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POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA Cidadania, democracia associativa e metodologias participativas
POR UMA
HABITAÇÃO BÁSICA
Cidadania, democracia associativa
e metodologias participativas
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Índice
Introdução | 9
Manuel Carlos Silva, Fernando Matos Rodrigues, João Teixeira Lopes, António Cerejeira Fontes, Teresa Mora
Capítulo I
Privação relativa, habitação precária e «consentimento»: mercado especulativo,
omissão do Estado e debilidade da ação coletiva nos bairros populares | 23
Manuel Carlos Silva
I.1. Introdução | 25
I.2. Habitação precária e comportamentos socio-políticos de «consentimento»:
em busca de uma explicação | 28
I.2.1. Breve panorama e posicionamentos sobre relação entre economia e política | 28
I.2.2. «Passividade»: breve resumo dos modelos explicativos | 31
I.3. Por uma habitação básica: presentes as precondições de ação coletiva nas «ilhas»
e nos bairros populares no Porto e em Braga? | 38
I.4. Conclusão | 42
Capítulo II
Democracia associativa: ainda a real Terceira Via | 49
Veit Bader
II.1. Introdução | 51
II.2. Democracia associativa: uma melhor proposta teórica face às tradições teóricas
concorrentes | 52
II.3. Democracia associativa promete novos caminhos de mudança política | 55
II.4. Notas finais: recentes contributos relevantes | 57
Capítulo III
A sociopraxis como malha de diversas metodologias participativas e instituintes | 63
Tomás R. Villasante
III.1. Introdução | 65
III.2. A construção da sociopraxis | 66
III.3. Caminhos que acreditamos que se estão a abrir… | 73
III.3.1. Transduções | 73
III.3.2. Conjuntos de ação | 75
III.3.3. Tetrapraxis | 77
III.3.4. Emergentes de valor | 79
III.3.5. (Eco)organização | 81
III.3.6. Reversões | 84
III.4. Os tempos e o que cabe aprender | 86
III.5. Notas finais | 92
Capítulo IV
Direito à habitação e à cidade justa:
Críticas e contribuições à Nova Geração de Políticas de Habitação em Portugal | 97
Fernando Matos Rodrigues, Elena Tarsi
IV.1. Introdução | 99
IV.2. O direito à cidade e à justiça espacial | 99
IV.3. A Metrópole do Porto em transição | 102
IV.3.1. As propostas metodológicas do Laboratório de Habitação Básica
na Cidade do Porto | 106
IV.3.2. As «ilhas» no Porto | 109
IV.3.3. A reabilitação da «ilha» da Bela Vista | 113
IV.4. As críticas salientes à Nova Política de Habitação | 115
IV.5. Conclusão | 120
Capítulo V
Alta de Lisboa: Avanços e recuos de um plano de urbanização | 125
Gonçalo Antunes, Nuno Pires Soares, José Lúcio
V.1. Introdução | 127
V.2. O Alto do Lumiar como Musgueira | 127
V.3. Apontamentos sobre a vivência nos bairros precários do Alto do Lumiar | 132
V.3.1. O Plano de Urbanização do Alto do Lumiar (PUAL) | 135
V.3.2. PUAL – o desenvolvimento de um Plano | 139
V.3.3. PUAL – novos desenvolvimentos | 143
V.4. Apontamentos finais | 144
Capítulo VI
O que dizem os muros do Porto?
Ensaio visual sobre o direito à habitação e o direito à cidade | 149
Inês Barbosa, João Teixeira Lopes
VI.1. Introdução | 151
VI.2. Nota metodológica: sociologia andante e a descodificação da cidade | 153
VI.3. Que espaço? Breve digressão sobre a mediação dos terceiros espaços | 155
VI.4. «O Porto não se vende e o povo não se rende»: imagens e discursos de contestação | 156
VI.5. Espaço público: arena disputada e heterotopias realizadas | 168
Capítulo VII
Metodologias participativas: o caso exemplar da «ilha» da Bela Vista (2013-2017) | 173
Fernando Matos Rodrigues, Manuel Carlos Silva, António Cerejeira Fontes, André Cerejeira Fontes
VII.1. Introdução: o problema | 175
VII.2. Uma experiência singular: metodologias participativas num processo de construção
coletivo | 181
VII.3. A investigação-ação no processo de reabilitação e renovação da «ilha» da Bela Vista | 188
VII.4. Conclusão | 198
Capítulo VIII
Trabalho de campo num bairro social de Braga
Questões metodológicas e o envolvimento participante como estratégia | 203
Joana Teixeira, Fernando Bessa Ribeiro
VIII.1. Introdução | 205
VIII.2. Um lugar para habitar: o bairro social das Andorinhas | 205
VIII.3. Entrada e permanência no bairro: da aproximação ao terreno à emergência
de uma questão de partida | 209
VIII.4. O envolvimento participante: uma estratégia implicada para a pesquisa
em contextos urbanos | 217
Capítulo IX
Transformar o território com investigação-ação, colaboração e participação –
contributos a partir de Marvila, Lisboa | 223
Henrique Chaves
IX.1. Introdução: a entrada em Marvila | 225
IX.2. Investigação | 227
IX.3. Ação | 229
IX.4. A comunidade constrói | 232
IX.5. Concluindo | 234
Capítulo X
Narrativas e práticas participativas nos programas habitacionais em Portugal:
Trajetória e influência da experiência brasileira | 239
Mariana Cicuto Barros
X.1. Introdução: aproximação ao debate Brasil-Portugal em arquitetura participada | 241
X.2. Influências: Grupo Quadra e o Processo SAAL | 243
X.3. Narrativas participativas: do SAAL à Iniciativa Bairros Críticos | 245
X.4. Bairro do Lagarteiro | 253
X.5. Reflexões finais | 257
Capítulo XI
Modos digitais e formas de participar híbridas na cidadania de ação | 259
David Leite Viana, Isabel Cristina Carvalho, Maria Raquel Sousa
XI.1. Introdução e enquadramento | 261
XI.2. Apropriação dos espaços e cidadania de ação | 263
XI.3. Mediação digital e aculturação espacial | 266
XI.4. Empoderamento (digital) e cidadania de ação | 270
XI.5. Notas finais | 272
Capítulo XII
Pânico ou Plano – Arquitetura num mundo em mudança | 277
Graeme Bristol
XII.1. Introdução | 279
XII.2. Mudança na arquitetura | 280
XII.3. Mudança na educação arquitetónica | 282
XII.4. Respostas | 283
XII.5. Conclusão | 287
Introdução
Manuel Carlos Silva*
Fernando Matos Rodrigues**
João Teixeira Lopes***
António Cerejeira Fontes****
Teresa Mora*****
como pano de fundo de análise a cidade do Porto. Com efeito, os autores eviden-
ciam como o direito à habitação e à cidade justa são postos em causa pelo sistema
financeiro e pela financiarização dos mercados globais, visíveis particularmente
nos novos fenómenos de gentrificação e turistificação, em que as classes popula-
res e inclusive as ditas classes intermédias são deslocalizadas para os subúrbios e
para as periferias da cidade.
Seguidamente, os autores caraterizam a metrópole do Porto (a cidade e as duas
coroas de concelhos em torno do Porto) como uma metrópole em transição e ofe-
recem, de modo particular e específico, um panorama geral histórico sobre as
«ilhas» e bairros populares do Porto, evidenciando como umas e outros se carate-
rizam nos seus traços identitários e como historicamente se foram formando desde
o século XIX, mas incidindo particularmente a análise desde os ditos Planos de
Melhoramentos ao tempo do Estado Novo até à atualidade. Com efeito, evidenciam
de modo pertinente como nos últimos tempos o fenómeno do Alojamento Local
se vai multiplicando e penetrando nestas «ilhas» e bairros populares num processo
de desagregação das mesmas, tal como diversos relatórios o demonstram sobre-
tudo nos últimos anos. O processo de deslocação dos moradores do centro da cidade
do Porto, iniciado na última fase do regime ditatorial sob o Estado Novo, viria a ser
incentivado e propulsionado nas últimas décadas pela Sociedade Gestora de Rea-
bilitação Urbana com a cumplicidade dos responsáveis dos sucessivos mandatos
camarários, particularmente de Rui Rio e, mais recentemente, de Rui Moreira. Por
fim, os autores dão conta de como o Laboratório de Habitação Básica se propôs
empreender projetos de reabilitação urbana, nomeadamente no bairro Riobom e,
em especial, na «ilha» da Bela Vista, cuja reabilitação foi bem sucedida como um
caso excepcional graças à conjugação de vários fatores, como é evidenciado neste
capítulo e no capítulo VII.
De modo complementar à metrópole do Porto, embora focalizados no caso
específico do plano de urbanização na Alta de Lisboa, Gonçalo Antunes, Nuno
Pires Soares e José Lúcio debruçam-se no capítulo V sobre os avanços e recuos
deste plano conhecido por Plano de Urbanização do Alto do Lumiar (PUAL), dis-
cutindo de modo notável, em termos teóricos e histórico-empíricos, a intervenção
urbana assente em pressupostos de mistura social alegadamente interclassista. Os
autores analisam este processo em três períodos desde o pre-PUAL com bairros
informais dos anos 1960 até meados da década de 1990, seguido de avaliação do
próprio PUAL entre 1998 e 2015, até ao tempo presente em que são traçadas as
principais tendências e uma perspetiva para o futuro.
Os autores referem como o Alto do Lumiar até aos anos 1960 era um espaço
rural da então designada Musgueira, ocupado por palácios e palacetes da «bucó-
lica» elite lisboeta, mas, simultaneamente, sobretudo com o arranque industrial a
partir dos anos 1960, viria a dar lugar à formação de «bairros provisórios», sem con-
| 14 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
lidade de o Estado, para além instituição central nas normativas e nos financia-
mentos no quadro de uma outra política de habitação, ser coordenador de inicia-
tivas de participação no campo da habitação.
No penúltimo capítulo David Leite Viana, Isabel Cristina Carvalho e Maria
Raquel Sousa, cruzando saberes de arquitetura e de ciências sociais e de comuni-
cação, contribuem de modo notável para refletir sobre um tema ainda pouco tra-
balhado mas cada vez mais relevante sobre modos digitais e formas de participa-
ção híbrida no campo da cidadania de ação. Começando por constatar um fosso
entre os direitos legislados e as normas e práticas sociais, os autores evidenciam
os impactos que tais situações têm no eventual não exercício da participação cívica,
particularmente entre cidadãos/ãs com modos de vida e formas de habitar mais
precárias e degradadas, presentes sobretudo entre determinados grupos que são
objeto de segregação socio-espacial, mais vulneráveis e infoexcluídos, e onde os
direitos humanos não são garantidos. Os autores constatam deste modo que a Pla-
taforma de Ação de Pequim em 1995 não é uma realidade como tão pouco é reali-
zado o objetivo 11 do Millenium das Nações Unidas sobre cidades e assentamentos
humanos inclusivos, seguros e sustentáveis. Por isso, os autores, com base numa
escala de participação cidadã desenhada por Arnstein (1969), consideram relevante
criar condições, instrumentos e modos diversos, entre os quais os digitais, para que
a participação e o controlo dos cidadãos/ãs seja uma realidade. O contributo refle-
xivo do autor e das autoras, recorrendo a inspirações diversas sobre os conceitos
de modos de vida e formas de habitar – aliás o título do projeto coordenado por
Manuel Carlos Silva e do qual o primeiro autor é membro integrante –, aponta para
a necessidade de implicar modos digitais e formas híbridas de participação que
impliquem a intervenção e inteligência coletiva em processos colaborativos e de
co-criação de lugares de convivência e partilha que potenciem modos de vida e
formas de habitar dignos, mais conectados e integrados e que possibilitem, na
esteira de Távora (1999) e Castells (2000), apropriar-se individual e comunitaria-
mente dos espaços, gerar fluxos comunicacionais e partilhar conhecimentos para
organizar a vida. Para tal os autores propõem a mediação digital e a «aculturação
espacial» a partir da gestão da complexidade, mas também do que os autores desig-
nam de «transição do conceito de lugares em estrutura de rede para a postulação
de lugares de convivência », apoiada no desenvolvimento tecnológico (por exemplo,
tecnologias móveis como equipamentos GPS) e suportada por fluxos e formas fle-
xíveis de sociabilização e interação entre vizinhos e visitantes e de participação
cívica no quadro dos diversos graus de cidadania de ação avançados por Arnstein
(1969). Embora o processo de empoderamento de cidadãos/ãs implique a presença
de outras condições para além da mediação digital, a convocação do empodera-
mento digital para a cidadania de ação constitui nos tempos atuais um requisito
imprescindível para possuir a capacidade crítica e, através dela, questionar o statu
| 20 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Siglas
GPS = Global Positioning System – Sistema de Localização Global
LNEC = Laboratório Nacional de Engenharia Civil
ONG = Organizações não Governamentais
PER = Processo Especial de Realojamento
PIMP = Plano de Intervenção a Médio Prazo
PREC = Processo Revolucionário em Curso
SAAL = Serviço Ambulatório de Apoio Local
URSS = União das Repúblicas Soviéticas Socialistas
Referências bibliográficas
ARNSTEIN, Sherry R. (1969), «Ladder Of Citizen Participation». In Journal of the American
Planning Association, 35 (4): 216–224.
BADER, Veit Michael (1991), Collectief Handelen. Groningen: Wolters-Noordhoff.
BADER, Veit Michael (2001), «Associative Democracy and the Incorporation of Minorities: Criti-
cal Remarks on Paul Hirst’s Associative Democracy». In P. Hirst & V. Bader (eds.), Associative
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BADER, Veit Michael (2020), «Associative Democracy and the Crises of Democratic Capitalism
and Representative Democracy» (Manuscrito submetido para publicação na Oxford Univer-
sity Press. Versão anterior (2019) acessível via ResearchGate: DOI: 10.13140/RG.2.2.36838.88642).
CARLOS, Ana Fani Alexandro (1992), A Cidade. O homem e a cidade. A cidade e o cidadão. De
quem é o solo urbano. S. Paulo: Editora Contexto.
CASTELLS, Manuel [2000 (1999)], A sociedade em rede – a era da informação: economia, socie-
dade e cultura. S. Paulo: Paz e Terra.
| 22 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Privação relativa,
habitação precária
e «consentimento»:
mercado especulativo, omissão
do Estado e debilidade da ação
coletiva nos bairros populares
1. Com efeito, o anúncio da medida social e politicamente imoral de transferência de contribuição dos
trabalhadores para o capital por via da Taxa Social Única (TSU) despoletou uma maciça manifestação a
15 de Setembro de 2011, assim como o acumular de descontentamentos e frustrações conduziu a uma
outra onda de indignação a 15 de Março de 2012 sob o lema «Que se lixe a Troika. Queremos de volta
as nossas vidas».
| 26 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
dade imposta pela Troika e caninamente seguida e até acentuada pela política ultra-
liberal e socialmente insensível do governo PSD/CDS?
Com o estabelecimento de um acordo entre PS, BE e PCP/PEV para a legislatura
de 2015-2019, foram de facto retirados os efeitos mais nefastos da política de aus-
teridade e empobrecimento: recuperação de salários e pensões, aumento do salá-
rio mímino, reposição de subsídios de férias e de Natal, assim como restabeleci-
mento de dias feriados retirados, aumento de escalões e outras conquistas sociais.
Esta política foi conseguida não tanto pelo PS – que em 2015 apresentava um pro-
grama socialmente mais recuado e com traços neoliberais – mas mais pelos par-
ceiros em sede parlamentar que, em sucessivos orçamentos de Estado e dossiers
específicos (habitação, cuidadores informais, apoios escolares, aumento de pen-
sões, etc.), obrigaram a cedências do PS. Porém, o espantoso da situação foi que
quem ganhou na nova disputa eleitoral de Outubro 2019 não foram o BE e, em
particular, o PCP – o primeiro porque perdeu votos e o segundo porque perdeu
votos e eleitos – mas o PS, que aumentou a sua votação relativa e o número de
deputados, para além de outros ganhos como os do PAN (de um para quatro depu-
tados), o Livre com uma deputada, a direita pela Iniciativa Liberal e a extrema direita
do Chega com um deputado cada. É certo que a direita, composta basicamente pelo
PSD e CDS, foi derrotada, perdendo votos e deputados em favor do PS, não só por
política errática e problemas de liderança, mas simplesmente porque o PS, apesar
de ter aliviado o programa de austeridade e ter feito certas concessões ao BE e ao
PCP/PEV, não deixou de ser fiel, em última instância, à política macroeconómica
determinada a nível supraestatal e supranacional e às políticas do FMI, da CE e do
BCE ou, mais precisamente, das diretrizes de Bruxelas-Berlim, mais ainda tendo à
cabeça do Eurogrupo o próprio Ministro das Finanças português. Em suma, o elei-
torado em Portugal, em vez de reforçar os partidos de esquerda, nomeadamente o
BE e o PCP/PEV, oscila ainda, alternadamente, entre dar a maioria, pelo menos rela-
tiva, ao PSD/CDS em 2015 e reforçar o PS em 2019, o qual, não obstante ter melho-
rado ligeiramente algumas políticas redistributivas, prossegue grosso modo as polí-
ticas macroeconómicas dominantes a nível nacional e supracional.
Uma das consequências mais gravosas desta política neoliberal da Troika e do
PSD/CDS consistiu na liberalização e na especulação do mercado imobiliário, tor-
nando inacessíveis os preços de compra e sobretudo de arrendamento de casa, agra-
vado por processos de gentrificação e turistificação. Por outro lado, não obstante
as reais carências e necessidades de habitação condigna para dezenas de milhares
de cidadãos/ãs, o Estado ainda mais se alheou de implementar adequadas políti-
cas de habitação para as classes mais pobres e destituídas. Por fim, perante as inves-
tidas especulativas do mercado e as omissões e cumplicidades do Estado, têm sido
praticamente inexistentes movimentos de moradores pobres a reivindicar coletiva-
mente o seu direito a habitação digna, havendo apenas, quando muito, pequenas
CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 27 |
iniciativas isoladas ou locais sem impacto a nível nacional. Ou seja, como explicar
o mesmo problema de discrepância entre as reais condições objetivas de vida e de
habitação degradadas de moradores/as pobres e a ausência de movimentos políti-
co-ideológicos que reivindiquem o seu direito à habitação como primeiro direito?
Com efeito, não obstante a consagração deste primeiro direito constitucional,
a habitação pública está reduzida a 2% e as políticas públicas do Estado têm-se
limitado a subsidiar bonificações de juros basicamente favoráveis à banca. Ora o
que se exige de um Estado Social é a existência de políticas públicas de habitação
que reduzam as assimetrias socio-espaciais, económicas e culturais no acesso e na
fruição do direito à habitação. Mesmo depois da viragem operada pelos acordos do
PS com o BE e PCP/PEV, manteve-se a escalada de subida de preços para a compra
ou arrendamento de casa por efeito da especulação e do aumento do turismo e
sobretudo continuaram a verificar-se sucessivos processos de despejos de morado-
res pobres dos centros das cidades para as periferias, com o subsequente processo
de gentrificação e segregação socio-espacial. Não obstante os esforços do BE e do
PCP, da ala esquerda do PS e sobretudo de deputados independentes como Helena
Roseta na bancada do PS, foi-se arrastando a aprovação da Lei de Bases da Habi-
tação. Finalmente, passados 45 anos da implantação da democracia em Portugal,
o Parlamento, graças não só a alguns poucos e frágeis movimentos de moradores/
as como ao denodado esforço da Comissão do Ambiente, Ordenamento do Terri-
tório, Descentralização, Poder Local e Habitação – de resto sempre aberta a diver-
sas audições junto de associações de moradores/as e outros coletivos – aprovou,
apesar de resistências e ziguezagues do governo e das contrapropostas liberaliza-
doras do PSD/CDS, a Lei de Bases da Habitação (LBH), com os votos favoráveis
do PS, do BE, do PCP/PEV e do PAN. Com esta LBH Portugal e os portugueses pela
primeira vez têm uma lei de bases que consagra no artigo 3.º o direito à habitação
(art. 65 da CRP), de modo a ser promovida uma política nacional de habitação.
Quer nos processos anteriores, quer em tempos posteriores à aprovação da
LBH, salvo pequenas iniciativas ora espontâneas ora organizadas por algumas asso-
ciações ou comissões de moradores, não se tem verificado, como referido, qual-
quer movimento significativo para reivindicar junto do poder central a concreti-
zação de uma Política de Habitação que vá ao encontro das necessidades e carên-
cias de populações vulneráveis e pobres.
Ora, dada a recorrência comprovada destes comportamentos socio-políticos de
conformação e «consentimento» não só por parte de classes como o campesinato
em diversos períodos históricos mas também doutras classes nalgumas situações
durante o regime democrático (cf. Silva, 1998, 2012, 2012a), surgem com pertinên-
cia as seguintes questões: primeiro, como se compreende que classes exploradas
e dominadas apoiem partidos cujos programas e práticas recorrentemente imple-
mentam políticas favoráveis a classes mais providas de recursos; segundo, como
| 28 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
2
.1. Breve panorama e posicionamentos sobre relação entre econo-
mia e política
2. São diversas as sociedades agrário-camponesas em que têm prevalecido, aliás como uma constante
secular, as atitudes de aparente consentimento, aquiescência ou, quando muito, de resistência passiva
(cf. Silva, 1998). Por sua vez, também nas sociedades industriais e modernas, em contexto urbano, embora
seja possível constatar um maior número de protestos, manifestações e greves, predominam não só
situações de negociação entre trabalhadores/as e empresários, como processos de relativa passividade
e contenção perante medidas de austeridade, como ainda de divisão e dificuldade em agregar forças e
mobilizar (por exemplo, desempregados, precários, minorias étnicas).
| 30 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
5. Cf. Dahrendorf (1959: 165 ss), Moore (1966:453 ss), Wolf (1974), Blok (1974: 6 ss), Aya (1979: 30 ss) e
Skocpol (1979: 11 ss). Sobre o conceito de poder, cf. Weber (1978: 53). Acerca do patrocinato, enquanto
mecanismo de mediação e poder, cf. Bailey (1970: 41 ss, 167 ss), Weingrod (1977: 41-51), Boissevain (1966:
18-33 e 1977: 89-90). Sobre o poder, mas apenas como uma das fontes de desigualdade social, tendo
por base o conceito de controlo sobre recursos sobretudo indiretos, cf. Bader e Benschop (1988: 149 ss),
Silva e Van Toor (1984) e Silva (1994 e 1998).
| 34 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
6. Tal como respetivamente o demonstraram Black (1972: 624 ss), Scott (1985: 284 ss) e Silva (1998), em
espaços rurais e Burawoy (1979) e Estanque (1999) em espaços industrial-urbanos, sem retirar força ao
argumento, desenvolvido por Burawoy (1979) na estruturação do consentimento, de que os dominados
interiorizam determinadas narrativas justificativas de formas de dominação e mesmo de exploração. Sobre
estudos mais recentes sobre bairros populares, para além de casos registados em vários trabalhos da
equipa (Rodrigues et al., 2015; Silva et al., 2020), importa registar as conclusões dos trabalhos de Cachado
CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 35 |
e Baía (2012) e Cachado (2013) e, muito em particular, primeiro a saída de moradores/as dos bairros de
Ribeira/Barredo para o bairro do Aleixo e, mais recentemente, na demolição do bairro do Aleixo no Porto
(Queirós, 2015 e 2019), nomeadamente em processos de despejo e realojamento.
7. Cf. como exemplos o «encolhido» (cf. Erasmus, 1968: 69 ss), o «invejoso» (Foster, 1972), o «modesto-
-invejoso» (Tolosana, 1973:833), o «camponês minhoto» (J.P. Cabral, 1989: 59 ss), o português como «não
inscrito» ou «invejoso» (cf. Gil, 2004). Para uma crítica, cf. Silva (2002).
| 36 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
8. Este conceito, nuclear na definição da identidade (étnica, de classe, de género ou outra), é tributário
do contributo de Bourdieu (1972, 1979, 1980) no sentido da mediação da dicotomia estrutura-acção, tal
como atrás foi definido. Cf. também Pinto (1991) e Wacquant (2004). O conceito de habitus constituiu um
esforço notável no sentido de superação das teorias estruturalista e acionalista/interacionista, do nível
macro e micro, sem que, como foi salientado, haja completa homologia entre macro-micro e estrutural-
-interativo, dado que no nível micro opera também o estrutural e vice-versa (cf. Giddens, 1984). Em Por-
tugal, Almeida (1981:239) converge no mesmo sentido, quando refere que «por força dos específicos con-
dicionamentos objectivos que, para além duma infinita variedade de modulações, produziram determi-
nados e importantes elementos comuns de socialização e de experiência, os membros de uma mesma
classe que os incorporam e cristalizaram em habitus têm entre si maior probabilidade de pensar e agir de
forma semelhante do que em relação a membros de outras classes».
| 40 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
4. Conclusão
A crise económica e financeira despoletada nos Estados Unidos replicou-se na
Europa e afetou particularmente as economias mais débeis do Sul como Portugal,
tendo levado o então governo do PS a solicitar uma assistência financeira pela
Troika com a subsequente política de austeridade exacerbada e mesmo desumana
por parte do PSD/CDS. No campo da habitação, tal refletiu-se na liberalização dos
mercados da habitação e subsequente dificuldade de acesso a casa por parte das
classes mais destituídas e inclusive de classes intermédias. Por outro lado, o Estado,
omisso ao longo dos 45 anos do pós-25 de Abril na garantia de habitação condigna
a todos os cidadãos/ãs, foi cúmplice da manutenção de situações de privação e
degradação das condições habitacionais para centenas de milhares de pessoas.
CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 43 |
Sem negar a travagem dos efeitos mais nefastos da política neoliberal do governo
PSD/CDS e a recuperação de rendimentos e pensões e algumas melhorias com o
governo PS a partir de 2016, a política de liberalização no mercado de arrenda-
mento manteve-se e arrastou-se durante o governo do PS. Se, por um lado, final-
mente a Lei de Bases da Habitação foi aprovada mais pela pressão do BE, PCP/
PEV e a deputada independente Helena Roseta pelo PS, por outro continuou a haver
um baixo investimento na política pública de habitação e não foram contrariados
os processos de especulação imobiliária, gentrificação e turistificação.
A configuração socio-política resultante das últimas eleições em 2019, refor-
çando o PS e debilitando outras forças à esquerda, particularmente o PCP/PEV,
não augura mudanças significativas neste campo, e mais ainda agora, no contexto
da crise sanitária do Covid19 e concomitante grave crise económica a nível nacio-
nal, europeu e internacional. Porém, o mais intrigante é que, entre as classes e
grupos sociais mais atingidos pela especulação e omissão/cumplicidade do governo,
nomeadamente os moradores das «ilhas» e dos bairros populares do Porto e de
Braga, não se têm vislumbrado processos de protesto e ação coletiva. Tal nos con-
duziu a expor de modo breve os principais modelos explicativos destes comporta-
mentos socio-políticos resignados, conformados, esquivos ou, quanto muito, resi-
lientes e passivamente resistentes, enveredando, após um balanço crítico, pela
combinação da economia moral articulada com elementos das abordagens mar-
xista e weberiana. Por fim, assumindo, na esteira de Bader (1991), a necessidade
de determinadas precondições para a ação coletiva, aferimos que de facto, apesar
de algumas condições objetivas estarem presentes, outras, sobretudo de caráter
organizativo e de liderança, assim como a utopia como alavanca de transformação
social, não estão presentes. Ou seja, apesar de o conjunto de moradores/as destas
«ilhas» e bairros populares deter posições relativamente homogéneas, interesses e
objetivos semelhantes e mesmo incorporando alguns hábitos e modos de vida simi-
lares, não possui as condições político-organizacionais e simbólico-culturais para
desencadear uma ação coletiva, designadamente por baixo grau de politização, não
obstante a sua situação de privação relativa em termos de condições de vida e habi-
tação precárias.
A ação política concreta, se, por um lado, não deve ser interpretada a partir de
um modelo monocausal, designadamente quando impregnado de uma conotação
ontológico-metafísica, tão-pouco pode sê-lo a partir de uma simples soma eclética
de diversos fatores. Tal como foi referido, a ação factual depende e é determinada
pela acumulação e a articulação dos diversos níveis de estruturação: socioestru-
tural ou societal, organizacional e interaccional. Por outro lado, o apelo a um enfo-
que pluridimensional não exclui certamente a necessidade de situar prioridades
nos níveis e fatores em análise, reconstruí-los, validá-los teoricamente e testá-los
empiricamente.
| 44 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Siglas
BCE = Banco Central Europeu
BE = Bloco de Esquerda
CDS = Centro Democrático e Social
CE = Comissão Europeia
CEAM = Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares
CICS.Nova_UMinho = Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Universidade do Minho
EUA = Estados Unidos da América
FMI = Fundo Monetário Internacional
PAN = Pessoas, Animais e Natureza
PCP = Partido Comunista Português
PEV = Partido Ecologista os Verdes
PS = Partido Socialista
PSD = Partido Social Democrata
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CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 45 |
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CAPÍTULO I. PRIVAÇÃO RELATIVA, HABITAÇÃO PRECÁRIA E «CONSENTIMENTO» | 47 |
Democracia associativa:
ainda a real Terceira Via
Veit Bader*
seria o mais descentralizada e plural possível, mas com um Estado central para
garantir a paz pública e o Estado de direito.
A democracia associativa desenvolveu-se mais uma vez como um novo para-
digma na teoria política nas décadas de 1980 e 1990. Ela tem sido avançada pri-
mariamente como uma resposta ao colapso de duas tradições intelectuais e políti-
cas que dominaram a esquerda durante o século XX: primeiro, o marxismo-leni-
nismo e o colapso do socialismo de Estado realmente existente; e segundo, a social-
-democracia estatizante, assim como o declínio do bem-estar de inspiração keyne-
siana. Como corrente teórica, a democracia associativa, comparada com as suas
principais correntes rivais na teoria política recente, apresenta-se melhor, ou seja,
com soluções moralmente mais satisfatórias e mais adequadas e viáveis para pro-
blemas urgentes das sociedades contemporâneas. O seu experimentalismo radical,
democrático e institucionalista promete abrir novos caminhos de mudança polí-
tica, por comparação com os paradigmas políticos dominantes mais recentes: as
diferentes variantes do neo-liberalismo e a tímida Terceira Via da moderna social-
-democracia. Nos seus primeiros anos, a democracia associativa evidenciou um
enviesamento distintivamente anglo-saxónico, negligenciando infelizmente impor-
tantes tradições teóricas e experiências práticas de associativismo na Europa conti-
nental, particularmente as do austro-marxismo e do amplo movimento cooperativo.
As principais razões para este facto preocupante são igualmente bem conhecidas:
um grave desajustamento entre problemas cada vez mais globais e uma estrutura
institucional inadequada e não democrática a nível supra-estatal; a completa inca-
pacidade e a relutância de Estados periféricos fracos, combinada com a relutância
e crescente falta de capacidade e poder de Estados fortes; e uma grave falta de
capacidades de governança económica e social de governos que dependem de um
conjunto limitado de mecanismos de governança política. Muito mais contestada
é a nossa tese de que as teorias e paradigmas políticos predominantes são incapa-
zes de apresentar formas moralmente legítimas e viáveis para sairmos destes dile-
mas. Neste texto, por uma questão de simplicidade, focamo-nos nos principais
estrangulamentos teóricos, indicando apenas de passagem quais os paradigmas
em teoria política que são particularmente tolhidos por eles. Também reduzimos
a complexidade dos paradigmas existentes e referimo-nos apenas ao neolibera-
lismo, ao republicanismo e às teorias da sociedade civil (para uma revisão crítica
mais extensa, ver o capítulo 2 em Bader, 2020).
Os principais estrangulamentos teóricos, na nossa opinião, são os seguintes:
1. As filosofias concorrentes do liberalismo político, do republicanismo, do
comunitarismo e das teorias da sociedade civil mostram uma falta de con-
cretude institucional e, portanto, são incapazes de inspirar uma teoria polí-
tica institucionalmente saturada e imaginativa.
2. A maioria das filosofias políticas e das teorias políticas predominantes não
tiveram em conta que nós, cada vez mais, vivemos em realidades políti-
cas multinível. O federalismo teve algum impacto sobre o liberalismo e o
republicanismo a nível subestatal, mas a nível supra-estatal ambas as tra-
dições evidenciam falta de imaginação, aderindo a noções já não defensá-
veis sobre a soberania do Estado. A nível subestatal, o liberalismo e o repu-
blicanismo são caraterizados por uma visão parcelar e distorcida de uni-
dade institucional, particularmente quando se trata da integração de repre-
sentantes de diferentes grupos sociais e culturais em processos de tomada
de decisões e respetiva execução. Se as realidades políticas multinível
chegam a ser discutidas, então são-no sobretudo enquanto ameaças e peri-
gos (competências nebulosas, armadilhas de decisão conjunta, políticas
do mais baixo denominador comum e assim por diante), e não como pers-
petivas interessantes e promissoras. Se a representação dos grupos e as
formas institucionalizadas de pluralismo social e cultural são em qualquer
caso discutidas, elas são vistas principalmente como ameaças à unidade
social, política e cultural, à solidariedade e à confiança, e não como pro-
messas para o desenvolvimento de uma política democrática culturalmente
diversa e mais equilibrada.
| 54 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
9. Cf., na lista de referências, as contribuições de Achterberg (2001), Bader (2001), Engelen (2001), Hirst
(2001), Hoekema (2001), Kaspersen e Ottesen (2001), Perczynski (2001), para além de Cooke e Morgan
(1998).
10. Cf., por exemplo, o volume editado por A. Westall (2011) com contributos de Barnett (2011), Bechler
(2011), Christie (2011), Glasman (2011), Maddock (2011), Mauger (2011), Shepherd (2011), Smith (2011),
Michie (2011), Westall (2011) e White (2011).
| 58 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
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Capítulo III
A sociopraxis
como malha de diversas
metodologias participativas
e instituintes
Tomás R. Villasante*
* Professor Honorífico da Universidade Complutense de Madrid. Este texto é uma tradução de um capí-
tulo do livro do autor, cujo título em espanhol é Desbordes creativos. Estilos y Estrategias para la trans-
formación social. Madrid: Catarata, publicado em 2006, pp. 303-333. A tradução deste texto foi realizada
por António Cardoso. Não obstante o autor não referir nos quadros os anos das referências bibliográficas,
estas foram feitas na parte final por referência do livro do autor e tendo em conta os conteúdos do capí-
tulo. E-mail: tvillasante@hotmail.com
1. Introdução
Tanto nas ciências sociais como nas ciências naturais avançamos por genera-
lização de algumas experiências que resultam interessantes em pequena escala.
A própria natureza nos seus processos evolutivos demonstra continuamente solu-
ções alternativas perante os fenómenos que surgem e, quando encontra uma boa
solução que encaixa em vários aspetos, esta generaliza-se com certa rapidez. Cer-
tamente que para a evolução natural essa certa rapidez é o tempo de algumas déca-
das ou séculos. Nisto os humanos podemos fazer melhor e, passando de uma a
outra geração, podemos aprender do que fazemos à escala local para adequá-lo a
muitas outras situações de forma mais criativa e complexa.
É esta lógica que nos tem levado a trabalhar na vida comunitária, não apenas
para resolver casos concretos com problemas mais ou menos agudos, mas também
para transformar a estrutura de uma sociedade com a qual discordamos. Tanto na
natureza como na sociedade, para muitos de nós não há uma teoria que explique
tudo; parece-nos, contudo, haver construções práticas e reflexões sobre estas que
nos fazem ir avançando, simultaneamente, tanto no entendimento como na trans-
formação e solução dos problemas que nos surgem.
Nas últimas décadas temos aprendido numa rede de grupos em que trabalha-
mos, a nível local ou comunitário, algumas estratégias de fundo que nos estão ser-
vindo para dar passos criativos e não só a nível local. É isto que queremos colocar
aqui em debate e, se possível, em experimentação. Além disso, vamos colocar num
quadro 12 posições prático-teóricas de numerosos autores, em que o arranque dos
grupos que estão na rede ocorre a partir das nossas experiências. Operamos com
diversas metodologias a partir dos caminhos práticos que trilhamos nos bairros,
nomeadamente com os movimentos, as organizações não-governamentais (ONG’s)
e as câmaras municipais, com os/as quais trabalhamos. Estamos aprendendo com
as experiências do Equador, do Peru, do Chile, do Uruguai, do Brasil, das Canárias,
da Andaluzia, de Madrid, do País Basco e da Catalunha. Em cada lugar existem
algumas equipas que fazem trabalhos comunitários ou, em geral, assumem como
lema a participação social. Os quadros deste texto servem para retroalimentar estes
mesmos debates e abrir estas práticas, bem como para animar a dar os passos cria-
tivos que queremos propor, para transformar as situações nas quais vivemos.
Nalguns grupos as referências metodológicas têm-se centrado em Paulo Freire
e nas «pedagogias populares»; noutros na «investigação-ação participativa» (IAP)
de Fals Borda; ou, ainda noutros, na «co-investigação ativista», em diversos tipos
de militâncias ou na «planificação estratégica situacional» (PES) de Carlos Matus
ou nos «diagnósticos rurais participativos» (DRP), entre outros. O que aqui preten-
demos é uma articulação de todas estas metodologias e mais algumas, nas suas
| 66 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
diferenças e nos seus elementos mais criativos, para que cada um possa optar pela
sua própria combinação, não ficando bloqueado apenas num destes contributos,
embora cada um deles seja relevante, tal como se nos apresenta. Esta é certamente
uma das possibilidades, aquela que alguns de nós estamos seguindo a partir das
nossas práticas e reflexões, a qual não pretende ser mais do que uma referência
nos debates com outros. Pretendemos apenas mostrar que há possibilidades de dar
passos criativos a partir de alguns movimentos práticos que, refletidos em con-
junto, poderão oferecer alguns contributos teóricos.
2. A construção da sociopraxis
No Quadro 1 aparecem epistemologias e metodologias que, desde os anos setenta
até à atualidade, nos têm alimentado na medida em que as temos vindo a aplicar.
E nas colunas aparecem os âmbitos de aplicação principal, desde o nível micro
(individual e grupal), passando pelo comunitário, até ao nível macro-societal. Há
uma pluralidade de autores, sejam os sobejamente reconhecidos a nível interna-
cional, sejam outros a nível nacional, com os quais, por estarem vivos, ainda pode-
mos estabelecer debates. Procurei dar maior visibilidade a uma série de autoras e
não apenas a autores mais reconhecidos, que justamente abranjam os diversos
contributos científicos. Além disso, procurei articular os contributos das ciências
naturais com os das ciências sociais, os contributos socialistas com os dos libertá-
rios, os mais básicos com os mais eruditos. As doze posições de referência têm
diferente grau de concretude, à medida que nos foram chegando e as fomos apli-
cando. O quadro que se apresenta pode servir para distingui-las como para con-
jugá-las, servindo-nos para chegar aos seis passos criativos que queremos propor.
Mas cada um pode construir o seu esquema de referência, com autores mais locais,
de outras tradições científicas, militantes ou artísticas, entre outras. Assim o fize-
mos nalguns seminários de «escolas de cidadania», quer no Brasil, quer no Uru-
guai, convidando cada um a construir o seu próprio quadro de influências, de modo
a discuti-lo e compartilhá-lo de forma participada a partir do seu círculo de ami-
zades ou da sua organização.
Começamos por estabelecer doze «distinções fundadoras» para, em seguida,
passar aos seis «passos criativos» que pretendemos debater. A primeira distinção
consiste em dar prioridade aos «Analisadores Situacionais e Instituintes» perante
os analistas académicos instituídos. O «analisador» é um ato, um sucesso, que
geralmente costuma contribuir com mais complexidade e realidade que qualquer
«analista» com os seus textos académicos. A prioridade consiste em partir de, ou
criar, «situações» que implicam análises mais profundas, que mostram o que está
instituído e/ou é institucional em qualquer grupo ou situação. Os processos insti-
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 67 |
Perante os «analistas
Perante as «distâncias Perante o «ver, julgar,
instituídos»,
sujeito-objeto», atuar»,
PRIMEIROS ANALISADORES
ESTRATÉGIAS ENVOLVIMENTO
transbordos SITUACIONAIS
SUJEITO-SUJEITO, AÇÃO-REFLEXÃO-
práticos INSTITUINTES, da
da Investigação (Ação) -AÇÃO, da Filosofia
(anos 70-80) Socio-Análise
Participativa (K. Lewin, da Praxis (A. Gramsci,
Oficinas e reuniões Institucional
O.F. Borda, A. Sánchez Vásquez,
participativas (G. Debord, R. Lourau,
C.R. Brandão, M. Sacristán, Barnet
F. Guattari,
Colectivo IOE, etc.) Pearce, F.F. Buey, etc.)
I.F. de Castro, etc.)
(cont.)
| 68 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
mos parte dela. Mas também não podemos ficar paralisados por esta falta de dis-
tanciamento em relação àquilo em que estamos envolvidos. Qualquer coisa que
façamos, ou não, também nos envolve praticamente e, por isso, a reflexão está
sempre no meio de duas ações. Fazer esta reflexão, muito consciente destes pro-
cessos envolventes, é o que chamamos «praxis». Isto prende-se com as tradições
de movimentos militantes, sendo consciente de que «a paixão não tira conheci-
mento», se bem que o tira a quem não sabe onde está metido nem toma um mínimo
de distanciamento sobre as suas condicionantes. Por exemplo, se eu conheço o
legado marxista, é importante tomar distanciamento dos erros cometidos histori-
camente com as diversas experiências realmente existentes, mas, se não sabemos
«de que pé coxeamos», é mais difícil que possamos prevenir.
Depois vieram os passos para a «complexidade» das coisas e das relações.
Perante a posição de tratar de encontrar a «lei que explica tudo» ou a «ética exem-
plar» pela qual se conduzir, mais modesto e realista nos parece aceitar os «para-
digmas da complexidade». As leis da gravidade universal ou da seleção das espé-
cies têm aplicações concretas nas quais elas se comprovam, mas há outros âmbi-
tos que necessitam de outras lógicas mais complexas. A lógica dos mercados ou
dos direitos humanos não é tão simples como enunciar uma lei; as motivações
nas diferentes culturas variam substancialmente, assim como os estilos coopera-
tivos também. Nas ciências naturais aparecem o simbiótico e o sinérgico tanto
ou mais que o competitivo e a sua conjugação permite dar passos transdutivos.
Ou seja, os passos de umas energias a outras verificam-se, tanto para ver com os
nossos olhos por conexões entre luz e neurónios, como para que uma planta
cresça pelas ações de enzimas ou de catalisadores. Os estilos catalíticos, trans-
dutivos, também se dão nas relações sociais e é a esses que nos referimos mais
à frente.
As análises do poder têm sido frequentemente demasiado simplificadas,
incluindo algumas das «análises de redes sociais». Perante a tentativa de localizar
o poder nalgum lugar, instituição ou pessoa, existe a possibilidade de o estabele-
cer como um jogo de relações ou de estratégias. As diversas posições mostram-se
assim em função do tipo e da intensidade de vínculos que se estabelecem em cada
caso. Isto é o que temos vindo a chamar «conjuntos de ação» para concretizar na
vida quotidiana as condicionantes de classe ou de ideologias em jogo em cada
situação. As relações vão-se construindo através de confianças e desconfianças
entre as distintas posições, entre medos e agradecimentos, mas não desde um ponto
de vista psicologista individual, mas desde a constatação coletiva e participativa
da análise concreta de cada situação concreta. Desta maneira os quadros de rela-
ções permitem-nos entender as estratégias que se confrontam ou se articulam, em
cada momento, pelos seus interesses ora económicos ora sociais, ora inclusive
emocionais, historicamente construídos.
| 70 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
referir, podemos escolher de tal maneira que sempre teremos razão, se o fizermos
com certa astúcia. Mas alguns movimentos camponeses alternativos ensinaram-
-nos que os «diagnósticos rurais participativos» (DRP) pressupõem formas práti-
cas muito mais fiáveis e operativas de construir a sustentabilidade. Por exemplo,
a «agroecologia» constrói com os «recursos integrais» que há à mão em cada comu-
nidade, podendo demonstrar-se que há formas ecológicas e económicas para viver
melhor a partir destas metodologias de tipo participativo. A sustentabilidade não
se justifica por alguns números macroeconómicos que alguns peritos nos podem
fornecer, mas sim por critérios e indicadores de «qualidade de vida» que cada
comunidade queira proporcionar em cada momento, marcando assim o ritmo do
seu estilo de vida.
Nas análises convencionais da «planificação estratégica» aparecem processos
de «causa-efeito», nos quais se baseiam para predizer o êxito daquilo que estão
desenhando os peritos acreditados. Porém, na realidade, o que acontece é muito
diferente, dado que a acreditação de quem deve opinar costuma ser restrita e muito
tendenciosa de acordo com os interesses de quem manda. Além disso, costuma
haver imprevistos que não encaixam com o que dizem desde os pressupostos de
quem tem podido intervir. Perante os «determinismos» interessados é melhor acei-
tar as «causalidades recursivas», ou seja, condicionantes cruzadas entre si, não tão
lineares e mais participativas, que permitam ir retificando e monitorizando no cami-
nho os processos a partir dos próprios interesses populares. O «desenvolvimento
endógeno» terá sempre em conta as mudanças, as circunstâncias externas e os
«efeitos indesejáveis» das políticas postas em marcha. Para tal existe a «planifica-
ção estratégica situacional» (PES) como boa prática. Importa ainda contar com os
«satisfactores» de desenvolvimento como horizonte, construídos publicamente,
sendo estes elementos muito importantes para fazer políticas de transformação
social eficientes com e para as pessoas.
Alguns movimentos alternativos atuais nos estão fornecendo orientações para
prosseguir com estas formas de pedagogias libertadoras e transformadoras. Perante
as «avaliações académicas» convencionais que tratam de definir desde a «comu-
nidade científica» sobre o que está bem e o que está mal, parecem-nos, contudo,
ser mais interessantes os movimentos «freirianos» de «aprender conjuntamente»,
«aprender para transformar» e «transformar para aprender». Trata-se de movimen-
tos que «revertem» e movimentos que invertem e/ou transbordam as abordagens
iniciais porque a sua criatividade não lhes permite ser previsíveis ou sujeitar-se a
nenhum programa predefinido. Não porque a «reversão» vá explicitamente em
contra do que está instituído, mas porque, ao ser mais consequente com as decla-
rações formais que as mesmas autoridades, transborda-as e põe em prática o que
outros dizem mas não fazem. É precisamente nestas práticas que todos aprende-
mos do que nos sai das mãos, da grande complexidade da vida e dos processos
| 72 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
emergentes. Por isso, o primeiro indicador será o que todos os grupos e pessoas
possamos aprender das inovações criativas que vamos construindo e, para isso,
não é possível seguir moldes ou canais predefinidos.
Os «estilos patriarcais» estão presentes em todas as formas hierarquizadas e
autoritárias que estão a bloquear a emergência da criatividade da humanidade.
Temos de poder aproveitar as iniciativas que surgem constantemente das relações
entre as pessoas, dado que é a partir da energia construtiva dos grupos e das pes-
soas que podemos construir «democracias participativas». Não só as democracias
para as quais a maioria dos que votam se sintam representados, mas também para
que os grupos que se auto-organizam na vida quotidiana vejam que as suas ini-
ciativas podem contribuir para melhorar a sua vida. Umas democracias «(eco)orga-
nizadas», ou seja, que aproveitam, tal como os ecossistemas, os contributos de
todos os seres que as compõem, sejam grandes ou pequenos, sejam energias ou
seres vivos. A organização ecológica dos sistemas de relações, entre todos os ele-
mentos, é uma boa referência perante o que supõe a delegação dos sistemas elei-
torais burocratizados. Muitos movimentos de mulheres em todo o mundo nos ensi-
nam a lutar com esses estilos democráticos desde a vida quotidiana, desde o
pequeno detalhe, e como se pode transformar o mundo desde o micro ao macro.
Para complementar o quadro, há a relevar os movimentos «altero-mundialis-
tas» atuais, que, comportando distintos sentidos entre si, contribuem para a cons-
trução de potencialidades «emergentes» perante os valores dominantes. Não sabe-
mos qual possa ser a melhor alternativa ou qual é a que seguirá em frente, mas
sabemos que «outros mundos são possíveis» a partir da crítica radical dos «equi-
valentes gerais de valor» existentes: a circulação do capital, a hierarquia patriarcal,
o desperdício tecnológico ou os dogmas inquestionáveis – eis o que precisamente
está em questão. Não são apenas os dilemas dentro do sistema, mas também a
construção de outros eixos («tetralemas») e planos emergentes com outras referên-
cias de valores fora do sistema. Importa insurgir-se também, por um lado, contra
a sectorização temática, contribuindo para a «integralidade» dos processos e, por
outro, contra os sectarismos de tipo ideológico, pois não há pressa em ter uma
alternativa acabada. Considera-se «traduzir» os «gritos» de umas e outras partes
do mundo para aprender a «fazer caminhos» emergentes perante a degradação do
«império». Que haja pluralidade de «transbordos reversivos», de diferentes formas
de «democracias (eco)organizadas» ou caminhos «emergentes» diversos perante
os equivalentes de valor dominantes é algo que nos entusiasma, seja a nível comu-
nitário, seja a nível e no sentido de transformação global que necessitamos.
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 73 |
3.1. Transduções
Consideremos primeiro o que não são. Não são posições «neutrais» para a par-
ticipação comunitária, como se alguma vez fosse possível a neutralidade. Precisa-
mente, por se saber da não neutralidade de nenhuma posição, é que se está vigi-
lante com os sectarismos, atuando como facilitador(a) de acordos. Mas tão pouco
se trata de as maiorias esmagarem as minorias, não se é mais participativo por
afluir mais gente a uma assembleia, por exemplo, mas porque se podem debater
mais propostas e mais inovadoras. Se há mais criatividade, mesmo que haja menos
pessoas, um processo pode ser mais participativo com «oficinas» do que uma
assembleia onde pouca gente se disponibiliza ou atreve a falar. Porem, tão pouco
basta que se «traduzam» uns e outras, para se fazer mais inteligíveis nas multi-
culturalidades, as quais se podem converter em «guetos». É necessário ser-se capaz
de superar as «autoestimas grupais» e as «identidades narcisistas», onde o parti-
cipativo ignora as dores e os prazeres dos grupos ou setores. Há que aceitar entrar
na construção de «identificações mestiças», tratando de se minimizar as imposi-
ções de umas ou outras culturas. Também não se trata de propor um modelo resumo,
por sistematização, pois os estilos criativos não se podem basear numa «ética exem-
| 74 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
plar», nem de mínimos nem de máximos. Têm-se que aceitar alguns critérios porque
os processos de complexidade nunca são puros, mas sim híbridos ou mestiços e
onde não pode valer tudo. Nem na selva vale tudo, e muito menos quando que-
remos construir de forma participada com as comunidades e com rigor crítico.
Relativamente aos contributos das transduções, elas são conceitos que se usam
em ciências naturais e sociais com um sentido semelhante, ou seja, visam trans-
formar, dando passos de um tipo de energia a outro. Por exemplo, passar da ener-
gia calorífica à elétrica, ou de uma ação hormonal a uma enzimática nas proteí-
nas, ou de uma vivência psíquica a uma psico-somática. São transformações que
ocorrem continuamente nas nossas vidas e nos envolvem, ainda que não sejamos
muito conscientes disso. Podem-nos conduzir no comunitário e social a uma auto-
reflexão ou autocrítica sobre a importância das formas e procedimentos para a
construção dos processos. Observar-nos a nós próprios como «instrumentos» de
comunicação e transdução, ou que nos observem e critiquem nossos companhei-
ros/as. Descobrir que as formas não são uma mera questão formal, mas elemen-
tos muito importantes para a ética das relações. Que a ética não há que discutí-la
tanto nos fins que se proclamam, mas antes nos estilos e nas metodologias que
se aplicam. A análise das transduções que estamos a aplicar torna-se nuclear para
começar qualquer processo comunitário, social ou grupal em que estejamos empe-
nhados. Pequenas variações nos estilos de transduzir energias ou informações no
princípio de um processo podem fazer variar substancialmente os caminhos a per-
correr no mesmo.
Por isso, deve-se aplicar muito rigor crítico (e, se se quiser, também cientí-
fico) para que a preparação dos dispositivos de envolvimento seja a melhor pos-
sível. As transduções baseiam-se em dispositivos para criar situações peculiares
de transformação, provocações com certa transparência, ao estilo de questões de
tipo socrático, permitindo que o rigor crítico esteja na forma e no fundo das per-
guntas e deixando em liberdade os caminhos que se possam ou queiram trilhar
a partir delas. Em primeiro lugar, o próprio «grupo perito» do qual partimos deve-
ria submeter-se a práticas críticas do que possa ter de preconceitos nas suas pri-
meiras questões ou abordagens. Além disso, avançaremos melhor se os outros
grupos que participam estão numa predisposição não dogmática desde um deter-
minado princípio. Para que estes estilos transdutores sejam cooperativos, deve-
mos submeter as perguntas iniciais a um filtro participativo e plural, por exem-
plo, com aquelas pessoas que acorram às primeiras convocatórias. Não é apenas
uma questão do início de um processo, mas sim uma questão permanente; e
não só do próprio processo, mas de toda a vida. Não é fácil às pessoas viver e
mover-se criativamente, mas é antes o contrário o que costumamos constatar.
Por isso, assumir este posicionamento desde o início parece-nos substancial para
começar bem.
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 75 |
rísticas sobre os seus sentidos transcendentes, mas antes sobre momentos e poten-
cialidades perante cada transformação concreta.
Não basta a boa vontade de querer aprender com os movimentos ou associa-
ções. O que os conjuntos de ação, tal como os entendemos, trazem é a integração
de três variáveis ou três elementos-chave, que se têm mostrado elucidativos nos
próprios processos. São as redes de confianças e de medos internos nas comuni-
dades, são as condicionantes de classe social e são as posições ideológicas perante
cada problema concreto em disputa. Os analistas têm vindo a debater e escrever
sobre a «classe em si» e a «classe para si» e nós este quadro cruzamo-lo com a
«classe assim», ou seja, como ela é na vida quotidiana de cada lugar, como se foram
construindo as relações e os vínculos entre grupos, setores, etc. Não é suficiente
falar de «estrutura e agência», pois o habitus das redes não é uma variável assim
tão dependente mas é muito capaz por si mesma. Poderemos construir tipologias
de relações internas aos movimentos e também às comunidades, assim como a
campos sociais inteiros, não tanto para descrever como são, mas antes para que
se possam autoanalisar a partir de dentro. O que construímos com os próprios
sujeitos envolvidos é o instantâneo de um processo, são radiografias ou fotogra-
mas de um filme, que estão sempre em mudança contínua, sendo, por vezes, muito
pouco previsíveis. «Todo o real é relacional» e, por isso mesmo, interessa-nos mais
os vínculos e o que podem ser as suas dinâmicas do que as definições dos grupos
ou setores que suportam as relações. Não é possível um sem o outro, mas é mais
possível mudar as relações que os sujeitos por si mesmos e é para isto que preten-
demos contribuir.
Com os conjuntos de ação trazemos também uma forma concreta de susten-
tar que o «político está no quotidiano», tanto nas relações mais microssociais como
nas macrossociais. É possível ver a correlação entre a família patriarcal com a sua
estrutura vinculativa, característica de determinada cultura, a qual aparece asso-
ciada com a hierarquia da escola, as relações de trabalho, ou a dominação sim-
bólica no conjunto da sociedade. Quer no micro, quer no macro, reproduzem-se
estruturas vinculativas semelhantes. É o que se tem chamado «holograma social»
ou estruturas «fractais», que em cada parte contêm o essencial de todo o conjunto.
E isto é que é possível fazer a partir do comunitário, ou desde campos concretos:
estratégias e alianças para poder transformar a sociedade a partir de qualquer
lugar. A dinâmica dos conjuntos de ação atua, tanto por dentro de cada um mudando
os seus elementos, como na comunidade considerada ao tentar transformar as rela-
ções entre uns e outros conjuntos (alianças, isolamentos etc.), como inclusive em
relação à sociedade em geral ao poder constituir-se em elemento pedagógico
demonstrativo de que poderá chegar a generalizar-se em escalas maiores. As rela-
ções de poder que podemos perceber a partir de qualquer forma de conversação
podem ser a base para construir, de forma participativa com membros de diver-
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 77 |
sos conjuntos de ação locais, algumas estratégias sociopolíticas que vão mais além
de cada caso concreto.
Tal como utilizamos nas nossas práticas os sociogramas, queremos ir para além
dos «diagramas de Venn» ou dos «mapeamentos» ou, ainda, da análise de redes
convencionais. Em primeiro lugar, ao torná-los participativos com alguns grupos
locais, tal representa e serve como «autocrítica» para que os próprios grupos cons-
tatem até onde conhecem ou desconhecem as relações da sua própria comuni-
dade. É curioso constatar como muitos dos líderes mal conhecem o entorno dos
seus próprios grupos e como se dão por supostas muitas posições em que, à hora
de defini-las com coordenadas, emergem debates muito interessantes entre mem-
bros de grupos afins. Certamente que isto obriga a muito mais do que seria uma
simples entrevista a alguns dos líderes locais, trazendo-nos muita mais e com-
plexa informação. Em segundo lugar, ao fazê-lo por eixos (por exemplo, classe
social e ideologia) e cruzando as três variáveis referidas, podemos aproveitar o
desenho participativo como uma amostra mais completa para nos orientar sobre
a quem fazer as entrevistas, quais os grupos, as oficinas, a documentação, etc.
Em terceiro lugar, teremos uma primeira radiografia que, ainda que difusa por
ser a primeira, já nos serve para poder comparar mais à frente com entrevis-
tas e outras formas dialogantes e ir verificando assim (através de sucessivos
mapeamentos estratégicos) o que estamos a construir no que concerne as rela-
ções no processo.
3.3. Tetrapraxis
Não se trata de «tetralemas» de tipo linguístico estruturalista como os que se
costuma fazer na análise de novelas ou doutras narrativas já dadas. Primeiro,
porque nos nossos casos os sujeitos estão vivos e participam nas tomadas de deci-
são, não de forma metafórica, mas real. Em segundo lugar, porque também ten-
tamos superar a simples «escuta» dos problemas ou construir «dinâmicas socio-
culturais». O estilo de «praxis» que utilizamos é mais do que a militância de escu-
tar e interpretar. Não acreditamos que alguém nos tenha autorizado a fazer de
juízes a partir de auscultações e de opiniões que possamos recolher. Abordamos
uma «praxis» que devolva o que recolhe, para que sejam os próprios grupos, como
«sujeitos em processo», os que vão criando novas situações e dando contributos.
Mas não se trata tão pouco de qualquer devolução, simplesmente porque etica-
mente obtivemos uma informação que pertence a quem a deu. Se apenas devol-
vermos dilemas ou posições intermédias, ainda não teríamos saído dos discursos
dominantes, continuaríamos fechados dentro do que o próprio sistema preconiza,
incluída a sua oposição. Os tetralemas vão um pouco mais além dos dilemas,
| 78 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
quando abrem novos planos de interpretação da realidade, mas nem por isso supe-
ram sempre interpretações dialéticas deterministas.
Pelo facto de poder fazer protagonistas de criatividade os próprios sujeitos,
chamamos-lhes por vezes «tetra-praxis». A seleção de frases ou de posturas para
serem devolvidas não é algo que apareça espontaneamente: encontrar mais do que
um eixo de contraposições e de contradições é uma tarefa que necessita de certa
intencionalidade. Por isso, é uma tarefa que exige estar atentos a estes enfoques
e um certo rigor lógico, de modo a aparecerem claros dissenssos e não só os con-
sensos das maiorias. Para desbloquear os dilemas dominantes é interessante que
se devolvam também as frases e as posições minoritárias, de maneira que possam
abrir novos eixos ou planos alternativos. Estas posições convertem-se em pergun-
tas ou dispositivos para a criatividade, para além dos que a tenham formulado.
Com devoluções deste tipo, estes processos ajudam a construir «sujeitos coletivos»
e novos em certa medida, dados que as próprias pessoas se sentem envolvidas na
tarefa de criar as suas próprias análises e de construir as prioridades por si pró-
prias. O que parece muito difícil a muitos académicos não o costuma ser assim
tanto para as pessoas sem elevada preparação linguística. Simplesmente preparar
e devolver algumas frases claras, em linguagem textual da gente, por exemplo, e
sem dizer quem disse tal ou tal coisa. Em seguida, os que participam não apenas
interpretam o porquê de se ter dito tais ou tais coisas, mas também costumam
acrescentar novos contributos de muita maior profundidade.
São processos que se retroalimentam a si mesmos. Quando se encontra o estilo
de passar da posição encaixada entre dois opostos a posições que contemplam
outros eixos ou planos de debate e alternativas, então abre-se um campo muito
fecundo. É o que por vezes se tem chamado «reflexividade de segunda ordem ou
de segundo grau», mas que quase nunca se materializa em formas operacionais
de fácil execução, e menos ainda em propostas participativas abertas. O que aqui
abordamos são precisamente formas variadas em que estas reflexividades se podem
colocar em prática quase como um jogo, onde qualquer pessoa ou grupo que
queira participar durante umas horas pode sair depois bastante satisfeito sobre o
que consegue por si mesmo. Tal ocorre tanto pela clareza do que consegue cons-
truir com outras pessoas perante o projeto que esteja em andamento, quanto em
relação a ter descoberto metodologias (ou parte delas) que vão mais além do que
convencionalmente se chama participação. Preparar estas devoluções criativas
requer um certo rigor metodológico, sobretudo na hora de abrir as mentes a partir
das próprias posições e frases que se escutam ou se sentem. É muito positivo
aprender a viver e a mover-se em questionamentos paradoxais não só para estes
exercícios de processos sociais, mas também para a própria vida de cada um.
Se se pratica quotidianamente, então é mais fácil estar atento para descobrir os
novos planos.
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 79 |
Um exemplo que se pode entender bem é o das respostas dadas num bairro
perante a violência e a insegurança que se percebe. Através de umas quantas pri-
meiras perguntas, colocadas de forma rápida, é provável que surja um considerá-
vel número de petições no sentido de uma maior presença policial nas ruas. Mas
se falarmos mais devagar e com uma certa confiança com algumas dessas mesmas
pessoas, é possível que contem como, em certas ocasiões que a polícia chegou ao
bairro, o seu comportamento não foi nada eficaz. Ainda mais, haverá até quem
possa relatar que afinal não detiveram quem deviam e assustaram boa parte das
pessoas inocentes. O especialista ficará com a dúvida se deve pôr no relatório, que
no bairro querem ou não a polícia na comunidade. Mas por que é que há de ser
ele quem dita o veredito? Porquê não devolver essas posições às mesmas pessoas
que se pronunciaram? Com certeza que a gente nos dirá que na realidade o que
queriam dizer é que querem a polícia, mas não a convencional, do tipo mais puni-
tivo, mas uma outra de tipo preventivo e comunitário. Esta resposta em princípio
talvez possa ser de tipo minoritário, mas numa Oficina de Criatividade é fácil que
saia como muito valorizada, se lhe dermos a oportunidade de a considerar junto
ao dilema sim ou não quanto à vinda da polícia. Porém, além disso, podem também
ter lugar outras respostas, tais como serem os próprios vizinhos a organizar-se para
aplicar a própria justiça ou para vigiar em rondas. A questão é de não fechar dema-
siado cedo e em falso a análise antes que a gente possa construir explicações e
propostas mais complexas e concretas.
nificações convencionais com índices tais como o PIB. Interessam-nos pouco causas
lineares e setoriais (económicas, tecnológicas ou outras) que pretendam ser a prio-
ridade para a geração de valor, porque assim se reclama na globalização e nas contas
macroeconómicas. Não se desconhece que há setores importantes que não se deve
descuidar tais como a comercialização ou o financiamento, mas preferimos prio-
rizar a «integralidade» concreta e participada dos processos perante a setorização.
O nosso contributo, portanto, é uma crítica operativa dos «equivalentes de
valor» dominantes, não tanto do ponto de vista ideológico geral, mas mais da sua
concretização nas práticas locais. Nas práticas comunitárias e dos movimentos
sociais não bastam os «satisfactores» opostos aos que se proclamam institucional-
mente, mas há que concretizá-los em cada situação particular. Entrar nessa com-
plexidade significa ir mais além da causa-efeito linear e contribuir para a constru-
ção «recursiva» dos processos (como o anúncio de algo que pode suceder se con-
verte noutra causa). Ou seja, contribuir, em primeiro lugar, para identificar quais
são os possíveis bloqueios, nós críticos ou estrangulamentos que obstaculizam as
complexas relações entre as várias causas e os diferentes efeitos num processo.
Esta abordagem de causas cruzadas entre si e de previsíveis efeitos também nos
coloca perante uma malha complexa de relações causais para poder estabelecer
quais são as principais prioridades para a ação. Pode ser que, antes de atuar sobre
a causa última (a que talvez não possamos chegar de forma imediata e contun-
dente) ou conseguir rapidamente alguns efeitos muito brilhantes (pondo alguns
remédios urgentes, mas pouco profundos), seguramente deveríamos priorizar o
desbloqueamento de processos em «nós críticos» onde possamos atuar em cada
momento com as forças de que dispomos. Podemos fazer isto de modo participado
e, deste modo, integramos visões maioritárias e minoritárias, correlações entre varia-
das causas e efeitos e os seus passos intermédios, com referências aos diferentes
subtemas a considerar e às diferentes possíveis alianças entre setores sociais.
Podemos construir assim, com rigor crítico e participativo, em primeiro lugar,
as «prioridades» de ação nas quais se baseia o «sujeito coletivo» que se está cons-
truindo com estas práticas. E, de seguida, se pode construir alguma «ideia-força»
que vá mais além e que una ainda mais os setores participantes. A estes proces-
sos chegam variados setores, sobretudo se são de certa dimensão, trazendo cada
um as suas análises e propostas, que em parte têm bases bem fundadas. A ques-
tão principal é como se podem articular e priorizar coletivamente, umas e outras
para poder ir construindo os acordos que nos dêem maior profundidade e unidade
para as ações que devemos empreender. Além disso, contribuímos com a forma
de debater e acordar com base na proposta pelo que ela significa em si mesma e
não por quem a propõe. Trata-se de superar os pessoalismos e as lutas de grupos
com formas participativas que favoreçam, com uns dispositivos que desbloqueiem
as ideias preconcebidas, o podermos entrar desta forma em processos de criativi-
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 81 |
3.5. (Eco)organização
Não estamos a considerar uma hierarquia «natural» na sociedade como a que
poderia haver na natureza, ou seja, algo assim como «sempre houve pobres e ricos».
Na própria natureza, embora com grandes diferenças existentes, o que prevalece
são as relações ecossistémicas que se têm construído ao longo da evolução de
milhares de anos mais que a aniquilação de umas espécies por outras, onde os sis-
temas mais complexos e sinérgicos têm vindo a mostrar-se mais competentes que
| 82 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
os sistemas mais simples ou setoriais. E, entre os seres vivos, com maior razão
devemos aproveitar ao máximo as capacidades que dispomos, organizando-nos de
tal maneira que todos possamos contribuir na melhoria da vida. Não estamos a
falar de um modelo de coordenação de «recursos» (técnicos, económicos, ecoló-
gicos, etc.) que dê mais sustentabilidade aos processos, pois com isto manter-nos-
-íamos em abordagens defensivas perante a indolência burocrática da qual parti-
mos e que não conseguimos superar. E, perante a manifesta insuficiência dos sis-
temas democráticos eleitorais e as burocracias profissionais que as acompanham
na gestão (pública e privada), não nos colocamos apenas para que haja um com-
plemento participativo para remediar os males maiores. Isto seria o mínimo para
evitar explosões mais violentas na sociedade (como o sucedido no passado nos
bairros de Caracas ou de Los Angeles ou, ainda mais recentemente, nas periferias
das cidades francesas). Isto ainda segue sendo o «fundo de medo» com o qual nos
seguimos governando de modo defensivo para evitar males maiores. Com algumas
formas de participação comunitária não se resolvem os problemas de fundo, mas
pelo menos se mitigam os efeitos mais desastrosos do sistema em que vivemos.
O que queremos é contribuir para que se vá mais além de um complemento
à democracia e à gestão habitual, inclusive à coordenação de recursos. Uma (eco)
organização coloca-se a cooperar de baixo e não apenas a coordenar desde cima,
integrando no processo todas as iniciativas e capacidades dos seres de cada um
dos ecossistemas onde estamos. A «sinergia» que se trata de produzir não é uma
simples soma das partes, mas sim a multiplicação das iniciativas que surgem na
vida quotidiana. Ou seja, passar a marcar a agenda dos sistemas representativos
desde as propostas populares e comunitárias. E não esperar que sejam os poderes
económicos e mediáticos a organizar-nos a vida, perante os quais tenhamos apenas
de estar em contínua defesa (com mais protestos que propostas). Esta (eco)orga-
nização parte desde logo dos problemas mais sentidos e urgentes, não para per-
manecer neles, mas sim para aproveitar o possível entusiasmo da mobilização e
passar a fazer propostas construtivas, integrais e sinérgicas, tal como nos têm ensi-
nado alguns movimentos sociais, sobretudo alguns movimentos de mulheres, de
camponeses e de indígenas. A (eco)organização não tem que esperar a autoriza-
ção de todo o sistema de poderes, pois à escala local já se podem ir proporcionando
bons resultados para as pessoas e para os grupos que tomem estas iniciativas.
Desde o comunitário se pode considerar a agenda de autogestão e de cogestão de
sistemas com metodologias participativas que alcancem milhões de pessoas, tal
como se tem demonstrado em diversos casos na Índia, na América Latina e, mais
recentemente, na Europa.
Tudo isto não só apenas para superar a pobreza ou os flagelos mais evidentes
da sociedade, mas sim para que todos e todas possamos sentir-nos criativos nela.
Uma «democracia de iniciativas», onde o protagonismo pode ser de qualquer grupo
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 83 |
e habitualmente o é de vários, que irão, por sua vez, coordenar os seus esforços.
Para tal é necessário outro tipo de práticas, que se prendem com técnicas de prio-
rização e de rigor tanto na transparência como nos critérios sociais distributivos,
muito distintas das brigas para ver quem manda nos governos. Critérios tais como
«de cada quem segundo a sua capacidade e a cada qual segundo as suas necessi-
dades» traduzem-se em propostas a que já podemos aspirar em muitas formas
comunitárias. E que os delegados ou gestores sejam mandatários das decisões cons-
truídas coletivamente e não intérpretes caprichosos das mesmas. Tudo isto implica
uma mudança nos processos, a qual demorará anos com novas práticas, com uma
nova cultura, com os seus novos «ritos» e procedimentos de metodologias parti-
cipativas. Tal como a prática de delegação e controlo a cada quatro anos através
do voto das autoridades representativas tardou bastantes décadas a consolidar-se
como referente democrático, também as oficinas e as assembleias, as redes sociais
de iniciativas, as votações ponderadas, o mandato aos gestores, os planos de tipo
integral comunitário, entre outras práticas, terão que seguir um processo de melho-
ria, com avanços e recuos, dando resultados para que cheguem a consolidar-se.
O nosso contributo é assinalar que esses processos já se iniciaram, demonstrando
que se estão a conseguir mudanças.
Por exemplo, os Orçamentos Participativos não são algo revolucionário na
medida em que não implicam uma mudança radical das classes sociais ou do sis-
tema económico. Simplesmente introduzem, com maior ou menor coerência, uns
sistemas mais transparentes e participativos, para fazer propostas de iniciativas
que o governo se comprometa a realizar no ano seguinte. Tanto os planos comu-
nitários como outras formas de processos com «ações integrais» tão pouco signi-
ficam mais do que melhorias consequentes com os sistemas de cogestão social
que qualquer partido proclama. As «Iniciativas Legislativas Populares», os Fóruns
Cívicos para o acompanhamento com «índices de qualidade de vida» ou tantas
outras novas formas que se ensaiam em diversas cidades e municípios são o caldo
de cultivo para que venham amadurecendo as democracias participativas e sua
«(eco)organização». Consideramos que algumas Redes de Acompanhamento dos
processos em marcha são mais operacionais na medida em que tratam de articu-
lar entre si várias destas metodologias e, sobretudo, fazem-no a partir de alianças
estratégicas de vários «conjuntos de ação». A «(eco)organização», que supõe uma
Rede de Acompanhamento, tem as suas diretrizes relacionais entre mesas de tra-
balho por temas ou de grupos motores, com seus «cronogramas» de atuação e pres-
tação de contas pelas tarefas realizadas. E tudo isto supõe práticas muito diferen-
ciadas conforme as localidades e culturas, mas sempre com alguns elementos comuns
que é bom considerar e desenvolver.
| 84 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
3.6. Reversões
As «reversões» não são, tal como as utilizamos, nem posições intermédias nem
gradualismos entre dilemas opostos que se nos apresentam. É importante escla-
recer isto, porque a tendência perante os dilemas de opostos é a de procurar posi-
ções a meio caminho. E com as «reversões» o que se considera é «transbordar» e
superar tais oposições. Por exemplo, trata-se de não aceitar o debate entre o «refor-
mista» e o «revolucionário» como uma abordagem anterior à ação, que em geral,
no século XX, paralisou mais do que mobilizou para a transformação social. Na
prática muitos processos revolucionários acabaram por fazer reformas e alguns
processos visando reformas acabaram por radicalizar-se em revoluções. Por isso,
tratamos de fugir de dilemas um tanto sectários que servem para muito pouco nos
processos comunitários da vida quotidiana das pessoas. As «reversões» equacio-
nam o transbordar dos debates endogâmicos de muitos grupos, seja dos acadé-
micos, seja dos ativistas ou basistas. Não é uma abordagem académica na medida
em que é necessária uma certa densidade prática com os movimentos para poder
viver e experimentar o que se está passando: não é um conceito que se possa captar
apenas na teoria. Não é uma posição ativista na medida em que necessita de escu-
tar muito o ritmo das pessoas e dos movimentos e trazer metodologias quando os
«conjuntos de ação» vão coalhando. Tão pouco é «basista» na medida em que não
se dá razão a tudo o que fazem os setores populares, ainda que se tenha de partir
das suas contradições, de tal forma que assim podem aparecer mais enraizados
estes transbordamentos dos processos transformadores.
Ainda que se parta de «grupos operativos» e o objetivo seja resolver proble-
mas concretos, não se pode saber nunca como podem acabar estes processos. Pre-
cisamente esta «reversão» pode ser um indicador de que se superaram os primei-
ros pressupostos equacionados pelas próprias pessoas que participam, um indi-
cador da envolvência e da confiança na sua própria força por parte dos setores que
se tenham mobilizado. Transbordar as primeiras suposições com que se começa
não é um erro de planificação, mas sim serve para demonstrar a capacidade de ir
conseguindo que grupos e setores sociais venham a ser ganhos para se proporem
objetivos mais avançados para eles mesmos. Sempre se parte de algum esquema
mental prévio, mais ou menos explícito, mas isso não quer dizer que se tenha que
ficar nele, sobretudo quando são muitos os contributos novos de outras pessoas
e grupos, assim como as vivências próprias destes processos. Reverter tais esque-
mas é aprender de estímulos «geradores» que a vida nos vai colocando à frente, os
quais construímos coletivamente. Neste sentido a autoformação das pessoas e dos
grupos é uma retroalimentação constante desde as próprias práticas vividas. E é
uma demonstração de que a melhor forma de superar falsos dilemas teóricos é
através destas práticas, onde a criatividade das pessoas abre novos canais que
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 85 |
implicam tanto o que dizem uns como o que dizem outros. A maior parte dos deba-
tes preconceituosos dos grupos solucionam-se ao colocar-se em marcha algum dos
caminhos, com o ritmo das pessoas que hão de participar.
Não se trata de fazer «reversões» para tudo, mas sim, se as considerarmos, esta-
remos abrindo novas perspetivas para o dialógico. O contributo de que o dialógico
não fica confinado aos dilemas entre um e outro polo, ainda que estes continuem
a existir e a ser necessários, é o facto de se dar mais amplitude e possibilidades
ao que podemos chamar «transversalidade” das alternativas. Sair das «dialéticas
fechadas» significa que em cada momento se pode optar por uma complexidade
de alternativas (mais ou menos radicais, mais previsíveis ou mais transbordantes,
segundo as circunstâncias) e isto é colocar mais profundidade e rigor nos proces-
sos comunitários e sociais. Nem sempre se está em condições de os «transbordos
reversíveis» poderem ser operativos, mas incluí-los como referente possível, quando
as pessoas estiverem dispostas, abre-nos a outros planos de potencialidades. O
que chamamos «monitorização» passa então a ser um elemento-chave que não se
limita a uma avaliação, tal como costumam fazer os planificadores, mas sim resulta
num exercício de acompanhamento e retificação nalguns pontos que a metodolo-
gia participativa tem assinalado como mais sensíveis. O facto de poder haver um
cronograma é só um referente, não tanto para o cumprir, mas mais para saber por
onde a realidade nos está transbordando ou por onde nós mesmos não consegui-
mos chegar às abordagens previstas. O que ocorre é sempre mais complexo e dinâ-
mico do que possamos planear. A «monitorização» pode articular-se com o esquema
de (eco)organização e com as «ideias-força» ou «emergentes», para que os con-
teúdos e os sujeitos que os põem em marcha sejam um todo mais sinérgico em
cada caso.
Por exemplo, um caso de pedagogia libertadora não é que os «grupos operati-
vos» se consciencializem de que os conteúdos do processo comunitário sejam muito
bons, por muito que expliquemos as coisas a partir do que chamamos «grupos
motores». Trata-se antes que os grupos operativos e motores negoceiem como
«reverter» os opostos neste processo, encontrando as incoerências e contradições
que tenham e jogando com elas para poder gizar estratégias com «conjuntos de
ação» suficientemente amplos. Criar situações onde os opostos se vejam «reverti-
dos» na prática é a melhor consciencialização. Ou seja, transbordados, porque, em
primeiro lugar, boa parte dos grupos locais negociaram alianças de participação
conjunta. Em segundo lugar, revertidos porque se tornam explícitas as contradi-
ções que pudemos analisar e fazer emergir nestas situações. E, em terceiro lugar,
porque conseguimos persuadir ou seduzir boa parte das pessoas alheias à nossa
causa, a fim de se sentirem envolvidas no que estamos a fazer, o que supõe o iso-
lamento ou o transbordo daqueles que se opõem. Além disso, estas apostas estra-
tégicas transbordam-nos a nós próprios, sobretudo nos idealismos em que ainda
| 86 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
possamos continuar a pensar que tínhamos feito uns planos perfeitos. Desta maneira
também podemos seguir aprendendo. E este costuma ser o indicador mais próximo
e fiel de como vai o processo.
Processo
Predis- Construção Trabalho
Devoluções Propostas de realiza-
posição do plano de campo
Tempos criativas e integrais ções e
desde de trabalho e análises
priorização e sustentá- acompa-
as expe- negociado abertas
Saberes (2 a 3 veis (2 a 3 nhamento
riências (2 a 3 (2 a 3
meses) meses) com moni-
anteriores meses) meses)
torização
Dirigir
· Experiên- (Eco)avaliar Ouvir todas Facilitar (Eco)dirigir
oficinas
QUEM? cias sociais precon- as posições. as alianças. metodologi-
e encontros.
Saber · Capacida- ceitos. Facilitar a Planificar camente.
Provocar
estar de auto- Conversar dinâmica de participada- Monitorizar
os passos
crítica com grupos grupos. mente situações.
criativos.
Das causali-
· De vivên- Da boa Da análise Dos grupos
dades Dos i às
cias com vontade ação-refle- operativos
PARA «recursivas» «Redes
analisadores dos sujeitos- xão aos aos «Trans-
QUÊ? à constru- (eco)orga-
à predispo- -sujeitos às paradoxos bordos
Conheci- ção de refle- nizadas.
sição para estratégias e à reflexi- criativos»
mentos xividades Indicadores
«Estilos com vidade e processos
Episteme com «Eixos de sustenta-
Transdu- «Conjuntos da «Tetra- de «Rever-
Emergen- bilidade»
tivos» de ação» praxis». são».
tes».
(cont.)
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 89 |
Processo
Predis- Construção Trabalho
Devoluções Propostas de realiza-
posição do plano de campo
Tempos criativas e integrais ções e
desde de trabalho e análises
priorização e sustentá- acompa-
as expe- negociado abertas
Saberes (2 a 3 veis (2 a 3 nhamento
riências (2 a 3 (2 a 3
meses) meses) com moni-
anteriores meses) meses)
torização
Complexi- Planificação
Fases de um
dade de estratégica Ideia-força e
· Distinções processo. Articulação
PORQUÊ? conjuntos situacional. dispositivos.
entre outras Problemá- de projetos.
Metodo- de ação. Criatividade Democracia
metodolo- tica inicial Avaliação
logias Temáticas com os participativa
gias e o e análise e monitori-
comuns grupos e recursos.
participativo de redes zação.
e contra- hetero-
sociais.
-propostas. géneos.
Mapeamen-
tos estraté-
gicos.
Cronograma
Transectos Fluxo- Votações
COMO? das tarefas
(DRP = Entrevistas. gramas. ponderadas
Saber Trabalho em e projetos.
diagnóstico Oficinas. Oficinas (EASW).
fazer, grupos. Campanhas
rápido parti- Análise. para Quadros de
ferramen- Sair à rua. de difusão e
cipativo). Tetralemas. devoluções organização
tas (eco)auto-
Socio- criativas. e recursos.
formação.
gramas
e amostras.
DAFO.
Saturar
Delimitação Acompa-
as posições
do sintoma. Nós críticos Relatório nhamento
QUÊ? dos conjun-
Formação Grupo priorizados. operativo: cronogra-
Resulta- tos de ação.
de grupos motor Construção propostas, mas.
dos ope- Quadros
envolvidos e amostra. da rede de organização Rearticu-
rativos temáticos
Plano seguimento. e recursos. lação de
com tetra-
de trabalho. estratégias.
lemas.
1 2 3 4 5 6
a poder pôr nesse mapa de relações os diferentes «conjuntos de ação» e suas estra-
tégias particulares, contraditórias ou afins, alheias ou simplesmente diferentes das
nossas. Há técnicas para saber como fazer no início dos processos. Fazer uma DAFO
(debilidades, ameaças, fortalezas e oportunidades) para delimitar os sintomas dos
quais partimos, ou fazer um «transecto» (caminhadas de profissionais e utentes
que partilhem os seus conhecimentos sobre o terreno) para comentar as distintas
perceções dos sintomas. Também um mapeamento estratégico ou um «desempe-
nho de um papel» para reconhecer os juízos de valor dos quais partimos. Depois
o que abordamos é algum «mapeamento estratégico» que, tal como o fazemos, é
um mapa de relações local, com várias finalidades: a) que os grupos locais envol-
vidos demonstrem até onde conhecem os outros sujeitos que tenham a ver com o
assunto (descobrem-se surpresas muito interessantes); b) que também nos possa
servir como «amostra» para saber como focar o plano de entrevistas, grupos, ofi-
cinas, documentação, etc.); c) que fique uma radiografia inicial do processo.
Uma vez abertos ao trabalho de campo, resta ouvir todas as posições que se
possa e adotar um estilo de facilitador(a). Não basta refletir pessoalmente ou em
grupo sobre as ações e sobre a recolha de informação que estejamos a fazer atra-
vés de entrevistas, oficinas, análises profissionais, porque, ainda que tal esteja
bem e seja interessante, a «hipercomplexidade» dos paradoxos sociais que encon-
tramos dá para um processo que precisa de maiores aprofundamentos. É por isso
que procuramos realizar «reflexibilidades de segundo grau», a ser possível com os
mesmos coletivos ou setores sociais que nos informaram nas entrevistas ou nas
oficinas, fazendo com que se analisem eles mesmos por que é que disseram o que
disseram e que outras coisas se lhes ocorrem neste segundo momento. Os «tetrale-
mas» (sobre questões referidas pode construir-se um quadro de quatro posições)
e os «tetrapraxis» (outro quadro de quatro posições sobre as atitudes ou posições
que adotam os grupos envolvidos) são instrumentos que facilitam o saber fazer
estas análises sem necessidade de ser necessariamente profissionais do tema. O
melhor é que haja grupos mistos de profissionais e voluntários locais que façam
a tarefa de simplificar os paradoxos encontrados mais significativos em cada
momento, sobretudo para que não apareça a coisa mais complicada do que real-
mente é. Com o debate voltam então a construir-se novos paradoxos e aparecem
propostas muito criativas. Mas deve-se começar por «saturar» (ou seja, completar
no mapa ou sociograma) o recolhido por todas as principais posições que se possa
verificar à volta de um tema (não costumam ser menos de nove, nem superar os
doze, mais ou menos) e é então quando já podemos cruzar as informações de um
ou de outro tipo e elaborar esses quadros de várias posições contrapostas para estas
análises participativas.
A quarta coluna mostra-nos precisamente os momentos para «devolver criati-
vamente» essas frases e posições que vêm da fase anterior. Devemos estar dispos-
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 91 |
tos a dirigir oficinas que permitam provocar passos criativos nos seus participan-
tes, ou seja, tal como vimos dizendo, que as pessoas possam refletir sobre o que
disseram e porquê e, possivelmente, juntar algumas novas razões que tinham dentro
de si mas que não apareceram numa primeira conversa. Assim, podem aparecer
os «eixos emergentes», que nos mostram que estamos no bom caminho da criati-
vidade participativa. Para estes passos socorremo-nos de alguma técnica da «pla-
nificação estratégica situacional» como é o «fluxograma», a fim de priorizar de
modo participado (em grupos de 10 a 20 pessoas e depois ir a plenário) sobre quais
são os principais «nós críticos» ou estrangulamentos que estão dificultando os pro-
cessos. Aparecem causas e efeitos relacionados entre si «recursivamente» (ou seja,
não de modo linear, mas sim de forma cruzada, assim como também os modos
como os possíveis efeitos influenciam nas causas), podendo ver onde confluem
mais relações e onde se deve atuar prioritariamente. É interessante nesta fase e nas
seguintes que os grupos de trabalho comecem a ser «heterogéneos», ou seja, mis-
turados entre diferentes tipos de procedências, tanto vicinais como profissionais,
pois quanto maior seja a pluralidade de cada grupo maior a probabilidade de não
se repetirem tanto os hábitos herdados e se animar a criatividade do grupo. Também
é importante que se possam discutir as análises causais ou as propostas mais pelas
ideias em si mesmas do que por quem as disse e, por isso, dividir as oficinas em
grupos «heterogéneos» também contribui para ir construindo «sujeitos coletivos»
(identificações de quem criou coletivamente algo), no caminho de que se vá cons-
truindo uma «rede de seguimento» do processo.
Depois vêm as propostas, numa coluna na qual há que saber facilitar as alian-
ças para que a planificação acabe por ser operacional. Não bastará um processo
técnico com indicadores para fazer acompanhamento do que se vai realizando,
mas sim que sejam as «redes (eco)organizadas» a manter o controlo em cada passo
que haja que dar-se. Ou seja, as redes de acompanhamento com a sua democracia
interna e operativa e, por isso, com relações «ecossistémicas» na sua organização.
Não é a hierarquia de autoridade a que manda, mas sim a «ideia-força» que é capaz
de reunir as vontades e animar o processo. Estes esquemas de «democracias par-
ticipativas» para gerir os recursos disponíveis podem ser muito operativos, não
tanto pelas técnicas que utilizem, mas pela «ideia-força» e a sua capacidade de
mover dispositivos voluntários no seu meio. Não só por crer que a democracia seja
um fim em si mesma, mas porque pode servir para conseguir também algum fim
concreto e sobretudo para ir construindo um futuro no qual as pessoas sentem que
contam. Desde logo que haja novas formas ou estilos de fazer as coisas de modo
mais participado e com mais transparência é muito melhor: por exemplo, realizar
votações ponderadas e não tanto o enfrentamento frontal de uns contra outros.
Ainda resta avançar muito mais nestes dispositivos para que as pessoas possam
participar e que também possam sentir-se protagonistas, mesmo que seja em peque-
| 92 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
nas coisas. Nesta altura do processo já se teve que construir coletivamente quais
são as principais propostas, como é a melhor organização interna e para fora e de
onde há que conseguir os recursos de inversões, tempos de dedicação que se neces-
sitam para continuar.
Na última coluna o processo já não tem tempo definido porque está aberto a
todo o tipo de novas eventualidades e, para isso, deve ter como referência o seu
próprio cronograma. Saber fazer nestes momentos já é mais complexo, porque há
que «monitorizar» situações às vezes não previstas e, ainda, que se tenha em conta
que para uma organização democrática e participativa não basta a boa vontade
dos grupos operativos. Há que ser capazes de ecodirigir com metodologias que
tenham em conta o eco do imprevisto e saibam atender aos «transbordos» que se
produzam. Por isso, falamos de «(eco)dirigir» para estar à altura de algumas «rever-
sões» que possam transbordar muitas partes daquilo que se tenha equacionado,
ou que simplesmente levam mais além as mesmas abordagens que se pretendem,
mas a maior ritmo (ou talvez que se paralisam). A questão é como articular os dis-
tintos projetos equacionados desde a «ideia-força» e fazê-lo mediante cronogramas
que vão pondo os tempos e as responsabilidades para a sua execução. Isto inclui
campanhas de difusão e uma «eco-autoformação» (ou seja, não tanto aulas forma-
tivas, mas antes a formação que cada grupo ou pessoa adquire pelas suas relações
com o ecossistema onde opera, fazendo-o com certa consciência). Para isso há o
acompanhamento, a avaliação e a «monitorização» dos cronogramas que se tenham
previsto, que facilitem os cruzamentos sinérgicos entre si. Os transbordos sociais
que podem provocar as «reversões» obrigam-nos também a rearticular as estraté-
gias previstas e, para isso, necessitamos justamente da «monitorização» e da «eco-
-auto-formação», já referida neste texto.
5. Notas finais
Os processos comunitários e sociais têm sempre as suas próprias lógicas que
nos surpreendem e, por isso, consideramos que é mais inteligente estar prepara-
dos para tal, em vez de confiar que temos tudo previsto. O rigor metodológico que
pretendemos com o quadro de saberes e tempos referidos não é para cumprir tal
e qual, mas sim para ver quanto se modifica e que haja um referente para poder
debater retificações. A criatividade não é tratar de inventar do nada, o qual aliás
seria impossível, mas sim para ser capaz de responder a novas situações que ine-
vitavelmente vão aparecendo, tanto por dispositivos nossos de «reversão», como
por causas menos previsíveis. Isto é precisamente o que torna muito interessante
para as ciências sociais o que é comunitário, pelo que tem de condensação das
relações complexas da sociedade, podendo operar nelas de forma participada com
CAPÍTULO III. A SOCIO-PRAXIS COMO MALHA DE DIVERSAS METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E INSTITUINTES | 93 |
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Capítulo IV
Direito à habitação
e à cidade justa:
Críticas e contribuições
à Nova Geração
de Políticas de Habitação
em Portugal*
Fernando Matos Rodrigues**
Elena Tarsi***
* Este texto é resultado do trabalho e das reflexões conjuntas de ambos os autores, embora as rubricas
1 e 4 tenham sido mais elaboradas por Elena Tarsi e as rubricas 2 e 3 mais por Fernando Matos Rodrigues.
Elena Tarsi agradece o financiamento da Fundação da Ciência e Tecnologia do Governo Português no
âmbito da norma transitória, referência DL57/2016/CP1341/CT0016.
** Antropólogo, Investigador no CICS.Nova_Universidade do Minho, Diretor do Laboratório de Habita-
ção Básica (LAHB); email: mat.rodrigues@sapo.pt
*** Investigadora do Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra; email: elenatarsi@ces.uc.pt
1. Introdução
O direito à habitação representa neste momento histórico um dos direitos menos
garantidos e mais em risco. O sistema financeiro que encontra nas cidades o seu
terreno de acumulação e especulação, os cortes nacionais às políticas do Estado
de bem-estar, os fenómenos de gentrificação e turistificação aos quais são sujeitas
as cidades estão pondo em crise o acesso a uma casa digna não somente por parte
da população vulnerável, mas também das classes médias. A área metropolitana
de Porto é um exemplo evidente destas dinâmicas. As reflexões propostas neste
texto começam por proceder a um avanço teórico que vai da defesa do direito à
habitação ao direito à cidade e a sua releitura através da justiça espacial. Dentro
deste quadro teórico movem-se as críticas à Nova Geração de Políticas de Habita-
ção do governo português e as propostas concretas, defendidas e implementadas
pelo Laboratório de Habitação Básica (LAHB), conectando a qualidade do projeto
arquitetónico com a participação dos habitantes e a importância do processo, com
a defesa do direito ao lugar e a qualidade do espaço urbano.
11. O Programa Especial de Realojamento (PER), promulgado pelo Decreto-Lei 163/93 que definiu o maior
programa público de habitação em Portugal, tinha como objetivo erradicar as barracas das áreas metro-
politanas de Lisboa e do Porto e proceder ao realojamento em habitações municipais. Este programa
implicou a construção de aproximadamente 45 mil novos alojamentos em contextos de forte segregação
e atomização socio-espacial.
| 100 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
casa digna para as populações vulneráveis que viviam em barracas. Como eviden-
ciado por muitos estudos do final do século passado até aos mais recentes (Guerra,
1994; Cachado e Baía, 2012; Cachado, 2013; Raposo e Jorge, 2013; Lages e Braga,
2016; Allegra et al., 2017), o PER contribuiu para um processo de polarização da
população de baixo rendimento nas áreas mais afastadas dos serviços urbanos e
com menos valor. Sem ter aprendido das experiências dos outros países europeus,
o PER concentrou as vulnerabilidades sociais em prédios sem qualidade e sem ser-
viços e espaços públicos, cortou laços familiares e económicos sem prestar aten-
ção aos aspetos ligados ao processo de realojamento.
Porém, antes do PER, a partir de 1987 e até 2011, a maior política de habitação
foi de facto gerida pelo governo através do apoio aos juros para compra da habi-
tação própria: o Estado investiu cerca de 9 mil milhões de euros (73,3% do total
de recursos para política de habitação) em 25 anos com objetivo de dinamizar o
sistema financeiro.
Com a mudança do capitalismo como sistema de produção para uma econo-
mia neoliberal da «financiarização dos mercados globais»,12 assistimos a uma trans-
formação substancial, seja do mercado da habitação, seja do papel do Estado como
regulador do mercado.13 A crise económica e a pressão dos processos de gentrifi-
cação, financiarização e turistificação sobre as duas metrópoles portuguesas tor-
naram o acesso à habitação um dos maiores problemas e desafios para as políticas
do governo.
Este ensaio visa contribuir para o debate sobre o direito à habitação através do
caso português e de una leitura crítica da Nova Geração de Políticas de Habitação,
recentemente aprovada pelo Governo depois de muitas discussões e de uma grande
participação dos partidos políticos e da sociedade civil. O texto concentra-se na
metrópole do Porto, apresentando uma sintética análise das principais dinâmicas
que estão a impactar o seu tecido sócio-económico e espacial e as consequências
sobre o acesso à habitação. Como contribuição a esta nova estação de reflexão e
de elaboração de instrumentos para garantir o acesso à habitação e a uma cidade
justa, sugerimos algumas trajetórias possíveis a partir da experiência do Laborató-
rio de Habitação Básica na cidade do Porto.
As reflexões apresentadas inserem-se dentro de um debate maior relativo ao
direito à cidade. As leituras críticas das políticas de habitação inspiradas na arqui-
12. Cf. Brown (2016). O autor refere que a governança neoliberal fez a privatização dos Bens Públicos,
acentuou a exclusão e a discriminação das mulheres e das minorias, subordinou o Estado aos interesses
dos mercados, reduziu a participação dos cidadãos na vida pública, rasgou o contrato social do trabalho,
aumentando de forma exponencial a precariedade e a injustiça social, transformou as cidades em negó-
cio rentável para os Fundos Imobiliários.
13. Cf. ideias já expostas por Fernando Matos Rodrigues e Marco Kamiya (2018) «Uma Política de Cidade
para Todos». In Semanário O Sol de 15 de Setembro, pp. 36-37.
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 101 |
14. Com a crise económica de 2008, que se iniciou com a bolha imobiliária e o subprime nos Estados
Unidos da América, alguns autores, na esteira de Lefebvre (1968), tais como Carlos (1992), Harvey (1996,
2008), Soja (2009, 2010) ganham outra visibilidade e dimensão com o ressurgimento do direito à cidade
como forma crítica perante a espacialização do capitalismo financeiro. Regressamos à urgência de conju-
gar análise teórica com ação política, o que permitiu ver a cidade como uma possibilidade de criação cole-
tiva para a realização da vida comum. Agora é possível intuir os conflitos urbanos no contexto da nova
luta de classes. Claro que a mercantilização da vida urbana conduziu a uma maior segregação espacial,
expulsando os moradores com menor rendimento familiar para a periferia, contribuindo desta forma para
uma maior consciência de luta e de resistência pelo direito à cidade. Já não estamos perante o anunciar
do direito à cidade de Lefebvre com o retorno da classe operária à cidade mas da afirmação do direito à
cidade, enquanto estratégia de construção de uma sociedade não capitalista (Harvey, 2008; Soja, 2009 e
2010). A luta anti-capitalista não se esgota nas possibilidades da reivindicação do direito à cidade, mas na
afirmação de novas reivindicações que escapam à análise de classe, de género, de etnicidade e de cul-
tura que evidenciam a enorme e complexa diversidade de formas de experimentar a cidade e de alcan-
çar a justiça espacial. Soja (2010) reivindica assim a luta por uma justiça espacial que transcende o con-
teúdo de classe do marxismo e se afirma nas possibilidades culturais, simbólicas e sociais que surgem nos
interstícios da pós-metrópole. O direito à cidade para este autor deve ser estruturado com base em três
elementos que passamos a identificar: (i) a construção social do espaço; (ii) a cidade entendida como pós-
-metrópole; e (iii) as lutas pela justiça espacial e a democracia regional (Soja, 2010).
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 103 |
gentes como Maia, Matosinhos, Vila Nova de Gaia e outras) que, de acordo com os
Censos de 2011, contavam diariamente cerca de 114.000 pessoas com o objetivo de
trabalhar e cerca de 40.000 pessoas para frequentar o ensino (secundário, profis-
sional, politécnico e universitário). A Área Metropolitana do Porto em 2001 con-
centrava cerca de 12,2% do total da população em Portugal, resultando uma den-
sidade populacional 14 vezes superior à nacional e quase dupla em relação à Área
Metropolitana de Lisboa. A Área Metropolitana do Porto apresentava em 2001 um
parque habitacional envelhecido, muito concentrado nos concelhos do Porto e de
Vila Nova de Gaia, caracterizados por elevadas densidades, quer de edifícios, quer
de alojamentos. Segundo o mesmo Censo, cerca de 540.000 alojamentos resultavam
vagos, 46,1% dos quais concentrados nos concelhos do Porto e de Vila Nova de Gaia.
O Porto desde os finais do século XVIII até à atualidade passou por profundas
e complexas transformações com consequências na morfologia e na imagem urbana
da cidade. A população na Área Metropolitana do Porto tem acompanhado as
dinâmicas de crescimento da população portuguesa nestes últimos 50 anos, com
a exceção da cidade do Porto que desde 1981 tem visto a sua população a diminuir
e a envelhecer.
O Porto sofreu uma forte redução da população jovem, acompanhada pelo
aumento da população idosa. As freguesias que fazem parte do chamado Centro
Histórico do Porto apresentam valores demográficos muito preocupantes, com índi-
ces de envelhecimento e de dependência que já ultrapassam os 170%. O Porto-
-cidade apresentava no Censo de 2011 uma população residente de 237.591 indiví-
duos, o que se traduz num decréscimo de 25.540 indivíduos em relação ao Censo
anterior. Os decréscimos mais significativos da população ocorreram nas fregue-
sias do Centro Histórico (São Nicolau, Vitória, Sé e Miragaia). Nos últimos anos,
esta realidade acentuou-se, com uma degradação induzida do edificado histórico
que levou à criação da Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) com competências
na área da reabilitação e renovação urbana no casco velho da cidade do Porto.15
Em relação à habitação e à oferta de arrendamento na cidade do Porto assis-
tiu-se a uma mudança de paradigma de arrendamento devido à situação criada
pela crise financeira de 2008-2013: a desregulação do Novo Regime de Arrenda-
mento Urbano com a chamada «Lei das rendas», que desprotegeu os inquilinos e
liberalizou a política de arrendamento urbano, por um lado e, por outro, o cresci-
mento da atividade turística e do Alojamento Local (AL) que esvaziou a oferta de
habitações para o arrendamento urbano, enfim, a pressão mobiliária por agentes
financeiros, tal como referiu e desenvolveu Jameson (2000:182-184).
15. Cf. Fernando Matos Rodrigues (1999) «A Cidade dos Excluídos». In Revista CUBO, Porto, Edição Escola
Superior Artística do Porto, Ano I, n.º 1: pp. 4-5. A Revista contém um portfólio fotográfico da autoria de
José M. Teles que faz a cartografia da pobreza e da exclusão na cidade do Porto, especificamente nos bair-
ros das Eirinhas, Lagarteiro, Cerco e Pego Negro, bem como nos barracos na freguesia de Campanhã.
| 104 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
16. Cf. Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto que estabelece o regime jurídico da exploração dos
estabelecimentos de alojamento local. Cf. posteriormente o Decreto-Lei n.º 63/2015 de 23 de Abril que
procede à primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto. É com a Portaria n.º 517/2008,
de 25 de Junho que se veio a prever os três tipos de estabelecimento de alojamento local: apartamento,
moradia e estabelecimentos de hospedagem. Com esta Portaria procurou-se enquadrar uma série de rea-
lidades que ofereciam serviços de alojamento a turistas sem qualquer formalismo e à margem da lei; acau-
telando, ao mesmo tempo que alguns empreendimentos extintos pelo Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de
Março (nomeadamente, pensões, motéis, albergarias e estalagens) e que não reuniam condições para
serem empreendimentos turísticos, pudessem ainda assim continuar a prestar serviços de alojamento.
17. Cf. Relatório Final sobre o Alojamento Local no Concelho do Porto, Abril de 2019, coordenado por
Alberto Castro, Porto: Católica Porto Bussiness School/Centro de Estudos de Gestão e Economia Apli-
cada em parceria com a Câmara Municipal do Porto. Cf. também o documento Estratégia Local de Habi-
tação (ELH) com vista à apresentação de Candidatura ao 1.º Direito, coordenado por Paulo Conceição,
Isabel Breda Vasquez e Jorge Afonso, Porto: Instituto de Construção/Centro de Investigação do Territó-
rio, Transportes e Ambiente (CITTA) da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), com
a colaboração da Câmara Municipal do Porto/Domus Social (Empresa Municipal) e Porto Vivo, Sociedade
de Reabilitação Urbana (SRU), Porto, Novembro de 2019.
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 105 |
Estas questões podem explicar-se pelo elevado preço dos alojamentos, pelo acesso
ao crédito, pelas deficiências de funcionamento do mercado de arrendamento, pela
especulação imobiliária e pela expansão do Alojamento Local. Estas são algumas
das variáveis que mais contribuíram para o desequilíbrio entre a disponibilidade
de fogos vagos e a dimensão das carências existentes.18
Fotografias 1 e 2. Deslocalização dos moradores do Bairro do Nicolau e Destruição das Casas pelo
processo de «destelhar, entaipar e demolir» pela CMP, Fontainhas, 2013.
Fonte: Arquivo do LAHB.
18. Cf. Fernando Matos Rodrigues, Manuel Carlos Silva, António Jorge Fontes e Diana Silva (2018) «Para
uma Carta da Habitação do Porto». In Semanário O Sol, 4 de Julho de 2018, pág. 34.
19. Cf. Fernando Matos Rodrigues, Manuel Carlos Silva, António Cerejeira Fontes, «A Carta do Porto: as
ilhas e a pressão do turismo». In Semanário O Sol, 3 de Fevereiro de 2018, pág. 39. Este texto constitui-
ria uma das bases de reflexão para a discussão e a aprovação de uma Carta sobre as Ilhas do Porto numa
assembleia de várias Associações de moradores e inúmeros cidadãos/ãs na Freguesia do Centro Histórico
do Porto.
| 106 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
20. Cf. Dossier-Imobiliário por Fernando Matos Rodrigues «A Cidade do Porto: reabilitação, turismo dife-
renciador e direito à cidade». In Semanário Vida Económica, 16 de Dezembro de 2016.
21. Cf. Fernando Matos Rodrigues (2015), «Nova Vida para as Ilhas do Porto». In O Tripeiro, 7.ª Série, Ano
XXXIV, n.º 3, Março de 2015, pp. 86-87.
22. Reproduzindo, nos tempos atuais, velhos pressupostos presentes em relatórios produzidos no pas-
sado mais longínquo: cf. Relatório do Inquérito sobre as «ilhas» das freguesias do Bonfim, Paranhos, Santo
Ildefonso e Campanhã,1928; bem como o Relatório do Inquérito às 36 «ilhas» da Rua de S. Victor, 1930.
23. O último Inquérito às «ilhas» da cidade do Porto data de 2015 e foi promovido pela vereação socia-
lista da Câmara Municipal do Porto e com a colaboração da Domus Social – Empresa Municipal de Habi-
tação. Este estudo foi encomendado a Isabel Breda Vazquez e a Paulo Conceição (2015) do Instituto da
Construção da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Aliás, a realização de inquéritos e sub-
sequentes relatórios às «ilhas» da cidade tem sido prática política corrente. Já a própria Câmara socialista
anterior durante o mandato do Presidente Fernando Gomes promoveu um outro inquérito levado a cabo
pela Vereadora do Pelouro de Habitação e Acção Social Maria José Azevedo (cf. Pimenta e Ferreira, 2001).
Em todos os relatórios e inquéritos se alimenta assim uma classificação negativa das formas de viver e de
habitar nas «ilhas». No último relatório do mandato socialista ressalta como primeira leitura que «nas ilhas
é aconselhável o desenvolvimento de um modelo de demolição e realojamento, em outros locais, acom-
panhado do encerramento do núcleo habitacional» (Breda e Conceição, 2015: 218).
| 108 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
24. Cf. Fernando Matos Rodrigues (2018), «O Porto já não é o que era». In O Semanário O Sol, de 17 de
Novembro de 2018, p. 38.
25. Cf. Goffman (1973), nomeadamente em relação ao conceito de identidade negativa ou deteriorada.
Sobre o conceito de panóptico, cf. Foucault (1979). Consideramos importante que estes dois autores
desenvolvem conceitos e teorias que nos permitem estudar e compreender respetivamente a dimensão
ora interacionista ora holística e de controlo do habitar nas «ilhas» da cidade do Porto. Mais, acima de
tudo, tais conceitos permitem-nos, para além dos nevoeiros morais e sociais, encontrar a explicação social
e económica para esta forma negativa de classificar as «ilhas».
26. Cf. Relatório sobre Higiene das Habitações. Ilhas e Bairros Insalubres, Porto, Câmara Municipal do
Porto, 1930. Neste relatório pode-se ler que «As “ilhas” encontram-se espalhadas por toda a parte do
Porto, não só na parte antiga, mas até nas próprias zonas de extensão. Não há pátio, terreno livre, por mais
exíguas que sejam as dimensões, onde elas não se edifiquem; nas próprias traseiras de prédios de certa
aparência. Vê-se, então, disfarçada na fachada uma porta abrindo para um comprido e escuro corredor
de comunicação».
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 109 |
Este tipo de alojamento permitia viver próximo das fábricas onde trabalhavam
de manhã até ao fim da tarde: sem poder económico suficiente, as «ilhas» garan-
tiam essa possibilidade mínima de ter uma habitação para a família perto da fábrica,
possibilitando assim uma melhor gestão do rendimento familiar. O morador da
27. Por exemplo, a Câmara Municipal do Porto considera ser necessário intervir nos «milhares de casas
insalubres, denominadas «ilhas», que se pretendem substituir por moradias condignas da condição
humana». Pode destacar-se a publicação do Decreto-Lei n.º 40616, de 28 de Maio de 1956, onde se lê:
«Torna-se assim indispensável consagrar à resolução do problema específico das ilhas novo e decisivo
esforço, ajustado à envergadura da tarefa e ao propósito da sua execução em prazo limitado». As «ilhas»
aparecem definidas como sendo agrupamentos de duas filas de casas, térreas, insalubres, separadas por
um estreitíssimo arruamento, com uma única fachada, em regra com três ou quatro divisões, duas das quais
sem iluminação e ventilação diretas, sem sol, com instalações sanitárias exteriores. Esta descrição corres-
ponde ao pensamento higienista e de salubridade dos técnicos camarários, tirando a exceção do Eng.º
Jácome de Castro. A questão do saneamento da cidade começara a ser uma preocupação que envolvia
higienistas e sanitaristas da cidade, o que levou o município do Porto a encomendar um estudo para resol-
ver este tão grave problema a uma empresa inglesa a Casa Hughes & Lencaster em 16 de Agosto de 1897.
| 110 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
«ilha» estabelece uma relação muito próxima com o espaço-ilha no sentido em que
tem tendência para ocupar o território-ilha, de forma a exercer nele uma espécie
de direito de posse, de controlá-lo. Esta dominância territorial dá origem a reações
mais ou menos agressivas à invasão de um determinado espaço. Aliás, essa inva-
são será sentida de maneira tanto mais forte e insuportável quanto o território inva-
dido tem um carácter privado.
Na «ilha» da Bela Vista cada habitante tem a sua própria marca de diferencia-
ção e de ocupação do espaço-casa e do espaço-ilha, em relação com o vizinho do
lado ou da frente. Cada um tem um ritmo e um tempo de ação próprio e persona-
lizado, identificado pelo outro que vive a seu lado ou que habita na casa do outro
corredor. São territórios diferenciados, com ritmos e sentidos diferentes. Estamos
perante horários de ocupação e deslocação tão próprios e definidos que a «ilha»
parece ser comandada por uma máquina que marca o compasso e o ritmo social
do coletivo para o individual.
A maneira de sinalizar o espaço na «ilha» da Bela Vista obedece aos usos nor-
mais do espaço no seu quotidiano, desde as funções do estar e circular, dos usos
da convivência e da socialização, das relações entre familiares e vizinhos. Não exis-
tem registos ou marcações agressivas e marginais no espaço-ilha. Cada um tem
uma forma própria de marcar o seu espaço sem, contudo, o transformar num mar-
cador agressivo do seu «Eu» em afirmação perante um «Outro». Existe uma perso-
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 111 |
28. No mesmo Relatório pode ainda ler-se que o «problema habitacional é de todos os tempos e de todas
as latitudes, mas agrava-se tragicamente nas principais cidades pela atração que exercem sobre a popu-
lação rural e os habitantes dos pequenos centros, que acorrem a fixar-se nos maiores. Esse êxodo inten-
sificou-se com a industrialização e constitui talvez o mais grave aspeto desse aliás imprescindível instru-
mento do progresso humano. Na Cidade do Porto o fenómeno, ligado diretamente ao desenvolvimento
da indústria, revestiu carácter específico e apresentou-se sob a forma das horríveis “ilhas”… Apesar de ser
assim, e de tantas e tão autorizadas vozes se terem erguido contra a existência desses focos de insalubri-
dade, a questão, de suma importância na ordem moral, social e política, não se resolvia». Neste Relatório
do Plano apresenta-se uma tipificação das «ilhas» do Porto: agrupamentos de construção, constituídos
por casas térreas, sem as dimensões mínimas legais, em regra apenas três divisões, das quais apenas uma
com iluminação e ventilação diretas, com sanitários exteriores e comuns a vários moradores, situadas no
interior dos quarteirões e, em geral, agrupadas em série e com exíguo e comum acesso. Insalubres como
são, constituem verdadeiros focos de imundície e de doença e não permitem que os seus ocupantes
adquiram os hábitos que a civilização atual impõe para todas as classes. Este raciocínio escamoteia e ignora
as péssimas condições de trabalho e os salários de miséria que davam a estes agregados familiares a pos-
sibilidade de verem a suas vidas melhoradas e a partir daí terem acesso à dignidade que a vida moderna já
impunha. A crítica que se fazia às «ilhas» sobre as suas áreas mínimas não tem grande sentido, pois o pro-
grama para as novas moradias estabelecia como áreas de superfície útil uma variação que ia desde o
T1 com 30 m2 – 35,70 m2; o T2 com 36 m2 – 43,00 m2; o T3 com 46,50 m2 – 54,00 m2; T4 com 57,50 a 65 m2.
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 113 |
Fotografias 12 e 13. Casas na Ilha da Bela Vista, depois da reabilitação. Com os novos moradores.
Fonte: Arquivo do LAHB.
Esta operação de renovação da «ilha» da Bela Vista teve como objetivo a valo-
rização da morfologia das pré-existências, a sua estrutura, a sua densidade e os
materiais construtivos. O programa de habitação básica participada desenvolveu
29. Cf. Fernando Matos Rodrigues (2015) «Novo paradigma nas políticas de habitação para a cidade
do Porto. A reabilitação da Ilha da Bela Vista». In O Tripeiro, 7.ª Série, Ano XXXIV, N.º 1, Janeiro de 2015,
pp. 8-9.
| 114 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
lugar, por ter elaborado uma série de programas e ferramentas que abordam os
principais problemas de acesso à casa.
Neste ensaio procuramos refletir criticamente sobre os três primeiros eixos 30:
1) «Dar resposta às famílias com graves carências habitacionais»; 2) Garantir o
acesso a habitação a quem não consegue aceder através do mercado privado; 3)
Criar as condições para que a reabilitação seja a principal forma de intervenção
mais a nível do construído que do desenvolvimento urbano.
Para alcançar o primeiro objetivo a NGPH cria o programa «Primeiro Direito:
Programa de Apoio ao Direito a Habitação», aprovado pelo governo em 2018 com
uma alocação de cerca de 1700 milhões de euros até 2024 (dos quais 700 milhões
a fundo perdido) para coordenar-se com a Estratégia Nacional para a Integração
das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), 2017-2023.
O Primeiro Direito prevê o financiamento dos municípios para a requalificação
de imóveis de sua pertença, aquisições e reabilitação de imóveis ou aluguer para
fim de habitação, aquisição de terras e construção de novas unidades em caso de
30. O quarto «Promover a inclusão social e territorial» não será tratado nesta sede.
| 118 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
31. A Estratégia Local de Habitação do Porto é aprovada em Assembleia Municipal do Porto no dia 11
de Setembro de 2019. A sua aprovação permitirá a candidatura ao Programa de Apoio ao acesso à Habi-
tação – Primeiro Direito. Este documento estratégico tem como objetivo eliminar as situações de grave
carência habitacional no Porto. Refere o documento que as «ilhas» são uma grande aposta mas sem deixar
de fora a habitação social. Lembramos que nesta altura as «ilhas» estavam a ser gentrificadas pela turisti-
ficação onde o m2 já atingia valores superiores a 1500 euros em freguesias como Bonfim e Campanhã.
Esta situação impedia qualquer política municipal de reabilitação das «ilhas» para arrendamento acessível
e controlado. Aliás, não é por acaso que o vereador da habitação da Câmara do Porto, em entrevista ao
jornal Público (16 de dezembro de 2019), reconhece que «o objectivo de recuperar 720 das 995 ilhas da
cidade afinal não é exequível. Era preciso que o Primeiro Direito atraísse os privados». Esta afirmação
enquadra-se claramente na agenda neoliberal de forte desregulação do mercado habitacional na cidade
do Porto pela actual governança local liderada por Rui Moreira.
32. O Programa Especial de Realojamento (PER) criado em 1993 tinha como objetivo central a erradica-
ção das «barracas» e dos «barracos» nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto. Os municípios e os
organismos da administração central do Estado assinaram um acordo de adesão com o compromisso de
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 119 |
áreas inteiras para alegados novos desenvolvimentos; de facto, não parece absurdo
pensar que os processos de requalificação estarão novamente ligados ao desloca-
mento de moradores/as. Vale a pena lembrar, mais uma vez, que o deslocamento
de famílias e comunidades de proximidade é sempre uma perda em termos de vín-
culos sociais e económicos, memória e resiliência.
Para garantir o acesso a casa a quem não consegue aceder através do mer-
cado privado (segundo objetivo) o governo define uma estratégia baseada no
envolvimento do mercado privado e no estímulo à oferta de imóveis para alu-
guer através de incentivos de diferente natureza. O «Programa de Renda Acessí-
vel» é o instrumento central e tem como objetivo promover uma oferta alargada
de casas a preços reduzidos, compatíveis com os rendimentos das famílias. O
objetivo nesse sentido refere-se a taxas de arrendamento até ao máximo de 80%
do valor do mercado do aluguer para um período mínimo de três anos. A taxa
de esforço para as famílias não deveria ser inferior a 10% nem superior 35% do
próprio salário. Os proprietários que aderirem ao programa beneficiam de uma
isenção total das taxas sobre estas rendas (IRS e IRC) e de 50% das taxas de
imposto sobre imóveis ou propriedades (IMI). O Conselho de Ministros aprovou
também um pacote de seguros para garantir os proprietários/as em caso de even-
tuais insolvências e para conseguir que inquilinos/as continuem a pagar, em caso
de problemas de renda. Entre os instrumentos para estimular a oferta de habita-
ção no mercado são introduzidos a eliminação das taxas de transferência de uso
para residência e um regime fiscal regulatório para as sociedades de investimento.
No que diz respeito ao parque público de habitações em aluguer está previsto o
«Fundo Nacional de Reabilitação do Construído» para a reabilitação de bens públi-
cos não utilizados. A crítica mais importante que movemos à estratégia proposta
para alcançar o segundo objetivo é que os ganhos conseguidos através do aloja-
mento breve para fim turístico são muito maiores que as isenções propostas: a
distância entre o salário mínimo português e as rendas que permite a economia
turística não são minimamente comparáveis. Até que não seja definido claramente
um limite para a locação turística, será difícil estimular o arrendamento para as
famílias portuguesas.
efectuar um recenseamento de todos os núcleos de alojamento precário nos respetivos territórios e dos
agregados familiares neles residentes. Assumiam ainda o compromisso de realojar essas famílias mas num
quadro de demolição dos alojamentos em que residiam. Foi um pretexto para as Câmaras mais conser-
vadoras implementarem as políticas do «demolir, entaipar e deslocar» sem o mínimo respeito pelas famí-
lias que aí residiam, negando-lhes o direito ao lugar e ao habitar. Promoveram-se as demolições dos bair-
ros da Corujeira, S. João de Deus, Nicolau, Leal e muitas das «ilhas» municipais que foram totalmente arra-
sadas, promovendo-se a atomização, a dispersão e a guetização destas famílias pelos blocos periféricos
da cidade do Porto. A «ilha» da Bela Vista foi a única «ilha» municipal que resistiu a esta política de destrui-
ção e de deslocalização do centro da cidade para a periferia pelo empenho dos seus moradores/as na
luta contra a deslocalização no seio da sua Associação de Moradores.
| 120 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
5. Conclusão
A partir das reflexões elaboradas sobre os limites da nova política de habitação
e das experiências maturadas através do trabalho do Laboratório de Habitação
Básica, sugerimos algumas sintéticas contribuições para que as políticas a ser imple-
mentadas no país sejam realmente inclusivas e garantam não somente o direito a
habitação, mas também a justiça espacial.
Primeiro, apontamos para a necessidade de garantir o direito à habitação e ao
lugar das comunidades urbanas, como foi recentemente introduzido na Lei de Bases
para Habitação. Na Área Metropolitana de Porto as «ilhas» poderão significar a
adoção de soluções no âmbito do programa Primeiro Direito em função das situa-
ções concretas. Segundo, urge implementar a participação real dos cidadãos dentro
das políticas urbanas, através de construção de laboratórios permanentes (Rodri-
CAPÍTULO IV. DIREITO À HABITAÇÃO E CIDADE JUSTA | 121 |
gues, 2016). Por fim, importa centrar a política de habitação basicamente a nível
dos órgãos de soberania e, em particular, do governo e retirar a principal respon-
sabilidade dessa política aos municípios que, embora possam colaborar, na prá-
tica, tal como foi comprovado na implementação do PER e da sua «revitalização»
dos últimos anos (Tarsi, 2018), têm sido muitas vezes mais guiados por interes-
ses diferentes dos da garantia do direito à casa, do direito à cidade e do direito à
cidade justa.
Siglas
Airbnb = Vacation Rentals, Homes, Hotels, Experiences & More
AUGI = Área Urbana de Génese Ilegal
CITTA = Centro de Investigação do Território, Transportes e Ambiente (FEUP)
CMP = Câmara Municipal do Porto
FEUP = Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto
IFRRU = Instrumento Financeiro para Reabilitação e Revitalização Urbana
IHRU = Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana
INE = Instituto Nacional de Estatística
IRC = Imposto sobre Rendimento de Pessoas Coletivas
IRS = Imposto sobre Rendimento de Pessoas Singulares
ENIPSSA = Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo
LAHB = Laboratório de Habitação Básica
NGPH = Nova Geração de Políticas de Habitação
PAICD = Plano de Ação Integrado para Comunidades Desfavorecidas
PEDU = Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano
PER = Programa Especial de Realojamento
PIB = Produto Interno Bruto
RJRU = Regime Jurídico de Reabilitação Urbana
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Capítulo V
Alta de Lisboa:
Avanços e recuos de
um plano de urbanização
Gonçalo Antunes*
Nuno Pires Soares**
José Lúcio***
33. Os terrenos em que foram construídos estes bairros foram adquiridos pela CML anos antes ao abrigo
do regime dos centenários.
34. As famílias desalojadas coercivamente foram colocadas em bairros espalhados por toda a cidade,
entre os quais Musgueira Sul, Musgueira Norte, Bairro do Relógio e da Célula F de Olivais Sul. Embora em
menor número, a população foi, ainda, dispersa por habitações disponíveis nos bairros desmontáveis da
Boavista e da Quinta da Calçada (Antunes, 2018).
| 128 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
«uma gigantesca operação de cosmética destinada a limpar a paisagem, tanto mais que
a ponte (que depois se veio a chamar Salazar) seria uma obra emblemática de enalte-
cimento do regime (…); as populações desalojadas foram transferidas na sua maioria
para a quinta municipal da Musgueira, entre o Lumiar e o aeroporto, o que revoltou
ainda mais os moradores, atirados para o extremo oposto da cidade, em local ermo e
sem transportes. Para o efeito, as famílias eram prevenidas pela polícia com dois ou
três dias de antecedência de que teriam de proceder elas próprias à demolição das suas
barracas – o que faziam, pois de outro modo estas seriam destruídas pelo pessoal cama-
rário, não podendo assim ser aproveitados os destroços indispensáveis, para a sua
reconstrução na Musgueira» (Pereira, 2011:82).
«as consequências [do realojamento] para a organização da vida quotidiana desta popu-
lação e, consequentemente, para o seu processo de inserção na cidade foram brutais.
35. O nome dos bairros promovidos pela CML, Musgueira Sul e Musgueira Norte, derivava da antiga Quinta
existente no local, de nome Musgueira. Note-se, também, que, à data, ainda não existia o topónimo Alto
do Lumiar.
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 129 |
36. Anos antes, o terreno foi explorado como areeiro (na chamada Quinta da Pedreira) e, posteriormente,
utilizado como vazadouro.
37. Para o efeito, a Cruz Vermelha Portuguesa lançou o apelo nacional «dez tostões para uma casa», no
Diário de Notícias, para angariar fundos para a construção das primeiras habitações.
38. O bairro da Cruz Vermelha, constituído por edifícios coletivos construídos nas décadas seguintes, sub-
siste até hoje.
39. Segundo Manuel Meirelles, retornado e presidente da Associação de Moradores do Bairro das Cal-
vanas (AMBC), aproximadamente 80% dos residentes eram provenientes dos Países Africanos de Língua
Oficial Portuguesa (PALOP).
40. Nomeadamente pelo Núcleo Técnico de Apoio e Ligação, conhecido como NUTAL, e integrado no
Gabinete Técnico de Habitação (GTH). Situação relativamente idêntica ocorreu no Alto do Chapeleiro
(Santa Clara) e na Travessa Sargento Abílio (Benfica) (GTH, 1986).
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 131 |
Figura 1. Bairros informais e de habitações precárias até meados da década de 1990. Elaboração
própria.
que abarracada (CML, 1967). Note-se, também, que, até meados da década de
1990, o topónimo Alto do Lumiar não existia, sendo que toda esta área da cidade
era normalmente identificada depreciativamente como «Musgueira». De acordo
com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a população deste território poderia
ser caracterizada da seguinte forma:
«[o território da actual Alta de Lisboa conheceu] a partir do final da II Guerra Mundial
uma inflexão dramática do modo de vida rural para uma estrutura populacional de ope-
rários não qualificados, vendedores ambulantes, prestando as mulheres serviços de
limpeza na zona de Alvalade. Esta alteração é acompanhada por um aumento extraor-
dinário do número de habitantes, que passa de 3 302 no Censo de 1960 para 7 538 no
Censo de 1970, agrupando, já nessa década, migrantes vindos de outras zonas de Lisboa
(em virtude da Ponte 25 de Abril), das Beiras e das ex-colónias africanas» (SGAL, 2005:28).
• Distrito de origem dos residentes: Lisboa (55%), Viseu (12%), Vila Real (6%), Castelo Branco (5%)
e outros (22%);
• O bairro da Musgueira Sul, em particular, tinha valores muito idênticos para os originários do distri-
to de Lisboa e de Viseu;
• Peso significativo da população jovem e da população em idade ativa;
• Índice de fecundidade superior à média da cidade de Lisboa;
• Elevado número de agregados familiares com quatro ou mais filhos;
• Agregados familiares compostos maioritariamente por quatro elementos (22,3%), seguindo-se três
(20,8%), dois (18,2%), cinco (12,9%), um (9,9%), sete ou mais (8,6%) e seis (7,3%);
• Número médio de ocupantes por fogo de 3,9 habitantes;
• Existência de desemprego (pelo menos um indivíduo desempregado) em 16,3% das famílias;
• A atividade profissional das mulheres era de 50%;
• Elevada precariedade socioprofissional;
• Entrada precoce no mercado de trabalho;
• Elevado abandono escolar;
• Níveis de instrução: analfabetos (27,9%), ensino primário (55,6%), ensino preparatório (10,7%),
ensino secundário (5,5%) e outros (0,3%).
| 134 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
• Categorias habitacionais: habitação municipal térrea de alvenaria e tijolo (35,1%); habitação muni-
cipal em apartamento (13,6%); habitação municipal pré-fabricada (3,2%); barracas (48,1%);
• Cerca de 20% dos alojamentos não tinham eletricidade;
levado número de habitações sem ligação à rede de saneamento básico, sem retrete e sem
•E
instalações de banho ou duche;
• O bairro da Musgueira Norte registava piores condições habitacionais quando comparado com o
da Musgueira Sul.
• Esta situação advinha do desenvolvimento do bairro Musgueira Sul em estreita dependência com
a CML (habitações municipais provisórias), sendo que o bairro Musgueira Norte apresentava um
maior número de construções de particulares.
41. O conceito de cultura de pobreza foi originalmente criado por Lewis (1970) e é, conforme Silva (2013),
o sublinhar dos modos de ser, sentir e agir dos próprios pobres, que reproduzem e exprimem represen-
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 135 |
tações e crenças, experiências e hábitos culturais enraizados perante as situações de carência e susceptí-
veis de criações laços de solidariedade, autodefesa e resistência perante mundividências estranhas e/ou
grupos forâneos opressivos (Silva, 2013).
42. Disponível em: https://vimeo.com/25717591.
| 136 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
que o Plano de Urbanização (em desenvolvimento desde o final dos anos 80) deve-
ria respeitar; por outro, o PER admitiu novos esquemas de financiamento para as
operações de realojamento nas duas áreas metropolitanas do país, pelo que, ao
contrário do que estava inicialmente previsto no Contrato Inominado, os realoja-
mentos do Alto do Lumiar passaram para a esfera da CML (DCH, 2000, 2001).
43. Resolução do Conselho de Ministros n.º 126/98, Diário da República, I Série-B, n.º 248, pp. 5556-5569.
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 137 |
Para fomentar o modelo de negócio associado ao PUAL foi criada a marca regis-
tada «Alta de Lisboa» – nome comercial pelo qual atualmente é conhecida esta área
da cidade. Tal acontece num contexto de marketing territorial agressivo que dili-
genciou a alteração do topónimo popular «Musgueira» para «Alto do Lumiar» (topó-
nimo oficial), tendo, por fim, surgido a denominação «Alta de Lisboa», promovida
pelo consórcio privado e comercialmente mais apelativa.
O PUAL tinha como data de finalização inicialmente prevista o ano de 2015.
Contudo, nesse mesmo ano, a intervenção ainda se encontrava em cerca de 50%
(Figura 4). Em 2012, o PUAL foi revisto e, atualmente, estima-se que o projeto
estará finalizado em 2030/2035.
| 138 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Quadro III. Evolução do PUAL. CML (2009, 2013), Antunes (2015) Antunes et al.
(2012, 2013, 2014, 2015)
• Fogos: em 2008, dos 18 700 fogos previstos, estavam concretizados 7 751, correspondendo a 41%
do total. Destes, 3 060 fogos (39,5%) foram construídos ao abrigo do PER (para realojamento) e
4 691 (60,5%) para o mercado imobiliário;
• Analisando de outra forma estes dados, a construção ao abrigo do PER estava terminada, e a cons-
trução para o mercado imobiliário correspondia a 30% do previsto;
• População: a estimativa populacional no final do projeto era de 55 000 habitantes a residir na área
intrínseca ao PUAL, divididos na proporção de 23% a residir no edificado municipal e 77% morado-
res por via do mercado imobiliário;
• Em 2008, a população na área do PUAL era de 23 701 habitantes (41% do previsto). Destes, 10 098
respeitavam ao PER (45%) e 13 603 ao mercado imobiliário (55%);
• Equipamentos: o PUAL previa a concretização de 163 equipamentos coletivos de várias valências,
sendo a taxa de execução de 22% em 2008;
• Em 2014, a programação de equipamentos foi revista;
• Transportes: as principais ligações rodoviárias fazem-se pelo Eixo Norte-Sul e pela Segunda Circu-
lar, existindo ainda duas ligações de menor relevância à Alameda das Linhas de Torres e outras duas,
mais a norte, de ligação ao núcleo urbano da Ameixoeira e a Loures;
• Devido aos atrasos no desenvolvimento do PUAL, a rede viária apenas foi parcialmente construída,
provocando descontinuidades urbanas prejudiciais à mobilidade;
• O denominado Eixo Central (avenida principal) apenas foi concluído parcialmente;
• A Av. Santos e Castro, que acompanha o limite Este do plano, foi inaugurada em 2013;
• Os transportes públicos são assegurados pela Carris;
• Espaços verdes: destaca-se a existência da Quinta das Conchas (preexistente) e do Parque Oeste
(construído no âmbito do PUAL);
• Prevê-se a construção do Parque Sul;
• Comércio: estão previstos cerca de 500 000m² de áreas comerciais e de serviços;
• Atualmente, o comércio que se pode encontrar na área da Alta de Lisboa é sobretudo de pequena
escala, de proximidade, como pequenos cafés, restaurantes, mercearias, talhos e outras lojas de
necessidades e bens imediatos;
• Parte substancial dos espaços comerciais de rés-do-chão encontra-se por ocupar;
• O novo comércio localiza-se relativamente clusterizado em dois arruamentos (Rua Helena Vaz da
Silva e Av. Sérgio Vieira de Mello), ambos com predomínio de edifícios colocados no mercado
imobiliário;
• Recentemente foram inauguradas superfícies comerciais de média dimensão;
• Embora estejam previstos no PUAL, ainda não existem, no local, edifícios de escritórios ou centros
comerciais;
• Agentes locais: deve destacar-se as diversas entidades comunitárias e associativistas que congregam
indivíduos em grupos recreativos, de assistência, de valorização ambiental, de moradores, etc.
| 140 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
• Elevado peso da população jovem (por comparação com os valores do concelho de Lisboa);
• Cerca de 8% de população estrangeira, em particular dos PALOP;
• Taxa de desemprego de 22,8% (o nível nacional era de 7,1%);
• População vulnerável à exclusão social;
• Rendimento mensal reduzido na generalidade e próximo da linha de pobreza nacional;
• Maior risco de pobreza para a população imigrante.
44. Embora o realojamento tenha terminado em 2007, estava praticamente concluído em 2001, com a
excepção do bairro das Calvanas, que foi alvo de um realojamento díspar, que envolveu a construção de
moradias unifamiliares geminadas e não de apartamentos como ocorreu nos restantes bairros.
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 141 |
Figura 6. Exemplo de conjunto de dois quarteirões de habitação social (municipal) isolados da res-
tante malha urbana. Foto própria.
Para além dos «espaços excluídos», outro fenómeno visível na Alta de Lisboa
é o crescimento de «espaços exclusivos», nomeadamente condomínios privados.
Segundo estudo de Tulumello & Colombo (2018), a Alta de Lisboa é a área da cidade
de Lisboa que mais concentra condomínios privados e, nos concelhos envolven-
tes, este cenário apenas tem paralelo nalguns bairros específicos no município de
Cascais. Como é reconhecido, a tendência contemporânea de «condominização» é
a manifestação do encolhimento da esfera pública (Bindé, 2000; Lopes, 2002; Koga,
2003; Bauman, 2006), fenómeno manifestamente presente na Alta de Lisboa (Tulu-
mello & Colombo, 2018). Os referidos condomínios privados contribuem para o
isolamento dos residentes nas suas habitações, situação que contribui para a não
utilização do espaço público envolvente, assim como do comércio local e dos ser-
viços criados para a população.
Paralelamente, é igualmente importante mencionar que os edifícios munici-
pais mostram frequentemente sinais de deterioração, com pichações e danos nas
fachadas, ou no seu interior, sobretudo, nos elevadores. Esta situação acarreta uma
discrepância visual perante os edifícios no mercado imobiliário, que têm uma arqui-
tetura sofisticada, áreas verdes bem conservadas e fachadas preservadas de forma
satisfatória. A esta questão é ainda possível acrescentar a dualidade no mobiliário
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 143 |
4. Apontamentos finais
Atualmente é indiscutível que o PUAL permitiu a melhoria de um sistema
urbano que se encontrava enfraquecido e desequilibrado, por via da concentração
de bairros de habitações precárias e vários fenómenos usualmente correlaciona-
dos com a pobreza urbana. A intervenção iniciada em 1998 permitiu a transição
para um sistema mais equilibrado, demonstrativo da importância de decisões polí-
ticas para a coesão do sistema urbano e metropolitano, assim como para a melho-
ria da qualidade de vida das pessoas e da sua dignidade habitacional, conforme
consagrado na Constituição Portuguesa.
No entanto, persistem algumas questões subjacentes ao PUAL. Desde logo, o
facto de o desenvolvimento meramente parcial não permitir avaliar as repercus-
sões urbanas e sociais do Plano de Urbanização, mas apenas analisar as transfor-
mações que foram concretizadas até ao momento. A lenta operacionalização do
PUAL tem contribuído para a conceção de descontinuidades na malha urbana, o
que tem dificultado a comunicação entre as diferentes comunidades e permitido
a manutenção de um status de marginalidade para determinados locais. Paralela-
mente, a intervenção urbana na Alta de Lisboa ainda não demonstrou repercus-
sões visíveis no sistema urbano do resto da cidade, em grande medida, porque não
foram criados espaços ou edifícios-âncora, ou seja, com elevada atratividade, e
porque os elementos antrópicos existentes no perímetro da Alta de Lisboa ainda
subsistem como um obstáculo.
Tendo passado mais de 20 anos do início da operação, aos pontos positivos e
negativos apontados deverá acrescentar-se que o PUAL, desenhado em meados da
década de 1990, se encontra condicionado por opções datadas, próprias de mode-
los de desenvolvimento das décadas de 1980 e 1990, que podem já não responder
aos desafios urbanos, sociais, económicos e culturais de uma cidade do século XXI.
Siglas
AMBC = Associação de Moradores do Bairro das Calvanas
AUGI = Áreas Urbanas de Génese Ilegal
CML = Câmara Municipal de Lisboa
DCH = Departamento de Construção e Habitação
GEBALIS = Gestão do Arrendamento Social em Bairros Municipais de Lisboa
GTH = Gabinete Técnico da Habitação
LNEC = Laboratório Nacional de Engenharia Civil
PALOP = Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
PDM = Plano Diretor Municipal de Lisboa
PER = Programa Especial de Realojamento
CAPÍTULO V. ALTA DE LISBOA: AVANÇOS E RECUOS DE UM PLANO DE URBANIZAÇÃO | 145 |
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Capítulo VI
Inês Barbosa*
João Teixeira Lopes**
45. https://www.portaldahabitacao.pt/opencms/export/sites/portal/pt/portal/habitacao/levantamento_
necessidades_habitacionais/Relatorio_Final_Necessidades_Realojamento.pdf
| 152 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
46. Ilhas são bairros clandestinos construídos nas traseiras dos prédios, durante o período industrial,
no Porto.
47. SAAL é a abreviatura de Serviço de Apoio Ambulatório Local, um projeto que envolveu arquitetos/as
e cidadãos/ãs em processos participativos de reabilitação urbana com um forte impacto na cidade do Porto.
48. Em 2012, 2014 e 2017 «Melhor Destino Europeu» (European Consumers Choice); em 2013, «Melhor
Destino de férias na Europa» (Lonely Planet); 2015 Top 10 polos turísticos (the Guardian); 2018, Melhor
destino europeu e segundo melhor mundial (Culture Trip).
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 153 |
49. A figura do flanêur (vadio, errante, investigador da cidade), explorada pelo escritor francês Charles
Baudelaire, influenciou grandemente o trabalho de Walter Benjamim.
50. A co-autora deste artigo – responsável pelo trabalho empírico – tem vivenciado vários dos problemas
relacionados com a habitação aqui referidos, tem participado em grupos ativistas, em manifestações e
debates públicos.
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 155 |
na sua vertente especializada, elitista e modernista, quer nas suas feições popu-
listas de teor pós-moderno, quer ainda nas suas declarações monumentais, dirigis-
tas e barrocas. Neles, a contra-hegemonia favorece a localização da esfera pública,
esse conceito tão abstrato e desespacializado que Jürgen Habermas (1986) propõe
como avatar da razão dialógica, crítica, argumentativa e comunicativa.
Deste modo, enquanto espaços-tempo de materialização da esfera pública,
excitam a politização das práticas socio-espaciais, alargam as alamedas do debate
e, nesse (re)fazer perpétuo, contestado e conflitual, evidenciam os limites da
cidade-empresa e desocultam as encenações da cidade mentirosa (Delgado, 2007).
Como veremos neste texto, não há espaços sem contra-espaços, usos que dispen-
sem contra-usos (Leite, 2004), barreiras que excluam a sua permanente porosidade,
embate e negociação.
51. https://theworsttours.weebly.com/
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 157 |
Figura 1. Rua da Formiga, foto de Inês Barbosa Figura 2. Avenida Rodrigues de Freitas (IB).
(IB).
52. A recolha deu origem ao projeto visual (A)Briga: 112 imagens pelo direito à habitação. www.facebook.
com/ABriga112.
| 158 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
tarem uma casa sozinhos e que se vêem na condição de partilhar casa ou até mesmo
quarto; e, por fim, alguns segmentos da classe média trabalhadora – com ou sem
família a cargo – cujos baixos salários ou ausência de um vínculo laboral estável
lhes impede de pagar um aluguer ou um empréstimo bancário.53Entre a centena
de mensagens analisadas podemos observar três grandes objetivos: sensibilizar,
denunciar ou mobilizar. A sensibilização é a que ocupa menor fatia. No conjunto
de imagens que se seguem podemos observar alguns exemplos.
Na Figura 3 encontra-se um fragmento das cartas dirigidas aos turistas denun-
ciando os despejos dos residentes do centro da cidade a favor do AirBnB ou os ele-
vados preços das habitações comparativamente aos salários dos habitantes locais.
Escritas em inglês, para que possam ser lidas por uma grande percentagem de pes-
soas, as cartas apoderam-se dos símbolos e até mesmo dos contatos da agência ofi-
cial de turismo, conferindo-lhes credibilidade ou, pelo menos, chamando a atenção
de quem lê. O uso da fórmula de saudação «Dear Tourist» e o emprego de pergun-
tas ou afirmações diretas – «Está a ficar num lindo apartamento renovado listado
no AirBnB?» ou «Pergunta ao teu recepcionista como é que ele/a vive» – parece ter
como objetivo, por um lado, gerar empatia e, por outro, responsabilizar os turistas.
Figura 8. Avenida de França (IB). Figura 9. Inscrição no bar 77, foto de Zu Rabaçal.
Figura 10. Rua dos Caldeireiros (IB). Figura 11. Rua Dr. Magalhães Lemos (IB).
58. http://www.cm-porto.pt/assets/misc/documentos/Logos/01_Manual_14_digital_2017.pdf
59. https://observador.pt/2017/08/07/morto-em-vez-de-porto-camara-apresenta-queixa/
| 162 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
«Não conheço os autores que se dispuseram a produzir numa gráfica milhares deles.
Não conheço quem os financia nem qual o fim que perseguem. Podemos presumir que
isto tem a ver com as eleições e são meus adversários. Ou achar que não, e que são,
simplesmente, cobardes que nada têm a fazer ao dinheiro. Em qualquer dos casos,
quem o faz odeia o Porto. E odeia uma marca que procura maltratar por puro ódio e
por aversão ao sucesso. (…) Esta é a nossa marca. Made in Porto. Adorada no Mundo,
odiada por cá».
60. Depreendemos que os autores da pichagem quereriam dizer algo como «privilegia o povo do Porto».
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 163 |
Figura 12. Rua da Alegria (IB). Figura 13. Rua da Picaria (IB).
Figura 14. Fontainhas, foto de Ruca Peixoto Figura 15. Rua Monte dos Congregados (IB).
uma importância que remonta ao período medieval – tendo sido um dos principais
eixos de comunicação da cidade – a rua fora, em tempos, umas das zonas mais
ricas da cidade, onde se concentravam os melhores estabelecimentos e a vida aris-
tocrata. Enfrentando, desde cedo, problemas de conservação das casas, a Rua dos
Mercadores é também ícone dos processos de requalificação urbana associados à
intensificação do turismo e ao despejo da população autóctone.
Figura 17. Rua do Bonfim (IB). Figura 18. Avenida dos Aliados (IB).
Figura 19. Rua das Flores, foto de José Silva. Figura 20. Rua Duque da Terceira (IB).
61. Nojentrificação, Porto Não se Vende, Cartas ao Rui, Porto, Direito à cidade…
62. Em Junho de 2019, surgiu o Grupo de Apoio à Habitação que se reúne regularmente no espaço auto-
-gerido A Gralha.
63. Canção do GAC (Grupo de Ação Cultural), https://www.youtube.com/watch?v=PTuRPA4ySrE
CAPÍTULO VI. O QUE DIZEM OS MUROS DO PORTO? | 167 |
Figura 22. Travessa das Carvalhosas (IB). Figura 23. Rua de Cervantes (IB).
Figura 24. Rua das Fontainhas (IB). Figura 26. Praça do Marquês (IB).
Figura 25. Rua da Firmeza (IB).
| 168 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Siglas
EUA = Estados Unidos da América
LGBT+ = Lésbicas, Gays, Bisexuais, Transexuais e Transgéneros +
PREC = Período Revolucionário em Curso
UNESCO = Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
| 170 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
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Capítulo VII
Metodologias participativas:
o caso exemplar da «iIlha»
da Bela Vista (2013-2017)
Fernando Matos Rodrigues*
Manuel Carlos Silva**
António Cerejeira Fontes***
André Cerejeira Fontes****
Fotografia 1. Fotomontagem da Localização da Ilha da Bela Vista, Rua D. João IV, 832.
Fonte: Arquivo do LABH.
65. Cf. Decreto-Lei n.º 594/74 de 7 de Novembro que vem reconhecer o direito à livre associação, susten-
tando, aliás pela primeira vez, que o «direito à livre associação constitui uma garantia básica de realiza-
ção pessoal dos indivíduos na vida em sociedade. O Estado de Direito, respeitador da pessoa, não pode
impor limites à livre constituição de associações. (…) No processo democrático em curso, há que suprimir
a exigência de autorizações administrativas que condicionavam a livre constituição de associações e o seu
normal desenvolvimento». Cf. ainda a publicação dos Estatutos da Associação de Moradores em Diário
da República, n.º 501, III.ª Série, de 1 de Outubro de 1975.
| 178 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
66. O Laboratório de Habitação Básica (LAHB) foi instalado na Sede da Associação de Moradores da
«ilha» da Bela Vista durante o período em que decorreu a operação de renovação da Bela Vista entre finais
de 2013 até finais de 2017. Para aí instalar o LAHB foi preciso demolir algumas paredes interiores e intro-
duzir algumas precondições infraestruturais básicas como, por exemplo, água canalizável, luz eléctrica e
melhorias nos telhados. As obras foram realizadas com a colaboração dos membros da direcção da Asso-
ciação de Moradores, sendo de destacar a colaboração e o empenho de António Fontelas Lopes, Aloísio
Pinto e Mário Pinto da Direção da Associação e do morador Luís Pinto. Salvo quando estejam em causa
factos que merecem reserva por parte das pessoas envolvidas, a quem atribuímos iniciais ou nomes fictí-
cios, em regra nomeamos os nomes dos moradores e sobretudo responsáveis da Associação, atendendo
não só a não colocarem qualquer objeção, como inclusive terem brio de serem resistentes e resilientes
neste processo e na vitória alcançada.
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 179 |
Fotografias 5 e 6. Estaleiro/Obra – 1.ª Fase – colocação dos moradores nas habitações para o início
de obra.
Fonte: Arquivo do LAHB.
67. Trata-se do projeto aprovado e financiado pela FCT intitulado «Modos de vida e Formas de Habitar:
as ilhas e bairros populares no Porto e em Braga» (PTDC/IVC-SOC/4243/2014/), sob coordenação cientí-
fica do Investigador Manuel Carlos Silva, da Universidade do Minho, posteriormente resubmetido em
Dezembro de 2015 ao abrigo do Aviso do Sistema de Apoio à Investigação Científica e Tecnológica (SAICT)
de 30 de Outubro de 2015, sendo iniciado em Setembro de 2016 após nova aprovação das entidades euro-
peias no quadro do Programa Horizonte 2020.
| 180 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
68. Importa realçar a excelente colaboração dos fiscais de obra nas pessoas de Sidónio Oliveira, Ilda Duarte
e Rosa Costa da COTEFIS na forma como acompanharam as obras nas casas de realojamento e durante
as duas fases de obra, bem como no excelente relacionamento com a equipa do LAHB/Imago, a Associa-
ção de Moradores e comunidade em geral.
69. Cf., por exemplo, o livro-catálogo A Cidade da Participação, organizado por Rodrigues et al. (2017)
e publicado pelo LAHB/CICS.Nova_UMinho e pelas Edições Afrontamento com a colaboração da fotó-
grafa Susana Varela.
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 181 |
Foi neste contexto socio-espacial e urbano que a operação da Bela Vista se foi
construindo, enquanto processo participativo, fazendo uso das metodologias da
investigação-ação e participação (IAP), tal como grosso modo desenhado por Vil-
lasante et al. (2000: 11-18, 35-37) e tendo em conta a tipologia de Arnstein (1969),70
70. Cf., por exemplo, a Escada da Participação Cidadã (Ladder Of Citizen Participation), da autoria da
especialista Sherry R. Arnstein (1969), a qual apresenta oito tipos de participação na sua obra, os quais,
por sua vez, são categorizados em três compartimentos: (i) Poder do Cidadão: Controle do Cidadão, Poder
| 182 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Delegado e Parceria; (ii) Tokenism: Colocação, Consulta e Informação; (iii) Não Participação: Terapia e
Manipulação. Define a «Participação do cidadão» como a redistribuição do poder que permite aos cida-
dãos/ãs que se encontram excluídos dos processos políticos e económicos de participarem na sua elabo-
ração e gestão.
71. Cf. Lei de Bases da Habitação, Lei n.º 83/2019 de 3 de Setembro publicada em Diário da República,
1.ª Série, n.º 168, pp. 11-33, aprovada graças à determinação da Comissão do Ambiente, Ordenamento
do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação e por pressão do BE, do PCP e do PEV que con-
taram com o empenho da deputada independente Helena Roseta pelo PS e a ala esquerda deste, colo-
cando, em plena crise habitacional sobretudo nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, o problema de
carência habitacional na agenda política, agravada com a legislação ultraliberal ao tempo do governo do
PSD/CDS. O referido artigo 53 vem inserido no Capítulo VIII – Informação, participação, associativismo e
tutela de direitos: Artigo 53.ª – Direito à Participação. No primeiro item é referido que «os cidadãos têm
o direito de participar na elaboração e revisão dos instrumentos de planeamento público em matéria de
habitação, ao nível nacional, regional e local». No segundo item se afirma que o «Estado, as regiões autó-
nomas e as autarquias locais promovem a participação ativa dos cidadãos e das suas organizações na con-
ceção, execução e avaliação dos programas públicos de habitação».
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 183 |
72. Cf. Silva, 1998 e 2003; Ribeiro, 2010 e 2017; Rodrigues e Silva, 2015; Rodrigues et al., 2017. Cf. também
trabalho de campo noutros contextos: Rabinow (1992), Rahnema (2012), Guber (2004). No caso concreto
do processo da «ilha» da Bela Vista o desenho contou também com a experiência dos trabalhos teórico-
-práticos, desenvolvidos ao longo de vários anos por Fernando Matos Rodrigues na cadeira de Antropo-
logia do Espaço integrada no Curso de Arquitetura da Escola Superior Artística do Porto (ESAP) (cf. Rodri-
gues, 2005, 2014 e 2015), assim como por António Fontes na docência e investigação em Cursos de Enge-
nharia e Arquitetura, nomeadamente em Engenharia de Estruturas e Construção, por um lado e, por outro,
por Manuel Carlos Silva (2012), cuja obra «Socio-Antropologia rural e urbana» utilizada em disciplina do
curso de Sociologia na Universidade do Minho foi igualmente útil.
73. A equipa coordenadora do projeto de habitação básica participada foi constituída por Fernando Matos
Rodrigues, Manuel Carlos Silva, António Cerejeira Fontes e André Cerejeira Fontes, que simultaneamente
desempenham funções na direção do Laboratório de Habitação Básica (LAHB). Durante a operação da
«ilha» da Bela Vista também fizeram parte da equipa do LAHB os jovens arquitetos/estagiários Fábio Filipe
Rodrigues Azevedo e Catarina Pires, nomeadamente entre 2014 e 2016.
74. Cf. a Carta Mundial do Direito à Cidade, UNESCO. Com a aprovação da Lei de Bases da Habitação
ficou consignado o direito ao lugar, à participação e à habitação digna: cf. Lei n.º 83/2019 de 3 de Setem-
bro, Diário da República, 1.ª série – N.º 168, 3 de Setembro de 2019, pp. 11-33. Cf. também a Carta do
Porto. Para a Reabilitação das Ilhas da Cidade, aprovada em Seminário no dia 17 de Junho de 2017 e edi-
tada pelo Laboratório de Habitação Básica no mesmo ano.
| 184 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Com o tempo e a confiança que se foi construindo, foi possível entrar nas casas
dos moradores/as, os quais foram abrindo as arcas e as gavetas para dar vida e
uso às fotografías antigas, onde se identificam parentes que já partiram, parti-
lhando memórias, dores e afetos. As recordações – umas boas e outras nem por
isso – vêm ao de cima com certa cumplicidade, a pequena casa transforma-se num
espaço de partilha. Recordam-se «estórias», trajetos de vida, vidas longas e cheias,
outras curtas e injustas. Arquivos de memórias, álbuns de familia, segredos bem
guardados pelo tempo e pelo silêncio, as conversas convocam memórias, em que
o silêncio profundo do olhar habita neste pequeno mundo que se revela de forma
tão poética e tão sentida.75 A palavra dá sentido, organiza e identifica as imagens
75. Sobre a relevância da memória na reconstrução da identidade das famílias e da comunidade, cf. Candau
(2006). No caso concreto do estudo sobre a comunidade da «ilha» da Bela Vista e, em particular, sobre as
memórias da senhora Ana ou, mais carinhosamente «Aninhas», a descoberta dos seus escritos poéticos –
que posteriormente a equipa, designadamente o Fernando Matos Rodrigues se empenhou em publicar –
foi possível reconstruir graças ao convívio de membros da equipa com a senhora Ana, a qual passava a
maior parte do seu tempo na sala. Sentava-se sempre no mesmo lugar, um lugar com grande valor afetivo
para ela, pois era ali que se sentava o seu marido. É na sala que fazia as suas refeições, lia o jornal e via
televisão. Ultimamente, não utilizava o sofá, pois encontrava-se já degradado, querendo adquirir um novo
e mais pequeno (dois lugares) para a nova habitação, quando reabilitada. Em relação ao mobiliário exis-
tente, a senhora Ana apenas queria levar um móvel grande que se dividia em duas partes, podendo dis-
pensar a parte de cima, dependendo do estado em que se encontrasse. Nesta divisão a idosa tem foto-
grafias em que está com o seu marido. Ainda como decoração tem um quadro da equipa do Futebol Clube
do Porto no ano em que se sagrou campeão europeu e um quadro de Nossa Senhora de Fátima, os seus
dois símbolos de ordem afetiva e religiosa. Este quarto funciona como quarto de arrumos, onde a senhora
Ana aproveita para ter o frigorífico e um armário com arrumos e, como tal, é uma divisão pouco utilizada.
O quarto onde a senhora Ana dormia era composto por uma cama, duas mesinhas de cabeceira e uma
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 185 |
cómoda. Todo o mobiliário é pretendido para levar para a nova casa reabilitada. Assim como na sala, desde
o falecimento do seu marido, esta senhora idosa optou por dormir no lugar que lhe pertencia. O quarto
era composto por uma cama de solteiro e armário pertencentes ao seu falecido sobrinho, quarto esse tão
pouco utilizado. Este mobiliário possivelmente será cedido à sua vizinha e comadre, a senhora Rita, também
chamada de Ritinha. Quando à cozinha, no momento que a entrevistamos, desde que se magoara na
perna, a senhora Ana não cozinhava, sendo a senhora Rita, sua vizinha, quem lhe fornecia as refeições. Os
móveis existentes na cozinha estavam deteriorados, não os querendo para a nova casa. Desta divisão
apenas queria levar a mesa para a futura sala da nova casa. Reservou um espaço nesta divisão para cuidar
da sua higiene, dispondo de um balde com suporte e uma pequena estante na parede onde colocava os
produtos de higiene. Quanto ao penico, era de metal, uma vez que, não tendo saneamento em casa, a
senhora Ana tinha que posteriormente deitar os resíduos na casa de banho comum na «ilha».
76. Por exemplo, antes da reabilitação da «ilha», a Ritinha realizava as refeições para a sua família (marido
e filha Carla e, por vezes, os filhos Luís e o António e os netos) e para as suas vizinhas. Nesta divisão eram
visíveis os canos nas paredes, assim como a humidade. O quarto do piso inferior era ocupado pelo senhor
Armando, o qual passava grande parte do tempo lendo o jornal, vendo televisão e tomando as refeições.
No piso superior existiam dois quartos: um ocupado pela filha Carla e outro pelo filho Luís. O quarto da
filha era composto por uma cama de solteiro e um pequeno móvel que suportava a televisão. Nesta divi-
são era visível também a humidade. A cozinha, pintada de cor verde, de pequena dimensão, tinha um fogão,
uma mesa com uma bacia que funcionava como banca de lavar a louça e preparação de alimentos. Nesta
divisão existía ainda a máquina de lavar roupa. Esta casa não tinha quarto de banho nem água quente.
77. Cf. Rodrigues (2014). Cada um foi resolvendo as deficiências do seu habitáculo conforme a sua pos-
sibilidade. O senhor MP foi fazendo as obras com a ajuda de amigos e familiares que trabalhavam na cons-
trução civil. Outros pelas suas próprias mãos. Poucos recorriam a mão-de-obra de fora da «ilha». O sanea-
mento e a iluminação das vielas e dos corredores da «ilha» foram realizados com a mão-de-obra dos mora-
dores/as e com a ajuda em materiais por parte da Junta de Freguesia do Bonfim em finais do século XX
(cf. Rodrigues et al., 2015a, 2015b).
| 186 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Porém, por outro lado, tal como advertem os mesmos autores, a dimensão prá-
tica e empírica não pode nem deve alhear-se das questões epistemo-metodológicas
e das abordagens teóricas, considerando necessária uma prática de pesquisa cen-
trada na construção de um conhecimento que tem por base justamente a proble-
matização teórica e a procura de rigor método-técnico na investigação empírica.
Assim, a prática sociológica e o saber comprometido (Bourdieu et al., 2002) não
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 187 |
78. No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001:2762-63), edição da Academia das Ciên-
cias de Lisboa, Participação vem do latim participatio, isto é, ação ou resultado de intervir, de tomar parte
em alguma coisa, igual a intervenção. Mas é acima de tudo entendida como ação ou resultado de cola-
borar ativamente, de se solidarizar e associar a outrem na realização de alguma coisa. O participante é
aquele que está presente, intervém, toma parte. Participar significa tomar parte, estar presente e intervir,
ter participação. A partir desta complexidade linguística, podemos declarar que todo o projeto participa-
tivo exige das pessoas um envolvimento e um compromisso muito maior do que outras formas de traba-
lho. Neste sentido, os projetos participativos têm um efeito catalisador na forma como reforçam a voz da
comunidade na defesa dos seus direitos. Participação não se circunscreve a informação e consulta, que,
mesmo quando necessária na pesquisa, não se confunde com participação ou, pretendendo-a aparentar
como tal, redunda em «falsa participação». Por exemplo, Lefebvre (1976) sobre o problema da «falsa» par-
ticipação insistia muito na ideia de que pode haver uma participação ilusória: por exemplo, «reunir duzen-
tas pessoas numa sala e apresentar-lhes um programa, afirmando que este é o plano que se elaborou. Isto
nem sequer é uma consulta, isto é publicidade, é uma falsa participação» (1976:4 e ss.). Pineda (2006) con-
sidera que a «participação deve ser entendida como governança, compreendendo esta a forma como faz
a redistribuição do poder desde o Estado aos atores sociais e, nalguns casos, como parte do processo da
produção social do habitat, vinculando a auto-gestão aos processos de baixo para cima» (2006: 51). Este
autor reconhece a existência de diferentes maneiras de abordar a questão participativa: por exemplo, no
desenho e na definição das políticas públicas, na planificação urbana e na configuração dos bairros, assim
como no desenho da habitação. Considera também que a participação pode dar-se em distintas etapas
dos processos: participação nos diagnósticos, nos objetivos, na programação e na planificação, nos dese-
nhos, na realização até à operação e gestão dos projetos. Estamos em plena sintonia com o autor porque
só podemos falar de participação quando os moradores se transformam em atores e os investigadores a
colocar-se no lugar dos «moradores/as», isto é, quando os habitantes deixam de ser apenas beneficiários
e passam a ser atores com poder de decidir sobre o programa e o processo, a obra e a sua execução.
79. Sobre os novos movimentos urbanos de luta pelo Direito à Habitação realçamos a concentração no
dia 7 de Abril de 2018, pelas 15 horas na Praça da Batalha sob o lema «Mais Habitação, Menos Especu-
lação!» e a marcha na cidade do Porto, no dia 22 de Setembro de 2018 sob o lema «Pelas Nossas Vidas.
Pelas nossas. Lutamos». É de referir também a concentração no Largo de São Pedro de Miragaia dos mora-
dores do centro histórico do Porto que estavam a ser expulsos de suas casas, de seus bairros pela aplica-
ção da Lei Cristas (também conhecida como a Lei «Caracol») e da pressão do Alojamento Local. Sobre estas
lutas nalgumas ilhas e bairros sociais, nomeadamente em anos anteriores, Fernando Matos Rodrigues,
enquanto antropólogo e ativista, foi dando expressão pública em diversos artigos seus publicados em
diversos jornais, nomeadamente sobre a «ilha» aqui em estudo, sendo de destacar entre outros, os seguin-
tes: «Para uma antropologia do habitar. As Ilhas do Porto» in O Tripeiro, 7.ª Série, Ano XXX, n.º 11, Novem-
bro de 2011, pp. 326-327; «Em defesa do direito à habitação no Bairro Nicolau do Porto» in O Público,
2 de Agosto de 2013; «A reabilitação da Ilha da Bela Vista. Novo paradigma nas políticas de habitação
para a cidade do Porto» in O Tripeiro, 7.ª Série, Ano XXXIV, N.º 1, Janeiro de 2015, pp. 8-9; «A propó-
sito da reabilitação da Bela Vista. A importância das Ilhas do Porto» in O Tripeiro, 7.ª Série, Ano XXXIV,
| 188 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Nestes últimos anos foi possível acompanhar várias comunidades que fizeram da
sua resistência a sua luta pelo direito ao lugar e à habitação. Destacamos os casos
da comunidade africana do Riobom, da comunidade da «ilha» da Tapada, do bairro
do Nicolau, do bairro D. Leonor, da comunidade de «ocupas» do Gama, do bairro
da Lomba, das ilhas da Póvoa (cf. Rodrigues e Fontes, 2018), os quais exigem planos
de reabilitação/renovação das casas que, atendendo aos seus baixos recursos,
possam ser realizados a baixo custo, com apoio do próprio Estado central e/ou da
Câmara, preenchendo as condições necessárias para um habitar digno. A partir
desta ação pelo direito ao lugar e à habitação a equipa do Laboratório de Habitação
Básica foi construindo um caminho de compromisso, de confiança e de solidarie-
dade para e com as comunidades que se encontram em situação de forte vulnera-
bilidade social e habitacional na cidade do Porto80.
Em suma, não só a aplicação dos métodos e técnicas usuais em ciências sociais,
mas também a investigação-ação, a observação participante e a utilização de méto-
dos participativos com os membros da comunidade, enquanto atores e construto-
res, nos permitiram conhecer a «ilha» e seus moradores/as numa dimensão simul-
táneamente holística e compreensiva.
n.º 2, de Fevereiro de 2015 pp. 46-51; «Nova Vida para as Ilhas do Porto. A propósito da reabilitação da
Bela Vista na freguesia do Bonfim» in O Tripeiro, 7.ª Série, Ano XXXIV, N.º 3, Março de 2015, pp. 86-87.
Cf. ainda Rodrigues et al., (2017a).
80. A equipa do Laboratório participou na 11.ª Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Des-
centralização, Poder Local e Habitação na Assembleia da República em 8 de Fevereiro de 2018, pelas
14 horas em Audição com representantes dos moradores das «ilhas», nomeadamente a Pró-Federação
das Ilhas e Bairros Populares do Porto. Estiveram presentes pelo Laboratório Fernando Matos Rodrigues,
Manuel Carlos Silva, António Cerejeira Fontes e os membros da Associação de moradores da «ilha» da
Tapada. No quadro e na sequência desta Audição participou também Rui Moreira, Presidente da Câmara
Municipal do Porto.
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 189 |
sociais, mas mais ainda para os moradores/as, cuja memória da primeira expe-
riência de participação no processo em 1975-76 não tinha dado qualquer fruto. Se,
por um lado, foi necessária uma reflexão meticulosa e comprometida sobre o caso,
por outro tornava-se fulcral que um novo fracasso não afetasse ainda mais pro-
fundamente esta comunidade em risco ou em situação de vulnerabilidade social
e psíquica. Por exemplo, vale a pena trazer à colação uma das primeiras entrevis-
tas com o morador Mário Pinto, membro da Direção da Associação de Moradores,
em que ele, com os seus 82 anos, lembrando a frustração do período SAAL em
1975/76, descreve a enorme desilusão da comunidade pela não concretização do
projeto do arquiteto Mário Moutinho:
«Foi um descrédito para toda a gente, uma grande frustração. A Associação come-
çou a desintegrar-se, perdemos quase tudo… Ficou sempre essa marca de dúvida em
qualquer promessa de renovação… e vinha logo, vai acontecer como nas outras vezes.
Nunca ninguém cá veio explicar nada, nem o porquê do processo ter ficado parado. A
Arquiteta F.A. fazia muito barulho, discutia muito com os moradores, mas nunca expli-
cou, nem nunca deu nada. Passados quatro anos, apareceu cá na “ilha” o Arquiteto M.T,
os habitantes queriam matá-lo, ele explicou todo o processo, dizendo que elas (as arqui-
tetas F.A. e M.C. do Fundo de Fomento da Habitação) não gostavam do projeto e o
assunto ficou resolvido. Enquanto decorreu o processo da Bela Vista o arquiteto S. V.
vinha cá muitas vezes, falar com a equipa dos arquitetos. Mas nunca mais cá voltou.
As pessoas foram desistindo e foram-se mudando para os bairros. A Câmara vinha cá,
quem quiser ir pode ir. O único que fez alguma coisa por nós foi o Dr. P.M.. Claro que
agora começamos a acreditar que vai ser desta vez».
Destes primeiros contatos com a comunidade, ficou bem claro que não havia
espaço para o fracasso na nova tentativa de relançar o projeto de habitação básica
participada na Bela Vista, doutro modo a comunidade ficaria totalmente desilu-
dida, o que levava Mário Pinto a dizer: «Não podemos voltar a ser a chacota da
rua». De facto, nas conversas, nas assembleias com os moradores, sentia-se este
clima de drama, de medo, de insegurança face à possibilidade de o projeto de habi-
tação básica participada não se concretizar. Por exemplo, a senhora C.P. sempre
teve muito receio de não se reabilitar a «ilha» da Bela Vista. Foram muitas as vezes
em que ela criticou A.F., o atual Presidente da Associação, acusando-o que ele
«andava enganado. Que tudo isto não passava de uma mentira». Só quando se
instalou o Laboratório de Habitação Básica na sede da Associação de Moradores,
na Casa 42 da «ilha» e sobretudo após a visita do Presidente da Câmara Rui Moreira
com o compromisso por parte deste com os moradores/as é que a «coisa» acalmou.
Estávamos em finais de Setembro de 2013 quando se realizou esse encontro entre
o Rui Moreira, os membros do Laboratório e os moradores/as no largo da entrada
da «ilha» da Bela Vista. Estávamos em plena campanha eleitoral autárquica, em que
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 191 |
Como se pode ver, na descrição deste processo estão presentes, para além da
participação dos próprios moradores/as e, em particular, do empenho da Associa-
ção de moradores/as, mais dois fatores fulcrais para a verificação das precondições
básicas necessárias para o sucesso da ação coletiva da comunidade: a participação
de técnicos e cientistas sociais capazes de garantir a apresentação da proposta e
o compromisso político dos sucessivos atores políticos que viriam a deter os ins-
trumentos de poder para aprovar e implementar o projeto.
Na «ilha» da Bela Vista foi possível colocar em ação todo um conjunto de solu-
ções participativas, desde o momento em que o Laboratório de Habitação Básica
(LAHB) se instalou em inícios de 2014 na sede da Associação de Moradores da Bela
81. Participaram nestes seminários especialistas nacionais e estrangeiros de várias organizações e insti-
tuições universitárias como, por exemplo, Sílvia Ferreira, Manuel Carlos Silva, Fernando Bessa Ribeiro, Elena
Tarsi, Marco Kamiya, Javier Poyatos Sebastián, Graeme Bristol, Taís Sousa, entre outros.
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 193 |
Vista a convite do seu presidente António Lopes Fontelas, permitindo assim uma
maior proximidade com os moradores e seus problemas, seus modos de vida e
formas de habitar. Com a deslocação da equipa do LAHB para a «ilha» da Bela Vista
foi possível aumentar o índice de envolvimento e o coeficiente de presença e inte-
ração, interconhecimento e partilha de forma acentuada, de tal maneira que os
moradores/as e os corpos sociais da associação participaram ativamente na cria-
ção de condições físicas para aí se instalar o LAHB, pintando paredes, colocando
lâmpadas, instalando os sanitários, a água pública, derrubando paredes interiores
para aumentar o espaço disponível para aí se instalarem máquinas, estiradores,
mesas de reunião, computadores e plotter para impressões. Mas a participação dos
moradores/as e, em particular, dos membros da Associação não se circunscrevia
a tarefas manuais mas estes dispunham-se, amiúde por iniciativa própria, a entrar
na discussão e no desenho de novas propostas e novas soluções, nomeadamente
para resolver algumas patologias de construção, assim como deficiências do habi-
tat e do habitar na «ilha» da Bela Vista. Os moradores/as e, em particular, os mem-
bros da Associação não só discutiam ideias e opções, de modo quente e animado,
aberto e crítico, como por vezes riscavam sobre o papel. Estávamos perante um
contexto muito singular e um espaço de portas abertas, em que toda a gente batia
à porta e entrava.
Assim, começaram os trabalhos participados entre os membros do LAHB e os
moradores/as. O envolvimento entre comunidade e especialistas permitiu a cons-
trução de um espaço de partilha de saberes e competências e de forte compromisso,
necessários à implementação da operação de renovação da Ilha da Bela Vista. Cada
morador/a colaborava de acordo com as suas possibilidades e as suas habilidades
e competências, desde a moradora que ajudava na limpeza e arrumos, passando
pelo morador que colaborava em obras para adequar o espaço aos novos usos, até
à organização do laboratório, na eficiência das suas atividades e na instalação da
tecnologia e mobiliário. O laboratório era, assim, um espaço aberto, plural, ser-
vindo os moradores/as e possibilitando à equipa do LAHB desenvolver a sua ati-
vidade para benefício dos moradores/as da «ilha» da Bela Vista. Os espaços eram
partilhados pela comunidade, pela Associação de moradores/as e pelos membros
do LAHB. Não havia portas fechadas nem espaços de exclusão. O LAHB era, por
natureza e função, um prolongamento da comunidade, com a qual interagia e com
a qual se identificava, enfim, um espaço de trabalho mas também e essencialmente
um lugar de encontro, discussão e partilha, em que todos/as depositavam a espe-
rança de serem bem sucedidos.
Construída uma base de confiança e, por vezes, cumplicidade, tal permitiu aos
investigadores/as, como referido, entrar nas casas dos moradores/as, de modo a
falarem sobre as suas vidas, os seus problemas e suas aspirações. A partir de um
certo momento, as pessoas começaram, como referido, a partilhar fotografias anti-
| 194 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
gas da família, da «ilha», das festas, dos casamentos, os nomes dos pais, dos filhos,
dos parentes ausentes, dos que já tinham morrido e daqueles que ninguém já
queria falar; possibilitaram-nos o acesso a correspondência familiar e de amigos,
a diários, a poemas, inclusive documentos pessoais. Desta forte e densa relação
foi possível, por exemplo, recuperar e recolher um conjunto de poemas da D. Ani-
nhas, uma das moradoras na Bela Vista, os quais, com sua autorização, foram,
como referido, posteriormente editados em livro pela Editora Afrontamento em
parceria com o Pelouro da Cultura da Câmara Municipal do Porto e do Laborató-
rio de Habitação Básica.82 A partir desta etnografia prática fomos entrando nas
memórias dos moradores/as da Bela Vista, estabelecendo diálogos entre o passado
e o presente, habitando o silêncio das genealogias e dos parentescos próximos ou
longínquos, «escavando» um pouco o seu passado, mas caminhando juntos no pre-
sente numa caminhada construída passo a passo. Com efeito, a habitação, exer-
cendo diversas funções, é abrigo, espaço de lazer, espaço de segurança e privaci-
dade, espaço de posse e apropriação do território, espaço de organização da vida
individual, familiar e social, mas também é um fator estruturante na definição da
sua posição social e identidade familiar. Em suma, a habitação é o espaço onde a
pessoa se permite estabelecer relações de vizinhança e relações sociais (Giddens,
1989; Silva, 2012), um espaço onde, no contexto urbano envolvente de forte desi-
gualdade socio-espacial, se pode, embora de modo limitado, realizar o direito
ao lugar e o direito à cidade e ao sentido de justiça espacial (cf. respetivamente,
Lefebvre, 1968; Harvey, 1992 e 2018; Soja, 2010; Tarsi, 2018).
A participação e a presença de moradores/as, particularmente da Associação
de moradores, foi fulcral não só na preparação e na mobilização de pessoas no
início do processo como durante a realização das obras para o realojamento e a
preparação para a instalação do estaleiro, garantindo a participação de todos/as
nas sucessivas fases de reabilitação. O processo de planeamento da execução das
obras foi pensado e desenhado de forma a garantir a segurança, a estabilidade e o
conforto possível dos moradores/as, sem escamotear os problemas específicos de
mobilidade, de dependência e de fragilidade na doença por se tratar de uma comu-
nidade muito envelhecida e doente. Procurou-se minimizar os problemas ineren-
tes ao processo de (re)construção, estudando em conjunto e em cada momento as
soluções possíveis.
82. Cf. Ana Ribeiro (2015). No prefácio da autoria de Fernando Matos Rodrigues lê-se: «Com a edição
deste trabalho poético de uma das mais antigas moradoras da Bela Vista pretende-se valorizar os terri-
tórios criativos, os imaginários simbólicos de quem nasceu e vive há 86 anos nesta ilha, com um sentimento
de pertença e de comunidade muito forte, refletindo e pensando a sua vida, a sua ilha e a sua comunidade
através de uma linguagem fortemente poética e sentimental».
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 195 |
83. Este programa foi desenhado com a participação de todos os moradores/as, dos membros do LAHB
e, posteriormente, colocado em discussão com o representante da Domus Social – Engenheiro José Fer-
reira. A construção deste «Programa de Realojamento» no seio da «ilha» implicou uma forte negociação
com os moradores/as e com os representantes da Associação. Ao fim dum processo que se prolongou por
mais de três meses foi possível chegar a um compromisso entre as partes e à construção de um programa
que desse resposta a todas as dúvidas levantadas nas reuniões de trabalho, nas assembleias com todos
os moradores/as e fosse garante de todos os bens materiais e imateriais e, acima de tudo, protegesse os
moradores/as de qualquer tipo de risco.
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 197 |
84. O caso de JC era mais complexo e urgente, pois era do conhecimento de todos que o JC desde 2014
tinha vindo a viver em casas desocupadas da «ilha», mas que nos últimos anos dormia num sofá velho
depositado nas casas de banho do corredor de baixo na «ilha» da Bela Vista. O motivo de ter deixado a
casa dos pais tinha origem em conflitos recorrentes com os outros elementos do agregado. O JC tem pro-
blemas graves de saúde. O facto de o espaço do Laboratório estar aberto 24 horas dentro da «ilha» da
Bela Vista permitiu incluir e aproximar pessoas com as suas diferentes idiossincrasias no centro da opera-
ção e do processo de habitação básica participada.
| 198 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
4. Conclusão
Neste texto foi constatada a política de alheamento e de abandono por parte
do Estado e das Câmaras das «ilhas» e dos bairros sociais, nomeadamente no Porto,
sendo mesmo pela omissão cúmplices da estratégia agressiva dos interesses finan-
ceiros e imobiliários. Contrariando esta lógica, embora como caso excepcional, foi
possível reabilitar e renovar com sucesso a «ilha» da Bela Vista graças à combina-
ção de vários fatores: conjugação da ação coletiva dos moradores/as e, em parti-
cular, da sua Associação, duma equipa de técnicos especialistas e investigadores/
as e sobretudo o compromisso político duma candidatura à Câmara, que viria a
ser vencedora, embora tal se situasse mais no cumprimento de uma promessa espe-
cífica e não como uma política habitacional generalizada a nível municipal por
parte da Câmara e do seu Presidente.
Depois de expor as linhas das metodologias participativas, foi relatada a ten-
tativa de um velho processo de reabilitação desenhado no pós-25 de Abril no quadro
do SAAL, cujo fracasso levou a uma certa descrença e desmotivação entre os mora-
dores/as. A resistência de moradores/as, apesar do inicial cepticismo de alguns,
combinada com a persistência da Associação de moradores/as que, perante amea-
ças de despejo resultantes de políticas camarárias, acolheram a colaboração de téc-
nicos e investigadores/as e criaram algumas condições iniciais para comprometer
o candidato e futuro Presidente da Câmara a cumprir a sua promessa eleitoral de
reabilitação da «ilha». Foi assim feita a descrição e a análise do processo, tendo
como protagonistas os moradores/as, a equipa do LAHB e os investigadores/as e,
por fim, mas não menos importante, as figuras de vereadores, particularmente do
Urbanismo e da Cultura, e o próprio Presidente da Câmara.
Ficou evidente que pensar a habitação na e para a cidade implica o reforço dos
instrumentos de democracia participativa, isto é, não é possível pensar e projetar
a cidade sem integrar tudo e todos no processo de realização e de implementação
dos documentos estratégicos que definem o mapa, a imagem e a visão de futuro
da cidade. No caso concreto da «ilha», esta realidade permitiu a utilização dos méto-
dos participativos e das técnicas etnográficas e antropológicas na construção das
CAPÍTULO VII. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS: O CASO EXEMPLAR DA «IILHA» DA BELA VISTA/ PORTO (2013-2017) | 199 |
Siglas
ARU = Área de reabilitação urbana
COTEFIS = designação da empresa de construção
PREC = Período Revolucionário em curso
SAAL = Serviço Ambulatório de Apoio Local
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Capítulo VIII
Trabalho de campo
num bairro social
de Braga
Questões metodológicas
e o envolvimento
participante como
estratégia
Joana Teixeira*
Fernando Bessa Ribeiro**
o país não ficou indiferente. Assim, ao longo do século XX, foram numerosas as
políticas públicas no domínio da habitação (cf. Ferreira, 1987; Baptista, 1999; Rodri-
gues e Silva, 2015; Queirós, 2015). Na década de 1960, o governo iniciou um plano
de desenvolvimento nacional, o chamado Plano de Fomento, que tinha como obje-
tivo desenvolver os diversos setores de atividade, nomeadamente a indústria. Tal
contribuiu para o crescimento das migrações internas, com grande foco nas cida-
des de Lisboa e Porto, nas quais se dá um incremento significativo da procura habi-
tacional (Matos, 1994). No III Plano de Fomento (1968-1973) a questão do aloja-
mento da população em maior vulnerabilidade é enfatizada, sendo criado o Fundo
de Fomento da Habitação (FFH), que tinha como um dos seus pilares a promoção
de habitação social. Já após o 25 de Abril de 1974, a descolonização implicou o
regresso praticamente imediato, num curto intervalo de meses nesse ano e sobre-
tudo em 1975, ao chamado «continente» de mais de meio milhão de pessoas. Em
concreto, o total de migrantes das ex-colónias, comummente denominados de retor-
nados, foi de 505.078 até 1981 conforme os dados do Instituto Nacional de Estatís-
tica (INE). Destacam-se como principais fluxos os 309.058 provenientes de Angola
e 164.065 de Moçambique, com uma forte fixação na área metropolitana de Lisboa.
Ao mesmo tempo, o país apresentava fluxos relevantes de migração interna, nomea-
damente do campo para a cidade, acentuando a procura por alojamentos. Em
apenas uma década, a população passou de 8,6 milhões em 1970 para 9,8 milhões
em 1981, um crescimento que jamais se voltaria a registar até ao presente.85 Com
este elevado crescimento da população portuguesa, a habitação torna-se numa ques-
tão de emergência social.
Não tendo ficado à margem destas dinâmicas, o bairro das Andorinhas surgiu
também como resposta ao crescimento demográfico da cidade de Braga na década
de 1980, ocorrido num contexto marcado por condições precárias de habitação.
Daí que as políticas urbanas tenham procurado realojar a população que vivia em
situação de maior vulnerabilidade habitacional, construindo para o efeito comple-
xos habitacionais com um grande número de alojamentos familiares.
Foi o caso do bairro das Andorinhas, localizado na freguesia de São Vicente,
cuja construção foi concluída em 1983. Foi um grande projeto habitacional, com-
posto por um conjunto de 33 prédios que permitiram o alojamento de cerca de
duas mil pessoas em 224 fogos, com 32 entradas, distribuídas por seis blocos de
apartamentos, predominantemente de tipo T3 (ver Fotografia 1: Vista aérea do
bairro das Andorinhas e Fotografias 2 a 6: Bairro das Andorinhas aquando da che-
gada dos primeiros moradores). Foram ainda reservados espaços para comércio e
serviços no total de treze lojas. Resultante da ação do Instituto de Gestão e Aliena-
Novembro, dia chuvoso e frio. Era outono em Braga, prenúncio do inverno. Pensei:
então, é assim um bairro social em Portugal? Confesso que fui surpreendida. Mesmo
num dia cinzento o local tinha muitas cores. As árvores estavam secas, mas uma
relva verde contrastava com os prédios alaranjados. Talvez algumas fachadas este-
jam degradadas, mas é um espaço bonito e aparentemente organizado (v. Fotogra-
fia 7: Vista parcial do bairro social das Andorinhas [Outono de 2017]).
Cheguei ao bairro das Andorinhas acompanhada por colegas do projeto e alguns
rostos curiosos me olharam. Imagino que retribui olhando da mesma forma. Já me
tinham falado do acolhimento das/os moradoras/es deste bairro, mas fui surpreen-
| 210 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
dida novamente. O dia estava escuro, mas havia muita vida na cafetaria central,
local onde os moradores se encontram. Vi alguns homens bebendo e jogando cartas
e não pude deixar de notar que as únicas mulheres no local éramos eu e minha
colega. Fui acolhida calorosamente por um dos diretores da Associação de Morado-
res, que me contou um pouco da história do bairro e me apresentou às pessoas. Cada
detalhe saltava aos olhos.
ela foi com uma mulher residente no bairro desde o seu início, sendo que me foi
enfatizado por aquela a necessidade de conhecer um outro lado do bairro, para além
da Associação, onde há pobreza e exclusão. Agendei dia e hora para este encontro
que seria a minha primeira entrevista sozinha. Neste dia não chovia, após vários
dias de chuva persistente. Cheguei ao café mais cedo do que o normal e deparei-
-me com uma realidade oposta à habitual, observando-se várias mesas com mulhe-
res, falando e gargalhando alto. Face à minha surpresa, me explicaram que após
o almoço as mulheres costumavam se encontrar para conversar e tomar café. Fiquei
com elas por alguns minutos e quando tive oportunidade apresentei o projeto. As
moradoras rapidamente se organizaram para que fossem realizadas entrevistas com
todas, sendo agendadas para os dias seguintes. Em pouco tempo levantaram-se
falando das inúmeras tarefas que ainda tinham de realizar em casa e o café ficou
vazio e silencioso.
Fui acompanhada até à casa de uma moradora, já que seria a primeira vez que
entraria num apartamento no bairro, pois todas as outras entrevistas foram reali-
zadas na Associação. Fomos recebidas pela própria moradora, muito sorridente e
acolhedora, uma senhora que cuidava de sua neta, que desde logo me direcionou
para a cozinha de modo a que pudesse observar a humidade no teto e o estado
degradado dos armários. O cheiro a mofo era forte. [Excertos do caderno de campo].
vida quotidiana; (iv) conhecer os principais problemas que atingem a vida das
mulheres que habitam o bairro das Andorinhas; (v) analisar a intersecção entre
as questões relativas às desigualdades de género e, de forma mais ampla, as de
índole social.
Para responder aos três primeiros objetivos revelou-se fundamental a revisão
bibliográfica e a pesquisa documental que se centraram nos domínios da habita-
ção, tendo-se mobilizando autores como Baptista (1999 e 2006), Bandeirinhas
(2011), Ferreira (1987), Matos (1994), Mendes (1998), Wacquant (2005), Rodrigues
et al. (2017), bem como, já na área de estudos sobre o género e as mulheres,
Amâncio (1992, 1999 e 2003), Arruzza (2010), Beauvoir (2008 e 2018), Bourdieu
(1979, 1986, 1989, 1990, 2011 e 2012), Brandão (2010), Connell (1987), Saffioti
(1987, 1999, 2000, 2004, 2009), Schouten (2011) Scott (1992 e 1990), Studart
(1974), Tavares (2011), Silva (2016) e Zirbel (2017). No que se refere aos dois últi-
mos objetivos, fortemente ancorados no terreno, assume-se que «toda pesquisa é
intervenção» (Passos e Barros, 2015:30). Quer dizer, estar inserido no território,
além de afetar – no sentido de ternura – a pessoa que investiga, também interfere
e pode desestabilizar a ordem das coisas. Quem pergunta faz pensar… sobretudo
quando, como assinala F. B. Ribeiro (2010), as relações estabelecidas entre quem
quer saber, o indivíduo que pergunta, e os indivíduos que sabem, as pessoas obser-
vadas, no sentido etnográfico, isto é, de alguém que se imiscui na vida de um
dado grupo social para conhecer as suas vidas através dos seus discursos, não se
resumem a uma simples partilha de informação, antes implicando um relaciona-
mento humano afetivo e socialmente significativo.87 Neste sentido, a neutralidade
é interpelada.
Foi considerando este quadro metodológico que se desenvolveu uma pesquisa
de caráter qualitativo que, na esteira de Bourdieu (2008 [1993], procurou superar
o aparente para compreender e conhecer subjetividades, valores, crenças, repre-
sentações, hábitos, atitudes dos sujeitos e do território investigado. Se é certo que
se assumiu que «[…] a realidade do sujeito é conhecida a partir dos significados
que por ele lhe são atribuídos» (Martinelli, 1999: 25), não basta conhecer bem as
narrativas dos atores observados. Como Bourdieu (2008 [1993]) nos sugere, é
necessário que este esforço intelectual se cumpra considerando os princípios apli-
87. Martinelli (2000: 53 ss) designa esta relação como empatia, cujas origens remontam à Grécia clássica.
Para os gregos empatheia (Έμ-πάθος) significava afectado, comovido, apaixonado, uma identificação
emocional com um outro indivíduo. Etimologicamente ligada ao páthos (Πάθος) – estado agitado de
alma – possuía para eles, tal como nós também o entendemos hoje, um sentido mais forte do que o vocá-
bulo simpatia. No século XIX os alemães reintroduzem-na no pensamento ocidental: a einfühlung foi tra-
duzida pelos ingleses por empathy, tendo dado origem à palavra francesa empathie. Desenvolvendo-se
no interior do romantismo alemão, a empatia é para os alemães desta corrente a possibilidade de sentir os
batimentos do coração do povo, algo mais profundo do que se introduzir na «pele» do povo (Martinelli,
2000: 72-76).
CAPÍTULO VIII. TRABALHO DE CAMPO NUM BAIRRO SOCIAL DE BRAGA | 213 |
cados pela medicina grega: procurar as doenças invisíveis, o que corpo não exibe
nem os sinais revelam. Quando aplicado ao social, é não ficar amarrado às evi-
dências mais explícitas: os atores sociais e os seus acontecimentos, obliterando
a força que as estruturas produzem sobre os indivíduos sem que estes, muitas
vezes tenham sequer consciência, como acontece com as desigualdades fundadas
no género.
No âmbito desta abordagem qualitativa, foram mobilizados instrumentos já
validados e parcialmente coletados no âmbito do projeto em que a investigação se
inseria, como foi acima referido, em particular o guião de entrevista. Efetivamente,
embora também tenha sido trabalhado um inquérito por questionário direcionado
para uma análise de cariz quantitativo, deste apenas foram selecionados dados
relacionados à escolaridade (habilitações literárias) dos/as primeiros/as residen-
tes. Estes dados foram sujeitos a um tratamento meramente descritivo para enqua-
dramento contextual da pesquisa. Privilegiou-se, assim, a técnica da entrevista,
sendo que ao guião-base desenvolvido no âmbito do referido projeto se acrescen-
taram outras questões, mais direcionadas para a questão de partida deste estudo
e, em concreto, incidentes no domínio do género. De facto, o guião-base dava
ênfase a questões relativas às origens e à socialização familiar na infância e juven-
tude; vivências e relações intra e interfamiliares e namoro/casamento; trajetória
escolar; trajetória profissional e condições de vida; habitações e experiências de
vida antes da entrada no bairro; experiências de vida; identidade e identificação
com o bairro; modos presentes de viver, de sentir e de habitar no bairro; perceções
dos/as moradores/as; relações com as autoridades (Estado/governo/partidos,
Câmara, Junta de Freguesia, Empresa Municipal de Habitação); perceções dos
moradores/as sobre a Associação de Moradores.
Mereceram aprofundamento as perguntas relacionadas com as habilitações lite-
rárias, o trabalho, a política e os estereótipos de género resultantes dos processos
socio-histórico e cultural, aplicadas a treze mulheres, com idades distintas (cf.
Quadro 1. Caracterização das entrevistadas). Para a seleção das entrevistadas foi
mobilizada a chamada técnica de «bola de neve»,88 ainda que se tenha sempre
procurado chegar a uma relativa (ou possível) heterogeneidade em termos de perfil
etário, estado civil e habilitações literárias, de forma a apurar não só regularidades
mas também eventuais particularidades.
88. Conforme Vogt, Gardner e Haeffele (2012: 129) a «bola de neve» é uma técnica que a partir de con-
tatos iniciais possibilita indicações de contatos posteriores. Citando-os, «o principal pressuposto da amos-
tragem de bolas de neve é que os membros de sua população-alvo se conhecem». (idem, 129).
| 214 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
A análise de conteúdo é sempre uma fase crucial, pretendendo-se com ela «des-
crever as situações, mas também interpretar o sentido do que foi dito» (Guerra,
2010: 69). Diferentemente das pesquisas com um pendor mais quantitativo, que
necessitam da recolha de todos os dados para iniciar a análise, a pesquisa quali-
tativa inicia este processo no próprio tempo do trabalho de campo, não havendo
necessariamente a separação entre o conjunto de dados e a análise dos mesmos,
sendo possível utilizar as primeiras análises para refletir sobre novas questões e
perguntas para pesquisa. Assume-se, assim, a pesquisa qualitativa como mais fle-
xível (Gibbs, 2009:18). Segundo Laville e Dionne (1999:214-231), não há um método
rígido a ser desenvolvido na análise de conteúdo, sendo possível descrever alguns
momentos para facilitar o desenrolar deste processo. Conforme os autores, a aná-
lise de conteúdo inicia-se com o recorte de conteúdo em elementos e o agrupa-
mento em função da sua significação. Posteriormente, definem-se as categorias
analíticas, que serão organizadas por parentesco de sentido para iniciar propria-
mente dito o processo de análise, procurando fazer a construção do sentido dos
discursos estudados e alcançar os objetivos da pesquisa. Este estudo obedeceu,
assim, ao modelo de análise categorial que, segundo Bardin (2011), consiste em des-
membrar o texto em categorias de agrupamentos analógicos, seguindo temas recor-
rentes, para assim fazer a interpretação dos resultados. Note-se que, ao longo da
sua execução, esta tarefa de análise foi sempre cotejada com a literatura teórico-
-metodológica, de modo a melhor fundamentar a discussão crítica do problema de
investigação e dos dados recolhidos.
CAPÍTULO VIII. TRABALHO DE CAMPO NUM BAIRRO SOCIAL DE BRAGA | 217 |
«Max Weber realmente falou de neutralidade axiológica [– que Löwy (2014: 47)
considera tratar-se de uma tradução imprecisa do conceito de Wertfreiheit, “ciência livre
de julgamentos de valor” –], querendo dizer que não deveriam fazer julgamentos de
valores; mas nunca disse que se deveria ser indiferente ao mundo social. Ele foi um pen-
sador engajado em tempo integral» (apud Loyola 2002: 38),
aliás algo também salientando por Giddens (1997), quando nos lembra as suas
aspirações conflituantes, entre académico e cientista social, por um lado, e a sua
vocação como político, por outro. Daí que, como defende Löwy, «felizmente, Weber
não conseguiu “neutralizar” suas opiniões e crenças; ele exprimiu uma visão radi-
calmente crítica e bastante pessimista do presente e do futuro da civilização
moderna» (2014:47), muito em particular os fenómenos da burocracia e da tecno-
cracia como desvirtuadoras da democracia.
Convocando Bourdieu (2008/1993), trata-se de rejeitar a ideia positivista de
uma inocência epistemológica em favor de uma opção por uma abordagem meto-
dológica que admite que todo ato de conhecer é perpassado por preferências, afei-
ções e interesses particulares, implicando assim escolhas, incluindo no campo da
teoria e da metodologia (cf. Laville e Dionne, 1999). Não sendo possível, nem epis-
temologicamente desejável, «a neutralidade é esvaziada pelas próprias dinâmicas
relacionais que se estabelecem durante o trabalho de campo» (Ribeiro, 2010: 45).
Dito de outro modo, quem pesquisa é também parte integrada e interessada da
sociedade em que vive, pelo que o conhecimento de uma dada realidade social não
se faz de modo exterior a ela, como se a ela lhe fosse indiferente:
[…] conhecer a realidade é acompanhar seu processo de constituição, o que não pode
se realizar sem uma imersão no plano da experiência. Conhecer o caminho de cons-
tituição de dado objeto equivale a caminhar com esse objeto, constituir esse próprio
caminho, constituir-se no caminho (Passos e Barros, 2015: 31).
Trabalhadores!
É a vós que dedico uma obra na qual me esforcei por apresentar aos meus compa-
triotas alemães um quadro fiel de vossas condições de vida, de vossos sofrimentos e
lutas, de vossas esperanças e perspectivas. Vivi entre vós tempo bastante para alcan-
çar o conhecimento de vossas condições de existência, às quais consagrei a mais séria
atenção, examinando os inúmeros documentos oficiais e não oficiais que tive a opor-
tunidade de consultar. Contudo, não me contentei com isso: não me interessava um
conhecimento apenas abstrato de meu tema – eu queria conhecer-vos em vossas casas,
observar-vos em vossa vida cotidiana, debater convosco vossas condições de vida e
vossos tormentos; eu queria ser uma testemunha de vossas lutas contra o poder social
e político de vossos opressores. Eis como procedi: renunciei ao mundanismo e às liba-
ções, ao vinho do Porto e ao champanhe da classe média, e consagrei quase exclusiva-
mente minhas horas vagas ao convívio com simples operários – e estou, ao mesmo
tempo, feliz e orgulhoso por ter agido assim. Feliz, porque vivi muitas horas alegres
dedicando-me a conhecer vossa verdadeira existência, horas que, de outro modo, seriam
dissipadas em conversas fúteis e em cerimônias entediantes; e orgulhoso, porque desse
modo pude fazer justiça a uma classe de homens oprimidos e caluniados e à qual, apesar
de todos os seus defeitos e de todas as dificuldades de sua situação, só podem recusar
estima aqueles que têm alma de negociante inglês; orgulhoso, também, porque assim
tive oportunidade de defender o povo inglês do inelutável e crescente desprezo produ-
zido no continente pela política brutalmente egoísta, bem como pela conduta geral, de
vossa classe média dominante.
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| 222 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Transformar o território
com investigação-ação,
colaboração
e participação –
contributos a partir
de Marvila, Lisboa
Henrique Chaves*
2. Investigação
O desenho do trabalho de investigação da Rés do Chão sobre o território mar-
vilense foi focado nos pisos térreos e no espaço público. Os métodos e técnicas uti-
lizados foram distintos e complementares, nomeadamente contemplando inqué-
rito por questionário, entrevistas, recolha documental, recolha de imprensa, reco-
lha de material censitário, observação de usos e comportamentos no espaço público,
mapeamento do mobiliário urbano e das lojas existentes, etnografia e participação
da Associação nas redes locais, como o Grupo Comunitário 4 Crescente (GC4C).
O objetivo geral é perceber qual a perceção das pessoas sobre os pisos térreos não
habitacionais e o espaço público, bem como quais os desejos dos residentes para
o território. Estes métodos também permitem contextualizar o território, seja o
tecido comercial e associativo, seja a composição sociodemográfica e caracteriza-
ção do mobiliário urbano e dos pisos térreos não habitacionais.
Apresentam-se, de seguida, alguns resultados desta fase de investigação que
estruturou a intervenção da Associação no território. Estes resultados estão siste-
matizados em relatórios da Associação (Rés do Chão, 2018a, b, c, d, e; 2019).
A população destes bairros, à data dos censos de 2011 realizado pelo INE, per-
fazia cerca de 3800 pessoas. A distribuição das faixas etárias da população era de
23% (entre 0 e os 19), de 64% (dos 20 aos 64) e 13% (com mais de 65) anos de
idade. Verifica-se uma percentagem de apenas 1% da população com ensino supe-
rior completo e, aproximadamente, 7% da população não sabe ler nem escrever.
A grande maioria das pessoas (perto de 82%) está em situação de arrendamento,
num contexto em que, como já foi dito anteriormente, grande parte da propriedade
habitacional é municipal.
Para o primeiro contato com moradores/as, comerciantes e entidades locais
foi pensado um pequeno instrumento de trabalho para a realização dos inquéri-
tos, que se mostrou determinante para a criação de laços iniciais. O instrumento
era um folheto simples onde se explicava o que era projeto do Rés do Chão em
Marvila, os seus parceiros e a sua fonte de financiamento.
Foram realizados inquéritos a moradores/as, comerciantes e entidades locais
onde se procurou conhecer as suas perceções sobre o território. Destaca-se aqui,
por um lado, a avaliação negativa da higiene urbana, dos equipamentos culturais,
desportivos e recreativos e os eventos de lazer. Por outro lado, de forma positiva
foram avaliadas as ofertas educativas, os transportes e as acessibilidades.
Na altura do mapeamento dos pisos térreos existiam aproximadamente 104 pisos
térreos não habitacionais nestes bairros, dos quais 53% estavam a ser utilizados e
47% estavam desocupados. Os tipos de ocupação que se podiam encontrar na gene-
ralidade destes pisos térreos eram cafés, restaurantes, mercearias, serviços de esté-
tica e associações. A partir dos inquéritos realizados foi possível perceber que o maior
desejo para a ocupação dos pisos térreos não habitacionais que se encontravam
fechados era com atividades de assistência social e uma diversidade de serviços.
Em relação ao espaço público, notou-se que estes bairros estão circundados e,
em certa medida, isolados devido aos vários acessos viários e terrenos descampa-
dos expectantes (na sua maioria de propriedade municipal) existentes entre eles.
Além disso, há vários elementos de descontinuidade urbana tais como muros,
desníveis, taludes e declives que criam dificuldades no acesso e na circulação das
pessoas. Estas descontinuidades urbanas promovem exclusão (física, social e visual)
nos territórios (Ferreira, Brandão e Prudêncio, 2019b), bem como transformam os
núcleos habitacionais em «ilhas» urbanas. A pensar nas possibilidades dos terre-
nos expectantes, questionou-se em inquérito quais eram os principais desejos e
expectativas para estes terrenos. As respostas que reuniram maiores consensos
foram os espaços desportivos, jardim e espaços para crianças; porém, em termos
negativos, apurou-se a hipótese de construção de mais habitação.
As interações no espaço público são diversas e complexas, podendo gerar coe-
sões e conflitos (Ferreira, Brandão e Prudêncio, 2019a). Para compreender as inte-
rações no espaço público e a sua relação com o mobiliário urbano existente, foi
CAPÍTULO IX. TRANSFORMAR O TERRITÓRIO COM INVESTIGAÇÃO-AÇÃO, COLABORAÇÃO E PARTICIPAÇÃO… | 229 |
3. Ação
O envolvimento dos atores/utilizadores na produção e gestão do espaço público
é fundamental – estes atores sociais apresentam as suas complexidades em rela-
ção ao espaço público e é preciso considerá-las (Partidário, 2019). Como já foi refe-
rido, uma das primeiras ações que a Associação empreendeu ao chegar ao territó-
97. Foram utlizadas as ferramentas de trabalho: «People moving count», «Age+gender count», «Twelve
quality criteria», «Intercept survey worksheet», «Stationary activity mapping», «Social space survey», «Build-
ing facade activation», «Place inventory worksheet», «Familiar stranger survey». Link: https://gehlinstitute.org/
| 230 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
rio foi participar no Grupo Comunitário 4 Crescente (GC4C), fórum local dos bair-
ros Marquês de Abrantes, Quinta da Chalé, Alfinetes e Salgadas, onde estão pre-
sentes diversas entidades, desde associações locais, departamentos da Câmara
Municipal de Lisboa, Junta de Freguesia de Marvila, entidades como a Santa Casa
da Misericórdia de Lisboa e a Gebalis98 (empresa municipal de gestão da habita-
ção), bem como moradores/as. Um dos principais objetivos deste grupo comuni-
tário era responder aos problemas locais com o envolvimento coletivo do máximo
de parceiros. Nos últimos anos, a sua atuação tem vindo a ganhar cada vez mais
importância localmente, primeiro porque têm vindo a agregar mais moradores/as
e, em segundo lugar, porque têm vindo a defender uma série de iniciativas impor-
tantes para o território, onde se salienta o projeto Transformar Marvila com Jardim
e Ciclovias (explorado de seguida neste texto). O envolvimento da Rés do Chão
neste grupo foi importante para se ter um maior contato com o território e maxi-
mizar as atividades da Associação, sendo que o contributo da Associação também
foi importante na maximização da atuação do GC4C.
O sucesso de algumas atividades dá-se sobretudo pelo trabalho colaborativo
e participativo, onde se destaca o envolvimento de várias entidades e moradores/
as na sua conceção, estruturação, dinamização e tomando parte do projeto (Falanga
e Carvalho, 2016; Gouveia, 2016).
Um dos grandes exemplos deste tipo de trabalho é o projeto «C Bairrista».99 O
sucesso deste projeto dá-se por vários fatores, com destaque para a junção de várias
atividades que as entidades já estavam a planear realizar no território. A Gebalis
iria promover a requalificação do edificado habitacional de vários bairros com pro-
priedade municipal em Lisboa, incluindo Marvila. Nos lotes C do Bairro dos Alfi-
netes havia interesse da Gebalis em realizar o Programa Lotes ConVida100 em con-
junto com a intervenção estrutural no edificado. O objetivo seria dinamizar mora-
dores/as mais ativos/as no cuidado e na gestão dos seus prédios e espaço público
envolvente. A Associação Rés do Chão tinha como uma das suas atividades pro-
gramadas para o ano de 2018 a qualificação e ativação de um espaço público local.
Por outro lado, a Biblioteca de Marvila tinha interesse em continuar a realizar ati-
vidades no espaço público na área envolvente da biblioteca, como já tinha reali-
zado no ano anterior com o projeto Noites no Pátio101, desenvolvendo um conjunto
de sessões de cinema. A Associação Serve The City também tinha atividades pen-
sadas para o espaço público e vontade de mobilizar os moradores/as. Juntou-se,
por fim, com apoio financeiro, a Junta de Freguesia de Marvila. Com o objetivo de
qualificar e ativar o espaço público e dinamizar a comunidade local, estas entida-
des uniram os seus esforços e deram os primeiros passos para o que viria ser o
«C Bairrista» nos lotes C do Bairro dos Alfinetes.
Este projeto começou pela organização de assembleias de moradores dos lotes
C que tiveram uma grande participação dos residentes. Um dos objetivos destas
assembleias era apurar quais os desejos dos moradores/as para o espaço público
à sua volta, como também se eles estavam motivados em concretizar estes dese-
jos. A partir desta assembleia foram organizadas várias reuniões de trabalho com
uma periodicidade regular onde se foi afinando com os moradores/as como se
poderiam concretizar estes desejos, bem como a organização de uma festa para
comemorar o processo. Devido à necessidade de existência de espaços infantis,
surgiu o interesse em qualificar uma praceta envolvente aos prédios dos lotes C
com desenho de jogos para a infância; esta intervenção foi contemporânea a obras
no edificado para a qualificação estrutural da praceta. A discussão de cada tipo de
jogo a ser realizado, bem como a criação de pequenas estruturas para estes jogos
e a pintura do chão são demonstrativas do trabalho coletivo com envolvimento das
entidades, moradores/as e especialmente das crianças residentes neste território.
De forma semelhante, a organização da festa foi estruturada de forma participativa
e colaborativa: sugestões de nomes de artistas, dia da festa, pensar em cada ativi-
dade a ser organizada para aquele dia e até a decisão de ser uma festa sem álcool
foram questões pensadas e discutidas coletivamente. O projeto contou ainda com
várias atividades realizadas no espaço público da praceta com o objetivo de se ir
criando o hábito de uso do lugar. A festa aconteceu em finais de setembro de 2018,
contudo os resultados do C Bairrista são evidentes a médio e talvez longo prazo.
Atualmente, muitos moradores/as que foram mobilizados/as para a primeira assem-
bleia, em Maio de 2018, continuam envolvidos até hoje, muitos deles/as partici-
pam regularmente no GC4C, estiveram envolvidos/as na estruturação da exten-
são do C Bairrista para Ser Bairrista (alargamento do projeto para outros lotes vizi-
nhos) e vários destes moradores/as têm sido protagonistas no projeto Transformar
Marvila com Jardim e Ciclovias (TMJC).
Um outro projeto demonstrativo da importância do trabalho colaborativo é a
Cicloficina Crescente – Marvila. As cicloficinas são projetos comunitários e volun-
tários de assistência a ciclistas, onde se procura, além de consertar as bicicletas,
ensinar e aprender de forma coletiva. Em Portugal102 existe uma dezena de proje-
tos desta tipologia. Em Marvila a cicloficina foi criada durante o processo do C
Bairrista, pela Associação Rés do Chão e pelo Centro de Promoção Social da Prodac
(CPS-P) da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), juntando-se posterior-
4. A comunidade constrói
A zona histórica e ribeirinha de Marvila (bairros Marvila Velha e Poço do Bispo)
está em grande processo de transformação urbana, associado a grandes investi-
mentos privados e públicos, à nova urbanização com projeto de arquitetura do
Renzo Piano (Pinheiro, 2017), à chegada das indústrias criativas (Malta e Bourgard,
2016), do Hub Criativo do Beato (Faustino, 2020) e de cervejarias artesanais (Sapo24,
2017), bem como a criação de espaços de lazer, com destaque para o Parque Ribei-
rinho Oriente, que liga esta zona ao Parque das Nações (CML, 2020). Do ponto de
vista urbano, pode dizer-se que a freguesia está dividida em dois territórios: por
um lado, os bairros Marvila Velha e Poço do Bispo, abaixo das duas linhas férreas,
que estão a passar por estas transformações; por outro lado, os bairros acima destas
duas linhas férreas, na sua grande maioria bairros de habitação de propriedade
municipal, onde se encontram os bairros em que a Rés do Chão intervém. Acima
das linhas férreas existe pouco investimento privado e o público. Um dos grandes
investimentos públicos previstos para estes bairros é a construção de parques
habitacionais de cariz municipal, através do Programa Renda Acessível,103 no qual
parte do parque habitacional se destina ao mercado livre de habitação (a divisão
difere de bairro para bairro, mas nalguns contextos entre 1/3 e 1/2 do parque
habitacional é destinado ao mercado livre de habitação, sendo o restante a preço
controlado para pessoas com rendimentos intermédios). No caso dos bairros Mar-
quês de Abrantes, Alfinetes e Salgadas pretendia-se construir aproximadamente
500 fogos de habitação104 em vários edifícios habitacionais espalhados pelos vários
terrenos expectantes.
105. O presente texto não tem dimensão compatível com o aprofundamento de outros projetos de cons-
trução em Marvila. Destaque-se, porém, que neste local em específico (descampado onde se prevê cons-
truir o jardim) também se planeava a construção de uma terceira via sobre o Tejo, que obrigou ao fecho de
equipamentos públicos (tais como a Escola Secundária Afonso Domingues). No território mais amplo de
Marvila também se discute a provável construção do Hospital de Todos os Santos, uma esquadra da PSP,
um centro de saúde, pavilhões desportivos e zona de ligação com Corredor Verde Oriental. Uma das cons-
truções que não avançou foi a Fundação Luso-Brasileira, com projeto para o local por Oscar Niemeyer.
106. Link: https://op.lisboaparticipa.pt/edicoes-anteriores/5bd6e21ddad1a00009480435/propostas/
5c12aa84663b01000b6ea489
107. Link: https://op.lisboaparticipa.pt/edicoes-anteriores/5bd6e21ddad1a00009480435/propostas/
5c12a669663b01000b6ea47d
| 234 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
5. Concluindo
Os processos previamente referenciados, em particular no caso do TMJC, mos-
tram-nos a importância de envolver moradores/as em processos de decisão e na
construção coletiva dos projetos. Pode dizer-se que estes bairros estão em movi-
mento, lutando pela sua transformação (Ne-lo, 2018) e pela defesa do seu direito à
cidade, a construir e a viver o lugar (Lefebvre, 2008; Harvey, 2012 e 2013) e demons-
trando a importância de partir das bases na reivindicação da transformação do
lugar (Thörn, 2011; Siebier e Centeio, 2011).
Destaca-se a importância de valorizar o processo, porque nem sempre os resul-
tados imediatos de um processo participativo e colaborativo podem ser avaliados
como positivos. Quando as equipas se mantêm atentas ao processo e permanece
o envolvimento das pessoas, já se observa um resultado positivo.
Projetos como o C Bairrista, o TMJC e a Cicloficina Crescente – Marvila impul-
sionaram o sentimento de lugar e o envolvimento dos moradores/as e deram-lhes
ferramentas para reivindicar mais. A atividade da Rés do Chão nestes territórios,
partindo de uma metodologia ampla, que vai desde a investigação à intervenção,
foi importante para ajudar no impulsionamento do engajamento das pessoas. Em
Marvila, o contributo da Associação está focado no espaço público e nos pisos tér-
reos não habitacionais, mas os seus resultados vão muito para além deste propó-
Siglas
BIP/ZIP = Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa
CML = Câmara Municipal de Lisboa
CPS-P = Centro de Promoção Social da Prodac
GC4C = Gupo comunitário 4 Crescente
Gebalis = Gestão do Arrendamento da Habitação Municipal de Lisboa, EM, SA
INE = Instituto Nacional de Estatística
PSP = Polícia de Segurança Pública
TMJC = Transformar Marvila com Jardim e Ciclovias
OPL = Orçamento Participativo de Lisboa
SCML = Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
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Capítulo X
Narrativas e práticas
participativas nos
programas habitacionais
em Portugal:
Trajetória e influência
da experiência brasileira
* Arquiteta, Professora na Universidade Nove de Julho e no Instituto Federal de São Paulo, Pesquisadora
em Políticas Públicas em Habitação de Interesse Social. Email: marianacicuto@gmail.com
1. Introdução: aproximação ao debate Brasil-Portugal em
arquitetura participada
Este artigo busca apresentar as narrativas e práticas dos processos participati-
vos no campo habitacional da realidade portuguesa, com vista a revelar possíveis
influências dos processos brasileiros nas concepções de métodos participativos de
moradores e arquitetos a partir da década de 1970 e seus desmembramentos até o
lançamento do programa nacional «Iniciativa Bairros Críticos» (IBC) em 2005, em
especial a experiência do Bairro do Lagarteiro. É possível considerar certa influên-
cia de experiências brasileiras nas políticas habitacionais em Portugal no processo
Serviço Apoio Ambulatório Local (SAAL), criado em 1974. No entanto, os progra-
mas habitacionais criados a partir da década de 1980 caracterizam-se por lacunas
nos processos participativos e, numa fase posterior, no programa experimental
específico, a IBC, observa-se a retomada do debate e ações que tratam da partici-
pação no processo do projeto habitacional. A prática da IBC revela que o Estado
pode atuar além da instituição de normativas e financiamentos e ser um coorde-
nador das iniciativas de participação.
As discussões dos processos participativos no campo habitacional em Portugal
podem ser apresentadas a partir do período pós-guerra na década de 1950, não obs-
tante os fortes condicionalismos dos regimes políticos, nomeadamente em Portugal.
Esse período revela um grupo de arquitetos que «acreditava que a arquitetura tinha
a capacidade de transformar o comportamento das pessoas e de melhorar as con-
dições de habitação para a população de menor renda» (Sanches, 2015: 80). Segundo
esta autora, é nesse contexto que se iniciam debates e experiências de participação
dos futuros moradores em projetos habitacionais no atelier de arquitetura de Nuno
Teotónio Pereira109. Nuno Portas, outro arquiteto fundamental na história da habi-
tação em Portugal, relata que o seu interesse por habitação social se iniciou no
contato com o atelier de Teotónio Pereira e «que aquele era o local da discussão da
política da habitação daquele momento no país» (Sanches, 2015:86).
Posteriormente, na década de 1960, é realizado o colóquio sobre o problema
da habitação «Aspectos sociais na construção do Habitat» pelo Sindicato Nacional
dos Arquitetos, em Lisboa. Segundo José António Bandeirinha (2014), nesse coló-
quio o arquiteto Nuno Portas apresentou o texto «Problemas da célula familiar»,
que destacou o campo da sociologia e a crítica espacial dos projetos. A principal
recomendação do colóquio foi a de que os novos projetos de habitação fossem pro-
gramados em função das exigências particularizadas de cada um dos grupos huma-
nos a que se destinam (Bandeirinha, 2014:66).
109. Ao longo da década de 1960, Nuno Teotónio Pereira será o principal impulsionador da constituição
de uma política habitacional em Portugal.
| 242 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
110. Segundo Rita Ávila Cachado (2013: 137), a partir da década de 1970, a construção clandestina aumen-
tou em toda a área metropolitana de Lisboa. Um dos fatores que contribuiu para este crescimento foi um
vazio da promoção legal da habitação. Em face da ausência de alternativas e programas habitacionais,
a construção dos bairros clandestinos permitiu satisfazer as necessidades familiares. Uma parte dos bair-
ros clandestinos é conhecida pela designação «bairros de barracas», que cresceram muito nesse momento,
não só em virtude da crise financeira, como também devido ao afluxo de imigrantes na sequência da inde-
pendência das ex-colónias africanas.
111. O LNEC teve papel importante na pesquisa sobre cidade e habitação e, entre 1963 e 1980, contava
com a presença de Nuno Portas como funcionário e investigador do laboratório, que estudava a questão
do habitat.
CAPÍTULO X. NARRATIVAS E PRÁTICAS PARTICIPATIVAS NOS PROGRAMAS HABITACIONAIS EM PORTUGAL | 243 |
112. Passados dois anos desde o início oficial do processo, em 27 de outubro de 1976, um despacho con-
junto do Ministro da Administração Interna e do Ministro da Habitação, Urbanismo e Construção deter-
mina o fim à metodologia do processo SAAL e à sua estrutura orgânica de intervenção.
| 244 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
-los livres para construir – dentro dos limites da compatibilidade do plano urba-
nístico desenvolvido – e não de inibir ou criar proibições.
[...] ficou decidido que os próprios moradores trabalhariam em campo sob nossa orien-
tação e nos forneceriam o material bruto que interpretaríamos no escritório [...]. Ainda
que parecesse lógico o contrário, é muito raro que urbanistas tenham contatos face a
face com as pessoas para quem fazem planos. Vivíamos com o escritório cheio de fave-
lados que o invadiam para ver o que fazíamos e ficavam para discussões que varavam
a noite. Era emocionante ir recebendo aqueles pedaços dos mais diversos papéis e ir
vendo um trabalho que surgia aos poucos (Santos apud Pulhez, 2008:112).
Segundo Carvalho (2012:197), esse processo foi defendido pelo arquiteto Nuno
Portas, um dos responsáveis pela implementação do SAAL. Enquanto esteve no
LNEC, viajou por países como Brasil, Colômbia, Peru, entre outros e, nesse período,
conheceu Carlos Nelson e John Turner. O arquiteto mencionou essa metodologia
no seu relatório «Habitação Evolutiva» desenvolvido em 1970 em conjunto com o
arquiteto Francisco Silva Dias e, posteriormente, chegou a testá-la no SAAL. Além
disso, Sanches (2015:102) salienta que Portas refere-se à favela Brás de Pina como
modelo para a organização, descentralização de poderes, comunicação das pessoas
e autogestão dos moradores nas etapas de diagnóstico, projeto e obra SAAL.113
Porque comecei a perceber, depois de uma viagem que o LNEC me fez ir ao Brasil, eu
comecei a perceber que no Brasil havia as soluções, que se iam tornar problemas, que
eram as do dinheiro americano para fazer bairros sociais, portanto Cidade de Deus, um
caso típico. E que havia problemas que podiam vir a ser a solução, porque no Brasil
conheci o Carlos Nelson dos Santos, que era uma espécie John Turner do Brasil. Depois
conheci o John Turner, andei pela América Latina, tudo isso devo ao LNEC. Essa é a
terceira fase que atirava para o problema dos bairros de lata/clandestinos e que vai
formar o SAAL (Portas apud Carvalho, 2012:314).
teto português que atuou numa das intervenções da IBC,115 os programas habita-
cionais promovidos a partir da década de 1980 foram alvos de críticas pela ausên-
cia de processos participativos.
Com a entrada de Portugal na União Europeia em 1986, a partir daí os programas habi-
tacionais realizados e promovidos pelos governos são criticados por técnicos mais rela-
cionados com as áreas da economia, sociais, sociologia etc., por uma falta, certa lacuna
no fator participativo (Pinto, 2017).
115. A IBC contou com três intervenções: Bairro do Lagarteiro (Porto), Vale da Amoreira (Moita, Lisboa)
e Cova da Moura (Amadora, Lisboa). O arquiteto atuou na intervenção no Bairro do Lagarteiro.
116. O arquiteto italiano Giancarlo de Carlo, durante as décadas de 1960 e 1970, foi um dos pioneiros
na reflexão sobre a importância da «Arquitetura Participativa» e na criação de procedimentos de traba-
lho que incorporassem a participação do usuário no processo de elaboração de projetos.
117. Disponível em: http://arquivo.jornalarquitectos.pt/en/234/editorial/. Acesso em: 15 mar. 2019.
118. Segundo Dias (2009), «o populismo manifesta-se de muitos modos. Na maior parte das vezes, con-
siste numa espécie de facilitação da complexidade do real que propicia respostas extraordinariamente
simplificadas, as quais, depois, servem vários fins – quase sempre não confessadas proposições de poder –,
garantidos pelo reconhecimento imediatista e quase só emocional que o mecanismo de despojamento
da presença de contradições torna aparentemente evidente».
CAPÍTULO X. NARRATIVAS E PRÁTICAS PARTICIPATIVAS NOS PROGRAMAS HABITACIONAIS EM PORTUGAL | 247 |
(2013:1449) destaca que essas posições não refutam a importância e uso dos deba-
tes públicos na medida em que fornece o «alimento ao projeto», não retirando o
papel do arquiteto como mediador, uma vez que ele é responsável pela compreen-
são, interpretação, processamento e adaptação do projeto.
O debate em Portugal aponta as influências das experiências brasileiras na década
de 1960 para a constituição de programas habitacionais participativos e, numa fase
posterior, com um programa experimental específico, apresenta outras referências
teóricas que tratam da participação dos usuários no processo do projeto. Um con-
junto de diversos debates é suscitado, apontando para a inter-relação das narrati-
vas sobre modelos de participação com as práticas desenvolvidas em Portugal. Essas
constatações auxiliam no entendimento de como essas reflexões influenciaram o
trabalho dos arquitetos e equipas multidisciplinares, desde as ações na década de
1970 em Portugal, assim como na constituição dos formatos e perfis das equipas
técnicas na experiência da IBC.
Em Portugal, como referido, a partir da década de 1970 são inaugurados pro-
jetos habitacionais construídos no âmbito do Programa Habitacional Serviço de
Apoio Ambulatório Local (SAAL). Criado a partir da Revolução dos Cravos,119 o
SAAL era destinado à população residente120 que se encontrava alojada em situa-
ções precárias. O arquiteto Paulo Tormenta Pinto, em entrevista concedida à autora,
destaca que os problemas habitacionais em Portugal surgem na década de 1950
decorrentes do êxodo rural.121 A partir da década de 1970, é possível identificar a
continuidade do processo de pressão demográfica impulsionada pelo êxodo rural
e a vinda dos imigrantes das antigas colónias:
119. A Revolução dos Cravos pôs fim ao período ditatorial do Estado Novo, dando origem ao «Programa
dos três D: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver». Em 25 de abril de 1975, ocorreram eleições livres
para a Assembleia Constituinte, que elaborou uma nova Constituição, com fortes características socialis-
tas e instituiu o regime de democracia parlamentar, no qual a habitação digna foi apresentada como um
direito da população, inscrevendo o direito à habitação e ao urbanismo entre os direitos e deveres sociais.
120. Nuno Portas (1986:636) salienta que as ideias do SAAL já estavam delineadas alguns anos antes da
Revolução desde o final da década de 1960, aguardando condições políticas para despoletar a vontade
dos próprios interessados – as populações – de aceitarem um contrato com o aparelho do Estado deten-
tor de parte de meios imprescindíveis.
121. Na década de 1950 a população de Lisboa aumentou em razão do êxodo rural. A ausência de infraes-
trutura e de transporte resultou na proliferação dos bairros de barracas nas periferias (Antunes, 2018:260).
| 248 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
De acordo com Bandeirinha (2014:250), o SAAL, que surgiu como uma resposta
aos graves e acumulados problemas da crise de alojamento que explodiram súbita
e espontaneamente, foi uma instituição paralela menos burocrática e, sobretudo,
preenchida com funcionários identificados com a revolução. Sobre a atuação dos
técnicos, o autor destaca que era considerada a cumplicidade com a resolução dos
problemas da população, embora tenham atraído também profissionais mais dis-
postos a um papel de neutralidade técnica. Desta forma foi criada uma estrutura de
elevada autonomia que pretendia contornar a burocracia (Antunes, 2018:357) por
meio de equipas técnicas – em sua maioria compostas por arquitetos, engenheiros
e estudantes, denominadas brigadas técnicas –, as quais prestavam apoio local e
faziam a identificação das áreas de intervenção, a definição das ações, o projeto e
a construção. Os residentes dos bairros de habitações precárias deveriam se orga-
nizar, discutir os problemas e deliberar as possíveis soluções. As brigadas eram cha-
madas ao local e, caso as propostas fossem exequíveis, iniciava-se a intervenção.
Esse método possibilitava a participação da população na construção, com mão de
obra, recursos monetários ou combinações de ambos. O Estado, tanto central como
local, era responsável pela organização e gestão do SAAL, pela aquisição de terre-
nos e materiais de construção e realização de obras de infraestrutura.
Bandeirinha (2014:238) identifica um pouco mais de 90 projetos, dos quais 73
foram parcialmente construídos. Vários arquitetos e engenheiros participaram na
elaboração dos projetos e nas brigadas e cada operação do programa manifestava-
-se com métodos e projetos diversos entre si. Segundo o autor, essa diversidade, se,
por um lado, revelava certa dificuldade de expressão de uma intenção coletiva, por
outro, comprovava que a participação dos moradores, o grau de convicção no pro-
cesso e a pluralidade dos seus desejos foram determinantes para uma parte signi-
ficativa dos resultados obtidos.
Além dos atributos sobre os processos participativos com uma perspectiva
transformadora e além das predefinições tipológicas (Bandeirinha, 2014:251), o pro-
grama também é caracterizado pela presença de uma geração de arquitetos que,
posteriormente, tornaram-se referências para a arquitetura portuguesa e mundial,
com destaque para Álvaro Siza Vieira e Fernando Távora.
Este plano se constitui como uma espécie caso de referência relativamente a vários fato-
res, não só aos fatores participativos, com uma rapidez Vale da Amoreira (Moita, Lisboa)
e Cova da Moura (Amadora, Lisboa) neste programa de arquitetos que eram novos na
altura e que vieram mais tarde a revelar-se e, a partir deste plano, a consagrar e refor-
çar ainda mais a sua relevância no panorama da arquitetura (Pinto, 2017).
CAPÍTULO X. NARRATIVAS E PRÁTICAS PARTICIPATIVAS NOS PROGRAMAS HABITACIONAIS EM PORTUGAL | 249 |
Já passado mais ou menos uma década, dada a entrada de Portugal na União Europeia
em 86, há um programa que virá logo a seguir, que é o PIMP, que é um programa onde
se constrói muita habitação, mas que também é um programa relativamente curto no
tempo e depois aparece o PER, que começa em 1993 para as principais cidades Porto
e Lisboa, nas regiões Metropolitanas. Houve ao longo do PER uma interação social rela-
tivamente curta. Ou seja, os projetos na maior parte dos casos foram desenvolvidos
pelos próprios municípios, portanto não houve tanta participação de uma classe de
arquitetos com relevância. Os projetos foram desenvolvidos nos próprios municípios,
eu próprio trabalhei nestes projetos ainda como arquiteto muito jovem e que tive a opor-
tunidade de trabalhar neste período (Pinto, 2017).
O arquiteto ainda destaca que no PER122 houve uma «lacuna» do processo par-
ticipativo e que poderia ter sido uma oportunidade para criar mecanismos de maior
integração social para a população:
Mas de facto houve essa lacuna naquilo que foi uma oportunidade de lançar uma polí-
tica também de desenvolvimento social, ou seja, há todo um desenvolvimento baseado
nas questões físicas, dar uma boa qualidade de casa, um melhorar o ambiente para as
pessoas morarem, mas todo o projeto de realojamento das pessoas foi feito de certa
maneira, ou por ordem de chegada ou simplesmente realojando as pessoas sem um
acompanhamento de proximidade que pudesse ser visto como uma espécie de oportu-
nidade para que estas intervenções fossem também não só melhorias de condições do
território ou acabar com a habitação de barracas e aproveitar também para lançar alguns
mecanismos para que estas pessoas pudessem se integrar socialmente, ter mais acesso
ao emprego, por exemplo, que são fatores relevantes (Pinto, 2017).
122. Vale destacar o projeto de investigação «Experts» realizado desde 2016 por meio da parceria entre
o ICS-ULisboa, o IGOT-ULisboa e o CIES-IUL, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia
(FCT). A pesquisa pretende compreender o papel dos técnicos nas políticas públicas por intermédio
do Programa Especial de Realojamento (PER). Para detalhes sobre a pesquisa, ver: https://expertsproject.
org/about/.
| 250 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
dos. A Iniciativa distinguia-se, assim, pelo seu caráter interministerial, pela estru-
tura de agentes que envolvia – desde o nível ministerial a um nível mais informal –,
pelo seu modelo de gestão, modelo de financiamento e ativação de recursos e pela
metodologia de desenvolvimento e participação. Dessa forma, a intervenção de cada
bairro obedeceu a um modelo organizacional (Barros e Campos, 2017:14):
Estive no INH e IHRU entre 2005 e 2010. No quadro da IBC o meu papel foi receber a
Resolução de 2005 e eu não tive nada a ver com a elaboração da Resolução. Lá dentro
me deram essa tarefa de que atribuem ao INH naquela altura a responsabilidade de
montar dentro daqueles princípios e objetivos. Portanto coube a mim fazer o primeiro
documento e depois acompanhei o processo todo. O processo teve basicamente duas
fases, a primeira foi a de preparação que culminou com uma carta de compromissos
entre os parceiros para cada um dos territórios. E a carta de compromisso era o que se
iria privilegiar, o que se iria fazer, como buscar o dinheiro, quem é que fazia o quê, era
no fundo o plano de ação. E depois, a partir da assinatura da carta de compromisso, foi
pôr isto a andar. E há claramente, e é importante perceber que a IBC teve claramente
essas duas fases, teve uma fase que foi de preparação, até porque o modelo de gestão
antes da carta de compromisso é um e depois da carta de compromisso é outro. Há este
marco. O meu papel foi ajudar a montar a carta de compromisso e ajudar a concretizar
(Freitas, 2017).
4. Bairro do Lagarteiro
O destaque para a operação no Bairro do Lagarteiro tem por objetivo apresen-
tar as relações estabelecidas entre o corpo técnico, em especial o arquiteto, com o
poder público e a população. Trata-se de um modelo de estrutura organizacional
participativa, que, construída em dois momentos no Bairro, revela a atuação dis-
tinta nos programas anteriores já citados (SAAL, PER E PIM) e a importância da
aproximação dos técnicos com a população.
E tudo isso era necessário reconstruir. Isto que chamamos de participação obviamente
tem muitos contornos e eu considero que, no momento atual, no momento que nós
vivemos, este fator participativo tem muito que ser visto neste prisma, ou seja, tentar
encontrar mecanismos para diluir esta fragmentação que esta população tem, que foi
desmotivada por processos anteriores (Pinto, 2017).
128. A intervenção no Vale da Amoreira foi dividida em cinco eixos principais, com enfoque em inserção
de hortas urbanas, intervenções artísticas, formação profissional, empreendedorismo juvenil e requalifica-
ção do bairro. A atuação de arquitetos e engenheiros no Vale da Amoreira é realizada principalmente nos
Eixos 1 e 2, com intervenções cromáticas para as edificações, desenvolvida pelo Laboratório da Cor da
Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, assim como a introdução de rede viária no interior
do Bairro e inserção de estacionamento. Além disso, foi realizado o projeto para instalação de um Centro
de Experimentações Artísticas (Sousa, 2012).
129. A intervenção na Cova da Moura foi dividida em oito eixos principais, a maioria com enfoque em
medidas de integração social, questões ambientais, experiências artísticas e apoio ao emprego. A partici-
pação de arquitetos e engenheiros na Cova da Moura é realizada principalmente na operacionalização do
Eixo «Levantamento e caracterização do edificado e da ocupação: residencial, associativa e comercial/
empresarial» do Plano de Ação do Bairro. O plano iniciou-se pelo LNEC em 2007. Foram constituídas
equipas mistas compostas por técnicos do IHRU, mas também por alguns técnicos juniores (estudantes
universitários de Arquitetura e/ou Engenharia), coordenadas e supervisionadas por técnicos do LNEC
(Arqt.º António Batista Coelho, Arqt.º João Branco Pedro e Eng.º António Vilhena) e coordenadas por um
técnico do IHRU e pela Chefe de Projeto. A intervenção na Cova da Moura também tinha como objetivo
a elaboração do Plano de Pormenor e a resolução da questão fundiária (Sousa, 2012).
| 254 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
O IHRU nesta altura, antes do projeto de reabilitação física se iniciar, montou um gabi-
nete de bairro com uma técnica do próprio IHRU que esteve no interior do bairro e que
esteve a fazer trabalho com a população, portanto um trabalho de proximidade, essen-
cialmente um trabalho feito com as crianças. Houve um trabalho de reconhecimento
daquela população e eu considero que a existência deste gabinete foi essencial para a
preparação da população com o quadro de mudança que iria ocorrer (Pinto, 2017).
130. Segundo Freitas (2017), os funcionários dos gabinetes locais eram formalmente contratados pelo
IHRU, mas respondiam à Comissão Executiva. Pinto (2017) também afirma que eram funcionários públicos:
«Embora a ação mais visível na preparação do bairro para a intervenção corresponde essencialmente a pre-
sença deste gabinete, o nome é Gabinete do IHRU com técnicos sociais e que tiveram durante um período
a fazer este trabalho». (entrevista concedidas à autora em 06/04/2017 e 24/04/2017, respectivamente).
131. Vale destacar a este respeito as diferenças entre o Brasil e Portugal. Em Portugal, é eleito um presi-
dente da Câmara Municipal e uma equipe executiva. O presidente é eleito com uma equipe de vereado-
res, portanto, os vereadores não são votados separadamente como no Brasil. Além disso, há na Assem-
bleia Municipal debates sobre as ações da Câmara.
CAPÍTULO X. NARRATIVAS E PRÁTICAS PARTICIPATIVAS NOS PROGRAMAS HABITACIONAIS EM PORTUGAL | 255 |
Os edifícios nós não ganhamos na primeira parte. Eu fiz o espaço público todo e depois
ganhamos a segunda parte dos edifícios. A parte edificada foi dividida em dois concur-
sos. E depois há um dado que é muito interessante, quando nós fizemos o segundo
concurso para o Edificado já é a última fase de reabilitação do bairro e aí houve a crise
financeira de Portugal, o IHRU cancelou todo o financiamento. O espaço público foi
construído, a primeira parte do edificado foi construída e a segunda fase da reabilitação
dos edifícios houve o concurso, entregamos os projetos e, neste momento, cancelou
a IBC, foi radical, acabou. O Gabinete de bairro fechou e os projetos ficaram na gaveta.
Depois houve eleições para a Câmara do Porto e o executivo municipal decidiu com
fundos da própria câmara financiar o projeto (Pinto, 2017).
Pinto (2017) destaca que, nesse segundo momento da intervenção, houve maior
possibilidade de participação da população no projeto desenvolvido, facto que não
ocorreu no momento da intervenção dos espaços públicos.
O que é muito interessante, que depois não existindo mais o gabinete de bairro, houve
um contato promovido pela Câmara, agora do arquiteto com a população. E aí nós dis-
cutimos com a população as questões arquitetónicas e aí já foi um debate mais parti-
cipativo. Antes não tínhamos nenhum contato com a população, somente no dia a dia
da execução da obra, etc, mas não houve discussão do projeto (Pinto, 2017).
Aqui nós percebemos uma grande diferença da ação, por exemplo, no caso do SAAL,
o que se verifica nos relatos que existem são os arquitetos junto à população a debater
as questões arquitetónicas, a fazer maquetes para a população perceber como vão a ser
as casas, etc., isto é significante. No caso dos outros programas como o PIMP e o PER,
o arquiteto está completamente afastado, mas ele de certa maneira é um protagonista,
é uma figura «iluminada», que com seu conhecimento disciplinar sobre a arquitetura,
sobre a história da arquitetura, sobre as experiências arquitetónicas, sua cultura arqui-
tetónica, é-lhe dada a confiança para desenhar o quadro da mudança. E, portanto, pas-
samos para um «terceiro estágio», onde o arquiteto está fora e há todo um debate sobre
a implementação deste modelo que está na esfera da economia social, da sociologia e
da geografia (Pinto, 2017).
| 256 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Eu acho que na IBC a ação dos arquitetos num momento secundário não é uma ação
deliberada, é toda uma discussão que se vai iniciando dentro de outro setor que não
reconhece a necessidade e a relevância. E também porquê? Porque deixou de haver da
parte dos arquitetos uma afirmação social e ideológica sobre o problema que eles pró-
prios tratam. Por exemplo, no caso do SAAL, há arquitetos que estão muito na linha da
frente do debate político, são figuras intransponíveis que, para além da sua atividade
como arquiteto, são pessoas que estão na linha da frente de toda a ideologia que envolve
a Revolução de 25 de Abril. De certo modo, o sucesso de «disciplinaridade» que a pro-
fissão foi adquirindo nos anos que seguiram acabou por potenciar um discurso muito
mais «para dentro», da própria profissão do que «para fora». Não quer dizer que os
arquitetos não tivessem uma opinião, não tivessem estas preocupações, não fossem sen-
síveis. Mas o que é certo é que tem a ver com o próprio posicionamento, digamos, cívico
em torno destas matérias (Pinto, 2017).
Nesse contexto, o arquiteto afirma que essa «lacuna» estabelecida na IBC reve-
lou a necessidade de aproximação com a população. O contrato do trabalho com a
Câmara do Porto não previa a intervenção de trabalho social e a ação limitada nas
intervenções físicas foi considerada insuficiente como prática participativa.
Aquilo que me foi dado a observar, por uma curiosidade pessoal, pois estava como
arquiteto, mas queria ver e queria saber como estava a ser feito, etc., embora não esti-
vesse nas competências do meu contrato me envolver nestes processos. No meu con-
trato estava para eu desenvolver o estudo da intervenção física, precisamos de você
«assim e assim» e pronto. «Você é arquiteto e faz o projeto e responda às nossas neces-
sidades». Para mim era pouco. Foi importante um envolvimento, ainda que não tenha
resultado num primeiro momento, num envolvimento direto com a população, que
eu acho que aqui pode ser considerada certa lacuna da IBC que foi esta integração dos
arquitetos numa fase posterior (Pinto, 2017).
CAPÍTULO X. NARRATIVAS E PRÁTICAS PARTICIPATIVAS NOS PROGRAMAS HABITACIONAIS EM PORTUGAL | 257 |
5. Reflexões finais
A análise das narrativas e práticas em Portugal revela que uma importante
experiência – SAAL – obteve interlocução com o trabalho desenvolvido pelo Grupo
Quadra no Rio de Janeiro na década de 1970. Nesse contexto inauguram-se espa-
ços de debates a partir das proposições apontadas pela luta dos movimentos sociais
pelo direito à cidade e pelas novas formas de intervenção do Estado. A metodolo-
gia do trabalho desenvolvida pelo SAAL integrava um modelo pioneiro de processo
participativo entre técnicos e moradores.
De certa forma, as experiências após o SAAL revelam que os processos parti-
cipativos e o protagonismo dos técnicos com a população vão-se alterando ao longo
do tempo. Este artigo busca apontar o distanciamento do arquiteto com a popula-
ção nos programas posteriores ao SAAL como o PIMP e o PER e sugere que a reto-
mada dos processos participativos pode ser apresentada a partir de 2005, com o
lançamento da «Iniciativa Bairros Críticos».
Na IBC a administração local e os seus técnicos buscaram uma intervenção
proativa e próxima no processo participativo e no diálogo com a população e a
suas organizações. Essa prática evidencia como o Estado pode ir além do papel nor-
mativo e financiador e ser um coordenador e catalisador das iniciativas socioterri-
toriais e da organização e participação. Os mecanismos de cooperação institucio-
nal e de «governança multiníveis» ensaiados na IBC podem ser um exemplo da
valorização do trabalho dos técnicos de vários âmbitos e da interlocução para a
distribuição de conhecimento técnico com a população. O que também se coloca
como virtude é a atuação dos técnicos em distintas escalas (administração central,
regional, local e entidades), como um modelo de intervenção na tentativa de con-
vergência horizontal dos agentes e a participação da população como condição para
viabilizar positivamente as experiências.
Siglas
CIES-IUL = Centro de Investigação e Estudos Sociais – Instituto Universitário de Lisboa
ICS-UL = Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa
IGOT = Instituto de Geografia e Ordenamento do Território
LNEC = Laboratório Nacional de Engenharia
RCM = Resolução de Conselho de Ministros
UIA = União Internacional de Arquitetos
| 258 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
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Capítulo XI
132. Referenciadas, no presente texto, no âmbito do título do projeto de investigação «Modos de Vida e
Formas de Habitar: ilhas e bairros populares no Porto e em Braga», coordenado por Manuel Carlos Silva
e financiado pela Fundação Ciência e Tecnologia, de que o primeiro autor deste texto é membro integrante.
De resto, o conceito modos de vida e/ou estilos de vida está ancorado na tradição sociológica predomi-
nantemente simmeliana e interacionista designadamente em Erving Goffman, embora não exclusivamente,
sendo de referir autores como Henri Lefebvre, Isabel Guerra, José Machado Pais (cf. Silva e Miguelote,
2002; Silva 2009).
CAPÍTULO XI. MODOS DIGITAIS E FORMAS DE PARTICIPAR HÍBRIDAS NA CIDADANIA DE AÇÃO | 263 |
133. As citações em outro idioma que não português foram livremente traduzidas pelos autores do pre-
sente texto.
| 264 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
dos quatro pilares que definem o espaço comum da cidadania de ação. O quarto
refere-se à prática criativa.
A cidadania de ação reflete o que Manovich (2006) designa de realidades híbri-
das, aumentadas ou, segundo Beslay e Hakala (2005), territórios ou «bolhas» digi-
tais. O virtual envolve-se com o real na perceção sensorial digitalmente desdobrada
de contextos de partilha, constituindo, gradualmente, novas realidades para os
modos de vida e para as formas de habitar. Os lugares alteram-se, permitindo novas
funções, interações e sociabilidades: a tríade espaço de vivências-espaço eletró-
nico-interação social caracteriza o que Souza e Silva (2006) classifica de espaços
híbridos e espaços conectados, móveis e sociais. Santaella (2008) refere-se a eles
como espaços intersticiais e Lemos (2009a) considera-os territórios informacionais.
Ainda segundo este mesmo autor (2009a:33), devemos «definir os lugares, de agora
em diante, como uma complexidade de dimensões físicas, simbólicas, económicas,
políticas, aliadas a banco de dados eletrónicos, dispositivos e sensores sem fio,
portáteis e eletrônicos, ativados a partir da localização e da movimentação do usuá-
rio. Esta nova territorialidade compõe, nos lugares, o território informacional».
No quadro dos sistemas comunicativos e informacionais, Argan (2005:235)
entende que sai reforçado o papel da cidade, dado que, como refere, consubstan-
cia-se um «aparato de comunicação; comunicação no sentido de deslocamento e
de relação, mas também no sentido de transmissão de determinados conteúdos
urbanos». São sistemas comunicacionais de troca e partilha de informações, poten-
ciados pela computação ubíqua (a designada internet das coisas), nos quais são
determinantes tecnologias de informação e comunicação associadas a médias loca-
tivas, instigando e estimulando fluxos comunicacionais. Os modos de viver anco-
ram-se crescentemente neste tipo de sistemas, que, por sua vez, redefinem formas
de habitar adotadas. Esta transformação em curso precisa ser espelhada na cida-
dania de ação. Castells (2000:50) indica que o que «caracteriza a atual revolução
tecnológica não é a centralidade de conhecimentos e informações, mas a aplicação
deste conhecimento e desta informação para a geração de conhecimentos e de
dispositivos de processamento e comunicação da informação, num ciclo de reali-
mentação cumulativo entre a inovação e seu uso». A tecnologia, acompanhada pela
inovação nos seus modos de uso, consubstancia a comunicação e a partilha.
As competências digitais na cidadania de ação exploram a tecnologia digital
móvel de modo multissensorial e interativo, aumentando os sentidos e promovendo
a capacidade crítica e criativa – aqui reforçada pelo ato de partilhar histórias no
questionamento de modos de vida e de formas de habitar, expondo assimetrias,
desigualdades e fragilidades. No sentido de reconhecer a opressão e desafiar o
preconceito, Heng (1996) reforça a consciencialização da partilha coletiva de expe-
riências semelhantes e defende que expressar emoções e ideias, de forma colabo-
rativa, conduz à análise crítica de outras ideias. Esta abordagem confere à cidada-
| 266 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
5. Notas finais
A cidadania de ação avançada estabelece diálogos mais abrangentes e profí-
cuos no que se refere ao dar lugar na cocriação e poder na tomada de decisão a
indivíduos e grupos em situação de desestruturação social, cultural e urbana,
envolvendo-os no codesenho de soluções com abordagens criativas e pensamento
crítico – consolidando o exercício da participação cívica com e para a comunidade
na melhoria dos seus modos de vida e na qualificação das formas de habitar cor-
respondentes. O empoderamento digital na redução de assimetrias, desigualdades
e fragilidades contribui para o incremento da cidadania democrática digital e afronta
a infoexclusão no quadro da pobreza associada a modos de vida e formas de habi-
tar, atuando sobre o preconceito de género, a exclusão social, a segregação espa-
cial e a estigmatização cultural.
É na relação dialógica entre rastreamento e processos de mapeamento que se
revelam dinâmicas socioculturais que expandem a apropriação espacial e acres-
centam densidade aos modos de vida. Para que as formas de habitar sejam inclu-
sivas e plurais precisam integrar as mudanças geradas a partir da aculturação espa-
cial – na qual urge fomentar a diversidade. Os processos colaborativos, através
dos quais a cidadania de ação é operacionalizada, revelam, em cartografias amplia-
das, os novos territórios das formas de habitar. São mapas que expressam não só
a apropriação de lugares de convivência, mas que também tornam evidentes os
elementos que organizam os espaços de vivências. A prática do mapeamento acres-
centa conhecimento multidimensional e multissensorial sobre os modos de vida
e as formas de habitar. O exercício do mapeamento digital individual, coletivo ou
comunitário aumenta, na cidadania de ação, a informação sobre representações
sociais que, por sua vez, dão nota dos caminhos percorridos na procura do bem-
-estar e melhoria de modos de vida e formas de habitar. Atender a esses esforços
é considerar mudanças verificadas nos esquemas de representação e implementa-
ção de novos modos de vida e formas de habitar.
Terminando com Arnstein (1969), a cidadania de ação exige, no exercício da
participação cívica, que: i) se tenha os indivíduos e coletivos como parceiros na
cocriação em processos colaborativos; ii) se preveja mecanismos de delegação de
poder para os cidadãos, relativos às opções sobre soluções a dotar; iii) se partilhe
CAPÍTULO XI. MODOS DIGITAIS E FORMAS DE PARTICIPAR HÍBRIDAS NA CIDADANIA DE AÇÃO | 273 |
modelos de controlo com os cidadãos sobre decisões a tomar para o conforto indi-
vidual e o bem-comum. Dado o fosso existente entre a expressão do cidadão e as
respostas das entidades, defendeu-se neste texto o empoderamento cidadão com
métodos digitais promotores/facilitadores/impulsionadores da prática de uma
cidadania de ação com formas de participar híbridas, capazes de recolherem as
diferentes vivências e permitirem o diálogo mais plural e pleno entre os diversos
atores da transformação dos modos de vida e formas de habitar.
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Capítulo XII
Pânico ou Plano –
Arquitetura num mundo
em mudança*
Graeme Bristol**
* Este artigo foi inspirado pelo Call for Papers (Chamada para Comunicações) para o Forum 20 Arcasia
intitulado «Arquitetura numa Paisagem de Mudança», realizado em Dhaka entre 2 e 7 de Novembro de
2019. O resumo deste Forum era o seguinte: «Nunca antes na história da humanidade se testemunhou
como agora, em rapidez e natureza, uma mudança sem precedentes, em todas as facetas da vida humana.
Do ponto de vista tecnológico ao político, do climático ao migratório e das cidades às regiões, uma
mudança e transformação sem precedents, e a um ritmo notável, marca a nossa a época. Os arquitetos
estão a negociar todos os dias, com contextos crescentemente mais voláteis de mudanças, paisagens eco-
nómicas, físicas, tecnológicas e geo-políticas. De modo a abordar os diferentes aspetos deste inegável
fenómeno, o tema Arquitetura numa Paisagem em mudança (Architecture in Changing Landscape) é
esperado para evocar pensamentos, inovações e ideias apropriadas para o presente e futuro estado da
arquitetura» (http://www.arcasia.org/events/upcoming-events/423-arcasia-awards-2019).
Este artigo do autor foi traduzido do inglês para português por Diogo Rodrigues e Manuel Carlos Silva.
** Arquiteto e Professor, Doutorado em Arquitetura e Filosofia, Director Executivo do Centre for Architec-
ture & Human Rights. Email: glbristol@gmail.com
1. Introdução
Amo as cidades. Penso que a maioria dos arquitetos também ama as cidades.
Apesar de tudo, é nas cidades que se encontra a maioria dos edifícios – o genial, o
bom, o mau e o feio. As cidades são, no meu entender, a nossa maior obra coletiva.
É uma arte que realça o que há de melhor e de pior nas pessoas. Uma arte que está
em constante estado de mudança. As pessoas – especialmente os arquitetos, os urba-
nistas e os engenheiros – acrescentam todos os dias novas ideias, leis, planos e inclu-
sive edifícios a estas grandes obras de arte que apelidamos de cidades. Isto não para.
E nós já o fazemos desde há cerca de 7000 anos. A mudança é inerente e parte inte-
grante das cidades. Os turistas podem captar uma foto instantânea da cidade e ter
algum sentido de estabilidade e continuidade, mas, apesar de algumas coisas pare-
cerem mudar lentamente e, por vezes, nós tentarmos protegê-las da mudança, os
habitantes de uma cidade reconhecem que nada permanece igual nessa cidade.
Heráclito, habitante da cidade de Éfeso há 2500 anos atrás, foi mais longe e
afirmou que a única constante no universo é a mudança – a mudança é a essên-
cia da existência.134 Entretanto, ao mesmo tempo, temos muitas vezes receio das
mudanças. Nós gostaríamos que ela parasse por momentos e nos deixasse respi-
rar, de maneira que conseguíssemos recuar e observarmos o que fizemos. Mas não
há tempo para recuar e observar. A mudança continua a avançar e ela engloba
todas as nossas atividades do físico ao político e tudo o que se situa entre ambos.
Vendo o mundo deste modo, tal pode conduzir à ansiedade, senão mesmo ao
pânico. No meio disto, os arquitetos têm um certo orgulho em ser agentes de
mudança. Como profissão de desenho, ela é, por natureza, utópica. Nós estamos
constantemente à procura de novas e melhores formas de projetar cidades, edifí-
cios ou mesmo talheres.135 O lado positivo disto é que as coisas melhoram. O lado
negativo é a natureza dessa melhoria e quem decide o que é «melhor» ou «bom»
e como os fundos públicos e privados são gastos em tais «melhorias». Gentrifica-
ção, pela qual os arquitetos carregam bastante responsabilidade, é um termo um
tanto ambíguo. Este tipo de mudança é bom para alguns e um desastre para muitos.
Embora não haja dúvida de que a mudança é constante, o meu ponto aqui é
que, contrariamente ao prevalecente sentido de ansiedade sobre a mudança, eu,
tal como Heráclito, abraçarei a mudança, sugerindo que há para nós uma maneira
de localizar o que T.S. Eliot apontava como o «ponto fixo»,136 a partir do qual pode-
mos observar e reduzir a ansiedade da mudança.
134. Cf., por exemplo, Diálogos de Crátilo, de Platão, 402 anos antes de Cristo (Crátilo, discípulo de Herá-
clito, teria sido mestre de Platão).
135. Cf. a título ilustrativo, os projetos de Michael Graves ou de Frank Lloyd Wright.
136. Cf. T.S. Elliot (1936) in Four Quartets, Burnt Norton II: p. 16.
| 280 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
2. Mudança na arquitetura
A profissão do arquiteto lida com muitas variáveis mutáveis e forças externas
na prática. Primeiramente, podemos focar a nossa atenção nalgumas constantes
da arte da arquitetura – forma, balanço, ritmo, estabilidade estrutural e sua utili-
dade para os seus utentes (ou, usando a trindade Vitruniana – firmitas (firmeza),
utilitas (utilidade) e venustas (beleza).137 Estes são elementos sobre os quais os
arquitetos continuam a desenvolver um certo controlo direto. Existe, ainda assim,
todo um universo de variáveis e forças externas sobre as quais os profissionais da
arquitetura exercem pouco ou nenhum controlo. Podemos encontrar-nos de certo
modo esmagados pelas mudanças nessas áreas. Justifica-se esse sentido de apreen-
são? Vejamos algumas dessas mudanças:
137. Cf. Dez Livros de Arquitetura (Ten Books of Architecture), Livro I, capítulo 3, Parágrafo 2. https://
www.gutenberg.org/files/20239/20239-h/20239-h.htm#Page_13
CAPÍTULO XII. PÂNICO OU PLANO – ARQUITETURA NUM MUNDO EM MUDANÇA | 281 |
138. Em Maio de 2019, 133.000 emigrantes foram detidos na fronteira México-Estados Unidos. Cf.
«Border arrests rose to nearly 133K in May as surge continues», in Político, por Hesson, 05 de Junho 2019,
https://www.politico.com/story/2019/06/05/border-arrests-increase-may-1509572
139. Cf. https://data2.unhcr.org/en/situations/syria/location/113. Cf. também «Turkey Regional Refugee
& Resilience Plan 2017-2018» https://data2.unhcr.org/en/documents/download/53539
| 282 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Desta lista de mudanças, parece-nos que a maioria delas são mais mudanças
do tipo cíclico. Noutras palavras, a nossa espécie já passou por elas antes e sobre-
viveu. A Arquitetura também resistiu a estas mudanças na economia e na política.
Prova evidente disso é a Lista da Herança Mundial (World Heritage List)140 em curso
por parte da UNESCO. Muitos desses monumentos listados são monumentos arqui-
tetónicos a preservar. Estas mudanças não deveriam alarmar a profissão. Há con-
tudo algumas poucas áreas, onde o perigo de sermos esmagados pode tomar conta
de nós. Uma delas é a iminente catástrofe climática que irá afetar a nossa política,
a nossa economia, certamente os padrões de migração e o ambiente, tal como a
funcionalidade de grande parte do ambiente construído. Tal como a prospetiva de
uma guerra nuclear que consumiu o nosso pensamento no período da pós-segunda
guerra mundial,141 os humanos têm tido a habilidade de cometer uma aniquilação
à escala planetária.
A catástrofe climática expande-se sobre esse pacto de suicídio global. Isto levou
Paola Antonelli, a curadora sénior do departamento de arquitetura e desenho
(design) no MoMA em Nova Iorque, a declarar: «Os humanos irão inevitavelmente
extinguir-se devido ao colapso ambiental, mas nós temos o poder de desenharmos
nós próprios um “belo fim”».142
Enquanto eu sugiro que os arquitetos, por natureza, planeiem mais para a
mudança do que para o pânico, a abordagem da senhora Antonelli assume mais
um posicionamento derrotista em relação à catástrofe climática com o desejo de
desenhar um belo epitáfio para a nossa espécie. Pode, porém, haver uma outra abor-
dagem que apele para a continuação da nossa espécie (e de muitas outras) no pla-
neta. Considero que tal envolve tanto a educação como a prática da profissão.
140. Cf. Lista da Herança Mundial da UNESCO (UNESCO World Heritage List): https://whc.unesco.
org/en/list/
141. Como criança de 13 anos durante a crise dos mísseis em Outubro de 1962, fui um dos muitos peões
deste medo existencial. Cf. também «Fear of nuclear annihilation scarred children growing up in the Cold
War, studies later showed» in Timeline, por Stephanie Buck, 29 de Agosto de 2017. Cf. https://timeline.
com/nuclear-war-child-psychology-d1ff491b5fe0
142. «Nós não temos o poder de parar a nossa extinção» (We don’t have the power to stop our extinction),
diz Paola Antonelli. In Dezeen, por Augusta Pownall, 22 de Fevereiro de 2019.
https://www.dezeen.com/2019/02/22/paola-antonelli-extinction-milan-triennale-broken-nature-exhibi-
tion/?fbclid=IwAR3IKjfD0FvMyojah2sZ7DNaa_314Pt7Xlp4h5qMkmfcrfvU9iiecm0QzqI
143. Cf. «O ensino da Arquitetura está em crise e desligado da profissão» (Architecture education is in
crisis and detached from the profession), diz Schumacher. In Dezeen, por Tom Ravenscroft, 9 de Julho de
2019. https://www.dezeen.com/2019/07/09/patrik-schumacher-crisis-architectural-education/#disqus_thread
CAPÍTULO XII. PÂNICO OU PLANO – ARQUITETURA NUM MUNDO EM MUDANÇA | 283 |
liar por parte de arquitetos praticantes de que aos estudantes licenciados não eram
ensinadas ou proporcionadas competências em ordem a poder trabalhar numa
firma de arquitetura. «A educação em arquitetura está desligada da profissão e
das realidades e necessidades societais, tal como expressas em encomendas de
reais clientes (públicos ou privados)». Até certo ponto Schumacher tem, pelo menos
parcialmente, razão, embora eu gostaria de dizer que estas realidades societais não
procedem de «encomendas de clientes» mas sim de notícias dos media.
A educação arquitetónica tem respondido de certa forma à degradação ambien-
tal. Desde a publicação do Relatório Brundtland144 o Conselho Nacional de Acredi-
tação em Arquitetura (National Architectural Accrediting Board-NAAB) – organi-
zação responsável por definir os critérios para o ensino da arquitetura nos EUA –
tem ajustado os requisitos curriculares de modo a enfatizar mais as responsabili-
dades ambientais ao incluir nas suas «Perspetivas Definidoras»(NAAB Conditions,
2014:15) a «Administração do Meio Ambiente». Com as suas cinco Perspetivas
Definidoras – «Comunidade e Responsabilidade Social» – o seu histórico tem sido,
na melhor hipótese, manchado. O Relatório Boyer «Construindo Comunidade»
propõe uma maior atenção às humanidades no ensino da arquitetura (Boyer e
Mitgang, 1996:78) mas eu diria que tal é insuficiente.
A resposta que tenho advogado para melhorar a resposta ao que Schumacher
designa de «realidades societais» é assumir uma abordagem baseada em direitos
(rights-based approach-RBA) em relação ao currículo do ensino em Arquitetura
(cf. Bristol, 2018). O RBA não tem de criar grandes alterações ao currículo. Em vez
disso, deve infundir ou misturar o RBA em cursos e estúdios. Tal é similar na sua
abordagem à da constante infusão ou mistura da responsabilidade ambiental no
currículo. Tal como David Orr salientou há alguns anos atrás, «toda a educação é
educação ambiental» (Orr, 1991). Eu acrescentaria que «toda a educação é educa-
ção dos direitos humanos». A implementação desta tese é inteiramente possível e
tem sido levada a cabo pela UNESCO através do Programa de Cátedra UNESCO.145
4. Respostas
Enquanto a profissão arquitetónica abraça a mudança e é, de facto, instigadora
da mudança, há alguns pontos que nós devemos observar, se quisermos evitar o
pânico e, em vez disso, planear para a mudança. Vejo três áreas de mudança, em
144. Cf. «Relatório da Comissão Mundical sobre o Ambiente e o Desenvolvimento: O Nosso Futuro
Comum» (Report of the World Commission on Environment and Development: Our Common Future) (1987):
disponível em http://www.un-documents.net/wced-ocf.htm
145. Mais informação sobre a proposta relativa ao Programa da Cátedra UNESCO está disponível em
https://architecture-humanrights.org/initiatives/
| 284 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
que podemos ordenar o nosso pensamento, a fim de extrair algum sentido da cres-
cente cacofonia da mudança. Elas são a globalização, a justiça ambiental e os direi-
tos humanos. Todas estas áreas se relacionam diretamente aos nossos princípios
fundamentais de comportamento ético.
a) Globalização
Entre todas as questões críticas da globalização que afetam as economias dos
Estados e a crescente influência das corporações transnacionais sobre a soberania
dos Estados, há, no que concerne a globalização, pelo menos duas questões que
mais diretamente afetam a profissão do arquiteto. Uma prende-se com o ensino e
a prática da Arquitetura. A outra relaciona-se com o impacto da Arquitetura no
público e na cultura.
Uma das questões que vem ganhando peso na arquitetura e no ensino da arqui-
tetura é a reciprocidade – o amplo reconhecimento, quer dos cursos, quer das cre-
denciais para praticar. Tal requer uma aceitação global de um conjunto de padrões
estandardizados. A Associação de Arquitetos da Commonwealth (Commonwealth
Association of Architects – CAA) tem lidado com isto nos países da Commonwealth
há já vários anos. Mais recentemente a NAAB e o Conselho Nacional dos Conse-
lhos de Registo em Arquitetura (National Council of Architectural Registration
Boards – NCARB) nos EUA têm investido em Acordos de Reconhecimento Mútuo
(Mutual Recognition Agreements – MRA). O Acordo de Camberra (Canberra
Accord)146 tem vindo a funcionar numa base de reciprocidade no ensino da arqui-
tetura desde 2006. Atualmente o Canadá, a China, países da Commonwealth, a
Coreia, Hong Kong, o México, África do Sul e os EUA são signatários.
A grande vantagem destes acordos é que os licenciados/as têm muito maio-
res oportunidades de se movimentar com os seus graus reconhecidos. O estabe-
lecimento de padrões estandardizados globais a nível do ensino e da prática pro-
fissional permitem uma maior portabilidade na prática.
Há, porém, nisto tudo um lado negativo. Schumacher, nas suas «13 Teses»,
sugere isso inconscientemente na sua 6.ª tese (entre as 13): «A crise (no ensino
da arquitetura) irá ser ultrapassada quando a arquitetura mundial, uma vez mais,
convergir num paradigma hegemónico e unificado que permita, para uma pesquisa
cumulativa, uma aplicação global e a sua canonização, tal como sucedeu com o
movimento moderno no século XX». A hegemonia cultural do movimento moderno
(ou a versão mais recente de Schumacher) é difícil de suportar num mundo pós-
-colonial. Isto é exacerbado pelo Acordo Geral de Comércio e Serviços (General
Agreement on Trade and Services – GATS). Ele cria uma competição muito desi-
gual destes serviços entre países com Acordos de Reconhecimento Mútuo (Mutual
Recognition Agreements – MRA) e os que não os têm. Também cria um risco cres-
cente aos direitos culturais, enquanto suporta a colonização corporativa. A pro-
fissão em arquitetura tem de fazer maiores esforços para proteger e promover os
direitos culturais e, ao mesmo tempo que suporta os necessários padrões globais,
estes precisam também de encontrar uma maneira de elevar os padrões das ins-
tituições arquiteturais que ainda não atingiram esses padrões globais.
b) Justiça Ambiental
Ainda que relacionada com os direitos ambientais e, de forma mais abrangente,
com os direitos humanos, a justiça ambiental documenta de que forma as regu-
lações governamentais costumam funcionar amiúde contra minorias e comunida-
des vulneráveis. Existe uma série de questões mas aqui há duas para as quais os
arquitetos e urbanistas deverão estar cientes.
A primeira é a da justiça ambiental. São tomadas decisões de planeamento
acerca de onde colocamos estações de tratamento de esgoto, indústrias tóxicas,
aterros sanitários e por aí fora. Tipicamente tais usos são localizados perto de sítios
onde vivem populações pobres e onde estas populações são minoritárias. A histó-
ria da Africville,147 um antigo subúrbio de Halifax, que o Canadá estabeleceu pri-
meiramente por volta de 1840, era maioritariamente composta por uma população
negra vinda do norte dos Estados Unidos. Com o crescimento da cidade de Halifax,
as indústrias mais tóxicas da cidade foram localizando-se nesta área. Acresce a isto
que a cidade se recusou a fornecer serviços de infraestrutura como água canali-
zada e saneamento. Esta negligência racializada foi exacerbada pela decisão de
realojar em 1964 os residentes de Africville sem o seu consentimento.
Estas injustiças ambientais não são relegadas para o passado, para a história.
No Canadá mais de 100 comunidades indígenas atualmente não têm acesso a água
potável.148 Como é que isto é possível num país com tamanha riqueza de recur-
sos, tanto financeiros como físicos? O corrente governo de Trudeau prometeu em
2016 um investimento muito maior149 para resolver estes problemas infraestrutu-
rais, mas atualmente pouco parece ter sido cumprido.
147. Cf. A História de Africville (The Story of Africville) por Matthew McRae. In Canadian Museum of Human
Rights. Disponível em https://humanrights.ca/story/the-story-of-africville
148. Cf. Amnesty International, «Canada: The Right to Water in First Nations Communities» (Amnistia
Internacional, «Canadá: O Direito à Água nas Primeiras Comunidades Nacionais»), disponível em https://
www.amnesty.ca/our-work/issues/indigenous-peoples/indigenous-peoples-in-canada/the-right-to-water.
Cf. também Human Rights Watch, «Make it Safe: Canada’s Obligation to End the First Nations Water Crisis»
(Assistência aos Direitos Humanos: «Torne-o seguro: a obrigação do Canadá em terminar a crise da água
das Primeiras Nações), 7 de Junho de 2016, disponível em https://www.hrw.org/report/2016/06/07/make-
-it-safe/canadas-obligation-end-first-nations-water-crisis.
149. Cf. «A Better Future for Indigenous Peoples» (Um melhor futuro para os povos indígenas), capítulo
3 do Orçamento de 2016. Disponível em https://www.budget.gc.ca/2016/docs/plan/ch3-en.html
| 286 | POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
c) Direitos Humanos
Há conflitos crescentes entre as populações locais e o setor de desenvolvimento
no que concerne os direitos culturais, os direitos de acesso, os direitos à habitação
e, no trabalho internacional, os direitos dos trabalhadores da construção e suas
famílias (a Assistência de Direitos Humanos – Human Rights Watch – continua a
compilar relatórios de abusos, todos implicando profissionais de arquitetura).152
É também importante notar que, no Canadá, o Ato Canadense de Direitos Huma-
150. «Federal budget 2019: Ottawa pledges $4.7-billion in funds to address Indigenous issues» (O Orça-
mento Federal em 2019: Ottawa 4,7 biliões de dólares canadianos em fundos para resolver questões
indígenas), por Shawn McCarthy, Globe and Mail, 19 de Março de 2019. Disponível em https://www.the-
globeandmail.com/politics/article-grits-pledge-47-billion-in-funds-to-address-indigenous-issues/
151. Cf. https://celdf.org/rights/rights-of-nature/. Cf também David Boyd «Rights of Nature» e «The Envi-
ronmental Rights Revolution: A Global Study of Constitutions, Human Rights, and the Environment»
(«Direitos da Natureza» e «Revolução dos Direitos do Ambiente: Um Estudo Global das Constituições,
dos Direitos Humanos e do Ambiente»).
152. Cf., por exemplo, «The Island of Happiness»: Exploitation of Migrant Workers on Saadiyat Island»
(«“A Ilha da Felicidade”: exploração dos trabalhadores migrantes na Ilha Saadiyat», por Abu Dhabi. Cf.
https://www.hrw.org/report/2009/05/19/island-happiness/exploitation-migrant-workers-saadiyat-island-
-abu-dhabi).
CAPÍTULO XII. PÂNICO OU PLANO – ARQUITETURA NUM MUNDO EM MUDANÇA | 287 |
5. Conclusão
Os arquitetos são agentes de mudança. É inerente à nossa formação e à prática
de projetos. Nós não entramos em pânico acerca da mudança, a qual nós planea-
mos. Não posso concordar com a abordagem de Paola Antonelli em relação ao pro-
jeto como um grande epitáfio. Acredito que nós devemos continuar a lutar contra
a grande mudança da iminente catástrofe climática através da ação e do planea-
mento. Quando fizermos isso, teremos todavia de estar muito cientes das nossas
responsabilidades em relação a alguns princípios básicos em termos de direitos
– ambientais e humanos. Devemos estar vitalmente conscientes de que estamos
a fazer este trabalho num palco global perante pessoas, cujos direitos devem ser
protegidos.
153. Cf. também um caso similar em NYC com Estados Unidos: cf. Avalon Chrystie, SLCE Architects et al.
https://www.justice.gov/sites/default/files/crt/legacy/2010/12/14/cvpsettle.pdf.
154. Cf. «London market demolition triggers UN investigation into area’s gentrification» (Demolição do
Mercado de Londres desencadeia uma investigação da ONU em área de gentrificação). In The Indepen-
dent por Lizzie Dearden, 27 de Outubro de 2017. Disponível em: https://www.independent.co.uk/news/
uk/home-news/london-un-gentrification-investigation-seven-sisters-market-demolition-pueblito-paisa-latin-
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Título: Por uma habitação básica: cidadania, democracia associativa e metodologias participativas
Organizadores: Manuel Carlos Silva, Fernando Matos Rodrigues, João Teixeira Lopes,
António Cerejeira Fontes e Teresa Mora
Edição: Edições Afrontamento, Lda. | Rua Costa Cabral, 859 – 4200-225 Porto
www.edicoesafrontamento.pt | geral@edicoesafrontamento.pt
Concepção gráfica: Edições Afrontamento, Lda.
Coleção: Cidade em Questão / 30
N.º edição: 2051
ISBN: 978-972-36-1846-4
Depósito legal: 478158/20
Impressão e acabamento: Rainho & Neves, Lda. | Santa Maria da Feira
geral@rainhoeneves.pt
Distribuição: Companhia da Artes – Livros e Distribuição, Lda.
comercial@companhiadasartes.pt
Dezembro de 2020
POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA
Cidadania, democracia associativa e metodologias participativas
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