem plural, nem plena.
Arnstein, em A Ladder of Citizen Participation (1969), define oito patamares
de participação. A autora recorre à imagem de uma escada com oito degraus para
ilustrar a organização dos três tipos de participação que estabelece em conformi-
dade com o conjunto de degraus correspondentes. Os mais inferiores estão asso-
ciados à não participação – Nonparticipation (sendo a manipulação o degrau mais
baixo). A autora alude aqui ao condicionamento da tomada de decisão para metas
estabelecidas, sem participação de indivíduos ou grupos na sua definição. Após os
dois primeiros degraus da escada, a autora avança para a fase em que as pessoas
conseguem ser ouvidas e ter voz, mas cuja participação é relativamente inconse-
quente, porque se cinge a receber informação e ser consultada por parte dos deci-
sores. A comunidade não tem poder para assegurar que as suas preocupações e
perspetivas sejam atendidas no processo de criação das soluções (que é externali-
zado, isto é, os cidadãos não fazem parte dele), nem tão pouco na decisão. Após
mais este conjunto de três degraus (Informing; Consultation; Placation), relativos
ao que a autora designa de Tokenism (ou seja, aparentar envolver grupos da socie-
dade que costumam ser tratados injustamente procurando a ilusão de maior jus-
tiça), chega-se aos últimos três da escada: degrau 6 – Partnership (parceria); degrau
7 – Delegated Power (poder delegado); degrau 8 – Citizen Control (controlo cida-
dão/ã). Estes últimos degraus da escada conformam a fase em que a participação
cívica é mais ativa e ampla, designada pela autora de Citizen Power (poder de cida-
dão/ã). Estes degraus finais traduzem patamares crescentes de participação cívica,
estando o cidadão/ã mais presente na construção das soluções a adotar e tendo
mais poder sobre as decisões a serem implementadas. Para a consolidação de pro-
cessos colaborativos enquadráveis na referida fase Citizen Power, advoga-se neste
texto o recurso a modos digitais em formas de participar mais democráticas e abran-
gentes (desde que a sua aprendizagem seja socialmente transversal).
O exercício da participação cívica ganha com a articulação de abordagens qua-
litativas e metodologias quantitativas no estudo de modos de vida e na análise de
| 262 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

formas de habitar.132 A diversidade de modos de vida praticados e a densidade das


correspondentes formas de habitar exigem perspetivas que não traduzam visões
deterministas dos espaços de vivências e seus contextos de partilha. A complexi-
dade de relações comumente verificadas em lugares de convivência implica que o
exercício da participação cívica não deva ser redutor, mas antes plural e pleno. É
genericamente aceite que a cocriação inclusiva é tanto mais democrática e abran-
gente quanto mais culturalmente diversificado for o exercício da participação cívica.
A Declaração de Pequim e a Plataforma de Ação de Pequim (1995) constituí-
ram marcos na promoção dos direitos humanos, da cidadania e de uma sociedade
mais justa. Vinte e cinco anos volvidos, o problema persiste, as conquistas ao nível
legislativo não se refletem em mudanças das práticas, atitudes e mentalidades. A
4 de março de 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou o índice
de normas/práticas sociais e de género (relativo a cerca de 80% da população mun-
dial), no qual dá nota, por exemplo, que o preconceito contra as mulheres é trans-
versal (nove em cada dez homens e 86% das mulheres têm algum tipo de precon-
ceito contra as mulheres). Concluiu que as normas sociais são um obstáculo real
(preconceitos enraizados em homens e mulheres) à igualdade plena. Para identifi-
car situações deste tipo, é preciso tornar explícita na apropriação espacial a matriz
de comportamentos e práticas que geram estas e outras assimetrias, para que – ao
evidenciá-las – seja possível confrontá-las no codesenho de formas de habitar mais
integradas, que envolvam modos de vida crescentemente conectados, com relações
interpessoais menos assimétricas e com incremento da sociabilização solidária.
Na investigação sobre o exercício da participação cívica tem ganho preponde-
rância a análise à aculturação espacial. Hortas (2013:38), aludindo a Esser (2001),
indica que a aculturação se refere «ao processo de aceitação e apropriação das
práticas de uma determinada cultura/sociedade e à sua implicação na mobilidade
social dos indivíduos». Consequentemente, importa mapear as dinâmicas quoti-
dianas que moldam os espaços de vivências a hábitos, costumes e tradições (Viana
e Carvalho, 2016), contribuindo para a descodificação de como os contextos de
partilha são comunitariamente corporizados, revelando modos de vida diferencia-
dos e formas de habitar próprias. Os processos colaborativos de cocriação apoia-
dos por modos digitais constituem antídoto para a disrupção socioespacial, visto
registarem a apropriação com tecnologias móveis e plataformas digitais que con-

132. Referenciadas, no presente texto, no âmbito do título do projeto de investigação «Modos de Vida e
Formas de Habitar: ilhas e bairros populares no Porto e em Braga», coordenado por Manuel Carlos Silva
e financiado pela Fundação Ciência e Tecnologia, de que o primeiro autor deste texto é membro integrante.
De resto, o conceito modos de vida e/ou estilos de vida está ancorado na tradição sociológica predomi-
nantemente simmeliana e interacionista designadamente em Erving Goffman, embora não exclusivamente,
sendo de referir autores como Henri Lefebvre, Isabel Guerra, José Machado Pais (cf. Silva e Miguelote,
2002; Silva 2009).
CAPÍTULO XI. MODOS DIGITAIS E FORMAS DE PARTICIPAR HÍBRIDAS NA CIDADANIA DE AÇÃO | 263 |

ferem visibilidade a comunidades estruturalmente desapoiadas e/ou urbanamente


marginalizadas – para além de facilitarem a aceitação da respetiva ação (e sua
afirmação) na prática da cidadania.

2. Apropriação dos espaços e cidadania de ação


A intervenção coletiva em processos colaborativos de cocriação de lugares de
convivência socialmente integrados e no codesenho de contextos de partilha cul-
turalmente conectados requer uma aprendizagem sobre as múltiplas realidades
interdimensionais associadas aos modos de vida e às formas de habitar. Contribuir
para a configuração de espaços de vivências implica ativar a prática da cidadania
com comprometimento socioespacial através de uma arquitetura de ação (Mon-
taner, 2014), em que os usufruidores dos lugares de convivência são também auto-
res da respetiva transformação por via do revisitar das suas experiências em novos
modos de vida e formas de habitar. Simultaneamente, acrescentam densidade topo-
lógica e criatividade emocional (Salingaros, 2011) no exercício da participação
cívica em processos colaborativos apoiados em modos digitais (que proporcionam
maior empoderamento das formas de participar) e devem poder tomar parte do
processo de decisão (Gouveia, 2016).
Távora (1999:12), no seu livro Da organização do espaço, refere que as formas
organizam o espaço. Aceitando esta premissa, no presente texto acrescenta-se que
a apropriação dos espaços organiza a vida – logo, defende-se que é a partir da ação
desta (da apropriação espacial) que o exercício da participação cívica precisa
tornar-se mais robusto na organização de modos de vida socialmente mais demo-
cráticos e na configuração de formas de habitar culturalmente mais abrangentes e
integradas. A transformação do dia-a-dia, expressa em modos de vida e traduzida
em formas de habitar, revela-se mais inclusiva quando o exercício da participação
cívica envolve um ativismo plural e pleno.
De acordo com Montaner (2014:175), «Experiências e ativismos serviram para
questionar e superar exercícios diagramáticos autónomos e arbitrários (…). Dia-
grama, experiência e ação unem-se e complementam-se na procura de uma arqui-
tetura humana e de síntese, contextual e complexa».133 A partir desta passagem
perspetiva-se o exercício da participação cívica enquanto cidadania de ação, que
se inscreve na continuada ligação/conexão entre contextos de partilha, indivíduos/
comunidades e informações (relacionadas com a localização geográfica) – onde os
«lugares e objetos passam a dialogar com dispositivos informacionais, enviando,

133. As citações em outro idioma que não português foram livremente traduzidas pelos autores do pre-
sente texto.
| 264 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

coletando e processando dados a partir de uma relação estreita entre informação


digital, localização e artefactos digitais móveis» (Lemos, 2008:207). O enquadra-
mento proposto resulta da consolidação de uma cultura de informação geolocali-
zada, onde se anotam digitalmente e se consultam localmente fluxos de dados de
lugares, indivíduos, acontecimentos, memórias e vivências. A cidadania de ação
estrutura-se na convergência entre dinâmicas de apropriação individual e vivên-
cias comunitárias, no diálogo gerador de fluxos comunicacionais (Castells, 1999)
e na informação partilhada na aculturação espacial.
A cidadania de ação move-se entre os novos modos de gerar e consumir infor-
mação, que traduzem a cibercultura – que Lemos (2003) define como forma socio-
cultural que emerge da relação simbiótica entre sociedade, cultura e novas tecno-
logias comunicacionais e digitais. A partir desta perspetiva posiciona-se a cidada-
nia de ação no âmago da inteligência coletiva em contexto de relações em rede, que
Lévy (1998:28) define como «uma inteligência distribuída por toda parte, incessan-
temente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização
efetiva das competências». A designada era informacional, que M. Santos (1994)
classifica de período técnico-científico-informacional, assenta na velocidade e flui-
dez de informação, «liquidificando» a noção de distância (tornando-a relativa) e
transformando os modos de vida e as formas de habitar, alterando os respetivos
significados e sentidos. A profusão de uns e de outras implica o reconhecimento
que a apropriação dos espaços constitui aspeto-chave a integrar na cidadania de
ação para a organização da vida quotidiana.
A aculturação espacial informa sobre a inteligência coletiva, contribui para a
cultura participativa, enriquece a prática criativa e consubstancia a convergên-
cia mediática assente no seu rastreamento e mapeamento. A verificação da apro-
priação espacial tem focagem de pendor topológico (e não tanto tipológico), dado
que, adaptando Mehrotra (2013:9-10), a «arquitetura é inequivocamente o cená-
rio da cidade estática. E enquanto a cidade estática depende da arquitetura para
a sua representação, ela não é mais a imagem única pela qual a cidade é lida.
Por outro lado, a cidade cinética não é percebida pela sua arquitetura, mas por
espaços, que mantêm valores associativos e sustentam vidas. Padrões de ocupa-
ção determinam a sua forma e perceção. É um urbanismo nativo que tem uma
lógica «local» particular». Neste sentido a cidadania de ação, para estar ao nível
do patamar Citizen Power, para além do indicado por Arnstein (1969), precisa
fazer convergir práticas subjetivas e comunitárias em modos de vida sinérgicos
que promovam a interdependência socio-espácio-cultural entre as dinâmicas de
configuração das formas de habitar. Jenkins (2006) entende cultura de conver-
gência como o processo pelo qual diferentes médias coexistem e se complemen-
tam (embora não dependam uns dos outros), assente na inteligência coletiva, na
cultura participativa e na convergência mediática (como indicado). Estes são três
CAPÍTULO XI. MODOS DIGITAIS E FORMAS DE PARTICIPAR HÍBRIDAS NA CIDADANIA DE AÇÃO | 265 |

dos quatro pilares que definem o espaço comum da cidadania de ação. O quarto
refere-se à prática criativa.
A cidadania de ação reflete o que Manovich (2006) designa de realidades híbri-
das, aumentadas ou, segundo Beslay e Hakala (2005), territórios ou «bolhas» digi-
tais. O virtual envolve-se com o real na perceção sensorial digitalmente desdobrada
de contextos de partilha, constituindo, gradualmente, novas realidades para os
modos de vida e para as formas de habitar. Os lugares alteram-se, permitindo novas
funções, interações e sociabilidades: a tríade espaço de vivências-espaço eletró-
nico-interação social caracteriza o que Souza e Silva (2006) classifica de espaços
híbridos e espaços conectados, móveis e sociais. Santaella (2008) refere-se a eles
como espaços intersticiais e Lemos (2009a) considera-os territórios informacionais.
Ainda segundo este mesmo autor (2009a:33), devemos «definir os lugares, de agora
em diante, como uma complexidade de dimensões físicas, simbólicas, económicas,
políticas, aliadas a banco de dados eletrónicos, dispositivos e sensores sem fio,
portáteis e eletrônicos, ativados a partir da localização e da movimentação do usuá-
rio. Esta nova territorialidade compõe, nos lugares, o território informacional».
No quadro dos sistemas comunicativos e informacionais, Argan (2005:235)
entende que sai reforçado o papel da cidade, dado que, como refere, consubstan-
cia-se um «aparato de comunicação; comunicação no sentido de deslocamento e
de relação, mas também no sentido de transmissão de determinados conteúdos
urbanos». São sistemas comunicacionais de troca e partilha de informações, poten-
ciados pela computação ubíqua (a designada internet das coisas), nos quais são
determinantes tecnologias de informação e comunicação associadas a médias loca-
tivas, instigando e estimulando fluxos comunicacionais. Os modos de viver anco-
ram-se crescentemente neste tipo de sistemas, que, por sua vez, redefinem formas
de habitar adotadas. Esta transformação em curso precisa ser espelhada na cida-
dania de ação. Castells (2000:50) indica que o que «caracteriza a atual revolução
tecnológica não é a centralidade de conhecimentos e informações, mas a aplicação
deste conhecimento e desta informação para a geração de conhecimentos e de
dispositivos de processamento e comunicação da informação, num ciclo de reali-
mentação cumulativo entre a inovação e seu uso». A tecnologia, acompanhada pela
inovação nos seus modos de uso, consubstancia a comunicação e a partilha.
As competências digitais na cidadania de ação exploram a tecnologia digital
móvel de modo multissensorial e interativo, aumentando os sentidos e promovendo
a capacidade crítica e criativa – aqui reforçada pelo ato de partilhar histórias no
questionamento de modos de vida e de formas de habitar, expondo assimetrias,
desigualdades e fragilidades. No sentido de reconhecer a opressão e desafiar o
preconceito, Heng (1996) reforça a consciencialização da partilha coletiva de expe-
riências semelhantes e defende que expressar emoções e ideias, de forma colabo-
rativa, conduz à análise crítica de outras ideias. Esta abordagem confere à cidada-
| 266 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

nia de ação potencial de coleta e visualização de dados com dispositivos tecnoló-


gicos e aplicações de acesso livre. Os dados processados contribuem para a estru-
turação de modos de vida mais completos e formas de habitar mais sistémicas,
onde as assimetrias socioespaciais e culturais possam ser ultrapassadas.

3. Mediação digital e aculturação espacial


No âmbito do co(d)esenho – desenho colaborativo entre dinâmicas, dados e
desdobramentos dimensionais (Viana e Carvalho, 2017) – acentua-se a noção que
a aculturação espacial precisa ser abordada a partir não só da gestão da comple-
xidade (Salingaros, 2011), mas também do que Carvalho (2016:165) enuncia como
a transição do conceito de lugares em estrutura de rede para a postulação de luga-
res de convivência resultantes de inter-relações assentes em lógicas de «esponja»,
em que – mais importante do que os pontos da network e dos eixos que os unem
(unidimensionalmente) – se equaciona a densidade e porosidade do respetivo con-
texto multidimensional (não totalmente preenchido, com hiatos/cavidades que
podem ser colmatadas, outras que podem ser acrescentadas, fazendo aumentar a
sua espessura e variar a granulometria) como uma «esponja» que aumenta de volume
em conformidade com o «líquido» na qual é embebida. O «líquido» corresponde
à quantidade e tipo de informação e fluxos associados a espaços de vivências sócio-
-físico-culturais, seu acesso e respetiva partilha. Não interessa apenas o «ir e vir»
entre pontos da rede, mas o que se faz entre eles e o que se apreende do seu per-
curso num sistema pragmático, programático e dialógico entre contextos, indiví-
duos e dinâmicas.
A cocriação de lugares de convivência suportada pela cidadania de ação,
apoiada no desenvolvimento tecnológico, explora a imersão digital e plataformas
online, consubstanciando sinergicamente experiências diferentes ao nível da acul-
turação espacial. Através de smartphones, por exemplo, podem ser partilhadas his-
tórias de superação de assimetrias, desigualdades e fragilidades e, via plataformas
digitais, consolidar interdependências e redes de suporte. Os tipos e níveis de inte-
ração são registados como raw data (dados brutos) e posteriormente sistematiza-
dos, analisados e interpretados em processos colaborativos conducentes a modos
de vida e formas de habitar mais consentâneas com hábitos, tradições e costumes
dos indivíduos e suas comunidades.
Nos processos colaborativos convergem a investigação-ação, a educação/for-
mação, a prática criativa e a interventiva no terreno. Observam-se lógicas de orga-
nização territorial e social e recolhem-se, estruturadamente, indicadores sobre os
modos de vida e as formas de habitar existentes (as dominantes e as marginais),
para as enquadrar e identificar nelas as suas matrizes constituintes. Uma interface
CAPÍTULO XI. MODOS DIGITAIS E FORMAS DE PARTICIPAR HÍBRIDAS NA CIDADANIA DE AÇÃO | 267 |

mediadora acolhe a diversidade de elementos assim resultantes – que são traba-


lhados via interação e envolvimento direto e participado de indivíduos, grupos,
coletivos e comunidades. Destaca-se o processo de mapeamento na cidadania de
ação – espacializando o exercício da participação cívica – dado o seu contributo
para a operacionalização dos últimos três degraus referidos por Arnstein (1969):
Partnership (parceria); Delegated Power (poder delegado); Citizen Control (con-
trolo cidadão).
O exercício da participação cívica apoiado em equipamentos com GPS (Global
Positioning System – Sistema de Localização Global), nos quais a maioria das apli-
cações recorre à localização dos utilizadores (por exemplo, as fotografias conse-
guidas através da câmara incorporada no smartphone podem ter ativada a respe-
tiva indicação de localização, encontrando-se automaticamente georreferenciadas;
ao compilá-las, é possível visualizar o rastreamento do percurso realizado para a
sua captura), contribui para ancorar em localizações concretas as assimetrias, fra-
gilidades e desigualdades existentes nos modos de vida e nas formas de habitar.
As assimetrias, fragilidades e desigualdades ficam então alocadas a pessoas, famí-
lias e locais concretos, com nomes, rostos e identidade própria – dilui-se, assim, a
respetiva existência abstrata, generalista e estatística.
A mediação digital na aculturação espacial torna mais abrangente a perceção
dos fenómenos associados, desde a importância da oralidade, das regras informais
coletivamente aceites, das marcas nos espaços que comunicam hierarquias e domí-
nios territoriais, das táticas de apropriação e transformação dos contextos de par-
tilha, entre outros aspetos. O «pulsar» dos lugares de convivência fica evidente em
novas cartografias colaborativamente elaboradas, com modos digitais de produção
de mapas participativos-comunitários, os quais são, segundo Rodriguez Martinez
(2011), «um recurso metodológico utilizado para ajudar os membros de uma comu-
nidade a representar visualmente como percebem o seu território e respetiva envol-
vente socioambiental». Adicionalmente, segundo Durão (2009:405), «além de impli-
cações funcionais, significados simbólicos devem ser considerados ao lidar com
formas culturais tangíveis e intangíveis em ambientes que precisam criar um espaço
para a inovação contínua e para a resposta emocional espontânea – um lugar para
se viver».
As tecnologias móveis integram novas práticas de aculturação espacial (adap-
tando Latour, 1994). As interfaces digitais, as redes telemáticas e a sociedade da
informação reconfiguram emocional e socialmente a apropriação espacial. Arti-
cula-se a dimensão física do fenómeno com âmbitos socioculturais (e suas dinâ-
micas) e com o desdobramento de ações entre sítios físicos e sítios eletrónicos. A
realidade é acrescentada pela densidade de relações e vivências que se mostram
intrincadas de percecionar por ocorrerem «em» e «entre». Verifica-se, por um lado,
para a pesquisa sobre modos de vida, que um dos desafios será descortinar em
| 268 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

que dimensões multidimensionais acontecem e, por outro, na investigação sobre


formas de habitar, evidenciar entre que contextos elas se consubstanciam. Sobre
isto, voltando ao mapa participativo-comunitário, Rodriguez Martinez (2011) refere
que ele «permite entender o pensamento dos atores e como eles definem as suas
prioridades. Com esta ferramenta, pode-se iniciar um diálogo com as comunida-
des sobre as dificuldades que enfrentam, visto que no mapa ficam expressos os
conflitos de interesses, potencialidades e limitações locais, mas acima de tudo, os
problemas sociais».
O recurso à mediação digital auxilia na compreensão e na localização de pro-
blemáticas sociais, para além de compilar dados sobre as dificuldades assinaladas,
os conflitos de interesse existentes, as potencialidades e as limitações locais, entre
outras variáveis. Estes dados sobre como «pulsa» e se processa a aculturação espa-
cial (se com vigor, se em conflito, por exemplo) são estruturados, organizados e
analisados com uma velocidade cada vez maior e tornam acessível a informação
produzida – o que Lemos (2009) designa de mobilidade ampliada, caracterizando
a sociedade atual como sociedade de informação, também denominada por Cas-
tells (2002) de sociedade em rede. É relevante conjugar na cidadania de ação pro-
cessos colaborativos, mapas participativos-comunitários (Rodriguez Martinez, 2011)
e a mediação digital. A aculturação espacial pode ser digitalmente mediada atra-
vés de mapeamentos colaborativos em plataformas online de acesso livre, reunindo
anotações, fotografias, desenhos, tempos de permanência nos diversos lugares de
convivência, bem como os percursos tomados e as interações ocorridas nos con-
textos de partilha. Segundo Lemos (2007:11),

«a novidade não é a transformação do urbano pelos artefactos e processos sociotécni-


cos, mas a particularidade dessas transformações. Espaço, mobilidade e tecnologia
formam o tripé para a compreensão das médias locativas em sua relação com a ciberurbe.
Mais do que o abandono das cidades pelas tecnologias do ciberespaço, o que estamos
vendo são novas práticas de uso do espaço urbano pelo deslocamento com artefactos
digitais e processos de localização por redes sem fio».

A aculturação espacial acontece física e digitalmente e entre ambos, dando azo


à apropriação multidimensional. Distância, sociabilização, interação e participação
cívica ganham contornos «elásticos» e flexíveis. Conforme Ortega e Bayón (2015:19),

«Vizinhos e visitantes caminham juntos e mapeiam os problemas da cidade como


uma comunidade. Isto envolve reconhecer que a observação dos espaços urbanos será
mais crítica e profunda se desenvolvida em modo conectado e integrada em uma rede.
Uma rede pode multiplicar os seus pontos principais por meio da narrativa transmídia.
As pessoas geralmente compartilham fotografias e histórias nos respetivos locais com
dispositivos portáteis e aplicações colaborativas de localização geográfica (como o
CAPÍTULO XI. MODOS DIGITAIS E FORMAS DE PARTICIPAR HÍBRIDAS NA CIDADANIA DE AÇÃO | 269 |

“openstreetmap”) enquanto andam. Isso faz da caminhada uma experiência interativa


híbrida, física e virtual, uma expressão na qual convergem corpo e elementos digitais.
As cidades assistem a uma fase em que espaço público e internet tornam-se cada vez
mais híbridos em termos sociais e sob diferentes nomes (cidade partilhada, cidade
nómada, cidade senciente). As redes físicas e as redes digitais interagem enquanto cul-
tura P2P (pessoa a pessoa), ajudando a desenvolver um modelo de cidadania emergente,
que é auto-organizado, crítico e, acima de tudo, altamente interativo».

De acordo com Vegara e Rivas (2004:247), «a sociedade em rede, a importân-


cia das redes e seus fluxos, dos nós e suas interações, afetam qualquer estratégia
territorial e, sem dúvida, afetarão muito o desenho das cidades do futuro». Advoga-
-se assim que a participação cívica deve atender ao que Jenkins (2006) intitula de
convergência mediática: comunidades e redes de conexões (físicas e virtuais, orga-
nizadas em lógicas de cooperação), que permitem a troca de vivências, experiên-
cias e perceções que questionam o que regularmente se enquadra na participação
cívica (maioritariamente consultiva e de validação), implicando rever procedimen-
tos e respetiva operacionalização. Muitas das atuais interfaces tecnológicas per-
mitem o desdobramento de vivências entre o real e o digital, alterando a perceção
da espacialidade, temporalidade e territorialização dos modos de vida e formas de
habitar. Refina-se a interação entre vivências e comunidade e entre a ação da apro-
priação espacial e a informação que delas se extrai (para partilha e comunicação
conducentes a processos colaborativos conscientes baseados no exercício plural
e pleno da participação cívica). A evolução tecnológica (sua facilidade de manu-
seamento e, em muitos casos, de aquisição) – disponibilizando interfaces simpli-
ficadas e intuitivas (ao nível do explorar célere e detalhado de lugares de convi-
vência) – tem possibilitado a alteração de paradigmas sobre tempo, espaço, infor-
mação, modos de vida e formas de habitar.
Conforme Vegara e Rivas (2004:257), «os princípios que orientam o desenho
dos locais digitais são os da localização fluida, da garantia de interação entre luga-
res e fluxos, da plenitude de significado na sinergia entre espaço físico e virtual,
de conexões que permitam a conectividade entre ambas as realidades». A cida-
dania de ação refere-se às dinâmicas socioespaciais individuais e subjetivas e aos
fluxos e usos pessoais e coletivos com lógicas relacionais, tornando significantes
diferentes modos de vida e múltiplas formas de habitar. A configuração dos espa-
ços de vivências extravasa os respetivos limites físicos e expande-se para dimen-
sões emocionais, enquadradas em lugares de convivência desdobrada, como alu-
dido. Na senda do exercício da participação cívica que traduza a diversidade da
apropriação espacial e seus contextos de partilha, importa verificar a amplitude
dos níveis de interdependência híbrida praticados na aculturação espacial. Para o
efeito, Ribeiro e Lima (2011:39) defendem que «os mapas, enquanto instrumentos
de circulação de informações enquadrados na lógica das representações sociais,
| 270 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

vêm se transformando, a partir do uso e da apropriação dos modelos eletrônicos,


em sistemas abertos e colaborativos de projeção do espaço geográfico. Desta forma,
a questão central visa discutir uma possível mudança nos esquemas representa-
cionais dos territórios que estaria a ocorrer a partir do desenvolvimento de tais
modelos presentes na internet».

4. Empoderamento (digital) e cidadania de ação


A capacidade crítica e criativa na cidadania de ação é estruturante para o ques-
tionamento de relações de poder em modos de vida opressivos e de ambientes
repressivos em formas de habitar marginalizadas. O exercício da participação cívica
acompanhada pelo empoderamento digital na redução de assimetrias, desigual-
dades e fragilidades em modos de vida e formas de habitar contribui para a con-
solidação da cidadania democrática digital assente na partilha de experiências e
conhecimento, de problemas e soluções, de estratégias e ações. A este propósito,
reforce-se que a cidadania de ação enquadrada em processos colaborativos tecno-
logicamente apoiados com modos digitais interativos amplifica as formas de par-
ticipar no pensar em comunidade e afronta a iliteracia digital – empoderando os
cidadãos/ãs no exercício da participação cívica para a cocriação de modos de vida
multifuncionais e formas de habitar inclusivas e (temporalmente) adaptadas.
A cidadania de ação aprende com os modos de vida mediados por dispositi-
vos eletrónicos que reverberam mensagens e desdobram o debate de ideias. Perante
situações de assimetrias, desigualdades e fragilidades nas formas de habitar impõe-
-se a literacia digital colaborativa e o pensamento crítico na promoção de uma cul-
tura digital ampla no exercício da participação cívica, com distintas vias para a prá-
tica plural e plena da cidadania. Constituem competências digitais que exploram
tecnologias que robustecem níveis de perceção e sensitivos, traduzidos em mapas
multissensoriais. Sobre o processo de mapeamento, Ortega e Bayón (2015:11) refe-
rem que «também serve para detetar as lacunas entre o que existe e o que é neces-
sário, entre o que é estruturado e o que é adequado. Por outras palavras, constitui
uma ferramenta para destacar e partilhar o hiato entre os desejos dos cidadãos/ãs
e o planeamento institucional». Os mesmos autores (2015:11) indicam ainda que
o «mapeamento cultural regista não só o impacto material do espaço (sua confi-
guração, propriedade, funções principais), mas também os valores simbólicos asso-
ciados a esse impacto (memórias, rituais, idiomas). Além do tangível e simbólico,
o mapeamento cultural regista o invisível: o que não existe, ausente, mas em falta,
para além do que é comprovado e ajustado». Defende-se, deste modo, o recurso a
processos de mapeamento digital no exercício da participação cívica. O registo da
apropriação e aculturação espacial com dispositivos comunicacionais móveis e
CAPÍTULO XI. MODOS DIGITAIS E FORMAS DE PARTICIPAR HÍBRIDAS NA CIDADANIA DE AÇÃO | 271 |

aplicações de rastreamento (app em smartphones e tablets) é sintetizado e parti-


lhado em mapeamentos colaborativos realizados em plataformas online de acesso
livre (Google Maps, Mapillary). O propósito é, adaptando Melki (2015) – referindo
Mihailidis (2014) – «não só a formação de cidadãos críticos e informados, mas
igualmente capacitados para agir como agentes ativos de mudança social». Con-
comitantemente, empoderamento digital e mapeamento reforçam-se mutuamente
na cidadania de ação.
A atenção dada ao «pulsar» quotidiano de diferentes modos de vida e formas de
habitar associadas resulta da noção que os respetivos fluxos e dinâmicas urbano-
-culturais envolvem ações locais e padrões globais que estabelecem relações sinér-
gicas em rotinas que importa considerar na cidadania de ação – rotinas que, por
sua vez, ativam outras ações locais adaptadas e transformadas à medida que os
cidadãos moldam (e se moldam) aos modos de vida e às formas de habitar que
corporizam. Na cidadania de ação a intensidade do «pulsar» fica registada em car-
tografias com grande número de notas e observações coletadas com dispositivos
de comunicação móvel (como indicado). Constituem mapas de dinâmicas que plas-
mam os diversos níveis e «capas» da aculturação espacial e que descodificam o
que gera as dinâmicas de apropriação espacial. Nesse percurso, imagens, sons e
textos de e sobre os lugares de convivência e seus contextos de partilha são ano-
tados e anexados, espacializando informação sobre o que agrega densidade à dinâ-
mica socioespacial dos modos de vida e o que confere espessura às formas de habi-
tar. O rastreamento digital e o mapeamento colaborativo empoderam e contribuem
na compreensão multidimensional dos lugares de convivência. Os dados são obti-
dos em tempo real e em ambiente digital, posteriormente transferidos para gráficos,
imagens e movimentos (áudio, fotografia, textos, vídeos, links para sites, entre outras
possibilidades), abrindo caminho para novas abordagens instrumentais e meto-
dológicas no exercício da participação cívica. Combinando, de maneira integrada,
técnicas digitais e métodos colaborativos de rastreamento da apropriação espacial,
avança-se no sentido de tornar a cidadania de ação mais plural e plena porque inte-
gra e traz para a cocriação de modos de vida e para o codesenho de formas de
habitar dinâmicas de aculturação espacial não só mais ativas (porque estão a acon-
tecer), mas também mais amplas na procura do bem-estar individual e coletivo
(pela identificação e explicitação de um maior número de espaços de vivências,
seus elementos e condições específicas).
A redescoberta individual e coletiva de características e experiências de luga-
res de convivência fornece dados para a produção cartográfica de dinâmicas socio-
culturais e da apropriação espacial que informam a cidadania de ação. O resultado
consubstancia-se no reconhecimento abrangente das condições que definem os
modos de vida e das circunstâncias que moldam as formas de habitar. São obtidas
regras implícitas que – com o conjunto de mapas colaborativos e mapas de dinâ-
| 272 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

micas – se tornam explícitas e consideradas no exercício da participação cívica


para modos de vida mais multifuncionais e formas de habitar inclusivas. A cida-
dania de ação reforçada pelo empoderamento digital opera sinérgica e relacional-
mente com lógicas socioespaciais e culturais no incremento da inteligibilidade
multidimensional dos modos de vida e das formas de habitar.

5. Notas finais
A cidadania de ação avançada estabelece diálogos mais abrangentes e profí-
cuos no que se refere ao dar lugar na cocriação e poder na tomada de decisão a
indivíduos e grupos em situação de desestruturação social, cultural e urbana,
envolvendo-os no codesenho de soluções com abordagens criativas e pensamento
crítico – consolidando o exercício da participação cívica com e para a comunidade
na melhoria dos seus modos de vida e na qualificação das formas de habitar cor-
respondentes. O empoderamento digital na redução de assimetrias, desigualdades
e fragilidades contribui para o incremento da cidadania democrática digital e afronta
a infoexclusão no quadro da pobreza associada a modos de vida e formas de habi-
tar, atuando sobre o preconceito de género, a exclusão social, a segregação espa-
cial e a estigmatização cultural.
É na relação dialógica entre rastreamento e processos de mapeamento que se
revelam dinâmicas socioculturais que expandem a apropriação espacial e acres-
centam densidade aos modos de vida. Para que as formas de habitar sejam inclu-
sivas e plurais precisam integrar as mudanças geradas a partir da aculturação espa-
cial – na qual urge fomentar a diversidade. Os processos colaborativos, através
dos quais a cidadania de ação é operacionalizada, revelam, em cartografias amplia-
das, os novos territórios das formas de habitar. São mapas que expressam não só
a apropriação de lugares de convivência, mas que também tornam evidentes os
elementos que organizam os espaços de vivências. A prática do mapeamento acres-
centa conhecimento multidimensional e multissensorial sobre os modos de vida
e as formas de habitar. O exercício do mapeamento digital individual, coletivo ou
comunitário aumenta, na cidadania de ação, a informação sobre representações
sociais que, por sua vez, dão nota dos caminhos percorridos na procura do bem-
-estar e melhoria de modos de vida e formas de habitar. Atender a esses esforços
é considerar mudanças verificadas nos esquemas de representação e implementa-
ção de novos modos de vida e formas de habitar.
Terminando com Arnstein (1969), a cidadania de ação exige, no exercício da
participação cívica, que: i) se tenha os indivíduos e coletivos como parceiros na
cocriação em processos colaborativos; ii) se preveja mecanismos de delegação de
poder para os cidadãos, relativos às opções sobre soluções a dotar; iii) se partilhe
CAPÍTULO XI. MODOS DIGITAIS E FORMAS DE PARTICIPAR HÍBRIDAS NA CIDADANIA DE AÇÃO | 273 |

modelos de controlo com os cidadãos sobre decisões a tomar para o conforto indi-
vidual e o bem-comum. Dado o fosso existente entre a expressão do cidadão e as
respostas das entidades, defendeu-se neste texto o empoderamento cidadão com
métodos digitais promotores/facilitadores/impulsionadores da prática de uma
cidadania de ação com formas de participar híbridas, capazes de recolherem as
diferentes vivências e permitirem o diálogo mais plural e pleno entre os diversos
atores da transformação dos modos de vida e formas de habitar.

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Capítulo XII

Pânico ou Plano –
Arquitetura num mundo
em mudança*

Graeme Bristol**

* Este artigo foi inspirado pelo Call for Papers (Chamada para Comunicações) para o Forum 20 Arcasia
intitulado «Arquitetura numa Paisagem de Mudança», realizado em Dhaka entre 2 e 7 de Novembro de
2019. O resumo deste Forum era o seguinte: «Nunca antes na história da humanidade se testemunhou
como agora, em rapidez e natureza, uma mudança sem precedentes, em todas as facetas da vida humana.
Do ponto de vista tecnológico ao político, do climático ao migratório e das cidades às regiões, uma
mudança e transformação sem precedents, e a um ritmo notável, marca a nossa a época. Os arquitetos
estão a negociar todos os dias, com contextos crescentemente mais voláteis de mudanças, paisagens eco-
nómicas, físicas, tecnológicas e geo-políticas. De modo a abordar os diferentes aspetos deste inegável
fenómeno, o tema Arquitetura numa Paisagem em mudança (Architecture in Changing Landscape) é
esperado para evocar pensamentos, inovações e ideias apropriadas para o presente e futuro estado da
arquitetura» (http://www.arcasia.org/events/upcoming-events/423-arcasia-awards-2019).
Este artigo do autor foi traduzido do inglês para português por Diogo Rodrigues e Manuel Carlos Silva.
** Arquiteto e Professor, Doutorado em Arquitetura e Filosofia, Director Executivo do Centre for Architec-
ture & Human Rights. Email: glbristol@gmail.com
1. Introdução
Amo as cidades. Penso que a maioria dos arquitetos também ama as cidades.
Apesar de tudo, é nas cidades que se encontra a maioria dos edifícios – o genial, o
bom, o mau e o feio. As cidades são, no meu entender, a nossa maior obra coletiva.
É uma arte que realça o que há de melhor e de pior nas pessoas. Uma arte que está
em constante estado de mudança. As pessoas – especialmente os arquitetos, os urba-
nistas e os engenheiros – acrescentam todos os dias novas ideias, leis, planos e inclu-
sive edifícios a estas grandes obras de arte que apelidamos de cidades. Isto não para.
E nós já o fazemos desde há cerca de 7000 anos. A mudança é inerente e parte inte-
grante das cidades. Os turistas podem captar uma foto instantânea da cidade e ter
algum sentido de estabilidade e continuidade, mas, apesar de algumas coisas pare-
cerem mudar lentamente e, por vezes, nós tentarmos protegê-las da mudança, os
habitantes de uma cidade reconhecem que nada permanece igual nessa cidade.
Heráclito, habitante da cidade de Éfeso há 2500 anos atrás, foi mais longe e
afirmou que a única constante no universo é a mudança – a mudança é a essên-
cia da existência.134 Entretanto, ao mesmo tempo, temos muitas vezes receio das
mudanças. Nós gostaríamos que ela parasse por momentos e nos deixasse respi-
rar, de maneira que conseguíssemos recuar e observarmos o que fizemos. Mas não
há tempo para recuar e observar. A mudança continua a avançar e ela engloba
todas as nossas atividades do físico ao político e tudo o que se situa entre ambos.
Vendo o mundo deste modo, tal pode conduzir à ansiedade, senão mesmo ao
pânico. No meio disto, os arquitetos têm um certo orgulho em ser agentes de
mudança. Como profissão de desenho, ela é, por natureza, utópica. Nós estamos
constantemente à procura de novas e melhores formas de projetar cidades, edifí-
cios ou mesmo talheres.135 O lado positivo disto é que as coisas melhoram. O lado
negativo é a natureza dessa melhoria e quem decide o que é «melhor» ou «bom»
e como os fundos públicos e privados são gastos em tais «melhorias». Gentrifica-
ção, pela qual os arquitetos carregam bastante responsabilidade, é um termo um
tanto ambíguo. Este tipo de mudança é bom para alguns e um desastre para muitos.
Embora não haja dúvida de que a mudança é constante, o meu ponto aqui é
que, contrariamente ao prevalecente sentido de ansiedade sobre a mudança, eu,
tal como Heráclito, abraçarei a mudança, sugerindo que há para nós uma maneira
de localizar o que T.S. Eliot apontava como o «ponto fixo»,136 a partir do qual pode-
mos observar e reduzir a ansiedade da mudança.

134. Cf., por exemplo, Diálogos de Crátilo, de Platão, 402 anos antes de Cristo (Crátilo, discípulo de Herá-
clito, teria sido mestre de Platão).
135. Cf. a título ilustrativo, os projetos de Michael Graves ou de Frank Lloyd Wright.
136. Cf. T.S. Elliot (1936) in Four Quartets, Burnt Norton II: p. 16.
| 280 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

2. Mudança na arquitetura
A profissão do arquiteto lida com muitas variáveis mutáveis e forças externas
na prática. Primeiramente, podemos focar a nossa atenção nalgumas constantes
da arte da arquitetura – forma, balanço, ritmo, estabilidade estrutural e sua utili-
dade para os seus utentes (ou, usando a trindade Vitruniana – firmitas (firmeza),
utilitas (utilidade) e venustas (beleza).137 Estes são elementos sobre os quais os
arquitetos continuam a desenvolver um certo controlo direto. Existe, ainda assim,
todo um universo de variáveis e forças externas sobre as quais os profissionais da
arquitetura exercem pouco ou nenhum controlo. Podemos encontrar-nos de certo
modo esmagados pelas mudanças nessas áreas. Justifica-se esse sentido de apreen-
são? Vejamos algumas dessas mudanças:

(i) Tecnologia – não há dúvida quanto à velocidade da mudança na tecno-


logia. Existem novos materiais de construção a ser desenvolvidos, novos
desafios infra-estruturais relacionados com o aprovisionamento de ener-
gia, comunicações e resíduos e novos processos de construção (tais como
Modelação de Informação de Construção), sem sequer mencionar a cons-
tante mudança nas ferramentas de esboço e desenho técnico próprias da
disciplina. Os arquitetos têm abraçado de modo consistente estas mudan-
ças. Nós de modo algum estamos apreensivos com estas mudanças.
(ii) Catástrofe climática iminente – esta é certamente causa para alarme e os
arquitetos desempenham um papel significativo na redução da pegada
de carbono nas nossas cidades e sociedades em geral (cf., por exemplo,
Architecture 2030 – https://architecture2030.org/). A profissão, ainda
assim, tem discutido (e endereçado) estas mudanças desde o lançamento
do Relatório Brundtland em 1987. A profissão pode enfrentar, com cres-
cente alarme, a inação política da sociedade, mas ao mesmo tempo temos
sido conscientes do nosso papel em reduzir o peso das «cargas de carbono»
dos edifícios e, quanto a isto, temos agido com algum sucesso.
(iii) Migração (e agora muito associada à catástrofe climática) – este não é um
fenómeno novo. Com efeito, os Estados Unidos da América (EUA), a Aus-
trália e o Canadá estão entre as nações construídas com base nas migra-
ções. O que é novo são os números e o ritmo de rapidez com que os refu-
giados estão a atravessar as fronteiras e o que acontece quando eles o
fazem. Claramente as notícias no primeiro semestre de 2019 mostram que
as instalações de «detenção» dos EUA eram completamente inadequadas

137. Cf. Dez Livros de Arquitetura (Ten Books of Architecture), Livro I, capítulo 3, Parágrafo 2. https://
www.gutenberg.org/files/20239/20239-h/20239-h.htm#Page_13
CAPÍTULO XII. PÂNICO OU PLANO – ARQUITETURA NUM MUNDO EM MUDANÇA | 281 |

para o propósito para o qual são agora usadas.138 Entretanto, na Tur-


quia, mais de 3.6 milhões de refugiados sírios estão agora em campos no
lado turco da fronteira.139 O Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Refugiados (ACNUR-UNHCR em inglês) está a gerir estes campos. Os
números e a rapidez do movimento vão continuar a piorar à medida
que a catástrofe climática se adensa. Estão (ou podem estar) os arquite-
tos envolvidos neste processo? Deveríamos estar?
(iv) Mudança económica – O setor da construção é muito susceptível a ciclos
de prosperidade (booms) e fins de ciclo económico e tem sido assim há
muitos anos. Isto é uma mudança cíclica económica com a qual os arqui-
tetos e engenheiros nos tornámos familiarizados. As mudanças económi-
cas afetam indiretamente a arquitetura, apesar da galopante e explosiva
desigualdade de rendimentos e riqueza. Isto tem um impacto profundo
nas cidades, na economia fundiária e, com esta, nos custos da habitação.
Isto está intimamente relacionado com a gentrificação, uma questão com
a qual os arquitetos estão não só familiarizados como carregam uma boa
parte de responsabilidade. Muitas vezes nós argumentamos que as nossas
capacidades são críticas quanto ao aumento do valor da propriedade fun-
diária. Nós somos instigadores deste tipo de mudança económica.
(v) Mudança política – estas mudanças parecem ser tanto compreensíveis,
quanto amiúde problemáticas. O pêndulo balança da esquerda para a
direita, uma e outra vez e, por vezes, atinge os extremos. Esses extremos
podem ser muito destrutivos para os direitos humanos, para a vida humana
e para o ambiente construído. Contudo, como sociedades, temos vivido
por entre o direito divino de reis, das oligarquias, das plutocracias, de
muitas variações de democracias e de outras formas de organização polí-
tica. Nós sobrevivemos a todas elas. Em muitos aspetos, especialmente os
relacionados com a falta de vontade política para fazer algo acerca da
nossa iminente catástrofe climática global, a mudança política, se exis-
tente dalgum modo, é demasiado lenta.
(vi) Ética – uma área onde nós esperamos que haja mais constância do que
mudança. Todavia, enquanto nós esperamos que os princípios éticos sejam
firmes, nós devemos continuar a avançar os nossos horizontes éticos. Apro-
fundarei esta matéria mais adiante na secção 4.

138. Em Maio de 2019, 133.000 emigrantes foram detidos na fronteira México-Estados Unidos. Cf.
«Border arrests rose to nearly 133K in May as surge continues», in Político, por Hesson, 05 de Junho 2019,
https://www.politico.com/story/2019/06/05/border-arrests-increase-may-1509572
139. Cf. https://data2.unhcr.org/en/situations/syria/location/113. Cf. também «Turkey Regional Refugee
& Resilience Plan 2017-2018» https://data2.unhcr.org/en/documents/download/53539
| 282 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

Desta lista de mudanças, parece-nos que a maioria delas são mais mudanças
do tipo cíclico. Noutras palavras, a nossa espécie já passou por elas antes e sobre-
viveu. A Arquitetura também resistiu a estas mudanças na economia e na política.
Prova evidente disso é a Lista da Herança Mundial (World Heritage List)140 em curso
por parte da UNESCO. Muitos desses monumentos listados são monumentos arqui-
tetónicos a preservar. Estas mudanças não deveriam alarmar a profissão. Há con-
tudo algumas poucas áreas, onde o perigo de sermos esmagados pode tomar conta
de nós. Uma delas é a iminente catástrofe climática que irá afetar a nossa política,
a nossa economia, certamente os padrões de migração e o ambiente, tal como a
funcionalidade de grande parte do ambiente construído. Tal como a prospetiva de
uma guerra nuclear que consumiu o nosso pensamento no período da pós-segunda
guerra mundial,141 os humanos têm tido a habilidade de cometer uma aniquilação
à escala planetária.
A catástrofe climática expande-se sobre esse pacto de suicídio global. Isto levou
Paola Antonelli, a curadora sénior do departamento de arquitetura e desenho
(design) no MoMA em Nova Iorque, a declarar: «Os humanos irão inevitavelmente
extinguir-se devido ao colapso ambiental, mas nós temos o poder de desenharmos
nós próprios um “belo fim”».142
Enquanto eu sugiro que os arquitetos, por natureza, planeiem mais para a
mudança do que para o pânico, a abordagem da senhora Antonelli assume mais
um posicionamento derrotista em relação à catástrofe climática com o desejo de
desenhar um belo epitáfio para a nossa espécie. Pode, porém, haver uma outra abor-
dagem que apele para a continuação da nossa espécie (e de muitas outras) no pla-
neta. Considero que tal envolve tanto a educação como a prática da profissão.

3. Mudança na educação arquitetónica


Num recente artigo em 2019,143 Patrik Schumacher lançou as suas «13 teses»
acerca da ensino em arquitetura. Muito disso era já uma queixa muitíssimo fami-

140. Cf. Lista da Herança Mundial da UNESCO (UNESCO World Heritage List): https://whc.unesco.
org/en/list/
141. Como criança de 13 anos durante a crise dos mísseis em Outubro de 1962, fui um dos muitos peões
deste medo existencial. Cf. também «Fear of nuclear annihilation scarred children growing up in the Cold
War, studies later showed» in Timeline, por Stephanie Buck, 29 de Agosto de 2017. Cf. https://timeline.
com/nuclear-war-child-psychology-d1ff491b5fe0
142. «Nós não temos o poder de parar a nossa extinção» (We don’t have the power to stop our extinction),
diz Paola Antonelli. In Dezeen, por Augusta Pownall, 22 de Fevereiro de 2019.
https://www.dezeen.com/2019/02/22/paola-antonelli-extinction-milan-triennale-broken-nature-exhibi-
tion/?fbclid=IwAR3IKjfD0FvMyojah2sZ7DNaa_314Pt7Xlp4h5qMkmfcrfvU9iiecm0QzqI
143. Cf. «O ensino da Arquitetura está em crise e desligado da profissão» (Architecture education is in
crisis and detached from the profession), diz Schumacher. In Dezeen, por Tom Ravenscroft, 9 de Julho de
2019. https://www.dezeen.com/2019/07/09/patrik-schumacher-crisis-architectural-education/#disqus_thread
CAPÍTULO XII. PÂNICO OU PLANO – ARQUITETURA NUM MUNDO EM MUDANÇA | 283 |

liar por parte de arquitetos praticantes de que aos estudantes licenciados não eram
ensinadas ou proporcionadas competências em ordem a poder trabalhar numa
firma de arquitetura. «A educação em arquitetura está desligada da profissão e
das realidades e necessidades societais, tal como expressas em encomendas de
reais clientes (públicos ou privados)». Até certo ponto Schumacher tem, pelo menos
parcialmente, razão, embora eu gostaria de dizer que estas realidades societais não
procedem de «encomendas de clientes» mas sim de notícias dos media.
A educação arquitetónica tem respondido de certa forma à degradação ambien-
tal. Desde a publicação do Relatório Brundtland144 o Conselho Nacional de Acredi-
tação em Arquitetura (National Architectural Accrediting Board-NAAB) – organi-
zação responsável por definir os critérios para o ensino da arquitetura nos EUA –
tem ajustado os requisitos curriculares de modo a enfatizar mais as responsabili-
dades ambientais ao incluir nas suas «Perspetivas Definidoras»(NAAB Conditions,
2014:15) a «Administração do Meio Ambiente». Com as suas cinco Perspetivas
Definidoras – «Comunidade e Responsabilidade Social» – o seu histórico tem sido,
na melhor hipótese, manchado. O Relatório Boyer «Construindo Comunidade»
propõe uma maior atenção às humanidades no ensino da arquitetura (Boyer e
Mitgang, 1996:78) mas eu diria que tal é insuficiente.
A resposta que tenho advogado para melhorar a resposta ao que Schumacher
designa de «realidades societais» é assumir uma abordagem baseada em direitos
(rights-based approach-RBA) em relação ao currículo do ensino em Arquitetura
(cf. Bristol, 2018). O RBA não tem de criar grandes alterações ao currículo. Em vez
disso, deve infundir ou misturar o RBA em cursos e estúdios. Tal é similar na sua
abordagem à da constante infusão ou mistura da responsabilidade ambiental no
currículo. Tal como David Orr salientou há alguns anos atrás, «toda a educação é
educação ambiental» (Orr, 1991). Eu acrescentaria que «toda a educação é educa-
ção dos direitos humanos». A implementação desta tese é inteiramente possível e
tem sido levada a cabo pela UNESCO através do Programa de Cátedra UNESCO.145

4. Respostas
Enquanto a profissão arquitetónica abraça a mudança e é, de facto, instigadora
da mudança, há alguns pontos que nós devemos observar, se quisermos evitar o
pânico e, em vez disso, planear para a mudança. Vejo três áreas de mudança, em

144. Cf. «Relatório da Comissão Mundical sobre o Ambiente e o Desenvolvimento: O Nosso Futuro
Comum» (Report of the World Commission on Environment and Development: Our Common Future) (1987):
disponível em http://www.un-documents.net/wced-ocf.htm
145. Mais informação sobre a proposta relativa ao Programa da Cátedra UNESCO está disponível em
https://architecture-humanrights.org/initiatives/
| 284 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

que podemos ordenar o nosso pensamento, a fim de extrair algum sentido da cres-
cente cacofonia da mudança. Elas são a globalização, a justiça ambiental e os direi-
tos humanos. Todas estas áreas se relacionam diretamente aos nossos princípios
fundamentais de comportamento ético.

a) Globalização
Entre todas as questões críticas da globalização que afetam as economias dos
Estados e a crescente influência das corporações transnacionais sobre a soberania
dos Estados, há, no que concerne a globalização, pelo menos duas questões que
mais diretamente afetam a profissão do arquiteto. Uma prende-se com o ensino e
a prática da Arquitetura. A outra relaciona-se com o impacto da Arquitetura no
público e na cultura.
Uma das questões que vem ganhando peso na arquitetura e no ensino da arqui-
tetura é a reciprocidade – o amplo reconhecimento, quer dos cursos, quer das cre-
denciais para praticar. Tal requer uma aceitação global de um conjunto de padrões
estandardizados. A Associação de Arquitetos da Commonwealth (Commonwealth
Association of Architects – CAA) tem lidado com isto nos países da Commonwealth
há já vários anos. Mais recentemente a NAAB e o Conselho Nacional dos Conse-
lhos de Registo em Arquitetura (National Council of Architectural Registration
Boards – NCARB) nos EUA têm investido em Acordos de Reconhecimento Mútuo
(Mutual Recognition Agreements – MRA). O Acordo de Camberra (Canberra
Accord)146 tem vindo a funcionar numa base de reciprocidade no ensino da arqui-
tetura desde 2006. Atualmente o Canadá, a China, países da Commonwealth, a
Coreia, Hong Kong, o México, África do Sul e os EUA são signatários.
A grande vantagem destes acordos é que os licenciados/as têm muito maio-
res oportunidades de se movimentar com os seus graus reconhecidos. O estabe-
lecimento de padrões estandardizados globais a nível do ensino e da prática pro-
fissional permitem uma maior portabilidade na prática.
Há, porém, nisto tudo um lado negativo. Schumacher, nas suas «13 Teses»,
sugere isso inconscientemente na sua 6.ª tese (entre as 13): «A crise (no ensino
da arquitetura) irá ser ultrapassada quando a arquitetura mundial, uma vez mais,
convergir num paradigma hegemónico e unificado que permita, para uma pesquisa
cumulativa, uma aplicação global e a sua canonização, tal como sucedeu com o
movimento moderno no século XX». A hegemonia cultural do movimento moderno
(ou a versão mais recente de Schumacher) é difícil de suportar num mundo pós-
-colonial. Isto é exacerbado pelo Acordo Geral de Comércio e Serviços (General
Agreement on Trade and Services – GATS). Ele cria uma competição muito desi-
gual destes serviços entre países com Acordos de Reconhecimento Mútuo (Mutual

146. Cf. http://www.canberraaccord.org/


CAPÍTULO XII. PÂNICO OU PLANO – ARQUITETURA NUM MUNDO EM MUDANÇA | 285 |

Recognition Agreements – MRA) e os que não os têm. Também cria um risco cres-
cente aos direitos culturais, enquanto suporta a colonização corporativa. A pro-
fissão em arquitetura tem de fazer maiores esforços para proteger e promover os
direitos culturais e, ao mesmo tempo que suporta os necessários padrões globais,
estes precisam também de encontrar uma maneira de elevar os padrões das ins-
tituições arquiteturais que ainda não atingiram esses padrões globais.

b) Justiça Ambiental
Ainda que relacionada com os direitos ambientais e, de forma mais abrangente,
com os direitos humanos, a justiça ambiental documenta de que forma as regu-
lações governamentais costumam funcionar amiúde contra minorias e comunida-
des vulneráveis. Existe uma série de questões mas aqui há duas para as quais os
arquitetos e urbanistas deverão estar cientes.
A primeira é a da justiça ambiental. São tomadas decisões de planeamento
acerca de onde colocamos estações de tratamento de esgoto, indústrias tóxicas,
aterros sanitários e por aí fora. Tipicamente tais usos são localizados perto de sítios
onde vivem populações pobres e onde estas populações são minoritárias. A histó-
ria da Africville,147 um antigo subúrbio de Halifax, que o Canadá estabeleceu pri-
meiramente por volta de 1840, era maioritariamente composta por uma população
negra vinda do norte dos Estados Unidos. Com o crescimento da cidade de Halifax,
as indústrias mais tóxicas da cidade foram localizando-se nesta área. Acresce a isto
que a cidade se recusou a fornecer serviços de infraestrutura como água canali-
zada e saneamento. Esta negligência racializada foi exacerbada pela decisão de
realojar em 1964 os residentes de Africville sem o seu consentimento.
Estas injustiças ambientais não são relegadas para o passado, para a história.
No Canadá mais de 100 comunidades indígenas atualmente não têm acesso a água
potável.148 Como é que isto é possível num país com tamanha riqueza de recur-
sos, tanto financeiros como físicos? O corrente governo de Trudeau prometeu em
2016 um investimento muito maior149 para resolver estes problemas infraestrutu-
rais, mas atualmente pouco parece ter sido cumprido.

147. Cf. A História de Africville (The Story of Africville) por Matthew McRae. In Canadian Museum of Human
Rights. Disponível em https://humanrights.ca/story/the-story-of-africville
148. Cf. Amnesty International, «Canada: The Right to Water in First Nations Communities» (Amnistia
Internacional, «Canadá: O Direito à Água nas Primeiras Comunidades Nacionais»), disponível em https://
www.amnesty.ca/our-work/issues/indigenous-peoples/indigenous-peoples-in-canada/the-right-to-water.
Cf. também Human Rights Watch, «Make it Safe: Canada’s Obligation to End the First Nations Water Crisis»
(Assistência aos Direitos Humanos: «Torne-o seguro: a obrigação do Canadá em terminar a crise da água
das Primeiras Nações), 7 de Junho de 2016, disponível em https://www.hrw.org/report/2016/06/07/make-
-it-safe/canadas-obligation-end-first-nations-water-crisis.
149. Cf. «A Better Future for Indigenous Peoples» (Um melhor futuro para os povos indígenas), capítulo
3 do Orçamento de 2016. Disponível em https://www.budget.gc.ca/2016/docs/plan/ch3-en.html
| 286 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA

O orçamento de 2019 anunciado em Março deste ano destinou «4,7 bilhões de


dólares canadianos para gastos relacionados com os povos indígenas no Canadá
no orçamento de Terça, com a promessa de acabar com todos os avisos de água
potável (drinking-water advisories – DWA) em reservas no espaço de dois anos».150
No entanto, essas comunidades ainda vivem sob avisos de água potável de longa
data, alguns há décadas. Esse tipo de negligência dos serviços básicos por parte
do governo federal é um exemplo gritante de injustiça ambiental.
Estas não são só questões que dizem respeito ao financiamento federal. São
também questões de planeamento que deveriam preocupar os arquitetos e urba-
nistas quando estes tomam determinadas decisões acerca do uso do solo, zonea-
mento ou desenho do construído.
O segundo ponto diz respeito aos direitos do próprio ambiente. Muitas muni-
cipalidades estão agora a aprovar regulamentos relativos aos direitos do ambiente.
O Fundo de Defesa Legal da Comunidade Ambiental (The Community Environ-
mental Legal Defense Fund – CELD)151 é uma de uma série de organizações que
assistem os municípios a esboçar regulamentos respeitantes aos direitos da natu-
reza. Isto também se relaciona com o que é designado como «Lei da Natureza».
Este particular movimento em direção ao reconhecimento dos direitos do ambiente
tem sido construído desde os inícios dos anos 1970, particularmente com a publi-
cação do artigo de Christopher Stone (1972) intitulado «As Árvores deviam estar de
pé» («Should Trees Have Standing»).

c) Direitos Humanos
Há conflitos crescentes entre as populações locais e o setor de desenvolvimento
no que concerne os direitos culturais, os direitos de acesso, os direitos à habitação
e, no trabalho internacional, os direitos dos trabalhadores da construção e suas
famílias (a Assistência de Direitos Humanos – Human Rights Watch – continua a
compilar relatórios de abusos, todos implicando profissionais de arquitetura).152
É também importante notar que, no Canadá, o Ato Canadense de Direitos Huma-

150. «Federal budget 2019: Ottawa pledges $4.7-billion in funds to address Indigenous issues» (O Orça-
mento Federal em 2019: Ottawa 4,7 biliões de dólares canadianos em fundos para resolver questões
indígenas), por Shawn McCarthy, Globe and Mail, 19 de Março de 2019. Disponível em https://www.the-
globeandmail.com/politics/article-grits-pledge-47-billion-in-funds-to-address-indigenous-issues/
151. Cf. https://celdf.org/rights/rights-of-nature/. Cf também David Boyd «Rights of Nature» e «The Envi-
ronmental Rights Revolution: A Global Study of Constitutions, Human Rights, and the Environment»
(«Direitos da Natureza» e «Revolução dos Direitos do Ambiente: Um Estudo Global das Constituições,
dos Direitos Humanos e do Ambiente»).
152. Cf., por exemplo, «The Island of Happiness»: Exploitation of Migrant Workers on Saadiyat Island»
(«“A Ilha da Felicidade”: exploração dos trabalhadores migrantes na Ilha Saadiyat», por Abu Dhabi. Cf.
https://www.hrw.org/report/2009/05/19/island-happiness/exploitation-migrant-workers-saadiyat-island-
-abu-dhabi).
CAPÍTULO XII. PÂNICO OU PLANO – ARQUITETURA NUM MUNDO EM MUDANÇA | 287 |

nos (Canadian Human Rights Act) e os Códigos Provinciais de Direitos Humanos


(Provincial Human Rights Codes) prevalecem sobre os requisitos básicos de códi-
gos de construção.153
Uma outra área corrente de conflito diz respeito à gentrificação e aos direitos
humanos. Há um número crescente destes conflitos nas comunidades – particu-
larmente comunidades vulneráveis (pobres e/ou de minorias) – onde o conceito
económico de «maior e melhor uso» se sobrepõe aos direitos das comunidades
existentes. Uma disputa corrente entre uma «Aldeia Latina» local – Pueblito Paisa
em Tottenham – e um investidor está sob investigação pelo grupo de trabalho da
ONU sobre Comércio e Direitos Humanos154.
Certamente, a gentrificação é uma grande parte da mudança que os arquite-
tos encorajam e projetam. Como profissionais, iremos ser confrontados com muitos
mais conflitos deste tipo e estes irão gerar investigações por parte de organizações
de direitos humanos, tanto a nível local, como certamente, tal como no caso de
Pueblito Paisa, a nível internacional.

5. Conclusão
Os arquitetos são agentes de mudança. É inerente à nossa formação e à prática
de projetos. Nós não entramos em pânico acerca da mudança, a qual nós planea-
mos. Não posso concordar com a abordagem de Paola Antonelli em relação ao pro-
jeto como um grande epitáfio. Acredito que nós devemos continuar a lutar contra
a grande mudança da iminente catástrofe climática através da ação e do planea-
mento. Quando fizermos isso, teremos todavia de estar muito cientes das nossas
responsabilidades em relação a alguns princípios básicos em termos de direitos
– ambientais e humanos. Devemos estar vitalmente conscientes de que estamos
a fazer este trabalho num palco global perante pessoas, cujos direitos devem ser
protegidos.

153. Cf. também um caso similar em NYC com Estados Unidos: cf. Avalon Chrystie, SLCE Architects et al.
https://www.justice.gov/sites/default/files/crt/legacy/2010/12/14/cvpsettle.pdf.
154. Cf. «London market demolition triggers UN investigation into area’s gentrification» (Demolição do
Mercado de Londres desencadeia uma investigação da ONU em área de gentrificação). In The Indepen-
dent por Lizzie Dearden, 27 de Outubro de 2017. Disponível em: https://www.independent.co.uk/news/
uk/home-news/london-un-gentrification-investigation-seven-sisters-market-demolition-pueblito-paisa-latin-
-village-a8023811.html. Cf. também https://minorityrights.org/2019/03/23/pueblito-paisa-and-the-dis-
placements-faced-by-its-latinx-community-the-long-term-threats-posed-by-londons-gentrification-for-the-
-capitals-bame-minorities/
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Referências bibliográficas
BOYER, Ernest L. & MITGANG, Lee D. (1996), Building Community: A New Future for Architec-
ture Education and Practice. Ewing, Nova Jersey: California Princeton Fulfillment Services.
BRISTOL, Graeme (2018), «The Trouble with Architecture». In H. Sadri (org.), Neo-liberalism and
the Architecture of the Post Professional Era, Nova Iorque: Springer International Publishing,
pp. 11-29.
National Architectural Accrediting Board (NAAB) (2014), Conditions for Accreditation. Washington.
ORR, David W. (1991) «What is Education For?», In Trumpeter, 8:3, Summer, pp. 99-102.
STONE, Christopher D. (1972), «Should Trees Have Standing? –Towards Legal Rights for Natural
Objects». In Southern California Law Review 45: 450-501.
Título: Por uma habitação básica: cidadania, democracia associativa e metodologias participativas
Organizadores: Manuel Carlos Silva, Fernando Matos Rodrigues, João Teixeira Lopes,
António Cerejeira Fontes e Teresa Mora
Edição: Edições Afrontamento, Lda. | Rua Costa Cabral, 859 – 4200-225 Porto
www.edicoesafrontamento.pt | geral@edicoesafrontamento.pt
Concepção gráfica: Edições Afrontamento, Lda.
Coleção: Cidade em Questão / 30
N.º edição: 2051
ISBN: 978-972-36-1846-4
Depósito legal: 478158/20
Impressão e acabamento: Rainho & Neves, Lda. | Santa Maria da Feira
geral@rainhoeneves.pt
Distribuição: Companhia da Artes – Livros e Distribuição, Lda.
comercial@companhiadasartes.pt

Dezembro de 2020
POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Cidadania, democracia associativa e metodologias participativas

MANUEL CARLOS SILVA


JOÃO TEIXEIRA LOPES Sociólogo, Doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação, é Professor Esta obra coletiva, organizada no âmbito do projeto de investigação «Modos de Vida e Formas de Habitar: MANUEL CARLOS SILVA Sociólogo, Doutorado em Ciências Sociais, Culturais e Políticas na Universidade

POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA


FERNANDO MATOS RODRIGUES
Catedrático do Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Coordena- ‘ilhas’ e bairros populares no Porto e em Braga», financiado pela FCT e enquadrado no Centro Interdisci- de Amesterdão, Diretor do Centro de Investigação em Ciências Sociais (2002-2014) e Presidente da Asso-
dor do Instituto de Sociologia da mesma universidade e Presidente da Associação Portuguesa de Sociolo- plinar de Ciências Sociais (CICS.Nova) da Universidade do Minho, resulta da realização de vários seminá-
JOÃO TEIXEIRA LOPES ciação Portuguesa de Sociologia (2010-2012), é Professor Catedrático e investigador do Centro Interdisci-
gia desde 2016, tendo investigado e publicado nas áreas da cultura, da cidade, da juventude e da educa- rios e encontros a nível regional, nomeadamente no Porto e em Braga, com a colaboração do Laboratório ANTÓNIO CEREJEIRA FONTES plinar de Ciências Sociais (CICS.Nova), Universidade do Minho, e do Centro de Estudos Avançados Multidis-
ção, bem como na da museologia e em estudos territoriais. de Habitação Básica (LAHB) e com a participação de cidadãos/ãs, associações de moradores, membros TERESA MORA (ORGS.) ciplinares da Universidade de Brasília, sendo o rural-urbano, o desenvolvimento e as desigualdades sociais
da equipa e outros especialistas nacionais e internacionais em metodologias participativas, tendo como as suas principais áreas de investigação.
foco nuclear a questão da Habitação Básica. Nesta obra é evidenciado o relativo abandono por parte do
ANTÓNIO J. CEREJEIRA FONTES Engenheiro Civil desde 1992 e Arquiteto desde 2000, é Especialista Estado português de bairros populares carenciados em termos de condições objetivas de vida e habita-
em Planeamento Urbano. Doutorando na Universidade do Minho, é Docente Convidado na Universidade do ção, uma considerável insatisfação dos seus moradores/as e, simultaneamente, um ensaio de explicação FERNANDO MATOS RODRIGUES Mestre em Antropologia e com Curso de Doutoramento em Teoria da
Minho e em várias instituições de ensino superior na Europa. Sócio-fundador da Cerejeira Fontes Archi- sobre o porquê da débil ou mesmo ausente ação coletiva, sem ignorar casos excecionais bem sucedidos Arquitetura e Projeto Arquitetónico pela Universidade de Valladolid, Doutorando em Sociologia e investi-
tects, foi vencedor de diversos prémios (inter)nacionais e selecionado para várias exposições internacio- como o da Bela Vista no Porto. São avançadas reflexões de cariz interdisciplinar sobre democracia e o gador no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.Nova) na Universidade do Minho, docente de
nais, além de (co)autor em diversas publicações sobre espaço urbano e habitação. sistema associativo no quadro de um horizonte ecossocialista colorido para o século XXI, a sociopraxis Antropologia do Espaço no Curso de Arquitetura da ESAP (1991-2013), é Diretor do Laboratório de Habita-
com uma malha de metodologias participativas em vista da transformação e emancipação social, o ção Básica e tem investigado e publicado em áreas da antropologia do espaço, da cidade, da habitação e
direito à habitação no quadro do direito à cidade e à justiça espacial, postos em causa pela financiarização das metodologias participativas.
TERESA MORA Socióloga, Doutorada em Sociologia pela Universidade do Minho (2006), Professora Auxi- dos mercados e fenómenos de especulação imobiliária, gentrificação e turistificação em prejuízo das
liar de Sociologia no Departamento de Sociologia e Investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências classes populares e mesmo intermédias. Estas reflexões são permeadas por análises geo-históricas e
Sociais (CICS.Nova), Universidade do Minho, sendo as suas áreas de investigação e publicação a arte polí- empíricas, ensaios sobre registos fotográficos (e subjacentes reivindicações), abordagens etnográficas,
tica e social e os estudos sobre utopias. instrumentos de participação inclusive digitais, estudos de caso e metodologias participativas em ‘ilhas’
e bairros no Porto, em Lisboa e em Braga, um estudo sobre influências brasileiras entre arquitetos portu-
gueses sobre habitação básica e, por fim mas não menos importante, uma reflexão amadurecida sobre a
marca da arquitetura e o relevante papel dos arquitetos/as no desenho das cidades, posicionando-se con-
tra a predominante lógica mercantil, o ‘pânico moral’ e eventuais atitudes derrotistas e pugnando pela
redução de assimetrias socioespaciais, pelos direitos humanos, nomeadamente pelo direito à habitação,
ao habitat, à cidade e à justiça espacial.

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a www.edicoesafrontamento.pt

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